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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (UFRJ)
MUSEU NACIONAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL (PPGAS)
Do gosto da mina, do
jogo e da revolta
U
m estudo antropológico sobre a construção da honra
em uma comunidade de mineiros de carvão.
MARTA REGINA CIOCCARI
Tese de doutorado
RIO DE JANEIRO
2010
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ii
Do gosto da mina, do
jogo e da revolta
U
m estudo antropológico sobre a construção da honra
em uma comunidade de mineiros de carvão.
MARTA REGINA CIOCCARI
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu
Nacional / UFRJ como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em
Antropologia Social.
Aprovada em:
_______________________________________________________
Prof. Dr. José Sérgio Leite Lopes – PPGAS-MN- UFRJ (Orientador)
_____________________________________________________
Profa. Dra. Cornelia Eckert – PPGAS-UFRGS
______________________________________________________
Profa. Dra. Elina Pessanha – PPGSA- IFCS - UFRJ
________________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte – PPGAS-MN-UFRJ
________________________________________________________
Prof. Dr. Moacir Palmeira – PPGAS-MN-UFRJ
___________________________________________________________
Profa. Dra. Renata Menezes – PPGAS –MN-UFRJ (Suplente)
___________________________________________________________
Prof. Dr. Federico Neiburg – PPGAS –MN-UFRJ (Suplente)
______________________________________________________
Prof. Dr. José Ricardo Ramalho – PPGSA – IFCS – UFRJ (Suplente)
Profa. Dra. Simoni Lahud Guedes – PPGAS – UFF (Suplente)
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iii
Cioccari, Marta Regina
Do gosto da mina, do jogo e da revolta: um estudo antropológico
sobre a construção da honra em uma comunidade de mineiros de carvão/
Marta Regina Cioccari – Rio de Janeiro: UFRJ/Museu Nacional, 2010.
x, 000f.: Il,

Cioccari, Marta Regina
Do gosto da mina, do jogo e da revolta: um estudo
antropológico sobre a construção da honra em uma comunidade de
mineiros de carvão/ Marta Regina Cioccari – Rio de Janeiro:
UFRJ/Museu Nacional, 2010.
xvii, 482f.: il, 2v. ; xxx cm
Orientador: José Sergio Leite Lopes
Tese (doutorado) – UFRJ/Museu Nacional/Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social, 2010.
Referências Bibliográficas: f. 461-482
1. Antropologia Social. 2. Antropologia Urbana. 3. Mineiros de
carvão. 4. Honra. 5. Etnografia. I. Cioccari, Marta Regina. II.
UFRJ/Museu Nacional/Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social. III. Título.
iv
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (UFRJ)
MUSEU NACIONAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL (PPGAS)
Do gosto da mina, do
jogo e da revolta
U
m estudo antropológico sobre a construção da honra
em uma comunidade de mineiros de carvão.
MARTA REGINA CIOCCARI
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social do Museu
Nacional / UFRJ como requisito parcial para a
obtenção do título de Doutor em Antropologia
Social.
Orientador: Prof. Dr. José Sergio Leite Lopes
RIO DE JANEIRO
2010
v
RESUMO
Esta tese aborda as formas de construção social da honra no cotidiano da comunidade de
mineiros de carvão de Minas do Leão (RS), após o desaparecimento da última mina de subsolo,
fechada em 2002. Parte-se da premissa de que, no pano de fundo do imaginário destes
trabalhadores, há uma espécie de “grande honra” da profissão que foi sendo delineada
historicamente, servindo de suporte à imagem de heroísmo que carregam os mineiros de subsolo
em diferentes lugares do mundo – do que o caso francês, explorado aqui a partir de revisão
bibliográfica e de um estudo etnográfico na Lorena francesa, constitui um exemplo. Entre os
trabalhadores gaúchos, junto à “grande honra”, mesclando-se ou opondo-se a ela, observa-se
uma multiplicidade de formas de “pequena honra”. Estas podem estar alicerçadas na
identificação com o métier, a partir do “orgulho” do trabalho bem-feito ou das “artes” da
malandragem, mas também se ancorarem em pertencimentos político-sindicais, religiosos,
esportivos, familiares ou, ainda, estarem relacionados à origem rural.
Nesta comunidade, como em outros segmentos nos quais predominam as relações face a
face, há uma grande preocupação dos moradores com a própria reputação, tecida pelas
observações e comentários alheios, do qual cada qual participa no sentido de preservar a própria
imagem – a própria honra – e de estabelecer igualmente a vigilância sobre os demais. A
pesquisa etnográfica revela uma série de clivagens e conflitos sociais que contrasta com a
apresentação feita pelos habitantes a forasteiros como de um local em que “todo mundo é
unido”. As identidades e o sentimento pessoal e coletivo de valor são forjados nesses
entrecruzamentos de diferentes mundos que atravessam e circundam o “mundo da mina”, nos
quais há relações de sobreposição, de mistura, mas também de tensão e de exclusão.
Palavras-chave: Mineiros de carvão, honra, heroísmo, reputação, classes trabalhadoras,
etnografia.
ABSTRACT
This thesis approaches the social construction of honor in daily life of the coal miners
community in Minas do Leão (RS), after the disappearance of the last underground mine closed
in 2002. It starts with the premise that, in the background of the workers' imaginary, there is a
kind of "honor" of the profession that has historically been outlined, supporting the image of
heroism that carry the underground miners in different parts of world – of which the French
case, explored here from literature and an ethnographic study in French Lorraine, is an example.
Among gaucho workers, besides the "great honor", merging or opposed to it, there is a
multiplicity of forms of "small honor." Those may be grounded in identification with the métier,
from the "pride" of a well done job or the "arts" of mischief, but also anchored in political and
trade union affiliations, religious, sports, and family issues, or even be related to rural origin.
In this community, as in other segments in which the face to face relationship is
predominant, there is a major concern of the residents with their own reputation, woven by the
observations and comments of others, which each part to preserve the image itself - the honor
itself - and also to establish surveillance over the others. The ethnographic research reveals a
number of divisions and social conflicts in contrast to the presentation made by the inhabitants
to outsiders as a place where "everyone is united." The identities and sense of personal and
collective value are forged in these crossover between different worlds that cross and circle the
"world of mine," in which there are relations of overlap, blend, but also of tension and
exclusion.
Keywords: coal miners, honor, heroism, reputation, working class, ethnography.
vi
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................01
PARTE I - A MINA, HONRA E DESONRA............................................................16
1 FACES DO HEROÍSMO MINEIRO....................................................................17
1.1 DA REPULSA À “GRANDE HONRA”..................................................................17
1.2.1 A idealização do trabalhador pelos comunistas.................................................22
1.2.2 A reação nas autobiografias e romances mineiros............................................29
1.2.3 Depois da última mina: orgulho, nostalgia e revolta.........................................32
1.3 APROXIMAÇÕES À “PEQUENA HONRA”.........................................................39
1.3.1 Das modalidades da “pequena honra”...............................................................42
1.3.2 Conflitos entre honra e reputação.......................................................................46
1.4 DE MEUS PRÓPRIOS PERCURSOS......................................................................51
1.4.1 Uma “brasileira” em campo francês...................................................................64
1.5 HISTÓRIAS DE VIDA E TRAJETÓRIAS..............................................................68
2 A CONSTRUÇÃO DA DIGNIDADE...................................................................73
2.1 INTRODUÇÃO.........................................................................................................73
2.2 A MINERAÇÃO E O PAPEL DOS ESTRANGEIROS...........................................76
2.2.1 A exploração de carvão em Leão.........................................................................85
2.3 DA DOCILIDADE À REBELIÃO...........................................................................87
2.3.1 O apelo ao “patriotismo” na Segunda Guerra Mundial...................................94
2.3. 2 De “garras tentaculares”, “elefantes” e “camundongos”..............................100
2.3.3 A greve de 1946 e as campanhas comunistas...................................................111
2.3.4 Resistências, sotaques e perseguições...............................................................122
2.4 AS MINAS E O REGIME MILITAR....................................................................126
2.4.1 A prisão de um “mineiro comunista”...............................................................127
2.5 UM TRABALHO “QUASE ESCRAVO”, UM “AÇOUGUE HUMANO”..........132
3 A “PEQUENA HONRA” DO TRABALHO: SETE TRAJETÓRIAS................135
3.1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................135
3.2 GERINO LUCAS E SUAS INCONTÁVEIS BATALHAS...................................136
3.3 LEO, OPERÁRIO-JOGADOR: “A MINA APAIXONA A GENTE” ..................149
3.4 GELSON: “O MINEIRO É UM GUERREIRO, UM BATALHADOR”...............158
3.5 JANGO: “ARTES” E DENÚNCIAS DA MINA COMO “RATOEIRA”..............163
3.6 O PERCURSO DE MARINO: DAS LIDES RURAIS PARA O SUBSOLO........179
3.7 ZÉ CABEÇA: PLACA DE “HONRA AO MÉRITO” POR SALVAMENTO......186
3.8 O FERREIRO MIEROSLAU E SEUS INVENTOS..............................................196
vii
PARTE II – A TESSITURA DA CIDADE...............................................................201
4 “AQUI É TODO MUNDO UNIDO!”: ESTÓRIAS QUE SE CONTAM..........202
4.1 UM MUNDO URBANO E RURAL......................................................................202
4.2 DE RIVALIDADES: “PERUS DO LEÃO” X “PERUS DO RECREIO”.............207
4.3 UM CLUBE PARA BRANCOS, OUTRO PARA “MORENOS”.........................213
4.4 “OS GRANDES TÊM ÁGUA, NÓS NÃO”..........................................................216
4.5 DE FAMÍLIAS, REPUTAÇÕES E RELAÇÕES DE GÊNERO...........................221
4.5.1 Do parentesco de sangue e do parentesco espiritual.......................................221
4.5.2 “Aqui é tudo Freitas”.........................................................................................223
4.5.3 Notas sobre as famílias “polacas”.....................................................................230
4.5.3 De reputações e vulnerabilidades......................................................................234
4.5.4 De “traições” e da emblemática figura do “corno”.........................................237
4.6 AS DISPUTAS POLÍTICAS..................................................................................246
4.6.1 Acusações envolvendo a honra..........................................................................246
4.6.2 Das “ajudas” e relações pessoais.......................................................................254
4.6.3 Das aventuras eleitorais.....................................................................................260
5. A “PEQUENA HONRA DO SAGRADO”: DONS, HERANÇAS E
RUPTURAS...............................................................................................................265
5. 1. INTRODUÇÃO....................................................................................................265
5. 2 DA PAISAGEM RELIGIOSA..............................................................................268
5. 3 A DÁDIVA COMO FORMA DE HONRA.........................................................270
5. 3.1 Julieta, mãe-de-santo: “A gente já nasce com o dom”...................................270
5. 3.2 José, praticante de uma religiosidade múltipla..............................................277
5. 4. DO SANGUE E DO SAGRADO..........................................................................281
5. 4.1 Ilton: “orgulho” de ser médium e de portar o nome da família....................281
5. 4.2 Leda: “Faz bem pro ego se deixar moldar pela Bíblia”.................................285
5.4.3 Hermes: a herança do ofício e da religião........................................................289
5. 5 DOS CONFLITOS COM A HERANÇA FAMILIAR..........................................292
5. 5.1 Acimar: uma briga travada contra a “brabeza”............................................292
5. 5.2 Beto e Júnior: o esforço para se livrar do “rancor”...................................... 296
5. 5. 3 Daniel: rompendo com o espírito da “infidelidade” .....................................299
5. 6 ITINERÁRIOS DE UM “RENASCIDO” CATÓLICO.......................................300.
5. 7 OS “MORTOS ESPECIAIS”.................................................................................303
5. 7.1 Das santas “intercessoras”................................................................................303
5. 7.2 Godoy, o morto milagroso.................................................................................305
5. 7.3 Da devoção às almas familiares........................................................................310
PARTE III – JOGOS DE HONRA...........................................................................313
6 O ESPÍRITO DO JOGO.........................................................................................314
6.1 DE PAIXÕES, ESPORTES E LAZERES.............................................................314
viii
6.2 CORRENDO ATRÁS DA SORTE........................................................................317
6.2.1 “Hoje mesmo, joguei [n]a minha “chapa” de mineiro....................................318
6.3 APOSTAS “NA POLÍTICA”: JANTAR, DINHEIRO, PROMESSA E VACA....319
6.3.1 Um jantar para Lula..........................................................................................320
6.3.2 “Ô, Cesar, podemos casar mil reais aí pro jogo...?”........................................322
6.3.3 Carvão, futebol e política: três paixões de um velho ferreiro da mina..........326
6.3.4 “Acho que a palavra de um homem vale mais do que dez vacas”.................327
6.3.5 “Aposta em eleição é que nem carreira [de cavalos]”.....................................330
6.4 UM GRUPO DE HOMENS NUM MERCADO, UMA VOTAÇÃO INUSITADA:
“O AMOR EXISTE?”...................................................................................................333
6.5 DAS COMPETIÇÕES E DOS DESAFIOS...........................................................335
6.5.1 Bocha, carreira e canastra: atrações dominicais.............................................335
6.5.2 Jango: ‘Que bobice nossa vir ver uma corrida que acaba em 20 segundos’.340
6.5.3 Jarico: “Se eu parar com a carreira, morro ligeiro”.......................................341
6.5.4 As lembranças do bolão.....................................................................................344
6.5.5 Dos esportes e os segmentos sociais...................................................................345
6.6 “NO TEMPO DAS RIXAS”: A HONRA NO MANUSEIO DO FACÃO..........349
7 MINA DE JOGADORES: O FUTEBOL E A “PEQUENA HONRA”..............360
7.1 INTRODUÇÃO......................................................................................................360
7.2 A RIVALIDADE DO FUTEBOL EM TORNO DAS MINAS.............................364
7.3 OS MINEIROS-JOGADORES NO ATLÉTICO MINEIRO F.C..........................370
7.3.1 Do episódio em que a disputa descambou em violência..................................392
7.4 “ACIMA DE TUDO, VETERANOS DO ATLÉTICO”: A CONTINUIDADE...394
7.5 FUTEBOL BEM FAMÍLIA: EQUIPES MOVIDAS PELO PARENTESCO........397
7.6 EM BUSCA DA PROFISSIONALIZAÇÃO..........................................................400
PARTE IV – DAS GERAÇÕES.................................................................................403
8 OS FILHOS DO CARVÃO.....................................................................................404
8.1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................404
8.2 ZECÃO: “OS MINEIROS DE SUBSOLO SÃO UNS HERÓIS”..........................405
8.3 ONIRO, SINDICALISTA: “O MINEIRO É UM CORAJOSO E UM LOUCO”..414
8.4 JEFFERSON: CAMINHOS TORTUOSOS EM BUSCA DE UM OFÍCIO..........423
8.4 ALEX: ENTRE O ESPORTE E A FORMAÇÃO TÉCNICA................................431
8.5 ADELVINO: O MINEIRO VISTO COMO ANTI-HERÓI...................................436
8.6. ADEMAR: ROMPENDO LIMITES CULTURAIS..............................................442
8.7. ERON: PRODUÇÃO LITERÁRIA E CARREIRA NA COMPANHIA .............445
8.8 SÍLVIA: A EDUCAÇÃO ENCARADA COMO “MISSÃO”................................447
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................451
REFERÊNCIAS...........................................................................................................461
ANEXOS.......................................................................................................................483
ix
Dedicatória
Ao meu pai, Lino, (em memória), um trabalhador, com
quem aprendi as primeiras noções de honra e de
dignidade. E quem, depois de uma jornada extenuante,
ainda tinha disposição para contar histórias ao pé do
fogo, nas noites de inverno.
À minha mãe, Leila, que ajudou a tornar tudo possível,
desdobrando-se entre seu ofício de costureira e os
incansáveis cuidados conosco.
x
AGRADECIMENTOS
Ao relembrar este longo percurso do doutorado, tão perturbador e desafiador
quanto gratificante, a partir do qual se fortaleceu meu “gosto” pela antropologia, corro o
risco de ser traída pela memória ao referir minha gratidão a quem colaborou neste
projeto que já se mistura com boa parte de minha vida. Agradeço aos professores do
PPGAS, Museu Nacional, UFRJ, que contribuíram para que eu conduzisse e levasse a
cabo esta pesquisa. Um agradecimento especial ao meu orientador de doutorado, José
Sergio Leite Lopes, com quem aprendi com seu exemplo de pesquisador, com suas
orientações e sugestões sempre tão precisas e criativas e com sua generosidade como
intelectual e como pessoa. O meu agradecimento a Luiz Fernando Dias Duarte e a
Moacir Palmeira, espécies de co-orientadores, não apenas pelas leituras atentas e
sugestões preciosas nas bancas de qualificação, mas também por suas aulas inspiradoras
– cujos “cadernos” ainda guardo - nos cursos que freqüentei. Agradeço ainda a Federico
Neiburg, Gilberto Velho, Marcio Goldman, Adriana Viana, Renata Menezes, Giralda
Seyferth, Fernando Rabossi e, em memória, a Lygia Sigaud, que compartilharam
conhecimentos e experiências de vida. Devo também aos professores “flutuantes” com
quem dialoguei em diferentes períodos como John Comerford, Beatriz Heredia, Marcos
Otávio Bezerra, Edlaine Campos Gomes, Rachel Aisengart Menezes, Ana Daou e
Jayme Aranha. As funcionárias da secretaria, especialmente a Tânia Ferreira e a Izabele
Gomes, são um exemplo de profissionalismo. Agradeço também às funcionárias da
Biblioteca por sua disponibilidade e dedicação, especialmente a Carla Freitas. Um
agradecimento ainda aos funcionários do xerox e do bar do Museu Nacional.
Abro um parêntese para mencionar, por seu papel em minha formação, minha
orientadora de mestrado no PPGAS-UFRGS, Cornelia Eckert, que me ensinou as
primeiras lições – inesquecíveis - sobre etnografia e com quem ainda divido o
encantamento pelo mundo dos mineiros de carvão. Sua pesquisa continua sendo uma
inspiração para mim. Do período do mestrado e de minha experiência como professora-
substituta no PPGAS-UFRGS, devo mencionar ainda Ana Luiza Carvalho da Rocha,
Cláudia Fonseca, Daniela Knauth, Ceres Victora, Veriano Terto, Denise Jardim,
Bernardo Lewgoy, Carlos Steil, Sergio Baptista, Caleb Alves e Maria Eunice Maciel.
Durante meu estágio de doutorado na França, junto ao CRBC-EHESS, Afrânio
Garcia, meu co-orientador no sanduíche, me recebeu com grande gentileza e apoiou
minhas investigações de campo, fazendo suscitar, ao mesmo tempo, importantes
xi
insights com suas considerações críticas e sempre pertinentes. Daquela experiência,
agradeço ainda às interlocuções, aulas e preciosas sugestões de Jean-Pierre Faguer,
Marie-Claude Muñoz, Stéphane Beaud, Michel Pialoux, Michel Agier, Gérard Noiriel,
Benoît de L’Estoile, Alban Bensa, Luc Boltanski e Patrick Mignon. Bernard Balzani e
Frédéric Danielczak, filhos de mineiros, hoje professores, forneceram pistas
significativas para que eu compreendesse outras faces daquele universo. Foram
fundamentais a amizade e o apoio imprescindível de Laura Chartain, Julien Acquatella e
Philippe Lacaze (entre os amigos franceses) e o franco-turco Özdemir Ergin, assim
como o afeto, a solidariedade e as estimulantes trocas intelectuais com os amigos
brasileiros Valter Oliveira, Ricardo Pimenta, Rafael Benthien, Jane Freitas, Danilo
Mello, Lucas Melgaço e Dion Monteiro, entre outros. Com o Valter, trata-se de um
compartilhamento iniciado no Museu Nacional e que se estendeu à difícil fase de escrita
da tese em Porto Alegre, tornada mais leve pela preciosa troca de experiências. Na
Lorena francesa, devo agradecer especialmente a Graziano e Anne-Marie Balzani, a
Carmem e Bernard Hocevar, a Pascal Sauder, Gilbert Pexoto, Edgar Bastian e François
Bartkowiak, que generosamente me abriram as portas e auxiliaram em minha pesquisa.
Carmem e Bernard fizeram mais: foram meus anfitriões em Freyming-Merlebach.
Ao CNPq, que concedeu minha bolsa de doutorado, e à Capes, pela bolsa-
sanduíche, que tornaram possível esse investimento intelectual e também existencial.
Agradeço aos coordenadores de GTs da Anpocs, da RAM e da ABA em que
apresentei trabalhos nos últimos anos, por usufruir das discussões e pelas sugestões que
ajudaram a aprimorar este trabalho. Menciono, entre outros, os professores e colegas
pesquisadores Luiz Fernando Dias Duarte, Simoni Guedes, Pablo Alabarces, Luiz
Fernando Rojo, Gláucia de Oliveira Silva e Maria Cláudia Coelho.
Aos colegas e queridos amigos, que compartilharam comigo tanto as belezas
como as agruras deste percurso, especialmente a Indira Caballero (que ainda me deu a
“graça” de sua visita em campo e incentivou em minhas primeiras investidas sobre a
“pequena honra”) e Bruno Marques, Rogério Azize (cuja amizade e troca intelectual é
uma preciosa conquista deste período) e Luana Aguiar, que volta e meia me hospedam
no Rio - com quem construí uma camaradagem similar àquela que é tão sabiamente
valorizada pelos mineiros. Nesta rede de amigos com quem venho partilhando angústias
e alegrias, estão ainda Luiz Felipe Benites, Fernanda Figurelli, Nicolas Viotti, Suiá
Omin, Daniela Alves, João Dias Duarte, Luiza Laranjeira, Claudia Mura, Naara Luna,
Ivone Manzali, Diana Lima, Neide Eisele e Bernardo Curvelano. Entre meus colegas de
xii
doutorado, me beneficiei das discussões estimulantes com Antônio H. Oswaldo Cruz,
Luciana Lombardo, Wagner Chaves, Gustavo Vilella, Martinho Silva, Martiniano Neto,
Letícia Carvalho, Suzana Abrantes, entre outros. Em Porto Alegre, a amizade e partilha
intelectual com Paula Machado, construída desde o mestrado - assim como com Soraya
Fleischer e Viviane Vedana – são permanente fonte de estímulo. O meu obrigado à
Celéia e ao Mauro, que me hospedaram generosamente no Rio em minhas primeiras
incursões para o ingresso no doutorado. A Liara Castro, com quem compartilhei parte
de minha experiência no doutorado, quando morávamos juntas no Catete. A Dominique
Boxus, meu professor de francês e amigo, por seu apoio e generosidade. Aos queridos
amigos Denise Ramiro, Manuela Colla e a Henrique Lemes que me acompanharam em
campo ou foram me visitar em Minas do Leão, repartindo comigo suas impressões e
conquistando a simpatia de meus interlocutores. A Djane Della Torre e a Hugo
Almeida, amigos já de toda a vida, assim como Márcia Camarano e Roberto Santos,
Deva Oss-Emer e Isio Eizirik, cujo afeto e solidariedade são sempre uma fortaleza. A
Kadine Pedroso, que conheci em campo e cuja amizade certamente atravessará outros
campos. A Synara Rillo e Silvana Wüttke que, mesmo quando não falamos, estão
presentes. A Moisés Mendes e Heron Vidal, que de colegas de redação de jornal se
tornaram afetos. Agradeço ao apoio fundamental de Rose Machado, Jorge Hornos,
Beatriz, Leoci, Fernando e Maria Julia. Minha gratidão ao Pedro, que compartilhou
parte deste trajeto. A Luiz Carlos Bittencourt, Antônio Brasil e Jairo Ferreira, que
incentivaram a construção desta trajetória. A Simone e Luiz, da empresa Copião, que
gentilmente ajudaram a aperfeiçoar este trabalho.
Em minha família, sou grata à minha mãe pela compreensão em minhas
ausências; à Nega, minha irmã, por seu afeto e apoio incondicional; ao Tone, meu
irmão, que compartilha o gosto pelo mundo dos mineiros e que é uma fonte de
encorajamento; à Tata, irmã que me emprestou o primeiro Germinal. Agradeço ainda ao
estímulo e ao afeto de meus sobrinhos Gabriela, Pablo, Adriana e Andréia.
Aos meus interlocutores de Minas do Leão e Butiá, minha sincera gratidão
pela acolhida afetuosa e pela generosidade de terem compartilhado a riqueza de seu
cotidiano e de suas memórias. É impossível nomear todos, mas devo citar pelo menos
aqueles com aos quais convivi mais longamente: Dalva e Hermes, Julieta e Jango,
Ariovaldo e Luiza, Serlon, Marcelo, Ademar, Valdevino e Anarlete, Lucia e Mieroslau,
Sílvia e Eron, Biscoito e Neuza. Leo, Zecão, Butiá e Gerino Lucas, entre outros,
ajudaram a delinear os contornos deste trabalho com suas narrativas. Agradeço a Oniro,
xiii
presidente do sindicato dos mineiros; à historiadora Truda Hoff, que me franqueou a
consulta aos arquivos do Cadem; a Leonardo Montenegro, gerente do INSS de Butiá,
por me permitir a pesquisa nos arquivos; ao superintendente da CRM em Leão, o
engenheiro Cláudio Müller, assim como a João Francisco, Volmar e Iguaraçu, do
escritório local, pelo acesso aos arquivos da CRM e por abrirem os seus “guardados”
sobre as equipes de futebol. Entre aqueles que compartilharam seus arquivos pessoais
de documentos e fotografias estão ainda Carlitos, Zoely, Oswaldo Custódio e Gedi.
xiv
Múltiplas epígrafes
Eu imaginava assim que aquilo era muito lindo, sabe, era outro mundo. Porque cem
metros abaixo da terra é outro mundo. (...).Posso dizer que foi a coisa mais linda que
eu já vi em termos de natureza e tudo foi embaixo da mina. (Cássio, filho e neto de
mineiro, que trabalha em terceirizada da CRM)
Bobeava lá era dez ou quinze minutos e já o capataz ia... o pau pegava. Aquela
fumaça toda a gente chupava... não tinha compressor, não tinha nada. Oito horas
por dia na época, é. (Bega, ex-mineiro da mina da Coréia)
Era uma vida boa. Tem muita gente aí que diz: “Como é que vai baixar à mina, é um
buraco lá!” Era a mesma coisa que tá aqui, né. (...) Tem gente que tem saudade às
vezes de baixar a mina, do trabalho. Eu não, a gente tem saudade dos colegas que
via todo dia. (Tita, ex-mineiro da CRM)
A gente saía da mina, então já tava uns esperando os outros ali. Tomar uma pinga,
né, prá limpar o carvão do pulmão. Então, ali a gente tirava a poeira. Acho que por
isso eu não tenho poeira no pulmão.(risos) (Jango, ex-mineiro da CRM, falando do
bar Primeiro Soco)
Eu me lembro que, quando dava acidente na mina, até descobrir quem foi, não
queriam comentar, eu já chutava: “Foi Fulano, foi Beltrano”. No Leão, aquelas
ruas, aquelas travessinhas, aglomerava de gente (...). Praticamente a cidade toda ia
pra entrada da mina ali. (Cássio, filho e neto de mineiro)
xv
LISTA DE IMAGENS
Capa – Mineiros da CRM na mina de Leão I – Foto arquivo CRM
p. 16 – Foto 1 - Demolição da sede da mina La Houve, Creutzwald – Foto Gilbert
Pexoto
p. 16 – Foto 2 – Torre de mina na Lorena francesa – Foto Marta Cioccari
p. 17 – Mineiro francês, Roger Stark, mostra diploma de honra – Foto Marta Cioccari
p. 21 – Interior de mina de subsolo na França – Imagem antiga – Arquivo Charbonnages
de France.
p. 24 – Cartaz da “Batalha do Carvão” na França, em 1946 – Arquivo Charbonnages de
France.
p. 27 – Greve de mineiros em Saint-Etienne, em 1948 – Imagem contida na publicação
Nous les mineurs.
p. 35 – Diploma de Honra do Trabalho de mineiro francês – Foto Marta Cioccari
p. 37 – O ex-mineiro francês Gilbert Pexoto exibe publicações sobre a categoria – Foto
Marta Cioccari
p. 38 – Imagem 1 – Tela sobre mineiros de subsolo pintada por Roine Jansson - Imagem
cedida pelo artista
p. 38 – Imagem 2 – Ex-mineiro Edgar Bastian, guia do museu Petite-Rousselle. Foto
Marta Cioccari
p. 53 – Marta fazendo reportagem no interior da mina de Leão I – Foto Valdir
Friolin/ZH
p. 63 – Jogo dos veteranos do Olaria contra o Atlético em Minas do Leão – Foto Marta
Cioccari
p. 65 – Imagens de uma vila mineira em Creutzwald, na França – Foto Marta Cioccari
p. 73 – Mineiros de subsolo da CRM – Foto antiga – Arquivo CRM
p. 150 – Ex-encarregado Leo e família – Foto Marta Cioccari
p. 163 – Ex-mineiro Jango em sua casa – Foto Antônio Cioccari
p.179 – Ex-mineiros Luiz Marino e Natalício – Foto Marta Cioccari
p. 197 – O ex-ferreiro Mieroslau Lasek – Foto Marta Cioccari
p. 201 – Foto 1 – Sede da CRM em Minas do Leão – Foto Marta Cioccari
p. 201 – Foto 2 – Imagem da avenida Getúlio Vargas, em Minas do Leão, onde se vê o
Sindicato dos Mineiros – Foto Marta Cioccari
xvi
p. 201 – Foto 3 – Carroça com trabalhadores passa diante de uma antiga casa da vila
mineira – Foto Marta Cioccari
p. 202 – Imagem da torre da CRM vista do começo da avenida Getúlio Vargas – Foto
Marta Cioccari
p. 212 - Vila do Recreio, área de antigos rejeitos de carvão – Foto Marta Cioccari
p. 217 – Imagens da Vila do Leão nos anos 1950 e 1960 – Arquivo CRM
p. 223 – CTG Zeca Freitas, junto à Vila dos Freitas – Foto Marta Cioccari
p. 229 – Família de Jango Freitas em frente à sua casa – Foto Marta Cioccari
p. 232 – Agenor, Lucia e Mieroslau – Foto Marta Cioccari
p. 264 – Campanha eleitoral de 2008 em Minas do Leão – Fotos Marta Cioccari
p. 270 – Igreja Batista – Foto Marta Cioccari
p. 289 – Hermes e Dalva em sua casa – Foto Marta Cioccari
p. 303 – Procissão de Santa Bárbara em 2003 – Aparecem na foto Renato (esq.), Zecão
e o menino Josimar, filho de Zecão – Foto Marta Cioccari
p. 307 – Túmulo de Godoy – Foto Marta Cioccari
p. 313 – Escalações do Atlético Mineiro – Arquivo CRM e arquivo pessoal Carlitos
p. 315 – Meninas que jogam futebol – Foto Marta Cioccari
p. 324 – Aldonês (esq.), Jefferson e Jango – Foto Marta Cioccari
p. 329 – Jarico, com animais de sua propriedade – Foto Marta Cioccari
p. 336 – Ariovaldo Flores (esq.), Bichinho e Luiza ao fundo – Foto Marta Cioccari
p. 352 – Telmo Trindade Lopes em sua casa – Foto Marta Cioccari
p. 366 – Butiá no campo do Olaria – Foto Marta Cioccari
p. 371 – Leo exibe recordações de goleiro – Foto Marta Cioccari
p.375 – Carlitos com a faixa de campeão – Foto Marta Cioccari
p. 377 – Butiá (dir.) e Adalberto na casa do primeiro – Foto Marta Cioccari
p. 380 – Zoely em sua casa e imagem de “santinho” – Foto Marta Cioccari
p. 381 – Visita de Brizola a Butiá nos anos 1960 – Arquivo pessoal Zoely Oliveira
p. 383 – Ademar (dir.) e Oswaldo Custódio – Foto Marta Cioccari
p. 387 – Foto 1 – Zé Custódio e Gedi – Arquivo pessoal Dona Gedi
p. 387 – Foto 2 – Carlitos e Zé Custódio – Arquivo pessoal Carlitos
p. 394 – Beto Balão vestindo camisa do Atlético – Foto Marta Cioccari
p. 396 – Chicão (esq.) e Alex na sede do Olaria – Foto Marta Cioccari
p. 398 – Equipe União dos Freitas no campo do Atlético – Arquivo da equipe
p. 400 – Foto do jogador Daniel quando jogava na Alemanha – Arquivo familiar
xvii
p. 403 – Foto 1 - Zecão no pátio da CRM; foto 2 – Alex; foto 3 – Jefferson trabalhando
como vigilante; foto 4 – Neca e Vanessa – Fotos Marta Cioccari
p. 404 – Mineiros de subsolo na mina de Leão I – Arquivo pessoal Agenor
p. 405 – Zecão, Marilene e Josimar em sua casa – Foto Marta Cioccari
p. 412 – O trabalho no subsolo de Leão I – Foto Arquivo ZH
p. 433 – Máquina trabalhando em Leão II – Arquivo CRM
p. 437 – Adelvino e Diarone – Foto Marta Cioccari
p. 442 – Ademar no pátio da CRM – Foto Marta Cioccari
LISTA DE TABELAS
p. 256 – Tabela de demandas pessoais ao prefeito de Minas do Leão em 2005 e 2006
INTRODUÇÃO
De saída, antes de me embrenhar na explicitação da forma pela qual esta tese foi
construída, devo mencionar a ambigüidade proposital mantida no título deste trabalho,
em torno do “gosto da mina”. Estou me referindo tanto à construção de um sentimento
em relação ao “gosto”, ao “amor” ou à “paixão” nutrida em relação à mina ou ao ofício
- em que pesem suas contradições, sugeridas pelo “jogo” e a “revolta” - como também
ao “gosto” no sentido do paladar, dos hábitos de filhos de mineiros de disputarem a
comida sobrada da mina quando o pai voltava para casa depois de uma jornada nos
subterrâneos. June Nash (2008, 1ª ed. 1979), no título da obra sobre as minas de estanho
bolivianas, Comemos a las minas y las minas nos comem a nosotros, na versão em
espanhol, já havia enunciado essa relação que liga o estômago dos homens ao ventre da
terra. Quando ela trabalhava na comunidade de Oruro, em 1970, ouviu um mineiro usar
a expressão que lhe serviria de título. Ele justificava que era preciso alimentar o espírito
das montanhas para que ele continuasse mostrando aos trabalhadores os veios do
mineral, que lhes permitiam os meios de sobrevivência. No uso da autora está presente
também a noção de exploração, tanto da mina como dos homens.
Em meu próprio trabalho de campo, desenvolvido principalmente na
comunidade de mineiros de carvão de Minas do Leão (RS), os dois sentidos para o
“gosto” da mina se encontram, pois quem, na infância, como o mineiro Zecão,
apreciava o alimento que retornava do subsolo carregando o “gostinho da mina”, se
iniciava de certa forma neste mundo um tanto misterioso e fascinante ao qual se
dedicaria com empenho similar ao do pai no passado, como trabalhadores que tinham
“amor pela mina”. Depois de seu relato, descobri que esse desejo das crianças de
experimentarem as sobras da comida levada à mina era mais comum do que eu poderia
imaginar. Pelo menos a outras três famílias com quem conversei tais práticas não eram
estranhas, ainda que duas delas impedissem esse ritual infantil, preocupadas com o risco
de o alimento ter-se deteriorado em contato com os gases presentes no interior da terra.
Ao “gosto do carvão” ou ao “gosto da mina” se somam outras representações que dizem
de um caráter “sagrado” atribuído ao mineral ou às entranhas da terra, expressas no
“cheiro da mina”, mencionado por Ademar e por Marino, como a razão pela qual “a
mina contagia”. Curiosamente, a mesma referência sobre “l’odeur de la mine”, que seria
possível reconhecer em diferentes minas do mundo, eu ouvi de um ex-mineiro de ferro
sueco que conheci durante minha pesquisa na Lorena francesa, em 2008, nesta época já
2
convertido num artista plástico.
1
Algo mais surpreendente ainda foi a menção feita pela
filha de mineiro gaúcho, Vera, que conheci num grupo de mulheres, viúvas e filhas de
trabalhadores que se reuniam no sindicato sob o nome de Coração do Mineiro. Ao
destacar sua admiração pela profissão paterna, recordava que um dos prazeres da
infância pobre era “tomar banho na água do pai”, depois que ele deixava ali a poeira
escura que trazia impregnada em seu corpo. Ela relatava que, no inverno, quando ele
chegava em casa vindo do subsolo, a mãe ia esquentar uma panela com água: “Era uma
alegria tomar banho na água do pai. Era uma infância sofrida e aquilo era coisa boa pra
gente”. Não é coincidência o fato de que tais “rituais” revelados à pesquisadora
emergem em meio a relatos que falam da honra da profissão e do orgulho que ela
suscita. Mas ao longo deste trabalho se verá que ainda há o “jogo” e a “revolta”. De
certo modo, esses são os principais ingredientes das variadas formas de honra
relacionadas à condição mineira e aos mundos que a rodeiam. Entre os paradoxos que
envolvem este universo, há que se considerar o que escreveu Galeano (1980), numa
crônica na qual traduzia o sofrimento dos mineiros acometidos pela silicose, com o
sugestivo título A terra pode nos comer quando quiser.
Um rato agarrado num buraco fundo: uma opressão entre o peito e as costas,
uma dor que caminha pelo corpo: a vingança do pó de silício: antes da tosse e
do sangue e da aniquilação temporã, os perseguidores de filões perdem o
gosto da bebida e da comida e perdem o cheiro das coisas.
2
Como sugere o autor, a perda do gosto dos alimentos e do cheiro das coisas
apresenta-se como uma espécie de efeito perverso para uma parte dos trabalhadores que
consagra a vida ao trabalho nas profundezas da terra e que contrai a doença profissional
que entre os mineiros de carvão corresponde à pneumoconiose. Em minha etnografia,
um relato que destoava dos anteriores foi feito por Julieta, mulher do ex-mineiro Jango,
acerca do estranhamento e do mal-estar enfrentado por sua família, quando chegou à
vila de Minas do Leão, com a queima doméstica do carvão doado pela companhia para
cozinhar os alimentos. Nos primeiros tempos, o “gosto forte” que se desprendia da água
e o gás originado pela queima do mineral fez com que muitos membros da família
adoecessem. Neste contexto, é dito que a comida ficava “contaminada” pelo carvão,
mas Jango ressaltava que esses problemas ocorriam porque a família da mulher ainda
não estava “acostumada”, ainda não tinha aquele “hábito de mineiro”.
1
Retomarei ao depoimento de Roine Jansson no Capítulo 1.
2
Galeano, 1980, p.37.
3
Estudos antropológicos e sociológicos, bem como autobiografias operárias, têm
feito eco a um tema que foi formulado por Bourdieu (1996) como sendo “a dupla
verdade do trabalho”, ancorada em suas dimensões objetiva e subjetiva, evidenciada
pelo fato de que, não raro, há a percepção de um ganho subjetivo ligado ao próprio
investimento no trabalho ou nas relações de trabalho (Bourdieu, 1996, p.89). Como
afirma Leite Lopes, ao analisar a dominação sobre os operários têxteis, este
“investimento” peculiar feito pelo trabalhador para adequar-se à sua profissão e também
para reinventá-la, tornando suportável o trabalho fabril, dota-o de uma “honra”
profissional (Leite Lopes, 1988, p.23). Ao prefaciar um dos escritos autobiográficos do
operário francês Georges Navel, Géraldy destacava, por um lado, a narrativa em torno
da satisfação extraída pelo trabalhador manual ao enfrentar as resistências da matéria:
“É o esforço operário, o prazer deste domínio das mãos feito de um longo aprendizado e
de pacientes sacrifícios”
3
(Géraldy, 2004, p.8-9). No outro pólo, estava a fadiga, o tédio
e o sofrimento impostos pelo ritmo industrial. Pesquisas sobre camadas populares e
sobre classes trabalhadoras, em âmbito nacional e internacional, têm tocado em certa
medida nessas questões a partir de diferentes vieses.
4
Entre mineiros de carvão, tanto o
sentimento de honra como de desonra relacionados ao trabalho parecem situar-se no
encontro de elementos relacionados tanto ao “gosto pela mina”, ao “jogo” - incluindo aí
as resistências, as malandragens, como também a dimensão do esporte, o apreço ao
risco, à aposta e à adrenalina – como à “revolta” - significando tanto as mobilizações de
resistência, as greves, como a própria recusa em conceder valor a esse universo.
Esta tese debruça-se sobre a honra do trabalho, mas esta é apenas uma de suas
dimensões. O que penso ser sua originalidade é a preocupação em esmiuçar numa
investigação etnográfica os valores da honra, do heroísmo e da reputação no cotidiano
de um segmento operário, mais especificamente o de mineiros de carvão de Minas do
Leão (RS), cuja mina de subsolo foi fechada em 2002. Um primeiro deslocamento
teórico necessário para dar conta deste projeto foi desdobrar a noção de honra (no
sentido formulado por Pitt-Rivers e Peristiany, 1965, 1992) em duas dimensões: a da
“grande honra”, mais voltada para as imagens que figuram nas representações
3
“C’est l’effort ouvrier, le plaisir de cette maîtrise de mains faite d’un long acquis et de patients
sacrificies” (Géraldy, 2004, p.8-9).
4
Destaco aqui, especialmente, os trabalhos de Bourdieu (1965, 1996, 1997), Trempé (1971, 1989),
Hoggart (1973), Nash (1976, 2008), Linhart (1978), Mintz (1979), Taussig (1980), Thompson (1987),
Leite Lopes (1976, 1987, 1988), Grossi (1981), Lancien (1981), Volpato (1982), Lazar (1985, 1990),
Eckert (1985, 1991, 1993), Duarte (1986, 1987a, 1999), Minayo (1986), Moore Jr. (1987), Beynon &
Austrin (1988), Pessanha & Morel (1991), Michel (1993), Guedes (1997), Beaud & Pialoux (1999),
Schwartz (2002), Comerford (2003) e Fortes (2005), entre outros.
4
idealizadas do heroísmo mineiro, e a da “pequena honra”, correspondendo aos diversos
pertencimentos locais e às suas insurgências cotidianas, com suas tensões e conflitos
internos. Neste sentido, a descrição da “grande honra”, embora atravesse toda a tese
como um pano de fundo, encontra sua mais clara ilustração no caso dos mineiros
franceses, descrito no primeiro capítulo. Em relação à “pequena honra”, não são poucas
as dificuldades para se transpor num conceito uma miríade de valores e práticas
acionados em interações que presenciei no dia-a-dia e/ou que afloraram nos relatos de
meus interlocutores – dizendo respeito ao trabalho, ao esporte, à política, à religião, à
vida privada, etc. Em que pese o caráter um tanto incipiente destas proposições, é sobre
a “pequena honra” de que se ocupa o núcleo central desta tese. Em seus contornos, há
um conjunto de temas que considero relevantes, como o papel dos imigrantes no
passado e as recentes migrações em busca de emprego, o contingente de analfabetos e
os esforços das novas gerações em busca de um alongamento da escolaridade e de
qualificação profissional, assim como os cruzamentos entre os diversos pertencimentos,
com ênfase para o esporte, a religião, a política e o universo das famílias.
A temática desta pesquisa insere-se numa tradição de estudos voltados para a
compreensão de aspectos das classes trabalhadoras, seja pelo tema da “cultura operária”,
seja pelo da “cultura popular urbana” ou dos “estudos de comunidades”. Inscrevo-me, de
outro modo, ao lado de pesquisadores que consideram haver sentido em continuar a
pesquisar operários, seus mundos objetivos e subjetivos, em que pese o desaparecimento
de parte do universo industrial em que estavam inseridos.
5
***
Meu interesse pelo que, posteriormente, me levou ao tema desta pesquisa foi
despertado ainda em meus primeiros contatos em Minas do Leão (RS), entre meados e o
final da década de 1990, quando eu exercia a profissão de jornalista. Foi naquele
período que eu vivenciei a vertigem de descer às minas de subsolo e quando travei os
primeiros contatos com esses trabalhadores, alguns dos quais se converteram em meus
informantes na etnografia. Naquele período, Leo, velho mineiro de carvão, ao me
explicar sua ligação com a mina de subsolo, tecida ao longo de 35 anos dos seus mais
de 70 anos de vida, me disse: "O carvão é como o mar, apaixona a gente”. O seu relato
continha não apenas a magia dos subterrâneos, mas também a dimensão das tragédias a
que assistiu e a contabilidade dos companheiros que perdeu. Evidenciava que o
5
A esse propósito, ver Beaud & Pialoux, 1999, p.14.
5
engajamento no mundo da mina – como aquele no mar - continha também seus riscos,
sortilégios e armadilhas, enfrentados cotidianamente pelos trabalhadores a partir de sua
habilidade, de sua força ou de sua coragem. Essas imagens retornariam nas falas de
outros interlocutores e passariam a povoar minhas reflexões, retomadas no mestrado
(2002-2004) e no doutorado (2005-2009). Naquele período, escutei Zecão, mineiro
ainda hoje em atividade na CRM, na época com 35 anos, refletir sobre o ofício: “Pra
mim, o mineiro de subsolo é um herói”, definiu, referindo-se à trajetória do pai e do
avô, que haviam trabalhado no Cadem e na Copelmi, e de quem ele havia herdado a
profissão. Durante minha primeira etnografia, de mestrado, conduzida na mesma
localidade, em 2003, o operário que me havia falado do herói disse-me à propósito do
filme Germinal, uma adaptação cinematográfica da obra de Émile Zola: “Germinal é a
história que meu pai contava, a história que eles viviam, entendeu?” Zecão se referia ao
trabalho de crianças nas minas gaúchas e ao uso de cavalos para a retirada do mineral. O
comentário estabelecia uma conexão entre a transmissão de valores familiares e a fonte
literária que havia despertado meu próprio interesse por aquele universo.
6
Alguns anos mais tarde, num dia de chuva do começo de setembro de 2006, lá
estava eu chegando a Minas do Leão (RS) para o trabalho de campo de doutorado a
bordo de um caminhão de mudanças pintado de rosa choque. Vi da boléia em que nos
encontrávamos, eu, o motorista e outro funcionário da empresa de transportes - além de
meus dois gatos presos em suas caixas -, que alguns moradores saíam à rua, atraídos
pela curiosidade sobre a chegada de um novo morador. Na parte traseira do caminhão,
eu levava alguns poucos móveis, equipamentos e utensílios para a temporada de seis
meses em que moraria na casa alugada no centro da antiga vila mineira, próxima à Vila
dos Freitas. Como projeto, pretendia estudar a construção social do heroísmo entre
trabalhadores da mina subterrânea. Algum tempo depois, parecia-me que eu tinha ido
procurar o heroísmo dos mineiros e encontrado mundos aparentemente mais
domésticos, menos “grandiosos” do que aquele.
7
A mina de Leão I, a última exploração
de subsolo na região, havia sido fechada quatro anos antes, em fevereiro de 2002, e,
processado em certa medida o luto nos corações e mentes dos trabalhadores, as
referências à mina pareciam terem sido suplantadas nas conversas cotidianas por
6
Essas menções são feitas no final do capítulo 1.
7
Durante uma apresentação parcial desta pesquisa no PPGAS-MN, um dos professores, ouvindo meu
relato, disse em tom de brincadeira que eu tinha ido procurar o heroísmo do trabalho e havia encontrado
“os heróis do lar”. Ele tocava numa questão central. Poder-se-ia dizer não só do lar, mas dos diversos
mundos a que os trabalhadores estão relacionados e que extrapolam largamente o da mina.
6
questões familiares e de vizinhança, pelos conflitos sazonais na política, pela celebração
dos esportes e jogos, pelas intensas e variadas procuras religiosas, assim como pelos
embates das novas gerações em busca de emprego ou de uma ocupação. Percebi que à
medida que se distanciava o “tempo da mina” de subsolo afloravam mais claramente os
outros mundos que teciam os sentimentos, valores e práticas dos moradores nesta cidade
formada em torno da mineração – mesmo que uma exploração à flor da terra se
mantenha. Com o arrefecimento das emoções ligadas ao subterrâneo, emergem à
superfície da vida cotidiana outras realidades, de uma tessitura diversa e movente, que
nos ajudam a desvendar como se forjaram as ambigüidades em torno da mina.
Durante a etnografia, habitei durante seis meses - entre setembro de 2006 e
fevereiro de 2007 - na cidade de Minas do Leão (RS), numa casa situada na antiga vila
mineira. Depois disso, visitei a comunidade em períodos de uma semana ou menos, como
em novembro de 2007 e em setembro de 2008. Ao todo, realizei 60 entrevistas
biográficas que foram gravadas e cerca de outras 20 com um caráter mais temático em
Minas do Leão e na cidade vizinha de Butiá, onde habita parte de meus interlocutores e
onde se localiza também a sede do sindicato da categoria.
8
Em Creutzwald, na Lorena
francesa, experiência que adoto como contraponto e não numa perspectiva comparativa,
gravei 25 entrevistas num período de observação de 21 dias (divididos entre fevereiro e
junho-julho de 2008). Nos dois casos, além da realização de observação participante e de
entrevistas, reuni documentos, fotos, vídeos e arquivos digitais tanto de informantes
como dos sindicatos, das companhias e das prefeituras.
9
Ao me estabelecer em campo, construí relações que não eram apenas de uma
pesquisadora estranha ao lugar, mas fui sendo inserida nas redes familiares, de amizade
e de vizinhança.
10
A partir dessas redes, tive um acesso privilegiado à vida privada de
meus interlocutores. Havia uma mudança decisiva no cenário e eu desfrutava de novas
condições de observação: esses fatores acabaram por provocar um deslocamento do
objeto de pesquisa. De um lado, o fim da mina de subsolo como realidade e como
8
Essas entrevistas agregan-se às 25 gravadas no período do mestrado.
9
Aspectos de minha própria trajetória e certas questões enfrentadas durante a etnografia, assim como um
detalhamento metodológico da pesquisa, são fornecidos na seção final do capítulo 1.
10
Bertaux (1999) afirmava que “o canal” ou o intermediário por meio do qual o pesquisador chega aos
informantes pode acabar por orientar profundamente a perspectiva de uma narrativa. Parece-me que isso
se passa também com o próprio objeto de pesquisa. Bertaux (1999, p.12) citava o exemplo de Peneff
(1979), que começou a pesquisar operários na França por intermédio da CGT e percebeu que eles não
falavam sobre a vida familiar. Peneff (1979), por sua vez, refere-se à “retenção do privado”, ao
apagamento da vida individual, com um lugar primordial conferido ao trabalho e às lutas sindicais. Em
meu caso, guardadas as especificidades e diferenças de cada contexto, a tendência foi inversa.
7
possibilidade objetiva de ingresso no mundo do trabalho – figurando ainda intensamente
nas memórias como referente simbólico, inspirando tanto amor como revolta
11
-, de
outro, minha observação contínua daquele cotidiano, fizeram com que a minha primeira
hipótese, em torno de um sentimento relacionado ao heroísmo da profissão, se revelasse
insuficiente para dar conta tanto dos aspectos que conferem sentimentos de auto-estima
e dignidade aos meus interlocutores como daqueles que lhes ameaçam a reputação
(Bailey, 1971). Com a mina em funcionamento, essa capilaridade passaria um tanto
despercebida pela “magia”, pela força simbólica que ela exerce sobre os trabalhadores e
mesmo sobre o pesquisador. O universo da mina, atravessando trajetórias individuais e
coletivas, pode nos remeter a uma super interpretação que ofusca outros aspectos. Um
relativo apagamento de sua presença – a ausência-presença do luto – ajudaria a revelar a
ressonância de universos percebidos mais facilmente no vácuo deixado por ela.
A pergunta que me fiz ao longo da construção desta tese, mais especificamente
do trabalho de análise e de interpretação dos dados obtidos em campo, é sobre o que
gera auto-estima, sentimento de orgulho e de dignidade para os trabalhadores e suas
famílias, e o que é considerado como causador de desprezo, de desrespeito ou de
desconsideração. Na condução das entrevistas, porém, nunca coloquei esta pergunta de
forma direta. Primeiro, porque a própria questão surgiu muito mais da observação
cotidiana e da sua insinuação nos relatos do que por minha procura. Segundo, porque
este não era o meu ponto de partida. Como dito, além dos percursos biográficos, eu
investigava a percepção de meus interlocutores sobre o heroísmo relacionado ao
trabalho na mina - aspecto que ganha diferentes contornos, tanto em seu viés histórico
12
como na interiorização pelos trabalhadores observada em campo.
13
Por meio da
etnografia, de pesquisa documental e bibliográfica percebi que uma determinada face do
sentimento de heroísmo era só uma das construções – embora importante e
profundamente enraizada –, à qual estou me referindo como a “grande honra”
relacionada ao mundo mineiro. Ela parte de uma “mitologia” criada em torno do
mineiro de subsolo, com sua reverberação íntima mais ou menos entranhada nos
sujeitos. Mas uma abordagem sobre a “honra” a partir desta faceta encararia só parte da
questão, talvez correndo o risco de reforçar essa idealização, daí a abertura a outras
11
Nos relatos, a mina aparece tanto como a “grande mãe”, a quem se deve “tudo”, como também aquela
que, pela exploração do trabalho, por acidentes e mortes, “levou tudo o que se tinha”, fosse a disposição
para o trabalho, a saúde, uma parte do corpo mutilado ou mesmo um ente querido.
12
No que diz respeito aos mineiros gaúchos, o tema é examinado na Parte I, capítulo 2.
13
Traduzido, em especial, na Parte I, capítulo 3.
8
configurações que emergem nas trajetórias individuais e em pertencimentos coletivos,
caracterizando as formas da “pequena honra” – que, por definição, me parece ser
múltipla. A construção do heroísmo, tratada aqui como “grande honra” da profissão, se
aproxima do que Guattari (1986) chamou de perspectiva “molar”, enquanto que a
“pequena honra”, relacionada a diferentes aspectos da vida cotidiana (profissional,
familiar, religioso, político, esportivo, etc.) poderia ser remetida a um caráter
“molecular
14
, envolvendo sua recombinação e atualização constante.
O presente estudo parte da premissa de que ao invés de uma superação da
importância da honra naquele contexto este valor é atualizado em novos moldes na vida
cotidiana. Não foram muitas as ocasiões em que escutei a palavra “honra” em minhas
interações de campo naquela localidade, mas o leque de expressões que registrei, a
manifestação de sentimentos e ações me remeteram a uma importância conferida a esta
noção. Ela se expressa, particularmente, nas manifestações de “orgulho” que não se
limitam à profissão de mineiro (condição que pode ou não evocá-lo), mas que se esboça
ainda no interior de outros liames - como o pertencimento a certa família ou origem
cultural, a uma militância ou posição política, a determinada religião, time de futebol,
etc. Outros termos evocados pelos informantes são a “consideração”, o “respeito”,
evocando laços sociais ou familiares, valores vistos como transmissíveis de geração a
geração e que podem se relacionar com a posição ocupada na companhia carbonífera no
passado. Muitas referências são feitas à “reputação”, à importância de se ter
“amizades”, “crédito”, de preservar o “bom nome”, a “estima dos outros” e evitar a
“desconsideração” e o “desrespeito”. Formas de honra parecem estar em jogo ainda nas
atribuições e/ou auto-atribuições em torno do “dom” (usado geralmente por referência
ao sagrado) e das habilidades e talentos (para o trabalho, o esporte, a política ou mesmo
para a “malandragem”) que demandam igualmente o reconhecimento do grupo.
O termo “honra” foi evocado espontaneamente em algumas circunstâncias,
como neste exemplo: Alex, um rapaz de 24 anos que trabalha como eletricista nas obras
de implantação da mina de Leão II
15
, contratado por uma empreiteira terceirizada, me
dizia que, no tempo do seu pai, ex-mineiro de subsolo, saber manusear o facão nas
14
Os termos “molar” e “molecular” correspondem ao sentido usado por Guattari (1986, p.291-292), de
que a ordem molar diz respeito às estratificações que delimitam os objetos, os sujeitos, as representações
e os sistemas de referência, enquanto que a ordem molecular é está ligada aos fluxos, devires, transições
de fases e intensidades. Entre os dois níveis não há necessariamente oposição ou contradição. Um
exemplo: as lutas sociais são ao mesmo tempo molares e moleculares (Guattari & Rolnik, 1999, p.127).
15
Leão II é uma “nova” mina de subsolo, de 180 metros de profundidade, cuja construção começou nos
anos 1980 e que foi retomada nos últimos anos, com o arrendamento pelo Estado a uma mineradora
privada de Santa Catarina. Ver Parte I, capítulo 2.
9
brigas de rua que marcavam as disputas masculinas na vila mineira era uma “questão de
honra”. Perguntei-lhe então qual era a “questão de honra” da sua geração. A partir de
seu relato, percebi que estavam em jogo novos ideais e novas moralidades. Ele me
respondeu que a nova questão de honra era “sair da cidade e se qualificar
profissionalmente para encontrar um emprego melhor”. Ou seja, como o ingresso e a
carreira na mina não são mais caminhos “naturais” para os filhos de mineiros, a
“questão de honra” não estaria mais condicionada à coragem, à força e à habilidade
física (que faziam tanto a fama dos “valentes” como compunham a honra profissional
na mina). A construção da nova modalidade de honra estaria exigindo disposição e
esforço pessoal para buscar uma qualificação técnica nos grandes centros urbanos que
pudesse se reverter em mérito profissional, de forma a ocupar melhores postos de
trabalho.
16
Não me alongarei aqui sobre esta questão, mas deve-se assinalar que a
própria noção de “honra masculina” se altera.
Na abordagem sobre a “honra”, considero inspiradores os estudos conduzidos
por Pitt-Rivers (1965, 1983, 1992) e Peristiany e Pitt-Rivers (1965, 1992) sobre a
“honra mediterrânea”; assim como os trabalhos contidos na coletânea organizada por
Gautheron (1992), sobre a honra como “dom de si ou imagem de si”; e a investigação
de Fonseca (2000) sobre as modalidades de honra numa vila popular de Porto Alegre,
entre outros. Pesquisas publicadas a partir da década de 1990 lançaram dúvidas se ainda
valeria a pena se falar em honra, considerando que a noção esteja “doente” ou
“degradada”. Gautheron (1992) mencionava que a honra está um tanto “desonrada”,
apoiando-se em autores para quem haveria uma espécie de “recolhimento da honra”
(Weinrich), de forma que ela teria sido substituída por uma “moralidade simples”, pela
boa reputação (Bollnow), ou, de outro modo, que seu lugar teria sido tomado pelo valor
social do prestígio (Korff).
17
Parece-me, entretanto, que Pitt-Rivers (1992, p.31) está
certo quando afirma que “a honra só foi expurgada da língua, não do sistema
simbólico”. Gautheron (1992), por sua vez, alertava para o risco de se banalizar a honra
por uma extensão abusiva do seu sentido considerando-se como honra uma exigência
individual ou universal de dignidade. De fato, o termo carrega tamanha amplitude
semântica que abriga sentidos diversos. Acredito, porém, que uma análise ancorada nas
peculiaridades do mundo dos interlocutores e na contextualização das observações pode
afastar em parte essa ameaça.
16
Tais aspectos são retomados no capítulo final, sobre “Os filhos do carvão”.
17
Gautheron, 1992, p.14, nota 21.
10
No Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, o termo “honra” recebe uma
dezena de sentidos com nuances aproximados ou distintos, dos quais destaco: 1)
Consideração e homenagem à virtude, ao talento, à coragem, às boas ações ou às
qualidades de alguém; 2) Sentimento de dignidade própria que leva o indivíduo a
procurar merecer e manter a consideração geral; pundonor, brio; 3) Dignidade,
probidade, retidão; 4) Grandeza, esplendor, glória; 5) Pessoa ou coisa que é motivo de
honra, de glória; 6) Culto, veneração; 7) Graça, mercê, distinção; 8) Honestidade,
pureza, castidade, virgindade. A vastidão de sentidos que esta pequena palavra carrega
pode nos tranqüilizar quanto ao seu uso, mas pela mesma razão nos inquieta,
considerando os riscos da imprecisão do significado em diferentes circunstâncias.
A profusão dos usos da noção de honra nos estudos antropológicos desde os
anos 1960 - especialmente após a publicação do trabalho sobre “honra e vergonha”
(Peristiany; Pitt-Rivers, 1965) – nem sempre indicando claramente a situação
etnográfica ou evidenciando as variações de significado, provocou a reação de
estudiosos como Herzfeld (1980), para quem as massivas generalizações de “honra” e
“vergonha” se tornaram contraproducentes. Uma correta interpretação de termos de
avaliação moral requereria uma clara percepção do contexto social e lingüístico em cada
comunidade, de forma que “honra” e “vergonha” poderiam ser laminações insuficientes
de uma variedade de terminologias nativas (Herzfeld, 1980). Como sugere o autor, seria
no “particularismo etnográfico” que se deveriam procurar os insights que a
generalização reducionista não pode nos fornecer.
18
Considerando procedente a questão, procuro manter as categorias nativas em
cada capítulo ou seção, acompanhadas da explicitação dos sentidos nos diferentes
contextos, sempre que isso me é possível. Mas por que não tratar diretamente das
categorias nativas sem que sejam recobertas pelo véu englobante da “honra”?
Justamente pela multiplicidade de termos evocados pelos informantes (como, por
exemplo, orgulho, dom, dignidade, respeito, consideração, prestígio, reconhecimento,
admiração, reputação, satisfação ou renúncia ao ego, heroísmo, coragem, habilidade,
valentia, seriedade, honestidade, crédito, amizade, etc., com suas gradações e oposições)
e pela volatilidade de sentidos atribuídos nas diferentes circunstâncias, o que torna
quase intangível um mapeamento dos respectivos usos em situações concretas assim
como das nuances que eles evocam. Outra razão é que estou convencida que a
18
Herzfeld, 1980, p.348-349.
11
intensidade embutida nesses termos nos remete, para além das suas especificidades, ao
campo vasto – ainda um tanto inexplorado, segundo me parece
19
- das múltiplas
dimensões da honra e, entre elas, as contidas no que denomino de “pequena honra”.
Adoto como ponto de partida a definição de Pitt-Rivers (1965) da honra como
sendo “o valor de uma pessoa aos seus próprios olhos, mas também aos olhos da
sociedade”. Em suas primeiras análises, o autor definia a honra como “a estimativa de
seu próprio valor ou dignidade, pretensão ao orgulho, mas também o reconhecimento
dessa pretensão, sua excelência reconhecida pela sociedade, seu direito ao orgulho”
(Pitt-Rivers, 1965, p.21). Em estudos mais recentes, refletia sobre as dificuldades
inerentes à análise da honra, em razão de ela ser um sentimento e também um fato
social objetivo (Pitt-Rivers, 1992). De um lado, há um estado moral que deriva da
imagem que cada um faz de si, de outro, o meio de representar o valor moral dos outros:
sua virtude, seu prestígio, seu estatuto, etc. A honra pode ter uma dimensão individual,
porque depende da vontade de cada um, como no caso da motivação que responde a um
chamado divino. Mas também é coletiva e pode se ligar a um grupo social, como a
família, a comunidade e a pátria. Varia segundo o gênero
20
, a posição ocupada por cada
um na sociedade, a classe social, as profissões, etc. Mesmo que seja sentida antes de ser
concebida, esse aspecto subjetivo deve, segundo o autor, entrar em contato com a
realidade, pois a conduta será, mais cedo ou mais tarde, julgada pelos outros. Assim, a
aspiração do indivíduo à honra deve ser reconhecida publicamente. Inversamente, o
indivíduo também pode reconhecer a própria vergonha, quando uma negação social da
honra suscita prestígio negativo que pode ser interiorizado pelo sujeito.
Ao conceber os conceitos de “grande honra” e de “pequena honra”, inspiro-me
no modelo teórico de Redfield (1967) acerca da Grande e da Pequena tradição, a partir
de estudos em comunidades camponesas e na forma pela qual as duas tradições
interagem como processos complementares, viabilizados pela ação de mediadores.
21
19
Algumas investigações importantes envolvendo o tema da honra no contexto brasileiro foram
conduzidas por Sigaud (1996, 2004) e Teixeira (1999). Ver também a discussão feita por Rohden (2006).
20
Na perspectiva dos estudos “mediterrâneos”, o requisito da honra para o homem é a coragem, enquanto
que para a mulher é a pureza sexual. Nos estudos mais recentes, porém, Pitt-Rivers deixa entrever que
este valor feminino poderia estar em mutação naquele contexto. Ver Pitt-Rivers, 1992, p.18-19.
21
Conforme Redfield (1967), a Grande Tradição ancorava-se na Igreja e no trabalho dos teólogos que
comandaram a Idade Média, com raízes profundas e duradouras no tempo e no espaço. A Pequena
Tradição, mais recente, menos enraizada e relacionada aos setores populares, estaria vinculada às crenças
locais das pequenas comunidades, apartadas das Grandes Tradições, mas comunicando-se com elas. A
Grande Tradição estaria relacionada ao letrado, ao culto, desenvolvida nos templos e escolas, enquanto
que a Pequena Tradição diria respeito ao oral, vinculada às classes populares e aos iletrados. Peter Burke
(1989) parte dessas definições problematizando-as. Ele considera que a “pequena” e a “grande” tradição
12
Guardando uma alusão ao sentido original, tomei de empréstimo o modelo,
transformando-o em “grande honra”, de cuja construção participaria o Estado, as
empresas, os partidos, a mídia, os sindicatos, os intelectuais e toda uma gama de agentes
com poder sobre a opinião pública, e “pequena honra”, correspondendo a uma
diversidade de valores, crenças e práticas locais combinados entre si, com origem
periférica em relação à centralidade representada pela “grande honra”.
Meu interesse pelas diferentes configurações da honra – para além da sua
divisão em termos coletivos e individuais e da que concerne aos papéis de gênero
22
–,
aflorou mais claramente durante minha experiência do estágio de doutorado na França,
realizada entre novembro de 2007 e agosto de 2008, depois do trabalho de campo em
Minas do Leão. Além das pesquisas bibliográficas e das interlocuções com
pesquisadores, uma imersão etnográfica em Creutzwald, cidade que abrigou a última
mina de carvão da França, La Houve, fechada em 2004, possibilitou-me uma
compreensão mais nítida acerca dos elementos constitutivos do que denomino de
“grande honra” da profissão. Na abordagem da “grande honra”, portanto, percorro uma
genealogia da construção do heroísmo entre mineiros franceses, com referências ao caso
soviético, buscando iluminar aspectos surgidos entre os trabalhadores brasileiros.
***
Esta tese é composta de quatro partes. Cada capítulo mantém certa
independência dos outros e poderia ser lido separadamente. Os três primeiros capítulos
situam-se no interior da Parte I, intitulada “Da mina, honra e desonra”. No primeiro
capítulo, analiso o que seja a “grande honra” da profissão, relacionada à imagem de
heroísmo dos mineiros enfocando, como dito, o universo dos mineiros franceses, a
partir de referências bibliográficas e de pistas fornecidas por meu trabalho de campo na
Lorena francesa. Esboço uma definição de “pequena honra” e sugiro algumas
modalidades no contexto de Minas do Leão (RS). Na parte final, descrevo algo de meu
percurso, das dificuldades e constrangimentos vividos em campo, fechando o capítulo
com um detalhamento metodológico sobre o uso de histórias de vida e trajetórias.
No segundo capítulo, exibo resultados de uma investigação de caráter histórico
sobre a atividade de mineração na microrregião do Baixo Jacuí, no Rio Grande do Sul,
onde se localizam os atuais municípios de Minas do Leão e Butiá. Além de contar com
não correspondem de forma simétrica à cultura do povo comum e das elites, pois uma parte dos
indivíduos das elites era analfabeta, mais próxima assim da pequena tradição (Burke, 1989, p.51).
22
Por exemplo, em Peristiany e Pitt-Rivers (1965, 1992), em Bourdieu (1965), entre outros.
13
pesquisa bibliográfica e com relatos de informantes, este capítulo examina uma centena
de documentos de uma mineradora privada (Cadem, hoje Copelmi), nos quais é possível
identificar o papel dos imigrantes estrangeiros, especialmente dos poloneses, as lutas da
categoria, as denúncias às condições desumanas das minas, o papel dos comunistas nas
mobilizações e as repressões policiais, ancoradas nas alianças das forças de segurança
com as companhias carboníferas. Uma parte da trajetória do ex-mineiro Gerino Lucas
ilustra esses encadeamentos.
No terceiro capítulo, lanço mão de sete trajetórias de ex-trabalhadores das minas,
com idades entre 62 e 80 anos, buscando identificar os traços da “pequena honra do
trabalho”, com suas múltiplas feições, que se conjuga com outros aspectos, relacionados
à militância sindical, às formas de malandragem, assim como à dimensão trágica da
mina, relacionada às doenças profissionais e aos acidentes. Pelo menos três destes
interlocutores, com perfis distintos, venceram no passado concursos de “Mineiro
Padrão” na localidade. Outros receberam homenagens da companhia como “bons
operários” e até uma placa de “Honra ao mérito” pela atuação num salvamento.
A Parte II, intitulada “A tessitura da cidade”, reúne os capítulos 4 e 5. No quarto
capítulo, apresento o cenário da comunidade, evidenciando suas divisões e disputas, no
passado e no presente – relativas ao território, aos mundos urbano e rural, à raça, às
condições sociais, às disputas futebolísticas e políticas. Nesta parte do trabalho, busco
esmiuçar também algumas características relacionadas aos papéis de gênero, às noções
de moralidade e à centralidade da família. As fofocas e atribuições jocosas em torno das
“traições” e das figuras de “cornos” compõem parte desta intriga cotidiana. Nos relatos,
se verá também como os comentários sobre os outros e a própria construção de
reputações exploram tanto os detalhes da vida como da morte de conhecidos. Uma
seção no interior deste capítulo pretende explorar aspectos da honra na política,
analisando também o modo como se dão as “relações pessoais” no contexto local.
No quinto capítulo, examino os liames do que estou chamando de “pequena
honra do sagrado”, sustentando, inicialmente, sua própria pertinência teórica. A seguir,
descrevo trajetórias de informantes relacionadas ao aspecto religioso, que guardam entre
si significativas diferenças, tanto no que diz respeito ao objeto da crença como aos
valores e práticas acionados. Encontramos, neste contexto, a devoção a santos, tais
como Santa Bárbara e Nossa Senhora Aparecida, junto à emergente oferta evangélica e
aos tradicionais cultos afro-brasileiros. Relatos em torno de promessas a mortos
milagrosos e pedidos a almas familiares compõem a gama de recursos espirituais.
14
A parte III, “Do espírito do jogo”, engloba os capítulos 6 e 7. No sexto capítulo,
minha atenção se volta para disputas locais tais como as antigas “brigas de facão”, os
jogos de bocha, as carreiras de cavalo e as apostas, principalmente eleitorais. Sugiro que
tais práticas se relacionam a modalidades de honra relacionadas ao desafio, ao jogo e à
malandragem. No sétimo capítulo, analiso as rivalidades entre as equipes de futebol
criadas em torno das minas, a partir de trajetórias de sete mineiros-jogadores,
destacando os cruzamentos entre seus múltiplos pertencimentos e a forma como este
esporte operário se constituiu num fator importante na construção de prestígio e de
popularidade e como possibilitou ingressos na companhia, alavancando carreiras.
No oitavo e último capítulo, que constitui a Parte IV, “Das gerações”, percorro a
trajetória de filhos de mineiros, entre os quais alguns seguiram a profissão de pais e
avós. O “gosto da mina” ou o “gostinho do carvão”, narrado por informantes, surge
como uma espécie de ritual lúdico de iniciação ao misterioso mundo do subsolo no qual
a transmissão do ofício se consagra entre diferentes gerações. Nos embates sindicais,
ganham importância novas questões sobre a mineração à flor da terra relacionadas à
oposição entre emprego x meio ambiente. Nos percursos daqueles cujo pai trabalhou na
mineração há a descrição do embate constante na procura de alternativas de
sobrevivência até o encontro de um ofício. Refere-se ainda o surgimento de “novos
mineiros”, contratados por empresas terceirizadas na preparação de galerias de uma
mina cujo funcionamento é incerto. Esses jovens se dividem entre um desejo genuíno de
fazer carreira no esporte e a necessidade de formação técnica, considerada menos
“incerta” como carreira profissional. Verifica-se, em geral, um alongamento da
escolaridade, rompendo limites socialmente estabelecidos pela condição operária.
***
Esforço-me, ao longo deste trabalho, para tornar verdade o que disse aquele
informante, Mieroslau, velho ferreiro da mina de origem polonesa, com sua
generosidade sempre brejeira e elegante, quando li para ele uma parte do texto desta
tese que referia algumas de suas narrativas no momento em que ele já estava
gravemente enfermo numa cama de hospital: “Ela diz de outra maneira o que eu disse e
pega exatamente o sentido do que eu falei!” E em tom de caçoada: “Com a minha
experiência e a inteligência dela, nós vamos longe!”
23
Eu ousaria inverter o seu dito
para sugerir que com minha experiência de campo, que, a esta altura, considero ser
23
Mieroslau Lasek, meu interlocutor desde 2003, faleceu semanas depois, em meados de 2009.
15
razoável, e com sua inteligência – e a dos demais interlocutores - espero ter conseguido
“honrar” a sua confiança, traduzindo um pouco de seu mundo. Outro comentário
estimulante me foi feito por uma viúva que perdeu seu marido num acidente na mina,
quando li para ela o que eu havia registrado sobre aqueles momentos de sua vida em
minha dissertação de mestrado, quando de meu retorno ao campo, já no doutorado.
Emocionada durante a leitura que eu fazia em voz alta, ela me disse que “tinha sido isso
mesmo”. E completou que “até parecia que eu estava lá” para contar “tão certinho” o
que ela passou na ocasião da morte de Pedro, esmagado por um desmoronamento no
subsolo.
24
Eu respondi que ela havia me relatado sua história com tanta riqueza de
detalhes que eu tinha podido traduzir algo do que ela vivera. Mas não nos deixemos
iludir. Sabemos que ao etnógrafo a possibilidade de narrar a história ou a trajetória do
nativo será sempre precária e parcial diante da complexidade da vida e que o esforço de
interpretação desses dados obtidos em campo não enfrenta menos riscos e dificuldades.
Neste sentido, é bom ter em mente o que escreveu Schwartz (2002, p.55) sobre o fato de
que, num trabalho sobre a classe operária, deve-se manter distância crítica ao olhar que
é tentado a descrever a cultura das classes populares como sendo uma “cultura mais
pobre”. Em seu estudo, ele sublinhava sempre que possível a dimensão dos desejos, das
problemáticas e dos saberes dos nativos. Procuro seguir esta perspectiva.
***
Orientação ao leitor: alguns nomes de informantes foram substituídos por nomes
fictícios para preservar a sua identidade, nos casos em que julguei haver uma exposição
demasiada de questões íntimas ou constrangedoras devido a outras razões. Mas a maioria
dos nomes foi mantida. Certas passagens também tiveram apagados detalhes que
pudessem identificar os narradores. Ao longo do texto, é adotado o recurso do box para
introduzir dados ou aprofundar tópicos evitando assim uma quebra do ritmo de leitura.
24
A história da morte de Pedro é contada em Cioccari (2004).
16
PARTE I
A MINA, HONRA E DESONRA
Mundo em pedaços: A demolição da sede da mina La Houve, em Creutzwald, na França
L’univers de la mine
a profondément
marqué le paysage. Moi,
tous ces chevalements,
j’ai toujours trouvé ça
formidablement beau.
C’était un peu nos cathédrales.
Ils se dressaient vers le ciel,
bien droits. Pour nous,
c’était pratique et rassurant.
On ne se perdait pas dans le pays,
grâce à eux. On les connaissait tous,
c’était nos repères. (...)
(« ...La mine aux mineurs... »,
2004, p.4)
Como catedrais: As torres se elevam na paisagem. A
estrutura acima foi mantida na Lorena francesa
17
1 FACES DO HEROÍSMO MINEIRO
Honra do Trabalho:
ex-mineiro francês,
Roger Stark, militante
do PCF e da CGT,
exibe seu diploma
1.1 DA REPULSA À “GRANDE HONRA”
Se as grandes imagens ligando o mar à mina, o “amor” ou a “paixão” pelo
trabalho no subsolo estão presentes no imaginário das classes populares, tal presença
nada tem de fortuita. Integra antes uma circularidade (Bakhtin, 1987) em torno de idéias
que contribuíram para a construção de um modelo heróico na vida desses trabalhadores
e que ressurge de tempos em tempos, realimentado pela literatura, pelo cinema, pelas
mídias em geral, pelos estudos técnicos e acadêmicos. Investigações de historiadores,
antropólogos, sociólogos e cientistas políticos conduzidas sobre os trabalhadores das
minas já abordaram aspectos de sua identidade heróica.
25
Lucas (1981), por exemplo,
ressaltava que os mineiros se lançam a um combate singular, « uma espécie de corpo-a-
corpo com o Elemento » e sua fraternidade, sua solidariedade, ganha corpo na
especificidade deste combate. Estudos realizados a partir dos anos 1980 no Brasil
indicavam que o mineiro de subsolo trabalha “vendo a morte nos olhos dos outros”,
como mencionou Grossi (1981), ou num “cotidiano com o cheiro da morte”, segundo
25
Destaco, entre as pesquisas feitas no Exterior, as obras de R.Trempé (1971), Ph. Lucas (1981), E.
Desbois, Y. Jeanneau e B. Mattéi (1986), M. Lazar (1985, 1990), O. Schwartz (2002), G. Noiriel (2002),
C. Eckert (1991, 1993), J. Michel (1993), J. Ponty (1995, 2008), C. Roth (2002), D. Cooper-Richet
(2002), sobre mineiros na França; N. Dennis, F. Henriques e C. Slaughter (1969), D. Lancien (1981), H.
Beynon (1999), sobre os trabalhadores nas minas na Grã-Bretanha; R. Clyne (1999), sobre uma área
mineira no Colorado, nos EUA; A. Kassapi (2001), sobre mina da Grécia do Norte; B. Moore Jr. (1987),
sobre mineiros de carvão na Alemanha; J. O. Sánchez Fernandez (2004), sobre a mineração em Astúrias,
na Espanha; J. Nash (1979), J. Nash & J. Rojas (1976), e M.Taussig (1980), sobre mineiros de estanho
bolivianos. Sobre as pesquisas no Brasil, são referências obrigatórias os trabalhos de C. Eckert (1985), Y.
Grossi (1981), T. Volpato (1982), M. C. Minayo (1986), C. E. Silva (2007), entre outros. Sobre as
mobilizações de operários gaúchos, com referências a mineiros, ver, por exemplo, A. Fortes (2001), D.
Konrad (2004), I. Bilhão (2005) e G. Konrad (2006).
18
um operário ouvido por Eckert (1985). Tal dimensão de uma heroicidade relacionada ao
perigo encontra seu correspondente em outros segmentos de trabalhadores,
especialmente entre aqueles que atuam em profundidades, tais como mergulhadores e
pescadores. Assim como “ir ao mar” para pescadores de Jurujuba (RJ), pesquisados por
Duarte (1987a, p.174), significa “embrenhar-se no limiar”, “enfrentar o desconhecido”,
para os mineiros de Minas do Leão (RS), “baixar à mina” reveste-se de sentido similar.
Nas entranhas da terra ou em alto mar ingressa-se numa zona de incerteza.
Em sua longa tradição, iniciada na Europa por volta do século XVI, mas
intensificada nos séculos XVIII e XIX durante a revolução industrial, a atividade de
mineração subterrânea foi construída sob o signo do perigo e da insalubridade. Essas
características contribuíram diretamente para uma imagem heróica desses trabalhadores.
Uma análise da trajetória deste segmento operário na Europa - mais especificamente o
caso francês - nos ajudará a compreender o fenômeno que encontra eco nas
representações de trabalhadores gaúchos. Na observação de traços da longa história da
mineração subterrânea de carvão na Europa – onde o mineral era chamado de o “pão da
indústria”, com importância decisiva entre 1850 e 1950 – podem-se vislumbrar mais
nitidamente aspectos que se entrevê na jovem tradição carbonífera brasileira.
Como detalho no próximo capítulo, a indústria brasileira de carvão se
desenvolveu na esteira do exemplo europeu, de forma que as primeiras vilas-mineiras
na região carbonífera do Baixo Jacuí, no Rio Grande do Sul, onde está situada Minas do
Leão, se constituíram entre o final do século XIX e meados do século XX. Durante um
século, a exploração de carvão na região contou com a experiência de imigrantes
europeus (sobretudo ingleses, alemães, espanhóis, poloneses, ucranianos, iugoslavos,
russos, etc.), havendo o intercâmbio de técnicas de extração, mas também de formas de
organização e de resistência – assim como de um imaginário dos subterrâneos.
26
Se
tomo aqui o caso francês como referência para a análise do surgimento da “grande
honra” é devido à abundância de estudos relativos ao tema naquele contexto e, também,
à minha própria experiência de pesquisa em Creutzwald, na Lorena francesa.
É importante se considerar que a identidade coletiva do mineiro de subsolo
pretende-se universal, atravessando fronteiras e tempos históricos, como indica a
referência de Zecão ao Germinal. Tanto em minha pesquisa no Brasil como na França,
notei entre meus interlocutores esse sentimento de proximidade em relação a mineiros
26
Esses aspectos serão aprofundados no capítulo 3.
19
de outros tempos e/ou de diferentes países, mais do que a outras categorias operárias
próximas do ponto de vista temporal ou geográfico. Na França, os ex-operários me
perguntavam sobre a vida e sobre as condições de trabalho de seus “colegas”
brasileiros; em Minas do Leão (RS), alguns ex-mineiros assistiram atentos às imagens
do subsolo da mina francesa que lhes mostrei e queriam saber tanto da qualidade do
mineral como de minhas impressões sobre os trabalhadores de lá. Certa vez, quando
assistíamos a um DVD sobre o último dia de trabalho dos operários franceses
27
na mina
La Houve, Hermes, ex-mineiro de Leão I, reagia assim, com os olhos brilhando: “Meu
Deus, que saudade! Meu Deus, que saudade!” A mina francesa que via na tela tinha
uma relação de continuidade com a mina local na qual ele havia trabalhado e que
também havia sido desativada. Ao anoitecer, enquanto tomávamos café, Hermes cantou
para mim e sua esposa versos de uma canção em francês que aprendera na escola, cujo
significado não suspeitava, mas que ficaram gravados desde aqueles poucos anos de
escolarização de sua infância. Parece-me que o que une esses trabalhadores é o
sentimento de pertencer a um “nós, os mineiros”. Esta cumplicidade tácita – da qual eu
mesma participava, com uma pesquisa atravessando os dois universos - foi evocada na
dedicatória do livro Nous les mineurs
28
, que recebi de presente de um ex-mineiro e
sindicalista francês.
As primeiras imagens sobre o “heroísmo mineiro” na França surgem com
Simonin (1982 [1867]), antigo engenheiro das minas do Loire, tornado o principal
ideólogo das companhias carboníferas, que escreveu uma obra de vulgarização, La vie
souterraine: les mines et les mineurs, cuja inspiração menciona ter partido do romance
de Victor Hugo, Os trabalhadores do mar (1971 [1866]), publicado um ano antes. A
conexão entre o mar e a mina aparecia explicitamente na obra de Simonin, na qual ele
destacava a aproximação dos dois universos, citando a (então) recente obra de Hugo:
“Aquilo que ele [Hugo] chama tão adequadamente de obstáculo, a ananke dos
elementos, se dirige também contra o mineiro. Como o marinheiro, ele é o soldado do
abismo, e contra ambos obstina-se fatalmente a natureza” (Simonin, 1867, p. I).
29
Esta
representação do trabalho na mineração subterrânea como “um combate” e do mineiro
como “um soldado” figurará durante muito tempo nos discursos políticos e perdurará na
fala dos operários. Por parte das empresas carboníferas, a imagem de “herói do
27
Trata-se do documentário Poste du matin à La Houve, 2004.
28
Obra de J.C. Poitou, editada em 1983 pela Federação Nacional dos Trabalhadores de Subsolo da CGT.
A dedicatória dizia: “Com todo o meu reconhecimento pelo interesse que portas à nossa profissão”.
29
Uma análise sobre a categoria da natureza nesta obra de Hugo está em Cioccari, 2010.
20
trabalho” será evocada especialmente após as tragédias nas minas, como forma de fazer
frente a greves e rebeliões e de chamar os mineiros ao cumprimento de seu “dever”.
Na comunidade mineira de Anzin, no Norte da França, por exemplo, entre 1909
e 1911, cerca de 20% dos trabalhadores tiveram um acidente de trabalho, dos quais um
sobre dez ficaria permanentemente incapacitado.
30
Depois de uma tragédia, Anzin foi
palco de uma greve de mineiros que durou 56 dias e atraiu as atenções do escritor Émile
Zola. Em fevereiro de 1884, Zola entrava na “gaiola” para descer os 675 metros de
profundidade no poço Renard, em Denain, enfrentando o sentimento aterrador de um
mergulho nos “infernos”
31
, em meio à escuridão e à umidade daqueles subterrâneos:
uma espécie de chuva lhe caía sobre os ombros à medida que o elevador descia no
abismo.
32
Foi quando o escritor conheceu de perto o mundo dos mineiros de carvão,
cuja atmosfera transportaria para o romance Germinal, publicado em 1885, no qual
retratava o cotidiano penoso, a revolta e a luta desses trabalhadores contra o capital, a
companhia carbonífera. A denúncia da exploração e do sofrimento a que os mineiros
eram submetidos aparece então na literatura naturalista com uma ênfase que jamais
tivera, sendo depois as observações do escritor comparadas a uma “verdadeira
etnografia”.
33
Sua obra será uma das principais contribuições para o imaginário coletivo
sobre a vida dos trabalhadores no subsolo – no qual os próprios operários iriam se
apoiar para falar de si – e não apenas os franceses.
34
Antes de Zola, outros escritores
haviam tomado a mina por tema, como Elie Berthet, que publicou em 1866 Les
houilleurs de Polignies. O jovem Zola, que trabalhava na editora que lançou o livro, foi
um dos primeiros a ler o romance, tendo escrito um comentário para um boletim.
35
Posteriormente, a vida dos mineiros passaria a inspirar novas obras de ficção, além de
biografias e autobiografias operárias. Elas iriam se mesclar, aderindo ou se contrapondo,
às imagens propaladas pelas próprias companhias sobre o “heroísmo mineiro” e cuja
30
Michel, 1993, p. 36.
31
Termo utilizado para se referir às minas que aparece num poema de Louis Aragon, em 1940: “Enfer-les-
mines”. Ver Lazar, 1990, p.1092; Cooper-Richet, 2002, p. 58.
32
Zola descreve essa descida às galerias da mina em seu caderno de notas. Este material foi organizado
por Henri Mitterand e publicado no capítulo “Dans le corons”, do livro Carnets d’enquête: une
ethnographie inédite de la France (Zola; Mitterand, 1987).
33
Zola realizou um estudo minucioso da sociedade francesa para escrever a saga dos Rougon-Macquart,
onde se insere o livro Germinal. Após vinte anos de observações, o escritor reuniu as principais
características da etnografia: o trabalho de campo, a observação de fenômenos particulares a grupos
restritos, a análise e observação dos fenômenos observados para elaborar documentos descritivos e
sínteses. Ver Zola; Mitterand, 1987, p.13.
34
Cooper-Richet (2002, p.7) considera que, graças ao Germinal, a mina e os mineiros entraram por longo
tempo e com uma forte carga emocional no patrimônio cultural dos franceses.
35
A este propósito, ver Cooper-Richet, 2002, p.176-177.
21
influência parece atravessar um pouco todas as culturas.
36
Os mineiros – ou, naquele
contexto, os gueules noires – se tornariam figuras míticas, capazes de despertar uma
mescla de compaixão e de admiração, reputados por sua coragem física, sua resistência,
sua solidariedade profissional e o orgulho por seu ofício.
37
O mundo subterrâneo
suscitava medo e respeito, repulsa e fascinação. A imagem do mineiro, em boa parte
forjada pela grande imprensa do final do século XIX, ganhava contornos dramáticos: o
trabalhador tornava-se conhecido pelos riscos que enfrentava ou pelas lutas que
conduzia.
38
Perigo e solidariedade tornaram-se palavras-chaves para se falar do mineiro.
Como outras profissões viris que empreendem grande esforço físico, como os
marinheiros, a profissão de mineiro passou a ser vista como geradora de
comportamentos coletivos, com uma identidade vinculada ao trabalho. Foi ganhando
força a noção de uma adaptação
hereditária, com a transmissão do ofício
de pai para filho. Na imagem da grande
corporação “como uma família”, nutria-se
a idéia do “amor pelo trabalho” e do
devotamento aos companheiros.
39
Noiriel (2002, p. 110) destacava a
afirmação de Trempé de que “a
repugnância pelo trabalho subterrâneo”
havia se transformado em verdadeira
“repulsa” no começo do século XX, na França, de forma que era difícil de recrutar
operários para a mina e mais difícil ainda de mantê-los. Neste contexto, as políticas
paternalistas adotadas pelas companhias carboníferas tinham, justamente, o intento de
vencer tal repulsa. Uma das formas foi a midiatização de imagens em torno do mineiro
corajoso, amante de seu ofício e disposto a todos os sacrifícios. Um mito fundador das
imagens heróicas pode estar situado em 1812, durante uma catástrofe com dezenas de
mortos numa mina na Bélgica, quando um mineiro, Goffin, após ter salvado da morte
60 companheiros, foi condecorado por Napoleão Bonaparte com a “Legião de Honra”.
40
Por outro lado, uma explicação para a insistência em fazer do mineiro um mito pode ser
36
Mineiros de ferro, chamados de “gueules jaunes” para se diferenciarem dos “gueules noires”,
lamentavam não terem tido o seu Zola, que retratasse suas peculiaridades. Ver Nezosi, 2008.
37
Cooper-Richet, 2002, p. 7.
38
Michel,1993, p.98.
39
Michel, 1993, p.98-100.
40
Mattéi, 1986, p.89.
22
a necessidade de combater sua resistência a se tornar este herói pronto ao sacrifício. Ao
contrário do que sugere a propaganda, a idéia do heroísmo e do amor ao trabalho não
parece ser inata.
41
Boa parte dos mineiros não tinha vontade de arriscar a sua vida no
subsolo – como se percebe nos registros sobre o medo e a resistência à mina, sob a
forma de absenteísmo e evasões, apontados na literatura e no trabalho de campo.
Foi necessário então um longo trabalho de convencimento para que o perfil do
operário correspondesse ao mito, ainda assim com suas dissidências. Ao falarem deles
mesmos os mineiros não usavam termos muito diferentes dos usados pelos patrões. No
caso francês, ainda que os sindicatos denunciassem os objetivos patronais, retomavam à
identidade idealizada. Os discursos do primeiro líder do sindicalismo mineiro francês,
Michel Rondet, por exemplo, exprimem esta dualidade: “O mineiro não é um operário
comum, ele é, numa palavra, um soldado que combate constantemente para encher os
cofres de nossos capitalistas”.
42
Seu discurso associava a imagem do soldado, tomada
de empréstimo a Simonin, à análise sócio-econômica inspirada no socialismo e no
sindicalismo nascente. Rondet dizia que o mineiro “tem por céu algumas centenas de
metros de rochas sobre a cabeça, ameaçando-o continuamente, por sol, uma lâmpada
(...)”. Para ele, o mineiro seria um trabalhador com uma espada de Dâmocles suspensa
sobre a cabeça.
43
Após sua morte, o próprio Rondet foi convertido em herói: sua estátua
figura numa pequena praça de La Ricamarie, na região do Loire, na França. Como
tradução da “grande honra”, em diferentes lugares do mundo encontram-se imagens
esculpidas de mineiros sobressaindo na paisagem das zonas carboníferas: a figura do ex-
mineiro soviético Alexei Stakhanov está, por exemplo, em Donbass, na Ucrânia, e a de
um mineiro desconhecido, em Arroio dos Ratos, no sul do Brasil.
1.2.1 A idealização do trabalhador pelos comunistas
Se a identidade heróica conferida ao mineiro de carvão deve seu tributo a Zola
foi, em grande parte, renovada pelo Partido Comunista Francês e pelo movimento
comunista internacional, que fizeram destes trabalhadores uma espécie de “farol” do
proletariado.
44
Os estudos de Marc Lazar (1985, 1990) mostram que o PCF investiu de
tal forma na figura do trabalhador das minas e na defesa do carvão como fonte
energética que, na França, estes operários acabaram por se tornar paradigmas da própria
identidade comunista. Durante e após a Segunda Guerra Mundial, os mineiros
41
Mattéi, 1986, p.91.
42
Apud. Mattéi, 1986, p. 91-92.
43
Michel, 1993, p.102.
44
Cooper-Richet, 2002, p. 9.
23
encarnaram a identidade comunista operária, nacional e revolucionária, relação que,
naquele contexto, ainda mantém seus resquícios. O interesse pelos mineiros se
manifestou a partir dos anos 1930. Em 1937, foi publicada Fils du peuple, a
autobiografia do secretário-geral do partido, Maurice Thorez, filho e neto de mineiros
do Norte da França, ele mesmo um ex-aprendiz da mina de subsolo.
45
As ligações com
o mundo da mina compõem um dos principais aspectos da legitimidade e da grande
popularidade de Thorez. Entre o fim dos anos 1940 e início dos anos 1950, a mina e os
mineiros receberam atenções da intelectualidade e dos artistas. A profissão, que gozava
de imenso prestígio no partido, desfrutava de importância econômica. Em 1946, o
carvão gerava 80% da energia nacional. As companhias carboníferas empregavam 330
mil trabalhadores – número que baixaria para 215 mil em 1955, em decorrência da
modernização e da mecanização. Além da busca de uma base política, os comunistas
eram atraídos pela forte ligação dos mineiros com seu ambiente de trabalho.
46
O mineiro visto pelos comunistas não tinha, porém, os traços resignados e
embrutecidos que se vislumbram em certas páginas de Germinal, mas, ao contrário, foi
erigido em modelo de moral e de virtude, “investido de uma missão prometéica”.
47
Como ressalta Lazar (1985, 1990), o próprio mundo da mina, símbolo do inferno
capitalista, por efeito dialético tornava-se o lugar privilegiado do movimento operário.
A tese que sustentava a valorização do trabalho manual, o amor pelo trabalho, o orgulho
operário e a comparação do trabalho proletário com a criação artística vinha sendo
defendida por Thorez desde 1936: “(...) nossos operários amam suas máquinas como
nossos camponeses e nossos artesãos suas ferramentas. Uns e outros amam seu ofício e
são tão orgulhosos de sua produção como um grande artista de sua obra-prima”.
48
O
mineiro passava a ser então o protótipo do “novo homem” - a exemplo das esperanças
soviéticas -, enfatizando seu caráter solidário, fraternal, disciplinado, corajoso, viril,
resoluto, tenaz, generoso e determinado. Os líderes comunistas não se cansavam de
exaltar a “beleza” e a “nobreza” do trabalho mineiro, que supunha uma agilidade, uma
competência e uma técnica particular.
49
Os mineiros, cuja aura revolucionária foi
exibida em greves históricas - como a da Resistência, em 1941; contra o imperialismo
45
Ver Lazar, 1985, p.191; e Lazar, 1990, p.1073-1074, 1085.
46
Neste período, havia também uma forte valorização dos metalúrgicos no PCF. Ver Lazar, 1990.
47
Lazar, 1985, p.197.
48
Citado por Lazar, 1990, p.1077.
49
Lazar, 1985, p.195.
24
americano, em 1948; e a destinada a “salvar a honra”, em 1963, iniciado o fechamento
das minas -, permitiam ao PCF proclamar-se o defensor e o depositário desta herança.
50
Trempé (1989) e Jean Louis (2000) consideram terem sido três as “batalhas do
carvão”. A primeira foi a “grande greve patriótica”, entre maio e junho de 1941 no
Norte da França, que começou como um movimento reivindicativo em Dourges e
envolveu 80 mil mineiros. As companhias apelaram para a intervenção de forças alemãs
e a área foi ocupada militarmente. Houve centenas de prisões e 270 mineiros foram
deportados. A greve, liderada por militantes comunistas clandestinos, ganhou um
caráter anti-alemão. Depois, entre 1945 e 1946, uma atualização do heroísmo mineiro
ganharia corpo efetivamente na França com as ações do Estado, das empresas e de
sindicatos durante a segunda batalha, a da produção, no pós-guerra, quando se forjou
mais claramente a identidade social e cultural da “mitologia do mineiro” (Mattéi, 1986,
p.13). Capturada pela imagem do herói do trabalho, a maioria dos mineiros se engajou
no esforço patriótico. A imagem do trabalhador passava a ser, então, a de um “soldado”
que vai à frente de produção com a missão de reconstruir o país e assegurar sua
independência e liberdade. Neste contexto, promoveu-se uma multiplicação de
cerimônias, de homenagens, de entregas de medalhas que pretendiam honorificar os
trabalhadores das minas que se engajavam para elevar a produção.
Era um programa organizado pelo Estado, com forte participação do PCF e da
CGT, que demandava dos operários extrema
dedicação ao seu métier. Slogans publicitários
veiculados na imprensa, nas rádios e no cinema,
além de cartazes afixados nos muros dos cafés, nas
fachadas dos poços e nos estabelecimentos
públicos diziam: “Torne-se mineiro, primeiro
operário da França”, “Mineiro, o destino da França
está em tuas mãos!”, “Para reconstruir a França, é
necessário primeiro o carvão”, “100.000 toneladas
de carvão por dia. É isso que a França espera de
ti”. Ou ainda: “A pátria está em perigo. Mineiro,
50
Lazar, 1985, p.199, 203.
25
você pode salvá-la!”, “As minas de ouro da França são as minas de carvão!”, “O carvão
é o sangue da França”. A nacionalização das minas, em 1946, prometia criar melhores
condições de trabalho, em contrapartida a esse esforço.
A esquerda jogou assim papel essencial nesta heroicização. Thorez, que se
tornou ministro de Estado, sustentava que produzir o carvão era “a forma mais elevada
do dever de classe” e era, também, o seu dever como patriotas.
51
As centrais sindicais
CGT e CFTC usavam a palavra de ordem: “Trabalhar primeiro, reivindicar depois”.
52
A
“mitologia do mineiro” consistia num discurso sobre o trabalhador adotado para
representá-lo tanto aos seus próprios olhos como aos olhos dos outros, de forma que ele
acabasse por interiorizar essa imagem.
53
Os mineiros eram considerados como
“destinados”, como se vê no discurso de Thorez: “É-se mineiro de pai para filho, são
nossos títulos de nobreza”. Mas os propalados “amor pelo trabalho” e “honra da
profissão” recebiam contestações mesmo entre os dirigentes comunistas, lembrando que
o sonho de muitos era o de que os filhos não fossem à mina.
54
Em décadas mais
recentes, a possibilidade de uma escolaridade mais longa para os filhos de operários
seria a promessa de outro horizonte, embora esta trouxesse o seu próprio desencanto.
55
É importante assinalar, nos anos 30, a influência da experiência soviética com o
movimento stakhanovista engendrando o reconhecimento social dos mineiros engajados
no aumento da produção de carvão. O movimento stakhanovista foi criado em
referência ao herói dos mineiros soviéticos, Alexeï Stakhanov, que, em agosto de 1935,
bateu o recorde de extração de carvão numa mina em Donetz: em menos de seis horas
retirou 102 toneladas de carvão, superando em 14 vezes o padrão de extração. No mês
seguinte, novo recorde: 220 toneladas num só turno. Depois da proeza, o mineiro e
outros três mil trabalhadores, homens e mulheres, foram homenageados por Stalin numa
cerimônia em Moscou. Stakhanov foi matriculado na Academia Industrial de Moscou e
seu nome foi utilizado pela propaganda soviética para criar o stakhanovismo,
estimulando o esforço revolucionário na superação de metas. O mineiro chegou a ser
51
Mattéi , 1986, p.33.
52
Ibid. p. 25.
53
Ibid. p.39.
54
Ibid. p.41-43.
55
Como indicaram Beaud & Pialoux (1999) e Noiriel (2002), as famílias operária na França,
desencantadas com a perspectiva de um futuro nas fábricas, orientaram seus filhos em direção a uma
escolaridade longa e se decepcionaram também com a eficácia dessa estratégia para melhorar a condição
de vida de seus descendentes. A ambigüidade vivida pelas famílias operárias é analisada por Noiriel
(2002, p.226): “Ao mesmo tempo em que se proclama o ‘amor do trabalho’, se mobilizam todas as forças
familiares reunidas para que os filhos não tenham a mesma vida que se teve”. (Tradução minha)
26
capa da revista Time em dezembro de 1936, com uma matéria intitulada “Russia:
Heroes of Labor”.
56
Algumas imagens deste período aparecem no documentário La
mort du travailleur, produzido em 2005 por Michael Glawogger.
57
Numa parte,
intitulada “Heróis”, são exibidos discursos de mineiros soviéticos em meados dos anos
1930, nos quais o melhor operário e a melhor operária de uma mina em Donbass
prometem “solenemente” produzir até o final do ano 28 mil toneladas de carvão “a mais
do que a norma”. Nas homenagens prestadas pela população à saída da mina, após o
anúncio de um recorde de produção, os “heróis do trabalho” desfilam sorridentes, fortes
e vitoriosos, carregando nos ombros as ferramentas, símbolos da profissão. Em meio a
flores, aplausos e faixas de “Viva o movimento popular stakhanovista”, entoam o hino:
Nossa nação engrandece pelo trabalho
Por toda parte, em nosso vasto país,
Uma nação de heróis stakhanovistas está em marcha,
E os mineiros combatem pelo carvão.
(...)
Em tempos de paz como em tempos de guerra,
Os mineiros amam seu país.
Uma nação de heróis stakhanovistas está em marcha,
Pronta a enfrentar o inimigo.
58
No documentário, ouvem-se mineiros ucranianos do presente – operários que,
com o fechamento da mina estatal ficaram desempregados e decidiram, por conta
própria, trabalhar numa mina abandonada – dizendo que não podem se comparar a
Stakhanov. Um deles avaliava que as cenas do movimento stakhanovista “não passavam
de um espetáculo, de um show”. Outro discordava, mencionando que o objetivo era
estimular a indústria do carvão. Estavam de acordo, porém, que no seu caso, a
motivação era outra: buscavam sobreviver, pois “sem trabalho, morre-se de fome!”
Na França, a campanha de heroicização do mineiro recebeu a resistência de
setores da própria esquerda que acusaram uma tentativa de docilizar o comportamento
operário. Ao contrário de uma narrativa “gloriosa”, a “grande honra” do mineiro
inscreveu-se numa mescla de interesses diversos e contraditórios. As reações
apareceram sob a forma de revoltas, de greves e de absenteísmo, principalmente nos
períodos que se seguiam aos acidentes fatais nas minas, cujas condições de trabalho
continuavam precárias. Em 1946, os trabalhadores franceses obtiveram duas conquistas
56
Ver Time, Dec.16, 1935. Disponível: http://www.time.com/time/magazine/0,9263,7601351216,00.html
57
O documentário (Alemanha, 2005, 119mn), se debruça sobre a vida de trabalhadores mineiros na
Ucrânia, além de outras categorias na Indonésia, Nigéria, Paquistão e China.
58
Tradução livre a partir da versão em francês.
27
importantes: o estatuto do mineiro e a nacionalização das minas. O estatuto, que passou
a vigorar em maio daquele ano pretendia conceder ao mineiro o seu direito à dignidade.
Consagraria um regime específico de seguridade social e de aposentadoria vantajosos
para a época, reconhecendo a silicose como doença profissional. Os mineiros obtinham
o direito à moradia gratuita, sendo colocados no topo da hierarquia operária – seu
salário era fixado por relação ao dos metalúrgicos. Os trabalhadores recebiam garantias
contra sanções com a criação de comissões paritárias; havia a classificação das
categorias e definição de regras de avanço.
59
A nacionalização, com a criação da
Charbonnages de France (CDF) agrupando nove companhias, em julho do mesmo ano,
foi recebida como o fim da exploração. Mas logo veio o desencantamento. Em 1947,
após a saída dos ministros comunistas do governo, este recusou aumento salarial à
categoria. O novo patrão tornara-se mais exigente que as antigas companhias.
60
Manifestação contra o terror policial: mineiros de Saint-Etienne se mobilizam em 1948
Seria deflagrada então a terceira batalha do carvão. Os mineiros sentiam que seu
esforço durante a guerra não tinha sido recompensado e lançaram mão de greves em
1947 e em 1948. Como reação, o exército ocupou os poços onde ocorreu a mobilização.
Uma forte repressão se desencadeou e houve mortes entre os trabalhadores, além de
59
Michel, 1993, p.86.
60
Ibid. p.88.
28
milhares de prisões e de condenações. Muitos artistas e literatos comunistas se
engajariam no combate simbólico a favor dos mineiros.
61
Nos anos seguintes, a
companhia efetivava os planos de modernização e de mecanização, com drástica
redução dos postos de trabalho: mais de 100 mil vagas seriam cortadas até os anos
1960. Diante dos novos processos de trabalho e da introdução de novos equipamentos,
os mineiros descobriam que “não é mais a mesma fadiga”
62
, mas seu trabalho
continuava a lhes roubar as forças. Nos anos seguintes, o PCF e a CGT foram
gradualmente perdendo espaço no seio da companhia. Nos anos 1960, começaria o
fechamento dos poços de extração, em meio a uma crise que se intensificaria nas
décadas seguintes (Eckert, 1991; Schwartz, 2002), com protestos violentos de uma
categoria que começava a ser extinta. Mobilizando a solidariedade nacional, a histórica
greve de 1963 manifestava o sentimento dos mineiros de voltarem a serem “párias”,
desvalorizados e com salários rebaixados.
63
Ex-mineiro nascido na Itália, Graziano
Balzani, um de meus informantes na Lorena, participou do movimento de 35 dias. Ele
recordava que a greve foi dura porque a companhia não aceitava suas reivindicações:
“Para que aceitasse, foi necessário que os operários fossem como um bloco de
cimento”, explicava. Como o pagamento dos salários havia sido suspenso, a certa altura
a greve teve que ser interrompida porque, apesar da rede de solidariedade ter mobilizado
o país, “havia famílias que não poderiam continuar a viver, pois já não tinham o que
comer”. O final da greve, com a concessão do governo às suas reivindicações, foi
retratado pela imprensa como o dia em que “De Gaulle se dobrou”.
64
Filho de operário-camponês da Itália, Graziano Balzani tinha chegado à França
em 1956 para trabalhar com um agricultor que produzia açúcar de cana. Depois, foi
ferroviário e metalúrgico, até ingressar na mina em 1961, na qual se aposentou como
chefe de equipe
65
, o nível mais alto permitido a um estrangeiro. Seu caso ilustra bem a
situação de milhares de imigrantes que ingressaram nas minas francesas. Deve-se
considerar o que escreveu Noiriel (20002) sobre o fato de que, duas décadas antes, até
os anos 1940, quase a totalidade dos trabalhadores do subsolo nas minas francesas era
61
Em 1949, foi lançado o primeiro romance de André Stil, filho de família operária, Le mot mineur,
camarades, e o filme Le point du jour, de Louis Daquin. Ver Lazar, 1985; e Michel, 1993.
62
Michel, 1993, p. 90.
63
Ibid., p. 90-91.
64
Cf. Républicain Lorrain, suplemento especial à edição de 22 de abril de 2004, p.13.
65
Chef de chantier.
29
de estrangeiros. A eles eram destinadas as tarefas mais duras e perigosas.
66
A entrada de
trabalhadores estrangeiros de origem italiana, polonesa, alemã, iugoslava, entre outras,
e, mais recentemente norte-africana, a partir dos anos 1970 e 1980, marcou de maneira
significativa o processo de exploração das minas daquele país, as clivagens no interior
da categoria e também a distribuição sócio-territorial nas comunidades.
1.2.2 A reação nas autobiografias e romances mineiros
Uma forma de resistência à mitificação dos trabalhadores nas minas surgiu nas
autobiografias operárias, como a do mineiro belga Alphonse Bourlard, escritas sob o
pseudônimo de Constant Malva. Em Ma nuit au jour le jour, surgida em 1937 e
publicada em 1953, ele justificava que queria desmistificar a imagem dos “heróis do
subsolo”
67
. Ligado à escola de Henri Poulaille
68
, Malva se perguntava como o mineiro
poderia ser um herói consentindo no “destino de escravo”. Ex-militante do Partido
Comunista, excluído por “trotskismo” em 1927, e a respeito de quem posteriormente
pairaram acusações de colaboracionismo, Malva afirmava que os trabalhadores das
minas não eram os heróis que a imprensa gostava de pintar depois das catástrofes. “Nós
não vamos à galeria por dever, mas por necessidade, porque é preciso ganhar a vida”.
Negava que os mineiros amassem seu ofício, explicando que eles não escolhiam sua
profissão, mas que esta lhes era imposta por certas circunstâncias. Rompia um tabu ao
dizer: “Sim, os mineiros maldizem seu ofício”.
69
Malva, que trabalhou como mineiro de
subsolo por vinte anos, morreu de silicose em 1969. Em La nuit dans les yeux (1985),
publicada postumamente, ele descreveu o universo sombrio e o medo gerado pela mina.
(...) É quando se está só é que se vê melhor o aspecto sinistro da mina, lugar
de desolação e de pavor; onde um silêncio de morte ameaça, onde as sombras
como lençóis fúnebres lhes envolvem por todos os lados. Algumas vezes,
esse silêncio é rompido pela queda de uma pedra (...). As madeiras quebradas
parecem supliciados que se torcem num tormento sem fim; algumas
madeiras são fosforescentes: na sombra, se acreditaria ver fantasmas. Meu tio
66
A primeira imigração foi de poloneses, instalados principalmente nas minas do Norte. A segunda, de
italianos, que se fixaram em torno das minas de ferro na Lorena, com um contingente menor nas minas de
carvão. Os norte-africanos, especialmente marroquinos e argelinos, seriam a terceira onda de imigrantes.
Para um aprofundamento deste aspecto, ver Noiriel (2002), Ponty (1995, 2008), Eckert (1991) e a
publicação Mineurs immigrés, do Institut d’Histoire Sociale Minière (2000).
67
Outra voz discordante aparece no relato do mineiro Louis Lengrand, que viveu toda a sua vida na mina
e que descobre outros horizontes quando é internado com silicose: “Eu não sabia o que era a vida; foi
necessário que eu fosse a um hospital para compreender” (citado por Mattéi, 1986, p.100). Lengrand diz
ainda: “Por todo ouro do mundo, eu não enviaria meu filho à mina. (...) Eu jamais estive na prisão.
Quando não se esteve... É como a mina, talvez. É necessário lá ter trabalhado para saber o que é” (citado
por Michel, 1993, p.104). Um testemunho similar ao de Lengrand me foi dado pelo filho de um mineiro
polonês do norte da França, sobre o fato de que seu pai, que engajou na mina todas as suas forças, passou
a questionar-se se tinha valido a pena quando se agravaram os sintomas da pneumoconiose.
68
Escritor anarquista francês (1896-1980) que promovia a literatura proletária.
69
Citado por Mattéi, 1986, p.97.
30
tinha muito medo. Ele passava rápido e sem virar a cabeça nas galerias
abandonadas, temendo ver os espectros das vítimas das catástrofes passadas.
70
Tanto para rechaçar o heroísmo como para exaltá-lo a questão está presente, à
maneira de uma referência. Outros mineiros perpetuaram as suas impressões sobre a
mina através da escrita de romances: como Alphonse Narcisse, mineiro de subsolo
durante 30 anos, que publicou L’ombre de la morte (1954) e Les cités mourantes
(1959); e René-Marcelin Attagnant, que começou a trabalhar numa mina aos 12 anos de
idade, e escreveu La muse noire (1968). Augustin Viseux, filho e neto de mineiros de
Lille, no norte da França, em sua autobiografia, Mineur de fond (1991), narrou também,
por sua vez, o cotidiano, as vicissitudes e as lutas dos trabalhadores, na longa trajetória
na mina iniciada quando ele tinha 15 anos. Passou de função em função até tornar-se
engenheiro da mina no fim da carreira, mediante estudos feitos após a jornada diária. No
subsolo, enfrentou tragédias e contraiu a silicose. O ex-mineiro e então engenheiro foi
distinguido, em 1987, com a Legião de Honra, homenagem destinada aos “heróis
nacionais”, instituída por Napoleão Bonaparte em 1802. Ao receber a honraria, segundo
os registros em sua autobiografia, ele ouviu: “Você é um exemplo não da bravura vã dos
temerários, mas da coragem calma e tranqüila dos heróis”.
71
O trabalhador das minas teria realmente aderido à imagem heróica que se fez
dele? Michel (1993, p.102) considerava que o mineiro ama a mina, mas observava nos
testemunhos destes operários uma espécie de ambivalência, uma relação de amor e de
ódio. A passagem do trabalho artesanal para a especialização teria reforçado as dúvidas
se esta valorização, forjando um orgulho da profissão, compensaria os sacrifícios.
Parece que, junto ao estereótipo de herói, o mal-estar continua presente. Lazar (1990,
p.1085) se perguntava sobre os efeitos da representação comunista de glorificação do
operário, considerando que era uma questão difícil de ser verificada. O que seria
possível indicar, segundo ele, é a reação de outros segmentos, como a fascinação
manifesta pelos intelectuais acerca da vida operária e, especificamente, a dos mineiros.
70
Tradução livre do francês. No original: “(...) C’est quand on est seul qu’on voit mieux l’aspect sinistre
de la mine, lieux de désolation et d’épouvante ; où un silence de mort plane, où les ténèbres comme des
draps funèbres vous enveloppent de toutes parts./Quelquefois ce silence est rompu par la chute d’une
pierre ou la plainte d’une bêle qui cède sous la pression du terrain. Les bois brisés semblent des
suppliciés qui se tordent en un tourment sans fin ; certains de ces bois sont phosphorescents : dans
l’ombre, on croirait voir des fantômes. /Mon uncle avait bien peur. Il passait très vite et sans tourner la
tête près des galeries abandonnées, craignant voir apparaître les spectres des victimes des catastrophes
passées ». Ver Malva, 1985, p.26.
71
No original: « Vous avez fait preuve non pas de la vaine bravoure des téméraires, mais du courage
calme et tranquille du herós” ».
31
Parece-me, contudo, que a imagem do heroísmo mineiro, a “grande honra” –
que está presente em certa medida no imaginário dos trabalhadores em Minas do Leão
(RS)
72
–, consolidou-se não apenas por efeito das ações do Estado, da retórica política e
das campanhas publicitárias, mas também pela identificação de gerações de
trabalhadores que lhes conferiram o estofo, a alma, para que ela pudesse se colar em
gente de carne e osso. Tornou-se inseparável de sua identidade social, gerando, para
além dessa imagem pública, um sentimento íntimo, mesmo que permeado por
contradições. Considero que, ao construir o mineiro de carvão como “herói do
trabalho”, a “grande honra” desdobra-se em duas dimensões: da grande honra coletiva
há a reverberação numa honra individual, articulada a fatores específicos nos contextos
distintos. Como sugeriu Mattéi (1986, p.100-101), a mitologia conduziu os operários a
um impasse: eles aprenderam a viver e a se fechar neste universo de imagens
valorizadas. Tornava-se difícil ao mineiro fugir desta identidade se não quisesse se
marginalizar ou deixar a mina. A meu ver, a “grande honra” assumiu várias faces, ora
mais voltada às imagens impactantes mitificando os trabalhadores, ora com contornos
de uma “anti-honra”, enfatizando a força e a coragem do mineiro, mas exibindo também
sua vulnerabilidade. As resistências e tentativas de desmistificação desnudavam as
contradições entre a heroicidade atribuída e as condições a que eram submetidos. O
anti-heroísmo enfatizava que os mineiros são homens que sentem dor, medo, fadiga e
revolta. Parte das biografias e autobiografias revelava que o trabalhador não era nem a
figura idealizada da coragem e da abnegação nem um ser embrutecido, podendo retirar
de sua indignação e das asperezas do ofício matéria-prima para tecer prosa e poesia.
O engajamento pioneiro de Zola serviu de inspiração a outros escritores, tais
como o espanhol Carlos Maria Ydigoras, que se empregou como mineiro de subsolo em
Astúrias para escrever o romance Os homens crescem debaixo da terra, de 1961. O
enredo é construído em torno da descoberta de um menino de que o corpo de seu pai,
morto numa explosão de grisu, não foi recuperado dos escombros, e viria a tornar-se um
fantasma das minas, como contavam os velhos mineiros. Alguns desses elementos,
como se observou, eram referidos por Malva. Em epígrafe, Ydigoras cita versos seus:
Lá embaixo, sob a larga noite.
Onde se forjam os homens
Em quartéis sob a terra.
Onde sopra o grisu e o desmoronamento ameaça.
Onde a morte é mais fria...
72
Como se verá nos capítulos seguintes.
32
Lá embaixo, morada da guerra solitária,
De homens de carvão e de pulso de uma raça;
Lá vão entregando à paz seus mortos,
A morte desafiada,
Os mortos dos que não contam...
Lá embaixo, onde crescem os heróis anônimos,
E ocultam sua glória os titãs com alpargatas,
Lá, onde uma dura raça combate em trevas,
Lá embaixo, no próprio inferno, irmão...
73
Nestes versos, estão os principais elementos do imaginário em torno da “grande
honra” do mineiro, como a recorrente imagem da “larga noite” para falar da escuridão
dos subterrâneos, a da “guerra”, do “inferno”, da “morte desafiada” e de seus
combatentes. Os mineiros são os “heróis anônimos”, não-reconhecidos, e sua morte é
menosprezada socialmente, pois eles “não contam” e a glória de que estão investidos
permanece oculta. Eles são considerados resistentes, uma “dura raça”, mas ao mesmo
tempo são vulneráveis como “titãs com alpargatas”. O autor contava que se sentiu
tentado a conhecer sua rotina ainda nas minas alemãs do Ruhr, mas foi nos poços
nortenhos que se decidiu a trabalhar no subsolo, onde, segundo dizia, foi levado “pela
mão” pelos mineiros para percorrer os “reinos subterrâneos”. Ex-operário que se tornou
escritor, Ydigoras refletia sobre os dois mundos: “Talvez pensem que um homem de
letras, mesmo quando já lhe foi familiar o martelo e a chave inglesa, não tem as mãos
calejadas...” Mencionava o esforço para tentar traduzir “o modo de ser e de sofrer” dos
homens das minas, ressaltando que, com seu testemunho, esperava que se olhasse para a
mina, senão com amor, ao menos com respeito. Dedicava a obra aos mineiros, a quem
tinha aprendido a admirar pela “heroicidade cotidiana”.
74
1.2.3 Depois da última mina: orgulho, nostalgia e revolta
A última mina de carvão francesa, La Houve, que começou a operar em 1856,
em Creutzwald, na Lorena, foi fechada em 23 de abril de 2004, durante uma cerimônia,
segundo a imprensa, « carregada de simbolismo e de tristeza », na qual as autoridades
prestaram homenagens aos últimos 410 mineiros, os « gueules noires ». Quatro anos
73
Tradução livre do espanhol. No original: Allá abajo, bajo la larga noche./Donde se forjan los hombres/
en cuarteles bajo tierra./ Donde silba el grisu y la quiebra amenaza./ Donde la muerte es más fria.../ Allá
abajo, morada de la guerra solitaria,/ de hombres de hulla y del pulso de uma raza; / allá van
entregando a la paz sus muertos,/ la muerte desafiada,/ los muertos de los que no contam.../Allá abajo,
donde crescen los héroes anônimos,/ y ocultan su glória los titanes con alpargatas/Allá,donde uma dura
raza combate en tinieblas.../Allá abajo, en el próprio infierno, hermano... (Ydigoras, 1961)
74
Ver Ydígoras (1961), Dedicatória.
33
depois, em 2008, quando estive na cidade para um trabalho de campo, percebi que, ao
lado do sentimento de luto que persiste para muitos ex-mineiros, nota-se ainda a
presença da “grande honra” celebrada e materializada nos objetos que adornam as casas
– documentos e imagens que reúnem fragmentos de uma memória coletiva, guardados
como relíquias pessoais. Nas falas dos ex-mineiros, após o desaparecimento da mina, eu
percebia um sentimento de heroicidade frustrada
75
. O fim da mina naquele contexto
originou uma re-atualização do trabalho de mitificação do trabalhador, através das
homenagens públicas e da abertura de museus de carvão. Um antigo mineiro evocava a
fala de um colega que saiu da mina na ocasião do fechamento: “Onde está a minha
mina? Sinto falta da mina!”, ele dizia. Por sua vez, Graziano, o ex-mineiro italiano
referido antes, ainda se comovia ao falar do fim da atividade.
Graziano - Eu sempre lamentei o fim da mina. (...) Como dizia outro mineiro
quando ainda estávamos na mina: “O métier de mineiro é o mais belo métier
do mundo!” Mesmo que isso não seja verdade, mas... [O fim da mina] faz mal
ao coração. (...) O mineiro é assim como um bloco de cimento: a
cordialidade, a amabilidade, a sinceridade, a camaradagem não existiam na
superfície como existia no subsolo.
- E na superfície?
Graziano – Quando um mineiro está na superfície, isso acaba. A mina não
existe senão quando se vai ao subsolo. Lá embaixo, no interior da terra, a
1.100 metros [de profundidade], o mineiro partilhava com os outros mesmo
se não os conhecesse, (...) com os italianos, os marroquinos, os russos, os
portugueses, os espanhóis, de toda parte. (...) Quando um companheiro não
tinha pão dava-se um pedaço mesmo que não o conhecesse.
- É mesmo?
Graziano – Sim, é algo fundamental e que não havia na superfície.
76
Seu relato aporta imagens reveladoras, evocando a “mais bela profissão do
mundo”, assim como os valores de solidariedade e camaradagem presentes no subsolo,
em contraste com a vida na superfície, que eram expressos no ato de partilha do pão
com companheiros desconhecidos, pertencentes a diferentes culturas. Essa descrição
pungente nos remete ao alcance da interiorização da “grande honra” da profissão
naquele meio. Sentimento similar era manifesto por Jacques Urek, um dos seis filhos de
um antigo mineiro esloveno. Ex-contramestre da mina, Jacques, que é atualmente uma
espécie de historiador local
77
, considerava o fim das minas « um desperdício”,
ressaltando que o carvão continua no subsolo e há muitos desempregados. Isso lhe
75
Agradeço a José Sergio Leite Lopes a sugestão da expressão.
76
Tradução livre do francês.
77
Jacques Urek participou da elaboração de dois livros sobre as minas da região. Um dos livros contém
seus desenhos dos modelos arquitetônicos de torres, com uma comparação entre tecnologias adotadas
pelas minas da região. Outro trabalho é sobre a presença de cavalos na mina até os anos 1960.
34
causava revolta: “Tenho orgulho de ter sido mineiro. Eu alimentei minha família, vivi
disso e tenho orgulho disso, mas aqueles que detêm o capital... são uma vergonha,
vergonha!” Ele sugeria que a mina havia lhe dado a dignidade: “Ela me deu minha vida,
eu encontrei um caminho”. Em seu relato, percebe-se sinais desta « grande honra »
mineira, mais visível ainda entre estes homens que viveram uma militância à esquerda,
como no caso de Jacques, ativista da CGT por 18 anos. Ao refletir sobre o ofício, ele
dizia que tinha realmente aprendido a viver após o ingresso na profissão, assim como
fizeram seus cinco irmãos homens, depois da perda do pai, morto por silicose aos 44
anos. Quando lhe perguntei a razão pela qual um mineiro tinha orgulho do seu ofício,
ele mencionou a perda deste sentimento entre as novas gerações:
Jacques - Hoje, o orgulho diminuiu um pouco, porque agora todo mundo
procura fazer o menos possível e ganhar mais. Nós, era o contrário,
ficávamos constrangidos no final da jornada se não podíamos dizer que
tivemos um bom rendimento. Ficávamos constrangidos!
78
Bernard [ex-engenheiro da mina, amigo dele, que participa da entrevista] – É
o amor pelo trabalho!
Jacques – Isso mesmo! Era assim... oito horas por dia.
79
Outro de meus informantes em Creutzwald, Léon Gauthier, de 77 anos, ex-
contramestre da mina, contava que, mais de uma vez, nos anos 1950, recusou a Ordem
do Mérito Nacional, concedida pelo Estado francês quando a mina bateu o recorde de
produção. Por fim, foi convencido por seus superiores a aceitá-la, mas impôs como
condição a melhora da situação de seus subordinados. Sua resistência à homenagem
estava calcada no fato de que a concessão da honraria implicava numa espécie de
cooptação por parte dos “grandes chefes”. Em posição ambígua para um quadro
80
, ele
havia se filiado a um sindicato operário, a Força Operária (FO), preferindo construir
uma popularidade entre os trabalhadores que lhe permitia, no entanto, impor forte
autoridade como encarregado – estratégia que era destacada por ele como uma espécie
78
Relato similar me foi dado pelo filho de um antigo mineiro do Norte da França, de origem polonesa. Ele
me contou que seu pai e seu tio mantinham disputas sobre quem « era o melhor mineiro », sobre « quem
havia produzido mais ». Também ali se podia identificar traços da incorporação da « grande honra ».
79
Tradução livre do francês.
80
Catherine Roth (2002, p. 83), considera que nas minas da Lorena havia três categorias hierárquicas:
operários, empregados e engenheiros. Gauthier, referido por mim, jogava com seu papel entre os
operários e a categoria intermediária, constituindo alternadamente, conforme suas conveniências, formas
de « nós » e « eles», para seguir os termos de Hoggart (1973).
35
de esperteza.
81
Como Leo, de Minas do Leão (RS), Gauthier lançava mão da
comparação com os trabalhadores do mar para falar de sua profissão:
O mineiro é como o marinheiro. (...) O marinheiro vai com seu barco em alto
mar e é um ser especial também. Há o marinheiro que morre, que se afoga, há
o barco que vira, sempre acontece, sempre acontece. Então, se é um trabalho
perigoso? Sabe-se que é um métier perigoso. Pode-se comparar muito bem
[com] o ofício do marinheiro (...), o métier do mar e o métier da terra. São
duas profissões idênticas do ponto de vista do perigo.
82
Pra
ticamente até o fechamento da última mina, em 2004, os mineiros franceses
continuaram a receber medalhas de “Honra do
Trabalho”, comemorativas aos 20, 25, 30 e 35 anos
de trabalho, mas era necessário que as solicitassem
à companhia. Vários ex-mineiros que entrevistei na
Lorena exibiam com orgulho, diante de uma
pesquisadora estrangeira, sua coleção de medalhas e
de placas honoríficas, caracterizando a “grande honra” da profissão, como no caso do
ex-mineiro Roger Stark, militante da CGT e do PCF. Mas nem todos compartilhavam
interiormente do significado de tais “honras”. Quando perguntei ao ex-mineiro de
origem polonesa Stanislas Hewro, de 79 anos, por que os trabalhadores solicitavam
essas medalhas, sua resposta desfez as idealizações de uma aspiração honrosa,
evidenciando razões práticas: um dia de trabalho pago, uma cerimônia na qual “ouviam
um discurso besta e tudo”, mas na qual podiam passar quatro horas tranquilamente,
bebendo champanhe e fumando. E, à noite, havia a saída com os companheiros para
novos festejos. De sua parte, ele não via heroísmo na profissão: “Não é um herói, para
mim é um trabalho para ganhar dinheiro. Isso é tudo!” Lembrava que, no começo da
carreira, havia a “febre”, a paixão pela mina, mas salientava que esta desaparecia após
quatro ou cinco anos no subsolo. Quando lhe perguntei se ele havia pensado em mudar
de profissão, olhou-me sério e respondeu resoluto: “E fazer o quê?!” A mina era o seu
horizonte possível. Já Graziano Balzani, o ex-mineiro italiano, mostrava-se comovido
quando assistimos ao vídeo com imagens da cerimônia de entrega de medalhas na qual
era um dos homenageados. A condecoração era vista como um evento simbólico que
fazia referência ao conjunto de uma vida. A nostalgia estava ligada, sobretudo, à relação
de camaradagem com os companheiros de jornada.
81
A própria entidade FO, surgida nos anos 1940, porta suas ambigüidades. Pascal Raggi (s/d), num estudo
sobre mineiros de ferro, mencionava que a FO era identificada como defendendo interesses patronais.
82
Tradução livre do francês.
36
Em Creutzwald, o fechamento da última mina deixou uma categoria de congés
charbonniers, homens que continuam a receber 80% dos salários para ficar em casa à
disposição da empresa, até a idade da aposentadoria. Essa condição resultou de um
pacto negociado em 1994 entre a Charbonnages de France e os sindicatos CFDT, CFTC
e FO (com a oposição da CGT).
83
Na época da assinatura do acordo, havia ainda 16 mil
mineiros em atividade no país. Se o pacto protegeu os últimos mineiros do desemprego,
por outro lado, engendrou efeitos negativos sobre sua dignidade. Como, em sua maioria,
estão proibidos de ter outro emprego, eles se ressentem da quebra da rotina de trabalho e
da ociosidade, que estaria gerando um aumento de depressões, de alcoolismo, de
divórcios e até de suicídios, segundo os relatos que ouvi. A permanência dos homens na
vida doméstica intensificaria também os conflitos conjugais. Uma parte dos ex-mineiros
buscava trabalho de forma clandestina, no “marché noir”, em países como a Bélgica e a
Alemanha. As reconversões individuais tomavam formas distintas, mas essas mudanças,
quando existiam, pareciam sempre operar por relação ao vivido na mina.
84
Entre a maior parte dos trabalhadores que ouvi na Lorena francesa, havia a
expressão de um sentimento de desonra desde o fechamento da última mina. Gilbert
Pexoto, um dos líderes da CGT e militante do PCF pela terceira geração em sua família,
ele próprio um congé charbonnier, expressava assim sua tristeza: “Antes, nós, mineiros,
éramos respeitados, admirados pela sociedade, hoje somos vistos como quem recebe
sem nada fazer”. Esta seria, segundo ele, uma das conseqüências nefastas do pacto para
fechamento das minas que teve a oposição da CGT. Em seu relato, Gilbert manifestava
este sentimento de uma heroicidade frustrada ou, em outras palavras, de uma honra
ferida da profissão. No caso de La Houve, o que aumentou o luto dos trabalhadores foi
o desaparecimento físico da mina, com a demolição dos prédios, das torres, das
instalações, e de todos os símbolos exteriores da exploração carbonífera local, apesar
dos protestos e das campanhas pela manutenção destes signos de memória coletiva.
85
83
São três medidas: a pré-aposentadoria para os trabalhadores a partir dos 55 anos; a licença mineira para
os em final de carreira – congé charbonnier en fin de carrière (CCFC) -, a quem tinha entre 40 e 50 anos
na época do fechamento da mina; e a dispensa prévia da atividade – dispense préalable d’activité (DPA)
– que se dirige aos mais jovens. Desde 31 de dezembro de 2007, a Charbonnages de France foi extinta. A
administração salarial é feita pela Agência Nacional de Gestão dos Direitos dos Mineiros (ANGDM).
84
A este propósito, ver Cooper-Richet, 2002, p. 331.
85
Para que as instalações fossem mantidas, seria necessário que a municipalidade assumisse os encargos,
como ocorreu em outras localidades, mas a avaliação foi de que o custo seria demasiado.
37
Morador em frente à área da antiga
mina, Gilbert documentou com
fotografias e filmagens, dia após dia,
dolorosamente, todos os momentos da
implosão das instalações. Pareceu-lhe
que o chevalement - a torre que
sustentava os cabos do elevador de
descida ao poço e que, comumente, se
destaca na paisagem como o principal
símbolo do mundo mineiro – “resistiu”
à sua derrubada, sendo necessário o
uso de dinamite num dos seus três
pontos de apoio. “Parecia que ele não
queria cair, como nós”, dizia
emocionado, enquanto me mostrava as
imagens que havia feito com a câmera do celular. Durante o evento oficial de
encerramento das atividades da mina, que atraiu a imprensa mundial e milhares de
expectadores, Gilbert colocou uma faixa de protesto diante de sua casa, defendendo a
continuidade da produção do carvão. Como os outros membros do PCF, o militante não
compareceu à cerimônia: ele nada tinha a comemorar. Hoje, à medida que se esvai o
reconhecimento à “grande honra”, esses trabalhadores buscam refazer o cotidiano por
meio de modalidades da “pequena honra”, com a atuação em associações culturais e
esportivas que, ao lado da política partidária e sindical, ocupam um pouco do vazio
deixado pela mina.
Roine Jansson, um artista plástico sueco que conheci durante a temporada na
Lorena Francesa, que na juventude havia trabalhado como mineiro de ferro em seu país,
passou algum tempo no subsolo acompanhando o trabalho dos últimos mineiros de
carvão da mina La Houve, antes do fechamento. Ali ele pintou retratos dos
trabalhadores, que foram objetos de uma exposição no Museu da Mina Petite Rousselle,
em 2008. O artista, que depois de mineiro tornou-se bombeiro, se emocionava ao contar
que, ao se aproximar de um poço de extração na França ou na Bélgica, por exemplo,
reconhecia o “cheiro da mina”, o mesmo que sentia quando estava na mina de
Dannemora, na Suécia. A experiência olfativa o remetia de volta às lembranças das
Gilbert Pexoto: livros sobre as lutas dos mineiros
38
vozes dos antigos companheiros.
86
Transfigurada pela arte, a aura que distingue
a experiência do mineiro perdura também
nessas representações sensíveis que
preservam traços do mundo vivido por estes
trabalhadores.
Naquele contexto, uma face da
“grande honra” foi, de fato, imortalizada em
museus, lugares em que a fixação da lembrança pode ser também a sua petrificação,
onde cenários e instrumentos de trabalho são “museificados”, nos termos de Peroni
(2001, p.256) - autor a quem um informante observou: “Quando se diz museu, se diz
fim”.
87
Nos eco-museus e nas minas-museus são os próprios ex-mineiros que se
encarregam de imprimir vida a esses espaços, convertidos em guias dos visitantes em
galerias reconstituídas ou em antigos prédios, onde as grandes máquinas jazem inertes,
mas onde se busca simular certa autenticidade por relação ao passado.
88
Como bem
observava Lucas (1981), “o fim da mina não é
menos encantado do que sua duração”.
No museu da mina de Petite-Rousselle,
que tive a oportunidade de visitar, juntamente
com um grupo de umas vinte pessoas, entrava-
se num moderno elevador para descer ao espaço
que simula as galerias subterrâneas e onde se
encontram os equipamentos mais portentosos
que eram usados na extração do carvão. O
processo de trabalho ia sendo explicado pelo ex-
mineiro Edgar Bastian, de 53 anos, guia
voluntário do museu, que se tornou um de meus
interlocutores (foto ao lado). Ele tinha
dificuldades para aceitar o fato de que hoje não
86
Jansson usou em sua exposição um texto com o título: L’odeur de la mine.
87
Usando a expressão “mina museificada”, Cooper-Richet (2002, p. 334), acentuava que, na criação dos
primeiros museus de carvão na França, militantes da CGT, da FO e do PCF posicionaram-se contrários.
As minas-museus eram vistas como uma traição: era o toque dos sinos anunciando o fim de uma era.
88
É o caso da maior parte dos museus da mina na França, como de Petite-Rousselle, na Lorena, e também
do Museu do Carvão de Arroio dos Ratos, próximo a Minas do Leão (RS).
39
existam mais mineiros em atividade no país. “Todos os mineiros, em qualquer parte do
mundo, são a minha família”, ressaltava. É preciso dizer ainda que a “grande honra”
teve lugar privilegiado nas cerimônias que marcaram o fechamento das minas, em
encenações teatrais
89
e na distribuição de lembranças (DVDs, impressos, pequenas
amostras de carvão
90
, fotografias, etc.). Nas residências de trabalhadores, ao menos
naquelas que pude visitar, para onde eu olhava via objetos rendendo homenagem à
atividade, como as pequenas esculturas de mineiros com seus equipamentos de trabalho
em pose destemida e orgulhosa. Em algumas casas, vi fotografias feitas no subsolo, que
mostravam rostos encarvoados, com expressões graves, e diplomas de “Honra do
Trabalho” enfeitando as paredes das salas de estar. A “grande honra” do mineiro
aparece ainda nas produções literárias e audiovisuais que amplificam as vozes em torno
da mina desaparecida, algumas patrocinadas pela própria companhia, como o livreto
ilustrado com fotografias que sugere, de forma paradoxal, uma curiosa e simbólica
entrega da mina – que já não existe - aos mineiros, com o título: “... la mine aux
mineurs”. Notava-se a presença da velha aura na gestão dos lugares de memória na qual
se mobilizam atores em disputas em torno dos “autênticos” guardiões desta cultura: eles
travam batalhas simbólicas sobre quem deteria maior autoridade, prestígio ou (re)
conhecimento para ser porta-voz dos documentos ou lugares desta memória coletiva.
91
1.3 APROXIMAÇÕES À “PEQUENA HONRA”
Voltada a investigar os aspectos que conferem sentido à vida dos moradores
após o fechamento da última mina de subsolo em Minas do Leão (RS), ocorrido em
2002, percebi que ao lado da noção de pertencimento ao mundo mineiro, elemento
essencial de sua identidade, havia múltiplas formas que ancoravam o sentimento de
orgulho, de auto-estima e de dignidade, aspecto esse que estou denominando de
“pequena honra”. É preciso dizer que nestas formas de “pequena honra” cotidiana não
há nada de realmente pequeno, menor ou menos nobre. Sua estatura é a das coisas que
importam para se viver, que são tão próximas que se tornam indissociáveis do próprio
“eu” ou de um “nós” (no sentido de Hoggart, 1973), de uma identidade individual que é
também coletiva. Minha hipótese é a de que as formas de “pequena honra” se
constituem entremeadas e atravessadas pelo modelo da “grande honra” forjado em torno
89
O espetáculo Les enfants du charbon, encenado na cerimônia que marcou o fechamento da mina La
Houve, teve a participação de dezenas de trabalhadores e de suas famílias.
90
No fechamento de La Houve, o jornal Le Républicain Lorrain distribuiu 60 mil pedaços de carvão.
91
Pude testemunhar algumas dessas discussões durante a etnografia.
40
da mina. De certo modo, essa “grande honra” parece ter tido o mesmo destino das
chamadas “grandes narrativas” na contemporaneidade: o de sua deslegitimação, como
sugeriu Marc Augé (1997). Alguns anos após o fechamento das minas de subsolo, em
Minas do Leão e em Creutzwald, vestígios de um heroísmo mineiro encontram-se
transfigurados em formas de “pequena honra”, com a qual, é preciso que se diga, a
velha honra sempre dividiu espaço e importância. Um exemplo disso é o fato que
iniciativas forjadas como projetos complementares como, por exemplo, os clubes de
futebol vinculados às minas, mantiveram-se nas comunidades mesmo depois do
desaparecimento da produção industrial nos dois contextos.
92
O estudo de Bailey (1971) sobre a construção de reputações contribui para o
entendimento do que significa a “pequena honra”, cujo valor se inscreve na vida
ordinária. Segundo este autor, em pequenas comunidades, a pequena política da vida
cotidiana de cada um está ligada às reputações, o que significa “ter um bom nome”,
“evitar a desqualificação social” (Bailey, 1971, p.21). A partir dessas referências, o que
eu estou manejando com o conceito de “pequena honra” é a combinação entre o
prestígio que cada um obtém socialmente ou reconhecimento público atribuído a um
indivíduo, mas também a estima de si, seu próprio sentimento de dignidade, que tanto é
alimentado por esse reconhecimento como o alimenta nas diferentes esferas da
experiência. Tal como na “grande honra”, as formas de “pequena honra” se constituem
igualmente na tensão entre o prestígio e o desprestígio, entre o reconhecimento e a
desconsideração. A honra, tal como a reputação, precisa do reconhecimento dos outros,
mas está calcada num sentimento íntimo (que lhe corresponde ou que lhe contradiz),
enquanto que a reputação mantém o seu caráter de exterioridade (Bailey, 1971).
93
A
“pequena honra” e a reputação comunicam-se e interferem uma na outra, mas seguem
suas próprias dinâmicas. Elementos da reputação que inspiram uma reflexão sobre a
“pequena honra” dizem respeito ao caráter de alimentação recíproca e cotidiana, sua
vulnerabilidade diante de novos eventos e percepções. Sugiro que a noção de “pequena
honra” venha a completar, em certa medida, o quadro fornecido pela idéia de reputação.
A “pequena honra” libera-se, por vezes, dos valores morais dominantes na
sociedade local para constituir formas peculiares, tais como a malandragem. Assim,
92
A análise deste fenômeno em Minas do Leão está no capítulo 7.
93
Como define Bailey (1971), a reputação não é uma qualidade que a pessoa possui, mas a opinião que as
outras pessoas têm dela. Nestas comunidades de relações face a face, forma-se um “fundo comum de
reputações” (Bailey, 1971, p.4). Considera-se que a reputação é produzida do exterior, mesmo que o
indivíduo lance mão de estratégias para tentar controlar e manipular o olhar dos outros sobre si.
41
podem estar em jogo tanto as moralidades tradicionais, mais caras ao universo rural de
Minas do Leão – tais como manter o respeito, ser provedor, etc. - como algumas
“novas” moralidades, mais relacionadas à cultura urbana e industrial, que faz apelo à
desenvoltura, à esperteza e à construção de popularidade que tais artes ou habilidades
evocam. Deve-se considerar que, na vida cotidiana, a “grande honra”, forjada em torno
do mito da heroicidade mineira, disseminada em diferentes culturas, sempre encontrou a
“pequena honra”, feita de razões e sentidos ordinários com os quais os grupos de
trabalhadores se identificavam. A “pequena honra” ganha feições particulares nos
diferentes contextos, combinando-se à “grande honra”, reforçando-a, hibridando-se ou
opondo-se a ela. Quando se toma a mina como referência, concomitantemente ao
sentimento de heroísmo relacionado aos riscos e às peculiaridades da profissão, como
foi dito, encontram-se formas de negação deste heroísmo, convertidas eventualmente
em outras modalidades de honra. Neste sentido, encontra-se a menção feita por ex-
mineiros, num tom entre jocoso e afetivo, de que sua categoria profissional “é a classe
mais ordinária que existe”, “a mais sem-vergonha”, a “mais bagaceira”, remetendo ao
orgulho de uma malandragem bem cultivada. Em Minas do Leão, este valor constitui-se
como uma forma por vezes contraditória de constituição de prestígio, exibindo certos
valores afirmados socialmente e ferindo outros presentes também na moralidade local.
A partir de um estudo etnográfico em vilas populares de Porto Alegre, Fonseca
(2000) abordou a questão da malandragem naquele contexto. Estudando o tema da
família e da honra, a autora desenvolveu seu argumento sob dois aspectos: o primeiro
enfatizando o sentimento individual, o orgulho pessoal, “o esforço de enobrecer a
própria imagem segundo as normas socialmente estabelecidas”; o segundo referindo-se
a um “código de honra”, um código social de interação, “onde o prestígio pessoal é
negociado como o bem simbólico fundamental de troca” (Fonseca, 2000, p.15). Naquele
contexto, a malandragem aparecia como “vingança simbólica” sobre o sentimento de
humilhação experimentado por aquele segmento social no contato com a classe média:
“para fazer-se respeitar, o importante é provar que não é ‘trouxa’”.
94
Em Minas do
Leão, a malandragem ganha contornos diferentes. Por enquanto, basta dizer que tais
práticas expressam a irreverência diante da rigidez nas normas, de uma rotina exaustiva
e de uma ambiência hostil no subsolo, tornando calorosa a relação com os
companheiros de ofício. Tais expressões, que poderiam ser próprias de uma contra-
94
Ver Fonseca, 2000, p.21.
42
honra, tornam-se muitas vezes fontes de prestígio e de popularidade. A importância do
“clima de reinvenção criativa” no universo da fábrica têxtil de Paulista já havia sido
observada por Leite Lopes (1988, p.82), considerando que as brincadeiras dos operários
eram parte da construção das condições de suportabilidade do trabalho fabril.
Tanto nos relatos obtidos na comunidade francesa de Creutzwald como em
Minas do Leão percebi que os relatos enfatizando a “grande honra” aparecem em geral
nas primeiras entrevistas à pesquisadora, desenhando uma transcendência da profissão,
exibindo uma consciência sobre sua importância estratégica como patrimônio da nação,
ou mesmo articulando o senso de camaradagem, de união e de solidariedade no qual os
trabalhadores traduzem a sua comunhão num destino comum. Por outro lado, as formas
de “pequena honra” parecem emergir após uma convivência mais prolongada do
etnógrafo com os nativos. Se, por um lado, enfatizam aspectos da própria profissão, por
outro afirmam a importância das habilidades, dos dons e dos reconhecimentos em
pertencimentos que extrapolam o mundo da mina.
1.3.1 Das modalidades da “pequena honra”
Pretendo aqui apenas sugerir algumas pistas sobre a “pequena honra”, sem,
evidentemente, proceder a um inventário exaustivo. Pode-se dizer que, como nas demais
formas de honra, as modalidades de “pequena honra” se expressam de forma coletiva,
mas cada indivíduo conjuga-as em certa medida de forma original, hierarquizando-as
tanto de acordo com os valores inscritos em sua trajetória, de seu contexto e das
circunstâncias em que se encontra. As principais formas que vislumbrei durante o
trabalho de campo poderiam tomar os seguintes aspectos: 1) “Pequena honra do
trabalho ou profissional”, 2)“Pequena honra ligada ao jogo” (da qual a da malandragem,
a seguir, seria uma dimensão), 3) “Pequena honra da malandragem”, 4)“Pequena honra
do sagrado”, 5) “Pequena honra familiar” e 6) “Pequena honra tradicional ou de origem
rural”. É evidente que esses valores não estão desenhados desta maneira na vida
cotidiana. Sugiro, antes, que indivíduos e grupos mesclam os valores de uma e de outra
forma de honra em diferentes combinações. O que as caracteriza é justamente sua
hibridação constante, pois elas ganham vida nos entrecruzamentos, no jogo de forças e
de tensões entre diferentes valores, motivações e práticas.
Nos relatos e nas trajetórias sobre a atividade na mina, encontra-se
freqüentemente o orgulho do “trabalho bem feito” (a expressão é adotada, por exemplo,
por Hoggart, 1973, e por Leite Lopes, 1988), da competência e da habilidade
profissional desenvolvida ao longo de anos de prática, por vezes vista como apreendida
43
na relação com companheiros de trabalho ou herdada de gerações de mineiros (gente
que “sabia desde criança que o carvão era preto”, como ouvi muitas vezes na Lorena
francesa). Junto à “grande honra” que idealiza o trabalho mineiro, na vida cotidiana há
formas nas quais a “pequena honra profissional” se apresenta, por exemplo, relacionada
à conversão do trabalho a um estatuto de “arte”
95
, sobre a qual se colocam as
competências técnicas apreendidas, o caráter de uma transmissão (como aprendiz ou
como filho de mineiro), conformando uma dedicação que possui os contornos do
“gosto”, do “amor” pelo ofício. Essa modalidade de “pequena honra” ligada ao
exercício primoroso da profissão pode reforçar ou não as imagens grandiosas da
“grande honra”, conjugando-se eventualmente a uma honra familiar ao enfatizar uma
hereditariedade na reprodução da atividade, a “patrilinhagem” (Eckert, 1995).
A “pequena honra profissional” pode revelar-se, portanto, pela afirmação dos
valores do esforço, da competência, do conhecimento e habilidade técnica, encarnando
uma dedicação intensa à atividade. Podem-se identificar traços deste tipo de honra
também na semi-profissionalização dos jogadores de futebol das equipes que surgiram
em torno das minas. A “pequena honra profissional” guarda uma ligação íntima com a
“grande honra”, mas, diferentemente dela, opõe-se à mistificação do trabalho mineiro,
contrapondo-lhe aspectos mais práticos e menos idealizados em sua motivação. O
“gosto” pelo trabalho ou pela mina surge nas justificativas sobre o engajamento, mas
em meio a argumentos sobre os benefícios representados pelos ganhos salariais, pela
duração da jornada de trabalho, pelo regime especial de aposentadoria, etc.
Entretanto, a habilidade, o dom de que se orgulha o mineiro pode estar
relacionada não ao trabalho, mas às formas de esquiva da disciplina industrial, mais
exatamente a uma “pequena honra da malandragem”, que parece compor intensamente a
cultura operária em Minas do Leão. Como sugeri antes, tais práticas conformam uma
espécie de “jogo”. Pode-se dizer que, num universo no qual a honra parece estar sempre
em jogo, com as reputações se alterando rapidamente, dada à intensa suscetibilidade nas
relações sociais, expressa na relativa facilidade com que se fazem inimigos e acontecem
as rupturas entre parentes ou amigos de longa data - bastando para isso um determinado
episódio visto como de “desrespeito” ou de “desconsideração” que nenhuma das partes
tem a disposição de esclarecer porque uma nova aproximação poderia ferir o seu
95
Sobre o trabalho elevado à categoria de arte, destacam-se as pesquisas de Alvim sobre os “artesãos do
ouro” (apud. Leite Lopes, 1976), sobre os “artistas” na usina de açúcar, em Leite Lopes (1976) e sobre o
“pescador feito”, em Duarte (1999).
44
orgulho - pode-se também inverter a formulação para realçar o fato de que no jogo está
sempre envolvida uma dose de honra. Insisto, porém, que as noções de jogo e de honra
não lançam luz apenas sobre a sociabilidade, lúdica ou agonística
96
. O que estou
chamando de “o espírito do jogo” permeia desde o mundo do trabalho na mina, passa
pelo terreno flutuante da política local e ingressa na vida privada, como nos indica uma
peculiar “votação” masculina sobre a existência do amor. Os jogos envolvem também a
dimensão do risco, como bem indicou Callois (1967). Tanto a forma ampla da “pequena
honra relacionada ao jogo” como a específica relacionada à “pequena honra da
malandragem” distingue o seu detentor por seu talento, habilidade física ou verbal,
sorte, audácia, criatividade, força ou valentia. Desta maneira, a noção de jogo parece
atravessar as diferentes dimensões da existência. No que diz respeito à sociabilidade e
ao esporte, pode contribuir com o acréscimo de uma honra profissional (como no caso
dos mineiros-jogadores das equipes de futebol ligadas às minas), assim como pode
reforçar laços de parentesco (em equipes criadas em torno de famílias, por exemplo).
Nesta comunidade, poderia a incorporação da “pequena honra da malandragem”
receber um julgamento social negativo, atribuindo-se ao sujeito uma má reputação? É
uma questão difícil de ser respondida. Parece-me que, neste universo, a “pequena honra
da malandragem” é o resultado de uma ressemantização que enfatiza o mérito da
performance mais do que o conteúdo moral de tal comportamento. Sabe-se que, em
determinados contextos, uma “má reputação” pode ser tanto ou mais prestigiosa que
uma “boa reputação”, pois as definições em torno de ambas estão em permanente
negociação. Há inúmeros exemplos de narrativas ouvidas em Minas do Leão que dizem
de alguém que “não presta” (trai a mulher seguidamente, por exemplo), “mas é bom pai
de família”, pois “não deixa faltar nada em casa”, ou “vive arrumando encrenca com os
chefes, mas é um pé de boi para o trabalho”. Isso é nítido nas narrativas envolvendo os
“valentões” do passado, grupos que se enfrentavam em brigas de facão nas ruas da vila
mineira. Em mais de um caso, diz-se que eram “metidos a valentes”, “encrenqueiros”,
mas “muito trabalhadores”. Por vezes, a própria fama de “valente” – ou até de “mau”,
de “malvado” - pode impor respeito, rendendo prestígio e admiração. O universo
político local parece incorporar os valores ligados a uma profissionalização, mas
também é visto como articulando o saber-fazer das artimanhas eleitorais.
96
Sobre a dimensão lúdica, ver Huizinga (1980). Sobre o caráter agonístico, ver Callois (1967) e o
sugestivo uso que Comerford (2003) faz do termo, em seu estudo sobre o meio rural em Minas Gerais.
45
A valorização da astúcia, da esperteza, da ousadia também pode entrar em
contradição com outros valores morais presentes na sociedade, contrapondo ao valor da
verdade uma legitimação da mentira, do logro, da obtenção de vantagem pessoal. Tais
deslizamentos morais são, muitas vezes, legitimados pelo estabelecimento de outra
moral, mais voltada às insurgências da vida prática, que leva em consideração os
aspectos relacionais e o contexto onde tais lógicas operam. Uma determinada ação que,
em princípio, poderia ser condenável socialmente (como a mentira ou as artimanhas),
pode ser vista como meritória – principalmente se “bem-feita” – porque se constitui
numa revanche diante da exaustão e da exploração do trabalho, assim como de
resistência diante de outras instituições igualmente vistas como cerceadoras das
liberdades, tais como a família e o casamento. É comum a idéia de que, quando alguém
“erra”, errará novamente se deixar vazar o erro, se permitir que ele tenha conseqüências
posteriores na esfera do trabalho, da vida social ou familiar. Portanto, a habilidade para
encobrir o que seria moralmente condenável é muitas vezes considerada ela mesma
louvável. Dou um exemplo: a esposa de um ex-mineiro me dizia que - diferentemente
de outro homem da mesma família que, no passado, traía sua mulher desabridamente –
seu marido, caso tivesse “aprontado”, tinha tido o cuidado de fazer “bem-feito”, porque
nunca havia deixado razões para desconfiança, como pernoitar fora de casa.
Como quarta modalidade, sugiro a existência de uma “pequena honra do
sagrado”, uma distinção incorporada pelos praticantes de alguma religião, que se
consideram “eleitos”, “escolhidos”, “tocados” por Deus ou outras divindades e que se
manifesta na maior parte das vezes como um reforço de sua fé, de seu desprendimento,
de sua generosidade ou determinação. Vê-se também a referência ao “dom” recebido
que permite o exercício de uma atividade espiritual, assim como as manifestações de
“orgulho pessoal” ou de admiração dizendo respeito a uma determinada trajetória
religiosa. Ainda que a dimensão religiosa possa exaltar alguns valores mais próximos de
uma noção de honra clássica, tal como o desapego das glórias mundanas, deve-se
lembrar que ela opera combinada a outros valores. Para os que vêem os praticantes de
fora, tais preceitos religiosos podem equivaler a outras formas de paixão. Na
combinação do sagrado com a honra familiar, o próprio sagrado liga-se à centralidade
atribuída aos laços de sangue, como no caso do culto aos “mortos familiares”.
Uma quinta modalidade estaria vinculada a uma “pequena honra familiar”,
correspondendo às tradições em torno de um sobrenome ou de várias “assinaturas”, a
uma origem étnica ou cultural, como ser descendente de poloneses, por exemplo, ou
46
mesmo a determinados valores que se consideram transmitidos pela hereditariedade ou
pela educação familiar. Entre estes valores, pode-se mencionar o da honradez construída
pelos antepassados, no sentido de “ter um bom nome”, de “ser um bom pagador”, etc. A
“pequena honra familiar” parece, freqüentemente, combinar-se com a “pequena honra
tradicional ou de origem rural”, pois muitas vezes partilham de uma origem comum.
A sexta e última dimensão, que estou chamando de “pequena honra tradicional
ou de origem rural” enfatiza a permanência de valores tradicionais, como do trabalho
árduo, da honestidade, da palavra dada, do respeito e da consideração, da seriedade e da
austeridade nos gastos e, por vezes, da pureza sexual para as mulheres. Outros traços
podem reafirmar a importância da hombridade e da virilidade masculina, no sentido de
que um homem não deve “levar desaforo para casa”, significando que deve responder a
uma afronta pelo enfrentamento verbal e/ou corporal. Outras formas aceitáveis
socialmente de lidar com o desrespeito são o rompimento de laços, a evitação (como
menciona Pitt-Rivers-1983, p.43-44), em atitudes tais como não olhar, não
cumprimentar, atravessar a rua à vista da presença do outro, não estender a mão quando
se encontram num recinto junto a outras pessoas, “virar a cara”, etc. Há todo um código
destinado a proteger o sujeito de um agravamento do conflito, mas que pode ser usado
também para denegrir a imagem, atingir a estima e a honra do outro.
97
Como já foi dito, nenhuma dessas formas sugeridas de “pequena honra” atua
separadamente, nem está reservada a determinadas nichos ou segmentos sociais: elas
agem em conjunto, com predominância no indivíduo e no grupo ora de uma, ora de
outra, suscitando suas disputas e suas dilacerações. Portanto, a própria abordagem do
tema ao longo dos capítulos seguintes será feita a partir de entrecruzamentos revelados
pelos relatos ou pela observação de cenas cotidianas, sem que se dedique,
necessariamente, um capítulo a cada modalidade.
1.3.2 Conflitos entre honra e reputação
No âmbito familiar, percebi que os valores e práticas acionadas pela honra
destoam do núcleo tradicional apontado pela literatura identificada com a “honra
mediterrânea” que articula de forma complementar honra masculina e honra feminina.
Em contraste com o estudado por autores tais como Peristiany e Pitt-Rivers (1965), a
honra masculina, neste contexto, não está calcada sobre a pureza feminina, ao menos
97
Pitt-Rivers (1983, p.43-44) ressaltava que, na Andaluzia, o estatuto da honorabilidade dos membros da
comunidade era objeto de incansáveis comentários, de forma que “a reputação não é somente um tema de
orgulho, mas também um fato de utilidade pública”: o “bom nome” poderia ser o capital mais precioso.
47
não nos dias atuais. Ainda que se escutem depoimentos sobre a importância da
virgindade feminina, essas defesas ganham uma convicção quase esmaecida diante do
fato de que, no período da pesquisa, algumas moças se casavam grávidas sem que isso
resultasse num drama doméstico – estando mantido o valor do casamento.
De outro modo, ainda que as histórias de “cornos”
98
despertem profundo
interesse, mobilizem atenções, anedotas e fofocas (e, por vezes, desabafos dos próprios
homens enganados ao seu círculo mais chegado de amigos), parece haver atualmente
certa flexibilidade moral para tratar desses aspectos nas referências de que “decerto ela
(a esposa) está fazendo o que ele (o marido) sempre fez”, ou “ele aprontou tanto que
agora tem que agüentar se... (se ela faz o mesmo)”. Homens que admitiram em nossas
conversas terem sido traídos são de gerações mais jovens do que os pais mineiros – com
idades entre 25 e 35 anos –, e embora mencionassem ter sido a infidelidade geradora de
sofrimento e ter contribuído para uma eventual separação não se sentiam
particularmente “desonrados”. Pessoas de gerações mais velhas podiam dizer que lhes
faltavam os “brios” e que, por isso, eram capazes de aceitar uma reconciliação com uma
esposa infiel, mas esses jovens, partilhando de valores mais individualistas e
igualitários, consideravam incoerente exigir da parceira uma fidelidade que, de sua
parte, nem sempre podiam assegurar. Parece-me que a honra masculina local está
ancorada em diferentes papéis, associada a distintos liames sociais - profissionais,
religiosos, políticos, esportivos, familiares, etc. -, mas mobiliza fortemente a imagem de
virilidade, de bom desempenho sexual e de habilidade nas conquistas amorosas seja por
referência ao presente ou ao passado, fama a qual homens de diferentes faixas etárias se
empenham em formar e manter com comentários auto-elogiosos.
99
Parece-me que a honra feminina reveste-se igualmente de múltiplos aspectos,
valorizando-se ainda a forma tradicional que consiste na imagem de boa esposa e mãe
de família, mas havendo também a consideração, o respeito ou o prestígio nas trajetórias
de mulheres no meio profissional, religioso, esportivo ou político, em que pesem os
resquícios de um machismo que vê com maus olhos o destaque de mulheres em mundos
antes considerados masculinos. Neste contexto, as mulheres se orgulham de sua firmeza
moral, de sua competência, habilidade ou senso prático e são vistas como menos
sujeitas às paixões dos jogos, que costumam esvair as energias pessoais e as finanças
domésticas. Em muitos casos, são elas que administram o orçamento familiar. As mães
98
Homem cuja mulher comete o adultério.
99
Retornarei a essa questão no capítulo 4.
48
têm um papel determinante na decisão de um prolongamento da vida escolar para os
filhos, do mesmo modo como as jovens registram, em boa parte, uma escolaridade mais
longa que os rapazes. Percebi que há mulheres que valorizam a própria “esperteza”,
uma espécie de versão feminina da “malandragem”,
100
seja na administração do seu dia-
a-dia, seja na relação conjugal, para vigiar o marido, por exemplo.
101
A pureza sexual feminina já não parece mobilizar adesões, ou seja, não confere
honra em sua positividade, mas o comportamento moral continua a ser o principal alvo
de ataques à reputação de mulheres, mesmo quando estão em jogo “diferenças” de outra
ordem – tais como uma rivalidade política, preconceitos de gênero e conflitos
hierárquicos. Assim, sobre uma mulher da região que seguiu carreira na política, ouvi de
um de seus adversários que ela teria vários amantes e que, assim, não tinha a
competência e a seriedade requeridas para a função. Noutro caso, um ex-mineiro que
tinha tido desavenças com uma profissional ligada à companhia no passado e se sentiu
humilhado por ela numa certa circunstância, quando lhe perguntei se ela alertava os
trabalhadores sobre os riscos do alcoolismo, me disse: “Aquela ali?! Ela bebe até cair...
Bebia mais do que os mineiros!”, como a sugerir que uma mulher como aquela não
poderia dar “lições de moral”. Outra mulher que trabalhou numa das companhias
carboníferas foi referida com desprezo em relatos de ex-mineiros tanto por suas atitudes
consideradas “provocativas” como por um suposto abuso de sua superioridade
hierárquica. Os comentários desabonadores faziam referência às sumárias minissaias
que usava ao receber operários em sua sala, diante dos quais, segundo os relatos,
cruzava e descruzava as pernas como que para “testá-los”: se algum deles perdesse a
compostura, ela teria um pretexto para pedir a sua demissão. Mas uma mulher que se
destacasse numa atividade considerada masculina também podia ser apontada com
admiração, como no episódio de uma corrida de cavalos a que fui assistir e ouvi o
comentário elogioso de um informante sobre uma senhora que passava, ela mesma
criadora de cavalos para carreiras: “Aquela ali é mais carreirista do que eles tudo!”
102
Entre os paradoxos da honra indicados por Pitt-Rivers (1983, 1992) está o fato
de que um sentimento de dignidade nem sempre é acompanhado de um reconhecimento
social na forma de prestígio ou de popularidade positiva, com os comentários sobre a
100
Sobre a “mulher interesseira” e a “mulher malandra”, ver Fonseca (2000).
101
Esta questão é retomada no capítulo 4.
102
Quando ouvi o comentário, já entendia o uso habitual do termo naquele contexto, tendo superado o
espanto que o termo “carreirista” provocou em mim da primeira vez, quando o tomei em outro sentido,
como se referindo a quem, para fazer carreira, lança mão de qualquer meio, como indica o Dicionário
Aurélio para “carreirismo”.
49
reputação ficando à mercê de afinidades pessoais, políticas, profissionais, etc. Por
exemplo, um ex-mineiro com uma trajetória de destaque nas lutas sindicais dos anos
1960 era mencionado com certo desprezo nos comentários de um ex-encarregado que
tinha uma posição política antagônica à sua. Era apontado como “um agitador” e
alguém que “quando foi candidato a vereador, fez só meia dúzia de votos”. A mulher de
outro ex-mineiro, que foi vizinha deste mesmo líder sindical num antigo bairro operário,
via-o como alguém “violento e perigoso”
103
. É preciso notar então que a construção das
reputações – e da própria honra - está sujeita aos meandros das diferenças ideológicas e
aos conflitos advindos de relações pessoais ou de vizinhança.
Quando comentei com um de meus vizinhos que pretendia fazer uma entrevista
com um ex-mineiro que era seu conhecido, ele me advertiu: “Aquele ali? Está sempre
bêbado, tu não vai conseguir entrevistá-lo!”. Nas primeiras vezes em que ouvi essa
menção (estendida depois a outros informantes), pareceu-me verossímil pela tendência
ao alcoolismo entre parte dos trabalhadores da mina, mas fiquei consternada, pois se
tratava de antigo informante com quem eu estabelecera laços. Minha experiência direta,
no entanto, foi bem diferente da sugerida por meu primeiro interlocutor. Não tive
oportunidades de ver o ex-mineiro embriagado; em todas as ocasiões em que o
encontrei estava perfeitamente sóbrio, tendo me fornecido uma entrevista rica, como
nos primeiros contatos. A única vez em que o vi um tanto “alto” foi durante o carnaval
de rua local, quando estavam legitimados os excessos.
Percebi que essa desqualificação do outro, praticada com um tom que se disfarça
indiferente, pode ser movida por diversas razões, das quais não se exclui uma
competição pela própria atenção do antropólogo. No caso mencionado acima, havia um
antigo conflito pessoal que opunha os dois ex-mineiros; em outro caso (cuja acusação
de alcoolismo se mostrou também infundada aos meus olhos), havia diferenças político-
partidárias em jogo. Durante a etnografia, há que se atravessar essas camadas de
opiniões difamantes que pretendem deixar marcas sobre a reputação e observá-las nos
efeitos que desejam impor a quem chega “de fora”. Percebe-se que elas traduzem
determinadas visões de mundo e conflitos latentes ou manifestos.
A respeito de alguém que passa por um tratamento médico para depressão ou
problemas similares, o aviso à pesquisadora era: “Olha, não sei se tu vai conseguir falar
com ele, ficou esquisito, não sai mais de casa”. Sobre outro, que se recupera de um
103
Características, aliás, que o próprio ex-líder sindical atribui a si mesmo, mas vendo-as como marcas de
uma atuação combativa e corajosa para enfrentar a opressão patronal.
50
“derrame”, não raro ouvia: “Mas agora ele não vai conseguir te dar entrevista”. Na
verdade, o problema de saúde tinha afetado apenas – e bem parcialmente – certa
agilidade motora do ex-mineiro, em nada prejudicando a memória, o raciocínio e a
expressão verbal. De viúvas que se casaram novamente, não raro havia o comentário de
que “se casou em seguida”, sugerindo que nem tinha esperado o marido esfriar no
túmulo, ou que “vive muito bem”, “ficou com a vida feita”, por conta de pensão ou
indenização. Tal vigilância social, carregada de malícia quanto ao comportamento
alheio e que nutre generosamente a fofoca, é uma das razões manifestas por alguns
informantes para querer deixar a cidade ou por já tê-lo feito. Uma viúva que perdeu o
marido num acidente na mina e que reconstruiu sua vida com um novo companheiro
traduzia assim seu mal-estar: “Sabe aquela cidade que repara em cada passo que tu dá?”
Ao mesmo tempo em que se está altamente vulnerável aos comentários dos
vizinhos, obter a sua estima e seu respeito pode representar o supra-sumo da honra,
considerando-se que esta seja uma relação de igualdade, como na comunidade
camponesa pesquisada por Pitt-Rivers (1983, p. 21). Uma reação de crítica pode surgir,
portanto, contra aquele que “quer ser importante”, que “quer ser grande”, que “está
bancando o rico”, ou mesmo que “ficou estranho” com o dinheiro recebido de
indenização, por exemplo. A atmosfera das relações de vizinhança em alguns aspectos
se assemelha à descrita por Hoggart (1973) entre bairros operários ingleses, sobre os
quais ele mencionava a reação de exclusão dos que se afastam dos valores partilhados
pelo grupo, dos que deixam de fazer parte de um “nós” para tornarem-se “eles”. É
sugestiva, por outro lado, a análise conduzida por Foster (1965) na comunidade
camponesa de Tzintzuntzan, México, sobre a noção do “bem limitado”.
104
De forma
similar, em Minas do Leão, alguém que exiba poder, dinheiro, popularidade ou
notoriedade pode contrariar os valores locais se os vizinhos e parentes considerarem que
“mudou”, que “não nos trata como antes”, que “não é mais como um de nós”, havendo
uma ambivalência entre a apreciação social do sucesso e do prestígio e a reação
contrária que pode suscitar. Talvez por isso que trajetórias com grande popularidade
recebam também críticas incisivas de outros. A reputação do sujeito, sua imagem e sua
pretensão à honra estão permanentemente vulneráveis aos ataques.
104
Ver Foster, 1965, p.64-74.
51
1.4 DE MEUS PRÓPRIOS PERCURSOS
Sexta filha de um agricultor (e ex-comerciante, em certa época), nascida numa
cidadezinha do interior gaúcho, eram-me familiares muitas das referências culturais
compartilhadas por meus informantes, acerca, principalmente, de uma determinada
concepção de honra tradicional, ligada ao trabalho duro, a certos valores morais e à
austeridade doméstica. No entanto, ainda que no universo em que cresci os jogos
fossem parte importante da sociabilidade, tanto masculina como feminina, nada se
comparava ao que encontrei em Minas do Leão (RS) – daquilo que estou chamando de
“o espírito do jogo”, relacionado ao riso, ao gosto pelo risco e à malandragem. Eu
desconhecia em boa medida a dimensão desses valores e práticas em minha experiência
empírica, ainda que estivessem presentes em minhas referências teóricas pelo estudo de
excelentes obras antropológicas sobre trabalhadores urbanos a que tive acesso em minha
formação.
105
Na vida do trabalhador com quem mais tempo convivi e a quem mais
demoradamente tive a possibilidade de observar, meu pai, havia certamente espaços de
lazer na vida sacrificada das lides rurais, tais como jogos de bocha e carreiras de cavalo
– esportes típicos de zonas rurais -, mas tais quebras da austeridade sempre me
pareceram pequenas diante da dedicação extrema, sempre beirando a fadiga, que
caracterizava sua relação com o ofício. Também na mina, como me contavam meus
interlocutores, o trabalho os empurrava muito constantemente à exaustão física. Como
escreveu o operário francês Georges Navel em seus escritos autobiográficos: “Tudo
poderia ter sido bonito e possível sem a fadiga”
106
(Navel, 2004, p.107). Cada profissão
tem sua cota de riscos e de doenças surgidas em decorrência das condições do labor.
Refiro-me aqui ao adoecimento e morte precoce decorrentes do envenenamento gradual
de agricultores ensinados a aumentar a sua produção por meio de pesticidas e
inseticidas; e ao comprometimento da função pulmonar pelo pó do carvão, no caso dos
mineiros. Nos dois casos, muitos tabus cercam esses temas. Se ainda não foram
determinadas claramente todas as conseqüências do uso de agrotóxicos, no caso da
moléstia profissional dos mineiros de carvão, a pneumoconiose, em que pese a nitidez
dos sintomas, há geralmente um longo caminho a percorrer até o reconhecimento do
mal e sua enunciação num diagnóstico médico. E uma nova batalha até a efetiva
105
Destaco aqui as obras de Hoggart (1973), Da Matta (1983), Leite Lopes (1976, 1988), Duarte (1986,
1987a, 1999), Eckert (1985, 1991, 1993), Guedes (1997), Comerford (1999, 2003), entre outras.
106
“Tout aurait pu être beau et possible sans la fatigue” (Navel, 2004, p.107).
52
indenização pela empresa ou pelo INSS. Entre os mineiros, é preciso considerar ainda
os freqüentes acidentes, a face mais evidente da tragédia de sua profissão.
Antes que eu conclua essa referência dupla, devo tocar num ponto: a
escolaridade. Em meu próprio trajeto, foi primeiro o aprendizado da leitura e, depois,
uma escolaridade alongada que me permitiu descortinar outros horizontes - de forma
que, na adolescência, dividia-me entre os projetos de ser “jornalista” e “cientista”, de
certo modo levados a efeito com a conversão de uma jornalista em antropóloga. Mas
nem todo o meu treinamento como antropóloga ao longo de inúmeros cursos e de uma
razoável experiência de trabalho de campo puderam evitar que eu me chocasse – e me
comovesse - com o fato de que boa parte de meus interlocutores é analfabeta. Em Minas
do Leão, cerca de um terço dos moradores com mais de 50 anos não sabe ler nem
escrever. Como se verá aqui, alguns dos mais impressionantes e contundentes
narradores que apresento ao longo dessa tese são homens e mulheres “sem leitura”. Até
hoje, ao descrever isso, preciso disfarçar um tanto da minha emoção e da minha
profunda admiração pelo fato de que esses interlocutores teçam, com palavras retiradas
de sua experiência concreta, reflexões sobre o seu cotidiano tão plenas de lucidez e de
beleza. Esse, sem dúvida, é um dos estranhamentos que me persegue - talvez porque
não me conforme com os limites sociais e culturais que lhes foram impostos.
Como já mencionei, foi minha experiência como jornalista que me levou a uma
pesquisa sobre mineiros de carvão. Mas, antes disso, foi a literatura que me aproximou
deste universo. Desde a primeira leitura de Germinal, de Émile Zola, aos 14 anos, tive
uma espécie de sacudidela existencial. Sem exageros, eu descobria a luta de classes em
Zola, o que gerou desdobramentos importantes: poucos anos depois, eu me engajava no
PCB, experiência que durou em torno de cinco anos e, na seqüência, manteria um vivo
interesse de investigação sobre a vida dos mineiros, que me acompanhou tanto no
jornalismo como na antropologia. Como repórter de economia de um jornal diário, em
1995, desci pela primeira vez a uma mina de carvão subterrânea, justamente na mina de
Leão I, na qual trabalhou a maior parte dos que seriam meus interlocutores nesta
pesquisa. Desde a entrada na “gaiola” ou skip, o elevador que percorre rapidamente os
123 metros de profundidade da mina, vivi o temor, a vertigem, e também um certo
53
encantamento no mergulho vertical nas profundezas da terra.
Ali fui tocada tanto pela atmosfera peculiar do subsolo como pela camaradagem
entre os trabalhadores. Dois anos depois, em 1997, desci novamente à mina de Leão I
(foto acima) para acompanhar o cotidiano dos mineiros. Na ocasião, conheci também as
instalações da mina inacabada de Leão II, cujas galerias estão escavadas a 180 metros
de profundidade e cujo acesso se dá em plano inclinado, a bordo de um caminhãozinho
que sacolejava tanto na descida que parecia prestes a emborcar. A conclusão da
reportagem foi feita com uma incursão às minas a céu-aberto de Candiota, na fronteira
Oeste do Estado, também pertencentes à CRM. Este trabalho foi publicado durante
quatro dias, ocupando oito páginas e, algum tempo depois, recebeu um prêmio de
jornalismo.
107
Na ocasião, uma foto minha acompanhando um dos mineiros no subsolo
foi publicada no jornal. Tempos depois, quando comecei a etnografia de mestrado,
descobri, surpresa, que esse material tinha sido guardado por um de meus interlocutores,
como parte de suas memórias. Alguns de meus entrevistados dos primeiros tempos, tais
como o ex-encarregado Leo, contratado pela companhia graças ao seu talento no
futebol, e o mineiro Zecão, ainda em atividade, mantiveram-se como informantes ao
longo da pesquisa até o doutorado. De certo modo, ajudaram a compor o tema desta
investigação com as imagens fornecidas em torno das semelhanças da mina com o mar,
no primeiro caso, e da referência ao mineiro como um “herói do trabalho”, no segundo.
107
O Prêmio Fiat Allis de Jornalismo Econômico, em 1997.
54
Minha segunda descida às galerias subterrâneas, em 1997, se seguiu a uma
entrevista que eu havia realizado com Zecão e sua esposa, Marilene. Quando, de manhã
bem cedinho, fui encontrá-lo para fazermos o percurso até a mina no ônibus da
companhia, recebi de presente quatro páginas de perguntas e respostas sobre sua
trajetória, escritas por ele em letras de forma num caderno espiral grande, contemplando
algumas das questões que eu havia lhe feito na véspera e outras criadas por ele. Em
continuidade à reflexão suscitada por nossa conversa, ele havia vencido o cansaço de
um dia de trabalho para elaborar o próprio questionário sobre sua vida. Neste
documento, mencionava o desejo de que o filho, com quatro anos na época, fosse
mineiro também. Escreveu: “Queria que meu filho pudesse percorrer este mesmo
caminho que meu pai e eu estamos percorrendo, sem precisar ir para longe”. É curioso
que o mineiro refere-se ao pai, já falecido, como continuando a percorrer o mesmo
caminho. O ato falho leva-nos a pensar que se trata de um caminho que não se abandona
nem pela aposentadoria, nem pela morte. Zecão já manifestava angústia diante da
possibilidade de fechamento da mina de subsolo em que trabalhava - fato que se tornaria
concreto cinco anos depois. Além da identificação do ofício que, como dito, era visto
como algo sagrado, manifestava uma noção de “honra coletiva”: “Se uma empresa
estatal não está dando lucros, não é culpa de quem está nas frentes de trabalho
arriscando a pele para que tudo corra bem”. Mencionava o “patrimônio histórico” que
representavam as minas. Era possível observar um sentimento de “desonra”, uma
ameaça de perda do sentido para a vida diante do risco de fechamento da mina: “As
minas de carvão são o nosso oxigênio, se algum dia forem desativadas, não saberemos
como respirar”, dizia. Dos primeiros contatos à imersão no seu cotidiano ficaram claras
para mim tanto a riqueza destas trajetórias como sua intensidade expressiva.
108
Na pesquisa que desembocou nesta tese, conduzi um estudo etnográfico
seguindo a tradição inaugurada por Malinowski (1984). Meu trabalho de campo consiste
numa interação prolongada com famílias de mineiros e ex-mineiros da localidade de
Minas do Leão (RS), onde habitei por seis meses, e também da cidade vizinha de Butiá.
Durante o trabalho de campo, participei de atividades junto às famílias, mas também nas
escolas, no sindicato dos mineiros, nos templos e centros religiosos, tendo acompanhado
ainda comícios, carreatas, sessões da Câmara de Vereadores, atividades sociais e
disputas esportivas, o que me forneceu um quadro bastante revelador de seu cotidiano.
108
Adoto esses termos inspirada em Bourdieu (1997).
55
As entrevistas que conduzi privilegiam os trabalhadores na mineração, ativos e
aposentados, realizadas em geral na residência, com a participação das mulheres e, em
alguns casos, também dos filhos. Sempre que possível, adotei o sistema de entrevistas
repetidas com o mesmo informante (de dois a cinco encontros) e, ainda, entrevistas em
separado com outros membros da família. Em alguns casos, as interações exploraram
mais as relações de trabalho, o universo da mina, o papel do sindicato, a política local,
em outras, a vida familiar, as relações de parentesco, a religião, o esporte, o cotidiano da
comunidade, os papéis de gênero, dependendo do perfil dos entrevistados. Preocupei-me
ainda em investigar diferentes gerações, com interlocutores entre os 12 e os 80 anos.
A consulta a estudos historiográficos locais e a arquivos das companhias de
mineração, do sindicato dos trabalhadores e do Instituto Nacional de Seguridade Social
(INSS), permitiu, paralelamente, uma compreensão mais ampla deste universo. No caso
dos arquivos das empresas, CRM e Copelmi, o interesse recaiu sobre as “fichas
funcionais”, contendo dados da trajetória do trabalhador e das relações de trabalho, com
registros de promoções e advertências, e também sobre as “fichas de saúde”, que
guardam preciosas informações sobre os acidentes e doenças profissionais. A consulta a
arquivos do INSS permitiu o cruzamento de informações presentes nos arquivos das
empresas. Os documentos sindicais, assim como antigas correspondências de uma das
companhias, guardadas num velho depósito, possibilitaram conhecer outros aspectos das
relações de trabalho neste setor entre as décadas de 1920 e 1960. A partir destes
documentos, obtive pistas sobre as resistências dos trabalhadores, por meio de greves e
outras mobilizações, e acerca das alianças entre empresas e forças policiais.
Se a observação participante é adotada como um método fundamental, não foi,
no entanto, o único recurso nas interações. Ao longo desse trajeto de pesquisa,
considerei também as perturbações mútuas causadas pela presença do pesquisador no
campo, tomando-as, como sugere Devereux (1980), não como ruídos indesejáveis, mas
como parte importante e rica de uma interação recíproca, capaz de fornecer preciosos
insights, que não poderiam ser obtidos de outra maneira. Esta análise inspira-se nas
formulações de Devereux sobre a forma como a angústia experimentada pelo
pesquisador diante de determinados dados – a chamada contra-transferência - pode ser
convertida em conhecimento. São deste autor análises pioneiras sobre como o gênero, a
profissão, a condição social e a idade do pesquisador podem condicionar os papéis que
os nativos tendem a imputar-lhe - e que, caso sejam aceitos, lhe permitirão o acesso a
56
determinados dados a partir de um determinado ponto de vista. Inspiro-me ainda no que
escreveu Favret-Saada (1990) sobre o etnógrafo aceitar “ser afetado” pelo campo. Em
sua pesquisa no Bocage francês, a autora descobriu que os nativos somente aceitaram
partilhar sua experiência quando pensaram que ela tinha sido afetada pela feitiçaria. A
metodologia que adotou não era nem de observação participante, nem de empatia. De
acordo com ela, um etnógrafo aceitar “ser afetado” não implica que se identifique com o
ponto de vista nativo. Envolve o reconhecimento de que a comunicação etnográfica
ordinária – verbal, voluntária e intencional, visando ao aprendizado de representações –
é insuficiente para captar aspectos não-verbais e involuntários da experiência humana.
O que está em jogo nestas noções é o reconhecimento da subjetividade do
observador e a aceitação de que sua presença influencia o evento pesquisado – de forma
que ele jamais observa o comportamento que “teria lugar em sua ausência” (Devereux,
1980, p.30). Manuais de pesquisa de campo têm se apoiado neste autor, destacando a
importância da “explicitação das condições singulares de pesquisa” a que o etnógrafo está
sujeito, na medida em que os dados de uma pesquisa só são analisáveis em seu contexto
de produção (Beaud & Weber, 1998). Como acentua Foote Whyte (2005, p.283), quando
um pesquisador vive longo tempo na comunidade que estuda, “sua vida pessoal estará
inextricavelmente associada à sua pesquisa”. Assim, uma explicação sobre a pesquisa
envolve uma narrativa bastante pessoal sobre como o pesquisador viveu aquele período.
Em minha própria experiência, insights surgiram de situações em que considero ter sido
“afetada” pela interação com os nativos.
109
Neste contexto, eram constantes as atitudes e referências verbais que punham em
jogo questões de gênero relativas à minha presença, de uma pesquisadora mulher
interessada em trajetórias masculinas. A importância atribuída à família e ao casamento
era expressa através de recorrentes perguntas feitas a mim: “Tu tem parentes aqui?”
110
,
“Tu é parente deles?” (referindo-se ao casal que me acompanhava). E ainda: “Tu é
casada?”. Diante de uma negativa: “Mas já foi casada?” Não sendo parente de ninguém e
não me encaixando nos papéis atribuídos às mulheres, eu estava continuamente exposta à
desconfiança.
111
Havia, ainda, o aspecto de ser uma “mulher solteira”. Morando sozinha
em uma casa situada numa esquina, experimentei a desconfortável sensação de passar de
109
Um relato mais minucioso da experiência de campo em Minas do Leão (RS) e na Lorena francesa
encontra-se em Cioccari (2009a, 2009b).
110
Os questionamentos são similares aos narrados por Comerford (2003) e por Caballero (2008).
111
Nas reflexões sobre o campo, numa vila de papeleiros de Porto Alegre, Caballero (2008) discute a
questão da “desconfiança” dos nativos à sua presença.
57
observadora a observada, não apenas pela intensa curiosidade demonstrada por quem
passasse pela rua, mas de tornar-me alvo mesmo da vigilância de vizinhas
112
, que
prestavam uma atenção, que sempre me pareceu exagerada, a meus movimentos. Eu
adotava uma atitude de simpatia, mas também de certo recato – isso se refletia na escolha
das vestimentas e na condução das interações. Só mais tarde vim a entender que esse
controle fazia parte da construção da minha reputação. Como define Bailey (1971, p.4), a
reputação de uma pessoa não é uma qualidade que ela possui, mas a opinião que as outras
pessoas têm dela. Nos grupos com os quais estabeleci laços de afeto, depois escutei
dizerem: “Ela já é da família”, “ela é como uma filha”, ou “é como uma irmã pra gente”.
O episódio no qual recebi a visita de um amigo, ex-aluno interessado em conhecer aquele
universo, foi revelador. Nos dias que se seguiram, fui questionada por vizinhas se o
visitante era meu irmão. Uma delas me disse: “Eu pensei, só pode ser irmão dela, de tão
parecido...”; outra: “É teu irmão aquele rapaz que esteve aqui?”; e uma terceira: “A gente
pensou: ‘Deve ser irmão mais novo dela’”. O que se via é que a noção de amizade não
era evocada naturalmente como a de família. Além de outros amigos, minha família
também me visitou mais de uma vez e, numa ocasião, uma irmã e um irmão me
acompanharam até a casa de interlocutores, usufruindo de calorosa recepção.
Vencida a etapa do estranhamento, passei a ser convidada pelas esposas de casais
vizinhos para “ir a um baile” com eles, onde poderia “conhecer alguém”. A situação de
habitar durante longo tempo aquela cidade me colocava na condição de moradora,
alguém a quem é preciso ajudar a se instalar, a criar raízes na comunidade, a “se
assentar”, a constituir – também, por sua vez, – uma família. O convite para freqüentar
bailes
113
era a maneira pela qual as mulheres da localidade expressavam seu acolhimento,
sua aceitação a uma “estranha”. Nesta atitude exibiam também noções entranhadas que
remetem o feminino ao casamento, à vida familiar, enquanto a centralidade do trabalho
seria algo inerente ao mundo masculino. Este tipo de solidariedade feminina pode
embutir uma tentativa de familiarização e/ou domesticação da alteridade e de
neutralização de fatores que poderiam significar concorrência junto aos homens.
Muitos dos meus interlocutores estranhavam meu modo de vida, de uma
pesquisadora que “mora um pouco em cada lugar”, “como cigano”. Alguns não
hesitavam em me perguntar sobre “quando eu iria me assentar”, ou sugerir-me que talvez
112
Sobre o controle social exercido pelas mulheres, ver Hoggart (1973) e Fonseca (2000).
113
Apesar de representarem uma possibilidade interessante de observação, não cheguei a freqüentar bailes.
58
eu pudesse ficar morando ali, já que, segundo uma crença local, “quem bebe água da
sanga da Taquara não vai mais embora”. Certa vez, o ex-mineiro Hermes usou um termo
peculiar: “Tu é uma andarína”, ele me disse, lançando mão do termo tomado do espanhol
que ali se mistura à fala cotidiana. A palavra andarína reúne três significados
114
: o de
andarilho, pessoa que anda muito sem se fixar; o de mensageiro, que leva cartas ou
notícias; e o que diz respeito à andorinha, a ave que simboliza o eterno retorno, pois parte
no inverno e retorna no verão. Era uma imagem apropriada para traduzir o movimento do
etnógrafo: do esforço de peregrinação nos mundos a que nos lançamos, das trocas
objetivas e subjetivas e dos inúmeros deslocamentos entre o campo e a escrita.
Ainda que, em geral, os aspectos relativos à vida privada fossem abordados
livremente por meus interlocutores, sem maiores delongas ou constrangimentos, as
tentativas de aprofundamento do tema revelaram-se vez por outra arriscadas. O que estou
considerando como risco é o que pode suscitar de mal-entendido uma mulher mostrar
interesse nessas questões. Em uma entrevista com um viúvo de cerca de 80 anos, parente
de uma família com a qual eu mantinha relações de amizade há alguns anos, uma
pergunta sobre o porquê da recorrência das “histórias de cornos” na comunidade abriu o
leque para uma série de revelações de caráter íntimo, nas quais o entrevistado se gabava
de suas próprias aventuras. Constrangida pelo tom explícito das confidências, eu ensaiava
o fim da entrevista, quando ouvi: “Pode voltar a me entrevistar, mas é perigoso, porque
eu sou viúvo”. Com um gesto sugerindo cumplicidade, completou: “Não tem problema,
né, tu é solteira”. A noção da viuvez como “perigosa” apareceu em outras situações, com
caráter mais ou menos jocoso. Tal representação parece estar vinculada ao principal papel
que tais homens sabem jogar, que os protege da desfiguração de outras identidades – em
especial a de mineiros, em vias de desaparecimento – assim como da ameaça simbolizada
pelo envelhecimento e pela solidão à imagem de virilidade, tão valorizada socialmente.
Como destacaram alguns estudos,
115
a situação de ser uma mulher pesquisando
homens num meio popular não diz respeito somente a dificuldades, mas representa
também certas riquezas. Como ressalta Kimmel (1998), a construção da masculinidade se
dá tanto nas relações com os outros homens como com as mulheres. Parece-me que, em
certa medida, os informantes podem encenar com a pesquisadora interações que imitam
seus relacionamentos. Certa vez, um informante me contou, rindo, que por me
114
Dicionário da Real Academía Española.
115
Ver, por exemplo, Guedes (1997) e Machado (2007).
59
acompanhar em entrevistas estava sendo alvo de brincadeiras. Um dos companheiros lhe
disse: “Ela é muita areia pro teu caminhãozinho!” Ele não se fez de rogado: “Não tem
problema, faço várias viagens”, retrucou. Ao me relatar isso, porém, agregava: “Mas
imagina só o que tu ia querer com um mineiro pobre diabo...”. Eu lhe disse que a questão
não era ser ou não mineiro, mas que, por uma questão ética, não me envolvia com
informantes. O que era perceptível é que, me acompanhando em contatos, meu
interlocutor considerava haver um acréscimo de seu “prestígio”, o que lhe permitia “se
gabar” desta relação.
Numa ocasião, fui surpreendida por um bilhete deixado sob uma pedra em meu
jardim que dizia mais ou menos assim: “Você procura longe, mas o amor está perto. Quando
descobrir isso, lembre-se de mim”. A frase era seguida pela abreviação de um nome e por
uma assinatura legível do sobrenome. Intrigada, consultei a lista telefônica e identifiquei
como possível autor da ação um morador das redondezas com quem eu havia conversado uns
10 minutos junto ao muro que cercava minha casa, logo após a minha chegada. Tratava-se de
um homem separado, cuja atividade profissional era outra que não a mineração. Esse
episódio pode traduzir algo de como se dão as abordagens nesta localidade. Deve-se notar
também que, no bilhete, o sentido de “perto” dizia respeito a uma referência espacial,
desconsiderando quaisquer outras variantes. Meses depois, quando eu estava me despedindo
de informantes mais próximos para ir embora do campo, um deles (que havia se convertido
em colaborador da pesquisa, embora não tivesse me concedido uma entrevista por adiá-la
indefinidamente) me perguntou se eu não queria saber de um “segredo”. Estranhei e
perguntei do que se tratava. Eu havia lhe revelado meus temores de que a casa em que eu
morava fosse assaltada, pois as fechaduras me pareciam frágeis. Eu também havia contado a
este vizinho que numa noite acordei assustada com passos no interior do pátio, ao lado da
casa. O “segredo” era que quando falei desses ruídos ele logo pensou num “suspeito”, um
morador que, anos antes, havia sido acusado de estupro. “Não quis te contar isso antes para
não te assustar, mas pensei nele”. Senti um arrepio ao constatar que a identificação do
“suspeito” coincidia com a do autor do bilhete. Embora soubesse que, às vezes, esse vizinho
carregasse nas tintas de seus relatos, fui-lhe grata que ele não tivesse mencionado nada antes.
A dimensão da observação a que eu era submetida tornou-se evidente no início do
campo quando, fazendo compras num mercado, conheci uma mulher e sua filha, uma menina
de uns dez anos. Elas também tinham gatos em casa, de forma que as convidei para conhecer
meus felinos. A menina me disse: “Tu é legal, mas no início te achei esquisita”. Eu
60
perguntei: “Esquisita como?” A mãe dela então explicou que, certa vez, eu estava varrendo a
casa e, quando estava no exterior, voltava e espiava para dentro. Eu me pus a rir,
identificando o momento em que eu vigiava se meus gatos – não acostumados à nova
moradia – não fugiriam enquanto eu mantinha a porta aberta. Relendo Hoggart (1973), me
identifiquei com os comentários das moradoras de bairros operários ingleses que
escrutinavam os modos das pessoas menos conhecidas: “Não é esquisita?”
Volta e meia, quando eu não estava fazendo entrevistas, recebia visitas em minha
casa. Os domingos à tarde, especialmente, costumam ser dedicados à visitação a parentes,
compadres, amigos ou vizinhos, anunciada na própria chegada. Um dos casais com os
quais estabeleci um forte elo de amizade, Dalva e Hermes
116
, freqüentemente me visitava.
Se fizesse bom tempo, ficávamos no pátio, ao lado da casa, em longas conversas que, por
vezes, eram compartilhadas por outro informante que passava por ali e que aproveitava
para sentar-se um pouco. Às vezes, esses encontros reuniam dois ex-mineiros
contemporâneos da mina que evocavam memórias comuns. A marca dessas interações
era a brincadeira dizendo respeito a si mesmos ou a conhecidos. Eles podiam relatar a
diversão da noite anterior, como a participação num baile da “terceira idade”. Por meio
de histórias contadas expunham certos princípios que norteiam o cotidiano ou a criação
dos filhos, por exemplo. Depois de algum tempo, eu ia preparar o “café da tarde” -
geralmente café com leite acompanhado de pão, bolo ou biscoitos -, como no costume
local. Acontecia de o segundo visitante alegar que “não queria atrapalhar” e, mesmo
diante de protestos, despedir-se. Se eu não estivesse com visitas, mas permanecesse ao
lado da casa, freqüentemente surgia uma vizinha que vinha conversar no muro ou que
pedia licença para entrar no portão. Justificavam essas aproximações com o que, aos seus
olhos, era a “minha solidão”, sugerindo que vinham me fazer “um pouco de companhia”.
Nesse espaço de intimidade, contavam um pouco da trajetória familiar e sobre dramas de
filhos e filhas que nem sempre eram conhecidos por todos no âmbito doméstico. Também
aproveitavam para me fazer perguntas de cunho pessoal.
Quando se examinam os modos pelos quais o antropólogo é esquadrinhado em
campo, é preciso considerar o que diz Devereux (1980) sobre o fato de que, no trabalho
etnográfico, trata-se de uma observação recíproca, na qual tanto o pesquisador como os
nativos agem como observadores. É uma convenção que estabelece que “A é um
observador” e “B é um observado”. Devereux (1980, p.61) alerta “cada um dos dois é
116
Durante minha pesquisa de mestrado, em 2003, eu havia morado numa casa nos fundos de seu quintal.
61
para ele mesmo ‘observador’, e ‘observado’ para o outro”, de forma que todas as
perturbações resultam dessa experiência dupla, que tem o mérito de remeter o
antropólogo à auto-observação. Tais questões levaram-me a desenvolver algumas
reflexões, afloradas a partir das mútuas e contínuas observações que não se dão no
cotidiano sem algum constrangimento e tensão. Ainda que o controle social me fosse
incômodo, parecia a contrapartida legítima da minha própria investigação sobre a vida
dos moradores e tinha por objetivo verificar o grau de confiança e de credibilidade que
poderia ser depositado em mim como pessoa e no trabalho que eu desenvolvia.
Alguns dos possíveis erros ou gafes que cometi em campo provocaram agudos
questionamentos sobre os limites da minha inserção. Numa ocasião em que eu estava
interessada em conhecer as modalidades de jogos tais como as “apostas eleitorais”
(Palmeira, 2006), fui convidada por um amigo, filho de um informante, para um jantar de
pagamento de uma aposta. Era uma boa oportunidade para observar esse aspecto no
período que se seguia às eleições presidenciais de 2006. No horário combinado, o amigo
esperou-me diante de minha casa, sem mesmo entrar no pátio, como convinha aos hábitos
locais. Quando chegamos ao local, um bar-snooker que poderia ser chamado de “pé-
sujo”, eu percebi que, entre os convivas, seria a única mulher presente. Eu não sabia que,
além do pagamento da aposta, tratava-se de um dos encontros semanais “só para homens”
promovidos pelos jogadores veteranos do Atlético Futebol Clube, um dos times de
futebol organizados em torno das minas que mais tarde eu teria a chance de pesquisar.
Perguntei ao amigo que me acompanhava: “Sou a única mulher?” Ele respondeu: “É, mas
tu veio a trabalho”. Quando entrei no recinto, cerca de 30 pares de olhos estavam
voltados para mim. Disfarcei meu constrangimento como pude e logo reconheci alguns
informantes que se levantaram para me cumprimentar. Estavam ali mineiros, funcionários
da companhia de mineração, um engenheiro, políticos e empregados em outras
atividades. O perdedor da aposta convidou a que me servisse da refeição. Enquanto o
fazia, encontrei um engenheiro com quem eu havia falado dias antes: “Quer dizer que
estás pesquisando tudo mesmo?!”, disse-me com certa malícia. No bar sobre o chão
batido, identifiquei três ambientes: um dos que jogavam snooker, outro dos que jantavam
sentados em bancos dispostos ao longo da mesa, e um terceiro, de uma roda de samba, na
parte à esquerda do “L” invertido que era o formato da peça. Além de mim, a única
mulher era a cozinheira. Depois de jantar, passei a tomar notas ouvindo os apostadores.
117
117
Abordo o tema desta aposta no Capítulo 6.
62
Apesar do mal-estar vivido, só entendi de fato o tamanho da transgressão que
tinha cometido quando, no dia seguinte, retornando de um jogo de futebol que fui assistir
com o mesmo amigo, encontramos uma mulher que ele me apresentou como sendo
esposa de um dos veteranos do Atlético. Com certo humor, ela me disse que seu marido
havia contado sobre minha a presença no local, sobre “uma mulher que estava lá
entrevistando um e outro”. Ali fiquei sabendo que as mulheres tinham o seu próprio
“clube das Luluzinhas”, que promovia encontros nos quais os homens não entravam. Dias
depois, ao encontrar com a esposa de outro participante, voltei a falar sobre o evento. Ela
me disse que seu marido havia comentado sobre o ocorrido assim que chegou em casa.
Tais detalhes revelavam quão estranha fora considerada a minha presença. Aqueles
homens estavam preocupados com sua reputação: se as esposas soubessem de outro
modo sobre uma presença feminina no local poderia haver desconfianças sobre o caráter
daquelas reuniões, consideradas como uma “instituição” local. Ainda que minha ação
tenha sido creditada ao fato de eu ser “de fora” e, possivelmente, por “estar a trabalho”,
não contribuía para me aproximar das mulheres. Quando fui convidada a viajar com o
grupo a uma localidade onde disputaria uma partida de futebol, decidi recusar. Seria uma
observação de grande valia, mas não estaria livre de novos embaraços. Tudo isso é vivido
sob uma carga de tensão e ansiedade, considerando os riscos de que uma ação equivocada
possa “fechar o campo”. As observações de Devereux (1980, p.162) lançam luz sobre
este aspecto quando referem que o gênero do pesquisador restringe a gama de situações
nas quais ele pode se comportar como observador participante. Mas essas barreiras
podem ser minimizadas pelo fato de o antropólogo ser um estrangeiro ao local.
Ao longo do tempo tornou-se público meu interesse em estudar a organização dos
clubes de futebol ligados às minas, legitimando assim minha primeira aproximação com
o grupo. É importante dizer que meu gosto pelo futebol, depois dos jogos de infância,
remonta ao tempo em que, trabalhando numa redação de jornal, eu participei de uma
equipe de futebol de salão feminino que, por vezes, tornava-se mista quando havia um
número insuficiente de “atletas”. No dia seguinte, invariavelmente, chegávamos ao
trabalho mancando ou com hematomas pelo corpo. Mas uma de minhas colegas, certa
vez, externou o prazer que a atividade, desenvolvida entre as 23h e a meia-noite, após a
saída do trabalho, nos proporcionava: “Jogar futebol é a melhor coisa do mundo!” Meu
interesse teórico pelo tema foi despertado pela leitura de estudos conduzidos por meu
63
orientador, José Sergio Leite Lopes,
118
entre outros pesquisadores. Uma parte de minha
pesquisa acabou por basear-se justamente na relação entre a mina e as equipes de futebol.
Num certo momento, durante a etnografia, eu seria intermediária entre as equipes
da localidade e uma rede nacional de televisão para um documentário sobre os mineiros-
jogadores. A oportunidade surgiu de um curso no âmbito do Instituto Histórico
Geográfico Brasileiro (IHGB), no Rio de Janeiro, em torno dos “estudos sobre esportes”,
no qual meu orientador foi convidado a falar. Ele convidou a mim e a Antônio H.
Oswaldo Cruz, seus orientandos, para participarmos de sua exposição. Estava presente
um produtor do Sport-TV que me propôs a realização do programa sobre os mineiros-
jogadores. Depois de uma série de contatos e de uma ida a Minas do Leão em setembro
de 2007, quando eu o apresentei a meus informantes, o programa foi gravado no início de
novembro, contemplando a exibição de um “clássico” local, uma partida entre veteranos
do Olaria e do Atlético (foto abaixo), no campo do Olaria. Na ocasião, os moradores
mobilizaram-se para o registro jornalístico e esse se tornou o assunto principal nas ruas.
A partida de futebol reuniu em torno do campo alguns dos antigos mineiros-jogadores,
como Leo, Zoely, Butiá e Tibúrcio. O não comparecimento de Eraldo, um dos fundadores
do Olaria, chamou nossa atenção. Meu informante Eraldo tinha falecido naquele mesmo
dia, em sua casa, conferindo um tom triste aos desdobramentos daquele evento. Quando o
documentário foi exibido, em janeiro de 2008, eu me encontrava na França, mas meus
interlocutores relataram que um grupo do Atlético se reuniu no Galetus Bar, o seu reduto
118
Ver, por exemplo, Leite Lopes (1994, 1995, 2004b) e Leite Lopes & Maresca (1992).
64
preferido, para assistir ao programa, que foi depois reproduzido por um esperto
empreendedor local, com as cópias vendidas a R$ 15.
Na época deste documentário, eu já havia me convertido numa espécie de
“camarada” destes grupos, desempenhando um papel mais próximo do universo
masculino do que do feminino. Tentando calcular os riscos de minhas ações, noutra vez
perguntei a Jango, um de meus informantes, se “ficaria bem” eu ir a outro evento que
seria freqüentado por homens. Sua resposta apaziguou minhas angústias: “Tu é uma
jornalista, pode ir a qualquer lugar. Tá fazendo o teu trabalho”. Se poucos ali saberiam
dizer que eu era “uma antropóloga”, todos compreendiam que “uma jornalista” precisa
circular para colher informações. Ainda que eu explicasse a diferença entre meu trabalho
anterior e o da pesquisa, não raro ouvia sugestões para “minha reportagem”. O próprio
termo “antropologia” intrigava parte de meus interlocutores. Certa vez, num tom jocoso,
um de meus informantes, Serlon, filho de ex-mineiro, indagou: “Que bicho é esse...
antropologia?” Outro conhecido presente na conversa disse brincando que as pessoas
poderiam se assustar pensando que fosse um “experimento com humanos”. Algumas
semanas antes, diante da curiosidade da afilhada, Serlon havia se arriscado a explicar que
antropologia “era o estudo da humanidade”. Devido à indeterminação de qual fosse meu
papel, mais comumente eu era apontada como “a jornalista”. Numa ocasião, eu também
ouvi crianças que passavam em frente à minha casa comentar: “Ali mora uma escritora”.
Minha relação com o universo dos livros era algo que chamava a atenção da
vizinhança. Certa vez, Serlon, tendo aceitado a função de “caseiro” numa de minhas
ausências da localidade, dedicou-se com gosto à leitura de livros que lhe franqueei,
interessando-se, sobretudo, por poesia. Com menos anos de escolaridade do que o filho, o
ex-mineiro Ariovaldo, também apreciava a leitura,
119
demandando-me livros sobre a
mina e os mineiros, os quais ele me devolvia junto ao muro que cercava minha casa, com
o seguinte comentário: “Quando tiver outro livro de mineiro, pode me trazer, esse eu já li
tudo!” Outro vizinho com praticamente a mesma escolaridade que ele e que me viu
lendo, numa ocasião desfechou: “Se tem uma coisa que eu detesto é a leitura!” Não só o
hábito de leitura não lhes era indiferente como podia ter a força de uma provocação.
1.4.1 Uma “brasileira” em campo francês
Durante meu estágio de doutorado na França, viajei em fevereiro de 2008 pela
primeira vez à Creutzwald, a cidade da Lorena francesa que abrigou a última mina de
119
O filho tinha estudado até a 5ª série e o pai não concluíra o primário.
65
carvão do país, La Houve, fechada em 2004. Tempos depois, no final de junho daquele
ano, retornei a essa localidade para, durante algumas semanas, conduzir o trabalho de
campo. Ser uma etnógrafa em terra estrangeira põe à prova paciência, persistência e
determinação e nos despe de estratégias aprendidas para construção de interações que ali
podem não ter grande valia. Nas notas que fiz no período considerava que a etnografia
requer “uma transcendência”, na medida em que atravessamos nossos medos e limitações
para ir ao encontro do outro, expondo-nos à vulnerabilidade. Dwyer, citado por Mintz
(1984), diz que, para o antropólogo, estão em jogo duas espécies de vulnerabilidades:
uma relacionada com os reclamos da disciplina, outra com o seu envolvimento pessoal
com a investigação. Combinadas, fazem crescer a angústia e a tensão do pesquisador.
Em minha primeira visita a campo, percorrendo a pé bairros operários (fotos
acima) - compostos de casas enfileiradas de tons entre o cinza e o marrom, com um
pequeno jardim ao lado – me defrontei com muitas recusas nas primeiras tentativas de
estabelecer contato: desconfianças em relação a uma estrangeira, aversão a evocar as
lembranças difíceis da mina. Recordo-me daquele ex-mineiro de origem polonesa que me
disse: “Da mina, eu só tenho más lembranças e prefiro não falar delas”. Quando podia, eu
tentava quebrar essas resistências falando das semelhanças com o cotidiano dos mineiros
brasileiros.
120
Nas casas nas quais, finalmente, fui convidada a entrar, via também o
orgulho da profissão, como dito antes, expresso em palavras, gestos e em paredes e
estantes fartamente decoradas com objetos da mina. Fui tocada pela similaridade entre os
120
Eckert (1992), que viveu uma experiência de longa duração entre mineiros de La Grand-Combe, no sul
da França, depois de ter pesquisado uma comunidade mineira no sul do Brasil, diz que vivenciava ao
mesmo tempo de um sentimento de familiarização e de estranhamento – o primeiro relacionado à
continuidade do trabalho realizado no Brasil e o segundo nascido da situação de pesquisa no Exterior.
66
sentimentos manifestos por mineiros franceses e brasileiros, que traduziam tristeza pelo
fim da mina e, também, o humor peculiar do subsolo. Naquela cidade, com forte presença
de imigrantes, quem primeiro me abriu a porta de sua casa foi um ex-mineiro de origem
iugoslava e sua mulher vietnamita. Depois, seus vizinhos, Graziano Balzani, o ex-mineiro
italiano, e Anne-Marie, sua mulher, me inseriram generosamente em sua rede de relações.
Tive a sensação de ter encontrado um “lar” entre os italianos vivendo na Lorena francesa
pelo fato de meu bisavô paterno ter emigrado da Itália para o Brasil. Em vários
momentos, esse casal justificou sua disposição em me ajudar fazendo referência ao filho,
doutor em sociologia e hoje professor de uma universidade em Nancy, com quem
mantive contato por e-mail e telefone, inclusive recebendo seus comentários ao projeto
de pesquisa que lhe enviei. A longa escolaridade de um filho de mineiro já consistia num
dado relevante em minha observação, mas não seria a regra.
121
Nesta experiência de campo, fiquei hospedada na maior parte do tempo num hotel
em Creutzwald e por um período menor também usufrui da hospitalidade de um casal de
informantes na cidade vizinha de Freyming-Merlebach. Como Mintz (1979) mencionara
sobre seu começo de pesquisa em Porto Rico, ele era “o estrangeiro”, “mas não qualquer
estrangeiro”, e sim um americano
122
. Posso considerar que algo análogo se passava no
meu caso. Eu era uma “brasileira”, situação na qual identidade de gênero e de
nacionalidade que pareciam se colar e se potencializar. Desta dupla condição derivaria os
constrangimentos que enfrentei. Nem sempre isto estava em jogo de forma estereotipada.
Apenas em quatro ou cinco casos houve um mal-estar derivado dessa condição. Em
situações em que a conversa era atravessada por forte densidade política (em entrevistas
com sindicalistas ou militantes de esquerda), o estatuto de pesquisadora latino-americana
interessada em trajetórias operárias evocava empatia e solidariedade. Em interações
familiares, a atenção se focava em minha nacionalidade e trajetória (estudante, filha de
trabalhador, bisneta de imigrantes). Às vezes, ser estrangeira é uma vantagem: há menos
riscos em se contar a própria história a quem partirá a um país distante. Isso foi expresso
quando um informante permitiu que eu fizesse cópia do dossiê de saúde de seu pai que
indicava a silicose, ainda que tivesse obtido os documentos quando trabalhava num órgão
121
Como bem observou o sociólogo Michel Pialoux, durante uma interlocução, se uma escolaridade
alongada entre descendentes de italianos não era rara naquela região, a mesma coisa não se podia dizer de
famílias operárias oriundas de outras imigrações.
122
Mintz (1979, p.28) conta sobre o “nervosismo” e o “medo” que sentia quando chegou a Porto Rico, zona
afetada pela ocupação americana. Não dominava bem o espanhol e ainda por cima era um americano.
67
de seguridade social representando a companhia. Sua esposa acabou por se tranqüilizar:
“Mas é para levar para o Brasil, não é? Então, não há problema”.
Algumas situações embaraçosas, no entanto, estavam relacionadas a comentários
ou atitudes evocadas diante de uma “brasileira”. Num episódio, eu conduzia a entrevista
na residência de um casal. O ex-mineiro, de pouco mais de 50 anos, havia se aposentado
na mina ocupando uma posição de chefia. Sua casa, bem arrumada e decorada, mantinha
uma ambiência fria, reservada, mesmo tom que predominou na interação. Durante a
entrevista, sua mulher precisou sair e continuamos a conversa. O constrangimento
ocorreu no final, quando entreguei a ele um papel com meu nome, e-mail e a referência
“antropóloga brasileira”. Ele lascou a questão: “Por que ‘brasileira’?” Sem entender,
reafirmei que era “brasileira”. Ele me disse que “eu não deveria fazer propaganda disso”,
pois podia ser “perigoso’’ estando hospedada sozinha num hotel. Explicou: “As
brasileiras eram a fantasia sexual da nossa geração. As brasileiras... e as suecas”. Depois,
informou que um amigo, sabendo que uma brasileira estaria em sua casa, insistiu para ir
até lá, ao mesmo tempo em que lhe demandava sobre minhas características. Meu
interlocutor teria dito que eu era “atraente”, mas estava ali “fazendo meu trabalho”. Na
saída, quando lhe perguntei se podia fazer uma foto sua diante da casa, adquirida da
companhia, sugeriu: “Eu é que devia fazer uma foto tua!” Segundo ouvi, o imaginário
local sobre “brasileiras” teria se alimentado de imagens televisivas de mulheres portando
trajes sumários no carnaval e na praia. Atravessando essas imagens estavam
representações sobre a “sensualidade”, “a beleza” e a “permissividade sexual” atribuídas
aos brasileiros.
123
No período em que fiquei hospedada com um casal de informantes na cidade
vizinha de Freyming-Merlebach, minha presença engendraria um contorno mais
“familiar”. Na chegada, participaria de um almoço pelo aniversário de ordenação de um
padre católico. Havia três lugares reservados à mesa. No lugar que me era destinado, meu
nome de batismo era completado pelo sobrenome daquela família, sugerindo que eu era
recebida “como uma filha”. Mais do que à diferença de idade, essa atribuição estava
relacionada à minha condição de estudante, similar à de seus filhos, e ao fato de eu ser
uma mulher solteira e estrangeira, o que poderia remeter a certa vulnerabilidade. Ainda
que a trajetória do marido, engenheiro aposentado da mina, fosse mais relacionada ao
123
Em seu estudo sobre a cultura sexual no Brasil, o antropólogo americano Richard Parker (1991)
abordou alguns “mitos de origem peculiares”. Conforme o autor, a sensualidade brasileira é celebrada e se
relaciona, no nível mais profundo, com o que significa ser brasileiro. Essa imagem seria apresentada
pelos brasileiros a si mesmos e para o mundo estrangeiro.
68
meu tema de pesquisa, coube à esposa, professora de inglês, me apresentar a famílias
conhecidas de mineiros. Além da condição de gênero, havia outro liame comum: o das
origens familiares. Ela era filha de um ex-mineiro italiano que foi trabalhar nas minas
francesas e, nesta condição, apresentou-me a outros descendentes de italianos. Seu
marido, filho de ex-mineiro esloveno, me apresentou a um antigo mineiro com mesma
origem e que se tornara um “historiador local”. Com a ajuda de meus informantes, na
segunda ida a campo, eu tinha chegado a mais de 25 entrevistas com ex-mineiros e suas
famílias e também com descendentes que não seguiram o ofício, tornando-se, por
exemplo, professores, técnicos em informática ou jogadores de futebol.
124
1.5 HISTÓRIAS DE VIDA E TRAJETÓRIAS
Num universo em que as histórias de vida e de trabalho constituem a matéria-
prima mais preciosa, os relatos biográficos tornam-se importantes instrumentos de
pesquisa. Uma característica essencial da chamada “história de vida” é a possibilidade de
apresentar os atores a partir de sua própria perspectiva.
125
Em Minas do Leão, a
realização de um grande número de entrevistas de caráter biográfico remeteu-me ao uso
privilegiado de trajetórias como forma de melhor recompor a dinâmica encarnada pelos
personagens. Meu interesse pelas histórias de vida e pelas trajetórias está relacionado ao
fato de que boa parte de meus interlocutores costumava contar episódios, anedotas,
passagens da sua vida ou da vida de outras pessoas para revelar alguma proeza ou para
me pôr a par de fatos que eu desconhecia. As lembranças pessoais freqüentemente se
conectavam a algum acontecimento marcante na memória coletiva, tal como um acidente
na mina, um temporal que caiu sobre a cidade, um campeonato de futebol, uma eleição
municipal, etc. Muitas vezes, esses relatos não eram articulados com referências
temporais precisas, predominando um genérico “antigamente”, ou formas do tipo
“quando viemos pra cá”, “quando era solteiro”, “quando baixei à mina”. No começo do
trabalho de campo, eu fazia muitas interrupções - revelando resquícios de um habitus
anterior como jornalista que remetiam a uma preocupação obsessiva com dados como “o
quê”, “quando”, “como”, “onde” e “por que”, em relação à qual precisei de esforço e de
auto-vigilância para debelar, ao menos parcialmente – que podiam quebrar o ritmo
adotado pelo narrador. Assim quando, de forma irrefletida, eu interrompia o relato para
124
Outros aspectos desta experiência, assim como os impactos dos relatos sobre o fim da mina sobre
minha subjetividade, traduzidos em sonhos e em suas interpretações, estão em Cioccari (2009a, 2009b).
125
Para Becker (1993), a história de vida compartilha com a autobiografia “sua forma narrativa, seu ponto
de vista na primeira pessoa e sua postura abertamente subjetiva” (Becker, 1993, p.102).
69
perguntar “quando foi isso?”, suscitava reações como: “Agora, tu me apertou...”, “isso aí
já é mais difícil lembrar”. A desistência de uma resposta era recebida com alívio.
A dimensão individual e coletiva dos relatos de vida reveste-se de especial
significação numa investigação sobre as modalidades da honra no contexto de uma
cidade mineira. Ali, aspectos como a imagem e a estima de si, o orgulho, o dom, o
reconhecimento, a consideração, assim como os atributos negativos – todos esses traços
que demarcam a honra e traduzem uma reputação - afloram de forma privilegiada no
discurso sobre si mesmo e sobre os outros. Verret (1996) mencionava o princípio de
“visibilidade” que destaca um militante operário: a idéia de que “ele sabe falar”, de que
“fala bem”.
126
Ainda que em Minas do Leão essas emergências não estejam senão
raramente ligadas a uma trajetória de militância, valoriza-se o domínio da palavra, a arte
de se expressar, mas se critica os que “falam e não dizem nada”, como “os políticos”.
Entre os trabalhadores comuns, nem sempre a narrativa brota espontaneamente. É
preciso tempo e saber escutar para que ressurjam os velhos contadores de histórias,
praticantes de uma arte em extinção, como o diz Benjamin (1992).
Quando se está, como aqui, tratando de relatos obtidos em segmento popular, há
que se considerar o próprio significado – simbólico e político - que o ato de “tomar a
palavra” para falar de si e de seu mundo carrega para um membro dessas classes. Os
estudos sobre biografias e autobiografias operárias, além das próprias, têm atestado essa
importância.
127
Neste universo, poucos são os trabalhadores manuais que se arriscam na
empreitada da escrita, estranha às suas lides cotidianas. O ex-mineiro Seu José, hoje
com 80 anos, que escreveu um pequeno livro sobre a cidade
128
, é uma dessas exceções.
Alguns filhos de mineiros, como Eron, que ocupa uma função executiva na companhia
carbonífera
129
, ou Sílvia Inês Alves, professora da rede municipal, lançam mão da
literatura para dar corpo a histórias cômicas ou trágicas ouvidas desde a infância. Em
outros moldes, o relato da vida fornecido pelo informante ao pesquisador cumpre
função similar. A tentativa de preservar determinados fluxos de narrativas ou de
observações colhidos em campo passa pelo rearranjo de uma escritura que, devendo ser
126
Verret, 1996, p.27-28.
127
Ver Lewis (1969), Nash & Rojas (1976), Mintz (1979), Burnett, Vincent & Mayall (1984), Dreyfus,
Pennetier & Viet-Depaulle (1996), Eckert (1998), Leite Lopes & Alvim (1999), Malva (1978, 1985),
Viseux (1991), Navel (2004), entre outros. Burnett, Vincent & Mayall (1984, p.xvii), por exemplo,
observam que “todas as autobiografias representam uma espécie de triunfo sobre a adversidade”: refletem
e estimulam o crescimento da auto-reflexão e do auto-respeito entre membros da classe trabalhadora.
128
O livro, Leão mineiro, de José Selbach (2001).
129
A trajetória de Eron é contada no capítulo 8, sobre filhos de mineiros.
70
o mais fiel possível à experiência, busca reconstruir uma nova temporalidade. Três
exemplos de etnografias “clássicas” podem traduzir o que estou dizendo. Lewis (1969),
após intenso trabalho de investigação entre camadas populares no México
130
, optou por
descrever um dia na vida de cinco famílias.
131
Ele considerava que, embora cada família
apresentada fosse única e constituísse um pequeno mundo, cada uma refletia a seu modo
algo da cultura mexicana que mudava e deveria ser lida sobre o pano de fundo da
história recente do país.
132
Seus estudos sobre autobiografia e biografia familiar também
inspiraram pesquisadores como Mintz e Nash. Mintz (1979), numa pesquisa com
trabalhadores no cultivo da cana de açúcar em Porto Rico, escreveu a história de um só
homem: Don Taso, que não era o “tipo padrão do operário porto-riquenho de classe
pobre”
133
. De forma similar, Nash realizou um estudo biográfico de um mineiro de
estanho boliviano, publicado em co-autoria com ele (Nash & Rojas, 1976).
Desde meados do século XX, multiplicaram-se os estudos sobre biografias,
autobiografias e narrativas, evocando tanto as peculiaridades das trajetórias individuais
como a forma pela qual expressam pertencimentos sociais. Considero pertinente a
abordagem de Bertaux, que propõe considerar as biografias “não como relatos de vida,
mas como relatos de práticas”, entendendo que a interpretação deve se concentrar não
sobre a “vida” como objeto único e do qual se procuraria extrair o sentido, mas “sobre
as relações sociais e interpessoais” que entornam e penetram cada indivíduo.
134
Os
relatos de vida, para além do caráter de “história pessoal”, descrevem um universo
social, revelando uma interação entre o eu e o mundo (Bertaux, 1999). Mas essas
histórias também revelam a especificidades dos sujeitos, considerando o seu “direito à
singularidade” (Verret, 1996). Passeron (1990), que faz uma crítica densa a certos
modos de usos do biográfico, ressalta a sua importância desde que a escolha seja
baseada em “regras de análise” permitindo a identificação de traços pertinentes da
descrição. Como ele enfatiza, a noção de “trajetória” adotada por Bourdieu refere-se à
atualização do habitus através das conjunturas que o sujeito atravessa.
135
130
Outras obras do autor utilizam o recurso autobiográfico, como Los hijos de Sanchez (1961).
131
O autor considerava ser “um franco experimento na nova concepção sobre a investigação
antropológica” (Lewis, 1969, p.18).
132
Lewis, 1969, p.21.
133
Mintz,1979, p.37.
134
Apud. Chevalier,1979, p.97-98.
135
Cf. Passeron, 1990, p.21. A trajetória é definida como sendo “uma série de posições sucessivamente
ocupadas pelo mesmo agente (ou mesmo grupo) num espaço ele mesmo em devir e submisso a
incessantes transformações” (Bourdieu, 1986, p.72).
71
De minha parte, ao buscar traduzir no texto o universo de valores locais e sua
relação com as formas de honra pareceu-me que o uso de trajetórias serviria melhor ao
propósito de explicitar os cruzamentos entre os múltiplos elementos presentes no
universo de meus interlocutores, subvertendo, em certa medida, o engessamento das
temáticas contidas em cada capítulo. Isso se revelou importante no sentido de evidenciar
o modo pelo qual as modalidades de honra atravessam as diferentes dimensões da vida
individual e social. Nas interações em campo, um bom conselho parece ser a escuta
“ativa e metódica” (Bourdieu, 1997), que associa a disponibilidade total em relação à
pessoa pesquisada, com a submissão à singularidade de sua história, podendo conduzir a
adotar sua linguagem e a entrar em seus pontos de vista.
136
Neste sentido, Beaud (1996)
acentuava que, em estudos sobre as classes populares, seria preciso criar as condições
para que no decorrer da entrevista os pesquisados se sentissem legitimados em sua
posição e não hesitassem em falar de suas experiências pessoais e em termos da sua
linguagem ordinária.
137
De outro modo, minha experiência em Minas do Leão parece ter
propiciado a conjugação de traços de minha própria personalidade com a disposição
presente naquele universo a um comportamento cordial e afetivo.
138
Por certo
mimetismo, aprendi logo o tom de brincadeira e de provocação que acompanham as
relações de confiança estabelecidas entre amigos, compadres, parentes ou vizinhos - que
guarda similaridade ao “parentesco por brincadeira” referido por Radcliffe-Brown
(1973). Do mesmo modo, aprenderia com a observação, muito mais do que com
explicações, sobre a “evitação”, da qual os informantes dão mostras no silêncio – e
acerca da qual cometi minhas gafes. Trata-se da arte de manter à distância, com uma
indiferença fingida, os desafetos, inimigos ou mesmo parentes e amigos dos quais
guarda rancor, mágoas ou ressentimento por algum episódio de conflito.
Se a linguagem é uma das “ferramentas” do pesquisador para chegar aos fatos,
entre esses fatos está a própria linguagem, dizendo respeito não apenas aos relatos dos
informantes, mas também às falas entre eles, nas interações que observamos, como
sugere Nadel (1955, p.52). Nas falas de muitos mineiros, notam-se certas adaptações
morfológicas e de sintaxe
139
, algumas delas comuns em outros segmentos populares no
que diz respeito à tendência de flexão numérica sem o “s”, usando-se então “os
136
Ver Bourdieu, 1997, p.695. O autor sugere que o pesquisador pode ajudar a criar as condições para que
haja, por parte do pesquisado, uma “auto-análise provocada e acompanhada”, permitindo a emergência de
uma “intensidade expressiva” (Bourdieu, 1999, p.704-706).
137
Beaud, 1996, p.240-241.
138
Essas formulações se inspiram em Devereux (1980).
139
Muitas falas foram alteradas na “tradução” da palavra falada para a escrita.
72
mineiro”, “os filho” ou, ainda, à flexão verbal limitada à primeira e terceira pessoas
140
,
como em “eles era”, “nós trabalhava”. Alguns manifestavam um tom “gritado” e
provocativo, explicado como herdado das condições de trabalho: seja do subsolo da
mina, onde os ruídos constantes dos motores, das perfuratrizes e das explosões exigiam
que um mineiro falasse com o outro gritando, “berrando palavrões” ou por meio de
gestos e mímicas
141
; ou da atividade rural, na qual a distância física devida à vastidão
dos espaços ou à necessidade de dominar uma natureza resistente, como o manejo de
animais, forçava uma vocalização mais forte. A manutenção desse comportamento
acaba por sugerir uma ausência de acanhamento, o equivalente à exibição de uma
desenvoltura que pode surpreender visitantes que imaginavam encontrar ali sinais de
modéstia e de submissão que seriam revelados diante estranhos vindos de grandes
centros urbanos.
142
Pode-se dizer que em sua intensidade expressiva estão ancorados
elementos dos quais se orgulham os informantes, o que me leva a considerar esses
aspectos como atravessando a própria construção da honra.
Nas trajetórias de informantes, o relato biográfico foi combinado às minhas
próprias observações de campo, a informações obtidas em documentos, assim como aos
comentários feitos sobre outros moradores, na maneira típica pela qual cada um se
manifesta sobre as reputações alheias e, ao fazê-lo, age diretamente na sua construção.
As “trajetórias”, tais como as apresento ao leitor, são assim o resultado tanto de relatos
espontâneos, de respostas a questões que fui formulando como, em alguns casos, estão
atravessadas por esses materiais heterogêneos, com o intento de que permitam um olhar
“de dentro” e “de fora’’ da história narrada.
143
De modo geral, encontra-se nestes
depoimentos o colorido e a articulação de uma fala que se constitui no meio de
comunicação por excelência e através da qual se negocia muitos aspectos da existência.
140
Um estudo dos aspectos lingüísticos dos mineiros daquela área carbonífera foi feito por Bunse (1984).
141
Tal forma de comunicação foi mencionada igualmente por mineiros de Creutzwald, relacionada não
apenas aos ruídos, mas também à diversidade de idiomas naquele contexto.
142
Um exemplo: um jornalista que acompanhei para a gravação de um programa na localidade mostrou-se
impressionado sobre como os mineiros “falavam bem”.
143
Seguindo a perspectiva de Mauss (2001), sobre a apreensão do “fato social total”.
73
2. A CONSTRUÇÃO DA
DIGNIDADE
(...)
É duro, moço
Olhar agora pra história
E ver páginas de glórias
E retratos de imortais
Sabe, moço
Fui guerreiro como tantos
Que andaram nos quatro cantos
Sempre seguindo um clarim
E o que restou?
Ah, sim
No peito em vez de medalhas
Cicatrizes de batalhas
Foi o que sobrou pra mim.
(Música “Sabe, moço”,
de Francisco Alves,
interpretada por Leopoldo Rassier)
2.1 INTRODUÇÃO
Neste capítulo, forneço elementos de caráter histórico sobre a operação das
minas de carvão no Rio Grande do Sul na primeira metade do século XX, buscando
desvendar as imagens dos trabalhadores e o olhar que eles lançavam a si mesmos e ao
seu ofício. Podem-se vislumbrar pistas nos documentos disponíveis e nos relatos de
historiadores locais, para além de meu próprio material etnográfico, sobre como a
construção da honra destes trabalhadores - assim como o “gosto”, o “amor” ou a
“paixão” pela mina - não estavam separados de resistências e recusas ao destino de
mineiros de subsolo, ao qual se chegava mais por “necessidade” e por transmissão
familiar do que por escolha. Verifica-se que a constituição de uma dignidade da
profissão esteve permanentemente atravessada por conflitos e enfrentamentos com os
patrões e com as chefias. Melhor dizendo, parece ter sido no interior mesmo destes
conflitos, através de um aprendizado de resistências e de mobilizações, que uma das
formas desta dignidade foi se tecendo. A ambigüidade dos sentimentos nutridos pelos
trabalhadores em relação à mina, mesclando amor e ódio, como notava Joël Michel
(1993) a respeito dos mineiros franceses, atravessa também a maior parte das
manifestações de operários gaúchos, tanto em minha etnografia como nos vestígios
contidos nos documentos, que serão referidos a seguir, e em fontes secundárias.
Neste mergulho ao passado da mineração gaúcha, deparo-me com a escassez e a
dispersão de registros escritos que possam fornecer dados sobre a perspectiva dos
74
trabalhadores.
144
Mesmo assim, obtive pistas valiosas por meio de uma pesquisa em
arquivos abandonados pelo Consórcio Administrativo de Empresas de Mineração
(Cadem) e guardados por uma historiadora local num velho engenho de arroz que
pertencia à sua família, em Butiá.
145
Como estes registros da memória coletiva
encontram-se em estado precário, cobertos por camadas de poeira e servindo de abrigo a
insetos, desafiam a persistência do pesquisador em enfrentar essas condições insalubres
para debruçar-se sobre eles. Centenas de documentos analisados por mim, ainda que
sejam fragmentados e descontínuos, ao revelarem o ponto de vista patronal, fornecem
aspectos preciosos sobre a situação dos trabalhadores nas minas no período
compreendido entre 1920 e 1960, com divulgação ainda inédita.
146
Mais do que
proceder a um exame exaustivo, meu intuito neste trabalho é o de aproveitar elementos
que elucidem minhas hipóteses em torno da construção da honra dos operários das
minas. Os documentos que serviram de base à análise são, em sua maior parte, cópias de
correspondências enviadas e recebidas pelo Cadem – empreendimento privado surgido
em 1936 reunindo as duas companhias que controlavam as minas de Arroio dos Ratos e
de Butiá, e que a partir de 1948 transformou-se na Copelmi, ainda existente. As
correspondências traduzem a relação íntima entre as companhias carboníferas e as
forças policiais, convocadas ao longo de décadas para a vigilância e controle cotidiano
das populações mineiras e para a repressão de suas manifestações.
147
Também consultei
pastas individuais com os nomes dos mineiros relativas à defesa das companhias nos
processos movidos por acidentes e doenças profissionais, além de reclamatórias
144
Podem-se encontrar breves menções nas obras de historiadores locais (ver Pinto Filho et al., 1920;
Simch, 1960; Hoff, 1992; Selbach, 2001; Witkowski & Freitas, 2006, entre outros). Neste grupo,
constitui-se exceção o trabalho de Veit (1993), que reúne relatos biográficos de uma centena de mineiros
que trabalharam no Cadem entre 1930 e 1970. Jover Telles, ex-operário das minas de São Jerônimo
oferece contribuição importante no livro Movimento sindical no Brasil, de 1962. O estudo histórico e
etnolingüístico de Bunse (1984) também fornece pistas consideráveis. Nas pesquisas acadêmicas, a
etnografia conduzida por Eckert (1985), entre mineiros de Charqueadas, empregados da Copelmi (antigo
Cadem), na mesma região carbonífera, é inspiradora e constitui uma referência fundamental. Abordagens
historiográficas e sociológicas sobre mineiros ou sobre o operariado em geral no Rio Grande do Sul (a
exemplo de Marçal, 1986; Petersen, 1995; Fortes, 2001; Silva, 2007; D. Konrad, 2004; G. Konrad, 2006;
Bilhão, 2005) permitem o acesso a uma face coletiva, plural, destes trabalhadores. Os registros do
Correio do Povo e do Diário de Notícias, entre outros, preservaram parte importante da história da
mineração relacionada a episódios de greves e denúncias sobre as condições de trabalho.
145
A historiadora Gertrudes Novak Hoff, a “Dona Truda”, a quem sou grata por me franquear o acesso.
146
Hoff (1992) analisou parte desses documentos para uma abordagem sobre as empresas. Witkowski &
Freitas (2006), interessados na questão sindical, referem algo da documentação, mas sem esmiuçá-la.
Certos aspectos figuram no relato de Jover Telles (1962), por exemplo, acerca das condições de trabalho
no subsolo, do contexto das greves e das alianças das companhias com a polícia, mas parece-me que os
documentos das próprias empresas trazem nova luz sobre estes temas.
147
Alianças desse tipo, entre a direção da fábrica e as forças policiais, já haviam sido referidas por Leite
Lopes (1988), em sua pesquisa sobre a indústria têxtil de Paulista, em Pernambuco.
75
trabalhistas. As pastas relacionadas às doenças profissionais mostram a extensão
alarmante da pneumoconiose e as artimanhas patronais para evitar a indenização.
A recuperação destes elementos visa elucidar valores inscritos nas trajetórias de
gerações posteriores de mineiros com as quais convivi em Minas do Leão e em Butiá. A
abordagem deste capítulo estende-se até o começo dos anos 60, posto que o período
mais recente, que aparece nas memórias de meus interlocutores, é explorado no próximo
capítulo. Minha convicção é que as referências ao passado da profissão são importantes
para que se esboce uma genealogia da constituição da “grande honra” do trabalho nas
minas gaúchas e das modalidades do que estou denominando de “pequena honra”. É
possível vislumbrar como, a exemplo do caso francês tratado no capítulo anterior, a
mobilização realizada pelo governo brasileiro durante a Segunda Guerra Mundial,
apelando para o “patriotismo” dos mineiros com o objetivo de elevar a produção
mineral, depôs sobre os ombros dos trabalhadores uma inédita responsabilidade sobre o
“patrimônio nacional” representado pelas minas. Esta campanha contou com a adesão
das companhias e dos próprios sindicatos que foram erigidos em fiscais dos operários.
Os mineiros responderam ao pedido de “devotamento” com uma dedicação sem
precedentes e, graças a esse esforço, as empresas bateram recordes de produção,
auferindo lucros maiores com a exportação do mineral.
O “elogio do trabalho” presente na face populista-trabalhista do governo
Vargas, ao lado das concessões de benefícios introduzidos pela legislação trabalhista no
período, contribuiu para legitimar o investimento que fariam os mineiros no papel de
“soldados” dos subterrâneos, mobilizados para tempos de guerra. É bom lembrar que,
no Estado Novo, a noção de cidadania tinha passado a ser definida pelo trabalho,
convertido em dever social. Estava em jogo a construção de uma nova moral do
trabalho encadeada com a defesa da pátria e o anticomunismo.
148
De outro lado, uma
noção de “honra do trabalho” e de valorização da classe operária tinha sido incutida
entre os mineiros pelas idéias socialistas e comunistas nas primeiras décadas do século
XX. A quem o “amor ao trabalho” ou “dedicação à Pátria” não fossem argumentos
suficientes, restava a coerção dos decretos que tornavam minas e indústrias estratégicas
em tempos de guerra e previam enquadramentos em crimes de “deserção” para o
operário brasileiro que se evadisse da mina
149
e de “sabotagem”, para o estrangeiro.
148
Sobre estes aspectos, ver G. Konrad, 2006, que baseia sua análise em Adriano Duarte, 1999.
149
Correspondência do Cadem, de 28/10/1944.
76
Os trabalhadores imigrantes, como se verá, aportaram à região desde meados do
século XIX, com sua experiência na mineração de subsolo na Europa consistindo ela
mesma numa espécie de “grande honra” aos olhos do Império brasileiro e,
posteriormente, das companhias carboníferas. No entanto, eles traziam também uma
respeitável experiência em mobilizações operárias apreendida em seus países de origem.
Assim como os ativistas brasileiros das organizações de esquerda, principalmente do
PCB, muitos desses imigrantes, considerados anarquistas e socialistas, ajudariam a
forjar valores de resistência e de auto-estima entre os mineiros, paralelamente à
construção de uma “honra militante”, ambas situadas na contramão do que era visto
como desejável pelas companhias, cujos valores deveriam envolver a disciplina, a
docilidade e a obediência. Evidentemente, esses imigrantes perderam rapidamente, aos
olhos patronais, sua “aura” da grande honra da profissão ao se negarem ao trabalho,
ainda na sua chegada, solidarizando-se com os companheiros em greve, ou quando, já
estabelecidos, participavam da organização dos movimentos. Certos estrangeiros,
especialmente os poloneses, passaram da condição de valorizados por sua experiência a
indesejáveis, ainda que fossem reconhecidos pelas empresas como “trabalhadores”,
competentes e conhecedores dos meandros da profissão. À medida que se fortaleceu o
sentimento de dignidade da categoria, com as vitórias obtidas nos movimentos,
esvaziaram-se as construções em torno de sua suposta abnegação e docilidade. As
imagens que aparecem nos documentos das empresas para justificar a necessidade de
contratação de operários estrangeiros fazem referências ao desinteresse, à preguiça, à
falta de responsabilidade dos trabalhadores locais - do que seriam provas as altas taxas
de absenteísmo e a baixa produção – com menções ainda às violências de que eram
capazes nas paralisações. Em contraponto a isso, o ex-mineiro Jover Telles (1962)
sustentava que, submetidos a condições de trabalho que eram “as piores possíveis”, os
operários das minas ainda obtinham uma produtividade “espantosa”.
2.2 A MINERAÇÃO E O PAPEL DOS ESTRANGEIROS
A indústria carbonífera brasileira desenvolveu-se de forma tardia em relação
ao mercado internacional, especialmente ao europeu. As primeiras descobertas de
carvão de pedra do país ocorreram no Rio Grande do Sul no final do século XVIII, num
local chamado Curral Alto, que pertencia à Estância Leão
150
- hoje área do município de
150
O nome Estância Leão é atribuído ao fato de que teriam existido ali animais ferozes, inclusive leões.
77
Minas do Leão.
151
A descoberta é ora atribuída a um soldado português, ferreiro de
profissão, que teria encontrado carvão em 1792, ora a outro personagem, Joaquim José
da Fonseca Souza Pinto, em 1802.
152
O começo do século XIX foi marcado por
prospecções experimentais em diferentes pontos da bacia carbonífera do Baixo Jacuí,
mas ainda com desconfianças sobre a qualidade do carvão e sua viabilidade
econômica.
153
Em Santa Catarina, que detinha a segunda maior reserva de carvão do
país, depois do Rio Grande do Sul
154
, as primeiras descobertas do mineral ocorreriam
em 1827, em Guatá, município de Lauro Müller, com as explorações iniciais ficando a
cargo de uma empresa inglesa. Nas jazidas gaúchas, muito tempo decorreu entre as
primeiras sondagens e a efetiva exploração. Os diferentes pontos da bacia carbonífera,
onde se formaram as vilas mineiras, foram marcados por vários empreendimentos que
acabaram por resultar, em meados do século XX, numa concentração privada (o Cadem,
depois Copelmi) que passou a disputar mercado com uma empresa estatal (DACM,
depois CRM). Com a multiplicidade de projetos, torna-se difícil uma descrição breve,
mas creio que ela ajudará na elucidação das condições vividas pelos trabalhadores.
Ainda que o local que hoje abriga o atual município de Minas do Leão (RS)
estivesse no epicentro das descobertas, a produção em escala só se desenvolveria ali um
século mais tarde, intensificando-se após o esgotamento das jazidas em Arroio dos
Ratos, o berço da mineração gaúcha. Ao longo de um século, mineiros, técnicos,
especialistas e engenheiros estrangeiros – ingleses, alemães, espanhóis, portugueses,
poloneses, ucranianos, russos, iugoslavos, austríacos, entre outros - tiveram papel
relevante não apenas nas sondagens, mas também na produção em escala. Em 1848, o
governo da então Província de São Pedro decidiu fazer estudos nas minas de Curral
Alto e empregou o mineiro alemão Philip Helm, de São Leopoldo, juntamente com
outros trabalhadores, para as explorações. Neste período, o engenheiro português
Frederico Augusto de Vasconcellos Almeida Cabral foi encarregado de elaborar
desenhos das minas da localidade. Outros estudos sobre o perfil geológico foram
apresentados pelo alemão Hermann Rudolf Wendroth, em 1854, ao presidente da
província, Visconde de Sinimbu
155
. Um ano antes, o presidente havia apresentado um
relatório à Assembléia defendendo a viabilidade da produção carbonífera, especialmente
151
Conduzi a pesquisa em Minas do Leão, com incursões a Butiá, Charqueadas e Arroio dos Ratos.
152
Bunse, 1984, p.18.
153
Simch, 1960, p. 191-194.
154
As reservas brasileiras totalizam 32 bilhões de toneladas de carvão "in situ". Deste total, o estado do
Rio Grande do Sul possui 89,25%, Santa Catarina 10,41%, Paraná 0,32% e São Paulo 0,02%.
155
Bunse, 1984, p.19-20.
78
em Arroio dos Ratos, onde as amostras indicavam uma qualidade superior.
156
Quando o
governo imperial concedeu crédito para a pesquisa de carvão na província, um mineiro
inglês, James Johnson
157
, foi contratado para as sondagens em São Jerônimo. Sua
reputação tinha impressionado o Visconde de Sinimbu, “animado pela presença de um
homem sincero, mineiro prático, que passou toda a sua mocidade em trabalhos de
exploração e lavra do carvão de pedra no País de Galles”.
158
No registro um tanto
romanceado de Simch (1960) - ex-médico das minas e ex-prefeito de São Jerônimo,
autor de monografia sobre a região - o mineiro Johnson
sai da margem do Jacuí, penetra pelo município, viaja, olhando pelas
estradas, os terrenos que se assemelhassem à sua velha Lancashire e North
Wales, na sua pátria, a Inglaterra. Nessas caminhadas seguindo a estrada para
Guaíba e Faxinal – o olho clínico de Mister Johnson vai cair no local em que
em 1826 a 1827 os escravos de Fuão Freitas acharam carvão e assim
redescobriu a mina e ali abriu poço, retirando o combustível fóssil, que levou
ao Presidente Visconde de Sinimbú.
159
Com o apoio do governo, Johnson contratou outros dez mineiros nascidos no
País de Galles que trabalhavam como agricultores na Serra do Erval. O mineral extraído
era transportado em lombo de burros ou em carretas até o povoado de São Jerônimo e,
depois, embarcado para Porto Alegre.
160
Diante das dificuldades de transporte, o
governo passou a considerar a possibilidade de transporte fluvial, nomeando um
polonês de nome Zarowski para conduzir o estudo, mas as águas do arroio não
ofereciam calado necessário. Assim, Johnson passou a fazer sondagens na margem
esquerda do Arroio dos Ratos. Um geólogo americano, Israel C. White, contribuiu com
estudos sobre a extensão da faixa de carvão e novas reservas foram descobertas.
Em 1866, o governo imperial concedeu a James Johnson
161
e a Ignácio José
Ferreira de Moura permissão para lavrar durante 30 anos a mina de Arroio dos Ratos,
então pertencente ao município de São Jerônimo. A exploração foi interrompida no
início de 1870, quando o poço foi inundado por um “olho d’água”. Nesta época,
estavam empregados na mina operários galeses e irlandeses, que haviam se instalado
nas imediações com suas famílias. Em viagem à Inglaterra, James Johnson conseguiu
formar a companhia The Imperial Brazilian Collieries Co. Limited, com um capital de
156
Cf. Simch, 1960, p. 194.
157
As grafias do nome se alternam nas referências entre “James” e “Jame”. Adoto a mais provável.
158
Bunse, 1984, p.20.
159
Simch, 1960, p.195.
160
Simch, 1960; Bunse, 1984.
161
Eckert (1985, p. 141) menciona que, na memória coletiva da região, o pioneirismo de Johnson é
referido como “heroísmo” e “bravura”.
79
100 mil libras esterlinas, recebendo autorização para funcionar em 1872. Um dos
investimentos foi a construção de uma estrada de ferro com trilhos de bitola estreita para
vagonetas puxadas por mulas ligando a mina ao Porto do Carvão, à margem do Rio
Jacuí. Máquinas, pessoal técnico e novos trabalhadores foram trazidos da Inglaterra.
162
Naquele período, uma vila havia se formado com famílias de 115 operários que
trabalhavam na mina em 1873. Mas o gerenciamento enfrentava problemas: a empresa
registrava prejuízos e os salários estavam constantemente em atraso. Um relatório do
inspetor de minas acabou afastando James Johnson da gerência e, segundo os registros,
ele morreu naquele mesmo ano. O engenheiro inglês W. Tweedie ficou encarregado de
continuar os trabalhos. Em 1879, o acervo da “Inglesa”, como era conhecida, foi
comprado pela alemã Holtzweissig & Co., instalada em Porto Alegre, e que recebeu
nova concessão de 30 anos. Nesse período, mineiros alemães foram trazidos para
reiniciar os trabalhos da mina.
163
Mas havia entraves que precisavam ser enfrentados: o
investimento na produção nacional contrariava interesses dos intermediários na
importação do carvão da Inglaterra. Um debate sobre a qualidade do carvão nacional e
sua viabilidade econômica era travado com virulência nas tribunas e na imprensa.
164
Em 1883, foi constituída a Companhia das Minas de Carvão de Pedra do
Arroio dos Ratos (CMCPAR), com capital nacional, que sucedeu a alemã Holtzweissig
& Co.
165
Na ocasião de uma visita da Princesa Isabel e do Conde D’Eu à mina, em
1885, um novo poço foi batizado com o nome da princesa. Depois de baixar às galerias,
a princesa escreveu uma carta aos pais, o imperador Dom Pedro II e a imperatriz Tereza
Cristina, na qual contava sobre a impressão de “opressão” que sentiu no subsolo. Ela
relatava que seus filhos choraram de medo na descida às galerias. Mesmo sentada num
carrinho, ela tinha que abaixar a abaixar a cabeça para passar pelas galerias baixas e
estreitas. Em posição incômoda, em meio à escuridão, perguntava-se se suportaria
aquela situação por mais tempo. Lamentava a “sorte penosíssima dos mineiros”,
obrigados a trabalhar naquelas “profundezas apertadas”. A comemoração da visita com
champagne dentro da mina fazia um vivo contraste entre os hábitos da realeza e a vida
sacrificada daqueles operários.
166
Mais de um século depois, conforme Alves (s/d), um
dos orgulhos da elite local de Arroio dos Ratos ainda consistia em exibir uma fotografia
162
Bunse, 1984, p.23.
163
Bunse, 1984, p.24-25.
164
Simch dá o tom do debate: “O carvão nacional, particularmente o de São Jerônimo, sofreu impertinente
e tenaz campanha de difamação, de depreciação. (...)” Ver Simch, 1960, p. 196.
165
Pinto Filho et al., 1920, p.48.
166
A carta faz parte do acervo do Museu do Carvão de Arroio dos Ratos.
80
da visita da princesa à mina, espécie de reconhecimento simbólico que colocou a
modesta vila mineira no mapa das honrarias imperiais.
A direção dessa mina foi assumida, em 1888, pelo engenheiro Eugenio Dahne,
natural do País de Galles, formado pela Escola Superior de Mineração de Clausthal, na
Alemanha. No ano seguinte, a empresa foi reorganizada como Companhia da Estrada de
Ferro e Minas de São Jerônimo (CEFMSJ), com sede no Rio de Janeiro. Em 1893,
existiam em Arroio dos Ratos os poços 5 (Poço Velho), 9 (Surpresa), 6 (Presidente), 7
(Dona Isabel) e o poço de ventilação 8 (Caridade), sendo aberto naquele ano o poço 10
(Fé).
167
No final do século, a vila mineira de Arroio dos Ratos contava com mil
moradores ocupando 200 casas, quase todas de pau-a-pique e cobertas de sapé, e com
algumas cobertas com telhas. Cerca de 50 casas eram alugadas pela companhia aos
mineiros. Havia ainda um hotel, oito estabelecimentos de comércio e uma fábrica de
cervejas que estava parada.
168
Vinte anos depois, a mina de Arroio dos Ratos foi
arrendada a Buarque de Macedo e outros associados, com a direção do engenheiro
Horta Barbosa. O contingente de trabalhadores foi reforçado por um grupo de mineiros
espanhóis que chegou com suas famílias.
169
Entre 1920 e 1923, ingressariam na região
levas de portugueses, alemães, poloneses, húngaros, suíços, austríacos, russos e
ucranianos. O contato dos operários locais com os estrangeiros resultou no aprendizado
de diferentes técnicas extrativas, de novos hábitos e idéias políticas.
170
Buarque de Macedo seria também o organizador da exploração em Butiá -
outra vila mineira na época pertencente ao município de São Jerônimo - com a
Companhia Carbonífera Rio-Grandense (CCRG). Quando a nova companhia já havia
iniciado os trabalhos, a explosão de uma caldeira em 1918 no poço 1, o Borges de
Medeiros, de 52 metros de profundidade, causou uma morte e danos materiais.
171
Neste
período, segundo um historiador local, havia em Butiá “uma bela vila operária com um
higiênico tipo de casas, cobertas de telha francesa, [com] um armazém para a
cooperativa dos operários”.
172
Pouco tempo depois, a CCRG registrava uma evasão de
trabalhadores para as minas de São Jerônimo e para a Companhia Minas de Carvão do
167
Bunse, 1984, p.27.
168
Bunse, 1984, p.28.
169
Bunse, 1984, p. 28. Pinto Filho et al. (1920, p. 63) menciona que famílias italianas e alemãs que
haviam se instalado desde 1889 na Colônia Barão do Triunfo trabalhavam na agricultura.
170
Hoff, 1992, p.94.
171
Pinto Filho et al., 1920, p.51. Segundo o autor, o acidente teria sido causado “por um acesso de loucura
do maquinista”.
172
Pinto Filho et al. 1920, p.51.
81
Jacuí (CMCJ), que extraía carvão na Estância Leão.
173
Uma correspondência do
engenheiro-chefe ao superintendente da companhia, em fevereiro de 1920, indicava
dificuldades em manter as operações: “Os nossos serviços sofreram uma verdadeira
perturbação, e, continuando a sair gente como nesses três dias, ficaremos paralisados”,
escreveu o engenheiro. Ele mencionava a desistência de mineiros, de “peões de
mineiros” e de pessoal de superfície. Um grupo de mineiros poloneses - os “polacos”,
como eram chamados - havia abandonado a mina para trabalhar na agricultura. Os
operários justificaram que os preços da cooperativa eram muito altos e que os salários
não eram pagos. “Sobre o pagamento, alegam muitos que precisam mandar o dinheiro
para as famílias e não podem fazê-lo porque os pagamentos estão atrasados”,
mencionava a carta, considerando em parte justificada a “desconfiança”.
Como vê, a situação é séria e precisa ser normalizada com urgência, e para
isso precisa ser regularizada a situação da cooperativa e efetuado o
pagamento de dezembro (...). Precisamos regularizar os serviços da caixa,
não sendo justo que se desconte em folha dos operários as quotas, e eles
não tenham nem médico nem farmácia. Estou muito penalizado, porque já
tenho despendido muito esforço (...).
Assim, uma reação dos operários à constante falta de pagamentos e à extorsão da
cooperativa era o seu deslocamento não apenas para outras minas, nas quais esperavam
encontrar melhores condições de trabalho, mas também para a agricultura, como fez
esse grupo de poloneses. Tendo de enviar dinheiro às famílias no país de origem, a
situação dos estrangeiros tornava-se bastante delicada com os atrasos salariais.
Um impulso à produção brasileira de carvão foi dado pela Primeira Guerra
Mundial, que demonstrava a importância do carvão nacional diante da falta do produto
estrangeiro. Em 1904, o governo federal tinha criado a Comissão Nacional do Carvão
com o objetivo de avaliar a potencialidade das jazidas no sul do país. Naquele ano, o
ministro da Indústria nomeou o geólogo americano já referido, Israel C. White, como
chefe da comissão.
174
Durante a guerra, foram inauguradas novas companhias de
mineração e ampliados os ramais ferroviários. A crise internacional fez com que fossem
postas de lado desconfianças em torno da suposta má qualidade do carvão produzido no
país. Depois, o interesse se voltava novamente ao carvão estrangeiro.
Com a crise de 1929, entretanto, o carvão brasileiro voltou a ser foco de atenção
da política econômica nacional. O presidente Getúlio Vargas assinou, em 1931, uma lei
173
Correspondência interna da Companhia Carbonífera Rio-Grandense, 20/02/1920.
174
Os resultados de seus estudos foram reportados no "Relatório Final - Comissão de Estudos das Minas
de Carvão de Pedra do Brazil - 1908".
82
determinando um consumo mínimo de 10% do carvão nacional, junto com o produto
estrangeiro. Em 1936, Vargas dava novo incentivo à produção, elevando de 10% a 20%
a cota de aquisição de carvão nacional sobre as importações de carvão estrangeiro.
175
Isso fez com que a indústria carbonífera brasileira chegasse às vésperas da Segunda
Guerra Mundial em condições mais vantajosas. Com a medida, o presidente contribuía
para popularizar o bordão dos defensores do carvão gaúcho, segundo o qual “carvão
ruim é aquele que não existe e que não temos”.
176
Durante a Segunda Guerra Mundial, a
produção das minas gaúchas atingia 1,34 milhão de toneladas por ano, havendo
exportação para o centro e o norte do país, para a Argentina e o Uruguai.
177
Ainda no começo da década de 30, importantes mudanças tinham ocorrido nas
empresas do setor. Em 1932, o grupo Martinelli adquiria as instalações da mina de
Butiá, ficando constituída a Companhia Carbonífera Minas do Butiá (CCMB), dirigida
por Roberto Cardoso, nome que ficaria conhecido na mineração local. Nesta época, foi
construído um novo poço na mina de Butiá, em plano inclinado, o primeiro do gênero
no país, batizado de Farroupilha, conhecido depois como “Esqueleto”.
178
Um
acontecimento decisivo foi a constituição do Consórcio Administrativo de Empresas de
Mineração (Cadem), em 1936, com a fusão da Companhia Estrada de Ferro e Minas de
São Jerônimo (CEFMSJ), que operava em Arroio dos Ratos, e da Companhia
Carbonífera Rio-Grandense (CCRG), de Butiá. O Consórcio era inicialmente composto
por quatro sócios: Betim Paes Leme e Otávio Reis pela CEFMSJ e Roberto Cardoso e o
Comendador Martinelli pela CCRG.
179
Em 1941, a Companhia Carbonífera Minas de
Butiá (CCMB) incorporaria a Companhia Carbonífera Rio-Grandense (CCRG). Em
janeiro de 1948, o Cadem constituía a Companhia de Pesquisa e Lavras Minerais
(Copelmi). Em 1964, quando incorporou a Estradas de Ferro e Minas de São Jerônimo e
a CCMB, a Copelmi já era a maior mineradora privada de carvão do país.
Até 1951 a direção do Cadem e, na seqüência, da Copelmi, foi ocupada pelo
“Doutor” Roberto Cardoso, que se tornou uma figura emblemática na região tanto por
seus investimentos paternalistas nos setores da saúde, educação, lazer, esporte e
religião, como por seus abusos de poder. Os historiadores locais se referem a ele como
um personagem “dinâmico” e “benemérito”, empreendedor “incansável”. Nos relatos de
175
Decreto n.º 1828, de 21/06/1936.
176
Citado por Cônsul et al., 2006, p.9.
177
Correspondências do Cadem de abril e de junho de 1940 davam conta de que as exportações à
Argentina já estavam em curso nesta época.
178
Hoff, 1992, p.35.
179
Simch, 1960, p. 211.
83
sindicalistas e de militantes de esquerda, entretanto, a menção de seu nome é cercada de
revolta pelas condições a que eram submetidos os operários nas minas. Como em outros
exemplos de dominação paternalista na história das indústrias brasileiras,
180
Roberto
Cardoso conjugava em seu estilo de comando uma forte autoridade sobre os
trabalhadores e uma face pública simpática, visível nas obras sociais e ações
beneficentes, desenvolvidas também pela mulher, Isá Cardoso. Nas visitas que fazia a
Butiá, o diretor costumava presentear os filhos de mineiros com brinquedos, roupas,
dinheiro e doces.
181
O ritual das doações acontecia na casa do “Doutor” Roberto, numa
ocasião escolhida por ele, quando as crianças posavam para uma fotografia ao lado do
benfeitor. Ele acabou por instituir o “Natal do filho de mineiro”. Se esses eventos
serviam para divulgar uma imagem “humanitária” das companhias, especialmente de
seu diretor, também ajudavam a mascarar a dura situação vivida pelos mineiros.
Em 1936, uma tragédia havia abalado a mina de Arroio dos Ratos, quando uma
enchente no Rio Jacuí inundou um dos poços, causando a morte de quatro
trabalhadores.
182
A mina ficou parada durante um ano. Neste período, foi constituída
uma Comissão Pró-Flagelados para arrecadar doações para as famílias de mineiros.
183
Parte do material e dos trabalhadores foi transferida para Butiá. Nos anos 1950, com o
esgotamento das reservas de Arroio dos Ratos, uma parcela dos operários seria
aproveitada na implantação da nova mina de Charqueadas.
184
É preciso considerar que, depois de finda a exploração em Arroio dos Ratos,
haveria ainda o auge das atividades em Butiá, Charqueadas e Minas do Leão. Uma
primeira fase de declínio da produção carbonífera ocorreu nos anos 1950, com o
aumento da importação de óleo combustível. Algumas pistas para que se compreendam
os meandros das decisões econômicas aparecem em discurso feito em maio de 1953
pelo deputado Cândido Norberto, do Partido Socialista Brasileiro, dirigindo-se aos
mineiros na Assembléia Legislativa do Estado.
185
Ele denunciava que as máquinas nas
minas de carvão de Leão estavam sendo acionadas a óleo. Apontava que um
Estado que permite o uso de óleo em usinas de uma mina de carvão é um
Estado suspeito, é um Estado que [tem] no seu Ministério, como ministro de
suas relações exteriores, um cidadão que não é nem mais nem menos do que
sócio da Standart Oil, que vive do lucro do óleo (...)!
180
Um exemplo está em Leite Lopes (1988), com a figura do “Coronel Frederico”.
181
Hoff, 1992, p.120.
182
Hoff, 1992, p.21.
183
Correspondência interna do Cadem, de 16/11/1936.
184
Bunse, 1984, p.29.
185
Posteriormente publicado como livreto. Ver Norberto (1953).
84
O deputado se referia a João Neves da Fontoura, que acumulava a função de
ministro com a presidência da Ultragaz, subsidiária da Sonony, que, por sua vez, era
associada à Standart Oil. A Sonony usava as iniciais da companhia americana – “S”, de
Standart, “O”, de Oil, “C”, de Company, “O”, de of, “N” de New e “Y”, de York. Essas
informações, segundo o parlamentar, ajudariam os mineiros a entenderem “as razões
pelas quais vivem há muito tempo nesta situação de miséria”.
186
Na época, os operários
das minas sofriam as conseqüências de um recuo nas atividades. Com a crise
internacional do petróleo na década de 1970, o carvão ainda voltaria a ganhar novo
impulso. Neste período, o governo federal criou o Programa de Mobilização Energética
(PME) para conhecer em maior profundidade as reservas e incentivar o seu uso. A
decadência que culminou com o fechamento total das minas de subsolo no Estado viria
nos anos 1990, com a emergência de outras fontes energéticas, tais como o gás natural.
186
Noberto, 1953, p.5.
O ocaso de Arroio dos Ratos
A velha Arroio dos Ratos que, após o fim da exploração carbonífera, tornou-
se uma cidade de aposentados, de mutilados e de doentes da mina, guarda parte das
suas memórias no Museu do Carvão. Na paisagem urbana, estão alguns símbolos da
atividade, como o pórtico montado com vagonetes usados no subsolo e a estátua do
mineiro, inaugurada em 1974, simbólicas referências aos “heróis” anônimos. Estive
na cidade algumas vezes para visitar o museu e fiquei impressionada com a
expressão de desalento no olhar dos habitantes. Sílvia Inês Alves, filha de ex-
mineiro, traduz esta atmosfera num trecho do conto A cidade, ainda inédito:
Desolada. A palavra que melhor traduz aquela cidade é desolada. A
estátua de bronze do antigo mineiro é a representação mais exata daquele
mundo. Diferentemente de outros lugares em que bustos, estátuas e placas
comemorativas estão localizadas em praças e parques; aquela estátua
opaca e escura, em tamanho natural, de um mineiro com um lampião e
uma cesta, está condenada ao isolamento total em cima de um minúsculo
círculo de concreto, bem no meio da rua, como se fosse apenas um
marcador de manobras. Pesaroso, o mineiro olha na direção do cemitério.
A descrição acima constitui uma boa metáfora para o fim das minas
subterrâneas e da profissão de mineiro de subsolo. Em novembro de 2009, uma
notícia de jornal chamou minha atenção (ZH, 13/11/2009, p. 44). A estátua do
mineiro tinha sido derrubada por um grupo de adolescentes e, consertada pela
prefeitura, estava sendo devolvida ao local. O ato de vandalismo era sugestivo sobre
o desrespeito àquele símbolo. Mas a desonra era ainda agravada por um detalhe: os
adolescentes, que haviam saído de um baile, tentaram simular uma relação sexual
com o monumento, que acabou tendo as pernas partidas e caiu ao chão. Estranha
ironia para um universo no qual a virilidade sempre foi um dos seus valores centrais.
85
2.2.1 A exploração de carvão em Leão
No local em que foi descoberto carvão pela primeira vez no país, a Estância
Leão, hoje município de Minas do Leão, as explorações começaram em 1915, quando
os proprietários da área forneceram poderes a um parente, Ricardo de Souza Porto, para
realizar estudos e sondagens. Ele contratou Horta Barbosa, engenheiro com experiência
em Arroio dos Ratos, para realizar a mineração a céu-aberto na localidade. Em 1916, foi
constituída a Companhia Carbonífera do Jacuí (CCJ), dirigida por Horta Barbosa e por
Buarque de Macedo. Um ano depois, a empresa foi reorganizada como Companhia
Minas de Carvão do Jacuí (CMCJ), com a participação do governo federal. Um poço
com 145 metros de profundidade, o Wenceslau Brás, foi construído em 1918, contando
com equipamentos importados dos Estados Unidos.
187
Pouco tempo depois, a decisão do governo federal de se retirar do projeto
deixaria em situação precária a companhia. A medida teria também um forte impacto
sobre o destino da incipiente vila local que, em 1920, contava com uma população de
1.200 pessoas e cerca de 300 casas.
188
Em 1928, equipamentos instalados na mina
foram transferidos para Butiá, inclusive os trilhos da via férrea. Foi um grande revés no
primeiro povoado formado em torno da mina de Leão. Com a rescisão do contrato de
arrendamento, dois anos depois, a Companhia Carbonífera Rio-Grandense (CCRG)
acabou por retirar todas as máquinas da localidade: a maior parte dos trabalhadores foi
transferida para Butiá e a vila mineira desapareceu.
189
Com a demolição das casas,
restou na localidade uma imagem agreste: cresciam cactos e unhas-de-gato em meio a
montes de resíduos e cinzas.
190
Em 1939, estava de pé apenas a torre do poço
Wenceslau Braz, fazendo ver aos visitantes que ali existira uma mina de carvão.
O ressurgimento da vila mineira do Leão começaria em 1942, com a
constituição da Companhia Nacional de Mineração e Força (CNMF), que tinha à frente
o engenheiro Horta Barbosa. Pouco tempo depois, com a morte do engenheiro, houve
nova interrupção da atividade. A solução para a produção local veio então pela medida
do governo do Estado de criação do Departamento Autônomo de Carvão Mineral
(DACM), em decreto assinado em 07 de julho de 1947, incorporando as minas a céu-
187
Bunse, 1984, p.33; Neves e Chaves, 2000, p.118.
188
Pinto Filho et al., 1920, p.54.
189
Há discordâncias entre os historiadores locais sobre o número de casas da vila nesta época. Pinto Filho
et al. (1920) menciona 300 casas, Simch (1960) refere a existência de 400.
190
Simch, 1960, p.216.
86
aberto de Hulha Negra, do município de Bagé, e a mina do Leão, adquirida da
Companhia Nacional de Mineração e Força, que tinha sede em São Paulo.
Nas entrevistas realizadas durante o trabalho de campo, ouvi referências a três
outras antigas minas de subsolo na localidade, hoje desativadas: a Mina do Recreio, a
São Vicente e a da Coréia. A Mina do Recreio foi montada por Ricardo Porto, um dos
primeiros exploradores do mineral na região, após a falência da Companhia Carbonífera
do Jacuí. Essa exploração surgiu em meados da década de 20, à margem da Sanga da
Taquara. A antiga mina de São Vicente era localizada nas terras do Curral Alto, onde
pela primeira vez foi descoberto carvão de pedra. Em 1937, o contabilista Álvaro
Alencastro, conhecido como “Doutor” Alencastro, obteve a concessão para pesquisa e
lavra do minério. A mina de São Vicente aparece, às vezes, nos relatos como a “Mina
do Alencastro”, por referência ao nome do detentor da concessão. Antigos mineiros me
explicaram que depois da morte do proprietário, Álvaro Teixeira de Alencastro, um dos
filhos assumiu a direção da empresa e o nome mudou de São Vicente para Carbonífera
Alencastro. Outra antiga exploração de carvão é a Mina da Coréia, uma área de
exploração utilizada pelo Cadem, na década de 50, no lado norte da sanga Taquara. A
mina recebeu este nome porque entrou em operação no período em que ocorria a Guerra
da Coréia. “Como o serviço era muito ruim, foi apelidada de ‘Coréia’, existindo até hoje
a Vila e Bairro Coréia”, conta o ex-mineiro José Selbach em seu livro, Leão Mineiro.
191
A mineração de subsolo na Mina de Leão I ou Poço Um (P1), como é chamada
pelos trabalhadores, foi iniciada pelo DACM em 1963, quando foi realizada a abertura
do poço de 123 metros de profundidade. Dois anos antes, o Departamento tinha iniciado
os trabalhos de lavra a céu-aberto na Mina de Candiota, a 400 quilômetros de Porto
Alegre, na fronteira Oeste do Estado, para atender à usina termoelétrica de Candiota.
192
A mina de Leão I sustentou durante muito tempo as operações de mineração em
Candiota, processo que se inverteu em anos recentes, quando a mina de subsolo de Leão
tornou-se deficitária e a de céu-aberto de Candiota passou a ser considerada a “terra de
ouro” do carvão, porque o mineral naquela jazida é abundante e os custos de extração
são mais baixos do que os do subsolo. Em outubro de 1969, o DACM transformou-se na
Companhia Riograndense de Mineração (CRM), sociedade de companhia mista
vinculada à Secretaria de Energia, Minas e Comunicações do Estado. A maior parte de
191
Selbach, 2001, p. 46-47.
192
Atualmente controlada pela Companhia de Geração Térmica de Energia Elétrica (CGTEE).
87
meus interlocutores em Minas do Leão e Butiá havia trabalhado na CRM e, antes disso,
no DACM. Alguns outros informantes eram vinculados ao Cadem e à Copelmi.
Mecanizada em 1983, a mina do Leão I viveu sua fase áurea entre 1978 e 1994,
quando chegou a empregar 1.500 funcionários. Nos últimos tempos, antes da
desativação, a mineração subterrânea era feita pelo método de câmaras e pilares. Nos
anos 1990, a operação de subsolo já enfrentava dificuldades. Em 1997, com uma
produção de apenas 6,5 mil toneladas de carvão mensais, que alimentavam a usina
termelétrica de São Jerônimo, mantinha 168 funcionários. Deficitária, contando com
somente 52 funcionários na ativa, esta mina foi fechada em fevereiro de 2002. Parte dos
trabalhadores retornou a funções que exercia anteriormente na superfície. O carvão para
produção de energia na usina de São Jerônimo passou a ser fornecido por uma mina a
céu aberto colocada em operação. Em 2006, durante meu trabalho de campo, a CRM
mantinha 73 funcionários na licalidade. Destes, sete eram aprendizes do Senai. Na
operação, atuavam 66 trabalhadores, nas áreas de beneficiamento, extração de carvão a
céu aberto, parte administrativa, manutenção elétrica e mecânica e vigilância.
Em Minas do Leão, há ainda uma exploração subterrânea inacabada – a mina
de Leão II, pertencente à CRM. Na década de 1980, foram investidos US$ 70 milhões
na abertura de oito quilômetros de túneis e galerias. Dois silos subterrâneos foram
instalados e, na superfície, um prédio com 10 mil metros quadrados de área construída,
que seria destinado a almoxarifado, oficinas de manutenção, entre outros serviços.
Paralisada desde 1984, a mina projetada por ingleses só recebia manutenção nos 8,5
quilômetros de galerias escavadas a 180 metros de profundidade. Em 2002, a CRM
arrendou a mina à Carbonífera Criciúma, que assumiu a responsabilidade de concluir as
obras, mediante um contrato de risco, no qual condiciona a continuidade do trabalho à
garantia de um mercado para o carvão. Este mercado é representado pela usina
termelétrica de Jacuí I, em Charqueadas. Nas últimas décadas, muitos anúncios foram
feitos sobre a retomada das obras da mina e da usina, mas poucos moradores ainda
acreditam que a mina de Leão II entre em operação. Alguns novos empregos foram
gerados por empresas terceirizadas que realizam trabalhos de preparação das galerias, os
quais atraíram filhos de antigos mineiros da CRM e da Copelmi.
2.3 DA DOCILIDADE À REBELIÃO
Numa obra publicada em 1920 sobre a bacia carbonífera de São Jerônimo,
destacando suas riquezas - tais como a espessura de quase três metros do veio do
88
carvão, sem o perigo do grisu, o gás mortal das minas européias -, os autores louvavam
o fato de ser uma região “onde o operário ainda é meigo, dócil, trabalhador”.
193
Tratava-
se de um protótipo de mineiro que estaria bem ao gosto dos empreendimentos patronais.
Se tomássemos a informação ao pé da letra desconheceríamos que, desde o final do
século XIX, a revolta e a insatisfação dos trabalhadores diante das condições a que eram
submetidos nas minas afloravam em manifestações ruidosas.
A primeira greve de mineiros de que se tem registro no Estado data de 1895,
seis anos depois da constituição da Companhia da Estrada de Ferro e Minas de São
Jerônimo (CEFMSJ), que antecederia o Cadem. Na ocasião, os trabalhadores da mina
de Arroio dos Ratos pararam suas atividades por 15 dias. Um Relatório apresentado
pela companhia à Assembléia Geral dos Acionistas fazia referência a 20 operários
imigrantes, contratados das colônias Jaquary e Lucena, considerados como
“trabalhadores, porém socialistas, querendo ganhar muito em pouco tempo, sempre
descontentes”.
194
Em 1º de maio, os operários tinham apresentado “novas imposições”,
organizando passeatas, com “bandeiras encarnadas” e manifestações “anarquistas”. No
começo de junho, mobilizaram todos os mineiros “nacionais”, maquinistas e foguistas
da locomotiva, ferreiros, carpinteiros das oficinas, “outros empregados nacionais e
muitos estrangeiros até velhos e meninos, de 13 anos, e tomados os cavalos, mulas e
carroças da companhia, ficando aqueles mineiros sós em campo”. Assim foi deflagrada
a greve, reivindicando um aumento de 25% sobre os preços e ordenados.
O Relatório afirmava que a diretoria vinha atendendo aos pedidos de aumento
de salário desde que fosse feito “em termos pacíficos e fundamentado”, mas
considerava estar, naquela situação, “à mercê de desordeiros”. Uma preocupação era
que esse episódio pudesse abrir um precedente que poderia ser aproveitado pelos
mineiros que voltassem da guerra. Para controlar o movimento e retomar operações, a
empresa pagou os salários e demitiu os trabalhadores mais “bulhentos”, os líderes do
movimento. Essa prática de dispensa de ativistas se manteria durante muito tempo nas
companhias locais, mesmo com a introdução da estabilidade sindical. O Relatório
mencionava que a lição tirada do episódio tinha sido que os “mineiros colonos, em
regra, são socialistas repelidos das minas, porque mineiro... somente se expatria
193
Pinto Filho et al., 1920, p. 78.
194
Relatório de 1895 da diretoria da Cia Estrada de Ferro e Minas de São Jerônimo à Assembléia de
Acionistas, citado por Bunse, 1984, p.28.
89
espontaneamente atraído por vantagens superiores às que aufere em seu país natal”.
195
“Mineiros colonos” é a expressão usada para designar os imigrantes, em geral mineiros
em seus países de origem. Parte deles vivia nas “colônias” de estrangeiros. Como
tinham uma experiência em mineração maior que a dos operários “nacionais”, esses
estrangeiros eram reconhecidos pelos patrões como “trabalhadores”, mas traziam
também certo clamor por dignidade e uma razoável experiência em mobilizações.
Como ocorreu em outros segmentos, muitos desses mineiros vindos da Europa
partilhavam, de fato, de idéias socialistas e, em alguns casos, anarquistas (especialmente
entre os italianos), no final do século XIX. Através deste contingente de imigrantes, o
movimento operário gaúcho mantinha vínculos com as organizações de trabalhadores na
Europa, incorporando em certa medida o ideário socialista da época.
196
Nas primeiras
décadas do século XX, a bandeira do internacionalismo proletário reforçava o
sentimento, ao menos entre uma elite de mineiros, de pertencer a uma mesma categoria
em todo o mundo. Estes ideais ajudaram construir uma noção de dignidade e de orgulho
do trabalhador das minas, que interiorizava uma honra ligada à condição operária. A
convivência com militantes socialistas e comunistas ajudou ainda a introduzir o valor
atribuído ao trabalho manual e certas noções de disciplina e pressupostos morais que, no
entanto, contrastavam nos objetivos com aqueles impostos pelos patrões. Na primeira
metade do século 20, os mineiros de carvão protagonizaram greves virulentas. Eles
evidenciavam assim a sua resistência ao ofício penoso e perigoso exercido nos
subterrâneos. Nessas manifestações, organizavam piquetes para evitar o acesso às minas
dos fura-greves e impedir que a empresa lançasse mão de novas contratações. Eram
freqüentes os confrontos com a polícia, convocada pelas companhias.
A intimidade das companhias carboníferas com as forças policiais vinha de
longa data. Em setembro de 1919, uma correspondência da Intendência Municipal de
São Jerônimo à Companhia Carbonífera Rio-Grandense (CCRG) fazia referências aos
soldados da Força Policial do município que ficariam à disposição da empresa, com as
despesas correndo por conta da mesma. Algum tempo depois, em fevereiro de 1921, a
Intendência e essa companhia assinavam um convênio para regularizar a seção policial
no quadro das minas de Butiá. No acordo de oito cláusulas, quatro delas revelavam as
relações instituídas. A primeira estabelecia que o policiamento das minas ficava
195
Relatório de 1895 da diretoria da Cia Estrada de Ferro e Minas de São Jerônimo à Assembléia de
Acionistas, citado por Bunse, 1984, p.28.
196
Petersen, 2001, p.134, 172.
90
subordinado à direção, fiscalização e determinação geral do intendente, mas prestando
“imediata e direta obediência” ao superintendente da companhia. O superintendente da
mina deveria dar ao chefe da seção policial as instruções que julgasse convenientes
“para o bom e eficaz policiamento”. Todas as despesas, exceto a do armamento, seriam
pagas pela companhia, inclusive os salários da força policial. E cabia à empresa
carbonífera fornecer casa para o posto policial e residência para os soldados. Na mesma
época, um ofício ao Intendente Municipal de São Jerônimo enviado pela Companhia
Carbonífera das Minas de Butiá (CCMB), destacava que a “população proletária” havia
se tornado numerosa e que embora, no geral, fosse composta de “elementos ordeiros”,
era necessária a criação, no quadro da mina, de uma seção policial da Força
Municipal.
197
Essa relação seria reproduzida em outras vilas mineiras, cabendo à polícia
o disciplinamento moral e a manutenção da “ordem” nestas localidades.
As próprias empresas submetiam os trabalhadores a um rígido controle, que
buscava desestimular quaisquer ações de protesto. A partir do “Regulamento para os
operários”, elaborado em 1925 pela Companhia Estrada de Ferro e Minas de São
Jerônimo (CEFMSJ) – empresa que antecede o Cadem -, pode-se ter uma idéia precisa
do funcionamento destas normas. A pena de exclusão do serviço sem aviso prévio, por
exemplo, era adotada em cinco situações, além das que poderiam ser apontadas
livremente pelo engenheiro: a) quando o operário se ausentasse do serviço por mais de
três dias seguidos sem um motivo justificável; b) quando qualquer operário ou
empregado provocasse rixas e discussões ou delas tomasse parte voluntariamente, nas
dependências da empresa; c) quando faltasse com seus deveres de moralidade,
probidade ou disciplina; d) quando aliciasse os demais, sob ameaças ou por qualquer
meio, para que estes não comparecessem ao trabalho; e) quando, por imprudência ou
por dolo, comprometesse a segurança do pessoal ou de qualquer departamento do
estabelecimento. Por esses pontos, nota-se que a preocupação patronal estava calcada,
sobretudo, em evitar as greves, explicitando-se o combate ao absenteísmo, aos conflitos
entre trabalhadores e/ou com a hierarquia, em nome da moralidade e disciplina. O
regulamento também transferia aos operários a responsabilidade pelos acidentes.
Apesar das fortes pressões patronais, nas décadas de 30 e de 40 ocorreram
importantes movimentos dos trabalhadores nas minas gaúchas. G. Konrad (2006)
197
Ofício das Minas de Butiá ao Intendente municipal de São Jerônimo, em 17/02/1921. Uma
correspondência, de 28/07/1937, enviada ao Cadem pelo comandante do destacamento da Brigada Militar
em São Jerônimo solicitava dados sobre subvenções enviadas pelas minas para o policiamento local.
91
assinala que a tradição de greves e as reivindicações dos mineiros de São Jerônimo,
envolvendo as minas de Arroio dos Ratos e de Butiá, havia se mantido tanto no período
de 1930-1934, durante o governo provisório, como no período 1934-1937, no governo
constitucional.
198
Uma dessas mobilizações ocorreu no final de janeiro de 1933,
199
nas
minas de Butiá, então pertencentes ao município de São Jerônimo. Na ocasião, cerca de
400 operários da Companhia Carbonífera Rio-Grandense (CCRG) deflagraram greve
em protesto contra a falta de pagamento dos salários e aos preços abusivos praticados
pela cooperativa na qual se abasteciam de gêneros alimentícios. O movimento, que teve
a intermediação do Inspetor Regional do Trabalho, Ernani de Oliveira, obteve uma
redução no preço dos alimentos e aumentos nas diárias para os tocadores de carro.
200
Uma reclamação dos trabalhadores era a utilização de vales para o pagamento, de forma
que os produtos só podiam ser adquiridos através do “barracão”, como era chamada a
cooperativa ligada à companhia. Naquele período, em 1º de janeiro de 1933, havia sido
fundado o Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Extração de Carvão do
Município de São Jerônimo, referido mais comumente como o Sindicato dos Mineiros,
inicialmente com sede na Vila de Arroio dos Ratos.
201
Criado nesta época, o sindicato dos mineiros só foi reconhecido pelo Ministério
do Trabalho em 1941, já com a elaboração dos estatutos baseados nos decretos-leis
nº.1402, de 5 de julho de 1939, 2353, de 29 de julho de 1940, e 2381, de 9 de julho de
1940, que expressavam o espírito do Estado Novo, estimulando o corporativismo e
mantendo o funcionamento das entidades de classe sob rédeas curtas. Conforme
Rodrigues (1990), em relação à Constituição de 1934, esta nova regulamentação
“tornava mais rígido o controle exercido pelo Ministério do Trabalho sobre os
sindicatos”.
202
Isso era claro no estatuto da entidade representativa dos mineiros, que
previa a colaboração com os poderes públicos no desenvolvimento da “solidariedade
das classes”. Cabia ao sindicato a fundação de cooperativas de consumo e de crédito e a
criação e manutenção de escolas de aprendizagem. Era condição para o funcionamento
198
G. Konrad, 2006, p. 138.
199
Machado, 1983, apud. Witkowski & Freitas (2006).
200
D. Konrad, 2004, p.260.
201
Estatuto do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Extração de Carvão do Município de São
Jerônimo, 1941, p.5.
202
É bem conhecida uma das inspirações da organização sindical brasileira, a partir da influência da Carta
del Lavoro do fascismo italiano; mas também participaram da sua elaboração concepções anarquistas,
socialistas ou sindicalistas de intelectuais brasileiros. Entre estes, Rodrigues (1990) menciona Joaquim
Pimenta e Evaristo de Moraes, que tinham participado do grupo Clarté, espécie de “internacional do
pensamento”, formada em 1919 por intelectuais franceses. Ver Rodrigues, 1990, p. 48-51.
92
da entidade a “observância rigorosa da lei e dos princípios de moral e compreensão dos
deveres cívicos”. O sindicato deveria abster-se de propaganda “não somente de
doutrinas incompatíveis com as instituições e os interesses nacionais, mas também de
candidaturas a cargos eletivos estranhos à entidade”; e não poderia participar de
organizações internacionais. O estatuto previa que não poderiam se candidatar aos
cargos administrativos ou de representação profissional os que professassem “ideologias
incompatíveis com as instituições ou com os interesses da nação”. Estabelecia que os
cargos de diretoria e do conselho fiscal, assim como os de representação profissional, só
poderiam ser ocupados por brasileiros, e o de presidente, apenas por brasileiro nato.
Para realização de uma assembléia geral extraordinária era preciso a autorização prévia
da DRT ou repartição autorizada pelo governo. Anualmente, o presidente da entidade
deveria repassar um relatório das ocorrências à DRT. Foi neste rígido controle por parte
do Estado que a entidade dos trabalhadores das minas passou a funcionar.
Na década de 30, sem que houvesse o reconhecimento legal da entidade,
prosseguiriam as mobilizações dos trabalhadores. Em agosto de 1933, uma nova
manifestação era realizada por operários da mina do Recreio, na localidade de Butiá,
devido a atrasos nos salários e a problemas no fornecimento da cooperativa.
203
Em
janeiro de 1935, uma comissão de 20 operários demitidos das minas de Butiá foi à sede
da Inspetoria Regional do Trabalho reclamar das arbitrariedades. Uma Junta de
Conciliação e Julgamento deveria emitir sentença sobre o caso. No entanto, nesta época,
as Juntas geralmente reconheciam o direito de a empresa demitir.
204
A decisão da
Justiça foi favorável à companhia, sob a alegação de que o processo foi finalizado antes
do reconhecimento legal do sindicato.
205
Naquele ano, a polícia divulgava a prisão de
dois trabalhadores que distribuíam panfletos “subversivos” em Arroio dos Ratos. O
catarinense Dario Garberlotti ficou detido por seis meses e o lituano Alberto Lukinskas
foi deportado.
206
A troca de serviços entre as companhias e forças policiais é evidente
nos documentos do Cadem. Uma correspondência de 1936, por exemplo, da sub-
delegacia de polícia de São Jerônimo ao engenheiro-chefe da mina de Butiá solicitava o
fornecimento de mil fichas para o “serviço estatístico dos funcionários e operários”, a
203
Correio do Povo, “Sem pão e sem recursos”, 20/08/1933, p.8, citado por D. Konrad, 2004, p.261.
204
D. Konrad, 2004, p. 345.
205
Machado (1983), apud. Witkowski & Freitas (2006).
206
CP, 15/10/1935, p.5, citado por D. Konrad, 2004, p. 397-398. O autor encontrou registros também
acerca de Augusto Luzinskos, que considera ser a mesma pessoa.
93
partir das quais a vigilância seria exercida.
207
Como espécie de reação ao surgimento do
sindicato dos mineiros, em junho de 1935 havia sido criado, em Butiá, o Círculo
Operário, procurando congregar os trabalhadores católicos.
208
No final dos anos 1930, estavam empregados nas minas gaúchas cerca de 1.700
trabalhadores e, com as famílias, somavam mais de dez mil os moradores nas vilas
operárias de Butiá e de Arroio dos Ratos. Esta população enfrentava inúmeras
dificuldades, tanto pelos baixos salários como pelas condições precárias de saúde e
alimentação. Em novembro de 1938, a Comissão Executiva do Sindicato dos Mineiros
de São Jerônimo enviou à Comissão do Salário Mínimo um documento sobre os
problemas locais, mencionando a precariedade das condições de trabalho “nas
profundezas da terra”, onde os trabalhadores enfrentavam a escuridão nas galerias a 90
metros de profundidade, o ar viciado e a falta de higiene. A mina era um local
onde as galerias a todo o momento ameaçam ruir, onde a fumaça dos tiros
para o arranque do carvão, a todo o momento ameaçam intoxicar o mineiro,
onde o pó que desprende dos perfuradores vai se acumulando aos poucos nos
pulmões desses mineiros.
209
Os trabalhadores solicitavam à Comissão que estabelecesse um “ordenado
mínimo” e que indicasse “uma junta médica para constatar o esgotamento físico” dos
operários, reivindicando também um estudo para melhorar sua alimentação. Naquele
ano, uma greve foi deflagrada na localidade. Ainda em 1938 um memorial foi entregue
por um representante dos mineiros ao diretor dos postos de profilaxia de doenças
venéreas e da sífilis, criados pelo Departamento Nacional de Saúde Pública, solicitando
a instalação de um posto na localidade das minas, diante da ocorrência de inúmeros
casos da doença. Uma dimensão dos problemas de saúde enfrentados nas vilas mineiras
é fornecida também pela correspondência enviada ao interventor Cordeiro de Farias, em
março de 1940, pela Sociedade Beneficente dos Empregados da Companhia São
Jerônimo, criada em 1934 na Vila do Arroio dos Ratos. A Sociedade, com cerca de
1.800 sócios, mantinha uma farmácia de distribuição gratuita de medicamentos e
contava com a contribuição dos associados. Mas os moradores estariam sofrendo tanto
com “a falta de conforto e higiene das habitações” e os “altos preços dos gêneros de
primeira necessidade”, que sua subsistência enfrentava sérias dificuldades. A Sociedade
207
Correspondência de 10/09/1936.
208
Hoff, 1992, p. 59.
209
Apud. G. Konrad, 2006, p.140-142.
94
solicitava uma subvenção para continuar atendendo epidemias como tifo, disenteria,
pneumonia e outras derivadas do trabalho nas minas.
210
2.3.1 O apelo ao “patriotismo” na Segunda Guerra Mundial
A frustração e a revolta da categoria no final dos anos 1940 e início dos 1950
tinham raízes na campanha lançada durante a Segunda Guerra Mundial pelo governo
brasileiro e as empresas de mineração, que visava elevar a produção de carvão num
contexto de escassez do produto no mercado internacional, a exemplo das mobilizações
ocorridas na Europa. Os trabalhos de extração de carvão nas minas gaúchas passaram a
ser realizados 24 horas por dia, com revezamento contínuo de equipes. Essa campanha,
que contou com a adesão do Sindicato dos Mineiros, apelava para o “patriotismo” dos
trabalhadores, exigindo que se lançassem à atividade com uma dedicação extrema e que,
principalmente, não faltassem ao trabalho. As correspondências do Cadem contavam
com um carimbo fabricado para o período: “Esforço de guerra: seja assíduo no
trabalho”. Como relatam ex-mineiros, o controle exercido era tanto que, naquele
período, para sair da cidade, precisavam pedir licença à companhia e à polícia.
211
Do
contrário, um operário brasileiro poderia ser considerado “desertor”, e se fosse
estrangeiro, “sabotador”. O mineiro estrangeiro deveria ficar trabalhando na superfície
porque poderia ser considerado “sabotador” se estivesse no subsolo.
Um memorando do Cadem ao engenheiro-chefe das Minas de São Jerônimo, em
setembro de 1942, comentava os quatro decretos publicados pelo presidente da
República, Getúlio Vargas, sobre o “Estado de guerra”. O primeiro estabelecia que
crimes de espionagem e sabotagem nas indústrias seriam julgados por tribunais
militares. Em observação ao segundo decreto, que previa a possibilidade de rescisão de
contratos de trabalho para “Súditos do Eixo”, a companhia solicitava uma relação de
nomes, nacionalidades e tempo de serviço de empregados nas minas que estivessem
enquadrados nesta categoria. O terceiro decreto continha normas para os sindicatos no
estado de guerra, visando “criar no espírito dos associados uma mentalidade de
devotamento à Pátria, concitando-os a um trabalho assíduo e eficiente, a fim de obter
maior potencial de produção, em benefício da nacionalidade”.
212
O quarto decreto
previa a prorrogação do horário normal de trabalho dos operários.
210
G. Konrad, 2006, p. 141-142.
211
Ver relatos de mineiros entrevistados por Veit (1993).
212
Correspondência do Cadem ao engenheiro-chefe das Minas de São Jerônimo, de 01/09/1942.
95
Para que o apelo ao “patriotismo” dos trabalhadores, feito pelo governo e pelas
empresas, surtisse efeito, foi preciso interiorizar neles uma representação em torno de
sua heroicidade, do seu desprendimento e abnegação para a causa maior da nação. Em
meio às imagens impactantes e aos valores mobilizados nestas situações extremas,
introduziu-se entre os mineiros de carvão no país - ainda que, é preciso que se diga, de
forma mais frágil e menos duradoura do que no exemplo francês - uma percepção de si
mesmos como combatentes dos subterrâneos, imaginário que em tudo encontrava
correspondência com a realidade cotidiana, mas com a diferença de que lhes fez brotar
esperanças de que seriam finalmente reconhecidos por seu esforço e valorizados por
trabalharem tão intimamente com essa matéria-prima tão necessária para o
desenvolvimento do país. Esta é a principal face da “grande honra” da profissão que se
colou à consciência dos mineiros daquela geração e que transmitiu sua marca nas que se
seguiram. Depois do engajamento, entretanto, os operários se sentiram logrados: os
salários continuavam baixos, as condições de trabalho penosas e insalubres, e o
tratamento recebido beirava, muitas vezes, a humilhação. No discurso que dirigiu aos
mineiros em sessão na Assembléia Legislativa do Estado, em 1953, o deputado
socialista Cândido Norberto fornecia algumas pistas:
Falou-se muito nesta Casa no heroísmo dos mineiros ao tempo em que
acontecia a segunda guerra mundial. Este heroísmo, todos sabemos, já foi
cantado em prosa e verso, e se o recordo agora é apenas para lembrar outro
fato e outra verdade: É que nem mesmo naqueles tempos duros, naqueles dias
de guerra, a situação dos mineiros foi melhorada de forma que lhes permitisse
respirar livremente e dizer aos seus filhos: “A partir de hoje, teremos
melhores perspectivas, teremos um futuro menos árduo pela frente, teremos
dias melhores a partir de hoje! Os tuberculosos que estas minas fabricam
terão maior assistência. A partir de hoje estas minas não mais fabricarão
doentes, não mais funcionarão como fábricas de tuberculosos”!
213
Ao destacar que a situação dos mineiros não havia sido melhorada, uma década
depois, o parlamentar evocava a imagem de um jovem mineiro que ele havia encontrado
dias antes, saindo da mina em Arroio dos Ratos: “coberto de carvão (...), com os dentes
cariados por inteiro e com aquela tossezinha impertinente que denuncia uma tuberculose
que, em dias muito próximos ceifará mais uma vida, levará mais um cadáver moço para
o lúgubre, para o tétrico cemitério de São Jerônimo”.
214
Antes mesmo da mobilização para o “esforço de guerra”, a categoria vinha
travando uma batalha constante para obter do governo apoio às suas lutas por melhores
213
Norberto, 1953, p.7.
214
Norberto, 1953, p.7.
96
condições de vida. Em 6 de julho de 1941, o Sindicato dos Mineiros de São Jerônimo
enviou um telegrama ao presidente da República solicitando a promulgação da “lei da
mineração”, para que os trabalhadores das minas pudessem conquistar uma vida mais
digna e menos penosa. Em fevereiro de 1943, uma comissão de mineiros entregou
pessoalmente ao governo um memorial, com referências às promessas da Aliança
Liberal, que havia tomado o poder em 1930, e aos benefícios que o Estado Nacional
havia concedido aos trabalhadores. O documento dizia que, pelo bem da Nação, o
governo e os patrões tinham a “absoluta obrigação” de atender às reivindicações dos
mineiros.
215
Naquele período, as tentativas foram sem sucesso.
Os mineiros foram beneficiados posteriormente com direitos importantes - tais
como as 6h diárias de jornada, a idade mínima de 21 anos para o trabalho no subsolo,
entre outros aspectos – introduzidos com a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT),
criada através do Decreto-Lei n.º 5.452, sancionada pelo presidente Vargas em de 1º de
maio de 1943 e que passou a vigorar em novembro daquele ano. Embora viesse envolta
numa intensa propaganda político-ideológica feita pelo Estado getulista, esta legislação
trazia benefícios aos operários das minas.
216
Por conta disso, o trabalhismo conquistou
muitos adeptos nas vilas mineiras, forjando uma tradição da qual ainda se encontram
vestígios naquela região carbonífera. Mas, a partir daí, boa parte das lutas dos
trabalhadores seria no sentido de garantir o cumprimento do que a lei lhes assegurava.
Numa correspondência ao presidente do Sindicato dos Mineiros de São
Jerônimo, em outubro de 1944, supostamente em resposta a uma carta enviada pela
direção da entidade, o Cadem manifestava seu interesse em cooperar para que a “nova
era”, “de concórdia”, inaugurada na nova gestão no sindicato se prolongasse durante
todo o mandato, “sem a interferência de estranhos e sem publicidade tendenciosa”. Na
carta, mencionava o apelo do governo federal, feito pelo Coordenador de Mobilização
Econômica, no sentido de aumentar “o quanto possível a produção do nosso carvão”,
para o que seria necessária uma rigorosa assiduidade ao trabalho. E continuava:
As promessas de V.S. ao Sr. Coordenador foram positivas e estou
absolutamente certo de que V.S. as cumprirá, esforçando-se o quanto possível
para que os operários não falhem ao serviço, evitando com isso também que
sejam punidos, muito justamente, por falta de patriotismo que demonstram.
217
215
G. Konrad, 2006, p.142.
216
Considero, como bem observou Ferreira (1997, apud. Maia, 2008, p. 2), que, nesta época, o poder
exercido pelos patrões e pelo Estado sobre os trabalhadores das minas não era “total”, já que as ideologias
dominantes no período, “por mais dominantes que tenham sido, não poderiam ter eliminado
completamente as idéias, crenças, valores e tradições anteriormente presentes na cultura popular”.
217
Carta do Cadem ao presidente do Sindicato dos Mineiros, de São Jerônimo, de 31/10/1944.
97
Os sindicalistas tinham empenhado a sua palavra ao governo quanto ao
engajamento da categoria para aumentar a produção de carvão e estavam sendo tomados
como avalistas da assiduidade e da dedicação dos operários. Tanto a nova gestão do
sindicato como a anterior havia se manifestado a respeito. Na antiga diretoria, o
presidente do sindicato, Afonso Pereira Martins, tinha enviado, em 1943, um telegrama
ao interventor federal Cordeiro de Farias, no qual elogiava o Coordenador da
Mobilização Econômica pela mobilização dos trabalhadores das companhias
carboníferas de São Jerônimo, mencionando que os mineiros estavam dispostos a “toda
sorte de sacrifícios” na defesa do “estremecido Brasil”.
218
Nas condições excepcionais do “esforço de guerra”, o Cadem tinha concordado
em fornecer aos operários 200 gramas de carbureto para serem utilizados nos lampiões
no subsolo. Até então, os trabalhadores tinham que pagar pelo carbureto usado nos
lampiões e, embora reivindicassem o custeio por parte dos patrões, só conseguiram
conquistá-lo naquela circunstância. O Sindicato dos Mineiros vinha pleiteando o
fornecimento de luz. Numa carta ao Consórcio, em outubro de 1944, sustentava ser
“coisa perfeitamente natural: de a luz ser fornecida pelo patrão”.
219
Argumentava que as
minas de carvão nos Estados Unidos e na Europa forneciam lampiões e carburantes aos
trabalhadores, e que lá o custo dos lampiões era ainda mais caro, devido ao grisu.
Depois da concordância do Cadem em fornecer o carbureto, uma nova carta do
sindicato, em janeiro de 1945, comunicava aos patrões que os operários consideravam
justo serem reembolsados pelos gastos que tinham tido com a iluminação das minas até
aquela data.
220
O novo presidente do sindicato, Argemiro Dornelles, afirmava que a
entidade vinha se esforçando pelo aumento da produção do carvão, “insistindo e
exigindo uma completa assiduidade ao trabalho”, mas cobrava as promessas feitas pelo
Consórcio “no sentido de melhor remunerar os operários que exercem determinadas
categorias profissionais”. Ao finalizar, a carta trazia um reparo quanto às menções feitas
pelo Cadem no sentido de resolver as questões “sem interferência de estranhos e sem
publicidade tendenciosa”: “É lamentável [que] venha V.S. reafirmar aquilo que nenhum
de nós disse (...). Jamais tiveram os mineiros intermediários mais dignos do que os
218
Konrad, 2006, p.142-143.
219
Carta ao Cadem do Sindicato dos Mineiros, de São Jerônimo, de 31/10/1944.
220
Carta ao Cadem do Sindicato dos Mineiros, de São Jerônimo, de 04/01/1945.
98
honestos e dedicados integrantes da diretoria passada (...)”.
221
Parece ter havido, por
parte da empresa, uma tentativa de extrair da nova direção sindical uma confirmação às
suas próprias críticas à gestão anterior. Os líderes sindicais tinham as suas diferenças,
mas na ocasião foram prudentes no sentido de não passar recibo delas ao Cadem.
Esta resposta do sindicato não agradou ao Consórcio. Quatro dias depois, numa
comunicação interna, de caráter “reservado”, o engenheiro-assistente da direção
mencionava que o ofício do sindicato “não merecia resposta”. Teria causado “tão
desagradável impressão” ao diretor que este havia decidido não entrar mais em
“entendimento pessoal e amistoso” com aquela entidade, concluindo que o sindicato
apenas esperara que o Ministério do Trabalho começasse a fiscalizar as empresas para
adotar uma atitude arrogante. A orientação daí em diante era a de não mais atender às
reclamações dos sindicalistas: “Já que eles querem luta, façam-nas por intermédio do
Judiciário”. O que mais irritou a direção do Cadem foi a menção à necessidade de
ressarcimento do que os trabalhadores pagaram para iluminar as galerias. “Assim como
eles pretendem que o carbureto seja pago desde o início do trabalho das minas, assim
também poderão exigir que qualquer aumento de salário (...) tenha efeito retroativo”. A
orientação do Cadem era então para que houvesse o “exato cumprimento” das leis
trabalhistas, pois o Ministério do Trabalho tinha instalado fiscais, médicos, juntas de
conciliação, “e outros centros de perturbação” dos serviços da empresa.
222
Ficava clara a
reação da empresa diante da ação dos órgãos de fiscalização do Estado às novas leis.
Na época, o governo federal havia assinado um decreto-lei reduzindo a idade
mínima de 21 para 18 anos para o trabalho no subsolo das minas de carvão, “durante a
vigência do estado de guerra”, desde que fossem atendidas as condições de robustez
física dos jovens operários. Outro artigo estabelecia que os maiores de 16 anos, que
tivessem o curso primário completo, poderiam ser utilizados em trabalhos auxiliares,
durante o dia, na superfície da mina. Um aspecto curioso é que, nos dois casos, o texto
da lei fazia referência aos “filhos de mineiros”, naturalizando a transmissão familiar do
ofício. O Cadem fez circular entre os engenheiros o recorte de jornal com o decreto-lei,
esclarecendo que, embora este fizesse referência a “filhos de mineiros”, deveria ser
estendido a todos os rapazes da mesma idade, desde que examinados por dois médicos
221
Idem à anterior.
222
Correspondência interna do Cadem, de 08/01/1945.
99
das minas, e que fossem guardados os laudos dos exames. A expectativa era que muitos
jovens baixariam à mina, o que devia gerar aumento imediato da produção.
223
Apesar da mobilização de guerra, os mineiros realizaram greves importantes em
1943 e em 1944
224
. No final de janeiro de 1945, os mineiros de São Jerônimo tinham
organizado uma manifestação que contou com a simpatia do Tenente-coronel José
Diogo Brochado da Rocha, então presidente da Viação Férrea do Rio Grande do Sul,
que havia visitado as minas. O movimento redundou numa greve de mais de uma
semana, por “aumento salarial e condições humanas de trabalho”. Como naquele
período a produção tinha o caráter estratégico do “esforço de guerra”, mantida 24 horas
por dia, isso serviu de justificativa para uma intervenção do Exército nas minas.
225
Outra mobilização ocorreu em abril, solidarizando-se à paralisação de ferroviários,
portuários, bancários, entre outras categorias. O movimento dos mineiros atingiu
primeiro as minas do Butiá, em 6 de abril, depois parou também os trabalhadores de
Arroio dos Ratos, assumindo feição de greve geral no município de São Jerônimo. A
manifestação foi reprimida por 50 homens da Brigada Militar.
226
Em decorrência da
greve, os salários foram reajustados, mas, segundo Jover Telles, o Cadem elevou muito
acima o preço do carvão, de forma que ainda saiu lucrando com o reajuste.
227
Mais tarde, vieram as denúncias de que o aumento da produção obtido pela
dedicação dos mineiros no “esforço de guerra” teve, na prática, outro destino que a
necessidade nacional. Conforme Jover Telles (1962):
(...) não obstante os mineiros saberem que o apelo [do governo] ao seu
patriotismo, durante a guerra, não se justificava, porque o carvão extraído não
era utilizado no Brasil, mas exportado para a Argentina, que pagava melhor
preço ao Cadem, não pleitearam nenhum centil de aumento nos salários, e
não fizeram nenhum óbice às determinações do Governo, porque
compreendiam que o básico era derrotar a besta nazi-fascista, que o esforço
de guerra constituía a principal obrigação de nosso povo.
228
223
Correspondência interna do Cadem, de 29/12/1944.
224
Correspondência do Cadem, de 10/07/1944, mencionava a ameaça de paralisação. Outro comunicado
interno, de 22/09/1944, enviado pelo diretor Roberto Cardoso ao engenheiro-chefe das Minas de Butiá,
Fernando Lacourt, sob o título “Interesse militar”, com uma linguagem vaga e cifrada, fazia referências
ao sindicato dos operários e a “certas providências” para um “entendimento com o General Comandante
da Região”. Mencionava que se as sugestões fossem adotadas, haveria melhoras da “situação ali
reinante”, pois havia confiança “do pessoal” de que não receberia “as punições previstas em lei”.
225
As informações são de Moure (1979), apud. Fortes, 2001, p. 513-514.
226
G. Konrad, 2006, p.305.
227
Telles, 1962, p. 275.
228
Telles, 1962, p. 282.
100
2.3. 2 De “garras tentaculares”, “elefantes” e “camundongos”: o dissídio de 1943
Poucos meses depois de entrar em vigor a CLT, o sindicato dos mineiros
apresentou denúncias à Justiça do Trabalho de que a Lei do Salário Mínimo e a tabela
de insalubridade estavam sendo desrespeitadas pelo Cadem. Na representação, o
Sindicato dos Mineiros do município de São Jerônimo, agora reconhecido pelo
Departamento Nacional do Trabalho, descrevia as condições de trabalho nas minas:
Os empregados das Companhias de Mineração (...) que empregam suas
atividades no subsolo, sofrem, há muitos anos, as maléficas conseqüências
oriundas das péssimas condições de trabalho, em ambiente – além de
insalubre – antihigiênico e pestilento, onde não são atendidas as mais
elementares regras sanitárias e de saúde pública em geral. (...)
O documento continha um tópico extraído da Monografia de São Jerônimo,
escrita em 1942 por Alfredo Simch, ex-médico das minas:
Para o seu trabalho, o dia é dividido em três turnos – de oito horas – e há
dessa gente que, no afã de acumular, de aumentar as rendas, DOBRA, muitas
vezes a tarefa dentro das 24 horas, fazendo assim dois salários num dia
naquela atmosfera causadora da esclerose pulmonar, a chamada
pneumoconiose-antracose, ou melhor, a antraco-silicose, que tantas vítimas
causa por ano. (...) Durante a ação do martelete a atmosfera de poeiras é tão
grande, apesar das lâmpadas, por instantes, o ambiente é invisível como se
reinasse denso nevoeiro e não se enxerga um palmo diante do nariz. (...) A
atmosfera das minas, nas galerias, se vicia muito rapidamente por vários
motivos: ar saturado de vapor d’água, emanações do próprio carvão, pelo
óxido de carbono, pela incompleta combustão dos explosivos, pela
combustão das lâmpadas de acetileno; pela quantidade de poeira produzida
pelos marteletes, cortadoras, e pela própria respiração – a expiração – dos
obreiros. A atmosfera das poeiras é altamente prejudicial à saúde dos
mineiros que a inalam nas oito horas diárias de serviço.
229
Para o sindicato, a minuciosa descrição acima ainda não revelava completamente
a tarefa penosa dos trabalhadores das minas, que recebiam “os mesmos ridículos
salários” de dez anos antes, havendo inclusive os que recebiam menos de um salário
mínimo e que se encontravam em estado de “supermiséria”. Os sindicalistas,
representados pelo advogado Artur Porto Pires – referido em correspondências internas
do Cadem como “Porto Pires e caterva” pela “má influência” que exerceria sobre os
operários -, denunciavam os abusos das empresas, como o fato de que os trabalhadores
tinham que arcar com os custos do carbureto usado na iluminação no subsolo.
Expunham o “desrespeito” e o “escárneo” do Cadem à legislação trabalhista por meio
de “manobras”. Uma destas manobras era considerar, invocando a legislação das minas
alemãs, que o início do trabalho se dava no momento em que o operário começava a
229
Simch, 1942, apud. Dissídio Coletivo, 1943.
101
perfurar uma parede, por exemplo, desconsiderando o tempo gasto nas longas
caminhadas até as frentes de produção e destas até a boca do poço.
Não atenta a empregadora para a lei que determina o salário mínimo,
escravizando os seus operários que ficam ao seu bel prazer; trabalhado
quando interessa ao Consórcio, remunerado pelo salário que ele bem entende.
Pura miséria. Pura exploração. O legislador pátrio teve notícia dessa
inominável fraude e deliberou aparar, de vez, as garras tentaculares do
Consórcio, regulando o assunto – em pormenor – na Consolidação das Leis
Trabalhistas, reafirmando uma situação legal preexistente.
Enquanto tudo isso ocorre, o Consórcio multiplica seus fabulosos lucros e faz
alarde do grande sucesso que está alcançando em prol do esforço de guerra. A
rigor, o esforço quem faz são os trabalhadores, enquanto que o pequeno
esforço do Consórcio consiste em recolher os lucros com a venda do carvão.
Os trabalhadores realizam e continuarão realizando, com interesse patriótico,
o esforço de guerra porque sabem que a pátria realmente necessita do carvão
que arrancam do seio da terra; mas esse dever que lhes toca e que cumprem
como um dever sagrado, não deve e não pode servir como pretexto para o seu
aniquilamento moral e material frente o empregador solerte que muito se
engana imaginando e fazendo crer estejam os operários impedidos de recorrer
à Justiça de sua terra para reconhecimento dos direitos que lhes foram
outorgados pelo benemérito Governo Federal.
Somente este trecho já nos fornece elementos preciosos. A entrada em vigor da
CLT concedia não só a possibilidade legal como a legitimidade para que a entidade
denunciasse ao governo e à sociedade a “exploração” e a “escravização” dos operários
pelo Cadem, que lhes insurgia uma vida de “miséria”. O texto, como se viu, faz
referência ao objetivo do governo de aparar “as garras tentaculares” daquele conjunto de
empresas carboníferas por meio da legislação. O Consórcio era apontado como uma
organização monstruosa que obtinha “lucros fabulosos” penalizando as famílias de
trabalhadores. A metáfora das “garras tentaculares”, evocando a ação de um gigantesco
polvo
230
, é eficaz para caracterizar a exploração vivida pelos trabalhadores nas minas,
exauridos em suas forças pelo trabalho penoso do subsolo e sujeitos à asfixia lenta pela
pneumoconiose. A perspectiva do sindicato era de que o mérito que se atribuíam as
companhias pelo aumento da produção do carvão, atendendo ao apelo do “esforço de
guerra”, pertencia, na verdade, aos trabalhadores, mas estes se recusavam a aceitar, sob
esta alegação, seu próprio “aniquilamento moral e material”. Nestas construções, estão
presentes tanto as motivações dos mineiros, relacionadas ao “interesse patriótico” e ao
fato de tomarem a campanha como um “dever sagrado”, como o valor que eles próprios
passaram a ser atribuir, com a construção de um sentimento de dignidade - pode-se
230
Lembro as imagens do polvo que aparecem na obra de Victor Hugo, Os trabalhadores do mar (1866)
como um dos desafios que o pescador Gilliatt precisa enfrentar. Por agarrar e asfixiar suas vítimas, seria o
monstro marinho mais temido. Ver Hugo, 1971, p.395-399.
102
dizer mesmo de honra profissional - que fazia ver o contraste entre a exploração vivida
e os altos desafios a que eram convocados. Se a campanha do governo e das empresas
apelava para a nobreza dos seus sentimentos pátrios, os mineiros souberam fazer
também desta “grande honra”, à qual a categoria deveria corresponder na situação
excepcional da guerra, a sua arma para reivindicar salários e condições de trabalho mais
condizentes com o destacado papel que estavam desempenhando na vida do país.
Neste dissídio de 1943, os trabalhadores apresentavam cinco principais
reivindicações: a) a manutenção de um serviço de água potável, no subsolo, próximo às
frentes de trabalho; b) a manutenção de um serviço sanitário, ainda que rústico, mas que
reduzisse as condições “infectas e antihigiênicas” do campo de trabalho; c) a construção
de um refeitório na superfície para onde deveriam ser levados os operários nos
intervalores regulares para refeição e descanso; d) a iluminação adequada do campo de
trabalho, por eletricidade, e enquanto não fosse feita a instalação, fosse a empregadora
obrigada a fornecer, como era da lei, lâmpada e carbureto; e) aumento de 40% sobre o
salário dos trabalhadores que, com mais de três anos de serviço na empresa, não
tivessem sido aumentados em seus vencimentos até esse limite. A maior parte dos itens,
portanto, dizia respeito à melhoria das condições de trabalho no subsolo. Além disso, o
sindicato solicitava que o Consórcio fosse obrigado a cumprir a lei do horário de
trabalho, ou seja, que fosse contado o início do dia normal de serviço o momento em
que o mineiro se apresentava na boca do poço para a descida à mina.
Um dos aspectos mais graves das denúncias dizia respeito à insalubridade. Em
minha pesquisa nos antigos arquivos do Cadem, encontrei pelo menos 400 pastas
individuais relativas à saúde dos trabalhadores, com as cópias de processos nas quais os
operários solicitavam indenização por acidente de trabalho, que incluíam as doenças
profissionais, especialmente a pneumoconiose (mencionada também como antracose-
silicose), acompanhadas da defesa das companhias. Destes casos, um cuja sentença foi
emitida no ano deste dissídio, mais exatamente em 12 de agosto de 1943, nos serve de
exemplo. Trata-se do processo “por acidente no trabalho” movido pelo mineiro Antônio
Manoel de Albuquerque, de 46 anos, contra a Companhia Carbonífera Minas do Butiá
(CCMB), equivalente à pasta 144 dos arquivos. Ao longo de 19 anos de trabalho,
Antônio havia ocupado as funções de tocador de carros e de pedreiro. Entre 1923 e
1929, ele trabalhou na Companhia Estrada de Ferro e Minas de São Jerônimo e, depois
disso, ingressou na CCMB, sempre atuando no subsolo. Conforme o texto da sentença,
Antônio havia deixado o trabalho em agosto de 1942 por sentir “falta de ar, dores no
103
tórax, dispnéia, desfalecimento e tosse com expectoração”. Depois de examinado em
inquérito policial foi comprovado “que esses sintomas resultavam de moléstia
profissional, a antraco-silicose que, conforme o laudo médico lhe reduz de 75% a
capacidade de trabalho”. O operário, no entanto, considerava estar completamente
inválido. A contestação da empresa, como ocorreria na quase totalidade dos casos, era
de que “os males de que se queixa o autor não decorrem de moléstia adquirida” no
trabalho. A companhia requereu um novo exame, no qual ficou comprovada a doença
adquirida no trabalho. Porém, havia divergências entre os peritos sobre o grau de
incapacidade que deveria ser indenizada. Para exames radiológicos, as classificações
variavam de 12 a três tipos, sistematizadas em três graus que determinavam o nível de
incapacidade. Por estes critérios, o juiz declarou na sentença que os sintomas e graus de
doença profissional eram de nível “médio” e não de 75%, como indicava o primeiro
perito. Mencionava que “o fato de estar esgotado” e de ter enfrentado uma tuberculose
não autorizava essa classificação, principalmente porque o trabalhador teria ganhado
peso e melhorado parcialmente de sua dispnéia. Era referida a presença de sífilis e suas
conseqüências para o sistema circulatório. O juiz julgou parcialmente procedente a
ação, condenando a companhia a pagar Cr$ 6.588,00, acrescidos de juros.
231
O pedido
de indenização feito pelo trabalhador era de Cr$ 10.800,00. Em dezenas de processos
que consultei, a defesa da companhia se baseava na alegação de que não existiria nexo
causal entre a profissão exercida no subsolo e a doença apresentada pelo trabalhador.
Em alguns casos, tendo o operário falecido durante o processo, o cálculo da indenização
era dirigido aos herdeiros, incluindo os custos com o funeral.
Em discurso na Assembléia Legislativa do Estado em 1947, o ex-mineiro e então
deputado comunista Jover Telles se referia ao dissídio coletivo dos mineiros de 1943,
que pleiteava o reconhecimento do caráter insalubre do trabalho nas minas de São
Jerônimo. Ele relatava que, depois das denúncias, o Ministério do Trabalho enviou um
representante às minas para verificar as condições de trabalho. Após um mês de
pesquisas e observações, o funcionário Tito Marinho elaborou um relatório que
confirmava as informações do sindicato. Como conseqüência, foi exonerado da função.
Tais desdobramentos levaram os mineiros a concordar que o presidente do Cadem,
Roberto Cardoso, tinha razão ao dizer que “a lei estava no seu bolso”. Um “regime de
arbítrio” imperava nas minas. Quando um operário pedia a aposentadoria, a companhia
231
Metade deste valor seria entregue ao trabalhador e a outra metade à Caixa de Aposentadorias e
Pensões, conforme previa o decreto 2282, de 6 de junho de 1940.
104
exigia que ele desocupasse a casa onde residia, o mesmo acontecendo quando o mineiro
pleiteava indenização por doença profissional. A empresa então pressionava o operário
e mandava que desocupasse o quadro da mina. Quando os trabalhadores resistiam a
abandonar suas casas, essas eram destelhadas e as famílias deixadas na rua. O deputado
denunciava que as ações contavam com a cumplicidade da polícia: “Para executar tão
miserável obra, o Cadem utiliza-se dos serviços do delegado de polícia, cujo salário é
pago, oficialmente, em 50%, pelo próprio Cadem. É claro que, após realizar ações
contra os operários, as gratificações não faltam ao delegado de polícia”.
232
Naquela época, o abastecimento dos operários era feito através do “barracão”:
um armazém no qual eram vendidos artigos de primeira necessidade mediante desconto
em folha de pagamento. Até pouco tempo antes, um dos sócios do armazém era o
próprio diretor da empresa, situação alterada em função de protestos do sindicato.
Quando um mineiro ficasse doente e não pudesse ir ao trabalho, havendo a redução do
salário naquele mês, o armazém negava-se a lhe fornecer os suprimentos porque ele não
possuía saldo. Havia suspeitas de que o Cadem vigiasse também a correspondência
enviada para as minas, pois tanto a central telefônica como o correio eram controlados
pelo Consórcio. A vida privada nessas vilas mineiras tinha assim uma liberdade restrita.
Quando um operário quisesse fazer uma festa de aniversário, devia pedir permissão à
empresa e a comemoração não poderia se estender após a meia-noite, o mesmo valendo
para bailes de carnaval. Como se sabe, esse controle da vida privada era parte de um
232
Ver Jover Telles, “O carvão de São Jerônimo: problema econômico e problema operário” (1962, p.
273-284). O texto reproduz o discurso realizado na Assembléia Legislativa, em 11/7/1947.
Jover Telles começou no ofício aos 12 anos
Manoel Jover Telles havia trabalhado durante 13 anos como mineiro de
subsolo empregado pelo Cadem. Ele próprio era filho de um mineiro e ativista
espanhol que emigrou primeiro para São Paulo e, depois, para as minas de São
Jerônimo, devido a perseguições políticas em seu país. O pai, Jerônimo Jover Ocaña,
trabalhava na mina de Linares, na província de Jaen, na Espanha, e já havia herdado a
profissão do progenitor. O filho, Jover Telles, nascido em São Paulo, começou a
trabalhar nas minas gaúchas ainda criança. Aos 12 anos, começou como cartucheiro,
responsável pela preparação dos cartuchos usados pelo furador nas detonações para
retirada do carvão do subsolo. Aos 14 anos, tornou-se guincheiro e, nos anos
seguintes, ocupou a função de furador. Ativista nas lutas da categoria, ele liderou o
comitê da greve de mineiros realizada em 1944. Ingressou no PCB no período da
ilegalidade. Em 1937, ele, seu pai e seus dois irmãos foram presos pela polícia do
Estado Novo. Depois da libertação, o jovem voltou a trabalhar na mina. Jover Telles
foi eleito primeiro suplente da bancada comunista em 1947 e exerceu o mandato de
parlamentar apenas durante alguns meses. Seria cassado pouco tempo depois junto
com os outros
p
arlamentares
q
uando foi decretada novamente a ile
g
alidade do PCB.
105
projeto maior do Cadem de moralização e de disciplinamento das vilas mineiras.
No discurso na Assembléia Legislativa, Jover Telles expunha sua indignação
quanto à situação dos trabalhadores das minas, sujeitos a condições desumanas. Esse
discurso foi, até onde se sabe, sua única produção de caráter biográfico. No prefácio, o
intelectual e dirigente comunista Astrojildo Pereira
233
afirmava que Jover Telles
descrevia “uma história de lutas crescentes, travadas em condições difíceis, duras, a que
não faltaram lances heróicos, que são um patrimônio de honra do proletariado
brasileiro”. Enunciava o modo pelo qual as mobilizações populares, assim como as
trajetórias dos próprios trabalhadores, correspondiam a este “patrimônio de honra”.
Pereira ressaltava que foi nas minas de São Jerônimo que Jover Telles “fez seu terrível
aprendizado de vítima da exploração capitalista e onde forjou sua têmpera de
combatente proletário”.
234
A trajetória de Jover Telles, de mineiro que se tornou
parlamentar e dirigente comunista, agregava valor a este patrimônio.
235
O discurso de Jover Telles dirigido aos mineiros na Assembléia Legislativa foi
motivado por um artigo publicado no Correio do Povo sobre um projeto de lei para
importar carvão estrangeiro em função de necessidades da Viação Férrea. Afirmando-se
“revoltado” e “indignado” diante da possibilidade de importação com as minas gaúchas
dispondo de mineral, ele esmiuçava as razões da baixa produção, atribuindo o problema
às condições técnicas dos equipamentos de ar comprimido utilizados pelos furadores e à
falta de interesse do Cadem em abrir novos poços. Afirmava que, “à custa de um maior
desgaste físico”, os trabalhadores obtinham produtividade “espantosa”: num turno de
seis horas, um tocador de carros enchia e transportava 15 a 18 vagonetas de carvão
pesando mais de uma tonelada cada. As condições eram as “piores possíveis”:
Trabalha o mineiro num ambiente de completa insalubridade, aspirando o pó
produzido pelas máquinas cortadoras e de perfuração, bem como a fumaça de
pólvora e de dinamite originada pelas explosões; o mineiro trabalha quase no
escuro, com os pés metidos na água, sem suficiente oxigênio necessário à sua
vida, e em galerias baixas, o que o obriga a manter-se curvado por horas a fio,
sem poder endireitar o tronco. O mineiro, para quem entra na mina pela
primeira vez, aparece como um ser primitivo, selvagem, como o homem das
cavernas, tais são as miseráveis condições em que é obrigado a trabalhar pelo
Cadem. Trabalha vestindo somente uma tanga como roupa, de alpercatas e
muitas vezes descalço. É obrigado a satisfazer suas necessidades fisiológicas
no próprio local de trabalho, pois não existe a aparelhagem sanitária
indispensável, e é nesse ambiente, sem ar, fétido, que o mineiro tem que fazer
233
Astrojildo Pereira tinha sido um dos fundadores do PCB em 1922.
234
Telles, 1962, p.7.
235
Décadas mais tarde, esta “honra proletária” foi manchada com as acusações de que Jover Telles teria
delatado companheiros aos órgãos de repressão, durante sua prisão em 1976, o que provocou sua
expulsão do partido em 1983.
106
sua refeição, ou merendar. A sensação do mineiro, e isto eu sei por
experiência própria, é a de que está submetido a um processo de suicídio
lento, gradual, mas inexorável. Além disso, os contratos de trabalho impostos
pelo Cadem são contratos que lesam, de fato, a dignidade humana e não
permitem ao mineiro subsistir ao rude trabalho por espaço superiora a 10 ou
15 anos. Quando não perece em acidente de trabalho, ou fica aleijado, o
mineiro acaba seus dias com seus pulmões corroídos pela sílica e pela
antracose e por uma série de outras doenças oriundas das condições em que
exerce a sua profissão.
236
Nas referências acima, a dignidade dos trabalhadores era ferida pelas “condições
miseráveis” enfrentadas no subsolo, a começar pelos sacrifícios que o corpo do mineiro
era sujeito, constantemente arcado, num ambiente fétido. Aos olhos de desavisados, o
operário das minas seria confundido com um ser primitivo, com um homem das
cavernas. Outro aspecto que dava conta da gravidade da situação eram as referências de
que a saúde do mineiro estava sendo seriamente afetada, de forma que ele caminhava
para um “suicídio lento, gradual, mas inexorável”, sensação de que o próprio Jover
Telles havia vivenciado. Neste período, os trabalhadores eram obrigados a descontar de
seus salários os calçados para uso na mina e, ainda, a pólvora, a dinamite e o estopim
usados nas explosões, como no caso do furador, pouco restando do salário para o seu
sustento. Enfatizava que o mineiro não dispunha nem de estímulo moral nem material.
Ainda assim todos trabalham, todos pensam contribuir para a grandeza da
Pátria, quando na realidade é o Cadem que se locupleta com o fruto amassado
no suor e no sangue de milhares de seres humanos – os mineiros, sob as vistas
complacentes dos altos poderes da República.
237
Em seu discurso, contrapunha certos ideais dos trabalhadores, imbuídos da
lealdade à pátria, à realidade de que os lucros obtidos beneficiavam apenas os patrões.
Todos os detalhes pintavam o retrato da perda da dignidade da profissão e da
humilhação a que eram submetidos diariamente esses trabalhadores. Aqui, como na
proposta do Dissídio de 1943, o discurso sobre o mineiro exibia um contraste entre a
“grandeza” da atividade, que sustentava a geração de energia, à humilhação a que o
operário estava sujeito. Parece que a profissão construiu-se nesta intensa dubiedade,
alimentando, por um lado, a “grande honra” do ofício e, por outro, a frustração e a
revolta dos trabalhadores diante da recusa ao reconhecimento de seu valor.
Como as denúncias feitas pelo sindicato no dissídio de 1943 tivessem se tornado
públicas, o Cadem elaborou uma publicação na qual refutava as reivindicações dos
trabalhadores. Esse texto começava alertando para os riscos de um “sentimento
236
Telles, 1962, p.276-277.
237
Telles, 1962, p.277.
107
perturbador” como a “paixão”, evidenciada pelo “libelo” dos mineiros: “Quando esse
sentimento exaltado se gera em virtude de acontecimentos sociais, a sua ação se torna
perigosa, porque adultera a opinião pública, encaminhando-a por caminhos errados,
dando-lhes impressões que não correspondem à verdade dos fatos”. Desta forma,
buscava deslegitimar as denúncias feitas contra as empresas. Ao desqualificar
reivindicações tais como água potável, serviço sanitário e iluminação, o texto patronal
dizia, de forma irônica, que a economia brasileira teria ido “à gaita” se existisse esta
legislação social pretendida pelos trabalhadores, que seria “a mais revolucionária do
mundo”, permitindo dispensar o adicional sobre a insalubridade.
O argumento central da defesa do Consórcio era que o pedido da categoria não
dispunha de fundamento legal e que não tinha sido encaminhado à autoridade
competente: não competiria à Justiça do Trabalho determinar a insalubridade, o que
seria da alçada do Departamento de Higiene e Segurança do Trabalho, das Comissões
do Salário Mínimo e do Ministro do Trabalho. “Eis ao que ficou reduzido o dissídio
coletivo proposto pelo Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da Extração do Carvão.
Anunciou-se e ouviu-se o barulho da aproximação de um elefante e apareceu um
miserável camundongo”. Com este contra-ataque, o Cadem buscava desmoralizar não
apenas os argumentos dos trabalhadores, mas a própria categoria perante o “tribunal da
opinião pública”. Esta teria produzido o estrondo de um “elefante”, mas se revelava
frágil como “um miserável camundongo”. No enfrentamento, o Cadem lançava mão de
uma metáfora que não apenas traduzia o sentimento de muitos mineiros – de serem
tratados como ratos de esgoto, confinados a condições infectas e insalubres no subsolo –
como ainda referia um animal que era extremamente familiar ao cotidiano destes
operários nas galerias subterrâneas.
238
Os termos do documento patronal, portanto, eram
aqueles de uma guerra simbólica, cujo objetivo era humilhar e desqualificar o oponente.
Como o dissídio ia ser julgado pelo governo, pretendia buscar o convencimento público
para suas teses. Depois da primeira audiência, um decreto-lei foi assinado pelo governo
subordinando os dissídios coletivos, durante o estado de guerra, à prévia autorização do
Ministro do Trabalho. Isso trazia entraves à demanda dos trabalhadores.
A defesa elaborada pelo Cadem expunha os valores dos salários dos
trabalhadores em Butiá e de Arroio dos Ratos e as freqüências mensais dos mesmos –
batendo na tecla da falta de assiduidade, também referida como “desíria”. Para refutar
238
Um informante dizia a Eckert (1985, p.301), “a gente come lá [no subsolo] junto com os ratos,
trabalhamos com os ratos (...)”.
108
as denúncias do sindicato, além de usar explicações técnicas e jurídicas, o documento
destacava a benemerência do Consórcio em obras sociais. No projeto moralizador
239
das
populações operárias, o Cadem justificava que vinha incentivando as atividades
esportivas e divertimentos “sãos”: “A maioria dos operários consome suas férias no
álcool, em bordéis
240
e nas casas de jogo que, infelizmente, existem nas proximidades
dos locais de trabalho”. Na época, 30 casas de jogo haviam sido fechadas pela polícia, a
pedido do Cadem. Em relação à Assistência Social, informava que o Cadem havia gasto
no primeiro semestre do ano Cr$ 1.241.717,39 em auxílios a viúvas de operários, em
gratificações a professoras, nas caixas escolares, na banda de música, recursos aos
padres das minas, em aumentos e pinturas em igrejas e escolas, nas despesas com
alunos em ginásios em Porto Alegre, em gastos com o hospital, na construção de um
prédio para grupo escolar, em gabinetes e assistência dentária, além de serviços de pré-
natalidade e puericultura. A publicação exibia fotos dos serviços de pré-natalidade e
puericultura nas minas, com imagens, por exemplo, do “preparo do leite distribuído às
crianças”. Outras fotografias mostravam escolas, jardins de infância, igrejas, salões de
bailes, campos de futebol, sociedades recreativas e o cinema inaugurado em Butiá.
Em outras frentes, o Cadem evocava os “efeitos nocivos da legislação social
vigente”, a CLT, sobre o nível da produção de carvão. Numa matéria paga no Diário de
Notícias, publicada em janeiro de 1947, na qual se dirigia ao interventor federal no
Estado, o Consórcio fazia um balanço das conseqüências da lei, ressaltando que a
redução da jornada de trabalho de 8h para 6h tinha representado “grandes prejuízos” à
produção. O texto mencionava, em 1944, as dificuldades que a diminuição de horas de
trabalho acarretou e a “indisciplina que começou a reinar” nas minas. Esses “efeitos
nocivos” teriam se acentuado, com a greve dos mineiros de 1945, quando os salários
teriam sido “consideravelmente elevados”. O documento alertava:
Verificará V. Excia. que após a elevação desses salários, em maio, a produção
novamente baixou e a indisciplina ainda mais se acentuou, refletindo-se em
ameaça à segurança e à vida dos engenheiros patrícios que trabalham nas
duas minas, o mesmo ocorrendo em relação aos demais chefes de serviço.
239
Neste sentido, correspondência do Cadem, em 6/12/1944 fornecia ao diretor um relato dos festejos de
Santa Bárbara: “Tudo correu em perfeita ordem, não se verificando excessos por embriaguez e brigas”.
240
Um “Estudo sobre moléstias venéreas em Butiá” foi enviado ao diretor do Cadem em 06/06/1947, com
alguns dados e previsão de gastos mensais para o tratamento dos doentes. Segundo o relatório, em
tratamento de ambulatório havia 15 operários das minas com sífilis, 10 com blenorragia e 30 com sífilis
tardia. O documento ainda fazia referência à existência de 35 prostitutas na localidade, das quais 13
tinham tido reações sorológicas positivas e 18 estavam com blenorragia.
109
O quadro policial local poderá fornecer a V. Excia. elementos precisos sobre
quanto ocorreu nas Minas, inclusive elevado número de casos de embriaguez
e atos delituosos. (...)
241
As empresas sustentavam, portanto, que a produção caía após o aumento salarial
e que um dos problemas enfrentados era o absenteísmo e a violência dos trabalhadores,
referindo as agressões que teriam sofrido chefes de serviço e engenheiros, alguns dos
quais teriam deixado as minas depois destes episódios. O artigo mencionava ainda a
greve desencadeada no ano seguinte, em fevereiro de 1946, atribuindo-a à animação dos
operários diante do resultado do movimento de 1945 e à incitação de “demagogos”,
interessados em obter popularidade para fins eleitorais. O Cadem sustentava que a nova
paralisação de 37 dias tinha acarretado “prejuízos de grande vulto” para as companhias
e para o Estado. O aumento salarial de 20%, seguindo o estudo de técnicos do governo,
dizia respeito aos trabalhadores que não tivessem faltas no período, uma forma de punir
os “faltosos”. Mas outro problema se apresentava: muitos operários estavam
abandonando as minas para trabalhar em granjas de arroz. O Cadem anunciava que
estava prevista a abertura de dois novos poços de extração, mas se perguntava: “De que
servirão eles, porém, se não há braços para o trabalho?” Na perspectiva das empresas, a
mão-de-obra era má, indisciplinada e, para piorar, escassa.
A estratégia adotada pelo Cadem foi a procura de trabalhadores em outros
estados e no Exterior. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, a empresa fez uma
solicitação junto ao Conselho de Comércio Exterior para a vinda de 500 imigrantes, que
deveriam se radicar nas minas gaúchas. Naquele período, criticava a morosidade do
processo, pois as autoridades ainda discutiam que imigrantes melhor conviriam ao país.
O diretor do Cadem, Roberto Cardoso, havia feito um contato em Londres com o
comandante das tropas polonesas que não desejavam retornar ao seu país, ocupado pela
União Soviética, e havia lhe comunicado o interesse em 500 trabalhadores. O Consórcio
ainda esperava uma solução para a remessa dos estrangeiros. Nos anos seguintes, de
fato aportaram ao país centenas de imigrantes para trabalhar nas minas, principalmente
poloneses, ucranianos e iugoslavos.
242
O que tornava os poloneses – ou os “polacos”, como eram chamados - uma das
nacionalidades preferidas pelo governo e pelas companhias carboníferas era, como
241
Artigo publicado pelo Cadem em 26/01/1947 no Diário de Notícias, sob o título “A crise da produção
carbonífera do Rio Grande do Sul”. Silva (2007) desenvolve uma análise sobre o recorrente uso feito
pelas empresas carboníferas sobre o tema da “crise”.
242
Levantamento feito por Bunse (1984), nos anos 1980, indicava que na mina do Leão o número de
trabalhadores de origem polonesa era maior, atribuindo este fato à proximidade com colônias dessa etnia.
110
assinalou Fortes (2001), o fato de que fossem considerados “trabalhadores”, implicando
uma mentalidade de dedicação ao trabalho, com uma auto-restrição no consumo,
imdicando mobilidade social ascendente.
243
Somava-se a isso uma percepção de que
seriam portadores de determinados valores morais e religiosos que se traduziriam numa
integração harmônica com os operários locais, com a constituição de uma vida
profissional e familiar disciplinada e regrada. Ainda que certos pressupostos se
confirmassem nas décadas seguintes, também haveria uma forte participação destes
trabalhadores nas manifestações organizadas nas minas, como se verá adiante.
244
243
Ver Fortes, 2001, p.117-131. Em sua pesquisa, o autor ressalta que esses valores eram atribuídos aos
“polacos” por contraste com uma representação negativa do trabalhador nacional.
244
É interessante notar como, no caso francês, os poloneses, assim como os italianos, são evocados como
uma imigração “bem-sucedida” nas regiões mineiras, mas esta avaliação é usada para denotar desprezo
em relação aos marroquinos e argelinos, que não tinham as mesmas crenças católicas dos primeiros nem o
hábito de cultivar jardins. Neste sentido, Ponty (1995, p. 14) acentua que, em sua época, os poloneses
também foram considerados como uma imigração problemática. Delmas (2000, p. 73) refere-se ao “falso
debate” sobre a “boa imigração”, mostrando que esse discurso não é neutro, mas pretender opor novos
fluxos (marroquinos e argelinos, por exemplo) aos antigos (italianos e poloneses).
Os imigrantes estrangeiros no Estado
Em 1940, havia no Estado 14.250 poloneses (9380 residentes e 4870
naturalizados), com esta colonização ocupando a quarta posição, depois de alemães,
italianos e russos, segundo dados do Recenseamento do IBGE. Nesta época, o
município de São Jerônimo (que reunia os distritos de Arroio dos Ratos, Barão do
Triunfo e Butiá – onde se localizava a vila do Leão), com um total de 38.269
habitantes, reunia 871 estrangeiros, dos quais 178 eram naturalizados. Em 1950, o
número de poloneses no Estado havia baixado a 9.345, dos quais 1.535 eram
naturalizados e 7.810 estrangeiros. Nesta época, a imigração polonesa continuava na
quarta posição no ranking de estrangeiros no Estado, mas os uruguaios vinham na
primeira posição, seguidos de alemães e italianos, ficando os russos na quinta posição,
pouco acima dos portugueses, argentinos e espanhóis.
No Censo do IBGE de 1960, os poloneses ainda mantinham a quarta posição,
e no de 1970 caem para a quinta posição, ultrapassados pelos portugueses. No Censo
de 1970, observa-se que o número de estrangeiros na microrregião do Vale do Jacuí,
que reúne oito municípios, parte deles de atividade carbonífera como Arroio dos
Ratos, Butiá e São Jerônimo, havia um total de 374 estrangeiros, com os alemães (77),
ocupando a primeira posição, seguidos pelos uruguaios (42), espanhóis (36), italianos
(35), japoneses (23), poloneses (22), sírios (19), argentinos (17), portugueses (9),
russos (9), libaneses (6), austríacos (5), romenos (3) e outros (66). Em relação aos
naturalizados, o maior número em Arroio dos Ratos era de espanhóis (14) e de
poloneses (5), assim como em Butiá (9 espanhóis e 5 poloneses).
Nesta época, o maior número de poloneses naturalizados estava em Dom
Feliciano (29), uma colônia daquela imigração localizada próximo à região
carbonífera. No Censo de 1980, os poloneses haviam caído para a sexta posição entre
os habitantes estrangeiros do Estado, seguidos pelos espanhóis. Nos dados por
município, Arroio dos Ratos contava com 44 estrangeiros, todos espanhóis; São
Jerônimo, com 86 estrangeiros, entre eles, uruguaios, portugueses, argentinos,
espanhóis, italianos, alemães e americanos.
111
Naquele período, o Cadem também contratou mineiros oriundos de Santa
Catarina e de Minas Gerais, que possuiam experiência na atividade. Ainda em 1947 um
grupo de 17 operários de Minas Gerais chegava às minas de São Jerônimo. Uma
correspondência da direção do Cadem ao engenheiro-chefe da localidade orientava que
devia ser dada uma gratificação de CR$ 150,00 a três empregados encarregados de
“zelar” para que a turma contratada chegasse completa à mina, mas salientava que tal
benefício só deveria ser concedido se o grupo chegasse na totalidade.
245
Esse detalhe
revela, de um lado, o rígido controle exercido pela empresa e, de outro, sua preocupação
em evitar prejuízos quanto aos gastos feitos com a viagem diante de uma possível
desistência e fuga dos operários – o que não seria incomum naquelas circunstâncias.
246
2.3.3 A greve de 1946 e as campanhas comunistas
Uma das mais importantes mobilizações de mineiros no Estado ocorreu em
1946, após o fim do Estado Novo, no período de democratização que seria marcado
também por manifestações de outras categorias no país. Entre 30 de janeiro e 6 de
março daquele ano, cerca de mil trabalhadores do Cadem paralisaram suas atividades
nas minas de Butiá, de São Jerônimo e de Arroio dos Ratos.
247
Com os salários
defasados e enfrentando as mesmas duras condições no subsolo, os mineiros tinham
aceitado o chamamento do governo para aumentar a produção de carvão durante a
guerra e esperavam receber a contrapartida. Não foi o que aconteceu: o reajuste obtido
com a greve de 1945 ainda era minguado. Na mobilização de 1946, houve confrontos
violentos entre os grevistas e os fura-greves.
248
Alegando que os mineiros queriam
“destruir a mina”, o Cadem pediu ao governo federal o envio de tropas e as instalações
das minas foram ocupadas pelo Exército. Mas o clima entre mineiros e soldados do
Exército não foi de enfrentamento. Jover Telles (1962) relata que, ao enviar tropas, o
governo tinha esquecido os esforços feitos pelos trabalhadores no período da guerra:
O Governo esqueceu tudo isso, e na greve de 1946 enviou uma unidade de
nosso Exército para reprimir os mineiros. E isso a pedido do Cadem. Devo
245
Memorando do Cadem ao engenheiro-chefe das Minas de São Jerônimo, em 26/03/1947.
246
Dados do Censo do IBGE de 1950 indicam que, nesta época, havia 26.236 moradores no Rio Grande
do Sul que eram oriundos de Santa Catarina (ocupando a primeira posição no ranking) e 1.624
provenientes de Minas Gerais. No Censo de 1960, os números praticamente dobram: 51.309 catarinenses
e 2.206 nascidos em Minas Gerais. O Censo de 1970, revelando dados por município, indicava 72
habitantes catarinenses em Butiá (emancipado em 1963), 38 em São Jerônimo e 22 em Arroio dos Ratos.
De Minas Gerais, havia 14 moradores em Butiá, seis em São Jerônimo e seis em Arroio dos Ratos.
247
Janeiro de 1946 foi também marcado pela mobilização de metalúrgicos e bancários.
248
Essas informações estão contidas em levantamento dos processos trabalhistas reunidos no Memorial da
Justiça do Trabalho da 4ª Região no RS.
112
dizer que, ao contrário do que pensavam o Governo e o Cadem, a experiência
não foi má para os mineiros, pois, além de conheceram melhor os propósitos
do Governo, puderam confraternizar com os camponeses e operários fardados
que compunha no momento a unidade militar, mas que sabiam ser inevitável,
no futuro próximo, a volta para a vida civil e, por isso, negavam-se a ser os
verdugos de seus irmãos – os operários mineiros em greve. Diante disso, o
Governo mandou uma unidade da brigada militar que começou por cometer
uma série de arbitrariedades contra os mineiros.
249
Por ocasião da greve, Jover Telles, representando os grevistas, foi ao quartel-
general, em Porto Alegre, falar com o Comandante Militar da Região e protestar contra
as arbitrariedades que estavam sendo praticadas nas minas. Enquanto esperava para ser
atendido, ouviu de um oficial de Exército que os trabalhadores não deveriam ter parado
as atividades porque estavam lutando “contra um senhor onipotente”. Para Telles, isto
não traduzia a realidade: “os mineiros não lutavam contra ninguém, lutavam e lutam,
isso sim, contra a fome e a miséria, contra a doença que cada dia mais invade seus
lares”. Ao transmitir à categoria o comentário, percebeu que o sentimento dos operários
era o de que não faltava razão ao presidente do Cadem, Roberto Cardoso, quando dizia
que “a lei estava no seu bolso”.
250
Durante as negociações salariais, para se contraporem
às reivindicações da categoria, os patrões se municiavam de dados relacionados às taxas
de absenteísmo dos trabalhadores e dos auxílios da companhia em relação à moradia,
água, luz e até do fornecimento de mamadeiras às famílias com bebês.
251
A greve de 1946, que propiciou o aumento de 20% nos salários, foi considerada
vitoriosa pelos trabalhadores.
252
No entanto, a comemoração duraria pouco. Depois do
movimento, o Cadem promoveu demissões massivas de mineiros por justa causa. Uma
correspondência interna do Cadem, de abril de 1946, à qual tive acesso nos arquivos,
determinava providências para a despedida, por exemplo, dos operários Santos Motta,
Artigas Souza, Abílio Silva Silveira, Belarmino Rodrigues Souza, Claudionor Rosa,
Deoclides Rosa, João Pfingstag Sob, Aurélio Duarte, José Pastorisa Oliveira, Laudelino
Pastorisa Oliveira e Caetano Gabriel de Souza. Outros trabalhadores foram demitidos
nesta época, mas o documento mencionava que eles seriam os autores
249
No final de janeiro, um contingente de 46 homens comandados pelo capitão Antônio de Matos Ferreira
deslocou-se para Minas do Leão com a missão de “manter a ordem”, segundo registros da corporação. Cf.
Espaço Histórico-Cultural Virtual do 1º Batalhão da Polícia Militar do Rio Grande do Sul, no site
www.brigadamilitar.rs.gov.br/1bpm/historic.htm
Acessado em 15/08/2009.
250
Telles, 1962, p.282-283.
251
A esse propósito, há uma correspondência expedida pela direção do Cadem ao engenheiro-chefe de São
Jerônimo, em 5/03/1947.
252
Telles, 1962, p.275.
113
da agressão aos capatazes Waldemar Maurício Rodrigues e Rufino Antônio
Pereira, quando estes, em data de 5 de março p. ano., cumprindo ordens
superiores, se dirigiam ao trabalho de conservação da mina, então paralisada
pela greve, agressão essa motivada exclusivamente pelo fato de irem os
agredidos trabalhar.
253
Aurélio Duarte, como os outros operários, foi demitido sem aviso prévio.
Morador de Arroio dos Ratos, ele havia começado a trabalhar na companhia em maio de
1940, como ajudante de tocador de carros. Este mineiro, como muitos outros, ingressou
com reclamatória trabalhista na Junta de Conciliação e Julgamento de São Jerônimo por
ter sido injustamente despedido. Na decisão judicial, de seis páginas, eram enfatizadas
“as condenáveis agressões”, e “a repercussão que tão desagradáveis acontecimentos
tiveram no seio da família mineira”, justificando o “maior rigor” que se tornava
necessário por parte dos julgadores para que não ficassem impunes operários que,
sem pesar as suas responsabilidades e os males que a outros poderiam
causar, agrediram fisicamente os companheiros de trabalho, quando estes se
dispunham a retornar ao serviço, atendendo assim à convocação do
administrador militar, que no tempo dirigia a mina.
254
Na decisão, era mencionado o ambiente de insegurança que reinava na mina por
causa das agressões durante as manifestações da categoria. O operário Aurélio Duarte
negava a sua participação no episódio, alegando que não estava presente na mina no
momento em que o fato ocorreu e que estaria pescando num açude longe dali. Naquele e
em outros casos, a Justiça autorizou a demissão. De 260 processos deste tipo que foram
reunidos no acervo do Memorial da Justiça do Trabalho da 4ª Região do Rio Grande do
Sul, grande parte apresenta as mesmas características: os operários foram despedidos
por justa causa sob a alegação não de que tivessem participado da greve, mas de que
haviam praticado atos de violência, o que poderia justificar a despedida.
255
Dois anos mais tarde, os líderes grevistas ainda respondiam a processos
criminais. Uma correspondência de maio de 1948 informava que os operários
Alencastro Silveira Martins, Waldo José Figueira da Silva, Orico Correa, Belarmino
Rodrigues de Souza, Claudionor Rosa, Deuclides Rosa, José Pastorisa de Oliveira,
Anaurelino Ribeiro e Severino Custódio da Silva tinham sido condenados pela Justiça
Pública de São Jerônimo, por terem participado da greve de 1946. Estavam ainda
253
Correspondência de 04/04/1946, remetida pelo administrador das Minas de São Jerônimo e Butiá, ao
engenheiro-chefe da Companhia Estrada de Ferro e Minas de São Jerônimo.
254
Pasta de Aurélio Duarte, Reclamatória Trabalhista, consultada entre os arquivos do Cadem.
255
Ver Cônsul et al., 2006, p.11. Esses 260 processos relativos à greve de 1946, reunidos no acervo, foram
salvos de um incêndio na antiga Vara do Trabalho de São Jerônimo.
114
pendentes de julgamento os processos referentes a Aurélio Duarte, Santos Mota, Artigas
Souza, Abílio Silva Silveira, Caetano Gabriel de Souza e Otacílio Acosta da Silva.
256
Os mineiros que participavam de atividades políticas e sindicais eram alvos de
intriga e difamação por parte das empresas. Os discursos dos dirigentes das companhias
apelavam para a “cooperação entre classes” e para a “construção da grandeza nacional”,
alertando para que os trabalhadores comuns não se deixassem envolver “com os
agitadores e perturbadores da ordem, infiltrados entre homens honestos e ordeiros,
semeando a discórdia e a revolta”.
257
No período que se seguiu à greve, uma carta
endereçada pelo Cadem ao chefe de Polícia do Estado informava que quatro cartuchos
de dinamite haviam sido roubados do poço A-5, da mina em Arroio dos Ratos, e que tal
fato assumia “maior gravidade” diante do fato de que os mineiros haviam recusado as
propostas de aumento feitas pela comissão nomeada pelo governo federal.
258
Alertava
que o material era capaz de “produzir danos irreparáveis” e, caso fosse usado, a
companhia se isentava de responsabilidades. Dois anos depois, outra carta à polícia
fazia “veemente apelo” para que fossem tomadas “providências mais enérgicas” em
relação à fiscalização da entrega de dinamite aos operários nas minas, mencionando
dois episódios em que tinham sido encontradas bananas de dinamite irregularmente em
poder de trabalhadores. A correspondência alertava para o perigo de “sabotagem”,
diante do fato de que existiriam “numerosos elementos comunistas” nas minas.
259
Além
do recurso à repressão policial, as empresas tentavam difamar os ativistas pintando-os
como capazes de atos terroristas que poderiam pôr em risco tanto as minas como a vida
dos moradores da localidade. A suspeita devia-se ao conhecimento que esses
trabalhadores tinham do manejo com explosivos.
260
Um suposto “ataque” às instalações
da usina de força durante uma greve nas dependências do Cadem resultou na demissão
de um grupo de trabalhadores em dezembro de 1949. Na época, a companhia aguardava
a autorização da Justiça do Trabalho para demitir operários com estabilidade sindical.
261
256
Correspondência interna do Cadem, de 31/05/1948.
257
Apud. Cônsul et al., 2006, p. 10-11.
258
Carta do Cadem ao Chefe de Polícia do Estado, de abril de 1946.
259
Cópia de ofício do Cadem ao Chefe de Polícia do Estado, em 30/04/1948.
260
Petersen (1995, p.142) menciona o caso do militante anarquista, e depois membro do PCB, Zenon
Budazewiski (1842-1940), descendente de judeus poloneses, que usou sua experiência como detonador de
dinamite nas minas de carvão gaúchas para preparar bombas que seriam usadas contra a Brigada Militar
na greve de 1917, em Porto Alegre. Ele desmanchou bananas de dinamite vindas da região carbonífera
para montar as bombas no laboratório de um médico da Capital.
261
Cópia de correspondência do Cadem à polícia em 30/12/1949.
115
Numerosas correspondências do Cadem à polícia, entre o final dos anos 1940 e o
início dos anos 1960, davam conta da preocupação patronal com o crescente espaço
ocupado por membros de organizações de esquerda. Em ofícios dirigidos ao Chefe de
Polícia do Estado, em fevereiro de 1948, o Cadem alertava para a propaganda realizada
nas minas “por elementos interessados em agitar o operariado que ali exerce sua
atividade”. Encaminhava um exemplar de um panfleto distribuído nas minas de São
Jerônimo e de Butiá.
262
No ano seguinte, nova correspondência à polícia fazia menção a
um boletim distribuído em Arroio dos Ratos “por elementos agitadores”. Em anexo, um
panfleto trazia o seguinte texto, datilografado em letras maiúsculas em meia página:
CONVITE:
Companheiros mineiros! – Todos à Assembléia, dia 10 do corrente no
sindicato, às 9h, onde diremos ao Cadem que não temos ilusões com a Justiça
do Trabalho, pois não elegeremos vogais para a Junta e o que queremos é o
pagamento dos remunerados, 100% de aumento na chapa e a garantia de seis
horas de trabalho, porque ao contrário nós iremos à GREVE.
Tudo em defesa da paz!
Leia e discuta com seu companheiro!
263
262
Cópia de ofício do Cadem ao Chefe de Polícia, em 23/02/1948.
263
Panfleto distribuído nas minas do Cadem em julho de 1949 e encaminhado por este à polícia.
Mais da metade da população eram analfabetos
Dados do Censo do IBGE indicam que, em 1940, entre a população de São
Jerônimo com cinco anos de idade ou mais, 43,86% sabiam ler e escrever e 55,75%
não sabiam. A proporção de analfabetos era bem superior à média do Estado, que
contava com 54,45% que sabiam ler e escrever. Em 1950, o quadro se altera pouco:
em São Jerônimo 46,19% sabiam ler e escrever. Um contraste com a média gaúcha,
que detinha 58,61% de alfabetizados. Mas, na região carbonífera, a população de
alfabetizados nas vilas mineiras ainda era superior à das áreas rurais. Por exemplo, em
1950, em Arroio dos Ratos, 53,48% da população sabiam ler e escrever. Em Butiá
(que compreendia Leão), 52,12% sabiam ler e escrever. Na área rural de São
Jerônimo, apenas 39,45% eram alfabetizados, enquanto que 60,55% eram analfabetos.
No Censo de 1960, na média do Estado, os alfabetizados correspondiam a 70,09%.
Em São Jerônimo (reunindo as vilas mineiras), 54,04% sabiam ler e escrever.
No Censo de 1970, eram 76,06% dos habitantes do Estado que sabiam ler e
escrever. Nos dados por município, o maior número de analfabetos está entre a
população com mais de 50 anos. Em Butiá, 57% das pessoas entre 50 e 59 anos
sabiam ler e escrever, mas o percentual caía a 49,43% na faixa entre os 60 e os 69
anos. No distrito de Minas do Leão, a proporção de alfabetizados reduzia-se a 48,45%
na primeira faixa e a 44,85% na segunda. Entre os habitantes com 70 anos ou mais,
em Butiá, 44,84% sabiam ler e escrever, e em Minas do Leão, 42,86%. No Censo de
1980, verifica-se que entre a população sem instrução ou com menos de um ano de
estudo, Butiá tem a mais alta taxa dos municípios mineiros (28,04%), seguido por São
Jerônimo (27,11%) e por Arroio dos Ratos (25,98%). Nesta época, no grupo de idade
de 60 a 69 anos, eram alfabetizados 65,45% em Charqueadas, 55,78% em São
Jerônimo, 54,30% em Butiá – enquanto que, no distrito de Minas do Leão, o
p
ercentual limitava-se a 42
,
05%.
116
Mesmo que o grande número de analfabetos nas vilas mineiras gaúchas limitasse
o aproveitamento dos materiais de propaganda sindical e política, isso não se constituía
num impedimento decisivo para a organização dos trabalhadores. Mesmo entre os
“homens sem leitura” havia destacados líderes sindicais e militantes comunistas, como
pude observar durante a condução da etnografia e das entrevistas em Minas do Leão e
Butiá.
264
Desta forma, justificava-se a preocupação das companhias com as ações de
agitação e propaganda comandada pelos militantes comunistas naquelas minas. Em
janeiro de 1950, por exemplo, uma correspondência do Cadem à polícia, que visava
“cooperar com esta Chefia na repressão às atividades extremistas” nas minas, anexava
seis “boletins subversivos” distribuídos nas minas de Arroio dos Ratos e de Butiá.
Tratava-se de “mosquitos”, recortes de papel datilografados em letras maiúsculas,
saudando o aniversário de Prestes, ocorrido em 30 de janeiro de 1950, e defendendo
aumento salarial, eleições sindicais livres e a garantia de 6 horas de trabalho no subsolo,
como previa a lei. Alguns panfletos defendiam a legalidade do PCB:
SALVE 3-1-1950
ANIVERSÁRIO DE PRESTES
O GRANDE DISSÍPULO (sic)
DE STALIN, CAMPEÃO DA PAZ
NAS AMÉRICAS, MAIOR LÍDER
DO PROLETARIADO E DO POVO
BRASILEIRO
TUDO POR MELHOR SALÁRIO!
TUDO PELA LEGALIDADE DO P.C.B.!
265
Os textos de outros panfletos repassados pelo Cadem à polícia consideravam
Prestes como o “guia genial do proletariado e do povo brasileiro”, “Cavaleiro da
Esperança” e “senador do povo”, ao mesmo tempo em que brandiam defesas da
liberdade e do direito de greve: “A greve é a maior arma na conquista do aumento de
salário”, “Os Cr$ 500,00 [de chapa ou salário-base] ou a cobra fuma”. Os “mosquitos”
traziam também críticas ao “governo de fome de Dutra e Jobim” e ataques de “Abaixo o
capitalismo” e “Abaixo a lei de segurança”. Em julho de 1950, outra carta do Cadem à
polícia, com novos exemplares de “boletins subversivos”, alertava para o fato de
estarem “os partidários comunistas, radicados nas minas” valendo-se da luta na Coréia
para “perturbar o ritmo dos nossos trabalhos de extração de carvão”, o que, segundo o
264
A trajetória de Gerino Lucas, relatada no final deste capítulo, é um exemplo disso.
265
Panfleto distribuído nas minas do Cadem, em janeiro de 1950 e repassado à polícia.
117
documento, assumia uma particular gravidade naquele momento.
266
Um ofício enviado
em setembro pelo Cadem ao Chefe de Polícia do Estado dava conta que um manifesto
do líder comunista Luís Carlos Prestes havia sido distribuído nas minas por “elementos
do extinto P.C.B.”
267
No manifesto, que conservava a sua letra e sua assinatura sobre
um papel de tom avermelhado, sugestivo à causa, Prestes pedia o voto para os
candidatos a deputado estadual e federal da Frente Democrática de Libertação Nacional.
Tais indícios confirmam a análise de G. Konrad (2006) sobre o fato de que, nas
minas de São Jerônimo, especialmente em Butiá, a repressão do Estado Novo e o
controle exercido pelo Ministério do Trabalho por meio da Inspetoria Regional do
Trabalho (IRT) não tinham conseguido eliminar a tradição comunista que havia se
enraizado desde antes de 1937. Pouco depois do lançamento do Partido Comunista do
Brasil (PCB), como partido legalizado, durante um ato político no Cinema Imperial, em
Porto Alegre, em 3 de julho de 1945, que teve a presença do líder Luís Carlos Prestes –
libertado da prisão do Estado Novo -, foi criado um comitê distrital da agremiação
comunista em Butiá, considerada a cidade mais combativa da região carbonífera. Este
comitê era composto em sua maioria por mulheres de mineiros, enquanto que o núcleo
de trabalhadores era organizado no local de trabalho. Na inauguração do comitê, que
contou com grande número de líderes comunistas, foi lançada a candidatura de Jover
Telles a deputado.
268
Como se sabe, a legalidade do PCB neste período durou pouco, já
que em 1947 o partido teria novamente seu registro cancelado pelo Tribunal Superior
Eleitoral e, no ano seguinte, os parlamentes comunistas seriam cassados.
Na época, o PCB defendia a encampação das minas de São Jerônimo por parte
governo federal. No discurso realizado em 1947, Jover Telles justificava que um dos
benefícios da medida seria permitir maior tranqüilidade aos mineiros, “pois ficariam
garantidos de que, quando inutilizados fisicamente pelo serviço, fizessem jus aos
recursos da indenização e da aposentadoria, não seriam mais escorraçados para fora do
quadro da mina”.
269
Outro benefício é que a Via Férrea do Estado poderia ter carvão a
baixo custo se o governo reaparelhasse e modernizasse a mina, beneficiando a
população gaúcha em relação ao transporte de produtos com tarifas mais baixas.
Possibilitaria, ainda, o cumprimento do Plano de Eletrificação do Estado, com a
construção de uma usina termoelétrica na boca da mina. Os comunistas defendiam a
266
Cópia de ofício do Cadem ao Chefe de Polícia, de 27/07/1950.
267
Ofício do Cadem ao Chefe de Polícia, em 15/09/1950.
268
G. Konrad, 2006, p. 332-334.
269
Telles, 1962, p.283.
118
instalação de indústrias na superfície da mina, permitindo que, quando se esgotassem as
reservas carboníferas, as vilas e cidades construídas em torno das minas continuassem a
se desenvolver. A localização de outras indústrias abriria um mercado para que as
esposas dos mineiros e seus filhos pudessem trabalhar, contribuindo para elevar o
padrão de vida das famílias. Nesta época, 50% da população das vilas eram compostas
de mulheres e 25% por jovens. Eles não tinham onde empregar-se porque “naquele
feudo que são as minas, [o Cadem] aplica o princípio de que ‘filho de peixe, peixe é’,
isto é: filho de mineiro tem que ser mineiro”.
270
O objetivo dos comunistas era o de
desancar o Cadem, transferindo o controle das minas para o Estado.
271
Um programa
similar era defendido pelo PSB, que apregoava a nacionalização das fontes e empresas
de energia, transportes e indústrias extrativas consideradas fundamentais. Os socialistas
propunham a administração das empresas nacionalizadas por órgãos constituídos de
representantes do governo, indicados pelo Executivo e aprovados pelo Legislativo, e de
representantes eleitos pelos empregados das empresas. Neste período, o PSB se
considerava “um partido para os homens que vivem do seu trabalho, e uma força de
combate contra os que vivem da exploração do trabalho alheio”.
272
Nos anos 1950, continuava a atuação de ativistas nas minas e a troca de
informações entre as companhias e a polícia. Uma correspondência do Cadem à
Repartição Central de Polícia, em janeiro de 1952, alertava para o movimento de
“elementos agitadores”, citando o jornal Lampião, editado na época pelo sindicato dos
mineiros, e “panfletos subversivos” que estariam sendo distribuídos nas minas de
Butiá.
273
Um novo ofício, em 1953, encaminhado pelo Cadem ao Chefe de Polícia do
Estado, denunciava que, uma semana antes, tinha estado nas minas de Butiá “o agitador
profissional Nelson Fleury Ramos de Aguiar”, quando houve a distribuição de um
“panfleto subversivo” dirigido “A Todos os mineiros de S. Jerônimo”, assinado pelo
Comitê Municipal de São Jerônimo do Partido Comunista do Brasil, o PCB. O
documento externava a preocupação:
Tendo em conta que nas Minas administradas por este Consórcio empregam
[nas] suas atividades cerca de 5.000 operários, a presença daquele elemento,
ali, nos traz sérias preocupações e por isso julgamos de nosso dever levar tal
fato ao conhecimento de V. Excia. (...)
270
Telles, 1962, p.283.
271
Três dias antes deste discurso, em 7 de julho de 1947, o governo do Estado havia assinado decreto
criando o Departamento Autônomo de Carvão Mineral (DACM), como já mencionado.
272
Ver Norberto, 1953.
273
Ofício do Cadem à Repartição Central de Polícia, de 17/01/1952.
119
Os ataques das empresas aos “elementos subversivos” eram a parte mais
retumbante da difamação que moviam as empresas contra os ativistas. Outros alvos
continuavam sendo alvos a falta de assiduidade dos operários e questões de cunho
moral, como os vícios do jogo, da embriaguez e da freqüência ou envolvimento em
prostíbulos. O exemplo a seguir é revelador. Diante de uma reclamatória trabalhista
impetrada por um operário da Companhia Carbonífera Minas do Butiá (CCMB), que era
delegado do Sindicato dos Mineiros, a resposta da empresa era de que o empregado
faltava ao serviço seguidamente e que justificava as ausências por um memorando
assinado por ele mesmo como diretor do sindicato. Segundo o documento, essas faltas
“eram tão seguidas e continuadas, que por vezes, o marginado chega a passar meses
inteiros sem trabalhar um só dia”. A reclamatória teria sido movida pelo trabalhador
porque a companhia se negava a lhe pagar abonos condicionados à freqüência. A
posição da empresa era de que não mereciam fé as justificativas, sugerindo que essas
“freqüentes e prolongadas” ausências do trabalho eram motivadas por outras questões:
Também o fato desse operário ser sócio de um cabaré situado fora do quadro
desta Mina nos faz crer que as freqüentes licenças que pede em nome do
sindicato são aproveitadas para melhor atender o seu negócio particular.
A referência à participação do sindicalista nos negócios de um “cabaré”
colocava em dúvida não só que as ausências fossem devido à sua atuação na entidade de
classe, mas tinha ainda o efeito de apontá-lo como alguém com moralidade suspeita. Por
outro lado, ex-mineiros que vivenciaram o período mencionam que, muitas vezes, o
sindicato era visto com desconfiança pelos trabalhadores porque constantemente seus
dirigentes faziam o jogo dos patrões, empenhando-se em evitar as greves. Entre os
próprios trabalhadores, não eram raros os enfrentamentos físicos e verbais motivados
por atritos pessoais e discordâncias políticas. Submetidos à violência de uma atividade
perigosa, exercida em condições duras, os mineiros demarcavam suas diferenças pela
afronta verbal e pela imposição da força física. Alguns conflitos que traduziam disputas
em torno da condução da categoria foram parar na Justiça. Um exemplo foi a ação penal
por crime de injúria movida em 1944 por Stanislau Zavalik contra Raimundo Andrade,
porque este, diante de outros companheiros, chamou-o de “corno”, “filho da puta” e de
“grevista”. Advertido por colegas de que eram acusações graves, Andrade teria repetido
as injúrias e dito que poderia prová-las. O processo, guardado junto com os arquivos do
Cadem, pareceria um tanto confuso à primeira vista, considerando que o termo
“grevista”, usado como ofensa, partiu de Raimundo Andrade, então secretário do
120
Sindicato dos Mineiros de Butiá, contra Stanislau Zavalik, que provavelmente era
estrangeiro ou filho de imigrante. Ao justificar os motivos da agressão, Andrade disse
que Zavalik e outro mineiro estariam fazendo “obra de desagregação social, ameaçando
perturbar a boa marcha dos trabalhos de uma assembléia geral” convocada pelo
sindicato. Na ocasião, a direção do sindicato teria recebido instruções da Delegacia de
Ordem Política e Social e da Delegacia Regional do Trabalho para proibir Zavalik e
outro operário de comparecerem à assembléia. Por causa disso, Zavalik teria primeiro
insultado Andrade, que reagiu com ofensas à sua honra. As testemunhas confirmaram as
duas primeiras injúrias, mas não se recordavam do xingamento de “grevista”.
Na cena recomposta por testemunhas, Zavalik teria questionado o sindicalista
sobre “a possibilidade de se viver com um salário baixo”, quando ouviu os insultos. Na
versão do agressor, o que o outro fez foi uma provocação. A sentença explicava os
termos utilizados na ofensa, acentuando que “corno” se refere ao marido a quem a
mulher é infiel, enquanto que “filho da p.” traduz a desonestidade da mãe do indivíduo
injuriado. “Ultrajantes para o ofendido, são, por si sós, suficientes para expô-lo ao
ridículo e ao desprezo públicos, quando, veiculadas em dado momento, encontram
guarida no meio social em que vive o injuriado”. Tratava-se de um crime contra a
honra, que poderia ser expresso em sinais, gestos ou palavras ofensivas da reputação, da
dignidade, da estima ou do apreço público do trabalhador que movia a ação. Andrade
foi condenado a um mês de reclusão, mas sendo réu primário ficaria em liberdade ao
pagar a multa de Cr$ 100,00. Dois anos depois, tendo ele próprio ingressado com uma
reclamatória trabalhista contra a Companhia Carbonífera Minas do Butiá, Raimundo
Andrade fez um acordo para sua demissão e renunciou à estabilidade sindical, alegando
estar “incompatibilizado para o serviço” por razões de saúde. Ele recebeu Cr$ 8 mil de
indenização da empresa e Cr$ 2,5 mil por benfeitorias na sua residência em Butiá.
274
Além de exprimir a importância conferida à “honra” pessoal neste período, este
processo por injúria oferece pistas importantes sobre o fato de que a acusação de
“grevista” usada contra um mineiro tenha partido de um sindicalista numa gestão que
mantinha boas relações com a polícia e a DRT. Por outro lado, as acusações ao
“peleguismo” dos dirigentes sindicais seriam freqüentes. A posição era manifesta, por
exemplo, pelo ex-mineiro Gerino Lucas, militante comunista e empregado do Cadem,
274
As informações constam da Certidão emitida pela Junta de Conciliação e Julgamento, de 08/11/1946.
121
que liderou uma greve dos trabalhadores das minas nos anos 1960, em Butiá,
enfrentando a posição conciliadora do sindicato.
275
No discurso realizado em maio de 1953, o deputado estadual socialista Cândido
Norberto denunciava na tribuna as “manobras” do Cadem
276
para dividir a categoria.
Uma estratégia adotada pelos patrões durante uma “crise” que estaria sendo enfrentada
na produção carbonífera era diminuir as horas de trabalho dos mineiros de Butiá, que
seriam os mais combativos e aqueles que “têm sabido mais valentemente enfrentá-lo”,
não fazendo o mesmo com os de Arroio dos Ratos. Ele questionava-se sobre o motivo
pelo qual as empresas não dividiam o sacrifício entre os trabalhadores das duas minas:
Por que esta manobra? Os mineiros podem responder por mim, pois são
velhos e experimentados lutadores, campeões de muitas vitórias, embora
vítimas de muitos sacrifícios... Eles conhecem mais do que eu, porque têm
sentido em sua própria carne as suas garras, a orientação diabólica e
impiedosa do famigerado Consórcio.
Aos operários que tinham solicitado o seu apoio para os problemas que
enfrentava a categoria, o deputado sugeria que continuassem lutando por seus direitos e
que se mantivessem unidos, não se deixando dividir por manobras dos patrões.
Afirmava que “um único homem” no país poderia resolver a sua situação: “Este homem
é o dr. Getúlio Dorneles Vargas, conhecido nas vésperas das eleições como o ‘pai dos
pobres’!”
277
Se Getúlio falhasse, sugeria que os mineiros recorressem à Justiça, mas
alertava que esta corria o risco de “ser comprada”. Conclamava que os mineiros
tivessem “coragem e decisão” para mostrar que o gaúcho é “o homem bravo que não se
intimida e que sabe exigir de pé, não de joelhos” os seus direitos “sagrados”. Podem-se
notar os termos pelos quais o parlamentar se refere aos mineiros: “lutadores”,
“campeões de muitas vitórias” e também “vítimas”, esboçando o cotidiano do ofício no
subsolo e das mobilizações como verdadeiras “batalhas”, cujo reconhecimento poderia
redundar também em simpatias políticas. Nas metáforas utilizadas, as companhias
reunidas no Cadem eram qualificadas de forma a traduzir sua força maléfica: portando
“garras” como animais ferozes ou monstros, com intenções “diabólicas”, “impiedosas”
e “famigeradas”. Como se viu, essas construções estavam presentes no dissídio de 1943.
No final dos anos 40, o Consórcio estava empenhado em reduzir os custos da
produção do carvão e estudava a adoção da mecanização, acompanhando os projetos de
275
A trajetória de Gerino Lucas é examinada no final deste capítulo e no capítulo 3.
276
Desde 1948 o Cadem havia se transformado em Copelmi.
277
Norberto, 1953, p.7.
122
mineradoras da Inglaterra, da França, da Polônia e da África do Sul. Engenheiros das
companhias viajavam para a Europa e para os Estados Unidos buscando conhecer as
tecnologias usadas nas minas e seus planos de modernização. Eventualmente, as
próprias visitas desses engenheiros eram limitadas pela ocorrência de greves de
trabalhadores nas minas nos países visitados, relatadas nas cartas enviadas à direção do
Cadem. As correspondências internas mostravam preocupação com a mão-de-obra
local, considerada “cara”, “má”, “escassa” e ainda apontada como “a mais dispendiosa
do mundo”. O plano que se esboçava era o de que a mecanização reduziria o número de
operários, havendo então a contratação de trabalhadores especializados, o que permitiria
à empresa fazer uma “seleção rigorosa na mão-de-obra”.
278
Como dito antes, em 1948, o
Cadem havia se tornado Companhia de Pesquisas e Lavras Minerais (Copelmi),
mantendo-se sob controle privado e fortalecendo o seu poderio.
2.3.4 Resistências, sotaques e perseguições
Muitos dos mineiros perseguidos pela companhia e pela polícia em meados dos
anos 1940 e início dos anos 1950 eram estrangeiros, fosse porque se destacassem na
organização das manifestações ou simplesmente porque tinham aderido às paralisações.
Já foi mencionado que, durante o “estado de guerra”, eles foram tratados como
“sabotadores”, ainda que, primeiro, tivessem sido denunciados à polícia por “crimes de
deserção”. Uma comunicação do engenheiro-chefe da Companhia Minas de Butiá à
direção do Cadem, em agosto de 1945, repercutia a orientação fornecida pela direção da
empresa no sentido de alterar o tratamento dado aos estrangeiros que não compareciam
ao trabalho para “crime de sabotagem” ao invés de “deserção”. O memorando referia
que outros estrangeiros haviam sido condenados como “sabotadores” apesar de ter
partido das minas processos por “deserção”. Esses processos eram encaminhados ao
Comando da Região e depois ao Tribunal de Segurança Nacional.
279
A insubordinação dos imigrantes aos abusos cometidos pela companhia se
evidencia nos documentos analisados. Um ofício enviado pelo Cadem ao chefe de
Polícia do Estado, em 03 de julho de 1947, comunicava que 16 dos 59 imigrantes
europeus autorizados pelo governo federal a trabalharem na produção de carvão nas
Minas de Butiá negavam-se “peremptoriamente” a trabalhar “insuflados por maus
elementos presentes nas minas”. Essas famílias de imigrantes eram compostas
278
Correspondência interna do Cadem em 12/08/1949.
279
Memorando da Companhia Carbonífera Minas do Butiá à direção do Cadem, em 22/08/1945.
123
principalmente de poloneses, ucranianos e austríacos.
280
O documento mencionava que
esses trabalhadores haviam viajado “de primeira classe” por via marítima com os custos
pagos pela companhia, de forma que a empresa já registrava prejuízos com sua recusa
ao trabalho. Para resolver o impasse, foi convocado o representante do Brasil no Comitê
Intergovernamental de Refugiados na Inglaterra, Ruy Carvalho, que, com o governo
federal, havia negociado a vinda dos imigrantes.
281
Dias depois, o Cadem comunicava ao Delegado de Estrangeiros que, com o
objetivo de aumentar a produção de carvão nacional, tinham embarcado no Rio de
Janeiro, e estavam a caminho pelo vapor “Itaquera”, outros 43 mineiros estrangeiros que
iriam trabalhar nas minas gaúchas e mais 51 pessoas de suas famílias. Seguia uma
relação com nomes, idades e nacionalidades e uma declaração coletiva na qual os
trabalhadores afirmavam que estavam seguindo para as minas de Butiá para trabalharem
no subsolo “por sua livre e espontânea vontade”.
282
Dois meses depois, outro ofício do
Cadem mencionava a chegada de mais dez operários estrangeiros e de 11 pessoas de
suas famílias, fornecendo nomes, idades e nacionalidades.
283
Enquanto os novos
operários estrangeiros iam chegando, outros, referidos como “poloneses domiciliados
em Minas do Butiá” davam dores de cabeça à companhia, como indica a
correspondência do Cadem ao chefe de Polícia do Estado em agosto de 1947.
284
Com
esta, seguia uma relação de nomes de seis antigos residentes poloneses da localidade
que estariam exercendo “perniciosa atividade junto aos ‘deslocados’ europeus chegados
àquelas minas”. A carta alertava a polícia que a ação desses “maus elementos” estaria
prejudicando o esforço de radicar os novos imigrantes, que também passavam a se
rebelar. As providências solicitadas eram no sentido de afastar da vila os poloneses
indesejáveis. Dois destes operários trabalhavam nas minas, outros dois estavam com o
contrato de trabalho suspenso e os demais não eram mais empregados da empresa.
Enquanto os estrangeiros considerados “subversivos” eram afastados da
atividade e da vila mineira, novos imigrantes continuavam a chegar às minas. Em 1948,
um memorando interno do Cadem mencionava a aceitação da oferta feita pela 2ª Seção
do Departamento Nacional de Imigração sobre 14 estrangeiros que haviam manifestado
interesse em trabalhar nas minas de Butiá, “alegando uns serem mineiros profissionais,
280
Hoff, 1992, p. 62, 95.
281
Ofício do Cadem ao Chefe de Polícia do Estado, de 03/07/1947.
282
Ofício do Cadem ao Delegado de Estrangeiros, de 11/07/1947.
283
Ofício do Cadem ao Delegado de Estrangeiros, de 22/09/1947.
284
Correspondência do Cadem ao Chefe de Polícia do Estado, em 06/08/1947.
124
outros terem conhecidos ali”.
285
Neste grupo de operários, que havia chegado havia
pouco da Europa e se encontrava ainda na Ilha das Flores, nove eram poloneses, dois
ucranianos, dois iugoslavos e um de nacionalidade indefinida. Cada um trazia entre dois
e sete familiares, de forma que os acompanhantes totalizavam 51 pessoas. As idades dos
trabalhadores variavam entre os 24 e os 42 anos. Sete deles tinham experiência na
mineração nos países de origem, mas havia também agricultores e operários de outros
segmentos, tais como serralheiros, eletricista e mecânico de automóveis. Uma parte do
grupo de imigrantes manifestava interesse tanto pelas minas como pela agricultura,
inclusive entre aqueles que já tinham experiência na mineração.
286
Do final dos anos 1940 até o início dos 1960, numerosas mobilizações iriam
eclodir nas minas gaúchas, por vezes fazendo eco a mobilizações nacionais ou de
trabalhadores das minas de outros estados.
287
As companhias mantinham um controle
minucioso das ações dos trabalhadores nos períodos de preparação de uma greve e
pressionavam os sindicalistas para que evitassem a deflagração. Nos arquivos do
Cadem, uma carta enviada por um engenheiro das minas, classificada como
“Particular”, alertava para uma possível greve da categoria em agosto de 1962. A carta,
confirmando informações prestadas anteriormente por telefone, informava que os
operários, depois de tomarem conhecimento dos termos do aumento e da forma de
pagamento, tinham se reunido no sindicato e manifestado a resolução “de entrar em
greve, caso o pagamento do aumento correspondente a junho não seja pago no próximo
dia 15, juntamente com o de julho”. Com um tom pessoal, o documento fornecia
detalhes sobre a organização dos trabalhadores, mencionando a data de uma assembléia
geral para homologar a deliberação e um telefonema recebido na sede do sindicato
dando conta de mobilização idêntica pelos operários da mina de Charqueadas. Por
último, o autor da carta mencionava que havia pedido ao presidente do sindicato,
Norberto
288
, “que fizesse todo o possível para evitar a irrupção de uma greve, a qual,
como é óbvio, só viria trazer más conseqüências”, ponderando ainda “a circunstância do
Sr. Reinaldo Santos
289
ter anuído as condições de pagamento do aumento”. Os líderes
sindicais eram assim alvos de intenso assédio pelas empresas.
285
Memorando interno do Cadem, de 21/12/1948.
286
Memorando do Cadem, em 21/12/1948.
287
Sobre mobilizações de mineiros em Minas Gerais e em Santa Catarina, ver Jover Telles, 1962, p. 54-
55, 67, 73, 90, 100.
288
Noberto Nugent de Melo era o presidente do Sindicato dos Mineiros.
289
Reinaldo dos Santos era o presidente da Federação Interestadual dos Trabalhadores na Indústria da
Extração do Carvão.
125
As mobilizações e os debates em torno da insalubridade do trabalho nas minas
redundaram em avanços das legislações sobre aposentadorias. Em 1960, os mineiros
conquistaram a legislação de aposentadoria especial, com a Lei 3.807, de 26/08/19160,
que no seu artigo 31 estabeleceu que o tempo de trabalho para os trabalhadores que
exercessem atividades profissionais em serviços considerados penosos, insalubres ou
perigosos seria de 15 anos, 20 ou 25 anos. Essa lei foi regulamentada pelo Decreto
48.959-A, de 19/09/1964 e, posteriormente, novas modificações foram sendo
introduzidas em 1967, em 1968, em 1979, em 1995, em 1997 e em 1999. Desde 1968, a
lei prevê que o tempo mínimo de trabalho para requerer aposentadoria especial é de 15
anos para os mineiros de subsolo que trabalham nas frentes de produção, de 20 anos
para mineiros de subsolo afastados das frentes e de 25 anos para os de superfície.
Nos anos 1960, os atrasos de salários eram freqüentes e alguns parlamentares
buscavam soluções para amenizar os conflitos e a conseqüente interrupção da produção.
Em agosto de 1963, um telegrama do sindicato dos mineiros, da federação e da
cooperativa de consumo das Minas de Butiá ao deputado Tarso Dutra, presidente da
Comissão de Constituição e Justiça, solicitava o seu apoio “em nome de milhares de
trabalhadores na mineração de carvão e suas famílias” em favor do projeto de nº 802, de
18/08/1963, do deputado federal Clóvis Pestana (PDS/RS), que pretendia evitar
freqüentes atrasos no pagamento dos salários, decorrentes da falta de liquidação de
faturas de carvão fornecido a empresas estatais. A emenda autorizava o poder executivo
a utilizar crédito do Banco do Brasil para o financiamento do carvão nacional fornecido
para estatais e paraestatais. Em novembro daquele ano, outra greve foi deflagrada por
trabalhadores da Companhia Carbonífera Minas de Butiá (CCMB). A redução do
consumo do carvão nacional pela Via Férrea do Estado - que havia caído de 37 mil
toneladas mensais para 2 mil toneladas mensais, pela importação do óleo combustível -
motivou também um telegrama do Sindicato dos Mineiros ao então presidente João
Goulart, no qual os sindicalistas transmitiam sua “profunda preocupação” com a evasão
de divisas e com o desemprego provocado entre os trabalhadores nas minas. Na
mensagem, apelavam ao “patriotismo” do presidente para buscar reverter a situação.
Uma correspondência da Copelmi ao secretário do Trabalho e da Habitação e à
Comissão do Plano Nacional do Carvão Nacional, em 10 de julho de 1964, fazia
referência ao pedido de permissão feito pelo Sindicato dos Mineiros ao Delegado
Regional do Trabalho para a instalação, em 18 de julho, de uma assembléia geral para
decidir sobre a deflagração da greve com base na Lei n.º 4.330, de 1º de junho daquele
126
ano, fundamentada na falta de pagamento de salários nos prazos previstos pela lei. A
companhia justificava que os atrasos nos salários eram devidos ao fato de que ela ainda
não tivesse recebido as faturas contra a Termoelétrica de Charqueadas, que, por sua vez,
teria créditos junto à Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE). No jogo de
empurra-empurra, naquela data, os operários ainda não tinham recebido os salários de
abril, de forma que o atraso nos pagamentos superava os três meses. A irrupção da
greve fez com que a empresa solicitasse novamente a intervenção da polícia militar.
290
2.4 AS MINAS E O REGIME MILITAR
A associação das companhias carboníferas com as forças policiais era antiga,
como foi evidenciado, mas viveria um momento privilegiado nos governos militares,
quando ganhou novo impulso a perseguição aos mineiros “comunistas”, “subversivos” e
“agitadores”, inclusive com a prisão de trabalhadores das minas logo depois do golpe de
1964. Como ocorreu em outras categorias de trabalhadores, houve uma significativa
retração das mobilizações durante os anos de chumbo. Ainda assim, a categoria realizou
uma greve em outubro de 1964, que resultou no aviso prévio de demissão de um grupo
de trabalhadores do DACM, em Minas do Leão. De acordo com as fichas funcionais
que consultei na sede da CRM, para evitar a demissão, estes mineiros tiveram que
alegar “arrependimento” por terem participado da mobilização ruidosa que tomou as
ruas da vila mineira. Os operários referem-se à greve em seus relatos, mas parecem
sentir-se constrangidos em explorar pormenores do acordo que evitou as demissões.
Os documentos escasseiam sobre o período e a maior parte dos interlocutores,
que aprendeu a conviver com o medo, prefere silenciar sobre suas lembranças. Nos
poucos relatos dos que ousam falar do período, fica claro o temor e a desesperança
incutidos com as notícias de prisões dos companheiros, presos pelos militares com a
participação ativa e conivente das empresas de mineração. Como símbolo de tal aliança,
em novembro de 1964, a Copelmi seria condecorada com o Diploma de
Reconhecimento por Serviços Relevantes Prestados, concedido pela Associação dos
Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
291
Inaugurado o regime de
exceção, os dois sindicatos de mineiros então existentes no Estado – de Butiá e de
Charqueadas - não mantinham a mesma postura política. Enquanto que o Sindicato de
290
Os arquivos do 1º Batalhão da Polícia Militar do Rio Grande do Sul mencionam um novo
deslocamento de efetivos à Butiá, em 1964, para “manter a ordem pública”, durante uma greve de
mineiros. Disponível: www.brigadamilitar.rs.gov.br/1bpm/historic.htm
Acesso em 15/08/2009.
291
Uma carta do Cadem à ADESG, em 16/12/1964, manifesta a gratidão pela honraria concedida.
127
Mineiros de Butiá
292
, bastante forte na época, era considerado hostil ao regime militar, o
de Charqueadas era visto como “mais ou menos dócil” ao governo, segundo relato do
promotor Marco Aurélio Costa Moreira de Oliveira que, em 1964, foi designado para a
comarca de São Jerônimo. Devido à legislação militar, o promotor de justiça tinha que
fiscalizar as eleições dos sindicatos, de modo a impedir a “subversão”, “como se o
Ministério Público fosse um guardião do regime”, como ele conta. Designado para
fiscalizar a eleição sindical em Butiá, o promotor procurou o presidente da entidade para
dizer-lhe que lhe interessava apenas o aspecto formal da assembléia: “O que vocês
disserem a mim não interessa, os ataques que vocês fizerem a A, B ou C não me dizem
respeito, porque há uma liberdade sindical de associação que está na Constituição
(...).”
293
Nessas circunstâncias, ouviu as manifestações contra o regime militar.
2.4.1 Gerino Lucas, a prisão de um “mineiro comunista”
Na vida do ex-mineiro Gerino Lucas - com 77 anos à época da entrevista -, a
“grande honra”, o amor pelo trabalho construiu-se numa relação de forte conflito com a
hierarquia e, simbolicamente, com a companhia - como se verá em sua trajetória
profissional, detalhada no próximo capítulo. O que narro aqui é a sua aproximação com
o Partido Comunista do Brasil (PCB) e sua prisão após o golpe de 1964. Gerino
descobriu o partido por intermédio de um amigo ferroviário, Procópio Farinha, que já
era sindicalista e militante experiente, entre o final dos anos 1950 e começo dos anos
1960.
294
As reuniões, com cerca de oito a dez companheiros, eram feitas geralmente à
noite na casa de Procópio ou de outro militante. Sobre Procópio, ele comentava: “Era
um cara veterano, quantas vezes esteve no mato pra não matarem ele...”. Meu
informante tornou-se militante, mas por razões de segurança nunca se filiou ao PCB.
Gerino - Se meu nome fosse aparecer como comunista, que eles
[Cadem/Copelmi] desconfiassem que eu era comunista, eu não tava aqui. Eu
tenho certeza que eu não tava aqui. Eles tinham mandado me consumir. Que
logo que eu cheguei nesta mina, por qualquer coisinha que eles não se
agradavam do cara, eles mandavam... A polícia tudo era mandado por eles,
tudo era mandado por eles. [A polícia] Fazia o que a companhia mandava.
Então, agarravam e consumiam com o cara, mandavam consumir e eles
consumiam...
- A companhia de carvão ajudava nisso?
292
Ao qual pertenciam os trabalhadores de Butiá e de Leão.
293
Depoimento do promotor Marco Aurélio Costa Moreira de Oliveira ao Programa de Memória Oral do Projeto
Memória do Ministério Público do RS, em 11 de outubro de 2000. Acesso em 15/08/2009. Disponível:
http://www.mp.rs.gov.br/areas/memorial/anexos_noticias/marco_aurelio_costa_moreira_oliveira.pdf
294
Fundador do PCB em Butiá, em 1943, Procópio Farinha, agente da viação férrea, liderou greves na
região mobilizando ferroviários e mineiros. Ver Hoff, 1992, p. 245-246.
128
Gerino – Sim, a companhia de carvão é que mandava consumir! A
companhia, né. É porque aqui no quadro quem mandava era ela. Então... aí
então eu fazia meu trabalho assim por baixo do poncho, como se diz.
De tempos em tempos, Gerino participava de atividades do partido em Porto
Alegre, nas quais estavam presentes “delegados” de diferentes segmentos profissionais,
provenientes do interior e de outros Estados. Ao representar as minas de Butiá, ele era
questionado pelos companheiros sobre a forma de extração do carvão, a rotina da
produção e as relações de trabalho. “E aí a gente trazia as cargas, como se dizia, que é
como que tinha que funcionar, pelo que nós tínhamos que lutar”. Essas instruções, as
“cargas”, lhe serviam de conhecimento na condução de mobilizações da categoria.
295
Como o partido estava na clandestinidade neste período eram adotadas precauções para
que os militantes não identificassem o local das reuniões na Capital. Quando Gerino
descia do ônibus na rodoviária, havia sempre dois companheiros esperando por ele. No
interior do veículo, pediam que ele fechasse os olhos e que só os abrisse quando
estivesse dentro do prédio. Se fosse necessário, os militantes permaneciam dois ou três
dias hospedados na sede: “Ali só enxergava dentro da casa, não saía pra rua, né. Era só
dentro do prédio, ali a gente se alimentava, se acomodava pra dormir”. Quando ele
mencionava as “cargas” que recebia dos líderes partidários, perguntei-lhe se tinha
guardado algum documento daquele período. Contou-me então que “não teve estudo” e
que “nunca tinha ido ao colégio”, explicando que havia passado a infância numa área
rural que ficava longe da escola. Seu pai, agricultor, exigia que os filhos se dedicassem
somente ao trabalho, considerando que, em sua própria experiência, “o estudo não fazia
falta”. Gerino me contava isso com tristeza, afirmando que a vida lhe mostrou o
contrário: não ter estudado lhe fazia “muita falta”.
296
Tentou aprender a ler e a escrever
depois de adulto, mas não conseguiu perseverar. Nos primeiros tempos na mina,
lamentava sua condição de analfabeto:
Nos primeiros anos eu me sentia mal, achava que era inferior às outras
pessoas por não saber ler e escrever, que eu era inferior às outras pessoas.
Então, isso tudo eu tive comigo, né. Depois é que fui perdendo aquele...
aquele complexo, que as coisas não eram assim. E eu fui sempre muito
destacado assim, né, pra saber as coisas que eu não sabia, as coisas que eu me
interessava. E então eu fui pegando... E os companheiros foram me dando
assim aquela... aquela coragem. “Não, companheiro, não. Não é assim como
tu tá pensando. Tu não tem leitura, tu não tem assim estudo, mas tu é uma
pessoa muito inteligente e tu compreende bem as coisas. Mesmo assim, tu
295
Mais detalhes de sua atuação sindical são fornecidos no capítulo 3.
296
Ele insistiu para que seus filhos estudassem: eles cursaram o ensino fundamental e interromperam os
estudos, do que teriam “se arrependido” mais tarde. Sua segunda esposa também era analfabeta.
129
tem condições de ser muito mais, muitas vezes [mais] do que outros que têm
estudo”. E aí eu cheguei à conclusão de que eu alcancei isso aí.
Como ele relata acima, seu engajamento político e sua atuação nas mobilizações
da categoria que lhe forneceram o sentimento de dignidade. Mesmo sem saber ler e
escrever, com o incentivo de companheiros, foi descobrindo que poderia tornar-se um
líder das lutas desses trabalhadores. Acreditava ter sido a sua participação nas greves
que levou a empresa a desconfiar que era comunista. Contava ter “sentido o cutuco” de
que a companhia queria “consumir com ele”. Sugeria que essas desconfianças tinham
surgido por causa do seu “jeito”, de seu “sistema ou maneira de atuar”, da “coragem”
que ele tinha - e que outros não tinham - para enfrentar os patrões.
Então eles achavam... eles conhecem, eles cuidam, eles sabem como é, né, só
quem tem essa qualidade mesmo assim, na maioria, não desfazendo de todos,
não desfazendo da minha própria classe, mas quem... quem tem essa maior
liberdade, essa coragem, são os comunistas. Os comunistas, né. Então, eles
acharam que eu era comunista como de fato eu era! Só que eu não era fichado
em partido nenhum, eu não podia. Mas certo é que... me custou uma cadeia
mesmo assim esse negócio.
Segundo relatava, freqüentemente ele orientava companheiros de trabalho sobre
como se defender de perseguições de chefias. Depois do golpe de 1964, ele sentiu o
cerco se fechar. “Eles [a polícia] começaram a fazer prisão em tudo que era lugar, por
tudo quanto era recanto”, relata. Gerino sabia que havia companheiros de trabalho que,
para fazerem uma média com as chefias, delatavam os militantes.
E eles iam pegando aqueles veteranos, aqueles mais... Eles iam pegando. E
aonde chegou a minha vez! Aqui nós fomos em sete companheiros. Aí
chegou a minha vez! Eu sabia que ia chegar. Porque (...) naqueles levantes
que o Brizola deu, (...) eu cheguei a botar meu nome voluntário por duas
vezes, né. Isso aí eu botei. Então, era assim, eu não era costa curta.
Nesta passagem, Gerino referia-se aos Grupos dos Onze, cuja criação foi
estimulada por Leonel Brizola. Os líderes dos G-11 sofreram perseguições e prisões
durante a ditadura militar.
297
Entre os sete encarcerados pelo regime naquela ocasião,
em Butiá, estavam outros quatro mineiros, um ferroviário (Procópio Farinha que Gerino
chama de “compadre”) e um bancário.
298
Ele se lembrava nitidamente do dia 21 de abril
de 1964, quando a polícia chegou à sua casa. Devido ao feriado, o mineiro estava em
casa, descansando depois de um almoço em família. Havia recebido a visita do pai, da
mãe “de criação” e do irmão. Haviam almoçado uma “galinhada com arroz” e tomado
297
O tema é abordado também no capítulo 6.
298
Os nomes que se recordava são: Procópio Farinha (ferroviário), Zequinha (mineiro), Anolino Viana
(mineiro), Custódio Martins (bancário) e o “castelhano” Adão Cecílio.
130
cervejas e refrigerantes. Lá pelas tantas, Gerino tocou no tema das prisões: “Olha, quero
dizer uma coisa pra vocês: se prenderem alguém aqui no Butiá, eu também vou ser
preso, também vou”. Preocupado, o pai lhe perguntou: “Mas como tu sabe disso, meu
filho?” Gerino respondeu que sabia por causa do seu trabalho.
“Vocês não dão por surpresa... E também tem uma coisa: eu tenho um bom
ordenado na mina, eu não devo nada pra ninguém e tem esses dois porcos
gordos aí que estão prontos pra matar, né”, digo, “e se eu tirar lá [na prisão]
uns três meses, não precisa se preocupar com conta minha, não precisa ficar
devendo nada pra ninguém”. E aí o velho [seu pai] ficou muito aborrecido.
Sei que eu terminei de dizer aquilo, bateram lá na frente. Tava um dia
enjoado assim, meio friozinho, um vento antipático. (...) Eu vivia com uma
companheira. Ela foi lá e olhou. E vi quando [alguém] perguntou assim: “O
dono da casa tá aí?” Ela disse: “Tá”. “Chama ele aqui que nós queremos falar
com ele”. Eu disse: “É a Polícia! É a minha vez agora. É a minha vez”.
Quando Gerino apresentou-se, viu dois homens com revólveres na mão. Dizia-
me que, nesta época, tinha 30 e poucos anos e era “espevitado”, “esquentado”.
Perguntou do que se tratava e foi logo desfechando: Por acaso ele havia roubado?
Matado alguém? Afinal, que perseguição era aquela? Continuou falando: por que
estavam com as mãos nos revólveres? Achavam que ele iria “disparar”? Diante do
silêncio, avisava que “nunca havia disparado de nada” e que não seria naquela ocasião
que o faria, exibindo a sua valentia diante da abordagem sinistra. Então, um policial
falou: “Não, não, calma, que o teu caso é outro. Nós estamos aqui porque tu tá
enquadrado em ato subversivo! Nós queremos fazer uma revista na tua casa”. Gerino
retrucou: “Eu vou destacando que o que eu tenho é meu, e muito bem havido. Não
tenho nada de mal-havido, tudo meu é pago e não devo nada pra ninguém!” Observe-se
a referência ao “bem-havido”, o orgulho da honestidade de operário que exibia em sua
fala, um tanto para desviar a atenção dos motivos que levavam os policiais até ali. A
menção a “não dever nada para ninguém”, que dizia respeito a alguém honrado, já havia
surgido no trecho anterior, no qual ele prevenia a família para a possibilidade de ser
preso, sugerindo, se necessário, medidas práticas tais como o abate dos porcos.
Então, os policiais perguntaram se ele tinha uma arma em casa. A resposta:
“Eu não tenho! Vocês deixam onde tão as armas e vêm procurar em casa de operário
que trabalha... que trabalha de noite pra comer de dia?!” E continuou: “O que eu sei é
que os destacamentos estão nas mãos dos fazendeiros!” Os policiais começaram a
revistar o guarda-roupa, sob os protestos dele e da mulher. Numa das portas, dentro de
uma pasta, Gerino havia escondido o revólver carregado e uma caixa de balas. Achava
que, como havia negado, ia ser pego numa mentira e até havia pensado na explicação
131
que daria: “Eu tinha [esse revólver], era meu, mas não é mais meu, tô com ele vendido a
troca de bóia pros bichos, comida pros meus bichos!” Um pouco atrapalhados pelos
protestos dele e da mulher, os policiais não viram a pasta. Enquanto saíam para o
quintal, o mineiro pediu para seu irmão enrolar a arma e enterrá-la. Nesta revista, os
policiais encontraram um pequeno livro de um discurso de Luís Carlos Prestes.
Perguntaram: “É comunista?” Respondeu: “Não sou comunista!” “E como o senhor tem
esse livro?” Gerino alegou que o filho tinha ido para a escola e alguém que ele não
conhecia havia lhe mandado. Como não conhecesse a pessoa, guardou aquilo.
Acreditava que estava se saindo bem nas respostas, mas o policial lhe disse:
“É, vai ter a bondade de nos acompanhar!” Deram-lhe alguns minutos para que trocasse
de roupa. Recordava-se que, quando estavam descendo as escadas da casa, um dos
policiais, “um crioulo”, lhe disse, com risinho sarcástico: “Estou gostando do
chinesinho!” Chamavam-no de “comunista” por referência à China de Mao-Tse-Tung.
Passou-lhe pela cabeça que se reagisse à provocação seria morto logo adiante. Decidiu
manter o sangue-frio: “Enquanto não me cuspirem no rosto e não me trazerem o nome
da finada da minha mãe... vai indo”, pensou. Ele me explicava que, nesses casos, podia
até perder a vida, mas os enfrentaria. Seriam afrontas muito sérias à sua honra, coisas
que um homem não poderia engolir: aceitar uma cusparada na face era sinal de falta de
dignidade e ouvir impropérios ao nome da mãe sem reagir seria uma covardia. Viu que
os carros que participavam da operação estavam ligados à companhia: um deles era
normalmente usado pela empresa para transportar vítimas de acidentes; o outro
pertencia a um dos chefes da mina. Levado a Porto Alegre, o mineiro passou 38 dias
detido com outros 480 presos políticos no espaço de uma instituição para menores
infratores que lhes servia de cárcere. Entre os prisioneiros, havia algumas mulheres. Ali,
os militantes driblavam a vigilância para discutir questões políticas e compartilhar
notícias sobre possibilidades de libertação. Em alguns momentos do dia, os presos eram
levados para interrogatório. Das questões que lhe foram feitas, recordava-se
especialmente de duas: A que organização ele pertencia? Por que era contrário à
companhia? À segunda questão, respondia que “não era contrário”, pois seus patrões
tinham “lhe dado trabalho”, mas não aceitava “trabalhar e ser ludibriado no ordenado”.
Como o grupo preso em Butiá tivesse sido liberado depois de algum tempo,
espalhou-se a notícia de que, daquela cidade, não haveria ninguém mais a libertar,
embora Gerino ainda permanecesse preso. Seu irmão e sua companheira se
mobilizavam pedindo sua libertação. Ele acreditava que “iriam consumir com ele”.
132
Quando foi solto, após 38 dias, voltou a trabalhar na companhia. Naquele período, havia
ficado sem receber salário, de forma que precisava trabalhar intensamente. Notava,
porém, que estava sendo vigiado. Tinha menos liberdade para discutir com os capatazes
e sentia-se “perseguido”. Considerava que era o preço que tinha a pagar pela liderança
que havia conquistado entre os operários. Mas a prisão não o havia intimidado.
Nunca tive essa derrota comigo de me arrepender do que eu fazia. Nunca,
nunca tive isso aí. Mas eu sentia assim... aqueles outros operários que eram
pelegos, puxa-sacos, esses eles tratavam de outra maneira, e a gente era
tratado de outra maneira, não era igual aqueles pra eles, pra companhia.
2.5 UM TRABALHO “QUASE ESCRAVO”, UM “AÇOUGUE HUMANO”
Em Mineiros, uma raça (1993), Benedito Veit
299
reuniu pequenas biografias de
107 ex-mineiros de Arroio dos Ratos, Charqueadas, Butiá e Conde, na região
carbonífera do Baixo Jacuí, nascidos entre 1914 e 1940 e que trabalharam no Cadem
entre 1930 e 1970 em sua maioria. Este conjunto de trabalhadores corresponde em geral
a gerações anteriores àquelas às quais eu mesma tive acesso em Minas do Leão e Butiá.
O fato de terem trabalhado num empreendimento privado, o Cadem, nos fornece pistas
– raras em relação ao ponto de vista dos próprios trabalhadores no período - que podem
se constituir em elementos de comparação tanto em relação aos registros escritos, como
às trajetórias de meus informantes, a maior parte deles ligada ao DACM/CRM. No
estudo de Veit (1993), pode-se vislumbrar como a marca impressa pela mina é
permeada pelas ambigüidades. Muitos dos trabalhadores relatavam que a mineração era
a única alternativa profissional, de forma que se seguia o ofício “por necessidade”. Era
considerado um trabalho “para analfabetos”, que “não exigia qualificação profissional”.
Alguns sustentavam que era preciso “coragem” para ser mineiro, mas outros
banalizavam essa condição, assegurando que era necessário apenas “ter saúde e certidão
de nascimento”. Quase a totalidade havia nascido no Rio Grande do Sul, mas na
amostra havia também operários de Santa Catarina e de Minas Gerais. Nos discursos,
havia ênfase ao “companheirismo” e à “amizade sincera” entre os trabalhadores, que
formavam “uma irmandade”, com reiteradas críticas ao autoritarismo e à prepotência
das chefias, entre as quais havia muitos “carrascos”, embora fossem mencionadas
exceções. Dos acontecimentos mais marcantes, eles apontavam os acidentes e os
ferimentos ou mortes de colegas e as greves, com alusões à mobilização de 1946.
299
Historiador catarinense radicado em São Jerônimo (RS).
133
Os operários mencionavam a insalubridade do seu cotidiano, a “péssima”
assistência médica e as incertezas que viviam quanto a sair com vida da mina. Havia
pouca ventilação nas galerias, a fiação elétrica estava sempre desencapada e no caminho
do trabalhador havia muita água, lodo, ratos mortos e fezes humanas. A mina era
considerada por muitos como um trabalho “quase escravo”, no qual era preciso
enfrentar a escuridão, o calor, a umidade, mantendo o corpo agachado na maior parte do
tempo. Mais de um relato considerava que a cooperativa era mal administrada e que os
candidatos à presidência do sindicato eram muitas vezes indicados pela empresa. Quase
todos referiam complicações de saúde herdadas da mineração, como doenças
pulmonares, problemas na coluna, nos olhos, ouvidos, e de “nervos”, além de outras
seqüelas físicas. Muitos deles tinham se aposentado por invalidez.
O ofício de mineiro seria uma espécie de “ilusão”, na definição de um mineiro,
já que as promessas feitas para atrair os trabalhadores nunca foram cumpridas e a
profissão só teria feito enriquecer aos patrões. Um deles evocava a fala de um
companheiro numa reunião do sindicato: “Somos um burro sem rabo de Roberto
Cardoso”, referindo-se ao então poderoso presidente do Cadem. Outros, porém,
entendiam que a produção de carvão havia levado progresso e riquezas para a região,
ressaltando a importância da atividade no sustento da família. Na definição de um ex-
mineiro, o que a mineração levou à região foi “afundamentos, desmoronamentos,
rachaduras e fendas na terra”, tornando-a imprópria para construções de maior porte.
300
Para um trabalhador, “a mineração, em parte, era pior do que açougue humano,
pela grande quantidade de mortes que ocasionava, pois acontecia que às vezes entravam
na mina dez mineiros e voltavam alguns”. Outro contava que, em seus anos de subsolo,
se sentia como “um tatu enjaulado”. Mais de um operário relatava ter havido ocasiões
em que, tendo ocorrido acidentes com mortes, o Cadem orientava as chefias a
esconderem o corpo do trabalhador morto para que a produção não fosse
interrompida.
301
Num relato, via-se a crença de que no fundo de galerias abandonadas
apareceriam as almas dos colegas mortos. Um ex-mineiro recordava que, certa vez, teve
um pressentimento de que o teto da galeria iria cair, como de fato aconteceu.
Muitos expressavam um sentimento de orgulho relacionado à sua profissão.
Entre as razões evocadas estavam as de ter sido “bom trabalhador”, responsável,
pontual, cumpridor das obrigações, dedicado a fazer o serviço bem feito, alguém a quem
300
Nas correspondências do Cadem, constam reclamações de moradores sobre afundamentos no terreno.
301
Ouvi, mais de uma vez, a menção a esta suspeita por parte de antigos mineiros da Copelmi.
134
as chefias nunca tiveram motivo para chamar a atenção. “Nunca falhei e nunca escolhia
serviço”, dizia um ex-mineiro, destacando a sua dedicação e disponibilidade para o
trabalho. Para alguns, o que os orgulhava era a “experiência” acumulada, a “prática”,
que lhes permitia, por exemplo, saber se a galeria tinha riscos de desmoronar pelo som
que produzia quando batia na parede. O sentimento de dignidade também surgia pelo
fato de ter o operário enfrentado perigos para salvar companheiros num acidente. Num
caso, o trabalhador relatava que, em 1959, após um desmoronamento, encontrou uma
saída para outro poço podendo assim ajudar a salvar 42 companheiros que estavam
isolados no subsolo havia três dias. As falas traduziam também um sentimento de
“honra coletiva”, pois contava muito pertencer à “raça forte” dos mineiros, considerada
das mais participativas, unidas e conscientes. A maioria guardava algum símbolo destas
memórias, como um documento, uma imagem ou ferramenta usada na mina. A relíquia
podia ser a carteira profissional ou uma fotografia, um lampião de carbureto, uma pá
apelidada de “bunda de moça”, uma machadinha, etc. Um ex-mineiro guardava com
orgulho uma foto onde ele aparecia junto a outros 40 cavalarianos que receberam o
presidente Getúlio Vargas, em 1950, para um comício em Arroio dos Ratos. Os
incentivos de Vargas à produção e os benefícios à proteção dos trabalhadores ficariam
longo tempo na memória dos moradores da região.
135
3 A “PEQUENA HONRA” DO TRABALHO: SETE TRAJETÓRIAS
3.1 INTRODUÇÃO
Este capítulo aborda as questões do mundo do trabalho na mina, como a da
construção de um ethos mineiro, relacionado tanto ao aspecto trágico da profissão como
à sua dimensão lúdica. O valor conferido ao que estou denominando de “pequena honra
do trabalho” se evidencia nas sete trajetórias e nos relatos de episódios vividos por estes
trabalhadores relacionados tanto aos perigos da mina, às jocosidades, como às
homenagens recebidas, tais como o concurso Mineiro Padrão
302
, as placas ou diplomas
de “Honra ao Mérito”, e, ainda, às disputas em conflitos hierárquicos. Surgem também
pistas sobre as lutas sindicais e sobre as batalhas jurídicas travadas contra a companhia.
Como alguns estudos têm indicado, tanto a honra corporativista como a honra
proletária se expressam pelo orgulho da especialidade e de suas competências corporais
(Lefebvre, 1992). As profissões de risco guardam principalmente a honra viril, abrigada
no corpo físico.
303
Pode-se dizer que os trabalhadores das minas reúnem tanto o orgulho
das competências, da habilidade, como a honra viril, ancorada em sua coragem e na
disposição para enfrentar riscos. Em estudos sobre os valores do operariado, encontra-se
a menção à “honra de classe” (Verret, 1992). Sustentar a dignidade da profissão
significa, para este autor, “mostrar que se é outra coisa que apenas nada” a vizinhos e
companheiros de trabalho: ou seja, alguém que merece o crédito, o respeito e confiança
dos outros.
304
No fundo destas representações, está o orgulho do “trabalho bem feito”,
que vale não apenas para a atividade masculina exercida na fábrica ou na mina, mas
cuja importância atravessa o universo privado, sugerindo que a casa do trabalhador “é
pobre, mas é limpa”, com o esforço contínuo das famílias para se desfazerem das
máculas, das nódoas de sujeira nas roupas, nos corpos
305
e nos espaços domésticos.
302
Para discussão em torno do surgimento da campanha Operário-Padrão no Brasil, ver Colbari, 1995.
303
Lefebvre, 1992, p.123.
304
Verret, 1992, p.129.
305
Duas observações acerca do tema. No início da minha pesquisa, certa vez um ex-mineiro me
acompanhou até prefeitura de Minas do Leão. Ali encontramos um executivo de uma companhia
carbonífera catarinense que começou a conversar comigo. Apresentei a ele meu informante. O executivo
tentou fazer uma brincadeira dizendo que, “em terra de mineiro, é só olhar para as mãos, com as unhas
pretas, que a gente sabe a ocupação”.
Meu informante, dono de uma franqueza admirável, mostrou as
próprias mãos, com as unhas limpas, e lhe disse: “Mas isso aí não é de mineiro, é relaxamento mesmo”.
Antes de sair de casa, estava justamente cortando as unhas e aproveitou o tempo de espera na prefeitura
para lixá-las. Ao sairmos do local, mostrava sua indignação: “Vai ver que em Santa Catarina os mineiros
são relaxados, de unha suja”. Na Lorena francesa, um de meus interlocutores me dizia que a profissão de
mineiro “é o métier mais limpo do mundo”, mencionando os banhos coletivos na saída da mina, nos quais
os mineiros lavavam as costas uns dos outros – um dos momentos de jocosidade do grupo. A própria
piada sobre o mérito na limpeza se contrapunha à representação de um ofício marcado pela sujeira.
136
Além do orgulho pelo “trabalho bem feito”, pelas habilidades para aperfeiçoar
ou “inventar” formas de trabalho ou mesmo equipamentos
306
, ou a “coragem” para
enfrentar patrões e chefias, há ainda as manifestações destacando a “esperteza”, a
“ousadia” e a própria arte da malandragem - espécie de anti-honra que, no universo da
mina, pode tornar-se fonte de prestígio e de reconhecimento. Os personagens que detém
talento e disposição para o exercício destas artes de fazer e de dizer (De Certeaux, 1994)
costumam ser muito apreciados, de forma similar à descrita por Hoggart (1973, p.164)
entre bairros operários ingleses, de que o verdadeiro herói do proletariado é o herói
cômico não o herói romântico. No contexto em que pesquiso, a falta de vergonha
307
seja para o enfrentamento com o patrão, seja para a brincadeira - coaduna-se com o jogo
de cintura, com a habilidade verbal e corporal esperada de um “mineiro de verdade”.
3.2 GERINO LUCAS E SUAS INCONTÁVEIS BATALHAS
308
A primeira vez em que encontrei o ex-mineiro Gerino Lucas, na época com 77
anos, foi numa cerimônia realizada no sindicato da categoria, em Butiá, que teve a
participação de trabalhadores, de sindicalistas e do advogado que os assessorava.
Aquele homem grisalho, de tez morena, que arrastava um pouco uma perna e usava um
boné vermelho com inscrições do sindicato, teve seu nome mencionado algumas vezes
nos discursos. Era reverenciado por seu exemplo como operário que honrava o ofício,
por sua coragem nos movimentos grevistas e citado ainda como o trabalhador que
moveu o primeiro processo previdenciário da região. Num intervalo da cerimônia, eu o
procurei para falar de meu interesse em entrevistá-lo posteriormente. Gerino já foi
desfechando: “Eu vou te contar: a greve mais linda que eu fiz na vida...” E continuaria
falando ali mesmo se não fôssemos interrompidos. Depois disso, estive duas vezes em
sua casa, em Butiá, onde morava com a segunda esposa, duas das filhas e pelo menos
sete netos, numa casa construída por ele – um de seus sonhos como trabalhador nas
minas. No começo de janeiro de 2007, sob um calor escaldante, fizemos a primeira de
duas longas entrevistas, só interrompidas por mim quando ele dava mostras de cansaço.
Na época, ele estava em tratamento médico contra um câncer de próstata, situação que
era encarada como outra “batalha” similar às que havia enfrentado na dura vida de
mineiro. Ele abria a conversa mencionando, a propósito da política nacional, os
306
Tal como os “artistas” referidos por Leite Lopes (1976).
307
Sobre a questão da “vergonha” nas classes populares, ver Duarte (1987b).
308
Parte da trajetória dele, relativa à militância no PCB e a prisão no regime militar, está no capítulo 2.
137
“barbarismos de pessoas que se trocam” por dinheiro. Depois, começava por mencionar
as suas “brigas” no interior da companhia - a Copelmi, que sucedeu o antigo Cadem.
Eu denunciava aquelas coisas mal feitas. E eu dizia pros capatazes, aqueles
que viviam sempre me prejudicando... a me prejudicar na minha produção,
que eu era tarefeiro, né. E eu dizia pra eles: “Olha, vocês vão morar a vida
inteira aí, num galinheiro desses que a companhia dá pra nós morar, agora, se
Deus Nosso Senhor quiser, custe o que custar, eu vou fazer um barraquinho
mais ou menos pra mim”. (...) E aí eu consegui. Consegui, não pude melhorar
mais porque... [a companhia] sempre roubando, sempre roubando no nosso
ordenado. Isso aí é um dos maiores banditismos que essa gente faz. Sô
revoltado com isso aí!
Uma de suas “revoltas” era com a apropriação que a companhia carbonífera
fazia do produto do esforço dos trabalhadores, executando o que ele considerava ser um
“roubo”: pagar menos do que o operário tinha direito por sua produção. Denunciar “as
coisas mal-feitas”, revidar pela palavra à perseguição dos capatazes que se aliavam à
empresa contra o trabalhador era parte de suas lutas cotidianas. Desde cedo, tinha como
uma meta fazer a sua casa, mesmo que fosse “um barraquinho”, mas em melhores
condições do que o “galinheiro” oferecido pela companhia aos operários.
Gerino nasceu em 1929, em Encruzilhada do Sul, em uma família de
agricultores sem propriedades. Seu pai havia ocupado uma área que “ninguém sabia de
quem era” e ali ficou morando por muitos anos, ao longo dos quais cultivava a terra,
plantando milho, feijão, linhaça, alpiste, trigo, aveia e cevada, com o auxílio de um
arado e contando com a mão-de-obra familiar, formada pelo casal e quatro filhos - dois
rapazes e duas moças. Diversas famílias nas redondezas viviam em condições similares,
esperando que nunca aparecesse o dono da área reclamando a propriedade. Foi devido a
uma praga de gafanhotos, nos anos 1940, que destruiu as plantações, que surgiu a
decisão de abandonar a terra e de procurar emprego nas minas. Essas cenas do ataque
dos gafanhotos continuam nítidas na sua memória mais de meio século depois:
É uma coisa assim que num dia que nem hoje assim [ensolarado], quando
vinha a nuvem, como a gente dizia, ficava... sombreava tudo, escurecia, não
aparecia sol. E aonde eles sentavam ali, que eles baixavam, não adiantava
correr atrás dos bichos. O milho podia tá... tá granado, ficava por terra aquilo,
como coisa que fosse arada a terra recém. (...) Aí em 1948, coisa que nunca
tinha acontecido, eles passaram o ano todo. (...) Eles tinham assim que
desovar. Vieram os primeiros, tiveram família, que desovou, como se diz, né.
Os velhos foram embora, ficaram aqueles novos, e aqueles novos tornaram a
produzir de novo, e aí foi o ano todo, né, e aí não ficou mais nada, que só o
que eles não comiam era (...) batatinha, que tava embaixo da terra (...), e
aipim (...) que tava pronta pra colher, né. Era só o que não comiam, no mais
eles limparam tudo! E aí não ficou mais nada! E aí o meu pai achou por bem,
era um homem novo ainda, com 40 e poucos anos, achou por bem nós ir
embora pra mina. Eu tinha 19 anos quando vim.
138
A família foi então morar em Arroio dos Ratos, a primeira cidade organizada
em torno da mineração na região carbonífera. Ali, Gerino trabalhou inicialmente como
ferroviário - segundo ele, um dos “serviços mais brabos” em que já se empregou e no
qual ganhava “um salário miserável”. Depois de alguns meses na atividade, passou a
reivindicar o ajuste no salário que a empresa havia lhe prometido sem cumprir. Como a
ferrovia e a mina pertencessem à mesma companhia, ele ouvia de colegas: “Rapaz, tu
não vai pra baixo da mina? Tu vai ganhar três vezes mais do que tu ganha aí e tu vai
trabalhar só seis horas!” Ele respondia: “Não, não. Eu não quero ir pra baixo do chão, só
depois que eu morrer! Não vou, vou ficar por aqui”. Mas quando um irmão seu “de
criação” conseguiu um emprego na mina e Gerino pôde ver que, realmente, este
ganhava mais trabalhando menos horas, repensou a decisão. Assim, em 1952, ele se
tornava operário na mina de Arroio dos Ratos. Primeiro, teve que vencer a resistência
do capataz na ferrovia, que não queria “largá-lo”, porque era o braço direito no trabalho.
O capataz, Ataídes Miranda, acabou concordando, mas em tom de desafio: “É, quer ir
pra baixo da mina... vai acontecer como os outros, que foram (...) e vieram pra cá
incomodar de novo! Nem recebi eles!” Nesta época, eram onze locomotivas em
operação e o capataz comandava 200 operários. A resposta de Gerino foi esta: “Olha,
seu Ataídes, (...) se eu for pra baixo da mina, eu vou e aqui não volto mais, que eu tenho
vergonha na cara e eu tenho palavra! Vou-me embora daqui, fico sem serviço, mas aqui
não volto mais!” Ao narrar esse tipo de discussão, o ex-mineiro assumia um tom
enfático, gesticulando com o dedo em riste na interpretação da cena na qual ele
encarava o desafio do chefe. Em alguns momentos, interrompia o relato e produzia um
som sibilante – “shsss...shsss...” - para espantar as galinhas que entravam na peça em
que nos encontrávamos, uma varanda ao lado da casa. Estava me explicando que o
trabalho na ferrovia era “duro”, pois passava o dia trocando dormentes da linha férrea,
sentado no chão, sob um sol abrasador. Ao falar com o capataz para acertar a mudança,
ouviu novamente a ameaça de que, se mudasse de idéia, não teria mais emprego. Mas
Gerino tinha a sua palavra: “Vai fazendo uma cruz nas costas, Seu Ataídes, porque
jamais eu volto aqui! Eu tenho o meu capricho! Vou-me embora, mas aqui não volto!”
Logo nos primeiros tempos, trabalhando como ajudante de tocador de carro no
subsolo da mina, começou a “dobrar” fazendo duas jornadas diárias como forma de
aumentar o ordenado. Gerino dizia que não sentiu medo ao descer ao poço, com uma
profundidade de mais de 100 metros, mas teve que se acostumar com o desconforto de
139
avançar na galeria com o corpo agachado. Era necessário também prestar atenção para
não levar choques nos fios desencapados e nas locomotivas usadas no transporte do
carvão. Quando fechou aquele mês, com 27 dias de trabalho, “mais uma carrada de
dobres”, recebeu o salário e foi ter com o ex-capataz da ferrovia, que lhe provocou: “E
aí, vai ficar rico agora, né?” O mineiro exibiu o envelope: “Pra rico ainda não dá, mas
ganhei mais do que o senhor! Quer ver?” Como “não repugnava serviço” foi
aumentando a sua produção. Numa ocasião, “logrado” por um capataz que não lhe deu a
gratificação que o tocador de carros deveria dividir com a equipe, ao receber o salário
atirou o dinheiro sobre o outro: “Toma, pra comprar velas!”, ameaçou. O outro levantou
o cabo da picareta para atingi-lo e Gerino agarrou duas pedras de carvão, chamando-o
de “sem-vergonha” e “ladrão”. Seus colegas de trabalho intervieram para conter a briga
e, na confusão, o dinheiro extraviou-se pela galeria. Em outra ocasião, reclamou seus
direitos ameaçando dar uma “lampionada” no patrão de galeria. Por causa desses
enfrentamentos, passou a ser respeitado. Lembrava que havia colegas que, para obter
uma boa zona de extração de carvão e aumentar seus rendimentos, davam presentes aos
chefes. Eles tinham o seu desprezo: “São uns puxa-sacos, pelegos! O que eu ganhei foi
no meu braço!” Mas o capataz com quem trabalhava pedia “recompensas”, ameaçando
transferi-lo para a mina de Butiá, para onde Gerino foi, de fato, em 1957.
Na mina da Copelmi em Butiá, ele assumiu a função de furador e depois
passou a patrão de galeria, totalizando os 16 anos e meio de trabalho no subsolo – que
chegavam a 21 anos de serviço com o período na ferrovia. Recordava-se que, depois de
entrar na “gaiola” para descer ao poço, que ali tinha uma profundidade de 60 ou 70
metros, era preciso andar cerca de dois quilômetros até a frente de trabalho, “carregado
com ferramenta, com pólvora, com dinamite, um explosivo perigosíssimo”. Gerino
assistiu a alguns acidentes de companheiros. A tristeza pela perda dos colegas e a
revolta pelas condições da mina não maculavam seu “gosto” pelo ofício
- Era uma vida perigosa? O senhor gostava do trabalho? Como que era?
Gerino – Eu gostava, eu tinha paixão pelo meu serviço, adoração pelos meus
amigos. Tanto que, quando eu me aposentei, eu levei muito tempo assim com
aquele... com aquela saudade do meu serviço, da minha ferramenta, [ainda
que o serviço fosse]... uma coisa perigosíssima. E quando chegava a hora do
fogo, que nós dizia, que era a hora que os patrões queriam pagar pra extrair o
carvão, aí uma base de oito, às vezes até 12 galerias, numa base de uma pela
outra... de 80, 100 quilos [de carvão] cada uma. Aquilo chegava a tremer o
chão, chegava a tremer o chão, né, e aquilo pra nós era uma brincadeira! (...)
Era uma brincadeira, né. Você vê como as coisas são: eu mesmo a coisa que
mais eu gostava... (...) quando botava fogo e ficava escutando aquilo... que o
patrão [função que ele ocupava, patrão de galeria] conhece o tiro que arranca
140
e o que não arranca, a gente conhece. Então, eu sabia direitinho a minha
produção. “Graças a Deus, o meu fogo trabalhou bem hoje, tenho uma
produção altíssima, graças a Deus!” Então, era assim.
- Pelas explosões o senhor sabia quanto de carvão tinha produzido?
Gerino – Que eu tinha produzido! (...) Tinha condições de saber. Sabia aquele
tiro que produziu, aquele que não produziu. (...) Mas o meu era muito difícil
perder um tiro, muito difícil, porque, graças a Deus, isso aí eu aprendi
.
Na descrição minuciosa de sua atividade, de seu “gosto” – e até mesmo
“paixão” - pela profissão, da “adoração” pelos companheiros de trabalho, nota-se um
profundo envolvimento com o ofício. Esse engajamento, junto com o domínio técnico,
manifesto, por exemplo, no conhecimento que lhe permitia a leitura sons emitidos nas
explosões para retirada do mineral, imprimia-lhe o orgulho, a honra da profissão. Há
que se destacar o fato de que o momento das explosões, embora representasse grande
risco, era particularmente apreciado pelo mineiro, de forma que a adrenalina gerada pela
intensidade da experiência assemelhava-se a uma “brincadeira”. Explicava-me que as
explosões eram produzidas com bananas de dinamite, que continham uma “pólvora
especial”, “forte”, uma quantidade de salitre, enxofre e de outros ingredientes,
misturados a partir da maestria do patrão de galeria.
Tanto o ritual de trabalho como as “brincadeiras” ocorridas no subsolo
estavam marcadas pelas noções de risco e de valentia. Contava-me que, quando chegou
à mina de Butiá, sentiu-se “muito visado” num local onde imperava a lei da força e da
provocação nas relações cotidianas. Se os mineiros “não se agradassem” do novo
colega, este estava sujeito a levar uma surra. Por isso, Gerino e outros companheiros
desciam para o subsolo armados de revólveres: “A gente tinha aquela desconfiança
sempre (...) e aí a gente ia armado pro serviço, né, de preferência no terno da noite”. Ele
usava um revólver calibre 22, comprado numa loja em 1958. Enquanto esperavam “a
hora do fogo” (das explosões), se juntavam num “real”
309
para fazer tiro ao alvo nos
bonés um dos outros, que eram retirados e colocados no chão. Para iluminar o “alvo”,
colocavam um lampião e disparavam. “Nós furava tudo a bala!” Como me contava, era
uma brincadeira “entre amigos”, entre companheiros de terno. Naquele tempo, os
mineiros bebiam “a fuzel” na mina, levando uma garrafa de bebida escondida na cesta,
como cachaça ou caipirinha. Segundo ele, as chefias sabiam, mas faziam vistas grossas
“porque era depois que o serviço estava pronto”. E eles também eram “respeitados”.
- Vocês bebiam no intervalo ou depois de terminado o serviço?
309
Numa galeria, na linguagem usada na mina.
141
Gerino – É, no intervalo, quando nós esperava, tava esperando a hora do
fogo, tava tudo pronto, tinha feito a furação, tinha carregado, só esperando a
hora pra queimar. Então aí nós se juntava lá num lugar e... tomava o nosso
aperitivo e brincava, foliava, né, e contava causo ou história, né. Então era um
prazer pra gente aquilo. Era uma beleza, que a gente não sentia canseira. Era
um serviço pra bicho, mas a gente tava acostumado.
Esse “intervalo” do trabalho era um momento de sociabilidade entre
companheiros da mina, quando se desenvolviam brincadeiras e “causos” eram contados.
Esse encontro lúdico entre camaradas ajudava a esquecer do cansaço e das condições
duras e adversas daquele “serviço pra bicho”. Ao falar de si, Gerino dizia que seus
companheiros o consideravam “uma pessoa muito boa”, mas também “perigosíssima”.
Explicava: “Eu mudava de feição, tava pronto pra qualquer coisa!” Um de seus
companheiros dizia que ele devia parar com aquela atitude de sempre “querer ajudar os
outros” porque esses nunca iriam reconhecer o que ele havia feito:
O amigo - “Tu tá sujeito uma hora perder tudo o que tu tem, perder tudo o
que tu tem, até tua própria vida!”
Gerino - “Mas eu não posso [mudar], eu tenho isso comigo, eu não posso,
companheiro!”.
O amigo – (...) “Tu tem muita coragem!”
Gerino – É, mas eu sou assim, não posso mudar!
Ele julgava que alguns traços do temperamento havia herdado do avô paterno,
um baiano conhecido como Manoel Tanoeiro que teria sido um sujeito “medonho”.
Sobre ele, achava que “dava pra dizer que era bandido mesmo”, pois teria matado mais
de um desafeto ao longo da vida. Ele não sabia dizer a profissão do avô e se aquele
homem com reputação de “valente” tinha, de fato, uma. Acreditava que trabalhasse em
“plantação”. Na verdade, não o conheceu, apenas à sua fama. No caso de Gerino, o que
despertava o impulso de violência era a revolta com as injustiças que via.
Logo nos primeiros anos em que estava na mina, Gerino se aproximou do
sindicato, apesar dos alertas dos companheiros de que “aquilo era muito perigoso”, de
que “o sindicato era lugar de comunistas”. Ele me explicava que esses colegas tinham
medo de se comprometer: “É, a companhia ensinava isso. A companhia ensinava tudo
ao contrário pro operário sempre vir na mão dela”. Recordava-se que, no início, “custou
a se acostumar”, porque as primeiras reuniões sindicais de que participou resultaram em
tiroteio. Segundo seu relato, sob a alegação de que “os comunistas haviam invadido o
sindicato”, a polícia entrou e disparou contra os trabalhadores. Os soldados haviam sido
chamados pela companhia “para terminar com a junção”. Em alguns períodos, esteve
afastado do sindicato, mas, quando retornou, “não largou mais”.
142
Gerino já ocupava a função de patrão de galeria na mina de Butiá quando
comandou uma das principais greves da categoria no início dos anos 1960 – ele não se
recordava se em 1962 ou em 1963 – que durou 45 dias. Cerca de 2 mil mineiros
entraram em greve, mas o movimento parou também ferroviários e operários da usina
termoelétrica, envolvendo cerca de 6 mil trabalhadores. Ele se refere a esse movimento,
no qual liderou a comissão que decidiu pela paralisação, como “a greve mais linda que
fez na vida”. Nessa ocasião, a categoria estava com dois salários em atraso, mais o 13º
salário sem receber e pressionava por aumento salarial. A greve foi considerada
vitoriosa porque suas reivindicações foram atendidas, sem o desconto dos dias parados.
“Foi uma greve muito importante”, ressaltava. Para decidir pela deflagração, Gerino,
orientado por seu partido, o PCB,
310
solicitou a realização de uma assembléia.
- O senhor era da direção do sindicato nesta época?
Gerino – Não, eu era um operário igual aos outros. Mas pedi... pedi uma
assembléia que a gente queria, né, e com a assinatura de 40 e poucos...
[operários]. E quando chegou nos dias, comecei... O presidente [do sindicato]
era um puxa-saco da companhia. O que que eu fiz? Eu era instruído por meu
partido, que eu seguia e aprendi isso lá, quando eu militei no Partido
Comunista. Eles disseram assim: “Não, companheiro, nós sabemos como é
isso aí. Tu tem minoria, a maioria é tudo do lado dos patrões?”
“É”[respondeu Gerino]. “Então, tu faz assim: tu pega aquela tua turma de fé e
aí bota... se der pra ti botar três ou quatro lá naquele canto, tu bota lá naquele
outro também. Aqui nesse outro também a mesma coisa. Aqui nesse outro
também a mesma coisa. E deixa o resto em roda aqui, porque é tu que vai
começar o assunto, é tu, né?” Diz: “E aí, já tudo arrumadinho, direitinho, eles
já estão sabendo. Quando tu gritar, que os outros não concordarem: ‘Paramos
ou não paramos por tempo indeterminado, companheiros?’ Aí tu grita e eles
todos gritam! Queremos ver se os outros lá vão ficar do lado companhia!” (...)
E assim aconteceu. Eu já tinha arrumado tudo, instruído os companheiros da
comissão de greve, que é outra diretoria igual à do sindicato, só porém com
mais poder. Aí eu disse assim... disse assim... comecei a colocar os
companheiros. Eu coloquei o outro, o outro colocou o outro, o outro colocou
o outro e assim nós fomos colocando os companheiros de fé. Aí depois
colocamos a diretoria toda, né, da comissão de greve. Eu disse: “Eu vou fazer
uma pergunta ao presidente [do sindicato] e vocês vejam bem isso aí, cuidem
bem, cuidem bem isso aí, o que eu vou perguntar”. (....) “Escuta Alberto, qual
é... nessas alturas nós estamos de greve por tempo indeterminado [até]
quando vão pagar os nossos direitos. Qual é o maior, quem manda mais, é tu,
como presidente do sindicato, ou o presidente de greve?” Diz: “É o presidente
de greve”. “E o resto dos componentes da nossa diretoria de greve, nós somos
maiores do que o resto do sindicato?”. “Não, vocês são maiores. Vocês é
que... “. “Olha aí, companheiros, vocês tão ouvindo o poder e a carga que nós
estamos carregando nas costas, a responsabilidade que nós temos nas costas?”
(...) Aí ficamos 45 dias.
310
Sobre o envolvimento de Gerino com o PCB, ver o capítulo 2.
143
Neste relato, detalhava a estratégia – que acabou se mostrando vitoriosa –
aprendida entre os comunistas para aprovar a deflagração da greve numa situação em
que estava em minoria. Depois, esclarecia perante os colegas os poderes do presidente
da comissão de greve que, para aquela finalidade, eram superiores aos dos dirigentes da
entidade. Servia para conscientizá-los da responsabilidade que tinham, mas também
deixava claro que o movimento não seria frustrado por uma conciliação dos sindicalistas
com a companhia. Nos locais de trabalho, os piquetes impediam a entrada tanto de
operários como de chefias, de forma que o ingresso de trabalhadores que iriam cuidar da
segurança da mina, por exemplo, dependia de permissão por escrito da comissão de
greve. Ele havia participado de outras greves antes, inclusive em Arroio dos Ratos, mas
considerava que tinham sido mobilizações com menos expressão do que aquela. Ao
destacar que sua atuação nesta greve teria contribuído para a imagem que a companhia
fez dele, de “um comunista”, utilizada também para motivar a sua prisão
posteriormente
311
, Gerino usava esses termos: “Eu tomei conta do encargo e não
brochei! E não brochei, né”. Por essa expressão, nota-se a relação estreita entre os
valores da coragem e da combatividade do militante com a própria virilidade masculina.
“Não brochar” significava manter a greve forte até o fim, até que a empresa cedesse às
suas pressões, como de fato ocorreria. Tais liames sugerem que sua honra de
trabalhador, de líder operário e sua honra como homem não eram senão uma só.
Lamentava que o “mineiro é muito desunido, muito desunido”, explicando que boa
parte dos companheiros “não tinha coragem para enfrentar as coisas”. E acrescentava:
“Deus que me perdoe, os próprios presidentes [do sindicato] são meio vilões!” Na
ocasião de nossa entrevista ele se preocupava com a condução da associação dos
mineiros aposentados e repetia os conselhos que freqüentemente dava aos sindicalistas:
Os patrões não precisam de ninguém pra defender eles, eles sabem se
defender. Nós entramos pra lá [para o sindicato]... nós merecemos a
confiança dos nossos companheiros pra defender os nossos companheiros!
Jamais [para] defender patrão! (...) Mas eu tenho isso aí, e jamais vou botar
fora o que isso me custou. Isso aí pra mim é muito capricho e muita honra eu
ser uma pessoa... [assim]. Eu nunca tive aquele negócio de faca de dois
gumes: um só, comigo é um só! Mas aí chegou a um ponto... Essa mina aqui
tava com quase cem anos... vê como as coisas que os pequenos fazem não são
lembradas! Eu nunca fui nada de autoridade em lugar nenhum, nunca fui
nada. E aí... uma vez que eu ainda trabalhava na mina, (...) nós tinha dois
médicos aqui naquele tempo. E Deus que me perdoe! Por isso que eu digo, eu
não queria ser, mas eu sou violento mesmo! Eu tive na intenção de matar o
médico que nós tínhamos aí, era só ele que dava salário pra nós, né. Matar
com uma bofetada no ouvido!
311
Como foi descrito no capítulo 2, no relato de sua trajetória política.
144
Destacava seu “capricho” e sua “honra” de ser alguém que tinha clareza sobre
as diferenças entre os interesses dos patrões e os dos trabalhadores. Ele tinha seus brios
perante as relações hierárquicas. Um dos enfrentamentos que teve foi com um dos
médicos da empresa. Foi na ocasião em que, indignado com as precárias condições de
vida a que eram submetidos os mineiros na vila operária, sem água encanada e nem
mesmo em bicas próximas (o que impedia, às vezes, até que a comida fosse feita), ele
faltou um terno na mina para buscar mobilizar a vizinhança para uma campanha pela
obtenção de água.
312
A fim de evitar o desconto no ordenado, procurou o médico para
obter um atestado – ação que denominava de “pedir o salário”. Ressaltava que “não era
do seu costume falhar”, mas precisava do salário. Quando entrou na sala, o médico
dormia com a cadeira escorada na parede. Para acordá-lo, fez barulho arrastando os pés.
Gerino - Ele não tinha o costume... essa gente não tem o costume de
cumprimentar a gente: “Tu aí, o que tu queria?” [disse o médico]. “Em
primeiro lugar, bom dia, doutor!”, “Bom dia!”, aí respondeu. “Olha, o que eu
queria, doutor, é que me vi obrigado a falhar o dia de ontem e eu queria que o
senhor me desse o meu salário. Vou dizer bem a verdade, tava tratando da
minha gente e eu não tive quem fizesse a minha cesta pra mim trabalhar, o
meu café...” (...) E digo: “Não tinha água, saco vazio não pára em pé, né.
Como que eu ia trabalhar com fome? Então, eu falhei [o serviço], mas eu vim
aqui pro senhor me dar o meu salário”. “Mas tu tá bem?” Disse: “Não, não tô
doente”. E ele me cai no azar de me dizer, eu conversando numa boa com ele:
“Mas acontece que eu não dou salário pra vagabundo!” Báh! Foi a mesma
coisa que me dar uma bofetada na boca! Peguei assim na beira da mesa e
escorei ele contra a parede assim, com essa mão (mostra como fez), e até que
eu fechei a mão e trouxe cá perto. “Eu sempre ouvi dizer que um homem
mata um cavalo com uma bofetada no ouvido e eu vou te matar, desgraçado!”
- O senhor falou?
Gerino – Eu cá comigo e eu mesmo. Eu não falei, só comigo aqui, né. E aí eu
fui, fiz aquilo assim: “Tu não é capaz de repetir isso que tu... que tu disse aí
pra mim?”, “Ah, rapaz, não sabe o que é brinquedo?” [disse o médico]. “Eu
não sô acostumado a brincar brinquedo dessa natureza com tem uma camisa
mais do que eu! E me respeita conforme eu te respeito! Me respeita conforme
eu te respeito! Vagabundo se eu andasse bebendo no mesmo copo junto
contigo! Que história é essa?! Tu sabe os meus passos, o que que eu sô na
companhia, como pode me chamar de vagabundo?” Né, aí eu era medonho.
Ele assim: “Calma, rapaz, tu não sabe o que é brinquedo?!” “Eu não sô
acostumado a brincar brinquedo dessa natureza com quem tem uma camisa
mais do que eu!”
- Uma camisa a mais... o que significava?
Gerino – Seria que ele era mais do que eu, ele, um médico, e eu, um simples
operário, né. (...) E aí eu disse assim: “Tu me respeita conforme eu te
respeito, que o respeito é muito mais bonito!” E ele assim numa boa, bem
calmo, que ele conheceu o perigo, né. “Não, tu vai mandar buscar teu salário
aqui amanhã, que eu te mando, que hoje eu não tenho mais... não tenho mais
o meu bloco de salário”.
312
Mais detalhes desta mobilização podem ser encontrados no capítulo 4.
145
No relato acima, pode-se perceber como o seu sentimento de pertencer à classe
operária por oposição ao que considerava ser a hierarquia da companhia. Ao relatar a
chegada à sala do médico, destacava que “essa gente” não tinha hábito de cumprimentar
um simples trabalhador. Seu pedido do “salário” de um dia lhe parecia justo, já que era
por culpa da empresa que os mineiros se encontravam naquela situação precária, sem
água, e diante da qual ele procurava mobilizar as demais famílias para pressionar por
uma solução. A revolta que sentiu quando o médico o chamou de “vagabundo”,
supostamente em brincadeira, é a que de quem sabia o quanto custava o esforço que
dedicava a seu trabalho. Considerava que um “brinquedo dessa natureza”, partindo de
alguém que pertencia a uma classe superior era um “desrespeito”. Mas se para outros
operários tal tratamento poderia resultar em intimidação, não é o que ocorria com
Gerino. Ele fez menção de agredir o médico, gesto que expressava uma indignação
comparável à daqueles que suportam durante longo tempo as pequenas humilhações
cotidianas. Mais de uma vez, ao me contar essa história, enfatizava a própria violência e
o pensamento que teve de acabar com a vida daquele que o humilhava. Na continuidade
desta história, Gerino pediu a alguém que passasse no consultório médico para pegar o
“salário”, como havia sugerido o médico. No entanto, este havia deixado um atestado
“frio” – talvez se valendo do fato de que ele fosse analfabeto. A declaração dizia:
“Atesto que Fulano de Tal, chapa tal, diz que se encontra bem”. Para o operário, a
ausência de um dia lhe renderia três dias descontados: era um rombo em seu salário. Foi
então foi falar com outro médico da empresa e lhe explicou o caso, justificando
inclusive a sua agressão: “Ele me des-res-pei-tou”, relatou, mastigando bem as sílabas.
O segundo médico assegurou que daria um jeito e foi falar com o colega. Gerino ficou
então aguardando e ouviu parte da conversa entre os dois. O primeiro médico se
recusava: “Não dou, esse rapaz me ofendeu muito!” O mineiro dizia que teve que se
controlar para “não botar a porta abaixo” e “agarrar o médico pela goela”. Depois de
algum tempo, o atestado foi fornecido. Como, no entanto, ao chamá-lo de “vagabundo”,
aquele médico havia ferido a sua honra de trabalhador, Gerino tomou como desafio
mostrar-lhe “suas qualidades”, trabalhando os quatro anos que lhe faltavam para a
aposentadoria praticamente sem faltas ao serviço. Na companhia, eram permitidas até
seis faltas por ano: ele então se limitava a quatro no máximo, mesmo que tivesse que
comparecer à mina “doente”. De qualquer forma, até aposentar-se, em 1969, preferia
estar em atividade porque não gostava que outros colegas ocupassem o seu lugar e
146
utilizassem suas ferramentas. Justificava que não faziam o serviço “igual” a ele e ainda
“estragavam a posição do fogo”, dinamitando o carvão com menos técnica. Este esmero
é daqueles que traduzem o que estou chamando de “a pequena honra do trabalho”.
Com o aprendizado obtido em sua experiência cotidiana e as orientações do
partido, Gerino ingressou na Justiça com diversas causas coletivas e individuais nas
quais reivindicava direitos. Numa ocasião, abriu um processo para reclamar uma
defasagem salarial e saiu vitorioso. Considerava que, na empresa, foi ele que “abriu as
portas” para aquele tipo de ação. Numa ocasião, moveu um processo porque estaria
sendo alvo de perseguições na companhia: estaria recebendo sempre uma “zona ruim”
para a extração do carvão. Nesta, também obteve ganho de causa. Numa audiência,
diante do juiz, Gerino me contava que disse ao encarregado que representava a
companhia: “Vocês sempre conseguem roubar do operário!” Primeiro, tinha ouvido
tudo o que este falava contra ele. Aí pediu licença para se manifestar:
“Doutor Juiz, o senhor me permite um aparte, uma perguntinha que quero
fazer pro senhor?” Disse assim: “Pois não, pode falar”. “Aquele livro que tá
ali na entrada da porta”, me fiz assim de bem grosso, né, “aquela Bíblia que
eles botam, né”, digo, “que a gente bota a mão ali e fala o juramento, aquilo
ali só vale pra nós pequenos ou pros grandes também?” “Não, é pra todo
mundo, por quê?” “Porque o senhor me desculpe, mas o Doutor Nei [o
encarregado] tá faltando com a verdade! Não é nem assim parecido como ele
tá dizendo aí. E mais outra: eu nunca vi o carro dele nem na... no pátio do
poço onde eu trabalho, nem sei que cor tem o carro dele, como é que ele
sabe... quanto mais enxergar ele debaixo da mina, como que ele sabe que o
meu serviço é esse aí?” Pra ver como uma pessoa de estudo se perde
extraviado... Diz ele [o encarregado] assim: “Não, eu digo isso aí porque o
capataz de vocês me disse que é assim”. Digo: “Pois é, Doutor Nei, mas a
gente nunca pode confiar nos outros senão assim a gente entra pela porta
errada. É o que tá acontecendo com o senhor. A gente agarrar, né, diz que é
assim e o senhor sai com essa informação erradíssima. Não é assim! E eu lhe
digo: e essa história de falar pela boca dos outros é aquele negócio, um ditado
velho, antigo que tem, que pra mim é muito válido, que a pessoa, numa
comparação, né, que leva assim a contar pelo que os outros dizem pra ele, né,
ele tá conversando... ‘ele tá conversando pela barriga da perna’”, digo, “ele
nem sabe o que tá dizendo, ele tá dizendo uma coisa aí que não é nem
parecido com isso aí”. “Ah, não, mas o capataz lá de vocês diz que é assim”.
Depois que o encarregado expôs a sua posição, o mineiro voltou à carga:
“Pois é, primeiro tu começou lá embaixo (no subsolo) que eu sempre
ajudando, que tu não conhecia nada, depois tu foi indo, indo, aí tu chegou a
ter esse apelido que eu tenho hoje de patrão de galeria, só que tu pegou isso
aí, mas logo em seguida te tiraram que teus filhos iam morrer de fome, a tua
panela tava enferrujando, porque tu nunca ficou sabendo como se fazia
carvão, como que se fazia carvão, como que se extraia carvão debaixo da
mina. Agora tinha uma coisa que isso aí tu sabia e a companhia sabia que
[para] isso aí tu prestava, tu de capataz, até chegar a capataz geral que tu é
147
hoje, porque prejudicar teus companheiros, isso aí tu sabia. É o que tu sabe
fazer, né.” Digo: “Então, tu vai apelidar um serviço como aquele que eu
trabalho de serviço bom”, digo, “mas tu não tem conhecimento, não sabe de
nada, e nisso aí tu é cego, né, agora pra fazer o que a companhia te manda e
perseguir teus semelhantes, nisso tu é bem bom!” Eu dei no coro da cara...
Em seu relato, Gerino enfatizava sua própria esperteza em “se fazer de grosso”
questionando o juiz se o juramento da verdade valeria só para os “pequenos”. Era um de
seus recursos retóricos para desmoralizar a fala do encarregado geral, sustentando que
este “falava pela barriga da perna”, pois não tinha conhecimento do que ocorria na
mina. Na narrativa, ele faz um parêntese para chamar a atenção para o fato de que “uma
pessoa de estudo pode se perder extraviado” diante de um operário hábil. Em seus
argumentos, revelava a ajuda que havia dado a esse chefe, que tinha chegado ao subsolo
sem conhecer nada da mina. Ressaltava, assim, tanto a falta de competência daquele
como seu desconhecimento técnico sobre “como é extraído o carvão”, além de sugerir
que suas habilidades no sentido de “prejudicar os companheiros” tinham sido bem
aproveitadas pela empresa. Então, o juiz – considerado por ele “o melhor juiz pro
operário que nós tivemos na vida” – dirigiu-se ao encarregado da companhia:
“É, vocês só tem duas soluções com este operário. Hoje ele está brigando por
causa do ordenado, vocês não dão condições de ele ganhar. Ou vocês dão
condições de ele ganhar ou vocês despeçam ele, pagando o ordenado dele
dois por um porque ele tem dez anos de serviço, pagando dois por um, na
base do ordenado mais alto que ele teve na empresa. (...) Pagando... ele tem
dez anos, vocês [devem] pagar em 20 anos na base do salário mais alto que
ele teve na empresa”.
Ao relatar isso, Gerino me explicava que, se fosse demitido, ia receber “uma
nota sem tamanho”. O encarregado, então, deu sua palavra de que o mineiro receberia
melhores áreas para produção a fim de aumentar o seu salário. Antes de dar a história
por encerrada, o mineiro perguntou: “Pois é, e a perseguição política? Vai terminar essa
perseguição?” O encarregado teria dito: “Isso aí já houve, mas agora não tem mais”. O
operário fez uns ares de que esperaria para ver e que, do contrário, voltaria ao juiz.
Analisando seu próprio desempenho nesta queda-de-braço, me dizia: “É, eu era
medonho, eu era duro pra... comigo não tinha conversa. Esse negócio de “era grande”,
“era doutor”, de eu ficar constrangido de falar (...), mas é capaz!” Sentia-se orgulhoso
de sua ousadia e de sua desenvoltura nesses enfrentamentos.
Mas tinha registrado também as suas derrotas. Relatava com tristeza a história
de uma “causa” que perdeu, depois de ter tido “coragem” para mobilizar companheiros
de trabalho para ingressar na Justiça com uma ação coletiva que contou com a adesão de
148
80 mineiros exigindo que a companhia pagasse aos trabalhadores a extração de uma
pedra retirada juntamente com o carvão e que, embora fosse vendida para empresas de
cimento, não era contabilizada nos ganhos por produção. Ele considerava que esta foi
uma “das questões mais bonitas, mais lindas” em que se envolveu. Inicialmente, tinha
ido procurar um advogado em Porto Alegre respeitado por defender causas difíceis,
como a libertação de presos políticos. Este lhe sugeriu que procurasse um profissional
da própria região. O mineiro então lhe disse: “Vou ter de ser bem decidido de mandar
contra a sua classe: lá nós não temos advogado com condições de acompanhar isso.
Todos são pequenos e a companhia compra”. Então, o advogado sugeriu-lhe um colega
que era considerado “comunista”. Gerino relatava que, depois de iniciado, o processo
estava correndo bem. Mas, no último momento, esse advogado tinha “matado o tempo”
da audiência sem fazer uma intervenção. Quando o mineiro mostrava a sua impaciência,
afirmando que a companhia estava ganhando terreno, o advogado só lhe dizia: “calma,
calma”. O caso foi encerrado com ganho de causa para a companhia e Gerino saiu com
a certeza de que o advogado havia sido “comprado” pela empresa. Recriminava-se por
ele próprio não pedido ao juiz que suspendesse a sessão para continuar em outro dia.
Depois, soube que a empresa teria dado “uma fazenda” de presente ao advogado.
Gerino tinha aprendido bastante sobre os meandros da produção. Considerava
que a “moinha”, uma espécie de poeira do carvão, outro resíduo que não contava nos
salários nos ganhos por produção, era, na prática, uma contrapartida aos “benefícios”
concedidos pelas empresas aos operários, tais como o acesso à moradia. “Coragem” era
um dos termos bastante usados por ele, ao longo do seu relato, principalmente quando
se tratava de enfrentar o patrão. Quando lhe perguntei se era preciso coragem para ser
mineiro, respondeu: “Tinha que ser corajoso. Tinha muito mineiro que baixava,
trabalhava uns poucos dias e... desistia. Não tinha coragem de enfrentar. (...) Graças a
Deus, eu sempre fui assim, não sei como é... um jeito assim expressivo pra certas
coisas”. Esse “jeito expressivo”, evidenciado no relato, era valorizado neste universo:
saber falar, ter coragem de enfrentar o patrão, tornava a sua reputação respeitada.
Em seus anos de trabalho no subsolo, Gerino contraiu a pneumoconiose.
313
Mediante uma ação na Justiça por acidente do trabalho, movida em julho de 1971, ele
obteve o reconhecimento da doença, como indicava o processo a que tive acesso nos
313
A pneumoconiose é uma doença pulmonar decorrente de inalação de poeiras minerais e orgânicas em
suspensão nos ambientes de trabalho, levando a alterações do parênquima pulmonar e a manifestações
clínicas e da função pulmonar. Além da pneumoconiose, a poeira do carvão pode provocar também
antracose, pelo alto teor de cinzas no carvão gaúcho.
149
arquivos do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), em Butiá. Meu interlocutor
recordava-se que, entre seus companheiros de trabalho, muitos sofriam desse mal que,
aos poucos, ia minando suas forças, por vezes fazendo-os lamentar o próprio ingresso
no ofício. Como se sabe, a doença que não tem cura e os sintomas – tais como extremo
cansaço, tosse, dificuldades para respirar e dores nas pernas - se agravam com o tempo.
No período de nossas entrevistas, ele se indignava de que um operário pudesse
trabalhar “até quase morrer” e não ter direito a uma aposentadoria digna. Contava-me
que havia votado em Lula para presidente da República e se dizia “decepcionado” com
seu governo. Convidado a uma reunião do PT, expressara assim seu desencantamento:
“Eu levei 30 e poucos anos votando só pros perdedores... e com muita honra!
Com muita honra! Eu não me sentia derrotado mesmo assim. Eu me orgulho
disso aí! Porque eu votava pra minha gente, eu não votava pra mais ninguém.
Gente do meu partido, naquele que eu confiava. (...) Eu só perdia porque (...)
era sempre o outro lado que ganhava. E agora surgiu o Lula, do partido de
vocês [do PT] como eu achei que ele era um grande guerreiro, a mão calejada
igual à minha, até com falta de um dedo que nem eu.... Eu achei que ele ia ser
um cara de espora, mas nunca me correspondeu”.
Ele avaliava que, no primeiro mandato, Lula estava fazendo “o que os
latifundiários queriam” e a nação continuava a ser “uma vergonheira”, comandada pelas
multinacionais. “Eu não tenho estudo, mas aprendi... Aprendi no meu sacrifício que as
coisas são assim”. A seu ver, Jango Goulart havia sido “um dos melhores presidentes”
que o país teve, em cujo governo o salário do mineiro tinha “dobrado”. Alimentava
ainda forte admiração por Brizola, com quem havia encontrado algumas vezes e a quem
chamava de “companheiro” – e não de “Doutor”. Essas aproximações ocorreram
quando Gerino militava no PCB. Mais tarde, vinculou-se ao PTB e, depois, ao PDT.
3.3 LEO, OPERÁRIO-JOGADOR: “A MINA APAIXONA A GENTE”
O ex-mineiro Leotilde Braga - Leo, como é conhecido o ex-encarregado geral da
CRM - é um senhor gentil, de fala mansa e que recheia suas narrativas com imagens
poéticas acerca da mina, tecidas durante os 35 anos, dez meses e 19 dias em que
trabalhou na companhia carbonífera. É, também, um talentoso contador de histórias,
daqueles que interpretam as falas dos personagens, imitando a voz de companheiros
fanhos, de chefes autoritários e até de supostas assombrações. Aos 78 anos, Seu Leo,
Leo ou Tio Leo, como é chamado respeitosamente pelos não-parentes (é tratado pelos
150
netos como “Pai Leo”
314
), converteu-se num guardião da memória coletiva local, pois
recorda com precisão detalhes sobre o surgimento da vila mineira, do cotidiano no
subsolo e das rivalidades das equipes de futebol operário, nas quais ele mesmo atuou
durante muito tempo. Seu nome é constantemente referido para entrevistas seja por
indicações de operários, seus ex-subordinados, como por funcionários do escritório e até
por engenheiros da companhia. Foi assim que se tornou um de meus primeiros
interlocutores na localidade, ainda em meados dos anos 1990.
Linhagem dos Braga-Salgueiro: Leo (à esquerda), junto ao filho Adalberto, netos e bisneto
Criado em Butiá, filho de uma lavadeira que foi abandonada pelo marido –
mineiro do antigo Cadem -, Leo começou a trabalhar como ajudante de construção civil
para ajudar a mãe nas despesas quando tinha 11 anos. “Quando o velho nos abandonou,
éramos quatro crianças e aí, com a desculpa de visitar os filhos (...), surgiu outro filho.
Mas ele nunca contribuiu com nada, nada mesmo!”, enfatizava.
315
Único filho homem e
o mais velho, Leo começou a trabalhar aos nove anos, ajudando a mãe a enfrentar “a
vida atribulada e sem recursos”, como definia esse período. Em seus primeiros
“serviços” era uma espécie de “mandalete”. Como a mãe lavava roupas para fora, cabia
a ele entregar as roupas aos fregueses. Relatava que, na infância marcada pelo ingresso
314
Nesta localidade, há vários casos em que os netos, criados por avós, mas convivendo também com os
pais, chamam seus avós de “pais” – embora não fosse esse o caso na família de Seu Leo -, usando, por
vezes, o mesmo tratamento para pais biológicos ou, em alguns casos, tratando esses últimos pelo nome.
315
Seu pai formou uma nova família, criando outros três filhos.
151
precoce no mundo do trabalho, “estudou, mas um estudo sem seqüência”, prosseguindo
até a terceira série primária, depois de “ficar patinando” quatro anos na segunda série.
Com onze anos, eu trabalhava em construção, em construção [civil]. (...) Era
ajudante, daí foi indo. Fui me tornando profissional como carpinteiro,
pedreiro, fomos levando. Os meus patrões me davam um ordenado, mas um
ordenado era pouco pra... pra manter a família. Então, na decorrência do mês:
“Ah, seu Fulano, vou precisar de um valezinho do senhor”. Aí ele dava 15, 20
reais [cruzeiros]. No fim do mês, sempre passava, sempre faltava. Aí diz ele
assim: “Tá, deixa isso aí, não se preocupa de... se faltar alguma coisa, pode
pedir que a gente dá”. Lá um determinado tempo, o contramestre falou pra
ele, pro principal: “Olha, o salário do Leo acho que tá pouco. Pelo que esse
guri faz, merecia bem mais um pouco!”. “Quanto?” “Eu acho que um
cruzeiro por dia...” Naquele tempo, era cruzeiro, né. “Acho que um cruzeiro
por dia pra ele...”. Aí todos os meses [o patrão] tentava acrescentar um
pouquinho, aí um dia sobrou no bolso. “E aí, e agora?” [Leo perguntou] “Vai
levar isso aí, rapaz!” [disse o patrão]. Ele tava dando um aumento.
Leo ficou constrangido ao receber o aumento e justificou ao patrão que aquilo
“não tinha cabimento”, já que todos os meses ele havia ficado devendo, sem que lhe
fosse descontado e, naquela ocasião, quando havia sobrado um pouco de dinheiro, não
seria justo que ficasse com ele. O patrão respondeu: “Tu vai levar esse dinheiro, tu
ganhou isso aí, foi por merecimento. Tu deixa de ser... além de pobre, soberbo!” E
insistiu para que ficasse com todo o salário. Quando Leo voltou para casa e contou a
história para sua mãe, ela, descrente, foi na construção devolver o dinheiro. O patrão
embraveceu: “Tal filho, qual mãe!” E foi logo esclarecendo: “Já viu um patrão pagar
alguma coisa pro peão sem ele merecer?! Ele merece muito!” Quando a situação estava
menos apertada e era possível guardar alguma economia, Leo foi comprando
ferramentas de trabalho, que passaram a ser o seu orgulho. Até que chegou o período
em que deveria prestar o serviço militar em Uruguaiana. Como uma viagem para visitar
a família estava além das possibilidades financeiras, partiu em janeiro de 1948 e só
retornou no ano seguinte. Neste período, sua mãe precisou de dinheiro e viu-se obrigada
a vender a caixa de ferramentas. Leo sentiu tristeza, mas compreendeu que ela não tinha
escolha. Seu consolo foi que, algum tempo depois, não precisaria assim tanto assim
daquelas ferramentas. Ele ia tornar-se mineiro. O seu talento no futebol, exibido na
atuação como goleiro de equipes varzianas, seria o passaporte para aquele mundo.
316
No relato feito por ele, há que se destacar não apenas a interiorização de uma
responsabilidade precoce como provedor, que visava compensar – simbólica e
financeiramente – a ausência paterna, mas também a de uma espécie de gratidão em
316
Esse aspecto é abordado mais detidamente no capítulo 6, sobre as trajetórias de mineiros-jogadores.
152
relação a seu empregador, considerado generoso por lhe fornecer “vales” que nem
sempre eram descontados do minguado salário. Nos valores cultivados pelo jovem
operário, essas pequenas dívidas que lhe eram perdoadas mensalmente pelo patrão
impediam que aceitasse sem resistências um aumento de salário - o que levou seu chefe
a defini-lo como “pobre e soberbo”. A ida da mãe à empresa para tentar entender a
razão pela qual o filho aparece em casa inesperadamente com um ordenado maior nos
traduz algo desse universo das famílias operárias chefiadas por mulheres que, em que
pesem sérias dificuldades de sobrevivência, mantêm seus filhos sob estreita vigilância,
incutindo neles de forma rígida os princípios morais defendidos pelo núcleo doméstico,
baseados no trabalho duro, na honestidade e na solidariedade entre seus membros.
Assim, quando a caixa de ferramentas – que, para além da utilidade prática, confere-lhe
o estatuto de um “profissional”, enaltecendo a sua honra de trabalhador - precisa ser
vendida pela mãe para reforçar os recursos da família, tal acontecimento é encarado
com a lucidez de quem conviveu toda a sua vida encarando a dificuldade. Quando
pudesse, compraria outras ferramentas com seu trabalho.
A oportunidade de tornar-se mineiro surgiu naquele ano, em 1949. Na época, o
chefe das oficinas do DACM, José Edmundo Lorenz, integrava a diretoria do Itaúna
Futebol Clube
317
, em Minas do Leão. Interessado no ingresso de Leo como goleiro da
equipe, o encarregado foi falar com um dos engenheiros do Departamento para obter
para ele uma vaga de operário. O rapaz chegou a Minas do Leão em 10 de dezembro de
1949 e, no dia seguinte, dirigiu-se ao DACM para falar com o engenheiro que o
mediador havia lhe indicado. Como o engenheiro-assistente, o entusiasta pelo futebol,
não estivesse presente, ele foi encaminhado ao engenheiro-chefe. Na conversa nada foi
dito sobre a vinculação daquela vaga com o esporte. O encarregado foi questionado pelo
engenheiro sobre o candidato: “Ele tem profissão?” “Tem, é pedreiro e carpinteiro”.
Perguntou sua idade. A princípio, o engenheiro duvidou de suas habilidades, pois
achava que o rapaz de 20 anos era novo para dominar as duas profissões. Leo pensava
que não conseguiria o emprego: “Ele não sabia nada sobre a questão de goleiro. A parte
do esporte ninguém abordou. Só o engenheiro-assistente é que sabia. Para todos os
efeitos, era pra trabalhar, não tinha nada a ver com futebol”. Mas a vaga seria sua.
Depois de admitido, Leo permaneceu 19 anos trabalhando nas oficinas,
atividade desenvolvida na superfície, condição essa que foi estendida a outros mineiros-
317
Ver outras informações no capítulo 6.
153
jogadores, pois estavam preservados de um esforço demasiado no subsolo, sempre
sujeito ao risco e à insalubridade. Nos primeiros tempos, o jovem operário foi morar
numa habitação de três peças numa república mantida pela empresa, levando para lá,
pouco tempo depois, a mãe e três das quatro irmãs,
318
que ele ajudaria a sustentar com
seu salário. O ingresso no DACM permitiu que oferecesse certa tranqüilidade à família
em comparação com o período anterior. Quando foi trabalhar no subsolo, já tinha
conquistado a posição de encarregado. Passou pelos setores de produção e segurança,
primeiro como capataz de terno e depois passou a capataz geral. Depois de ter
trabalhado 35 anos, 10 meses e 19 dias no DACM (depois CRM), parte desse tempo no
subsolo, considerava que a mina foi “a escola que teve” e que forjou uma profissão da
qual se ele orgulha: “porque nem quartel, nem nada, me deu tanto conhecimento”.
Há elementos para supor que sua trajetória como mineiro-jogador tenha
contribuído para aumentar seu prestígio profissional junto à hierarquia da empresa
assim como o respeito que suscitava entre companheiros de trabalhos. Na sua ficha
funcional, à qual tive acesso no escritório da companhia, havia elogios sobre os
“relevantes serviços prestados” por ele à companhia
319
. Sua popularidade entre os
colegas havia sido igualmente testada quando venceu um concurso local para “Mineiro
padrão”, em 1976, cuja eleição dependia do voto dos operários da mina. Na época, ele
ocupava a função de capataz geral do Poço 1. Leo me contava que discutia muito com
os engenheiros: “Não sou criatura repentina, mas positivo”, me explicava. Alguns
engenheiros achavam que ele dava “muita colher de chá” para os operários. Sua
filosofia era outra: “Se tinha dias que o operário não tava produzindo o suficiente, eu ia
lá conversar com ele, algum motivo havia”. Volta e meia, seus antigos operários o
faziam recordar situações vividas na mina. Suas memórias eram evocadas pelos relatos
dos outros. Os operários se lembravam de que havia um capataz geral que era “ríspido”,
enquanto que Leo era “mais dócil”. Por vezes, o capataz geral encaminhava o operário
para que Leo aplicasse a punição, mas nem sempre era isso que ocorria:
“Ah, Seu Leo, o Fulano mandou eu me apresentar pro senhor”. “Mas o que
foi que houve?” Aí eles contavam: “O homem se disciplinou comigo lá,
mandou...” “Eu vou ver o que eu vou fazer. Faz o seguinte: vai embora, vai
embora e amanhã de noite vem trabalhar”. (...) E aí o cara: “Tá”. E aí ele
vinha trabalhar de noite, e no próximo [dia] ele tinha que trabalhar, aí o
capataz pensava que ele tinha sido punido em alguma coisa. Aí, por esse
motivo: “Tu te lembra aquela vez que o Fulano mandou...?” “Não me
318
As condições de vida das famílias mineiras nesta república são esmiuçadas no capítulo 4.
319
Uma anotação feita em abril de 1983 dizia: “Trata-se de pessoa que prestou e está prestando
inestimáveis serviços à CRM, sendo um exemplo de trabalho e dedicação”.
154
lembro”, “Mas foi assim, assim e assim”. Digo: “Ah, tá, agora me recordo”.
Mas se não me explicasse detalhadamente eu não ia me lembrar.
Leo enfrentou conflitos com um engenheiro que havia “implicado” com ele:
“Esse engenheiro falava muito da mina de São Roque, que lá sim o trabalho
funcionava”. Era uma crítica ao trabalho dos capatazes e dos operários da CRM.
Cansado das provocações, um dia Leo revidou: “O senhor gaba tanto a mina de São
Roque... e lá eles lhe mandaram passear!” O engenheiro recuou, assustado. “Ele achou
que eu ia bater nele”, contava meu interlocutor.
Instalações, profissões e ocupações na mina
Numa mina de carvão, há uma distinção importante a ser feita entre o trabalho na
superfície e no subsolo. Como descreve Bunse (1984), na superfície estão os escritórios
dos departamentos pessoal, comercial, jurídico e técnico; laboratórios e salas de
desenho; almoxarifado, carpintaria e oficinas (onde ficam técnicos de manutenção, que,
no tempo de funcionamento da mina, realizavam também serviços no subsolo, no
conserto de equipamentos). A primeira coisa que chama a atenção do visitante é a torre
ou trapiche. No trapiche, lugar de trabalho dos trapicheiros, está a recebedoria de cima
e as instalações para a seleção e beneficiamento do carvão. Junto à torre, fica a casa do
guincho, onde se encontra o guincho de extração, conjunto de motor elétrico, tambor e
rolamentos que, por um cabo, faz baixar e subir os skips (elevadores). Esse equipamento
é operado pelo guincheiro, atendendo a sinais acústicos e luminosos. Na superfície há
ainda a torre do poço de ventilação, com um exaustor que suga o ar gasto do fundo da
mina. Na mina de Leão I, esse poço era usado também para baixarem mineiros, material
e equipamentos. A casa do compressor envia ar comprimido ao fundo da mina para
acionar o carregamento dos skips. No pátio da companhia, era feita a estocagem de
madeiras para paus-de-mina, troncos de eucaliptos cortados para servirem de prumo ou
barra na sustentação das galerias. Antes da mecanização, em 1983, os abastecedores
carregavam troles e baixavam a madeira à mina para o escoramento das galerias.
O ingresso no poço de extração de Leão I é a bordo de um skip – que os
mineiros chamam de “gaiola”, com uma descida de 123 metros, enquanto que na mina
inacabada de Leão II o acesso às galerias, a 180 metros de profundidade, dá-se em plano
inclinado. No período mais recente, para descerem à mina, os mineiros vestiam macacão
e botas, usavam capacetes com lanterna elétrica e bateria presa a um cinto. A base do
poço é considerada o centro das atividades no subsolo, “comparável ao centro de uma
cidade subterrânea” (Bunse, 1984, p.50). Para ali convergem as reais ou galerias-
mestras, espécies de ruas com iluminação, revestidas em alvenaria ou concreto. Essas
galerias reais são separadas por um pilar de segurança. Através delas, a produção das
frentes de trabalho é encaminhada à base do poço. Sua altura é suficiente para
trafegarem locomotivas. Na base do poço, encontra-se a recebedoria e balança, operada
pelo balanceiro, que pesa as vagonetas. Maquinistas, manobreiros e guincheiros
compõem o pessoal da manobra.
As galerias de penetração são as primeiras galerias a serem abertas, fazendo-se
nelas a primeira extração de carvão. As galerias de avançamento tornavam-se depois
reais-mestras, de onde partem as galerias de serviço, estreitas, que dão acesso aos
painéis. Ainda que seja iluminada e relativamente ampla, caminhar dois quilômetros
pela real-mestre, para quem não está acostumado com uma mina, requer uma atenção
constante. É preciso cuidado para não deslizar em pontos escorregadios ou para tropeçar
155
nos dormentes que compõem os trilhos no chão. Depois disso, há travessas e
travessões, ligando duas reais, com menos altura do que as galerias. Para enviar o
ar à frente de produção, existem os tubos de ventilação. Enquanto as reais-mestras
são revestidas em alvenaria ou em concreto, as travessas e travessões recebiam
uma estrutura em madeira. Esta tarefa cabia aos madeireiros que faziam parte do
pessoal da produção, trabalhando por empreitada. A manutenção diária era feita
sob a fiscalização de um fiscal da madeira. Eles também respondiam pela
segurança das câmaras. O sistema de segurança mais comum era o quadro, feito
por dois prumos verticais sobre os quais era colocada uma barra, firmada contra a
coberta por uma cunha. A supervisão do trabalho dos madeireiros e controle da
segurança, em décadas mais recentes, ficava a cargo de um engenheiro de
segurança. Galerias abandonadas eram fechadas por paredes de tijolos. Por vezes,
uma parte servia de ferramentaria, o depósito de equipamentos e explosivos.
Na frente de serviço, está o pessoal da produção. Uma equipe compõe-se
geralmente de um patrão de galeria, dois sotas e seis ajudantes, também
chamados de carreteiro, carregador ou tocador de carros. Por vezes, é necessário
mais um ajudante, o rebocador. O carancho é um substituto na equipe. O trabalho
é feito em três ternos: o primeiro é do patrão e de dois ajudantes, nos ternos
seguintes, o patrão é substituído por um sota. No desmonte, há o trabalho com
corte e sem corte, o primeiro usado para camadas de pouca resistência, a curinga.
No processo mais antigo, para o desmonte, era preciso fazer a furação para os
tiros de mina, trabalho que era feito pelo patrão de galeria – ou pelo sota - com
uma máquina perfuratriz elétrica. Os lugares dos furos deviam ser bem escolhidos
para rechegar o banco, ou seja, deslocar sem “estraçalhar o carvão” (Bunse, 1984,
p.57), daí a importância do conhecimento técnico e da experiência do patrão de
galeria. Vários tipos de furos e tiros eram utilizados: tais como a chulana, tiro
oblíquo ascendente; picão, tiro oblíquo descendente; patarro, tiro curto para
desobstruir; lhano, tiro horizontal; e bastarda, tiro assentado obliquamente na
testada. Depois da furação, eram colocadas bananas de dinamite, espoletas e
estopins. Desmontado, o carvão era carregado na vagoneta. O próprio enchimento
do carro era considerado uma “arte” (com grandes blocos é o gradeado; carro sujo
é o que leva muita pedra). O carro era empurrado até ser engatado no cabo do
guincho. Os madeireiros entravam então em ação para fazer o escoramento.
A forma mais moderna para abrir novas frentes, como usado em Leão I até
2002, era o emprego de máquinas cortadeiras, que dispensavam o uso de
explosivos. Essas máquinas eram designadas pelo nome do fabricante: Alpine ou
Dosco. Os mineiros punham também apelidos aos equipamentos e às suas partes,
de forma que a haste da Alpine era chamada de pisseti ou pescoço. O trabalho de
encher os carros poderia ser feito por um loader, um carregador mecânico,
chamado de o homem de ferro.
A hierarquia das frentes de produção, depois do engenheiro de produção,
correspondia ao encarregado-geral (ou supervisor, na terminologia mais recente),
aos encarregados ou capatazes de terno, aos patrões de galeria ou patrões de
equipe auxiliados pelo sota. Como foi dito, o patrão comandava um grupo nos
trabalhos de extração, carregamento do mineral e escoramento da galeria. Com a
mecanização, no começo dos anos 1980, novas funções surgiram no subsolo ou
foram renomeadas, tais como o operador de máquinas, o auxiliar de produção, o
escorador (o mesmo papel do madeireiro, mas atuando na fixação de parafusos no
teto), etc. O departamento de manutenção de equipamentos, localizado no subsolo,
reunia eletricistas e mecânicos.
156
Leo ressaltava que, em seus primeiros tempos na mina, o operário não podia
confiar muito nos sindicalistas porque “faziam qualquer coisa entre o patrão e o peão,
puxando mais pro lado do patrão”, manifestando a existência de um sindicalismo
“pelego”, ali chamado de “furão” ou “carneiro” – indicado também por outros estudos
sobre a categoria na região.
320
Ele acrescentava que, muitos sindicalistas, a princípio
bem-intencionados, acabavam sendo “comprados” pela companhia.
Não, não, aquilo ali... e quando tinha um ali daqueles que puxava pro lado
do....do trabalhador, porque ele que puxava... o patrão comprava ele. (...) [O
sindicato] tinha pouquinha força. Quando ia pegar uma forcinha, o patrão
comprava, o patrão comprava que era uma beleza. “Te dou tanto! Tu quer?”.
Geralmente o sindicalista, ele era sempre ligado na companhia, ele não era
independente da companhia, ele tinha a forcinha dele lá. E então pra não
perder a força dele, ele ia... [acabava cedendo às pressões da empresa].
Ainda não havia ingressado no ofício, mas se recordava de uma greve de
mineiros ocorrida no início dos anos 1940, durante a Segunda Guerra Mundial. O
comentário que ouvia na época por parte de quem não apoiava a mobilização era:
“Além da guerra, ainda tem a greve”. Esses acontecimentos chamaram a sua atenção
porque teriam sido marcados por um fato incomum, narrado de forma um tanto
anedótica, cuja veracidade não pude confirmar. Durante o movimento que durou 45
dias, uma equipe de trabalhadores - considerados como “carneiros” porque tinham
insistido em trabalhar - ficou por uma semana no subsolo, recebendo água e comida.
Segundo meu interlocutor, esses mineiros acabaram morrendo meses depois do
episódio, de causas atribuídas ao ar viciado da mina e à alimentação deficiente. Outra
paralisação que guardou em sua memória tinha ocorrido em Butiá, com grande
320
Eckert (1985) menciona que, nas memórias dos trabalhadores entrevistados por ela em Charqueadas, o
sindicato dos mineiros em seus primórdios (em Arroio dos Ratos) era considerado um dos mais
combativos, mas a atuação pós-64 foi marcada pelo assistencialismo e o atendimento personalizado,
traduzindo também a forma como a entidade estava atrelada aos interesses patronais. Depoimentos de
operários nos anos 1980 indicavam a posição de “retaguarda” assumida pelo sindicato. Como dizia um de
seus informantes: “Quem sempre puxou a greve foram os mineiros”, ressaltando que o sindicato
ingressava depois da “greve feita” (p. 328). Sobre esta questão, ver Eckert, 1985, pp. 321-337.
O processo de beneficiamento, na superfície, continua a ser feito com o
carvão extraído a céu aberto. O processo separa o material inerte (cinzas) do carvão,
para obter maior poder calorífico. Em geral, em outras minas, como a de
Charqueadas, o carvão do silo era conduzido a uma peneira, onde era separada a
moinha, a parte fina. O graúdo ia para a escolha, onde peneireiros retiravam
manualmente as pedras. Na mina de Leão I, não há a escolha; o carvão descarregado
passa para uma correia transportadora até o britador, onde é triturado. Dali é
conduzido por outra esteira rolante até o lavador. Depois de passar por peneiras,
desaguadores e hidrociclones, o produto está pronto para alimentar uma usina
termoelétrica
,
como a de São Jerônimo
(
RS
)
.
157
participação de mineiros oriundos de Minas Gerais – uma “legião”, segundo Leo -, que
promoviam “forrós” e “serenatas” no período em que durou o movimento.
Ao falar de sua relação com a mina, Leo freqüentemente lança mão de
analogias com o mar: “Sempre dizia que carvão é igual ao mar, a gente não resiste”. Ou
ainda: “O carvão é como o mar, apaixona a gente!”. Em suas metáforas, há uma
comparação do mineiro com o pescador: no mar aberto como no interior da terra, o
trabalhador torna-se pequeno, envolto pelo gigantismo da natureza. Começava por dizer
de seu “gosto” pela mina e da estranheza dos primeiros tempos:
Apaixona... A gente se apaixona... Não tanto pela lida no carvão, né, mas pelo
ambiente de trabalho. Porque a gente chega na mina assim... a primeira
impressão que tem é de terror. (...) É, mas depois trabalhou uma semana ou
duas, não quer saber mais de trabalhar na superfície. Trabalhar lá apaixona.
Depois de... Deus o livre se queria trabalhar na superfície! (...) Mas nunca!
(...) O mar também. A gente logo que chega lá, a primeira vez, meu Deus!
321
E depois de freqüentar lá uma semana, qualquer mar, qualquer água, apaixona
também. Assusta assim de princípio. Recebe o movimento e se apavora. E
depois que entrou ali... já amei. O mar e a mina. Todos os dois começam com
“m”, né. (risos)
No seu caso, o “gosto” pelo ofício não surgiu no primeiro dia, nem foi abalado
pelos acidentes que vitimaram muitos companheiros. Ao se referir à sua trajetória na
companhia, com seus tormentos e alegrias, dizia: “O tempo aí .... 35 anos e alguns
meses. Uma vida muito... quase igual a um oceano, cheia de altos e baixos. É maré alta,
maré baixa...” Contava que da mina guardou “lembranças boas e ruins”. Um momento
delicado havia sido durante a crise do petróleo, nos anos 1970, quando, “por motivo
mundial, de falta de combustível”, a mina de Leão I passou de cerca de 360 para 1.500
operários.
Mil e quinhentos operários! Então, a gente não dispunha de muito campo pra
distribuir esse povo todo pra produzir, né, então foi um acúmulo muito
grande... Segurança precária, o material também necessário, escasso, então
foi... Aí então deu um período que promoveu muitos acidentes, muitos
acidentes até fatais, né.
No subsolo, certa vez, na abertura de um poço, ele próprio foi atingido na coxa
por um prumo de bronze de 15 quilos. Precisou ficar “no seguro” por 26 dias porque a
ferida infeccionou. Também sofreu outros acidentes de trabalho na superfície, perdendo
dois dedos da mão esquerda, um enquanto trabalhava na carpintaria na empresa, e outro
321
Leo conheceu o mar aos 28 anos. Chegou à noite ao litoral e ao ouvir a “barulheira” achava que se
anunciava uma tempestade. No dia seguinte, quando esteve frente a frente com o mar, entendeu: “Báh, vi
aquela imensidão de água, aquelas ondas, a coisa mais linda do mundo!” Quando foi chegando perto
concluiu de que “o bicho não era tão bravo assim quanto parecia”.
158
num período em que era empregado da prefeitura. Mencionava que, durante algum
tempo, na mina de Leão I, a segurança era tão precária que calculava ter perdido 12
companheiros em acidentes. Recordava-se que, em 1971, uma pedra de 300 quilos
soterrou um companheiro de trabalho. Em 1976, outros dois colegas morreram
asfixiados depois de um incêndio. A lembrança das tragédias é sempre dolorosa para
esses trabalhadores. “Fica a marca na gente para o resto da vida”, me dizia. A marca à
qual ele se referia é existencial, entranhando-se na própria identidade do trabalhador.
Relatava que, numa ocasião, a empresa tinha reunido antigos mineiros para
uma comemoração. Para ele, tinha sido um “sofrimento duplo”. Explicava: “Aquilo ali
foi uma tremenda alegria e tristeza ao mesmo tempo. Alegria por ter revisto aquilo ali,
que a gente trabalhou tanto tempo ali, e tristeza por estar entregue às moscas”. Apesar
dos anúncios de que a mina subterrânea de Leão II entraria em funcionamento, Leo já
não alimentava expectativas de um novo ciclo do carvão. “Tanta promessa que houve e,
em cada época da política, a primeira coisa que lembram é da mina. É triste”.
3.3 GELSON: “O MINEIRO É UM GUERREIRO, UM BATALHADOR”
No universo da mina, que abrigava muitos analfabetos, a escolaridade de Gelson
Pereira Nunes, feita até a quinta série do ensino fundamental, abriu-lhe possibilidades
tanto para o trabalho no escritório como para a função de capataz. Como a maior parte
dos mineiros de sua geração, Gelson, com 73 anos à época de nossa entrevista, era filho
de agricultor. Em Encruzilhada do Sul, a família criava vacas, ovelhas, porcos e
galinhas, numa rotina comum às zonas rurais da região. A mudança de rumos surgiu
depois que ele prestou o serviço militar e fez cursos para cabo e sargento. Em 1956, foi
a Minas do Leão assistir ao casamento de um irmão. Ficou só “15 dias sem serviço”.
Naquela época aqui 99% eram analfabetos. Era tudo no “dedão” na folha de
pagamentos. Aí eu tinha saído do quartel... O engenheiro disse: “Olha, tem
uma vaga na mina, mas só no subsolo”. Aí eu baixei e o próprio encarregado
ali onde baixei à mina, era analfabeto. (...) E ele tinha um apontador, que era
semi-analfabeto. Aí ele disse assim: “Eu vou pros Ratos [localidade de Arroio
dos Ratos] sexta-feira, faz a conta do terno pra mim”. E aí eu perguntei pra
ele como que era. “Não”, diz ele, “faz assim e assim”. Era uma barbada, pra
mim era. Aí eu fiz. Quando eu entreguei no escritório, (...) o chefe do serviço
da mina lá que era o Pedro Custódio: “Ué, mas quem fez?”. “Fui eu, o seu
Fulano me pediu pra eu fazer e eu fiz”. E ele ficou naquela, né. E aí em
seguida, acho que não levou dois meses, o cara que trabalhava no escritório lá
na mina de Boa Vista (...) se transferiu para Candiota, e aí esse Pedro
Custódio me chamou pra trabalhar no escritório.
159
Considerava que não tinha tido dificuldades de se adaptar no subsolo, ainda que
as galerias fossem baixas e que os trabalhadores tivessem que andar curvados.
Posteriormente, nos anos 1960, quando estava no escritório, o Poço 1 (P1 ou mina de
Leão I), com uma profundidade de 120 metros, entrou em funcionamento, com um
aumento intensivo de mão-de-obra. Após o nascimento do primeiro filho, ele começou a
pleitear alternativas para melhorar o salário. O engenheiro acenou com a possibilidade
de ele baixar à mina na posição de encarregado de terno, mas, antes, deveria “se
familiarizar com o carvão”, trabalhando como chefe do trapiche – local onde eram
pesados e descarregados os carros de carvão. Ficou satisfeito com a troca: “O ordenado
era bom e a gratificação era o dobro que me pagavam. Quando eu recebi meu primeiro
pagamento, dei pulos pra cima”. A promão que recebeu para ser encarregado
constituía, nas suas memórias, a lembrança “mais gratificante” de seus anos de trabalho
na mina: “Eu tinha orgulho de trabalhar e gostava de trabalhar”. Mas o que considerava
ser sua “grande satisfação” era que seu turno mantinha uma produção alta sem que ele
lançasse mão das recorrentes punições aos “peões”. Segundo ressaltava, a maioria dos
encarregados tentava disciplinar os operários com as suspensões, “os ganchos”.
Mandavam [o operário] subir e o cara se prejudicava muito, perdia dia de
serviço. Um dia, o engenheiro José Luiz (...) me chamou numa estação
embaixo da mina. Disse assim: “Seu Gelson, por que os outros encarregados
todas as semanas mandam subir um, dão gancho pro pessoal aí e o senhor
nunca faz isso com ninguém?”. “Doutor, eu vou fazer outra pergunta: como
que tá a minha produção?”. “Por coincidência, eu olhei na planilha, tu tá
produzindo mais do que os outros” [disse o engenheiro]. “Então, tá explicado.
Eu não preciso fazer como os outros”, disse pra ele. Não entreguei ninguém,
mas..., indiretamente, entreguei, porque o cara queria mostrar que tava
olhando através disso.
Neste relato, ele ressaltava a vigilância mantida pela hierarquia.
Às vezes, os peões erravam, mas a maioria [dos encarregados] era gente
despreparada para lidar com esse povo. O serviço da mina é um serviço muito
duro. Sabe como que eu fazia quando... “Tu, Antônio, João ou Pedro... tu vai
lá pra tal setor de serviço!” E ele saía quebrando tudo, de má vontade e
conversando sozinho. Eu sabia que ele não tava bem. Era isso o que bastava
para os outros encarregados mandarem eles subirem [darem um gancho]. E eu
fazia o seguinte: deixava passar um dia ou dois. Outro dia ele descia à mina
assobiando, (...) chegava na estação onde a escala fica, subia tranqüilo, rindo,
contando causo. “Olha, fica aí, deixa os outros na galeria, tu fica que eu quero
conversar contigo”. E aí eu perguntava pra ele assim, como foi nesse causo,
por exemplo, digo: “Fulano, naquele dia que eu te escalei assim e assim... pra
ti ir lá pra galeria lá e tu saiu pisando tudo, xingando, por que tu faz aquilo,
cara?”, ele: “Báh, não tinha leite pras crianças, não tinha dinheiro pra
comprar, não tinha... e briguei com a mulher lá e saí todo descontrolado”. E
digo: “Não, mas companheiro, vamos fazer o seguinte: tu vi ficar sempre
160
trabalhando comigo, vai ser sempre meu amigo, mas quando... problema de
casa não se traz pro serviço. Se você acha que não tá em condições... chega
aqui em cima (...): ‘Olha, tô com problema em casa e não posso trabalhar
hoje’. Só não me traz problemas de casa pro serviço”. E aí conversava com
ele e ele ficava mais meu amigo ainda.
Gelson avaliava que havia sido bem aceito como encarregado pela maior parte
dos operários porque os “tratava bem” e com “seriedade”, chamando-os de
“companheiros”. Uma das atribuições do encarregado era examinar se a galeria não
apresentava riscos antes de autorizar o começo do trabalho de extração. Nos primeiros
tempos, a técnica era rudimentar. Com um pedaço de ferro batia no teto da galeria e,
dependendo do som produzido, era avaliada a segurança - um som “oco”, “chocho”
significaria o risco de desabamentos.
Ao descrever as relações da hierarquia da CRM durante o regime militar,
mencionava que havia engenheiros que se portavam como “Hitlers”, “achando que
operário era cachorro”. Considerava que os últimos engenheiros, de meados da década
de 1990 em diante, perto daqueles, eram “verdadeiras moças”. Relatava um episódio no
qual, depois de um desmoronamento, o engenheiro determinou que o trabalho
continuasse. Gelson me contava que o enfrentou, dizendo: “Se morrer um homem aqui,
vou para a Justiça, vocês foram os matadores!” Contrariado, o engenheiro suspendeu a
atividade, mas não reconheceu o seu erro. Já ocupava a função de encarregado quando
foi eleito Mineiro Padrão na localidade, uma distinção para a qual eram considerados
pela companhia fatores tais como tempo de serviço, postos ocupados pelo empregado,
evolução na mina e freqüência ao trabalho. Depois, as indicações eram votadas pelos
trabalhadores nas vilas mineiras: Minas do Leão, Butiá, Charqueadas e Arroio dos
Ratos. Os vencedores concorriam entre si até que saísse um vencedor do Estado.
Ouvindo seu relato sobre os perigos da mina, eu o questionei:
- Ao enfrentar tantos riscos, o mineiro seria uma espécie de herói?
Gelson - É, ele enfrenta o trabalho por causa da sobrevivência da família, de
ganhar o dinheiro, mas se não fosse isso ele jamais ia fazer isso. Eu considero
que uma das coisas de mais risco é estar na frente de batalha numa guerra,
mas a mina não deixa de ser parecido.
- Seria uma espécie de guerra também?
Gelson – É, é uma guerra, só que uma guerra que tem muito menos riscos
porque... sabe como é... hoje largam uma bomba aí e matam mil e tantas
pessoas. Na mina morre lá um de ano em ano, de dois ou três anos,
felizmente. É um acidente muito longe um do outro. (...) O mineiro é um
batalhador, um guerreiro.
161
Meu interlocutor ressaltava as diferenças entre os riscos embutidos no trabalho
na mina subterrânea e aqueles dos combates militares. Esse era, por sinal, um dos temas
ao qual ele se dedicava com entusiasmo, revelando domínio técnico, por exemplo, sobre
as estratégias militares utilizadas durante a Segunda Guerra Mundial. Ele me dizia que
tinha aprendido lições importantes no Exército, como, por exemplo, que “um homem
tem que ser responsável em todos os sentidos”. Em sua experiência como encarregado,
quando comandava 188 operários, chegou à conclusão de que, além de tentar prevenir
acidentes, era preciso também ter “sorte”. Neste contexto, via as brincadeiras como
formas de driblar o medo. E elas partiam geralmente dos trabalhadores “mais polidos”,
os que já estavam socializados com a cultura operária, por contraposição aos que eram
chamados de “não-domados”, os “baguais” ou “xucros”.
Gelson contava com oito anos de trabalho na mineração quando passou a
integrar a diretoria do sindicato. Entre os acontecimentos que relata está uma greve cuja
deflagração foi forçada pelos trabalhadores do subsolo e cujo dilema – sustentá-la ou
não – teve de ser enfrentado pelos sindicalistas. Neste período, entre meados e o final
dos anos 1970, havia forte descontentamento da categoria com os níveis salariais, mas
as negociações com a empresa ainda não tinham sido iniciadas. Numa ocasião, um
grupo de mineiros do poço Otávio Reis, em Charqueadas, saiu do subsolo e declarou-se
em greve. Os dirigentes sindicais articularam-se e, à meia-noite, um carro da entidade
conduziu Gelson e outros sindicalistas a Charqueadas, onde ocorreria uma assembléia
chamada às pressas. O presidente do sindicato foi avisando: “Olha, nós temos uma
batalha dura pra resolver aí”. O tom era tenso. Consideravam que, para começar uma
greve, primeiro deveriam esgotar as negociações com a empresa. Se o sindicato
apoiasse a greve, corria o risco de que esta fosse decretada ilegal, mas se não a
deflagrasse enfrentaria a desconfiança dos trabalhadores: os operários diriam que a
entidade estava apoiando a companhia, que era “pelega”. Era uma decisão difícil, mas a
maioria chegou à conclusão que romper com a base seria mais grave do que enfrentar as
conseqüências da paralisação. A assembléia decidiu: “Vamos abraçar!”
Depois de aprovada a greve, a categoria parou massivamente durante 25 dias nas
minas da CRM (estatal) e da Copelmi (privada), reivindicando 25% de aumento salarial.
Intensas negociações começaram a ser travadas com a Copelmi, que se recusava a
conceder o reajuste. Tratava-se de uma greve deflagrada em pleno regime militar, num
período em que o ministério do Trabalho era ocupado por Arnaldo da Costa Prieto.
Durante uma rodada de negociação no escritório da Copelmi, em Porto Alegre, uma
162
mensagem do Ministério do Trabalho decretava a ilegalidade da greve, determinando
que os trabalhadores voltassem ao trabalho. Gelson recordava-se que os dirigentes
sindicais estavam “desarvados”, porque a categoria teria descontados os dias parados e
os líderes, mesmo os com estabilidade, provavelmente seriam demitidos. O fato de a
CRM ser uma estatal acabou propiciando outros desdobramentos. A comissão de greve
foi procurar o diretor-administrativo da CRM, que, tendo pretensões a uma carreira
política, mostrou-se favorável ao aumento salarial visando angariar simpatias da
categoria. Por seu intermédio, envolveu-se nas negociações o secretário de Minas e
Energia do Estado. Gelson narrava os desdobramentos: “Sabe o que aconteceu? Nós
ganhamos os 25 dias parados e 25% de aumento! Báh... foi uma vitória!” Diante do
apelo do governo do Estado, a Copelmi acabou cedendo. Para os mineiros, a conquista
tornara-se ainda mais significativa diante do temor de demissões.
A CRM era vista como mais “flexível”, mais “receptiva” às negociações com os
empregados – caráter que estaria ligado aos interesses políticos presentes nos altos
escalões da companhia – enquanto que a Copelmi era considerada “dura” nas relações
com os trabalhadores. Nesta última haviam ocorrido mobilizações históricas de
mineiros das quais ele apenas ouvira falar. Salientava que os mineiros tinham “tradição”
em realizar paralisações, mas que estas – as do passado - eram consideradas pela
população como “greves de fome”. Segundo sua explicação,
“Greve de fome” porque quem sofria eram as famílias. [Os mineiros]...
ficavam sem trabalhar 40, 50 dias e depois baixava o Exército aí. (...) Tinha a
cooperativa dos mineiros lá. Não fosse aquilo ali todo mundo passava fome.
E naquela época tinha o Exército aí (...) pra manter a ordem, pra fazer a
segurança, que dava anarquia mesmo. (...) E, naquela época, a Copelmi ia
buscar gente por tudo quanto era lugar no interior, então vinha gente de tudo
quanto era parte. (...) Tinha gente totalmente sem experiência de nada, então
era uma gente que a hora que virasse a cabeça pra um lado era um absurdo.
(...) Vinha gente muito sem instrução também, né, de cabeça dura, quando
pensasse que era uma coisa, não virava nunca, não voltava a cabeça.
Como foi dito anteriormente, o Exército e a Brigada Militar eram chamados
constantemente pelas companhias carboníferas para reprimir as manifestações dos
mineiros na região.
322
Nas referências feitas por Gelson, essa “gente sem instrução” que
seria contratada pela Copelmi eram os próprios trabalhadores das minas, originários em
boa parte das áreas rurais. O que aparece em seu relato como uma crítica ao
comportamento desses operários – gente de “cabeça dura”, capaz de “anarquia” –
322
A esse respeito, ver o capítulo 2.
163
caracteriza, por outro lado, a própria combatividade e coragem atribuída não apenas aos
trabalhadores individualmente nas suas lides nas galerias subterrâneas, mas da própria
categoria mineira em seus enfrentamentos com os patrões. Gelson relatava que, naquela
época, havia muitos “comunistas”, que, a seu ver, eram vistos como “agitadores” pela
categoria. Eles costumavam citar Luís Carlos Prestes durante as assembléias. Vários dos
seus conhecidos teriam se envolvido também com os Grupos dos Onze estimulados por
Leonel Brizola - movimento que ele denominava de “a revolução do Brizola”, mas do
qual dizia desconhecer a finalidade.
323
Ao tocar nesse tema, revelava grande prudência
em me fornecer nomes de pessoas que tivessem participado do movimento. Mas
oferecia uma pista: a de que documentos que pertenceram a Grupos dos Onze tinham
ficado guardados na sede do Atlético F.C. e teriam sido queimados ali mesmo.
Na política partidária, mantinha uma posição conservadora. Tinha integrado a
Arena, o PDS e, recentemente, tinha se engajado na campanha municipal do candidato
do PP. Ele mesmo havia sido candidato a vereador por duas vezes, numa delas
conquistando uma suplência. Orgulhava-se que “nunca trocara de partido”. Por três
gestões, havia ocupado a presidência do Clube Duque de Caxias, a entidade que ficou
conhecida como o “clube dos brancos” na localidade.
324
Ele estimulava que os filhos
avançassem em seus estudos. Na época de minha pesquisa, dois – um rapaz e uma moça
- tinham obtido nível superior e os outros dois haviam completado o ensino médio. Um
dos filhos, Eron, ocupava uma função de responsabilidade na área administrativa da
CRM na Capital
325
, evidenciando a ascensão possível de um filho de trabalhador.
3.5 JANGO: “ARTES” E DENÚNCIAS DA MINA COMO “RATOEIRA”
Conheci Jango Freitas em 2003,
quando conduzia pesquisa de
mestrado e, desde então, ele tornou-
se um de meus principais
interlocutores. O fato de que, durante
a pesquisa, eu habitasse na Vila
Freitas, numa casa alugada de um
parente seu e cuja transação contou
323
O tema relativo aos Grupos dos Onze é abordado também no capítulo 6.
324
Ver mais detalhes no capítulo 4.
325
Outras informações sobre a trajetória de Eron são abordadas no capítulo 8.
164
com seu aval de que eu era uma pessoa “de confiança”, ajudou a estreitar nossa relação.
Eu já tinha estabelecido laços de amizade com toda a família. Jango, com 65 anos à
época da última entrevista, revelou-se um interlocutor expressivo tanto no aspecto das
tragédias da mina como das suas jocosidades. Ele e seu irmão Antônio Manoel
326
eram
os filhos mais novos entre 15 do carreteiro José Antônio Freitas, que ficou conhecido
como Zeca Freitas. Viúvo duas vezes, o pai de Jango mudou-se de Rio Pardo para
Minas do Leão em 1948, para trabalhar no transporte do carvão, tendo como “capital”
cinco carretas e cerca de 80 bois mansos. O caçula Jango contava com seis anos de
idade quando chegou à vila mineira. Quando Zeca Freitas – cujo nome batiza um Centro
de Tradições Gaúchas (CTG) na localidade - passou a trabalhar com agricultura e
produção de leite, Jango teve sua primeira atividade. “Eu me criei aqui, vendendo leite:
eu era leiteiro aí nessa vila”. A imagem que ele guarda dos primeiros tempos é de uma
vila com cerca de 300 casinhas de madeira, pertencentes à companhia e que eram
cedidas aos trabalhadores. Os planos familiares eram de que os filhos, quando
crescessem, ajudariam o pai na atividade de transporte de carvão com carretas de boi,
mas a estratégia foi frustrada devido à modernização do transporte rodoviário. Depois
de um ano na atividade, a família Freitas começou a enfrentar a concorrência de
caminhões, o que inviabilizou a continuidade no ramo. A alternativa foi plantar
eucaliptos para fornecimento de madeira à mina. Mas era preciso encontrar trabalho
para os filhos mais novos. Antônio Manoel e Jango foram empregados na mina. A
própria contratação surgiu das boas relações de Zeca Freitas com a companhia.
Meu interlocutor referia-se à mineração como um setor “considerado”,
“respeitado” – fazendo menção a um valor central na educação de famílias com origem
rural. Quando começou a trabalhar no DACM, em 1959, aos 17 anos, Jango atuava na
superfície como ajudante de pedreiro e carpinteiro. Ele fazia consertos e reformas das
casas da companhia cedidas aos trabalhadores. Mas essa atividade não considerada
“uma profissão”. Seu irmão, Antônio Manoel, mecânico da empresa, convidou-o para
trabalhar com ele a fim de que aprendesse um ofício. Jango resolveu tentar, mas nunca
se identificou com a atividade: “Porque eu nunca tive assim aquela vocação de
mecânico, eu tenho até ódio de apertar os parafusos... (risos). Fui, fiquei três anos por lá
e não aprendi nada (...)”. Já estava havia seis anos na empresa, ganhava um salário
326
Um dos mineiros-jogadores que integraram o Atlético Mineiro F.C., referido no capítulo 6.
165
mínimo e continuava “sem profissão”. O fato de que não fosse “um profissional” foi um
argumento usado para lhe negar aumento.
Jango - Aí eu fui falar com ele: “Ô, seu engenheiro...”. “Não, não posso te dar
aumento, tu não tem profissão, né”. Foi quando eu fui encarar a mina.
Julieta (a esposa) – Na primeira semana tu quis desistir...
Jango – Ah, claro, eu cheguei lá... ô Marta, eu já era apavorado, eu já era
apavorado da mina, né. (...) Eu tinha vontade de fugir, tu entende? Apesar que
eu nunca tive contato nenhum com mina, né. Eu sempre trabalhei na
superfície, no céu aberto. Báh... eu cheguei lá e me apavorei do... do... cheiro
da mina, do gás, da fumaça da mina. Bem, não tem como não apavorar. Eu
cheguei a pedir pra ir embora e aí a Julieta (sua noiva na época) sugeriu:
“Não, tu vai experimentando, vai...” A Julieta me deu muita força sobre isso
aí, né. Aí eu fui indo, fui indo, que depois, Marta, eu acostumei com aquele
ambiente da mina, aí, graças a Deus, me animei com a mina, me dei bem e
tudo, né. Sempre tive uma amizade muito boa na mina também.
Mesmo com os receios que tinha da mina, decidiu trabalhar no subsolo para
aumentar seu salário porque tinha planos de se casar. Sua primeira função no subsolo
foi como madeireiro, responsável pelo escoramento da galeria. “Na época, não tinha
maquinário, era tudo manual, né, transporte era tudo na base do carrinho. Então, ali o
meu patrão se aposentou, eu passei a ser sota, capataz de equipe, aí eu teria já uma
porcentagem de 15% de vantagem na produção”. Posteriormente, passaria a patrão de
galeria, função gratificada em 30% sobre a produção do grupo. Nessa época, a mina
funcionava 24 horas por dia. O patrão de equipe comandava um grupo de seis homens
nos trabalhos de extração do carvão, carregamento do mineral e escoramento da galeria.
Jango recebia “por produção”. Tinha trabalhado “por conta da casa”, como diarista, nos
dois primeiros meses no subsolo. Depois disso, insistia com os capatazes:
“Seu Chico, me dá uma oportunidade aí, me bota na produção, na tarefa”.
“Ah, rapaz”, os caras diziam pra mim, né, os caras quase morriam rindo, né,
“tu recém faz um mês e pouco, dois meses que está aí e já quer trabalhar na
produção? Tem gente aí que está esperando uma oportunidade faz um ano,
né”. “Tá, mas eu quero me casar!”, eu dizia. (risos) Eles achavam engraçado.
“Tá, eu quero me casar, eu preciso ganhar bem, tenho compromisso em casa”.
Entre as ocupações enquadradas como “diaristas” estavam as de operários que
cuidavam da ventilação, dos que carregavam madeiras e dos que faziam serviços como
bombeiros e cubeiros – esses últimos tinham o encargo de transportar para a superfície o
tonel no qual os mineiros faziam suas “necessidades” na mina, esvaziá-lo, lavá-lo e
repô-lo no subsolo. Os que recebiam “por produção”, além do salário fixo, tinham o
acréscimo de acordo com a produção da equipe. Isso, segundo Jango, gerava a
“ganância” de trabalhar mais, a “vontade” de aumentar a produção e,
166
conseqüentemente, o ordenado, pois se a equipe conseguisse encher 55 carros por dia
ganharia bem mais do que se fossem apenas 35 ou 40. Ele enfatizava que a mina
“sempre foi um setor muito perigoso”, um local de trabalho no qual durante muito
tempo não havia nenhuma segurança. Além de ficarem agachados durante longo tempo,
os mineiros não contavam com equipamentos de proteção. Nos pés, usavam alpargatas,
enquanto que a cabeça era “protegida” por um frágil boné ou gorro. Jango contava que
“trabalhava sufocado”, respirando fumaça e cheiro de explosivo. Posteriormente, a
ventilação foi aperfeiçoada e foram melhoradas as condições de segurança.
Então, melhorou pro mineiro. O mineiro já trabalhava de macacão, né,
botininha, capacete, lanterninha. Nós não, na nossa época, era um
calçãozinho, um lampiãozinho e pronto. Sem camisa, sem nada. (...) Além de
tu não poder te levantar nunca, ficar em pé, ainda um gorrinho na cabeça... A
gente batia, caía de costas, era tudo isso aí. Quando dava um
desmoronamento e caía uma pedra, era fatal. (...)
Jango calculava que tivesse perdido, em certa época, quase que um colega de
trabalho por mês em acidentes tais como desmoronamentos, incêndios, choques
elétricos e outros. Acreditava que muitas mortes deviam-se à falta de atenção e de
conhecimento dos colegas, mas principalmente à falta de segurança da mina. Nessas
circunstâncias, considerava-se um “felizardo” por ter saído da mina com vida.
Eu me escapei assim de morrer por várias vezes por segundos, né. Acho que
eu sou um felizardo. (...) Quando tu vê que o perigo às vezes é traiçoeiro. (...)
Perdemos vários colegas de serviço por esse motivo, né. A gente chegava
num setor de trabalho, olhava assim, tu não imaginava que aquilo ali fosse
uma ratoeira. A gente vinha trabalhar, quando via, caía uma pedra, 200
quilos, 500 quilos. É normal na mina. É uma ratoeira. (...) Eu perdi vários
amigos. Mas amigos mesmo que poderiam ser considerados como irmãos, né.
Eu ajudei a cavar, a desenterrar de pá um colega de trabalho meu. (...) Deu
um desmoronamento em cima dele, eu acho que tava 30 mil quilos de
material. E a gente se põe nessa situação... tirar um colega morto de trole. Eu
sou um sobrevivente!
Jango se emocionava ao contar essa passagem. Num momento, durante a
entrevista, interrompeu o relato e, furtivamente, levou a mão ao rosto para encontrar
uma lágrima que descia. Contava que o acidente que ocasionou a morte do amigo, em
setembro de 1977, foi a tragédia que mais o chocou, que mais alterou o seu “estado
nervoso”.
327
Sentia-se mal ao cavar para retirar o corpo do companheiro coberto pelo
caimento. Em seu relato, os perigos da mina eram descritos como “traiçoeiros”,
inesperados, de tal forma que o trabalhador no subsolo se via no interior de uma
“ratoeira”, evocando uma espécie de animalidade a que estariam sujeitos esses
327
A propósito da questão do “nervoso”, ver Duarte (1986).
167
operários, como gente que vivia no limiar da condição humana. O uso do termo
“sobrevivente” nos remete, mais uma vez, à imagem de uma guerra enfrentada nas
entranhas da terra. Outro momento em que se referia à “ratoeira” era ao mencionar o
descaso na manutenção da rede elétrica no subsolo, com fios desencapados no meio
caminho. Em seus primeiros tempos de trabalho não havia ainda sido constituída a
Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA) na mina de Leão I. Recordava-se
que, no início, o elevador que dava acesso ao subsolo – chamado de “gaiola” - não tinha
a proteção lateral. “Subiam oito, dez homens em cima daquilo ali, que inclusive
perdemos colega de serviço
328
em cima daquele... Eu tinha muito medo. Eu, sempre
quando embarcava, ia bem pro centro. Tinha medo de alguém me empurrar e eu
morrer”. Ele expunha seus temores sem subterfúgios.
Eu tive muito medo na mina. Em primeiro lugar, eu tive medo de morrer na
mina quando os meus filhos eram pequenos, né. Eu tava criando a minha
família e tinha muito medo de morrer, deixar eles pequeninhos. Em segundo
lugar, outra coisa que eu tinha muito medo assim... quando eu perdia um
colega naquele setor. Passava ali 15, 20 dias com sestro, com nervosismo, né.
Sei lá, estado nervoso. (...) Eu tinha medo, às vezes, no início, de passar ali.
Parece que ia enxergar aquela pessoa, que a gente considerava, né, queria
bem. Então, eu tinha medo. (...) Eu venci meu tempo na mina porque eu
precisava muito, senão eu não vencia.
Para Jango, os subterrâneos ocultam muitos mistérios nas suas sombras. Ele
formulava suas concepções: “A mina é uma caixa de segredos, né, que ninguém assim
descobre o significado”. A seu ver, Deus dá um dom para que cada pessoa seja diferente
das outras. A fantasmagoria da mina era evocada a partir dos relatos de companheiros
que viam vultos na escuridão da mina, que assistiam ao movimento de carrinhos de
carvão na solidão da noite e que ouviam vozes e gemidos que só podiam ser de colegas
mortos. “Pelo que contavam, existia muito mistério na mina”. Ele não sabia dizer se era
porque Deus era seu amigo e sabia que ele não teria coragem para ver “essas coisas”,
que o livrou desse “dom”. Outro momento em que o mineiro voltava a falar dos
mistérios dos subterrâneos era quando descrevia o momento que antecedia um
desmoronamento: “Um vácuo forte de vento cruzou por nós, parecia um tornado.
Assustava a gente a 500 metros, levantando casca e poeira”. Ele acrescentava: “A mina,
como te falei, é uma caixa de segredos”. Nesse universo, os mineiros costumam ficar
atentos aos sinais que podem lhes salvar a vida. Ele respeitava seus pressentimentos.
328
Ele se refere a Araceni Mendes Pereira, morto em dezembro de 1979. Segundo as informações em sua
ficha funcional, o mineiro, de 31 anos, caiu no poço ao passar mal e desmaiar no elevador de acesso à
mina. Em função deste acidente, notificações do Ministério do Trabalho exigiram da companhia a
contratação de um engenheiro de segurança e a adoção de medidas de segurança na “gaiola”.
168
Aconteceu comigo, quando eu era mineiro, de eu sair pro serviço e voltar pra
casa. (...) Me parece que aquele dia ia ser impróprio prá mim, parecia que ia
acontecer alguma coisa comigo. Eu tinha um receio. Me parece assim que eu
tinha um aviso assim que eu não fosse... Algo acontecia comigo, né. Aí vinha,
chegava lá e ia no posto de saúde e explicava até pros médicos (...)..
Nas suas explicações para o médico, a quem solicitava um atestado para
faltar ao trabalho naquele dia, estava o “estado nervoso” diante da lembrança de
“acidentes terríveis”. Apesar dos perigos, Jango via com simpatia a idéia de que os
filhos fossem mineiros, se a mina ainda estivesse em funcionamento. Ele se referia
ao fato de que a “lei do mineiro”, que garante a aposentadoria aos 15 anos de serviço
para quem atua nas frentes de extração, era muito respeitada. Além disso, era “a
profissão da gente, de todos aí, era todo mundo em torno daquilo ali”. Ou seja, caso
existissem ainda minas de subsolo, a reprodução do ofício seria vista como algo
natural. Mas acrescentava que viveria uma imensa preocupação. Para Jango, hoje a
saudade da mina convive com a tristeza pelos companheiros mortos em acidentes.
Tenho muita saudade da mina, saudade dos companheiros. E tenho muita
tristeza da mina.(...) Eu vi acidentes terríveis na mina. Então, tem horas boas
que a gente recorda e também as horas ruins. Imagina: vir quatro quilômetros
por baixo do chão empurrando num trolinho um companheiro de serviço.
Um dos acidentes que relata é do incêndio ocorrido no interior da mina,
próximo ao depósito de explosivos, no qual morreram dois companheiros de trabalho.
Nessa ocasião, o capataz do terno perguntou a Jango se ele “teria coragem” de
acompanhá-lo para tentar salvar os colegas. Assim, integrou a equipe de socorro. Mas as
dificuldades foram imensas. “A fumaça, aquilo assim era... mesma coisa que uma
tempestade. Quando tinha condições de prender o fôlego, tudo bem, mas respirar lá era
impossível”. O fogo foi combatido com o isolamento de áreas e a inversão da
ventilação. Mas quando chegaram ao local os operários já estavam mortos. Pelos rastros
deixados, chegou à conclusão que “eles lutaram muito para não morrer”. A esperança
desses operários teria sido uma pipa que servia para armazenar água no subsolo. Teriam
colocado essa pipa nos trilhos de vagonetes usados no transporte de carvão e ido
empurrando para tentar encontrar uma saída no escuro, mas não conseguiram. “Então,
eles sentaram um do lado do outro, e eles morreram assim numa posão de um
querendo ajudar o outro. Ficou um deitado assim... e o outro com aquele gesto assim,
agarrando. A coisa mais triste, a coisa mais triste do mundo!”
169
Certa vez, indignado com a sucessão de acidentes, durante o velório de um
companheiro de serviço, morto por choque elétrico na mina
329
, Jango denunciou as más
condições de trabalho como sendo as responsáveis por aqueles acontecimentos trágicos.
Eu cheguei lá na frente da casa [da viúva], né, as crianças tudo pequenas, né.
Então, aquele absurdo... aquelas crianças tudo chorando. Uns quantos colegas
meus de serviço ali, encarregados, tudo. E eu cheguei assim, a mulher
desesperada (...). Eu cheguei e disse assim: “Pois é, ô Marli, infelizmente tu
tá enfrentando uma barra dessas aí, né, mas isso é uma coisa assim que nós
temos que nos preparar: vamos perder muitos colegas de serviço (...) porque
lá embaixo a mina tá muito despreparada, tem gente que é encarregado de
serviço que não tem condições, não tem conhecimento”. E eu disse tudo isso.
E começou aí: “A mina... tem muito relaxamento nessa mina aí, tem gente
incompetente...”. E aí fizeram um relatório depois lá, ô Marta, depois, deles,
muito diferente do que eu falei. Fizeram um relatório assim... dizendo
palavrão assim, ofendendo moralmente. E aí mandaram pro engenheiro, ele
não sabia de nada. Trabalhei num terno, fui pro serviço, cheguei lá e meu
cartão preso. “É pra ti falar com o engenheiro da mina”, que era o Doutor Zé
Luiz. Eu fui: “O que foi, doutor, que o meu cartão tá recolhido aí?”, “Não, eu
quero saber sobre os palavrões que tu disse lá do velório do rapaz.
Infelizmente aconteceu isso e tu te saiu com um monte de besteiras lá”. “Não,
o senhor tá mal informado, eu não fiz isso. Eu não fiz isso. Eu simplesmente
disse que nós tínhamos que nos preparar que iam acontecer vários acidentes,
né, doutor, e que a nossa mina tá despreparada. Isso eu falei”. Eu não neguei.
No dia seguinte, Jango foi trabalhar e, mais uma vez, não encontrou o cartão
ponto. Depois da jornada, soube que o cartão tinha sido requisitado novamente. O
recado era para que se apresentasse ao engenheiro. A mesma pressão e constrangimento
se repetiram por dois ou três dias. Até que um dia, cansado daquilo, chegou na sala do
engenheiro e disse: “Ô doutor Zé Luiz, o que vocês querem comigo, afinal?! Já faz mais
de uma semana, vocês vivem me enchendo o saco! (...) O que vocês querem comigo?!”
Naqueles dias, um novo engenheiro, havia sido transferido das minas a céu aberto de
Candiota para Minas do Leão. Esse engenheiro conhecia o irmão de Jango, Antônio
Manoel, que havia trabalhado como mecânico em Candiota. Ao pegar a ficha de Jango,
reconheceu o sobrenome e solicitou que ele comparecesse no escritório central. Meu
interlocutor dizia que foi lá “bem tranqüilo”, pois “quem não deve, não teme”.
Eu não conhecia o tal engenheiro (cita o nome): “Pode entrar”. “Com licença,
então”. Ele: “Senta aí”. Sentei na poltroninha ali. Ele disse pra mim: “Báh,
mas o que houve contigo aí?”, “Comigo nada!”. “Mas como, nada? Eu tenho
um relatório teu aqui. Mas assim... coisa absurda!”. “Ah, doutor, acho que o
senhor tá mal informado, nunca fui de fazer nada absurdo. Eu sempre fui um
cara que gosto muito de respeitar as pessoas. Nunca tive nada de absurdo”.
“Não, até me admiro muito... Sabe que há 30 dias que eu tô chegando aqui no
Leão, chego aqui e um baita de um problema teu aí, um monte de absurdos
329
Cruzando os dados, noto que teria sido o caso de Adelmo Fortes Toledo, morto em novembro de 1977.
170
que não dá nem pra gente citar os palavrões que eu tenho aqui que tu falou do
acidente, da morte do rapaz”. “Não, doutor, o senhor tá mal informado, eu
não falei palavrão. Se o senhor me permite repetir o que eu falei, não tem
problema”. “Então tá, pode falar”. “O que eu falei foi o seguinte: que
infelizmente nós vamos lamentar muito o acidente que aconteceu, tínhamos
que lamentar, com nosso colega de serviço, mas que infelizmente nós íamos
passar várias vezes por acidentes dessa natureza porque a nossa mina tá (....)
muito atirada, falta gente que tem conhecimento de mina”.
Jango interrompia o relato para me explicar que, naquele período, havia
ingressado um capataz novo, promovido “por política”, que pouco entendia do trabalho
da mina. Na continuidade de sua narrativa sobre a conversa com o engenheiro, este
passou a questioná-lo sobre suas relações de parentesco com seu antigo subordinado.
“Mas, rapaz, tu não é irmão do Antônio Manoel?”, “Sou”. Diz ele assim:
“Mas não parece!”. Digo pra ele: “Mas por que, doutor? Por que nós somos
tão desparecidos assim?”. “Não, não, até de jeito não”. “Não, doutor, a gente
também não é obrigado a ser igual mesmo”, eu disse pra ele. “Não, porque tu
sabe que o Antônio Manoel é uma pessoa da minha inteira confiança”. “Eu
vou lhe fazer uma pergunta: o senhor deu uma olhada na minha ficha aí?”. Eu
tava com 18 anos de serviço na época. “Não”. “Então, o senhor dê uma
olhada na minha ficha aí, pegue a minha ficha, que eu não tenho uma
advertência, nunca tive uma punição. A minha freqüência é das melhores dos
mineiros tudo. O senhor dá uma olhadinha, que vendo a minha ficha o senhor
vai se conscientizar que eu sou irmão do Antônio Manoel. Agora tem uma
coisa, doutor, a nossa mina é tapada de relaxamento! Se o senhor quer prova
disso aí, o senhor baixa a mina comigo, eu lhe levo lá, eu vou lhe levar a um
setor onde tem dois ventiladores enterrados, onde tem a rede de 380 volts de
arrasto no chão, que se cair por cima daquilo ali, mata um (...)”. Comecei a
citar, a citar, e o Fulano [o outro engenheiro] tava que era um tomate. Ele viu
que eu tinha razão. “E se não for assim, ô doutor, o senhor me põe na rua sem
direito a nada!”. (...) Ele levantou, abriu o trincozinho da porta: “Vamos fazer
o seguinte: tu vai trabalhar. Tu deve ter conhecimento do serviço, 18 anos de
serviço no nosso subsolo aí, nós temos 200 funcionários aí, gente nova que
não tem conhecimento de mina e tu repara essa gente lá embaixo. Olha os
setores perigosos que tu tem conhecimento, retira esse pessoal de onde pode
ocorrer um acidente”. “Mas, doutor, isso aí a gente faz diariamente. Isso aí eu
tô todo dia pedindo e negociando com os capatazes”, eu digo. E é mesmo. (...)
“Se o senhor baixar à mina, vou lhe levar lá nos lugares que uns acidentes lá
só tão esperando a ocasião. É uma ratoeira. Chave de 380 volts assim presa
nos prumos da altura de um carro que passa ao lado dela”. De novo, ele viu
que eu tinha razão.
A partir deste episódio, ele teria passado a receber um melhor tratamento de
engenheiros e encarregados, inclusive com a obtenção de melhores zonas para extração
de carvão. Antes de me contar essa história, quando lhe perguntei se ele tinha conflitos
com as chefias, disse-me que “era um desaforado, um desgostoso”, mas que “nunca
reclamava nada que não tivesse razão”. Ele me explicava que sempre “havia se escorado
muito” na própria razão: “Quando eu não tinha razão, eu ficava quieto. Já quando eu
171
tinha razão, eu dava muito em cima deles, né”. Sugeria que se sentia prejudicado por
determinadas chefias, recebendo áreas desfavoráveis para a extração de carvão, porque
“era de trabalhar, não de reclamar”. Mencionava que teria sido prejudicado porque ele e
o capataz não nutriam simpatias mútuas. “Aquelas zonas que os outros não queriam,
davam pra mim. E isso aí me causava grande problema na vida, né”.
- E para quem ele dava as zonas melhores?
Jango - Isso aí pros amigos dele. Tinha gente... tinha gente presenteada,
capataz. Tinha gente que presenteava os capatazes pra ganhar zona boa, né.
(...) Eu não fazia isso. Eu não fazia isso, né, Marta. Eu tratava eles... eu
tratava eles bem, tudo, mas andar presenteando... não mesmo! Isso aí era uma
coisa fora de ética, né. Então, eles, sei lá... Eles eram recalcados comigo e eu
com eles, né. Nos somos amigos até hoje. Tem capataz que não podemos
chegar pra ele sem bater um papo, sem abraçar. Com outros, não.
Mas é preciso voltar aos desdobramentos das denúncias feitas no velório.
Quando ele deixava a sala, o engenheiro que estava assumindo o comando da mina
pediu que ele voltasse a trabalhar “quietinho” – detalhe que me contava entre risos - e
que ajudasse a orientar os colegas menos experientes no subsolo. Jango respondeu:
“Não, isso aí o senhor pode deixar que nós fazemos, não só eu como 200 colegas de
serviço que têm conhecimento de mina”. Entendo que o seu tom era de “revolta”.
- Ficou revoltado, Jango?
Jango – Eu fiquei. Fiquei mesmo! Fui pra mina... E o engenheiro da mina [Zé
Luiz] assistia tudo isso aí, né. Fiquei na mina, bati meu cartão, fui na sala
dele: “Doutor Zé Luiz, à sua disposição”. Diz ele assim: “Ô Jango, tu precisa
de uma zona boa”. Veja só! Que coisa triste, né! “Tu escolhe uma zona aí”.
Que eu me queixei com o outro engenheiro que eles só me davam os pepinos
que os outros não queriam, né. Diz ele: “Escolhe uma zona boa pra ti, tu é um
cara trabalhador e vamos terminar com isso aí. Tu vai trabalhar e tu pode
escolher onde tu quer trabalhar”. Eu disse assim pra ele: “Ô doutor, eu vou
lhe agradecer, muito obrigado! O senhor nunca me deu essa franqueza, não é
agora que vai querer que eu prejudique alguém pra ficar numa zona boa aí. O
senhor escolhe, me manda trabalhar num lugar que eu possa fazer, porque
braço eu tenho”, eu disse pra ele. “Braço e saúde eu tenho pra trabalhar.
Agora, me colocam nesses pepinos que os outros não querem...Isso não sou
só eu que não vou produzir, ninguém vai produzir. Agora, não me prejudique
nessa parte”. Ô, Marta, esse homem me deu... me deu de patrão numa
galeria...
- Era outra coisa?
Jango – Mas, Deus o livre! Vou te dizer uma coisa: os membros da equipe,
tudo uma gurizada nova, tudo assim de 22, 23 anos, todos guris, a maioria
solteiro, né. (...) Eu fui pra lá, Marta, mas Deus o livre! Com a minha
prática... eu tinha saúde, trabalhava que era um animal, eu ganhei dinheiro
aquele mês como água. Eu tirei o primeiro lugar em produção na mina. Eu
tirei mil e não sei... 1018 toneladas, parece. Eles botavam assim a equipe
campeã todo mês, né. Eles chamavam as produções de equipe por equipe e a
campeã eles botavam no quadro negro assim. “Equipe do Fulano de Tal,
tantas toneladas”. Botavam ali: “Equipe campeã”. [Antes] Quando os outros
172
tiravam 40 carros, eu tirava 20. Quando os outros tiravam 700 [toneladas], eu
tirava 220 [toneladas]. Uma mixariazinha. Com aquela tropa de louco e eu,
trabalhador que era, e uma zona muito boa...
Observa-se a expressividade narrativa de Jango na valorização das pequenas
vitórias nessas quedas-de-braço com a hierarquia. Ele estava insatisfeito pelo fato de
que vinha recebendo “zonas ruins” para a extração de carvão, em detrimento daqueles
patrões de galeria que faziam média com os capatazes – evidenciando que a troca de
favores era uma constante. Mas o episódio começou efetivamente quando, no velório do
colega, ele expôs publicamente as mazelas da mina, prevendo que outras mortes como
aquela aconteceriam. É a partir de um comportamento que ele próprio qualifica como
“desaforado” e “desgostoso” – mas acionado em situações nas quais “tivesse razão” -
que se atreve a dizer o que todos sabem, mas calam. Simbolicamente, seu papel é
similar ao do menino da conhecida estória de Hans Christian Andersen
330
, que tem a
coragem de dizer: “O rei está nu”. No relato de suas denúncias feito à chefia da mina
são acrescentados termos que poderiam desmoralizá-lo, pois usar palavrões durante um
velório, numa conversa com a viúva, era algo condenável, mesmo que o conteúdo de
suas advertências correspondesse à realidade. Sob essa alegação – da descompostura e
do uso de palavrões – foi submetido a pressões e a constrangimentos. Acabou se
beneficiando da chegada do novo engenheiro que estava assumindo a direção da mina,
interessado em seu caso devido à sua relação de parentesco com um ex-subordinado. O
primeiro engenheiro assistia à conversa constrangido porque as denúncias sobre o
“relaxamento” e a falta de segurança poderiam ser facilmente comprovadas. O desafio -
o recurso do jogo - foi a arma para tentar reverter a situação. Jango apostou não apenas
sua palavra, mas também seu emprego: “Se não for assim, doutor, o senhor me põe na
rua sem direito a nada!” Registrou aí sua primeira vitória: “Ele viu que eu tinha razão”.
Ao dirigir-se ao outro engenheiro, ele recebe um tratamento que até então lhe era
desconhecido: poderia escolher as melhores áreas para minerar. Como salienta, não
seria do seu feitio fazer isso, desbancando um colega. O relato exprime estranhamento e
indignação com aquelas repentinas cortesias: “Veja só!”, “Que coisa triste!” O próprio
engenheiro lhe indica então uma excelente zona para extração. É a virada: naquele mês,
a equipe não apenas elevava substancialmente seu ordenado como, ainda, tornava-se
“campeã” no ranking de maior produção, com um nível quase cinco vezes maior do que
aquele obtido por Jango nos meses anteriores. Esta “aventura de Jango” - adotando o
330
O conto A roupa nova do rei, de Hans Christian Andersen.
173
termo usado por Leite Lopes (1988)
331
- tem, finalmente, um desfecho positivo. O
episódio traduz algo do que Da Matta (1983) chama de “a saga do herói trabalhador
brasileiro”, mas a aproximação com o personagem de Pedro Malasartes, referido pelo
autor, ocorreria em outros feitos de Jango, de caráter cômico. Observe-se que “ter
razão” e “mostrar que está com a razão” são, no interior das relações hierárquicas,
espécie de capital simbólico mobilizado pelos operários, seja por benefícios coletivos,
sejam os que redundem em vantagens individuais. No caso dele, há que se imaginar que
essa atitude aparentemente quixotesca tenha contribuído também para a melhora
posterior das condições de trabalho do subsolo.
331
Leite Lopes (1988) narra as “aventuras” de Severino e de Joaquim no universo da fábrica têxtil.
A repetição das tragédias do subsolo
Entre meados e o final dos anos 1970 ocorreu o maior número de acidentes
fatais na mina de Leão I, segundo relatórios internos da própria CRM. Nos registros
feitos a partir da década de 1950, há três casos de mortes por acidente no subsolo,
sendo duas em 1952 (Rubem Batista Lopes e Alvo Luiz Carvalho) e uma em 1954
(Plínio Souza Neto). Nos anos 60, são cinco acidentes fatais: dois em 1961, de
Antônio Stanieck e Santos Salvador Freitas, um em 1965, de Homero Longarai de
Oliveira, e dois em 1966, de Elias Gomes de Araújo e de Fernando Skiers. Nos anos
1970, período em que o número de tragédias atinge o seu pico, são dez mortes ao
todo. Uma delas ocorreu em 1970 (Olavo Machado da Rocha), outra em 1972 (José
Francisco de Souza). Em 27 de fevereiro de 1976, José de Castro e Evaldo Vaz dos
Santos morreram “por envenenamento de gás carbônico”, durante o incêndio no
interior da mina, referido antes. Cerca de um ano depois, em 2 de março de 1977,
ocorreu a morte de outro operário, Vilmar Brum da Silva, por “eletrocução”. Neste
caso, há uma anotação no relatório interno de que se tratava de um acidente com “fio
pelado”. Três meses depois, em 4 de junho de 1977, Mário Celso Câmara morreu
“esmagado”, durante um “caimento” no interior da mina.
Três meses depois, tragédia similar vitimou Claudino de Souza, em 12 de
setembro de 1977. Outro acidente, em 9 de novembro de 1977, por “eletrocução no
ventilador”, tirou a vida de Adelmo Fortes de Toledo. Em 21 de setembro de 1978,
Vinícius Longarai Franco morreu “esmagado” durante um “caimento”. Araceni
Mendes Pereira morreu ao ter o crânio “esmagado” em um acidente na “gaiola” em 3
de dezembro de 1979. Depois disso, houve uma redução do número de acidentes
fatais, mas voltariam a ocorrer. O operário Pedro José de Souza - cuja viúva é uma de
minhas informantes - morreu em 15 de outubro de 1984, ao ter o crânio esmagado
num caimento. Em 12 de dezembro de 1989, nova tragédia vitimava Ezeni Cardoso de
Quadros, que sofreu esmagamento de tórax, abdômen e cervical.
O último acidente fatal foi registrado em 7 de novembro de 1991, quando a
queda do elevador matou o mecânico Claudionor Silva, que teve hemorragia interna e
politraumatismos. Uma lista indicava os casos de invalidez permanente: Antônio de
Souza (1969), Randolpho Henedein Butzke (1973), Tristão Francisco da Silva (1974),
Leonel Tavares Antunes (1975) e Mário Foster (1978). Essa lista compreende apenas
os eventos ocorridos entre 1950 e 1980.
174
Jango, que já havia integrado CIPAs, conhecia os riscos oferecidos pela
atividade. Lembrava de casos em que a pessoa havia trabalhado os 15 anos, se
aposentava, mas depois “não ficava sobrevivendo mais cinco”. Mencionava que
anualmente um ônibus do Serviço Social da Indústria (SESI) ficava no pátio da empresa
para que os trabalhadores fizessem exames de pulmão. “Gente naquela época com três
anos de trabalho já deu carvão no pulmão.” Ele não sofreu desse mal, mas desenvolveu
problemas na coluna devido à posição de trabalhar agachado em galerias baixas.
Os registros sobre pneumoconiose
As listas de mineiros que desenvolveram a pneumoconiose costumam ser
mantidas em sigilo pelas empresas carboníferas. Tive acesso a uma relação com 26
nomes de trabalhadores da CRM encaminhados para exames por apresentarem
sintomas da doença nos anos 1980. Figura nesta lista, por exemplo, meu
informante Telmo Trindade Lopes, que relatou o fato de ter sido comprovada a
doença profissional. Em alguns relatos, surgiam explicações sobre as razões pelas
quais as minas gaúchas apresentariam menos casos da doença do que as
catarinenses: a maior umidade das minas gaúchas em contraste com as
catarinenses. Outros aspectos, interiorizados por alguns mineiros a partir do
discurso médico, apontavam para características orgânicas, dando conta de que
“pulmões mais oleosos” teriam menor incidência da doença. Porém, uma parte dos
trabalhadores desconfiava do diagnóstico dos médicos da companhia,
considerando que “eram pagos para fazer o que a empresa mandava”. Mesmo
quem teve comprovada a doença recebia, ao sair da empresa por demissão ou
aposentadoria, o atestado com a declaração: “Atesto que Fulano de Tal não é
portador de moléstia profissional”. A preocupação era evitar a corrida por ações
indenizatórias na Justiça, ficando a empresa preservada de uma responsabilização.
Como me dizia um ex-encarregado, o documento tinha a função de eliminar uma
prova com a qual o trabalhador pudesse ir à Justiça reclamar indenização.
Eckert (1985, p.343) mencionava que, nos anos 1980, pneumologistas
indicaram a existência de 1055 casos de trabalhadores no Estado com silicose. A
partir de pesquisa em arquivos do INSS percebi que o número de casos
encaminhados para exames especializados ou perícias por “moléstia profissional”,
em cuja Comunicação de Acidente do Trabalho (CAT) constava o diagnóstico
provável de “pneumoconiose” era mais alarmante do que sugeriam as informações
da companhia. Esses documentos evidenciavam ainda a alta incidência de
problemas de saúde mental.
Por vezes, mais de um fator estava presente, como
revelava Eloína Flores de Melo, viúva de mineiro.
Ele criou um carvão no pulmão. Tinha falta de ar e foi a vários
médicos. O doutor achava que era o tal de câncer. (...) Graças a Deus,
não era o que a gente tava pensando. Aí voltou para o Doutor Fulano
(da companhia), que começou a tratar dele. “Não é nada disso aí, é uma
tuberculose que sarou e ficou a marca”. Dizia que não era do carvão, só
que apareceu o problema depois que ele trabalhou na mina. (...) Ele
tinha tosse, escarrava pó de carvão. Passava a noite tossindo, escorado
nos travesseiros. (...) Teve uma época que ele emagreceu dois quilos
por semana. Ele tinha muito medo da mina. Acho que foi porque
morreu um primo meu num caimento e depois meu sobrinho ficou num
caimento também...
p
erdeu a vista
,
ficou defeituoso.
175
Antes do episódio de protesto no velório, Jango havia disputado a eleição para
Mineiro-Padrão. Tendo vencido as etapas em Minas do Leão e em Butiá, acabou
perdendo em Charqueadas, onde era menos conhecido. Acreditava que essa disputa
tivesse ocorrido em 1977, mesmo ano da história do velório. Ele me explicava que a
indicação de seu nome, pela empresa, juntamente com a de outro colega, levava em
conta seu currículo: o fato de ter, na época, quase 20 anos de serviço, ter participado de
CIPAs, nunca ter recebido uma punição e, principalmente, de ser amigo “de todos”.
Lembrava que seu concorrente era mais velho, menos afeito às brincadeiras, e isso deve
ter favorecido o “banho de votos” que deu nele. Depois das indicações feitas pela
empresa, votavam todos os funcionários, inclusive os empregados na superfície, quem
atuava nas oficinas e na mineração a céu-aberto. O voto não era obrigatório, mas ele
calculava que pelo menos 300 dos 500 funcionários tivessem participado da votação. A
vitória local foi comemorada com jantar num restaurante que foi pago pelo sindicato.
Inicialmente, causou-me surpresa que, sendo conhecido por suas artes na
malandragem, Jango tivesse sido indicado a Mineiro-Padrão. Então, ele me explicava
quais eram os fatores que, a seu ver, pesavam na escolha:
O que que é o mineiro padrão? É aquele mineiro com uma amizade especial.
Em primeiro lugar, a amizade. O que representa o mineiro padrão é ser
amigo, é ser aquele cara assim... de ficha limpa, sem bronca, sem nada. Isso
aí... concorri a mineiro padrão, foi antes da minha bagunça essa do velório.
(...) Imagina, trabalhei 23 anos, trabalhei 22 anos, 10 meses e oito dias na
CRM. Eu nunca tive uma advertência, dizer assim: “Jango, tô te advertindo
por esse motivo...” Ou: “tu quebrou isso”. Não, pelo contrário, até que eu
fazia coisas pra merecer uma punição. Mas eles me consideravam porque...
meu tempo de serviço, meu coleguismo... Eles me consideravam muito
também, né.
Ao mencionar as razões por que era “considerado”, lembrava-se, inversamente,
de relatar outro ato de protesto peculiar do qual havia lançado mão. Depois de solicitar
várias vezes, sem sucesso, que os bits de seu equipamento de furação no subsolo fossem
trocados porque estavam muito gastos, já “estressado” com as más condições de
trabalho, ele decidiu quebrá-los por conta própria com o uso de um machado. Logo
depois disso, seu cartão ponto foi “preso”. O capataz geral foi interrogá-lo sobre o que
tinha acontecido. Jango lhe disse: “Quebrei porque quis!” O chefe lhe perguntou a
razão. Ele explicou: “Porque decerto agora vocês vão me dar um novo! Quantas vezes
eu pedi um bit, vocês não dão jeito, não consigo mais fazer a furação!” O capataz: “Vou
te participar que tu vai pagar isso aí!” E então o valor foi descontado de seu salário ao
176
longo de quatro meses. Apesar do prejuízo financeiro, entendia que havia dado um
empurrão para resolver o problema.
Numa ocasião, perguntei a Jango se ele considerava que o mineiro fosse uma
espécie de herói do trabalho. Ele recusava minha formulação, justificando com razões
práticas, em torno dos ganhos salariais, a motivação ao trabalho.
Jango – Não, não considero [o mineiro] um herói, não, Marta. Eu considero o
mineiro, como que eu vou dizer assim... ele tá numa profissão pra criar a
família dele daquilo ali, né. A profissão que ele tem é aquela ali, é ser
mineiro. E cai naquela rotina de mineiro e não sai, né, porque o ordenado às
vezes compensa muito. Eles vivem uma vida tão tranqüila... que o serviço é
brabo e tu não considera, de tão bem que a gente ganha, né. Teve épocas
assim, acho que eu te falei, os caras que vinham fazer o nosso pagamento,
aqueles que eram do banco, eles perguntavam o que nós íamos fazer com o
dinheiro. Ganhava mais do que os engenheiros, às vezes.
Julieta – Botava tudo fora!
Jango – Botava mesmo! Era briga de galo, era carreira [de cavalos]
332
, era
tudo o que era coisa. (...) A gente encarava aquilo ali com a maior
tranqüilidade, com a maior vontade de trabalhar, porque a gente sabia que ia
somando: “Báh, hoje deu mais ou menos tanto!”
Jango considerava que a brincadeira era essencial para tirar “o medo da mina”,
salientando que o mineiro em geral era “muito moleque” e disfarçava o perigo com o
bom humor. Ele próprio era famoso por suas “molecagens” e “brinquedos” no subsolo.
Certa vez, um de seus filhos, Jefferson, ouviu de um cliente do banco em que trabalha
como vigilante: “Báh, o teu pai era o mineiro mais sem-vergonha debaixo da mina.
Tinha que fazer uma estátua prá ele, tinha que fazer uma estátua!” Reconhecimentos
desse tipo não faltavam a Jango. Ele ria dessa “fama” e, orgulhoso de sua reputação,
aproveitava para contar outras histórias. No relato, na fabulação ou na imitação, estava
sempre renovando seu repertório, de tal modo que seu interlocutor hesitava, muitas
vezes, em distinguir se o episódio tinha ocorrido realmente ou se era inventado.
333
Aspecto importante da cultura dos trabalhadores de Minas do Leão, as
brincadeiras ou relações jocosas
334
eram uma espécie de contrapartida à dureza das
condições de trabalho enfrentadas no subsolo.
335
Boa parte das brincadeiras referidas em
Minas do Leão fazia referência a temáticas sexuais, especialmente em torno das figuras
do “corno” e do “viado”, algo similar ao analisado por Duarte (1987a) entre
332
Esse aspecto é retomado no capítulo 6, sobre os jogos nos quais os mineiros se envolviam.
333
Outros detalhes sobre “as artes de Jango” são explorados no capítulo 6.
334
Termo usado em referência a Radcliffe-Brown (1973), quando trata dos “parentescos por brincadeira”.
335
As brincadeiras nos estudos sobre trabalhadores são referidas por pesquisadores como Grossi (1981),
Volpato (1982), Eckert (1985), Duarte (1987a), Leite Lopes (1976, 1988) e Comerford (2003).
177
pescadores.
336
Os apelidos funcionavam como uma espécie de batismo para o ingresso
no subsolo. Os mineiros diziam que a alcunha “pega” quando a pessoa não gosta. “Se
embrabecia, aí que o apelido pegava”. As brincadeiras envolvendo o uso de palavrões e
xingamentos faziam sentido na rotina do subsolo, mas não deveriam ser levadas para a
superfície no entender de Jango: “Lá embaixo, no subsolo, nós éramos um tipo de gente,
pela franqueza, pelo serviço corriqueiro, né. Agora, aqui em cima era muito diferente”.
Pelo menos esse, a seu ver, deveria ser o comportamento do “verdadeiro mineiro”,
enunciando uma espécie de metamorfose que devia ser vivida na passagem do subsolo à
superfície.
337
De acordo com ele, outros colegas “mais sem experiência da coisa (...) até
no futebol saíam com alguma besteira”, mas, no seu caso, se estava na superfície a
relação era de respeito. Havia também há uma espécie de “código de honra” a regrar o
sigilo em torno das brincadeiras masculinas, mas que era relativizado, de forma que, por
vezes, as mulheres acabavam me revelando os temas das brincadeiras dos maridos no
subsolo. Essas jocosidades envolviam jogos verbais nos quais as esposas dos
companheiros figuravam como objeto de desejo. Esses jogos só eram considerados
legítimos entre homens casados
338
– embora pudessem ser aceitos solteiros que “não
fossem passados”, minimizando-se os riscos de tal brincadeira.
Os relatos evocavam também os trabalhadores que não participavam dos
“brinquedos” e que reagiam violentamente aos apelidos, considerados como pessoas
que “não foram domadas”. Essa caracterização como não-domados, como mais
próximos da natureza do que da “civilizaçãonas regras e na cultura dos mineiros,
parecia construir esses “outros” como trabalhadores menos confiáveis, menos
socializados nas dinâmicas verbais e corporais e como portadores de certo estigma. Na
avaliação de Jango, tratava-se de pessoas oriundas das áreas rurais, que iam “com uma
idade meio avançada para a mina” e que não se acostumavam com o clima de
brincadeiras. Diante desses “baguais”, uma estratégia adotada por Jango era contar
piadas para ver se “amansavam”. Mencionava dois colegas da mina que nenhum esforço
conseguiu “domar”: um deles tinha o apelido de Galo Amarelo (porque havia dado de
presente ao chefe um galo desta cor). Em mais de um caso, segundo os comentários, o
destino dos “não-domados” revelou-se trágico, como o do mineiro cujo apelido era
336
Duarte (1987a) abordou os padrões de agressividade, os duelos verbais nos quais predominavam os
temas do futebol e do sexo entre pescadores de Jurujuba (RJ)
336
. Ver Duarte,1987a, p.194-195.
337
Volpato (1982, p.368) afirma, igualmente, que embaixo da mina havia brincadeiras, humor e relações
jocosas, mas na superfície esse comportamento ficava para trás.
338
Uma brincadeira similar é registrada por Eckert (1985) entre mineiros de Charqueadas.
178
“indizível” diante de uma pesquisadora mulher e que teria se matado depois de atirar na
própria esposa. O relato era seguido por um comentário: “Ele se deu mal: a mulher não
morreu, existe até hoje”. Outro informante arriscava um palpite: “Acho que ele se
matou por causa do apelido”. As narrativas revelavam formas de controle social não
apenas sobre os “não-domados”, mas também sobre os “malandros” que se excediam,
gabando-se de forma exagerada de suas supostas aventuras.
339
As narrativas
mencionavam ainda os embates corporais, as chamadas “tundas de casca”, nas quais se
alternavam os papéis de agressor e vítima, numa espécie de duelo no qual lançavam
mão de cascas de eucalipto, usado para sustentação do teto no subsolo. Os mineiros
utilizam expressões como “peleias”, “brigas”, remetendo-nos ao imaginário sobre o
ideal de masculinidade presente neste universo: o de homens e combatentes.
Numa ocasião, para provocar um colega que tinha o apelido de “Sorro”, Jango
fez o papel de um cachorro numa encenação. O operário que chamavam de Sorro
340
, um
homem corpulento, estava tirando um cochilo na mina num período de descanso. O
grupo combinou que simularia uma “caça ao sorro”. Providenciaram armas de
brinquedo feitas com cascas de eucalipto e decidiram que Jango seria o cão de caça.
Para tornar a cena mais verossímil, os colegas amarraram em seu pescoço um pedaço de
fio de luz encapado. O cão recebeu o nome de “Guarda vento”. Quando os caçadores se
aproximaram do homem que dormia, o cão (Jango) saltou sobre ele e, imitando latidos,
começou a morder-lhe a barriga. Ao reagir, o colega atacado puxou o fio que envolvia o
pescoço de Jango até quase sufocá-lo. A brincadeira terminou depois que Jango quase
foi asfixiado. Nas edições seguintes, meu interlocutor fez o papel de caçador.
São inúmeras as narrativas sobre os “feitos” de Jango, mas há alguns dos quais
ele não se orgulha. Certa vez, resolveu dar um susto nos colegas e no capataz, “um
senhor de pouca prosa”, “um cara de muito respeito, muito educado”. Estava
empurrando um carro na mina e, propositalmente, tirou-o dos trilhos, atirando-se ao
chão e fingindo-se de morto. Quando os colegas o viram caído correram até lá.
O homem velho largou a caixa de ferramentas, me agarrou assim, me virou
assim. E eu bem quieto, bem mole, prendi até o fôlego da barriga. O velho
olhou assim: “È, acho que tá morto!” Aí eu me agarrei assim e disse: “Não,
não tô não!” Ah, que arrependimento de ter feito isso. (...) Ele me deu um
sermão: “Não, rapaz, não me faz isso! Que barbaridade tu me fazer uma coisa
339
A brincadeira apelidada de “carrasco da mina” diz respeito a um ritual de simulação de castração no
interior da mina, que serviria para coibir esses excessos, vividos e/ou narrados, daqueles que “gostavam
de se gabar, de contar vantagens”, principalmente sobre conquistas amorosas.
340
Animal que se assemelha a graxaim ou cachorro-do-mato.
179
dessas! Poxa, onde está a tua consideração com os colegas de serviço? Mas tu
não sabe dos problemas que já passamos nesta mina, rapaz?! Isso não é coisa
de gente... tu me fazer isso!”. “Ah, seu Fulano, eu fiz uma brincadeira, o
senhor me desculpe!”. “Não, não vou te desculpar. Não vou brigar contigo,
não tenho esse direito, mas tu não faz mais isso pra ninguém, rapaz! Olha,
sinceramente, tu me dá motivo pra ficar com nojo de ti!”. (risos) “Não, o
senhor me desculpe”. (...) Fiquei com uma vergonha, uma vergonha desse
homem... Ah, fiquei! Passava por ele: “Tudo bem, seu Fulano?” Minha cara
era um tijolo mesmo, né. Eu fazer aquilo com ele e ter recebido aquele
sermão... Depois, comecei a pensar: “Báh, isso não se faz!”
Tanto o riso como a tragédia eram mesmo íntimos do cotidiano da mina. A
brincadeira era bem tolerada naquele universo, mas desde que não jogasse com questões
cruciais, tais como o acidente e a morte, espectros que estavam sempre presentes.
Algum tempo depois, esse capataz perdeu um filho na mina: o jovem foi uma das
vítimas do incêndio ocorrido no subsolo na década de 1970, mencionado antes.
3.6 O PERCURSO DE MARINO: DAS LIDES RURAIS PARA A MINA
O ex-mineiro Luiz Marino (à dir. na foto, ao lado do ex-mineiro Natalício),
com 68 anos à época de nossa entrevista, conhece tanto as lides agrícolas como as do
subsolo da mina. Nascido na localidade de Porto do Conde, no município de São
Jerônimo, filho de agricultor, é oriundo de uma família de 13 filhos – oito homens e
cinco mulheres. Segundo me contava, começou a trabalhar aos seis anos de idade,
ajudando o pai e os irmãos em plantações de eucalipto. Depois disso, a família foi
trabalhar numa granja de arroz e, aos sete anos, Marino tornou-se o cozinheiro de um
grupo de 15 a 20 homens. Além da comida, fazia um bolo para cada um e café, merenda
180
que era transportada para a lavoura em latas de banha vazias. A cada nova atividade, a
família ia se mudando, como “cigana”. Seu pai conseguiu trabalho numa carvoaria que
produzia carvão vegetal; depois, a família se empregou no corte de mato “enfardando a
casca da acácia”. Trabalhavam no local entre 80 e 100 cortadores de mato. Com este
sistema de vida, os filhos não foram para a escola. O pai chegou a contratar uma
professora para ensinar as crianças, mas isso durou poucos meses. Meu interlocutor
aprendeu rudimentos de português e matemática, mas não o suficiente para saber ler e
escrever. Outras coisas que seriam úteis ele foi aprendendo “com a idade”.
Já era um homem feito quando enveredou para a profissão de ferroviário e,
depois, tornou-se mineiro. Em 1962, aos 22 anos, soube que precisavam de operários na
Viação Férrea. Trabalhou ali durante dois anos. Recordava-se que, no início dos anos
1960, houve uma greve de mineiros, organizada pelos trabalhadores do Cadem: “Eles
queriam proibir a gente de trabalhar, achavam que estávamos furando a greve”. Marino
argumentou: “Eu não sou da firma de vocês, vocês são de uma, nós de outra”. Lembra
que a polícia havia sido chamada para garantir o funcionamento dos trens. Foi neste
período que ele descobriu que ganharia mais trabalhando na mina do que na ferrovia.
Com a ajuda de um engenheiro, conseguiu uma vaga de operário no subsolo da mina
administrada pelo DACM. No primeiro dia nas galerias subterrâneas, pensou em
desistir: “Achei muito horrível! Cheguei lá pra tirar as contas!” Conta que, quando
desceu pela primeira vez ao subsolo, sentiu “muito medo”, explicando que quando a
pessoa baixa ao subsolo, “perde um pouco o sentido” – ou seja, perde suas referências.
No começo, pensava: “Isso aqui é um inferno, não é vida”. Ouvindo os conselhos de
outros mineiros mais experientes, permaneceu na atividade. Trabalhou inicialmente
como ajudante, acompanhando o patrão da galeria na preparação dos explosivos. No
início, ficava apavorado com as explosões. Ele teve também de aprender a se orientar
para não se perder nas galerias que facilmente se transformavam em labirintos. Com o
passar do tempo, começou a achar que o trabalho “era coisa boa”: “Eu gostava e gosto
da mina”. Daquilo que o agradava, evocava, como outros, o “cheiro da mina”.
Uma das dificuldades que Marino enfrentou foi com a cultura das
malandragens e provocações: “O agricultor, logo que chega, sente muito, porque tem
brincadeira desde o começo”. O que mais o incomodava eram as pequenas humilhações
infligidas aos companheiros. Certa vez, viu três mineiros batendo num colega negro e
lhe dizendo: “Tu tem que acender o cigarro na nossa boca”. O mineiro que apanhava
pedia perdão aos outros. Marino não gostou daquilo e interveio: “Vocês larguem ele
181
porque ele não é escravo! É porque ele é preto? Não me batam nele!”. Ameaçou atingir
os colegas com o seu lampião, afirmando que era solteiro e que não tinha medo de ser
mandado embora da empresa. Os outros acabaram deixando o colega em paz.
Recordava-se que, em meados dos anos 1960, muitos mineiros desciam armados de
facas e revólveres para a mina. Usavam as facas para cortar estopim. Já o revólver
servia para que se sentissem mais homens, mais “valentes”. Depois, a segurança foi se
tornando mais rígida e o ingresso com armas foi proibido. O risco de aceitar as
provocações e encarar uma briga era o de “ganhar as contas” – ser demitido da empresa.
Numa ocasião, depois de um enfrentamento com alguém que havia lhe “desrespeitado”,
Marino teve o seu cartão-ponto apreendido. Foi recebido com deboche no escritório:
- “Soube que o senhor é meio valente. Andou brigando debaixo da mina...”
Marino – Se o senhor me ofender, salto este balcão e lhe quebro a cara!
- “Então, é valente mesmo!?”
Marino – Com a minha razão, sou!
- “Ninguém vai te botar pra rua. Tu nós não podemos te largar. Tu é
caprichoso no teu serviço e precisamos de operários. Se quebrar a cara de
outro tu não vai pra rua. Tu vai trabalhar e, quando eu souber de alguma
coisa, já sei o que se passou”.
Podem-se ver, acima, as referências aos valores da “valentia”, do “ter razão”,
mas também a importância atribuída ao trabalhador “caprichoso” em sua atividade. Se a
fama de “valente” ajudava a impor respeito junto aos colegas da mina, também poderia
colocar o operário em uma situação complicada face à hierarquia, como um criador de
casos. Entretanto, sua reputação como bom trabalhador fazia com que fossem relevados
os conflitos que ele pudesse protagonizar no subsolo. Para retomar as noções que venho
adotando ao longo deste trabalho, estavam em jogo em seu percurso diferentes formas
de honra. A valentia é um dos valores presentes na honra masculina local, mas tal
construção da masculinidade diz respeito mais diretamente ao que estou chamando de
“pequena honra tradicional ou de origem rural”. Ela contrasta com os modos de
socialização na cultura operária da mina de subsolo, marcada pela malandragem. Por
outro lado, o que garante a permanência de Marino na empresa, para além da
necessidade de mão-de-obra, é este reconhecimento por parte das chefias de que se trata
de um operário dedicado ao ofício. Seu temperamento esquentado e sua “valentia” - que
poderiam lhe render a demissão - são tolerados em nome do seu valor como trabalhador,
que se torna ali o aspecto essencial de sua reputação. A relativa oposição entre valentia
e dedicação ao trabalho estava presente em inúmeros relatos envolvendo personagens
considerados “brigões” e que, se expressavam determinada forma de honra masculina,
182
por seus excessos poderiam ser vistos com desconfiança pela companhia. O fato de que
fossem “muito trabalhadores” fazia com que os excessos fossem tolerados.
Antes de ir para a mina, Marino era capaz de iniciar uma briga se alguém o
chamasse de “cunhado”, por exemplo, ofendendo a sua moral por referência às suas
irmãs.
341
Mesmo depois, uma observação desse tipo seria encarada por ele como um
insulto; seus brios exigiam que ele fosse tirar uma satisfação do provocador. Numa
ocasião, chegou ao subsolo e encontrou um grupo de operários falando de sua
namorada, com o irmão dela participando da conversa. “Eu vi e não gostei”, conta ele.
Depois, descobriu que era uma brincadeira dos colegas, que sabiam que, por ser novato,
ele “ia embravecer”. Numa ocasião, o grupo mentiu que outro colega estava falando mal
dele. Ao procurar o acusado, Marino já foi avisando: “Vou te dar uns tapas porque tu tá
falando de mim”. Um dos conflitos que teve foi com operário que “era muito
passado”
342
: quando entrava na “gaiola”
343
para subir à a boca do poço xingava os
colegas com palavrões. Numa ocasião, um grupo jogou óleo queimado no rosto do
provocador e ele acabou perdendo aquele dia de trabalho. Mais tarde, Marino e ele, em
meio às provocações, encararam a coisa como uma espécie de duelo: uma briga foi
“tratada”, com local e horário marcado e com direito a platéia. Para se precaver, Marino
botou uma pedra no bolso do casaco e deixou o casaco sobre o ombro. Esperava que o
outro o atacasse para revidar. Como o adversário ficou parado, ele desistiu da luta.
Tempos depois, soube que o sujeito foi preso por matar a filha e espancar a mulher.
Por levar os desentendimentos a lutas corporais, Marino foi ganhando fama de
“brigão” na mina. Sua esposa, Maria, que participava da entrevista, ressaltava que o
marido “foi criado pra fora”, “tinha outros costumes”. Sua família de origem tinha uma
moralidade austera, mas nem por isso deixava de ser alegre. Numa época, o pai de
Marino manteve um salão de baile em casa, que funcionava no quarto dos filhos –
nessas ocasiões as mais de dez camas eram recolhidas e os músicos da família, que eram
muitos, punham-se a tocar algum instrumento: violão, gaita, pandeiro, etc. Marino e um
dos irmãos formaram uma dupla sertaneja, a exemplo de outras que faziam sucesso na
região. Meu interlocutor lembra-se que seu pai “era o mais bailarino”, “era um artista”.
Ele promovia danças em frente ao espelho e brincadeiras nas participava a família,
parentes, amigos e vizinhos. Entretanto, nessas alegres reuniões imperava o “respeito”.
341
Cabe lembrar a análise de Pitt-Rivers (1965, 1983) sobre os contextos nos quais a honra de um homem
poderia ser ofendida com uma referência à sua irmã, filha, mãe ou esposa.
342
O termo, segundo o Dicionário Aurélio, significa atrevido, saliente, confiado.
343
Elevador da mina.
183
No período como ferroviário, Marino integrou uma equipe de futebol de trabalhadores
que se reunia em torno de um time ligado à família Fonseca, portando as cores vermelho
e branco. Ele se recordava que havia muitos “morenos” na equipe, ligados àquela
família, e que vários dos jogadores trabalhavam na lavoura. Segundo ele, a convivência
entre “brancos” e “morenos” era boa: “não se fazia conta das cores”.
Do ponto de vista dos “mineiros malandros”, como Jango, esses trabalhadores
que vinham do meio rural, a exemplo de Marino, eram considerados “xucros”, “quase
uns animais” porque levavam tudo “na ponta da faca” e não sabiam tolerar uma
brincadeira. Com o tempo, a maioria acabava sendo “domada” ou “domesticada” –
embora houvesse os que continuassem reagindo com violência às caçoadas. Nessas
provocações existentes no cotidiano da mina, diferentemente do padrão tradicional
estudado por Pitt-Rivers (1965, 1983), em geral só um dos lados considerava seriamente
a querela. Tratava-se de jogos distintos nos quais cada parte tomava o outro por
antagonista, mas o que para um era desrespeito, desafio que merecia uma resposta
violenta, para o outro era performance para fazer rir – quanto mais se embravecia o
adversário, maior era a graça do jogo. Marino, que, na linguagem dos colegas, foi sendo
“domado” ao longo do tempo, quando deixou de ser “novato” tornou-se “arriado”,
“inventor de brinquedo e de piada”, segundo ele mesmo mencionava. Trabalhava na
mina quando, em 1969, casou-se com Maria, também filha de agricultor. Depois de
casado, teve de enfrentar outro tipo de brincadeiras: os colegas queriam saber sobre sua
relação conjugal. Uma provocação comum era: “Vai pro serviço? Esta noite vou passar
na tua casa!” Mas, a esta altura, ele já havia se acostumado com esses gracejos.
Como outros mineiros que ouvi, que se referem aos “segredos” do subsolo,
Marino acredita que a mina guarda “alguma coisa” dos companheiros que morreram ali.
Relatava que, às vezes, ouvia o movimento “deles” e, quando olhava, não via ninguém.
“Eu tinha muito medo, sentia medo da mina!” Esse sentimento, no entanto, não o
impedia de, quando já era veterano na profissão, promover sustos nos companheiros de
trabalho, explorando justamente o temor da fantasmagoria da mina. Numa ocasião,
ficou dependurado num prumo que segurava o teto da mina, no escuro, e quando
passaram alguns companheiros, imitou uma voz do outro mundo para pedir-lhes fogo
para acender o lampião. Foi uma gritaria. Enquanto os outros corriam, apavorados, ele
fazia um barulho arrastando o lampião. Embora se servisse desses ingredientes para
fazer a sua brincadeira, afirmava que, para ele, “não era invenção”, acreditava que as
almas dos colegas mortos realmente se manifestassem no interior das galerias.
184
Marino trabalhou no subsolo durante 21 anos. Foi madeireiro, transportador e
ajudante de tocador de carros. Por vezes, fazia horas a mais, chegando a trabalhar três
turnos num só dia para aumentar o seu ordenado. O ex-mineiro acredita deve-se a sua
“sorte” e à sua devoção a Deus o fato de não ter sofrido acidentes na mina. Mas sua
saúde sofreu danos: nos exames de rotina feitos regularmente foi comprovado que ele
contraíra a pneumoconiose. Ele ingressou com uma ação na Justiça, mas não teve êxito,
pois o nível de comprometimento dos pulmões era considerado insuficiente para a
indenização.
344
A seu ver, a empresa “tapeava muito essa parte de carvão no pulmão”,
distorcendo os resultados. Sua mulher fornece a explicação: “É porque o médico era da
firma e não do operário, então ele não podia ir contra a firma”. Muitos de meus
informantes acreditam que era exatamente isso o que se passava. Citando o nome de um
médico da companhia, Marino mencionava: “Pra mim ele dizia: ‘Tá tapado de carvão o
teu pulmão’. Mas o dinheiro mandava muito... o doutor vai lá e molham a mão dele”.
Considerando as condições do subsolo, perguntei-lhe se havia “heroísmo” no trabalho
do mineiro. Quem respondeu à minha questão foi Maria: “Não é por heroísmo, é por
necessidade, porque só tinha aquilo ali!” Marino preferiu destacar o seu envolvimento
com o ofício: “No fim, até gostava do trabalho”, disse-me, acrescentando que, às vezes,
ainda sonha que está na mina. Se a ambigüidade em relação à atividade está presente em
sua fala, é preciso notar também que está lá, recorrente, o “gosto” pela mina.
Meu interlocutor recordava-se de várias greves ocorridas em seu tempo de
trabalho. Como ele era madeireiro, operário que faz o escoramento do teto das galerias,
era liberado pelo sindicato para “baixar” à mina mesmo durante as greves. Mas, em
outra situação, se o sujeito fosse, nos termos que ele usa, “um bom trabalhador”,
quisesse “fazer tudo direitinho” e furar a greve, era chamado de “carneiro” pelos
companheiros. Marino chegou a fazer parte de uma comissão que foi a Porto Alegre
discutir questões salariais com a direção da empresa. Os madeireiros, como ele, eram
pagos por tarefa e seu salário era calculado com base em uma tabela de pontos que
diziam respeito à produção realizada: por exemplo, a colocação de uma barra valia sete
pontos, de um pau, dois pontos, de um prumo, três pontos. Uma crise se formou quando
um engenheiro alterou essa contagem dos pontos e os salários dos que recebiam por
tarefa sofreram uma grande redução. A categoria se rebelou e entrou em greve. Na
344
De acordo com a legislação vigente no período, o mineiro só tinha direito à aposentadoria por invalidez
se perdesse 50% de sua capacidade pulmonar, o que equivale ao funcionamento de um dos pulmões.
Sobre este aspecto, ver Eckert, 1985, p. 339-345.
185
ocasião, Marino deu uma entrevista para uma rede de televisão criticando a direção da
empresa pela medida. O diretor da companhia não gostou das críticas e, segundo seu
relato, cobrou-lhe satisfações durante a reunião na sede da empresa.
-“Eu ouvi aí, tu pisou no meu pé!” – disse-lhe o diretor.
Marino – Doutor, eu falei a verdade. Eu lhe levo lá em baixo [no subsolo] pro
senhor ver que não estou faltando com a verdade. (...) Com esta tabela, não
podemos tarefear. (...) Se tiver nela a assinatura do diretor da firma, eu quero
que me dê as contas sem direito a nada!
A suspeita do mineiro era que o engenheiro local tivesse alterado a tabela sem
o conhecimento da direção da empresa e, por isso, ele bancou a aposta na qual colocava
em jogo o seu emprego. Preocupado, o presidente do sindicato alertou-o: “Olha, se tiver
assinatura do diretor, tu vai mesmo pra rua!” Segundo o relato do ex-mineiro, ao
conferir o documento, o diretor percebeu que a tabela era “fria” e teve que dar razão ao
operário. O diretor teria dito: “Mas isso é uma pouca vergonha! Cadê a tabela que eu fiz
na época?!”, “Consumiram com ela!”, foi a ousada resposta do operário. Marino me
explicava que a queda nos salários dos madeireiros tinha sido grande: na tabela anterior,
sua produção mensal somava entre 15 mil e 20 mil pontos, com a nova, chegava a 5 mil
pontos, no máximo. Nesse episódio, os trabalhadores venceram a queda-de-braço e
conquistaram melhores condições para o registro da produção. O que se destaca do seu
relato é sua diligência e coragem para enfrentar a direção patronal e para expor-se ao
risco de uma aposta como aquela. Ao longo de sua narrativa, evidencia-se o seu orgulho
pelo engajamento numa discussão que acabou por trazer benefícios aos colegas. O
mérito de discutir com o patrão e ainda ter razão – provando que está “com a verdade” –
enaltece sua dignidade como trabalhador. Parece-me que essas vitórias são aquelas que
reforçam a “pequena honra do trabalho” do ponto de vista pessoal e coletivo.
Após a sua aposentadoria, em 1983, Marino voltou a trabalhar na agricultura.
Arrendou terras, onde plantava milho, aipim, moranga e criava vacas e porcos. Ele
relatava que a casa onde a família mora, de alvenaria, foi construída com o dinheiro que
obteve com estas atividades. Antes, ele tinha adquirido da companhia uma casa de
madeira, que foi substituída pela atual residência. Hoje, mantém apenas uma vaca de
leite, que ordenha todas as manhãs atravessando uma rua sem calçamento para ir ao
terreno em frente onde o animal permanece. Um aspecto que causa orgulho a meu
informante é o fato de que seus filhos puderam receber uma escolarização mais longa do
que ele (que não aprendeu a ler e a escrever) e do que sua mulher (que estudou até a 5ª
série). A filha cursou faculdade de História e trabalha como professora. Os três filhos
186
homens são mecânicos formados pelo Senai,
345
dois deles com o segundo grau
completo. Mesmo com a formação, entretanto, um dos rapazes estava desempregado.
Atualmente, Marino tem uma atividade peculiar. Do ofício nas profundezas da
terra passou a dedicar-se às profundezas humanas, atuando como adivinho. Capaz,
segundo me contava, de ver o que se passa no interior das pessoas, ele prevê o futuro de
quem o procura e oferece conselhos aos clientes para superar obstáculos e dificuldades.
Costuma receber a clientela numa salinha nos fundos de um supermercado na cidade
vizinha. A seu ver, não se trata de um trabalho (embora normalmente os consulentes lhe
ofereçam alguma remuneração simbólica), nem tampouco de um engajamento religioso.
Marino relatava que essa capacidade o acompanhava desde criança, quando morou em
lugares onde havia “assombros”. Recordava-se de um episódio aos sete anos: viu um
menino passando e pensou que era seu irmão. Depois, notou que era um garoto
desconhecido. Observou quando este entrou numa parede que se abriu e se fechou.
Contava que se alguém deixasse uma ferramenta nova do lado de fora da casa durante a
noite, como um machado, por exemplo, “eles” iam cortar lenha; se deixasse o pilão,
“eles” iam socar arroz. O menino ficava escutando os sons produzidos pelas almas do
outro mundo nas suas lides ao redor da casa.
Meu interlocutor evitava falar deste tema na frente da esposa, respeitoso com os
temores dela em relação a seus envolvimentos com o sobrenatural. Quando Maria não
estava por perto, ele me explicava suas visões sobre “formas que não eram humanas”.
Em nossas conversas, sugeria que eu “consultasse” com ele e, embora eu tivesse a
intenção de vê-lo atuando, não cheguei a realizar a “consulta”.
3.7 ZÉ CABEÇA: PLACA DE “HONRA AO MÉRITO” POR SALVAMENTO
Da mesma forma como Leo, Airton Martins da Fonseca, o Zé Cabeça, com 62
anos à época de nossa última entrevista, foi um destacado mineiro-jogador do Atlético
Mineiro FC
346
e ascendeu de forma decidida na hierarquia profissional. Ele nasceu em
Butiá, numa família de mineiros, os Fonseca, que também – como os Freitas - era
bastante numerosa e mantinha sua própria equipe de futebol formada por parentes.
Órfão de pai aos dois anos, foi criado pela mãe e pelo padrasto, mineiro do DACM. Aos
oito anos, começou duas atividades importantes em sua vida: jogar futebol e trabalhar -
como oleiro, ajudante de pedreiro. Relatava que trabalhar era “uma necessidade”, pois a
345
Acerca do papel do Senai na qualificação de mão-de-obra no setor automotivo, ver Ramalho (2005).
346
Esse aspecto da trajetória de Zé Cabeça é explorado mais largamente no capítulo 7.
187
situação da família de oito filhos era “apertada” e ele se sentia com obrigação de ajudar
a sustentar a casa. Aos 12 anos, conseguiu seu primeiro serviço relacionado ao carvão,
carregando caminhão com o mineral. No dia em que começou na ocupação, saiu de casa
sem avisar ninguém. Quando reapareceu, “numa imundície desgraçada de carvão”,
encontrou os familiares chorando. Caiu em prantos também, sem saber o que havia
acontecido. Então, descobriu: “Era por minha causa, eles tinham avisado a polícia sobre
o meu desaparecimento”. Na manhã seguinte, pegou a sacola de brim coringa para levar
o café para o trabalho e ouviu do padrasto: “Tu tem que estudar!” Apesar do trabalho
pesado, sentiu-se gratificado quando, ao chegar o final de semana, pôde “tirar um vale”
e comprar uma sacola de alimentos para levar para casa. “Me senti eu”, resume,
enunciando que “já era alguém”: tinha uma identidade de homem e trabalhador.
Desde os 13 anos, ele jogava futebol no time ligado ao DACM, o Atlético
Mineiro FC. Recorda-se que no dia em que completou 15 anos chovia muito. O
padrasto passou por ele, que tomava banho de chuva, e anunciou: “Zé, arrumei serviço
prá ti no Departamento!” O garoto voltou para casa exultante: “Mãe, mãe, Seu João me
arrumou serviço!” A ansiedade por começar a trabalhar era tanta que, precisando se
apresentar às sete da manhã na empresa, às cinco e meia ele já estava a postos para
começar a trabalhar. Na narrativa que faz de sua trajetória, percebe-se o forte desejo de
ingressar na mineração, imitando o pai e o padrasto. A família preferia que ele estudasse
mais, mas como ele fugia da escola para trabalhar, aquilo acabou sendo considerado
como um caminho natural, a exemplo da maior parte dos filhos de mineiros. Com a
ajuda do padrasto, empregado do DACM, ingressou na empresa como aprendiz.
Meu primeiro trabalho lá foi fazendo uma vala na volta do poço (...) tava
chovendo, né, pra ver se não caía água prá dentro do poço [da mina].(...) Fiz o
serviço bastante rápido e aí me apresentei pro encarregado, querendo outro
serviço pra fazer, né, tava acostumado a trabalhar assim. Aí ele disse: “Não,
fica por aí, tá chovendo, não tem serviço agora”. Eu me preocupei, cheguei
em casa e falei pro meu padrasto: “Não vai dar. Vão me botar na rua, peguei
hoje e vão me botar na rua por causa que não tem serviço”. Diz ele: “Não,
deixa, de tarde, a hora que eu chegar do serviço, às cinco horas, nós vamos
conversar sobre tal coisa”. E daí foi que ele disse: “No Departamento é assim,
é diferente. Não é que nem o serviço que tu fazia de encher caminhão,
trabalhar o dia todo. No Departamento, tu tem que religiosamente registrar o
teu cartão. Se tem serviço ou não tem serviço, não quer dizer nada”.
Depois do ingresso na empresa, Zé Cabeça teve de esperar até os 18 anos para
“baixar” à mina. Além dele, outros dois irmãos também foram trabalhar na mineração.
Inicialmente trabalhava engatando cabos nos carros de mina, depois, passou a ajudante
de madeireiro. Mais tarde, vieram as promoções a sota-encarregado, a patrão de galeria
188
e a encarregado de terno, até chegar a encarregado-geral ou supervisor (na nova
nomenclatura), o grau máximo na categoria intermediária entre operários e engenheiros.
Quando recebeu o convite para ser encarregado, ele me contava que, a princípio não
queria aceitar, porque achava que tinha “pouco estudo”. Lembrava-se que foi chamado a
uma reunião com os engenheiros, onde ouviu a proposta.
Aí eu disse pra eles: “Não, eu não tenho condições de ser encarregado”, por
causa que... o meu grau de instrução era pequeno, né, até a 4ª série, daí fui
trabalhar. Mas daí o engenheiro (...) disse: “Não, não é esse aí o caso. O caso
é que tu é capaz”. Aí conversou, conversou... “Então, tá. Vamos tentar,
então”. Isso foi em 1980, 1981, 1982 por aí. Aí eu passei a ser encarregado de
terno. Aí, com o tempo, acharam que eu devia ser supervisor. (...) Depois que
eu passei a supervisor, aí eu só baixava a mina pra visualizar o serviço, né. E
comandava, depois, os encarregados.
Sentia-se constrangido inicialmente para aceitar uma função de chefia, mas
acabou fazendo uma longa e exitosa carreira na companhia. Da mesma forma como
observou Minayo (1986, p.181), as promoções, neste contexto, são consideradas
prêmios pela dedicação e experiência acumulada. Mas estas promoções aconteceram, no
seu caso, apesar dos conflitos nos quais ele, volta e meia, se achava envolvido. Era,
como me dizia, um sujeito “esquentado”. Na juventude, havia integrado durante algum
tempo o grupo dos “valentes” do Leão, participando de brigas de rua. Nesta época,
começou a andar armado, com um facão na cintura.
347
Ressaltava que, em sua família,
os Fonseca “não eram de muita briga”, ele é que deveria ter saído “pro outro lado”, com
sangue quente. Acreditava que isso talvez se devesse ao “sangue castelhano”, pois o
avô materno tinha essa origem – ele não sabia ao certo se uruguaio ou argentino.
Na companhia, ele se envolveu em alguns conflitos com a hierarquia.
Recordava-se de um episódio com um geólogo, quando ele próprio era supervisor.
Ele gostava muito de mandar os encarregados fazerem o serviço. E eu tinha
deixado um trabalho pro meu encarregado fazer. (...) Ele veio, “Ô seu Fulano,
tu vai lá e me faz tal coisa!” Aí diz ele: “Não, mas o Zé me disse pra fazer tal
coisa, deixou dito pra mim”. “Não, faz o que eu estou mandando!” Aí ele não
fez. Aí eu cheguei pro serviço à uma da tarde e diz ele: “O engenheiro
Beltrano me pediu pra eu fazer tal coisa, não sei, tu fazendo o que..” “É,
exatamente, faz o que te mandei.” Aí o Beltrano (o geólogo) ligou pra baixo
da mina. Daqui a pouco, bateu na sala da capatazia: “Então, seu Zé, quer
dizer que está mandando mais do que eu?” Eu digo: “Não, não é por aí”. Aí,
foi, foi que ele me irritou e eu disse pra ele: “`Pára aí um pouquinho, não
atravessa a carroça na frente dos burros, tchê! Vamos nos respeitar! Olha, pra
ti ver o seguinte, eu mandei o encarregado fazer o serviço pelo seguinte:
quem manda nele sou eu e tu, não. Tu tem que mandar em mim. Tu não pode
sair daqui e ir lá mandar os caras fazer tal coisa”. E foi, foi, (...) discutimos e
347
Mais informações sobre esses grupos são fornecidas no capítulo 4.
189
tal, mas aí ele passou: “Agora, estamos conversados!” E foi embora. Eu
fiquei... tava já explodindo. (...) Eu emburrei: “Não falo mais contigo!”.
Ele me contava que quando o geólogo saiu da sala, outro supervisor, que
ocupava a mesma posição de Zé Cabeça, mas que costumava ser muito cioso da
hierarquia, tendo ouvido parte da discussão, disse ao chefe que passava: “Ah, doutor,
aqui o senhor manda e a gente faz”. Zé Cabeça retrucou: “Tu faz, eu não!” Depois
daquela conversa, passou-se uma semana e o geólogo voltou à sua sala.
Zé Cabeça – Aí ele chegou lá, foi na minha sala: “Ô, seu Zé, vamos conversar
um pouco?” E aí diz ele assim: “Olha aqui ó, me desculpa, aquele dia eu tava
meio alvorotado e eu errei contigo. Na realidade, tu tem razão mesmo”. “Vem
pedir desculpas pra mim depois? Tinha que ter pedido desculpas pra mim na
hora, tinha que ter se arrependido lá e pedir perto dos outros!”
- Foi humilhante pro senhor?
Zé Cabeça – Claro! Por isso que eu discuti com ele. Eu discuti com ele: “Tu
manda em mim, eu mando no encarregado e o encarregado manda no peão.
Vamos seguir a hierarquia, não é assim? De hoje em diante eu não aceito
mais tu fazer esse tipo de coisa! Então, vamos fazer o seguinte: me manda
embora, me manda pra rua!” “Não é por aí a coisa!” (dizia o geólogo). “Se tá
descontente com o meu serviço, me bota pra rua!” Aí ele ficou lá. Aí veio às
boas comigo depois, desculpou-se, que tava errado mesmo. “Tá.”
Noutra ocasião, era presidente do Clube Atlético União - uma sociedade
recreativa apelidada de “clube misto” porque permitia a entrada de brancos e negros
348
-
, e um dos engenheiros da companhia quis entrar no estabelecimento sem esperar na
fila. Zé Cabeça lhe disse que ele devia passar pela portaria. O outro respondeu: “Está
me estranhando? Eu sou engenheiro!” Meu interlocutor reagiu: “Isso é na companhia,
aqui eu sou o presidente!” Avaliava que, depois disso, esse engenheiro passou a
persegui-lo. Alguns dias depois, prevendo que este chefe fosse cortá-lo do time de
futebol de salão, já chegou ao campo com o uniforme pronto para devolver. Ao vê-lo, o
engenheiro disse: “Amanhã, tu me dá o fardamento!” “Amanhã, não! Está aqui!”,
retrucou Zé Cabeça, devolvendo-o na mesma hora. E anunciou: “No time que tu joga,
eu não jogo mais!” Ele enfatizava que alguns engenheiros buscavam impor
indevidamente sua autoridade na vida comunitária, algo que para ele era inaceitável. Ele
se negava a chamar engenheiros de “doutor”, como faziam alguns de seus colegas.
Considerava haver muitos “puxa-sacos”, coisa que ele “detestava”.
348
Ainda que em seus documentos apareça sua cor da pele como “branca”, Zé Cabeça se considera negro.
A propósito dos clubes recreativos relacionados à cor da pele, ver capítulo 4.
190
Na ficha funcional de Zé Cabeça, à qual tive acesso no escritório da
companhia, encontrei algumas advertências, como a de outubro de 1964, por ele ter
participado de uma greve da categoria. Em suas memórias, ele descrevia essa greve
como tendo ocorrido em 1966 ou 1967. Contava-me que, nessa ocasião, participou de
uma greve por aumento salarial que durou uma semana mobilizando trabalhadores do
então DACM nos poços P1 e Boa Vista. Como punição, a empresa colocou todos os
grevistas em aviso prévio, obrigando-os a voltar ao trabalho sem atender às suas
reivindicações. A nova forma de protesto adotada então pelos mineiros foi o remancho
da produção. Por exemplo, nas peneiras onde o carvão devia ser mantido e as pedras
retiradas, era feito o contrário. O operário da Boa Vista que fosse buscar água nas
cacimbas, por sua vez, “esquecia-se de voltar”, retornando quase no final do turno. Ali,
o encarregado, mesmo tentando manter a normalidade do serviço, compreendia as
razões dos operários: “Ele conversava com a gente. (...) Ele entendia a situação da
O caso do operário que lançou o lampião sobre o engenheiro
O engenheiro com o qual Zé Cabeça teve desentendimentos foi pivô de um
conflito mais grave com um operário chamado Vilmar Maiata, já falecido. Essa história
me foi contada várias vezes, com algumas variações. Segundo Zé Cabeça,
O engenheiro Zé Luiz tinha mania de querer saber mais do que todo mundo
(...). Não, daí ele meteu a boca no Vilmar Maiata. Aí o Vilmar não concordou
com ele, sentou-lhe o lampião nele. E ele saiu fora e pegou numa parede lá.
Chegou a ficar a marca do lampião. Mas deu pra rachar ele. Deu pra demolir
com ele mesmo.
Outros relatos dão conta que esse operário, que seria um sujeito calmo, estava
sendo “perseguido” pelo engenheiro e que, por isso, teria reagido violentamente. Uma
versão da história diz que o lampião teria atingido o engenheiro de raspão, provocando
um corte no qual foi necessário fazer pontos. A maior parte dos relatos mencionava a
marca na madeira que teria ficado na parede onde ocorreu a discussão, próximo à
entrada no poço da mina. O ex-mineiro Didico, de 55 anos, me contava que, naquela
época, seu irmão, Vilmar, estava trabalhando como patrão de galeria e foi “tirado” da
função. Esse teria sido o motivo da discussão que acabou gerando a agressão. Didico
observava que o lampião pesava em torno de dois quilos e, caso atingisse o outro, na
certa seria “boa noite”.
De acordo com Zé Cabeça, depois desse episódio, Vilmar teria recebido uma
suspensão, mas, passados alguns meses, foi demitido da companhia. Didico acentuava
que o irmão foi demitido por justa causa, mas que teria ingressado na Justiça contra a
empresa e ganhado a questão porque conseguiu testemunhas para provar as
perseguições promovidas pelo engenheiro. De fato, todos os mineiros que me relataram
o episódio – creio que ouvi umas dez narrativas sobre esse fato – mostravam-se
solidários ao operário, aproveitando para criticar aspectos do comportamento do
engenheiro, que era visto como “abusado”.
191
gente, né. A gente começava assim porque tava revoltado. Esse era o problema, era por
revolta mesmo!” Depois do novo protesto, os grevistas receberam um “gancho”, tendo
um dia de desconto do seu salário. Avaliava que o movimento havia saído “quase de
graça” para a empresa, já que o aumento não foi concedido.
Mesmo assim, aquela greve havia marcado época, porque grupos de cerca de
80 manifestantes andavam pela avenida Getúlio Vargas, a principal da então vila
mineira, onde se localiza a sede da CRM (então DACM). Naquela época, não havia
calçamento e os grevistas andavam sobre o chão batido, levantando poeira, agitando
porretes nas mãos e gritando palavras de ordem quando se aproximavam de supostos
“carneiros”, colegas que pretendiam furar a greve. O coro entoava: “Não vai baixar,
porque tu vai apanhar!” O objetivo era impedir a entrada dos que não concordavam com
a greve. “Muitas vezes tinha uns que entravam lá pelos fundos, né, e iam trabalhar igual.
Tinha aqueles que tinham medo da greve porque podiam ser postos pra rua”. Ele se
recordava que a empresa, na época com cerca de 2 mil funcionários, pediu reforço
policial para conter a mobilização. A cena dos protestos é descrita por ele como similar
às manifestações protagonizadas pelos sem-terra na atualidade. Zé Cabeça chegou
integrar a diretoria do sindicato dos mineiros, mas sem atuar ativamente.
Outra advertência, em julho de 1972, era motivada pelo fato de ele não estar
freqüentando as aulas noturnas organizadas pela empresa aos trabalhadores do Poço
1.
349
Havia também anotações elogiosas, como a de maio de 1991, referindo que se
tratava de “um importante supervisor da mineração”. Depois, ainda seria homenageado
com uma placa de “Honra ao Mérito” pela atuação num salvamento.
Depois da morte de um tio da mulher, atingido num desmoronamento, Zé
Cabeça passou a ter pesadelos. Mesmo durante o dia ficava tentando imaginar por que o
amigo não tinha conseguido se salvar. Meu interlocutor calculava que, ao todo, tivesse
perdido nove companheiros mortos na mina em sua época de trabalho. Nos seus 33 anos
de serviço, dos quais 25 no subsolo, ele próprio sofreu vários acidentes: quebrou o
pulso, machucou as costas e ficou “ligado” no ventilador. Na ocasião em que quebrou o
pulso, levou três anos para se recuperar. Depois, tornou-se operador de máquinas e,
mais tarde, recebeu a promoção a encarregado. Quando foi atingido na coluna, ficou
dias numa cama, sem poder se movimentar. Ainda em recuperação, foi a Santa Catarina,
349
A advertência do engenheiro-chefe dizia: “Revisando os livros de chamadas das aulas do P1,
verificamos que, descumprindo compromissos assumidos, V.Sa. não está comparecendo regularmente.
Tal fato, que demonstra claramente desinteresse pela iniciativa da empresa e depõe contra o empregado,
se persistir poderá acarretar a perda do interesse da empresa pela sua permanência como empregado.”
192
no lugar em que Djanira, uma menina milagrosa, fazia curas. Lá, recebeu uma imagem
de Nossa Senhora Aparecida, até hoje sua protetora.
Sua trajetória também foi marcada por outro acidente, ocorrido em novembro
de 1991, quando o cabo da “gaiola”, onde estavam dois mecânicos fazendo o conserto
de uma bomba de água, arrebentou e eles caíram de uma altura de 15 metros. O mineiro
Claudionor, de apelido Sereno, morreu neste acidente. O outro mecânico, Luiz, de
apelido Zangão, ficou gravemente ferido. Nesta ocasião, Zé Cabeça ajudou a salvar
Luiz, retirando-o do poço numa operação bastante arriscada. Recordava-se que, quando
a notícia do acidente correu para a superfície, ele e um engenheiro baixaram à mina. Zé
Cabeça pegou um cinto e uma corda, amarrou-se pela cintura e desceu no poço
dependurado pelo cabo. Quando estava descendo, ouvia os gritos de Luiz. Tentou
prestar socorro a Sereno, pensando que ainda estivesse vivo, mas viu que não reagia.
Aí mandei o Luiz prá cima, amarrei ele na gaiola, amarrei uma corda pela
cintura, botei um cinto nele e mandei pra cima. E aí o engenheiro Nilo gritava
de lá pra mim: “Ô Zé, e o Sereno? Como é que tá?” “Não tá!” “Como é que
tá?” “Não tá!” Eu dizia pra ele “não tá”. Pra não dizer pro Luiz, né.... que ele
[Sereno] tava morto. Esse dia foi triste também, né.
Algum tempo depois do acidente, foi chamado a uma reunião com cerca de
20 pessoas, entre as quais estavam engenheiros, supervisores e encarregados. Nesta
ocasião, foi surpreendido por uma homenagem e a placa de “Honra ao mérito” por
sua atuação. Embora tenha recebido elogios por sua coragem, rejeitava a imagem de
“herói”, dizendo que qualquer um em seu lugar teria feito a mesma coisa.
Acho que todo mundo é assim. Quando chega na hora do... que vê a tal coisa,
a pessoa avança e não quer nem saber. Acho que todo mundo deve ser assim.
Não tem essa... Eu mesmo... é, levei elogios da chefia, por eu ter feito tal
coisa: “O Fulano fez tal coisa”. Não é, acho que qualquer pessoa enfrenta isso
aí, não tem... não tem. Agora, é triste.
Tempos depois do primeiro relato que ele havia feito sobre esse tema, retomei
a conversa sobre o salvamento, tentando compreender – para além do código cortês de
que “qualquer um naquela situação faria a mesma coisa” – como que ele havia
registrado aqueles acontecimentos. Durante a conversa, tentei estimulá-lo a falar
dizendo que se, de fato, outros poderiam ter feito o mesmo, ele é que efetivamente tinha
se exposto e realizado o ato de bravura. Então, contou-me algo que disse nunca ter
mencionado a ninguém. “Aquilo ali foi Deus, não fui eu que fiz tal coisa...” Ele
explicava que, ao colocar o cinto de segurança em Luiz para levá-lo para cima, em vez
de usar o seu próprio cinto, usou o de um colega, mantendo-se com seu próprio cinto.
193
Quando chegou à sala da capatazia e tirou seu cinto percebeu que este estava “todo
trincado, quase arrebentando”. Ficou estarrecido: “O que é isso, meu Deus?! Tava todo
trincado. Pelo amor de Deus! Eu, porque fiquei agarrado... mas se eu botasse no rapaz,
já tinha ido, né. Que loucura!” Mantendo-se agarrado ao cabo, o cinto não rompeu com
o seu peso, mas acredita que rebentaria se estivesse sustentando o corpo ferido do
colega. Então, considerava que recebeu naquele episódio uma orientação divina para
que colocasse no rapaz um cinto de segurança em bom estado e não o seu próprio. Sua
relação com o mineiro que ajudou a salvar teve diferentes momentos
Fui visitar ele lá no Pronto Socorro, aí ele começou a chorar (...): “Tu é meu
amigão, tu me salvou, tu me tirou da mina”. “Não, isso aí é coisa que a gente
tem que fazer, né, não te emociona com isso aí. Nós estamos no mundo é pra
isso mesmo, tá?”
Meu interlocutor considerava, porém, que o colega de trabalho havia mudado
depois de receber a indenização. Contava que, numa ocasião, estava esperando numa
fila do banco, e o colega, que já estava andando, depois de ter recebido uma prótese,
passou direto pela fila. Zé Cabeça fez uma brincadeira: “Ô, Luiz, tá podendo, heim?
Passa na frente de todo mundo!” O outro respondeu secamente: “Isso é um direito que
me cabe!” Ele contava que ficou quieto porque sentiu aquilo “como uma paulada”.
Perguntei-lhe se ficou triste com aquela reação. Disse-me que ficou “irritado”, dando
mostras de que considerava ser falta de consideração aquela resposta pouco amistosa:
Zé Cabeça - Não é... Pô, fui eu que fui lá embaixo, fui eu que trouxe ele pra
cima, botei, amarrei o cara, que tava quase se entregando também. “Isso é um
direito dele...”. Concordo, tudo bem. Mas se ele tivesse que falar que falasse
pra mim, não no meio de 20, 30 pessoas ali. Olha, aí não... Báh, fiquei
intimidado com aquilo. Nunca mais!
- Depois não conviveram mais?
Zé Cabeça – Não, daí a amizade já ficou diferente, porque daí ele ficou
grandão.
350
- Parece que ele ficou muito revoltado com a companhia, com o que
aconteceu... – pondero, recordando o que me disse o próprio Luiz.
Zé Cabeça – Sim, com todo mundo, né.
- ... por ter sido vítima dessa tragédia.
Zé Cabeça – Sim, acho que sim. Até com ele mesmo.
Tantas situações de perigo ele havia passado que acreditava “não ter ido” no
período na mina porque “não era a sua hora”. Partindo dessas experiências de risco, lhe
perguntava se eram necessárias características especiais para ser mineiro e se esta seria,
a seu ver, uma profissão heróica. Ele me respondeu: “Tem que ter mais é vontade, né,
350
Ouvi também de outro interlocutor a referência de que, após o acidente, o ex-mineiro teria ficado
“esquisito”. Certa vez, perguntei: “Esquisito... por causa da mutilação?”, “Não, por causa do dinheiro”.
194
vontade de trabalhar. Porque (...) se não tiver vontade o cara não encara a mina
realmente”. Ele destacava que as pessoas que têm fobia por profundidade não podem
trabalhar na mina. “A pessoa tem que ter... tem que ter no sangue aquilo ali. E tem que
realmente enfrentar, quem precisa tem que enfrentar. A situação hoje de desemprego é
muito grande, então tem pessoas que têm que fazer qualquer coisa pra ver o sustento da
família, né. Essa é a realidade”. Ao mencionar que a pessoa tinha que ter “no sangue” a
disposição para o ofício, não sugeria com isso a transmissão hereditária da profissão,
como outros interlocutores, mas a “vocação”, que se uniria à “necessidade”.
O drama de Luiz
A queda da gaiola em que se encontrava, em novembro de 1991, junto com
outro mecânico, Claudionor, configurou-se no terceiro acidente na vida de Luiz. Filho
de agricultor, ele destacava essas recorrências numa entrevista que me forneceu no
final de 2003, quando contava com 43 anos. Nessa espécie de lei da repetição, já tinha
perdido três irmãos em três diferentes acidentes – dois em desastres no trânsito e um
no trabalho. Em alguns momentos, ele referia-se à tragédia que mudou a sua vida –
devido à amputação da perna esquerda – como decorrência do “destino”. Em outros,
revelava intensa revolta. Recordava que sempre teve medo do fundo da mina, mas não
da boca do poço. “Sempre fui um cara que eu dizia pros meus colegas: “Se for destino
morrer na mina ou ficar aleijado, é coisa do destino, eu não me preocupo”. (...) E
aconteceu mesmo!”
Em seu depoimento, a idéia de destino aparece como algo que não se pode
evitar. No entanto, se em alguns momentos lançava mão dessa explicação, em outros
expressava profunda indignação pela negligência da companhia na manutenção do
cabo que segurava o skip, a gaiola. Não se lembrava do momento do acidente, mas
mencionava que seus amigos haviam contado que, durante o salvamento, ele pedia
que não o deixassem morrer. Comentava: “O Zé [Cabeça] foi quem me tirou lá de
baixo. Ele se pendurou embaixo do skip, tudo, pra me trazer pra superfície”.
Lembrava que, após o acidente, foi levado para o Hospital de Pronto Socorro, em
Porto Alegre. No terceiro dia de internação, o médico anunciou que teria de amputar
sua perna. Luiz ficou chocado. Só se lembrava que, depois, quando acordou da
anestesia, viu-se sem a perna esquerda. Ficou cerca de 30 dias hospitalizado, quando
perdeu 45 dos seus 90 quilos. No entanto, o corpo foi se recuperando. O impacto
psicológico da mutilação foi ainda pior do que o sofrimento físico. Tratou-se com
neurologista, com psicólogo, e naquele período, ainda tomava medicamentos para a
depressão, assim como a mulher e uma das filhas. “Porque tu pensar.... perdi! Uma
coisa é tu nascer, mas tu ficar....por causa da incompetência dos outros?!” Uma
experiência significativa, durante o tratamento, foi seu ingresso no Centro de
Reabilitação Profissional onde viu casos mais graves do que o seu. Recordava-se que,
no primeiro dia, “quase morria chorando”. Conviver com outros mutilados, em
situações “20 vezes piores”, contribuiu para relativizar sua perda.
Solange, a esposa, contava que o mais difícil foi quando o marido deu alta, foi
para casa e ela teve que cuidar dele sozinha. A começar pelo fato de que a casa era
pequena, sem banheiro em seu interior. Ela, então, estendeu um tapete de borracha
195
para que ele fosse “se arrastando” até o banheiro localizado na parte externa. Luiz,
que ficou um ano e meio numa cadeira de rodas, atribuía à sua força de vontade e à
ajuda de Deus o fato de ter conseguido voltar a andar. Ao descrever esse
sofrimento, enfatizava que “nunca se entregou”, “nunca desistiu”. Manifestava
gratidão a amigos que não o abandonaram e à mulher, mas mencionava não ter
recebido apoio de todos os familiares. “Os estranhos faziam mais por mim do que os
meus mesmo”. Ele me dizia que “o povo do Leão” podia ter seus defeitos, mas era
“unido”, destacando a solidariedade dos amigos e o apoio da empresa.
Luiz havia me explicado que, ao longo da vida, “nunca teve medo de chefe”.
Quando estava na mina e não havia trabalho a fazer, se estivesse sentado e um
engenheiro passasse, assim permanecia, ao contrário de colegas que “saíam
correndo”. Por essa razão, acreditava que um engenheiro teria “invocado” com ele,
chamando sua atenção na frente dos outros. Numa ocasião, o mineiro chegou a lhe
dizer: “Eu não tenho medo de ti! Tu não é mais homem do que eu!” Deve-se notar
como os valores da masculinidade, da virilidade e da coragem atravessam essas
relações. Esse engenheiro foi um dos responsabilizados pelo acidente.
Quando eu me acidentei, que fui pra Santa Casa, aí ele foi lá me visitar.
Ele, a mãe dele e a mulher dele. Báh, botei o dedo na cara dele assim,
com aquele bigodão dele, disse assim pra ele: “Sem-vergonha, filho da
puta!” A mãe dele junto, né. Chamei de filho da puta e de corno ainda,
com a mulher dele do lado. De tanta revolta que eu tinha! “Decerto tá
muito feliz de me ver aqui em cima de uma cama sem uma perna, aqui,
todo arrebentado. Teve cara de vir aqui me ver ò sem-vergonha, cachorro!
A tua visita não me faz falta, tu pode ir embora! (...) Aí ele começou a
chorar, aí a mãe dele pediu perdão. “Não, quem tem que perdoar ele é
Deus, eu não perdôo! Me tratava (...) que nem um cachorro!”
Depois, ficou sabendo que esse engenheiro foi internado num hospital
psiquiátrico. Comentava: “Decerto de complexo de culpa, né. Não, ele teve culpa no
cartório, basta que ele foi condenado a um ano e meio”. Luiz sentia uma grande
revolta quando retornou à empresa. Depois de todo o sofrimento enfrentado na
recuperação, voltar a trabalhar era outra experiência difícil.
Me doía... tu pensa: entrar pra dentro de um pátio onde eu deixei um
pedaço meu, né. No começou foi muito difícil e é até hoje. Sabe que eu
não sinto vontade nem de olhar pra aquele lado lá? (...) Não tenho
saudade nenhuma, nenhuma da mina. Tenho saudade, não de todos, de
alguns colegas, não é de todos, alguns.
Ele foi trabalhar no setor de conserto de lanternas Estava pleiteando uma
indenização na Justiça. Nesse período, descarregou todo seu “ódio” nos chefes com
os quais mantinha relações conflituosas anteriormente. Com o retorno ao trabalho,
conseguiu se aposentar por tempo de serviço e não por invalidez – o que lhe conferia
dignidade. Quando soube pelo advogado a notícia da sentença que lhe era favorável,
caiu em prantos, mas não era um choro de alegria: “Porque aquilo não é felicidade,
deixar um pedaço teu. (...) Amenizou, mas eu queria ter minhas duas pernas toda a
vida”. Algum tempo depois dessa entrevista, Luiz mudou-se com a família para uma
cidade da Grande Porto Alegre. O casal acreditava que viver num lugar onde sua
história não fosse tão conhecida poderia lhe trazer alguma paz de espírito.
196
3.8 O FERREIRO MIEROSLAU E SEUS “INVENTOS”
Neto de poloneses, Mieroslau Lasek nasceu em Camaquã e criou-se em Dom
Feliciano.
351
Chegou a Minas do Leão em 1952, quando, por intermédio de um
cunhado, ficou sabendo que a CRM (então DACM) precisava de um ferreiro, a
atividade que já exercia. Lembrava-se que chegou num dia e no outro já estava
trabalhando. Mieroslau, com 78 anos à época de nossa última entrevista
352
, havia
começado a trabalhar aos 10 anos, em serviços de agricultura. Aos 12, atuava como
servente de pedreiro, e aos 17, iniciou-se como ferreiro. Antes de ingressar na
companhia carbonífera, tinha prática em fazer arados, capinadeiras e outros
instrumentos de trabalho usados na lavoura. Contava-me que, no DACM (depois CRM),
foi admitido para um teste de 15 dias, mas no primeiro dia já tinha sido aprovado.
Acabou por permanecer 34 anos na empresa. Relatava que tinha aprendido os
“segredos” da profissão trabalhando numa ferraria. Ali havia aprendido a fazer, por
exemplo, a rosca interna, executada no interior de um cano, um trabalho considerado
difícil. O próprio encarregado geral da mina duvidava que ele fosse capaz: “Quero ver
tu fazer essa rosca aí!” Mieroslau dizia: “Vou fazer!” E executava seu trabalho com
perfeição. O chefe achava que para fazer uma rosca daquele tipo somente era possível
usando um torno. Nesta época, sua atividade na companhia consistia em fazer
ferramentas usadas pelos mineiros, especialmente no período em que o sistema de
produção de carvão era manual. Então, fabricava carros de mina, trilhos para o subsolo,
engates para os cabos, inicialmente trabalhando com uma marreta, com dois ou três
homens envolvidos na tarefa: “Esquentava a forja, tirava de cima da bigorna e os
ajudantes tinham que bater com as marretas para aperfeiçoar a peça”. Depois, o sistema
foi modernizado, com a adoção de uma máquina cuja “pancada” era de onze toneladas e
meia. Ele me explicava que “colocava um ferro de cinco, dez polegadas e aquilo, em
poucos minutos, virava num papelzinho”. No processo de fabricação do carrinho de
mina foi inventando soluções.
Mieroslau - A senhora sabe, eu estudei um meio de... aquele carrinho era
quadrado, assim ó, meio quadradinho aqui (mostra com gestos), então essa
volta pra fazer em cantoneira, assim como nós fazíamos de primeira dava
muita mão-de-obra, era difícil. Aí eu, dormindo, em casa, fui bolando assim
de fazer uma fôrma para fazer essa voltinha da cantoneira.
Lúcia (a esposa) – Pra fazer o modelo...
351
Outros aspectos relativos à identidade polonesa e à trajetória familiar são analisados no capítulo 4.
352
Depois de um período de enfermidade, Mieroslau faleceu em meados de 2009.
197
Os engenheiros, a princípio, caçoavam de suas invenções, dizendo: “Báh, essa
tua fôrma... essa técnica vai sair mais caro do que pegar um avião e ir pra Brasília
comprar. Encomendar uma sai mais barato”. Mieroslau mantinha sua determinação:
“Não”, digo, “mas eu vou fazer”. Depois que deu o ponto, era só o trabalho
de esquentar aquela parte que fazia a volta, né. E aquilo saia na medida
certinha porque eu fiz tudo na medida, né. Pois, olha, eles tiraram o chapéu!
Sabe o que que... depois era muito trabalho pra nós e uma firma lá de Porto
Alegre veio e implantou essas caixas. (...) Nós fazíamos outros serviços da
forja e eles chegaram aí e pediram a fôrma aquela emprestada... pra fazer
essas cantoneiras. E eu que inventei, viu?
Calculava que isso tivesse ocorrido em 1978 ou 1980, alguns anos antes de se
aposentar. Manifestava neste relato um orgulho quase juvenil de sua “invenção”, que
acabou sendo reconhecida na companhia e ainda serviu de exemplo a outra empresa.
Freqüentemente, realizava atividades no subsolo, num período em que a extração de
carvão era feita com perfuratrizes a ar comprimido. Meu interlocutor fazia as pontas
desses equipamentos de perfuração. Ele se recordava que, quando foi aberto o Poço 1,
as equipes tiveram dificuldade para avançar porque encontraram uma rocha de um
material extremamente duro, que não podia ser perfurada com bits – segundo me dizia,
“o material mais duro que existe” – de forma que o trabalho de abertura das galerias só
podia ir adiante com o uso das brocas
aspirais fabricadas por ele. Como se
gastassem rapidamente, as brocas eram
consertadas por Mieroslau no próprio
subsolo.
353
Esse trabalho não podia parar porque eles
tavam dia e noite abrindo aquele poço, né. E
o encarregado Fulano (...) era o que abriu
esse poço aí. Foi obra dele. Então ele dizia:
“Olha, Polaco, tem que morar no serviço”. E
às vezes eu chegava em casa pra ver os filhos
e a esposa e a condução já vinha me buscar:
“Olha, tu tem que ir”. De novo, eu ia lá.
O “Polaco”, como era chamado,
modelava também os trilhos usados no
subsolo, fazendo as curvas que os
353
A situação de Mieroslau era similar à descrita por Leite Lopes (1976, p.67) sobre os “artistas”, cuja
função exigia um longo aprendizado. Durante a moagem, no processo de fabricação do açúcar, além das
tarefas programadas nas oficinas, os “artistas” estavam sujeitos a um “regime de prontidão” caso um
acidente com as máquinas paralisasse a produção.
198
carrinhos deveriam percorrer no interior da mina. Esclarecia que era preciso ter o
“gabarito” – espécie de representação gráfica do trabalho a ser executado -, que vinha
no desenho feito pelos engenheiros. Quando recebia o trabalho, “tinha que enfrentar e
fazer”. Ao entregar-lhe o desenho, os engenheiros desafiavam: “Te vira!” Durante nossa
conversa, ele me mostrava algumas ferramentas feitas por ele, tais como um martelo,
uma machadinha e uma pequena picareta usada para extrair carvão para análises.
Destacava que a machadinha, por exemplo, era feita de aço, moldado em forja e no qual
era preciso “dar a têmpera” e saber o ponto exato. Revelava algo do segredo para dar a
consistência ao metal: “Porque tem que ser o grau da caloria pra dar a têmpera. E o que
dava a têmpera... eu temperava com óleo queimado”.
Com o gosto e a dedicação ao trabalho, ele foi construindo sua respeitabilidade.
Certa vez, Mieroslau recebeu uma homenagem da companhia por sua atuação como
“bom operário”, quando recebeu de presente uma miniatura dos antigos lampiões
usados no subsolo. Em nossa entrevista, dizia aquilo era “a sua relíquia”, algo pelo qual
ele “zelaria até morrer”, demonstrando ao mesmo tempo gratidão e orgulho por aquela
distinção. Naquele período, o jornal da companhia, o Lampião, exibia um texto com o
seu perfil. Meu interlocutor recordava que, durante aquela homenagem, foi agradecer,
mas ficou nervoso porque “nunca tinha falado assim na frente dessas pessoas de
estudo”. Considerava que “havia se saído mais ou menos”. Eu sabia que Mieroslau,
bom contador de histórias que era, estava sendo modesto. Era tão hábil nesses relatos e
no trato com as palavras como em seu ofício na forja. Contava-me que gostava,
especialmente, de trabalhar com o ferro.
- O que é mais interessante nesta lida? É moldar o ferro?
Mieroslau – Isto! Isso aí, modelar o ferro e aperfeiçoar tudo. E conhecer o
material, tem que conhecer o material. Isso que é interessante. Conhecer
também a bitola do ferro, tudo. Todo ferro eu conhecia pela bitola de um
quarto, três oitavos, sete oitavos, cinco oitavos, uma polegada...
A forma como ele se referia à sua arte de modelar o ferro me remetia ao que o
ex-mineiro Hermes havia mencionado sobre o seu trabalho no subsolo, ressaltando que
o esforço para retirar da terra o mineral provocava-lhe mais disposição. Hermes dizia:
Era bom, sabe. Olha, cada vez que eu penso... Eu gostava, parece uma coisa
assim que quanto mais a gente suava, melhor o serviço ficava. Lá sei eu...
mas eu me sentia bem. Parece uma coisa que, quanto mais suava, melhor eu
achava o serviço. Gostava mais, dava disposição, a gente tinha disposição.
Essas falas, tanto de Mieroslau como de Hermes, me remetem ao que escreveu
Bachelard (2001) sobre as imagens da matéria terrestre, que “oferecem-se a nós em
199
profusão num mundo de metal e de pedra, de madeira e gomas” e que ao senti-las com
as mãos, despertam “alegrias musculares assim que tomamos o gosto de trabalhá-las”.
(Bachelard, 2001, p.1-6). Ao relacionar a matéria à intimidade da energia movida pelo
operário, o autor analisa como “o trabalho enérgico das matérias duras” é animado por
“belezas prometidas”. Uma imagem similar aparece num trecho do prefácio – usado por
mim na introdução da presente tese e aqui repetido – feito por Géraldy à obra de
Georges Navel, Travaux: “É o esforço operário, o prazer deste domínio das mãos feito
de um longo aprendizado e de pacientes sacrifícios” (Géraldy, 2004, p. 8-9). No mundo
da mina, Mieroslau sempre foi um técnico de manutenção, mas se sentia identificado
com o apreço dedicado pela maior parte dos mineiros àquele universo. “Báh, eu gostava
dessa luta da mina! Eu adorava. Eu gostava e gosto até hoje”, me dizia.
Um dos reconhecimentos que recebeu por sua dedicação foi um convite para
ser um dos professores num curso organizado pela companhia de preparação de novos
trabalhadores. Eram 25 alunos no curso com duração de dois meses, com aulas durante
duas horas por dia, no qual participavam vários instrutores. No final, apenas alguns
seriam selecionados pela empresa. Cabia a meu interlocutor mostrar-lhes tanto o
trabalho da oficina como dar-lhes conselhos sobre a vida profissional, uma espécie de
“etiqueta operária”, abordando aspectos sobre “como deveriam se comportar no
trabalho”. Explicava que a possibilidade de serem ou não contratados iria depender
bastante de sua conduta. Relatava que entre os 25 um número bem menor realmente
ingressou na companhia. Naquele período, teve que se “sacrificar” para dar atenção a
um grupo daquele tamanho na oficina. Explicava que sua obrigação era “ensinar na
prática” seu próprio trabalho e também transmitir “a teoria”.
Eu dava sempre os conselhos que eles tinham que seguir essa conduta de
pessoas honestas, de saber tratar as pessoas. E... “na própria firma tem que
saber se comportar muito bem porque uma firma é nossa casa, gente. É o pão
de cada dia, tem que valorizar muito a firma (...). O funcionário é a mesma
coisa que uma engrenagem, né, aonde começou a falhar, não funciona. Então,
sempre procurar desempenhar bem a função. Sempre ser honesto com a
chefia, sempre respeitar...”, tudo isso.
Outros conselhos estavam relacionados à administração do orçamento
doméstico. Mieroslau recomendava aos operários que fossem previdentes em relação ao
dinheiro e que tivessem cuidado ao empregá-lo, investindo, por exemplo, na compra de
um terreno ou de uma casa. Como mencionei no capítulo 2 e retomarei no capítulo 4, tal
postura austera nos gastos, com a valorização da poupança para projetos familiares era
200
uma característica reconhecida entre os descendentes de poloneses. Na sua convivência
com os mineiros, ele observava que muitos colegas, “por falta de um exemplo ou de
uma ajuda”, mesmo tendo “ganhado dinheiro como água não souberam aproveitar”: “A
maioria era o trago, a malandragem, tudo isso”. Sua própria conduta seguia valores bem
diferentes. Por vezes, na rotina de trabalho, ouvia alguém dizer: “Vamos quebrar isso,
porque é da firma”. Nessas situações, ele explicava que aquele comportamento estava
errado porque sem o equipamento não haveria como trabalhar. Tempos depois do curso,
ele reencontrou um trabalhador que havia freqüentado suas aulas.
Então, ele me chamou em particular e me disse: “Olha, sorte pra mim tu ser
mais do que um pai”. Porque quando ele era pequeno mataram o pai dele. E...
aí ele entrou nesse curso aí e tá até hoje na firma, heim. E diz ele: “Eu
agradeço ao senhor, aonde eu cheguei [foi] com sua ajuda!”. Sabe que eu
fiquei emocionado? Fiquei mesmo, vendo ele falar, falou assim... Digo: “Ah,
mas que bom, rapaz, eu fico até muito grato, sabe”. E todos os que fizeram
esse curso comigo lá, até hoje eles me encontram já que a maioria deles está
aposentada, trabalharam na mina, né. E olha, deu gente boa, sabe?
Mieroslau mantinha a sua fidelidade à empresa, o seu “amor” ao ofício, mas não
desconhecia que a companhia impôs muitos sacrifícios aos trabalhadores, porque
inicialmente a produção era manual e eles não contavam com equipamentos de
proteção. Por vezes, servia de intermediário para convencer as chefias sobre
necessidades dos operários. Sabia que as privações eram uma constante também na vida
doméstica, já que as casas não dispunham nem de luz nem de água. Avaliava que na
última uma década de meia de funcionamento da mina, as condições de trabalho haviam
melhorado de forma significativa. A partir de uma postura de trabalhador impecável, do
carisma – e até do talento como assador de churrascos - foi angariando respeito e
admiração por parte de mineiros, capatazes e engenheiros. Mantinha-se como técnico de
manutenção, mas exercia uma liderança que extrapolava a posição modesta.
201
PARTE II
A TESSITURA DA CIDADE
Paisagens: a
industrialização
representada pela
mina convive com
carroças puxadas
por cavalos
202
4 “AQUI É TODO MUNDO UNIDO!”: ESTÓRIAS QUE SE CONTAM
354
4.1 UM MUNDO URBANO E RURAL
Durante meu trabalho de campo, ouvi de forma recorrente que, em Minas do
Leão (RS) “é todo mundo unido”, que ali todos são “uma grande família”
355
. Mas esta
cidade, partida ao meio por uma rodovia federal
356
, sempre teve uma vida dividida
também sob outros aspectos (ver mapa em anexo). Uma dessas divisões – que
corresponde também às suas hibridações - diz respeito aos limites e aos cruzamentos
entre o urbano e o rural. Dos 7.728 habitantes
357
, 95,72% vivem na área urbana do
município e 4,28% na área rural.
358
O núcleo urbano, construído em torno das minas de
carvão, é cercado por áreas rurais e por florestas de eucaliptos e de acácias - que no
tempo da mina eram usadas também para o escoramento das galerias e que hoje
alimentam as fábricas de beneficiamento de madeira e de papel e celulose da região.
Com uma área de 426,2 quilômetros quadrados, o espaço do município é ocupado em
sua maior parte pela zona rural, onde se desenvolve a pecuária, com o gado de corte que
povoa os campos das médias e grandes propriedades, e a agricultura, com destaque para
o cultivo do arroz, da soja e da melancia. Não só grande parte das famílias mineiras tem
uma origem rural como muitas mantinham as duas atividades paralelamente ou de modo
intercalado, seguindo-se à aposentadoria na mina uma retomada da atividade agrícola.
354
Darnton (1986) adota num capítulo o título “Histórias que os camponeses contam”.
355
Muitas referências são similares às registradas por Comerford (2003) em seu universo de pesquisa.
356
A BR 290 liga Porto Alegre à fronteira Oeste e à Argentina. A existência desta rodovia é causa de
acidentes e atropelamentos. Interlocutores diziam que “até morreu mais gente na faixa do que na mina”.
357
Segundo dados do IBGE fornecidos na Contagem 2007.
358
Dados da Federação das Associações dos Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs).
203
Com a retração da atividade carbonífera e o encerramento da extração de subsolo da
CRM em Leão I, em 2002, muitos filhos de mineiros, sem encontrar postos de trabalho
nas indústrias da região, lançaram-se ao trabalho rural ou ao “corte de mato”,
empregados muitas vezes por empresas clandestinas. Estudos têm alertado para os
problemas que a plantação de eucaliptos vem provocando em diversas áreas do país,
inclusive no Rio Grande do Sul.
359
Sem dúvida, isso remete a uma mudança drástica na
paisagem, no perfil econômico e no modo de vida dos descendentes.
360
Importa assinalar que, ali, o espaço urbano e o rural convivem lado a lado, se
interpenetrando e determinando uma mescla de valores. Costumes que caracterizam
comunidades rurais têm ali uma expressão significativa, como o das relações de
compadrio e de patronagem, ou seja, relações de poder alicerçadas em relações
pessoais. A dimensão do compadrio está, como na definição de Pitt-Rivers (1971),
imbricada com uma concepção de amizade inaugurada ou reforçada por algum “favor”
ou “ajuda”, na linguagem local.
361
Nesta localidade, as relações de compadrio são
referidas livremente e podem ser lidas nos principais acontecimentos sociais, enquanto
que a patronagem manifesta-se tanto na forma de “cunhas” como na “ajuda” financeira
ou na prestação de favores em troca de apoio eleitoral. Esses laços contratuais também
se aproximam, em certa medida, da abordagem de Foster (1967).
362
Na região, adota-se
o termo “cunha”, equivalente a “pistolão”, para dizer que sempre se depende de
“alguém influente”, de “boa cunha”
363
para se obter um emprego, uma bolsa de estudos
para um filho, uma vaga no time de futebol, etc. “Cunha”, segundo me explicava o ex-
mineiro Adão Souza, é a relação com alguém influente que “ajude” a pessoa. Assim,
para concorrer a um emprego “é preciso ter uma cunha muito boa, senão não pega. Tem
que ter as cunhas, tem que ter enjambração, senão não pega”. Outro ex-mineiro, Luiz
Marino, me explicava que a “cunha” é o pedaço de madeira que serve para apertar os
quadros das galerias subterrâneas. Esclarecia que, em sentido metafórico, “cunha é o
359
Reportagens do jornalista Lúcio Vaz no Correio Brasiliense, em maio de 2008, alertavam sobre a
invasão dos pampas gaúchos pelas plantações de eucaliptos. Um dos efeitos nefastos neste cultivo é a
criação de “desertos verdes”. Pesquisas indicam que as florestas de eucaliptos acidificam o solo e a água
dos arroios, devido ao acúmulo de cálcio e magnésio. Quando o lençol freático está próximo à superfície,
as árvores podem sugar a água, salinizando o solo. No Rio Grande do Sul, onde essas plantações vêm
recebendo grandes investimentos, a expectativa é que atinjam 440 mil hectares até 2011.
360
Este aspecto será explorado no capítulo final, “Os filhos do carvão”.
361
Eckert (1985) identificou igualmente entre mineiros de Charqueadas, na mesma região carbonífera, as
relações de favoritismo, baseadas na “troca tradicional de favores”. Ver Eckert, 1985, p. 337.
362
Ver Foster, 1967, p. 216-217.
363
A expressão “cunha” também é usada por informantes de Eckert (1985, p.238), significando algum
mineiro bem relacionado que possa indicar o aspirante a uma vaga.
204
que ajuda o outro” como a madeira “ajudava” na segurança do teto da mina. Sua
definição, baseada na experiência cotidiana como madeireiro no subsolo, é eficaz para
nomear estas relações e não destoa muito da própria definição contida em dicionário.
364
Minas do Leão (RS) é uma cidade interiorana situada a 80 quilômetros de Porto
Alegre, na Região Centro-Sul do Estado, às margens da BR 290, que conduz à fronteira
Oeste do Estado e à Argentina. O município pertence à Microrregião Carbonífera do
Baixo Jacuí,
365
que reúne várias cidades desenvolvidas na esteira da mineração de
carvão e que, nas últimas décadas, enfrentam o empobrecimento causado pela
decadência da extração mineral. Entre 1940 e 1991, ocorreu um processo acelerado de
urbanização nesta região carbonífera, chegando a 146,48 mil pessoas vivendo nos
limites urbanos das sedes destes municípios.
366
O forte da migração a Minas do Leão
ocorreu entre 1940 e 1970. Depois, a população manteve-se praticamente estável. A
partir dos anos 1940, a mineração de carvão na localidade atraiu trabalhadores de
diversas áreas do Estado, provocando um crescimento rápido da população. As
empresas carboníferas ofereciam atrativos para obter a adesão de novos trabalhadores,
como moradias e salários superiores a outros segmentos. Minas do Leão emancipou-se
de Butiá em 20 de março de 1992. Desde meados de 1990, a extração de carvão na
região enfrenta forte retração, apesar das reservas de 200 milhões de toneladas.
Diferentemente de outras vilas-operárias abordadas pela literatura
antropológica
367
, em que a cidade ou comunidade se constrói em torno de uma única
empresa, Minas do Leão não possui um caráter monolítico, mesmo que a estatal CRM
tenha sido na maior parte do tempo o principal poder local. Isso porque ao longo de sua
história a localidade foi palco de uma série de empreendimentos de outras empresas,
tanto da privada Copelmi, sediada em Butiá, que mantinha ali a Mina do Recreio, como
da Mina de São Vicente ou Mina do Alencastro, de menor porte. Há, portanto, uma
diversidade de poderes que se mesclaram na vida local, demarcando diferentes espaços
sociais e geográficos, com as oposições entre Recreio e Leão ou Centro, como se
fossem duas vilas-operárias, dois núcleos de povoados formados em torno de diferentes
minas, assim como a rivalidade das equipes de futebol mantida nos dias atuais. Tais
364
No Dicionário Houaiss (2001, p. 890), cunha é definida como “a peça de metal ou madeira dura, em
forma de um prisma agudo em um dos lados, que se insere no vértice de um corte para melhor fender
algum material, bem como para calçar, nivelar, ajustar uma peça qualquer”. É mencionado também o
sentido popular de “arranjar um pistolão” para a expressão “meter uma cunha”.
365
Fazem parte da microrregião nove municípios: além de Minas do Leão, estão Arroio dos Ratos, Barão
do Triunfo, Butiá, Charqueadas, Eldorado do Sul, General Câmara, São Jerônimo e Triunfo.
366
Neves & Chaves, 2000, p. 114-116.
367
A esse propósito, ver Leite Lopes (1988, 2004).
205
características diferem daquelas situações encontradas na literatura antropológica nas
quais uma cidade é controlada por uma única empresa. Por outro lado, Minas do Leão e
Butiá se inserem numa região carbonífera mais ampla, compreendendo Arroio dos
Ratos e Charqueadas, localidades que até os anos 1960 estavam englobadas pelo
município de São Jerônimo. Ainda que as companhias pudessem fazer suas alianças,
como no enfrentamento de greves
368
e no fortalecimento da equipe de futebol amadora
da localidade
369
, eram também rivais em relação ao mercado de carvão e mantinham
práticas distintas tanto em relação às políticas paternalistas e assistencialistas para a
cidade como ao gerenciamento da mão-de-obra. É preciso destacar que essas empresas
atuam numa área geográfica maior do que a enfocada por esta pesquisa.
Os empreendimentos do Cadem/Copelmi, como destacado no capítulo histórico,
começaram por Arroio dos Ratos, estenderam-se para Butiá e Leão, e, posteriormente,
com o esgotamento das atividades em Arroio dos Ratos, a exploração foi transferida a
Charqueadas.
370
Maior mineradora privada de carvão do país, a Copelmi detém hoje
80% do mercado industrial e 18% do total do mercado de carvão mineral do país. A
empresa, com escritórios em Porto Alegre e no Rio de Janeiro, mantém atividades em
Butiá, Minas do Leão, Cachoeira do Sul, Charqueadas e Triunfo. A principal mina em
atividade é a Mina do Recreio, localizada entre Butiá e Minas do Leão, movimentando
anualmente cerca de 2 milhões de toneladas de minério. Por sua vez, a CRM, com sede
em Porto Alegre, começou explorando em Minas do Leão, inicialmente como DACM, e
posteriormente passou a minerar áreas de superfície em Iruí, na mesma região, e em
Candiota, na fronteira Oeste do Estado, localidade que é considerada como a “terra de
ouro” do carvão, pois é de onde a empresa extrai hoje, através da abertura de imensas
crateras no solo, a maior parte de sua produção, que lhe possibilita liderar o ranking do
Estado em alguns períodos. Na jazida de Candiota, as reservas de carvão passíveis de
serem mineradas a céu aberto chegam a 1 bilhão de toneladas. A produção oriunda dali,
que chega a 1,7 milhões de toneladas de carvão por ano, abastece a Usina Termelétrica
Presidente Médici, de 446MW. Com a implantação da fase C da usina, até o final de
2010, essa produção deverá ser duplicada.
***
368
Como mencionado no capítulo 8, na trajetória de Oniro.
369
Para essa questão, ver o relato de Butiá, no capítulo 7.
370
Sobre a mineração em Charqueadas, ver Eckert (1985).
206
Alguns moradores definem Minas do Leão, um lugar de casas espalhadas ao
longo de duas avenidas e ruas secundárias, como “quase uma vila”. Com um desenho
estreito e alongado, Minas do Leão é uma cidade horizontal. Praticamente todas as
casas, com uma ou outra exceção, têm apenas um pavimento. Chamam a atenção de
visitantes os tons vivos que colorem a maior parte das moradias, pintadas de azul, rosa,
verde, amarelo ou outras cores.
371
Há um número menor de velhas casas de madeira sem
pintura, que guardam características da antiga vila mineira. Os principais
estabelecimentos comerciais estão situados ao longo da avenida principal, a Getúlio
Vargas. Ali está a prefeitura, a sede da CRM, o sindicato dos mineiros, pelo menos
cinco igrejas (católica e protestantes), farmácias, as principais lojas e supermercados, o
Clube Duque de Caxias, uma escola, a delegacia de polícia e a Brigada Militar. Esta
avenida também é conhecida entre os moradores como “a rua de cima”, para se
diferenciar da “rua de baixo”, a Avenida Alberto Pasqualini. Nesta última, está
localizada a rodoviária, o posto de saúde, um campo de futebol, outras igrejas
evangélicas e casas de comércio, principalmente mini-mercados. Além das duas longas
avenidas, são 112 ruas, três estradas e 15 becos, espalhados pelos bairros Centro, que
entorna as minas da CRM, Santa Albina, São Miguel, localizados à direita da BR 290
(no sentido de quem chega da Capital), e os bairros São José, Recreio e Coréia, à
esquerda da rodovia, chamados também de vilas, pelas condições sócio-econômicas.
A casa na qual habitei, situada numa esquina - tendo a 100 metros à esquerda o
Centro de Tradições Gaúchas Zeca Freitas e à direita mantendo a mesma distância do
campo de futebol que pertencera ao Atlético Futebol Clube (hoje cedido à prefeitura
pela CRM) -, localizava-se no Centro, na antiga Vila Mineira. Caminhando-se numa
direção, chegava-se à área central da cidade. Noutra, entrava-se na Vila Freitas, local
onde mora a maior parte dos membros desta família, em cujo meio eu me encontrava –
tanto geograficamente como pelas relações estabelecidas. Durante o dia, havia naquele
ponto da cidade um trânsito esparso, de um ou outro carro, algumas carroças puxadas a
cavalo, cavaleiros, motocicletas e bicicletas o principal meio de transporte dos
moradores e também o meu. O cenário em que me encontrava poderia ser visualizado
nesta passagem do diário de campo, registrado pela manhã.
Ao abrir a janela, vi, do outro lado da rua, uma senhora lavando roupa, uma
criança, seu neto, brincando na calçada, enquanto um garoto passava a cavalo
pela rua. Esta é a paisagem. Ruas pacatas, casas (a maior parte de alvenaria,
embora haja ainda algumas de madeira) com gramadinhos, alguns cães
371
Devo a observação a duas amigas, a jornalista Denise Ramiro e a antropóloga Indira Caballero.
207
desfilando ou latindo, como agora, uma galinha cacarejando e um ou outro
carro passando. Hoje passou uma moto fazendo propaganda do candidato do
PT e um carro de som chamando para outro comício eleitoral. Faz hoje quatro
dias que estou morando aqui. Já soube que uma das filhas da mulher que está
lavando a roupa namora um rapaz que está detido no presídio, em Porto
Alegre. Um vizinho me contou: “Pegaram ele num pátio...”, “Fazendo o
quê?”, perguntei. “Roubando”, ele me disse, ao mesmo tempo em que
salientava que o rapaz “não era dali”. (Diário de campo, 16/09/2006)
Essas “notícias” sobre a vida alheia circulavam com grande rapidez,
principalmente nos comentários sobre os vizinhos feitos por outros a uma forasteira.
Algumas informações se confirmavam, outras eu descobria serem exageradas. Em
algumas ocasiões, durante as noites cujo silêncio era interrompido pelos passantes, eu
ouvia as conversas de transeuntes. Em finais de semana, havia um coro animado de
vozes masculinas que passavam por ali, indo ou vindo de bailes e bares.
Nesta cidade erguida em torno da atividade industrial, estavam presentes muitas
dimensões de natureza.
372
Homens e animais conviviam de forma próxima: raro era o
dia em que eu não avistava cavalos pastando na grama ao lado da minha casa; já os
cães, que circulavam em bandos, faziam suas sinfonias à noite, com latidos e uivos de
todos os timbres mantidos por horas a fio, por pouco não coincidindo com o canto dos
galos, geralmente descompassado entre madrugadores e retardatários, com emissões
vocálicas próximas ou distantes. Embora houvesse um grande número de cavalos para
“carreiras” na localidade e alguns usados no cultivo da terra, a maioria tinha uma
“ocupação” urbana: puxavam carroças, usadas no transporte de móveis e mudanças.
373
Mais de uma vez aconteceu de um desses cavalos soltar-se da carroça e “disparar”,
lançando o móvel transportado ao chão. Toda a vizinhança aparecia para acompanhar o
incidente. Em ocasiões assim, parece que somente eu me compadecia do animal, pois,
logo que era dominado, costumava ser severamente repreendido por ter se rebelado
daquela maneira, ainda mais que era já um animal “domado”, como me explicava seu
dono, um ex-mineiro que tirava dali uma renda para complementar a aposentadoria.
4.2 DE RIVALIDADES: “PERUS DO LEÃO” X “PERUS DO RECREIO”
Certas oposições presentes na história e no cotidiano da cidade derivavam do
espaço social e geográfico ocupado por trabalhadores de diferentes minas, moradores
372
Estou considerando “natureza” como o “espaço não-humano”, na definição de Ellen (1996, p.104-112).
373
Eu mesma havia utilizado este recurso para transportar alguns móveis emprestados por um casal de
informantes. O condutor da carroça me cobrou o irrisório - e surpreendente - valor de R$ 5 pelo serviço.
208
em bairros que nasceram marcados pelo conflito. Uma rivalidade antiga, que opunha
duas áreas da então vila operária – como se fossem duas vilas separadas
374
-, mantém
até hoje seus traços na disputa futebolística, por exemplo.
375
Na área à esquerda da BR
290, está localizado o bairro do Recreio, considerado, ao lado do bairro São José, o mais
pobre de Minas do Leão, cujo solo escuro indica ter-se originado de uma ocupação
irregular sobre rejeitos de carvão. Quando estive lá pela primeira vez
376
, em 2003,
encontrei muitas casas construídas de retalhos de tábuas, com chão de terra batida e sem
instalações sanitárias adequadas – apenas a antiga “patente” de madeira nos fundos.
Essa concentração urbana havia surgido em torno de minas mais antigas, tais como a
Mina de São Vicente, a de São José e a da Coréia. Nos últimos anos, várias melhorias
foram realizadas pela municipalidade e, embora a aparência do local tenha se alterado,
restaram os estigmas. No lado direito da BR, estão os bairros que desembocam no
Centro, onde se localizam a vila operária e a vila dos engenheiros da CRM.
Os relatos dão conta de que, entre os anos 1940 e 1980, havia contendas armadas
envolvendo as duas áreas: de um lado, ficavam os rapazes “do Recreio” (bairro ou vila
do Recreio), de outro os “do Leão” (“Centro”, ou “Baixada”). Tais enfrentamentos, que
marcavam uma “honra viril”, relacionada à coragem, ao atrevimento, à força e à
habilidade física, começavam geralmente pela provocação, pelos xingamentos mútuos:
“ô peru do Recreio!”, “ô peru do Leão!” e desembocavam em brigas de rua, envolvendo
facas (especialmente as “carneadeiras”), facões e adagas, quando dois grupos se
encontravam. “Eles não podiam se enxergar que já pegavam no zinco [no facão]”, relata
um informante. As narrativas dão conta que havia, neste período, os “valentões” do
Recreio e os “valentões” do Leão, marcando um tempo em que a dimensão da violência
podia atravessar a sociabilidade dos bares, dos prostíbulos, dos clubes recreativos, das
partidas de futebol e também a convivência no trabalho da mina. Essa divisão,
geográfica, social e também moral, entre zonas da cidade, encontrava sua
correspondência principalmente pela na localização destas minas: a de São Vicente (ou
Mina de Alencastro), localizada no Recreio, de propriedade privada e de menor porte;
no Centro ou “no Leão”, a mina de subsolo da CRM, estatal e de maior porte.
374
Tais divisões nos remetem ao estudo de Elias & Scotson (2000) sobre “os estabelecidos e os outsiders”.
Nas oposições formadas em Minas do Leão, no Centro estariam os “estabelecidos”, embora a maioria dos
moradores do Centro, em outros tempos, fosse tão pobre como a do Recreio.
375
Este aspecto é explorado no capítulo 7, sobre futebol.
376
Na época, eu conduzia a etnografia de mestrado. Ver Cioccari, 2004, p.77-81.
209
Entretanto, os enfrentamentos não se davam apenas entre uma vila e outra, mas
também entre facções diversas de uma mesma zona habitacional formada em torno das
minas. O ex-mineiro Butiá recordava-se da gangue apelidada de “Os sarampos”,
formada por cinco ou seis rapazes de uma mesma família que atemorizavam os
moradores do Recreio nos anos 1950. Eles eram trabalhadores da mina São Vicente e
costumavam andar armados, sempre “procurando bronca”. Conta que, à passagem do
grupo, os donos dos bares fariam melhor fechando as portas porque sua chegada
certamente causaria confusão. Esses “sarampados” – como ele denomina - faziam
inimigos facilmente. Brigas começadas numa ocasião iam tendo novas edições até que a
ira dos oponentes se aplacasse ou que resultasse em morte, mas que poderia ainda
despertar o desejo de vingança, tal como numa vendeta. Quando menino, Butiá foi
tomado como testemunha de um episódio entre um Sarampo e um adversário.
(...) Esse Sarampo e o Noé esse aí quase se mataram. O Noé uma vez meteu
uma faca na cara do Sarampo, que abriu isso aqui assim de fora a fora (mostra
com gestos), as mãos ele cortou tudo. O sujeito se recuperou e não quis matar
o cara ali depois, o Noé ali! Vê como é o troço! Aqui....[o Sarampo] passou a
pinguela aqui, chegou na Dona Oswaldina e “Ô guri...” [disse a Butiá]. Ia
escurecendo. “Guri... vai comigo só pra ti presenciar alguma coisa. Se me
acontecer um troço de errado, aí tu avisa minha gente”. Aí eu fui. E ele saiu
atrás do Noé, que ia embora, morava pra lá da sanga ali em cima. E nós
saímos por ali, quando quis escampar nós encontramos o Noé, mas eu era
guri, gurizote. Ele [o Sarampo] disse: “Vai só pra presenciar, se o cara me
matar, tu volta pra.... pra avisar os meus irmãos aí que o cara me matou”. Ele
foi e fez um arranca-rabo e arrancou o outro de casa: “Hoje eu vou te matar!”
E o Noé não tinha nada na... não tinha nada na cintura [não estava armado].
Rapaz! E ele: “Eu vou te matar, tu não é homem!” E aí foi dizendo um monte
de besteira, né. E o Noé olhando em roda assim, se escapando da faca, né,
claro. Se chega meio perto, apara ele. E andava longe. Depois disso: “Olha,
quer saber de uma coisa, o que tu me fez eu não vou te fazer pra ti!”. [O
Sarampo] Veio embora e deixou o Noé ir embora. Não fez nada, nada, pro
cara! O Noé foi embora. Ele [o Sarampo] tinha ficado todo marcado [do
episódio anterior], as mãos dele estavam tudo aleijada, né, que o outro botou
a faca e ele agarrou a faca. Ele agarrou o cara a unha e o outro com faca...
Chama a atenção no relato o fato de que o revide da violência era considerado
algo esperado e natural naquele contexto, diante de uma primeira agressão cometida,
cujas seqüelas são descritas em detalhes. O próprio Butiá mostrava-se impressionado
quanto aos desdobramentos do episódio, no qual um dos Sarampos, armado, desistiu de
se vingar do inimigo que havia marcado seu rosto e seu corpo. Teria sido um desfecho
extraordinário, pois os Sarampos tinham fama de se enfrentar até mesmo com a polícia.
Dedicado jogador de futebol amador e varziano, adepto da vida pacífica, o
próprio Butiá envolveu-se certa vez, excepcionalmente, numa briga, exasperado pelas
210
provocações e ofensas que ouvira de um grupo de rapazes que jogava pelada num
campo na cidade vizinha. Os jogadores ofenderam moralmente a ele e a outros colegas
mineiros que passavam a bordo de um caminhão de transporte de carvão.
Butiá Uma vez me meti lá num... (...) Descarregamos um caminhão, quando
nós viemos vindo, aquela gente do Negão, o Oli lá, o Varlinho (...) tavam
jogando futebol e quando nós passamos pra lá, começaram a nos xingar:
“Filho disso, filho daquilo, filho daquele outro”. (Evita mencionar os
palavrões). Na volta, éramos três, o Freitas não quis descer. ‘Olha, nós...”,
“Não, eu vou pegar uma cachaça na esquina” [disse o colega que não estava
disposto a brigar]. “Enquanto senhor vai pegar a cachaça, nós vamos acertar
as contas com esses caras”. Olha, os caras tudo jogando bola. Nós fomo lá:
“Quem é que nos chamou disso?”
- De filho da puta, por exemplo?
Butiá - É, é. E aí começou: ”Ah, fui eu”, “Ah, foi tu?!” Ah, rapaz, nós só em
dois... Começamos... ninguém tinha arma nem nada, só na... na unha. Só no
soco. Eu e o Rogério começamos a dar-lhes socos, a tomar soco, e os de
fora... Bom, a gente tava com umas camisas assim, eu eles me deixaram sem
camisa, depois me deram uma tijolada também no braço assim que... aí me
inchou depois o braço, criou um...
Eraldo - Lá no [poço] dois?
Butiá - Lá no dois. Lá no dois. Olha, eles nos deram, mas... esse Varlinho...
esse Varlinho nós quase matamos ele, eu e o Rogério. Saltou a mãe dele, era
gorda, né. Depois que fiquei sabendo que era a mãe dele, veio com cabo de
vassoura. (risos)
– Pra separar a briga?
Butiá - Pra separar. Chegou e já botou... Mas botou no Rogério e veio direto a
mim, foi me abotoando, eu larguei o Negão, né. Larguei e já saltei fora. “O
que vocês tão pensando, vão dar nos meus filhos!” (riso) Disse que era filho
dela. Eu não sabia que era filho dela, era gurizada, né. Então a única vez
assim de bagunça...
- E qual era o motivo? A briga começou assim...?
Butiá – Não, só...só porque nós se cruzava. Eles tavam dentro do campinho
deles [de futebol], era bem onde a gente cruzava com o caminhão, né. A
gente carregava o caminhão de carvão com carroceria pra Butiá, lá pro poço
dois ali embaixo, tu entende? Aí descarregava aqui e depois buscava,
descarregava... Ia no caminhão, aí carregava aqui e voltava. Aí dava quatro ou
cinco viagens... E eles tavam ali sempre jogando e a gente passava. Eles
começavam a gritar e nós em cima do caminhão. (...) Só provocando... Até
que estourou, né. Coisa de guri! (riso) Foi a única vez que eu me meti assim...
Essa narrativa nos fornece os elementos que caracterizam a passagem da
provocação verbal ao enfrentamento corporal. No relato, os insultos, mais aludidos do
que explicitados – sinalizando o “respeito” do informante diante de uma pesquisadora
mulher -, ferem a honra do outro pela acusação de sexualidade promíscua da mãe dele.
Ofensas desse tipo eram comumente respondidas com luta corporal. O episódio acabou
tendo desdobramentos inesperados pela intervenção da mãe de um dos provocadores,
que, “armada” de um cabo de vassoura, obrigou os dois mineiros a recuarem,
encerrando a briga. Emerge no relato a centralidade de aspectos que compõem tanto a
211
honra masculina como a feminina, evocando a virilidade e a valentia engajada na
preservação da imagem da mãe. Mas surge também, de forma inusitada, a própria
“valentia materna”
377
que acaba pondo por terra a afirmada virilidade masculina,
remetendo os combatentes ao papel de “filhos”, o que acaba por injetar comicidade à
cena. O atravessamento do campo de futebol pelo caminhão transportando carvão
parece ter sido o pivô do conflito, que opõe, de um lado, as exigências do trabalho de
uns à irritação gerada pela interrupção do lazer de outros. Pelos detalhes da narrativa,
com a referência de nomes e apelidos (como “Negão”) percebe-se que os dois “lados” já
se conheciam, aspecto, no entanto, que poderia ser indiferente quanto à cultura de “tirar
satisfações” em ofensas desse tipo. A referência feita por Butiá de que a briga era uma
“coisa de guri” significa que, a seu ver, esse não seria um comportamento adequado
para homens adultos, com responsabilidades familiares.
O “clássico” das rivalidades locais, entretanto, era aquele que opunha os rapazes
da Baixada (Leão ou Centro) aos do Recreio. Fora o fato de que os primeiros
trabalhavam numa companhia estatal, de maior porte, e os outros, em minas privadas,
de menor porte, não havia significativas diferenças quanto ao seu modo de vida. “Eram
tudo pobre”, acentua Aldonês, filho de um ex-“valente” do Leão, conhecido como Zé
Ratão. A distinção que estabeleciam em relação aos oponentes tinha um caráter
simbólico, na consideração permeada de desprezo que era dirigida aos moradores da
outra área mineira. Mesmo no período recente em que conduzi minha pesquisa, as
distinções estavam ainda fortemente presentes, alicerçadas agora em condições sócio-
econômicas, já que no Centro estão os habitantes mais abastados e no Recreio e no
bairro São José, particularmente, as condições de vida são mais precárias. Como é
preciso atravessar a rodovia federal, BR 290, para ir do Centro ao Recreio, esta parece
ser uma divisória não apenas objetiva, mas também simbólica, referida muitas vezes
como uma espécie de diferença moral entre um lado e outro. Um integrante da família
Freitas, por exemplo, me dizia que considerava como parentes apenas os moradores do
lado à direita da rodovia, o lado que conduz ao Centro e à Vila Freitas, no extremo da
377
Em mais de um relato, notei essa imagem de “valentia materna”: de mães que restauram a ordem
“armadas” de vassouras, remetendo duplamente tanto para a força representada pela determinação da
mulher e a de seu instrumento de coerção como para a simbologia doméstica de tal utensílio. A vassoura é
uma “arma” feminina, traduzindo tanto a “limpeza”, a separação das coisas, como, nas fábulas de fadas e
bruxas, no meio mágico que confere poder e possibilidade de deslocamento e de transformação das
coisas. Em outro relato que ouvi em Minas do Leão, o ex-mineiro me contava que, quando era solteiro,
era capaz de gastar todo seu salário num só dia num prostíbulo, mas freqüentemente era retirado de lá à
força pela mãe determinada que aparecia com uma vassoura e que ia golpeando-o até o retorno para a
casa. A vassoura era apenas o “argumento” mais visível da respeitada autoridade materna sobre os jovens.
212
cidade, enquanto que os que portavam o mesmo sobrenome, mas que moravam “do lado
de lá”, à esquerda da rodovia, eram considerados como “outro tipo de gente”, sem o
mesmo estatuto moral de pessoas respeitáveis e dignas.
Entre os anos 1940 e 1980, tanto no Recreio (foto acima) como na Baixada,
havia rapazes organizados em bandos que costumavam andar armados com facas e, por
vezes, também com revólveres. Durante as primeiras décadas de urbanização em torno
das minas, a paisagem local era de campo aberto dividindo as duas vilas operárias.
Além da infra-estrutura das companhias e de algumas centenas de casas de moradia,
havia estabelecimentos de comércio, pensões para operários e um prostíbulo principal,
conhecido como a “boate da Eva Gorda”, que ficava no meio do caminho entre uma
área mineira e outra, mas cujo território era considerado “do Leão”. A disputa por
mulheres que trabalhavam na casa costumava ser uma das principais motivações para os
conflitos. Mas o próprio ingresso de um grupo no território do outro, muitas vezes
necessário para acesso aos equipamentos de segurança, saúde e lazer, já era considerado
uma afronta. Como dito, tudo começava pela provocação verbal, descambando em
enfrentamentos físicos, muitas vezes convertidos em duelos na exibição de habilidades
com facões e adagas. Por isso, os jovens mineiros preferiam andar em grupos. Se a
presença de companheiros estimulava a valentia, também aumentava a segurança. Butiá
e Eraldo, que eram moradores do Recreio, referiam-se a essas disputas.
Butiá – (...) Era só por causa da zona [habitacional], uns de lá, outros daqui. E
a gente não tinha muita convivência, né, era tudo separado. Nós vivíamos pra
cá, eles pra lá.
Eraldo – O cinema era lá no Leão, nós tínhamos que sair daqui pra ir lá pro
cinema. Então tinha aquele negócio. Chegava lá...
Butiá – Às vezes, a gente saía daqui em dez, oito [rapazes]...
Eraldo - Descia daqui o bloco dos sujos, né... (riso)
213
Butiá – Claro que a gente não ia brigar nem nada.
Eraldo – A gente ia pra se divertir.
Butiá - A gente tinha uma turma aqui que era pacífica mesmo.
– Mas vocês se juntavam porque era mais seguro chegar numa turma?
Butiá – Ah, não, juntos era mais seguro. No Butiá também era assim.
Parece-me que uma das feições desta rivalidade entre Leão e Recreio encontra
similaridade à situação descrita por Pitt-Rivers (1983, p. 63), em seus estudos na
Andaluzia, onde relata que os rapazes oriundos do povoado vizinho para cortejar uma
moça da localidade eram tratados com hostilidade porque sua presença era “um desafio”
à honra coletiva dos jovens do povoado. Da mesma forma, em Minas do Leão, a
competição pelas mulheres – fossem as da “zona” ou as “moças de família” – era um
dos pivôs dos conflitos masculinos. O autor observava ainda que a presença de uma
equipe de futebol de outra comunidade só fazia honra ao povoado quando era derrotada,
do contrário, se ganhasse infringiria um vexame aos moradores da localidade (Pitt-
Rivers, 1983, p, 63). Também neste aspecto há correspondências com meu universo de
pesquisa, já que a rivalidade futebolística entre as equipes Olaria, do Recreio, e Atlético,
do Leão, tornou-se a mais forte expressão do conflito, ainda presente.
378
4.3 UM CLUBE PARA BRANCOS, OUTRO PARA “MORENOS”
Entre os anos 1950 e 1970, a Vila de Minas do Leão mantinha oficialmente o
“costume de raças”, como diz um de meus interlocutores. Considerando que existissem na
localidade apenas duas raças, a companhia mineira criou dois clubes recreativos, um
para as famílias brancas, o Clube Duque de Caxias, e outro para os negros – os
“morenos”, segundo o eufemismo de uso corrente –, a Sociedade Recreativa União.
Apesar da segregação que isto representava, em mais de um relato o “clube dos
morenos” aparece como sendo o espaço onde ocorriam os bailes mais animados, que
faziam inveja aos freqüentadores do Clube Duque de Caxias. Ambos ficavam
localizados junto à rua principal, a pouca distância entre um e outro. O primeiro
funcionava num prédio de alvenaria e o segundo, numa casa de madeira, que, no início
dos anos 1970, foi destruída por um incêndio.
É importante considerar que, nesta época, a proporção de negros e de pardos no
município de São Jerônimo (ao qual a vila mineira pertencia), era superior à média do
Estado. Em 1940, segundo dados do IBGE, os brancos correspondiam a 83,15% na
378
Essa questão dos enfrentamentos masculinos é esmiuçada no capítulo sobre jogos.
214
cidade mineira (e a 88,66% no RS), os pardos, a 9,73% em São Jerônimo (e a 4,62% no
RS), e os pretos a 7,07% naquele município (e a 6,54% no Estado).
O ex-mineiro Luiz Marino, que se considera branco, é quem menciona o
“costume de raças”, ressaltando que, durante a jornada na mina, brancos e negros
sempre trabalharam juntos, construíram amizades e, segundo ele, eram tratados da
mesma maneira pela empresa. No entanto, “só em namoros e danças que isso era
separado”, explicava, mencionando que havia um “racismo muito forte”, daí a razão
para a criação de um clube para cada raça. Mas o uso que ele faz do termo “racismo”
não equivale a uma crítica. Em sua opinião, hoje é que existe o “preconceito”: “Naquele
tempo, chamar de negro não tinha problema, hoje eles não querem ter a cor que Deus
deu”. Ele dizia que, na mina, os trabalhadores iam aprendendo a conviver “com as
cores”, mas, “às vezes, é o moreno que se sente humilhado sem a pessoa dizer nada”.
A posição de Marino contrastava com aquela dos ex-mineiros Butiá e Eraldo,
para quem a criação de dois clubes era a manifestação de “um preconceito sem
precedentes”, de “uma coisa sem explicação”. Eraldo, que na época era mineiro da São
Vicente e jogador do Olaria, freqüentava o Clube Duque de Caxias, mas por vezes
tentava ingressar no clube dos “morenos”, obtendo para tal uma permissão restrita –
podia beber uma cerveja no balcão, mas não dançar. Seu companheiro de mina e de
time, Butiá, por não ser considerado nem branco nem preto, era duplamente excluído.
Butiá não era aceito no Clube Duque de Caxias, porque este era um local criado pela
companhia para diversão das famílias brancas e o rapaz, ali, era considerado negro. Mas
também não era aceito na Sociedade Recreativa União, o clube “dos morenos” porque lá
Butiá era considerado branco. Ele e Eraldo
379
relatavam suas lembranças num dia
chuvoso do começo de 2007, quando nos reunimos num bar próximo ao Olaria.
Eraldo - Na época, não tinha .... era preto pra lá, branco pra cá.
Butiá – Lá, naquele época, se tu fosse branco, tu não entrava no [clube] dos
morenos, se tu fosse preto tu não entrava lá no Duque de Caxias, tu entende?
- Então, vocês se lembram dessa divisão aí...
Butiá - Báh! Não... uma vez eu fui lá... fui lá no... no Duque e não deixaram
eu entrar, porque eu era preto. Aí fui lá...fui lá nos negrão. (...) Aí cheguei lá
nos negrão também não me deixaram entrar. Aí eu disse pro engenheiro:
“Então, qual é meu mundo? Pra onde é que eu vou?” (riso)
Eraldo – Só me aconteceu uma vez... que eu me dava muito com o Gervásio,
o Gervásio era presidente lá [do clube dos morenos]. Tinha um dia que era
‘baile do clube dos morenos’....
379
Meu informante Eraldo faleceu no final de 2007.
215
Butiá - Era o que dava mais, né, o que dava mais eram os [bailes dos]
morenos.
Eraldo - Aí chamei o Gervásio... “Chama o Gervásio aí pra mim!” Hoje vão
me deixar entrar nesse negócio aí. Mas pedi pra entrar pra tomar uma cerveja.
“Posso entrar aí só pra tomar uma cerveja?” Mas tive que trovar muito ele.
(...) Aí me deixou entrar.
Butiá – Uma vez eu também.... Nenhum aceitava, né. (...) Eu tava na
intermediária, né.... (risos) Ficava naquela, né... Depois terminaram com
aquilo. E aí começou a se infiltrar, aí começaram a se misturar, né. Ah, bom,
agora chegou minha vez! Agora vou poder me misturar na gandaia deles!
Nas suas lembranças, a separação dos clubes conforme a raça teria durado pelo
menos duas décadas. São recorrentes as referências ao engenheiro, então diretor da
CRM, Flávio Brickman, de origem alemã, que teria proposto a criação do “clube
misto”. O fato é que, depois do incêndio que destruiu a sede do clube dos “morenos”, a
companhia de mineração buscava uma solução para que esta agremiação voltasse a
funcionar e propôs a fusão com o Atlético Mineiro Futebol Clube, de forma que ambas
as entidades ocupassem a mesma sede, já que no futebol brancos e negros atuavam
juntos. A proposta foi inicialmente rejeitada pela Sociedade Recreativa União
380
. Mas a
fusão entre o Atlético e a Sociedade Recreativa União
381
acabou sendo efetivada no ano
seguinte, dando origem ao Clube Atlético União, conhecido como “clube misto”.
Apesar de classificado como branco em seus documentos, Zé Cabeça, ex-
mineiro e ex-encarregado da CRM, se considera negro: “Eu sou negrão, né, não adianta
eu querer ser branco. Os meus pais eram de raça, né, eu também tenho que aderir a isso
aí”. Na época da divisão dos espaços de lazer, ele freqüentava a Sociedade Recreativa
União, o clube dos “morenos”, mas sendo considerado branco na sociedade local, tinha
liberdade para ir no Clube Duque de Caxias. Quando lhe perguntei se havia um
sentimento de discriminação pela existência de espaços de lazer separados, a resposta
que ele me forneceu mostra como essas distinções acabam por ser naturalizadas: “A
gente acostuma, né, acostuma. É a mesma coisa, no caso, que dizer que não pode ir na
chuva porque vai se molhar, então não vai”. O fato de que as coisas fossem “assim
mesmo” não eliminava o desejo de uns de freqüentar o espaço dos outros: “Muitas
vezes, uns iam aos bailes dos outros, ficavam loucos pra entrar naquele baile, mas não
podiam, né”. A exceção era na circunstância de terem sido convidados, mas neste caso o
ingresso era oficializado por um acordo prévio, no qual era permitida a entrada de casais
“selecionados” nos bailes de um lado e outro. Isso aconteceu num período em que os
380
Cf. ata do Atlético Mineiro FC, de 07/02/1971.
381
Cf. ata de fundação do Clube Atlético União, de 04/06/1972.
216
presidentes dos clubes mantinham uma amizade e decidiriam fazer o intercâmbio.
“Então, então eles escolhiam, por exemplo, uns cinco ou dez pares pra ir no baile
daquele lado, e aí o outro escolhia a mesma coisa pra ir no outro baile. Aí misturava,
mas só sendo convidado”. Isso acabava sendo uma atração no período de carnaval, por
exemplo, quando a entrada no salão de casais de outra raça era chamada de “assalto”.
Mesmo assim, o controle social era mantido porque os pares pertenciam à mesma raça.
4.4 “OS GRANDES TÊM ÁGUA, NÓS NÃO”
As lutas pelo abastecimento de água foram das mais significativas mobilizações
das famílias mineiras, entre as décadas de 1940 e 1970, não apenas na Vila de Leão,
mas também em Butiá. Essas mobilizações chegaram a ser turbulentas. Numa
comunidade onde os habitantes gostam de apresentar como um lugar “onde todo mundo
se dá com todo mundo”, os conflitos são narrados com bastante reticência, como
daquilo do qual “não é bom se lembrar” e como quem “não quer se comprometer”
tocando nesses temas. Um dos casais com o qual convivi mais proximamente, numa
ocasião em que tocou no tema da mobilização pela água, pediu que eu não gravasse o
relato. Outra vez, durante uma visita que me fizeram, voltaram a abordar o episódio
com mais detalhes, mas não com menos preocupações sobre essa exposição de si
mesmos em meio a um conflito coletivo. Calculavam que o episódio mais ruidoso
tivesse ocorrido na década de 1970, período em que a rua em que moravam não
dispunha de calçamento. A certas horas, com a passagem de um veículo, formava-se em
torno das casas uma cortina negra da poeira de carvão e de terra que se erguia do solo.
Revoltadas com o precário abastecimento fornecido de água pela companhia, as
mulheres de mineiros – enquanto os maridos ainda estavam no trabalho no subsolo –
prepararam uma barricada com latões e fecharam algumas ruas, “cansadas” da falta de
água e de serem obrigadas a lavar roupas na sanga. Além de não disporem de água
encanada, a água recebida do caminhão-pipa não era suficiente para o abastecimento de
uma semana, de forma que “a louça se acumulava na pia e aumentava a pilha de roupas
para lavar”. A polícia civil e militar foi chamada para conter a população e, no
confronto, algumas pessoas foram agredidas. Quando meu informante, tendo retornado
do trabalho, viu um policial empurrar sua irmã no chão, “saltou sobre ele”. Outros
policiais o seguraram e ele só escapou de ser preso porque sua esposa e outras mulheres
se mantiveram agarradas a ele, impedindo que a polícia o levasse. Um vizinho, hoje
mineiro aposentado, teria batido em um policial no meio do confronto, mas ele mesmo
217
prefere não falar sobre isso. Para esses informantes, foi graças a essas manifestações
que a vila conseguiu, depois, água encanada e o asfaltamento de algumas ruas.
Memória: imagens da vila de Minas do Leão nos anos de 1950 e 1960
A água era um problema também em outra vila mineira, formada por
trabalhadores do Cadem, em Butiá. Militante comunista e sindical, o ex-mineiro Gerino
Lucas refere-se a essas manifestações como “a luta pela água”. Ele descrevia as
condições vividas na década de 1960 naquela localidade:
A mina já tava aqui com quase 100 anos (...) e o operário morava nuns
galpões velhos, não tinha esse casarero, esse casarero bonito como tem hoje.
Eram umas casas de madeira, quando vim [para Butiá] já tavam tudo velha,
né. Então, tava meio vazia e botaram o pessoal pra morar. E era em troca por
muito material na mina que eles não pagavam pra nós. Grande parte do que
eles queimavam nas caldeiras eles não pagavam pra nós.
382
Então, só quem
tinha água encanada era os mais grandes, nós pequenos... As coitadas das
382
Outras referências ao tema foram feitas no capítulo 3, na trajetória de Gerino Lucas.
218
lavadeiras que fossem lavar [roupas] lá na sanga, quem sabe adonde... Saía
com uma tábua e uma trouxa nas costas. Iam de manhã e voltavam de
tardezinho. A coisa mais triste do mundo! E a gente não tinha lugar pra tomar
banho, não tinha chuveiro, não tinha nada, não tinha água encanada.
Além de esmiuçar as condições precárias em que viviam os trabalhadores nas
minas, o relato de Gerino mostrava o contraste entre o tempo de funcionamento da mina
e o atraso no fornecimento de condições básicas às famílias.
Logo que eu vim pra cá [a vila] era a coisa mais triste do mundo! Aquela
gente que criava porco (...). Aqueles bichos fazendo anarquia (...), era uma
tristeza! (...) Não, a gente passou trabalho aí. Não sei, a mina tinha quase 100
anos... e não ter água?!
Ele me contava que, desafiando o ceticismo de vizinhos, liderou uma campanha
em Butiá para obter um abastecimento de água na vila mineira. Foi procurar o
presidente da Câmara dos Vereadores, na época um descendente de poloneses que era
então seu correligionário no PDT, e lhe disse: “Ô, companheiro, tá acontecendo... [que]
só os grandes aqui têm água e nós não temos água. Que história é essa?! Isso é um
absurdo!” O parlamentar o orientou a fazer um abaixo-assinado para reivindicar bicas
de água e ele começou a mobilizar a vizinhança. Alguns colegas de mina o recebiam de
má vontade, sob a alegação que “outros tentaram e não conseguiram nada”. Gerino
desafiava: “Eu vou te mostrar como eu vou conseguir! Que eu tenho garra (...), coragem
e qualidade! Eu não sou covarde, nem pelego, tu sabe muito bem!” Na saída, como o
outro não quisesse assinar, ameaçava que, quando conseguissem as bicas, não o deixaria
pegar água ali. A primeira conquista foi que caminhões-pipa começaram a fornecer
água. Antes de obter água encanada, a vila obteve a instalação de bicas.
Como alguns estudos indicam
383
, em diferentes países houve uma política
paternalista das empresas de mineração no sentido de fornecer às famílias de mineiros
uma infra-estrutura capaz de fixá-las ao redor das minas, constituindo-se assim as “vilas
operárias”
384
. Neste contexto, as companhias de mineração disponibilizaram moradias,
equipamentos médico-hospitalares, escolas, igrejas, espaços de lazer e incentivo aos
esportes. Tais práticas ajudaram a forjar uma determinada mentalidade e práticas
relacionadas ao poder público. Mas os relatos de informantes indicavam que
determinados “benefícios” foram extraídos pelas mobilizações, quase sempre anônimas,
forjadas desta obstinação que se forma no silêncio e que depois vai se tornando ruidosa.
Se havia significativas diferenças no tipo de paternalismo exercido pela Copelmi (ex-
383
Ver Schwartz (2002) e Eckert (1985, 1991, 1992), entre outros.
384
Sobre a constituição de vilas-operárias, ver Leite Lopes (1988, 2004).
219
Cadem), que mantinha com seus operários uma relação dura, e aquele adotado pela
estatal CRM, considerada mais flexível, deve-se considerar ainda que tais as práticas
das empresas de mineração não eram, de modo algum, igualitárias, mas marcadamente
hierárquicas, segundo as posições ocupadas pelos empregados e também navegando ao
sabor de outros critérios, pessoais, políticos, etc. Das moradias ao incentivo aos times de
futebol, eram privilegiados determinados segmentos ou pessoas em detrimento de
outros. Nos relatos, a ênfase no paternalismo é dada, por exemplo, no fato de que toda a
manutenção da casa cedida aos trabalhadores era feita pela companhia, como no caso da
CRM, desde a troca de resistência de um chuveiro à pintura. Mas nas duas empresas se
um trabalhador acionasse a companhia na Justiça, ele perdia o direito de continuar na
casa, de forma que seus próprios colegas – os do setor de manutenção – deviam
providenciar seu “despejo”. Os móveis deveriam ser postos na frente na casa e a
residência, destelhada, para evitar um retorno. O ex-mineiro José Odone me contava
que seu pai trabalhou neste setor e que se negava a executar esse tipo de “tarefa”.
No final dos anos 1940, como me contava Leo, a vila mineira do Leão reunia
310 casas de madeira, que haviam sido construídas pela Companhia Nacional de
Mineração e Força, adquiridas pelo DACM. “Lá do campo de futebol [do Atlético],
descia até o... ali no início da faixa e pra cá então tinha essas casas. Tudo era casa de
madeira, né”. Quando ele mudou-se para a vila mineira, em 1949, chegou a morar nas
repúblicas, com a mãe e três irmãs, numa casa de três peças. A república era composta
por três pavilhões. Dois deles podiam abrigar oito famílias e o terceiro, central, dez
famílias. Cada uma dessas casas tinha 22 metros quadrados, independentemente do
tamanho da família. Outro informante, Chuta, relatava que a república era uma
construção inteiriça, dividida por paredes de madeira em sala, cozinha e um ou dois
quartos. O fornecimento de água se dava através de bicas (torneiras), localizadas na
frente do terreno. A lavagem de roupa era feita em tinas, usando tonéis de latão
cortados. As mulheres de mineiros tinham o encargo extra de carregar água para ser
utilizada pela família. Quando havia, o chuveiro era improvisado: uma lata com um
chuveiro soldado, com uma torneirinha para regular o volume de água. Mas se o
abastecimento de água limitava-se às bicas coletivas no caso dos moradores da vila,
nem mesmo tal “facilidade” estava à disposição dos moradores das ruas mais distantes.
Sujeitos a um abastecimento de água semanal feito por um caminhão-pipa, eles tinham
como alternativa o uso de arroios, como a sanga da Taquara. Era lá que a maior parte
das mulheres ia lavar a roupa da família, com as trouxas às costas. Num tempo em que a
220
própria companhia não oferecia instalações para o banho dos operários, restava aos
mineiros do subsolo tomar banhos na sanga, fosse verão ou inverno – quando tomavam
goles de alguma bebida alcoólica para se aquecer ou “criar coragem”.
Quando perguntei a Leo, qual era, em sua opinião, o critério para que o mineiro
fosse morar nas repúblicas ou numa casa individual, ele respondeu que era preciso que
“a casinha que estivesse vaga”. A seu ver, “dependia da sorte”. Ele me contava que,
depois de morar na república, obteve uma casa de “quatro águas”, mas que não tinha
banheiro. O WC era uma patente de madeira nos fundos do terreno. Depois é que os
banheiros foram construídos. As casas não tinham pátios separados. “Era tudo em
comum, fechado aqui... dessa rua até a outra lá, corria um alambrado no fundo,
dividindo as casas de lá com as de cá. Era três fios de arame ali e pronto”. Naquele
tempo, não havia uma árvore plantada, diferentemente da arborização atual.
O relato de uma ex-assistente social da companhia, Lísia Alves, indicava
diferentes “fases” na forma de seleção dos moradores que ocupariam as casas. Ela me
explicava que, antes de seu ingresso na empresa, a seleção dos moradores para as casas
era feita pelos chefes, os engenheiros. Neste período, havia conflito porque “cada um
defendia os seus empregados”: “Não, eu quero que o meu more na avenida principal
porque ele é bom, porque ele é isso, porque ele é aquilo”. Ela relatava que, inicialmente,
os engenheiros queriam ter essa prerrogativa “porque isso lhes dava amigos”. Os
beneficiados diziam: “O engenheiro Fulano é meu amigo, ele me deu uma casa boa lá,
então vou fazer tudo pra ele”. Com o passar do tempo, viram que o sistema, baseado em
relações pessoais, lhes rendia mais inimigos do que amigos, porque deixavam mais
gente de fora da rua principal do que morando naquela área. Havia também casas que
eram bem maiores do que outras, cuja obtenção dependia da posição ocupada.
Isso era de acordo com o status do empregado. Por exemplo, eles tinham um
método que não deixava de ser correto (...) de que certas funções mereciam
muita atenção para que o cara tivesse bem-estar, que o cara estivesse bem
porque a função dele era de muita responsabilidade, como, por exemplo, o
guincheiro. O guincheiro era uma luta permanente para que ele estivesse bem
(...) porque dele dependia a vida de quase todos os que desciam à mina,
porque ele que conduzia a gaiola, né. (....) Mas aí quando os engenheiros
viram que isso tava dando mais prejuízo pessoal pra eles, passaram para mim,
para eu fazer a seleção. Aí eu comecei a estabelecer critérios, critérios assim
de cunho social, né, mas sofria influência de que “não, esse não”. Por
exemplo, eu fazia a relação e [esta] tinha que ser submetida à chefia. Aí a
chefia dizia se dava ou não, tu entende?
221
Ao assumir o encargo de selecionar as famílias, Lísia passou a adotar critérios
como o tempo de serviço, o tamanho da família e suas necessidades, se a mulher
trabalhava fora ou não e onde os filhos estudavam, considerando os deslocamentos. Nas
visitas que fazia às famílias, também levava em conta questões de ordem subjetiva: “Por
exemplo, havia esposas que eram professoras e aí eu tentava conciliar, botar pessoas
com nível mais elevado intelectualmente (...) pra ter harmonia na vizinhança, porque
dava muita briga”. Nas áreas de moradia, havia divisões nítidas dos espaços sociais
(com vilas ou ruas para engenheiros, técnicos, encarregados, capatazes ou operários
comuns), com construções de qualidades e níveis de conforto diferenciado, seguindo
não apenas uma hierarquia ditada pelas posições ocupadas pelos funcionários na
companhia, mas também outros critérios que poderiam variar, de acordo com posições
políticas, relações de compadrio, amizade e parentesco, etc. Uma casa para engenheiros
contava em geral com ótimas condições de conforto em relação ao número de cômodos,
espaço interno e externo, muitas vezes arborizado, banheiros no interior das casas; nas
categorias intermediárias, mantinha-se uma boa qualidade das construções, com certo
nível de conforto, até chegar-se às casas de operários comuns, bastante rudimentares,
com espaço reduzido e apertado para abrigar as famílias com vários filhos, inicialmente
sem instalações sanitárias, restando como opção as “patentes” no fundo do quintal –
construção de madeira que cumpria a função de vaso sanitário, com compartimento para
o banho de bacia, de gamela, ou, como dito, para um improvisado chuveiro. Nessas
casas, muitas vezes geminadas umas às outras, “não havia segredos” entre as famílias.
Essa ausência de vida privada, mesmo que pudesse gerar solidariedade, também
ocasionava seus conflitos.
4.5 DE FAMÍLIAS, REPUTAÇÕES E RELAÇÕES DE GÊNERO
4.5.1 Do parentesco de sangue e do parentesco espiritual
Em Minas do Leão, pude notar que as relações familiares são centrais, a
exemplo de outras comunidades estudadas por antropólogos no país (como Fonseca,
2000; Comerford, 2003), envolvendo não apenas o parentesco “de sangue”, o casamento
entre primos (entre os Freitas, por exemplo), mas também as adoções de crianças e,
como mencionado antes, as relações de compadrio. A noção de amizade aparece
caracterizando a intimidade da convivência no subsolo, mas os mineiros preferem dizer
que lá “era uma irmandade”, era-se “como uma família”.
222
Neste contexto, o padrão da família hierárquica (Figueira, 1987) continua a
desempenhar um papel importante, embora já não exclusivo, no regramento das
relações de aliança. Esse modelo hierárquico convive com o modelo de família
igualitária (Figueira, 1987) ou, em outros termos, individualista e relacional (Singly,
2000). Nota-se, em muitos lares, a negociação entre esses dois modelos. Em minha
pesquisa, encontrei famílias nas quais ainda predominava o modelo hierárquico, com a
expectativa de casamento feminino, de preferência baseado na virgindade, convivendo
com certa liberdade sexual masculina. Em outros casos, o perfil das relações indicava
claramente a emergência de um modelo de família igualitária e individualista. Essa
emergência não ocorre sem tensões e fofocas, provocando eventuais rompimentos com
a vizinhança ou rede familiar. Algo recorrente nas trajetórias é que, havendo em muitos
casos a morte precoce do marido, ou mesmo uma eventual separação do casal, há
numerosos lares chefiados por mulheres, cujo filho mais velho ou único filho homem
acaba por se tornar o arrimo da família. Em geral, nestes casos, há um forte elo de
solidariedade entre mãe e filho.
385
Outra característica diz respeito à recorrência de
casamentos entre viúvos, muitas vezes depois da segunda viuvez de um ou dos dois
cônjuges. Observei também grande número de uniões informais, não apenas nas
gerações mais jovens, mas também naquela que está por volta dos 60 anos.
Há, nesta comunidade, a predominância de uma noção de masculinidade voltada
para a afirmação da coragem, da força, da virilidade e ancorada na figura do pai-marido,
do provedor, a exemplo do que vários estudiosos têm indicado entre classes populares
(Duarte, 1986, 1987; Eckert, 1985; Fonseca, 2000; Guedes, 1997; Kimmel, 1998; Leal;
Boff, 1996). O modelo de masculinidade dominante na localidade exacerba a exibição
de virilidades por meio de brincadeiras, de disputas corporais e verbais. Nesse sentido, o
“brinquedo” e as provocações configuram-se como uma linguagem. É recorrente entre
as mulheres a representação em torno de uma “natureza masculina” (Pitt-Rivers, 1983;
Knauth, 1998), uma noção que permite aos homens usufruir com certa legimitidade de
amplo espaço de liberdade, embora a “vigilância” feminina esteja sempre presente. Do
lado masculino, há a recorrência de narrativas auto-elogiosas. Eles se gabam de suas
performances falando geralmente a outros homens sobre conquistas amorosas reais,
385
Salem (2006) já havia indicado essa condição do filho mais velho como sendo uma espécie de
“substituto do pai”, no caso de famílias chefiadas por mulheres faveladas no Rio de Janeiro.
223
exageradas ou inventadas. Percebi que tais comportamentos não são específicos de uma
fase da vida, mas podem ser notados em diferentes faixas etárias.
386
É notável que a rede de pessoas “com quem se pode contar”, agrega, além de
familiares, a vizinhança, as amizades e as relações de compadrio, mas a centralidade e o
papel que se atribui a cada um desses elementos é variável, assim como a presença de
todas essas instâncias. Os “compadres” são considerados tão íntimos como os
familiares, pessoas nas quais se deposita plena confiança. Mais de uma vez, observei
que na relação, por exemplo, entre pessoas ligadas por laços de parentesco, de
vizinhança, de camaradagem por terem sido colegas na mina e, ainda, companheiros de
equipe de futebol, mas que são também compadres, prevalece esta última relação:
“Compadre Fulano, te lembra daquela vez...” Algo que chama a atenção é o fato de que
alguns informantes utilizam essa denominação para se referirem aos próprios irmãos,
evidenciando que, mesmo nestes casos, pode prevalecer o laço espiritual.
Em algumas famílias, ainda é cultivado o hábito de “pedir a bênção” aos
padrinhos, aos pais, tios ou parentes mais velhos. Eu presenciei uma cena em que o
filho, de seus 40 anos, casado e morando fora da residência familiar, ao encontrar o pai,
disse: “Bênção, pai”,
387
seguindo-se a resposta: “Deus te abençoe, meu filho”. Neste
costume, está embutida a crença de que padrinhos e pais, especialmente, teriam o poder
de abençoar os descendentes ou pessoas ligadas por parentesco espiritual, evocando o
nome de Deus. O hábito de beijar a mão havia sido abandonado, mas figurava nas
lembranças de informantes de origem rural.
4.5.2 “Aqui é tudo Freitas”
Durante a etno-
grafia, morei na
Vila dos Freitas,
área habitacional
assim denomina-
da por abrigar
boa parte da mais
numerosa famí-
lia da localidade,
386
Esses aspectos foram analisados por mim em Cioccari (2009b).
387
A pronúncia local de “bênção” tem a sua ênfase na terminação na palavra.
Homenagem: O CTG Zeca Freitas leva o nome do pai de Jango, já falecido
224
com expressão na política e no esporte.
388
O fato de que eu tenha, devido à
disponibilidade de moradia, me instalado no “miolo” dos Freitas revelou-se estratégico
para as relações que estabeleceria. A própria casa que aluguei pertencia a um Freitas,
dono de um mini-mercado ao lado. Num raio de poucas quadras, há pelo menos três
mercados ou bares da família: o do próprio Marcelo, que me alugou a casa, o do pai
dele e de um tio. Todos usavam o sistema de anotação do “fiado” em cadernetas.
Num lugar em que “todos se conheceme onde “a palavra tem valor”, apesar
dos riscos de que a dívida não seja paga, os comerciantes mantêm o “crédito” aos
moradores. Quando perguntei a um desses comerciantes da família Freitas se o sistema
funcionava bem, disse-me que “o fiado nunca funciona bem”, mas que os Freitas
haviam criado aquele costume, “e que se não fosse assim, o pessoal não comprava”.
A família Freitas, com cerca de 800 integrantes, reúne várias “assinaturas”: além
do próprio nome Freitas, também Flores, Alves, Oliveira, Rosa, etc. Todos são
evocados como pertencentes “aos Freitas”, até mesmo atribuindo-se informalmente esse
tratamento a quem não o carrega como último sobrenome, junto ao nome de batismo ou
ao apelido. Assim, por exemplo, meu informante Almir Oliveira Flores, cujo apelido é
Biscoito, é referido como “Biscoito Freitas”. É também por isso que Serlon - um dos
seus sobrinhos que também “se assina” Flores, é chamado de “Freitinha”. Ele dizia-me
certa vez, numa bem-humorada provocação: “Aqui a gente só deixa entrar Freitas, se
não for Freitas a gente expulsa!” Com o costume de realizar casamentos entre primos –
que alcançam a terceira geração - os sobrenomes Freitas e Flores aparecem
388
A família mantém o time de futebol varzeano União dos Freitas, como descrevo no capítulo 7.
Compras anotadas “no caderno”
O sistema de “fiado” é uma característica da economia local, pois o comércio
também se ancora em relações pessoais e familiares. Mesmo nos estabelecimentos
maiores, como no supermercado Mineirão, em que a compra pode ser realizada em
cartões de débito ou de crédito, isso está presente. Alguns dos meus informantes
compravam “fiado” no supermercado, com os valores anotados num caderno. Ao
receberem seu salário, vão pagar a conta, havendo como garantia apenas “a palavra”.
Certa vez, num encontro casual, um de meus interlocutores, Hermes, me apresentou
ao gerente do supermercado: “Ela é nossa amiga, de confiança, tu pode dar crédito pra
ela”, disse. Quando me afastei, o gerente lhe perguntou se eu era “parente”. Ele
respondeu que havia “morado com eles”. Entre os Freitas, meu “crédito” foi
igualmente constituído por essas relações tecidas durante o trabalho de campo. Assim,
não foi necessário fiador para alugar a casa, bastando a “confiança” que eu havia
conquistado naquela família. Depois, passei a usar também no mercado vizinho o
sistema da “caderneta”, pagando minhas compras mensalmente.
225
constantemente juntos: Freitas Flores ou Flores Freitas, marcando a herança materna ou
paterna. “É uma família só”, muitos chegam a dizer.
As famílias numerosas – compostas tanto por filhos naturais, por filhos de um
dos cônjuges, em decorrência de viuvez ou separação, ou por crianças adotadas – são
comuns na comunidade, mas parecem especialmente recorrentes entre os Freitas. Vários
dos meus informantes tinham um ou mais filhos adotivos, como no caso do ex-mineiro
Ilton e de sua mulher Eva, que, além dos filhos naturais, adotaram três meninas. Ele me
explicava que “quanto mais a pessoa adota, mais quer adotar”. Sua esposa relatava que,
entre os Freitas da localidade, eles já haviam contado nada menos do que 72 filhos “de
criação”. Certas adoções ocorriam ainda quando os futuros responsáveis ainda eram
solteiros ou apenas “noivos”, situação em que a criança começava a ser cuidada por um
dos “pais” até ser assumida integralmente por ambos após o casamento.
Um aspecto que chama a atenção nesta família, como mencionado, é a intensa
recorrência de casamentos entre primos, inclusive em primeiro grau. No passado,
tratava-se não apenas de uma decisão desejável, mas de algo que ganhava o estatuto de
uma prescrição, especialmente para a “filha mulher”. Meus informantes e vizinhos
Ariovaldo de Oliveira Flores, ex-mineiro, e sua mulher, Luiza de Oliveira Freitas,
primos unidos pelo casamento, foram a segunda geração a contrair o matrimônio entre
parentes. O irmão mais velho dele também havia se casado com uma prima. O pai dela,
que portava o sobrenome Oliveira Flores, já era primo da mãe, que assinava Freitas
Flores. Luiza refletia: “Minha mãe se casou com um primo e eu me casei com um
primo”. Ariovaldo agregava que “os que não eram Freitas, eram Flores”. Nesses
entrecruzamentos, a mãe de Luiza, portanto sogra de Ariovaldo, era irmã do pai dele, e
então também tia do noivo. Essas junções faziam com que se reforçassem os laços
consangüíneos e de amizade no interior do núcleo familiar. Os Freitas são
freqüentemente evocados como “gente de confiança” e, embora sejam geralmente
bastante cordiais com “estranhos”, valorizam a união familiar. Em nossa conversa,
Luiza relatava que ela e Ariovaldo cresceram juntos e, desde os sete anos de idade, a
menina já considerava que aquele primo fosse seu namorado. Começaram seu
relacionamento quando ela tinha 13 anos. Quando completou 20, foram viver juntos.
Dos seus seis filhos, um é casado com uma prima em primeiro grau e outro com uma
parenta mais distante. A princípio, Luiza não era favorável: “Eu dizia: ‘não quero que
sejam tudo da mesma raça’. Queria que os filhos casassem com gente estranha. Depois
até minhas sobrinhas ficaram ressentidas”. Por vezes, na escolha de um sobrinho ou
226
sobrinha para realizar a união com os filhos acabavam se gerando as inimizades entre
parentes próximos que perduravam por muitos anos. Jango, que escolheu para casar
uma moça fora da família, me explicava que muitos outros primos seguiram o
“costume” no qual namoro era “tratado” pelos pais desde a infância: “Vão se criando
assim meio ajeitados”, definia. Alguns familiares, criticando esse “sistema”, sugeriam
que esses casamentos consangüíneos eram responsáveis pela baixa estatura de boa parte
dos membros da família, em razão de não haver variação genética.
Um de meus interlocutores que chegou na vila mineira no final dos anos 1940,
estranhava aquele costume: “O que era Freitas era Freitas. Filha de Freitas não
namorava um que não fosse Freitas. Pra namorar, tinha que fugir de casa”. Quando lhe
perguntei se chegou a se interessar por moças daquela família, respondeu, enfático:
“Nãao, graças a Deus não cheguei a me interessar!” Ele ressaltava então que a família
sempre foi “muito serviçal”, “muito prestativa”, “mas tinha isso aí (...), romance à
parte!” Em tom de brincadeira: “Ficaram refinados de sangue, era tudo uns
pirralhozinhos, agora tão mais ajeitados um pouco”. Mesmo em tempos mais recentes,
“estranhos” que entraram para a família tiveram que vencer resistências, como foi o
caso de Jarico Domingues que, em sua segunda união, casou-se com uma moça Freitas.
Os Freitas aí eram pra casar Freitas com Freitas. Mas agora não. Eu, quando
eu me juntei com a Mara, muitos criticavam (...). Eu, no meu pensamento, eu
aprendi assim: ajudar a quem precisa. Eu, pra servir uma pessoa, tiro a camisa
e fico sem camisa, né. (...) Esses tempos, um cara me perguntou: “Jarico, tu
tem parentes aqui no Leão?” Eu disse “não”. “Mas então por que todo mundo
brinca contigo, todo mundo te cumprimenta, todo mundo fala em ti?” “Ueh!
Isso aí faz parte da amizade, compadre!” E eu aqui no Leão não tenho parente
algum, tem só os parentes da mulher, né. Mas amizade, graças a Deus, eu
tenho bastante. E crédito! A pessoa que não tem amizade e não tem crédito
ela tá... bombardeada, né.
Dada a centralidade atribuída localmente ao valor da “família”, do “parentesco”,
a noção da amizade é, muitas vezes, subordinada às relações herdadas. Por não ser dali,
Jarico inscreve sua respeitabilidade sobre a noção de “amizade”, menos compreendida
socialmente, mas aliando-a à idéia de que é alguém que dispõe de “crédito”. O uso do
termo “crédito” aqui está relacionado à honradez, à boa reputação, tratando-se de
alguém em cuja palavra se pode confiar, existindo também a dimensão econômica de
bom pagador – mais importante ainda nas representações locais acerca de um
“forasteiro”, que pode ser considerado com certa ambivalência, como sugere Pitt-Rivers
(1983). Sua aliança matrimonial é entendida como afinidade, mas não como parentesco.
Ele testemunhava que os parentes de sua mulher são “muito unidos na doença”,
227
enquanto que “em negócio de jogo, em política, aí dá desavença, né, aí dá complicação,
aí dá discussão”. Ele se referia às chamadas “apostas eleitorais” (Palmeira, 2006a), que
abordo no capítulo 6. Em outra dimensão de jogo, a do futebol, pode-se dizer que a
equipe de veteranos União dos Freitas
389
é respeitada por sua garra e determinação, mas
de tempos em tempos enfrenta suas crises, provocadas pelas querelas familiares.
Enquanto eu fazia a entrevista com Jarico, a mãe de Mara, Esaltina, confirmava
que antigamente tanto os Freitas como os Flores não se casavam com “estranhos”, mas
somente com pessoas da mesma família. Contava que seu pai e sua mãe, por exemplo,
eram primo-irmãos. “As filhas mulheres o pai atacava de casar com um estranho”,
ressaltava, observando que, dentro da autoridade doméstica, nem cabia às moças
questionar essa regra. Segundo ela, esse era “o sistema dos antigos”, mas que acabava
ganhando eficácia diante de exemplos de má sorte de moças que se casavam com
“estranhos” – e que sofriam as conseqüências de, por vezes, serem engravidadas e
abandonadas. Casos desse tipo só confirmavam que o costume tinha seu fundamento,
pois “entre parentes, se tinha confiança, era tudo unido”. Ainda que a velha senhora
tivesse sido criada nesta mentalidade, não achava que deveria impô-la a seus
descendentes: “Não sou eu que escolho casamento pros meus filhos”, dizia.
Um de meus primeiros interlocutores da família foi Jango. O sobrenome
Freitas batiza a rua em que ele mora e a praça defronte à sua casa. O nome da praça
homenageia seu irmão, Ari Alves de Freitas, que trabalhou na mina de São Vicente. A
rua Alfredo de Freitas diz respeito a um primo que lidou com pecuária e que
transportava carvão das minas em carreta de boi. Jango me contava que a sua família era
uma das mais antigas da localidade, tendo chegado ali nos anos 1940. Não só antiga
como numerosa. Avaliava que o número de parentes era suficiente para eleger pelo
menos dois candidatos a vereador. Assim como há gente “da família” que não tem o
sobrenome Freitas, há, segundo Jango, aqueles que “apenas conservaram o nome”, mas
“não são parentes”. Na sua rua, por exemplo, há apenas umas “oito famílias que não são
Freitas, o resto é tudo Freitas”. Esse “resto” soma 50 a 60 casas enfileiradas. Antes
mesmo de conhecê-lo eu tinha ouvido falar da “união” familiar.
A gente (...) tem as hora que precisa, a hora da doença, né, a hora do serviço.
Um inventa assim de construir uma casinha, eles chegam tudo junto, né. (...)
Na hora da doença, adoece um aí vai todo mundo. (...) Então, diz assim, como
é que é? Os Freitas são muito unidos. Claro, nessa parte eles são, mas eles
têm as desavenças deles também.
389
Sobre as equipes de futebol varziano ligadas às famílias, ver capítulo 7.
228
Nota-se que, na fala de Jango, ora os Freitas aparecem como “a gente”, ora
como “eles”, como parte desse olhar para a família que se torna distanciado em
alguns momentos. Tanto é parte do todo como também se diferencia. Além do mais,
pertencer à família Freitas também pode render inimizades.
Tem gente que tem uma rivalidade com nós assim só porque é Freitas. A
gente cria os timezinhos de futebol (...) mas tem gente que não gosta de nós.
(...) Dá prá sentir na pele que não gosta e já diz: “Ih! Lá o bolo de Freitas”,
né, “lá, o monte de Freitas”, “os Freitas são gritões, são barulhentos”. (...)
Aquelas pessoas que a gente nota que não gostam dos Freitas nós procuramos
tratar bem, procurar fazer entender que a gente é humano (...). Tinha os
Freitas bagunceiros (...), mas isso aí não quer dizer que vai atingir uma
família toda, né.(...) Eu sô
um dos Freitas que só construí amizade.
De uma vizinha aos Freitas, realmente escutei: “Os Freitas são gritões; são boa
gente, mas são gritões”. Seu marido contava que, às vezes, os Freitas estavam reunidos,
falando de futebol e, como falavam alto, “parecia que estavam brigando”. Uma
classificação jocosa que ouvi de um ex-mineiro mencionava que os Freitas eram
divididos em três tipos: os “ranhentos”, os “chorões” e os “lambe-lambe”. Mesmo quem
mencionava essa classificação jocosa não deixava de lembrar que “os Freitas eram
muito unidos” e “muito trabalhadores”. Divertindo-se com a tipologia zombeteira,
Jango me explicava que, em parte, ela teria surgido porque havia na família o hábito de
“pedir a bênção” e de beijar a mão dos pais, tios e padrinhos. Acontecia que as crianças
que beijavam a mão dos parentes ou padrinhos estavam muitas vezes gripadas e eram
chamadas de “ranhentos”. Os mais velhos repreendiam: “Sai pra lá, ranhento!” Alguém
mais piedoso dizia: “Coitada da criança, tem frio nos miolos”. O fato é que, depois do
ritual de beija-mão, freqüentemente os mais velhos saíam esfregando as costas das mãos
na roupa para se livrarem dos vestígios úmidos deixados pelas crianças. Os “lambe-
lambe” seria uma espécie de desdobramento, considerados ainda menos nobres que no
primeiro caso; e os “chorões” faziam referência a uma suposta covardia. Essa última
fama se fortaleceu pelo costume dos homens Freitas de intervirem em conjunto em caso
de conflitos com seus parentes, ficando o ditado de que “os Freitas, quando briga um,
brigam todos”, mesmo que fosse contra um único adversário. Outra referência, dessa
vez elogiosa, considerava os Freitas “de confiança” e “muito trabalhadores”, o que
tornava sua presença numerosa na companhia e geralmente respeitada pelas chefias.
Numa das primeiras visitas que fiz à casa de Jango, descobri histórias que
atravessam a trajetória da família, propiciadas pelo estilo de vida de Zeca Freitas, um
229
carreteiro que fazia o transporte de mantimentos por toda a fronteira do Estado. Em
viagens mais longas, chegava a passar quatro meses sem voltar para casa. Na ocasião,
Débora, uma das noras, atenta ao relato, dizia: “Seu Jango tem irmão pra tudo quanto é
lugar”. Jango ria ao falar da fama de mulherengo do progenitor, contando-me um
episódio em que dois irmãos, um legítimo e outro não, descobriram-se por acaso.
Somente de filhos considerados legítimos, como mencionado, ele teve 15, alguns já
falecidos. Meu interlocutor não estranharia descobrir ainda outros irmãos.
Em fanília: Jango
Freitas (à direita),
com Julieta, noras,
netos e um parente
Jango e seu irmão Antônio Manoel contavam que o pai era rígido e austero e
lançava mão de sua autoridade – e também de um relho – para educar os filhos rebeldes.
“Dar laço” nos filhos era visto como parte da prerrogativa paterna para “impor o
respeito”. Jango, o caçula, fazia suas “artes” e corria para escapar das surras. Se fosse
pego, chorava e pedia perdão. Antônio Manoel, o penúltimo dos filhos, não se prestando
a essa performance, recebia a ira paterna: “Acho que não existe guri que apanhou mais
do pai do que eu, mas também não existe um que tivesse mais respeito pelo pai do que
eu”. Ele narrava, sem amargura, uma história singular:
Antônio Manoel - Báh, eu apanhava todo dia. (...) Eu fui o guri que mais
apanhei. Vou te contar uma história. (...) Eu era mais malandro, mais sem-
vergonha, mais encrenqueiro, mais fazedor de arte. Meu pai tava me dando
uma tunda, viu, Marta, meu pai tava me dando uma tunda um dia (...) e minha
mãe saiu lá de dentro de casa e pegou assim meu pai por um braço e disse:
“Chega, não dá mais nele hoje, que hoje ele tá fazendo aniversário”. E aí que
eu fui saber a data que eu tava fazendo aniversário: eu tava fazendo dez anos.
- E aí ele parou de bater?
Antônio Manoel - Aí meu pai ainda deu uns dois ou três... (risos) Aí eu fiquei
“Pá, mas tô de aniversário hoje!” Dez anos!
230
Vivendo na “Vila dos Freitas” e com numerosos informantes daquela família,
estabeleci neste núcleo relações bastante fraternas, o que tornava o “brinquedo” parte de
nossa interação. Como mencionei antes, logo nos primeiros contatos em campo, tanto
mulheres como homens me perguntavam freqüentemente sobre meu estado civil. Às
vezes, a pergunta podia estar ligada a uma brincadeira. Numa ocasião, num mercado,
depois de eu ter respondido a uma questão desse tipo, meu interlocutor, Freitas, cercado
por outros homens da mesma família, provocou: “Então, ainda vai casar com um
Freitas! Temos vários primos solteiros”. Na seqüência, outro parente completava
jocosamente que havia três categorias de homens na família: “Há os Freitas muito feios,
os feios e os menos feios!” Esse tipo de comentário era um pretexto para dar vazão a
uma arte bastante desenvolvida pelo núcleo familiar: a piada, ainda que fosse sobre si
mesmos. Isso denotava a forma pela qual os membros desta família combatiam estigmas
e classificações pejorativas, lançando mão do humor e da cordialidade.
4.5.3 Notas sobre as famílias “polacas”
Em Minas do Leão, as referências aos “polacos”, os descendentes de poloneses
– que constituem cerca de 10% da população -, remetem freqüentemente a uma espécie
de “elite local”, dizendo respeito a gente que é considerada “bem de vida”. De fato, a
importância sócio-econômica das famílias oriundas dessa imigração pode ser notada no
fato de que vários de muitos de seus membros ocupam posições de destaque na vida
pública local e também em atividades comerciais. E há, ainda, as homenagens
perpetradas em nomes de ruas, que fixam na memória inscrita nos itinerários dos
moradores algumas das personalidades que ali viveram. Basta uma olhada no mapa da
cidade e lá está: Rua Adão Teichikoski, Rua Antônio Staniesk, Rua Estevam
Wisniewski (assim como Miguel e José). Na lista telefônica local, encontram-se, por
exemplo, os nomes de família Binkowski, Janeczek, Kafski, Kiosseski, Lapinski, Lasek,
Lesnik, Maliszeski, Metlicki, Novinski, Puchaiski, Sienko, Strzykalski, Wisniewski,
Wyrvalski e Ziukoski, sugerindo um enraizamento desta etnia na localidade.
Bastante afeitos às suas origens, os descendentes de poloneses destacam
freqüentemente em seus relatos certos valores calcados na moralidade, na religiosidade
e na importância atribuída ao valor-família, assim como no domínio da competência
técnica, na educação e na intensa dedicação ao trabalho. Algumas dessas famílias aliam
a esses princípios uma austeridade no manuseio do orçamento doméstico, uma noção de
previdência em relação ao futuro, com uma valorização da poupança e do investimento
231
em patrimônio familiar.
390
Tal mentalidade, que parece ter contribuído diretamente para
alavancar sua relativa prosperidade na região, durante o período de funcionamento da
mina, contrastava com a cultura de outras famílias de trabalhadores, cujos salários
escoavam rapidamente em razão de hábitos de consumo e de lazeres, principalmente
masculinos, que podiam drenar boa parte das finanças domésticas. Como referido
antes,
391
uma das principais imigrações ocorridas nesta área carbonífera do Estado foi a
de poloneses. Das famílias estrangeiras que aportaram nos anos de 1940, uma parte foi
trabalhar nas minas de carvão, então pertencentes ao município de São Jerônimo, e
outra se voltou para a agricultura. Os registros históricos dão conta de que as primeiras
famílias desta etnia teriam chegado ao Rio Grande do Sul por volta de 1875, fixando-se
na Colônia Conde D’Eu, no atual município de Carlos Barbosa. Elas seriam originárias
do Norte da Polônia, então sob domínio da Prússia. Como algumas delas traziam
passaporte prussiano, teriam sido classificadas como prussianas, embora os imigrantes
se identificassem como poloneses. Mais tarde, outra colônia desses imigrantes foi
formada na área que hoje abriga o atual município de Dom Feliciano, a cerca de 70
quilômetros de Minas do Leão.
392
Eram provenientes dali os meus interlocutores
Mieroslau Lasek, ex-ferreiro da mina, e sua mulher Lúcia. Desde a primeira vez que
estive visitando-os, me impressionou sua postura de uma incansável e generosa
acolhida, da qual usufrui durante todo o período de minha pesquisa.
393
Chamava a
atenção, também, o fato de que, sendo ex-trabalhador da companhia de mineração,
habitasse numa residência bastante confortável para os padrões locais, cercada de amplo
pátio, com um jardim impecavelmente bem cuidado, situada junto à avenida principal.
Netos de imigrantes que vieram juntos da Polônia, Lúcia e Mieroslau se conheciam
desde crianças. Lúcia me contava que, como sua família era “muito católica”, para ir à
igreja, ela passava em frente à casa em que o menino de olhos azuis morava com os pais
e irmãos. Depois, eles se encontraram durante o casamento de uma irmã dele com um
“filho de criação” de um tio de Lúcia. Esse encontro levou à sua própria união três anos
mais tarde. Mais de meio século depois, Mieroslau referia-se à esposa de forma brejeira
como “a polaca que havia aparecido em sua vida”. Ele mesmo era tratado por amigos e
vizinhos por esta identidade que remetia à sua origem estrangeira. Com costumes
390
Esses aspectos já foram abordados no capítulo 2.
391
Ver capítulo 2.
392
Sobre a imigração polonesa no Rio Grande do Sul, ver Stawinski, 1999.
393
Embora eu tivesse ido procurá-los alheatoriamente da primeira vez, depois nossos laços se estreitaram
também pela descoberta de que nossas famílias estavam, de certo modo, ligadas: uma de minhas irmãs
havia sido madrinha de casamento de um de seus filhos.
232
semelhantes, os descendentes de poloneses daquela região mantinham essa tradição de
casarem-se entre si. Como mencionava Dagoberto Sienko, filho de poloneses, trata-se
de uma “amizade diferente”, “uma coisa mais do coração”.
394
Lúcia contava que cresceu
escutando as histórias sobre os sacrifícios enfrentados pelos antepassados que abriram
mão de sua pátria para começar uma nova vida no Brasil:
Lúcia - Os pais dos nossos pais vieram da Polônia. Ah, mas passaram
trabalho, Deus o livre! Era tudo mato... não tinha nada. A minha avó veio
com nenê pequeno e ela não tinha leite, porque chegaram ali, era no meio do
mato, tinham que cortar mato pra fazer os... barracos deles. (...) E aí o nenê
mamava no peito, mas ela ficou muito... porque disseram que iam vir pra cá
porque era uma beleza, que o governo dava tudo.
Mieroslau – Não sabiam falar nada... em português.
Lúcia – Não sabiam. (...) Ela viu uns cabritos, tinha gente... uns morenos e
criavam cabritos, mas era só assim mato cortado, umas coisinhas de nada que
plantavam. E ela não sabia como pedir... [leite para o bebê]. Mostrava o
cabrito, fazia gesto e mostrava a criança, mas eles não se entendiam. Os
cabritos não davam leite. Eles explicando para ela que não tinha leite e ela
dizia: “Meus Deus, como que é a solidariedade aqui no Brasil! Tem cabrito e
não cede leite... a criança morre de fome!” Eu sei que eles passaram trabalho,
meses, meses...
Mieroslau – Meus pais contavam do trabalho... porque os pais deles contavam
pra eles também.
395
Um aspecto que pesa
fortemente na cultura de
descendentes de poloneses é a
valorização da educação e a
transmissão de valores fa-
miliares. Como afirmava Mie-
roslau: “A base dos filhos são os
pais, não adianta. É certo que,
depois, eles têm os colégios, os
professores, os padres ou freiras.
Não, não... se eles não têm a base dos pais, nada feito”. Se o casal tinha feito “muitos
sacrifícios” para educar os filhos e possibilitar-lhes que avançassem nos estudos,
manifestava também “orgulho” em relação a suas conquistas. A valorização do “estudo”
era perceptível também quando Mieroslau falava do pai que, na infância pobre, em Dom
Feliciano, o surpreendia.
394
Esses aspectos foram explorados por mim em Cioccari (2004).
395
Outras informações sobre a trajetória profissional de Mieroslau estão no capítulo 3.
Lucia e Mieroslau Lasek, junto com o ex-mineiro Agenor (à esq.)
233
Meu pai era professor. Tinha estudo assim... Até hoje, não fiquei sabendo
como ele aprendeu. Ele sabia de tudo. Ele era professor de matemática. E esse
negócio de mapa, planta, tudo ele estudou. Escrevia que era... escrevia tanto
em polonês.... Falava um português assim... que um jornalista apareceu lá em
Dom Feliciano e arrumou uma namorada lá e era filha do compadre do meu
pai. E esse jornalista conversou com meu pai. E aquele tempo não existia
jornal. Sabe que ele mandava o Correio do Povo (...) uma vez por semana,
pro meu pai? Nós morávamos assim pra fora, tinha muita sombra debaixo das
árvores. Meu pai sentava com aquele jornal, e ele lia aquele jornal e explicava
tudo. No tempo da
guerra, tinha um rádio, (...) todo mundo escutava, mas ele
tinha que explicar pros outros. E de onde ele aprendeu? Eu não fiquei
sabendo até hoje. E o pouco que eu sei, aprendi com ele, com um lampião de
querosene de noite. Ele botava a gente lá: “Ó, vocês têm que estudar”.
396
Com essa herança, Mieroslau e Lúcia estimularam nos filhos o gosto pelo
aprendizado e a dedicação ao trabalho. Todos os quatro filhos chegaram à universidade.
As duas filhas são professoras e ocuparam funções de direção nas escolas da cidade.
Atualmente, a mais nova, Sílvia, é secretária municipal de Educação e Cultura.
397
Os
dois filhos homens também tiveram êxito em sua vida profissional. Os rapazes
começaram a trabalhar por volta dos 13 anos. Trabalhavam de dia e estudavam à noite.
Num universo no qual os filhos de operários enfrentam fortes obstáculos e grande
desmotivação para atingir uma escolaridade prolongada, essas trajetórias parecem
encarnar aspectos relacionados aos desafios da imigração que foram sedimentados na
memória dos descendentes. Relatando o caso de um dos filhos, hoje funcionário
administrativo da CRM em Porto Alegre, Mieroslau relatava: “Às vezes, ele chegava a
desmaiar, porque ele tinha que ir pro trabalho às cinco e meia (...). E ele estudava em
Rio Pardo e chegava à uma hora [da manhã]. E ele fazia a lição dele, não podia dormir
de dia. Num dia, ele desmaiou lá no trabalho”. Lúcia contava que o casal sempre apoiou
os filhos: “Olha, quando as gurias iam se formar, nesses trabalhos que elas faziam, eu
ficava até de madrugada ajudando elas”. Ao que o marido acrescentava: “E eu fazia
hora-extra de noite pra pagar a passagem pro colégio”.
Os Sienko, também descendentes de poloneses, estão entre os pioneiros no
vilarejo que deu lugar à cidade de Minas do Leão. Wenceslau e Maria Sienko, junto
com os filhos Francisca e Jan, deixaram a Polônia no pós-guerra e chegaram em 1946 à
localidade. Na década de 1950, a família Sienko fundou o primeiro estabelecimento
comercial, a Casa Vasco, na que ficou sendo a rua principal, a Avenida Getúlio Vargas.
Ali, Francisca casou-se com um polonês, desertor da Guerra dos Mouros, que veio para
o Brasil escondido num navio. Deste casamento, nasceram três filhos. Um dos filhos do
396
Relato de Mieroslau Lasek, registrado em Cioccari (2004).
397
A trajetória de Sílvia é contada por mim no capítulo 8, sobre filhos de trabalhadores na mina.
234
casal, Dagoberto, na época de nossa entrevista com 43 anos, reconstituía essa trajetória
de imigrantes. Desde pequeno, ouvia falar das histórias da mãe e do tio que, temerosos
de um confisco dos alemães no pós-guerra, esconderam ouro dentro das costuras das
roupas na viagem para o Brasil. Ele me contava que, até meados da década de 1970, a
Casa Vasco vendia “secos e molhados”, com uma diversidade de artigos que iam de
produtos de alimentação até ferraduras e mortalhas. Com o surgimento de
supermercados, que estabeleceram uma concorrência difícil de ser enfrentada, a Casa
Vasco tornou-se Farmácia Vasco. Com os problemas de saúde enfrentados pelos
moradores em decorrência da mineração, uma farmácia parecia uma alternativa.
E aí pensavam assim: o que dá na cidade? Comida e medicação, em função
dessas doenças que tinha na mina, né. A gente observou que tinha muitas
doenças. E a farmácia ainda é uma coisa que se mantém bem.
Wenceslau Sienko pregava que era melhor ter poucos descendentes e contratar
empregados. Isso porque se os filhos não respondessem bem ao trabalho não poderiam
ser demitidos. Como decorrência da economia reprodutiva adotada pelos Sienko, a
família resumia-se, naquele período de minha pesquisa, a 23 membros.
4.5.3 De reputações e vulnerabilidades
No ritmo desta pequena cidade, o cotidiano é cenário de sentimentos ambíguos
para muitos moradores, que se referem à proximidade dos vizinhos como uma
vigilância constante e incômoda. São gratos à solidariedade, mas reclamam de que os
outros “enxergam cada passo” que se dá. Para muitos, a vida da “cidade grande”
aparece como uma liberdade em que “ninguém cuida da vida dos outros”. As
percepções sobre a “cidade grande” nos remetem ao que escreveu Simmel (1979) sobre
o contraste da vida mental na metrópole e nas pequenas cidades. Para outros, a principal
virtude da cidade pequena é o fato de ali não haver a violência que existe em outros
lugares e poderem contar com uma “boa vizinhança”.
Neste contexto, como foi dito, a reputação de cada um está vulnerável ao
julgamento dos outros.
398
Nesta cidade que, segundo os relatos, abriga “um povo
falador”, as fofocas podiam ter também um efeito drástico sobre quem se visse
envolvido, por exemplo, em alguma suspeita sobre sua honestidade. Um caso deste tipo
tinha tido um desfecho dramático poucas semanas antes de minha chegada ao campo.
398
A questão da reputação foi abordada mais longamente no capítulo 1.
235
Um ex-mineiro, pertencente à família Freitas, havia se suicidado por enforcamento.
399
O
trágico acontecimento era comentado por parentes, amigos e vizinhos num tom de
consternação e de fatalidade. Alguns arriscavam dizer que ele havia se matado “devido
às fofocas”. O fato é que, trabalhando então na prefeitura, era considerado como um
homem “sério”, “honesto”, “uma pessoa honrada”. O drama começou quando uma
sindicância foi aberta para investigar o desaparecimento de pneus no setor onde ele
trabalhava. De acordo com a família, o ex-mineiro, que “sofria dos nervos”, encontrava-
se “deprimido”, pois tinha passado a viver um constrangimento público com o anúncio
daquela investigação. Quando passava pela rua, sentia-se alvo de comentários. Todas as
referências feitas em minha presença consideravam que fosse inocente, lamentando que
tivesse tido atingido daquela forma em sua honra. Ex-colegas de mina recordavam seus
“problemas de nervos” aflorados, por exemplo, quando faltava luz no subsolo em sua
jornada de trabalho: “Ele chorava como uma criança”, recordava um ex-colega,
explicando que, naquelas circunstâncias, era preciso reconduzi-lo à superfície.
Curiosamente, o mineiro que tinha medo do escuro tinha o apelido de “Corujão”. O ato
derradeiro pelo qual perdeu a vida, deixando mulher e três filhos, parece ter sido uma
forma de libertar-se da densa noite que desceu sobre ele, tecida pelos olhares e
julgamentos alheios, agravando seus problemas de depressão.
Sobre a vida privada, os principais agentes das fofocas seriam as mulheres
400
e
os alvos preferidos, outras mulheres, em geral solteiras e viúvas, assim como as famílias
com filhas. Por vezes, uma conversa entre mulheres já era referida como “fofoca”.
Numa ocasião em que eu me encontrava na residência de um casal de informantes, por
exemplo, o marido deixou-nos conversando e foi lavar o carro, mencionando que
“mulher sempre tem o que fofocar”.
401
Outro informante fazia uma queixa de que os
atingidos pelos mexericos seriam especialmente os “homens casados”, que podiam ser
denunciados em sua infidelidade por uma rede de informações feminina. Tal referência
indicava que a dupla moral para homens e mulheres, que aparece caracterizando as
relações de gênero de classes populares em outros estudos, ali não se encontra intocável.
399
Ouvi várias outras referências de suicídio por enforcamento nesta comunidade. A propósito da morte
masculina nos pampas gaúchos, ver Leal (1989).
400
Sobre o controle social exercido pelas mulheres, ver Hoggart (1973) e Fonseca (2000).
401
Tais comentários são bastante similares aos ouvidos por Comerford (2003).
236
Lísia, ex-assistente social da companhia, contava que quando começou a
trabalhar na empresa, no final dos anos 1970, por ser então a única mulher entre 1.200
homens, era alvo de mexericos, de discriminação e de preconceito por parte das outras
mulheres da comunidade. O fato de que fosse uma mulher da “cidade grande”, que
fumasse, que tivesse uma profissão, carro, uma vida independente, fez com que “fosse
odiada”. Notou que as mulheres dos engenheiros tinham “muita pressa” em conhecê-la
e, depois das apresentações e dos rituais de sociabilidade, acabaram por tornarem-se
amigas. Recordava-se que, inicialmente, tinha uma péssima reputação:
Eu era [considerada] assim uma vagabunda (...) porque eu era a única mulher
trabalhando lá, porque logo eu comecei a namorar o Tadeu (então médico da
companhia), que era, em primeiro lugar, era o bom partido da cidade. (...)
Todo pai aqui sonhava que sua filha professora se casasse com um doutor, e
ele era bonito mesmo. (...) E eu venho roubar esse cara que era o príncipe
encantado aqui, né. E eu chego e logo, logo, começo a namorar este cara, mas
esse cara é desquitado. Então, sou uma puta que vivo lá no meio dos maridos
de todo mundo (...).
Da dinâmica da fofoca
Pude verificar cotidianamente a dinâmica da fofoca. Numa ocasião, eu visitava
uma viúva e sua filha de dez anos e escutava da mulher suas queixas de que ela era
alvo de mexericos por parte da vizinhança. Renata (nome fictício), separada do
primeiro marido e viúva do segundo, um ex-mineiro, reclamava que tinha que fazer
ela mesma os consertos em sua casa, porque se chamasse alguém “a pessoa já queria
se aproveitar”. Eu lhe perguntei se eram pessoas “mal-intencionadas”. Ela me revelou
então que um viúvo, nosso conhecido, havia “espalhado” que estava interessado nela e
que “decerto todo mundo achava que eles já tivessem alguma coisa”. Sentindo-me eu
mesma incomodada pela vigilância constante das vizinhas, escutei com interesse o seu
relato. Tinha encontrado alguém que sofria com os falatórios e fui dando curso à
conversa. Ela adotava o tom de desabafo, de quem estava “cansada” de tudo aquilo.
Minutos depois, olhou para a rua (estávamos eu, ela e sua filha, Gisele,
sentadas sob uma parreira, ao lado da casa), fez uma expressão de pavor, levou a mão
no rosto, escandalizada em alto grau, e disse: “Meu Deus!!! A Fulana tá grávida!!!”
Tive vontade de rir de sua performance, mas logo percebi enunciava uma certa
verdade sobre a fofoca: a de que torna-se desagradável quando nos atinge. Em
seguida, a menina Gisele correu para o portão para ver mais de perto a moça grávida
que passava e gritou: “Tu tá grávida?!” A moça, que batia na casa ao lado, confirmou.
A mãe ralhou com a garota, dizendo que isso era falta de educação. Ela voltou
correndo: “Nem tô!”, deu de ombros. Pouco depois, a moça grávida, tranqüila em seu
vestido marcando a gestação, entrou no portão para uma visita. As moradoras já
aparentavam naturalidade. Aproveitei a chegada da visitante para me despedir.
Alguns dias depois, ao passar por ali, acenei para Renata. Ela estava “com
visita”: sob a parreira, conversava com o viúvo que mencionara daquela vez. Pareceu-
me que ali poderia estar um “benefício secundário” da fofoca: o fato de que um boato
espalhado poderia se tornar posteriormente um fato, nem sempre indesejável.
237
Considerava que, “com o tempo”, suas diferenças foram sendo aceitas e ela
passou a ser respeitada por seu trabalho e até mesmo solicitada a ajudar às outras
mulheres. Isso apesar de, diferentemente dos hábitos locais, não visitar as vizinhas e não
apreciar “ficar de ti-ti-ti”, vivendo, ao contrário, de forma mais individualista, como
estava habituada numa grande cidade.
4.5.4 De “traições” e da emblemática figura do “corno”
Ao longo de minha investigação, interagi com cerca de 40 famílias. A
convivência com as mulheres me ajudou a compreender a complexidade da vida
privada. Uma parte dos conflitos narrados por elas envolvia, como foi dito, a “traição”
masculina. A temática do “corno” (do adultério feminino)
402
era explorada geralmente
por homens, referindo-se a “outros”. A cultura de jocosidade que caracteriza – ao lado
da dimensão trágica – a vida dos trabalhadores na mineração subterrânea imprime sua
marca também no cotidiano da comunidade. Como foi dito, a principal temática das
brincadeiras é a sexualidade. Nesses jogos verbais, há uma recorrência do termo
“corno” nas narrativas, nos comentários de conteúdo moral e nas piadas, geralmente
feitas por homens. Menciono alguns exemplos: a) ao relatar as peripécias e brincadeiras
feitas na mina, um mineiro aposentado me contou que ele e um colega chegaram a fazer
uma lista com 78 nomes de mineiros-cornos, sobre os quais, segundo ele, este estatuto
não pairava dúvida; outro informante mencionava uma espécie de “concurso” a partir de
indicações dos dez mineiros “mais” cornos; b) um menino de 12 anos disse-me
espontaneamente que nunca iria se casar para não se tornar um “corno”; c) num
contexto em que a infidelidade masculina é naturalizada, a possibilidade da traição
feminina parece ser tão preocupante que uma determinada casa, segundo os falatórios,
teria ficado conhecida no passado como “maldita” pela suspeita de que uma antiga
moradora traía seu marido; d) os moradores contavam um episódio em que um mineiro,
dando entrevista a um jornalista no passado, afirmou – não se sabe se jocosa ou
seriamente – que a maioria dos mineiros era de “cornos”, gerando indignação entre as
mulheres, que, atingidas em sua reputação, realizaram um “panelaço” diante da mina e
ameaçaram linchar o trabalhador que tinha sido o autor da declaração; e) uma
associação entre “corno” e “diabo” surgiu por meio de uma piada que me foi contada
por um mineiro. È a história de um homem que morre e vai para o inferno. Lá
chegando, depois de olhar em volta, ele pergunta ao diabo onde estão as mulheres. O
402
Ver a abordagem deste tema em Pitt-Rivers (1983) e Fonseca (2000).
238
diabo responde que não há mulheres no inferno (vê-se aqui um modelo de virtude
feminina). O recém-chegado, surpreso, indaga: “Mas, se não há mulheres aqui no
inferno, o que é isso na sua cabeça?” Tal narrativa sobre esse “diabo-corno” parece ser
uma forma peculiar de exorcizar o corno e de zombar do diabo. Em várias falas, o diabo
aparece como o “chifrudo” ou, mais prudentemente, indicado por um gesto com dois
dedos encolhidos, que serve também para referir os cornos – sejam “mansos” ou
“xucros”, adjetivos que nos remetem à animalidade, às metáforas tomadas da natureza.
Tais observações sugerem que a condição de “corno” pode ser tão temida quanto a
entidade que representa o mal, o diabo. No primeiro caso, há uma proliferação de
atribuições, geralmente sob a forma de zombaria (de maneira que, segundo um
informante, a preocupação deveria surgir quando os amigos silenciarem a respeito); no
segundo caso, evita-se até a nominação, pois isso poderia “chamar” o mal. As
referências podem ser as de “chifrudo”, “bichinho” ou “inimigo”.
Em geral, usadas em tom de uma caçoada, as referências a “cornos” tomavam
também vieses inesperados. Um de meus informantes me contava sobre uma curiosa e
sistemática observação que havia feito, relacionando a aparência das casas à “condição”
dos habitantes: havia chegado à conclusão que as casas mais “bem pintadas”, mais
“alegres” eram de “cornos”, sugerindo tratar-se de pessoas felizes, fosse porque, em
geral, eram os últimos a saberem sobre a traição ou porque, sendo “mansos”, faziam de
conta que não sabiam do adultério, o que lhes permitia prolongar a tranqüilidade. Um
casal que me acompanhou até a casa de um amigo, separado, que vivia com a nova
mulher, me contava que aquele homem não escondia o fato de que tinha sido “corno” no
casamento anterior. “De repente ele vai até te falar sobre isso aí”, me disse o ex-
mineiro. Meu novo informante, evidentemente, não tocou em tema tão delicado, embora
falasse de sua separação e do novo casamento. Entre amigos e compadres, um homem
pode até lamentar ou zombar de sua “condição”, mas diante de estranhos (e, ainda mais,
de uma mulher), preservará a sua reputação.
Diante da abundância de referências e de narrativas sobre “cornos”, certa vez,
numa entrevista com o comandante da Brigada Militar local, questionei-o sobre a
existência de crimes passionais na comunidade. O sargento referia-se ao “baixo índice
de ocorrências”, ressaltando que “há camaradas que aceitam pacificamente que a mulher
saia com outro”. Foi mais explícito: “Isso não gera violência, são todos cornos
pacíficos!”, sentenciou, mostrando-se um pouco espantado sobre como essas questões
podiam ser encaradas com uma “naturalidade incrível”. Passou, então, a me contar uma
239
série de histórias envolvendo a infidelidade, que seriam de conhecimento público já que
estávamos num lugar “em que todo mundo conhece todo mundo”. Recordava-se de um
caso em que o marido teria perguntado ao “amante” da mulher se ele “não achava que
deveria colaborar com alguma coisa”, já que estava “tendo de tudo em sua casa”. Num
dos casos narrados, marido e amante eram amigos e continuaram amigos depois da
separação do primeiro. O sargento mencionava que mesmo na corporação militar havia
histórias deste tipo, em que o sujeito ia para o plantão e um colega “ocupava a vaga” em
sua casa. Eu lhe perguntava se essa tolerância, caso existisse, não estaria relacionada à
cultura de jocosidade que emergiu da mina. Ele acreditava que houvesse uma relação
entre esses aspectos: “A cultura dos mineiros é impressionante, essa coisa das
brincadeiras. Agora a CRM fechou, mas a maioria dos mineiros... quando um era
corneado, era uma chacota, uma gargalhada”. Um dos seus conhecidos, que estaria
sendo traído pela mulher, jogava no time de futebol da companhia e ouvia as gozações,
mas “levava na brincadeira”. Embora considerasse que essa tolerância era positiva do
ponto de vista da segurança, como homem estranhava: “Acho que não é normal, não
pode ser normal aceitar isso. Macho que é macho não aceita!” Numa situação relatada
por ele, um morador de um bairro pobre ia passar umas semanas trabalhando fora, mas
retornou antes e encontrou a sua mulher com outro. “Ele se sentiu humilhado e veio
aqui chorando”. Neste caso, os policiais tentavam convencê-lo a buscar uma “solução
pacífica”. Em casos como aquele, sugeria que o que aumentava o sentimento de
humilhação era o fato de que a infidelidade era de “domínio público”. No entanto, nem
sempre a reação ao tema era de tolerância. Certa vez, um de meus informantes, contou
sobre uma história que ouviu na TV, sobre um trabalhador que voltou mais cedo para
casa e encontrou a mulher nervosa, vindo a descobrir o amante debaixo da cama:
desfechou nele quatro tiros e o matou. Meu interlocutor externava a própria posição:
“Ele tinha que matar era a mulher, porque quantos ele teria que matar ainda?”
Sobre casos que tivessem resultado em violência, o comandante da BM
lembrava-se de episódio na cidade vizinha em que um sujeito havia dado uma facada na
mulher. Uma briga passional que havia resultado num escândalo foi de duas mulheres
que mantinham um relacionamento homossexual numa nas vilas do município. Como
uma das mulheres tivesse se embriagado e agredido a companheira, alguém chamou a
brigada. A agredida protestava que estava sendo “maltratada” e “traída”. O policial
perguntou se ela queria representar contra sua companheira e se queria se separar dela.
A mulher ficou hesitante. O episódio findou com a reconciliação das duas.
240
A recorrência das narrativas sobre cornos nesta comunidade parece estar
relacionada às características do trabalho mineiro, realizado em turnos, durante 24 horas
por dia. Isolados temporariamente da “vida na superfície” no período de permanência
no subsolo, muitos trabalhadores sentiam-se inseguros. Some-se a isso a sensação de
fadiga, a exaustão física que a atividade braçal impunha sobre esses trabalhadores no
final da jornada. Tudo isso representava uma combinação ambígua: sentiam-se “mais
homens”, mais viris nesta labuta diária na qual despendiam as suas energias, no entanto,
ao longo dos anos, não raro saíam tão exaustos da mina que, nas palavras de um
trabalhador, “mal conseguiam parar em pé”. Uma informante lembrava que “como o
gaúcho, especialmente, é muito machista, ficava aquela incerteza” quanto ao
comportamento da esposa quando ele estava na mina. Por vezes, a desconfiança era
agravada pelas brincadeiras dos colegas: “Ah, tu vai trabalhar na mina? Então, eu vou
pra tua casa...” Ou ainda: “Vai pra casa? Já deixei tua cama quentinha...”
Um ex-encarregado considerava que, as histórias de “cornos” em geral
correspondiam a “fatos reais”. Algo que é menos explorado nos relatos é o sofrimento
que tal insegurança gerada pelo sistema de trabalho e pelos falatórios poderia provocar
nos trabalhadores. Esse aspecto, que não aparece nos relatos – o que é compreensível,
pois a mentalidade dominante em torno da masculinidade não incentiva a exposição de
vulnerabilidades desse tipo -, surgiu na entrevista com uma ex-assistente social da
companhia carbonífera, Lísia Alves. Tendo trabalhado em outras grandes indústrias nas
quais havia igualmente um sistema de turnos, ela mencionava que em áreas
habitacionais desse tipo há sempre a “Vila corno”, local, segundo ela,“onde acontecia a
maioria dos casos” em que o operário “ia trabalhar de madrugada e outro pulava a
cerca”. Isso, segundo ela, costumava gerar conflitos de vizinhança.
Lísia – Ah, a briga começava assim porque eram vizinhos muito próximos de
cerca ali, de casa em casa, ouvia tudo o que um dizia, começava de dentro de
casa assim... que eu [por exemplo,] não gostava do que a Fulana ali do meu
lado estava dizendo, aí eu saía pra fora... “Vem cá, sua puta!” e aí começava...
- Eram brigas das mulheres?
Lísia – Das mulheres. Eles, igual mineiro [faz referência à fama dos
habitantes de Minas Gerais], come quieto, tu entende? É as mulheres é que...
Elas iam pro pátio brigar, bater boca, então elas disputavam entre elas. E isso
é a natureza mesmo feminina, né, (...) ela acaba se envolvendo
emocionalmente com tudo aquilo, e o homem não, né. O homem trai e
pronto, foi mais um serviço que ele prestou pra comunidade. E a mulher não,
ela se envolve, ela termina se apaixonando pelo outro, porque o outro ganha
mais, o outro é encarregado.
241
Além de explicitar que “as brigas” ocorriam normalmente entre as mulheres,
seu relato aborda a situação na qual havia um envolvimento entre esposas de operários
com encarregados, que muitas vezes eram chefes dos seus maridos na companhia. Isso,
não raro, poderia provocar um sentimento de humilhação dos homens traídos, mas um
enfrentamento direto muitas vezes ocasionaria ainda mais danos à vida do trabalhador: o
risco de perda do emprego e de perda da mulher. Um ex-encarregado que entrevistei “se
gabava”, de fato, de que teria mantido relacionamentos com mulheres de mineiros
quando os maridos iam para a mina. Para além do folclore que o tema suscita, deve-se
considerar que uma eventual “tolerância” possa envolver não apenas um genuíno “jogo
de cintura”, mas também certas coerções a que os trabalhadores estavam sujeitos.
Em Minas do Leão, o ex-encarregado que relatou certos episódios que teriam
sido protagonizados por ele enaltecia sua própria masculinidade ao mostrar seu
desprezo pelos maridos traídos. Em narrativas deste tipo, feitas pelos próprios
Histórias recorrentes na literatura
A situação de uma mulher de mineiro ser “amante” de um capataz da mina
aparece, por exemplo, na obra Germinal, de Émile Zola, sendo que no romance a relação
clandestina ocorria sob “as vistas grossas” do marido, que, em contrapartida, recebia
certos privilégios na jornada de trabalho. Um detalhe explorado por Zola é que a casa
desta mulher era mais limpa e arrumada do que as das outras mulheres de mineiros, o que
provocava a inveja nas vizinhas e a mantinha como alvo das fofocas.
Durante minha pesquisa em Creutzwald, na Lorena francesa, perguntei a um ex-
encarregado se, naquele contexto, também existiam “estórias de cornos”. A reação dele
foi a de negar a existência de situações deste tipo mencionando que, em épocas mais
recentes, os mineiros eram “inteligentes” e não mais “as bestas humanas” de 50 anos
antes, pois lidavam com alta tecnologia. No entanto, tempos depois, ouvi
espontaneamente nos relatos de outros dois ex-trabalhadores narrativas bastante
coincidentes sobre um episódio em que, estando um colega de trabalho cumprindo o turno
da madrugada, devido à falta de luz retornou mais cedo para casa e teve a porta de sua
residência aberta por seu chefe (justamente o encarregado mencionado aqui). Se não
bastasse o choque da situação, o chefe tratou o operário com prepotência e desprezo,
dizendo-lhe: “Quem é que lhe liberou do trabalho?! Volte para a mina porque, do
contrário, vou demiti-lo!” Nos relatos que ouvi, não havia qualquer sinal de jocosidade.
Eles manifestavam sua solidariedade ao operário que tinha sido “humilhado”.
Comentários desabonadores eram dirigidos ao ex-chefe, visto como “mau” e “perigoso”.
No romance Le Soleil des mineurs, de 2005, ambientado em Creutzwald e
publicado após o fechamento da mina La Houve, Elise Fischer introduz na intriga um
personagem com características similares: trata-se de um encarregado com quem a mulher
de um mineiro manteve um caso no passado e que seria o verdadeiro pai de sua filha.
Enquanto a esposa se esforçava para guardar o “segredo” da infidelidade, o ex-mineiro,
seu marido, mantinha ele mesmo oculto o fato de que sempre soubera do ocorrido.
242
envolvidos, assim como no relato do policial, é evidente que o “desonrado” é o “corno”,
o marido traído, e não a mulher (embora essa possa também sofrer certa
desmoralização), nem o amante. Aos olhos da opinião pública, parece que essa perda da
honra se acentua caso se trate de “corno manso”, daquele que se resigna com a situação.
O acréscimo de “honra viril” vai para o “pegador”, para o homem com quem a mulher
casada se relaciona. Entretanto, em algumas situações, se o sujeito ignora que é traído,
tem boa conduta e é benquisto pela comunidade, pode angariar as simpatias da
vizinhança, contrastando com a reação negativa que passa a ser dirigida – aberta ou
dissimuladamente – à mulher, considerada uma “vagabunda” que fica com o dinheiro
dele e que ainda por cima “o faz de bobo”. Por vezes, certa discrição impedia que
alguém verbalizasse o comentário sobre a reputação alheia concernente a esse aspecto,
mas este era substituído por um gesto com os dois dedos indicadores encolhidos, por
vezes colocados no alto da cabeça, acompanhado de um sorriso ou de trejeito facial de
quem demanda a cumplicidade do interlocutor para aquele “segredo”.
Lísia, a assistente social, mencionava que o sofrimento provocado pela
suposta infidelidade feminina era um dos fatores que levavam os mineiros ao
alcoolismo, juntamente com outros aspectos relativos às suas condições de trabalho.
Imagina o sentimento do cara: trabalha, trabalha, trabalha, tudo naquele (...)
num trabalho miserável mesmo pra um ser humano, né, chega no fim do mês
não tem um tostão para receber e ainda está devendo?! Começa a beber e tem
mais é que beber mesmo! Trabalha num lugar extremamente hostil, as baratas
ficam passando por cima dele, né, ele vê o colega morrer, ele sabe que a
mulher dele corneia ele, e chega no fim do mês, ele vai lá [na cooperativa] e
em vez de receber, ele tem a pagar (...). Não sabe ler, não sabe escrever, não
tem uma outra coisa. Que era um problema aqui, porque os engenheiros... a
visão deles era assim com a questão social, eles não pensavam no lazer.
Então, eles [os operários] não tinham lazer, eles consideravam que ir pro
boteco beber era lazer.
Por outro lado, a questão da infidelidade masculina, como dito antes, era um
tanto naturalizada, o que não quer dizer que não provocasse sofrimento nas mulheres.
Quando elas se reuniam para confidências, em geral as queixas sobre os maridos ou ex-
maridos recaíam sobre este aspecto. Certa vez, acompanhando Renata e a filha Gisele
que iam num evento de música gospel, conheci outras duas mulheres. Elas estavam
todas na faixa dos 40 a 50 anos. Contavam um pouco das suas trajetórias familiares e
religiosas, com os dois aspectos se entrelaçando, enquanto esperávamos o ônibus. Num
momento, passou um rapaz da família Freitas e me perguntou se eu tinha visto, adiante,
Jango, seu parente, jogando futebol na rua com a garotada. Como já estava escurecendo,
243
eu não havia percebido a figura de Jango. Então, ao mesmo tempo em que eu escutava
as conversas das mulheres, fiquei observando o ex-mineiro, de mais de 60 anos, exibir
suas jogadas, ensinando dribles aos meninos. Essa cena peculiar, envolvendo o mundo
masculino, se desenrolava sob meu olhar cerca de 30 metros adiante. E eu participava
de outra cena, com três mulheres que contavam os seus dramas conjugais marcados
pelas “traições”, outra face da malandragem.
Uma delas, Antônia
403
, dizia que tinha freqüentado o “batuque”, mas que deixou
de ir porque seu marido proibiu-a de continuar. Sueli, que já estava convertida a uma
igreja evangélica, comentava que, “certamente”, Antônia tinha tido “sofrimentos”
porque “aquilo não era de Deus”. Renata revelou que também “tinha sido da umbanda”.
Eu perguntara sobre as trajetórias religiosas e, espontaneamente, elas ingressaram nas
confidências da vida privada. Foi Antônia quem começou a contar: havia sido traída
pelo marido, que ficou com outra mulher durante um ano, paralelamente à relação com
ela, e que, “no fim”, até “pegava as contas dela [da outra] para pagar”. Foi uma amiga
que a alertou, revelando-lhe inclusive a identidade da rival. Antônia foi até a casa da
“amante”, disposta a bater nela, mas acredita que deva ter errado de porta porque outra
pessoa atendeu. Ficou esperando ali perto e viu marido e amante “saírem juntos”. Sem
conseguir alcançá-los, esperou o marido em casa. Disse-lhe que sabia “de tudo”, mas ele
negou. Apesar da crise, não se separaram. Depois disso, Antônia achava que o marido
tinha “bronca” dela porque ela o seguiu. Dizia que continuavam a viver juntos, mas sem
manter relações sexuais. Questionada pela amiga crente se ela o havia perdoado,
respondeu que “sim”, com alguma hesitação. Essa amiga ia fazendo interpretações de
cunho religioso. Ao saber que não tinham se separado, considerou que aquilo era “muito
bom”. Aliando à fala um gesto, perguntou se já tinham “consumado o ato”, ao que a
outra respondeu que não, justificando que o marido estava distante e que só falava com
ela sobre a casa e os filhos. Revelou que muitas pessoas a aconselharam a não
abandonar o lar. Sueli tentava animá-la dizendo que, se ela continuasse indo “na
evangélica”, “Deus ia curar aquela dor” e que, certamente, ela iria “reconquistar o
marido”. A certa altura, Antônia falou com certo ressentimento de que as vizinhas
deveriam saber, mas não lhe contavam. Renata garantiu que “não sabia de nada”. E
citou o seu caso: seus filhos “sabiam” e não lhe disseram nada.
403
Os três nomes são fictícios.
244
Aproveitando um silêncio, eu perguntei se era comum na localidade que os
homens tivessem outras mulheres. Antônia disse então que “se ele saísse cada vez com
uma mulher diferente”, “se ele desse as suas saídas”, ela não se importava, mas sua
mágoa era pelo fato de que ele havia “se ligado” a outra mulher e que já estava,
inclusive, “sustentando-a”. Ela continuou dizendo que ali, naquela cidade, só havia uma
forma de não ser traída: “não casar”. Reiterou que se o marido ficasse a cada semana
com uma mulher diferente não haveria problema. A mulher crente de longos cabelos
escuros, Sueli, revelou que não só tinha sido “traída” como também “largada”, o que
também tinha ocorrido com Renata em sua primeira união. Pelo tom em que essas
confidências eram feitas, pude perceber que ser “largada” era ainda mais grave do que
ser “traída”, pois remetia não apenas à humilhação e ao desprezo social como também
ao descompromisso financeiro do homem com o lar. Por seus relatos, notava-se que o
maior drama da “traição” era a ameaça que representava à mulher de ser abandonada e
de perder não só seu status de esposa como também a garantia de um provedor.
A história de Sueli servia de alento às outras mulheres. “Traída” e
“abandonada”, como frisou, ela casou-se novamente, teve outros filhos, e agora se
sentia mais realizada na nova união com um “irmão” da igreja. O laço religioso
representava uma espécie de fortaleza contra os fatores que levaram à ruína o primeiro
casamento. Renata dizia que também não podia se queixar, embora tivesse ficado viúva
do segundo casamento, pois esse marido “deixou-a muito bem”, por conta da pensão de
mineiro aposentado e da casa que herdou. Segundo seus comentários, saber que o ex-
marido havia se tornado “corno” era uma espécie de vingança simbólica de uma honra
feminina ferida. Renata, por exemplo, cujo marido foi viver com uma moça de 16 anos
na época, alegrava-se que essa jovem tivesse “botado tantos chifres” nele que sua
cabeça “ficou um jardim” – uma curiosa imagem mesclando o mundo animal e o
vegetal. Naquela e em outras interações, certos aspectos da conversa eram nuançados
por meio de expressões e de gestos que supunham uma compreensão e uma
cumplicidade. Por vezes, eu tentava depreender o sentido pelo contexto, mas nem
sempre isso era elucidativo, como daquela vez em que ouvi de uma mãe-de-santo sobre
a mulher de um ex-mineiro, um médium que estava presente na conversa: “Ele não
plantava flor na frente da casa, mas ela plantava”. A situação ficou mais clara quando o
próprio trabalhador me disse que sua ex-mulher era “muito sem-vergonha”. Dizia isso
sem pesar nem constrangimento porque estava feliz com sua nova união.
245
Uma conversa que ouvi entre três mulheres, numa parada de ônibus na cidade
vizinha, continha elementos muito similares a que narrei antes. Uma delas, que se disse
casada com um caminhoneiro, contava à outra que não iria “criar caso” com o marido
por causa de uma “traiçãozinha”. Tão interessante quanto a afirmação foi a resposta da
amiga: “Tá certo, tu não vai ser boba de perder uma vida boa por causa de bobagem!”
Uma terceira mulher, escutando a conversa, olhava para mim e sorria (eu tive que sorrir
também, afinal éramos quatro mulheres sentadas próximas, ingressando na intimidade
da primeira), aparentemente admirada que a outra não sentisse ciúmes. A mulher que
havia abordado o tema deixava claro que, para tudo, há suas compensações: como era
ela que recebia o salário do marido, “não ia se preocupar”. Sua interlocutora comentou:
“É por isso que tu está com a pele lisa, não tem rugas”. A narradora, uma mulher
morena de 37 anos, segundo disse, agradeceu e lembrou o caso de uma parenta, talvez
uma tia, que durante toda a sua vida ficou “se consumindo de ciúmes” porque o marido
tinha outra, e depois que se separou “perdeu tudo”. Agora, estaria “velha, doente e
amargurada”. Continuava: “A vida é muito rápida, a gente tem que aproveitar!”, dizia,
numa espécie de pregação em favor da tolerância, mas deixando claro que isso era uma
espécie de negociação na qual mantinha seus privilégios. Sua última “lição”, antes que o
ônibus chegasse, foi esta: “Nenhum homem é santo!” A constatação, segundo dizia, era
resultado da observação do comportamento não só do marido, mas de um grupo que
incluía seu pai, seus irmãos, cunhados e filhos. O sentido da história era de que uma
mulher deveria ter força e paciência para não deixar o casamento acabar. Isso era
apresentado às outras mulheres como esperteza, astúcia, espécie de correspondente
feminino da “malandragem”, forjado como uma espécie de neutralização dos efeitos
morais e emocionais que pudessem derivar da infidelidade masculina e que, de outro
modo, participavam diretamente de sua naturalização. A justificativa prática enunciada
para este comportamento era: “não ser boba”, “não abrir mão de ‘uma vida boa’”.
Quando contei essa curiosa conversa a um casal de informantes, eles emitiram
seus comentários. Tânia
404
, a esposa, citou o caso de uma vizinha que sofreu com as
traições do marido, mas que perseverou: “Até hoje estão juntos”, me dizia. Relatou que,
dias antes, havia dito à vizinha: “Tu venceu, né?”, “Eu venci!”, respondeu a outra. Neste
caso, “vencer” significava não apenas uma vitória sobre as rivais como também ter
paciência e perseverança até que o marido “se aquietasse”, pela idade ou pela doença,
404
Nomes fictícios.
246
eventualmente por uma conversão religiosa, sem perder o conforto doméstico e sem
romper o laço conjugal. Mais do que uma visão do amor romântico, está em jogo uma
concepção “prática” do casamento, que, no entanto, não é menos complexa em relação
aos valores que mobiliza. Uma mulher que resiste a tudo - e “vence” - fortalece seu
próprio valor e reafirma sua honra feminina diante da comunidade e, principalmente,
das outras mulheres. O comentário do ex-mineiro Hélio era uma queixa de que, quando
o casal se separa, o marido é obrigado a dar pensão à ex-mulher. Achava que “pior
ainda” era dar pensão e “ela arrumar outro”, ficando ele a sustentar o “Ricardão”.
Observe-se que o termo “Ricardão” - usado para designar o “amante” - era mantido no
caso de uma separação, como a enunciar que, mesmo desfeito o laço conjugal, o ex-
marido seria um “corno retroativo”, e também um “otário”, se sustentasse a mulher.
Quando as referências diziam respeito a casais jovens, em geral os comentários
mostravam certa tolerância em relação a uma possível infidelidade feminina, vista como
resposta ao comportamento masculino. Embora pudesse haver a observação de que
“aquilo não era certo” ou a resignação de que “um faz e depois o outro faz”, era
considerado compreensível, principalmente por parte das mulheres. No entanto, pelo
menos um caso que me foi relatado de brigas de casal, o jovem marido havia batido na
mulher porque suspeitava que ela o traísse. Depois que a briga que foi parar na
delegacia, o casal se reconciliou. Um tio da moça se dizia constrangido: “Na nossa
família nunca teve essa falta de vergonha, de fazer escândalo e ir assim parar na
polícia”. No entanto, ele mesmo já havia batido na esposa por outras razões.
4.6 AS DISPUTAS POLÍTICAS
4.6.1 Acusações envolvendo a honra
Universo no qual a construção da honra tem um palco privilegiado, a política
405
local é uma das paixões que, sazonalmente, divide os moradores de Minas do Leão.
Durante o trabalho de campo, entre 2006 e 2007, pude acompanhar alguns destes
enfrentamentos. Neste período, o “tempo da política” (Palmeira, 2001), normalmente
marcando os meses que antecedem as eleições, dilatou-se em função das brigas
protagonizadas por prefeito e vice em programas de rádio cuja audiência tornou-se
disputada pelos moradores da cidade. Os dois homens se tornaram abertamente
adversários e protagonizaram embates ofendendo um a honra do outro. Com histórias de
405
Sobre a honra na política, ver, especialmente, Teixeira (1999).
247
vida distintas, representavam em suas trajetórias aspectos da formação econômica local.
O então prefeito, eleito pelo PP, Miguel Almeida, de pouco mais de 40 anos, filho de
um fazendeiro da localidade, formado em Veterinária, havia ingressado na política em
1996, elegendo-se vereador. Naquele pleito, seu sogro, descendente de poloneses, havia
concorrido à prefeitura, sem, no entanto, obter a eleição. O prefeito é oriundo de uma
família abastada, detentora de grandes propriedades de terra. Seu vice e, posteriormente,
oponente, José Carlos Freitas, apelidado de Negrinho, com cerca de 60 anos, foi mineiro
de subsolo como o pai e aposentou-se na mina depois de 15 anos de trabalho, tendo
ingressado como operário e alcançado a função de encarregado de turno. Pertencente à
numerosa família Freitas, Negrinho vinha já de uma longa carreira como “político”,
naquela época vinculado ao PMDB. Na Câmara de Vereadores, ele havia sido eleito
quatro vezes pelo PDT, mas rompeu com o partido, nas suas palavras, por
“desavenças”, por discordar da forma como a administração era conduzida.
Em janeiro de 2007, com a relação já rompida, prefeito e vice atacaram-se
mutuamente em espaços na Rádio Sobral, na cidade vizinha de Butiá, num programa
apresentado pelo assessor de imprensa da prefeitura de Minas do Leão. Durante algum
tempo, esse embate virulento tomou as rodas de conversas nas casas, nos bares e nas
ruas, com alguns dos moradores considerando o episódio “uma baixaria”, “uma
vergonha”, enquanto outros tomavam partido de um lado ou de outro. Naquele round
midiático, primeiro foi o vice, Negrinho, quem utilizou o espaço da rádio para criticar o
prefeito, manifestando sua mágoa por ter sido alijado do cargo de secretário de Obras da
administração.
406
Afirmava que o município poderia estar mais bem administrado se o
prefeito fosse “uma pessoa mais bem-intencionada, uma pessoa mais séria”, desferindo
aí um dos mais sérios ataques que seriam revidados pelo prefeito.
Infelizmente, o prefeito não carrega seriedade com ele, como pessoa que fala
muitas inverdades, não honra o que diz, não honra o que assina! (...) Eu acho
que o prefeito Miguel foi mau-caráter comigo, com as pessoas que me
apoiaram, porque (...) eu fui nas casas dos... das pessoas que não se
identificavam com o prefeito Miguel buscar voto pra nós ganhar a eleição.
Porque até então eu era enganado com ele. Eu pensava que ele era outro tipo
de pessoa. Infelizmente... peço até desculpas pra comunidade de Minas do
Leão porque o prefeito Miguel, além de não ter este bom senso de seriedade,
de não honrar o que ele fala, de não honrar o que ele assina, ele não considera
as pessoas, ele pisa por cima do que as pessoas fazem. Tanto que hoje eu pedi
esse espaço aqui, Cezar, pra provar uma mentira assim daquelas escancarada,
ridícula, que o próprio prefeito mente e o próprio prefeito se desmente.
406
Eu escutei na rádio primeiro a resposta do prefeito e depois obtive uma cópia da gravação do primeiro
programa das mãos do vice.
248
Neste trecho, pode-se entrever o tom das críticas endereçadas ao prefeito, que se
alicerçam em valores tais como a “seriedade”, a “verdade”, o “caráter”, a importância
de um homem “honrar” sua palavra e sua assinatura. Na continuidade do programa,
Negrinho reclamou que sua presença, como vice-prefeito, não estaria mais sendo
registrada nos eventos organizados pela prefeitura. Mencionava que até as
correspondências endereçadas a ele demoravam a ser entregues, entendendo isso como
desconsideração, como não-reconhecimento que “desmerecia” seu peso político na
coligação. Destacava sua trajetória como trabalhador, pertencente a uma família mineira
da localidade, e os valores que havia herdado do progenitor.
Porque eu sou um homem da verdade! A comunidade da Mina do Leão sabe.
Vai fazer 50 anos que eu moro em Mina do Leão, nasci de berço pobre, o
meu pai era mineiro. Agora, [ele] me deixou uma grande herança: ser sério,
honrar o que digo e honrar o que eu assino. Esta herança o meu pai me deixou
pra mim, berço de ouro não. Então, eu acho importante que as pessoas sejam
respeitadas e valorizadas, independentemente das diferenças ideologicamente,
da política partidária. (...) Se não se afinar com o prefeito, baila. Esta é a
realidade!
Ao salientar a herança paterna da “honra” – e não do “berço de ouro” – visava
atingir o pertencimento de classe do prefeito, como dito, oriundo de uma família com
posses. Uma das acusações que Negrinho fazia ao prefeito era de estar inaugurando
duas vezes a mesma obra para buscar se promover.
Isso eu não vou admitir, nem que meu pai existisse, vir num meio de
comunicação (...) falar inverdades, porque ele [o prefeito] tem o dom da
caneta, ele age pela caneta, e eu vou agir sempre pela minha razão e com as
provas. (...) Só que o prefeito Miguel, ele não tem muita memória, não sei o
que ele tem que ele não recorda esse tipo de coisa. Ou é desinformado
mesmo. Então, ele falta com a verdade... Porque eu votei nele, é verdade, eu
não posso admitir que ele faça isso, que ele vai querer me entregar uma obra
todos os anos a mesma coisa. (...) Ô prefeito, me perdoa, mas isso é ridículo,
isso é imoral, é feio! (...) A comunidade da Mina do Leão me conhece
perfeitamente e sabe que não minto, posso ter até... ter até algum defeito, mas
mentir não. Eu acho muito ridículo o camarada querer dar beijo com a boca
dos outros, ou virar o arranque com a bateria dos outros, como é o caso do
prefeito de Minas do Leão. (...).
Mais de uma vez, ele adotaria a expressão “ter o dom da caneta” ou “o poder
da caneta”, referindo-se ao poder de decisão do prefeito como algo meramente
institucional, que contrastaria com “razão” e “as provas” de que ele mesmo seria
portador. Em seu discurso, emergiam noções do que seria “imoral”, “feio” ou “ridículo”
para o ocupante daquele cargo, adotando a expressão “dar beijo com a boca dos outros”
e a apresentação de si mesmo como alguém que “não mente”, do que a comunidade
seria testemunha pela longa convivência. Outra questão apontada por ele referia-se a
249
uma omissão do prefeito, pertencente ao PP, em mencionar que o programa de
habitações populares - na época, relativo a 54 casas - recebia financiamento da Caixa
Econômica Federal, dentro de um projeto lançado pelo governo Lula.
Eu renuncio ao meu mandato de vice-prefeito se esse dinheiro não é como eu
tô dizendo! Agora, o prefeito, se for sério, também deveria vir aqui e mostrar
esse lado da moeda que ele tenta esconder. Isso é muito feio, usar as pessoas,
usar recursos públicos, seja ele de onde for. (...) Outra coisa, prefeito Miguel,
eu não sou contra, veja só o que eu vou dizer, eu não sou contra, eu nunca
critiquei, nem no tempo do PDT e nem agora. Agora, eu nunca disse em
público e em palanque que eu era contra o nepotismo, e o prefeito Miguel
dizia publicamente que da família dele ninguém precisava trabalhar na
prefeitura (...). E já trabalhou a esposa dele, parente da esposa dele, cunhada
dele está trabalhando.
No tom de aposta ou desafio que cotidianamente se configura como um dos
jogos de linguagem nesta localidade, Negrinho exibia seus argumentos e sua ousadia
colocando em jogo seu mandato de vice-prefeito. Na seqüência de sua fala, expunha o
que considerava incoerências entre o discurso de seu oponente contra o nepotismo e as
práticas da administração. Num contexto em que as relações pessoais e familiares
atravessam fortemente todas as instâncias da vida social, o vice-prefeito apresenta-se
como desinteressado no tema ao enunciar que ele mesmo “não é contra” essas práticas.
Tantas coisas que têm acontecido e tantas injustiças que este prefeito tem
cometido comigo... Ele me excluiu. O que eu tenho dito, ele tem o poder da
caneta, mas eu tenho o meu trabalho, que é incontestável em Minas do Leão:
eu tenho quatro mandatos de vereador, este de vice-prefeito, e
independentemente, sou um camarada insistente, eu luto pelos ideais de um
povo, e pra mim muito me honra o que eu fiz por Minas do Leão, o que eu
poderei fazer.
(...)
Prefeito Miguel, eu vou lhe dizer de público, pro senhor e pra comunidade de
Minas do Leão: a comunidade da Mina do Leão tá muito acima do senhor e
muito acima de mim! Se o senhor fosse uma pessoa digna, o senhor era pra
me respeitar, pra me valorizar (...) O senhor tem uma parte boa também.
Agora, o seu maior defeito é querer se apoderar de tudo o que os outros fazem
e denegrir aquilo que as pessoas fazem, inclusive da votação que eu fiz, que
eu levei pro senhor.
Como forma de exaltar o seu valor e sua dignidade em meio a um discurso
com tons de vitimização, de quem se sente alijado e excluído da administração
municipal, o vice-prefeito destacava o seu capital político, relativo a seus mandatos
como vereador, como vice, e nas lutas “pelos ideais de um povo”, como porta-voz dos
anseios da comunidade. As constantes referências à “honra”, ao “respeito”, à
“dignidade” que pontuam a sua manifestação apresentam-no como o pólo em que esses
valores estariam presentes em sua positividade, o que não ocorreria com seu opositor.
250
Na continuidade de seu depoimento, acusava seu oponente de ser “centralizador do
poder” e “maldoso”. Afirmava que ele “infernizava” e “manipulava” a Câmara de
Vereadores. Outra questão mencionada pelo vice era o fato de que, na prefeitura, estaria
sendo “aberta sindicância por qualquer coisinha”, mencionando que o desaparecimento
de pneus e de uma bateria, por exemplo, havia provocado a abertura de sindicâncias,
inclusive numa situação causando sério impacto sobre uma pessoa envolvida.
407
Negrinho pedia então esclarecimentos se o prefeito já havia ressarcido a prefeitura do
valor da máquina fotográfica que teria sido usada por ele e extraviada durante viagem
ao Rio de Janeiro: “Eu não sei se o prefeito ressarciu ou não os cofres do município e
pra prefeito também cabe sindicância”. Ele referia-se, por outro lado, ao episódio de
uma ex-secretária, Regina, que foi desligada do governo e que teria sido “usada”.
Uma criatura excelente, uma figura magnífica, e o senhor fez o que fez pra
ela! Comigo o senhor não fez igual que o senhor sabe que a coisa é um
pouquinho diferente. Agora, eu não fico calado pro senhor (...). O senhor tem
que me respeitar, eu sou vice-prefeito, viu prefeito? O senhor tem que me
engolir!
Na seqüência, o prefeito, Miguel Almeida, e o presidente da Câmara de
Vereadores, Paulo Freitas (pertencente à mesma família do vice), foram à rádio
responder às acusações e revidar as críticas. Os argumentos do prefeito visavam
desmoralizar o oponente.
Tivemos o nosso nome caluniado por um cidadão desequilibrado, que para
nossa infelicidade teremos que engolir ele até 31 de dezembro de 2008! A
própria bancada do PDT já o taxou assim: tiveram que chamar a Brigada
Militar para conter o acesso de fúria do vereador [Negrinho] na Câmara.
Esses acessos furiosos... A comunidade conhece esses desvios de conduta que
ele possui. Até parte na polícia! Até já é fato conhecido. Peço desculpas a
toda comunidade de Minas do Leão. Meu nome foi machucado, caluniado,
venho aqui esclarecer impropérios, calúnias, mau-caratismo. Todos sabem do
meu passado e da minha família. Eu tive educação, não só na escola, mas na
família, no dia-a-dia. Pela honra da minha família, esse assunto já está sendo
encaminhado à Justiça, para provar mentiras e calúnias. Para ele mostrar qual
é o papel que eu assinei e que eu não cumpri até hoje!
A noção de “honra” pessoal e familiar, que teria sido ferida, caluniada, por
“mentiras” de um “cidadão desequilibrado” está presente em toda a defesa do prefeito e
no contra-ataque que ele desfere ao seu vice. De um lado, o prefeito evoca sua educação
– “não apenas na escola, mas na família” -, seu próprio passado e a reputação familiar
para fazer frente aos ataques sofridos. De outro, qualifica o vice como alguém cuja fama
seria problemática, dado a “desvios de conduta” e a acessos de fúria, que já teriam ido
407
Ele se refere ao caso de suicídio mencionado antes.
251
parar na delegacia de polícia e que seriam conhecidos pelos vereadores e pela
comunidade. Miguel Almeida relatava que quando foi fechada a coligação com o
ingresso de Negrinho como vice, este pediu para ser o secretário de Obras. “A maioria
não queria esse cidadão na secretaria de Obras”, mas, mesmo assim, o prefeito teria
concordado em designar-lhe a pasta. Depois, devido a discordâncias, exonerou-o da
função. O prefeito atribuía a reação ruidosa do vice – o “seu desespero” - ao fato de que
ele estaria vendo as obras acontecerem sem a sua participação.
Prefeito - Eu tirei aqueles que deveriam afundar o barco. Vice-prefeito ele vai
continuar a ser, mas não terá mais lugar. Ele conseguiu ser o pior secretário,
pela prepotência, por pisar nos funcionários. Chegou a chamar capataz para a
briga! Ele acha que é o melhor! É uma doença crônica: vejo que não tem
cura! Ele saiu pela forma antiética, pela má conduta.
Vereador Paulo Freitas – O prefeito está coberto de razão quando diz que é
um cidadão desequilibrado. O senhor vice, o senhor Negrinho, que fala que a
Câmara é manipulada pelo prefeito, é manipulada pelos bons projetos,
implementados pelo diálogo, coisa que ele não tem. (...) A comunidade
conhece ele, conhece as mentiras, não tem lugar mais para isso. Onde esse
cidadão chega, as pessoas estão num velório... escutam ele denegrindo a
administração do prefeito. Ele é vice e é pago para fazer alguma coisa.
Prefeito – Outra questão que mostra o mau-caratismo é contra a professora
Regina, mãe do vereador Rodrigo. Ele disse que não era a professora Regina.
Claro que não é! Ela tem educação! Eu digo pra ele: eu também não sou o
Zoely [ex-prefeito do PDT]! Por isso que ele está agarrado... mas não tem
mais lugar pra ele neste barco. Hoje vejo as melhorias na secretaria de Obras.
Estou muito satisfeito com a mudança. (...) Ele, com maldade, está querendo
jogar a professora Regina contra mim. Não se fazia mais reunião quando ele
estava como secretário. Ele sabia tudo: de saúde, de educação... Ele queria ser
um super secretário. (...)
A desqualificação das denúncias feitas pelo vice oscila entre a indicação da
existência de um problema moral (como as menções ao “desvio de conduta”, “má
conduta”, postura “antiética”, “mau-caratismo”) e de um problema de saúde mental
(“desequilibrado”, “doença crônica”). Contudo, outros ataques pintam o vice-prefeito
como alguém “prepotente” e arrogante – como alguém que “sabia tudo” e com quem
não seria possível dialogar. O sentimento de ter sido traído aparece em ambas as falas.
O prefeito dizia que o vice era um homem que “dá tapinha nas costas e te esfaqueia”.
Ele falava “se eu fosse prefeito...”. Realmente, não tem o poder da caneta,
porque para isso precisa de duas coisas que tu não tem: voto e coragem! São
duas coisas que te faltam! Comigo tu não mandou e não vai mandar! Não tem
vez no nosso governo! Digo pra ele: “Concorre! Mostra o tamanho que tu
tem, que é bem pequenininho, já te digo!” (...) Tem que parar de fazer
trabalho de baixo nível, rasteiro. (...) Ele disse impropérios sobre a Ponte da
Capivara. Ele era contra fazer o aterro. Enquanto ele era secretário, eu não
conseguia fazer aquela obra. Botamos nos Informativo (jornal da prefeitura)
porque foi tudo feito com recursos municipais. (...) Nós inauguramos neste
ano porque ficou pronto neste ano. Fizemos a obra porque tínhamos
252
compromisso com a Granjinha. A obra foi inaugurada porque foi terminada
neste ano. (...) Ele quer que fique tudo parado pra ele criticar.
(...)
Ele inaugurou uma lâmpada... e agora eu não vou inaugurar uma ponte?! Ele
representa e encarna bem os 12 anos de atraso que Minas do Leão teve
[refere-se à gestão do PDT]. Ele se utilizou e se grudou como carrapato, ele
quer o poder. (...) Nas campanhas eleitorais, eu tinha vergonha de ouvir o que
ele falava sobre o Zoely [ex-prefeito], agora parece que tão churrasqueando...
E ele está falando que vai ao PT. Parece que a máscara caiu. (...) Inveja
doentia que esse cidadão desequilibrado... (...) Ele não enxerga porque a visão
dele é muito curta.
Outros aspectos simbólicos enfatizados pelo prefeito estão relacionados ao
revide em torno da expressão “o poder da caneta”, sugerindo que, para o uso de tal
poder, faltaria a seu oponente tanto a aprovação pública, o reconhecimento da
comunidade, na forma de “votos”, como um atributo pessoal considerado fundamental
na honra masculina local, a “coragem”. Nesta assertiva, resume dois aspectos altamente
valorizados para um político na localidade, que se configura numa espécie de “pequena
honra da política”. Cada qual, como se viu, a conjuga a seu modo, ressaltando traços de
uma honra tradicional, em torno da “palavra dada”, da “verdade”, do exemplo paterno
ou de uma reputação de cidadão e pai de família exemplar. Na evocação da coragem,
trata-se de uma qualidade pessoal que está presente ou inexistente. Na questão do voto,
está em jogo a reputação do sujeito (onde se inclui a própria existência ou não da
coragem) e o julgamento público se o candidato é merecedor de crédito e de confiança.
A metáfora do “carrapato”, adotada pelo prefeito, remete alguém que se nutre da força
ou do prestígio alheio. Miguel Almeida lançava seu próprio desafio ao vice: que o outro
concorresse, que lançasse sua candidatura no pleito seguinte, apostando, porém, que o
resultado seria pífio. Ou seja, exortava que Negrinho tivesse a coragem de concorrer,
provando assim se dispunha de votos. Numa crítica que perdura durante a disputa
eleitoral - que, de fato, ocorreria entre ambos, nas eleições municipais de 2008 - o
prefeito situava a posição do adversário no mesmo pólo das antigas administrações do
PDT, remetendo-o a um passado que qualifica como “um atraso” na vida do município.
Na resposta a outra crítica, depois detalhar o projeto de habitação popular e a
forma de obtenção dos recursos, Miguel Almeida voltou à carga contra o vice,
afirmando estranhar que, em 2001 e 2002 - quando Negrinho integrava a gestão do PDT
e “o barco estava afundando, mas ele ainda não tinha pulado fora” -, aquela
administração não tivesse construído “uma casa sequer”. Questionava se teria sido falta
de interesse ou de dinheiro, declarando que, mais provavelmente, seria devido “à
253
incompetência” de seu oponente e daquela administração. Ao finalizar sua fala, o
prefeito voltou a falar das ofensas sofridas:
Me considero honrado, excelente pai de família e cidadão honrado. Hoje aqui
é o desabafo do prefeito com tanta calúnia. A comunidade que me perdoe, me
perdoe mesmo, isso não é comum na minha pessoa. A nossa resposta será
fazer mais trabalho e ver ele se corroer de inveja! (...) Tu tem muito que
aprender te candidatando! A comunidade é sábia, se achar que é ele, vai botar
ele. Se achar que ele é um remédio vencido, vai colocar no lugar que merece!
O fecho de sua fala nos remete à centralidade da importância social de ser
visto como alguém “honrado” tanto no âmbito familiar como na vida pública. A
imagem de uma família unida estava presente, por exemplo, na mensagem de Natal que
o prefeito havia enviado aos moradores da cidade em dezembro de 2007. A mensagem
natalina era ilustrada por uma foto dele, acompanhado da mulher e das duas filhas,
todos sorridentes. Neste conflito com o vice, ao desculpar-se com a comunidade pela
virulência do debate – como o faz também Negrinho, cada qual atribuindo ao adversário
a responsabilidade pelo tom das críticas – ele qualifica suas próprias manifestações
como “um desabafo”. Nas referências e metáforas médicas adotadas pelo prefeito –
veterinário de formação, como foi dito -, Negrinho passava de “doente” ou
“desequilibrado” a possível um “remédio vencido”, sugerindo que esta poderia ser a
avaliação dos eleitores em futura disputa eleitoral. No embate com seu vice, o prefeito
destacava o apoio recebido do vereador que o acompanhava, salientando que, ainda que
não tivesse recebido o seu voto nas eleições de 2006, este havia se tornado “um
parceiro”. Um dos aspectos que chamava a atenção nesta aliança era o fato de que Paulo
Freitas não só era parente de Negrinho como também já tinha sido seu companheiro de
partido no PDT. O aspecto do parentesco reforçava o dito de que “os Freitas são unidos
no futebol e na doença, mas desunidos na política”.
Na família Freitas, as opiniões se dividiram. Havia os partidários de um lado e
de outro. A destemperança verbal de Negrinho, por vezes, lhe causava certas perdas
políticas na família. Antes desse episódio, um ex-mineiro que era seu parente me
contava que deixou de votar nele por causa de uma frase dita por Negrinho,
desprestigiando os familiares para elogiar um novo aliado: “Um caminhão de Freitas
não vale um Fulano [citou o nome de um fazendeiro da localidade]!” Meu interlocutor
resumiu assim seu sentimento: “Se meu voto não vale nada, não voto mais nele! Me deu
254
nojo... Te agarra então com esse véio! Vai te eleger com um voto só!”
408
Com todas as
diferenças pessoais e políticas em jogo, uma característica comum estava mantida nessa
herança familiar: esses homens não aceitavam levar “desaforo” para casa.
4.6.2 Do paternalismo, da “ajuda” e das relações pessoais
As duas vitórias consecutivas do representante do PP, Miguel Almeida,
romperam com uma série de três administrações do PDT desde a emancipação do
município, em 1992. Naquele período anterior, os eleitos tinham feito carreira como
funcionários das companhias de mineração e haviam obtido forte popularidade nas
equipes de futebol ligadas às minas: Zoely Oliveira, ex-almoxarife da CRM, ex-capitão
do Atlético Mineiro FC, havia sido prefeito por duas vezes, na primeira e na terceira
gestão do PDT; Idelberto Machado, o “Beto Pedalada” (apelido que ganhou no futebol
devido a uma jogada inventada por ele como jogador do Atlético), ex-funcionário da
Copelmi, foi prefeito na segunda gestão da legenda. Depois destes anos, de uma franca
maioria – respaldada pela forte tradição local em torno do brizolismo -, os pedetistas
foram se tornando minoria também na Câmara de Vereadores. Seus opositores
criticavam o reforço que tais administrações teriam dado à “cultura paternalista” na
localidade, inaugurada pela companhia de carvão, a CRM. Em uma entrevista que me
concedeu, no final de 2006, o prefeito Miguel Almeida afirmava que uma das
dificuldades a serem enfrentadas por sua gestão era essa visão paternalista de boa parte
da população, que esperava benesses do poder público, alimentando a crença de que a
obtenção de que o êxito profissional depende de “cunhas” mais do que da dedicação e
do empenho da pessoa. Situação e oposição concordavam que tal mentalidade fosse
problemática e que sua origem estaria no sistema adotado pelas companhias de carvão,
no entanto, o cultivo das relações pessoais na política local parecia ter-se interiorizado
de tal forma que se tornou inseparável do modo de “fazer política”.
O ex-prefeito Zoely de Oliveira, vinculado ao PDT, contra-atacava,
mencionando que a gestão de seu adversário, Miguel Almeida, tinha adotado uma
política de “fazer média” com os servidores, inchando a máquina administrativa: em sua
época eram 60 CCs (cargos em confiança), naquela gestão eram 80 CCs.
Eles criticavam porque nós tínhamos gente da família [no govermo]. Ele
trouxe tudo isso e muito mais ainda... E passou então a fazer uma mídia muito
grande nos jornais. (...) Bom, hoje ele está respondendo um processo de um
jornal que quase só elogiava a administração de Minas do Leão. (...) É um
408
Acerca do significado do voto e seu caráter de “adesão”, que envolve a solidariedade familiar, laços de
parentesco, de amizade e vizinhança, ver Palmeira (1992, especialmente p.27).
255
processo de compra de votos. Isso caracteriza o abuso do poder econômico
tentando colocar na cabeça das pessoas que realmente mudou tudo aqui. (...)
A função dele [do prefeito] foi tão política (...) que nós elegemos quatro
vereadores e três se mandaram com secretarias, com promessas de candidato
a vice... e sempre com benefícios para aqueles que saíram.
Ele também criticava a cultura da “dependência”, que teria sido herdada das
companhias carboníferas. Seu depoimento trouxe à tona um tema tabu ao mencionar
que “a maioria [dos mineiros] ajudava o pessoal da revolução de 1964 pensando nos
benefícios”. Ou seja, expunha que a colaboração com prepostos da empresa e com
militares que estavam no governo acabava sendo uma estratégia de sobrevivência na
qual muitos trabalhadores se agarravam para obter benefícios, tais como a garantia de
emprego ou a possibilidade de promoção profissional. Nos termos de Zoely, “como
dependiam do emprego, muitos trabalhadores se submetiam a tudo”. É um tema pouco
explorado nas conversas. Nas entrevistas que fiz na localidade, apenas um dos relatos de
ex-mineiros fazia elogios ao governo militar. Ainda assim, meu interlocutor pediu que
eu “apagasse” aquele trecho da entrevista, temeroso de que suas opiniões caíssem em
domínio público. Outro aspecto relevante que aparece na fala do ex-prefeito é o relativo
às “ajudas”, entendidas por ele como formas de solidariedade e que não estariam
vinculadas diretamente a uma função política, mas que se tornam parte de uma relação
numa comunidade que é vista como “uma família”, na qual alguns têm mais condições
financeiras do que outros, e que se tornaria assim uma espécie de obrigação. Algo que
chama a atenção em seu relato é a forma como, segundo ele, quem pede “ajuda” “se
submete”, “se humilha” para suprir necessidades imediatas. “Submeter-se” também é o
verbo utilizado por ele ao referir à sujeição e obediência de trabalhadores no regime
militar. Nas duas situações, abre-se mão do orgulho, da dignidade pessoal, em troca de
favores, seja o próprio emprego ou bens e serviços essenciais.
A primeira vez em que ouvi falar dos atendimentos que o prefeito Miguel
Almeida prestava diretamente à população foi pelo comentário de uma apoiadora de sua
gestão. Era setembro de 2006 e fazia pouco mais de uma semana que eu estava morando
em Minas do Leão. Ela me contava que o prefeito mantinha um programa no qual ele
atendia pessoalmente aos pedidos. As demandas passavam antes por uma triagem,
realizada por funcionários, antes de chegar ao prefeito e secretários, que tentavam
encontrar uma solução. Compareci num desses atendimentos e vi que uma senhora,
Dona Ceni, moradora do Recreio, saiu desencantada: “Só falam com a gente pra pedir
voto... depois, não querem nem saber!”, desabafou. Ela me contou que foi até lá pedir
256
um emprego para o filho, já que ele tinha ajudado na campanha eleitoral. Dias depois,
voltei a encontrá-la na prefeitura. A funcionária sugeriu que ela falasse com o secretário
da Ação Social. A mulher insistiu: “Eu quero falar com o Miguel! Ele prometeu dar um
emprego pro meu filho!” Posteriormente, obtive uma sistematização das demandas
relativas a 2005 e 2006. No quadro abaixo, pode-se verificar que os principais pedidos
estão relacionados a emprego, materiais de construção, dinheiro, alimentos ou
medicamentos, pagamento de água ou de luz. Há ainda expressivo número de
atendimentos sob a rubrica “Particular”, que não se enquadram nestes casos.
Demandas pessoais ao
prefeito e secretários
2005 2006
Totais 472 pessoas
900 atendimentos
387 pessoas
636 atendimentos
Emprego/estágio 254 127
Particular 187 94
Materiais de construção 103 100
Passagens Butiá-POA 70 30
Dinheiro 68 42
Casa 58 51
Pagamento de água/luz 40 31
Medicamentos 31 17
Problemas com terreno 28 17
Encaminhamentos a
consultas/exames/cirurgias
17 7
Alimentos 15 54
Poste de luz completo 16 13
Advogado 5 5
Óculos 2 ---
Veículos – Condução 1 11
Problemas com esgoto 3 ----
Abertura de rua/ligação de
água
2 ---
Gás --- 12
Mudança --- 10
Passagens Leão-Butiá --- 9
Pedreiro --- 4
Curso ---- 2
257
No Relatório Anual de Atendimento ao Público de 2005, havia o nome das
pessoas que mais compareceram para fazer pedidos: Vera Rose e Roberto Carlos tinham
sido atendidos 13 vezes durante o ano. Vera Rose era uma personagem conhecida na
comunidade. Apreciadora da política local, costumava freqüentar as sessões da Câmara
de Vereadores, circulando com desenvoltura nestes espaços. Apresentava-se sem
formalidades para acompanhar as discussões dos vereadores: numa das ocasiões, estava
vestindo uma bermuda de lycra e uma camiseta baby look, um pouco pequena para seu
corpo avantajado, mas isso não lhe causava constrangimento. Ela tinha sempre um
sorriso no rosto, que salientava os dentes um pouco projetados à frente. Antes apoiadora
do PDT, Vera Rose havia rompido com o partido e tornara-se uma defensora
apaixonada da administração de Miguel Almeida, a quem ela se referia como “Miguel”
ou “Miguelzinho”. Tinha 42 anos e havia feito seu título eleitoral dois anos antes.
Contava que ficou 14 anos no PDT, mas os membros daquele partido que “nunca lhe
deram valor”, embora tivesse obtido daquela administração a casa: “Me deram aquela
casa de madeira, tá tudo podre, fizeram mal feito”.
Vera Rose – Eu troquei de partido agora depois que entrou o Miguel. Aí eu
troquei de partido. Achei melhor votar pro Miguel e tô muito feliz com ele!
Eu tô muito feliz com ele!
- E agora vai ganhar outra casa?
Vera Rose – Agora vou ganhar outra casa, mas vai ser uma casa de material
(alvenaria), com o banheiro bem feitinho, tudo bem arrumadinho.
- E eles tinham prometido pra ti?
Vera – Ele prometeu pra mim e tá cumprindo.
- Se tu votasse [neles] eles iam dar a casa?
Vera Rose – Não, ele perguntou pra mim o que eu queria. Aí como eu tenho
problema no braço, eu disse assim: “Eu quero uma casinha melhorzinha, que
eu tenho tanto um sonho de ter uma casinha de material. Aí ele pegou e me
perguntou se eu queria serviço ou casa. Eu achei melhor, como eu tenho
problema no braço, eu achei melhor a casa. Ao menos eu moro com minha
filha, com meus netos junto.
Minha interlocutora dizia que seus antigos aliados, do PDT, passaram a
“debochar” dela, dizendo que ela não iria receber a casa prometida pelo prefeito.
Naquele período, ela também estava recebendo mensalmente um “ranchinho” da
prefeitura: uma espécie de cesta básica com feijão, arroz, azeite, açúcar, sal e sabão.
Considerando-se “apaixonada por política”, dizia “estar louca” para que os candidatos
começassem novamente “a brigar”. Este era o termo usado por ela para definir também
a sua militância: “Eu brigo muito. Eu brigo muito por causa da política. Agora que eu tô
apegada com o Miguel, eu brigo”. Em sessões da Câmara de Vereadores, às quais
258
assisti, não raro tomava partido de um dos vereadores e saia “xingando” os adversários.
Não raro, interrompia o parlamentar adversário: “Tu não sabe nada! Todos esses anos
vocês ficaram aí e não arrumaram nada, nem a minha casa... nunca me deram valor!”
Para ela, é com essas “ajudas” – e a dimensão que tomam – que se mede o próprio
reconhecimento por parte dos políticos. Parece-me que, para além de sentido prático de
obter melhores condições de vida, há algo de uma “honra pessoal” que a levava a
clamar que não tinha recebido o devido valor da outra corrente política. Seus apoios aos
vereadores estavam relacionados à gratidão de ter sido “ajudada”. Recentemente, havia
feito uma “promessa” para que seu candidato a prefeito ganhasse a eleição: caminhou a
pé, descalça, os dez quilômetros que separam Minas do Leão de Butiá.
Ademar, funcionário da CRM e um dos fundadores do PT local, apontava que
uma das dificuldades para o partido crescer no município era justamente o fato de que
boa parte da população havia se habituado à “venda de voto”, mesmo entre “gente de
bem” e com maior nível de instrução. Ele evidenciava as razões pelas quais a política
local era marcada pelo clientelismo:
É uma região com muitas carências, em que as pessoas não têm plano de
saúde, não há emprego para os jovens e há então essa tradição de troca de
favores. Quando a gente visita as casas, ouve a pergunta: “No que tu pode me
ajudar?” Respondemos: “Quando a gente se eleger, vamos trabalhar para
aumentar os empregos”. Eles dizem: “Ah, isso não me adianta!” Alguns
dizem: “Tava esperando por vocês! Porque eu não vendo meu voto!” E
depois: “Mas entra aqui pra ver a minha casinha, tá vendo essa parede podre?
Preciso que me dê uma mão...”
Ele avaliava que “sem uma mudança de mentalidade” as perspectivas de eleger
alguém por seu partido eram remotas na localidade. Mencionava que principalmente os
moradores mais velhos haviam se acostumado a negociar seu voto por favores.
Acreditava assim que a votação que o partido acabava obtendo era principalmente por
parte dos jovens. Explicava-me que, para muitos habitantes, há a crença de que fornecer
uma instalação de banheiro, por exemplo, seria uma “obrigação dos políticos”; outros
esperavam, no período eleitoral, “uma ajudinha” com as passagens, de forma que cada
família tinha suas próprias expectativas do que poderia obter em troca do voto.
Filiado havia 12 anos ao PDT – opção à qual que, segundo me contava, acabou
aderindo por influência de um diretor da CRM que era “muito político” -, o ex-mineiro
Luiz Marino me dizia que considerava a “ajuda” uma coisa “muito errada”. Em sua
opinião, o emprego “era pra ser respeitado”, independentemente do partido. “Se tem
vaga, chega [o candidato à vaga] de que lado for, eles [os contrários] também são
259
gente!” Entretanto, na prática, testemunhava que quem recebe o emprego é quem vota
do lado do poder: “Há muito dessa parte por aqui, é um direito torto”. Contrariando o
costume local de “pedir ajuda”, assegurava que sua família nunca havia “pedido nada
pra ninguém”. Sua mulher questionava: “Por que só na época da política que a pessoa
precisa?” O mineiro dizia uma injustiça era que ele, um trabalhador, nunca conseguiu
uma bolsa de estudos para a filha, mas os empresários obtinham tais vantagens.
Entre muitos moradores da localidade, entretanto, havia certa naturalização do
“pedido de ajuda” aos políticos. Mesmo quem, já tendo ocupado cargo público,
experimentando a posição do outro lado, dizia entender que a situação de muitos
habitantes da localidade era “apertada”. Desta forma, avaliava, “quem não gosta de ter
um ranchinho
409
, cimento ou tijolo para reformar a casa?” A seu ver, entretanto, depois
da ajuda recebida, deveria haver uma fidelidade de quem recebeu o benefício. “Tem que
haver a consciência de que, se foi apoiado, tem que votar naquele [candidato]”. Uma
discussão sobre “ética” – que, neste contexto, traduz certa noção de honra - que ouvi em
algumas famílias dizia respeito a esse aspecto. Alguns consideravam que, como a oferta
de “ajuda” em troca de votos não era uma coisa lícita, uma vez recebido o benefício –
em bens, materiais de construção, dinheiro ou favores –, ainda que assegurassem
verbalmente ao político o seu apoio, não se sentiam interiormente compromissados com
aquela candidatura e poderiam votar em outro nome. Outros, mais afeitos a valores
tradicionais, defendiam que, uma vez “a palavra dada”, era preciso cumpri-la. Esse
aspecto já foi observado por Palmeira (1992), acerca da “honra pessoal” embutida na
palavra empenhada que pode fazer com que o eleitor vote “naturalmente” no doador.
410
Era neste sentido a crítica que Aristides
411
, ex-mineiro de seus 65 anos, fazia a
um de seus filhos, que, aceitando a “ajuda” de um candidato, votou em outro. Muitas
vezes, Aristides chegava para o candidato, geralmente um parente, e dizia: “Vou votar
em ti, mas não quero nada [em troca]!” Na maior parte das vezes, eram os candidatos,
principalmente se tivessem laços de parentesco, que vinham pedir o seu voto. Se fosse o
caso, ele confirmava seu apoio, mas não garantia que toda a família fosse votar. “Aqui
em casa, ninguém é do mesmo partido. Quando meu pai existia, ele era partidário, então
a gente votava no mesmo candidato do pai”, explicava o ex-mineiro. Naquela época, o
respeito à autoridade paterna se fundia com a fidelidade política ao candidato escolhido
409
Compra de mantimentos de necessidade básica; espécie de “cesta básica”.
410
A este propósito, ver também Palmeira, 2006b, p. 143.
411
Nome fictício.
260
pelo progenitor. Nos tempos atuais, vigora o dito de que, na política, “cada cabeça é
uma sentença”, mesmo em famílias que mantém fortes laços e nas quais a hierarquia
doméstica está mantida.
412
Sua esposa destacava que o melhor era não criar polêmicas
com ninguém: “A gente precisa de todo mundo”. O ex-mineiro lembrava-se que, numa
ocasião, um candidato que era seu parente fez uma oferta para que ele transmitisse à
filha e ao genro: “Fulano disse que, se vocês votarem nele, ganham três sacos de
cimento”. Meu interlocutor entendia que, quando a pessoa aceita o trato, precisa
cumprir a sua parte. Não concordava assim com o que um dos filhos havia feito, “de
pegar e não votar”, porque isso, a seu ver, é “uma sujeira”. Estranhava também que este
filho tivesse votado num candidato “que não deu nada pra ele”, evidenciando uma
naturalização da lógica. A complexidade de elementos nos mostra como os valores da
honra tradicional combinam-se às práticas voltadas a insurgências da vida cotidiana,
onde as “ajudas” figuram inerentes às relações forjadas na época da política.
Filho de um ex-mineiro da família Freitas Flores, que era meu vizinho na
localidade, Serlon, de 39 anos, vivia a instabilidade que marcava sua geração - e as
posteriores - em relação ao emprego, dividindo-se entre temporadas de trabalho nas
fazendas locais e outras como operário em diversos setores. Tendo cursado até a 5ª série
do ensino fundamental, fazia planos de voltar a estudar, mas os deslocamentos em busca
de trabalho pelas cidades da região não permitiam que realizasse esse projeto. Mesmo
enfrentando dificuldades na vida profissional, criticava a “ajuda” de políticos para a
obtenção de emprego, explicando que normalmente esses benefícios eram trocados por
votos: “A gente vira objeto de troca!”, reclamava. Contava-me ter sabido que, em
função de sua simpatia partidária, seu nome havia figurado numa lista para obtenção de
uma vaga como operário numa fábrica que estava se instalando no município. Era um
privilégio do qual ele discordava. Volta e meia, quando estava trabalhando, os
conhecidos lhe perguntavam: “Quem é que conseguiu emprego pra ti?” Ele respondia:
“Ninguém, eu sou competente, por isso que estou trabalhando!”
4.6.3 Das aventuras eleitorais
Os relatos de alguns interlocutores sobre as aventuras do “tempo da política”
chegam a ser cinematográficos, especialmente quando se tratava de tentar flagrar, na
calada da noite, a entrega de “ranchos” ou de cimento distribuídos pelos comitês
412
Palmeira (1992) destacava a multiplicidade de fatores que influenciam na “adesão” do eleitor. Segundo
ele, a “lealdade política” ou a “lealdade do voto” não implica necessariamente em ligações familiares ou
vínculos a um partido, mas está relacionada a um “compromisso pessoal, com favores devidos a uma
determinada pessoa, em determinadas circunstâncias” (1992, p.28).
261
eleitorais adversários em troca de votos para a população mais pobre. Um de meus
interlocutores, Alexandre
413
, me contava, em janeiro de 2007, um episódio que ele havia
vivenciado nas eleições municipais de 2004. Naquela época, ele e um amigo, apoiadores
do candidato do PP, Miguel Almeida, atravessaram a mata, em meio à escuridão, para
observarem, escondidos, o comitê do partido adversário, o PDT. O objetivo era flagrar
uma “compra de votos” e denunciar à polícia – essas práticas, no entanto, não me
pareciam exclusivas de um ou de outro partido, ou seja, tanto a troca de votos por bens
ou serviços como as denúncias sobre os adversários. Apesar de estarem ocultos, os dois
rapazes foram vistos pelos militantes do outro partido e ali mesmo houve
enfrentamento. Como estavam em minoria, bateram em retirada. Sob uma escuridão de
breu, Alexandre e o amigo correram pela encosta, perseguidos de perto pelos
adversários. Chegaram à sua casa em estado deplorável: pela exaustão, pelos ferimentos
da briga e dos arbustos durante a fuga. Algum tempo depois, meu interlocutor
reconheceu o mandante da perseguição num carro parado próximo à sua casa. Decidiu
que era hora de enfrentar o homem que quase provocou o linchamento deles. Foi até lá e
ameaçou agredi-lo. Um desfecho mais grave foi evitado pela chegada de vizinhos.
Quatro anos depois desta operação arriscada, nas eleições de 2008, Alexandre
havia aderido à campanha da oposição. Sua mulher, Jane, explicava que tinham
expectativa de obter um emprego para ela e para a filha. “Imagina só: 500 reais de
salário para mim e também para a Joice!” Participando ativamente da campanha do
novo candidato, transportavam consigo a determinação e a paixão da outras campanhas
eleitorais, protagonizando alguns conflitos com parentes próximos que mantinham o seu
apoio ao candidato do PP. Durante uma concentração que opunha as duas candidaturas
na praça central da cidade, Jane me contava, em tom de desabafo, que sua sogra estava
irredutível: não ia votar no seu candidato, mesmo com todos os apelos que ela havia lhe
feito. “Imagina, eu pedi pra ela que votasse pela Joice, pela neta! Ela não quis nem
saber! Aí eu disse pra ela: “Se tu tá doente, o Fulano te leva... em uma hora tu já está no
hospital. O Beltrano não te dá nada!”Esses conflitos envolvendo os novos antagonistas
– fossem familiares, vizinhos ou compadres – afloravam facilmente na época da eleição,
mas em geral desapareciam uma vez a vida retomasse a normalidade.
Os relatos sobre as campanhas eleitorais indicavam que o clima tornava-se tão
tenso que, naquele período, amigos e parentes poderiam se tornar temporariamente
413
O nome é fictício.
262
inimigos, ao menos até que a poeira baixasse depois da eleição. Entre “estranhos”,
principalmente, as provocações corriam soltas e, muitas delas, apelando para palavras
de baixo calão, gestos obscenos e/ou grotescos. O próprio Alexandre – filho de ex-
mineiro, casado, com 37 anos - recordava-se da ocasião em que uma carreata adversária
passou em frente à sua casa. Vendo uma mulher que ele desprezava no alto de uma
camionete, apelou: “Ô sua nega puta!”, gritou, enquanto segurava os genitais no gesto
de provocação tipicamente masculino. Recordava que sua mãe, envergonhada pelo
gesto obsceno, levou as mãos à cabeça e voltou para dentro de casa. Esse tipo de
provocação corporal estava, de certa forma, legitimado naquele contexto. Ele contava
outro episódio no qual um adversário, passando no alto da carroceria de um caminhão,
“virou para nós o traseiro gordo e baixou as calças, balançando a bunda branca”. Seu
pai mesmo, ex-mineiro com cerca de 60 anos, ao desfilar na carroceria de um caminhão
durante uma carreata, segurou-se com as duas mãos, ergueu as duas pernas no ar e
balançou-as, como um sinal de desprezo pelos antagonistas. São também inúmeras as
piadas contadas tendo como tema as campanhas eleitorais. Uma dessas anedotas dizia
respeito ao candidato que perdeu a “chapa” (prótese dentária) em meio a um discurso no
palanque. Outra era sobre um candidato a vereador que discursava sobre um latão,
prometendo medidas para melhorar a vida dos trabalhadores. Aos poucos, os eleitores
foram saindo, saindo e só sobrou um a observá-lo até o final do discurso. Ao finalizar,
ele elogiou a fidelidade daquele eleitor. Ao que ouviu: “Não, senhor. Eu sou o dono do
latão. Eu só tô esperando o senhor acabar a falação pra levar ele embora”. Nessas
histórias ri-se e ridiculariza-se a política e os “políticos”, mostrando-os como
desastrados, despreparados e sem capacidade para conquistar o eleitor.
Certa vez, um de meus informantes utilizou uma frase enigmática, mas bastante
reveladora: “Aqui, nada do que parece é”. Na época, ele se referia à moralidade local e
aos jogos sociais para manter as aparências em torno de uma vida familiar estável. Mas
era um bom conselho para que eu desconfiasse das aparências. Percebi, depois, que o
dito poderia ser aplicado à política. Uma coisa era “parecer”, manter uma face ou
posição pública, outra diferente podia ser o que ia no íntimo da pessoa.
414
Quando
manifestei meu estranhamento a um casal de informantes de que estariam mais quietos
do que de costume nos comentários sobre as eleições, eles me explicaram que “não
podiam se manifestar” porque não queriam “magoar” ou “ferir” um candidato que era
414
As análises de Goffman (2002) sobre a “representação do eu” são inspiradoras quanto a esse aspecto.
263
seu parente – que tinha a expectativa de seu apoio - revelando que pretendiam votar em
outro. Do mesmo modo, me chamou a atenção quando vi o carro do filho de um de
meus antigos informantes – um pedetista inveterado - com a propaganda da coligação
de Miguel Almeida. Na primeira oportunidade, comentei: “Pelo jeito, tem divisão na
família...” “Não”, me respondeu uma moça da casa, “aquilo ali é só... [fachada]. Aqui
ninguém vota no Miguel!” A explicação estava no fato de que o rapaz, funcionário da
prefeitura, precisava manter as tais aparências. Alguns militantes do PT também haviam
comentado comigo que muitos moradores instalavam bandeiras e cartazes na frente nas
casas, mas que votavam em outro candidato, jogando com o marketing eleitoral daquele
período extraordinário com vistas a manter ou a obter um emprego ou outro benefício.
Quando desembarquei para uma visita de alguns dias em Minas do Leão, em
setembro de 2008, estava disposta a conferir o clima daquelas eleições municipais.
Desde a chegada do ônibus à cidade, pude ver numerosas bandeiras azuis com a foto do
atual prefeito e o desenho de um coração, erguidas alto na paisagem. Em frente às casas,
algumas placas dos candidatos a prefeito, Miguel Almeida e Negrinho. O candidato da
situação explorava o tema do coração na iconografia da campanha: “Coração do Leão,
coração valente”. Eram raras as bandeiras vermelhas, que correspondiam à coligação
PT-PDT, do candidato da oposição, Negrinho. Depois, um dos partidários me disse que
o comitê havia decidido não usar bandeiras daquela vez porque, nas últimas eleições, a
candidatura do PDT tinha quase 200 bandeiras a mais do que o candidato do PP e ainda
assim perdeu as eleições – ou seja, o efeito visual das bandeiras poderia provocar uma
distorção de avaliação dos próprios comitês eleitorais. Uma semana antes do pleito, a
guerra visual de bandeiras era grande na concentração que opunha de um lado os
“vermelhos” – pedetistas e petistas, em menor número, concentrados na praça – e, de
outro, os “azuis”, que passavam por ali numa extensa carreata, criticada pelos
adversários porque muitos automóveis portavam placas de outros municípios e
desprezada também porque, no final das contas, “carro não vota” e “bandeira não vota”.
O rio de bandeiras vermelhas e azuis parecia reproduzir a tradicional rixa do futebol
gaúcho, entre colorados e gremistas.
264
Dias antes, um petista justificava que a campanha estava esvaziada em razão de
uma tendência local de “votar em quem está ganhando”, já que o voto é um recurso
pessoal para se credenciar como beneficiado na distribuição de favores e ajudas, antes,
durante e depois das eleições. Dizia que, na véspera das eleições, muita gente tinha
abandonado o barco e migrado para o lado adversário. Nas eleições municipais de 2008,
Miguel Almeida (PP, em coligação com PMDB, PTB, PRB e PSDB) venceu a disputa,
obtendo 81,28% dos votos, contra Negrinho (que ingressou no PT, coligado com o
PDT). Mesmo com a expressiva diferença, os “jogos” ou “apostas eleitorais” – ainda
que em menor número neste pleito – foram bancados com comparável ardor pelos
defensores de ambas as candidaturas.
415
Carreata: o
prefeito Miguel
Almeida, que
seria reeleito,
acena para
partidários
415
A questão das “apostas eleitorais” é explorada no capítulo 6.
265
5. A “PEQUENA HONRA DO SAGRADO”: DONS, HERANÇAS E RUPTURAS
5. 1. INTRODUÇÃO
A relação com o sagrado representaria uma ruptura com a honra? Consistiria ela
mesma, em determinados contextos, numa forma peculiar de honra? Procuro analisar,
neste capítulo, pistas etnográficas do que denomino a “pequena honra do sagrado”, a
partir de entrevistas e observações com interlocutores identificados com diferentes
crenças religiosas
416
. Isso não significa sustentar, a priori, que essa “pequena honra do
sagrado” está sempre presente ou que os informantes a identifiquem desta forma. Os
liames entre honra e sagrado são vistos ora em continuidade, como afirmação mútua,
ora através de suas contradições, tensões e rupturas. Se existem relatos de trajetórias
religiosas nas quais a relação com o sagrado expressa uma forma peculiar de honra –
referindo-se, por exemplo, ao “orgulho” de fazer parte de uma determinada religião, o
primeiro relato que me levou efetivamente a pensar em termos de “honra” -, outras
narrativas evidenciam uma desconstrução do valor atribuído ao ego, ao apego a
reconhecimentos mundanos, ao orgulho, à primazia do eu e, desta forma, ao valor
simbólico da honra. Se vamos além desta negação, encontramos pistas sobre como essa
nova “identidade” carrega sua própria satisfação, sua estima de si baseada nesta
desconstrução. Outros relatos situam-se entre os dois pólos, entre a ruptura com valores
herdados, que sustentavam determinadas formas de honra tradicionais, e a satisfação
pelo reconhecimento em pertencimentos religiosos.
Até certo ponto, a relação entre honra e sagrado veio sendo abordada nos
estudos sobre a honra “mediterrânea” e em análises a respeito de outras culturas, mas na
maior parte das vezes esteve circunscrita a algum personagem “extraordinário”. Menos
atenção foi dada na literatura antropológica às circunstâncias cotidianas e à presença de
uma honra do sagrado na vida de pessoas comuns, que é o propósito do presente estudo.
Como bem observou Pitt-Rivers (1983), a própria noção de honra pode conter a
transcendência, pois “a honra de um homem é para ele qualquer coisa de sagrado”
(1983, p.35). O autor menciona que, em estudos anteriores, não tinha se dado conta
suficientemente da importância do sagrado na constituição da honra, observando depois
como a honra liga-se ao sagrado no ritual do compadrio (1983, p.10-11), por exemplo.
Em artigo na primeira coletânea sobre a honra “mediterrânea” organizada por
Peristiany e Pitt Rivers (1965), Bourdieu analisou como, entre os cabílios, há uma
416
Essas crenças dizem respeito a crenças institucionalizadas e desinstitucionalizadas (Duarte, 2006a).
266
relação íntima entre honra e sagrado. A partir dos termos nif (amor próprio ou ponto de
honra), hurma (honra) e haram (interdito, sagrado), o autor explica que aquilo que dá
vulnerabilidade ao grupo é o que existe para ele de mais sagrado (1965, p.176). Isso
significa que um ser desprovido de sagrado poderia não possuir ponto de honra porque
seria de algum modo invulnerável. (Bourdieu, 1965, p.177). Jamous (1992) evidencia
que, no Rif marroquino, a honra dá sentido à vida, mas não pode ser fonte de vida, de
modo que deve regularmente ceder preeminência ao sagrado. O aspecto sagrado é
representado pela baraka ou “bênção divina”, que permite regular os conflitos
sangrentos derivados das lutas pela honra. Bellet (1992, p. 165) afirma que “a honra de
Deus está a cargo do profeta”, de forma que, inversamente, a “honra do profeta é ser a
palavra de Deus”. Tal como o profeta, parece-me que os praticantes religiosos
contemporâneos podem ancorar sua honra na fé.
Em nova coletânea, na qual deram continuidade à primeira, Peristiany e Pitt-
Rivers (1992) acolheram mais claramente a dimensão do sagrado através das relações
entre “honra” e “graça” – termo relacionado à gratuidade, à dádiva unilateral concedida
pela divindade sem a possibilidade de retribuição definitiva, ou seja, ao dom divino.
“Graça”, na Andaluzia pesquisada por Pitt-Rivers, toma a forma do dom de curar, mas
pode também ter virtudes negativas e estar na origem da feitiçaria, carregando certa
ambivalência. Como refere Hadman (1995, p. 222) as referências à honra remetem à
vontade humana, e a graça, ao arbitrário divino, mas ambas estão indissociavelmente
ligadas, seja porque a graça confere honra
417
, seja porque a substitui
418
, ou ainda porque
pode absolver os pecados que a manutenção da honra levaram a cometer
419
.
Há que se pensar ainda no outro termo, o sagrado. Como nos lembra Pina
Cabral (1991), o sagrado tem um irmão gêmeo, o profano, do qual é indissociável. O
autor menciona que a maior parte das definições antropológicas modernas parte dos
estudos de Durkheim, situando o sagrado na mentalidade coletiva de cada sociedade,
estando o profano ligado ao que é construído pelo indivíduo com os dados dos sentidos
e da experiência. Na análise de Geertz (1978), o sagrado constitui uma “aura de
profunda seriedade moral”. Nesta perspectiva, os símbolos sagrados estariam associados
a um sentido de obrigação profunda. O sentimento religioso, em meio ao qual se
encontra o sagrado, confere poder ao indivíduo, permitindo-lhe, como disse Bergson, o
417
Como na comparação feita por Campbell (1992) entre o guerreiro da Ilíada e o klepthe, bandido social
da Grécia dos séculos XVIII e XIX.
418
Ver Peristiany (1992) sobre uma aldeia da montanha chipriota, na Grécia.
419
Ver Baroja (1992) sobre a honra de diferentes classes sociais na Espanha dos séculos XVII e XVIII.
267
elan vital capaz de ultrapassar a condição humana”.
420
Consiste numa “reação total de
um homem à vida”, que passa a lhe conferir “nova esfera de poder” (James, 1995, p.31-
44), e que lhe possibilita suportar dificuldades e vencê-las (Durkheim, 1993, p.222).
Muitos de meus interlocutores mencionavam alguma capacidade considerada
excepcional – como a de curar, de predizer o futuro, de incorporar um espírito ou
entidade - como sendo um “dom”, uma dádiva recebida de Deus. É bom lembrar ainda
que o próprio Mauss (2001), em seu estudo magistral sobre o dom, havia sugerido a
tradução do termo mana por “honra”, referindo-se tanto à “força mágica” como à
autoridade e à riqueza (2001, p.113). Pode-se dizer também “graça”, no sentido que
Pitt-Rivers e Peristiany (1992) conferem ao termo. Esses autores consideram que,
enquanto a honra (qualidade, precedência moral pessoal) situa-se no domínio
masculino, a “graça” estaria no plano feminino, no espaço das relações de dádiva e de
contra dádiva, entre os seres humanos e o espírito santo. A “graça” seria o contrário da
honra masculina e isso a colocaria no plano da honra feminina (1992, p.295). Sem
ingressar, neste momento, numa discussão sobre as noções de honra que correspondem
a cada gênero, acolho a idéia de que o dom, assim como a graça, está mais próximo de
um domínio feminino de valores, mas que são compartilhados pelos praticantes
religiosos de ambos os sexos. Em minha investigação, esta “pequena honra do sagrado”,
além de sentimento íntimo, como em outras formas de honra, também se converte em
imagem pública, em reconhecimento, em reputação (Bailey, 1971), a qual se busca zelar
e defender, não apenas a título pessoal, mas porque está relacionada à honra de um
grupo, de uma congregação e que pode ser vista como a própria “honra de Deus”.
O que denomino de “pequena honra do sagrado” é assim uma forma de distinção
social atribuída e auto-atribuída ao indivíduo que o remete a uma relação privilegiada
com o mundo espiritual ou sobrenatural. Esta distinção é expressa algumas vezes por
meus interlocutores na forma de um “dom”, de “poderes”, de “capacidade” ou de
“sensibilidade” para curar, para “ver”, para adivinhar fatos, sentimentos,
acontecimentos do presente, do passado e do futuro, entre outras manifestações. Pode
ser a identificação ou a incorporação de um “espírito evoluído”, “adiantado”, que
imprime ao sujeito alto grau de responsabilidade moral, de “iniciativa”, de “intuição” ou
de outros talentos. Tais “dons” podem ser vistos como nascidos com o praticante,
aprendidos ao longo da sua criação ou despertados com o “novo nascimento”
420
Apud. Viellard-Barón (2000, p. 63-64).
268
representado por uma conversão. Uma questão que se coloca: quem é que confere a
honra do sagrado? Se o dom é uma concessão divina, os reconhecimentos que geram a
honra provêm do grupo a que pertence o indivíduo. Nos casos que analiso, essa prática
religiosa corresponde a uma interiorização de certo ethos que, mesmo sofrendo
mutações decorrentes dos percursos do sujeito, imprime certa continuidade na sua visão
de mundo e na forma como é percebido pelos outros. Há que se considerar, porém, que
a “liderança” ou o “prestígio” que tais trajetórias acarretam é relativa. Em geral, o
“respeito”, o “carisma”
421
que os personagens emanam transpassa o círculo imediato de
quem comunga das mesmas crenças. Mas eles podem também ser alvos de hostilidade,
de desprezo ou de desconsideração por parte de praticantes de outras crenças.
5. 2 DA PAISAGEM RELIGIOSA
As práticas religiosas em Minas do Leão (RS) expandiram-se ao longo de meio
século de história local relacionadas principalmente à busca de proteção contra o perigo
de acidentes na mina subterrânea. Mas a diversidade de crenças e de ritos religiosos
atravessa toda a tessitura minimalista de redes familiares, de amizade e de compadrio no
cotidiano desta pequena cidade interiorana. Nesse cenário, o que se pode chamar de
“religioso” recebe formas variadas, móveis e o que se pode captar durante o trabalho de
campo é, certamente, um esboço pálido da complexidade e da intensidade com que se
dão essas procuras em torno de uma acolhida divina, de um sentido mesmo para a vida
diante das tragédias, das formas de superar as aflições e driblar as dificuldades miúdas
da existência. Emergem aqui e ali negociações e ações de reciprocidade individuais e
coletivas com o sagrado, com o “outro mundo” – das quais os pedidos e promessas são
parte emblemática. A partir dos anos 1990, a paisagem religiosa
422
de Minas do Leão
mudou rapidamente, em meio a uma ampla e complexa gama de novas possibilidades.
Para que se compreenda o impacto de tais mudanças é preciso vê-las em consonância
com as transformações sociais sofridas diante do quase desaparecimento da atividade
que gerou a antiga vila mineira e que conferiu um ethos a esses trabalhadores. Durante o
trabalho de campo, eram freqüentes as referências ao empobrecimento e à crise que
421
Weber (2004) define carisma como qualidade pessoal, considerada extraordinária, pela qual se
atribuem a uma pessoa poderes ou qualidades sobrenaturais, sobre-humanos ou extra-cotidianos. Para o
autor, o exercício do carisma depende da existência de adeptos, de um reconhecimento social.
422
A expressão é usada por Segato (1997, p. 231), como “paisagens religiosas em trânsito”, dizendo
respeito a conteúdos flutuantes, relacionados com uma diferença em relação a outros grupos que não
encontra expressão nos léxicos habituais e que passa a apresentar-se como opção religiosa. Adoto a
expressão para referir-me à idéia de que este quadro que procuro captar só parece fixo neste
enquadramento, mas não pára de se mover.
269
assolou a cidade desde o fechamento da mina de subsolo. Este cenário de inquietações
tem sido propício para a expansão do pentecostalismo e de cultos afro-espíritas,
portanto, de “cultos de aflição”.
423
Nos anos 1940, quando a vila operária de Minas do Leão começou a ser
formada, surgiu inicialmente a igreja católica - estimulando a devoção à Santa Bárbara,
a padroeira dos mineiros, e a Nossa Senhora Aparecida, posteriormente padroeira da
cidade – e o primeiro centro de umbanda local, Manuel Botafogo, até hoje considerado
como de “linha branca”. As duas instituições religiosas receberam o incentivo material e
simbólico da companhia de mineração. Ao longo desse período, para muitos
informantes, as freqüências e pertencimentos não eram exclusivos, mas concomitantes
entre as duas tradições. Ainda que esse sincretismo operasse geralmente de forma
harmônica, podia ser gerador de conflitos no interior das famílias. Julieta Freitas, por
exemplo, me contava que, décadas antes, sua mãe havia se curado de um câncer graças
ao trabalho do pai-de-santo Bagé. A família se considerava então católica “não
praticante”. A eficácia do tratamento foi reconhecida pelo marido da doente, mas não o
vínculo daquela prática com o sagrado. Julieta narra que, após a cura, sua mãe
continuou freqüentando a terreira de umbanda, mas seu pai temia aquele envolvimento,
porque não considerava ser “uma coisa de Deus”. O velho mineiro reagia assim:
“Agradeço muito a ele por ter curado, ela está criando os filhos, mas isso não é de
Deus”. Na época em que fez este relato, em 2006, Julieta, 60 anos, havia
experimentado, ela mesma, mudanças em seu sistema de crenças. Tinha voltado a
freqüentar a igreja católica, pertencimento que tinha se iniciado na adolescência após
um breve período de iniciação na umbanda pelas mãos da mãe. Esse retorno à católica
representava uma nova mudança em sua prática religiosa. Quando eu a conheci, em
2003, ela freqüentava uma igreja evangélica, acompanhando a opção de seus três filhos
e de parentes do marido. Em 2008, quando estive novamente em sua casa, pude
constatar que poucos do núcleo familiar mantinham a freqüência à igreja evangélica
424
.
Neste contexto, são comuns as flutuações e práticas paralelas, envolvendo não apenas
crenças institucionalizadas, mas também o culto a “mortos especiais”
425
- como os
santos, um morto milagroso e as almas familiares.
423
Ver Mariz e Machado (1994, p.141), que, por sua vez, baseiam-se em em Fry e Howe (1975).
424
Ver Duarte (1983) sobre a “pluralidade religiosa” e o modelo de religiosidade vigente entre as classes
trabalhadoras urbanas. E, ainda, Duarte (2006a, 2006b), Birman (1995), Gomes (2006) e Couto (2005).
425
Ver Brown (1981).
270
Numa comunidade com
forte tradição católica -
ensejada tanto pelo
expressivo número de
imigrantes poloneses,
alemães e italianos
como pela adesão aos
ritos à Santa Bárbara
que mobilizam as vilas
mineiras no Brasil e em
países europeus – é de se surpreender que a igreja católica reúna menos da metade dos
praticantes. Pelo menos era, há poucos anos, o cálculo do padre Wilson, primeiro
pároco da cidade. O padre estimava que os fiéis católicos correspondessem uma
proporção entre 40% e 50% do total de moradores. Ele explicava que a igreja católica
perdeu público para as evangélicas porque não oferecia um atendimento mais direto à
população. Antes de sua chegada, ocorriam duas missas semanais rezadas pelo pároco
da cidade vizinha. Mais recentemente dizia que “muitos, que estavam participando de
outras religiões, tinham voltado para a igreja católica”. Pelo menos dez denominações
evangélicas haviam se estabelecido na pequena cidade até o final de 2008.
5. 3 A DÁDIVA COMO FORMA DE HONRA
5. 3.1 Julieta, mãe-de-santo: “a gente já nasce com o dom”
O Centro Espírita Manuel Botafogo, o mais antigo de Minas do Leão, está
situado próximo à antiga vila mineira e perto do campo de futebol que pertencia ao
Atlético Mineiro. Antes mesmo de ir até lá, eu sabia que esse era um “lugar de
memória” (Nora, 1997), inscrito nas trajetórias e nos relatos de muitos informantes, hoje
adeptos de diferentes religiões. Seus médiuns fundadores, Julieta e José Ari Luz, mais
conhecido como “Bagé”, venceram a muito custo a desconfiança das famílias de
mineiros nos anos 1950 e 1960 até se tornarem, por décadas, não só uma espécie de
refúgio espiritual, mas também de pronto-socorro para todos os males, substituindo
serviços médicos, ainda precários na região. Hoje, pouco restou desta tradição. Nos
últimos 20 anos, desde a morte de Bagé - que era o antigo chefe da terreira e o único do
casal que sabia ler e escrever -, muitos médiuns e praticantes foram se afastando.
Mesmo com o esvaziamento do centro, de tal forma que há dias que não há como
271
realizar as sessões devido à falta de médiuns, Julieta, de 82 anos, continua lá,
perseverante. “Não vou desistir”, dizia, “não vou fechar esse centro”.
Quando fui pela primeira vez à casa da mãe-de-santo, eu havia escutado muitas
histórias de famílias que passaram por ali. Eu já mantinha uma relação de amizade com
uma das noras e com uma neta. Nadir, viúva de um filho adotivo de Julieta, é irmã de
um de meus principais informantes, Hermes, ex-mineiro em cuja casa de fundos eu
havia habitado durante minha pesquisa de mestrado. Foi com essa deferência dirigida a
“gente conhecida”, a “gente de casa”, que fui recebida pela velha senhora morena de
longos cabelos grisalhos. Ela acolheu-me com grande gentileza e dispensou-me uma
atenção paciente, mesmo que estivesse angustiada com os problemas do centro. Estava
passando por “muitas provações”, como dizia, mas mantinha-se vigorosa na missão de
manter viva a terreira cerca de 50 anos depois de sua criação. Seu centro é considerado
ali a única terreira “não cruzada” – ou seja, que não trabalha com Exus. A casa enfrenta
a concorrência de outros centros “cruzados”, mas também de igrejas evangélicas.
Naqueles dias, Julieta havia chamado seu afilhado Carlos, pai-de-santo na
Grande Porto Alegre, para ajudá-la a enfrentar os sérios problemas que atravessava.
Nosso primeiro contato teve, portanto, a presença constante do afilhado, que em muitos
momentos servia de mediador, esclarecendo para mim significados de coisas que a mãe-
de-santo referia em sua fala. Suas preocupações estavam relacionadas ao fato de que
parte daquela área, doada “para as entidades” pela companhia de mineração
426
, onde
ficava sua casa, a terreira e outro terreno, havia se tornado alvo de uma disputa com um
antigo “afilhado”. O transtorno que a mãe-de-santo vinha enfrentando era que esse ex-
afilhado, instalado por ela no terreno ao lado, havia lhe declarado “guerra”, desde que
ele e a família passaram a freqüentar uma igreja evangélica. Dia após dia, ela vinha
sofrendo com suas injúrias: “Então, quando [ele] declarou mesmo, passou a me xingar
de tudo o se lembrava de me xingar”. A mãe-de-santo registrou queixa na polícia. E,
mesmo ela tendo obtido da prefeitura outro terreno, o ex-afilhado não queria sair dali.
Eu ando muito chateada com isso aí. O meu velho era estimado de todo
mundo, de todo mundo, aqui é um lugar pequeno. A gente saía muito pra
cumprir a missão, né (...) E a gente trabalha com umas entidades boas, umas
entidades... pra trabalho limpinho.
426
Isso ocorreu depois que uma comissão de mineiros solicitou à direção da CRM a doação do terreno.
272
Com a expressão “trabalho limpinho”
427
, Julieta referia-se ao fato de que a
terreira, não realizando o culto a Exus, “não trabalhava com o mal”. Em outro sentido,
não se servindo do sacrifício de animais, também não utilizava sangue nas oferendas.
Na casa de madeira simples, de poucos cômodos, onde me recebeu, ela mora com um
filho adotivo deficiente, a neta, o marido e o filho pequeno do casal. Sem nunca ter tido
filhos naturais, Julieta criou nove filhos adotivos, um dos quais, o pai desta neta, havia
se suicidado por enforcamento na terreira, poucos anos depois da morte de Bagé. Ela me
contava, num tom baixo, que aquele filho tinha sérios problemas com a bebida e andava
deprimido, mas que ainda assim “ninguém esperava uma coisa daquelas”. Eu conhecia
um pouco desta história pelos comentários de outros parentes, mas sabia que todos
evitavam falar dessas lembranças dolorosas. Segundo ela, “provações” deste tipo
costumam recair sobre médiuns.
Para a mãe-de-santo, ela “nasceu com o dom”. Ainda pequena, passou a atrair a
atenção da mãe, benzedeira, porque vomitava quando esta recebia seus clientes.
Julieta - Então, ela benzia pra tudo. Então, sabe que ela dizia pro meu pai
assim: “Esta guria, tem que ter alguma coisa com ela”. Conforme tu chegasse
lá pra ela benzer, diz que me achavam como mortinha, diz que se eu tinha
alguma coisa no estômago, eu botava tudo pra fora. (...) E foi, e foi, quando
eu fui pra terreira de Jaguarema [primeira terreira que ela freqüentou, na
cidade vizinha de Butiá]. (...) Eu comecei a receber entidade em casa. Então,
a gente já vem com esse dom.
– E a senhora lembra, de menina, de sentir alguma coisa...?
Julieta – Não, não sentia nada, sabe. Eu não sentia nada, que eu sentisse
alguma coisa assim. (...) Eu só sonhava muito. Eu não sei se meu espírito
desencarnava de mim, só sei que eu ia em cada lugar que nunca na minha
vida tinha visto.
Carlos – Mas quando sua mãe benzia e a senhora botava as triplas pra fora...
Julieta – Era carga dos outros que vinham. E eu já tinha essa parte. Quando
eu cheguei na terreira de Jaguarema eu já tinha andado em muitas coisas.
Depois que eu fui pra lá, nunca mais fui pra lugar nenhum. Por isso que eu tô
te dizendo, eu, sobre essa parte, eu não tinha orientação nenhuma.
Julieta era ainda bem jovem quando passou a freqüentar a terreira dirigida pelo
pai-de-santo Júlio Quadros, em Butiá, que levava o nome do caboclo Pajé Jaguarema.
Quando a menina passou a incorporar uma entidade, causou surpresa aos praticantes
mais antigos: era o caboclo cujo nome batizaria o atual centro de Manuel Botafogo.
Então aquela parte chegou em mim, aquelas entidades que continuam até
agora, graças a Deus (...). Não trabalhavam porque eu não tinha ordem de
trabalhar, né. Mas ficava na terreira assim, incorporada em mim. Eu suava
427
Tais concepções nos remetem a M. Douglas (1976), sobre as noções de pureza e perigo.
273
assim que ficava uma volta de suor na terreira. Então, quando perguntavam
pra ele quem ele era, ele dizia que era “índio da mata, caboclo sem nome”. É
o que ele dizia pra eles. E nunca dava o nome, porque o nome ele ia dar pro
cacique do terreiro. (...) E não deu mesmo. (...) Ele pediu licença pro Pajé
Jaguarema, que era o espiritual, né, que era o cacique da terreira, (...) pra
declarar o nome dele, dizer quem ele era. Foi quando eles tudo ficaram
apavorados, né. Que eu era bem novinha, que eu não tinha visto nada de
outras coisas. Ahã. Aí, como podia acontecer aquilo ali?
Seu “dom” para incorporar uma entidade causou assim surpresa em toda a
gente. “Dar o nome”, revelar a identidade era um ato que o caboclo só poderia fazer
diante da autoridade espiritual da terreira. Mais tarde, ao participar de uma sessão, pude
presenciar a mãe-de-santo incorporando este caboclo que, inclusive, deu conselhos às
minhas aflições.
428
Tempos depois, Julieta e o marido fundaram o atual Centro Espírita
Manuel Botafogo, como dito, considerado o único de umbanda “linha branca” ou “não-
cruzado” do município. O afilhado Carlos, de 50 anos, contava-me que cresceu naquela
terreira na qual seu pai, ex-mineiro como seu padrinho Bagé, trabalhava como médium.
Foi ali que sua mãe havia feito um tratamento para engravidar, antes de o menino
nascer. Do tempo em que, ainda criança, acompanhava os pais às sessões noturnas,
Carlos recorda-se que a “corrente” reunia mais de 50 médiuns. Depois da morte de
Bagé, muitos médiuns foram se afastando. Julieta contava: “Foram saindo, saindo,
saindo, porque aí eu não pude atender como meu velho atendia. Porque ele tinha estudo,
mas eu não tenho. Então, ele já largava a receita pronta (...) porque ele era clarividente”.
O fato de ser analfabeta limitou seu campo de ação: além da dificuldade em escrever
receitas, precisava de outro médium para ler o evangelho na doutrinação. Mas continuou
dando consultas na voz no caboclo que incorpora.
Depois de enfrentar o desprezo e a desconfiança dos moradores da vila operária
nos primeiros tempos, Julieta e Bagé passaram a ser procurados pelas demandas mais
diversas. “Quando a gente veio pra cá, esse povo aí caiu em cima. De a gente passar na
428
Incorporando o caboclo, a mãe-de-santo me dizia que muitos moradores viam com “bons olhos” meu
trabalho ali, mas também havia olhos que “me viam com desconfiança”, o que “não era bom”. Com
gestos rudes, olhos semi-cerrados, uma voz grave e a fala direta, usando um palavreado tipicamente rural,
me dizia que havia “um cacique” me acompanhando e que meu trabalho era “minha missão nesta vida”,
orientada pelo plano astral. Sugeria que eu deveria desenvolver meu lado espiritual ali ou em outro lugar.
Descreveu dificuldades que eu enfrentava e, depois de colocar a mão em meu peito, disse que eu sentia
receio de que, ao anoitecer, alguém entrasse em minha “choupana” – o que correspondia mesmo a
temores reais, devido à fragilidade das aberturas da casa. Sugeriu então que eu deveria fazer uma
“defumação” na “choupana” e também limpá-la com água e mel. O mel deveria ser utilizado também
num banho “abre-caminhos”, junto com o sabonete “Mamãe Yemanjá”. Na mesma voz grave da consulta,
pediu que eu anotasse uma receita de “Memoriol” para o “cocuruto” e de “Amargol” para meus males de
estômago. Nas consultas aos outros participantes, receitou Memoriol, vitaminas e laxantes.
274
frente da casa e eles ficarem debochando, que a gente não era melhor do que eles. (...) E
quando a gente via, iam correndo atrás, chamando porque tavam quebrando tudo dentro
de casa”. Esses pedidos de ajuda ocorriam quando alguém “era tomado por um ser das
trevas”. Lembrava-se de um “serviço” que a marcou bastante, realizado por um grupo
de médiuns numa fazenda, num lugar chamado “Lagoa das crianças”. Em razão de
infortúnios, os donos da casa haviam solicitado sua visita. Quando começaram com as
preces, sentiram que o lugar estava “tomado por entidades que não tinham doutrina”. O
pai de Carlos participou daquela experiência. Julieta recordava que vários fenômenos
estranhos se passaram: “quando iniciava [as preces], o gado vinha do meio do campo
berrar e raspar com as mãos (sic) no chão, as aves voavam por cima da casa, os porcos
roncavam, os cachorros acoavam, uivavam, ai meu Deus do Céu!” Enquanto isso, os
membros da família iam caindo ao chão como desfalecidos, significando que algum
trabalho havia sido feito antes para seu mal. No final do atendimento, tudo havia se
acalmado. As entidades que acompanhavam a família estavam mesmo precisando de
preces. Esses serviços espirituais não eram cobrados, mas sempre havia os contra dons.
Ao subir na carroça para voltarem para casa, carregavam dúzias de ovos que receberam
de presente. Um fato estranho se passou no percurso, quando se aproximavam do
cemitério: os cavalos se soltaram da carroça e, com o baque, a caixa de ovos se soltou
das mãos da mãe-de-santo. Os cavalos seguiram à frente e a carroça atrás, desatrelada.
Os cinco médiuns que participaram da missão não tiveram medo. Julieta contava que,
ao chegar, quase “morria de rir” das aventuras daquela noite. Tempos depois, com a
criação de uma terreira buscavam doutrinar as entidades que podiam fazer o mal.
Carlos me dizia que seu padrinho, Bagé, “era uma pessoa muito respeitada”, de
forma que, às vezes, mesmo um morador que chegava a ser atendido por um médico
para seus problemas de saúde, costumava buscar também o atendimento do pai-de-
santo. Havia até um médico que, vez por outra, indicava o centro de umbanda.
Carismático, Bagé ou “tio Bagé”, como ficou conhecido na comunidade, foi ganhando
popularidade. Desde sua morte, seu nome, José Ari Luz, batiza a praça central da
cidade. Quase no fim da vida, ele enveredou pela política. Havia sido eleito suplente de
vereador pelo MDB, quando Minas do Leão ainda pertencia a Butiá, e teve a
possibilidade de assumir a cadeira, substituindo o titular. Mas o acordo partidário
estabelecia que, no tempo previsto, o suplente deveria devolver a cadeira ao titular.
Apaixonado pela política, Bagé se rebelou contra o partido e não quis renunciar. Como
recordava Julieta: “Quando foi pra ele entregar a cadeira pro vereador, não queria
275
entregar de maneira alguma. Ele embrabeceu. Aí quando eu vi chegou aqui toda a
equipe do... da diretoria, né.” Os ânimos tinham ficado tão exaltados que a esposa
passou a insistir para que ele deixasse de lado a teimosia. “Eu dizia pra ele: ‘Criatura, tu
nunca precisou disso, por que essa coisa, essa ambição? Deixa... Pára com isso aí. Pára,
pára pra pensar’”. Segundo ela, Bagé havia se tornado um “político doente”.
Depois, candidatou-se a vereador por outro partido, contrariando os conselhos da
mulher para que não trocasse de legenda. Os filhos estavam entusiasmados, mas Julieta
achava que ele “não tinha saúde” para enfrentar uma campanha eleitoral. “E nunca me
esqueci, já faz 26 anos que isso aconteceu, nunca me esqueci, ele fez 132 votos só”, o
que era insuficiente para elegê-lo. Acredita que foi esse abalo, do qual ele nunca se
recuperou, que o levou ao enfarte três anos depois. O que se pode perceber, em seu
relato, que na história do marido estava presente uma consolidada “honra do sagrado” e
a aspiração à “honra da política”. Mas se, no primeiro caso, ele era um líder inconteste,
seu desempenho eleitoral revelava que a conversão destes capitais simbólicos não se
dava de forma direta. Sua pretensão a uma carreira na política não correspondia
inteiramente à sua reputação para tal projeto. A homenagem póstuma, batizando com
seu nome a praça central, na qual ocorrem os comícios na efervescência eleitoral de
Minas do Leão, parece propiciar uma reparação tardia à expectativa de Bagé. Em vários
relatos, pude notar essa tentativa de alargar o prestígio obtido com uma liderança
religiosa para uma carreira política, mas o fato de que, em boa parte, essas investidas
tenham sido malogradas mereceria mais atenção.
Julieta constituiu uma família grande, mesmo sem ter tido a possibilidade de ter
filhos biológicos. Diz que sempre foi muito “crianceira”, mas que em função de
problemas de saúde só teve a chance de engravidar uma vez. Fazia dois anos que estava
casada e já tinha adotado o primeiro dos nove filhos. “Fui adotando, fui criando. Essas
crianças vieram tudo pra minha mão. Deus me deu a graça de criar”, me explicava.
Quando esteve grávida, perdeu o bebê num acidente. Seguia numa carroça para
participar da procissão de Santa Bárbara, carregando no colo o filho adotivo de menos
de dois anos. No percurso, atravessando uma ponte, a carroça deu sinais de que iria virar
e Julieta saltou para fora com o menino no colo. Com o impacto, perdeu o bebê que
esperava. O primeiro filho adotivo casou-se com a filha de uma ex-médium do centro
cujo retrato continua na parede da velha construção de madeira onde funciona a terreira.
Numa sessão da qual participei posteriormente, os médiuns me contaram sobre o drama
de Rosa, médium clarividente que anteviu a própria morte no parto do filho que
276
esperava. E, de fato, ela morreu deixando seis filhos pequenos, dos quais três deles são
hoje meus informantes: Hermes, Nadir e Zélia. Algum tempo depois, o viúvo, um ex-
mineiro que também freqüentava a terreira, casou-se com uma viúva que tinha dois
filhos – meus informantes Ademar e Acimar. Deste grupo familiar, apenas Hermes
continua a freqüentar a umbanda, mas particularmente a nação. Acimar converteu-se a
uma igreja evangélica; Nadir freqüenta a católica; Zélia considerava-se “sem religião”.
Ali, na terreira, pude contemplar o retrato do pai-de-santo Bagé, ele próprio portando
traços de caboclo. As imagens de entidades e santos misturavam-se no sincretismo
comum à umbanda. Viam-se pinturas do caboclo Manuel Botafogo, da índia Jurema, do
caboclo Sete Flechas, de Cosme e Damião, de Ogum Beira Mar, de Ogum da Bandeira,
de Pretos-velhos, de Xangô, de Yemanjá, de Iara, de Iansã, de Obá e de Nossa senhora
Fátima. Numa das paredes, estava o retrato do ex-presidente Getúlio Vargas.
O afilhado de Julieta me dizia que a crise que a terreira de sua madrinha estava
enfrentando deve-se a vários fatores, mas principalmente ao fato de não ter sido
“cruzada”, o que limitaria os recursos do médium. A partir de sua experiência numa
terreira com 70 médiuns, na qual oferece tanto a umbanda como a nação, observava que
hoje quem procura um centro “não quer perder tempo” ouvindo uma doutrinação ou
acompanhando uma sessão inteira para receber orientação ou ajuda. Quando um cliente
chega em sua casa, ele abre os búzios para jogar, sem precisar da incorporação da
entidade numa sessão. Julieta me explicava o motivo por que tinha “convocado” o
afilhado: “Ele veio dar uma força pra gente, porque eu tô assim... sem evolução
nenhuma, né”. Carlos dizia que, às vezes, voltava para a terreira da madrinha para matar
a “saudade” de uma “legítima umbanda de caboclo”, lamentando a perda daquela
tradição com a expansão dos “cruzamentos”.
Isto aqui é uma casa histórica, né. (...) Aqui é uma raiz da parte da umbanda,
né, que segue o trabalho só com a linha de caboclo, de onde vêm o tupi-
guarani. Eu vi os caboclos falando em tupi-guarani, né, os pretos-velhos
contando as histórias deles das senzalas... que hoje é difícil. (...)
Antigamente, tu chegava num terreiro como esse aqui, tu falava com uma
Jurema na língua guarani, hoje não vem mais.
As terreiras de umbanda, como a de Julieta, teriam sido tomadas pela pressão da
modernidade, relegando ao esquecimento determinadas tradições que ofereciam
condições para uma expressão espiritual considerada mais “pura”, mais próxima da
natureza e, de certa forma, da “autenticidade” daquelas entidades. A honra que Julieta
defende, portanto, não é apenas aquela do seu “dom”, mas a da manutenção de uma
277
tradição de umbanda que ela ajudou a construir. Tais transformações parecem indicar
também a profunda mudança dos valores daquela localidade, que se deslocaram dos
hábitos rurais para os costumes da vida urbana, para o ritmo industrial ditado pela mina
na pequena cidade que ainda é cercada por fazendas de gado e lavouras de arroz. Havia
múltiplas formas de “ser mineiro”, mas as que se tornaram mais populares – enfatizando
a habilidade, a manha e a malandragem – parecem mais próximas, simbolicamente, de
uma entidade complexa como o Exu do que da simplicidade prosaica dos caboclos.
Pode-se, assim, traçar uma analogia entre as mudanças de valores nas práticas
espirituais e aqueles que marcaram o mundo do trabalho.
5. 3.2 José, praticante de uma religiosidade múltipla
O ex-mineiro José, de 78 anos, que passou pelas profissões de eletricista e
motorista, é adepto de uma filosofia de vida que poderia ser enquadrada no que a
literatura antropológica define como religiosidade “nova era” (Amaral, 2003)
429
. Após
uma longa trajetória como umbandista, paralela à sua atuação em práticas tradicionais
de cura, tal como a homeopatia, na qual narrava ter “clinicado”, José ainda dedicava-se
a consultas de adivinhação por meio de cartas ciganas - situação na qual conheceu a que
hoje é sua quarta mulher, viúva duas vezes, como ele. Ele atribui à sua educação
familiar, à convivência com a avó “bugra”, “parteira” e “benzedeira”, a compreensão da
sabedoria do “senhor da natureza” e o refinamento das artes de ver e de curar. Sua
narrativa remete às peculiaridades do percurso, embutindo valores tradicionais
incorporados como “herança” de ascendentes, ao mesmo tempo em que exibe traços de
um subjetivismo moderno, expresso na prática da escrita.
Numa das visitas que fiz ao casal, em agosto de 2006, José me contava que, no
dia anterior, estivera um tanto inquieto. Como costumava, havia colocado as cartas
ciganas. Viu que receberia duas notícias, uma ruim relacionada a pessoa próxima. No
dia de minha visita, ele tentava consolar a mulher, abalada por ter sido dispensada do
trabalho que realizava com a educação de portadores de necessidades especiais,
vinculado à prefeitura. O desligamento deveria ser provisório, em razão da aproximação
das eleições, mas Eva temia que fosse definitivo. Tinha sido uma vaga obtida numa
negociação partidária em função de ele ter sido candidato a vereador por um dos
partidos da situação. Sobre a demissão da mulher, tinha previsto: “Eu já sabia, tenho
429
Amaral, 2003, p. 20.
278
visão do que vai acontecer, aquilo me apareceu na cabeça”. Desde criança, “já tinha
visões, via coisas que não eram normais”.
Tendo perdido o pai aos seis anos, foi criado pelo padrasto - que lhe deu o
nome, algum estudo e o batizou na igreja católica aos 11 anos. Na infância, conviveu
com os avós, descendentes de “bugres”
430
. Recordava que tinha uns oito anos quando
viu pela primeira vez um “feiticeiro”, conhecido como Vovô Paraíba. Certo dia, ele
assistiu aquele negro forte, que andava descalço, atirar milho torrado na água de um rio
e resmungar palavras que ele não compreendia. Depois, descobriu que se tratava de um
benzedor, com quem sua avó – mulher “muito inteligente” - aprendeu a curar. “Foi aí
comecei a ter consciência que existiam essas seitas”. O próprio José aprendeu com a
avó simpatias e benzeduras
431
, das quais ainda lança mão evocando Deus, “o senhor da
natureza”
432
. Como cartomante – arte que passou a dominar fazendo cursos na Capital –
utiliza toda sua gama de saberes. Quando põe as cartas, sente “alguma coisa soprando”
no ouvido. “É uma noção que puxo desde criança, desde o tempo da minha avó”. Essa
sensibilidade parece acompanhá-lo desde a infância, aprendida ou herdada da avó, tal
como feições de um parentesco. Em outro momento, sugere que os poderes nasceram
com ele. “Acho que eu já trouxe esse dom de nascença, sempre fui uma pessoa assim”.
Contava que, quando tinha 26 anos e estava em seu primeiro casamento, quase
morreu afogado durante uma inundação na mina. Naquela época, junto com primeira
mulher, freqüentava uma religião evangélica, opção que foi abandonada em favor da
umbanda. Em seu relato, o vínculo evangélico é visto como o responsável por uma
sucessão de infortúnios, entre os quais a morte precoce da mulher. Com a umbanda,
construiu uma ligação que perdurou quatro décadas, ao longo das quais se construiu
como um pai-de-santo respeitado. Na umbanda, sua principal entidade é o “caboclo
flecheiro”, o “bugre”, como ele denomina. Considerado uma das entidades ligadas à
“natureza”, o Caboclo Sete Flechas “dá a intuição pra gente pra gente ficar alcançando o
que a pessoa tem, o que a pessoa necessita”. Por meio do kardecismo, descobriu a
homeopatia. Na época, um de seus filhos estava doente e foi tratado por um praticante
que combinou o uso da penicilina com compostos homeopáticos. Foi com ele que José
aprendeu sobre a homeopatia. Depois foi estudando manuais, nos quais fazia anotações
430
Denominação local para “índios”.
431
Ele benze com braseiro, com um copo de água e com galhos de arruda.
432
Uma situação etnográfica similar aparece em Duarte et al. (2006b, p. 16) sobre a informante Laura.
279
nas margens. Esses guias de homeopatia ainda estão misturados em suas gavetas com
títulos como Feitiço do preto velho e outros sobre democracia e ciência. Diz que
“deixou de clinicar” porque hoje “quem não tem diploma é considerado charlatão”.
Nos últimos anos, havia abandonado as atividades rituais da umbanda,
mantendo uma atuação profissional na tesouraria da federação. Estabeleceu seu próprio
ecletismo, freqüentando missas católicas, cultos evangélicos – acompanhando a mulher
-, e experimentando recursos tais como mapa astral e promessas ao morto milagroso,
Godoy. José recorreu várias vezes a Godoy, que ele considera ser “um espírito de luz” e
de quem diz conhecer “as façanhas”, seja porque “muita gente lhe contou” ou porque
“teve prova disso”. Num dos pedidos, para a cura de uma ferida que sua mulher
apresentava no pé, depois de alcançada a “graça”, acendeu sete velas e derramou sobre
o túmulo do morto sete garrafas de cachaça. Suas preces fundem diversos aprendizados:
“Eu acredito em um só Deus! Pra mim não tem dois Deus!”. Ele se define assim: “Eu sô
católico, sô umbandista, posso dizer que sô evangélico, eu acredito num só Deus!”
José conheceu sua atual companheira, viúva e mãe de quatro filhos, quando ela o
procurou para que ele lesse sua sorte nas cartas ciganas. Com o namoro, Eva passou a
freqüentar a umbanda no mesmo centro em que ele atuava como pai-de-santo. Ela já
tinha familiaridade com essa religião, praticada por sua mãe. Paralelamente ao novo
relacionamento, ela tornou-se mãe-de-santo e montou sua própria “casa de religião”,
que manteve por uma década. Ela me contava que o constante conflito entre os centros,
que “estavam sempre se bicando”, a “desgostou”: “Tem aquelas demandas, né, a Fulana
está fazendo coisa, tem feitiço ali. O que não quer dizer que seja feitiço... é a tal de
oferenda que se faz, o outro diz que é feitiço”. Depois de ter abandonado a umbanda,
Eva aproximou-se da Assembléia de Deus, igreja na qual havia registrado breve
passagem três décadas antes. Disse-me que encontrou ali forças para enfrentar e vencer
um câncer no intestino. “Tava desviada e tava passando por provações horríveis e,
graças a Deus, depois que me reconciliei com a igreja me senti bem melhor”. Para
romper com o passado – visto então como “um erro” diante do novo sistema de crenças
-, queimou todas as roupas, fotos e objetos rituais que a ligavam ao culto afro-brasileiro.
“Como vamos acreditar numa coisa de barro, num santo de papel?! Eles não falam, são
imagens. Nós temos que crer, acreditar e falar com Deus!”
Ela me dizia ter encontrado seu lugar na Assembléia de Deus, embora sua união
informal com José ainda fosse alvo de discriminações entre “os irmãos na fé”. Antes de
280
ingressar na Assembléia de Deus, havia passado pela Igreja Batista Filadélfia, onde
ouviu do pastor que, para tornar-se membro, ela não poderia continuar “a viver em
pecado”. Mudou de igreja, mas as condenações continuaram. Mesmo assim, persistia na
opção religiosa, tentando conciliá-la com sua relação conjugal, relativizando os
preceitos morais e afirmando sua autonomia para conduzir sua vida pessoal.
Autor de um livro sobre a história da cidade, José continuava a escrever letras
de músicas. Relatava que seu caminho “se abriu” depois de uma consulta com um sábio
que esteve na região e lhe forneceu um mapa astral. Ali descobriu que, numa uma
encarnação anterior, havia sido uma mulher na Ucrânia, no século 13, que era musicista,
escritora e dominava as artes da engenharia. “E esse espírito, hoje, estaria no meu
corpo”. Achava que estava velho demais para tornar-se engenheiro, mas estava feliz por
ter se tornado músico e escritor. Nos intervalos do trabalho como caminhoneiro que se
seguiu ao ofício de mineiro, tomava notas. “É um prazer imenso, sabe? O maior
prazer... que eu sei que a gente vai morrer, mas a minha obra vai ficar rodando pros
vindouros”.
433
Suas reflexões remetem ao tempo eternizado por meio da escrita. José
conjuga traços tradicionais e modernos, valores naturalistas e subjetivistas em mosaicos
que revelam uma peculiar construção de si. Como um mantra, repete que “Deus é um
só”. Mas pode-se dizer que sua religiosidade é “múltipla”. Essa multiplicidade, porém, é
coerente com a filosofia da umbanda (Birman, 1983).
Um dos orgulhos de José é que, tendo estudado até a quinta série, pôde tornar-se
“escritor”, com um livro, Leão mineiro (2001) editado pela Academia de Letras dos
Municípios gaúchos
434
. Conta que escreveu a obra não apenas a partir de sua
experiência, mas também “indagando e especulando a vida alheia, remexendo papéis,
arquivos, coisas antigas e entrevistando pessoas de 90 anos”. Na auto-apresentação
contida no volume, refere-se à função de delegado dos cultos afro umbandistas do
Estado, mencionando ainda ter sido líder sindical e candidato a vereador por duas
vezes
435
, além de presidente de clubes. O fato de que ainda estivesse trabalhando lhe
conferia “muito orgulho de si mesmo”. Considerava-se “bem visto na sociedade” e
“bom amigo de todos”. Já na entrevista não escondia a existência de desafetos, mas
433
Sobre a questão dos relatos autobiográficos escritos de trabalhadores, ver Leite Lopes e Alvim (1999).
434
O convite para escrever o livro foi, na verdade, dirigido primeiro à sua mulher, enfermeira e artesã,
durante um baile da terceira idade. Ela declinou do convite a favor do marido, a quem considerava mais
gabaritado.
435
Depois disso, ainda foi candidato uma terceira vez.
281
referia-se ao livro como forma de reforçar seu prestígio: “Quem gostou de mim, gostou,
quem não quiser, vai ter que engolir, porque o Acadêmico de Minas do Leão sou eu”.
Pensava em produzir outro volume, no qual pretendia continuar escrevendo “a verdade,
doesse a quem doesse”. Uma das suas lutas havia sido contra a instalação de uma
“central de resíduos” na cidade, chamada de “lixão”. Como represália, ele rompeu com
o PDT, partido que aprovou a obra. “Gastei muito par de sapatos pedindo melhorias
para ver o Leão entupido de lixo assim. Quando estavam de calça curta, eu já era
político”. Contou-me que, no regime militar, foi perseguido por questões políticas,
tendo-se mudado para a Capital. Na política, teria mantido a mesma fama de “valente”
referida em relatos sobre antigos confrontos entre os bairros mineiros. José era um dos
“valentes” do Recreio e, verdade ou não, num episódio teria afugentado, manuseando
seu facão, dois adversários armados. Ele prefere não falar nisso. Há quem refira ainda
outro dos seus talentos: o de jogador de futebol de antiga equipe ligada à mina.
5. 4. DO SANGUE E DO SAGRADO
5. 4.1 Ilton: “orgulho” de ser médium e de portar o nome da família
Realizei a entrevista com o ex-mineiro Ilton, 65 anos, e sua mulher, Eva, 61
anos, que se tornaram umbandistas, em seu pequeno mercado localizado junto à antiga
vila mineira e que hoje configura um bairro familiar, ligado ao seu sobrenome, a Vila
dos Freitas. Entre a chegada de um “freguês” e outro – que compravam bananas,
batatas, salsichas, e também chicletes e balas, entre clientes mirins – mantínhamos a
conversa. A família de Ilton foi das primeiras moradoras da vila mineira, tendo chegado
à localidade nos anos de 1940. Com carretas de bois, seu pai transportava madeiras para
a mina. Depois, com terras cedidas pela companhia de mineração, Alfredo Freitas
tornou-se também plantador de arroz. Ilton acentuava que “um filho de mineiro faz
conhecimento da mina, mas eu não era filho de mineiro”. Isso não foi empecilho,
entretanto, para que tivesse uma carreira bem sucedida na mineração, iniciada graças
aos bons contatos que seu pai mantinha na companhia, que propiciaram emprego aos
filhos. “Eu tinha muito mérito na empresa, eu era da mais alta produção”, conta o ex-
mineiro que, ainda jovem, foi promovido a capataz e daí a encarregado. Ilton começou
na mina aos 24 anos, quando já completava três anos de casamento com Eva.
No início da entrevista, Ilton me mostrava um livro sobre a mina escrito por um
pesquisador em etnolingüística (Bunse, 1984), que ele acompanhou nas explorações ao
subsolo. “Eu posso explicar este livro por um monte de sentidos, porque eu
282
acompanhei, eu vivi ele”. Mais de uma vez, ouvi referências dando conta que o texto é
vida “vivida” para um mineiro. Ilton, que figura numa das fotos da publicação, guardava
com desvelo seu exemplar com a dedicatória. Mas se permitia corrigir equívocos da
edição, tal como a imagem de um carro de mina que não corresponde ao modelo usado
em Leão I. Contava que sempre foi “muito exigente” em seu trabalho, mas eu podia
notar que esmero está presente também na forma como se expressa, articulada e
enfática. Outro informante, seu parente, havia me contado que “devia” aos conselhos do
“compadre Ilton”, na época, encarregado de terno, o fato de ter perseverado na mina e
ter conseguido se aposentar.
Por outro lado, seu estilo “exigente”, de exímio cumpridor das obrigações,
antagonizava com aquele de mineiros mais afeitos a uma “honra da malandragem”.
Inicialmente, esses tentavam envolvê-lo brincadeiras, mas quando essas se referiam às
famílias, ele respondia com seu “silêncio”. Contava que os apelidos postos por colegas
“nunca pegaram” - entre eles o de “Goela” ou “Goeludo”, uma referência ao seu tom de
voz. Certa vez, alguém lhe perguntou: “Ô, Seu Ilton, por que o senhor fala gritando?” E
ele respondeu: “Eu tenho pouco estudo, quem sabe seja por isso. Agora talvez porque
fui criado carreteando, com carreta de boi, gritando com o boi, talvez seja por isso
também. Agora, não é por mal-educado. Eu te chamo de ‘senhor’ e tu é mais novo que
eu, te dou todo respeito, todo carinho, todo afeto. Agora, infelizmente, eu falo gritando”.
Mencionava que sempre tratou os mineiros com respeito e que estes, por sua vez, o
consideravam. E é por “respeito” que ele me trata por “senhora”, por “dona”, algo que
se estranha na costumeira informalidade local. Relatava que seu maior orgulho na mina
foi que nunca discutiu com colegas. “Respeito”, “orgulho”, “dever”, “obrigação”,
“trabalho”, “honestidade”, termos usados por ele de forma recorrente, correspondem a
valores de uma honra tradicional rural presentes em sua origem familiar.
Se a senhora me perguntar... que eu acho que a gente tem um dever de
trabalhar, agora nós temos um dever de ser honestos. O meu pai, que isso foi
a coisa que ele mais cobrou de nós, os filhos, ele dizia assim: “Meus filhos, a
gente não é obrigado a nada, agora ser honesto é um dever!”
Outra menção que pontua sua narrativa, tanto para se referir às questões da mina
como à de sua atuação religiosa é a de “merecimento”, como nesta fala:
Eu era muito exigente, eu era exigente. Eu sempre gostei de dar toda a colher
de chá que um mineiro merecia, quando eu via que ele tinha merecimento. Eu
acho que a gente dá todas as condições pra uma pessoa que trabalha, que é
honesto, que é digno, e não se dá a uma pessoa que fica se esquivando [do
trabalho], isso era uma coisa que eu cobrava muito.
283
O envolvimento espírita da família começou em razão de problemas de saúde de
um dos irmãos, que sofria de “ataques epiléticos”. A mãe levou o menino a um centro
espírita em Rio Pardo e lá recebeu a indicação de homeopatas kardecistas em Butiá. Os
filhos iam receber o passe dos médiuns e, por conta disso, tornaram-se espíritas. Mais
tarde, Ilton passou a freqüentar a umbanda na terreira de Bagé e Julieta, próxima à sua
casa. Tinha 13 anos quando foi pela primeira vez a uma sessão. O inesperado aconteceu.
E eu incorporei, dona, nunca tinha feito isso. É, eu incorporei, como
incorporo até agora. Eu nunca tinha ido ali. (...) Ficou todo mundo em volta
de mim, apavorado. Eu era uma criança, cheguei ali, incorporei e fiquei
daquele jeito. Eu marchava como um soldado, pra lá e pra cá, pra lá e pra cá.
Chamou a atenção e aí o padrinho Bagé: “Mas que médium! Meu filho, tu
tem que desenvolver isso”. (...) Ele disse assim: “Esse filho veio para ser
chefe, material e espiritualmente. Ele vai ser chefe na vida material e chefe na
vida espiritual porque ele tem um espírito com muito alcance”. Se a senhora
perguntar, eu tenho o quarto ano [primário]... esse é o estudo que eu tenho
daquela época.
Na sua narrativa, percebe-se que a palavra do pai-de-santo, que reconhece e
legitima a existência do “dom” manifesto pelo menino - como também prediz sobre a
capacidade de liderança que ele manifestaria ao longo da vida - é recebida como
verdadeira “honraria”. A entidade que ele incorpora desde então é um “espírito da
montanha”. Suas capacidades seriam rapidamente confirmadas. No trabalho, ajudava o
pai a administrar os negócios no cultivo de arroz. “Meu pai fazia assim: ‘Eu sei que tu
tem iniciativa, tu toma a iniciativa, tu faz o que tem que fazer”’. Atribui o fato de ter
sido sempre convocado para funções de responsabilidade ao seu “espírito adiantado”.
Sua liderança era reconhecida não apenas no âmbito profissional, mas no religioso e
familiar e, ainda, na direção de um clube de futebol ligado à mina. Ao procurar a
umbanda, Ilton enfrentou a reação da mãe.
Ilton - A primeira vez que eu fui, eu cheguei em casa e quase apanhei dela [da
mãe]. Ela me disse: “Tu tá metido nessas porcarias?!”. “Ô mãe, eu até fui lá
junto com um parente nosso, nem sei nem contar pra senhora”, eu disse pra
ela. (...) Meu pai levava ela às vezes na Alan Kardec, essas coisas lá. Mas
aquilo ali pra ela era uma outra coisa, muito diferente, né. Até ali, os
conhecimentos que nós tínhamos era de Alan Kardec. Ali já era caboclo, né,
índio, bugre, preto-velho, essas coisas... Nas suas costas ali tem um preto-
velho, heim. Dá uma olhada pra ver se não tem um ali. Tá ali ele.
Eva – Não tem perigo...
Ilton – Não, ela sabe que não tem.
- Fui numa sessão de umbanda dias atrás. Foi a primeira vez. Foi bonita.
Eva – Aqui? Maais!
Como se pode acompanhar acima, meu informante interrompe sua narrativa
quando percebe uma entidade, um preto-velho, perto de mim. Em mais de uma ocasião,
284
os “dons” se manifestavam na interação etnográfica. Depois da pausa, eles me contavam
que começaram seu namoro a partir dos encontros na terreira – com muita discrição.
Eva também começou a freqüentar a terreira ainda menina. Recorda-se que os pais
tinham o costume de abrigar em casa pessoas que apareciam no centro precisando de
ajuda: “Eles não tinham onde ficar e meu pai e minha mãe acomodavam, davam
comida, banho e ajeitavam até que melhorassem, né, pra depois irem embora”. Mais
tarde, Ilton e Eva realizaram seu casamento no centro dirigido por Bagé, no qual
continuaram atuando como médiuns por décadas. Nos últimos oito anos, depois de um
desentendimento com a mãe-de-santo, passaram a trabalhar num centro “cruzado”: “Ela
veio aqui e me xingou, ela me disse coisas que eu sei que eu não sou. Se a senhora
perguntar, nem assim eu odeio ela. Esses dias, ela me chamou e eu fui lá atender ela e o
filho”. Diz que os laços de afeto continuam porque as famílias se tornaram próximas
pela convivência espiritual. Em seu relato, o cotidiano da mina servia como pano de
fundo para a doutrinação que faz no centro.
A senhora sabe que eu acredito tanto em Deus... que os mineiros, quase todos
os mineiros sabiam que eu era espírita, mas eles diziam assim... Eu cansei de
ver uns dizendo pros outros: “Como é que parece que este velho sabe onde
está o problema?” E eu dizia pra eles: “Não é por nada, é que eu sou espírita”.
Se perguntar (...) eu não prevejo a vida de ninguém, eu não acredito nisso. Eu
sou espírita que prego as coisas com amor. Eu acho que se consegue com
amor, com verdade, sem a verdade não se vai a lugar nenhum. (...) Eu acho a
mentira tão triste que eu digo que, com a mentira, ela vai só até a hora que
chega a verdade. Ela só tem poder de isso ou aquilo enquanto não chega a
verdade. (...) Mas o que eu cobrava muito do mineiro era isso: “Não minta”.
Porque eu acho que a mentira é triste. Por isso que eu digo que eu sou
espírita, porque pra mim Deus é um segredo. E esse mesmo segredo eu
coloco dentro do espiritismo, compreende? (...) Tudo o que a gente faz ao
próximo, a gente faz a si mesmo. A gente nunca sabe pra dizer assim: “Eu fiz
com Fulano ali e ele vai ter que me retribuir”. Nãao, o que é isso? Eu fiz
porque é um dever e uma obrigação.
Ele sabia que num universo como o da mina, “verdades”, “mentiras” e “meias-
verdades” estavam sempre disputando lugar na interação cotidiana, fosse pela cultura
que valoriza a esperteza e a malandragem, fosse pela solidariedade entre os
trabalhadores, que vêem com maus olhos o delator, o dedo-duro. Sua doutrinação em
torno da “verdade”, do “amor” começava ali, entre os operários. No centro Manuel
Botafogo, ele ocupou funções de responsabilidade: “Ali fui presidente, orador, chefe,
auxiliar do chefe da terreira, tudo eu fui”. Em Butiá, também foi fundador do centro
Alan Kardec. Chegou a pensar em fundar uma sociedade espírita em Minas do Leão,
mas desistiu do projeto e passou a atuar na umbanda. Relatava que “só tem orgulho de
285
ser umbandista”, que o “maior mérito” que recebeu na vida foi a revelação sobre sua
mediunidade feita pelo pai-de-santo Bagé. Havia circulado em muitos centros, mas
considerava que quele foi “o melhor médium” que conheceu. “Mé-di-um, ele era um
médium com muito alcance”, enfatiza, desmembrando as sílabas. “Neste lugarzinho
aqui, dona, não tinha doutor, não tinha nada, só tinha o velho Bagé (...). Quase todo
mundo ia ali”. Ele exibe sua satisfação com o trabalho de médium indo às sessões todo
vestido de branco, “bem arrumado e perfumado”.
Tenho um orgulho... se tem uma coisa que eu tenho orgulho de ser é um
médium. A única coisa que eu tenho orgulho nesta vida é de fazer parte da
minha família e da minha religião. Como eu já disse: Deus é um segredo
tão grande, né. Certas religiões correndo, querendo desvendar, muitas
gritando na rua, aí eu paro pra olhar assim ó... Essa é tão diferente, a minha
é tão humilde, tão simples. (...) Se Nossa Senhora foi a uma manjedoura pra
ganhar Jesus, ela foi nos provar que com humildade e simplicidade
podemos chegar à verdade.
Chama a atenção o orgulho manifesto pela família e pela religião – esta última,
particularmente, que leio como a expressão de uma “honra do sagrado”. Ele evocava
assim a dignidade que se ancora nessas duas identidades: de espírita e pertencente à
família Freitas. Em seu relato, elas se sobrepõem até mesmo à condição de mineiro que,
no entanto, engendra forte identificação. Ilton não tentava convencer familiares nem
vizinhos sobre sua crença. Quando um de seus irmãos, que freqüentava a umbanda,
converteu-se a uma igreja evangélica, acompanhando a esposa, Ilton foi cumprimentá-
lo: “Isso é o que a gente faz, a gente procura viver uns com os outros em harmonia”.
Avaliava que a conversão do irmão à igreja da mulher seria uma forma de fortalecer sua
relação, mencionando que sua união com Eva deu “tão certo” porque compartilham
crenças. Ele considerava que, ao longo da vida, “satisfez todos os seus egos”.
5. 4.2 Leda: “Faz bem pro ego se deixar moldar pelo que a Bíblia diz”
Conheci o ex-mineiro Ademar, 66 anos, quando ele bateu à minha porta, em
Minas do Minas do Leão, divulgando a igreja Testemunhas de Jeová. Eu já tinha ouvido
falar dele tanto em comentários que elogiavam sua performance futebolística no antigo
Atlético Mineiro F.C.
436
como naqueles que davam conta de seu pertencimento
religioso, referências por vezes indissociáveis. Ademar, criado pela mãe e com poucas
condições financeiras, mudou-se para Minas do Leão para jogar na equipe de futebol e
trabalhar na companhia. Nessa época, conheceu Leda, filha de mineiro e cujos irmãos
trabalhavam na mina. Eles se casaram e tiveram quatro filhos.
436
O percurso esportivo de Ademar é analisado no capítulo 7.
286
Na entrevista, contavam que a aproximação à igreja aconteceu em 1973. Certo
dia, enquanto Ademar estava na mina, Leda recebeu a visita de duas pregadoras.
Fascinada pelo que ouviu, solicitou uma nova visita para uma ocasião em que o marido
estivesse presente. Ainda que estivesse procurando um caminho espiritual, Ademar foi
relutante à primeira aproximação. Naquele período, estava freqüentando a Assembléia
de Deus, a primeira igreja evangélica a se instalar na vila mineira, e já começava a
“criar raízes”. Segundo conta, “achava que pra Deus, criador do universo, tinha que ter
algo em algum lugar, tinha que ter algo diferente...” Nesse período, ia sozinho aos
cultos. Nisso não havia conflito. Uma prática que sua mulher não gostava era o seu
ritual de colocar um copo de água em frente ao rádio para ser abençoado nas emissões
evangélicas. Depois, o ingresso na nova igreja mexeria profundamente com a vida
deles, como conta Leda:
Olha, eu sempre fui uma pessoa assim ó, que me perguntava muito,
entendeu? Por que isso? Por que aquilo? Sentia muita curiosidade de saber
mais sobre Deus. Eu nunca tinha lido uma Bíblia, ele sim. Ele tinha
encomendado uma Bíblia pra nós termos em casa, né. E alguma coisa lá que
ele leu a gente entendeu, no livro Gêneses mesmo. Mas não foi suficiente
para satisfazer minhas curiosidades, meus desejos de conhecer Deus melhor,
né. Aí em 1973, eu tive a visita de duas moças e então através dessa visita foi
marcado um estudo da Bíblia e daí eu tive todas as minhas dúvidas, as minhas
perguntas respondidas com a Bíblia. Isso aí que me fascinou. (...) Hoje os
porquês acabaram, não me pergunto mais nada, a Bíblia satisfez todas as
minhas curiosidades, passei a ver, a perceber que a Bíblia fala de passado,
presente, futuro, né. E passamos nós aqui, como família, a encarar a Bíblia
como um mapa nessa vida, um mapa que realmente nos conduz a um
caminho que não nos desapontará.
Começaram a freqüentar o Salão do Reino na cidade de Butiá (mesmo local da
prática atual) e a participar de grupos de estudos. Nos preceitos da igreja, a família tem
um valor central, com a condenação do adultério e do divórcio
437
. Como diz Leda, a
Bíblia passou a ser encarada como um “mapa”, inclusive na criação dos filhos - três
rapazes e uma moça. Ela mencionava que, na infância, seus filhos eram como as outras
crianças, peraltas, travessas. Então, Ademar costumava mostrar para eles o que estava
escrito na Bíblia, “sobre a ordem que Deus dá aos pais para ensinar aos filhos a lei
Dele”. Acreditava que isso ajudou na sua educação, porque “eles passaram a encarar a
Bíblia como uma autoridade”. Com exceção do filho mais velho, que aos 18 anos
deixou de freqüentar a igreja, os outros são adeptos. Quando o casal se converteu, nos
anos 1970, a reação dos parentes não foi muito diferente da dos “estranhos”: da
437
Ver Testemunhas de Jeová: Quem são? Em que crêem? (2000, p.22).
287
desaprovação ao silêncio reticente. Ambas as famílias eram católicas. Leda recorda que
seu pai não gostou nada da notícia, mas, com o tempo, a escolha foi sendo respeitada.
A maior dificuldade foi enfrentada no cotidiano de trabalho de Ademar. Num
universo que valoriza a malandragem, era difícil a aceitação de um mineiro “crente”.
Ele foi alvo de zombarias dos colegas. Sua mulher recordava-se que numa ocasião
alguém riscou na bicicleta nova do marido a palavra “Jeová”. O desprezo manifestado
nas zombarias e o sofrimento gerado por essa discriminação eram ressignificados,
reforçando a fé. Como Ademar foi promovido a postos de comando, primeiro a capataz,
depois a encarregado, passou a ser respeitado, senão pela religião, mas pela condição
hierárquica. A admiração veio posteriormente, como indica esse relato.
Tem um rapaz que é da Jeová, o Ademar, foi meu encarregado da mina. Era
uma pessoa assim, tinha um instinto gozado, diferente. Ele era aquela pessoa
que tu perguntava uma coisa pra ele e ele sempre discordava, ele nunca
concordava contigo. (...) Tava fazendo uma coisa e ele não chegava e dizia
assim: “teu serviço tá bem feito, tá tudo certo”. Não, ele dizia “o serviço tá
errado”. (...) A gente tinha consideração com ele. (...) Eu não dava muita
importância, tu entende. Conversava com ele: “Tudo bom?”, “Tudo bom”.
Mas era complicado por isso. E esse cara se doutrinou-se de uma forma....
evidente que não vou dizer que seja a melhor, nem que seja a pior. Mas ele se
doutrinou, ele se identificou tanto com essa religião dele, que hoje ele chega e
(...) então nós nos abraçamos. Eu já tenho outro respeito por ele, né, porque
ele agora é uma pessoa que presta serviço a Deus, é uma pessoa de bem.
Então, geralmente eu já trato ele com outro...”Meu amigo Ademar, que prazer
te ter na minha casa!”. “Eu vim trazer o folhetinho da minha religião”, “Ah,
esse folheto é muito importante”, isso e aquilo. Eu já trato ele assim, ó Marta.
Mas a religião já doutrinou ele de uma maneira que é uma outra pessoa. E já
meu respeito por ele é de outra maneira, né.
Nos comentários do ex-subordinado, a categoria “respeito” é central. Agora, o
pregador encontra receptividade. O próprio Ademar notava a mudança: “Agora, eu
estou passando a ser ouvido, até na família”. Mas dizia que o mérito não era seu. “É
mérito do Criador”, completava Leda.
Um vizinho, o ex-padeiro Osvaldo, me contava sobre a satisfação que teve em
fazer um “curso de Bíblia” com Ademar ao longo de um ano. Não se tornou adepto da
religião, mas acreditava que “melhorou” como pessoa: tornou-se mais “amoroso” com
os netos e passou a ver as coisas “com certa distância”. Recordava-se de que, anos
antes, sua filha havia lhe perguntado onde estava a felicidade. Na época, ele não soube o
que responder. “Esse curso me deu uma dimensão mais exata das coisas, percebi que
cada pessoa é importante”. Um exemplo que me dava é que a paixão, o “fanatismo”
288
pelo futebol e pela política
438
, gerador de frustrações e de inimizades, mudou de feição e
foi convertido em “simpatia”. Depois dos estudos bíblicos, passou a considerar a
“humildade” uma das maiores qualidades. Os laços entre os dois vizinhos são de longa
data. Foi um irmão “de criação” de Osvaldo que incentivou a mudança de Ademar para
a vila mineira, quando ele foi contratado na mina. Osvaldo nutre admiração pela família
do amigo: “Eles têm uma alegria pura, natural, verdadeira”.
Leda enfatizava que um dos aprendizados na religião havia sido o de entender o
ponto de vista do outro: “Não somos melhores do que ninguém. Temos de respeitar
todas as pessoas e elas têm livre-arbítrio”. Mencionava que “faz bem pro ego saber que
se deixou moldar pelo que a Bíblia diz”, ou seja, renunciar a seus próprios impulsos e
desejos para seguir um modo de vida superior, mais espiritualizado. O marido explicava
que o modo de vida tem que condizer com a mensagem que carrega uma Testemunha de
Jeová, pois não seria possível levar “um modo de vida inferior e conduzir uma
mensagem séria”. Isso seria como enganar a si mesmo, apresentar “uma fachada”, já
que o íntimo não se está de acordo “com o que Jeová quer”. A esposa contava que
muitas coisas mudaram de perspectiva, mencionando o “pavor” que tinha em relação à
morte. Em outros tempos, mantinha angústias e inquietações com o trabalho do marido,
no subsolo da mina, enfrentando o risco de acidentes. Quando ela descobriu que, de
acordo com os preceitos bíblicos, a morte terá um fim, mais “apego” teve pelos
ensinamentos. Pessoalmente, o que mais a fascinou foi esperança sobre a “mudança que
haverá”, a passagem prometida para um mundo melhor. Leda me contava que
aprenderam a lidar com a discriminação: “Às vezes, nos recebem mal, mas não temos
ódio; a gente passa a entender o lado deles”. A filha do casal, Miriam, mencionava outro
preconceito, expresso no fato de alguns pensarem que eles recebem dinheiro da religião.
Esclareciam que seu trabalho é voluntário e sem remuneração.
Em sua experiência cotidiana, Ademar e Leda enfatizavam a renúncia a valores
que costumam engrandecer as formas de honra. Em uma brochura da sua igreja, uma
citação bíblica (Timóteo 3: 1-5) previa sobre tempos nos quais os homens seriam
“amantes de si mesmos”, do dinheiro, seriam “pretensiosos”, “soberbos”, “teimosos”,
“orgulhosos”, mais amantes dos prazeres do que amantes de Deus, recomendando que o
fiel se afaste disso. No discurso do casal, há, igualmente, a ênfase nesta renúncia aos
desejos pessoais, manifestando a satisfação de que o ego seja moldado pela Bíblia. O
438
Sentimentos compartilhados por seu irmão, Zé Custódio, cuja trajetória está no capítulo 7.
289
“apego”, dizia-me Leda, passa a ser com os ensinamentos bíblicos. Por mais que seu
exemplo nos sugira uma forma de “contra honra”
439
, uma negação do valor atribuído à
honra, parece nos remeter igualmente à antiga raiz da “honra-virtude”, relacionada ao
aspecto ético da honra
440
, que não espera reconhecimento, nem deseja honrarias.
5.4.3 Hermes: a herança do ofício e da religião
Nesta trajetória, reflito
sobre a “transmissão”
de valores familiares na
vida de um trabalhador
que não se limita ao
aspecto religioso, mas
que engloba sua
identidade e sua visão
de mundo de forma
mais vasta. O ex-mineiro Hermes, 55 anos, me contava que “herdou” do pai não apenas
o ofício de mineiro de subsolo, cuja vocação considera estar “no sangue”,
caracterizando a “patrilinhagem” (Eckert, 1995), mas também os saberes e a iniciação
na umbanda. Tais elementos se fundem em sua narrativa remetendo-nos a uma reflexão
em torno do que seja o “religioso” e possibilitando leituras que deslocam a dimensão do
sagrado para outras esferas da vida. Na definição de Lucas (1981) trata-se também de
considerar como pano de fundo o “santuário” da mina, a partir do qual os trabalhadores
vivenciavam sua “religião da vida cotidiana”.
Nas primeiras entrevistas que me concedeu, em 2003, ainda para a pesquisa de
mestrado, Hermes contava que, antes de ser mineiro, “não tinha plano na vida”. Dizia
ter seguido uma espécie de curso da natureza: “Acho que a gente já traz no sangue de
ser mineiro, filho de mineiro”. Essa “natureza” que seu discurso evoca combina tanto o
elemento do sangue, do parentesco, como remete a uma espécie de essência, de vocação
profissional, transmitida de pai para filho. Em agosto de 2006, ao recontar sua vida,
meu informante agregava outro elemento significativo sobre sua trajetória: relacionou
seu ingresso na profissão de mineiro ao casamento. “Não queria ir para a mina, mas pra
439
Bellet (1992, p.165) adota essa expressão em outro sentido.
440
Ver Pitt-Rivers (1992, p.22), que diferencia a “honra-virtude” da “honra-precedência” e, ainda
Belorgey (1992, p.150-151), na distinção entre “honra-virtude” e “honra-estatuto”.
290
oferecer uma vida melhor pra família me tornei mineiro”
441
, disse ele, explicando que o
trabalhador em mina de subsolo tinha uma remuneração superior à de outros operários.
Ele contava que “criou-se na religião”. Cuidando com dificuldades de uma
família de oito filhos, dois deles com problemas de saúde, seu pai foi aconselhado por
um irmão a procurar a umbanda. Inicialmente descrente, reagiu assim à sugestão: “Tu
quer levar, tu leva, mas se médico que é médico não cura, tu acha que esses homens vão
curar?” Um dos filhos sofria de “ataques”, depois dos quais “ficava como morto”, e o
próprio Hermes, com um sério “problema nas vistas”, já estava num hospital na Capital
para ser operado quando o pai foi retirá-lo para ser tratado por um pai-de-santo. A cura
dos filhos convenceu o velho mineiro – antes desconfiado com esses cultos – a ingressar
na umbanda. Continuou a freqüentar a religião depois que, viúvo, casou-se com uma
mulher, também viúva. Da nova família de dez irmãos, Hermes foi o único a perseverar
na religião herdada do pai. Duas das irmãs já tiveram ligações com o culto e uma delas
continua a freqüentar esporadicamente. Meu informante afirma conviver sem conflitos
com parentes, amigos e vizinhos de outras religiões, embora o preconceito possa vir de
fora: “Porque nós somos da umbanda, do saravá, do batuque, acham que batuqueiro só
faz o mal, né, e não é. Eu tenho pra mim que, às vezes, é mais fácil um católico ou um
crente lançar um ‘mau olhado’, fazer feitiço do que um feiticeiro”. Dalva, sua mulher,
partilha da mesma crença. Ela e o marido já foram em cultos evangélicos, convidados
por vizinhos. Essas visitas serviram apenas para confirmar sua opção: “Eu gosto mais
da minha religião. Cada um tem o seu instinto, cada um tem seu instinto”, define a
esposa, esboçando um liame entre a forma do sagrado e uma espécie de natureza que
seria específica de cada ser humano, como a dizer que cada um tem o seu jeito, a sua
preferência, para a qual há uma religião mais adequada. Nesta combinação de fatores o
pertencimento religioso parece estar mais relacionado a elementos natos, da própria
pessoa, do que a uma escolha subjetiva consciente.
Hermes e Dalva conheceram-se numa festa “da religião”. Desde a adolescência,
ela freqüentava um centro de umbanda junto com a mãe e as irmãs, onde incorporava
Oxum. Segundo o marido contava, depois daquela festa “em 11 meses tinha namorado,
contratado e casado”. Não apenas os saberes em torno da religião e do ofício de mineiro
ele aprendeu com o pai, mas também foi dele que recebeu os primeiros conselhos sobre
a vida conjugal, que devia ser calcada na autoridade do marido. Quando decidiu casar-
441
Esta situação se aproxima da encontrada por Leite Lopes (1976, p.175) entre os operários do açúcar.
291
se, pois andava cansado da vida de solteiro, procurou o pai para comunicar sua decisão.
O progenitor fez sua avaliação: “Casamento é muito bom nos três primeiros meses.
Depois disso, a mulher quer mandar no homem. Se o homem não se impõe, a coisa
nunca mais se endireita”. Ele considerou sábio o conselho paterno e afirma ter lançado
mão dele quando sua mulher “tentou pôr as manguinhas de fora”. O casal falava de
tensões do passado lançando mão do riso e das brincadeiras. Juntos há mais de 30 anos,
com duas filhas, consideravam que seu êxito no casamento estava vinculado ao fato
partilharem os valores da sua religião. Mas não apenas: sua cumplicidade incluía
divisão de tarefas domésticas e parcerias em bailes.
Assim como a conversão de seu progenitor foi em decorrência da necessidade de
enfrentar problemas de saúde dos filhos, também a confirmação da eficácia da crença de
Hermes e Dalva deu-se em momentos cruciais relacionados à vida familiar. Ele
recordava que a religião foi seu recurso quando sua filha mais nova era bebê e ficou
doente. Depois de percorrer hospitais sem que a menina melhorasse, levou-a a uma
terreira de umbanda. Além de aconselhar leite em pó ou de vaca, o pai-de-santo receitou
chás, homeopatias e um caldo feito de pintinhos. Para o pai, foi isso que “equilibrou” a
criança. No aspecto profissional, mencionava que sua crença o protegeu de acidentes
graves num cotidiano da mineração no qual perdeu muitos companheiros. Ele resume
assim: “Foi noventa e nove por cento a religião e o homem velho lá de cima, que esse é
o principal. A fé remove montanhas”.
No entanto, “não ser fanático” é considerado um valor. Limitam-se a freqüentar
a terreira da nação para “uma limpeza” anual. Semanalmente, costumam acender velas e
colocam um pote com água e mel para “adoçar” os pedidos que dirigem a entidades
como Nossa Senhora da Graça, Menino Jesus de Praga, Nossa Senhora de Fátima,
Xangô e Oxum, que traduz o sincretismo presente na vida familiar.
442
Em agosto de
2006, quando estive hospedada em sua residência, me mostraram o vídeo da festa de 50
anos de Dalva e da comemoração aos 31 anos de sua união, realizada num Centro de
Tradições Gaúchas (CTG). Na festividade que reuniu parentes, amigos e vizinhos, o
casal tinha trocado novamente as alianças, recebendo a bênção do padre católico. Na
juventude, havia se casado “na igreja católica, no civil e na religião (na umbanda)”.
442
Sobre o aspecto do sincretismo, ver Ortiz (1978).
292
5. 5 DOS CONFLITOS COM A HERANÇA FAMILIAR
5. 5.1 Acimar: uma briga travada contra a “brabeza”
Quando fui visitar o mineiro Acimar, 52 anos, e sua mulher, Vânia, 50 anos, eu
havia escutado sobre os conflitos que ele enfrentou na companhia de mineração.
Ocupando desde jovem a função de supervisor, equivalente a encarregado, ele havia
vivido na pele o drama de ter “ficado na geladeira” porque pertencia a um partido que
fazia oposição ao da direção da estatal em determinada gestão. Foi atingido moralmente
ao ser confinado numa saleta sem lhe fosse confiada qualquer atividade. Ele, que
sempre lutou por suas idéias, como o irmão sindicalista, naquele período teve de lutar
contra a depressão. Tinha sofrido retaliações não apenas devido às suas posições
políticas, mas também a seu temperamento.
Uma coisa que eu sempre tive foi coragem. E então eu sempre enfrentei os...
Eu sempre tive o costume de dizer que, de mim, podia esperar um tiro na
testa ou uma facada no peito, né, mas não nas costas. E aí eu fui arrumando...
com essa minha filosofia de vida aí, essa minha maneira, eu fui arrumando
inimigos no meio do caminho, claro, que tu tem os adversários, né.
O supervisor, por vezes, era visto por colegas como “petulante”, “salvador da
pátria” (em referência a uma novela televisiva da época), porque defendia um projeto de
exploração de carvão a céu-aberto em áreas parcialmente mineradas no passado e que
representaria uma significativa economia de custos em relação à extração do subsolo.
No entanto, antes do fechamento, o próprio subsolo foi custeado por esta extração.
Filho de mineiro, Acimar perdeu seu pai assassinado quando tinha seis anos. Sua
família morava no bairro Recreio, num tempo em que dimensão da violência
atravessava o cotidiano da vila mineira. Ele me contava que, na década de 60, a diversão
de fim de semana eram as brigas de rua no Recreio. “Os homens eram do tipo de filme
americano, da busca pelo ouro, que chegavam em casa bêbados e batiam nas mulheres”.
Costumavam andar em grupos. Numa ocasião, um desses grupos passou por sua casa e
os cachorros se alvoroçaram. Um sujeito gritou, do lado de fora: “Vontade de dar um
tiro neste cachorro e na cara do dono”. Com a provocação, o pai de Acimar saiu de
dentro de casa e foi surrado a pauladas. Depois de algum tempo, foi socorrido por
alguém que o levou para casa, com muitos cortes pelo corpo. Não quis dar parte na
delegacia e não procurou atendimento médico. Desenvolveu tétano e morreu poucos
dias depois, aos 35 anos. Depois da morte do pai, a família passou por sérias
dificuldades. Anos mais tarde, sua mãe se casaria novamente com um viúvo, pai de oito
filhos, entre eles, meu informante Hermes. O menino Acimar, como os irmãos, seria
293
criado freqüentando a terreira de umbanda, um culto que abandonaria ao crescer.
Paralelamente, a família participava de celebrações e ritos católicos.
Na adolescência, ele alimentava o desejo de se vingar do assassino do pai – o
homem era considerado um dos “valentes” da localidade. O rapaz tinha inclusive
comprado uma arma, que foi descoberta pela mãe e a quem teve de prometer que
desistiria daquela idéia. Deixou de lado o projeto quando começou a namorar Vânia, ex-
colega de escola. Eles casaram e tiveram três filhos, adotando, posteriormente, um
menino de sete anos que Acimar conheceu durante os trabalhos de mineração no
Recreio, junto a uma vila que abrigava famílias em condições miseráveis. O garotinho e
o irmão costumavam ir à área de mineração para receber comida dos mineiros. “A gente
tomava café lá e repartia com eles”. Algum tempo depois, o trabalhador e a criança se
tornaram pai e filho. Como me dizia seu irmão, Ademar, também funcionário da
companhia, referindo-se a esse gesto: Acimar “é muito bondoso”. A adoção do menino
foi um projeto partilhado pela família. Mas, antes, mudanças importantes aconteceriam.
Acimar me contava que foi “viciado” em jogo de cartas. Saía da mina, passava
em casa, avisava a mulher que ia jogar e “não tinha hora para voltar”, uma rotina
bastante comum entre os homens da localidade. Até que, numa ocasião, ele teve um
desentendimento num jogo de cartas e ficou “envergonhado” com sua atitude.
Eu desacatei, eu puxei... eu provoquei briga. E eu fiquei envergonhado com
aquilo ali, que tava o prefeito, tava... tava algum vereador. Pessoas da
sociedade aí, amigos meus, e até não levaram muito em conta aquela minha
burrada ali. E eu, quando eu saí do jogo de cartas, eu tinha um Escort do ano,
eu bati na direção daquele carro e pedi pra Deus: “Senhor, me livre disso aí,
eu não era assim, agora estou ficando revoltado...”
Conforme seu relato, a presença de “pessoas da sociedade” no momento em que
aconteceram as discussões de jogo, tornava ainda mais constrangedor para ele o impacto
que o evento podia ter sobre sua reputação. No dia seguinte, conversando com um
técnico agrícola de outro estado, com quem trabalhava numa atividade paralela à mina,
uma lavoura para o cultivo de melancias, descobriu que o outro freqüentava uma igreja
evangélica na sua terra. Como não conhecesse a cidade, pediu para Acimar acompanhá-
lo num culto da Assembléia de Deus. Meu informante foi à igreja com o amigo e, neste
dia, não foi jogar cartas, repetindo-se a ida ao culto mais de uma vez na semana.
Quando chegou sexta-feira, estava ansioso por voltar a jogar. Passou em casa, pegou o
talão de cheques e disse à mulher: “Olha, estou indo na igreja, mas não sou crente, hoje
vou jogar uma carta e não venho tão cedo”. Em geral, no jogo de cartas ganhava mais
294
do que perdia, considerando que talvez isso se devesse à sua sorte e a “um pouco de
habilidade por jogar todos os dias”. Outro fator era o poder aquisitivo para “apostar e
blefar no jogo de pôquer”. Naquele dia, aconteceu um fato estranho.
Acimar - E eu tô pegando aquelas cinco cartas e me deu assim uma...
Fiquei surdo, eu não ouvia o que as pessoas falavam, eu só via o
movimento da boca delas. Mas aquilo ali veio como câmera lenta, quando o
cara dá cinco cartas, parecia que o cara fazia assim... (mostra com as mãos).
E eu queria pegar aquelas carta rápido e não conseguia. E aí me veio na
mente assim: “Não vou jogar mais”. Aí eu botei as cartas de volta, que eu
tinha comprado 50 reais em fichas. E eu disse: “Olha, vocês me desculpem,
mas eu não vou jogar mais”. (...) Levantei e fui embora, meio invocado
com aquela atitude ali. Aí eu entrei aqui (no pátio da casa) Sabe, quando a
gente vai enfrentar uma fera, a gente tem que se posicionar ... de grande, né.
(...) Eu cheguei aqui nesses degrauzinhos, a Vânia tava aqui embaixo,
fiquei maior, né (...), eu disse pra ela: “Ò, a partir de hoje, não vou jogar
mais”. Aí ela disse assim “Ah, meu marido, vou acreditar nessa, mas tu
sempre diz e nunca cumpre, já falou isso aí várias vezes”. “Não, agora eu tô
te falando, não vou jogar mais”. E aí depois daquele dia não joguei mais.
- Aquilo te pareceu uma mensagem? O que era?
Acimar – Me pareceu algo assim espiritual. Porque eu lembro que eu saí de
lá e fui me dar conta aqui no portão de casa do dia que eu pedi pra Deus pra
me tirar daquilo ali. (...) Aí no dia que eu fui tomar uma decisão na igreja
de... ver se era o meu lugar ou não, eu pedi assim pra Deus, eu fui lá na
frente e pedi: “Senhor, eu vou decidir se vou me batizar aqui, se for o meu
lugar aqui, o senhor me mostra”. (...) E eu me senti dentro daquele carro ali
pedindo pra Deus pra me mudar, né, então eu não tive dúvida, eu fui pra
igreja. Hoje sou presbítero da igreja.
No relato acima, Acimar contava sobre o caminho percorrido para deixar o jogo
de cartas e ingressar na igreja. O casal começou a freqüentar junto a Assembléia de
Deus em janeiro de 1996, dois meses depois estava sendo batizado. Os filhos mais
jovens os acompanham, já as filhas consideram que há exigências difíceis de serem
cumpridas. Acimar me explicava que a função que ele ocupa hoje na igreja é de um
ministério bem elevado – a hierarquia compreende as funções de auxiliar, diácono,
presbítero, evangelista e pastor. O presbítero pode realizar casamentos, funerais e outras
cerimônias. É exigida do presbítero “certa doutrina”, “de não se envolver em
beberagem, em reuniões onde possa se comprometer, que possa dar atrito”, como em
bailes tradicionalistas. Se o praticante for casado, deve ser fiel à esposa e não se
envolver em adultério. Como definia, “tem uma reputação a zelar”. Ele contava que, no
seu caso, enfrentava “uma luta muito grande consigo mesmo, com a brabeza”, com o
temperamento, com a personalidade forte que julga ter herdado do avô materno, um
homem que foi ordenança do general Zeca Neto na Revolução de 1923. O
temperamento do avô era o de “não se dobrar”, “não dar o braço a torcer”,
295
características consideradas como virtudes masculinas e que compõem certa honra
tradicional na comunidade. “Ele era assim e a gente tem essa herança”. Em seu relato,
tal traço dizia respeito, principalmente, à resistência em situações de injustiça. Neste
sentido, mencionava um episódio no qual afrontou um engenheiro da companhia para
que um operário idoso que era seu subordinado, com sérios problemas de saúde na
família, pudesse expor ao engenheiro seu drama e solicitar as férias de que necessitava.
Mas, por outro lado, insistia sobre a disposição violenta, mencionando que foi
Vânia que o ajudou a mudar, dissuadindo-o, por exemplo, de perseguir o assassino do
pai - que chegou a ser preso, mas por pouco tempo. Ele recordava que, há muitos anos,
estavam na cidade vizinha e reconheceram aquele homem.
Eu fui estacionando o carro assim numa rua e ele vinha passando. Ele tinha
porte de arma, sempre foi protegido da polícia, e aí quando eu olhei, ele
olhou pra mim e fez assim... (um gesto com o dedo indicador, como se
apontasse o revólver). Eu vi o revólver, ele usava destapado. Ai eu saí pra
fora do carro, que a Vânia tava. (...) [Estavam ainda a filha pequena e a
sogra]. Eu tinha uma faca no banco de trás. Eu disse pra ela: “Vânia, ele vai
me dar um tiro, mas se ele errar eu vou...” Ele passou na rua onde nós
estávamos e entrou na esquina. Dobrou na esquina, passou reto. (...) Aí
pensei: “A briga tá atada de novo”.
Dias depois, Acimar foi a Porto Alegre e comprou um revólver. Explicava que
comprou a arma para “se defender”, mas acreditava que, no fundo, queria que o outro
reagisse “para matá-lo em legítima defesa”. Tempos depois, estava na cidade vizinha e
viu aquele homem na parte mais baixa de uma escadaria. Começou então a descer, com
a mão dentro da bolsa em que estava o revólver. “Eu desci cuidando ele pelo sol, pela
sombra dele. ‘Se ele se mexer ali, vou atirar nele’. Eu desci, ele olhou pra mim, não me
reconheceu. Aí pensei, ‘isso não vai dar em nada’.” Depois que se converteu à religião
evangélica, um dia, freqüentando o templo em Butiá, viu o assassino do pai num dos
primeiros bancos da igreja. Ele já estava velho e doente. “Eu te confesso que me deu
pena dele e naquela hora ali eu perdoei ele. E foi bom, porque saiu aquele... aquela
mágoa, aquela coisa que eu tinha”. Relata que até teve vontade de falar com o sujeito,
mas depois pensou que o outro poderia reagir pensando que ele quisesse matá-lo. Viu-o
tão fraco que, naquelas condições, mesmo um soco o mataria. Cerca de três meses
depois, soube que o homem havia morrido. Acimar me dizia que “a história tinha se
encerrado por ali”. Ele mencionava que só havia contado esse episódio na igreja, pois
em função de “uma tradição da família de ser machão e tal”, ficou com medo de ser
mal-interpretado e que as pessoas pudessem dizer: “Ele amarelou aí, agora que ficou
296
crente ficou bobalhão...”. Então, preferiu guardar consigo. Mesmo que seja movido
novos valores, que sua honra seja agora relacionada ao sagrado, uma tradição familiar -
que dita que um homem deve ser corajoso, impetuoso, ou seja, que diz de uma honra
masculina tradicional – está inscrita no fundo de sua subjetividade.
5. 5.2 Beto e Júnior: o esforço para se livrar do “rancor”
Eu estava entrevistando separadamente os membros de uma mesma família
para que contassem suas trajetórias religiosas, semelhantes em alguns aspectos, mas
com suas peculiaridades. Beto, na época com 35 anos, e Júnior, com 29, filhos do ex-
mineiro Jango, foram criados como católicos, mas em momentos diferentes haviam
ingressado em uma igreja evangélica, a Sara Nossa Terra. Os dois irmãos haviam se
formado, com o incentivo da mãe, em técnicos de segurança do trabalho e trabalhavam
nestas atividades, entremeando alguns períodos de desemprego. Sua aproximação com a
igreja tinha sido movida por razões diferentes. Beto me dizia que “ou se procura Deus
pelo amor ou pela dor”, revelando que, no seu caso, foi “pela dor”. Tinha sofrido uma
ruptura amorosa e estava desempregado. Um primo que é pastor da igreja convidou-o a
participar de cultos. A nova experiência logo lhe deu uma sensação “de alívio e de bem-
estar”. Ele não perseverou mais do que seis meses, mas acredita ter descoberto coisas
fundamentais, desde a confirmação que “há uma força, uma energia que se pode chamar
de Deus” até a distinção entre o bem e o mal. Ele explicava: “Existe espírito e corpo, né,
mas eu era só corpo. Tu tem que alimentar o teu espírito e a igreja tá aí pra isso. (...)
Hoje eu enxergo as coisas de uma maneira diferente”. Depois, acabou se afastando da
igreja, incomodado pelo controle que o pastor exercia sobre sua vida pessoal. Mas sua
participação naquela religião acabou fazendo com que todos do núcleo familiar
freqüentassem a igreja por algum tempo, o que acredita ter sido benéfico.
A motivação de Júnior foi de outra ordem. Ele me contava que, sendo muito
curioso em relação a tudo, sempre considerou a Bíblia “um livro muito interessante e
fora do comum”. Referia-se a descobertas que a ciência faria depois.
Se tu pegar o Livro de Jó, (...) já afirmava que a terra era redonda e que ficava
pairando sobre o nada, e a gente sabe que esse tipo de coisa foi descoberta há
menos tempo. Os portugueses tinham medo de sair no mar porque
acreditavam que a terra podia ser quadrada. Tinham esse receio, poderia
haver um abismo.
297
Por meio de seu relato
443
, percebo que o estudo da Bíblia supre, neste contexto,
inquietações intelectuais mais vastas. Num universo em que é limitada a circulação de
livros e no qual o próprio hábito de leitura não é disseminado, o estudo da Bíblia
configura-se como uma janela para um conhecimento mais erudito sobre os valores e a
história do mundo, que se situa fora dos horizontes da vida cotidiana. Júnior, que estava
naquele momento separado de sua esposa, me contava que a melhor fase de seu
casamento foi quando ambos freqüentavam a igreja. Acreditava que, para ele, o ingresso
na igreja havia sido mais fácil porque passou a entender muitas coisas que tinha lido na
Bíblia, de forma que “sentia realmente uma paz interior”. Mas observava: “Ao mesmo
tempo, a gente fica... até existe o ditado, entre a cruz e a espada, né, porque tu tem que
fazer uma renúncia da tua vontade própria, do teu ego, do homem carnal, né, pra
conseguir atingir o lado espiritual”. As decepções que Júnior sofreu em relação à igreja
são distintas das vividas pelo irmão. Sua crítica era sobre a forma como a igreja estaria
“imitando as coisas do mundo”, mencionando o “funk gospel” e o “heavy metal gospel”.
Revelava sua incompreensão com um culto realizado num centro de tradições gaúchas
na Semana Farroupilha
444
, mencionando que se tratava de uma casa em que há
“drogas”, “prostituição” e “adultério”. “E aí, culto farroupilha, em homenagem a quê?
Aos sanguinários que mataram meio mundo, que faziam carnificina dos negros... então
um monte de coisas que eu não concordo”. Seu tom, enfático, revelava as contradições
entre valores arraigados nas tradições locais e aqueles voltados ao sagrado.
Em meio a seus relatos, eu soube que esses dois irmãos passaram cinco anos
com o relacionamento rompido. As narrativas davam conta que a longa ruptura havia
sido provocada por características de temperamento – mencionadas como
“incompatibilidade de gênios”, “burrice”, “orgulho” ou “personalidade forte” - que eles
acreditam ser genético e que passaria de geração a geração como uma maldição herdada
da família do pai.
445
Quando mencionam que os tios do lado paterno, quando brigam,
“não se perdoam e ficam 200 anos sem se falar”, penso que “rancor” ou “ressentimento”
seja um termo apropriado para traduzir essa experiência que parece conformar os traços
de uma honra masculina tradicional e pode ser lida também como uma determinada
“honra familiar” a ser preservada, já que tal reação propiciaria o “respeito”.
Beto - O negócio é o seguinte, Marta, isso aí é uma coisa que se arrasta de
gerações, entendeu, essa burrice, não é culpa do Júnior, não é culpa minha.
443
Como também no de Leda, praticante da Testemunhas de Jeová, referida antes.
444
Em comemoração à Revolução Farroupilha.
445
Sobre o tema dos “demônios geracionais”, ver Steil, 2006.
298
Isso aí tá no sangue, entendeu? É genético. (...) E isso vai passando... E a
gente é assim também. A gente tem essa carga genética. A gente tenta
quebrar, né.
Júnior – Eu cheguei num ponto que eu vi que eu tava errado. Há um bloqueio,
uma barreira...
Beto – ... isso vai passando de geração a geração, como uma maldição.
- Como que é... a pessoa incorpora e reproduz sem ter consciência disso?
Beto – Até na Bíblia diz isso aí, no livro de Davi fala que vai passando pros
filhos dele. Tudo isso faz sentido. Até quebrar essa... Acho que é uma carga
genética isso aí. (...)
Júnior – Isso aí tem uma contribuição muito forte. Só que o problema é mais
complexo... o lado espiritual da coisa diz que o inimigo te observa e ele
conhece tuas fraquezas, e em cima de tuas fraquezas ele trabalha. Então,
qualquer conflito que a pessoa tenha, eu tenho dificuldade de perdoar uma
pessoa que me ofendeu e de pedir perdão. Essa é uma de minhas fraquezas.
Mas tem o lado biológico também, né.
Beto – O lado da personalidade, de ter personalidade forte também conta. A
gente tem uma grande diferença de opinião e...
Júnior– Mas a gente tem que saber lidar com essas fraquezas, né. (...) Num
conflito, os dois têm que ceder, né.
Eles explicavam que o enfrentamento disso, a quebra no padrão familiar herdado
só foi possível com o desenvolvimento espiritual. Para enfrentar essa “maldição”
transmitida pela hereditariedade, era necessária a força oferecida pela fé e pela religião.
Foi quando ambos estavam freqüentando uma igreja evangélica que puderam superar o
conflito. Beto relatava a reconciliação: “A gente se abraçou e se beijou (risos)... rolamos
na grama lá”. Pelo vínculo religioso, conseguiam enfrentar o que tinha passado a ser
visto como um inimigo comum, íntimo, familiar e totalmente entranhado em suas vidas
- o “orgulho” ou “rancor”. O que me parece estar em jogo é um conflito entre valores
arraigados que constituem formas de honra contestadas pelos novos valores impressos
pela conversão religiosa, pelas novas demandas que alteram antigas formas de honra
familiar. As mesmas características consideradas como indesejáveis são valorizadas
numa certa honra masculina tradicional, calcada na agressividade, na teimosia, no
orgulho, na determinação de “não se rebaixar” e de “não levar desaforo para casa”. É
pela ressemantização ocasionada pela fé que esses traços passaram a ser recusados.
Eles não consideram que todos na família carreguem esta “maldição”, que seria
transmitida pela linha masculina. A mãe, Julieta, é mencionada como tendo o “dom” da
conciliação, capaz de apaziguar os conflitos e tormentas domésticas. Do mesmo modo,
a sobrinha teria herdado o dom da avó, configurando uma linhagem feminina de
transmissão dessas virtudes. O termo “dom” carrega aqui o sentido de dádiva divina –
contrapondo-se à maldição do rancor -, mas sendo transmitido pelas mesmas vias da
299
hereditariedade. Não se trata de coincidência o fato de que as duas pessoas mencionadas
como portadoras do “dom” sejam mulheres, pois tal valor está de acordo com virtudes
concebidas socialmente como pertencendo ao universo feminino.
5. 5.3 Daniel: rompendo com o espírito da “infidelidade”
A “maldição” familiar referida pelos irmãos Beto e Júnior era também
identificada, mas de outro modo, por meu informante Daniel, 25 anos, estudante de
História, desde que ele se converteu à igreja evangélica Sara Nossa Terra, cerca de um
ano antes de nossa entrevista. Ele acreditava ter herdado do pai e dos antepassados
paternos o espírito – ou o “demônio” – da prostituição, da infidelidade. O rapaz me
explicava que havia realmente na cidade uma forte “cultura de infidelidade”,
especialmente por parte dos homens, de forma que a multiplicidade de conquistas
amorosas tinha o mérito de reforçar a identidade masculina e seu “status” dentro do
grupo. Ser considerado “pegador” era o supra-sumo da virilidade local. Mas o
comportamento infiel também era comum entre mulheres.
Eu vejo muita infidelidade aqui. De repente as pessoas perdem a felicidade
daquele casamento que não se completa mais, né, e buscam fora. E eu vejo
que também se perde um pouco a infância, até as meninas começam a
namorar bem cedo e parece que a vida sexual das pessoas é bem mais
conturbada. Parece que as mães também não se preocupam tanto. É assim..,
não deu certo, parte pra outra, mas acabam se acomodando na relação e tendo
infidelidade depois.
Mas, por outro lado, desde sua conversão, Daniel avaliava que tais traços,
especialmente os relativos a um comportamento masculino desregrado, consistiriam
numa espécie de “maldição” herdada do bisavô paterno, que passou pelo avô, pelo pai,
até chegar nele e no irmão. Recordava-se que, desde muito cedo, ele e o irmão ouviam
do pai (separado hoje da mulher e vivendo com uma moça mais jovem): “Um homem,
quanto mais mulher ‘pegar’, melhor”. Na transmissão sobre os valores da virilidade aos
filhos, o pai explicava: “Há períodos da vida que tu não vai ter muito sucesso, em outros
tu vai conseguir muitas mulheres e nestes tem que aproveitar ao máximo”. Essa noção,
segundo conta o rapaz, foi interiorizada por ele de tal forma que “se alguém falasse que
era fiel” ele ria. “Aquela cultura estava no meu subconsciente, no meu corpo”. Ele
relatava que tal padrão interiorizado criou problemas na sua relação com a mãe de seu
filho. “Nosso relacionamento sempre teve problemas por causa da infidelidade, tanto da
minha parte como da parte dela”. Foi por causa das sucessivas brigas que eles acabaram
300
ingressando na Sara Nossa Terra. Ali, ele considerava que “curou muita coisa dentro de
si”. Como viviam juntos, mas não eram casados legalmente, isso gerou contradições.
Quando eu cheguei na igreja eu resolvi, como eu fazia parte do ministério do
Louvor e tal, eu busquei santidade, pra enriquecer o ministério
espiritualmente. (...) Tudo o que possa te diferenciar do mundo é santidade. É
preciso buscar a santidade pra fortalecer aquele ministério em que tu está. Ela
não queria entender isso. E aí eu vim morar na minha casa [da mãe]. Por que
até então ela se trocava na minha frente e eu sou humano, não sou super
homem, né, daí (...) era uma luta muito grande de mim contra mim.
O jovem, que tentou ser jogador de futebol profissional
446
, e que trabalhava
como músico, tinha encontrado na religião uma oportunidade para expressar seus dons
artísticos. A primeira aproximação religiosa dele e do irmão havia sido, na verdade, na
igreja católica, depois de um convite do padre para que tocassem e ajudassem na
pregação. O pároco incentivou-o também a estudar a Bíblia. Mencionava que, na
primeira vez em que abriu o Salmo 115 foi “dormir católico e acordou protestante”,
observando que algo similar deveria ter ocorrido com Lutero. “E eu não conhecia a
história de Lutero, né, quando isso aconteceu comigo”. Mais recentemente, o rapaz
passou a namorar uma jovem “evangelista”, filha de um pastor, e seu relacionamento,
segundo conta, alcançou uma harmonia que ele não havia conhecido antes. Acreditava
que estivesse “quebrando a maldição” familiar, à qual ele e os irmãos atribuíam a razão
de tantas dificuldades conjugais. Sua irmã já havia se casado três vezes e ele e o irmão
eram separados. “Creio eu que era uma maldição. Isso que é uma maldição: algo que
vem hereditariamente”. A luta travada por Daniel é, também, para reverter padrões que
constituem uma determinada honra masculina local – enfatizando a virilidade, a
hombridade, a conquista, a malandragem -, em nome do desenvolvimento de virtudes
tradicionalmente presentes no universo feminino, tais como a fidelidade, a constância, a
sublimação dos desejos, a pureza - resumidos por ele na idéia de “santidade”.
5. 6 ITINERÁRIOS DE UM “RENASCIDO” CATÓLICO
A chegada do padre Wilson à cidade, no início dos anos 2000, foi festejada
pela população local com grandes carreatas e cavalgada. Pertencente à linha da
renovação carismática, o padre inovou o estilo adotado pelo antecessor que prestou
serviços religiosos à comunidade por quase quarenta anos. Se, por um lado, começou a
446
Daniel havia jogado no Internacional dos 13 aos 15 anos e teve de desistir do sonho de uma carreira
profissional em função de um acidente de trânsito. Recorda-se que, quando estava no hospital, alguém foi
visitá-lo e lhe disse: “Deus tem um plano para ti”. Agora compreende o que isso significava.
301
fazer adeptos, principalmente entre os jovens, por aliar a música a seu trabalho, por
outro, enfrentou as resistências de católicos “mais conservadores”. O padre contava que
encontrou na localidade “um tradicionalismo muito grande, um conservadorismo”. Os
moradores, acostumados com os modos austeros do antigo pároco de Butiá, estranharam
muito o jeito do novo padre, que andava a cavalo, que tocava músicas de Raul Seixas.
Segundo me contava, estava virando as coisas “de ponta cabeça”, no entanto, sem
deixar “de ser fiel às coisas da igreja”. Acostumado a trabalhar em grandes cidades,
dedicou-se a tentar compreender a cultura local. Ele avaliava que o “choque” veio da
contradição entre o tradicionalismo e o fato de ele ser um padre da ala progressista. “A
gente tem obstáculos em todos os lugares, agora vai do carisma do sacerdote para
cativar o povo”. Logo nos primeiros dias, foi abordado por um morador pobre, que lhe
disse, à queima-roupa: “Padre, eu espero que o senhor seja do povo, não dos polacos”.
Referia-se à distinção entre os moradores com menos poder aquisitivo e os descendentes
de poloneses, considerados mais abastados, embora tenham uma origem operária.
Então, por que isso? Porque vamos supor que morria alguém de uma
família com mais posses....O padre Frederico, às vezes, celebrava
casamentos do filho de um deles e, se ocorresse o casamento do filho
de um pobre: “Ah, o diácono vai”. Sabe? (...) Então, o povo se sentia
discriminado. (...) No entanto, eu tenho amizade com eles, vou na casa
deles [dos ricos], mas não deixo de estar sentado no galpão, no chão,
com os mais necessitados também. Às vezes, me perguntam: “Padre,
no desfile do dia 20 [de setembro, na Semana Farroupilha], o senhor
vai estar lá no palanque?” Não, eu vou estar junto dos tropeiros, eu
vou estar lá montado a cavalo, no meio do povo.
Por outro lado, moradores com maior poder aquisitivo sentiram-se inicialmente
“abandonados”. Parece-me que a “honra do sagrado” da qual o padre Wilson comunga
está ancorada numa identificação com as classes populares e com os segmentos
marginalizados, não apenas em função dos preceitos carismáticos, mas de sua própria
experiência de vida. Um dos projetos foi a prevenção ao uso de drogas entre os jovens,
avaliando que a ociosidade causada pela falta de empregos deixa os jovens vulneráveis.
Para alertar os jovens, ele lança mão de sua própria experiência, de um ex-viciado em
cocaína. Dizia que conhecia bem “os dois lados da moeda”. Sua infância foi conturbada
devido ao alcoolismo de seu pai. “As drogas vieram como uma fuga. Eu entrei, eu tinha
12 pra 13 anos e fui sair com 18 anos, com muita força de vontade, com muita luta”. Em
função da injeção de drogas, desenvolveu uma trombose na perna esquerda. “Eu tenho
que cuidar e rezar para chegar com a perna até o final da vida”, dizia.
302
Em suas “andanças pelo mundo”, antes de enveredar pelo catolicismo, Wilson
participou de cultos afro-brasileiros, mais particularmente da umbanda - espécie de
“passagem” que antecedeu a opção que se incorporou na forma de uma identidade ou
ethos religioso. Sua trajetória me remete à idéia de um “renascido”, no conceito adotado
por James (1995), cuja definição o aproxima mais do modelo protestante do sick soul,
de uma religiosidade adquirida, do que protótipo do catolicismo atribuído, o healthy
mindedness
. Ainda que alguns de seus colegas o aconselhem a não falar do seu passado,
o padre não escondia as dificuldades por que passou.
Eu falo assim: o meu passado não me incomoda. E por que eu não
posso dizer? Que todo mundo acha que o padre nasce prontinho. E
não é assim. Se você nasce, Deus tem um projeto de vida pra ti.... mas
pra eu chegar no meu projeto, com 27 anos, quando eu fui para o
seminário, eu tinha sido noivo duas vezes. Então, eu conhecia bem a
vida. (...) Eu sabia bem o que eu queria, sabia o que estava deixando e
porque estava deixando, por amor a Cristo. Então, pra mim, a vocação
até mais tardia, mas que Deus trabalhou muito no coração.
Wilson lembrava que a maneira pela qual foi recebido, anos antes, evidenciava
que Minas do Leão estava precisando de um líder católico. “Porque quando eu cheguei,
numa cidade de 7 mil habitantes, havia 12 denominações religiosas diferentes. É muita
igreja, muita denominação religiosa, pra pouco público. Então, faltava também na
cidade um representante católico, né, um pastor católico, um padre, um presbítero”.
Avaliava que, desde então, muitos haviam retornado para a igreja católica. Ele
empenhava-se em manter boas relações com os líderes evangélicos, convidando-os, em
datas especiais, para participar de cultos ecumênicos. Costuma alertar os fiéis, no
entanto, sobre cultos que atraem pessoas que procuram uma solução rápida para as
aflições. A própria igreja católica passou a oferecer uma missa semanal “de cura e
libertação”, mas o padre aconselhava às pessoas que não parassem de tomar seus
remédios sem consultar o médico. Desde seu primeiro ano de sacerdócio, Wilson
pensava numa experiência fora de São Paulo, até que um arcebispo de Porto Alegre
convidou-o para iniciar os trabalhos da paróquia naquela cidadezinha. O projeto era de
que ele passasse dois anos na cidade. Estava completando nove anos de trabalho na
localidade, que passou a respeitá-lo e a estimá-lo. Sua história familiar acabou por
inscrever-se naquele cenário. Seu velho pai, enfermo, ficou vivendo ali por algum
tempo. Acabou por falecer em Minas do Leão e foi velado pela população local.
303
5. 7 OS “MORTOS ESPECIAIS”
5. 7.1 Das santas “intercessoras”
A fé sempre foi uma arma dos mineiros para enfrentar o medo da mina e o
risco de acidentes. A mina de Leão I, desativada em 2002, mantinha uma imagem de
Santa Bárbara, a padroeira dos mineiros, em uma capelinha na boca do poço. Ao descer
da “gaiola”, os operários costumavam “se benzer” diante da santa antes de começar a
jornada. Todos os anos, em 4 de dezembro, as comunidades mineiras realizam a Festa
de Santa Bárbara, com a celebração de uma missa na qual a santa é louvada. Numa das
edições a que assisti, cerca de 100 pessoas participaram da homenagem à santa, no pátio
da companhia carbonífera. Na celebração, o padre contava a história de Santa Bárbara,
uma narrativa que remete para a recusa dos valores familiares pagãos em nome do
cristianismo. Ele enfatizava seu papel de “mediadora” junto a Deus, “porque santo
nenhum tem o poder de fazer milagre”, explicando que Deus é que faz o milagre. Mas a
santa seria esse “canal de graças”. Em meio a um canto de louvor, os mineiros
carregavam as oferendas até o altar. Ali eram colocados equipamentos usados no
trabalho: as antigas lâmpadas de carbureto e capacetes.
Após a missa, havia o cortejo das duas imagens da santa – uma para cada
companhia – e a procissão de carros que as levaria até a Capela de Santa Bárbara, na
cidade vizinha. O som de buzinas e fogos de artifício levava os moradores para as
calçadas e estes acenavam à passagem da santa. Na capela, lotada de fiéis, o pároco
304
local rezava mais uma missa. Nas conversas, eu percebia que a devoção à Santa Bárbara
convivia com o culto a outros santos. Ana Luiza me contava:
A minha fé até é em Nossa Senhora Aparecida, né. Mas eu rezei tanto [à
Santa Bárbara] pra agradecer que meu marido conseguiu se aposentar na
mina... Ele teve alguns acidentes, então depois parece que a gente se agarra
mais com ela. E agora mesmo, tu viu a procissão, eu me emociono, sabe. (...)
Tenho bastante fé, eu acho que com fé eu consigo tudo o que eu... tudo o que
eu quero, sabe?
Segundo me dizia, ela “vivia de promessas”. Na época, ela havia feito uma
promessa a Nossa Senhora Aparecida para que o filho conseguisse um estágio na CRM,
empresa na qual o marido havia trabalhado. O reconhecimento que Ana Luiza dirigia a
Santa Bárbara, no sentido de que ela teria auxiliado o marido, Agenor, ele mesmo,
conferia a outro “morto especial” (Brown, 1981) que não se tornou santo: Godoy, de
que tratarei adiante. Os informantes que revelavam o conteúdo de pedidos ou de
promessas mencionavam principalmente o desemprego, seu ou de familiares, assim
como problemas de saúde. Mas o leque de pedidos é mais vasto, envolvendo desde o
êxito de candidatos nas eleições municipais, superação de obstáculos na vida amorosa,
até vitórias das equipes de futebol. Eraldo, ex-mineiro e ex-jogador de uma das equipes
de futebol ligadas às minas, contava que chegou a fazer promessa a Nossa Senhora
Aparecida para que seu clube vencesse um campeonato, mas como “o time era muito
bom”, não soube se a vitória se devia à ajuda da santa ou ao mérito da equipe. Como
uma coisa podia ajudar a outra, achou justo pagar a promessa.
Yeda, viúva e mãe de mineiro, contava que costumava rezar para mais de uma
santa. Ela agradecia a Nossa Senhora Aparecida as graças obtidas na recuperação de sua
saúde. A luta contra um câncer demandava da velha senhora tanto a busca de recursos
médicos como espirituais. Dizia que a santa “a havia retirado” de uma cama de hospital.
Como gratidão, participava de novenas em sua homenagem e fazia suas orações
individuais.
447
Costumava evocar Santa Bárbara nas noites de temporal, pois acreditava
que esta santa teria poderes para acalmar o tempo. Nestas ocasiões, acendia uma vela e
rezava para a protetora. Um aspecto já abordado por Menezes (2004) e que aparece em
vários relatos diz respeito às “especialidades” de cada santo. Também Úrsula, ministra
da igreja católica, costumava rezar para Santa Bárbara pedindo a proteção da santa
diante dos temporais. Mas não se esquecia da outra missão da santa. “É a padroeira dos
mineiros, então a gente se apega a ela”. O marido de Úrsula, Iguaraçu, me contava que
447
Esta informante faleceu algum tempo depois.
305
trabalhou no subsolo durante cinco anos, período no qual aprendeu a cultuar a santa. “A
gente tinha a santinha lá embaixo, né, então a gente tinha um momento de reflexão, né”.
Em alguns momentos do dia, a santa era única companhia deste mineiro. Nesses
momentos de solidão compartilhada, costumava “conversar” com ela.
Mulher do ex-mineiro Tita, Kátia estava freqüentando a Igreja Universal do
Reino de Deus. Mas a sua recente aproximação à igreja evangélica não a impedia de
cumprir uma promessa feita à Santa Bárbara uma década antes.
Kátia - Eu pedi pra proteger os mineiros, desde o dia que meu cunhado
morreu na mina, eu fiz essa promessa. Graças a deus, nunca mais ninguém
[morreu na mina]...Eu pedi pra todos, né. Todos, todos os mineiros. (...) Eu
pedi pra todos e, graças a Deus e a ela [a santa], nunca mais aconteceu
nenhum acidente.
- Então, sente que ela atende mesmo...
Kátia - Sim, claro. Ela escuta, sim, porque no momento em que eu confiei
nela, né, ela me ouviu, e eu como prometi, eu cumpro.
Kátia fez a promessa em 1991, quando a queda de um elevador no interior da
mina matou um irmão do marido. Desde então, o casal acompanha todos os anos a
missa e a procissão de Santa Bárbara. Alguns aspectos da relação entre santo e devoto
são evidenciados no seu depoimento, como a necessária confiança na santa, que, neste
caso, inaugura a relação, depois a “escuta” da divindade ao pedido formulado (ficando
implícita a também a concessão da graça) e o cumprimento da promessa pelo devoto.
No caso de Katia, o pagamento da promessa não dizia respeito a uma ação apenas,
que ela havia se comprometido a participar todos os anos das homenagens à santa.
Aqui, o termo “cumprir” parece estar mais próximo do sentido de “honrar” a palavra
dada do que de fazer um “pagamento”. Seu relato evidencia três momentos: o pedido, a
“escuta” e concessão da graça pelo santo, e o agradecimento. No seu caso, o
agradecimento é constantemente atualizado. Tita empenhava-se no cumprimento da
promessa feita pela mulher. “A gente sempre se benzia, né, a gente fazia o sinal da cruz.
Até pra baixar à mina a gente fazia esse tipo de coisa”.
Ele acreditava que eficácia da
proteção está relacionada à fé, mas que seria preciso lembrar-se de “agradecer”.
5. 7.2 Godoy, o morto milagroso
A primeira vez que ouvi falar do “túmulo de Godoy” foi, curiosamente, durante
uma procissão de Santa Bárbara. Eu perguntava sobre a fé na santa, quando Agenor,
marido de Ana Luiza, me disse, em tom de confidência, que mais do que na santa
confiava nos poderes de Godoy. Foi diante do seu túmulo que pagou duas promessas
306
muito importantes. “Fiz promessa pra pegar na mina e depois fiz pra me aposentar”. As
promessas foram pagas acendendo velas e despejando cachaça sobre o túmulo.
“Encharquei o túmulo dele”, me contava o ex-mineiro, na época já aposentado pela
companhia carbonífera. Segundo uma linha de relatos, Godoy teria sido um empregado
de uma propriedade rural, que, com problemas de alcoolismo, morreu afogado no arroio
ao cair da ponte num dia de chuva. Outra linha das narrativas menciona que ele teria
sido um dos primeiros mineiros no tempo da antiga companhia Matarazzo, no início do
século XX. Os relatos dão conta que Godoy teria morrido no início da década de 1940 e
que seu corpo foi enterrado ali, próximo à ponte. Um de meus informantes recorda que,
em 1943, já existia próximo à ponte o “Passo do Godoy”, em referência ao homem que
estava enterrado ali. Depois, surgiram as promessas. Sua trajetória e as circunstâncias da
morte continuam a ser discutidas. O ex-mineiro Leo ouviu de moradores mais antigos
que Godoy teria sido um solteirão muito quieto que se envolveu com uma mulher
casada. Algum tempo depois, foi encontrado morto. “Não chegaram a descobrir se ele
foi assassinado ou não, mas havia a desconfiança de que o marido daquela mulher fosse
o responsável pela morte”. As diferentes versões da biografia e das circunstâncias da
morte só aumentam a aura de mistério. Trabalhador rural ou mineiro, Godoy pertencia
às classes populares e carregava o estigma do alcoolismo. Os rumores do envolvimento
em adultério consistiriam em outra transgressão à moralidade local.
Alguns anos depois de sua morte, uma enchente teria levado água abaixo
pedaços do túmulo. Mais tarde, o túmulo foi reconstruído e ainda é palco de visitação,
de rituais e de visões
448
. Muitos moradores da localidade acreditam que, se rezarem e
fizerem promessas diante de sua lápide, terão seus pedidos atendidos. Embora sua
popularidade tenha se reduzido nas últimas décadas, ele ainda é cultuado por moradores
e visitantes que acreditam em seu poder milagroso. Dagoberto, 46 anos, católico e
descendente de poloneses, contou-me ter sido “devoto” de Godoy no passado.
Ele atendia, né. É uma lenda. Se tu perguntares pra geração do meu sobrinho,
ele não lembra, mas prá minha geração era muito presente, porque eu muito
levei vela pra lá. Estava ruim na escola, ia lá e acendia uma vela. Às vezes,
quando a coisa tava muito atrapalhada, a gente comprava uma garrafa de
cachaça e levava. Mas a vela era freqüente. Eu lembro que, quase todas as
semanas, a gente tava enrolado com uma coisa ou outra, né, ia ali e
conversava com ele, sentava ali. Tinha inclusive um banquinho pra conversar.
Conversava com ele, né, conversava no túmulo, sentadinho ali. E acendia as
velinhas. Eu sempre fiz isso. A minha mãe, quando os negócios tavam mal,
448
Circulam relatos de que alguém já teria visto, ao anoitecer, bolas de fogo no céu nas imediações do
túmulo, sinalizando com o fantástico uma intensificação dos poderes e das crenças contidas nos lugares.
307
vinha aqui. Médicos de
Porto Alegre vinham aqui.
Muitas pessoas que
conviviam com a cidade
vinham pra cá... Ele era
uma lenda da região. Mas
não tinha inclusive um
rosto dele.
Godoy é, então, uma
espécie de herói sem
rosto, espécie de “lenda”,
mas com uma reputação de milagroso eficaz. A ausência de uma imagem do morto era
irrelevante para aqueles que tornavam o momento do culto senão solene
449
, mas sério e
terno, como numa conversa íntima na qual o visitante abria seu coração para falar de
suas aflições e pedia a intercessão daquele espírito, tão próximo dos vivos que poderia
entender seus problemas melhor do que os santos. Dagoberto enfatizava essa dimensão
de “conversa”, uma relação calcada na confiança, na amizade e na intimidade. Narrava
que o culto a Godoy foi intenso até a década de 1980, quando habitantes locais e de
outras cidades iam fazer promessas. O “pagamento” era feito com a colocação de
oferendas junto ao túmulo: velas e garrafas de cachaça. Naquela época, a companhia de
mineração realizou uma obra de drenagem que “praticamente passou em cima do
túmulo”. Lamentava que a ação da estatal tivesse desrespeitado as crenças, fazendo com
que o culto se extraviasse junto com o túmulo por algum tempo. Com a reconstrução da
lápide pela prefeitura, o local voltou a ser visitado, principalmente por quem perdeu
algo. Essa associação deve-se ao fato de que Godoy teria uma memória prodigiosa.
Depois de ouvir os relatos, decidi visitar o túmulo de Godoy. Na estrada
poeirenta que leva ao cemitério, encontrei a ponte sobre um antigo arroio. Apesar de
várias indicações, foi preciso ajuda de um casal que se dirigia ao CTG Zeca Freitas para
encontrar o local, quase escondido por árvores e próximo a um barranco de lama.
Construída de cimento e ornamentada com flores de plástico, a lápide estava coberta por
dezenas de garrafas vazias de cachaça. Havia uma vela queimada até a metade e uma
caixa de fósforos sobre o túmulo. O casal que me guiou até lá, um ex-mineiro e sua
esposa, contou que, em outros tempos, já havia feito promessas ao morto milagroso.
Durante minha pesquisa de campo, encontrei muita gente que testemunhava os
poderes daquele morto. Um exemplo era Adão, ex-mineiro e ex-treinador de futebol de
449
Como sugere James (1995), de que a religião envolve algo “solene, sério e terno”.
308
equipes locais. Depois de uma entrevista, quando eu já havia desligado o gravador,
contou-me era devoto de Godoy e que um mês antes havia feito uma nova promessa.
Ainda estava esperando receber a “graça”, cujo conteúdo não quis revelar, para levar
velas e cachaça ao túmulo do morto. Mesmo o ex-mineiro e ex-jogador de futebol
amador Eraldo, que disse nunca ter feito promessa para o morto milagroso, ressaltava
que Godoy “tem uma história na cidade”, pois “todo mundo acredita nele”. Seu ex-
companheiro de time, Butiá, recordava-se da ocasião quando passaram próximo ao
túmulo para ir pescar. Os rapazes integravam as equipes de futebol ligadas às minas.
Estavam de bicicleta e cada um carregava uma garrafa de cachaça para espantar o frio.
Como um deles, apelidado de “Satanás”, não tivesse levado a sua bebida, resolveu
“pedir emprestada” a Godoy.
Butiá – Ele pediu emprestado [ao Godoy]: “Depois te pago”, não sei o quê...
- Falou com o Godoy ali?
Butiá - Ah é. Aí passou acho que umas duas semanas. Nós voltamos lá no
Capão da Várzea também pra pescar, aí nós de bicicleta, né, aí era eu, o
Jorge, o Neco, tinha outro, éramos quatro. Aí nós sabíamos [da história
anterior], porque nós tínhamos ido junto. “Ô, Neco, e a cachaça do Godoy
aí?”.“Ah, eu não vou dar nada pra esse sem-vergonha”. Quando atravessamos
os trilhos de ferro ali, dois pneus dele furaram.
Eraldo - De bicicleta?
Butiá - Aha, de bicicleta. Aí eu disse: “Aí ó... tu não quis pagar a cachaça do
cara, agora tu vai a pé se tu quiser...”
Eraldo - Tu vê como que é...
Butiá – Ele teve que deixar a bicicleta dele e ir a pé. E é longe dali. E nós
tudo de bicicleta...
– E pra vocês nenhum pneu furou?
Butiá – Não, não, só o dele, e furou os dois, aquilo ali... nós nos bobeamos
[fizeram gozações], né, furou os dois pneus na mesma hora, só de passar os
trilhos ali (...). Aí quando passamos todo mundo ali... e nós dando risada, né,
que ele tinha pegado a cachaça do Godoy. Isso aí não se faz, era besteira da
gente. E estourou os pneuzinhos e ele ficou a pé. “Ah, não, mas agora na
outra... na outra vez que eu vir aí eu vou trazer a cachaça dele”.
Eraldo – Pagar a dívida.
Butiá – Pagar a dívida. Digo: ‘É, pára... o que tu tem que tá mexendo com
ele?”
Godoy é tratado sem cerimônias, como o “cara”, alguém com quem se tem
uma relação horizontal, similar àquela mantida entre companheiros de futebol ou de
pescaria. Mas, como indica o relato acima, há a crença de que mortos como aquele
podem se vingar dos vivos com ações punitivas. No caso de Godoy, é como se tais
ações fossem mesmo uma forma de preservar a sua própria honra de “morto sagrado”,
já que são muitas as histórias referindo roubos de bebidas e doces deixados para ele.
309
Quem estava pagando uma promessa preferia abrir a garrafa e esvaziar o conteúdo sobre
o túmulo, garantindo que a dívida fosse devidamente paga.
O ex-mineiro Eliseu e sua mulher me contavam que há várias décadas faziam
promessas a Godoy e que ele os havia ajudado em muitas situações. Até hoje, o casal
mantém a sua devoção e é testemunha da fé de vizinhos e parentes. Numa ocasião,
pediram a Godoy para que ajudasse a encontrar um cavalo desaparecido. O cavalo,
atrelado a uma carroça, era usado pelo ex-mineiro para o transporte de fretes.
Constituía-se no ganha-pão que ajudava a complementar a aposentadoria da mina.
Pouco depois, o cavalo reapareceu. Noutra ocasião, pediram a intercessão daquele
espírito porque o carro do genro havia sido roubado. Como da outra vez, o carro foi
recuperado. As promessas eram pagas com cachaça derramada sobre o túmulo. A
esposa lembrava que já fez promessa para alguém da família encontrar trabalho e
também foi bem-sucedida. “Ele sempre consegue”, dizia, confiante. Eliseu me explicava
que, no sistema de promessas, primeiro é preciso que o espírito “mostre o serviço dele”,
depois é feito o pagamento. Houve ocasiões em que, além da cachaça, levaram flores,
velas e cigarros ao túmulo. Proveniente de famílias católicas, o casal dizia acreditar
mais nos poderes de Godoy do que nos dos santos. A exceção feita pela mulher era para
a Nossa Senhora do Bom Parto, cujo retrato está na parede de sua sala. Ela fez
promessas à santa para seus filhos nascessem com saúde. Alcançada a graça, diante da
imagem acendia uma vela de cor azul no caso do nascimento de um menino, ou rosa, de
uma menina. Fitas coloridas conforme o sexo da criança eram penduradas na imagem.
Uma promessa peculiar
Eliseu tinha familiaridade com tais trocas simbólicas. Na sua infância, coube a
ele cumprir uma promessa que sua mãe fez a um santo católico para a superação de
problemas de saúde que ele apresentava. Demandava dele um sacrifício. Como o
menino estivera muito doente, “à beira da morte”, sua mãe prometeu que, se ele fosse
curado, deixaria os cabelos do garoto crescer e o vestiria como uma menina até que
completasse sete anos. A graça foi alcançada. E, assim, com um vestido e de cabelos
longos, Eliseu ia para a escola. Em vez de brincar com as meninas, ele ficava entre os
garotos, recebendo em cheio as zombarias: era chamado de “mulherzinha”. Ele garante
“não ficava tão brabo”, mas que, no final, já estava se rebelando. A última vez em que
vestiu aquela roupa foi para fazer uma fotografia que ainda tem guardada. Nesta foto,
que o casal me mostrou, passava mesmo por uma menina.
Uma peculiaridade da promessa é o fato de que alguém a faz em nome de um
terceiro e cujo cumprimento depende do engajamento daquele que será beneficiado pela
graça. Outro aspecto a ressaltar é o de que, numa situação de aflição, podem se
relativizar valores como os atribuídos ao gênero, especialmente à masculinidade, cuja
intensidade do sacrifício representa o alcance do mérito na retribuição da graça. Em
outras palavras, a honra do sagrado pode sobrepor-se ao valor atribuído à imagem ou à
honra masculina
,
p
rinci
p
almente
q
uando diz res
p
eito à infância.
310
Como dito antes, uma característica peculiar do culto a Godoy diz respeito às
oferendas: velas e cachaça. Pode-se dizer que as velas, em várias tradições, simbolizam
a iluminação e são usadas tanto nos cultos católicos como nos rituais de religiões afro-
brasileiras. A cachaça ou outra bebida alcoólica costuma ser oferecida às entidades tanto
nos rituais de origem africana e como nos de origem indígena.
450
Pode-se lembrar ainda
que o vinho era indispensável nos rituais dedicados aos mortos da Grécia Antiga, como
evidenciou Coulanges (1954). Os escassos dados da biografia de Godoy, assim como os
detalhes sobre seu culto, por outro lado, não destoam das narrativas que envolvem
outros “mortos milagrosos” na América Latina. Em estudo sobre a Venezuela, Franco
(2001, p. 112) menciona que “morto milagroso” é uma noção popular que designa
aqueles que, após a morte, fazem favores e milagres aos vivos, distinguindo-se assim
dos mortos comuns. Nos termos que venho adotando, pode-se dizer que, após a morte,
há a aquisição de uma “honra do sagrado”, graças a essas relações de reciprocidade com
os vivos. Em geral, esses mortos milagrosos eram pessoas comuns, com traços que as
destacavam dentro das comunidades, como uma morte trágica, uma vida nada ascética
e, alguns casos, licenciosa. A vida de excessos subverte o modelo dos santos medievais,
de uma vida dedicada ao ascetismo
451
, mas também podem assemelhar-se ao mártir pelo
sofrimento ou desprezo a que foram submetidos em vida
452
.
5. 7.3 Da devoção às almas familiares
A dimensão do culto a espíritos ou almas familiares aflorou nos depoimentos
quando eu buscava conhecer as trajetórias de famílias que foram as primeiras moradoras
do lugar. Foi nestas circunstâncias que conheci Dagoberto Sienko, descendente de
poloneses, que disse rezar e fazer pedidos para a mãe falecida. Segundo o filho, a mãe
foi sempre o “carro-chefe” do núcleo familiar, o “esteio” tanto nos negócios como nas
relações domésticas. A revelação em torno das preces à mãe falecida surgiu depois que
ele me acompanhou numa visita ao cemitério local. Já havia me contado que, quando
menino, fora devoto de Godoy. No trajeto, conversávamos sobre as crenças locais,
quando me revelou que, em sua família, os santos católicos tinham perdido seu papel de
intercessores, enquanto que os vínculos com os mortos familiares tinham se fortalecido.
450
Estudos de Nash (1972) e Taussig (1980) sobre mineiros bolivianos mostram que a bebida alcoólica
espalhada na terra era parte do ritual a Pachamama e integrava as oferendas ao Tio.
451
A obra de Maître (1996) sobre Santa Terezinha é exemplar neste sentido.
452
Sobre as devoções a “mortos milagrosos”, ver Martín (2005), Carozzi (2003) e Frade (1987).
311
Dagoberto - É, a gente rezava pra tudo. Não se tinha cuidado médico, não se
tinha nada neste sentido, então [a oração] ajudava muito. Uma coisa que eu
também noto hoje é que a fé tá meia... A gente vai na igreja, mas aquela reza
pro teu santo particular, não. Nós observamos na família que nós rezamos
mais pros nossos familiares. Pra minha mãe, que era uma pessoa muito
importante, foi o esteio da família. Então, quando a gente tá com algum
problema, fazia antigamente com o Godoy, reza pra ela ajudar. Parece que
funciona também.
- A fé mudou?
Dagoberto - É, não sei se é a descrença, alguma coisa... porque essas coisas
vêm de dentro da gente. E tem que acreditar que existe, e, acreditando que
existe, tem que ser com uma pessoa que tu tenha aquela confiança.
Em suas concepções, a fé religiosa é acionada interiormente pelo devoto, que a
canaliza para os seres nos quais ele deposita confiança, estabelecendo um novo tipo de
vínculo, alimentado pelas orações. Na sua família, a reza aos tradicionais santos
católicos ou as missas – que continua a freqüentar – não representavam mais um porto
seguro para os momentos de aflição ou uma ajuda para superação de dificuldades.
Godoy, o morto milagroso da localidade, chegou a cumprir este papel. Hoje, tal crença é
preferencialmente voltada para o vínculo familiar, para a mãe falecida, como se ela, por
estar morta - embora sua perda seja sentida - significasse hoje um recurso tão poderoso
como representava em vida, por essa dimensão mágica a que os mortos têm acesso.
Trata-se aqui de uma complexa conjugação em que, ao vínculo familiar de mãe e filho
passa a ser adicionada uma nova relação, a de reciprocidade entre vivos e mortos. Na
comparação com o culto aos mortos milagrosos desconhecidos, esta relação já
engendra, de saída, a familiaridade, a afetividade e a confiança que aquela desenvolverá
mediante ações recíprocas bem-sucedidas. Com o conforto adicional de que uma
ocasional demora ao realizar o agradecimento ou ao cumprir a promessa não
desencadeará nenhuma punição do “outro mundo”, nem descobrirá a face possivelmente
perigosa e terrível desses mortos sempre cheios de sortilégios e mistérios.
Numa conversa sobre crenças, Neca, nora de Julieta e Jango, casada com o
filho mais velho do casal, relatava seu estranhamento sobre as preces que sua mãe
dirigia ao marido morto quando ia visitar seu túmulo no cemitério. Ela já havia me
contado que sua adesão a uma igreja evangélica havia provocado uma espécie de
rompimento com sua família de origem, em freqüentes conflitos nos quais sua mãe, ex-
umbandista – ou do “saravá” - e hoje católica, acusava-a de estar “louca”. Neca me
explicava que achava estranhas as atitudes da mãe de rezar diante do túmulo do marido
morto, pedindo proteção para a família. As preces eram verbalizadas desta forma:
312
“Assis, ajuda nós, ajuda tua família, ajuda teus filhos”. Tais pedidos eram
incompreensíveis para a filha, que reagia: “Ajudar como, mãe, se ele é um morto?”
Antes dos pedidos diante do túmulo do pai, sua irmã e sua mãe costumam rezar o terço.
Outra narrativa dizia respeito a um informante que, em situações de perigo,
rezava e pedia proteção à mãe falecida. O ex-mineiro Agenor, também devoto de
Godoy, contou-me sobre uma situação na qual, na iminência de um desmoronamento no
interior da mina, pediu proteção à sua mãe. Acreditava que foi isso que impediu que o
acidente que sofreu não fosse mais grave. Embora tivesse sido atingido na cabeça por
um pedaço de uma grande pedra que desabou do teto da mina, não sofreu seqüelas:
recuperou-se e voltou a trabalhar. Uma peculiaridade que aproxima o relato deste
informante ao de Dagoberto é que ambos consideravam-se católicos e, no passado,
fizeram promessas a Godoy, evidenciando que diferentes recursos são acionados em
distintas situações. Mas há diferenças: Dagoberto recorria às preces à mãe falecida com
regularidade, tendo deixado para trás o culto a Godoy. Já Agenor evocava a ajuda da
mãe em situações extremas e continuava a fazer outras promessas a Godoy.
453
A relação de meus interlocutores com suas mães falecidas parece ser o de um
vínculo formado com almas femininas em função de sua centralidade nas relações
familiares, mas em várias tradições religiosas o princípio feminino é tido como mais
protetor do que o masculino
454
. Em estudo sobre camponeses colombianos, por
exemplo, Taussig (1980) evidenciava que o culto aos espíritos familiares ou ánimas
estava vinculado ao feminino. Assim como no caso dos santos católicos, a devoção a
um “morto milagroso” e às “almas familiares” acaba fornecendo a estes espíritos uma
“reputação” quanto à sua eficácia em ajudar os vivos. Quanto mais a relação se
consolida, mais a confiança e o respeito pelo intercessor. No caso dos mortos familiares,
a dinâmica da prece e do agradecimento podem se tornar cotidianos, sem a objetividade
do “pagamento” de uma promessa. Sob certos aspectos, o culto às almas familiares
parece mais próximo da reverência aos santos, mas com a intimidade própria aos
humanos. O culto aos parentes mortos traduz tanto o respeito ao sagrado como aos laços
de sangue, ou seja, afirma tanto uma “honra do sagrado” como uma “honra familiar”.
453
Sobre a temática do culto às almas familiares, ver Coulanges (1954), Franco (2001) e Duarte (2006b).
454
É o caso, como mostrou Nash (1972) e Taussig (1980), das minas bolivianas de estanho nas quais os
mineiros cultuam a deusa da fertilidade, Pachamama (também Virgem da mina).
313
PARTE III
JOGOS DE HONRA
Atlético Mineiro nos anos 1960: escalação com Zé Cabeça (terceiro, de pé, da esq.), Antônio Manoel
(quarto, à direita) e Leo (o segundo à direita).
Campeões do Centenário em 1960: a presença da madrinha da equipe do Atlético. Entre os jogadores,
Ademar (quarto, à esquerda) e Zoely (terceiro, à esquerda, abaixado), Butiá vem na seqüência.
314
6 O ESPÍRITO DO JOGO
6 1. DE PAIXÕES, ESPORTES E LAZERES
A afirmação de Bromberger (1998, p. 9) de que “uma sociedade diz muito dela
mesma através de suas paixões coletivas” nos ajuda a compreender um tanto dos valores
e das práticas desta comunidade erguida em torno da mineração de carvão. Em Minas
do Leão, se há algo que desperta a paixão são as competições esportivas, ao lado das
disputas políticas – que também podem vistas como jogos. O mundo ao redor da mina
parece ter se constituído com a proliferação de jogos e de divertimentos de todo o tipo:
futebol, bocha, bolão, voleibol, jogos de cartas, especialmente canastra, snooker,
carreiras de cavalo, rinhas de galo, caçadas, pescarias, além de apostas em geral,
especialmente as lotéricas, incluindo o jogo do bicho. A centralidade da dimensão do
jogo no cotidiano deste segmento de trabalhadores urbanos, já evidenciado em capítulos
precedentes nos relatos sobre brincadeiras e desafios, nos remete à idéia de que se trata
de um componente importante na visão de mundo dos moradores desta localidade, a
exemplo do que outros estudos evidenciaram como parte de práticas e estratégias de
afirmação ou de resistência das camadas populares em diferentes contextos.
455
Neste
capítulo, busco evidenciar como tais aspectos configuram uma espécie de “pequena
honra relacionada ao jogo”. O caráter do jogo, tal como estou considerando aqui,
envolve tanto a sua dimensão lúdica, a partir de Huizinga (1980) como condensa alguns
dos aspectos sugeridos por Callois (1967), em torno do simulacro, da sorte, da vertigem
e do combate ou enfrentamento e de suas articulações.
456
Um breve inventário dos jogos locais permite perceber como operam no dia-a-
dia os valores e noções tais como da honra, da coragem, da disputa, da habilidade, da
masculinidade e da malandragem, informando também, em alguns casos, estratificações
e divisões sociais e morais de grupos e territórios. Nas trajetórias de ex-mineiros como
Jango e Biscoito, por exemplo, a prática e o engajamento não diziam respeito a um ou a
outro esporte, mas simultaneamente a cinco modalidades diferentes, no caso do
primeiro, e de três, do segundo, desenvolvidas no tempo livre da mina, favorecido pela
jornada de seis horas para os trabalhadores das frentes de produção. È certo que num
455
Ver, por exemplo, Hoggart, 1970, especialmente entre as páginas p. 183-217, que correspondem ao
capítulo 5, La bonne vie; e, ainda, Linhart (1978), na descrição da resistência do corpo do trabalhador ao
ritmo da linha de montagem, particularmente às pp. 14-15; assim como as pesquisas de Eckert (1985), de
Leite Lopes (1976, 1988), de Fonseca (2000) e de Comerford (1999, 2003).
456
Callois (1967) definia “jogo” como combinando as idéias de limites, de liberdade e de invenção e
propunha sua classificação a partir da predominância do papel da competição (agôn), do acaso ou da sorte
(alea), do “simulacro” (mimicry) e da vertigem (ilinx), embora notasse que eles poderiam combinar
diferentes categorias. Ver Callois, 1967, p. 12 e 57.
315
universo como esse nem todos os trabalhadores eram adeptos de práticas esportivas,
havendo identificações com a atividade agrícola, a religião, o sindicato, o partido
político, mas para a maioria havia mais cruzamentos do que exclusões. Distintos graus
de engajamento e de comprometimento estavam presentes em relação ao jogo, como se
verá no próximo capítulo, relacionado ao futebol, entre os jogadores cujo envolvimento
beirava o profissionalismo e aqueles que encaravam a prática como uma diversão.
Num levantamento preliminar sobre um universo de 60 entrevistas, estimo que
70% dos meus informantes homens praticavam (e a maioria ainda pratica) algum ou
vários tipos de esportes ou de jogos, geralmente uma combinação de diferentes
modalidades e que podiam variar de acordo com as diferentes fases da vida. O futebol
tendo a preferência até por volta dos 50 anos (embora haja exceções como os
informantes que ainda jogam futebol após os 65 anos), depois cedendo lugar à bocha e a
outras competições menos exigentes fisicamente. Os dados sobre esporte são menos
evidentes no caso das mulheres, tanto pelos papéis sociais relacionados a cada sexo
como pelo fato de minha investigação estar centrada no universo masculino. Mas
algumas pistas indicam que muitas delas praticavam alguma modalidade de esportes já
nos anos 1950 em diante, fosse o voleibol, o basquete e o handebol (no período da vida
escolar), até os jogos de cartas no ambiente doméstico, com amigos, parentes e o
próprio cônjuge. Na atualidade, são realizados campeonatos femininos de diversas
modalidades, sendo que o voleibol parece mobilizar mais adesões, já não limitadas a
Meninas do futebol: O grupo de
garotas treina semanalmente na quadra
da escola
crianças e adolescentes, mas
contemplando também a
participação de mulheres adultas.
Em 2007, durante uma carreira de
cavalos a que fui assistir, um de
meus informantes indicou-me uma mulher que passava, dizendo que ela era “mais
carreirista que todos eles” – ou seja, no jargão local, criadora de cavalos e apostadora
em carreiras. Seu tom de voz era de admiração. Em 2008, quando eu me dirigia a uma
entrevista, vi um grupo de meninas de cerca de 10 anos jogando futebol na quadra da
escola, com um único menino entre elas, considerado como “o intruso”. Elas contaram
316
que treinam uma vez por semana naquele local. Tais fatos mostram que também ali –
onde os papéis sociais são ainda nitidamente marcados e a vigilância social é intensa –
parece já não restar disputas esportivas exclusivamente masculinas.
No período de funcionamento da mina de subsolo, a sociabilidade das gerações
de mineiros era também marcada pela freqüência intensa aos bares – com alto consumo
de bebidas alcoólicas -, aos bordéis (como a Boate da Eva Gorda, onde eram comuns as
brigas de facão entre facções rivais da cidade ou entre locais e ‘forasteiros’), aos clubes
ou sociedades recreativas, havendo, como já foi mencionado no capítulo 4, uma
agremiação específica para brancos e outra para “morenos”. O lazer da região
carbonífera incluía ainda os cinemas e cine-teatros
457
e bailes nos Centros de Tradições
Gaúchas (CTGs). Hoje, já não existem cinemas em Minas do Leão nem em Butiá, a
freqüência aos CTGs caiu significativamente e os chamados “bailes da terceira idade”
atraem até mesmo participantes que não chegaram aos 50 anos. Os jovens buscam
diversões em esporádicas festas locais e em eventos nas cidades vizinhas, participando
também os festivais de música, sejam religiosos
458
ou nativistas.
Como foi dito, a noção de jogo, com suas múltiplas dimensões, parece atravessar
os aspectos mais fundamentais da vida nesta comunidade, imbricada com “as questões
de honra”. Dessa maneira, considero que não está circunscrita ao universo da
sociabilidade, embora ali esteja sua face mais visível. Mesmo que certas de suas facetas
imprimam um caráter “menos sério” ao cotidiano, o que chamo de o “espírito do jogo”
pode também estar imbricado profundamente ao risco, à adrenalina, ao desafio. Pode-se
imaginar, por exemplo, diante de uma desavença, quais eram os efeitos da combinação
entre a paixão pelo futebol ou pelo jogo de bocha e o gosto pelo manuseio de facões,
adagas e “carneadeiras”, cultivado também como outra “arte” até os anos 1980. Ou
ainda, como mencionava um informante francês, como a interiorização do gosto pela
adrenalina desenvolvida durante a jornada na mina pode refletir-se na escolha dos
esportes de vertigem, como o alpinismo, sendo que nos dois casos trata-se, para meu
interlocutor, de desafiar o risco e “mostrar alguma coisa que os outros não conseguem
fazer”. De outro modo, é interessante se observar como o modelo das apostas em
corridas de cavalos em Minas do Leão inspira toda uma lógica e linguagem adotada nas
457
Dados do IBGE indicam que, em meados dos anos 1950, havia seis “cine-teatros” no município de São
Jerônimo (ao qual a vila de Minas do Leão pertencia), com capacidade para 2.600 pessoas, além de dez
sociedades recreativas. Cf. “São Jerônimo”, in: Enciclopédia dos municípios brasileiros, vol.34, RS,
IBGE, 1959, p. 260.
458
Como o evento “Noite de louvor”, promovido por igrejas evangélicas, ao qual assisti no final de 2006.
317
“apostas eleitorais” (para usar a expressão de Palmeira, 2006a). Deve-se considerar que
uma mesma atividade, considerada por alguns informantes como um lazer, como as
carreiras de cavalo (seja a de espectador ou de apostador) tem, para outros, um sentido
existencial que extrapola a dimensão de divertimento e de atividade das “horas vagas”.
Pode ser, mais do que isso, o que estrutura o cotidiano e no qual se fundem o gosto pela
criação de animais e pela natureza
459
com a paixão pelas disputas.
460
Tal atividade,
tornada quase profissional, como no caso do ex-mineiro Jarico, não perde, no entanto, a
sua característica passional, renovada a cada disputa.
6. 2. CORRENDO ATRÁS DA SORTE
Alguns estudos já evidenciaram que os membros das camadas populares
demonstram grande prazer nas apostas, nos jogos que desafiam a sorte, nas brincadeiras
com o acaso e com o destino. Hoggart (1973, p.36, p.65-67) havia mencionado a
centralidade de algumas noções de “sorte” e de “azar” nos bairros operários ingleses,
destacando a “abundância de toda espécie de jogos e apostas”, na esperança de obter
“um tipo de riqueza caído do céu”. Segundo ele, “o gozo não está tanto em ganhar, mas
em correr o risco de ganhar ou perder”.
461
Essas descrições assemelham-se aos hábitos
encontrados por mim em comunidades mineiras.
462
Em Minas do Leão, é perceptível
que ampla parcela da população revela um gosto peculiar pela disputa seja com um
adversário seja com o “destino”, para conquistar a “sorte”, embora a maioria a refira
como uma espécie de dom, que beneficiaria quem dela é portador. Ali, as apostas
lotéricas são bastante populares, só perdendo talvez para o jogo do bicho. Um de meus
informantes lamentava que tivesse sido fechada a casa lotérica da cidade, que
funcionava junto à praça principal, de forma que era preciso deslocar-se à cidade
vizinha para fazer apostas. O jogo do bicho era mais acessível, disponível em muitos
bares e mercados, mas tão discretamente gerenciado que um visitante não dará por sua
459
No sentido de espaço não-humano (Ellen, 1996).
460
Algo similar ao que F. Weber (1989) denominou de “travail à-côté”.
461
Cf. Hoggart, 1973, p.165.
462
Também observei o costume dos jogos e das apostas em loterias entre informantes de Creutzwald, na
Lorena francesa. No café do hotel onde me hospedei, a certas horas do dia, formava-se uma fila de
clientes retirando formulários para apostas, principalmente nas corridas de cavalos (les courses des
chevaux). Um dos jogos apreciados era o ValEur, no qual o apostador pode jogar em três ou até em oito
cavalos, com o valor da aposta ficando entre 3 e 56 euros. No formulário, estava a frase: “Jouons
responsable! Pour que les courses restent un plaisir” (“Joguemos de forma responsável, para que as
corridas continuem sendo um prazer”). Outra modalidade de loteria era o “Rápido”, no qual o apostador
escolhe oito números numa grade e outro numa outra, com investimento entre 1 e 10 euros. Em letras
miúdas na parte inferior do bilhete, constava também a advertência: “Restez maître du jeux, fixez vos
limites” (Mantenha-se no domínio do jogo, fixe seus limites). Tais pistas enunciam o risco de que o
prazer do jogo se transforme em vício e que comprometa a vida financeira do apostador.
318
existência se não dispor da confiança de quem se proponha a mencioná-lo. Num
universo em que as noções de “sorte” e de “destino” – para escapar com vida de um
acidente na mina – são usadas de forma recorrente, há também uma representação
generalizada de que é preciso “correr atrás da sorte” para que ela possa “sorrir” para o
apostador. Alguns informantes me relataram ter acertado “mais de uma vez” na loteria.
Eles se consideravam pessoas “de sorte” e não desperdiçavam as chances de conquistar
algum dinheiro extra, ou mesmo um bem. Mieroslau, ferreiro aposentado na mina
contou-me, certa vez, que tinha “tanta sorte” que várias vezes tinha acertado na loteria.
“Sempre deu uma miséria”, lembrava Lúcia, sua esposa. “Mas eu ganhei”, enfatizava.
Numa ocasião, outro de meus informantes, Leo, animado com uma correspondência da
Seleções Reader’s Digest, que anunciava que, se ele enviasse um formulário
preenchido, estaria concorrendo a um prêmio milionário e a outros prêmios “menores”,
tais como um carro, pediu minha ajuda para completar o tal formulário. Meses depois,
mesmo que o tal sorteio fosse adiado indefinidamente, ele ainda alimentava esperanças
em ser contemplado. Um terceiro interlocutor, Gelson, me contava que tinha apostado
durante um ano no mesmo número e justamente quando mudou a aposta, aquele número
foi sorteado: “Não era pra mim. Era a quina, na época deu 32 acertadores e ainda deu
230 milhões de cruzeiros antigos. Mas quando não é pra gente, não adianta”. Mais
recentemente, marcava o ano do nascimento e a placa do carro. Além das loterias
oficiais, fazia todo dia uma fezinha no jogo do bicho, no qual já havia ganhado R$ 400.
6.2.1 “Hoje mesmo, joguei [n]a minha ‘chapa’ de mineiro”
Jairton, de apelido Biriba, mineiro em atividade na Copelmi e diretor do
sindicato da categoria, com pouco mais de 40 anos, considerava que tinha “bastante
sorte” para os jogos. Entre rifas, apostas no jogo do bicho e outras loterias, ele
calculava ter ganho mais de R$ 5 mil, muitas vezes apostando na própria “chapa” de
mineiro, ou seja, no número da sua matrícula na empresa. Devoto de Santa Bárbara,
dizia que participar regularmente das procissões da santa nas comemorações de 4 de
dezembro sempre conferiu-lhe sorte, como daquela vez em que estava construindo a
casa, já sem recursos para continuar, e recebeu cerca de R$ 4 mil de um jogo lotérico,
depois de ter carregado a santa na procissão. Às vezes, uma aposta gera outra, de valor
menor e com caráter apenas simbólico para aumentar a emoção de quem gosta de
desafiar a sorte. “Se ganhar no bicho, eu jogo um churrasco”, provocava a um amigo ou
parente. Nas festas promovidas pela empresa, quando eram distribuídas cartelas
319
concorrendo a prêmios, em seus anos de trabalho, Biriba já levou para casa um fogão,
um ventilador, um liquidificador, uma batedeira e um jogo de panelas. Nas loterias e no
jogo do bicho, costumava apostar duas vezes por semana, um hábito já sagrado para ele:
“Hoje, joguei [n]a minha chapa”, me contava no dia da entrevista.
Chamam a atenção, nas apostas de Biriba, alguns elementos em particular. Um
deles é o fato de, reiteradamente, apostar no número de sua “chapa” de mineiro, como
se o fator sorte passasse por esse símbolo de pertencimento à corporação. Sabe-se que,
entre os apostadores há, não raro, uma obstinação em um determinado número “de
sorte”, que em alguns casos pode ser a data de nascimento sua ou dos filhos, o número
da casa, ou ainda números revelados num sonho ou em outras circunstâncias. No caso
de Biriba, tudo se passa como se sua sorte estivesse relacionada à sua condição de
mineiro, inclusive quando combinada com a proteção espiritual. Ou seja, outro fator
mencionado por ele é o culto à Santa Bárbara, e sua crença de que render homenagens à
santa tem grande eficácia na obtenção de ajuda para o enfrentamento de dificuldades,
inclusive financeiras. E isso num contexto adverso, de crise na produção de carvão e de
controvérsia sobre a manutenção da imagem da santa no local de trabalho. Biriba me
explicava que havia ocorrido um significativo crescimento dos adeptos das religiões
evangélicas entre os mineiros naquele período, de modo que o culto à santa vinha sendo
alvo de polêmicas – esses colegas consideravam que a imagem da santa estava fazendo
a desgraça dos mineiros. Contrapondo-se a isso, ele dizia: “Vamos na procissão da
santa, que dá sorte”. E sempre tinha exemplos de ganhos para ilustrar a sua eficácia.
6.3 APOSTAS “NA POLÍTICA”: JANTAR, DINHEIRO, PROMESSA E VACA
Provavelmente, se eu não tivesse lido previamente um artigo de Moacir Palmeira
(2006a) sobre as “apostas eleitorais”, tais fenômenos em Minas do Leão tão abundantes
quanto subterrâneos, teriam passado por mim despercebidos durante o período de seis
meses em que morei naquela localidade. Também porque, como indicou o mesmo autor
ao mencionar que a política é vista como circunscrita a um período específico,
conhecido como “a época da política” ou o “tempo da política”
463
, fora daquele período,
tais preocupações podem ser relegadas. É possível que tal prática fosse tão naturalizada
pelos moradores que não considerassem relevante uma menção a uma forasteira. O
463
Cf. Palmeira, 2002, p. 172-177.
320
caráter de jogo poderia apartá-lo dos temas sérios que eram referidos inicialmente nas
entrevistas, embora se saiba que mobiliza aspectos essenciais e profundos da existência.
E é preciso considerar também o fato de que, num jogo, como eu afirmava antes, está
sempre envolvida uma dose de honra – de forma que quem perde não perde apenas o
valor da aposta, mas algo de simbólico, que parece se transferir do doador ao receptor,
como sugeriu Mauss (2001) em seu ensaio sobre a dádiva. Assim, na mentalidade local,
“não fica bem” ao vencedor ficar se vangloriando de vitórias passadas e escarnecendo
do perdedor, assim como para o perdedor prevalece a lógica do esquecimento e da
assimilação do prejuízo, ao menos até que haja uma nova oportunidade para a revanche.
Minas do Leão registra características similares às descritas por Palmeira
(2006a, p.3-4) em seu universo de pesquisa, no qual eram feitas comumente apostas no
futebol, nas corridas de cavalo e em pequenas disputas quotidianas, com a maior
incidência de “apostas eleitorais” ocorrendo nas eleições municipais. Outros aspectos
indicados pelo autor, tais como a prevalência das “apostas casadas”, na qual a
testemunha é essencial, se assemelham à maior parte dos casos que me foram relatados
na comunidade gaúcha. Palmeira destacava que as apostas poderiam ser “no voto” (ou
“dando de lambuja”), quando um dos apostadores atribuía a seu candidato certo número
de votos de vantagem, ou “no pau”, onde os candidatos tinham o mesmo peso
464
. Entre
meus interlocutores, as expressões usadas eram “dar de luz”, “dar uma diferença” (para
os votos de vantagem) ou jogar “no resultado”. Durante a disputa presidencial de 2006,
embora o conflito fosse considerado mais distante, eu soube de algumas apostas opondo
Lula e Alckmin. Naquele período, escutava que “a política esquenta mesmo é nas
eleições pra prefeito”, “aí é que dá muita aposta”, “inimizade até”.
6.3.1 Um jantar para Lula
Nas apostas relativas às eleições para presidente, em 2006, prevaleceu o folclore
da disputa e os jantares entre amigos, em que vencedores e perdedores participavam da
mesma comemoração, providenciada pelo perdedor. Como eu tivesse indagado a
respeito de “apostas eleitorais”, um amigo convidou-me para um jantar de pagamento
de uma aposta deste tipo cujo mote era a eleição de Lula para presidência da República.
Acabei participando inadvertidamente de um dos encontros que seriam “só para
homens”, promovidos pelos jogadores veteranos do Atlético Futebol Clube, o que me
464
Palmeira 2006a, p.5.
321
gerou certo constrangimento.
465
Três universos considerados masculinos estavam
representados naquele evento: o da mina, o do futebol e o da política. Isso porque os
participantes eram, em sua maioria, empregados das companhias de mineração ou
aposentados da mina, alguns tinham construído também uma carreira política e
praticamente todos eles integravam o grupo de jogadores veteranos do Atlético. O
vencedor da aposta, Idelberto, o Beto Pedalada, ex-funcionário da Copelmi que eu havia
entrevistado anos antes, quando ele era prefeito da cidade, me explicou que seu
adversário, Renato – um ex-mineiro que se transformou em produtor rural, casado com
a única vereadora do município – lhe provocava que, quando começasse a propaganda
eleitoral na TV, Alckmin levaria a melhor sobre Lula. Até que ele, defensor da
candidatura petista, resolveu bancar a aposta. Beto considerava que uma aposta deste
tipo “nunca é racional”, de forma que “às vezes, se sabe que o candidato não tem
chance, mas se vai pelo coração”. Mas, naquele caso, estava convicto da vitória.
Contava que fez a aposta para mostrar ao outro que “ele não entende nada de política” e,
também, que “não é do povão”. Os dois jogadores se conhecem há três décadas. Como
Beto sempre apostava “entre amigos”, esse tipo de disputa nunca lhe gerou inimizades.
Eram amigos, mas com posições político-partidárias antagônicas: “Concorri em quatro
eleições e nunca precisei do voto dele!”, enfatizava. Meu interlocutor calculava que, ao
todo, já tivesse participado de dez apostas eleitorais e que, talvez, tivesse jogado “três
vezes mais do que isso” em disputas esportivas. Pelo fato de ter sido prefeito da cidade,
não jogava nas eleições municipais, mas apenas nas majoritárias. Renato, que havia
perdido a aposta, encarava a derrota com bom-humor: “O meu candidato foi o Alckmin,
joguei contra o Lula. É mais pra reunir os amigos, ajudar o bodegueiro...”, contou,
rindo. Colorado, ele tinha jogado outras vezes contra o amigo gremista nas decisões
futebolísticas. Acreditava que já tivesse registrado pelo menos dez derrotas, o que não
lhe tirava a vontade de fazer novos jogos. Como demonstrava, o gosto pelo jogo se
realimenta a cada nova disputa, independentemente de insucessos anteriores.
***
Em meu retorno à cidade, no final de setembro de 2008, às vésperas das eleições
municipais, dirigi-me a um dos cenários preferidos para “casamentos” de apostas, o Bar
Galetus, na avenida principal, considerado por alguns como um “reduto da esquerda” ou
da atual “oposição”, com uma alta freqüência de pedetistas e petistas. O dono do bar,
465
Já me referi ao evento na descrição de minhas atividades no campo, registradas no final do capítulo 1.
322
Carlos, já havia me contado que quando havia muitas apostas em andamento essas eram
anotadas numa agenda. Houve eleições municipais em que só ali eram “casadas” 15
apostas simultaneamente. Na maior parte dos casos, o pagamento era um jantar, caixas
de cervejas ou valores entre R$ 100 e R$ 200, mas algumas envolviam valores mais
altos. Muitas vezes, os mesmos jogadores se mobilizavam tanto para as apostas políticas
como para as esportivas (envolvendo a dupla Gre-Nal). Mesmo que seu estabelecimento
fosse um dos principais pontos para a oficialização dos jogos, Carlos não era um
entusiasta: “Num lugar tão pequeno, a aposta não é uma boa coisa porque faz inimigos”,
dizia-me. Guto, um dos apostadores, esclarecia que apostava “entre amigos”. A
existência da amizade, porém, não impedia a gozação sobre o vencido, em expressões
como “Tá inchado?!” ou “Parece que tá mais gordo!” Em geral, esses jogos começavam
tratados dois meses antes das eleições e podiam ser bancados até no dia do pleito.
Daquela vez, porém, poucos dias antes das eleições, ouvi de Carlos, o dono do
bar, num tom meio desanimado: “Nesse ano não deu jogo, a diferença entre os
candidatos tá muito grande”. As pesquisas de opinião divulgadas nas semanas que
antecediam o pleito indicavam que o prefeito Miguel Almeida, candidato à reeleição por
uma coligação em torno do PP, tinha cerca de 80% das intenções de voto contra menos
de 20% de Negrinho (José Carlos Freitas). Vice-prefeito rompido com o prefeito em
ruidosas discussões
466
, Negrinho havia migrado do PMDB para o PT, coligando-se ao
PDT. Segundo os apostadores experimentados que eu havia conhecido anos antes, além
do Galletus, outro espaço onde o desafio das apostas era sacramentado era o Bar do
Parente, próximo à entrada da companhia de mineração. Os participantes costumavam
depositar os valores com os proprietários desses dois bares, o que também podia ser
feito com o dono do supermercado Mineirão ou, ainda, com o proprietário da Farmácia
Santa Bárbara, estabelecimentos situados na avenida principal, num raio de 200 metros.
Perguntei a outros conhecidos sobre apostas naquela eleição e a resposta foi a mesma:
“Não tô sabendo de nenhum jogo”. Mas eu já sabia que uma característica desses tratos
era o fato de não serem alardeados para além de um pequeno grupo.
6.3.2“Ô, César, podemos casar mil reais aí pro jogo...?”
Num domingo à noite, encontrando um de meus informantes, arrisquei: “Sabe de
alguma aposta nesta eleição?” Ele me disse prontamente: “Sei, eu e meu irmão fizemos
466
A polêmica entre prefeito e vice foi abordada no capítulo 4.
323
jogo!” Combinamos que me contaria mais detalhes depois. No dia seguinte, fui
convidada para “comer um peixe” na casa de Jango, resultado de uma pescaria entre
amigos feita no final de semana - no mesmo horário em que ocorreram as manifestações
eleitorais na área central da cidade. Foi nesse jantar que Aldonês, mecânico, filho do ex-
mineiro Zé Ratão, um pedetista apaixonado, me contou a história, quando voltei à carga:
– E aí... agora teve outra aposta então?
Aldonês - Nesta teve.
- E como é que foi?
Aldonês – Nesta eu tava em casa, na frente da casa e aí quando eu vi chegou
o... chegou o Janga [Jango Freitas]. Aí o Janga diz: “Ò, tem uma aposta pra ti
fazer, o cara tá lá... ta lá me trovando pra fazer uma aposta lá. Aí ele chegou
lá... eu cheguei e era o Todi [vereador Todi de Freitas Bittencourt]. O Todi e
o Milton, o Milton Freitas, mas que eu joguei foi com o Todi, né. Aí ele me
pegou... “Ó, te dou mil votos e jogo mil reais na aposta contra o... do Miguel
contra o Negrinho”. Aí ele pegou... eu peguei: “Ò, vamos fazer assim então:
eu agora aqui não tenho dinheiro, só no banco. Mas amanhã por volta das
10h...” Combinando pro dia seguinte né... “tu vai lá em casa que eu vô no
banco e tiro o dinheiro’. Aí ele pegou e mandou um colega dele, (...) o Mauro
Freitas (...). E aí, o Freitas encostou o Fiat Uno ali na frente de casa. Aí ele
disse: ‘Ó, vamos lá no cara?”, “Vamos, tô com o dinheiro aqui na mão, não
quer jogar mais, quer jogar um mil, dois mil?”. “Não, o homem mandou jogar
só mil e o homem tá tremendo a perna...” Tava com medo, né, o Pica-Pau
[apelido do vereador Todi, que também é da família Freitas, mas é aliado do
prefeito]. Aí... por isso que ele não foi lá levar o dinheiro, aí mandou outro
cara. E aí fomos lá no César da Farmácia e aí chegamos lá: “Ò, César,
podemos casar mil reais aí pro jogo...?”,“Não, pode!” Aí deixamos o
dinheiro, cada um entregou seu dinheiro e foi feita a aposta. Agora é só
esperar o resultado das eleições nas urnas.
Jefferson (filho de Jango) – Por que pro César?
Aldonês - Pro César ou pro Diolino, um o cara é comerciante, tem farmácia,
né, a Farmácia Santa Bárbara, e o Diolino tem o mercado Mineirão. Aí a
gente procurou largar na mão deles que é mais seguro, né. São umas pessoas
conhecidas, umas pessoas sérias. E foi isso que aconteceu.
Ouvindo o relato, a mulher de Aldonês já mostrava certa resignação com o fato
de o marido se arriscar daquela maneira a perder dinheiro numa eleição a qual, a contar
pelo visual da cidade e pelas pesquisas de opinião, parecia de antemão decidida a favor
do então prefeito. Sobre a reação da esposa, Aldonês comentava: “Essa aí quase teve um
chilique...”. Ele esclarecia que, para que ganhasse a aposta, não era necessário que seu
candidato saísse vitorioso do pleito, pois o jogo era baseado “na diferença”: “Se o
Negrinho fizer dois mil votos e o Miguel fizer dois mil e quinhentos, eu ganho a aposta,
porque ele me deu mil votos. Pra eu perder a aposta, só se o Miguel fizer 1001 votos de
diferença, aí eu perco a aposta.” No seu caso, essa foi a aposta principal, na qual ele
324
entrou com R$ 500 e seu irmão com mais R$ 500 para totalizar os R$ 1 mil “casados na
farmácia”. Ainda que uma aposta deste tipo seja movida pela paixão das disputas
políticas e pelo prazer do jogo, não exclui um cálculo das probabilidades. Ele
contabilizava: “Mil votos de 6. 118 votantes (o total de eleitores) dá mais de 20% da
votação. Só branco e nulo dá 800 ou 900 votos... Nem que o Negrinho não ganhe a
eleição, fazendo em torno de 1.800 votos, essa aposta eu ganho!” Feita a aposta, não
havia clima de provocação, mas depois de apurados os votos e pago o valor ao
vencedor, este podia vangloriar-se e soltar piadas ao derrotado. Naquela mesma eleição,
Aldonês fez outras duas apostas menores, valendo dois churrascos e caixas de cerveja.
Nas duas, opondo-se a adversários diferentes, jogou a votação de Veni, mulher de
Negrinho, candidata à vereadora pelo PT, contra a votação de Alceu Magrão, vereador
que concorria à reeleição, sustentando que ela faria mais votos do que ele. Um dos seus
adversários era um funcionário da farmácia onde ficou “casada” a aposta principal. Nos
três jogos, os seus oponentes tinham o sobrenome Freitas, como Negrinho, mas
apostavam em Miguel, confirmando a tese da “desunião” dos Freitas na política.
Preparando o peixe: Aldonês (esq.), o apostador nas eleições, Jefferson, e Jango, o mediador.
Aldonês tinha conhecimento de que “muita gente do Leão” havia feito apostas.
Soube que o filho de Negrinho, Chris, tinha apostando R$ 3 mil, mas não sabia quem
era o seu adversário. O rapaz teria sido provocado por alguém para um jogo baseado na
diferença de mil votos para a candidatura de Miguel e resolveu aceitar. Inicialmente, ele
havia desafiado Todi (que acabou fechando o jogo com Aldonês) numa aposta de sua
camionete Ford contra o Gol do vereador.
325
O filho do Negrinho queria jogar a camioneta Ford... é 2003 aquela
camioneta, né? [pergunta a Jefferson]. Acho que é 2003... contra um
Golzinho, contra um Gol 2000, parece que ele falou. Aí o cara [Todi] queria
dar mil votos, aí ele provocou o cara pra jogar e ele não quis.
Inclusive o
Chris pediu pra nós fazermos o jogo pra ele. Aí a gente conversou com
o Todi e ele não quis.
Meu interlocutor tinha tentado mediar o jogo, assim como Jango fizera no seu
caso. Nestas duas situações, não se tratava de apostas entre amigos, mas entre
adversários políticos, viabilizadas pela ação de mediadores, conhecidos das duas partes
que tinham habilidade para fazer acordos. Meu informante contava que aprendeu a
apostar “na política” com o pai - mineiro já falecido, que era considerado um dos
“valentões” da cidade. Começou apostando baixo. No início, o prêmio era churrasco,
cervejas, arroz com galinha, o mesmo tipo de desafio que banca em disputas no futebol.
Quando lhe perguntei se havia alguma peculiaridade nas emoções envolvidas nas
apostas políticas, ele respondeu: “É um jogo, a gente bota pra ganhar, né. Um jogo é um
jogo. Quem entra na briga é pra ganhar, ganhar ou perder, né”. Mais de uma vez eu
ouviria essas noções auto-explicativas de que “um jogo é um jogo”. Mas, naquele
contexto, um jogo envolvendo o universo efervescente da política, valendo um valor
não desprezível, mobilizava riscos e emoções ainda maiores, daí o fascínio que exercia.
Em outra conversa que havíamos tido, em 2007, ele havia me contado sobre uma
aposta importante que havia feito - e perdido - nas eleições de 2004. Na época, apoiava
Samir, candidato do PDT, contra o atual prefeito Miguel, do PP. Voltou a lembrar: “Na
outra, nós jogamos 5 mil [reais]. Eu só dei mil. Nós éramos em cinco apostadores”.
Também daquela vez, o dinheiro do grupo ficou depositado na Farmácia Santa Bárbara.
Recordava-se que ele e o irmão foram convidados para entrar “numa junta” que tinha a
participação tanto de vereadores como do próprio candidato pedetista à prefeitura. No
grupo de adversários estavam os vereadores Todi e Gasolina, que apoiavam a
candidatura de Miguel. Foi a primeira derrota de Aldonês numa aposta eleitoral: “Eles
ganharam cinco mil [reais] nossos. Eu perdi mil, meu irmão mil”. A idéia da aposta
surgiu das provocações dos adversários: “Eles queriam apostar. Aí os guris fecharam.
Aí nós, muito políticos, PDT doente, né, aí pegamos e apostamos”. Daquela vez -
diferentemente da última eleição na qual não tinha grandes expectativas na vitória de
Negrinho - Aldonês não imaginava que seu candidato pudesse perder: “Ah, eu achava
que não tinha, que fazia... que fazia 12 anos que o PDT tava ai [na prefeitura], né.”
Embora já tivesse feito várias apostas antes, naquela tinha jogado um valor mais alto.
326
Ouviu falar de gente que, na ocasião, apostou entre R$ 7 mil e R$ 10 mil. E recordava-
se de um conhecido que teria ganhado um carro num jogo eleitoral.
Casos como os de Aldonês eram de apostadores fiéis a um partido e que
“jogavam” mesmo que a candidatura enfrentasse condições desfavoráveis. O adversário
que estivesse em vantagem mostrava sua superioridade “dando luz”, ou seja,
estabelecendo uma diferença de votos. No pleito de 2008, mesmo com a diferença de
mil votos no trato, Aldonês perdeu mais uma vez a aposta principal e também as
menores porque sua candidata a vereadora não fez a votação que ele esperava.
6.3.3 Carvão, futebol e política: três paixões de um velho ferreiro da mina
“Sou um apaixonado”, dizia-me Mieroslau, ferreiro aposentado da mina, com
uma vivacidade juvenil nos olhos muito azuis de descendente de polonês, quando da
minha visita à casa dele e da mulher, Lúcia, em outubro de 2008. No meio da conversa,
ele me contava que tinha três paixões: o carvão, o futebol e a política. Avaliava que a
“idade”, de septuagenário, só tinha lhe aguçado a inteligência, a memória e o raciocínio
– todas essas capacidades muito providenciais na hora de fazer apostas, ainda que, na
prática, elas fossem mesmo movidas pela paixão. Era com gosto que sempre se envolvia
num novo “jogo” fosse no futebol ou na política. Estávamos às vésperas do primeiro
turno das eleições municipais de 2008 e, naquele final de tarde, ele se preparava para
participar da carreata de seu candidato à prefeitura, Miguel Almeida. O então prefeito,
que buscava um segundo mandato, era considerado “da família”, por ser casado com
uma sobrinha. Na hora de pedir conselhos, o prefeito tratava-o por “Tio Miro”. Tanto no
futebol como na política, Mieroslau tinha grande prazer em bancar apostas. Ele
costumava “jogar” também com os amigos, filhos ou netos nos resultados de
campeonatos de futebol, valendo um churrasco, um jantar, dádivas desse tipo.
Explicava: “Começo perdendo nas primeiras chaves, e, depois, eles não sabem como,
vou acertando tudo e ainda ganho deles”. Indicava para a própria cabeça com picardia:
“São muitos anos [de treino], né, eles ainda estão aprendendo”.
Naquela eleição, de 2008, havia apostado com um dos filhos na diferença de
votos entre os dois candidatos à prefeitura, dando uma grande margem de vantagem ao
seu candidato. Como o rapaz estivesse cauteloso e dissesse que “o pai acha tudo fácil”,
Mieroslau quis apostar. Fez dois “jogos” com o filho, valendo um valor simbólico de
R$ 50 cada um. “Ele ainda está aprendendo...”, caçoava, “eu preciso ensiná-lo sobre
327
como funciona a política”. O tom provocativo da brincadeira tornava-se mais evidente
quando se sabe que o “filho inexperiente” é, na verdade, um homem de mais de 40 anos,
funcionário do escritório da companhia na qual o pai havia se aposentado. Nas eleições
de 2006, o velho ferreiro já havia apostado “em família” sobre a vitória do seu
candidato. Teve então boas razões para comemorar a vitória. Daquela vez, não estava
em jogo nenhum valor em dinheiro. Se perdesse, teria que caminhar 90 km a pé, até a
cidade onde nascera, Dom Feliciano. Pelo menos essa era a promessa que havia feito
para desafiar o ceticismo dos outros sobre suas previsões eleitorais. Naquele “jogo”,
havia um misto entre “aposta” e “promessa”, explicitada nas palavras dele: “Se eu
perdesse, eu ia; eu sei o caminho e tinha que pagar a promessa”. No sentido adotado por
ele, o termo “promessa” parece condensar diferentes significados, mesclando os
universos da política (da palavra dada) e da religião (do sacrifício). Mas não se tratava
realmente de uma promessa no sentido que o termo ganha no universo religioso. Este
seria o caso se Mieroslau prometesse que faria o sacrifício de caminhar a pé até sua
cidade natal caso seu candidato vencesse. Não, sua “promessa” era a de que faria isso se
seu candidato perdesse – como na própria lógica do jogo, em que além de registrar a
derrota é preciso ainda pagar por ela. Então, o sentido estava ligado mesmo a uma
aposta. Desafiado em sua previsão eleitoral, anunciou o sacrifício caso tivesse se
equivocado. O que parece estar em jogo é uma questão de honra, de um “saber”
acumulado sobre a política. E uma promessa, uma vez feita, precisava ser cumprida.
Não importava que o esforço pudesse ser demasiado. Mas era uma “aposta difusa”, sem
adversário individualizado, formalizada diante de uma platéia de amigos e parentes.
Todos os presentes eram, a um só tempo, participantes e testemunhas da “palavra dada”.
6.3.4“Acho que a palavra de um homem vale mais do que dez vacas”
Mieroslau e Lúcia tinham sido, por sua vez, testemunhas de uma aposta nas
eleições municipais de 2004. Naquela vez, estava em jogo uma vaca leiteira, apostada
por Jarico, ex-mineiro, adepto da candidatura de Samir, contra um sujeito conhecido
como Nego da Gaita, que votava em Miguel. Tratava-se de um jogo baseado no
resultado da eleição, na vitória de um candidato e não “na diferença”. Algum tempo
depois, eu soube que Jarico teria um cavalo disputando uma carreira e pedi a Jango que
me apresentasse a ele. Acostumado às carreiras, Jarico também “jogava” na política.
Momentos antes da corrida, falamos pela primeira vez da aposta eleitoral, numa
328
conversa rápida na qual, embora ele falasse de acontecimentos passados, eu podia ler os
sinais da emoção e da tensão que antecediam a nova disputa, a dos cavalos:
Jarico - Olha, nessa eleição que teve aqui [em 2004] eu perdi uma vaca. (...)
Era uma vaca caju, vaca pra leite, e ela foi com o bezerrinho no pé. Então, eu
joguei... Teve um cara que era contra mim: “Tu não vai inteirar a vaca do
Nego?” Ah, eu entrego, porque eu não me sujo com vaca.
- O senhor apostou no Samir?
Jarico - Eu apostei no Samir. Olha, eu vou te dizer uma coisa: eu apostei no
Samir e perdi a vaca pro homem, mas o Seu Miguel tá fazendo uma boa
administração.
- E quem era o seu oponente?
Jarico - Era... eu nem sei o nome dele, o apelido é Nego. (...) Nego da Gaita.
Mas infelizmente ele vendeu a vaca.
- O senhor teve testemunhas pra essa aposta...
Jarico - Tive, tive. Uma mulher e um homem de testemunha. Pra mim, nem
precisa testemunha...
- E como é a transação, a vaca fica “depositada” em algum lugar?
Jarico - Não, quem perde... por exemplo se eu perco a vaca pra aquele rapaz,
eu tenho que pegar e entregar pra ele, né.
- No mesmo dia da eleição?
Jarico - Não, eu entreguei a vaca uma semana depois. (...) Mas entreguei, né.
Por que eu acho que a palavra num homem vale mais que dez vacas. Que
acho que um homem tem que ter palavra.
- E as testemunhas têm de estar junto na entrega?
Jarico - Não, não. [Só] Na hora de fazer a aposta.
- E foi a primeira vez que o senhor apostou em eleição?
Jarico - Não, não. Sempre aposto. Mas aí é churrasco, cervejada, coisa assim.
Mas, olha, tá na hora, dá licença!
Interrompemos a conversa porque estava na hora de Bin Laden
467
, o cavalo de
raça inglesa de Jarico, disputar a corrida com o desafiante. “Os outros estão
entusiasmados com a carreira, mas eu também tô, né. Que carreira é carreira!”, dizia ele,
como se asserção fosse, de novo, auto-explicativa e bastasse para traduzir seu
sentimento. Desde essa nossa primeira conversa, Jarico deixava claro o peso que dava
467
Segundo Jarico, o cavalo inglês já tinha esse nome quando foi comprado por ele.
329
para “a palavra de um homem”, traduzindo a importância da honra masculina
tradicional. Assim, como “a palavra de um homem vale mais do que dez vacas”, para
ele não era necessário haver testemunhas na aposta, já que, segundo disse, não iria
“sujar” o seu nome por causa de uma vaca. Numa localidade em que é mais comum
conhecer-se as pessoas pelo apelido do que pelo nome não causa estranheza o fato que
Jarico desconhecesse o nome do outro apostador. Segundo manifestou, preferia que seu
adversário conservasse a vaca ao invés de vendê-la. Para Jarico, a vaca tinha uma
importância simbólica que não se reduzia ao valor monetário.
Jarico: uma paixão por cavalos e carreiras que ele vai transmitindo às crianças da vizinhança
Cerca de dois meses depois dessa “carreira”, estive na casa de Jarico e
conversamos mais longamente. Ele avaliava que aquela eleição de 2004 tinha sido
“desgranida”, já que a vaca de leite, perdida naquela aposta, valia, com o bezerro, cerca
de R$ 700. Contou que ele e Nego da Gaita, seu adversário, eram amigos e que aquele
sempre o provocava com o assunto das eleições, até que resolveu encarar o desafio.
Depois que a aposta tornou-se pública, foi procurado por amigos da família Freitas
(parentes de sua mulher), que o aconselhavam a “desmanchar o jogo” porque ele estava
se arriscando a perder. Na véspera das eleições, Jarico recebeu uma visita inesperada:
Negrinho (Freitas), candidato a vice na chapa de Miguel, contra a qual ele havia
apostado, foi dar-lhe um conselho: “Desiste do ‘jogo da vaca’ porque nós vamos ganhar
a eleição de longe”. Jarico mostrou-se cético. Considerando-se “sem partido”, ele havia
votado em Negrinho em vários pleitos, escolhendo assim “na pessoa”, mas não havia
330
gostado da aliança dele com o candidato a prefeito. Feita a apuração das urnas, deixou
passar alguns dias e foi buscar a vaca no campo. “Sei ganhar e sei perder”, justificava.
Quando conduzia o animal pelas ruas para entregá-la ao vencedor da aposta, recebeu os
cumprimentos de um morador da “rua de baixo”
468
: “Parabéns por entregar a vaca pro
homem!”, gritou o ex-mineiro Natalício, também “carreirista” e criador de cavalos.
Jarico respondeu: “Eu me criei assim, dando razão pra quem tem!” Na conversa que
tivemos, enunciava certa legitimidade no resultado da aposta levando em consideração
as condições financeiras dos jogadores: “Naquela época, eu tinha mais 32 vacas e ele
[Nego da Gaita] uma só”. Posteriormente, em função de recorrentes abigeatos, Jarico
vendeu 24 dessas vacas. Ele recordava que, naquela eleição, houve uma aposta
envolvendo um carro, mas naquele caso a palavra não tinha sido honrada:
Jarico - Esses caras que jogaram o carro não pagaram... não entregaram o
carro. Quem joga um carro tem que ir no cartório e passar uma letra, a
senhora não acha? (...) Apostou, mas não quis entregar.
- E ficou por isso mesmo?
Jarico – Ficou por isso mesmo. Aí que eu digo, o homem falou... Que uns
anos atrás meu pai falava que um fio de bigode é um documento. Hoje acho
que uma cabeça inteira não vale mais nada, cheia de cabelo.
- E o sujeito que perdeu não engrossou pra cima do outro?
Jarico – Não, o cara não tinha nem letra nem nada.
6.3.5 “Aposta em eleição é que nem carreira [de cavalos]!”
Os jogos na política ou nas carreiras de cavalos parecem não ter grande
diferença de estatuto nesta localidade. Se, como dizia Aldonês, “jogo é jogo” e,
conforme Jarico, “carreira é carreira”, outro informante seria mais explícito na
comparação entre os dois universos: “Aposta em eleição é que nem carreira [de
cavalos]!”. Da mesma forma como Jarico, Joel Magrão, 53 anos, que conheci quando
acompanhei Jango e Julieta no carnaval de rua da cidade, me contava, durante uma
entrevista, que começou a “jogar na política” depois de uma trajetória de criador de
cavalos e de apostador em carreiras, intensificada após a aposentadoria da mina. Dizia
que, na localidade, aposta em eleição “sempre teve e vai continuar tendo”. Acreditava
que a aposta num candidato é sempre movida pela paixão, e aí vale jogar dinheiro, carro
– como a história contada por ele de que Gata Crespa teria perdido um automóvel para
468
Como foi dito antes, a “rua de baixo” é a Avenida Alberto Pasqualini.
331
outro apostador, o Moacir “do trailler” - ou bois, como na ocasião em que Jolar
469
apostou em Samir. Em fevereiro de 2007, Joel me contava que na eleição para prefeito
em 2004 ele havia apostado pouco: jogou R$ 100 em Samir, tendo como adversário
Celso, que apoiava Miguel, e que levou a melhor. Ele explicava que a aposta “quase
sempre é casada”, ou seja, o dinheiro ficava na mão de uma testemunha. Acreditava que
um dos efeitos do “jogo político” era o de chamar a atenção em torno do candidato:
‘“tão jogando bem no Fulano’, então isso atrai a atenção dos curiosos e mais gente
acaba votando nele”. Joel nunca foi “político”, segundo me contava, referindo-se a
alguém que se dedicasse profissionalmente à política. Convidado a concorrer a vereador
mais de uma vez, sempre recusou. O que não lhe agradava era “o negócio” de um
político prometer e não cumprir: “Isso nunca caiu na minha feição”, enfatizava. Para
Joel, assim como para Jarico, “um homem tem que ter palavra”. Havia uma contradição
entre o não-cumprimento de promessas, considerado um comportamento usual de
políticos, e a honra que um homem deve ter, mantendo a “palavra dada”. Joel e Jarico
tinham em comum uma trajetória familiar de origem rural e sua própria atividade estava
relacionada à criação de animais desde que deixaram a mina.
Joel Magrão contava que entre seus esportes preferidos estavam a caçada e a
pescaria, um gosto herdado do pai – que foi mineiro em Arroio dos Ratos, aposentado
por “problemas de nervos”. Considerava um prazer embrenhar-se pelos campos
carregando uma espingarda, acompanhado por uma parelha de cachorros galgos. Saía
para caçar em grupo, geralmente com amigos da família Freitas. Seu pai já investia na
criação de cavalos para carreiras e Joel, quando deixou a mina, passou a fazer o mesmo.
Contava que seus cavalos trabalhavam no campo, na carroça e ainda corriam carreiras:
“Tem que ser artista”, definia, sobre a versatilidade dos animais. Um cavalo pintado,
chamado Apalusa, em seus 16 anos de vida tinha corrido 20 carreiras e disputaria outra
no dia seguinte. “Já imortalizei ele”, me dizia Joel, referindo-se à taça que recebeu de 1º
lugar numa carreira na Cancha Santa Fé. Contava que Apalusa era bastante solicitado
porque ”perdia facilmente”. A corrida do dia seguinte era considerada séria, pois valeria
R$ 1 mil. Além do jogo principal, há outras apostas feitas “no costado da cancha”, que
podem ser em “pencas” (envolvendo três ou quatro cavalos) ou “no arremate”, quando o
jogo é por lance em cada cavalo. Em certa ocasião, ele havia perdido R$ 1,3 mil, mais
469
Jolar, falecido pouco depois, vítima de câncer, tinha sido um dos principais apostadores da cidade.
Como tinha um matadouro, costumava apostar os animais de abate.
332
um boi. Mas a adrenalina gerada por uma nova disputa o animava novamente. “Perco e
não fico sentindo, somos adversários e colegas. Perdeu, perdeu; ganhou, ganhou”.
Filho de agricultor de Encruzilhada do Sul, Jarico, por sua vez, é orindo de uma
família de nove irmãos. O pai tinha 15 hectares de terras e arrendava mais alguns na
chácara de outro proprietário, onde a família plantava milho, feijão, trigo, alpiste e
linho. “Meu pai era carreirista”, contou, explicando que ele tinha cancha reta e cuidava
de quatro ou cinco cavalos, em cujas corridas “ganhava mais do que perdia”. Jarico foi
criado num sistema rígido, em que as dificuldades eram muito grandes, inclusive para
estudar, de forma de conseguiu freqüentar a escola apenas até a segunda série primária.
Depois de adulto, Jarico trabalhou alguns anos na mineração, mas foi se aposentar como
soldador em outra empresa. Estava em seu segundo casamento, desta vez com uma
moça da família Freitas. Contava que tinha sido adepto durante 12 anos da igreja
Assembléia de Deus. Foi depois da aposentadoria – e de ter-se afastado da igreja – que
começou a envolver-se com cavalos e carreiras. Naquele período, mantinha oito cavalos
numa área pertencente a uma empresa de papel e celulose, na qual desempenhava uma
função de “zelador de mato”. Entre seus preferidos para carreiras estavam a Feiticeira,
uma égua crioula cruzada com Ford Müller, e o cavalo Bin Laden. A carreira é um
esporte caro devido aos altos investimentos com alimentação e remédios e no qual conta
bastante a sensibilidade do criador para observar as reações do animal. Jarico me
contava que tinha “a sorte” de não precisar pagar o “compositor” (pessoa que treina seus
cavalos), pois o papel era desempenhado por um amigo que não lhe cobrava pelo
trabalho. Mas a “arte” de um carreirista não parava por aí: o difícil, segundo Jarico, é
encontrar um jóquei de confiança. Ele não tinha queixas do rapaz que montou Bin
Laden, porque o garoto havia aprendido a correr carreiras com um amigo seu, que havia
morrido de câncer pouco tempo antes. Se no jogo eleitoral local não havia registro de
denúncias sobre fraudes no pleito (embora se multiplicassem acusações de que
candidato vencedor teria “comprado” o eleitorado), na carreira de cavalos a
desconfiança de “sabotagem” estava sempre presente. Dois meses depois da disputa,
que terminou com a derrota de Bin Laden, Jarico tinha uma explicação para o insucesso:
“Os ‘contrários’ largaram remédio na cocheira dele, um pó que deixa o cavalo
anestesiado". Outra hipótese aventada nas derrotas é a de que o jóquei tenha tido
“comprado”, ou seja, recebido dinheiro de adversários para “segurar o cavalo”.
333
6.4 UM GRUPO DE HOMENS NUM MERCADO, UMA VOTAÇÃO
INUSITADA: “O AMOR EXISTE?”
Numa ocasião, um de meus informantes, Osmar, com pouco mais de 60 anos,
apelidado de Bichinho, contou-me que, naquele dia – passado pouco tempo das eleições
A etnógrafa empata numa aposta
Em outubro de 2006, quando eu morava em Minas do Leão, fui desafiada a
uma aposta eleitoral. Eu havia perguntado a Jango se ele sabia de alguém que
estivesse jogando naquela eleição presidencial. A reação dele foi me provocar dizendo
que apostava comigo uma “janta” no fato de que Lula não ganharia a eleição. Ele deve
ter adotado a tática de “jogar verde pra colher maduro”. Eu havia chegado ao campo
convencida de que quanto menos eu me expusesse neste particular, mais à vontade
ficariam meus informantes para revelar suas próprias lógicas, suas paixões e
convicções. Como se, não estando preocupados com meu julgamento ou envolvidos
numa disputa de posições comigo, eles pudessem sentir-se em confiança para revelar
suas “intimidades” relativas à política. Pensava que a exploração das diferenças
políticas entre pesquisador e nativo poderia suscitar mais a disputa do que contribuir
para a interação, salvo em casos em que o engajamento é inevitável ou é
voluntariamente escolhido pelo pesquisador. Ser identificada com uma posição
política podia significar vantagens (como um aumento da identificação e da confiança
de aliados), mas representava também outras tantas desvantagens (com a desconfiança
e o afastamento de possíveis “adversários” que, ali, poderiam ser a maioria). Mas não
foi desta forma que as coisas aconteceram. Certa vez, lembrei-me do que Hoggart
(1973) escreveu sobre a habilidade dos membros das classes populares em “ler” a face
dos outros, quando escutei de um vizinho, eleitor do PP: “Tu tem um jeitão assim... de
quem vota no PT”, ele me disse. Daquela vez, mantive certo sangue-frio: “Como
assim, um jeito...?” “Sei lá, um jeitão assim...”, ele devolveu. Tentei ser enigmática
daquela vez, mas não sei se fui suficientemente convincente.
No caso de Jango, porém, mordi a isca, pois ri e aceitei o desafio. Ele sugeriu
que a aposta ficasse desdobrada em duas partes: uma sobre a votação no primeiro
turno e outra sobre o segundo turno, se houvesse. Assim, como Lula não foi eleito no
primeiro turno, Jango foi o vencedor da primeira rodada. Mas como Lula venceu a
disputa contra Alckmin no segundo turno, tive a desforra. Empatados, eu e Jango
tínhamos a alternativa de zerar as nossas dívidas ou de fazer cada qual o seu
pagamento. Decidimos pela segunda opção. Fiz então um jantar para 10 pessoas e
convidei a família de Jango. Compareceram Julieta, sua esposa, dois dos seus filhos,
uma das noras e dois netos. Menos Jango. Mas sua ausência serviu para revelar outra
faceta de meu informante. Descobri que esse tipo de encontro social era impensável
para ele – que o conhecido “herói da malandragem” era tímido para freqüentar a casa
dos outros. Depois, ele me pediu desculpas e, querendo pagar a sua parte na aposta,
me convidou para um churrasco, ao qual compareci. Em seu reduto, ele estava
plenamente à vontade. Ainda que, naquele episódio, tivesse havido uma exposição de
minhas posições políticas diante daquela família, pela aceitação da aposta, pareceu-me
que esta se inscreveu nos padrões locais compreendendo a brincadeira, o desafio e o
jogo. Eu demonstrava assim que havia aprendido com eles a jogar “na política”.
334
de 2006 - havia ocorrido uma “eleição” diferente no mercado do Marcelo
470
, uma
espécie de “aposta”. O tema era: “O amor existe?” Eu havia perguntado a Bichinho, dias
antes, se ele sabia da existência de alguma “aposta eleitoral”, quando ele veio me contar
– junto ao muro que cercava a minha casa – sobre a curiosa votação que haviam feito
horas antes. Naquele dia, um grupo de seis homens com idades entre os 30 e os 60 anos,
a metade dos quais tinha sido mineiro, com escolaridade entre o primário incompleto (a
maioria) e o superior incompleto (um deles), tinha resolvido “votar” a questão. Por
quatro votos a dois, ganhou a tese de que “o amor não existe”. Um solteiro e três
casados estavam entre os céticos ganhadores da aposta, enquanto que, no outro time, o
dos perdedores, dos que acreditavam no amor, estavam um viúvo e um dos casados. A
então, eu não tinha percebido que não apenas os bares, mas também os armazéns, os
mercados, em que pese seu caráter mais “doméstico”, mais “familiar” também são um
ponto importante de sociabilidade. Ao mesmo tempo em que havia o entra-e-sai de
clientes, alguns homens costumavam ficar em frente, jogando conversa fora ou tomando
cerveja, sentados no muro que serve de banco.
Mesmo sem os detalhes relativos às performances e à linguagem não-verbal, o
episódio e a narrativa em torno da peculiar votação são ricos, para além de seu
desfecho, pelo esforço de objetivação acerca de um tema existencial e da exposição
pública em torno de uma questão que, em outro contexto, poderia ser considerada
íntima. Creio que a situação – com toda a sua característica de jogo, de brincadeira e de
desafio – revela um pouco da complexidade das lógicas masculinas locais. Ainda que o
“resultado” tenha sido a vitória do ponto de vista mais cético, mais “pragmático” - por
oposição ao vou considerar aqui como “romântico” - surpreendi-me com o caráter de tal
votação. Chamava a atenção especialmente o fato de que o tema tenha sido tratado à
maneira de um jogo, com ganhadores e perdedores.
Quando lhe perguntei sobre o resultado, Bichinho resumiu assim: “venceu que o
amor não existe”. Depois, passou a argumentar ele mesmo sobre essa inexistência, com
base em alguns exemplos. Explicou-me que, a seu ver, o que existe é “desejo” e
“respeito” pela outra pessoa. Perguntei-lhe sobre o quê, a seu ver, leva as pessoas a se
casarem. Ele me respondeu que seria o “desejo” e a “necessidade” pelo fato de alguém
estar só, por ter de fazer tudo: cozinhar, lavar, etc. Mencionava que “a pessoa pode
pensar: ‘cansei de ficar sozinho’” e “se agarrar”, “se atirar na primeira pessoa que
470
Localizado no terreno contíguo ao meu e cujo proprietário, pertencente à família Freitas, era dono da
casa que aluguei.
335
aparece”. Para evidenciar seu argumento, citou o caso de gente que, “num dia”, diz que
ama alguém e que, algum tempo depois, “já está com outro”, seja porque se separou ou
porque morreu o primeiro. “Como é que é?”, ele questionava, “o amor vai junto
(quando a pessoa muda de parceiro)?” Citou o caso de uma viúva, “até de perto daqui”,
cujo marido morreu, e “que ficou naquele desespero, não queria mais viver”, e que
“uma semana depois já estava com outro”. “Que amor é esse?”, ele perguntava. Percebi
que a crítica à que seria essa possível volubilidade do amor – usada para provar a sua
inexistência - era dirigida, em seus exemplos, a personagens femininos, como se desse
universo partissem primordialmente os exemplos da “ausência ou impossibilidade do
amor”, seja pela ameaça representada pelo desejo mutante, seja por certa naturalização
da inconstância masculina. No seu caso, disse ter “aprontado” bastante quando era
solteiro, mas que, depois de casado, “sossegou”. Ele lançava mão de dois termos,
“aprontar” e “sossegar”, usados pelos moradores para falar de questões afetivas e
sexuais, com sentidos opostos. O primeiro termo, “aprontar”, está relacionado à
participação em aventuras e remete não apenas para o “fazer”, como para a infidelidade,
enquanto que o segundo, “sossegar” refere-se à adaptação à vida doméstica e conjugal,
à interrupção do comportamento de conquistas, que também pode ter como sinônimo
“aquietar-se”, ou seja, passar a ter um comportamento caseiro, domesticado. Em suma,
seria a domesticação da “natureza” masculina. Como se vê neste exemplo, o gosto pelas
apostas e pelo “jogo” poderia derivar para temas inusitados.
6.5 DAS COMPETIÇÕES E DOS DESAFIOS
6. 5.1 Bocha, carreira e canastra: atrações dominicais
Num domingo pela manhã iniciei o dia acompanhando um de meus vizinhos,
Ariovaldo Flores, ex-mineiro da Copelmi, a um jogo de bocha, durante o encerramento
de um disputado campeonato no ginásio Mineirinho. Lá o dono da cancha, Periquito,
também ex-mineiro, explicou-me um pouco da técnica do jogo. Eu fui observada com
curiosidade pelos jogadores e expectadores, provavelmente por ser a única mulher no
local. Mesmo assim, fiquei algum tempo observando as jogadas. Havia cerca de 30
pessoas – homens e algumas crianças – assistindo, muitas sentadas ao longo do
comprimento da cancha e com os cotovelos apoiados na proteção de tábuas, com a
cabeça inclinada para ver a jogada, do lançamento das bolas até o seu percurso.
336
Muito popular no Rio Grande do Sul, tanto nas regiões rurais como urbanas, o
jogo de bocha teria sido trazido ao Estado por imigrantes europeus. É bastante praticado
ainda na Itália, na França
471
e na Espanha, onde teria tido sua origem. O jogo consiste
em arremessar bolas de madeira, de resina ou de fibra sobre uma cancha de terra batida
ou de areia
472
, sendo que o jogador esmera-se na firmeza e na precisão do “tiro”, para
que a bocha aproxime-se do “balim” (pequena bocha) ou afaste a do concorrente (a
expressão usada é “bochar”). Há sucessões de arremessos para cada jogador e posterior
contagem de pontos. Cada partida tem sua pontuação marcada e controlada por dois
juízes, localizados um em cada extremidade da cancha.
Parceiros de
jogo: Ariovaldo
Flores (esq.) e
Bichinho jogam
canastra e bo-
cha. Ao fundo,
Luiza, esposa
do primeiro.
Além do Mineirinho, existem na cidade outras canchas, localizadas na sede do
Olaria FC e no CTG Zeca Freitas. Ali no Mineirinho assisti a uma partida de um
campeonato de bocha intermunicipal, que estava na decisão final. Naquele mesmo dia,
haveria a entrega do troféu ao vencedor. Em Minas do Leão, o interesse por bocha é
grande principalmente entre os homens de mais de 60 anos. Alguns jogam todos os dias,
sempre no mesmo horário
473
, seja em amistosos ou em campeonatos promovidos pela
prefeitura. Jango brincava que quando ele e Biscoito começaram a se interessar por
bocha já estavam “desativados, com validade vencida”. Mas isso não o impediu,
471
Nas regiões mineiras da França, os jogos de bocha (pétanque) são concorridos. Em Creutzwald, entre
14 associações esportivas existentes está a “Pétanque Club de La Houve”, que leva o nome da mina.
472
Algumas canchas locais são em terra batida, mas aquela ali era de “areia da praia”. As canchas mais
modernas já usam piso sintético. As dimensões padrão de uma cancha são de 24 x 4 metros. As bochas
usadas comumente em Minas do Leão são de fibra, com peso de 1,2 kg.
473
Como Gelson, cuja equipe havia participado de um campeonato promovido pela prefeitura. Ele e seu
companheiro de dupla sagraram-se campeões, recebendo um prêmio de R$ 100.
337
segundo contava, de tornar-se “o rei da bocha”, manifestando o orgulho daquela
habilidade conquistada em pouco tempo. Eu havia estabelecido com estes informantes
uma espécie de reciprocidade jocosa
474
, habitual no código local e que corresponde a
uma amizade sem cerimônias, baseada na confiança mútua e cuja linguagem pode
compreender a provocação e o humor. Assim, respondi à brincadeira de Jango
sugerindo que, provavelmente, ele tinha sido o “rei da bocha” depois de ter sido “rei” da
briga de galo, do futebol e das carreiras. Biscoito entrou na conversa para defender a
reputação de Jango, confirmando que ele e seu “compadre
475
” chegaram mesmo a fazer
uma dupla “imbatível”. Ele narrava detalhes de um torneio organizado pela companhia.
A bocha... a bocha é agora, de uns cinco ou seis anos pra cá, né. (...) Uma vez
eu e o compadre [ficamos em] segundo lugar num torneio da firma aí, um
torneio da CRM. (...) Ganhamos uma medalha cada um e uma cuia de
chimarrão. E agora, esse ano passado eu fui, de novo, o segundo lugar da
bocha, mas com um outro parceiro, aí esse aí eu ganhei um troféu, até tenho
ali em casa esse meu trofeuzinho (...) e mais uma medalha. Andei jogando
bocha aí, não havia muito torneio que a gente não entrava, né. Mas, na bocha,
nós éramos bons, eu e o compadre aqui ò... de nós só ganhava quem podia! É
verdade!
Ser bom na bocha a ponto de serem poucos os competidores à altura mobilizava
uma distinção. Em função de problemas de saúde e da perda ainda recente de seu irmão,
Biscoito havia se afastado da bocha no último ano. Jango também já havia se
desinteressado desta modalidade de jogo naquele momento, mas eu podia perceber que
esses interesses muitas vezes eram flutuantes e retornavam posteriormente. Biscoito
recordava-se de algumas proezas de Jango, de forma que a memória de um auxiliava na
recomposição das histórias vividas pelo outro e, assim, em sua memória comum. Como,
em alguns momentos, eu hesitasse em considerar seriamente algumas das histórias
contadas por Jango, desconfiando que ele lançasse mão das artes da fabulação, Biscoito
intervinha dizendo: “É verdade! Isso é verdade!”.
Biscoito – (...) [Numa partida] Ele [Jango] deu 11 bochadas sem errar
nenhuma bochada!
Jango – Como eu era bom de bocha! Atirei 11 bochadas e não errei
nenhuma!?
Biscoito - Isso aí é verdade mesmo, não é mentira. É verdade! É verdade!
Bochava muito. Ele e o Êlio... Èlio Feliciano, que trabalha na prefeitura, eram
uns demônios pra bochar. (...) Eu tirava aí, pra bochar, por exemplo, eu dava
cinco ou seis bochadas e pegava uma, às vezes eu pegava duas, três,
encordoado, mas às vezes não pegava. (...) Vô contar essa outra, né. [Noutra
partida] Eles [os adversários] foram, foram, foram e nós ficamos a zero. Dali
um pouco, começamos a fazer, fazer, até que ficamos 18 a 18. E eu não era
474
Ver Radcliffe-Brown (1971), acerca dos “parentesccos por brincadeira”.
475
Biscoito e sua mulher, Neusa, são padrinhos de batismo do filho mais velho de Jango, Jefferson.
338
bochador, como tô te dizendo. Encostar, eu encostava, mas não bochava, não
bochava quase (...). E aí [Jango disse]: “Atira essa bocha aqui que ainda nós
ganhamos a partida”. Aí eu joguei de lá aquela bocha, o maior acaso do
mundo, toquei e ela ficou... Te lembra? E aí eles largaram o jogo: “Com
vocês não dá pra jogar!” (...) Dei uma bochada que fiz pontos e atirei a bola
deles pro fundo!
Em sua narrativa, há principalmente uma exaltação das habilidades
extraordinárias de seu compadre e certa humildade em mencionar a própria
performance no jogo. Até o momento em que o relato culmina com seu próprio feito –
destacada a circunstância de que seria mais por “acaso” do que por mérito. Mas esse
lançamento que desanimou os adversários e decidiu a partida estava à altura das proezas
do amigo. Na linguagem adotada por Biscoito, “ser um demônio para bochar”
significava que sabia jogar muito bem, que era mestre nas artimanhas do jogo. Nessa
conversa, eu fazia um inventário dos jogos que eles praticavam.
- Vocês jogam canastra também?
Biscoito - A canastra...às vezes, eu jogo um torneio de canastra, mas eu jogo muito
assim a canastra é... com a mulher, em casa. (...) Ontem mesmo jogamos canastra
aqui, eu e ele contra as duas mulheres (as esposas, Neusa e Julieta).
- O Jango joga canastra também?
Jango – É... Eu faço parte aí com eles, pra dar uma parceria, né (num tom
desanimado). Eu jogo essa canastrinha de 11 cartas.
Biscoito - Eu também essa pequenininha, com 13 cartas no total. (...) Eu jogo tudo
o que é tipo de canastra. Eu jogo. E não jogo mal, disso aí eu sou bom. Não jogo
mal a canastra, mas não é dizer assim que... Eu nunca tive em torneio. Agora teve
um torneio aqui, meu genro comandou torneio e tudo, ele até trouxe 10 ou 12
baralhos pra casa, né. A prefeitura deu, porque depois que joga não dá mais, aí eu
dei um pro compadre Jango aí.
Enquanto, nessa modalidade, Jango falava com menos entusiasmo, pois joga
apenas para acompanhar, era a vez de Biscoito ressaltar: “Disso aí eu sou bom!” A
canastra tanto é jogada em casa, reunindo a família ou amigos, como em lugares
públicos, informalmente ou nos campeonatos. No ginásio Mineirinho, Periquito
mostrava que há, de um lado, a cancha de bocha e, de outro, mesas para o jogo da
canastra, além do balcão de bar. Nos jogos de cartas feitos ali, geralmente são apostadas
“jantas”, havendo, também neste caso, algum tipo de dádiva envolvida. Nas partidas em
casa, também podem ser apostadas pequenas quantias em dinheiro. Na narrativa acima,
chama a atenção o fato de que nos jogos de canastra promovidos por eles no ambiente
doméstico havia uma separação de gênero, de um lado os homens, de outro as mulheres.
Mas esta não é uma regra geral. Em outros casos em que jogam dois casais, as duplas,
que normalmente são constantes, podem conter homens e mulheres simultaneamente.
339
Ex-jogador de futebol dos times varzeanos ligados às minas, Ariovaldo,
aposentado da Copelmi, divertia-se com a bocha e a canastra. Nem mesmo o fato de ter
perdido parcialmente os movimentos de um lado do corpo, em conseqüência de um
derrame, afastou-o muito tempo das práticas. A mulher, Luiza, contava que “ele andava
triste e os amigos insistiram pra ele voltar a jogar”. Ariovaldo resistia, pois pensava que
não conseguiria ter o mesmo domínio de antes. Para a canastra, usou da criatividade e
de suas habilidades como marceneiro: fabricou uma espécie de régua de madeira onde
as cartas são ordenadas enquanto joga com a mão direita. Nas partidas de bocha,
aprendeu a reequilibrar o corpo e persistiu tanto nas tentativas que voltou a fazer bons
lançamentos. Vários dias por semana, depois do almoço, eu o via passar diante da
minha casa, com a régua na mão, para o “sagrado” jogo de canastra.
No dia em que comecei acompanhando o campeonato de bocha, eu seguiria, à
tarde, para uma carreira de cavalo acompanhando Jango e Julieta. Era um programa que
Ariovaldo dispensava desde que sofreu o AVC. Ele estava mesmo ansioso era para a
rodada de canastra da tarde, com os vizinhos Bichinho, a esposa, e Luiz, todos os
homens aposentados da mina. Quando eu voltasse das “carreiras” ainda poderia vê-los
na varanda da casa de Bichinho, nas rodadas intermináveis das duas duplas da canastra,
que poderiam seguir noite adentro e até varar a madrugada. Eu já havia descoberto ser a
canastra um jogo “familiar”, no qual as mulheres participam. Mesmo Jarico, num
domingo em que fui entrevistá-lo, me contava que, para relaxar das emoções fortes das
carreiras, ia jogar canastra com a mulher e um casal de amigos.
As carreiras, ou canchas retas, assim como as apostas que mobilizam, são
práticas tradicionais na região
476
. Naquele dia, a disputa – anunciada pela manhã por um
auto-falante - seria entre o cavalo Bin Laden, pertencente ao ex-mineiro Jarico, e o
cavalo Guenzo, de um criador de Butiá. Como relatei antes, Jarico estava emocionado
tanto pela tensão inerente à disputa – e cujo valor simbólico não se limitava ao valor
financeiro da aposta principal (de R$ 1 mil), mas à honra envolvida na atividade que
ocupa um espaço central em sua vida.
476
Uma publicação do IBGE,(Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, 1959, p. 260, verbete “São
Jerônimo”) indicava que, na década de 1950, o município de São Jerônimo (ao qual Minas do Leão
pertencia) contava com várias “canchas retas” para corridas de cavalo, “geralmente constituídas de dois
trilhos, com bretes para a largada”. Em 1956, o valor das apostas havia atingido o montante de Cr$ 1,2
milhão, envolvendo canchas cuja metragem variava entre 450 e 600 metros.
340
6.5.2 Jango: “Que bobice nossa vir ver uma corrida que acaba em 20 segundos”
Pouco antes da carreira, Jango e Biscoito me explicavam as peculiaridades
daquele esporte, mencionando o risco de o jóquei trair a confiança de quem o contratou.
Jango - Numa carreira.... tu chega no jóquei, se ele tem a tendência de ser um
guri meio safado, meio sem confiança, tu chega no guri assim, se é uma
aposta boa: “Olha, eu te dou uma gorjeta boa aí se tu me der uma puxadinha
no cavalo, se tu não surrar o cavalo”. Tem tudo isso aí. Todo jogo tem a
malandragem, né.
Biscoito – É que nem juiz de futebol! Juiz de futebol rouba! Todo jogo
sempre tem...
Jango – Todo jogo tem malandragem!
Nessas análises, o “jogo” era aquele que estava circunscrito a algumas regras de
funcionamento, enquanto que a “malandragem”, embora atravessasse essas disputas,
significava a subversão das normas, assim como o “roubo” de um juiz de futebol. Na
localidade, a remuneração de um jóquei, caso ele ganhe a carreira, equivale a 20% do
valor da aposta principal – ou seja, daquela firmada entre os donos dos cavalos. Assim,
uma aposta valendo R$ 1 mil daria um prêmio de R$ 200 ao jóquei. Mas se perder o
valor cai para 10% da aposta. Eu perguntava a Jarico sobre o que poderia influenciar no
resultado se os dois cavalos fossem bons. Ele explicava:
Depende do jóquei também, né. Que tem muito jóquei que se vende, né.
Agora o meu não se vende. (...) [O que se vende]... puxa na cana do freio,
leva nas mangueiras, se levanta em cima da cela... Agora, esse guri que vai
correr pra mim...(...) esse guri é um guri sério, é um guri de compromisso.
Uma das coisas que Jarico aprendeu com seu pai é que “fique a aposta em R$
1 mil ou em R$100, o dinheiro tem que ficar na mão do juiz”, um mediador escolhido
pelas duas partes, geralmente um criador de cavalos, para evitar os desentendimentos
comuns depois das carreiras. Além da aposta principal, Jarico havia feitos outros jogos
paralelos – “já joguei mais uns 500 reais aí”, revelou. Pelo que pude observar, também
nas apostas segundárias, feitas no “costado da cancha” e que envolvem somas menores,
o dinheiro deve ficar com uma testemunha que não está jogando. Foi assim que vi Jango
guardando duas notas de R$ 50, como depositário de uma das várias apostas fechadas
pouco antes da disputa. Naquele dia, ele havia desistido de jogar. Ele mesmo um ex-
criador de cavalos, apaixonado pelo esporte, Jango tinha anunciado antes que “não saía
de casa para ver uma carreira se não fosse para apostar”. Quando nos encaminhamos
para a cancha, estava decidido a apostar no cavalo de Jarico, não apenas pela
“consideração” que devotava ao amigo, mas por considerar que o animal era “o
favorito”. No entanto, uma intuição de sua mulher, Julieta, fez com que ele recuasse.
341
Ela alertou: “Não sei, eu tô sentindo que o cavalo do Jarico vai perder... Se tu jogar, tu
vai perder dinheiro”. Um vereador, a quem Julieta revelou sua intuição, chegou disposto
a jogar R$ 20 no cavalo de Jarico e, com o palpite dela, inverteu a sua aposta, jogando
no adversário. Esta conversa ocorreu após a carreira:
Julieta - Ontem, eu disse pro Jango... [sobre sua intuição] O Jango: “Só porque é a
égua do Jarico!”. “Não, não é só porque é o Jarico! È o que eu senti. Que vai
perder!” (...) De fato... Perdeu, se jogou o contrário, perdeu!
Jango - Isso aí ninguém esperava! Isso até considerado por mim até um acidente! O
cavalo do Leão [de Jarico] ganhava como daqui lá a Porto Alegre. Era a lógica!
Mas no fim perdeu! Ficou tudo invertido!
- Ficou triste, Jango?
Jango – Não, eu até fiquei alegre, que eu vim pra jogar e não joguei, né.
Julieta – Não jogou?
Jango - Nem um centavo. Então... fiquei contente até.
Julieta – Ele [Jango] perguntou pra mim “por que tu acha que o Jarico vai perder?”.
[Eu disse:] “Eu senti que ele perde”.
Como em outros jogos – predominantemente masculinos -, o lugar ocupado
pelas mulheres era, em geral, o da platéia, e o de ser, na relação, o agente que tenta
conter o extravasamento da paixão masculina pela aposta e pela competição, seja pela
racionalidade quanto ao tempo dedicado a esse esporte, seja pelo argumento do rombo
financeiro que isso pode significar no orçamento familiar. Ainda que Julieta apreciasse
apostar pequenas quantias nas carreiras, nesta ocasião ela teve aquela intuição. Jango
resistia um pouco, mas respeitava as intuições da mulher. Ele também tinha as suas.
6.5.3 Jarico: “Se eu parar com a carreira, morro ligeiro”
Casada com Jarico há 15 anos, Mara me dizia nunca ter se acostumado com
aquela tensão toda que o marido vivia a cada carreira. “Falei e falo, né, eu digo pra ele é
muita coisa pra atender, aí ele se prende muito. Agora mesmo, esse cavalo fazia uns três
meses que tava aqui ó... Ele [Jarico] passa mais [tempo] pra cá cuidando dele [do
cavalo].” Depois de sete anos criando cavalos e participando de disputas, Jarico nem
cogitava em desistir daquela atividade.
Que esses dias a mulher disse assim: “Não, vamos terminar com esses
bichos!” “Não senhora, não termino!” Que se eu terminar com essa... com
essa criação aí eu... eu morro. Não, é que pra mim é um esporte. (...) É um
esporte e assim ó... É uma fisioterapia. Eu me levanto às cinco e meia pra
tirar leite, atendo os cavalos, depois monto e saio a andar. Eu venho todo
dia pra cancha.
Depois, ele retomava o relato:
342
Eu tenho paixão [pelas carreiras]. Que eu lhe falei, a mulher [disse]: “Ô
Jarico, vamos vender um pouco dessas vacas aí, uns cavalos...” “Ó Mara, se
tu quer me matar é só vender meus bichos. Se eu ficar preso em casa, e não
puder lidar com os bichos, aí eu tenho certeza que eu morro”.
Em outro momento, ele evidenciava a relação intensa que pode ser estabelecida
entre humanos e animais contando-me sobre a égua que ganhou de presente de um
amigo e que morreu no mesmo dia do falecimento desse amigo.
Nós sepultamos ele era seis hora da tarde. Eu cheguei em casa, botei as éguas
dentro de casa, dei bóia e à meia noite eu me acordei... Tinha um cara
batendo na estrebaria e eu fui ver. Aí quando eu cheguei lá, a égua que ele me
deu tava morta. A égua morreu no dia que ele morreu, na mesma hora quase.
***
A primeira vez em que ouvi uma referência a uma aposta eleitoral em Minas do
Leão foi nas eleições de 2006. Eu havia indagado sobre a existência desses jogos e um
amigo me disse que soubera de uma aposta que havia. Ele contava detalhes do jogo e eu
continuava com a sensação de não entender direito quando ele dizia que um apostador
havia “dado luz de 100 mil votos” para seu candidato. Ouvi outros relatos e aquela
expressão “deu luz” continuava obscura, embora eu tivesse entendido os termos do
jogo. Essa expressão – “dar luz” – ou a sua origem só ficou mais clara quando eu assisti
a uma carreira e Biscoito me explicou o tipo de apostas. A linguagem entre as duas
apostas – na política e em cavalos - tem muita coisa em comum. Na carreira, existem
jogos em que a vitória é “na paleta”, “na cabeçada”
477
ou a que “ganha de luz”.
Biscoito – [Explicando] .... esse cavalo daqui fica atrás. Aí quando corre aqui
dá a paleta, dá a cabeçada. Aí tem gente “dando luz”, que o cavalo de Butiá
[cidade vizinha] ganha de luz...
- Ah, tem a vantagem de tanto...
Biscoito - Claro, aqui são dois cavalos, né, eles vão sair de lá juntos os dois.
Aí um passa o outro e outro fica aqui. (...)
- Uma cabeça de vantagem pode ser luz?
Biscoito - Não, não. Se... se os dois ficarem assim ò... como eu tô te
dizendo... assim um no meio do outro (mostra com as mãos), aí não é luz,
ganha aquele que tá na frente.
- Pra ser luz, o cavalo inteiro tem que estar na frente.
Biscoito - O cavalo inteiro. Exatamente. É só a vantagem que ele passou o
cavalo na frente do outro. Um animal passou na frente do outro.
478
(...) A
hora que correr, tu vai entender bem.
477
As vantagens são classificadas conforme a parte do corpo do ganhador que passa pela baliza, chegando
antes do perdedor. Existem ainda expressões como ganhar “de virilha”, de meio corpo”. Cf. Glossário de
termos gauchescos, no site: www. ufpel.tche.br, acessado em 27/10/2008.
478
Assim, ganhar de luz significa “vencer o parelheiro, (...) de forma a haver, para quem observa
lateralmente, algum espaço entre a cola do ganhador e a cabeça do perdedor”. A expressão pode significar
também a distância entre os dois concorrentes, de forma que uma aposta pode ser feita em “vinte passos
de luz” ou “meia cancha de luz”. Idem à nota anterior.
343
Ansioso para ver a disputa, Jango explicava-me: “Com [a corrida de] cavalo é
como qualquer outro jogo a emoção, tu entende? É a mesma coisa que um atleta do
futebol fazer um gol!” No momento da corrida, mais de uma centena de pessoas - a
homens, algumas mulheres, jovens e crianças - estava concentrada junto à cancha, com
o olhar voltado para o início da pista, esperando a largada. De um dos lados da cancha,
havia uma velha arquibancada de madeira, mas a maioria dos expectadores se estreitava
contra o isolamento para poder ver melhor a corrida em todo o percurso, nos dois lados
da pista poeirenta, onde pisávamos sobre uma grama baixa, desviando de buracos e
arbustos. A respiração presa – como de quem assiste mesmo a um lançamento decisivo
a gol no futebol nos 46 minutos do segundo tempo –, o tropel na areia, a poeira
levantada, e alguns gritos, urras e resmungos de incentivos a cavalos e cavaleiros ao
longo dos 500 metros. E tudo se acabou em menos de um minuto. O cavalo Guenzo, de
Butiá, venceu a corrida. Não consegui notar se a vitória tinha sido “de luz”.
A fugacidade do espetáculo, uma característica daquele esporte, acentuada nos
últimos anos pela escassez de concorrentes, que limitou o evento a uma única corrida,
deixou Jango pensativo. Agora ele era um apostador eventual, que veio ali para me
mostrar, na prática, o que ele vinha de explicar na teoria acerca do seu próprio passado
como jogador. “Mas é uma bobice nossa vir lá do Leão pra ver uma corrida de cavalo...
quando eles não levam 20 segundos...” Talvez essa racionalização estivesse ligada ao
fato de que seu cavalo favorito tivesse perdido a disputa. Depois, ele mesmo ponderava,
adotando a linguagem do futebol: “Mas... querer proteger do gol, não joga, né”. Biscoito
comentava que, antigamente, a carreira durava o dia inteiro, com parelhas e pencas
disputando – era jogo e emoção para o dia todo. Antônio Manoel, irmão de Jango,
estava ali somente para nos acompanhar. Enquanto caminhávamos até o carro, me dizia
que já não gostava mais de disputas como aquela. Suas concepções de mundo haviam
mudado desde que ele converteu-se a uma igreja evangélica. “Os caras são amigos aí,
daqui a um pouquinho estão brigando. É uma coisa que um procura sempre lograr o
outro. São amigos, mas daqui a um pouquinho estão procurando [um] tirar o dinheiro do
outro”. Os três ex-mineiros em cuja presença eu me encontrava já tinham sido
apaixonados por aquele esporte; o ritual parecia ainda ser o mesmo, mas algo havia
mudado – e eles também, cada qual a seu modo.
Tendo assistido a uma carreira pela primeira vez, saí dali mexida pela
intensidade emocional daquela experiência: a poeira no corpo e nos cabelos
344
testemunhava ainda o momento de expectativa, depois a adrenalina e seu esvaziamento
súbito. Era possível entender como se forjavam as paixões pelos jogos, com a
necessidade de uma nova disputa para compensar ou para reforçar a outra e assim por
diante. Naquele dia, eu tinha vivido duas experiências de competição bem contrastantes:
tinha observado a força, a raça, o garbo, a velocidade dos cavalos de corrida; e antes, a
paciência, a destreza e a direção precisa nos lançamentos dos jogadores de bocha.
6.5.4 As lembranças do bolão
Com uma origem atribuída à imigração alemã, os jogos de bolão foram bastante
disputados em Minas do Leão entre o final dos anos 1960 e o começo dos anos 1980,
sediados inicialmente no Clube Duque de Caxias, fundado em abril de 1947. Depois, as
partidas de bolão ganharam um novo espaço, no Clube Atlético União, criado em 1972.
Outra cidade mineira da região, Arroio dos Ratos, contava nos anos 1960, com cinco
grupos de bolão na Sociedade Recreativa Última Hora, fundada em 1933
479
. Com regras
similares às do boliche, o bolão é jogado com uma bola de madeira com peso entre nove
e onze quilos, arremessada contra nove pinos armados que devem ser derrubados. Vinte
lançamentos são feitos por cada equipe a partir do quais é marcado o escore de pontos.
Funcionário do escritório da CRM na cidade e ex-jogador de futebol do
‘segundo quadro’ no Atlético, Volmar Cunda recordava-se da longa febre pelas disputas
de bolão, que eram realizadas à noite, após a saída da companhia. Muitos dos jogadores
de bolão tinham sido atletas das equipes de futebol, como Leo, ex-goleiro que fez
história no Atlético e que chegou a presidir o Clube de Bolão União, do qual Volmar era
integrante. O principal adversário era o Sem Rival. Outro companheiro de equipe,
Moacir Meirelles, ex-mineiro e sindicalista, também foi presidente do “clube”. Moacir
lembrava que os campeonatos eram disputados “como um Grenal”, pela paixão que
suscitavam e pela torcida em torno das equipes. Os jogadores chegavam a fazer
excursões para disputar partidas em outras cidades da região. “Era muito lindo, pena
que quando foi começando a decadência da mineração, foi terminando tudo”, contava.
Naquela época, sair da mina para jogar bolão havia se tornado uma rotina também na
vida de Gelson, outro integrante da equipe União. Talvez uma explicação para o fato de
o bolão ter se tornado tão apreciado por um determinado segmento da comunidade
tenha sido seu caráter igualitário do ponto de vista do gênero, contribuindo para uma
pacificação do universo familiar, depois de um longo período em que as práticas
479
Simch, 1961, p.305.
345
esportivas eram marcadamente masculinas. Havia, então, equipes de homens e equipes
de mulheres, com nomes como Espia Só, Rebeldes, Incríveis, As versáteis, Estrela
D’Alva, Tulipas, etc. Desse tempo, só restaram lembranças, troféus e algumas fotos.
Uma hipótese que mereceria ser aprofundada é a de que o bolão tenha sido um
jogo ligado a uma espécie de “elite” local. Inclua-se aí empregados e operários
qualificados atuando na função de chefias que compunham uma espécie de classe média
local e que habitavam no Centro. Eu nunca ouvi nenhuma referência ao bolão partida de
habitantes de bairros menos prestigiosos, tal como o Recreio, São Miguel, Santa Albina,
Vila Freitas ou outros, ou de mineiros cuja carreira na companhia não tenha passado da
condição de simples operário. Outro aspecto está ligado à cor da pele dos jogadores.
Durante cinco anos, entre 1967 e 1972, o esporte foi praticado exclusivamente no Clube
Duque de Caxias, que reunia as famílias brancas da sociedade leonense. Somente com a
criação do Clube Atlético União – a partir da fusão do Atlético Mineiro FC com a
Sociedade Recreativa União, destinada aos “morenos” – é que um segundo espaço para
a prática do bolão foi criado, dessa vez, “misto”, ou seja, onde o acesso de negros e
brancos era permitido. Infelizmente, não disponho de elementos para analisar o
desenvolvimento dessa segunda fase da prática do esporte na cidade.
6. 5.5 Dos esportes e segmentos sociais
Quanto à sua difusão em diferentes segmentos sociais, o bolão parece ter
diferido significativamente dos jogos de bocha, de cartas e do futebol. É certo que esses
últimos foram mais disseminados socialmente, seja porque necessitassem de menos
recursos para a sua prática, seja porque estivessem inseridos em tradições mais
profundamente enraizadas na vida da comunidade. No caso do futebol, a própria criação
de times estava inscrita dentro de um universo social relativa aos vários pertencimentos:
de empresas, de bairros, de famílias, etc. Na bocha, há tanto a existência de numerosas
canchas, nos dois extremos da cidade, como também a facilidade de formação de
duplas, funcionando normalmente pelas afinidades pessoais. Contrastando com isso,
como dito, parece-me que o bolão carregava consigo um caráter de “distinção”, de um
lazer acessível a uma camada mais privilegiada da população.
Assim como os jogos nos informam sobre os pertencimentos de diferentes
segmentos sociais, também podem fornecer informações sobre a divisão urbano-rural e
as práticas esportivas. Caçadas e corridas de cavalo são práticas esportivas
predominantemente masculinas ligadas a uma tradição rural ou que mantém seus traços
nas margens do espaço urbano cercado de lavouras, florestas e campos. Se entre os
346
expectadores das carreiras, há uma composição mais heterogênea, entre “carreiristas” e
outros apostadores, parece haver uma predominância da origem rural. Para ex-mineiros
descendentes de homens do campo, a criação de cavalos e a participação em carreiras
era, em alguns casos, uma atividade paralela àquela da mina e, em outros, um
investimento que começou feito após a aposentadoria. Jarico e Joel Magrão, por
exemplo, verbalizavam a satisfação que esse “retorno à natureza” lhes proporcionava
depois de terem sido operários. Jarico disse-me numa ocasião: “Quando me aposentei,
disse pro meu pai: ‘agora vou fazer o que eu gosto’”. Joel, por sua vez, dizia-me “não
ter nenhuma saudade da mina”. Essa espécie de volta à natureza pode ser pensada em
dois sentidos: tanto no de um gosto atribuído, de uma herança recebida daqueles com
quem tinham laços de sangue, como também referindo um regresso à vida do campo,
voltada para a criação e o contato com os animais, num cotidiano não apenas em céu
aberto (por contraste ao da mina), como também em contato com o verde e com a
vastidão da paisagem, o cenário idílico da mitologia gaúcha: do homem que “volta aos
pagos” ou que, como diz uma canção, “segue o rumo do seu próprio coração...”.
480
No caso de outro personagem, Jango, há também uma origem rural – seu pai
possuía terras e era carreteiro -, mas se meu informante criava cavalos e participava de
carreiras durante o período em que trabalhou na companhia de mineração, deixou de
fazê-lo cedo. Ele, mais especificamente, foi afetado de outro modo pela mina,
transformado pelo mundo industrial no que diz respeito tanto aos ritmos do trabalho
como à cultura operária das brincadeiras. Ainda que, por vezes, suas histórias –
malandragens e gozações, para usar termos nativos – tenham temas rurais, parece-me
que adotam os modos e performances da cultura operária, de trabalhadores socializados
na atividade em equipe, contadas diante de platéias. Hoje, ainda que se considere
“apaixonado pelas carreiras”, Jango está na condição de apostador, daquele que transita
por aquele universo, que o conhece profundamente, mas cujo “jogo” tem essa
hibridação urbana: de ser fluído, instável, mutante e que encarna alternativamente
diferentes objetos. As regras das carreiras – assim como da rinha de galos, do jogo de
bocha e do futebol – são parte de um saber múltiplo e heterodoxo que ele tem orgulho
de dominar. São também universos nos quais, a considerar por suas narrativas, ele,
quase sempre, leva a melhor. Mas sabe produzir piadas também dos desprestígios, das
condições aparentemente desonrosas em que ele próprio ou outros estiveram metidos.
480
Música regionalista gaúcha Canto alegretense. Letra de Antônio Augusto Fagundes.
347
Numa das entrevistas na qual falava sobre carreiras, estava entusiasmado,
enfático, contando ora dos seus cavalos, ora de seus galos de rinha, animais nos quais -
segundo os comentários de Julieta, com os quais ele concordava -, ele teria gasto “boa
parte do dinheiro que ganhou na mina”. Às vezes, ele próprio me dizia: “Botei fora esse
dinheiro! Botei tudo fora!”, referindo-se à sua paixão pelos jogos.
Jango – (...) Eu jogo. Não vou lá [na hípica] se não é pra jogar. Não, não vou.
Adoro carreira, né. Eu tinha cavalo. Quando me casei, a Julieta sabe, eu tinha dois,
três cavalos. Hoje ela me disse assim: “Com o dinheiro que tu ganhou nesta mina...
hoje não tenho a minha chave, não tenho...”, porque eu botava tudo fora, com os
galos e com os cavalos. (...) Um [cavalo] era o Rosílio, outro o Tostado e outro
nunca teve nome. Um era Natal porque nasceu no dia 25 de dezembro. (...) O
Tostado até era do Ariovaldo. Nós compramos esse cavalo do Ariovaldo, o
Tostadinho do Ariovaldo, corredor, corredor.
– Já ganhou algumas carreiras?
Jango – Já ganhei carreira, já perdi carreira! (enfático) Eu perdi uma carreira com
meu cavalo parado, no tempo que eu... vamos supor, eu trabalhava na mina, patrão
de equipe eu era. Eu ganhava... naquele tempo eram contos de réis, né. Eu
trabalhava o mês todo de produção, eu ganhava dois contos de réis, tu entende? Eu
perdi uma carreira de cento e não sei quantos contos de réis, eu perdi com meu
cavalo parado. Meu cavalo não correu. Ficou paradinho, paradinho. O juiz mandou
sair a carreira e meu cavalo não saiu. (...) Marta de Deus! Vou te dizer uma coisa
(...) eu fiquei assim... sem um centavo no bolso. Aí, o que fiz? O escape, nosso
cavalo ficou lá, e quando foi de tarde nós fizemos a mesma carreira, era 60 quilos
em cima de cada cavalo, 400 metros [de cancha]. Fizemos a mesma carreira. Eu
arrumei dinheiro emprestado dos meus colegas de serviço. E repetimos a mesma
carreira e ganhamos! Aí meu cavalo saiu e ganhamos a carreira. Naquele tempo,
que loucura! Mas também uma vez eu ganhei uma carreira, Marta, eu ganhei uma
carreira uma vez aqui, ó, a minha adversária era uma égua de nome Faixa Dourada.
Coisa mais linda era essa égua! Acho que era dos Goulart. Eu tinha um cavalo
rosino, esse que tinha o nome de Natal, e o cavalo era muito feio assim de jeito, tu
entende, mas bom de corrida. Mas eu ganhei tanto dinheiro nesta carreira! Eu
ganhei tanto dinheiro nesta carreira que depois eu bobeava assim com meus amigos,
com meus colegas de serviço, que a Julieta inchou o dedo de contar dinheiro
quando eu cheguei. Mas ganhei dinheiro assim... Marta, não tinha parada ruim pra
nós! Metia carreira nesse cavalo e apostamos tanto! Olha aqui, foi numa época de
fim-de-ano que tinha décimo... Tinha um colega de serviço (...), ele não tinha mais
dinheiro pra jogar em cavalo e ele jogou uma porca que dava uma lata de banha,
uma porca gorda que ele tinha no chiqueiro, ele jogou com nós. E nós apostamos e
ganhamos tudo! Mas também, ó Marta, esse meu cavalo era tão bom de corrida, que
quando mandou a carreira lá assim, com uns 200 metros pra eles veio correndo, o
jóquei puxava tanto esse meu cavalo (...) que ele vinha de boca aberta, né.
Neste relato, Jango destacava não apenas os riscos envolvidos na atividade de
“carreirista”, como também a solidariedade e o envolvimento de colegas da mina, como
do mineiro que, não tendo mais dinheiro para apostar, joga uma porca na corrida de
cavalos. Nota-se, na narrativa, a esperteza do protagonista – ele mesmo – que, diante da
adversidade (o fato de que perdeu uma carreira porque o cavalo ficou parado), é capaz
de virar o jogo, lançando mão de expedientes criativos, correndo o risco de uma nova
348
disputa. A “pequena honra” da malandragem está expressa tanto nos episódios narrados
como na própria condução da narrativa, que relata o enfrentamento da adversidade
enfatizando a descarga de adrenalina que esses momentos suscitam, daí passando à
mobilização e ao orgulho da vitória final. E que viria mais de uma vez. A vitória deveria
ser então exagerada, exibida aos colegas, tendo ainda a função – provisória – de conter a
irritação da esposa diante do evidente desperdício de dinheiro que poderia ser aplicado
no lar. A honra da malandragem também se exprime na descrição minuciosa sobre a
disputa entre um cavalo feio, mas bom de corrida, contra uma égua bonita, mas que
comia poeira na cancha. E sendo final de ano, em que o próprio 13º salário era apostado
pelos mineiros, o cavalo vencedor, que trouxe glórias ao seu dono – tanto pela corrida
como pela engenhosidade - ainda tinha o nome de Natal.
Jango tem uma infinidade de histórias para contar e seu interlocutor só percebe
que uma parte pelo menos é ficção quando a narrativa já está em seu desfecho. Um dos
alvos favoritos é um antigo colega de trabalho, a quem é atribuída uma malandragem
peculiar: ele se fingia de doente no subsolo para subir para a superfície e tomar leite
gelado num dia de extremo calor. Muitas das suas fabulações tomam como ponto de
partida as histórias do futebol e das carreiras:
Jango - De todos os acontecimentos no futebol.... [o melhor] foi de um time
que meus irmãos tinham lá no matinho, onde a gente morava. Nosso zagueiro
numa... nosso zagueiro quebrou a perna disputando uma jogada e, naquele
tempo, ô Marta, uma fratura assim pegavam e encanavam com taquara em
casa, não sei, tu já ouviu falar isso?
Biscoito – É verdade, isso é verdade! O que ele tá falando é verdade!
Jango - E sabe o que fizeram? Decerto meteram uma bira lá... meio nervosos
pra... e encanaram com taquara e o pé do cara aqui do lado. Numa partida, o
cara fez três gols contra! (risos)
(....)
Jango – Na carreira, eu tinha um cavalo... era tostado o pêlo, tostado de
vermelho. Meu cavalo vinha correndo na frente, ele vinha correndo e vinha
cuidando o outro do lado, tu entende? Esse cavalo... (risos) ô Marta, se ele
visse que ia... que ia dar empate, ele espichava a língua... Eu ganhei umas
quatro carreiras de língua daqui.
Jefferson – Valia!
Jango – É, dava, saía, batiam foto, tudo. Hoje tem filmadora, né.
Entre seus temas preferidos para anedotas está um cavalo que é esperto para
inventar um truque que lhe permita vencer a carreira, em contraste com humanos que
são ingênuos, desajeitados ou atrapalhados, como na história do zagueiro que fazia gols
349
contra. Parceiros como contadores de histórias, Jango e Biscoito também já se
aventuraram pela trova, desafiando-se como repentistas.
6.6 “NO TEMPO DAS RIXAS”: A HONRA NO MANUSEIO DO FACÃO
Muitos são os relatos sobre o “tempo das rixas” ou o “tempo da valentia”,
481
quando se enfrentavam homens armados do Leão e do Recreio.
482
Aldonês, 37 anos,
criou-se acompanhando as “peleias” do pai, o mineiro Zé Ratão, do grupo do Leão.
Era o pessoal do Recreio e o pessoal daqui [do Leão], quando se encontravam
aí, fechava uma pauleira. Ninguém atacava [ninguém conseguia separar]. (...)
Mas depois foi passando já mais pra... foram ficando mais velhos e coisa e
foram esquecendo a rivalidade. Mas até pouco tempo aí às vezes tem alguém
que ainda briga aí.
Ele relatava que no período em que o conflito era mais intenso, moradores do
Recreio e da Baixada “não podiam se ver”. Bastava uma primeira provocação para
começarem os enfrentamentos, nos quais eram usados facas, paus e revólveres.
Mencionava que seu pai, já falecido, usava sempre um revólver numa bolsinha leva-
tudo que carregava debaixo do braço. Mas sua arma preferida era uma adaga com cabo
em “s” que ele apelidara carinhosamente de “Maria Faceira”, porque dançava em suas
hábeis mãos nos duelos com adversários. As brigas geralmente aconteciam quando os
mineiros recebiam os salários e saíam para se divertir nos clubes ou na zona. Se
encontrassem nestes espaços homens de outra vila mineira ou mesmo de outras cidades,
era razão suficiente para deflagrar o conflito. Numa dessas ocasiões, no final dos anos
1970, tendo deixado as armas na portaria da boate, Zé Ratão envolveu-se numa briga.
Junto com ele, estavam dois compadres seus: Marinão, que era policial militar e andava
com o revólver na cintura, e Telmo Trindade, mineiro como ele.
Foi quando deu uma briga e até cortaram o pai, quase degolaram assim...
pegou não sei quantos pontos debaixo do pescoço. (...) E o pai dizia pro
Marinão: “Atira, atira! Atira, Marinão, atira nesses homens!” (...) E o
Marinão não atirava nos caras. Chegou um cara... acho que foi o Telmo
Trindade que chegou e atirou um facão: “Ô compadre!” E o pai só pisou em
cima [do facão] e saiu dando nos caras, cortando os caras. (...) Aí foi, foi, que
os caras foram saindo, foram indo, foram indo, e foram embora de caminhão.
Aí eles correram com o pai, trouxeram pra casa, cortado. A gente levou
no...tinha o Tadeu na época, que era o médico da CRM. (risos) Aí levaram
ali, costuraram e depois mandaram embora.
481
Entre os estudos abordando conflitos, violência e a noção de “valentia” em outros contextos
etnográficos, ver Comerford (2003) e Marques (2002, 2006).
482
As referências iniciais a este tema foram feitas no capítulo 4.
350
Essa cena havia se tornado comum no cotidiano familiar. Quando Zé Ratão –
considerado pelo filho “muito bravo”, “muito brigador” – não voltava para casa
“cortado” podia, por outro lado, ter ferido alguém nas arruaças do grupo local. Aldonês
mencionava uma ocasião na qual o pai, dado às suas espertezas, inventou que estaria
“dobrando” terno na mina e só voltou para casa quatro dias depois, depois de gastar o
salário em diversões em cidades vizinhas. Meu informante acredita que o “sangue
quente” do lado paterno foi herdado do avô. Seu avô, Porfírio, que ele não chegou a
conhecer, “estava sempre com a prateada (faca) na cintura”. Acusado de um crime, foi
preso e acabou sendo assassinado na cadeia. Seu pai contava que o avô “era aporreado”,
encarando até mesmo os policiais da localidade. Um dos aspectos que aparecia como
pano de fundo nas exibições de valentia era o consumo de álcool. Segundo o relato do
filho, Zé Ratão, em certa época, tomava de dois a três litros de cachaça por dia. Muitas
vezes, ia para a mina já com sinais de alcoolismo, o que levava algumas chefias a buscar
puni-lo. Foi nestas circunstâncias que um engenheiro solicitou ao gerente da cooperativa
que cortasse o abastecimento do mineiro, sem, contudo, conseguir o intento devido às
“amizades” que o operário mantinha ali e sua reputação de “muito trabalhador”.
Revoltado com o engenheiro, Zé Ratão chegou a ameaçá-lo certa vez ao encontrá-lo
com a família no Clube Duque de Caxias. O próprio Aldonês aprendeu a brigar quando
tinha seus 13 anos: “Ai de quem apanhasse na rua e chegasse em casa. Ah, tomava uma
tunda!” Para Zé Ratão, os filhos tinham que aprender a bater para se tornarem homens.
Aldonês teve seu tempo de “brigador”: “No dia em que a gente tinha uma peleia, tava
bem! Às vezes, era pra não deixar os amigos mal, né. Depois, foi passando...”
No relato acima, nota-se como a construção da honra masculina entranhava
valores tais como força, coragem, virilidade e disposição para a briga. Os
enfrentamentos eram jogos destinados a produzir emoções, ocasião de liberação de
adrenalina e de afirmação da auto-estima. A violência, durante as disputas, servia para
reforçar a masculinidade, sem outras considerações de ordem ética ou moral para além
do objetivo de vitória sobre um adversário. Algo que chama a atenção é que, nos relatos,
o fato de um adversário estar desarmado não era impedimento para um enfrentamento.
Por outro lado, é preciso assinalar a referência, de certa forma recorrente nas narrativas,
de que o temperamento estourado e violento era transmitido de geração a geração tanto
pelos traços de uma hereditariedade como pela educação paterna que visava reproduzir
nos filhos homens determinadas disposições. Na convivência com a família de Aldonês,
entretanto, percebi como tais valores se alteraram: seu filho, de pouco mais de dez anos,
351
é um garoto meigo, dedicado aos estudos, e na época de minha pesquisa estava
freqüentando um grupo de jovens numa igreja evangélica local.
Ao comentar os seus tempos de “valentia”, o ex-mineiro Telmo Trindade, ex-
companheiro de farras de Zé Ratão - com 73 anos à época de nossa entrevista,
recuperando-se ainda de um AVC que havia sofrido dois anos antes -, referia-se à
“ignorância da época da folia”. Explicava-me que, naquele período, quem vencia as
disputas com facão era considerado “mais homem, mais valente e mais habilidoso”.
Nascido em Rio Pardo, filho de agricultor numa família de seis irmãos, Telmo começou
a trabalhar na mina no final dos anos 1960. Permaneceu 17 anos na atividade, primeiro
na Copelmi, como tocador de carros no subsolo, depois na CRM, como operador de
máquinas. Quando se mudou para Minas do Leão, ele foi morar na Rua da República,
centro da sociabilidade dos rapazes da Baixada ou Leão. Geralmente entrava nas brigas
junto com os irmãos. Os Trindade eram considerados unidos, assim como os Freitas:
“Onde brigava um, brigavam todos. (risos) Brigava tudo junto às vezes. A mesma coisa
que os Freitas”. No entanto, os Freitas consideravam-se e eram considerados “calmos”,
“pacíficos”, enquanto que os Trindade eram “esquentados”. Sua diversão favorita – ao
lado dos jogos de bocha e de carreiras de cavalo - eram os enfrentamentos com facão,
principalmente para os desentendimentos surgidos no interior da boate da “Eva Gorda”.
Outras motivações podiam ser as disputas por namoradas (no caso das “moças de
família”), além de discussões surgidas nos jogos de futebol, na bocha e nas carreiras de
cavalos. “Por qualquer discussão, a gente se atracava no zinco”, dizia.
– E todos tinham o seu facão?
Telmo Trindade - Cada um tinha o seu. Quem não tinha apanhava, né, ou
disparava. Ou apanhava ou morria.
– Quem não tinha facão apanhava?
Telmo Trindade - Ahã, apanhava. Ou disparava. Apanhava ou morria.
Ainda que esses entreveros freqüentemente deixassem feridos, parece-me que a
lei do “apanhava ou morria” é mais uma bravata no mesmo espírito das disputas
masculinas da época, que hoje tem como objetivo causar impressão a uma pesquisadora
que vem de fora. Na experiência direta de meu interlocutor, essas “rixas” duraram cerca
de uma década, entre meados de 1960 e 1970, mas existiam antes de sua chegada à vila
mineira. Por conta das ações da “turma” do Leão, ele foi preso várias vezes: “Fui umas
cinco vezes aí... preso, por cachaçada, bagunça”. Embora os adversários favoritos da
turma do Leão fossem os mineiros do Recreio, operários da mina de São Vicente, havia
conflitos envolvendo trabalhadores de fazendas. Trindade recordava-se que uma de suas
352
prisões foi motivada pelo fato de que ele e Zé Ratão, armados de facão, feriram quatro
trabalhadores rurais, com cortes no rosto e no corpo.
Telmo Trindade
Lopes: Lembranças
das brigas de rua e
das façanhas com o
facão
A narrativa deste
episódio vem
carregada de
orgulho pelo
desempenho exi-
bido na juven-
tude: “Era só nós dois, eu e o Zé Ratão, mas nós éramos ligeiros nas caixas! Nós éramos
ligeiros nas caixas! (risos) Agora eu tô virado num caco velho...”. Ele contava que, por
conta deste episódio, foram presos, mas em seguida liberados. Meu informante
desconfiava que a própria polícia tivesse medo deles. Ao menos, ele ameaçou se vingar
de um policial militar que o atingiu com uma “conchinha”, um golpe no ouvido, durante
uma detenção. Com os moradores do Recreio, além de uma disputa de território, havia,
segundo Trindade, diferenças derivadas do fato de que o grupo do Leão, formado por
trabalhadores da CRM, recebia salários maiores, e considerava os mineiros da São
Vicente inferiores. Por vezes, a disposição para a briga atravessava também a
sociabilidade na própria companhia, como na ocasião em que um churrasco no pátio da
empresa acabou em briga de facão e a demissão de alguns operários.
Entre os “valentes” da localidade, havia graus diferentes de uso da violência.
Dois personagens que o grupo do Leão nunca ousou enfrentar eram João Encrenca e
Gordinho, considerados perigosos para um enfrentamento.
– O senhor brigou com eles alguma vez?
Telmo Trindade – Não, eu tinha medo deles! (risos) Não, eu tinha medo
deles!
– Por quê?
Telmo Trindade – Porque eles podiam até matar alguém.
A relatividade das reputações atribuídas torna-se mais nítida na ênfase que meu
interlocutor dá ao fato de que esses dois personagens, de quem tinha medo para um
enfrentamento, eram seus “amigos”. Numa localidade em que, paralelamente à
353
valorização da valentia, se dá uma grande importância às relações cordiais, todos os
meus informantes disseram guardar boas relações com esses dois “valentes”. Suponho
que, para estarem livres das provocações desses homens cuja violência era considerada
sem limites, o melhor seria manter boas relações. Em outro relato, feito pelos ex-
mineiros Biscoito e Jango, encontra-se referência similar:
Biscoito – Eram dois homens muito valentes, né.
Jango – Eram os dois mais valentes!
(...)
Biscoito – Era o Gordinho e o João Encrenca. (riso) Um já tinha o apelido de
João Encrenca... Mas todos os dois [eram] umas ricas de umas pessoas. Nós
nos dávamos com eles aí. (...)
Biscoito refletia que morava há 59 anos em Minas do Leão, mas nunca havia
conhecido alguém “mais valente” do que esses ex-mineiros. Nos seus termos, esses
homens eram “umas feras”, gente que “ninguém atacava” e que “metiam medo” até na
polícia. Segundo ele, ambos trabalhavam nas minas, mas contratados por empreiteiros
privados.
483
Lembrava-se de outros operários nas minas que eram “prevalecidos”, mas
não “mais valentes” do que aqueles. Gordinho e João Encrenca, esses dois lendários
valentões, tornaram-se inimigos declarados depois de uma famosa briga contada e
recontada por meus interlocutores que teria se passado no final dos anos 1950 ou início
dos anos 1960, que acabou deixando rastros de sangue no campo do Atlético.
Biscoito - Agora não me lembro qual era o time que tava jogando aqui. (...)
Nesse campo aqui era o Atlético Mineiro. (...) Ah, me lembro era um time de
São Jerônimo. Exatamente! Era um time de São Jerônimo que tava jogando
com o Atlético. E o João Encrenca tava jogando bocha... e ele já tinha
discutido, né, já tinha discutido, né, lá fora. E aí o Gordinho, muito valente,
né, o Gordinho esse era muito valente! O outro também! Duas feras! Eu tava
lá, eu casualmente eu tava lá. Quando o Gordinho saiu esfaqueando ele,
usando faca, uma faquinha assim, uma faca de...de cobre... e ele [João
Encrenca] arrancou uma adaguinha assim e já cortou... abriu a cabeça do
Gordinho. Aquilo... o sangue tava caindo por cima... Eu não sei se o
compadre Jango tava lá. (...) Chamaram a polícia. A polícia tinha medo dos
dois, não veio.
- É mesmo?
Biscoito - Os brigadianos
484
que tinha aí, era só dois ou três brigadianos, né, e
não vieram. E a polícia não veio, e ele [Gordinho] foi indo, e aquele homem,
o João Encrenca, não podia brigar... não podia brigar porque tava ele
[Gordinho] tava armado. Tinha uma faca assim e ele [João Encrenca] com
uma faquinha pequenininha assim... E foram rodeando aquele canto ali e ele
detrás e... chegava um, ele [Gordinho] metia a faca. E o João Encrenca pedia:
“Pelo amor de Deus, tira esse homem daí que eu não quero matar ele!”, “Eu
não quero matar ele!”, “Eu não quero mais saber de briga!”. E foram, e foram
e foram. Daqui a pouco, esse João Encrenca embraveceu, embraveceu...
483
Segundo Telmo Trindade, eles teriam sido empregados do DACM, de controle estatal.
484
Denominação da Polícia Militar no Rio Grande do Sul.
354
rodou o facão nele assim... o facão escapou da mão dele [de João Encrenca],
um dia quente... escapou da mão dele... Quando ele [Gordinho] viu que o
outro ficou sem faca, se botou... O João Encrenca disparou, disparou e...ele
[Gordinho] saiu atrás. Ele alcançou o João Encrenca... [que] ainda era rengo
de uma perna, né. Alcançou o João Encrenca e fatiou em cima nas costas. O
João Encrenca pegou na faca dele assim ò... abriu a mão aqui assim! Segurou
a faca e abriu a mão! Aí o... o Nego Veio, que tava jogando... que tava com as
bochas na mão... Aí chegou um parente nosso, dois parentes nossos... Um
segurou ele, o falecido Amarante, os dois são mortos [atualmente], e o outro
tirou a faca, né. E ele [o Gordinho] não queria [parar]! O finado Amarante era
um homem muito forte, um baita de um homem (...). Aí chegou o velho...
esqueci o nome do velho. “Faz 40 anos que eu não dou uma bochada!”,
[disse]. Deu no lado na cabeça dele [do Gordinho]. Quase morreram! E
foram lá pro posto [de saúde]. Nem preso foram.
- Não foram?
Biscoito - Não foram porque a briga foi grande de parte a parte. (...) Então, a
briga mais feia que eu vi foi essa aí. Naquele tempo, até não tinha o clube
[recreativo]. Era só fechado em roda, não tinha o clube ali. A briga foi dentro
do campo mesmo. (...) A pior briga que eu vi foi desses dois homens. Foram
os dois homens mais valentes que teve por esse Leão aí.
O conflito surgido durante uma partida de bocha, que acabou interrompendo um
jogo de futebol (pois as duas áreas eram contíguas) ficou gravado na memória de
Biscoito - na época um rapaz de seus 17 ou 18 anos, já operário da mina. No relato
acima, vê-se os contornos de um heroísmo às avessas que faz desses personagens
representantes de uma honra masculina calcada na valentia e na disposição para a
violência. Mas podem-se ver peculiaridades em cada um: Gordinho é caracterizado
como implacável, perseguindo o adversário mesmo quando ele está desarmado e ambos
já estão feridos. João Encrenca, “rengo” de uma perna (possivelmente como seqüela de
outras “peleias”), não se sabe por que razões resistia inicialmente em continuar a briga,
mas fazendo-o em termos que remetiam a uma suposta superioridade dele em relação ao
adversário: “Tira esse homem daí que eu não quero matar ele!” Se a violência chocava e
assustava pacíficos moradores também trazia um componente de fascínio em relação à
bravura daqueles homens, atracados com facas por motivos que somente de fora se
considerariam fúteis. A suposta recusa da polícia em ir ao local, por “medo” dos
lutadores, e as referência à “briga feia” e à “pior briga” que já se viu por ali dão a
dimensão da expressividade do evento. Atravessando a narrativa, estão elementos que
denotam a importância tanto do parentesco de sangue (na caracterização dos que
apartaram a briga como sendo “parentes” do próprio narrador, que surgem, por sua vez,
portando outro tipo de coragem, aquela de quem se arrisca a intervir para pôr fim ao
conflito), e aos termos adotados para designar aqueles que figuram no enredo, mas que
355
já morreram, como “finado Fulano”, fazendo assim uma costumeira distinção entre
vivos e mortos. Esse confronto figura também nas lembranças de outros informantes.
Butiá - Olha, tinha um jogo do Atlético e tinha um jogo deles, que eles tavam
jogando bocha, no segundo quadro...
Eraldo – Que o jogo de bocha era junto ao campo...
Butiá - É, pro lado de dentro, do costado do muro. E discutiram lá por causa
de ponto de bocha. Discutiram e o João Encrenca tinha um sabre, desses do
Exército, né, tinha um sabre... e o Gordinho tinha uma carneadeira, aquelas de
quatro fios, né... (risos). Então, discutiram e o João Encrenca meteu aquele
sabre na orelha do falecido Gordinho, falecido não, ele é vivo, né... (...) E aí o
João Encrenca cortou ele e tirou... foi pro lado do pessoal, pra cá, e ele veio...
Ele arrancou da carneadeira e veio. E o João Encrenca com aquele sabre e ele
com a carneadeira. Daqui a pouco, o João Encrenca... tinha um banco assim...
Aí o João Encrenca pulou em cima daquele banco, né, e o Gordinho ficou em
baixo. “Já pra lá!”, não deixava ele chegar, empurrava o Gordinho com o
sabre. Foi que....O jogo acho que era Olaria e... Era sim. Éramos nós (pelo
Olaria) e o Atlético?
Eraldo – Acho que era, mas a briga mesmo na hora eu não...
Butiá – A gente tava jogando no segundo quadro. Quando o João Encrenca
resolveu que ia dar-lhe, ia dá pra..., tu entende? Como ele tinha cortado
primeiro o Gordinho, eu acho que ele ficou com as mãos meio sujas de
sangue e, quando ele viu, resvalou o sabre da mão dele, aquele sabre. Ah, o
Gordinho saiu atrás e tava dando pra matar, né, e aí entrou o campo adentro.
– Entrou? E o jogo estava rolando?
Butiá - O jogo tava... aí parou, parou tudo, né. Claro, foi uns pra um lado,
outros pra outro, né. E o falecido... aquele moreno, não sei qual é o nome
dele. Ele pegou uma bocha e quando o Gordinho começou a dar pra matar...
Eraldo – Tio Borges Leão.
Butiá - Tio Borges... Ele [Gordinho] tinha furado as costas do cara tudo [de
João Encrenca] com aquela carneadeira. Aí o Tio Borges pegou a bocha e fez
um rombo na cabeça dele [do Gordinho]... Aí [ele] desmaiou, largou, ele ia
matar o outro! Ia matar o outro! Aí largou... Aí pegaram a faca, naquela ali já
pegaram a faca dele... e foram os dois ali pro posto, trouxeram os dois pro
posto pra fazer curativo. (...) Os dois cortados. Todos os dois. E aí... aí
terminou a bagunça lá. Mas o futebol era nós, nós que tava jogando lá, pelo
Olaria. Não me lembro se era com o Ponte Preta ou com o Atlético.
– E, depois, o futebol prosseguiu ou não teve mais clima?
Butiá – Não, continuou. Aquilo ali era uma coisa que não era nada com o
futebol, era com a bocha.
– Mas ficou sangue ali no campo?
Butiá – Ah, ficou lá. O mesmo que sangrar um bicho lá. (...) Uma faca larga
assim, afiada, o cara bandido mesmo...
Nesta narrativa vêem-se novos elementos relativos às armas usadas e às equipes
de futebol que estariam em campo. Contudo, o que mais chama a atenção são os termos
usados por Butiá para falar de Gordinho, o único a permanecer armado no final do
confronto, ameaçando dar um desfecho fatal ao enfrentamento (“o cara bandido”). Não
se encontram aqui as referências à sua valentia, mas à sua periculosidade, imaginando
que tanto Gordinho como João Encrenca provavelmente tivessem antecedentes
criminais. Eraldo e Butiá, ex-mineiros da mina de São Vicente e ex-jogadores do Olaria
356
e do Atlético, também referiram ter mantido relações “de amizade” com esses
personagens, mas daquelas em que a cautela mandava não estreitar muito os laços pois
eram homens que “estavam sempre puxando bronca”.
As demonstrações de valentia, de hombridade e a disposição para o uso da
violência permeiam também as histórias contadas sobre as relações familiares. Sempre
ouvi referências de que a família Freitas era “unida”. Porém, havia quem dissesse que
Freitas e Flores, mesmo sendo ligados pelo parentesco, carregavam valores e
temperamentos distintos. Quando perguntei aos compadres e primos Biscoito e Jango,
se os Freitas tinham fama de valentes ou brigões, os relatos passaram a esmiuçar as
complexidades das características familiares. Biscoito disse-me que os Freitas “não
eram muito brigadores” e que, em certa época, até receberam a qualificação pejorativa
de “vareros”, porque se juntavam em quatro ou cinco homens da família para bater num
“estranho”, mas ele avaliava que “não era bem assim”. Relatava então uma briga
violenta na qual os Freitas tiveram participação, evidenciando que “quando são tirados
fora do sério” os homens da família têm seus brios a defender. Ele recordava-se do
ditado de um tio que dizia: “Os Freita são mais trabalhador do que os Flor, mas são
mais vil; os Flor são mais valente”. Mantenho aqui a forma como os nomes são
enunciados, no singular, para que se tenha uma idéia de como geralmente são referidos.
Na fala de muitos moradores, Freitas torna-se “Freita” e Flores torna-se “Flor”. Como
eu estranhei o uso do adjetivo “vil”, Biscoito me explicava que, naquele contexto,
significa “não gostar de briga”. Ele acreditava também que os Flores fossem “mais
valentes”, mas dizia que, às vezes, não se trata apenas de valentia, mas de “oportunidade
de briga”. Citava o caso do avô, que não chegou conhecer.
Biscoito - Porque o meu avô (...) morreu sem brigar, né, e ele era muito
valente! (...) E era Freitas, né. Era irmão do pai do compadre Jango, o meu
avô, Antônio de Freitas. Morreu sem brigar. Como ele era muito valente, a
briga era com os outros irmãos dele, né. (...) Era [contra] os estranhos.
Quando chegar aqui nesse canto... (...) se havia um estranho aqui que ia
abusar de nós, né, então nós tínhamos que brigar com eles, é ou não é?! Aí
eles [os irmãos do avô] tavam brigando, chamaram ele, ele veio. (...) Quando
ele desceu do cavalo, o Otaviano Machado atirou nele. (...) Eles tavam
brigando, tavam com o cara encerrado, né, dentro de uma casa, e quando ele
chega... Não é que vamos dizer que os outros [os irmãos] fossem vis, mas
não eram de briga, e ele como era o mais brigador... quando o Antônio chega
(...): “Agora sim, vamos surrar ele!”. Atirou no Antônio... e terminou. (...)
Morreu descendo de um cavalo. (...) Era pai do meu pai. Mas não [somos]
nem meio-netos dele....
- Não puxou nada...?
Biscoito - Nem nada puxamos por ele, nós somos tudo umas pessoas
domesticadas. Aquele tempo era o tempo da grossura.
357
- Ficavam alterados com uma provocação?
Biscoito - É, não sei como é que era, Marta. Era uma coisa assim fora de
série. Eles não aturavam chamar um ao outro de “feio”.
Em seu relato sobre o avô, que teria sido um Freitas “valente” e que “morreu
sem brigar”, Biscoito relativizava a assertiva de que os Freitas seriam “vis” para a briga,
contrastando com uma valentia atribuída aos Flores. Evidenciava que, entre irmãos,
também havia disposições diferentes para os enfrentamentos, considerados por ele
justificados quando se tratava de defender a família contra os abusos de “estranhos”. Ao
mesmo em que narrava a história sobre a valentia do avô, Biscoito esclarecia que ele e
seu núcleo familiar não herdaram tais traços de comportamento, pois são pessoas
“domesticadas”, ou seja, civilizadas, educadas. A seu ver, aquele era o “tempo da
grossura”, quando uma pequena provocação poderia acabar em violência. Outras
narrativas de brigas passadas, nas quais seus parentes estiveram envolvidos, acabaram
sendo motivo de piada, como o desentendimento entre o avô de Jango, Maneco, e um
cunhado. Tudo começou porque o cunhado de Maneco atiçou os cães contra ele.
Maneco matou os cães e quis enfrentar o marido da irmã. Como este tivesse se
escondido debaixo da cama, ameaçou castrá-lo “para que não botasse mais cria ruim no
mundo”. O apelo do cunhado, considerado “um covarde”, é tornado cômico na
narrativa: “Não, compadre Maneco, me mata, mas não me capa!” A intervenção da
esposa, irmã de Maneco, impediu que o caso tivesse um desfecho dramático. No
episódio, chama atenção o fato de que os valentes se constroem por oposição aos
covardes. Mesmo no conflito, é mantido o tratamento do compadrio. Tanto na ameaça
feita por um como no apelo por clemência do outro, o valor da virilidade é considerado
mais importante do que a vida. Seria menos desonroso perder a vida do que a virilidade,
mas o tom da narrativa nos lembra que quem faz um apelo deste tipo ao invés de
enfrentar o combate já está com sua honra comprometida. Mais um caso, narrado por
Jango, dizia respeito a outro tipo de valentia, o de Mário Teixeira.
Jango - Ele é reconhecido por todo lugar por onde andou, por todos os
antigos. Porque aquele gostava de briga! Era valente e gostava de briga!
E...brigava porque gostava, mas ele não era... chegar e abusar de ninguém,
né, Marta.
Biscoito – Não, ele era um homem muito calmo.
Jango – Muito calmo. (...) O Procópio Nascimento dizia pra nós que nunca
viu um homem com uma disciplina que nem o Mário Teixeira... pra brigar.
Segundo o relato, esse personagem geralmente partia para a briga para reparar
alguma injustiça, fazer frente a uma covardia ou prevalecimento, “tomando as dores”
358
dos injustiçados. Por estas motivações, ele teria se tornado uma espécie de “lenda”,
reconhecida pelos “antigos”. A valentia de Mário Teixeira tinha então as suas
peculiaridades, ancoradas no fato de que ele “não abusava de ninguém”, de que era
“calmo” e que, além disso, tinha a sua “disciplina” para brigar – remetendo para a
percepção de que nem sempre o conflito era sinônimo de perturbação da ordem, de
confusão, mas que podia, inversamente, significar a restauração de uma ordem mais
justa e a defesa dos desprotegidos, ainda que fosse pela oposição às autoridades locais.
O escritor Érico Veríssimo, na obra Um certo capitão Rodrigo, captou
magistralmente esta disposição masculina para o enfrentamento. A frase repetida pelo
capitão Rodrigo, o protagonista, ao entrar nos bares e prostíbulos não soaria estranha
aos valentes da antiga Mina [s] do Leão: “Buenas e me espalho, nos pequenos dou de
prancha e nos grandes dou de talho!” Ora, “espalhar-se” está justamente relacionado a
ocupar espaço física e simbolicamente, a exercer seu domínio, autoridade ou poder
sobre os outros homens. Meus interlocutores, por sua vez, explicavam que, nas “artes
com o facão”, há uma diferença entre “dar de estouro” e “dar de talho”, com a primeira
causando um ferimento mais moral do que físico porque o golpe é dado na lateral, sem a
ação cortante da lâmina. No entanto, no manuseio, nem sempre essas escolhas eram tão
precisas. Depois de “cortar” o adversário, alguém poderia justificar que apenas
pretendia dar um “estouro”, eximindo-se de conseqüências, tais como a própria
detenção, a demissão da companhia, etc. Como relatavam meus informantes, o facão
dado “de prancha” ou o “estouro do facão” (nos termos usados por eles) teria a
finalidade de assustar mais do que ferir gravemente, ferindo mais a honra daquele que
leva uma surra desse tipo, humilhando-o. Como indica a referência ao Capitão Rodrigo
“dar de prancha” (o “estouro do facão”) seria apropriado para bater em “pequenos”,
gente com quem não se perderia tempo e energia para um real enfrentamento. Para
combater homens “de verdade” seria mais adequado usar o “talho” do facão.
Quando se analisam as narrativas sobre episódios de violência nesta localidade,
é bom lembrar o que escreveu Pitt-Rivers (1983, p.24) sobre o fato de que “toda afronta
física, qualquer que ela seja, é uma afronta à honra”, na medida em que profana o que
Simmel chamou de “esfera ideal”, que circunscreve a honra de uma pessoa. Desta
forma, pode-se dizer que tanto os embates corporais como as “brigas de facão” que
ficaram registrados na memória dos moradores estão relacionados a disputas pela honra
- predominantemente masculina, mas dizendo respeito aos espaços sociais, a territórios
e pertencimentos profissionais, esportivos e políticos, que poderiam ser ainda
359
atravessadas por outras clivagens (como a urbano-rural). Essas “brigas de facão”
assemelhavam-se a duelos mobilizando membros das classes populares, com seu
próprio código de honra, nos quais eram reafirmados valores cruciais em seu cotidiano,
tais como a masculinidade, a coragem, a força, a habilidade, o atrevimento ou ousadia,
fossem quais fossem as razões pontuais para os entreveros. Nota-se como o gosto pelo
risco – presente no universo da mina, ainda que de forma ambígua – manifesta-se nessa
peculiar sociabilidade masculina no tempo livre do trabalho e também na própria
construção das reputações. Em muitas narrativas, está presente o poder das provocações,
em que motivos aparentemente banais poderiam levar a uma avalanche de violência.
485
Quando eu perguntava a Telmo Trindade sobre a razão pela qual as rixas tinham
desaparecido, sua resposta mencionava o controle da ordem pública: “Aí a polícia veio
chegando... aí veio chegando, aí parou. (...) Aí, depois, o povo foi se civilizando, se
acalmou, e hoje tá tudo calmo”. A referência a essa “civilização” é algo que merece ser
explorado. Deve-se considerar uma transformação relativa aos modelos de
masculinidade na sociedade brasileira e, em particular, na gaúcha. Mas, nas hipóteses
explicativas não menos importantes são aspectos que emergem no universo local, como
o deslocamento dos conflitos de rua para engajamentos esportivos (ainda que
estivessem presentes, em certa medida, no período anterior), o acirramento das disputas
políticas desde a emancipação de Butiá (no início dos anos 1960) e de Leão (nos anos
1990). Por outro lado, a própria ampliação das opções religiosas parece ter influenciado
a construção da moralidade e da subjetividade de homens e de mulheres da localidade.
Em um período mais recente, não se pode ignorar o alongamento da escolaridade de
filhos de mineiros. Meu interlocutor notava como os interesses do filho eram bem
diferentes daquele que ele cultivara na juventude: Alex preocupava-se em se qualificar
profissionalmente, mantendo uma participação ativa nos esportes.
486
A mudança de
horizontes suscitava a reflexão de homens como Telmo Trindade, que, embora tenham
se destacado por suas peculiares “artes” com o facão, viam dissipar-se na memória as
razões das contendas: “Hoje, eu acho que era só ignorância a época da briga. Era só
ignorância. Não precisava isso. Era só ignorância.”
485
Ver o relato de Acimar, sobre o assassinato de seu pai, no bairro Recreio, no capítulo 5.
486
A trajetória de Alex é referida no capítulo final.
360
7 MINA DE JOGADORES
487
: O FUTEBOL E A “PEQUENA HONRA”
7.1 INTRODUÇÃO
Quando cheguei a Minas do Leão para a realização da etnografia, tinha algumas
pistas
488
de que o futebol tinha uma importância singular no cotidiano desta comunidade
erguida em torno das minas de carvão. Tinha ouvido referências sobre a prática do
futebol e a relacionava inicialmente com um lazer de fim-de-semana. Vez por outra,
identificava metáforas dando conta que o universo da mina era intimamente relacionado
ao mundo do futebol. Em alguns discursos, a afirmação das condições necessárias para
ser mineiro era expressa por meio de jargões futebolísticos que afirmam a
masculinidade
489
. Um dos informantes me dizia que, para ser mineiro, era preciso “ser
homem com H maiúsculo, porque ‘canela de vidro’ não agüentaria”. Enquanto o futebol
é definido popularmente como uma “caixinha de surpresas”, a própria mina de subsolo
aparecia em relatos, um tanto mais dramaticamente, como “uma caixa de segredos”. Na
convivência diária, emergia a centralidade deste esporte, entrecruzada com outros
aspectos que são fundadores de sua identidade social, tais como o trabalho na minas, a
relação com as famílias, com a religião e com a política local, especialmente.
Ao longo deste capítulo, procuro explorar a importância social do futebol
varziano
490
e amador, expressa no amplo espaço ocupado por esta prática esportiva na
vida dos trabalhadores e na intensa carga simbólica e afetiva que ainda mobiliza, mesmo
após o fim da mina de subsolo. Este percurso é feito essencialmente através da análise
de trajetórias de sete mineiros-jogadores: trabalhadores contratados por seu talento no
futebol e que obtinham privilégios na sua ascensão profissional no interior das
companhias carboníferas. Tais práticas, mantidas até a década de 1980, nos permitem
487
No título, me inspiro em expressão usada em edição da revista Relais, pela companhia carbonífera
francesa após o fechamento da última mina do Norte da França: “Une mine de footballeurs” (Relais,
(1991, p.207). A publicação mencionava que as minas do Norte tinham sido sempre “um rico
reservatório” para o futebol francês. A página era ilustrada com um mapa das minas do Norte e os nomes
dos jogadores oriundos de cada localidade. Naquele caso, alguns dos ídolos do futebol, como Platini e
Kopaszewski, eram oriundos de famílias estrangeiras que foram trabalhar nas minas de ferro e de carvão
.
488
Surgidas durante a etnografia de mestrado, realizada em 2003.
489
Há ampla bibliografia sobre a noção de masculinidade presente nas camadas populares (Cf. Duarte,
1986, 1987a, 1999; Leal e Boff, 1995; Guedes, 1997; Kimmel, 1998; Guttmann, 1999; Fonseca, 2001).
490
Nesta região, há uma hierarquia entre o futebol “varziano”, que diz respeito a uma equipe sem registro
oficial, por vezes mais improvisada, e o “amador”, inscrito na Federação Gaúcha de Futebol. Entre os
“varzianos” e os “amadores”, no entanto, não havia necessariamente diferenças de qualidade, embora os
amadores pertencentes ao Atlético tivessem uma preparação física similar à de profissionais. Nos
gramados, as duas categorias também não se diferenciavam pela aparência: ambos atuavam
uniformizados ou “fardados”, como é costume dizer-se por ali. Participavam de campeonatos nas
respectivas categorias, mas também mantinham seus enfrentamentos em amistosos.
361
refletir sobre o papel do futebol operário na constituição tanto de identidades sociais
como de masculinidades. Esses casos também devem nos fornecer elementos para a
compreensão dos modos pelos quais os pertencimentos às equipes de futebol ligadas às
minas desempenharam um papel central na construção do que denomino de “pequena
honra” relacionada ao esporte, ou seja, do valor social atribuído ao indivíduo e
incorporado por ele, que deriva de suas habilidades corporais.
Em cada relato emerge uma multiplicidade de equipes esportivas a partir das
quais eram tecidas rivalidades e toda uma série de oposições. A principal disputa – que
ainda aquece as discórdias - diz respeito ao Atlético Mineiro Futebol Clube e ao Olaria
Futebol Clube. Como nas vilas-operárias de outras partes do mundo, em Minas do Leão
e em Butiá as companhias ofereceram certa conjugação de fatores para o
desenvolvimento de equipes de futebol e de jogadores, especialmente amadores, fosse
pelo incentivo direto a tal sociabilidade, fosse porque o sentido de lazer nestas
comunidades era remetido bastante naturalmente aos jogos nas suas diversas formas.
491
Um fenômeno comum no incentivo engendrado pelas companhias foi a concessão de
emprego aos bons jogadores, assim como privilégios na sua rotina e nas possibilidades
de ascensão profissional. Entre as pesquisas realizadas sobre este tema, registram-se
referências à forma pela qual o futebol praticado no clube da fábrica teria feito surgir
uma espécie de “elite” composta por jogadores-operários.
492
Estudos anteriores sobre a apreciação do esporte entre camadas populares e
sobre a própria prática do futebol destacaram aspectos tais como da ousadia, da manha e
da perícia, da malandragem, do jogo de corpo ou jogo de cintura e do dom
493
- valores
que são acionados pelos personagens que destaco neste capítulo. Nas narrativas de meus
interlocutores, o campo de futebol aparece como cenário de exibição de habilidades e de
saberes corporais – da “inteligência” da criação de uma jogada, da “genialidade” de um
gol tão bonito que era “uma pintura”, coisa que “que nem um profissional faria”, da
irreverência e da resistência física –, de rememoração dessas performances, mas também
de integração e de confrontação, palco de episódios de “valentia” memoráveis. Como
nota Bromberger (1998), cada partida de futebol mobiliza vasta gama de emoções: a
491
Este aspecto foi abordado no capítulo anterior.
492
A este propósito, cito, entre estudos realizados no Brasil, Mário Filho (1964); Guedes (1982); Leite
Lopes (1988, 1992); Antunes (1994), Caldas (1994) e Rosenfeld (2007). No exterior, destacam-se as
pesquisas de Nash (1979), Fridenson (1989), Walvin (1994), Lindner & Breuer (1994), Bromberger
(1998), Renahy (2001) e Fontaine (2003).
493
Ver, por exemplo, Hoggart (1973); Da Matta (1979, 1982, 1994); Guedes (1982, 1997); Leite Lopes,
(1988, 1992, 1994) e Damo, 2005).
362
alegria, o sofrimento, a raiva, a angústia, a admiração, o sentimento de injustiça, com
espaço também para a trapaça e a mentira, para o imprevisível e o cômico. Um jogo
exalta o mérito, a competição, mas também o trabalho em equipe, a solidariedade –
princípios que são também afirmados na mina de subsolo. O futebol é, assim, terreno
fértil para a afirmação de identidades e de antagonismos, com o sentimento de
pertencimento sendo construído por oposição ao adversário próximo – seja a cidade
vizinha ou uma parte da mesma cidade, como em Minas do Leão - ou distante,
exacerbando também outras diferenças: sociais, políticas ou étnicas.
494
Como ritual lúdico ou agonístico, o futebol permite a exibição dos afetos e das
intensidades relativas a cada pertencimento e, muitas vezes, convertido numa espécie de
sagrado, possibilita ao etnógrafo o mergulho na subjetividade dos informantes. As
entrevistas sobre futebol permitem o acesso a um recanto íntimo, onde os objetos de
memória do jogador (ou ex-jogador), tais como fotos, certificados, faixas de campeão,
carteirinha do clube estão guardados, por vezes de modo aparentemente desordenado no
interior de uma velha carteira – mas considerando-se que as carteiras servem para
abrigar os documentos, eles são também documentos de identidade e de identificação -,
em caixas de papelão onde a memória dos jogos e das equipes mistura-se à história da
família, à sucessão de nascimentos, aniversários, casamentos e lembranças de falecidos,
ou, ainda, decorando estantes e paredes da sala, junto aos retratos de filhos e netos, aos
souvenires da mina e às homenagens recebidas de toda parte – do “Dia dos Pais”, dos
seguidores da equipe de futebol, da câmara de vereadores ou da companhia de carvão ao
“mineiro padrão”, etc. As narrativas valem tanto pelo seu caráter informativo, pela
hierarquização dos méritos e deméritos, prestígios e desprestígios, honras e desonras de
uma biografia (delineando também reputações
495
alheias), como pela sua performance,
das artes de narrar
496
um episódio ou trajetória.
Não poucas vezes, o momento de identificação de uma foto do time, durante
minhas visitas, era ele mesmo revelador desta composição provisória, dinâmica, dos
representantes de uma geração no esporte. As fotografias, em sua aparente
arbitrariedade, evocam e articulam as lembranças pessoais, conectando-as com uma
memória coletiva (Halbwachs, 1990). Essas indicações, que dizem sobre o passado e
sobre o presente, não falam apenas de futebol, mas também de alianças matrimoniais, de
494
Ver Bromberger, 1998, p. 29-58.
495
No sentido adotado por Bailey (1971).
496
Considero aqui o que diz Walter Benjamin (1992), sobre os contadores de histórias como “praticantes
de uma arte em extinção” e que está na contramão dos novos hábitos da cidade.
363
carreiras e de posições políticas, de percursos religiosos, de migrações, de perfis
humanos, de costumes e de toda uma sorte de observações caras ao pesquisador. Então,
ouve-se que “esse já é falecido, trabalhou na mina”; “esse outro aqui, o Leo, era
defeituoso de uma perna, mas foi o melhor goleiro que já tivemos”; “esse também era
goleiro, o Antônio Manoel, depois ele casou com a irmã do Zoely, o que seguiu carreira
na política e foi prefeito”; “ah, aí tá ele, o Zoely, e esses aqui são irmãos dele”; “o da
direita é o Ademar, que é crente e mora aí perto”; “esse aqui é o Zé Padeiro, ele foi
preso depois da Revolução de 64 e quase mataram ele a pau”; “esse outro é o Melão, ele
gostava de dar uma ‘calibrada’
497
, escondido do treinador, né, antes de entrar em campo;
hoje tem aí o neto dele, o Melãozinho, que continua jogando”; “esse não era daqui, veio
aí pra jogar, trazido pela mina”; “esse aqui é o “Catarina”; “esse agachado aqui, sô eu,
com uma redezinha no cabelo, que, naquele tempo, a gente usava essa redezinha, né”;
“esse é o Zé Medeiros, também foi trazido aí pela mina, ainda existe, mora no Butiá”, e
assim por diante. Essas menções compõem-se como um mosaico. E há diferentes níveis
de apresentações/identificações. Um diz respeito à posição ocupada pelo jogador na
equipe: centro-médio, zagueiro, goleiro, etc. Outro, mais diretamente envolvido na
construção das reputações, destaca que “Fulano foi o melhor zagueiro que nós tivemos
aqui, assim ó, da qualidade de um profissional”, “Beltrano era muito inteligente,
criativo, fazia umas jogadas de gênio”. Essas referências articulam, por vezes, os
conceitos entre o desempenho no futebol e as apreciações sobre os papéis sociais, assim
como podem indicar uma transferência de capital (ou a preocupação em evitar que se
leia dessa forma): “o pessoal vai dizer que eu tô elogiando ele só porque foi prefeito,
mas não... ele era bom mesmo no futebol”. É nítido, porém, que os elogios sobre o
desempenho em campo costumam ser mais generosos para companheiros de equipe
com os quais o ex-jogador tinha relações de amizade, de parentesco ou afinidades
partidárias. Inversamente, ter sido “bom de bola” fazia com que outras portas se
abrissem ao jogador, fossem as da carreira na empresa, de uma popularidade na carreira
sindical ou política ou, ainda, uma ampliação das possibilidades matrimoniais.
Neste capítulo, além de explorar os universos relacionados às principais equipes,
as trajetórias de mineiros-jogadores e sua continuidade nas gerações posteriores,
descrevo ainda os empreendimentos ligados às famílias, tais como os Freitas, os
497
Tomar uns goles de uma bebida alcoólica, geralmente cachaça, ou conhaque, no inverno.
364
Fonseca e os Braga-Salgueiro. Na geração de filhos de mineiros, encontram-se projetos
de profissionalização no futebol, entre os quais uma pequena parte obtém êxito.
7.2 A RIVALIDADE DO FUTEBOL EM TORNO DAS MINAS
Na região carbonífera do Baixo Jacuí, no Rio Grande do Sul, a história dos times
de futebol encontra paralelo na própria história das companhias de mineração. No final
dos anos 1940 e início dos 1950 surgiram as primeiras equipes organizadas em Minas
do Leão - times criados pelos trabalhadores em torno das minas, mas em cuja diretoria
figuravam encarregados e engenheiros, havendo em alguns casos patrocínio direto das
empresas. Em comparação com as demais vilas mineiras da região, como Arroio dos
Ratos, Charqueadas e Butiá, o desenvolvimento do futebol foi relativamente tardio na
localidade, acompanhando o próprio florescimento da vila operária. Minas do Leão
havia renascido nos anos 1940, depois de um primeiro período de existência e posterior
desaparecimento: a vida da vila navegava ao sabor da vida da minas.
Nas décadas de 1920 e 1930, em boa parte dos distritos vizinhos, todos
pertencentes ao município de São Jerônimo
498
, já havia equipes de futebol: o Butiá
Futebol Clube havia sido fundado em 1926, com o incentivo do engenheiro-chefe da
empresa privada Consórcio Administrador de Empresas de Mineração (Cadem); que
havia estimulado também o surgimento do Grêmio Atlético Jeromina, no então distrito
de Charqueadas, em 1931.
499
O campo utilizado pelo Jeromina ficava num terreno
doado pela empresa de mineração, apelidado de “banhadão”, porque inundava
facilmente em período de chuvas.
500
Cercado de madeira a uma altura de dois metros, o
estádio dispunha de vestiários e arquibancadas, ocupadas tanto por sócios como por
pagantes que compareciam para assistir aos espetáculos esportivos. Na sede do
município de São Jerônimo, haviam sido criados o Grêmio Esportivo São Jerônimo, em
1935, e o Grêmio Esportivo Riograndense, em 1938, este último utilizando um campo
que havia sido doado pela Câmara de Vereadores. Em outra localidade, Porto do Conde,
havia sido criado em 1937 o Conde Futebol Clube. Na década de 1940, outras seleções
498
Até novembro de 1960, o município de São Jerônimo era formado pela sede e pelos distritos de Arroio
dos Ratos, Butiá e Barão do Triunfo. Depois, a lei municipal n. 38 de 17 de novembro de 1960, deu uma
nova divisão territorial e administrativa ao município, que passa a contar com oito distritos: sede do
município, Charqueadas, Arroio dos Ratos, Butiá, Leão, Morrinhos, Barão do Triunfo e Quitéria.
499
Eckert (1985, p. 459-460) destacava que a companhia promovia campeonatos entre os mineiros, mas
um de seus informantes mencionava que o incentivo aos jogos teria sido interrompido porque depois das
partidas havia operários que faltavam ao trabalho sob a alegação de que teriam se machucado.
500
Ver Pires, 1986, p.100.
365
de futebol surgiram no então distrito de Arroio dos Ratos: Brasil, Guarani e Estrela. No
auge da mineração, nos anos 1960, havia no município de São Jerônimo nove equipes
amadoras, inscritas na Federação Gaúcha de Futebol, sem contar uma pluralidade de
equipes varzianas, cujo funcionamento e duração eram mais irregulares. Esses times
amadores seriam os principais adversários da equipe surgida em Minas do Leão, a partir
da organização de trabalhadores de uma empresa estatal de mineração.
Em Minas do Leão, a seleção que se tornaria amadora, o Atlético Mineiro
Futebol Clube, foi fundada em julho de 1950, numa fusão do Itaúna Futebol Clube e do
DACM Futebol Clube. Este último sustentava o nome da empresa à qual os jogadores
eram vinculados, o Departamento Autônomo de Carvão Mineral (DACM), criado em
1947 e que depois se transformaria na Companhia Riograndense de Mineração (CRM),
em 1969. Um dos primeiros times da vila mineira nos anos 1940, o Leão FC, tinha dado
origem ao DACM FC. Já o Itaúna FC teria sido organizado por trabalhadores de cerca
de 20 famílias de Santa Catarina que emigraram para trabalhar nas minas gaúchas na
década de 1940.
501
O campo onde o Itaúna fazia seus treinamentos era um terreno
baldio próximo às Repúblicas, moradias coletivas criadas pela companhia para abrigar
os trabalhadores, próximo ao local que abriga hoje a Vila dos Freitas.
Uma das principais conquistas do Atlético Mineiro FC - que em março de 1960
havia se tornado um clube amador, inscrito na primeira categoria da Federação Gaúcha
de Futebol - foi a conquista do título de “Campeão do Centenário” do município de São
Jerônimo, vencendo outras nove equipes daquela categoria ligadas às minas, no
campeonato promovido em 1960. Depois, o time foi ainda vice-campeão estadual de
amadores por dois anos consecutivos. Até os anos 1970, cometeria a proeza de vencer
ou de empatar com clubes profissionais da segunda divisão do futebol gaúcho em
amistosos realizados na região. A equipe do Atlético continuou jogando até o final da
década de 1970. Depois, o espaço começou a ser tomado por times de veteranos.
O principal rival do Atlético em Minas do Leão, o Olaria Futebol Clube, surgiu
no bairro Recreio em dezembro de 1956, reunindo jogadores que trabalhavam na Mina
de São Vicente, de propriedade da família Alencastro, e em uma olaria pertencente à
mesma empresa, que acabou inspirando o nome da equipe. Os ex-mineiros Eraldo
502
, de
501
Em Santa Catarina, existia também, desde 1952, o Itaúna Atlético Clube, criado por funcionários da
Companhia Siderúrgica Nacional na vila operária do Fiorita, em Siderópolis.
502
Eraldo faleceu em novembro de 2007, alguns meses depois dessa entrevista.
366
64 anos, e Antônio Geret, de apelido “Butiá”, de 68 anos, adolescentes na época,
estavam entre os seus fundadores. Butiá recorda-se dos primeiros tempos:
Olha, eu tinha 16 pra 17 anos quando nós começamos a criar o Olaria. Nos
primeiros jogos até a gente botou o fardamento nas costas [conseguiu por
conta própria]. Tinha um adversário aqui e lá em cima tinha outro, então nós
começamos assim, jogando. Com esses aqui e aqueles lá e fomos indo, né.
Até que a gente montou o time, né. No começo... os nossos patrões sempre
nos deram apoio, nos deram força, né. Isso aí... no que a gente precisasse...
não tinha problema nenhum. Fardamento também, quando a gente se
apertava, ia lá: “Ò doutor, precisamos....”. Ele prontamente dava um jeito.
Filho de antigo operário da Mina de São Vicente, Antônio Geret, o “Butiá”,
nasceu no então distrito de Butiá (de onde veio seu apelido), em uma família de sete
irmãos, dos quais todos os cinco filhos homens tornaram-se mineiros da mesma
companhia. Um dos irmãos, Bernardo, também jogava futebol na equipe do Olaria.
Butiá trabalhou sempre como mineiro de subsolo, exercendo as funções de eletricista,
de guincheiro e de tocador de carro, até se aposentar, em 1973, depois de cumprir os 15
anos de atividade. Eraldo, outro fundador do Olaria, nasceu em Taquari, numa família
de 11 irmãos - seis mulheres e cinco homens. Quatro dos filhos tornaram-se mineiros,
ingressando na própria mina de São Vicente, ou na Copelmi, em Butiá e em
Charqueadas. Eraldo sempre trabalhou na superfície, primeiro nas peneiras de carvão,
depois como guincheiro e como balanceiro.
Os jogadores do Olaria começaram treinando num campo próximo à mina, com
uma goleira feita de traves de
eucalipto e uma bola “das
antigas”, doada pelo patrão. Butiá
lembra que a bola “era de tento,
então ela tinha um vinco assim,
tipo um umbigo, né. E aí enchia
por ali e depois amarrava com
cordão”, ficando um tanto
“bicuda”. Com isso, era difícil
controlar a direção do chute, pois
a pelota poderia “rebolear” e seguir para outro lado. O ex-centro-médio recorda que,
depois de formado o time, a empresa lhes deu um “fardamento”: “Nos deu calção, nos
deu camiseta, nos deu botina [chuteira]”. Quando o grupo já estava acostumado com o
campo de grama, num terreno “parelho”, foi surpreendido pela notícia de que a BR 290,
Entre os fundadores: Butiá, no campo do Olaria
367
uma rodovia federal que estava em construção, ia passar por cima daquela área. A
solução foi arrendar por um tempo a propriedade de um fazendeiro, contando para isso
com a intermediação de um capataz da mina. Esse capataz não era solidário aos
operários apenas em questões relacionadas ao esporte: mantinha com alguns deles
também uma afinidade política.
Na década de 1960, o campo, que até hoje abriga a sede da Sociedade
Recreativa Olaria Futebol Clube, acabou sendo vendido aos trabalhadores, com o
pagamento sendo descontado dos salários de 16 mineiros associados ao longo de dois
anos. O grupo mais engajado, ou quem tinha mais condições financeiras, pagava Cr$
10,00 mensais, os outros, Cr$ 5,00. Até hoje, Butiá guarda alguns recibos do pagamento
do campo com datas de 1965 e 1966. Lá está escrito: “Chapa 140, Antônio Geret,
prestação Olaria, Cr$ 10,00”, e o mês correspondente. O último trabalhador a engajar-se
no grupo foi o zagueiro Eraldo que, para ser solidário aos colegas, adiou seu casamento.
Eu trabalhava de balanceiro na época, eu tava na balança e o Butiá era
mineiro do subsolo. Eles sempre passavam por ali porque eles eram tocadores
de carro no subsolo, passavam ali e iam conferir, né. Eu era balanceiro e aí
ele sentou pra conversar comigo, né, e aí me meteu uma pilha, porque faltava
um cara, né, pra compra do campo, e este teria quem ser eu porque eles não
tinham outra opção, né. (...) O pessoal não ganhava muito bem na época, né,
uns porque não tinham condições mesmo, outros porque não eram muito
ligados ao clube (...). Aí eu tive que adiar meu casamento em um ano pra
poder entrar na compra do campo. (...)
Olaria FC nasceu, assim, sob o signo da dedicação e do sacrifício dos
trabalhadores – e continuaria em toda a sua história. Os benefícios concedidos pela
companhia privada de menor porte, a Mina de São Vicente, eram considerados
minguados em comparação com os investimentos que a empresa estatal DACM (depois
CRM) aportaria à sua equipe, o Atlético Mineiro FC. É por isso que quando vai ao
Olaria, percorrendo a passos lentos a velha passarela sobre o arroio, de tábuas largas e
fortes, mas que já começam a dar sinais do tempo, e chega ao campo de grama cercado
de tela, com alguns velhos bancos de madeira apodrecida do lado de fora, onde ainda se
sentam os expectadores, Butiá diz: “Esse campo foi comprado com o nosso suor, com o
nosso serviço”. Isso não quer dizer que Carbonífera Alencastro, proprietária da mina de
São Vicente, não ajudasse o time. Ao contrário: o primeiro diretor de futebol referido
pelos ex-mineiros era um engenheiro da companhia. Num certo período, até o
proprietário, o “Doutor Alencastro”, como era chamado, participou da diretoria. No
entanto, o Olaria continuou como clube varziano, enquanto que o Atlético Mineiro foi
368
guindado à categoria de amador. Mais do que uma diferença de política de
sociabilidade, havia uma diferença de escala: a Mina de São Vicente nunca teve mais do
que 200 operários, a CRM chegou a reunir cerca de 1.500 trabalhadores na localidade.
Outras oposições derivavam do espaço social e geográfico ocupado por cada
clube. Uma rivalidade antiga, que opunha as duas áreas da então vila operária – como se
fossem duas vilas separadas -, mantém até hoje seus traços na disputa futebolística.
Como já mencionei no capítulo 4, na área à esquerda da BR 290, está localizado o
bairro do Recreio, considerado o mais pobre de Minas do Leão, cujo solo escuro indica
ter-se originado de uma ocupação irregular sobre rejeitos de carvão. Essa concentração
urbana havia surgido em torno de minas mais antigas e mais precárias, tais como a Mina
de São Vicente, a de São José e a da Coréia. No lado direito da BR, estão os bairros que
desembocam no Centro da cidade, na antiga vila operária e também na chamada Vila
dos Engenheiros, ambas situadas em torno dos poços de extração da CRM. Já referi
antes (capítulos 4 e 6) que, entre os anos 1940 e 1980 havia contendas armadas
envolvendo as duas áreas: de um lado, ficavam os rapazes “do Recreio” (bairro ou vila
do Recreio), de outro os “do Leão” (também referidos como “do Centro”, ou da
“Baixada”). Os “valentões” de um lado e de outro se enfrentavam em brigas de rua,
cada qual portando o seu facão. A dimensão da violência podia atravessar, com suas
conseqüências, a sociabilidade dos bares, dos prostíbulos, dos clubes recreativos e das
partidas de futebol. Tudo isso só fez reforçar a rivalidade entre Olaria e Atlético, o
primeiro sendo considerado um clube “mais popular”, o segundo, visto como
pertencendo a uma “elite operária” local. Para Butiá, que jogou em ambas as equipes,
tais classificações correspondiam aos extratos sociais dos jogadores:
O Atlético é a CRM, e o Olaria, a base do Olaria foram os empregados, os
trabalhadores, né, o Olaria em si saiu do suor de cada trabalhador e se hoje a
rivalidade continua é porque tá enterrado aqui o suor dos mineiros, né, da
Carbonífera São Vicente.
Essas atribuições se perpetuam nos atuais times de veteranos. Alguns jogadores
ou ex-jogadores dos dois “lados” mencionam as diferenças, mas preferem não enfatizá-
las, como no caso de Chicão, atual veterano do Olaria: “Se diz que o time do Atlético é
um time de rico, de almofadinha, de gente cheia de ‘ti-ti-ti’ e o Olaria aqui é uma classe
mais operária, mais... né, aquele pessoal mais simples, mais humilde”. Entretanto, ele
acreditava que esses estereótipos não ajudavam nas relações entre os clubes: “Isso aí
simplesmente não leva a nada porque no futebol nunca se deve se misturar o esporte, a
369
amizade e a política”. Os próprios veteranos do Atlético tocavam no tema: “Dizem que
somos elite porque vamos de carro e não de ônibus para os jogos, mas há muitos
jogadores nossos que passam necessidades e o clube se une para ajudá-los”, afirmava
Beto Balão, veterano do atual Atlético e filho do ex-jogador Carlitos.
Butiá foi um dos craques nos anos 1950 e 1960. Atuou dez anos como
centromédio e depois se tornou treinador do Atlético e do Olaria, conquistando o
tratamento de “professor”. Ele acentuava que o Olaria sempre foi um time varziano,
“mas com uma categoria dentro dele que se assinava como amador, pela qualidade que
tinha”. A evidência é fornecida pelos escores: a equipe chegou a disputar cerca de 30
partidas sem perder nenhuma na região.
Vários outros times surgiram em torno do DACM e da CRM, na década de
1960, como o Esporte Clube Poço 1 (P1) e o Ponte Preta, que seriam “rachas” do
Atlético, reunindo trabalhadores na mineração. A motivação para criação de novas
equipes geralmente eram “as diferenças”, “as rixas” com o clube estabelecido. Mas
também era comum a realização de amistosos opondo trabalhadores nas diferentes
funções na mina: tocadores de carro contra madeireiros (que trabalhavam na sustentação
das galerias), ou trilheiros (responsáveis pela colocação dos trilhos). Em certa época, o
bairro Recreio abrigou também a Mina São José, que tinha seu time correspondente, o
Favorito Futebol Clube. As narrativas referem ainda o São Cristóvão e o Onze Garotos.
Em outros segmentos de trabalhadores, como na área rural, também havia a
organização de times de futebol, porém considerados como tendo menos sucesso do que
no meio urbano. Alguns informantes citavam o caso do “Tafuia”, considerado pelos
mineiros como o “pior time” da região, agregando empregados de uma granja de arroz.
Uma das anedotas contadas pelos mineiros para mostrar seu desprezo pela equipe de
origem rural era de que ali, naquele adversário, “craque” era “crack”, droga mesmo.
Apesar de as depreciações sobre os rivais serem prática inerente ao futebol, os operários
das minas parecem partir da concepção de que eles, mais do que outros trabalhadores,
foram socializados na malandragem, no jogo de cintura, na habilidade, características do
“verdadeiro mineiro”, enquanto que os trabalhadores que vêm do campo são vistos
como “animais”, “não-domados”, “xucros”, “selvagens”, “inábeis” – tudo o que, nesta
perspectiva, só poderia resultar em mau futebol.
370
7.3 OS MINEIROS-JOGADORES NO ATLÉTICO MINEIRO F.C.
Ao longo de três décadas, entre o final dos anos 1940 e meados dos anos 1970, o
DACM (depois CRM) incentivou diretamente o fortalecimento do Atlético Mineiro FC,
mantendo a prática de contratar bons jogadores para compor o time e trabalhar na
companhia. “Quando descobriam um cara que jogava bem, traziam para trabalhar”,
ressaltava João Francisco, 48 anos, atual gerente da área administrativa da CRM e um
aficionado por futebol. É ele quem mantém, como verdadeiras relíquias, nas gavetas do
escritório da empresa, algumas fotos e atas que registram parte da história do clube, dos
raros documentos disponíveis sobre a memória do futebol operário na cidade. Mas ele
mesmo era muito jovem para ter atuado no Atlético “dos bons tempos”. Seu colega de
escritório, ex-chefe da seção, Volmar Cunda, 59 anos, começou a jogar futebol aos 14
anos e integrou o ‘segundo quadro’ daquela equipe na posição de ponta-direita,
seguidamente enfrentando o Olaria em disputas locais. Tanto a equipe principal como
os reservas participavam de uma preparação física rigorosa, puxada por um treinador
que era capitão da Polícia Militar gaúcha, de forma que, segundo os relatos, eram
capazes de correr os 90 minutos da partida e ainda continuar “inteiros”.
A maior parte dos jogadores do Atlético Mineiro era composta por
trabalhadores na CRM, para os quais estavam reservados alguns privilégios, como a
permissão para sair do trabalho para participar de treinos e jogos: “Se o horário normal
de largada era às 17h, saíamos às 16h para treinar”, contava Volmar. Os treinos do
Atlético eram realizados normalmente às terças e quintas-feiras. Se fosse necessário,
nestes dias, os mineiros-jogadores trocariam seu horário de trabalho com os colegas
para ficarem no turno diurno. Volmar relatava que “se houvesse um bom jogador que
estivesse desempregado, certamente arrumaria vaga na companhia”. Às vezes, ocorria
mesmo de o presidente do Atlético Mineiro falar com um dos engenheiros da
companhia, pedindo que ele arrumasse “uma vaga pro Fulano”. Dependendo do talento
do jogador, muitas portas poderiam se abrir. Tais critérios de seleção podiam dar
margens a críticas entre os colegas: “Alguns até eram melhores no futebol do que como
mineiros”. Esta observação de um outro informante, no entanto, tinha um tom mais
jocoso do que de censura. O grupo de mineiros-jogadores parecia suscitar, entre os
companheiros de trabalho, mais admiração do que rivalidade.
O primeiro caso de contratação de um mineiro-jogador por uma companhia
carbonífera em Minas do Leão foi o de Leotilde Braga, Seu Leo, com 78 anos à época
371
de nossa última entrevista. Goleiro que fez história no futebol amador da região, ele só
se sentiu comprometido com um clube quando foi jogar no Atlético, em 1949, e, por
conta disso, tornou-se empregado do então DACM. Antes disso, já era um atleta
“disputadíssimo”, como contava. Recordava-se que, na época, havia em torno de 14
equipes varzianas entre Minas do Leão e Butiá e ele jogava para quase todas,
defendendo ora uma, ora outra. Os “pagamentos” eram simbólicos: um ingresso para a
sessão de cinema local, uma calça de um tecido “fino” para ir aos bailes, etc. Num
tempo em que o transporte coletivo era raro, Leo era capaz de caminhar 30 quilômetros
a pé para jogar uma partida em outro distrito. Dali em diante uma espécie de
profissionalização se daria: ele iria trabalhar na companhia estatal e jogar futebol.
Devido à minha atuação aqui [no futebol], o pessoal, os diretores aqui do
Itaúna [FC] se interessaram muito em investir pra eu vir pra cá de uma
maneira ou de outra, se me arrumassem serviço, se pagassem, qualquer coisa.
“Ele tem profissão?” “Tem, é pedreiro, carpinteiro”. “Então, tá, se ele tem
duas profissões boas e é bom goleiro, vamos contratar”. Aí foi quando me
arrumaram serviço. Eu fiquei trabalhando na firma. (...) Posteriormente foi
que o diretor [do DACM] autorizou que contratassem jogadores pra jogar no
time porque aí sim ia representar o município, aliás, o distrito na federação
[gaúcha de futebol]. Com a permissão dos diretores, aí então aqueles
jogadores que interessavam ao time aqueles seriam contratados. Então,
vieram todos eles.
Admitido pela empresa, em 1949, Leo
503
permaneceu 19 anos trabalhando no setor de
oficinas, uma atividade desenvolvida na
superfície, condição essa que foi estendida a
outros mineiros-jogadores, já que ficavam
preservados de um esforço demasiado no trabalho
no subsolo, sempre sujeito ao risco e à
insalubridade. O jovem foi morar numa habitação
de três peças nas Repúblicas, levando para lá,
pouco tempo depois, a mãe e três das quatro irmãs,
que ele ajudaria a sustentar com seu salário. Em
1957, com problemas no joelho decorrentes do
futebol, Leo teve que passar por cirurgias e nunca
503
A trajetória profissional de Leo foi descrita no capítulo 3.
Memórias de um ex-goleiro: Leo foi o
primeiro mineiro-jogador em Leão
372
recuperou totalmente o movimento daquela parte da perna, mas continuou jogando
504
e
sendo elogiado pelo desempenho. Depois dele, outros jogadores seriam recrutados para
reforçar a equipe do Atlético.
Exatos dez anos depois, em 1959, foi a vez de Ademar.
505
Morador do Porto do
Conde, onde também jogava futebol, ele havia sido informado por um amigo sobre um
time que estava começando em Minas do Leão, o Atlético Mineiro Futebol Clube. O
outro dizia: “Tu tem que ir jogar lá. Eles estão precisando de jogadores e tu vai ser o
indicado”. Filho de “mãe solteira”, como ele relatava, Ademar foi primeiro escutar a
opinião da mãe, pois era, nesta época, segundo conta, “muito sujeito à família”, e na
localidade onde vivia havia rumores de que Minas do Leão tinha se tornado um lugar de
muita violência e confusão. Como sua mãe tivesse concordado, ele chegou à vila
mineira em dezembro de 1959. Em 1960, aos 20 anos, começava no time como quarto
zagueiro e, paralelamente, trabalhava na companhia de carvão, primeiro na peneiração
de carvão e, depois, nas Oficinas, na seção de motores e de chapeação. Desde muito
jovem, ele havia se tornado o arrimo da família. Destacando-se em campo, chegou a
fazer planos de tornar-se um atleta profissional. Em razão disso, ficou 12 dias fazendo
testes no Grêmio Esportivo Brasil, de Pelotas, clube profissional da segunda divisão do
futebol gaúcho
506
. “Da maneira como cheguei lá e fui tratado, me decepcionei”. A
proposta financeira era boa: se fosse contratado, ia ganhar o prêmio de uma moto e um
“ordenado”, mas o estilo violento do futebol lhe desagradou. Desistiu do sonho na
véspera da estréia contra o Guarany Futebol Clube
507
, de Bagé. Voltou a Minas do Leão
e permaneceu na equipe amadora durante quatro anos.
O ano de 1960 seria histórico na vida do clube e daquela geração de mineiros-
jogadores. Leo recordava-se de outros que foram recrutados.
Leo - Uma ocasião, em 1960, o time era considerado varziano ainda, depois
se inscreveu na Liga de Amador, então reforçaram... Então, vieram outros...
vieram uns de General Câmara e outros do Conde...tem gente que tá até hoje
aí. Vinham pra jogar e pra trabalhar. Ah, não, porque a mina dava serviço, né.
O cara... tinha que trabalhar, não era só pra jogar, né. (...) o ganho que eles
tinham... era da mina.
- E tinha uma chefia que era entusiasta do esporte?
504
Uma ata do Atlético Mineiro FC de janeiro de 1957 registrava que “Leotilde de Abreu Braga
necessitava de auxílio da sociedade A.M.F.C para realizar uma operação de tratamento no joelho (...)”.
505
Parte da trajetória de Ademar foi relatada no capítulo 5, sobre as relações com o sagrado.
506
O clube foi fundado em 1911.
507
Equipe profissional da segunda divisão do futebol gaúcho criada em 1907.
373
Leo - Tinha, tinha. Eu mesmo... quando eu vim pra cá foi o senhor que era
chefe das oficinas [Cândido de Oliveira]... Mas eles [os encarregados] se
agarraram com o engenheiro-chefe deles, que era o engenheiro-assistente. O
engenheiro-assistente esse dava o apoio todo pro time. Então, se agarravam
com o engenheiro-assistente.
Nesta época, o Atlético contava também com jogadores que se desenvolveram
dentro da própria empresa, jogando e trabalhando desde muito jovens. Um desses casos
era o de Antônio Manoel, o penúltimo dos 15 filhos do carreteiro José Antônio
Freitas
508
, que havia se mudado de Rio Pardo para a localidade de Minas do Leão em
1946. Antônio Manoel, primeiro, e Jango
509
, depois, seriam empregados na mina.
Antônio Manoel - Meu pai falou aí... tinha amizade aí com o pessoal e ele
conseguiu esse emprego pra mim. Naquele tempo, os caras botavam muita
gurizada pra aprender e tal e eu consegui o emprego. Com 14 anos, entrei
numa área de manutenção, com uma caixinha de ferramentas nas costas. E
trabalho até hoje com manutenção, sempre, sempre. Nunca saí do ramo.
Assim, Antônio Manoel começou a começou a trabalhar no DACM aos 14 anos,
em maio de 1954, como aprendiz na área de manutenção mecânica. Ele se transformaria
em goleiro do Atlético, embora a carreira de Leo como jogador ainda durasse muitos
anos. O irmão mais novo de Antônio Manoel, Jango, iria se dedicar mais ao futebol
varziano, em equipes criadas na periferia ou mesmo originadas de “rachas” dentro do
Atlético Mineiro FC, como o EC Poço Um (P1), ou atuando ainda no Comercial, no São
Cristóvão, e no time familiar União dos Freitas. Em pouco tempo, Antônio Manoel já
integrava o time principal do Atlético. Seu chefe na companhia, Cândido Francisco de
Oliveira, o encarregado de serviços gerais - que depois se tornaria também seu sogro -
era o próprio presidente do Atlético Mineiro FC, na primeira diretoria constituída em
1950, como indicam as atas do clube.
Antônio Manoel - Eu jogava no Atlético aqui. Só tinha um time aqui bom que
era o Atlético. (...) Olha, na época que nós tínhamos os times aqui, nós
tínhamos profissionais aí [jogando]. Se o cara era bom de bola, vinha por aí,
dava um emprego na CRM pra jogar bola.
Jango – Se o cara fosse bom de bola tava empregado ai.
- Mas quem tinha o poder na CRM de dar o emprego?
Antônio Manoel - Ah, os engenheiros aí, os chefes aí. (...) Eu vou te contar.
Em 1960, nós fomos campeões, naquela época era município de São
Jerônimo. Tudo era distrito: Butiá, Ratos, tudo era distrito. Então, o
campeonato era com todos esses municípios. Então tinha time aí... dez, 12
times... violentos. E nós fomos campeões! A CRM nos pegou: “se vocês
forem campeões”... Tinha e tem até hoje (...) em Tramandaí [no litoral] umas
casas lá pra veraneio. “Vocês vão poder ficar 15 dias em veraneio lá”. E 15
508
Ver item sobre a família Freitas no capítulo 4.
509
A trajetória profissional de Jango foi explorada no capítulo 3 e sua relação com os jogos, no capítulo 6.
374
dias.... Nós fomos campeões e mandaram todos os funcionários pra
Tramandaí na Colônia de Férias.
- Eles davam prêmios deste tipo?
Antônio Manoel - Tudo, tudo. Então... na terça-feira ò... na terça, largava pra
treinar, quinta, pra treinar... largava do serviço três horas da tarde.
-Então as chefias ajudavam...?
Antônio Manoel - Toda a vida. Quarta era pra fazer física..., sexta era pra
fazer física. Tinha preparador físico, um regime profissional mesmo. E
quando nós fomos campeões, botamos as faixas do Infanto do Internacional,
veio Falcão, veio Batista, vieram esses caras aí. (...) Vinham pra botar as
faixas, né. Mas os caras chegavam aí, querendo me levar, pra eu ir pro
Grêmio. Porto Alegre eu não conhecia. Eu fui conhecer Porto Alegre nas
primeiras férias. Mas eu era funcionário do Estado... [tinha estabilidade ali]
Eu jogo até hoje... Eu jogo bola e corro. E eles, os guris, têm que se virar
comigo. E vou fazer 70 anos, faltam dois anos. Eu tinha uma sacolinha, onde
eu tinha minhas botinas, minhas meias, minhas luvas [os acessórios de
goleiro], tudo. Quando eu fizer 70 anos vou pregar numa parede.
Neste período descrito por meus interlocutores, havia uma efervescência de
equipes compostas por trabalhadores das empresas de mineração. Um momento
privilegiado para as disputas eram os torneios realizados durante as comemorações do
1º de Maio, marcando de forma significativa essa dupla condição de mineiros-
jogadores. Durante algum tempo, Antônio Manoel chegou a atuar no Olaria, nos três
anos em que trabalhou como operário da São Vicente. Mesmo quem estivesse numa
empresa de mineração e jogasse no clube correspondente, como no caso de Butiá, era
assediado por outras empresas. Para que fosse jogar em outro distrito, Butiá recebeu
uma proposta de emprego do diretor de uma empresa de transportes coletivos. Ele
recusou. “’Não, eu tô bem aqui na firma, vou ficar aqui’. Basta que fiquei 18 anos na
mesma empresa”, contou-me numa entrevista realizada em 2007.
Alguns mineiros-jogadores que iriam integrar a equipe vitoriosa do Atlético em
1960 vieram de fora da comunidade para jogar e trabalhar, como o caso de Zé Medeiros
e de Teotônio. Outros tiveram uma trajetória similar à de Antônio Manoel, espécies de
“crias da casa”, como o meia-direita Carlitos, que havia ingressado na companhia em
1947, depois de ter solicitado vaga a um engenheiro da empresa. Carlitos nasceu na
localidade de Morrinhos, pertencente à São Jerônimo, numa família de 14 filhos, entre
os quais apenas uma irmã. Ele recordava-se que quando a família mudou-se de Butiá
para Minas do Leão, em 1940, já existia uma vila, construída pela Companhia Nacional
de Mineração e Força, de propriedade da família Matarazzo. Seu pai trabalhava em
florestas, na extração de madeira para ser utilizada na sustentação de teto de minas de
carvão. Depois, passou a trabalhar como ferreiro e Carlitos tornou-se seu “ajudante”,
375
aos 10 anos. Sua primeira função no DACM foi como aprendiz, “ajudante de artífice”.
Em 1948, saiu da empresa e retornou em 1951, sendo contratado como “artífice, 3ª
classe”, passando depois à função de eletricista em 1969, até chegar a encarregado da
parte elétrica, a mesma função que, anos depois, seria ocupada pelo filho, Beto Balão,
também jogador do Atlético. Carlitos tinha 15 anos quando atuou pela primeira vez no
Leão Futebol Clube, em 1949, equipe que antecedeu o DACM FC e que, por sua vez,
deu origem ao Atlético Mineiro FC, como dito antes. Chegou a fazer parte também do
Ponte Preta, uma dissidência do Atlético. Foi nestas partidas de futebol que ele
conheceu sua mulher, Terezinha. Ela contava que a paquera começou durante as
respectivas práticas esportivas: ele jogando futebol, ela, vôlei, na equipe da escola.
Algum tempo depois estavam casados: ela tinha 17 anos, ele, 19.
Durante quase uma década e meia, até os 29 anos, Carlitos jogou futebol nas
equipes vinculadas à companhia carbonífera. Com uma memória prodigiosa, lembrava
de detalhes da história dos clubes e, enquanto ia recitando de cor boa parte da escalação
do time do começo dos anos 1960, revirava no seu baú de guardados em busca de fotos
e da faixa do campeonato do “Centenário”. Ele destacava as disputas nas quais a equipe
amadora enfrentava clubes profissionais da segunda divisão.
Orgulho: Carlitos mostra a faixa de campeão
Carlitos - Eu jogava de meia-direita com a
camisa 8, o Antônio Manoel era o goleiro.
Jogava ainda o Adão Melão, o Aloísio,
Antônio do Xisto, Butiá, Ademar, Flitz,
Zoely, Ênio Vargas, Antenor, na ponta-
esquerda, Lucas, que era de São Jerônimo,
e Zé Medeiros. E nós fomos duas vezes
vice-campeões estaduais de amadores, em
61, 62. (...) Nós ganhamos do Guarani
510
aqui, empatamos com o Santa Cruz
511
,
vieram os aspirantes do Internacional, naquele tempo tinha os titulares e os
aspirantes, né, então vieram os aspirantes do Inter uma vez aqui. Nós
perdemos pra eles, de três a dois, mas chegamos a estar na frente deles. (...)
- Todos os jogadores trabalhavam na mina?
Carlitos - Todos os jogadores eram aqui do Leão e do Recreio, né, porque
isso era uma coisa só. No Recreio tinha um bom, que era o Butiá, não lembro
o nome dele, ele trabalhava lá na... tinha outra mina ali que era a São Vicente.
(...) Tinha o Butiá, tinha o... não vou lembrar todo mundo. Tinha o
510
Esporte Clube Guarani, de Venâncio Aires, clube profissional da segunda divisão do futebol do Estado,
criado em 1929.
511
Futebol Clube Santa Cruz, de Santa Cruz do Sul, clube profissional da segunda divisão, criado em
1913.
376
Tiburcinho, muito bom jogador. E tinha outro rapaz aí que não posso me
lembrar [provavelmente ele se refira a Eraldo].
- A maioria era mineiro?
Carlitos – Não, não. Mineiro mesmo que trabalhava no subsolo acho que não
tinha... acho que não tinha nenhum. Não, acho que o Ademar... [talvez]. Não,
tudo era em oficina, em oficina, escritório, o Zoely... [em almoxarifado], o
Aloísio era torneiro-mecânico. Era parte em oficina, almoxarifado e
escritório, a maioria, né. Podia ter uns dois da mina [que trabalhassem no
subsolo], não lembro.
Carlitos recordava-se que “vinha gente de Butiá, de tudo quanto era lugar” para
se candidatar a um emprego no DACM, “uma firma do Estado, que pagava em dia”,
enquanto que outras empresas do setor às vezes chegavam a atrasar os salários em dois
ou três meses. Nessa época, além do DACM, estavam em funcionamento a Mina de São
José e a Mina de São Vicente, ambas situadas do outro lado da rodovia federal, no
bairro do Recreio. Então, nesse contexto, a habilidade no futebol poderia ser o
passaporte para um emprego estável. Carlitos salientava que, quando começou a
disputar campeonatos, o time tinha uma preparação rigorosa.
Terças e quintas-feiras era dia de treino aqui no Atlético, e a gente fazia física
às quartas e sextas. A gente largava às cinco horas e vinha pra cá. Pra treinar
mesmo, treino com bola, é que eles largavam às quatro horas (...). Mas tinha
que estar registrado no livro de presença aqui na sede do Atlético. Aqui onde
era a prefeitura, aqui onde era antes a escola Horta Barbosa, tinha uma escola
deles só pra dar ensino técnico, tipo um... tinha um quadro negro (...), aí o
treinador ia pra lá e ... botava: “Ò, tu vai jogar nessa posição aqui”, “busca o
jogo aqui, busca ali” e tal. A gente já sabia o que tinha que fazer, se tinha que
jogar mais adiantado ou mais atrasado, nós obedecíamos religiosamente... [O
treinador:] “Sábado, vocês vão pra casa, vou pedir pra vocês... se tiver baile,
se tiver... se quiser dar uma saída na zona [do meretrício], coisa assim vão,
mas voltem cedo pra casa, não façam bobagem, porque vocês fizeram física,
fizeram tudo na semana e amanhã nós vamos jogar contra o Conde, que é um
enorme de um time, um baita de um time, então vocês têm que dar tudo. O
Atlético tem que ser campeão, nós vamos ser campeões!”.
Em 1959, o próprio jogador Butiá, um dos fundadores do Olaria, passaria a
integrar a equipe do Atlético. O reconhecido talento de Butiá fez dele uma moeda na
troca de favores entre duas empresas de mineração: a Mina de São Vicente e o então
DACM. Foi numa época em que o DACM prestava favores à São Vicente transportando
em seus caminhões matérias-primas compradas em Porto Alegre, tais como trilhos de
madeira. A reciprocidade inventada pelo “Doutor Alencastro”, da São Vicente, foi o
empréstimo do melhor jogador do Olaria para fortalecer o time do Atlético. Como
resumia Butiá: “O meu patrão mandava a gente jogar lá”, manifestando que outros
colegas, depois dele, como Eraldo, seu companheiro na fundação do Olaria, e Tibúrcio,
377
foram investidos dessa mesma missão de trazer glórias para o time adversário. Butiá
contava que um diretor do DACM (que ele chama de CRM, nome que adotaria depois)
foi procurar o seu patrão: “Olha, nós precisamos desse rapaz aí...”.
Aí eles chegaram lá no meu patrão, no ‘Doutor Alencastro’, né, aí subiram lá
e veio, veio o diretor ali da CRM, né, veio e falaram com... com ele. Tá... Eu
tava lá embaixo da mina e eles mandaram me chamar lá. “Vai lá chamar ele,
manda ele vir aqui no escritório”. Aí eu fui lá, larguei o serviço, quando
cheguei lá em cima tava a cúpula lá do Atlético e o meu patrão... Aí eu já
senti a maldade, né. (riso) Hoje vai dar..., né. “Então tá...” Eu: “Ah, doutor, eu
tô aí treinando, o senhor é que sabe...” “Não, tu vai ter toda a liberdade”. Mas
não era assim. “Se tu quiser jogar lá tu vai ficar à disposição deles, aqui tu vai
ficar liberado, a hora que eles
precisarem de ti, eles vêm aí, tu
tem toda a autonomia”. Então, a
hora que eles precisavam, por
exemplo, pra treinar terça e quinta,
eles precisavam quarta-feira,
entende, pra fazer preparo físico,
eles vinham aí, chegavam ali me
comunicavam e podia ser três
horas da tarde, que eu era liberado
do serviço.
Disputado: Butiá (à direita) foi
emprestado ao Atlético. Na foto, ele
aparece ao lado de Adalberto, filho de
Leo, também ex-jogador e ex-mineiro.
Por conta da decisão do diretor da São Vicente, Butiá ficou jogando no Atlético
entre 1959 e 1969, embora continuasse se reunindo com seu time do coração, o
Olaria. Mas estar vinculado ao Atlético tinha suas vantagens. Nesta época, a equipe
havia se convertido em amadora, de forma que integrar seu quadro seria uma
excelente oportunidade para aprimorar as qualidades de jogador. Butiá veria crescer
assim seu prestígio no futebol, na empresa e na comunidade. E até a condição
financeira melhorava um pouco, com as diárias pelos deslocamentos.
Butiá – E a gente saía, ganhava, e eles pagavam as nossas diárias, né.
Pagavam lá, e aqui na nossa ficha era corrida.
- Era como se tivesse trabalhado normalmente?
Butiá – É, normalmente. Se tivesse que... se nós pegássemos uma hora da
tarde, que a gente dobrava o terno, chegava às três horas da tarde eu tava lá
em campo. Aqui tava liberado.
Eraldo – No circuito estadual de amadores também, né. Viajava pra Santa
Catarina, aqui pra outros municípios aqui do Estado, né.
Butiá – Ia pras praias amanhã, quando vinha de lá tava com a folha limpa...
(riso) Tava tudo em ordem, não tinha falta nenhuma. Tudo direitinho. Era só
pegar o seu.
378
– Aqui no Olaria não era remunerado?
Butiá – Não.
Eraldo No Olaria, nós desembolsávamos dinheiro pra jogar, nós
comprávamos chuteira, pagávamos passagem. Se viesse um time de fora aqui,
de qualquer lugar, nós pagávamos o almoço. Cada um dava um quilo, dois de
carne, era tudo assim.
Butiá - Eu comecei em 1959 no Atlético, o primeiro campeonato foi em 1960,
né. Então, foi no fim de 1959 que eu comecei a atuar lá, depois em 1960 nós
fomos disputar o campeonato municipal. Naquele tempo, era São Jerônimo
que era a sede. O nosso futebol aqui na época era (...) um futebol assim tipo
profissional porque se nós jogássemos no domingo nós íamos posar
concentrados, sábado, todo mundo oito horas da noite tava lá jogando baralho
lá, na pensão ali embaixo, na Vila dos Engenheiros, então nós posávamos
todo mundo ali concentrado, a cada jogo, entende? Então, era a rotina assim
de um profissional, né.
Assim, a contratação de Ademar e o “empréstimo” de Butiá faziam parte da
preparação do Atlético para sua estréia como clube amador. Carlitos e Antônio Manoel,
recrutados anos antes, já faziam parte da equipe, assim como o centro-avante Zoely e
seus cinco irmãos jogadores, que entraram no DACM e no clube de futebol pelas mãos
do pai. Formando praticamente meio time, os irmãos Zoely, Elói, Anzen, Valdir,
Aloísio e Danilo eram filhos de um antigo funcionário das minas, respeitado tanto por
sua experiência e pela posição de encarregado de serviços gerais ocupada na
companhia, mas tamm por sua “autoridade”, fosse a de ex-delegado (como seu
irmão), fosse a do temperamento “violento”, muito identificado com o padrão de
masculinidade local. Cândido Francisco de Oliveira, Seu Candinho, foi também, como
já mencionado, o primeiro presidente do recém-fundado Atlético Mineiro “Football”
Clube
512
, em julho de 1950. Os seis filhos de Seu Candinho tiveram participações na
equipe de futebol e pelo menos cinco deles aparecem nas escalações do Atlético que
ficaram registradas em fotografias dos anos 1950 e 1960. O mais jovem, Danilo, chegou
a atuar como profissional no Clube Esportivo, de Bento Gonçalves
513
.
Esse grupo de irmãos jogadores já contava com o prestígio familiar na sociedade
local, mas o futebol, inicialmente, e os percursos profissionais, depois, permitiram a
individualização das trajetórias, com a obtenção de prestígio e de popularidade, para
além da condição de “filhos de Seu Candinho”. No caso de Zoely, haveria ainda o
delineamento de uma carreira exitosa na política. Zoely começou a trabalhar no DACM
512
Nas atas, o nome do time aparece, na verdade, com a grafia de Atlético Mineiro “Footbool Clube”, uma
mestiçagem lingüística entre o inglês e o português, mantendo-se vestígios da tradição ainda
preponderante de utilizar o termo estrangeiro, mas onde a fonética portuguesa levou a melhor.
513
Clube da segunda divisão do futebol gaúcho, criado em 1919, que chegou integrar a primeira divisão
nos períodos de 1970 a 1974, de 1976 a 1980 e de 1982 a 2005.
379
em 1952, aos 14 anos, como contínuo do escritório. Neste mesmo ano, estreava como
titular do Atlético, jogando como centro-avante, posição que manteria durante 15 anos.
“Eu era o capitão da equipe, então eu tinha uma ascensão muito grande na direção da
empresa”, relatava. Nessa condição, Zoely ajudaria também a prospectar talentos do
futebol da região para serem recrutados pela companhia. Depois de seis anos na
empresa, sempre no setor administrativo, mudou-se para Porto Alegre e foi trabalhar
numa fábrica de fogões. Seu objetivo era tentar jogar futebol profissionalmente.
Paralelamente à jornada diária, fez testes nas equipes do Internacional, do Cruzeiro e do
São José. Mas a sonhada virada na carreira não acontecia. No final daquele ano, recebeu
uma proposta do DACM para retornar a Minas do Leão: voltaria a jogar futebol no
Atlético e trabalharia na área administrativa da empresa. Ele relatava que, naquela
época, tinha 20 anos e pensava em se casar. Como estímulo para sua volta, recebeu um
emprego no escritório central e auxílio para construção da nova residência. Voltou e
reforçou a equipe do Atlético nas disputas de 1960, 1961 e 1962, quando o clube
conquistou os principais títulos. Mais tarde, ele passaria a ocupar o cargo de almoxarife
da companhia, mantendo-se nele até a aposentadoria, em 1991. Mas era um jogador
assediado por outras equipes. Em 1962, recebeu uma proposta do Butiá FC para que
fosse jogar na equipe e trabalhar na Copelmi, empresa privada de mineração que fazia
concorrência ao DACM – e cujo clube era um dos principais adversários do Atlético.
Antes de tomar uma decisão, o jogador foi procurar o presidente do Atlético, que lhe
perguntou: “Tu está precisando de alguma coisa?” Zoely explicou que estava se
preparando para o casamento. “Ele me deu um fogão. Foi inédito. Nós recebíamos do
clube, não em valores, mas em bens”. Com o estímulo, continuou no time. Era uma
época em que os campeonatos amadores da região levavam um grande público ao
estádio, mobilizando torcidas e intensificando o sentimento de pertencimento de cada
localidade mineira. Zoely me dizia que muitos daqueles jogadores recrutados nos anos
1950, 1960 e 1970 poderiam figurar em equipes profissionais, mas a possibilidade de
fazer carreira – ainda que estivesse presente na cabeça de vários deles - era bastante
difícil de ser viabilizada na época. O próprio deslocamento até a Capital, por exemplo,
demandava de seis a sete horas de viagem (o que hoje é feito em menos de duas horas),
pois não havia sido construída a ponte sobre o estuário Guaíba, de forma que era preciso
380
aguardar a barca para a travessia. Foi nesta época que a direção do DACM incentivou
diretamente o futebol e o bolão na localidade.
514
O futebol era a principal atração aqui em Minas do Leão. Nós
excursionávamos com 50, 60 pessoas, entre jogadores e torcida e tivemos
uma tradição muito grande de vitórias. Naquela época, pouco divertimento
havia por aqui: ou era a carreira [de cavalos], ou era o futebol. Eu nasci numa
família que já gostava do esporte. O pai foi presidente do Atlético Mineiro,
era também vice-prefeito de Butiá e depois foi subprefeito de Butiá, sempre
com uma ligação muito forte com a comunidade. Então, com 12 anos eu já
jogava futebol em equipes do segundo quadro.
O gosto pelo espetáculo do futebol não se limitava aos homens da família
Oliveira, que se revezavam na equipe do Atlético. As duas irmãs, Geni e Gedi, as filhas
de Seu Candinho, exerceram um tipo peculiar de parentesco ritual sobre o clube: foram
“madrinhas” do Atlético Mineiro FC e circulavam, cada qual em seu período, com o
Livro de Ouro, pedindo doações à equipe. As madrinhas eram eleitas com votação da
comunidade, conforme atestam as atas do clube a que tive acesso, e, ao menos uma
delas, Geni, aparece na foto oficial da equipe campeã do Centenário. A família Oliveira
estava no centro da agitada vida social de Minas do Leão. Outra irmã, Gedi, durante a
entrevista que fiz com ela, mostrou-me a foto do período em que foi rainha do Clube
Duque de Caxias. Essas duas irmãs casaram-se, posteriormente, com dois integrantes da
equipe do Atlético: Geni com o goleiro Antonio Manoel, e Gedi com o ex-ponta-direita
da antiga equipe Leão, Zé Custódio, o Zé Padeiro, que figura como treinador de uma
das equipes numa fotografia. Zé Padeiro,
assim como seu irmão Osvaldo, eram
filhos de um dos primeiros padeiros da vila
mineira. Por sua vez, Antônio Manoel,
como já foi mencionado antes, pertence à
extensa, unida e, por vezes, controvertida
família Freitas, que, além de dar nome a
ruas e praças, batiza a chamada
Vila dos Freitas, uma denominação
que não está no mapa, mas que foi
oficializada pelo uso.
515
Popularidade: Zoely conseguiu transferir
o prestígio do futebol para a política
514
Sobre a expressão dos campeonatos de bolão, ver o capítulo 6.
515
Ver o item sobre Família Freitas no capítulo 4.
381
Zoely herdou do pai não apenas o gosto pelo futebol, mas também pela política.
Quando fiz a primeira
entrevista com ele, em
2003, ocupava a cadeira de
prefeito de Minas do Leão,
já no segundo mandato,
com o primeiro tendo sido
inaugurado na emanci-
pação do município, em
1992. Ele atribuia o
começo de sua populari-
dade ao esporte: “Como eu
tinha uma liderança futebolística, o pessoal me convidou para ser candidato a vereador”.
Tinha sido, com efeito, vereador de Butiá por três gestões, numa carreira que começou
aos 26 anos, quando ainda era jogador do Atlético. Quando eu o entrevistei novamente,
em setembro de 2008, sua mulher era candidata à vereadora e ele, o cabo eleitoral.
Avaliava que, ao longo da trajetória, o prestígio que obteve como jogador – ao lado do
envolvimento em festas religiosas e nos movimentos sociais – contribuiu para sua
popularidade na política. Chegou a integrar a diretoria do sindicato dos mineiros, mas
foi na militância partidária que encontrou sua maior expressão, depois do esporte. Sua
atividade política se intensificou a partir de 1963, quando integrava a Ala Moça do PTB
local e foi convidado para ser um dos oradores na visita do então governador Leonel
Brizola à Butiá. Nesta época, Brizola percorria o Estado na tentativa de conclamar a
população a se organizar em grupos de onze – tais como em equipes de futebol – que
ficaram conhecidos como “Grupos dos 11” e cujo objetivo inicial era pressionar o
governo João Goulart a realizar mais rapidamente as Reformas de Base, mas que
compreendiam também a possibilidade de ações armadas para defender “as conquistas
democráticas”, “as liberdades ameaçadas” e a “soberania do país”.
516
Quando os G.11
516
Conforme pronunciamento de Brizola em 25 de outubro de 1963, feito pela cadeia de rádio carioca
Mayrink Veiga e registrado no Inquérito Policial Militar número 709, sobre ‘O Comunismo no Brasil’,
vol. 4, Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1967, p. 393. Neste discurso, Brizola utilizava metáforas
do mundo do futebol para explicar que mobilização considerava ser necessária: “Nós agora ingressamos
na fase em que precisamos trabalhar, atuar, agir em equipe. Passamos agora a entrar no campo para jogar
382
estavam ainda em fase de organização, foi deflagrado o golpe militar de 1964, e seus
integrantes foram perseguidos e presos.
517
Muitas vezes ouvi referências ao Grupo dos
Onze por parte de meus informantes na região. Uma dessas situações deu-se na
rememoração sobre os jogadores e treinadores do Atlético e do Olaria do passado. Meu
interlocutor apontou para a foto de Zé Custódio, ex-treinador do Atlético, informando
que “aquele ali tinha sido preso e torturado depois do golpe de 64”. Depois,
informações mais precisas davam conta de que Zé Padeiro teria sido um dos integrantes
do G.11 na região.
Neste grupo de jogadores do Atlético – que escolhi de forma um tanto aleatória
– havia certa coesão política, envolvendo filiações partidárias que passaram pelo MDB,
pelo PTB e, na maior parte dos casos, desembocaram no PDT, tendo em comum o ardor
pelas idéias de Leonel Brizola. Isso dizia respeito, ao menos, a Zoely, a Leo, a Carlitos,
a Butiá, a Eraldo, a Antônio Manoel e a Zé Cabeça, mais novo que os primeiros. No
caso de Carlitos, o interesse pela política foi anterior ao regime militar. “Fui muito
brizolista”, diz ele, lembrando que, com golpe de 64, temeu pela própria sorte.
Aí veio a Dops aqui, aí veio nas oficinas aqui [da companhia]... Aí veio...
Daqui [do distrito] levaram o Zé Custódio, preso, levaram o Procópio
Farinha, de Butiá, e mais dois de Butiá. (...) Vou dizer uma coisa: não me
levaram porque eu não tinha assinado... Naquele tempo tinha o Grupo dos
Onze... Aí foram verificar nos arquivos do município pra ver se eu era filiado
ao partido, se eu fosse eu teria ido preso também. Aí, depois, eu nunca mais
quis saber de política, nem... nunca mais.
Como foi mencionado no capítulo 5, Ademar fez outro percurso, longe das
paixões da política. Nos anos 1970, seguindo a opção de sua mulher, converteu-se à
a partida; até agora estávamos dando balãozinho; cada um podia fazer seu jogo individual, tomar suas
iniciativas e dar balãozinho à vontade; agora estamos em campo. O jogo, agora, é no campo; observem
que na hora da partida são onze jogadores, um só não adianta, nem dois, nem três; são onze jogadores,
precisamos agora agir, trabalhar, atuar, lutar em equipe. Então, quero pedir a todos os brasileiros patriotas
de todas as gerações, homens e mulheres de todos os recantos da pátria, das cidades, das oficinas, dos
escritórios e dos campos; organizemo-nos em equipe (...); procurem um grupo de amigos, companheiros e
formem um círculo, um grupo, uma unidade, cujo nome daremos depois a seguir; formem uma equipe.
Vamos formar um time de futebol com unidade de onze (...)”. Nos arquivos do IPM, a conclamação do
governador era acompanhada de “instruções secretas”, reservadas aos “comandantes regionais”, com
vários pontos, entre os quais esclarecia que o ideal seria procurar constituir Grupos dos Onze nas
categorias profissionais e evitar parentes consangüíneos e amigos íntimos. Num outro item, comparava os
G.11 à Guarda Vermelha da Revolução Russa de 1917. Na seqüência, havia instruções para a “ação
preliminar”, onde informava que “a escassez inicial de armas poderosas e verdadeiramente militares”
seria suprida “pelos aliados militares” na Guanabara, no Rio de Janeiro, em Pernambuco e no Rio Grande
do Sul. Num ponto intitulado “Tática Geral de Guerrilha Nacional”, mencionava que a greve geral seria o
“sinal inicial de que a massa operária está disposta à luta em qualquer terreno”. O documento orientava
ainda que “os companheiros dos Grupos dos Onze deveriam ter, cada qual seu pseudônimo, somente
conhecido de seu próprio grupo”, como nas demais organizações clandestinas.
517
Sobre a organização dos G.11 e o contexto político da época, ver Ferreira (2004).
383
igreja Testemunhas de Jeová, da qual ainda é pregador – decisão que teria impacto
profundo sobre suas relações de trabalho e de sociabilidade na mina e no cotidiano na
comunidade. Nos dois universos ele teve que enfrentar o preconceito e a zombaria
contra um mineiro “crente”, numa comunidade em que há uma referência identitária do
mineiro com o malandro. Na empresa, depois de um elogiado percurso como jogador,
Ademar se destacava pela disciplina e pela dedicação ao trabalho. Sua ficha funcional
registrava elogios ao comportamento “exemplar”
518
e promoções “por merecimento”.
Quando parou de jogar, em 1963, Ademar tinha ido trabalhar no subsolo da mina.
Passou de patrão de equipe a supervisor, até se aposentar, em 1986. Seu caso, como de
praticamente todos os outros deste grupo ligado ao DACM (depois CRM), parece
confirmar a contribuição do futebol para uma construção exitosa da carreira na empresa.
Conheci Ademar quando ele bateu à minha porta, em Minas do Leão, para divulgar a
igreja Testemunhas de Jeová. Depois, quando estive em sua casa, ele me contava, junto
com a mulher e a filha, que sempre enfrentou tranqüilamente as piadas feitas pelo fato
de ser “crente”: o sorriso constante no rosto e a serenidade que ele exibe são hoje
elogiados por antigos colegas da mina
519
que, na época, faziam troça da sua opção
religiosa. Esse não seria o primeiro estigma a ser vencido por ele. Criado pela mãe, que
trabalhava como doméstica - e sem conhecer o pai, num universo marcadamente
masculino -, teve de superar vários obstáculos até encontrar um trabalho que lhe
permitisse ser o arrimo
da família. Hoje, seus
quatro filhos completa-
ram o segundo grau –
dos três rapazes, um é
técnico metalúrgico e
dois são mecânicos.
Encontro: Ademar (à dir.),
com o amigo e vizinho
Oswaldo Custódio, irmão de
Zé Custódio
518
Um ofício assinado pelo engenheiro-chefe da mina, de abril de 1965, dizia: “Temos a satisfação de
comunicar que tendo em vista a aplicação e o progresso evidenciado por V.Sa, no desempenho de suas
funções, fostes promovido [sic] por merecimento, para a categoria de operário 2ª classe”.
519
Pude testemunhar comentários deste tipo.
384
De certo modo, na questão das origens, a traje-tória de Ademar é similar à de
Leo, que, como já foi men-cionado, era filho de uma lavadeira que foi abandonada pelo
marido com cinco filhos. Por ser o filho mais velho e o único filho homem, Leo
começou a trabalhar muito cedo para ajudar a mãe nas despesas da casa. Esses dois
casos configuram uma espécie de compromisso moral dos filhos homens com a mãe, já
referido por Salem (2006, p.18-19), em seus estudos sobre classes populares. A autora
mencionava que, na ausência de maridos ou companheiros, há uma transferência para a
figura do filho do amparo masculino que seria atribuído aos parceiros. Neste tipo de
relação, há uma espécie de complementaridade que visa compensar a ausência paterna.
De fato, meus dois informantes assumiram precocemente o papel de provedores do lar
nas questões financeiras e tornaram-se espécies de “braço-direito” da mãe, ainda que as
relações hierárquicas se mantivessem, pois a figura materna, além da dedicação,
suscitava também a obediência e o respeito. Leo, muitas décadas depois, mantém ainda
o sentimento de obrigação em relação às irmãs. Segundo um dos filhos, ainda hoje ele
retira uma parte de sua aposentadoria para ajudá-las.
Quando Leo foi trabalhar no subsolo da mina, já tinha conquistado a posição de
encarregado. Também no seu caso há elementos para supor que sua trajetória de
mineiro-jogador tenha contribuído para aumentar seu prestígio profissional. Na sua
ficha funcional, à qual tive acesso no escritório da companhia, havia elogios sobre os
“relevantes serviços prestados” por ele à companhia
520
. Como mencionado antes, sua
popularidade entre os companheiros de trabalho havia sido igualmente testada quando
ele venceu um concurso local para Mineiro padrão, cuja eleição dependia do voto dos
operários da mina. Atualmente, ele é uma espécie de “autoridade” local, sempre
sugerido para entrevistas sobre a mina, sobre o futebol e sobre o surgimento da vila
mineira. No final de 2008, me contava, bem-humorado, que, após ter sido entrevistado
num documentário televisivo sobre os mineiros-jogadores
521
, tinha se tornado “o maior
goleiro de todos os tempos na região”, pois não parava mais de receber troféus e
homenagens das equipes amadoras e de órgãos municipais. Depois de Seu Leo, um de
seus três filhos, Adalberto, também ex-mineiro, continuou a jogar no Atlético, imitando
o pai na posição de goleiro. “Naquela época, a nossa doutrina era substituir o pai. Eu
520
Uma anotação feita em abril de 1983 dizia: “Trata-se de pessoa que prestou e está prestando
inestimáveis serviços à CRM, sendo um exemplo de trabalho e dedicação”.
521
Documentário produzido pelo Sport-TV em novembro de 2007 e exibido em janeiro de 2008, do qual
participaram ainda Butiá, Eraldo e Carlitos. O documentário baseou-se em minha pesquisa sobre a
existência de mineiros-jogadores em Minas do Leão, abordando a rivalidade entre as equipes das minas.
385
jogava na linha e, quando o pai parou de jogar, eu passei para o gol”, contava o filho de
50 anos, hoje presidindo o Conselho Municipal de Desporto. Por sua vez, o filho de
Adalberto, Orieuglas (o sobrenome Salgueiro, da avó, ao contrário), chegou a tentar
uma carreira de jogador profissional no Internacional e acreditava que não foi aprovado
“por falta de apadrinhamento”. O jovem havia se destacado em equipes da segunda
divisão, mas preferiu investir em sua formação técnica em mecânica industrial do que
insistir numa carreira “incerta” de jogador. Com pouco mais de 20 anos, ele trabalha
numa metalúrgica de Porto Alegre como operário especializado.
Antônio Manoel, como Ademar, também foi tocado pela religião. Mas o ex-
goleiro do Atlético se converteria a uma religião evangélica bem mais tarde, após a
aposentadoria, o que provocaria uma ruptura profunda com o ideário da malandragem
que ele – assim como o irmão Jango – exibiam anos antes. Desde o episódio em que,
garoto, tendo acabado de ser expulso da escola, escapou passando entre as pernas da
professora que estava parada na porta, até a sucessão de advertências por
“insubordinação” e “indisciplina” na sua ficha funcional na companhia, o percurso de
Antônio Manoel é recheado de histórias antológicas. Com uma aparência ainda de
“galã”, como dizia um de seus sobrinhos, aos 68 anos, ele já colecionou aventuras de
vários tipos. Atualmente, seus interesses estão muito distantes de todo esse aprendizado
de irreverência que ele levou a vida a refinar. No caso dele não foi o disciplinamento
exercido sobre o time de futebol ligado à companhia que mudou a sua disposição
rebelde, nem o casamento, nem uma carreira bem sucedida na empresa como
encarregado de oficinas e manutenção. Foi, bem mais tarde, a conversão para a igreja
evangélica Sara Nossa Terra. Tudo começou quando seu filho descobriu, por acaso, a
sede da igreja, em Porto Alegre, justamente quando se dirigia para o clube Internacional
para fazer testes como jogador. Da primeira aproximação, as conversões familiares
ocorreram em cadeia: “A vida da gente passou a ser uma só família com a igreja”, dizia
Antônio Manoel. Ele e a mulher foram batizados juntos, as duas filhas tornaram-se
diáconas, o filho é pastor. Na companhia, Antônio Manoel teve uma carreira que durou
43 anos – ele continuou trabalhando 16 anos depois de aposentado. Parece-me que sua
trajetória de jogador contribuiu, ao menos parcialmente, para aumentar a tolerância da
empresa aos episódios considerados como de “indisciplina” e “insubordinação” que ele
teria protagonizado. Um conflito mais grave, ocorrido em 1970, resultou no seu
afastamento da empresa por quatro anos, quando ele foi trabalhar na Carbonífera
Alencastro, a antiga Mina de São Vicente, jogando futebol no Olaria. Retornou à CRM
386
em 1975 e, alguns anos depois, foi transferido para a Mina de Iruí. É preciso considerar
aqui, como mencionam trabalhadores, encarregados e funcionários do escritório, que,
em determinados períodos, principalmente durante o regime militar, a chefia da mina foi
ocupada por engenheiros com práticas ditatoriais, de forma que um episódio de
resistência do operário podia dar origem a uma série de “perseguições”, na forma de
advertências e suspensões. Em novembro de 1981, Antônio Manoel passou a ocupar a
função de encarregado do serviço de oficinas e de manutenção da mina de Iruí, e seis
anos mais tarde retornaria para Minas do Leão nesta função. No início de sua carreira,
esteve subordinado a Seu Candinho, o homem que seria seu sogro, tempo depois.
Eu trabalhava na manutenção... fazia manutenção (...) e ele era o encarregado,
o supervisor da produção. E eu aprontava com aquelas máquinas, e coisa,
fazendo arte. [E ele:] “Esse guri não pára!”. [E eu pensava:] “Eu sou arteiro,
sem-vergonha e vou casar com a tua filha!” (risos)
Como no caso de Zoely, também Eraldo, ex-zagueiro do Olaria, chegou a fazer
uma carreira política, tendo exercido o mandato de vereador em Butiá durante 16 anos,
parte desse período paralelamente ao futebol, ao trabalho na mina e às atividades
sindicais na entidade da categoria. Seu pai era ferroviário e chegou a participar dos
movimentos grevistas ao lado do líder comunista Procópio Farinha
522
, ainda nas
décadas de 1940 e 1950. Tanto Butiá como Eraldo se consideravam “brizolistas”,
partindo de tradições familiares que tinham apoiado o trabalhismo de Getúlio Vargas.
Por sua vez, Butiá estava na franjas de um dos Grupos dos Onze, que tinha a
participação de um capataz da mina São Vicente, Pedro Lima, o mesmo que auxiliou os
mineiros na questão da compra de um campo para o Olaria. Durante a entrevista que fiz
com ele e Eraldo, em 2007, Butiá mencionava a sua aproximação com o movimento.
Butiá - Aqui nós tínhamos o bloco... o grupo dos 11, né. O grupo dos 11,
então nós escapamos de levar um pau aí foi por tirinha, né. (riso) Nossos
cabeças, nossos chefes ali (...) quando estourou mesmo essa revolução de 64,
então através do... do Pedro Lima, né, que era o ... [capataz da mina e líder
local do movimento]. Então, ele tinha aí um contato com outros, não me
lembro se eram de Butiá ou... e aí conheciam o armamento, né. Então, nós
tava com os armamentos tudo à disposição, né, porque se tivesse que ir pra
luta a gente ia. E nós éramos... não fazia muitos anos que a gente tinha
deixado o quartel, ainda tava com malabarismos... (riso) Mas a gente tava
também sujeito todo momento a ser cassado, né, a ser pego, e se eles me
pegassem também faziam o que fizeram com o Zé Custódio. Nele baixaram-
lhe o pau, né. O Zé apanhou. Judiaram bastante dele. (...)
- O que era o Grupo dos Onze aqui?
522
Como foi mencionado no capítulo 2, Procópio Farinha, agente da viação férrea na Estrada de Ferro do
Jacuí, liderou várias greves na região mobilizando ferroviários e mineiros. Militante do PCB, ele foi preso
político pelo regime militar em 1964 juntamente com Gerino Lucas.
387
Butiá - Era um reforço assim dentro do partido, né. O Marino foi prefeito [de
Butiá] em 1964, 63, né, 64 ele assumiu e tava naquela lenga-lenga pra não
deixarem ele assumir, que tinha um capitão lá de Porto Alegre... [Os militares
ameaçavam impedir a posse]
– E vocês tiveram alguma participação nesse Grupo dos Onze?
Butiá – Dos 11, nós tinha dois aqui na época. Um era o Pedro Lima e o outro
era o Zé Luiz, que eram os cabeças, né. Eles só nos comunicavam: ‘Olha”....”
E na hora que nós íamos participar, né...
Eraldo – O Zé Luiz era irmão do Pedro Lima.
Butiá - Eram irmãos os dois, né. Então eram eles que coordenavam isso, lá no
Butiá, né, coordenavam com os caras lá e... O Grupo dos 11 era pra nós ir a
favor do Brizola, nós ia brigar aí. Pelo menos era a idéia deles, se agarrar no
facão, no zinco, né. (risos) Mas, graças a Deus, nos escapamos... [da prisão]
– Não aconteceu?
Butiá - Não aconteceu. Quando começou mesmo, o Exército veio...
Outros ex-jogadores do Atlético tinham mencionado a trajetória de Zé Padeiro,
falecido anos antes, referindo tanto as suas artes no futebol como a sua coragem na
política. Aos poucos, fui percebendo que vários fios ligavam esses mundos. Pena que eu
não soubesse ainda o valor daquela informação, quando ouvi: “É, ali na sede do Atlético
Mineiro tinham ficado os documentos desse ‘Grupo dos Onze’”. Eles não tinham,
portanto, apenas o futebol e a mina em comum: estavam ligados por afinidades políticas
e por laços de parentesco. Tentei conhecer mais da trajetória de Zé Padeiro através de
seu irmão, Osvaldo, e da viúva, Gedi.
“O Zé jogava muito, era tipo
Garrincha, de driblar muito, de
deixar a pessoa no chão. O Zé
era um Garrincha pra driblar”,
me contava o irmão Oswaldo
Custódio, também ex-padeiro e ex-jogador. Ponteiro-
direito de um dos times que deu origem ao Atlético
Mineiro, o Leão Futebol Clube, Zé Padeiro chegou a
fazer treinos no Internacional de Porto Alegre, em
meados dos anos 1940, no intento de tornar-se um
Craques: Zé Custódio (à direita) e Carlitos
Recordações: Zé Custódio e sua mulher, Gedi, na vida social
388
jogador profissional. Desistiu da carreira e voltou a Minas do Leão, tornando-se mais
tarde treinador do Atlético. Quando falava da criatividade e da irreverência do irmão,
Oswaldo dizia: “O Zé botava o Garrincha no bolso!” O time do coração de Zé Custódio,
o Zé Padreiro, era, na verdade, o Grêmio Futebol Porto-Alegrense. Quando o Grêmio
ganhava um campeonato, ele pegava sua camioneta e saía pelas poucas ruas de Minas
do Leão fazendo buzinaços e distribuindo doces às crianças. Oswaldo recordava-se que,
depois de desistir de tornar-se jogador profissional, Zé Padeiro foi servir no quartel e lá
teria contraído um problema dermatológico que fez seu cabelo cair rapidamente. Passou
então a usar uma boina para jogar futebol nos campeonatos da região, mas o novo
figurino impedia que ele exibisse em campo as acrobacias de que era capaz com a bola,
preocupado que estava com a exibição de sua incipiente calvície. Assim, foi perdendo
popularidade em campo.
Em um lance com a bola, se ele perdia a boina, ele ia atrás da boina ao invés
de ir atrás da bola, o que provocava as vaias da torcida. (...) Depois, ele
comprou uma peruca, dormia com a peruca, penteava pro lado, não tirava pra
nada. Ele era muito divertido, muito inteligente.
A comparação da sua irreverência e habilidade no futebol é apenas uma das
facetas que aproximam Zé Padeiro da biografia do célebre Garrincha (guardadas as
proporções entre a condição de amador do primeiro e a carreira consagrada do
segundo). Pode-se considerar também a origem popular de ambos – um padeiro de
profissão e um jovem operário de fábrica têxtil
523
- e a incorporação do carisma da
malandragem, do jogo de cintura, de um talento tão sedutor quanto provocativo, capaz
de atrair mulheres, de fazer amigos e inimigos. As coincidências com Garrincha não se
limitavam ao drible imbatível no futebol e à irreverência na vida cotidiana. Zé Padeiro
era dado aos excessos, inclusive no consumo de bebidas alcoólicas. Segundo a viúva,
Gedi, nos últimos anos de sua vida o marido foi bebendo cada vez mais, desafiando uma
cirrose hepática, e sua morte – tal como a do jogador - foi ocasionada pelos efeitos do
alcoolismo. Quando estive em sua casa, ela contava que vinha sonhando muito com o
marido. “A gente se adorava”, disse-me. Parece que nem a vida desregrada de Zé
Custódio, como sua morte, quebrou o encantamento entre eles.
Apaixonado pelo futebol, mas também pela política, Zé Padeiro era brizolista,
fiel às suas convicções e militante obstinado. Oswaldo nunca soube ao certo se o irmão
chegou a fazer parte realmente de um Grupo dos Onze, porque tais informações eram
523
Sobre a trajetória de Garrincha, ver Leite Lopes & Maresca (1992).
389
mantidas em segredo na família. Mas o certo é que as suspeitas de ser um integrante da
organização pairavam sobre ele e Zé Custódio foi preso logo após o início do regime
militar, em 1964. Passou cerca de 20 dias encarcerado, na mesma época em que foram
detidos o mineiro Gerino Lucas e o ferroviário Procópio Farinha Vieira. Quando
contava episódios da vida do irmão, Oswaldo explicava que muito dos interesses que
tornavam Zé Padeiro um homem carismático e popular também faziam dele um alvo
privilegiado de adversários.
O meu pai era muito de Getúlio Vargas, do PTB, e o Zé seguiu esse mesmo
caminho, de ser muito do Brizola. Ele era muito fanático. Ele vinha na Rádio
Butiá falar. (...) Ele arrumava muitos inimigos por causa do futebol e da
política. Primeiro por causa da política e, depois, do futebol.
Zé Custódio chamava a atenção: era provocativo, exuberante. Ao sair de casa,
colocava o revólver na cintura, sempre à mostra, e na rua saía gritando para comemorar
as glórias de seu time ou as vitórias do seu partido. Num meio e numa época em que a
“provocação” e o “estranhamento” constituíam-se em fontes geradoras de inimizades,
ele teve suas posições políticas contrárias ao governo militar denunciadas à polícia por
um fornecedor da padaria da família, que fez publicamente a apologia de seu gesto.
A pessoa que denunciou o meu irmão vendia fermento para a padaria. “Eu
denunciei o Zé Custódio, ele merecia”. Ele contava isso aos outros como uma
grande vantagem... Era representante da Fleischman. E, no fim, ele morreu
ligeiro, bem antes do que meu irmão.
Zoely, por sua vez, lembrava que seu cunhado, Zé Custódio, morava em São
Jerônimo quando integrou um destes grupos ligados a Brizola, ao mesmo tempo em que
ocupava a função de secretário da executiva do PTB. Relatava que, quando estourou o
golpe de 1964, “ele foi preso por pertencer ao Grupo dos Onze”.
O mais jovem do grupo que escolhi, Zé Cabeça, hoje com 62 anos, também teve
sua passagem pela política local: militou no PTB e depois no PDT. Chegou a ser
candidato a vereador por esse partido e foi titular da secretaria de Obras numa das
gestões de Zoely na prefeitura. Ele havia ingressado no Atlético Mineiro FC ainda aos
13 anos. Como Ademar e Leo, Zé Cabeça não contou com a presença paterna, ao menos
não do pai biológico. Órfão de pai aos dois anos, foi criado pela mãe e pelo padrasto,
mineiro do DACM. Como foi mencionado antes,
524
ele começou a jogar e a trabalhar
na mesma época, aos oito anos. Tinha começado aos 13 a jogar na equipe do Atlético e,
524
A trajetória profissional de Zé Cabeça foi relatada no capítulo 3.
390
quando seu padrasto conseguiu uma vaga para ele como aprendiz do DACM, dois anos
depois, ele continuou a jogar no time. Elogiado como um dos melhores zagueiros da
região, Zé Cabeça pensou em tentar uma carreira profissional no futebol. Planejava
fazer testes no Grêmio e no Internacional, incentivado por um empresário local que
transportava carvão. A idéia era aproveitar para isso a licença médica decorrente de um
acidente na mina quando quebrou um dedo da mão. Mas, uma série de circunstâncias,
como a dificuldade de deslocamento a Porto Alegre, impediram que levasse o projeto
adiante. Como já tinha 22 anos, acabou desistindo. Em seu relato, dizia que depois se
arrependeu de não ter perseverado no projeto, especialmente quando via profissionais
que eram “uns pernas-de-pau” jogando em clubes profissionais. Devido a um problema
no joelho, parou de jogar aos 26 anos. Na empresa, percorreria as funções de ajudante
de madeireiro, sota, patrão de galeria e encarregado, até chegar a supervisor. Mais tarde,
voltou a jogar futebol entre veteranos e foi um dos idealizadores do time da família, os
Fonseca. De um temperamento considerado “esquentado”, na juventude, Zé Cabeça
chegou a integrar o grupo dos “valentes” do Leão, participando de brigas de rua. Mais
tarde, na companhia, envolvia-se freqüentemente em conflitos com a hierarquia. Assim
como no caso de Antônio Manoel, parece-me que o talento de Zé Cabeça no futebol
ajudou na construção de uma carreira na empresa, bem como permitiu certa tolerância
patronal aos episódios de conflitos nos quais ele se viu envolvido.
Todos esses mineiros-jogadores começaram a atuar nas equipes das minas ainda
na adolescência – entre os 13 e os 20 anos. A prática esportiva num clube de empresa
durou, em média, uma década e meia, com as exceções de Ademar, que ficou quatro
anos no time, e de Leo, que permaneceu por mais de 20 anos
525
. De todo modo, um
engajamento que marcava o início da carreira profissional e que teria conseqüências em
sua ascensão. Desse grupo, três eram filhos de operários ou de encarregados de
companhia de mineração - Butiá, Zoely e Zé Cabeça, ainda que este último tenha sido
criado pelo padrasto, também mineiro. Ademar não chegou a conhecer o pai e Leo não
fornece muitas informações sobre o seu pai, que também teria sido mineiro. O pai de
Antônio Manoel era carreteiro, o de Eraldo, ferroviário, o de Carlitos, trabalhava “em
mato”, e o de Zé Custódio, padeiro. Desse grupo, a maioria tinha feito uma escolaridade
até o 3º ou 4º ano primário, como no caso de Leo, de Carlitos, de Antônio Manoel, de
Butiá, de Ademar e de Zé Cabeça. Segundo o irmão Osvaldo, Zé Custódio também não
525
Leo me contava que jogou futebol pelo menos até os 54 anos de idade.
391
concluíra o 1º grau. Eraldo, por sua vez, tinha cursado o ensino fundamental. Zoely era
uma exceção: tinha o segundo grau completo. Mas ele fez os seus estudos em dois
momentos. Aos 14 anos, após acabar o 1º grau, tinha se dedicado ao trabalho e ao
futebol. Voltou a estudar 20 anos mais tarde, aos 34, em meio a uma carreira política,
formando-se num curso técnico de contabilidade aos 38 anos. Em relação aos
descendentes, verifico que houve um alongamento da escolaridade. Dos três filhos de
Leo, os dois passaram pela mina não concluíram o primeiro grau, mas o filho músico
cursou o ensino médio. O filho de Carlitos, Beto, fez uma formação técnica de nível
médio e atua como encarregado da parte elétrica, mesma função ocupada pelo pai no
passado. Os filhos de Antônio Manoel cursaram o ensino médio; assim como os de
Ademar. Os filhos de Butiá, criados pela mãe, não concluíram o primeiro grau. Dos
filhos de Zoely, o rapaz não concluiu o 1º grau, enquanto que a moça formou-se em
Direito. No caso de Zé Cabeça, dois dos três filhos tinham chegado ao nível superior.
Das heranças no esporte, os filhos de Leo, de Carlitos e de Zoely tinham jogado ou
continuavam jogando futebol, defendendo, como os pais, a equipe do Atlético.
Para alguns mineiros-jogadores, os ganhos foram mais simbólicos do que
financeiros, porque uma carreira ascendente na hierarquia da mina não estava ao
alcance de todos e sempre dependia da combinação com outras variantes. Mesmo assim,
a popularidade conquistada pelo esporte se somava a outras, mostrando quantas
ascensões sociais eram possíveis, principalmente para aqueles que não contavam com o
status familiar. Como mencionado, alguns tiveram participações no sindicato, outros se
embrenharam na política, tornaram-se líderes religiosos ou ainda, vencendo
simbolicamente todas as dificuldades para o acesso à escolaridade que esse ingresso
precoce no mundo do trabalho representava, receberam um título, o tratamento de
“professor”, como homenagem perpetuada à maestria de quem se empenhou em
transmitir da arte à técnica do futebol, passando pela ética, como no caso de Butiá, nos
seus tempos de treinador tanto do Atlético como do Olaria. Quando o escuto narrando
os detalhes dessa vida vivida no enfrentamento das dificuldades – sempre o supremo
drible -, com o riso aberto e a postura de quem incorporou certa aura de nobreza do
esporte ao cotidiano de operário simples que vive numa casa de madeira pré-fabricada,
em frente a uma rua de terra batida, penso que se trata mesmo de um “professor”. No
caso dele, o estranho no ninho, que não era empregado da CRM, as vitórias foram mais
simbólicas do que econômicas. O futebol propiciaria a Butiá, criado no desprezado
bairro do Recreio, circular com desenvoltura em meio ao grupo do “Centro”, sendo
392
respeitado e assediado por diretores da CRM e pelo comando do Atlético – e, como os
outros jogadores, ser lembrado por seus talentos.
7.3.1 Do episódio em que a disputa descambou em violência
Butiá, do Olaria, viveu tempos gloriosos no Atlético, ainda que sua condição de
“estranho” nunca tivesse sido completamente esquecida. Em algum momento, a
hostilidade por ele ser vinculado ao time rival, iria aflorar. Ao “aposentar-se” como
jogador, aos 29 anos, foi treinador do Atlético e aí viveu um episódio do qual não
gostava de se lembrar. Expulsou de campo um jogador por indisciplina e, dias depois, à
saída do estádio deparou-se com um amigo do jogador, o mineiro Zé Ratão, que,
armado com uma faca, questionou-o provocativamente sobre a expulsão. Butiá tentou
não dar conversa: o que havia acontecido dentro do campo ficava lá. A resposta não
convenceu o provocador. Butiá me contava que só não foi degolado quando Zé Ratão o
atacou com o facão afiado porque foi ágil em girar o corpo e desviar o golpe. Nos
desdobramentos, no entanto, o agressor – pertencente à mesma agremiação - acabou
atingindo, com extenso corte no ombro, o próprio presidente do Atlético, Alvim Zomer.
Eraldo, companheiro de trajetória de Butiá fornecia a chave explicativa para tamanha
hostilidade: “O pessoal não aceitava [ele treinando o Atlético] porque ele era do Olaria”.
Butiá - Então, ele [Zé Ratão] ia pra rua mesmo [da CRM]. Então, foi onde...
onde nós passamos uns momentos meio ruins. Depois, no Olaria aí, quando
nós fomos campeões, nós fomos campeões umas três ou quatro vezes aqui no
Olaria, e um dia ele tava ali: “Báh, Butiá, me desculpa...” Ele veio me pedir
desculpas.
Eraldo – Na época, a coisa foi mais rivalidade com o Olaria, com o Recreio,
né. Ah, tinha rivalidade, até porque o Butiá jogava aqui, vinha fazer treino
com o Olaria antes de ir pra lá, então eles não aceitavam essa coisa, né. Um
pouco foi isso aí, não aceitavam, tinham uma rivalidade muito grande com
nós aqui.
– E aí vocês retiraram a queixa pra ele voltar a trabalhar?
Butiá – Pra ele voltar, nós retiramos a queixa. Se não, ele não voltava. Acho
que foi com isso que depois ele veio me agradecer.
Em 1969, as atas do clube registravam em detalhes o episódio de violência
526
e
as medidas adotadas: a expulsão do agressor dos quadros associativos, posteriormente
revogada. Na ficha funcional de Zé Salgueiro na CRM, constava a carta de aviso prévio,
demissão esta que não chegou a se consolidar porque os agredidos retiraram a queixa,
sensibilizados pelo apelo de um dos irmãos de Zé Ratão sobre o drama uma família
grande, com sérias dificuldades financeiras. Cito um pequeno trecho da ata do clube:
526
Cf. ata do Atlético Mineiro FC, de 19/10/1969.
393
(...) Em vista do acima exposto, resolveu esta Diretoria, por unanimidade dos
presentes, punir com a pena de “eliminação”, de acordo com os Estatutos
Sociais, os associados Teobaldo Antônio Luiz e José Salgueiro, do quadro
social desta sociedade, devendo os mesmos ser [sic] comunicados por ofício
esta deliberação. Também deverão serem [sic] comunicadas as Sub-
Delegacias desta Mina e os empregadores dos referidos associados. (...)
Desdobramentos deste fato vão aparecer nas reuniões seguintes do clube, em
janeiro de 1970
527
, em que um dos assuntos tratados foi a proposta para sócio de Jorge
Luiz Vargas, que foi rejeitada “tendo em vista que o referido senhor foi participante da
agressão sofrida pelos Srs. Alvim A. Zomer e Antônio Geret, presidente e ex-treinador,
respectivamente”. No ano seguinte, quando a diretoria já havia sido mudada, com a
vitória de uma chapa de oposição, era debatido o pedido dos três associados expulsos
em outubro de 1969 – José Salgueiro, Teobaldo Antônio Luiz e Jorge Luiz Vargas
528
-
que desejavam voltar a participar da entidade. Após uma votação, com 11 votos a favor
e cinco contra, a diretoria decidiu que eles poderiam preencher suas propostas de sócios,
mas que haveria nova avaliação do caso.
Depois desses episódios, Zé Ratão, considerado um dos “valentes” da
localidade, não interrompeu sua disposição de “peleador”, como relatava Aldonês, um
de seus filhos. Mais de uma década depois, o mineiro - que tinha sido jogador do Ponte
Preta e que ainda seria, posteriormente, presidente do Atlético - participou de outras
confusões por causa do futebol, algumas com caráter mais cômico do que trágico.
Acho que foi lá no campo do Butiá [FC, da cidade de Butiá] essa história...
Ah, nessa época, eu era pequeno, tava eu, meu irmão, que hoje é falecido, o
Vavá, a Tânia, minha irmã, e o Toquinho, meu cunhado, o Toquinho
borracheiro. A gente tava na arquibancada da torcida, era Butiá e Atlético.
Em volta do campo, tinha uma cerca, uma tela muito alta, e o Atlético estava
ganhando do Butiá, não lembro se era dois a um, e já tava terminando o
tempo, ia tocar os minutos pra terminar o tempo já, encerrar a partida. E
chutaram a bola, que era a única bola que tinha, que no campeonato é uma
bola só no futebol. Aí deram um chute pro lado lá e o pai pegou a bola e se
encerrou dentro de uma patente com a bola [risos], aí veio aquela turma
correndo lá, e delegado, e chegou um cara correndo pra pegar a bola dele,
resvalou e saltou nele, e já deu uma briga ali. E aí já saiu brigando o meu
cunhado, o Toquinho, saiu agarrado com um cara (...) Aí a polícia pegou o
pai daqui pra lá, o pai ainda mordeu um dedo do brigadiano. Aí depois se
aquietaram, depois liberaram, veio embora. Aí o pessoal queria pular a tela,
os jogadores tudo, eram muito... amigos dele, né, aí uns pularam, outros...
ficaram dentro do campo. Aí vieram uns que tavam lá, brigaram com os
527
Cf. ata do Atlético Mineiro FC, supostamente de 08/01/1970, embora tenha sido escrita como se fosse
janeiro de 1969, mas a seqüência dos fatos leva-me a considerar que o registro do ano tenha sido
equivocado.
528
Conforme ata anterior, parece haver um erro de precisão quanto ao terceiro interessado, já que haveria
um equívoco sobre este nome, já que ele não teria sido “expulso” com os outros dois, pelo fato de que não
era associado do clube.
394
caras. Aí depois se acalmaram. Aí terminou ainda com o Atlético ganhando:
dois a um, em Butiá.
As histórias protagonizadas por Zé Ratão ficaram famosas na cidade. As
“peleias” nas quais ele se envolvia, como conta o filho, eram normalmente motivadas
pelo futebol – e sua paixão pelo Atlético –, mas também atravessavam a sociabilidade
dos bares, das boates e dos clubes recreativos. Como mencionado antes, ele era um dos
integrantes do grupo do Leão nos enfrentamentos contra o grupo do Recreio.
Os episódios de violência estavam entre as preocupações da diretoria do
Atlético. Em várias atas, há pistas sobre conflitos envolvendo associados ou atletas da
agremiação.
529
O mineiro Alírio Martins Alves, cujo nome batiza o antigo estádio do
Atlético, teve uma trajetória de intensa dedicação ao clube, primeiro como jogador,
depois como treinador e, ainda, ocupando funções na diretoria. Respeitado pelo grupo,
ele aceitou o encargo de “diretor de disciplina” num momento em que o clube
preocupava-se com a eclosão da violência. Numa das reuniões da diretoria, em 1971,
Alírio anunciava renunciaria ao cargo “por não querer inimizades”, já que se repetiam
os episódios na sede do clube. Ele tinha chamado a atenção de alguns associados, mas
que estes “lhe responderam de maneiras incompreensíveis”
530
. Com o apelo do
presidente da entidade, Alírio ainda prosseguiu em suas atividades.
7.5 “ACIMA DE TUDO, VETERANOS DO ATLÉTICO”: A CONTINUIDADE
Atualmente, as equipes vinculadas às minas
restringem-se à categoria de veteranos – o que
parece ser uma espécie de reflexo não apenas
das dificuldades em manter um time “força
livre”, mas também da falta de renovação da
mão-de-obra mineira. Os atuais veteranos do
Atlético são de uma geração que, em meados
dos anos 1970, começou reunindo garotos
treinados por Adão Salgueiro. O ex-prefeito
Beto Pedalada, de 52 anos, ex-funcionário da
Copelmi, já mencionado antes, é um dos
integrantes da equipe. Foi no período em que
529
Cf. ata do Atlético Mineiro FC, de 04/11/
530
Ata do Atlético Mineiro F.C., de 22/02/1971.
Beto Balão: ele herdou do pai a profissão e
a paixão pelo Atlético
395
Adão era o treinador que Beto ganhou confiança para “inventar” a jogada que passou a
fazer parte do seu nome, um drible no qual o jogador passa o pé por cima da bola e bate
ao lado, surpreendendo o adversário. O próprio Beto Pedalada fez uma carreira na
política beneficiando-se de sua popularidade como jogador. Outro integrante da equipe
é Beto Balão, 50 anos, eletricista da CRM e filho do ex-jogador Carlitos.
Os veteranos do Atlético reúnem 42 associados que pagam uma cota mensal
para a manutenção do clube. Em 2007, o valor era de R$ 10. Deste grupo, cerca de 30
são vinculados à CRM, outros são ligados à Copelmi, de Butiá, ou têm outras
atividades. Os integrantes do Atlético ainda consideram como o principal rival, dentro e
fora do campo, o time de veteranos do Olaria: “Um não admite perder pro outro.
Podemos perder todos os jogos, menos contra o Olaria”, dizia Beto Balão, indicando a
continuidade da antiga disputa. Pude assistir a alguns “clássicos”, que por vezes
terminavam com o time perdedor xingando o juiz, os adversários ou os próprios colegas
por algum lance que teria provocado a derrota. Os jogadores do Atlético consideravam
que as partidas contra os Freitas, um time familiar, eram “mais amistosas”.
Um primeiro time de veteranos do Atlético havia sido criado em junho de 1973.
Na ocasião, o ex-goleiro Leo era o diretor de esportes, e na diretoria ainda havia outro
personagem conhecido: o mineiro José Salgueiro, o Zé Ratão, era o presidente. Leo e Zé
Ratão eram cunhados: Leo, hoje viúvo, era casado com a irmã do colega. Essa equipe já
tinha sido desativada anos antes quando, em abril de 1988, Beto Pedalada, Beto Balão e
outros fundaram o novo time de veteranos, mantendo as antigas cores nos uniformes:
preto, vermelho e branco. Até então, na categoria, só havia naquela comunidade a
equipe do Olaria. Beto Balão dizia que a idéia havia surgido entre companheiros de
trabalho: “A maioria do pessoal trabalhava na mina e aí começamos uma brincadeira de
jogar no domingo de manhã. A equipe foi começando, pegando o jeito, e aí surgiu o
time, do qual eu faço parte desde o primeiro jogo”. Fiz uma entrevista com alguns
jogadores da equipe do Atlético num bar da cidade, que é considerado seu “reduto”. Ali
eles narravam algumas das suas proezas, dentro e fora do campo. Como bons boêmios,
esses jogadores veteranos construíam sua imagem diante de mim como “rebeldes”,
“libertos” das amarras sociais - para quem a cerveja é o “sagrado”, como disse Beto
Balão. Suas confraternizações são feitas em encontros semanais “só para homens”.
Assim, uma marca que distingue este grupo daquele dos veteranos do Olaria, para além
das rivalidades em campo, é uma manifesta ruptura com o valor-família. Uma frase dita
396
de forma recorrente a companheiros que se mostravam insatisfeitos com a condução do
time era: “Não está contente? Então, vai pro Olaria, que lá tu vai jantar com a tua
mulher todo dia”. O suposto caráter “transgressor” do grupo encontraria eco nas suas
posições políticas – a maioria dos jogadores é, ainda hoje, vinculada ao PDT, alguns
estão no PT. Em nossa conversa, eles desfraldavam bandeiras em defesa da
individualidade, da autonomia dos projetos e dos lazeres, embora isso pudesse
reafirmar, de certo modo, a dupla moral para homens e mulheres, na ênfase dada à
liberdade masculina. O grupo reúne mineiros e ex-mineiros, funcionários da companhia,
como um engenheiro e um geólogo, além de alguns políticos locais. Em suas
manifestações, repetiam para mim que eram, “acima de tudo, veteranos do Atlético”.
Já entre veteranos do Olaria, time criado em setembro de 1979, há, ao contrário,
uma preocupação de afirmar a importância da família, realizando confraternizações com
a presença das mulheres e dos filhos. A maior parte dos integrantes do Olaria trabalhava
em outras atividades que não a mineração, embora muitos fossem filhos de ex-mineiros
da Mina de São Vicente e da própria CRM. Na falta de um time “força livre”, os
jogadores têm idades entre os 20 e 55 anos. Um deles, Chicão, vindo de fora do
município, esforçava-se para organizar a memória do grupo.
Eu cheguei aqui em 92, eu me casei com uma mineira (...). E chegando aqui eu
encontrei uma turma aí do Olaria, né, encontrei essa família, fui bem recebido, aqui
tô há 15 anos, fazendo parte de um pouco da história (...) que aqui eu ajudo a
resgatar, né, porque (...) o pessoal não guardava muito as nossas... a nossa memória,
né, porque o que não tem história, não tem passado, acho que ele fica meio assim...
o que a gente vai dizer: “Ah... mas qual é a história do Olaria?”
Chicão (esq.) e Alex, mais de uma geração no Olaria no “clássico” filmado pela TV.
Ao fundo, jogadores do Atlético
397
Chicão considerava que os veteranos do Atlético “são rivais”, mas são também
“amigos”: “É a dupla Gre-Nal, né, o clássico, a rivalidade. (...) O futebol também
sobrevive disso, né”. Ele relatava que muitos jogadores do Olaria que iam jogar na
equipe do Atlético acabavam retornando porque se identificavam mais com “os
princípios” da equipe formada no Recreio. O Olaria, segundo ele, seria “mais aberto”
em relação às posições políticas dos jogadores, naquele período com vários integrantes
vinculados ao PP - assim como havia jogadores ligados à Arena no antigo Olaria FC.
Meu interlocutor aproveitava a entrevista para alfinetar a equipe adversária, dizendo
que, no Atlético o poder aquisitivo era maior, porque o time havia nascido dentro da
CRM, “com todas as mordomias”. Um dos mais jovens jogadores do clube, Alex, de 24
anos, cuja trajetória eu relato no capítulo final desta tese, é filho de um ex-mineiro da
CRM. Como ele me contava, começou a jogar futebol numa escolinha montada em
torno da CRM quando tinha nove ou 10 anos e, nos últimos tempos, tinha passado a
defender a equipe do Olaria, que considerava ser seu time “do coração”.
7.5 FUTEBOL BEM FAMÍLIA: EQUIPES MOVIDAS PELO PARENTESCO
No contexto das equipes vinculadas às famílias, como ocorre em Minas do Leão,
parece haver uma combinação entre algo herdado e a escolha individual. Os times
nascem combinando um certo gosto pelo futebol transmitido de geração a geração com
uma representação do valor-família considerado como central. Se em geral pode haver
uma maior integração no interior do grupo de jogadores – já que, no passado, ao menos,
a equipe era formada por parentes que eram vizinhos, companheiros da mina e, muitas
vezes, compadres – também pode redundar em maior animosidade. O time União dos
Freitas diz respeito a uma família que, como foi dito, é considerada a mais numerosa da
cidade,
531
sendo que boa parte dos homens teve sua trajetória de trabalho ligada à
mineração. Como os integrantes dizem, “estranho não joga no time”. Mas isso não
significa que é preciso ter sangue Freitas (ou Flores ou outros ainda, considerados da
mesma família) para integrar a equipe – laços de parentesco adquiridos pela adoção
relações de afinidade construídas pelo casamento podem tornam os membros
“legítimos”. Como notava Ariovaldo, um ex-jogador da equipe: “Agora já está
misturado, casa com Freitas e colocam no time. Antes, não entrava”. Ele lembrava que,
531
Sobre a família Freitas, ver o capítulo 4.
398
quem começou a organizar a equipe foi Alfredo Freitas: “Era ele o mandão, tudo era
conforme ele queria”. O União dos Freitas surgiu como time principal em 1969, depois
foi interrompido durante algum tempo e retornou em 1978. Era formado por jogadores
da família que já atuavam no Atlético, no P1, no Charrua e em outras equipes. Para
Jango e Biscoito, dois dos fundadores, o preparo físico que a seleção dos Freitas exibia
em campo – tendo em determinada época jogado 36 partidas sem perder nenhuma,
inclusive contra equipes amadoras – estava relacionado ao trabalho na mina, em que o
mineiro precisava, em determinados trechos, andar agachado mais de um quilômetro e
fazer grande esforço físico. Assim, obtinham o “preparo espantoso”, a disposição para
“correr o dia inteiro atrás de uma bola”, como acentuava Jango. Essa característica, no
entanto, seria idêntica a outras equipes envolvendo mineiros. De acordo com meus
interlocutores, o gosto pelo futebol “não seria de sangue, não seria de herança”, como
ressaltavam, já que seus pais, agricultores ou carreteiros, “não sabiam o que era uma
bola”. Mas a paixão foi transmitida ao menos de uma geração a outra.
Família que joga unida: o vereador Paulo Freitas (de pé, de amarelo), ao lado de Marcelo, à
direita, e Cristiano (agachado, primeiro à esq.), são meus interlocutores
Depois de um período sem atuação da equipe familiar, em abril de 2003, um
grupo de filhos de mineiros fundou a atual Associação de Veteranos dos Freitas. O que
os integrantes consideram como vantagem num time deste tipo é que há uma ligação
mais forte no interior da equipe, que permite superar várias dificuldades. Ao mesmo
399
tempo, sua prática esportiva, ao invés de afastá-los da convivência doméstica, costuma
reforçar os laços de pertencimento, já que a família – noção que inclui também as
namoradas – é incluída nos divertimentos. Há traços de impulsividade que poderiam
reforçar o êxito de uma equipe, num contexto em que a “raça”, a “combatividade”, a
disposição de “não levar desaforo pra casa” pode fazer a diferença em campo. É,
também, em outro sentido, um time “familiar”, considerado “bem educado” pelos
adversários. Contudo, um “amistoso” a que assisti entre os veteranos dos Freitas e os do
Olaria havia terminado em xingamentos, socos e duas expulsões.
Quando comentei com integrantes do time dos Freitas sobre o encontro no bar
que tive com os veteranos do Atlético, um deles resumiu: “É, nós já somos 'mais
família'”. Essa noção se prestava a dois sentidos: a) Há uma dimensão moral,
relacionado aos valores, hábitos de lazer e práticas que, no caso dos Freitas, acabam por
aproximar o universo masculino, do futebol, ao universo familiar, ao lar; enquanto que
no caso do Atlético esses espaços parecem ser apartados, opostos, com os eventos “só
para homens”, liberados da vigilância doméstica e escarnecendo as regras sociais – com
uma relação de descontinuidade entre família e futebol; b) A afirmação também diz
respeito ao elemento fundador de tais empreendimentos: num dos casos um projeto de
uma família – envolvendo várias “assinaturas”: Freitas, Flores, Oliveira, Rosa, Alves e
suas combinações; o time dos veteranos do Atlético surgiu em torno da atividade de
mineiros, ao redor das companhias, um mundo masculino. È possível notar, porém, que
em mais de uma geração houve intercâmbios entre as equipes das minas e das famílias.
As famílias Fonseca e Braga-Salgueiro também criaram seus próprios times,
paralelamente à atuação de seus jogadores em equipes vinculados às minas ou mesmo,
em alguns casos, em clubes profissionais. Com alguns integrantes que passaram pelo
futebol profissional, os Fonseca, de Butiá, impunham respeito aos adversários varzianos
por sua qualidade de jogo. Também são evocados como “time dos morenos”, já que
grande parte dos seus atletas é negra. Zé Cabeça, que atuava como zagueiro no Atlético,
foi um dos incentivadores da equipe familiar. Segundo ele me contava, o principal
campeonato acontece no âmbito de uma festa familiar anual, com a partida sendo
realizada nos campos do Butiá FC ou do Brasil FC. Entre os jogadores que se
profissionalizaram estão Flávio Fonseca, que jogou no Internacional, e depois foi atuar
num clube paulista; e Luís Carlos Fonseca, ex-atleta do Santa Cruz (RS).
400
No caso da família Braga-Salgueiro, a tradição do futebol remonta à década de
1940, quando alguns dos homens desta família tornam-se mineiros por serem talentosos
no futebol, como o caso de Leotilde Braga, o goleiro Leo, citado anteriormente. Na
primeira geração de Salgueiros jogadores, estavam Adão, José (o conhecido Zé Ratão),
Ramon e João, todos eles operários da mina. Menino que cresceu vendo os irmãos mais
velhos jogarem em times da mina, Adão se orgulhava de que, como treinador, tivesse
ajudado a desenvolver alguns talentos reconhecidos na região. Ex-jogador do Atlético e
do P1, ele foi um dos entusiastas e treinador do time dos Salgueiro-Braga, reunindo
filhos e sobrinhos numa seleção que considerava de “razoável a boa”. Depois de jogar
alguns anos no Atlético, Aldonês, 37 anos, chegou a atuar no time da família, jogando
com irmãos e primos. Ele me contava que, na equipe, havia preparação física pelo
menos duas vezes por semana e treinos rigorosos.
Aldonês –. Nós jogávamos (...) contra o time dos Wisniewski
532
, contra o
time da Charrua, lá no Butiá. Só não jogamos com os Freitas, com os Freitas
nós nunca jogamos.
- E por quê?
Aldonês - Ah, não sei por que eles nunca quiseram jogo.
- Teu pai e teus tios já jogavam no time da família?
Aldonês - Isso já vinha do tio Adão, né. Veio do tio Adão e do pai, até o
presidente do... Salgueiro era o pai, depois passou pro tio Leo (...).
– E aconteciam brigas no time?
Aldonês - Não, tinha alguma discussão, geralmente todo o time tem, não tem
time de futebol, de família, coisa, que não tenha alguma discussão. Mas
quando dava uma briguinha, o tio Adão já entrava no meio e já deixava uns
dias, dois dias sem jogar, que o tio Adão era muito... era muito rígido, sabe.
Ele queria uma coisa e tinha que ser aquilo ali, senão já ficava no banco [o
jogador], já não jogava. Podia ficar brabo com ele, mas ele sempre fazia isso.
7.6 EM BUSCA DA PROFISSIONALIZAÇÃO
Depois da geração dos mineiros-jogadores, entre os filhos de
mineiros se acendeu mais claramente o desejo de buscar a
profissionalização no futebol – que foi viabilizada em alguns
casos. O exemplo mais conhecido era o de Daniel da Costa
Franco, ex-lateral direito do Internacional de Porto Alegre nos
anos 90, quando o clube foi campeão da Copa Brasil, - e que
atuou ainda no Corinthians, no Bahia, no Athlético de Minas Gerais, e no FC St. Pauli,
da Alemanha, entre outras equipes. Daniel é um dos quatro filhos do ex-mineiro Bega e
da ex-operária de fábrica Maria, moradores de Minas do Leão. Bega me contava que
532
Ele enuncia, portanto, a existência de outro time de família, ligado a descendentes de poloneses na
região. Alguns jogadores com este sobrenome integram também o atual time de veteranos do Atlético.
401
havia trabalhado em condições extremamente precárias na antiga Mina da Coréia nos
anos 1950 e 1960. Ele começou na mineração aos nove anos, num tempo em que o
carvão era puxado por cavalos na superfície da mina. Aos 14 anos, começou a trabalhar
nas galerias, utilizando picaretas para extrair o mineral. Ocupou as funções de
madeireiro e de furador. Apesar de todo o sacrifício, dizia “não haver melhor profissão
no mundo do que a de mineiro”. Nos últimos anos, ele dirigia seu próprio caminhão
transportando carvão das minas. Bega e Maria eram evangélicos, mas consideravam que
andavam um tanto “desviados” da religião. A distração do ex-mineiro eram as carreiras
de cavalo, mas ele não perdia as notícias sobre o filho jogador, que tinha começado a
treinar no Internacional aos 12 anos. Considerado num momento o melhor lateral do
país, Daniel chegou a ser cotado para a Copa do Mundo de 1994. Depois da exitosa
carreira, ele afastou-se do futebol por algum tempo para cursar a faculdade de
Administração. Em 2007, voltou ao Beira-Rio como auxiliar técnico da categoria Júnior
do Inter e, paralelamente, começou um novo curso superior, de Educação Física. Seus
investimentos nos estudos foram além da média da sua geração de filhos de mineiros.
A trajetória de Daniel no futebol inspiraria as gerações seguintes. Depois dele,
André e Rodrigo, entre outros filhos de mineiros, tentaram uma carreira no Exterior,
mas voltaram para casa sem obter a esperada oportunidade de contratação. André tinha
começado a jogar ainda criança, alimentando o sonho de se tornar um jogador
profissional. Depois de atuar em equipes locais, algumas ligadas às minas, onde seu pai
trabalhou, passou pela categoria Júnior do São José, de Cachoeira do Sul (RS).
Incentivado por um empresário, foi tentar a sorte na Argentina. Lá, teve a possibilidade
de fazer testes no Boca Juniors, lembrança que ainda o emocionava: “Eu chego até a me
arrepiar quando eu falo porque... é um negócio que me toca. Fiz lá quatro treinos e eu
fiz seis gols”. Em função da regra dos quatro estrangeiros no time, ele não foi
contratado, mas viveu momentos que consideraria inesquecíveis, como o do lance em
que fez um gol com um passe do craque argentino Riquelme.
Depois disso, chegou a fazer testes também no clube argentino River Plate.
Não obtendo a sua “chance”, voltou a Minas do Leão em 2001 e continuou jogando nas
equipes locais, recebendo uma “ajuda de custo” a cada partida. Dois anos depois, com o
nascimento de sua filha, André desistiu de tentar a profissionalização. Entre 2006 e
2007, quando eu morei em Minas do Leão para a pesquisa de doutorado, fui vizinha
dele e de seus pais. Eles moravam na única casa com dois andares daquela rua, próximo
402
à Vila dos Freitas. Alírio, o pai de André, havia começado a sua vida como um
agricultor e, depois da aposentadoria na CRM, voltou a dedicar-se ao trabalho rural. O
ex-mineiro nunca jogou futebol. Ele e sua mulher, Guiomar, achavam que o filho
deveria desistir daquela carreira “incerta” como jogador e investir numa profissão mais
estável. Naquela época, André havia conseguido um emprego nas obras de implantação
de uma fábrica no município. Meses depois, ele recebeu uma proposta de uma empresa
terceirizada – pertencente a um ex-mineiro - que presta serviços a uma mineradora, para
que jogasse na equipe e trabalhasse na preparação das galerias da Mina de Leão II para
extração do carvão - repetindo, de certo modo, a prática que perdurou até os anos 1970.
Eu precisava do emprego e eles precisavam de um cara para jogar pra eles.
Eles me ligaram um dia, marcaram uma hora comigo para gente conversar
com o dono da empresa. E... eu fui lá, conversei com ele (...) e [ele] disse que
se eu jogasse com eles o campeonato, ele com certeza conseguiria emprego
pra mim, e foi assim que foi feito. (...) Eu tinha conhecimento que (...) que
muita gente aqui veio pra trabalhar na mina e jogar no time do Atlético. O
patrocinador era... era a mina, mas eu nunca tinha me tocado que isso
aconteceu há tantos anos atrás e aconteceu a mesma coisa comigo.
Como dizia Alírio, na última ocasião em que visitei a família, em setembro de
2008, esses “novos mineiros”, contratados por terceirizadas – como o caso de
André
533
–, enfrentam condições de trabalho bem mais penosas e precarizadas do que
as dos trabalhadores na CRM. Direitos como o de seis horas diárias para o trabalho
no subsolo não existem nessas empresas e os salários são bem inferiores aos pagos
pela companhia estatal. Esses “novos mineiros” não são nem mesmo vinculados ao
sindicato da categoria. Desta forma, André conseguiu um emprego, mas não o
mesmo prestígio, os privilégios e a possibilidade de ascensão profissional dos antigos
mineiros-jogadores.
533
E também o caso de Alex, mencionado antes, cuja trajetória profissional encontra-se no capítulo 8.
403
PARTE IV
DAS GERAÇÕES
Nascidos sob o signo da
mina: Zecão (esq.) e
Alex, abaixo, Jefferson,
Neca e Vanessa.
404
8 OS FILHOS DO CARVÃO
8.1 INTRODUÇÃO
Neste capítulo, a partir de trajetórias e narrativas de descendentes de mineiros,
reflito sobre as perspectivas de diferentes gerações
534
no que diz respeito à atividade
profissional e à escolaridade. Num dos relatos de quem seguiu o ofício do pai,
trabalhador nas minas, aparece o “gosto da mina”, nos dois sentidos explicitados na
introdução desta tese, e também o da “morte da mina” e dos dilaceramentos provocados
pela ruptura com a identidade interiorizada de mineiro de subsolo. Mais de um
descendente de mineiro, no entanto, conheceu desde a infância os males da mina, tanto
por meio de acidentes como de doenças profissionais que atingiram seus progenitores.
Se, para alguns, o mineiro poderia ser considerado uma espécie de “herói”, ou ainda, de
outro modo, alguém que se situa no fio tênue que separa a coragem da loucura diante
dos riscos que corre nas galerias subterrâneas, para outros seria antes o protótipo do
“anti-herói” – posicionado num lugar atravessado por ambigüidades e contradições.
Mina de Leão I: trabalhadores no subsolo antes do fechamento ocorrido em 2002
Algumas das “novas” questões, após o fechamento da mina de subsolo,
emergem destes relatos, tais como as discussões sobre os efeitos da mineração a céu
aberto sobre o meio ambiente, que opõem sindicalistas de um lado, e ambientalistas, de
outro; assim como o surgimento de empresas terceirizadas, que contratam operários
para prestar serviços de preparação de uma mina de subsolo cujo funcionamento ainda é
534
Acerca de gerações operárias, ver Pessanha e Morel (1991).
405
incerto. Tais operários seriam os “novos mineiros”, que exercem o ofício em condições
mais precárias e menos vantajosas do ponto de vista dos direitos do que as condições
usufruídas pelos trabalhadores da CRM e da Copelmi. Para os jovens que ingressam
nesta condição, a formação e o aprimoramento técnico passam a ser uma prioridade,
uma “questão de honra” de sua geração. Quem não enveredou para a mina, percorre
muitas vezes um sinuoso caminho até o encontro de uma profissão, passando por
ocupações precárias, perigosas e mal-remuneradas, tais como a de “corte de mato”, que
vai se tornando a principal atividade da região. Em outras trajetórias, vê-se a ruptura
com determinado horizonte social, derrubando alguns preconceitos que dizem de uma
“velhice” que começaria por volta dos 40 anos. Em diferentes trincheiras, esses “filhos
do carvão” buscam alargar possibilidades culturais para si e para as novas gerações.
8.2 ZECÃO: “OS MINEIROS DE SUBSOLO SÃO UNS HERÓIS”
Filho e neto de mineiros de carvão,
José Lopes Lucas, Zecão, hoje com
48 anos, mineiro em atividade na
CRM, desejava seguir o ofício
desde criança. O “gosto do carvão”
ele havia provado desde pequeno.
Era um divertimento disputar com
os irmãos o lanche sobrado do pai
que tinha percorrido as galerias
subterrâneas e retornava à casa com
um sabor meio acre. Nesse ritual,
havia uma fascinação que o menino
guardava em segredo, como se o
mineral tivesse algo de sagrado. No
aipim frito ou no pão com mortadela, encontrava, como me dizia, “o gostinho da mina”.
Essa expressão, usada por ele, não contém apenas a referência ao paladar singular, mas
exprime também um liame simbólico com aquele universo. Marcava o momento em que
ele construía o desejo de tornar mineiro como o pai. Ao relatar que até hoje sente
“aquele gostinho de carvão”, sua expressão se enche de saudades, tanto do pai, falecido,
como da mina subterrânea que foi fechada em 2002. O gosto e o cheiro do carvão
406
impregnados no alimento pareciam conter certa magia, uma iniciação ao misterioso
mundo da mina.
No caso de Zecão, o ingresso naquele mundo só fez crescer a sua identificação
com o pai. Ele se recordava de quando este chegava em casa, com o rosto escurecido
pela poeira do carvão. Seu sentimento era de admiração.
Era uma imagem de herói, né, uma pessoa que era como um herói, que tinha
um trabalho, uma família com seis filhos pra sustentar e era daquilo ali que
les viviam. Daquilo ali que ele sustentou, criou seis filhos, nunca faltou nada.
Do braço, praticamente do braço, porque hoje em dia é mecânico. Ali não, era
do braço mesmo.
Em seu discurso estão contidas noções sobre esse ideal em torno do provedor
que sustenta “do braço” uma família. Foi esse ideal que ele decidiu imitar. Em mais de
um momento, ele reiteraria: “Porque eu acho os mineiros de subsolo são uns heróis”.
Antes de ingressar na mina, Zecão teve outras atividades. A primeira delas foi aos 14
anos, ajudando o pai, aposentado da mina, que trabalhava em fazendas.
Nas minhas férias do colégio ele me botou no serviço (...) abrindo buraco pra
alambrado no meio dos banhados, nos cerros. Me tirou o corinho mesmo!
Assim ó... chegava a sair sangue das mãos. Aí, no fim das férias, me chamou
e me disse assim, me lembro até hoje: “E aí, meu filho, tu quer estudar ou tu
quer trabalhar com o pai?” E eu disse pra ele: “Eu quero trabalhar com o
senhor!” (...) Por ele, ele trabalhava sozinho, abrindo os buracos desde que eu
estudasse. Mas no momento eu pensei que era melhor eu trabalhar com ele.
(...) E, graças a Deus, nunca deixei ele sozinho.
O fascínio pela comida que voltava da mina
Numa das ocasiões em que Zecão abordou esse tema estávamos na casa de
outro informante que me tinha sido apresentado por ele. Adão Rocha me dizia que
também seus filhos, quando eram pequenos, queriam comer as sobras da comida
levada por ele para a mina. Sua mulher, Ilda, no entanto, não permitia que as crianças
ingerissem esse alimento por medo de que pudesse ter estragado pelo clima dos
subterrâneos. O ex-mineiro achava que a preocupação da mulher era excessiva, era
“cuidar demais”. Também Zé Pretinho e Odete me contavam que não deixavam os
filhos pequenos consumir sobras da refeição levada para a mina, entendendo que o ar
do subsolo podia deteriorar os alimentos. Por ter ouvido uma história de um filho de
mineiro de Charqueadas que teria morrido depois de ter ingerido restos da vianda do
pai, ele preferia não arriscar. Se havia sobras, dispensava lá mesmo, não levava para
casa. Por sua vez, Adão Souza, contemporâneo do pai de Zecão na Copelmi, tinha o
costume de oferecer aos filhos as sobras de alimentos.
Adão Souza - Eu sempre trazia um restinho. Eles iam me esperar no
portão. (...) Aí tinha sempre que trazer um restinho de café e um
pedacinho de pão pra eles.
Gessi (a esposa) - Não sei por que eles gostavam. Mas eles adoravam
comer os restinhos de comida.
Adão Souza - Um gostinho de carvão...
407
Ao acompanhar o pai em seu trabalho, fez a opção por largar os estudos, uma
escolha que acreditava estar correta. Estar ombro a ombro no trabalho com o progenitor
era uma experiência que o orgulhava. Esse forte vínculo com a presença paterna
mantém-se ainda nas memórias. Numa ocasião em que estive em sua casa, Zecão
mostrou-me uma fita de vídeo que ele próprio editou, a partir de seus parcos
conhecimentos técnicos, com cenas cotidianas do pai, e que usou para homenageá-lo
num aniversário. Mostrava que a sabedoria do velho mineiro ainda o inspirava. As
imagens que vi eram de um homem sereno, mesmo quando enfrentava adversidades.
Num das cenas, a família estava reunida na casa que teria que deixar, na Vila Charrua,
em Butiá. O antigo mineiro, que tinha sido empregado da Copelmi, teve que vender a
casa que estava acabando de construir porque a área ia ser utilizada para exploração do
carvão. Sentado na varanda, entristecido com a mudança forçada, dizia: “Há coisas do
destino que a gente precisa aceitar”. Naquele período de nossa entrevista, Zecão tentava
aprender o sentido daquele conselho para ver se a dor que vivia pelo fechamento da
mina de subsolo amainava em seu peito. Ele expunha outras razões para ter orgulho do
pai, ressaltando os valores aprendidos com ele.
Meu pai foi capataz na Copelmi, quando era encarregado, e todos que
trabalharam com ele em entidades lá [por exemplo, no CTG], onde
participaram, só têm elogio pro meu pai, que ele tava sempre rindo, sempre
brincando, sempre se doando pras pessoas assim, sabe. Assim, sempre de boa
vontade, nunca criticando, nunca falando de ninguém (...). Acho tão bonito
aquilo ali, foi uma herança que ele deixou, e ele não levou nada nessa vida,
ele deixou isso de bom, que foi o que ele fez, né, que deixou uma amizade
boa, nunca prejudicou ninguém, nunca pisou ninguém.
Esse relato acima traduz alguns dos valores que são considerados por meu
interlocutor como uma “herança” deixada pelo pai: o fato de que tivesse construído
amizades, sem “pisar” em ninguém. Ele mencionava com satisfação o fato de que seu
filho, Josimar, por volta dos seus dez anos nesta época, já era “conhecido” por onde
passasse e tinha as suas “amizades”. Sugeria que a transmissão havia seguido seu curso.
Uma nova ocupação para Zecão apareceu quando ele tinha 18 anos, descascando
madeira numa empresa produtora de celulose. Comentava que eram tantos os acidentes
que guarda as marcas de cortes pelo corpo. Depois disso, prestou serviço para outra
empresa do ramo, descascando madeira e ajudando na plantação de eucaliptos. É
preciso ressaltar que esse trabalho em “mato” permeia uma parte significativa das
trajetórias de mineiros desta geração, antecedendo o ingresso na mina, e,
principalmente, de filhos de mineiros que já não encontraram a alternativa da
408
mineração. Quando Zecão decidiu realizar um concurso para ingressar na CRM, foi
criticado pelo encarregado na empresa de madeiras porque, faltando ao serviço, se
arriscava a perder aquele trabalho. E em nome de quê? Seu chefe avaliava que ele não
tinha chances de ser aprovado, já que eram 500 candidatos para 33 vagas oferecidas na
mina de Iruí, em Cachoeira do Sul, de propriedade da CRM. Mas Zecão que, nesta
época, estava casado e com uma filha recém-nascida, precisava arriscar para tentar obter
melhores condições de vida. Acreditava que a familiaridade com o carvão o ajudaria.
Entre as provas do concurso havia, de fato, um teste de escolha manual: “Eles
colocavam pilhas de carvão e era preciso separar a pedra do carvão”. Explicava que
havia a parte teórica e a parte prática, mas supunha que o essencial era “conhecer o
carvão”. Isso não era um problema para ele, que “tinha conhecido o carvão brincando”,
sempre em contato com os montes de mineral que ficavam no pátio da companhia. Foi
aprovado no concurso, mas, mesmo assim, achava que, naquela profissão, seria mais
justo o sistema adotado no passado, quando os jovens, candidatos a uma vaga na
companhia carbonífera, eram indicados pelos pais, tios ou padrinhos que já atuavam na
área. Segundo ele, para a companhia a indicação de um parente valia muito.
Chegavam lá e indicavam: “Olha, tenho meu sobrinho pra trabalhar...”. Eles
preferiam que um indicasse porque era responsabilidade dele, porque aquele
cara vai ser bom de serviço porque o pai dele indicou. Hoje, tem um concurso
(...) e, às vezes, até o concurso é uma coisa assim... injusto, porque aquele que
não tem um grau de estudo e tem aquele espírito nato de mineiro não
consegue pegar. (...) Antigamente, tinha aquele sangue assim... O pessoal ia
pelo amor, né.
Há uma riqueza de elementos nesta fala, a começar pela convicção de que as
relações pessoas seriam mais legítimas na seleção de profissionais para a mina do que a
impessoalidade de um concurso. No pano de fundo, havia uma contradição nessas
regras: a de que, naquele meio, os estudos formais nunca tinham sido considerados
essenciais na formação de um trabalhador e, no entanto, naquele sistema de seleção,
pesavam a favor de quem detinha uma escolaridade maior. Isso estaria em
contraposição àqueles que teriam, por serem descendentes de trabalhadores na mina,
“um espírito nato de mineiro”, o “sangue” de mineiro, o “amor” pelo trabalho. Todas
essas expressões nos remetem aos valores essenciais de uma honra do trabalho e
revelam uma naturalização de que o ofício devesse ser transmitido de pai para filho.
A questão da escolaridade figura freqüentemente de forma ambígua na trajetória
de meus interlocutores. Alguns deles, com idades entre os 30 e os 50 anos, tendo
interrompido seus estudos na infância ou na adolescência, antes de completar o ensino
409
fundamental, posteriormente faziam projetos ou efetivamente retomavam seus estudos
durante algum tempo, em certos casos concluindo o primeiro grau e até mesmo
avançando até o ensino médio. Zecão, por exemplo, fez mais de uma tentativa para
prosseguir com os estudos, interrompidos na sexta série do ensino fundamental.
Naquela época, aprovado no concurso, ele passou os quatro anos seguintes
trabalhando durante a semana em Cachoeira do Sul e indo a Butiá para visitar a mulher
a filha nos domingos pela manhã. Precisava viajar duas horas de ida e duas de volta.
Domingo à tarde já era obrigado a retornar ao trabalho. Sua mulher, Marilene, o
esperava com pão feito e feijão cozido que ele levaria para sua alimentação na semana.
Neste período, pernoitava num alojamento de mineiros que ficava no pátio da empresa,
a 50 metros da mina a céu aberto na qual trabalhava. Por vezes, se alguém faltasse ao
trabalho, os novatos eram chamados para dobrar o turno. Sua atividade era a escolha
manual do carvão que seria enviado a uma usina termoelétrica. Neste período, seu maior
desejo era obter uma transferência para ficar mais próximo da família. O tema das
migrações temporárias provocadas por necessidades de sobrevivência, aparece em
numerosos relatos, mas na maior parte dos casos a mudança de residência acabava
envolvendo toda a família. No caso de Zecão, a habilidade como desenhista acabou
chamando a atenção de chefes e converteu-se num passaporte para um retorno à sede da
empresa. Transferido em 1987 para Minas do Leão, passou pelos setores do lavador de
carvão, beneficiamento, balança e topografia. Contava-me, com orgulho, que muitas
vezes as chefias disputavam seus serviços porque ele estava sempre disposto ao
trabalho. Neste período, a família morava num galpão nos fundos da casa do pai dele,
onde Zecão fez a cama de casal e o berço do bebê com sarrafos de cerca.
Depois de ter retornado da mina de Iruí, Zecão atuou quatro anos na superfície,
antes de ir para o subsolo. Inicialmente, ficou vinculado à área de topografia, mais tarde
foi para as frentes de extração do carvão. Nesta época, a mina de Leão I já tinha sido
mecanizada, aumentando a segurança e a capacidade de produção. Contrariando o que
considerava ser uma tendência de acomodação na empresa, ele estava sempre tentando
aprender novas atividades. Foi desta forma que aprendeu a operar máquinas no subsolo
nas suas horas de folga, antes de ocupar a função. Foi assim tamm que aprimorou os
conhecimentos em eletricidade. Quando ingressou no subsolo, surpreendeu-se com o
que encontrou, pois a realidade da mina já era muito diferente daquela vivida pelo pai,
caracterizada pela produção manual e sem acesso a qualquer equipamento de segurança.
410
Porque quando o meu pai trabalhou... eu nunca via o meu pai sair como eu
saía, de macacão, botina, sabe? Porque ele saía com a roupa dele, trazia o
calção dele pra lavar em casa, era um calção, as alpargatas dele, né, o
lampião. Hoje, não. Nós baixávamos de lanterna, tinha jipe pra levar embaixo
da mina. Eles não, eles caminhavam quilômetros embaixo da mina e depois
trabalhavam praticamente ajoelhados. Hoje é tudo maquinário, né, E eu até...
sinceridade assim, dava vontade de conhecer aquela época.
Ao falar de seu cotidiano na mina, destacava dois aspectos: os perigos do
subsolo e as brincadeiras. Neste universo, da mesma forma como abordou Leite Lopes
(1988) sobre os operários da indústria têxtil, o bom mineiro ou o “mineiro de verdade” é
o que trabalha brincando. A descontração surgia como algo desejável e fundamental
para driblar a tensão e o medo de acidentes.
A gente não tem outro assunto a não ser a mina e os companheiros, os
colegas. Aí surgem as brincadeiras pra passar o tempo. Porque se a gente vai
ficar quieto embaixo de uma mina, né, sério, levando tudo a ponta de faca, a
gente se preocupa. Aí vai começar a se preocupar, porque a gente vai olhar e
vai ver: “Isso vai cair...” (...) Então, a vida da gente era uma brincadeira
mesmo. A vida de mineiro é assim, trabalha brincando. Que a pessoa que se
estressa, que quer levar a vida assim ó... séria... na ponta dos cascos, como se
diz, não se sente bem, acho que não deve se sentir bem embaixo da mina.
Acho até que nem vive bem junto com os mineiros.
A idéia, expressa por ele, de que a pessoa que leva a vida a sério “não vive bem
junto com os mineiros”, é significativa, pois enuncia que seria que esta não teria
incorporado integralmente a identidade da profissão. Eu lhe perguntava como era o
comportamento desses outros, menos afeitos às brincadeiras.
Há mineiros assim que, às vezes, ficam revoltados, brabos com alguma coisa,
até mesmo com o serviço, reclamam do ordenado, mas mesmo assim (...) é
temporário. Porque esses mineiros mesmo, o que fica brabo... a não ser um
respeito que se tem assim pelo encarregado, né, que quando tá brabo a pessoa
não mexe, alguns, né... Sobre o mineiro em si, o trabalhador, não adianta, eles
ficam brabos aí e tem um motivo a mais pros outros pegarem no pé e
mexerem com eles, brincarem e fazerem eles entrar nos eixos. Não adianta, a
brabeza debaixo da mina assim é só pra provocar ainda mais os outros. Então,
tem que entrar no ritmo. Até apelido... se colocar um apelido e ficou brabo, aí
pega o apelido, não adianta.
A revolta, a “brabeza” era considerada justificada em algumas circunstâncias,
relacionadas a reclamações quanto ao serviço ou ao ordenado, mas devia ser
“temporária”. Ressalvando o “respeito” devido ao encarregado, no caso dos colegas
comuns embravecerem podia significar um motivo a mais para as provocações. Como
Jango, Zecão relatava a experiência de medo enfrentada no interior da mina. Recordava-
se de um episódio vivido quando trabalhava na topografia e se viu sozinho no subsolo.
411
Quando voltei, o teto estralou e cedeu. Tu via que balançava pra cair. Aí eu
tinha que ir pro fundo, cada vez eu ia mais pro fundo, que eu olhava assim pra
uma galeria, assim pra passar pra um travessão, que era... tipo duas ruas com
os travessões assim de ruas, que passava de uma pra outra. Aquilo tava tudo
caído e eu fui indo: travessão B, travessão C, travessão D, e eu fui indo cada
vez mais pro fundo e cada vez piorando mais. E aí eu me vi sozinho no
escuro, e aqui tudo pra trás tudo caído, que eu pensei assim: “Báh, será que eu
vou...?” E ninguém me viu entrar lá (...). Se alguém me visse, eu tava
tranqüilo porque eu dizia assim: “Alguém me viu”, “se eu ficar enterrado
aqui, alguém vai dizer: ‘Ó, ele tá lá’”. (...) Aí foi aonde que eu passei por
cima de um caimento que tinha, né, (...) que aí eu voltei pra aquela galeria. Eu
fui pela dois e voltei pela três assim. Consegui voltar por aquela onde eu saí
assim. Quando eu saí de lá nas máquinas de novo, eu respirei fundo. Foi a
última vez, a única vez.
Ele explicava que, no início de um desmoronamento, “caía uma pedra, caía duas,
dali a pouco desabava tudo, dava aquele bluuumm, aquele estouro assim e vinha tudo
pra baixo”. Mencionava outra ocasião em que conseguiu evitar ser atingido por um
caimento ao jogar-se para trás e sair rolando. Um colega que assistia à cena lhe disse:
“Báh, como é bom ser goleiro, heim?! Que reflexo!” Nesse período, Zecão atuava como
goleiro num dos times de futebol veteranos vinculados à companhia. As habilidades
exercitadas nas disputas varzianas mostravam-se úteis também para enfrentar os riscos
na mina. Esses “jogos de corpo”, para usar a expressão de Guedes (1997), mostravam a
importância da habilidade física com diferentes cargas dramáticas: num caso expressava
a paixão pelo esporte, noutro, tinha sido um recurso para salvar a própria pele. Mesmo
depois que Zecão interrompeu a atividade esportiva, continuou a participar da
sociabilidade em torno das equipes de futebol. Havia sentido receio em outras ocasiões.
Zecão - É incrível, eu mesmo não tenho medo de trabalhar embaixo da mina,
gosto. Agora, se eu ir pro fundo da mina, que nem já tive várias vezes, tive
que ir lá porque esquecia alguma coisa, trabalhava na elétrica, tinha que pegar
o jipe. Quando eu tava indo pro fundo da mina, eu não tinha preocupação
nenhuma. (...) Quando eu fazia a volta do dia, que voltava, que aí não tinha
nenhuma alma viva pra trás...
Adão – Dava um pavor?
Zecão – Eu dirigia olhando pra trás, que parecia que alguém tava atrás de
mim, já assim em cima do jipe. Assim, ó... ia me agarrar assim (leva as mãos
ao pescoço), sempre. (...) Ainda mais quando vinha a pé. (...) Era a única hora
em que, sei eu, quando eu tinha medo, era quando não tinha ninguém pra trás.
O temor surgia assim na ausência de outros colegas, como se a mina ocultasse
em suas sombras outros perigos, abrigasse outros seres, estranhos e ameaçadores,
surgidos da escuridão das galerias desertas. Em sua explicação, quando não havia mais
ninguém no fundo da mina, parecia surgir “alguém” que não seria do mundo dos vivos,
412
já que “não tinha nenhuma alma viva para trás”.
535
Uma possível “volta” dos
companheiros mortos em acidentes figura freqüentemente no imaginário desses
trabalhadores, assim como em suas jocosidades, visando assustar colegas mais crédulos.
O medo da mina, em certo momento, deu lugar ao medo do fechamento da mina.
Zecão contava que os mineiros de Leão I, cada vez em menor número, se revezavam
para manter a mina em operação no início dos anos 2000: “A gente fazia de tudo
ultimamente pra não deixar fechar a mina, mas não adiantou, acabou fechando da
mesma forma. Mesmo com o esforço dos mineiros, acabou fechando a mina”.
Considerava que os trabalhadores fizeram sua parte, cooperaram quando a empresa
precisava deles, mas não foram recompensados por isso. O fim da mina de subsolo, em
fevereiro de 2002, representou um sério golpe sobre o sentimento de honra dos mineiros
de sua geração. Ele voltou a trabalhar na superfície, novamente como balanceiro.
Continuava sendo cumpridor de tarefas, dedicado, como antes. Quem o visse brincando
com os colegas podia até não suspeitar o que ia no seu íntimo. Mas ele se sentia
estranho, como se sua alma estivesse fora de seu corpo. Parecia-lhe que, com o
fechamento da mina, os mineiros haviam sido lançados cada qual à sua sorte, à sua
solidão, com o fim da camaradagem que havia na mina de subsolo. “Não é mais a
mesma coisa. Um foi para São Jerônimo, o outro... Antes, era cada um mexendo,
aprontando com o outro. [Isso] Terminou. Hoje é cada um sozinho no serviço”. Alguns
anos antes desse desfecho, ainda em 1997, ele me dizia:
535
Pode-se evocar o conhecido adágio mencionado por Delumeau, 1989, p.85: “O morto agarra o vivo”.
De outro modo, Rodrigues (1983) destaca as circunstâncias nas quais “o medo dos mortos vem se
adicionar ao medo da morte”. Ver Rodrigues, 1983, p. 161.
413
Um mineiro não pode viver sem a mina. Eu não sei viver de outro jeito. E não
é só comigo que isso acontece. Outros mineiros, quando se aposentam ou
mudam de ramo, ficam perdidos, rondando a mina, com vontade de voltar.
Numa das ocasiões em que eu o visitei, durante a pesquisa de mestrado, ele
estava vivendo esse luto.
536
Além da quebra do cotidiano, havia uma frustração quanto
ao projeto de vida. Com dez anos de trabalho no subsolo, faltariam cinco anos para ele
se aposentar se a mina continuasse em funcionamento. Cerca de um ano e meio depois
da mudança, ainda ficava comovido ao falar do tema. A voz saía embargada: “Quando
veio a notícia do fechamento, a gente não acreditava”. Sua mulher lembrou que, naquele
dia, ele chegou em casa e disse: “Agora não tem mais jeito, começaram a desmontar as
máquinas”. Como uma despedida do último dia no subsolo, os mineiros gravaram em
vídeo algumas imagens. Assistimos juntos a essas cenas, enquanto ele ia me explicando:
“Eles estão tristes porque é o encerramento das atividades. Aí será feita a desmontagem
do painel”. Todos os companheiros estavam emocionados. Eles iam informando nome,
função e tempo de serviço no subsolo. Um dos trabalhadores disse: “Estou há tanto
tempo na CRM... É muito triste estar aqui terminando essa fase”. Outro confirmava:
A tristeza é notável aqui. O pessoal está há mais de 20 anos aqui. Encontra-
se numa situação de fechamento temporário do subsolo. Esperava que tivesse
progresso por muitos anos ainda, mas não é o que a gente quer, o que planeja.
Na seqüência, era Zecão:
É uma tristeza muito grande. (...) Do fundo do meu coração, eles são uma
família pra mim. Eles estão em meu coração e isso eu não vou esquecer. Um
vive para o outro aqui. Meu pai se aposentou na mina, meus tios, meus
cunhados, e a gente queria que o filho continuasse. Infelizmente, estamos
relatando o fechamento da mina de subsolo. Uma tristeza muito grande. É
lamentável que hoje seja o nosso último dia de profissão.
Meu interlocutor ressaltava a linhagem de mineiros em sua família, interrompida
pela desativação da mina. Mencionava também “o último dia de profissão”, embora
continuasse a trabalhar na companhia. Mas “mineiro de verdade” era aquele que exercia
o ofício nas entranhas da terra. Enquanto sua imagem aparecia no vídeo, percebi que
estava parado na porta da sala e olhava em silêncio para a televisão. Ficou calado por
alguns minutos, depois disse, com voz sumida: “Essa parte ainda é difícil... dá uma
tristeza, ainda dói”. Percebi que as feridas provocadas pela morte da mina estavam
abertas. Mais algumas cenas no vídeo e o comentário: “Vou te confessar que aí eu já
536
Acerca dos efeitos do fechamento da mina entre mineiros franceses, ver Eckert (1991,1993).
Desenvolvo também algumas reflexões sobre aquele contexto em Cioccari (2009a, 2009b).
414
tinha chorado”. No meio da gravação, uma inscrição em giz num cano de ventilação,
dizia: “Acabou”. Para Zecão, ainda seria necessário longo tempo para se acostumar com
isso, até porque, em suas memórias, a mina aparecia mais encantada do que antes.
Depois que voltou a trabalhar na superfície, retomou os estudos por meio de um
supletivo. Alguns meses depois, acabou desistindo do projeto. No período em que
freqüentava o curso, contou-me acerca de uma redação escolar que escreveu sobre um
hilariante episódio de mal-entendido que viveu na mina, que foi intitulada por ele como
“O inglês e o mudo”.
537
Sua professora gostou da história, “mas não dos erros de
português”. Ele não quis me mostrar esse texto, talvez temendo o meu julgamento, mas
brindou-me com o relato, pontuado pela gestualidade e a mímica. Zecão está entre
aqueles cuja arte de contar histórias é considerada inseparável de um ethos mineiro.
8.3 ONIRO, SINDICALISTA: “O MINEIRO É UM CORAJOSO E UM LOUCO”
Quando Oniro da Silva Camilo, hoje com 47 anos, ingressou na profissão, no
início dos anos 1980, a categoria contava com 6 mil trabalhadores na região. Cerca de
vinte anos mais tarde, em 2003, quando ele iniciava seu primeiro mandato como
presidente do Sindicato dos Mineiros, o número de trabalhadores havia se reduzido em
dez vezes, restando então 600 empregados no setor.
538
Em entrevistas realizadas
naquela ocasião e alguns anos depois, ele atribuía esse drástico encolhimento à ausência
de uma política nacional que valorizasse o carvão. As duas principais empresas da
região, a estatal CRM e a privada Copelmi desde a década de 1990 tinham encolhido as
explorações subterrâneas até a extinção completa – a última mina de subsolo da CRM,
como mencionado, foi fechada em 2002 -, limitando-se a áreas de extração a céu aberto.
Filho de mineiro, Oniro, como “todo guri de sua época”, sonhava em trabalhar
na mina. Ainda criança ele perdeu o pai, morto em 1973 em decorrência de problemas
de saúde originados num acidente que sofreu na mina da Copelmi poucos anos antes.
Tocador de carro, o mineiro foi prensado entre duas vagonetas. Esse traumatismo,
537
Essa história também foi escrita por outro personagem, Eron - informante referido neste capítulo -, no
conto O visitante inglês. Os textos baseiam-se num episódio da visita de um pesquisador que, por um
mal-entendido, é tomado como um inglês que, acompanhando Eron, desceria ao subsolo para uma visita à
mina. Depois do retorno à superfície, um mineiro (Zecão), desejando comunicar-se com o visitante, mas
sem o domínio do presumido idioma, estabelece uma comunicação por meio de gestos e mímicas. O
outro, acreditando tratar-se de um operário mudo, responde usando a mesma linguagem. Nesse esforço de
compreensão mútua, mantêm uma longa conversação. Somente mais tarde, o mal-entendido é desfeito.
Nem o visitante era inglês (e sim um brasileiro que havia morado na Inglaterra para estudar), nem o
mineiro era mudo. Contada e recontada, a história sempre provoca boas gargalhadas dos ouvintes.
538
Para uma discussão em torno do papel dos sindicatos em cenários de “crise”, “reestruturação
industrial” e “precarização”, ver Ramalho (2000).
415
segundo meu interlocutor, “arriou-lhe o coração” e ele foi aposentado por invalidez.
Depois disso, mudou-se com a família para a zona rural de Butiá, onde se tornou
agricultor, mantendo horta, lavouras de milho, de feijão e de outros cereais, além da
criação de vacas leiteiras e de galinhas. Sem conhecimento de seus direitos, nunca
buscou uma indenização pelas seqüelas do acidente. Com sua morte, a viúva, que
contava com 29 anos, e seus cinco filhos – Oniro, com 11 anos, era o mais velho -
voltaram para a cidade. Depois, ela teve outros filhos, enfrentando toda a sorte de
dificuldades para criá-los. Aos 18 anos, Oniro foi procurar uma vaga na mesma
companhia em que o pai trabalhara.
539
Neste período, só restavam as minas de
superfície da Copelmi. Ele ingressou no ano seguinte e foi trabalhar nas peneiras, na
separação manual do carvão. Depois, foi coletor de amostras e, mais tarde, atuou como
auxiliar mecânico, até chegar à função de eletricista, em 1986, ainda mantida. Quando
se tornou mineiro, aos 19 anos, já era casado e pai de uma menina.
Em 1988, durante uma greve da categoria ele viveria momentos que marcariam
sua vida profissional. Nesta época, a defasagem salarial dos trabalhadores da Copelmi
era grande: eles estavam recebendo menos do que os empregados em “mato” – que, até
hoje, serve como o referente negativo de uma categoria mal paga e que trabalha em
condições precárias. Nesta greve, os mineiros da Copelmi e da CRM na região pararam
durante seis dias. Com o intuito de fortalecer o movimento, o sindicato organizou uma
viagem a Candiota, na fronteira Oeste do Estado, onde funciona outra unidade da CRM
cujos trabalhadores não haviam aderido à greve. Oniro estava entre esses ativistas.
Então, a gente lotou um ônibus aqui. Fomos lá e fizemos o pessoal de
Candiota parar, conscientizando, conversando e também fazendo piquete na
portaria e não deixando eles entrarem. Inclusive a Brigada (...) interveio pra
evitar um confronto entre os mineiros, porque tinha os pelegos que queriam
trabalhar, e nós que estávamos em greve queríamos que eles parassem pra ter
mais força. Então, quase que houve um confronto que poderia ser fatal pra
alguém, foi muito perigoso.
Uma assembléia tumultuada decidiu pela adesão dos trabalhadores locais à
greve. No entanto, metade dos mineiros mostrava-se contrária ao movimento. “Houve
pessoas que saíram dali, da greve, e foram direto pra dentro da mina, os pelegos, os
furadores de greve, e aí a gente trancou os outros, do turno da madrugada para não
539
Oniro não menciona que a obtenção do emprego tenha se dado em função de uma dívida simbólica da
Copelmi com seu pai, mas essa referência foi feita por Zé Carlos, um de meus interlocutores em Minas do
Leão. Ele me contava que, como seu pai tivesse se acidentado na mina, aos 38 anos, e perdido a visão de
um olho, se aposentou por invalidez. Anos depois, um engenheiro da CRM deu um emprego a Zé Carlos
“por consideração”, como ele me contava, ao acidente sofrido pelo pai.
416
entrarem”. Ele me contava que havia 200 trabalhadores naquela unidade e eram em
torno de 40 os mineiros que haviam se deslocado até lá. Para conter o movimento, um
efetivo de 30 a 40 soldados da BM ocupou a mina, convocado pela companhia. Poucas
conquistas foram obtidas nesta paralisação: o pagamento dos dias parados e a concessão
do vale-alimentação que, na época, equivalia a 10% do salário mínimo. Um mês após o
término da greve vieram as demissões: 18 trabalhadores da Copelmi que haviam
participado da manifestação em Candiota foram desligados da empresa. Entre eles,
Oniro. Meu interlocutor explicava que aquilo foi uma grande surpresa: “Nós não
tínhamos estabilidade. A gente se meteu de pato a ganso e acabou se ferrando”. Mas
representou também uma lição, a de que para estar na linha de frente era preciso dispor
de estabilidade e conhecer os meandros das relações trabalhistas. Ele se sentia
decepcionado com a gestão do sindicato, que os lançou à própria sorte, sem alertá-los
para os riscos nem se mobilizar para reverter as demissões. Esses cortes, feitos pela
Copelmi, foram encomendadas pela CRM, que, embora não demitisse por ser uma
estatal, havia solicitado à concorrente os desligamentos porque não admitia que
empregados da empresa privada fossem insuflar à greve seus funcionários em Candiota.
Isso denota como essas alianças entre as companhias eram construídas – malgrado o
fato de que fossem rivais. Quase um ano depois, uma parte dos demitidos foi procurada
por um advogado da Copelmi, que propunha que retornassem à atividade, mas
solicitava a promessa de que não se envolveriam em ações sindicais. “E a gente teve que
se comprometer que não se envolveria em questões do sindicato, assim a gente poderia
retornar. E a gente disse que não ia se envolver. Mentimos pra ele...”, conta, rindo.
Apesar do tom jocoso que assinala a “esperteza” em driblar o jogo patronal,
depois daquela experiência Oniro e seus colegas estavam mais cautelosos. Na greve
seguinte, ocorrida em 1992 ou 1993 (ele não lembrava ao certo), aderiram à paralisação,
mas sem se expor em demasiado nas manifestações de rua. A própria direção do
sindicato teria orientado os trabalhadores sem estabilidade a passarem algum tempo na
sede da entidade para acompanharem os rumos do movimento e seguirem para casa.
Quem estivesse em situação de risco faria melhor indo pescar ou cuidando da horta. Na
paralisação que durou 36 dias, reivindicando aumento salarial, meu interlocutor me
contava que pôde “pescar bastante”. Mas não era do seu feitio ir às assembléias e ficar
de boca fechada. Em suas intervenções, questionava a direção do sindicato se a greve
“era, de fato, responsável” e se existiam garantias de que a entidade estaria ao lado dos
trabalhadores se houvesse novas demissões. No ano seguinte, ele apoiou uma chapa de
417
oposição à gestão do sindicato. Neste período, já começava uma atuação como membro
da CIPA. Depois, em 1997, ingressou como suplente da direção do sindicato, passando
na gestão seguinte a diretor de saúde e previdência, em 2000, e a presidente da entidade,
em 2003, reeleito na gestão seguinte. Ele destacava o aprendizado obtido nas CIPAs,
que alertava para o risco de algo incorporado na cultura da mina, as brincadeiras, entre
as quais parte delas - de socos e tapas - constituía “um ato de risco”. Depois de 1998,
com a intensificação dos investimentos em segurança, as brincadeiras se alteraram.
A própria brincadeira do mineiro, dentro do setor de serviço, é um ato de
risco. (...) Mas a profissão de mineiro foi, é, e sempre vai ser um ato de risco.
Descer à mina, simplesmente descer à mina já é uma condição perigosa,
porque basta tu fazer um acompanhamento dos jornais de hoje dos acidentes
que acontecem na mineração tanto na China, como no Chile, agora há poucos
dias na Colômbia.... É risco de desabamento, de gás, e de uma série de coisas.
É uma profissão de risco mesmo.
A partir dessas definições da profissão como sendo “de risco”, eu lhe perguntava
se o ofício poderia se considerado como heróico. Inicialmente, Oniro hesitou. Depois,
referiu-se a características dos mineiros de subsolo, incluindo também os trabalhadores
do cobre, da bauxita e de outros minerais. Traduzia as razões pelas quais não gostaria
que seu filho, nesta época com 11 anos, trabalhasse na mina.
Oniro - O mineiro, de modo geral, ele é um corajoso e um louco, porque um
trabalhador em sã consciência jamais deveria descer a uma mina. Jamais
deveria descer a uma mina! Vai pela necessidade e também pelo desafio, de
ser mineiro, por toda aquela trajetória de família que teve. O meu pai foi
mineiro, eu sou mineiro, mas eu não quero que meu filho seja mineiro. Eu
trabalho, tento criar condições para que, no futuro, meu filho não seja
mineiro. Coisa que, no passado, era o inverso. Era um orgulho pro pai ter um
filho trabalhando junto com ele, na mina. E eu não quero que meu filho seja
mineiro. Eu tô trabalhando para que ele não seja.
- Teu pai queria que os filhos fossem mineiros?
Oniro – Queria. Era o orgulho de todo o pai que o filho seguisse o mesmo
caminho. E também do filho querer isso. Eu quis ser mineiro. Eu gosto de ser
mineiro. Mas eu não quero que meu filho seja mineiro. (...) Eu procuro dar
estudo pra ele, procuro incentivar pra que ele estude bastante pra que ele
trilhe um outro caminho e não esse, que é muito perigoso. Então, prefiro que
ele siga outro rumo, uma outra profissão.
Como ele mencionava, tornar-se mineiro, no período anterior, era uma
“necessidade”, mas também um“desafio” – algo que considero estar relacionado ao
“espírito do jogo”, ou, seja, da honra derivada do gosto pelo enfrentamento do risco, de
uma peculiar aposta tácita jogada cotidianamente com a existência. Outro aspecto a ser
sublinhado é a mudança de projeto que ele expressava em relação ao filho, afirmando
enfaticamente – por cinco vezes num curto espaço de tempo - que não gostaria que o
418
menino seguisse sua profissão. Mencionava o sentimento de orgulho manifesto pela
geração de seu pai em relação à possibilidade de que os filhos fossem mineiros, mas no
seu caso, esse desejo não estava presente. Mais do que generalizar essa ruptura nos
projetos familiares, meu intuito é, antes, sinalizar as peculiaridades presentes em cada
trajetória - considerando-se as diferenças em relação ao que é manifesto por Zecão, por
exemplo. Oniro, a exemplo de outros tantos de sua geração, havia abandonado a escola
depois de cursar até a 5ª série do ensino fundamental. Explicava que, depois de
ingressar na atividade, era difícil seguir os estudos, não apenas por ausência de
motivação, mas também em função do sistema de rodízio semanal de turnos. Em
relação à dimensão da mina como “desafio”, Oniro voltaria depois ao tema ao comentar
que “a adrenalina vicia”. Referia-se tanto à exposição a que estão sujeitos os mineiros
no ofício como aos desafios da própria atuação sindical.
A profissão de mineiro é uma profissão de risco, e os sindicatos não deixam
de ser, porque a gente diz: “Nunca vem beijinho na testa, só vem abacaxi”. E
esses desafios a gente gosta. E a maioria dos desafios que vem, de uma
maneira ou de outra, graças a Deus, a gente tem conseguido contornar.
O que ele mencionava como “desafios” era, por exemplo, o enfrentamento de
avisos de demissões na categoria que o sindicato havia conseguido reverter
pressionando a empresa. Referia-se, naquele período, a 13 demissões que puderam ser
evitadas na Copelmi. Em 2004, quando apesar dos esforços da entidade, a empresa
cortou cerca de 100 postos de trabalho, a atuação dos dirigentes sindicais passou a ser
para a contratação desses trabalhadores por uma empresa de prestação de serviço à
própria Copelmi, que acabou que aproveitar 40% desse contingente. Em suas
manifestações, além da proteção do emprego, sustentava ainda a “defesa do carvão”.
A gente luta pelo carvão, tenta vender o nosso produto, de certa maneira,
fazer um trabalho paralelo pelo qual as empresas também se beneficiem,
justamente pra que na hora de sentar pra negociar (...) seja de uma dessas
demissões que a gente tenta evitar, ou até mesmo no acordo coletivo buscar
conquistas para que a categoria seja beneficiada. (...) A gente busca esse
respaldo porque não consegue tirar o leite de uma vaca se não alimentar ela.
Ou colher o ovo de uma galinha se não der alimento pra ela.
Oniro estava se referindo à participação ativa do sindicato numa audiência
pública realizada naquele período convocada para discutir um projeto da Copelmi de
mineração em uma área de reserva ambiental, junto ao local denominado de “açude
grande”, que abastece de água a população de Butiá. Esse projeto da empresa estava por
ser votado na Câmara de Vereadores. Naquela discussão, sob o argumento da defesa do
419
emprego para os trabalhadores, o sindicato dos mineiros havia se posicionado ao lado
da companhia, que ameaçava deixar a região caso não pudesse expandir a sua produção,
já que começava a experimentar o esgotamento de outras reservas. Do outro lado,
estavam os ambientalistas, apontando os efeitos nocivos que aquela exploração traria
para as gerações seguintes. Numa ocasião em que acompanhei Oniro e outro sindicalista
numa viagem a Charqueadas, onde haveria uma assembléia sobre o dissídio da
categoria, ele tecia considerações sobre o tema, sustentando que a posição dos
ambientalistas era movida por “sentimentalismo” e que o assunto tornara-se pivô de um
“palanque político”. Evidenciava estar acompanhando as discussões no plano
internacional, a partir, especialmente, do Protocolo de Kyoto, sobre a necessidade de os
países reduzirem as emissões de gás carbônico. Neste cenário, as usinas termoelétricas a
carvão tinham surgido como vilãs para o aquecimento global. Ele entendia que o gás
natural havia ganhado terreno a partir de “um marketing negativo” sobre o carvão.
Cenas de uma audiência pública
O Sindicato dos Mineiros tinha sido um dos promotores de uma audiência
pública que, em dezembro de 2006, reuniu cerca de 400 pessoas no Clube Butiá para
discutir o projeto da nova mina a céu aberto da Copelmi na área do açude que abastecia
de água a comunidade. Estive presente no evento que reuniu autoridades locais,
entidades sindicais e comunitárias, trabalhadores e moradores da cidade, além de
representantes da Copelmi e da Corsan – empresa de saneamento do Estado. A posição
do sindicato dos mineiros estava bem marcada. Na entrada, havia ampla distribuição de
bonés vermelhos confeccionados pela entidade nos quais se podia ler: “Eu quero
emprego”. Na frente do clube, uma faixa do sindicato dizia: “Carvão mineral, gerando
energia com responsabilidade”. A abertura do evento, feita pela mestre-de-cerimônias,
enfatizava que havia naquela comunidade “as pessoas do sim” e as “pessoas do não”,
caracterizando-as como os dois pólos de posições acerca da questão. No primeiro grupo,
estariam as pessoas que acreditavam que, com esforço, tudo era possível; no segundo,
aquelas que se contentariam em criticar o que estava sendo feito. Questionava, então, se
as pessoas presentes, eram do “sim” ou do “não”, sugerindo que o “sim” dizia respeito
ao desenvolvimento da cidade. Eu anotava as referências a essa polaridade singular
quando, na distinção feita a autoridades e convidados para que se sentassem nas
primeiras fileiras, ouvi meu nome: “Marta Cioccari, da UFRJ”. Um pouco constrangida,
carregando gravador e bloco de anotações, me dirigi ao lugar que me era indicado.
O primeiro a fazer uso da palavra foi um deputado estadual petista. Ele
descreveu um cenário no qual, com uma metalúrgica da localidade fechando as portas e
as empresas de madeira demitindo, “não era possível cruzar os braços e ver os distritos
vizinhos crescerem”. Ressaltava a ameaça da Copelmi de que, se não pudesse minerar
naquela área, teria de abandonar o município. Enquanto ele mencionava que o açude em
questão estava com nível baixo, alguém da platéia gritou: “Mentira!” Tal manifestação
dava o tom apaixonado que era conferido à discussão. O representante do sindicato dos
trabalhadores na madeira disse que a população se preocupava com a qualidade da água,
mas arrancou aplausos ao defender que seria preciso alcançar os municípios vizinhos
que estavam se desenvolvendo mais rapidamente. Essa rivalidade com os vizinhos seria
420
um dos argumentos mais usados, ao lado da própria defesa de geração de empregos na
localidade, para defender a justeza dos propósitos da companhia. Ao se manifestar
pelo Sindicato dos Mineiros, Oniro afirmou que a “sociedade civil organizada era o
quarto poder” e que tinha o direito de se pronunciar sobre temas polêmicos.
Mencionava uma campanha existente em nível mundial que difamava o uso do
mineral, “como se o carvão fosse um malefício para a comunidade”, sem levar em
conta as novas tecnologias existentes. Lamentava a perda de postos de trabalho
naqueles últimos cinco anos na localidade: estariam ali 98 trabalhadores demitidos,
havia pouco, da metalúrgica Semeato; outros 105 trabalhadores tinham sido
dispensados da Copelmi em 2005; e, na área da maneira, o corte havia sido de 500
vagas. Ele defendia “uma mineração responsável com o meio ambiente”, afirmando
que se preocupava com o futuro que iria deixar aos filhos, “mas também com o
emprego”. Em sua fala, o prefeito da cidade esclarecia que a proposta de alteração do
Plano Diretor na qual o açude era retirado da área de preservação ambiental estava
sendo avaliada pela Câmara de Vereadores. Segundo ele, alternativas tinham sido
sugeridas à empresa, na tentativa de preservar aquela área, assim como o estudo de
“compensações ambientais”. Um representante do Conselho Municipal do Meio
Ambiente alertava: “A miséria também impacta o meio ambiente humano, mas não
devemos nos valer disso para extrair e não reparar e não compensar”. Uma vereadora
afirmava que, sendo Butiá “uma terra de mineiros”, todos, a princípio, seriam a favor
da mineração, mas, segundo ela, seria necessário pensar no emprego “com qualidade
de vida”. Em sua fala, o superintendente da Copelmi, Cesar Farias, sustentava que, em
cem anos de funcionamento, a empresa nunca tinha desrespeitado as legislações
ambientais federais e municipais e que, ao contrário, havia recebido vários prêmios de
distinção por suas políticas neste setor. Explicou os planos da empresa, fazendo
referências ao açude alternativo proposto pela empresa que já estaria, na prática,
socorrendo o abastecimento do município em épocas de seca.
Quando o microfone foi aberto para perguntas, um trabalhador tomou a palavra
e questionou a vereadora que havia defendido “qualidade de vida”: “De onde virão os
empregos depois que a Copelmi for embora?”, provocou. “Será que o emprego virá da
área do açude?”, completou, sendo aplaudido ruidosamente. Quase no final da sessão,
um operário da Copelmi se manifestou: “E o nosso trabalho, como vai ficar? O que
queremos é trabalhar! Queremos serviço, oportunidades de trabalho!” Ele também foi
aplaudido com entusiasmo. A empresa prometia a criação de 200 empregos com a
exploração da área. Pode-se entrever como dois pólos estavam claramente esboçados
de forma que o “emprego” era contraposto à “miséria” que poderia ser gerada por uma
desistência da empresa em minerar na região. De outro lado, estavam as preocupações
ambientais, introduzindo na discussão conceitos como os riscos à “qualidade de vida”
dessas localidades, se fossem submetidas às decisões puramente econômicas.
Fora daquele circuito, alguns mineiros com os quais mantive contato na cidade
vizinha de Minas do Leão acompanhavam com atenção a polêmica através do rádio,
mas me parecia que esse interesse se devia mais ao cultivado gosto por polêmicas do
que a uma posição firmada de um lado ou de outro. De todo modo, como eram
funcionários da CRM, ativos ou aposentados, não seriam afetados diretamente por
aquelas decisões. Naquele período, a resolução acabou sendo adiada e a Copelmi
mantinha-se explorando outras áreas na localidade. Como mostrou um estudo
coordenado por Leite Lopes (2004, p. 228), “’poluição’, ‘risco’, ‘perigo’ são
categorias construídas social e culturalmente dentro de cada realidade local”. Davis
(2004) enfatizava que a experiência física direta da poluição não é suficiente por si só
para mobilizar social e politicamente as comunidades. Em Minas do Leão, o impacto
421
Essa havia sido a segunda audiência pública à qual havia se lançado a gestão de
Oniro no sindicato. A primeira havia sido na defesa de uma política para o carvão, em
2003, envolvendo lideranças políticas nacionais, regionais e locais. As articulações em
torno desses eventos contribuíram para que a entidade sindical e, principalmente, Oniro,
ganhasse reconhecimento e prestígio na comunidade. Sinais disso eram os troféus que
enfeitavam a sua sala no sindicato. Em 2006, ele havia recebido os troféus Revelação
Sindical, do jornal Gazeta Mineira de São Jerônimo; e Dedicação à Comunidade,
durante a Festa de Santa Bárbara, concedido pela diretoria da igreja. Naquele ano, o
sindicato também havia sido tema de samba-enredo de uma escola de samba local, a
Estrela Cadente. Em anos anteriores, a direção do sindicato havia recebido homenagens
da Câmara de Vereadores por serviços prestados à cidade. Além da atuação no sindicato
dos mineiros, Oniro também era um dos coordenadores da União do Movimento
Sindical e Comunitário (Umosic), que reunia entidades de classe e comunitárias. Ele
destacava que esses reconhecimentos eram frutos de um “trabalho coletivo”.
No interior da corporação, destacava Oniro, “os mineiros são, de certa forma,
uma família, se respeitam, se admiram e têm essa convivência e essa cumplicidade”.
Explicava que, quando ocorria um acidente, todos se sentiam afetados. “Atinge o ego de
todo mundo, atinge todo mundo”. Ele mesmo considerava ter construído uma amizade
com colegas de trabalho que talvez fosse mais intensa do que com seus irmãos. Era
comum que colegas tornados amigos também se transformassem em compadres,
batizando um o filho do outro, por meio do que inauguravam um parentesco espiritual.
Mas a solidariedade, segundo ele, abrangia também operários de outras categorias. Um
exemplo foi quando os mineiros se mobilizaram para arrecadar alimentos para
metalúrgicos em greve. Cerca de 2 mil quilos de alimentos foram arrecadados e doados.
No passado, os mineiros também haviam doado dias de trabalho para ajudar na
construção do Hospital de Butiá e da igreja de Santa Bárbara.
ambiental da mineração – com a ampliação das áreas de exploração a céu aberto –
pouco aparece nos discursos dos trabalhadores. Embora estudos dêem conta dos
danos ambientais, para a maior parte dos informantes a convivência com o carvão
tornou-se “natural”. São escassas as manifestações que dizem respeito aos riscos
para a saúde ou ao meio ambiente. As representações em torno da “poluição”
remetem, por exemplo, à situação do arroio onde, no passado, a população se
banhava e pescava e que hoje estaria “contaminado” pela mineração, com “tudo
morto”. Outras referências dizem respeito a uma “central de resíduos” – ou “lixão” –
instalada em Minas do Leão
,
mencionada adiante
422
Eu lhe perguntava se a concepção da corporação como uma “família” não
remeteria a que a companhia aparecesse no imaginário dos trabalhadores como sendo a
“grande mãe”. Oniro avaliava que os trabalhadores eram capazes de discernir que
estavam se relacionando com um “patrão”. Comentava que, no passado, nas décadas de
1960 e 1970, era difícil organizar uma greve porque existiam pessoas no interior da
categoria vinculadas à empresa e que exerciam influência sobre os operários. Uma
figura deste tipo era considerada um “paizão”.
O mineiro ficava entre o sindicato, que era o seu representante de classe, e o
“paizão”, que era esse que tava sempre junto, jogando futebol, visitando as
casas... Era aquela coisa: a empresa usava o trabalhador, explorava o
trabalhador e dava (...) alguns benefícios. E muitas vezes o trabalhador tava
sendo explorado e não se dava conta. “Ah, o meu paizão...”. Acreditava que
tudo o que aquele cara dissesse era correto, nem sempre era. Tava dando, mas
tava tirando muito mais do que tava dando e, naquela época, o trabalhador
não se dava conta. Hoje, não, hoje essa consciência é diferente. Hoje o
trabalhador sabe valorizar o seu trabalho.
Sua narrativa referia a existência de personagens carismáticos que faziam uma
ponte entre o trabalhador e a empresa, enfatizando o valor das relações pessoais,
traduzidas muito claramente no apelido dado – “paizão” -, alguém a quem se pedia
favores e a quem se devia favores. Essa figura parece ser o intermediário descrito por
parte da literatura nos estudos sobre a patronagem
540
. Esses personagens ganhavam a
confiança dos trabalhadores por sua estreita convivência nas equipes de futebol ligadas
às minas, assim como na sociabilidade familiar. Para Oniro, uma importante
contribuição no desenvolvimento da consciência dos trabalhadores tinha sido dada pelo
ex-mineiro Gerino Lucas, líder de greves na década de 1960,
541
a quem ele se refere
como o “Tio Gerino”, utilizando esse tratamento familiar e, ao mesmo tempo
respeitoso, que costuma ali ser dirigido a pessoas mais velhas, mesmo que não sejam
parentes. Considerava que o velho líder sindical fosse uma espécie de “pêlo duro”,
homem de fibra e de coragem. Volta e meia, ele ia à casa de Gerino buscá-lo para
participar de reuniões no sindicato. “Ele é uma fonte inspiradora pra nós, nos mostra a
garra, a determinação dos mineiros”. Considerava que fosse um homem que “brigava
pelo que acreditava” e que “não era submisso”. Nos períodos em que o sindicato teria
“perdido o rumo”, fazendo alianças com os patrões, Gerino estava “do outro lado,
540
Para um aprofundamento dessa questão, ver especialmente Pitt-Rivers (1971), Boissevain (1966),
Silverman (1967) e Foster (1967).
541
Acerca da trajetória de Gerino Lucas, ver capítulos 2 e 3.
423
gritando”. Mesmo no período recente, fazia questão de participar das campanhas
sindicais, cobrando dos dirigentes uma atuação mais combativa.
Uma das preocupações do sindicato naquele período era com a qualidade de vida
dos trabalhadores que se aposentavam, levando em consideração a forte incidência de
alcoolismo e de separações entre os casais. Uma iniciativa havia sido a criação de um
grupo denominado Coração do Mineiro que reunia mulheres, viúvas e filhos de
trabalhadores na mina, com o propósito de aproximar as famílias do sindicato, trabalhar
sua auto-estima e gerar possibilidades de geração de renda alternativas. Entre janeiro e
fevereiro de 2007, eu participei das reuniões semanais do grupo, que contava com
coordenação de uma psicóloga. Numa das sessões, as mulheres, que haviam visitado a
mina de subsolo de Leão I e mina de superfície da Copelmi, relataram suas impressões
sobre essas visitas em depoimentos emocionados, nos quais evocavam memórias dos
pais, irmãos ou maridos. A aposta feita pelo sindicato era que a aproximação delas do
mundo vivido pelos homens resultaria em maior companheirismo e solidariedade. Em
geral, os mineiros em atividade eram bastante ausentes da sociabilidade familiar devido
às longas jornadas de trabalho. No caso da Copelmi, mesmo que o horário regular fosse
de oito horas por dia, boa parte dos trabalhadores preferia trabalhar doze horas, de olho
no incremento salarial que lhe permitia investir em melhorias na casa, na compra de
carro, etc. Por conta disso, eram raros os que mantinham hortas, lavouras ou outras
atividades paralelas à mina. Além de acompanhamento psicológico dos trabalhadores
em vias de aposentar-se, o sindicato vinha estimulando que os associados tivessem em
mira outros projetos profissionais, tais como o artesanato, o pequeno comércio ou a
agricultura. O objetivo era mostrar que a vida não se encerrava com o trabalho na mina.
8.4 JEFFERSON: CAMINHOS TORTUOSOS EM BUSCA DE UM OFÍCIO
A trajetória profissional de Jefferson, hoje com 42 anos, filho mais velho do ex-
mineiro Jango, evidencia bem os caminhos sinuosos percorridos por sua geração em
busca de trabalho. Na adolescência de Jefferson, a CRM, empresa na qual seu pai
trabalhava, já estava “bem falida” no município. Quando Jango se aposentou, passou a
fazer trabalhos de pedreiro e carpinteiro, mas os filhos estavam crescendo, de forma que
era preciso encontrar alternativas para eles. Neste período, em meados dos anos 1980,
muitas famílias mineiras emigraram para uma zona industrial calçadista, localizada na
Região Metropolitana de Porto Alegre. “Só se falava em Campo Bom e Sapiranga. (...)
Muitos vendiam as suas casas e iam para casas de conhecidos ou parentes”, relatava
424
Jefferson. A migração com vistas a oferecer uma oportunidade de emprego aos filhos
surgia como uma esperança para famílias da localidade. Com a falta de perspectivas na
mineração, as indústrias de calçados surgiam nos comentários como uma promessa de
emprego fácil. Antes disso, Jefferson tinha tentado fazer biscates vendendo garrafas e
ossos para reaproveitamento em indústrias, mas os ganhos eram parcos.
A família – formada pelo casal, Jango e Julieta, e por três filhos, Jefferson, com
17 anos, Beto, com 14, e Júnior, com oito - tomou a decisão: iriam todos para Campo
Bom morar na casa de uma irmã da mãe por algum tempo. Primeiro, tinham tentado
encontrar outra moradia, sem sucesso. Aceitaram o empréstimo de duas peças da casa
dos parentes: numa peça seria a cozinha, a outra, o único quarto de dormir.
Rapidamente, Jefferson conseguiu um emprego numa indústria calçadista, operando
uma máquina de passar cola nos calçados. “Eu não gostei do serviço porque o cheiro era
muito forte”. Aquele cheiro de cola começou a lhe causar náuseas. Já era magro, mas
chegava em casa para almoçar e não tinha disposição para comer. Alguns dias depois,
“pediu as contas”. A mãe e o irmão do meio tinham se empregado numa empresa
pequena do setor, trabalhando em serviços gerais de calçados. Depois, ele também
obteve uma vaga ali. Os três iam para o trabalho de bicicleta; a mãe, na garupa.
Enquanto isso, o pai, Jango, havia se convertido em “dono de casa”, mantendo os
cuidados ao filho menor e, paralelamente, fazendo serviços de pedreiro. Jefferson me
contava que o falatório da vizinhança era de que o pai “era um gigolô”, “um
vagabundo”, pois ficava em casa enquanto a mulher e os filhos saíam para trabalhar.
Certo dia, Julieta teve que explicar a uma vizinha: “Meu marido é aposentado!”. “Por
invalidez?”, “Não, por tempo de serviço”, respondeu, tentando satisfazer a curiosidade
da outra. A aposentadoria de Jango ainda era maior do que os salários obtidos pelos três.
Depois de dois meses na casa dos parentes, alugaram uma casa com duas peças,
com meia água e banheiro no exterior. Mas a adaptação ao regime disciplinar da fábrica
calçadista estava sendo difícil para a família. “Eu era um guri desgostoso da fábrica”,
me contava Jefferson, explicando que ficava em pé durante toda a jornada, tendo cinco
minutos cronometrados para ir ao banheiro, duas vezes por dia. Numa ocasião, foi
advertido pelo encarregado por ter ficado sete minutos fora de sua seção. Havia meninos
e meninas de seus 13 ou 14 anos trabalhando no setor. Em geral, ele fazia muitas horas
extras, mas o salário continuava minguado. Referia-se a esta ocupação como sendo “o
pior serviço que teve”, no qual era “muito explorado”. Guardava tamm más
recordações daquele trajeto feito de bicicleta às 6h20 da manhã para ir ao trabalho. Em
425
pleno inverno, noite ainda, ele cruzava com casais com filhos enrolados em cobertores,
que choravam porque iam ser deixados na creche. E pensava: “Não quero essa vida pra
mim. Não quero conhecer uma guria e...” Passou a fazer planos: “Tenho que dar um
jeito de estudar”. Nas conversas familiares, em meio à exaustão da rotina, a mãe
encampou a idéia: “Vamos dar um jeito de ir embora, pra vocês voltarem a estudar!”
No início, Jango resistiu, pois tinha construído uma ampla rede de amizades
jogando futebol e bebendo com os novos amigos. Considerava que já havia trabalhado
arduamente na mina, de forma que merecia um descanso e os prazeres da sociabilidade
masculina. Era ele também que administrava o orçamento da família. Os filhos
chegavam e diziam: “Ó, pai, aqui tá meu contracheque”. Mas um dia o ex-mineiro
decidiu: “Vamos embora pro Leão”. A mãe estava determinada: “Vou matricular vocês
na escola e aí tenho direito à transferência pra Minas do Leão”. Era uma forma de não
perder o ano letivo. Jefferson, com 17 anos, tinha parado de estudar na 8ª série, e Beto,
com 14, na 7ª série. Os rapazes foram matriculados na mesma escola onde o caçula
estudava. Aquela experiência de alguns meses na vida operária tinha ajudado na
desenvoltura dos irmãos mais velhos. Em seu retorno, com histórias para contar,
viraram o centro das atenções: “Tomamos conta, arrumamos um monte de namoradas”,
contava Jefferson, rindo dessas façanhas. Na seqüência, todos os irmãos acabaram
concluindo o ensino médio. Com o estímulo da mãe, Beto e Júnior fizeram cursos
profissionalizantes como técnicos em segurança do trabalho, profissão em que atuam até
hoje, entremeando períodos de ocupação com outros de desemprego. Jefferson
enfatizava que, se hoje cada um tem a sua profissão, aquilo era “mérito da mãe”.
Sobre o aspecto da escolaridade, devo mencionar algo dito certa vez por Julieta.
Ela, que depois da experiência na fábrica de calçados chegou a trabalhar na CRM, dizia-
me que a companhia tinha tido um papel não apenas positivo, mas também negativo
sobre a vida dos moradores da localidade. Salientava que boa parte dos mineiros,
mesmo ganhando apenas um salário mínimo, tinha ficado acomodada com os
benefícios, como a cooperativa e a escola para as crianças, e não tentava ampliar os
horizontes. Ela percebia assim uma conseqüência menos nobre decorrente da atividade:
Julieta - A mina gerou muito sofrimento, muita miséria também (...).
Realmente, a mina gerou muita coisa ruim. Acho que os próprios pais não
davam o curso técnico pra um filho, uma faculdade, aqueles que ganhavam
mal, “ah, depois tem a mina”. Aí depois, os próprios filhos iam pra ali e
tinham aquela dificuldade.
- Porque não precisava estudar para ir para a mina?
426
Julieta É, porque ali quarta série chegava. Então, tinham aquela dificuldade,
né, tinha gente que ganhava muito mal. Depois mecanizou muito a CRM,
maquinários e tudo, então já tinha aquela turma que tinha muita prática,
trabalhava, e quando entrava um novato já era em servicinho de ganhar
salário mínimo, salário mínimo e meio, e ali criavam três, quatro, seis filhos
com aquela dificuldade.
Situado neste contexto, fica mais claro o esforço feito por Julieta para incentivar
a formação dos filhos. Ao voltar de Campo Bom, paralelamente aos estudos, Jefferson
começou a cortar mato e a vender madeira na vila, mantendo alguns fregueses que
pagavam mensalmente. Aprendeu a fazer aquilo sozinho. Enchia sacos de lenha e
vendia a 10 cruzeiros cada fardo. Depois disso, foi trabalhar numa empresa que prestava
serviços à CRM, cortando eucaliptos e fornecendo madeira para ser usada na
sustentação do teto da mina. Havia um encarregado que fazia o corte das árvores com
motosserra, enquanto uma equipe de quatro trabalhadores em cada picada devia
desgalhar as árvores derrubadas com um machado e medir as partes para prumos e
vigas. A madeira era disposta na picada, com prumos no sentido vertical e barras no
sentido horizontal, que depois seguiriam para abastecer o Poço 1. Ele me contava que
“era um serviço desgastante”. Essa ocupação não durou mais do que seis meses porque
todo o mato foi cortado. Como o eucalipto leva oito anos para se desenvolver até chegar
ao ponto do corte, os trabalhadores iam mudando de local ou até mesmo de empresa.
Jefferson foi para a localidade de Quitéria trabalhar numa floresta de acácias,
usadas na produção de celulose. Inicialmente, era preciso abrir a picada com a
derrubada de carreiras de árvores, que passavam então a ser desgalhadas. A acácia dava
mais trabalho do que o eucalipto, por apresentar mais galhos, mas em compensação a
madeira era mais fácil de ser cortada. Antes do corte, era preciso “metrar”. O serrador
deveria cortar na medida de um metro a madeira mais fina e de 2,20 metros a mais
grossa. Depois de descascada a madeira, a casca era amarrada e, então, começava o
carregamento do caminhão. Os operários trabalhavam sem uniforme nem qualquer
equipamento de proteção. A remuneração era conforme a quantidade produzida, mas
“era preciso muita prática para se defender” porque os acidentes eram freqüentes: cortes
no corpo com machado e facão, ferimentos provocados por árvores que caíam umas em
cima das outras. Permaneceu ali pouco mais de uma semana. Considerava que o “o
serviço era muito explorado”, “o mato era muito ruim” e a “alimentação, miserável”.
Todos os dias comiam arroz com batata e guisado cozido em fogo feito no chão para
cerca de vinte homens. Eles passavam a noite no acampamento, em condições
427
“desumanas”. Como ele tinha levado colchão e cobertor, sofria menos, mas havia um
homem já idoso, sem família, que sobrevivia do trabalho naquele mato: “E a vida dele
era naquele mato. Ele não tinha nada, nem um cobertorzinho. O travesseiro eram quatro
telhas e ele ficava próximo ao fogo para se esquentar”. Esse trabalhador tossia muito à
noite por causa do frio, mas no acampamento não havia remédios. No inverno rigoroso,
alguns colegas se recusavam a tomar banho e “fediam pior do que zorrilho”. Para o
banho, era preciso ir a um arroio a um quilômetro de distância. Como um dos colegas
que se recusasse, certo dia, Jefferson liderou a “rebelião”, na qual um grupo de
operários agarrou o colega e o levou à força para um banho no arroio.
À noite, sentados ao redor do fogo, contavam histórias e faziam brincadeiras,
num clima de camaradagem. Dormiam num barracão feito com paus de eucalipto e
armação revestida de lona. No interior, havia tábuas para colocar o colchão. Ele me
explicava que, nas empresas maiores, os trabalhadores recebiam uniformes, luvas,
capacetes, coturnos e perneiras para se protegerem de cobras. Mas essa onde ele
trabalhava era uma empresa clandestina, como tantas outras que havia por ali. Então, se
sofresse um acidente, não teria qualquer cobertura legal, diferentemente das empresas
registradas, que mantinham técnicos de segurança para reduzir os riscos. Ele sabia como
funcionavam os dois sistemas, mas tinha trabalhado quase sempre em clandestinas.
Neste período, um tio que mantinha comércio de carnes lhe disse que precisava
de alguém para trabalhar no caixa e perguntou o que ele fazia. O rapaz contou: “Eu
desgalho, carrego caminhão...” “Serviço de homem?”, “Serviço pesado!”, respondeu.
Trocou então de emprego, ganhando um salário mínimo, mas tinha a vantagem da
carteira assinada. Nessa época, nos fins de semana, ele freqüentava a danceteria do
Clube Butiá. Lá se envolveu com uma moça, com cuja amiga acabaria se casando
depois. Jefferson e Neca estavam namorando havia quatro anos quando ela engravidou.
Como a família dela era muito conservadora, Jefferson encontrou uma maneira de
manter o namoro: “Roubei a Neca”. Em meio ao seqüestro consentido, a mãe dela
desmaiou e os irmãos ameaçaram dar uma surra na moça e atacar o namorado. O casal
recebeu a solidariedade da família dele. Jango disse ao filho que fosse trabalhar e
manteve uma arma carregada em casa, caso tivesse que enfrentar os irmãos da moça:
“Aqui mando eu”, dizia. Meses depois, os jovens se casaram.
Jefferson tinha ido trabalhar no açougue de um supermercado, cortando carne,
onde recebia dois salários mínimos e meio. Recebeu então uma proposta de mais meio
salário mínimo em outro estabelecimento. Fez um acordo para que fosse demitido e aí
428
obteve parte do dinheiro para começar a construção de uma casa, que seria feita por
Jango, com suas artes de pedreiro. Ficou três anos no novo emprego, tentando quitar as
dívidas feitas para mobiliar a casa. Por causa de um acordo que não foi cumprido pelo
patrão, voltou a trabalhar “com mato” novamente. Saía de casa às 6h da manhã e
viajava duas horas de caminhão para chegar à floresta de acácias. Levava comida de
casa, mas, com o calor, muitas vezes o alimento azedava. Depois de alguns meses nesta
atividade, recebeu uma nova proposta do tio para que fosse trabalhar no matadouro e no
frigorífico. Montado a cavalo, Jefferson ia buscar no campo a vaca que seria abatida. No
início, ele não matava. Trabalhava numa plataforma onde deveria “desgarrar”, ou seja,
fazer riscos para retirar o couro do animal abatido. Ele me explicava que o abate era
feito com uma marretada na cabeça do animal, num sistema em que o bicho era
colocado num trilho para sangrar. Contava que, ao derrubar pela primeira vez um
animal, “tremia igual a ele; ele tremia e eu tremia também”.
Depois, eu me contaminei. Chegava um animal bem bravio, “essa ai ninguém
mata”, “essa é minha, eu quero matar ela!” Tinha que ser ninja ali. “Essa é
minha!” Eu descarregava a minha raiva e minha adrenalina.
Passada a resistência, passou a abater os animais sentindo certo prazer na
atividade. É interessante notar a expressão usada por ele, de ter sido “contaminado” pelo
gosto de matar um animal bravio. O uso do termo que, neste contexto, carrega o sentido
de “contagiar”, nos remete também simbolicamente à idéia de poluição e à polaridade
do sujo-limpo, puro-impuro,
542
que envolve uma atividade desse tipo e o próprio sangue
em algumas culturas. Assim como no ofício dos mineiros no subsolo estava envolvida a
descarga de adrenalina, isso se passava também naquele outro tipo que enfrentamento
entre o homem e a natureza. Era preciso ser “ninja”. É como se ele passasse de um
estágio no qual havia uma identificação com o animal a ser abatido – pois ambos
“tremiam” – a uma objetivação da tarefa. Neste sentido assemelhava-se à forma pela
qual os mineiros narram seu ingresso na mina, quando o medo acompanha a iniciação,
havendo o momento em que a pessoa “se acostuma” e “até gosta”.
A mudança de rumos em sua vida profissional aconteceu quando a mãe,
Julieta, ficou sabendo de um curso para vigilante na Capital. “É um trabalho limpinho,
anda bem arrumado e ganha razoável”, sugeriu-lhe. Deve-se notar que “limpinho”
(assim como “bem arrumado”), estabelecia um contraste com os trabalhos anteriores de
542
A esse propósito, deve-se evocar a obra de Douglas (1976) e de Turner (1974).
429
Jefferson, tanto no matadouro como no “mato”, quando tinha contato com o sangue das
reses ou com o pó e a terra no serviço com madeira. Ficou interessado, pois sabia que
um primo que já havia feito esse curso. Mas era preciso arrumar dinheiro para pagar as
aulas e o alojamento. A mãe conseguiu o dinheiro emprestado a juros com a madrinha
dele. Para não se desligar do emprego, ele negociou com o tio, proprietário do
matadouro, sugerindo abrir mão do 13º salário em troca de 15 dias de folga. Fez o
curso, recebeu o certificado homologado pela Polícia Federal e voltou para o
matadouro. Certo dia, sua mulher foi ao banco e comentou com o vigilante que o
marido tinha feito esse curso. O outro anunciou: “Então, diz pra ele não perder tempo,
que eu vou me aposentar amanhã”. Jefferson foi ao endereço indicado pelo vigilante,
mas recebeu a resposta de que ainda não havia vaga disponível.
Pouco tempo depois, ele voltava do matadouro, todo vestido de branco,
quando viu um carro estacionando em frente à sua casa. Desceu um senhor de
cavanhaque, com um cachimbo, e perguntou: “Carlos Jefferson...? Seu pai achou que
era alguém da Justiça e respondeu: “É meu filho”. Jefferson se apressou em dizer: “Não
fiz nada!”. Sua mulher, Neca, no entanto, tinha percebido que se tratava de uma
oportunidade de emprego. Então, o visitante anunciou que a seleção havia sido feita e
que Jefferson havia sido o escolhido. Devia se apresentar na segunda-feira pela manhã
na empresa. Quando soube que a vaga seria para Minas do Leão ficou numa alegria só,
lembrando que teria de agradecer ao antigo vigilante. Inicialmente trabalhava seis horas
no posto bancário, mas o salário ainda era baixo. A situação melhorou quando o posto
foi convertido numa agência bancária e ele pode incorporar horas extras, passando a
receber “um salário decente”. Algum tempo depois, fez um curso para segurança de
carro-forte, setor em que a média salarial é mais elevada. Submeteu-se a uma entrevista
e em seguida foi chamado por uma empresa de segurança para trabalhar em Caxias do
Sul. Mas já havia obtido o avanço salarial na agência bancária. Avaliava que, atuando
em carro-forte, embora ganhasse mais, estaria correndo maior risco de vida e teria ainda
de administrar um cotidiano agitado numa cidade grande. “Moro aqui num paraíso e não
estou sabendo”, pensou, antes de recusar a proposta. Segundo me contava, tinha ainda
uma inquietação: gostaria de voltar a estudar e de um dia tornar-se professor.
Como Jefferson, sua mulher, Gilvânia, a Neca, também era filha de um
empregado da CRM. Seu pai morreu de um problema cardíaco quando ela tinha sete
anos. Sua mãe, como outras viúvas da localidade, enfrentou sérias dificuldades para
criar os seis filhos. Neca, que fez seus estudos até a 5ª serie, aos 14 anos começou a
430
trabalhar como babá e, depois, fazendo trabalhos de limpeza. O casal estimulava os
estudos da filha, Vanessa, e também o desenvolvimento de seus dotes artísticos. No
período de nossa convivência, e menina de 14 anos fazia aulas de técnica vocal com um
professor na Grande Porto Alegre. Toda a semana, Jefferson acompanhava a filha
nessas aulas. O talento de Vanessa como cantora já surpreendia muita gente. Depois de
seis meses de aulas de canto, ela já se destacava em festivais de música nativista e de
música popular brasileira por sua interpretação. Na época de nossa conversa,
colecionava meia dúzia de troféus obtidos nesses festivais. Ela tinha vivido a
experiência de se apresentar para grandes públicos, cantando até para 50 mil pessoas.
Quem a escutasse interpretando a milonga Solidão não diria que se tratava de uma
menina: “Meu professor diz que eu tenho a voz igual à da Ana Carolina”
543
, me
contava, rindo. Um empurrão para desenvolver o talento tinha sido a freqüência da
família a uma igreja evangélica, na qual Vanessa se apresentava cantando músicas
gospel. Mas o gosto pelo canto ela havia desenvolvido ainda pequena “Quem me ajudou
foi a vó. Eu tinha quatro anos e ela cantava comigo no quarto”. Ressaltava que, na
família, as pessoas “não tinham vergonha” de se expor, mas no palco ela tinha que
superar constrangimentos. Lamentava que o povo ali “não se interessasse por cultura”.
Música, danças... não apreciam nada. Eles querem é o dinheiro. Eles só
pensam em dinheiro, dinheiro, dinheiro. Eles pensam mais: “Ah, porque
cultura não leva a nada”, “Cultura é coisa de quem não tem o que fazer”. Eu
acho que não! (...) Agora, quem tá administrando a secretaria de Educação é a
Sílvia Lasek. Ela tá dando mais espaço pra cultura, teatro, dança, música.
O universo da arte, descoberto por Vanessa, ainda despertava pouco interesse
entre boa parte dos moradores, mais afeitos às insurgências da vida prática e aos ganhos
materiais, que deveriam ser traduzidos na aquisição de bens de consumo. Além da
música, Vanessa fazia planos de seguir com os estudos. Pretendia cursar a faculdade de
Administração de Empresas e, depois, a de Música. Em sua geração, os planos de
ingressar num curso superior já eram vistos com maior naturalidade, embora as
dificuldades financeiras para pagar uma universidade privada ou mesmo os
deslocamentos a outra cidade representassem um problema. No início de dezembro de
2009, fui surpreendida por um telefonema de Jango, o avô de Vanessa. Ele me fazia um
convite: na semana seguinte Vanessa estaria lançando seu primeiro CD e iria se
apresentar num evento comemorativo na cidade. “Artista” das graças feitas na mina e
das “histórias” contadas na superfície, o ex-mineiro era um incentivador da neta.
543
Cantora brasileira de sucesso em gêneros como a MPB, bossa nova e samba.
431
8.4 ALEX: ENTRE O ESPORTE E A FORMAÇÃO TÉCNICA
Alex, com 24 anos à época de nossa entrevista, não pensava em trabalhar
numa mina de carvão. Em certo momento teve, inclusive, a perspectiva de se tornar um
jogador profissional de vôlei. A oportunidade de atuar como eletricista na mina de Leão
II, contratado por uma empresa terceirizada, surgiu em decorrência de sua busca por
formação técnica, paralelamente ao interesse pelo esporte. Conheci Alex num jogo de
futebol varziano, no qual ele era um dos jovens que compunha a equipe dos veteranos
do Olaria num enfrentamento com o rival, o Atlético, numa disputa gravada por uma
rede de televisão, em novembro de 2007. No ano seguinte, estive em sua casa, fazendo
uma entrevista com seu pai, o ex-mineiro Telmo Trindade Lopes – um dos “valentes”
com o facão nas antigas disputas em Minas do Leão
544
- e, na seqüência, com ele
mesmo, num restaurante da localidade, antes que iniciasse sua jornada. Alex me contava
que tinha saído da cidade para estudar e trabalhar e havia regressado em função de uma
proposta de emprego na mina. Dizia, brincando, que seu retorno à terra natal se devia ao
ditado: “Quem bebe água da sanga da Taquara não vai mais embora”.
Embora não imaginasse um dia trabalhar naquela atividade, freqüentemente
ouvia do pai que deveria estudar para que, posteriormente, pudesse ingressar na mina de
Leão II, ajudado pelas relações paternas – “eu te coloco pra trabalhar lá”. Não foi
exatamente o que aconteceu, mas Alex acabaria cumprindo algo dessas expectativas:
“Era o sonho dele”, enfatizava. Meu interlocutor tinha em torno de cinco anos quando o
pai se aposentou como mineiro em Leão I. Desse período, ficaram poucas lembranças.
O menino fez sua escolaridade numa escola local até completar o ensino fundamental.
Depois, não havendo ainda ensino médio na cidade, cursou o primeiro ano em Butiá,
cidade vizinha, o segundo em Porto Alegre e o terceiro em Santa Cruz do Sul. Na
ocasião da entrevista, freqüentava um curso de eletrotécnica na Escola Parobé, na
Capital. Havia sido incentivado a fazer o curso pelo chefe que o convidou para trabalhar
nas obras da mina. Esperava que sua situação melhorasse após o término do curso.
É o que pessoal fala, que um técnico eles querem mais do que um engenheiro,
que um engenheiro é um salário muito alto e não tem aquela noção prática da
coisa. E o técnico não. O técnico aprende as duas coisas: aprende
praticamente a mesma coisa que o engenheiro, só menos aprofundado, e tem
a noção prática da coisa. Ainda mais que eu já trabalho na área.
544
Ver capítulos 4 e 7.
432
Sua primeira experiência profissional, por volta dos 16 anos, havia sido na
CRM, num estágio do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) como
aprendiz de eletricista. Durante as férias do Senai, Alex fez testes para ingressar na
equipe de voleibol da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), em Canoas. Foi
aprovado e ficou dois meses treinando com a equipe. Quando as aulas foram retomadas,
teve de optar. “O Senai seria mais certo, não sei se mais certo... É que o vôlei é incerto,
com certeza. Tive que optar e não me arrependi, hoje eu trabalho”, mencionava, rindo
do sentido de que “jogar” não seria naquela cultura o equivalente a um “trabalho”.
Freqüentemente, entre filhos de operários da localidade, escutei essa referência de que
seria preferível apostar “no certo”, ou seja, no trabalho na fábrica ou na mina muito
mais do que no esporte ou nas artes. Muitas vezes, esse discurso provinha dos pais, para
quem “nada nunca caiu do céu”, pois era gente que aprendeu que “para ter alguma coisa
era preciso trabalhar duro”. A própria concepção de “trabalho” está relacionada à
experiência familiar, na qual, como foi dito, o esporte é visto como o não-trabalho.
No caso de Alex, o interesse pelo esporte surgiu através de uma escolinha de
futebol montada pela companhia carbonífera para treinar filhos de mineiros. Recordava-
se que, quando tinha seus nove ou dez anos, a CRM contratou um técnico para ensinar
os meninos no campo de futebol do Atlético. Em certa época, o projeto envolvia cerca
de 200 garotos. Os que se destacavam eram encaminhados para testes no Internacional e
no Grêmio, em Porto Alegre. Já a motivação para o vôlei foi despertada depois que a
seleção brasileira conquistou a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de 1992. Alex me
contava que, depois disso, houve uma “febre” do vôlei na localidade. Uma quadra
improvisada foi montada na areia, com uma corda amarrada em duas taquaras. Depois, a
prefeitura providenciou uma infra-estrutura mais adequada. Muitos, além dele,
praticavam o futebol e o vôlei paralelamente. Ele acabou se destacando na segunda
modalidade, favorecido tanto pela habilidade como por sua altura.
Depois daquela formação do Senai, o rapaz obteve uma proposta de trabalho
do Instituto Padre Reus, na cidade gaúcha de Santa Cruz do Sul. Seu papel era ajudar a
esclarecer as dúvidas dos alunos do curso de eletricidade, tendo à sua disposição os
arquivos da escola. Nesta época, seus pais o acompanharam na mudança de cidade.
Algum tempo depois, recebeu uma proposta para trabalhar como eletricista numa
metalúrgica de Porto Alegre, fabricante de componentes automotivos. Avaliava que sua
experiência em Santa Cruz havia sido mais teórica do que prática e ali, finalmente, ele
teria de encontrar soluções para os problemas daquele universo em meio a um processo
433
industrial. “Aí eu vi que a eletricidade não era tão fácil assim, ainda mais numa
metalúrgica, que não pode parar de jeito nenhum. Quando dava alguma coisa, tinha que
ser rápido e certeiro, não podia errar”. Ao mesmo tempo, essa experiência de dois anos
foi lhe conferindo domínio técnico e confiança profissional. Certa vez, passando o fim
de semana em Minas do Leão, foi procurado por Jocely, dono de uma empresa
terceirizada que presta serviços à Carbonífera Criciúma
545
na preparação das galerias da
mina de Leão II - ele próprio um ex-mineiro que tive oportunidade de entrevistar anos
antes. Jocely quis saber se Alex estava trabalhando e lhe fez uma proposta sobre um
“projeto novo” que estava desenvolvendo na mina, com “gente nova”. Embora o salário
oferecido fosse do mesmo patamar do que já recebia, Alex considerou a proposta
vantajosa, pois poderia morar com os pais e economizar o dinheiro do aluguel.
Os primeiros tempos de trabalho no subsolo foram tão duros que ele quase se
arrependeu da mudança. Como as galerias escavadas a 180 metros de profundidade
estivessem inundadas, a primeira coisa a fazer era retirar aquela água armazenada.
Quando eu cheguei lá, meu Deus, aquilo é uma babilônia! Eu olhei pra aquilo
lá: “Meu Deus do céu, eu fui me largar de Porto Alegre pra vir pra cá pra esse
buraco cheio d’água?!” (risos) Tinha galerias em que a água ia até o teto.
Tinha que entrar ali com uma bomba nas costas, pra botar uma bomba lá na
frente pra tirar a água. Só de cueca e de botas, era brabo, com uma água que
tá ali há vinte anos... Tinha que ser no peito mesmo! (...) Aí o cara pára pra
pensar: como que era na época? Era pior? Era parecido com isso? Aí começa
a ter uma noção... que o pessoal fala que trabalhar na mina era ruim ou era
uma coisa difícil. (...) Há pouco tempo a gente parou o poço norte, chamado
assim na mina, era um túnel sem saída, tava um pouco minerado, lá na frente
tem um paredão. Ali suava parado, não precisava fazer nada, vertia água. (...)
Mina de
Leão II:
operador
de máquina
trabalha
para abrir
frente de
extração
545
Como mencionado, a Carbonífera Criciúma arrendou a mina da CRM, que é a detentora da concessão.
434
A atividade penosa e insalubre, similar à dos primeiros tempos, remeteu-o a um
jogo de memória em relação à descrição que era feita pelo pai sobre seus tempos na
mineração. Sentia que agora podia ter ao menos uma noção do que aqueles mineiros
enfrentaram em seu cotidiano. Ele comentava que os trabalhos de drenagem, de
desobstrução e de ampliação de uma galeria tinham sido manuais, “no braço mesmo”,
“uma coisa de louco”, tal como o esforço que caracterizava o trabalho da mina de outros
tempos. Depois de uma fase de esforços extenuantes, considerava que “o pior já tinha
passado”. Feita a montagem da parte mecânica, seria o momento da instalação elétrica.
Segundo me explicava, a mina estava sendo preparada para produzir carvão para
abastecer a usina termoelétrica de Jacuí I, no município de Charqueadas, cujas obras
estavam igualmente paralisadas havia duas décadas. Um grupo estrangeiro estava
investindo na usina, o que gerava expectativas – apesar dos desencantamentos e
descrenças acumuladas – em relação a um possível mercado para o carvão.
Paralelamente à sua vida profissional, Alex continuava a jogar futebol em
equipes amadoras, atuando no Farroupilha, de Butiá, e no Olaria, de Minas do Leão. No
Olaria, seu “time do coração”, ingressou aos 20 anos na própria equipe de veteranos,
inicialmente como goleiro e depois como quarto zagueiro. Depois, passou a jogar
também no primeiro quadro, equipe que não mantém, contudo, uma atividade regular.
Alex me contava que cresceu acompanhando a rivalidade entre Olaria e Atlético: “O
pessoal daqui de baixo era o Atlético, o pessoal lá de cima era o Olaria. Sempre existiu
[a disputa], não é de agora”. Os termos que utiliza, sobre o pessoal “de baixo” como
pertencendo ao Atlético, e o “de cima”, como correspondendo ao Olaria, baseando-se
nas características do relevo, poderiam ser considerados ao inverso para uma leitura das
diferenças sociais da comunidade. Como mencionado nos capítulos 4, 6 e 7, essas
disputas chegavam às raias da violência no passado, quando os grupos de “valentes” se
enfrentavam pelas ruas da cidade. Alex acabou por integrar a equipe de futebol
adversária àquela defendida pelo pai. Tinha em comum com ele o ingresso na mina, mas
tanto suas trajetórias profissionais como seus temperamentos eram diferentes: “Pra me
tirar do sério, precisa muito. Eu já nem procuro briga. (...) Eu sou mais de apaziguar do
que de brigar”. Ao refletir sobre as diferenças entre sua geração e a do pai, dizia:
Alex - Na época, era uma questão de honra, até, saber manusear o facão.
- E hoje, pra tua geração, onde estaria a questão de honra?
Alex – Hoje, na verdade, é até uma lei aqui: tem que sair daqui, procurar
alguma coisa fora daqui, sei lá, Porto Alegre, ter uma formação e voltar pra
cá, aí sim, botar em prática o que aprendeu. Seria uma questão de honra hoje
aqui. Aqui não tem nada e isso é a visão de mundo: “Ó, vai embora, vai
435
estudar, vai te virar, depois tu volta, ou fica por lá”. O negócio é melhorar a
tua vida profissionalmente, financeiramente. Essa é a questão de honra hoje.
Ele sugeria que as habilidades com o facão, das quais se orgulhavam os
mineiros do passado, podiam ser vistas como a “questão de honra” daquele tempo.
Adotei sua formulação para tentar compreender a mudança de valores em sua geração.
Ele se referia à migração temporária como um imperativo. Eu lhe perguntei então se
esses esforços redundavam, de fato, numa maior valorização dos jovens na localidade.
Alex - Creio que sim. Até pra ti ter um posto maior dentro da cidade. Que
aqui tu pode ter uma popularidade grande, ser bem aceito e tudo, mas a
popularidade tem os dois lados: tem o lado que tu é bem aceito, mas tamm
pode não ser...
- Pode ser popular, mas não bem aceito?
Alex – Eu penso assim, não só aqui no Leão, em qualquer lugar, pra ti ter
uma base e manter.
Ele deixava claro que a permanência naquela comunidade poderia gerar uma
“popularidade” maior, tornar a pessoa mais conhecida. No entanto, ponderava que a
popularidade não significava necessariamente a aceitação ou a obtenção de prestígio. É
preciso ressaltar que tais pistas vão ao encontro do que venho discutindo ao longo desta
tese, especialmente no capítulo 1, no que diz respeito à construção das reputações. Em
comunidades ditas face a face, ser conhecido de todos não garante a ninguém que
angarie mais simpatias do que desconfianças. Sob o pano de fundo destas
representações, há uma crença de que o que vem do exterior da comunidade deve ser
mais valorizado do que o conhecimento produzido ali. Tendo se ausentado durante
alguns anos, Alex tinha alargado seus horizontes e obtido uma formação técnica
respeitável. Mas ele se beneficiava também de certa popularidade conquistada através
do esporte, no vôlei e no futebol: “É bom ter um conhecimento... se relacionar com o
pessoal como a gente faz, joga com o pessoal de toda a região. É bom pra conhecer
gente e tu ganha um pouco de prestígio também. O pessoal está te vendo jogar”. O jogo
que ele tinha aprendido era tanto esse de dentro do campo como também aquele que
ensina aos jovens como se construírem como profissionais. Alex mantinha o projeto de,
futuramente, ingressar numa faculdade de engenharia elétrica, mesmo que tivesse de
fazer sacrifícios para conciliar estudos e trabalho. “Pra tudo tem que pagar um preço.
Estou no meio dessa correria agora pra colher lá na frente. Estou plantando”, ele me
dizia. Seu relato traduz bem o esforço que filhos de mineiros têm feito para obter uma
formação que lhes permita exercer uma profissão – no caso dele, dentro, mas, para a
maior parte, fora da mina. O acesso dos jovens à universidade ainda enfrenta muitos
436
obstáculos, objetivos e subjetivos, principalmente no caso dos descendentes masculinos,
havendo na localidade maior número de moças que chegaram ao nível superior.
Outro aspecto a se ressaltar é que esses “novos mineiros”, contratados por
empresas terceirizadas – como o caso de Alex e tamm de André, o ex-jogador de
futebol referido no capítulo 7 –, enfrentam condições de trabalho bem mais penosas e
precarizadas do que aquelas experimentadas por seus pais na CRM. Esses jovens, no
entanto, abraçam essas oportunidades de trabalho, cientes de que se tornaram escassas.
Em alguns casos, o sentimento de suceder ao pai na mina ainda mantém seus resquícios.
8.5 ADELVINO: O MINEIRO VISTO COMO UM ANTI-HERÓI
Boa parte das minhas viagens a Minas do Leão,
foi feita em ônibus. Eu descia na rodoviária de
Minas do Leão ou ali embarcava para ir a Porto
Alegre. Em várias ocasiões, tive a oportunidade de
conversar com Adelvino e sua mulher, Diarone,
que administram a rodoviária da localidade. Suas
impressões sobre a vida da comunidade e sobre a
profissão de mineiro sempre me intrigaram por
sua profundidade e perspectiva crítica. Numa
entrevista, descobri que Adelvino era filho de
mineiro que trabalhou nas minas de Arroio dos
Ratos. Seu pai começou a trabalhar na atividade em 1954, quando meu interlocutor
tinha três anos. Cerca de 40 dias depois do ingresso na mina, ele morreu atingido por
um desabamento. “Minha ligação com a Copelmi existe a partir desta data”, contava
meu informante. Sua mãe estava grávida de uma menina e teve de criar os filhos
enfrentando o luto do marido morto.
Adelvino - Então, a gente cresceu com essa idéia do pai-mito, do pai-herói.
Mas este foi apenas um dos casos da mineração. Esses números não são quase
divulgados, mas morreu muita gente no trabalho de extração do carvão. Lá
por 1955, 1956, começou o processo de processo de transposição de Arroio
dos Ratos para Charqueadas. Essa história do carvão mexe muito com o
emocional, porque quando a gente olha para trás é inconcebível que uma
companhia monte habitações nos seguintes moldes: casinhas de 5,50 por
5,50, ou seja, 32 metros quadrados com quatro peças para famílias que eram
tradicionalmente grandes. Famílias com seis pessoas eram consideradas
famílias pequenas. E aquela era a situação da mineração. Hoje, é inconcebível
olhar para trás e constatar que o salário que o carvão pagava era mísero, mal
conseguia manter o sustento da família, então havia algumas coisas, alguns
437
benefícios indiretos. Um deles era a cooperativa dos mineiros. Essa
cooperativa vendia no caderno, com o sistema de desconto em folha, às vezes
a gente se enforcava e aquilo era parcelado em diversas vezes. (...) O que me
choca é que aquele período que veio de 1915 até 1945, em torno disso, era o
carvão de Arroio dos Ratos que abastecia os navios da Marinha, os navios do
Lloyd e a usina termoelétrica de Porto Alegre. Então, nessa fase de apogeu,
só quem ganhou dinheiro foi a empresa que hoje se chama Copelmi. Então, a
Copelmi como sucessora do Cadem, já ultrapassou um século de extração do
carvão na região.
- E pouco dessa riqueza...
Adelvino – Muito pouco ficou nas mãos dos mineiros. Tem-se uma idéia
diferente, pensa-se que a mineração dava dinheiro porque em alguns casos
aqui em Minas do Leão, que era uma mina do Estado e terceirizava muitas
tarefas, utilizava muito capataz que contratava, por sua vez, suas turmas de
trabalho. Esses capatazes ganhavam um pouco mais, mas não restou nada
disso. A cidade começou a melhorar de aspecto exatamente quando cessou o
trabalho da mineração.
Se o funcionamento da cooperativa era um dos benefícios oferecidos pelas
companhias, nos relatos de outros informantes há a menção de que esta era conhecida
como “jibóia” porque comia boa parte dos salários dos mineiros. Depois da morte do
pai de Adelvino, quatro tios ainda ingressaram na mineração. Nesse período, sua família
foi morar na casa do avô, que tinha uma origem rural. Ele recordava que, depois do
fechamento da mina em Arroio dos Ratos, a companhia tentou demolir a chaminé da
usina termoelétrica usando dinamite. No entanto, mesmo com a explosão, a chaminé
continuou de pé, vindo a cair somente anos depois. Contava-me que, em 1947 ou 1948,
a empresa havia instalado na localidade uma escola do Senai para formação técnica de
filhos de operários. A idéia era fornecer cursos de aperfeiçoamento para funções na
mina, como de mecânica, eletrotécnica, etc. Os alunos eram selecionados entre os filhos
dos melhores funcionários da companhia. No entanto, algo teria saído errado naquele
projeto, porque “os professores ensinaram os alunos a pensar” e esses começaram a
questionar as atividades da empresa. Quando houve o encerramento das atividades da
mineração na localidade, com o pessoal sendo transferido para Charqueadas, a escola do
Senai foi fechada, mas algumas heranças permaneceram. Os jovens que dali saíram
encarariam a mina de outra forma: “Eles eram vistos como comunistas e isso, na época,
era muito ruim. Era como o sujeito ter nascido com quatro braços. Eram monstrengos”.
Dessa geração, citava exemplo de gente que trabalhou para mudar aquela sociedade.
Quando criança, Adelvino ia com os amigos explorar os prédios abandonados
da mina, ainda lotados de documentos, como as velhas fichas funcionais com as
fotografias dos trabalhadores. Considerava aquilo um local precioso, que guardava as
438
memórias daqueles trabalhadores. Numa ocasião, depois de entrarem pela janela num
prédio onde funcionara o almoxarifado, os meninos encontraram uma maquete da
companhia. Decidiram levá-la para a biblioteca da escola. Dias depois, quando tinham
conseguido uma carroça para transportá-la, ingressaram novamente no prédio. A
maquete havia sido destruída. Dessas explorações da infância, lembrava-se do poço 5,
onde havia um túnel “magnífico”, por onde os garotos ingressavam fascinados com
aquele mundo que ficara para trás.
Num tom dramático, meu informante narrava o “abandono cultural” que foi
tomando conta das comunidades erguidas em torno do carvão. Contornando os prédios
gigantescos, as vilas mineiras viviam em condições precárias, com horizontes limitados.
Havia este vasto município da época, que era São Jerônimo, um posto de
saúde lá, um ginásio lá. O Estado contribuiu com algumas escolas de 1º grau,
mas era um cenário montado para que o filho de mineiro pensasse como
mineiro, agisse como mineiro e só quisesse trabalhar como mineiro.
Com o fim da mineração na localidade, em 1958, o descaso com a região
tornou-se tão grande que, a seu ver, os próprios moradores internalizaram o sentimento
de serem “coitados”, de terem sido “abandonados” à própria sorte. Nos anos 1970,
ressurgiu a produção e o beneficiamento do arroz, num local onde a agricultura e a
pecuária tinham sido fortes. Para além da vida rural, já não tinham outras perspectivas.
No entender de meu interlocutor, o que seria possível aprender com a história dessas
comunidades é que “o carvão não vai gerar riqueza para quem trabalha nele, mas
exclusivamente para o explorador”. Citava como exemplo a cidade vizinha de Butiá,
mencionando a sua “miséria”. Na localidade que abriga a maior parte das minas a céu
aberto da Copelmi, o carvão ainda é extraído “a pleno”. Algo que o chocava era o fato
de que, ao invés de oferecer à natureza uma contrapartida no sentido de devolver a
fertilidade ao solo, a empresa havia instalado um “depósito de lixo”. Ele se referia à
implantação, feita pela Copelmi, anos antes, de uma “central de resíduos” – referida por
muitos moradores como o “lixão” – no município de Minas do Leão, que foi aprovada
pela prefeitura municipal, mas que causou grande polêmica entre a população. Adelvino
se preocupava com o futuro do meio ambiente da na localidade. Observava que, com o
desemprego, “as pessoas fazem promessas a tudo quanto é santo para trabalharem no
lixão”, pois a cada vaga surgida, há uma fila de pelo menos 30 pessoas disputando.
439
Por causa do histórico das empresas carboníferas na região, Adelvino dizia
“tremer de medo” a cada vez que ouvia alguém falar que a mina de Leão II entraria em
funcionamento acreditando que fosse a “salvação” da comunidade. Poderia gerar novos
empregos, mas um projeto como aquele, a seu ver, geraria outras formas de miséria.
“Porque a falta de escolaridade é muito mais danosa do que a falta de comida”,
sustentava. Em sua própria trajetória, Adelvino fugiu ao destino da mina. Ele me
explicava que, como sua mãe ficou muito “traumatizada” com a perda do marido, não
As reações ao “lixão”
Como mencionei, é escassa na comunidade a percepção de “poluição
ambiental”, mas esta surge relacionada à instalação, nos anos 1990, deste aterro
sanitário que recebe o lixo de 30 cidades da Região Metropolitana de Porto Alegre
- e que resultou de polêmico acordo entre a prefeitura e a mineradora privada que
buscava cobrir cavas abertas pela extração. Nos primeiros anos de funcionamento
do “lixão”, eram cerca de 900 toneladas de lixo doméstico por dia que chegavam
ao aterro. Quando a notícia vazou, a cidade dividiu-se em que ficou contra, a favor
e os que não tinham opinião formada. Uma mobilização contra a instalação do
“lixão” levou moradores e manifestantes até Porto Alegre. Ações judiciais foram
impetradas, mas acabaram sendo derrubadas na Justiça. Ainda que a geração de
empregos e a arrecadação de impostos sejam os argumentos usados para legitimar
o acolhimento, pela administração municipal, da proposta da mineradora, tal
acordo firmado pelo prefeito, com o apoio de vereadores, figurou durante algum
tempo em segredo até vir à tona, trazido pela oposição, durante uma disputa
eleitoral para o governo local. Um dos vereadores que havia apoiado o acordo
afirmava que as reclamações da população em torno do mau cheiro gerado pelo
aterro não eram procedentes. Segundo ele, a “central de resíduos” era monitorada
pela Fepam e não estaria trazendo prejuízos à comunidade. De qualquer forma,
enfatizava que se houvesse algum prejuízo seria preciso considerar que trazia
vantagens: “Não existe o progresso sem... algum tipo de prejuízo”.
O tema suscita o conflito de, pelo menos, duas lógicas. Uma posição
contrária era manifesta por moradores que temiam conseqüências em longo prazo
para o meio ambiente da região, como é o caso do ex-mineiro José Selbach, que
não se conformava de que a cidade estivesse sendo “entupida de lixo”. Ele
participou de mobilizações em Porto Alegre contra a iniciativa e chegou a se
desvincular do partido do governo municipal em protesto contra o acordo. Temia o
impacto que isto teria no futuro: “A população que tá nascendo é que vai sofrer”,
dizia. ”Não gera emprego pra Minas do Leão. Quem ganha é a Copelmi, que tem
que desmatar e deixar parelho.(...) Em certos dias, há um fedor ali que ninguém
agüenta”. No período em que morei na cidade, pude comprovar a existência do
mau cheiro, mesmo morando a quilômetros da central. A outra lógica é
econômica, expressa por alguns políticos da localidade, que vêem a central de
resíduos como um bom negócio, já que aumenta a receita do município e oferece
dezenas de empregos. Poderia se falar ainda de uma terceira lógica, mais insinuada
do que afirmada, dizendo respeito à subordinação política de governos municipais
diante da empresa que, atualmente, é a maior mineradora da região. Como dizia
um ex-mineiro sobre a Copelmi: “È um poder, firma muito rica, poderosa”.
440
suportaria a idéia de que o filho fosse trabalhar na mineração. Dessa forma, ele pôde se
dedicar aos estudos. Contava que, aos dez anos, já tinha devorando a literatura infantil
que havia na biblioteca da escola. Poucos anos depois, já tinha lido os grandes clássicos
disponíveis na biblioteca. Sua mãe costumava dizer: “Esse guri vai ficar louco de tanto
ler”. Aos 14 anos, durante a ditadura militar, ele passou a integrar um grupo de estudos
no qual eram discutidas obras de Karl Marx e as propostas do Partido Comunista
veiculadas no jornal A Voz Operária, publicação que chegava à região por meio de um
advogado do sindicato dos mineiros. O grupo de cinco ou seis garotos depois passou a
fazer teatro, preparando peças que eram encenadas na localidade.
No início dos anos 1970, Adelvino mudou-se para Porto Alegre e conseguiu
um estágio numa rádio local, mantendo uma militância política. Em 1972, quando
contava com 21 anos, foi indiciado por subversão e a polícia freqüentemente fazia
rondas em frente à sua casa. “O Partidão era muito forte, mas tem uma coisa: a beleza
do Partidão era a clandestinidade. Quando botou a cara na rua, não teve aceitação
popular”. Depois de uma aproximação com os comunistas, ele passou a militar no
MDB, retornando a Arroio dos Ratos para fundar o setor jovem deste partido. Passou
por diversas atividades profissionais: depois de trabalhar em empreiteira da Aços Finos
Piratini foi vender publicidade para um jornal da região. Nos anos 1980, ingressou na
faculdade de Jornalismo, mas não pôde concluir o curso. Depois, ainda participou do
projeto de um jornal na região litorânea que, depois, foi afetado pelo confisco da
poupança promovido pelo governo Collor. Desde 1979, estava casado com Diarone,
nascida na mesma região. Eles tiveram dois filhos. Um menino morreu de leucemia
antes de completar dez anos. A filha cursava Geografia na UFSM.
Ao falar de suas raízes, meu interlocutor mencionava que os moradores de
Arroio dos Ratos, “apesar de todas as perdas, de todas as lutas”, tinham orgulho de sua
condição. Com mobilizações, a comunidade conquistou uma escola de ensino médio,
um curso técnico em contabilidade, e algumas indústrias. Considerava que a população
de Arroio dos Ratos se mobilizava mais do que a de Minas do Leão. Um exemplo
seriam as imensas greves realizadas no passado pelos mineiros da primeira localidade.
Os fura-greves habitavam a chamada “Rua dos Carneiros” – uma referência à área de
construções de melhor qualidade que teriam sido concedidas pela companhia como
prêmio a esses trabalhadores. Entendia que, em Minas do Leão, prevalecia o
“paternalismo” na forma como a cidade foi construída: até para a troca de uma lâmpada
eram necessários os serviços da estatal. Neste universo, entendia que a revolta tinha
441
ficado “inconsciente”, aflorando na memória principalmente o encantamento tal como
no título do romance Como era verde o meu vale. Ao referir os moradores de áreas mais
pobres do município considerava que eles foram “parte da tragédia”, mas sem vê-la.
A partir de uma questão feita por mim se os trabalhadores nas minas poderiam
ser considerados como “heróis do trabalho”, meu interlocutor julgava que se tratava,
antes, de “anti-heróis”, porque teriam sido, em parte, responsáveis pelo fato de a
mineração ter exercido um processo tão opressivo. Mas avaliava também que havia
“muita lenda” em torno dos riscos enfrentados pelo mineiro, entendendo que não seria
correta a aposentadoria especial após 15 anos para quem trabalhasse nas frentes de
produção. Indicava ainda a existência de “trambiques” dos quais muitos mineiros
lançavam mão para buscar uma aposentadoria por invalidez mesmo sem sérios
problemas de saúde. Considerava que a “Lei de Gérson”, de levar vantagem em tudo,
vigorava na cultura da população mineira.
Em Ratos [Arroio dos Ratos], a meninada trabalhava no máximo quatro ou
cinco anos e tinha aqueles médicos especializados em dar atestado de
incapacidade pro cara se aposentar – incapacidade física, mental, auditiva,
visual. Um parente meu aposentou-se por cego. A cada vez que ele tinha
revisão, ele colocava uns óculos de sol e alguém ia levando ele pelo braço.
Houve muito trambique, mas muito trambique mesmo.
Histórias sobre acidentes que teriam sido forjados, de ferimentos propositais
para obter uma licença médica, foram mencionadas algumas vezes nos depoimentos de
meus informantes. Serviam para mostrar que esses trabalhadores tinham aprendido
alguma coisa sobre como funcionavam as regras naquele universo. Tais relatos eram,
sobretudo, uma manifestação da “esperteza” e da “inteligência” que buscava extrair da
empresa um pouco do que ela própria retirava dos trabalhadores: suas forças, sua saúde,
seu trabalho e os longos anos passados no subsolo. Fosse qual fosse a motivação,
parecia pôr em cena traços de uma honra relacionada às artes da malandragem.
Narrativas que ouvi deste tipo continham em geral a convicção de que a justiça estava
sendo feita. Se, por vezes, essa revanche tinha um caráter impessoal, em outras figurava
como uma espécie de vingança à estrutura patronal e a chefes autoritários.
442
8.6. ADEMAR: ROMPENDO LIMITES CULTURAIS
Como Adelvino, outros filhos de operários chegaram à universidade. Entre eles,
Ademar de Souza Leites, funcionário da CRM que trabalhava no setor de almoxarifado.
Durante minha etnografia, ele, que era
sindicalista, ocupava também a secretaria-geral
do PT de Minas do Leão. Filho de mineiro,
Ademar perdeu o pai assassinado quando tinha
quatro anos de idade.
546
Depois de alguns
anos, sua mãe se casou novamente com um
viúvo, também mineiro, que já tinha oito
filhos, muitos dos quais seguiram a profissão.
O primeiro emprego de Ademar foi na padaria
da família Custódio, no centro da vila operária,
onde também trabalhavam Acimar, seu irmão,
e Hermes, filho do padrasto. Ademar ingressou
na companhia carbonífera no dia em que completou 18 anos, puxado pelo irmão que
estava sendo contratado. Ali começou fazendo a manutenção das lanternas dos
trabalhadores, depois passou a serviços gerais e atuou ainda na descarga de carros no
trapiche. Antes de ingressar no setor administrativo, fez um “estágio” no cafezinho, uma
espécie de ritual de passagem obrigatório daquele período. Depois disso, atuou cerca de
oito anos no projeto de implantação da mina de Leão II, até os anos 1990. Em meados
daquela década, disputou pela primeira vez uma eleição sindical, como tesoureiro da
entidade. Em um universo de quase 4 mil trabalhadores, sua chapa venceu por 51 votos
de diferença num pleito de disputa acirrada. Ele havia participado de todas as greves da
categoria ocorridas a partir de 1979. Recordava-se especialmente da paralisação
ocorrida entre 1989 e 1990, que durou 37 dias, mas que teria sido “furada”. O
movimento iniciado na Copelmi ganhou a adesão dos trabalhadores da CRM, sem a
obtenção de avanços significativos. A seu ver, uma greve “positiva” tinha ocorrido em
1979, quando a categoria havia conquistado 100% de aumento nos salários. Neste
período foi criado o primeiro Plano de Cargos e Salários na estatal.
Ademar foi trabalhar no subsolo da mina, entre julho de 1997 e maio de 1999.
Em seu relato, recordava essa experiência.
546
As circunstâncias da morte do pai foram descritas no capítulo 5, no relato feito pelo irmão, Acimar.
443
Ademar – A primeira descida foi assustadora, assustadora, né. (risos)
Então, a gente até se perguntava como é que o pessoal não arrumava
um outro meio pra... pra ganhar a vida, né. É exatamente isso aí. A
gente tinha aquela idéia de que quem é obrigado, tudo bem, mas tinha
muita gente bem de dinheiro. Nós tínhamos um colega que tinha sítio,
criação de gado e tudo, e tava lá como mineiro, e nós apavorados: “Por
que ele não vai cuidar do sítio dele, né?” Mas só que a mina ela
contagia, viu? Depois de tu ir uma vez, tu quer voltar lá todo dia.
- Por quê?
Ademar – Eu não sei. Eu não sei. Ela tem uma peculiaridade assim que
atrai a gente. O cheiro da mina... Por isso que o pessoal antigo tem
saudade da mina. Eu acho que é isso aí.
Outro aspecto ressaltado por ele era a proximidade e a solidariedade dos
colegas de trabalho, tanto pelo local como pela condição perigosa. “É um mundo à
parte, então o pessoal se relaciona melhor. Não tem aquela disputa, até porque todo
mundo é igual”. Ademar fez um curso de Técnico de Segurança do Trabalho e chegou a
atuar nessa função. O departamento de segurança da empresa havia sido criado em
1978, logo após uma série de acidentes fatais ocorridos no subsolo. Ele me explicava
que, no final dos anos 1980, “terminou a mortandade com a mecânica da rocha”,
quando a convergência do teto passou a ser estudada através de um programa de
computador, permitindo prever um caimento. Segundo ele, a técnica eliminou
praticamente os acidentes fatais, restando casos de outra natureza. Antes mesmo de a
empresa adotar os equipamentos de proteção obrigatórios, tais como as máscaras,
Ademar, filho de costureira, carregava sua própria máscara feita pela mãe na sua
atividade de descarga do carvão. Via que, depois de introduzida a obrigatoriedade de
tais equipamentos, muitos colegas faziam “vistas grossas” ao uso, acreditando que
atrapalharia o ritmo de produção. Destacava que a atividade é classificada como “risco
máximo”, embora as minas gaúchas não fossem tão perigosas como as existentes em
outros países, como, por exemplo, na China. Mesmo assim, freqüentemente ouvia de
visitantes que “só loucos para trabalhar lá embaixo” da terra. Notava, de fato, a morte
precoce de mineiros: “para cada dez viúvas, há um viúvo nesta cidade”.
Depois de uma interrupção de três anos, ele voltou a integrar a diretoria do
sindicato dos mineiros. As articulações para criação do Partido dos Trabalhadores na
cidade começaram em meados da década de 1990. “Nós vimos essa necessidade porque
o sindicato era comandado pelo pessoal do governo, pessoal de direita, pessoal do PPB.
E nós, eu e o Rosalvino, fomos contrários àquele conchavo com o patrão. Ali que a
gente começou a ter essa visão de... de Partido dos Trabalhadores”. Ele se filiou à
444
legenda em 1999, embora antes disso tivesse se engajado na campanha ao governo do
Estado. Nesse período, recebeu uma ordem de transferência para Candiota, vista como
uma punição: “Era quase repressão por eu ter apoiado o Olívio”. Com a mudança de
governo e a vitória do PT, a transferência não foi efetivada. A decisão de fechamento do
subsolo foi tomada no governo petista, em 2002, a partir de uma análise de que a mina
estava “exaurida” e “deficitária”: a extração da tonelada de carvão custava à empresa
R$ 191 e era vendida a R$ 46. Ademar ressaltava que, como a CRM é uma empresa
pública, a maior parte dos mineiros tinha a tendência a ser governista e mudar de partido
conforme as legendas no poder. Por outro lado, a direção da companhia teria mantido,
entre 1980 e 1990, a prática de contratar trabalhadores que eram admitidos antes das
eleições e demitidos depois, provocando “inchaço” da máquina e posterior
esvaziamento. As gestões do PDT e do PMDB teriam sido, a seu ver, problemáticas, o
primeiro em relação à gestão financeira, e o segundo, pelos planos de privatização.
Considerava que, na companhia, havia dois tipos de funcionários: o que não
quer se envolver em questões políticas e o que manifesta suas posições, enfrentando
inúmeras dificuldades. Ademar me contava que, em 1987, no governo Pedro Simon, a
empresa passou a adotar práticas de represálias aos trabalhadores com posição política
contrária à da direção por meio da colocação em “geladeira”. Ele ressaltava que, quase
todas as “maldades” eram feitas por exigência de pessoas de fora da empresa, de
“políticos” descontentes com a posição de funcionários. Uma das vítimas desse assédio
moral foi seu irmão, Acimar, considerado um profundo conhecedor do beneficiamento
do carvão e que ficou quatro anos “no gelo”, sem poder executar a sua função.
547
Meu
interlocutor ressaltava que, nessas circunstâncias, não é apenas o trabalhador quem
perde, mas também a sociedade, porque ele continua recebendo seu salário sem produzir
e sem gerar benefícios. Outro de meus interlocutores, no entanto, mencionava que as
“perseguições” teriam partido do PDT num período em que ele era do PDS.
Mencionava a pressão para que os mais de 30 encarregados votassem no partido do
governo: “Embaixo da mina, era contra a faca; ou vota ou é degolado”.
Em sua trajetória pessoal, Ademar tinha enfrentado a estranheza e os
julgamentos alheios quando, depois de adulto, decidiu continuar seus estudos. Em 2002,
aos 42 anos, ele prestou vestibular e ingressou num curso superior. Chegou a cursar dois
semestres da faculdade de Ciências Políticas. Rompia, assim, com uma visão dominante
547
Algumas informações sobre a trajetória de Acimar foram fornecidas no capítulo 5.
445
herdada de uma cultura em que os mineiros aposentavam-se antes dos 40 anos e, em sua
maioria, davam por encerrada sua tarefa e as possibilidades de ascensão social. Ele
citava os comentários que ouviu de parentes e amigos: “Não, o que tu quer agora?”;
“Agora que tem que ficar quieto em casa!”; “É, colocando dinheiro fora”; “Não, agora é
hora de cuidar da horta”. A seu ver, essa cultura é preconceituosa com quem pensa
diferente. “Ah, aquele sujeito quer ser novo! O que está pensando? Está pensando que é
guri?” Incomodava-se com essas concepções, considerando que as pessoas atingem os
mais altos postos na vida entre os 50 e os 70 anos. Ademar verificava que a maior parte
da comunidade assumia precocemente uma condição de idoso e voltava-se para as
coisas antigas. “Em qualquer momento em que tenha que se pronunciar, fala sempre em
nostalgia”. A seu ver, a maioria não olha para o futuro, mas agarra-se ao passado. Ele,
por sua vez, incentivava os estudos da filha adolescente. Mencionava, orgulhoso, que a
menina havia recebido o prêmio de Aluna Nota 10 em seis edições, uma distinção da
Câmara Municipal que destacava estudantes, profissionais e atletas da localidade.
8.7 ERON: PRODUÇÃO LITERÁRIA E CARREIRA NA COMPANHIA
Filho do ex-mineiro e ex-encarregado Gelson
548
, José Eron Lucas Nunes, hoje
com 47 anos, ocupando uma função de responsabilidade nos escritórios da CRM na
Capital, nunca foi incentivado pelo pai a trabalhar na mina. Ao contrário, o que o rapaz
ouvia era que deveria dedicar-se aos estudos. “O pai nunca pensou assim de um filho
dele trabalhar na mina. Sempre dizia: ‘Tu tem que estudar pra ter um trabalho limpo’”.
Quando Eron foi contar ao pai que iria para o subsolo ao ingressar, aos 17 anos, como
auxiliar de topografia na empresa, ouviu um comentário reticente: “Precisava disso?”
Nunca soube exatamente o que o pai estava exprimindo com aquela reação, mas achava
que tinha um tom de reprovação ou, ao menos, de preocupação, de alguém que não
queria que um filho corresse os mesmos riscos que ele. Eron me contava que quase
todos os garotos de sua geração pensavam em ingressar na companhia porque, naquela
época, era considerado “um bom emprego” e representava certo status.
Foi assim que ele começou em 1980 como auxiliar de topografia, atividade na
qual deveria ir ao subsolo fazer medições. Nas primeiras descidas ao subterrâneo,
enfrentou problemas para encontrar um macacão que lhe servisse porque todos os
uniformes eram para corpos mais avantajados do que sua compleição física. Ele acabou
548
A trajetória de Gelson foi explorada no capítulo 3.
446
recebendo um macacão que era destinado à assistente social da empresa. Dizia que não
teve medo da mina: “Tu já cresce como sendo uma coisa natural, né, então tu não desce
com aquela expectativa de que vai acontecer alguma coisa porque todo mundo vai
diariamente para a mina e volta para casa. Eventualmente dá um acidente como dá
acidente em outros locais”. Ele se recordava do “tempo do apito”, quando uma sirene
era ligada para sinalizar a ocorrência de uma emergência, tal como um acidente. A
sirene soava várias vezes por dia para indicar a mudança de turnos dos trabalhadores.
Quando era acionada fora desses horários, levava familiares aflitos ao pátio da empresa.
Ele me contava sobre a ocasião em que a empresa inaugurou no pátio um sistema de
iluminação potente com lâmpadas avermelhadas. Vistas da vila mineira, pela primeira
vez, causavam a impressão de que havia fogo nos céus da companhia, mobilizando
principalmente as mulheres, alarmadas com o que parecia ser um incêndio na mina.
Alguns meses depois do ingresso na CRM, Eron passou à seção técnica. Esse
cotidiano só foi interrompido no período em que integrou um projeto na mina de Leão
II. Depois, novamente experimentou o cotidiano do subsolo da mina de Leão I, entre
1996 e 2002, até o seu fechamento. Estava há 23 anos na companhia quando recebeu a
proposta para gerenciar o setor de Recursos Humanos em Porto Alegre, em 2003.
Diferentemente da maior parte dos filhos de mineiros de sua geração, Eron não
interrompeu os seus estudos. Fez o ensino médio na própria localidade, paralelamente a
um curso de inglês. Com vistas a aprimorar o domínio do idioma, participou de um
intercâmbio no Canadá. Neste período, decidiu-se pela faculdade de Letras, cursada na
Faculdade Porto-Alegrense (Fapa), na Capital. Freqüentemente, quando havia visitantes
estrangeiros ele era o interlocutor por sua fluência na língua inglesa. Num determinado
período, chegou a abrir uma escola para ensinar o idioma a estudantes e, principalmente,
a filhos de trabalhadores da companhia, chegando a reunir 29 alunos. Seu desejo de
descortinar outros horizontes também era expresso por meio da literatura. Nas horas
vagas, dedica-se a escrever contos, dividindo-se entre a ficção e o aproveitamento de
histórias singulares narradas por moradores, especialmente por ex-mineiros, cuja
riqueza desperta seu interesse e admiração. Alguns de seus contos já foram publicados.
Eron converteu-se num observador atento da cultura da mina: “O mineiro em si é muito
malandro, tem uma malandragem inata, a rapidez com que cria histórias é
impressionante”, analisava. Nos seis anos em que trabalhou no subsolo, aprendeu a
conviver e a driblar as “brincadeiras pesadas” que faziam parte da rotina.
447
O seu gosto pela leitura e a escrita enfrentava incompreensões na comunidade:
“Muitos têm o estudo como uma espécie de castigo, não entendem que possa haver
prazer em aprender”. Ele se entristecia pelo fato de haver na cidade tantos moradores
analfabetos e semi-analfabetos, cujo universo era limitado pela falta de acesso à palavra
escrita. Notava um contraste entre suas próprias expectativas e a mentalidade de outros
moradores: “Quanto mais eu viajar, mais eu conhecer, mais descubro que sou ignorante,
que eu tenho que viajar mais, conhecer mais, estudar mais”. Avaliava, no entanto, que
para muitos um mundo mais restrito talvez fosse satisfatório, porque não eram
incomodados pelas inquietações. Ele buscava administrar tais diferenças culturais de
forma a não intimidar nem constranger os colegas mineiros que tiveram menos acesso à
escolaridade. Explicava que havia “uma gíria específica” na mina, local onde os
trabalhadores usavam um vocabulário próprio, colocando apelidos inclusive nas
máquinas e nas peças, os quais, muitas vezes, acabavam sendo incorporados pelos
engenheiros. No entanto, percebia que alguns engenheiros usavam uma linguagem
rebuscada no contato com os operários, usando palavras que estes desconheciam, para
pressioná-los: “A linguagem é um instrumento de pressão, de poder e de opressão”, me
dizia. Às vezes, quando Eron trabalhava no subsolo, acontecia de um operário ir
solicitar que ele intermediasse junto a um engenheiro um pedido de férias, por exemplo.
Quando respondia que o outro deveria ir ele mesmo falar com o engenheiro, ouvia:
“Mas eu não sei falar, não sei me expressar”. Salientava que, não raro, acontecia mesmo
de o trabalhador ser recebido com um linguajar difícil que tinha por objetivo mantê-lo à
distância e conduzi-lo à submissão. No seu caso, procurava se adaptar à linguagem
corriqueira, considerando o aprendizado obtido em sua formação de que os registros
lingüísticos devem ser usados conforme o contexto e que ali se tratava de respeitar os
hábitos dos mineiros. Para além dos laços simbólicos que o unem àquele meio, o mundo
da mina também lhe fornece inspirações para obras literárias. Além dos contos,
planejava escrever um romance cujo enredo atravessaria várias gerações.
8.8 SÍLVIA: A EDUCAÇÃO ENCARADA COMO “MISSÃO”
As inquietações intelectuais de Eron são partilhadas por sua mulher, Sílvia
Lasek Nunes, hoje com 43 anos, filha de Lúcia e Mieroslau Lasek, ex-ferreiro da
mina
549
, falecido em 2009. Professora desde a adolescência - assim como sua irmã,
549
A trajetória de Mieroslau é descrita no capítulo 3. Outras informações sobre a condições de
descendentes de poloneses são fornecidas no capítulo 4.
448
Claure -, Sílvia é secretária municipal de Educação e Cultura de Minas do Leão pela
segunda gestão. Formada em História e cursando Psicologia em São Jerônimo, desde
muito jovem ela engajou esforços para que os filhos de mineiros tomassem gosto pelo
estudo. Em campanhas eleitorais, seu nome parecia ser um dos poucos plenamente
respeitados e admirados por partidários e adversários, uma reputação que ela construiu
inicialmente como diretora da Escola São Miguel.
Sílvia tinha uma longa experiência no contato com as famílias da localidade.
Havia se tornado professora aos 17 anos, alfabetizando crianças da 1ª série na Escola
Ricardo Porto, no bairro Recreio. Dois anos depois, mesmo período em que se casou,
foi transferida para a Escola São Miguel, no bairro do mesmo nome. Nas duas escolas, o
perfil dos alunos era de uma condição sócio-econômica de baixa renda, mas na segunda
escola teve de enfrentar a hostilidade de adolescentes que ainda cursavam a primeira
série. Em 1989, ela tornou-se diretora da escola. Envolvia-se tão profundamente nos
dramas dos alunos que, quando eles não iam para as aulas, ela ia de bicicleta às suas
casas ver o que havia acontecido ou até mesmo “para buscá-los” na garupa, como me
contava. Em sua atuação como diretora, tinha incentivado a prática de esportes entre os
estudantes, promovendo torneios e competições escolares e participando ativamente das
torcidas. Quando os alunos de uma escola jogavam contra os de outra, Sílvia se
convertia numa espécie de “técnica” e na sua preleção à equipe, dizia: “A gente não
precisa ganhar, mas vocês têm que lutar até o fim! Vocês têm que ter espírito guerreiro,
levar a escola no peito e no coração!” Nos primeiros tempos, os alunos jogavam em
campos de terra, em meio à poeira. O prefeito prometeu fazer uma quadra se a escola
obtivesse a doação de 50 sacos de cimento. Professores e alunos se mobilizaram e
obtiveram a doação de pais e de comerciantes. Aquele objetivo foi atingido.
Em seu cotidiano, Sílvia notava uma tendência ao acomodamento por parte de
muitos moradores da localidade. O funcionamento da política local tinha sido tema de
pesquisa de conclusão do curso de História. Ela observava que, desde a emancipação do
município, ocorrida em 1992, as divisões políticas haviam se desenhado de forma mais
nítida, coisa que não havia quando Minas do Leão ainda pertencia a Butiá. Nas
diferentes gestões, no entanto, havia a mesma expectativa por parte da comunidade:
Nós temos uma marca que tem muito a ver com a CRM, né. Nós temos uma
cultura paternalista e assistencialista. E isso é tão difícil de tirar isso das
pessoas, até mesmo de nós mesmos. Às vezes, nós estamos inclusive fazendo
a mesma coisa, tu entendes? A gente critica e, ao mesmo tempo, a gente se vê
nessa situação. O que acontecia: a CRM era a mineradora aqui e todo... Quem
é que não gostaria de trabalhar na CRM? Todo mundo almejava isso.
449
Inclusive se tu perguntasses aos estudantes daquela época o que eles
gostariam de ser, primeiro era trabalhar no escritório, tudo envolvendo a
CRM. E aí o que acontecia? As casas eram da empresa, as reformas que eram
feitas nas casas eram feitas pela própria empresa, iam lá e falavam o que era
necessário, que tinha que colocar azulejos, trocar o piso, trocar o forro, fosse
lá o que fosse, a empresa trocava. (...)
Essa “cultura paternalista” teria sido mantida pelas administrações municipais
e teria sido interiorizada por muitos moradores. Sílvia observava que a mentalidade
construída pela Copelmi, a mineradora privada, era diferente, porque se ancorava na
produção – gerando seus próprios efeitos perversos. Mas mesmo esta empresa mantinha
seus vínculos políticos, contratando pessoal por conta de relações influentes.
Em sua atuação na escola, Sílvia mencionava que sempre incentivou o hábito
de leitura entre os alunos. Ela me explicava que, até a 3ª série, os estudantes
costumavam ler bastante, no entanto, passando para a 4ª ou 5ª série já estavam sem
interesse pelo universo dos livros. Via nisso havia algo de estrutural: os próprios
professores liam pouco e era uma minoria que continuava a se aprimorar em sua
atividade pedagógica. Notava que ali, na comunidade, os valores estavam mais voltados
para a aquisição de bens do que para a educação e a formação cultural: “As casas podem
não ser bem cuidadas, mas quase todas têm um puxadinho para o carro, que é um
símbolo de status”. Esse senso prático e o acomodamento tinham seus efeitos sobre a
escola. Mas um projeto que havia dado bons frutos tinha sido o teatro, que envolvia
alunos de todas as séries. Textos que iam de Shakespeare a Chico Buarque de Hollanda
eram encenados pelos estudantes que, motivados, faziam incursões à biblioteca.
Naquele universo, minha interlocutora considerava ter “uma missão” em torno
de algo que a inquietava: a necessidade de contribuir socialmente com seu trabalho.
Considerava que havia aprendido algumas lições com seu pai, ex-trabalhador da mina.
Meu pai fala com todo amor da CRM, inclusive ele nunca colocou a CRM na
Justiça. Ele diz que jamais poderia fazer isso. Os colegas dele, até vários,
colocaram. Sabe que eu fui pelo exemplo do meu pai que nem eu coloquei a
prefeitura na Justiça, que eu poderia colocar, porque ele me disse uma frase
que me marcou profundamente: “Foi através dela [da empresa] que eu
sustentei meus filhos, foi através dela que eu sustentei a minha família e foi
através dela que vocês estudaram”. Ele nunca disse, em momento algum, que
foi através do trabalho dele em relação a ela. Sabes a profundidade disso para
uma pessoa? Então, quer dizer que a empresa teve uma importância tão
grande na vida dele que ele jamais poderia fazer isso contra a empresa,
mesmo que a empresa tivesse feito coisas erradas em relação a ele. (...) Isso
me marcou profundamente.
450
Nessa espécie de herança de valores, transmitida de pai para filha, está
presente o “amor” ao trabalho, que no caso dele se materializava por um profundo
envolvimento com sua atividade e por uma lealdade à empresa, a partir da qual
considerava inconcebível cobrar na Justiça por seus direitos. Ele mantinha com a
companhia uma relação de gratidão pelo fato de que tivesse lhe possibilitado o sustento
dos filhos e a viabilidade de seus estudos – algo que no universo das famílias de origem
polonesa era considerado de suma importância. Essa “consideração” em relação ao
trabalho ou mesmo ao empregador – uma forma de “pequena honra do trabalho” - era
algo que, segundo Sílvia observava, se tornara escassa nas últimas gerações. Acreditava
que daí vinha esse distanciamento, a falta de motivação e de engajamento, que
observava tanto entre professores como entre os alunos.
Nos projetos como secretária, estava a preservação da memória coletiva em
torno da mineração de carvão. Enfatizava que alguns valores presentes no cotidiano dos
mineiros também eram parte da vida da comunidade, tais como a intensa solidariedade.
Mais do que isso: “A cidade não existiria se não fosse a mina”, enunciava,
acrescentando que, no entanto, a ausência de um investimento na manutenção desta
memória coletiva redundava num sentimento de ser um povo “sem história” e “sem
identidade”. Neste sentido, idealizava a organização de um museu da comunidade, junto
com outras ações, tais como um centro de informática para os alunos, um centro
interativo de apoio pedagógico, uma biblioteca municipal (inaugurada pouco depois que
encerrei o trabalho de campo) e uma feira do livro (projeto também efetivado). Naquele
período, notava que os planos familiares das camadas populares que, vinte anos antes,
miravam o ingresso na companhia carbonífera, se voltavam então para o horizonte
disponível, o trabalho com “mato”, prestando serviço para indústrias de papel e celulose
da região. Uma batalha era travada no sentido de eliminar a evasão escolar, cujo maior
índice era registrado na escola localizada no bairro Recreio. Alguns alunos saíam para
trabalhar na colheita de melancias ou ajudando os pais na lavoura e não retornavam.
Entre as meninas, evasões já tinham ocorrido em conseqüência de gravidez na
adolescência. Eram questões que a preocupavam: “Para que o aluno não evada, as aulas
devem ser interessantes e é preciso um trabalho social para ocupá-lo, de forma que não
fique vulnerável à violência, às drogas e à promiscuidade”. Naquele período, eram
pouco mais de 600 os alunos nas escolas municipais de ensino fundamental, e em torno
de 1.100 os estudantes nas escolas estaduais, que envolviam desde o pré até o ensino
médio. O projeto de alfabetização de adultos reunia cerca de 130 alunos.
451
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Meu propósito, neste trabalho, foi o de analisar a construção de valores que
permeiam o universo de uma comunidade erguida em torno das minas de carvão,
tomando inicialmente como referência o “gosto da mina” e o “gosto pela mina”,
mencionados por informantes de Minas do Leão (RS), onde realizei a principal pesquisa
etnográfica. Os sentimentos nutridos pelos trabalhadores em relação à mina se articulam
em diferentes formas de honra, consideradas por mim em duas dimensões: uma
relacionada à imagem heróica do mineiro de subsolo, construída historicamente em
diferentes lugares do mundo, que trato aqui como sendo a “grande honra” da profissão;
e uma miríade de formas de “pequena honra”, que se relacionam ao “orgulho” derivado
tanto do trabalho propriamente dito como de ações excepcionais, vistas como
“corajosas” ou dignas de mérito, assim como aos universos que atravessam seu
cotidiano, sejam os da militância sindical e política, do engajamento religioso ou aquele
dos jogos, compreendendo as disputas esportivas, as apostas e também as artimanhas de
resistência à disciplina industrial, com contornos de “malandragens” ou de
“brinquedos”. Não foram muitas vezes durante o trabalho de campo que ouvi a palavra
“honra” ser mencionada por meus interlocutores, mas observei certa recorrência dos
termos “orgulho”, “respeito” e “consideração”, denotando traços de uma “pequena
honra” tradicional ou de origem rural, que ainda disputa espaço com os valores gerados
pela cultura operária, presentes no próprio ethos dos trabalhadores das minas.
Neste universo, no qual os laços forjados pelas relações de trabalho e familiares
são atravessados por liames de compadrio, de vizinhança e por um conjunto de
pertencimentos de cunho religioso, esportivo e/ou político, constrói-se um campo fértil
para as relações pessoais que têm ali sua marca clientelística, com a sazonal demanda e
concessão de “ajudas”, especialmente na “época da política” (Palmeira, 2001). Como
pano de fundo, encontra-se uma forte preocupação em relação à própria reputação
(Bailey, 1971), que é tecida e modificada na vida ordinária pelos olhares, observações e
julgamentos dos outros, comportamento sobre o qual cada qual investe em certa medida
com sua contrapartida tanto no sentido de afirmar o próprio valor – sua própria honra - e
a legitimidade de suas lógicas, como também na observação da conduta dos demais.
Nesta comunidade, em que se ouve comumente que “todo mundo é unido”, encontram-
se clivagens, tensões e conflitos marcando os limites, mais simbólicos do que
geográficos, entre o urbano e rural, com as narrativas evocando também uma memória
452
coletiva na qual ficou inscrito um passado onde imperava o “costume de raças”, como
nota um informante, com a separação dos clubes recreativos. A divisão dos espaços
ocupados por bairros mineiros, tal como o Recreio e o Leão, em torno de diferentes
minas e companhias, ainda engendram oposições presentes nas disputas futebolísticas
da cidade, tendo de um lado a equipe do Olaria, de outro, a do Atlético.
***
Como se viu ao longo desta pesquisa, o trabalho na mineração subterrânea não
atraiu naturalmente os mineiros ou candidatos ao ofício - tanto no Brasil como em
outros lugares do mundo. Noiriel (2002) mencionava a “repugnância”, a “repulsa” que o
trabalho nas entranhas da terra despertou durante muito tempo entre os operários das
minas na França. De forma similar, quase todos os meus interlocutores falavam de suas
resistências, medos e recusas, especialmente no começo da carreira na mina, que era em
geral dividida em dois momentos: o da estranheza da iniciação, correspondente às
primeiras descidas às galerias, e, depois, a fase em que “a pessoa se acostuma” e “até
gosta”. Um de meus informantes, Gerino Lucas, dizia que, antes de ir trabalhar na mina,
pensava que “entrar debaixo da terra” era uma coisa só que faria “depois de morto”. Na
seqüência de seu relato, mencionaria, porém, o “amor pelo trabalho”, que, no seu caso,
não excluía a revolta pelas condições às quais eram submetidos os trabalhadores. Na
maior parte dos casos, os operários resistiam em trabalhar num cotidiano no qual
estavam sujeitos a serem soterrados por um desmoronamento, a ficarem mutilados ou
doentes dos pulmões. O ingresso na mina se dava, primeiro, por ser esta atividade o
horizonte possível para os trabalhadores na região; segundo, pelos direitos conquistados
– a “lei do mineiro”, como referia um informante - que representavam vantagens em
relação a outras categorias de operários ou à atividade agrícola; e, terceiro, pela tradição
familiar. “Acho que a gente já traz no sangue de ser mineiro, filho de mineiro”, me dizia
Hermes, que herdou o ofício do pai, enfatizando essa espécie de hereditariedade com os
mesmos traços de um parentesco - imagem disseminada em diversas culturas.
Na perspectiva do tempo largo, observa-se um contraste entre a história
fragmentada e, de certo modo, inconstante das empresas de mineração ou das
explorações em cada poço ou jazida e da constância nos projetos profissionais dos
trabalhadores que são o objeto desta investigação. Pode-se dizer que se a história dos
mineiros está disponível em sua tradição oral para quem está disposto a escutar seus
relatos e a aprender com suas lições de solidariedade; a das empresas, por sua vez,
453
pode-se arrancar dos documentos de velhos arquivos que, em meio à poeira do tempo,
guardam registros fundamentais.
Quando se consideram tanto os documentos históricos disponíveis como os
relatos de trabalhadores, chama a atenção que, na maior parte dos casos, está presente
alguma forma de orgulho de sua profissão. Nota-se então como esse “gosto”, “amor”,
“paixão” ou “orgulho” pela profissão foi sendo construído por matérias heteróclitas: nas
justificativas diante de uma pesquisadora aparecem representações e fragmentos de
discursos que são comuns tanto aos dirigentes das companhias quanto à militância de
esquerda, especialmente a partir da Segunda Guerra Mundial, sobre o “patrimônio
nacional” representado pelas minas e o “patriotismo” que encarnaria a profissão em
momentos singulares. Junto a isso, há todo um imaginário que circulou em âmbito
internacional sobre o mineiro como “herói do trabalho” e que influenciou também, em
maior ou menor grau, os trabalhadores nas minas gaúchas. Em seu cotidiano,
enfrentando a precariedade e o constante risco de acidentes, fortaleceu-se a importância
da coragem, da união e da solidariedade, tanto derivadas dessas condições penosas que
caracterizaram durante décadas as minas locais como da própria força que os
trabalhadores tiveram que forjar em movimentos coletivos para obter a concessão de
melhores condições de trabalho e de vida para suas famílias. Conquistas como a da
duração da jornada de trabalho, do regime especial de aposentadoria e do
reconhecimento da pneumoconiose como doença profissional, decorreram, como se viu,
não apenas de concessões governamentais, mas de ruidosas mobilizações desde o final
do século XIX. Para uma grande parcela de operários, era nesta “resistência” e na
definição de si como “raça forte”, que residia o sentimento de dignidade.
Algo que deve ser ressaltado é que enquanto em boa parte da literatura sobre
honra (por exemplo, nos trabalhos de Pitt-Rivers, 1965, 1983, 1992), as monografias
estão calcadas em localidades, aldeias, no espaço que se poderia chamar, seguindo
Redfield (1967), como constituindo a Pequena Tradição, em que a honra norteia as
ações cotidianas e a convivência entre os moradores (nas oposições e
complementaridades entre localidade e cidade, entre camponeses e citadinos); no caso
de uma pesquisa em torno das minas de carvão deve-se considerar que a presença da
empresa – e das empresas – extrapola o âmbito da localidade, pois diz respeito a um
campo econômico de abrangência nacional e, em alguns momentos, internacional, como
nos períodos de exportação de carvão. Como em outras cidades industriais, a presença
deste poder econômico representado pela companhia organiza a vida social local,
454
inserindo naquele contexto elementos da chamada Grande Tradição, das relações mais
vastas constituídas pela atividade de extração mineral. A questão dos mineiros está,
portanto, ligada à “grande honra” na forma pela qual esses trabalhadores ocupam um
lugar estratégico na produção nacional e no enfrentamento das situações de crises e de
guerras – mais considerável ainda no caso da Europa, vislumbrado através do exemplo
francês. O engajamento dos trabalhadores no aumento da produção torna-se uma forma
de heroísmo na defesa dos interesses nacionais, o que pode ser observado também,
como já foi dito, no caso brasileiro relativo à Segunda Guerra Mundial. Então, além da
“pequena honra” das relações no interior da localidade, há a “grande honra” impressa
pela tradição dos mineiros e no seu papel estratégico e, ainda, outra forma de “grande
honra” derivada da posição e dos laços estabelecidos pelas próprias companhias.
Nos casos das vilas-operárias enfocadas pelos estudos antropológicos, pode-se
dizer que a presença da empresa corresponde a uma espécie de mini-estado local - com
o papel de concessão de moradias, de dotação de equipamentos médicos, de
estabelecimentos de ensino, com influência nas religiões, na criação de clubes de
futebol e na estruturação de outras formas de lazer, etc. –, o que corresponde, de certo
modo, à Grande Tradição e, por meio destas relações, a uma forma de “grande honra”.
As distinções em torno do Operário-Padrão ou a concessão de diplomas e medalhas de
“Honra ao Mérito” ou de “Honra do Trabalho” pelas companhias carboníferas ou pelo
Estado permitem, por meio desse reconhecimento, o acesso dos trabalhadores a facetas
da “grande honra”. Ao mesmo tempo, o poder econômico representado pela indústria
mineral em escala mundial faz com que outras faces da “grande honra” sejam
internalizada pelos mineiros, identificados com seus colegas de profissão em diferentes
lugares do mundo. Deve-se assinalar, neste sentido, o papel do “internacionalismo
proletário” defendido pelas correntes comunistas e socialistas que tiveram uma
importante contribuição na noção de pertencimento operário e no desenvolvimento da
consciência de classe destes trabalhadores. A circulação de informações internacionais
trazidas seja por engenheiros seja por militantes partidários conferiu a mineiros gaúchos
esse sentimento de pertencer a uma mesma categoria em todo o mundo. Estas
informações se constituiriam num canal suplementar de circulação relativamente aos
contextos estudados pela literatura em torno da honra no Mediterrâneo (Peristiany e
Pitt-Rivers, 1965, 1992) ou na Cabília (Bourdieu, 1965), por exemplo, com sua
circulação implícita de sentidos sobre honra entre as elites no interior da Grande
Tradição e as comunidades locais que internalizam e reconstroem tais significados.
455
***
Pode-se dizer que, no contexto de Minas do Leão, aos operários com pouca ou
nenhuma escolaridade, a mina pareceu sempre atrair e repelir ao mesmo tempo. Atrair
porque, como lembrava um de meus informantes, Alírio, qual seria a outra profissão na
qual um analfabeto poderia, no tempo do ganho por produção, receber um salário maior
do que o de um funcionário do escritório ou mesmo de um engenheiro? Isso foi possível
durante algum tempo, ao menos na empresa estatal, a CRM. Mas a profissão também
fazia repelir a cada vez que era necessário carregar pelas galerias subterrâneas um
companheiro morto num acidente, uma lembrança que ainda faz Jango se emocionar. A
perda dos companheiros é o que ele chama de as “tristezas da mina”. Houve períodos
em que essas tragédias foram freqüentes na mina de Leão I, como no final dos anos
1970. Nos cruzamentos íntimos de vivências fortes e contrastantes que caracterizam os
relatos, não raro se ouve que o mineiro sente “saudade” e “tristeza” em relação à mina,
simultaneamente. Mais do que em relação ao trabalho em si ou à rotina diária, para uma
boa parte, a “saudade” diz respeito ao clima de camaradagem mantido com os
companheiros naquelas condições excepcionais. A “tristeza”, para a maioria, relaciona-
se à multidão de lembranças em torno das mortes, das mutilações, da saúde afetada por
doenças e de toda a sorte de tragédias que preenchem suas memórias. A “tristeza da
mina”, nas suas articulações paradoxais, ajudou a tornar o ofício mais heróico, mais
digno de consideração e de admiração em relação a quem fez dele o eixo de sua vida.
Outro sentimento que aflora é o de “revolta”, tanto em relação à mina como aos patrões.
Mas, como foi dito, a revolta não é necessariamente antagônica ao “orgulho” da
profissão. Pode ser justamente porque se incorporou a identidade mineira, que este
“amor” demanda que se imponha respeito, que se construam resistências em relação ao
que é considerado como exploração brutal. Nesta pesquisa, o sentimento de revolta foi
verificado de forma mais freqüente em militantes partidários e/ou sindicais à esquerda e
entre quem teve sua saúde comprometida por doenças ou acidentes.
Se levarmos em consideração apenas os trabalhadores que efetivamente se
tornaram mineiros ou aqueles que se aposentaram na profissão, corremos o risco de
desprezar a existência de outro contingente importante, dizendo respeito aos que, após o
ingresso na mina, se recusaram a permanecer na atividade. É preciso considerar,
portanto, que as adesões ao “destino” de mineiro de subsolo convivem com outros
tantos casos de operários que “chegaram à boca do poço e desistiram”, ou de
456
trabalhadores que não voltaram mais para as galerias depois que um acidente fatal
ceifou a vida de seus companheiros. Outras formas de resistência às jornadas
extenuantes, à fadiga e às más condições de trabalho, como se viu, eram o absenteísmo,
o alcoolismo e, muitas vezes, os conflitos violentos com as chefias. Eventualmente,
alguns mineiros mencionam que sua permanência na profissão foi devida ao conselho
de algum parente mais experimentado ou de algum capataz com preocupações paternais.
Os trabalhadores do Cadem e da atual Copelmi, que lhe deu seguimento, são
muitas vezes referidos por ex-mineiros da CRM entrevistados por mim, e que viveram o
mesmo período, como “os verdadeiros heróis”, porque teriam tido uma vida bem mais
sacrificada do que a dos empregados da estatal. Em vez da instabilidade permanente que
caracterizava a trajetória dos operários no Cadem/Copelmi, os empregados da estatal
gozavam, a princípio, de uma relativa estabilidade. Um informante aposentado na CRM
me dizia que, numa empresa como aquela, “para ser demitido, só se roubasse ou se
brigasse, do contrário não iria pra rua”. Não se pode subestimar, porém, a
engenhosidade de outras formas de punição adotadas para disciplinar os operários e
quadros divergentes que, se não eram tão radicais quanto a dispensa, podiam ser muito
sofisticadas e eficientes no sentido de atingir o moral e a honra dos trabalhadores,
envolvendo medidas disciplinares como advertências, ganchos e suspensões, mas
também “perseguições”, colocação na “geladeira”, desmoralização, difamação,
maledicências, etc. Numa estatal, além dos conflitos hierárquicos, estavam em jogo
mais diretamente as posições político-partidárias dos empregados em meio à costumeira
dança de legendas e clivagens eleitorais em pequenos municípios.
***
A análise de certos grupos de trajetórias, tanto no contexto profissional como no
relativo aos jogos, aos esportes e ao sagrado nos revela a incorporação de diferentes
formas de “pequena honra”, ancoradas tanto no “orgulho” que suscita tal pertencimento,
como na afirmação de um “dom”, de uma “herança” familiar ou mesmo na força
acionada para a ruptura desta transmissão familiar, constituindo-se o “mérito” a partir
das escolhas do sujeito.
550
Nestes diferentes domínios, se entrevê nos relatos certas
noções dando conta de uma combinação entre a hereditariedade e a educação familiar,
mas no universo religioso, por excelência, tal mosaico parece ser ainda mais nítido,
como atesta o depoimento de um informante que menciona ter “puxado” da avó
550
Duarte (2006a) examinou as diferenças entre religiosidade “por atribuição”, de uma confissão herdada
dos ascendentes, e “por aquisição”, refletindo escolha ou adesão pessoal. Ver ainda Duarte, 2006b.
457
benzedeira suas capacidades para prever o futuro e para curar, sugerindo uma espécie de
“transmissão do dom”, situação na qual esses poderes excepcionais se revelariam em
mais de uma geração. Vivos e mortos constroem as suas reputações por meio do
reconhecimento social conferido por devotos, fiéis ou seguidores. Chama a atenção, em
parte dos relatos, que as recorrências ao “dom” e à “herança” aparecem como
transmissões instauradas nas profundidades do ser à maneira de algo inato, que não se
escolhe, e se mobilizam reciprocidades essas podem estar do lado das trocas simbólicas
as quais não se pode ou não se deseja retribuir (no sentido de fortalecer essa mesma
incorporação), podendo-se inclusive buscar sua neutralização. Nem sempre um “dom” é
desejável, mas na maior parte das vezes em que é reconhecido como “dom” já
corresponde ao universo das dádivas cuja retribuição será considerada sempre limitada,
consistindo um bem que se deve honrar, preservar e desenvolver. Em algumas
situações, a herança ou o laço familiar relativo pode ser considerado benéfico. Em
outras, o que se herda do grupo familiar pode ser considerado como prejudicial em
determinado momento da vida, principalmente no contexto de uma conversão
evangélica, quando determinados valores e traços comportamentais podem ser vistos
então como “maldições” – opondo-se ao “dom”, que é considerado “bênção”, portanto,
“bendito”. Nessa dimensão, o “dom” só pode ser recebido do elo com o sagrado,
havendo a possibilidade de ser “despertado”, por um “chamado” divino. Já o traço que
se considera “maldito” se inscreve no pólo contrário: parte do humano e atravessa
relações de parentesco, fortalecendo-se eventualmente com liames de afinidade, mas se
ancorando sempre nas relações de “sangue”, numa espécie de hereditariedade tanto
biológica quanto espiritual. Trata-se de uma ressemantização de valores herdados à luz
de novos códigos. O mesmo comportamento – relativo ao “rancor”, à “brabeza”, por
exemplo - poderia ser visto como gerador de admiração no grupo, remetendo a valores
tais como a coragem, a hombridade, a virilidade, o orgulho, etc.
Nas observações em campo, notei que a expressão mais comumente utilizada
para a comunicação espiritual é a de “pedir ajuda”. A mesma expressão – “pedir ajuda”
– é usada na relação com políticos e pessoas influentes de quem se espera um favor,
como as “cunhas”. Características das relações clientelísticas encontram, portanto, certa
correspondência no sagrado. Uma pode ser alternativa à outra, quando não são usadas
de forma concomitante. Uma de minhas informantes, da Vila do Recreio, considerando-
se “sem religião”, constantemente pedia favores a autoridades (como pagamento da
conta de luz, dinheiro para um remédio, etc.). Quando a situação “apertava”, ela podia
458
ser vista no gabinete do prefeito ou de algum vereador, utilizando como moeda de troca
para as “graças” o apoio em campanhas políticas. O dom, sagrado ou profano, como
indicou bem Mauss (2001), não descansa enquanto não se honra a reciprocidade.
O “espírito do jogo” é um dos aspectos essenciais dos valores acionados na
vida cotidiana nesta comunidade, com sua ênfase ora na negociação (do que a “ajuda”
pode ser um ingrediente importante), ora no desafio e na provocação, mas também no
aspecto lúdico, relacionado ao “brinquedo” e às “artes” de fazer e de dizer (De Certeau,
1994), ao narrar a própria história ou episódios da vida alheia. Pode-se notar como o
futebol, particularmente, revela de forma significativa a estrutura social da comunidade,
com a organização dos clubes seguindo as dicotomias e polaridades em torno dos
bairros, das empresas e, na peculiar subdivisão varziana, o universo das famílias, com
suas próprias clivagens internas e externas. O “espírito do jogo” que se revestiu de
contornos peculiares no passado, conformando o “tempo das rixas” e também este da
prática das companhias de mineração de contratarem de bons jogadores para
trabalharem na empresa, fortalecendo assim a equipe de futebol amador, no presente
parece ser um vestígio de um mundo que vai perdendo força diante dos desafios
encontrados pelas novas gerações para ingressar no mundo do trabalho. Essas “artes”,
esses “jogos de corpo” (Guedes, 1997) parecem estar sendo suplantados pela
necessidade de alongamento da escolaridade e de busca de qualificação técnica
perseguida por filhos de mineiros. O analfabetismo, o “abandono cultural” e a reduzida
escolaridade impostas às gerações precedentes passam a ser vistas como parte das
“misérias” da mina, uma de suas faces trágicas, junto ao adoecimento e aos acidentes.
Para as gerações dos “filhos do carvão”, escasseiam aqueles que desejariam
ver seus próprios descendentes enfrentando os perigos do subsolo, desafios que ficariam
reservados aos, como disse o sindicalista Oniro, que detêm características limítrofes
entre a coragem e a loucura. Mas mesmo quem nunca fez planos de reproduzir a
profissão do pai vê-se na contingência de um ingresso no trabalho subterrâneo que
guarda certas similaridades com o passado, ainda que, agora, esses “novos mineiros” –
como nos trabalhos da implantação da mina de Leão II, cuja entrada em operação ainda
é incerta - sejam contratados por empresas terceirizadas, sem os mesmos direitos nem a
mesma perspectiva de uma carreira como era oferecida pela empresa estatal. Ainda
assim, tais possibilidades são consideradas vantajosas num horizonte em que muitos
filhos de mineiros migram para obter acesso a uma vaga como trabalhadores urbanos ou
459
rurais ou, ainda, se submetem à atividade precária e penosa dos serviços “em mato”,
derrubando eucaliptos e acácias, recrutados por empresas, muitas vezes clandestinas,
que fornecem madeiras a indústrias de papel e celulose. Tanto as condições de trabalho
como o próprio impacto ambiental dessas florestas é algo que vêm suscitando as
discussões de segmentos da sociedade local.
Por outro lado, nos debates travados nas comunidades de Minas do Leão e Butiá
sobre os impactos ambientais da exploração do carvão à flor-da-terra - tema de uma
audiência pública durante meu trabalho de campo acerca de projeto da Copelmi - os
moradores mostram-se divididos: bandeiras tais como a da “qualidade de vida”,
levantadas por ambientalistas, são qualificadas como “sentimentalismo” por
sindicalistas, para quem o risco de desemprego e de miséria é considerado mais
ameaçador do que os danos ocasionados pela mineração à natureza. Eles defendem,
contudo, investimentos das empresas em novas tecnologias para reduzir os efeitos
ambientais. Neste sentido, sua posição é similar à manifesta pela Conferência
Internacional de Mineiros de Carvão ocorrida em Edimburgo em 18 e 19 de março de
2009, que reuniu 120 delegados de 20 organizações sindicais de 14 países (Grã-
Bretanha, África do Sul, Alemanha, Austrália, Canadá, Colômbia, França, Índia,
México, Polônia, Turquia, Ucrânia, Estados Unidos e Vietnam). Uma das conclusões do
evento, que passou a ser uma espécie de palavra de ordem, foi a de que “o carvão é sujo,
mas pode ser limpo” (Le charbon est “sale” mais il peut être “propre”). A conferência
condenou o fechamento massivo de minas de carvão e a supressão de milhares de
empregos em nome da “luta contra a poluição”, argumentando que o mineral está longe
de ser a única fonte poluidora, vindo atrás do setor de transportes, por exemplo. O
documento sustentava que o futuro do ambiente e da indústria carbonífera passaria por
um carvão “limpo”, compreendendo soluções como a retirada e a estocagem do CO2.
“As multinacionais, que enriqueceram graças a um boom carbonífero sem precedentes,
devem investir suficientemente em tecnologias do carvão ‘limpo’”.
551
Em Minas do Leão, como foi mencionado nos capítulos finais, há numerosos
casos de continuidade no oficio na geração que está na casa dos 40 anos e que
desfrutou, senão de uma escolaridade maior, mas de possibilidades de qualificação
profissional e de acesso a tecnologias mais complexas. Mas há também os jovens de 20
551
Cf. Courrier de l’OIEM, 2009, p.4. O documento me foi enviado por um sindicalista que é um de
meus interlocutores na Lorena francesa.
460
e poucos anos, como Alex e André, que ingressaram neste universo em condições
distintas daquelas vividas pelos pais, trabalhando em empresas terceirizadas. De forma
oblíqua, eles passam também a mergulhar neste “outro mundo”, neste “mundo à parte”
que é a mina de subsolo, onde alguns dos ideais de fraternidade, de igualitarismo e de
cordialidade dos trabalhadores ainda encontram eco.
Nesta conjuntura em que a retomada da mineração subterrânea é incerta no
Estado – com a conclusão da mina de Leão II dependendo de políticas energéticas e de
um mercado para carvão, representado pela inacabada usina termoelétrica de Jacuí, em
Charqueadas - há que se pensar que, possivelmente, as gerações de filhos de mineiros
continuem a carregar consigo, em certa medida, essas lições de solidariedade e de
camaradagem deixadas pela experiência do subsolo, assim como certas noções de
orgulho, de dignidade e de honra forjadas naquele contexto, que lhes foram transmitidas
como herança familiar e que podem lhes servir de alicerce diante dos desafios impostos
pelo mercado de trabalho e pelas novas tendências sócio-ambientais.
Para quem saiu da mina, pelo fechamento do subsolo ou pela aposentadoria, o
estranhamento vivido é o de que a vida na superfície, em que pese a incorporação de
certos valores deixados pela mina, carrega outra tessitura. Restam, então, os elos
representados pela família, pela religião e pelo futebol, em especial, para fortalecer o
sentimento de auto-estima e de honra pessoal e coletiva, forjando-se as formas da
“pequena honra”. Como foi dito, a distância conferida pelo fechamento da última mina
de subsolo suscita tanto as evocações em torno do “gosto” da mina como das “tristezas”
relacionadas ao ofício. Mas a profissão não se subsume nem a um nem a outro pólo, ela
os engendra simultaneamente, daí a sua riqueza e também a fertilidade que as narrativas
e trajetórias destes personagens contêm. Aliada ou contraposta às formas de “pequena
honra” cotidianas, com suas particularidades locais, a “grande honra” da profissão de
mineiro de subsolo continua a preservar seus enigmas, como bem observou Jango: “A
mina é uma caixa de segredos que ninguém assim consegue descobrir o significado”.
461
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FERMETURE du siège La Houve, Charbonnages de France, 2004. (DVD)
POSTE du matin à la Houve, Charbonnages de France, réalisation 2Jmédia, Aix-en-
Provence, 2006. (DVD)
REMISE de médailles aux mineurs, 1991, Puits Merlebach-Forbach (Video)
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COMPANHIA RIOGRANDENSE DE MINERAÇÃO. Relatório da pesquisa de clima
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DISSÍDIO COLETIVO promovido pelo Sindicato dos Trabalhadores na Indústria da
Extração do Carvão e Consórcio Administrador de Empresas de Mineração, Cadem.
Porto Alegre: Livraria do Globo, 1943.
ESTATUTOS do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Extração do Carvão do
Município de São Jerônimo – Fundado em 1-1-1933. Guaíba, RS: Gráfica Güntzel,
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FICHAS DE FUNCIONÁRIOS DA CRM, Arquivos CRM, Minas do Leão.
IBGE – 1940, 1950, 1960, 1970, 1980, 1990, 2000 – Censos Demográficos. Rio de
Janeiro / Brasília: Imprensa Nacional.
ANEXO 1
GLOSSÁRIO DE FUNÇÕES E TERMOS USADOS NA MINA
1
:
Abastecedor – Operário que carrega madeiras para o escoramento da galeria.
Ajudante – O auxiliar numa equipe; carreteiro; tocador.
Apontador – Operário que realiza a anotação da produção de cada equipe.
Aragano – Mineiro novato.
Balanceiro – Operário encarregado da balança, da pesagem dos carros de carvão, hoje
dos caminhões que vêm da extração a céu aberto. Atualmente, em Leão I, a balança
funciona na superfície.
Banco – Camada ou veio de carvão na beta.
Barra – Peça de madeira colocada horizontalmente sobre dois prumos.
Beta – Camada que contém o carvão.
Boca-do-poço – O mesmo que boca-da-mina.
Bombeiro – Trabalha no sistema de bombas para retirada de água das galerias.
Britador – Maquinismo para fragmentar o carvão.
Cadem - Consórcio Administrativo de Empresas de Mineração, atual Copelmi.
Cano-de-ventilação – Canos que levam ar fresco às frentes de trabalho na mina.
Capataz – Funcionários encarregados de supervisionar as equipes de produção, os
madeireiros e o pessoal da manutenção.
Carancho – Mineiro substituto numa equipe.
Chapa – O número da matrícula do mineiro.
Coberta – O teto da galeria.
Copelmi – Companhia de Pesquisas e Lavras Minerais, de controle privado; ex-Cadem.
CRM – Companhia Riograndense de Mineração, de controle estatal.
Cubeiro – Tarefista responsável por transportar o tonel onde eram feitas as
“necessidades” na mina, esvaziá-lo, lavá-lo e repô-lo no lugar no subsolo.
Desengatador – Mineiro encarregado de desengatar os carros-de-mina do cabo do
guincho.
Desmonte – A lavra do carvão.
Eletricista – Técnico de manutenção da parte elétrica.
Embocação – Entrada para uma galeria.
Empreitada – Forma de trabalho pago por produção e não por dia.
Empreiteiro – Pessoa que trabalha em empreitada.
Escorar – Revestir e firmar a galeria com paus-de-mina.
Fogo – O tiro de mina; explosão.
Furação – Ato de fazer furos para os tiros de mina.
Furador – Mineiro que faz a furação.
Gaiola – O ascensor da mina.
Guincheiro – Funcionário encarregado do comando do guincho.
Lavador – Conjunto de instalações para o beneficiamento do carvão
Lubrificador – Que atua em máquinas, vagonetas e roletes; graxeiro.
Madeireiro – Mineiro que faz a segurança com paus-de-mina.
Manobreiro – O ajudante do maquinista.
Maquinista – O condutor da locomotiva.
Mecânico – Técnico de manutenção relativo à parte mecânica.
1
Parte desses termos está contida em Bunse, 1984, p. 94-106. Outros me foram fornecidos por
funcionários do escritório da CRM em Minas do Leão.
Mecanizada – Frentes de trabalho equipadas com máquinas.
Moinha – Carvão em pedaços pequenos ou em pó.
Painel – Conjunto de câmaras de extração.
Patrão ou patrão de galeria – O mineiro que, associado com ajudantes numa equipe, é
responsável pela extração do carvão.
Pau-de-mina – Madeira usada na mina para fins de segurança.
Pedreiro – Operário que trabalha para isolar área já mineirada.
Peneireiro – Operário que trabalha junto à peneira.
Pilar – Coluna maciça de carvão em torno do poço ou entre galerias e quadros.
Prumo – Pau-de-mina assentado verticalmente.
Queimar – Fogo; detonar os explosivos.
Real – Galeria principal; também secundária.
ROM, sigla: run of mining, o carvão bruto extraído na frente de serviço.
Skip – Caçamba do poço de extração.
Sota – O substituto do patrão numa equipe.
Sota-capataz – Aspirante a capataz.
Tarefeiro – Mineiro que trabalha em empreitada e é pago por tarefa.
Técnico de manutenção – Abrange mecânicos e eletricistas.
Tiro – Deflagração de explosivos.
Tocador – Mineiro que faz a “tocação” de carros.
Torre – Estrutura de metal, concreto armado ou madeira sobre o poço de extração.
Trapiche – A ponte de comando junto à torre.
Travessão – Embocaduras transversais entre duas galerias principais; travessa.
Trilheiro – Operário encarregado da linha de trilhos.
Trole – Vagoneta para o transporte de madeira.
Vagoneta – O carro-de-mina.
ANEXO 2 - MAPA DE MINAS DO LEÃO (RS)
(A saída para Porto Alegre, pela BR 290, encontra-se à direita)
ANEXO 3 – FOTOS DE MINAS DO LEÃO
BR 290: a “faixa” que divide a cidade de Minas do Leão. À direita está o Centro e a
sede da CRM, à esquerda, o Recreio e outros bairros
Paisagem rural: pode-se contemplar as áreas de cultivo de arroz nas cercanias da cidade
Bairro à esquerda da rodovia: no fundo aparecem as bandeiras azuis da campanha eleitoral
Trânsito perigoso: carroça atravessa rodovia
Campanha eleitoral de 2008: Negrinho com a sobrinha Vanessa e Veni, a esposa
e
Encontro na “rua de baixo”, a avenida Alberto Pasqualini
Ariovaldo Flores (dir.) e “Sebinho”, meus interlocutores, são amigos e parceiros de bocha
Gedi: relatando sua convivência com Zé Custódio, o Zé Padeiro
Cuidados com a horta: Dalva e Hermes nas lides ao redor da casa
Anarlete e Valdevino (quase na ponta, à esq.) , seus descendentes, parentes e compadres
A casa que aluguei: durante visita da minha irmã
Ponte Preta: um dos primeiros times vinculados às minas na localidade
Nos tempos de goleiro: Leo, no centro, de camiseta escura.
Campeão: equipe do Atlético com a faixa. Butiá é o primeiro jogador de pé, à esq.
Agachados, à esq. Ademar e Zoely
Equipe de jogadores veteranos do Olaria
Veteranos do Atlético em dia de “clássico”
Prefeitura de Minas do Leão, na avenida principal
Uma das muitas igrejas evangélicas
Novo templo da igreja católica em construção
Casa remanescente da antiga vila mineira
Bar do Parente: próximo à entrada da companhia
Um dos maiores supermercados da localidade e que também vende “no caderno”
O “reduto” dos jogadores veteranos do Atlético, na avenida principal
A “rua de baixo”, avenida Alberto Pasqulini
Padaria que, no passado, pertencia à família Custódio. Alguns personagens trabalharam ali
Dalva e Hermes (em cuja casa morei no período de mestrado) no “café da tarde”
O ex-padeiro Oswaldo Custódio e o neto, que acompanhou nossa conversa
ANEXO 4 - DOCUMENTOS
Documento mostra o incentivo do Cadem ao futebol
ANEXO 5
Livros Grátis
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