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Ana Beatriz Favero
A noção de trauma em psicanálise
TESE DE DOUTORADO
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
Programa de Pós-Graduação
em Psicologia Clínica
Rio de Janeiro
Março de 2009
PUC
RIO
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1
Ana Beatriz Favero
A noção de trauma em psicanálise
Tese de Doutorado
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Psicologia Clínica do Departamento de
Psicologia da PUC-Rio como parte dos requisitos
parciais para obtenção do título de Doutor em
Psicologia Clínica.
Orientadora: Prof.ª Ana Maria Rudge
Rio de Janeiro
Março de 2009
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2
Ana Beatriz Favero
A noção de trauma em psicanálise
Tese apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Doutor pelo Programa de
Pós-Graduação em Psicologia Clínica do
Departamento de Psicologia do Centro de Teologia
e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela
Comissão Examinadora abaixo assinada.
Profª. Ana Maria Rudge
Orientadora
Departamento de Psicologia - PUC-Rio
Profª. Maria Teresa da Silveira Pinheiro
Instituto de Psicologia - UFRJ
Profª. Tânia Coelho dos Santos
Instituto de Psicologia - UFRJ
Profº. Marco Antonio Coutinho Jorge
Instituto de Psicologia - UERJ
Profº. Márcio Orlando Seligmann-Silva
Departamento de Teoria Literária - Unicamp
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador Setorial de Pós-Graduação
e Pesquisa do Centro de Teologia
e Ciências Humanas – PUC-Rio
Rio de Janeiro, ___/___/200__.
3
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total
ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, da
autora e da orientadora.
Ana Beatriz Favero
Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Estudou no
Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), graduando-se pelos cursos de
Bacharelado em Psicologia e Formação de Psicólogo em
1994. Cursou Licenciatura em Psicologia pela Faculdade
de Educação da UFRJ em 1994/95.
Ficha Catalográfica
CDD: 150
CDD: 150
Favero, Ana Beatriz
A noção de trauma em psicanálise / Ana
Beatriz Favero; orientadora: Ana Maria Rudge.
– 2009.
207 f. ; 30 cm
Tese (Doutorado em Psicologia) – Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2009.
Inclui bibliografia
1. Psicologia – Teses. 2. Psicanálise. 3.
Freud, Sigmund. 4. Ferenczi, Sándor. 5. Lacan,
Jacques. 6. Trauma. 7. Real. I. Rudge, Ana
Maria. II.Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro. Departamento de Psicologia. III.
tulo.
4
Dedico este trabalho a Osmar e Lourdinha, pelo amor e incentivo
e ao Pedro, por quem me apaixono todos os dias.
5
Agradecimentos
À minha orientadora Ana Maria, por seu profissionalismo e atenção, assim como
pelas muitas contribuições para a realização deste estudo. Quero agradecer, em
especial, pelo carinho dispensado para comigo durante todo o período em que
precisei me dedicar mais solitariamente ao meu trabalho e tive todo o suporte
para continuar produzindo.
Ao CNPq e à PUC-RJ, pelos auxílios concedidos, sem os quais este trabalho
não poderia ter sido realizado.
Aos meus pais, pela educação, carinho e orientação de todas as horas.
Ao meu marido, por seu amor e confiança.
Aos meus irmãos, que me ajudaram em diferentes etapas deste trabalho, cada
um a seu modo.
Ao amigo Cid, pela presença amiga, principalmente nas horas difíceis.
Aos meus colegas de turma e pesquisa, aos professores e aos funcionários do
Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica que, de uma maneira ou de
outra, contribuíram para a realização deste trabalho.
6
Resumo
Favero, Ana Beatriz; Rudge, Ana Maria (Orientadora). A noção de trauma
em psicanálise. Rio de Janeiro, 2009. 207p. Tese de Doutorado –
Departamento de Psicologia Clínica, Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro.
Este estudo analisa as contribuições de Sigmund Freud, Sándor Ferenczi
e Jacques Lacan sobre o trauma em psicanálise, destacando as principais
características de cada abordagem teórica. A concepção de trauma sofre
mudanças nas diversas fases da construção teórica freudiana e suas diferentes
acepções são discutidas desde a neurotica até a última teoria de angústia
(Freud, 1926 [1925]), como também em Moisés e o monoteísmo (Freud, 1939
[1934-1938]). Em Ferenczi, há dois enfoques: no primeiro, os traumas são
estruturantes, necessários, inevitáveis ou filogenéticos; no segundo, as situações
traumáticas colocam em risco o projeto identificatório do sujeito. Nesta última
acepção, o trauma depende de uma falha na relação entre o sujeito e o outro.
Valorizando a alteridade na constituição do trauma, Ferenczi se mantém fiel ao
que sua clínica lhe revelava: o trauma é fundamentalmente o resultado de uma
ação de um outro sobre aquele que é traumatizado. Já em Lacan o trauma é
entendido como a entrada do sujeito no mundo simbólico; ele não é um acidente
na vida do falante, mas constitutivo da subjetividade. Assim, neste trabalho, é
examinado a partir da relação que Lacan estabelece entre as noções de trauma
e significante, bem como pela idéia de trauma como encontro com o Real.
Palavras-chave
Psicanálise; Freud; Ferenczi; Lacan; trauma; Real.
7
Abstract
Favero, Ana Beatriz; Rudge, Ana Maria (Supervisor). The notion of trauma
in psychoanalysis. Rio de Janeiro, 2009. 207p. Doctorate thesis –
Department of Clinical Psychology, Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro.
This study analyzes the contributions of Sigmund Freud, Sándor Ferenczi
and Jacques Lacan to the concept of trauma in Psychoanalysis, highlighting the
main theoretical frameworks in each approach. The concept of trauma has
undergone different changes in the various phases of the theoretical Freudian
conception, and its diverse meanings have been discussed since the first seduction
theory up to the latest theory of anguish (Freud, 1926 [1925]), as well as in Moses
and the monotheism (Freud, 1939 [1934-1938]). In Ferenczi, there are two
approaches: in the first one, the traumas are of a structuring nature, which means
they are either needed, inevitable or philogenetic; in the second one the traumatic
situations put the identification project of the subject at risk. In that last approach,
the trauma depends on a failure of the relation between the subject and the other.
By valuing the alterity in the constitution of trauma, Ferenczi is faithful to what his
clinics has revealed: trauma is basically the result of an action of the other upon the
one who has been traumatised. In Lacan, on the other hand, the trauma is
understood as the entry of the subject into the symbolic world; it is not an accident in
the speaking person's life, but rather it is constitutive of their identity. Therefore,
trauma in the present study is examined at the light of the relationship established
by Lacan between the notions of trauma and signifier, and it also is permeated by
the idea of trauma as an encounter with the Real.
Keywords
Psychoanalysis; Freud; Ferenczi; Lacan; trauma; Real.
8
SUMÁRIO
Introdução ........................................................................................................... 10
1.A teoria freudiana do trauma .......................................................................... 16
1.1 O trauma nas primeiras teorias freudianas ................................................. 16
1.1.1 A ‘contravontade’ histérica – o conflito psíquico ................................ 20
1.1.2 A definição de trauma na neurotica freudiana .................................... 23
1.2 O trauma e a fantasia .................................................................................. 25
1.2.1 O fator infantil na sexualidade ............................................................ 27
1.2.2 As teorias e fantasias sexuais infantis ................................................ 30
1.2.3 As séries complementares e o trauma ............................................... 34
1.3 As neuroses traumáticas e a guerra ............................................................ 36
1.3.1 Sándor Ferenczi: toda neurose de guerra é histeria de angústia ....... 40
1.3.1.1 A revisão da literatura sobre as neuroses traumáticas .......... 43
1.3.2 Karl Abraham e a regressão narcísica ............................................... 45
1.3.3 Ernst Simmel: o supereu nas neuroses de guerra ............................. 48
1.4 A teoria da angústia e o trauma .................................................................. 52
1.5 O supereu e o trauma .................................................................................. 56
1.6 O período de latência e o efeito do trauma ................................................. 60
1.7 Pontos de contato entre violência, morte e trauma ..................................... 62
1.7.1 O trauma infantil ................................................................................. 63
1.7.2 A horda primeva e a questão do parricídio ......................................... 64
1.7.3 A descoberta da pulsão de morte e a violência como trauma ............ 70
1.8 Necessidade e (im)possibilidade de representação do trauma:
a Shoah como paradigma ............................................................................ 74
1.8.1 O rapto de crianças racialmente valiosas ........................................... 77
1.8.1.1 A SS, as Irmãs de Marrom e o projeto Lebensborn ............... 77
1.8.2 O processo de germanização ............................................................. 79
1.8.2.1 Identificação e posterior devolução de crianças raptadas aos
genitores: o caso dos gêmeos Marie e Johann ..................... 80
1.8.3 A culpa carregada pelos filhos do Reich ............................................ 82
1.8.4 Os campos de morte e os testemunhos do irrepresentável ............... 86
9
2 A teoria ferencziana do trauma ...................................................................... 89
2.1 “Palavras enterradas vivas”: o desmentido ................................................. 92
2.2 A sedução retomada ................................................................................... 93
2.2.1 Introjeção: uma comunhão das bocas vazias .................................... 95
2.2.2 A identificação com o agressor .......................................................... 98
2.2.3 Fragmentação e clivagem do eu ........................................................ 100
2.2.4 Confissões do Diário .......................................................................... 103
2.3 O estranho do trauma .................................................................................. 106
2.4 Novas bases do trauma: a teoria da sedução generalizada ....................... 108
3 A teoria lacaniana do trauma .......................................................................... 119
3.1 A clínica do significante e a questão do trauma .......................................... 119
3.1.1 O trauma e o só depois ...................................................................... 120
3.1.2 O desejo do Outro como traumático ................................................... 124
3.1.2.1 A separação da mãe é traumática ......................................... 126
3.1.3 Entre o sonho e o despertar: uma realidade faltosa ........................... 127
3.1.4 A compulsão à repetição: uma forma de recordar ............................. 129
3.1.5 O trauma: algo impossível de nomear, e que retorna ........................ 133
3.1.6 Operadores da divisão do sujeito ....................................................... 138
3.1.6.1 Indicações millerianas sobre alienação e separação ............. 145
3.1.6.2 Variações do conceito de vel alienante .................................. 147
3.2 O trauma e o privilégio do Real ................................................................... 154
3.2.1 O estatuto do Real no início do ensino de Lacan:
dos primeiros escritos ao seminário A ética da psicanálise ............... 156
3.2.1.1 A relação do Real com o registro Simbólico .......................... 158
3.2.1.2 A transição da idéia de Real .................................................. 162
3.2.1.2.1 O Real como pleno ................................................. 162
3.2.1.2.2 O Real é feito de cortes .......................................... 165
3.2.1.2.3 O trauma, o Real e a ética da psicanálise .............. 166
3.2.2 A topologia do nó, o trauma e o Real ................................................. 168
3.2.3 O trauma e a experiência do Real no tratamento psicanalítico .......... 173
Considerações finais .......................................................................................... 179
Bibliografia .......................................................................................................... 188
10
Introdução
Desde os primeiros momentos de minha incursão pela pesquisa sobre o
trauma psíquico, alguns eixos temáticos se mostraram pertinentes. São eles: 1. o
trauma e a sexualidade; 2. o trauma e o só depois; 3. o trauma nas neuroses de
guerra; 4. o trauma e o desamparo humano.
Ao começar a pesquisa, a primeira pergunta que me fiz foi: o que é
trauma psíquico? Começo por alguns apontamentos interessantes sobre o
sentido etimológico da palavra: trauma é um termo cuja origem remonta à
medicina e à cirurgia. Em grego, titrvscw, trauma deriva de furar, denotando
uma ferida com efração (Laplanche, 1991 [1967], p. 522). Em sua raiz indo-
européia, isto é, tera, significa ora friccionar, ferir ora passar através,
transparente, “vertente que dá origem a toda a família de palavras iniciadas com
o prefixo ‘trans’.” (Pollo, 2004, s.p.).
De forma condensada, para a psicanálise, o trauma está referido àquilo
que chega ao sujeito de fora dele, sem que consiga incorporar ao seu psiquismo
tal acontecimento. Deste modo, fazendo minhas as palavras de Mees, o trauma
(...) causa aturdimento e fica, na vida do sujeito, enquistado
como um corpo estranho, sem sentido e sem elaboração. O
trauma tem sua origem no início da vida de cada sujeito,
quando as relações de linguagem – que organizam o mundo do
ser humano – recepcionam o pequeno ser, o qual não tem
bagagem para entender/responder àquilo que lhe é dito e
pedido. Devido a este desamparo/despreparo, o que chega ao
pequeno sujeito não tem como ser incorporado por ele.
Entretanto, algo fica marcado em seu psiquismo, de forma que,
em um momento posterior, este acontecimento é convocado,
constituindo, agora sim, um trauma. (Mees, 2001, p. 11)
Esclareço também que o trauma e a sedução em psicanálise encontram-
se, em vários momentos da obra freudiana e ferencziana, interligados (Favero,
2004). Em um Freud inicial (antes de 1897), por estar intimamente associado ao
tema da sedução, o trauma partilha com a sedução o mesmo fim: sai de cena no
momento e na medida em que a sedução saiu. Entre 1897 e 1920, há um
período em que as referências ao assunto vão gradativamente se tornando
escassas. Entretanto, a questão do trauma reaparece com força em Além do
princípio do prazer (Freud, 1920), como está também presente na última teoria
da angústia (Freud, 1926 [1925]) e em Moisés e o monoteísmo (Freud, 1939
11
[1934-1938]). No meu entender, a importância do trauma oscila ao longo da
teoria freudiana.
Com o objetivo de avançar na minha argumentação, retomo o artigo
Traumatisme, traumatique, trauma, de Thierry Bokanowski (2002), no qual o
autor subdivide a concepção de trauma, para Freud, em três diferentes períodos:
entre 1895 e 1920; a partir de 1920; e em 1939 –, que coincide com o final da
obra freudiana, referido principalmente ao texto Moisés e o monoteísmo: três
ensaios (Freud, 1939 [1934-1938]). No primeiro período, trauma se refere ao
sexual e está intimamente ligado à neurotica. Este período pode ser subdividido
em dois momentos distintos: um primeiro momento, que vai de 1895 a
1900/1905 e pode ser encontrado no Projeto para uma psicologia científica
(Freud, 1950 [1895]) e nos Estudos sobre a histeria (Freud, 1893-1895), em que
Freud estabelece o trauma em dois tempos, privilegiando a questão do a
posteriori. É também nele que ocorre o abandono da neurotica por Freud (1897),
em que o trauma real de sedução não é mais apontado como o principal
responsável pela organização da neurose, mas cede esse lugar à fantasia. Por
outro lado, há um segundo momento, que vai de 1905 até 1920, em que Freud
se refere ao desenvolvimento sexual infantil. Nele o trauma está relacionado às
fantasias originárias e às angústias de castração, à cena primitiva e ao complexo
de Édipo. Portanto, segundo Bokanowski, nesse período da obra freudiana,
todos os traumas estão associados às fantasias inconscientes e à realidade
psíquica.
Contudo, a partir de 1920 o trauma adquire novos contornos, no que diz
respeito ao seu caráter econômico. O Hilflösigkeit – a angústia da criança –
desvia o paradigma da angústia por transbordamento de energia, quando o sinal
de angústia não permite mais ao eu se proteger da efração quantitativa, seja ela
de origem externa ou interna. Como fruto das mudanças que vinham se
insinuando ao longo de seus escritos da década de 1920, em Inibições, sintomas
e angústia
1
Freud (1926 [1925]) propõe uma nova teoria da angústia,
acentuando que o trauma está ligado à angústia de separação ou às angústias
que a separação acarreta. Nos anos 1920 em diante, Freud apresenta cinco
tipos diferentes de angústia: a angústia do nascimento, a angústia da perda da
mãe como primeiro objeto amoroso, a angústia da perda do pênis, a angústia da
perda do amor de objeto e a angústia da perda de amor do supereu
1
Neste trabalho, substituirei a palavra ansiedade por angústia sempre que julgar mais apropriado
e correto. O título deste ensaio de Freud, tal como traduzido pela Imago Editora, seria Inibições,
sintomas e ansiedade.
12
(Bokanowski, 2002). Por fim, Bokanowski apresenta o ensaio Moisés e o
monoteísmo como o último momento em que o trauma é teorizado na obra
freudiana. Nele Freud faz um estudo sobre a experiência do traumático e seus
efeitos retardados, ao longo de várias gerações (Bokanowski, 2002).
O tema do trauma psíquico ocupa um lugar ao mesmo tempo histórico e
estrutural em psicanálise, visto que as primeiras produções sobre as
experiências traumáticas de sedução são marcadas pela idéia de que a gênese
e o funcionamento das neuroses histéricas se situam numa cena de sedução
sexual de valor traumático. Neste sentido, antes da formulação da teoria da
fantasia, o trauma constitui-se em idéia-chave para explicar a causa e o
tratamento da neurose. Dito de outra maneira, histeria e trauma mantêm uma
relação estreita, num Freud inicial, anterior a 1897.
Por sua vez, o abandono da neurotica freudiana, após a descoberta das
fantasias sexuais das histéricas e da importância da realidade psíquica, introduz
uma maior complexidade dos postulados freudianos sobre trauma, em relação à
formulação que associava o trauma a uma situação concreta de abuso sexual na
infância. A partir de 1897, a força e a função que antes pertenciam ao evento
traumático serão assumidas pela fantasia, assim como pelo conflito e pelo
mecanismo de defesa.
Após 1920, a teoria freudiana do trauma ganha um colorido diferente em
relação à dos anos 90 do século XIX, em parte por causa da própria descoberta
de Freud, no que se refere à relevância da repetição nas experiências
traumáticas. Por outro lado, os textos freudianos da década de 1930 que falam
de uma mãe sedutora (Freud, 1931 e Freud, 1933 [1932d]) apontam para outro
viés importante dessa renovação do interesse psicanalítico pela noção de
trauma. Isso porque a sedução materna precoce, invocada por Freud nessa
época e retomada a partir da hipótese de 1905, segundo a qual a mãe –
enquanto aquela que se ocupa dos cuidados maternos – desperta e provoca
pela primeira vez sensações de prazer num bebê, também aponta para uma
sedução estruturante.
Levando-se em conta os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade
(1905) e principalmente os ensaios posteriores a 1920, existe, na obra de Freud,
mais de uma concepção de trauma. Para exemplificar, na sedução materna
precoce, a excitação sexual provocada é menos traumática para a criança do
que nas cenas de sedução encaradas até o fim dos anos 90 do século XIX,
aquelas em que o principal agente sedutor era um pai “perverso”. O que importa
13
na sedução materna precoce é o despertar do desejo daquele que é seduzido.
Essa sedução não origina patologia, mas inaugura a própria sexualidade.
Assinalo que Freud nunca abandonou completamente a causalidade
traumática. Para além de seu interesse pelas neuroses de guerra, é preciso
ressaltar o espaço dado ao trauma desde 1926 (Freud, 1926 [1925]) até Moisés
e o monoteísmo (Freud, 1939 [1934-1938]), ensaio em que Freud sustenta a
origem traumática das neuroses e que acarretou uma nova definição de trauma.
Já em 1926, quando revisa o problema da angústia e de sua ligação com
as situações traumáticas, Freud (1926 [1925]) passa a conceber a angústia
como afeto do real, o real enquanto tudo o que é inassimilável à realidade
psíquica. Parafraseando Soler e de acordo com os postulados de Freud, o
momento traumático é então entendido “como o encontro com o perigo em face
do qual o sujeito (...) é presa de uma “excitação” intratável, a experiência de
desamparo, Hilflosigkeit, diz Freud.” (Soler, 2004 [1998], p. 83). Essa concepção,
por sua vez, não tem mais nada a ver com a idéia de sedução traumática do
Freud inicial. Assim, os traumas que estão na origem de uma neurose remontam
a impressões muito primitivas da infância. É uma reação fora do comum frente a
experiências e exigências que afetam a todos: algo age como trauma no caso de
determinada constituição subjetiva; contudo, no caso de outra, não tem tal efeito
(Freud, 1939 [1934-1938]).
*
A partir do que foi desenvolvido, formulo algumas questões:
1. O que pode ser considerado trauma em psicanálise?
2. O que dá a um evento particular o valor de trauma para um determinado
sujeito?
3. O que impede que haja uma reação adequada ao trauma; o que o torna
inassimilável?
Uma questão mais diretamente ligada à clínica é como lidar com a
incidência do trauma numa análise. Isto é: Como acolher os relatos traumáticos
dos analisandos? Um psicanalista deve interpretar um trauma quando este lhe é
relatado pelo analisando? Ele deve incentivar a rememoração de fatos
vivenciados pelo analisando como traumáticos? Como, na clínica, não provocar
14
uma retraumatização do cliente quando ele traz à baila o que originalmente o
traumatizou?
O objetivo mais geral deste trabalho é estudar a noção de trauma,
através da análise de textos de Freud, Ferenczi e Lacan e de sua incidência em
análise. Para que seja possível alcançá-lo, estabeleço dois objetivos específicos:
1. Analisar a noção de trauma em Freud, Ferenczi e Lacan, e observar os
pontos comuns e as divergências teóricas existentes entre estes três
autores no que concerne ao tema;
2. Delimitar o campo semântico do termo trauma, já que ele pode
apresentar conotações aparentemente contraditórias, tais como:
necessário/contingencial, desestruturante/estruturante, essencial/
acidental e assim por diante.
Propondo-me analisar algumas questões teóricas a respeito do trauma
em psicanálise, escolhi fazer um mapeamento histórico que privilegiasse as
contribuições de Freud, Ferenczi e Lacan, no que concerne à compreensão do
tema. Como disse, a questão do trauma é discutida, em Freud, na articulação
com a neurotica, mas vai sendo reformulada através de algumas mudanças
histórico-conceituais que ocorreram no desenvolvimento de sua teoria até a
década de 1930. Em Ferenczi, é abordada tanto por meio de uma vertente
positiva do trauma quanto, mais tardiamente, através de sua vertente negativa. E
em Lacan, em linhas gerais, é analisada a partir da relação que este autor
estabelece entre trauma e a noção de significante, bem como através da idéia de
trauma como encontro com o Real.
Pretendo, com essa pesquisa, contribuir para a construção do
conhecimento em psicanálise, no que se refere à compreensão de diferentes
perspectivas teóricas existentes sobre trauma psíquico, abordando algumas
questões que se mantêm atuais. Acredito ser interessante explicitar o caminho
escolhido.
Primeiramente, por que trabalhar com a noção de trauma em Freud,
Ferenczi e Lacan e não a partir de outros autores? No mestrado, estudei parte
da obra freudiana e ferencziana, com vistas a analisar o conceito de sedução em
psicanálise (Favero, 2004). Durante essa investigação, descobri que o material
que tinha em mãos era precioso para o entendimento do significado de trauma,
segundo um enfoque psicanalítico. Nesse sentido, meu levantamento
bibliográfico para essa pesquisa se direcionou, desde o início, para esses
autores, porque eles abordaram, cada um à sua maneira, o trauma psíquico.
15
Freud, porque foi a partir dele que a psicanálise começou, mas também pelo
trauma ser, desde o início, um assunto de seu interesse. Já Ferenczi, por suas
contribuições teóricas conhecidas acerca do tema.
Acrescido a esses autores, e com o objetivo de fazer uma pesquisa
histórico-teórica sobre o trauma no âmbito da psicanálise, escolhi um outro autor,
cuja contribuição me parece fundamental: Lacan. A partir desses três autores –
Freud, Ferenczi e Lacan – começo, pois, a construir um percurso cronológico
para a noção de trauma em psicanálise, delineando como o tema foi percebido e
trabalhado nas obras de cada um deles, quais os pontos comuns e quais os
discordantes.
Com o propósito de construir o corpus teórico desse trabalho, utilizo-me
das Obras completas de Sigmund Freud, em português e espanhol, assim como
de livros e artigos de alguns comentadores de Freud; dos ensaios de Ferenczi,
nos quais é possível encontrar uma concepção inovadora do tema trauma para a
psicanálise – por exemplo, no trabalho Análises de crianças com adultos (1931),
assim como em Confusão de língua entre os adultos e a criança (1933 [1932]),
Diário clínico/ Sándor Ferenczi (1985 [1932]) e Reflexões sobre o trauma (1934).
De Lacan, usei textos dos Escritos (1998), dos Outros escritos (2003), seus
seminários (nem todos já publicados) e alguns ensaios publicados recentemente
pela Jorge Zahar Editor (refiro-me a série Paradoxos de Lacan). Por outro lado,
para enriquecer a discussão sobre a teoria lacaniana do trauma, escolhi alguns
comentadores que me permitiram avançar no tema, entre eles: J.-A. Miller, C.
Soler e E. Laurent.
16
1
A teoria freudiana do trauma
Este capítulo foi dividido em oito seções. A primeira seção apresenta o
trauma tal como exposto nos primeiros trabalhos de Freud entre 1885 e 1897.
Logo em seguida, há cinco seções dedicadas às mudanças ocorridas na teoria
freudiana após 1897: O trauma e a fantasia, As neuroses traumáticas e a guerra,
A teoria da angústia e o trauma, O supereu e o trauma e O período de latência e
o efeito do trauma. Por fim, as duas últimas seções deste capítulo trarão uma
abordagem mais contemporânea sobre a questão da violência como trauma.
1.1
O trauma nas primeiras teorias freudianas
Iniciando esta apresentação sobre a noção de trauma nas primeiras
teorias freudianas, lembro ser de conhecimento geral a importância atribuída
pelo próprio Freud às suas experiências com Jean-Martin Charcot, no hospital
Salpetrière, entre 1885 e 1886. Ao chegar a Paris, Freud queria estudar a
anatomia do sistema nervoso; ao deixar o Salpetrière, seu interesse de pesquisa
tinha se voltado aos problemas da histeria e do hipnotismo.
Conforme relatório de Freud sobre seus estudos em Paris e Berlim
(Freud, 1956 [1886]), Charcot interessou-se, desde muito cedo, quando ainda
era um estudante no Salpetrière, pelas doenças nervosas crônicas. No entanto,
ao chegar no Salpetrière em 1885, Freud pôde constatar que Charcot havia se
afastado do estudo das doenças orgânicas, e encerrado seu trabalho da
anatomia do sistema nervoso. Segundo Freud, o que precisava ser estudado,
para Charcot, eram as neuroses, particularmente as neuroses histéricas, que
acometiam tanto homens quanto mulheres.
Freud assinala que, até 1886, dificilmente a histeria era considerada uma
palavra com significado bem definido. A histeria caracterizava-se, naquela
época, somente por “sinais negativos” (Freud, 1990 [1956 [1886] ], p. 48): a
doença histérica dependia de irritação genital, nenhuma sintomatologia definida
podia ser atribuída à histeria pois nela podia ocorrer qualquer combinação de
sintomas e, enfim, valorizava-se a simulação no quadro clínico da histeria.
17
Durante as últimas décadas, é quase certo que uma
mulher histérica seria tratada como simuladora, do mesmo
modo que, em séculos anteriores, seria julgada e condenada
como feiticeira ou possuída pelo demônio.
(Freud, 1990 [1956 [1886] ], p. 48)
Assim, inspirado no estudo de Charcot sobre os fenômenos hipnóticos na
histeria, Freud (1886; 1893b) sustenta que os contágios histéricos, que foram
interpretados na Idade Média como possessões demoníacas, passaram a ser
entendidos, após a década de 1880, pela tendência à sugestionabilidade e ao
mimetismo desses pacientes. A causa da histeria, tida na época como
consequência de uma lesão nos órgãos sexuais femininos, é contestada pela
insuspeitada frequência da histeria nos homens, bem como pela presença de
histerias traumáticas.
Nesses casos típicos, ele encontrou a seguir
numerosos sinais somáticos (tais como a natureza do ataque, a
anestesia, os distúrbios da visão, os pontos histerógenos etc.),
que lhe possibilitaram estabelecer com segurança o
diagnóstico da histeria, com base em indicações positivas.
Estudando cientificamente o hipnotismo (...), Charcot chegou a
uma espécie de teoria da sintomatologia histérica. Teve a
coragem de reconhecer esses sintomas como sendo, na sua
maior parte, reais, sem negligenciar as precauções exigidas
pela insinceridade do paciente.
(Freud, 1990 [1956 [1886] ], p. 48-49)
Após Charcot, a causa da neurose, explicada até então exclusivamente
por fatores orgânicos ou fisiológicos, mostra uma nova face: a história de vida do
paciente e suas circunstâncias são motivos coadjuvantes no desencadeamento
da histeria. Charcot vai centrar seus trabalhos naqueles sintomas que apareciam
após graves traumas, ou seja, conforme Freud explica, em sintomas que advêm
como resultado das neuroses traumáticas e mais especialmente das histerias
traumáticas.
Nas neuroses traumáticas, a causa atuante da doença
não é o dano físico insignificante, mas o afeto do susto – o
trauma psíquico. De maneira análoga, nossas pesquisas
revelaram para muitos (...) dos sintomas histéricos, causas
desencadeadoras que só podem ser descritas como traumas
psíquicos. Qualquer experiência que possa evocar afetos
aflitivos – tais como o susto, angústia, vergonha ou dor física –
pode atuar como um trauma dessa natureza; e o fato de isso
acontecer de verdade depende, naturalmente, da
suscetibilidade da pessoa afetada (...).
(Freud, 1987 [1893a], p. 43)
18
É nesse contexto que Freud (1893b) introduz a noção de trauma, como motivo
capaz de desencadear as manifestações patológicas.
Nas notas de rodapé à tradução das Conferências das terças-feiras de
Charcot, Freud (1892-1894) assinala, como ponto central de um ataque histérico,
a existência de lembranças alucinatórias de uma cena que são significativas
para o desencadeamento da doença. Para ele, o conteúdo da lembrança ou é
um trauma psíquico capaz de provocar a eclosão da histeria no paciente ou um
acontecimento que, devido à sua ocorrência em um momento particular, tornou-
se um trauma. Nas histerias traumáticas, tal mecanismo é facilmente observável,
embora também possa ser demonstrado na histeria em que não há um único
trauma de maior significação: “Em tais casos, constatamos traumas menores,
repetidos, ou, quando predomina o fator da disposição, lembranças em si
mesmas indiferentes, mas que assumem a intensidade de traumas” (Freud, 1990
[1892-1894], p. 203).
A irrupção de um quadro clínico histérico seria uma tentativa de
completar a reação ao acréscimo de excitação no sistema nervoso, na medida
em que este sistema nervoso foi incapaz de dissipá-la adequadamente pela
reação motora ou pela associação. Deste modo, o retorno de uma lembrança
inconsciente traumática, responsável pela eclosão da histeria, é um ponto
recorrente num ataque histérico. “Essa lembrança ou está inteiramente ausente
da recordação do paciente, quando este se encontra em seu estado normal, ou
está presente apenas em forma rudimentar, condensada.” (Freud, 1990 [1940-
1941 [1892] ], p. 220).
Observo que, nessa época, o trauma tem um valor importante na
psicogênese da histeria, mas Freud ainda aceita a teoria de uma disposição
congênita como sendo fundamental. Um acontecimento ocorrido em uma pessoa
com disposição congênita para os estados hipnóides, ou seja, dificuldades na
associação psíquica, torna-se traumático. A lembrança do fato dito traumático foi
dissociada e faz parte de um segundo estado da consciência, que está presente
em toda histeria (ibidem, p. 220).
Deve-se supor uma dissociação na consciência para a explicação dos
fenômenos histéricos (Freud, 1940-1941 [1892]). A lembrança que forma o
conteúdo desse ataque não é qualquer, mas a reprodução alucinatória do
acontecimento traumático. Em outro grupo de casos, o conteúdo dos ataques
consiste em lembranças que não são capazes, por si mesmas, de constituírem
traumas, mas que ocasionalmente se associam a uma pré-disposição interna da
pessoa à eclosão da doença, sendo, com isso, “elevadas à condição de
19
traumas” (Freud, 1940-1941 [1892], p. 220). A partir da observação clínica de
diferentes casos de histeria, Freud chega à noção de trauma psíquico, noção
esta estreitamente relacionada à teoria da histeria, já nos primeiros textos
freudianos: “(...) transforma-se em trauma psíquico toda impressão que o
sistema nervoso tem dificuldade em abolir por meio do pensamento associativo
ou da reação motora” (ibidem, p. 222).
Logo, a definição de trauma psíquico implica, numa perspectiva
freudiana, na idéia de um choque violento, de uma efração sobre o aparelho
psíquico e também das consequências sobre o conjunto da organização
psíquica. Em contrapartida, nas décadas de 1880/1890, a disposição congênita
para a dissociação de um segundo grupo psíquico tem um peso importante na
caracterização dos motivos pelos quais uma experiência se torna traumática
para certo indivíduo, explicando porque um acontecimento pessoal e real da
história do sujeito foi vivenciado como algo que altera o afluxo de excitações do
psiquismo, provocando transtornos energéticos transitórios ou efeitos
patogênicos duradouros (Freud, 1893a).
Numa concepção econômica, o trauma está relacionado a uma ausência
de ab-reação
2
de um afeto que permanece estrangulado, na medida em que há
uma dissociação das idéias correspondentes a ele da consciência. Neste
sentido, o afeto estrangulado é vivenciado como desprazer que economicamente
compromete a homeostase do aparelho (Freud, 1893a). Frente à situação
traumática, o sujeito não é capaz de reagir com uma resposta que lhe permitiria
descarregar os afetos mobilizados pelo acontecimento, ou através da associação
porque as idéias ligadas ao acontecimento estão excluídas do comércio
associativo com as idéias conscientes. Dessa forma, as memórias do trauma
ficam carregadas de afeto represado, e se comportam como um verdadeiro
corpo estranho no psiquismo.
Para se reconhecer como trauma um evento específico para alguém
devem estar presentes condições objetivas, assim como se deve levar em
consideração a suscetibilidade particular de determinada pessoa ao trauma.
Acontecimentos que isoladamente não constituem um trauma podem, em seus
efeitos e por adição, ter valor traumático. Além do fator constitucional, Freud
dará cada vez mais valor a outros fatores: a própria natureza de um
acontecimento pode excluir uma ab-reação completa, mas exigências sociais
2
Ab-reação: descarga emocional pela qual um sujeito se liberta do afeto ligado à recordação de
um acontecimento traumático, permitindo assim que não se torne ou não continue sendo
patogênico (Laplanche & Pontalis, 1991 [1967], p. 1).
20
que não permitam uma reação adequada por parte do sujeito, como também
conflitos psíquicos que dificultem a integração da experiência ocorrida na
personalidade consciente do sujeito são garantidores do valor traumático do
acontecimento. Esse último aspecto é o que gradativamente assumirá a dianteira
nas considerações freudianas. Trata-se de uma defesa contra certas idéias que
provocam o conflito psíquico, por serem incompatíveis com aspirações éticas do
sujeito ou com outros motivos. É a defesa que Freud invocará, cada vez mais,
para explicar porque certas idéias têm seu acesso à consciência negado.
A primeira teoria do trauma e da ab-reação pôde assim ser reconhecida
desde os primeiros escritos sobre a histeria, quando Freud desenvolveu a
questão do trauma psíquico, “como um corpo estranho que, muito depois de sua
entrada, deve continuar a ser considerado como um agente que ainda está em
ação” (Freud, 1987 [1893a], p. 44), e que só mediante a hipnose, com a vinda à
consciência das idéias anteriormente dissociadas, e a reação afetiva
correspondente, poderá se tornar passado. Neste sentido, o trauma continua
provocando efeitos no psiquismo como se ainda estivesse presente, ponto muito
importante e que caracteriza a primeira teoria do trauma – o trauma como afeto
estrangulado.
1.1.1
A ‘contravontade’ histérica – o conflito psíquico
A partir do tratamento por sugestão hipnótica, Freud ensaia sua primeira
tentativa de propor uma teoria sobre o mecanismo psíquico da histeria, diversa
da visão charcotiana. Em Charcot não havia ainda a idéia de um conflito
psíquico. Neste sentido, Freud (1892-1893) elabora uma outra teoria, mais
psicológica, para a etiologia dos sintomas histéricos.
Freud pensa a origem dos sintomas histéricos através da concepção de
contravontades ou, como também ficou conhecida, de idéias antitéticas aflitivas.
Assim, supondo haver um estado de disposição para a histeria, os sintomas não
mais necessariamente surgiriam após um trauma físico, que pudesse ser
explicado através de teorias neurológicas, podendo se formar a partir de um
confronto de idéias antitéticas, mesmo que conscientes.
Para Freud (1892-1893), existem idéias cujo afeto de expectativa lhes
está vinculado, sendo de dois tipos: idéias de eu fazer isto ou aquilo – são as
intenções – e idéias de isto ou aquilo me acontecer – são as expectativas
21
propriamente ditas. O afeto vinculado a tais idéias depende, de um lado, do grau
de importância que o resultado tem para o indivíduo em questão; de outro, do
grau de incerteza inerente à expectativa desse resultado. “A incerteza subjetiva,
a contra-expectativa, é em si representada por um conjunto de idéias ao qual
darei o nome de idéias antitéticas aflitivas. (Freud, 1990 [1892-1893], p. 182).
Numa perspectiva freudiana, uma pessoa com vida ideativa sadia inibe
as idéias antitéticas que se opõem à sua intenção, excluíndo-as de suas
associações de pensamentos. Já os pacientes neuróticos dedicam grande
atenção às idéias antitéticas aflitivas que se opõem às intenções. Embora
pareçam estar inibidas, estas idéias são, com isso, afastadas da associação da
consciência, de modo a existirem como idéias desconectadas para os próprios
pacientes.
Para esclarecer o que eram essas contravontades, Freud retoma, em Um
caso de cura pelo hipnotismo (Freud, 1892-1893) e em Sobre o mecanismo
psíquico dos fenômenos histéricos (Freud, 1893a), a história de uma paciente –
que ele havia acompanhado em 1888 e que passa a ser conhecida como o caso
Sra. Emmy von N. –, história esta que pode ser encontrada também nos Estudos
sobre a histeria (Freud, 1893-1895). Freud relata haver empregado pela primeira
vez o método catártico no tratamento dessa livoniana de 40 anos, uma jovem
viúva e mãe de duas filhas, também elas afetadas por distúrbios nervosos.
Emmy von N. manifestava alterações do humor (angústia e depressão
melancólica), fobias ante a visão de certos animais e inibições da vontade. As
duas últimas classes de perturbação psíquica – as fobias e as inibições da
vontade – foram, para Freud, na sua maior parte, de origem traumática. O
tratamento de Emmy von N. durou em torno de quinze semanas, durante as
quais Freud lhe fez massagens no corpo, prescreveu-lhe banhos quentes e
procurou, por meio de sugestão hipnótica e do método catártico, libertá-la de
seus afetos dolorosos.
Emmy von N. demonstrava a Freud suas aflições frente aos
impedimentos e incapacidades histéricos. Fazia um ruído peculiar, um singular
estalo de língua, com súbita interrupção do fechamento convulsivo dos lábios
que, como um tique, interrompia sua fala. Além do estalo de língua, também
gaguejava, quando estava confusa. Repetidas vezes, na presença de Freud,
empregava expressões como: “– Fique quieto! – Não diga nada! – Não me
toque! (Freud, 1987 [1893a], p. 82). Ao ser questionada por Freud após
algumas semanas sobre a origem do estalo de língua, Emmy von N. não soube
lhe responder: “– Não sei”. A resposta de Emmy a Freud levou-o a considerar
22
que se tratava de um tique verdadeiro, até lhe ocorrer fazer a mesma pergunta
estando a paciente sob hipnose. A resposta obtida foi, aí sim, mais elucidativa.
Foi quando minha filha mais nova esteve muito doente;
ela havia passado o dia inteiro tendo convulsões, mas, por fim,
no final da tarde, adormeceu. Eu estava sentada à beira da
cama dela e pensei comigo mesma: – Agora você tem de ficar
absolutamente quieta, para não acordá-la. Foi então que o
estalo ocorreu pela primeira vez. Depois, desapareceu. Mas,
um dia, passados alguns anos, quando eu estava passando de
carruagem por uma floresta perto de —, sobreveio uma violenta
tempestade, e um tronco de árvore junto ao caminho, bem à
nossa frente, foi atingido por um raio, de forma que o cocheiro
teve de sofrear os cavalos bruscamente, e eu pensei comigo: –
Agora, haja o que houver, você não deve gritar, senão os
cavalos disparam. E naquele momento o estalo veio
novamente e persistiu desde essa ocasião.
(Freud, 1990 [1892-1893], p. 186)
Após a resposta da paciente, obtida em estado hipnóide, Freud pôde
constatar que o ruído que Emmy fazia não era um tique verdadeiro, na medida
em que, desvendada sua origem, ele desapareceu por completo. Isto porque,
segundo Freud, enquanto um tique verdadeiro persiste, o tique histérico cedo ou
tarde sempre desaparece.
Esta foi a primeira vez que Freud conseguiu observar a origem dos
sintomas histéricos mediante a atuação de uma idéia antitética aflitiva, ou ainda,
mediante a contravontade. Era a idéia fundamental para a psicanálise de que na
origem do sintoma neurótico está um conflito psíquico.
Nossa paciente histérica, esgotada pela preocupação e
pelas longas horas de vigília junto ao leito da filha enferma que
afinal adormecera, disse a si mesma: Agora você precisa ficar
inteiramente imóvel para não acordar a menina. É provável que
essa intenção tenha dado origem a uma representação
antitética, sob a forma de um medo de que, mesmo assim, ela
fizesse um ruído que despertasse a criança do sono que tanto
esperara. Representações antitéticas como essas surgem em
nós de forma marcante quando nos sentimos inseguros de
poder pôr em prática alguma intenção importante.
(Freud, 1987 [1893a], p. 115)
Sobre o assunto, Freud afirma que a emergência de uma contravontade é
uma das responsáveis pelo fato de pessoas histéricas serem incapazes de fazer
alguma coisa justamente quando elas mais desejam fazê-la; de fazerem o
oposto daquilo que lhes foi solicitado e de cobrirem de maus-tratos e suspeitas o
que mais valorizam (Freud, 1892-1893). Neste sentido, foi o sentimento de
horror sentido por Emmy von N. ao ruído produzido contra sua vontade que
23
tornou traumático aquele momento, e fixou o ruído em si como ummbolo
mnêmico somático de toda a cena.
Assim, tendo se originado a partir de uma situação traumatizante, tanto o
estalo de língua quanto a gagueira passaram a se manifestar frente a quaisquer
medos, inclusive àqueles que não podiam sequer levar ao acionamento de uma
representação antitética. Vinculados, pois, a tantos traumas, passaram a
irromper a fala de Emmy von N. sem nenhuma causa particular, à maneira de
um tique sem significado” (Freud, 1897 [1893a], p. 116).
1.1.2
A definição de trauma na neurotica freudiana
Preocupado em sustentar que toda histeria era traumática, na medida em
que implicava em um trauma psíquico, e de que todo fenômeno histérico era
determinado pela natureza do trauma, ainda na década de 1890, Freud elaborou
a teoria da neurotica, segundo a qual o trauma era essencialmente de natureza
sexual e a cena traumática se baseava em uma ação real de um adulto – na
maioria dos casos uma figura paterna – que seduz uma criança. Segundo sua
tese, o trauma influenciava diretamente no surgimento das neuroses, assunto
que Freud tratou extensivamente em Estudos sobre a histeria (1895), quando
discorreu sobre o significado etiológico do trauma nas neuroses. Observo que
nessa mesma obra, Freud ratificou a concepção econômica do trauma, definindo
mais precisamente suas possíveis fontes e incluindo o conceito de defesa. No
prefácio à primeira edição de 1895, Breuer e Freud sintetizam: “a sexualidade
parece desempenhar um papel fundamental na patogênese da histeria, como
fonte de traumas psíquicos e como motivação para a ‘defesa’ – isto é, para que
as idéias sejam recalcadas da consciência” (Freud, 1987 [1895], p. 35).
Na neurotica, Freud se apóia numa evidência clínica – a lembrança de
traumas das crianças que são vítimas de abusos sexuais é tão penosa que todos
preferem esquecê-los, recalcando-os. A partir dessa primeira hipótese da
causalidade sexual da neurose e do recalque com base na teoria da sedução de
origem traumática, a noção de trauma ocupa um lugar historicamente
fundamental para a psicanálise.
Nos anos de 1890, a neurotica se alicerça e se define a partir da idéia
freudiana de que a ação traumática pressupõe dois tempos. Há uma primeira
cena – a cena de sedução propriamente dita –, que geralmente ocorre na
infância, em que a criança sofre uma tentativa de agressão sexual por parte de
24
um adulto, sem que o fato seja por ela identificado como excitação sexual, desde
o momento em que, para Freud, a sexualidade ainda não tinha se instaurado
nesta época. A segunda cena ocorre na puberdade, muitas vezes
aparentemente anódina; mas ela evoca a primeira cena por qualquer traço
associativo, resignificando a primeira cena como sexual. A partir disso, eclode o
sintoma histérico.
Do ponto de vista econômico, como lembrança, só depois portanto, o
maior peso traumático é atribuído à primeira cena. O passado censurado torna-
se, desta forma, menos importante do que o estabelecimento de certa
articulação entre duas cenas, articulação que constitui o trauma. Por outro lado,
desde então algumas características do trauma ganham forma definitiva na
metapsicologia: o efeito traumático está sempre referido à ruptura entre
percepção e consciência, e a lembrança traumática opera de forma retroativa,
depois. Freud (1896c) acrescenta que o recalcamento da lembrança de uma
experiência sexual aflitiva na vida adulta somente acontece com pessoas às
quais tal experiência possa ativar o traço mnêmico de um trauma infantil.
Sobre
o assunto, Utichel comenta:
É no efeito a posteriori (em que, mais do que uma
sequência de cenas, observa-se uma sobreposição da cena
atual com a da marca mnêmica) que o evento se torna
traumático. O trauma não se localiza na vivência da vida adulta,
mas no reviver a posteriori a intensidade que evoca a primeira
cena: “Não são os acontecimentos que agem traumaticamente,
mas sua lembrança, que emerge quando o sujeito chega à
maturidade sexual” e é capaz de compreender o sentido de
ambas as cenas. (Utichel, 2001, p. 19-20)
Contudo, essa neurotica é abandonada em 1897, a partir da constatação
freudiana da importância da fantasia incestuosa para as histéricas. Freud tenta,
dessa vez, sustentar a idéia de que o trauma era na verdade uma cena
fantasiada. Para ele, a chave das neuroses histéricas não está mais nas
seduções, mas nas fantasias – ou seja, nas fantasias de sedução pelo pai, por
exemplo. Neste sentido, alguns fatos que só então puderam ser percebidos por
Freud colaboraram para o enfraquecimento da neurotica: a idéia de que todos os
pais fossem perversos não se sustentava, havia mulheres que fantasiavam
cenas de sedução que não condiziam com fatos ocorridos, como também a
eclosão de uma neurose não podia ser explicada tão somente através de cenas
de sedução que haviam tido lugar na história do sujeito.
Freud substitui a neurotica pela teoria da fantasia traumática de sedução
e é neste momento que se pode dizer que o significado etiológico do trauma nas
25
neuroses perde espaço, enquanto a idéia de realidade psíquica e o papel
desempenhado pelas fantasias inconscientes das histéricas passam a ser mais
valorizados, na escrita freudiana. Embora não abandonado, aos poucos o fator
traumático passa a fazer parte de uma concepção mais abrangente, incluindo
outros aspectos, tais como a constituição e a história infantil. O trauma, mesmo
quando acontece na infância de determinado sujeito, não serve mais como forma
exclusiva de esclarecimento para a gênese da constituição do sintoma histérico,
mas como um elemento explicativo a mais. Com a descoberta da sexualidade
infantil, passa a ser substituído pela fantasia ou a encontrar nela seu
complemento. Para Freud (após 1897), o que deve ser levado em consideração
é a realidade psíquica. A fantasia assume, portanto, a força que antes pertencia
ao evento traumático.
1.2
O trauma e a fantasia
Fantasia, em alemão: Phantasie. É o termo para
designar a imaginação, não tanto a ‘faculdade de imaginar’ (...),
mas o imaginário e seus conteúdos, as ‘imaginações’ ou
‘fantasias’ em que se entrincheiram, habitualmente, os
neuróticos (...). Nessas cenas que o sujeito conta (...), é
impossível desconhecer a tonalidade, a nuança da fantasiação.
Portanto, como escapar à tentação de definir esse mundo em
relação àquele do qual ele se separa: o mundo do real?
(Laplanche, 1988 [1985], p. 15)
No final da década de 1890, Freud elabora o conceito de fantasias
inconscientes. No entanto, a constatação da existência de fantasias não altera a
busca pela experiência ocorrida objetivamente. Se nos anos anteriores a
1896/1897 a importância das fantasias nos casos de histeria havia escapado a
Freud, a virada de 1897 não trouxe, porém, um abandono da busca por cenas
sexuais mais primitivas por parte do autor, como se pode ver pela justaposição
de dois trechos de cartas a Fliess:
26
O aspecto que me escapou na solução da histeria
reside na descoberta de uma fonte diferente, da qual emerge
um novo elemento da produção do inconsciente. O que tenho
em mente são as fantasias histéricas, que (...) remontam
sistematicamente a coisas que as crianças entreouvem em
idade precoce e que só compreendem numa ocasião posterior.
(Carta Freud-Fliess de 06/04/1897 apud Masson, 1986, p. 235)
O objetivo parece ser o de alcançar as cenas [sexuais]
mais primitivas. Em alguns casos, isso se consegue
diretamente, porém, em outros, somente através de um desvio,
por meio das fantasias. E isso porque as fantasias são
fachadas psíquicas produzidas com a finalidade de impedir o
acesso a essas recordações. As fantasias servem,
simultaneamente, à tendência a aperfeiçoar as lembranças e à
tendência a sublimá-las. São fabricadas por meio de coisas
ouvidas e usadas posteriormente, assim combinando coisas
experimentadas e ouvidas, acontecimentos passados (da
história dos pais e antepassados) e coisas que foram vistas
pela própria pessoa. (Carta Freud-Fliess de 02/05/1897 apud
Masson, 1986, p. 241)
A teoria do trauma concebida em dois tempos permanece, portanto,
válida, mas com uma diferenciação no material em que os tempos incidem. O
material não é mais a sedução sexual explícita, mas a experiência de coisas que
são escutadas e que não estão inicialmente ligadas a sentido algum. O sentido
só chega mais tarde, produzindo as fantasias.
Nesse período, temos uma concepção das fantasias como “fachadas
psíquicas” (ibidem, p. 241), frente aos eventos realmente importantes na
etiologia das neuroses, e que estão ocultos à primeira vista. Freud passa a se
preocupar menos em reencontrar os elementos realmente ocorridos que
poderiam estar na base da irrupção de um quadro histérico. O acontecimento
concebido como desencadeador da neurose pode ser um elemento imaginário,
que provoca o trauma. Isto porque, embora o mundo das fantasias se situe entre
um mundo interior, que tende à satisfação pela imaginação, e um mundo
exterior, que impõe a realidade dos fatos, parece que o inconsciente é
originalmente o único mundo do sujeito (Laplanche, 1985).
Freud (1900) invoca, então, o recurso à noção de realidade psíquica, que,
frequentemente, nada mais é “do que a realidade dos nossos pensamentos, do
nosso mundo pessoal, realidade que equivale à do mundo material e cuja
eficácia, no tocante aos fenômenos neuróticos, é determinante” (Laplanche,
1988 [1985], p. 20-21). Observo que a realidade psíquica, numa perspectiva
freudiana, não se confunde com a realidade material.
27
1.2.1
O fator infantil na sexualidade
Esse momento da teoria do trauma coincide com um Freud que se
encontra às voltas com a construção da metapsicologia. Nesta fase, ele está
interessado em entender o desenvolvimento sexual infantil, tal como exposto nos
Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905b) e em Minhas teses sobre o
papel da sexualidade na etiologia das neuroses (1906 [1905]). Aliás, após a
renúncia da primeira teoria da sedução, três temas são preponderantes na
Correspondência com Fliess: a descrição da sexualidade infantil espontânea, de
desenvolvimento essencialmente endógeno, a fantasia e o complexo de Édipo.
3
Os fatos forçaram Freud a abandonar a primeira teoria do trauma:
vivências sexuais de sedução que se impunham a Freud como traumáticas antes
de 1897, conclui ele, não supunham necessariamente um acontecimento real;
elas podiam ser fantasias que acobertavam manifestações espontâneas da
atividade sexual infantil:
Essa reflexão foi logo seguida pela descoberta de que
essas fantasias destinavam-se a encobrir a atividade auto-
erótica dos primeiros anos de infância, embelezá-la e elevá-la a
um plano mais alto. E agora, de detrás das fantasias, toda a
gama da vida sexual da criança vinha à luz.
(Freud, 1974 [1914], p. 27-28)
Embora tantos elementos teóricos sobre a sexualidade já estivessem na
mente de Freud por volta de 1896, a sexualidade infantil foi encarada como um
fator latente durante todos os anos anteriores a 1897, sendo, desse modo,
passível de vir à luz através da intervenção de um adulto. Somente após a
renúncia da neurotica e com a descoberta do complexo de Édipo é que Freud
reconhece que “moções sexuais atuavam normalmente nas crianças da mais
tenra idade, sem nenhuma necessidade de estimulação externa” (Freud, 1989
[1905b], p. 121). Sobre as investidas sexuais dos adultos sobre as crianças, diz
Freud:
3
Todavia, tanto no capítulo II sobre a sexualidade infantil nos Três ensaios quanto no artigo
Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das neuroses, Freud fala sobre o
desenvolvimento sexual da criança sem mencionar uma só vez o complexo de Édipo (sobre a
descoberta freudiana do complexo de Édipo, ver as Cartas a Fliess de 3 e 15/10/1897).
28
Superestimei a frequência desses acontecimentos (...),
ainda mais que, naquele tempo, não era capaz de estabelecer
com segurança a distinção entre as ilusões de memória dos
histéricos sobre sua infância e os vestígios de eventos reais.
Desde então, aprendi a decifrar muitas fantasias de sedução
como tentativas de rechaçar lembranças da atividade sexual do
próprio indivíduo (masturbação infantil). Esclarecido esse
ponto, caiu por terra a insistência no elemento ‘traumático’
presente nas vivências sexuais infantis, restando o
entendimento de que a atividade sexual infantil (seja ela
espontânea ou provocada) prescreve o rumo a ser tomado pela
vida sexual posterior (...). (Freud, 1906 [1905], p. 257-258)
Para completar, sob influência da sedução, uma criança pode se tornar
“perversa polimorfa e ser induzida a todas as transgressões possíveis. Isso
mostra que ela [criança] traz em sua disposição a aptidão para elas (...)” (Freud,
1989 [1905b], p. 179).
Freud, com a descoberta das fantasias inconscientes, conclui que todo
trauma provém simultaneamente do exterior, “porque é do outro que a
sexualidade chega ao sujeito, e do interior, pois que jorra desse exterior
interiorizado, dessa ‘reminiscência’ de que (...) sofrem os histéricos e na qual já
reconhecemos a fantasia” (Laplanche, 1988 [1985], p. 31).
Nesse período, segundo a leitura de Laplanche (1985), surge também
uma noção importante na teoria freudiana, a de Urphantasien, as fantasias
originárias: “Na noção de fantasia originária, confluem o que se pode chamar do
desejo de Freud de descobrir o alicerce do evento (...) e a exigência de basear a
estrutura da própria fantasia em alguma coisa que não o evento” (ibidem, p. 51).
Essas fantasias originárias se reportam às origens, constituindo um acervo
filogenético; as fantasias sexuais se reportam invariavelmente ao tema dos pais,
ao dito e ao ruído familiar; e àquele discurso que é entreouvido pela criança
quando ainda muito pequena. Neste sentido, o que se vê figurado nas fantasias
é o surgimento da sexualidade, do questionamento quanto à diferença entre os
sexos e assim por diante.
Nelas [nas fantasias originárias], o indivíduo se
contacta, além de sua própria experiência, com a experiência
primeva naqueles pontos nos quais sua própria experiência foi
demasiado rudimentar. Parece-me bem possível que todas as
coisas que nos são relatadas hoje em dia, na análise, como
fantasia – sedução de crianças, surgimento da excitação
sexual por observar o coito dos pais, ameaça de castração (ou,
então, a própria castração) – tenham sido, em determinada
época, ocorrências reais dos tempos primitivos da família
humana, e que as crianças, em suas fantasias, simplesmente
preencham os claros da verdade individual com a verdade pré-
histórica. (Freud, 1976 [1917c], p. 433)
29
Quanto às investigações sexuais infantis – por exemplo, a pulsão de
saber, as teorias sexuais acerca do enigma do nascimento dos bebês e as
concepções sádicas da relação sexual entre adultos –, elas são reflexos da
própria constituição sexual da criança e, apesar de muitas vezes fracassarem,
significam um primeiro passo destes pequenos investigadores em direção a uma
orientação autônoma no mundo (Freud, 1905b). O aspecto positivo do abandono
da teoria da sedução é, portanto, que Freud passa a desconfiar da inocência
infantil, questionando a universalidade da vivência traumática de sedução na
etiologia das neuroses. As fantasias seriam ativas mesmo na infância, não sendo
retroativamente introduzidas, incorporadas em alguma experiência em princípio
anódina. Em contrapartida, o aspecto negativo dessa crise é que Freud propõe o
retorno à predisposição constitucional e hereditária como fator etiológico
específico da neurose. Assim, a predominância do biológico se instala
novamente, em lugar das influências acidentais.
(...) os ‘traumas sexuais infantis’ foram substituídos, em certo
sentido, pelo ‘infantilismo da sexualidade’. Não estava longe
uma segunda modificação da teoria original. Juntamente com a
suposta frequência da sedução na infância, caiu também por
terra a ênfase exagerada nas influências acidentais sobre a
sexualidade, às quais eu pretendera atribuir o papel principal
na causação da doença, embora nem por isso negasse os
fatores constitucionais e hereditários.
(Freud, 1989 [1906 [1905] ], p. 258-259)
Em contraste com o recuo das influências acidentais na etiologia das
neuroses, o recalque (como Freud começa a dizer em lugar de defesa) passa a
ser valorizado: “Não importavam (...) as excitações sexuais que um indivíduo
tivesse experimentado em sua infância, mas antes (...) sua reação a essas
vivências – se respondera ou não a essas impressões com o ‘recalcamento’ ”
(ibidem, p. 260).
Vejamos agora um pouco mais sobre o que seriam essas teorias e
fantasias sexuais infantis.
30
1.2.2
As teorias e fantasias sexuais infantis
O interesse de Freud pelas teorias e fantasias sexuais infantis pode ser
explicado segundo duas diferentes perspectivas: a primeira diz respeito a uma
tentativa de elucidação dos mitos e contos de fadas da criança per se; a
segunda se refere a uma busca de compreensão das estruturas psíquicas de
pessoas que procuram análise, julgando-se que essas teorias venham a
influenciar na produção de sintomas.
Uma primeira teoria sexual infantil seria a tese de que todos os humanos
detêm a posse do falo. O órgão genital masculino seria visto pelas crianças
como seu principal objeto sexual auto-erótico, o que as impossibilitaria de
imaginar a ausência do mesmo em seus semelhantes. Os meninos, diante da
ausência do pênis das mulheres, repudiariam tal fato e se resguardariam,
fantasiando que “o dela (menina) é muito pequeno, mas vai aumentar quando
ela crescer” (Freud, 1976 [1908b], p. 219). Diante da ameaça de castração, os
meninos criariam fantasias sexuais para tentar dar conta de sua angústia – isto
porque, neles, haveria uma dominância das excitações exógenas na idade tenra,
– estas excitações seriam expressas, por exemplo, através das atividades
masturbatórias, as quais, ao serem descobertas pelos adultos, seriam
veementemente repudiadas, sob pena de punições.
(...) seu interesse por pipis [Hans] de modo algum era um
interesse puramente teórico; como era de se esperar, também
o impelia a tocar em seu membro. Aos 3 anos e meio, sua mãe
o viu tocar com a mão no pênis. Ameaçou-o com as palavras:
‘Se fizer isso de novo, vou chamar o Dr. A para cortar fora o
seu pipi’. (Freud, 1976 [1909], p. 17)
As meninas ao descobrirem a efetiva castração, sentindo-se inferiores,
criariam uma diferente fantasia sexual – de que sua mãe possuiria um pênis – o
que as inviabilizaria de descobrir a existência da vagina, e, consequentemente, a
maneira de se conceberem crianças (Freud, 1976 [1908b], p. 221-222).
Outra teoria infantil – a cloacal – permitiria aos meninos crerem que
seriam capazes de conceber seus próprios filhos, o que os possibilitaria acreditar
ser possível oferecer ao seu objeto sexual de amor (sua mãe, originalmente) um
filho (ibidem, p. 222-223).
Já a teoria sádica do coito (ibidem, p. 223), a qual surgiria em
consequência de uma real ou fictícia visão do ato sexual dos pais, permitiria à
criança acreditar num ato de violência. Essa teoria alude a uma tese de Freud
31
acerca da possibilidade de que as cenas primárias, trabalhadas na análise,
teriam íntima relação com as fantasias primitivas, sendo o conteúdo das últimas,
possivelmente, herdado.
As fantasias primitivas envolvem necessariamente sentimentos de prazer,
associados aos órgãos genitais. Segundo Freud
Uma fantasia dessa natureza, nascida, talvez, de
causas acidentais na primitiva infância, e retida com o propósito
de satisfação auto-erótica, só pode, à luz do nosso
conhecimento atual, ser considerada um traço primário de
perversão. (Freud, 1976 [1919c], p. 228)
Traços de perversão encontram-se presentes na vida sexual infantil
normal, sem que isso signifique que esses serão posteriormente parte
constituinte da estrutura do sujeito. Tais traços podem ser sublimados,
recalcados ou submetidos a formações reativas. Entretanto, a perversão
encontra-se a princípio no seio do complexo edipiano, sendo levada a uma
relação com o objeto de amor incestuoso da criança, como o seu complexo de
Édipo.
Em Uma criança é espancada, Freud (1919c) apresentou os resultados
de suas pesquisas sobre a questão das fantasias perversas, encontradas em
numerosos neuróticos, contribuindo com o estudo da gênese das perversões
sexuais. Através da compreensão de sua gênese, poder-se-ia reconstruir a
estrutura perversa dos sujeitos; todavia, a fantasia perversa não é a estrutura
perversa.
A formulação, pelas crianças, de suas fantasias perversas é imprecisa.
Elas eximem-se de dar maiores informações sobre suas fantasias, o que só
poderia ser resgatado, com muitas resistências e com o maior sentimento de
culpa, no decorrer do processo analítico, quando o sujeito pode melhor articular
sua fantasia (perversa), a saber, a fantasia de que uma criança está sendo
espancada. Seria esse sentimento de culpa emergente que permitiria a Freud
(1919c) fazer uma articulação com aquilo a que denominou de uma cicatriz do
Édipo. As informações omitidas sobre as fantasias poderiam ser expressas nas
seguintes questões:
Quem era a criança que estava sendo espancada? A
que estava criando a fantasia, ou uma outra? Era sempre a
mesma criança, ou às vezes era uma diferente? Quem estava
batendo nas crianças? Uma pessoa adulta? Se era, quem? Ou
a criança imaginava-se a si mesma batendo na outra? Nada do
que foi apurado pôde esclarecer todas essas perguntas;
apenas a resposta hesitante: ‘Nada mais sei sobre isto: estão
espancando uma criança’. (Freud, 1976 [1919c], p. 227)
32
As fantasias de espancamento das crianças modificam-se no seu
desenvolvimento histórico, no que diz respeito à relação com o autor da fantasia
e quanto ao seu objeto, conteúdo e significado. Na fantasia – perversa por seu
caráter incestuoso, por infligir leis da cultura – não há relação constante entre o
sexo da criança que produz a fantasia e a que se encontra na própria fantasia; o
adulto, pessoa que bate, deve ser reconhecido como sendo o pai da criança.
A fantasia de espancamento, portanto, encobriria um amor incestuoso da
criança pela figura paterna, expresso em três diferentes fases. A primeira fase
deve pertencer aos primeiros anos de infância. Seria relatada pelo sujeito como
uma lembrança de sua história infantil. “O meu pai está batendo na criança [que
eu odeio]” (Freud, 1976 [1919c], p. 232). Nesta fase, a satisfação da criança está
ligada à realização de seu voto incestuoso de ser amada pelo pai, e o fato de
que a outra criança seja espancada é prova disso.
Na segunda fase, “Estou sendo espancada pelo meu pai” (ibidem, p.
232), há modificações: o autor da fantasia de espancamento seria,
concomitantemente, a criança maltratada pelo pai. A fantasia adquire um caráter
masoquista, resultante do sentimento de culpa da criança pelo seu amor
incestuoso.
Essa fantasia de ser espancada pelo pai seria uma maneira de o sujeito
representar seu desejo culpado de atingir um gozo sexual através da atividade
masturbatória; ela permaneceria, nas meninas, inconsciente, enquanto, nos
meninos, se tornaria consciente já que, neles, há uma adicional transformação
da atividade à passividade com relação à fantasia.
Finalmente, a terceira fase – Bate-se numa criança –, assemelha-se à
primeira, mas quem bate seria um substituto do pai (Freud, 1976 [1919c], p. 232-
233). A criança, autora da fantasia, estaria provavelmente olhando a cena.
Não é tarefa simples apreender as diferentes fases das fantasias de
espancamento da menina e do menino. Há modificações relevantes de uma fase
para outra, mas o que é importante é entender, por exemplo, que uma fantasia
desse tipo tem sua origem numa relação incestuosa com o pai e que ambos os
sexos apressam-se em libertar-se dessa atitude (feminina), recalcando a
fantasia.
Em História de uma neurose infantil, Freud (1918 [1914]) interpretou os
sonhos de seu cliente, um jovem russo, demonstrando associações existentes
entre a fantasia dos lobos trazida à análise e uma cena primitiva, que o
analisando crê ter presenciado. Essa associação se estabeleceu através da
postura do lobo, ereto, que o fez lembrar da cena do coito entre os pais. Foi o
33
detalhe do lobo sem rabo, personagem da história que lhe havia contado o avô,
que evocou a lembrança da cena primeva e que tornou possível ao menino
representá-la no sonho dos lobos. Neste sonho, seus pais transformaram-se em
lobos; sua mãe seria o lobo castrado, sem rabo, que permitiria que os outros
“subissem em cima dele”, enquanto seu pai seria o lobo que “subiria na loba sem
rabo”. Essa fantasia, ao contrário da fantasia de espancamento, se referiria a
uma angústia de castração, a qual impossibilitaria a saúde mental do analisando.
Segundo Freud, a força motivadora nesse sonho seria a obtenção de satisfação
sexual com o pai da mesma maneira que a mãe também se satisfizera. Para que
isso ocorresse, seria necessário sua própria castração; seu último objetivo
sexual, portanto, teria que sucumbir ao recalque, por causa do seu caráter
insuportável. A atitude passiva em relação ao pai foi transformada num medo do
pai, expresso através do sintoma fóbico aos lobos.
As fantasias, portanto, enquanto realizações de desejos, cumprem seu
papel. Na medida em que a criança reorganiza suas percepções da realidade,
lidando com suas angústias e suas incertezas, a fantasia (como uma construção
em análise) é importante para o sujeito, encontrando-se em estreita relação com
seu Édipo. As pessoas, para estruturarem-se enquanto sujeito desejante,
passam, desde seu nascimento, por experiências de relações com as figuras
parentais. Acreditamos que as fantasias chamadas originárias, assim como as
teorias sexuais infantis derivem destas experiências. A criança em um primeiro
momento vive a completude em sua relação com a mãe. Entretanto, com a
entrada do terceiro na relação, a criança passa a viver juntamente com seus
objetos parentais uma relação triangular, constituída por três vértices: a criança,
seu objeto natural (figura materna) e o portador da lei (figura paterna).
As fantasias e as teorias sexuais infantis encobrem o trauma de não ser
filho da mãe exclusivamente, nem seu único amor. Se pensarmos nas teorias
sexuais infantis, a fantasia do coito sádico representa a não aceitação por parte
da criança de que a mãe deseje outra pessoa além dela própria; o nascimento
cloacal, assim como a teoria da mãe fálica, traduz a idéia de que a mãe é
completa, não precisa de mais ninguém para concebê-la (negação da existência
do terceiro).
As fantasias possibilitam ao sujeito ter relações prazerosas e, ao mesmo
tempo, incestuosas para com as figuras parentais, sem com isso ir de encontro
às leis e às normas sociais. O sujeito, nas fantasias, dá significado às
imposições (traumáticas) que lhe foram impressas pela cultura, conscientizando-
se da realidade da castração.
34
Esse desenvolvimento mostra também que as fantasias estão sempre
ligadas à sexualidade e ao desejo, mas que envolvem aquilo que é traumático. A
castração e a diferença sexual são traumas estruturais que substituíram o
trauma da sedução. A série complementar mostra como o trauma continua a ter
importante papel.
1.2.3
As séries complementares e o trauma
Ao desenvolver o conceito das séries complementares em 1917, Freud
coloca a teoria do trauma dentro de um claro quadro etiológico, esclarecendo,
por meio de um diagrama (que reproduzo abaixo), os fatores que participam na
causação da neurose (Freud, 1976 [1917b], p. 423).
Os casos de doença neurótica enquadram-se numa série, dentro da qual
os dois fatores – a constituição sexual e a experiência infantil – estão
representados de tal modo que, quando um é mais forte, o outro o é menos
(Freud, 1917b). Em outras palavras, há, na leitura de Freud, a função libidinal –
um fator interno à eclosão da doença –, e a experiência casual – um fator
externo e acidental, vivenciado pelo adulto de forma traumática. Com isso, as
pessoas adoecem de neurose quando são impedidas de satisfazer sua libido,
sendo seus sintomas um substituto para sua satisfação frustrada. Freud se
refere a uma série complementar em que a predisposição associada à um
choque violento pode acarretar os mesmos efeitos que um trauma menor aliado
a uma predisposição mais acentuada.
Como as Conferências introdutórias sobre psicanálise (Freud, 1917
[1916-1917]) demonstram, o trauma nesta fase está referido a um acontecimento
que surge em um segundo tempo, não estando mais ligado às experiências
Constituição sexual
(experiência pré-histórica)
Experiência infantil
Causação da neurose = disposição devida à fixação da libido + experiência casual (traumática) [no adulto]
35
infantis encontradas nas origens das fixações. É desse modo que, quando
comparado à concepção traumática da neurotica, seu alcance e sua
originalidade são reduzidos. Só que a idéia do só depois continua, porque ainda
é preciso uma situação infantil e uma atual que se entrelacem para haver o efeito
traumático.
36
1.3
As neuroses traumáticas e a guerra
A idéia de trauma retorna de outro modo entre os anos 1915 e 1920. Esta
nova acepção do tema foi inicialmente imposta a Freud pelos casos de neurose
traumática pós-guerra, que resultavam de acidentes dolorosos recentes que,
aparentemente, não tinham qualquer relação privilegiada com objetos sexuais.
Os sintomas desta afecção, propõe Freud em 1916, resultam de uma fixação no
momento do acidente traumático. Este passará a ser reeditado nos sonhos e a
ressurgir em ataques histeriformes que transportam repetidamente o sujeito para
a situação do trauma, como se fosse impossível superá-la. Com efeito, não é
mais questão de impedir o aparelho psíquico de ser submergido por grandes
somas de excitação; é antes uma outra tarefa que aparece: dominar a excitação,
ligar psiquicamente as somas de excitação que penetraram por efração para
levá-las em seguida à liquidação.
O interesse de Freud pela neurose traumática remonta aos seus
primeiros estudos sobre as afasias, período em que o autor ainda abordava as
neuroses sob o ponto de vista neurológico. Por influência de Charcot, considerou
durante longo tempo as neuroses traumáticas como casos de histeria, como
podemos constatar em Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos.
As experiências que liberaram o afeto original, cuja
excitação foi então convertida num fenômeno somático, são por
nós descritas como traumas psíquicos, e a manifestação
patológica que surge desta forma, como sintomas histéricos de
origem traumática. (A expressão ‘histeria traumática’ já foi
aplicada a fenômenos que, por serem consequência de danos
físicos – traumas no sentido mais estrito do termo – fazem
parte da classe das ‘neuroses traumáticas’).
(Freud, 1987 [1893a], p. 215)
Entretanto, nos anos que se seguem ao início da Primeira Guerra Mundial (1914-
1918), os debates sobre a origem traumática nas neuroses se acirraram:
reativou-se o interesse de Freud nas neuroses de guerra
4
e nas neuroses
traumáticas em geral.
4
“A neurose de guerra não é em si uma entidade clínica. Provém da categoria da neurose
traumática, definida em 1889 por Hermann Oppenheim (1858-1919), que a descreveu como uma
afecção orgânica consecutiva de um trauma real, provocando uma alteração física dos centros
nervosos, por sua vez acompanhada por sintomas psíquicos: depressão, hipocondria, angústia,
delírio etc.” (Roudinesco & Plon, 1998, p. 537).
37
Nesta mesma época, Freud foi convocado, na condição de perito, a dar
seu parecer sobre o trabalho de Julius Wagner-Jauregg, psiquiatra acusado de
haver aplicado choques elétricos em soldados afetados por neuroses de guerra,
que eram, na verdade, considerados meros simuladores. Ao escrever seu
relatório, Freud criticou o tratamento por meio de eletricidade e a ética dos que o
aplicaram aos doentes. Rechaçou ainda a idéia de simulação, que para ele era
inadequada a qualquer definição de neurose (Roudinesco & Plon, 1998).
As exigências da catástrofe mundial solicitaram outra maneira de abordar
a etiologia das neuroses, diferente daquela que Freud teorizou a partir da sua
clínica até então, que tinha sido dedicada às neuroses que ele agora chamará de
espontâneas (histeria, neurose obsessiva, fobia) para diferenciar das
traumáticas. O trauma psíquico como efração recuperou seu lugar; a concepção
econômica do trauma voltou a um primeiro plano entre as preocupações
freudianas. No destaque que tomaram então as neuroses de guerra, os casos
atendidos no front indicavam que, em sua raiz, havia uma fixação no momento
do episódio traumático.
Este [acontecimento traumático] passará a ser
reeditado nos sonhos, e ressurgir em ataques histeriformes que
transportam repetidamente o sujeito para a situação do trauma,
como se fosse impossível superá-la. Às vezes o sintoma é o
reviver quase alucinatório do trauma, hoje chamado de
flashback. (Rudge, 2003a, p. 106)
De fato, a Primeira Guerra Mundial multiplicou os casos de pessoas
afetadas por neuroses traumáticas, ligadas essencialmente a acontecimentos
violentos. Observou-se que, ao serem confrontados com incidentes
insuportáveis, inclusive na idade adulta, os sujeitos repetiam a cena traumática,
revivendo-as regularmente em sonhos, numa tentativa de “cura espontânea”
(Ferenczi, 1993 [1918], p. 27) do paciente.
É como se esses pacientes não tivessem findado com
a situação traumática, como se ainda estivessem enfrentando-a
como tarefa imediata ainda não executada; e levamos muito a
sério esta impressão. Mostra-nos o caminho daquilo que
podemos denominar de aspecto econômico dos processos
mentais. Realmente, o termo ‘traumático’ não tem outro sentido
senão o sentido econômico. (...) Assim, a neurose poderia
equivaler a uma doença traumática, e apareceria em virtude da
incapacidade de lidar com uma experiência cujo tom afetivo
fosse excessivamente intenso. (Freud, 1976 [1917a], p. 325)
38
Interrogando a teoria freudiana construída até então, a noção do trauma
permite, desse modo, questionar a realização de desejos como único motor dos
sonhos e o princípio do prazer como organizador exclusivo da dinâmica psíquica:
Os sonhos traumáticos exigiram, gritantemente, o
abandono da idéia de um psiquismo governado exclusivamente
pelo princípio do prazer. É inteiramente conflitante com a teoria
do sonho como realização – mesmo deformada – de desejo, a
observação de que os sonhos tendem a reconduzir o sonhador
exatamente à terrível situação que gerou a neurose traumática.
(Rudge, 2003b, p. 20)
O propósito do sonho traumático passa a estar referido à cena
insuportável, na tentativa de promover uma elaboração psíquica que possibilite o
restabelecimento do princípio do prazer. Continua, porém, sendo verdadeira a
tese freudiana segundo a qual os sintomas podem ser tratados pela fala. Para
que isso ocorra, é necessário que haja uma modificação interna no paciente, e
esta se efetua “através de uma parcela de trabalho psicológico orientado para
um objetivo determinado” (Freud, 1976 [1917a], p. 332).
No V Congresso Internacional sobre “A psicanálise e as neuroses de
guerra”, realizado em Budapeste em setembro de 1918, Freud sustentou
publicamente que a experiência coletiva da guerra produziu um grande número
de neuroses graves, que se manifestavam principalmente como perturbações
motoras. No entanto, as observações feitas no que dizem respeito às causas
que levaram ao adoecimento destes indivíduos não deixaram dúvidas quanto à
natureza psíquica das denominadas neuroses de guerra.
5
Antes que fossem construídos centros de tratamento de neuróticos de
guerra, nos quais médicos com formação psicanalítica pudessem estudar a
natureza das afecções e o efeito exercido sobre elas pelos tratamentos da
hipnoterapia, da sugestão e da neocatarse, as condições de guerra cessaram de
operar e, simultaneamente, a maior parte das neuroses traumáticas provocadas
por ela desapareceu. Diversas organizações estatais faliram em consequência
da guerra e, com isso, o interesse por estas neuroses cedeu lugar a outras
preocupações (Freud, 1919a). Também presente neste V Congresso, Ferenczi
(1918) sublinha que, segundo Freud, assim como nas neuroses comuns de
tempos de paz, nas neuroses de guerra existe um ganho primário em estar
doente: “a fuga para a doença” (Freud, 1976 [1919a], p. 260).
5
O V Congresso Internacional contou com um simpósio sobre “A psicanálise e as neuroses de
guerra”, composto por esta introdução de Freud e por mais três artigos, lidos por Sándor
Ferenczi, Karl Abraham e Ernst Simmel. As idéias principais destes três autores serão tratadas
ainda nesta seção.
39
Nas neuroses traumáticas e de guerra, o eu defende-se de ameaças
externas, que estão incorporadas a novas formas assumidas pelo próprio eu.
O conflito é entre o velho eu
6
pacífico do soldado e o
seu novo eu bélico, e torna-se agudo tão logo o eu pacífico
compreende que perigo corre ele de perder a vida devido à
temeridade do seu recém-formado e parasítico duplo. (...) À
parte isso, as neuroses de guerra são apenas neuroses
traumáticas, que, como sabemos, ocorrem em tempos de paz
também, após experiências assustadoras ou graves acidentes,
sem qualquer referência a um conflito no eu.
(Freud, 1976 [1919a], p. 261)
Assim, a precondição para o desenvolvimento de neuroses de guerra
parece ser um exército nacional, recrutado entre os civis; soldados profissionais
e mercenários não adoeceriam dessa maneira.
7
Foi fácil, portanto, inferir que a causa imediata de todas
as neuroses de guerra era uma inclinação inconsciente, no
soldado, para afastar-se das exigências, perigosas e ultrajantes
para os seus sentimentos, feitas por ele pelo serviço ativo.
Medo de perder a própria vida, oposição à ordem de matar
outras pessoas, rebeldia contra a supressão implacável da
própria personalidade pelos seus superiores – eram estas as
mais importantes fontes afetivas das quais se nutria a
tendência para se escapar da guerra.
(Freud, 1976 [1955 [1920] ], p. 267)
Esses pacientes que haviam sido recrutados para lutar na guerra sofriam, pois,
de conflitos mentais inconscientes que perturbavam sua vida emocional, levando
muitas vezes até o adoecimento, tal como ocorria também nas neuroses em
tempos de paz.
A análise das sintomatologias traumáticas geradas nas pessoas durante
a Primeira Guerra foi o que mais tarde inspirou as incursões de Freud pelo além
do princípio do prazer, assim como as novas formulações sobre pulsão de morte,
compulsão à repetição e sobre a própria concepção de trauma (Freud, 1920). A
partir do estudo das neuroses de guerra, reescreve-se a metapsicologia: a
repetição é uma maneira de elaboração do trauma, independente do princípio do
prazer. O trauma pode não estar remetido diretamente à experiência infantil de
natureza sexual, atingindo o sujeito inclusive na idade adulta.
6
Neste trabalho, substituirei a palavra ego, tal como traduzida pela editoras Imago, Martins Fontes
e Escuta, por eu, tradução que julgo ser mais apropriada.
7
Retomaremos esse assunto quando falarmos sobre o “eu de guerra”, na parte 1.3.3 desta tese.
40
1.3.1
Sándor Ferenczi: toda neurose de guerra é histeria de angústia
Diferentemente de Freud, que admitiu uma diferença básica entre as
neuroses traumáticas, incluindo as de guerra, e as neuroses espontâneas, como
a histeria, Ferenczi considera que toda a neurose de guerra é histeria de
angústia.
Apenas dois meses após ter assumido a direção do serviço de neurologia
do hospital militar Maria-Valéria, Ferenczi (1916) apresenta suas observações
sobre cinquenta pacientes gravemente afetados ou até inválidos, todos
diagnosticados como neuróticos de guerra. Alguns deles eram incapazes de se
deslocar: suas pernas tremiam; movimentos da musculatura corporal se faziam
acompanhar de crispações
8
e tremores:
É o movimento de andar desses pacientes que mais
impressiona; dá a impressão de uma paresia
9
espasmódica; no
entanto, as diferentes combinações de tremores, rigidez e
fraqueza produzem tipos de locomoção muito particulares, que
só um filme poderia eventualmente reproduzir.
(Ferenczi, 1992 [1916], p. 260)
Além dos distúrbios de marcha, percebem-se constantemente outros
sintomas, nas neuroses de guerra: sensação anormal e desagradável sobre a
pele e em órgãos dos sentidos (com destaque para as sensibilidades auditiva e
visual), que assume diversas formas, tais como queimação, dormência, coceira e
assim por diante. A hiperacusia
10
e a fotofobia
11
tornam esses pacientes
receosos. Queixam-se de alterações da libido e da potência sexual, além de
distúrbios do sono: costumam repetir em sonhos as situações perigosas vividas
no front. Neste caso, o próprio psiquismo cria para si a representação capaz de
lhe causar o afeto penoso e esse sintoma serve como uma tentativa de cura
espontânea. O ponto de vista econômico é levado em conta:
8
Crispação: ato ou efeito de encolher(-se), contrair(-se) espasmodicamente (Houaiss, 2002 [2001],
versão 1.0.5a CD-ROM).
9
Paresia: perda parcial da motricidade (Houaiss, 2002 [2001], versão 1.0.5a CD-ROM).
10
Hiperacusia: acuidade auditiva exacerbada, com audição dolorosa de certos sons, sobretudo os
agudos (Houaiss, 2002 [2001], versão 1.0.5a CD-ROM).
11
Fotofobia: aversão à luz pela dor que ela produz em casos de afecções oculares ou
neurológicas (Houaiss, 2002 [2001], versão 1.0.5a CD-ROM).
41
Segundo a concepção de Freud, devemos considerar,
portanto, que os pequenos traumatismos repetidos, o
sobressalto ao menor ruído ou relâmpago de luz, são uma
tendência para a cura, uma tendência do organismo para
restabelecer o equilíbrio perturbado da distribuição da tensão.
(Ferenczi, 1992 [1916], p. 271)
A partir do assombro que estes casos lhe causaram, Ferenczi propôs a
existência de dois tipos de neurose de guerra. Um primeiro, em que podia ser
descrito um quadro etiológico de histeria de angústia pura, isto é, sem conversão
do afeto, e cujos sintomas principais eram sintomas fóbicos. O outro tipo de
neurose de guerra se ligava às formas de histeria que se caracterizavam pela
predominância de sintomas de conversão do afeto em uma inervação física –
havia uma fixação traumática em partes específicas do corpo.
Para exemplificar o segundo tipo, reproduzo dois casos de neurose de
guerra em que os soldados conservam exatamente a posição do braço que
tinham imediatamente antes da explosão: a posição de balanço (Caso 1) e a
posição de apoiar a arma no ombro em posição de tiro (Caso 2):
Caso 1:
O soldado, cujo braço direito está contraído em ângulo
obtuso, foi afetado pela deflagração quando avançava com o
braço em posição de balanço. Ora, essa posição corresponde
perfeitamente àquela que a contratura reproduz.
(Ferenczi, 1992 [1916], p. 261-262)
Caso 2:
O outro [soldado], que aperta o ombro contra a ilharga
e mantém o cotovelo fixado em ângulo agudo, conserva
igualmente a posição que tinha no momento da explosão:
estava estendido no solo para encostar a arma ao ombro em
posição de tiro e, para tanto, devia apertar o braço contra as
costelas e dobrar o cotovelo em ângulo agudo. (ibidem, p. 262).
Com base nos dados de anamnese, ambos os casos são considerados
histerias de conversão, no sentido de Breuer e Freud (Ferenczi, 1916). Neles, o
trauma persiste sob a forma de sintomas mórbidos; ele é consequência de um
afeto súbito (medo) que não pôde ser contido pelo psiquismo e que, por isso,
permanece ativo na vida inconsciente.
No entanto, em certas circunstâncias, mesmo após a comoção o soldado
continua prestando normalmente seu serviço, e só posteriormente, por ocasião
de um medo puramente psíquico, é que adoece.
42
É o caso (...) de um voluntário que partiu em patrulha
de reconhecimento na noite que se seguiu à comoção; pelo
caminho, tropeçou em uma trincheira, sentiu medo, e somente
após esse evento a doença se manifestou.
(Ferenczi, 1992 [1916], p. 265-266)
Não é a comoção súbita, mas são outros acontecimentos mais ou menos
importantes, ou a soma das privações sobre-humanas e a constante tensão
decorrente de se estar em guerra, que aparecem como fatores determinantes
para a eclosão da neurose. De acordo com Ferenczi, ocorre uma “lesão do eu”
(ibidem, p. 272) nesses traumatismos, uma ferida narcísica cuja consequência
natural é o abandono de uma parte dos investimentos de objeto para concentrá-
los no eu: “uma doença orgânica ou um ferimento podem muito bem acarretar
uma regressão ao chamado narcisismo traumático ou uma variante neurótica da
mesma” (Ferenczi, 1992 [1917], p. 294).
A perda parcial ou total da consciência é seguida de um estado de
paralisia, que desaparece sozinho após algum tempo; ele cede lugar para
distúrbios crônicos da marcha, como uma manifestação de fobias, que têm por
objetivo agir como medida defensiva, impedindo a repetição da angústia.
Portanto, toda neurose de guerra é histeria de angústia, “que se caracteriza
frequentemente pelo fato de que as tentativas de deslocamento (...) estão
vinculadas a uma angústia intensa, que obriga o paciente a evitar certos
movimentos e a transformar todo o seu modo de vida nesse sentido” (Ferenczi,
1992 [1916], p. 266-267). Tal como uma criança quando aprende a andar, tais
pacientes, por angústia, regridem e se confinam ao leito. Retardam com sua
doença, de maneira mais ou menos inconsciente, seu retorno aos campos de
batalha.
A personalidade da maioria dos traumatizados
corresponde, portanto, à de uma criança que, em
consequência de um susto, ficou angustiada, mimada, sem
inibições e malévola. Um elemento que completa perfeitamente
esse quadro é a importância desmedida que a maior parte dos
traumatizados atribui à alimentação. Quando o serviço deixa a
desejar, reagem com violentas explosões emotivas, podendo
culminar em crises. A maioria deles recusa-se a trabalhar e
gostaria de ser cuidada e alimentada como crianças.
(Ferenczi, 1993 [1918], p. 27)
Contrariamente à concepção de Strümpell
12
, que apresentaremos logo
em seguida, para Ferenczi o objetivo principal da doença é permanecer na
situação infantil, abandonada à contragosto. Os ganhos secundários, por sua
12
Adolf Strümpell (1853-1925): neurologista alemão. Trabalhou em diferentes universidades
européias, incluindo Leipzig, Breslau e Erlangen.
43
vez, dizem respeito aos benefícios materiais conseguidos a partir do
afastamento por doença: isenção do serviço ativo, indenização por perdas e
danos, pensão etc.
1.3.1.1
A revisão da literatura sobre as neuroses traumáticas
Em seu relatório apresentado ao V Congresso Internacional, Ferenczi
(1918) apresentou uma revisão crítica da literatura relativa às afecções
neuróticas produzidas em tempos de guerra, sob a perspectiva da psicanálise.
Até então o mais comum era que os médicos classificassem os casos
traumáticos entre as doenças orgânicas, supondo haver graves danos no
sistema nervoso. Outros consideravam esses estados como perturbações
funcionais do sistema nervoso, sem prejuízo maior para o mesmo. Contrário a
estas idéias, Ferenczi defende ferrenhamente neste congresso que o fator
psíquico deveria ser considerado o principal responsável por essas afecções; em
vez de empregar a descrição imprecisa de “mudança funcional” (Freud, 1955
[1920], p. 266), compartilha com Freud o uso não ambíguo do termo “mudança
mental” (ibidem, p. 266).
Strümpell foi um dos primeiros neurologistas a discordar da concepção
puramente organicista; introduziu a idéia de “histeria com intenções
pensionistas” (Ferenczi, 1993 [1918], p. 16), uma neurose que ocorria em
tempos de paz, embora pudesse ser encontrada também em períodos de guerra.
A partir de sua experiência, constata que os indivíduos que contraíam neuroses
graves em consequência de acidentes ferroviários eram justamente aqueles que
teriam ganhos econômicos secundários em decorrência das lesões; outras
pessoas com traumas até mais violentos, mas cujas circunstâncias excluíam de
antemão possíveis indenizações, não desenvolviam qualquer tipo de sintoma
neurótico. Para Strümpell, as neuroses traumáticas eram provocadas pelo
desejo do indivíduo de ficar doente para obter regalias. Tal como Oppenheim
13
,
ele por isso recomendava que se desqualificassem as queixas desses pacientes
(eles deviam ser tratados como simuladores) e suprimissem-lhes as pensões,
reorientando-os o quanto antes ao retorno ao trabalho.
13
Hermann Oppenheim (1858-1919): neurologista alemão, foi quem pela primeira vez usou o
termo neurose traumática, em 1889, com uma conotação inteiramente organicista.
44
O fato de prisioneiros de guerra não desenvolverem neuroses
traumáticas corrobora a hipótese de Strümpell.
Os prisioneiros de guerra não têm nenhum interesse
em ficar doentes por muito tempo, uma vez que em cativeiro, e
aliás estando em país estrangeiro, não podem contar com
nenhuma indenização, pensão ou compaixão. Por outro lado,
sentem-se provisoriamente protegidos pelo cativeiro contra os
perigos da guerra. (Ferenczi, 1993 [1918], p. 17)
Outro autor que insistiu na origem psicogênica das neuroses traumáticas
foi Nonne
14
(ibidem, p. 18). Ele conseguiu provar por meio da hipnose e da
sugestão que não havia lesão orgânica nestes pacientes; as alterações
sintomáticas podiam aparecer e desaparecer instantaneamente, sendo elas
mesmas de natureza psíquica (histérica). Como um desdobramento desta idéia,
Ferenczi acrescenta que, de acordo com Freud, existiria uma predisposição
(psíquica) ao trauma. Essa posição freudiana refere-se àquela série etiológica
em que predisposição e trauma figuram como valores complementares
15
: “uma
leve predisposição associada a um choque violento pode acarretar os mesmos
efeitos que um traumatismo menor aliado a uma predisposição mais acentuada”
(ibidem, p. 21). Assim, se as opiniões médicas ficaram divididas no que se refere
à predisposição para as neuroses de guerra, a psicanálise decidiu adotar nesse
assunto uma posição intermediária, embora explícita.
14
Max Nonne (1861-1959): neurologista alemão, tornou-se professor de neurologia em 1913 e em
1919 recebeu a nomeação para o ensino em neurologia, na recém-fundada Universidade de
Hamburgo, onde se tornou ordinarius em 1925. Foi um dos quatro médicos alemães que
pediram para investigar Vladimir Ilich Lenin durante sua última doença.
15
Mais informações sobre o assunto, cf. parte 1.2.3 desta tese, intitulada “As séries
complementares e o trauma”.
45
1.3.2
Karl Abraham e a regressão narcísica
Em Contribution à la psychanalyse des névroses de guerre, Abraham
(1918) retoma o tema do trauma com seu já maduro conhecimento da
psicanálise e sua rica experiência em frente de batalha.
16
Para ele, no decurso
da Primeira Guerra, a neurologia clássica se orientou por pontos de vista
psicológicos no que concerne às neuroses traumáticas. Apesar das
contribuições ferenczianas, ela se ateve mais às características manifestas
dessa neurose. Abraham, que no ano de 1916 tinha um serviço voltado para o
atendimento de pacientes acometidos por neuroses e doenças mentais, aplicava
um tipo de psicanálise “simplificada”
17
para fazer com que seus pacientes
descobrissem a origem e compreendessem o conteúdo de seus sofrimentos
psíquicos, abstendo-se de todo tratamento que empregasse a força, a hipnose e
outras formas de sugestão.
A etiologia sexual das neuroses se apoiou nas teorias psicanalíticas de
tempos de paz, ao contrário das neuroses traumáticas que só puderam ser
melhor estudadas a partir da Primeira Guerra, pela alta incidência de neuroses
de guerra. O pavor e a inquietação frente a uma possível repetição da situação
perigosa ou o desejo de adquirir uma pensão compensatória por ter participado
da guerra bastavam como causas mórbidas, sem que qualquer intervenção da
sexualidade parecesse necessária para tal. A partir da Primeira Guerra, portanto,
a etiologia sexual como causa para a eclosão de neuroses foi relativizada,
embora a sexualidade ainda se encontrasse presente na sintomatologia.
O exame de casos de neuroses de guerra confirmou as suposições
anteriores de Abraham. Certos sintomas observados durante a guerra –
tremores, cefaléias, angústia, humor depressivo e sentimentos de incapacidade
– já haviam sido encontrados, mesmo que sem o mesmo relevo que em tempos
de guerra, em duas outras formas de neurose não traumáticas, a saber, o
homem impotente e a mulher frígida. Na opinião do autor, tal similitude das
manifestações exteriores existentes nas neuroses de guerra e nestas duas
16
Karl Abraham (1877-1925), psicanalista alemão. Em 1901 concluiu seus estudos médicos e
trabalhou durante seis anos como psiquiatra. Os últimos três anos foram no Burghölzli Swiss
Mental Hospital, em Zurique, onde trabalhou com Paul Eugen Bleuler (1857-1939) e Carl Gustav
Jung (1875-1961). A importância de Karl Abraham é notória pela curta mas intensa interlocução
com Freud.
17
Reproduzo a frase completa, cf. versão em francês: “Je laissai les patients réagir à l’état éveil
et cherchai par une sorte de psychanalyse simplifiée à faire comprendre aux patients l’origine et
le contenu de leur souffrance.“ (ABRAHAM, K. (1918). Contribution à la psychanalyse des
névroses de guerre. Disponível em: http://www.megapsy.com/ Textes/Abraham/blblio050. htm.
Acesso em: 08 dez. 2008).
46
outras formas de neuroses não traumáticas (homem impotente e mulher frígida)
jogava em favor de uma relação entre os processos internos existentes nas
neuroses traumáticas e nas neuroses não traumáticas.
Por outro lado, para Abraham, deveria haver uma predisposição
individual para o adoecimento. Em 1918, Abraham apresenta, tal como Ferenczi
já havia proposto, outro fator relevante para o desencadeamento de patologias
neuróticas: o narcisismo. Ambos acreditavam que o efeito frequente do trauma
sobre a sexualidade desencadeava uma modificação regressiva em direção ao
narcisismo. Esta concordância entre os dois autores merece atenção, já que eles
chegaram à mesma conclusão sem que um soubesse o que o outro estava
pesquisando.
A guerra confronta as pessoas com exigências que não necessariamente
elas estão preparadas psiquicamente para suportar. Abraham ressalta que o fato
de se estar na guerra tem que ser levado em conta, pois no front os soldados
renunciam a seus privilégios narcísicos, em prol do que, pelo menos em tese,
seria melhor para seu país. Além de serem constantemente confrontados com
situações perigosas e deverem estar dispostos a morrer, na guerra os soldados
são convocados a matar. Assim, a necessidade imposta pela guerra de que
homens narcísicos e passivos assumam uma posição agressiva de combate
serviria para estremecer alguns arranjos psíquicos.
Outro fator que mexe com a sexualidade de sujeitos predispostos à
neurose é, para Abraham, o convívio com uma comunidade quase
exclusivamente masculina, fator desestabilizante uma vez que a conexão entre
homossexualidade e narcisismo é admitida. O autor (Abraham, 1918) dá o
exemplo de um homem já anteriormente conhecido por seus traços pouco viris
em sua vida conjugal devido a tendências homossexuais inconscientes, que ao
ser colocado numa enfermaria masculina apresentou um quadro clínico de
angústia e depressão grave. Sua capacidade de transferência libidinal com
mulheres se atrofiou da mesma maneira que sua capacidade de se ofertar para
o bem de sua pátria.
Outro caso clínico de Abraham, particularmente expressivo, é relatado
pelo autor em Contribution à la psychanalyse des névroses de guerre. Um
homem em campanha veio a desenvolver novamente um estado neurótico já
manifesto seis anos antes. Naquela época, ele tinha sofrido uma tremulação
convulsiva do braço após um sonho em que assassinava alguém. Durante a
guerra, estes sintomas retornaram e as crises histéricas motoras passaram a se
47
apresentar não só após situações de perigo extremo como também após um
impulso agressivo não consumado.
Ao analisar casos em que soldados, sem ferimentos físicos, reagiam às
situações perigosas de combate com uma neurose gravíssima, e comparando
esses casos com outros em que havia danos psicológicos e corporais
significativos, Abraham chegou à seguinte conclusão: havia uma predisposição
passiva
18
que revelava uma fixação parcial da libido no estágio narcísico do
desenvolvimento. Estes soldados apresentavam dificuldades para cumprir os
deveres da vida prática. Eram sujeitos com pouca iniciativa, pouco enérgicos e
sua atividade sexual se apresentava diminuída (Abraham, 1918). Desse modo,
sujeitos suscetíveis a neuroses de guerra só não a desenvolveriam se pudessem
manter a ilusão narcísica de sua invulnerabilidade frente ao perigo e à própria
morte. Isto porque dependeriam de certas concessões ao seu narcisismo para
se manterem sadios. Durante a guerra, entretanto, muitos deles acabaram tendo
que renunciar a essas concessões, o que provocou neles uma regressão
narcísica: passaram a se comportar como crianças assustadas.
Através de uma rápida revisão deste ensaio de 1918, é correto afirmar
que Abraham não considera o trauma como fator principal na etiologia das
neuroses de guerra, mas como um fator desencadeante. Sua tese central é a de
que ocorre uma alteração no curso da sexualidade, da ordem de uma regressão
ao narcisismo, como efeito do trauma. Problemas mentais observados durante o
período da guerra raramente são acompanhados de quadros delirantes; no
entanto, quando há delírio, estes portam um conteúdo sexual manifesto: delírios
de ciúmes e de perseguição homossexual pelos outros soldados, síndromes
paranóides após serviços prolongados etc.
18
Para Abraham, a idéia de passividade está relacionada ao feminino; a idéia de atividade, ao
masculino.
48
1.3.3
Ernst Simmel: o supereu nas neuroses de guerra
Ernst Simmel (1882-1947) foi médico do exército alemão e, durante dois
anos, trabalhou em um hospital militar para tratamento de neuroses de guerra.
Neste período, ele viu em torno de dois mil neuróticos de guerra; desses dois
mil, a metade foi atendida por ele mesmo, com uma combinação de psicanálise
e hipnotismo (hipnoterapia psicanalítica).
No ensaio que só foi publicado após sua morte e que está no livro
Neurosis, sexualidad y psicoanalisis de hoy (Alexander, 1958), Simmel
19
afirma
que a sintomatologia das neuroses de guerra, tal como se manifestou na
Segunda Guerra, não foi diferente em nenhum sentido do quadro das neuroses
de guerra durante a Primeira Guerra. O impacto das experiências vividas em
combate sobre a personalidade do soldado continuou sendo o mesmo em
ambas as guerras, a despeito dos avanços tecnológicos ocorridos entre uma e
outra.
A concepção deste autor quanto às neuroses de guerra relativiza um
componente de predisposição estrutural para o adoecimento, tanto quanto
assinala que o eu é uma instância do aparelho psíquico, precária e inacabada.
Levando em conta a segunda tópica freudiana, Simmel inclui em suas
exposições as identificações produzidas pelo pertencimento à organização
militar, os efeitos dos treinamentos e das relações hierárquicas com as figuras
dos líderes. O sujeito transfere as funções do seu supereu para o chefe do
grupo.
Os transtornos mentais desenvolvidos pelos soldados – fadiga,
esgotamento, doenças físicas e mentais – tinham relação com as dificuldades
que deviam suportar para cambiar seu “eu de paz” (Simmel apud Alexander,
1958, p. 59) para um “eu de guerra” (ibidem, p. 59), em resposta às exigências
do ambiente. Como resultado das lutas mentais internas entre impulsos do eu e
a realidade inóspita dos tempos de guerra, poderia sobrevir uma deterioração do
eu. Com o advento da guerra, o sujeito perde a segurança que anteriormente lhe
havia sido proporcionada pela civilização.
19
Não foi possível até o momento descobrir a data certa em que Simmel o escreveu, embora eu
saiba que foi após a eclosão da Segunda Guerra Mundial, portanto no período 1939–1945.
49
O eu – como o expressou Freud em uma oportunidade
– “em todos seus conflitos não pode ter outro objetivo senão
conservar-se a si mesmo”. Se esta luta por sua conservação
psicológica é um fator decisivo para originar as neuroses em
tempos de paz, quanto mais significativa deve ser para produzir
neuroses de guerra, quando o eu tem que encarar uma
realidade que chega a enfrentá-lo com a perspectiva de
aniquilação completa.
20
(Simmel apud Alexander, 1958, p. 60)
Os fatores desencadeantes das neuroses de guerra e das neuroses
traumáticas adquiridas em tempos de paz podem ser idênticos no que se refere
à quantidade de estímulos a que submetem o aparelho mental, por falta do
preparo necessário para enfrentar situações; este não consegue pôr em
movimento as reações motoras adequadas (fuga ou agressão). Em ambas as
neuroses, a abundância de estímulos é responsável pela compulsão à repetição,
em sonhos, da experiência traumática original.
Na opinião de Simmel, embora as neuroses traumáticas de tempos de
paz e de guerra não difiram essencialmente, na medida em que o eu em todos
os conflitos não pode ter outra meta senão se autopreservar, há algo que as
diferencia. Para ele, o que se teme nas neuroses de guerra é um inimigo interior:
no campo de batalha, o eu se converte em eu de guerra; a luta pela existência
individual e nacional se transforma em uma luta interna do eu para manter sua
própria integridade psíquica. A sintomatologia das neuroses de guerra se
constitui a partir da transformação do medo factual da morte em angústia
neurótica, que secundariamente induz o eu de guerra a empregar mecanismos
mentais de defesa para manter sua própria coerência interna.
Na maioria dos casos, os soldados adoecem não em consequência de
um súbito ataque catastrófico, mas sim pelo acúmulo de influências traumáticas.
O esgotamento físico e mental é um fator predisponente relevante para o
colapso mental do soldado na guerra. Além disso, as experiências traumáticas
incidem sobre um eu que já havia sido alterado pelo militarismo; o propósito do
processo educativo da disciplina militar é capacitar o soldado para funcionar
como parte de uma unidade militar, obedecendo cegamente às ordens
superiores, tão livre de angústia como possível, a despeito de todos os perigos
pessoais implicados. Essa constelação psicológica constitui a situação de perigo
interior, transformando a reação de perigo externo em trauma psíquico.
20
Em espanhol: “El yo – como lo expresó Freud en una oportunidad – “en todos sus conflictos no
puede tener otra meta que conservarse a sí mismo”. Si esta lucha por su conservación
psicológica es un factor decisivo para originar las neurosis en tiempo de paz, cuánto más
significativa debe ser para producir neurosis de guerra, cuando el yo tiene que encarar una
realidad que llega a enfrentarlo con la perspectiva de la aniquilación completa.” (Simmel apud
Alexander, 1958, p. 60).
50
(...) o traumatismo bélico (fadiga, feridas, experiências
catastróficas como o choque de explosão e outros) afeta o eu
de um soldado, que é essencialmente diferente do eu de um
civil. O eu militar – como podemos chamá-lo – sofreu uma
alteração significativa por haver estado submetido ao processo
educativo da disciplina militar.
21
(Simmel apud Alexander, 1958, p. 63)
O soldado perde provisoriamente o benefício de seu poder controlador
interno que o mantinha em equilíbrio. Estar submetido a essa disciplina militar é
justamente o que o deixa vulnerável e passível à desintegração de seu aparelho
mental, desencadeando transtornos psíquicos. Os efeitos pedagógicos do
processo educativo da disciplina militar nem sempre ajudam o soldado a lidar
com estados mentais contraditórios: por exemplo, desenvolver, por um lado,
virtudes sociais de um bom soldado – como a camaradagem, a resistência e o
auto-sacrifício para o bem comum do grupo – e, por outro, virtudes anti-sociais
que lhe permitam combater e vencer o inimigo.
O medo da morte, como reação do eu ameaçado em seu objetivo de
autopreservação, pode ser eliminado, ao menos temporariamente, a partir do
processo de adestramento militar. No entanto, quando o processo educativo
(superegóico) falha, algumas defesas sintomáticas (contra a realidade
insuportável) podem ajudar o soldado a obter segurança, sendo transferido do
front para áreas de refúgio; são os ganhos secundários da doença que um eu
desenvolve em qualquer tipo de neurose.
As situações ambientais insustentáveis se resolvem em sintomas
neuróticos por interferência do supereu, que é capaz de transformar o perigo
externo em um perigo pulsional interno. Ao formar sintomas, o eu evita uma
ruptura completa (psicótica) com a realidade.
Na maioria dos seus casos, o eu do neurótico de guerra tende a
restabelecer a condição inconsciente do narcisismo primordial sem objeto:
21
Em espanhol: “(...) el traumatismo bélico (fatiga, heridas, experiencias catastróficas como el
shock de explosión y otros) afecta al yo de un soldado, que es esencialmente diferente del yo de
un civil. El yo militar – como podemos llamarlo – ha sufrido una alteración significativa por haber
estado sometido al proceso educativo de la disciplina militar (Simmel apud Alexander, 1958,p.
63).
51
Refiro-me tanto a estados de desfalecimento
temporários como a condições de estupor comatoso de larga
duração. A tendência a “romper com a realidade” como reação
imediata ante experiências de guerra horríveis pode produzir
com muita frequência transtornos da personalidade que se
parecem com a psicose.
22
(Simmel apud Alexander, 1958, p. 67)
O que salva o soldado de uma psicose é ele não estar especialmente
predisposto por tendências regressivas a se fixar mais profundamente nas
etapas primitivas do desenvolvimento infantil.
Ao contrário de Abraham, Simmel não aproxima a neurose de angústia
da neurose histérica. Quanto à utilização da hipnoterapia psicanalítica no
tratamento de neuróticos de guerra, Simmel afirma que a maneira e a extensão
como o paciente hipnotizado era capaz de recordar e reviver experiências
traumáticas dependia diretamente de sua atitude pessoal durante a situação
hipnótica. Na posição de terapeuta, tinha que passar tranquilidade ao paciente,
para que este se sentisse seguro, não temendo a aniquilação física nem a
difamação pessoal. Precisava também assegurar ao soldado que ele não
perderia o apreço do terapeuta qualquer que fosse a revelação.
Para Simmel, eram os resíduos de um conflito edipiano não resolvido que
colocavam o soldado mentalmente predisposto a traumatismos narcisistas: seu
país simbolizava a mãe, e o inimigo, o pai (ibidem, p. 75). Já a guerra podia
representar, para o soldado, uma tentativa (frustrada) de resolver o conflito
ambivalente com relação a duas figuras paternas: um bom pai, simbolizado na
figura de seu superior; e um pai odiado, o inimigo de sua pátria.
De acordo com essa leitura, Simmel representava um bom pai no
tratamento hipnoterápico; ele funcionava como um supereu externalizado para
seu paciente, na medida em que fazia desaparecer barreiras recalcadoras que
porventura impedissem a manifestação dessas experiências traumáticas e suas
consequentes reações emocionais (agressão física, medo, raiva etc.). O estado
hipnótico repetia a situação de um eu de guerra que, ao descarregar suas
energias agressivas pulsionais, encontrava a aprovação e a proteção do supereu
do analista.
22
Em espanhol: “Me refiero tanto a estados de desfallecimento temporarios como a condiciones de
estupor comatoso de larga duración. La tendencia a “romper con la realidad” como reacción
immediata ante horribles experiencias de guerra puede producir con mucha frecuencia trastornos
de la personalidad que se parecen a psicosis.” (Simmel apud Alexander, 1958, p. 67).
52
1.4
A teoria da angústia e o trauma
O interesse freudiano pela concepção econômica do trauma é retomado
em Além do princípio do prazer, onde Freud (1920) utiliza a imagem da vesícula
viva para marcar a existência de uma camada protetora de excitação que se
desestabiliza ao sofrer uma extensa efração, ou seja, um trauma. A tarefa do
aparelho psíquico consiste então em restabelecer as condições do
funcionamento do princípio do prazer através da religação de excitações que
permitam sua descarga. O funcionamento do princípio do prazer exige
determinadas condições que o trauma vem abolir, desde o momento em que
ameaça a integridade do sujeito. Neste momento teórico, o trauma encontra um
lugar privilegiado, num sentido diferente daquele atribuído a um trauma
essencialmente sexual e que estava associado à sedução concreta de um adulto
em direção a uma criança. Aponta, por sua vez, para a força da compulsão à
repetição, que pode ser encontrada tanto nas brincadeiras das crianças – como,
por exemplo, no jogo do fort-da descrito por Freud em Além do princípio de
prazer –, como nos sonhos de angústia.
Considerando as transformações advindas da segunda tópica freudiana
em 1923, bem como os reflexos da pulsão de morte, atribui-se à concepção
traumática um valor maior na teoria da angústia (Freud, 1926). Nesta época,
Freud resgata suas primeiras contribuições teóricas sobre o trauma, só que
dessa vez o perigo do trauma está referido à ameaça de castração. Com o
objetivo de esclarecer seus postulados, Freud retoma a discussão sobre o
trauma a partir das idéias de Otto Rank (1924) que, em O traumatismo do
nascimento, tenta estabelecer uma relação entre as primeiras fobias das
crianças e as impressões nelas causadas pelo nascimento. O livro de Rank
representa, entretanto, mais do que uma explicação para a forma assumida pela
angústia, pois ele acredita que os ataques de angústia são tentativas de ab-
reagir o trauma do nascimento. Para ele, o mecanismo que desencadeia a
angústia e que está presente em todas as pessoas que manifestam sintomas
fóbicos remonta a angústia que acompanha o nascimento, e a reproduz. Por
causa dessa crença é que Rank (1924) propõe uma técnica terapêutica baseada
na superação do trauma do nascimento.
Em O traumatismo do nascimento, Rank questiona se a influência
exercida por sua personalidade e se a sua maneira de manejar a técnica em
análise não teriam como efeito fazer retroceder o eu do cliente em direção a
53
situações libidinais mais e mais antigas, até a fase intra-uterina. Afirma que o
paciente identifica a situação criada pela análise com o período intra-uterino,
assim como, por vezes, identifica o próprio analista com a mãe, remetendo-se
em sonhos à situação pré-natal. Desta forma, o inconsciente do paciente utiliza a
situação criada pelo processo analítico para reproduzir o trauma do nascimento.
Argumenta também que, ao fim do tratamento, que é marcado pela separação
do objeto substituto – isto é, do médico – o paciente reproduz o ato do
nascimento em quase todos os seus detalhes. Assim, a análise tem como último
resultado libertar o paciente, tardiamente mas de maneira definitiva, da influência
do trauma do nascimento.
Rank acredita que o sentimento de angústia frente aos animais pequenos
e sobretudos aos rasteiros – como ratos, cobras e sapos –, a que estão sujeitos
tanto homens quanto mulheres, está ligado à idéia destes animais serem
capazes de desaparecer rapidamente por um buraco, sem deixar rastros. Neste
sentido, animais pequenos simbolizam o desejo de retorno ao útero materno. A
psicanálise, para Rank, postula que todos os animais pequenos podem
simbolicamente representar crianças, embriões, como também, idealmente, o
órgão sexual masculino, por causa tanto do tamanho como da facilidade de
penetração. Assim, enquanto representação fálica, estes animais provocam
angústia, na medida em que evocam uma comparação com espermatozóides e
óvulos e com a localização intra-uterina.
Concordando com o que Freud sustenta no decorrer de seus trabalhos
sobre o processo de nascimento ser a primeira situação de perigo, Rank supõe
que a separação mãe-bebê ocorrida no nascimento gera na criança um
sentimento de angústia, que é vivenciado como uma primeira ameaça de
castração. Sobre este assunto, Freud levantará uma discordância, já que se o
nascimento é uma separação da mãe, a criança não tem disso qualquer idéia:
A primeira experiência de angústia pela qual passa um
indivíduo (...) é o nascimento, e, objetivamente falando, o
nascimento é uma separação da mãe. Poderia ser comparado
a uma castração da mãe (...). Ora, seria muito satisfatório se a
angústia, como símbolo de uma separação, devesse ser
repetida em toda ocasião subsequente na qual uma separação
ocorresse. Mas infelizmente estamos impedidos de fazer uso
dessa correlação pelo fato de que o nascimento não é
experimentado subjetivamente como uma separação da mãe,
visto que o feto, sendo uma criatura completamente narcísica,
está totalmente alheio à sua existência como um objeto.
(Freud, 1976 [1926 [1925] ], p. 154)
54
Sob o ponto de vista de Rank, o trauma do nascimento se manifesta nos
seres humanos com graus de intensidade variáveis e a virulência da angústia
difere com a força do trauma. Dito de outra forma, toda criança experimenta
angústia e todo adulto saudável atravessa uma fase de neurose normal,
representada por sua infância. Assim, para Rank, o que contribui essencialmente
para o desencadeamento da neurose é o fato de que, em seus esforços para
superar o trauma do nascimento, o homem tropeça na encruzilhada da
satisfação sexual, que se aproxima muito da situação primitiva.
Em Inibições, sintomas e angústia, Freud rejeita a teoria de Rank,
afirmando que ela não se apóia em observações concretas.
(...) a principal objeção a ela [a teoria de Rank] é que flutua no
ar em vez de ser baseada em observações confirmadas. (...)
Deve ser uma das vantagens da teoria etiológica de Rank o
fato de que ela postula um fator cuja existência pode ser
verificada pela observação. E enquanto tal tentativa de
verificação não for feita, é impossível verificar o valor da teoria.
(Freud, 1976 [1926 [1925] ], p. 176)
Na opinião de Freud (1926 [1925]), para sustentá-la seriam necessárias
investigações objetivas, já que o processo de análise não permite retroceder até
o trauma do nascimento. Além disso, deveria haver observações em número
suficiente que confirmassem a hipótese de que existe relação entre o trauma do
nascimento e o surgimento de uma neurose. Freud critica a posição de Rank,
segundo a qual as pessoas se tornam neuróticas por não conseguirem ab-reagir
ao forte trauma do nascimento.
Não sabemos ao certo o que se quer dizer por ab-
reação ao trauma (...). Dar tanta ênfase à variabilidade com
base no trauma do nascimento é não deixar lugar algum para
as legítimas reivindicações da constituição hereditária como
fator etiológico (...). A teoria de Rank despreza inteiramente os
fatores constitucionais bem como os filogenéticos.
(Freud, 1976 [1926 [1925] ], p. 175-176)
Na leitura de Freud (1926 [1925]), o fato de somente o ser humano, entre
todos os mamíferos que partilham o mesmo processo de nascimento, possuir
uma disposição especial para a neurose é desfavorável à teoria de Rank. A
angústia do nascimento, numa perspectiva freudiana, é o processo real do
nascimento, indissoluvelmente fisiológico e psicológico, e não, como em Rank, o
nascimento reencontrado ou fantasiado a posteriori. Assim, tanto para Freud
quanto para Rank, o nascimento é o protótipo da situação traumática,
representando perigo para a própria sobrevivência da criança. Contudo, ao
contrário do que pensou Freud (1926 [1925]), Rank acreditava que todos os
55
pacientes em análise podiam reproduzir o período da vida intra-uterina na
fantasia, assim como a separação da mãe no momento de seu verdadeiro
nascimento. Para ele, as pessoas buscavam elaborar suas experiências
traumáticas do nascimento ao longo do desenvolvimento psíquico, enquanto a
primeira e mais importante perda da vida de um ser humano.
Depois de tê-lo criticado violentamente em 1926, ao sustentar que fora
infrutífera a tentativa de Rank para esclarecer o problema da etiologia das
neuroses, Freud revisa suas posições em 1933, nas Novas conferências
introdutórias sobre psicanálise. Nelas, reconhece o valor do trabalho de Rank em
ressaltar a importância das primeiras experiências de separação da criança:
“Otto Rank, a quem a psicanálise deve muitas contribuições excelentes, também
tem o mérito de haver expressamente acentuado a importância do ato do
nascimento e da separação da mãe” (Freud, 1976 (1933 [1932c]), p. 111).
Com o abandono da neurotica e, por conseguinte, do trauma sexual real
vivido como causa das neuroses histéricas, coube a Rank (assim como a
Ferenczi, autor que apresentarei a seguir) o resgate do interesse psicanalítico
pela importância do tema. A publicação, em 1924, de O traumatismo do
nascimento representa um marco para a psicanálise, na medida em que, nesse
livro, Rank retoma e aprofunda as idéias freudianas sobre o nascimento como
modelo fundamental do afeto de angústia, encontradas, por exemplo, em uma
nota de rodapé incluída na edição de 1909 de A interpretação de sonhos: “(...) o
ato de nascer é a primeira experiência de angústia, e portanto a fonte e protótipo
do afeto de angústia” (Freud, 1987 [1900], p. 376). Rank contribuiu para a
renovação da idéia de trauma como uma experiência vivida na realidade,
sublinhando a importância das angústias de separação na constituição subjetiva.
É importante ressaltar que quando Freud diz que a angústia não tem
origem na sexualidade mas no desamparo
23
, o trauma passa a ser, como em
Rank, a separação do ser protetor do qual o supereu é o resto. A angústia é o
que sinaliza o perigo que evoca o trauma no aparelho psíquico, já que ela
reproduz o desamparo.
23
Definido justamente como excesso pulsional, Freud referiu-se ao desamparo ao longo de seus
escritos, dando-lhe lugar de destaque em textos bem díspares (cf. Freud, 1950 [1895] e Freud,
1926). Contudo, “surpreende constatar que apesar da diversidade de referências que permeiam
os trabalhos de Freud, o núcleo da noção permanece o mesmo: estar desamparado é estar à
mercê. É justamente este aspecto central do desamparo que mais nos interessa destacar aqui,
enfatizando sua dupla face. Assim, falta de amparo, ou ausência de sustentação, só se
configura como desamparo, em psicanálise, na medida em que evoca no sujeito a experiência
subjetiva de estar submetido a uma intensidade pulsional excessiva, que o deixa à mercê do
outro; isto é, sujeitado aos caprichos do outro, que pode ou não auxiliá-lo a lidar com esse
estado emocional.” (Garcia & Coutinho, 2004, p. 133).
56
1.5
O supereu e o trauma
Antes de 1923, temos na obra de Freud algumas referências
antecipatórias ao supereu. Primeiro, no Projeto para uma psicologia científica
(Freud, 1950 [1895]), quando o autor aproxima a origem mais primitiva de todos
os motivos morais ao desamparo inicial vivido pela criança. Segundo Freud
(1950 [1895]), o bebê humano é incapaz de se satisfazer sem auxílio externo, o
que introduz nele um vazio com o qual ele tem que se confrontar. O
reconhecimento desse sentimento de dependência e desamparo é per se
traumático, já que ali não há possibilidade de mudança. O bebê necessita a ação
de um Outro primordial para se manter vivo.
Ao desamparo original, descrito por Freud em 1895 e novamente
reafirmado em 1923, vem se juntar outro fator da dissolução da onipotência
primária: a interferência do complexo de castração, que impõe à criança
restrições à plena atividade sexual infantil, em conformidade com as exigências
morais da cultura.
Em 1914, Freud introduz a noção de consciência moral: ela funciona
como um instrumento de medida das relações do eu com seu ideal e possui as
características que seriam mais tarde conferidas ao supereu. A essa nova
instância psíquica são atribuídas funções de caráter vigilante, como “agente
psíquico especial” (Freud, 1974 [1914c], p. 112), “agente de censura” (ibidem, p.
113) e “agente criticamente observador” (ibidem, p. 114).
Por fim, no estudo sobre a melancolia (Freud, 1917 [1915]) temos ainda
mais uma referência ao supereu. Nele, Freud marca o papel desempenhado pelo
agente crítico no desenvolvimento desta patologia. Este agente crítico é uma
parte que foi destacada do eu e que passa a atacá-lo, levando o eu a um estado
de empobrecimento extremo. Na melancolia, a insatisfação do eu se deve a
motivos de ordem moral.
O termo supereu aparece pela primeira vez em 1923, com a construção
da segunda tópica freudiana. Diferente da antiga concepção do aparelho
psíquico apresentada no clássico capítulo VII da Interpretação de sonhos (Freud,
1900), a segunda tópica propõe a existência de um pólo pulsional, o isso; uma
instância que se situa como representante dos interesses da totalidade da
pessoa, o eu; e outra instância que julga e critica, o supereu.
Segundo Freud, o eu se desenvolve a partir da camada cortical do isso,
encontrando-se em contato direto com a realidade, dependente do mundo
57
externo e voltado para a tarefa de auto-preservação. Em O Fetichismo, Freud
(1927) descreve em detalhes o método de defesa do eu, denominado
Verleugnung (recusa ou renegação), como uma modalidade de defesa do eu em
relação a uma realidade externa intolerável.
Édipo, o herói grego, estava interessado em descobrir os fatos da vida.
No entanto, ao desvelar toda essa verdade a recusa, por ser ela antagônica às
leis de sua comunidade. Nessa história, há uma analogia entre o operador da
recusa à realidade e um sentimento de culpa: Édipo, que por desconhecimento,
matou o pai e teve um amor incestuoso com a mãe, não se perdoa por ter
infligido preceitos morais tão rígidos para a sua cultura. E, por isso, num gesto
de autopunição, se amaldiçoa, vazando os próprios olhos.
É possível notar nessa trama algumas idéias importantes e que
antecipam o conceito de supereu de 1923: a culpa (pois Édipo, por
desconhecimento, assassina seu pai e mantém relações sexuais com sua mãe),
a censura e a autopunição. Todas elas representam falhas na lei que giram em
torno da questão do pai, ora pelo rumo do parricídio, ora pelo rumo do incesto,
enlaçando a personagem ao que há de mais traumático e sujeitando-o à
angústia.
Vários aspectos da história de Édipo Rei
24
são tomados como fazendo
parte da fundação universal da cultura, como, por exemplo:
(...) o pai primevo, o Herói da grande tragédia primitiva que
estava sendo reencenada com uma distorção tendenciosa, e a
culpa trágica era a que tinha de tomar sobre si próprio, a fim de
aliviar da sua o Coro. (Freud, 1974 [1913 [1912-1913] ], p. 185)
Um acontecimento como a eliminação do pai primevo pelo
grupo de filhos deve inevitavelmente ter deixado traços
inerradicáveis na história da humanidade (...). (ibidem, p. 184)
Nos artigos metapsicológicos, escritos por Freud em 1915, os vários
problemas psicopatológicos são abordados a partir de uma hipótese topográfica
do funcionamento da mente, que é concebida em duas partes: uma recalcada –
o inconsciente –, outra recalcadora – a consciência. A força recalcada se
esforçaria por abrir caminho para a atividade, apesar de ser submetida ao
controle da força recalcadora.
Os sintomas seriam derivados do recalcado, sendo seus representantes
perante o eu. Os seres humanos não seriam simples criaturas sexuais, por
serem dotados de impulsos mais elevados, motivo pelo qual adoecem, por
24
Cf. Kury, 1998 [1989].
58
vezes, de conflitos entre as exigências da vida pulsional e a resistência que se
ergue dentro deles contra essa instância recalcadora. Por outro lado, há um
diferente estudo sobre as forças recalcadoras. As funções psíquicas são
tomadas como distintas entre si: o eu se diferencia da consciência, consciência
esta que se torna independente enquanto uma função de auto-observação,
essencial na atividade de julgar. A essa instância psíquica denominou-se
supereu.
O supereu é o resultado do complexo de Édipo, originário das mais
antigas relações objetais do indivíduo.
25
Ele é uma instância psíquica, atuante na
mente, que se constitui na medida em que o eu pode dominar este complexo,
renunciando à satisfação de desejos edípicos; o homem deixaria de investir sua
libido na direção de seus pais, passando a se identificar com eles, interiorizando
suas exigências morais e proibições.
Uma vez que a criança abandona suas ligações
edipianas, parte de seu eu se identifica com a figura parental
interditora, produzindo uma diferenciação em seu eu que vem a
se constituir como uma de suas partes, isto é, seu supereu
26
.
(Torres, 1996, p. 43)
Sobre o supereu, Freud (1923) mostra que a função crítica assim
designada constitui uma instância que se separou do eu, e que parece dominá-
lo, como o demonstram os estados de luto patológico ou de melancolia em que o
sujeito se autodesvaloriza e critica mais do que qualquer outra coisa (Freud,
1917 [1915]). Freud vê na consciência moral, na auto-observação e na formação
de ideais funções do supereu (Freud, 1933 [1932b]).
Nesta perspectiva, então, o supereu surge da primeira e mais importante
identificação de um indivíduo, a sua identificação com o pai, tomado como
modelo em sua própria pré-história pessoal (Freud, 1921). Ele retém
características essenciais dessas pessoas introjetadas: sua força, severidade,
inclinação para supervisionar e punir. Como toda identificação deste tipo tem a
natureza de uma dessexualização ou mesmo de uma sublimação parece que,
efetuada essa transformação, ocorre também uma desfusão pulsional.
27
Após a
sublimação, o componente erótico não mais tem o poder de unir a totalidade da
agressividade que com ele se achava combinada, e esta é liberada sob a forma
25
Para maiores informações sobre o que é complexo de Édipo, cf. também Favero, A. B.;
Figueiredo, L. P. (1993). O édipo e a castração. Monografia – CFCH/IP, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1994; e Favero, A. B. (2003). Um sonho de Freud. Dizer 14.
Rio de Janeiro: ELP-RJ, p. 29-38, 2003.
26
Ao longo da tese, sempre que possível substituirei a palavra superego por supereu, por
considerar mais correta a tradução.
27
Sobre desfusão pulsional, ler também parte 1.7.3 desta tese.
59
de uma inclinação à agressão e à destruição. Essa desfusão seria a fonte do
caráter geral de severidade e crueldade apresentado pelo ideal – o ditatorial
‘farás’, enquanto imperativo categórico kantiano. Conforme Freud, “O supereu
parece ter feito uma escolha unilateral e ter ficado apenas com a rigidez e a
severidade dos pais, com sua função proibidora e punitiva, ao passo que o
cuidado carinhoso deles não parece ter sido assimilado e mantido” (Freud, 1976
[1933 [1932b] ], p. 81).
Embora encoraje a identificação à autoridade parental, a instância do
supereu compreende principalmente o aspecto da proibição: “Você não pode ser
assim (como seu pai), isto é, você não pode fazer tudo o que ele faz; certas
coisas são prerrogativas dele” (Freud, 1976 [1923], p. 49). Este segundo aspecto
estaria relacionado à barreira do incesto, sendo por este motivo o supereu
considerado como representante da castração. O supereu seria formado a partir
das imagens dos objetos temidos, além de se apossar de toda a hostilidade que
é recalcada por injunções culturais. É sua face tirânica e selvagem que resulta
disso, que Freud implicará nas atrocidades cometidas pelo homem como as
guerras, os homicídios e os suicídios.
60
1.6
O período de latência e o efeito do trauma
No terceiro ensaio de Moisés e o monoteísmo, Freud (1939 [1934-1938])
se confronta com a própria instituição religiosa e retoma a reflexão sobre a
neurose traumática à luz dos efeitos igualmente traumáticos que pesam sobre os
grupos, os povos etc. De acordo com ele, o trauma explica o movimento
repetitivo encontrado tanto na história coletiva quanto na do indivíduo.
A partir da relação existente entre Moisés e seu povo, Freud assinala que
existe um traço comum entre a religião monoteísta judaica e a neurose, o
fenômeno da latência, que entremeia as reações ante o trauma e o posterior
desencadeamento da doença. Assim, há um efeito tardio do trauma: existe um
tempo de latência entre o impacto do acontecimento traumático e a manifestação
sintomática. Cito Freud na íntegra:
Pode acontecer que um homem que experimentou
algum acidente assustador (...) deixe a cena desse
acontecimento aparentemente incólume. No decorrer das
semanas seguintes, contudo, desenvolve uma série de
sintomas psíquicos e motores graves, os quais podem ser
remontados ao seu choque, à concussão, ou ao que quer que
seja. Agora, esse homem tem uma ‘neurose traumática’. Trata-
se de um fato inteiramente ininteligível – o que equivale a dizer:
novo. O tempo decorrido entre o acidente e o primeiro
aparecimento dos sintomas é descrito como sendo o ‘período
de incubação’, numa clara alusão à patologia das doenças
infecciosas. Refletindo, deve impressionar-nos que, apesar da
diferença fundamental entre os dois casos – o problema da
neurose traumática e o do monoteísmo judaico –, exista (...) um
ponto de concordância; a saber: a característica que poderia
ser descrita como ‘latência’.
(Freud, 1975 [1939 [1934-1938] ], p. 85-86)
Freud neste ensaio despreza a discussão sobre haver alguma distinção
entre etiologias traumáticas e não traumáticas das neuroses. A partir do
momento em que preconiza o conceito de uma série complementar deslizante
28
,
na qual dois fatores convergem para o preenchimento de um requisito etiológico,
e que sustenta a idéia de uma neurose ser o resultado de certas experiências e
impressões que devem ser encaradas como traumas etiológicos, podemos
deixar de lado a questão: ou seja, a etiologia da neurose deve ser encarada
sempre como traumática. Ademais
28
Conferir parte 1.2.3 desta tese sobre as séries complementares e o trauma.
61
Um trauma na infância pode ser imediatamente
seguido por um desencadeamento neurótico, uma neurose
infantil, com uma abundância de esforços de defesa, e
acompanhada pela formação de sintomas. Essa neurose pode
durar um tempo considerável e provocar perturbações
acentuadas, mas pode também seguir um curso latente e não
ser notada. (Freud, 1975 [1939 [1934-1938] ], p. 96)
E Freud continua:
Só raramente uma neurose infantil prossegue, sem
interrupção, numa neurose adulta. Muito frequentemente ela é
sucedida por um período de desenvolvimento aparentemente
não perturbado – curso de coisas apoiado ou tornado possível
pela intervenção do período fisiológico de latência.
posteriormente realiza-se a mudança com que a neurose
definitiva se torna manifesta, como um efeito retardado do
trauma. Isso ocorre ou na irrupção da puberdade ou algum
tempo depois. (ibidem, p. 96)
Em Moisés e o monoteísmo, Freud sustenta a origem traumática das
neuroses e faz uma distinção fundamental para nossos propósitos. Segundo ele,
no que concerne às características comuns dos fenômenos neuróticos, os
efeitos do trauma são de dois tipos, positivos e negativos. Os efeitos positivos do
trauma decorrem da fixação e da compulsão à repetição, enquanto uma tentativa
de colocar o trauma em funcionamento mais uma vez. Eles podem se integrar ao
eu com a condição de que sua origem histórica permaneça esquecida. Os
exemplos que Freud dá desse trabalho do trauma são todos de repetições
narrativas, insistências pelas quais um sujeito tende a tornar reais certas
experiências traumáticas. Por outro lado, os efeitos negativos do trauma
pretendem fins diferentes, nem recordando nem repetindo o trauma esquecido.
São reações defensivas tais como as evitações, que podem se intensificar em
inibições e fobias.
*
Apresentarei, agora, as contribuições de Costa (1986 [1984]) sobre
trauma, assim como suas críticas aos conjuntos nocionais utilizados pela
psicanálise para abordar o tema da violência. Para Costa, na teoria freudiana, há
três tópicos que se relacionam com o papel da violência “como fato inaugural e
essencial do psiquismo” (ibidem, p. 15). O primeiro está ligado ao trauma infantil,
especificamente, ao trauma da sedução; o segundo refere-se à questão do
parricídio, conforme Freud (1913 [1912-1913]) a descreve em Totem e tabu; e o
terceiro à pulsão de morte.
62
1.7
Pontos de contato entre violência, morte e trauma
Jurandir Freire Costa discute, no prefácio do livro Violência e psicanálise
(Costa, 1986 [1984]), os porquês da violência, e faz uma crítica. Para ele, a
definição de violência confirma um pré-conceito partilhado por diferentes
psicanalistas de que “a condição humana é um epifenômeno da violência”
(ibidem, p. 14): existe uma violência da sexualidade em si; uma violência da
linguagem, que circunscreve caminhos para esta sexualidade; e uma violência
inerente à relação com o outro, fundamento da própria humanização. Vista deste
modo, a violência é um tabu ou “uma espécie de categoria a priori irredutível a
qualquer análise” (ibidem, p. 14). Isto porque
Indo de um pólo a outro, a psicanálise entra no
compasso das ideologias modernas. Fala da violência diluindo
seu impacto e atenuando seu horror. Pois, no momento em que
a define como sinônimo da morte, do que há de impensável e
intocável na experiência humana, sacraliza-a. E, no momento
em que a define como a “condição de possibilidade natural” do
existir humano (...), banaliza-a. A violência torna-se o trivial
variado de toda atividade ou experiência psíquicas, dando seu
toque ao inconsciente, ao sonho, à sexualidade, a relação
inevitável com o outro, etc. (Costa, 1986 [1984], p. 14)
Na leitura de Costa, a psicanálise foi levada a renunciar ao seu potencial
crítico diante da violência, devido à penúria de reflexão sobre o tema e à leitura
pouco discriminada de certos “complexos teóricos” (ibidem, p. 15) da obra de
Freud. Neste contexto, trarei agora a análise de Costa (1986 [1984]) sobre
alguns destes conjuntos nocionais, acerca da violência. Propondo avançar sobre
os três temas apresentados por ele em Violência e psicanálise, não resenharei
entretanto seu texto, voltando, durante essa exposição, ao que disse Freud no
original.
63
1.7.1
O trauma infantil
Segundo Costa (1986 [1984]), a teoria do trauma infantil pode ser
considerada o primeiro suporte da noção de violência, o elemento fundador do
psiquismo. Para ele, a sexualidade infantil em Freud é o resultado da confluência
de três estímulos: o estímulo biológico, o estímulo ligado ao exercício das
funções vitais e o estímulo exógeno. O estímulo exógeno refere-se sobretudo à
mãe, já que ela é a responsável pelos cuidados higiênicos e alimentícios. Por
outro lado, a estimulação materna se expressa também por meio de carícias
físicas, a partir de seu próprio desejo libidinal pelo filho. Neste sentido, na
relação da criança com a mãe existe uma quantidade excessiva de energia que
é vivenciada pela criança de maneira traumática, com tonalidades violentas
(Costa, 1986 [1984]). A relação com a mãe, portanto, pode ser, para ele, uma
prova da violência necessária para o surgimento do psiquismo, posto que a
criança por vezes incorpora excitações sexuais que ultrapassam sua capacidade
de absorção biopsicológica. Assim, por meio de um excesso de afluxo de
energia que invade o aparelho psíquico infantil, a violência é experimentada pela
criança.
Costa resgata a versão clássica de violência como “a qualidade do
movimento que impede as coisas de seguirem o seu movimento natural” (ibidem,
p. 16). Na discussão de seu uso pela psicanálise, à primeira vista, é por esta
versão clássica de violência que se sustenta o argumento freudiano dos anos
1890, segundo o qual a sexualidade do adulto é capaz de invadir o psiquismo
infantil. Para que o argumento freudiano seja válido, contudo, há que se
pressupor um psiquismo infantil antes da invasão pelo estímulo exógeno, idéia
que Costa critica. Segundo ele, a idéia de que o psiquismo segue um curso
supostamente natural contradiz uma visão psicanalítica mais contemporânea,
que define o psiquismo como construído na cultura, surgindo imerso na
linguagem, no desejo e na sexualidade.
Com boa vontade, poderíamos admitir (...) que os
instintos do filhote do homem são violentados pela ação
humana, jamais o psiquismo. Sendo um fenômeno da cultura e
não da natureza, não se pode atribuir ao psiquismo um
hipotético rumo natural, independente desta cultura.
(Costa, 1986 [1984], p. 16)
No que concerne à questão da violência, é contraditório sustentar o
postulado de um psiquismo como produto da cultura e, ao mesmo tempo, uma
64
idéia de violência que pressupõe a naturalidade deste psiquismo. Na verdade,
tanto “a cultura como o psiquismo só existem pela ação da violência” (Costa,
1986 [1984], p. 17). Neste sentido, há um componente violento inerente à
relação com o outro, que fundamenta a própria humanização e constitui a
sexualidade e o psiquismo. Assim é que, segundo Costa, a teoria psicanalítica
migrou das proposições freudianas a respeito da natureza traumática da
sexualidade para uma concepção da natureza violenta deste trauma, o que ele
critica. Primeiro, porque é um equívoco igualar as noções de trauma em geral e
violência; elas não são sinônimas. Segundo, a psicanálise se deixou influenciar
pela crença na primazia da violência na gênese da cultura e, consequentemente,
do psiquismo.
Sempre que Costa (1986 [1984]) se refere à relevância do papel da
violência para a constituição do psiquismo, aponta, pois, para a existência de
fatores potencialmente desagregadores do psiquismo – ligando-os à
agressividade que há em todos os indivíduos desde o nascimento –, embora
também constituintes do eu.
1.7.2
A horda primeva e a questão do parricídio
Os estudos arqueológicos e antropológicos deram a conhecer aos
tempos modernos os processos psíquicos predominantes nas sociedades
primitivas, a partir do recolhimento de relíquias, monumentos e implementos
inanimados, bem como da comparação com o desenvolvimento de outras
civilizações. Os tempos contemporâneos interessam-se por informações
deixadas sobre religiões, artes, costumes, crenças e atitudes daqueles povos
primitivos perante o mundo.
Em seus estudos psicanalíticos, Freud elaborou algumas teorias sobre o
funcionamento mental, com base em documentos da Antiguidade, cujos
costumes sobreviveram como herança do homem atual. Foi mais além,
analisando mitos e lendas, comparando com estes o comportamento dos
personagens frente ao mundo daquela época. Freud (1913 [1912-1913]) admitiu
a existência de mitos endo-psíquicos (p. 15) – termo que significa dentro da
mente –, conforme mencionou na sua correspondência a Fliess
65
(Correspondência Freud-Fliess de 12/12/1897
29
). A partir desses estudos, Freud
(1913 [1912-1913]) constatou ter existido em todos os povos um pensamento
voltado para a psicomitologia – crença na imortalidade, castigo, vida após a
morte.
Quando escreveu Totem e tabu, Freud preocupou-se com o
comportamento de tribos selvagens e levantou hipóteses sobre a origem do
recalcamento das pulsões e a preponderância do Pai no histórico sociocultural,
demonstrando que o sistema totêmico era a base das obrigações sociais e
restrições morais desses aborígenes.
O totem para esses grupos era representado por um animal (comível e
inofensivo) e, mais raramente, por um vegetal ou por um fenômeno natural
(chuva ou água) que mantinham relações específicas com os membros do clã. O
totem teria origem hereditária, masculina ou feminina; seria o espírito guardião
da tribo, sendo perigoso para os grupos rivais. O totem protegeria o clã e ditaria
suas leis, das quais as mais importantes seriam não matar e não manter
relações sexuais com pessoas do mesmo totem, instaurando a exogamia, uma
instituição relacionada com o totemismo. Caso estas leis fossem desobedecidas,
o sujeito sofreria castigos e punições. Nessas tribos, era comum o uso de regras
de evitação, geralmente muito rigorosas. Por exemplo, a mãe devia evitar ficar a
sós com o filho; uma moça, na puberdade, devia evitar o pai até que se casasse;
o irmão devia se afastar da irmã na adolescência; uma jovem não devia falar
com seu próprio cunhado. Tais determinações permitiram aos pesquisadores, e
não apenas os psicanalistas, entender que essas regras seriam as medidas de
defesa encontradas pelos povos primitivos para evitar desejos incestuosos.
Dentro de uma compreensão psicanalítica, por meio desses estudos,
Freud elaborou a hipótese da horda primeva e da morte do pai primevo,
desenvolvendo sua teoria sobre as culturas contemporâneas e as organizações
sociais. Ele escreveu Totem e tabu para, entre outras coisas, pensar o que funda
uma cultura.
As proibições totêmicas seriam leis para dominar a primeira escolha de
objeto de amor feita pelo menino, incestuosa por natureza, sendo objetos
proibidos a mãe e a irmã. Para a psicanálise, as “fixações incestuosas da libido
continuam (ou novamente começam) a desempenhar o papel principal na vida
mental inconsciente” (Freud, 1913 [1912-1913], p. 37), e os desejos incestuosos
constituem o complexo nuclear das neuroses (Freud, 1913 [1912-1913], p. 37).
29
Para ter acesso a esta carta na íntegra, ver MASSON, J. M. (1986). A correspondência completa
de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess – 1887-1994. Rio de Janeiro: Imago, p. 286-287.
66
Ao estudar traços das tribos primitivas – como o horror ao incesto –, Freud
estabeleceu a relação entre o desenvolvimento da civilização e o recalque das
pulsões.
Segundo Freud, embora houvesse verificado que o progresso histórico
afetava os sentimentos no que se referia ao totemismo e que os tabus ainda
persistiriam entre os homens, há, já desde o ano de 1897, uma tentativa de
deduzir o significado original do totemismo. O autor definiu tabu como sinônimo
de sagrado, consagrado, num sentido oposto a perigoso ou proibido, e observou
que as interdições não têm fundamento e são de origem desconhecida.
O tabu é o “código de leis não escrito mais antigo do homem” (ibidem, p.
38) que veio a se tornar, posteriormente, a raiz dos preceitos morais e das leis
modernas. Os tabus, nos povos primitivos, eram principalmente duas proibições
básicas do totemismo: não matar o animal totêmico e não ter relações sexuais
com membros do mesmo clã. Da educação, possivelmente, decorreria a fixação
permanente dos tabus, sendo esses opostos ao desejo original de fazer a coisa
proibida.
Freud menciona que Mc Lennan
30
já havia chamado a atenção para o
grande número de costumes e práticas totêmicas em 1869, mas abstivera-se de
analisar suas origens. Diante de tantos fatos, a hipótese de que a partir da
cultura totêmica se poderia chegar a uma civilização mais avançada foi levada
em consideração pela ciência – esse foi o marco entre o tempo dos primitivos e
a era dos heróis deuses.
Em alusão a Wundt
31
, Freud observa: “totem é, por um lado, um nome de
grupo e, por outro, um nome indicativo de ancestralidade. Sob o último aspecto,
possui também uma significação mitológica” (Freud, 1913 [1912-1913], p. 131).
30
Há muitas teorias e hipóteses relacionadas ao totemismo. A primeira foi proposta pelo etnólogo
escocês John Ferguson McLennan, que buscou entender o totemismo numa perspectiva ampla.
Em The Worship of Animals and Plants, McLennan (1869) não tentou explicar a origem
específica do totemismo, mas sim indicar que toda a raça humana passou pelo estágio totêmico
num momento remoto de sua evolução. O primeiro trabalho abrangente sobre o assunto, porém,
foi Totemism and Exogamy, do britânico Sir James Frazer, de 1910.
31
Wilhelm Wundt (1832-1920): médico, filósofo e psicólogo alemão. É considerado o pai da
Psicologia moderna devido à criação do Instituto Experimental de Psicologia. Freud escreveu
Totem e Tabu como uma resposta à teoria de Wundt sobre a era totêmica na evolução do ser
humano.
67
Da proibição de comer a carne do animal representante do totem ocorreu
um contrafenômeno significativo: nas cerimônias, permitia-se a ingestão da
carne do totem. Freud pontua que William Robertson Smith
32
, em seu livro
Religion of Semites, levantou a hipótese de que, numa cerimônia, a refeição
totêmica fizera, desde o início, parte integrante do sistema totêmico. Explicou ele
este ritual como uma característica essencial das antigas religiões, nas quais o
sacrifício seria uma oferenda para obter um favor.
Os sacrifícios animais fizeram parte dos mais antigos rituais praticados
pelas tribos: a carne e o sangue eram desfrutados em comum pelo deus e por
seus adoradores; a bebida – sangue da vítima animal – foi substituída mais tarde
por vinho.
A hipótese de Smith era de que por meio da ingestão do animal totem –
consumo normalmente proibido e que envolvia a matança sacramental de uma
vítima sacrossanta – se erigia um vínculo sagrado, uma união entre os
adoradores e seu deus, e se estreitava o laço entre aqueles que o consumiam.
A psicanálise revelou que o animal totêmico, ao mesmo tempo em que
marca o pertencimento (ou o não pertencimento) a uma mesma família, é, na
realidade, um substituto do pai (simbólico), e sua ingestão no banquete significa
a ruptura de uma proibição a partir da qual as pulsões são liberadas; por isso a
gratificação, o sentimento festivo, produzido pela liberdade de fazer o proibido.
A atitude emocional ambivalente, que caracteriza o
complexo-pai em nossos filhos e com tanta frequência persiste
na vida adulta, parece estender-se ao animal totêmico em sua
capacidade de substituto do pai.
(Freud, 1913 [1912-1913], p. 169)
No estado mais primitivo da sociedade humana, teria existido um pai
violento que guardava todas as fêmeas para si e expulsava os filhos quando
cresciam. O tipo mais primitivo de organização estudado e que ainda se acha em
vigor, até os dias de hoje, em certas tribos, compreende grupos seguindo
restrições ditadas pelo sistema totêmico.
Estes filhos – irmãos entre si – se juntam e retornam à tribo, matam e
devoram o pai, pois eram selvagens canibais. No ato de devorar o pai, realizam
a identificação com o genitor, cada um deles sorvendo uma parte de sua força.
32
William Robertson Smith (1846-1894) foi um orientalista escocês, estudioso do Antigo
Testamento, professor de Teologia e ministro da Igreja Livre da Escócia. Foi um dos editores da
Encyclopaedia Britannica. Também é conhecido pelo seu livro Religion of Semites, considerado
um texto fundamental no estudo comparativo da religião.
68
Este evento é que seria comemorado no banquete totêmico, e foi reconstruído a
partir do mesmo.
O violento pai primevo fora sem dúvida o temido e
invejado modelo de cada um do grupo de irmãos; e, pelo ato de
devorá-lo, realizavam a identificação com ele, cada um deles
adquirindo uma parte de sua força.
(Freud, 1913 [1912-1913], p. 170)
Os irmãos, ao serem expulsos da horda, tinham desenvolvido
sentimentos contraditórios e ambivalentes: odiavam o pai por impedir a
satisfação dos desejos de identificação com ele (pai). O amor, só depois da
matança, surgiria na forma de remorso e sentimento de culpa.
Os irmãos canibais cometeram crimes considerados imperdoáveis pela
própria comunidade: o assassinato e o desejo de transgredir as leis sagradas do
sangue (desejo de tomar o lugar do pai e ter todas as mulheres para si). O pai
fora morto e sua carne devorada; ele não podia ser reposto, em nenhum sentido
real. Contudo, embora tivessem se reunido para assassinar o pai da horda, os
irmãos eram rivais uns dos outros em relação às mulheres. O desejo de ser
como o pai, ter todas as mulheres para si, os separou. Assim, os irmãos não
tiveram outra alternativa para voltar a viver juntos senão instituir a lei contra o
incesto, “pela qual todos, de igual modo, renunciavam às mulheres que
desejavam e que tinham sido o motivo principal para se livrarem do pai. Dessa
maneira, salvaram a organização que os tornara fortes (...)” (Freud, 1913 [1912-
1913], p. 172-173). A refeição totêmica, que talvez seja o mais antigo ritual da
humanidade, marca o começo da organização social, das restrições morais e da
religião.
A sociedade estava agora baseada na cumplicidade do
crime comum; a religião baseava-se no sentimento de culpa e
no remorso a ele ligado; enquanto que a moralidade
fundamentava-se parte nas exigências dessa sociedade e
parte na penitência exigida pelo sentimento de culpa.
(Freud, 1913 [1912-1913], p. 173)
A religião totêmica surgiu de um sentimento de culpa filial, e todas as
religiões posteriores tentam solucionar essa mesma culpa, variando seus
procedimentos de acordo com o estágio da civilização em que se encontram os
praticantes do culto. Entretanto, pode-se observar que, nessa disputa, a vitória
ficou com os impulsos de parricídio; o sentimento de culpa fundamentou toda e
qualquer religião, enquanto a moralidade embasou as exigências da sociedade,
a partir da penitência exigida pelo sentimento de culpa.
69
Posteriormente surgiu o conceito de deus, assumindo o controle de toda
a vida religiosa. A psicanálise ensina que o deus de cada um é formado à
semelhança do pai. Da relação pessoal com deus – pai glorificado – dependerá
a relação com o pai em carne e osso. Na Antiguidade deus era o próprio animal
totêmico; então, o totem nada mais seria que um representante do pai.
Após a hostilidade que comandou a matança do pai, o ódio dos filhos foi
apaziguado e a falta dele aumentou, tornando-se possível surgir um ideal que
corporificava o poder ilimitado do pai primevo contra quem os filhos haviam
lutado, assim como a disposição de se submeter a ele como a um deus. O pai
morto tornou-se mais forte do que o fora vivo.
A elevação do pai que fora outrora assassinado à
condição de um deus de quem o clã alegava descender
constituía uma tentativa de expiação muito mais séria do que
fora o antigo pacto com o totem.
(Freud, 1913 [1912-1913], p. 177)
Toda essa construção que constitui o mito da horda primeva, o único mito
moderno, segundo Lacan, se apoiou nas observações da psicanálise sobre o
complexo de Édipo, e amor e ódio (rivalidade) que os filhos estabelecem com
seus pais.
O problema psicológico da ambivalência emocional, melhor dizendo, a
existência simultânea de amor e ódio para com os mesmos objetos sexuais, “jaz
na raiz de muitas instituições sociais importantes” (ibidem, p. 186) e está referido
à origem do sentimento de remorso. Nada foi descoberto sobre a origem dessa
ambivalência, mas pode-se pressupor ser um fenômeno da vida emocional,
adquirido pelos seres humanos em conexão com o complexo parental.
Em outras palavras, Freud retoma a tese de Totem e tabu para concluir
que a comunidade humana se mantém unida pelos vínculos emocionais
identificatórios e pela força coercitiva da violência. Regras e leis são sustentadas
pela culpa derivada do parricídio (assassinato do pai da horda), assim como
pelas identificações derivadas do amor ao líder (pai simbólico). A violência,
embora inevitável, passa assim a fazer parte da organização social, tornando-se
domesticável pela ação civilizatória.
70
1.7.3
A descoberta da pulsão de morte e a violência como trauma
Com o advento do conceito de pulsão de morte, a crença na primazia da
violência na gênese da cultura e do psiquismo se consolida ainda mais (Costa,
1986 [1984]). Abordarei alguns ensaios freudianos que se reportam às questões
relacionadas à agressividade, destruição e violência nas relações sociais:
Reflexões para os tempos de guerra e morte (Freud, 1915c), Além do princípio
do prazer (Freud, 1920) e Por que a guerra? (Freud, 1933 [1932e]).
O trabalho freudiano Reflexões para os tempos de guerra e morte
compreende dois ensaios que foram escritos no primeiro semestre de 1915,
cerca de seis meses após o início da Primeira Guerra Mundial. No primeiro,
intitulado A desilusão da guerra, Freud mostra que o homem é pulsionalmente
destrutivo; prova disto seria o modo de vida dos povos primitivos, que gostavam
de matar e faziam isso de uma maneira natural. Com a irrupção da guerra, os
laços civilizatórios existentes nos tempos de paz e que serviam de freio à pulsão
de destruição humana se afrouxaram. Ignoram-se “as prerrogativas dos feridos e
do serviço médico, a distinção entre os setores civil e militar da população, os
direitos da propriedade privada” (Freud, 1974 [1915], p. 315).
Já mais adiante, no segundo ensaio, Nossa atitude para com a morte,
Freud postula que o medo da morte é resultado de um sentimento de culpa: “(...)
nosso inconsciente é tão inacessível à idéia de nossa própria morte, tão
inclinado ao assassinato em relação a estranhos, tão dividido (isto é
ambivalente) para com aqueles que amamos, como era o homem primevo.”
(ibidem, p. 338). Assim, mesmo quando não se executa o ato de matar, o
inconsciente pensa e o deseja. Neste sentido, essa realidade psíquica não deve
ser subestimada quando posta em confronto com a realidade factual.
Uma segunda referência freudiana ao problema da agressividade,
destruição e violência na vida social pode ser extraída do texto de 1920, Além do
princípio do prazer. Nele surge o conceito de pulsão de morte, uma nova
maneira de pensar o funcionamento anímico, que vai subsumir as idéias
anteriores de pulsões de domínio, destruição e agressão. Como diz Costa:
71
A pulsão de morte reordena a antiga divisão pulsional,
colocando no primeiro plano da vida psíquica a tendência à
destruição do sujeito e do objeto. Agora, ao lado da
sexualidade, a destruição vai interferir decisivamente na
explicação dos mecanismos mentais e passar a ser
considerada um dos elementos primordiais no destino da vida
psíquica e social do homem. (Costa 1986 [1984], p. 23)
Freud define a pulsão de morte como algo que parece mais primitivo,
mais elementar e mais pulsional do que o princípio do prazer. Admitindo-se a
natureza conservadora da pulsão, seria contraditório afirmar que ela tende a um
objetivo novo, que visa à mudança. O lógico é admitir que ela tende a repetir o
mesmo, o mais arcaico, o estado inicial do qual o ser vivo se afastou por causa
de fatores externos. Esse estado inicial, ponto de partida de toda vida, é,
segundo este autor, o inorgânico.
A pulsão de morte deriva desta tendência inerente a todo ser vivo de
retornar ao estado inorgânico; por outro lado, ao esforço para que esse objetivo
se cumpra de maneira natural, Freud denomina pulsão de vida. O objetivo da
pulsão de vida não é evitar que a morte ocorra, mas evitar que ela ocorra de
uma forma não natural. Ela é a reguladora do caminho para a morte.
33
Antes de 1920, o objetivo psíquico era a busca do prazer mediado por
princípios constitutivos e a sexualidade era a grande mestre de cerimônias da
vida psíquica. No entanto, já desde os Três ensaios, Freud (1905) se
preocupava não somente com a sexualidade e a existência das teorias sexuais
das crianças ao afirmar a existência da perversão polimorfa e, também, dos
sentimentos de ódio, rivalidade, hostilidade das crianças em direção aos entes
queridos. Freud, em 1915, chamou de componente sádico da libido ao
componente da libido que engendrava manifestações agressivas e, na tentativa
de explicar o que seria este componente sádico, introduziu a questão da fusão e
da desfusão das pulsões. Freud (1923) fala da desfusão nos casos em que a
agressividade quebrou os laços com a sexualidade. Segundo Laplanche (1967):
33
A teoria dualista das pulsões proposta por Freud a partir de 1910 e que até então existia –
pulsões sexuais / pulsões de autoconservação – foi sendo progressivamente enfraquecida, até
que, quando tudo indicava que Freud iria afirmar um monismo pulsional análogo ao de Jung, ele
introduziu um novo dualismo: o das pulsões de vida e das pulsões de morte. Essa substituição
ocorre em 1920, em Além do princípio do prazer, texto no qual as pulsões sexuais e de
autoconservação são unificadas sob a denominação de pulsões de vida e contrapostas à pulsão
de morte.
72
A fusão das pulsões é uma verdadeira mistura em que
cada um dos dois componentes pode entrar em proporções
variáveis; a desfusão designa um processo cujo limite
redundaria num funcionamento separado das duas espécies de
pulsões, em que cada uma procuraria atingir seu objetivo de
forma independente. (Laplanche 1991 [1967], p. 205-206)
Admitida a idéia de haver uma fusão entre as pulsões de vida e de morte,
a possibilidade de uma desfusão se impõe. O componente sádico da pulsão
sexual seria o exemplo clássico de uma fusão pulsional útil; e o sadismo que se
tornou independente como perversão seria típico de uma desfusão, embora não
conduzida a extremos. Freud (1920) afirma então que a pulsão de destruição é
habitualmente colocada a serviço de Eros para fins de descarga.
Em 1932, Freud aborda novamente a questão da agressividade,
destruição e violência, na correspondência com Einstein.
Na tentativa de responder a Einstein sobre o que poderia ser feito para
proteger a sociedade das ameaças de guerra, Freud (1933 [1932e]) afirma que a
violência é uma das formas de serem resolvidos os conflitos de interesses
humanos. A violência é associada à agressividade pulsional e, desse modo,
quando um homem é incitado a lutar numa guerra, pode ter motivos para ir: um
deles é a inclinação pulsional da agressão e destruição; outro, certamente mais
nobre, são as racionalizações destinadas a justificar, perante a consciência, a
existência desta destrutividade.
No início, detinha o poder quem tinha maior força física. Logo em
seguida, essa força muscular foi substituída pelo uso de instrumentos: prevalecia
a vontade daquele que tinha maior habilidade no manejo com essas armas. A
superioridade intelectual, por sua vez, passa a ser forte aliada do vencedor. O
objetivo principal era matar o adversário, pois assim o vencido não poderia
revidar e isso serviria de exemplo para que outros não agissem da mesma
forma. A esta satisfação completa dos impulsos e desejos destrutivos opor-se-ia,
num certo momento histórico, a reflexão de que deixar o inimigo vivo e num
estado de intimidação poderia ser lucrativo: ele poderia ser utilizado para
serviços úteis (foi exatamente o que ocorreu na Segunda Guerra, quando foram
criados os campos de trabalho).
Esta foi, por conseguinte, a situação inicial dos fatos: a
dominação por parte de qualquer um que tivesse poder maior –
a dominação pela violência bruta ou pela violência apoiada no
intelecto. (Freud, 1976 [1933 [1932e] ], p. 247)
No entanto, essa situação inicial se modificou: passou-se a reconhecer
um outro caminho, diferente do anterior e que se estendia da violência ao direito
73
ou à lei. A violência poderia a partir disso ser derrotada por meio da união de
diversos indivíduos fracos; “o poder daqueles que se uniam representava, agora,
a lei, em contraposição à violência do indivíduo só. Vemos, assim, que a lei é a
força de uma comunidade” (Freud, 1976 [1933 [1932e] ], p. 247). Mas esta nova
forma de poder ainda é violência para Freud e está “pronta a se voltar contra
qualquer indivíduo que se lhe oponha; funciona pelos mesmos métodos e
persegue os mesmos objetivos” (ibidem, p. 247) que a violência instaurada pela
força superior de um só indivíduo.
Para concluir, depois de levantar várias razões (éticas) para que se
recusassem as guerras, Freud responde a Einstein que se as não aceitamos
como mais uma das calamidades da vida é justamente porque não podemos
fazer outra coisa:
A resposta à minha pergunta será a de que reagimos à
guerra dessa maneira porque toda pessoa tem o direito à sua
própria vida, porque a guerra põe um término a vidas plenas de
esperanças, porque conduz os homens individualmente a
situações humilhantes, porque os compele, contra a sua
vontade, a matar outros homens e porque destrói objetos
materiais preciosos, produzidos pelo trabalho da humanidade.
(Freud, 1976 [1933 [1932e] ], p. 256)
Assim, rebelamo-nos contra as guerras por motivos orgânicos básicos e somos
obrigados a ser pacifistas mesmo sem que saibamos justificar essa nossa
maneira de agir.
74
1.8 Necessidade e (im)possibilidade de representação do trauma:
a Shoah como paradigma
Em consequência do estudo realizado sobre as neuroses traumáticas de
guerra, interessei-me por pensar algo mais contemporâneo do que o material
produzido por Freud e Ferenczi no contexto da Primeira Guerra Mundial, e que
pudesse exemplificar a questão da violência traumática. Assim, após estudar
pontos de contato entre trauma, violência e morte, passo a refletir sobre os
efeitos da violência traumática no psiquismo em tempos de guerra, considerando
a Shoah
34
como paradigma.
Para isso, me utilizarei dos testemunhos de Primo Levi
35
e Elie Wiesel
36
,
ambos judeus e sobreviventes do Holocausto, e principalmente das reflexões e
experiências de Guitta Sereny
37
, uma jovem protestante que, residindo em Viena
nos primórdios da Segunda Guerra Mundial, em princípio não deveria ter sido
vítima do sistema nazista. Sereny, no entanto, resistiu ativamente à ditadura e
exerceu funções importantes durante e após a guerra. No livro que tomarei como
referência, O trauma alemão: experiências e reflexões, 1938-2000, Sereny (2007
[2000]) escreve sobre o que a motivou a refletir sobre a Alemanha de 1938 até
os anos 2000: saber o que leva o ser humano, considerado em sua
individualidade, a sucumbir ao mal, ou a resistir a ele.
Em O trauma alemão: experiências e reflexões, 1938-2000, Sereny (2007
[2000]) escreve sobre a Alemanha durante e depois de Hitler. Seu trabalho
concentrou-se no fato de milhões de pessoas terem sido feitas prisioneiras e
transformadas em trabalhadores escravos em campos de concentração, e foi
motivado pelo interesse em saber por que os seres humanos são levados a
abraçar a violência e a amoralidade.
34
Shoah significa calamidade. O termo é usado por muitos judeus e por um número crescente de
cristãos devido ao desconforto teológico com o significado literal da palavra Holocausto que tem
origem do grego e conotação que remete à prática de higienização por incineração. Esses
grupos acreditam que é teologicamente ofensivo sugerir que o extermínio dos judeus da Europa
constituiu um sacrifício a Deus. É no entanto reconhecido que a maioria das pessoas que usa o
termo Holocausto não o faz com essa intenção.
35
Primo Levi nasceu em Turim em 1919. Foi deportado para o campo de concentração de
Auschwitz, na Polônia, em 1944. Voltou à Itália em 1945. Morreu em casa em 1987. Conhecido
por seu trabalho sobre a Shoah, seu livro É isso um Homem? (Levi, 1988 [1947]) é considerado
um dos mais importantes trabalhos memorialísticos do século XX.
36
Elie Wiesel nasceu em 1928, num lugarejo chamado Sighet – região, na época, disputada pela
Romênia e Hungria. Foi deportado em 1944 com a família. Sobrevivente dos campos de
concentração nazistas, foi libertado em 1945. Ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1986 pelo
conjunto de sua obra, quase 40 livros, montada para resgatar a memória da Shoah e defender
outros grupos vítimas de perseguições.
37
Guitta Sereny nasceu em Viena em 1923 e estudou na Áustria, Inglaterra e França. Mais tarde,
tornou-se jornalista e escritora.
75
O primeiro contato de Sereny com os nazistas ocorreu em 1934, quando,
aos 11 anos de idade, foi levada a um comício de Hitler em Nuremberg
38
. Quatro
anos depois, adolescente, pôde perceber que pessoas começaram a
desaparecer; outras fugiram para os Estados Unidos ou se suicidaram. Nas
escolas, crianças judias foram impedidas de frequentar as aulas e de usar as
mesmas acomodações de pessoas de outras tradições religiosas; foram
obrigadas também a trabalhar. Em Viena, todos transitavam às ruas “em grupo,
ordenadamente, silenciosos e, em muitos casos, desconfiados uns dos outros”
(Sereny, 2007 [2000], p. 30). Em 1940, estudava em Paris quando os alemães
arrasaram os exércitos dos aliados. Opondo-se aos invasores, passou a
trabalhar como enfermeira na França ocupada, à procura de crianças raptadas.
Em 1942, fugiu para os Pirineus para não ser presa. Depois da guerra, foi
investigadora do bem-estar da infância e trabalhou em campos de refugiados de
guerra para a Agência das Nações Unidas de Socorro e Reabilitação (ANUSR)
39
,
organização responsável pelas pessoas que haviam sido trazidas para a
Alemanha dos territórios conquistados ou anexados pelos alemães, incluindo
menores de idade que estavam vivendo em instituições ou com famílias
adotivas.
Para Sereny, o tipo de reação aos invasores alemães na Segunda Guerra
dependeu muito de onde o indivíduo se encontrava geograficamente e daquilo
que ele era: sua nacionalidade, religião, educação, profissão, convicção política
e assim por diante. Por outro lado, a associação que se fez no Ocidente entre o
nazismo de Hitler e o genocídio de judeus foi de tal ordem que praticamente se
ignorou os outros milhões de pessoas que foram assassinadas em tantas terras
(Sereny, 2007 [2000]). A restrição da lembrança histórica desse período a esse
aspecto dos fatos foi algo insensato e incorreto, em sua opinião.
38
As reuniões anuais de Nuremberg consistiam em grandes espetáculos de propaganda,
utilizando efeito teatral e aparatos militares para dar a Hitler uma imagem de um deus salvador
da pátria germânica. Foram realizadas entre 1923 e 1938 na Alemanha, sendo que a maior e
última delas reuniu milhões de pessoas e teve como missão preparar o povo alemão e o mundo
para a Segunda Guerra Mundial.
39
“Em inglês: “United Nations Relief and Rehabilitation Administration (UNRRA).” Criada em 9 de
novembro de 1943, por meio de um acordo entre 44 nações, foi substituída pela Organização
Mundial de Refugiados, que operou de 1947 a 1951” (Sereny, 2007 [2000], p. 46).
76
É incorreto porque diminui a megalomania de Hitler,
que, além de ter ido além da horrível tentativa de dizimação
dessa ‘raça’, visava – e chegou muito perto de alcançá-lo – a
um futuro em que a Alemanha dominaria um mundo no qual,
depois de grotescos morticínios, gigantescas populações
‘racialmente inferiores’, tais como as de eslavos e negros,
existiriam simplesmente como escravas.
(Sereny, 2007 [2000], p. 18)
Além da violência contra os judeus, ciganos, comunistas, outros milhões
de cristãos poloneses, ucranianos e soviéticos também foram assassinados
durante o período hitleriano. Depois de 1940, por causa da necessidade de mão-
de-obra para mover a indústria bélica, os pequenos centros de detenção de
criminosos, dissidentes políticos, religiosos, homossexuais e judeus
transformaram-se em instalações gigantescas, formadas por milhões de pessoas
escravas. Nestes campos de concentração e trabalho, elas morreram por tortura,
experiências médicas abomináveis ou nas câmaras de gás, e também de
doenças e moléstias incuráveis.
Esses foram os campos que todos os alemães
conheceram e com os quais se aterrorizaram. Esses foram os
corpos encontrados pelo horrorizado exército dos Aliados
quando entrou na Alemanha. (...) Seres humanos esqueléticos,
alguns ainda surpreendentemente em pé, outros deitados em
beliches, estuporados, e outros nus em pilhas de corpos
disformes, prontos para serem cremados (...).
(Sereny, 2007 [2000], p. 169-170)
As experiências descritas pelas testemunhas da Shoah foram as mais
dolorosas e horrendas de imaginar que uma pessoa possa ter sofrido. Pessoas
eram tratadas como mercadorias; nos campos de concentração e trabalho, não
eram mais seres humanos para os nazistas. A partir do galpão de despimento,
quando eram obrigadas a ficar nuas, presenciava-se a transição: passavam a
ser consideradas menos que animais.
Pela primeira vez, então, nos damos conta de que a
nossa língua não tem palavras para expressar essa ofensa, a
aniquilação de um homem. Num instante, por intuição quase
profética, a realidade nos foi revelada: chegamos ao fundo.
Condição humana mais miserável não existe, não dá para
imaginar. Nada mais é nosso: tiraram-nos as roupas, os
sapatos, até os cabelos; se falarmos, não nos escutarão – e, se
nos escutarem, não nos compreenderão. Roubaram tamm
nosso nome, e, se quisermos mantê-lo, deveremos encontrar
dentro de nós a força para tanto, para que, além do nome,
sobre alguma coisa de nós, do que éramos.
(Levi, 1988 [1947], p. 24-25)
77
A experiência da Shoah, em que milhares de pessoas foram vítimas da
condição apassivada de coisa nas mãos do sistema nazista, se aproxima,
portanto, do irrepresentável.
1.8.1
O rapto de crianças racialmente valiosas
Durante um ano e meio, Sereny trabalhou com crianças traumatizadas
pela guerra em campos de refugiados de guerra e centros infantis especiais,
envolvendo-se profundamente na miséria que os nazistas haviam causado. A
falta, quase completa, de respostas por parte de diferentes famílias alemãs
suspeitas de terem tomado para adoção crianças raptadas, reforçava as
alegações dos povos da Europa Oriental e dos Balcãs de que milhares de
crianças haviam sido raptadas durante a guerra, com o propósito de reduzir a
população dos países que a Alemanha estava conquistando e enriquecer seu
próprio povo com crianças “racialmente valiosas” (Sereny, 2007 [2000], p. 61).
1.8.1.1
A SS
40
, as Irmãs de Marrom e o projeto Lebensborn
41
A Agência de Repatriação de Alemães Étnicos [VoMi];
o Escritório Central de Segurança do Reich (RSHA) e a
Comissão do Reich para a Consolidação da Raça Germânica
(RKFDV) desempenharam importantes papéis administrativos.
A NSV, a supramencionada Associação do Bem-Estar do Povo
Nazista, fornecia as “Irmãs de Marrom”; a RuSHA, Agência
Central de Reassentamento e Controle Racial, decidia, por
intermédio de seus pseudocientistas raciais, se a criança servia
ou não para germanização com base na medição de 62 partes
de seu corpo; e havia também, logicamente, a sociedade de
“caridade modelar” da SS, a Lebensborn.
(Sereny, 2007 [2000], p. 70-71)
40
SS Einsatzgruppen: “Esquadrões da morte, conhecidos como ‘forças-tarefas especiais’” (Sereny,
2007 [2000], p. 16). Era a denominação de brigadas da morte alemãs, que levavam a cabo os
assassinatos em massa nos países ocupados durante a Segunda Guerra Mundial.
41
Criado em 12/12/1935, “Lebensborn foi um dos mais terríveis e secretos projetos nazistas”
(Sereny, 2007 [2000], p. 65). Constituiu-se, em princípio, de “creches” da SS. Depois,
transformou-se “em pontos de encontro de alemãs “racialmente puras” que quisessem conhecer
homens da SS e ter filhos com eles. As crianças geradas na Lebensborn eram tomadas aos
cuidados da SS” (ibidem, p. 65). Em 1939, iniciou-se “um dos aspectos mais terríveis da
Lebensborn, como seja, o rapto de ‘crianças racialmente valiosas’ nos países da Europa
Oriental ocupados.” (ibidem, p. 65).
78
Em dias pré-fixados e ao longo de toda a guerra, milhares de crianças de
até 10 anos foram raptadas pela SS ou pelas Irmãs de Marrom em diversos
locais: parques, ruas, escolas e até nas próprias residências. As crianças
escolhidas deviam ser belas e saudáveis, ter corpo perfeito, cabelos louros ou
castanho-claros e olhos azuis. Elas eram levadas de trem para asilos infantis
especialmente construídos para a germanização, a fim de serem submetidas a
exames físicos e testes de inteligência.
As crianças bem jovens e que não se mostravam aptas para a
germanização eram devolvidas posteriormente aos seus pais; aquelas com
idade suficiente e capazes eram enviadas para trabalhar na Alemanha ou, no
caso das consideradas fisicamente inadequadas ou racialmente impuras,
mandadas para campos de concentração. Por sua vez, as crianças aprovadas
para a germanização ganhavam novas certidões de nascimento com nomes
alemães. Dependendo da idade, eram a seguir transferidas para asilos infantis
da Lebensborn ou para internatos do Estado, administrados pela Lebensborn,
mas providos de membros da SS e supervisionados por esta (Sereny, 2007
[2000]).
Dos asilos infantis, as crianças situadas entre 2 e 6 anos de idade iam
para lares alemães adotivos, sendo, para todos os efeitos, tratadas como “órfãs
alemãs dos territórios da Europa Oriental reconquistados” (Sereny, 2007 [2000],
p. 67). As que tivessem entre 6 e 10 anos eram depois enviadas para instituições
apropriadas na Alemanha com o objetivo de serem germanizadas. Todos os pais
biológicos eram avisados de que seus filhos seriam levados para a Alemanha
em razão de seus estados de saúde (ibidem, p. 72). Feito isto, não mais
recebiam notícias acerca das crianças.
No que diz respeito à escolha dos novos lares adotivos, eram
considerados aptos para receber estas crianças casais alemães sem filhos. Não
lhes era informado os verdadeiros métodos pelos quais a criança lhes chegara e,
independente de suas convicções políticas, após tê-las acolhido, tratavam-na
com amor e carinho. Neste sentido, os nazistas conseguiram enganar tanto os
pais biológicos (roubando-lhes seus filhos) quanto os pais adotivos (escondendo-
lhes a verdade sobre a origem das crianças colocadas para adoção).
79
1.8.2
O processo de germanização
Sereny esteve, em 1946, em um centro de crianças especiais, no qual
trabalhavam psiquiatras e outros profissionais experientes em traumatologia
infantil, e lá acompanhou, durante seis semanas, os depoimentos de cinco
meninos com idades entre 10 e 12 anos. O propósito do centro era ajudar
crianças a superar não só a dor da separação como também reavivar
lembranças recalcadas. Todas as crianças que, aos 12 anos ou mais, haviam
sido levadas para trabalhar na Alemanha continuaram conscientes de suas
identidades e, embora tivessem aprendido o idioma alemão, conservaram a
língua materna. As de 10 anos, por outro lado, recalcaram suas raízes. No
entanto, era mais fácil fazê-las lembrar sua história, comparando-as às crianças
mais novas.
Embora canções sejam um elemento profundamente
arraigado na cultura familiar alemã e o canto um fator
fundamental na educação da juventude nazista, em muitos
casos os sons das canções de ninar poloneses e as preces
infantis venciam o esquecimento e traziam à memória
lembranças de casa. (Sereny, 2007 [2000], p. 73)
No caso de crianças bem pequenas, as lembranças referidas aos pais
legítimos e à língua materna eram, ao que parece, totalmente esquecidas. Por
isso, devolvê-las ao lar original acabava sendo tão traumático quanto havia sido
seu rapto. O sentimento de perda dos pais adotivos em relação a estas crianças
era vivido como algo insuportável, tal como passarei a apresentar a seguir pelo
exemplo do caso de Marie e Johann, duas crianças que foram adotadas quando
tinham apenas 3 anos e que foram arrancadas aos 6 anos de seus pais adotivos
(que eram tudo para elas), após a confirmação de que Marie era a garotinha
procurada pelos pais legítimos, com base em um sinal de nascença.
80
1.8.2.1
Identificação e posterior devolução de crianças raptadas
aos genitores: o caso dos gêmeos Marie e Johann
A tarefa de identificar e levar, depois de confirmado o rapto, as crianças
embora de seus lares adotivos era, para quem a realizasse, traumatizante, na
opinião de Sereny. Ela própria fez isso apenas uma vez.
(...) jamais esquecerei da tristeza inconsolável do casal que
amava a criança de 5 anos de idade que eu tinha de tirar dele,
e a incompreensão e a raiva descontrolada da própria criança,
que não se lembrava de seus genitores nem de seu idioma
nativo e para a qual os pais alemães eram todo o seu mundo.
(Sereny, 2007 [2000], p. 70)
Sereny jamais viu ou ouviu falar de algum caso em que pais adotivos
maltratassem as crianças: todas, sem exceção, eram muito bem-acolhidas.
Assim, ao reencontrar Marie e Johann no centro de crianças especiais na
Baviera, duas das crianças que ajudou a identificar quando trabalhava na
ANUSR, ela se questiona sobre a melhor solução para os casos das crianças
adotadas irregularmente. Como ela própria dizia às famílias suspeitas de terem
recebido crianças raptadas, “nenhum de nós quer que as crianças sejam
prejudicadas” (ibidem, p. 62).
A aparência das crianças, com o rosto pálido e os olhos
encovados, e Johann, com sua reação muito hostil para
comigo, e o grande abatimento de Marie, abalaram-me
profundamente. Marie estava encolhida numa cadeira, com os
olhos fechados, os lábios descorados, com o polegar na boca,
ao passo que Johann, desabalando em minha direção assim
que me viu e gritando roucamente Du, Du, Du (Você, você,
você), tentou atingir-me com os pés e as mãos. (ibidem, p. 75)
Assim como outras crianças, Marie e Johann, que eram irmãos gêmeos e
tinham uns 6 anos na época, foram mantidos por mais tempo no centro, com o
propósito de ajudá-los a superar a dor da separação de seus pais adotivos e
prepará-los para serem devolvidos aos genitores. Contudo, isto não foi suficiente
e eles foram enviados para casa como último recurso; como já havia ocorrido
antes, contou-se com o amor dos pais biológicos para dar novamente conforto
às crianças.
81
Johann tornou-se sempre mais desafiador, razão pela
qual manifestou por vezes a mesma atitude violenta que havia
tido para comigo, e Marie, que urinava na cama e se
alimentava somente de mamadeira, não falava e tinha
retornado psicologicamente à condição de bebê.
(Sereny, 2007 [2000], p. 75)
Na noite desse dia [anterior ao regresso ao lar],
relutantemente, seguindo orientação do psiquiatra residente,
que achava que isso não podia ser prejudicial e, mesmo como
um choque, podia ser útil, dei mamadeira a Marie, segurando-a
no colo. Não houve choque; ela ficou no meu colo, de olhos
fechados, com o corpo dando a sensação de que não tinha
ossos, o único movimento a sucção de seus lábios e a
deglutição de sua pequena garganta. Fiquei com ela nos
braços até que ela dormisse. Isso me ajudou, mas,
infelizmente, a ela não. Que estamos fazendo?, perguntei a
mim mesma. (ibidem, p. 75)
Qualquer uma das soluções propostas para o caso das crianças raptadas
era, do ponto de vista de Sereny, inaceitável: entregá-las aos pais legítimos,
numa Europa devastada pela guerra; deixá-las com as famílias adotivas, que as
tinham conseguido por meio de um crime hediondo; transferi-las para os Estados
Unidos, Canadá ou Austrália, levando-as para outro ambiente totalmente novo e
estranho.
Cerca de 40.000 crianças polonesas, das 200.000
relatadas como perdidas, voltaram para casa, e, totalmente por
iniciativa individual de equipes da ANUSR, duas levas de
pouco mais de 100 jovens russos foram enviadas para casa em
dezembro de 1946. De outro modo, não houve registro de
quantas crianças cuja nacionalidade era alvo de disputas
existiam, quantas delas foram enviadas para além-mar ou,
aliás, quantas das crianças raptadas haviam sido descobertas
e, ignorantes de sua origem, permaneceram na Alemanha.
(Sereny, 2007 [2000], p. 79)
Nenhuma destas opções era boa; nenhuma era capaz de apagar o trauma de
perder os pais, o idioma e a referência de lar.
82
1.8.3
A culpa carregada pelos filhos do Reich
Cada um de nós sobrevive como pode a uma dose
diária de exposição traumática [...].
(Nestrovski; Seligmann-Silva, 2000, p. 11)
Para conversar sobre seus sentimentos, suas vivências passadas, o
relacionamento que tinham com os pais, alguns dos filhos e filhas dos que
trabalharam para Hitler, na Segunda Guerra Mundial, passaram a se reunir –
como numa espécie de terapia de grupo –, a fim de desenterrar das profundezas
do inconsciente fatos ocorridos cerca de 45 anos antes. Passo agora às histórias
de alguns deles.
Martin Bormann
Martin Bormann, filho do assessor mais próximo de Hitler
42
– que, aliás,
tem o nome do pai – é um dos participantes do grupo. Segundo ele, na medida
em que foi aprendendo a entender o que havia ocorrido no período da Segunda
Guerra Mundial, passou a aceitar seu próprio nome, seu pai e seu passado
enquanto parte dele mesmo.
Após frequentar por um ano e meio as reuniões do grupo, ao ser
desafiado por uma colega (a quem não dirige resposta), começa repentinamente
a contar uma situação específica, vivida um pouco antes do fim da guerra, e que
ele havia escondido até dele mesmo. ‘Frau’ Pothast, secretária e amante de
Himmler
43
, convidou o próprio Martin, sua irmã Eike de 13 anos e sua mãe para
um chá na velha casa de fazenda em que Himmler se instalara. Lá, foram
levados por ‘Frau’ Pothast ao sótão: ela “lhes mostraria algo interessante”
(Sereny, 2007 [2000], p. 344), uma coleção especial de Himmler.
42
Martin Bormann-pai (1900-1945?) foi um destacado oficial nazista (vice-líder do NSDAP, Partido
Nazista) e um dos homens da cúpula do Terceiro Reich, secretário-particular de Adolf Hitler. A
data de sua morte é incerta.
43
Heinrich Luitpold Himmler (1900-1945) foi comandante da SS alemã e um dos mais poderosos
homens da Alemanha Nazi.Tornou-se figura-chave na organização da Shoah.
83
“– Quando ela abriu a porta e entramos, não
entendemos, inicialmente, o que eram os objetos naquele
recinto, até ela explicar do que se tratava e, vejam só, muito
cientificamente. Mesas, cadeiras, feitas de partes do corpo
humano. Havia uma cadeira...” A voz de Martin perde a
entonação quando ele começa a descrição; as pessoas em
volta da mesa parecem congeladas, em completo silêncio.
Sinto [Sereny] meu corpo formigar. “– O assento era uma
pelve; as pernas da cadeira, ossos das pernas de uma pessoa,
apoiados em pés humanos. Em seguida, ela [‘Frau’ Pothast]
pegou um exemplar de uma pilha de Mein Kampf
44
... tudo em
que pude pensar foi que meu pai havia dito que não me desse
ao trabalho de lê-lo, já que tinha ficado desatualizado pelos
fatos. Ela nos mostrou a capa, feita de pele humana, e explicou
que os prisioneiros de Dachau que a confeccionavam tinham
usado a Rückenhaut – a pele das costas – para fabricá-la”. “–
Nós, crianças, saímos correndo dali”, ele conta, “com minha
mãe empurrando-nos escada abaixo”.
(Sereny, 2007 [2000], p. 344)
Assim, quando, após a guerra, Martin viu fotografias sobre o que
aconteceu nos campos de extermínios, embora outras pessoas negassem que
fossem reais, sabia que retratavam a verdade. Ele havia visto! Embora amasse
seu pai e tivesse dificuldades em associar sua figura às atrocidades da guerra,
não tinha dúvidas sobre o ocorrido.
O trauma de Martin-criança era o resultado da passagem por uma
vivência tão chocante que ele não pôde integrá-la emocional ou mentalmente ao
seu psiquismo. A partir do trabalho com o grupo, entretanto, conseguiu resgatar
o que não pôde ser dito ou representado até então, aquele evento latente na
memória que pôde ser redescoberto pela irrupção repentina de sua fala,
colocando seus colegas de sessão no lugar de testemunhas do que aconteceu
com ele.
A irmã de Gunild
Outra participante do grupo conta que sua irmã disse-lhe não suportar
mais viver com o passado. Médica, com 66 anos (em 1990) e recém-
aposentada, assumiu e administrou a clínica que pertencera a seu pai durante
20 anos.
44
Escrito na prisão por Adolf Hitler e inicialmente editado em 1924, o livro Mein Kampf (em
português Minha Luta), tornou-se um guia político-ideológico dentro e fora da Alemanha.
Acreditando que o meio social no qual estava inserido deveria passar por um processo de
mudança radical, Hitler construiu um projeto político no qual uma hierarquia rígida iria direcioná-
lo para a constituição de uma sociedade perfeita.
84
Durante os últimos 45 anos, as autoridades
conseguiram manter em segredo o fato de que as escolas de
medicina da República Federativa vêm usando partes extraídas
dos corpos das pessoas que os nazistas assassinaram. Agora,
isso veio a público, e eles estão tendo que removê-las dos
laboratórios de patologia das universidades. Para minha irmã,
66 anos de idade, a conscientização de que aprendeu a
profissão – da qual nosso pai abusou tão nefastamente –
usando parte de corpos humanos nessas condições está
deixando-a à beira do suicídio. É surpreendente o fato de que
ela tenha tendência ao suicídio e que eu, apesar do marido e
do filho maravilhosos, viva em desespero, viciada em
tranquilizantes? (Sereny, 2007 [2000], p. 345-346)
À vergonha que acomete a irmã de Gunild, por seu pai ter participado
ativamente do regime nazista, sendo responsável direta ou indiretamente pela
morte de outros seres humanos, acrescenta-se a vergonha de ter que
reconhecer que aprendera medicina manipulando corpos de pessoas que os
nazistas assassinaram. Essa constatação não é somente inesquecível como
contamina tudo o que havia tentado reconstruir ao assumir a administração da
clínica paterna.
Monika
Filha ilegítima do general dos SS Einsatzgruppen, Monika afirma ter
sentimentos ambivalentes no que se refere aos encontros do grupo: apesar de
ficar tomada de angústia, percebe que tem de enfrentar seus medos. Se antes
perdia a fala quando alguém perguntava sobre seu passado, agora (1990), se
não responde, sufoca.
“Minha mãe era muito pobre”, conta Monika. “Assim,
tudo o que eu tinha para vestir eram as roupas usadas de seus
parentes, que eram terríveis comigo. Mas não por causa do
que meu pai fizera... não acho que eles se importavam mais
com isso do que qualquer outro dessa geração de alemães.
Eles me puniam por ser filha ilegítima, o que não consideravam
‘decente’. Quando me davam algo no aniversário ou no Natal,
sempre deixavam a etiqueta do preço no presente: ele nunca
custava mais de 50 ou 98 pfennig [centavos]; era o que eu
valia.” (Sereny, 2007 [2000], p. 348)
O que antes não pôde ser posto em palavras passa a sê-lo, possibilitando
a Monika experimentar uma espécie de catarse. A memória das experiências
que a traumatizaram não estavam (nunca estão, na realidade) submetidas ao
seu livre-arbítrio e emergiram a partir do trabalho do trauma, nas sessões do
grupo.
*
85
Quase todos os filhos de homens que foram nazistas de alta patente
haviam se esforçado para vencer os mecanismos que distorcem ou suprimem
até completamente a verdade sobre os anos da guerra (Sereny, 2007 [2000]).
Segundo alguns deles, se seus pais houvessem admitido a extensão de seu
envolvimento com o Terceiro Reich
45
e com suas consequências, as coisas
poderiam ser diferentes: já que não o fizeram em vida, o enfrentamento da
verdade foi deixado para as gerações seguintes. Incapazes de sentir vergonha
ou arrependimento, os pais deixaram como legado aos filhos um sentimento de
culpa terrível.
Por causa das mentiras e do silêncio, instaurou-se o mito de uma guerra
comum, sem maiores barbaridades. Entretanto, em contraposição às mortes
com uso de gás acontecidas em segredo na Polônia ocupada, judeus e não-
judeus foram fuzilados nas periferias de suas casas, a mando dos nazistas, em
centenas de cidades e vilarejos da União Soviética.
Ninguém tinha como deixar de saber deles. Tempos
depois, esses soldados, por necessidade própria, isolavam
esses horrores nos recessos da mente, nos quais eles
abundavam. Isso pode muito bem ter afetado seus sentimentos
e atitudes posteriores. (Sereny, 2007 [2000], p. 350)
Assim, decididos a enfrentar o passado de suas famílias, os filhos do
Reich arriscaram se afastar de parentes e amigos e passaram a falar sobre o
que haviam presenciado durante a guerra. “Houve casamentos desfeitos por
causa da tensão resultante disso; filhos que abandonaram o lar; amigos que se
afastaram. Mas isso induziu outros a entenderem que eles tinham de falar”
(ibidem, p. 345).
Muitos filhos do Reich acabaram excluídos de um convívio social normal,
como resultado de haver quebrado as barreiras que os impediam de contar o
que lhes havia acontecido no passado; após anos de um sofrido silêncio,
passaram a falar sem parar e indiscriminadamente: em casa, no trabalho, nos
grupos de terapia e assim por diante. Neste sentido, eles “acordaram”, mesmo
que parcialmente, do antigo estado de entorpecimento, não sendo mais tão
passivos frente ao que foi por eles vivido.
45
Terceiro Reich: doze anos de domínio nazista, entre 1933 e 1945 (início com a proclamação de
Hitler em 30/01/1933 e término com a capitulação do exército alemão, em 07/05/1945).
86
1.8.4
Os campos de morte e os testemunhos do irrepresentável
Esse mal-estar diante da imagem “imediata”, que não
se consegue verdadeiramente ver, retoma um dos mais
frequentes motivos evocados por testemunhas da Shoah ou de
outros genocídios: o da irrepresentabilidade do mal. (...) O
mesmo motivo volta (...) na constatação estarrecida que o
horror enxergado não é somente tão inesquecível quanto
irrepresentável, mas também que ele possui uma estranha
força de contaminação, que ele suja e marca de vergonha os
olhos que o viram. “Nunca deveríamos ter visto isso” dizem,
muitas vezes, os sobreviventes, como se não conseguissem
mais distinguir entre seu papel – e sua tarefa – de testemunhas
e sua suspeita de serem também cúmplices e voyeurs.
(Gagnebin, 2000 [1998], p. 106)
O primeiro campo de extermínio foi construído em Chelmo, uma pequena
cidade há cerca de sessenta quilômetros de Łódź, na Polônia. Foi lá que os
primeiros assassinatos de judeus em massa com gás ocorreram, dando início à
Solução final.
46
O campo de Chelmo foi estabelecido em dezembro de 1941 e o
seu primeiro comandante foi Herbert Lange. O campo consistia em duas partes:
a seção de administração, barracas e armazenagem de mercadorias; e a parte
de cremação e sepultamento. Era operada com três vans com gás, usando
monóxido de carbono. O campo funcionou de 7 de dezembro de 1941 até cessar
completamente em 17 de janeiro de 1945. O número estimado de vítimas é de
150.000 a 300.000 pessoas, principalmente judeus.
Após Chelmo, três outros campos de extermínio foram construídos em
1942 numa região florestal e de baixa densidade populacional na Polônia
ocupada: Belzek, Sobibor e Treblinka, o maior e mais eficaz deles. A operação
codinominada Aktion Reinhard foi então iniciada: o governo nazista da Alemanha
passou a exterminar os judeus poloneses e tomar posse de seus bens.
47
Nesses
campos, criados exclusivamente para matanças, nada foi preservado:
46
A Solução final da questão judaica está referida ao plano nazista de genocídio sistemático
contra a população judaica durante a Segunda Guerra Mundial. É considerada um dos aspectos
mais hediondos da Shoah, resultado do pensamento nazista de que os judeus eram um
problema na sociedade européia e por isto deveriam ser assassinados. Para maiores
informações sobre o assunto, cf. Faingold, R., O holocausto e a negação do holocausto.
Disponível em: http://www.reuvenfaingold.com/artigos/holocausto.pdf. Acesso em: 25 mar. 2009.
47
Entre março de 1942 e outubro de 1943, quando terminou a Aktion Reinhard, cerca de 2.250
milhões de pessoas foram mortas nas câmaras de gás destes três campos (Sereny, 2007
[2000], p. 360). Do mais de um milhão de judeus que chegaram a Treblinka, apenas uns
sessenta escaparam da morte, após uma rebelião em 02/08/1943 (ibidem, p. 361).
87
Os corpos foram incinerados em grelhas chamadas de
‘torradeiras’; os ossos não consumidos pelo fogo eram moídos
até que tudo que sobrasse fossem cinzas e um pó branco, os
quais, misturados com a terra de tons claros da região,
tornavam-se impossíveis de distinguir anos depois.
(Sereny, 2007 [2000], p. 360-361)
Homens e mulheres que presenciaram acontecimentos como esses
durante tempo prolongado poderiam esquecer quem orquestrou tais atos? Ou
inconscientemente poderiam identificar alguém parecido com ele (como seja, a
figura de “Ivan”
48
, a personificação do que foi Treblinka, por exemplo), mas não
ele próprio, como bode expiatório desse horror? A partir destas perguntas,
Sereny relativiza a imparcialidade possível daqueles que sobreviveram à Shoah
e foram, décadas após o acontecimento dos fatos, convocados a depor em
julgamentos, que intentavam identificar e responsabilizar nazistas envolvidos no
extermínio de milhares de pessoas. Como disse Pinhas Epstein, ao dar seu
testemunho no tribunal: “Sonho com ele [Ivan] todas as noites” (Epstein apud
Sereny, 2007 [2000] p. 362). Rapaz de 17 anos de idade quando chegou a
Treblinka em 1942, viu toda sua família ser morta; ele, por outro lado, foi
escolhido para trabalhar nas câmaras de gás, incinerando corpos. A repetição
compulsiva em sonhos das cenas que o traumatizaram durante o tempo em que
esteve em Treblinka pode ser entendida como uma tentativa de aplacar a
angústia diante de algo tão “sem-forma”, que ia além dos limites da
compreensão humana.
A discussão acerca da legitimidade de depoimentos colhidos de
sobreviventes traumatizados (tal como o de Epstein) é fundamental para os
debates atuais em todo o mundo ocidental, inclusive na Grã-Bretanha. As
recordações do julgamento suscitaram reservas no que diz respeito à reabertura
de feridas antigas. Em contrapartida, era esperado que o julgamento “servisse
como uma espécie de catarse” (Sereny, 2007 [2000], p. 373); através desses
depoimentos, os “trabalhadores” dos campos de morte desafogariam suas
culpas por terem feito tudo o que foi preciso para se manterem vivos. Neste
sentido, o acontecido retorna de outra forma, mais reparatória, mesmo que ainda
traumatizante.
Os sobreviventes da Shoah, escreve Hartman,
48
John Demjanjuk, nascido Ivan Demjanjuk em 1920, foi acusado primeiramente em Cleveland,
Ohio, em 1981, e depois em Israel, em 1987-1988, de ter sido o temido guarda ucraniano,
conhecido como “Ivan, o terrível”, do campo de extermínio de Treblinka. Sua condenação por
crimes contra a humanidade foi posteriormente anulada em Israel (Sereny, 2007 [2000], p. 355).
88
(...) lembram de fatos com uma clareza impressionante. Ao
mesmo tempo, frequentemente se sentem como se nunca
tivessem deixado o lugar no qual tantos morreram. Eles
também parecem ter morrido durante aqueles anos terríveis,
sendo agora fantasmas que se autoperseguem.
(Hartmann, 2000 [1994], p. 214)
A pulsão de conservação, de autodefesa, o amor próprio, tudo parece haver
desaparecido nos campos de extermínio. Após a libertação, muitos
sobreviventes dizem não se reconhecer mais.
Um dia pude levantar, depois de reunir todas as minhas
forças. Queria me ver no espelho pendurado na parede em
frente. Não via meu rosto desde o gueto. Do fundo do espelho,
um cadáver me contemplava.
Seu olhar nos meus olhos não me deixa mais.
(Wiesel, 2006 [1958], p. 119)
As recordações das vítimas da Shoah são extremamente realistas,
embora existam outros fatores que corroboram para a deformação ou para a
obliteração de certos registros mnemônicos. Isto porque a recordação de uma
experiência traumática dói ou pelo menos perturba: quem foi ferido tende a
recalcar a recordação para não renovar o trauma; quem feriu expulsa a
recordação até as camadas mais profundas do inconsciente para dela se livrar,
atenuando a vergonha e a culpa que sente por ter agido daquela maneira e não
de outra. Segundo diz Levi:
Observou-se, por exemplo, que muitos sobreviventes
de guerras ou de outras experiências complexas e traumáticas
tendem a filtrar inconscientemente suas recordações:
evocando-as entre eles mesmos ou narrando-as a terceiros,
preferem deter-se nas tréguas, nos momentos de alívio, nos
interlúdios grotescos, estranhos ou relaxados, esquivando-se
dos episódios mais dolorosos. Estes últimos não são trazidos
de bom grado do magma da memória e, por isto, tendem a
enevoar-se com o tempo, a perder seus contornos.
(Levi, 2004 [1990], p. 27)
Os “trabalhadores” judeus e não-judeus saem dos campos de extermínio
com vergonha de terem sobrevivido. Embora a sobrevivência deles nada tenha a
ver com a morte dos outros, se sentem culpados por terem tido melhor sorte.
Eles buscam, através dos testemunhos, uma libertação desse passado e da
literalidade dessas cenas traumáticas.
89
2
A teoria ferencziana do trauma
Sándor Ferenczi (1873-1933), psicanalista contemporâneo de Sigmund
Freud (1856-1939), produziu vários ensaios sobre a questão do trauma,
principalmente a partir de 1929. Através desses textos, muito polêmicos no
âmbito psicanalítico, Ferenczi saiu em defesa dos principais pressupostos da
extinta neurotica freudiana.
Pode-se afirmar que a teoria ferencziana do trauma apresenta-se
segundo dois enfoques distintos. Num primeiro, os traumas são estruturantes,
necessários, inevitáveis ou filogenéticos. Os melhores exemplos de um trauma
inevitável, bem como necessário à constituição subjetiva são a castração e o
aprendizado das normas de higiene pela criança. Num segundo, por outro lado,
as situações traumáticas colocam em risco todo o projeto identificatório do
sujeito, por não serem metabolizadas e, assim, integradas ao psiquismo. Em
outras palavras, numa leitura do Ferenczi tardio (1931, 1933), uma criança se
desestrutura sempre que não consegue se reorganizar internamente após uma
experiência traumática sedutora, sofrendo uma verdadeira mutilação no seu eu.
Na teoria de Ferenczi, fatores externos que impõem mudanças no aparelho
psíquico ganham relevo; em lugar dos fatores endógenos, é sobretudo o meio
ambiente que perturba o aparelho psíquico, desorganizando-o (Pinheiro, 1995, p.
35). Coelho Jr. (2003, p. 87) ratifica essa idéia:
No embate entre o primado da fantasia (que acaba por
predominar na maior parte da teorização freudiana) e o
primado da realidade, Ferenczi, entre outros psicanalistas mais
próximos de Freud, é o que primeiro retorna à valorização da
realidade externa na instalação do trauma psíquico. O primeiro
texto que expõe claramente essas idéias é ‘Princípio de
relaxamento e neocatarse’, lido no Congresso Psicanalítico de
Oxford em 1929 e publicado no ano seguinte.
Na perspectiva de Ferenczi, o trauma depende de uma falha na relação
entre o sujeito e o outro. Valorizando a alteridade na constituição do trauma,
Ferenczi se mantém fiel ao que sua clínica lhe revelava: o trauma é
fundamentalmente o resultado de uma ação de um outro sobre aquele que é
traumatizado.
Uma primeira concepção do trauma como estruturante do sujeito
encontra-se nos textos de Ferenczi das décadas de 1910 e 1920. Lembro que
90
desde o trabalho O desenvolvimento do sentido de realidade e seus estágios,
Ferenczi (1913) já apontava para a existência de uma relação originária
traumática e sedutora com a mãe, considerada o primeiro objeto de amor para a
criança. Nesses primeiros trabalhos a ênfase é colocada numa vertente positiva
do trauma de sedução, enquanto organizador do psiquismo e, de certa forma,
inevitável.
Segundo Ferenczi, as primeiras relações mãe-bebê são traumáticas para
a criança na medida em que, através dos cuidados de higiene da mãe, a criança
aprende que deve se submeter às leis impostas pelo meio ambiente, e isto numa
época em que todo bebê ainda acredita que ser amado e se sentir o centro do
mundo é seu estado natural (Ferenczi, 1913). Deste modo, a onipotência
incondicional do recém-nascido se mostra insustentável e ele passa a
reconhecer nele próprio além de sentimentos de prazer, também sentimentos de
desprazer, que provocam mudanças no seu aparelho psíquico.
Durante a década de 1920 e especialmente em As fantasias provocadas,
Ferenczi (1924) tenta explicar as interações existentes entre a sedução, as
fantasias infantis precoces e os traumas sexuais infantis. Em sua opinião, a
sedução dirigida às crianças e o medo ligado à situação traumática sexual são,
até certa medida, inevitáveis e importantes para o enriquecimento fantasístico
em geral. Para ele, a vivacidade da vida fantasística está diretamente ligada aos
acontecimentos vividos na infância, qualificados como traumas sexuais infantis.
Na ausência desses, o resultado pode ser a pobreza da vida fantasística:
Os pacientes, em que fui levado a despertar e a
solicitar artificialmente (...) a atividade de fantasia (...),
pertenciam em boa parte a classes sociais ou a famílias onde
os atos ou os gestos das crianças são controlados desde a
mais tenra infância com uma severidade excessiva, (...) onde
as crianças não têm nenhuma oportunidade de observar em
seu meio e ainda menos de viver o que for de ordem sexual.
São, de certo modo, crianças excessivamente bem educadas,
cujas moções pulsionais não têm, em geral, ocasião de radicar-
se na realidade. (Ferenczi, 1993 [1924], p. 247)
O autor considera que “certa quantidade de experiências sexuais (...)
longe de prejudicar mais tarde a normalidade (...) antes a favoreceriam” (ibidem,
p. 248).
Assim, ao explicitar as interações que entrevê entre fantasias sexuais
infantis e experiências de sedução na infância, Ferenczi (1924) valoriza a
vertente estruturante do trauma, já que uma certa quantidade de experiências
sexuais vividas através da sedução sexual infantil funciona como “proteção
91
contra os caminhos anormais que o desenvolvimento é suscetível de adotar”
(Ferenczi, 1993 [1924], p. 248). No entanto, o trauma de sedução não deve ser,
segundo Ferenczi, vivenciado nem mais nem menos do que “um certo ponto
ótimo” (ibidem, p. 237). A meu ver, Ferenczi assim assinala que para ele há um
aspecto positivo do trauma e que, ao contrário do que poderia pensar, nem toda
experiência sexual traumática adquire posteriormente um valor patológico para a
criança.
Em contraponto a Ferenczi (1924) em As fantasias provocadas,
Catherine Couvreur (2002) apresenta, em Le trauma aujourd’hui et ses
conséquences, uma posição mais pessimista sobre o caráter positivo e protetor
das experiências sexuais infantis, apontando para a vertente patológica do
trauma. Nesta medida, Couvreur aproxima-se mais dos trabalhos de Ferenczi da
década de 1930, especialmente do ensaio Análises de crianças com adultos, em
que Ferenczi (1931), muito interessado nas questões relativas à técnica, afirma
que um analista “não se deve declarar satisfeito com nenhuma análise que não
tenha culminado na reprodução real dos processos traumáticos do recalcamento
originário, no qual repousa em última instância a formação do caráter e dos
sintomas” (ibidem, p. 73). É provavelmente neste sentido que Couvreur (2002, p.
693) sustenta que os traumas de sedução na infância contribuem não só para a
formação do caráter – consoante com a vertente estruturante do trauma –, como
também para a formação dos sintomas – segundo o viés patológico do trauma.
Como observa Couvreur, na década de 1930, Ferenczi passa a
apresentar o trauma a partir de uma visada negativa. No trabalho Análises de
crianças com adultos (1931), assim como em Confusão de língua entre os
adultos e a criança (1933 [1932]), Diário clínico/ Sándor Ferenczi (1985 [1932]) e
Reflexões sobre o trauma (1934 [1931-1932])
49
, Ferenczi dá um valor patogênico
ao trauma, ao abordar o tema da sedução sexual infantil de uma forma diferente
da apresentada por ele em As fantasias provocadas (Ferenczi, 1924).
Considero que é principalmente nos anos 1930 que Ferenczi destaca a
noção de trauma. É ainda nesta década que Ferenczi passa a entender o trauma
como se constituindo em dois tempos. Não se trata da eficácia a posteriori do
incidente traumático, como na perspectiva freudiana. No Ferenczi tardio, o
49
Reflexões sobre o trauma é um artigo póstumo de Ferenczi, publicado em 1934. No entanto, ele
reúne notas sobre o trauma, redigidas em datas diferentes e publicadas em meio a outras notas
tomadas entre 1920 e 1932, sob o título Notas e fragmentos (cf. Ferenczi, 1992 [1934], p. 109).
Decidi em meu trabalho mencionar o ano em que originalmente foram escritas as duas primeiras
notas por mim utilizadas. Assim, ressalto que a primeira nota, Da revisão de A interpretação dos
sonhos, foi redigida em 1931, enquanto a segunda, Da psicologia da Comoção psíquica, foi
redigida em 1932.
92
trauma resulta de um primeiro momento em que um evento precoce e real
acontece – as atitudes sexuais sedutoras dos adultos frente às demandas de
carinho e verdade das crianças – e, um outro, em que um desmentido ocorre no
ambiente próximo à criança.
2.1
“Palavras enterradas vivas”: o desmentido
O que se passa no trauma é que o adulto interdita à
criança não apenas as palavras, como também a possibilidade
de ambiguidade, de múltiplos sentidos. São palavras
destinadas a ficarem enclausuradas, desprovidas de
polissemia, tornando-se representações proibidas de
fantasmatização e, para retomar a expressão escolhida por N.
Abraham e M. Törok, são, de alguma forma, “palavras
enterradas vivas”. (Pinheiro, 1995, p. 76-77)
A originalidade da teoria do trauma ferencziano está alicerçada
justamente na idéia inovadora sobre o desmentido. O desmentido, fundamental
para que haja um trauma, é entendido como a incompreensão, ou melhor, a
negação por parte do adulto de que algo de fato aconteceu com a criança. Em
outras palavras, o adulto vai ouvir o relato da criança como uma fantasia infantil
e não um acontecimento real, desautorizando assim a fala da criança. Neste
sentido, o desmentido adquire para a criança um contorno essencialmente
traumático e desestruturante. Em contrapartida, a história contada pela criança é
também traumática para o adulto, que, incapaz de absorvê-la, relega-a à
condição de mentira ou de fantasia.
Pinheiro (1995) tece uma crítica importante à forma como o conceito de
desmentido é apresentado em diferentes textos de Ferenczi. Para ela, Ferenczi
se perde ao tentar justificá-lo, na medida em que coloca de um lado a verdade e
de outro a mentira, atrelando-as respectivamente ao acontecimento factual e à
fantasia infantil. Dessa forma, Ferenczi se equivoca ao desconhecer o
pressuposto freudiano posterior a 1897 segundo o qual não cabe ao analista se
preocupar com o que realmente ocorreu ou não, como se quisesse separar o joio
do trigo. O que deve ser levado em conta é a realidade psíquica.
93
(...) sabemos, e Ferenczi também o sabia, que a questão da
realidade se perde ou tem valor relativo quando lidamos com o
psiquismo. O que importa é a realidade psíquica. O registro
psíquico é feito tanto de eventos reais quanto de fantasmados;
os dois terão o mesmo valor psíquico. (...) Se não importa o
fato ser real ou fantasiado, como pode o desmentido se manter
de pé como fator essencialmente traumático?
(Pinheiro, 1995, p. 74-45)
Para Ferenczi, o desmentido tem a força de uma Verwerfung se a
violação da criança realmente houver ocorrido, embora tenha sido ouvida pelo
adulto como uma ficção. O desmentido só tem valor traumático e desestruturante
se o enunciado da criança for relegado ao registro da mentira absoluta, e o do
adulto tomado como da verdade absoluta, pois, assim, só resta à criança engolir
este enunciado de sentido unívoco e desprovido de ambiguidade (Pinheiro,
1995).
2.2
A sedução retomada
Ferenczi retoma, especialmente na década de 1930, a teoria da sedução
da criança pelo adulto como causa da neurose. Nesses ensaios ferenczianos,
são apresentadas as principais vertentes do trauma, enquanto estruturante e
enquanto patológico.
Em Princípio de relaxamento e neocatarse (Ferenczi, 1930a), já existem
apontamentos acerca da existência de atitudes incestuosas por parte de pais,
que abusam sexualmente de seus filhos. Estas crianças, por sua vez, participam
inocentemente de um jogo repleto de punições e ameaças graves, que lhes é
imposto, os quais são incompreensíveis para elas. Para Ferenczi, as crianças
reagem a um choque violento através de uma fuga da realidade, já que se
sentem incapazes de pensar ou resistir em sua própria defesa.
A primeira reação a um choque é sempre uma psicose
passageira, ou seja, uma ruptura com a realidade, por um lado
sob a forma de alucinação negativa (perda de consciência ou
desmaio histérico, vertigem), por outro, com frequência, sob a
forma de uma compensação alucinatória positiva imediata que
dá uma ilusão de prazer. (Ferenczi, 1992b [1930a], p. 64-65)
Se tinham confiança em si e no mundo externo, após um trauma de
sedução, as crianças se sentem incapazes de se adaptar à situação de
desprazer; suas tentativas de defesa se revelam débeis e ineficazes. A confiança
94
que as crianças têm no mundo externo também é balizada pelo amor que elas
esperam de seus pais e que não lhes é suficiente, na medida em que desejam
gratificações edípicas que por princípio não podem receber, adoecendo por
causa de desejos que não podem realizar. Neste sentido, tanto o desejo
insatisfeito quanto a experiência traumática sedutora adquirem valor patogênico.
Em Análises de crianças com adultos, Ferenczi (1931) afirma que, ao se
sentirem ameaçadas e com medo, as crianças procuram ajuda nas pessoas
mais velhas que lhes inspiram confiança. Se não encontram apoio, elas perdem
o prazer de viver e se auto-agridem. Desta forma, as experiências de sedução se
tornam traumáticas e patológicas para as crianças, não somente pela situação
violenta em si, como também pelo fato dos adultos – antes reconhecidos por
elas como protetores – não as acolherem e nem acreditarem em suas histórias.
O pior é realmente a negação, a afirmação de que não
aconteceu nada, (...) ou até mesmo ser espancado e
repreendido (...); é isso, sobretudo, o que torna o traumatismo
patogênico. (...) esses choques graves são superados, sem
amnésia nem sequelas neuróticas, se a mãe estiver presente,
com toda a sua compreensão, sua ternura e, o que é mais raro,
uma total sinceridade. (Ferenczi, 1992b [1931], p. 79-80)
Para Ferenczi (1931), nas experiências sexuais de sedução, os adultos
agem e reagem de maneira inadequada. Além disso, eles negam a verdade
sobre os fatos ocorridos com as crianças, desmentem algo que faz parte da
vivência real das crianças e, nesta medida, fracassam na tarefa de lhes oferecer
proteção, o que torna a sedução inegavelmente traumática e patológica.
Comentando os postulados ferenczianos da década de 1930, Jurandir
Freire Costa (1995) observa que, segundo Ferenczi, quando o adulto desmente
a experiência sexual, o sentido do acontecimento fica congelado para a criança e
só resta à criança se culpar, se auto-recriminar. Assim, “a ‘representação’ do
agressor é ‘negativamente alucinada’, e o que devia ser acusação, revolta,
transgressão, contestação ao outro etc. torna-se submissão e sintomas
corporais” (Costa, 1995 apud Pinheiro, 1995, p. 14).
Para fortalecer meus argumentos de que se trata de uma concepção do
trauma como desestruturante para o sujeito, apoio-me na observação de Costa
(1995) de que o trauma, como produto do desmentido do adulto à paixão com
que respondeu à demanda da criança por ternura, significa uma introjeção
impossível.
95
2.2.1
Introjeção: uma comunhão das bocas vazias
Existe um processo de diluição pelo qual a criança tenta atenuar a
tonalidade penosa de aspirações insatisfeitas ou impossíveis de satisfazer
(Ferenczi, 1988 [1909], p. 36). Esse processo de diluição possibilita à criança
gradativamente incluir em sua esfera de interesses partes do mundo exterior,
com vista a torná-lo objeto de fantasias conscientes e inconscientes. Assim, as
produções fantasísticas resultam do processo de introjeção do mundo exterior no
eu. Através deste novo processo pode-se estender ao mundo exterior o que
antes eram mecanismos primitivos auto-eróticos.
No texto O conceito de introjeção, Ferenczi (1912) amplia o alcance do
conceito de introjeção, quando afirma que ela é o processo que está no cerne da
constituição do eu, organizando e estruturando o funcionamento psíquico do
indivíduo.
Descrevi a introjeção como a extensão, ao mundo
exterior, do interesse, de origem auto-erótica, pela introdução
de objetos exteriores na esfera do eu. Insisti nesta ‘introdução’,
para sublinhar que considero todo amor objetal (...) como uma
extensão do eu ou introjeção, no indivíduo normal como no
neurótico (...). (Ferenczi, 1988 [1912], p. 61)
Tomando as coisas desta maneira, o amor do homem só sabe recair
sobre ele mesmo; gostar de um objeto significa adotá-lo como parte do próprio
psiquismo. A introjeção permite investir no mundo exterior a libido de origem
auto-erótica, pela introdução de objetos exteriores na esfera do eu. Essa
introdução de objetos em nosso eu é o mecanismo responsável por todo amor
de objeto, inclusive pela transferência analítica, e possibilita uma ampliação e
enriquecimento do eu. É um processo que está no cerne da constituição do
psiquismo.
Inicialmente a criança não separa estímulos externos de processo
psíquico, e experimenta suas próprias sensações e o mundo exterior a ela de
uma forma indiferenciada. Em um segundo momento, passa a poder diferenciá-
los, e gradativamente reconhece que há coisas que “permanecem a sua
disposição e submetidas ao seu querer” (Ferenczi, 1988 [1909], p. 37) e outras
rebeldes à sua vontade.
Quando a criança começa a ser capaz de excluir objetos de seu campo
perceptivo, discriminando suas vivências subjetivas de uma percepção objetiva,
96
ela efetua sua primeira operação projetiva, a projeção primitiva (Ferenczi, 1988
[1909], p. 37). Expulsar para o mundo exterior será, assim, mais um recurso
disponível para lidar com os afetos e sensações desagradáveis oriundos do
interior. Através da projeção primitiva, os afetos subjetivos se transformam em
sensações objetivas.
Contudo, uma maior ou menor parte do mundo exterior não se deixa
expulsar tão facilmente do eu e o desafia: “ama-me ou odeia-me, ‘combata-me
ou seja meu amigo’ ” (ibidem, p. 37). Ao se evidenciar como fonte necessária à
sobrevivência da criança, o mundo exterior se impõe ao eu, que, através da
introjeção, o absorve. Em busca de satisfação, o eu estende seu interesse ao
mundo exterior, constituindo-se assim a primeira introjeção, a introjeção primitiva
(ibidem, p. 37). A projeção primitiva e a introjeção primitiva são, portanto, formas
de o recém-nascido organizar aquilo que se passa a sua volta. A introjeção
implica, nas primeiras relações mãe-bebê, a internalização do Outro e o desejo
deste na esfera do eu.
Nos trabalhos de Ferenczi de 1909 e 1912, o processo de introjeção é
responsável pela constituição do aparelho psíquico, a partir da inscrição do
binômio prazer/desprazer. Ferenczi orienta toda a sua obra a partir da idéia de
que o psiquismo é concebido como capaz de introjetar; a introjeção é a própria
forma de funcionamento do aparelho psíquico, aquilo que o psiquismo pode e
sabe fazer (Pinheiro, 1995).
(...) o adulto, mais cedo ou mais tarde, será compreendido pela
criança como alguém dotado de uma vontade própria. A
criança experimentará, num momento ou outro, o desprazer
imposto por este objeto introjetado (o adulto) que não é
completamente controlável (...). Quando a criança começa a
não mais suportar o desprazer interno, ela deve se utilizar do
processo de projeção. O adulto tem aí uma função estruturante.
Pelo desarranjo que provoca, o processo de introjeção deixa de
ser satisfatório. (Pinheiro, 1995, p. 38)
Também interessados em trabalhar o mecanismo de introjeção, Abraham
e Törok (1972) criticam veementemente autores psicanalistas que haviam
perdido o sentido rigoroso e específico do conceito de introjeção introduzido por
Ferenczi nos textos de 1909 e 1912. Segundo eles, a confusão chegou a tal
ponto que se dá o nome de introjeção justamente a processos que se
caracterizam pela própria impossibilidade de introjetar. Esses autores trazem,
assim, importante contribuição para o esclarecimento metapsicológico do que
ocorre na patologia traumática, quando uma identificação com o agressor
constitui uma vicissitude que nada tem a ver com a introjeção.
97
Como a própria estrutura lexicológica do termo sustenta, intro-jetar é
jogar no interior. Abraham e Törok caracterizam essa noção ferencziana em três
pontos – extensão dos interesses auto-eróticos, alargamento do eu pela
eliminação dos recalcamentos e inclusão do objeto no eu (Abraham e Törok,
1995 [1972], p. 221) –, que não se restringem de forma alguma à posse do
objeto por incorporação. Acrescentam, por outro lado, que:
(...) a aspiração da introjeção não é da ordem da
compensação, mas da ordem do crescimento: ela busca
introduzir no eu, alargando-o e enriquecendo-o, a libido
inconsciente, anônima ou recalcada. Além disso, não se trata
de “introjetar” o objeto, (...) mas o conjunto das pulsões e de
suas vicissitudes cujo objeto é o próprio contexto e o mediador.
(Abraham e Törok, 1995 [1972], p. 222)
Para resolver esse problema de terminologia, Abraham e Törok propõem
chamar de incorporação a introjeção que não acontece, o que veio a facilitar a
compreensão das diferenças entre a noção ferencziana de 1909/1912 e a
mencionada posteriormente em Confusão de língua introjeção do agressor –,
como veremos mais adiante (Pinheiro, 1995, p. 52). A incorporação denuncia
uma falta no lugar em que uma introjeção devia ter ocorrido. Não passa de uma
fantasia que dá segurança ao eu, na medida em que perpetua um “prazer
clandestino”, tornando-o um “segredo intrapsíquico” (Abraham e Törok, 1995
[1972], p. 249). A incorporação aparece em substituição à introjeção impossível,
ao mesmo tempo reflexiva – pois se volta sobre si mesma – e regressiva – pois o
objeto que não pode ser metabolizado no eu permanece fixo, congelado, dentro
do eu. O texto ferencziano subentende que a força-motriz da introjeção não é
uma perda efetiva de um objeto amoroso, como a da incorporação.
O trauma da perda objetal induz uma resposta: é a
incorporação no eu. O objeto incorporado, ao qual o eu se
identifica parcialmente, torna possível uma certa temporização
enquanto que espera reequilibrar a economia, redistribuir os
investimentos. (Abraham e Törok, 1995 [1972], p. 220)
98
2.2.2
A identificação com o agressor
Anna Freud (1968 [1946]), no livro O eu e os mecanismos de defesa
50
,
aborda a identificação com o agressor como um mecanismo de defesa,
aproximando-se das idéias ferenczianas. Complementa as formulações
inacabadas de Ferenczi – posto que ele falece repentina e prematuramente –,
sobre a introjeção do agressor e suas possíveis articulações com a teoria do
trauma. Para Anna Freud, tal como para Ferenczi, a idéia de identificação com o
agressor está sempre presente no trauma.
Em O eu e os mecanismos de defesa, Anna Freud afirma que uma
criança introjeta características de um objeto que lhe causa angústia, como uma
maneira de assimilar a experiência desprazerosa que acabou de sofrer. Neste
sentido, o mecanismo de identificação, ou melhor, de introjeção, combina-se
com um outro mecanismo de defesa – mecanismo de projeção –, na medida em
que ao personificar o agressor – um pai que seduz sexualmente sua filha, por
exemplo – a criança consegue sair da situação passiva em que se achava para
uma situação ativa, transformando-se, pois, de pessoa ameaçada em pessoa
que ameaça. Anna Freud (1946) insiste que, já em Além do princípio do prazer,
Sigmund Freud (1920) demonstrava como uma criança transformava sua
experiência em jogo, repetindo-a – por mais desagradável que fosse –, com o
propósito de diminuir sua angústia. Em outras palavras, para Anna Freud, no
jogo do fort-da, S. Freud depreendeu a importância da transformação do papel
passivo em ativo – um jogo em que a criança repete ludicamente o
desaparecimento e o aparecimento da mãe, enunciando vocábulos que
representam seu afastamento e seu retorno, afastando e aproximando de si um
carretel que a representa, como que tentando dominar sua angústia frente à
ausência da mãe.
Para sustentar a hipótese de que a inversão de papéis de agredido e
agressor tem por objetivo, entre outras coisas, dominar o sentimento de
angústia, Anna Freud (1946) expõe alguns casos clínicos, como o de um rapaz
que, por se identificar com a ira do professor, copiava sua expressão quando
falava. Afirma que o rapaz tentava diminuir sua angústia através de caretas
involuntárias, na medida em que assim assimilava o objeto temido, se
50
Neste trabalho, como já foi dito anteriormente, optei por utilizar a tradução eu, isso e supereu no
lugar de ego, id e superego. O título do livro de Anna Freud, tal como traduzido pela Biblioteca
Universal Popular S.A., seria O ego e os mecanismos de defesa.
99
identificava com ele. Segundo Anna Freud, ao se identificar com a ira do
professor, o rapaz deu um importante passo no sentido da instauração do
supereu, pois, desta forma, internalizou a crítica e a agressividade de outras
pessoas – o professor – ao seu comportamento. O mecanismo de defesa
identificação com o agressor é um estágio importante para o desenvolvimento
normal do supereu.
Quando uma criança repete constantemente esse
processo de internalização e introjeta as qualidades dos que
são responsáveis pela sua criação, fazendo suas as
características e opiniões dessas pessoas, está fornecendo o
tempo todo material a partir do qual o supereu poderá adquirir
forma. (Freud, 1968 [1946], p. 128)
As crianças neste estágio, contudo, ainda não reconhecem o supereu, já
que a crítica internalizada não é imediatamente transformada em autocrítica.
Com efeito, a crítica internalizada encontra-se dissociada da atividade
repreensível da criança, dirigindo-se para o mundo externo. Através da projeção
da culpa, o mecanismo de identificação com o agressor é sucedido por um novo
processo de defesa, ou seja, “por um ataque ativo ao mundo exterior” (Freud,
1968 [1946], p. 128). Na leitura de Anna Freud, portanto, esse estágio de
desenvolvimento do eu, representado pela identificação com o agressor, é uma
fase preliminar de moralidade, posto que não existe autocrítica por parte da
criança.
Um eu que, com a ajuda do mecanismo de defesa da
projeção, evolui nesse sentido, introjeta as autoridades a cuja
crítica está exposto e incorpora-as no supereu. Está então apto
a projetar seus impulsos proibidos para o exterior. A sua
intolerância das outras pessoas é anterior à sua severidade
para consigo mesmo. Aprende o que é considerado censurável
mas protege-se, mediante esse mecanismo de defesa, da
desagradável autocrítica. (Freud, 1968 [1946], p. 131)
Quando o supereu internaliza a crítica e a transforma em autocrítica,
institui-se a moralidade. Deste modo, o supereu torna-se mais severo, enquanto
que o eu precisa suportar tanto a autocrítica quanto o sentimento de culpa, que
passam a ser incorporados ao aparelho psíquico da criança. Assim, a
identificação com o agressor pode ser considerada uma forma de defesa do eu
que, combinando os processos de introjeção e projeção, normaliza os esforços
provenientes do aparelho psíquico da criança no que concerne à diminuição do
sentimento de angústia. Neste sentido, a identificação com o agressor é
traumática, mas não tem um valor patológico, ao contrário do que postulou
Ferenczi, em seu trabalho de 1932. Anna Freud esclarece que este mecanismo
100
de defesa pode eventualmente se tornar patológico ao ser transportado para
situações da “vida de amor” (Freud, 1968 [1946], p. 132), bem como quando
representa um estágio intermediário no desenvolvimento da paranóia.
2.2.3
Fragmentação e clivagem do eu
Em cinco pequenas notas, redigidas entre 1920 e 1932 e publicadas
postumamente em 1934, com o título Reflexões sobre o trauma, Ferenczi
descreve o trauma como um choque violento, “equivalente à aniquilação do
sentimento de si, da capacidade de resistir, agir e pensar com vistas à defesa do
Si mesmo” (Ferenczi, 1992b (1934 [1932]), p. 109). Segundo essa perspectiva e
em conformidade com o que pensou Rank (1924) em O traumatismo do
nascimento, cabe aos pais e, posteriormente, sempre que for o caso, aos
analistas a tarefa de reconhecer – não desmentindo – o evento traumático,
viabilizando, pois, as condições para a regressão necessária, ao gerar um
ambiente propício para o acolhimento e a transformação do sofrimento (Coelho
Jr., 2003, p. 84). Contudo, Ferenczi (1934 [1932]) ressalta que, ao contrário
disso, o mais comum é os adultos agirem de outro modo, frente ao relato que
lhes é contado.
O comportamento dos adultos em relação à criança
que sofreu o traumatismo faz parte do modo de ação psíquica
do trauma. Eles dão, em geral, e num elevado grau, prova de
incompreensão aparente. A criança é punida, o que, entre
outras coisas, age também sobre a criança pela enorme
injustiça que representa. A expressão húngara que serve para
as crianças, ‘katonadolog’ (a sorte do soldado) exige da criança
um grau de heroísmo de que ela ainda não é capaz. Ou então
os adultos reagem com um silêncio de morte que torna a
criança tão ignorante quanto se lhe pede que seja.
(Ferenczi, 1992b (1934 [1932]), p. 111)
À primeira vista, a história contada por Ferenczi em seus textos dos anos
1930 é simples: primeiro, um adulto seduz sexualmente uma criança. Depois,
num segundo momento, a criança, buscando entender o que lhe aconteceu,
narra o evento a um outro adulto, que a desmente. Através desse enredo, em
Confusão de língua Ferenczi (1933 [1932]) valoriza a importância do trauma no
surgimento das neuroses – fator traumático que, segundo ele, é sexual.
No segundo momento, quando a sedução é negada pelos adultos – tanto
por aquele que seduziu a criança quanto pelo outro que interpretou a sedução
101
como falsa, ou seja, como uma fantasia infantil –, o trauma resulta numa cisão
do eu da criança. Em outras palavras, depois da intensidade insuportável do
vivido ocorre a desqualificação do que foi vivido. É assim que Ferenczi (1933
[1932]) constrói seu conceito de introjeção do agressor. O sentimento de culpa
que o pai ou a mãe deveriam sentir é introjetado pela criança, que assume a
responsabilidade pela experiência sexual – responsabilidade que a princípio não
é dela, mas do agente sedutor –, sentindo-se invadida nas defesas de seu eu.
Em Reflexões sobre o trauma, Ferenczi (1934 [1932]) relata o sonho de
uma paciente, com o objetivo de reconstruir as experiências sexuais traumáticas
que aconteceram quando ela ainda era uma criança e, por outra parte, a meu ver
esclarece sobre suas idéias acerca da repetição traumático-neurótica.
Uma pequena carroça é puxada por uma longa fila de
cavalos para transpor o pico de uma montanha, sem o menor
esforço, por assim dizer. À direita e à esquerda, o precipício; os
cavalos avançam a um certo ritmo. Não existe qualquer relação
entre o vigor dos cavalos e a facilidade infantil da tarefa.
Sentimento de prazer intenso. Brusca mudança de cena: uma
jovem (uma menina?) está deitada no fundo de uma canoa,
quase morta, muito pálida, um homem gigantesco debruçado
sobre ela, esmagando-lhe o rosto. Na canoa, por trás deles,
está um segundo homem em pé, um senhor que ela conhece
pessoalmente, e a menina tem vergonha de que esse homem
seja testemunha do evento. A canoa está cercada de picos
montanhosos extremamente altos e abruptos, de modo que ela
não pode ser vista de nenhuma parte, exceto de um aeroplano
que voa a uma distância incomensurável.
(Ferenczi, 1992b [1934 [1932] ], p. 114)
A primeira parte do sonho corresponde, segundo Ferenczi, a um sonho
de realização de desejo da paciente, já que ela fantasia ser uma criança que
mantém uma relação sexual incestuosa com o pai, o que lhes dá muito prazer:
“ambos se divertem muito” (ibidem, p. 115). No sonho, o vigor do cavalo
representa o pai, enquanto a facilidade infantil da tarefa remete à criança. Já a
segunda parte do mesmo sonho é, para Ferenczi, a reprodução de uma
experiência sexual infantil, na qual uma criança é seduzida por um homem,
enquanto um segundo homem – provavelmente o pai da menina – testemunha o
evento sem fazer nada para protegê-la. A experiência traumática de sedução,
que deve ter acontecido em segredo, é transposta para a imagem onírica “ela
não pode ser vista de nenhuma parte” (ibidem, p. 114).
Na opinião de Ferenczi (1934 [1932]), os detalhes desse sonho são
representações de uma experiência sexual traumáticas demais para serem
lembradas no estado vígil, sendo reproduzidas em sonho. Ferenczi sustenta que
a forma e o conteúdo dos sonhos são tentativas de resolução de acontecimentos
102
traumáticos, já que há uma diminuição da censura e do sentido crítico, assim
como uma predominância do princípio do prazer. Desta forma, Ferenczi afirma
que o mecanismo do sonho tem duas funções distintas, a saber, a função de
realização de desejo – tal como Freud a descreve em sua obra de 1900, A
interpretação de sonhos –, e sua função traumatolítica – ou seja, durante o
estado de sono, as pessoas tendem a repetir, em sonhos, situações traumáticas
não resolvidas e que aspiram por uma resolução.
(...) torna-se cada vez mais evidente que aquilo que chamamos
os restos diurnos (e podemos acrescentar: os restos da vida)
são, de fato, sintomas de repetição de traumas; (...) a tendência
à repetição na neurose traumática também tem uma função
intrinsecamente útil: ela vai conduzir o trauma a uma resolução,
se possível, definitiva (...).
(Ferenczi, 1992b [1934 [1932] ], p. 112)
Na opinião de Ferenczi (1933 [1932]), a criança pode tornar-se como um
adulto, após a experiência traumática de sedução. Essa maturidade adquirida às
pressas se deve às tentativas da criança de superar o sofrimento decorrente da
agressão.
A criança que sofreu uma agressão sexual pode, de
súbito, sob a pressão da urgência traumática, manifestar todas
as emoções de um adulto maduro, as faculdades potenciais
para o casamento, a paternidade, a maternidade, faculdades
virtualmente pré-formadas nela. Nesse caso, pode-se falar (...)
de progressão traumática (patológica) ou de prematuração
(patológica). Pensa-se nos frutos que ficam maduros e
saborosos depressa demais, quando o bico de um pássaro os
fere, e na maturidade apressada de um fruto bichado.
(Ferenczi, 1992b [1933 [1932] ], p. 104)
Mas essa é uma das figuras que pode assumir a fragmentação do eu, a
do bebê sábio. A clivagem do eu é a resposta ao trauma, seja lá que forma
assuma: “o agredido, cujas forças são vencidas, abandona-se de certo modo ao
seu destino inelutável e retira-se para fora de si mesmo, a fim de observar o
evento traumático de uma longa distância” (Ferenczi, 1990 [1985 [1932] ], p. 19).
Digamos que o eu está diretamente envolvido no trauma, e que é o
campo em que se busca soluções ou arranjos defensivos para os danos
sofridos.
103
2.2.4
Confissões do Diário
Um ano antes de escrever Confusão de língua, Ferenczi (1931) começa a
confiar ao papel suas idéias a respeito do trauma psíquico, aproximando
diferentes situações, tais como aquelas em que uma criança é traumatizada pela
hipocrisia dos adultos, aquelas em que um doente mental se vê traumatizado
pela própria sociedade ou, então, aquelas em que um paciente tem seus
traumas antigos reanimados pela rigidez técnica do analista. No tocante à
questão da “hipocrisia profissional” (Ferenczi, 1990 [1985 [1932] ], p. 19),
ressalto que Ferenczi acreditava piamente que este era um ponto técnico que se
mostrava intimamente ligado ao problema do trauma, o que o motivou a investir
numa proposta como a da análise mútua
51
. O repúdio dos sentimentos
contratransferenciais desconfortáveis a que os analistas se permitiam deviam ser
considerados como práticas traumáticas infligidas aos pacientes, por reavivarem
traumas antigos que, por princípio, caberia à análise curar. Se o analista não
reconhece o impacto do trauma no próprio espaço transferencial, estará ele
repetindo o trauma original.
Por suas idéias inovadoras no que concerne à prática analítica e à
técnica, Ferenczi passou a ser conhecido pelos próprios colegas de profissão
como o analista de casos difíceis, recebendo em seu consultório psicóticos,
casos-limites e grandes somatizadores, clientes que ninguém queria atender. O
enfant terrible da psicanálise interessou-se pela teoria do espaço analítico e do
lugar do analista no tratamento. Para dar conta de uma clínica em que se
destacava a desestruturação psíquica, trabalhou vivamente sua teoria do
trauma. Para ratificar meu raciocínio sobre o assunto, faço minhas as palavras
de Pinheiro:
A resposta para esses pacientes difíceis Ferenczi foi
encontrar na sua teoria do trauma, trauma desestruturante e,
portanto, patológico.
Ferenczi questionou esse corpo teórico com o próprio
instrumental psicanalítico, tentou desvendar seus enigmas,
vislumbrou questões avançadas para uma época em que os
recursos técnicos disponíveis para solucioná-las eram
escassos. (Pinheiro, 1995, p. 121)
Das anotações a que me referi há pouco, Ferenczi publica um outro
trabalho, em 1932: o Diário Clínico/ Sándor Ferenczi. Nele, liga o trauma à
51
Não me alongarei neste trabalho acerca da idéia ferencziana sobre análise mútua, que é
extensamente trabalhada no Diário Clínico / Sándor Ferenczi (1985 [1932]).
104
clivagem do eu: “o agredido, cujas forças são vencidas, abandona-se de certo
modo ao seu destino inelutável e retira-se para fora de si mesmo, a fim de
observar o evento traumático de uma longa distância” (Ferenczi, 1990 [1985
[1932] ], p. 19).
Ferenczi defende a realidade do trauma, dedicando-se a elaborar, no
Diário, uma teoria do trauma, de seus efeitos e de seu tratamento. São idéias
originais, de natureza a instigar reflexões aos psicanalistas interessados, desde
o momento em que, sensibilizado com os problemas que se desenrolam nos
neuróticos em momentos de perigo de morte, biológica ou psíquica, Ferenczi
propõe que se reavive a teoria do trauma, aparentemente descartada por Freud,
após 1897. Assim, quer se aceite ou não a verdade dos traumas sexuais infantis,
esse é um debate válido e importante.
Alinhando-se à minha opinião, Masson (1984) acredita que as novas
observações de Ferenczi sobre o trauma marcam uma mudança nos rumos da
psicanálise nos anos 1930, na medida em que demonstram aos círculos
psicanalíticos como a psicanálise se desenvolveria caso Freud não tivesse
abandonado a neurotica em 1897. Masson (1984) comenta que Ferenczi se
arriscou inclusive a perder sua posição frente à comunidade psicanalítica para
defender suas postulações sobre os casos de traumas de sedução a que tantas
mulheres haviam sido submetidas na infância.
No Diário Clínico, podem ser encontrados os depoimentos das crises de
relacionamento de Ferenczi com Freud, na década de 1930. Em todas as
análises registradas nele, a recorrência de relatos de experiências sexuais
traumáticas por pacientes de Ferenczi é o assunto que mais se destaca.
Os constantes atrasos na publicação dos textos escritos por Ferenczi
depois de 1929 mostram as resistências de psicanalistas influentes à divulgação
das idéias ferenczianas sobre os traumas de sedução, mesmo após a morte
dele
em 1933. Jones, por exemplo, na época em que era editor da International
Psychoanalytical Library, quis excluir das edições inglesas todos os textos de
Ferenczi entre 1929 e 1933, e, em 1957, publicou o volume III da biografia de
Freud, que contém críticas depreciativas a Ferenczi. Tantas resistências
contribuíram para que o Diário continuasse conhecido somente por um círculo
muito restrito de psicanalistas
52
. Após a morte de Ferenczi, a própria Sra.
Ferenczi foi aconselhada pelo casal de psicanalistas Alice e Michel Balint a
52
Chamo a atenção para o fato de que, apesar de ter sido redigido por Ferenczi entre janeiro e
outubro de 1932, o Diário só foi publicado em 1985.
105
aguardar que as repercussões imediatas das desavenças entre Freud e Ferenczi
se atenuassem. Sobre o assunto, Balint comenta no prefácio do Diário Clínico:
(...) realmente não era um clima favorável à publicação do
Diário, com suas numerosas idéias originais, de natureza a
instigar a reflexão, com seus erros e seus exageros, suas
intuições profundas, mas frequentemente inquietantes.
(Balint, 1969, p. 3 apud Ferenczi, 1990 [1985 [1932] ] )
Também por suas inovações técnicas, que eram no mínimo ousadas para
a época – como a proposta ferencziana da análise mútua, por exemplo –, no
final de sua vida Ferenczi foi considerado psicótico. Suas posições teóricas
sobre a recorrência das experiências sexuais traumáticas e suas implicações
foram questionadas, o que justificou as resistências às publicações dos trabalhos
posteriores a 1929.
Pelos mesmos motivos, foi necessário ainda mais tempo para que a
Correspondência Freud-Ferenczi fosse publicada pela primeira vez. Nela
existem algumas cartas que marcam as discordâncias entre os dois autores
sobre a neurotica.
É inegável que nos últimos anos você se isolou de
novo, coisa que havia superado tão brilhantemente quando era
o líder e o mestre de Budapeste. (...) você deve deixar a ilha de
sonho na qual está vivendo com os seus filhos de fantasia, e
de novo tomar parte na luta dos homens. (Carta Freud-Ferenczi
de 12/05/1932 apud Masson, 1984, p. 158)
A solicitação de que você não publicasse o ensaio
antes de um ano foi feita em primeiro lugar no seu interesse.
Não queria abandonar a esperança de que você viria a
reconhecer em trabalhos posteriores a inexatidão técnica de
suas conclusões. (...) Não acredito mais que você irá se
corrigir, como me corrigi há uma geração. (Carta Freud-
Ferenczi de 02/10/1932 apud Masson, 1984, p. 162)
Entretanto, há registros nesta Correspondência Freud-Ferenczi sobre o
trauma que são bem ilustrativos. Reproduzo parte de uma dessas cartas, em
que existe a primeira menção a proposições que Ferenczi aborda no Diário:
Em todos os casos onde penetrei em profundidade
suficiente, encontrei as bases traumáticas histéricas da doença.
(...)
A opinião crítica, que durante esse tempo foi-se criando
em mim, é que a psicanálise pratica de um modo
excessivamente unilateral análises de neuroses obsessivas e
de caráter, isto é, uma psicologia do Ego, negligenciando a
base orgânico-histérica da análise; a causa disso reside na
superestimação da fantasia e na subestimação da realidade
traumática na patogênese. (Carta Ferenczi-Freud de
25/12/1929 apud Ferenczi, 1990 [1985 [1932] ], p. 12)
106
2.3
O estranho do trauma
A imagem das consequências do trauma para uma criança é importante,
na medida em que coloca o problema de um estranho que é ao mesmo tempo
familiar, isto é, do Unheimlich (referindo-me a Freud, em 1919b), como
expressão decisiva do trauma. Através de uma concepção traumática da
constituição da subjetividade, Ferenczi valoriza a existência de falhas na relação
entre as pessoas, reconhecendo que atitudes amorosas de adultos para com
crianças são simultaneamente traumatizantes, já que muitas vezes essas
crianças não se encontram psíquica nem somaticamente preparadas para
responder aos estímulos nelas despertados, não se situando com clareza nas
cenas de sedução.
Sobre isso, Coelho Jr. (2003) afirma que não há como se dissociar o que
seria previamente atitude familiar amorosa reconhecível, que protege e acolhe,
de uma atitude traumatizante, que violenta e fragmenta o psiquismo da criança:
“Será que há algo mais traumático do que essa justaposição indissolúvel do
estranho e do familiar, do absoluto terror com aquilo que sempre representou o
absoluto aconchego e acolhimento familiar?” (Coelho Jr., 2003, p. 80).
Acompanhando esse raciocínio, a experiência traumática,
simultaneamente familiar e estranha, exige a presença de duas pessoas pelo
menos – cujo protótipo é um adulto e uma criança –, que geram, através de sua
relação, sensações inaugurais de familiaridade e de estranheza. Fica então
como questão se, numa perspectiva como a de Ferenczi, a situação traumática
inicial é “provocada por uma separação da figura e do ambiente protetor ou
provocada pelo impacto de uma realidade nova, não passível de ser assimilada
plenamente” (ibidem, p. 81). Em sua opinião, a simultaneidade do familiar e do
estranho no trauma produz um excesso emocional que não é assimilável pelo
aparelho psíquico.
(...) reconheço a situação como humana e pertencente ao meu
mundo, mas (...) me vejo despossuído dos recursos que
permitiriam uma plena assimilação e metabolização do que vivi.
É mais do que uma impossibilidade de simbolização, de uma
assimilação através da inclusão representacional da
experiência em meu mundo mental. Não há possibilidade de
assimilar na carne, porque justamente não me assemelho
plenamente ao vivido e por isso não tenho como assimilá-lo.
Mas mantém-se como traumático, por outro lado, porque em
algo do vivido reconheço uma parte que também sou eu, algo
em alguma medida familiar. (Coelho Jr., 2003, p. 76)
107
Uma discussão mais aprofundada sobre as possíveis ligações entre o
trauma e a simultaneidade do familiar e do estranho, em Coelho Jr. (2003),
requer uma retomada da palavra alemã Unheimlich, tal como Freud (1919b) a
apresentou em O estranho. Nesse texto, Freud sustenta que o Unheimlich tem
relação com o que é assustador, embora remeta também ao que é conhecido há
muito tempo como familiar. Sobre o assunto, complementa:
A palavra alemã ‘Unheimlich’ é obviamente o oposto de
Hiemlich’ [‘doméstico’], ‘Heimisch’ [‘nativo’] – o oposto do que é
familiar; e somos tentados a concluir que aquilo que é
‘estranho’ é assustador precisamente porque não’ é conhecido
e familiar. (...) contudo, nem tudo o que é novo e não familiar é
assustador; a relação não pode ser invertida. Só podemos
dizer que aquilo que é novo pode tornar-se facilmente
assustador e estranho; algumas novidades são assustadoras,
mas de modo algum todas elas. Algo tem que ser acrescentado
ao que é novo e não familiar, para torná-lo estranho.
(Freud, 1976 [1919b], p. 277)
Na leitura freudiana, a palavra Heimlich exibe uma conotação que se
aproxima ao seu oposto, Unheimlich, na medida em que Heimlich também
significa aquilo que é oculto e perigoso, sendo inacessível ao conhecimento
(ibidem, p. 282-283). Em outras palavras, “Unheimlich é, de um modo ou de
outro, uma subespécie de Heimlich” (ibidem, p. 283). Apoiando-se nisso, Freud
sustenta que o estranho provém de algo familiar que foi recalcado e que, por um
motivo ou por outro, retorna.
53
Nesse caso, o prefixo ‘Un’ sinaliza o recalque.
Sobre a idéia de que o estranho pode estar referido a uma alienação que
ocorre em consequência de um processo de recalque, Freud (1919b) ressalta:
54
(...) o uso linguístico estendeu das Heimliche (...) para o seu
oposto, das Unheimliche; pois esse estranho não é nada novo
ou alheio, porém algo que é familiar e há muito estabelecido na
mente, e que somente se alienou desta através do recalque.
Essa referência ao fator do recalque permite-nos (...)
compreender a definição de Schelling [ibidem, p. 281] do
estranho como algo que deveria ter permanecido oculto mas
veio à luz. (Freud, 1976 [1919b], p. 301)
O trauma psíquico pode estar, portanto, ligado a um sentimento ambivalente de
estranheza e familiaridade, tal como Freud (1919b) e, bem mais recentemente,
Coelho Jr. (2003) propuseram.
53
Entretanto, numa perspectiva freudiana (1919b), nem tudo o que evoca desejos recalcados e
modos superados de pensamento é por causa disso estranho.
54
Neste estudo, preferi substituir a palavra repressão, tal como traduzida pela Imago Editora, por
recalque.
108
2.4
Novas bases do trauma: a teoria da sedução generalizada
Até aqui a fecundidade da idéia do trauma foi abordada, num primeiro
momento, em Freud, para depois ser retomada em Ferenczi, reforçando as
concepções presentes na obra freudiana e desenvolvendo o papel traumático do
desmentido em Ferenczi. Agora, apresentarei, em linhas gerais, a abordagem de
Laplanche sobre a questão do trauma, com seus novos fundamentos para uma
teoria da sedução generalizada.
Laplanche (1987) inicia sua pesquisa sobre trauma a partir das
elaborações de Freud (até 1897) sobre trauma e sedução, assim como através
dos ensaios de Ferenczi escritos após 1928. Partindo da teoria da sedução
restrita (no caso, a neurotica freudiana) para dessa forma introduzir uma nova
teoria, a teoria da sedução generalizada, Laplanche propõe uma nova
concepção de trauma, que perde o caráter de abuso sexual, desorganizador e
patológico, passando a ter um outro valor bem mais amplo, enquanto
necessário, estruturante, não intencional, fundamental e originário na
constituição psíquica do sujeito.
Retomando o trauma de sedução presente nos primeiros trabalhos
freudianos (até 1897), Laplanche (1987, 1988c)
55
define a sedução restrita e a
sedução generalizada. Para tanto, o autor irá retomar quatro características
essenciais da teoria da sedução restrita, abandonada por Freud em 1897 – o
adulto enquanto agente obrigatório da sedução, a sedução infantil, a passividade
essencial da criança e o encadeamento das cenas.
A primeira característica da teoria da sedução restrita o adulto enquanto
agente obrigatório da sedução – surgiu a partir da releitura das anamneses dos
pacientes de Freud, já que nelas, mesmo que uma criança fosse posteriormente
seduzida por uma criança mais velha, o primeiro trauma de sedução sempre
acontecia com um adulto. Laplanche (1988c) relembra a existência do caráter
perverso do pai da histérica, na teoria freudiana da década de 1890. O adulto
molestador não era qualquer um; era alguém conhecido da criança, assim como
um pai – um pai que apresentava, no entanto, características perversas e agia
de maneira incestuosa em relação à criança. O adulto molestador era visto por
55
Provavelmente, nem todos os ensaios do livro Teoria da sedução generalizada e outros ensaios
(Laplanche, 1988) aqui utilizados foram escritos e publicados em 1988. Contudo, já que a
Editora Artes Médicas não incluiu as datas originais nos artigos, decidi fazer referências aos
textos, ao longo do trabalho, como se todos tivessem sido editados pela primeira vez no ano de
1988.
109
Freud, até o abandono da neurotica, como um desviante quanto ao objeto e
quanto à finalidade.
O adulto incriminado por Freud (...) certamente não era
qualquer um. Era um adulto ‘perverso’ e isto no duplo sentido
que vai ser estabelecido, mais tarde, nos Três ensaios: desvio
quanto ao objeto, pois que é um pedófilo, até mesmo
incestuoso, desvio quanto ao fim, pois ‘não se pode esperar de
pessoas que não têm nenhum escrúpulo em satisfazer suas
necessidades sexuais através de crianças que se preocupem
com sutilezas na maneira de obter esta satisfação’.
(Laplanche, 1988c, p. 109-110)
Laplanche marca a presença de um “caráter ‘grotesco’, ‘repugnante’,
‘impróprio’ e ‘trágico’ das relações sexuais num ‘par desigualmente reunido’”
(Laplanche, 1988 [1987], p. 114), ao resgatar o pensamento freudiano a respeito
do caráter perverso do agente da sedução. As cenas descritas por Freud são
traumáticas, na medida em que denotam agressão, irrupção, intrusão e violência
(ibidem, p. 116).
A sedução restrita – ou, como também Laplanche (1988c) chama, a
sedução infantil –, por sua vez, é concretizada, segundo o autor, em cenas de
sedução que podem ser reencontradas, rememoradas, reconstruídas através da
análise. Laplanche afirma que, nessas cenas, a criança se apresenta de forma
imatura, não compreendendo o que lhe acontece; ela ainda está despreparada –
em níveis somático, afetivo, psíquico e intelectual – para as experiências de
sedução e, sobretudo, para o confronto com a sexualidade adulta.
Num primeiro tempo, a criança se situa numa etapa anterior à irrupção da
sexualidade, numa etapa pré-sexual
56
; só depois, já na puberdade, a criança
pode vir a resignificar o que lhe aconteceu numa experiência sexual prematura.
Assim, tal como em Freud, para Laplanche a experiência sedutora só se torna
traumática mais tarde, ao tomar a significação sexual. Após a puberdade, a
experiência sexual desenvolve, como lembrança, uma ação patogênica.
A imaturidade, a ‘impotência sexual inerente às
crianças’ é assim avaliada por Freud em relação a uma espécie
de escala de desenvolvimento, comportando etapas, níveis:
nível de reação somática, nível de ressonância afetiva, nível de
compreensão psíquica, tudo isto fazendo apenas um: é na sua
totalidade psicossomático-afetiva que a criança pode ou não
integrar adequadamente o que lhe acontece.
(Laplanche, 1988c, p. 109)
56
Coutinho (1994, p. 81) lembra que “pré-sexual é tomado por Freud num duplo sentido: absoluto,
isto é, antes da irrupção da sexualidade; e relativo, ou melhor, numa etapa anterior da
sexualidade infantil”.
110
Por causa de seu despreparo, a criança assume uma posição passiva
frente às insinuações e iniciativas sexuais do adulto. Sentimentos de angústia e
aflição não permitem que a criança aja, portanto, de maneira ativa em relação à
cena, que adquire, assim, contornos de agressão, que irrompe no eu da criança,
ameaçando-o de transbordamento e, sobretudo, de aniquilamento.
No que diz respeito ao terceiro elemento da teoria da sedução restrita,
isto é, a passividade essencial da criança, Laplanche sugere que a passividade
que se percebe numa situação de abuso sexual não tem relação com uma
passividade comportamental ou gestual, mas está ligada à questão da
inadequação da criança para compreender, isto é, simbolizar a mensagem que
lhe é proposta. Assim, a criança que assiste à cena originária – observação do
coito parental, no caso do Homem dos lobos – é tão passiva quanto aquela que
é sexualmente seduzida pelos adultos.
A outra característica essencial da teoria da sedução restritao
encadeamento de cenas – está ligada às relações existentes entre vários
acontecimentos, ou melhor, entre várias cenas traumáticas de sedução, que se
encontram articuladas ponto a ponto, através de princípios complexos, tais como
contiguidade, semelhança e diferença, já que as cenas simbolizam-se umas às
outras. Deste modo, uma cena remete a uma segunda, mais antiga que a
primeira, que, por sua vez, remete a uma terceira e assim sucessivamente.
Laplanche afirma que a busca freudiana por uma cena originária – a cena
primordial – configurou-se como um dos pontos vulneráveis da neurotica,
contribuindo para o abandono da teoria em 1897.
Assim, a sedução restrita ou sedução infantil, que coincide com a
concepção de Freud antes do abandono da neurotica em 1897, pode ser
definida como constando de cenas reais ocorridas na infância e vivenciadas por
uma criança, ainda imatura e indefesa, de forma passiva. O adulto do qual
muitas vezes essa criança abusada depende age, pois, de maneira violenta e
intrusiva. Essas cenas reais traumatizantes, que despertam uma quantidade de
excitação exacerbada e incontornável, poderão ou não ser encontradas,
reconstruídas, recordadas graças ao método analítico ou através de sugestões
hipnóticas.
A sedução restrita se desenvolve para Laplanche (1988c) em três
aspectos complementares – temporal, tópico e tradutivo –, que se aplicam ao
que ele denomina de sedução infantil, sedução precoce e sedução originária.
Para ele, o termo sedução infantil está referido a um primeiro Freud, com sua
teoria da neurotica, em que o agente sedutor é descrito como o pai da histérica
111
(Laplanche, 1988 [1987], p. 115). A sedução precoce, por outro lado, refere-se a
um período de quase 70 anos, entre 1897 e 1964/67, em que ocorre uma
espécie de silenciamento e até, em certa medida, de censura no que concerne
às questões relativas ao pensamento freudiano, segundo Laplanche (1988
[1987], p. 122-123).
Se consultarmos o Índice dos Escritos Psicanalíticos de
Grinstein, que cobre exatamente este período, até 1969, somos
remetidos, pela ‘palavra-chave’: ‘Sedução’, em tudo e para tudo
para quatro artigos de autores ilustremente desconhecimentos
e publicados nas revistas não-psicanalíticas. Um deles, que
seria interessante reaver, intitula-se ‘A teoria da sedução’ de
Freud: uma reconstrução, e apareceu num jornal pelo menos
especializado: o Journal d’Histoire des Sciences du
Comportement. Os outros, segundo os títulos, podem
considerar-se como pura curiosidade psicopatológica, porque
levantam questões muito particulares como a sedução das
crianças pelos familiares, ou a influência da sedução na
criminalidade. (Laplanche, 1988 [1987], p. 123)
Contudo, se Laplanche afirma no capítulo Fundamentos: para a teoria da
sedução generalizada que a sedução como teoria experimenta em Freud um
período de recalcamento teórico, por outro lado, paradoxalmente Laplanche
também sustenta que, no início dos anos 1900, o pai perverso, antes o
personagem mais importante da sedução infantil, cede seu lugar para a mãe,
passando a ser a sedutora por excelência, essencialmente na relação pré-
edipiana, no que Laplanche chama de sedução precoce (ibidem, p. 126).
Finalmente, o postulado laplancheano da sedução originária, que surge
somente após 1964/67, veicula tanto uma idéia de que existem significantes
enigmáticos, cuja origem é inconsciente, quanto a idéia de que estão incluídas
na sedução originária situações que em nada dependem de um atentado sexual
paterno ou da sedução precoce pela mãe. Nas palavras de Laplanche: “Os
cuidados ‘naturais’ ou o atentado ‘paternal’ só são sedutores porque não são
transparentes, mas opacos, veiculando o enigmático” (ibidem, p. 134).
O aspecto temporal da sedução infantil, segundo Laplanche (1988c),
corresponde ao a posteriori, que acompanha a concepção do trauma em dois
tempos. Há um primeiro tempo, em que a lembrança não é patológica, nem
traumatizante. Por outro lado, há ainda um segundo tempo, em que uma nova
cena se associa à lembrança da primeira cena, que se torna autotraumática. Se
o primeiro tempo do trauma é que dá sustento ao segundo, já o segundo tempo
do trauma é que resignifica o primeiro. Em outras palavras, é a própria
lembrança, e não a segunda cena, que é autotraumatizante.
112
A teoria em dois tempos mostra que todo trauma só adquire contornos
patogênicos, na visada de Laplanche (1988 [1987]), porque a ação em si se
torna autotraumática. Para esse autor, o verdadeiro trauma então é um
autotrauma que o sujeito se inflige por rememoração, já que a própria lembrança
da primeira cena funciona como fonte de energia libidinal interna
autotraumatizante.
Deixada à espera, a recordação não é em si mesma
patógena nem traumatizante. Só lhe advém com sua
revivescência, por ocasião de uma segunda cena que encontra
ressonância associativa com a primeira. Mas, quanto às novas
possibilidades de reação do sujeito, é a própria recordação, e
não a nova cena, que vai funcionar como fonte de energia
autotraumatizante. De tal maneira esta teoria de dois tempos
mostra que todo o traumatismo não tem ação patógena, mas
que se torna autotraumático. (Laplanche, 1988 [1987], p. 118)
Desse modo, o tempo do autotraumatismo não tem a sua saída numa
elaboração normal, mas numa defesa patológica e isto por razões que derivam
do aspecto tópico da teoria (ibidem, p. 118). Neste sentido, só então no segundo
tempo do trauma é que o sujeito pode compreender o que se passa com ele,
assim como implementar o recalque.
O aspecto tópico da teoria da sedução infantil – enquanto um conflito
entre o eu e o outro – deriva, num primeiro tempo, de uma verdadeira estratégia
de ataque externo vindo do adulto (ibidem, p. 118-119). O eu não consegue
ainda organizar suas defesas para dessa forma enfrentar o evento que se torna,
por causa disso, traumatogênico. Já num segundo tempo, o aspecto tópico da
teoria da sedução infantil é marcado pelo ataque interno de objetos
57
, ao mesmo
tempo estimulantes e perigosos para o eu da criança, que não os consegue
simbolizar (ibidem, p. 106 e p. 119).
A tópica é aqui terreno para uma verdadeira estratégia,
no sentido guerreiro do termo, com movimentos de ataque e de
contra-ataque. (...) na altura do primeiro ataque, o ataque
externo vindo do adulto, a primeira cena sexual, [o indivíduo]
não tem meios de defesa adequada, (...) e quando muito pode
bloquear o inimigo no terreno, enquistar a recordação, mas não
recalcá-la. Num segundo tempo, (...) tem perfeitamente meios
para (...) compreender o que se passa, mas encontra-se
voltado para uma verdadeira guerra estratégica, agredido na
face desarmada, isto é, interiormente, atacado por uma
recordação e não por um acontecimento. Evidentemente, entre
ambos há que fazer intervir (...) o aparecimento do eu.
(Laplanche, 1988 [1987], p. 119)
57
Estes objetos a que nos referimos aqui correspondem, para Laplanche após 1964/67, aos
significantes enigmáticos, na sedução originária.
113
No artigo Sedução generalizada e primazia do sexual, ao comentar o
aspecto tópico da sedução infantil concebido por Laplanche, Paulo de Carvalho
Ribeiro (1996) ressalta que a idéia de contra-ataque defensivo por parte da
criança – um ataque interno desencadeado por alguma recordação
autotraumatizante – cedeu espaço para a fantasia, “subtraindo assim ao
inconsciente seu lastro de realidade advinda da mensagem do outro e
terminando por encontrar (...) nas excitações de origem orgânica, o único índice
de realidade onde apoiar os pés da fantasia” (Ribeiro, 1996, p. 51).
Remetendo-se à hipótese da dupla inscrição
58
, presente no esquema
apresentado na Carta Freud-Fliess de 06/12/1896 (Carta 52), Laplanche (1988c)
afirma que existe um terceiro aspecto da teoria da sedução infantilaspecto
verbal e tradutivo –, que, diferentemente dos aspectos temporal e tópico,
permeia a questão da linguagem e dos modos de comunicação. Laplanche
desvela um modelo tradutivo da constituição subjetiva, segundo o qual o
aparelho psíquico se constituía por estratificação, em que os traços de memória
se submetiam, de tempos em tempos, a uma retranscrição, de acordo com
novas circunstâncias. Conforme este esquema, cabia a cada sistema uma
inscrição de uma mesma representação, inscrição que se diferenciava pelos
modos de funcionamento específicos de cada sistema. Neste sentido, a memória
estava presente de uma forma múltipla e as inscrições sucessivas marcavam o
mecanismo psíquico em diferentes etapas da vida, sendo que entre estas
épocas deveria necessariamente se efetuar uma tradução dos traços mnêmicos.
Dito de outra forma, a passagem de um sistema para o outro deveria ser
operada por uma tradução. O aspecto tradutivo, no qual a teoria da sedução
infantil se desenvolve, coloca em questão a possibilidade de se processar a cena
pela sucessão de inscrições, reinscrições e traduções. Assim, ao comentar a
teoria laplancheana do trauma, Utichel assinala que “embora o recalcamento
possa ser visto como ‘uma falha parcial de tradução’, ele também é uma forma
exitosa que permite a entrada e a integração das representações do
acontecimento no aparelho psíquico, contrapondo-se, em parte, ao impacto do
trauma” (Utichel, 2001, p. 104).
A partir de sua própria contribuição, isto é, da construção e utilização
desses três aspectos, Laplanche (1988c) apresenta pontos positivos e negativos
58
A hipótese da dupla inscrição baseia-se na existência de uma separação tópica do psiquismo
inconsciente/pré-consciente/consciente – e admite a possibilidade de uma mesma
representação estar presente em dois locais do aparelho psíquico, ao mesmo tempo. Segundo
esta hipótese, uma representação pode avançar de um lugar para outro, sem abandonar sua
primeira inscrição.
114
da teoria da sedução infantil. Para ele, a força da teoria da sedução infantil
reside:
1) na trama fechada que liga a teoria aos dados tirados da
experiência analítica; 2) no fato de pôr em jogo, já de forma
rigorosa e doravante intransponível, estes três fatores da
racionalidade analítica – temporalidade do après-coup,
localização tópica subjetiva, laços tradutores ou interpretativos
entre os cenários e as cenas; 3) na capacidade explicativa do
modelo, amplamente transponível e extensível no campo da
psicopatologia; 4) na capacidade evolutiva do modelo: o que
designamos de passagem, como ‘esboços’ para
desenvolvimentos futuros. (Laplanche, 1988c, p. 112-113)
Laplanche insiste que a essência da sedução não é questionada na
sedução infantil, na medida em que a concepção freudiana se limita ao nível
mais manifesto da psicopatologia, o das relações perversas entre adultos e
crianças (ibidem, p. 113). Assim, o modelo da teoria da sedução infantil explica
somente a psicopatologia, incluindo num único conjunto a defesa patológica, o
recalcamento e o inconsciente. Laplanche afirma que são pontos fracos da teoria
da sedução infantil: o postulado segundo o qual, em todos os casos de sedução,
os pais deveriam ser descritos como pervertidos; a incessante busca por uma
cena traumática de sedução mais e mais remota; além da importância quase
exclusiva que Freud atribui à puberdade – enquanto uma fronteira entre todas as
outras fases pelas quais o sujeito passa.
A fragilidade radica em deixar intacta a crença de que o
trauma se produz pela responsabilidade única de uma cena
real que deve ser reencontrada, por um acontecimento factual
a quem cabe todo o sentido do trauma e por conduzir a uma
tarefa infinita, desviante (em relação à concepção da realidade
psíquica e dos inúmeros traumas) e decepcionante (pela
dificuldade de encontrar as múltiplas cenas).
(Utichel, 2001, p. 104)
Segundo Laplanche, com exceção das produções teóricas de Freud e
Ferenczi, o tema sedução encontra-se recalcado, entre 1897 e 1964, na
literatura psicanalítica. Durante esta época, artigos publicados em revistas não-
psicanalíticas atuavam como censura e repúdio a Freud. Esse período
intermediário, um período de 70 anos, que coincide com o abandono da
neurotica freudiana em 1897 e antecede o período em que Laplanche apresenta,
pela primeira vez, o que chamaria, após 1964/67, de teoria da sedução
generalizada, passa a ser nomeado por Laplanche (1987), assim, de período de
recalcamento teórico da sedução precoce.
115
Os aspectos temporal, tópico e tradutivo da teoria se deslocam, no
período de recalcamento. No que se refere ao aspecto temporal, a idéia de a
posteriori permanece como uma categoria importante para o entendimento da
sedução em psicanálise, comparecendo, por exemplo, no caso História de uma
neurose infantil (Freud, 1918 [1914]). Já o aspecto tópico da teoria evolui
separadamente, quando, segundo as próprias palavras de Laplanche, “a noção
de ataque interno, a que se liga com o corpo estranho interno, não é posta em
questão, mas é a fantasia que toma o lugar desta realidade psíquica última
(Laplanche, 1988 [1987], p. 124). O aspecto verbal e tradutivo da Carta 52, por
sua vez, tende a desaparecer quase completamente. Conforme Laplanche
(1987), é exatamente Ferenczi quem renova este terceiro aspecto da teoria,
justamente com seu ensaio Confusão de língua, que, de certa maneira, antecipa
o que viria a se chamar, mais tarde, teoria da sedução generalizada: “Vemos
neste artigo uma espécie de prefácio à teoria da sedução generalizada, e por
isso reservamo-lhe o seu lugar, apesar de um certo anacronismo, no que
chamamos ‘o após 1964’ ” (Laplanche, 1988 [1987], p. 125).
Assim, se a teoria da sedução infantil foi abandonada em 1897, em
contraponto inaugurou-se um aprofundamento importante com a introdução do
conceito da sedução precoce nos textos freudianos, particularmente quando o
pai cede seu lugar à mãe, na relação pré-edipiana. Neste sentido, segundo
Freud, após 1897 não é mais tanto o pai perverso da histérica que abusa
sexualmente de uma criança; passa a ser a mãe pré-edipiana sedutora do bebê,
através dos primeiros cuidados maternos. Concordando com Freud, Laplanche
(1988c) supõe que a relação adulto-criança se mantém assimétrica, não sendo
uma interação pautada numa reciprocidade, na medida em que a mensagem
sexual se origina do inconsciente e é emitida sempre do lado do adulto. O
trauma de sedução, por sua vez, adquire um caráter organizador e estruturante,
quando a mãe é o principal agente sedutor.
(...) dizemos que a sedução [materna] é traumática e ao
mesmo tempo estruturante. Estruturante porque a organização
da sexualidade só é possível pela intervenção, provocação por
um agente externo dissimétrico e, portanto, traumático.
Traumático porque a criança é confrontada com um excesso de
quantidade, com a força pulsional, cuja representação,
simbolização não é possível. O que determina a situação
traumática é a possibilidade dessa quantidade ser ou não
representada. (Coutinho, 1994, p. 118)
Desta forma, Laplanche avança na questão da experiência sexual
traumática, em direção à sedução essencial, a qual situa na origem e no cerne
116
de toda a sexualidade. Desenvolve então sua teoria da sedução generalizada,
ao acreditar que a existência de um inconsciente parental seria relevante desde
a relação mãe-bebê. Laplanche (1988c) propõe uma nova teoria e estabelece a
sedução originária, em que a situação de sedução deve ser concebida como
algo que está para além da experiência sexual de sedução, a partir de um
contexto em que uma criança é confrontada com mensagens emanadas do
adulto, mas das quais não possui a chave, ou seja, os significantes enigmáticos:
Enigmáticos, não apenas porque a criança não possui
o código nem as respostas fisiológicas ou emocionais para tais
mensagens, mas também porque o próprio adulto não conhece
o código, por se tratar de significações sexuais inconscientes.
Enigma, aqui, (...) refere-se ao fato de que os significantes
parentais no curso dos recalcamentos – traduções sucessivas
– abandonaram seus significados que ficaram perdidos para
sempre. Como uma fechadura que a chave se perdeu. Perdeu-
se para ambos os parceiros da sedução originária.
(Coutinho, 1994, p. 119)
Coutinho pontua então que a sedução originária não está
necessariamente articulada a um atentado sexual. Nesta medida, a sedução
generalizada é “o protótipo do mecanismo de toda sedução, de qualquer que
seja o tipo” (ibidem, p. 120).
Para exemplificar a sedução originária, Laplanche (1988b) retoma a idéia
de que o seio materno transmite para o bebê uma mensagem que pode ser tanto
verbal quanto não-verbal, e que esta mensagem é sexual e enigmática.
Esclarece que estas mensagens enigmáticas são essencialmente mensagens
não-verbais, no caso de um bebê. Laplanche ressalva que, além de ser um
órgão através do qual a criança se alimenta, o seio é uma zona erógena para a
mulher, faz parte de sua vida sexual, sendo por ela inconscientemente investido.
Neste sentido, afirma que o seio atua como zona erógena na relação da mãe
com a criança: “Que quer de mim este seio que me alimenta, mas que também
me excita; que me excita se excitando? Que quer ele dizer, que ele mesmo não
sabe?” (Laplanche, 1988b, p. 79).
O exemplo do seio materno aponta para a existência de uma relação
pulsional adaptativa – pulsão de autoconservação, na medida em que a relação
mãe-bebê está centrada, inicialmente, na satisfação de uma necessidade
através da alimentação, assim como está centrada também numa relação de
trocas entre o que é exterior ao bebê e o que lhe é interior, isto é, seu corpo.
Entretanto, de outro modo, a própria presença do seio materno, segundo
Laplanche, se impõe para a criança “como mensagem enigmática, carregada de
117
um prazer de si mesmo, ignorado e de impossível circunscrição” (Laplanche,
1988b, p. 79).
(...) ao nível da autoconservação ou adaptação (...), a
comunicação vai no sentido filho-pai, enquanto no domínio
sexual vai no sentido inverso; de tal maneira a criança evolui da
adaptação para a sexualidade que Freud não hesita em afirmar
que a mãe (na sua relação com o filho) passa da sexualidade à
afeição: ‘O amor da mãe pelo lactente que ela alimenta e cuida
é algo de diferentemente profundo da sua afeição ulterior pelo
filho que começou a crescer’. Há um verdadeiro desencontro
entre o caminho que o filho percorre e o que a mãe percorre.
(Laplanche, 1988 [1987], p. 104)
Para desenvolver a noção de significante enigmático, Laplanche se
inspirou no artigo Confusão de língua – no qual Ferenczi caracteriza o mundo do
adulto pela linguagem da paixão –, assim como no modelo tradutivo, presente na
Carta Freud-Fliess de 06/12/1896 (Carta 52). De Confusão de língua, Laplanche
resgata o aspecto traumático e estruturante da relação da criança com o mundo
adulto, na medida em que postula a existência de confrontos entre criança e
adulto pelos significantes enigmáticos, na sedução originária. Contudo, segundo
Laplanche (1987), em Confusão de língua, Ferenczi passa ao largo do que é
mais importante, a manifestação do inconsciente parental, não percebendo que
a linguagem apaixonada do adulto “só é traumatizante porque veicula um sentido
em si mesmo ignorado” (Laplanche, 1988 [1987], p. 132). Sobre a expressão
ferencziana confusão de língua, Laplanche ressalta:
(...) a expressão ‘confusão de línguas’ não nos parece
completamente adequada. Com efeito, há línguas de adulto,
língua verbal, língua dos gestos, das convenções, das mímicas
ou dos afetos. Também existe na criança uma potencialidade
para entrar nestas línguas, que é uma potencialidade natural,
instrumental e também afetiva. Mas, (...) o problema não se
resume nem à aquisição de uma ou várias ‘línguas’, nem ao
confronto de duas línguas com as suas lógicas e os seus
processos significantes diferentes. Com efeito, sabe-se que,
sem gramática nem dicionário, é perfeitamente possível
semelhante aquisição ou semelhante correspondência, e isto
sem mais. (Laplanche, 1988 [1987], p. 131)
Já da Carta 52, Laplanche retira os pontos de vista tradutivo e
econômico, para aplicá-lo na teoria da sedução generalizada. A partir dela,
sustenta que a falha de tradução do material psíquico, disponível na forma de
traços mnêmicos, é constitutiva do recalcamento, explicando a permanência de
resíduos não traduzidos de mensagens enigmáticas emanadas do adulto. Dito
de outro modo, existem significantes enigmáticos que estão presentes no interior
da linguagem do adulto – “uma mensagem de si mesmo ignorada” (Laplanche,
118
1988b, p. 94) e que, antes mesmo de serem traduzidos, são passivamente
registrados no aparelho psíquico. Deste modo, o que está em perspectiva nos
resíduos dessas mensagens enigmáticas sexuais oriundas do outro, que
escapam à eficácia tradutiva, “é a própria gênese do indivíduo, enquanto
possuindo um inconsciente e uma sexualidade” (Laplanche, 1988c, p. 108).
Para descrever aquilo com o que a criança originalmente se confronta, ou
seja, esses significantes enigmáticos, essa parte da experiência que ela tem que
controlar imediatamente, traduzir, assim como assimilar em seu eu, Laplanche
(1987) resgata o termo Wahrnehmungszeichein
59
– utilizado por Freud na Carta
52 e traduzido por Masson (1986) como indicação da percepção. Para
Laplanche, estes primeiros elementos a serem traduzidos pela criança – os
significantes enigmáticos antes de qualquer tradução – são comparáveis aos
signos de percepção.
Laplanche pressupõe que, em toda situação sedutora, há a intervenção
de um adulto que, com seu inconsciente, endereça à criança uma mensagem
que, para ela, é enigmática e traumática. Em outras palavras, é a sedução por
parte de um adulto que desvia a criança em relação aos seus estímulos
pulsionais de autoconservação, fazendo incidir no corpo do bebê as indicações
perceptivas de significantes intraduzíveis e, portanto, traumáticos. Sobre o
assunto, Utichel acrescenta:
As mensagens enigmáticas, veiculadas pelo adulto sob
a forma da implantação, chamam a um trabalho de tradução,
simbolização e deciframento. (...) Quando no lugar da
implantação (processo comum, normal e neurótico que permite
à criança processar os significantes numa dupla vertente
tradutiva e recalcante) se institui a intromissão, que, como diz
Laplanche, é uma forma de implantação que coloca obstáculos
ao trabalho tradutivo, que produz um curto circuito no incipiente
psiquismo e coloca no seu interior um elemento estrangeiro e
rebelde (...), produz-se o trauma. (Utichel, 2001, p. 106-107)
No meu entender, o intraduzível interno à própria mensagem, numa visada
laplancheana, é recalcado na forma de eco, de um resíduo que é passivamente
registrado no inconsciente infantil. Assim, uma inadequação da compreensão à
mensagem que está sendo proposta por um adulto gera, na criança, um trauma
psíquico.
59
Cf. Masson (1986, p. 209): “Wz |Wahrnehmungszeichen (indicação da percepção)| é o primeiro
registro das percepções; é totalmente inacessível à consciência e se organiza de acordo com
associações de simultaneidade”.
119
3
A teoria lacaniana do trauma
O objetivo dessa parte do trabalho é retomar a noção de trauma tal como
ela é apresentada principalmente nos Escritos e seminários, para com isso
conseguir sustentar a idéia de Lacan, segundo a qual o verdadeiro trauma do
sujeito
60
é a existência da linguagem, é a dependência do sujeito ao significante.
Quer dizer, o trauma por excelência, na obra de Lacan, é a entrada no meio
significante. Ele deve ser entendido como aquilo em torno do qual o sujeito se
constitui, não sendo, desse modo, um mero acidente que ocorre na vida do
falante.
3.1
A clínica do significante e a questão do trauma
Entre 1952 e 1963, Lacan se dedica a estudar um conceito, uma ou duas
obras de Freud a cada ano. Tomando a forma de seminários sobre textos
freudianos, suas aulas voltam-se à idéia de trauma tal como era situado na
origem das neuroses por Freud, o que acabou ajudando Lacan a repensar a
determinação do sujeito.
No entanto, é principalmente no Seminário 11 de 1964, que, ao voltar ao
tema do trauma, Lacan afirma que acaso, acidente e contingência devem ser
dissociados das noções de imprevisibilidade e irracionalidade. Para justificar sua
posição, retoma uma das categorizações aristotélicas
61
, segundo a qual o
trauma não é acidental. A partir da leitura do texto freudiano Além do princípio do
prazer (Freud, 1920), Lacan (1964) vai diferenciar dois modos de repetição: tiquê
e autômaton. O primeiro refere-se à repetição enquanto encontro com o Real,
Real que está para além do autômaton, do retorno, isto é, da volta comandada
pelo princípio do prazer. Na origem da psicanálise, com a concepção de trauma,
inscreve-se a tiquê como princípio, isto é, o Real “apresentado na forma do que
60
O sujeito em foco é o sujeito do inconsciente, constituído pelo par significante, sendo o intervalo
deles; logo, não deve ser confundido com indivíduo, que tem seu fundamento real no corpo.
61
De acordo com Aristóteles, o essencial se opõe ao acidental. A causa essencial faz com que
uma coisa seja o que é, diferentemente das demais; já a acidental indica infinitas possibilidades
do que pode vir a ocorrer.
120
nele há de inassimilável – na forma do trauma” (Lacan, 1990 [1964], p. 57).
Trauma e Real se associam, no discurso lacaniano; o Real é o que volta sempre
ao mesmo lugar, sendo distinto da idéia de realidade.
3.1.1
O trauma e o só depois
De acordo com Lacan, na obra freudiana o trauma se relaciona com a
entrada no Simbólico. Para acompanhar esta questão, irei agora abordar Lacan
em seus primeiros seminários, com o propósito de elucidar o que ele quis dizer
com isso. Começarei a discorrer sobre a noção de trauma em Lacan a partir da
leitura que esse autor fez da História de uma neurose infantil (Freud, 1918
[1914]), encontrada primeiro no seminário O homem dos lobos (Lacan, 1952a) e,
um ano depois, no seminário Os escritos técnicos de Freud (Lacan, 1953-1954).
No primeiro seminário, de 1952, Lacan considera que o Homem dos Lobos é um
personagem desincluído da sociedade: muito precocemente, este homem foi
separado de tudo o que podia constituir para ele um modelo, no plano social.
Toda a continuação de sua história – a história de uma neurose infantil, como
ficou conhecida a partir de Freud – deve estar situada nesse contexto.
Na releitura do caso do Homem dos Lobos, Lacan (1952a) focaliza o
trauma estrutural da cena primária. Enfatiza, nessa fase, a importância da idéia
de só depois, e que significa que o acontecimento primeiro como tal não foi
traumático, assim como não é recuperável posteriormente. Para ele, Freud não
pôde jamais obter a reminiscência propriamente dita da realidade, no passado,
da cena ao redor da qual girou toda a análise do sujeito. De certo modo, o
tratamento do Homem dos Lobos foi influenciado pela investigação freudiana a
propósito da existência ou não das tais cenas primitivas. Há algo para além da
realidade do acontecimento: a historicidade do acontecimento, quer dizer, algo
flexível e decisivo que foi uma impressão no sujeito e que o dominou, sendo
necessária para explicar a continuação de seu comportamento. É isto o que dá a
importância essencial da discussão de Freud ao redor do acontecimento
traumático inicial, na opinião de Lacan. Não é necessário que a criança tenha
visto a cena sexual em si, mas que direta ou indiretamente tenha concluído que
essa cena verdadeiramente ocorreu, e neste caso a cena foi construída, muito
indiretamente, graças ao sonho dos lobos. Freud é quem ensina o sujeito a ler
seu sonho: os lobos não se mexem, apenas olham, e têm as mais graciosas
121
caudas; é o sujeito que olha uma cena particularmente agitada
62
; tem medo de
ser comido (leia-se, castrado) pelos lobos. Este é o sonho que leva à cena
reconstruída em análise – a cena da relação sexual dos pais – e que em seguida
é assumida pelo sujeito. Por outro lado, este acontecimento traumático permite
compreender tudo o que acontece depois, assim como tudo o que é assumido
pelo sujeito: sua história.
É nesse contexto que Lacan discute o caso do Homem dos Lobos em
1952, criticando a postura freudiana frente ao tratamento: Freud estabeleceu
uma relação paternal com seu cliente; colocou-se num lugar de senhor a quem o
Homem dos Lobos demandava por socorro e este prestígio pessoal tendia a
abolir entre ele e o paciente certo tipo de transferência. Assim, Freud estava
identificado demais a um pai protetor para poder ser eficaz em suas
interpretações: emprestava-lhe inclusive dinheiro.
Lacan se interessa pelo Homem dos Lobos justamente na medida em
que a observação freudiana sobre o caso centrou-se na existência (ou na não
existência) de acontecimentos traumáticos na primeira infância. Desde o começo
das investigações sobre a histeria Freud se surpreende com o grande número de
casos de abuso sexual. Mesmo quando valoriza a fantasia, apresentando a idéia
de realidade psíquica, Freud não invalida a realidade de acontecimentos
traumáticos infantis. O que ele ressalta é que os eventos traumáticos construídos
estão sempre articulados às fantasias.
Na neurotica freudiana, um acontecimento patogênico e traumático era
considerado como causa do sintoma (Freud, até 1897). A colocação em palavras
de um episódio traumático pelo cliente era o que determinava a eliminação do
sintoma. Assim, o relevo dado à objetividade do trauma sexual faz do sintoma
neurótico o resultado de um acidente na história, o que inocenta o sujeito.
Quando Freud acentua a causalidade traumática, o sujeito é considerado vítima.
Lacan mostra que, embora tenha buscado datar a cena primária no caso
do Homem dos Lobos, Freud admitiu, sem mais aquela, tantas reestruturações
da significação dos acontecimentos quantas lhe parecessem necessárias para
explicar posteriormente seus efeitos. Tal como Freud (1950 [1895]; 1918 [1914])
já havia feito, Lacan insiste em considerar uma temporalidade própria do
psíquico, valendo-se para isso da tradução francesa do termo freudiano
62
“O que seria, então, se o outro fator enfatizado pelo paciente fosse também distorcido por meio
de uma transposição ou inversão? Nesse caso, em vez de imobilidade (os lobos não tinham
movimento; olhavam para ele, mas não se mexiam) o significado teria que ser: o mais violento
movimento. Ou seja, ele acordou de repente e viu à sua frente uma cena de movimento violento,
para a qual olhou tensa e atentamente.” (Freud, 1976 [1918 [1914] ], p. 52).
122
nachträglich por après-coup, ou, em português, por só depois: só depois a
situação adquire contornos traumáticos; o valor traumático se dá quando um
acontecimento atual se enlaça ao anterior, resignificando-o.
No Seminário 1, intitulado Os escritos técnicos de Freud, Lacan (1953-
1954) mais uma vez analisa as intervenções freudianas do caso clínico do
Homem dos Lobos para, a partir dele, esclarecer o que entende ser uma questão
central nesse escrito freudiano: o trauma. Segundo ele, Freud:
(...) se apercebe de que o trauma é uma noção extremamente
ambígua, porque parece, segundo toda evidência clínica, que
sua face fantasmática é infinitamente mais importante do que
sua face de evento. Desde então, o evento passa para o
segundo plano na ordem das referências subjetivas. Em
compensação, datar o trauma continua a ser para ele um
problema que convém conservar (...).
(Lacan, 1993 [1953-1954], p. 46)
Como Freud, Lacan reforça, no Seminário 1, que o passado deve ser em
certa medida restituído: o que foi originalmente recalcado deve ser reevocado
durante o tratamento analítico, apesar de nesse processo surgirem problemas e
ambiguidades que o recalcado levanta quanto à sua natureza, função e
definição.
Como mostrou Freud, para que o recalque seja possível, é preciso que
haja um primeiro núcleo do recalcado, que, embora aparente não existir,
permanece em alguma parte e chama para si todos os recalques posteriores. Na
interpretação de Lacan, o recalque originário é exatamente o momento em que o
simbólico se estabelece, deixando de fora muita coisa, inclusive uma relação
mais imediata com o corpo.
As formas que toma o recalque são atraídas por esse
primeiro núcleo, que Freud atribui então a uma certa
experiência, a que chama a experiência original do trauma.
Retomaremos mais tarde a questão do que quer dizer trauma,
cuja noção deve ter sido relativizada, mas retenham que o
núcleo primitivo é de um nível diferente dos avatares do
recalque. É o fundo e o suporte deles.
(Lacan, 1993 [1953-1954], p. 56)
Naquilo que acontece com o Homem dos Lobos, o recalque é um
momento importante e diferenciado dos demais: está ligado à experiência de ter
assistido a uma relação sexual dos pais. Algo ali está excluído da história do
sujeito, sendo necessário um analista para dar sentido à experiência original
traumática: “(...) foi preciso, para dar cabo disso, o acosso de Freud. É somente
então que a experiência repetida do sonho infantil [o sonho dos lobos] tomou
123
algum sentido, e permitiu não o revivido, mas a reconstrução direta da própria
história do sujeito” (Lacan, 1993 [1953-1954], p. 57).
Da maneira como Lacan analisa esse caso clínico, fica explícito que o
Homem dos Lobos foi de grande importância para a psicanálise, na medida em
que suscitou questões teóricas quanto à função do trauma estrutural e quanto à
questão da temporalidade, do só depois –, embora esse só depois já estivesse
em cena desde a primeira concepção de trauma na teoria freudiana, antes de
1897. A cena primária é reconstituída no curso da análise, a partir dos efeitos do
trauma sobre o sujeito naquele momento do tratamento.
A cena adquire valor traumático para o sujeito entre a
idade de 3 anos e 3 meses e 4 anos. Temos a data precisa
porque o sujeito nasceu, coincidência decisiva aliás na sua
história, no dia de Natal. É na espera dos eventos de Natal,
sempre acompanhados para ele, como para todas as crianças,
da entrega de presentes que devem vir de um ser que desce,
que ele tem, pela primeira vez, o sonho de angústia que é o
pivô dessa observação. (Lacan, 1993 [1953-1954], p. 220)
Todavia, a cena da relação sexual dos pais nunca pôde ser diretamente
evocada ou rememorada, podendo inclusive, de acordo com Freud, nem ter
verdadeiramente acontecido. Freud levanta a possibilidade de que o Homem dos
Lobos tenha assistido a um coito ocorrido entre cães e concluído que era aquilo
que os pais faziam. Dessa forma, o que o sonho com os lobos assinala é a
primeira manifestação traumática para o paciente. O trauma, por conseguinte,
intervém só depois.
Segundo a leitura de Lacan, é na aproximação dos elementos
traumáticos, fundados numa imagem desintegrada sobre a qual o sujeito não
tem controle, que se produzem os lapsos na síntese da história do falante. As
irrupções do inconsciente e os sintomas são descontinuidades na vida psíquica,
imputáveis ao retorno do recalcado. Correspondem ao que Freud chamou de
descontinuidades na cadeia motivacional consciente do sujeito. Ele considera
que quando a motivação consciente não justifica algo, deve-se buscar um motivo
inconsciente. Dito de outra forma, o obsessivo não pode inserir sua obsessão de
lavar as mãos em qualquer narrativa que dê de si mesmo.
124
3.1.2
O desejo do Outro como traumático
Em 1957, Lacan fala sobre os processos inconscientes que os sonhos
normais (não os sonhos traumáticos) desvelam em suas articulações lógicas e
metafóricas. Segundo ele, na análise do sonho, Freud esclarece as leis do
inconsciente e mostra que o trabalho do sonho segue leis simbólicas – ou, como
Lacan diria, as leis do significante: “entre o significante enigmático do trauma
sexual e o termo que ele vem substituir numa cadeia significante atual passa a
centelha que fixa num sintoma (...) a significação, inacessível ao sujeito
consciente onde ele pode se resolver” (Lacan, 1998 [1957b], p. 522). Com essas
palavras, Lacan aproxima o trauma sexual ao incognoscível – o recalcado
originário – reforçando, pois, a virulência do trauma enquanto estrutural. Já o
sintoma do qual ele fala, e cujo processo de constituição chama de metafórico,
está em Freud referido à transferência de uma carga energética pulsional de um
traço incognoscível para um símbolo, que tanto representa o que foi suprimido
como o mantém afastado. Então, na cadeia significante, o sintoma é uma
intrusão que vai revelar uma segunda cadeia associativa originária do recalcado,
assim como se dá no ato falho ou no sonho. Embora seja significante, esse
elemento metafórico pode surgir também no corpo, tal como ocorreu com Dora,
que mancava quando desejava dar um mau passo (Freud, 1905 [1901]).
Ao articular os processos inconscientes com os mecanismos da
linguagem, Lacan (1957-1958) destaca que é impossível estabelecer uma
distinção válida entre as fantasias inconscientes e o funcionamento da
imaginação, se a fantasia inconsciente não for considerada desde sempre
dominada e estruturada pelas condições do significante. Para ele, desde sempre
os objetos estão “significantizados (Lacan, 1999 [1957-1958], p. 263) e é por
isso que o leite e o seio se transformam em substitutos para a criança, tais como
o esperma e o pênis. Nesse contexto, a mãe – ou quem ocupa a função materna
na relação com o bebê – surge como o primeiro objeto simbolizado para o
sujeito, fazendo dele não apenas uma criança satisfeita ou insatisfeita, mas uma
criança desejada ou não desejada. Como o próprio Lacan sustenta em 1957/58,
a idéia de ser desejado é, portanto, essencial, visto que a expressão criança
desejada corresponde tanto à constituição da mãe como sede do desejo quanto
à dialética da relação do filho com o desejo da mãe, que se concentra no
símbolo da criança desejada.
125
Para exemplificar o que acontece quando algo falha nessa relação mãe-
bebê, recordo o caso do jovem André Gide, cuja mãe
(...) tinha altíssimas e notabilíssimas qualidades e um não-sei-
quê de totalmente elidido em sua sexualidade, em sua vida
feminina, que, na presença dela, certamente deixava o menino,
no momento de seus primeiros anos de vida, numa posição
não situada. (Lacan, 1999 [1957-1958], p. 269)
Segundo Lacan, Gide só gozava na identificação com situações
catastróficas. Sua vida só toma sentido a partir de uma época específica da
adolescência, quando se identifica a uma jovem prima.
Identificação (...). Trata-se do momento em que ele
encontra a prima aos prantos no segundo andar da casa para
onde se precipitara, não tanto atraído por ela, mas sim por seu
faro, por seu amor à clandestinidade que grassava naquela
casa. É depois de haver atravessado o primeiro andar, onde se
encontra a mãe da prima – sua tia, a quem ele mais ou menos
entrevê nos braços de um amante –, que ele encontra a prima
aos prantos e, nisso, encontra um auge de embriaguez,
entusiasmo, amor, desamparo e devoção. A partir daí, ele se
dedica a proteger essa criança, como nos dirá mais tarde.
(Lacan, 1999 [1957-1958], p. 269)
Mas Gide nessa época não se identifica só com a prima como também
com a mãe da citada prima, que anteriormente já havia tentado seduzi-lo. Com
efeito, é no momento em que a tia o seduz, que Gide, pela primeira vez, se
transforma no filho desejado, embora fuja horrorizado da cena:
(...) nada viera introduzir o elemento de aproximação e
mediação que teria feito daquilo outra coisa que não um
trauma. No entanto, ele se descobrira pela primeira vez na
posição da criança desejada. Essa situação nova, que sob
certo aspecto seria salvadora para ele, iria fixá-lo, no entanto,
numa posição profundamente dividida, em razão da maneira
atípica, tardia e, repito, sem mediação como se produziu esse
encontro. (Lacan, 1999 [1957-1958], p. 270)
Dessa maneira, Gide toma na cena de sedução um lugar diferente do até
então ocupado. Onde havia vazio, passou a haver um lugar de criança desejada,
porém nada mais que isso. Não podendo aceitar o desejo do qual foi objeto,
Gide se recusa a permanecer nesse lugar, mas seu eu passa a se identificar
para sempre, mesmo sem o saber, com o sujeito do desejo do qual ele se tornou
dependente: “Gide apaixonou-se para sempre, até o fim da vida, por aquele
menininho que ele fora por um instante nos braços da tia, dessa tia que lhe
afagara o pescoço, os ombros e o peito. Sua vida inteira resumiu-se nisso”
(ibidem, p. 270). Como mais tarde Lacan desenvolveu extensivamente em seu
126
seminário sobre a angústia, o desejo do Outro é sempre traumático (Lacan,
1962-1963). Assim, o que Gide guardou do trauma ao longo da vida? Na
verdade, a partir desse momento e até seus últimos dias, Gide se apaixonou
pelo menino acariciado que ele não quis ser. Por isso, “já em sua viagem de
núpcias (...), ele pensava nas suplicantes delícias (...) de acariciar os braços e os
ombros dos rapazinhos que encontrava no trem” (Lacan, 1999 [1957-1958], p.
270), mostrando assim o ponto privilegiado de toda a fixação de seu desejo.
3.1.2.1
A separação da mãe é traumática
63
Diferente do desejo do Outro como traumático (exemplificado através do
caso Gide), há uma outra idéia de trauma, também ligada à tenra infância e à
separação mãe-bebê. Ao contrário do que Rank (1924) havia defendido anos
antes, na perspectiva lacaniana o trauma do nascimento não é sinônimo de
separação da mãe nem pode ser explicado a partir da angústia do desmame. De
acordo com Lacan (1962-1963), o momento mais decisivo na angústia do
desmame não é propriamente o momento em que o seio falta às necessidades
do bebê, mas sim é aquele em que a criança cede
64
o seio, como se ele tivesse
sido parte dela mesma. Durante a amamentação, o seio faz parte da criança que
está sendo amamentada, e encontra-se chapado na mãe. É neste sentido que,
para Lacan, a criança não é desmamada pela mãe: ela se desmama.
É na possibilidade de agarrar ou soltar esse seio que
se produz o momento de surpresa mais primitivo, às vezes
apreensível na expressão do recém-nascido, na qual passa
pela primeira vez o reflexo – relacionado com esse órgão que é
muito mais que um objeto, que é o próprio sujeito – de algo que
serve de suporte, de raiz para o que, num outro registro, foi
chamado de desamparo. (Lacan, 2005 [1962-1963], p. 340)
O bebê brinca de largar o seio e novamente pegá-lo. Nessa medida, o
seio é, para a criança, um sinal de que existe um vínculo com a mãe – ou, como
assinala Lacan, de que existe um vínculo com o Outro: “O seio não é o Outro,
não é o vínculo a ser rompido com o Outro, mas é, no máximo, o primeiro sinal
desse vínculo” (ibidem, p. 355-356). O que o sujeito tem para oferecer ao Outro
63
Embora Lacan não enfatize tanto este assunto quanto o fez Freud, trataremos aqui um pouco do
que Lacan pôde elaborar sobre o assunto.
64
Em Lacan (1962-1963), cessão do objeto é sinônimo do aparecimento de objetos cedíveis que
podem ser equivalentes aos objetos naturais, como, por exemplo, a mamadeira.
127
é o que ele é. Em outras palavras, o seio com o qual ele brinca, tentando se
diferenciar, é, assim, ele mesmo.
3.1.3
Entre o sonho e o despertar: uma realidade faltosa
Se o despertar absoluto é impossível, momentos de
despertar, pontuais, não são aquilo que a experiência
psicanalítica possibilita? (Jorge, 2005, s.p.)
O Seminário 11 se caracteriza por ser aquele em que Lacan (1964), além
de confirmar que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, chama a
atenção para a realidade do inconsciente, enquanto uma realidade ambígua e
ilusória. Afirma que a realidade do inconsciente é a realidade sexual e ainda
sustenta que a realidade sexual é uma questão de relação entre sexualidade
humana e a combinatória de significantes.
Na seção intitulada O inconsciente e a repetição do Seminário 11, Lacan
(1964) aproxima a transferência à realidade do inconsciente. Liga também a
repetição ao Real, como aquilo que não engana. Para Lacan, o inconsciente
estruturado como uma linguagem está em vias de realização, não está acabado,
e se manifesta de modo tão elaborado quanto o nível consciente, sempre como
o que vacila num corte do sujeito. Ele pode ser entendido a partir de pelo menos
duas perspectivas: uma primeira, em que o inconsciente é apresentado na teoria
lacaniana como tropeço significante, desvinculando-o da idéia de um depósito de
memórias inconscientes. Ou seja, é pela atribuição de um sentido à falha
discursiva que o sujeito constitui o inconsciente, cuja articulação significativa é
construída no momento de sua enunciação, por meio da suposição de sentido
construída sobre a equivocidade significante. Não se trata, pois, de um
significado já dado e oculto à consciência do paciente. Há, por sua vez, uma
outra perspectiva, a pulsional, segundo a qual o inconsciente deve ser
apreendido como repetição. Afirmar isto, por sinal, é completamente diferente de
enfatizá-lo enquanto resistência. “A tese que Lacan desenvolve nesse livro
[Seminário 11] é que o inconsciente não resiste tanto quanto repete” (Miller,
1997, p. 23). Assim, o sujeito repete na medida em que não alcança seu
128
objetivo; satisfaz algo, mas não o que deveria ter sido. O que importa, aliás, não
é a repetição em si, mas o que é atingido.
A repetição está sempre ligada a um objeto perdido: ela
é uma tentativa de reencontrá-lo e no entanto, ao fazer isso,
perdê-lo. (...) este objeto perdido (...) é ilustrado, na teoria
analítica, pela mãe como o objeto primário fundamental que,
mediante a operação do Nome-do-Pai, é para sempre proibida
e perdida. Lacan diz que a mãe é aquela Ding fundamental, a
coisa sempre perdida e que a repetição tenta recuperar,
perdendo sempre. (Miller, 1997, p. 27)
Para dar conta disso, Lacan desenvolve o conceito de Real como algo
que retorna sempre ao mesmo lugar para o sujeito – o retorno ou a insistência
dos signos –, mas que o sujeito não encontra. O Real está, deste modo, ligado a
um engano e a um encontro impossível; e a repetição é vista sob o prisma do
fracasso, não do sucesso. De certo modo, a repetição – que é um dos quatro
conceitos fundamentais da psicanálise, numa leitura lacaniana – parece ter sido
mal nomeada, pois consiste no retorno do que nunca é o mesmo. Implica,
conforme Lacan (1964), no retorno de uma coisa que é diferente da segunda
vez, e que só é tomada como repetição por causa do significante. Mas o que há
por trás dela já é a pulsão que não encontra mas que nisso se satisfaz.
Em um tratamento analítico (pelo menos nos que pretendem ser bem
sucedidos), há uma tendência a tornar o analisando cada vez mais ciente de
suas repetitivas escolhas de objetos, relações e situações... serializando-as.
Contudo, para Lacan, a repetição envolve algo que está excluído da cadeia
significante – algo de que o sujeito não irá lembrar, mesmo que se esforce para
isso –, mas em torno do qual a cadeia de significantes gira. Isto quer dizer que a
repetição envolve tanto o “impossível de pensar” quanto o “impossível de
dizer”.
65
Há uma outra perspectiva para se compreender o conceito de
inconsciente, articulado à pulsão, que não só o fracasso. O sujeito, de algum
modo e em algum nível, sempre obtém satisfação: “mesmo que através de uma
aparente infelicidade ou desprazer, o sujeito obtém satisfação. Mesmo que
tentemos ir além do princípio do prazer, esse além marca algo que é um além do
princípio do prazer de ordem interna” (Miller, 1997, p. 25). Desta maneira, se o
objeto da pulsão pode ser isto ou aquilo – o objeto em si não importa, pode-se
tê-lo ou não –, no entanto, o que é satisfeito no circuito pulsional permanece o
65
Este é o recalcado originário, segundo Lacan.
129
mesmo. Quer dizer, “Mesmo que não se alcance o alvo, realiza-se o objetivo
(...)” (Miller, 1997, p. 25). Logo, o sujeito sempre obtém alguma satisfação.
De acordo com Miller, é preciso ainda distinguir a realidade, que é
estruturada pela fantasia, daquilo que se refere ao que é satisfeito pelo princípio
do prazer: “alguma coisa que não muda, que requer todo o nosso sonho e nossa
vigília, mas que é, ainda assim, prazer.” (ibidem, p. 25). Quanto ao desejo, que
não deve ser entendido como sinônimo de prazer, a experiência analítica permite
que se enuncie que tem função limitada, franqueada pelo limiar imposto pelo
princípio do prazer: “o prazer é o que limita o porte do quinhão humano – o
princípio do prazer é o princípio de homeostase” (Lacan, 1990 [1964], p. 35).
Para completar, é importante lembrar que, já no ensaio Além do princípio do
prazer, Freud (1920) tomou a repetição como além do princípio do prazer e
também da realidade, ambos preocupados com a homeostase.
3.1.4
A compulsão à repetição: uma forma de recordar
As relações do trauma com a compulsão à repetição, tão bem ilustradas
nos casos de neuroses traumáticas, são elucidadas por Lacan nas aulas VI e VII
do Seminário 2. Nelas, Lacan (12/01 e 19/01/1955) discute os conceitos que são
encontrados no texto freudiano Além do princípio do prazer, de 1920: princípios
do prazer e de realidade, e compulsão à repetição. Para Lacan, a inspiração
freudiana para conceber o princípio do prazer partiu da idéia médico-científica do
sistema nervoso, segundo a qual esse sistema sempre visa a restabelecer seu
ponto de equilíbrio. No entanto, essa teoria seria oposta à da intuição subjetiva,
pois, para Freud, no princípio do prazer, o prazer, por definição, tende a cessar.
Por outro lado, cabe ao princípio de realidade resguardar prazeres, aqueles cuja
aspiração é justamente atingir o fim. O princípio de realidade não se opõe ao
princípio do prazer, mas é apenas uma diferenciação sua, um dispositivo mais
adequado a obter o prazer. Diz Lacan que foi introduzido porque, quando se
busca o prazer, acontecem acidentes. Freud diria: para que isso não aconteça é
preciso levar em conta a realidade. Neste sentido, os princípios do prazer e de
realidade adquirem outro valor, na medida em que, longe de serem opostos, eles
são complementares.
É em oposição ao par princípio do prazer e de realidade que Freud
localiza a compulsão à repetição. Lacan (1954-1955) ressalta que nela existem
130
duas tendências que se entrelaçam – uma restitutiva e outra repetitiva – e que,
após a manifestação da tendência restitutiva, resta algo que é repetitivo.
Assinala que, segundo a hipótese freudiana do princípio do prazer, o conjunto do
sistema deve sempre retornar ao estado inicial, operando de forma
homeostática; mas a compulsão à repetição, por sua vez, desrespeita essa
homeostase e, por isso, é considerada como algo que fica além do princípio do
prazer. Segundo Lacan, foi justamente por haver uma incongruência,
representada pelos aspectos da compulsão à repetição que desmentem ou
desalojam o princípio do prazer e se articulam ao trauma, que Freud formulou
dois novos conceitos na década de 1920: a idéia de um Além do princípio do
prazer e o conceito de pulsão de morte. Além disso, existem pontuações nesse
mesmo ensaio freudiano de 1920 de que nem os sonhos traumáticos nem a
repetição nas neuroses traumáticas obedecem ao princípio do prazer. Para
todos os efeitos, o que se repete é sempre algo que acontece quase que por
acidente.
Lacan tenta dar um passo a mais no que concerne às suas explicações
sobre a distância a cobrir entre o retorno de significantes e a função da
compulsão à repetição na aula de 13/12/1961 do Seminário 9. Pois, como Lacan
afirma, compulsão à repetição diz respeito exatamente a um “ciclo” (Lacan,
1961-1962, s.p.)
66
de comportamento determinado – e não um outro – que
equivale a certo significante que se repete, pouco importando que ele seja
exatamente o mesmo ou que apresente pequenas diferenças. Este ciclo pode
ser concebido, de acordo com Lacan, sobre o modelo da necessidade de
satisfação. O que se repete está lá, não apenas para preencher a função de
representar uma coisa que estaria ali atualizada, mas para presentificar como tal
o significante que esta ação se tornou.
Na opinião de Lacan, a compulsão à repetição porta um paradoxo: 1) ela
faz surgir um ciclo de comportamento que se inscreve nos termos semelhantes a
uma resolução de tensão do binômio necessidade-satisfação, recalcando um
significante; contudo, 2) qualquer que seja a função interessada nesse ciclo não
é errado dizer que o que ela quer dizer enquanto compulsão à repetição é que
ela está ali também para fazer surgir, para trazer de volta, para fazer insistir
alguma coisa que é essencialmente da ordem de um significante (Lacan, 1961-
1962, s.p.).
67
66
Cf. a aula de 13/12/1961.
67
Cf. as aulas de 13/12 e 20/12/1961.
131
De acordo com uma primeira versão teórica
68
, para Freud, a compulsão à
repetição, não justificada do ponto de vista do princípio do prazer, tem por
função dominar o acontecimento. Em outras palavras, o constante retorno de
eventos com valor de trauma teria exatamente a função de tentar dominá-lo e
integrá-lo na organização simbólica do sujeito, atendendo à finalidade de sempre
submeter ao princípio do prazer. “Para Freud, a repetição é, então,
consequência do trauma, uma tentativa inútil de anulá-lo e também uma forma
de lidar com ele, levando o sujeito a um outro registro, diferente do princípio do
prazer (...)” (Chemama & Vandermersch, 2007 [2005], p. 235). Esse foi, na
opinião de Lacan, um dos motivos pelos quais Freud recuou frente à idéia de
que o psiquismo é regido apenas pelo princípio do prazer e logo propôs um Além
do princípio do prazer.
Em Da rede dos significantes, Lacan (1964) discute novamente a função
da repetição e, para tanto, resgata dois textos freudianos: Recordar, repetir e
elaborar (Freud, 1914a) e o quinto capítulo de Além do princípio do prazer
(Freud, 1920). Mas por que estes trabalhos são, para Lacan, essenciais para
sustentar tal discussão?
Embora só tenha desenvolvido todas as suas implicações teóricas em
1920, foi em Recordar, repetir e elaborar que Freud (1914a) começou a
conceituar compulsão à repetição como “um objeto autônomo de sua reflexão”
(Roudinesco & Plon, 1998, p. 657).
69
Interessado por questões relacionadas à
técnica, em Recordar, repetir e elaborar, Freud aproxima a compulsão à
repetição da transferência, mesmo não constituindo a totalidade da
transferência: a grosso modo, ela é uma maneira própria do analisando se
lembrar. Como Freud diz, logo no início do tratamento analítico, após ser
explicada a regra fundamental da psicanálise ao paciente, ou seja, a associação
livre, o analista espera escutar tudo o que vem à mente do paciente. Entretanto,
segundo Freud (1914a), o que se observa a partir disso é totalmente diferente: o
paciente fica silencioso, declarando que nada tem a relatar. O que assim se
evidencia é uma resistência contra recordar algo. Assim, o paciente começa seu
tratamento por uma repetição deste tipo, quer dizer, por uma compulsão à
repetição – ele repete ao invés de recordar, e repete sob o efeito de resistências.
68
Mais tarde, numa outra versão, Freud radicalizou a noção de trauma e, nessa perspectiva, a
compulsão à repetição é a própria marca do trauma original e que Freud coloca no sintoma,
como sendo o mais próprio do sujeito e que nunca muda.
69
As idéias de repetição e compulsão, na teoria freudiana, aparecem todavia em textos bem
anteriores ao de 1914. Já na década de 1890, Freud frisou a importância da repetição na
abordagem de casos de histeria (Freud, 1893a) e empregou o termo de compulsão numa carta
a Fliess (07/02/1894), onde discutia suas dificuldades em ligar a neurose obsessiva à
sexualidade (cf. Roudinesco & Plon, 1998, p. 656-657).
132
(...) o paciente submete-se à compulsão à repetição, que agora
substitui o impulso de recordar, não apenas em sua atitude
pessoal para com o médico, mas também em cada diferente
atividade e relacionamento que pode ocupar sua vida na
ocasião (...). (Freud, 1969 [1914a], p. 197)
O que é que o paciente repete, na opinião de Freud (1914a)? Ele repete
o que já havia avançado a partir das fontes do recalcado – “suas inibições, suas
atitudes inúteis e seus traços patológicos de caráter” (ibidem, p. 198) – assim
como repete seus sintomas, no transcorrer da análise. Desta forma, através de
reações repetitivas no decurso do tratamento e com a superação de resistências
porventura existentes, despertam-se lembranças até então recalcadas.
Do capítulo cinco do Além do princípio do prazer (Freud, 1920), Lacan
está interessado em esclarecer “por que, de primeiro, a repetição terá aparecido
ao nível do que chamamos neurose traumática?” (Lacan, 1990 [1964], p. 53).
Pergunta-se também qual a função da compulsão à repetição, se nada parece
justificá-la do ponto de vista do princípio do prazer. No que se refere à função da
compulsão à repetição, Lacan considera que seu objetivo era dominar o
acontecimento traumático. Segundo ele, no Além do princípio do prazer, Freud
indica que o que se passa nos sonhos da neurose traumática, depende do nível
do funcionamento mais primitivo do psiquismo, ou seja, do processo primário
70
.
Além disso, a descoberta de Freud é que a função de repetição evidencia a
relação do pensamento com o Real (Lacan, 1990 [1964], p. 52).
Para Freud (1920), um fracasso por parte dos estratos mais elevados do
aparelho mental em sujeitar a excitação pulsional, que assim fica funcionando
em processo primário, provoca um distúrbio análogo à neurose traumática.
Somente após se efetuar essa sujeição é que se torna possível que o princípio
do prazer (bem como sua modificação, o princípio de realidade) avançe sem
obstáculos. “Até então, a outra tarefa do aparelho mental, a tarefa de dominar ou
sujeitar as excitações, teria precedência, não, na verdade, em oposição ao
princípio do prazer, mas independentemente dele e, até certo ponto,
desprezando-o” (Freud, 1976 [1920], p. 52).
Assim, as crianças repetem experiências desagradáveis para poderem
dominar uma impressão de maneira ativa, ao invés de fazê-lo simplesmente
experimentando-a de modo passivo. Esta repetição de algo idêntico é, em si,
uma fonte de prazer. Em contrapartida, a compulsão à repetição dos
70
No inconsciente, o tipo de processo psíquico encontrado é o processo psíquico primário,
enquanto na vida de vigília normal é o processo psíquico secundário (Freud, 1976 [1920], p.
51).
133
acontecimentos da infância no decurso da análise despreza o princípio do
prazer.
O paciente comporta-se de modo puramente infantil e
assim nos mostra que os traços de memória recalcados de
suas experiências primevas não se encontram presentes nele
em estado de sujeição, mostrando-se elas (...) incapazes de
obedecer ao processo secundário. (Freud, 1976 [1920], p. 53)
A repetição é, desta forma, algo que está sempre velado ao longo do
tratamento analítico, diferindo das idéias de retorno dos signos, reprodução e
rememoração agida. Assim, este primeiro encontro, Real, que há por trás da
fantasia do analisando, é inacessível; um pensamento adequado enquanto
pensamento evita sempre a mesma coisa, quer dizer, evita sempre o Real
traumático (Lacan, 1964).
3.1.5
O trauma: algo impossível de nomear, e que retorna
É no Seminário 11 que Lacan mais claramente aproxima o trauma da
idéia de Real. Diz ele:
Não é notável que, na origem da experiência analítica,
o real seja apresentado na forma do que nele há de mais
inassimilável – na forma do trauma, determinando toda a
sequência e lhe impondo uma origem na aparência acidental?
(Lacan, 1990 [1964], p. 57)
Com efeito, o trauma deve ser tamponado pela homeostase subjetivante
que corresponde a dominância do princípio do prazer e, por mais que se
desenvolva o sistema de realidade, uma parte do que é da ordem do Real com
certeza se mantém prisioneira das redes do princípio do prazer.
No sentido de sustentar o trauma como Real, dois termos que foram
utilizados por Aristóteles, numa pesquisa sobre a causa – tiquê e autômaton
são importados por Lacan para o Seminário 11:
134
Para Aristóteles, a tiquê está compreendida no
autômaton, que podemos traduzir pelo nosso acaso. A tiquê,
diz ele, tem relação com as coisas produzidas, seja pela
inteligência, seja pela natureza, com vistas a um fim
determinado, mesmo que não esteja ao alcance do homem. O
autômaton é aquilo que se produz à margem da natureza, tem
a causa fora de si e está privado de finalidade natural. Por isso,
autômaton designa algo que se move por si mesmo, donde,
mais tarde, a idéia de autômato e a de automatismo.
(Gueller, 2005, p. 11)
Lacan (1964) traduz a tiquê aristotélica por encontro com o Real
contingente, que está para além da insistência dos signos (isto é, está para além
do autômaton). O autômaton, ele traduz como rede de significantes, através da
qual algo se repete, na medida em que está submetida ao princípio do prazer.
Em outras palavras, o autômaton corresponde ao desdobramento automático no
inconsciente da cadeia significante.
O trauma é um encontro faltoso com a tiquê; um encontro essencial, que
demanda o novo mas que nem por isso é totalmente assimilável. O Real, por sua
vez, se estabelece como “o que vige sempre por trás do autômaton, e do qual é
evidente, em toda a pesquisa de Freud, que é do que ele cuida” (Lacan, 1990
[1964], p. 56). Assim, este Real que escapole, está para além do retorno e da
insistência dos signos aos quais nos vemos comandados pelo princípio do
prazer.
Ao comentar sobre o assunto, Fink acrescenta que, para Lacan (no sem.
11 de 1964),
O real aqui é o nível de causalidade, o nível daquilo
que interrompe o funcionamento tranquilo do autômaton, da
seriação automática, sujeita à lei regular dos significantes do
sujeito no inconsciente. Ao passo que os pensamentos do
analisando estão destinados a perder sempre o alvo do real,
conseguindo apenas circular ou gravitar em torno dele, a
interpretação analítica pode atingir a causa, levando o
analisando a um encontro com o real: tiquê. O encontro com o
real não está situado no nível do pensamento, mas no nível
onde a “fala oracular” produz não-senso, aquilo que não pode
ser pensamento. (Fink, 1997, p. 241-242)
Nesta citação vemos que o nível em que Lacan está colocando o Real é
o do recalcado originário. Já no domínio do autômaton, Lacan inclui o retorno do
recalcado, que, em sua qualidade de formação do inconsciente, é regido pelo
princípio do prazer.
A compulsão à repetição não está ligada ao retorno da necessidade, nem
se assenta na natureza. Ela demanda algo novo; e é neste sentido que Lacan
(1964) sustenta que o encontro com o Real se apresentou pela primeira vez a
135
Freud sob a forma de trauma, pelo que ele tem de inassimilável. O que não pode
ser nomeado é o trauma, que passa a ser identificado, em Lacan, com a coisa
da linguagem. No entanto, ele será “tamponado pela homeostase subjetivante
que orienta todo o funcionamento definido pelo princípio do prazer” (Lacan, 1990
[1964], p. 57).
Para exemplificar melhor o assunto, recorro ao sonho do pai velando seu
filho, relatado por Freud no capítulo VII de A interpretação de sonhos (1900),
para, logo em seguida, discutir os comentários que Lacan faz sobre ele, nas
lições 3, 5 e 6 do Seminário 11.
(...) um pai estivera de vigília à cabeceira do leito de seu filho
enfermo por dias e noites a fio. Após a morte do menino, ele foi
para o quarto contíguo para descansar, mas deixou a porta
aberta, de maneira a poder enxergar de seu quarto o aposento
em que jazia o corpo do filho, com velas altas a seu redor. Um
velho fora encarregado de velá-lo e se sentou ao lado do
corpo, murmurando preces. Após algumas horas de sono, o pai
sonhou que seu filho estava de pé junto a sua cama, que o
tomou pelo braço e lhe sussurrou em tom de censura: ‘Pai, não
vês que estou queimando?’ Ele acordou, notou um clarão
intenso no quarto contíguo, correu até lá e constatou que o
velho vigia caíra no sono, e que a mortalha e um dos braços do
cadáver de seu amado filho tinham sido queimados por uma
vela acesa que tombara sobre eles.
(Freud, 1987 [1900], p. 468)
Ao invés de querer entender porque o pai continuou dormindo, como fez
Freud, Lacan se pergunta o que precisamente o despertou, posto que é “no
sonho somente que se pode dar esse encontro verdadeiramente único. Só um
rito, um ato sempre repetido, pode comemorar esse encontro imemorável – pois
que ninguém pode dizer o que seja a morte de um filho – senão o pai enquanto
pai – isto é, nenhum ser consciente” (Lacan, 1990 [1964], p. 60).
No sonho da “criança queimando” (Freud, 1900 apud Lacan, 1964), o
lugar do Real, que vai do trauma (esse ponto de encontro) à fantasia (como
construção simbólica), encontra-se representado nas coisas que testemunham
que não se trata de um sonho – a saber, um acidente como o da vela que cai,
queimando o quarto onde jaz o filho morto ou, então, a própria voz do filho morto
clamando ao pai por socorro (Lacan, 1990 [1964], p. 59).
Em Algumas notas adicionais sobre a interpretação dos sonhos como um
todo, Freud diz que o sonho é uma fantasia a trabalhar em prol da manutenção
do sono” (Freud, 1976 [1925], p. 159). Logo, se o sonho desempenha bem sua
função, quando acorda o sujeito nada sabe dele, nem de sua missão. Contudo,
se, mesmo após vários anos, o sujeito lembrar dos sonhos, isso significa que
136
houve uma irrupção do inconsciente recalcado no eu normal (Freud, 1925). No
retorno a Freud de Lacan, por outro lado, lê-se que, entre o sonho e o despertar,
além desta função do sonho, ser o guardião do sono, existe ainda uma função
secundária, mas tão importante quanto a primeira e que aparece pela primeira
vez após o sonho da “criança queimando”. Para Lacan, o sonho não ocorre para,
com isso, proteger o sono: o que desperta o sonhador é algo de uma outra
realidade. Lacan supõe que a realidade faltosa que causou a morte da criança
passa pelas palavras de reproche “Pai, não vês que estou queimando?”. Para
ele, o que elas perpetuam é exatamente o remorso (o fracasso) do pai, por ter
escolhido uma pessoa que não estava à altura da tarefa que lhe havia sido
determinada. Desta maneira, a não interrupção do sonho se revela como uma
homenagem à realidade que só continuou a se dar através da compulsão à
repetição, “num infinitamente jamais atingido despertar” (Lacan, 1990 [1964], p.
60). Assim, enquanto para Freud o sonho é somente o que prolonga o ato de
dormir, para Lacan é justamente o oposto: contra o desejo da consciência, é o
próprio sonhar que desperta o sonhador para a realidade da morte do filho, no
Real.
(...) o encontro, sempre faltoso, se deu entre o sonho e o
despertar, entre aquele que dorme ainda e cujo sonho não
conheceremos e aquele que sonhou para não despertar. (...)
Pois não é que, no sonho, se sustente que o filho vive ainda.
Mas o filho morto pegando seu pai pelo braço (...) designa um
mais-além que se faz ouvir no sonho. O desejo aí se
presentifica pela perda imajada ao ponto mais cruel, do objeto.
É no sonho somente que se pode dar esse encontro
verdadeiramente único. (Lacan, 1990 [1964], p. 60)
Reparem ainda no acento que Lacan coloca na realidade das palavras de
apelo da criança, ao dizer “Pai, não vês...” e sacudir o braço do pai. Há uma
reprimenda endereçada ao pai, que se sublinha através da questão do olhar.
Lacan observa ainda que não é pelo barulho da vela que cai ou o fogo que
consome o quarto ao lado, feitos para chamá-lo, que esse pai desperta. Logo, é
uma
(...) outra realidade – realidade que se passa na ruptura entre
percepção e consciência, que constitui o inconsciente – essa
Outra cena é que desperta o sujeito. E que realidade é esta,
mais real que o barulho ou o clarão das chamas? Lacan
responde dizendo que é uma realidade que queima, ‘no real’. O
sonho queima – trata-se de um sonho de angústia – por
fornecer a esta outra realidade, ao real foracluído do simbólico,
uma imagem (...). (Costa-Moura, 2002 [2001], p. 72).
137
Assim, o prolongamento do sono permite ao pai evitar se encontrar diante
da morte da criança. Um encontro faltoso, um tropeço entre um pai e um filho,
passou-se entre o sonho e o despertar, entre aquele que dorme ainda (a criança
morta ou o velho?) e de quem não conheceremos jamais os sonhos, e o pai, que
produziu um sonho essencialmente traumático para, através dele, prolongar a
vida do filho que ele não conseguiu salvar. Por sua vez, é o encontro do barulho
e do clarão das chamas com o significante queimando que evoca a Freud a
febre da criança e propicia que se produza esse sonho que, posteriormente,
adquire para esse pai impotente
71
um valor traumático.
Na lição de 21/01/1970 do Seminário 17, Lacan afirma que Freud não
emprega em seus textos a expressão necessidade de dormir mas desejo de
dormir, o que é totalmente diferente:
O curioso é que ele [Freud] completa essa indicação
com o seguinte – um sonho desperta justamente no momento
em que poderia deixar escapar a verdade, de sorte que só
acordamos para continuar sonhando – sonhando no real, ou,
para ser mais exato, na realidade.
(Lacan, 1994 [1969-1970], p. 54)
Assim, o sujeito acorda quando algo da ordem do Real interfere no sonho, como
no sonho de angústia. O ato de despertar, portanto, permite àquele que acordou
prosseguir fantasiando. Neste sentido, para Lacan (1964), Freud pôde confirmar
no sonho da “criança queimando” sua teoria do sonho como realização de
desejo, mesmo que o sonho traumático contradiga a tese do sonho como
guardião do sono – o desejo manifesta-se aí pela perda imajada do objeto,
através do gesto da criança que pega o pai pelo braço.
Por sua vez, em um seminário anterior ao 17, Lacan (1964) já sugerira
que, por meio do sonho da “criança queimando”, Freud havia apresentado sua
elaboração final à respeito da compulsão à repetição, apesar dela só ter surgido
como conceito mais tarde. Sobre o assunto da compulsão à repetição, lembro
que, no Além do princípio do prazer, Freud (1920) revisa os conceitos de
princípio do prazer e princípio de realidade, à luz das experiências com traumas
de guerra, que lhe pareciam inassimiláveis. É neste contexto que Lacan introduz
a questão dos sonhos. Geralmente associados ao princípio do prazer autômaton,
com Lacan os sonhos encarnam o desejo do sonhador embora também portem,
sob uma forma velada, a cena traumática, parte essencial da ordem do Real.
Falando do sonho da “criança queimando”, Lacan diz: “O real, é para além do
71
A impotência paterna frente ao ocorrido é fator relevante para que o sonho adquira valor
traumático.
138
sonho que temos que procurá-lo – no que o sonho revestiu, envelopou, nos
escondeu, por trás da falta de representação, da qual só existe um lugar-
tenente” (Lacan, 1990 [1964], p. 61). Logo, se antes desta frase Lacan pareceu
sugerir que o Real se apresentava facilmente em sonhos, aqui ele esclarece que
só é possível encontrar o seu representante no sonho, posto que a
representação do Real é faltosa per se. O que se repete, no sonho, é sempre
algo que se produz como por acaso.
3.1.6
Operadores da divisão do sujeito
Não há sujeito sem, em alguma parte, afânise do
sujeito, e é nessa alienação, nessa divisão fundamental, que se
institui a dialética do sujeito. (Lacan, 1990 [1964], p. 209)
Tratarei agora de duas operações lógicas constituintes do sujeito – a
alienação e a separação – e que estão intimamente referidas ao trauma
estruturante na obra lacaniana após 1964.
No passado, Lacan já havia utilizado o termo alienação em outro
contexto. No artigo sobre o estádio do espelho, publicado em 1949, Lacan
trabalha o tema da alienação imaginária a propósito da constituição do eu [Je]:
“alienação à imagem que lhe é devolvida pelo espelho e com a qual se identifica
por meio do olhar do Outro” (Berendonk, 2005, p. 50). De acordo com Lacan
(1949), o eu conserva uma dimensão imaginária, na medida em que se constrói
a partir da imagem daqueles com os quais se identificou em seu percurso.
Justamente o fato de se constituir a partir da identificação com uma “imagem –
sempre mais ou menos fixa – e de identificação com o outro”, faz com que o “eu
tenha qualquer coisa de coagulado, e, ao mesmo tempo, qualquer coisa de
alienante” (Chemama & Vandermersch, 2007 [2005], p. 29).
Mas não é nessa acepção de alienação imaginária que iremos nos deter.
Lacan volta ao termo alienação, mas num sentido diverso, ao introduzir em 1964
dois operadores, a alienação e a separação, que estão em jogo na constituição
do sujeito e dizem respeito ao fato de que o sujeito é produzido dentro da
linguagem que o aguarda, e é inscrito no lugar do Outro. Assim, o sujeito
depende do significante, que está inicialmente no campo do Outro.
139
Tudo surge da estrutura do significante. Essa estrutura
se funda no que primeiro chamei a função de corte, e que se
articula agora, no desenvolvimento do meu discurso, como
função topológica de borda.
A relação do sujeito ao Outro se engendra por inteiro
num processo de hiância. (Lacan, 1990 [1964], p. 196)
No detalhamento lógico dessas operações Lacan utiliza as noções
matemáticas conhecidas como união
72
( ) e interseção ( ) na teoria dos
conjuntos. Segundo esta teoria, a união de dois conjuntos é diferente de sua
interseção. Dito de outro modo:
A união dos conjuntos A e B é o conjunto de todos os elementos que pertencem
ao conjunto A ou ao conjunto B.
A
B = { x: x A ou x B }
Exemplo: Se A={a,e,i,o} e B={a,n} então A B={a,e,i,o,n}.
Em contrapartida, a interseção dos conjuntos A e B é o conjunto de todos os
elementos que pertencem ao conjunto A e ao conjunto B. Neste sentido, a
interseção isola aquilo que pertence a ambos os conjuntos.
A B = { x: x A e x B }
Exemplo:
Logo, se A={a,e,i,o,u} e B={a,n} então A B=a.
Lacan resgata também da lógica matemática as noções de vel de
exclusão e de vel de união para, a partir delas, propor um novo termo: o vel da
escolha forçada, concernente à alienação, e que depende da forma lógica da
união.
72
Escolhi usar o conceito matemático união dos conjuntos (ao invés de reunião, como aparecem
em algumas traduções) ao longo da tese, por julgar ser mais correto.
140
O vel da alienação se define por uma escolha cujas
propriedades dependem do seguinte: que há, na união, um
elemento que comporta que, qualquer que seja a escolha que
se opere, há por consequência um nem um, nem outro. A
escolha aí é apenas a de saber se a gente pretende guardar
uma das partes, a outra desaparecendo em cada caso.
(Lacan, 1990 [1964], p. 200)
Resumidamente, a partir de Lacan (1964), há então três tipos de vel: 1º)
eu vou ou para lá ou para cá (vel de exclusão): se eu vou para lá, logo não
posso ir para cá, tenho que escolher; 2º) vou para um lado ou para o outro, tanto
faz, dá na mesma (vel de união); 3º) vel de escolha forçada, que se apoia na
forma lógica da união. Este é o vel da alienação, que comporta sempre uma
perda: de um lado o sujeito aparece como sentido, produzido pelo significante e,
de outro, ele desaparece como afânise.
73
(...) o vel da alienação define-se por uma escolha onde se deve decidir qual dos
conjuntos se deseja manter, sendo que o outro conjunto inteiro desaparece,
incluindo a interseção. Neste caso, sempre uma mesma parte acaba também
desaparecendo seja qual for a escolha, razão pela qual esta será dita uma
escolha forçada. (Berendonk, 2005, p. 52)
O vel da alienação pode ser ilustrado pela alternativa “a bolsa ou a vida”.
No esquema reproduzido logo acima, se escolho qualquer um dos dois
elementos – bolsa ou vida – algo se perde necessariamente. Escolhendo a
bolsa, perco as duas coisas: tanto a bolsa quanto a vida. Em contrapartida,
escolhendo a vida, perco a bolsa; fico com a vida amputada da bolsa.
73
Afânise: “desaparecimento do próprio sujeito, em sua relação com os significantes, de acordo
com Lacan” (Chemama & Vandermersch, 2007 [2005], p. 24).
abolsa
141
Assim, a escolha incide sobre aquilo que o sujeito vai aceitar perder. O que
ocorre é que forçosamente se escolhe a vida, e no vel da alienação também, se
escolhe o sentido.
Assim, quando alguém nos diz “a bolsa ou a vida”, só temos
uma única escolha real: obviamente escolhemos a vida. E
nesse caso a bolsa é perdida (falsa) e o vel é verdadeiro.
Existe apenas uma outra possibilidade (...): tem-se a
possibilidade de perder as duas. Mas a principal possibilidade
para nós é a escolha da vida; logo, perde-se a bolsa, e neste
caso a vida é apenas meia-vida, uma vida em que algo (o
dinheiro) está faltando. Este vel sempre exclui um só e mesmo
termo – a bolsa (...). (Soler, 1997b, p. 60-61)
Chemama e Vandermersch (2007 [2005]) propõem um esquema
diferente dos aqui já mencionados, na medida em que, segundo eles, a
demonstração de Lacan só faz sentido a partir dos dois conjuntos acima
representados (ver esquema anterior sobre “a bolsa ou a vida”), se se distinguir
o elemento bolsa do conjunto bolsa.
Assim, a partir do esquema proposto por Chemama e Vandermersch e
que não consta do texto de Lacan, “o elemento bolsa está por inteiro na parte do
conjunto bolsa que constitui a interseção com o conjunto vida. Se escolho a
bolsa, (...) perco tudo.” (Chemama & Vandermersch, 2007 [2005], p. 30).
A partir de “a bolsa ou a vida” Lacan tenta esclarecer as possíveis
consequências desse vel no que diz respeito à relação do sujeito ao significante:
a suspensão do sujeito, sua vacilação, a queda de sentido no discurso. Logo, a
alienação – que, de acordo com Lacan, é estruturante – faz um remetimento
permanente e circular de um “ou” a outro “ou”, de um “nem” a outro “nem”; há
uma vacilação subjetiva radical, em que esse “ou” e esse “nem” são sinônimos
de mutilação (não sendo, portanto, uma alternância). Assim, no exemplo de
a
bolsa
a vida
142
Lacan sobre a divisão do sujeito, quando o sujeito aparece em algum lugar como
sentido, noutro ele se manifesta como fading – o sujeito desaparece, ele nos
escapa, cai no não-senso: “(...) na operação do vel entre o ser e o sentido, a
escolha forçada do sentido se dá às custas da perda de uma parte de não-
senso” (Berendonk, 2005, p. 52).
O esquema acima opõe o ser ao sentido e, nele, se escolhemos o sentido, “o
sentido subsiste decepado dessa parte de não-senso, que é, propriamente
falando, o que constitui na realização do sujeito, o inconsciente” (Lacan, 1990
[1964], p. 200).
Na tentativa de dar à alienação o estatuto de um conceito, apoiado em
uma formalização, Lacan precisa o que ele entende por sujeito e Outro, no
capítulo 16 do Seminário 11. Ali, define o Outro como “o lugar em que se situa a
cadeia do significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do
sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer” (Lacan, 1990
[1964], p. 193-194). Para Lacan, o Outro precede o sujeito e fala sobre ele antes
mesmo de seu nascimento. Neste sentido, há uma lógica que precede o sujeito,
que não é concomitante ao seu surgimento, é sim anterior a ele. Lacan entende
que o sujeito é, na verdade, efeito de linguagem e de fala (ou melhor, efeito de
significante); ele se constitui a partir do campo do Outro – campo do Outro como
lugar de significantes e da fala, como diz Lacan no Seminário 11. Antes disso, só
existe sujeito por vir.
O sujeito nasce no que, no campo do Outro, surge o
significante. Mas por este fato mesmo, isto – que antes não era
nada senão sujeito por vir – se coagula como significante.
(Lacan, 1990 [1964], p. 187)
(...) por nascer como significante, o sujeito nasce dividido. O
sujeito é esse surgimento que, justo antes, como sujeito, não
era nada, mas que, apenas aparecido, se coagula em
significante. (ibidem, p. 188)
o ser
(o sujeito)
O sentido
(o Outro)
O não-
senso
143
A entrada do sujeito no campo discursivo é, portanto, traumática, na
medida em que ele se encontra, de saída, alienado ao desejo do Outro, ao seu
discurso. O sujeito, se parece servo da linguagem, ele o é mais ainda de um
discurso em cujo movimento universal seu lugar já está inscrito desde seu
nascimento, ainda que seja sob a forma de seu nome próprio. Contudo, embora
se sujeite à linguagem, ele também ganha algo, pois se torna um sujeito “da/na
linguagem”, permitindo-se representar, assim, por palavras. Lacan admite que
sempre existe uma escolha forçada por parte do sujeito, já que é possível negar
a subjetividade. O sujeito até pode não adotar esta posição dividida ao não se
sujeitar ao Outro como linguagem, embora isto acarrete necessariamente uma
perda de si mesmo: é o que acontece, por exemplo, no autismo.
Na sequência de sua formalização das operações constituintes do sujeito,
Lacan apresentou, também no capítulo 16 do Seminário 11, o que chamou de
separação: uma segunda operação lógica, equivalente a um retorno, assim
como a um corte, hiato e escansão. Enquanto que a primeira operação – a
operação alienante – se fundamenta na subestrutura da união, a segunda se
situa exatamente na interseção. “Na separação trata-se da possibilidade de se
recuperar algo do que está na interseção, e que, pela união, havia sido perdido.”
(Berendonk, 2005, p. 53). A separação envolve o confronto do sujeito alienado
com o Outro, dessa vez não com o Outro como linguagem, mas como desejo.
O Outro materno precisa mostrar algum sinal de
incompletude, falibilidade, ou deficiência para a separação se
concretizar e para o sujeito vir a ser como $; em outras
palavras, o Outro materno deve demonstrar que é um sujeito
desejante (e dessa forma também faltante e alienado), que
também se sujeitou à ação da divisão da linguagem, para que
testemunhemos o advento do sujeito. (Fink, 1998 [1995], p. 76)
A separação introduz, do lado do Outro, a questão da existência da falta
do sentido: são os intervalos do discurso e o enigma do desejo do Outro. Do lado
do sujeito, por sua vez, a separação aponta para a necessidade que o sujeito
tem – na medida em que o ser lhe falta – de se engendrar, se parere, se parare.
“Lacan faz jogar o equívoco dessa palavra [separação] com se parer
74
(se
arrumar, mas também se defender, se munir do que é preciso para se pôr em
guarda), e igualmente com o verbo latino se parere (se engendrar).” (Chemama
& Vandermersch, 2007 [2005], p. 31). Assim, a separação é uma tentativa por
parte do sujeito alienado de lidar com esse desejo do Outro na forma com que
ele se apresenta no mundo do sujeito.
74
Na língua francesa, a expressão se parer é homófona de separer.
144
É no intervalo entre esses dois significantes que vige o
desejo oferecido ao balizamento do sujeito na experiência do
discurso do Outro, do primeiro Outro com o qual ele tem que
lidar, ponhamos, para ilustrá-lo, a mãe, no caso. É no que seu
desejo está para além ou para aquém do que ela diz, do que
ela intima, do que ela faz surgir como sentido, é no que seu
desejo é desconhecido, é nesse ponto de falta que se constitui
o desejo do sujeito. (Lacan, 1990 [1964], p. 207)
Em suma, no início o sujeito é fundamentalmente objeto do gozo do
Outro (Laurent, 1997b). É uma parte perdida de um Outro Real – cujo protótipo é
a mãe –, vivendo no lugar de objeto. Mais adiante, se identifica com aquela parte
perdida – por não ter identidade, o sujeito acaba por se identificar a algo,
ingressando na rede de significantes. Assim, o sujeito tenta assumir suas
identificações primárias: com o significante-mestre ou, ainda, como o objeto a
ser definido por ele próprio no final: “É a identificação completa: aquilo que ele foi
como tal, no desejo do Outro, não apenas no nível simbólico do desejo, mas
como substância real envolvida no gozo. Ele só pode tentar recuperá-lo ou
identificá-lo dentro do desenvolvimento da cadeia de significantes.” (Laurent,
1997b, p. 44).
A introdução dos conceitos de alienação e separação permitiu a Lacan
(1964) retomar, de uma outra maneira, a relação do sujeito com o significante e
o objeto (Vandermersch, 2000). A alienação em Lacan se define não só como
dependência do Outro, mas também como uma divisão lógica em que o
significante produz o sujeito. É a relação mais precisa desse sujeito com o
significante, embora não se sustente sem que haja um segundo operador: a
separação. “A alienação dá ao sujeito uma relação com a morte – não com a
morte real, mas com a morte como significante.” (Vandermersch, 2002 [2000], p.
42). Já na separação o que se dá é que duas faltas se articulam: a do sujeito e a
do Outro.
145
3.1.6.1
Indicações millerianas sobre alienação e separação
Ao contrário do que havia feito com o conceito de alienação, em 1964
Lacan não apresenta aos seus interlocutores indicações gráficas da separação.
De acordo com Éric Laurent (1997a), no entanto, estas fórmulas foram
oferecidas por Miller. Segundo ele, a primeira falta está referida ao fato de que o
sujeito não pode ser inteiramente representado no campo do Outro: sempre algo
resta. “Não se pode apresentar aí todo o sujeito. O caráter fundamental parcial
das pulsões introduz uma falta, que Lacan designa marcando o sujeito com uma
barra ($)
75
.” (Laurent, 1997a, p. 37).
Alienação em J.-A. Miller (apud Laurent, 1997a, p. 37)
A partir disso, têm-se uma segunda falta – concernente à operação lógica
da separação –, que pressupõe uma atividade por parte do sujeito, atividade
esta que tem por objetivo fazer com que ele não se represente somente através
daquilo que é para o Outro, do que esse Outro lhe diz ou faz.
75
Sujeito barrado, sujeito fendido, sujeito dividido – escritas sob o mesmo símbolo ($): para Lacan,
a notação $ representa que o sujeito está barrado pelo que o constitui propriamente enquanto
função do inconsciente. Essa divisão é produto do funcionamento da linguagem no sujeito
quando ele começa a falar ainda criança.
$
––>
S
2
S
1
Sujeito Outro
Sentido
Ser
146
Ao final do processo de alienação e separação obtém-
se como resultado a divisão de ambos, sujeito e Outro.
Nenhuma destas partes estava lá, no início, tal como se
apresentam agora. A separação resulta num tipo de interseção
onde algo do Outro (...), que o sujeito considerava como uma
parte sua, lhe é arrancado e conservado, na fantasia, pelo
sujeito, agora dividido. (Berendonk, 2005, p. 56)
Neste contexto, o Outro pode ser entendido como o lugar onde um
significante
S
1
se encontra em relação com um outro significante S
2
. Ou seja,
para se definir a estrutura do Outro precisamos de pelo menos dois significantes:
S
1
–>
S
2
.
Separação em J.-A. Miller (apud Laurent, 1997a, p. 37)
No esquema da Separação em J.-A. Miller, os dois significantes
S
1
–>
S
2
se
encontram situados no círculo do Outro, o objeto a
76
na interseção onde o
significante unário (S
1
) esteve no esquema da Alienação, e o sujeito ($) no outro
círculo.
A partir deste remetimento de um significante a outro a operação de
separação faz surgir, além do sujeito ($), também
um resto – o objeto a –, que
no caso se circunscreve tanto no campo do sujeito quanto no campo do Outro,
sendo ambas as faltas superpostas. Contudo, existem condições para que esta
superposição (sempre incompleta) aconteça: o “Outro deve demonstrar que é
um sujeito desejante (e assim também portador de uma falta e alienado), que
também se sujeitou à divisão da linguagem, para que testemunhemos o advento
do sujeito” (Berendonk, 2005, p. 56).
76
Segundo Lacan, objeto causa do desejo. Ele não é um objeto do mundo, não é representável
como tal. O objeto a “só pode ser identificado sob a forma de “fragmentos” parciais do corpo,
redutíveis a quatro: o objeto da sucção (o seio), o objeto da excreção (as fezes), a voz e o olhar”
(Chemama & Vandermersch, 2007 [2005], p. 278).
$ S
1
–>
S
2
a
Sujeito Outro
147
3.1.6.2
Variações do conceito de vel alienante
Nos Seminários 14 e 15, o conceito da alienação aparece nos textos de
uma maneira diferente, se comparado a como ele foi apresentado antes. A idéia
de separação desaparece após 1964 e o termo alienação passa a significar tanto
a alienação quanto a separação desenvolvidas entre 1960-1964. Lacan adapta
ao vel alienante entre o ser ou sentido – vel que implica necessariamente uma
perda – a negação própria da dualidade de De Morgan
77
, negação que é a chave
de tudo o que é postulado posteriormente. Passa-se ainda da alienação entre
ser e sentido e da operação da separação para a variante do cogito ergo sum de
Descartes
78
, uma variante inventada por Lacan e que deriva da aplicação da
negação de De Morgan.
De acordo com Lacan, em lugar de haver um momento ideal como o que
Descartes havia proposto em que pensar e ser coincidem, o sujeito é forçado a
escolher um ou outro. Ele pode ter pensamentos ou existir, mas nunca ambos ao
mesmo tempo.
79
O cogito cartesiano “penso, logo sou”
80
transforma-se assim na
fórmula lógica “ou eu não penso ou eu não sou”, que resolve alguns dos
77
Um matemático chamado De Morgan desenvolveu um par de regras complementares usadas
para converter a operação “ou” em “e” e vice-versa. Para duas variáveis a lei é:
e
Assim, quando quebramos a barra longa no primeiro termo, a operação abaixo da barra se
transforma de multiplicação para soma e vice-versa.
Quando existem várias barras em uma expressão, você deve quebrar uma barra por vez,
aplicando a regra cima.
78
Sobre o cogito cartesiano, cf. Discurso sobre o método (Descartes, 2008 [1637]) e Meditações
sobre a filosofia primeira (Descartes, 2008 [1641]). Aqui, basta saber que, segundo Descartes,
um ponto no qual o pensamento e a existência se sobrepõem; quando o sujeito cartesiano afirma
“eu penso”, ser e pensar coincidem neste justo momento. É o fato dele pensar que o sustenta
enquanto ser. Para Lacan, é o sujeito do cogito cartesiano que é subvertido, posto que é aquele
que se sujeita à lei do significante e do desejo. Tal método cartesiano o levou, pela primeira vez, a
definir o Real como impossível: “o cogito é o ponto de partida lógico da explicação do real pelo
impossível, na medida em que ele liga o fundamento da ciência à certeza de um sujeito” (Porge, E.
apud Kauffman, 1996, p. 509).
79
Ressalto que Descartes estudou o pensamento consciente, enquanto o que interessou a Lacan,
assim como a Freud, foi sempre o pensamento inconsciente.
80
Tradução livre. Na versão em espanhol: “pienso entonces soy” (Lacan, 1991 [1966-1967], p. 22).
148
impasses das operações de alienação e separação. Essa dupla negação “ou eu
não penso ou eu não sou” permite reformular, através da ilustração gráfica que
reproduzo logo a seguir, o funcionamento dessa disjunção, que se baseia em um
não excludente.
Ao considerarmos o uso do termo “pensar” quando Lacan se refere ao
pensamento inconsciente como disjunto da subjetividade, então temos nesta
ilustração do Grupo de Klein, apresentada nos Seminários 14 e 15, um exemplo
claro daquilo que o autor chama de sujeito dividido. O canto direito superior do
esquema “ou eu não penso ou eu não sou” fornece uma definição de quem seria
este sujeito:
A alternativa ou/ou significa que somos obrigados a nos
situar em algum outro canto deste grafo. O caminho da mínima
resistência (...) é negar o inconsciente (negar atenção aos
pensamentos que estão se desenvolvendo no inconsciente),
um tipo de prazer, no falso ser (canto esquerdo superior).
(Fink, 1998 [1995], p. 66)
O sujeito encontra-se de saída alienado, fendido. A divisão é, no entanto,
o que possibilita sua própria existência, já que o sujeito advém como uma forma
de atração na direção de uma experiência primária de prazer/dor ou trauma e
como uma espécie de defesa contra esse mesmo prazer que lhe é excessivo
(esmagador, embora fascinante). Ele se divide entre o consciente (canto
esquerdo superior) e a cadeia de significantes – tais como as palavras, fonemas,
letras (canto direito inferior).
$ que estava
lá no início
Alienação
Ou eu não penso ou eu não sou
(
escolha alienante
)
Ou eu não penso
Ou eu não sou
Ilustração gráfica do Grupo de Klein do Seminário 15
149
De acordo com a teoria lacaniana, todo ser humano
que aprende a falar é, dessa forma, um alienado – pois é a
linguagem
81
que, embora permita que o desejo se realize, dá
um nó nesse lugar, e nos faz de tal forma que podemos desejar
e não desejar a mesma coisa e nunca nos satisfazermos
quando conseguimos o que pensávamos desejar, e assim por
diante. (Fink, 1998 [1995], p. 23)
Esta fórmula lógica “ou eu não penso ou eu não sou” interessa a Lacan
pois não é uma dupla negação no sentido habitual, em que duas negações se
anulam entre si, produzindo um resultado positivo. Ela introduz uma outra
função, que conserva a formalização de uma perda. Qualquer postura adotada
pelo sujeito em relação ao desejo do Outro (o desejo da mãe, de um dos pais ou
ambos), uma vez que aquele desejo provoca o desejo do sujeito, remete a uma
perda. Enquanto uma escolha impossível entre o “eu não penso e o “eu não
sou”, pode ser resumida em matemática como:
Este enunciado, conhecido pela lógica simbólica como teorema de De
Morgan, representa uma verdadeira descoberta: a negação da conjunção de
duas proposições (por exemplo, quando se diz que não é verdadeiro que A e B
sejam sustentáveis conjuntamente), equivale à união da negação de cada uma.
A lei da dualidade permite, assim, transformar uma
operação em outra – a união em interseção e a interseção em
união – usando a negação. Não há, no Seminário 11, uma
transformação assim mediada por uma negação, isso é, uma
perda – exceto o uso que Lacan faz da “perda sem volta” na
passagem entre ambas as operações, pensada topológica mas
não logicamente – que relacione a operação de alienação e a
operação de separação. (Rabinovich, 2000, p. 63)
A lei da dualidade de De Morgan implica uma perda inevitável, forçada.
Existe um “pensar sem eu” e um “ser sem eu”, o que introduz a noção do
conjunto vazio, igualando-a ao sujeito. Ou seja, a opção da alienação, formulada
como “ou eu não penso ou eu não sou”, assegura o sujeito mesmo que de uma
maneira velada, já que com isso ele passa a se reconhecer como um ser em
falta.
81
Muito resumidamente, quando Lacan se refere à linguagem, ele a entende enquanto aquilo que
constitui o inconsciente. Nas palavras de Fink (1998 [1995], p. 25-26): “(...) a linguagem, da
forma como opera ao nível do inconsciente, obedece a um tipo de gramática, ou seja, a um
conjunto de regras que comandam a transformação e o deslizamento que existe dentro dela. O
inconsciente, por exemplo, tem uma tendência a quebrar as palavras em suas mínimas
unidades – fonemas e letras – e a recombiná-las como pareça adequado (...)”.
150
Lacan aplica essa operação alienante ao cogito ergo sum, no Seminário
14. Para isso, escreve a união dos conjuntos cogito e sum, situando ergo no
lugar da interseção. O cogito cartesiano pode ser considerado, desse modo,
como a interseção entre os conjuntos cogito e sum. Sendo assim, pensar e ser
excluem-se mutuamente e a interseção entre ambos implica a própria negação.
Aplicada ao cogito, a lei de dualidade permite
transformar a relação entre pensar e ser no âmbito da teoria
psicanalítica. Não podem ser verdadeiros simultaneamente o
pensar e o ser, se é introduzida a negação própria da lei de
dualidade no cogito. A transformação dá como resultado um
“não sou” e um “não penso”. O “não sou” situa-se do lado do
sum e o “não penso” do lado do cogito. O destino dessa
transformação, de agora em diante, afasta-se de Descartes, e
passa a funcionar estritamente no campo da psicanálise e não
é um comentário “filosófico”. (Rabinovich, 2000, p. 64)
De acordo com Lacan (1966-1967), costumamos negligenciar que a
negação assim introduzida afeta o eu [Je]: a partir do momento em que o Je foi
escolhido como instauração do ser, é em direção ao “eu não penso” que se deve
ir, posto que o pensamento é constitutivo justamente por uma interrogação sobre
o não ser. Assim, a dimensão do Outro, que segundo Lacan é essencial, está no
cerne do cogito cartesiano. Ela configura o limite do que pode se definir e se
assegurar melhor como o conjunto vazio que constitui o “eu sou”, nesta
referência ao Je, como puro e único fundamento do ser. “O “eu sou” não é outro,
definitivamente, senão o conjunto vazio, já que ele se constitui por não conter
nenhum elemento. O “eu penso” não é, de fato, nada além da operação de
esvaziamento do conjunto do “eu sou” ” (Lacan, 1967-1968, p. 176).
Já o “eu não sou” significa que não há elemento deste conjunto que
exista sob o termo Je: isto quer dizer que, ao nível significante, não há “nada que
permita ao sujeito se assumir como um eu [Je] desejante. O eu [Je] está
foracluído. Esta é a falta estrutural do sujeito (...)” (Rabinovich, 2000, p. 75). Este
cogito
“não penso”
sum
“não sou”
ergo
151
reencontro deixa claro que o “eu penso” tem semelhante roupagem, na medida
em que este “pensar sem eu” (que é o pensar inconsciente) também exige uma
perda.
(...) o “sou” implica o fundamento do sujeito do “penso”, na
medida em que dá esta aparência, pois não é mais que uma
aparência de ser transparente a si mesmo, de ser o que
podemos chamar de “sou pensado”. (...) ao nível de Descartes
e do cogito é de um “sou pensado” (suis-pensée) que se trata
(...).
82
(Lacan, 1991 [1966-1967], p. 36)
Esse “eu penso” implica algo revelado pelo “logo sou” do cogito
cartesiano. Assim, no lugar onde mais “eu penso” (na ilustração do Grupo de
Klein, em direção ao canto esquerdo inferior) é que o sujeito dividido assume
(posteriormente) para si a responsabilidade frente àquela experiência traumática
de prazer/ dor ou gozo que o constituiu.
Onde uma vez reinou o discurso do Outro, dominado
pelo desejo do Outro o sujeito é capaz de dizer “Eu”. Não
“Aconteceu comigo”, ou “Eles fizeram isso comigo” ou “O
destino tinha isso guardado para mim”, mas “Eu fui”, “Eu fiz”,
“Eu vi”, “Eu gritei”. (...)
Se pensarmos o trauma como o encontro da criança
com o desejo do Outro – e muitos casos de Freud sustentam
essa visão (considere, para citar somente um exemplo, o
encontro traumático do pequeno Hans com o desejo de sua
mãe) – o trauma funciona como a causa da criança: a causa de
seu advento como sujeito e da posição que a criança assume
como sujeito em relação ao desejo do Outro.
(Fink, 1998 [1995], p. 86)
Mas e esse “ou eu não penso ou eu não sou”? Segundo Lacan, na
articulação do “eu não sou” está o essencial do inconsciente, referindo-se à
questão da surpresa. “Para estar lá como inconsciente, não é necessário ainda
que eu pense, como pensamento, em que consiste o inconsciente. Lá onde eu o
penso, é para não mais estar lá.” (Lacan, 1967-1968, p. 83). Neste sentido, o
lugar do “eu não penso” está marcado por essa forma de sujeito que aparece
como que arrancado do campo a ele reservado.
O fundamento desta surpresa, tal como aparece no nível de toda
interpretação verdadeira, não é outra coisa que esta dimensão do “eu não sou”.
O que se passa ali onde “eu não sou” é algo que pode ser retomado, na opinião
de Lacan, na mesma forma de inversão que nos tem guiado todo o tempo. Quer
82
Tradução livre. Na versão em espanhol: “(...) el “soy” que implica el fundamento del sujeto del
”pienso”, en tanto que dá esta apariencia, pues no es más que una apariencia de ser
transparente a sí mismo, de ser lo que podremos llamar un “soy pensado”. (...) al nivel de
Descartes y del cogito es de un “soy pensado” (suis-pensée) que se trata (...)” (Lacan, 1991
[1966-1967], p. 36).
152
dizer, o “eu não penso” se inverte e o sujeito se aliena outra vez em um “pensa-
coisa”, o que Freud articula sob a forma de representação de coisas, da qual o
inconsciente, que tem por característica tratar as palavras como coisas, é
constituído” (Lacan, 1967-1968, p. 181). Logo, o “eu não penso” não conflui com
o “eu não sou”: de alguma maneira um e outro se recobrem.
Com efeito, se Freud fala dos pensamentos do sonho é
porque, atrás dessas sequências agramaticais, há um
pensamento cujo estatuto está por ser definido nisto que ele
não pode dizer nem “logo eu sou” nemlogo eu não sou”, e
Freud articula isso muito precisamente quando diz que o sonho
é essencialmente egoísta, isso implicando que o Ich do
sonhador está em todos os significantes do sonho e
absolutamente disperso, e que o estatuto que resta aos
pensamentos do inconsciente é o de ser coisas.
(Lacan, 1967-1968, 181-182)
A alienação originária, desta maneira, parte da posição do “ou eu não
penso ou eu não sou” e desemboca no “eu não penso”, para que ele ($)
possa
até ser escolhido. Deste modo, se pensarmos no papel da análise, ela parte
desse ponto do sujeito já alienado, definido pelo psicanalista pelo “eu não
penso”. Isto é, a tarefa em que o analista coloca seu analisando implica, de
saída, uma destituição subjetiva. O sujeito assim se realiza somente enquanto
falta.
Ele [o psicanalista] o põe na tarefa de um pensamento
que se apresenta, de alguma forma, em seu próprio enunciado,
na regra que o institui, como admitindo essa verdade
fundamental do “eu não penso”: que ele associe livremente,
que ele não procure saber se está ou não por inteiro, como
sujeito, se ele aí se afirma. A tarefa à qual o ato psicanalítico dá
seu estatuto é uma tarefa que já implica essa destituição do
sujeito. (Lacan, 1967-1968, p. 98)
Se o sujeito renuncia, porém, à posição de “eu não penso”, ele é impelido
para o pólo do “eu não sou”, este sim inarticulável. Mas o que resiste, vale
lembrar, não é o sujeito em análise, é o discurso, e exatamente na medida em
que há uma escolha forçada (em referência à alienação originária), onde é
impossível escolher entre o “onde eu não penso” e o “onde eu não sou”.
O retorno à alienação do sujeito na neurose (eu não penso), após ter
alcançado a posição de verdade do inconsciente (eu não sou), representa
portanto uma repetição: o sujeito articulado em seus termos deslizantes, mas
sempre pronto a escapar de um salto, a um dos quatro lugares dos vértices da
estrutura quadrangular do grupo de Klein.
153
Impondo-se como sujeito de linguagem, feito e efeito de linguagem, o
sujeito cartesiano é, a partir da descoberta do inconsciente, revisitado pela lógica
da alienação – dividido entre o ser e o pensar – “ ou eu não penso, ou eu não
sou”. Pressupõe-se nesta operação, necessariamente, a formalização de uma
perda, que é ao mesmo tempo traumática e estruturante (pois para que o sujeito
saiba o que lhe falta ou, melhor ainda, o que falta ao Outro, é necessário que ele
perca algo).
*
Após escrever sobre a acepção lacaniana do trauma, de 1952 a 1964,
assim como ressaltar em que contexto e de que maneira o autor se apropriou da
abordagem freudiana do tema, é preciso destrinchar o conceito de Real em
Lacan. O Real é solidário à noção de trauma, após os anos de 1970.
Segundo Lacan, o Real só pode ser definido em relação ao Simbólico e
ao Imaginário. Ele não é essa realidade ordenada pelo Simbólico; pelo contrário,
ele retorna a um lugar no qual o sujeito não o encontra, a não ser sob a forma de
um encontro impossível, tal como expresso em “Pai, não vês que estou
queimando?” (Freud, 1900).
Definido como impossível, o Real não pode ser simbolizado totalmente na
fala ou na escrita. O trauma, por sua vez, enquanto evento inassimilável para o
sujeito, geralmente de natureza sexual, aproxima-se do Real proposto por Lacan
na década de 1970, uma parte fundamental e originalíssima de seu trabalho e
que enriquecerá a discussão sobre o trauma exposta até agora.
Real e trauma se aproximam tanto em alguns momentos do ensino
lacaniano, ao ponto de o trauma por diversas vezes se apresentar como uma
variante do conceito de Real.
154
3.2
O trauma e o privilégio do Real
No início do ensino de Lacan, real e realidade são tratados quase como
sinônimos. Posteriormente, entretanto, em contraposição à idéia freudiana de
realidade psíquica, Lacan forja o Real: ele é o “impossível” (Lacan, 2007 [1975-
1976], p. 37), o sem-sentido que retorna incessantemente ao mesmo lugar,
questionando o sujeito e sua existência.
O Real é o que escapa à realidade psíquica e ultrapassa os campos do
Imaginário e do Simbólico, podendo ser apreendido somente através de
manifestações intrusivas na vida do sujeito, como as alucinações, ou através da
compulsão à repetição presente nos sintomas. A grosso modo, é um dos três
registros – Real, Simbólico e Imaginário – pelos quais o homem se posiciona no
mundo, ou pelos quais se ordena a experiência analítica. Mesmo sem serem
conceituados, os registros Real, Simbólico e Imaginário aparecem pela primeira
vez juntos em 1953.
83
Contudo, a idéia de Real variará muito ao longo da obra
lacaniana.
Desde essa época, a concepção de Real difere da de Simbólico e de
Imaginário. É a introdução do Simbólico que remaneja e funda os outros dois
registros. A ênfase é colocada sobre o registro do Simbólico para dar conta da
eficácia dessa experiência analítica que se passa inteiramente pautada pela fala
(parole). É desse modo que o Simbólico começa a ascender ao primeiro plano.
Com o objetivo de entender a realidade humana em sua totalidade, Lacan
enfatiza os três registros que a compõem – o Simbólico, o Imaginário e o Real –
e adianta o que postulará mais tarde sobre o conceito de Real.
83
Cf. O Simbólico, o Imaginário e o Real (Lacan, 1953c). Embora o título da conferência tenha sido
impresso em minúsculas numa edição recente da Jorge Zahar, que faz parte da coleção Campo
Freudiano no Brasil e é dirigida por Jacques-Alain e Judith Miller (Lacan, 2005 [1953c]), decidi,
ao longo dessa tese, escrever com maiúsculas os termos Imaginário, Simbólico e Real, como
uma maneira de grifar os conceitos.
155
Em primeiro lugar, uma coisa não poderia nos escapar,
a saber, que há na análise toda uma parte de real em nossos
sujeitos que nos escapa. Nem por isso ela escapava a Freud
quando este tinha de lidar com cada um de seus pacientes;
porém, naturalmente, estava igualmente fora de sua apreensão
e alcance. (Lacan, 2005 [1953c], p. 13)
Mais à frente, Lacan diz que existe um Real que não se trata na análise e
que se refere à pessoa, às suas possíveis qualidades ou falta delas. Nesta
conferência de julho de 1953, entusiasmado a partir de uma perspectiva
estruturalista com o Simbólico, Lacan pouco fala sobre o Real e, com isso, deixa
seu interlocutor decepcionado no que se refere ao tema proposto. No entanto, na
discussão posterior à conferência, alguns dados foram acrescentados, o que
possibilitou um melhor entendimento a respeito dos conceitos de Simbólico e
Real neste período da obra de Lacan. Na discussão, Lacan (2005 [1953c], p. 45)
acrescenta que “o Real é ou a totalidade ou o instante esvanecido. Na
experiência analítica, para o sujeito, é sempre o choque com alguma coisa, por
exemplo, com o silêncio do analista”.
Entre 1953 e 1960, Lacan situa no Real o desejo inconsciente e as
fantasias que lhe estão ligadas, bem como um resto – um núcleo desejante,
inacessível a qualquer pensamento subjetivo. No entanto, após a releitura do
caso Schreber, Lacan (1955-1956) franqueia uma dimensão diferente ao
conceito de Real, ao discutir a experiência da loucura, na medida em que alguns
significantes retornam no Real, sem serem integrados ao inconsciente do sujeito.
Como apresentarei na próxima seção, em meados dos anos 1950 só se
atinge o Real pelo Simbólico. A partir dos anos 1960 e, especificamente em
1964, o Real será o que escapa ao Simbólico
84
, o Real como trauma. Entretanto,
já em 1959-1960, tal como proposto no Seminário 7, a ética da psicanálise será
centrada no Real da experiência analítica.
84
Em psicanálise, esse Real impossível de dizer é um Real que fala. Embora um psicanalista
recolha os efeitos de significação e dê a eles valor de respostas do Real, não lhe cabe fornecer
respostas ao analisando (Miller, 1983-1984).
156
3.2.1
O estatuto do Real no início do ensino de Lacan:
dos primeiros escritos ao seminário A Ética da psicanálise
Em Para-além do “Princípio de realidade” (Lacan, 1936), o conceito de
Real tem um lugar importante, embora se encontre atrelado ao registro do
Imaginário. Contudo, na medida em que Lacan privilegia o registro do Simbólico,
a experiência analítica, como consequência disso, também será da ordem do
Simbólico. Assim, nesse texto de 1936 e nos demais próximos a este só se
chega ao Real através do registro Imaginário.
85
No artigo de 1936, Lacan
menciona pela primeira vez o termo Real, enquanto discute sobre a relação
existente entre a verdade e a ciência. Nesse contexto, ele afirma que:
(...) a ciência estava bem posicionada para servir do objeto
último à paixão pela verdade, despertando no vulgo a
prosternação diante do novo ídolo que se chamou de
cientificismo e, no “letrado”, esse eterno pedantismo que, por
ignorar o quanto sua verdade é relativa às muralhas de sua
torre, mutila o que do real lhe é dado apreender.
(Lacan, 1998 [1936], p. 83)
Em seguida, Lacan critica o psicólogo associacionista, que se interessa
apenas pelo ato de saber, exercendo, desse modo, uma atividade de sábio. É
essa mutilação que comete o psicólogo associacionista o que traz
consequências cruéis para o ser humano. Compartilhando desse mesmo
espírito, o médico também mutila o que do Real é dado apreender:
É um ponto de vista semelhante (...) que impõe ao
médico esse espantoso desprezo pela realidade psíquica, cujo
escândalo, perpetuado em nossos dias pela manutenção de
toda uma formação academicista, exprime-se tanto na
parcialidade da observação quanto na bastardia de
concepções como a de pitiatismo. (ibidem, p. 84)
Numa perspectiva psicanalítica, não há como não se atentar para a
realidade psíquica. Desse modo, segundo Lacan, existe um Real em psicanálise
que leva em consideração a subjetividade. Em contraposição, em outro campo
de saber como, por exemplo, o da medicina, objetifica-se o paciente e tratam-se
85
Entre 1936 e 1955, o conceito de Real será abordado por Lacan em textos importantes, tais
como: Intervenção sobre a transferência (1951), Função e campo da fala e da linguagem em
psicanálise (1953b), O Simbólico, o Imaginário e o Real (1953c), O mito individual do neurótico
ou Poesia e verdade na neurose (1952b) e O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise
(1954-1955).
157
somente os sintomas manifestos, menosprezando o psiquismo, a história
pregressa do doente.
É justamente na década de 1950 e principalmente a partir do ano de
1953 que Lacan irá valorizar o registro do Simbólico, sofrendo influências do
estruturalismo de Lévi-Strauss.
86
A proposta de conferir uma função simbólica às
crenças, aos mitos e aos ritos e de lhes atribuir valor expressivo é próprio da
antropologia. Lévi-Strauss desenvolveu as noções de eficácia e função simbólica
já em 1949, e trouxe para a antropologia conceitos elaborados pela linguística
moderna, inspirando-se principalmente em Saussure.
87
Nos artigos que consagrou à descoberta freudiana,
Lévi-Strauss comparou a técnica da cura xamanística ao
tratamento psicanalítico. Na primeira, disse ele em síntese, o
feiticeiro fala e provoca a ab-reação, ao passo que, no
segundo, esse papel compete ao médico que escuta no interior
de uma relação em que é o doente quem fala. Além dessa
comparação, Lévi-Strauss mostrou que, nas sociedades
ocidentais, constituiu-se uma “mitologia psicanalítica” que serve
de sistema de interpretação (...). Quando a cura sobrevém pela
adesão de uma coletividade a um mito fundador, isso significa
que tal sistema é dominado por uma eficácia simbólica. Daí a
idéia (...) de que aquilo a que chamamos inconsciente não
seria senão um lugar vazio onde se consumaria a autonomia
da função simbólica: “Os símbolos são mais reais do que aquilo
que simbolizam. O significante precede e determina o
significado”. (Roudinesco & Plon, 1998, p. 714)
É no Discurso de Roma que Lacan valoriza o registro do Simbólico,
discurso este proferido em 26/09/1953 para introduzir o relatório Função e
campo da fala e da linguagem em psicanálise (Lacan, 1953b). Esse Discurso de
Roma foi considerado pelo próprio autor como inaugural de seu ensino, na
medida em que ele introduz, entre outras coisas, o conceito de sujeito em Lacan.
Entretanto, nesse período do ensino lacaniano, o sujeito se encontrava referido
ao sentido. O sujeito era o sujeito do sentido. Ou seja, somente mais tarde Lacan
irá dar um outro valor à idéia de sujeito, passando a entendê-la como
descontinuidade no Real.
88
No texto Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia
(Lacan, 1950), o Real ainda está ligado ao Imaginário, embora Lacan aponte
86
Claude Lévi-Strauss (1908- ): antropólogo, professor e filósofo, considerado o fundador da
antropologia estruturalista, em meados da década de 1950, e um dos grandes intelectuais do
século XX. Completou 100 anos em 28/11/2008.
87
Ferdinand de Saussure (1857-1913) foi um linguista suíço cujas elaborações teóricas
propiciaram o desenvolvimento da linguística enquanto ciência e desencadearam o surgimento
do Estruturalismo. Além disso, o pensamento de Saussure estimulou muitos dos
questionamentos que comparecem na linguística do século XX.
88
Na década de 1970, Lacan escreve que a resposta do Real é um dos nomes do sujeito na
experiência analítica: isso que o discurso analítico concerne é o sujeito que, como efeito de
significação, é resposta do Real (Miller,1987 [1983-1984], p. 9).
158
para uma concepção em que se atrele o Real ao Simbólico. Assim, a relação do
Real não é somente com o Imaginário, mas agora também com a ordem
simbólica.
Se pensarmos em termos de experiência analítica, neste período da obra
de Lacan (1950), antes do Discurso de Roma (Lacan, 1953a), ela é da ordem do
Imaginário, embora já haja o Real. O eu encontra-se alienado no Outro,
renuncia-se a si mesmo a fim de ascender como sujeito.
A experiência analítica é essencialmente singular e a
história do homem, de cada homem, tomado em sua
particularidade, é feita de uma série de perdas. A palavra-
chave é o sentido que só pode ser compreendido pelo sujeito;
em outras palavras, o fenômeno psíquico só pode ser
compreendido se dotado de um sentido e cabe somente ao
sujeito dar esse sentido, mas, do sujeito considerado em sua
concretude, em seu contexto humano, vital.
(Chaves, 2006, p. 50)
Como já foi dito anteriormente, no início do ensino de Lacan, o sujeito é o
sujeito do sentido. No entanto, Lacan altera sua maneira de pensar e, a partir já
da prevalência do Simbólico, percebem-se as primeiras mudanças. O sujeito ao
ser constituído pelo Simbólico se determina não mais através de imagens
especulares, mas no Outro, alteridade absoluta.
3.2.1.1
A relação do Real com o registro Simbólico
Evidenciar o conceito de Real no período da obra de Lacan em que o
registro Simbólico opera como determinante e relacioná-lo com os registros
Imaginário e Simbólico é o que faremos ao longo dessa subseção da tese.
Lembro que, de acordo com Lacan, os registros Imaginário, Simbólico e Real
não se dão de forma isolada, eles operam de forma interligada no campo
analítico. Deste ponto de vista, o Real como terceira dimensão é sempre aludido
na negativa: ele carece de sentido, não pode ser simbolizado e não se integra
imaginariamente a coisa alguma. O sujeito, por sua vez, é habitado por uma lei
simbólica invariável e, mesmo sem que ele saiba, esta lei modula as escolhas de
sua existência. Precisamente isto quer dizer que o registro Simbólico obedece a
leis próprias.
159
Tanto no Discurso de Roma (Lacan, 1953a) quanto no Seminário 1
(Lacan, 1953-1954), Lacan afirma que a fala é o único meio de que dispõe a
técnica da psicanálise. Por isso, é por ela que se iniciará o que será a
apresentação de um modo renovado de lidar com a experiência analítica, e é
nesse campo que o registro Simbólico entra em cena fundando uma
compreensão diferente sobre o sujeito.
Para Lacan, as palavras sempre significam mais do que simples
definições de alguma coisa; elas possuem um caráter metafórico. O ser que
verbaliza um apelo é um ser integrado a um sistema simbólico, e é isto que
caracteriza o sujeito humano enquanto tal. De posse das idéias formuladas
sobre o registro do Simbólico, Lacan (1998 [1953b], p. 259) afirma, no que se
refere à experiência analítica, que:
Seus meios são os da fala, na medida em que ela
confere um sentido às funções do indivíduo; seu campo é o do
discurso concreto, como campo da realidade transindividual do
sujeito; suas operações são as da história, no que ela constitui
a emergência da verdade no real.
Assim, um aspecto a ser considerado nesta assertiva de Lacan é que é
na história que pode emergir a verdade do sujeito no Real. Por outro lado, a
partir desta afirmativa vemos que, segundo esta concepção, não se vai ao Real
a não ser através do Simbólico. O Simbólico é o grande mediador, ele oferece
sentido às funções do sujeito. Nesta época, o Real se apresenta, portanto, como
algo que deve ser dominado pelo Simbólico.
No que concerne ao conceito de Simbólico em Lacan, Zizek sintetiza seu
destino em três etapas sucessivas. Em linhas gerais, Zizek afirma que a primeira
etapa está em Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (Lacan,
1953b) e enfatiza a dimensão intersubjetiva da palavra:
A palavra como meio de reconhecimento intersubjetivo
do desejo. O que predomina são os temas da simbolização
como historicização, realização simbólica; os sintomas e os
traumas são lacunas, são espaços vazios e não-historicizados
do universo simbólico do sujeito; a análise ‘realiza no simbólico’
esses vestígios traumáticos, incluindo-os no universo simbólico
ao lhes conferir a posteriori, retroativamente, uma significação.
(Zizek, 1991, p. 76 apud Chaves, 2006, p. 56)
Exemplificada pela interpretação da Carta roubada (Lacan, 1957a), a
segunda etapa é, para Zizek, de certa forma complementar à primeira, assim
como a língua é complementar a fala. O problema desta segunda etapa é que
nela o sujeito (sujeito do significante, irredutível ao eu imaginário) é no fundo
160
impensável: de um lado temos o Imaginário, lugar da cegueira e do
desconhecimento; de outro lado temos um sujeito totalmente sujeitado à
estrutura, alienado, sem resto, dessubjetivado. (Zizek, 1991, p. 77 apud Chaves,
2006, p. 56).
A terceira e última etapa, por sua vez, trata da concepção do Outro
barrado, inacabado, a partir do qual se pode apreender o sujeito do significante:
(...) a falta no Outro quer dizer que há um resto, uma inércia
não-integrável no Outro, o objeto a, e o sujeito pode evitar a
alienação total justamente na medida em que se coloca como
correlato desse resto $ a. Dessa maneira, podemos conceber
um sujeito que difere do eu, lugar do desconhecimento
imaginário (...).
(Zizek, 1991, p. 77-78 apud Chaves, 2006, p. 56)
Em Intervenção sobre a transferência, de 1951, aparece explicitamente,
pela primeira vez, a idéia hegeliana de que o Real é da ordem do racional. Com
isso, podemos dizer que o Real é, neste contexto, da ordem do Simbólico? Cabe
aqui a pergunta, já que, embora a análise se dê através do Simbólico, não
intervindo diretamente no Real, nem por isso podemos afirmar que não se toca
em algo da ordem do Real. Existe uma conjunção entre Simbólico e Real. Nesse
texto, bem como em Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, de
1953, a ordem do Simbólico passa a predominar sobre a do Imaginário. A fim de
esclarecer melhor a relação entre Simbólico, Imaginário e Real, recorrerei agora
ao Seminário 2, O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (Lacan,
1954-1955), para, através dele, voltar meu olhar para a definição dada por Lacan
de que só se tem acesso ao Real por intermédio do Simbólico. A partir do
Seminário 2 estabelecem-se as diferenças entre eu e sujeito, bem como Lacan
circunscreve que uma experiência analítica opera a partir de uma ordem
diferente da do Real: ela opera pela via simbólica. Logo no primeiro capítulo
deste Seminário, Lacan diz que, além do Simbólico e do Imaginário, há também
o Real e “as relações psicossomáticas estão no nível do real” (Lacan, 1987
[1954-1955], p. 127). Acrescenta que o Real é sem fissura e só é apreensível por
intermédio do Simbólico:
Lembrem-se do seguinte a respeito da exterioridade e
da interioridade – esta distinção não tem nenhum sentido no
nível do real. O real é sem fissura. O que lhes ensino, e aí
Freud converge com o que podemos chamar de filosofia da
ciência, é que este real, para apreendê-lo, não temos outros
meios (...) a não ser por intermédio do simbólico.
O real é absolutamente sem fissura.
(Lacan, 1987 [1954-1955], p. 128)
161
Segundo este ponto de vista e nesta época específica (década 1950),
toda relação do sujeito com o objeto, em psicanálise, passa pelo Simbólico,
posto que a repetição (enquanto campo do Simbólico) tem a função de estruturar
o mundo.
Neste Seminário 2, portanto, o que está em evidência é o registro
Simbólico. É ele quem determina o sujeito, embora haja o Real. Este último, o
Real, é a soma dos acidentes que sobrevêm na vida da pessoa. Pouco importa
se o trauma realmente existiu ou não, ele per se exerce sua eficácia e funciona
como um ponto que tem que ser construído em análise, para que o indivíduo
possa dele dar conta.
Nos anos 1955-1956, totalmente mergulhado na ordem do Simbólico e de
posse da idéia de significante, Lacan se debruça sobre o Real em seu estudo a
respeito da psicose. Assim, no Seminário 3, ele assinala que o significante
estrutura a realidade humana. Dito de outro modo, o homem só tem acesso ao
mundo na medida em que faz uso do significante, da linguagem e, neste sentido,
só tem acesso ao Real mediado pelo Simbólico.
No Seminário das psicoses, Lacan (1955-1956) fala do Real,
metaforicamente, evocando as estrelas que voltam sempre ao mesmo lugar. O
Real passa a ser entendido como o que retorna sempre ao mesmo lugar,
proposição que aparece pela primeira vez neste seminário.
“A questão não é tanto a de saber por que o inconsciente que está aí,
articulado à flor da terra, permanece excluído para o sujeito, não-assumido –
mas porque ele aparece no real” (Lacan, 1992 [1955-1956], p. 20). Tudo o que é
recusado (Verwerfung)
89
no Simbólico pelo sujeito, o que não pôde ser por ele
metabolizado, reaparece no Real, e isso tem um lugar especial na psicose:
Uma exigência da ordem simbólica, por não poder ser
integrada no que já foi posto em jogo no movimento dialético
sobre o qual viveu o sujeito, acarreta uma desagregação em
cadeia, uma subtração da trama na tapeçaria, que se chama
delírio. (Lacan, 1992 [1955-1956], p. 105)
Em vários momentos desse Seminário 3, Lacan afirma que se na
neurose, em que houve uma simbolização primária, o que foi recalcado retorna
na forma de sintomas, sonhos etc., na psicose algo não simbolizado retorna no
Real por meio de alucinações e delírios. Logo, com as contribuições ao conceito
de Verwerfung de Freud, o Real vai ser por Lacan definido como o que escapa à
89
Verwerfung: conceito introduzido por Freud já em 1894, com o objetivo de delimitar um
mecanismo de defesa que interviesse especificamente na psicose, diferenciando-o do
mecanismo de recalque presente nas neuroses (Rudge, 1998a, p. 48). Assim, a idéia de recusa
nesta frase deve ser entendida como alternativa ao recalque.
162
simbolização. Desse modo, tal como o trauma, pode-se dizer que a alucinação
na psicose toca o Real.
3.2.1.2
A transição da idéia de Real
Pincelarei a partir daqui o Real tal como aparece nos Seminários 4, 5 e 6,
momento de transição da idéia de Real, mas já caminhando para elevar ao
primeiro plano o Real, preparando o terreno para postulá-lo como Coisa, no
Seminário 7. Há todo um percurso feito por Lacan desde o Seminário 4 ao
Seminário 7, em direção à definição do Real como o impossível.
No Seminário 7, embora a experiência analítica continue sendo da ordem
do Simbólico, Lacan se ocupará da ética do Real, relacionando-o à Coisa e ao
tema da repetição. A definição do Real como o que volta sempre ao mesmo
lugar é, pois, retomada (essa concepção iniciou-se no Seminário 3), articulada à
idéia de que o objeto é faltoso e que se trata sempre de reencontrá-lo, numa
busca que nunca é bem sucedida. Aqui o Real não tem mais nada a ver com as
estrelas que voltam sempre ao mesmo lugar, mas com a insistência pulsional.
3.2.1.2.1
O Real como pleno
Nos seminários posteriores ao das psicoses, especificamente no
Seminário 5 dos anos 1957-1958, no Seminário 6 de 1958-1959 e no Seminário
7 de 1959-1960, Lacan retoma o conceito de Real de forma explícita, tal como já
havia antes elaborado. Contudo, no Seminário 4 de que tratarei agora, ele afirma
que o Real é pleno, bastando a si mesmo. E é neste seminário que Lacan irá
trabalhar a idéia central da falta de objeto, trazendo à tona, por consequência, a
dialética dos dois princípios, o do prazer e o de realidade.
Sobre a falta de objeto, apresenta-a sob três faces: castração, frustração
e privação. Na castração, a falta é simbólica. Já a frustração pode ser entendida
enquanto dano imaginário. Na privação, a falta está no Real.
163
Quando digo que, em se tratando da privação, a falta
está no real, isso quer dizer que ela não está no sujeito. Para
que o sujeito tenha acesso à privação, é preciso que ele
conceba o real como podendo ser diferente do que é, isto é,
que já o simbolize. A referência à privação, tal como formulada
aqui, consiste em situar o simbólico antes (...).
(Lacan, 1995 [1956-1957], p. 54-55)
A indagação do autor é a respeito de como, pela frustração, é introduzida
a ordem simbólica. Para esta tese, contudo, é suficiente apreendermos o
conceito de Real tal como Lacan o define no capítulo XIII do Seminário 4, isto é,
como o que basta a si mesmo. Qualquer falta nesse registro denuncia, então,
que algo foi simbolizado. “Tudo o que é real basta a si mesmo. Por definição o
real é pleno.” (ibidem, p. 224). Assim, é preciso simbolizar para que se introduza
a idéia de privação. “Indicar que alguma coisa não está ali é supor sua presença
possível, isto é, introduzir no real, para recobri-lo e perfurá-lo, a simples ordem
simbólica.” (ibidem, p. 224).
No começo, o objeto de que se trata é o objeto perdido: “O objeto é
sempre o objeto redescoberto, o objeto tomado ele próprio numa busca, que se
opõe da maneira mais categórica à noção do sujeito autônomo, onde
desemboca a idéia de objeto acabado” (Lacan, 1995 [1956-1957], p. 25).
Lacan trabalha durante todo o Seminário 4 para dar conta da seguinte
pergunta: o objeto é real ou não? Apesar do registro Real ser mencionado por
Lacan, privilegia-se nesse seminário o Simbólico, na medida em que a
castração, ao contrário da privação e da frustração, é simbólica, e o falo, em
suas dimensões simbólica ou imaginária, difere do pênis, este um órgão real. É a
lei (simbólica) que define se um objeto falta no lugar em que deveria estar. No
Real algo não pode faltar, para isso é preciso a intervenção da ordem do
Simbólico.
Tudo o que é real está sempre e obrigatoriamente em
seu lugar, mesmo quando se o perturba. O real tem por
propriedade carregar seu lugar na sola dos sapatos. Podem
desarrumar quanto quiserem o real, ainda assim nossos corpos
vão continuar em seu lugar depois da explosão de uma bomba
atômica, em seu lugar de pedaços. A ausência de alguma
coisa no real é puramente simbólica. É na medida em que
definimos pela lei o que deveria estar ali que um objeto falta no
lugar que é seu. (Lacan, 1995 [1956-1957], p. 38)
Assim, no Seminário 4, Lacan mais uma vez valoriza o registro Simbólico,
na medida em que ele perfura o Real e dá uma conotação original à realidade
humana.
164
Já no Seminário 5, de que trataremos logo a seguir, Lacan (1957-1958)
se esforça em estruturar as conexões da linguagem como Real. Ele o inicia
fazendo um resumo dos seminários até então trabalhados. Interessa-me, deste
livro, somente o resumo que ele fez do seminário sobre as psicoses, na medida
em que ele retoma a questão do Real trabalhada naquele seminário. Segundo
Chaves (2006, p. 141-142),
Vemos então que, pelo menos nesse momento de seu
ensino, o real humano é um real simbólico. E podemos dizer,
que, como consequência disso, o real do psicótico é o que
escapa à simbolização. Já temos, desse modo, um real que
não só se distingue do simbólico, como lhe escapa. Assim
também, Lacan justifica a razão que faz com que, da ruptura do
delírio, o sujeito psicótico experimente algo da ordem do
estranho, que é, para ele, bem real.
Para além da linguagem há o Real, embora este só possa ser apreendido
pelo registro Simbólico. Nesse período do ensino de Lacan, é dado um estatuto
de autonomia à linguagem, realidade que não só se sobrepõe ao sujeito como o
submete às suas leis. É assim que, de acordo com Miller (1998), Lacan tenta
estruturar as conexões da linguagem como Real.
A linguagem determina o sujeito, na medida em que as necessidades se
alienam nela, na medida em que, só através dela, as necessidades de um
indivíduo poderão ser satisfeitas. Em outras palavras, para Lacan, uma criança
aprende que há uma via por onde devem essencialmente se inclinar as
manifestações de suas necessidades para serem satisfeitas e que, por isso,
desde cedo ela se dirigirá a um sujeito que ela sabe falante.
Dito isso, veremos na próxima seção que Lacan retomará, no Seminário
O desejo e sua interpretação (Lacan, 1958-1959), a idéia presente desde o início
de seu ensino sobre o registro do Simbólico: o ser humano deve, para se
constituir como tal, entrar na linguagem, no discurso pré-existente.
165
3.2.1.2.2
O Real é feito de cortes
No Seminário 6 sobre o desejo e sua interpretação (Lacan, 1958-1959),
Lacan caracteriza o Real como feito de cortes, contrapondo-se à definição
anterior do Real como sem fissura, presente no seminário proferido nos anos
1956-1957.
Para entender o que Lacan quis dizer com o Real é feito de cortes,
abordaremos as lições em que ele fala sobre a ciência e o Real. Na lição de
20/05/1959, Lacan confronta a psicologia behaviorista à psicologia freudiana
(psicanálise), com o propósito de sublinhar de que Real se trata nesta última. De
acordo com ele, esse Real em psicanálise deve ser situado num para-além do
sujeito – pois há algo no sujeito que se articula e está mais além de seu
conhecimento possível, e que, entretanto, já é o sujeito, “ele se reconhece nisto,
que ele é o sujeito de uma cadeia articulada” (Lacan, 2002 [1958-1959], p. 404).
Dito de outro modo, o sujeito não se reconhece no discurso do inconsciente, nele
ele se desconhece. Ao tentar se nomear nesse discurso, ele não se encontra
“senão nos intervalos, nos cortes e ali onde, propriamente falando, ele é o
menos significante dos significantes, ou seja o corte. Que ele é a mesma coisa
que o corte o torna presente no simbólico” (ibidem, p.434). Lacan explica melhor:
Aqui, nesse caso, o sujeito particular está em relações
com este tipo de corte constituído pelo fato de que ele não está
relacionado a um certo discurso consciente, de que ele não
sabe o que ele é. É disso que se trata, se trata da relação do
real do sujeito como entrando no corte, e esse acontecimento
do sujeito ao nível do corte tem algo que é preciso mesmo
chamar um real, mas que não é simbolizado por nada.
(Lacan, 2002 [1958-1959], p. 422)
Passarei agora para outro momento da obra de Lacan, quando ele,
preocupado com a ética da experiência analítica, colocará o Real em primeiro
plano, articulando-o com das Ding, com o vazio.
166
3.2.1.2.3
O trauma, o Real e a ética da psicanálise
No Seminário 7, Lacan dedica-se à ética da psicanálise. Não se trata da
ética referida à esfera das obrigações e dos mandamentos, mas da ética do
desejo, da falta. Nesse contexto, a ética em psicanálise se articula com o Real
da experiência analítica, e não com os ideais.
Por mais uma vez, na época em que eu falava do
simbólico e do imaginário e de sua interação recíproca, alguns
dentre vocês se perguntaram o que era, no fim das contas, o
real. Pois bem, coisa curiosa para um pensamento sumário que
pensaria que toda exploração da ética deve incidir sobre o
domínio do ideal, senão do irreal, iremos, pelo contrário, ao
inverso, no sentido de um aprofundamento da noção de real. A
questão ética, uma vez que a posição de Freud nos faz
progredir nesse domínio, articula-se por meio de uma
orientação do referenciamento do homem em relação ao real.
(Lacan, 1991 [1959-1960], p. 21)
Assim, Lacan se propõe investigar a relação do homem com o Real
enquanto uma reflexão eminentemente ética. Interessa a ele refletir sobre a ética
da ação analítica centrada no Real dessa experiência, isto é, “no desejo que não
se constitui simplesmente em desejar isso ou aquilo, que é da ordem do prazer”
(Chaves, 2006, p. 239). Lacan privilegia sobretudo a relação com esse desejo.
Para ele, como já foi dito anteriormente nessa tese, a experiência analítica se
estrutura pelo Simbólico, embora o Real nela também se faça presente – “o real
como tal, o peso do real” (Lacan, 1991 [1959-1960], p. 31).
O Real, que passa a ser colocado em evidência a partir do seminário da
ética em psicanálise, “não é imediatamente acessível” (ibidem, p. 31) e está
ligado ao conceito freudiano de pulsão de morte. Lacan se refere, aqui, aos
princípios do prazer e de realidade e ao fato de Freud, a partir de 1920, colocar
em jogo tal oposição ao propor um além do princípio do prazer como tropeço
desse princípio que objetiva ficar na defensiva, mantendo-se na menor tensão
possível.
Lacan procura um gozo além do princípio do prazer, através do
questionamento sobre a diferença existente entre os conceitos freudianos de
princípio do prazer e de realidade. Ele situa essa distinção no plano ético, na
medida em que reconhece que há um Real que impulsiona o sujeito a ir além do
princípio do prazer. Retoma neste seminário também sua proposta de haver um
Real “que se apresenta em sua experiência como o que retorna sempre ao
mesmo lugar” (Lacan, 1991 [1959-1960], p. 95).
167
Neste seminário, Lacan desenvolve uma nova idéia acerca do Real: além
de haver um Real externo, existe também um Real concernente ao mundo
subjetivo, que é da ordem da pulsão. De um ponto de vista lógico, Lacan
acentua a posição passiva do sujeito em relação ao significante e define o Real
em sua relação com a Coisa.
Como lhes disse, a Coisa é o que do real padece dessa
relação fundamental, inicial, que induz o homem nas vias do
significante, pelo fato mesmo de ele ser submetido ao que
Freud chama de princípio do prazer, o que está claro (...) que
não é outra coisa senão a dominância do significante – digo, o
verdadeiro princípio do prazer tal como ele funciona em Freud.
(Lacan, 1991 [1959-1960], p. 168)
O conceito de Coisa denota, de acordo com Lacan, o vazio que está no
centro do Real. Em suas palavras: “Essa coisa (...) será sempre representada
por um vazio, precisamente pelo fato de ela não poder ser representada por
outra coisa – ou, mais exatamente, de ela não poder ser representada senão por
outra coisa” (ibidem, p. 162). No pensamento de Lacan, neste momento de
transição teórica, é fundamental para o homem a vinda do significante e é por
seu intermédio que a Coisa se apresenta.
Ao longo desse seminário, o Real é essencialmente inscrito pela via de
uma defesa primária para o sujeito. A palavra defesa qualifica ali a relação
inaugural do sujeito com o Real. No entanto, Lacan continuará elaborando este
conceito nos anos seguintes ao Seminário 7. Ele irá relacionar seu objeto a ao
Real, assim como chegará a formular o Real como o impossível da relação
sexual. Nos anos 1970 ele se servirá da topologia do nó borromeano,
entrelaçando em definitivo os três registros, Real, Simbólico e Imaginário.
Através desse nó, falarei em seguida da questão do trauma e do Real no ensino
de Lacan, como também, mais à frente, tentarei pensar, com Miller (2003), um
pouco mais sobre o trauma e a experiência do Real no tratamento psicanalítico.
168
3.2.2
A topologia do nó, o trauma e o Real
É somente na década de 1970 que surge, na teorização lacaniana, a
topologia do nó borromeano, que vem substituir a estrutura do sujeito, tal como
aparece no seminário sobre a psicose. Embora conhecido por marinheiros,
tecelões e escoteiros, a idéia do nó borromeano deriva do brasão que
ornamentava o escudo de armas da nobre família Borromeo, que vivia no norte
da Itália. Quase que por acaso, Lacan encontrou o chamado nó borromeano,
construído por três rodelas entrelaçadas e inseparáveis. Sua única propriedade,
o borromeanismo, pressupõe simplesmente que, cortando-se qualquer uma das
rodelas de barbante, as outras duas também se acham dispersas. Para ele, o nó
borromeano só pode ser feito a partir de três elos: o Imaginário e o Simbólico
não bastam per se, é preciso o elemento terceiro, o Real. A perda de qualquer
destas três dimensões deve tornar livre, uma da outra, as duas outras. Em
outros termos, o nó se desata.
Interessada em circunscrever a concepção de Real, que frequentemente
é associada à de trauma em Lacan, retomo agora a proposta do psicanalista em
Les non-dupes errent (1973-1974). Afirma então que há três dimensões do
espaço habitado pelo falante: o Simbólico, o Imaginário e o Real.
Se há três dimensões do espaço e se começo a
enumerá-las, Simbólico e Imaginário, a prova é fazer que isso
dê a terceira, (...) o Real. (...) Aí eu não posso dizer que é a
data de seu batismo, deste Real ...eu fiz isso há muito tempo,
quando comecei meu ensinamento. Eu te batizo Real porque
se tu não existisses seria preciso te inventar.
(Lacan, 1994 [1973-1974], n.p.)
90
Tomando as coisas como Lacan expunha na década de 1970, há, pois,
três elos que se nodulam borromeanamente: o Real, o Simbólico e o Imaginário.
Lembro que Lacan enunciou primeiro que o nó é a ternaridade pura e simples,
que a tomada desta ternaridade se sustenta pelo fato de não haver distinção
entre os três elos por nenhuma qualidade, como também por não existir
nenhuma diversificação do Imaginário em relação ao Simbólico e ao Real. Suas
substâncias não são diferentes, devendo ser considerados os três elos sob a
espécie dessa consistência que faz, de cada um deles, um.
Em R.S.I. (Lacan, 1974-1975), o Real é assimilado a um resto impossível
de transmitir. Lacan afirma que não cabe ao nó fundar uma determinada ordem,
90
Cf. seminário de 11/12/1973.
169
na qual pudessem se encadear os três elos. O que ele faz encontrar é essa
consistência que não os diversifica, mas somente os enoda. Para ele, deve
existir uma estrutura tal que o Real, ao se definir assim, seja o Real de antes da
ordem, não supondo um primeiro, um segundo, um terceiro, bem como nem
mesmo um meio com dois extremos. Não importa qual dos três círculos pode
fazer esse papel, qualquer um deles pode preencher a mesma função e é neste
sentido que, para o autor, há uma tendência a homogeneizá-los. Todavia, nem
todas as maneiras de fazer o nó são as mesmas. É suficiente que o Real fique
antes, com relação ao Simbólico. Se o Imaginário vem primeiro ou não, isso não
tem importância para Lacan. Basta que haja três elos – o Imaginário, o Simbólico
e o Real – e que o Real fique antes, em relação ao Simbólico. Só isso sustenta o
Real.
Na tentativa de explicar sua tese de que o Real é três, Lacan (1973-1974)
assinala que o Real é o que se determina do que não se escreve da relação
sexual. Segundo ele, onde não há relação sexual, isso faz troumatisme
91
. Ou
seja, inventa-se o que se pode para tampar o buraco do Real. Assim, inventa-se
uma maneira qualquer de estabelecer uma relação, onde na verdade não há
nada. Um exemplo de Lacan, no Seminário 3, que diz respeito ao contexto do
desencadeamento de uma psicose, pode esclarecer o que é essa invenção que
tampona o buraco do Real. Ali, Lacan cita um sujeito que vivera anos a fio como
uma traça em um buraco, tendo sua própria rotina como única proteção contra o
troumatisme da foraclusão. No caso, essa vida no buraco – uma vida regrada e
sem mudanças – foi a invenção que lhe permitiu lidar com o troumatisme.
Para Lacan (1973-1974), é justamente porque não há dois falantes que
possam se conjugar, que eles falam. É pela via completamente contingencial
que entra para eles aquilo que faz o três, o Real. É certo que, de início, os
falantes não sabem que são sujeitos.
91
Sobre o neologismo troumatisme: jogo de palavras em francês para traumatismo, utilizado por
Lacan quando ele retoma a distinção freudiana entre trauma na neurose histérica e na
obsessiva. Na histeria, há um trauma por um gozo a menos que faz furo, daí troumatisme (trou =
buraco); na neurose obsessiva, tropmatisme, existe um excesso de gozo, um gozo a mais (trop
= excesso).
170
Ele conta um e dois, mas não se conta como três. Ele
colocará aí tudo que quiser, até mesmo o que disfarça os
outros dois, a saber, ela mesma, a criança, como se diria. É um
bom pretexto para fazer entrar o Real velando-o
completamente: nada mais é que uma criança, o Real; se não é
a própria criança, será qualquer terceiro, será a tia Ivone, enfim
será qualquer outro... O avô fulano de tal, no momento que isso
faz três, tudo serve para não descobrir que se trata do três
como Real. (Lacan, 1994 [1973-1974], n.p.)
92
Segundo Lacan, o inconsciente é a soma dos efeitos da fala sobre um
sujeito que se constitui pelos efeitos do significante. Antes mesmo da
constituição subjetiva, antes de um sujeito que pensa e se situa nesse
pensamento, o inconsciente conta, é contado e no contado já está o contador.
Só depois o sujeito se reconhece como contador e é desta maneira que posso
afirmar, concordando com Lacan, que enquanto o sujeito não se implica, só há
Real.
Continuando a seguir as idéias lacanianas referidas ao Real, recupero a
pergunta: Como o saber inconsciente se apresenta no caminho que nos leva ao
Real? Na aula de 11/06/1974, Lacan ressalta que o saber inconsciente é um
saber no Real. O saber inconsciente, para ele, é diferente de conhecimento; é
definido pela conexão de significantes. Por outro lado, é um saber desarmônico,
não se prestando a um casamento feliz. É neste sentido que o analista deve
permitir aos clientes elaborarem tais saberes inconscientes que estão neles
como um cancro, um saber que chateia. Pois seja num sonho, chiste ou ato
falho, o saber inconsciente se mostra: “nos apercebermos que o inconsciente é
talvez, sem dúvida, desarmônico, mas que talvez ele nos leve, um pouco mais,
ao Real, do que a esse pouco de realidade que é a nossa, a do fantasma
(Lacan, 1994 [1973-1974], n.p.).
93
Se, para Lacan, há saber no Real, é preciso excluir deste Real o tipo de
saber do artesão, um saber que pressupõe conhecimento – o artesão exerce seu
ofício de uma certa maneira porque um outro artesão lhe ensinou a fazer assim.
Lacan conjectura que o saber de que o analista se ocupa, por outro lado, é um
saber que se transmite sob uma forma totalmente diferente... Numa psicanálise,
primeiro um saber se anuncia; depois, o falante reconhece ali seu lugar de
sujeito. Este só depois, para Lacan, é um conceito clínico da maior importância,
que envolve questões tanto metodológicas quanto éticas. Neste sentido, sendo o
só depois um operador teórico fundamental, a psicanálise não pretende deduzir
o inconsciente a partir de qualquer tipo de conhecimento prévio.
92
Cf. seminário de 12/02/1974.
93
Cf. seminário de 11/06/1974.
171
O inconsciente, dizia Lacan, é a parte do discurso concreto que falta à
disposição do sujeito para restabelecer a continuidade de seu discurso
consciente. É o capítulo censurado da história do falante, mas que pode ser
resgatado através, por exemplo, da análise dos sonhos. O inconsciente regula o
que angustia o sujeito. Ora, a angústia é o afeto que sinaliza a iminência do
levantamento do recalque para o analista. Ela sinaliza ao analista e oferece ao
sujeito a oportunidade de se apropriar de algumas representações inconscientes
que, até então, expressavam-se através do sintoma.
Continuando com Lacan, se o inconsciente do sujeito é o discurso do
Outro, logo o inconsciente aponta para a própria divisão subjetiva – e constitui o
locus onde o sujeito responde cegamente ao desejo inconsciente de se fazer
objeto do desejo de um Outro. Só neste sentido e, ainda por cima, levando em
conta que a alienação é condição fundadora do sujeito, entendo o que Lacan
explica sobre o inconsciente nomear coisas para o falante.
Há um saber inconsciente que se insinua nos atos falhos, nos sintomas,
nas brechas e deslizes sem sentido daquele que fala – algo desse saber escapa,
faz furo. Trocando em miúdos: o que o inconsciente mostra é a fenda onde a
neurose se amarra a um Real que pode não estar determinado. Assim é que,
numa análise, a neurose se transforma em cicatriz, que é do inconsciente. Sobre
o assunto, vale ressaltar que trauma deriva do grego traumatikós, que significa
ferir, e que ferida remete a algo que pode ser curado, mas que muitas vezes
deixa cicatrizes. Dessa maneira, o trauma se constitui como um buraco, um
troumatisme, ao ser contornado pelas formações do inconsciente, como se fosse
o umbigo do sonho. O umbigo é uma cicatriz, no meio do ventre, originada pelo
corte do cordão umbilical. Sob essa leitura, o trauma não é contingente, mas
necessário à estruturação do sujeito. Ferida constitutiva (recalque originário),
que tenta se fechar pela organização de uma neurose e que estabelece o sujeito
como dividido.
Afasto-me por ora do meu ponto de partida, mas acredito ser interessante
esclarecer que Lacan identifica o que se produz no campo do Real como
sintoma. Segundo ele, a idéia de sintoma social foi introduzida por Marx, bem
antes de Freud, como sinal de que alguma coisa não funciona bem. O sintoma
inventado por Marx não é um sintoma transhistórico, portanto válido para
qualquer forma de sociedade, mas um sintoma que concerne à sociedade
capitalista.
Lacan (18/02/1975) sublinha que a origem da idéia de sintoma social
deve ser buscada em Marx, que foi o primeiro a construí-la, na ligação entre o
172
capitalismo e o feudalismo. Na opinião de Lacan, o capitalismo tem efeitos
sobretudo benéficos, pois, despojando o homem proletário de tudo, faz com que
ele atinja sua própria essência humana. Para Lacan, esta é a forma pela qual
Marx analisou o tema sintoma social. Segundo esta visada, o inconsciente é o
que responde pelo sintoma, determinando-o. A partir daí ele pode ser
responsável pela maneira com que cada sujeito goza, na medida em que os
sintomas são particulares: o sintoma do obsessivo não é o sintoma da histérica.
Para exemplificar clinicamente o que constitui o sintoma, “este algo que
roça o inconsciente” (Lacan, 1991 [1974-1975], n.p.)
94
, recorro ao Seminário 23,
no qual está exposto um caso de loucura, que começa pelo sintoma palavras
impostas (Lacan, 2007 [1975-1976], p. 91 et seq.). Nesse caso, após ter tido a
sensação de falas que lhe eram impostas, o paciente é afetado por telepatia –
sente-se um telepata emissor, não tendo mais segredos. Lacan comenta que
este paciente enlouqueceu quando começou a acreditar “que todo mundo sabia
das reflexões a mais que ele fazia com relação ao que considerava como falas
que lhe eram impostas” (ibidem, p. 92).
O ponto de Lacan é que as palavras de que todos os homens dependem,
de algum modo, são sempre impostas. Originariamente, tanto neuróticos quanto
psicóticos são traumatizados, pois, numa leitura lacaniana, a essência humana é
ser falante. Logo, o verdadeiro trauma do sujeito é a existência da linguagem e
sua dependência do significante. A linguagem se impõe a todos os falantes:
neste sentido, as palavras lhe são impostas, sendo vividas por cada humano
como uma forma de câncer. Assim, partindo-se do pressuposto que trauma é
condição sine qua non para se tornar falante, considero que essa entrada no
campo da linguagem acontece de forma invasiva tanto para psicóticos quanto
para neuróticos. Entretanto, ao contrário dos psicóticos, os sujeitos neuróticos
conseguem sair da posição de extrema alienação à linguagem barrando o Outro
num segundo tempo, que corresponde ao tempo da separação.
94
Cf. seminário de 21/01/1975.
173
3.2.3
O trauma e a experiência do Real no tratamento psicanalítico
No curso A experiência do real na cura psicanalítica, proferido em 1998-
1999, J.-A. Miller explora o termo Real ao longo de todo o ensino de Lacan.
95
Miller chama experiência do Real a essa perspectiva que nos dá um ponto de
vista diferente daquele que Lacan elaborou e difundiu no começo, mas
congruente com seu último ensino. Ele aparece em nosso uso como obstáculo,
levando aos limites do campo da linguagem, onde a psicanálise se instalou
desde Lacan.
Miller (2003) procurou na história da psicanálise a experiência do Real
com que se depararam os analistas em sua prática clínica. Parte do pressuposto
que eles tiveram essa experiência e a batizaram com termos que estavam ao
seu alcance (resistência, defesa e, especialmente, reação terapêutica negativa).
Na opinião de Miller, o Real se lhes apareceu na forma de reação terapêutica
negativa (a exemplo de Wilhelm Reich), como obstáculo. Essa experiência que
os analistas tiveram do Real, que fez com que eles se interessassem em estudar
as resistências e defesas em análise, remete a uma divisão do desejo do
paciente de se curar (transferência positiva) e, por outro lado, de não se curar
(reação terapêutica negativa).
Para Reich, para abordar a base da reação terapêutica negativa deve-se
recorrer à idéia de uma perturbação de um equilíbrio neurótico. Ao analista –
enquanto agente da operação analítica – cabe sempre a função de perturbador.
Se o analista é analista, ele perturba esse equilíbrio (neurótico). Por isso, Reich
sustenta fazer o papel de inimigo do paciente, de sorte que todos os afetos
suscitados pelo analista, projetados sobre sua pessoa, sejam eles negativos ou
positivos, a seu entender servem fundamentalmente à defesa e ao rechaço da
95
Segundo Miller (09/09/1981), o ensino de Lacan pode ser dividido em três grandes fases:
1ª fase (1953-1963): toma a forma de um seminário de textos freudianos: Lacan se dedica cada
ano a trabalhar um conceito, uma ou duas obras de Freud; a categoria do Simbólico (essencial
nesta fase) é construída.
2ª fase (1964-1974): a favor da segunda cisão e da mudança de Lacan para a Escola Normal
Superior de Ensino são, depois dos Quatro conceitos fundamentais da psicanálise (Lacan,
1964), dez anos onde os termos lacanianos – o sujeito barrado ($), o objeto a, o Outro (A) –
tornam-se o centro da elaboração; os problemas colocados por sua articulação se superpõem e
às vezes substituem o problema inicial.
3ª fase (após 1974): Lacan toma por objeto os próprios fundamentos do seu discurso, e
especialmente a tripartição Real-Simbólico-Imaginário (R.S.I., título do seminário de 1974-1975).
O nó borromeano faz função de referência nesta fase. O Real ocupa, daí em diante, a frente da
cena.
174
operação analítica (Miller, 2006 [2003], p. 75). Assim, de acordo com
determinadas perspectivas psicanalíticas, existe uma fase em que o equilíbrio
neurótico do sujeito se torna um obstáculo ao tratamento, e esta transformação
de equilíbrio em obstáculo se dá na entrada em um processo de análise.
A elaboração do conceito de Real em psicanálise ocupa um lugar
privilegiado no pensamento lacaniano, de acordo com Miller (2003). Para ele, o
ensino de Lacan parte de uma definição do Real segundo a qual ele é o sentido.
Este ponto inicial esteve velado pelo passo seguinte dado por Lacan – e que se
cristalizou como o lacanismo – segundo o qual o Real psicanalítico é o
significante (Miller, 2006 [2003], p. 15).
Lacan não quis dizer outra coisa quando, em Função e campo da fala e
da linguagem em psicanálise (Lacan, 1953b), afirmou que o inconsciente é
história, entendendo ali história como uma sucessão de resignificações do Real.
Dizer que o inconsciente é história é dizer que está constituído pelo conjunto dos
efeitos de sentido, donde tem, de alguma maneira, sua substância real (Miller,
2006 [2003], p. 14). É como se o inconsciente evidenciasse que há um saber no
Real, que o Real se apresenta na forma de saber.
No entanto, somente na última parte de seu ensino Lacan aponta para
um Real que não seria nem significante nem significado, que seria algo distinto
do sentido e distinto do saber. Este Real remetiria o sentido e o saber a outra
coisa, a uma articulação semântica do significante com o significado.
Assim, para Miller (2003), Lacan estabelece ao final de seu ensino que ali
onde o analisando busca a verdade, ele é conduzido a encontrar o Real.
Certamente se trata menos de que o analisando encontre o Real do que o
inverso, isto é, o Real o alcança. Esta é a defasagem entre a verdade que é
almejada, sua decepção por não ser alcançável, e o achado do Real. Miller
afirma que, numa perspectiva lacaniana, o processo de cura está relacionado à
significantização
96
do que não pôde até aquele momento ser simbolizado, ou do
que, apesar de simbolizado, não o foi suficientemente.
O ponto de partida de Lacan, nesse contexto, é que a relação
significante-significado domina o Real. Ao afirmar isso, a perspectiva de Lacan
ao final de seu ensino tem um efeito retroativo sobre seu começo, na medida em
que o princípio segundo o qual a relação significante-significado domina o Real é
de alguma forma o princípio mesmo do Estruturalismo, cujo legado Lacan
recebeu através de Lévi-Strauss (Miller, 2006 [2003], p. 23-24).
96
Sobre a idéia de significantização em Miller (2003), ver página seguinte.
175
No início, Lacan partiu de uma perspectiva estruturalista para delinear o
Real. Não se tratava do Real como Outro do sentido, que é o que Lacan nos
deixou como legado de seu último ensino, mas do Real fragmentado em
elementos linguísticos, dominado pelo Simbólico.
De acordo com a perspectiva estruturalista, Lacan se dedicou primeiro à
idéia de Real na articulação significante-significado, a isso que do Real se
encontra transmutado em significante e que pode vir a ser convertido em
significado deste significante. Nas palavras de Miller (ibidem, p. 26), dali o valor
do termo significantização; ele traduz esta transmutação, que manifesta
exatamente o predomínio do semblante sobre o Real, levando este Real à
qualidade de significante.
Esta transmutabilidade do Real à qualidade de significante implica em o
Real estar atrelado a um saber que se apresenta na forma de leis. E Lacan
sustenta, não mais a partir de Lévi-Strauss mas sim com Jakobson
97
, que há leis
do significante que se impõem ao Real. Com efeito, a transformação do Real em
significante não nos deixa esquecer que o significante tem suas próprias leis e,
por isso, se impõe ao Real significantizado.
Na opinião de Miller, estas duas operações permitiram a Lacan renovar
nossa leitura daquilo que em Freud representaria o Real bruto, ou seja, o Isso.
Lacan o define do seguinte modo: o Isso – o Es, em alemão – é o significante
que já está no Real, o significante incompreendido. Assim, a leitura de Lacan do
Es freudiano se apóia na idéia de que haja significante no Real. Lacan explica
que essa fonte das pulsões (Es), não é o Real bruto a não ser que exista no Isso
o significante instalado, que funciona, e cuja melhor representação é a
linguagem.
Lacan supõe também, já desde o Seminário 4, que existe um saber
prévio no Real. A significantização do Real é por uma parte a elevação do Real à
qualidade de significante, assim como, por outra, a implicação do significante no
Real como estando já ali.
No entanto, o saber que há no Real não facilita nem abre o acesso ao
outro sexo: no que concerne ao acesso ao outro sexo, não existe programa
inscrito no Real. A proposição segundo a qual a sexualidade esburaca o Real
radicaliza o que Lacan expõe a partir do período de latência em Freud, e é a
origem de sua famosa universal negativa, uma fórmula segundo a qual não
existe relação sexual. Essa assertiva radical estabelece que a relação
97
Roman Osipovich Jakobson (1896-1982): pensador russo que se tornou um dos maiores
linguístas do século XX, pioneiro da análise estrutural da linguagem, da poesia e da arte.
176
significante-significado se inscreve ali onde no Real não há saber, um Real que
escapa à simbolização. Desse modo, a falha do Real determina o que pode
então inscrever-se de semblante.
98
É verdadeiramente a relação enquanto
fórmula que falta como programa no Real (Miller, 2006 [2003], p. 31).
Retomando as categorias apresentadas imediatamente acima, a não
relação sexual é o acontecimento no sentido do trauma, esse que deixa marcas
em cada falante, sinais no corpo que são o sintoma e o afeto. Sob uma primeira
perspectiva da obra de Lacan, o trauma é uma falha no interior do Simbólico, à
qual o sujeito tenta responder fazendo sintomas. É desta forma que entendo a
afirmação segundo a qual o sintoma é uma resposta do sujeito ao traumático do
Real. Embora não “domestique” totalmente o Real, pois não tem todos os
elementos para isso, o sintoma permite ao sujeito retirar daí sua verdade (uma
verdade que advém do Outro). O sujeito se engancha em seu sintoma porque
acredita nele, acomodando-se à castração. Para Lacan, o sintoma é Real.
A idéia de que não existe outro Real além do que exclui todo tipo de
sentido é exatamente o contrário de nossa prática clínica. Isolar este momento
significa o fracasso da psicanálise. No último ensino de Lacan, a idéia de
exclusão tolera a idéia de que há, em última instância, um Simbólico incluído no
Real, apesar de este último excluir o que é significante, significado e sentido. Por
outro lado, há também Real no Simbólico: se trata do fenômeno da angústia, tal
como proposto desde Freud. A angústia vale como Real no Simbólico. Esse
ponto impossível de reabsorver no Simbólico é a angústia em sentido
generalizado, que inclui a angústia traumática. Contudo, o traumatismo do Real
pode também ser compreendido sob uma outra perspectiva, tal como
desenvolve Miller (2003) no curso de 1998-1999.
No final de seu ensino, Lacan propõe um tratamento analítico orientado
para a antinomia entre Real e semblante, o que redunda em desvalorizar ou, ao
menos, resituar o que é da ordem de interpretar o recalcado. Em outras
palavras, a partir deste ponto de vista, a direção do tratamento privilegia o Real
em detrimento da relação significante-significado. O “último Lacan” consiste,
contrariamente ao primeiro, em questionar não somente o que faz sentido como
também aquilo que constituiu saber (Miller, 2002).
As relações do Outro e do sujeito podem ser também tomadas às
avessas: a linguagem advinda do Outro é entendida como um parasita fora do
sentido do ser humano. Assim, a imersão na linguagem é traumatizante na
98
Este semblante que aparece dominado pelo Real no texto lacaniano pode ser definido como a
relação mesma de significante e significado (Miller, 2006 [2003], p. 22).
177
medida em que comporta em seu cerne uma não-relação (sexual). Foi isso que
permitiu a Lacan dizer que o trauma é, em última instância, um trauma sexual.
Em seu curso, proferido em 1998-1999, Miller afirma que há três versões
do Real; para ele, os três termos que Freud reuniu – inibição, sintoma e angústia
– têm como princípio de seu agrupamento a relação com o Real. Miller (2003)
assinala que, do lado do analisando, a experiência do Real é, sobretudo no
último ensino de Lacan, uma experiência do Real como sintoma. Os
analisandos, bem como os que demandam análise, padecem com a intrusão e a
repetição do sintoma. Eles experienciam o Real por vezes como sintoma, por
vezes como angústia.
99
Além do analisando poder experienciar o Real através de sintomas ou da
angústia, ele também pode o experienciar como inibições, a partir de um não
poder que parece absoluto, esse que Freud imputava à debilidade do eu, e que
na experiência pode se apresentar com o passar do tempo como um muro, um
ensurdecimento por parte do inconsciente, que evidencia a insistência de algo
mais poderoso, de ordem diversa do recalque e refratário à eficácia da
interpretação.
No entanto, quais são os termos da experiência do Real do lado do
analista? Para Miller, eles são o recalque, a resistência e a defesa. De certa
maneira, com o recalque, sempre que Freud conduzia o discurso do analisando
para que ele superasse o que até aquele momento não havia conseguido
verbalizar, esbarrava no Real. Este era, porém, um Real dócil ao Simbólico, que
se deixava decifrar, que produzia sentido como a forma histérica da defesa. Este
conceito de recalque foi constitutivo do inconsciente freudiano (Miller, 2006
[2003], p. 105).
Ao final de seu ensino, Lacan pensa em um Real próprio ao inconsciente,
aquele que responde à fórmula da não-relação sexual. O Real que é transmitido
pela fuga do discurso é um Real demonstrado pela contingência das relações
sexuais, dos traumas sempre presentes nos encontros, estes encontros que são,
em última análise, sempre desencontros (Miller, 2002, p. 17).
A partir desta aproximação, o analista passa a ser ele mesmo o lugar do
trauma, quando se presta a ajudar o analisando a reencontrar a palavra depois
de um trauma. É desse modo que podemos entender as assertivas de que a
linguagem é traumatizante, bem como o analista pode ser considerado como um
trauma suficientemente bom (Laurent, 2002), sempre que ele serve de empuxo
99
Para Miller (2003), a angústia seria uma reação mais arcaica, quando comparada ao sintoma e
às inibições.
178
para o analisando falar. O analista é entendido, deste ponto de vista, como um
parceiro que traumatiza o discurso comum para autorizar um outro discurso, o do
inconsciente.
O trauma é um mau encontro e pode ser representado de diferentes
maneiras – através de um desastre natural (terremotos, tsunamis etc.), dos
horrores da guerra e da violência ou da própria fala advinda do Outro. Ainda que
o sujeito não seja responsável pelo Real que o invade, isso produz efeitos nele,
que por isso responde. E a resposta dos indivíduos a ele também não é sempre
igual. Se o inconsciente é efeito de linguagem – em alusão à fórmula lacaniana o
inconsciente é estruturado como uma linguagem – é preciso então tentar
compreender o poder traumático não só dos eventos traumatizantes mas
igualmente das palavras, independentemente do seu conteúdo. A experiência
analítica mostra que boas palavras também adquirem valor traumático: dizer a
alguém que ele será isso ou aquilo na vida pode provocar inibições num sujeito
que não se vê apto a realizar as palavras recebidas (Soler, 2002 [2001], p. 8).
Muito embora o trauma seja considerado um evento que excede as
capacidades representacionais do sujeito, ele também pode, sob determinadas
circunstâncias fantasmáticas, ter função terapêutica, pois exige uma
reorganização em novas bases do eu, o que pode ter como consequência a
redução do sofrimento psíquico do sujeito, organizando seu narcisismo.
Em outras palavras, a solução que se dá ao trauma, através da
elaboração, pode ser positiva. A gravidade do trauma, que introduz uma
descontinuidade na história do sujeito, na narrativa que se dá de sua vida, pode
permitir um movimento positivo em vez de um efeito deletério mais agudo. O
trauma, então, é como uma questão aberta a que cada um responderá como
puder, às vezes até entrando em análise.
179
Considerações finais
O presente trabalho pretendeu, a partir de uma análise crítica de
diferentes perspectivas sobre o trauma dos psicanalistas Sigmund Freud, Sándor
Ferenczi e Jacques Lacan, circunscrever a concepção de trauma em psicanálise
e avaliar sua fecundidade na clínica psicanalítica, assim como nos estudos
psicanalíticos sobre a cultura. Logo na introdução, foi feita uma breve
explanação sobre a etimologia da palavra trauma. Esclareceu-se como as idéias
de trauma e sedução encontravam-se interligadas na teoria freudiana e, mais à
frente, também na teoria ferencziana.
Já desde o final do século XIX, Freud transpôs a noção de trauma para o
plano psíquico, e com ela os três significados que continha: o de uma efração, o
de um choque violento e o de consequências sobre o conjunto da organização.
Em sua obra, ofereceu dois modelos para pensar o trauma, sem que eles
fossem mutuamente excludentes: um modelo quantitativo e um temporal. O
modelo quantitativo considerava que o aparelho psíquico possuía uma barreira
contra estímulos excessivos vindos do exterior, barrreira que podia ser rompida
diante de estímulos que determinassem uma quantidade de excitação excessiva
para poder ser capturada pelo aparelho psíquico. Por sua vez, o modelo
temporal definia o trauma em função da ausência de preparação para o
acontecimento traumático. O deslocamento da ênfase sobre a quantidade de
estímulo para o tempo em que ele ocorria priorizava a importância do período de
latência entre o que marcava o corpo e o que atingia a mente.
As duas definições esquemáticas de trauma acima descritas – a
quantitativa e a temporal – recobrem na verdade duas interpretações
metapsicológicas diversas do trauma: a primeira, associada à teoria do recalque
e ao retorno do recalcado, característica da primeira tópica freudiana; a segunda,
relativa aos acidentes traumáticos, aos sobreviventes de guerra e às catástrofes
naturais ou àquelas produzidas pela ação humana. Este último modelo pode ser
encontrado na seção 1.3 deste estudo, dedicada às neuroses traumáticas de
guerra.
Para acompanhar a evolução freudiana no que se refere ao trauma,
situou-se a progressão de seu pensamento sobre o tema numa articulação
conceitual e cronológica. Assim, no primeiro capítulo, o trauma foi apresentado
desde os estudos preliminares sobre a histeria (Freud, final do século XIX),
180
passando pelo interesse de Freud pelas neuroses traumáticas de guerra e indo
até a virada da década de 1920, que deu origem à segunda tópica, com Além do
princípio do prazer (Freud, 1920) e O eu e o isso (Freud, 1923).
100
Essa virada
teórica teve o trauma como seu móvel, de vez que foram os sintomas
subsequentes ao trauma que levaram Freud a empreender a maior revisão na
teoria psicanalítica desde suas origens.
Resgatou-se ainda seu depoimento em Moisés e o monoteísmo (Freud,
1939 [1934-1938]), ensaio em que Freud sustentou mais uma vez a origem
traumática das neuroses, o que acarretou uma nova discussão sobre o tema à
luz dos efeitos traumáticos que pesavam sobre os grupos, os povos e assim por
diante. De acordo com este ensaio, o trauma explica não apenas o movimento
repetitivo encontrado na história pregressa do indivíduo, como também a
repetição na história coletiva.
Neste estudo, acompanhou-se, em diferentes seções e detalhadamente,
o desenvolvimento das teorias de Freud sobre o trauma. Quatro fases se
destacaram, a meu ver, na obra do autor:
1. As primeiras formulações sobre o trauma, entre 1892 e 1897, envolvendo
a primeira teoria da sedução e o trauma – real – na teoria da histeria. A
primeira teoria do trauma pôde ser reconhecida desde os primeiros
escritos sobre a histeria, quando Freud desenvolveu a questão do trauma
psíquico como um corpo estranho no psiquismo que, muito depois da
ocorrência, persistia sendo um agente em ação. O trauma continuava,
desse modo, provocando efeitos sobre o psiquismo como se ainda fosse
presente, ponto importante e que caracterizou essa primeira teoria como
“o trauma enquanto afeto estrangulado”.
2. O papel da realidade psíquica no trauma, quando Freud matizou a
realidade objetiva da sedução traumática pela descoberta da influência
das fantasias inconscientes e dos desejos na sedução infantil. Com a
descoberta da sexualidade infantil, o trauma passou a ser substituído
pela fantasia ou a encontrar nela seu complemento. Após 1897, Freud
recomenda que não se busque separar o que ocorreu e o que seria
fantasia, o que deve ser levado em conta é a realidade psíquica. A
fantasia assumiu a força que antes pertencia exclusivamente ao evento
traumático e real. A castração e a diferença sexual, como traumas
100
O título deste trabalho de Freud de 1923, tal como traduzido pela Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, seria O ego e o id.
181
estruturais, substituíram o trauma de sedução. A idéia de a posteriori,
presente já desde a primeira teoria da sedução, jamais foi abandonada: é
ainda preciso que uma situação infantil e uma situação atual se
entrelacem para constituir o efeito traumático.
3. O tema do trauma volta à baila entre os anos 1915 e 1920, inicialmente
imposto a Freud pelos casos de neuroses traumáticas de guerra que,
aparentemente, não tinham relação privilegiada com objetos sexuais. A
análise das sintomatologias traumáticas geradas nas pessoas durante a
Primeira Guerra Mundial foi o que mais tarde inspirou as construções de
Freud sobre a existência de algo além do princípio do prazer, assim como
as novas formulações sobre pulsão de morte, compulsão à repetição e
sobre a própria concepção de trauma (Freud, 1920). A repetição era uma
maneira de elaboração do trauma, sendo que ele podia não estar
remetido diretamente à uma experiência infantil de natureza sexual,
atingindo o sujeito também na fase adulta.
4. A relação entre trauma e angústia, formulada em 1926. Em Inibições,
sintomas e angústia, Freud (1926 [1925]) tenta integrar as duas
definições esquemáticas de trauma e, com este fim, retoma o modelo
quantitativo da primeira tópica freudiana. Neste trabalho, Freud afirmou
que a angústia não tinha origem na sexualidade mas no desamparo. O
trauma passou a ser, por conseguinte, a separação do ser protetor, do
qual o supereu era o resto. A angústia sinalizava quando alguma situação
evocava o trauma no aparelho psíquico, já que ela reproduzia o
desamparo.
A concepção ferencziana do trauma foi apresentada no segundo capítulo
deste estudo, a partir de dois enfoques. No primeiro, o trauma foi considerado
estruturante e necessário à constituição da subjetividade do indivíduo, sendo
exemplificado pela castração e pelo aprendizado das normas de higiene pela
criança (cf. textos de Ferenczi das décadas de 1910 e 1920). No segundo, as
situações traumáticas foram consideradas como capazes de colocar em risco o
projeto identificatório do sujeito, por não serem adequadamente metabolizadas
e, dessa forma, integradas ao psiquismo (cf. ensaios ferenczianos após 1929).
Na teoria ferencziana, é sobretudo o meio ambiente que desorganiza o aparelho
psíquico.
Ferenczi se reportou ao trauma ligando-o aos principais pressupostos da
neurotica freudiana. Vai, entretanto, além, a partir de descobertas que derivam
182
do trabalho no campo transferencial, no qual enfatiza a importância de se levar
em conta o lugar do psicanalista na cena de análise. Associando a teoria da
clínica à cena traumática, valorizou a alteridade na constituição do trauma: o
trauma era o resultado de uma ação de uma outra pessoa sobre o traumatizado,
e eventualmente essa ação poderia advir do analista.
Foi principalmente na década de 1930 que Ferenczi trabalhou a noção de
trauma. Como vimos, o trauma, nesta época, constituia-se em dois tempos: um
primeiro em que um evento precoce e real acontecia – as atitudes sexuais
sedutoras dos adultos frente às demandas de carinho e verdade das crianças – ,
e um segundo, em que entrava em questão a idéia inovadora de desmentido.
O mito do trauma ferencziano pode ser resumido da seguinte maneira: a
criança, após ter sido violentada por um adulto (violação que pode ser desde o
aprendizado de hábitos de higiene até um abuso sexual real), procurava outro
adulto no qual confiava para contar o ocorrido a ele. Este segundo adulto a
desmentia.
A importância do trauma no surgimento das neuroses é decisiva, e esse
fator traumático é, geralmente, sexual. Ferenczi comparou a situação analítica
ao trauma infantil, na medida em que o psicanalista poderia ocupar o lugar do
adulto na cena traumática. A eventual hipocrisia profissional do analista é, em
sua conceituação do trauma, intimamente ligada ao papel concedido ao
desmentido por parte do adulto do mal feito à criança. A hipocrisia analítica
poderia funcionar da mesma forma, e isso o motivou a propor a aplicação de
uma nova técnica, denominada por ele “análise mútua”. O que poderia
estabelecer o contraste entre o passado traumático e o presente seria a
confiança depositada na figura do psicanalista, e tal confiança se fortaleceria
sempre que o psicanalista fosse capaz de admitir seus erros, permitindo
inclusive que o cliente o criticasse.
No último capítulo deste estudo, retomou-se o tema do trauma, desta vez
na teoria lacaniana, com o objetivo de sustentar a idéia de que, para este
psicanalista, o verdadeiro trauma é a entrada de cada sujeito no meio
significante. O trauma deve ser entendido como aquilo em torno do qual o sujeito
se constitui.
Com o objetivo de pensar a clínica do significante e a questão do trauma,
foram abordadas, ao longo deste capítulo, algumas idéias psicanalíticas
importantes, tais como: a questão de temporalidade, do só depois; e a
importância da compulsão à repetição como uma maneira de reatualização do
trauma.
183
Embora Lacan tenha repensado a constituição da subjetividade do
indivíduo à luz do trauma desde a década de 1950, é principalmente no
Seminário 11 de 1964 que se encontra maior originalidade no que se refere à
abordagem do assunto. Para justificar sua posição sobre o trauma como não
contingencial, Lacan retomou a seu modo, em 1964, idéias antes propostas por
Aristóteles. A partir delas, Lacan diferenciou dois modos de repetição: tiquê e
autômaton. A tiquê referia-se à repetição como encontro com o Real. O
autômaton, por sua vez, ligava-se à idéia de retorno, da volta demandada pelo
princípio do prazer.
Também neste capítulo, foram apresentadas duas operações lógicas
constituintes da subjetividade do indivíduo – a alienação e a separação. Estas
duas operações diziam respeito ao fato de que o sujeito era produzido dentro da
linguagem que o aguardava, sendo inscrito no campo do Outro. Ambas se
referiam ao trauma estruturante na obra lacaniana após 1964.
A introdução da temática da alienação e separação permitiu a Lacan
repensar a relação do sujeito com o significante e com o objeto. Após
esclarecidas as duas operações lógicas, detalhou-se a concepção de Real em
Lacan, conceito solidário à idéia de trauma a partir principalmente da década de
1970.
O conceito de Real em Lacan é bastante complexo e sofreu mudanças ao
longo de seu ensino, as quais se procurou acompanhar brevemente. Por meio
da topologia do nó borromeano, proposta no início dos anos 1970, discutiu-se o
Real no ensino de Lacan. Por fim, tratou-se o tema do trauma e a experiência do
Real no tratamento psicanalítico, de acordo com Lacan e com Jacques-Alain
Miller.
Numa leitura lacaniana, o trauma fundamental é o encontro com a
linguagem. Assim, a partir do momento em que o sujeito recebe uma fala
atributiva, ele se vê dividido entre as palavras recebidas e todas as outras que
ficaram em suspenso. A percepção não é anulada, mas também não se inscreve
simbolicamente na cadeia significante, permanecendo no psiquismo sempre
pronta para irromper.
O Real traumático é concebido como algo a ser tamponado pela
homeostase que norteia o funcionamento do princípio do prazer. Lidar com o
Real que aí se apresenta não é sem consequências. Uma dessas
consequências é a fantasia, que se situa como um recurso do qual o sujeito
lança mão para poder fazer frente ao inevitável enfrentamento com este Real.
184
Contudo, existem outras possibilidades de se lidar com o Real e o
adoecer está entre elas. Em consonância com as três principais perspectivas
teóricas analisadas neste estudo, a solução dada para o trauma será, por
conseguinte, sempre singular a cada sujeito.
Neste estudo não foram aprofundadas questões relativas à técnica
analítica, de acordo com as três perspectivas teóricas analisadas. Freud e
Ferenczi referem-se a uma cisão ou fragmentação do eu que seria resultante do
trauma, ou, mais precisamente, de uma defesa contra a angústia por ele
provocada. O sentido do tratamento analítico deveria atenuar essa cisão através
da possibilidade de simbolização. Uma reconstrução bem sucedida costuma
propiciar ao analisando vivenciar uma melhora sintomática, na medida em que a
parte encapsulada de seu eu volta a ser mais permeável, integrando-se melhor à
rede associativa. As recordações traumáticas emergem com frequência na
relação transferencial durante um tratamento analítico. O psicanalista deve lidar
com o desconforto produzido nele próprio e ser capaz de utilizar o material que
emerge na análise e seus afetos correspondentes, cuidando para que a tensão
produzida do lado do analisando não ultrapasse o nível suportável, a ponto de
colocar em risco a continuidade da análise.
Uma das hipóteses que não se deve deixar de contemplar, a partir dos
muitos suicídios que se seguiram a uma exposição de situações traumáticas por
seus autores, geralmente em livros, é que existe um risco em conduzir a análise
na crença de que a verbalização e o relato dos acontecimentos traumáticos seja
algo desejável e deva ser estimulado pelo analista. Por outro lado, muitos dos
escritores que contaram suas experiências nos campos de concentração
nazistas mencionaram a dificuldade e a rejeição que pressentiam em seus
parentes ou amigos de ouvir deles sobre as atrocidades vividas. Talvez a
experiência de escrever em solidão seja diversa daquela de encontrar um
interlocutor que possa escutar, sem que a própria angústia coloque o narrador
em posição defensiva, e reconhecer aquelas experiências como da ordem do
insuportável.
Diversos sobreviventes da Shoah jamais encontraram notícias de
familiares e conhecidos de quem haviam se separado durante a guerra. A falta
de confirmação de sua morte os impedia de enterrar seus mortos, o que
constituía um enorme obstáculo para qualquer forma de luto. Havia também a
impossibilidade em quem se dispusesse a acolher seus testemunhos, o que
causava profunda decepção. Aliado a tudo isso, em muitos casos, percebia-se
que pouco ou nada havia mudado com o fechamento dos campos de
185
concentração, o que invibializava o cumprimento da promessa aos que
pereceram de testemunhar para que algo semelhante nunca mais viesse a
ocorrer. Tudo isso redundou em vários suicídios, mesmo após os sobreviventes
terem lutado tanto pela vida durante a guerra.
Para citar somente alguns casos de escritores consagrados que
testemunharam publicamente sobre os horrores da Shoah e mais tarde
cometeram suicídio, lembro Primo Levi, Paul Celan, Sarah Kofman, Bruno
Bettlheim e Tadeusz Borowski. Borowski (1922-1951), por exemplo, suicidou-se
aos 28 anos de idade, inspirando gás de um forno em 1951!
Primo Levi (1919-1987) tornou-se, após a Shoah, um dos romancistas
italianos mais conhecidos. Escreveu memórias, contos, poemas e novelas. É
isso um Homem? (Levi, 1947) é considerado um dos mais importantes trabalhos
memorialísticos do século XX. Morreu em 1987, depois de cair no vão da escada
interna do prédio de três andares onde vivia. Especula-se, até hoje, que ele
tenha se suicidado. Embora parentes argumentem que a queda foi acidental, a
maioria dos biógrafos tende a acatar a idéia de suicídio.
Paul Celan (1920-1970) foi um poeta judeu que começou a escrever
poemas em 1938, aos 17 de idade. Teve sua obra – mais de 800 poemas
escritos ao longo de sua vida, muitos deles desconhecidos da maioria do público
e não traduzidos – marcada pelo trauma da experiência da catástrofe, a Shoah.
Pôs fim à sua vida em 1970.
Sarah Kofman (1934-1994), por sua vez, uma das mais significativas
pensadoras do pós-guerra e autora de mais de 20 livros, incluindo várias obras
sobre Freud, Nietzsche e feminismo, escreveu vários trabalhos autobiográficos.
Paroles suffoquées (Kofman, 1987) é dedicado a seu pai, Berek Kofman, que ela
viu pela última vez em julho de 1942. Rue Ordener, rue Labat (Kofman, 1994)
também começa com a prisão de seu pai pela polícia de Vichy, cidade a sudeste
de Paris.
101
O título se refere a dois endereços: o primeiro, onde a família vivia
até a detenção do pai, e o segundo, onde Sarah ficou abrigada, durante a maior
parte do período da guerra, depois de ter sido recolhida por uma parisiense
divorciada, que a tratava como filha. O livro conta a história desse período e da
disputa de custódia entre a mãe adotiva e a mãe biológica, após o término da
guerra.
101
A França de Vichy foi o governo francês dos anos 1940-1944, estabelecido após o país ter-se
rendido à Alemanha. Era um governo fantoche da influência nazista que se opunha às Forças
Livres Francesas, baseadas inicialmente em Londres e depois em Argel.
186
Kofman se suicidou logo após haver publicado suas memórias em 1994 e
na data do 150º aniversário de nascimento de Nietzsche, autor sobre o qual ela
já havia escrito e por quem ela nutria admiração.
Bruno Bettelheim (1903-1990), reconhecido como um prestigiado
psicólogo infantil, foi deportado pelos nazistas para o campo de concentração de
Dachau e, mais tarde, para Buchenwald, durante a Segunda Grande Guerra. Aí
pôde observar os comportamentos humanos quando o indivíduo é submetido a
condições extremas, as quais estiveram na base das suas teorias sobre a
origem do autismo. Graças a uma anistia em 1939, foi libertado e emigrou para
os Estados Unidos. Tornou-se professor de Psicologia em universidades
americanas e dirigiu o Instituto Sonia-Shankman em Chicago para crianças
psicóticas, destacando-se o seu trabalho com crianças autistas. Cometeu
suicídio em 1990, possivelmente deprimido pela morte da esposa (1984) e após
sofrer um derrame cerebral. Talvez o retorno das experiências traumáticas
vivenciado com a separação definitiva da esposa tenha se associado àquelas
perdas irreparáveis e reais, experienciadas durante a Segunda Guerra.
Supõe-se que uma pessoa que tenha vivido normalmente durante vários
anos após a libertação dos campos de concentração pode, em decorrência de
uma mudança significativa na vida ou com a própria velhice, adoecer novamente
pelo reaparecimento dos efeitos do trauma sofrido na Shoah. Logo após serem
libertadas, as pessoas não conseguiam refletir e avaliar suas experiências de
imediato. Estavam ocupadas demais tentando sobreviver e reconstruir suas
vidas; muitas felizmente conseguiram, embora as consequências deixadas se
apresentassem mais adiante.
Enquanto o suicídio raramente ocorria imediatamente
após a Shoah, os números cresceram nos anos 60, quando os
sobreviventes envelheceram e sua capacidade de lidar com o
trauma diminuiu (...).
(Ballinger, 1998, p. 117 apud Kupferberg, 2004, p. 207)
Assim, a recordação do vivido pelos testemunhos autobiográficos pode
haver provocado o retorno de afetos recalcados, tornando-se uma ameaça fatal
à integridade psíquica daqueles que viveram para testemunhar e impedir que
algo semelhante ocorresse novamente.
Ao final deste trabalho, quero ressaltar que este estudo sobre os
caminhos do trauma em Freud, Ferenczi e Lacan não pretendeu esgotar a
riqueza de seus pensamentos, mas abrir novas vias de acesso à renovação da
teoria e da prática psicanalíticas. Assim, aponto para o quanto seria rico
187
continuar a presente pesquisa sobre o trauma, levando-se em conta o manejo da
transferência no processo psicanalítico em casos de neuroses de origem
traumática. Sem dúvida a importância da formação do psicanalista (no que
concerne a ele próprio haver se submetido a um tratamento de análise, sua
experiência clínica, o compartilhamento dessa experiência na supervisão etc.) é
condição para um bom andamento do tratamento. Mas isso não o libera do
esforço de construção teórica: a forma como vai intervir especificamente no
atendimento de analisandos com neuroses traumáticas, em oposição às
neuroses espontâneas, será consequência de seu entendimento do que
constitui, metapsicologicamente, o trauma em questão.
188
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