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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
“SÓ HÁ SOLIDÃO PORQUE VIVEMOS COM OS OUTROS...”:
UM ESTUDO SOBRE AS VIVÊNCIAS DE SOLIDÃO E SOCIABILIDADE
ENTRE MULHERES QUE VIVEM SÓS NO RIO DE JANEIRO
ISIS RIBEIRO MARTINS
2010
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“SÓ HÁ SOLIDÃO PORQUE VIVEMOS COM OS OUTROS...”:
UM ESTUDO SOBRE AS VIVÊNCIAS DE SOLIDÃO E SOCIABILIDADE
ENTRE MULHERES QUE VIVEM SÓS NO RIO DE JANEIRO
ISIS RIBEIRO MARTINS
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional
da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de
Mestre em Antropologia Social.
Orientador: Prof. Dr. Gilberto Velho
Rio de Janeiro
Fevereiro, 2010
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“SÓ HÁ SOLIDÃO PORQUE VIVEMOS COM OS OUTROS...”:
UM ESTUDO SOBRE AS VIVÊNCIAS DE SOLIDÃO E SOCIABILIDADE
ENTRE MULHERES QUE VIVEM SÓS NO RIO DE JANEIRO
ISIS RIBEIRO MARTINS
Orientador: Prof. Dr. Gilberto Velho
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do tulo de Mestre em Antropologia
Social.
Aprovada por:
_____________________________________________
Presidente, Prof. Dr. Gilberto Velho (MN/UFRJ)
_____________________________________________
Prof.ª Adriana de Resende Barreto Vianna (MN/UFRJ)
_____________________________________________
Prof.ª Andréa Moraes Alves (UFRJ)
_____________________________________________
Prof.ª Myriam Moraes Lins de Barros (UFRJ)
_____________________________________________
Prof. José Sérgio Leite Lopes (MN/UFRJ)
Rio de Janeiro
Fevereiro, 2010
iv
Martins, Isis Ribeiro
Só há solio porque vivemos com os outros...”: um estudo sobre as vivências de
solio e sociabilidade entre mulheres que vivem sós no Rio de Janeiro / Isis Ribeiro Martins.
Rio de Janeiro: UFRJ/MN/PPGAS, 2010.
x, 104 f.
Orientador: Prof. Dr. Gilberto Velho.
Dissertação (mestrado). UFRJ, Museu Nacional, Programa de Pós-
Graduação em
Antropologia Social, 2010.
Referências Bibliográficas: f. 99-102
1. Solidão. 2. Morar só. 3. Sociabilidade. 4. Camadas Médias. 5. Individualismo. 6.
Subjetividade. 7. Privacidade. I. Velho, Gilberto. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro.
III. Só há solio porque vivemos com os outros...: um estudo sobre as vivências de solidão
e sociabilidade entre mulheres que vivem sós no Rio de Janeiro.
v
A minha mãe por todo o amor.
A minha avó por seu carinho e dedicação e pelas
inúmeras cartas que me enviou sobre meu tema.
À memória de meu avô.
Ao André pelos quase 11 anos de companheirismo,
carinho e compreensão.
vi
AGRADECIMENTOS
Agradeço a todas as pessoas que de alguma forma estiveram presentes durante o
tempo em que me dediquei à realização desta dissertação. O meu especial
agradecimento ao professor Gilberto Velho pela atenta orientação, paciência, incentivo
e diálogo. A sua presença e os cursos que ministrou foram fundamentais para a
elaboração das questões aqui apresentadas.
Ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS), por
proporcionar um ambiente intelectualmente profícuo. Ao corpo docente, principalmente
aos professores com os quais tive a oportunidade de acompanhar um curso: Fernando
Rabossi, José Sérgio, Lygia Sigaud (in memorian) e Renata Menezes. À atenção de
todos da secretaria, biblioteca e xerox, sobretudo a Tânia, Izabele, Adriana, Alessandra,
Carla, Carmem e Fabiano.
À CAPES pela bolsa de mestrado concedida, que possibilitou a plena realização
deste trabalho.
Aos professores Adriana Vianna, Andréa Moraes, Myriam Lins de Barros e Jo
Sérgio Leite Lopes por aceitarem compor a banca examinadora desta dissertação e pela
disponibilidade em debater o presente trabalho.
A todos que me concederam entrevista, agradeço a atenção e concessão de suas
histórias, sem as quais não seria possível a realização deste trabalho. Aqueles que não
tiveram suas narrativas aqui descritas saibam que também foram essenciais para o
desenvolvimento desta dissertação.
À Patrícia Monte-r meus agradecimentos por sua amizade, confiança, pelos
ensinamentos e por todas as nossas conversas. Devo a ela o meu primeiro encantamento
com a Antropologia. Um agradecimento especial também ao sempre atencioso José
Inacio Parente.
À professora Diana Lima, pelas questões que surgiram a partir do curso que
ofereceu no IUPERJ e por estar sempre disposta a ouvir minhas aflições e me
aconselhar.
vii
Aos colegas do curso de mestrado, em particular as amizades que se estenderam
para am dos limites do PPGAS: Aline Magalhães, Caio Gonçalves, Laura Navallo,
Martinho Tota, Paula Lacerda, Paulo Victor e Silvia Monnerat.
Aos familiares que me acompanharam e apoiaram em todos os momentos, faço
questão de citar um por um: Anabel, Izabel, Lívia, Lucas, Martinha, Márcio, Fabiana,
Tiago Rosa, Janaína, dona Maria, Tânia, Amazona, Clara, Magna, nia, Fernando,
Sandra, João, Alda, Sônia, Adhemar, Afonso, Julia, Kátia, Renata, Robson, Luan,
Rongela e Ademar.
A Kelly, Thiago Aquino e Zé Rodrigues pela amizade de tantos anos e por todos
os momentos que compartilhamos: os risos, as viagens, as mudanças de casa, as festas,
as tristezas, as músicas, os vinis etc.
Aos amigos que fazem parte da minha hisria e seus familiares: Camila,
Sabrina, Diego, Malhado, Roberta, Cinthia, Andrezinho, CB, Juliana, Isadora, Dudu,
Thiago Herzog, Cléo, Mira, Nico, Arthur, Midian, Fátima, Andréia, Piterson, Denise,
Daniel, Maria, Karin, Raimundo, Dayse, Neide, Eduardo, Ricardo, Érica, Pedro, Santos,
Jura, Paulo e Netty.
São tantas pessoas queridas que posso, porventura, ter esquecido de citar, mas
peço que compreendam e sintam-se agradecidos também.
viii
RESUMO
SÓ HÁ SOLIDÃO PORQUE VIVEMOS COM OS OUTROS...:
UM ESTUDO SOBRE AS VIVÊNCIAS DE SOLIDÃO E SOCIABILIDADE ENTRE
MULHERES QUE VIVEM SÓS NO RIO DE JANEIRO
ISIS RIBEIRO MARTINS
Orientador: Prof. Dr. Gilberto Velho
Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social, Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em
Antropologia Social:
A presente dissertação se destina à investigação do modo pelo qual mulheres de
camadas médias do Rio de Janeiro conferem significado às experiências de morar,
sobretudo no que diz respeito à articulação com o tema da solidão. Os discursos das
mulheres entrevistadas propiciaram uma interpretação desse tema que vincula a
experiência de morar com o espaço da casa como referência. A partir de tal leitura,
foi possível estabelecer uma análise que partisse desse espaço doméstico como esfera de
construção do sujeito para, em seguida, avaliar sua articulação com instâncias de
sociabilidade que se situam fora da casa. Dessas duas dimensões articuladas emergem
distinções que aproximam ou afastam a experiência de morar só e da solidão.
Palavras-chave: Solidão; Morar; Sociabilidade; Camadas Médias; Individualismo;
Subjetividade; Privacidade.
Rio de Janeiro
Fevereiro, 2010
ix
SUMÁRIO
INTRODÃO.............................................................................................................11
Mudanças no trajeto da pesquisa.....................................................................................14
A pesquisa........................................................................................................................17
Breve descrição das trajetórias........................................................................................20
Escopo dos catulos.......................................................................................................30
I. “ANTES SÓ DO QUE MAL ACOMPANHADO”: A CASA COMO ESPAÇO
DE CONSTRUÇÃO DO SUJEITO.............................................................................31
A noção de privacidade e o espaço doméstico ...............................................................35
O cuidado com a casa .....................................................................................................46
Animais domésticos ........................................................................................................48
O uso da internet .............................................................................................................50
O discurso psicologizante................................................................................................52
II. AS RELAÇÕES PARA ALÉM DA CASA............................................................55
A família..........................................................................................................................57
Os amores........................................................................................................................68
As amizades.....................................................................................................................73
Os vizinhos......................................................................................................................75
III. “NÃO CONFUNDA GOSTAR DE ESTAR SOZINHA COM GOSTAR DE
SER SOZINHA, TÁ BOM, DEUS?”: ESTAR SÓ OU SER SÓ?.............................78
“Eu diria que eu moro só, mas eu não sou sozinha”........................................................78
“Só presença física não desmancha a solidão, não desfaz solidão”................................82
O domínio total”............................................................................................................85
Eu fui em busca dessa companhia dentro de mim”.......................................................91
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................94
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................99
ANEXO: ROTEIRO DE ENTREVISTA..................................................................103
x
É exactamente porque não há solidão que dizes que solio.
Imagina que eras o único homem no universo. Imagina que nascias de
uma árvore, ou antes, porque eu quero pôr a hipótese de que o
árvores, nem astros, nem nada com que te confrontes: supõe que o
universo é só o vazio e que tu nascias no meio desse vazio, sem nada
para te confrontares. Como dizereseu estou sozinho? Para pensares
em “eu” e em “sozinho” tinhas de pensar em “tu” e em “companhia”.
Só há solio “porque” vivemos com os outros...
Vergílio Ferreira, Estrela Polar, 1962.
11
INTRODUÇÃO
Na epígrafe acima, Vergílio Ferreira coloca uma questão que é fundamental para este
trabalho: por que nos sentimos sozinhos se vivemos em constante relação com outras pessoas? O
autor conclui que viver com os outros é premissa para que se pense em solidão. Esta imagem
contém, em termos filoficos, os elementos com os quais procurei aqui aproximar a reflexão
antropológica da questão da solidão.
O viver só e a solidão não serão aqui analisados como uma forma de solipsismo, mas
como fenômenos que envolvem formas específicas de relações sociais. O debate sobre a solidão
está, assim, atrelado às formas de sociabilidade características da complexidade das metrópoles
contemporâneas.
Os argumentos que procuro desenvolver nesta dissertação possuem, em alguma medida,
correlações com os aspectos sociais presentes no estudo de Riesman intitulado A multidão
solitária, a respeito da sociedade americana. A comparação entre os fatores significativos do
século XIX com as mudanças ocorridas no século XX faz com que Riesman identifique
características sociais que possuem implicações para o indivíduo americano. Meu estudo,
entretanto, ainda que possua consequências para a compreensão do ethos de camadas médias na
metpole do Rio de Janeiro, não objetiva apurar o que seria o “caráter
1
O conceito de caráter de Riesman, contudo, é útil neste trabalho no que diz respeito à sua
distinção em relação à noção depersonalidade”. Riesman afirma que ao tratar do caráter não
está falando de personalidade, “que na psicologia social corrente é usada para significar o eu
total, com seus temperamentos e talentos herdados, seus componentes biológicos e psicológicos,
desse grupo social. Esta
tarefa empreendida por Riesman em relação ao caso norte-americano não se aplica aqui, até
porque o universo que estudo é muito restrito e dele pretendo valorizar as experiências
particulares ao invés de extrair aspectos gerais do caráter.
1
Tenho em vista aqui a definição de “caráter” oferecida por Riesman, que diz o seguinte: “Caráter, neste sentido, é a
organização mais ou menos permanente, social e historicamente condicionada aos impulsos e satisfações do
indivíduo – o tipo deconfiguração’ com o qual ele aborda o mundo e as pessoas” (s/d: 68). Riesman também define
a noção de “caráter social” ao afirmar que “é a parte do ‘caráter que é compartilhada por grupos significativos e que,
como a maioria dos cientistas sociais contemporâneos o define, é o produto da experiência destes grupos. A não de
caráter social nos permite falar, como o faço no transcurso deste livro, do caráter de classes, grupos, regiões, e
nações” (s/d: 68).
12
seus atributos evanescentes, assim como os mais ou menos permanentes” (s/d: 68). Ao tratar de
aspectos pertinentes às experiências particulares e individuais ao longo desta dissertação, não
estarei preocupada com características relativas às personalidades de minhas entrevistadas, mas
com fatores específicos de uma questão de cunho social e antropológico.
Riesman elabora três tipos ideais para definir distintas formas de caráter social: o
traditivo-dirigido, o introdirigido e o alterdirigido. Vinculando estes três tipos a diferentes formas
de sociabilidade e períodos históricos, Riesman procura apurar o caráter social dos americanos de
seu tempo. Os indivíduos traditivo-dirigidos, nesse sentido, pautam suas condutas pelos
ensinamentos que lhe são informados por um pequeno grupo com o qual convivem
cotidianamente e buscam apresentar um tipo de comportamento que corresponda às regras assim
estabelecidas. Os membros do traditivo-dirigido “esperam não tanto que ela [a pessoa traditivo-
dirigida] seja um certo tipo de pessoa, mas que se comporte da maneira aprovada” (Riesman, s/d:
88). O tipo traditivo-dirigido corresponde historicamente às sociedades pré-modernas.
O tipo introdirigido possui seu comportamento informado pelos membros mais velhos de
seu grupo de convívio parental, mas há uma internalização desse comportamento: “A fonte da
direção para o indivíduo é ‘interior no sentido de que é implantada pelos mais velhos logo cedo
na vida e dirigida para metas generalizadas, mas de nenhum modo menos inevitavelmente
predestinadas” (Riesman, s/d: 79). Este tipo de caráter social é característico do período do
declínio do feudalismo e do Renascimento.
Já o tipo alterdirigido não possui a família como instância principal de direção de seu
comportamento. Ele se relaciona com outras instâncias para fora da família constituintes de um
meio social mais amplo:
O que há de comum entre todas as pessoas alterdirigidas é que seus
contemporâneos são a fonte da orientação para o indiduo tanto aqueles que
lhes são conhecidos, quanto aqueles que elas conhecem indiretamente, atras
de amigos e dos meios de comunicação de massa (Riesman, s/d: 86).
Este tipo ideal é característico das sociedades industriais contemporâneas. É a este tipo
alterdirigido que Riesman associa o caráter dos americanos de sua época. Este tipo possui um
caráter cosmopolita e urbano.
13
Riesman defende que os três tipos de caráter social convivem em diferentes graus quando
realizamos estudos concretos. Entre os indivíduos que estudou há aspectos que indicam a
permanência de características traditivo-dirigidas com elementos de alterdireção, bem como as
demais combinações possíveis entre os diferentes tipos. As combinações de variadas instâncias de
direção evocadas para pautar as condutas de minhas entrevistadas ficarão evidentes,
principalmente, no momento em que me deterei na análise da articulação entre morar só e nas
relações sociais para fora da casa como a família, as relações amorosas, as amizades e os
vizinhos.
Não pretendo vincular minha análise nesta dissertação aos tipos ideais de Riesman. Minha
tarefa não consiste na realização de um teste da eficácia desses três tipos a casos concretos e
particulares. O que é interessante na teoria de Riesman é justamente a percepção de que os tipos
se apresentam de modo combinado e diversificado nos casos concretos e particulares. Não
obstante este aspecto, é interessante para minha análise ter em vista que o fenômeno que estudo
a situação de morar só possui certa afinidade com as características do tipo alterdirigido, uma
vez que minhas entrevistadas mobilizam variadas instâncias de referência para dirigir suas ações.
Morar só, além disso, figura em meu trabalho como uma configuração típica dos meios urbanos
das camadas médias do Rio de Janeiro.
Christopher Lasch em A Cultura do Narcisismo (1983) é outro autor que se preocupa em
estabelecer tipos ideais para a compreensão da sociedade americana da segunda metade do século
XX. Ao elaborar o modelo do indivíduo narcisista, Lasch fornece aspectos importantes para a
compreensão do individualismo em configurações contemporâneas. Lasch contrapõe o
Narcisismo ao Adamismo modelo característico do século XIX americano através de uma
distinção fundamental: “Para o narcisista, o mundo é um espelho, ao passo que o individualista
áspero [o adamista] o via como um deserto vazio, a ser modelado segundo seus próprios
desígnios” (Lasch, 1983: 31). Esta diferença define o narcisista como um modelo individualista
que, apesar de sua pretensão de autossuficiência, “depende dos outros para validar sua auto-
estima” (Lasch, 1983: 30), por isso tem a sociedade como espelho.
A caracterização de Lasch é significativa para que seja possível uma aproximação do tema
da solidão e do morar só que será aqui desenvolvido na medida em que apresenta uma
configuração do individualismo contemporâneo como fortemente vinculado aos aspectos de
caráter social. Seja no caso do Adamismo que tem o mundo (a sociedade) como deserto a
14
modelar a sua imagem , seja no caso do Narcisismo, o problema é tratado em vista de sua
articulação com a vida social. As experiências de morar só e as percepções sobre a solidão que
aqui serão analisadas possuem forte vinculação com o tema do individualismo. É decisivo, neste
sentido, compreender que mesmo a situação de morar só não representa uma negação ou um
cancelamento das relações sociais. Os indivíduos que comem o escopo do presente estudo
possuem, em vista de suas variadas trajetórias, vínculos sociais que completam e ampliam o
significado das experiências de morar só.
Ainda que Riesman e Lasch sejam referências importantes para a aproximação do tema da
solidão e do morar só de uma perspectiva que debata a questão do individualismo e da vida nas
sociedades complexas, não me ocuparei das consequências de suas análises para o
desenvolvimento de minha argumentação. Outras referências terão mais rendimento por
constitrem análises sobre aspectos do individualismo nas sociedades contemporâneas que têm
como foco experiências decorrentes de camadas médias no Brasil. Gilberto Velho, Sérvulo
Figueira e Tânia Salem serão alguns autores que permearão aspectos decisivos de minha
argumentação na busca por responder algumas das questões que movem a presente pesquisa.
Como se lida com a experiência de sentir-se só na sociedade contemporânea? Quais os
significados atribuídos ao estar só? Questões como estas me motivaram a enveredar pelo tema da
solidão. Não foi sem percalços, no entanto, que cheguei ao presente tema de pesquisa.
Mudanças no trajeto da pesquisa
Ao ler uma reportagem do jornal O Globo, em maio de 2008, que anunciava o primeiro
baile “Xô Solidão”, organizado pela Secretaria Municipal de Assistência Social do Rio de Janeiro
em decorrência do seu recente projetoEu preciso de você”, fiquei encantada e animada com a
possibilidade de fazer uma etnografia sobre o projeto direcionado a pessoas solitárias. O projeto
de socialização foi idealizado pelo secretário municipal de Assistência Social da época, Marcelo
Garcia. O objetivo do projeto não era aconselhar ou tratar terapeuticamente as pessoas que se
consideravam solitárias, mas fazer “uma ponte entre as pessoas que estão sós e a possibilidade de
elas terem uma nova rede de amigos a partir de uma agenda organizada mensalmente com idas ao
teatro, exposições, shows e cinemas” (Garcia, Jornal O Dia, 15 de maio de 2008). Para o ex-
15
secretário a solidão era um problema social e de responsabilidade do governo, já que “ao
combatermos o isolamento, as pessoas adoecem menos e os problemas diminuem” (Garcia, Veja
Rio, 14 de maio de 2008).
O primeiro contato com as pessoas era realizado por um telefone disponível 24 horas o
Disque-solidão e através das ligações eram agendadas atividades culturais e artísticas que
promoviam a interação dos usuários do serviço. Uma vez por mês era realizado um baile o “Xô
Solidão onde se pretendia reunir a maioria dos usuários do programa. O baile era gratuito e
direcionado especificamente aos usuários do projeto. O primeiro baile foi realizado no dia 30 de
maio de 2008, no Clube Monte Sinai no bairro da Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro. O evento
contou com a participação de aproximadamente 180 pessoas, e dentre estas apenas 13 eram
homens. Além desses encontros, o usuário poderia agendar uma visita domiciliar de um psicólogo
ou assistente social.
O encantamento com a proposta do projeto fez com que logo me cadastrasse como
pesquisadora. Fui, então, convidada a ir a este primeiro baile e tive a oportunidade de estabelecer
um primeiro contato com o universo de mulheres que se diziam solitárias e buscavam algum
amparo no projeto. Falo de um universo feminino, porque, segundo a coordenadora do “Eu
preciso de você”, o perfil dos usuários do programa era de 75% de mulheres, na faixa etária de 40
a 65 anos, residentes na área da Grande Tijuca. De acordo com ela, a maioria das usuárias seria
de mulheres viúvas ou divorciadas cujos filhos já saíram de casa ou residem com elas, maso
lhes fazem companhia. Para a coordenadora, “as principais queixas são o isolamento da família e
o medo de sair de casa e de se relacionar às vezes com o próprio vizinho” (Sampaio, O Globo
Online, maio de 2008).
O projeto “Eu preciso de você” era, portanto, um serviço governamental que tentava
superar o isolamento e a solidão com os quais frequentemente lidamos ao viver na grande cidade.
Os idealizadores do projeto entendiam que a contrapartida da solidão é a vida social, por isso a
tentativa de promover formas de sociabilidade. A dinâmica do projeto partia de contatos
telefônicos com pessoas desconhecidas que, através desse distanciamento inicial, buscavam
construir redes de sociabilidade que aproximassem os indivíduos. Assim como os bailes-ficha e
os contratos descritos por Alves (2004), o “Xô Solidão” representava um mecanismo que
promovia relações que não ocorreriam de modo espontâneo. A mediação da interação entre os
16
indivíduos por agências públicas aparece nesse contexto como uma possibilidade de promover a
sociabilidade na metpole contemporânea.
Devido às obrigações do primeiro ano do mestrado, não pude acompanhar muitos
encontros do projeto e nem estabelecer um diálogo com seus usuários. Meu objetivo era investir
na observação participante no segundo ano do mestrado, então comecei a refletir sobre quais
autores poderiam me informar sobre o tema e iniciei uma pesquisa com reportagens de revistas e
jornais que tratavam do projeto. O investimento neste objeto de estudo durou até janeiro de 2009.
Com as eleições e a mudança do governo municipal, o projeto foi encerrado e com ele toda a
minha expectativa de aproximação deste universo de mulheres. Não resignada, ainda tentei
conseguir o arquivo do projeto com o contato dos usuários, mas não obtive sucesso. O ex-
secretário, Marcelo Garcia, respondeu um e-mail dizendo que marcaria uma reunião, que nunca
foi realizada.
Chego, então, a um impasse na pesquisa: qual seria agora o seu rumo? Não queria
abandonar a questão da solidão, tema em voga na época e que suscitou a atenção do governo
municipal do Rio de Janeiro como um problema de ordemblica. A justificativa para a
implementação dessa política pública voltada para a diminuão do isolamento e do sentimento
de solio, como mencionei anteriormente, era a redução do número de doentes em decorrência
deste sentimento; ou seja, para o governo municipal da época, a solidão adoece.
Após uma reunião de orientação, novos rumos de pesquisa foram sugeridos. Dentre estes,
um despertou o meu interesse: pessoas que vivem sós. Embora a pesquisa tenha enveredado por
outros trajetos, as questões permaneciam. Quais os significados atribuídos ao estar só? A solidão
faz parte do cotidiano de quem vive só? Quais os significados atribdos à solidão? Como é
construído o espaço da casa? Em que redes de sociabilidade estas pessoas transitam? Quais as
formas de sociabilidade? Perguntas como estas orientaram a pesquisa.
17
A pesquisa
O universo de pesquisa foi composto por pessoas indicadas pela minha rede
2
Acho importante fazer aqui um adendo para de alguma forma me colocar quanto
pesquisadora frente ao universo entrevistado, já que ressalto os distanciamentos de trajetórias.
Apesar de minha idade se aproximar das entrevistadas de 26 anos (perfil que descreverei mais a
frente), eu nunca vivenciei a experiência de morar só. Depois que saí da casa dos pais, morei com
amigos até me casar com um companheiro de mais de 10 anos. Por ser filha de psicóloga, no
entanto, compartilho de um mesmo ethos psicologizante de camadas médias.
de relações.
A primeira entrevista realizada foi com uma prima mais velha que indicou três pessoas que
vivenciam a mesma experiência de morar só. Os demais entrevistados foram sugeridos por outras
pessoas da minha rede de conhecimento. Embora eu tenha partido de indicações do meu círculo
de relações, parece-me problemático afirmar que eu trabalhei com uma rede social específica ou
que o ego da rede seja o próprio observador. Acredito, no entanto, que a delimitação de um perfil
para os entrevistados minimiza o viés na escolha. A composição do universo de pesquisa partindo
da indicação de pessoas conhecidas poderia levar o leitor a pensar que eu compartilho das
mesmas experiências e valores do universo selecionado, no entanto, há um enorme
distanciamento entre as nossas vivências, principalmente no que diz respeito à categoria etária da
maioria dos entrevistados.
O fato de ter entrevistado uma pessoa do meu vínculo familiar (uma prima) e de já ter
contato com alguns dos entrevistados atras do meu círculo de amizades, embora sem
estabelecer uma relação próxima, permitiu relatos mais íntimos sobre as trajetórias, os
sentimentos e as visões de mundo. Somente em um caso o conhecimento prévio tornou-se um
obstáculo à entrevista: a senhora ficou constrangida de fazer determinados relatos a uma pessoa
conhecida e demonstrou excessiva preocupação com a forma de se expressar, perguntando
constantemente se estava falando corretamente. É importante observar que as pessoas que
2
Bott utiliza o termo rede para “descrever um conjunto de relacionamentos sociais para os quais não existe uma
fronteira comum, [de acordo com] o uso recente feito por John Barnes:cada pessoa está, por assim dizer, em contato
com um número de pessoas, algumas das quais estão diretamente em contato com cada uma das outras e algumas das
quais não estão’” (1976: 107).
18
conheci apenas no momento da entrevista também forneceram relatos descontrdos e
espontâneos.
Inicialmente, a faixa etária selecionada para o estudo compreendia indivíduos de 45 a 83
anos, entre mulheres e homens. Nesta primeira fase da pesquisa realizei entrevistas com seis
mulheres e três homens. Destes, sete com curso superior nas áreas de jornalismo, administração,
letras, psicologia e engenharia. Apenas quatro ainda trabalhavam, quatro eram aposentados e uma
era pensionista. A maioria pertencia a camadas médias da região metropolitana do Rio de Janeiro.
O universo de pesquisa, como veremos na breve descrição das trajetórias, é muito
heterogêneo; há indivíduos que possuem casa própria em lugar valorizado, aposentadoria privada,
carro e experiência de viagens ao exterior. Enquanto outros moram de aluguel em bairros menos
valorizados do Rio de Janeiro e não têm emprego fixo. A trajetória familiar também é muito
diversificada: pessoas que vieram de uma família de classe média alta, mas não conseguiram
manter o mesmo padrão de vida e pessoas que vieram de camadas populares e conseguiram
ascender socialmente. Além disso, há uma enorme diferença etária. Gilberto Velho (1998), ao
definir a noção de camadas médias, frisou que este conceito é muito abrangente. Para ele, sua
definição diz respeito à dimensão simbólica, ficando os aspectos materiais subordinados a esta
esfera.
Na primeira fase da pesquisa os entrevistados deveriam corresponder ao seguinte perfil:
morar só, pertencer a camadas médias da região metropolitana do Rio de Janeiro e ter mais de 40
anos. Tal recorte etário surgiu da ideia de que estes indivíduos teriam uma vida mais estável, para
os quais as questões do morar só e da solidão estariam mais consolidadas.
3
3
É importante destacar que o termo “consolidado não foi pensado como antagônico à ideia de mudança e que
estava ciente da grande diversidade que o intervalo de idade, inicialmente selecionado, já compreendia.
No entanto, as
extensas conversas com o orientador e colegas das-graduação, percebi que a inclusão de
entrevistas com jovens entre 25 e 30 anos, que vivenciam o mesmo estilo de vida da categoria
etária anteriormente eleita, poderia render boas análises. Além disso, concluí posteriormente que
este primeiro recorte de idade era fruto de pré-concepções que me acompanhavam na pesquisa;
acreditava que para os mais jovens o morar só era necessariamente transitório e que a solidão não
se apresentaria agonisticamente nesta idade. Construções que fiz a partir da experiência com o
meu primeiro objeto de pesquisa, o projeto “Eu preciso de você”, acima mencionado. As usuárias
19
do serviço da prefeitura eram, majoritariamente, mulheres com mais de 40 anos que moravam
sozinhas. Para estas mulheres, de uma maneira geral, a solidão era considerada um problema,
para o qual buscavam solução no projeto. Formulei, a partir deste perfil das participantes do
projeto, outra pré-concepção: a de que as pessoas que vivem sós experienciariam, de alguma
forma, a solidão de forma agonística. Todas estas ideias pré-concebidas foram desconstrdas ao
longo da pesquisa e trabalhadas nesta dissertação.
Acredito que a ampliação do recorte etário, ao mesmo tempo em que aumenta o risco de
não conseguir realizar densamente as inúmeras possibilidades de análise que surgem, faz com
que este leque de possibilidades possa ser frutífero para um desenvolvimento posterior do tema,
tendo em vista o caráter introdutório e exploratório desta dissertação.
O recorte etário da dissertação, na segunda fase da pesquisa, passa a conter indivíduos
entre 25 e 30 anos, entre 44 e 55 anos e acima de 70 anos. Nesta segunda fase, outra mudança no
universo pesquisado foi feita com o objetivo de restringir mais o perfil dos entrevistados:
focalizei somente o universo feminino, e deixei as entrevistas já realizadas com os homens para
um possível trabalho futuro. Além das nove entrevistas realizadas na primeira fase, fiz mais
quatro, duas com mulheres na faixa etária de 25 a 30 anos que moram sós, e duas com mulheres
que não vivems, uma de 31 anos e outra de 50 anos. Estas últimas serviriam apenas como uma
forma de controle, para ampliar a minha percepção do tema, e ajudar a relativizar possíveis
análises que vinculassem determinadas questões somente ao perfil de mulheres que vivem sós.
No total foram 13 entrevistas, no entanto, focalizo somente 8 entrevistadas que compreendem o
perfil selecionado: mulher que vive só de camada média da região metropolitana do Rio de
Janeiro.
A duração das entrevistas oscilou entre uma e duas horas. Privilegiei questões sobre
família, relacionamento amoroso, vizinhança, redes de amizades, a experiência de morar só,
hábitos cotidianos (tarefas domésticas, trabalho, lazer, relação com animais de estimão etc.), o
uso da internet como promotora de redes de sociabilidade, preconceito por morar só e questões
específicas sobre o sentimento de solidão.
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4
O roteiro da entrevista consta no anexo.
Antes do início da entrevista foi feito um acordo que
nenhuma identidade seria revelada, portanto, todos os nomes que serão aqui apresentados são
20
fictícios. A intenção de resguardar as identidades, entretanto, pode ter sido prejudicada com a
descrição das trajetórias. Porém, não teria como omiti-las no desenvolvimento deste trabalho.
O primeiro contato com a maioria das entrevistadas foi através do telefone. Como haviam
sido indicadas por conhecidos, não houve recusa, entretanto, seis preferiram marcar o encontro
fora de casa, ou por sentirem-se mais à vontade ou por praticidade, já que estariam perto do lugar
onde teriam compromisso. O fato de a pesquisa ter sido rapidamente aceita não impediu certos
questionamentos com relação ao perfil das entrevistadas. Como, em um primeiro momento, a
apresentação da pesquisa ressaltava a questão da solidão, algumas pessoas estranharam a escolha,
diziam não se adequar ao perfil, já que não eram solitárias. Percebendo a necessidade de
afastamento da ideia de indivíduo solitário, passei a dizer que o foco da pesquisa era o morar só.
O contrário também ocorreu, duas pessoas pediram para ser entrevistadas com o argumento que
teriam muito a dizer sobre a solidão. Nas palavras de uma delas, “solidão é comigo mesmo”.
Breve descrição das trajetórias
Conforme dito anteriormente, de acordo com suas idades, minhas entrevistadas se
dividem em três categorias: uma entre 25 e 30 anos, outra entre 44 e 55 anos e uma terceira com
mais de setenta anos. Eventualmente, o pertencimento a um destes grupos etários pode
determinar constrangimentos e contingências que moldem as percepções e o modo pelo qual cada
uma destas mulheres vive a experiência de morar só. Não pretendo, contudo, estabelecer linhas
gerais que indiquem tendências pertinentes a cada universo etário; o fator decisivo em minha
análise é o modo pelo qual cada uma vincula a própria trajetória aos significados envolvidos nas
experiências de morar só: a idade pode ser ou não um fator mobilizado na composição dos
pequenos campos semânticos presentes nas experiências destas mulheres. As diferenças entre as
percepções de minhas entrevistadas que possuem algum tipo de implicação geracional
5
A análise que desenvolvo nesta dissertação sobre o tema da solidão e de morar só possui
um caráter fundamentalmente exploratório. Não tenho, dessa forma, a pretensão de cobrir todos
o serão
o foco da minha análise.
5
Alves trabalha com o termo geração como aquele “que indica a construção de códigos que conferem
inteligibilidade às ações individuais num determinado contexto hisrico” (2009).
21
os aspectos que participam da significação da solidão e da situação de morar só. O trajeto
analítico aqui proposto possui a finalidade de efetuar uma primeira aproximação deste tema.
Muitos recortes possíveis foram descartados, então, em vista da preocupação de não abrir
frentes de análise que não seriam exploradas de modo satisfatório nos limites dessa dissertação.
Ao optar por estudar apenas mulheres que morams busquei, como mencionei anteriormente,
reduzir meu universo de investigação. Este recorte, contudo, deixa aberta uma dimensão de
investigação que não será extensamente explorada aqui: a questão de gênero.
6
Gonçalves analisa
o tema da mulher que mora só vinculado ao debate feminista, mostrando que:
Em certo sentido, o morar só funciona como um sinal de status que confere
maior grau de mobilidade às mulheres “sós contemporâneas. Embora adotado
enquanto um estilo de vida, que as distingue socialmente como mulheres
independentes,autônomase “senhoras de si”, o morar só não existe fora da
vida social mais ampla e está marcado por outros tipos de dependência e
contingenciamentos (2007: 226-227).
Neste sentido, o conceito de gênero, enquanto um operador de distinção das inúmeras
“masculinidades e feminilidades”, permitiu que Gonçalves analisasse as continuidades e
transformações no comportamento de suas entrevistadas. Embora constate que o morar só marca
um status para a mulher contemporânea, a autora chega à conclusão que “um estudo sobre
‘mulheres sós’, particular e situado, na contemporaneidade, não altera a norma heterossexual
estruturada na conjugalidade e na necessidade do par” (2007: 227). Na narrativa das mulheres
que entrevistei, no entanto, o processo de individualização e valorização de categorias como
“liberdade”, “autonomia”, “privacidade” entre outras, não aparecerem com o pano de fundo de
um discurso feminista.
A questão da religiosidade foi mencionada por algumas mulheres, mas não aprofundada.
Outra ressalva que acho importante fazer diz respeito ao modo como serão tratadas as relações
familiares ou de amizade, pois não pretendo, da mesma forma, dar conta do amplo debate da
antropologia relacionado às teorias de família, parentesco e sociabilidade. Estes aspectos serão
tratados meramente em vista de suas implicações para as situações particulares presentes nas
6
Quando me refiro a gênero estou adotando a definição de Heilborn (1995), ou seja, uma noção que diferencia o
sexo biológico do social. Este conceito é uma constrão social que participa das características de um sistema
simbólico.
22
experiências de cada uma de minhas entrevistadas em relação à solidão e à situação de morar só.
Reitero que estas escolhas dizem respeito ao cuidado por me afastar onimo possível das
dimensões eleitas para compor o trajeto que conduz minha argumentação. Em outras palavras, os
recortes definidos têm em vista a busca por uma abordagem mais modesta possível diante da
complexidade do tema.
Apesar de extrair dos discursos das entrevistadas, ao longo deste trabalho, elementos que
deslizam para o campo da interpretação anatica e resvalam na formulação de categorias
genéricas, não pretendo efetuar um exercício de vinculação de cada uma a tendências gerais. No
gradiente existente entre o morar só como opção ou como constrangimento entre o estar
como escolha e estilo de vida
7
e a solio como experiência de sofrimento , as falas destas
mulheres desempenham, muitas vezes, a construção de narrativas ambíguas nas quais são
elencados elementos de ambas as experiências. Existem ainda tensões entre a negação do
convio com os outros e a necessidade da companhia de alguém, ambas as situações apontadas
como requisitos para a afirmação do indivíduo como figura completa e realizada.
8
Gilberto Velho chama atenção para as múltiplas experiências a que o individuo moderno
está exposto. Cabe à memória e ao projeto atribuir significado e ordenar estas trajetórias, por
vezes contraditórias e fragmentadoras. Segundo o autor:
O que me
interessa, portanto, são os discursos de minhas entrevistadas e suas trajetórias como vias pelas
quais é possível apurar significados que tornam inteligíveis, em termos antropológicos, as
vivências contemporâneas destas mulheres de camadas médias que vivem sós no Rio de Janeiro.
As trajetórias dos indiduos ganham consistência a partir do delineamento mais
ou menos elaborado de projetos com objetivos específicos. A viabilidade de suas
realizações vai depender do jogo e interação com outros projetos individuais ou
coletivos, da natureza e da dimica do campo de possibilidades (1994: 47).
7
Quando falo de estilo de vida, estou aproximando minha análise da forma pela qual Velho (1994) articula a relação
entre projeto (o modo pelo qual o sujeito constrói o significado de sua trajetória individual), estilo de vida (as
condições disponíveis para a construção do projeto) e o campo de possibilidades (limites e coerções que interferem
nas escolhas dos indivíduos).
8
Velho (1985) caracteriza bem o modo pelo qual estas ambiguidades se manifestam, através da análise das
contradições entre os códigos presentes no ethos das camadas médias urbanas e o modo pelo qual o processo de
psicologização representa uma tentativa de conferir coerência a estas contradições.
23
Não pretendo aqui realizar uma análise dos projetos individuais e dos limites e
constrangimentos que permeiam as suas escolhas; os projetos aparecerão de alguma forma ao
longo da narrativa. Dedico-me à apresentação destas mulheres através de uma breve descrição de
suas trajetórias. No decorrer da dissertação outros dados de suas trajetórias surgirão.
Minha pesquisa se concentra, portanto, em oito entrevistadas. Quatro delas têm entre
quarenta e cinquenta e cinco anos; duas possuem mais de setenta anos; e duas têm vinte e seis
anos. Vamos às suas trajetórias.
Carla tinha cinquenta e dois anos quando a entrevistei e estava prestes a completar
cinquenta e três. É filha de um artista plástico e de uma atriz por ela definidos como “muito
boêmios” , que sempre a levavam para acompanhar suas atividades em peças de teatro amador e
nas comemorações que aconteciam depois das peças. Ela afirma ter nutrido o desejo de seguir a
veia teatral dos pais, mas desistiu ao decidir que não gostaria de ser atriz e por achar que no início
da carreira no teatro teria que passar necessariamente por esta atividade. Formou-se, então, em
Comunicão Social, com bacharelado em Jornalismo. Carla atua como revisora de textos e
tradutora e atualmente se dedica a projetos pessoais, ligados à literatura.
Carla foi criada no bairro de Laranjeiras e na juventude morou com os pais, com sua
irmã, com os avós e com tios. Saiu de casa aos vinte a quatro anos, o que considera uma idade já
tardia. Afirma que, na sua época, a única via pela qual poderia sair de casa seria através do
casamento: “naquela época eu acho que a única desculpa que a gente tinha, era sair para morar
com alguém, de casa para casar, embora não no papel. Aí fui morar com o Roberto”. O
casamento não durou muito. Carla teve outros relacionamentos nos quais morou junto com seus
companheiros: “Meu estado civil na carteira de identidade é solteira, eu realmente não casei no
papel com ninguém, mas eu já morei com vários homens, conforme muita gente da minha
geração no Rio de Janeiro”. Carla mora sozinha, há sete anos, em uma casa própria, numa cidade
serrana da região metropolitana do Rio de Janeiro. Afirma ter ido morar sozinha por opção.
Segundo ela, a busca pela tranquilidade e a proximidade com a natureza sempre foram um
projeto, concretizado com a compra da casa. Nem Carla nem sua irmã têm filhos. Carla afirma
nunca ter tido vontade de vivenciar a maternidade.
Joana tem quarenta e cinco anos. Nascida em Aracaju, é a segunda filha de uma família
de dezesseis irmãos, sendo oito deles falecidos. Aos treze anos saiu da casa dos pais, na zona
rural, e foi morar com uma irmã que vivia na cidade. Veio para o Rio de Janeiro nos anos 1980
24
porque, segundo ela, não havia condições de prosseguir com os estudos em seu estado natal. No
Rio de Janeiro, viveu em “repúblicas”, dividiu apartamento por algum período, morou na casa de
amigos, e vive sozinha segundo ela, por opção um ano:eu escolhi morar; uma coisa é
eu morar só por opção, e uma coisa é você estar só porque não tem com quem estar (...)”. Joana
mora de aluguel em um bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro.
Ela possui uma doença degenerativa que atingiu sua perna e seus quadris, por isso, sua
trajetória é entrecortada por episódios de internação médica para se submeter a cirurgias para o
tratamento da doença. Em um dos períodos em que morou com uma família de amigos, estava
justamente em recuperação de uma cirurgia.
Psicóloga, solteira nunca se casou e não tem filhos. Embora afirme ter terminado um
noivado para se dedicar aos estudos, diz não ter sido uma opção ficar solteira; outras
contingências a levaram a não casar e a não ter filhos. Joana trabalhou como psicóloga por um
tempo, fez trabalhos voluntários, e agora se encontra afastada do trabalho por motivo de doença.
Não obstante seu afastamento das atividades profissionais, ela fazs-graduação voltada para a
saúde do idoso, além de estudar espanhol e inglês. Frequenta, ainda, aulas de Tai Chi Chuan. A
trajetória de Joana é diferente da do restante da família: foi a única irmã a se dedicar aos estudos
e a não casar.
Simone, cinquenta anos, é formada em Letras com habilitação em Literatura. Está
aposentada há oito anos por invalidez. Morou durante a infância no bairro do Leblon, Zona Sul
do Rio de Janeiro e relata o desconforto que sentiu quando, aos onze anos, mudou-se com os pais
para a Tijuca, Zona Norte da cidade. O pai de Simone era jornalista, escrevia programas para a
televisão e chegou a ganhar o prêmio Esso de reportagem. A mãe era auxiliar de enfermagem e
dona de casa. Simone tinha uma vida muito confortável e o projeto de seguir a carreira
acadêmica. Aos vinte e um anos, com o falecimento de seus pais, seu projeto foi interrompido e
Simone virou tutora dos irmãos mais novos. No peodo em que precisou sustentar os irmãos,
ficou afastada dos estudos por dez anos. Depois de casada retomou o curso de Letras e o
concluiu. Foi casada duas vezes e está divorciada há seis anos. Há três mora sozinha, de aluguel,
no bairro de Santa Teresa, centro do Rio de Janeiro. Simone não teve filhos.
A situação de morar só, para Simone, não figura em nenhum momento como uma opção.
Ela afirma que foi morar só porque os pais morreram e que se eles estivessem vivos ainda viveria
com eles. Em relação ao marido, é o mesmo: afirma que não optaria por se separar e morar só.
25
Chega a dizer que seria capaz de sustentar uma relação infeliz com o marido para não ficar
sozinha:
Eu acho que se ele não tivesse pedido eu estaria infeliz no casamento e casada
até hoje com medo de ficar sozinha, o medo de ficar sozinha erao grande, que
eu iria aturar um casamento infeliz, apesar de gostar dele e saber que ele também
tem apreço por mim, mas só para não perder o companheiro (Simone).
No mês em que foi realizada a entrevista, Simone estava de mudança para a casa de uma
tia. Diz não ter suportado mais ficar só. A depressão foi um dos aspectos que a motivaram a
tomar esta decisão. Segundo ela, a depressão sempre fez parte da sua vida, mas “com o
agravamento da solidão, ela veio a piorar”.
Com cinquenta anos, Ana é filha única, professora, funcionária pública, formada em
Letras. Ela administra, além disso, um site de venda de produtos eróticos pela internet e ministra
aulas particulares de inglês e português. Ana tem uma filha e dois netos. O pai de Ana era
farmacêutico e faleceu quando ela ainda era criança. Depois disso, Ana morou vinte e um anos só
com a mãe até casar e ter sua única filha. Com a separação, Ana voltou a morar com a mãe,
também em vista do fato de sua mãe necessitar de cuidados especiais com a saúde. Com o
falecimento de sua mãe, Ana teve diversas experiências de dividir apartamento com
companheiros e amigos. No entanto, foi com sua filha que viveu a maior parte do tempo até a
filha casar e sair de casa. Desde então, há onze anos, Ana mora sozinha:
Quando os seus pais morrem, quando os seus filhos casam e você está solteira,
ou você vai morar de agregada na casa de alguém ou você divide uma casa com
alguém, ou você mora sozinha. E eu, graças a Deus, por ter condições materiais
de optar por morar sozinha, eu prefiro, até porque seria difícil morar, dividir a
mesma casa com uma outra pessoa (Ana).
Ana comprou uma casa na região oceânica de Niterói. Assim como no caso de Carla, era
um projeto morar em um lugar mais tranquilo.
Irene, de setenta e nove anos, é a entrevistada mais velha da pesquisa. É formada no
curso técnico de contabilidade e trabalhou nesta área até se casar. O depoimento de Irene é
entremeado por relatos de arrependimentos e frustrações por ter abandonado projetos individuais
em prol da falia. Está divorciada há vinte anos, depois de decepções com o marido. Desde
então morou com os filhos e, há um ano, seu filho mais novo saiu de casa e Irene passou a morar
26
só. Nascida em Campos dos Goytacazes, veio para o Rio de Janeiro, ainda jovem, onde começou
a trabalhar.
Apesar de não ter optado pela situação de morar só, Irene não demonstra muito
descontentamento com esta situação e afirma ser muito independente. Ela atualmente está
aposentada e recebe uma ajuda financeira de seu filho mais velho. Irene reside em um
apartamento próprio em Niterói.
Isaura tem 71 anos, é viúva e vive da pensão deixada pelo marido. Possui o ensino
médio e é dona de casa. Nascida no interior de Sergipe, Isaura veio para o Rio de Janeiro, junto
com seus irmãos, para trabalhar. Morou com os irmãos até que estes se casaram. Casou-se
também, mas não teve filhos. Seu marido tinha uma situação financeiramente estável e deixou
uma casa grande na zona oeste do Rio de Janeiro, onde ela mora sozinha, há cinco anos. Para
Isaura, morar só não resulta de uma opção e representa uma consequência indesejada de sua
viuvez. Seu discurso apresenta-se muito carregado de queixas por morar sozinha e de todas as
dificuldades que esta situação representa para ela.
Sabrina tem vinte e seis anos e é formada em História, mas não trabalhou na área. Há
pouco tempo, trabalhava como designer instrucional, profissão ligada à área de educação. A
atuação de Sabrina nesta profissão estava voltada para a educação à distância. É filha de
professores universitários. Sua mãe morreu quando tinha seis anos. A partir de então, passou a
viver com o pai e com suas duas irmãs. Ela é a mais nova das três irmãs. Quando Sabrina era
adolescente, seu pai decidiu ir morar com sua nova esposa, deixando as três filhas na casa na qual
moravam. Com mais ou menos vinte anos passou a morar sozinha porque suas irmãs saíram de
casa; uma para casar e a outra para trabalhar em São Paulo.
Ela não se casou e relata jamais ter tido uma relação afetiva duradoura. Atualmente,
Sabrina está desempregada e seu pai a sustenta. Desde a morte de sua mãe, passando pelo fato de
seu pai ter saído de casa e culminando na saída de suas duas irmãs, Sabrina não identifica sua
situação de morar como produto de sua escolha. Em seu discurso se queixa de ter sido
abandonada por todos e do fato de não ter tido a oportunidade de experimentar uma relação
próxima com o pai ou com as irmãs.
Marina, também de vinte e seis anos, faz parte, junto com Sabrina, das entrevistadas
mais novas da pesquisa. Sua trajetória e o modo pelo qual experimenta a situação de morar só,
contudo, parecem ser o exato negativo de Sabrina. Marina é formada em Física, faz mestrado em
27
geofísica, e trabalha, há três anos, em uma empresa do ramo do petróleo. Seus pais são argentinos
e professores universirios. Além do irmão e dos pais, não possui nenhum parente no Brasil. Aos
vinte e quatro anos, decidiu morar sozinha por opção: “saí porque já estava na hora de ter essa
experiência”. Sua narrativa em relação ao morar só não demonstra nenhuma contradição, tensão,
ou ruptura com sua situação familiar pregressa. Marina ainda não casou, apesar de relatar
namoros duradouros, e não tem filhos.
Estas trajetórias definem um quadro um tanto diversificado de experiências e
articulações com o tema da solidão e do morar só. Ainda que haja uma concentração em mulheres
com nível superior apenas Isaura e Irene não possuem graduação , as trajetórias são um tanto
diversas. Entre as duas mais novas, com o perfil de escolaridade semelhante, há duas formas
absolutamente distintas de experimentar o morar só. As quatro mulheres de meia idade também
possuem narrativas distintas sobre o tema, assim como as duas senhoras mais velhas apresentam
percepções diversificadas.
Existe, ainda, uma diversidade geográfica em relação ao local de residência das
mulheres pesquisadas. Ana e Carla viveram muitos anos no Rio de Janeiro, em bairros das Zonas
Sul e Norte e, nos últimos anos, decidiram viver distante do centro urbano. Joana e Simone
viveram na Zona Sul em determinados momentos de suas trajetórias e atualmente moram em
bairros da Zona Norte e do Centro do Rio. Isaura mora na Zona Oeste da cidade. Irene vive em
Niterói, cidade na qual vivem também Sabrina e Marina. Não obstante esta diversificação, todas
estas mulheres compartilham de um mesmo ethos urbano; inclusive as duas mulheres que moram
longe do centro urbano do Rio de Janeiro mantêm nele as suas relações familiares e a maioria das
amizades. Ana ainda trabalha na cidade do Rio de Janeiro alguns dias da semana. Além disso, o
modo pelo qual as entrevistadas narram suas experiências de morar só tem forte associação com
esse ethos urbano.
As origens de cada uma destas mulheres também são diversas. Carla nasceu na Zona Sul
e vem de uma família de artistas. Ana era filha de um farmacêutico e vem de uma família de
agricultores de cana-de-açúcar de Campos dos Goytacazes. Joana vem de uma família de
agricultores do interior de Aracaju. Simone é filha de um jornalista, redator de programas de
televisão e nasceu na Zona Sul do Rio de Janeiro. Isaura nasceu em uma família de lavradores
sergipanos. Irene vem de uma família de classe média de Campos dos Goytacazes. Sabrina e
Marina são filhas de professores universitários, sendo a segunda filha de argentinos. Estes
28
aspectos imprimem traços nas trajetórias de cada uma delas de modo a apresentar determinadas
nuances na relação com o problema desta dissertação. Não pretendo estabelecer vínculos causais
entre as origens e as percepções, apenas busco agregar elementos para a composição de suas
trajetórias a fim de perceber como as narrativas se articulam com as experiências e, assim, obter
algumas questões de aproximação com o tema tratado.
Resguardados estes aspectos que tornam o universo pesquisado um tanto heterogêneo
o que poderia nos levar a supor que estas experiências seriam praticamente irredutíveis, não
cabendo nenhum exercício de comparação e aproximação entre elas , há um aspecto
fundamental que parece servir de ponto de inflexão entre cada um dos depoimentos recolhidos na
presente pesquisa: o fato da situação de morar só decorrer de uma opção ou ser uma
consequência de determinadas continncias que imem constrangimentos aos sujeitos
pesquisados. A questão aqui não é apurar se a situação de morar só é efetivamente fruto de uma
escolha independente de quaisquer constrangimentos, mas sim o modo pelo qual ela é significada
e apropriada por estas mulheres. As interpretações que sugiro aqui decorrem, portanto, do
entendimento de que não há ação livre de algum constrangimento, bem como não
constrangimentos absolutos que anulam quaisquer aspectos do reino da liberdade e da vontade.
Ao caracterizar as coisas dessa forma, me aproximo da articulação que Velho (2004) estabelece
entre as noções de projeto, campo de possibilidades e horizontes de expectativas.
O que vou tentar mostrar é que, se a situação de morar só é apropriada como uma
escolha do sujeito, há claras implicações em relação ao modo pelo qual o morar é significado
tendo como contornos as fronteiras entre o estar só e o ser só (ou a solidão). As variações em
torno deste aspecto definem nuances em relação ao modo pelo qual o morar só representa uma
possibilidade de afirmação e construção dos sujeitos. Esta distinção, extraída das narrativas das
mulheres entrevistadas e vertida em categorias analíticas (como culmina no último capítulo), cria
limites que distinguem diferentes experiências em relação à situação de morar só.
A questão não é, porém, classificar as vivências de cada uma dessas mulheres em um
modelo abrangente; o meu esforço estará dirigido, em vez disso, em apreender o modo pelo qual
as narrativas das entrevistadas atualizam ambiguidades que oscilam entre determinadas
possibilidades semânticas, criando tensões e tecendo sentidos que limitam e expandem as
fronteiras dos significados conferidos às experiências de morar só. Acredito que esta é uma via
possível para garantir inteligibilidade a estas vivências e, assim, elaborar uma interpretação
29
antropológica de aproximação que forneça alguma contribuição para a compreensão desse
femeno um tanto recente no contexto brasileiro.
9
Eliane Gonçalves defendeu recentemente uma tese intitulada “Vidas no singular: noções
sobre ‘mulheres sós’ no Brasil contemporâneo”, na qual ressalta a escassez de estudos sobre o
tema na área de Ciências Sociais
10
e, segundo ela, mesmo os estudos demográficos investem
pouco nos dados sobre pessoas que vivem sós. Nestes estudos, somente o grupo de mulheres com
mais de 50 anos é considerado estatisticamente relevante. Gonçalves apresenta o dado do IBGE
de 2002 que aponta que o índice de domicílios particulares unipessoais é de 10% na população
brasileira. Em recente reportagem da revista Istoé,
11
com os dados da PNAD (Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios) de 2008 este índice chega a 11,6% no Brasil e 14,9% no Rio de
Janeiro, sendo mais de 50% de mulheres.
12
De acordo com Gonçalves:
Os ainda raros estudos sobre morar só e/ou sobre pessoassolteiras” realizados
no Brasil e em outros países sugerem tratar-se de um estilo ou modo de vida
particular, no qual a decisão voluntária o diferencia de outras formas vida.
Transitório ou permanente, este estilo de vida se dá pela oposição direta ao viver
junto, seja na família parental, na conjugalidade (casamento, coabitação, união
informal) ou outra modalidade de habitação compartilhada. As marcas deste
estilo de vida, mais característico na vida urbana contemporânea, estão no gosto
pela liberdade, pela individualidade e no apreço pela casa como local de
privacidade e intimidade, uma espécie de extensão de si mesmo (2007: 93-94).
As marcas que, segundo a autora, identificam o estilo de vida do individuo que mora só,
como a individualidade, o apro pela liberdade e privacidade, são justamente os aspectos que
abordarei quando analiso o espaço doméstico como lugar de construção do sujeito.
9
Gonçalves (2007) mostra que é uma realidade recente, produto do mundo moderno, o fenômeno de mulheres
financeiramente independentes, que investiram na formação, profissionalizadas, solteiras e que optaram pelo estilo
de vida de morar só.
10
Ver Morais (1990).
11
Revista do mês de outubro de 2009.
12
A reportagem mostra que estes índices são ínfimos se comparados aos de outros países: nos Estados Unidos, 25%
da população vivem sós, este índice duplica na cidade de Nova York; na Suécia, 40%; Dinamarca, 36%; Inglaterra e
Fraa, 30%. Gonçalves (2007) também relata a discrepância entre as estasticas brasileiras e as de outros países. É
um fenômeno mundial que tem gerado um mercado de consumo direcionado a este público, como o de produtos
alimentícios e o mercado imobiliário.
30
Escopo dos capítulos
O debate que pretendo desenvolver acerca das experiências de morar e suas
articulações com o tema da solidão percorrerá um trajeto estabelecido em três capítulos que se
complementam entre si e que representam uma progressiva aproximação de algumas questões
centrais. Os dois primeiros capítulos tratam de duas dimensões essenciais às experiências de
morar só; o terceiro estabelece uma distinção fundamental para a definição de experiências
distintas da situação de morar só.
O primeiro capítulo, dessa forma, trata dos aspectos relativos ao espaço da casa como
donio de construção da subjetividade. A noção de privacidade e o espaço doméstico, os
cuidados com a casa, as relações com animais domésticos, o uso da internet e a constituição de
um discurso psicanalítico foram os aspectos que elegi para a abordagem da casa como oficina da
subjetividade. Morar só constitui uma configuração particular da relação entre a casa e a
subjetividade.
Já as relações para fora da casa serão abordadas no segundo capítulo. Nesta etapa da
argumentação será importante identificar quais as instâncias coletivas e exteriores ao espaço de
privacidade são importantes para a configuração das experiências de morar só. As relações
familiares, as relações amorosas, as amizades e as relações de vizinhança foram as dimensões
identificadas como as que tinham maior peso nos discursos das entrevistadas ao narrarem suas
experiências de morar só.
No terceiro e último catulo extraio dos próprios discursos de minhas entrevistadas uma
distinção basilar que estabelece duas vias distintas a partir das quais o morar só se aproxima ou se
afasta de aspectos agonísticos da solidão. Este capítulo sintetiza aspectos fundamentais que
aparecem de modo mais diluído nos dois capítulos anteriores.
A partir desse percurso, pretendo cobrir alguns aspectos fundamentais pertinentes às
vivências distintas de morar só. Sem a pretensão de esgotar as possibilidades de análise desse
tema que emerge na sociedade brasileira como constituinte de formas particulares de
sociabilidade, buscarei algumas aproximações pertinentes que espero que sejam também
produtivas do ponto de vista analítico.
31
I. “ANTES SÓ DO QUE MAL ACOMPANHADO”: A CASA COMO ESPAÇO DE
CONSTRUÇÃO DO SUJEITO
Philippe Ariès (2009), ao traçar as linhas gerais de uma história da vida privada,
aborda algumas questões fundamentais que sedimentaram as formas de sociabilidade típicas
da modernidade.
1
Situa os primeiros desenvolvimentos da sociabilidade moderna no século
XVII, tendo como ponto de chegada o século XIX período no qual se consolidaram
transformações que são imprescindíveis para compreensão das formas de vida social que se
manifestam no Ocidente ao longo do século XX até os dias de hoje. Muitos destes aspectos
abordados por Ariès são muito esclarecedores em relação aos elementos que apurei dos
discursos de minhas entrevistadas, sobretudo, no que diz respeito ao espaço da casa espaço
privado como esfera de construção da subjetividade.
2
O seguinte trecho de Ariès dá o tom
do que estou tentado caracterizar:
O ponto de chegada é o século XIX. A sociedade moderna se tornou uma
vasta população anônima na qual as pessoas já não se conhecem. O trabalho,
o lazer e o convívio com a família são doravante atividades separadas em
compartimentos estanques. O homem busca proteger-se dos olhares dos
outros e para isso lança mão de dois recursos: o direito de escolher mais
livremente (ou pensar que assim escolhe) sua condição, seu estilo de vida; e
o reconhecimento junto à família, transformada em refúgio, centro do espaço
privado (2009: 10).
3
Este trecho coloca duas questões centrais para a abordagem que proponho neste
catulo sobre o espaço da casa: o aspecto da vontade ou seja, a casa como templo da
construção da subjetividade está fortemente vinculada com o tema da livre escolha do sujeito
(ou pelo menos da significação da ação como decorrente deste tipo de deliberação) e a
caracterização da família como principal elemento mediador do espaço privado, em nosso
1
Esta discuso de Ariès também pode ser encontrada em um artigo seu publicado na coletânea Família,
Psicologia e Sociedade coordenada por Figueira e Velho (1981).
2
Aqui trato o tema da subjetividade como abordado por Sérvulo Figueira (1987), ou seja, identifico o indivíduo
não como unidade de análise da ideologia individualista, nem como sujeito abstrato, mas como elemento
concreto no qual se estruturam aspectos de construção da subjetividade: “Nesse sentido, é possível tomar alguns
indicadores da existência do indivíduo como modalidade específica, aí real, de estruturação da subjetividade e
não apenas uma representação e mostrar a eficácia ou a presença disso de alguns modos” (1987: 94). Minhas
entrevistadas, neste sentido, representam individualidades concretas em franca relação com o espaço privado que
ocupam no trabalho de construção de si. Esta constrão de si, no entanto, não representa uma atividade
autóctone, ao contrário do que se poderia pensar colocando as coisas nestes termos; veremos que o espaço da
casa o modo como ele é apropriado e significado depende de diversas mediações e relações sociais que
ultrapassam o sujeito como unidade.
3
Sobre o tema do anonimato como aspecto marcante da sociabilidade moderna e urbana, temos referências em
Simmel (1998) e Velho (1994, 2000). Vale a pena também o conto de Poe (1978) sobre o homem na multidão
como alegoria destas relações anônimas.
32
caso, da casa. Velho (1987) já chamou a atenção para o fato de que a família não deve ser
descartada como um elemento caro ao tema da subjetividade. Lembrando que há inúmeros
tipos de família e recusando a tese da emergência de uma “nova família”, Velho define que
em suas pesquisas em camadas médias urbanas “esse individualismo, que retoricamente pode
ser agonístico, não é concretamente desligado de uma rede de relações sociais onde o universo
de parentesco torna-se fundamental” (1987: 84).
No presente capítulo, ainda que o espaço da casa seja apresentado em termos
analíticos vinculado a uma ideologia do reino da liberdade, ficará claro que sua caracterização
concreta apresenta muitas mediações com relações para fora da casa, como o parentesco e as
relações de amizade este último fator, aliás, também já foi abordado por Velho (1987) como
importante instância mediadora das relações pertinentes à subjetividade. Verei como as
experncias de cada entrevistada apresentam nuances que ora se afastam ora se aproximam
deste reino da liberdade. O que desejo mostrar é que em alguma medida existe uma
apropriação deste significado da casa como esfera da vontade no repertório de sentidos
mobilizado por cada entrevistada para a caracterização de suas experiências. O quadro, que
descrito historicamente e em termos dos desenvolvimentos da ideologia individualista possui
determinados matizes às vezes por demais nítidos e delimitados, ganha cores atualizadas por
estas experiências de mulheres no Rio de Janeiro: as formas se tornam um pouco mais
sombreadas, a paisagem um pouco mais impressionista. No capítulo seguinte, porém, tratarei
com mais intensidade das relações para fora da casa; assim, estas mediações aparecerão de
forma mais intensa.
Mas é preciso, ainda, definir melhor o quadro histórico da mentalidade individualista
descrita por Ariès como chave para a realização de uma história da vida privada moderna. Em
termos de um panorama mais esquemático, Ariès identifica três fatores decisivos para a
consolidação das formas modernas de sociabilidade que sedimentam o espaço privado como
aspecto central da ideologia individualista: o papel do Estado, estabelecendo limites mais bem
definidos entre a esfera pública e a privada; o advento da alfabetização e da difusão da leitura,
como elementos que favorecem a reflexão intimista e solitária, como as dos Ensaios de
Michel de Montaigne (1972); e, por fim, a emergência das religiões protestantes que definem
uma relação mais íntima e individualizada com o divino se opondo à mediação institucional e
ritual da Igreja Católica.
Deste cenário geral de transformações sociais, emergem aspectos decisivos para a
construção da sociabilidade moderna como atividade que privilegia o espaço privado. Ariès
identifica o primeiro elemento importante na literatura de civilidade como instância de
33
consolidação de regras de savoir-vivre que se vinculam com o desenvolvimento de uma
polidez privada, como descrita por Elias (1994), no trabalho do processo civilizador
empreendido pelo Ocidente moderno. Um segundo indício da vontade de isolamento que
come a ideologia individualista moderna, segundo Ariès, é a difusão de uma literatura
autográfica, expressa na prática de escrever diários. Esta literatura representaria uma mescla
de literatura, escrita e autoconhecimento. O gosto da solidão seria outra característica
importante. Este gosto pela solidão está expresso de modo muito claro no ensaio de
Montaigne sobre a solidão, no qual ele escreve: “O fim que visamos quando procuramos a
solidão é, creio, viver mais à vontade e como nos agrada (...)” (1972: 119). Este gosto da
solidão é um aspecto fundamental na configuração do espaço privado como reino da
liberdade. Mas este isolamento não representava um apartamento do mundo como o ermitão
ou o monge; ele estava mediado por outras relações e previa a seleção, muitas vezes, de um
amigo para a fruição da solidão. A amizade é, portanto, um outro fator caro ao individualismo.
Estas mudanças transformaram a forma de conceber a vida privada e cotidiana. O
espaço da casa, a moradia, passa por mudanças em sua composiçãosica e na maneira pela
qual é significada. Ariès identifica, neste sentido, que as mudanças espaciais na casa
compreendem a multiplicação dos cômodos e a criação de pequenos espaços que ampliam a
privacidade. Ocorre, além disso, a criação de espaços de comunicação entre os cômodos
(escada privada, corredor, hall de entrada etc.) que definem espaços mais privativos e a
limitação de áreas comuns. Há, ainda, uma especialização dos aposentos e mudanças na
distribuição do calor e da luz pelos cômodos.
Tais mudanças comportamentais e espaciais elaboram, segundo Ariès, um processo
que passa pela afirmação de uma intimidade individual, que estimula a criação de pequenos
grupos de convivialidade” vinculados ao desejo e à permissão para o compartilhamento de
experiências privadas e íntimas, e, por último, incorpora a família como um “lugar de refúgio
onde se escapa dos olhares de fora, lugar de afetividade onde se estabelecem relações de
sentimento entre o casal e os filhos, lugar de atenção à infância (bom ou mau)” (Ariès, 2009:
20). Todos estes aspectos estarão presentes no repertório das narrativas das mulheres
entrevistadas nesta pesquisa. Suas falas estabelecem aproximações, tensões, e atualizações
destes aspectos. Veremos, mais claramente no terceiro capítulo, como a família mantém um
papel ambíguo que oscila entre o “sufoco”, como caracteriza Velho (1987), e o refúgio e
motor desse sujeito atuando no reino da liberdade.
Outra referência importante para a definição do espaço da casa como esfera de
construção da subjetividade é a discussão de Peter Kelvin (1981) que vincula a noção de
34
privacidade à relação entre poder e normas. Para Kelvin:
De um ponto de vista sociopsicológico (e há outros naturalmente), o ponto
central é a inter-relação de privacidade, poder e normas. Por exemplo, o
direito” à privacidade pode ser encarado como uma norma de “uma ordem
mais alta” que limita, e até anula, outras normas sociais. Há, então, alguma
evincia de que, historicamente, uma classe de comportamento se torna
uma “área de privacidade”, quando a significação social daquele
comportamento está num período de transição comumente passando de
um rígido controle normativo para um tratamento permissivo. Vista dessa
maneira, uma área de privacidade constitui uma situação social ambígua; sua
ambiguidade é uma fonte de ansiedade, que pode explicar a intensidade
emocional, que tantas vezes acompanha as discussões (e invasões) de
privacidade (1981: 28).
O espaço da casa espaço de privacidade representa, então, na abordagem que
proponho, um locus de construção do sujeito na medida em que é o terreno no qual ele
expressa sua vontade e estabelece proximidades com um reino da liberdade. A contribuição de
Kelvin indica, neste sentido, que a casa é também um lugar de exercício de poder. A
afirmação deste poder e as frustrações encontradas na ausência de condições para o seu
exercício são índices caros ao modo pelo qual minhas entrevistadas expressam suas
experiências de morar só. O movimento fundamental presente neste poder inerente à
privacidade é o de decidir quando, como e com quem querem compartilhar este espaço da
casa. Não ter como escolher é indicio, portanto, de certa fragilidade no exercício desse poder;
logo, representa uma falha no trabalho de construção do sujeito do qual a casa o espaço de
privacidade é oficina privilegiada.
Kelvin realiza ainda distinções semânticas entre “privacidade”,recolhimento,
“solidão” e “isolamento” que considero importante recuperar. Privacidade e recolhimento
compartilham de proximidades semânticas na medida em que se aproximam de algo que é
deleitável, ou seja, a noção de privacidade “é vista como condição que, de certo modo,
aumenta a satisfação, é procurada e protegida” (Kelvin, 1981: 32). Esta privacidade e
recolhimento guardam proximidades com a ideia de solidão presente no ensaio de Montaigne.
A noção de solidão, porém, sofreu mudanças semânticas importantes e, como mostra Kelvin,
costuma ser aproximada, juntamente com o isolamento, de uma condição indesejada, que
deve ser evitada. O ponto que separa estes dois grupos semânticos é justamente a questão da
vontade: se a situação representa o produto de uma escolha deliberada ou apropriada pelo
sujeito. O trecho de Kelvin é esclarecedor:
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Assim, a diferença básica nas duas condições pode, ela mesma, ser vista
como função da escolha. É possível considerar a privacidade como uma
condição de “separação” deliberadamente escolhida e protegida por um
indivíduo (ou grupo), separação que o indivíduo pode, em princípio,
abandonar ou desfazer, se assim escolher. Isolamento [bem como a solio],
por outro lado,o é produto de escolha, é imposto, direta ou indiretamente;
manifesta-se quando um indiduo procura relacionamentos com os outros,
mas é impedido de estabelecê-los pela separação física dos outros, pela
preocupação destes consigo mesmos, ou, na verdade, pela patológica
preocupação do indivíduo consigo mesmo, o que invalida a reciprocidade,
que é essencial para a interação e os relacionamentos (1981: 32).
Na análise que proponho, o exercício da vontade, a afirmação desse espaço de poder,
aparece como elemento fundamental para a compreensão do modo pelo qual as entrevistadas
significam suas experiências de morar só. A impossibilidade no exercício desse poder inerente
ao espaço da casa representa, portanto, uma falha no processo de construção da subjetividade
e pode criar proximidades semânticas com as ideias de isolamento e solidão, ambas
antagonistas ao trabalho de afirmação do indivíduo e sua subjetividade.
A noção de privacidade e o espaço doméstico
“Eu gosto muito do meu espaço, de escrever, de ler, e para isso você não pode estar o
tempo todo com uma pessoa falando do seu lado, querendo que você veja televisão junto com
ela, eu acho que não dá... É difícil, né...” Este trecho do depoimento de Carla sintetiza e
expressa de modo muito claro a definição de uma zona de privacidade na qual o espaço
doméstico figura como “meu espaço”. Em sua casa, Carla é senhora de seu tempo e de seus
desejos: organiza sua rotina ao sabor de suas inclinações, dimensiona a fruição de seus dias de
acordo com o que considera importante para si. “Eu gosto muito de ter meu espaço” define a
apropriação do espaço doméstico como vinculado à noção de privacidade, conforme busquei
consolidar ao recuperar Ariès e Kelvin.
A questão do gosto por estar só aparece de modo reiterado no discurso de Carla: “Eu
adoro. Eu gosto, eu tenho uma casa grande, eu uso toda a casa, toda a casa, sozinha mesmo,
eu ocupo todos os espaços”. Carla valoriza o modo pelo qual se expande e ocupa os espaços
da casa. Com isso, sua casa é um templo de si mesma, um lugar no qual pode cultivar-se ler
os livros que deseja, escrever, acessar o que bem entender na internet. Assim como na solidão
caracterizada por Montaigne, Carla, na fruição de seu tempo e seu espaço, é companhia para
si. O poder de decidir o que deseja e o que não deseja fazer, dentro da temporalidade que
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estabelece, afasta da experiência de morar só os significados negativos presentes nas ideias de
solidão e isolamento.
Ao falar se gostaria de ter uma companhia, se sente falta de alguém para dividir a
casa e a rotina, Carla não rejeita a possibilidade, mas qualifica quem seria esta pessoa: teria
que ser alguém que respeite o fato dela gostar de ficar sozinha. Carla define, então, uma
distinção que será cara à análise que farei no último capítulo desta dissertação: ela gosta de
estar sozinha, mas não gosta de ser sozinha. A diferença sutil, mas radical, entre ser e estar
produz uma inflexão no que diz respeito ao significado da experiência de morar sozinha que é
decisiva. Estar é estado; remonta uma circunstância que pode ser interrompida a qualquer
momento, na medida em que o sujeito decida ter a companhia de alguém. Ser é condição;
situação que é vinculada à própria constituição do sujeito, inseparável dele. O que está em
jogo, então, no modo pelo qual Carla lida com a construção de um espaço de privacidade
um espaço seu é o tema da vontade. A chave que altera o sentido da experiência é a
possibilidade de escolha. Se o espaço doméstico representa a possibilidade de construção do
sujeito e de afirmação de seu poder, ele deve ser a expressão de sua vontade.
Mais importante, porém, que ver refletidas no discurso de Carla estas inflexões
semânticas é tentar apurar o modo pelo qual sua trajetória se vincula com a construção de uma
narrativa na qual estes sentidos são elencados e incorporados. Carla passou a morar só depois
de algumas relações afetivas mal sucedidas. Em sua juventude, acompanhava os pais nas
comemorações que ocorriam depois dos espetáculos teatrais amadores dos quais
participavam; estas festas, em geral, ocorriam em bares. Carla retrata, no modo pelo qual fala
de sua trajetória, a relação com os pais um pouco distante em sua infância e juventude. Ela
afirma que foi uma criança muito retrda e imaginativa, gostava de ler e de “conviver” com
os personagens de suas leituras. Quando acompanhava os pais em suas comemorações
geralmente ficava em uma mesa separada, lendo suas revistas. Isto ocorreu até o momento
que Carla identifica um ponto de mudança qualitativa: quando ela começou a beber. A partir
deste momento, ela alega finalmente ter se sentido participando domundo” de seus pais. Ela
podia, agora, compartilhar coisas com eles: ver e ser vista.
Mas Carla atribui este ponto de mudança ao fato de ter caído em uma armadilha. Ela
teria se tornado uma alcoólatra: todas as relações que estabeleceria desde então estariam
pautadas pelo consumo do álcool, seja com seus pais, seus amigos ou com seus parceiros
amorosos. A “doença do alcoolismo”, nos termos da própria Carla, se tornou uma ameaça
para a constituição de sua própria subjetividade. O indício deste perigo e desta fragilidade é
retratado por Carla como presente na artificialidade ou “falsidade” das relações que
37
estabeleceu. Em seu depoimento, ela afirma que não tinha amizades verdadeiras porque todas
estavam pautadas exclusivamente pelo consumo do álcool. Sua relação com os pais também
tinha esta mediação que ela identifica como artificial. Seus relacionamentos amorosos sofriam
do mesmo mal.
Carla apresenta, então, em sua narrativa, uma segunda mudança qualitativa que
representou uma nova etapa no trabalho de manutenção da integridade de sua subjetividade: a
inauguração de sua fase sóbria e o fato de ter ido morar só. Após as relações malfadadas
insucesso que Carla atribui à bebida , ela conclui que deve parar de beber e passar a morar
sozinha. Estas duas coisas estão absolutamente vinculadas em sua narrativa. Até porque ela
optou por morar em uma cidade mais afastada do Rio de Janeiro, realizando um desejo seu
antigo, que também representaria uma ruptura com a rotina de bares. Manter-se sóbria é
condição para que ela mantenha sua subjetividade íntegra; estar sozinha, morar só, é a via pela
qual cultiva esta possibilidade. Mas Carla não se identifica com o isolamento: morar só e estar
sóbria são as vias pelas quais ela se sente credenciada a estabelecer relacionamentos
“saudáveis”, com seus amigos, com sua família e com possíveis envolvimentos afetivos. No
caso das relações amorosas, ela coloca a exigência de que deveria ser alguém que não a mova
um milímetro de sua condição de soberana em seu espaço.
Ocupar todos os espaços da casa é um indício, no discurso de Carla, de que esta
posição de soberania deve ser garantida em cada palmo do espaço que considera seu. Ao falar
do sentido que isto tem para si, ela vincula este poder à sua integridade e seu aperfeiçoamento
pessoal. Em oposição à “doença”, que a fragilizava e a mantinha refém de algo que
ultrapassava sua vontade, Carla afirma o gosto por morar só como garantia de expressão de
sua vontade.
Mas este espaço seu, espaço de sua vontade, não é a própria expressão de um perfeito
reino da liberdade. Ainda que demonstre um grande apreço por estar sozinha, Carla não
idealiza sua situação: afirma que gostaria de ter um companheiro. Este companheiro, contudo,
deve se opor às suas experiências pregressas e, para que represente uma verdadeira
companhia, deve respeitar sua privacidade. Submeter-se a uma vontade que lhe é alheia
representa para Carla o próprio isolamento, a própria expressão da solidão, que, no limite,
representa um afastamento de si mesma. Reafirmando que as trajetórias de cada entrevistada
definem pontos de aproximação e afastamento com determinadas possibilidades semânticas,
identifico uma ambiguidade fundamental no discurso de Carla, que está ligada à vontade de
uma relação afetiva. Isto não torna Carla absolutamente infeliz ou a atira em uma situação
38
agonística do individualismo.
4
Existe um fator, portanto, que Carla não pode controlar ainda que se esforce para
fazer o que lhe cabe a este respeito e que pode colocar abaixo a integridade desse espaço de
poder, desse espaço privado: se este morar só deslizar de um estar para um ser. Se Carla não
conseguir alguém com quem compartilhe esta experiência de si, seu estar só pode se tornar
um ser .
Mas, de alguma forma, cria fissuras na afirmação de seu
espaço quando este busca frequentar as fronteiras de um reino de liberdade total. Este espaço
de privacidade, para Carla, precisa ser frequentado por outras pessoas, mas sem que os limites
do domínio do seu espaço sejam ultrapassados.
Para Ana, o espaço de privacidade tem características semelhantes às do caso de
Carla:
Olha, tem um lado muito bom que ninguém..., primeiro ninguém te critica
por nada que vo faça, esteja a louça limpa ou suja, demore o tempo que for
no telefone, acorde ou dormir a hora que bem entenda. Eu me acostumei
muito a isso e acho que se o meu ritmo atrapalhasse outra pessoa, se tivesse
mais algm morando na casa e o meu ritmo, de ficar acordada até tarde ou
de ligar o som alto a hora que eu quero, se os meus hábitos atrapalhassem
alguém, para mim ia ser bem difícil de lidar (…) (Ana).
Para Ana, fazer cada coisa no tempo que bem entende significaria a possibilidade de
impor a alguém sua vontade. Seus hábitos, neste sentido, poderiam “atrapalhar” alguém. Este
“atrapalhar” alguém traz o peso de uma imposição que para Ana seria indesejável fazer valer.
Por isso, morar só cria um espaço de privacidade no qual a via mais contundente pela qual ela
pode expressar o poder é a criação de normas que regulem, quem, quando, e como frequentam
seu espaço doméstico. Poder lavar a louça quando quiser ou escutar música alta na hora em
que decidir figuram como afirmações de seu espaço privado, espaço que estaria livre da
ameaça contrária a ter que impor a alguém os seus hábitos, ou seja, ter que mudá-los ou
alterar sua rotina.
Ao passo em que Carla fala de si e elabora uma narrativa que a oe ao uso do álcool
e às suas relações pregressas, Ana parece projetar-se contra sua situação familiar antes de sair
de casa. Ana perdeu o pai quando era muito nova e sua mãe teve uma doença degenerativa
grave. Em diversas partes de seu depoimento ela afirma que se sentia muito só porque não
saía muito e sua relação se restringia aos cuidados com a mãe. Ela viveu com sua mãe até sua
morte. Depois disso, Ana alternou experiências de morar somente com sua filha e dividir a
4
Para a definição de manifestações agonísticas do individualismo e suas implicações, ver Velho (2000).
39
casa com companheiros que viveram com ela por um tempo. Desde que a filha saiu de casa,
há onze anos, Ana vive sozinha. A opção de Ana não está inserida em um projeto pessoal tão
bem definido e se insere no contexto de adaptação a determinadas contingências (a morte da
mãe, a saída da filha de casa). O que me parece decisivo, contudo, na maneira pela qual Ana
consti seu discurso é a apropriação do morar só como escolha mesmo diante de fatores que
escapam de sua vontade.
Há aí, aliás, um fator que diferencia as mulheres que têm filhos das que não têm, no
que diz respeito à escolha de morar só. Aquelas que são mães não podem deliberar
simplesmente se querem ou não morar sozinhas: a saída de casa dos filhos é um fator que diz
mais respeito à vontade deles do que a dos pais pelos menos, é raro um caso no qual os pais
tenham definido o momento em que os filhos devam sair de casa. No caso de Sabrina, seu pai
saiu de casa, o que é uma situação, ao que parece, incomum; mas acredito que seja mais raro
ainda uma situação na qual a mãe saia da casa. Em todo caso esta questão de gênero
ultrapassa o escopo do presente trabalho.
Ana, diante dos cenários possíveis, optou por morar só depois que sua filha saiu de
casa. O que independia de sua vontade foi apropriado e ressignificado como uma escolha. Ter
sido filha única parece ter feito de Ana, conforme ela coloca em seu discurso, uma pessoa
familiarizada com a situação de estar sozinha, tendo em vista que seu convívio muitas vezes
se restringia aos cuidados com a mãe doente. Mas no modo como fala de si, Ana relata a
oportunidade que teve, ao morar só, de ter esta experiência em termos distintos àqueles dos
tempos em que morava com sua mãe.
5
Ainda que tenha o morar só como opção, Ana manifesta, de modo ainda mais claro
que Carla, as ambiguidades do espaço doméstico como reino de liberdade:
Agora, nem sempre a gente precisa de ter todo espaço só para si e liberdade
total para poder viver, porque ao mesmo tempo que a gente precisa de
liberdade, a gente precisa também se relacionar, precisa do outro, então eu
o preconizo: adoro morar sozinha, quero morar sozinha para sempre, acho
que todas pessoas deveriam morar sozinhas (Ana).
5
Neste ponto, me deparo com as duas questões epistemológicas destacadas por Figueira (1985) ao tratar dos
desafios de se lidar com uma cultura psicanatica: de um lado, o obstáculo epistemológico, ou seja, não recair
em estruturas simplificadoras que tendem a ler as narrativas como pertinentes a um ser humano universal e
previsível; de outro, o discurso psicologizante como provedor de a priori, ou seja, de ferramentas de
entendimento das ações dos sujeitos estudados. Gostaria de deixar claro que pretendo me afastar ao máximo do
primeiro aspecto e manter uma relação pautada por uma certa prudência em relação ao segundo. A vinculação
entre trajetórias e a produção de significados que tento estabelecer busca, neste sentido, se ater, ao máximo, ao
modo pelo qual as entrevistadas atribuem os sentidos na constrão de suas narrativas de si próprias. Não quero
estabelecer relações causais entre trajetória e atribuição de significados.
40
A postura de Ana em relação ao espaço doméstico como expressão da privacidade é
mais moderada que a de Carla, na medida em que parece ter fronteiras mais permeáveis, mas
as razões para essa flexibilidade são as mesmas: a necessidade de que o donio deste espaço
não seja antagônico ao estabelecimento de relações sociais, principalmente as amorosas. O
seguinte trecho define bem a moderação de Ana em relação ao espaço doméstico:
Dentre as opções que eu teria, eu escolhi morar sozinha com os meus
animais. Mas acho que aí sim, eu acho muito bom poder fazer o que eu
quero do meu tempo, do meu espaço sempre, mas o dia que tiver um
relacionamento ou uma outra forma de vida, em que eu tenha que abriro
de fazer o que eu quero do meu tempo e do meu espaço o tempo todo, eu
posso abrir e também gostar muito, eu o quero ser escrava da minha
liberdade, digamos assim.
A relevância que o espaço doméstico tem no papel de construção da subjetividade,
neste sentido, está francamente aberta à capitulação do controle total em prol do
estabelecimento de um relacionamento. Mas enquanto esta companhia não surge, Ana cultiva
a si mesma, a seus hábitos, no espaço que controla totalmente. Este espaço doméstico perderia
seu caráter de construção do sujeito caso fossem encerradas as possibilidades de viver um
relacionamento amoroso. Não querer ser escrava de sua liberdade significa fazer valer sua
vontade de decidir quando e quem vai convidar para compartilhar com ela este espaço de
intimidade.
Joana também valoriza o espaço doméstico como possibilidade de cultivo de sua
subjetividade. Em sua casa, ela afirma de tal modo sua vontade que chega a dizer que
independente de haver ou não alguém com ela, ela não altera sua rotina: “independente se
tivesse outra pessoa em casa, muitas vezes tem, eu vou ler, vou ouvir sica, quer dizer,
independente de estar sozinha ou não, eu faço as mesmas coisas que eu faria se eu estivesse
com outra pessoa (...)”. Este aspecto reforça o fato de que a presença física de outra pessoa, às
vezes, pouco altera os sentimentos do sujeito. Foi muito frequente nos depoimentos das
entrevistadas a afirmação de que várias vezes já se sentiram sós mesmo estando com alguém.
O que é importante, neste sentido, para este estudo é o modo pelo qual as experiências são
conformadas em termos subjetivos por cada entrevistada. Joana tem uma trajetória na qual
muitas situações díspares foram experimentadas: viveu em uma família com muitos irmãos,
mudou para a área urbana, morou em repúblicas, viveu com amigos, teve um relacionamento
mais duradouro no qual morou com seu companheiro. Todas estas diferentes situações são
pontuadas por Joana pela afirmação de que ela é muito adaptável, adequando-se bem a
41
qualquer circunstância.
Sua opção por morar só não decorreu, entretanto, de uma adaptação a determinadas
contingências. Logo depois que passou por uma cirurgia, Joana se hospedou na casa de uma
família de amigos. Depois de permanecer algum tempo com esta família, ela decidiu sair
mesmo contra a vontade de seus anfitriões. Ela relata, inclusive, que teve que sair “escondida
porque a falia tinha muita resistência em relação à ideia de sua saída. Conta que foi tirando
suas coisas aos poucos e que um dia foi para o Tai Chi Chuan e não voltou mais. Para Joana,
morar só é produto, portando, de sua escolha deliberada. Ao mesmo tempo em que sua
capacidade de adaptação pontua sua trajetória, a saída de uma família numerosa, com muitos
parentes vivendo juntos ainda hoje, remonta a construção de uma certa independência que se
contrapõe em termos narrativos à sua situação familiar pela vontade de estudar, à qual ela se
refere repetidas vezes. Acredito que é possível dizer que neste trabalho de autonomização em
relação à sua família, Joana tenha adquirido um ethos individualista que participa de sua
escolha por morar só e se expressa mais intensamente pela ideia de independência. Esta noção
certamente tem seu lugar no campo semântico do termo privacidade com o qual estou
lidando.
Joana possui um namorado, mas parece não se entusiasmar com a possibilidade de
morar com ele. Sua postura em relação aos relacionamentos amorosos parece se aproximar do
que figura um cenário de idealizações sobre as possibilidades de um sujeito independente
viver uma experiência amorosa: ela mantém sua total independência e o relacionamento não
possui implicações relativas à violação de sua privacidade e alteração das rotinas relativas à
gestão de seu espaço doméstico.
“Saí porque já estava na hora de ter essa experiência”. Este é o modo pelo qual
Marina descreve o porquê saiu de casa para morar sozinha. Dificilmente seria possível pensar
uma fórmula que carregasse a ideia de uma experiência de morar só por escolha de modo tão
sintético e preciso. Não há nenhum fator exterior e anterior mobilizado como justificativa ou
explicação para esta situação. Marina decidiu morar só porque quis, considerou que era o
momento de viver este tipo de experiência.
Ao aproximarmos esta afirmação da trajetória de Marina, veremos que não está em
jogo um mero exercício da vontade em um cenário ideal do reino da liberdade. Na verdade,
Marina reproduz algo que está inscrito na própria lógica informada por suas relações
familiares. Seus pais são argentinos e ela afirma que na cultura argentina é comum o costume
de os filhos saírem de casa tão logo tenham independência financeira. Independentemente
desta informação realmente compor ou não um tro da cultura argentina, é importante
42
identificar que este aspecto é reconhecido por Marina nos costumes de sua família e
mobilizado para compor a significação de sua experiência.
O caso de Marina, aliás, é interessante para identificar que a ideologia individualista
e a construção de um espaço doméstico soberano daquele que mora só não estão em oposição
radical às relações de parentesco. Aqui lembro mais uma vez da advertência fornecida por
Velho (1987) de que as relações familiares estão em franca relação com o individualismo
contemporâneo nas metrópoles. Este também é um bom exemplo que retoma a família como
refúgio e como aspecto que ocupa um papel central nas relações do espaço privado, conforme
identifica Ariès (2009). A narrativa de Marina em relação ao morar só não apresenta nenhuma
ruptura em relação às suas relações familiares. Uma metáfora espacial utilizada por ela é
muito esclarecedora deste aspecto: ela afirma que sua casa atual possui as mesmas feições de
seu quarto quando morava com seus pais; é como se fosse um prolongamento de seu quarto
na casa de seus pais.
Ao contrário de Carla, Marina não se espalha pela casa, não ocupa todos os
cômodos: o lugar que mais utiliza da casa é o quarto. Ela atribui isto ao fato de trabalhar fora
(Carla trabalha em casa) e de chegar em casa cansada, comer algo rápido e dormir. Apesar de
não “imperar” com o mesmo ímpeto que Carla, Marina não deixa de afirmar seu poder sobre
seu espaço doméstico: raramente alguém dorme em sua casa, e quando alguém,
eventualmente, dorme por lá, seu sono é diferente; afirma não dormir bem nestas
circunstâncias porque sente que isso altera suas rotinas e seus horários. Mesmo em relação a
um dos aspectos mais sensíveis relatados pelas entrevistadas no elenco das dificuldades de
morar só, os momentos de doença, Marina não abre mão do espaço doméstico como seu
espaço. Ela relatou que uma vez adoeceu e sua mãe a levou para a sua casa para cuidar dela.
Depois de alguns dias, Marina resolveu deixar a casa de sua mãe e retornar para sua casa a
fim de poder ficar doente sozinha, “no seu canto”.
Irene talvez esteja no meio do caminho entre as experiências nas quais o morar só é
definido como uma escolha e traz consigo toda a carga semântica de valores positivos e
aquelas nas quais o sujeito não reconhece nenhum aspecto de sua vontade. Tendo ficado
sozinha depois que seu segundo filho saiu de casa, Irene não identifica que sua situação seja
desagradável. Em contraste com a experiência de morar com os filhos, Irene identifica
algumas vantagens no morar só que são semelhantes àqueles significados que identifiquei na
caracterização do espaço de privacidade:
Sei, porque a gente não tem hora para nada, a gente não tem aquela
43
preocupação, porque naquela época, tinha preocupação de levantar cedo, ver
isso, ver aquilo, agora qualquer hora que acordar bom. Tenho os meus
compromissos que eu que ajo tudo aqui em casa, eu que faço tudo, eu que
vou a rua, eu que faço compras, eu vou na farmácia, vou a banco, ando
muito (Irene).
A via pela qual Irene identifica o espaço doméstico como interessante para sua
subjetividade é a mesma com a qual tenho lidado: o exercício da vontade ou, nos termos de
Kelvin, do poder. Ela reconhece que pode fazer o que quiser na hora que bem entender. Ainda
que a situação de morar só não tenha sido produto de sua vontade, ela encontra nestas
circunstâncias a oportunidade de exercer o poder sobre o espaço doméstico.
6
A experiência de Irene retoma, na verdade, uma distinção entre duas camadas de
vontade que definem o problema do morar só e da apropriação do espaço doméstico como via
de construção do sujeito: uma que se apresenta em relação à decisão de morar só e outra que
se manifesta no significado que cada sujeito atribui a esta experiência. Não penso que haja
uma precedência de uma em relação à outra, mas elas mantêm interações nas quais podem se
influenciar mutuamente. Uma situação é aquela na qual o sujeito optou por morar só e então
reconhece em sua casa um locus de expressão de sua vontade. Mas pode ocorrer outro tipo de
combinação, como a de Irene: apesar de não ter escolhido morar só, o indivíduo se apropria
da situação e do espaço da casa como via pela qual pode exercer um poder relacionado à sua
privacidade. Em outros casos, ainda, o indiduo não optou por morar só e esta primeira
camada de falta de opção pode ter um peso tão forte e representativo em sua narrativa que
cancela as possibilidades de apropriação da experiência de morar só em articulação com o
exercício da vontade.
Este último está presente em experiências como as de Simone, Isaura e Sabrina.o
quero, entretanto, encaixá-las em um modelo explicativo. Quero, antes, mostrar como suas
experiências manm relações semânticas com este tipo de situação na qual o morar só como
expressão da vontade não tem muito eco.
No caso de Simone, suas percepções sobre estar só são tão carregadas de sentidos
negativos que as questões relacionadas ao espaço doméstico sequero citadas. Em nenhum
6
É necessária uma ressalva, contudo, em relação às possibilidades do espaço doméstico como constrão do
sujeito, no caso de Irene. Não é possível superestimar as potencialidades deste espaço de constrão de
subjetividades em relação à Irene porque ela está em um período de sua vida no qual muitos aspectos de sua
subjetividade foram sedimentados por outras experiências. A possibilidade de fruição da companhia de si
mesmo, como aspecto relativo à privacidadeo pode ser subestimado. Não quero com estas indicações dizer
que seja possível identificar um momento no ciclo de vida dos indivíduos no qual todos os caracteres estão
sedimentados e se apresentam como imutáveis. Acredito, ao contrário, que este trabalho de modelagem do eu
jamais se conclui.
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momento Simone faz alusão ao espaço de sua casa como possibilidade de organizar sua rotina
ao sabor de suas inclinações. Seu discurso, em vez disso, é impregnado por lamentações em
relação à situação de estar só. O marido se separou dela sem que ela quisesse se separar, não
teve filhos, perdeu os pais muito nova. Para Simone, a situação de morar só é apreendida
apenas do ponto de vista de sua negação: segundo sua vontade ainda estaria casada e chega a
afirmar que ainda moraria com os pais caso eles fossem vivos. Outro fator que se expressa de
modo intenso no discurso dela é a relação com a depressão.
Ela não se refere à sua rotina como fruição de tempo ou organização do espaço. Uma
alusão à sua rotina é o fato de que no início do período em que morou só ficava sempre ao
lado do telefone esperando uma ligação ou telefonando para alguém. A referência que faz à
sua situação de morar só está muito vinculada ao desejo de sair dela, de não estar onde está.
Em sua trajetória ao menos na narrativa à qual tive acesso na entrevista que realizei
nenhum ato de vontade se vincula com a situação de estar só. Não há eficácia do espaço
doméstico como dimensão da construção do sujeito neste caso. Ela nada reconhece neste
espaço que seja propício ao desenvolvimento de seus potenciais.
Simone, entretanto, será uma das protagonistas na seção sobre o discurso
psicologizante que fecha este capítulo. Seu depoimento está repleto de referências à sua
situação depressiva e de como a terapia se articula com a possibilidade de garantia de
coerência à sua subjetividade. O que considero importante ter atenção é a quase completa
desvinculação entre este discurso psicologizante e a vivência de seu espaço doméstico.
Simone fala de si, mas não fala de seu espaço.
Isaura também não valoriza o espaço da casa como possibilidade de exercio da
privacidade. Seu pouco interesse neste aspecto não vem, contudo, acompanhado de uma
quase negação desta esfera. As referências que faz ao seu espaço doméstico estão associadas à
busca por atividades que fam com que ela se sinta menos só. Isaura também não optou por
estar só, esta situação é retratada por ela, de uma forma geral, como indesejada. Isto se
manifesta, via de regra, pelo relato de situações de tristeza por estar sozinha. O quintal parece
ser uma alternativa de ocupação para driblar a solidão por parte de Isaura:
Eu procuro sempre alguma coisa para fazer para não me sentir só, estou
sempre catando alguma coisa para fazer. Como aqui é grande, tem um
quintal grande, tem sempre alguma coisa para fazer. (…) Quintal, mexo com
planta, invento de fazer alguma coisa aqui dentro, vou bordar, o que for. (…)
Eu vou para fora fico conversando com os cachorros, fico vendo as
plantas, às vezes eu até exagero com a limpeza do quintal. Chega de noite
com a lua fica lindo, entendeu? Então aquilo me rejuvenesce, me alegra,
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apaga aquela tristeza, ontem mesmo foi assim (Isaura).
Ainda que não ocorra de modo deliberado, como produto de uma escolha, a
ocupação do espaço doméstico, o ocupar-se com os cuidados com este espaço, são vias pelas
quais Isaura utiliza a casa como alternativa à solidão, ao isolamento e aos significados
negativos que comem os campos semânticos destes termos.
Se vincularmos este tipo de percepção do morar só como algo negativo à trajetória de
Isaura, é possível dizer que Isaura não incorporou uma mentalidade na qual a privacidade
tenha se tornado um valor para a construção de sua subjetividade ao contrário de Joana, que
adquiriu um ethos individualista ao longo do processo de busca por independência. Busco,
neste sentido, as análises de Duarte (1986), que apura que o ethos individualista e
psicologizante não serve como uma ferramenta de análise para a compreensão da vida nervosa
das classes trabalhadoras. A relação de Isaura com sua casa se direciona mais para as coisas
concretas e o cuidado com elas que para o cultivo de si. Ela percebe que ao ocupar-se afasta a
angústia da solidão, mas não constrói uma narrativa que reflita isso na formação de sua
subjetividade. Cuidar do quintal lhe dá prazer porque ele fica belo nas noites de lua, não
porque isso seja uma forma de cuidar de sua interioridade que demanda um trabalho que se
reflete no espaço concreto da casa como seu espaço. Trata-se, portanto, de duas formas
distintas de apropriação do espaço: uma em prol da subjetividade, outra em prol dos efeitos
exteriores da ação e o modo pelo qual esta ocupação afasta sentimentos indesejáveis.
Sabrina é outro exemplo no qual a situação de morar só não partiu de sua
deliberação. Ainda que ela tenha um discurso de privacidade em seu depoimento, sua fala é
muito marcada pelas dificuldades de morar só e o modo pelo qual muitas vezes buscava
repelir tal situação. Sabrina afirma não suportar que alguém fique em sua casa por mais de
vinte e quatro horas. Diz gostar que as pessoas frequentem sua casa, mas não aprecia que elas
fiquem lá por muito tempo. Dessa forma a privacidade é carregada de todos os sentidos com
os quais a caracterizei. Sabrina afirma, ainda, ter determinadas coisas que só gosta de fazer
sozinha, como fazer compras, ir ao cinema e frequentar centros culturais. Tal aspecto se
aproxima da noção de independência que também figura no campo da privacidade.
O aspecto mais marcante do discurso de Sabrina, porém, é a contradição que aliás
ela afirma de modo expresso: ao mesmo tempo em que procura manter sua soberania no
espaço de privacidade, ela afirma não gostar de ficar só. É uma afirmação da privacidade
como independência que não carrega em seu bojo a fruição de si. Por isso, ao adjetivar o
morar só, ela afirma: “é ótimo e é péssimo”. Ao mesmo tempo em que reforça o aspecto da
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independência, não dá conta de atuar como uma esfera de construção e manutenção da
subjetividade íntegra e coerente. Ela identifica esta contradição com o fato de nãosaber” se
relacionar e, ao mesmo tempo, não querer ficar sozinha.
Para Sabrina, a família representa uma constante antagonista, à qual ela atribui sua
indesejável situação de morar só. Segundo ela, seu pai sempre adotou uma “filosofia” de
independência, mas ao contrário do caso de Marina, no qual esta independência não
representava uma negação da família esta postura sempre operou, aos seus olhos, como uma
tentativa de fuga do vínculo familiar. De alguma forma ainda que ela, como já disse,
aproxime seu discurso de alguns aspectos da privacidade a independência ocasionada pela
situação de morar só reitera elementos que representam, segundo ela exprime, fissuras em sua
subjetividade. A isto se soma o fato de ela estar desempregada no momento e ter que contar
com a ajuda financeira de seu pai, o que torna mais precária ainda esta independência.
Para caracterizar de modo mais intenso o modo pelo qual o espaço doméstico é
apropriado por estas mulheres que vivem sós, é desejável que este capítulo possua uma seção
que trate brevemente do modo pelo qual estas mulheres concebem o cuidado com a casa. Este
é o assunto da próxima seção.
Dois aspectos emergiram, ainda, da pesquisa quando me dirigi ao tratamento das
questões relativas ao espaço doméstico como elemento chave para a caracterização do morar
só como possibilidade de construção do sujeito: a relação com animais domésticos e o uso da
internet. Ainda neste capítulo tratarei brevemente destes dois elementos. Ao abordar estes
fatores, porém, não pretendo aprofundar muito a análise. Estas são características pouco
exploradas de um tema igualmente pouco estudado. Pretendo traçar breves aproximações que
indiquem de modo um tanto superficial a maneira pela qual estas mulheres atribuem papéis
aos seus animais domésticos e como utilizam a internet.
O cuidado com a casa
De uma maneira geral, não existe uma vinculação forte entre o cuidado com a casa e
a afirmação do espaço doméstico como dimensão da privacidade. Posso dizer que minhas
entrevistadas não são muito afeitas aos cuidados com a casa, nos termos da realização do
trabalho doméstico. Irene, Isaura e Joana são os três casos no qual aparece a questão do
cuidado com a casa de modo destacado. Irene afirma fazer todo o trabalho doméstico e faz
questão de frisar: faço bem, dou conta de tudo”. Ela tem um faxineiro que, de vez em
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quando, contrata para se encarregar da limpeza dos vidros e dos azulejos de cima a baixo. O
restante do trabalho doméstico fica todo a cargo de Irene. Em seu discurso, o cuidado com a
casa se vincula com a afirmação de sua independência.
Isaura também faz todo o trabalho doméstico e faz muitas referências ao cuidado que
tem com a casa. Às vezes contrata um rapaz para ajudá-la. Neste caso, porém, o trabalho
doméstico é retratado por ela como uma via para driblar as agonias da solio, conforme já
destaquei anteriormente. Acredito que, nos casos de Isaura e Irene, esta relação com o cuidado
e com a casa possui implicações claramente geracionais. Ambas têm mais de setenta anos e
vêm de uma geração na qual o trabalho doméstico ainda era fortemente associado à figura
feminina.
O único caso que apresenta uma vinculação forte entre o cuidado com a casa e o
trabalho de construção da subjetividade é o de Joana. Ela afirma sobre o cuidado com a casa o
seguinte: “eu mesma faço, eu adoro fazer faxina, porque eu acho que a faxina é a minha vida
também, as coisas que não estão legais eu vou arrumando também (...)”. Para Joana, existe
uma clara articulação entre o cuidado com a casa e o cuidado consigo mesma. Mesmo sendo o
único exemplo no qual esta relação se manifesta de modo claro, este caso define que o
cuidado com a casa é uma possibilidade a partir da qual pode ser exercido o trabalho do
cultivo e construção de subjetividades. Ou seja, na esfera do exercício da privacidade, o
cuidado com a casa pode fazer parte do repertório de gostos que expressam a subjetividade
como elemento vinculado ao espaço doméstico.
Um aspecto relativo ao cuidado com a casa, porém, possui uma característica distinta
dos demais: a cozinha. As entrevistadas de uma maneira geral dizem que não há muito sentido
em cozinhar para si mesmas. Muitas possuem uma rotina de comer fora e as que não têm este
costume não citam a cozinha como aspecto relevante nos cuidados com a casa. Joana
menciona em relação a este aspecto: “eu sozinha como muito mal, não é que eu coma mal, eu
como muito pouco e não dá muito esmulo de fazer para mim própria. Você fazer um bolo
para uma pessoa só?”
A cozinha confirmando aquela observação de que é o melhor lugar da festa entre
todas as tarefas, parece possuir uma certa tendência à coletivização da experiência doméstica.
Seria necessário um trabalho antropológico e histórico mais aprofundado para que fosse
possível elucidar as razões deste aspecto.
7
7
Ver Dutra (2007).
Eu arriscaria dizer que existe um deleite em comer
que não faz muito sentido se o cozinheiro é a própria pessoa que vai saborear o prato. Existe
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uma expectativa inerente ao cozinhar que o paladar do prato seja apreciado por um terceiro,
ao menos é neste sentido que minhas entrevistadas caracterizam a questão. Não faz muito
sentido fazer uma comida saborosa sem alguém que ateste realmente que seu gosto é bom.
Dutra, ao estudar os hábitos alimentares de camadas médias do Rio de Janeiro,
destacou a importância da alimentação na constituição de identidades, bem como seu papel de
mediadora das relações. Tanto a cozinha quanto a comida tem seus significados vinculados ao
“sentimento coletivo do pertencimento”. Para a autora:
As refeições, por diferentes modalidades que possam existir da mais
estruturada à mais informal representam a justaposição entre a existência
individual e coletiva. O grupo familiar, dentre outros, apresenta a
peculiaridade de fazer a medi
ação entre estas duas dimensões (2007: 15).
Nos termos das dinâmicas da vida familiar, as refeões possuem um caráter
fortemente coletivo. De uma maneira geral, existe uma hora comum a todos nas refeições e o
prato servido é o mesmo para todos. Há algumas gerações, o horário das refeições
representava também um sinônimo de reunião familiar. Como Elias (1994) mostra em seu
estudo sobre o processo civilizador, as regras à mesa foram fontes de muitos aspectos de
autodisciplina inerente à modernidade. O próprio paladar é algo socialmente compartilhado:
uma das primeiras vias de socialização do sujeito é a comida.
Estes aspectos talvez tenham algum eco no fato de que na situação de morar só, a
cozinha seja algo que possui um caráter secundário no cuidado com a casa. Investigar este
aspecto a fundo, porém, ultrapassa os interesses e os limites de realização desta dissertação.
Ficam, então, registrados alguns aspectos informados por minhas entrevistadas e algumas de
minhas intuições a este respeito. O mesmo caráter terá as observações que apresento nas duas
próximas seções desse capítulo, uma sobre animais domésticos e outra sobre o uso da internet.
Animais domésticos
Quatro de minhas entrevistadas possuem animais domésticos. Minha interpretação
tende a apreender este aspecto como um elemento fortemente participante da configuração do
espaço doméstico como um locus de expressão do poder e da vontade dos sujeitos. Isto
porque, de uma maneira geral, estes animais possuem um aspecto ativo na construção das
subjetividades dos indivíduos entrevistados. Estes animais figuram, de modo geral, como
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extensões de suas subjetividades atuando como companhias que não remetem às implicações
e complicações decorrentes do convívio com outros humanos. Ainda que estes animais sejam
descritos muitas vezes como filhos, como companheiros, não é de se desprezar o valor
sentico que o termo “donotem como definidor fundamental das relações entre estes
animais e os humanos, sobretudo quando tenho em vista as articulações com o tema da norma
e do poder que o tema da privacidade possui aqui.
Carla afirma, ao se referir à sua relação com animais de estimação:eu adoro
cachorro, sempre adorei e ela [a irmã] gosta de gato, ela tem gato. A gente não tem filho, nem
eu, nem ela. Abri uma pasta para a minha mãe no computador dela: ‘netinhos e netinhas. São
os meus cachorros e os gatos da minha irmã”. Para Carla, os seus cachorros são uma via pela
qual as possibilidades desagradáveis da solidão são afastadas, pois eles desempenham um
papel de companhia sem oferecerem ameaças à integridade de seu espaço de privacidade.
Isaura caracteriza seus cachorros como uma boa companhia que a afasta das agonias
da solidão que passaram a fazer parte do seu cotidiano, principalmente depois da morte de seu
marido ela mencionou no seu discurso que mesmo casada não eram raros os momentos em
que se sentia sozinha. Esta companhia, no seu caso, também supre um papel pertinente às
atribuições de uma figura masculina. Isaura afirma que por morar em uma casa sozinha, os
cães suprem, em alguma medida, a necessidade de segurança que a figura do marido fornecia.
Para ela, uma mulher sozinha em uma casa pode ser considerada um alvo mais vulnerável à
eventual ação de assaltantes.
Tanto para Ana quanto para Sabrina, os animais domésticos são definidos como
fatores que contribuem para o fato de ficarem em casa, mesmo estando sozinhas. Para Ana o
que está em jogo é a responsabilidade que tem com os animais e que faz com que tenha
sempre que voltar para a casa para cuidar deles. Sabrina afirma que depois que passou a ter
uma gata fica mais em casa, porque a gata é ótima companhia. A gata, de certa forma,
preenche uma lacuna aberta pela contradição de não querer dividir seu espaço com alguém e
de não gostar de ficar. Sabrina afirma, neste sentido: “antes dela (a gata) eu não ficava em
casa (…) ela me acalmou”. Sabrina dorme com sua gata. Ana, em relação aos seus animais,
afirma o seguinte:
Eu moro com uma gatinha que faz aniversário hoje; a Dandara, minha
cachorrinha pequena, o Toquinho e a Arca, meus cachorros grandes. (...) É
muito melhor vo voltar para casa, dá mais vontade de voltar pela
responsabilidade de cuidar, e é muito bom ter com quem você se relacionar,
mesmo não sendo humano é um relacionamento. É um ser vivo que interage
que tem sentimentos. Então eu acho que as pessoas que se sentem muito sós,
50
morem ou o sozinhas, deveriam considerar, com todo trabalho que ,
deveriam considerar a opção de ter um bichinho de estimação.(...) Então eu
acho que a única coisa que acaba com a solidão da gente é ser compreendido
e nesse ponto alguns animais fazem muito mais companhia que seres
humanos, porque eles te aceitam, eles o te julgam,o te condenam e te
dão amor. Às vezes as pessoas até se amam, se amam muito, relões
difíceis entre pais e filhos, ou iros, muito amor, maso há um pingo
de compreensão, aí as pessoas moram juntas e vivem completamente
sozinhas, eu acho muito pior.
Sem entrar no mérito da questão de que os animais tenham ou não sentimentos ou
capacidade de compreensão, o que considero decisivo para este tipo de caracterização é o fato
de que os animais não representam nenhuma ameaça ou violação do espaço doméstico como
índice de privacidade. Tratando as coisas nos termos formulados por Ana e que apresentei
acima , o que está em jogo é o fato de que os hábitos e as rotinas de Ana simplesmente não
podem conflitar com as vontades dos animais, uma vez que ela optou por tê-los e os
integrou à sua rotina como uma de suas atividades domésticas, ou uma obrigação profissional,
ou qualquer outro compromisso regular. No que diz respeito à questão afetiva, eles figuram
como atores “ideais” de estabelecimento de relacionamentos, uma vez que são caracterizados
como companhia, seres afetivos e compreensivos. Nos termos em que trabalho aqui, porém,
eles devem ser caracterizados como extensões da subjetividade de seus donos, dada à sua
relação de subordinação e de neutralidade em relação à manutenção do espaço doméstico
como esfera da privacidade: sua existência, para quem optou por eles, não representa conflito
com o exercício da vontade.
O uso da internet
Quando comecei a lidar com o tema, acreditava que o uso da internet seria uma
temática forte a ser aprofundada. Minhas expectativas, porém, não se confirmaram. Somente
três de minhas entrevistadas possuem algum tipo de relação com a internet que se vincule
efetivamente com suas rotinas no espaço doméstico. Em nenhum dos casos a internet foi
apontada como uma alternativa no estabelecimento de comunicação. Nenhuma afirmou
frequentar salas de chat ou sites de relacionamento. Seus interesses pela internet flutuam entre
a possibilidade de comunicação com pessoas conhecidas e o acesso a notícias e outras formas
de conteúdos presentes em sites diversificados. O fato de as entrevistadas terem, na maioria,
mais de quarenta anos, talvez tenha contribuído para esta sub-representação da internet como
51
aspecto vinculado às rotinas do morar só. Mas entre as duas entrevistadas mais novas,
somente uma possui uma rotina relacionada à internet; a outra afirma trabalhar o dia inteiro no
computador e pouco acessa sua máquina em casa.
Todas as entrevistadas para as quais a internet possui um papel significativo, porém,
fazem algum tipo de articulação entre a internet e o tema do estar sozinho ou ser solitário.
Carla afirma acessar a internet diariamente para consultar conteúdos diversificados e para a
comunicação com amigos e conhecidos. Ela relatou ter acessado uma sala de bate-papo uma
vez, mas não ter gostado porque as pessoas não estavam interessadas em se conhecer, apenas
em fazer sexo virtual. Ela utiliza a internet, ainda, para falar com amigos pelo MSN. Em
relação à articulação entre o estar sozinha e a internet ela afirma:
Hoje em dia com a internet é meio dicil ficar sozinha,o é não? Eu acho.
Aquele MSN cheio de gente, qualquer hora que você quer falar, você aciona
alguém ali, sempre tem alguém on line. (…) Eu converso mais com uma
amiga minha que também fica muito on line. (...) Eu tenho uma amiga em
Florianópolis e aí eu converso bastante sim, com ela eu converso bastante,
com outras pessoas também. (...) Quero tanto ler este livro, eu quero tanto
escrever sobre este assunto agora, então eu o quero que ninguém me
atrapalhe. Acabei de escrever: Fulano! Olha só o que eu escrevi, entendeu?
(...) E agora? Para quem eu vou falar? Hoje em dia com a internet eu posso
mandar um e-mail.
Ana também utiliza a internet para acessar conteúdos diversos, mas não parece fazer
muito uso dessa ferramenta para a comunicação. Outra atividade que Ana desempenha da
internet é a administração de seu site de venda de produtos eróticos. Ela afirma, neste sentido:
Mando e-mail (…) já instalei o MSN, mas ainda não consegui conversar
com ninguém, faz pouco tempo, como eu te falei. (…) Fico pesquisando,
além de ter um trabalho no qual eu uso a internet. Uma parte é o trabalho do
site, a outra parte eu curto fazer pesquisas, eu gosto de ler todos os jornais, aí
depois eu vejo a parte cultural, a parte de ciências. (…) As pessoas usam
muito para ficar se comunicando, mas eu não tenho muita atração para ficar
me comunicando pela internet,o. Eu gosto de me comunicar mais ao vivo,
nem por telefone, nem pela internet e com isso eu fico sem me comunicar
com muitas pessoas, mas também não é todo mundo que eu conseguiria me
comunicar pela internet.
Ela não despreza, entretanto, as potencialidades da internet como alternativa para a
solidão: “Atualmente eu não preciso sair mais, porque eu vou para a internet” (Ana).
Sabrina afirma passar o dia inteiro na internet lendo blogs e outros conteúdos
diversos. Comunica-se pela internet, mas apenas com amigos e não aprecia muito este tipo de
comunicação. Ela escreve em um blog, mas afirma que sua página não é muito frequentada.
52
Sabrina associa o uso da internet ao fato das pessoas terem necessidade de “plateia”, como
caracteriza em seus próprios termos. Para ela, “as pessoas fazem as coisas para poder postar
no Orkut”. A exposição do sujeito na internet, segundo a interpretação que faço desta
afirmativa de Sabrina, poderia suprir uma lacuna inerente à situação de estar só no que diz
respeito à visibilidade por outrem.
O discurso psicologizante
Não é possível compreender completamente a caracterização da casa como espaço de
construção do sujeito, sem retomar a articulação entre a ideologia individualista e a
emerncia de uma cultura psicologizante. O espaço da casa como extensão e como esfera em
interação com a subjetividade não possui nenhuma inteligibilidade em um contexto em que a
cultura psicologizante não tenha centralidade. A própria emergência desta cultura possui forte
vinculação com a entrada em cena do indiduo como elemento central na sociabilidade
moderna. São caras para a caracterização deste aspecto as contribuições de Figueira (1987),
Velho (1985), Salem (1989) e a já explicitada argumentação de Kelvin (1981).
Figueira (1987) apresenta uma articulação entre a família e a subjetividade na qual a
primeira, a princípio, constitui o papel do elemento concreto e visível e a segunda o aspecto
invisível e pouco palvel. A psicanálise, entretanto, pode representar um deslizamento desta
situação para situações nas quais a subjetividade se torna visível e concreta. Por apresentar
uma “arquitetura da subjetividade”, a psicanálise pode contribuir para o estabelecimento de
uma situação na qual as estruturas subjetivas sejam apreendidas e o indivíduo possa ser
considerado o locus onde se consolidam determinadas relações sociais. Ele formula, neste
sentido: “minha hipótese é de que tal arquitetura do sujeito se torna visível em um momento
específico do processo de emergência de certas formas de individualismo, nas novas
modalidades de agenciamento do indivíduo etc.” (1987: 93).
As possibilidades de apreensão destas subjetividades como concretas e reais se
aproximam justamente do exercício que busco empreender ao caracterizar o espaço da casa
como esfera de construção da subjetividade. A própria inscrição da subjetividade em aspectos
de natureza espacial já traz em si essa pretensão de apreensão da subjetividade como locus de
determinadas relações sociais. As minhas entrevistadas, por viverem em um ambiente em que
a socialização é fortemente marcada pela visão de mundo psicologizante, têm as suas
narrativas permeadas por elementos desta visão. O mais importante, porém, para este capítulo,
53
no que tange ao discurso psicologizante, consistiu justamente na vinculação da subjetividade
das entrevistadas ao espaço da casa, que desenvolvi na primeira seção. Apresentarei alguns
aspectos de seus discursos que se articulam com esta fala psicologizante, mas os elementos
fundamentais desse aspecto serão melhor desenvolvidos no último capítulo desta dissertação.
Aqui é necessária ainda a recuperação de dois aspectos pontuais presentes em Velho
(1985) e Salem (1989). Velho apresenta uma tensão entre família e subjetividade fundamental
para a elucidação do papel do discurso psicologizante:
(…) por mais que o casamento, a união de dois parceiros, esteja envolvida
por um forte halo de escolha, de opção, de liberdade, fica claro que está
fortemente vinculado e ancorado a um conjunto mais abrangente que é
legitimado por valores e representações em que o indivíduo está longe de ser
a força motor ou o ponto nodal (1987: 170).
A relação entre família e subjetividades; a tensão que se vincula entre a promessa de
um reino da liberdade que jamais se realiza; a afirmação de uma subjetividade unitária e
singular, mas que se nutre de cordões umbilicais que a vinculam a laços de parentesco que ela
busca, muitas vezes, recusar. Estes são alguns aspectos que fazem com que os papéis e os
códigos se apresentem de modo contraditório. A psicologização do sujeito representaria a
forma pela qual se opera a busca por coerência, por nexos mais lineares. Esta busca se vincula
ao que Salem (1989), ao tratar do tema do casal igualitário, identifica com o valor da
“autodepuração”, ou do “autoaperfeiçoamento”.
Os discursos de minhas entrevistadas estão muito marcados pela psicologização
como via pela qual buscam garantir alguma inteligibilidade às suas experncias. Vejamos,
brevemente, o modo como cada uma expressa este aspecto.
Entre as entrevistadas, apenas as duas mais velhas, Isaura e Irene, não fazem ou
fizeram terapia. As demais estão em terapia ou estiveram em algum momento de suas
trajetórias. Simone fala muitas vezes de sua depressão e diz que a terapia a tem auxiliado a
controlar este problema e, neste sentido, ela afirma: “a sorte é que eu faço terapia, porque eu
tenho uma tendência à depressão muito grande”. Mas o mais interessante de seu discurso
psicologizante é a possibilidade de falar de um lugar dentro de si com o qual pode ter contato.
Aquele lugar que não se vincula de modo intenso com o espaço de sua casa, como apresentei
anteriormente no caso de Simone, parece existir de modo muito concreto quando ela fala do
contato consigo mesma como uma chave de apropriação de uma linguagem psicologizante:
Estar só para mim tem duplo sentido. Quando você precisa se interiorizar,
54
você precisa conversar consigo mesmo, ter o seu momento de meditação é
importante você estar, analisar o espaço, se autoanalisar. E quando eu falo
de meditação não estou dizendo da meditação tradicional que é o não pensar,
mas eu tô dizendo da necessidade de vo fazer uma autoavaliação.
Ainda que o espaço de casa não se manifeste para Simone como uma oficina de
construção de sua subjetividade, ela reconhece no estar só a possibilidade de interiorização de
si, que é importante para a garantia de sentido e de coerência para o sujeito. Este exercício é
muito próximo daquilo que Salem (1989) caracteriza como valor do autoaperfeiçoamento. A
questão que tentei mostrar mais acima no caso de Simone diz respeito ao fato de que a
valorização do estar só se apresenta em seu discurso somente quando trata da questão em
termos abstratos. Quando se trata de situar este estar só relativo ao autoconhecimento e ao
autoaperfeiçoamento do seu cotidiano, ao estabelecimento de sua casa como esfera de
privacidade, não há aspectos significativos evocados por Simone que apontem sua
valorização.
Nas demais entrevistadas, a questão de estar consigo mesma em oposição às agonias
da solidão é evocada de modo variável em relação à afirmação do espaço doméstico como
esfera do cultivo do sujeito. Mas todas as entrevistadas que fizeram ou fazem terapia usam
metáforas de autoconhecimento e de estar consigo mesmas.
A família figura como elemento que motiva ou justifica a necessidade da adoção da
terapia como elemento de garantia de coerência. Este é o caso, por exemplo, de Sabrina que
reafirma constantemente que muitas fissuras em sua maneira de lidar com sua situação e de se
relacionar têm relação com suas questões familiares mal resolvidas.
No próximo capítulo abordarei as relações para fora da casa. Nesta parte do trabalho
ficarão mais detalhadas as vinculações entre o morar só como esfera de problemas caros ao
indivíduo e instâncias que são anteriores e/ou exteriores ao sujeito. As relações familiares
terão uma parte dedicada a elas. Outras relações como as amizades, os envolvimentos
amorosos e a vizinhança também serão tema do próximo capítulo.
55
II. AS RELAÇÕES PARA ALÉM DA CASA
Como venho tentando mostrar ao longo da argumentação que desenvolvo nesta
dissertação, a solidão como manifestação agostica e o morar só como opção e afirmação da
individualidade e integridade das subjetividades são elementos em constante correlação com
os aspectos da vida social que são compartilhados e mobilizados pelos sujeitos
1
No presente capítulo, procuro me aproximar das instâncias para fora da casa como
laços que vinculam as vivências de quem mora só à participação no mundo social como
condição que completa e torna sustentáveis as vivências que ora operam como uma oficina de
construção do sujeito, ora resvalam na solidão como experiência agônica.
entrevistados
no trabalho de construção de significados para suas experncias.
Ao detalhar estes aspectos dos vínculos de fora da casa, percebe-se a ambiguidade e a
contradição observadas por Velho (1987 e 1985), nas quais a ideologia individualista, ao
mesmo tempo em que reivindica a autonomia e a independência dos sujeitos, só encontra
lastro para sua manifestação concreta a partir da afirmação de determinadas redes de relações:
“(...) esse individualismo, que retoricamente pode ser agonístico, não é concretamente
desligado de uma rede de relações sociais onde o universo do parentesco torna-se
fundamental” (Velho, 1987: 84). A ideologia individualista afirma, neste sentido, uma
concepção particular de liberdade
2
As trajetórias descritas por Alves (2004), em seu trabalho sobre os bailes de dança de
salão, demonstram que a realização de determinados projetos em vista de determinados
campos de possibilidades configura redes de sociabilidade que destroem e reconstroem
convenções, que reinventam a vida social na grande cidade contemporânea. No presente
que “não está em nenhum lugar mas está em todas as
partes” (Velho, 1985: 174). Velho (2000) ressalta, ainda, que na teoria de Simmel o conceito
de individualismo é trabalhado no plural, já que este não é um fenômeno unitário e assume
configurações diversas dependendo do contexto e foco de análise. A leitura de Velho sobre o
tema do individualismo aponta para a questão da complexidade e heterogeneidade inerentes à
cultura urbana.
1
Considero importante destacar que quando utilizo o termo “sujeito” estou me referindo a uma noção que se
enquadra na seguinte definição de Figueira: “o sujeito é o agente socializado que sofre ação de regras
transindividuais, mas que é dotado de uma subjetividade que, nos dramas da mudança social em famílias de
classe média, ocupa o centro do palco” (1986: 14).
2
Vale lembrar que para Simmel “liberdade o é existência solipsista, mas ação sociológica.o é uma
condição limitada ao indiduo isolado, mas uma relação; uma relação, ainda que do ponto de vista de um dos
sujeitos” (1972: 131).
56
capítulo, os vínculos para fora de casa diversas formas de sociabilidade serão abordados
como aspectos dessa natureza, ou seja, procuram dar conta da significação e da reinvenção da
experiência de morar só como elemento particular da vida na metpole.
O fio que vincula uma concepção do indivíduo como unitário e autossuficiente à
participação na vida social essa tênue linha que liga lugar nenhum a todas as partes é
justamente o que faz com que seja possível lidar com o tema da solidão e do morar só de um
ponto de vista propriamente antropológico. A passagem do capítulo anterior para este é uma
tentativa de efetuar uma análise nestes termos. Isto porque buscarei identificar diversos
pontos de apoio da experiência de morar que se encontram na articulação desse modo de
vida que tem a casa como reino com elementos para fora da casa. As relações
estabelecidas com quem não mora nesse lugar do sujeito soberano, aqueles que estão fora da
casa, são mobilizadas, muitas vezes, como aspectos que completam o sentido da experiência
de morar só e indicam as condições de sua sustentabilidade. A partir da complexidade das
questões envolvidas no tema da solidão e do individualismo na metpole, é importante
entender como os indivíduos atuam, constroem e negociam esta realidade. Para compreender
como os indivíduos se posicionam frente à situação de morar só, é necessário analisar os
processos de interação social, bem como os significados que os indivíduos atribuem às suas
relações.
3
O seguinte trecho é esclarecedor quanto a este aspecto:
A subjetividade, a vida interior, as opções mais íntimaso marcadas por um
ethos em que a sociabilidade assume um tom caracteristicamente marcante.
Nos termos de Simmel, mencionado, a cultura subjetiva dos indiduos
entrevistados só pode se desenvolver em função de sua interação com um
grupo de eleitos. É neste espaço que torna-se possível implementar os
mecanismos de sociabilidade que, por sua vez, são fundamentais para a
elaboração da subjetividade (Velho, 2006: 88).
Ao longo do capítulo anterior, chamei atenção algumas vezes para o fato de que o
discurso de minhas entrevistadas mobiliza a casa, a experiência de viver só, como condição
pela qual o sujeito se credencia para o estabelecimento de relações amorosas, ou para o
sucesso das relações de parentesco.
4
3
Ver Simmel (1972), Velho (1994), Becker (1977) e Geertz (1989).
A seguir, procuro identificar o modo pelo qual minhas
entrevistadas caracterizam suas relações familiares, amorosas e com amigos e vizinhos para
identificar como elas efetuam as costuras entre suas experiências e a participação em
determinadas relações sociais. Não pretendo estabelecer uma hierarquia entre os planos de
4
No próximo catulo, este aspecto será ampliado e tratado de modo mais atento.
57
dentro e de fora de casa: ambos são importantes e estratégicos para que a experiência de
morar só tenha sentido e escape de suas possibilidades agosticas, enfrentando as ameaças de
cancelamento e os riscos de inviabilidade.
A família
As mulheres que foram entrevistadas na presente pesquisa possuem, como vimos
anteriormente, trajetórias variadas que, de alguma forma, configuram os fatores que
contribuem para a consolidação de suas experncias de morar só. Estas trajetórias diversas
passam, em alguma medida, pelas biografias que compõem as distintas configurações
familiares das quais os indivíduos pesquisados partem. Em diversos momentos essas
trajetórias familiares são evocadas como fator explicativo de suas condições presentes,
principalmente, em relação às suas experiências de morar só. Algumas das entrevistadas
apontam as contradições existentes em suas famílias como fonte de suas próprias
contradições. Outras tratam de suas relações familiares em plena continuidade e conciliação
com suas experiências atuais. Em alguns casos, os revezes decorrentes das relações familiares
mortes, separações etc. são mobilizados como elemento explicativo e determinante da
experiência de morar. Em outros casos, a condição presente aparece como uma negação da
forma pela qual as relações estavam configuradas na casa dos pais. Há ainda casos nos quais a
permanência na casa dos pais, se prolongada, poderia representar uma contradição e uma
fragilidade das próprias relações familiares.
Figueira (1986) identifica dois tipos ideais de falia a hierárquica e a igualitária e,
segundo o autor, a passagem do primeiro ideal para o segundo faz parte do processo de
modernização da família brasileira. A subjetividade não acompanha a rápida modernização, o
que faz com que o “moderno” coexista com o “arcaico”. A aquisição de novas identidades e
ideais não têm como consequência o desaparecimento do estilo hierárquico; de modo
invisível, o arcaico continua presente. Nas entrevistas que realizei na presente pesquisa, este
tipo de convivência entre os tipos ideais de família se manifesta algumas vezes a partir das
tensões existentes entre a afirmação do indivíduo e sua imersão em relações transindividuais.
Dauster (1986) mostra que os discursos de seus entrevistados tanto reeditam antigas
concepções como a ideia de que a mulher, ao contrário do homem, não separa sentimento e
sexo quanto demonstram que as fronteiras são fluidas e que outras lógicas estão em jogo
58
que não as pautadas no “duplo padrão de moralidade”. As respostas são marcadas por
aspirações igualitárias, que privilegiam a liberdade e a individualização. No entanto, quando
Dauster se detém à relação entre sexualidade e família, ela observa que a noção da família
elementar (mãe, pai e filho) continua como um modelo das relações familiares, mesmo nas
organizações familiares distintas, como a mãe solteira. Assim como Figueira, a autora chega à
conclusão de que na construção das identidades do sujeito, novos valores e comportamentos
convivem com os antigos.
Vianna mostra como os estudos de gênero e de formas alternativas de organização
familiar favoreceram a relativização do modelo ideológico de família nuclear e contribuíram
para que outros projetos de relações familiares ganhassem legitimação: “... creio ser
importante perceber o quanto a questão das redes familiares ou domésticas não se restringe a
grupos definidos sociologicamente de forma rígida, atravessando, mesmo que de maneira
diferenciada, vários grupos ou camadas” (2002: 262). O trabalho de Vianna chama atenção
para o fato de que, por vezes, diferentes modelos familiares se combinam no que diz respeito
às trajetórias dos sujeitos pesquisados.
As relações familiares possuem múltiplas apropriações e significações na narrativa de
minhas entrevistadas. Ruptura e continuidade talvez sejam as chaves para a compreensão do
modo pelo qual as relações familiares figuram como aspecto elucidativo das experiências das
mulheres que entrevistei. Tais chaves possibilitam a interpretação dos variados modos de lidar
e significar a família no universo pesquisado, sem, com isso, reduzir as diversas
configurações particulares a um modelo analítico explicativo. O que pretendo explorar aqui é
o fato de que a família figura como elemento de forte articulação das experiências de morar
, tendo traços que marcam as variadas trajetórias. Ao detalhar o modo pelo qual a família
aparece nos discursos de minhas entrevistadas ficarão claras estas articulações.
O modo, muitas vezes contraditório, a partir do qual se manifestam osnculos entre
as experncias de morar só e as relações familiares possuem forte articulação com aquilo que
Figueira define pelo conceito de desmapeamento: “existência de mapas diferentes e
contraditórios inscritos em níveis diferentes e relativamente dissociados dentro do sujeito
(1986: 22-23). Figueira chama atenção para uma característica do sujeito moderno: o “eu
multifacetado”. A coexistência de distintas identidades, por vezes contraditórias, pode levar à
desorientação e ao conflito.
Devo acrescentar, ainda, que o aspecto familiar a ser tratado aqui diz respeito muitas
vezes aos núcleos familiares de origem de minhas entrevistadas. Nos casos, porém, em que as
59
pesquisadas tiveram experiências familiares consolidadas a partir da formação de seu próprio
núcleo familiar tendo casado e constituído família estes aspectos serão incorporados. O
fator decisivo é que, seja em relação aos seus núcleos de origem ou aos núcleos que formaram
depois de saírem da casa dos pais, as relações familiares apresentam forte vinculação com as
experiências de morar só.
A família figura nos discursos das entrevistadas ora como esteio, ora como elemento
contraditório com fortes implicações para suas situações presentes. Estas duas possibilidades
não são mutuamente excludentes e podem aparecer como elementos combinados, ou seja,
o reconhecimento da família como uma base importante sobre a qual se constituir, mesmo
diante de suas contradições. Aliás, mesmo nos discursos nos quais a família pode figurar
como elemento problemático, sua importância é ressaltada pela caracterização negativa, ou
seja, suas desestruturações são mobilizadas para explicar os problemas e as fragilidades
presentes nas experiências dos sujeitos. Em vista desses quadros variantes, os sujeitos
articulam suas experiências presentes com as características das relações familiares que
experimentaram.
Myriam Lins de Barros (1987), em sua pesquisa sobre as perspectivas dos avós de
famílias de camadas médias do Rio de Janeiro nos anos 1980, mostra o conflito como
elemento constitutivo da vida social.
5
Joana, ao discorrer sobre a família, apresenta a fórmula mais próxima da
caracterização da mesma como esteio: “Quando eu penso em família, eu poderia ter feito
todas essas aventuras no mundo, mas se eu não tivesse um núcleo familiar, nos primeiros anos
da minha vida... Acho que [a família] me deu essa estrutura de ser quem eu sou (...)”. A
trajetória de Joana, ainda que esteja marcada pela saída de casa, quando jovem, para
prosseguir nos estudos, está vinculada, em seu discurso, a seu núcleo familiar originário. A
contradição presente no fato da convivência com seu núcleo familiar de origem representar
um obstáculo ao projeto de concluir os estudos não impede ou diminui a imporncia da
família. A narrativa de constituição de uma vida independente muito relacionada com a
escolha por morar só, no caso de Joana rende algum tributo de seu sucesso à família como
credora do sujeito essa estrutura de ser quem sou”. A família como esteio seria justamente
esta instituição credora, responsável por fornecer diversos insumos utilizados no trabalho de
Em seu campo, ela identificou que a ressignificação do
papel da mulher se inseria em um contexto de constante luta entre projetos de trajetórias
individuais e o seu enquadramento em uma estrutura de hierarquia familiar.
5
Este aspecto foi analisado, entre outros, por Simmel (2005), Becker (1977) e Velho (1998, 2000).
60
construção do sujeito.
Simone também aproxima sua posição desse tipo de caracterização na medida em que
afirma: Família é o esteio da gente, é a base de tudo. Eu amo a minha família com todos os
conflitos psicoemocionais que eu tive, mas eu amo a minha família”. Os conflitos de
relacionamento não impedem que Simone caracterize a família como esteio. Seu discurso não
reivindica uma ruptura como tentativa de superação das contradições familiares. Ela alega
que, se os pais ainda estivessem vivos, viveria com eles até hoje. No discurso de Simone, ao
mesmo tempo em que a família é apresentada como esteio, suas fragilidades e contingências
figuram como elemento que contribui para os problemas enfrentados na experiência de morar
. Estar, no caso de Simone, representa justamente a perda ou o rompimento do fio que a
vincula àquele esteio.
Irene radicaliza a posição do esteio ao facultar à família uma condição totalizante:
“Família eu acho que é muito importante. Família eu acho que é tudo”. O lugar de esteio no
discurso de Irene assume um lugar essencial na experiência do sujeito. “É tudo” eleva a
família acima de todas as coisas, confere a esta instituição uma posição que recobre todos os
aspectos da subjetividade. Posso dizer que a família, nestes termos, possui um caráter
englobante. O amor é evocado por Isaura como o elemento essencial das relações familiares:
“Família e casamento é muito bom, mas tem que dar amor e carinho. Porque é o mais
importante na família, amor, carinho (...). Este amor figura na caracterização de Isaura como
ingrediente da família como agente de união e totalização.
Uma posição intermediária é a apresentada por Ana, justamente quando ela trata da
família por dois ângulos, um positivo e outro negativo. No lado positivo ela ressalta
justamente a ideia de esteio ou apoio: “O que eu vejo de uma família: eu vejo o lado bom, que
eu acho fantástico, que às vezes eu sinto muita falta, que é ter alguém que saia da sua casa
para ir até a sua te levar um remédio que você está precisando”. A família, no discurso de Ana,
é definida menos como um núcleo provedor e mais como uma instância de apoio, de
complemento à sua experiência de morar só. Ela identifica, além disso, o outro lado das
relações familiares em relação a qual ela procura opor sua trajetória: “Vejo muitas pessoas que
moram com os familiares sonhando com o dia em que possam sair da casa dos pais.” E
também dirige esta observação para os casos de casamentos mal sucedidos: “(...) pessoas
casadas querendo se separar, mas sem condições materiais para isso, sonhando com um dia
em que possam viver melhor sozinhas do que naquela relação de troca infeliz, de troca de
neurose”. A família figura neste trecho justamente no sentido do “sufoco” identificado por
61
Velho (1987), ou seja, como aspecto que limita e exerce uma coerção em relação às intenções
de afirmação do indivíduo.
A posição de Carla sobre a família não vincula as relações familiares ao núcleo
pais/filhos/irmãos. Sua concepção é mais abrangente na medida em que ela fala defamílias”
que foi escolhendo ao longo da vida: “Eu escolho uma pessoa para ser minha amiga e escolho
a família dela para ser a minha família. Geralmente eu fico amiga da família, eu fico amiga da
mãe, do pai, do irmão, eu tenho aquela relação familiar. Isso desde novinha”. As relações
familiares para Carla possuem um alcance que se expande para as relações de amizade. Ao
ressaltar a possibilidade de escolher as relações familiares, Carla confere à relação familiar a
possibilidade de exercer plenamente a sua vontade, possibilidade esta que é limitada neste
círculo. Ao falar de sua relação com os pais, ela sempre a vincula ao convívio com os amigos
dos pais. Essas relações familiares estabelecidas por Carla figuram como elementos de
complementaridade de sua experiência individual. Carla traz uma ideia de família ampliada
que possui papel importante em seu discurso e no modo pelo qual narra sua experiência de
morar só. Mesmo não tendo muita relevância a ideia de um núcleo familiar unitário, a noção
de falia ganha força no discurso de Carla por sua abrangência.
Seria de se esperar que as entrevistadas mais velhas (Isaura e Irene), por pertencerem a
uma geração em princípio mais tradicionalista, trouxessem percepções sobre a família como
elemento totalizante e englobante. Da mesma forma esperava que suas trajetórias estivessem
marcadas de modo intenso por suas relações familiares o que foi verificado.
As duas entrevistadas mais jovens do universo pesquisado possuem posições
diferenciadas em relação à família, ambas, porém, reconhecendo centralidades decisivas ao
papel da mesma. Ainda que a família não apresente feições totalizantes tão claras para as
entrevistadas mais jovens Sabrina e Marina , seu lugar estratégico não é descartado. Não
há uma negação da família como esfera indesejável nos discursos de Sabrina e Marina. O
“sufoco” e a coerção não são destacados por elas como constrangimentos decorrentes das
relações familiares. A família, ao contrário, figura em seus discursos como elemento
fundamental para suas experiências e para a constituição de suas subjetividades, seja como
instância com a qual estabelecem alguma continuidade harmônica, seja como hitese não
realizada.
Marina diz que sua família é fundamental. Sua casa possui alguma continuidade em
relação ao quarto que possuía na casa de seus pais na medida em que ela afirma que sua
casa possui a “cara” que tinha aquele quarto. Sua situação de morar não é uma oposição às
62
relações familiares; ao contrário, representa uma condição para o cultivo e a manutenção
destas relações: “tenho um laço muito forte com a família, mas, justamente para manter esse
laço, é bom manter distância”. Esta fala de Marina define a família justamente a partir do
afastamento de sua possibilidade englobante. A família não teria perdido em centralidade; a
distância representa, antes, uma via de sua afirmação. Em alguma medida permanece aqui um
traço da fórmula exposta por Joana: “Acho que [a família] me deu essa estrutura de ser quem
eu sou (...).” O forte “laço” que vincula Marina à família, que requer esta distância, é
justamente a afirmação de que a família a credenciou para viver como sujeito independente
forneceu essa estrutura de ser quem é. É a família que fornece os subsídios para que Marina
viva todas as “aventuras no mundo”, conforme aparece na fórmula de Joana. Não há dessa
maneira uma ruptura substancial entre a forma de conceber a família presente em Joana, de
quarenta e cinco anos, e o modo pelo qual Marina, de vinte e seis anos, pensa este aspecto.
No discurso de Sabrina, a centralidade da família se manifesta pela forma negativa, ou
seja, em vista do papel que sua família deveria representar e não conseguiu desempenhar
figura, portanto, como hipótese frustrada. Sabrina associa muitas vezes as mazelas de sua
experiência de morar só aos problemas decorrentes de suas relações familiares. Muitos dos
aspectos que ela identifica como obstáculos para que estabeleça uma relação mais “saudável
com o fato de morar sozinha são remetidos às questões não resolvidas com sua família. A
chave destas questões é apresentada por Sabrina: “Era todo mundo tentando fugir de um
núcleo familiar”. Tal fuga teria representado o motivo de sua situação de morar só e carrega
em seu bojo as razões pelas quais esta experiência possui um aspecto penoso, mesmo
doloroso. Quando perguntada sobre o que pensa a respeito da família, Sabrina respondeu de
modo tão sucinto quanto incisivo: “Tragédia!”. O que é trágico na família para ela, porém,
não corresponde a aspectos problemáticos ou contraditórios presentes na própria concepção
de família, mas à experiência mal sucedida de sua família em relação àquilo que acredita que
deva compor o repertório de exigências para o estabelecimento de relações familiares plenas
a hipótese frustrada. A crítica à família estabelecida por Sabrina não se dirige para a ideia
geral, mas para a sua família.
Minhas intenções, contudo, não dizem respeito à tentativa de estabelecer os aspectos
gerais encontrados no universo pesquisado que contribuam para a compreensão da família
contemporânea na metpole carioca. Reconhecendo a relevância dos estudos sobre família,
mas sem querer enveredar minha análise para esta direção, pretendo me restringir a vincular
estas concepções variadas a respeito das relações familiares às trajetórias de minhas
63
entrevistadas no sentido de apurar a articulação dessa esfera para fora da casa” com as
diversas experncias de morar só. Essas mulheres possuem trajetórias com as quais
estamos razoavelmente familiarizados. Os vínculos entre as concepções de família em tais
trajetórias é a chave que quero explorar, procurando ser fiel ao tema que me dispus a
investigar: as experiências de mulheres que vivem sós.
Joana vem de uma família numerosa. Sendo a irmã mais velha, teve desde cedo a
atribuição de cuidar dos mais novos. Ao descrever sua família afirma que a mãe não era muito
carinhosa, ao contrário do pai. Havia, ainda, uma tia que não era casada e não tinha filhos que
ajudava a criar os sobrinhos. No discurso de Joana, esta tia figura como uma escie de
substituta de sua mãe, em termos afetivos. A relação com os irmãos figura como afetuosa,
sobretudo, em vista de sua atribuição de cuidar dos menores quando eram crianças. Ela afirma
que, ainda hoje, possui um bom relacionamento com eles.
A não ser por um certo distanciamento por parte de sua mãe, Joana não estabelece em
seu discurso nenhuma fissura entre ela e sua família. Os motivos que a diferenciam de seu
núcleo familiar originário estão relacionados com seu projeto individual de prosseguir com os
estudos. Por esta razão, Joana resolveu sair de casa. Esta distinção em relação ao núcleo
familiar originário não representou, entretanto, uma negação da família. A diferenciação de
Joana em relação a sua família diz respeito, ainda, à vocação para o casamento. Ela afirma
que muitos de seus irmãos a indagavam se ela iria casar e ter filhos ou se permaneceria
solteira como sua tia que ajudou a criá-los.
Apesar de não ter constituído uma família aos moldes daquela de seus pais, Joana teve
como referência a tia que a criou e que também optou por não casar. A manifestação em seu
discurso da importância de ter tido um núcleo familiar de origem consolidado também
demonstra que a situação de morar só e de ser independente experimentada por Joana possui
vínculos estreitos com o modo pelo qual se relaciona com sua família. Primeiro,
diferenciando-se e buscando realizar seu projeto que estava fora do escopo dos horizontes de
sua família; depois, identificando como basilares os caracteres que herdou de suas relações
familiares. A diferenciação, ainda que possa ser percebida uma descontinuidade em relação ao
modelo familiar de seus pais, não representou uma dissolução dos aspectos de base que sua
família a forneceu e que a credenciaram a viver “todas essas aventuras no mundo. Em
nenhum momento, Joana descreve sua trajetória em vista da negação deste vínculo de base.
De alguma forma, sua experiência morar e buscar ser independente , ao ser narrada,
retoma os vínculos familiares e os reafirma em um trabalho de atualização daquelas relações
64
que, mesmo que pretéritas, permanecem presentes.
Em alguma medida, este será o tom dos vínculos entre as trajetórias que levam ao
morar só que pesquisei e as relações familiares. A família parece ter um importante papel
estruturante dessas experiências. Seja pela ruptura, seja pela reafirmação, seja pela
atualização, seja pela combinação destes e de outros aspectos, a família pauta as experiências
de morar só e permanece como esfera fundamental, mesmo diante de um contexto de
disseminação de caracteres de uma ideologia individualista no caso da pesquisa em questão,
uma configuração exemplar dessa ideologia: morar só.
Simone também foi a ir mais velha e também teve que cuidar dos irmãos. As
condições nas quais isso ocorreu foram, porém, distintas das de Joana. Ela tem três irmãos.
Quando tinha vinte e um anos seus pais já estavam mortos e ela se responsabilizou por uma
parte do sustento dos irmãos. Neste peodo, afastou-se do projeto de concluir a faculdade
projeto esse que foi retomado somente dez anos mais tarde. Ao contrário de Joana, Simone
não saiu de casa por livre escolha ou buscou alguma distinção em relação a sua família: “Eu
não quis sair de casa, eles é que faleceram e eu fui morar com uma tia” (Simone).
Simone constituiu sua própria família ao se casar, mas não teve filhos. Ao se separar
de seu marido, ela se encontrou mais uma vez em uma situação pela qual não havia optado. A
família figura no discurso de Simone como esteio, mas não como uma base que a credencia
para as “aventuras no mundo”, como é o caso de Joana. Essa “base de tudo identificada por
Simone não figura como uma estrutura ausente ou pretérita que pode ser evocada e atualizada
pela experiência presente. Ela precisa estar presente para ser eficaz. A perda de determinados
laços familiares morte dos pais, separação são aspectos que fragilizam sua experiência
presente e trazem elementos de sofrimento à sua narrativa sobre o morar só.
Ao falar de suas fragilidades emocionais, Simone as atribui aos problemas familiares
decorrentes da época em que vivia com os pais: “Eu acho que o que falta em mim é o
equilíbrio emocional, eu não estou culpando os meus pais, mas que vem da minha infância e
da minha pré-adolescência”. Apesar de afirmar que não culpa os pais, seu discurso sugere que
esses problemas do período da infância e da pré-adolescência são tributários de suas relações
familiares. Estas questões que configuram fragilidades na constituição da subjetividade de
Simone possuem fortes implicações para o modo pelo qual ela vive a experiência de morar só.
No repertório de possibilidades que podem influenciar na maneira pela qual esta experiência
se desencadeia, a família é mobilizada, mais uma vez, como aspecto que tem uma forte
capacidade de dar contornos à situação de viver só.
65
Em sua articulação com as relações familiares, o caso de Sabrina parece ter
características similares ao de Simone. As dificuldades presentes na experiência de morar só
são frequentemente remetidas às questões de cunho familiar. A mãe de Sabrina morreu
quando ela ainda era criança. A partir de então, seu pai é retratado em sua narrativa como uma
pessoa dividida, que não estaria completamente presente nas relações que configuravam seu
núcleo familiar: “Meu pai se dividia. Praticamente, de corpo presente ele estava, mas, assim,
de cabeça ele não estava em lugar nenhum” (Sabrina). Tal ausência parcial do pai, logo, se
traduziu em afastamento quando seu pai casou-se novamente e ela passou a viver somente
com as irmãs. Ela afirma que não possui uma relação muito próxima nem com as irs nem
com o pai: as relações entre todos eles são descritas por Sabrina como “bem oi-tchau”.
Em vista dos eventos ocorridos nas relações entre ela, suas irmãs e seu pai, Sabrina
identifica sua situação de morar só como produto de um abandono. Todos teriam sdo aos
poucos, distanciaram-se do núcleo familiar e a deixaram sozinha. Este aspecto representa o
fator mais intensamente evocado por Sabrina para tratar das fragilidades e dos problemas que
encontra na experiência de morar só. Há uma ruptura em relação à família, não em vista da
negação do projeto familiar, mas justamente por sua afirmação que se manifesta pela
identificação da hipótese frustrada. Esta frustração decorrente das relações familiares é
intensamente narrada por Sabrina ao contar as dificuldades de sustentar a situação de morar
só. Quando fala sobre a possibilidade de se relacionar e vir a construir família, ela manifesta
um certo ceticismo. No caso de Sabrina, a família pauta de modo intenso as possibilidades de
constituição da experiência de viver só, tanto quanto nos casos de Joana e Simone.
A situação de morar só, nos casos de Irene e Isaura, está completamente imersa nas
decorrências de suas situações familiares. Irene tem uma boa relação com seus irmãos e
lembra-se deles com carinho. Sua trajetória, em momento algum, demonstra uma recusa do
modo pelo qual seus pais concebiam a família. Ela casou e constituiu sua própria família, até
que, há vinte anos, após uma decepção com o marido, resolveu separar-se. A partir daí, viveu
com os filhos até que eles saíssem de casa. Os filhos a auxiliam financeiramente. De modo
distinto ao caso de Joana, Irene não estabeleceu uma distinção qualitativa em relação ao estilo
de vida de seus pais. Sua situação de viver só é produto das ocorrências de sua trajetória
familiar casamento, separação, saída dos filhos de casa. O caso de Irene mostra uma
situação na qual não são valorizados de modo intenso os aspectos de uma ideologia
individualista, ainda que ela preze por sua independência e identifique aspectos positivos em
relação a viver só. A família, dessa forma, tem um papel preponderante na vida de Irene.
66
Isaura veio para o Rio de Janeiro com os irmãos no início da idade adulta. A casa dos
irmãos passou a ser o prolongamento da casa de seus pais. Viveu com um e com outro até se
casar. Isaura constituiu seu núcleo familiar, mas não teve filhos. Os casamentos dos irmãos
são narrados por Isaura como possibilidades de rupturas dos vínculos familiares que eram
firmes até então: “Os meus irmãos eram maravilhosos, até que eles casaram”. O casamento
dos irmãos de Isaura possui peso similar aos casamentos e emancipações das irmãs de
Sabrina: representam um afastamento ou estabelecimento de fissuras em um núcleo familiar
cuja estabilidade é apontada como desejável para a integridade dos sujeitos.
Isaura viveu com o marido até que ele morresse e, desde então, passou a morar só na
mesma casa. Na narrativa de Isaura, a família permeia todos os acontecimentos que a levaram
a morar só. As relações familiares que costuram essa narrativa possuem um caráter de
afirmação da unidade e de vínculos que se afirmam pela presença dos sujeitos envolvidos.
Grande parte dos aspectos presentes na descrição dos fatores indesejáveis em morar é
narrada por Isaura como decorrentes da ruptura de determinados laços familiares.
Carla afirma ter um histórico conturbado no que diz respeito às suas relações
familiares. Tem uma ir com a qual brigava muito. No que diz respeito aos pais, sobretudo,
sua mãe, define que havia muitas brigas e “agressividade” em suas relações. Como mencionei
no capítulo anterior, Carla diz que havia um certo isolamento em relação aos seus pais até que
passou a consumir bebidas alcoólicas. O alcoolismo é um fator que ela define em seu discurso
como tendo forte articulação com suas relações familiares:(...) sempre que eu precisava
conversar, a gente [ela e seu pai] ia para um bar e bebia”.
Aos vinte e quatro anos, Carla saiu de casa para morar com seu companheiro. Depois
disso, teve diversas outras relações nas quais viveu na mesma casa do parceiro. O alcoolismo
é apontado frequentemente no discurso de Carla como um causador dos insucessos de suas
relações com os pais e amorosas. Sendo o vínculo mais forte de suas relações com os pais,
este fator também marca a opção de Carla por morar sozinha. Em sua narrativa, morar
coincide com a superação do alcoolismo.
No caso de Carla suas relações familiares pautam sua opção por morar só em vista do
registro da ruptura. Morar só representa uma possibilidade de afastamento dos riscos à
integridade de sua subjetividade que estavam presentes em suas relações com os pais e nos
relacionamentos que estabeleceu depois que saiu de casa.
Este caso é similar ao de Ana. Tendo vivido com sua mãe um relacionamento que
caracteriza como “horrível”, Ana parece constituir sua condição de morar só em contraste
67
com a experiência de sua vida ao lado da mãe:
Era um exemplo de relacionamento onde havia muito amor, mas total
incompreensão e não aceitação do outro. Eu não me sentia aceita pela minha
e. Ela queria que eu fosse uma pessoa diferente. Eu queria que ela fosse
uma pessoa diferente. E foi um relacionamento de muitos atritos, com alguns
momentos de muita ternura, muito carinho ela me amava, cuidava muito
de mim , mas uma relação muito vertical, onde a mãe tinha todo poder e a
filha tinha que obedecer. E eu, como uma menina rebelde, sofri muito com
essa hierarquia. E acabou sendo o meu único modelo,o tinha outros
modelos de relacionamento ao ser esse que era eu e a minhae. Eu
sentia muito, era muito dicil ser uma criança sozinha (Ana).
A incompreensão presente na relação com a mãe deve ter como contrapartida a
compreensão e a não hierarquia nas relações presentes. Morar só a resguarda de o
estabelecer uma relação de hierarquia com alguém. Ana casou-se e teve uma filha. Depois da
separação e de sua filha ter saído de casa, optou por morar só. A relação com a filha é
apresentada como o oposto perfeito da relação que nutria com sua mãe:
Maravilhoso [o relacionamento com a filha]. Dificilmente eu teria um
relacionamentoo bom se eu morasse com ela até hoje. Ela sendo solteira
ou casada,o seria tão bom, porque eu sei da vida dela o que ela escolhe
me contar, ela sabe da minha vida o que eu escolho contar, ou o que uma
percebe. Eu o tenho que saber tudo da vida dela, nem ela tem que saber
tudo da minha vida, então eu estou mais feliz hoje, do que quando eu morava
ao lado da casa dela (Ana).
Morar só representa a negação das relações familiares indesejáveis que tinha com a
mãe e que procura não estabelecer com a filha. Neste caso, assim como no de Carla, a família
pauta a experiência presente morar só pela via negativa. A fórmula: “Desejo fazer de
minha vida algo diverso daquilo que vivi com meus pais” é a sentença que rege estas
trajetórias de morar só.
Marina representa um caso de plena continuidade entre a família e a experiência de
morar só do ponto de vista da afirmação da ideologia individualista. Filha de professores
universitários argentinos, Marina afirma que a emancipação dos filhos é algo previsto e
desejável na cultura argentina. Sair de casa não representa uma ruptura, mas uma afirmação
desse aspecto cultural que é evocado quase como uma tradição em seu discurso. Aos vinte e
quatro anos, independente de quaisquer contingências nas relações familiares, decidiu morar
só porque identificava que já era tempo de ter este tipo de experiência. Suas relações
familiares já se caracterizavam por valorizar a privacidade e a individualidade de cada
68
membro do núcleo.
Sua situação de morar só é descrita diante do estabelecimento de certa coerência em
relação às expectativas e estilos de vida de sua família. Morar só é algo mobilizado como um
fator de afirmação dos laços familiares diz respeito, neste caso, ao estabelecimento da
“distância” necessária para que os laços familiares sejam mantidos e que os sujeitos
implicados se mantenham íntegros. Marina não manifesta de modo intenso qualquer tensão
entre sua casa e sua família. Esta tensão só aparece quando está em jogo um fator que
compunha uma das bases do próprio pacto familiar: o respeito à privacidade e à
individualidade de cada um. A questão da escolha de sua carreira é tratada por Marina como
uma fonte mais provável de conflitos que sua saída de casa para morar só.
Procurei mostrar, nesta parte, que, a despeito das possibilidades de tensões e
contradições, as variadas trajetórias envolvidas na experiência de morar não implicam uma
saída de cena da família como referência. De modos diversos, a falia possui forte
articulação com as trajetórias que definem a situação de morar só. Mesmo em vista de casos
nos quais morar só diante da afirmação da esfera da casa como cultivo da individualidade e
da diferenciação representa uma busca pela negação ou ruptura com determinadas
configurações familiares, a família está longe de ocupar o lugar de um femeno de
relevância residual. Assim como outras dimensões de “fora da casa” que trabalharei a seguir, a
família é uma instância que estabelece fios que tecem a trama das variadas experiências de
morar só. Estas experiências não correspondem, portanto, a uma busca pelo isolamento
monástico; possuem, antes, forte vinculação com instâncias coletivas e estão em intenso
diálogo com aspectos “para fora da casa”.
Os amores
A situação de morar só possui certas implicações no que diz respeito às relações
amorosas nos discursos das mulheres que foram entrevistadas na presente pesquisa. Tais
implicações possuem consequências tanto do ponto de vista da eleição de um repertório
específico de requisitos para o estabelecimento de relações amorosas, quanto no que diz
respeito às próprias condições de possibilidade de constituição dessas relações.
Na dimensão dos requisitos, morar só estabelece um ponto a partir do qual os
relacionamentos amorosos são postos em perspectiva: a exigência fundamental é a não
69
violação da integridade subjetiva e da privacidade expressas, como já vimos, na constituição
do espaço da casa. O eleito para frequentar os domínios que se estendem para além da linha
que separa dentro e fora o sujeito e a exterioridade deve corresponder a determinadas
exigências. Para ultrapassar a soleira da privacidade, é necessário que não haja ameaça à
ordem que se busca estabelecer neste donio. Relações mal sucedidas, rompimentos,
dificuldades de relacionamento, são alguns dos elementos mobilizados para explicar a
articulação entre a situação de morar só e as relações amorosas. As relações indesejáveis são
aquelas que representam alguma anulação da subjetividade como unidade íntegra, e morar só
é uma oportunidade para que seja possível manter-se distante desse risco.
A depender das exigências que são sustentadas pela situação de viver só e das
diferentes trajetórias relativas a este aspecto, as relações amorosas são definidas como mais
ou menos prováveis e/ou desejáveis. Morar só é o lugar de onde se fala para enunciar quais os
fatores que possibilitam ou inviabilizam as relações amorosas. É daí também que se decide se
uma relação amorosa pode ou não resultar em dividir a casa com outra pessoa não importa
se chamam isso de casar ou não. O aspecto decisivo é, portanto, o fato identificado por Velho
de que o casamento promove a união dos membros de um grupo, constrói relações na vida
social de reciprocidade: “Estabelece comunicação, delimita fronteiras e elabora identidades
(2006: 24).
Por mais que isso pareça óbvio, é desejável identificar que, nas narrativas das
entrevistadas, existe uma diferença entre os vínculos que ligam os sujeitos às relações
amorosas e à família. Essa diferença diz respeito, sobretudo, ao fato de as famílias
representarem instâncias das quais os sujeitos carregam traços que são, em alguma medida,
indestrutíveis dessas marcas, o sujeito pode se diferenciar por negação, mas não pode
afastar de sua trajetória tais implicações.
As relações amorosas enquanto não ultrapassam os limites que demarcam a criação
de novas relações familiares pela fundação de um núcleo familiar próprio o imprimem
marcas profundas o bastante ao ponto de anular a dimensão da soberania do sujeito da qual
tratei no capítulo anterior. Há uma reserva, em outras palavras, da situação de escolha no que
diz respeito às relações amorosas. A escolha é expressa e resguardada pela possibilidade de
decisão acerca de quem pode e quem não pode frequentar os domínios da privacidade, bem
como quais serão os termos dessa concessão. Morar só oferece condições privilegiadas para o
estabelecimento dessa decisão.
Dois riscos fundamentais entram em cena diante desses aspectos e estão expressos nos
70
depoimentos das mulheres que entrevistei. O primeiro está presente no próprio ato de decisão
pelo estabelecimento de relações amorosas: uma vez que se decide por viver uma relação
amorosa está aberta a possibilidade de que haja uma transição para a relação marital, logo, de
caráter similar às relações familiares. O segundo diz respeito à impossibilidade de decisão. Se
as condições para que o sujeito possa manter o privilégio de decidir se vai ou não manter uma
relação amorosa não estão disponíveis, morar só deixa de ser uma situação estratégica e passa
a ser uma condição sobre a qual o sujeito não pode arbitrar.
Morar só deve ser intercambiável com a situação de poder estar com alguém e,
inclusive, decidir se esse alguém será convidado a dividir o mesmo teto, caso isso seja visto
como desejável. Se morar só é uma condição em relão a qual não estão disponíveis cenários
alternativos, suas premissas de espaço de decisão e integridade do sujeito estão ameaçadas. As
relações amorosas representam, neste sentido, um fio estratégico entre aqueles que vinculam o
espaço da casa ao espaço de fora da casa. Este fio articula tanto as implicações de dentro para
fora quanto de fora para dentro.
Para que esta argumentação não deslize para a tentativa de estabelecimento do
repertório completo de possibilidades que imprimem as nuances presentes na articulação entre
morar só e a constituição de relações amorosas o que terminaria próximo de uma teoria
geral de tal articulação , é importante apresentar o modo pelo qual as trajetórias e os
discursos de cada uma das entrevistadas elucidam este quadro. Asseguro, assim, certa
coerência com o procedimento adotado na seção anterior.
Carla teve diversas relações amorosas e viveu a experiência de dividir a casa com
alguns companheiros, no entanto, ela afirma que, de uma maneira geral, essas relações eram
complicadas e conflituosas. Em seu discurso, esses relacionamentos figuram como uma
ameaça à integridade de sua subjetividade. Tanto em termos temporais quanto senticos,
estes figuram no bojo dos problemas cujas soluções ela encontrou morando sozinha. Esta
distinção temporal e semântica se expressa em termos narrativos no depoimento de Carla, nos
seguintes aspectos: “Depois que eu tive a minha casa, depois que eu saí de casa, e depois que
eu me separei desse rapaz [o último relacionamento no qual morou com alguém] e eu tive o
meu espaço, eu só vim namorar agora, recentemente. Todos [os relacionamentos anteriores]
eram de morar junto ou aquelas ficadas, mas aí eram praticamente insignificantes, um mês,
quinze dias”. Tanto as “ficadas” insignificantes quanto os relacionamentos nos quais morou
com alguém são retratados por Carla como insatisfatórios e prejudiciais ao exercício de sua
individualidade. Proponho uma retificação da ordem pela qual Carla organiza sua fala para
71
reforçar seu valor narrativo: sair de casa, separar-se, ter sua casa, ter seu espaço esta é a
sequência correta a partir da qual Carla articula morar sozinha com elementos relacionados às
relações amorosas.
Obedecida essa cadeia lógica e alcançadas as condições a partir das quais pode arbitrar
sobre quem frequenta seu espaço de privacidade na condição de relacionamento amoroso,
Carla pode estabelecer as exigências que pautam tal artrio. Esse eventual convidado, para
ultrapassar a soleira da porta de sua casa seja como namorado, amante, marido , deve ser
alguém que não interfira nas condições de controle de Carla sobre sua privacidade. Alguém
que respeite seus hábitos e gostos. Trocando em miúdos: que não viole seu espaço. Esse
convidado não é descrito por Carla como uma hipótese remota: porque pode arbitrar sobre o
convite, deseja que haja condições para que esse relacionamento aconteça. O estabelecimento
de um relacionamento amoroso é, portanto, algo desejável e esperado algo que completa o
significado do conjunto de atributos investidos na situação de morar só.
Joana optou por não casar: “Eu é que tive vários namorados, mas não casei. Não foi
por não achar quem quisesse casar, mas foi por escolha, de alguma forma” (Joana). Além dos
namorados, ela foi noiva, mas desistiu de casar. “Na primeira vez que eu fiquei noiva, faltava
um mês para casar e eu era muito nova ainda dezessete anos e eu achei que não era o
momento ainda” (Joana). Considerar que ainda não era o momento constitui exatamente uma
das dimensões que o exercício da decisão oferece no que diz respeito aos relacionamentos
amorosos. Morando sozinha, esta possibilidade de escolha se amplia, o que faz com que Joana
possa definir sua situação amorosa presente nos seguintes termos: “Atualmente estou com
alguém, estou namorando. Enfim, mas morando junto não, eu moro sozinha, não casei.”
A opção por não casar reiterando o modo particular que apurei dos discursos das
entrevistadas o representa, porém, um cancelamento de possibilidades. Para que
permaneça no terreno da escolha, Joana não afasta a hipótese de que possa, eventualmente,
decidir por casar, uma vez havendo alguém que cumpra os requisitos exigidos (que são
similares aos de Carla) alguém que, enfim, valha a pena: Não surgiu mais nenhuma pessoa
que eu achei que valesse a pena de casar ou não. Se surgir, até amanhã, eu caso. Mas por
enquanto ainda não surgiu” (Joana). Casar “até amanhã” é algo que reforça o exercício da
vontade: é tão imediato quanto decidir. É aliada a esse potencial de decisão a possibilidade
ainda que contingente de que haja alguém para convidar a frequentar os círculos da
privacidade.
Ana se vincula a essa postura compartilhada por Carla e Joana. Tendo morado três
72
vezes com parceiros, valoriza a possibilidade de morar só e de não dividir certos limites de
sua privacidade com seus relacionamentos amorosos. Sem querer abrir mão do domínio que
exerce sobre sua casa e sua rotina, ela aprecia a possibilidade de viver um relacionamento
amoroso, mas não vislumbra morar junto com seu parceiro. As trocas, as alegrias, o sexo, são
aspectos valorizados no repertório de juízos de Ana sobre as relações afetivas estas figuram
como elementos que completariam os investimentos que deposita em sua subjetividade. No
entanto, mesmo tendo em vista a possibilidade de encontrar um companheiro, Ana reforça que
não voltaria a morar com alguém.
Marina teve um namorado quando morava sozinha, mas alega que seu parceiro pouco
frequentava ou dormia em sua casa no período do relacionamento. Atualmente solteira, sem
nenhum compromisso afetivo, Marina busca manter resguardados os ganhos subjetivos que
acredita obter com a experncia de morar e com o donio do espaço da casa que tal
experiência proporciona.
Nos discursos de todas as entrevistadas que não vinculam a possibilidade de escolha
ao estabelecimento de relações afetivas, a possibilidade de viver um relacionamento amoroso
se apresenta de modo nulo ou quase nulo. Sejam quais forem os fatores alegados para tais
impossibilidades, todos eles afastam a atividade do arbítrio sobre quem será ou não convidado
ao acesso a determinadas áreas do espaço doméstico e subjetivo. Estes fatores se manifestam,
sobretudo, em vista das diferenciadas trajetórias. Aquelas que optaram por não casar ou por se
separar e estabelecer relações distintas das anteriores são, em geral, as que possuem uma
postura na qual se vinculam artrio, contingência e afetividade. Aquelas que casaram e se
separaram contra a vontade, ou que identificam determinadas barreiras subjetivas ao
estabelecimento de relações afetivas são as que excluem o artrio dessa fórmula.
Simone não optou por se separar em seu último casamento. Conjugando isso ao fato
de não ter optado por morar só, não valoriza em seu discurso a possibilidade de estabelecer
regras de trânsito entre o que há fora e dentro do espaço de sua casa e de sua subjetividade.
Ao ser questionada sobre as possibilidades de viver um relacionamento afetivo, ela responde
que as chances são remotas, em longo prazo, e nulas, no momento presente. Tal
impossibilidade diz respeito ao fato de não se considerar preparada para estabelecer relações
afetivas. Cancelada esta possibilidade, há um decréscimo nas chances de manutenção da
situação de morar só. Isto porque são eliminados os aspectos de complementaridade entre o
dentro e o fora a casa e além da casa que identifiquei nas narrativas das entrevistadas.
Irene, de 79 anos, e Isaura, de 71 anos, a primeira separada há muitos anos e a segunda
73
viúva, tiveram suas relações amorosas pregressas frustradas por motivos que escaparam de
suas capacidades e possibilidades de decisão. Nenhuma das duas vislumbra a possibilidade de
viver uma nova relação amorosa, seja ela marital ou não. As duas justificaram, em alguma
medida, esta impossibilidade às suas idades. Irene, porém, de modo distinto ao de Isaura, teve
que decidir por se separar, ainda que considerasse que seu casamento fosse bem sucedido até
que descobrisse as contradições que motivaram a decisão pela separação. Em vista dessa
contingência, Irene valoriza a situação de morar só por reconhecer que no casamento havia se
anulado e que hoje possui certa independência. Isaura já não efetua este tipo de valoração.
Tendo enviuvado,o lhe restaram quaisquer níveis de escolha à situação de morar só.
Recuperando elementos de seus problemas familiares, Sabrina fala muitas vezes em
seu depoimento das dificuldades que encontra no que diz respeito a se relacionar
amorosamente. Alegando não se sentir segura para se relacionar, ela relatou que jamais teve
um envolvimento amoroso significativo e que sua situação presente não estabelece condições
para que venha a se envolver afetivamente. Ela diz que precisa aprender a se relacionar e que
se conseguisse este aprendizado poderia ter resolvido os problemas que enfrenta por morar só.
Seu discurso reafirma o vínculo que há entre a escolha e os relacionamentos afetivos no
sentido de garantir à experiência de morar só um caráter mais pleno e sustentável: “Acho que
seria diferente se eu aprendesse a me relacionar como uma pessoa normal”, ela afirma.
As amizades
As amizades definem outro aspecto do exercício da vontade do sujeito na articulação
entre dentro e fora da casa. Nessa esfera, porém, o exercício da vontade parece se exercer de
modo mais acentuado, uma vez afastados os riscos presentes nas relações amorosas e os
possíveis constrangimentos das relações familiares. As amizades, neste sentido, e do modo
pelo qual são definidas nos discursos das entrevistadas, se aproximam da sentença clichê de
que “os amigos são a família que escolhemos”. Esta família feita à imagem e semelhança da
vontade do indivíduo é justamente a fórmula que define um tipo de sociabilidade depurado de
riscos e constrangimentos. Este aspecto da sociabilidade possui caráter estratégico, por isso
Velho analisa o ethos e a visão de mundo de seus entrevistados privilegiando a sociabilidade
através das relações de amizade: “dos encontros, das reuniões, despidos de um caráter mais
74
instrumental” (2006: 19).
6
O trecho a seguir elucida a relação existente entre a amizade e a
ideologia individualista:
O fato é que se elaboram estratégias de sobrevivência, baseada em crenças e
valores, que permitem a constituição de identidade,o passando pelos
mecanismos cssicos de aliança. A ideologia individualista, como se
manifesta neste segmento, permite ao indivíduo manter-se, enquanto
membro de uma rede de sociabilidade que pode incluir a sua família de
origem, mas que se centra basicamente em torno da amizade enquanto valor
(Velho, 2006: 33-34).
O mecanismo de adoção das amizades como segunda família está presente, por
exemplo, no modo pelo qual Carla e Ana constituem suas concepções de família que vimos
um pouco acima. Para Carla, os familiares dos amigos passam a ser “seus” familiares
aqueles que ela escolheu. A presença desses escolhidos não representa exatamente, porém,
uma participação com compartilhamento de seu espaço de privacidade. Não há riscos de que
as relações migrem para situações de morar junto ou alguma forma de conjugalidade. Ela
pode, ainda, arbitrar plenamente a respeito da entrada e da permanência de seus amigos em
sua casa. Este é o caso, por exemplo, das estratégias que assume para manter distância de
amigos que podem, eventualmente, ficar “grudentos”: desligar o telefone, não responder
mensagens eletrônicas etc. Isto não quer dizer que as amizades tenham um papel menor no
repertório das formas de sociabilidade que se articulam com a situação de morar só, pelo
contrário. Por serem mais livres de riscos e constrangimentos, as amizades representam as
formas de sociabilidade que podem ter uma articulação menos problemática com os fatores
implicados na experiência de morar só. As amizades fornecem a possibilidade de convívio
cujas chances de ferir as vontades envolvidas são menores. Todas as amizades citadas por
minhas entrevistadas não apresentaram quaisquer aspectos problemáticos ou contraditórios
com a situação de morar só.
Joana afirma ter muitas amizades. Como alega ter amigos em diversos estados do
Brasil, diz que, vez por outra, viaja para visi-los. Nos discursos de Joana e Marina, não há
fortes apropriações das relações de amizade como substitutas das relações familiares ou
afetivas. A relação com uma família de amigos que acolheu Joana quando se recuperava de
uma cirurgia é uma exceção: neste caso, há certo apagamento das linhas que separam os
amigos dos parentes. Ela afirma, neste sentido, ter para com estes amigos uma relação de
6
Velho, em outro trabalho, já se preocupava com “a extrema importância dos amigos” (1987: 85) ao articular o
tema da família com o da subjetividade.
75
estima familiar.
No caso de Simone, há um aspecto sutil de seu discurso que vincula amizades e
parentesco: ambos são valorizados de modo semelhante e é possível identificar um caráter
problemático em ambos que corresponde a uma fragilidade na situação de morar só. Não
obter o que esperava dessas formas de sociabilidade contribui para que a experiência de morar
só seja precária em termos de consolidação da subjetividade e do exercício da vontade na
construção do espaço de privacidade. A insuficiência apontada por Simone se manifesta
justamente no seguinte trecho: “Os amigos são ótimos, os parentes também, mas cada um tem
a sua vida” (Simone). A ressalva que vem ao final da fórmula se manifesta justamente como
uma adversidade que se opõe à valoração das amizades e da família presente na primeira parte
da sentença. A esta formulação, segue-se no discurso de Simone a seguinte constatação: “Vo
tem que se estruturar sozinho e a partir de você mesmo”. Para ela, em vista também de sua
trajetória, tal constatação está longe de se manifestar como algo desejável.
Esse é o mesmo caso de Sabrina. Apesar de valorizar as amizades, até como algo que
supre determinadas carências que decorrem dos problemas que estão no bojo das relações
familiares, Sabrina faz o mesmo tipo de ponderação: eles têm que cuidar de suas vidas. O
vetor que separa sua subjetividade das amizades possui sinal inverso ao que opera no discurso
de Carla, por exemplo. Neste último caso, é justamente o reconhecimento de que tem sua vida
para cuidar e que, por isso, quer poder decidir quando quer ou não estar com os amigos, que
define aquilo que a separa destes. Ao invés de afirmar que os amigos não poderão contar
sempre com ela porque ela não está disponível integralmente, Sabrina diz que sabe que não
pode contar com eles o tempo todo porque eles têm suas vidas.
7
Os vizinhos
Das formas de sociabilidade investigadas neste capítulo as relações de vizinhança
foram as que figuraram de modo maismido e menos significativo nos discursos das
mulheres entrevistadas. A postura normal daquelas que vivem na região metropolitana
consiste em algo similar ao descrito por Simmel (2005) ao tratar do indivíduo blasé. A
7
Velho percebe também nos discursos de seus entrevistados que “se os laços entre amigos não obedecem a
padrões rigidamente definidos de trocas e obrigações, há maiores possibilidades de se estabelecer novas relações
que substituam, completem ou ampliem as tradicionalmente dadas pelo universo da família e do parentesco em
geral, onde o código da aliança se expressaria com maior nitidez (2006: 35).
76
intensificação da vida nervosa, segundo o autor, molda as condições psicológicas do
indivíduo na cidade grande. O excesso de estímulos sofridos pelo indivíduo neste meio cria
um ambiente de coação. É para preservar sua vida subjetiva do assédio psíquico da metrópole
que o indivíduo se isola e se torna indiferente ao que está ao seu redor. O indivíduo blasé,
para se adaptar à vida na grande cidade, necessita dessa defesa aos excessos de estímulos.
Nesse sentido, é capaz de sentir as coisas como nulas e esta perda de sensibilidade constitui
um importante mecanismo de resguardo de sua subjetividade.
Como consequência da atitude blasé o indiduo constrói um distanciamento e uma
conduta de reserva perante os outros. Uma implicação dessa postura é o fato de não
conhecermos nem as pessoas próximas de nós, como nossos vizinhos (Simmel, 2005: 583;
Velho, 2004: 126). Simmel (2005) aponta que a antipatia é uma forma de proteção necessária
à vida na grande cidade. Em vez de representar uma forma de solipsismo, essa reserva é uma
forma de socialização. É ela que dita as dimicas e configura as possibilidades de formação
de grupos sociais, como partidos poticos, famílias, confrarias religiosas etc. Na grande
cidade, o indivíduo convive com um enorme grupo de outros indivíduos e isto proporciona o
exercício de sua liberdade diante dos aspectos de reserva e defesa aqui mencionados.
As relações das mulheres que entrevistei com seus vizinhos são em geral distantes. A
possibilidade de decisão sobre o convívio ou de abertura de espaços de privacidade aponta
mais para o afastamento. Sabrina, por exemplo, evita o contato com os vizinhos por
considerá-los intrometidos. Não há nenhuma referência, também, a aspectos pelos quais essa
forma de sociabilidade pudesse ter um papel estratégico em relação às possibilidades de
manutenção e sustentabilidade da situação de morar só. Isaura também evita os vizinhos
porque os associa à possibilidade de ocorrência de intrigas e confusões. Simone não faz
nenhuma referência às relações com vizinhos.
Irene relata suas relações com os vizinhos da seguinte forma: “Meus vizinhos são
assim: bom dia, boa tarde”. Apesar de viver no prédio em que mora há mais de trinta anos e
conhecer a vizinhança, portanto , Irene diz que só agora passou a conviver com uma vizinha,
para dar assistência depois que ela ficou viúva e sozinha. Irene, no entanto, não se refere a
nenhum aspecto de complementaridade entre a vizinhança e sua situação de morar só.
Embora os discursos apontem para uma relação de distanciamento com a vizinhança,
há alguns casos em que foi construída uma relação de amizade com os vizinhos. Carla e Ana
representam duas exceções a este tipo de postura em relação à sociabilidade de vizinhança.
Atribuo esta especificidade ao fato de morarem fora do centro urbano da região metropolitana
77
do Rio de Janeiro, em áreas tradicionalmente destinadas às práticas de veraneio. Ambas
relatam relações de sociabilidade com vizinhos que envolvem algum tipo de
compartilhamento de espaços de privacidade. Nos dois casos, as relações de vizinhança se
tornaram amizades.
Ana relata, portanto, neste sentido: “Eu fiz novas amizades mais próximas de onde eu
estou morando. O mais próximo no meu caso são 3 km”. Ao falar destes vizinhos, logo, é
empregada a relação de amizade. Estas relações de vizinhança que se tornam mais pessoais
decorrem, em minha interpretação, das possibilidades de convívio que a vida nessas áreas
possibilita. Por não haver muita gente por perto, ocorre que as relações se tornam mais
próximas e pessoais.
Esse aspecto é elucidado, em alguma medida, pelo seguinte trecho do discurso de
Carla: “Quando eu fui morar lá (...) não tinha ningm. Naquela área onde eu moro não tinha
ninguém. uma família, que foi a família da qual eu fiquei amiga e praticamente entrei para
família”. O mesmo alcance dado às relações de amizade é conferido a estas relações de
vizinhança: quase uma família ampliada. Atualmente Carla é vizinha de um casal que também
se tornou amigo e frequenta sua casa: são os mesmo que acima foram retratados como aqueles
que, por vezes, se tornam grudentos”.
Ao longo deste catulo foram investigadas algumas formas de sociabilidade que
possuem articulações significativas em vista da situação de morar só. Estas articulações
apresentaram uma certa costura entre escolha, vontade, continncia, privacidade etc. No
capítulo seguinte estas articulações serão tratadas com mais fôlego na busca por nuances entre
distintas formas de experimentar a situação de morar só.
78
III. “NÃO CONFUNDA GOSTAR DE ESTAR SOZINHA COM GOSTAR DE SER
SOZINHA, TÁ BOM, DEUS?”: ESTAR SÓ OU SER SÓ?
Este capítulo retoma algumas questões abordadas anteriormente, porém busca
concil-las com o significado das categorias de estar só e ser presentes nos discursos das
entrevistadas. Neste sentido, o estar opera como um estilo de vida que busca ser uma
alternativa às manifestações agônicas da solidão representadas pelo ser. A alise do estar
aparece como credenciamento para o estabelecimento de determinadas relações sociais.
“Eu diria que eu moro só, mas eu não sou sozinha”
As entrevistas feitas com os pesquisados trouxeram uma importante distinção: estar
(ou morar) é diferente de solidão ou ser sozinho. Tentarei mostrar como o estar pode ter
vínculo com diversos aspectos valorizados por uma ética individualista-igualitária
1
A solidão figura, portanto, como uma condição na qual estar sozinho se vincula a
máculas ou fragilidades na constrão do indivíduo como unidade e valor. Não ser
compreendido, não ter com quem compartilhar certas coisas e sentir-se insuficiente em termos
afetivos, não ter opções de ocupação e de expressão, são alguns aspectos que meus
informantes associam com frequência ao estar que se torna solidão.
que possui
grande difusão entre os entrevistados na presente pesquisa. De uma forma geral, os
depoimentos coletados apontam para o estar como um fator positivo e necessário para a
construção e manutenção da individualidade. Quando o estar só envolve circunstâncias que
não estão relacionadas com a dimensão de escolha, projetos e opções do indivíduo, os sujeitos
pesquisados tendem a identificá-lo com a solidão. Na presente interpretação, identifico o ser
, presente no discurso dos informantes, com a própria noção de solidão.
A interpretação que proponho concorda com a de Castro (2001) quando este afirma
que uma característica fundamental da solidão consiste no fato desta ser experimentada de
forma inescapável, tendo em vista sua vinculação com as características do individualismo e
da vida na metrópole. Os depoimentos obtidos nas entrevistas, entretanto, oferecem elementos
1
Ver Salem (1989).
79
para a ampliação do problema, ao indicar que o estar só figura como um estilo de vida que
busca se contrapor ao ser só, ou à solio.
A caracterização do Homo-solitarius de Castro (2001) representa uma importante
contribuição por associar a solidão à vida social urbana e ao individualismo. Pretendo,
contudo, estabelecer uma articulação entre a solidão e o estar que traga para a reflexão
formas de isolamento voluntário que não se limitem, como ocorre na análise de Castro, à
busca religiosa e à aversão à vida em sociedade. A noção de estar só, neste sentido, oferece
novos matizes para a questão porque consiste em um estilo de vida, remetendo a formas de
sociabilidade específicas que se contrapõem àquelas pertinentes à solidão.
Carla, 52 anos, ao ser perguntada sobre como é estar só, apresenta a distinção
fundamental que pauta grande parte da discussão do presente trabalho:
Eu adoro. Eu gosto, eu tenho uma casa grande, eu uso toda a casa, toda a
casa, sozinha mesmo, eu ocupo todos os espaços, né, e eu não sei, eu acho
que eu tenho essa característica mesmo. Eu lembro que eu rezava e eu dizia:
Não confunda gostar de estar sozinha com gostar de ser sozinha, tá bom,
Deus? Me manda uma pessoa que respeite o fato de eu gostar de estar
sozinha. Mas eu não gosto de ser sozinha”. Então, eu o me sinto sozinha
estando sozinha em casa, muito pelo contrário.
Estar só, para Carla, não representa um sinônimo de ser sozinha ou de solidão. O traço
fundamental desta distinção reside no fato de que o gostar de estar só diz respeito ao conjunto
de elementos que caracterizam suas escolhas e sua expressão de si, além de colocar a
possibilidade de decidir quando quer estar com alguém para compartilhar algo. O ser, por
sua vez, não depende da sua vontade, representa uma condição permanente que não permite
alternância entre momentos de estar sozinha e de estar acompanhada. Ser sozinha também
ressalta fragilidades e carências do eu, enquanto o estar só reafirma as condições para a busca
do indivíduo como valor e unidade: No momento eu sou só e estou . Eu digo que sou só,
porque eu não tenho nenhum relacionamento afetivo amoroso” (Carla).
Joana, 44 anos, também reitera a distinção entre o estado transitório, intercambiável,
de estar sozinho e a condição permanente e adjetivada de ser sozinha ou solitária: Eu diria
que eu moro só, mas eu não sou sozinha. Eu, como todo ser humano, eu acho que tem
momentos que você precisa estar só consigo mesmo e nesse momento eu fico só”. O discurso
de Marina, 26 anos, é semelhante:
Estar sozinhao é ter solio, eu aprendi a lidar com isso, eu o me sinto
sozinha. Eu até gosto de ficar sozinha, e olha que eu sou uma pessoa que
gosta muito de estar com os amigos, precisa muito dos amigos, da família,
80
das pessoas, mas também preciso do meu tempo, de fazer nada, daquela
minha rotina de quando eu chego em casa.
Estabelecida esta distinção, é importante mostrar como a solidão é caracterizada pelas
entrevistadas.vimos que Carla associa a solidão a não possuir um relacionamento afetivo e
não ao estar só. Em outra fala, Carla define: Eu identifico a solidão como o estado de tristeza
interior por não ter com quem dividir a sua vida, uma coisa que me remete a tristeza mesmo,
ao sofrimento, isso que eu acho que é a solidão”. A solidão para Carla configura-se como um
estado interno de tristeza. Tal tristeza é motivada pelo fato de não ter alguém para
compartilhar aspectos de sua vida. Quando o estar só redunda em uma situação na qual o
indivíduo não figura como autossuficiente, quando se acentuam as carências decorrentes de
não se bastar a si mesmo a necessidade de compartilhar , configura-se a solidão no
discurso de Carla.
Tania Salem (1989) destaca que a valorização do indivíduo não representa uma
introspecção que busca o isolamento, mas uma busca de si, um investigar-se, que se dirige
para práticas socialmente compartilhadas. Castro (2001) também identifica que o homo-
solitarius representa uma forma de expressão da sociabilidade moderna. Remeto a estes
fatores as fragilidades destacadas por Carla ao frisar a necessidade de ter alguém com quem
compartilhe momentos. A solidão aparece, tanto nas análises de Salem e de Castro quanto no
discurso de Carla, como a perda de laços de sociabilidade fundamentais. Quando é exposta a
contradição entre bastar-se a si mesmo ser um valor em si e ter necessidade de estabelecer
nculos sociais (como o casamento), a solio figura como um problema. A reflexão de
Salem apresenta o “casal igualitário” como arena de expressão e tentativa de solução desse
impasse.
A falta de opções como indício da solidão indica a armadilha do isolamento que
resulta da falta de vínculos sociais. Ter para quem ligar, fazer uma coisa agradável, significa
manter vínculos sociais que não representem um isolamento incontornável. O estar só tem
como característica, portanto, a permanência de poder escolher quando se relacionar com
alguém, direta ou indiretamente.
A questão da opção reitera o significado do estar só como escolha, na medida em que
a solidão figura como falta de alternativas, como um estado no qual o sujeito tem as vias de
expressão da sua vontade minimizadas. Ao mesmo tempo em que o indivíduo se apresenta
como valor e como força, a vida social figura como premissa para a expressão desse valor e
dessa força. A busca de si se manifesta entre as entrevistadas como a afirmação de uma forma
81
de vida social, cuja privação é a solidão e o sofrimento que lhe corresponde.
2
Sabrina, 26
anos, relata que a angústia de sentir-se só a fazia inventar motivos para sair de casa, nem que
fosse para perambular pela rua sozinha. A permanência em casa a remetia ao medo de ter,
novamente, um “surto depressivo:
3
Joana vincula a solidão a uma patologia. Este movimento aparece em sua retórica
associado à distinção em relação ao estar só, ou morar só, que ela vincula fortemente à
escolha e à expressão da vontade do indivíduo.
“às vezes eu ficava num lugar cogitando para onde eu ia
depois, porque não podia voltar para casa”.
Para mim a solidão é desencadeada por uma depressão, alguma coisa que
o tá certo, que não tá bom. Seja, sei , biológica, fisiológica,o importa
que motivo que leve a pessoa àquele estado de querer se isolar. Aí sim. Mas
aí seria uma solidão, na minha visão de ver, patológica. Foi desencadeada
por uma outra coisa,o pelo fato de morar sozinha (Joana).
Joana também associa a solidão à carência de relações afetivas ao afirmar que “não dá
para ter solidão quando alguém te espera, não importa onde, e te ama, não importa onde”. As
relações afetivas e amorosas representam um aspecto da vida social que figura de modo
intenso, nos discursos das entrevistadas, em articulação com a solidão.
Simone, 50 anos, expressa de modo dramático as mazelas pertinentes à solidão como
interrupção de vínculos sociais: “A solidão para mim é como um deserto, que você fica
procurando um oásis, que é a companhia de uma pessoa querida, de uma pessoa que te
compreenda e seja companheira sua”.
A perda de determinados laços sociais produz outras imagens da solidão relacionadas
à agonia ou à tristeza, como ocorre no discurso de Isaura, 71 anos:
A solio é muito triste, é horrível. Eu o desejo. Eu sempre falava para
uma amiga: [...] você não sabe o que é solio, peço a Deus que nunca você
fique sozinha, porque é muito triste, a solio é triste. Perde sono. Às vezes
eu estou vendo televisão, me dá um sono que eu não consigo ver televisão,
vou dormir e não consigo dormir, é horrível. Perde o sono. Até que depois
ela ficou viúva e comentou comigo que lembrou dessas minhas palavras;
que é triste mesmo, é horrível, a solidão.
2
Lembro aqui da forma pela qual Elias (1995) caracteriza o sentimento de fracasso vivido por Mozart. A falta de
reconhecimento de seu talento por seus pares causava-lhe muito sofrimento o que Elias vincula, inclusive, aos
motivos de sua morte. Sua genialidade não se bastava a si mesma, sua expreso só se completava pelo sucesso e
pelo reconhecimento.
3
Sabrina declarou que possui “ciclos depressivos” e que tem medo do que possa fazer a si em um momento de
depressão.
82
A imagem da solidão é associada a uma condição maléfica do sujeito. Ao mencionar
nas entrevistas o termo solidão, apareceram respostas como: “não padeço deste mal” e a
“solidão é uma palavra muito pejorativa”. O caráter pejorativo do termo se apoia nas
expectativas negativas em relação à condição de solidão como atributo, ou adjetivo, do
sujeito. Joana, por exemplo, ciente deste estigma, afirma: “Nunca tive esse preconceito, não.
Entrar no cinema sozinha, isso eu já fiz várias vezes. [...] Se não tem companhia para ir, eu
não penso duas vezes. [...] Nunca deixei de ver as coisas, de fazer as coisas, por falta de
companhia”.
“Só presença física não desmancha a solidão, não desfaz solidão”
Esta seção representa o modo pelo qual os depoimentos das entrevistadas reiteram, de
certa forma, o velho dito popular: “Antes só do que mal acompanhado!” A solidão não se
vincula apenas à existência ou não de relações sociais e interpessoais. A qualidade das
relações estabelecidas também diz respeito ao modo pelo qual as entrevistadas significam a
solidão. Relações nas quais o indivíduo não é valorizado, em sua singularidade e unidade,
expressam situações nas quais os pesquisados alegam se sentir solitários. Casamentos
infelizes, laços familiares problemáticos, amizades insinceras, são alguns elementos que
figuram como circunstâncias nas quais a solidão aparece. O estar é, com frequência,
mobilizado como alternativa à solidão decorrente de relações mal sucedidas.
Ana, 50 anos, define, neste sentido, que:
A solio é você o ter quem te compreenda. Porque você pode estar
rodeado de toda a sua família, mas pode não ter um único membro na sua
falia consanguínea que consiga entender nem o seu silêncio, nem o que
vo fala. Às vezes, quando você fala fica mais difícil de entender ainda.
Então, eu acho que o que realmente acaba com a solidão de uma pessoa não
é o mero de pessoas ao redor dela. Mas basta uma pessoa que vo tenha
a confiança que te compreenda. Te compreenda quer dizer: te conheça e te
aceite, não que concorde. A pessoa para te compreender, te aceitar, não
precisa concordar e bater palmas para tudo que você faz, mas quer dizer
que, apesar de você ter alguns hábitos ou uma parte do seu temperamento
ser desagradável, mesmo assim, ela te aceita. [...] Vo pode se sentir
solitária, como eu falei no início, mesmo estando com um número muito
grande de pessoas ao seu redor e vocêo ter aquela pessoa que você troca
um sorriso no silêncio. Não precisa dizer mais nada,o ter o vel de
compreensão na troca: aí, só presença físicao desmancha a solio,o
desfaz solio.
83
O discurso de Ana ilustra muito bem o modo pelo qual a solidão se vincula com a
ausência de reconhecimento e de aceitação do indivíduo por seus pares. O que caracteriza
os vínculos sociais que associamos à articulação entre o estar só e a solidão não é o
estabelecimento do simples contato entre os indivíduos, mas os significados presentes nestes
contatos. A perda dos vínculos sociais que a análise das entrevistas sugere não diz respeito ao
isolamento físico, mas à perda de laços que atualizem e completem o significado do indivíduo
para si mesmo e para os demais: a expressão “ter quem te compreendailustra bem isto.
4
O reconhecimento como condição para escapar do sentimento de solidão é
exemplificado na declaração de Sabrina: “acho que você sempre precisa deblico para tudo
o que faz na vida, sempre precisa de alguém para reconhecer o que você faz, nem que seja
para dizer parabéns... não adianta vofazer as coisas para você mesmo. Você precisa que
alguém veja”. O reconhecimento na interação diz respeito também ao modo como o eu obtém
as imagens de si, modo este que, em larga medida, parte das imagens que os outros têm dele.
Goffman, em Ritual da Interação (1970), mostra como os rituais, através das regras
cerimoniais, contêm um caráter comunicativo que carrega um fluxo de significados e
informações que fornecem elementos para a construção da imagem do eu e dos outros. Esse
jogo comunicativo define relações de hierarquia e de proximidade e afastamento social. É a
busca pelos significados presentes no ritual da interação que possibilita apurar os aspectos
gerais da interação humana, logo, da vida social de um modo mais amplo. Esta montagem do
argumento de Goffman pode ser aproximada da teoria de figuração de Elias, na qual os
significados se estabelecem a partir de uma rede de interdependência que produz identificação
entre os sujeitos no que diz respeito ao que pensam de si e dos outros.
O argumento de Sabrina retoma uma discussão central neste trabalho, a relação entre
vida individual e social. O fato de vivermos em constante relação com outras pessoas é
premissa para que se pense em solidão e em estar só. O isolamento do indiduo na sociedade
pressupõe, portanto, uma forma específica de relação, uma postura do indivíduo perante a
vida social. Segundo Simmel (1972), o indivíduo isolado não representa um afastamento da
sociedade. Para estar é necessário que o indivíduo tenha como pressuposto a vida em
sociedade.
4
O Homem na Multidão, de Poe (1978), estava cercado de milhares de pessoas e parecia só. O pai de Paul
Auster, em A Invenção da Solidão (1999), matinha seus relacionamentos, mas permanecia em uma solidão que
se evidenciou com sua morte.
84
A solidão é caracterizada, em vista da distinção qualitativa de relações, pelo reforço do
anonimato
5
e da auncia de reconhecimento do indivíduo em seu valor intrínseco, pertinente
às suas particularidades e singularidades. Simone exemplifica experiências nas quais pessoas
permanecem casadas e se sentem solitárias:
Eu vejo amigas que são casadas, ou melhor, conhecidas, colegas que são
casadas e é como naquela peça da... esqueço o nome dela, dessa atriz, que ela
dizia assim, o título da peça: “o Sou Feliz, mas Tenho Marido”... lembrei o
nome dela, Zezé Polessa, eu cheguei a pensar em assistir essa peça. Eu tenho
primas, tenho conhecidas queo casadas, mas, mesmo assim, o se sentem
tão acompanhadas quanto gostariam e muitas vezes também procuram as
amizades, e até mesmo acontece de arrumarem uma pessoa fora do
casamento, por causa da solio que sentem, mesmo casadas.
Carla destaca o modo pelo qual seu último casamento representava uma situação de
solidão estando acompanhada:
Sentia sozinha, mesmo morando junto. Sentia sim. Porque eu acho que o
preenchia a questão amorosa, o último então que morou comigo era de uma
indiferença brutal, eu acho que de uma indiferença agressiva. Às vezes,
querer conversar, querer falar, querer mostrar alguma coisa e não conseguia,
o queria ver, então eu me sentia muito mal ali com ele.
Carla trata ainda do estabelecimento de outras relações que não a retiravam da solidão.
Ao ser perguntada sobre como lidava com os momentos de solidão, respondeu: “Eu bebia e
transava com o primeiro que aparecia, esperando que fosse ser o grande amor da minha vida.
Eu acho que eu lidava de uma forma péssima, né? Agora eu estou lidando de uma forma bem
melhor.
O modo pelo qual Carla alega lidar com a solidão está fortemente vinculado com sua
opção por estar só. Minha interpretação situa o estar como uma resposta para a solidão nos
termos em que a defino na próxima seção.
A articulação feita pelas entrevistadas entre o estar e a solidão na medida em que
diz respeito a laços sociais específicos (ser compreendido, ser aceito etc.) retoma o tema do
individualismo nos termos em que Simmel (1998) o associa à oposição entre indiduo e
sociedade. Simmel (1998) apresenta o tema do individualismo relacionando-o com a busca do
indiduo por si mesmo. O estar só, nos termos em que os pesquisados o caracterizam, se
relaciona com o estabelecimento de relações sociais que “são, ao fim e ao cabo, apenas
estações no caminho em busca de si mesmo” (Simmel, 1998: 113).
5
Para o tema do anonimato como elemento constitutivo das relações sociais na vida urbana, ver Velho (2000).
85
A definição da solidão a partir das qualidades específicas das relações sociais faz com
que esta noção seja fundamentalmente plural. Temos que falar, então, de solies que se
atualizam pela diversidade das experiências dos indivíduos entrevistados.
A seguir tratarei das conceituações de Salem (1989) e Duarte e Gomes (2008) para que
se torne mais claro como a busca por si mesmo se estabelece nos depoimentos das
entrevistadas. Estas abordagens, bem como a distinção entre o estar só e a solio, retomam o
caráter sociológico do isolamento nos termos em que afirma Simmel em O Indivíduo e a
Díade: “Alegria e amargor do isolamento mais não são que reações diversas a influências
experimentadas por via social” (1972: 129).
“O domínio total
Tania Salem, ao tratar do tema do “casal grávido” (1989), estabelece uma análise
sobre configurações “individualista-igualitárias” que permeiam as camadas médias e que
estão pautadas em três princípios estruturantes: psicologicidade, igualdade e mudança. Ao
longo deste capítulo, identificarei alguns pontos de contato entre estes três princípios
estruturantes e o modo pelo qual os sujeitos que pesquisei afirmam suas subjetividades e as
vinculam ao estar só e à solidão.
Para Salem, os três princípios estruturantes fornecem as bases para a afirmação do
“casal igualitário como uma unidade inteligível em si mesma. O fundamento desta unidade é
a afirmação de cada indivíduo como singular. A díade, neste sentido, só é vista como uma
unidade na medida em que cada componente preserve sua liberdade individual e sua
singularidade.
6
Duarte e Gomes (2008) retomam a distinção feita por Salem entre individualização e
individuação. A individualização remete a um processo específico da modernidade
Entre os impasses observados por Salem em sua pesquisa figura um aspecto
que surge com frequência entre os meus informantes quando tratam do estar só e da solidão: a
dificuldade de conciliar a afirmação do indivíduo como singular com a convivência com outra
pessoa. O estar só aparece na minha pesquisa, neste sentido, como elemento que retoma esta
dificuldade e reafirma a importância da preservação de um espaço no qual o indivíduo esteja
livre de qualquer influência que possa ferir sua liberdade e sua autonomia.
6
Heilborn (2004) também trabalha com o conceito de “casal igualitário”, apresentando-o como um tipo ideal que
preconiza valores individualistas e a recusa do englobamento.
86
comprometido com a ideologia individualista.
7
Através do emprego da categoria de autoafirmação,
Os autores destacam três processos que estão
relacionados à sua formão: a autonomização, a interiorização e a distinção. A
autonomização corresponde a todos os processos em que o sujeito se desvincula de uma
situação que o limitava e um exemplo seria a ampliação dos recursos financeiros. A
interiorização, sempre subjetiva, pode ser tanto hedonista quanto ética: o primeiro fenômeno
está associado intrinsecamente à modernidade e ao cultivo ideal de um sujeito pleno de
satisfação pessoal” (2008: 252); o segundo diz respeito ao individualismo característico do
Cristianismo. A distinção é definida como um “processo social abrangente, característico dos
segmentos aristocratizantes em qualquer formação histórica, através da construção de uma
diferença ‘naturalizada’ de procedimentos, disposições e gostos” (2008: 252). A individuação,
por seu turno, é um processo universal do surgimento de um sentimento de especificidade e
agência da condão do sujeito social.
8
Ana, 50 anos, em seu depoimento, nos fornece elementos que indicam o estar só como
requisito para o estabelecimento de um espaço no qual a vontade do indivíduo se expressa
plenamente. Este espaço da vontade é também o lugar de garantia da integridade do sujeito
como unidade legítima e íntegra. Acredito que a definição deste espaço se aproxima do
processo de autoafirmação, tal como definido por Duarte e Gomes.
Duarte e Gomes tentam escapar
das limitações que as noções de individualização e individuação encerram. Os autores
justificam que a categoria de individualização promove “uma confusão com a outra ponta do
processo, a da plena alternação para o reino cosmológico do individualismo” e a categoria de
individuação não contempla “os processos que impulsionam os sujeitos para um processo de
mudança numa sociedade onde o individualismo é hegemônico” (2008: 253).
Até um certo ponto é preciso solio para você ter, digamos, o domínio
total, é preciso ter um espaço que você tenha o domínio total daquele espaço
e isso vem agregado. Se você domina aquele espaço ou não tem ninguém ou
tem pessoas subordinadas a você que o o poder reclamar da utilização
do telefone, da luz acessa, do barulho, do que quer que seja. Mas mesmo
partindo do princípio que essas pessoaso o reclamar de nada, mesmo
assim, o nível de liberdade de você determinar o que faz do seu tempo, as
24 horas do dia, eu acho que está diretamente relacionado à solio sim.
Porque as pessoas podem até não reclamarem, não incomodarem, mas têm
os limites de autonomia, de uso de espaço quando vo divide o mesmo
7
Duarte cita Salem (2007: 37): “Já a individualização (...) comporta um inextricável compromisso com a
ideologia individualista no sentido de o desprendimento do indivíduo (singular ou coletivo) de unidades mais
abrangentes ser instigado pelo preceito da igualdade” (2008: 245).
8
Os autores utilizam a categoria de autoafirmação para fazer referência aos “processos de assunção de uma
agência própria, pessoal, com algum componente, mais os menos intenso, de afastamento do englobamento
originário (mesmo que ambivalente ou ambíguo)” (2008: 254).
87
ambiente com outras pessoas. Então sempre ao dividir uma casa, a sua vida
com alguém, sempre vai ter algumas coisas que você vai no mínimo adaptar.
[...] Liberdade de você fazer o que bem quer no espaço da sua casa e na hora
que você quer, eu acho que está sim atrelado a morar sozinha, acho que sim,
porque sempre você tem que adaptar alguma coisa ao horário (Ana).
O domínio total, a liberdade e a autonomia são categorias mobilizadas para
caracterizar a valorização do estar só como situação importante para o bem-estar do indiduo
e para seu processo de autoafirmação. A ideia de ter que adaptar seus hábitos e rotina à
vontade de alguém é apresentada como indesejável e como aspecto que fere valores
fundamentais. Morar só, neste sentido, é condição para que se tenha a “liberdade de você
fazer o que bem quer no espaço da sua casa e na hora que você quer”. Dispor de seu tempo e
de seu espaço de acordo com a sua própria vontade é, portanto, condição para a afirmação do
indiduo livre, autônomo e possuidor do controle total. A fala de Ana também coloca o risco
do estabelecimento de relações hierárquicas. Os problemas da hierarquia e do englobamento,
tais como formulados por Salem (1989) e Heilborn (2004), são importantes para pontuar o
estar como condição na qual o indivíduo se afirma como unidade e valor. A afirmação
desse indivíduo diz respeito à negação de qualquer englobamento pertinente a relações sociais
que não esteja de acordo com a sua vontade.
A expressão desse domínio total é valorizada muito frequentemente no que diz
respeito a aspectos cotidianos. A rotina e o ritmo pessoal são elementos valorizados quando
Ana trata de sua liberdade e do modo pelo qual o estar só oferece as condições para a sua
autonomia:
Primeiro, ninguém te critica por nada que você faça [risos]. Esteja a louça
limpa ou suja, demore o tempo que for no telefone, acorde ou dormir a
hora que bem entenda, é... eu me acostumei muito a isso e... acho que se o
meu ritmo atrapalhasse outra pessoa, tivesse mais alguém morando na casa e
o meu ritmo, de ficar acordada até tarde ou de... ligar o som alto a hora que
eu quero, se os meusbitos atrapalhassem alguém, é... para mim ia ser bem
difícil de lidar, porque eu... por ter sido filha única também, eu sempre tive a
liberdade que a solidão dá, né? (Ana).
No lugar de morar com um cônjuge, que poderia complicar as condições de afirmação
de sua liberdade, Ana preconiza a amizade como alternativa de convívio. Retomando o
princípio da igualdade definido por Salem e que consiste principalmente na ausência de
englobamentos e de estabelecimento de hierarquias , considero que a amizade é vista como
uma relação na qual não se coloca de modo tão intenso o perigo da hierarquia e da perda da
88
autonomia. A amizade e a proximidade com parentes queridos que não morem no mesmo teto
são elementos valorizados por Ana quando perguntada se sua situação de morar é
passageira ou definitiva:
Não sei, como eu já te falei, no meu sonho de consumo para a minha
terceira idade, eu imagino amigos queridos, parentes, morando próximo,
tendo sempre a oportunidade, a opção de passar um fim de semana juntos,
de fazer uma comida juntos em um final de semana, de pegar uma fita e em
vez de ver sozinha na minha casa como eu sempre faço, poder ver junto de
alguém para fazer comentários, eu acho isso muito bom
.
A ideia de morar com um parceiro aparece como alternativa mais remota e sujeita à
ocorrência de uma paixão que justifique a saída da condição de morar. Estar perdidamente
apaixonada é a condição colocada por Ana para que sua opção por morar só seja modificada:
Maso acho que seja definitivo, estou totalmente aberta para tentar. Em
primeiro lugar morar o mais próximo possível das pessoas queridas seria a
primeira opção, mas se eu no futuro vier a me apaixonar e se essa pessoa
quiser muito morar comigo, morar junto, casar, eu estou aberta para tentar
mais uma vez, acho que o fato do que aconteceu o me fechou ao ponto de
dizer jamais, se o outro quiser muito eu posso vir a querer ou eu mesma posso
vir a me apaixonar tão perdidamente que eu desacredite de tudo que eu te
falei hoje. Tudo pode acontecer.
Carla, 52 anos, também fala da importância de um espaço inviolável do qual tenha
todo o controle. Apesar de afirmar não gostar de ser sozinha, Carla ressalta a importância de
poder decidir quando quer a companhia de alguém e quando quer ficar sozinha. A preservação
de seu espaço privado requer a exclusividade sobre ele, que se estabelece, inclusive, através
da adoção de táticas para evitar o contato com vizinhos que ultrapassem os limites de seu
controle sobre o estar só:
Mas eu não gosto de ser sozinha, então eu não me sinto sozinha estando
sozinha em casa, muito pelo contrário, muitas vezes eu preciso desligar o
telefone, porque eu tenho muitos amigos, inclusive tem alguns que ficam um
pouco grudentos. Tipo a minha vizinha que gosta muito. Então, ela toda hora
me liga para perguntar se eu tenho um açúcar, para perguntar se eu tenho um
manjericão na horta, eu digo: “Ai meu Deus!o dá! Vem aqui!” E aí, às
vezes eu até desligo (Carla).
O amigo “grudento” representa, no discurso de Carla, uma forma de invasão, algo que
fere o domínio total sobre seu espaço privado. O que caracteriza aqui a liberdade como
controle do espaço do indivíduo é a possibilidade de decidir quando e o quanto outra
89
pessoa compartilhará desse espaço. A ultrapassagem de determinados limites na relação com
amigos e a configuração de uma relação amorosa conjugal torna-se uma ameaça, para Carla, à
situação de igualdade. O risco do englobamento e da hierarquização é reiterado em outra fala:
uma pessoa para ficar grudada, dependendo da minha companhia vai ser difícil eu me
relacionar, porque eu preciso de um espaço para mim” (Carla).
Para Carla, a possibilidade de viver com alguémo pode ferir o princípio da
igualdade e da liberdade e autonomia decorrentes da ausência de hierarquias e englobamentos.
A hipótese de retomar uma relação conjugal se coloca para Carla de forma muito parecida ao
modo pelo qual Salem descreve o casal igualitário. Deve-se, assim, ter em conta o impasse de
que dois indivíduos singulares unidades e valores inteligíveis e legítimos em si mesmos
optem por estabelecer uma relação de casal sem que suas particularidades, por mais que sejam
incompatíveis, sejam feridas.
Tenho uma vontade de encontrar uma pessoa para ficar junto, de repente,
sim. Mas eu acho que vai ter que ser uma pessoa, que para morar comigo,
tem que ser uma pessoa que tem uma vida própria (...), porque eu gosto muito
do meu espaço, de escrever, de ler. E para isso você não pode estar o tempo
todo com uma pessoa falando do seu lado, querendo que você veja televisão
junto com ela, eu acho que o dá [risos]. É difícil, né? (Carla).
Tanto Isaura quanto Irene não acreditam que voltarão a morar com alguém, sobretudo,
com um novo cônjuge. As falas das entrevistadas também apresentaram menor valorização do
estar como possibilidade de manutenção do espaço próprio inviolável. Para Isaura, o estar
decorre de uma circunstância que independe de suas opções: a perda do marido. O estar só,
segundo a interpretação que proponho, quando não é apresentado como resultado de uma
escolha, de uma vontade do indivíduo, aproxima-se mais do sentimento de solidão e deste
como condição indesejável. Para Irene, por exemplo, quando perguntada sobre o que acha de
estar só, predomina a expressão “a gente se acostuma”, no lugar de afirmações que indiquem
opção, gosto ou satisfação. Irene é separada. Sua idade talvez a torne mais presa aos laços
pertinentes a instâncias coletivas, como a família, o que faz com que o estar o seja
valorizado por ela e por Isaura da mesma forma que o é para outras entrevistadas.
Ainda que seja menor a valorização do estar na fala de Irene, os aspectos positivos
desta condição são muito semelhantes aos destacados pelos demais depoimentos: “Gosto, é
bom, é bom ficar sozinha. [...] Porque a gente não tem hora para nada, a gente não tem aquela
preocupação. Porque, naquela época, tinha preocupação de levantar cedo, ver isso, ver aquilo;
agora qualquer hora que acordar tá bom” (Irene).
90
Já Isaura, quando perguntada acerca de como é estar só, não elenca as mesmas
características positivas: Tem dias que eu fico muito triste, tenho vontade até de chorar. Mas
aí eu me distraio com alguma coisa, fico olhando o meu quintal que eu arrumo para eu poder
me distrair com ele. [...] Gostar, ninguém gosta de morar sozinha. Sou obrigada mesmo
(Isaura).
A questão da idade, porém, não representa, pelo que pude avaliar, um aspecto decisivo
para a configuração do ser só como condição indesejável, manifesta em solidão. A violação
da situação de domínio total se caracteriza, fundamentalmente, pela definição do ser só como
circunstância independente da vontade dos indivíduos. Ao contrário do que poderíamos supor,
minhas entrevistadas mais jovens apresentam discursos que definem a situação de solidão
como estado de sofrimento, justamente por se configurar como situação na qual a pessoa se
viu inserida sem que o desejasse. Como é o caso de Sabrina, ao dizer: “Eu fui morar com as
minhas irmãs e minhas irmãs me deixaram aqui, não foi opção não, foi o que restou”. Sabrina,
como já mostrei em alguns trechos, apresenta um discurso muito pontuado pela narrativa do
ser só como solidão, como situação agônica que tende à depressão. A situação de solidão para
Sabrina também se manifesta como estado de difícil superação. Em seu discurso, Sabrina, ao
contrário da expectativa do senso comum em relação às pessoas mais jovens,
9
o vislumbra
a possibilidade de sair da situação de morar só. Não faz parte de seu projeto individual casar e
ter filhos.
10
A solidão, ao figurar no discurso de Sabrina como decorrência de sua falta de opção
em relação ao estar, deixa claro que a afirmação da vontade do indivíduo e a definição de
um espaço de donio total são os aspectos decisivos que diferenciam o estar só da solidão.
Seja entre as entrevistadas mais velhas, seja entre as mais novas, a perda de determinados
laços familiares associada à configuração de situações que limitam as possibilidades de
afirmação das vontades dos sujeitos representa a via pela qual se consolida a solidão.
Os vínculos sociais que as entrevistadas valorizamo postos contra o pano de fundo
do estar só e definem as relações que têm o indivíduo como foco. Tais relações se afastam
dos constrangimentos decorrentes de instâncias coletivas, como a família. Este aspecto
aproxima minha interpretação da análise de Velho (2000), na medida em que retoma a linha
tênue entre a afirmação do indivíduo e configurações agonísticas que constituem a solidão.
9
Compartilhava da ideia do senso comum de que a situação de morar só para os jovens era apenas uma etapa
transitória.
10
Dauster já afirmava que a maternidade “não é percebida como um valor exclusivo da identidade feminina; é
descartada, também, a ideia da mulher sacralizada pela maternidade” (1987: 210).
91
A seguir, darei ênfase ao princípio da psicologicidade, tal como caracterizado por
Salem (1989), e ao modo pelo qual se articula com o estar só como estilo de vida.
“Eu fui em busca dessa companhia dentro de mim
Salem (1989) caracteriza a psicologicidade como uma compulsão do indivíduo
moderno no sentido da busca de si, que o credencia para um “abrir-se” ou “revelar-se” aos
seus pares. Essa busca de si tem em seu prisma o princípio da mudança,
11
Carla diz, ao se referir aos momentos de solidão que teve na sua vida, o seguinte:
ou seja, abre o
caminho para um trabalho de “autodepuração” e “auto-aperfeiçoamento”. Diversos
depoimentos coletados na presente pesquisa apresentam a caracterização do estar só como
alternativa para o exercício desse trabalho de aperfeiçoamento pessoal em contraposição à
solidão e aos vínculos sociais que a acarretam.
Tive muitos [momentos de solio], que eu acho que estavam muito ligados
à questão do par, do par romântico, do homem. Então quando eu o tinha
isso eu sofri por ser sozinha. E aí com a espiritualidade eu acho que eu fui
em busca dessa companhia dentro de mim. Eu acho que eu ainda não
encontrei totalmente, porque eu ainda sofro, às vezes, nos meus
relacionamentos amorosos. [...] Então, por isso eu acho que eu o encontrei
plenamente, mas pelo menos no dia-a-dia eu acho que eu melhorei bastante
(Carla).
Esta busca pela espiritualidade está vinculada, ao longo da narrativa de Carla, ao
momento em que foi morar só. Como o processo de psicologicidade caracterizado por Salem
diz respeito à busca por tornar o self inteligível para si mesmo, considero que é possível uma
interpretação deste princípio que não se restrinja à busca por terapias psicanaticas e
psicológicas. Entendo, portanto, que o trabalho de voltar-se para dentro de si, mesmo que
através daquilo que minhas informantes caracterizam como espiritualidade”, compartilha das
características da psicologicidade definida por Salem; sobretudo, por seu vínculo com o
prinpio da mudança. Alguns informantes, em seus próprios discursos, efetuam a
aproximação da terapia psicanalítica com a busca pela “espiritualidade”.
Ao dizer que acha que melhorou bastante, Carla vincula o princípio da psicologicidade
ao da mudança. O estar, para Carla, disponibiliza as circunstâncias necessárias para que ela
11
Velho (1998) mostra como no universo dos nobres o discurso da mudança estava intrinsecamente associado à
busca pela psicanálise.
92
efetue o seu trabalho de aperfeiçoamento pessoal. O discurso de Carla coloca o estar como
uma ferramenta para superar, inclusive, o alcoolismo, condição que ela também associa à
solidão:
Quando eu bebia, estava muito em contato com outras pessoas; conversando,
falando. Mas hoje em dia eu vejo que era uma troca ilusória, porque, na
verdade, as pessoas com quem eu falava não me ouviam e eu tampouco ouvia
elas. Era mais a coisa de estar com alguém ali falando. Eu acho que hoje eu
me relaciono com muito menos pessoas do que eu me relacionava quando eu
bebia, mas a qualidade da relão é uma qualidade de troca realmente, de
partilhar realmente (Carla).
O estar proporciona para Carla as condições que a credenciam para aquilo que
caracteriza como relações nas quais realmente existe uma troca. Interpreto esta troca como o
compartilhamento de valores e gostos que dizem respeito à relação de igualdade que se
estabelece entre indivíduos particulares.
Simone é outra entrevistada que frisa com frequência o termo do autoaperfeiçoamento
como condição sine qua non para que se estabeleçam vínculos afetivos que respeitem o estar
e que sejam uma resposta aos males relacionados à solidão:
Eu já tô com 50 anos, já vivi meio século e eu acho que eu ainda tô muito
longe da sabedoria. Mas eu gostaria de me amar mais, antes de pensar em me
interessar por alguém. Daí eu o ter interesse em casamento,o sei se
algum dia eu volte a namorar, mas isso vai depender de muitos fatores
(Simone).
Estar só para Simone representa a oportunidade de se autoaperfeiçoar para, só então,
abrir a possibilidade de novos vínculos amorosos ou conjugais. Em sua entrevista esta questão
aparece repetidas vezes em forte articulação com a solidão. A superação da solidão e da
depressão figura como um movimento ligado ao aperfeiçoamento pessoal e à mudança.
Depois que eu me separei, a solidão se instalou em mim. A sorte é que eu
faço terapia, porque eu tenho uma tendência à depressão muito grande. E eu
faço tratamentodico para essa depressão, eu tomo fluxecetina que é um
antidepressivo. Depois que eu me separei eu engordei 20 quilos, que ainda
não consegui emagrecer, mas tô também fazendo tratamento com a
endocrinologista e esse ano eu estou querendo ver se eu supero esses meus
limites e consigo me sentir mais feliz. (...) Faço terapia principalmente por
causa da solio (Simone).
93
Apesar de ter passado por diversas situações que independiam de sua vontade como
a morte de seus pais que a fizeram se sentir só, Simone associa a solidão à necessidade de
autoaperfeiçoamento e de superação de seus limites. A mudança, requerida pelo trabalho de
buscar a si mesma, é associada a sair da depressão. Tal esforço representa um trabalho tão
profundo de autodepuração que Simone chega a vincular sua depressão a aspectos que
considera, inclusive, genéticos. Ao ser perguntada sobre como lida com a solio, Simone
apresenta a seguinte resposta:
A minha depressão tá sob controle, porque eu também estou na terapia, que,
juntamente com os remédios, fazem com que eu me equilibre. Agora eu sei
que eu o posso largar nem os medicamentos, nem a terapia, porque eu
desde pequena tinha uma tendência à depressão. Não sei se é getico, mas
eu sempre tive uma tendência à depressão e com o agravamento da solidão
ela veio a piorar. Daí eu precisar de auxílio dico e psicológico (Simone).
Para Simone, o estar só o aparece tão intensamente como uma opção deliberada
para a busca pelo autoaperfeiçoamento, como ocorre com Carla, mas figura como uma
condição a partir da qual estabelece seu trabalho de autodepuração. Estar só é a alternativa
para que ela desenvolva o trabalho que a credenciará ainda que remotamente para o
possível estabelecimento de novas relações amorosas e afetivas.
Marina também empreende essa busca de si e opta pela terapia como via pela qual
concluir tal busca. Ela abandonou, porém, a terapia, para testar se consegue lidar com as
questões relativas ao estar por si mesma. Este aspecto expressado por Marina diz respeito a
uma hipérbole da responsabilidade do sujeito sobre sua afirmação e busca de si.
O debate sobre as nuances entre o estar e a solio, empreendido ao longo deste
catulo, levou em conta elementos como: a construção de um espaço individual de domínio
total; o fato de a solidão estar relacionada à qualidade das relações sociais estabelecidas; o
estar como estilo vida ligado ao trabalho de aperfeiçoamento pessoal; e a solidão como
termo plural.
Estas dimensões entrelaçadas resultam em um quadro que, articulado com as análises
dos capítulos anteriores, fornece a apuração de alguns elementos para a compreensão das
vivências da solidão e as dimensões da sociabilidade de mulheres de camadas médias que
vivem sós no Rio de Janeiro.
94
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em vista da complexidade do tema analisado na presente dissertação, optei por um
trajeto específico para o desenvolvimento de minha argumentação. Esta estratégia consistiu
em definir, primeiro, duas dimensões distintas da experncia de morar só: uma que diz
respeito ao espaço da casa como aspecto correlato à construção do sujeito; outra que define as
relações para fora da casa como elementos decisivos para o sentido da experiência de morar
só e sua articulação com a solidão. Abordados estes aspectos, emergiu da análise dos
discursos de minhas entrevistadas uma distinção fundamental que é decisiva para a
compreensão da articulação entre a experiência de morar só e a solidão: ser só ou estar .
Este percurso ofereceu um conjunto de aspectos que permitiram algumas aproximações
interessantes para a compreensão da experiência de morar só entre as camadas médias da
metrópole do Rio de Janeiro no que tange os riscos da solidão e os benefícios de estar só.
No que diz respeito ao espaço da casa, tratado no primeiro capítulo, busquei explorar o
modo pelo qual a construção de um espaço de privacidade tem como característica basilar o
exercício da vontade do sujeito, independentemente de constrangimentos exteriores a si. Este
espaço de privacidade é um locus do poder do sujeito na medida em que pode fazer valer sua
vontade. Organizar seu tempo, cultivar hábitos, definir gostos na organização do espaço, são
algumas das vias pelas quais minhas entrevistadas expressaram o exercício do poder
pertinente ao espaço de privacidade. Em seus discursos, a violação desse espaço, com a
consequente perda da possibilidade do exercício da vontade e do poder pertinentes à
privacidade, representa uma falha no trabalho de construção da subjetividade e uma
aproximação dos riscos presentes nas ideias de isolamento e solio. Decidir quando, como e
por quem este espaço de poder pode ser frequentado é um aspecto importante da privacidade:
a possibilidade de escolha e o poder de decisão compõem o ponto nodal de significação da
experiência de morar só em sua articulação com a solidão e o isolamento.
Os cuidados com a casa, as relações com animais domésticos, o uso da internet e o
discurso psicologizante são alguns elementos que procurei avaliar em vista da compreensão
de fatores caros à constituição do espaço doméstico como domínio da privacidade.
Cuidar da casa, tomar conta das tarefas domésticas, cozinhar para si, não apresentaram
forte articulação com a manutenção desse espaço de privacidade. A decisão sobre o modo
pelo qual o espaço é organizado, o comando sobre a disposição das coisas e sobre a
frequência da casa foram aspectos mais valorizados que a execução das tarefas de cuidado
com a casa. Vale mais para minhas entrevistadas, de uma maneira geral, decidir sobre o que
95
o comer do que preparar a comida. Detendo o poder sobre a gestão desse espaço, parece ser
dispensável para a maioria de minhas entrevistadas buscar alguma exclusividade na execução
das tarefas.
Os animais domésticos participam, muitas vezes, do cotidiano do espaço da casa como
convidados ilustres. Eles são valorizados por suas donas como companhias que não oferecem
os inconvenientes e os riscos presentes na possibilidade de dividir a casa com outros
humanos. Sobre seus animais, minhas entrevistadas possuem controle total, o que contribui
para que eles sejam definidos muitas vezes como companhias ideais. Sua participação no
espaço da casa possibilita uma convivência que não ameaça a privacidade e não fere a
vontade. Ao falarem de seus animais de estimação, minhas entrevistadas mobilizam aspectos
que os contrapõem aos riscos de isolamento e solidão que estão sempre por perto na
experiência de morar só.
Ao contrário de minhas expectativas iniciais, a internet não figurou entre as mulheres
entrevistadas como um aspecto central na forma pela qual narraram suas experiências.
Nenhuma das entrevistadas alegou usar a internet como uma ferramenta de comunicação em
oposição aos riscos do isolamento e da solidão. Antes de concluir que esta não seria uma
dimensão significativa na constituição da experiência de morar só, considero que para que as
implicações da internet fossem exploradas de modo satisfatório seria necessário um foco mais
extenso em relação a este aspecto. A pesquisa poderia se aprofundar no fator do uso da
internet, mas isso teria representado uma perda do foco que busquei estabelecer aqui.
A cultura psicologizante constitui uma fonte da qual emana o próprio repertório de
significados que torna viável a compreensão do espaço de privacidade como elemento de
exercício e construção da subjetividade. O indivíduo, de acordo com essa cultura, representa o
lugar no qual se consolidam algumas relações sociais. Sem a adesão a uma cultura
psicologizante o espaço de privacidade perde suas potencialidades de espaço de construção do
sujeito.
Ao tratar das relações para fora da casa, busquei tratar das formas de sociabilidade
mais presentes nas narrativas e com mais forte articulação com a experiência de morar. Em
alguma medida, estas relações configuram elementos de sustentação da experiência de morar
só, completando significados e orientando tal experiência. As relações com quem não mora no
espaço de privacidade são evocadas, muitas vezes, como o elemento que faz com que a
experiência de morar seja eficaz no que diz respeito às possibilidades de construção da
subjetividade.
96
No modo pelo qual construí a argumentação do segundo catulo que trata das
relações para fora da casa uma gradação entre potenciais de escolha e de exercício da
vontade que vai daqueles vínculos nos quais há menor margem para a opção para os de maior
grau.
A família constitui o conjunto de relações no qual o exercício da vontade é menor. As
possibilidades de escolher quem come o círculo de relações dessa dimensão são limitadas.
A experiência de morar só, nesse sentido, define posturas em relação à família que ora se
opõem às relações familiares, ora buscam alguma forma de continuidade com os vínculos
familiares de origem. Esta oscilação define percepções que vão desde a família como esteio
até uma instância contraditória e coercitiva das quais são tributários alguns aspectos
indesejáveis na situação presente de morar só.
O que é fundamental apurar daquilo que surge das relações familiares narradas pelas
entrevistadas diz respeito ao fato de que a família não sai de cena como aspecto central das
relações de sociabilidade que se articulam com a experiência de morar só. As trajetórias
familiares de minhas entrevistadas possuem um forte peso no modo pelo qual cada uma delas
vive a situação de morar só. O espaço de privacidade domínio da vontade e do sujeito
possui, portanto, alguma articulação com instâncias sociais nas quais as possibilidades de
escolha são limitadas. O que está em jogo é o modo pela qual os sujeitos negociam os
constrangimentos decorrentes de relações fracas em escolha e as possibilidades de exercício
de suas vontades.
As relações amorosas possuem uma margem maior para a escolha e a decisão. Morar
só define uma situação sobre a qual é possível erguer e sustentar os critérios que definem
quem poderá frequentar o espaço de privacidade na condição de amante, namorado,
companheiro ou marido. A ordem estabelecida e controlada no espaço de privacidade não
deve ser violada e este é o primeiro critério evocado para pautar as possibilidades de
estabelecimento de relações amorosas. Estas relações oferecem, entretanto, um risco que
contribui para que sejam enrijecidos os critérios de seleção de parceiros afetivos: as relações
amorosas podem vir a ser relações familiares. Trocando em miúdos: morar só tem sentido
somente se é possível optar entre as possibilidades de permanecer morando só ou de vir a
morar com um parceiro. Eliminada esta possibilidade de escolha fundamental, os discursos
das entrevistadas se aproximam dos campos semânticos da solio e do isolamento.
As amizades possuem um lugar privilegiado nesse quadro. O exercício da escolha é
pleno nas relações de amizade. Sem os riscos de deslizarem para relações familiares, as
amizades podem ocupar o papel ideal da “família que escolhemos”. Os amigos podem
97
representar, dessa forma, todo o apoio e o esteio que são esperados em relação à família, mas
sem que os sujeitos tenham que pagar o preço alto da ausência de escolha no estabelecimento
das relões. Em nenhuma das falas de minhas entrevistadas as amizades foram citadas como
instâncias de constrangimento. Acerca das amizades é possível definir quando e como tudo
começa e termina.
Já os vizinhos não são produto de escolha. Não é possível escolher quem vai morar no
seu prédio ou na casa ao lado. A postura padrão adotada, neste sentido, em relação aos
vizinhos consiste na distância e na reserva características da postura blasé. Não sendo
possível escolher os vizinhos, eo havendo os vínculos afetivos presentes na família, a
atitude adotada pela maioria das entrevistadas é a de distância e de reserva. Embora apareça
no discurso uma tendência a um distanciamento, há alguns casos em que os vizinhos
tornaram-se amigos.
Os aspectos pertinentes à escolha e à vontade que figuram de modo articulado nos dois
primeiros capítulos foram ampliados e retomados no terceiro capítulo, na medida em que o
fator da vontade figura na distinção fundamental entre estar só e ser .
Morar só constitui uma situação na qual estão postas estas duas possibilidades: estar
ou ser. O que define esta distinção é justamente a questão da escolha. No campo do estar, se
situa algo que é intercambiável, uma situação que pode se alterar, e a chave para tal mudança
deve ser controlada pela vontade do sujeito. Já ser é condição, algo que constitui o sujeito de
modo íntimo e que não pode ser mudado, ou seja, não figura nos horizontes de suas escolhas.
Em termos semânticos estar agrega os significados que consolidam o espaço de
privacidade e seu poder inerente; a possibilidade de escolha carrega em seu bojo os
significados positivos e desejáveis presentes na situação de morar só. Ser se aproxima das
possibilidades agonísticas de morar só a solio e o isolamento são elementos que são
associados ao campo semântico da condição de ser . Ser só, em outras palavras, significa
ser solitário.
As implicações de estar só dizem respeito às possibilidades de evocação do dito
popular que diz “Antes só do que mal acompanhado”. É possível, diante dos critérios de
seleção que foram tratados também no segundo catulo, arbitrar no que diz respeito à
qualidade das relações estabelecidas. Isto porque os relatos das entrevistadas descrevem
situações nas quais se sentiam solitárias mesmo quando moravam com parentes ou
companheiros. Esta possibilidade de escolha típica do espaço de privacidade retorna nesse
terceiro capítulo como componente imprescindível da constituição de um espaço de domínio
total.
98
Esse espaço de controle total, em vista de sua articulação com uma cultura
psicologizante, deu margem para o aprofundamento das implicações de uma situação de
autoaperfeiçoamento e autodepuração do sujeito. A cultura psicologizante, em vista de todos
os requisitos avaliados para a constituição da experiência de morar como algo completo e
satisfatório, constitui uma valorização da possibilidade de promoção de um encontro do
sujeito consigo mesmo. O encontro com os outros, aspecto que, como vimos, é crucial para a
sustentação da situação de morar só, deve ser acompanhado de um encontro consigo. Esse
duplo encontro parece definir as condições de vivência do morar como experiência plena
de valores e significados.
O ponto crucial de articulação dessa experiência e de promoção desses encontros da
própria constituição social da experiência diz respeito ao exercício da vontade e da tensão
entre aberturas e fechamentos de possibilidades de escolhas por parte dos sujeitos. O trajeto
que persegui para a construção da argumentação aqui desenvolvida resultou na apuração
desse aspecto fundamental à compreensão antropológica de variadas experiências de morar
e suas articulações com o tema da solidão. Outras possibilidades de análise estão abertas e
mesmo as aqui exploradas não foram esgotadas. Se esta dissertação representou uma primeira
aproximação do tema e deixou abertas frentes para investigações posteriores, minhas
pretensões foram atingidas.
99
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Reportagens de jornais / revistas
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solidão”. In: O Globo Online, 14 de abril de 2008. Site:
http://oglobo.globo.com/rio/mat/2008/04/14/prefeitura_lanca_servico_de_atendimento
_telefonico_para_combater_solidao-426829992.asp.
Marcelo Garcia, “Solidão que nada”. In: Jornal O Dia, 15 de maio de 2008. Site:
http://www.marcelogarcia.com.br/artigo200.html.
Marcelo Garcia, “Só, mas por fio”. In: Veja Rio, 14 de maio de 2008. Site:
http://www.marcelogarcia.com.br/artigo192.html.
Revista Istoé. Ed. número 2085, de 28 de outubro de 2009.
103
ANEXO: ROTEIRO DE ENTREVISTA
Este roteiro teve como base as questões apresentadas por Morais (1990), no entanto,
ao longo das entrevistas novas questões surgiram e foram incorporadas à pesquisa.
As narrativas e trajetórias de cada entrevistada conduziram o modo como mencionei as
perguntas, por isso, em alguns casos, algumas foram abordadas e outras não.
ROTEIRO
Data e local
I Dados pessoais
1- Nome
2- Idade
3- Bairro
4- Tipo de residência (própria, alugada...)
5- Estado civil
6- Nível de Escolaridade
7- Profissão
II – Dados sobre a família
8- Com quem morou durante a infância e adolescência?
9- Descrever o tipo de relacionamento com os pais e irmãos.
10- Profissão e escolaridade dos pais.
11- Sentia-se sozinho(a) nesta época?
12- Como foi o ensino na infância e adolescência?
13- O que é família e casamento para você?
14- Qual era a expectativa da sua família em relação a você?
15- Após a saída de casa a sua percepção de família mudou? Em que sentido?
III Dados sobre a vida atual do entrevistado
104
16- Por que morar só?
17- Quanto tempo mora só?
18- Tem empregada doméstica?
19- Como é o relacionamento com os pais, ex-cônjuge e vizinhança?
20- Em que se diferencia o morar só do homem do morar só da mulher?
21- Considera que a sua situação de morar só é passageira ou definitiva?
22- Quem cuida das atividades domésticas?
23- Como é o seu cotidiano em casa?
24- Sente algum tipo de preconceito por morar só?
25- Com que freqüência vai a bares, restaurantes, cinemas...?
26- Já teve animal de estimação?
27- Utiliza a internet? Como?
28- Como é estar só em momentos de doença?
IV Sobre solidão
29- O que você acha que é solidão?
30- Conhece pessoas solitárias?
31- Teve momentos de solidão na sua vida?
32- Como você acha que as pessoas lidam com a solidão?
33- Como você lida com a solidão? Tem algum dia que é pior ficar? Tem alguma hora
do dia que é pior ficar ?
34- Como é estar só?
35- Como acha que são os relacionamentos na cidade grande?Acha que tem diferença
para uma cidade pequena?
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