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UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE
CENTRO DE HUMANIDADES
UNIDADE ACADÊMICA DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUAGEM E
ENSINO
DE POESIA, MUITAS VOZES, ALGUNS SINAIS:
VIVÊNCIAS E DESCOBERTAS NA APRECIAÇÃO E
LEITURA DE POEMAS POR SURDOS
Shirley Barbosa das Neves Porto
Campina Grande, junho de 2007
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Shirley Barbosa das Neves Porto
Dissertação de mestrado
apresentada à banca
Examinadora da Universidade
Federal de Campina Grande,
como requisito parcial para a
obtenção do título de mestre em
linguagem e ensino.
Orientadora
Maria Marta dos Santos Silva
Nóbrega
Campina Grande, junho de 2007
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FOLHA DE APROVAÇÃO
Maria Marta dos Santos Silva Nóbrega
(Orientadora / UAL - UFCG)
José Helder Pinheiro Alves
(Examinador / UAL - UFCG)
Ana Dorziat Barbosa de Melo
(Examinadora / Dep. de Habilitações pedagógicas - Centro de
Educação - UFPB)
Márcia Tavares Silva
(Suplente / UFRN / UAL - UFCG)
Antônio de Pádua Dias da Silva
(Suplente / CEDUC - UEPB)
Para meu pai, com muita saudade.
A poesia não pode nem deve ser
um luxo para alguns iniciados: é o
pão cotidiano de todos, uma
aventura simples e grandiosa do
espírito.
Murilo Mendes
Agradecimentos
Há alguns dias, ouvi um ditado que dizia: “barco que não sabe aonde vai
não tem vento que ajude”.
Essa fala me fez pensar que, quando começamos a amadurecer,
descobrimos que não vivemos sem os “ventos” e sem a “rota” que nos ajudam a
chegar ao porto que nos destinamos a alcançar.
Sou muito feliz, pois tenho muitos bons ventos e rotas em minha vida. E a
eles serei sempre, sempre, grata. A seguir cito-os nominalmente.
Primeiramente, meus pais: Lourdinha e Expedito (in memoriam).
Mãe, obrigada pelo amor, força e atenção. Te amo!
Pai, que saudade! Você é, para mim, exemplo de homem, por sua
honradez, honestidade e vontade de trabalhar.
Flávio, sua presença paterna, assumindo os meninos nos momentos que
precisei me ausentar como mãe, mesmo estando em casa, para a realização
deste trabalho, é, neste momento, a maior prova de seu amor.
Flavinho, Gustavo e Larissa (que está já chegando), pensar em vocês é a
renovação diária das forças para continuar navegando.
Anita e Bonifácio, meus sogros, quanta sorte eu tenho de tê-los em minha
vida.
Bianca e Bruno, sobrinhos tortos, a quem eu amo como se fossem meus. A
você, Bibi, um muito obrigada sem tamanho. Não sei o que seria de mim sem
seus passeios com Flavinho e as mamadeiras, trocas de fraldas e etc, etc, etc, de
Gustavo.
Eleny, além de mestra, você é uma amiga muito importante em minha vida,
pois me apresentou a Educação de Surdos como área de estudo e de trabalho,
não sendo apenas vento, mas também, rota em minha vida. Especialmente, quero
agradecer por ter aceitado ser co-orientadora neste trabalho, mesmo não sendo
possível a divulgação de seu nome como tal.
Delba, você e Eleny ajudaram a dar rota ao meu barquinho a catorze anos
atrás, por isso você será sempre presença em minha vida. Além do mais, foi com
você minhas primeiras experiências e reflexões sobre a literatura na vida dos
Surdos.
Marta, minha orientadora, quando crescer quero ser como você: tranqüila e
paciente, com firmeza e segurança; conhecedora, sem afetação. Espero que
possamos trabalhar em muitas produções juntas, agora que também posso dizer
que tenho a literatura como objeto de estudo.
Ana Leal, Socorro Leal (Côca), Claudia Soares, Niédja F. Lima, Francisca
Vasconcelos, Sônia Ataíde, Denise Coutinho e Ana Dorziat, minhas velhas, no
sentido de antigas, amigas e companheiras de trabalho. Para mim, a maior
presença de vocês está no quanto nos divertimos quando estamos juntas e como
em nossas conversas e discussões sobre educação eu aprendo com cada uma.
Quero que saibam: cada uma, a seu modo, é exemplo de vida para mim.
Denise Lino, Helder Pinheiro, Edílson Amorim, Maria Augusta Reinaldo,
Marta Nóbrega, meus professores do mestrado, de verdade, terei vocês sempre
como mestres.
Maria Auxiliadora Bezerra, que não foi minha professora no mestrado, mas
foi minha orientadora na especialização e é, para mim, exemplo de profissional.
Sem aquela primeira assoprada, eu não estaria neste ponto de minha formação.
Além do que, você sempre foi uma boa lufada de vento quando nos
encontrávamos perguntando “e o mestrado, já fez?”
Especialmente, gostaria de agradecer aos instrutores do Curso de
Formação de Instrutores de Libras que aceitaram colaborar com essa pesquisa.
Sabemos que nossa relação é muito mais que profissional, é de amizade, com os
conflitos e as benesses que esse nível de relacionamento permite. Sou muito feliz
por me sentir parte da comunidade surda de Campina Grande.
Por fim, meus colegas de mestrado. Não podemos dizer que a nossa turma
foi a mais unida de todos os tempos, mas, com certeza, eu posso dizer que
aprendi muito com cada um.
Preciso, aqui, fazer um agradecimento especial à professora Tânia Felipe
que em um Curso de Formação intensivo, portanto, cansativo, aceitou contribuir
com este trabalho verificando se a transcrição que fiz dos poemas sinalizados
estava adequada.
SUMÁRIO
Introdução.............................................................................................................
1
1 A busca pela recepção da poesia: o caminho percorrido........................
6
2
2.1
2.2
2.3
Da mordaça da tradição escapole um sinal poético.................................
O amordaçamento lingüístico e cultural.........................................................
O aprendizado clandestino.............................................................................
Enfim, um lampejo artístico e poético.............................................................
12
14
16
22
3
3.1
3.1.1
3.1.2
3.1.3
À procura da Fênix.......................................................................................
Um sinal exposto?..........................................................................................
A Bandeira brasileira em cerimônia...............................................................
A reconquista da identidade surda em “Natural”............................................
Do biografismo à multiplicidade de vozes, um retorno às origens.................
31
41
42
52
65
4
4.1
O desvendamento simbólico: o sabor da poesia......................................
De vida e de poesia: a leitura e a discussão dos textos escritos e em Libras
81
92
5. Considerações finais...................................................................................
110
6. Referências......................................................................................................
114
Anexos....................................................................................................................... 118
Resumo
Esta pesquisa teve como objetivo investigar a recepção de poemas escritos em
língua portuguesa e poemas sinalizados construídos por Surdos. Para tanto, adotamos
como metodologia de pesquisa a pesquisa-ação, a partir da qual construímos um
percurso metodológico, que contemplou uma entrevista semi-estruturada para
conhecimento do que os sujeitos pensavam acerca de si mesmos como Surdos, da
língua de sinais, da história dos Surdos, de arte, literatura e poesia; aulas sobre história
dos Surdos, história da arte, cultura Surda e literatura; além da leitura, apreciação e
discussão sobre poemas escritos e sinalizados. O referencial teórico utilizado está
dividido em dois eixos e nos permitiu reflexões sobre dois aspectos. O primeiro, referente
à análise de poemas feitos em língua de sinais, teve, basicamente, Sutton-Spence (2005)
como referência teórico-reflexiva. Paralelamente, utilizamos a teoria sobre a poética em
língua portuguesa como suporte comparativo. Esse aporte possibilitou-nos referendar
teoricamente que existe poesia em língua de sinais e esta, como tal, pode ser analisada,
mesmo que por meio de elementos específicos, uma vez que é construída na modalidade
visual-espacial. O segundo, diz respeito à análise das leituras feitas, pelos instrutores,
dos poemas “O bicho”, de Manuel Bandeira, “Bandeira brasileira em LSB”, “Língua falada
e língua sinalizada” e “Natural”, todos de autoria do poeta Surdo Nelson Pimenta. Para a
análise dos episódios de leitura, principalmente, nos pautamos na estética da recepção,
tendo em Jauss (1994) e Iser (1996) nossas principais fontes de diálogo. Os resultados
da pesquisa apontam para uma leitura dos Surdos independente da modalidade do texto
poético, ou seja, escrito ou sinalizado, pois a recepção vai depender das vivências tidas
com a linguagem poética, esteja ela na modalidade escrita ou sinalizada. Nossas
conclusões são de que é preciso que os Surdos tenham acesso ao gênero poesia, seja
ele sinalizado ou escrito como forma de se encontrar no mundo como pessoa humana e
de que é preciso fortalecer o viés teórico analítico da literatura através da realização de
mais pesquisas nessa área.
RÉSUMÉ
Ce travail se veut une recherche sur la réception de poèmes écrits en portugais et de
poèmes en langue des signes construits par des Sourds. À cette fin, nous avons adopté
comme méthodologie de recherche la recherche–action à partir de laquelle nons avons
construit un parcours méthodologique comprenant un entretien semi-dirigé pour savoir ce
que les interviewés, en tant que Sourds, pensaient d’eux-mêmes, de la langue des
signes, de l’histoire des Sourds, de l’art, de la littérature et de la poésie ; des cours sur
l’histoire des Sourds, l’histoire de l’art, la culture sourde et la littérature en plus de la
lecture et de l’appréciation de poèmes écrits et signés et de leur discussion. Le référentiel
théorique utilisé a été réparti en trois axes et nous a permis de réfléchir sur deux aspects.
En ce qui concerne le premier de ces aspects, qui se rapporte à l’analyse de poèmes
signés, nous nous sommes basée principalement sur Sutton-Spence (2005) pour la partie
réflexive et théorique. Parallèlement, nous avons utilisé la théorie sur la poétique en
langue portugaise comme support comparatif. Cet apport nous a permis de théoriser
l’existence d’une poésie en langue des signes et de dire que celle-ci, en tant que telle,
peut être analysée, même si c’est par des moyens spécifiques, à partir du moment où elle
construite dans la modalité spatio-visuelle. Le second concerne l’analyse des lectures
faites, par les instructeurs, des poèmes « O bicho » (L’Animal) de Manuel Bandeira,
« Bandeira brasileira em LSB » (Drapeau brésilien en Langue des Signes Brésilienne),
« Língua falada e língua sinalizada » (Langue parlée et langue signée) et « Natural»
(Naturel), tous trois du poète sourd Nelson Pimenta. Pour l’analyse des épisodes de
lecture, principalement, nous nous sommes guidée sur l’esthétique de la réception, avec
Jauss (1994) et Iser (1996) pour principales sources de dialogue. Les résultats de la
recherche nous orientent vers une lecture des Sourds indépendante de la modalité, écrite
ou signée, du texte poétique, car sa réception va dépendre des vécus de chacun avec le
langage poétique, que la modalité en soit écrite ou signée. En conclusion nous disons que
les Sourds doivent avoir accès au genre de la poésie, écrite ou signée, comme une façon
de s’éprouver comme personne humaine dans le monde et qu’il faut fortifier le biais
théorico-analytique de la littérature par davantage de recherches dans ce domaine.
Introdução
Página branca onde escrevo. Único
espaço de verdade que me resta.
Onde transcrevo o arroubo, a
esperança, e onde tarde ou cedo
deposito meu espanto e medo.
Affonso Romano de Sant’Anna
Do momento primeiro de inquietação, que se traduz em projeto de pesquisa, até
as considerações finais da dissertação, há um percurso por nós sentido como
inquietante, instigante, árduo e prazeroso, na possibilidade da descoberta de superação
de nós e de nossas dificuldades objetivas e subjetivas.
Assim, acreditamos ser relevante informar sobre o momento gerador de todo o
processo de busca pela compreensão de qual é a função da literatura e, mais
especificamente, da poesia na vida das pessoas Surdas
1
.
O contato com a educação dos surdos teve início em julho de 1993, quando
iniciamos a Habilitação para Educação dos Deficientes da Audiocomunicação, segunda
habilitação do Curso de Pedagogia da, então, Universidade Federal da Paraíba. Em
outubro do mesmo ano, recebemos o convite para auxiliar uma professora em sala de
aula, numa escola de surdos de Campina Grande.
A nossa primeira experiência com a literatura na vida das pessoas Surdas ocorreu
entre os anos de 1994 e 1995, quando participamos como aluna extensionista do projeto
“A história infantil na aprendizagem do surdo: do mundo fantástico à comunicação”,
orientado pela professora Delba Cruz. Na ocasião, os nossos objetivos eram proporcionar
às crianças Surdas, da escola à qual a Universidade Federal prestava assessoria, o
contato com os contos clássicos da literatura infantil, através da sinalização destes por
instrutores
2
Surdos.
Como bolsista extensionista, nosso trabalho consistiu em fazer a seleção das
histórias, juntamente com a equipe técnica e pedagógica da escola, colaborar com a
preparação do material utilizado em cada história, ler e discutir a melhor forma de
contação de história com os instrutores.
No ano de 1996, o projeto foi renovado com o objetivo geral redimensionado, pois,
além de propiciar o acesso das crianças Surdas à magia do mundo fantástico através da
literatura infantil, pretendia iniciar a videoteca da escola com contos sinalizados. Nesse
momento, nossa participação foi voluntária.
Em 2003, completando 10 anos de professora na área de Educação de Surdos,
apresentamos, na Semana de Ensino, Pesquisa e Extensão, do Centro de Humanidades,
da Universidade Federal de Campina Grande – UFCG, o trabalho “Jogos e literatura:
sinalizando a aprendizagem”, produzido coletivamente com as professoras da escola de
1
A utilização do “S” maiúsculo é uma opção para diferenciar a concepção que encara a surdez
como apenas biológica daquela que entende a construção do sujeito Surdo como sendo histórico-
cultural. É também uma forma de diferenciar o Surdo que tem consciência política, lingüística,
social, cultural e audiológica de sua condição, daquele surdo que se entende como diverso do
ouvinte apenas audiologicamente.
2
Modelo de terminologia copiada da norte-americana, que diferencia o professor ouvinte formado,
do Surdo sem formação, que entra em sala de aula para ensinar a língua de sinais.
Surdos onde atuamos, sobre uma experiência de trabalho com literatura infantil em sala
de aula.
O objetivo da experiência era, a partir da abordagem do texto literário, trabalhar a
compreensão e ampliação do vocabulário da língua portuguesa em salas de aula da
Educação Infantil e da 1ª série. Nossa proposta de trabalho, tentando atender às
necessidades e especificidades relativas ao nível de língua de sinais, de língua
portuguesa e grau de instrução dos alunos, buscou explorar os contos “A pequena
sereia”, “Chapeuzinho Vermelho” e “O patinho feio”, de forma contextualizada.
Para tanto, utilizamos estratégias como conto e reconto, complementação em
Língua Brasileira de Sinais (Libras) do seu final, reconhecimento do ambiente em que se
passa a história, exploração do texto não verbal, dramatização, jogos de seqüência lógica
do texto não verbal e do texto verbal, quebra-cabeça e pescaria, com o objetivo principal,
para o qual todas essas atividades foram pretexto, de trabalhar com a língua escrita.
Ao término da nossa apresentação, o coordenador do grupo de trabalho
cumprimentou-nos pela apresentação, mas fez as perguntas que geraram toda a
inquietação e necessidade de estudar sobre literatura e que, naquele momento, ficaram
sem resposta, quais foram: Por que não o estudo da literatura como um valor em si
mesma? Por que a literatura como pretexto para o ensino do português?
Talvez esse coordenador nem lembre que disse isso, mas a sua fala nos fez
pensar que nesses dez anos de trabalho com Surdos, nas várias discussões e estudos
sobre ensino de língua, bilingüismo, biculturalismo, identidade surda, etc, nunca
havíamos pensado que a literatura tivesse um papel para além do imediatismo
interpretativista, cuja função é contribuir com o aprendizado da leitura.
Começamos, também, a atentar para o fato de que a escola, apesar de adotar
uma perspectiva bilíngüe-bicultural de educação de Surdos, trabalhava apenas com um
modelo de literatura, a dos ouvintes, desconsiderando, completamente, as possibilidades
de criação, produção e expressão da literatura produzida por Surdos. Buscamos, assim,
informações teóricas sobre literatura e, especificamente, sobre poesia. Assim,
procuramos ler sobre quais aspectos constituíam a literatura surda e como se constituía a
poesia em língua de sinais.
Nosso trabalho se justifica, então, pela necessidade de produção sobre
conhecimento literário em Libras, divulgação da existência da produção poética feita em
Libras, apropriação do conhecimento sobre a literatura por instrutores Surdos. Desta
forma, pretendemos contribuir para tirar a literatura surda da invisibilidade do presente,
pois nos propomos a estudar, analisar e apreciar poemas de Nelson Pimenta
3
, pioneiro
neste tipo de produção e um dos poucos poetas Surdos no Brasil, junto com os
instrutores Surdos.
Consideramos o conhecimento literário em Libras como mais um saber que
referenda a mobilização dos surdos em prol de escolas regulares específicas para
Surdos, uma vez que esse é um ambiente legítimo de produção lingüístico-cultural dessa
comunidade. Além do mais, tal saber proporciona, às escolas bilíngües-biculturais
específicas para Surdos, mais um elemento a endossar a construção de um currículo que
valorize aspectos do conhecimento geral acumulado pela humanidade, contemplando
criações de Surdos e de ouvintes.
Sendo assim, esta dissertação está organizada em: introdução, quatro capítulos e
as conclusões finais.
O capítulo 1, A busca pela recepção da poesia: o caminho percorrido,
apresenta como o trabalho foi teórico-metodologicamente organizado, indicando quem
são os sujeitos da pesquisa, a partir de seus perfis de identificação pessoal, social e
educacional.
O capítulo 2, Da mordaça da tradição escapole um sinal poético, apresenta a
poesia em língua de sinais como uma construção já existente na história dos Surdos e
perdida pela opção oralista feita pela sociedade no século XIX. Discute sobre o que os
sujeitos da pesquisa (Surdos da comunidade surda de Campina Grande), atualmente,
pensam a respeito do que é arte, literatura e poesia e, nesse contexto, o que significa a
poesia em Libras para eles. As reflexões ocorrem a partir dos relatos de suas histórias de
vida e de considerações nossas sobre a poesia em língua de sinais e como ela, enquanto
construção artístico-cultural, é um bem para a comunidade surda.
O capítulo 3, À procura da Fênix, traz para a discussão a necessidade que as
comunidades de Surdos têm de resgatar a poesia em língua de sinais como uma
possibilidade de expressão artística, literária e cultural que não é construída pela
oralidade nem apreendida pela audição e que tem como elemento originário de sua
produção e expressão uma língua que é espacial-visual. Nesse mesmo capítulo, fazemos
3
Nelson Pimenta, nascido em 1963, segundo a contra capa da fita de vídeo ‘Literatura em LSB:
Poesia, fábula, histórias infantis’, “é o primeiro ator surdo a se profissionalizar no Brasil. Ele
estudou no NTD (National Theatre of the Deaf) de Nova Yorque, é pesquisador de Língua de
Sinais e já atuou como instrutor de LSB e teatro em diversas instituições de ensino, entre elas o
INES (Instituto Nacional de Educação de Surdos) e a FENEIS (Federação Nacional de Educação
e Integração de Surdos). Em 1999, criou, com Luiz Carlos Freitas, a LSB Vídeo, empresa
especializada em materiais educativos para surdos”.
uma apresentação de elementos formais que compõem um poema escrito e em língua de
sinais. Por fim, fazemos análise dos poemas de Nelson Pimenta.
No capítulo 4, O desvendamento simbólico: o sabor da poesia, tratamos das
experiências de apreciação e de leitura de poemas escritos e sinalizados feita pelos
instrutores, buscando entender, a partir do olhar teórico delimitado pela estética da
recepção, como ocorreu a recepção dos poemas para esses sujeitos.
Por último, traçamos nossas considerações finais. Nesse momento, procuramos
expor como nossas leituras nos levaram a afirmar que existe poesia em língua de sinais.
Essa exposição é feita a partir da articulação dos dados obtidos com a leitura dos textos
sobre poesia em língua de sinais, da experiência de leitura de poemas escritos e
sinalizados em sala de aula e de textos sobre estética da recepção, leitura e literatura.
Refletimos, também, um pouco acerca da estética da recepção como teoria metodológica
para abordagem do poema. Por fim, fazemos uma reflexão sobre a relevância do nosso
trabalho.
1. A busca pela recepção da poesia: o
caminho percorrido
É importante salientar que o novo
momento na compreensão da vida
social não é exclusivo de uma
pessoa. A experiência que possibilita
o discurso novo é social. (...) Uma
das tarefas fundamentais do
educador progressista é, sensível à
leitura e à releitura do grupo,
provocá-lo bem como estimular a
generalização da nova compreensão
do contexto.
Paulo Freire
Entendemos os passos iniciais dados no caminho para a compreensão da
realidade literária dos Surdos, depois da delimitação do objeto de estudo, como sendo a
definição dos objetivos e da metodologia adotada para a realização da pesquisa. Por
isso, nos propomos nesse capítulo a descrever o percurso adotado em nossa busca pela
poesia em Libras e pela sua apreciação por instrutores Surdos.
O primeiro passo consistiu na definição do objetivo geral da pesquisa que foi
investigar a recepção da poesia em Libras e em língua escrita, por instrutores Surdos, a
partir dos dados obtidos nos relatos de vida dos instrutores e nas análises de poemas
sinalizados e escritos.
A partir deste objetivo geral, três foram os objetivos específicos: 1) Identificar o
significado da poesia em Libras para a comunidade Surda de Campina Grande,
representada pelos instrutores Surdos investigados; 2) Analisar poemas de Nelson
Pimenta, poeta Surdo; 3) Analisar, com os instrutores, poemas de Nelson Pimenta e, a
partir dessa vivência, investigar como se deu a recepção dos textos poéticos para esses
sujeitos.
Optamos pela interlocução com onze instrutores Surdos, participantes do Curso
de Instrutores de Libras, do Programa “Fazendo e aprendendo: em busca de uma escola
de qualidade pedagógica e social”, promovido pela UFCG e apoiado pelo MEC/Sesu,
porque seis, dos onze, na época, atuavam em escolas específicas para Surdos de
Campina Grande e do cariri oriental paraibano. Além disso, os demais são alunos da
escola de Surdos de Campina Grande e participantes ativos da comunidade surda da
região. Desse modo, esse grupo se configura como importante, por entendermos que os
Surdos adultos, na escola, são imprescindíveis como modelo lingüístico e cultural, já que,
no Brasil, as crianças surdas pouco participam da comunidade surda fora do âmbito
escolar.
Acreditamos, também, que as práticas de ensino de literatura e o valor dado à
literatura surda, dentro da escola, aumentarão na mesma medida em que os Surdos
adultos, instrutores de Libras, como conhecedores do valor da literatura, passem a
trabalhá-la enquanto disciplina efetiva do currículo. Mas, necessário se faz,
primeiramente, que eles vivenciem e experimentem esses textos, sejam eles – os textos
– fruto das experiências de ouvintes ou de surdos.
Do grupo, composto por onze instrutores surdos, sete eram homens e quatro
eram mulheres. As idades variavam entre 17 e 38 anos. Este dado consistiu em um
elemento importante, pois configurava duas gerações de Surdos em Campina Grande.
Esses sujeitos participaram de diferentes instituições educacionais desde sua
infância. Em nossa cidade desde as décadas de setenta e de oitenta, três instituições
fazem parte da história clínica e educacional dos Surdos desta região, denominadas aqui
como Ia, Ib e Ic. Duas instituições, Ia e Ib, não se configuram como escola, mas como
espaço para reabilitação clínico-terapêutica dos seus clientes e o atendimento é feito a
sujeitos com deficiência de modo geral e não exclusivamente aos Surdos, apesar de, na
atualidade, os grupos estarem separados por turno. A instituição Ia, criada na década de
setenta, atende a deficientes com paralisia cerebral e síndromes em geral. A instituição
Ib, do mesmo período, atende a Surdos e pessoas com déficit cognitivo. Quanto à Ic,
esta foi, inicialmente, criada para ser campo de estágio para as alunas que faziam a
Habilitação para Educação dos Deficientes da Audiocomunicação, da Universidade
Federal de Campina Grande (na época Universidade Federal da Paraíba – UFPB), mas
se firmou, ao longo de 24 anos, como uma escola de Surdos pública, assumindo desde o
ano de 1995 a perspectiva bilíngüe-bicultural
4
de educação de Surdos.
A primeira geração, composta pelos Surdos mais velhos, é fruto do oralismo
hegemônico existente até a década de oitenta, do século XX, e freqüentava a instituição
Ia, para crianças e jovens com diferentes alterações (audição, visão, cognição,
psiquismo). Esses sujeitos tiveram os primeiros contatos com a Libras na segunda
infância, alguns apenas na entrada da adolescência, pois a realidade educacional até a
criação da Ic, escola específica para Surdos, era exclusivamente clínico-terapêutica e de
rejeição, negação e proibição da língua de sinais.
Os instrutores mais novos, para nós, a segunda geração, vivenciaram a liberdade
e usufruto pleno da Libras, pois a década de noventa significou uma realidade diferente
com relação às possibilidades de interações entre os Surdos e de uso da Libras. No
processo de abertura para a livre utilização da Libras, a Ic teve (e tem) um papel
fundamental, pois, apesar de no início de sua criação ser oralista, sempre teve uma
postura educacional de abertura para a comunicação, considerada como elemento
imprescindível para a aprendizagem. Na Ic, talvez pela responsabilidade na formação
pedagógica das alunas, a preocupação era contribuir, de algum modo, com o
desenvolvimento da aprendizagem dos alunos Surdos. Essas informações foram
construídas a partir de uma entrevista semi-estruturada realizada com os sujeitos da
pesquisa (anexo 1).
Essa diferença existente entre os dois grupos nas primeiras experiências
escolares com seus pares Surdos reflete apreensões diferentes sobre a percepção da
surdez e da língua de sinais.
4
O bilingüismo-bicultural é uma perspectiva teórica da área da educação de surdos que,
descendendo do bilingüismo, considera o surdo como um sujeito não participante apenas,de duas
comunidades lingüísticas, mas que, por ter uma língua diferente, que elabora a percepção e
apreensão do mundo pela via visual, constitui estes sujeitos como culturalmente diferentes.
Do mesmo modo que, por uma questão de ética, optamos pelo uso de códigos
para denominar as instituições citadas, decidimos utilizar nomes fictícios para os sujeitos
participantes da pesquisa, apesar de eles terem autorizado a utilização dos nomes
verdadeiros nesta dissertação. Como fomos nós que ministramos as aulas, ao invés de
professora ou uma outra denominação, neste estudo, assumimos nosso próprio nome.
(Shirley).
Esse grupo de instrutores já havia participado de uma primeira etapa do referido
Curso, realizada em 2004, com 160 horas de aulas, nas quais foram estudadas questões
gerais de lingüística e didática aplicadas ao ensino da Libras. No ano de 2005, foi
desenvolvida a segunda etapa, com 200 horas/aula, na qual foi priorizado, a partir de
julho, o estudo das questões históricas, culturais, artísticas e literárias da comunidade
surda, dentre estas, a poesia em Libras.
Pelo fato de o contexto teórico-educacional de pesquisas em literatura na área da
surdez ser, ainda, incipiente e por não querermos incorrer em práticas de ensino de
literatura preocupadas unicamente com a produção e a representação do texto poético,
propomo-nos, num primeiro momento, a tentar entender como se configurava o quadro
atual de reflexão dos Surdos participantes da pesquisa sobre arte, literatura e poesia,
para, num segundo momento, analisar a leitura que os instrutores fizeram dos poemas
sinalizados de Nelson Pimenta e discutir a recepção da poesia escrita e sinalizada para
esse grupo, utilizando os depoimentos dados como elemento chave do diálogo com a
teoria literária.
Para tanto, elegemos como opção metodológica a pesquisa-ação, pois
entendemos que a mobilização dos atores, a iniciativa pela autonomia, a valorização das
relações de grupo, entre outros aspectos, são elementos constitutivos do processo
ensino-aprendizagem.
Além do mais, cabe ressaltarmos que, por sermos uma das professoras do Curso
de formação de instrutores de Libras e responsável por ministrar estes conteúdos, salvo
história da arte, que foi ministrada por outro professor
5
, oriundo da Unidade Acadêmica
de Arte e Mídia da UFCG, nós constituíamos dois grupos lingüístico-culturais diferentes:
Surdos e ouvinte. Nesses grupos, a dependência do domínio da língua de sinais como
intermediadora do conhecimento foi parte integrante do processo investigativo, pois em
muitas discussões assumimos a regência da sala de aula e, nas aulas do outro professor,
dividimos a interpretação com uma professora da escola de Surdos de Campina Grande.
Portanto, a pesquisa exigia que considerássemos, continuamente, a necessidade de
5
As aulas sobre história da arte foram ministradas pelo professor Fernando Barbosa.
negociação dos modos de dizer e significar, em cada língua, os conhecimentos discutidos
em sala de aula.
A respeito da pesquisa-ação, Vasconcelos (2002, p. 136) defende que
Quando se quer associar a produção de conhecimento à atuação para
resolução de problemas e à mobilização de atores do campo em foco para o
tema, temos necessidade de metodologias mais apropriadas, que estimulem a
autonomia, a iniciativa, a participação e gestão dos implicados na situação, no
processo de pesquisa, e que valorizem também aspectos qualitativos, grupais,
técnicos, informacionais e comunicacionais da organização e do ambiente em
que está inserido. Enfatiza-se aqui a relação mais horizontalizada e
descentralizada na negociação, pactuação de objetivos e gestão do processo
investigativo, que pode inclusive incluir dispositivos de formação e capacitação
dos atores sociais para enfrentarem situações e desafios complexos na própria
pesquisa e nas organizações em geral.
Por fim, entendemos a pesquisa-ação como melhor opção metodológica para este
trabalho, pela necessidade da pesquisa de uma definição metodológica acerca de como
conduziríamos as aulas destinadas ao trabalho com o texto literário, pois precisávamos
considerar que o fazer pedagógico do professor é construído a partir do seu
conhecimento sobre o conteúdo a ser ministrado, mas também e, principalmente, por
uma concepção de ensino voltada para o respeito ao aluno.
Para tanto, utilizamos os métodos recepcional e criativo como instrumentos
auxiliares de nossa vivência em sala de aula. Para a escolha dos dois métodos, nos
pautamos em Aguiar e Bordini (1988, p. 41), ao dizerem que “a adoção de um método de
ensino para a literatura depende, sobretudo, do posicionamento do professor quanto ao
aluno que tem à frente”. Ainda de acordo com as referidas autoras:
[...] a tarefa de uma metodologia voltada para o ensino da literatura está em, a
partir dessa realidade cheia de contradições, pensar a obra e o leitor e, com
base nessa interação, propor meios de ação que coordenem esforços,
solidarizem a participação nestes e considerem o principal interessado no
processo: o aluno e suas necessidades enquanto leitor, numa sociedade em
transformação. (1988, p. 40):
A princípio, tínhamos pensado apenas na utilização do método recepcional. Esse
método direciona o trabalho do professor para a necessidade de entendimento sobre a
historicidade de leitura dos leitores agentes responsáveis pela construção de sentido do
texto. No entanto, ao realizarmos as entrevistas, nos deparamos com o fato de que
nossos informantes não tinham conhecimento sobre arte e história da arte, cultura e
literatura. Sentimos, assim, a necessidade de suprimento dessa carência para, então,
podermos analisar a recepção deles aos textos poéticos.
Desse modo, foi necessário considerar a necessidade de trabalhar com o
conhecimento sobre história, história dos surdos, história da arte, diferenças entre o texto
literário e o não literário, apreciação de poemas escritos e sinalizados, numa tentativa de
possibilitar as reflexões sobre arte e literatura e ampliar o conhecimento de mundo dos
instrutores.
Por esta razão, buscamos aplicar o método criativo que “[...] se inicia pela
consciência da falta, que exige uma decisão no sentido de supri-la” (AGUIAR e BORDINI,
1988, p. 67). Para esse momento, solicitamos a ajuda de um professor especialista em
arte para falar sobre a arte e a sua história e, enquanto professora do Curso,
posteriormente, discutirmos com eles sobre cultura, cultura surda e literatura.
O método de análise dos dados, fundamentado na Estética da Recepção e nos
estudos sobre metodologia do ensino de literatura, constituiu a base teórica do trabalho.
O tempo da construção dos dados foi de agosto a outubro de 2005, período no
qual estudamos sobre história, cultura, arte e literatura. Nos momentos que intitulamos
“roda temática de discussão”, lemos os seguintes poemas escritos por poetas
consagrados. Os poemas foram listados na seqüência de abordagem e apreciação: “Mar
azul”,de Ferreira Gullar, um poema concreto chamado “Cidade”, de Ana Aly, “O bicho”,
de Manuel Bandeira, “RIO: O IR”, de Arnaldo Antunes, dois poemas modernos, sem
título, de Millôr Fernandes e “Minha desgraça”, de Álvares de Azevedo (anexo 2) e três
poemas sinalizados por Nelson Pimenta: “Bandeira brasileira em LSB”, “Natural” e
“Língua sinalizada e língua falada” (transcritos e traduzidos no capítulo 3). Os critérios
para a escolha dos poemas foram de duas naturezas: 1) para os escritos, optamos por
propiciar diversidade de leitura, por meio da seleção de textos de autores representativos
de escolas literárias mais significativas para nós: romantismo e modernismo; e 2) para os
poemas em Libras, escolhemos os referidos textos por constarem em uma gravação de
distribuição nacional.
Apreciamos, discutimos e analisamos, com os instrutores, os referidos poemas,
registrando em VHS e no diário de campo suas colocações. Como a língua de sinais é
uma língua visual-espacial, utilizamos para a coleta dos dados, basicamente, a gravação
em vídeo. O registro escrito serviu como complemento às imagens.
A transcrição das fitas e análise das informações coletadas, a partir dos princípios
teóricos da estética da recepção, foram realizadas no decorrer do ano de 2006.
2. Da mordaça da tradição, escapole um
sinal poético
Here are my wings;
And there, sat the edge of nothing,
Wait the winds
To bear my weight.
Dorothy Miles,
Como qualquer atividade humana, as produções literárias, enquanto construções
individuais, apropriadas coletivamente, contribuem com a organização de nossa visão
sobre o mundo e estão alicerçadas em uma cultura que influencia a lógica da língua,
significando e dando sentido ao modo como desenvolvemos nossas relações com o
outro.
Participando da realidade coletiva de nossa sociedade, estão vários tipos de
sujeitos. Nesta heterogeneidade humana, estão os Surdos, que por causa da língua de
sinais, língua modalidade visual-espacial, apreendem e simbolizam o mundo,
principalmente, pela visão.
Segundo Sutton-Spence (2005), as línguas de sinais e as comunidades surdas,
como são conhecidas hoje, não existiam até o crescimento das cidades no século XVIII.
Essa mudança no cenário histórico-geográfico do período propiciou a abertura de escolas
e a criação de comunidades de Surdos, o que causou grande impacto nas suas relações
pessoais, sociais e educacionais.
Desde o princípio, apesar do caráter propedêutico do uso da sinalização como
elemento de comunicação e ensino, a língua sinalizada não se restringiu ao espaço
institucional e os Surdos que receberam instrução por meio da comunicação gestual
começaram a se destacar. Os registros históricos dão conta de que do século XVIII até a
década de oitenta do século XIX, na Europa e nos Estados Unidos, os surdos
freqüentavam clubes de surdos, participavam de atividades políticas e sociais e
produziam textos literários. Assim, o período compreendido entre os anos de 1760 a 1880
é considerado, pelos historiadores da área, como o “período de ouro” dos surdos.
(SKLIAR, 1997; SANCHES, 1990; SACKS, 1998; entre outros).
Em contrapartida, o modelo oral
6
de educação de surdos, que até o século XIX
dividia o espaço educacional com os educadores que acreditavam no manualismo
7
, foi
hegemonicamente disseminado, fortalecido pela visão de que o oralismo não deveria ser
apenas o método utilizado na educação/reabilitação dos surdos, mas que deveria ser
considerado uma filosofia subjacente a todas as relações desenvolvidas com estes
sujeitos.
Assim, o oralismo, buscando o amoldamento do Surdo à sociedade ouvinte, por
intermédio do aprendizado da língua oral e do modo de ser e existir do ouvinte, negou-lhe
6
De acordo com Sá (1999. p. 79), “a abordagem educacional oralista apóia-se num modelo clínico
de atendimento em que o são (ou ouvinte) é o padrão”. Nesta perspectiva educacional, os
conteúdos estudados estão subordinados ao desenvolvimento da fala oral e a prioridade está nas
atividades de treinamento da fala e da audição.
7
Corrente metodológica que se expandiu no século XVIII com as escolas para surdos e que
acreditava na sinalização como item importante para a educação de surdos, apesar de ainda não
considerar que os “gestos” utilizados pelos surdos se tratavam de uma língua.
a comunicação com seus pares e destruiu o sentimento e o senso de comunidade. Pela
falta de uma língua compartilhada, portanto, com sentido, negou-lhe, também, o
desenvolvimento pleno de seu potencial, “amordaçando-lhe”, pela amarra das mãos,
literalmente falando, a expressão cultural.
2.1. O amordaçamento lingüístico e cultural
O amordaçamento lingüístico e cultural é resultado de uma visão clínica sobre a
surdez que concebe os surdos como ouvintes defeituosos, dependentes do treinamento
oral-auditivo para participar do convívio social.
O Brasil, em face dessa visão, como ocorreu hegemonicamente no mundo inteiro,
teve suas comunidades surdas esfaceladas. Em decorrência disso, apenas na década de
noventa, do século passado, tiveram início os contatos mais intimistas dos Surdos com a
Língua Brasileira de Sinais – Libras – e as reflexões sobre as possibilidades imagéticas,
simbólicas e os limites expressivos das línguas de sinais.
Em Campina Grande, os acontecimentos se deram de modo semelhante. Só a
partir dos anos de 1990 foi possibilitado aos Surdos da cidade e regiões circunvizinhas,
que vinham para a escola Ic, conhecer e usar sua língua.
Necessário se faz ressaltar que temos consciência da não existência de uma
homogeneidade nacional de contato dos surdos com a Libras ou com suas possibilidades
de expressões artísticas, pois ainda são muitos os surdos que vivem isolados, sem língua
e sem comunidade.
Durante nossa pesquisa, realizamos entrevistas com os instrutores participantes
da pesquisa como forma de sabermos o que eles pensavam sobre a língua de sinais,
arte, literatura e poesia. Essas informações são fundamentais, pois constituem os
conhecimentos acerca dessas questões, elaborados por esses sujeitos ao longo de suas
vidas.
Os relatos de vida obtidos com os instrutores Surdos nos mostraram como sua
realidade em Campina Grande, nos anos setenta e oitenta, foi de amordaçamento
lingüístico da comunicação sinalizada e de apagamento dessas pessoas, enquanto
sujeitos que identitariamente precisam se constituir coletivamente. Para Perlin (1998. p.
54) “Os surdos são surdos em relação à experiência visual e longe da experiência
auditiva”. Desse modo, “O encontro surdo-surdo é essencial para a construção da
identidade surda”.
Assim, o eu-Surdo se estabelece pela compreensão de quem é o outro-ouvinte, a
partir da construção de sistemas de representações culturalmente construídos. Segundo
Woodward (2000, p.17), “A representação inclui as práticas de significação e os sistemas
simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como
sujeitos”. Isto significa que, além da diferença biológica, o ser-Surdo e o ser-ouvinte são
identidades permeadas por questões de língua, classe social, gênero, negritude, religião,
etc.
Para nós, ao falarmos sobre formação de identidade, nos preocupa a polarização,
ouvinte X Surdo. Não concordamos com conceitos maniqueístas do tipo: existe um
mundo dos ouvintes e um mundo dos Surdos. O mundo dos ouvintes é mau para os
Surdos, porque todos os ouvintes têm um olhar clínico e terapêutico sobre a surdez e
rejeitam a língua de sinais. Já no mundo dos Surdos, todos os Surdos são “bacanas”,
inteligentes e compreendem a complexidade do que é fazer parte de uma minoria
lingüística. Compreendemos que não há um mundo dos Surdos e um mundo dos
ouvintes, mas vários mundos com diferentes possibilidades de constituição dos sujeitos,
pois nem os sistemas simbólicos, nem as identidades são uniforme e universalmente
construídas.
Quanto aos sujeitos de nossa pesquisa, nas suas histórias de vida, apesar de eles
estarem juntos no mesmo espaço educacional, suas experiências infantis foram,
invariavelmente, de negação da língua de sinais. Por isso, ao serem questionados a
respeito de desde quando existem Surdos e com relação à existência da língua de sinais,
os depoimentos, em sua maioria, nos mostraram que não há uma identidade lingüística.
Pelo contrário, há entre esses Surdos mais velhos um distanciamento entre o que eles
pensam sobre si, a língua que usam e sobre a própria história, seja como indivíduos, seja
como coletividade, conforme podemos observar a seguir
8
:
Tinha os surdos, mas primeiro foi ouvinte que existiu, em segundo está
o nascimento dos Surdos. Adão e Eva são ouvintes, não acontecia uma
comunicação. Os Surdos surgiram depois de Cristo. (Daniel)
Não! Antigamente os Surdos viviam separados, isolados um do outro.
Não havia comunidades de Surdos só quando se juntaram foi que
surgiu a comunidade. Eles eram separados. Eles não se conheciam.
(Jorge)
Vocês estão falando da Grécia, Europa, mas primeiro tem o Egito.
Egito, Grécia, Europa, as civilizações começaram na Ásia. E eu acho
que desde a Ásia tinha Surdos. (Kleber)
8
Os depoimentos são uma tradução/interpretação da sinalização dos informantes. Por este
motivo, não seguimos nenhum sistema de transcrição de fala.
O ensino da língua de sinais começou primeiro com os ouvintes, que
estudaram, pesquisaram. Os Surdos não. Primeiro aconteceu com os
ouvintes que começaram a organizar a língua de sinais. (Jane)
Aqui no Brasil foi com o Pe Eugênio Oates, lembra?Tem um livro e
nesse livro fala que em primeiro lugar foi isso, que aqui não existia a
língua de sinais. Ele pesquisou e, a partir daí, começaram os ensinos,
baseando-se também nos Estados Unidos. (Jorge)
Ocorreu no desenvolvimento do homem. Depois, nos Estados Unidos,
os gestos se transformaram em língua de sinais, bonita. Os Surdos e os
ouvintes já existiam juntos, usando gestos, depois para a comunicação,
pela necessidade, os Surdos se organizaram como grupo. (Fábio)
Apenas o último informante relacionou a existência da língua de sinais à própria
existência dos Surdos, mas, ainda em sua fala, há grandes equívocos conceituais sobre
o desenvolvimento das línguas de sinais.
Não é de se estranhar que, em sua fala, Fábio considere que os Estados Unidos é
o lugar de desenvolvimento da língua de sinais, pois, das informações que chegaram
para eles, seja por via de conversas com professores ouvintes, seja com outros Surdos
que vêm à Campina Grande, por já ter visto na internet ou por “ouvir falar”, a Gallaudet
University (primeira universidade de Surdos no mundo), nos Estados Unidos, é o
referencial do desenvolvimento lingüístico, cultural e político dos Surdos.
Com relação à não identidade lingüística, precisamos, necessariamente, remeter
esse fato à história de vida desses sujeitos. No Brasil e, mais especificamente, em
Campina Grande, nas décadas de setenta e oitenta do século passado, a perspectiva
oralista se constituía como o único modelo educacional aplicado. Nesse mesmo período,
em vários países, a língua de sinais já era reconhecida como língua e os Surdos
começavam sua reorganização lingüística e de comunidade.
2.2. O aprendizado clandestino
A visão clínica sobre a surdez levava a uma constituição também clínica do
espaço educacional desses Surdos. Tivemos essa informação ao perguntarmos como se
formaram os primeiros contatos dos Surdos entre si e com a língua de sinais em
Campina Grande. Os relatos ilustram e confirmam nossas considerações:
Depois no Ia, primeiro estudamos na escola particular na casa de Cíntia
[Surda que fazia um trabalho em parte educacional, em parte
terapêutico reabilitacional]. Todo mundo calado. E Cíntia casou com
Leonel [também Surdo] e foi embora. E ficamos sem estudar. E depois
fomos para o Ia. Lá era misturado, os deficientes mentais com os
Surdos, quando cheguei não sabia que tinha Surdos na escola e
Andréia [surda que após o período do Ia foi afastada pela família do
contato com os outros Surdos e não faz parte da comunidade de
Campina Grande. Se relaciona apenas com ouvintes e tem
pouquíssimos sinais] veio conversar com mímica “qual é a sua idade?”
E eu não conseguia entender. Eu tinha muita vergonha. (Fábio)
Os Surdos é que eram discriminados, humilhados e todos os cuidados
do mundo com os deficientes mentais. Mas, no tempo que a gente era
preso, era muito pior. Os professores pareciam seguranças. Isso
acontecia porque eles olhavam para a gente, aparentemente tudo bom,
maduro, sadio e brigando com os outros. Então, prende o Surdo e libera
o deficiente mental. O que foi que eu aprendi com isso? A ficar calada,
sofrendo, sofrendo e quando viesse um doido na minha frente eu me
desviava, eu saia de perto nervosa, fugindo dos deficientes mentais.
Estávamos os Surdos juntos, conversando e quando vinha um
deficiente mental, dizendo “eu vou brigar com você, eu vou brigar com
você”, a gente parava a conversa e se espalhava. Antes, quando era
com os deficientes mentais eles [referindo-se aos funcionários e
professores da instituição Ia] davam remédio de doido aos Surdos. Os
deficientes mentais brigavam, puxavam os cabelos, eu chamava e eles
davam remédio de doido pra mim. Eu jogava fora o remédio e tomava
só a água. Eu ia bem tomar remédio de doido, depois eu aprendi a não
chamar. Diziam “Você fique quieta, fique quieta! Em vez de mandar eles
ficarem quietos”. E os deficientes mentais puxavam meu cabelo. Eu
ficava quieta, chorava quieta no meu canto, não dizia nada. Agora,
quando vinha um doido, eu desviava o caminho. Quando foi uma escola
só de Surdos, que paz! (Jane)
As primeiras experiências de sinalização desses sujeitos, na década de oitenta,
foram escondidas das vistas dos educadores da época. Aprendizado clandestino,
escondido de pais e professores, com pouco modelo social, baseado em verbetes
fotográficos do dicionário da língua de sinais, organizado pelo padre Eugênio Oates.
Esses são os primórdios lingüísticos da comunidade surda de Campina Grande. Não
havia tradição lingüística para os primeiros sinalizadores em Campina Grande. Este é um
fator extremamente relevante, quando em observações assistemáticas não percebemos,
consistentemente, a consciência da existência de gêneros literários nesta comunidade
como, por exemplo, os que são relatados por Wilcox e Wilcox (1997) e reconhecidos
como tal pelos Surdos nos Estados Unidos.
Os autores anteriormente citados colocam que para Frishberg (1988) há três
gêneros de literatura em ASL (American Sign Language): oratória, folclore e performance
artística. A oratória constitui-se de diferentes estilos, quais sejam: falas em cerimônias
religiosas, falas de jantar, discursos programáticos e cerimônia de graduação. Fazem
parte do folclore sinais de nome, piadas, enigmas, anedotas históricas e histórias ABC.
Por fim, a performance artística é constituída de produções poéticas e trabalhos de script
como peças teatrais.
A falta de consciência de possíveis produções literárias ou até mesmo a não
existência dessas produções pela comunidade, como é o caso dos enigmas, histórias
ABC, poemas e peças teatrais, nos levam a considerar que os contornos formacionais da
Libras na cidade se constituíram, basicamente, sob a perspectiva pragmática de uso da
língua, gerando entre os Surdos um conflito que talvez ainda não tenha sido superado
por todos os membros da comunidade: a língua de sinais tem função apenas
comunicativa e é usada por deficientes. Assim, como não ter vergonha dela? Podemos
fazer esta leitura pelo que é dito por eles a seguir:
Quando chegou em Campina Grande, Eva, jovem, bonita, queria
ensinar a gente a falar. Conversou com a diretora do Ia e organizou
para fazermos terapia de fala. Ela dizia: “olhe para a minha boca, olhe
para a minha boca”. Isso para a gente aprender a falar, oralizar. Mas, lá
fora, quando a gente estava junto, continuava com nossos gestos e,
quando Eva via, dizia “Você não pode, vocês têm que falar, vocês têm
que falar”. Antes ela não sabia da importância da língua de sinais, dos
gestos que a gente fazia. Então, na frente dela, a gente ficava tentando
falar, quando ela saia, a gente voltava a sinalizar. Não tinha como os
Surdos falarem. (Fábio)
Quando mudou para o Ib, só de Surdos, ai foi uma paz, porque a gente
sinalizou a vontade sem eles [professores] verem. (Jane)
É o que eu estou dizendo, quando os professores olhavam, a gente
ficava calado e, quando saiam de perto, a gente sinalizava. Toinho e
Amparo [casal de Surdos] vieram de Recife com uma sinalização
diferente da que a gente usava. Eu lembro que ele disse “O que vocês
estão fazendo é gesto”. Toinho disse “tem a língua de sinais”, mas a
gente não entendia, “tem o livro do padre Eugenio Oates que ensina a
língua de sinais” e, aos poucos, fomos aprendendo e copiando, mas a
gente não entendia muito o que eles dois diziam. E a gente "era duro"
[não tinha fluência lingüística] e a gente não sabia o que era “ser duro"
não. Eles sinalizavam bem. Depois se desenvolveu, a língua se
desenvolveu. (Fábio)
O livro do padre Eugenio Oates foi o primeiro livro que vimos com os
sinais. (Jorge)
Com o livro foi que os sinais foram disseminados. Os sinais, a gente
tentava entender, mas as palavras não, a gente não entendia o que
estava escrito. Eu precisava perguntar para minha irmã [ouvinte] para
saber os significados do que estava escrito “O que é isso? Que palavra
é essa?” Tudo foi a partir do livro. (Jane)
A língua de sinais poderia ser desconhecida desses surdos, mas a gesticulação,
não. Surdos juntos são sinônimo de sinalização, mesmo que elementar, mesmo sem o
modelo de uma estrutura de língua. A necessidade de expressão verbal
9
possibilita a
convencionalidade, pois elaborar uma possibilidade de comunicação faz parte do ser
humano e, de alguma forma, ele encontra solução para que isto aconteça, conforme nos
informa a fala abaixo:
Quando a gente estava brincando eu, Fábio, Jorge, Fernando, Ivson,
Andréia, por exemplo, de dominó, jogo da memória, a gente inventava
os sinais. Vermelho, era a mão passando na veia; amarelo, apontava
para o céu, que era o sol; branco, apontava para a blusa da farda...
Mas, sem sinal era muito difícil conversar, primeiro tinha que pensar no
gesto, depois combinar, para poder conversar. Com a língua de sinais
ficou tudo fácil. (Jane)
Desse modo, historicamente, a liberdade ou amordaçamento da expressão
lingüística e cultural do Surdo sempre dependeu da concepção vigente do que é ser
Surdo e de qual é o seu papel na sociedade. Na área dos estudos sobre surdez, há dois
momentos históricos, nos quais a confluência de condições possibilitou aos Surdos
desenvolvimento pessoal e social. Frutos de tal desenvolvimento, produções literárias
escritas e sinalizadas, realizadas por surdos, são relatadas (SANCHES, 1990; SKLIAR,
1997; SACKS, 1993; LIMA e DORZIAT 2004; entre outros).
O primeiro momento é o século XVIII, que, por influência dos princípios iluministas
e humanistas da Revolução Francesa, possibilitaram, a partir de uma nova constituição
econômica, política e social, a criação de escolas públicas para Surdos e, com isso, o
surgimento de comunidades lingüístico-culturais e o reconhecimento do sistema gestual
como instrumento de educação e como forma legítima de comunicação dos Surdos.
Todos esses fatores criaram um ambiente propício ao desenvolvimento de jogos
lingüísticos em língua de sinais, alimentando a criatividade de escritores e poetas-
escritores
10
Surdos.
O segundo momento é o atual, surgido a partir da década de sessenta do século
passado e influenciado por: movimentos sociais; pelo estudo lingüístico de W. Stokoe
sobre a Língua de Sinais Americana, que lhe conferiu status de língua; pelo início dos
movimentos políticos dos Surdos; pelas reflexões sobre o maciço fracasso escolar dos
surdos, após quase cem anos de educação hegemonicamente oralista; além de outras
mudanças mundiais nos âmbitos da economia, da política e da sociedade, que
9
Para Petter (2003) a linguagem verbal se constitui como a matéria do pensamento que,
tornando-se o veículo da comunicação social permite a vida em sociedade. Assim, não há
sociedade sem comunicação seja numa língua oral-auditiva ou visual-espacial.
10
Para evitar equívocos sobre o tipo de produção/expressão poética, optamos por especificar por
intermédio da nomenclatura “poetas-escritores”, quando falarmos dos poetas surdos que estão
utilizando a modalidade de expressão escrita e “poetas-sinalizadores”, quando sua produção for
sinalizada.
oportunizaram o resgate lingüístico-cultural das comunidades surdas e, dessa forma,
abriram espaços para a elaboração e reelaboração dos jogos com a linguagem, em
língua de sinais, nas comunidades surdas que conseguiram resistir à opressão da
sociedade ouvinte e preservaram, como herança, a língua e a cultura surda.
Nos anos sessenta, do século XX, primeiramente em alguns países da Europa e
nos Estados Unidos, foi iniciado um movimento de aproximação dos Surdos como
comunidade e com a língua de sinais como língua para a vida. Essa mobilização tem
possibilitado aos Surdos constituírem-se como tal, a partir de uma construção social,
psicolingüística e cultural que os desobriga de ter o ouvinte como parâmetro identitário.
Todos esses elementos constituem um momento social, político e educacional
ímpar na história dos Surdos. Essa conjuntura propiciou a educadores, pais, sociedade
em geral e, principalmente, aos próprios surdos, um repensar das concepções sobre a
surdez, a língua de sinais e seu papel no desenvolvimento do Surdo, além de gerar a
discussão sobre qual é o papel da escola para Surdos.
Em decorrência desse movimento, surge o bilingüismo, que chega ao Brasil a
partir da década de oitenta do século passado. Este se configura como uma corrente
teórica na área da educação de Surdos que: concebe a língua de sinais como a primeira
língua (L1) desses sujeitos; a língua oficial, em sua modalidade oral ou escrita, como
segunda língua (L2); e defende que a escola, como espaço de objetivos educacionais,
tem que se constituir de modo semelhante às escolas dos ouvintes, mas que, devido à
especificidade lingüística e cultural dos Surdos, deve ser específica para esses sujeitos.
Na década de noventa, o movimento bilíngüe de educação de Surdos, no Brasil,
se fortaleceu e muitas escolas abriram-se teórico-metodologicamente para a língua de
sinais e para as comunidades surdas, inclusive em Campina Grande, tornando-se os
primeiros locais de encontro socialmente aceitos para uso livre da língua de sinais.
Na e pela Libras, os Surdos investigados reelaboraram o seu conceito sobre a
língua de sinais e sobre si mesmos. Ao perguntarmos o que eles pensavam sobre si,
enquanto Surdos, sobre a língua de sinais e se já haviam tido vergonha dela, as
respostas foram unânimes no relato de que todos já haviam sentido vergonha da surdez
e da língua de sinais.
No entanto, por trás da vergonha lingüística, é possível ver que há primeiramente
a vergonha em ser surdo. As razões para isso são muitas: o não entendimento do que é
dito pela via oral-auditiva; a não existência de uma forma de comunicação visual que
facilitasse a compreensão do que lhes era dito; a imposição de ter que copiar o ouvinte
em suas atitudes e forma de comunicação oral-auditiva, de tê-lo como modelo de
perfeição; a negação de si mesmo como sujeito que se diferencia do ouvinte por sua
apreensão visual do mundo, entre várias outras questões objetivas e subjetivas
historicamente vivenciadas.
A avaliação dos instrutores acerca da surdez e da Libras nos mostra que é o
social que legitima e valoriza a língua. Assim, as dificuldades vividas pelos instrutores
quando eram crianças estão diretamente relacionadas à falta de língua. Nesse sentido, é
devido à língua de sinais, que atualmente é aceita e valorizada em diferentes lugares,
inclusive no escolar, que as crianças Surdas de hoje são consideradas como tão espertas
e inteligentes quanto qualquer criança ouvinte, conforme nos informaram os depoimentos
que seguem:
Na igreja, na catequese, eu lembro das meninas de um lado, os
meninos do outro, em semicírculo e tinha uma freira no centro. Era eu,
Fabiano, Fernando, Marcos, Julio [Fabiano e Fernando, este último
também Surdo, são irmãos, Mário e Julio, são seus primos ouvintes]. Eu
não entendia nada do que estava sendo dito e a freira ia perguntando
algo, perguntando e os meninos respondendo e eu fui ficando nervoso,
na medida em que ia se aproximando a minha vez, eu ficava cada vez
mais nervoso e pensava “vai chegar a minha vez”. Meu pensamento era
“eu quero ir embora, eu não quero ficar aqui não, eu vou dizer o que?
Não sei o que responder não”. E os meninos diziam calma, calma,
calma e eu já vermelho de vergonha e vendo que ia chegando a minha
vez, eu já ia me urinando. Nessas situações eu ficava extremamente
nervoso e os meninos diziam “calma, calma” e eu tinha muita vergonha
de ser surdo. E nesse dia fiz xixi nas calças com medo da resposta que
tinha que dar. Depois eu soube que ela estava perguntando o nome da
gente, mas eu não sabia o que estava sendo perguntado e os meninos
responderam por mim, e eu já me urinando e depois de novo lá vinha
ela de novo perguntando, perguntando a cada um e minha resposta era
sempre dada pelo outro. Eu estava muito nervoso porque não sabia o
que estava sendo perguntado. Nervoso e esperando a hora de chegar a
minha vez e pedindo para ir ao banheiro, pedindo para ir ao banheiro e
pedia para os meninos afastarem, para eles saírem do meio e eu dizia
“sai que eu quero passar, eu quero sair, quero sair” e me urinei. Para
sair de lá coloquei meu primo na minha frente e sai de ré. E depois, com
vergonha, me escondi em casa. Mamãe dizia “Vá, vá aprender”. E eu
dizia “Não, eu tenho vergonha, não quero mais ir não”. Fiz xixi nas
calças e todo mundo viu. O pessoal não sinalizava e eu não sabia o que
estava sendo dito. (Fábio)
Antes a gente fazia um pouquinho de gestos e tínhamos vergonha de
sinalizar, de ser surdo, de conversar com um surdo novo. Chegava um
Surdo adulto, a gente não se aproximava, ficava com vergonha de se
comunicar mesmo até ele sendo Surdo. Hoje em dia, não. Se chegar
um Surdo, as crianças se aproximam e vão logo perguntando “Ei! Qual
é o teu sinal? Você é Surdo?” E se metem a perguntar coisas e
conversar. A gente, não. A gente tinha vergonha de conversar até com
outro Surdo mesmo sendo Surdo, a gente tinha vergonha de se
comunicar. Já as crianças de hoje, quando encontram com qualquer
pessoa [Surdo ou ouvite], tome-lhe pergunta, pergunta, pergunta...
(Jane)
Hoje em dia os meninos não têm vergonha da língua de sinais. Porque
na sala de Shirley, na sala de Alana, é tudo igual, porque daqui pra
frente é outra história. A gente está falando da história de antes dos
surdos, do passado, da vergonha. Vergonha da surdez. Antes os surdos
não tinham língua de sinais, não sabiam falar direito e as pessoas
falavam e a gente não tinha coragem de fazer barulho e se tivesse a
coragem de fazer barulho, as pessoas não entendiam o que era. Assim,
a gente tentava falar, mas na tentativa de falar as pessoas não
entendiam nada e pensavam que a gente era doido. E ficava todo
mundo espantado e a gente criou essa vergonha. Hoje em dia não, para
os meninos já é outra história, para essa turma caçula que está
entrando, para as crianças novas que estão entrando na Ic. Agora
Vanessa, Willian os meninos todos... é igual ao ouvinte. Conversa,
tagarela e chega e já vai conversando e já vai puxando conversa, já é
diferente. (Fábio)
À medida que os estudos bilíngües-biculturais vão acontecendo, o bilingüismo,
cada vez mais, se constitui como concepção não mais restrita ao campo da educação,
mas que propõe uma ressignificação ideológica, portanto política, social, cultural e
educacional sobre a surdez. O que significa entender a relação do Surdo com a língua de
sinais como a possibilidade de construção simbólica, cognitiva e ideológica de mundo e
não apenas como instrumento institucionalizado e facilitador da comunicação. Como
língua humana ela tem com inúmeras possibilidades pragmáticas, semânticas e
imagéticas como todas as outras línguas têm, mas que, não necessariamente, são as
mesmas.
De acordo com Padden & Humphries (1988), essa nova possibilidade de
conhecimento científico da língua de sinais tem surpreendido os próprios Surdos, uma
vez que propicia uma nova consciência sobre sua língua, mas de certo modo, confirma o
que, no senso comum, a comunidade surda já sabia: que a língua de sinais é uma língua,
com todas as possibilidades de qualquer língua. Nas palavras dos autores:
Com as recentes investigações científicas um novo foco acerca das línguas de
sinais vem confirmar o que com algum sentido as pessoas Surdas já sabiam:
que as línguas de sinais são línguas humanas com rico potencial de
expressão.
11
(p. 73)
2.3. Enfim, um lampejo artístico e poético
11
No original, “This new focus has come about along with recent scientific investigations into
signed languages that have confirmed what in some sense Deaf people have known all along: that
signed languages are human languages with the potential for rich expression”.
Entendemos que a escola bilíngüe para surdos precisa se configurar, também,
como espaço bicultural, o que significa não só aceitar a existência de diferenças ou
especificidades culturais, mas trazê-las, entendê-las e utilizá-las como elemento
constitutivo do currículo.
Este entendimento tem-se fortalecido desde os anos noventa do século passado.
Assim, escolas para surdos não podem mais se configurar apenas como um espaço
lingüístico, com a dualidade de usar a língua de sinais, para a comunicação direta,
aprendida assistematicamente, e a língua portuguesa, para a comunicação indireta,
sistemática e incessantemente estudada, mas sem grandes resultados no cômputo geral
de uso da língua escrita.
Pensar e realizar uma nova realidade demanda que, nesses espaços
institucionais bilíngües-biculturais, os estudos sobre a história da humanidade insiram a
história dos Surdos; a geo-política traga a discussão de como os surdos são geo-
politicamente encarados pela sociedade; os estudos das línguas propiciem também
conhecimento sobre a língua de sinais, além da língua escrita; as artes e a literatura
tragam a história e as produções dos grandes nomes da arte, mas também a discussão
sobre a arte e a literatura surda.
Os Surdos juntos são sinônimo de língua de sinais e de construção histórica,
política e cultural, mas precisam aprender que, como humanos, sua exploração do
mundo está marcada por ideologias que influenciam a idéia sobre o óbvio e sobre a
"eterna novidade do mundo” (CHAUÍ, 1999, p. 316) que lhes é apresentada pela arte.
A arte não recria a realidade, mas, enquanto tal, tem sua própria realidade, sendo
a expressão da vontade, da técnica e da visão de mundo de seu criador. Assim, "O que
há de espantoso nas artes é que elas realizam o desvendamento do mundo recriando o
mundo noutra dimensão e de tal maneira que a realidade não está aquém e nem na
obra, mas é a própria obra de arte". (CHAUÍ, 1999, p. 316)
Sob essa perspectiva, o conhecimento sobre o papel do fazer artístico pode ser
fundamental para a ressignificação do mundo, a reelaboração de conceitos, o
desvendamento de ideologias, ou pela simples possibilidade de exploração de diversos
materiais, inclusive a linguagem - a produção do belo. Mas, esse conhecimento não é
intrínseco ao homem. Ele é construído pela experiência artística e mediado pela
linguagem.
Os sujeitos de nossa pesquisa nos mostraram que não há um olhar cultural
diferente sem a experimentação coletiva e sem o conhecimento conceitual que, em nossa
sociedade, é trazido, costumeiramente, pela educação, pela informação do meio social
ao qual pertencemos. Nesse aspecto, os surdos se tornam sujeitos extremamente
desinformados, pois são poucas as trocas comunicativas com ouvintes conhecedores
sobre arte que saibam língua de sinais. Desse modo, ao serem perguntados sobre o que
é arte e qual é o seu papel, as respostas foram:
Arte é pintura, escultura, recorte. Eu vejo como pinturas, esculturas que
copiam as coisas, pessoas para a gente ver de quem se tratavam. As
construções. Na época que os Surdos eram obrigados a oralizar, assim,
os ouvintes por ver os Surdos fazendo gestos pensaram em escrever
coisas, desenhar para que os Surdos saibam quem eram aquelas
pessoas, quando fossem ver escola que tinha sido criada, ter a foto da
pessoa para que os Surdos possam remeter e saber quem eram. E
entender cada período histórico. (Jane)
Por exemplo, se Claúdio faz especialização, mestrado, doutorado, se
ele é uma pessoa importante, como também no caso dos reis, tira-se a
foto coloca-se abaixo o nome dele, o ano, como é o caso de Tiradentes,
e depois que ele morrer as pessoas vão saber quem é ele, o que fez, o
sinal, a graduação. A arte é isso, as pessoas pesquisam a melhor forma
de representar pessoas fortes, importantes. (Kleber)
Posso desenhar Fábio se ele não fez nada? Não, não posso. Fábio não
fez nada de importante. A gente não fez nada. Se alguém faz alguma
coisa importante a arte pereniza essa pessoa. A gente num quadro, as
pessoas vão perguntar quem é essa pessoa? E a resposta vai ser "Ela
fez tal coisa importante para a escola", "Teve alguma idéia importante".
Assim, o que temos que fazer é pesquisar as pessoas importantes,
imprimir, fazer moldura para a gravura. Antes a representação era pela
pintura que mostrava que a pessoa era importante. (Jane)
Eu penso que as pessoas pobres não tinham trabalho. Trabalho era
difícil e essas pessoas faziam desenhos, descobriram a possibilidade de
fazer escultura e descobriram uma possibilidade de trabalho. Assim,
eles se ofereciam, dizendo que sabiam fazer a escultura e começaram a
receber dinheiro e isso se transformou em profissão. Não acho que eles
pensassem no futuro. Eles pensavam em vender. Mostrar o trabalho, o
que sentiam e, aí, a coisa foi evoluindo e foi crescendo. Hoje em dia é
que as pessoas vêem esses trabalhos, se sentem sensibilizadas e
pensam “como é que os gregos faziam antes as esculturas?”. Quem
está fazendo não pensa no futuro. Quem está fazendo não está
pensando em transmitir sentimento nenhum, está querendo trabalhar,
ser profissional para ganhar dinheiro. E foi assim que começou a arte.
(Fábio)
Foto, se você coloca numa moldura é arte. A foto, você dá um trato
nela, coloca num CD com uma capa bonita é arte. (Jane)
Por outro lado, entre suas falas foi possível vermos que há, por causa de
experiências empíricas, nuances de conceitos sobre arte bastante coerentes que
precisam apenas ser alargados, como nos mostra a fala abaixo:
O teto da Capela Cistina é para as pessoas olharem. Ele colocou lá o
que sentia sobre quem era Deus e quem era o homem para as pessoas
verem como é bonito e se emocionarem com o que estavam vendo. Nas
igrejas católicas na Itália, os tetos que têm anjos, têm Maria e as
pessoas vêem, se emocionam e lembram do passado, lembram como
era antes. Tentam resgatar a informação de como era no
passado.(Kleber)
Aproveitando o ensejo da discussão sobre arte, perguntamos se poesia era arte.
A resposta de Kleber, transcrita a seguir, nos levou a refletir muito sobre a necessidade
da comunidade surda de Campina Grande vivenciar e discutir sobre as possibilidades
artísticas da língua de sinais. Vejamos:
Porque [a poesia] emociona. Por causa das imagens que a mão cria. A
expressão do rosto que emociona e faz pensar que no futuro a gente
quer mudar de vida. Faz a gente lembrar das coisas, é bonito e
emociona. Nelson (poeta surdo vindo do Rio de Janeiro para dar um
mini-curso para os instrutores e uma palestra no Seminário sobre
Surdez), quando falava do branco, e das nuvens e da transformação
das cores, e da chuva que caia, emociona. Como nós vimos lá na FIEP.
Tem outro surdo de Natal que também sabe fazer poesia com as mãos.
É muito bonito e ele tem muitas poesias.(Kleber)
Todas as expressões culturais estão impregnadas das concepções de homem,
mundo e sociedade de seus autores. Com relação aos Surdos, não é diferente e,
particularmente para esta pesquisa, a poesia em língua de sinais dos Surdos poetas-
sinalizadores, culturalmente, se constitui como diferente da dos ouvintes.
De acordo com Sutton-Spence (2005), de um modo geral, não há evidências da
existência de poemas em língua de sinais antes de 1960. Por outro lado, registros
apresentados em Fischer e Lane (1993) nos informam que existiam poetas Surdos nos
séculos XVIII e XIX. Provavelmente, a não especificação de que esses poetas, além de
produções escritas tinham, também, poemas em língua de sinais, deva-se à
impossibilidade de registro do poema sinalizado naquele momento, o que levou, após
todo o período de negação da língua de sinais no oralismo, à perda cultural dessa
possibilidade de produção e expressão literária.
Atualmente, Ormsby (1995), citado por Sutton-Spence (2005, p.17), sugere que
“[...] a poesia em língua de sinais não tem sua raiz na comunidade surda” e que
construções do tipo “a tradição poética das línguas de sinais” ou “a poesia da
comunidade surda” levam a grandes equívocos conceituais, porque a hegemônica
opressão do oralismo não nos permite afirmar categoricamente que as atuais produções
poéticas constituem-se como uma herança Surda.
De acordo com o já citado autor e outros autores americanos (KLIMA e BELUGI,
1979; ROSE 1992; VALI, 1993), utilizados como referência por Sutton-Spence (2005),
apesar de a poesia em língua de sinais não ser uma tradição cultural da comunidade
surda, vários são os valores de sua produção: credibilidade e avanço da língua de sinais
estabelecidos pelos estudos feitos das poesias sinalizadas; diversão proporcionada pela
poesia, uma vez que os “humanos são naturalmente animais brincalhões e que brincam
com a linguagem pelo simples prazer que isto proporciona” (p.18); contribuição na
construção de uma identidade surda positiva, pois os poemas podem ter a surdez como
temas possíveis, mas seu foco está na diferença entre Surdos e ouvintes e não na
deficiência, entre outros aspectos explicitamente colocados quando a autora relaciona os
valores da poesia de Doroth Miles (1931 – 1993), considerada como a figura chave da
poesia em língua de sinais, tanto nos Estados Unidos, quanto na Inglaterra.
Ainda segundo Sutton-Spencer (2005), a importância da poesia de Doroth Miles
está no otimismo mostrado pela possibilidade de controle da comunidade surda de seu
próprio destino, na explicitação da necessidade de fortalecimento da identidade dos
Surdos, como uma forma de luta contra a opressão sofrida por eles, proveniente dos
ouvintes. Por fim, para a referida autora, os poemas de Doroth mostram indignação, mas
freqüentemente têm um tom brincalhão, contendo e mostrando a força psicológica, a
vontade de luta e a capacidade de revolta que os Surdos têm que ter no mundo dos
ouvintes.
Sobre a poesia ser ou não herança ou tradição da comunidade surda, cabe aqui
uma reflexão. Mesmo que as primeiras produções poéticas, surgidas na segunda metade
do século XX, não tenham tido sua motivação inicial na raiz da cultura surda, a partir do
momento em que a comunidade de Surdos as incorpora como elemento seu e passa
para a próxima geração e, assim, sucessivamente, a geração mais nova absorve essas
produções como de sua própria cultura, podendo já ser considerado como herança.
Todavia, o fazer poético depende da consciência de sua possibilidade. De modo
geral, no Brasil, não está presente como expressão cultural de nossas comunidades
surdas, nem ainda é muito investigado, enquanto possibilidade de expressão desses
grupos de Surdos. Os estudos analíticos voltados para a literatura surda que temos são
de poemas sinalizados na Língua de Sinais Americana (American Sign Language – ASL)
e na Língua de Sinais Britânica (British Sign Language – BSL). Apesar de terem surgido a
partir de um primeiro exercício de tradução dos poemas escritos do inglês, os poemas
produzidos realmente em ASL nada têm do inglês, estando sua base de produção na
tradição dos jogos de linguagem da comunidade surda americana, passados de geração
em geração pelos estudantes da Gallaudet.
Esse é um conhecimento que precisa ter sua produção incentivada para que os
Surdos, enquanto comunidade lingüística e cultural, apropriem-se de todas as
possibilidades de sua língua e a escola bilíngüe para surdos as utilize cada vez mais para
se constituir como um espaço bicultural.
Entendemos que Surdos e ouvintes, a partir da heterogeneidade do ser humano e
devido a diferenças lingüísticas, são sujeitos culturalmente diferentes.
De acordo com Wilcox e Wilcox (1998), é na intercessão de quatro elementos que
podemos configurar uma pessoa como culturalmente Surda. O primeiro elemento é o
audiológico - sem a perda auditiva não é possível uma visão de mundo diferente. O
segundo, é o lingüístico - um Surdo que não se utiliza da língua de sinais para
intermediar sua relação com o mundo não pode ser culturalmente Surdo. O terceiro, é o
social, ou seja, é preciso fazer parte da comunidade surda, conhecer e viver suas
questões e ter motivação para sua formação para ser culturalmente surdo. Por fim, o
quarto elemento é o político, pois a participação ativa em uma comunidade gera a
necessidade de debate e embate político, luta por direitos e reflexão sobre os deveres
individuais e coletivos deste grupo. A intercessão desses quatro elementos é motivadora
do que os autores chamam de Atitude Surda, e pode ser considerada como a mola
mestra das diferenças nas produções artísticas e literárias existentes entre surdos e
ouvintes.
Nesse contexto, o fortalecimento da poesia em Libras na escola para surdos se
faz importante, pois ela permite a diversidade do olhar sobre o mundo, o desvendamento
de ideologias mascaradas pelo modo como a realidade se apresenta, unindo o imaginado
e o vivido. A esse respeito, José Paulo Paes (1996 apud Alves, 2001, p. 60) apresenta o
que, para ele, é o objetivo fundamental da poesia:
[...] mostrar a perene novidade da vida e do mundo; atiçar o poder de
imaginação das pessoas, libertando-as da mesmice da rotina; fazê-las sentir
mais profundamente o significado dos seres e das coisas; estabelecer entre
estas correspondências e parentescos inusitados que apontem para uma
misteriosa unidade cósmica; ligar entre si o imaginado e o vivido, o sonho e a
realidade como partes igualmente importantes da nossa experiência de vida.
Em países como os Estados Unidos, Dinamarca, Noruega, Finlândia e outros da
União Européia, mais abertos para os movimentos Surdos, como a França, por exemplo,
há várias décadas, em uns, e desde sempre, em outros, mesmo que clandestinamente,
os surdos produzem e manifestam resistência, por meio de vários jogos lingüísticos,
piadas, contos, histórias, entre outros, uma vez que não há restrição lingüística para sua
produção. Estes jogos com a linguagem podem servir de elementos, da própria
linguagem, para a produção e expressão da poesia em língua de sinais.
Nesse sentido, a resistência a partir da expressão poética surge pela possibilidade
do auto-conhecimento, seja ele lingüístico, cultural, social, pois, segundo Bosi (2000, p.
227),
O trabalho poético é às vezes acusado de ignorar ou suspender a práxis. Na
verdade, é uma suspensão momentânea e, bem pesada as coisas, uma
suspensão aparente. Projetando na consciência do leitor imagens do mundo e
do homem muito mais vivas e reais do que as forjadas pelas ideologias, o
poema acende o desejo de uma outra existência, mais livre e mais bela. E
aproximando o sujeito do objeto, e o sujeito de si mesmo, o poema exerce a
alta função de suprir o intervalo que isola os seres. [...] A poesia traz, sob as
espécies da figura e do som, aquela realidade pela qual, ou contra a qual, vale
a pena lutar.
Os Surdos têm o direito de deixarem-se capturar pelo prazer de apreciar poemas
sinalizados e de usar o poder da poesia para reafirmarem sua diferença com relação aos
ouvintes. Assim, nos atrevemos a usar as palavras de Bosi para endossar o papel da
poesia em língua de sinais como possibilitadora de resistência, acrescentando duas
palavras ao que havia sido dito por ele “A poesia traz, sob as espécies da figura e do som
[da imagem e do sinal], aquela realidade pela qual, ou contra a qual, vale a pena lutar.”
Na atualidade, um dos pioneiros nesta luta é Nelson Pimenta, com produções
poéticas em Libras, disponíveis em VHS e intituladas Literatura em LSB: Língua de Sinais
Brasileira. A fita é composta de três momentos: quatro poemas, uma fábula e dois contos
clássicos.
No encarte que acompanha a fita, Nelson Pimenta (1998, p. 6) diz que não tinha
conhecimento da possibilidade de construção de poemas em língua de sinais até que, em
viagem aos Estados Unidos, viu um poema sinalizado. Sentindo-se extremamente
emocionado por essa descoberta, ele registra que seu pensamento foi: “Como isso é
possível? Como não pensei nisso antes?”.
Os poemas que ele viu sinalizados não tinham relação nenhuma com a língua
inglesa: “[...] havia um diferencial qualquer que a tornava sentimento puro”. Para Pimenta
(1998, p. 6), “[...] o diferencial estava na forma”. Ele ainda diz que há regras para a poesia
em língua de sinais: “Neste caso, a gramática e a métrica são específicas e conduzem o
poeta a uma harmonia de movimento tal, que vai diferenciar o gestual coloquial da língua
de sinais do da poesia”. Em língua de sinais, ainda coloca Pimenta (1998), o elemento
que vai auxiliar nessa produção e percepção da poesia é o classificador
12
.
12
De acordo com Quadros (2004. p. 93), os classificadores (CL) são morfemas que compõe o
léxico nativo da língua de sinais. “Os classificadores têm distintas propriedades morfológicas, são
formas complexas em que a configuração de mão, o movimento a locação da mão podem
especificar qualidades de um referente. Os classificadores são geralmente usados para especificar
o movimento e a posição de objetos e pessoas ou para descrever o tamanho e a forma dos
objetos”. Por exemplo na frase “Coloque os pratos na mesa”, em Libras o sintagma verbal
No entanto, não é apenas o classificador o responsável pelo efeito poético. Para
Sutton-Spence (2005), o modo de estruturação da linguagem usada é importantíssimo
para a mensagem que se quer passar, o que significa que a sinalização se organiza de
um modo diferente. Na poesia, os significados são maximizados através da utilização de
elementos como generalizações, ritmos, aperfeiçoamento da linguagem, neologismos,
metáforas, repetições de parâmetros formacionais dos sinais e vários outros elementos.
Para a poesia escrita, normalmente, o poema é reconhecido pelo modo como o
texto é organizado na página. Por outro lado, a poesia em língua de sinais é reconhecida
pela performance do texto, mostrando que o texto é poético. Para Sutton-Spence (2005),
é a performance, na poesia em língua de sinais, que é uma língua ágrafa
13
, que marca
para a audiência a sinalização realizada como um evento especial.
Por sua característica de não ter registro escrito, a língua de sinais, ao ser
poeticamente produzida, necessita da expressão de seu intérprete
14
. Isto realça o valor
de atuação e imprime importância a sua capacidade performática de captar a atenção do
público, aproximando-a de alguma forma da poesia oral, que, do mesmo modo é
diretamente dependente da performance utilizada para declamação do poema.
Pesquisador da poesia oral da Idade Média, Zumthor (1997) reflete sobre as
relações que estão em jogo no momento da execução do poema:
A performance é a ação complexa pela qual uma mensagem poética é
simultaneamente, aqui e agora, transmitida e percebida. Locutor, destinatário, e
circunstâncias (quer o texto, por outra via com a ajuda de meios lingüísticos, as
represente ou não) se encontram concretamente confrontados, indiscutíveis.
Na performance se redefinem os dois eixos da comunicação social: o que junta
o locutor ao autor; e aquele em que se unem a situação e a tradição. (p.33)
O valor literário do poema existe para além da empírica percepção poética
vislumbrada, em português, pela estrutura do texto em versos, ou em Libras, por uma
ação performática do poeta.
COLOCAR-PRATOS é realizado com as duas mãos palma a palma, dedos indicador e polegar
abertos e curvos e demais dedos fechados, especificando um objeto redondo, e movimento de
colocação de pratos na mesa. A frase é traduzida e transcrita da seguinte forma: MESA
k
objeto
redondo
COLOCAR
k.
Exemplo retirado de Felipe (2001).
13
Desde a década de noventa, do século passado, há, no Brasil, pesquisas sobre o sign writing,
denominado por pesquisadores que defendem o uso desse sistema como a escrita das línguas de
sinais. Lodi (2004), ao discutir sobre o sign writing, coloca duas questões para nós bastante
relevantes. A primeira é que, por não ser uma criação decorrente de uma necessidade, ele não se
constitui como um sistema ideológico de comunicação. Assim, sua produção não foi gestada pela
necessidade das comunidades surdas. A segunda é uma decorrência, pois esse tipo de escrita
está, basicamente, circunscrito no âmbito da academia, não havendo, ainda, circulação nacional
de obras escritas em sign writing. Para nós, relevante é o fato de que os poemas sinalizados feitos
por Surdos são fruto da experiência estética desses sujeitos nessa língua. Assim, optamos por
considerar, nesse momento e nesse trabalho, a língua de sinais como ágrafa.
14
Nesse contexto interprete é o executor do texto em língua de sinais, seja ele Surdo ou ouvinte.
Acerca dessa questão, Bosi (1996) afirma que a qualidade da obra poética está
na sua essência que, maximizada pela habilidade do poeta na utilização e emprego da
métrica e da organização do texto, constrói uma nova possibilidade de elocução, capaz
de abrir portas para um novo conhecimento. Nesse sentido, acreditamos que a produção
de Nelson Pimenta apresenta essa possibilidade, visto que, para Jauss (1994), há uma
natureza eminentemente libertadora na arte e na literatura, pois ambas têm a capacidade
de transgredir e comunicar, simultaneamente, através da experiência estética. Essa
experiência permite ao leitor, ao identificar-se com uma obra, seja por aproximação ou
estranhamento, questionar-se, refletir sobre seu entorno social, político, econômico,
ampliando, através de reconstrução psicológica, o que ele chama de horizonte de
expectativa.
3. À procura da Fênix
As imagens são ‘matéria
dinâmica’ derivada da nossa
participação ativa no mundo
(...)
Gaston Bachelard
O desenvolvimento de uma reflexão sobre a poesia em língua de sinais se
constituiu, para nós, como uma tarefa difícil, pelo fato de os estudos, no Brasil, sobre
poesia e linguagem literária, sobre a relação de pertinência com os meios, mecanismos e
instrumentos para sua produção, bem como acerca da função social da poesia apenas a
considerarem em sua materialização oral ou escrita. Talvez isso se deva ao
desconhecimento dos estudiosos brasileiros, por nós estudados, da existência de uma
possibilidade de construção do texto poético independente do escrito, sem sonoridade, e
tendo como sua única forma de expressão a declamação sinalizada.
Mas, seja de línguas orais alfabéticas com código escrito, seja de línguas
sinalizadas ágrafas, o poema como texto tem uma forma que pode ser analisada.
Em se tratando de análises dos poemas escritos, estas são, normalmente,
compostas pela organização topográfica do texto no papel, do tecido sonoro que compõe
o poema e que determina o ritmo e, consequentemente, constroem melodicamente o tom
do poema. (MOISÉS, 1974; MOISÉS, 1996; MICHELETTI, 2000; BOSI, 2001;
GOLDSTEIN, 2001)
Para Bosi (2000), a poesia resultante de um poema é fruto de escolhas
fonológico-semânticas que constroem sintagmas sintáticos. Por isso, as opções sobre
cada léxico, cada frase, cada verso são sempre um risco, um desafio, para o poeta, pois
cada um desses elementos estão indissoluvelmente ligados. São essas características
comuns que, de acordo com Goldstein
15
(2001), dão aos poemas uma unidade.
Como nosso trabalho aborda poemas que não foram feitos para serem ouvidos ou
lidos no papel, mas para serem apreciados e “lidos” pela visualização do texto sinalizado
ao vivo ou por meio de recursos de mídia visual, acreditamos ser relevante que,
comparativamente, delimitemos as similaridades e diferenças entre os poemas das
línguas orais-auditivas, com escrita alfabética, e os poemas produzidos pelas línguas de
sinais que são espaciais-visuais e ágrafas.
Devido às diferenças de modalidades entre as duas línguas, iniciaremos nosso
trabalho de comparação delimitando a diferença básica entre os dois processos de
análise, quais sejam, os instrumentos de produção e execução textual, que acabam por
compor uma construção textual diferente.
No caso das línguas orais, segundo Goldstein (2001), a construção de poemas é
feita partindo de uma tradição literária que marca a forma do poema, por exemplo, em
soneto ou em quadrinha. Nessa construção, o conjunto de versos se chama estrofes e,
15
Apesar de, para a área da literatura, estas informações serem elementares, para este trabalho
são relevantes, uma vez que dentre seus possíveis leitores estão pessoas que são de áreas
diferentes da literatura.
dependendo da opção estrutural feita pelo poeta, o poema pode ter refrão ou não. Este,
como grupo de versos que se repete ao longo do texto, serve como facilitador da
memorização.
Todas essas escolhas organizacionais dependem de opções pessoais do poeta
em fazer uso ou não da rima, de imagens mais translúcidas, translucentes ou opacas e
das escolas às quais o poeta está, textualmente, filiado, como, por exemplo, escola
arcádica, romântica, moderna, etc.
Devido ao fato de o texto poético ser plural na construção de seus significados,
para Goldstein (2001), essas opções de construção do poema são estruturais e não
qualitativas. Nesse sentido, todos os elementos se unem para a significação do texto
produzido como de qualidade ou não.
Comparativamente, quanto aos poemas sinalizados, primeiramente precisamos
partir da concepção de que as línguas de sinais, enquanto línguas, têm tantas
possibilidades de construção poética quanto qualquer língua oral, estando o diferencial
na modalidade de produção e realização desse texto.
Como o poema sinalizado não é impresso no papel e não tem a marcação rítmica
pelo som, o reconhecimento de sua forma acontece, segundo Sutton-Spence (2005),
devido a dois elementos: a postura do poeta ou do intérprete, que delimita esse momento
da declamação como tal e, a diferenciação pelo o público do gênero textual por meio do
reconhecimento do tipo de linguagem utilizada.
Em relação às similaridades entre o poema em língua de sinais e língua oral
escrita, elas existem nos níveis de análise desse gênero: lexical, sintático e semântico.
Nos poemas das línguas orais-auditivas, no nível lexical, a análise do léxico pode revelar
o tipo de linguagem escolhida, se coloquial ou culta, por exemplo. A organização sintática
ou nível sintático busca a compreensão do texto pela pontuação, construção de períodos
breves ou longos, interrogações, reticências, pelo paralelismo ou pelas inversões
sintáticas. No nível semântico, são abordadas as figuras de similaridade, como a
comparação, a metáfora, a sinestesia. Ainda nesse nível, podemos analisar,
semanticamente, no texto a força expressiva das figuras de contigüidade, ou seja, a
metonímia ou a sinédoque. Há também as figuras de oposição como a antítese e os
paralelos.
De acordo com Goldstein (2001), o ritmo enquanto possibilidade construtiva de
sentidos pode ser percebido pela marcação das sílabas poéticas que podem ser
alternadamente fortes e fracas. Ainda como parte da composição do tecido sonoro, que
imprime o ritmo ao poema, está a recorrência de aliterações, assonâncias e anáforas.
Uma vez que nosso trabalho aborda poemas que não são ouvidos nem lidos no
papel, mas foram feitos para que a atividade de apreciação e leitura aconteça através da
gravação de fitas VHS ou DVDs, acreditamos ser pertinente a explicitação de nosso
referencial teórico sobre poemas sinalizados.
Como já dissemos anteriormente, no nível lexical, nas línguas orais, por causa de
sua natureza seqüencial, a construção da rima pode acontecer pela utilização de
assonâncias, aliterações, anáforas e outras figuras sonoras que marcam o ritmo do
poema. No entanto, segundo Sutton-Spence (2005), devido à simultaneidade de
construção dos parâmetros formacionais dos sinais - configuração da mão (anexo 3),
locação ou ponto de articulação (anexo 4) e movimento -, esses recursos não se aplicam
às línguas de sinais.
De acordo com a referida autora, com relação ao nível lexical, a repetição é figura
chave para a poesia em língua de sinais, podendo ser utilizada tanto nesse nível, quanto
no sintático. É a repetição de um ou outro parâmetro formacional que cria o efeito
estético, promovendo a significação do poema. Assim, ela apresenta com relação a esse
aspecto - parâmetros formacionais dos sinais - três possibilidades de repetição. A
repetição da configuração da mão, do movimento e da locação.
A repetição da configuração da mão aberta cria imagens alegres, positivas,
otimistas. Já a recorrência da configuração da mão fechada cria imagens de conflito,
tristeza, tensão.
Quanto ao parâmetro movimento, sua repetição é resultado do caminho percorrido
pelo sinal para sua construção, seja pela movimentação dos dedos ou da configuração
das mãos. Para a já referida autora, na língua de sinais, o curso do movimento tem duas
funções. A primeira é como parâmetro formacional do sinal, ou seja, há sinais que em
sua construção fonológica têm movimento, como por exemplo, o sinal SOL que tem o
movimento de deslocamento do pulso de fora para dentro e de separação dos dedos
indicador e polegar
16
. A segunda função do movimento altera a formação básica do sinal,
criando diversidade de significado pela alteração da classe gramatical do sinal que pode,
por causa do movimento, por exemplo, deixar de ser substantivo para ser verbo
17
. Nessa
segunda função, o movimento exalta a possibilidade plural de significado dos sinais e dá
ritmo ao poema. Assim, nas línguas de sinais o ritmo do poema é construído pelo
movimento.
16
Apesar de essa ser uma informação elementar para as pessoas da área da surdez, pela
característica interdisciplinar do trabalho, possivelmente, outras pessoas que não são da área
poderão vir a lê-lo, sendo relevante proporcionar uma compreensão mínima sobre como acontece
o movimento do sinal no nível fonológico. A sinalização do sinal SOL pode ser vista no poema
“Bandeira Brasileira em LSB”.
17
Ver Quadros e Karnopp (2004, p. 96 – 101)
A repetição no parâmetro locação é responsável por criar imagens, ou seja,
espaço alto, sinais acima dos ombros e da cabeça, e espaço embaixo, abaixo da altura
da cintura, são responsáveis pela criação de imagens positivas e negativas,
respectivamente. Sinais construídos no espaço à frente do sinalizador, na altura do busto,
dão caráter de impessoalidade e sinais no corpo personalizam o sinal.
Uma outra possibilidade é a repetição do mesmo sinal. Como a língua de sinais é
espacial-visual, a repetição do sinal é um recurso utilizado também para a marcação do
ritmo do poema, podendo esse recurso ampliar a imagem visual que o poeta deseja
fortalecer.
Com relação à produção do ritmo nos poemas sinalizados, Sutton-Spence (2005)
estabelece uma diferença como sendo básica na construção do ritmo em poemas no
inglês e na língua de sinais. Para a autora, nos poemas das línguas orais é a idéia de
batida que constrói o conceito de ritmo e a tradição da relação ritmo e métrica. No caso
dos poemas sinalizados não há uma tradição de versificação métrica, o que não impede
que poetas busquem nas possibilidades da língua de sinais a marcação do ritmo.
Nesse sentido, segundo Sutton-Spence (2005, p. 44)
18
,
Ritmo em língua de sinais pode ser descrito em termos de mudanças que
ocorrem com os sinais ou na transição entre sinais (movimentos) e períodos
sem mudança (“pausas”). Clayton Valli (1993), descrevendo seus próprios
poemas, escreveu sobre as maneiras pelas quais o ritmo da poesia sinalizada
pode ser criado e focou sobre os movimentos ou mudanças que ocorrem com e
entre sinais. Dentro de uma idéia geral que ele denominou “stress”, escolheu
quatro categorias de movimentos e pausas que podem ser manipuladas para
criar o ritmo poético:
1. Ênfase da pausa (pausa longa, pausa súbita, pausa forte)
2. Ênfase do movimento (longo, curto, alternado, movimento repetido)
3.Tipo de movimento (trajetória alargada do movimento, movimento acelerado)
4. Duração do movimento (regular, lento, ou rápido)
Isto posto, precisamos considerar que é a partir da definição rítmica, da entoação
dada e do andamento das imagens que o tom do poema é marcado. A esse respeito,
Bosi coloca que todas as línguas têm um campo de entoação que possibilita a seus
falantes diversidade tonal para a produção de prosa ou verso. Com a língua de sinais,
18
Conferir com o original:
Rhythm in sign language poetry can be described in terms of the changes that occur within signs or
in the transition between signs ('movements') and periods of no change ('holds'). Clayton Valli
(1993), describing his own poems, wrote about the ways in which the rhythm of signed poetry may
be created, and focused upon the movements or changes that occur within and between signs.
Within a general idea that he termed 'stress', he singled out four categories of movements and
holds that can be manipulated to creat poetic rhythm:
1. Hold emphasis (long pause, subtle pause, strong pause)
2. Movement emphasis (long, short, alternating, repeated movement)
3. Movement size (enlarged movement path, accelerating movement)
4. Movement duration (regular, slow, or fast)
não é diferente, uma vez que, dependendo das opções de sinalização do poeta, “A
entoação desvela os movimentos da alma que estão trabalhando a frase à procura de
palavras. [...] Mas o tom é sempre o único verdadeiro para quem o experimenta em si
mesmo”. (BOSI, 2000, p, 114)
A repetição pode também ocorrer no nível sintático. A criação do efeito poético
comumente acontece através da repetição de estruturas gramaticais. De acordo com
Sutton-Spence (2005), através da repetição de seqüências gramaticais, acontece a
ampliação da expectativa acerca das possibilidades de sentido do poema.
Acerca da repetição, Bosi (2000) percebe dois movimentos importantes na
construção da imagem poética nos poemas produzidos nas línguas orais-auditivas, mas
que podemos considerar como similares para os poemas sinalizados. O primeiro está
relacionado à forma como “[...] a linguagem procura recuperar a sensação de
simultaneidade”. O segundo diz respeito à possibilidade de “[...] aceder à diferenciação-
para-frente do discurso”, uma vez que “Re-iterar, re-correr, re-tomar supõe também que
se está a caminho”. (p. 41)
Desse modo, seja em qual língua o poeta esteja produzindo, ao repetir um léxico,
uma estrutura sintática, uma imagem, ele estará sempre ampliando as possibilidades
estéticas de seu texto.
Nos poemas escritos, por tradição, normalmente os textos são reconhecidos por
seus versos estarem ordenados em estrofes. Com relação ao poema sinalizado, o hiato
que marca a separação de uma estrofe de outra pode ser reconhecido pela audiência,
em alguns, por meio da pausa, da mudança na postura, do ruído emitido, da alteração da
velocidade ou pela expressão facial. Em outros poemas, o reconhecimento das estrofes é
feito pela identificação da mudança de seus temas. Pouco comum nos poemas em língua
de sinais estudados por Sutton-Spence (2005) é a utilização de refrãos, mas pode
acontecer de a distinção das estrofes ser pela repetição de sinais ou frases que
introduzem um novo tema em uma nova estrofe.
Ainda quanto à forma dos poemas feitos em língua de sinais, um outro aspecto é
a simetria. Esse elemento acontece apenas nas línguas sinalizadas, pois está
relacionado à definição do corpo como eixo central da construção dos sinais feitos com a
mão direita ou esquerda, abaixo ou acima da cintura. Desse modo, na poesia, a
assimetria da conversa cotidiana é minimizada, criando uma percepção visual de balanço
e harmonia. Comparativamente com os poemas escritos, podemos relacionar ao espaço
topográfico do texto no papel.
Sutton-Spence (2005) coloca que vários são os tipos de simetria, mas ela
considera três os mais relevantes na poesia sinalizada: vertical, horizontal e “front-back”.
A simetria vertical é percebida a partir de uma linha imaginária no corpo do
sinalizador na linha da cintura, marcando verticalmente a movimentação da mão
esquerda e da mão direita, sem que haja o predomínio de uma ou outra mão. Assim,
mesmo quando há utilização de uma mão como predominante, a mão passiva
permanece no espaço.
A simetria horizontal é uma construção não muito comum e de realização pouco
natural. Tem a cintura como eixo de marcação para execução do sinal e visualização
espelhada deste “do mesmo modo que vemos algo refletido no lago” (SUTTON-SPENCE,
2005. p, 56). A linha da cintura delimita o que é topo, centro e fundo.
Por fim, a simetria “front-back”, também pouco comum, é marcada pelo corpo nas
opções feitas por sinais que são apresentados como estando de frente ou de costas.
Ainda para essa autora, por causa da cultura visual, há uma forte relação entre
simetria e perfeição, sendo a primeira prioridade para a construção de poemas.
Por fim, enquanto construção teórica dos níveis de análise do poema, temos o
nível semântico, também como elemento analisável nos poemas em língua de sinais.
Nesse nível, Sutton-Spence (2005) apresenta cinco elementos: os neologismos, a
ambigüidade, a metáfora, os sinônimos e a alusão.
A utilização dos neologismos ocorre quando o poeta quer ajustar um sinal ao
esquema do poema, assim, ele o modifica. Uma outra possibilidade também é a criação
de sinais novos. Seja pela modificação da natureza do sinal, ou seja, um sinal que deixa
de ser nome para ser verbo ou advérbio, ou pela criação de um sinal completamente
novo. Com o neologismo, o poeta quebra a previsibilidade, levando a audiência a
permanecer atenta ao curso do poema.
A ambigüidade também faz parte dos elementos colocados por Sutton-Spence
(2005) como constitutivos da poesia em língua de sinais, pois “[...] na poesia permite aos
poetas transmitir significados extras sem o uso de nenhuma palavra extra
19
” (p.87).
Assim, é o contexto do poema que vai possibilitar a interpretação do que está sendo visto
e o nível de ambigüidade dependerá de opções pessoais do poeta.
Parte da ambigüidade existente nos poemas é resultado das metáforas criadas,
que alteram a realidade concreta e criam uma abstrata. Na poesia, as metáforas são
usadas como forma de o poeta apresentar idéias que, talvez, sem a sua utilização de não
fossem possíveis de ser apresentadas. Além disso, a metáfora exige mais engajamento
imaginativo, enriquecendo o poema, pois permite uma variação das possibilidades
polissêmicas das palavras.
19
No original “[...] in poetry it allows poets to convey extra meaning without using any extra words”.
Sutton-Spence (2005) cita também, como elementos que contribuem com a
ambigüidade, os sinônimos e a alusão. Usualmente, os sinônimos são mais facilmente
identificados pela audiência, uma vez que exigem menos desta do que a metáfora. Já a
alusão é utilizada para fazer referência indireta a alguma outra coisa. Assim, os poetas,
ao fazerem alusões sobre outras palavras, ampliam a significação destas.
Uma outra questão acerca da construção dos poemas em língua de sinais está
relacionada à recorrência temática. Todo poema é resultado das experiências vividas
pelo poeta, sua cultura e as impressões acerca do mundo por ela orientada. Isto faz com
que, dependendo das comunidades em que o poeta vive, existam temas mais ou menos
recorrentes. De acordo com Sutton-Spence (2005), a poesia, em língua de sinais, tem,
como maior contribuição para o desenvolvimento das comunidades surdas, o retrato da
experiência surda. Assim, os poemas compostos a partir da perspectiva do poeta Surdo
estão explicitamente subordinados à apresentação da pessoa surda, à celebração da
língua de sinais e do mundo visual e às relações entre Surdos e ouvintes. Outros temas
mais gerais também são recorrentes, quais sejam: o amor, a natureza, a vida e a morte.
Além da recorrência da temática relativa às questões do ser Surdo, há uma
diferença dos poemas produzidos por poetas das línguas com escrita. Esta diferença
reside no fato de que a poesia em língua de sinais depende, para sua expressão, da
performance, que precisa ser diferenciada da autoria.
Para Sutton-Spence (2005), o que diferencia a poesia oral (produzida por
comunidades de línguas ágrafas) da poesia escrita é a idéia da autoria, pois nas
comunidades orais nem sempre estão explicitadas as diferenças entre o que é dito pelo
autor e o que é composição da comunidade. Muito comumente, nessas comunidades, por
falta de um instrumento de registro da autoria, a obra passa rapidamente a ser
considerada como de domínio público.
Atualmente a autoria é resguardada graças ao desenvolvimento da tecnologia,
que permite a gravação das imagens do poeta, não apenas como executor, mas também
e, principalmente, como autor. A diferenciação entre o autor e o executor é apresentada
por Sutton-Spence como uma aprendizagem social e cultural acerca de como ocorre o
relacionamento entre o “Eu do poema”, o “Eu do poeta” e o “Eu do executor”. Nas
palavras da autora “[...] este é um acordo da herança não escrita das línguas
sinalizadas
20
” (SUTTON-SPENCE, 2005, p. 133).
Podemos relacionar o “Eu do Poema” ao eu-lírico, que não necessariamente
representa ou conta a história de vida do poeta. É um eu que tem sua existência iniciada
e finda no poema. O “eu do poeta” pode ser considerado como o eu-biográfico, que é o
20
No inglês: [...] and this is in keeping with the oral or non-literate heritage of sign languages.
autor do poema. Por fim, tem-se o “Eu do executor”, que é o leitor-declamador, que se
apropria do “Eu do poema” ou do eu-lírico e o repassa como se fosse seu, produzindo um
certo efeito catártico.
Parte essencial da existência da poesia sinalizada é a performance e o modo
como os intérpretes do poema criam efeito sobre a audiência. Os poetas Surdos
sinalizadores têm como principal foco de seu trabalho o surdo como audiência. Nesse
sentido, o envolvimento da audiência é imprescindível. Portanto, é muito importante que
ela tenha sua atenção totalmente capturada, pois é impossível o envolvimento sem a
compreensão da linguagem do poema.
No entanto, apesar de todos esses elementos que constituem a forma do poema
enquanto texto, é preciso, ao crítico, entender que a análise do texto poético não deveria
estar restrita ao seu formato ou ao desempenho do seu intérprete, pois esses recursos
não garantem a existência de poesia, visto que “[...] a característica específica da poesia
reside antes na visão própria que oferece da realidade que no fato de ser expressa em
versos, sua análise há que implicar, sobretudo e em última instância, essa concepção de
mundo” (MOISÉS, 1974, p. 40).
Depois do conhecimento de como o poema é composto enquanto texto, sendo
passível de análise por sua forma, acreditamos ser relevante discutir um pouco sobre a
função social e humanizadora da poesia.
O surdo, como homem “é um ser de palavras” (PAZ, 1982, p.36), apesar de usar
uma modalidade de língua diferente - a língua de sinais - tendo a mesma constituição da
espécie, fazendo-se e recriando-se a partir da linguagem.
A linguagem verbal, enquanto matéria do pensamento e elemento que se constitui
social e individualmente, materializa-se na língua. Esta, por sua vez, tem sua
materialidade na fala – oral ou sinalizada – que é, para os surdos, do mesmo modo que
para os ouvintes, “a substância ou alimento do poema” (PAZ, 1982, p.42).
Concordamos com Paz (1982, p. 45), para quem “[...] a força criadora da palavra
reside, porém, no homem que a pronuncia”. Por isso, “O poema se nutre da linguagem
viva de uma comunidade, de seus mitos, seus sonhos e suas paixões, isto é, tendências
mais secretas e poderosas” (PAZ, 1982, p. 49).
Fazer uso da poesia é, pois, explorar as possibilidades da língua ao falar sobre as
coisas da realidade humana. Essa atividade faz com que o poeta exercite seu poder
criador sobre sua língua. Assim, o poeta recria o mundo pelo falar e fala de modo
diferente do que é dito pela sociedade.
Nesse sentido, conforme Elliot (1991), o poeta tem duas tarefas. A primeira,
indireta, é para com seu povo, que se cumpre em funções óbvias da poesia como: o
prazer, a comunicação de novas experiências e a possibilidade de ampliação da
consciência e apuramento da sensibilidade. A segunda, direta, é seu trabalho com a sua
língua, no qual ele cumpre o importante papel de preservá-la, distendê-la e aperfeiçoá-la.
Assim, Nelson Pimenta, possivelmente, tenha, para os surdos, essa dupla função
com uma tarefa a mais: a (re)criação de um fazer poético em língua de sinais. Para nós,
o prefixo “re” tem incorporado em si essa possibilidade literária, que na história dos
surdos existiu, mas que foi perdida devido à opressão lingüística por eles sofrida.
Essa necessidade de (re)criação se torna forte, porque é preciso localizar, nas
“cinzas” da língua de sinais deixadas pelo Oralismo, as possibilidades de essa língua ser
respeitada também como objeto de estudo e análise literária. Para estudiosos da área da
surdez, como Góes (1996), Skliar (1997b), Goldfeld (1997), Sacks (1998), Silva (2002),
Fernandes (2003), Quadros e Karnopp (2004), entre outros, as línguas de sinais
cumprem, para os Surdos, a mesma função que as línguas orais cumprem para os
ouvintes. Semelhantemente às línguas orais para os ouvintes, contribui para o
desenvolvimento do sujeito, possibilita reflexividade, agrupa ocorrências, categoriza e se
constitui como um produto histórico, que nomeia, qualifica, representa, mimetiza e
humaniza (CÂNDIDO, 1995).
Ao refletirmos acerca da língua de sinais, sua trajetória histórica de existência;
rejeição; negação; descoberta de suas possibilidades e seu papel na vida dos Surdos, de
pronto nos recordamos de Fênix, o mito, pois, de acordo com o Dicionário de Símbolos,
Chevalier e Gheerbrant (1998, p, 422), “a fênix evoca o fogo criador e destruidor, no qual
o mundo tem a sua origem e ao qual deverá o seu fim; ela é como que um substituto de
Xiva e de Orfeu”. Percebemos nessa simbologia uma relação possível com a realidade
objetiva e subjetiva dos Surdos em sua relação com a língua de sinais, uma vez que a
Fênix, segundo o que relataram Heródoto ou Plutarco, é dotada de uma extraordinária
longevidade e tem o poder, depois de se consumir em uma fogueira, de renascer de suas
cinzas. Os aspectos do simbolismo aparecem, então, com clareza: ressurreição e
imortalidade, reaparecimento cíclico.
Nosso diálogo com o mito objetiva que reflitamos sobre a força da língua de sinais
enquanto elemento constituído e constitutivo dos Surdos.
A língua de sinais e a língua oral têm possibilidades semelhantes de construção
simbólica e imagética, que são partes essenciais do trabalho de exploração e exercício
da língua feito pela poesia. Nesse sentido, a fala
21
prosaica do Surdo difere da produção
21
Considerando fala como expressão material da língua, adotamos também para a sinalização em
língua de sinais a terminologia fala.
poética em ritmo, exploração estrutural de frases, motivação conversacional da
sinalização de um poema em língua de sinais.
Nessa perspectiva, apesar de não termos conhecimento de que Proença Filho
(1986) trabalha com a língua de sinais, suas considerações sobre a literatura como a arte
e a inter-relação entre língua e cultura, podem valer para o texto poético sinalizado, pois
também na língua de sinais:
A realidade imediata não se diz em plenitude. A língua, enquanto concretização
da linguagem da comunidade, se restringe à simples representação de fatos ou
situações particulares, observados ou inventados [...]. Se a linguagem verbal
caracteriza a desrealização da realidade ao transformá-la em signos-símbolos,
a mímese poética leva ainda mais longe esse desrealizar-se, quando a partir
do fingimento do particular, atinge espaços da universalidade.
[...]
O fenômeno literário se efetiva na inter-relação autor/ texto/ leitor. [...] A
linguagem que a caracteriza é necessariamente ambígua e em permanente
atualização e abertura, vinculadas estreitamente ao caráter conotativo que a
singulariza. (p.29)
Em linhas gerais, esses argumentos são caracterizadores da essência da poesia,
que se concretiza na construção do poema, seja ele fruto de uma língua oral, com
possibilidade de registro escrito, ou de uma língua de sinais, que pede sinalização e
registro com recurso de mídia visual.
3.1 Um pensamento exposto?
Apesar deste trabalho não se tratar, especificamente, de um estudo de análise
literária de poemas, mas de buscar entender a recepção da poesia por instrutores
Surdos, consideramos a necessidade de analisar os poemas sinalizados, compostos por
Nelson Pimenta. Assim, os poemas comentados neste capítulo serão: “Bandeira
brasileira em LSB”, “Natural” e “Língua sinalizada e língua falada”.
Este trabalho constituiu-se dos seguintes passos: leituras dos poemas que estão
gravados em fita VHS; levantamento do léxico para compreensão de seu significado em
Libras e possibilidades de construção de significados; tradução dos poemas; transcrição
destes, através do sistema de notação em palavras (anexo 5), análise do ritmo, do
conteúdo e das imagens apresentadas nos poemas.
Quanto ao sistema de notação em palavras, este é um recurso utilizado para
representar na escrita, por meio das palavras de uma língua oral-auditiva, os sinais ou
textos produzidos em língua de sinais. As regras para a transcrição, por nós adotadas
para este trabalho, serão as usadas por Felipe (2001).
Temos a consciência de que, na tradução, o texto poético em Libras perde suas
possibilidades expressivas, imagéticas, rítmicas. Concordamos com Lima (1995, p. 426)
quando diz que “Traduzir uma imagem na terminologia concreta, reduzindo-a apenas a
um dos seus planos de referência, é pior que a mutilar: é exterminá-la, é anulá-la como
instrumento de conhecimento”. Sabemos que interferimos duplamente nas imagens
produzidas nos poemas de Nelson, uma vez que a questão de análise da poesia em
língua de sinais não se restringe apenas à tradução do texto, mas também à mudança de
registro de um texto que foi criado para existir e ser apreciado viso-espacialmente e é
colocado, “enclausurado”, no papel. Dessa forma, a função da transcrição e da tradução
é exclusivamente de visualização do texto em português.
A análise não se constituirá do texto em português, mas do poema declamado em
VHS. A transcrição no sistema de notação em palavras será utilizada como apoio, pois,
apesar de não conseguir recuperar as imagens que são produzidas, possibilita-nos uma
visualização por parte de nossos leitores das partes do texto que estamos discutindo.
Para efeito de compreensão da abordagem analítica, utilizamos o termo “versos”,
ao nos referirmos às pequenas unidades de significação do texto.
3.1.1. A Bandeira brasileira em cerimônia
O poema “Bandeira Brasileira em LSB
22
” é uma apologia ao nosso maior símbolo
nacional. Nele, Nelson Pimenta descreve cada uma das formas e fala sobre o significado
de cada cor da bandeira.
Vejamos a transcrição do poema:
1 ÁRVORE+ (sinalização de árvore da direita para o centro em frente ao sinalizador,
esse movimento marca plural)
2 ÁRVORE+ (sinalização de árvores da esquerda para o centro em frente ao
sinalizador, esse movimento marca plural)
3
POR-TODOS-OS-LADOS (mãos abertas, palmas para baixo, saindo do centro em
frente ao sinalizador para as laterais. Mão direita para a direita e mão esquerda
para a esquerda. O olhar acompanha todo o movimento)
4 COR+ (repetição do sinal, marca o plural)
5 VERDE+ (repetição do sinal, marca o plural)
22
Sigla de Língua de Sinais Brasileira
6
RETÂNGULO COBERTO-DE-VERDE (desenho do retângulo da bandeira com as
mãos abertas e os dedos em movimento. No preenchimento do espaço dentro do
retângulo é aproveitada a mesma configuração de mão, mas o movimento das duas
mãos é de zigue-zague)
7
articulação labial “so,so
SOL, SOL (sinal usando não apenas o indicador e o polegar, mas a mão inteira
se abre)
8 QUENTE, QUENTE (sinal mais lento do que o normal)
9
exp. facial de calor
CALOR (ênfase dada, também, pela utilização das duas mãos)
10
COR, COR, COR, COR, COR, AMARELO, AMARELO (da direita para a esquerda a
cabeça do sinalizador vai girando à medida que ele realiza o sinal)
11
LOSANGO (sinal feito normalmente com a configuração de mão em D) COBERTO-
POR-ESSE-AMARELO (preenchimento das laterais do losango – o espaço no
centro não é “colorido” - com as mãos abertas e os dedos em movimento)
12
bochechas infladas de ar
GLOBO
coisa-redondak
(me)
ÁGUA+ AZUL+
K
GOTEJAR
continuamente
(md)
13
GIRA
ênfase
(movimentos circulares com o indicador em direção ao “centro da
bandeira” em frente ao sinalizador dão a idéia de ênfase ao contínuo processo de
rotação do GLOBO)
14 FAIXA O-R-D-E-M -E- P-R-O-G-R-E-S-S-O
15 DESENROLAR-MAPA-DO-BRASIL (sinalização mais à esquerda)
16
AO-SUL RIO-GRANDE-DO-SUL PEGAR. MODELAR ESTRELA (sinalização que
sai da lateral esquerda – mapa – e termina em frente ao sinalizador)
17
COLAR-NO-GLOBO (ponto de articulação abaixo da faixa. Configuração de mão
em pinça)
18 SANTA-CATARINA MODELAR ESTRELA COLAR-NO-GLOBO
19 PARANÁ. MODELAR-ESTRELA. COLAR-NO-GLOBO
20 RIO PEGAR
21 SÃO-PAULO PEGAR
22 MINAS-GERAIS PEGAR
23 ESPÍRITO-SANTO PEGAR
24 AMAZONAS PEGAR
PEGAR
k
PEGAR
k’
PEGAR
k’’
PEGAR
k’’
PEGAR
k’’’
PEGAR
k’’’’
PEGAR
k’’’’’
PEGAR
k’’’’’’
25
MODELAR
k
MODELAR MODELAR MODELAR ESTRELA
j’
ESTRELA
j’’
ESTRELA
j’’’
ESTRELA
j’’’’
COLOCAR-DISTRIBUIR-POR-TODA-A-BANDEIRA. (a partir do sinal
do estado do Amazonas o sinal PEGAR percorre todo o “mapa”do Brasil. O sinal
MODELAR sai do “mapa”e percorre toda a frente do sinalizador. O sinal ESTRELA
é feito várias vezes, percorrendo toda a “bandeira”, terminando no centro em frente
ao sinalizador. Por fim, o sinal COLOCAR-DISTRIBUIR-POR-TODA-A-BANDEIRA
tem a configuração de mão com os dedos abertos e curvos e parte de cima para
baixo, do centro para as laterais, percorrendo todo o círculo azul)
26
SENADO FEDERAL CÂMARA-DOS-DEPUTADOS. MODELAR BRASÍLIA,
BRASÍLIA, BRASÍLIA (sinalização da esquerda para a direita)
27 ESTRELA (sinalização mais lenta do que as realizadas anteriormente)
28 COLOCAR
k
(ponto de articulação acima da “faixa – Ordem e Progresso”)
29
exp. facial de ternura
GOSTAR
30 ASTEAR-BANDEIRA
31 BANDEIRA-TREMULAR
32
BRASIL (md)
GOSTAR (me) (o sinal BRASIL é realizado com a mão direita, enquanto a mão
esquerda está posta sobre o peito direito)
33 B-R-A-S-I-L (sinalização iniciada no final do sinal BRASIL)
Em português, uma leitura possível:
Bandeira brasileira em LSB
O retângulo verde, na Bandeira, representa o verde das matas.
O losango amarelo, na Bandeira, representa o calor do sol.
No globo, ao centro, está o azul das águas.
Na faixa, ao centro, está escrito Ordem e Progresso.
As estrelas colocadas no mapa representam os Estados como: Rio grande do Sul, Santa
Catarina, Paraná, Rio, São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, Amazonas e todos os
outros estados do Brasil.
Há também Brasília com a Câmara dos Deputados, o Senado Federal, o Palácio do
Planalto.
Gosto deste símbolo.
Com cerimônia a bandeira é hasteada
A Bandeira hasteada tremula.
Brasil
Brasil
De acordo com Sutton-Spence (2005), no nível lexical, a repetição da
configuração de mãos aberta ou fechada possibilita a criação de imagens positivas,
alegres ou tensas, e negativas, respectivamente.
Iniciando a análise de “Bandeira brasileira em LSB” por esse nível, temos um
poema no qual os sinais têm configuração de mãos abertas ou inicialmente abertas,
semi-abertas ou que inicialmente estão fechadas, mas que se abrem pela necessidade
do movimento interno do sinal.
Assim temos, nessa seqüência, três produções de sinais.
Primeiro os sinais com as mãos completamente abertas: MATA, POR-TODOS-
OS-LADOS, RETÊNGULO-COBERTO-DE-VERDE, COR, CALOR, LOSANGO-
COBERTO-DE-AMARELO, GLOBO, AMAZONAS, MODELAR, DISTRIBUIR-POR-TODA-
A-BANDEIRA, SENADO-FEDERAL, CÂMARA-DOS-DEPUTADOS, BRASIL, BANDEIRA-
TREMULAR, GOSTAR.
Depois, como um segundo grupo temos os sinais com configurações de mãos
semi-abertas: VERDE, QUENTE, AMAREL@, LOSANGO, ÁGUA, AZUL, GIRA, FAIXA,
O-R-D-E-M-E-P-R-O-G-R-E-S-S-O, ESTRELA, COLAR-NO-GLOBO, PARANÁ, RIO,
SÃO-PAULO, MINAS-GERAIS, ESPÍRITO-SANTO, COLOCAR, B-R-A-S-I-L.
Por fim, os sinais que, por movimentação interna do próprio sinal, iniciam
fechados, mas se abrem: SOL, DESENROLAR-MAPA-DO-BRASIL, SANTA-CATARINA,
ASTEAR-BANDEIRA.
De todos os sinais utilizados, apenas RIO-GRANDE-DO-SUL e PEGAR,
respectivamente, são sinais que, primeiro, não têm movimento de abertura, mas de giro
do pulso, e segundo, iniciam-se abertos, mas têm movimento interno de fechamento.
Fazendo uma análise quantitativa, temos quinze sinais no primeiro grupo, dezoito
no segundo, quatro no terceiro grupo e apenas dois sinais no quarto e último grupo são
produzidos com configuração de mão fechada ou com movimento de fechamento.
Podemos visualizar, assim, um poema basicamente de imagens positivas, ao
considerarmos que os sinais de mãos totalmente e parcialmente abertas são maioria,
pois os sinais do terceiro grupo e os dois sinais que fogem à regra do texto, no contexto
geral, não interferem no sentido textual com sugestão de homenagem à bandeira.
Devido à sintaxe espacial da língua de sinais, a simetria se constitui como um
elemento que marca esteticamente o texto poético. No poema em questão, não há
predomínio na sinalização à direita ou à esquerda, apesar de vários versos serem
construídos mais à direita ou mais à esquerda. Desse modo, de acordo com Sutton-
Spence (2005), é marcado pela simetria vertical um equilíbrio do espaço. Isto é percebido
pela marcação da bandeira ao centro e todos os sinais que são construídos mais à direita
ou mais à esquerda têm como ponto final de execução o espaço à frente do sinalizador.
Conjuntamente nos é possível entender positivamente essa homenagem à
bandeira, devido a um outro aspecto da sintaxe espacial, a simetria horizontal, uma vez
que o poema é basicamente composto por construções deste tipo, ou seja, há um
predomínio na sinalização que vai da altura do tórax até acima da cabeça do sinalizador.
Em nível semântico, segundo Saint Clement (apud Lima, 1995, p. 425), “Como
símbolo, a imagem é esculpida, talhada, é um anaglyphe”. Desse modo, a simples
visualização do símbolo leva o sujeito a remeter aos valores, ideais, posturas individuais
e sociais por ele (símbolo) solicitadas. Dentre os vários símbolos construídos pelo
homem estão os que remetem e representam os países enquanto espaço geográfico,
social, político, econômico, etc. Para qualquer cidadão, os símbolos da pátria remetem ao
respeito cívico incutido pela ideologia nos membros da sociedade.
A Bandeira, enquanto símbolo, tem esculpido em si vários elementos. É disso que
trata o poema Bandeira Brasileira, dos elementos que, unidos na Bandeira, representam
o Brasil.
Possivelmente, para Nelson Pimenta, essa é uma forma de passar para os surdos
alguns conhecimentos que os ouvintes têm por causa de informações de mundo
variadas, por exemplo, do hino à Bandeira, mas que os Surdos perdem por causa da falta
de acesso a essa informação. No encarte que acompanha a fita com o poema, Nelson
Pimenta coloca este conhecimento acerca do hino à bandeira como um diferencial que
existe entre Surdos e ouvintes para a compreensão desse símbolo nacional. Para o
poeta, o hino como informação não é suficiente para o Surdo.
Assim, até parece que o fim do poema é exclusivamente utilitarista, mas pela
possibilidade nele existente de construção de símbolos, é possível, também, abordá-lo
pela via de valores estéticos, uma vez que o texto literário, no nosso caso, poético, nos
autoriza outras leituras.
É nessa perspectiva que, como objeto de análise, encontramos, nesse poema,
duas leituras. Uma, determinada pela realidade material apresentada, é explicitamente
uma explicação sobre a Bandeira do Brasil, suas partes e a motivação para a escolha de
suas cores. Outra, de conteúdo simbólico - portanto, mais arriscada para nós, que
fazemos a interpretação - sugere-nos um cunho mais político.
Ao iniciar a análise, temos, como primeiro ponto a ser destacado no poema de
Nelson, o título: “BANDEIRA BRASILEIRA EM LSB”. Neste título, temos a sugestão de
que sua proposta é mesmo apresentar a Bandeira do Brasil como símbolo para os
Surdos, pois uma interpretação para ele pode ser literalmente “Bandeira brasileira em
LSB”.
A seguir é colocada, na primeira parte do poema, a descrição das formas
geométricas que compõem a bandeira e a motivação das cores.
1 ÁRVORE+ (sinalização de árvore da direita para o centro em frente ao sinalizador,
esse movimento marca plural)
2 ÁRVORE+ (sinalização de árvores da esquerda para o centro em frente ao
sinalizador, esse movimento marca plural)
3
POR-TODOS-OS-LADOS (mãos abertas, palmas para baixo, saindo do centro em
frente ao sinalizador para as laterais. Mão direita para a direita e mão esquerda
para a esquerda. O olhar acompanha todo o movimento)
4 COR+ (repetição do sinal, marca o plural)
5 VERDE+ (repetição do sinal, marca o plural)
6
RETÂNGULO COBERTO-DE-VERDE (desenho do retângulo da bandeira com as
mãos abertas e os dedos em movimento. No preenchimento do espaço dentro do
retângulo é aproveitada a mesma configuração de mão, mas o movimento das duas
mãos é de zigue-zague)
7
articulação labial “so,so
SOL, SOL (sinal usando não apenas o indicador e o polegar, mas a mão inteira
se abre)
8 QUENTE, QUENTE (sinal mais lento do que o normal)
9
exp. facial de calor
CALOR (ênfase dada, também, pela utilização das duas mãos)
10
COR, COR, COR, COR, COR, AMARELO, AMARELO (da direita para a esquerda a
cabeça do sinalizador vai girando à medida que ele realiza o sinal)
11
LOSANGO (sinal feito normalmente com a configuração de mão em D) COBERTO-
POR-ESSE-AMARELO (preenchimento das laterais do losango – o espaço no
centro não é “colorido” - com as mãos abertas e os dedos em movimento)
12
bochechas infladas de ar
GLOBO
coisa-redondak
(me)
ÁGUA+ AZUL+
K
GOTEJAR
continuamente
(md)
13
GIRA
ênfase
(movimentos circulares com o indicador em direção ao “centro da
bandeira” em frente ao sinalizador dão a idéia de ênfase ao contínuo processo de
rotação do GLOBO)
14 FAIXA O-R-D-E-M -E- P-R-O-G-R-E-S-S-O
De acordo com Sutton-Spence (2005), a repetição é um elemento muito
importante para a construção do efeito estético, seja pela marcação do ritmo ou pelo
fortalecimento da imagem criada.
No poema em questão, a repetição dos sinais reforça a imagem de país tropical.
Sentimos, na lentidão dos sinais COR, VERDE, SOL, AMARELO, o calor de uma tarde
sem brisa, como sugestão do fator climático predominante em nosso país. Em
contrapartida, na sinalização veloz dos sinais ÁGUA e AZUL, podemos inferir o momento
refrescante de um banho de água fria como imagem sugestiva de nossa riqueza
hidrográfica.
Em termos de expressividade imagética, há, aparentemente, a simples descrição
dos elementos que compõem a Bandeira, mas o neologismo SOL, presente no poema,
agrega-se como um valor que dá leveza e conteúdo estético a essa simples descrição,
ampliando, assim, os sentidos possíveis no texto. A exploração das possibilidades da
língua na criação de novos sinais é considerada por Sutton-Spence como forma de o
poeta criar efeitos de linguagem que fortalecem a imagem visual formada. Nas palavras
da autora
23
:
Neologismo – a criação de palavras novas– pode ser usado em muitas
formas para produção do efeito poético, trazendo a língua para o
primeiro plano porque o poeta produziu uma forma que já não é uma
parte do idioma. O uso criativo da língua de sinais para produzir sinais
novos também foi chamado de saber ‘poético ', estando relacionado ao
modo como os sinalizadores podem produzir uma forma visual forte dos
sinais. (SUTTON-SPENCE 2005, p.69)
Assim, por causa do efeito estético produzido pelo neologismo, temos uma
valorização da informação dada nos versos:
6
RETÂNGULO COBERTO-DE-VERDE (desenho do retângulo da bandeira com as
mãos abertas e os dedos em movimento. No preenchimento do espaço dentro do
retângulo é aproveitada a mesma configuração de mão, mas o movimento das duas
mãos é de zigue-zague)
23
Conferir com o original: “Neologism – the creation of new words – can be used for poetic effect in
many ways, bringing the language to the foreground because the poet has produced a form that is
not already a part of the language. The creative use of sign language to produce new signs has
also been called poetic ‘wit’, and is related to the way that signers can produce strong visual form
of the signs”.
7
articulação labial “so,so
SOL, SOL (sinal usando não apenas o indicador e o polegar, mas a mão inteira
se abre)
Novamente de acordo com Sutton-Spence (2005, p.70), a criação de um novo
sinal possibilita a apreensão do contexto insinuado pelo poeta. Em “Bandeira Brasileira
em LSB”, temos essa visualização nos versos cinco e seis, com a sugestão de nosso
país ser valorizado por suas florestas e por seu sol. Assim, no verso cinco, acontece a
criação de um novo sinal para retângulo, pois o sinal para essa forma geométrica é feito
com as mãos em “D
24
” e, normalmente, a sinalização tem a orientação de cima para
baixo. No poema, as mãos estão abertas e os dedos se mexem causando um efeito de
balançar-de-folhas ou de tremulação do tecido hasteado. A orientação é invertida - o sinal
começa de baixo para cima e o preenchimento da cor na bandeira de cima para baixo,
em zigue-zague, possibilitando, também, a sensação de tecido tremulando.
Na língua de sinais, as formas geométricas são sinalizadas no espaço em frente
do sinalizador, sendo diferenciadas em sua espessura pela utilização do adjetivo
descritivo
25
. Ao se tratar de formas planas, como, por exemplo, a sinalização do retângulo
verde da Bandeira, normalmente faz-se com a configuração da mão dominante em “D”, o
que nos imprime a idéia de linha sem espessura. Como no poema o sinalizador deseja
imprimir profundidade geométrica à forma, sua sinalização acontece com a mão, na
configuração forma genuína, aberta, dedos juntos. A partir dessa informação de
profundidade pela mão aberta e pela alteração, pelo poeta, de onde o sinal é iniciado no
poema, de baixo para cima, é possível entendermos essa como uma sugestão de que
toda a floresta está em nossas mãos.
No verso seguinte temos a recriação do sinal SOL, que no cotidiano é feito com a
mão configurada em “S” com o polegar e o indicador em movimento de abrir, terminando
com a mão em “L”. Nelson recria o sinal, fazendo-o a partir da configuração de mãos na
forma genuína dedos mínimo, anular, médio e indicador juntos, abrindo-se ao mesmo
tempo com o punho movendo-se de fora para dentro, ponto de articulação ou locação
acima da cabeça, orientação da mão com a palma para fora e a articulação labial SO,
SO. O efeito causado é o da visualização do sol e dos seus raios, incidindo sobre o chão
24
Mãos em D pontas dos dedos juntas, na altura do busto, espaço neutro em frente ao sinalizador,
movimento de dentro para fora, desenhado um retângulo no ar com orientação de cima para
baixo.
25
São configurações de mãos que imprimem às formas sinalizadas espessura, tamanho, contorno
que atribuem qualidade a uma coisa, como por exemplo: arredondada pequena ou grande e
estreita ou larga, quadrada pequena ou grande e estreita ou larga. (Coutinho, 2001)
da Brasil. Como complementação da informação de que somos um país de altas
temperaturas, com o abanar das mãos, o poeta faz o sinal de CALOR.
A seguir, temos o círculo do centro sinalizado como GLOBO e o azul é
representado como sendo a cor das águas:
12
bochechas infladas de ar
GLOBO
coisa-redondak
(me)
ÁGUA+ AZUL+
K
GOTEJAR
continuamente
(md)
A sugestão imagética desse verso é que o Brasil é um país de muitas riquezas,
entre elas, a maior reserva de água doce do mundo.
Como marca da separação de uma construção de imagens, que se dá a partir da
própria natureza, sem a interferência do homem, de uma mais simbólica, temos a faixa,
na qual o poeta faz a datilologia O-R-D-E-M-E-P-R-O-G-R-E-S-S-O, como marco. A partir
daí, em todo o restante do poema é possível dar um tom mais político, iniciado no
desenho do mapa do Brasil, como vemos no verso 15, DESENROLAR-MAPA-DO-
BRASIL (sinalização mais à esquerda).
Assim, o verso 15 dá início a uma elaboração mais crítica, portanto, mais política,
pois o mapa representa o país enquanto território de fronteiras que, internamente, é
dividido em estados, cada um recebendo status de valor pelo que lhe destaca dentre os
demais estados da federação, seja por seu valor econômico, cultural, político ou
geográfico. Essa diferença se torna relevante, na medida em que apenas alguns estados
são sinalizados individualmente, outros não.
Vemos esse destaque de alguns estados nos versos 18 a 24.
18 SANTA-CATARINA MODELAR ESTRELA COLAR-NO-GLOBO.
19 PARANÁ. MODELAR-ESTRELA. COLAR-NO-GLOBO.
20 RIO PEGAR.
21 SÃO-PAULO PEGAR.
22 MINAS-GERAIS PEGAR.
23 ESPÍRITO-SANTO PEGAR.
24 AMAZONAS PEGAR
Nos versos 16 ao 26, todos os estados passam pelo mesmo processo de
modelagem. Ao procurar, no dicionário, os verbetes “modelagem” e “modelar”,
encontramos, respectivamente, as seguintes significações: 1) “s.f. Operação de modelar;
modelação; reprodução; confecção; 2) “[...] v. t. moldar” (SILVEIRA BUENO, 1992. p.
436). Isso significa que, apesar da diferença de valor, de status, há uma semelhança
entre os estados da federação, qual seja, todos se constituem, a partir da ação do
homem no processo designado, pelo poeta, de “modelagem”, estando todos
representados na bandeira, como vemos no verso 25.
25
PEGAR
k
PEGAR
k’
PEGAR
k’’
PEGAR
k’’
PEGAR
k’’’
PEGAR
k’’’’
PEGAR
k’’’’’
PEGAR
k’’’’’’
MODELAR
k
MODELAR MODELAR MODELAR ESTRELA
j’
ESTRELA
j’’
ESTRELA
j’’’
ESTRELA
j’’’’
COLOCAR-DISTRIBUIR-POR-TODA-A-BANDEIRA. (a partir do sinal
do estado do Amazonas o sinal PEGAR percorre todo o “mapa” do Brasil. O sinal
MODELAR sai do “mapa” e percorre toda a frente do sinalizador. O sinal ESTRELA
é feito várias vezes, percorrendo toda a “bandeira”, terminando no centro em frente
ao sinalizador. Por fim, o sinal COLOCAR-DISTRIBUIR-POR-TODA-A-BANDEIRA
tem a configuração de mão com os dedos abertos e curvos e parte de cima para
baixo, do centro para as laterais, percorrendo todo o círculo azul.)
Após a colocação de todos os estados, o poeta elege o Distrito Federal como
objeto de sua descrição para inserção na Bandeira, como vemos nos versos 26 a 28.
26
SENADO FEDERAL CÂMARA-DOS-DEPUTADOS. MODELAR BRASÍLIA,
BRASÍLIA, BRASÍLIA (sinalização da esquerda para a direita).
27 ESTRELA (sinalização mais lenta do que as realizadas anteriormente)
28 COLOCAR
k
(ponto de articulação acima da “faixa – Ordem e Progresso”).
Nesses versos, diferentemente da mera citação dos sinais dos estados nos versos
anteriores, a partir da diminuição na velocidade do movimento, vemos uma descrição de
espaços de exercício de políticas no Brasil, que são o Senado Federal, a Câmara dos
Deputados e o Palácio do Planalto, registrando que esse é o centro do poder no Brasil.
Essa percepção se confirma no verso 28, quando o poeta coloca a estrela do Distrito
Federal sobre a faixa de Ordem e Progresso, elegendo para este distrito um local em
nível superior aos demais. Para tanto, Nelson Pimenta desconsidera a formatação real da
Bandeira do Brasil que tem, na realidade, como estado representado sobre a faixa, o
Pará. Podemos considerar, assim, esse “erro” como uma licença poética diante do
possível objetivo de demarcar o poder que emana do Distrito Federal.
Por fim, nos versos de 29 a 33, o poeta considera este como um símbolo do qual
ele gosta muito e que merece toda cerimônia no momento de seu hasteamento.
29
exp. facial de ternura
GOSTAR
30 ASTEAR-BANDEIRA
31 BANDEIRA-TREMULAR
32
BRASIL (md)
GOSTAR (me) (o sinal BRASIL é realizado com a mão direita, enquanto a mão
esquerda está posta sobre o peito direito)
33 B-R-A-S-I-L (sinalização iniciada no final do sinal BRASIL)
3.1.2 . A reconquista da identidade surda em “Natural”
No encarte anexo à fita “Literatura em LSB”, o título do poema que vamos
trabalhar é “Natureza”. No entanto, devido à presença de ambigüidade nos sentidos
possíveis construídos por nós na leitura e análise do poema, optamos por uma tradução
do título diferente da que é apresentada no encarte e na fita, no momento de
apresentação do título do poema por escrito, antes da sinalização feita. Ao vermos o
poema e a sinalização do título feita por Nelson Pimenta – “N-A-T-U-R-A-L” –
visualizamos uma carga simbólica muito mais forte, se utilizarmos o termo “Natural” ao
invés de “Natureza”, pois a nossa leitura do título não é referente, exclusivamente, ao
sinal NATURAL, mas à informação complementar COMPARAR SURDOS, que para nós
constitui-se também como título.
Em NATURAL: COMPARAR SURDOS, a descrição da destruição do espaço
natural se configura como simplesmente aparente, pois a análise das imagens
construídas nos permite remeter à seqüência de alguns momentos vividos pelos Surdos
em todo o mundo, que citaremos em seguida. Primeiro, os Surdos constituem-se em
comunidades de sinalizadores e estão felizes com sua forma de ser e existir no mundo.
Em segundo lugar, é retirado dos Surdos o direito de ser eles mesmos, fazendo-os
“funcionar”, independente de seus desejos, a partir da massacrante imposição dos
ouvintes sobre como os Surdos deveriam ser. Por último, o Surdo resgata a si mesmo a
partir da luta pelo poder de gerir suas próprias vidas.
Como forma de visualização do poema, a seguir temos a sua transcrição.
1 MONTANHA,
2 MONTANHA,
3 EU-MONTANHA (sem marcação do pronome pessoal. Sinalização da montanha
sobre a cabeça – figura de linguagem – prosopopéia – eu lírico se transforma na
própria montanha)
exp. facial de tranquilidade
EM PAZ-FELIZ.
4
..........................expressão facial de contentamento............................
MONTANHA
+
ÁRVORE
+
-FARFALHAR, CONVERSAR-SINAIS.
5
..............................expressão facial de contentamento..........................
PEQUEN@ PEDRA
+
-FORMAR-LEITO-DO-RIO-QUE-DESCE-EM-CORREDEIRAS-
[A-BRINCAR.
6
...............................expressão facial de espanto.................................
REPRESAMENTO, PONTE
+
CONSTRUIR,
veículo
ANDAR-POR-CIMA.
...exp. facial de espanto... exp. facial de espanto ......expressão facial de resignação......
ASSIM-NÃO-DÁ PRENDER. PACIÊNCIA. EXERCITAR-
[PACIÊNCIA.
7
exp. facial de resignação
DEIXAR-PRA-LÁ.
8
.............................expressão facial de contentamento......................
MONTANHA
+
ÁRVORE
+
-FARFALHAR CONVERSAR-SINAIS. (Sinais produzidos
com as md e me ao mesmo tempo)
9
..............expressão facial de espanto.................
ÁRVORE-CORTAR-ABRUPTAMENTE UMA. (md)
10
..................................expressão facial de espanto..........................................................
OUTRA-CONTINUAR-FARFALHAR-CONVERSAR-SINAIS CORTAR-
[BRUPTAMENTE. (me)
11 MADEIRA VIRAR-CASA (sem marcação de pronome pessoal. Sinalização da casa
sobre a cabeça)
..exp. facial de espanto... ...exp. facial de espanto... ........expressão facial de resignação......
ASSIM-NÃO-DÁ PRENDER. PACIÊNCIA. EXERCITAR-PACIÊNCIA.
12
exp. facial de resignação
DEIXAR-PRÁ-LÁ.
13
........expressão facial de profunda tristeza......../ olhar + exp. facial de espanto
MONTANHA
+
EU-MONTANHA DESILUSÃO. ESPANTO (olhar direcionado
para o lugar onde será sinalizada a próxima ação)
14 HOMEM(sem a marcação do substantivo)-
coisa-arredondada
COLOCAR-CABEÇA.
ABOTOAR-FARDA
veículo-grande
DIRIGIR PROGRAMAR-M
Á
QUINA PERFURAR.
15
...expressão facial de dor e espanto....
EU-MONTANHA-SER-PERFURADA. TÚNEL
veículo
ANDAR-SOB.
16
...exp. facial de espanto ... exp. facial de espanto... .....expressão facial de resignação......
ASSIM-NÃO-DÁ PRENDER. PACIÊNCIA. EXERCITAR-
[PACIÊNCIA.
17
balaçar negativo de cabeça e exp. facial de profunda tristeza
NÃO
18
...exp. facial de tristeza...
montanha
OLHAR-SITUAÇÃO(olhar percorrendo todo o espaço em frente do sinalizador.
Mãos abertas, dedos juntos, lado-a-lado na frente do sinalizador, distanciando-se
para as laterais).
19
......exp. facial de pergunta.....
N-A-T-U-R-A-L-CADÊ (md)
......exp. facial de pergunta.....
N-A-T-U-R-A-L-CADÊ (me) (ênfase: datilologia simultânea das duas mãos)
TER SURGIR-E-CRESCER (mãos em L lado-a-lado na frente do sinalizador,
distanciando-se para as laterais)
20
exp. facial de tristeza abaixamento da cabeça e fechar de olhos
REDUZIR, ATÉ-NÃO-TER-NADA
(mãos na altura do peito, palma a palma, ao lado do corpo, com os dedos polegar e
indicador afastados e curvos e os demais dedos fechados, aproximando-se até
fecharem-se na configuração de mão em 8 no peito do sinalizador)
21
olhar forme e exp. facial forme e resoluta
CORAGEM/força
22
olhar firme e resoluto
pessoa
EM-PÉ (md)
pessoa
EM-PÉ (me)
DISPUTA-ENTRE-DEFENSOR-DO-NATURAL-E-DESTRUIDOR
(mãos paralelas em D, palma para o falante, manutenção de uma mão próxima ao
sinalizador – EU LÍRICO = MONTANHA, marcando o defensor do natural e o
afastamento para a lateral da outra mão, marcando seu opressor).
23 DISPUTA
24 PROIBIDO, PROIBIDO
25
veículo
PASSAR TÚNEL.
26 DISPUTA.
27 PROIBIDO, PROIBIDO
28 ÁRVORE
+
-CORTAR
29 DISPUTA.
30 PROIBIDO, PROIBIDO
31 PONTE-CONSTRUIR
32 PROIBIDO, PROIBIDO
33 DISPUTA, DISPUTA, DISPUTA
34 DESTRUIDOR-PERDER
35
exp. facial de contentamento
GANHAR L-E-I
36
exp. facial de contentamento
montanha
OLHAR-SITUAÇÃO
(olhar percorrendo todo o espaço a frente do sinalizador. Mãos abertas, palma para
cima, dedos juntos, lado-a-lado na frente do sinalizador, distanciando-se para as
laterais mãos com orientação diferente desse mesmo verbo apresentado
anteriormente, podendo ter a conotação de medo anteriormente e agora libertação,
olhar destemido da montanha.
37
exp. facial de contentamento e olhar acompanhando o movimento
ESTAR-PROTEGIDO
(Mãos abertas, palma para frente, dedos juntos, lado-a-lado na frente do sinalizador,
distanciando-se para as laterais).
38 ÁGUA BRINCAR CORRER-RIO-ABAIXO. VIVA, VIVA, VIVA.
39
.............exp. facial de contentamento...........................
RIO-ENCONTRAR-MONTANHA, EU-MONTANHA,
......................exp. facial de contentamento e labialização de alívio....................
CONTENTE-ALIVIAD@, ORDEM-RESTAURADA
(mãos próximas lado-a-lado, abertas, dedos afastados, palmas para baixo,
distanciando-se para as laterais),
[CONTENTE-ALIVIAD@, CONTENTE-
ALIVIAD@.
40
.....................................................exp. facial de contentamento.....................................................
RIO-ANDAR-ENCONTAR ÁRVORE
+
-FARFALHAR, FARFALHAR, CONVERSAR-
SINAIS,
....................................exp. facial de contentamento..................................................
CONVERSAR-SINAIS, VIVA, VIVA, CONVERSAR-SINAIS, VIVA, VIVA,
[CONVERSAR-SINAIS, VIVA, VIVA.
41
exp. facial de contentamento
APLAUSOS
Uma tradução possível:
Natural: uma comparação com os surdos
Montanha, montanhas
Sou uma montanha
Estou contente
Há árvores nas montanhas que conversam em seu farfalhar
Ao lado corre o rio com suas águas a brincar.
Chega o represamento...
A construção de pontes para carros circularem.
Assim não dá!
O espaço está preso!
Paciência...
É preciso ter muita paciência...
Deixa pra lá!
Há árvores nas montanhas.
Elas farfalham e conversam.
Derrubada!!!
Tentativa das que ficam em pé de continuar com suas vidas.
Derrubada, também, destas!!!
Viram simplesmente casas.
Assim não dá.
O espaço está preso!
Paciência...
É preciso ter muita paciência...
Deixa pra lá!
Desilusão...
E agora vem o tratorista e me perfura.
Carros passam pelo túnel feito em mim.
Assim não dá.
O espaço está preso!
Paciência...
É preciso ter muita paciência...
NÃO!
A montanha olha a situação.
Cadê o que é natural?
Perdeu seu espaço até que não sobrasse nada.
Mas, coragem!
Defensor disputa acirradamente com o destruidor.
É proibido.
É proibido.
Construir túneis para carro passar.
Defensor disputa acirradamente com o destruidor.
É proibido.
É proibido.
Disputa, disputa, disputa...
O destruidor perde.
Ganhou a Lei de proteção.
A montanha olha destemidamente agora a situação...
O ambiente está protegido.
O rio pode brincar...
Viva!
Viva!
Viva!
O rio e a montanha se encontram, que alívio!
A ordem está restaurada.
Que alívio!
Que alívio!
O rio se encontra com as árvores que podem em seu farfalhar conversar.
Viva!
Viva!
Viva!
Conversar
Viva!
Viva!
Viva!
Conversar
Viva!
Viva!
Viva!
Neste poema, entendemos que o poeta constrói uma metáfora sobre um ambiente
perfeito que é destruído por causa da imposição do progresso, sendo preciso muita luta
para o re-estabelecimento da harmonia e preservação do estado natural das coisas.
Assim, o poema pode ser dividido em três momentos, pois metaforicamente no primeiro
momento, nos versos de 1 a 5, o poeta apresenta um estado de harmonia do espaço
natural; no segundo, que vai dos versos 6 a 22, ele discute a imposição da língua oral
para os Surdos, apresentando a destruição da harmonia vivida e, por fim, nos versos 23 a
43, nos é apresentada a luta pela reestruturação do momento primeiro e sua conquista.
Como vimos no início do capítulo, para Goldstein (2001), os poemas têm uma
unidade que os caracteriza como tal. Podem ser analisados nos níveis lexical, sintático e
semântico. Entretanto, restringimos nossa análise ao nível semântico do texto, pois a
recorrência da temática sobre a importância da língua de sinais para os Surdos e as
relações entre Surdos e ouvintes é também elemento chave da poesia construída por
Surdos.
Em “Natural: uma comparação com os Surdos”, visualizamos a construção de
uma metáfora do que é natural para os Surdos e de como forças externas a vontades
desses sujeitos podem destruir essa ordem. Para Sutton-Spence (2005), na poesia, as
metáforas são usadas como forma de o poeta apresentar idéias que, talvez, sem elas,
não fossem possíveis de ser apresentadas.
Temos nos versos 1 a 5, transcritos a seguir, o primeiro ponto, qual seja,
possivelmente o estabelecimento da situação metaforicamente colocada pelo poeta do
que é natural para os Surdos, a utilização da língua de sinais em sua plenitude e os
efeitos da possibilidade dessa vivência, que são: o bem-estar, a paz, a felicidade, a
harmonia consigo e com o outro. Todos esses estados vividos muito fortemente de
meados do século XVIII até a última década do século XIX e resgatados depois da
segunda metade do século XX, como relatado no capitulo 2.
1 MONTANHA,
2 MONTANHA,
3 EU-MONTANHA (sem marcação do pronome pessoal. Sinalização da montanha
sobre a cabeça – figura de linguagem – prosopopéia – eu lírico se transforma na
própria montanha)
exp. facial de tranquilidade
EM PAZ-FELIZ.
4
..........................expressão facial de contentamento............................
MONTANHA
+
ÁRVORE
+
-FARFALHAR, CONVERSAR-SINAIS.
5
..............................expressão facial de contentamento..........................
PEQUEN@ PEDRA
+
-FORMAR-LEITO-DO-RIO-QUE-DESCE-EM-CORREDEIRAS-
[A-BRINCAR.
Considerando que um dos temas recorrentes na poesia sinalizada é a própria
experiência Surda, temos que, no nível semântico, todo o estabelecimento do que é
natural se dá pelo fato de os Surdos terem a livre possibilidade de apropriação da língua
de sinais para poderem desenvolver seu potencial pleno de ser humano. É possível
visualizarmos que nos primeiros versos do poema, o poeta parece se propor a resgatar
uma vivência social, lingüística e educacional conhecida por muitos Surdos apenas como
informação histórica. Esse momento primeiro de harmonia e paz com o que é natural ou
com a natureza se torna possível de ser inferido, quando nos remetemos a alguns dados
históricos, como, por exemplo, os que são apresentados por Skliar (1997, p. 31 e 32)
26
:
[...] até 1850 a proporção de surdos, professores de crianças surdas, alcançava
os 50%.
Os estudantes surdos eram alfabetizados e instruídos na mesma proporção
que os ouvintes. Este quadro da situação se sintetiza e reflete nos seguintes
fatos comprovados e comprováveis:
Os surdos participavam do debate cultural e educativo da época.
Os surdos adultos eram os professores das crianças surdas.
A língua de sinais era considerada a primeira língua dos alunos surdos.
O bilingüismo era uma política lingüística baseada, em muitas escolas, na
relação entre a língua de sinais e a língua escrita.
Existe uma rica bagagem de produções artísticas e científicas dos surdos
entre 1780 e 1870.
Mas fortes condições políticas, religiosas e filosóficas, no final do século XIX,
sentenciaram o estabelecimento do caos para os surdos: a usurpação do direito de
opinar sobre suas próprias vidas através da hegemônica ação oralista dos ouvintes.
Para os Surdos, obrigados a negarem-se a si mesmos como tal, sobram apenas
tristeza, desilusão e a sensação que, de si, não restava mais nada, como vemos nos
versos 6 a 20, a partir da sugestão presente nas imagens de represamento para
construção de pontes, derrubada de árvores para construção de casas, perfuração da
montanha para construção de túnel. Todas elas nos sugerem imposição de uma vontade
externa, de destruição da ordem natural das coisas para a construção da artificialidade.
26
no original:
[..] hacia 1850 la proporción de sordos, maestros de niños sordos, alcanzaba el 50%. Los
estudiantes sordos eran alfabetizados e instruidos em la misma proporción que los oyentes. Este
cuadro de situación se sintetiza y refleja em los siguientes hechos comprobados y comprobables:
Los sordos participaban em el debate cultural y educativo de la época.
Los adultos sordos eran los maestros de los niños sordos.
La lengua de señas era considera la primera lengua de los alumnos sordos.
El bilingüismo era uma política lingüística basada, em muchas escuelas, em relación entre la
lengua de señas y la lengua escrita.
Existe um rico bagaje de producciones artísticas y científicas de los sordos entre 1780 y 1870.
6
...............................expressão facial de espanto.................................
REPRESAMENTO, PONTE
+
CONSTRUIR,
veículo
ANDAR-POR-CIMA.
...exp. facial de espanto... exp. facial de espanto ......expressão facial de resignação......
ASSIM-NÃO-DÁ PRENDER. PACIÊNCIA. EXERCITAR-
[PACIÊNCIA.
7
exp. facial de resignação
DEIXAR-PRA-LÁ.
8
.............................expressão facial de contentamento......................
MONTANHA
+
ÁRVORE
+
-FARFALHAR CONVERSAR-SINAIS. (Sinais produzidos
com as md e me ao mesmo tempo)
9
..............expressão facial de espanto.................
ÁRVORE-CORTAR-ABRUPTAMENTE UMA. (md)
10
..................................expressão facial de espanto..........................................................
OUTRA-CONTINUAR-FARFALHAR-CONVERSAR-SINAIS CORTAR-
[BRUPTAMENTE. (me)
11 MADEIRA VIRAR-CASA (sem marcação de pronome pessoal. Sinalização da casa
sobre a cabeça)
..exp. facial de espanto... ...exp. facial de espanto... ........expressão facial de resignação......
ASSIM-NÃO-DÁ PRENDER. PACIÊNCIA. EXERCITAR-PACIÊNCIA.
12
exp. facial de resignação
DEIXAR-PRÁ-LÁ.
13
........expressão facial de profunda tristeza......../ olhar + exp. facial de espanto
MONTANHA
+
EU-MONTANHA DESILUSÃO. ESPANTO (olhar direcionado
para o lugar onde será sinalizada a próxima ação)
14 HOMEM(sem a marcação do substantivo)-
coisa-arredondada
COLOCAR-CABEÇA.
ABOTOAR-FARDA
veículo-grande
DIRIGIR PROGRAMAR-M
Á
QUINA PERFURAR.
15
...expressão facial de dor e espanto....
EU-MONTANHA-SER-PERFURADA. TÚNEL
veículo
ANDAR-SOB.
16
...exp. facial de espanto ... exp. facial de espanto... .....expressão facial de resignação......
ASSIM-NÃO-DÁ PRENDER. PACIÊNCIA. EXERCITAR-
[PACIÊNCIA.
17
balaçar negativo de cabeça e exp. facial de profunda tristeza
NÃO
18
...exp. facial de tristeza...
montanha
OLHAR-SITUAÇÃO(olhar percorrendo todo o espaço em frente do sinalizador.
Mãos abertas, dedos juntos, lado-a-lado na frente do sinalizador, distanciando-se
para as laterais).
19
......exp. facial de pergunta.....
N-A-T-U-R-A-L-CADÊ (md)
......exp. facial de pergunta.....
N-A-T-U-R-A-L-CADÊ (me) (ênfase: datilologia simultânea das duas mãos)
TER SURGIR-E-CRESCER (mãos em L lado-a-lado na frente do sinalizador,
distanciando-se para as laterais)
20
exp. facial de tristeza abaixamento da cabeça e fechar de olhos
REDUZIR, ATÉ-NÃO-TER-NADA
(mãos na altura do peito, palma a palma, ao lado do corpo, com os dedos polegar e
indicador afastados e curvos e os demais dedos fechados, aproximando-se até
fecharem-se na configuração de mão em 8 no peito do sinalizador)
É possível pensarmos em como, normalmente, é construída a relação do natural
versus o progresso e como o progresso, imposto como única possibilidade, destrói a
ordem já estabelecida, muitas vezes deixando apenas o caos. No caso dos Surdos, o
progresso chegou negando a natureza primeira desses sujeitos, que é a utilização de
uma língua gestual-visual, sugerida no verso “MONTANHA, ÁRVORE, FARFALHAR,
CONVERSAR-SINAIS”.
Para a história dos Surdos, esse momento de destruição de sua vivência natural
tem no Congresso de Milão o evento que legitimou o oralismo, postura vista como de
vanguarda no ano de 1880. Skliar (1997, p. 49) apresenta da seguinte forma a situação
27
:
Porém as conclusões do Congresso chegaram, inevitavelmente, ao que
esperava a maioria.
Do conjunto das resoluções votadas se pode ler que:
I- Considerando a indubitável superioridade da palavra sobre os gestos para
restituir ao surdo-mudo à sociedade e dar-lhe um melhor conhecimento da
língua, o Congresso declara que o método oral deve ser preferido ao da
mímica para a educação e instrução dos surdos-mudos.
II- Considerando que o uso simultâneo da palavra e dos gestos mímicos tem a
desvantagem de prejudicar a palavra, a leitura sobre os lábios e a precisão das
idéias, o Congresso declara que o método oral deve ser preferido (...)
IV- Considerando que o ensino de surdos falantes, por meio do método oral
puro deve-se aproximar-se, o máximo possível, do dos ouvintes falantes, o
27
Texto no original:
Pero las conclusiones del Congreso llegaron, inevitablemente, a lo que esperaba la mayoría.
Del conjunto de las resoluciones votadas se puede leer que:
I- Considerando la indudable superioridad de la palabra sobre los gestos para restituir al
sordomudo a la sociedad y darle un más perfecto conocimiento de la lengua, el Congreso declara
que el método oral debe ser preferido al de la mímica para la educación e instrucción de los
sordomudos. II- Considerando que el uso simultaneo de la palabra y de los gestos mímicos tiene
la desvantaja de dañar la palabra, la lectura sobre los labios y la precisión de las ideas, el
Congreso declara que el método oral debe ser preferido (...) IV- Considerando que la enseñaza de
los sordos parlantes, por medio del método oral puro se debe acercar, lo más posible, a la de los
oyentes hablantes, el Congreso declara: 1. que el medio más natural y más eficaz por el cual el
sordo parlante adquirirá el conocimiento de la lengua es el método objetivo, aquel que consiste en
indicar primero con la palabra, después con la escritura los objetos y los hechos presentes a los
alumnos; 2. que en el primer período, llamado materno, se debe iniciar al alumno en la
observación de las formas gramaticales por medio de ejemplos y ejercicios prácticos coordinados,
y que en el otro período se debe ayudarlo a deducir de tales ejemplos los perceptos gramaticales
expresados con la mayor simplicidad y claridad posibles (...).
Congresso declara: 1. que o meio mais natural e mais eficaz pelo qual o surdo
falante adquirirá o conhecimento da língua é o método objetivo, aquele que
consiste em indicar primeiro com a palavra, depois com a escrita os objetos e
os fatos presentes aos alunos; 2. que no primeiro período, chamado materno,
deve-se iniciar o aluno na observação das formas gramaticais por meio de
exemplos e exercícios práticos coordenados, e que em outro período se deve
ajudá-lo e deduzir de tais exemplos os conceitos gramaticais expressos com a
maior simplicidade e clareza possível (...)
Essas são as decisões que determinaram o fim de um período de
desenvolvimento e inserção social dos Surdos e o início de um período quase centenário
de desespero e horror para esses sujeitos. Os resultados são o fracasso educacional, a
exclusão social e a perda de significativas vivências lingüísticas e culturais, restando uma
sobrevida desiludida.
Assim, é a imagem de túnel que nos remete a subterrâneo, escuridão,
aniquilamento, escondido, clandestino, que, possivelmente, representa para o eu-lírico “a
pedra no meio do caminho” dos Surdos, se dialogarmos com Drummond
28
, e
construirmos uma relação entre a opressão sofrida e as fugas da clandestinidade.
É desse modo que Sacks (1998, p. 153) fala do ocorrido nos Estados Unidos:
A supressão da língua de sinais na década de 1880 teve um efeito danoso para
os surdos durante 75 anos, não apenas em sua educação e conquistas
acadêmicas, mas também na imagem que tiveram de si mesmos e de toda a
comunidade e cultura surdas. A comunidade e cultura surda que efetivamente
existiu permaneceu em bolsões isolados – deixou de vigorar o sentimento de
outrora, pelo menos o sentimento que se insinuou nos “anos dourados” da
década de 1840, de uma comunidade e cultura de abrangência nacional (e até
mesmo mundial).
A perda do espaço, a tensão vivida pelos Surdos e a tristeza são sintetizadas,
principalmente, pela imagem produzida no verso 20:
20
exp. facial de tristeza abaixamento da cabeça e fechar de olhos
REDUZIR, ATÉ-NÃO-TER-NADA
(mãos na altura do peito, palma a palma, ao lado do corpo, com os dedos polegar e
indicador afastados e curvos e os demais dedos fechados, aproximando-se até
fecharem-se na configuração de mão em 8 no peito do sinalizador)
Mas os Surdos resistiram à opressão do oralismo em bolsões isolados, que
mantiveram vivas a língua e a cultura surdas, fundamentais para o restabelecimento do
natural abordado na parte final do poema.
28
“No meio do caminho”: No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do
caminho / tinha uma pedra / no meio do caminho tinha uma pedra. / Nunca me esquecerei desse
acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. / Nunca me esquecerei que no meio do
caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho / no meio do caminho tinha uma
pedra. (In: CEREJA, William Roberto e MAGALHÃES, Thereza Cochar. Literatura brasileira:
ensino médio. 2. ed. Reform. São Paulo: Atual, 2000. p. 441)
Assim, como fechamento, o poema trata do terceiro ponto que sugere o resgate
de si mesmo, verso 21, a partir da luta pelo poder de gerir suas próprias vidas. Nesse
sentido, a partir do verso 22, é apresentada uma dura batalha que foi vencida pelos
defensores do natural:
21
olhar forme e exp. facial forme e resoluta
CORAGEM/força
22
olhar firme e resoluto
pessoa
EM-PÉ (md)
pessoa
EM-PÉ (me)
DISPUTA-ENTRE-DEFENSOR-DO-NATURAL-E-DESTRUIDOR
(mãos paralelas em D, palma para o falante, manutenção de uma mão próxima ao
sinalizador – EU LÍRICO = MONTANHA, marcando o defensor do natural e o
afastamento para a lateral da outra mão, marcando seu opressor).
23 DISPUTA
24 PROIBIDO, PROIBIDO
25
veículo
PASSAR TÚNEL.
26 DISPUTA.
27 PROIBIDO, PROIBIDO
28 ÁRVORE
+
-CORTAR
29 DISPUTA.
30 PROIBIDO, PROIBIDO
31 PONTE-CONSTRUIR
32 PROIBIDO, PROIBIDO
33 DISPUTA, DISPUTA, DISPUTA
34 DESTRUIDOR-PERDER
35
exp. facial de contentamento
GANHAR L-E-I
36
exp. facial de contentamento
montanha
OLHAR-SITUAÇÃO
(olhar percorrendo todo o espaço a frente do sinalizador. Mãos abertas, palma para
cima, dedos juntos, lado-a-lado na frente do sinalizador, distanciando-se para as
laterais mãos com orientação diferente desse mesmo verbo apresentado
anteriormente, podendo ter a conotação de medo anteriormente e agora libertação,
olhar destemido da montanha.
37
exp. facial de contentamento e olhar acompanhando o movimento
ESTAR-PROTEGIDO
(Mãos abertas, palma para frente, dedos juntos, lado-a-lado na frente do sinalizador,
distanciando-se para as laterais).
38 ÁGUA BRINCAR CORRER-RIO-ABAIXO. VIVA, VIVA, VIVA.
39
.............exp. facial de contentamento...........................
RIO-ENCONTRAR-MONTANHA, EU-MONTANHA,
......................exp. facial de contentamento e labialização de alívio....................
CONTENTE-ALIVIAD@, ORDEM-RESTAURADA
(mãos próximas lado-a-lado, abertas, dedos afastados, palmas para baixo,
distanciando-se para as laterais),
[CONTENTE-ALIVIAD@, CONTENTE-
ALIVIAD@.
40
.....................................................exp. facial de contentamento.....................................................
RIO-ANDAR-ENCONTAR ÁRVORE
+
-FARFALHAR, FARFALHAR, CONVERSAR-
SINAIS,
....................................exp. facial de contentamento..................................................
CONVERSAR-SINAIS, VIVA, VIVA, CONVERSAR-SINAIS, VIVA, VIVA,
[CONVERSAR-SINAIS, VIVA, VIVA.
41
exp. facial de contentamento
APLAUSOS
Essa parte final do poema nos mostra que nenhuma conquista dos surdos, com
relação aos seus direitos lingüísticos e culturais, aconteceu pacificamente. Nesse sentido,
lutar individualmente e coletivamente é necessidade histórica e contínua, dependendo de
vários movimentos sociais e científicos, entre outros fatores, tais como: status de
legitimação da língua de sinais, devido às investigações lingüísticas de Willian Stokoe
sobre a ASL, na década de 1960; movimentos de minorias em busca de direitos sociais
que motivaram os surdos a envidarem esforços em prol de si mesmos; pesquisas
pedagógicas e psicolingüísticas que mostraram que o fracasso maciço dos surdos tem
relação direta com a falta de uma língua compartilhada para reflexão e interação.
A partir daí o natural pôde ser restabelecido. Esse restabelecimento, para o
ambiente, é a possibilidade que as árvores, montanhas e rios têm de permanecerem com
suas características próprias. Para os Surdos, ele acontece por meio da língua de sinais.
O que merece comemoração, pois novamente os Surdos podem ser eles mesmos e isso
precisa ser aplaudido.
Assim, no verso 43, os aplausos encerram o texto. Esse é o momento da
celebração da língua de sinais e da experiência surda como elemento universal. A luta
dos Surdos por sua língua e cultura não é individual ou local. É uma luta mundial.
3.1.3. Do biografismo à multiplicidade de vozes, um retorno às raizes
O poema a seguir “Língua falada e língua sinalizada” trata da relação entre
Surdos e ouvintes. Em muito, retrata a autobiografia do seu autor, que aprendeu bastante
sobre como lutar pelos direitos dos surdos após viagem aos Estados Unidos, onde
também conheceu a poesia em língua de sinais.
1 DESENVOLVER ÁRVORE 5 BASE IGUAL DESENVOLVER ÁRVORE
2 DESENVOLVER ÁRVORE 6 DESENVOLVER ÁRVORE
3 DESENVOLVER ÁRVORE 7 DESENVOLVER ÁRVORE
4
articulação labial de abrir e fechar lábios
TAGARELAR
continuamente
(mãos semi-aberta, com dedos
curvos unidos paralelos ao
polegar, movimento de abrir e
fechar)
8
articulação labial OI, OI, OI
OI OI OI LÍNGUA-DE-SINAIS,
LÍNGUA-DE-SINAIS, LÍNGUA-DE-
[SINAIS
9 FALANTE
+
2p
OLHAR
1p
SINALIZADOR
+
2p
OLHAR
2p
10
....expressão facial de desprezo... exp. f. "autoritária"
2p
OLHAR
1p
2p
OLHAR
2p
2p
OLHAR
1p
2p
MANDAR
1p
CALAR CALAR
11
exp. f. "autoritária"
CALAR VOCÊ
12
negativa com balançar de cabeça
NÃO
13
exp. f. "autoritária"
CALAR VOCÊ
14
negativa com balançar de cabeça
NÃO
15
pessoa cabeça para baixo
DESCER
16
k
BUSCAR-INFORMAÇÃO(PESQUISAR)
k'para baixo k
BUSCAR-
INFORMAÇÃO(PESQUISAR)
k'para baixo k
BUSCAR-
INFORMAÇÃO(PESQUISAR)
k'para baixo
17
...expressão facial "uso de força"...
ambiente 1
1i
EU-SAIR
3k
ambiente 2
18 PEIXE PEIXE
19
pessoa cabeça para cima
SUBIR ÁGUA-PASSAR-ROSTO FICAR-OMBROS
20 PESSOA PESSOA
21 CONHECER-NÃO CONHECER-NÃO NADA LÍNGUA-DE-SINAIS
22
exp.f "desinteresse"
LIGAR-NÃO
23
.................................................exclamativo.............................................................
FLOR ABRIR BRILHAR// FLOR ABRIR BRILHAR// FLOR ABRIR BRILHAR
24
...i....
O-QUÊ // NADAR NADAR NADAR EU-APROXIMAR
25
mãos em d ...i...
PESSOAS-EM-PÉ APROXIMAR-EU//SINAL O-QUÊ
26
mãos em d
SINAL IGUAL LÍNGUA-DE-SINAIS//
27
mãos em d ...int...
SINAL IGUAL LÍNGUA-DE-SINAIS
28
exp.f "agrado"
BONIT@
29 EU-GOSTAR
30 FALANTE
+
3P
OLHAR
2P
31
3P
OLHAR
3P 3P
MANDAR
2P
32
exp.f."autoritária"
CALAR
33
exp.f."autoritária"
CALAR
34
negativa com balançar de cabeça
NÃO
35
exp.f "desprezo" e "dar de ombros"
SINALIZAÇÃO-CONTÍNUA
36
2s
CONVIDAR
1s
APRENDER
37 APRENDER APRENDER APRENDER
38 AMOR
39 FLOR
2sj
CORTAR RAIZ R-A-I-Z
2sj
DAR
1si
40
exp. f "prazer contido"
desenho em formato de coração
CORAÇÃO GUARDAR.
41
exp. f "felicidade"
SALTAR
42
exp. f "felicidade"
SALTAR
43
exp. f "felicidade"
SALTAR
coisa-plana
VOAR
(mão em b)
44
articulação labial
TCHAU
coisa-plana
VOAR-SOBRE-NUVENS
(mão em b)
45 OBRIGAD@
1p
AJUDAR
1s
46 OBRIGAD@
1p
AJUDAR
1s
47
articulação labial
BYE
coisa-plana
VOAR-SOBRE-NUVENS
48
articulação labial
BYE
coisa-plana
VOAR-SOBRE-NUVENS
49
coisa-plana
VOAR-SOBRE-NUVENS
50
coisa-plana
VOAR-SOBRE-NUVENS
51
coisa-plana k
VOAR-SOBRE-NUVENS
i
52
coisa-plana k
ATERRISSAR-SOBRE-CHÃO
k'
53
muito
GRUPO TODOS FALAR
54
1S
OLHAR
3P
GRUPO-FALAR
55
1S
OLHAR
3P
GRUPO-SINALIZAR
56
exp. f "felicidade", "enlevo" muito
CORAÇÃO ABRIR TIRAR LÍNGUA-DE- SINAIS COMEÇAR SINALIZAR
ex
.f "desa
rado"
57
3pk
OLHAR
1di
SINALIZADOR
+
58
exp.f "desagrado"
3pk
OLHAR
3di
59
3pk
MANDAR
3di
PARAR SINALIZAR
60
1s2
ESPERAR VOCÊ-GRUPO
61 CORAÇÃO ABRIR TIRAR LÍNGUA-DE-SINAIS COMEÇAR
62
muito
SINALIZAR
63
muito
SINALIZAR
64
muito
SINALIZAR
65
exp. f "sorriso"
UNIÃO
Uma possível tradução:
Língua sinalizada e Língua falada
A língua falada é uma árvore que
se desenvolve, desenvolve, desenvolve
E os falantes, falam, falam, falam.
Da mesma forma a língua sinalizada
é uma árvore que
se desenvolve, desenvolve, desenvolve
Oi, Oi, Oi, sinalização, sinalização, sinalização
Até que os falantes nos olham.
entreolham –se...
Olham-nos...
e mandam-nos: - cale-se! cale-se!
- Cale-se!
- Não!
- Cale-se!
- Não!
Submergi.
Procurei nas profundezas
Saí para outras águas
Peixes passam na minha frente
Emergi
E vi pessoas
Não conheço nada dessa língua de sinais
Não me interesso.
Ao largo vejo flores que brilham e brilham e brilham...
O que é aquilo? Nado, nado, nado, nado ao seu encontro.
Quando me aproximo eles sinalizam diferente,
de um jeito que não entendo.
- Essa sinalização faz parte da língua de sinais.
- Essa sinalização faz parte da língua de sinais?
Que bonito!
Gostei!
Cá estão os ouvintes que olham os sinalizadores
Entreolham-se...
e mandam
- Cale-se!
- Cale-se!
- Não!
Os sinalizadores continuam sinalizando
Sou convidado a aprender
E eu aprendo, aprendo, aprendo...
Amo!!!
Da flor, sua raiz me é dada.
E a guardo no coração...
Felicidade.
Felicidade.
Felicidade ...
- Tchau...
- Obrigado pela ajuda!
- Obrigado pela ajuda!
- Bye!
- Bye!
Vôo...
Vôo ...
Vôo de volta
Aterrissagem, os sinalizadores estão todos calados.
Vejo o grupo dos falantes todos falam, falam, falam
Olho para os falantes.
Olho para os sinalizadores.
Abro meu coração e dou aos sinalizadores, sinalização,
sinalização, sinalização...
Os falantes nos olham.
Entreolham-se e não se agradam.
- Parem!
- Esperem vocês!
Do coração, meu coração novamente dou a sinalização
Sinalização
Sinalização
Sinalização
Todos, surdos e falantes, unidos.
Para situar os leitores que desconhecem a Libras, optamos por iniciar nossos
comentários fazendo algumas reflexões e esclarecimentos sobre a formulação deste
poema.
Como a língua de sinais é uma língua de construção espacial-visual, dois grupos
são colocados lado-a-lado espacialmente, o grupo dos sinalizadores – usuários da língua
sinalizada, e o dos falantes – usuários da língua oral. Por todo o texto, esses espaços se
mantêm, havendo uma regularidade de uso das duas mãos, sem predomínio da mão
esquerda ou direita. Podemos, assim, visualizar claramente a construção de dois grupos
que são semanticamente marcados por duas imagens. Inicialmente, de desenvolvimento
similar de suas línguas. Um pouco mais adiante, de confronto.
No início, os versos 1, 2, 3 e 4 apresentam o desenvolvimento da língua falada.
Do mesmo modo, os versos 5, 6, 7 e 8 apresentam o desenvolvimento da língua
sinalizada:
1 DESENVOLVER ÁRVORE 5 BASE IGUAL DESENVOLVER ÁRVORE
2 DESENVOLVER ÁRVORE 6 DESENVOLVER ÁRVORE
3 DESENVOLVER ÁRVORE 7 DESENVOLVER ÁRVORE
4
articulação labial de abrir e fechar de lábios
TAGARELAR
continuamente
(mãos semi-aberta, com dedos
curvos unidos paralelos ao
polegar, movimento de abrir e
fechar)
8
articulação labial OI, OI, OI
OI OI OI LÍNGUA-DE-SINAIS,
LÍNGUA-DE-SINAIS, LÍNGUA-DE-
[SINAIS
A partir dos versos 9 a 14, simetricamente, o texto é marcado pela dominância da
mão que representa os falantes, mas a mão que representa os sinalizadores, apesar de
ser colocada em atitude mais passiva, não deixa o espaço de sinalização desse grupo
vazio. Podemos considerar este como sendo um dos exemplos desse cuidado simétrico:
9 FALANTE
+
2p
OLHAR
1p
SINALIZADOR
+
2p
OLHAR
2p
10
....expressão facial de desprezo... exp. f. "autoritária"
2p
OLHAR
1p
2p
OLHAR
2p
2p
OLHAR
1p
2p
MANDAR
1p
CALAR CALAR
11
exp. f. "autoritária"
CALAR VOCÊ
12
negativa com balançar de cabeça
NÃO
13
exp. f. "autoritária"
CALAR VOCÊ
14
negativa com balançar de cabeça
NÃO
Acerca dessa regularidade e do cuidado estético do não predomínio de uma ou
outra mão, Sutton-Spence (2005, p. 60)
29
acrescenta:
Além dessa cuidadosa simetria, há uma retenção adicional de ambas as mãos
a fim de que, mesmo quando um sinal realizado com uma mão é articulado
com a mão dominante, a mão não dominante seja ainda mantida de certa
forma.
Essa simetria influencia diretamente o conteúdo do poema, pois o que primeiro
chama a atenção é a imagem das diferenças de comportamento entre falantes e
sinalizadores. Apesar de colocar o desenvolvimento das duas línguas em patamares
29
Para conferir com o original: On top of this careful symmetry, there is further retention of both
hands so that, even when a one-handed sign is articulated on the dominant hand, the non-
dominant hand is still maintained in some way.
semelhantes, é dado aos falantes, através da expressão facial e dos olhos, poder sobre
os sinalizadores.
Neste poema, a figura humana é o componente principal e desempenha
diferentes papéis. Um grupo, constituído por falantes, exerce o papel de ordenador das
atitudes dos segundo grupo, o dos sinalizadores, que se configuram como
"obedecedores" dessa ordem. Um dos sinalizadores, no entanto, não se deixa subjugar,
nega-se a acatar a ordem dada, viajando e voltando com um conhecimento que lhe
permite uma igualdade discursiva, que propicia uma mudança de atitude no grupo de
sinalizadores do qual inicialmente ele fazia parte. Assim, ele deixa de ser indivíduo
discordante, mas sem voz, para se configurar como modelo de não aceitação da ordem
de parar de sinalizar
30
.
Podemos associar duas perspectivas de viagem feita pelo eu lírico. Uma interna,
de descobrimento de si, e a outra física, de ida a um outro local. As duas, no texto,
fundem-se na possibilidade de auto-conhecimento e, assim, de mudança de atitude.
Nos versos 9, 10, 11, 12, 13 e 14, o ritmo, que no princípio é contínuo, tem sua
mobilidade alterada: a velocidade é a mesma, mas o sinal é carregado de força,
mostrando que a atitude de introspecção é difícil, como também, a procura por um novo
espaço.
9 FALANTE
+
2p
OLHAR
1p
SINALIZADOR
+
2p
OLHAR
2p
10
....expressão facial de desprezo... exp. f. "autoritária"
2p
OLHAR
1p
2p
OLHAR
2p
2p
OLHAR
1p
2p
MANDAR
1p
CALAR CALAR
11
exp. f. "autoritária"
CALAR VOCÊ
12
negativa com balançar de cabeça
NÃO
13
exp. f. "autoritária"
CALAR VOCÊ
14
negativa com balançar de cabeça
NÃO
O verso, FALANTE
+
2p
OLHAR
1p
SINALIZADOR
+
2p
OLHAR
2p
traz toda a carga de
visão da relação de desigualdade do ser ouvinte superior e do ser surdo inferior, através
do modo superior do olhar dos falantes, marcado na expressão facial autoritária que não
30
Por todo o poema, falantes e sinalizadores são, respectivamente, sinônimos para ouvintes e
surdos.
permite que sua ordem seja descumprida. As figuras de repetição e gradação, constantes
nos versos de 9 a 15, são sugestivas da alternância rítmica do poema.
No verso seguinte, a expressão facial é ainda mais forte, aliando-se, ao caráter
autoritário, um olhar com “um quê” de desprezo. O ritmo é alterado, havendo uma força
na realização dos sinais:
....expressão facial de desprezo...
2p
OLHAR
1p
2p
OLHAR
2p
2p
OLHAR
1p
2p
MANDAR
1p
CALAR,
A repetição do verbo OLHAR de um grupo ao outro, do grupo de falantes entre si
e novamente dos falantes para os sinalizadores, reforça a sugestão de não admissão de
questionamento do poder, da ordem estabelecida. Acerca da repetição de sinais
individuais Sutton-Spence (2005, p. 46)
31
coloca:
A repetição de palavras pode parecer paradoxal em uma forma artística da
língua onde a maioria dos possíveis significados podem ser extraídos em um
menor número de palavras. No entanto, palavras repetidas na poesia adiciona
significado extra ao significado que as palavras por si só carregam. O efeito da
repetição de palavras é para trazer ao ambiente os sons ou parâmetros que
fazem as palavras ou também os significados das palavras. Repetição é
também uma parte importante da construção do ritmo do poema.
A negação do direito dos sinalizadores de uso de sua própria língua é um bloco
informativo composto pelos sinais em si, pela modulação rítmica e pela expressão facial
de desprezo.
Essa é uma problemática que marca os Surdos profundamente, em suas histórias
de vida. Todos têm exemplos de momentos em que lhes foi negado o direito de serem
eles mesmos.
Desse modo, o eu lírico se apresenta como indivíduo que vai à procura de espaço
para ser um sinalizador livre, ávido por aprender mais sobre as possibilidades de sua
própria língua, mas, também, apresenta-se como coletivo, quando retrata a experiência,
que é vivida por todos os surdos, de negação da língua de sinais e obrigação de
oralização.
No início, o eu lírico está individualizado, por conseguinte, introspectivo,
angustiado, solitário. Isso se apresenta nos versos 15, 16 e 17 nos quais, o eu, no
poema, ao se negar a obedecer aos falantes, submerge em um ambiente que para nós
se constitui sugestivamente como a água.
31
No original: Repeating words migth seem paradoxal in a language art-form where as much
meaning as possible is squeezed into as few words as possible. However, repeating words in
poetry adds extra significance to the meaning carried in the words alone. The effect of repeating
the word is to bring into the foreground the sounds or parameters that make the words as well as
the meaning of the words. Repetition is also an important part of building up rhythm in a poema.
15
pessoa cabeça para baixo
DESCER
16
k
BUSCAR-INFORMAÇÃO(PESQUISAR)
k'para baixo k
BUSCAR-
INFORMAÇÃO(PESQUISAR)
k'para baixo k
BUSCAR-
INFORMAÇÃO(PESQUISAR)
k'para baixo
17
...expressão facial "uso de força"...
ambiente 1
1i
EU-SAIR
3k
ambiente 2
A água é um meio impossível para o ser humano sobreviver e se relacionar,
respirar, comunicar-se, alimentar-se, etc. Por isso, é possível remeter a angústia sentida
à falta de ter com quem dialogar. No encarte que acompanha a fita, o poeta fala sobre
isso:
Há um tempo atrás, aqui no Brasil, descobri umas coisas muito interessantes
através de pesquisas em Língua de Sinais, mas algumas pessoas ouvintes me
desencorajaram dizendo que tais coisas não tinham valor algum. Eu fui
perdendo o entusiasmo e me sentia desapontado até que fui aos Estados
Unidos, onde me deram a possibilidade de me aprofundar em aspectos da
cultura surda.
No Dicionário de Símbolos, Chevalier e Gheerbrant (1998, p.15), ao apresentarem
as significações simbólicas da água, dizem: "As águas, massa indiferenciada,
representando a infinidade dos possíveis, contém todo o virtual, todo o informal, o germe
dos germes, todas as promessas de desenvolvimento, mas também de todas as
ameaças de reabsorção. Mergulhar nas águas, para delas sair sem se dissolver
totalmente, salvo por uma morte simbólica, é retornar às origens, carregar-se, de novo,
num imenso reservatório de energia e nele beber uma força nova...”.
Desse modo, a forma como o verso foi construído possibilita-nos considerar que a
fuga do eu lírico pela água pode simbolicamente significar a necessidade de reconstrução
de si mesmo e de sua realidade.
Segundo Sutton-Spence, uma alusão é feita quando se fala de uma coisa, mas se
quer falar de outra. A compreensão de uma alusão vai depender do resgate de outras
leituras feitas pelos expectadores, “leitores”. De acordo com a referida autora
32
,
A construção da alusão pode ser sutil e a intenção do poeta para insinuação
não é sempre nenhuma nova criação, pois a audiência poderia não reconhecer
a insinuação. Porém, mesmo que no poema não haja uma completa
32
No inglês: Allusiveness can be subtle and the poet’s intention for allusion is not always highlighted, so the
audience might not recognise the allusion. However, so long as the poem does not entirely rely on the
recognition of the allusion, this is no great loss.
compreensão no reconhecimento da insinuação, esta não é nenhuma grande
perda. Também é possível os leitores acharem um pouco de ressonância em
uma linha que os faça lembrar de outro texto, até mesmo quando o poema não
pretendeu isto.
(SUTTON-SPENCE, 2005, p, 123)
Assim, o sinal usado no verso 15 é BUSCAR-INFORMAÇÃO(PESQUISAR) que
no poema, alusivamente, podemos atribuir o sentido de reflexão e busca interior de
respostas para a angústia vivida pelo eu-lírico.
No verso 18, temos a saída do eu lírico de seu contexto aquático de origem para
um novo ambiente. A saída, no entanto, não é tranqüila, uma vez que a expressão facial
e corporal, além do ritmo lentificado, imprimem a percepção do uso da força para a saída
de um contexto aquático para outro:
...expressão facial de uso da força..
ambiente 1
1i
EU-SAIR
3k
ambiente 2
A respeito da construção rítmica na poesia em língua de sinais, Sutton-Spence
(2005) coloca que esta se realiza pela duração dos sinais, ou seja, pelo movimento de
produção do sinal e pela sua repetição.
No poema em questão, a sugestão de dificuldade na mudança do ambiente está
na alteração no padrão de duração do movimento do sinal que influencia na construção
do ritmo. No caso de
ambiente1 1i
EU-SAIR
3k ambiente 2
, o tempo do sinal é alongado no
ambiente 1 e agilizado quando o eu-lírico transpassa o ambiente 2.
Como os sinais não são holísticos, mas composicionais, o complemento da
informação se dá pela expressão não-manual, composta no primeiro momento pela
expressão facial pelo juntar das sobrancelhas, fechamento parcial dos olhos, aperto dos
lábios e pelo movimento do corpo, que lentamente se inclina para frente, como isso
demandasse o uso de muita força e, no segundo momento, pela movimentação inversa,
levantamento das sobrancelhas, abertura dos olhos e dos lábios e aumento da
velocidade do movimento de nadar.
Transposta a barreira, os versos de 23 a 28 são todos de descobertas sobre as
possibilidades poéticas da língua sinalizada:
23
.................................................exclamativo.............................................................
FLOR ABRIR BRILHAR// FLOR ABRIR BRILHAR// FLOR ABRIR BRILHAR
24
...i....
O-QUÊ // NADAR NADAR NADAR EU-APROXIMAR
25
mãos em d ...i...
PESSOAS-EM-PÉ APROXIMAR-EU//SINAL O-QUÊ
26
mãos em d
SINAL IGUAL LÍNGUA-DE-SINAIS//
27
mãos em d ...int...
SINAL IGUAL LÍNGUA-DE-SINAIS
28
exp.f "agrado"
BONIT@
29 EU-GOSTAR
Nestes versos, o ritmo da descoberta é o mesmo: ágil e carregado de leveza.
Aliada ao ritmo, para transmitir o prazer das descobertas feitas, está a expressão facial
de agrado.
Na estrofe seguinte, os significados que são apresentados a nós falam sobre a
auto-afirmação de ser sinalizador pela negação em obedecer ao falante:
30 FALANTE
+
3P
OLHAR
2P
31
3P
OLHAR
3P 3P
MANDAR
2P
32
exp.f."autoritária"
CALAR
33
exp.f."autoritária"
CALAR
34
negativa com balançar de cabeça
NÃO
35
exp.f "desprezo" e "dar de ombros"
SINALIZAÇÃO-CONTÍNUA
O ritmo desses versos é constante e imprime a idéia de atuação, movimento e
desenvolvimento. A carga informativa se localiza na expressão facial. Os olhares dos
falantes, nesse contexto onde o eu lírico é estrangeiro, porque vem de outro meio, e sua
expressão autoritária nos informam que as posturas dos falantes não são muito
diferentes da dos falantes de origem do eu do poema. No entanto, a dos sinalizadores
sim, pois esses se negam a obedecer. A expressão facial e o comportamento de dar de
ombros e continuar sinalizando estão carregados de uma postura completamente
diferente da dos sinalizadores de origem do eu lírico.
No verso 38, está a segunda metáfora, a raiz da flor a qual é dada ao eu lírico.
38 FLOR
2s
j
CORTAR RAIZ R-A-I-Z
2s
j
DAR
1si
Nesse verso, não é a flor que é dada ao eu lírico, mas sua raiz. Essa raiz sugere
que é possível replantar e fazer brotar a flor da sinalização onde quer que ele esteja,
tornando o eu lírico um possível "plantador" e "repassador" das novas "flores", ou seja, é
possibilitado a ele a mudança dos comportamentos pelo sinalizadores que ele conheceu
em terra estranha.
A metáfora feita entre a raiz da flor e a língua de sinais nos sugere o
estabelecimento da segurança e do desenvolvimento da identidade surda, pela
possibilidade de fincamento da raiz e, a partir daí, o desenvolvimento e disseminação da
língua de sinais, assim como pelo uso desta e pelas relações Surdo-Surdo.
No verso seguinte, o eu lírico guarda a raiz que lhe foi dada no coração. O
coração que, segundo Chevalier e Gheerbrant (1998), é a sede dos sentimentos,
simboliza o amor, afeto e proteção das coisas queridas. No entanto, segundo os mesmos
autores, as civilizações tradicionais localizam no coração "a inteligência e a intuição".
Neste sentido, tem-se a possibilidade de o eu lírico apreender a experiência do
aprendizado como um conhecimento que, intuitivamente, não deve ser apenas seu, mas
passado para o grupo oprimido do qual ele saiu, como possível forma de libertação.
desenho em formato de coração
39 CORAÇÃO
coisa-pequena-perto-do-peito
GUARDAR.
Nos versos seguintes o eu lírico alegre, agradece e se despede:
47
articulação labial
BYE
coisa-plana
VOAR-SOBRE-NUVENS
48
articulação labial
BYE
coisa-plana
VOAR-SOBRE-NUVENS
49
coisa-plana
VOAR-SOBRE-NUVENS
50
coisa-plana
VOAR-SOBRE-NUVENS
51
coisa-plana k
VOAR-SOBRE-NUVENS
i
52
coisa-plana k
ATERRISSAR-SOBRE-CHÃO
k'
muito
53
GRUPO TODOS FALAR
54
1S
OLHAR
3P
GRUPO-FALAR
No poema, há uma diferença de ambientes nos quais o eu lírico se coloca para as
viagens. No princípio, é pela água, meio de regenerescência. Agora, depois das
descobertas feitas, seu retorno é pelo ar, uma sugestão de liberdade e de expansão,
segundo Chevalier e Gheerbrant (1998).
Dos versos 46 ao 53, a percepção de estruturas lingüísticas por repetições
confere densidade às palavras em jogo, posto que reforça o impacto das imagens de
libertação, ao mesmo tempo em que aumentam as expectativas. Com muita propriedade,
a respeito da repetição, Bosi (1997, p. 33) afirma que:
[...] a repetição poética não pode fazer o milagre de me dar o todo,
agora. Ao contrário da visão fulmínea, ao contrário da posse, ela me dá
o sentimento de expectativa. Linguagem, agonia. A repetição me preme
a conhecer o signo que não volta: as diferenças, as partes móveis, a
surpresa do discurso.
Em relação a esse aspecto, podemos, novamente, dialogar com Sutton-Spence
(2005), que trata da repetição de configurações de mão abertas como elemento de
criação de imagens positivas, sendo que nos versos 46 a 51 todos os sinais são
realizados com configurações de mão abertas.
Ainda dialogando com esta autora acerca das imagens positivas, temos também a
simetria horizontal como elemento constituinte da formação dessas imagens, uma vez
que nesse grupo de versos todos os sinais são realizados desde a altura do tórax até o
alto da cabeça.
No nível semântico, buscando informações sobre o significado do Vôo como
símbolo, destacamos que Chevalier e Gheerbrant (1998, p. 964) o vêem como a
expressão de “[...] um desejo de sublimação, de busca de uma harmonia interior, de uma
ultrapassagem de conflitos". Essa simbologia nos possibilita refletir sobre todas as
mudanças ocorridas com o eu lírico: de conhecimentos sobre as possibilidades poéticas
de sua língua, de comportamentos, de encontro consigo e até possíveis atitudes de auto-
afirmação a serem tomadas.
O ritmo, nos versos de 42 a 51, volta a ser leve, o vôo é tranqüilo. Aliada ao ritmo,
a expressão facial nos informa que o eu lírico está em paz consigo, é um retorno feliz.
Ao retornar, distribui o bem que lhe foi dado e estava guardado em seu coração
com os sinalizadores que estavam todos calados. Isso demonstra, também, que houve
uma mudança de atitude do eu lírico frente ao problema da opressão. No início, ele se
nega a obedecer e submerge, solitário. Ao retornar, sua atitude é de juntar forças com
seus pares, dividir com eles o bem que é a raiz da sinalização. No verso 55, o ritmo lento
e leve nos faz sentir como essa doação está carregada da necessidade de união para se
fortalecer contra o opressor.
Por fim, os últimos versos nos falam sobre a coragem de argumentar e mostrar
que é preciso aos falantes entender e respeitar os sinalizadores para que todos vivam em
harmonia.
Não há um sinal que especifique os Surdos e os ouvintes, mas o contexto de
sinalização nos possibilita essa tradução, uma vez que o poeta, ao fazer o sinal UNIÃO,
engloba todo o espaço à sua frente, fazendo um círculo.
56
exp. f "felicidade", "enlevo" muito
CORAÇÃO ABRIR TIRAR LÍNGUA-DE- SINAIS COMEÇAR SINALIZAR
57
exp.f "desagrado"
3pk
OLHAR
1di
SINALIZADOR
+
58
exp.f "desagrado"
3pk
OLHAR
3di
59
3pk
MANDAR
3di
PARAR SINALIZAR
60
1s2
ESPERAR VOCÊ-GRUPO
61 CORAÇÃO ABRIR TIRAR LÍNGUA-DE-SINAIS COMEÇAR
62
muito
SINALIZAR
63
muito
SINALIZAR
64
muito
SINALIZAR
65
exp. f "sorriso"
UNIÃO
Assim, pode-se dizer que o tema do poema é a opressão sofrida na relação dos
sinalizadores com os falantes. O eu lírico tem uma percepção inicial de que os sujeitos se
comunicam de forma diferente, mas as "árvores" das quais as línguas brotam estão
plantadas sobre o mesmo chão, o que, em princípio, significa que têm o mesmo valor.
A ação, no poema, fica por conta da necessidade de novos contatos, que levam o
eu lírico a uma viagem para se fortalecer e retornar defendendo a sinalização. É a busca
pela identidade lingüística e, conseqüentemente, cultural, encontrada e dividida com seus
pares sinalizadores, mas não apenas com estes, também com os falantes. Para o eu
lírico não basta informar e mudar as atitudes dos sinalizadores, é preciso ensinar aos
falantes uma nova maneira de se relacionar com eles, pois para que os falantes mudem
de atitude, precisam re-significar sua forma de ver os sinalizadores e isto acontecerá,
entre outros aspectos, mediante à mudança de postura do próprio sinalizador com
relação a sua língua e suas possibilidades de expressão.
A recorrência da temática sobre o Surdo, seja para apresentar um símbolo
nacional ou para discutir a relação entre Surdos e ouvintes e, nessa discussão, celebrar a
língua de sinais como língua da comunidade surda, pode ser considerada como
expressão da necessidade que o poeta tem de, via arte, fazer com que sua audiência
reflita sobre essas questões.
Desse modo, após a análise dos três poemas, podemos entender que a língua de
sinais e a luta constantemente travada pelos Surdos pela sua manutenção constituem
preocupação contínua para o poeta.
É nesse sentido lembramos das considerações de Sacks (1998, p. 157), para
quem “Os surdos consideram a língua de sinais uma parte imensamente íntima,
indissociável de seu ser, algo de que eles dependem, e também, assustadoramente, algo
que lhes pode ser tirado a qualquer momento (como foi, de certo modo, pela Conferência
de Milão em 1880)”.
Essa preocupação é perfeitamente compreensível porque, após anos de opressão
lingüística e cultural, há nos surdos uma sensação de que é preciso construir, entre os
próprios surdos, uma consciência do valor que a língua de sinais tem para eles, de modo
que ela não corra o risco de ser usurpada novamente.
4. O desvendamento simbólico: o sabor
da poesia
Quem, de três milênios,
não é capaz de se dar conta
Vive na ignorância, na sombra
À mercê dos dias, do tempo.
Johann Wolfgang von Goethe
De acordo com Leahy-Dios (2004), a escola brasileira é fortemente marcada pelo
historicismo literário como modelo teórico de abordagem da literatura mundial e brasileira.
Basicamente, os estudos realizados e as aulas dadas no ensino médio compreendem a
compilação de informações sobre vida e obra dos autores considerados como os grandes
nomes da literatura. Nessas aulas, os interesses e as atenções voltam-se apenas para a
memorização das escolas literárias e, nestas, para o biografismo.
Com essa abordagem marcadamente historicista, os métodos de ensino da
literatura se restringem ao repasse de informações que são transmitidas em sala de aula
numa perspectiva linear e acrítica, não havendo cortes sincrônicos para a inserção de
discussões do tipo: condições sociais, políticas, econômicas, ideológicas vivenciadas
pelo poeta para a produção do texto; relações entre o estilo de época e o do poeta;
condições de distribuição do texto; por fim, condições sociais, políticas, econômicas e
ideológicas para a recepção dos leitores a essa obra.
Abordagens mais de vanguarda sobre como proceder metodologicamente com o
texto poético buscam não restringir as discussões sobre a literatura ao espaço da sala de
aula e às tabelas com nomes de autores, obras e datas. As reflexões sobre como lidar
com o texto artístico-literário, como objeto de estudo escolar procuram conhecer as
diferentes visões sobre as diversas formas de pensar sobre a literatura, numa tentativa
de re-significação metodológica.
As discussões sobre o que é literatura e como deve ser metodologicamente
abordada não são recentes. Aqui, por causa da especificidade do trabalho,
apresentaremos, em linhas gerais, quatro perspectivas de estudos em literatura: o
historicismo literário, o formalismo russo, a estilística e a estética da recepção.
Nossa opção por essas escolas deve-se à escolha que cada uma faz do papel e
valor do produtor-poeta, do texto e do leitor.
No historicismo literário, fruto do estruturalismo positivista, fortemente
disseminado aqui no Brasil no século XIX, a análise literária é feita a partir do critério de
evolução cronológica. Desse modo, os autores são classificados em grupos e compilados
por data de nascimento, ano da obra, data de morte, tipologia e gênero textual e,
também, por critério de valor, ou seja, há uma classificação canônica que determina
quem são os grandes autores e os medíocres.
Tynianov (1976), criticamente, diz que o historicismo mantém um estatuto
colonialista e acrescenta: “A teoria dos valores na ciência literária conduz-nos ao estudo
perigoso dos fenômenos principais isolados e reduz a história literária à ‘história dos
gerais’ ” (p. 105).
No modelo de estudo gerado pelo historicismo literário, o gênero, a forma e o
estilo do texto estão subordinados ao tempo cronológico. No entanto, o texto literário é
heteróclito, portanto, não se adequa a regras pré ou pós-estabelecidas e destrói o modelo
cronológico do historicismo. Carpeaux (1978) exemplifica da seguinte forma a falta de
lógica na lógica do historicismo:
A origem contraditória dessas curiosidades cronológicas revela-se, com
evidência, na Cambridge History of English Literature. Os editores adotaram a
distribuição convencional da matéria segundo épocas (Idade Média,
Renascença, etc., até um «Século XIX, 1ª parte» e «Século XIX 2ª parte»;
dentro dessas épocas separam-se os gêneros, e dentro de cada gênero
aparecem os poetas e escritores em ordem rigorosamente cronológica,
conforme os anos de nascimento. Em conseqüência, aparece Donne antes de
Shakespeare (porque a poesia precede ao teatro), Wordsworth antes de Burns,
Swinburne antes de Dickens, o naturalista Gissing antes de Ruskin e Pater. O
capricho dos anos de nascimento é responsável pelo fato de Thackeray (nasc.
em 1811), autor de Vanity Fair (1847) e Henry Esmond (1852), aparece antes
de Dickens (nasc. em 1812), autor do Pickwick Club (1836), Oliver Twist
(1838), Old Curiosity Shop (1841) e Christmas Carol (1843).
(p.26).
O referido autor ainda reflete: “Com efeito, muito mais importantes que o fio
cronológico dos acontecimentos literários são as relações estilísticas e ideológicas entre
autores e obras” (CARPEAUX, 1978. p.26).
Nesse contexto de abordagem da obra literária, para o historicismo literário o leitor
é depósito de informações, sem papel no processo de leitura. Sua apreciação e análise
de textos literários, no nosso caso, poemas, é considerada como irrelevante no processo.
Assim, o valor de uma obra está diretamente relacionado à sua posição no cânone e não
nas opiniões que possivelmente leitores possam ter acerca da mesma.
O formalismo russo surgiu como modelo de estudo da literatura, que a instituía
como objeto autônomo de investigação. A marca dessa escola era a preocupação com a
forma. Nesse sentido, todos os elementos que compunham os procedimentos artísticos
empregados para a construção da obra literária eram imprescindíveis para sua análise.
Assim, por meio de critérios definidores de como deveria se constituir a linguagem
artística e a linguagem prática, o formalismo instituía a necessidade de conhecimento dos
procedimentos de produção.
Jauss (1994, p.18) fala do seguinte modo do trabalho dos formalistas:
Assim, o processo de percepção de arte surge como um fim em si mesmo,
tendo a perceptibilidade da forma como seu marco distintivo e o desvelamento
do procedimento como princípio para uma teoria que, renunciando
conscientemente ao conhecimento histórico, transformou a crítica de arte num
método racional.
E ainda coloca que, no início do método, a historicidade da obra de arte literária
foi negada, mas que, ao longo de sua construção, ela reapareceu. A conclusão que os
formalistas chegaram é a de que o estudo da literariedade de uma obra não pode ser
feito apenas sincronicamente, mas sua compreensão depende também das relações
construídas diacronicamente.
Na visão dos formalistas, há várias escolas literárias em um mesmo período e a
evolução dos gêneros e dos estilos depende tanto de fatores sociais, políticos,
ideológicos, quanto da reelaboração interna dos gêneros. Nesse sentido, a evolução dos
sistemas que compõe a literatura precisa ser vista desde o seu nascimento, passando
por sua função social e efeito histórico. De acordo com Jauss (1994, p. 20),
[...] nas palavras de Roman Jakobson e Iúri Tynianov – todo sistema
apresenta-se necessariamente como uma evolução, e esta, por sua vez,
carrega forçosamente um caráter sistemático. Contudo, compreender a obra de
arte em sua história – ou seja, no interior da história da literatura definida como
uma sucessão de sistemas – ainda não é o mesmo que contemplá-la na
história – isto é, no horizonte histórico de seu nascimento, função social e efeito
histórico.
Como no método de análise literária anteriormente discutido, na perspectiva
formalista, o leitor não é considerado como partícipe do processo de análise da obra de
arte literária.
A estilística, assumindo uma preocupação com o texto enquanto obra de arte
literária, é uma escola que substitui o enfoque positivista da história da literatura por
grupos estilísticos para o estudo da crítica literária. Nessa escola, são completamente
descartadas as influências históricas, sociais e pessoais vividas pelo autor da obra.
Apenas a obra importa.
Carpeaux (1978) faz uma crítica à estilística que reside no fato de esta
desconsiderar que a produção individual não é fruto apenas da intuição, mas também da
apreensão de influências racionais das diversas vivências do autor. Em suas palavras:
“Além daquele «fator individual», que não é possível desprezar nem será desprezado,
agem influências «racionais» - política, situação social, correntes filosóficas, e científicas
– impondo a análise ideológica” (p.33).
Nessa perspectiva, são desconsideradas as condições de produção do texto
poético. Quanto à apreciação feita pelo leitor, esta se constitui apenas como fruição. É a
apreciação ingênua da arte, a busca do belo pelo simples prazer de apreciar. O leitor
empírico, real, que questiona o visto, busca informações, quer se auto-conhecer, por
meio da literatura, é completamente desconsiderado como parte do processo de
existência de uma obra de arte literária e não é relevante para a compreensão do valor
desta enquanto literatura.
Por fim, surgida na década de sessenta do século passado, na Alemanha, a
Estética da Recepção tem em Rans Robert Jauss seu principal expoente. O enfoque
teórico de abordagem da literatura dessa época era, marcadamente, estruturalista e
muitas eram as críticas a esse modelo. Já o quadro político e intelectual configurou-se
como o alicerce que possibilitou o surgimento da referida teoria, na verdade, do referido
método de estudo e análise da obra de arte literária. Zilberman (1989, p.8) caracteriza da
seguinte forma o período:
Talvez o traço mais marcante dessa década tenha sido a revelação do “poder
jovem”, a juventude vindo a constituir uma força política até então
desconhecida, de um lado, por rapidamente converter seu inconformismo em
revolta, de outro, por atuar independentemente dos partidos existentes ou das
ideologias de esquerda ou direita herdadas das gerações anteriores.
Diferentemente do historicismo literário, da estilística e do formalismo, a estética
da recepção procurou sistematizar seu método de análise tanto sincrônica, quanto
diacronicamente. Considera também que o leitor, através de sua percepção da obra,
chamada por Jauss de recepção, é o elemento fundante de análise do valor literário da
obra abordada, pois, para este teórico da literatura, saber como uma obra foi lida, de que
modo influenciou mudanças ou ratificou conceitos e como foi transmitida é imprescindível
para avaliar seu valor.
Jauss condena o historicismo literário que, para ele, está fossilizado e não serve
mais como forma de construção do conhecimento sobre a literatura e não informa nada
sobre o valor das obras.
Nas palavras do próprio Jauss (1994, p.5):
Os patriarcas da história da literatura tinham como meta suprema apresentar,
por intermédio da história das obras literárias, a idéia da individualidade
nacional a caminho de si mesma. Hoje, essa aspiração suprema constitui já
uma lembrança distante. Em nossa vida intelectual contemporânea, a história
da literatura, em sua forma tradicional, vive tão-somente uma existência
miserável, tendo se preservado apenas na qualidade de uma exigência caduca
do regulamento dos exames oficiais. Como matéria obrigatória do currículo do
ensino secundário, ela já quase desapareceu na Alemanha. No mais, histórias
da literatura podem ainda ser encontradas, quando muito, nas estantes de
livros da burguesia instruída, burguesia esta que, na falta de um dicionário de
literatura mais apropriado, as consulta principalmente para solucionar charadas
literárias.
Em suas reflexões, ele também discute o formalismo russo. A crítica é feita muito
menos pelo modo como eles propõem a abordagem da história, apesar de acreditar que
a proposta não responde às questões cruciais da relação literatura e história, e muito
mais pela preocupação exacerbada com a forma do texto. Segundo Zilberman (1989, p.
10), no formalismo russo, Jauss direciona sua crítica também à:
[...] afirmação da autonomia absoluta do texto, que se sobrepõe ao sujeito por
contar com uma estrutura auto-suficiente, cujo sentido advém tão-somente de
sua organização interna. Devido a isto, é a estrutura o único objeto a ser
descrito pelo estudioso da literatura, jamais porém interpretado.
Assim, Jauss constrói uma perspectiva de análise da literatura que parte do
princípio de que, se uma obra foi escrita, deve ter sido lida, portanto, compreendida ou
não, avaliada, transmitida. De alguma forma, teve sentido para a sua época, pela
aceitação ou pela rejeição de leitores reais, empíricos. Desse modo, o estudo da
literatura pela via da estética da recepção é construído a partir do olhar desses leitores,
de sua recepção.
A recepção, no entanto, não se configura como mera absorção individual, mas
como determinada época leu e compreendeu uma obra. Desse modo, ao falarmos de “o
leitor”, na verdade estamos falando de “os leitores”, ou seja, de como uma sociedade, em
um determinado período, leu um texto literário. São consideradas por Jauss, nesse
processo, as condições sociais, políticas, econômicas, ideológicas que compõem o
quadro histórico de produção e distribuição, em que vivem autor e leitor.
Segundo Iser (1996), qualquer obra existe apenas no plano virtual até que tenha
sido lida, pois o texto “se realiza só através da constituição de uma consciência
receptora. Desse modo, é só na leitura que a obra enquanto processo adquire seu
caráter próprio” (p.51).
Em suma, a estética da recepção não se preocupa em construir uma história da
literatura, mas em ter um quadro claro da historicidade da literatura, quadro esse só
possível de ser construído com o leitor. Forma e estilo definem se uma obra de arte
literária tem realmente valor, não apenas pelo viés do crítico de arte, mas pelo modo
como cada sociedade a leu.
O texto literário tem a capacidade de apresentar realidades verossimilhantes à
realidade histórica vivida. Muitas vezes nos surpreendemos em nos sentirmos muitos
mais tocados com a realidade vivenciada na poesia do que com aquela da vida real. Esse
tipo de sensação é o que Iser (1996) chama de efeito, sendo este vivido na relação que o
leitor tem com o texto. Nesse sentido, para ele, “uma teoria do efeito está ancorada no
texto – uma teoria da recepção está ancorada no juízo histórico dos leitores” (p.16). As
duas constituem a estética da recepção: Jauss construindo um método para
entendimento sobre como se processa a recepção e Iser uma teoria sobre o efeito. As
duas são complementares, portanto, lastro para esta pesquisa.
A base teórica da estética da recepção fundamenta-se em sete teses como
princípios para o estudo de uma obra literária.
Na primeira tese, Jauss (1994, p.25) diz que “A obra literária não é um objeto que
exista por si só, oferecendo a cada observador em cada época um mesmo aspecto”. Isso
pode significar, a princípio, duas coisas. A primeira é que o valor de uma obra precisa ser
analisado dentro do contexto histórico de sua produção a partir dos registros acerca de
como ela – obra – repercutiu na sociedade. A segunda é que leitores de épocas
diferentes do momento primeiro de circulação do texto terão uma outra percepção com
relação ao texto lido. Isto ocorre porque o leitor, enquanto sujeito ativo, imprime à obra
diferentes sentidos ao longo da história, atualizando a leitura da obra lida, de acordo com
as influências históricas, sociais e lingüísticas vividas.
Para o autor, nesse processo, a apreensão de uma obra literária constitui-se
diferentemente da apreensão de uma realidade política, pois os efeitos da leitura da obra
ocorrem em nível psicológico na mudança de horizonte de expectativa do leitor. Já a
apreensão do fato político é imperiosa, pois afeta a organização de uma sociedade como
um todo, tenha ela leitores ou não.
Em sua segunda tese, Jauss argumenta que a recepção e o efeito do texto
literário são historicamente influenciados e constituem o sistema de referência que temos.
É a partir desse sistema de referência, construído por leituras anteriores, que definimos
um padrão sobre o gênero do texto, sua forma e como utiliza a linguagem poética em
oposição à prática. Nas palavras do filólogo (1994, p.28):
Assim como em toda experiência real, também na experiência literária que dá a
conhecer pela primeira vez uma obra até então desconhecida há um “saber
prévio”, ele próprio um momento dessa experiência, com base no qual o novo
de que tomamos conhecimento faz-se experienciável, ou seja, legível, por
assim dizer, num contexto experimental. Ademais, a obra que surge não se
apresenta como novidade absoluta num espaço vazio, mas por intermédio de
avisos, sinais visíveis e invisíveis, traços familiares ou indicações implícitas,
predispõe seu público para recebê-la de uma maneira bastante definida. Ela
desperta a lembrança do já lido, enseja logo de início expectativas quanto a
“meio e fim”, conduz o leitor a determinada postura emocional e, com tudo isso,
antecipa o horizonte geral da compreensão vinculado, ao que se pode, então
e não antes disso -, colocar a questão acerca da subjetividade da interpretação
e do gosto dos diversos leitores ou camadas de leitores.
Nesse sentido, não lemos desprovidos de qualquer expectativa ou engajamento
filosófico, político ou ideológico. A leitura é um ato que, mesmo individual, acontece sob
influências do momento sócio-histórico-cultural vivido.
A terceira tese trata dos horizontes de expectativa da obra e do leitor. Assim, a
obra literária tem eminente função, pela identificação ou pelo estranhamento, muito mais
pelo estranhamento, na opinião de Jauss, de dar respostas à realidade sem,
necessariamente, dela ter se utilizado. A desestabilização do horizonte de expectativa
após uma leitura se constitui no que por ele é chamado de “mudança de horizonte” (p.
31).
Partindo desse princípio, a obra que não produz esse efeito não passa de arte
“culinária” ou ligeira, pois não propicia mudança no padrão de reflexão do seu leitor. Esse
tipo de obra apenas ratifica o já sabido e, portanto, não contribui em nada para que o
horizonte de expectativa do leitor seja alterado.
Uma obra mexe com o horizonte de expectativa do leitor muito mais pelo
estranhamento, pois o gosto pelo velho modelo estético está definido. Muitas vezes, é ao
longo do tempo que a nova experiência estética vai definindo novos valores. Assim, uma
obra não precisa, necessariamente, ter demarcado seu público no momento de sua
produção. Pode acontecer de o horizonte de expectativa da obra e do público serem
diferentes, até que em processo de conhecimento da nova obra o poder do novo altere o
horizonte de expectativa do público e o velho gosto seja alterado.
A quarta tese trabalha com a valorização do resgate da recepção da obra literária
no momento histórico de sua produção, diferentemente do historicismo literário, que
cristaliza a obra no cânone de cada período e reproduz acriticamente a lista dos autores
e obras que têm valor em cada época. Para a estética da recepção, uma obra literária
antiga só pode ser compreendida quando se tem conhecimento da história de sua
recepção, ou seja, dos sentidos dados ao texto pelos leitores de sua época. São os
registros sobre sua recepção fundamentais para a compreensão de quais eram as
perguntas da sociedade naquele momento e como a obra tenta respondê-las. Nas
palavras do filólogo (1994, p.35):
Quando não se conhece o autor de uma obra, quando sua intenção não se
encontra atestada e sua relação com suas fontes e modelos só podem ser
investigadas indiretamente, a questão filológica acerca de como,
“verdadeiramente”, se deve entender o texto – ou seja, de como entendê-lo “da
perspectiva de sua época” – encontra resposta sobretudo destacando-o do
pano de fundo daquelas obras que ele, explícita ou implicitamente,
pressupunha serem do conhecimento do público seu contemporâneo.
De acordo como Zilberman (1989), essas quatro primeiras teses se constituem
nas premissas que constituem a estética da recepção. Assim, Jauss tem o seguinte tripé
para análise de uma obra: a obra, seu contexto de produção e circulação, e o público.
A partir da quinta tese, Jauss (1994) constrói sua proposta metodológica de
reformulação da abordagem da história da literatura.
Para Zilberman (1989), o objetivo de Jauss, ao elaborar sua teoria sobre a
recepção e o efeito que a literatura, enquanto arte, causa em seu leitor, é alterar o quadro
teórico geral, considerando não apenas o texto em si, mas também a perspectiva do
sujeito produtor, do consumidor e a interação mútua dos dois. Sua visão é a da arte como
formadora e modificadora da percepção, enxergando nessa relação a obra de arte na
história. Desse modo, Zilberman (1989, p. 33) coloca que, para o teórico alemão, "a vida
histórica da obra de arte literária não pode ser concebida sem a participação ativa de seu
destinatário".
Nessa tese, a delimitação situacional do texto constitui o primeiro passo
metodológico, considerando a abordagem da obra “[...] isolada em sua ‘série literária’, a
fim de que se conheça sua posição e significado histórico no contexto da experiência da
literatura” (p. 41). Essa proposta permite-nos ver em quais momentos da história uma
obra ganhou ou perdeu importância. São as várias leituras da mesma obra, em diferentes
épocas, que compõem o perfil de quais são as questões mais importantes para cada
sociedade, em cada tempo.
Nessa perspectiva, a obra é vista tanto com relação ao seu gênero e sua filiação
de estilo, no momento primeiro de sua produção, e sua repercussão nesse primeiro
momento, quanto como referencial para a mudança do estilo de determinado gênero e
sua repercussão em diferentes épocas.
A sexta tese propõe dois movimentos para a abordagem de uma obra: o
diacrônico e o sincrônico. Para o teórico, não é na sucessão estagnada desses sistemas
que vamos compreender o valor de uma obra de arte literária. Para ele, é na intersecção
entre diacronia e sincronia que a historicidade da literatura se revela. Assim, é preciso
buscar entender uma obra em sua existência ao longo dos tempos, mas também, dentro
da realidade específica estudada, sua relação com outras obras do mesmo período ou
em períodos diferentes. Nas palavras do autor:
Considerando-se que cada sistema sincrônico tem de conter também seu
passado e seu futuro, na condição de elementos estruturais inseparáveis, o
corte sincrônico que passa pela produção literária de determinado momento
histórico implica necessariamente outros cortes no antes e no depois da
diacronia” (JAUSS, 1994, p.48).
Para Jauss, o estudo apenas diacrônico é mera contemplação, não revelando a
verdadeira dimensão histórica dos valores, formas e estilos do gênero a que uma obra
teve que se impor. Conhecer uma obra de arte demanda também o conhecimento de
suas relações com outras obras no seu próprio tempo:
A contemplação puramente diacrônica – por mais conclusivamente que ela,
nas histórias dos gêneros, logre explicar modificações segundo a lógica
imanente de inovação e automatização, problema e solução – somente alcança
a dimensão verdadeiramente histórica quando rompe o cânone morfológico,
quando confronta a obra importante do ponto de vista da história das formas
com os exemplos historicamente falidos, convencionais, do gênero e, além
disso, não deixa de considerar a relação dessa obra com o contexto literário no
qual ela, ao lado de outras obras de outros gêneros, teve que se impor.
(JAUSS, 1994, p. 47 e 48)
A sétima e última tese propõe que o estudo de uma obra seja feito pela
observação da relação entre a literatura e a realidade social vivida pelo leitor. Segundo
Jauss (1994, p.50), “A função social somente se manifesta na plenitude de suas
possibilidades quando a experiência literária do leitor adentra o horizonte de expectativa
de sua vida prática, pré-formando seu entendimento do mundo e, assim, retroagindo
sobre seu comportamento social”. A mudança possibilitada pela literatura acontece de
dentro para fora.
Isto significa que é preciso relacionar uma obra, sua aceitação ou rejeição pelo
público, com a história particular ou a história geral de uma sociedade, em determinada
época, para revelar a verdadeira dimensão do poder da literatura. A recepção de um
texto literário demanda um efeito iniciado na mudança interior do leitor e efetivado, por
exemplo, na mudança de relações sociais.
De acordo com Zilberman (1989, p. 54), faz parte do suporte teórico utilizado para
o desenvolvimento das teses de Jauss a elaboração dos conceitos de poíesis, aisthesis e
karthasis que se constituem como atividades simultâneas e complementares.
A poíesis é o primeiro plano, o da consciência produtora, e se constitui da
interação leitor–texto e corresponde ao poder que a obra de arte literária tem de se
integrar tanto no nível da universalização dos sentidos, como, também, da sensação de
individualização da obra lida.
Assim, na mesma medida em que fala de questões universais da humanidade, a
obra de arte literária causa no leitor a sensação de que foi feita para ele. Nesse
momento, investe o leitor do prazer de sentir-se co-autor dela.
A aisthesis é o plano da consciência receptora. Está voltada para a mudança de
horizonte do leitor que, por causa da experiência estética, renova sua percepção sobre a
realidade vivida. O efeito estético acontece por causa da atuação do leitor sobre o texto,
pois este apenas deixa de ser virtual para ser real na ação do leitor sobre ele. De acordo
com Zilberman (1989, p.55): “O segundo plano parece mais relacionado à experiência
estética, enquanto tal, dizendo respeito ao efeito, provocado pela obra de arte, de
renovação da percepção do mundo circundante”.
São introduzidas nas análises literárias, por causa da aisthesis, a preocupação de
entender como se processa a interpretação, dando ao leitor um destaque e um papel no
processo de construção de conceito acerca de uma obra literária. Com relação a isto, Iser
(1996, p. 49) coloca:
A interpretação começa hoje a descobrir sua própria história, ou seja, não só os
limites de suas respectivas normas, mas também os fatores que não se
manifestam sob as normas tradicionais. Um desses fatores é, sem dúvida, o
leitor, ou seja, o verdadeiro receptor dos textos. Enquanto se falava da intenção
do autor, da significação contemporânea, psicanalítica, histórica etc. dos textos
ou de sua construção formal, os críticos raramente se lembraram de que tudo
isso só teria sentido se os textos fossem lidos.
Como a estética da recepção trabalha com o conceito de horizonte de expectativa,
que é alterado pelo efeito causado após a leitura da obra, Iser (1996, p. 53) reflete que é
preciso buscar no leitor as respostas sobre o texto, pois qualquer juízo de valor não pode
preceder o ato da leitura e de sua interpretação. Nas suas palavras,
Daí segue que devemos substituir a velha pergunta sobre o que significa esse
poema, esse drama, esse romance pela pergunta sobre o que sucede com o
leitor quando com sua leitura dá vida aos textos ficcionais. [...] Se o texto
ficcional existe graças ao efeito que estimula nas nossas leituras, então
deveríamos compreender a significação mais como o produto de efeitos
experimentados, ou seja, de efeitos atualizados do que como uma idéia que
anteceda a obra e se manifesta nela.
(ISER ,1996, p. 53)
Por fim, a karthasis, se configura como uma mudança da percepção sobre o
entorno vivido após a leitura de uma obra de arte. Sua vivência provoca novos
comportamentos sociais. É por meio do efeito catártico, sofrido após a leitura de um texto
literário, que o leitor re-significa suas normas de conduta social.
Apesar de considerar a catarse como elemento importante de alteração do estado
psicológico do leitor, conseqüentemente, de uma possível mudança de postura, para
Jauss, a arte não tem objetivo pedagógico, ou seja, não é o objetivo primeiro da leitura
literária ensinar a relacionar ou se comportar no mundo. A literatura e,
consequentemente, seu possível efeito catártico não deve ser entendida como objeto
educativo ou como veículo para disseminação de normas pedagógicas.
Zilberman (1989, p. 57) coloca essas idéias da seguinte forma:
Porque a arte produz a identificação entre o espectador e os elementos – o
tema, os heróis ou ambos – ali apresentados, ela pode agir como transmissora
de normas. Isto não a torna pedagógica, nem Jauss está privilegiando os
gêneros didáticos: o fato de veicular normas não a torna educativa. Além disso,
como se viu, a arte tende a romper com as normas conhecidas e antecipar
outras, liberando o espectador dos constrangimentos do código dominante.
Jauss (1994) atribui esse poder catártico à arte de vanguarda, pois esta, devido a
sua criatividade, produz conhecimento. No entanto, nem toda obra tem efeito catártico.
Sobre esse aspecto, Jauss, segundo Zilberman (1989), critica a indústria cultural de
massa por reproduzir o já sabido e ratificar o já estabelecido, contribuindo para a
reificação do homem.
A partir desse aporte teórico, partimos para analisar a recepção dos poemas pelos
instrutores surdos. Para isso, levaremos em consideração dois elementos. O primeiro
está relacionado às histórias de vida dos instrutores, seus perfis individuais, sociais e
educacionais, quais sejam, participação na comunidade de surdos e na escola específica
para surdos e o que eles conhecem da literatura – dos ouvintes e dos surdos.
Considerando esse contexto, acreditamos ter delimitado o horizonte de expectativa antes
da leitura das obras.
O segundo está relacionado ao fato de os surdos serem bilíngües-biculturais, isto
é, são sujeitos que em maior ou em menor quantidade, por causa da vida inserida numa
sociedade majoritariamente ouvinte, recebem influências da língua portuguesa e da
cultura por ela passada. Isso significa o conhecimento, em algum nível, de como a
sociedade majoritária ouvinte elabora e estuda a poesia nas escolas. Acreditamos que
estes dois elementos contemplam as teses de Jauss e podem ser usados como eixo
norteador de nossas análises.
4.1. De vida e de poesia: a leitura e a discussão dos textos escritos e em Libras
No capítulo dois, construímos um panorama das construções lingüísticas, sociais,
históricas e culturais dos instrutores participantes da pesquisa que delimitam suas
condições objetivas e subjetivas para a recepção dos poemas. Contudo, como estamos
lidando com leitura, acreditamos na relevância da apresentação do conceito de efeito de
Iser (1996), a partir de suas teorizações sobre o que é interpretação, texto e leitor e as
dimensões da leitura colocadas por Jouve (2002) para, dialogando com esse aporte
teórico, discutirmos as leituras feitas pelos instrutores.
Estamos nesse momento assumindo que o poema, seja ele escrito ou sinalizado,
é um texto e, enquanto tal, pode ser lido, tanto por escrito como em VHS.
Segundo Jouve (2002), aparentemente a interpretação se realiza como se fosse
um dado natural. No entanto, a nossa significação se dá por meio de normas históricas.
O texto ficcional traduz uma realidade que não existe fora dele, mas quando o lemos
damos significação a essa realidade.
Assim, o texto constitui-se como objeto que depende da ação do sujeito. Ler um
poema, por exemplo, é construir sentidos que dependem de elementos objetivos e
subjetivos. Podemos destacar como elementos objetivos o conhecimento da língua na
qual o texto foi produzido e o domínio de como se processa o sistema de escrita dessa
língua, se o texto for escrito. Como elementos subjetivos, o destaque está para as
experiências vividas e outras leituras realizadas.
Nesse processo, o texto, ao ser apreendido, desaparece enquanto objeto externo,
palpável, e passa a ser constitutivo do sujeito. Seu sentido na relação com o leitor não
precisa mais ser explicado, uma vez que passa a ser um efeito experimentado.
Assim, constitui-se uma oposição entre efeito e explicação do lido. Para Iser
(1996), isso significa que o crítico de literatura, enquanto explicador do significado oculto
dos textos ficcionais perde sua função. Segundo ele, uma obra de arte literária não
precisa ser explicada, precisa ser experimentada.
Ainda de acordo com Iser (1996), o conceito de interpretação como significação
está diretamente vinculado à visão clássica de que a obra de arte tem a função da
representação totalizante da realidade. É como se o texto ficcional assumisse o papel de
documento de uma dada realidade. Para o autor, essa perspectiva diminui as
possibilidades de acesso ao texto e das experiências que este pode proporcionar ao seu
leitor, pois não é função da arte representar a realidade, mas “equilibrar o déficit que os
sistemas dominantes produzem”:
Isso se mostra quando a interpretação, interessada na descoberta de
significados ocultos, fundamenta seu modo de proceder em postulados de
teorias hoje assentes, cuja validade a obra de arte parece representar. E assim
não surpreende que os textos literários foram considerados ora testemunha do
espírito da época, ora como reflexo de condições sociais, ora como expressão
das neuroses dos seus autores etc., os textos foram nivelados como
documentação e, desse modo, se elimina aquela dimensão que os diferencia
da mera documentação: a possibilidade privilegiada de experimentar na leitura
o espírito da época, as condições sociais e as disposições dos seus autores.
Pois é característico dos textos literários que não percam sua capacidade de
comunicação depois que seu tempo passou; muitos deles ainda conseguem
“falar” mesmo depois que sua “mensagem” se tornou histórica e sua
“significação” se trivializou. (p. 40)
Historicamente, as explicações sobre os textos literários buscavam a intenção do
autor, sua construção formal, psicanalítica, histórica, mas não consideravam o principio
básico de existência de um texto, que é a leitura. Iser (1996) apresenta uma nova
perspectiva, um novo fator a ser considerado ao se falar em interpretação, o leitor.
Desse modo, nos é apresentado dois pólos de uma relação interdependente e
convergente, por meio da qual uma obra literária se realiza: o artístico, constituído no
texto, criado pelo autor; e o estético, que significa a concretização que se realiza no leitor.
A efetiva existência da obra não pode, então, concentrar-se num dos dois pólos ou
priorizá-lo. Assim, é nas estruturas fundamentais do texto que se constituem as
condições elementares dessa interação, mas sua função para apreensão do texto não
acontece nele, mas na medida que afetam o leitor. No dizer de Iser (1996, p. 51):
Isolar os pólos significaria a redução da obra à técnica de representação do
texto ou à psicologia do leitor; desse modo, se elimina justamente o processo
que se pretende analisar. [...] Em obras literárias, porém sucede uma interação
na qual o leitor “recebe” o sentido do texto ao constituí-lo. Em lugar de um
código previamente constituído, o código surgiria no processo de constituição,
em que a recepção da mensagem coincide com o sentido da obra. Se isso é
verdade, temos de partir do pressuposto de que as condições elementares de
tal interação se fundam nas estruturas do texto. Estas são de natureza
complexa: embora estruturas do texto, elas preenchem sua função não no
texto, mas sim à medida que afetam o leitor.
Uma obra literária, ao ser lida, pode suscitar diferentes impressões, que ao serem
explicitadas, numa tentativa de avaliação do seu valor pelos críticos, são,
invariavelmente, dicotômicas. Isto ocorre porque normalmente os críticos tentam
argumentar a partir de uma análise da forma e do estilo como modo de definir critérios
objetivos sobre os valores que a obra possa ter ou não. No entanto, a avaliação do valor
da obra é sempre norteada por suas preferências, o que a torna subjetiva.
A partir desse quadro teórico, Iser (1996) coloca que não seria possível uma teoria
do texto literário sem a introdução do leitor, pois a obra de arte literária apenas adquire
uma realidade ao ser lida. Dessa forma, ele apresenta o conceito de leitor implícito:
[...] o leitor implícito não tem existência real; pois ele materializa o conjunto das
preorientações que um texto ficcional oferece, como condições de recepção, a
seus leitores possíveis. Em conseqüência, o leitor empírico não se funda em
um substrato empírico, mas sim na estrutura do texto. Se daí inferimos que os
textos só adquirem sua realidade ao serem lidos, isso significa que as
condições de atualização do texto se inscrevem na própria construção do texto,
que permitem constituir o sentido do texto na consciência receptiva do leitor. A
concepção do leitor implícito designa então uma estrutura do texto que
antecipa a presença do receptor. (p. 73)
Diretamente relacionado ao conceito de leitor está o de texto apresentado por Iser
(1996):
Em conseqüência, todo texto literário oferece determinados papéis a seus
possíveis leitores. Esses papéis mostram dois aspectos centrais, que apesar
da separação exigida pela análise, são muito ligados entre si: o papel de leitor
que define como estrutura do texto e como estrutura do ato. Quanto à estrutura
do texto, é de supor que cada texto literário representa uma perspectiva do
mundo, criada por seu autor. O texto, enquanto tal não apresenta uma mera
cópia do mundo dado, mas constitui um mundo do material que lhe é dado. (p.
73)
Assim, texto e leitor podem ser compreendidos como inter-relacionais, não
podendo ser analisados de forma dissociada.
Contudo, várias leituras são possíveis, mas nem toda leitura é possível. O leitor
não tem supremacia sobre o texto, pois os sentidos dados resultam da perspectiva
interna do texto. A respeito dessas possibilidades de sentido, Iser (1996) acrescenta: “O
sentido do texto é apenas imaginável, pois ele não é dado explicitamente” (p.75), sendo o
imaginável dependente da organização da estrutura interna do texto.
Acerca desta questão, Jouve (2002) também coloca os direitos que o leitor venha
a ter sobre a significação da obra literária e em que medida há um controle do texto sobre
as possibilidades de significância do leitor. De acordo com o referido autor:
Dado o caráter específico da comunicação literária, podemos nos perguntar se
cada leitor não tem o direito de interpretar o texto como quer. Na medida em
que, cortada de seu contexto, a obra é raramente lida como seu autor queria,
não é lógico desistir de ressaltar qualquer intenção primeira e ver apenas no
texto o que se quer ver?
Se, como mostramos, não se pode reduzir a obra a uma única interpretação,
exitem entretanto critérios de validação. O texto permite, com certeza, várias
leituras, mas não autoriza qualquer leitura. “Ler”, nota Catherine Kerbrat-
Orecchioni (1980, p. 181), “não é se deixar levar pelos caprichos de seu próprio
desejo/delírio interpretativo”, pois “se pode ler qualquer coisa atrás de qualquer
texto...então todos os textos se tornam sinônimos. (JOUVE, 2002, p, 25)
Iser (1996) trabalha o conceito de leitor e de texto num nível mais particular.
Portanto, consideramos ser relevante analisarmos um pouco a complexidade do
processo de leitura em suas várias faces. Desse modo, concluímos nosso panorama
teórico, delimitando as dimensões da leitura apresentadas por Jouve (2002).
Para esse autor, a leitura é um processo em cinco dimensões, quais sejam:
processo neurofisiológico, processo cognitivo, processo afetivo, processo argumentativo
e processo simbólico.
Enquanto processo neurofisiológico, a leitura se constitui de um ato concreto,
dependente da linguagem e da língua. Lemos por meio de blocos de informação
compostos pela percepção, identificação e memorização dos signos.
Neurofisiologicamente, a atividade da leitura acontece por deciframento. Por isso é mais
fácil quando nos deparamos com um texto que tem palavras breves, antigas, simples e
polissêmicas. Além disso, é mais fácil ler um texto de frases compostas por períodos
curtos.
Um texto no qual o autor desrespeite esse padrão abrirá margem para a
ampliação das opções do leitor, tornando possível “todos os deslizes semânticos”
(JOUVE, 2002. p.18). O autor ainda conclui que esse fenômeno “[...] mostra que o ato de
ler é, já em si próprio, fortemente subjetivo. Assim, considerada no seu aspecto físico, a
leitura apresenta-se, pois, como uma atividade de antecipação, de estruturação e de
interpretação”.
Na dimensão cognitiva, após o deciframento dos signos, é acionado o poder de
abstração que nos permite elaborar a significação do texto. De acordo com Jouve (2002),
duas atividades acontecem nesse momento: a progressão e a compreensão. São elas as
responsáveis pelos saltos qualitativos de acesso à narrativa proposta.
Assim, o leitor, ao deparar-se com um texto, dependendo do estilo, se for simples,
pode optar em concentrar a atenção no encadeamento dos fatos da narrativa e, desse
modo, progredir rapidamente na leitura da obra; ou se o texto for mais complexo, ele
pode buscar a interpretação. Nesse processo, o leitor se detém mais em um ou outro
trecho para entender suas implicações. A respeito desse processo, Jouve (2002, p. 19)
cita Barthes (1973), que coloca da seguinte forma as práticas de leitura:
[…] uma vai direto para as articulações da história, considera a extensão do
texto, ignora os jogos de linguagem (se leio Júlio Verne, vou rápido: perco algo
do discurso, e entretanto minha leitura não é atraída por nenhuma perda
verdadeira – no sentido que essa palavra pode ter em espeleologia); a outra
leitura não deixa passar nada; ela pesa, gruda ao texto, lê, e se assim pode
dizer, com aplicação e ânimo, enxerga em cada ponto do texto o assíndeto que
corta as linguagens – não a história: não é a extensão (lógica) que a cativa, o
desfolhamento das verdades, mas o folhear do sentido.
Contudo, seja por progressão ou por compreensão, lemos a partir de uma
competência mínima do código da língua, pois “Em todos os casos, [...] a leitura solicita
uma competência. O texto coloca em jogo um saber mínimo que o leitor deve possuir se
quiser prosseguir a leitura” (JOUVE, 2002, p. 19).
A dimensão afetiva, por sua vez, é a responsável pelo nosso envolvimento
emocional com o texto. Por isso, ao lermos um texto ficcional, nos sentimos tocados pela
raiva, amor, piedade, etc. Muitas vezes, acontece de nos sentirmos muito mais tocados
pela realidade apresentada no texto do que pela vivida. Tal fato está relacionado ao
poder que os textos ficcionais têm de descortinar realidades que, de tão agressivas e
comuns no dia-a-dia, são ideologicamente mascaradas e acobertadas até se tornarem
invisíveis, haja vista, muitas vezes nos sentirmos impotentes frente ao poder do sistema.
Além disso, é mais difícil nos opormos ao apelo emocional de uma obra ficcional. Freud
(1985 apud JOUVE, 2002, p. 20), apresenta a seguinte análise acerca dessa
vulnerabilidade do leitor:
Em relação ao que nos acontece na vida, comportamo-nos, todos, geralmente,
com uma passividade igual e permanecemos submetidos à influência dos fatos.
Mas somos dóceis ao apelo do poeta; pelo estado no qual ele nos deixa, pelas
expectativas que desperta em nós, ele pode desviar nossos sentimentos de um
efeito para orientá-los em direção a outro.
Em relação à leitura como processo argumentativo, Jouve (2002) coloca que todo
texto traz em si uma intenção ilocutória, ou seja, deseja agir sobre seu leitor e modificar
seu comportamento. Esse desejo pode ser alcançado ou não, mas de uma forma ou de
outra, atendendo ao chamamento do texto ou negando-o, o leitor é sempre perguntado
sobre si mesmo, sobre a realidade do texto e sobre a realidade vivida: “Trata-se para ele
de assumir ou não para si próprio a argumentação desenvolvida” (p.22).
Por fim, a leitura é discutida como um processo simbólico. Nessa dimensão, o
referencial cultural do leitor é o interlocutor e o potencializador do efeito do texto. Nesse
sentido, como a cultura está diretamente relacionada aos esquemas dominantes de um
meio e de uma época, o sentido dado à obra tem seu caráter individual por causa das
relações pessoais do leitor com o mundo, mas também, por causa de seu caráter
coletivo, se fixa nas possibilidades do imaginário coletivo. Frente ao sentido dado, o leitor
pode aceitá-lo ou rejeitá-lo. A esse respeito, Thérirn (1990, apud JOUVE, 2002, p. 22) diz:
O sentido no contexto de cada leitura é valorizado perante os outros objetos do
mundo com os quais o leitor tem uma relação. O sentido fixa-se no plano do
imaginário de cada um, mas encontra, em virtude do caráter forçosamente
coletivo de sua formação, outros imaginários existentes, aquele que divide com
os outros membros de seu grupo ou de sua sociedade.
Tomando o referencial teórico apresentado, nos propomos a discutir quatro
episódios de leitura de poemas realizada com os participantes de nossa pesquisa. O
primeiro está relacionado à leitura de “O bicho”, de Manuel Bandeira, que é um texto
escrito. Os outros três são leituras dos poemas sinalizados por Nelson Pimenta.
Metodologicamente, como forma de introduzir os poemas escritos, por sabermos
que o domínio da língua portuguesa escrita é razoável para alguns, mas bem elementar
para outros, sempre pedíamos que os instrutores lessem o texto e dissessem o que
tinham entendido para então iniciarmos a discussão.
Para a leitura de “O bicho”, expusemos uma transparência colorida com dois
textos e distribuímos textos idênticos xerocopiados para os alunos. O primeiro era uma
notícia sobre catadores de lixo e o fato de eles aguardarem o caminhão para procurarem
comida, dentre o lixo, e dela se alimentarem (anexo 2). O segundo era o poema de
Manuel Bandeira que tem tema semelhante.
Pedimos que os instrutores lessem os dois textos e falassem qual a diferença
entre os dois. Nosso objetivo nesse momento foi apresentar textos de gêneros diferentes
para discutir com eles acerca da plurissignificação do texto literário, da diferença entre o
que é literatura e o que não é, sem que a abordagem fosse diretiva e, ao mesmo tempo,
partisse da percepção de cada um sobre os textos.
O evento nos fez refletir sobre duas questões: 1) quanto mais e melhor lemos, e
nesse sentido estamos falando de conhecimento do código da língua, mais temos
condições de dar sentido ao lido para, inclusive, diferenciar a linguagem poética da
linguagem prática e, em relação à poesia, mais conseguirmos diferenciá-la de outras
produções; 2) o conhecimento da temática do texto, no nosso caso, do poema, maximiza
a sua carga de significância, contribuindo para tornar a leitura mais fácil.
O episódio
:
1. Shirley – O tema dos dois textos é o mesmo: fome e comer lixo. Qual é, então, a
diferença entre os dois?
– Quando vocês lêem os textos sentem a mesma coisa?
2. Alberto – Nesse aqui (apontando para O bicho) o sentimento de sofrimento é
maior.
3. Shirley – Qual texto deixa vocês mais tocados? É o de baixo? (apontando para “O
bicho”)
4. Jane – Balança a cabeça afirmativamente.
5. Shirley – Como? Se os dois falam da mesma coisa?
6. Jane – A leitura do primeiro texto é difícil. A leitura desse (apontando para O
bicho) é fácil, fiz rapidinho. Entendi mais rápido.
7. Gilda – O texto junto com a foto ajuda na leitura, é mais fácil.
8. Shirley – Se não tivesse a foto?
9. Jorge – Normal. Os dois são iguais. Não sinto nada.
10. Fábio – A comparação do BICHO com o homem mexeu comigo. Uma pessoa
igualada a um animal. Senti-me tocado.
11. Shirley – Qual o mais bonito? Que mais emociona?
12. Fábio – Não é bonito. É que dá pena.
13. Shirley – Desculpa. Pensei em português. Não é de ver bonito, mas qual texto
vocês não vão esquecer.
14. Daniel, Jane, Fábio, Ana, Alberto – O de baixo. (os outros alunos não se
pronunciaram).
15. Shirley – Por que vocês não vão esquecer dele?
16. Fábio – Por causa da equiparação das pessoas com os animais. O de cima é a
descrição do que vemos, pessoas na rua pedindo, catando lixo. O de baixo é no
lixão, pessoas catando comida junto de lixo hospitalar, restos de restaurante, lixo
de vários lugares, papel higiênico usado. O carro coletor não seleciona e despeja
tudo, as pessoas na hora, correm para cima e procuram comida.
17. Shirley – Os dois textos estão em português, por que vocês fixaram esse?
(apontando para o de cima)
18. Alberto – Por que as palavras são simples, dá para entender. O texto corrido
exige mais da gente na leitura. O texto simples é fácil de entender e de se sentir
tocado.
19. (...) Em paralelo Fábio conversa com Alberto.
20. Fábio – Não é que o texto é simples, não. Nesse, quando a gente lê, se sente
tocado. Esse (apontando para a notícia) é o que se vê na rua. Esse (apontando
para o poema) mexe com o sentimento. Não é que é simples.
A literatura tem um importante papel de contribuir, por meio da leitura, com o
desvendamento da realidade circundante. Como vimos, para Jauss (1994), essa
contribuição se dá pela mudança no horizonte de expectativa do leitor. Mas, isso é
possível apenas para os que sabem ler e dar um sentido ao texto, ser afetado por ele. A
leitura do mundo pode possibilitar o desvendamento da realidade vivida. Para tanto, é
preciso que todas as dimensões da leitura possam ser ativadas.
Isso nos faz refletir sobre duas questões. A primeira está na necessidade que os
Surdos têm de ampliar seu domínio da língua escrita para poder vivenciar mais
experiências de leitura e, assim, poderem reconstruir seus horizontes de expectativas.
Jorge diz não existir diferença entre os dois textos (linha 9). Para entendermos
melhor sua fala, é preciso explicitar que, dos surdos presentes, ele é um dos que tem
menos domínio da língua portuguesa escrita. E a questão não é só esta. Há uma
resistência muito grande por parte dele em realizar qualquer atividade que envolva o uso
da língua portuguesa em qualquer de suas modalidades.
Assim, precisamos levar em consideração a história de vida desse sujeito para
entendermos como se constitui sua relação com o texto poético em questão. Membro do
grupo de Surdos mais velhos, Jorge é histórica e linguisticamente marcado pela
imposição da negação da língua de sinais na primeira infância, embora seja o caçula de
três irmãos surdos. Porém, descobriu a possibilidade da expressão em Libras, ainda que
de forma clandestina, mantendo a liberdade de expressão em sua língua natural.
Possivelmente, esses elementos contribuem para sua rejeição à língua portuguesa e,
consequentemente, o seu não envolvimento com o poema.
De um modo diferente, Jane (linha 6) e Alberto (linha 18) expressam que o
conhecimento do vocabulário da língua portuguesa escrita facilita a compreensão do
texto. Assim, a fala deles ratifica o que Jouve (2002) diz acerca da ativação da dimensão
neurofisiológica da leitura, pois como o poema tem palavras conhecidas e frases curtas,
torna-se mais fácil, para eles, que estão lendo em uma língua diferente da sua.
A segunda questão sobre a qual refletimos refere-se à necessidade de
conhecermos as diferenças entre os tipos e os gêneros textuais e isso, geralmente, se dá
na escola. É papel da escola sistematizar e apresentar conhecimentos que, muitas vezes,
talvez, não sejam da realidade de seus alunos.
O conhecimento sobre a diferenciação entre os gêneros informativo e poético,
como também sobre a função e a estrutura clássica da poesia escrita é
educacionalmente construído. Em relação ao texto poético em Libras, isto também é
verdade. Assim, se os nossos interlocutores tivessem mais vivência educativa com o
texto poético, teriam a informação de como este é representado por escrito e em Libras.
A questão não se resume à visualização material do poema, ao reconhecimento
material deste, mas ao reconhecimento conceitual da poesia como um viés que a
humanidade criou para se re-significar. Esse conhecimento se processa em nós na
medida em que nos debruçamos sobre a poesia como objeto cognoscível, portanto, que
não se constitui de puro elemento para o deleite e apreciação do belo, mas de campo de
estudo passível de reflexões.
Nesse sentido, a facilidade ou dificuldade de desvendamento do texto é colocada
por Jauss (1994) em sua segunda tese, ao dizer que a leitura e a interpretação de uma
obra dar-se-á, proporcionalmente, ao conhecimento de mundo do leitor, do conhecimento
prévio do gênero lido, que é o saber sobre a construção textual e, por fim, o
conhecimento entre a diferença entre linguagem prática e poética.
Como parte do processo de conhecimento do gênero poesia, a não resistência à
tentativa de contato com o texto escrito pode ser um facilitador à experimentação do
efeito que um poema tem o poder de causar. Nesse sentido, podemos ver como Fábio,
nas linhas 10, 12, 16 e 20, é afetiva e simbolicamente marcado pelo texto.
Fábio não foge ao sentido do texto por causa do encadeamento dado pelo autor,
sendo afetivamente marcado por este. Apesar de, como Jorge, serem da geração mais
velha, diferentemente deste, Fábio e Jane vêem a língua portuguesa como objeto
possível de ser aprendido e o texto como passível de apreensão.
Temos consciência de que a recepção do texto poético, apesar das influências
sociais e históricas vividas, é individual, ou seja, cada um apreende a partir e dentro de
sua própria escala de possibilidades em dar sentido a uma obra. Acreditamos ser por isso
que “O bicho”, de modo geral, “mexe” com seus leitores nesse momento de apreciação
do texto, mas os níveis de alteração no horizonte de expectativa são diferentes, pois
dependem do nível de compreensão leitora do texto, que é diferente para cada instrutor.
O segundo episódio por nós analisado está relacionado à leitura do poema
Língua falada e língua sinalizada”, de Nelson Pimenta. A abordagem do poema foi feita
em etapas. Primeiramente, assistimos à fita com o poema por três vezes. Era nossa
proposta passar duas vezes para iniciarmos a discussão, mas os instrutores pediram
para ver o poema mais uma vez. Depois, entregamos uma cópia para cada um com a
transcrição do poema no sistema de notação em palavras. A terceira etapa consistiu de
uma leitura prévia da transcrição para verificação pelos instrutores da adequação à
sinalização da mesma. Por fim, iniciamos a discussão sobre a percepção acerca do
poema.
Dessa discussão, destacamos para nossa análise, primeiramente, que o sentido
dado à metáfora, como qualquer sentido dado a um texto, depende das vivências
lingüísticas e culturais do leitor.
O episódio mostra bem que é possível a convergência do sentido dado ao texto
por surdos e ouvintes, mas que, por causa das diferenças lingüísticas e culturais entre
esses dois grupos, construímos leituras diferentes. Vejamos:
O episódio
:
1. Shirley – É mesmo uma árvore?
2. Todos – Sim.
3. Jorge – Acho que é o surgimento e desenvolvimento das pessoas. A geração
mais velha que passa para a mais nova e assim sucessivamente.
4. Kleber – É da árvore de onde saem os novos frutos.
5. (Novamente a fita é passada com o poema)
6. Jorge – Viu? Ele viajou para aprender. Esse sinal (faz ÁRVORE) são as pessoas.
(...) São as pessoas sinalizando desde quando não se sabia sinalizar. É o
surgimento e desenvolvimento da língua de sinais.
7. Kleber – Por que árvore? É por causa do caule e por causa da raiz por onde ele
foge para a lama até sair para outro ambiente onde ele flutua.
...
8. Jorge – Nelson fala do conhecimento e a formação dos grupos de instrutores para
falar sobre a língua de sinais. Saber disso, mais o que ele aprende do mundo, dá
poder para se posicionar (os surdos) frente aos ouvintes.
Queremos iniciar essa análise ratificando nossa idéia de que Jorge não consegue
aproveitar as possibilidades simbólicas do poema anterior pelo fato de este ser escrito.
Suas falas, ao ver a sinalização do poema de Nelson Pimenta, “Língua falada e língua
sinalizada”, mostram como sua tentativa de negociação dos sentidos do texto são muito
mais reflexivas. Nas linhas 3, 6 e 8, ele faz reflexões absolutamente pertinentes, que
mostram sua percepção apurada do texto.
Ao falar do uso das metáforas, Sutton-Spence (2005) coloca que o poeta precisa
se preocupar com o nível de domínio da linguagem simbólica da audiência para que o
texto seja entendido. Podemos ver, nas falas de Kleber e de Jorge, que esse grupo tem
um nível muito bom de significação da metáfora utilizada, apesar de, como dissemos no
capítulo dois, o contato da maioria dos sujeitos desta pesquisa com a língua de sinais e
suas possibilidades estilísticas e imagéticas ter sido tardio.
A leitura de Jorge nos permite refletir o quanto a língua de sinais é importante
para ele e como o poema, ao mostrar que o eu lírico viaja para aprender sobre essa
língua, permite uma equiparação de forças, pois sua fala final é de que é por meio do
conhecimento sobre a língua de sinais que os Surdos podem “se posicionar frente aos
ouvintes”.
Relacionada a essa questão do domínio da linguagem metafórica, um outro
elemento que nos faz refletir sobre a relação entre o texto e o leitor é a influência das
experiências vividas no processo simbólico de leitura. Como o poema tem uma carga
simbólica que está diretamente relacionada com as histórias de vida dos surdos mais
velhos - a negação da língua de sinais, a obrigação da oralização e o resgate de se
constituir como sinalizador - apenas estes se apresentam para discutir sobre o texto. Os
surdos mais novos ficaram como expectadores. Durante toda a discussão acerca dos
sentidos do poema, nenhum deles se colocou.
Nesse episódio, uma outra questão que nos chamou a atenção está pautada na
diferença de apreensão de como os versos de 14 a 16 poderiam ser significados.
14
pessoa cabeça para baixo
DESCER
15
k
BUSCAR-INFORMAÇÃO(PESQUISAR)
k'para baixo k
BUSCAR-
INFORMAÇÃO(PESQUISAR)
k'para baixo k
BUSCAR-
INFORMAÇÃO(PESQUISAR)
k'
p
ara baixo
16
...expressão facial "uso de força"...
ambiente 1
1i
EU-SAIR
3k
ambiente 2
Ao lermos e analisarmos o poema, visualizamos esse primeiro ambiente como
sendo água (ver análise feita no capítulo 3), mas Kleber faz uma leitura bem diferente –
com a qual os outros Surdos concordaram. Para ele, Nelson constrói o poema na relação
de surgimento de duas árvores, porque a sua raiz se constitui como sendo a rota de fuga
do eu-lírico. Como a raiz fica enterrada, o ambiente a que Nelson se refere é menos
liquefeito que a água, para Kleber, seria a lama.
Conforme o simbolismo ético da lama, apresentado por Chevalier e Gheerbrant
(1998, p. 534), essa
[...] passa a ser identificada com a escória da sociedade (e com seu meio
ambiente), com a ralé, ou seja, com os níveis inferiores do ser: uma água
contaminada, corrompida. Entre a terra vivificada pela água e a água poluída
pela terra, escalam-se todos os níveis do simbolismo cósmico e moral.
Nesse sentido, a possibilidade de apreensão possivelmente se dá porque a
realidade vivida entre surdos e ouvintes, a partir do olhar dos surdos, é de opressão dos
segundos sobre os primeiros. Por isso, faz-se importante que, ao estudarmos a recepção
de poemas com Surdos, levemos em consideração a necessidade de cortes diacrônicos
e sincrônicos para relacionarmos experiências de vida vividas entre o autor Surdo e os
seus leitores, também Surdos, numa tentativa de identificarmos compatibilidades e
similaridades.
No nosso caso, apesar dos estudos realizados e da compreensão dessa realidade
extremamente difícil vivida pelos Surdos, o olhar é minimizado pela própria diferença
entre ser Surdo e ser ouvinte. Em outras palavras, por mais que entendamos como os
Surdos pensam ou sentem sobre algo, nunca poderemos ter a mesma apreensão acerca
do que é ser Surdo e do que significa para uma pessoa ter o seu direito inalienável a uma
língua negado.
Consideramos como muito presente na leitura do poema “Língua falada e língua
sinalizada” a ativação da poíesis como atividade para apropriação do texto. A sensação
de co-autoria está presente o tempo todo nas negociações entre Jorge e Kleber, sobre os
sinais e seu sentido no texto. Possivelmente, essa sensação se deva ao fato de o texto
ser em sua língua natural e do tema estar diretamente relacionado às histórias de vida
dos Surdos mais velhos.
Isso para nós é relevante como suporte teórico de concepção sobre o papel das
línguas portuguesa e de sinais para esses sujeitos, pois, apesar da necessidade de o
Surdo se tornar proficiente em língua portuguesa escrita, esta nunca será sua língua
natural. Já a língua de sinais constitui e é constituída por eles, configurando-se como o
elemento mais legítimo que os surdos possuem para a expressão de sua poética.
O terceiro evento por nós escolhido é referente à leitura do poema “Bandeira
Brasileira em LSB”, também da autoria de Nelson Pimenta. A abordagem desse poema
foi feita de modo similar à de “Língua falada e língua sinalizada”. A principal diferença
consistiu na necessidade que tivemos de retomar ao texto para verificar a sinalização do
poeta, uma vez que algumas sinalizações feitas por ele foram questionadas pelos
instrutores.
O episódio
:
1. Jane – É bonito.
2. Shirley – Que imagem vocês vêem no texto?
3. Fábio – Verde das florestas, amarelo do sol, azul das águas...
4. Jane – Falta o branco. Ele não explica nada.
5. Fábio – Ele coloca a faixa e as estrelas.
6. Jane – Mas ele não fala que a faixa é branca.
7. Shirley – É verdade, ele não fala nada sobre o branco.
A poesia é passada outra vez no vídeo para uma nova leitura.
8. Kleber – (Durante a leitura fala para Jorge) Ele diz que a estrela acima da faixa
não é o Pará, é Brasília.
9. Jorge – Mas é o Pará, ele está errado.
10. Kleber – TALVEZ PROFISSIONAL POESIA (Talvez seja uma licença poética)
11. Jorge – Não é Brasília, é o Pará. Todo mundo sabe, ele está errado. Agora já está
aí, mas era para alguém ter avisado do erro.
12. Kleber – (para Shirley) Você sabe qual Estado fica acima da faixa?
13. Shirley – Não sei.
14. Kleber – É o Pará e Nelson troca por Brasília.
15. Jorge – No centro, o losango colocado é por causa da derrubada das árvores
onde foi encontrado ouro. O amarelo brota do chão, não é o sol, não. É o ouro.
Esse amarelo dele é por causa do sol. Mas não é o sol, não, é por causa do ouro.
16. Fábio – O sol não é propriedade nossa. Ele ilumina o planeta todo. A Inglaterra,
os Estados Unidos, a Alemanha, o mundo todo. Na medida em que a Terra gira,
várias partes são iluminadas pelo sol. Ele fala de coisas que são próprias do
Brasil. O sol é exterior ao território brasileiro. O que é próprio dessa terra? As
matas. O que pertence ao Brasil? O ouro que foi encontrado e explorado até se
resumir a quase nada. Amarelo era o ouro que iluminava o chão, mas a
exploração reduziu esse brilho.
17. Jane – Antes os índios não sabiam o que era o ouro e desprezavam-no na terra.
Os portugueses sabiam o que era o ouro e seu valor, fizeram sua exploração
levando para Portugal. Os índios não sabiam disso. Por isso que quando os
portugueses chegaram viram que não tinha apenas as florestas, mas também o
ouro que eles levaram para Portugal.
18. Jorge – Nelson comete três erros.
19. Shirley – Quais?
20. Jorge – O ouro, o branco e o Pará.
Nesse episódio percebemos em Kleber maturidade a respeito do exercício que o
poeta faz com a língua, e nesse sentido, a não obrigatoriedade de a poesia representar
fielmente a realidade. Apesar de identificar um “erro” na colocação das estrelas que
representam os estados, Kleber na linha 10 não desautoriza o autor, pelo contrário,
argumenta que pode ser uma licença poética, apesar de na linha 14 concordar com Jorge
e dizer que a estrela que está naquela posição é o Pará e não Brasília.
Diferentemente, Jorge, por toda a leitura do texto, está preso a sua realidade
objetiva, ou seja, o texto é para ele apenas a representação da Bandeira do Brasil e por
isso contém “erros” inaceitáveis. Tanto que na linha 11 ele diz que Nelson deveria ter sido
avisado do erro cometido com relação à colocação dos estados; na linha 18, diz quantos
são os erros e na 20 apresenta esses erros.
Mas, nesse poema, não é apenas Jorge que está amarrado ao sentido mais óbvio
do texto. Todos os instrutores que se pronunciaram elaboraram argumentações sobre os
erros de Nelson. Jane diz que o poema é bonito, mas nas linhas 4 e 6 apresenta “erros” e
na linha 17 tece comentário explicativo sobre a cor amarela. Na sua perspectiva, a
motivação da escolha dessa cor é diferente da que é feita pelo poeta. Fábio na linha 16
tinha iniciado a argumentação de correção do “equivoco” de Nelson.
Nossa hipótese é de que, por ser uma homenagem por meio da descrição de um
símbolo nacional, o poema se constitua, para esse grupo, como uma simples descrição,
sendo pouco significativo e pouco contribuindo para que seu leitor altere seu horizonte de
expectativa.
Nesse sentido, é importante refletirmos sobre o que Jauss (1994) coloca acerca
do texto que não consegue contribuir para a mudança de horizonte de expectativa do
leitor, como se aproximando da simples arte “culinária”. Talvez a preocupação pragmática
de Nelson Pimenta em ensinar sobre como a realidade se apresenta tenha empobrecido
a produção do texto, isto é, a preocupação de ensinar aos surdos sobre a Bandeira como
símbolo nacional transformou o texto em mera descrição. A esse respeito, Jauss (1994,
p. 32) coloca:
À medida que essa distância se reduz, que não se demanda da consciência
receptora nenhuma guinada rumo ao horizonte da experiência ainda
desconhecida, a obra se aproxima da esfera da arte “culinária” ou ligeira. Esta
última deixa-se caracterizar, segundo a estética da recepção, pelo fato de não
exigir nenhuma mudança de horizonte, mas sim de simplesmente atender a
expectativas que delineiam uma tendência dominante do gosto, na medida em
que satisfaz a demanda pela reprodução do belo usual, confirma sentimentos
familiares, sanciona as fantasias dos desejos, torna palatáveis – na condição
de “sensação” – as experiências não corriqueiras ou mesmo lança problemas
morais, mas apenas para “solucioná-los no sentido edificante, qual questões já
previamente decididas.
Como a organização do texto precede a interpretação, o poema “Bandeira
Brasileira em LSB” se aproxima do discurso pedagógico preocupado com o ensino aos
surdos do símbolo nacional. Assim, pode ter sido a escolha dos sinais, além da temática,
que tornou a leitura do referido poema tão próxima da realidade pragmática de
constituição formal da bandeira.
No entanto, a plurissignificação do texto poético permite que seus leitores não
tomem o texto como dado, mas busquem explicações para as escolhas feitas pelo poeta.
Acerca dessa questão, Iser (1996) coloca como a leitura é orientada pelo texto, mas
também como o texto não controla completamente as possibilidades de significância.
Possivelmente, por isso, Jane, na linha 1, Kleber, na linha 10, Fábio, na linha 16 e,
novamente, Jane, na linha 17, ao tentarem explicar os significados que estão dando ao
texto, ressaltem o caráter de sentido não dado no texto poético. Essa questão é abordada
da seguinte forma por Iser (2002, p. 57):
Podemos admitir sem nenhuma dificuldade que esses atos de apreensão são
orientados pelas estruturas do texto, mas não completamente controlados por
elas. Aqui se pressente a arbitrariedade. É preciso, no entanto, levar em conta
que os textos ficcionais constituem seu próprio objeto e não copiam objetos
dados. Isso vale mesmo para os casos em que textos são captados como
representação do padrão ideal; pois idealidade enquanto meta da análise já
implica esse caráter de não-dado próprio à obra ficcional.
Pensamos que o caráter de não-dado do texto poético também pode estar
presente nos “erros” cometidos por Nelson Pimenta, pois como o texto não é informativo,
por exemplo, não podemos afirmar que o poeta não tenha consciência ou esteja
desinformado sobre como é formada a bandeira e o que cada elemento nela
representado realmente significa.
Por fim, o último episódio é referente à leitura do poema “Natural”. Do mesmo
modo que os outros dois poemas sinalizados, nossa abordagem do texto consistiu da
apreciação do poema em vídeo.
O episódio
:
1. Shirley – Por que ele diz que esse poema tem relação com os surdos?
2. Fábio – Ele diz que tem relação com os surdos, mas eu não vejo. É sobre coisas
estáticas. Pedras são estáticas. Montanhas são estáticas. A água não tem vida.
As árvores. Os surdos não. Não vejo relação alguma. Ele está errado.
3. Alberto – A sinalização é feia. O outro da bandeira é bonito. Esse é feio.
4. Alberto pergunta para Fábio – Por que ele faz as montanhas e se coloca como
uma?
5. Fábio – Porque ele se coloca como observador e como participante. A água bate
nessa montanha até que vão fazer o túnel, o homem veste a farda, coloca o
chapéu, pega o trator. A expressão facial mostra que ele é a montanha.
6. Kleber – A relação com o surdo parece que tem a ver com a derrubada da árvore.
A perfuração da montanha e a jogada disso fora. Parece com os surdos por causa
da inclusão, do ouvinte, que querem mandar no surdo. Assim, nada de carteirinha
para o surdo, nada de legenda, nada de intérprete, nada. É igual ao que está aí. É
preciso ter coragem e tomar a atitude de enfrentar a situação. Essa é a relação.
7. Alberto – Não. Água tem vida? Árvore tem vida? Água não tem vida.
Novamente o poema é assistido no vídeo.
8. Kleber – Os direitos são conquistados com o enfrentamento em várias frentes.
Colocação no mercado de trabalho, intérpretes, professores, legendas. Tudo é
conquista da força e do poder surdo.
Para a estética da recepção, dois fatores podem influenciar na não alteração do
horizonte de expectativa depois de uma obra lida. O primeiro, que já discutimos e
possivelmente tenha sido o que ocorreu em “Bandeira Brasileira em LSB”, é o texto que
pouco exige do leitor. O segundo, que, provavelmente, foi o que ocorreu na leitura de
“Natural”, está relacionado à distância entre o horizonte de expectativa do texto e do
leitor. Se essa distância for muito grande, isto é, se faltar ao leitor conhecimento sobre a
temática do texto ou o estilo e forma do poema escolhida, ou ainda a respeito da
diferença de função da linguagem poética e da linguagem prática, este poderá não
chegar a entender o texto.
Possivelmente, por causa do tipo de imagem construída, com uma carga
simbólica muito forte, composta por alusões e metáforas, e da distância entre a realidade
objetiva da natureza e a do poema, Alberto, nas linhas 3, 5 e 7, demonstre não ter
conseguido entender o poema e, por isso, não tenha conseguido relacionar a descrição
do ambiente natural e sua destruição com a simbologia apresentada pelo texto, que é a
destruição das comunidades surdas pela interferência do ouvinte e regeneração dessas
comunidades por causa da resistência e luta dos Surdos pela língua de sinais. Já Kleber,
nas linhas 6 e 8, como tem muito mais leitura de mundo, nas aulas sobre organização
gramatical e discursiva da Libras demonstrou um grande conhecimento empírico sobre
como a língua funciona, tendo aproveitado bastante destas informações teóricas dadas
para acrescentar reflexão acerca da língua de sinais e, nas leituras feitas dos poemas,
mostrou ter compreendido a diferença de organização textual entre a linguagem prática e
a poética, conseguindo, assim, fazer com maior pertinência as relações que o texto
permite.
Acerca da relação entre o conhecimento de mundo e o conhecimento lingüístico e
textual Amorim (2003, p. 67), coloca que:
[...] devemos, antes de tudo, considerar o texto enquanto massa verbal,
enquanto produto da linguagem. O foco é o texto; ele é o ponto de partida. Mas
o texto não é algo isolado do mundo. Sua significação mobiliza idéias e
sentidos que nascem da relação que o texto estabelece com o contexto.
Como em “O bicho”, em “Natural”, possivelmente a incompreensão de Alberto
deva-se ao que Suttuon-Spence (2005) chama de distância entre as imagens que o
poema apresenta e o nível de conhecimento do texto poético pela audiência.
Consideramos duas possibilidades para a incompreensão de Alberto: a primeira diz
respeito ao possível desconhecimento sobre o funcionamento do tipo de linguagem
utilizada na construção do poema. A segunda, à não relação das imagens construídas
com o contexto histórico e existencial dos Surdos.
Podemos aqui dialogar com a segunda tese de Jauss, na qual ele argumenta que
nos comportamos frente ao texto literário a partir de um sistema de referência construído
por nossas histórias de leitura e contatos com diferentes tipologias e gêneros textuais. É
por meio de leituras anteriores que definimos um padrão sobre o gênero do texto com o
qual estamos lidando, sua forma e como utiliza a linguagem poética. Todos esses
elementos são classificados em oposição à linguagem prática. Portanto, quando lemos
estamos impregnados de expectativa e engajamento filosófico, político ou ideológico,
uma vez que toda leitura acontece sob influências do momento sócio-histórico-cultural
vivido.
De todos os poemas lidos durante a pesquisa, “Natural”, apesar de
aparentemente se constituir da simples descrição de um ambiente e comparar essa
realidade com a vida dos surdos, é o de maior poder simbólico, pois imagens que
parecem simples, na verdade, são bem complexas.
A quantidade de simbolismo, para quem tem pouco contato com o gênero poema,
pode se constituir uma dificuldade para a construção dos sentidos do texto.
O leitor implícito de Iser (1996) só consegue ser afetado pelo texto se as cinco
dimensões da leitura forem ativadas. Como “Natural” é basicamente composto por uma
metáfora alusiva a um ambiente natural, muitos dos instrutores não conseguiram captar
nenhuma informação, além da que estava explicitamente colocada no texto. Na linha 2,
Fábio apresenta bem essa idéia de incompreensão da intenção do poeta de comparar o
ambiente natural com os surdos. E, nas linhas 3, 4, e 7, Alberto mostra que não
conseguiu ser envolvido pelo texto.
Já Kleber, após observar as falas dos colegas, faz relações muito significativas
entre a interferência do homem no ambiente natural e a vida dos surdos. As linhas 6 e 8
mostram os sentidos dados por ele ao texto.
Desse modo, novamente é relevante levarmos em consideração o que Sutton-
Spence (2005) coloca acerca da captura da audiência da compreensão dos recursos
imagéticos e simbólicos usados pelo poeta. Nos primeiros contatos dos instrutores com
os poemas, a grande dificuldade por nós percebida com relação à vivência literária de
poemas, escritos ou sinalizados, reside na distância entre o conhecimento sobre o
funcionamento da linguagem poética, com a qual eles têm pouco contato, e a linguagem
prática, forma corrente na comunidade surda de Campina Grande.
Na pesquisa, acabamos refletindo não apenas sobre a estética da recepção como
modelo metodológico de abordagem de textos literários, mas também refletimos sobre a
linguagem literária e as especificidades existentes na forma de abordar o texto, o leitor e
o processo de leitura.
Desse modo, foi-nos possibilitado entender como as leituras, para serem
realizadas, precisam que seus leitores, no nosso caso, os Surdos, tenham mais acesso
ao texto poético, esteja ele em português ou em Libras, uma vez que a apreciação de
uma poesia depende, não apenas da qualidade do próprio texto, mas da capacidade de
significação do gênero textual que não é inata, é aprendida pela vivência estética, que é
exercitada a cada contato com um novo texto.
5. Considerações finais
Minha confiança no futuro da
literatura consiste em saber que há
coisas que só a literatura com seus
meios específicos nos pode dar.
Ítalo Calvino
Realizada nossa incursão pelo campo teórico da literatura, da poesia escrita e da
poesia em língua de sinais, consideramos que nosso objetivo geral de investigar a
recepção da poesia, em língua portuguesa escrita e em Libras, por instrutores Surdos,
nos possibilitou compreender que o texto poético em língua de sinais não é, para os
Surdos, mais fácil que o poema escrito.
Isto significa que a compreensão de um poema não depende, unicamente, do tipo
de registro, ou seja, de o texto ser sinalizado ou escrito. Temos claro que o conhecimento
da língua é um fator muito importante, mas as leituras dos textos escritos realizadas pelo
grupo, juntamente conosco, e as leituras dos textos sinalizados mostraram a opacidade
ou clareza do texto vai depender de uma gama de elementos que precisam ser
considerados no ato da leitura. Esses elementos são, juntamente com o conhecimento da
língua do poema, por exemplo: a história de vida dos sujeitos, sua relação com a
linguagem literária e não literária, as fontes de informação e o nível dessas, a opção
semântico-lexical e semântico-sintática do poeta, seu estilo, etc.
Muitas vezes queremos, inadequadamente, normatizar o Surdo pela língua de
sinais, para além da capacidade de qualquer ser humano. Talvez, inconscientemente, por
causa do que sabemos acerca da sua história, não atentemos paro o fato de que somos
sócio-historicamente constituídos e queiramos que suas respostas e o seu
relacionamento com o mundo se constituam de um modo diferente de como seria pelas
outras pessoas.
Nossa expectativa, antes de começar a pesquisa, era de que, por ser o poema
sinalizado um texto construído na própria língua dos sujeitos, sua compreensão seria
mais fácil, ou talvez até plena. Obviamente, no percurso entre o momento primeiro de
delimitação dos objetivos da pesquisa, os estudos realizados no campo da literatura, a
pesquisa e a análise dos dados, nós mesmas nos transformamos. Foi na vivência,
descoberta e apreciação da literatura e de como ela nos afeta que descobrimos o
equívoco dessas nossas primeiras expectativas, visto que os Surdos não se relacionam
com o texto poético sinalizado como se este fosse constituído de apenas um significado e
do mesmo tipo de linguagem que é usada no cotidiano. Como qualquer um, os sujeitos
da pesquisa leram os textos a partir de suas concepções acerca da língua de sinais, arte,
literatura e poesia, mostrando que a falta de vivência com esse gênero na comunidade
surda de Campina Grande interfere diretamente na construção de sentidos para os textos
lidos.
O capítulo dois nos possibilitou entender como os Surdos da pesquisa,
principalmente os mais velhos, foram fortemente marcados pela negação de uma
herança lingüística, cultural e, consequentemente, literária e, portanto, em como era
grande nosso equivoco em esperar uma compreensão sobre a arte e a literatura que não
havia sido vivenciada nem empiricamente, nem educacionalmente.
A estética da recepção como teoria voltada para o estudo do texto literário,
possibilitou-nos entender que a relação do leitor com esse gênero textual se constitui a
partir das histórias de vida dos dois, leitor e texto. Assim, a significação do poema não
depende apenas da proficiência de uma língua. Depende sim, do domínio lingüístico e
estético desse gênero, que resulta da vivência leitora, da experimentação estética e do
conhecimento acerca das influências políticas, sociais, ideológicas vividas pelo autor do
texto.
A literatura tem uma função muito importante na vida do homem, seja Surdo ou
ouvinte, que é a de ser humanizadora, possibilitando ao homem simbolizações e
construções de sentido. Este, por meio do exercício de apreciação e reflexão sobre a
arte, e como tal a poesia, amplia-se no horizonte de expectativa e descortina-se pelo
desvendamento de ideologias reificantes.
Nesse sentido, a literatura Surda tem papel predominante para os Surdos,
podendo metaforicamente, constituir-se como o elevador que possibilita a esses sujeitos
o acesso aos vários andares de simbolismo, significação e construção sócio-lingüístico-
cultural. Já para os ouvintes, como atualmente há no âmbito da academia e da educação
uma ampliação das discussões que tematizam a surdez e suas implicações para os
Surdos, seja na sua construção pessoal, lingüística, social, seja em como são percebidas
e compreendidas as relações com os ouvintes, a literatura Surda nos ensina a olhar esse
contexto sob o prisma do Surdo.
Com relação ao reconhecimento do valor estético de uma obra, entendemos que
este depende do conhecimento sobre o funcionamento da linguagem poética, nossa
pesquisa nos mostrou no capítulo três que é possível produzir, executar e analisar
poemas em língua de sinais. Apesar da especificidade de elementos constituintes da
macro e micro estruturas do poema sinalizado ser diferente dos poemas escritos, os
níveis de análise são os mesmos: lexical, sintático e semântico. Isto significa que a
construção formal dos poemas em Libras e em língua portuguesa escrita é diferente, mas
que a base teórica de abordagem que explica a sua essência poderá ser usada sem
grandes alterações. A grande diferença na materialidade do poema reside no fato de a
língua de sinais ser uma língua ágrafa, estando sua produção e comunicação não
fundamentada na escrita, mas na performance.
No entanto, como no Brasil ainda são poucas as expressões literárias da cultura
surda e, particularmente, no nosso caso da poesia em Libras, nos detivemos
principalmente no referencial teórico da poesia em BSL e em ASL, construído por Sutton-
Spence (2005), considerando que as similaridades da modalidade lingüística, quais
sejam: línguas de construção visual e espacial, sintéticas e tridimensionais, são maiores
que as diferenças sintáticas entre essas línguas.
Historicamente, no Brasil, os estudos sobre as produções dos Surdos em Libras é
marcadamente lingüístico, afinal foi por esta via que o bilingüismo se constituiu e
consolidou como corrente educacional para esses sujeitos.
Atualmente, há uma diversidade teórica que fortalece o bilingüismo-bicultural
como abordagem. Na área da literatura já estão sendo publicadas algumas pesquisas
sobre a literatura surda. Produções teórico-reflexivas a exemplo de Karnopp (2006), Rosa
(2006), Soares (2006) têm a literatura produzida para e por Surdos, o papel dos contos e
dos professores Surdos como contadores de história como tema em seus artigos e
ensaios, mas muitas desses textos, apesar de discutirem acerca da literatura, têm o
aporte teórico ainda de base lingüística e não literária. Além do mais, muitos dos
exemplos dados não são representações da realidade dos Surdos brasileiros.
Várias são as possibilidades de aprofundamento do tema. Uma delas se refere ao
papel da escola (nesse momento de discussões acerca da inclusão dos Surdos nas salas
de aula com ouvintes e com apoio de intérpretes) como sistematizadora e, dependendo
da realidade social, econômica e educacional do seu alunado, oportunizadora do contato
com o texto literário. Como propiciar ao professor formação para lidar com as
especificidades da literatura surda, no nosso caso da poesia em Libras e trabalhar este
conteúdo em uma sala na qual os interessados culturais por essa aprendizagem são uma
minoria?
Uma outra questão está na formação dos professores Surdos que, além de
ensinar a parte lingüística da Libras, precisam conhecer e refletir sobre o papel da
literatura surda e suas diferentes formas de expressão para o fortalecimento de sua
comunidade.
Precisamos ainda construir um referencial teórico mais apurado de como se
constitui a poesia em Libras. Referencial este que depende em grande parte de mais
produções poéticas, que em contrapartida dependem de mais vivência dos Surdos com
esse gênero.
É nessa perspectiva que acreditamos que este trabalho se constitui como
relevante, pois contribui com a construção de um referencial teórico acerca da poesia em
Libras de base estritamente literária. Acreditamos, também, ter contribuído para inserir a
poesia em Libras no âmbito das discussões sobre o fazer poético e seu papel na vida dos
homens.
Referências
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alternativas metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.
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ANEXOS
1. Roteiro da entrevista semi- estruturada
1. Desde quando existem os Surdos e a língua de sinais?
2. Como aconteceu a descoberta da língua de sinais aqui em Campina Grande?
3. Onde e quando aconteceu o seu primeiro contato com a língua de sinais?
4. Com que idade?
5. É importante para os Surdos estarem juntos?
6. O que você pensou sobre o outro Surdo na primeira vez que o viu?
7. Já houve momentos em que você sentiu vergonha da língua de sinais?
8. O que caracteriza e diferencia um Surdo que domina a língua de sinais de um que não
domina?
9. O que você entende por comunidade?
10. Campina Grande tem comunidade surda?
11. Você se percebe enquanto membro de uma comunidade?
12. Há conversas próprias de Surdos?
13. Qual o papel da Associação de Surdos de Campina Grande e da Escola de Surdos
para a constituição da comunidade surda?
14. É dito que os surdos têm uma cultura diferente dos ouvintes. O que você entende por
cultura?
15. Como ela se expressa?
16. O que é arte?
17. Os Surdos fazem arte?
18. Que tipo de arte?
19. Você conhece algum Surdo no Brasil ou fora dele que faça arte?
20. Quais são as dificuldades de ser Surdo?
21. De que modo a arte pode contribuir na vida dos Surdos?
2. Poemas escritos utilizados por seqüência
de abordagem
mar azul
mar azul marco azul
mar azul marco azul barco azul
mar azul marco azul barco azul arco azul
mar azul marco azul barco azul arco azul ar azul
Ferreira Gullar
CEREJA, William Roberto e MAGALHÃES, Thereza Cochar. Literatura brasileira: ensino
médio. 2. ed. Reform. São Paulo: Atual, 2000. p. 508.
ANA ALY
MENEZES, Philadelpho. Poética e visualidade: uma trajetória da poesia brasileira
contemporânea. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1991. p. 139.
CEREJA, William Roberto e MAGALHÃES, Thereza Cochar. Literatura brasileira: ensino
médio. 2. ed. Reform. São Paulo: Atual, 2000. p. 30.
CEREJA, William Roberto e MAGALHÃES, Thereza Cochar. Literatura brasileira: ensino
médio. 2. ed. Reform. São Paulo: Atual, 2000. p. 4
CEREJA, William Roberto e MAGALHÃES, Thereza Cochar. Literatura brasileira: ensino
médio. São Paulo: Atual, 1995. p. 27
AZEVEDO, Álvares de. Os melhores poemas de Álvares de Azevedo. (Seleção de
Antônio Cândido de Mello e Souza). São Paulo, Global, 1985.
Minha desgraça
(Álvares de Azevedo)
Minha desgraça, não, não é ser poeta,
Nem na terra de amor não ter um eco,
E meu anjo de Deus, o meu planeta,
Trata-me como trata-se um boneco...
Não é andar de cotovelos rotos,
Ter duro como pedra o travesseiro...
Eu sei ... O mundo é um lodaçal perdido
Cujo sol (quem m’o dera!) é o dinheiro ...
Minha desgraça, ó cândida donzela,
O que faz que o meu peito assim blasfema,
É ter para escrever todo um poema
E não ter um vintém para uma vela.
3. Configuração da Mão
ALFABETO MANUAL
ALGARISMOS
FORMAS GENUÍNAS
COUTINHO, Denise. Libras e língua portuguesa: semelhanças e diferenças. Vol. 2. João
Pessoa: Arpoador, 2000.
4. Locação ou ponto de articulação
ESPAÇO NEUTRO
SOBRE O CORPO
COUTINHO, Denise. Libras e língua portuguesa: semelhanças e diferenças. Vol. 2. João
Pessoa: Arpoador, 2000.
5. Sistema de notação em palavras
Convenções:
1. Os sinais da Libras, para efeito de simplificação, serão representados por itens lexicais
da Língua Portuguesa (LP) em letras maiúsculas.
Exemplos: COR, ÁRVORE, GOSTAR
2. Um sinal, que é traduzido por duas ou mais palavras em língua portuguesa, está
representado pelas palavras correspondentes separadas por hífen.
Exemplos: SÃO-PAULO, ÁRVORE-CORTAR, VOAR-SOBRE-NUVENS
3. A datilologia (alfabeto manual), que é usada para expressar nome de pessoas, de
localidades e outras palavras que não possuem um sinal, está representada pela palavra
separada, letra por letra, por hífen.
Exemplos: N-A-T-U-R-A-L, B-R-A-S-I-L, O-R-D-E-M-E-P-R-O-G-R-E-S-S-O
4. Na Libras não há desinências para gênero (masculino e feminino). O sinal,
representado por palavra da língua portuguesa que possui marcas de gênero, está
terminado com o símbolo @ para reforçar a idéia de ausência e não haver confusão.
Exemplos: OBRIGAD@, AMAREL@
5. Os traços não-manuais: as expressões facial e corporal, que são feitas
simultaneamente com um sinal estão representadas acima do sinal ao qual está
acrescentado alguma idéia, que ode ser em relação ao:
... interrogativa... ...int... ...i...
a- tipo de frase: ou ou
... exclamativa... ...exc...
ou
...negativa... ...neg... ...n...
ou ou
muito
b- advérbio de modo ou um intensificador: sinalizar
6. Os verbos possuem concordância de gênero (pessoa, coisa, animal), através de
classificadores, estão representados com o tipo de classificador em subscrito.
Exemplos:
coisa-plana (mão em b)
VOAR-SOBRE-NUVENS,
veículo
ANDAR-SOB-TÚNEL
7. Os verbos que possuem concordância de lugar ou número-pessoal, através do
movimento direcionado, estão representados pela palavra correspondente com uma letra
em subscrito que indicará:
a- a variável para o lugar:
i: ponto próximo à primeira pessoa,
j: ponto próximo à segunda pessoa,
k e k’: pontos próximos à terceira pessoas,
e: esquerda
d: direita
b- as pessoas gramaticais:
1s, 2s, 3s = 1ª, 2ª e 3ª pessoas do singular;
1d, 2d, 3d = 1ª, 2ª e 3ª pessoas do dual;
1p, 2p, 3p = 1ª, 2ª e 3ª pessoas do plural
Exemplos:
2p
OLHAR
1P
,
1i
EU-SAIR
3k
8. Na Libras não há desinência que indique plural. Às vezes há uma marca de plural pela
repetição do sinal ou alongamento do movimento. Esta marca será representada por uma
cruz no lado direito acima do sinal que está sendo repetido:
Exemplos: ÁRVORE
+
, MONTANHA
+
Estas convenções foram utilizadas para poder representar, linearmente, uma língua
gestual visual, que é tridimensional.
Texto adaptado de:
FELIPE, Tânia A. Libras em contexto: curso básico do estudante cursista. Brasília:
Programa Nacional de Apoio à Educação dos Surdos, MEC; SEESP, 2001. p. 21 – 23.
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