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CLAUDIA REGINA LEMES
FORMAÇÃO CULTURAL E O FENÔMENO DA VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA
MOGI DAS CRUZES
2009
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CLAUDIA REGINA LEMES
FORMAÇÃO CULTURAL E O FENÔMENO DA VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Semiótica, Tecnologias
de Informação e Educação, da Universidade
Braz Cubas, para obtenção do título de
mestre em Semiótica, Tecnologias de
Informação e Educação.
Área de concentração:
Formação do sujeito e linguagem
Orientadora:
Profa. Dra. Rosemary Roggero
MOGI DAS CRUZES
2009
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AUTORIZO REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO,
PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
LEMES, Claudia Regina.
Formação cultural e o fenômeno da violência doméstica contra a
criança./ Claudia Regina Lemes; orientadora Profa. Dra. Rosemary
Roggero; Mogi das Cruzes, 2009
176 f.
Dissertação de Mestrado – Programa de Pós-Graduação em Semiótica,
Tecnologias de Informação e Educação. Área de concentração: Formação
do Sujeito e Linguagem – Universidade Braz Cubas
1. Formação do Sujeito. 2. Cultura. 3. Violência Doméstica Contra a Criança.
4. História de Vida.
FORMAÇÃO CULTURAL E O FENÔMENDO DA VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA
Claudia Regina Lemes
BANCA EXAMINADORA:
Profa. Dra. Rosemary Roggero (orientadora)
Instituição: Universidade Braz Cubas Assinatura ____________________________________
Profa. Dra Ivanise Monfredini
Instituição Universidade Nove de Julho- Uninove - Assinatura_________________________
Profa. Dra. Ana Zahira Bassit
Instituição Universidade Braz Cubas - Assinatura ___________________________________
Trabalho apresentado e aprovado em ______ de _________________ de _______
Dedico este trabalho ao Marcelo, meu marido; aos meus filhos,
Leandra, Gabriel, Vinícius e Mariana; aos meus pais, Neuza e
Américo; aos meus irmãos, Denise, Luciana e Américo Wagner;
e, especialmente, às duas preciosidades da minha vida, Felipe e
Rafael, meus netos.
AGRADECIMENTOS
Agradeço às professoras que foram colaboradoras desta pesquisa, doando suas histórias de
vida.
Agradeço à Rosemary Roggero, minha querida professora e orientadora.
Há um passado no meu presente, um sol bem quente lá no meu quintal...
(Milton Nascimento e Fernando Brant)
LEMES, Claudia R. Formação cultural e o fenômeno da violência doméstica contra a
criança. 2009. 176 f. Dissertação (Mestrado em Semiótica e Tecnologias da Informação e
Educação) – Universidade Braz Cubas, Mogi das Cruzes, SP, 2009.
R
ESUMO
Esta pesquisa teve como problema: Por que acontece a violência contra a criança na família?
Alicerçou-se na hipótese da cultura como fator determinante da existência desse tipo de
violência, no âmbito da sociedade. Com o objetivo de entender a lógica que está por trás da
violência doméstica contra a criança, a pesquisa empírica foi realizada com a utilização da
metodologia de história oral de vida temática de três professoras do ensino fundamental I, que
narraram suas histórias destacando como foram tocadas pelo fenômeno em questão. Com base
nos conceitos da teoria crítica da sociedade para análise das narrativas, teve-se acesso à
cultura, aos preconceitos de classe, à crise da família e instituições, às adaptações ao mundo
organizado e, por fim, à identidade do sujeito aprisionado nas malhas da cultura afirmativa.
As narrativas das professoras trouxeram elementos que, apesar de possibilitarem outros tipos
de análise, foram analisados em categorias e observados os elementos nas histórias que se
completam, contradizem e se tocam. As combinações das narrativas remetem ao problema da
violência doméstica contra a criança, pois trazem as circunstâncias da vida e as configurações
que foram se formando; além de demonstrarem o sistema de forças que aprisiona e nega a
subjetividade produz a pseudoformação e imprime o modelo ideológico da cultura afirmativa.
O sujeito alienado é esquecido de si mesmo. A opressão que a criança sofre no lar tem o
mesmo significado da violência que é impingida aos seus agressores nos diversos setores da
sociedade. No mundo atual, em que os avanços culturais, científicos e tecnológicos não são
suficientes para livrar a humanidade da barbárie, faz-se relevante entender por que ocorre a
violência contra a criança e propor reflexões que visem à busca de soluções.
PALAVRAS-CHAVE: Formação do Sujeito, Cultura, Violência Doméstica Contra a Criança,
História de Vida.
ABSTRACT
The subject of this research was: Why does violence against the child occur in the family
context? The hypothesis that culture is a determining factor in the existence of this type of
violence in the scope of society was supported. With the objective of understanding the logic
behind domestic violence against children, the empiric research was carried out using the
methodology of thematic oral history of three elementary school teachers who narrated their
stories and explained how much they had been touched by the phenomenon in question.
Based on the concepts of critical theory of society to analyze the narrations, access was
gained into culture, class prejudice, family and institutional crises, adaptation to the organized
world, as well as into the identity of an individual imprisoned in the meshes of an affirmative
culture. Although the teachers’ narrations allowed for other types of analyses, the elements
they originated were analyzed in categories. Elements in stories which complement,
contradict and coincide with one another were observed. The combinations of the narrations
refer to the problem of domestic violence against the child since they bring out life
circumstances and configurations that have been developing; apart from demonstrating the
system of powers that imprisons and abnegates subjectivity, produces pseudo-formation and
imprints the ideological model of the affirmative culture. The alienated subject is completely
forgotten, even to self. The oppression faced by children at home has the same significance of
violence imposed on their aggressors in various society sectors. In the present world, where
the cultural, scientific and technological advances are not sufficient to save humans from
atrocity, it is necessary to understand why violence against children occurs and also to
propose measures that aim to solve this problem.
KEYWORDS: Subject formation, Culture, Domestic Violence against the Child, Life History.
LISTA DE TABELAS
TABELA 1
Dados estatísticos do CRAMI 2009............................................................................
14
TABELA 2
Dos agressores com vínculo familiar..........................................................................
15
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................................
11
1 A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA
SOCIEDADE BRASILEIRA.......................................................................................................
25
1.1 A CRIANÇA NA FAMÍLIA......................................................................................................
29
1.2 A FAMÍLIA E A INFÂNCIA BRASILEIRA.............................................................................
36
1.3 AS INSTITUIÇÕES PÚBLICAS................................................................................................
48
1.4 O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE............................................................
57
1.5 A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA REFLETINDO NA ESCOLA...........
60
2 A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA
CULTURA.........................................................................................................................................
66
2.1 A CULTURA E OS TIPOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA............
72
2.1.1 VIOLÊNCIA FÍSICA....................................................................................................
72
2.1.2 VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA.......................................................................................
73
2.1.3 NEGLIGÊNCIA............................................................................................................
74
2.1.4 VIOLÊNCIA SEXUAL.................................................................................................
77
2.1.5 VIOLÊNCIA FATAL...................................................................................................
81
2.2 CULTURA E INFÂNCIA...........................................................................................................
82
2.3 CULTURA E FAMÍLIA.............................................................................................................
88
2.4 CULTURA E VIOLÊNCIA........................................................................................................
93
3 A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER
DA
CULTURA..................................................................................................................................
99
3.1 O REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO PARA A COLETA DAS HISTÓRIAS.....
100
3.2 AS NARRATIVAS.....................................................................................................................
102
3.2.1 PROFESSORA PAULA...............................................................................................
102
3.2.2 PROFESSORA MARLI...............................................................................................
108
3.2.3 PROFESSORA CAROLINA........................................................................................
119
3.3 A ANÁLISE DAS NARRATIVAS............................................................................................
150
3.4 COM QUANTAS BIOGRAFIAS SE FAZ UMA HISTÓRIA?.................................................
151
3.5 A VIDA NEGADA....................................................................................................................
155
3.6 FACES QUE SE TOCAM..........................................................................................................
156
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................................
159
REFERÊNCIAS.......................................................................................................................................
169
11
INTRODUÇÃO
Fromm (1979), considerando o amor uma arte, demonstra que, quando as pessoas são
capazes de superar as suas dependências e onipotências narcisísticas na relação humana, nascem
relações de amor. Dessas relações, o amor é reproduzido. Por outro lado, onde falta a
preocupação ativa, ou ocorre o desejo de explorar o outro, não há amor. A falta dos elementos
básicos comuns a todas as formas de amor: o respeito, o cuidado, a responsabilidade e o
conhecimento, gera o temor em doar-se no mesmo grau com que perece da falta desses. “[...] Se
uma mulher nos diz que ama as flores e vemos que ela se esquece de regá-las, não acreditamos
em seu ‘amor’ pelas flores. Amor é a preocupação ativa pela vida e crescimento daquilo que
amamos.” (FROMM, 1979, p. 49).
O amor não é o alvo desta pesquisa, mas em certa medida a falta dele, na forma como
apresentado nos trechos acima, tem relação com as circunstâncias que permeiam o fenômeno
estudado: a violência doméstica contra a criança.
Situações de violência doméstica contra a criança, refletidas na escola, foram observadas
na experiência profissional da pesquisadora, que é professora e trabalhou em escolas de
algumas cidades de São Paulo. Algumas dessas situações são aqui apresentadas, para
exemplificar o fenômeno. Os nomes das crianças foram substituídos para preservar as suas
identidades.
SITUAÇÃO 1:
O aluno Anderson, 7 anos, matriculado na segunda série do ensino fundamental do ciclo
I, chega à sala de aula com um grande ferimento em uma parte do braço, sem cuidados
médicos e com aparência de infecção. A criança queixa-se de dor e relata à professora
ter sofrido queimadura no dia anterior, quando estava em casa com um tio que tinha
bebido muito. O tio resolveu esquentar o almoço para os dois e foram comer na cama. A
panela virou e derramou o conteúdo quente no braço da criança. Segundo o aluno, após
o acontecido, o tio foi dormir e falou para ele colocar pasta de dente na queimadura. Ao
receber o aluno nessas condições, a professora levou essa situação ao conhecimento da
diretora da escola, que mandou a criança para casa com um bilhete para que a mãe ou
um responsável o levasse ao médico.
INTRODUÇÃO 12
SITUAÇÃO 2:
A aluna Priscila, 6 anos, primeiro ano do ensino fundamental, apresentava-se muito
agitada em sala de aula, não permanecia no lugar, dispersando-se das atividades
propostas, e não atendia às solicitações da professora.
A docente solicitou auxílio da coordenadora, que chamou a criança em sua sala para
uma conversa, durante a qual ficaram sabendo que no dia anterior a criança tinha sido
castigada pela madrasta, que a deixou sozinha trancada em um quarto escuro, sentada
em uma cadeirinha da qual foi proibida de se levantar, caso contrário apanharia. A aluna
informou que, após deixá-la no quarto, a madrasta saiu para rua, só retornando ao
anoitecer.
A coordenadora fez um acordo com a aluna para que esta se comportasse, caso contrário
a madrasta seria chamada. Retornou para a sala de aula com a aluna e orientou a
professora para avisá-la se a aluna não cumprisse o acordo.
Mais tarde, na reunião pedagógica, a coordenadora e a professora comentaram que a
aluna melhorava o comportamento sempre que era lembrada que a madrasta poderia ser
chamada para uma conversa, e usavam desse recurso para garantia do “bom
comportamento” em sala de aula: “Cuidado com a cadeirinha no escuro, hein!”
SITUAÇÃO 3:
A aluna Bianca, 6 anos, primeiro ano do ensino fundamental, muito distraída e com
dificuldade de aprendizagem, não fazia as tarefas, não trazia materiais para as aulas,
(nem aqueles cedidos pelo governo). Tinha a aparência triste, descuidada e sempre se
queixava de dores na região do abdômen. Após ter faltado à aula por uma semana, ao
retornar, a professora perguntou os motivos da falta. A aluna disse que havia faltado
porque tinha se esquecido de “vestir a calcinha”. A professora achou engraçado e
comentou na sala dos professores com as colegas, não levando em conta o quanto essa
justificativa da criança poderia ser simbólica e representativa de que algum tipo de
abuso sexual poderia estar ocorrendo com a criança.
SITUAÇÃO 4:
A aluna Ingrid, 7 anos, apresentou-se à aula após ter faltado alguns dias com ferimentos
na face. Os coleguinhas da classe disseram à professora que ela apanhou de sua mãe
porque havia desaparecido na rua e retornado muito tarde. A aluna confirmou que
realmente apanhou, pois ficara na casa de uma colega sem que a mãe soubesse. Diante
dos ferimentos: olho arroxeado, marcas de cintadas pelo corpo e comportamento agitado
da criança, a professora procurou a direção da escola para pedir orientação quanto à
atitude que deveria tomar. A diretora disse para a professora que fazia o possível para
que dentro da escola as crianças fossem bem tratadas. Lá fora, portanto, não era
INTRODUÇÃO 13
problema dela. “Do portão pra fora eu não quero saber!” A professora insistiu em
notificar o Conselho Tutelar. A diretora proibiu essa conduta com a justificativa de que
não queria que a escola fosse um centro de denúncias de maus-tratos contra a criança, já
que essa situação era corriqueira na comunidade onde a escola funcionava e isso seria
um transtorno para o relacionamento da escola com os pais.
SITUAÇÃO 5:
A aluna Dayane, 8 anos, apresentava-se às aulas com as roupas sujas e muitos piolhos e
lêndeas na cabeça. A coordenadora pediu autorização à criança para prender os seus
cabelinhos com uma presilha, pois parecia estar atrapalhando a sua visão (os cabelos
eram compridos e caiam sobre o rostinho da criança). Ao fazer isso, percebeu que a
criança possuía muitas feridas com sangramento no couro cabeludo, provavelmente
ocasionadas por causa da infestação de piolhos. Convocou a mãe para exigir uma
providência para melhorar a situação da criança. A mãe compareceu com duas crianças
nos braços, menores que a aluna, acompanhada de uma filha também aluna da mesma
escola, mas das séries finais do ensino fundamental, que também carregava outro
irmãozinho pela mão, um pouco mais velho do que os que estavam com a mãe. A
senhora durante a conversa demonstrou não ter conhecimento necessário sobre higiene e
saúde das crianças. Verbalizou ainda que não poderia perder os benefícios sociais que
recebia, pois vivia apenas desse dinheiro, porque o pai das crianças era alcoolista e não
trabalhava; além disso, já tinha sido chamada ao Conselho Tutelar por causa de
denúncias dos vizinhos. A escola liberou a mãe solicitando-lhe que tentasse cuidar das
crianças para sanar a infestação de piolhos.
SITUAÇÃO 6:
O aluno Matheus, com 8 anos e frequentando a segunda série do ensino fundamental I,
tinha o rosto marcado por uma chinelada. A professora foi orientada pela coordenadora
a chamar a família para uma conversa. O pai, que era policial, ao comparecer à escola,
veio fardado. Ao ser questionado pela professora, disse que já cansara de avisar e
ensinar à esposa a bater corretamente para não deixar marcas.
No Brasil, a lei que protege a criança é o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e,
apesar de já existir a aproximadamente duas décadas
1
, ainda assim os registros de violência
doméstica contra a criança têm aumentado. Para demonstrar tal situação, na Tabela 1 são
apresentados dados estatísticos referentes ao trabalho desenvolvido pelo Centro Regional de
Atenção aos Maus-Tratos na Infância do ABCD (CRAMI) nos municípios de Santo André,

1
O Estatuto da Criança e do Adolescente completará duas décadas em 13 de julho de 2010 (BRASIL, 1990).
INTRODUÇÃO 14
Diadema e São Bernardo do Campo. O CRAMI é uma organização não-governamental fundada
em 1988 e declarada de utilidade pública municipal, estadual e federal. Essa ONG tem por
missão propiciar atendimento psicossocial a crianças e adolescentes vítimas de violência
doméstica e desenvolver ações preventivas que possibilitem a defesa e proteção incondicional.
TABELA 1 Dados estatísticos do CRAMI 2009.
FAMÍLIAS EM ATENDIMENTO NO ANO DE 2009
TIPO DE VIOLÊNCIA JANEIRO FEVEREIRO MARÇO ABRIL
Abuso sexual 134 129 139 144
Exploração sexual 003 004 004 004
Física 250 240 241 245
Psicológica 036 036 038 038
Negligencia 025 024 023
Outros 002 003 002 022
Total 450 436 447 453
Fonte: CRAMI ABCD (2009).
Na cidade de Campinas, de 1985 a 2006, o CRAMI realizou o atendimento de 16.000
casos de violência contra crianças e adolescentes. Atualmente, a entidade atende 515 casos,
segundo informações obtidas no site oficial da organização não-governamental (CRAMI
CAMPINAS, 2009).
Dados sobre o abuso sexual de crianças e adolescentes, no período de janeiro de 2000 a
janeiro de 2003, na cidade do Rio de Janeiro, em um universo de 418 denúncias feitas por
telefone, revelam que 54,55% dos agressores possuíam vínculo familiar ou de parentesco com
as vítimas, e 45,55% dos agressores não possuíam vínculos familiares com as vítimas
(OBSERVATÓRIO..., 2003). Na Tabela 2, é apresentada a distribuição dos abusadores com
vínculo familiar por grau de parentesco com a vítima.
INTRODUÇÃO 15
TABELA 2 Dos agressores com vínculo familiar.
PORCENTAGEM GRAU DE PARENTESCO COM A VÍTIMA
42,3% Eram pais biológicos das vítimas
16,2% Eram padrastos
2,31% Babás das vítimas
7,69% Mãe
4,23% Irmão
2,31% Avô
1,92% Avó
3,85% Namorado da vítima
0,77% Namorado da mãe
2,31% Companheiro da vítima
1,15% Madrasta da vítima
10,00% Tio da vítima
0,77% Tia da vítima
3,46% Primo da vítima
Fonte: Observatório da infância (2003).
A sociedade convive cotidianamente com o trabalho infantil, a prostituição e outras
formas de violência contra a criança que, apesar de não ser especificamente violência
doméstica, têm estreita relação e, não raramente, ocorrem em concomitância, como é
demonstrado na matéria publicada em 2008 em um jornal do litoral do estado de São Paulo:
A violência contra a criança ocorre em 90% dos casos em ambientes
domésticos. E está muito mais próxima e presente do que se tenta esconder. A
conclusão é de uma investigação em andamento feita pela universidade
Federal de São Paulo (UNIFESP) com 800 famílias na periferia da capital
paulista. É a primeira pesquisa de que se tem notícia feita de casa em casa, e
não apenas com base em registros oficiais. Os pesquisadores estão constatando
que 20% de agressões graves contra as crianças, o que significa queimaduras,
asfixias ou espancamento, resultando em fraturas e lesões que muitas vezes,
acabam no hospital, mas não punem o agressor, protegido por um manto de
silêncio familiar. E outras que deixam seqüelas psicológicas profundas como
as do atentado violento ao pudor. Cabe a todos os responsáveis em seus papéis
de pais e mães evitar a todo custo que a criança vire a depositária do estresse
da pobreza, ou da tão ‘fadada falta de tempo’ combinada com o desequilíbrio
INTRODUÇÃO 16
emocional de inúmeros adultos. Isso porque os pesquisadores da UNIFESP
ouvem que ‘bater educa’. Isso mesmo, essa é a desculpa das mães e pais que
tiram sangue, deixam marcas na pele e provocam sofrimento. Esse é mais um
aspecto de uma das maiores fragilidades sociais brasileiras: a pouca atenção a
primeira infância, especialmente nas camadas menos favorecidas e também
naquelas onde todos saem de casa para cuidar da própria vida e deixam as
crianças sempre à mercê da sorte ou do azar. (CALDERARO, 2008, p. 11).
A criação de uma lei para proteção da infância já é indício de que os direitos
fundamentais não são respeitados, pois a norma legal é constituída em decorrência da
necessidade social.
Os casos que aparecem nas estatísticas representam uma parte do problema, porque
muitas crianças sofrem violência doméstica e esses casos não são notificados. O sofrimento a
que tantas crianças são submetidas é presenciado pela escola na figura de seus agentes:
diretores, professores, merendeiras e inspetores, os quais vivenciam os reflexos da violência que
muitas estatísticas não apontam. A escola testifica a parte da violência doméstica contra a
criança que não é notificada. Segundo Azevedo e Guerra, a ponta do iceberg refere-se a uma
figura piramidal cuja base representa os casos não notificados ou encobertos pelo complô do
silêncio: “[...] de que acabam sendo cúmplices os profissionais, os vizinhos, os parentes e
familiares e até a própria vítima.” (1995, p. 65); e o pico demonstra os casos de violência
doméstica não denunciados.
O conceito de violência doméstica contra criança, de acordo com essas mesmas autoras,
surgiu na área da medicina e o primeiro estudo científico sobre o tema foi feito em 1860 pelo
professor Ambroise Tardieu, que em Paris,
ao proceder ao estudo de 32 casos (com 18 mortos) de crianças submetidas a
sevícias, ele constatou que elas haviam sofrido variadas lesões (hematomas,
equimoses, fraturas diversas, queimaduras) e que as explicações fornecidas
pelos pais discordavam das características destas mesmas lesões. (AZEVEDO;
GUERRA, 1995, p. 39).
Nesse estudo, questões socioculturais foram observadas por Tardieu como associadas ao
fenômeno.
Azevedo e Guerra (1995, p. 39) ressaltam que a contribuição científica desse médico,
apesar de refletir uma realidade presente nos jornais da época, não causou grandes impactos na
INTRODUÇÃO 17
opinião pública, que estava com o olhar voltado à abordagem das agressões de filhos contra os
pais; perspectiva inversa e “[...] preocupante, na medida em que um fato desta natureza revelava
uma insubordinação à autoridade familiar, que repousava sobre os pais, mais especificamente
na figura masculina.” Sobretudo na Europa, que a exemplo da “[...] França conhece, neste
período ainda, uma manifestação a favor do reforço da autoridade paterna, emanada de
Napoleão III e por ele manifestada no Conselho Privado, já em 1858.” (AZEVEDO; GUERRA,
1995, p. 40). Demonstrações de que a família em certos momentos poderia ser perigosa para as
crianças e levá-las à morte, não eram bem aceitas para as ideias de preservação da autoridade
paterna da época. Em 1962, quase após um século, nos Estados Unidos da América, os doutores
Kempe e Silverman denominaram de Síndrome da Criança Espancada um fenômeno que se
referia a crianças de pouca idade e que tinham sofrido danos físicos, e que os pais davam
explicações inadequadas.
[...] Saliente-se que, nos EUA, poder-se-ia dizer que este fenômeno foi
redescoberto pela Medicina no período acima citado, uma vez que a sua
‘descoberta’ realmente se deu na década de 70 do século XIX. Evidentemente
que esses dois movimentos tanto de ‘descoberta’ como de ‘redescoberta’
estiveram estreitamente entrelaçados com condições sócio-econômico-
culturais que permitiram estes duplos ‘caminhos’. (AZEVEDO; GUERRA,
1995, p. 41).
Para Azevedo e Guerra (2000), o pano de fundo socioeconômico e político, na década
de 1960 do século XX, fomentou questões sobre a privacidade da família, a posição do homem
como chefe e a importância da união de seus membros a qualquer preço, e determinou o
interesse por estudos sobre esse fenômeno, o qual já existia há muito tempo.
A definição conceitual de violência doméstica contra a criança foi sendo delineada com
os estudos que iam acontecendo. A primeira definição batizada como a Síndrome da Criança
Espancada era a seguinte:
[...] se refere usualmente a crianças de baixa idade que sofreram ferimentos
inusitados, fraturas ósseas, queimaduras etc., ocorridas em épocas diversas,
bem como em diferentes etapas e sempre inadequada ou inconsistentemente
explicadas pelos pais. O diagnóstico tem que se basear em evidências
radiológicas dos repetidos ferimentos. (AZEVEDO; GUERRA, 1995, p. 40).
INTRODUÇÃO 18
Também a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), no pós-guerra, e o início
da visão global do mundo contribuíram para os aspectos da violência contra a criança virem à
tona, propiciando discussões que movimentaram o status sedimentado há anos.
Azevedo e Guerra (1995) registram que, nos Estados Unidos, outra definição é proposta,
ampliando a anterior e contemplando também a criança vítima de maus-tratos em família,
evidenciada por privação emocional, nutricional, negligência e abuso, sendo considerada a
criança espancada, como última fase da síndrome do maltrato. Essa nova definição data do ano
de 1969 e tem o seguinte texto: “[...] o abuso físico [...] por parte de um parente ou outra pessoa
incumbida dos cuidados das crianças, tendo como objetivo danificar, ferir, ou destruir aquela
criança.” (GIL apud AZEVEDO; GUERRA, 1995, p. 41).
Não sendo essa definição satisfatória, por não se diferenciar o comportamento proposital
e acidental, foram surgindo novas definições:
Violência física é considerada como um ato executado com intenção, ou
intenção percebida de causar dano físico a outra pessoa. O dano físico pode ir
desde a imposição de uma leve dor, passando por um tapa até o assassinato. A
motivação para este ato pode ir desde uma preocupação com a segurança da
criança (quando ela é espancada por ter ido para a rua, por exemplo) até uma
hostilidade tão intensa que a morte da criança é desejada. (GELLES apud
AZEVEDO; GUERRA, 1995, p. 42).
No Brasil, na década de 1980 estudos relevantes desse fenômeno foram realizados por
Azevedo e Guerra, as quais iniciaram um percurso de pesquisas e publicações para entenderem
a realidade da violência doméstica contra a criança e suas particularidades na sociedade
brasileira, tomando por base inicial os estudos mundiais.
Azevedo e Guerra (1995, p. 32) observam que a terminologia usada nos discursos sobre
a violência doméstica contra a criança revelou o uso indiscriminado de termos, sendo os mais
usados: “abuso, castigo, disciplina, maus-tratos, violência, violência doméstica, vitimização,
vitimização doméstica.”
Com intenção de oferecer uma melhor compreensão, principalmente para nortear as
questões judiciárias ligadas a esse assunto, os termos foram reorganizados em campos
semânticos e refletidos quanto aos significados oficiais e aos sentidos ocultos de cada campo,
como apontam essas autoras (1995, p. 32):
INTRODUÇÃO 19
Abuso, vitimização e vitimização doméstica;
Maus-tratos, agressão;
Disciplina, castigo;
Violência e violência doméstica.
Dos quatro campos semânticos, o conjunto ‘disciplina e castigo’ é o mais antigo e de
maior tradição na educação infantil. Azevedo e Guerra (1995) alertam que esse fenômeno conta
apenas parte da verdade dos fatos, por deixar de fora as agressões sexuais e por não explicar a
gravidade desses castigos e/ou disciplinamentos.
O campo semântico que reúne os termos ‘maus-tratos’ e ‘agressão’ é também observado
pelas autoras como inadequado; o primeiro, por colocar o problema na questão moral, “[...]
como se fosse uma questão de bondade ou maldade individual”, já o outro, “[...] é um termo
psicológico que padece da limitação de não ser especificamente humano.” (AZEVEDO;
GUERRA, 1995, p. 33). Com isso, seria necessária uma delimitação jurídica do que seria um
bom ou um mau trato, mas, na literatura internacional, essa terminologia é a mais usada.
As autoras defendem os termos ‘abuso’ e ‘vitimização’ (com a qualificação doméstica)
como termos que melhor conceituam o fenômeno, por designarem os dois polos de uma relação
interpessoal de poder: o polo adulto, mais forte (abuso), e o polo infantil, mais fraco
(vitimização). “Os dois termos indicam as duas faces da mesma moeda e podem ser aplicados
para designar várias modalidades do fenômeno que nos preocupa.” E os termos ‘violência’ e
‘violência-doméstica’ também fazem parte, de acordo com Azevedo e Guerra (1995, p. 33), do
campo semântico que melhor define o fenômeno, “[...] porquanto por ‘violência’ se entende
imediatamente uma relação assimétrica (hierárquica) de poder com fins de dominação,
exploração e opressão.” (AZEVEDO; GUERRA, 1995, p. 33).
Preocupadas em não permitir enganos que possam ocorrer por estarem ancorados em
termos que dependem de definições em diferentes culturas ou que podem ser mistificados
ideologicamente, como, por exemplo, quando se omitem as agressões sexuais e a negligência,
as autoras tecem a seguinte definição, que é usada ainda hoje:
Violência doméstica contra a criança é todo ato ou omissão praticado por
parentes ou responsáveis contra crianças e/ou adolescentes que sendo capaz de
causar dor e/ou dano físico, sexual e/ou psicológico à vítima implica de um
lado, numa transgressão do poder/dever de proteção do adulto e, de outro,
numa coisificação da infância, isto é, numa negação do direito que as crianças
INTRODUÇÃO 20
e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas em condição
peculiar de desenvolvimento. (AZEVEDO; GUERRA, 1995, p. 36).
Nessa definição, a violência doméstica é tanto o ato como a omissão, isso “[...] significa
que o fenômeno pode assumir forma ativa (atos) ou passiva (omissões).” (AZEVEDO;
GUERRA, 1995, p. 36).
No entanto, não é praticada apenas por pais, uma vez que também é considerada
violência doméstica aquela violência praticada por parentes ou responsáveis, ou por pais
biológicos ou de afinidades. Em outras palavras, a violência doméstica possui
uma gama ampla de possíveis agressores. Circunscreve também a
especificidade do fenômeno: violência doméstica, praticada no lar, um dos
tipos de violência familiar (já que esta última expressão pode abranger
também a violência contra mulheres e idosos) diferente, portanto, da violência
extra-familiar. (AZEVEDO; GUERRA, 1995, p. 36-37).
Esse tipo de violência também amplia as possíveis vítimas, prevendo crianças e
adolescentes:
[...] significa que, em nossa sociedade, são vítimas potenciais todos os
menores de 18 anos (idade legal da maioridade), sejam eles crianças (até mais
ou menos 12 anos) ou adolescente (de 12 até 18 anos). Rejeita-se, assim, a
idéia da área da saúde – de que as vítimas seriam apenas crianças de baixa
idade (graças à síndrome da criança espancada). (AZEVEDO; GUERRA,
1995, p. 37).
Diante dessas definições e das situações escolares relatadas anteriormente, é possível
fazer o seguinte questionamento: Por que acontece a violência doméstica contra a criança em
famílias brasileiras? Essa pergunta, que motivou a pesquisa, esteve presente durante todo o
desenvolvimento deste trabalho como pano de fundo, e dessa pergunta principal outras foram
surgindo: A escola é um local de proteção da criança contra a violência doméstica? E ainda: A
formação cultural do povo brasileiro contribui para e existência do problema?
Assim, serão discutidos, nesta pesquisa, a causa da violência doméstica contra a criança
e por que esse fenômeno acontece apesar da existência da lei de proteção da infância
2
.

2
Lei 8069/90 Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990).
INTRODUÇÃO 21
A hipótese desta pesquisa é a de que o fenômeno foi construído gradativamente no
percurso da formação cultural, sobretudo a partir da impregnação na sociedade dos valores
calcados na autoridade, no domínio, na força de uns e escravização de outros. A criança nessa
relação é a representação e materialização do mais fraco. Essa hipótese norteou os caminhos
percorridos neste estudo, principalmente quanto à escolha, para análise, de histórias de vida
temáticas de professoras, que têm de forma garantida em sua trajetória profissional o contato
com crianças em concomitância à determinação legal de notificar os casos de suspeitas ou
confirmação de violência contra seus alunos.
As convidadas foram escolhidas, sem que a pesquisadora soubesse, antes de narrarem, o
que pensavam sobre o tema, ou que experiências tiveram com esse fenômeno, pois o objetivo
com este método de pesquisa era extrair das narrativas o que se esconde por trás da cultura e o
que se prende a ela para afirmá-la.
Com base na hipótese de que a cultura determina o fenômeno da violência doméstica
contra a criança, supõe-se que a dificuldade no enfrentamento desse tipo de violência deve ser
desvelada no estudo da cultura, justificando as vezes que se está em territórios vizinhos
3
da
violência doméstica contra a criança.
Em alguns momentos deste texto, são observadas e analisadas as violências produzidas
na sociedade há tantas gerações, que afetam setores e camadas sociais e que se entrelaçam à
violência no âmbito familiar, pois “a família também é afetada pela violência social e pela
violência contra crianças e adolescentes, mesmo aquelas não diretamente envolvidas por estas
violências.” (BARROS, 2005, p. 70).
A lei brasileira de proteção da infância é referência mundial e, se fosse efetivada,
elevaria a criança brasileira aos melhores patamares de proteção, participação, promoção e
cidadania. Mas, em quase duas décadas de existência da norma legal, é notória a não garantia
dos direitos nela contemplados; fato que continuará a ocorrer se não houver ações e estudos que
apontem os valores culturais que alimentam os fenômenos sociais.
Ainda que seja muito importante a existência da lei para o estabelecimento de
programas de prevenção, nas instituições, nas escolas e, principalmente, com profissionais da

3
Refere-se às citações que são apresentadas ao longo de todo o texto e que aparecem de forma contínua
acompanhando a violência doméstica contra a criança nos casos que são descritos ou que apareceram nas mídias.
O uso da palavra ‘território’ teve o propósito de situar o contraste entre as questões humanas e instintivas do
homem, que ora é parte da natureza e por ela dominado, e ora quer dominá-la: “[...] Quando o animal transcende
a Natureza, quando transcendo o papel puramente passivo da criatura, quando ele se torna, biologicamente
falando, o animal mais desamparado, nasce o homem.” (FROMM, 1979, p. 36).
INTRODUÇÃO 22
educação, é preciso nortear os resultados que se pretende alcançar no desenvolvimento dos
direitos da criança no Brasil.
Diante desse contexto, nesta dissertação é realizada uma descrição dos elementos
histórico-culturais na formação do povo brasileiro, observando a condição do povo na
construção familiar, os valores que vieram arraigados na cultura dos colonizadores e o lugar da
infância na instituição das famílias e entidades educativas.
São demonstradas ainda as representações do sujeito, na forma de compreender o
mundo, de significar e conceber a vida, nas produções da arte e do trabalho, nas manifestações
lúdicas e, sobretudo, na forma de se relacionar em família e em outros grupos, na formação
individual e social. Essas demonstrações são feitas por meio de levantamentos bibliográficos e
descrição das famílias, escola e infância.
Para atingir esses objetivos, foi realizada uma análise de histórias de professoras do ciclo
1, as quais narraram suas histórias de vida motivadas pela pergunta-provocação: Como a
violência doméstica contra a criança lhe toca? Conte a sua história.
Este trabalho traz, ao longo do texto, notícias veiculadas nas mídias e trechos da tradição
oral, que auxiliaram na demonstração do estado de arte da violência doméstica contra a criança
e do problema no âmbito da cultura.
A análise foi efetivada com base na teoria crítica, como demonstrada por Marcuse (1981
e 2001), Horkheimer e Adorno (1973 e 1985), também conhecida como Escola de Frankfurt.
Essa teoria é de grande valia para os propósitos deste trabalho, por refletir sobre os processos de
alienação do indivíduo na sociedade de troca ou sociedade capitalista, como também por
dialogar com o marxismo e a psicanálise, para a crítica da realidade social contemporânea, a
cultura afirmativa, a alienação, coisificação e a lógica do capital da qual a família é parte
inexorável. Horkheimer e Adorno (1973) apontam que a família é a instituição que se incumbe
de refugiar o indivíduo, por um lado, e, por outro, de socializá-lo nas relações da sociedade de
troca do mundo organizado para a lógica capitalista. Nesse tipo de sociedade, os mais fracos são
marginalizados, são motivo de chacotas, alvo de repressão etc., o que pode ser percebido no
conto de Perrault sobre o Pequeno Polegar:
[...] o que entristecia mais era que o caçula era muito fraquinho e não falava
uma só palavra: eles interpretavam como estupidez o que era marca da
bondade de sua alma. Pequenino, quando veio ao mundo era do tamanho do
dedo polegar; por isso chamavam-no de Pequeno Polegar. Esse pobre menino
INTRODUÇÃO 23
era o saco de pancada da casa, e sempre o culpavam de tudo. (PERRAULT,
2008, p. 9).
4
Os impulsos reprimidos na sociedade podem reagir de forma destrutiva no seio da
família, que submete seus membros a duas forças simultâneas de ataque: a civilização e as
tendências irracionais:
A tendência de desenvolvimento que põe em dúvida a família parece dar ao
indivíduo, pelo menos temporariamente, novo apoio. Mas ao mesmo tempo, a
família também é atacada desde o seu interior. A socialização progressiva
significa uma repressão e um controle cada vez mais absoluto dos instintos.
(HORKHEIMER; ADORNO, 1973, p. 133).
Os ideais da sociedade, reafirmados no seio familiar, disciplinam seus indivíduos à
adaptação e conformação:
O filho pode pensar do pai o que muito bem quiser, mas, se pretende evitar
graves conflitos e desastres, deve empenhar-se em obter, incansavelmente, a
satisfação paterna. Em relação ao filho o pai tem razão; é nele que se
concretizam o poder e o triunfo. (HORKHEIMER; ADORNO, 1973, p. 138).
Por outro lado, Horkheimer e Adorno afirmam que apesar de carregar ainda muito
fortemente as características de poder e triunfo na figura do pai, hoje, a instituição familiar, está
em crise e passa a ser “tão pouco temida quanto amada; não é combatida mas é esquecida ou
tolerada por parte dos que não têm motivos nem energia para opor-lhe resistência.” (1973, p.
144).
Mas ainda assim o filho carrega entranhada a ideia de poder e de força incondicional
simbolizados na figura paterna “e procura um pai mais forte, mais poderoso que o verdadeiro,
que já não satisfaz a antiga imagem, enfim, um super-homem e super-pai como os que foram
produzidos pelas ideologias totalitárias.” (HORKHEIMER; ADORNO, 1973, p. 145).
Acrescentam os autores que os jovens, principalmente, tendem a se submeter a outras
autoridades desde que estas lhes ofereçam proteção, satisfação narcisista, vantagens materiais e

4
“Os contos e as histórias da nossa infância são os primeiros elementos de uma aprendizagem que sinalizam que
ser humano é também criar as histórias que simbolizam a nossa compreensão das coisas da vida. As
experiências, de que falam as recordões-referências constitutivas das narrativas de formação, contam não o
que a vida lhes ensinou, mas o que se aprendeu experencialmente nas circunstâncias da vida.” (JOSSO, 2004, p.
39).
INTRODUÇÃO 24
condições de descarregar sobre os outros o sadismo decorrente da desorientação e desespero.
“O pai é, inclusive, substituído por poderes coletivos, como a classe escolar, o “team” esportivo,
o clube e por último, o Estado.” (HORKHEIMER; ADORNO, 1973, p. 145).
A função protetora da família não se mantém dissociada de seu papel de instituição
disciplinar, pois o mundo do qual ela tem que proteger seus membros é regido pela pressão que,
“necessariamente, terá de transmiti-la a todas as suas instituições.” (HORKHEIMER;
ADORNO, 1973, p. 147).
O locus deste estudo é a família e a escola, e três professoras são colaboradoras desta
pesquisa. É preciso esclarecer que o termo ‘colaboradoras’ foi empregado em substituição ao
termo ‘sujeito’, por este não ser adequado, considerando o método de história oral. Isso porque,
como orienta Meihy (2002, p. 14), “os entrevistados são as pessoas ouvidas em um projeto e
devem ser reconhecidos como colaboradores.” Em alguns trechos foi utilizado o termo
‘narradoras’ para as colaboradoras, deixando claro que se trata de pessoas que
profissionalmente ocupam o cargo de professoras e que doaram suas histórias para a pesquisa,
análise e publicação.
A presente investigação está estruturada em três capítulos. O primeiro, intitulado “A
trajetória da violência doméstica contra a criança”, descreve o objeto: a violência doméstica
contra a criança em sua construção histórico-cultural. Persegue os trajetos desse fenômeno,
destacando os pontos mais significativos. As seções se completam e são divididas em temas: a
criança na família; a família e infância brasileira; as instituições públicas; o Estatuto da Criança
e do Adolescente; e o reflexo da violência doméstica contra a criança na escola. No segundo
capítulo é trabalhado o conceito de cultura como foi estudado pelos autores da Escola de
Frankfurt, trazendo elementos da cultura-afirmativa, pseudocultura e o duplo caráter da cultura
para a análise das narrativas das professoras-colaboradoras. No terceiro capítulo, é explicado o
método, a pesquisa de campo, apresentado as histórias de vida que são analisadas em três
categorias: a primeira categoria analisada refere-se à experiência específica da narradora com o
fenômeno estudado; a segunda categoria é formada pelas contradições presentes nas narrativas;
e a terceira é a análise dos elementos que se repetem nas três histórias.
Nas considerações finais são retomados o objeto de pesquisa, os conceitos apresentados
e os caminhos que a pesquisa demonstrou serem viáveis para novos estudos, abordando o que
foi extraído como experiência e o que ainda deve ser ampliado de acordo com o conhecimento
que este estudo nos permitiu alcançar.
25
1 A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA
NA
SOCIEDADE BRASILEIRA
Tango-lo-mango
Era uma velha que tinha dez filhos
Todos dez dentro de um fole;
Deu o tango-lo-mango num deles,
Desses dez, ficaram nove!
E esses nove, meu bem, que ficaram
Foram logo fazer biscoito
Deu o tango-lo-mango num deles
Desses nove, ficaram oito!
E esses oito, meu bem, que ficaram
Foram brincar com o canivete
Deu o tango-lo-mango num deles
Desses oito, ficaram sete!
E esses sete, meu bem, que ficaram
Foram fazer um bolo inglês
Deu o tango-lo-mango num deles
Desses sete, ficaram seis!
E esses seis, meu bem, que ficaram
Foram à porta bater no trinco
Deu o tango-lo-mango num deles
Desses seis, ficaram cinco!
E esses cinco, meu bem, que ficaram
Com o diabo fizeram um trato
Deu o tango-lo-mango num deles
Desses cinco, ficaram quatro!
E esses quatro, meu bem, que ficaram
Foram aprender o português
Deu o tango-lo-mango num deles
Desses quatro, ficaram três!
E esses três, meu bem, que ficaram
Foram ao campo buscar cem bois
Deu o tango-lo-mango num deles
Desses três, ficaram dois!
Esses dois, meu bem, que ficaram
Foram ao mato caçar anum
Deu o tango-lo-mango num deles
E desses dois só restou um!
E esse um, meu bem, que ficou
Foi brincar com lampião
Deu o tango-lo-mango no tal
E acabou-se a geração
(MANFREDINI, 2001, p. 117)
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 26
O ponto de partida deste capítulo é a infância. A infância é considerada, neste estudo, no
âmbito de uma categoria cultural ligada ao tipo de relação social em um determinado período na
vida do indivíduo. Por conta dessas relações sociais, observa-se que ser criança e ter infância
são coisas diferentes, ainda que devessem caminhar paralelamente. A criança que não tem
acesso às conquistas sociais, à formação cultural e aos direitos peculiares de sua fase, não tem
infância.
As ações das instituições sociais, como a família e a escola, são importantes, pois podem
garantir ou negar a infância às crianças nas sociedades em que estão inseridas. Essas ações são
modeladas pela forma como compreendem o mundo, ou seja: pela formação cultural. O
primeiro contato social da criança acontece na família. Nela, o indivíduo aprende a praticidade
da vida, na relação com o outro, como afirmam Horkheimer e Adorno (1973). Essa instituição
inicia o homem na sociedade; seja ela a família biológica ou apenas institucional, o ser humano
é incluído no contato com outros para o seu desenvolvimento social. Esses autores ressaltam
ainda que na família o indivíduo, para evitar problemas, precisa reconhecer a razão e autoridade
incontestáveis do pai.
A família, tendo sido construída à imagem e semelhança da relação burguesa de
autoridade, transmite à criança esse mesmo ideal, mobilizando a sua consciência na absorção
dessa relação. Horkheimer e Adorno (1973, p. 139) observam que “a família convertera-se em
agente da sociedade: era o veículo pelo qual os filhos aprendiam a adaptação social; formava os
homens tal como eles tinham de ser para cumprir as tarefas impostas pelo sistema social.” A
relação fora da família na sociedade capitalista ocorre com o uso dos códigos formais, da
ampliação dos contatos com outros indivíduos, da formação para a participação no mundo do
trabalho e contribuição social. Da necessidade de produção e sistematização desses
conhecimentos, a escola na forma que conhecemos hoje foi instituída de acordo com o modelo
da sociedade burguesa.
Sendo parte de uma construção social condicionada pelos diferentes momentos
históricos da sociedade e da cultura, como afirmou Candau (2000), a escola, tal como ainda
está, é uma construção histórica recente. “Na América Latina os sistemas escolares se
constituíram praticamente neste século” (CANDAU, 2000, p. 13), e se consolidaram com o
objetivo de promover a apropriação dos conhecimentos considerados relevantes na formação,
cidadania e acesso aos conhecimentos, que hoje se encontram em crise, seja pela dificuldade
decorrente principalmente de fatores ligados à cultura que entravam a sua realização, seja pelo
anacronismo da escola nos tempos presentes. Candau (2000) problematiza o grande impacto
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 27
dos meios de comunicação de massa, as tecnologias como forma de construir conhecimento, a
impregnação da cultura escolar que considera os alunos iguais e a dificuldade dessa instituição
em enfrentar a pluralidade cultural. Estes, entre outros fatores, acabaram fazendo com que a
função de proporcionar acesso ao conhecimento deixasse de ser exclusividade da escola. A
autora ainda alerta que “[...] a cultura escolar está impregnada pela perspectiva do comum do
aluno padrão, do ‘aqui todos são iguais’” (CANDAU, 2000, p. 14), ao mesmo tempo em que
está sendo cada vez mais desafiada a enfrentar os problemas decorrentes das diferenças e da
pluralidade cultural, que estão fazendo com que a escola seja chamada a ser um local de análise
crítica, reflexiva, visão plural e histórica do conhecimento, da ciência, da tecnologia e das
diferentes linguagens. Nesse sentido, toda a rigidez de que se reveste em geral a organização e a
dinâmica pedagógica escolares, assim como o caráter monocultural da cultura escolar, precisam
ser fortemente questionados. Gabriel (2000, p. 18) alerta que a escola também carrega
atualmente mudanças na forma como é vista: “não somente como local de instrução mas
também como ‘arena cultural’ onde se confrontam as diferentes forças sociais, econômicas,
políticas e culturais em disputa pelo poder.”
A autora ainda acrescenta que a marca da contemporaneidade, no debate atual, exige
que se desloque o olhar para a função da escola, tanto em termos do papel desempenhado pela
mesma como da significação atribuída aos termos ‘cultura’ e ‘escola’.
A escola, como afirma Candau (2000), é uma instituição que faz parte da história de
vida de muitas pessoas, mas
nem sempre a lembrança do cotidiano escolar vivenciado é positivo. Entre
luzes e sombras, momentos inesquecíveis e estruturantes de uma perspectiva
de vida e ocasiões em que o fracasso, a frustração e o medo foram os aspectos
dominantes, a dinâmica escolar é por nós incorporada no nível pessoal e
social. (CANDAU, 2000, p. 9).
Tratando do fenômeno da violência no cotidiano escolar, a autora acima citada afirma
que a relação entre a violência e a escola não deve ser concebida como um processo que ocorre
de fora para dentro, apesar de entender que a violência presente na sociedade penetra na escola
afetando-a; isso porque a escola também produz violência:
A violência não pode ser reduzida ao plano físico, mas, abarca o psíquico e
moral. Talvez se possa afirmar que o que se especifica a violência é o
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 28
desrespeito, a coisificação, a negação do outro, a violação dos direitos
humanos. (CANDAU, p. 141, 2000).
Os caminhos percorridos por uma pessoa podem ser diversos e grande parte dos
indivíduos na sociedade brasileira contemporânea tem o contato familiar e escolar. No entanto
nem sempre esses contatos são fáceis. Muitas crianças têm na infância um percurso bastante
sofrido e nem sempre a norma legal consegue garantir que todas as crianças tenham uma família
e uma escola protetoras, a infância vivida em sua plenitude e a garantia de direitos básicos e
universais. Nem todas as famílias são necessariamente a representação de um apoio e segurança
para as crianças. Ao contrário disso, muitas vezes, o medo, o terror, o abandono, a omissão, o
cárcere privado e, até mesmo, o risco de morte estão presentes na vida de muitas crianças em
seu cotidiano familiar; como representado na notícia que traz a história de uma jovem japonesa,
hoje com 22 anos, que esteve presa por oito anos em poder da mãe.
A jovem foi liberada há dois anos, mas o crime só foi revelado esta semana
pelo jornal ‘Mainichi’, antes de ser confirmado pelas autoridades da cidade de
Sapporo. A mãe começou a deter a filha ao fim da escola primária. A mãe,
esquizofrênica, estava convencida de que a filha sofria na escola e em contato
com o pai, informa a agência Jiji. Presa em casa, a adolescente compareceu ao
colégio por apenas dois dias nos três anos seguintes. A jovem foi liberada em
2006, quando a polícia foi alertada por um vizinho que havia escutado gritos
na casa. Quando a vítima foi encontrada, conseguia apenas caminhar e se
comunicava com dificuldade com as demais pessoas. O pai, separado da
mulher, entrara em contato com os serviços de saúde em 2005 para informar
que a filha provavelmente estava presa na casa da mãe, mas as autoridades não
fizeram nada. O governo municipal de Sapporo pretende revisar o sistema de
saúde para a possibilidade de novos casos similares. A vítima, que agora tem
21 anos, vive em um local com atendimento especializado e voltou a estudar.
(FRANCE PRESS, 2008).
Quando a família representa perigo para a criança o seu desenvolvimento é marcado por
situações que a degradam, por isso é importante compreender um pouco como se estabeleceu a
formação social da família e como a criança foi se situando nessa instituição.
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 29
1.1 A CRIANÇA NA FAMÍLIA
Estudos de Bruschini (2000), sobre a literatura marxista da família, mostram que esse
tema foi integrado na teoria mais geral da sociedade. A autora traz em seu trabalho descrições
das formas como se definiram os seres humanos, de acordo com a relação com os sistemas de
produção e reprodução da vida imediata, incluindo roupas, alimentos, instrumentos, como
também os próprios seres humanos que eram os meios de propagação da espécie. O início da
família monogâmica se deu quando decidiram proteger a propriedade para garanti-la como
herança para os seus descendentes, com isso foi necessário garantir a paternidade sobre as novas
gerações, o que foi possível por meio da limitação da sexualidade da mulher.
Apoiando-se em Engels, Bruschini (2000) afirma que, com a evolução da sociedade, a
riqueza que excedia era acumulada e transformada em propriedade particular das famílias.
Como era predominantemente uma atribuição masculina a busca de alimentos, aos homens
cabia a posse dos instrumentos de trabalho, dos quais ele era proprietário. Aumentando a
riqueza em decorrência do trabalho e sendo o homem o dono dos instrumentos que geravam
essa riqueza, este foi ocupando uma posição de destaque e poder na família. Com base nas
condições econômicas, que surgiram da escravização da mulher, proclamou-se um conflito
entre os sexos, que até então não existia na história.
Sobre a família, Marcuse (1981, p. 133) comenta que essa se apresentou primeiramente
de forma espontânea, de relação natural, e foi se transformando até chegar à moderna
monogamia. “[...] E, em virtude desse processo de diferenciação, cria uma área distinta que é a
das relações privadas.”
Nesse aspecto, Marcuse (1981) e Bruschini (2000) concordam que a família não é
estática, modificou-se na trajetória histórica e continua em processo dinâmico, comportando
rupturas, estagnações e elementos ligados aos aspectos econômicos e culturais de cada povo e
época. Como local de acolhimento da criança não é um fenômeno natural, mas construído
socialmente e que teve muitas variações.
Müller (2007) observa que em muitas épocas a prática de infanticídio por adultos era
justificada pela regulação de alimentos, bastardia, questões biológicas ou de comportamentos
inadequados por parte das vítimas. A autora alerta que essa prática ocorria já na época de Cristo,
tendo sido documentada na Bíblia. Também na antiga Roma, ou em tribos bárbaras, existiu essa
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 30
prática em decorrência da escassez de alimentos ou por quaisquer motivos que fizessem os
governantes desejarem a diminuição da população. Guerra (1984) aponta que a Bíblia é um
instrumento que possui valiosos registros sobre a perseguição de crianças e do quanto esse
fenômeno é antigo. Cita os casos dos meninos judeus jogados no rio por ordem do faraó,
quando nasceu Moisés; a matança dos primogênitos egípcios do Êxodo; e a matança ordenada
por Herodes, em perseguição a Jesus. No Império Romano, meninos e meninas da nobreza eram
separados de seus lares aos 12 anos para ingressarem na vida pública e para aprimoramento
cultural, e as meninas casavam-se aos 14 anos aproximadamente. Em Roma, o pátrio poder
durava até a morte do pai, quando o filho o sucedia, como afirmam Faleiros e Faleiros (2007).
Os autores ainda constatam, regressando aos estudos do passado, muitos indícios de que
as crianças eram aterrorizadas, violentadas, assassinadas e abusadas sexualmente. Alertam que
na Grécia Antiga havia o contraste da criança filha do cidadão, educada no gineceu com
músicas e fábulas, com a tristeza do filho do escravo; e que em Esparta a educação da criança
era marcada pela rigidez dos exercícios físicos até a exaustão e preparo para a guerra.
O primeiro código jurídico que se tem conhecimento demonstra a vulnerabilidade das
crianças às condições de violência na família nos tempos mais remotos:
Exemplos são colhidos ao longo da história, assinalando-se que, no Oriente
Antigo, o Código de Hamurábi (1728/1686 a.C.), em seu art. 192, previa o
corte da língua do filho que ousasse dizer aos pais adotivos que eles não eram
seus pais, assim como a extração dos olhos do filho adotivo que aspirasse
voltar à casa dos pais biológicos, afastando-se dos pais adotantes (art. 193).
Punição severa era aplicada ao filho que batesse no pai. Segundo o Código de
Hamurábi, a mão do filho, considerada o órgão agressor, era decepada (art.
195). Em contrapartida, se um homem livre tivesse relações sexuais com sua
filha, a pena aplicada ao pai limitava-se à sua expulsão da cidade (art. 154).
Em Roma, a Lei das XII Tábuas, entre os anos 303 e 304, permitia ao pai
matar o filho que nascesse disforme, mediante o julgamento de cinco vizinhos
(Tábua Quarta). (DAY et al., 2003 apud BARROS, 2005, p. 70-71).
Um breve relato de Panúncio-Pinto (2006), que trata do assunto da violência contra a
criança sob a perspectiva da análise do discurso, reforça o entendimento de que o infanticídio
e/ou o abandono eram práticas cotidianas desde a pré-história:
Na antiguidade, o assassinato de crianças pode ser considerado como
ocorrência diária: jogadas em rios, mortas de fome; aquelas que não eram
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 31
perfeitas em forma e tamanho, choravam muito ou pouco, ou eram
reconhecidas como aquelas que não cresciam bem, eram mortas; bebês do
sexo feminino também eram expostos ou mortos. (PANÚNCIO-PINTO, 2006,
p. 29).
Bruschini (2000, p. 53), ao descrever as famílias aristocráticas do antigo Regime Feudal,
afirma que o valor da privacidade não era conhecido como é nas formas mais recentes de
famílias. A vida das crianças, “[...] não gravitava em torno dos pais, mas estava difundida
através da vasta gama de figuras adultas.”
Por outro lado, Müller (2007, p. 25) demonstra que em toda Europa Medieval, com
alguma distinção de número e grau entre um país e outro, nos grupos domésticos da aristocracia
o homem dominava tanto as mulheres como os filhos. “[...] Se houvesse uma falta do filho em
relação ao seu pai, como uma injúria, por exemplo, este seria castigado legitimamente ou pelo
pai ou pela justiça pública.” Destaca ainda que essa característica não era geral e que, entre as
pessoas mais simples, os filhos reconheciam a autoridade dos pais não só na figura do homem.
“[...] Assim acontece com a autoridade em geral, que para os filhos está unida na entidade do
casal.”
A família camponesa aparentava-se com a aristocrática, no aspecto da vida de pouca
privacidade, como relata Bruschini, (2000, p. 53):
A unidade básica da vida camponesa não era a família conjugal, mas a aldeia.
Casamento, relações entre marido e mulher e entre pais e filhos, tudo era
compartilhado por todos os aldeões, pois a privacidade era desconhecida e sem
valor.
A família proletária, dos séculos XVIII e XIX, era caracterizada pela precariedade
material, então se fazia necessário o trabalho de todos os seus membros, inclusive das crianças,
para a garantia da sobrevivência. As crianças eram socializadas nas fábricas, afirmando desde
muito cedo sua independência de cuidados e zelo dos pais, pois, ao contrário das mulheres
burguesas, as mães proletárias conciliavam os afazeres domésticos com os serviços nas fábricas
e não possuíam tempo para dedicar às crianças. Essa independência não deve ser entendida
como uma forma de emancipação, mas sim uma estratégia precária de sobrevivência com os
recursos disponíveis e possíveis da época.
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 32
Com a emergência das classes trabalhadoras, advindas também das primeiras conquistas
trabalhistas, as burguesias filantrópicas esforçam-se para integrar a camada subalterna ao
modelo de moralidade familiar burguês.
O modelo familiar, como conhecido atualmente, consolidou-se por volta do século
XVIII. Conforme dados históricos, esse modelo vigora desde o período pré-industrial, em que
seus membros trabalhavam em casa e no campo, unidos em torno da produção, aos dias atuais,
passando pela Revolução Industrial, marcada pela venda da força de trabalho e a família como
unidade de consumo e privatização: “[...] a família extensa cede importância à nuclear e, dentro
do casamento, os papéis sexuais se tornam menos segredados.” Aos poucos a casa passa a ser
espaço de privacidade de seus membros, com a crescente interferência do Estado no espaço
social, “[...] antes entregue às comunidades [...]” (BRUSCHINI, 2000, p. 51-52).
Com isso, a vida cotidiana sofreu mudanças com as novas posturas em relação ao corpo,
e o gosto pelo isolamento tornou a família e a casa, de unidade econômica, num lugar de
refúgio, afetividade, atenção à infância, recolhimento e proteção do indivíduo, segregando-se do
espaço público. O papel do pai passou a ser o de respeito e de inspiração moral na sociedade.
Com relação a essas mudanças, Costa (2004) adverte que representaram, além de outras coisas,
mais uma forma de repressão e controle do indivíduo, em que a filantropia era uma manobra
dos laços de solidariedade familiar, pois quando preciso seriam usados na represália aos
indivíduos insubordinados.
Sobre a infância, os estudos de Ariès (1981) acerca da iconografia dos séculos passados
demonstram que a infância foi descoberta. E esse fenômeno aconteceu gradativamente entre os
nobres na Europa, na Idade Moderna, pois “nada no traje medieval separava a criança do
adulto.” (ARIÈS, 1981, p. 70). O autor embasa seus argumentos nos signos dos trajes utilizados
na época e das obras de artes que caracterizavam as crianças como homens adultos em
miniatura. Esse autor, ao descrever a cena do Evangelho em que Jesus pede: vinde a mim as
criancinhas, comenta que “[...] o miniaturista agrupou em torno de Jesus oito verdadeiros
homens, sem nenhuma das características da infância: eles foram simplesmente reduzidos numa
escala menor.” (ARIÈS, 1981, p. 50).
Ariès (1981) constata em seu estudo que neste mundo não havia lugar para a infância,
pois era calcada nos valores dos adultos, produção cultural e na vida do trabalho, sendo assim
não se reconhecia na criança o ser humano. Seria ela um “projeto de gente”. Esse estudo se
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 33
refere à Idade Média
5
, época em que a sociedade brasileira estava em sua fase embrionária e o
conceito de civilização era baseado na forma de vida da Europa.
A infância como etapa do ser em desenvolvimento é noção recente. A criança, na Idade
Média, só viria a ter uma identidade própria no momento em que fosse capaz de fazer as coisas
semelhantes àquelas realizadas por adultos. Sobre esse assunto, Müller (2007) observa que a
questão do sentimento de infância nos primeiros séculos não era falta de afeto, mas sim a falta
de consciência da infância como a que se tem hoje, ou pelo menos como a que se espera que
exista atualmente.
Muitas crianças morriam não alcançando a vida adulta e o sentimento dos pais com
relação a essas mortes era de indiferença: “[...] vemos uma vizinha, mulher de um relator,
tranqüilizar assim uma mulher inquieta, mãe de cinco ‘pestes’, e que acabara de dar à luz:
‘Antes que eles te possam causar muitos problemas, tu terás perdido a metade, e quem sabe
todos’.” (ARIÈS, 1981, p. 56-57). A perda de uma criança era um acontecimento corrente,
portanto não se apegavam a elas da forma como ocorre atualmente, o que explica “algumas
palavras que chocam nossa sensibilidade moderna, como estas de Montaigne: Perdi dois ou três
filhos pequenos, não sem tristeza, mas sem desespero.” (ARIÈS, 1981, p. 56-57).
Müller (2007) apresenta, em contrapartida, exemplos de iconografia da época de mães
chorando a morte de seus filhos, colocando em dúvida a generalização da indiferença com a
morte das crianças, e acrescenta que a característica mais forte na vida da criança, do século XII
ao século XV, não era a reação com relação a sua morte, mas sim a forte possibilidade dessa
morte: “Estando viva, havia mais perspectiva de morrer do que de viver.” (MÜLLER, 2007, p.
31). Talvez tudo isso venha a justificar, de certo modo, a reação dos adultos que se
acostumaram a não sobrevida da maior parte das crianças e assim reagiam banalizando a morte,
que ocorria não só em decorrência das pestes, pobreza material, más condições de higiene, “[...]
mas sim porque muitos adultos as matavam explicitamente, apesar da doutrina cristã estar
fazendo certo movimento de preservação da vida infantil [...]” (MÜLLER, 2007, p. 31).
Na Idade Média, os códigos de conduta da Igreja Católica prevaleciam, pois diante da
lei o crime ainda não estava efetivamente estabelecido. Müller (2007, p. 33) registra que a
valorização de Cristo criança, presente nas imagens da época, interferiu na valorização da
criança e na defesa de sua vida, mas acrescenta que há divergências entre autores, uma vez que

5
O período da Idade Média foi tradicionalmente delimitado com ênfase em eventos políticos. Nesses termos,
teria-se iniciado com a desintegração do Império Romano do Ocidente, no século V (em 476 d.C.), e terminado
com o fim do Império Romano do Oriente, com a Queda de Constantinopla, no século XV (em 1453 d.C.).
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 34
“[...] a Igreja cristã condena o infanticídio, mas se lhes atribui à origem de qualquer fenômeno
sobrenatural e as denominam endemoninhadas, e como estavam possuídas pelo demônio e
outros espíritos infernais, submetem-nas a práticas exorcistas.”
A morte de crianças, a troca ou o seu abandono, a ausência de sentimento ou a
necessidade de valorização do ser humano durante a infância, enfim, a violência no cotidiano é
contada, ou cantada, por crianças e adultos. Em variadas culturas é possível encontrar trovas,
cantigas, contos que apontam a violência contra a criança. Essas expressões atravessaram
séculos, reproduzidas oralmente por meio de gerações, e até os dias atuais muitas vezes
carregam despretensiosamente um registro que confirma a historiografia, como pode ser
observado na cantiga, “De marre decê”, de uma brincadeira
6
:
Eu sou pobre, pobre, pobre
De marré, marré, marré
Eu sou pobre, pobre, pobre
De marré decê
Eu sou rica, rica, rica
De marré, marré, marré
Eu sou rica, rica, rica
De marré decê
Eu queria uma de vossas filhas
De marré, marré, marré
Eu queria uma de vossas filhas
De marré, de
Escolhei a qual quiser
De marré, marré, marré
Escolhei a qual quiser
De marré decê
Eu queria a (nome da menina)
De marré, marré, marré
Eu queria (nome da menina)
De marré decê

6
“A brincadeira chama-se ‘Jogo de Rico e Pobre’ e procede da Europa Nórdica. Nela, originalmente, duas linhas
de meninas eram postas frente a frente. As que estavam na dianteira representavam a ‘mãe pobre’ e a ‘mãe rica’.
Esta cantava e movimentava-se para frente e para trás. Após, alternavam a função com a primeira. Ao fim,
trocavam de posição e o jogo recomeçava. [...] Estes jogos e cantos eram praticados pelos campesinos, gente
rural. Para eles, um ofício era o bastante, porque almejavam com o trabalho (e o casamento) uma vida natural,
feliz e simples. O refrão é sempre derivado da palavra Maria. Refere-se à Virgem Maria, mãe de Jesus.”
(MEDINA, 2009).
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 35
Que ofício dás a ela?
De marré, marré, marré
Que ofício dás a ela?
De marré decê
Dou o ofício de (nome do ofício)
De marré, marré, marré
Dou o ofício de (nome do ofício)
De marré decê
Este ofício me agrada (ou não)
De marré, marré, marré
Este ofício me agrada (ou não)
De marré decê
Lá se foi a (nome da menina)
De marré, marré, marré
Lá se foi a (nome da menina)
De marré decê
Eu de pobre fiquei rica
De marré, marré, marré
Eu de rica fiquei pobre
De marré decê
(VALENTE, 1979)
Sobre as relações sociais, Müller demonstra que a rua era muito significativa, pois era
“[...] o lugar onde se vivia intensamente, brincava-se, faziam-se festas, trabalhava-se,
conversava-se, descansava-se, faziam-se espetáculos e tantas outras atividades mais, que hoje
são do âmbito privado.” (MÜLLER, 2007, p. 22). O cenário brasileiro é aqui pensado a partir
dos anos da colonização e é observado principalmente sob o aspecto da formação cultural.
A sociedade brasileira carrega em seu cerne as concepções trazidas da Europa pela
colonização lusitana; as características dos homens que aqui viviam em diversas nações, antes
da presença do português, e do homem que foi trazido na condição perversa de escravo; e as
influências culturais das imigrações que ocorreram em épocas diversas, as quais foram e ainda
irão se ressignificar na formação da própria cultura.
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 36
1.2 A FAMÍLIA E A INFÂNCIA BRASILEIRA
Ribeiro (1997) demonstra que o núcleo fundamental que assentou a estrutura econômica
do Brasil foi marcado pela exploração das riquezas naturais, pela desvalorização dos povos
nativos, pelo espírito aventureiro e desregrado dos colonos, e pela exploração da mão de obra
escrava. A escravidão surgiu em anos que antecederam a Idade Contemporânea pelas potências
cristãs, das quais fazia parte Portugal, que mantinham o monopólio do tráfico de forma tão
brutal quanto à barbárie do período Antigo Medieval.
Tal prática ocorria abertamente em contraste com a doutrina de liberdade,
igualdade, natural de todos os homens da tradição cristã secularizada, trazendo
o racismo como um novo ‘produto’ do etnocentrismo e do cientificismo
europeu que a Antiguidade não conheceu. (MACEDO, 2007, p. 60).
Nesse cenário e sob as influências que foram descritas na seção anterior, gradativamente
foi se formando a família e a infância nos moldes brasileiros. É bem verdade que “a política de
Portugal foi decisiva na organização da família colonial brasileira”, como aponta Costa (2004,
p. 36), ao demonstrar como se formou o poder familiar latifundiário na Colônia, que “[...] em
breve, competia com o próprio poder da metrópole.” A potência da família colonial não
demorou muito tempo para subjugar todo o território:
No Brasil Colônia a família passou a ser sinônimo de organização familiar
latifundiária. Toda a formação social que pudesse fraturar o mito de sua
universalidade era sistematicamente aniquilada. A família escrava foi
destruída pela violência física e a dos homens livres pobres, pela corrupção,
pelo favor, e pelo clientelismo. (COSTA, 2004, p. 37).
Os elementos presentes no Brasil Colônia eram a família patriarcal preservando o
latifúndio, em contrapartida a uma grande massa de escravos e despossuídos. Eram duas partes
que se conflitavam em decorrência da tentativa de manter o poder. Esses conflitos se estendiam
para outras categorias, não só entre os grupos dominantes.
Para preservar o poder do latifúndio, a cultura da família patriarcal no Brasil era
marcada pelo autoritarismo do senhor sobre os escravos, esposa e filhos, e baseada na
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 37
propriedade privada. As uniões monogâmicas eram exclusivas às mulheres, pois estas geravam
os herdeiros aos seus maridos. Assim, “[...] para os homens ela não passa, afinal de contas, da
mãe de seus filhos legítimos, seus herdeiros.” (RIBEIRO, 1997, p. 47).
Para Costa (2004, p. 37), as famílias tinham poucas chances de criarem raízes sólidas,
diante das irregularidades dos costumes sexuais, escravidão e insegurança econômica:
“oscilavam da posse física do meio urbano, até o controle biológico dos subordinados, pela
assimilação dos bastardos ao exército da casa-grande.” As relações familiares eram
contraditórias e desiguais entre classes e gêneros. Não condiziam exatamente com as famílias
da Europa do mesmo século, mas utilizavam da estratégia mercantilista que interessava à
metrópole pelo lucro fácil e sem investimentos. A economia brasileira dessa época dependia da
exportação e dos escravos, portanto conclui-se que eram considerados mercadorias.
Como em Portugal já vinha sendo utilizado o trabalho escravo, por meio da exploração
do africano negro, desde o século XV, esses escravos passaram a ser trazidos ao Brasil como
instrumento de mão de obra na produção agrícola de produtos que seriam comercializados na
Europa. “[...] Do fator econômico decorreria o tipo de trabalho que estas duas outras raças
teriam para se enquadrar na oposição da raça dominante.” (RIBEIRO, 1997, p. 20).
Desses trechos, é possível extrair que o fenômeno da mestiçagem se deu pela imposição
da raça e gênero dominantes às raças e gêneros dominados, com isso a base da pirâmide social
no Brasil Colônia era formada por mulheres/meninas negras e índias. A mulher indígena, como
analisa Ribeiro (1997), ainda possuía o status de ser nativa da terra e, assim, conservava em
melhor condição a sua subjetividade, pois tinha menos degradadas a liberdade e a identidade, o
que não acontecia com as mulheres negras.
A autora destaca também que em grande parte do histórico colonial não existia no
território brasileiro a mulher branca, na medida em que a imigração se fez, senão raramente, de
homens isolados que tentavam uma aventura, deixando a família na metrópole à espera de uma
definição do chefe que emigrou:
[...] Espera que se prolonga e não raro se eterniza, porque nosso colono,
mesmo estabilizado, acabará preferindo a facilidade de costumes que lhes
proporciona mulheres submissas de raças dominadas que se encontram aqui,
às restrições que a família lhe trará. E quando não, já estará tão habituado a tal
vida, que o freio da mulher e dos filhos não atuará nele, senão muito pouco.
(RIBEIRO, 1997, p. 22).
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 38
Ribeiro (1997) demonstra que a vinda da mulher branca para o território brasileiro
retardou-se devido às dificuldades aqui vividas pelos colonos. Esses obstáculos advinham
principalmente de dois fatores: primeiro porque aqui era uma região de costumes, valores e
crenças considerados selvagens, e, sendo assim, não era um atrativo às mulheres acostumadas à
vida da metrópole; o segundo está relacionado ao fato de que os homens vindos ao Brasil
obtinham vantagens da condição das mulheres que aqui encontravam, uma vez que, por serem
das raças e condições sociais consideradas inferiores, eram mais submissas.
Sendo assim, a miscigenação foi constituída principalmente de homens brancos com
mulheres negras e índias, e, como a mulher sofria todos os tipos de discriminação de raças,
gênero e classes, as crianças geradas dessas relações eram consideradas filhos ilegítimos, por
não advirem de um relacionamento legalmente constituído, conforme exigências religiosas e
políticas da Europa.
Frequentemente essas crianças eram vítimas da discriminação e do abandono. Um
documento histórico, citado por Ribeiro (1997), traz informações de que prevalecia na época a
prática de padres doutrinadores, como Nóbrega, que convertiam homens a viver de acordo com
os costumes cristãos, casarem-se e constituírem famílias. No entanto, o ambiente era
contraditório. À raça branca, que era a dominadora do território brasileiro, pertenciam os
indivíduos de sexos masculinos, enquanto as raças dominadas eram as indígenas e negras, às
quais pertenciam também as mulheres da Colônia em sua maioria.
Como os matrimônios só ocorriam entre pessoas da mesma raça e cultura, e dentro dos
parâmetros europeus, a autora destaca que a vinda da mulher branca ao Brasil ocorreu no
momento em que se percebeu a necessidade da formação da família nos moldes da cultura
europeia, para administrar e preservar o poder do latifúndio, que fornecia ao comércio europeu
gêneros tropicais e minerais, extremamente valorizados.
Em virtude disso, era preciso mandar trazer as mulheres brancas de Portugal,
mesmo que fossem enjeitadas ou ‘erradas’ lá. Aqui elas seriam responsáveis
pela perpetuação do domínio europeu, através da procriação da raça branca.
Não importava se na Metrópole fossem órfãs, ladras, prostitutas, ou de
qualquer procedência social; bastava que fossem brancas e européias.
(RIBEIRO, 1997, p. 20).
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 39
A família nos moldes dos povos nativos e dos povos africanos não era incentivada,
quando não era proibida por seus senhores, pois quando essas pessoas chegavam da África eram
separados do vínculo familiar. O sacramento familiar só era válido para os indivíduos brancos.
Müller (2007) afirma que a Igreja também era apoiada nos mesmos ideais da Europa e
não economizava esforços no sentido de modelar as famílias conforme os costumes europeus. A
ideia da família nuclear e feliz foi implantada na cultura nativa impregnada de moralidades
cristãs, de pecados e castigos advindos do Deus cristão.
Como o trabalho manual era considerado coisa de escravos, as mulheres brancas no
Brasil exerciam atividades colaborativas na função de comando administrativo, mesmo diante
da supremacia do patriarca; dessa forma, participavam consideravelmente das atividades que
eram realizadas por seus maridos, mas era reservado aos homens o papel de comando e às
mulheres a condição de comandadas, afirma Ribeiro (1997). Entretanto, o estereótipo da cor
dificultou a situação das moças brancas empobrecidas e vítimas do abandono em Portugal, que
eram trazidas para o solo brasileiro, principalmente se fossem provenientes das elites e castas.
Não podendo trabalhar, por ser essa atitude própria de escravos, eram levadas à condição de
verdadeira miséria. Essas moças vinham na condição de mercadoria para se casarem com os
homens brancos e procriarem. Ribeiro (1997) menciona que essa prática gerou mais vítimas da
promiscuidade na Colônia, pois essas moças, como as outras, iam se tornando instrumentos
sexuais dos colonizadores; sendo que as desigualdades sociais eram perpetradas ainda mais nos
filhos gerados nessas condições. A educação não era bem vista, porque incentivava as ideias de
emancipação, igualdade das classes e liberdade dos escravos:
Tanto os primogênitos como as mulheres brancas de elite, eram excluídos
dessa possibilidade, porque eram eles que futuramente exerceriam papéis
diretamente de extrema importância na preservação dos interesses dessa classe
dominante. A eles era assegurada uma educação que tinha por objetivo
assegurar o domínio da colônia. (RIBEIRO, 1997, p. 60).
Os pais escolhiam os maridos de suas filhas, casando-as aos 12 ou 13 anos com alguém
adequado a esses interesses. Os meninos não podiam ser tímidos e aos 9 ou 10 anos eram
obrigados a se tornarem homenzinhos, comportando-se como gente grande nos trajes e vícios, e
preocupando-se em contraírem sífilis o mais breve possível, porque simbolizava a
masculinidade; e para se curarem, como informa Ribeiro (1997, p. 50), utilizavam as escravas
negras ou mulatas:
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 40
[...] As negras, muitas vezes entregues virgens, ainda meninas, satisfaziam,
como já mencionado, moços brancos já sifílicos, isso porque por muito tempo
dominou uma crença, na colônia, de que para o sifílico não há remédio melhor
do que uma negrinha virgem.
O autoritarismo do senhor iniciava com os escravos e se estendia à esposa e filhos, era
baseado na propriedade privada e cabia o aspecto monogâmico exclusivamente à mulher, que
obrigatoriamente teria que gerar herdeiros a seu marido. Portanto, “[...] para os homens ela não
passa, afinal de contas, da mãe de seus filhos legítimos, seus herdeiros.” (RIBEIRO, 1997, p.
47).
As culturas do índio e do negro africano misturavam-se nas famílias trazidas da Europa
ou constituídas em solo brasileiro, que aos poucos iam se transformando nos modelos de família
colonial.
Müller (2007, p. 99) descreve como essa cultura foi se contrastando e posteriormente se
mesclando, por exemplo, “os portugueses já aportavam no Brasil com crianças pobres órfãs –
categorias que aqui não existiam.” Se, por um lado, havia o que era considerado padrão para a
sociedade europeia, e que se seguia na formação da sociedade brasileira, crianças brancas,
cristãs, de famílias consanguíneas, que falassem o idioma português, cuidadas em colégios
internos, conforme a cultura da elite europeia, por outro
aqui havia povos indígenas e depois passaram a haver negros de diversas
origens que por muito tempo representaram a maioria da população do Brasil.
Havia particularidades e diferenças na vida de quem era moleque ou moleca
(crianças negras), curumim (criança de origem indígena) ou sinhozinho e
sinhazinha (filhos dos brancos). Isso foi no início, pois logo começaram as
mesclas e muitas crianças já apresentavam outro tipo físico, idiomas
misturados, rituais, crenças, vestes, desejos diferentes e tudo o mais que
compõe uma cultura; foram vivendo e construindo as culturas da infância bem
ligadas com a vida adulta. (MÜLLER, 2007, p. 99).
O quadro ideológico educacional era composto pela família, religião, influências negras
e indígenas, e pelos modelos portugueses, suas tradições e influências. A lógica e o ideal da
Igreja eram da mesma ordem que os dos senhores. Os padres aconselhavam os escravos à
obediência, passividade e à esperança na vida eterna; enquanto que, para o senhor do escravo,
aconselhavam moderação nos castigos, e moderação nas relações promíscuas com as escravas e
com as prostitutas existentes nas cidades.
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 41
Para Ribeiro (1997, p. 72), “a Igreja Católica foi dessa forma um espaço que reproduziu
o mesmo ideal de educação da casa grande para as mulheres escravas e senhoras”, pois tinha o
interesse de incorporá-las ao sistema de produção, reprodução e formas de gerir a vida e o
trabalho na Colônia.
Müller (2007) afirma que o modelo de família nuclear patriarcal vinda com os europeus
não se estabeleceu exatamente como era na Europa. No Brasil, em muitos lares os maridos eram
ausentes, os companheiros eram ambulantes ou as mulheres governavam seus lares sem a
presença de um homem. Muitas crianças eram cuidadas por parentes ou vizinhos, a família
patriarcal era muito extensa e todos dependiam do senhor do engenho, inclusive os empregados.
O senhor possuía o mando geral sobre todos, mandava em seus filhos, esposa e nos filhos dos
serventes e escravos. A defesa dos bens que era o elemento ideológico muito presente nessa
sociedade dependia da violência, pois era esse o meio empregado para a resolução de conflitos.
Os bons predicados, segundo Costa (2004), eram privilégios dos homens adultos e estes
possuíam a energia para produzir filhos, destruir quem se opusesse ao seu poder e zelar pela
honra da família:
A criança até o século XIX permaneceu prisioneira do papel social do filho. Sua
situação sentimental refletia a posição que este último desfrutava na casa. A
imagem da criança frágil, portadora de uma vida delicada merecedora de
desvelo absoluto dos pais, é uma imagem recente. A família colonial ignorava-a
ou subestimava-a. Em virtude disto, privou-a do tipo de quota de afeição que,
moderadamente, reconhecemos como indispensáveis a seu desenvolvimento
físico e emocional. (COSTA, 2004, p. 155).
Del Priore (2004) aponta outro elemento que demonstra como eram subestimados o
valor da infância e as questões ligadas ao desenvolvimento das crianças, presente na condição
precária com que eram trazidas ao Brasil por meio das embarcações lusitanas do século XVI e
que provavelmente contribuiu na constituição do conceito de infância na sociedade e cultura
brasileiras.
[...] eram os miúdos quem mais sofriam com o difícil dia-a-dia em alto mar. A
presença de mulheres era rara, e muitas vezes, proibida a bordo, e o próprio
ambiente nas naus acabava por propiciar atos de sodomia que eram tolerados
até pela inquisição. Grumetes e pajens eram obrigados a aceitar abusos sexuais
de marujos rudes e violentos. Crianças, mesmo acompanhadas dos pais, eram
violadas por pedófilos e as órfãs tinham que ser guardadas e vigiadas
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 42
cuidadosamente a fim de se manterem virgens, pelo menos, até que chegassem
à Colônia. (DEL PRIORE, 2004, p. 19).
No Brasil Colonial, o filho, segundo Costa (2004), ocupava uma posição instrumental na
família a serviço do poder paterno. Porém o pai não possuía, para com os pequenos,
compromissos de manifestações afetivas.
Registros de inventários, descritos por Costa (2004), demonstram vários relatos de pais
que se referem aos filhos bastardos de forma hostil: “Dizem que são meus filhos” e um caso em
que o pai havia esquecido o nome de um dos filhos legítimos.
Nesse sentido, Müller (2007) também aponta para outro elemento que é o da cultura
moral cristã impregnada de pecados e castigos, que forçosamente foi posta ao povo nativo, que
era carinhoso com as crianças. “Assim se pode ver a crítica que foi sendo feita aos pais daqui
que eram carinhosos com seus filhos, atitude entendida como se isso fosse coisa de mulher [...]”
(MÜLLER, 2007, p. 103).
Costa (2004) relaciona o desprestígio ou a ausência do sentimento de intimidade e
privacidade familiar com a forma como se organizava a casa. Descrevendo o lugar e forma de
vida cotidiana da família colonial, o autor relata que até meados do século XIX o espaço mais
povoado da casa colonial era a sala de viver ou varanda, que se situava nos fundos e era
construída com o intuito de dar maiores condições de isolamento social. Era nesse ambiente que
as mulheres viviam a maior parte de seu dia e seu ócio mesclava-se com algumas ocupações
domésticas. Quanto aos homens, estes frequentavam a vida social e o seu tempo ocioso era
aproveitado na rua. As casas não possuíam ornamentos e a mobília era escassa. O conforto era
negligenciado. A forma de subsistência material na sociedade colonial brasileira era
basicamente constituída de proprietários e escravos que buscavam a subsistência lutando pela
propriedade. Dessa forma, “[...] a criação e a preservação do patrimônio capitalizavam a força e
a disponibilidade de todos os membros do grupo familiar. Fenômeno que explica a importância
do pai na família.” (COSTA, 2004, p. 155).
Ribeiro (1997) afirma que as inúmeras formas de violência na Colônia advindas do
contato do português com os escravos e índios iam se reproduzindo nas relações, afirmado o
poder do pai, o domínio de classes e legitimando a violência na Colônia para a defesa dos bens.
O poder do patriarca, que era quem ocupava o pico da pirâmide social da época em
todos os setores da sociedade, era incontestável. Costa (2004) demonstra que os castigos mais
severos aconteciam àqueles que desobedeciam ao patriarca no seio da família.
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 43
Os espancamentos com palmatórias, varas de marmelo (às vezes com alfinetes
na ponta), cipós, galhos de goiabeira e objetos de sevícias do gênero,
ensinavam-lhes que a obediência incontinenti era o único modo de escapar à
punição. (FREYRE apud COSTA, 2004, p. 154).
A criança na Colônia era supérflua e ao pai interessava o filho adulto, pois este sim seria
capaz de herdar o patrimônio construído e dar sequência ao seu trabalho de enriquecimento do
patrimônio.
Donde o fenômeno da ‘adultização’ precoce da infância. Tão logo chegavam à
puberdade, os filhos eram levados a assumir a postura de adultos. Assim
adquiriam o direito de uma maior participação na atenção da família.
(COSTA, 2004, p. 159).
Com o aperfeiçoamento da indústria do material de construção, essa característica foi
mudando e a família começou a introduzir modificações nas residências, com o emprego do
assoalho encerado, tapetes e móveis mais finos. Essas mudanças fizeram com que as famílias
começassem a se concentrar mais nas casas, e a educação dos filhos passou a ser mais
individualizada, ganhando com isso também uma maior consciência de sua própria
individualidade, como aponta Costa (2004).
Comparando o sentimento relacionado à infância no Brasil aos estudos de Ariès (1981),
Costa (2004, p. 87) faz o seguinte comentário:
[...] não nos interessou saber qual o ponto de partida do sentimento da
intimidade. Não poderíamos afirmar se desde o início da colonização ele
sempre existiu e foi mantido atrofiado, nem também, se tendo por acaso
existido, diluiu-se em meio às singularidades do ambiente sócio-econômico.
Face ao nosso propósito, bastou-nos constatar que, tendo ou não existido
anteriormente, suas manifestações até começos do século XIX foram
extremamente rarefeitas. E que em seu surgimento ou revitalização, a
medicina teve um papel fundamental. Quanto a isso não parece haver dúvida.
O sentimento de intimidade familiar, tal como começou a ser concebido e
estimulado pelos médicos do século XIX era, até então, inexistente ou
despercebido. Alguns testemunhos dessa ausência chegaram até nós e dentre
eles citaríamos o descaso com que eram tratados os hábitos de alimentação e
vestuário.
Também a Igreja só se interessava pelo adulto que era capaz de ser responsável por sua
obra, fossem elas boas ou más. A criança para a Igreja era apenas a representação da pureza e
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 44
inocência, “neste caso o modelo de perfeição que ela encarnava servia de exemplo e correção à
alma pecadora do homem.” (COSTA, 2004, p. 160).
Costa (2004) relata casos em que a morte das crianças era devotada na cultura familiar,
de modo a escandalizar os viajantes estrangeiros. A certeza de que com a morte elas iriam para
o céu é uma hipótese que, por certo, teria sido forjada pelos jesuítas diante das muitas mortes
das crianças indígenas no século XVI. Para consolo das mães e interesse da Igreja, os padres
teriam espalhado que as crianças iriam para o céu.
É provável que os jesuítas tenham se apropriado deste parentesco tradicional
da criança com o anjo, reorientando-o para as finalidades da Ordem. De
qualquer modo, o efeito conjunto destes motivos deve ter sido potencializado
pela ausência, quase completa, de valorização da vida biológico-moral da
criança. (COSTA, 2004, p. 161).
Quando sobrevivia, a criança era uma expectativa que se mantinha até a puberdade.
Segundo Costa (2004), que estudou a ação dos médicos higienistas no Brasil, o adulto e a
criança passaram a ter ligação maior quando o primeiro começou a enxergar a criança como a
matriz físico/emocional do adulto. Assim, “daquele momento em diante os papéis invertem-se:
a criança passa a determinar a função e o valor do filho.” (COSTA, 2004, p. 162).
Apontamentos sobre os altos índices de mortalidade infantil, que aconteciam na Colônia
do século XVII, demonstram como causas a omissão, descuido, falta de educação moral, física
e intelectual das mães e ilegitimidade dos nascimentos. Este último elemento aponta que
crianças consideradas ilegítimas morriam em número duas vezes maior do que aquelas
consideradas legítimas.
Quanto às crianças escravas, essas eram consideradas mercadorias, tanto quanto os
adultos escravos, mas com um agravante:
A criação da criança escrava era mais cara que a importação de um escravo
adulto, já que com um ano de trabalho o escravo pagava o seu preço de
compra. Havia grande mortalidade de crianças escravas. As mães eram
alugadas como amas-de-leite. Essa era uma maneira de separar os filhos de
suas próprias mães. (FALEIROS; FALEIROS, 2007, p. 19).
Mesmo após a Lei do Ventre Livre, em 1871, a criança poderia ser utilizada pelo seu
senhor entre 8 e 21 anos de idades, segundo Faleiros e Faleiros (2007); pois, mediante
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 45
indenização ao Estado, poderiam não ser libertadas. Porém, antes da lei, começavam a trabalhar
ainda mais cedo ou então eram oferecidas como brinquedos para as crianças filhas dos senhores
de escravos.
Faleiros e Faleiros (2007) apresentam as ações dos padres no acolhimento das crianças
abandonadas ou resgatadas de suas comunidades indígenas:
Os padres, embora não aceitassem os castigos violentos e a matança de índios
pelos portugueses, fundaram casas de recolhimento ou casas para meninos e
meninas índias, nas quais, após separá-los de sua comunidade, impunham-lhes
os costumes e normas do cristianismo, tais como o casamento religioso e
outros dogmas, com o intuito de introduzi-los na visão cristã do mundo.
(FALEIROS; FALEIROS, 2007, p. 19).
A Igreja, como instituição social, não só participou das práticas violentas como também
delas se beneficiou. As tantas crianças ilegítimas, geradas nesse ambiente de violência, se
tornavam vítimas da discriminação e do abandono, a elas eram impostos variados destinos.
Müller (2007), apoiada em anúncios publicados em jornais do século XIX, observa trechos de
anúncios de aluguel de moleques para trabalhar em tipografia na qualidade de batedor, anúncios
de venda ou aluguel de amas de leite e de anúncios de aluguel ou vendas de escravas com cria
ou sem ela.
Os filhos nascidos fora do casamento eram abandonados com muita frequência, no
entanto, ao serem deixados nas portas das casas corriam o risco de serem comidos por animais.
As autoridades, preocupadas com a situação, levaram o vice-rei a propor, em 1726, a coleta de
esmolas na comunidade, devido à grande pobreza ser também causa de abandono e internação
de crianças. Faleiros e Faleiros (2007) citam a prática de abandono nas rodas que atendiam à
internação de crianças ilegítimas:
[...] um cilindro giratório na parede da Santa Casa que permitia que a criança
fosse colocada de forma sem que fosse vista de dentro, e, assim, recolhida pela
Instituição que criou um local denominado ‘Casa dos Expostos’. O objetivo
desse instrumento era esconder a origem ilegítima da criança e salvar a honra
das famílias. (FALEIROS; FALEIROS, 2007, p. 19).
Müller (2007, p. 105) também cita a famosa roda europeia que chegou ao Brasil em
1738, com um caráter filantrópico, mas que escondia a legitimação do abandono e
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 46
discriminação. Muitos senhores tomavam as crianças de suas mães/escravas a fim de alugar as
mães como amas de leite. Portanto, “o que se pode observar é o critério econômico priorizado
sobre qualquer outro valor moral ou crença divina que determinava os destinos infantis.”
Del Priore (1998), por meio de um levantamento entre pessoas que eram crianças na
década de 1930, constata como a roda era usada para ameaçar os pequenos, provocando uma
temerosa curiosidade nas crianças.
Com o pensamento metafórico incendiado, afirmavam para os irmãos menores
que os bebês colocados no vão do muro eram moídos pelo movimento
giratório. Os que comunicavam suas lembranças conservam viva uma
sensação de estranheza e temor desencadeada pelo som da sineta no silêncio
da noite e pelo ranger do mecanismo que abocanhava bebês na rua, para
empurrá-los para detrás dos muros. (DEL PRIORE, 1998, p. 98).
A roda dos expostos, segundo a autora, primeiramente instituída na França, foi extinta,
depois foi instituída em Portugal, de onde foi trazida ao Brasil para salvar os recém-nascidos
que eram em grande número abandonados. De acordo com Leite (1998, p. 99),
os governantes criavam, com o objetivo de salvar a vida de recém-nascidos
abandonados, para encaminhá-los depois para trabalhos produtivos forçados.
Foi uma das iniciativas sociais de orientar a população pobre no sentido de
transformá-la em classe trabalhadora e afastá-la da perigosa camada envolvida
na prostituição e vadiagem.
A grande maioria das crianças abandonadas era branca ou parda, fruto das relações dos
homens brancos de origem portuguesa e livres com as escravas de origem africana.
É divergente entre os autores a exata data em que foi instituída a roda dos expostos no
Brasil. Para Faleiros e Faleiros (2007), a primeira roda foi instituída no ano de 1726, na Bahia, e
a última existiu até os anos 50 do século passado (séc. XX), pelo que se sabe.
Aproximadamente 90% das crianças morriam nessas instituições, as quais não possuíam
condições efetivas de acolhimento, segundo vários autores (DEL PRIORE, 1998; FALEIROS;
FALEIROS, 2007; MÜLLER, 2007). Mas não eram apenas as Santas Casas que acolhiam as
crianças expostas, as Câmaras Municipais também cuidavam dos abandonados, criando
impostos para prestar assistência, encaminhando-os às famílias em troca de pagamento.
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 47
As instituições privadas favoreciam os ricos, que encaminhavam as crianças
transformando-as em força de trabalho barato. Conforme Faleiros e Faleiros (2007), em 1871
foi criado o asilo de meninos, e as meninas desvalidas eram acolhidas na Santa Casa desde
1740. Também os conventos eram usados como prisões por pais, conforme os interesses da
sociedade.
Tanto era assim que em 1793, um tal de João da Costa Ferreira, pretendia
recolher a um convento, à força suas três irmãs porque não queria repartir a
herança deixada pelo pai. Conseguiu que duas fossem enclausuradas, porém
em agosto do mesmo ano, fugiu uma e a terceira desapareceu antes que seu
irmão pudesse transportar à prisão mística. (RIBEIRO, 1997, p. 100).
No século XIX, havia trinta asilos de órfãos, sete escolas industriais e de artífices, e
quatro escolas agrícolas.
Atualmente, nos Estados Unidos, um mecanismo parecido com a roda, que legitima o
abandono de filhos por seus pais, tem sido motivo de polêmica em pleno século XXI:
Um adolescente de 17 anos foi abandonado em um hospital do Estado
americano de Nebraska sob o amparo de uma lei que exime de processo
criminal os pais que deixam os filhos com menos de 19 anos em determinados
locais públicos. Segundo a imprensa local, com este caso já chega a 24 o
número de crianças ou jovens abandonados desde que a polêmica legislação
foi promulgada, em julho deste ano. O jovem, de 17 anos, foi abandonado no
Hospital de Omaha na quarta-feira à noite. Nebraska foi o último Estado a
articular uma legislação de proteção infantil, concebida com o objetivo de dar
amparo às crianças quando os pais tiverem dificuldades para criá-las. A lei
substituiu outras normas sobre o abandono de menores que estabeleciam
punições por negligência infantil - uma falta menos grave - ou abuso infantil -
mais grave. Desde que a regra entrou em vigor, nenhuma das 24 crianças
abandonadas em hospitais era recém-nascida e três eram inclusive de outros
Estados. Isto se deve a que a medida fornece proteção a qualquer ‘criança’, ao
entender como tal pessoas com menos de 19 anos.
Nove filhos
A ausência de um padrão nacional fez com que os legisladores de Nebraska
utilizassem o termo genérico ‘criança’ na lei. Em setembro, um homem deixou
11 crianças, nove delas seus filhos, em salas de emergência de dois hospitais
de Nebraska. Pelo menos 15 Estados do país utilizam o limite dos três dias de
idade - o mais comum - para aplicar iniciativas parecidas, segundo a National
Safe Haven Alliance. O segundo limite mais utilizado é o dos 30 dias, embora
este período mude segundo o Estado. Por exemplo, em Iowa, a idade máxima
que um menor pode ter para ser abandonado é de 14 dias, enquanto em Dakota
do Sul o limite é fixado em 60 dias de idade. (EFE, 2008).
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 48
1.3 AS INSTITUIÇÕES PÚBLICAS
A Idade Média encerrava o indivíduo nos territórios do feudo. Lá, a criança tanto era
controlada como podia contar com a comunidade. Com a ascensão da burguesia, a Reforma e a
ampliação da educação, segundo Faleiros e Faleiros (2007), inicia a Idade Moderna, na qual a
sociedade começa a valorizar o espaço privado.
Ariès (1987) aponta o século XV como o momento em que surgiu o sentimento de
família, mas alerta que até o século XVII a vida era vivida em público, descrevendo que na
Europa haviam esquecido a paideia dos antigos, ao mesmo tempo em que ignoravam a
educação dos modernos, não tendo ainda nessa época a ideia de educação, da qual hoje depende
o sucesso de uma sociedade.
[...] Na Idade Moderna o colégio surgiu como instituição educacional. Ao
mesmo tempo em que a família, ao resgatar crianças e adolescentes para
dentro do lar, experimenta crescentes relações de afetividade. Os mestres
moralistas começam a denunciar a frouxidão dos costumes. O Estado e a
Igreja reagiram e assumiram a responsabilidade educacional. (FALEIROS;
FALEIROS, 2007, p. 18).
Com as ideias iluministas dos séculos XVII e XVIII, a adolescência passou a ser
controlada, as meninas recebiam educação formal e as famílias ricas criticavam os colégios por
maus hábitos, retirando seus filhos das escolas que eram controladas pelo Estado e pela Igreja.
Com isso, há oportunidade das famílias pobres encaminharem seus filhos às escolas na
esperança de um futuro melhor: “externato para o rico, internato para o pobre.” (FALEIROS;
FALEIROS, 2007, p. 18).
O crescente processo da industrialização na Europa e a aceleração do crescimento
urbano tornaram os indivíduos anônimos, iniciando um processo de massificação da sociedade.
Entre os brancos, a exploração da força de trabalho infantil acontecia apenas nas famílias
pobres, e, como eram muitos os casos de exploração, em 1891 foi instituída a idade mínima de
12 anos para se entrar legalmente no mercado de trabalho, pois, em 1890, 15% dos
trabalhadores da indústria têxtil de São Paulo eram crianças, e em 1919 esse índice já era muito
maior e demonstrava uma ampliação da exploração do trabalho das crianças em outros setores.
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 49
De modo geral, as cidades, apesar dos baixos salários, ofereciam mais
oportunidades de trabalho, inclusive informais, como os de vendedor
ambulante, engraxate e jornaleiro. Assim, o espaço urbano representava um
atrativo para a família inteira migrante do campo, pois acenava com a
possibilidade de emprego para os adultos e seus filhos. Entre os operários, de
uma maneira geral, o salário pago às crianças era entendido como forma de
complementar o orçamento familiar. No entanto, ao contrário dessa
expectativa, o agenciamento de mão-de-obra de crianças e adolescentes
pressionava para baixo os salários dos trabalhadores adultos. (FALEIROS;
FALEIROS, 2007, p. 59).
No cenário brasileiro, segundo Faleiros e Faleiros (2007), todas as leis e ordens de 1500
a 1822, direcionadas às crianças, vinham de Portugal e eram aplicadas por representantes da
Corte e da Igreja Católica.
Para Del Priore (1998), a palavra ‘menor’ era usada como sinônimo de ‘criança’,
‘adolescente’ ou ‘jovem’ até o século XIX, para marcar os limites da idade que determinavam o
que as pessoas poderiam fazer ou estavam proibidas. O termo ‘menor’ estava associado aos
direitos de emancipação jurídica, paterna, responsabilidade civil ou canônica. Com a
proclamação da independência, esse passou a ser utilizado, de acordo com a autora, como termo
jurídico para definir a responsabilidade penal do indivíduo pelos seus atos. Desse modo,
o Código Criminal do Império de 1830 definiu, de fato, três períodos de idade
antes dos 21 anos, com respeito à responsabilidade às penas. Primeiro, os
menores de 14 anos não têm responsabilidade penal, o que só terá validade
para os escravos a partir de 1885. Segundo os maiores de 14 e menores de 17
anos que ‘poderá o juiz parecendo-lhe justo, impor-lhe as penas de
cumplicidade’. Terceiro o limite de 21 anos para a imposição de penas
drásticas como galés, que será estendida também aos maiores de sessenta.
(LONDOÑO, 1998, p. 130).
Ainda assim, se fosse entendido que o menor atuava com discernimento, poderia este ser
recolhido às casas de correção a critério do juiz até que completasse 17 anos. “Isso permitiria
que os menores de 17 anos fossem condenados, sendo a prisão comum o destino destas
crianças, já que só no fim do século surgem as casas de correção para menores.” Ocorria, como
é de se supor, uma enorme discrepância entre a idade civil e a idade penal, pois “[...] a pessoa
ficava submetida ao pátrio poder até os 21 anos, enquanto sua responsabilidade penal podia
começar aos 7 ou 9 anos, dependendo do juiz”, como aponta Londoño (1998, p. 131). Com
esses critérios discrepantes, as crianças poderiam ser transformadas em adultos, responderem
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 50
ante a justiça e até assumirem responsabilidades, sendo incorporadas ao Exército e às Forças
Armadas. No caso de órfãos, estes eram confiados a um tutor que deles cuidava e administrava
seus bens.
Assim, mais do que o menor existia o filho de família e o órfão. Este, em caso
de abandono, dependia do juiz dos órfãos, ficando normalmente aos cuidados
das Santas Casas ou de particulares. Aquela, por sua vez, encaminhava os
abandonados, ao chegar aos 7 anos, ao Arsenal da Marinha, ao Exército, aos
Seminários ou a Ordens religiosas no caso das meninas. (LONDOÑO, 1998,
p. 131).
O Código de Menores de 1890 estabelece em 9 anos o limite mínimo para a
imputabilidade do agente do crime. O menor de 14 anos só poderia ser punido se tivesse
discernimento, quando deveria ser levado ao júri pelo juiz, que perguntava: “O réu obrou com
discernimento?” (LONDOÑO, 1998, p. 132). Essa forma era criticada por juristas que a viam
como uma má intelecção do direito romano, que defendia a consciência do dever advindo da
instrução que a criança tivesse recebido. Nessa época, relacionava-se o sistema de ensino do
Brasil com a problemática do crime cometido por crianças, fazendo comparações com países
em que esse sistema era mais desenvolvido.
Comparando-se assim as idades legais da Itália e do Brasil, achava-se que a
justiça italiana ‘tem mais direito’ de exigir de um maior de nove anos uma
certa consciência de dever, que o faça recuar do crime, do que o Brasil, com o
seu péssimo sistema de ensino pode exigi-la de qualquer maior de quatorze.
(LONDOÑO, 1998, p. 132).
Ao fim da década de 1890 e nas décadas que se seguiram, a expressão ‘menor’ era parte
do vocabulário judicial da República, aparecendo também nos relatórios dos chefes de polícia,
nos projetos apresentados aos corpos colegiados dos estados e nos noticiários das grandes
capitais. A utilização desse termo, “coincide com a introdução da puericultura por parte dos
médicos e com a importância que já, desde o século XIX, vinha cobrando a educação dos
jovens, o interesse pela menoridade por parte dos juristas”, como informa Londoño (1998, p.
133).
Os exemplos dos modelos internacionais interessavam aos juristas para a sua utilização
nas instituições criadas para atender e disciplinar os chamados menores infratores ou crianças
abandonadas.
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 51
Nos Estados Unidos foram criadas, em 1825, casas para atender os menores criminosos
sob os preceitos quaker, assim como durante o século XIX, e depois estas foram se
diferenciando dos asilos para órfãos desprotegidos. Nas escolas agrícolas e industriais eram
colocadas as crianças abandonadas, para serem transformadas em cidadãos úteis à sociedade.
Ficam marcadas pelo princípio de regenerar a partir de uma disciplina rigorosa
que vigorava nas instituições de internamento do século XIX, além de adotar o
trabalho físico manual como elemento reabilitador, educador, disciplinador e
formador das crianças infratoras e abandonadas. [...] A escola, a fábrica e a
prisão misturam-se num único espaço e numa mesma disciplina que regula
toda a vida da criança em torno do trabalho regenerador. (LONDOÑO, 1998,
p. 133).
Já no século XX, as “juvenil courts” norte-americanas serviram de inspiração para as
leis europeias por meio das “children act”, como demonstra Londoño (1998):
Apresentadas como resultados do humanitarismo em relação às crianças
pobres que tanto na Europa como nos Estados Unidos tinham sido junto com
as mulheres, as principais vítimas do sistema fabril, as leis em nome da
proteção da criança e da sociedade concederam aos juízes o poder de intervir
nas famílias, particularmente nas famílias pobres e nos chamados lares
desfeitos, quando se julgava que sob sua influência as crianças poderiam ser
encaminhadas ao crime. Os pais de famílias corriam o risco de perder o poder
sobre os seus filhos que deviam ser entregues a instituições que assumiam as
funções de criação que normalmente desempenhavam as famílias. (p. 134).
Nos casos descritos, as crianças seriam atendidas por especialistas, como médicos,
assistentes sociais e educadores, que eram considerados os substitutos idôneos para cumprirem
as funções do lar, conforme Londoño (1998). Um novo olhar sobre a criança superava a tese de
que os pequenos fossem seres privados de senso moral.
Agora nessa nova formulação, as crianças não nasciam criminosas, mas poderiam ser
influenciadas pelas circunstâncias, como a desagregação familiar ou social, que a inclinariam
para a criminalidade. A escola seria uma instituição que poderia encabeçar a educação das
crianças. Porém, nos casos em que estas se inclinassem ao vício, a educação deviria ocorrer pela
entrega da guarda da criança a instituições apropriadas.
No Brasil, no fim do século XIX, os juristas descobriram o menor nas crianças pobres e
abandonadas das cidades, que não estavam sob autoridade de seus progenitores e povoavam as
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 52
ruas, mercados, grandes centros, praças e cometiam delitos, frequentando as cadeias; ou seja,
“[...] nestes casos passando a serem chamadas de menores criminosos.” (LONDOÑO, 1998, p.
135). As características dessas crianças eram de abandono, tanto material como moral; portanto,
“o menor não era, pois o filho ‘de família’ sujeito à autoridade paterna, ou mesmo o órfão
devidamente tutelado e sim a criança ou adolescente abandonado.” (LONDOÑO, 1998, p. 135).
A origem do abandono foi relacionada, no Brasil, à pobreza, e sendo assim veio a demonstrar a
decomposição da família e a perda do poder paterno como principais responsáveis pela situação
de degradação da infância.
Um relatório, segundo Londoño (1998), encaminhado ao secretário da Justiça e
Segurança Pública, no início do século XX, apontava 1.500 menores presos pela polícia por
vários motivos; e, mesmo tendo claro nos discursos dos juristas que as crianças abandonadas
eram um perigo para a sociedade, existia a convicção de que elas eram ainda assim vítimas da
falta de educação intelectual e afetiva, da miséria dos pais e da ausência de carinho.
A autoridade paterna seria nesse momento o ideal para a sociedade brasileira e essa
autoridade deveria ser restaurada. Londoño (1998, p. 138) revela a ideologia presente nesse
pensamento, impregnado pela permanência do passado e marcado pelo autoritarismo
paternalista, que se interessava muito mais pelo restabelecimento da ordem do que com o
sujeito ou a individualidade do sujeito criança, uma vez que quando abandonadas
representavam um problema sério, porque ao retornarem criminosas muitas delas colocavam em
risco o futuro da sociedade. O problema da criança abandonada ou menor abandonado era caso
de polícia; assim, essas crianças eram confiadas às mãos dos delegados que se incumbiam de
limpar as ruas, os parques, praças, recolhendo aquelas que representavam um incômodo ou um
perigo à sociedade. “Tudo isso com aplausos da imprensa, mas sem que as crianças e seu
destino fossem levados em conta.” (LONDOÑO, 1998, p. 140). Diante dessa situação, os
juristas postulavam a necessidade de uma mudança na atuação do Estado e da criação de uma
lei que protegesse o menor. Dessa forma,
desde 1902, quando, Cardoso de Almeida, chefe da Polícia de São Paulo,
presenteou os chamados menores criminosos com o projeto de um Instituto
Disciplinar, até 1927 quando se constituiu o Código de Menores, vários foram
os planos e projetos de lei de menores apresentados ao congresso que foram
reprovados ou simplesmente não foram discutidos. (LONDOÑO, 1998, p.
140).
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 53
Mas, mesmo antes da promulgação da lei geral, nada impediu que fossem criadas, por
decretos federais ou estaduais, muitas instituições para albergar as crianças abandonadas e as
julgadas criminosas.
Foi também no início do século XX que tivemos a ampliação dos
conhecimentos da psicologia, que, debruçada sobre a constituição do sujeito
infantil, contou com a contribuição dos teóricos do desenvolvimento humano,
destacando-se Freud, Piaget, Vygotsky, Makarenko, Wallon e Watson. Apesar
da diferença de posicionamentos e matrizes teóricas, esses autores foram
fundamentais para a construção de uma concepção de infância e para a
adaptação do processo educativo. (FALEIROS; FALEIROS, 2007, p. 18).
Desse modo, a existência dessas instituições fez crescer a pressão pelo estabelecimento
de uma lei do direito do menor, ou seja, “[...] fez com que o debate sobre o menor, como
problema ganhasse o terreno da discussão do objetivo e da importância de tais instituições e do
tratamento dado nelas às crianças ali internadas.” Nessa mesma época, ocorriam divergências
de ideias com relação ao conceito das instituições; se, por um lado, uma corrente de pensamento
tem por objetivos prevenir a criminalidade, encaminhando-as para as instituições para a
formação e educação, por outro lado, outra corrente tem a ideia de prevenção por meio de
punições e castigos, “[...] com o objetivo de reprimir nos moldes das pessoas adultas.”
(LONDOÑO, 1998, p. 141). Prevalecendo a ideia da instituição para a formação e educação,
tem-se o fortalecimento da mentalidade da rua como lugar perigoso e a escola como salvação.
[...] a prevenção assim apresentada, supunha que a criança deveria ser tirada
da rua e colocada na escola. Afastado o menor dos focos de contágio,
correspondia depois às instituições dirigir-lhe a índole, educá-lo, formar-lhe o
caráter, por meio de um sistema inteligente de medidas preventivas e
corretivas. (LONDOÑO, 1998, p. 141).
Com a ideia da prevenção, a exigência de um plano de Assistência e Proteção à Infância
passa a ter maior necessidade,
[...] e isso pressupunha necessariamente o aparecimento de uma legislação que
lhe desse sustentação e que removesse empecilhos como a inquestionabilidade
do pátrio poder para tirar filhos de pais viciosos e o aumento da idade até 18
anos para a responsabilidade criminal, o que devia afastar os menores das
perniciosas prisões de adultos. Isso começou a ser conseguido a partir de 1921,
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 54
com a lei orçamentária 4.242 de 5/1 que autorizou o Serviço de Assistência e
Proteção da Infância Abandonada e aos Delinqüentes e que foi regulamentado
em 20/11/1923 pelo decreto 16.272. (LONDOÑO, 1998, p. 142).
Foi assim que, segundo Del Priore (1998), a problemática da criança abandonada deixou
de ser problema de polícia para ser uma questão de assistência e proteção, que deveria ser
garantida pelo Estado:
[...] A atenção à criança passou a ser proposta como um serviço especializado,
diferenciado, com objetivos específicos. Isso significava a participação de
saberes como os dos higienistas, que devia cuidar de sua saúde, nutrição e
higiene; os do educador, que devia cuidar de disciplinar, instruir, tornando o
menor apto para se reintegrar à sociedade; e os do jurista que devia conseguir
que a lei garantisse essa proteção e essa assistência. (LONDOÑO, p. 142,
1998).
No início do século XX, o termo ‘menor’, no Brasil, estava relacionado a uma criança
envolvida na delinquência, à falta ou ausência dos genitores ou parentes, ou àquelas que foram
encontradas vagando, deixadas à própria sorte, e assim sendo deveriam ser entregues às
autoridades judiciárias ou policiais.
O Estado passa a ter uma atuação, “[...] definida no marco de sua própria redefinição
como Estado que se estenderá por toda a primeira República” (LONDOÑO, 1998, p. 143), que
se preocupa com a preservação da ordem social que estava ameaçada, com o interesse em
modernizar o modelo capitalista brasileiro, e esses critérios acabam por nortear o esquema de
proteção da criança, que contam com novas instituições de atendimento com modelos
importados dos Estados Unidos e Europa. Com isso,
em 1902, o Congresso Nacional discutia a implantação de uma política
chamada de ‘assistência e proteção aos menores abandonados e delinqüentes’.
Em 1903, foi criada a Escola Correcional de 15 de Novembro. Em 1923, foi
autorizada a criação do Juizado de Menores, e, em 1924, foram criados o
Conselho de Assistência e Proteção aos Menores e o Abrigo de Menores. Em
1927, toda essa legislação é consolidada no primeiro Código de Menores.
(FALEIROS; FALEIROS, 2007, p. 22).
Os juristas em congressos internacionais da América Latina e Europa, preocupados com
o combate à criminalidade, propunham uma nova forma de se fazer justiça para a infância; e, no
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 55
Código de 1927, fica estabelecida a diferença entre ‘abandonados’ e ‘vadios’. Nessa lei, eram
contempladas as questões da higiene e da delinquência ao mesmo tempo em que era
estabelecida a vigilância pública sobre a infância, podendo ser retirado o pátrio poder. Assim,
“o juiz devia buscar a regeneração do menor”, segundo Faleiros e Faleiros (2007, p. 22).
No entanto, o Código de Menores, de acordo com Azevedo e Guerra (2000), previa em
seus artigos a criança em situação irregular com a lei, e as questões dos direitos não eram
contempladas, pois não eram reconhecidos. A criança dependia de um adulto para se defender,
portanto, quando esse adulto era um agressor, a criança ficaria totalmente vulnerável à
violência. O Estado era o único responsável pela criança em situação de risco social
7
, como é
conhecida hoje a criança marginalizada. Com a industrialização, muitas crianças precisavam
trabalhar e complementavam a renda familiar. Faleiros e Faleiros (2007) registram que os
industriais justificavam a exploração alegando que seria para evitar que ficassem nas ruas. Esses
industriais foram contra o Código de Menores que autorizava o trabalho a partir dos 12 anos, se
estivessem frequentando o ensino primário, ou a partir dos 14 anos. Foi nas décadas de 1930 e
1940 que surgiram as escolas de ensino profissional industrial e comercial autorizadas pelo
governo e controladas por empresários, com manutenção garantida por meio de descontos em
folha de pagamento. Todavia,
a promessa republicana de escola para todos foi um fracasso. A maioria da
população infantil não teve acesso ao ensino público ou privado,
principalmente os meninos e meninas da zona rural. (FALEIROS;
FALEIROS, 2007, p. 22).
Com o golpe de Estado, uma ditadura é implantada no país, e nesse período há a criação
do Serviço Nacional de Assistência aos Menores (SAM), vinculado ao Ministério da Justiça e
Negócios Interiores, o qual tinha uma atuação repressiva e de descaso com os internos, não
apresentando nenhuma ação educativa (FALEIROS; FALEIROS, 2007). Nessa época, foi
criado também o Departamento Nacional da Criança (DNCr), que lutou contra as criadeiras,
mulheres que cuidavam de crianças em condições precárias de recursos materiais e de higiene.
Esse serviço foi muito criticado, principalmente pela Igreja Católica que denunciava a violência
que as crianças sofriam, pois eram violentadas, surradas, torturadas e, em decorrência do

7
Os especialistas elencam diferentes características para descrever o que entendem por situação de risco. Parece
ser uma definição difícil, bastante relacionada a privações de ordens diversas ou a necessidades básicas não
atendidas. São citadas as baixas condições socioeconômicas, como pobreza, falta de saneamento básico,
desemprego, exclusão social, como elementos presentes na vida de crianças em situação de risco (LESCHER et
al., 2004).
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 56
péssimo estado das instalações, deixadas à míngua. Esses serviços funcionaram até o ano de
1964, sendo extintos após o golpe de Estado.
Durante o período de atuação dos serviços anteriormente descritos, também foram
ampliados convênios com instituições privadas para o atendimento de crianças e adolescentes
com pagamento de um valor mensal por criança atendida. “Esses convênios permitiram o
crescimento de grande número de obras sociais, embora, em sua maioria com a marca da
corrupção. As entidades falseavam o número de atendidos para receber mais dinheiro.”
(FALEIROS; FALEIROS, 2007, p. 23).
Com o golpe militar de 1964, que centralizou o poder no Congresso Nacional, a doutrina
a ser seguida foi a da segurança nacional e esta “[...] deu forma à organização política, à
pedagogia e à estrutura física da Funabem.” (FALEIROS; FALEIROS, 2007, p. 24). Essa
entidade foi criada com a extinção das instituições anteriores. A Fundação Nacional do Bem-
Estar do Menor era independente do Ministério da Justiça e possuía autonomia e propósitos,
dentre eles o de evitar a internação dos menores. Entretanto,
a política da Funabem não reduziu o processo de marginalização durante a
ditadura, acentuou-se a exclusão social, ou seja, a marginalização do menor
pela pobreza da família, pela exclusão da escola, pela necessidade do trabalho,
pela situação de rua, que não raramente, expõe os menores a toda sorte de
violência, tais como ações de grupos de extermínio. (FALEIROS;
FALEIROS, 2007, p. 24).
Um novo Código de Menores foi criado no ano de 1979; e Faleiros e Faleiros (2007)
avaliam que nessa nova lei a exclusão era concebida como uma doutrina da situação irregular,
sendo que esta era considerada uma patologia social, uma enfermidade. A pobreza era uma
doença, como também o eram as situações de maus-tratos, desvios de condutas, infração e falta
dos pais ou representantes legais. Nesse contexto,
o médico era o juiz, que, pelo Código tinha o poder de decidir quais eram os
interesses do menor nessa situação. O poder do juiz era enorme, mas ele agia
sobre os destinos das crianças fundamentalmente decidindo as questões
relacionadas a sua internação, colocação, adoção ou punição. O juiz era
também o vigia dos espetáculos e atos de ir e vir das crianças. A verificação da
situação irregular era policialesca (fosse feita por policiais ou não), e ao juiz
cabia pôr tudo em ordem. Enfim, no Código de 1979, os direitos da criança só
eram protegidos quando em situação de risco ou de ‘doença social’.
(FALEIROS; FALEIROS, 2007, p. 25).
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 57
Em contrapartida à doutrina da situação irregular, conforme registram Faleiros e
Faleiros (2007, p. 25), começa a se desenvolver um conjunto de ideias que reconheciam a
cidadania da criança. Essas ideias eram incentivadas pela Organização das Nações Unidas, que
prevê a proteção integral e concebe a criança como um ser em desenvolvimento, e também por
movimentos sociais de alguns setores do Estado, incluindo a própria Funabem; com isso, esses
movimentos levaram à Assembleia Constituinte de 1987 uma proposta “[...] que considerava a
criança, como sujeito de direitos.”
Somente ao final de século XX, ocorre um salto nas políticas públicas normativas e
legais sobre a infância, com a mudança de paradigma que contempla a proteção integral,
acompanhando os avanços dos conhecimentos científicos sobre a infância. De acordo com esses
autores, a doutrina da proteção integral formulou uma resposta à problemática à qual foi levada
a infância brasileira, conferindo assim um lugar de cidadania para as crianças e adolescentes no
Brasil, marcados por uma trajetória histórica de maus-tratos, violência, abandono e morte.
Dos pontos de vista culturais, histórico e econômico, principalmente, é que a infância e
sua relação com a família, escola e sociedade foram descritas nas três seções deste primeiro
capítulo, que teve por intenção fazer um acompanhamento histórico dos acontecimentos mais
marcantes e que influenciaram a formação das relações familiares, educativas e institucionais no
Brasil.
Tendo por base a hipótese de que a violência doméstica contra a criança está arraigada
no modelo da formação cultural brasileira, chega-se, do percurso histórico traçado, ao momento
atual, que é marcado pela promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente datado de 13
de julho de 1990 (BRASIL, 1990).
O Estatuto da Criança e do Adolescente foi uma conquista e um divisor de águas nas
políticas públicas da infância no Brasil, como poderá ser observado no próximo item.
1.4 O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Nas seções anteriores, foi possível observar a família e a escola como instituições
educativas, e foram descritas algumas políticas públicas voltadas à criança, as quais foram
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 58
instituídas no processo de construção sociocultural, culminando na Lei que orienta a criação,
promoção e controle das políticas de atendimento à criança na atualidade brasileira: o ECA.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é uma lei que foi promulgada em 1990 e
que mudou completamente a concepção legal da infância e da criança; “[...] embora isso não
queira dizer que a mentalidade do século XX ou XXI seja a da criança cidadã no mundo
ocidental ou que a maioria das crianças brasileiras está sendo respeitada em seus direitos
fundamentais.” (MÜLLER, 2007, p. 134). O princípio que rege esse estatuto
é de que a criança e o adolescente devem ter todos os direitos que os adultos
têm aplicáveis à sua idade, e, além disso, devem contar com direitos especiais
decorrentes da sua condição peculiar de desenvolvimento pessoal e social.
(CHILDHOOD, 2006, p. 11).
Revogando o Código dos Menores, os artigos presentes no ECA substituem a política de
repressão e assistencialismo, caminhando para a doutrina da proteção integral que já havia sido
referência para a Declaração dos Direitos da Criança, proposta pela ONU em 1959, e também
para a Convenção Internacional dos Direitos da Criança, datada de 1989 (CHILDHOOD, 2006).
Já nas disposições preliminares da lei, é tratada a proteção integral às crianças e
adolescentes. Dessa forma, o ECA preconiza os direitos fundamentais inerentes a pessoa
humana, sem prejuízo da proteção integral, assegurando as oportunidades e facilidades; e, no
conteúdo e processo de elaboração, reflete a democracia e garante a participação da sociedade
independente da condição social, para que todas as crianças brasileiras tenham garantidos os
seus diretos, conforme se observa nos artigos 1º, 2º e 3º (BRASIL, 1990).
O ECA assegura também os direitos referentes à vida, à alimentação, à educação, ao
esporte e ao lazer. Trata dos direitos fundamentais, que envolvem os atendimentos à saúde, as
políticas sociais, o desenvolvimento sadio e harmonioso, o atendimento pré-natal, o apoio
alimentar, o aleitamento materno, a identificação do recém-nascido, a certidão de nascimento, a
vacinação e o acompanhamento dos pais em caso de internação hospitalar. E ainda prevê, em
casos de confirmação de maus-tratos, a obrigatoriedade de comunicação aos Conselhos
Tutelares da localidade (BRASIL, 1990).
A perspectiva presente no Estatuto da Criança e do Adolescente, no art. 18, preconiza
que toda a sociedade é responsável pelo bem-estar das crianças. Portanto, “é dever de todos
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 59
velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento
desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.” (BRASIL, 1990).
O ECA, em seus artigos, garante à criança o direito de ensino na rede regular,
preconizando a obrigatoriedade dos pais em efetuarem a matrícula, e trata da obrigatoriedade
dos dirigentes de estabelecimento de ensino fundamental em comunicar ao Conselho Tutelar os
casos de faltas reiteradas e injustificadas de seus alunos, de evasão escolar ou de elevados níveis
de repetências. Como também prescreve as formas de regular e fiscalizar as entidades de
atendimento (BRASIL, 1990).
O Estatuto da Criança e do Adolescente está dividido em duas partes, sendo que na
primeira dispõe sobre as garantias dos direitos fundamentais e na segunda parte prescreve como
a sociedade deve se organizar para que possam valer os direitos previstos. Nesse sentido,
[...] dispõe como a descentralização político-administrativa, de que fala a
Constituição, será exigida pela cidadania (os Conselhos tutelares) e, por meio
dessa descentralização, como serão atendidos os direitos que forem ameaçados
ou violados. (CHILDHOOD, 2006 p. 11).
A Resolução n.º 75 de 22 de outubro de 2001, que foi elaborada para dispor sobre os
parâmetros de criação e funcionamento dos Conselhos Tutelares, previstos pelo ECA,
recomenda uma nova práxis para o século XXI, que intenta proteger meninos e meninas não
mais em sistemas para menores, mas “[...] no sistema multiparticipativo e aberto da cidadania
social.”
8
(BRASIL, 2001).
Demonstrando o processo histórico da sociedade, a formação da família, da criança, das
leis e costumes desenvolvidos nesse percurso, tem-se um quadro que remete às perguntas que
este trabalho quer responder: Por que acontece a violência doméstica contra a criança no
Brasil? A formação cultural do povo brasileiro contribui para a existência do problema e
dificuldade de seu enfrentamento?A escola é um lugar privilegiado da prevenção da violência
doméstica contra a criança?
Voltando para as situações que introduziram esta dissertação, têm-se a constatação de
que essa violência realmente acontece muito mais do que é divulgada, de que a omissão ocorre
e de que esse fenômeno parece invisível para muitas pessoas em muitas circunstâncias; e ainda
que a violência doméstica contra a criança se reflete na escola de muitas maneiras, pois

8
A parte citada consta no texto sobre as recomendações para elaboração das Leis Municipais de Criação dos
Conselhos Tutelares.
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 60
simboliza muito bem o sistema das relações sociais burguesas, impregnadas de sentimentos
dúbios, formadas tal qual o modelo imposto pelo sistema social que se mantém pela autoridade
e submissão:
Esse antagonismo que se manifesta na família desde os seus próprios alicerces,
reaparecerá sempre em cada um de seus aspectos mais importantes. Vimo-lo
afirmar-se a respeito do filho diante da autoridade paterna e, depois diante de
qualquer figura de autoridade, num movimento que reúne, indissoluvelmente,
elementos racionais e irracionais, a tal ponto que tornava difícil, como ainda
hoje torna, qualquer visão crítica, livre tanto da ideologia dominante como do
jogo inútil do utopismo abstrato. (HORKHEIMER; ADORNO, 1973, p. 139).
A escola, sendo um local em que as relações humanas acontecem entre sujeitos que
cumprem diferentes papéis impregnados dos valores acima apresentados e disseminados quase
sempre de forma irracional em um processo dinâmico e rápido, acaba reproduzindo o sistema
de força que reflete em seu território. Pois a criança de hoje é o adolescente de alguns anos mais
tarde e posteriormente será o adulto que assumirá papéis no âmbito das instituições sociais que
vão sendo reproduzidas nesse processo histórico-cultural.
Pensando a escola como um local de formação cultural, observada como responsável
por parte da reprodução de ideologias, e refletindo se a escola é o local de prevenção, vamos
iniciar a próxima seção deixando uma provocação. Se as professoras, assim como outros
agentes da escola, constatam em seu cotidiano profissional situações de violência doméstica
contra a criança, por que ocorre a omissão?
1.5 A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA REFLETINDO NA ESCOLA
Estudos têm apontado a escola como um fator de proteção da criança em situação de
risco. O próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, no capítulo IV, artigo 56, determina que
os dirigentes de estabelecimento de ensino fundamental comuniquem ao Conselho Tutelar os
casos de maus-tratos envolvendo seus alunos; faltas injustificadas e evasão escolar, quando
esgotados os recursos escolares; e elevados níveis de repetência (BRASIL, 1990).
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 61
A escola, como local de prevenção, tem sido cultuada principalmente nas décadas
posteriores ao ECA, uma vez que
o papel da escola e outras instituições educativas é fundamental na prevenção
do abuso sexual. Nas situações de abuso em que a família está envolvida de
alguma forma, muito provavelmente serão os professores ou educadores os
principais adultos que poderão proteger ou acolher a criança ou adolescente
que tenha sido abusado. (CHILDHOOD, 2006, p. 43).
No entanto, o Brasil é um país muito grande. Um caldeirão multicultural, em que
dificilmente com apenas uma categoria seria possível visualizar a totalidade de qualquer
fenômeno social. Ao que se refere à violência doméstica contra a criança e a essa característica
multicultural, Panúncio-Pinto (2006) identifica que, apesar da recente compreensão de que a
exposição ativa ou passiva a qualquer tipo de violência oferece riscos à saúde ter feito com que
a violência fosse reconhecida como problema de saúde pública pela Organização Mundial de
Saúde, “ainda assim, não obstante, as formas de intervir e a própria questão da notificação dos
casos constituem-se em polêmicas que vêm atrasando a estruturação das redes de atendimento.”
(PANÚNCIO-PINTO, 2006, p. 11).
É bastante desigual, no âmbito da diversidade brasileira e ao longo de seu território, o
conhecimento e a adesão aos artigos do Estatuto da Criança e do Adolescente. Portanto,
segundo Panúncio-Pinto (2006, p. 11), “todas essas questões resultam numa escassez de dados
sobre a incidência real da violência doméstica, além do que é possível inferir que a maioria das
estimativas reflete apenas os casos mais visíveis ou graves da violência familiar.”
A Constituição Brasileira, de 1988, no seu artigo 227, ressalta as responsabilidades do
Estado, sociedade e família com relação às crianças, as quais são proclamadas como um dever,
in verbis:
O Estado, a sociedade e a família têm o dever de assegurar os direitos das
crianças e dos adolescentes, e colocá-los a salvo de todas as formas de
negligência, discriminação, exploração, crueldade e opressão. (BRASIL,
1988).
Contudo, as famílias passam por mudanças estruturais que são derivadas de vários
fatores ligados também às tendências do mundo contemporâneo. Ou seja, essas transformações
sociais
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 62
sinalizam para uma progressiva diversidade das estruturações das famílias, que
se caracterizam como novos arranjos familiares, pois os modelos mais
tradicionais convivem com o entrecruzamento de outras ordenações. Esses
novos arranjos abrangem não somente as situações derivadas das condições
socioeconômicas, mas também as referentes às questões sócio-político-
culturais, que se instituem em novas formas de comunicações. (BARROS,
2005, p. 69).
O todo social marca as estruturas em que está inserida a família e cada vez mais essa
instituição vai perdendo suas características idealizadas no imaginário. As configurações
familiares, marcadas pela contemporaneidade, estabelecem relações dinâmicas com
características históricas, como já descritas.
A família nuclear, que envolve pai, mãe e filhos, acaba se entrelaçando com outros
agentes que surgem por sua relação consanguínea, afetiva e de parentesco. Com isso, acabam
inseridos sob o mesmo teto, por exemplo, avós, primos, sobrinhos, enteados, filhos adotivos,
entre outros.
A família monoparental é formada, principalmente, por mãe com filhos. Já a família
incompleta, onde falta um dos componentes básicos (comparada à família nuclear), é diferente
da família monoparental, pois um dos possíveis integrantes nunca existiu na relação
estabelecida. São famílias normalmente compostas por mães solteiras e seus filhos, como indica
Barros (2005).
As discussões acerca da maternidade/paternidade como escolha, advindas dos
resultados, entre outros, do avanço tecnológico e científico, são elementos da
contemporaneidade que subsistem ao imaginário coletivo idealizado e simbolizado pela família
nuclear, como aponta Carvalho (2002) ao debater sobre a família contemporânea, a qual
apresenta facetas e ambiguidades. Nesse contexto, para evitar “a naturalização da família
precisamos compreendê-la como grupo social cujos movimentos de organização-
desorganização-reorganização mantêm estreita relação com o contexto sociocultural.”
(CARVALHO, 2002, p. 15).
Nas famílias da sociedade brasileira atual, é visível que os arranjos familiares que foram
descritos e que prevaleciam nas camadas populares menos favorecidas, em todas as épocas
desde a colonização, ainda hoje existem como estratégias de sobrevivência. Entre esses
arranjos, tem-se aquele em que as mulheres são as únicas mantenedoras, situação que se
acentuou, segundo Barros (2005), sensivelmente nas últimas décadas, principalmente pela
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 63
chamada feminização da pobreza. Existem também outras formas de organização, que já estão
presentes há muito tempo nesta sociedade, que são advindas do “[...] estabelecimento de novas
e complexas relações; crescentes números de separações e divórcios; convivência entre os filhos
de diferentes uniões; entre outros.” (BARROS, 2005, p. 70).
Muitos estudos sobre a violência doméstica contra a criança, apoiados na lei já citada,
apontam a escola e outras instituições educativas como fundamentais na prevenção, como os
estudos de Childhood (2006), Faleiros e Faleiros (2007), Laboratório de Análise e Prevenção da
Violência (LAPREV) da Universidade Federal de São Carlos, entre outros.
Mas grande parte da sociedade e a escola ainda têm enraizadas as representações das
famílias, nos moldes tradicionais, não concebendo com tranquilidade os outros modelos, mesmo
que esses apareçam como maioria nas escolas públicas. Assim, no cotidiano escolar têm-se as
famílias concretas, e não idealizadas, que são contraditórias e “em cujo interior ocorrem
violência, afeto e rejeição, segundo os diversos arranjos e rearranjos que as constituem.”
(BARROS, 2005, p. 72).
Candau (2000), em seus registros sobre os direitos humanos, violência e cotidiano
escolar, aponta que no âmbito da educação existe muitas vezes uma grande distância entre a
cultura escolar e a cultura social de referência dos alunos e alunas. A sociedade, revestindo a
família de conteúdos simbólicos como os que já foram apresentados na seção anterior, converte
a família nuclear em modelo hegemônico, tomando-a como referencial e em ideal de ordenação
da vida doméstica, como aponta Romanele (2002). De modo geral, a escola carrega a
concepção de família idealizada, atrelando a ação e o sucesso no processo educativo ao trabalho
em parceria com a família ideal. “A tarefa de alfabetizar é da escola, mas, quando há
envolvimento da família, os resultados da aprendizagem tendem a ser melhores.” (SÃO
PAULO, 2009, p. 4). No entanto, um grande número de crianças não tem participação da
família em seu processo, sendo assim estigmatizada. “Ao ajudar seu filho, não se esqueça: a
gente tem que respeitar a fase que a criança está vivendo para não exigir demais, nem de
menos.” (SÃO PAULO, 2009, p. 6).
Trechos como os anteriormente citados, que foram extraídos de um manual endereçado
aos pais de alunos das séries iniciais do ensino fundamental, demonstram o modelo de família
idealizado e que se espera que todas as crianças tenham, sem considerar que a realidade da
família brasileira não condiz, em sua totalidade, com esse ideal. Nesse contexto, a professora,
marcada pela presença do espírito alienado e distante do significado de seu papel social,
formada para atuar com modelos de infâncias e famílias incutidos nos discursos ideológicos da
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 64
pseudoformação, absorve o valor de coisificação da infância atribuindo aos alunos crença em
sua capacidade, no mesmo grau em que esse aluno está de acordo ou não com os parâmetros
sociais e familiares dos discursos pedagógicos, midiáticos e impregnados no imaginário social,
inclusive daqueles que dessas práticas são as vítimas. Com isso, os resultados escolares são
esperados de acordo com esses conceitos ou preconceitos impressos na criança, família e escola,
que os tomam como verdades e negam a si próprias o desenvolvimento de suas reais
potencialidades. Mas, a escola é cobrada com relação aos resultados dos alunos e a criança que
não conta com uma família participativa para ajudá-la na tarefa escolar
9
representa o fracasso
da escola. A família e a escola agem em uma dinâmica social repleta de violência, em que as
crianças são quase sempre vítimas acompanhadas de outras vítimas e vitimizadores que trocam
de lugares de acordo com a circunstância.
Candau (2000) aponta que a escola, em sua prática, é muitas vezes fonte de violência
simbólica. A autora, sem generalizar, também chama a atenção para os casos em que a escola se
omite após ter constatado a violência doméstica a que seus alunos foram vítimas. E admite que
a violência familiar é uma questão muito presente nas manifestações de violência no universo
escolar, que essa realidade está mais presente do que se imagina e é fruto de muitas variáveis.
Relata que depoimentos como os que serão descritos a seguir, em diferentes versões, são muito
frequentes:
Um aluno chegou aqui marcado de pancadas; perguntei o que era e ele disse
que foi ao baile funk... Lá fizeram corredor polonês, onde se deve apanhar,
sem reclamar. A mãe foi chamada porque esse menino nem copiava o dever.
Comentamos, então, sobre as marcas, e ela disse: ele nem vai ao baile funk,
sou eu mesmo quem bate. (CANDAU, 2000, p. 147).
A visão de infância nos dias atuais foi bastante alterada. Os direitos são constantemente
invocados na mesma medida em que são negados. As famílias mudaram na forma de pensar a
vida, de produzir, de se organizar como instituição e de conceber valores. Se, no período
anterior, a família apresentava-se extremamente autoritária e repressiva, hoje ela possui uma
forma um pouco mais solta para lidar com seus membros, o que em princípio poderia
representar um ganho, se isso não tivesse relação direta com o mercado de produção ao qual a
criança era atrelada no passado, como força de trabalho, e que hoje tem a sua participação
melhor garantida na via contrária: no mercado de consumo.

9
Sobretudo para que esta alcance os índices de resultados estipulados pelo IDESP, PROVA BRASIL, IDEP e
outros.
A TRAJETÓRIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NA SOCIEDADE BRASILEIRA 65
Guerra (1984) por sua vez considera que, na família atual, a criança é descartada dos
circuitos de produção, sendo vista como improdutiva, mas que deve ser alimentada, por um lado
e por outro, como alguém que poderá em um futuro próximo exercer atividade remunerada para
garantir o sustento próprio e da família. É pensada em termos de natureza, ou seja, é alguém que
precisa ser disciplinado neste período da vida em que se encontra. Guerra (1984) registra que
“por mais que se diga que o destino do indivíduo está condicionado à sua natureza, percebe-se
que esta idéia está, de certa forma, camuflando a verdadeira relação da criança com o adulto e a
sociedade” (p. 53), e completa com a demonstração de que a criança é concebida levando-se em
conta o que poderia lhe acontecer caso não houvesse nenhum adulto por perto. A autoridade do
adulto sobre a criança é pensada também como natural para justificar, com isso, que ela é
naturalmente má, necessitando ser disciplinada. Em contrapartida, defende-se que a criança
deve receber amor e compreensão de seus pais. No entanto, estes nem sempre têm condições de
oferecer esses valores aos seus filhos, pois eles mesmos não o receberam. A criança, como
lembra Azevedo e Guerra (1984), é submetida à vontade dos adultos, da mesma forma que
esses adultos são submetidos aos papéis que a sociedade e a família lhes determinam.
66
2 A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA
CULTURA
As lendas, contos e histórias, que se manifestam na cultura brasileira, são formas de
narrativas da tradição oral trazidas pelo homem europeu, pelo negro e influenciadas pelos
nativos da terra. Em muitas dessas manifestações populares, é possível encontrar a presença da
violência de pais contra filhos. Observa-se que as formas de pensar, agir, disciplinar e de educar
as crianças e os adultos, que são transmitidas de gerações em gerações, mantêm um ranço.
Influenciadas pelo tempo e locais por onde passaram, desvelam indícios de que em diversas
épocas existiu a violência contra a criança impregnada na forma de relação e concepção da vida.
Apesar das transformações que ocorreram no decorrer dos séculos e do percurso das
civilizações, a sociedade ainda carrega o gérmen que denuncia a forma de resolver conflitos e
dificuldades por meio da violência, sobretudo no seio das famílias. Meihy (2002) lembra que as
sociedades ágrafas são ricas em depósitos de tradição oral, assim como as sociedades
dominadas, as quais acabam criando mecanismos, por meio de suas tradições, para se
adaptarem e sobreviverem aos grupos dominadores. O fragmento da lenda “Cobra Grande”,
muito conhecida na região da Amazônia, trata com naturalidade a violência da mãe contra os
filhos, que, segundo a lenda, seriam cobras e das quais a mãe teria que se livrar:
Conta à lenda que em numa tribo indígena da Amazônia, uma índia, grávida
da Boiúna (Cobra-grande, Sucuri), deu à luz a duas crianças gêmeas que na
verdade eram Cobras. Um menino, que recebeu o nome de Honorato ou
Nonato, e uma menina, chamada de Maria. Para ficar livre dos filhos, a mãe
jogou as duas crianças no rio. Lá no rio eles, como Cobras, se criaram.
Honorato era bom, mas sua irmã era muito perversa. Prejudicava os outros
animais e também às pessoas [...] (ARTE..., 2007).
Existem muitas versões dessa lenda e até mesmo casos populares, contados pelos povos
antigos, de cobras que engravidam mulheres causando total desgraça em suas vidas. A tradição
oral é aqui considerada para que se possa explicar o presente; nesse sentido, Meihy (2002, p.
152) sugere que “[...] a tradição oral necessita da retomada de aspectos transmitidos por outras
gerações, dá-se o empréstimo do patrimônio alheio, quase sempre herdado dos pais, avós e dos
mais velhos.”
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA CULTURA 67
Impressas na cultura dos povos, sejam como histórias infantis ou para adultos, essas
narrativas ao longo do tempo influenciam e são influenciadas pelas técnicas, artes, costumes de
cada época e naturalizadas no cotidiano das histórias de forma despretensiosa; sendo que, em
muitas delas, têm-se demonstrações da violência doméstica contra as crianças.
Alvarez (2006), em uma leitura semiótica dos contos de fadas e os valores neles
implícitos, demonstra que até os séculos XVII e XVIII os contos de fadas eram contados para
adultos e crianças na Europa durante o inverno, e costumavam ser a principal forma de
entretenimento das populações agrícolas. Muitos contos e lendas populares foram coletados na
Idade Média e foram adaptados por autores com intenções pedagógicas, que consideravam a
ingenuidade da mente popular equivalente à mente da criança.
Sendo a criança nessa época concebida como um adulto em miniatura, os
contos, coletados junto às fontes populares, serviam como um instrumento de
maturação da criança tornando-se didático e adaptados a partir do pensamento
ingênuo até o pensamento adulto; a partir do irracional para o racional.
(ALVAREZ, 2006, p. 17).
Também essas narrativas foram muito usadas intencionalmente como instrumentos para
impor disciplinamento, medo, constrangimento, ameaça e insegurança às massas, e para gerar
obediência provocada pela sensação de que, se não fossem boas (conforme as leis morais
impostas pelos grupos dominantes), coisas semelhantes e muito ruins poderiam acontecer.
Contudo, elementos que não se explicam racionalmente são mais eficazes para se observar a
violência contra a criança praticada pela família, pois esses elementos são aqueles que estão
naturalizados na cultura.
As memórias da infância de Graciliano Ramos trazem a narrativa de um momento de
descontração entre ele e sua mãe, o qual fazia desaparecer os 14 ou 15 anos que diferenciavam
as suas idades cronológicas. Nessas narrativas, Graciliano conta que essa diferença cronológica
ressurgia em alguns momentos, como quando ele perguntou a ela o que seria o inferno.
Diante desse questionamento, em síntese, ela responde que era um lugar onde os
demônios torturavam as pessoas péssimas, que vivam depois de mortas em fogueiras maiores
que as de São João. Duvidando da história da mãe, o menino pergunta se ela já estivera lá. A
mãe nega, num princípio de irritação, respondendo que aprendeu com os padres. O menino
pergunta se eles já estiveram lá. A mãe boquiaberta analisa-o assombrada. O jovem então
afirma: “Não há não. É conversa.” E a história é finalizada com o desfilamento de várias
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA CULTURA 68
chineladas. Diante dessa atitude da mãe, Graciliano afirma: “Não me convenci. Conservei-me
dócil, tentando acomodar-me às esquisitices alheias. Mas algumas vezes fui sincero,
idiotamente. E vieram-me chineladas e outros castigos oportunos.” (RAMOS, 1984, p. 81).
A família, que foi uma instituição que prevaleceu à queda do feudalismo e ascensão da
burguesia, como explicam Horkheimer e Adorno (1973), manteve-se diante do antagonismo
que, por um lado, instituía-se em um ordenamento social, que era determinado pelo sistema de
troca, racionalismo e individualismo dos homens em seu trabalho, e, por outro lado, diante dos
laços de sangue, do parentesco natural, ou seja, elementos irracionais coexistindo em um
sistema totalmente tomado pelo racionalismo.
Entretanto, a família, mesmo sendo uma instituição anterior ao sistema de procura e
oferta, que caracterizou a burguesia desde o seu início, atuou como instância do processo de
adaptação da sociedade, justamente devido a essa característica irracional que pode inculcar nos
homens as condições de assalariados, produtivos, separados do controle e meio de produção.
Nessa perspectiva, Horkheimer (1990) aponta que o modo de pensar burguês não reconhece os
valores dos bens materiais e espirituais, com que os homens se ocupam, como formas de
relações sociais, mas, como qualidades naturais dos objetos ou subtraídas deles, considerando a
autoridade como uma categoria fixa. A adaptação ao sistema de troca, a subordinação e o
conformismo são praticamente demonstrados na família com muito mais clareza do que em
qualquer outro lugar, pois na família a criança é obrigada a respeitar a força paterna numa
relação moral para aprender a lição. Portanto, a criança aprende por meio da relação burguesa
de autoridade. No conto da Cinderela pode-se observar tal situação:
Cinderela era uma moça muito bonita, boa, inteligente e triste. Os pais tinham
morrido e ela morava num castelo. A dona do castelo era uma mulher muito
má que tinha duas filhas: Anastácia e Genoveva. Borralheira, sozinha, fazia
todos os serviços do enorme, castelo (limpava, cozinhava, passava a roupa,
arrumava) e nada recebia em troca. Seus únicos amigos eram os ratinhos, os
pássaros, um cavalo e um gato [...] (PERRAULT, 2000).
Os contos de fadas
10
, que abordam a violência doméstica contra a criança, foram
escritos a partir de narrativas feitas nos encontros dos camponeses e proletários após a lida e
refletem, apesar da roupagem feudal em muitos casos, a consciência moral, a adaptação social e
a formação do homem para o cumprimento das tarefas do novo sistema burguês que emergiu do

10
Ficou assim conhecido após ter sido escrito por Andersen e outros.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA CULTURA 69
passado para o presente contemporâneo, para o qual a capacidade técnica e a eficiência são
fatores decisivos para os indivíduos. Dessa forma, os contos são ótimas ferramentas, a serviço
da burguesia, para persuadirem àqueles que não apreciam a prática da narrativa como nos
tempos medievais.
O mundo contemporâneo assistiu aos assassinatos de crianças da Alemanha nazista, que
em sua maioria eram envenenadas “[...] com fortes doses de drogas administradas em colheres,
como se fossem medicamentos. As crianças morriam dias depois e às vezes após semanas.”
(GUERRA, 1984, p. 23). Ironicamente, é o mesmo mundo que apresenta uma produção técnica
como nunca houve na história, mas, que não consegue se livrar da barbárie.
Benjamin (1995) percebe o paradoxo do estreitamento da mente humana, que só se
interessa por si própria quando age, mas que, ao mesmo tempo, é determinada em seus
comportamentos pelos instintos da massa que os tornam alienados. Assim, “[...] as relações
humanas mais próximas são atingidas por uma claridade penetrante, quase insuportável, na qual
mal conseguem resistir.” (BENJAMIN, 1994, p. 21).
Lá em cima do piano
Tem um copo de veneno
Quem bebeu morreu.
O culpado não fui eu!
11
Nesse contexto, a criança precisa receber amor e compreensão de seus pais, porém, a
pergunta que deve ser feita é se a família tem condições de oferecer afetos que ela mesma
carece. A criança vive em um mundo comandado por adultos e é submetida, assim como são
submetidos os seus membros e a família para os quais a sociedade especifica papéis; “[...] pois
uma vez que, por um lado, o dinheiro está de modo devastador, no centro de todos os interesses
vitais e, por outro é exatamente este o limite diante do qual quase toda relação humana
fracassa.” (BENJAMIN, 1994, p. 21). O autor acrescenta ainda que, dessa forma, desaparecem
do plano natural e ético a confiança irrefletida, o repouso e a saúde. Uma sociedade que, como
defende Fromm (1979), nos últimos cem anos do mundo ocidental, conseguiu criar uma riqueza
material maior do que a criada por qualquer outra sociedade da História da Humanidade, mas
que mata ou abandona as suas crianças, é uma sociedade que precisa ser repensada. Uma
situação de abandono e crueldade contra uma criança pode ser vista no seguinte exemplo:

11
Tradição oral.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA CULTURA 70
Há cinco meses, mais precisamente no dia 2 de maio, ele foi encontrado
próximo ao Setor de Chácaras do P Norte. Vagava sozinho, de pés descalços e
sem roupa. No pé esquerdo, um corte. Os cabelos compridos e desgrenhados.
Não havia ninguém perto daquele menino. Ele chorava. Tremia de fome e
sede. Aliás, sede e fome eram o que mais sentia. Até mais que medo. Agentes
da 19ª Delegacia de Polícia (Ceilândia) foram chamados. Recolheram o
menino sem história e sem passado. Levaram-no a um abrigo perto dali. A
direção da instituição comunicou imediatamente a chegada dele à Vara da
Infância e da Juventude (VIJ). Sem nome, logo lhe deram um. Chamaram-no
de Renato. O menino, que aparentava entre 2 e 3 anos de vida, ganhou uma
identidade. E marcaram com precisão a data da sua chegada: 2 de maio. Foto
de Renato foi divulgada no site do SOS Criança, no setor de desaparecidos.
Ninguém reclamou sua falta. Não havia queixa em nenhuma delegacia do DF.
Não havia ocorrência. E a conclusão: o menino não estava perdido. Havia sido
deliberadamente, abandonado. (ABREU, 2008).
Azevedo e Guerra (1995) apontam, em um estudo sobre a violência doméstica sexual
contra a criança, a cultura da violência presente na história de Perrault, “Pele de Asno”, que
atravessou séculos demonstrando com naturalidade a saga de uma princesa que fugia da
violência sexual imposta por seu pai, um rei muito poderoso:
Infelizmente, ele começou a notar que a infanta sua filha era não apenas
extraordinariamente bela, como sua beleza, sua inteligência e encanto
ultrapassavam de muito os da rainha sua mãe. Sua juventude, o suave frescor
de sua tez, despertou no rei um amor tão violento que ele não pode escondê-lo
da infanta e lhe declarou que havia decidido desposá-la, já que somente ela
podia livrá-lo do seu juramento. (AZEVEDO; GUERRA, 1988, p. 133).
As repetidas situações de violências na vida de uma criança fazem com que ela e a
sociedade naturalizem o abuso, considerando-o como parte de um cotidiano, aceito como algo
inevitável. A violência que percorreu o tempo e chegou aos dias atuais na tradição oral é a
violência incorporada nas estruturas da sociedade. A cultura demonstrada nas narrativas é
construída, disseminada e traduz identidades, valores, costumes, crenças e confusões de uma
sociedade, na qual o amor é reduzido e confundido com o objeto de amor; e, assim sendo, deixa
de ser uma atitude e uma orientação de caráter, que determinaria uma relação para com o
mundo e não para com um objeto apenas: “[...] Se uma pessoa ama apenas a uma outra pessoa e
é indiferente ao resto de seus semelhantes, seu amor não é amor, mas um afeto simbiótico, ou
um egoísmo ampliado. Contudo, a maioria crê que o amor é constituído pelo objeto e não pela
faculdade.” (FROMM, 1979, p. 71-72).
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA CULTURA 71
O autor exemplifica esse equívoco presente na sociedade, demonstrando simbolicamente
um aspirante a pintor que quer pintar, mas em vez de aprender a técnica apenas espera a paisagem
ideal.
Assim é o equívoco do amor na sociedade embrutecida. Espera-se encontrar o objeto
digno do amor, para se aprender a amar. Nesse caso, tanto o objeto como o amor tornam-se
valor de mercadorias e assumem o status de coisa.
Semelhante a essa forma equivocada de conceber o amor, tem-se o exemplo do pai que
ensina ao filho que, para se proteger das brincadeiras agressivas na escola, nas ruas e nas
circunstâncias da relação social, é preciso usar a agressão com os colegas para não ser agredido.
Essa é uma forma de disseminar a violência. É uma forma de amor alienado, que contribui para
a reprodução da violência na sociedade, na família, nas instituições e na cultura. No trecho a
seguir pode-se visualizar um exemplo claro de tal conduta:
O pai acompanha o filho a até a escola para reclamar com a diretora que um
colega de classe chutou a sua mochila. Não satisfeito com a conduta adotada
na escola de chamar ambos e conversar, tentando estabelecer uma relação de
respeito entre os dois, o pai diante da diretora e professara recomenda ao filho
da próxima vez, [...] fechar os punhos, mirar bem no nariz do colega e dar-lhe
um soco para sangrar, pois assim ele não vai fazer novamente.
12
A violência doméstica pode ocorrer de diversas formas e, em muitos casos, uma mesma
história é multifacetada, carregando em si vários tipos de violências domésticas, ou de
violências mais amplas.
Azevedo e Guerra (2000) apontam que o modelo predominante da família burguesa, a
qual vive em espaço privado, com a estrutura patriarcal do poder e com as dificuldades
socioeconômicas decorrentes das diversas crises mundiais e dos problemas contemporâneos,
favorece a violência doméstica contra a criança; como ilustrado no seguinte trecho:
[...] Deixo você levar quantos rabanetes quiser, mas com uma condição: irá me
dar a criança que sua mulher vai ter. Cuidarei dela como se fosse sua própria
mãe, e nada lhe faltará. O homem estava tão apavorado, que concordou. Pouco
tempo depois, o bebê nasceu. Era uma menina. A feiticeira surgiu no mesmo
instante, deu à criança o nome de Rapunzel e levou-a embora. Rapunzel
cresceu e se tomou a mais linda criança sob o sol. Quando fez doze anos, a
feiticeira trancou-a no alto de uma torre, no meio da floresta. A torre não

12
Situação vivenciada pela pesquisadora em uma das escolas da rede pública do estado de São Paulo.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA CULTURA 72
possuía nem escada, nem porta: apenas uma janelinha, no lugar mais alto.
Quando a velha desejava entrar, ficava embaixo da janela e gritava: –
Rapunzel, Rapunzel! Joga abaixo tuas tranças! [...] (IRMÃOS GRIMM,
2008a).
2.1 A CULTURA E OS TIPOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA
Não é objetivo deste estudo ter como foco específico um determinado tipo de violência
doméstica contra a criança, pois, por tudo o que foi exposto até o momento, a preocupação
central não é especificamente o tipo de violência em si, mas sim a ideologia que a alimenta.
Portanto, mesmo sabendo, por meio das demonstrações em diversos trabalhos científicos sobre
o tema, que existem elementos comportamentais, tanto das vítimas como dos agressores, que
são mais compatíveis com um tipo ou outro de violência, para esta pesquisa esse aspecto não é
relevante e, por isso, não será abordado.
Nesse sentido, a descrição que será realizada de cada tipo de violência tem o intuito de
conceituar e demonstrar a categoria cultural presente em todas as violências domésticas contra a
criança, independente de outros elementos peculiares que possam existir, e que de fato existem,
como apontam vários estudos específicos (AZEVEDO; GUERRA, 1988, 2000; BARROS,
2005; GABEL, 1998; GUERRA, 1984; PANÚNCIO-PINTO, 2006; entre outros).
2.1.1 VIOLÊNCIA FÍSICA
A literatura científica do final dos anos 80 enfatiza que a violência física contra a criança
é toda ação que causa dor física, desde um simples tapa até o espancamento, que pode levar à
morte. Qualquer punição corporal contra a criança e o adolescente, mesmo que mais leve, é
considerada violência física. Esse tipo de punição implica no conceito de dor e é uma porta
aberta para quadros de violências mais graves. No entanto, no Brasil, ainda é permitido
punições corporais de natureza leve às crianças.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA CULTURA 73
Azevedo e Guerra (2000) alegam que o fato de não haver uma definição clara para o
conceito de violência física e o silêncio sobre a punição corporal abrem um precedente para
aqueles que defendem o disciplinamento de crianças e adolescentes por meio de punição
corporal, que vai do psicotapa a atos de extrema violência.
Essas preocupações das autoras se justificam e se materializam no ato que chocou a
sociedade, o de uma vítima de 12 anos, L., que, em Goiânia, Região Centro-Oeste do Brasil,
sofreu por sua tutora os mais terríveis atos de crueldade. A menina apresentava “[...] marcas de
ferro quente na pele e necrose embaixo das unhas e mãos, entre outros ferimentos.”
(TEIXEIRA, 2008, p. 91).
Barros (2005) descreve a violência física, denominando-a como abuso físico, e alerta
que existem formas desse mesmo tipo de violência que, por acontecer geralmente com crianças
muito pequenas, podem levar à morte, a paralisias e a cegueiras, sem que se tenha constatado a
violência doméstica. Entre essas formas de violência física, têm-se:
Criança sacudida – Forma corrente de abuso em crianças pequenas – a
maioria tem menos de nove meses de idade. Em geral, os “sacudidores” são
homens. [...] há evidências de que aproximadamente 1/3 das crianças
sacudidas fortementes morre e de que a maioria dos demais sobrevive com
retardamento mental, paralisia cerebral e cegueira.
Criança espancada – Termo geralmente empregado para crianças que
apresentam lesões repetidas e muito graves na pele, no sistema esquelético e
no sistema nervoso. [...] pode estar entrelaçada à violencia sexual, psicológica,
simbólica, verbal, negligência, entre outras, e envolve diversos agentes.
(BARROS, 2005, p. 53).
2.1.2 VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA
Segundo Azevedo e Guerra (1995), são também designadas como tortura psicológica, e
ocorrem quando o adulto constantemente deprecia a criança e bloqueia seus esforços de
autoaceitação, causando-lhe grande sofrimento mental. Ameaças de abandono também podem
tornar uma criança medrosa e ansiosa, representando formas de sofrimento psicológico. As
expressões ‘rejeitar’, ‘isolar’, ‘depreciar’, ‘aterrorizar’, ‘agredir verbalmente’, ‘impor exigências
exageradas’ e ‘interferir negativamente’ também desencadeiam sentimentos negativos à
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA CULTURA 74
autoimagem ou mesmos induzem a comportamentos destrutivos (CHILDHOOD, 2006). A
violência psicológica é uma das violências domésticas mais difíceis de serem detectadas, uma
vez que pode viver camuflada a outros ideais no seio de uma família. Situações essas que se
encontram ilustradas no trecho a seguir:
Era uma vez um lenhador e uma lenhadora que tinham sete filhos, todos
homens. O mais velho tinha apenas dez anos e o caçula, sete. É espantoso que
houvesse nascido tantos filhos em tão pouco tempo; mas é que a mulher não
perdia tempo e fazia pelo menos dois de cada vez. Eles eram muito pobres e
seus sete filhos pesavam-lhes demais, pois nenhum ainda era capaz de ganhar
a vida. O que os entristecia mais ainda é que o caçula era muito fraquinho e
não falava uma só palavra: eles interpretavam como estupidez o que era marca
da bondade de sua alma. Pequeninho, quando veio ao mundo era do tamanho
do dedo polegar. Por isso chamaram-no de Pequeno Polegar. Esse pobre
menino era o saco de pancadas da casa, e sempre o culpavam de tudo.
(PERRAULT, 2008, p. 9).
2.1.3 NEGLIGÊNCIA
É caracterizada quando a criança é privada de suas necessidades básicas e vitais, físicas
e emocionais. Quando a criança não recebe uma alimentação adequada, cuidados de higiene e
proteção contra intempéries (calor, frio, chuva e situações que possam colocar em risco sua
saúde ou vida). Segundo Barros (2005), a negligência pode ser considerada como a omissão de
pais e responsáveis em prover as necessidades físicas e emocionais de uma criança ou
adolescente. Esse tipo de violência é percebido por meio de faltas constantes às aulas, de roupas
rasgadas e sujas, falta de higiene, infestações de piolhos e lêndeas, e abandono intelectual, além
de outros sinais. Recaem principalmente nas camadas mais pobres da sociedade, as concepções
discriminatórias que associam a negligência à pobreza. Contudo, as próprias famílias que vivem
em situação de miséria, pobreza e de vulnerabilidade sofrem negligência. Tal situação “é
duplamente perversa, pois a negligência social, por si só, constitui uma grave questão social”
(BARROS, 2005, p. 56), ou seja, a própria
[...] situação de pobreza e miséria em que vive um enorme número de famílias,
a partir da qual muitas vezes decorrem privações como as citadas,
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA CULTURA 75
independentemente da ação de pais ou responsáveis pela criança ou
adolescente. (CHILDHOOD, 2006, p. 16).
O abandono à criança, no Brasil contemporâneo, é diariamente noticiado:
24/10/2006
‘Homem encontra criança abandonada perto de cemitério em SP’
Um menino de aproximadamente 2 anos de idade foi encontrado abandonado
nas proximidades do cemitério Ariston, em Carapicuíba (Grande São Paulo),
na madrugada desta terça-feira. Ele foi achado usando apenas uma camiseta.
(FOLHA ONLINE, 2006).
10/12/2007
‘Criança abandonada em São Paulo realiza exames e passa bem’
Passa bem a recém-nascida que foi abandonada na escadaria de uma igreja na
zona leste de São Paulo, na noite do domingo (9). Levada ao Hospital Infantil
Cândido Fontoura, na Água Rasa, ela passou por exames e se alimenta
normalmente, segundo a Secretaria Estadual da Saúde, que administra a
unidade. (FOLHA ONLINE, 2007).
16/09/2008
‘Mãe de criança abandonada em posto de gasolina é encontrada’
Bebê de 1 ano e 8 meses foi encontrado na madrugada de domingo.
Mãe é moradora de rua; criança foi para um abrigo. (GLOBO.COM, 2008).
23/03/2008
‘Criança é abandonada em Ribeirão das Neves (MG)’
Uma criança foi encontrada abandonada neste sábado (22) por moradores do
bairro Lagoa, em Ribeirão das Neves (MG), na região metropolitana de Belo
Horizonte. O menino, de cerca de um ano, estava com uma mochila com
roupas, sapato, fraldas e brinquedo, além da certidão de nascimento.
(JORNAL PORTAL DO MARANHÃO, 2008).
Barros (2005) aponta que o abandono efetivo ocorre como ponto de culminância de
outras sequências de abandonos, que podem ter aspectos ligados a questões financeiras e outros
ligados a vínculos afetivos frágeis com a criança; como exemplificado na notícia do Correio da
Manhã, jornal português:
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA CULTURA 76
13 Março 2009
‘Acusado de homicídio por negligência. Pai de bebé que morreu no carro
constituído arguido’
O pai do bebé nove meses que foi encontrado ontem já sem vida no interior de
um automóvel estacionado num parque de estacionamento de Aveiro, foi esta
sexta-feira constituído arguido sendo-lhe imputada ‘a presumível autoria de
um crime de homicídio na forma negligente’, revelou uma fonte da Polícia
Judiciária de Aveiro. De acordo com uma fonte do Comando de Operações de
Socorro (CDOS) de Aveiro, o alerta foi dado pelas 13h19 de quinta-feira,
tendo sido enviada uma Viatura Médica de Emergência e Reanimação
(VMER) para o local. Contudo, o bebé já estava morto, pelo que o seu corpo
foi levado pelos Bombeiros para a delegação do Instituto de Medicina Legal
de Aveiro. João Carlos Moreira, de 29 anos, pai da criança, programador
informático de profissão, dirigiu-se ao seu local de emprego, situado perto do
infantário, com a convicção de ter deixado lá o bebé, mas a criança acabou por
sucumbir depois de ter ficado três horas ao sol dentro da viatura. O alerta para
o ocorrido foi dado por um familiar que estranhou a ausência do bebé no
infantário e levou o progenitor a regressar ao carro, onde encontrou o seu filho
já inanimado. (CORREIO DA MANHÃ, 2009).
Entre os pais violentos pode ocorrer um consumo elevado de drogas, de álcool e a
presença significativa de desordens severas de personalidade, como pode ser observado na
seguinte notícia:
18/09/2005
‘Mãe mata filho de 6 anos com paralelepípedo e facadas’
Uma mulher de 44 anos assassinou o filho de seis anos com golpes de
paralelepípedo no rosto e 15 facadas, às 17h30 de anteontem, em Ferraz de
Vasconcelos (Grande SP). Moradores tentaram linchá-la, mas foram
impedidos pela PM. Minutos antes do crime, segundo o professor Alan
Robson Vieira, vizinho da acusada, o garoto fazia diversos pedidos à mãe, que
respondia com gritos. Em seguida, ela teria pego um paralelepípedo e atingido
o rosto da vítima. Como o golpe foi insuficiente para matar a criança, que
gritava muito, ainda de acordo com Vieira, a mãe usou uma faca de 22 cm
contra o filho. A polícia confirmou a versão. O filho mais velho da dona-de-
casa, de 20 anos, foi quem acionou os policiais, que encontraram o corpo no
quarto, de bruços. A mãe estava na cozinha fumando. Sobre os motivos do
crime, a mulher teria dito à polícia que o menino ‘enchia muito o saco’.
Segundo os vizinhos, a mulher já havia passado por tratamento psiquiátrico.
(AGORA, 2005).
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA CULTURA 77
Um estudo quantitativo feito na França conclui que a criança negligenciada tem mais
chances de sofrer abusos ou violências sexuais na família. Esse mesmo estudo apresenta a
constatação de Bouhet, Perard e Zoeman (1997) de que
[...] o alvo preferido dos autores de abusos são crianças deixadas por sua
própria conta, pouco vigiadas e, ou que apresentam carências emocionais e
afetivas e são, por isso, mais vulneráveis a envolver-se em um complexo jogo
de interação entre as necessidades afetivas às vezes sedutoras da criança e as
pulsões e desejos do autor do abuso sexual. (p. 41).
2.1.4 VIOLÊNCIA SEXUAL
É caracterizada por todo ato ou jogo sexual, relação heterossexual ou homossexual entre
um ou mais adultos e uma criança menor de 18 anos, tendo por finalidade estimular
sexualmente a criança ou utilizá-la para obter uma estimulação sexual sobre sua pessoa ou de
outra pessoa. Entretanto, trata-se aqui de vitimização sexual doméstica, daí a necessidade de
substituição, na definição acima, da expressão ‘adultos’, por ser genérica, por ‘pais biológicos’
ou ‘por afinidades’, ‘responsáveis’, ‘tutores’, ‘parentes’, ‘irmãos’, ‘avós’, ‘tios’, ‘primos’,
conforme alertam Azevedo e Guerra (1995).
De acordo com Vinícius Marçal, foi realizado exame de DNA que comprovou
que o bebê era filho do agressor. O promotor destaca ainda que a violência
teria acontecido em pelo menos duas ocasiões (não foi divulgado quando nem
como). A menor mora em fazenda afastada da cidade com o pai, a mãe, a avó
materna e outros irmãos (os nomes não foram divulgados). Segundo a polícia,
a menina passava por problemas. Ela foi levada ao psicólogo, e lá resolveu
contar o que tinha acontecido. O profissional relatou o caso ao Conselho
Tutelar daquela cidade, que, por sua vez, denunciou à polícia. A adolescente
relatou à polícia que o pai tinha ciúmes dela, e que era ameaçada e agredida
com freqüência. Como teve medo de apanhar do pai, ficou receosa de contar
aos familiares. Em depoimento à polícia, a jovem comentou que ‘achava que o
ato do pai era normal e um carinho de pai para filha’. A mãe da adolescente
disse à polícia que o lavrador sempre foi um pai amoroso e atencioso, e que
‘seu único erro foi esse’. A sogra do lavrador também confirma a mesma
versão, inclusive a própria menor. Fontes da polícia revelam que a família vive
junto: o pai, a filha, a criança (fruto do estupro), a mãe da garota e a sogra do
lavrador. Inclusive comentam que o pai tem um carinho muito grande pela
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA CULTURA 78
filha e pela criança. O inquérito foi encerrado e na próxima semana, de acordo
com Vinícius Marçal, começa a instrução judicial do processo. Serão
apresentadas e interrogadas as testemunhas de defesa e as de acusação. O
promotor informa que o lavrador responde por crime hediondo (de grande
indignação moral). A pena por estupro é de seis a dez anos de reclusão. Mas
que será aumentada pelo fato de ele ser pai da vítima e a garota, menor de 14
anos. (ROCHA, 2006).
Por se tratar de violência doméstica, permite-se classificá-la como incestuosa,
entendendo por incesto toda relação praticada por pessoas que a lei e/ou os costumes proíbem
casar-se.
Atos de violência sexual têm uma gama muito ampla e podem ocorrer com, ou sem,
contatos físicos, com, ou sem, uso de força física, e podem ser hetero ou homossexual. Para o
promotor da Infância e Juventude de Araçatuba Lindson Gimenes de Almeida, os responsáveis
por abusos sexuais contra crianças e adolescentes se portam como lobos em pele de cordeiro,
como pode ser visto a seguir:
A comparação é inevitável. ‘Eles se misturam às ovelhinhas, fingem cuidar
delas’, diz. Por trás desse comportamento, esconde-se o verdadeiro algoz: em
geral, o abuso sexual é praticado por alguém que a criança conhece, confia e
ama, e que faz parte de seu convívio. No papel de cordeiro, a vítima, muitas
vezes, torna-se uma abusada passiva porque não encontra em ninguém do
convívio familiar o apoio e a acolhida para falar sobre o caso e denunciar.
Quando o abuso é descoberto, a Justiça não é austera e o lobo consegue que
seu lado cordeiro se imponha para a opinião pública, perpetuando o círculo da
impunidade. (MIRACELLY, 2006).
Quanto à situação da impunidade, Azevedo e Guerra (1988) registram que o emprego de
manobras que intimidam as vítimas tem ocorrido em muitos casos não denunciados, o que
dificulta o conhecimento de sua amplitude e a implementação de medidas que visem ao seu
combate. Ocorrem ameaças de morte da própria vítima ou de pessoas da família, como a mãe
ou os irmãos. Por acontecer por alguém que possui certo poder sobre a vítima, de quem quase
sempre ela depende material e emocionalmente, as ameaças acabam surtindo o efeito que o
agressor ou a agressora esperam – o silêncio. Dessa forma, a violência sexual interfere de forma
danosa e perigosa “[...] nos afetos, sensações, na auto-imagem nos relacionamentos e
possibilidades de felicidades futuras.” (CHILDHOOD, 2006, p. 19).
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA CULTURA 79
No âmbito da saúde, são muitos os estudos que apontam que as vítimas desse tipo de
violência correm o risco de apresentarem psicopatologias graves, como é apontado por Gabel
(1998).
A criança brasileira no cenário contemporâneo vive uma situação que é grave. Crianças
de norte a sul do país são exploradas em situações que degradam a saúde e a dignidade.
Dimenstein (1995, p. 33) denuncia a situação de crianças no Brasil, ao advertir que “[...] um
menino de rua é mais do que um ser descalço, magro, ameaçador e mal vestido [...]”, e conclui
que a cidadania ainda não saiu do papel.
Azevedo e Guerra (1989) defendem que a infância necessita ser redescoberta com suas
reais necessidades e incorporada às conquistas da humanidade, dando um novo sentido à
relação adulto/criança que só poderia nascer de um reencontro entre duas autoridades, ainda que
elas fossem diferentes e não estivessem no mesmo plano.
Em “Meninas da Noite”, Dimenstein (1999) retrata a exploração sexual de crianças em
todas as regiões do Brasil, alertando que a exploração muitas vezes acontece com
consentimento da família, que faz da infância uma mercadoria. Essas mesmas crianças (quando
adultas) tendem a disseminar a prática do abuso, corrupção e vantagens do mais forte sobre o
mais fraco para as novas gerações.
Esse círculo de desagregação está estruturado no modelo social que nega a infância e a
cidadania às crianças há séculos. Com isso, “a pobreza vai tornando natural a promiscuidade.
Cenas como comércio de filhas pela mãe, abortos com agulhas, deixam de provocar espanto ou
indignação.” (DIMENSTEIN, 1999, p. 32).
As estruturas econômicas e sociais injustas e desiguais são uma experiência de agressão
a que são submetidas as famílias, que as reproduzem aos seus membros; “[...] pois implica
necessariamente a violação em alguns direitos básicos que lhes são assegurados no ECA.”
(CHILDHOOD, 2006, p. 15). Candau (2000) demonstra que os mais fortes, sejam os mais
velhos ou as autoridades (escola, familiares, policiais), embora não considerem os mais jovens
respeitosamente, exigem tal respeito de forma incondicional dos mais novos:
Em épocas remotas, a filha de um poderoso tuxaua apareceu grávida. Quis ele
punir o autor da desonra de sua filha e para isto empregou rogos, ameaças e
castigos. Tudo foi em vão, a filha dizia que nunca se ligara a homem algum. O
chefe tinha deliberado matá-la quando lhe apareceu em sonho um homem
branco que disse para não matá-la, pois ela era inocente. Passado o tempo da
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA CULTURA 80
gestação, deu ela a luz a uma menina lindíssima e branca, causando isto tanta
surpresa que todas as tribos vizinhas vinham vê-la. Deram-lhe o nome de
Maní e ela andou e falou precocemente. Passando um ano morreu a menina
sem ter adoecido nem dado mostras de dor. Enterraram-na na própria casa,
segundo o costume do povo, descobriram a casa e regaram a sepultura. Algum
tempo depois brotou da cova uma planta desconhecida, por isso não a
arrancaram. Cresceu, floresceu e deu frutos. Os pássaros que comeram os
frutos se embriagaram e este fenômeno estranho aumentou-lhes a superstição
pela planta. A terra fendeu-se afinal; cavaram-na e julgaram reconhecer no
fruto que encontraram o corpo de Mani. Comeram-no e assim aprenderam a
usá-lo. O fruto recebeu o nome de Mani-oka que significa casa de Mani. Que é
a nossa Mandioca de hoje. (A LENDA..., 2009).
A violência doméstica (há autores que a denomina de maus-tratos) coexiste com a lei
que a proíbe, o que é visível por ser a mais notificada nos serviços de saúde e atenção à infância
e adolescência, mesmo sendo difícil de nomeá-la e identificá-la (CHILDHOOD, 2006).
Há uma estreita relação entre a violência doméstica e as crianças que vivem em situação
de abandono nas ruas (CHILDHOOD, 2006), pois essas crianças fogem de casa em decorrência
desse tipo de violência. Essa informação também é confirmada pelas notícias que são
veiculadas nas mídias impressas e eletrônicas. Algumas dessas notícias tornam-se ícones que
retratam a situação da criança na sociedade brasileira contemporânea:
Dois dias antes de terem sido assassinados, João Vitor e Igor Giovani foram
levados à Delegacia por estarem andando pela Estância, em busca da mãe
biológica. Segundo o boletim de ocorrência, registrado em 3 de setembro, os
irmãos foram vistos por uma ronda da guarda municipal andando pelas ruas de
Ribeirão Pires e, quando abordados, teriam contado aos guardas que estavam
procurando a mãe que estaria morando na cidade de Suzano. Ao serem
perguntados o porquê, falaram aos guardas que foram expulsos de casa pelo
pai e que a madrasta teria dado dinheiro para que eles fossem até a mãe, mas
que não tinham o endereço. [...] Os garotos possuem várias passagens pelo
Conselho Tutelar; todas as ocorrências por maus-tratos e abandono.
(FOLHA..., 2008).
Também quando da ocorrência de violência doméstica sexual, muitos são os casos que
“[...] indicam que muitas das meninas exploradas sexualmente por meio da prostituição nas ruas
foram anteriormente abusadas em casa.” (VASCONCELOS, 1992 apud CHILDHOOD, 2006,
p. 15). Portanto, “os abusos sexuais em crianças não podem ser isolados das sevícias e
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA CULTURA 81
negligencias das quais elas são vítimas. Tudo leva a crer que existe, igualmente nesse domínio,
uma lógica de reprodução.” (BOUHET; PERARD; ZOEMAN, 1997, p. 42).
2.1.5 VIOLÊNCIA FATAL
É praticada no seio da família contra filhos ou filhas, crianças e/ou adolescentes, cuja
consequência acaba sendo a morte destes. Essa violência tem sido denominada,
impropriamente, de infanticídio (quando a vítima é um bebê em suas primeiras horas de vida),
assassinato infantil (homicídio de crianças no lar ou fora dele), ou filicídio (morte dos filhos
praticada por pais consanguíneos ou por afinidade).
A impropriedade desses termos decorre do fato de serem parciais, não cobrindo todo o
espectro de vítimas e/ou agressores; e genéricos, misturando, por vezes, sob uma mesma
rubrica, mortes ocorridas dentro e fora da família, ou ainda, conceituações médicas com outras
de caráter legal, camuflando dores da violência subjacente às ações ou omissões fatais
praticadas em família.
Como já mencionado, a violência denunciada constitui apenas a ponta do iceberg de
violências domésticas cometidas contra crianças e adolescentes em qualquer sociedade. O
complô do silêncio é um fenômeno no qual muitas vezes participam os profissionais, os
vizinhos, os parentes, familiares e até a própria vítima:
Sua inveja e seus ciúmes desenvolviam-se qual erva daninha, não lhe dando
mais sossego, nem de dia, nem de noite./Enfim, já não podendo mais, mandou
chamar um caçador e disse-lhe: - Leva essa menina para a floresta, não quero
mais tornar a vê-la; leva-a como puderes para a floresta, onde tens de matá-la;
traze-me, porém, o coração e o fígado como prova de sua morte. (IRMÃOS
GRIMM, 2008b).
Toda relação social é também uma relação de poder, que pode ser exercida sob forma de
dominação e subordinação. A teoria crítica se compromete com aqueles que na relação social
ocupam o lado dos oprimidos. O propósito dessa teoria é a emancipação do sujeito, por meio do
esclarecimento que o torna consciente das coerções ocultas a que está subordinado. As crianças
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA CULTURA 82
estão na base da pirâmide social desse mundo de adultos que é dominado pela relação de troca,
na qual os princípios humanos se tornaram mercadorias, portanto coisas.
2.2 CULTURA E INFÂNCIA
A grande capacidade produtiva da sociedade contemporânea gera no indivíduo a
necessidade de consumir, o brinquedo substituiu a brincadeira e a boneca principesca quebrada
dificilmente passará a ser outra personagem e parte de uma significativa narrativa, como
descreve Benjamin (1994); isso porque o brinquedo tem a perspectiva do adulto no caos
capitalista, como aponta o mesmo autor. O mercado insaciável não se satisfaz no mundo dos
adultos e por isso se enraíza no mundo das crianças. Rouba-lhes a liberdade da infância. As
brincadeiras do passado, em que grupos de crianças se reuniam nos espaços públicos, tornam-se
escassas e essas reuniões são limitadas cada vez mais pela violência social. A criança está, a
cada dia, mais institucionalizada.
O brinquedo torna-se um fetiche e, como outros produtos de consumo, necessita ser
consumido e substituído. É o princípio que rege um mundo em que a técnica e a ciência
tornaram a capacidade de produzir muito maior do que a capacidade do humano de digerir
tantos produtos, tornando o homem, empenhado nesse processo de produção, escravizado na
fábrica.
Os pais sem liberdade são enredados nas malhas desse sistema, que impõe a produção e
o consumo. Por meio das brincadeiras desenvolve as potencialidades que necessitará para as
suas relações mais tardias. Enredados nessas malhas, estes pequenos vão, desde cedo,
reproduzindo os ideais do mundo capitalista adultocêntrico.
O mercado produz coisas para substituir a ternura. A criança é vítima da sociedade
produtiva e a ela curva-se se engendrando no caminho da pseudoformação, que constrói para ela
a pseudoinfância.
O mercado que compreende
13
o impasse das classes sociais não exclui de seu domínio
os meninos e as meninas pobres. No início da época burguesa, como afirma Marcuse (2001), o
indivíduo que se apresentava como sujeito da práxis se converteu, pela nova formação da frente

13
Indica o abismo entre a civilização material e a cultura espiritual, entre a liberdade e necessidade que Marcuse
(2001) aponta.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA CULTURA 83
social, em portador de uma nova exigência de felicidade, a qual a produção capitalista
preencheu com cada vez mais objetos de satisfação, transformando a liberdade em produto.
Desse modo,
a validade universal da mesma seria imediatamente suprimida, uma vez que na
produção capitalista a igualdade abstrata dos indivíduos se realiza como
desigualdade concreta: só uma pequena parte dos homens dispõe do poder de
compra necessário para adquirir as mercadorias exigidas para assegurar sua
felicidade. (MARCUSE, 2001, p. 19).
Os brinquedos originais e os brinquedos falsificados são fabricados no mundo
adultocêntrico para garantir o consumo do brinquedo e a extinção da brincadeira. Esta última,
que seria a materialização da liberdade da criança transformada em pseudoliberdade, converte a
infância em fetiche.
A criança na sociedade representa a forma simbólica da base piramidal do poder
econômico da força bruta, da liberdade de agir. Recai sobre ela uma total dependência do
mundo que não foi construído para crianças.
A sociedade privilegia o progresso técnico em detrimento do humano, em um
movimento sem sentido. De acordo com Marcuse (2001, p. 100), a elevação do progresso do
humano consistiria no “[...] desaparecimento da escravidão, do arbítrio, da opressão e do
sofrimento.”
Nessa relação de progresso e tempo é excluída a criança, que para o mundo capitalista
não representa um valor no aspecto perverso da relação de troca, que movimenta o maquinário
do capital, senão pela exploração da força de trabalho (exploração do trabalho infantil), pela
exploração de seu corpo (exploração sexual de crianças) e pela exploração de sua inocência.
A família, como lugar de formação do indivíduo, aprisionada nas telas da
pseudoformação e vítima do mesmo processo, se encarrega de garantir a adaptação de seus
membros ao mundo administrado. A cultura, a educação, a moral e a religião escondem indícios
de violência e de aceitação da violência como forma de solução de problemas.
Quando no Brasil havia a escravidão, um fazendeiro que tinha em sua fazenda
escravos negros de várias idades, inclusive crianças, num dia de inverno
rigoroso mandou um menino cuidar seus cavalos. Quando o menino voltou
com os cavalos o fazendeiro percebeu que faltava um cavalo baio. Como
castigo chicoteou o menino até sangrar e o mandou procurar o cavalo. Ao
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA CULTURA 84
retornar à fazenda, o menino encontrou o fazendeiro ainda mais irritado, como
não encontrara o cavalo, este resolveu castiga-lo amarrando-o em cima de um
formigueiro. No dia seguinte o fazendeiro retornou ao local e viu o menino de
pé, sem nenhuma marca de chicotada, nem mordida de formigas, ao lado dele
a Virgem Maria e próximo a eles o cavalo baio. O fazendeiro se ajoelhou
pedindo perdão. O menino nada respondeu, beijou as mãos da Nossa Senhora,
montou no cavalo baio e partiu a galope.
14
Del Priore (2005), em um levantamento histórico sobre as crianças brasileiras, alerta que
a historiografia internacional pode servir de inspiração, mas não deve ser uma bússola, na
medida em que cada comunidade possui suas particularidades que devem ser consideradas para
seu estudo. Horkheimer e Adorno (1973), por sua vez, em “Estudos da Comunidade”, ressaltam
que os estudos elaborados sobre diferentes comunidades podem servir como uma contribuição
genérica, porém jamais um modelo observado em determinada sociedade pode explicar a
totalidade.
A partir desses alertas, no capítulo 1, foram descritos vários momentos e fatos que se
constituíram em elementos importantes na formação da sociedade. Dessa forma, perpassou-se
por vários episódios da sociedade europeia até culminar na sociedade brasileira, nas instituições
educativas. Dos casos apresentados na mídia, dos registros da tradição oral e da historiografia
foram extraídos os elementos ideológicos e culturais que auxiliaram na busca de categorias, e
que mais adiante serão analisados a partir das narrativas das colaboradoras.
A infância como parte da história de cada um e a infância como categoria social são
elementos distintos. Tal distinção é significativa, pois nem sempre na sociedade a criança tem
ou teve infância. Também a noção de infância
15
sempre sofreu variações conforme a época e o
lugar social em que as crianças estavam inseridas.
O significado de ser criança é e foi diferente nas diferentes culturas. Em sociedades
marcadas pela desigualdade, as crianças desempenham papéis conforme os preceitos e o
contexto sociocultural desta sociedade. A lei brasileira determina que a criança tenha prioridade
em qualquer circunstância, mas a realidade demonstra que o poder de domínio do mais forte é
uma prática presente que permeia as relações do adulto com a criança. O domínio do pai,
conforme apontam Horkheimer e Adorno (1973), ultrapassa as fronteiras do lar e está presente
em todas as instituições, inclusive na escola.

14
Conto de tradição oral “O negrinho Pastoreio”.
15
Em muitos casos o termo ‘infância’ é utilizado em um sentido que denota um estado natural, ligado à fraqueza e à
dependência, e não como uma categoria social que ocorre no momento do desenvolvimento do indivíduo criança
em suas relações sociais, como aqui abordado.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA CULTURA 85
É preciso destacar que foram encontradas poucas informações sobre as características da
infância no Brasil anteriores à colonização; o que se tem são registros, principalmente escritos,
que remetem aos meninos e meninas nativos desta terra, os quais viviam em um mundo em que
a infância não existia como categoria social, portanto, viviam em um cenário e realidade
distantes do mundo civilizado. O adulto
16
foi um dominador incomplacente e determinado, que
impôs, pelo poder, aos nativos a palavra de Deus. A criança nativa foi iniciada ao catequismo
para incorporar os elementos da cultura dominadora, que marcou o destino da sociedade
brasileira.
Os padres embora não aceitassem os castigos violentos e a matança de índios
pelos portugueses, fundaram casas de recolhimento ou casas para meninos e
meninas índias, nas quais, após separá-los de sua comunidade, impunham-lhes
os costumes e normas do cristianismo, tais como casamento religioso e outros
dogmas, com o intuito de introduzi-los na visão cristã do mundo.
(FALEIROS; FALEIROS, 2007, p. 19).
A cultura é impressa na humanidade, moldando o indivíduo com entalhes que
caracterizam o sujeito, a comunidade e a sociedade. O processo histórico que interiorizou a
coação foi além da metafísica, da projeção religiosa, criando a relação do indivíduo para com
Deus não num caráter de simples dependência, mas essa representação divina forneceu ao
indivíduo paralelamente quadros de intermináveis desejos de vingança e crueldade.
O modelo de educação para os meninos e meninas indígenas a partir da colonização foi
o jesuítico, como aponta Saviani (2005). O autor afirma que o trabalho pedagógico idealizado
por Anchieta fazia o uso do idioma tupi para se dirigir aos nativos e colonos, produzindo
poesias e peças teatrais, e era respaldado na garantia de uma construção imaginária do mundo
dividido entre o bem e o mal em constante luta:
Assim, um dualismo ontológico inteiramente estranho à visão de mundo
indígena é o que irá presidir a construção de uma concepção totalizante da
vida dos índios produzida pelos colonizadores representados pelos seus
intelectuais materializados na figura dos jesuítas. (SAVIANI, 2005, p. 5)

16
Nesse caso, o termo ‘adulto’ aqui também está relacionado à experiência da civilização ocidental e não apenas
à idade do indivíduo.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA CULTURA 86
Nos dias que correm, em que os veículos educativos se multiplicam, e entre esses
veículos temos as mídias, sabemos que vivemos em um mundo em que a violência está presente
em todas as esferas da vida e que essa situação assusta cada vez mais as pessoas, as quais
acabam produzindo esta cisão de bem e mal essencialmente similar a forma como fora
impregnado no passado aos gentios. A violência simbólica produzida neste mundo dissemina o
medo na sociedade. O povo
17
deve ser protegido: “A razão do povo deve ser seus sentimentos;
é preciso, portanto, dirigi-los, e formar seu coração e não seu espírito; eles devem também ser
mantidos em seu estado natural de fraqueza.” (MARCUSE, 1981 p. 123). Assim mantido, o
sujeito na sociedade se mantém aprisionado. A individualidade é então entendida como
isolamento e estar isolado é estar só. E assim fraco. Com esse movimento, o próprio indivíduo
nega a sua singularidade para ser plural e sentir-se parte de um todo, o que significa muito mais
um aprisionamento do que a emancipação, pois é um processo alicerçado no medo e na
irracionalidade. Esse medo propagado na sociedade gera a violência, como apontado por
Fromm (1970), e tem suas raízes em motivações inconscientes.
Os casos de violência doméstica contra a criança, ainda que possam ser qualificados
segundo os conceitos apresentados, têm a característica de acontecer contra pessoas que estão
em condições especiais de desenvolvimento por serem crianças, e que têm direitos e deveres
como todos os cidadãos adultos
18
. Para essas crianças o lar não foi um lugar seguro e sim um
espaço de sofrimentos, medos e desculpas de que a violência cometida seria para o seu próprio
bem (AZEVEDO; GUERRA, 1995).
[...] Ah! Exclamou a lenhadora, ‘você seria mesmo capaz de abandonar seus
filhos?’ Por mais que o marido a fizesse ver a miséria deles, não podia admitir:
era pobre, mas era a mãe das crianças. Porém, considerando como seria
doloroso vê-las morrer de fome, concordou e foi se deitar chorando. O Pequeno
Polegar ouviu tudo o que disseram [...] (PERRAULT, 2008, p. 10-11).
A tradição oral, como considera Meihy (2002), pode remeter a questões do passado
longínquo, pela transmissão de pais para filhos ou de indivíduos para indivíduos, e revela
estruturas de comportamento de grupos e noções de presente e passado, e mesmo em sociedades
modernas, regidas por máquinas, as reservas míticas podem aflorar como recurso explicativo.

17
“Isto é aqueles que são mantidos por suas ocupações puramente mecânicas e contínuas em um estado habitual
de infância” (MARCUSE, 1981, p. 123). O termo ‘infância’ é usado pelo autor nesse ensaio para designar a
condição de imaturidade a que o homem é mantido por outros homens na relação de autoridade e submissão.
18
Embora sabendo que poucos homens nesta sociedade atingem a plenitude desse termo, que seria o alcance de
um estado elevado de desenvolvimento integral.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA CULTURA 87
Nas diversas culturas, o gérmen da violência doméstica contra a criança estava presente antes
mesmo do modelo cultural predominante nesta época, a qual é marcada pela globalização,
domínio do mercado de produção e de consumo, capitalismo, alto poder de produção
tecnológica e pela presença da violência urbana.
Substituídos pela televisão (que também dissemina e incute algo de violência na
sociedade), ou reeditados por outros mais condizentes a uma educação emancipadora, os contos
e narrativas vão saindo de cena e vão dando lugar aos acontecimentos reais e atuais que levam
ao conhecimento do grande público a violência doméstica, cumprindo o papel do espetáculo,
das tragédias das arenas.
Os conceitos da produção do trabalho, calcados na cultura da dominação, do medo, da
força do adulto e coisificação da infância presentes nas condições desumanas a que as crianças
eram (e ainda são) submetidas e que são denunciados desde os primórdios das civilizações,
foram atualizados pelos contos reais midiáticos que também geram medo e insegurança. Os
fatos reais presentes e veiculados na mídia, com alta tecnologia, são instrumentos eficientes
para a imposição do medo, insegurança e disciplinamento nas crianças e nos adultos, que
reproduzem modelos de vida e formas de viver.
A proximidade e intensidade da violência social praticada na atualidade substituem as
funções das narrativas da pseudoformação, voltadas para o medo, disciplinamento e afirmação
da cultura. Substituídas por noticiários televisionados com formatos de espetáculos, carregam a
ideologia da massificação e da alienação do pensamento.
Dois elementos são importantes: o primeiro é que os contos apontam para os cotidianos
de nossos antepassados e denunciam ingenuamente a violência contra as crianças que era
praticada no lar e naturalizada na cultura há séculos. No entanto, o ato de reunir-se em grupos
para contar suas histórias, falar sobre o cotidiano, representar vivências, medos e angústias
parece ser uma necessidade humana, pois ao narrar reelabora o passado para organizar o
presente e o futuro. O segundo elemento está relacionado ao fato de que esses mesmos contos,
adaptados para usos pedagógicos, perdem este sentido.
Sobre ambos, faz-se necessário tecer alguns comentários. O primeiro aprofunda a
essência do homem que, ao narrar, recorre à memória que está ainda presente e ainda pode
permitir acesso ao sujeito embrionário, como é defendido por Roggero (2007); quando esta trata
dos motivos pelos quais escolhe a biografia como instrumento investigativo de pesquisa
qualitativa. A partir dessa perspectiva, pode-se considerar que as narrativas orais da tradição
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA CULTURA 88
popular seriam biografias da civilização ou da sociedade, portanto também valorizadas neste
trabalho como uma via ao embrião das relações sociais.
O segundo remete ao homem enredado nas malhas da indústria cultural, produzido em
escala e reduzido a mercadoria. Nesse caso, os contos se assemelham aos televisionados nos
noticiários, produtores do pensamento em série, os quais propõem em que e como se deve
pensar. Ao carregarem a complexidade da vida material impregnada de necessidades artificiais
produzidas, são uma forma brutal de invadir todos os espaços, monopolizar o pensamento,
negar a criatividade e colonizar a cultura.
2.3 CULTURA E FAMÍLIA
No ensaio sobre “Ideologia”, Horkheimer e Adorno (1973) destacam que a ideologia em
sentido estrito é o estado de não consciência das massas e se dá onde existem as relações de
poder não transparentes ou atenuadas, e os produtos mesquinhos que imitam esse estado o
repetem para assegurar a sua reprodução.
Com a autorreflexão, o indivíduo se emanciparia das ideologias e dos produtos que esta
se encarrega de lançar pela via da consciência, que livraria o homem das malhas da alienação.
Adorno (1996), em sua teoria da pseudoformação, reflete sobre o duplo caráter da
cultura. Alerta que o espírito alienado onipresente sucede a formação cultural e prende o
indivíduo nas malhas da sociedade massificada, muito mais com ilustrações do que com
informações. O referido ensaio demonstra os mecanismos por onde caminham as famílias e as
escolas, e que mesmo o estrato das pessoas cultas sofrem um colapso da formação cultural, que
se faz observar por toda parte.
A violência presente no cotidiano das famílias e a consciência dissociada das coisas
humanas concebem a violência contra a criança e a coisificação da infância da mesma forma
com que as pessoas, que se dedicavam com paixão aos bens culturais, aderiram com
tranquilidade ao nacional-socialismo de Hitler.
A cultura afirmativa enreda o indivíduo em sua tela, garantindo um domínio perverso,
isso porque “[...] no âmago de nossa cultura amadurecem forças destrutivas.” (HORKHEIMER;
ADORNO, 1973, p. 196).
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA CULTURA 89
Quando os diretores, professores e outros profissionais da escola omitem a violência
doméstica ocorrida com seus alunos, isso ocorre porque esse fenômeno é naturalizado. Não se
reflete sobre ele. O que é natural, não é construído socialmente. E dessa forma é invisível como
fator social.
Muitas crianças invisíveis que são vítimas do abandono e que vagam pelas ruas das
cidades, nos sinais de trânsito, nos trens urbanos, carregam uma história de vida anterior ou
paralela à situação atual, na qual se desvelam as diversas formas de violência por atos ou
omissão daqueles que deveriam proteger a sua condição peculiar de desenvolvimento.
Muitas dessas crianças deixadas ao próprio destino fogem de casa, ou saem sem
compromisso de retorno para o lar, que não lhes oferece refúgio, proteção, carinho, requisitos
básicos para o desenvolvimento saudável e humano de qualquer criança.
O caso dos irmãos Igor e João Vitor, já apresentado nesta pesquisa, foi muito divulgado
pelas mídias eletrônicas e outras. Nesse caso as vítimas foram assassinadas pelo pai e madrasta,
com requinte de crueldade. Após o assassinato, eles se livraram dos corpos como se fossem
lixo. As autoridades já haviam constatado o risco que essas crianças corriam e, no entanto, não
foram eficientes em garantir os seus direitos.
Foram eles mortos por asfixia com sacos plásticos, depois tiveram seus corpos
queimados e, em seguida, esquartejados com uma foice. [...] Os pedaços foram
colocados no lixo diante da casa. A barbaridade do crime contra essas crianças
praticadas pelo próprio pai supera a imaginação popular. [...] Achados na rua,
foram enviados para um abrigo. Um mês após, a juíza da 3ª Vara da Comarca
de Ribeirão Pires, autorizou o retorno à família, mas logo voltou atrás,
aconselhada que foi por profissionais do Conselho Tutelar e do abrigo. Sete
meses após, foi determinada pela juíza a volta das crianças para a casa do pai.
Deixam o abrigo. Nove meses após é registrada nova ocorrência policial por
abandono. As crianças foram mais uma vez encontradas na rua e são
novamente devolvidas à família, em 4 de setembro de 2008. No dia seguinte
(5 de setembro) são assassinadas em casa pelo pai e pela madrasta.
(OBSERVATÓRIO..., 2008).
Assim também aconteceu no caso de Isabella, uma menina atirada pelo pai e pela
madrasta da janela de um prédio onde moravam, após ter sido espancada e estrangulada. Esse
caso manteve por meses um alto índice de audiência e gerou uma disputa, dos telespectadores,
pelas diversas empresas de transmissão televisivas, transformando um acontecimento trágico
em espetáculo em 2008.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA CULTURA 90
Em 29 de março de 2008, quase no final de noite de sábado, às 23h30, Isabella
Nardoni, de cinco anos, cai do sexto andar de um prédio, localizado em um
bairro de classe média da cidade de São Paulo, e morre logo após ser
socorrida. O episódio atrai os holofotes da imprensa e, conseqüentemente, a
atenção da opinião pública por reunir elementos misteriosos: uma tela
protetora rasgada, marcas de sangue pelo apartamento, relatos de grito,
vestígios de agressão no corpo do cadáver. Passados 38 dias, depois de ser
realizada minuciosa investigação, o promotor de Ministério Público de São
Paulo, Francisco Cembranelli, entrega denúncia à justiça contra Alexandre
Nardoni e Anna Carolina Jatobá, pai e madrasta da criança, acusados de terem
cometido o crime intencionalmente. (NOTISA, 2008).
A infância coisificada é eliminada. As crianças tornam-se resíduos que são atirados ao
lixo, pela janela, abandonados, esquecidos, depositados. A sociedade mobilizada diante das
notícias, como ocorreu no caso da menina Isabella
19
, demonstra a violência contra a infância
transformada em produto de consumo, em espetáculo disputado pela audiência, principalmente
da televisão, a qual atinge toda a sociedade. No entanto, não mobiliza opiniões alertando para o
problema a fim de gerar reflexões. Intenciona a produção e disputa do público, o qual não reage
criticamente sobre as questões que envolvem o problema, assistem à notícia transformada em
espetáculo não refletindo em como se desenrola um acontecimento tão trágico que leva à morte
uma criança inocente, e que envolve duas pessoas jovens que agiram aparentemente de forma
inexplicável. Que valores são cultivados em uma sociedade que age e reage de forma tão
bárbara?
Casos de violência doméstica fatal contra a criança são circunscritos pela omissão, pois,
antes da violência que subtrai a vida da criança, outras violências aconteceram e são do
conhecimento de parentes, familiares, escolas, vizinhos e sociedade em geral. Os agressores não
estão sozinhos. Todavia, nem sempre os direitos previstos em lei chegam a tempo.
Fromm (1970) questiona a natureza boa ou má do homem, trazendo a seguinte questão:
“Seria o homem lobo ou cordeiro?” O autor se baseia na suposição de que, por serem os
homens bons, os grandes inquisidores e ditadores ergueram seus sistemas, uma vez que os
homens sendo cordeiros precisariam de líderes que tomassem decisões por eles. Porém, Fromm
(1970) refuta a própria ideia alegando que Hitler e Stalin não estavam sozinhos quando
cometeram seus crimes contra a humanidade. Agiram diante de toda uma sociedade humana
que aderiu ou omitiu-se. Horkheimer e Adorno (1973) advertem que por trás desses

19
Refere-se ao caso de uma menina de cinco anos que, em 2008, foi morta e atirada pela janela de um
apartamento em São Paulo, e o pai e a madrasta foram julgados como responsáveis pelo assassinato, enquanto a
sociedade se mobilizou diante dos noticiários para acompanhar o desfecho da tragédia.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA CULTURA 91
movimentos existem poderosos interesses políticos e econômicos, dos quais as massas que
aderem inconscientemente a esses movimentos não são seus representantes, mas características
psíquicas inconscientes que acabam por dar apoio a uma política que contradiz aos interesses
racionais da sociedade em massa.
Essas características psíquicas, por seu turno, são produto de fenômenos
contemporâneos tais como a desintegração da propriedade média, a crescente
impossibilidade de uma existência econômica auto-suficiente, certas
transformações na estrutura da família e certos erros na direção da economia.
(HORKHEIMER; ADORNO, 1973, p. 173).
Foram inúmeras vezes na história que toda uma sociedade se omitiu diante da barbárie,
e ainda o faz quando trata como invisível a criança pedindo nos faróis; a criança marcada pela
violência física, sexual, pela negligência; a criança que frequenta diariamente as salas de aulas
de tantas escolas públicas e privadas; a criança que é atendida em ambulatórios vítimas de
maus-tratos; a criança que é explorada nos trabalhos que degradam sua saúde e roubam-lhe as
oportunidades de formação para a cidadania; entre outras crianças. Nesse sentido, “a
investigação sobre o preconceito tende a reconhecer a participação do momento psicológico
nesse processo dinâmico em que operam a sociedade e o indivíduo.” (HORKHEIMER;
ADORNO, 1973, p. 173-174).
O próprio poder público, que não aceita com tranquilidade que a criança e o adolescente
sejam sujeitos de direitos, denuncia o preconceito, a cultura da violência contra a criança e a
negação dos direitos. Porém, é uma sociedade inteira se omitindo diante da barbárie:
Havia um menino, que tinha participado com a gente de todo o processo para
incentivar a implementação estadual do ECA. Organizamos algumas oficinas
para explicar o que estava na lei, sua importância, para meninos e meninas
conhecerem seus direitos e se defenderem na rua, na escola, na polícia. Saindo
de um desses encontros, o menino foi para a rua. Abordado por policiais
militares, foi revistado. Ele mostrou para os agentes o Estatuto. Bateram a
cabeça dele no chão e na parede. ‘Seu direito é este’, gritou um policial,
esfregando a cartilha no rosto ensangüentado do menino. Um ano e meio
depois, ele apareceu morto, boiando numa represa. Os assassinos nunca foram
presos.
(CASTELFRANCHI, 2005).
Adorno (1996, p. 5) aponta que a consciência progressivamente dissociada das coisas
humanas descansa em si mesma e se converte em pseudoformação, por isso, vimos o sonho da
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA CULTURA 92
libertação na alienação, e imposição dos meios e da estúpida e mesquinha utilidade – ser
falsificado “[...] em apologia de um mundo organizado justamente por aquela imposição. No
ideal de formação, que a cultura defende de maneira absoluta, se destila a sua problemática.”
A cultura da violência é naturalizada na sociedade fragilizada em conflitos e guerras, na
qual crianças são feitas soldados no trânsito, nas competições esportivas, gangues de ruas, na
exploração do trabalho infantil, nas comunidades marginalizadas e excluídas do acesso aos bens
produzidos nos países. A criança na condição de coisa reflete a fragilidade da nossa civilização
que não é capaz de preservar a sua integridade.
Fromm (1979) qualificou como violência compensatória a violência que é empregada
como um substituto de atividade produtiva por alguém que se vê impotente diante das forças
sociais que o dominam. Este, por possuir vontade e capacidade de liberdade para criar e
modificar o mundo, é impelido a agir desse modo.
Esta necessidade humana expressa-se nas primitivas gravuras das cavernas,
em todas as artes, no trabalho e na sexualidade. Todas essas atividades são o
resultado da capacidade do homem para dirigir sua vontade na direção de um
objetivo e sustentar o esforço até esse objetivo ser alcançado. A capacidade
para assim usar esses poderes é chamada potência. (A potência sexual é
somente uma das formas de potência.). (FROMM, 1979, p. 32).
Quando o homem fracassa, tornando-se impotente diante das forças que não é capaz de
vencer, tenta restaurar suas capacidades identificando-se com uma pessoa ou grupo de pessoas
que disponha de poder para a sua satisfação de participação simbólica na vida de outro homem.
Tem a sensação de agir, mas na verdade só está se submetendo, ou então age usando o seu
poder para destruir.
Nesse sentido, instaura-se a violência na sociedade capitalista e assim é reproduzida nas
famílias a violência dos pais contra os filhos. Ação sem reflexão é falência da prática destituída
de teoria. O fazer sem a razão é como o sujeito que reproduz um sistema de forças sendo
impulsionado a agir. Segundo Roggero (2001), a identidade constitui-se a partir da participação
do indivíduo nas relações sociais e requer adaptação e renúncia aos instintos.
A identidade não se constrói pela violência compensatória que, conforme Fromm (1974,
p. 33), é a essência do sadismo e infringe dor aos outros. Ela tem o impulso de exercer o
domínio sobre outra pessoa e torná-lo objeto indefeso de sua vontade. Tem por meta tornar o
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA CULTURA 93
indivíduo como algo inanimado. “Criar vida exige certas qualidades de que carece a pessoa
impotente. Destruir vida só requer uma qualidade: o uso da força.”
A violência doméstica contra a criança denota a falência dos pais, que vão se
constituindo de acordo com as exigências do mercado movido pelo capital e insaciável pelo
novo. A identidade do sujeito e das instituições sociais vai se tornando também mercadoria ou
coisa que deve se adaptar.
2.4 CULTURA E VIOLÊNCIA
A forma de administrar o poder do Estado promove uma transformação em cadeia no
indivíduo, nas relações sociais, na cultura dos povos, na família e em todos os valores que
alicerçam essas estruturas. São necessários novos modelos como forma de adaptação às rápidas
mudanças e configurações do mundo atual e o indivíduo torna-se impossibilitado de ser,
tornando-se um vir a ser o que o mercado exigir. Investe suas funções cognitivas na divisão do
trabalho, produção de bens, reprodução do homem, consumo dos bens produzidos, ajuste da
própria identidade às exigências do mercado e perde a noção de si mesmo, pois não encontra
referências para ancorar a sua formação e identidade.
Centrado no sujeito adulto, o mundo não oferece garantias dos direitos da infância e
condições de desenvolvimento saudável, nega tanto à criança a infância como ao adulto a
maioridade. A Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e
do Adolescente, preconiza que a criança não deve ser vítima de nenhuma forma de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, tem um discurso contraditório, pois
a sociedade convive com problemas naturalizados na estrutura social, fazendo com que famílias
inteiras sejam vítimas dos mesmos maus dos quais devem proteger seus integrantes.
Del Priore (2004), ao demonstrar a situação das crianças e das famílias de rua, afirma
que a criança, que neste país tem sido vítima por séculos, jamais adquiriu a maturidade, ela
apenas cresceu biologicamente. A família que agride, que viola, que negligencia e que violenta
corresponde ao homem preso à condição instintiva ou ligado ao estado de natureza.
Excluído da possibilidade de consumo dos bens culturais e materiais, dos quais muitas
vezes ele participa da produção, cresce como ser biológico pelo elo que o mantém como parte
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA CULTURA 94
da natureza, mas se não teve acesso a si próprio, à individualidade e ao reconhecimento de si,
por meio do contato com o outro, nas manifestações da sociedade, na cultura, que também
inclui a produção e consumo, não se transforma em si mesmo.
O indivíduo que não alcança o que a sua potencialidade lhe permite ser, ainda que
adulto, não goza desse status, o que é uma problemática no mundo centrado no sujeito adulto.
O homem é sempre, em qualquer cultura, manifestação da natureza humana,
manifestação essa que é, em sua expressão específica, determinada pelos
arranjos sociais sob os quais ele vive. Assim como a criança nasce em todas as
potencialidades humanas a serem desenvolvidas sob condições sociais e
culturais favoráveis, a raça humana transforma-se, no processo histórico,
naquilo em que ela é potencialmente. (FROMM, 1979, p. 28).
Quando o direito é violado, a norma legal precisa ser instaurada para gerar uma
movimentação na sociedade em que é instituída. Nesse caso, a norma ou a lei existe para
garantir um direito que foi violado. Se na sociedade brasileira a lei de proteção, garantia de
direitos e promoção da infância é referência mundial, por abarcar várias dimensões e
contemplar a proteção integral, significa que nessa sociedade a necessidade dessa lei se fez e se
faz presente, devido à violação dos direitos que atravessaram séculos e ficaram encravados na
cultura dessa sociedade.
Nesse caso a lei por si só não é garantia de direitos, mas é um ponto que se deseja
alcançar na formação cultural da sociedade em questão. Desse modo, a própria cultura se afirma
de forma contraditória.
Como exemplo, tem-se a Resolução n.º 75, de 22 de outubro de 2001, do Conselho
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), que dispõe sobre o
funcionamento dos Conselhos Tutelares dos municípios, que em seu texto conclusivo preconiza:
A mudança de agora deve-se a uma nova práxis que estamos construindo para
o século XXI e para o terceiro milênio do cristianismo: a Doutrina da Proteção
Integral. Por meio dela, intenta-se proteger meninos e meninas não em
sistemas para menores, mas no sistema multiparticipativo e aberto da
cidadania social. Esse é um desafio para todos, pois implica na mudança de
paradigma, o que significa passar a ver crianças e adolescentes, como cidadãos
– sujeitos de direitos e de deveres em si mesmos – e não como extensão dos
pais, das instituições públicas ou sociais. Significa também preparar
continuamente crianças e adolescentes para que se vejam como cidadãos.
(BRASIL, 2001).
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA CULTURA 95
Nessa perspectiva, leva-se em conta a formação cultural em que se constituiu a
sociedade, para intervir nas questões que ficam atravancadas e parecem circular em torno de si
mesmas, não evoluindo de forma que representem avanços significativos em alguns casos,
principalmente na sociedade brasileira em que existem leis que não pegam.
A violência doméstica contra a criança acontece independente da classe social e da
diversidade cultural, mas quando ocorre na classe alta, que tem maiores possibilidades de
conservar a vida privada, o silêncio se faz presente. Isso porque, essa classe mais privilegiada
utiliza com menos frequência os serviços públicos de saúde e educação, ficando assim mais
difícil de ser notificada a violência; uma vez que o local privilegiado para a detecção da
violência doméstica contra a criança, salvo os motivos que atravancam as ações após as
constatações dessas violências, antes de se tornar uma violência fatal, são os serviços públicos,
como hospitais, escolas, creches, entre outros.
Para Faleiros e Faleiros (2007), a violência contra a criança decorre da relação de poder
e, embora os adultos sejam socialmente responsáveis pelas crianças e autorizados a exercer o
poder protetor sobre elas, não se deve confundir a proteção com posse. Esses autores
reconhecem que é corrente em instituições brasileiras (família, escola, igrejas, serviços de
assistência e de ressocialização) a presença da pedagogia perversa, calcada na submissão da
criança ao poder autoritário, arbitrário e violento dos adultos. Advertem também que a
sociedade brasileira ainda estranha o fato de crianças terem se tornado sujeitos de direitos a
partir do ECA e reagem de forma a contrariarem seus artigos, tentando mudá-los.
A luta de alguns setores da sociedade pela diminuição da idade penal, que é uma forma
de resistência aos direitos sociais já previstos, já alcançados, é um exemplo da violência
presente na cultura de nossa sociedade. A violência de qualquer tipo contra a criança implica em
poder e confronta atores e suas forças, pesos e poderes (de conhecimento, autoridade,
experiência, maturidade, estratégias e recursos) que são desiguais.
Para Azevedo e Guerra (1989), o que produz e alimenta a estrutura da violência
doméstica contra a criança no Brasil é da mesma ordem da violência que ocorre na sociedade,
escola e nas instituições, que por sua vez participam da mesma lógica de produção e
reprodução. É a lógica do poder arraigada na cultura.
As escolas, hospitais, igrejas e profissionais que trabalham com crianças são obrigados a
notificar situações de violências ou suspeitas de violência contra as crianças que desembocam
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA CULTURA 96
em seu território
20
; todavia, quando não fazem, ou protelam a atitude, tentando resolver de
forma privativa ou em casa, estão contribuindo para a reprodução da violência e impedimento
as crianças das medidas de proteção, negando um direito e descumprindo um dever.
Muitas vezes, a denúncia chega tarde demais, não sendo possível prevenir a violência
fatal. Não é raro acontecer, após a violência fatal, denúncias que chegam tardiamente
demonstrando que a violência que ocorria com a vítima não era novidade para familiares e
pessoas próximas. Como exemplo, tem-se o caso dos irmãos que foram mortos e colocados em
um saco de lixo, para que fossem levados pela coleta de lixo urbano.
As leis, a família, as instituições e os ideais da sociedade podem contribuir para a
evolução da violência, pois o próprio modelo, tanto das diversas instituições como o da família,
é passível de ser violado, seja pela sua constituição ideológica, arquitetônica ou de relações
sociais contraditórias. Quando, aqui, fala-se em evolução, não se fala em quantidade, mas em
formas mais elaboradas de se manifestar a violência. Há relatos de casos em que o pai orientava
a mãe a bater nos filhos de forma que não deixasse marcas para não chamar a atenção dos
professores na escola; e também de professores que buscavam conhecer o Estatuto da Criança e
do Adolescente não como um objeto de orientação, defesa e proteção das crianças, mas sim
com interesse em saber como aplicar punições aos alunos sem sofrerem sanções legais. São
exemplos de uma busca maior por aprimoramento do poder punitivo do que por justiça social.
Um exemplo disso pode ser a violência psicológica que é mais difícil de ser detectada e que
pode ser tanto ou até mais danosa para o indivíduo, sobretudo à criança por estar em processo
de desenvolvimento integral.
Para compreender o problema de uma sociedade, como e por que age de determinado
modo e por que se agrega ou se desagrega, é necessário compreender a constituição psíquica
dos homens em seus grupos sociais e a formação de seu caráter em conexão com as forças
culturais de sua época. Isso porque,
[...] toda cultura é, assim incluída na dinâmica histórica; suas esferas, portanto
os hábitos, costumes, arte, religião e filosofia, em seu entrelaçamento, sempre

20
O uso da palavra ‘território’ denota a ideia de lugar preservado, dominado e defendido contra as invasões que
ameaçam o estado de coisas existentes, o que remete ao pensamento sobre as questões primitivas, extintivas do
ser humano, em que a irracionalidade estava presente em detrimento à razão. Marcuse (2001), em “Cultura e
Psicanálise”, demonstra, em concordância com Freud, que talvez para a melhoria da condição humana seja
necessário que as forças irracionais ainda presentes no homem subordinem-se à razão. Nesse mesmo sentido esse
termo também foi aqui empregado, evocando a reflexão sobre o homem-civilização e o homem-natureza e a
tensão permanente que existe entre essas duas condições do ser humano.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA CULTURA 97
constituem fatores dinâmicos na conservação ou ruptura de uma determinada
estrutura social. (HORKHEIMER, 1990, p. 181).
O homem é influenciado no processo de produção pela força do trabalho, como também
na forma como ele se situa nas instituições relativamente fixas, que só se transformam
lentamente, como a família, a escola e a igreja. A relação social nessas instituições se repete e
os seus atores mudam de papel conforme as circunstâncias. A autoridade exercida em um local
é transferida para o outro e o sujeito que se submete ao autoritarismo em um momento, em
outro, impõe-se da mesma forma na relação com os seus, reproduzindo os papéis. Essa
reprodução afeta a família que adapta os seus membros à vida social.
Essa afirmativa de Horkheimer orientou a pesquisadora a trabalhar com as biografias de
professoras, o que possibilitou ficar diante de elementos ligados às questões da formação
individual na relação com as crianças e com as famílias, e na relação instituição/escola, assim
como a ocorrida no âmbito maior, como sujeito social e sociedade civil.
A estrutura que mantinha um núcleo relativamente pequeno das camadas superiores da
sociedade condicionava a existência da totalidade e, ao mesmo tempo, era tida como necessária.
Não obstante a isso, inúmeros indivíduos, de acordo com a sua posição nessa totalidade, “[...]
tinham que pagar o desenvolvimento desta com uma miséria sem sentido para eles mesmos e
com a morte.” (HORKEIMER, 1990, p. 181). Portanto, a manutenção da forma social como é e
está nunca ocorreu sem violência.
Pela emancipação, o sujeito esclarecido pode tornar-se sujeito em condições de
determinar seus reais interesses, pois tem a possibilidade de reflexão derivada da existência de
liberdade da consciência humana. A violência emerge da condição de dissonância e
desequilíbrio com a sua própria felicidade e aprisionamento do homem.
A verdadeira ideologia, que levaria a humanidade à consciência de seus interesses
verdadeiros, conforme Azevedo e Guerra (2000), precisa ser construída para que a humanidade
busque suas reais necessidades. Antes disso, viveremos sob o signo da ilusão ideológica, da
pseudoformação da cultura afirmativa.
A violência é o oposto da humanidade. Então, ela não é inerente ao homem, ela existe
quando o ser humano, destituído de sua principal característica que é a humanidade, sai de si e
passa a ser regido pelo não eu, pois o homem, em estado de liberdade, não encontra a violência
como forma legítima de ação e relação.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA ARRAIGADA NA CULTURA 98
[...] a superioridade do homem está no saber, disso não há dúvida. Nele muitas
coisas estão guardadas, que os reis com todos os seus tesouros, não podem
comprar sob as quais sua vontade não impera, das quais seus espias e
informantes nenhuma notícia trazem, e que provêm de países que seus
navegantes e descobridores não podem alcançar. Hoje, apenas presumimos
dominar a natureza, mas, de fato, estamos submetidos à sua necessidade; se,
contudo nos deixássemos guiar por ela na invenção, nós a comandaríamos na
prática. (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 17).
Mas o que os homens querem da natureza é dominá-la para com isso dominar outros
homens. E assim “[...] só o pensamento que se faz violência a si mesmo é suficientemente duro
para destruir os mitos” (HORKHEIMER; ADORNO, 1985, p. 18); sendo que poder e
conhecimento são sinônimos.
As culturas contêm normalidades que funcionam em sentidos opostos e ao mesmo
tempo se repetem em formas semelhantes, como, por exemplo, o processo mecânico de
trabalho, os processos fisiológicos do consumo e propagação, bem como o decurso diário do
procedimento legal e do aparelho social de circulação, como aponta Horkheimer (1990).
A metodologia empregada nesta pesquisa, que será apresentada no próximo capítulo,
traz a vida, a cultura, a biografia, as classes sociais e as categorias que permitem observar a
cultura impressa na vida, na memória e na experiência. Busca-se com isso analisar a violência
dos pais contra seus filhos no âmbito familiar, e trazer revelações sobre a cultura e as forças
culturais que afirmam e legitimam esse fenômeno. A demonstração do quanto é complexo o seu
estudo já está até aqui registrada. No entanto, diante dessa constatação, faz-se necessário
apontar para a observação da ideologia que o alimenta e que precisa ser provocada a refletir
para que não caia em uma rede de soluções superficiais e discursos simplificadores.
99
3 A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO
CARÁTER DA CULTURA
A história oral é uma abordagem ampla que permite a interpretação da história,
sociedade e culturas em processo de transformação, por intermédio da escuta das pessoas e do
registro das histórias de suas vidas, segundo Thompson (2006). É uma abordagem empírica que
responde às necessidades de preenchimentos de espaços capazes de dar sentido a uma cultura
explicativa, por meio da observação das pessoas que herdam os dilemas da vida, como observa
Meihy (2002).
A biografia possibilita a busca da individualidade e identidade, permitindo analisar os
conflitos advindos dessa dialética e da constituição do homem contemporâneo, como explica
Roggero (2001). Essa autora acrescenta ainda que, na metodologia da história oral, é possível
compreender o desenvolvimento da consciência, das contradições sociais e das alienações
cristalizadas na cultura. Apoiada em Benjamin (1995), defende que, ao narrar, o indivíduo
busca explicações e sentidos às suas narrativas, percorrendo para isso o que é relevante em suas
experiências e provocando a memória.
Josso (2004) considera que a história oral permite interrogar sobre o processo de
formação psicológica, psicossociológica, sociológica, econômica, política e cultural, que tais
histórias de vida tão singulares nos contam, as quais são vividas no campo da experiência e da
expressão. Essa abordagem permite, como observa Meihy (2002), promover a subjetividade
humana, a inclusão social e a reavaliação de pressupostos legitimados por repetições da
historiografia. A partir da análise de situações pessoais, pode-se observar aspectos importantes
da sociedade.
Com base nesses autores, o tema desta investigação foi delineado ao longo de uma
trajetória de vida da pesquisadora, a qual se viu provocada por esse fenômeno em diversos
momentos da construção de sua subjetividade, o que gerou reflexões sobre a própria biografia e
dos caminhos que determinam a história do indivíduo nas suas relações sociais.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 100
3.1 O REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO PARA A COLETA DAS
HISTÓRIAS
O desafio epistemológico de se trabalhar uma pesquisa científica com base na memória
e relato das histórias de vidas de professoras, que narram a violência doméstica contra a criança
na forma como é tocada pelo fenômeno em sua história, ocorreu pelo fato de que a própria
formação das professoras, como foi denunciado em momentos das narrativas, se encarrega de
oferecer ao profissional alguns discursos prontos sobre a sua área de atuação, que são muitas
vezes transformados em verdades absolutas. Prevendo essa característica, por tudo o que já foi
apresentado e pelos conceitos aqui abordados, teve-se o cuidado metodológico de extrair das
narrativas, além da subjetividade da narradora, os elementos formativos que negam o indivíduo,
a subjetividade, tornando-o um sujeito alienado. A escola como fator de proteção da criança
vítima de violência doméstica, diante da alienação de seus atores, acaba sendo um valor perdido
em si mesmo.
Outra precaução que a pesquisadora teve foi com relação à escolha das narradoras. Não
se pretendeu no momento dessa escolha saber, antecipadamente, que tipo de experiências as
narradoras tiveram em suas vidas com relação ao tema. Essa opção se deu devido ao recorte da
realidade escolhido para o estudo, que é a procura, no âmbito da formação cultural, do cerne da
violência doméstica contra a criança e do que atravanca o enfrentamento desse fenômeno.
Dessa forma, esta pesquisa não se trata de um estudo de história de vida de professoras que
viveram situações de violências domésticas na infância e tampouco foi interesse pesquisar
especificamente a experiência, fosse ela qual fosse, da professora com relação à violência
doméstica sofrida por seus alunos. Mesmo sabendo da importância e necessidade de
aprofundamentos e de outros estudos relacionados ao tema, o que se desejou nesta pesquisa foi
extrair da história das professoras elementos ideológicos ligados ao fenômeno, que
denunciassem o seu arraigamento na cultura. Essa peculiaridade do objeto em estudo justifica as
preocupações em buscar pessoas que em princípio fossem para a pesquisadora elementos
sociais neutros sobre o tema, apesar de terem em suas vidas garantido, pela sua profissão, um
contato importante com a infância da criança. Essas pessoas foram consideradas neutras por não
terem demonstrado especificamente interesse algum pela pesquisa, mesmo sabendo de sua
existência.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 101
Portanto, foi uma escolha metodológica ligada à profissão das colaboradoras, já que
foram convidadas três professoras para este estudo. Com essa escolha teve-se a garantia de que
as colaboradoras fossem pessoas que tivessem a experiência do convívio com crianças, além do
fato de trabalharem em uma instituição por lei considerada protetora, vivenciando, assim, um
cotidiano ligado a muitas vidas infantis, independente se fossem tocadas ou não pela violência
doméstica, o que não se quis saber de antemão.
Antes de cada narrativa, que não é identificada pelo verdadeiro nome das colaboradoras,
são apresentados individualmente alguns detalhes de como ocorreu o convite e o que motivou a
pesquisadora a fazê-lo.
O estudo das histórias de vida com o tema da violência doméstica contra a criança
permitiu que a pesquisadora fosse colocada diante da realidade concreta. Por meio dos
conceitos que deram a chave para a compreensão da experiência do outro na formação cultural,
foi possível que a pesquisadora delimitasse os caminhos percorridos, o que não a livrou de se
ver diante de fatos inusitados durante o desenrolar da pesquisa, mas que são preconizados pelo
método em questão. A própria pesquisa bibliográfica traz divergências relacionadas às histórias
narradas, como, por exemplo, no que diz respeito às configurações das famílias brasileiras e a
sua constituição histórica.
Bruschini (2000) apresenta essas divergências quando aponta que alguns autores
demonstram existirem no Brasil apenas registros que remetem aos das classes hegemônicas.
Estudos recentes contestam esta visão dualista da sociedade colonial e
nomeiam formas alternativas de família que teriam sido ocultados pela
historiografia, calcada em poucos autores que descrevem apenas o modelo
dominante de organização familiar. (BRUSCHINI, 2000, p. 68).
Essa citação demonstra a importância do método de história oral utilizado para a
pesquisa empírica, como também nos adianta sobre os modelos de família ideológico que estão
no imaginário e os modelos reais que aparecem nas narrativas.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 102
3.2 AS NARRATIVAS
A seguir serão apresentados os registros
21
escritos, frutos da transcrição da fala das
professoras, que doaram suas histórias para esta pesquisa. Cada narrativa é acompanhada de
uma introdução sobre como a pesquisadora se relacionou antes desses registros com cada uma
das colaboradoras. Esse elemento é importante, pois no momento seguinte ao encontro e
gravação essas vidas e relações passaram a ter um novo significado, como aponta Bosi (1998).
Compartilhar a sua história de vida e lembranças é uma experiência única, mesmo que nessa
experiência se busque as marcas registradas pelo tempo que passou, o momento desse mergulho
no tempo é um momento presente de reencontro com experiências da memória. A pesquisadora
que registrou as narrativas e que pretende, pelo resgate da memória, ouvir vozes muitas vezes
silenciadas passa a integrar, portanto, esse processo.
3.2.1 PROFESSORA PAULA
Professora Paula, 41 anos, professora do ciclo I.
O primeiro contato da pesquisadora com a professora Paula foi no início do ano de
2006, quando foram nomeadas professoras de educação básica, da Secretaria Estadual de
Educação, na mesma escola, na cidade de Itaquaquecetuba. Entretanto, esse contato foi rápido,
pois logo a pesquisadora foi transferida provisoriamente (pelo artigo 22) para outra cidade, indo
exercer atividade em outra unidade escolar. Três anos depois, se reencontraram na mesma
escola de Jacareí, onde a pesquisadora é atualmente coordenadora.
A decisão de convidá-la para colaborar na pesquisa com a sua história aconteceu,
principalmente, pelo fato de Paula, além de trabalhar nas escolas do estado, acumular um cargo
de professora na Secretaria Municipal de Jacareí, atuando no Abrigo Municipal da cidade.
Intuindo que essa experiência poderia trazer uma vivência com relação ao assunto, na sua

21
Todos os nomes foram substituídos para preservar as identidades das narradoras e das pessoas por elas
referidas. A transcrição dos textos foi feita de modo a preservar a linguagem na forma como foi falada,
preservando a fala coloquial, quando utilizada.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 103
história de vida, e interessada em trazer para esta pesquisa como isso afeta a pessoa, a partir do
seu próprio olhar, a pesquisadora fez o convite à professora Paula.
Até o momento da narrativa, a pesquisadora tinha apenas essas informações sobre a vida
de Paula. Ao convidá-la, a professora abriu um sorriso, aceitando imediatamente. A narrativa
foi feita na Instituição (Abrigo), no dia 17 de junho de 2009. Iniciou às 8h50min e teve a
duração de 36 minutos.
Quando questionada sobre: Como a violência doméstica contra a criança lhe toca?
Conte a sua história. Buscando elementos na sua história de vida, ela fez a seguinte narrativa:
Bem... Trabalho há 20 anos na Prefeitura Municipal de Jacareí. Entrei na prefeitura...
Sou professora, trabalhei oito anos em sala de aula de educação infantil e depois
trabalhei três anos, como agente social e professora. Retornei a professora novamente
então, estou até agora. A violência doméstica influencia muito o meu trabalho.
Principalmente na questão da escola, que a última que eu dei aula, por ser o Barão de
Jacareí é uma escola de inclusão, onde inclui várias crianças abrigadas. Então a gente
convive com crianças que foram retiradas da família por conta da violência doméstica,
em função deles terem sofrido esses maus-tratos, eles são meio que excluídos pelo
grupo, porque ele acaba sendo seletivo e essas crianças... É muito difícil trabalhar a
inclusão!
A escola não está preparada para receber este tipo de criança, por mais que o professor
tenha boa vontade, a Direção e a Coordenação não sabem administrar o fato de eles
serem mais agressivos que os normais, mais hiperativos que os normais, terem sérios
problemas de conduta e de fala. Eles ficam todo o momento chocados com a fala que
eles trazem. Sem saber, eu acho... Que por falta de conhecimento ou, às vezes nem por
falta de conhecimento, mas por terem padrões de comportamentos que eles acham
normais, não de relevar, mas entender que isso é uma forma de defesa. Isso para a
gente é muito difícil, porque essas crianças têm uma difícil aceitação na escola. Hoje
trabalhando no abrigo, eu sou chamada toda semana na escola, por conta de que
mandou tomar naquele lugar, falou pra fazer tal coisa. Eles se sentem ofendidos como
se fosse pessoal. Eles não têm noção de que esses alunos são assim por conta do
histórico escolar deles. Isso em todos os níveis. De primeira a quarta, de quinta a
oitava, acontece no abrigo de pequenos, acontece...
Tudo deixa eles muito extasiado. É uma dificuldade muito grande do professor lidar
com esse aluno com dificuldade. Porque além de tudo, o que acentua mais? A grande
dificuldade de aprendizagem porque eles são alunos de vivência de rua e criança de
vivência de rua, ela não tem, eles não têm tempo de estudar. Porque qual é o grande
conhecimento dela? O da rua. E na rua ele aprende a falar palavrão e aprende um
monte de coisas que eles não sabem nem o significado. E para quem escuta é como se
aquilo fosse uma afronta. Então tem uma grande dificuldade de trabalhar a escola e
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 104
essa violência doméstica. Ela acha que isso é um foco separado. Que a criança entra
para a escola, ela tem que estar, como falam para os professores, tivesse que deixar os
problemas em casa e que a criança tivesse que ser dividida em duas. Ela é uma na rua,
na vivência que ela tem e na hora que ela estivesse na escola, ela teria que se moldar
aos padrões e não é assim que funciona. Então a gente tem uma grande dificuldade de
colocação desse aluno num contexto.
Enquanto professora, os alunos que eu tive neste contexto, tentei minimizar o máximo
possível, levando o grupo a entender o problema daquela pessoa, nos momentos em que
ela não estava na sala e fazer um movimento de ajuda e entender o processo que ela
estava passando e colocar para eles que não é fácil aceitar o outro como ele é. Não é
fácil aceitar palavrão, não é fácil aceitar ser batido. Mas a gente tem que aprender que
a gente nunca vai passar o que eles já passaram. Na maioria das vezes surtiu efeito.
Mas as crianças que a gente tem, que já ficou caracterizado pela realidade do abrigo.
Talvez por eles terem apanhado muito, eles têm rebaixamento, então eles ficam em
situação de afronta mesmo com as outras criaas Até por terem se sentido lesados, até
nisso. Porque nem aprender, eles conseguem. É como se o mundo tivesse tirado mais
uma coisa deles. Aqui a gente escuta eles falarem: ‘Deus não me dá nada, nem
inteligência’. Porque de todos os que têm aqui, nenhum deles tem um nível de
aprendizagem que a gente possa dizer normal. Nos padrões que a gente daria de
criança cinco ou seis, não tem. Então, o que acontece? Sofre um processo de exclusão
muito grande.
A escola não está preparada para recebê-los. Dentro do contexto de sala normal, eles
são sempre focados e colocados em evidência. A gente já teve problema do professor
falar assim: ‘Olha lá, está vendo? Por isso que está abrigado.’ A gente tem que intervir.
O problema das escolas dos menores, de eles ficarem muito em evidência é ter que ir
para a escola, que não está preparada para recebê-los. A escola ainda tem um padrão
de que essa violência que ele sofreu é tipo ‘culpa da sociedade’ e ela não se inclui na
sociedade. [risos] Ela não é sociedade! Ela se coloca como setor a parte. Como se o
problema fosse só nosso.
Para vocês imaginarem, ontem eu fui a uma instituição, agendar uma avaliação
psicológica e ela me colocou o seguinte: ‘Se ele não tiver um papel, falando que ele é
deficiente mental, comprovado por um psiquiatra, eu não vou por ele aqui dentro.
Porque você já me falou como ele é’. Sendo que é uma instituição preparada para
receber esse tipo de criança. Por quê? Porque tem um histórico de uma violência, que
apanhava muito e hoje ele projeta o que ele recebia, agora nos outros, por ser maior.
Então... A escola não quer ficar com este problema. Ela coloca assim pra mim: ‘Porque
eu vou ter mais um problema?’ Então eu acho assim: que também não acredito que essa
inclusão seja boa. Porque eu acho que eles... Eles acabam ficando muito expostos.
Então até que ponto essa inclusão? Eu sempre tive aluno incluso em sala e eu reparo
assim que inclusão é estar ‘em’. Não é estar participando de... Estar em sala para
dizerem: ‘Olha, ela tem um incluso’. É mais um na multidão. Mas estar em sala e sendo
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 105
trabalhado de maneira diferenciada, eu vejo poucas vezes. As salas são muito
numerosas e cinco dias na semana, eu conseguiria dar atenção duas vezes para ele. E
ainda porque eu reprogramava uma atividade diferenciada para os outros, para dar
atenção. Então receber uma criança com esse histórico de vida é muito difícil, uma
porque você tem que estar muito consciente de qual é seu papel ali, para não pegar no
colo e por sentado e cobrar dele essa aprendizagem que você sabe que é limitada, mas
também não deixar que ele perceba que ele não tem potencial. É um papel muito difícil
que a gente tem para fazer.
O fato de eu ter sido agente social e ter essa vivência dessa criança de rua, do que eles
passam mais de perto, me facilitou muito o trabalho, porque hoje eu tenho essa visão de
como deve ser feito o trabalho. Não digo que eu consigo na maioria das vezes, mas eu
sei como tem que proceder. Mas eu sei que é muito difícil. Numa sala de 35 alunos é
impossível. Por mais que o professor não tenha boa vontade, se ele não tiver
conhecimento da área, perceber como tem que ser feito, infelizmente a criança fica mais
um na multidão.
Eu acho assim que é frustrante, porque a formação acadêmica te passa um aluno
moldado, você vai receber um aluno padrão e que ele vai aprender. Ele vai vir de uma
família estruturada, você não vai ter problema nenhum e a sua função ali é ensinar. E a
gente vê que, na realidade, isso não acontece. Eu acho que pessoalmente me toca,
porque eu vejo como o outro não tem capacidade de entender o processo. Eu acho
assim, me incomoda expor muito essa criança, colocar em situações de risco até.
Colocando coisas pra ele que ele não tem capacidade de entender, porque, tipo, se o pai
não acompanha essa criança como acontece na vida escolar e isso é colocado para ela,
a todo o momento. A gente vê isso dos próprios colegas da gente e entre até a direção é
frisado. Está vendo? O Fulano não faz a tarefa, o pai não acompanha e não sei o quê.
Eles não têm esse nível de compreensão. Isso me afeta muito, por isso que eu tento,
dentro do meu trabalho, resolver tudo dentro do meu contexto, dentro do meu limite.
Porque a hora que você busca no outro, o outro não tem o mesmo entendimento que
você. Isso no começo me deixava muito frustrada, porque eu queria que o outro
entendesse da mesma maneira que eu entendo. E a gente vê que não é assim que
acontece. Cada um entende de outro jeito e com o tempo eu consegui aceitar mais isso.
Porque a gente começa a ter uma visão de perfeccionismo e a gente vê que ninguém é
perfeito.
E assim eu tenho um nível de..., para trabalhar, que tudo acontece do jeito que eu
estipulei e se isso não acontece, acabo me frustrando. Então, para que isso aconteça, eu
faço que a coisa aconteça dentro do meu limite de atuação. Para que eu não tenha que
depender do outro, para que as coisas aconteçam. Por quê? O contexto em que a
criança vive para a escola, para quem está na frente, na parte de gestão, não é muito
importante, pelo menos é o que me passa. Eu acho assim, que a criança é mais um
número.
Você não pode perder aquela criança, porque ela é alguém. Ela conta um número para
a escola. Não existe aquela visão da criança como um todo, que ela é limitada, que
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 106
alguns aprendem uma determinada habilidade, outros não; que a criança apanha em
casa e se ela não aprende é porque alguma coisa pode estar acontecendo. Se a criança
chora, às vezes: ‘Ah! Já falei pra ele, não queria entrar’, [imitando como as professoras
falam]. E você vê e conversa, pergunta: ‘Por que você não quer entrar?’ ‘Aí professora,
é que hoje a minha mãe foi embora de casa, largou meu pai, os dois se pegaram e eu
fiquei no meio da briga.’ Não existe essa: ‘Mas ele não quis falar nada pra mim’. Não
existe. Veja uma fala: ‘Ah! Mas ele não quis falar nada pra mim’, nem se tentou e já se
criou uma..., uma conduta, um padrão de que ele não quis ficar, porque é ruim.
Não se consegue que a escola tenha uma visão mais humanista. Ela tem uma visão de
que ele é mais um na multidão. Para a escola, ou ele aprende, ou ele não aprende; ou
ele é azul, ou ele é vermelho. Isso me toca muito. Mas eu acho que com o tempo a nossa
formação tanto acadêmica que a gente começa a estudar mais, a ler mais, a fazer
cursos, vai se aperfeiçoando. Você vê que o sistema contribui para isso. O sistema que a
gente vive hoje é um sistema de ganância de ter e não ser. Eu acho assim, que, por
exemplo: quando eu tinha a idade deles, eu tinha uma família que não era padrão.
Porque meu pai morreu muito cedo e ficou minha mãe, trabalhando em São Paulo e
minha vó e meu vô. E eu tinha uma família estruturada. E eu ia pra escola com regras,
tinha que cumprir regras, não tinha essa coisa de dar. Coisas para se fazer. Não tinha
esse sistema de troca.
Hoje se você pensar, o pai e a mãe sapeca em casa, mas depois pra ir pra escola, ele dá
alguma coisa em troca. Você entendeu? Então a família perdeu os valores. Ela não
existe como célula. Ela existe simplesmente como família. Que simplesmente põe no
mundo e que não pode dar atenção porque trabalha muito. Porque eles não têm noção
de que isso é importante. A meu ver, cobram muito e querem um retorno. Depois,
quando acontece dessa criança sair de um caminho dito normal, acontece o que a gente
vê aqui. São as crianças que a gente tem abrigada, porque a família não dá conta
porque ela não conseguiu se estruturar como família, então eu vejo o quanto isso... Eu
vejo quando eu era pequena. Eu vejo como a coisa funcionava. Essa coisa do sentar, do
conversar e mostrar coisas simples e ensinar coisas simples, que no mundo, como as
coisas funcionavam. Que a gente tem que trabalhar para conseguir as coisas. A gente
tem que lutar.
Essas crianças, já não têm essas perspectivas. Eles acham que aqui, eles falam que a
instituição tem que dar tudo. ‘Eu sou filho da instituição’. Eles não têm família. Então
eles cobram muito. Porque eles acham que ‘Ah! O prefeito tem que pagar pra mim, eu
estou aqui’. A família passa essa noção. Ela descumpriu de seu papel, e a gente vê que
a escola também. Ela tenta em alguns momentos assumir o papel. Ela não dá conta.
Então, o que ela faz? Ela tenta assumir o papel da família, de estar cobrando essa
participação e, ela não dá conta e ela se perde no papel de ensinar. Porque como eu
vou ensinar alguém que tem tantos problemas?
Então, isso eu sinto muita dificuldade na escola. Eu acho assim, que ela, a escola, ela
tem que saber que ela está ali pra ensinar, mas que ela tem que entender que o aluno
está ali dentro de um contexto, mas não perder seu foco. Porque senão, ela fica a todo o
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 107
momento minimizando aquele aluno. Acho que a escola do passado dava mais conta
porque ela tinha o seu papel muito definido. A gente não vai entrar no mérito da
questão de como isso era feito, mas acho que o processo é outro e os tempos são outros,
mas ela tinha claro que estava ali para ensinar. Hoje, a escolar não tem isso claro. Ela
tem claro que ela tenta resolver um problema de família que ela não consegue. Ela não
consegue também fazer o seu papel, porque daí, tudo o que acontece de negativo, ela
joga que a família não é capaz de resolver. Então eu acho que isso fica muito
complicado.
Então quando você vê as pessoas falam assim. Esse aluno estava comigo e não dava
trabalho, foi para outro e dá trabalho, é o foco de visão que você tem sobre o aluno, em
nível de expectativa. Eu cobro dele o que ele pode me dar. Então é isso mesmo. É saber
o que este aluno pode me dar e o que ele não pode. Eu acho que são níveis de
expectativa. Quando se avalia um aluno não é pra dizer que ele não sabe nada. É para
saber que ponto de partida você vai ter e que nível de expectativa você vai ter. Então
você vê que a escola, ela não tem isso. Ela em um nível de expectativa pra todos. Eu
nunca tive problema com esses alunos porque o nível de expectativa que eu tenho com
eles é dentro do que ele pode me dar. De um fato real.
Olha! Eu fui professora de educação infantil dez anos. E na Educação infantil, você vê
o pequenininho se estruturando, na formação, essa parte de alfabetização que hoje a
escola não resgata. A maioria dos nossos alunos. Por exemplo, eu converso muito com
a Lia, professora de Educação Física, porque a formação dela é muito boa e eu vejo
que todos os meus alunos que não aprendem têm problema psicomotor. Eles têm
problemas na parte motora. Então você vê que eles não foram trabalhados na parte
psicomotora, então isso eu trouxe da educação infantil. Quando eu trabalhei como
agente social e na parte de educação, eu via aquele que não aprende e que tinha
vivência de rua e porque não aprende. Então isso me trouxe a parte emocional e o
quanto é importante trabalhar a parte emocional do aluno.
Quando eu vim para o fundamental eu tive a oportunidade de fazer muitos cursos. Na
época que saiu os PCN, a prefeitura investiu muito e trouxe todos os profissionais que
fizeram os PCN’s para trabalhar com a gente. Então, ficou claro a intenção e como ser
trabalhado que não era uma caixinha fechada. Eu lembro que quando eu fui fazer
magistério, a minha mãe falava assim para mim: ‘Você é obrigada a fazer magistério.
Depois você vai fazer o que você quiser, mas você vai fazer magistério’. E obrigou.
Então eu fiz quatro anos xingando ela de A a Z. Depois eu fiz engenharia. Faltando dois
anos eu vi que não era aquilo que eu queria. Voltei, prestei um concurso público e
entrei na prefeitura. E daí eu fui me apaixonando e vi que realmente era aquilo que eu
queria fazer. Mas, é um processo. Você tem que viver este processo de se apaixonar
pelo que você faz. Porque aí você faz bem. Você tem essa necessidade de ficar, até altas
horas, procurando o que você vai dar. A sua cabeça parece um quebra-cabeça e você
vai juntando as peças. Então eu acho que essa paixão é importante, em qualquer
profissão. Se você está no magistério simplesmente pra receber mais um salário, então
não tem por quê.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 108
Eu tenho prazer em estar lá na escola que eu estou. Até porque eu sou uma pessoa que
estabeleço as minha metas Agora a escola não dá conta, ela se fecha, ela só está pronta
para receber alunos moldados. Ela não dá conta, ela se fecha dentro dos padrões que
ela coloca. Ali é a barreira dela e ela tenta o quê? Ela tenta tapar o sol com a peneira.
Ou tipo: ‘Vamos passar esse aluno coitado. Olha o que ele passa’. E não pensar. Ele
tem um histórico, mas o nosso papel aqui é ensinar.
Então vamos ver o que a gente consegue fazer. Vamos tentar o melhor. E isso é o que a
gente está lá pra fazer. Porque eu acredito que a criança que é violentada, não pode ser
violentada mais uma vez na escola. Porque quando ela passa por esse processo de
coitadinho, ela está sendo violentada mais uma vez, só que de outra forma.
A gente entende, a maioria das pessoas entende como violência doméstica, apenas o ato
de apanhar. Aquela psicológica que você vai falando na cabeça da criança e vai
incutindo nela a incapacidade: ‘Você não serve para nada mesmo’. Então isso também
é uma violência e a escola não tem essa visão. Ela tem a visão só do externo. ‘Ele
apanha. Ah! Vamos passar ele para frente’. Não é assim que funciona.
Então a escola, acaba cometendo outra violência contra esse aluno. É isso que eu tomo
muito cuidado: resgatar nesse aluno a autoestima e mostrar que mesmo dentro de um
contexto ruim que ele está atualmente, isso não vai ser permanente. Pois tudo muda.
Então, se ele pode dar cinco, eu vou cobrar cinco dele e não vou cobrar dez para deixar
ele embaixo. Então você vê que esse é o processo. Eles sabem quando você está
premiando uma coisa que ele não faz. E a autoestima dele fica pior. Eles se sentem
muito mais retraídos, muito mais com a autoestima baixa. É ilusão nossa achar que ele
não tem conhecimento disso. Então é isso. Eu espero ter ajudado.
Ela termina a narrativa, muito segura, com um sorriso de satisfação.
3.2.2 PROFESSORA MARLI
Professora Marli, 37 anos, é mãe de um menino de dois anos.
O primeiro contato se deu em abril de 2009, quando a pesquisadora assumiu a
coordenação pedagógica da escola em que trabalha a professora Marli, na cidade de Jacareí.
Profissional preocupada com a negligência doméstica sofrida por seus alunos, por muitas vezes
solicitava a presença da família para tentar alguma solução, o que nem sempre acontecia. No
ano de 2009, ela era regente de uma sala de primeiro ano do ensino fundamental, ciclo I. É mãe
do Eric (nome fictício) que tem dois anos e professora da Secretaria Estadual da Educação. Ao
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 109
ser convidada, hesitou e demonstrou surpresa com o convite, aceitando em seguida. A narrativa
foi feita em sua casa, no dia 17 de junho de 2009 e teve inicio às 9h57min, tendo a duração de
42 minutos.
Ao responder a pergunta: Como a violência doméstica contra a criança lhe toca? Conte
a sua história. Buscando elementos na sua história de vida, ela narrou o que segue:
Hã... Falar um pouco da minha história? Bom, eu nasci numa cidade chamada
Quebrangulo, em Alagoas. O nome pode parecer estranho, mas lá nasceu Graciliano
Ramos, um dos autores, assim, que eu gosto muito. Não conheço a minha terra natal,
porque meus pais vieram pra São Paulo e, eu acho que eu tinha cinco, quatro para
cinco anos. Então, as recordações que eu tenho de lá são muito vagas.
Nós viemos para São Paulo, capital, e da minha infância, o que eu me recordo, foi lá, já
em São Paulo. Do Nordeste eu tenho poucas recordações. Eu, não me lembro de muitas
coisas de lá. Conheço por fotos, por vídeos e familiares, mas nunca voltei, pra
conhecer. E a minha trajetória em São Paulo, eu me lembro de quando nós chegamos.
Nós morávamos na área rural lá. E tinha as cidades também. Quando tinham festas, às
vezes, nós íamos. Então, o que me impressionou muito foi o movimento de São Paulo.
Eu lembro que eu era criança, mas nós íamos de ônibus, na viagem longa, e aquele
monte de gente, aquele monte de luz, aquela barulheira, foi o que me impressionou. E
eu já comecei, a partir daí, eu já cheguei e no começo do ano, eu já comecei a ir à
escola, na primeira série. Era bem próxima da minha residência e era assim. Quem me
levava era a minha mãe e eu tive dificuldade para ficar na escola. Então, todo dia eu
inventava uma história pra voltar. Um dia eu estava com dor, outro dia eu estava... Não
é? E então eu peguei uma pneumonia também, eu tive que me afastar.
A minha primeira série foi um pouco complicada. Eu não cheguei alfabetizada e eu
lembro que a professora trabalhava o Caminho Suave, que era a cartilha. Eu gostei da
cartilha, achava bonita a capa, tudo eu tinha muita vontade de ler. Aí um dia e eu fui à
biblioteca desta escola para pegar um livro e a bibliotecária disse assim pra mim: ‘Se
você sabe ler, então leia isso, pra mim.’ Então eu falei: ‘Meu Deus! Agora ela me pegou
e, eu não vou poder levar o livro, porque eu ainda não estou alfabetizada’ Aí, eu falei
assim: ‘Mas eu não consigo!’ ‘Não? Então você não vai pode levar o livro’. Então eu
sempre gostei muito de leitura.
Na família eu sou a penúltima de uma família numerosa, nós somos em 11 filhos, sete
mulheres e quatro homens. Minha mãe já foi mãe, na fase final da menstruação [risos] e
meu pai foi pai-avô na verdade com quase cinquenta anos. Então, eu sou a caçula
praticamente da família. Meus irmãos, minha irmã, a mais velha, ela já tem cinquenta e
quatro anos. Então, essa convivência em casa, eles eram mais adultos, já trabalhavam
fora. Ficava eu e a minha mãe que tinha a neta, que era a filha mais velha da minha
irmã, que ficava junto, também. Então era uma convivência mais com adultos e essa
minha sobrinha, que era mais ou menos da mesma idade.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 110
Falar da minha infância... A gente assim, eu não tive, muito contato com crianças que
tiveram problemas com violência doméstica, porque nesta época eu morava, em uma
viela e todo mundo brincava muito. Então, eu fui uma menina que brinquei muito na
rua, eu brincava de tudo: [risos] de bolinha de gude, de carrinho de rolimã, queimada,
basquete... Na minha residência nos finais de semanas sempre tinha muita gente e muito
contato com parentes, familiares, amigos. Então, eu não vivenciei esse contato, com
criança. Mas a violência que eu presenciei, é de adulto com adulto. Por exemplo, o
marido que agride a esposa verbalmente, ou oralmente, ou fisicamente, mas em relação
à criança, eu acho que naquela época a gente tinha assim, o privilégio de brincar e
muito. Então eu acabei assim, a gente não via.
Hoje em dia é que se comenta mais, que fala mais, né? Eu acho que nessa época já
existia, é claro que sempre existiu. Mas as pessoas, às vezes, não falavam tanto e ainda
não tinha o ECA, que é o Estatuto da Criança e do Adolescente, que veio depois. Então
as pessoas sempre tiveram assim, eu acredito um tabu, para estar falando desse
assunto. Depois aí na minha adolescência eu já comecei assim, a fazer pequenos
trabalhos. Eu precisava para comprar os meus materiais, enfim. Aí eu fui cuidar do meu
sobrinho na casa da minha irmã. E assim eu sempre tive contato. Eu passei a ter
contato com a criança mesmo, eu acho assim. Sempre quis tratar bem e cuidar bem,
não só da criança, eu acho, do outro. Eu acho que aí entra uma questão de princípios,
de valores, porque eu via algumas coisas, nesse meu contato enquanto criança e
adolescente entre adultos, que eu não concordava muito na relação e daí eu quis tomar
como parâmetro para minha vida, outros preceitos, outros valores.
Na questão da educação, eu acho que a criança sempre tem que brincar ser bem
cuidada e o fato de ter filho é fácil, eu sempre falo isso, o difícil é educar. Enfim, já na
minha adolescência comecei a trabalhar em fábrica e, já foi outro momento da minha
vida. E assim já poderia trabalhar. Eu comecei como aprendiz com quinze anos em uma
fábrica, em São Paulo, chamada Nadir Figueiredo. Foi outro momento da minha vida
também, muito especial, e lá eu comecei a descobrir várias coisas em relação à vida
mesmo: você ter independência financeira, autonomia pra comprar suas coisas,
valorizar o seu dinheiro. Uma relação de amigos que eu fiz, muito gostosa e aí comecei
a conhecer outras coisas, assim, em relação à vida mesmo. Sair mais. Foi uma fase
muito boa também, na minha vida profissional. Eu cresci nessa empresa, conquistei
alguns cargos lá. Eu entrei como aprendiz, primeiro eu passei como operadora de
máquina e depois eu saí como inspetora de qualidade. Eu fui conquistando espaço
dentro desta empresa.
Aí aconteceu outro momento da minha vida, que daí foi assim: Meus pais já estavam
bem de idade e passando por um processo de saúde muito complicado e já estavam
aposentados e nós tínhamos parentes que moravam em uma cidade do interior de São
Paulo que chamava Santo Expedito, que é próximo a Presidente Prudente. Por decisão
deles, decidiram se mudar. Eu fiquei ainda, trabalhando nessa empresa. Eu fui morar
com uma irmã mais velha que já tinha a casa dela. Eu fiquei junto com eles e meus pais
se mudaram. Para mim foi um momento difícil, porque eu nunca tinha me separado
deles.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 111
Cortar o cordão umbilical com a minha mãe foi difícil. [riso nervoso] Eu tinha um
vínculo muito forte com ela. Foi um momento complicado. Esse cordão umbilical! Mas
enfim, eu falava todo dia por telefone. Eu ligava. Na verdade minha mãe estava com
cinquenta e quatro anos e meu pai era doze anos mais velhos que ela. Então ele já
estava com [pausa] doze..., bem mais velho! Quase beirando os setenta. E quando
chegou lá minha mãe teve um processo difícil de adaptação. Porque aqui em São Paulo,
eram muitos filhos próximos e lá tinham dois só e ela sentia falta. Enfim, a gente, nós
íamos... Nas férias, feriados, a gente procurava estar próximos, mas aí foi um elo que
foi cortado. E após ela estar lá um ano, dois anos, ela passou um momento assim: Meu
pai, que era doente, que tinha assim, vários problemas, teve um princípio de enfarto, foi
internado, depois deu um AVC, que é o Acidente Vascular Cerebral, ele perdeu alguns
movimentos tinha alguns problemas pra falar. Depois ele recuperou, voltou a andar
com dificuldade e falava. E minha mãe sempre saudável.
Quando foi em julho de 1994 ela teve um problema, de manhã quando ela levantou,
acabou passando mal e entortou a boca. Foi levada para Presidente Prudente. Me
ligaram na empresa e falaram assim: ‘Olha, você tem que vir porque a sua mãe passou
mal e está internada’. Mas eu falei assim, como anotaram o recado: ‘Não é minha mãe
que é doente, é meu pai’. Enfim, aí fui e quando cheguei lá, ela tinha passado por um
processo de AVC. Acidente Vascular Cerebral. Isso aconteceu em nove de julho e
quando foi no dia dezenove minha mãe veio a falecer. [choro] Foi muito difícil pra mim.
[pausa, choro] Então eu voltei. Daí foi muito complicado toda essa perda e o que
aconteceu.
Eu tive que me desligar da empresa e voltei pra cuidar do meu pai lá. Eu mais fiquei
com ele, um ano, dois anos e aí ele veio a falecer também. E aí, o que aconteceu? Aí eu
entrei na faculdade, na época ele era vivo ainda, na UNESP em Presidente Prudente e
foi muito assim... gratificante. Porque você sair de uma escola pública e entrar em uma
estadual, pra mim, foi muito gratificante. Eu nem imaginava, eu passei em uma posição
até privilegiada entre vinte e dois, tinha bastante gente concorrendo, apesar de que este
é um curso de um ano, não é daqueles mais concorridos, mas é numa Universidade
Pública. Então, você chegar a isso é uma conquista. Enfim, eu comecei lá em 97 e em
98 eu conheci o que é o meu ex- esposo. Casamos em 2000 e ficamos quatro, cinco anos
casados e aí, eu falar de maternidade, pra mim, é uma coisa muito assim, linda. Porque
eu não podia ser mãe. E foi uma luta pra engravidar, fiz um tratamento e Deus me
presenteou com o Eric. Então eu acho que é um privilégio pra eu ser mãe.
Quando eu falo assim da questão da criança, em violência, que é o tema que você trata,
pra mim, assim, é uma coisa muito..., é assim, que me traz indignação quando vejo.
Tanto da parte, no seio familiar, ou seja, do pai ou da mãe. Porque eu acho que é um
privilégio, um presente de Deus, e eu acho que são heranças mesmo. Assim, como eu
não pude ter, eu me preparei pra isso. Eu quero dar o melhor e não é em termos de
valores materiais e bens. Nada disso, eu acho que o maior legado que a gente deixa é
uma educação, amor, coisas saudáveis e assim, construir regras no cotidiano. Eu acho
que isso aí é o mais difícil. Educar mesmo e hoje, a gente se depara com muitas
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 112
barbaridades. Todas as esferas da..., da..., da Educação mesmo. A gente como
professora também.
Qual criança que é bem tratada que tem problema? Eu sempre pensei assim, que a
gente percebe. A família não é tudo como tem a fala do dito popular, mas pra mim é.
Não aquela família que é igual você comentou, [risos] a família Doriana do comercial,
que senta todo mundo na mesa Mas quem está presente na vida desta criança tem que
passar alguma coisa de bom pra ela. E seja avó, seja tia, seja o avô, seja o pai, quando
está presente, você percebe que esta criança caminha muito melhor em sala de aula, ela
tem um desempenho melhor, ela é mais afetiva, ela é mais segura. Ela se desenvolve
melhor, não tem medo das coisas, de arriscar, porque ela percebe que tem sempre
alguém pra cuidar dela. E esses valores eu procuro passar para o meu filho e para os
meus sobrinhos, onde eu estou, quando eu tenho oportunidade de estar falando, eu falo
destas coisas.
O programa de televisão que ele assiste, eu me preocupo, porque através do programa
estão passando algumas mensagens pra ele. A música que ele escuta, então, a gente tem
que se policiar muito nestas questões. Em todo momento você está educando, eu como
educadora, eu como mãe, assim como eu fui educada, minha mãe passou, assim,
valores muito fortes pra mim e era uma mãe assim... Aquelas famílias que a gente fala:
Matriarcal. Que ela que dominava tudo ali, uma pessoa extremamente sábia. Então não
precisava falar muito. Porque não é através da fala, é através do seu gesto. Educa-se
dando exemplo. Não falando muito. Procurava falar o menos possível e dar exemplo o
máximo possível, então eu aprendi assim com a minha mãe. Ela era assim.
Às vezes você falava tantas coisas, mas você não concretiza aquilo que você falou. Não
adianta eu discursar uma coisa e praticar outra. Então ela era assim: às vezes meu pai
falava tanto, mas a gente não ouvia porque ele falava, mas ele não vivia aqueles
princípios que ele falava. Ele tinha outros. Ele tinha uma fala e fazia outras ações. Por
exemplo, ele bebia. Era uma pessoa que bebia muito e ele falava para os meus irmãos:
‘não beba!’ Só que não adiantava ele falar ele tinha que dar o exemplo, você entende?
Uma coisa assim que é do cotidiano... A gente vê muito nas famílias, todo mundo bebe,
todo mundo fuma, por exemplo. Então é isso que eu tento passar na minha sala de aula,
como educadora, eu prezo muito pelos valores. E quando eu chamo os pais, a gente
tenta, não que eu vou ter que me envolver na vida deles, mas passar alguns princípios
que eu acho que são importantes pra complementar a sala de aula. Isso que eu tento
viver na vida do Eric. Não é fácil não, porque você corrigir, você pedir, que se façam
algumas coisas é dolorido. Muitas vezes ele não quer fazer.
Regra é difícil, valores são difíceis. [risos] Não é? É legal você viver a la vonté [sic],
não é? Fazer de tudo, mas assim a gente tenta manter uma rotina de horários, de
momentos, tipo o que pode e o que não pode. Eu acho que, hoje, a violência doméstica
se perde muito, porque tudo é descartável. Então o principio do que é humano. Você ter
e se relacionar com o outro, todos esses valores foram se perdendo muito. Então hoje,
tudo é descartável. Então, se perdeu muito isso: a pessoa. Não deu certo eu largo. Não
está dando muito legal, então vamos desmanchar tudo. E falta sensibilidade, falta amor.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 113
Falta muita coisa assim, que eu acho que independente das relações. Você não é
obrigada se relacionar, feito meu casamento, por exemplo, não deu muito certo, mas eu
acho o filho...
Iguais muitas falas que chegam à escola ou em muitas escolas que eu já participei:
‘Ah!... eu não to aguentando mais... mas, a criança só tem sete anos. Vou entregar pro
conselho. [risos] Vou entregar paro avô vou entregar para o pai.’ Mas, por exemplo, eu,
quando fui ter o Eric, foi uma opção de vida minha. Eu não podia ter, mas eu quis ter,
ele não foi um acidente. Mesmo que fosse, a partir do momento que ele está aí, eu que
vou ter que dar conta. Eu acho que são decisões que nós tomamos. Deus nos dá livre
arbítrio para nos tomarmos decisões nas nossas vidas. As pessoas não têm muito
presente isso: ‘Ah... Eu não sei o que faço’. A partir do momento que está ali, quem tem
que resolver é você. Então jogam sempre a responsabilidade para o outro, para as
instituições públicas.
A gente vê essas nossas crianças hoje, tudo dentro de instituições. Então quer dizer que
o pai e a mãe precisam trabalhar. Tudo bem, o pai e a mãe precisam trabalhar e aí,
quando eles chegam, eles querem compensar com outras coisas. Em vez de eles
compensarem, eu penso, olhando o caderno, por exemplo, da criança que já estuda,
dando o amor, dando a afetividade no momento que eles estão, ele compra com
brinquedo. Você quer conquistar através da troca. Eu valho! Quer dizer, então eu não
posso ficar muito tempo com o meu filho, então se eu der um carrinho está bom? Então
é nessas coisas que eu penso. E a afetividade? E o abraço, não é mais importante? O
amor, o carinho?
A gente vê nossas crianças assim, dentro da escola. Muitas vão pra instituição de
manhã, voltam, almoçam e já vão pra escola à tarde. Chegam à noite e estes pais estão
extremamente cansados, praticamente as crianças já vão dormir e tem pouco contato no
seio familiar. Aí não tem o momento de estudo, não tem o momento do pai sentar com a
mãe pra fazer uma leitura, não tem alguém pra conversar. Hoje é tudo individual, cada
um tem sua televisão de preferência no seu quarto, assiste ao seu programa e pouco se
conversa. Na minha época era assim, era interessante porque você tinha esses
momentos. Por mais que as famílias eram bagunçadas, desorganizadas, tinha o
momento de sentar e conversar; tinha o momento de sentar-se à mesa e almoçar; tinha
o momento de falar de um problema.
Eu valorizava os avôs. Eu lembro que quando os meus avôs falavam que vinham do
nordeste... Vixe! Era festa. Valorizava os mais velhos, porque isso são os valores que
meus pais passavam, valorizava a pessoa que não tinha. Eu lembro, assim, de umas
coisas assim, que a minha mãe fazia que, por exemplo, a pessoa vinha... Tinha um
senhor de rua que não tinha comida e ele sempre vinha e ela até guardava o pratinho
dele e dava o almoço. Quer dizer ela não colocava dentro de minha casa porque, tem
que ter alguns cuidados também, mas ela se preocupava com os outros. Hoje não, você
não tem muitas pessoas se preocupando.
Você vale quanto que você tem. Você tem um real, você vale um real. É o ter, o ser se
perdeu. Se você tem cinco reais é cinco reais que você vale. A sociedade é assim. Então,
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 114
a gente tem que fazer uma rede de relações. Penso eu, que é o que eu fiz, com pessoas
que, às vezes, não são tão presas a esses valores que é muito difícil você encontrar. E eu
procuro assim, de bom caráter, ter sempre pessoas do meu lado assim. E sempre em
sala eu procuro deixar claro essa visão do ser e não só do ter. E na formação, eu acho
que a formação é desde o ventre. Eu me preocupava na minha gravidez com o Eric,
desde que eu fiquei sabendo. Exercício como o Eric, música a qualidade da comida,
porque é outro ser que está vindo. Eu me preocupei com tudo isso. Em relação ao que
eu podia e ao que eu não podia e quando ele veio também. Toda uma preparação pra
ele.
E aí aconteceram algumas coisas dentro deste casamento meu, que eu não esperava,
mas nem por isso, no caso da separação do pai dele, mas nem por isso, eu deixei de
amar o Eric. O Eric foi uma conquista uma coisa que eu sonhei e o pai também a
mesma coisa, entendeu? Isso que eu falo: Não é porque está junto ou está separado. O
importante é o papel, é você cuidar bem daquele bem que Deus te deu. E hoje o que a
gente vê não é assim. É um jogando para o outro. Falam assim: ‘Mas o pai não dá
atenção’; ‘Não tem tempo’. E eu, enquanto mãe, e, ou vice-versa? E eu, enquanto pai?
Entendeu?
Então isso é a violência doméstica. Então às vezes a gente pensa assim: muito é a
violência doméstica que agrediu, que bateu, que espancou. Isso é a parte externa,
externa da coisa que os olhos humanos olham e vêem. E aquela tortura interna,
emocional, afetiva, que não se fala na mídia, que a gente não vê? Eu acho que isso
machuca mais do que você. Não que, eu estou dizendo que o espancar é interessante,
mas, às vezes, têm muitas e muitas crianças, em muitos lares, até mesmo na nossa sala
de aula mesmo, que são agredidas, que são violentadas, todo dia com palavras, com
humilhações, com falta de atenção, por falta de amor, por falta de afeto. Então também
é uma violência doméstica. Não é só a violência que marca fisicamente, mas, a
violência emocional.
E... [engasga um pouco nas palavras] e..., e... Eu tento trabalhar com eles e você
percebe, quando a criança é segura, quando ela é tratada bem, quando ela tem
afetividade, quando ela tem amor e quando ela é vista e querida pela família. Porque as
crianças que não são, são carentes em sala de aula. Eles sempre procuram algo mais.
Não é só você ensinar e ele aprender. E quando eu faço minhas reuniões eu sempre
ouço assim: ‘Quando que ele vai escrever? Quando ele vai estar lendo?’ E assim se
perdem outras questões. É para se pensar: ‘Mas, porque ele não aprende? O que é que
está faltando na minha casa?’ A culpa é sempre do educador. Sempre é da instituição.
Eu estava lendo um livrinho que eu achei muito interessante e fiz uma reflexão que, é
verdade mesmo. A mulher engravida e são ambos, tem um parceiro. Se ela não quer,
tem a pílula do dia seguinte. E as instituições, elas dão tudo. As pessoas se voltam muito
pra isso, principalmente nas classes mais baixas, falando das questões sociais, mas falta
muito o educar cultural. Porque o governo investe nestas questões financeiras, mas a
mentalidade não muda. Então, por exemplo, se eu engravido tenho a pílula do dia
seguinte, se eu quero ter relações sexuais antes da idade própria, eu tenho camisinhas,
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 115
se eu engravido e tenho esta criança e não posso cuidar, eu tenho a bolsa escola, a
bolsa família, a bolsa-gás, a moradia. E culturalmente, eu digo, isso vai se perpetuando,
de geração em geração, por exemplo.
Você vê que é muito difícil. É um círculo vicioso. ‘A minha mãe foi doméstica e eu quero
ser também’, quando eu pergunto para as minhas crianças em sala de aula. Então tem
que trabalhar o cultural pra ela querer ser algo mais: ‘O meu pai é servente e eu vou
ser servente também’. E vai se perpetuando, então, culturalmente falando, eu acho que
tem que se investir na mudança de mentalidade e não só na questão de manter aquilo
que já tem. Porque, não que não tenha violência nas classes mais abastadas, não que
não tenha. Isso mesmo, eu acredito que até mais essa questão do ter. Porque é muito
mais compensado. Tem-se mais financeiramente.
Você vê esses jovens, adolescentes e pré-adolescentes, completamente perdidos. Em
termo de ‘o que eu quero ser’, ou ‘eu vou galgar a minha vida’, porque ao mesmo
tempo em que ele tem tudo, ele não tem nada. Falta tanta coisa... Eles se perdem um
pouco. Em questões de violência também. Você pega esses jovens de classe média alta
que pegam um mendigo no meio da rua e queimam. Por que será que eles fazem isso?
Onde começou essa violência? De onde vem isso? Ou, eu estou lá no meio da rua e tem
uma mulher de bolsa que é empregada doméstica, vem outro e agride porque acha que
é prostituta. Quer dizer: E daí? E se fosse? É um ser humano, então quer dizer. Tudo o
que não condiz com o que a minha camada social diz que é interessante, o que é que eu
faço? Eu vou lá e descarto. Aí, entra a questão do descartável, do por que aos olhos
humanos. O sol que é bonito é aquele que eu vejo esteticamente. É só o estético? Por
que é ensinado isso.
‘Olha! Se não é do mesmo valor social, econômico que o seu, tem que cair fora’. E as
pessoas matam por isso. É uma loucura. Você vê jovens e adolescentes se perdendo.
Entram nas drogas, na prostituição, tantas coisas... E onde que começou isso? De onde
que veio essa violência? Onde que começou? Não é questão financeira, eu penso assim.
A gente vê tantas crianças que são de uma classe, não privilegiada financeiramente e,
que são homens e mulheres que a gente se orgulha. Então é mais uma questão social,
familiar mesmo, que eu penso que tudo começa. Eu acho, penso assim, que isso é
perpetuado de geração, para geração, porque a base que eu tive, por exemplo, por mais
que nos tivéssemos problemas em casa, porque meu pai era desestruturado por causa
do alcoolismo, mas minha mãe era uma pessoa equilibrada. E ela conseguiu passar
muitas coisas de valores.
Então quando você vai fazer alguma coisa, você... Por mais que... Às vezes, você não faz
por causa de uma palavra que ela disse lá, mas por causa do exemplo dela. Então,
assim eu acho que tem que educar, mesmo dentro dos princípios familiares. Enquanto
você não tem essa noção você, vai perpetuando isso, de geração para geração. Eu tive
uma família a qual a minha mãe primava muito por esses valores educacionais. Então,
a questão da violência doméstica, naquela época, não tinha muito que conversar, era
mesmo o agredir. Então se você fazia alguma coisa que não estava de acordo,
geralmente se batia, hoje em dia a gente conversa mais. A gente orienta mais, a gente
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 116
tenta dar um ‘castiguinho’ e naquela época não. Batia. Mas eu não me recordo da
minha mãe ter me batido muitas vezes.
Às vezes, ela era mais dura, ela falava e quando ela vinha bater, [risos] é por que nós
havíamos passado extremamente do limite. E, nem por isso eu fiquei uma criança
traumatizada. Porque ela batia quando era necessário e dizia o porquê. Não eram
aleatórios. Ela dava um ‘croc’. Hoje, porque o meu dia não está bom. Você não via
como violência? Não, era uma forma de ela reprimir alguma coisa que ela não estava
gostando. E até ela fazer isso, ela já tinha avisado muitas e, muitas vezes. Entendeu?
Quando batia. E hoje em dia se propaga tantas outras coisas assim que você. ‘Não pode
fazer isso. Você não pode fazer aquilo’, que se deixou a vontade. Então as pessoas
perderam a noção do limite hoje.
Então é que eu não posso mais bater. Ué! Não precisa bater! Não precisa agredir para
a criança entender, o que ela pode, ou o que ela não pode. É no cotidiano que ela
aprende. Você vai mostrando com suas ações. Não adianta nada eu falar com o Eric:
‘Não minta’. E você chegar a minha casa e eu pedir: ‘Vai lá falar, que eu não estou’.
Entendeu? E isso é nas pequenas coisas, nos detalhes. Não precisa estar agredindo seu
filho, tem que estar mostrando.
E a minha mãe fazia isso, ela batia quando estava no extremo. E você não via isso como
violência, como agressão. Porque ela estava bem ou não. Era uma forma de ela
corrigir. Tanto é que uma vez, meu irmão já era adolescente e ele admira minha mãe,
até hoje, por isso. E ele estava em uma rodinha de meninos delinquentes. Ela já tinha
avisado pra ele: ‘Eu não quero você com fulaninho e com cicrano. Porque, não quero.
Eles não têm uma boa índole e não vão levar você para o mau caminho’. Na época, meu
irmão teimou e foi. E ele já tinha dezesseis anos. Ela foi na rodinha, pegou ele e disse:
‘Eu sou sua mãe e eu tenho autoridade sobre você’. E bateu nele e meu irmão, hoje, é
um homem de Deus, um homem que pega as coisas certinhas e ele fala isso hoje. Ela
teve uma autoridade de mãe.
Ela fez ele passar por vexame? Passou talvez, por humilhação, perante os coleguinhas,
mas os amiguinhos passaram. Quem é que ficou? A minha mãe era a mãe dele. A raiz
dele estava lá na minha casa e ela foi e tirou ele e ele agradece até hoje. No momento,
ele chorou, esperneou, falou um monte, que foi humilhado. Entendeu? Hoje se perde
muito isso. Os pais ficam com medo. Mas, o que será que vai passar na cabeça lá pela
frente? Muitos têm essa preocupação. Mas você tem que pensar lá na frente. Nunca
tentar expor, humilhar, essas coisas. A gente preza muito por isso. Mas, se for preciso,
você, enquanto mãe, tem autoridade, e enquanto pai. E se perderem as autoridades, as
crianças não terão referência. Quem será que é a minha referencia? Eu não tenho.
‘Eu vou com a tia, ora eu vou com os avôs, ora eu vou com o pai, ora eu vou com a
madrasta, ora eu vou com fulano. Independente do meu filho, ele vai nos finais de
semana, para casa do pai dele. Os valores que eu dou para ele vão ficar. Eu acho que o
mais importante vai ficar, mesmo que deem outros lá. É igual eu falei com uma mãe que
nós atendemos. Ela dizia assim: ‘Mas meu filho é de outra cultura’. Chorou... Mas,
enfim o que acontece. Ele é de outra cultura, mas aqui na escola ele vai ter contato com
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 117
várias outras crianças, que eu não sei quem são, o que elas fazem, quais são os
conceitos delas, como se comportam. Mas por exemplo, o Eric vai para a escola e hoje
ele tem contato mais com outras crianças. Algumas coisas ele vai trazer de lá. Mas o
que vai ficar mesmo é o que eu ensino pra ele.
Eu não estou preocupada, se eu dou uma boa base para o meu filho na minha casa, ele
vai ter que ir pro mundo mesmo. Mas o que vai prevalecer é aquilo o que eu ensinei. Eu
acredito nisso. Se ele tem uma relação de confiança, se ele sabe que eu sou o elo mais
importante, se ele é uma pessoa que está dentro daquilo que eu mostro pra ele, ele não
vai se desviar. Vai ser muito difícil. Eu, ensino valores, assim, dentro da bíblia também
eu procuro ler com ele, eu acho que é fundamental, dar uma base e uns princípios da
palavra de Deus e nós estudamos, juntos. E outros valores, entendeu?
E na sala de aula eu vejo isso, as crianças se perdem, por causa disso, não têm
referência! Quem é que eu vou obedecer hoje, que eu não sei. E é muito assim a questão
da agressão mesmo. Eles não se sentem desejados, nem amados. Se a instituição não
cuida, por exemplo: ‘Hoje não vai ter aula na instituição [creche], então eles vão para
casa de outra pessoa’. Eles estão preocupados assim: ‘Eu tenho que trabalhar. Eu
tenho que pagar meu aluguel, minha conta de água, minha conta de luz e eu não sei o
que fazer com eles, porque eu tenho que me manter.’ É difícil, é duro para as famílias.
Mas, não é filho deles? Não é meu. Então, quando a gente se propõe a fazer isso: ‘Ah,
aconteceu, eu não queria engravidar, mas engravidei’. Entendeu, então isso tudo me
deixa muito chocada nos meus princípios assim. ‘Ah! Eu não quero ter, se não é
desejado, se eu não posso’.
Têm tantos aconselhamentos. Têm tantos métodos, hoje que agora vem uma mulher de
quarenta anos, falar pra mim que está grávida porque foi um acidente? ‘Ah! Esqueci de
tomar o remédio. A camisinha estourou’. Sabe? Essas coisas. E depois lá na frente o
que vai gerar? Isso pra mim é violência. Entendeu? É você estar, já no começo. A
violência começa desde a concepção. Que concepção é essa, que você não desejou, você
não planejou e mesmo que não seja desejado, não seja planejado, a partir do momento
em que está lá você vai ter que traçar metas, traçar planos, traçar objetivos, para ver
como vai ser. Perdeu muito isso, então. Se eu não desejei, então eu quero destruir. Eu
não vou tratar bem. Então, isso é bem lá no começo.
A violência pra mim é tudo isso, entendeu? Não é o fim em si mesmo que é o hematoma,
o braço quebrado, chegar lá no hospital já morto, isto é o fim. A violência começa lá.
Na escola ela não dá conta de todas as coisas e a gente tem metas, tem que cumprir e
várias coisas que são burocráticas que geralmente vem da esfera de cima pra baixo e
você tem que mostrar números. Eu acho que ainda está se preocupando muito com o
quantitativo. O quanto e o qualitativo se perdem, um pouco. E nestas questões assim,
você trabalha muito pouco os valores, você não tem profissionais adequados, pra estar
atendendo, por exemplo, uma criança que tem algum trauma e que precisa de um
atendimento psicológico. Precisa de um neurologista, porque ela tem outros problemas,
de fora, além do pedagógico em sala de aula, precisa de uma fonoaudióloga, precisa de
alguns profissionais.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 118
Um psicopedagogo, para trabalhar algumas coisas. É muito complicado, na rede
pública, municipal, ter esses profissionais pra estar ajudando. Só o educador em sala de
aula não dá conta de tudo isso. E por mais que a escola queira, ela não pode entrar
nestes âmbitos, pois necessariamente, ela tem que estar cumprindo metas. A gente vive
em cima de números. É... Têm várias medições hoje: o SARESP; a provinha Brasil; o
ENEM. Quer dizer, o tempo todo você é avaliado. Neste sentido, a partir do momento
que você está sendo avaliado, você também tem que ter metas, projetos, pra conseguir
chegar naquele alvo.
Muitas vezes a gente se prende muito ao pedagógico. É através do pedagógico que eu
vou mostrar resultados, que eu vou mostrar números. Então essa percepção é de
afetividade que são outras coisas que envolvem o que a criança vai aprender, ou não.
Como ela está no seio da família e que família é esta. A cultura, tudo isso se perde. Eu
acredito nas inteligências múltiplas também, mas na sala de aula é muito difícil se fazer
um trabalho diferenciado, quando se tem trinta alunos, ou se tem trinta e cinco. Tem
criança que tem mais aptidão para pintura, outro para matemática, outro para leitura,
outro falar oralmente. Por mais que você trabalhe coisas que envolvam aquelas
crianças, eu não vou ter um momento específico, nem um profissional específico, para
desenvolver esta habilidade para ele ser uma pessoa, depois que possa ser um pintor,
que possa ser um músico, que possa ser algo, voltado para a habilidade dele, entendeu?
Eu percebo em minha sala de aula, quem está mais apto para isso ou, para aquilo, em
todas as esferas do currículo escolar. Enfim, em todas as esferas do âmbito escolar.
Mas a gente não tem esse tempo para estar trabalhando essas habilidades, individuais.
Mas, no coletivo e muitas vezes se perdem. As famílias que não têm a oportunidade de
estar desenvolvendo, ou percebendo isso. Investir... Perdem os talentos. Os talentos vão
ficando. Eu digo sempre. Sobressaem-se os melhores. E aqueles mais fracos, aqueles
que não deram conta de se inserir nessa sociedade, eles vão ficando excluídos. Isso é
violência, não é? É exclusão.
Os melhores sempre vão para melhores lugares, não é assim na sociedade? Tudo é
conquista. Se você é melhor, você vai pra uma pública, se você não é... Você vai pagar.
Se você é melhor, você vai ser bem aceito em qualquer lugar numa entrevista; se você
não é, você vai ficar desempregado e daí quando eu faço as minhas reuniões, eu sempre
lembro isso para os pais. Que você vai sempre estar disputando com alguém, em algum
lugar.
Os melhores vencerão e os que não são tão bons, vão ficar, porque é uma sociedade
excludente. É uma sociedade racista. É uma sociedade extremamente machista, ainda.
E uma sociedade que presa o estético. É o ter. E o ser vai se perdendo. Tem que ser
forte pra se conquistar alguma coisa. Sempre é assim na vida. E ai é uma forma de
violência. A sociedade é violenta. Não é só a violência urbana, a violência doméstica.
Todo momento você está vivendo uma violência. E eu percebo isso em sala de aula: os
meus alunos, você já percebe se a família está junto e está preocupada. Quer saber o
que está acontecendo. E aqueles que a família não está. Eles ficam para trás. E eles
estão querendo dizer alguma coisa, eles estão pedindo socorro.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 119
Terminou a narrativa, com um olhar de satisfação, e desabafou dizendo que esperava ter
contribuído.
3.2.3 PROFESSORA CAROLINA
Professora Carolina, 27 anos, atualmente exercendo a função de vice-diretora.
O primeiro contato ocorreu, a exemplo das outras, em abril de 2009, na mesma escola. É
necessário esclarecer que ouvir a professora Carolina não estava no projeto, pois inicialmente
estavam previstas duas narrativas.
Uma das professoras devido a problemas metodológicos não pôde ser ouvida, tendo sido
substituída pela professora Marli. Com isso, contava-se com duas colaboradoras com uma
proximidade de idade de apenas cinco anos entre uma e outra, trazendo histórias e lembranças
de famílias e escolas, e concepções de décadas próximas. Pensando em alguém mais jovem para
corroborar esses pensamentos, a pesquisadora convidou a professora Carolina, que
assertivamente trouxe muitos elementos da contemporaneidade em sua narrativa e que de certa
forma foi muito intensa, por trazer elementos de sua vida pessoal ligados diretamente à
violência, remetendo-se totalmente à primeira pessoa do discurso ao tratar da violência
doméstica contra a criança.
O convite foi feito por e-mail. A professora Carolina, após ter lido, respondeu
positivamente. A narrativa foi feita no dia 23 de junho de 2009 e iniciou às 18h59min. Ao
acionar o equipamento, foi feita a pergunta: Como a violência doméstica contra a criança lhe
toca? Conte a sua história.
Num primeiro momento houve um silêncio acompanhado de lágrimas. Pediu com gestos
que o gravador fosse desligado. Assim feito, ela contou ter pensado que as experiências as quais
relataria para a pesquisa não seriam as de sua vida, mas que responderia a um questionário
estruturado sobre violência doméstica. Foi feita então uma pausa para explicações. Após um
tempo para se recompor, iniciou-se a gravação.
Ao responder ao questionamento: Como a violência doméstica contra a criança lhe
toca? Conte isso. Buscando elementos na sua história de vida, ela narrou o que segue:
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 120
Eu acho que a gente só descobre isso quando alguém a leva a pensar, nestas questões
[chorando]. Eu acho que só consegui pensar, ou pensei em pensar. Só tive consciência
do quanto isso influenciou minha história, justamente quando eu fui fazer terapia.
Porque até então acho que eu nem acreditava na terapia. Eu acho que esse momento
que eu estou vivendo, não tem como não tocar. Eu acho que eu estou vivendo um
momento de resgate familiar mesmo. Eu acho que eu precisei vir tão longe e viver
situações, que hoje eu estou vivendo, para conseguir mudar.
A partir desse momento, a gravação desse dia foi perdida, por problemas no
equipamento, que só foi descoberto após a narradora ter falado por mais ou menos 1h30min.
Sendo assim foi preciso refazer a gravação.
A segunda gravação aconteceu em Jacareí no dia 29 de junho de 2009, segunda-feira,
das 19h49min às 21h04min e foi na casa da professora e vice-diretora Carolina, como se segue:
A violência doméstica contra a criança me toca de várias maneiras eu acho que
principalmente neste momento que eu estou vivendo, é um momento de resgate de
muitas coisas com a minha família e que foram influenciadas por conta das coisas que
eu já vivi com eles, por conta desta violência. Então, eu lembro assim de alguns flashes,
de alguns momentos. Eu não sei se dá pra definir uma história assim da minha infância,
mas eu me lembro de alguns flashes e eu me lembro de quando eu era bem pequeninha,
de algumas coisas assim difíceis, com meu pai e com minha mãe.
Eu era filha única quando isso aconteceu porque eu sou a filha mais velha de três.
Assim, é, a minha mãe tem um histórico de alcoolismo e acho que me influencia também
por conta da obesidade dela. Por conta disso eu acho que acabou influenciando na
minha vida por isso. Porque a pessoa quando ela não se aceita da maneira como ela é
ela acaba tendo alguns problemas por isso e minha mãe tem.
Quando eu era criança não entendia isso. Eu acho que eu sentia uma diferença que
surgiu, depois, mais tarde. Eu acho que eu posso falar disso depois que a diferença
acontece, mas quando tem o outro pra comparar, mas mesmo assim dá pra comparar
com outro coleguinha, por exemplo. Meu pai tem assim essa questão da autoridade, eu
acho que por ter uma família só com mulher e por ele ter tido só homens, ter perdido a
mãe no parto do último filho que são seis irmãos, o mais velho trabalhava e era ele que
cuidava de tudo e sempre foi só homem. Então tendo só mulheres eu acho que ele quis
ter essa autoridade.
Nos momentos em que ele sente que ele não tem, eu acho que isso até hoje, ele se torna
agressivo demais. Então, eu me lembro desse tempo que eu era bem pequena, eu era
filha única ainda, de uma agressão que existiu com a minha mãe. Ela estava grávida e o
médico explicou que a minha irmã nasceu com má formação por conta dessas agressões
e eu acho que tudo o que eu vou falar aqui tem influência na minha vida de várias
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 121
formas e eu acho que hoje também inclusive a religião, aquilo em que eu acredito, eu
tive que buscar alguma coisa que explicasse. Além disso, e hoje eu não sei, mas eu acho
que me alivia um pouco pensar se existe outra explicação que não tenha sido só por
isso, porque eu não pude fazer nada naquele momento.
Então é uma dor minha também e eu gostaria de ter podido fazer, mas eu era pequena e
queria poder ajudar a minha mãe naquele momento da agressão. Eu não podia porque
eu era muito pequena e meu pai era mais forte que eu. Eu presenciei a agressão e eu
lembro assim que meu pai me colocava no quarto e eu voltava, ele me trancou e eu
pulei a janela. A coisa estava acontecendo e eu não pude fazer nada e depois assim
quando eu tive consciência, foi quando a minha mãe me contou que o médico falou que
foi por conta disso que ajudou bastante.
Eu acho que eu carrego uma culpa de não ter podido fazer nada. Então eu acho que
alivia essa coisa que eu busquei por conta disto. Não, de repente não foi só por causa
disso. De repente foi porque tinha que ser mesmo. Eu acho que a gente busca coisa pra
aliviar as dores que a gente tem. Eu acho que são explicações. Então eu lembro isso.
Falando assim de mim, eu lembro que eu era uma menina muito obediente. Eu vou
falar, contar a mesma história. Por exemplo, eu tinha que tomar uma injeção vários
dias, então eu chorava, eu gritava, eu tentava fugir, mas eu ia falar: ‘pai, minha mãe
vai me dar injeção agora você vem me buscar [porque era ela que dava], você vem me
segurar?’ e daí eu fugia.
Tudo que mandavam eu fazer, eu fazia. Minha mãe sempre fala isso. Hoje, que no
comparativo com minha irmã eu era daquela que falava ‘não, não, não, não... não
pode’ Eu não fazia. E minha irmã falava ‘não pode’. Ia e fazia do mesmo jeito. Eu fui
sempre muito boazinha, é o que ela conta assim. Mas eu estou falando do que eu
lembro. Então daí eu lembro assim do tempo que descobri que ela estava assim com
essa má formação. É que daí ela ficou mais tempo no hospital do que em casa e, às
vezes, de noite eu tinha que... Me deixavam sozinha porque não tinham com quem
deixar. E eu era pequena e, às vezes, eu acordava e eu não entendia isso. Eu estava ali
sozinha e... Estava ali sozinha. Me deixaram lá. Me deixaram abandonada, ali sozinha.
Mas eu me lembro dela assim. A gente tinha quintal grande e a gente ia levar ela para
tomar sol no quintal.
Ela durou cinco meses. Porque ela nasceu sem o ventrículo esquerdo e as artérias dela
eram invertidas e a que tinha que ir para o pulmão para oxigenar o sangue ia para o
corpo e ela tinha anemia porque o sangue não era oxigenado e, ao contrário, o que era
pra ir pro corpo ia pro pulmão. Então ela tinha pneumonia porque encharcava muito de
sangue. A veia aorta era da espessura de um fio de cabelo e ela tinha hidrocefalia.
Quando apareceu uma coisa apareceu tudo. A equipe do Dr. Adib Jatene e Dr. Facura
cuidou dela e fizeram tudo o que tinha que fazer e não tinha mais.
Quando colocou a válvula da hidro, daí ela faleceu. Eu lembro, acho que do enterro, eu
tinha, acho que um pouco mais de três. Porque a diferença minha da minha outra irmã
e dessa é sempre de três em três eu sou de oitenta, ela era de oitenta e três, e a outra de
oitenta e seis. Eu era bem pequena mesmo. Mas ai, nós mudamos de casa por conta das
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 122
lembranças e também por conta de que o salão da minha mãe era um quartinho no
fundo da casa e tinha que passar por dentro e ela começou a querer essa independência
e já tinha uma situação financeira melhor.
Eu lembro que nós mudávamos de casa é..., mas eu não lembro assim de..., de..., muito
de brincar, muito brinquedo. Não tinha assim muitas coisas. Eu me lembro de um
cachorro que eu tinha. Eu me lembro de um cachorro de pelúcia, de uma boneca Emília
e um fusca. Sabe desses carrinhos, que têm um pedalzinho? Acho que era o que eu mais
brincava. Aí quando nós mudamos, tinha um terreno. Quase que um terreno mesmo na
casa. Já tinha uma garagem, aí foi feito mais uma garagem e o salão da minha mãe. É
lá que tem até hoje, que a casa é alugada, mas, o salão ela ainda utiliza. E daí eu já me
lembro ajudando meus pais e meu pai tinha uma pá e uma lata de areia e eu com minha
pazinha de praia e ajudando a remover areia pra lá e pra cá. E aí lembro quando ela
nasceu eu fui visitar minha mãe no hospital.
Aí começou aquela coisa meio de ciúme, mas a minha mãe, eu acho que conseguiu
trabalhar isso bem, nesse sentido de sempre pedir ajuda, sabe? Por exemplo, falar que
a nenê é feia então eu defendia. Sabe aquelas coisas? E eu acho que com a minha irmã
eu sempre tive uma relação muito boa. Com essa irmã que eu tenho viva, agora. Mas eu
acho que teve uma fase que eu acho que foi assim a consciência dessas coisas que eu
tenho hoje uma consciência maior ainda dessa diferenciação que existia. Porque a
minha irmã, eu lembro, desde pequena que ela tinha que tomar vitamina de ovo de pato
pra engordar porque ela era muito magrinha e eu comecei a sentir aquela diferença
assim.
Então na escola minha estudava em uma escola particular e tinha que ir na mesma
escola que eu. Então eu não podia mais ir naquela escola. Porque tinha que pagar para
ela. Então assim é difícil eu acho que. Eu não lembro muito assim da minha família,
assim em situações familiares. Viagens assim, a gente nunca foi de viajar é de coisas em
famílias mesmo. Eu acho que as coisas em família que eu vivi foi na casa de meus
colegas. E eu acho que quando você vai entrando em contato com outras pessoas que
tem essa vida você começa a questionar por que a minha é diferente. Eu acho que esta
era a pergunta que eu me fazia. E eu preferia estar em outros lugares do que na minha
casa. Eu comecei preferir isso. Eu acho. Eu não me lembro ao certo. Mas, é. [silêncio]
As agressões do meu pai contra a minha mãe continuaram durante um bom tempo
porque daí a minha irmã não tinha muita consciência disso e depois quando ela tinha
que ela já era maior aconteceu sim também algumas vezes. Mas, eu acho que eu
comecei assim a conseguir ter saídas de outra forma. Porque eu era maior então eu
fugia e ia chamar o vizinho. Entendeu? Então eu conseguia fazer isso. Mas teve
algumas feias. Depois que eles participaram de um encontro de casais eu não me
lembro disso, ma, eu lembro que eles tinham um casal que era muito amigo deles, de
Itu, que eles iam sempre prá lá. E eu ligava e eles vinham correndo, eu já conseguia
fazer essas coisas. De ligar, eu era pequena ainda, mas eu já era maior e eu me lembro
disso assim com bastante clareza. E eu acho que nesta época por conta disso e por
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 123
conta de problemas particulares entre eles é..., ou não, essa coisa do alcoolismo da
minha mãe aumentou bastante.
E meu pai trabalhava e trabalhava até tarde. Fazia bastante hora extra, não sei se pra
pagar as contas. Às vezes, tinha que viajar. Era uma empresa que às vezes ele montava
uma máquina e tinha que montar a máquina no lugar onde era vendido e se fosse no
Sul, ou se fosse pra outro país, ele nunca foi, apesar de ter sido convidado. Mas, tinha
que ir lá na empresa e montar. Viajava bastante também. E do lado da minha casa eu
lembro que tinha uma oficina e agora eu acho que compraram e vão fazer uma casa,
mas foi oficina até 2002, 2003. Foi oficina do mesmo dono. Desde que a gente mudou
em noventa ou oitenta e pouco. E minha mãe tinha bastante afinidade. Tanto com o
dono, como com os funcionários de lá. Tanto que ela todo dia servia café. E eu lembro
que meu pai morria de ciúme e que o pessoal tinha bastante liberdade de pular o muro
e principalmente à tarde, então iam, tomavam cerveja os amigos dela. E então ele
chegava e tinha todo esse povo lá. E ele ficava muito bravo.
Mas eu acho que essa coisa assim de ajudar em casa de ir buscar de ir comprar eu
acho que até minha mãe abusava um pouco assim de mim. Não tinha muito limite pras
coisas. Eu não sabia. Eu não tinha essa consciência, mas eu ouvia as amigas dela
falando. Então, por exemplo, eu me lembro de uma feira. Eu me lembrei disso, porque
essa mulher faleceu há pouco tempo e minha mãe me contou. Tinha uma loja e minha
casa era aqui. Tinha que virar à esquina e ir lá no mercadinho e quando eu passava
para ir tinha essa loja. Uma vez eu caí com as coisas no chão e os funcionários da loja
que me conheciam foram lá me ajudar e eles acharam assim que o peso daquilo que eu
estava carregando era um absurdo terem pedido para uma criança ir buscar. Uma
criança pequena.
Então eu me lembro de umas coisas assim que eu ia longe buscar as coisas. E a cerveja
dela, durante um tempo era eu que ia comprar, ela não ia no bar. Quando eu ia
comprar de dia eu passava por dentro dessa oficina que era perto da minha casa. Então
eu passava por dentro da oficina e ia lá. E trabalho de escola era tudo a mulher que,
tipo assim, era uma oficina e tipo um almoxarifado que ia buscar as peças. Era uma
moça que ficava. Então trabalho de escola eu ia pedir pra ela. Era ela que me ajudava.
Eu me lembro dela bastante. É minha amiga ainda hoje. Eu me lembro de passar por
essa oficina, comprar e voltar. Mas aí, à noite a oficina estava fechada e, às vezes, ela
pedia para eu ir buscar à noite. E nem que ela precisasse me tirar da cama de pijama
eu tinha que ir buscar a cerveja. E na esquina da minha casa era um terreno baldio e
tal. E meu pai começou a descobrir que eu ia buscar a cerveja dela e começou a ficar
bravo, porque o moço do bar contou.
Não sei o que ela pensou, não sei o que eu pensei, que a gente ia conseguir esconder
isso muito tempo. Porque qualquer pessoa ia achar um absurdo uma criança aparecer
no bar de pijama de noite, num bar cheio de homem. Ainda bem que hoje em dia só se
vende cerveja para maior de dezoito. Naquela época não tivesse sido assim. Não sei.
Acho que foi a primeira coisa que eu pensei quando surgiu essa lei. Eu acho que eu
pensei. E então, numa dessas vezes, eu sofri um abuso. Não é agressão, não. É abuso
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 124
sexual. E outras vezes assim, o meu pai ia chegar e eu estava ali com a sacola, a cerveja
e aí eu tinha que me esconder nesse terreno.
É porque eu acho que pra não apanhar, porque se eu não fosse, eu apanhava dela e se
eu fosse eu apanhava dele. Era uma situação complicada para uma criança até que
chegou um momento, não a respeito disso, mas de outras coisas que a gente vai falando
assim. Não, nem que seja pra eu apanhar é isso que eu vou fazer. Eu acho que tem, na
agressão, eu acho que tem muito disso. O momento que eu sinto isso, às vezes, em
alunos que eu tive. Acho que a agressão é tanta que há momentos que você não está
mais nem aí pra coisa. Eu acho que psicologicamente é esse momento que eu estou
vivendo, também no trabalho. Mas vamos falar isso depois.
Então, mas aí eu lembro assim que a minha casa tinha um corredor que entrava por
trás e uma entrada por lá e uma entrada por aqui. Só que era um corredor separado.
Uma entrada era por aqui e outra era por aqui. E eu lembro que eu passava a sacola
pelo vão, deixava lá e entrava e falava outra coisa pro meu pai, se ele tivesse. Eu tinha
que fazer isso. Aí depois escondida eu ia lá buscava, guardada. E uma coisa assim de
cuidar mesmo. Sabe essa coisa assim de cuidar de bêbado, de limpar o vômito, de dar
banho, eu me lembro dessas coisas assim. E meus pais não sabem disso. Eu nunca
contei e não sei se eu contaria. Pra que eu contaria hoje. Talvez no momento fosse
importante, mas hoje, eu acho que eu já superei, eu acho que eu já consegui construir a
minha vida. No que me afetou, já afetou, então eu vou contar hoje pra quê? Pra destruir
um casamento?
Isso aconteceu com uma pessoa branca. Eu tinha visto lá no bar mesmo. Era alguém do
bar. E assim, o bar era no fundo da minha casa. Quando fosse de dia dava pra passar
por dentro da oficina. Quando não, tinha que dar volta no quarteirão. Na esquina de
baixo era o terreno baldio. Na esquina de cima era um sacolão grande que tinha uma
entrada grande e a porta ficava no fundo. Só que tudo isso, à noite, ficava escuro. E foi
nesse lugar que aconteceu. E por conta de ter essa coisa de ir buscar as coisas longe, eu
ia buscar a minha irmã na escola, eu ia buscar as coisas na livraria que era bem longe.
Eu sempre gostava dessas coisas de escola e tinha uma amiga da minha mãe que tinha
uma livraria e eu ia lá então eu comprava. Porque eu ajudava a minha mãe.
No salão eu tirava esmalte e dava uma limpadela e tinha aquele dinheirinho que ela me
dava. E teve um tempo também que para a moça da loja. Sabe quando se faz o fitilho
pra depois só colocar no presente? Então eu ganhava dinheiro. Eu fazia essas coisas e
sempre tive um dinheirinho meu. E eu ia lá e comprava lápis, comprava grampeador.
Coisinhas novas de escola, que saíam, eu comprava tudo. Eu gostava e nessa época eu
já sentia essa diferença por conta da obesidade e eu era assim bem gordinha. Eu
lembro que ela me matriculou no jazz, porque eu precisava emagrecer. Eu fiz um ano de
jazz. Eu fiz uma apresentação de final de ano e nunca mais apareci lá.
Então e pra ir nesta livraria tinha um lugar que vendia tipo bolo em pedaços e chamava
‘Pura-gula’. E eu passava lá e comia. Não sei por que eu comia tanto assim. Hoje eu
explico algumas coisas pelas quais eu comia, mas naquela época eu não sei se tinha
alguma finalidade. Era porque eu gostava mesmo. Mas os meus familiares falam assim
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 125
que a minha mãe sempre, falando um pouco da obesidade, da responsabilidade que de
repente devia ter partido dela desde o início e falam que é um exagero o tanto de
mamadeira que ela me dava. E eu não sei assim se tem alguma influência daquilo que
ela achava dela mesmo. Não sei se tem, talvez tenha. Talvez seja por ter sido
marinheira da primeira viagem, ter medo de que a criança tivesse fome, eu não sei.
Dizem que sempre foi um exagero, bastante mesmo. É, mas eu acho que você vai
pegando birra dessas coisas assim e aí você começa a fazer algumas coisas por birra.
Eu acho assim que o começo eu tive um pouco de birra nos tempos de crianças. Assim ir
buscar minha irmã na escola e dar uns beliscões e depois falar que não fui eu, era um
pouco de birra, por conta desta diferença. E na escola eu acho que eu sempre busquei
essa coisa que eu não sentia na minha família, em outras pessoas que eu tinha. A
professora do ciclo I, que era mais fácil, que era uma professora só que tinha de ler.
Tinha de educação física, tinha de religião porque era uma escola de madre, mas com a
professora da sala eu sempre tive uma relação quase que materna e a gente tem um
pouco disso quando a gente é professora.
Então eu lembro assim de todas as minhas professoras. Lembro da primeira série, que
depois de um tempo quando eu fui eventual eu encontrei com ela e me lembro de coisas
assim da escola por exemplo que ela desenhava um ‘coraçãozão’ e colocava cada um
lá. Dentro na segunda série, nem tanto, que era uma madre e era meio fria para essas
coisas. Mas a da terceira, a da quarta eu lembro principalmente, porque foi nesse
momento eu estava com dez anos e minha irmã estava indo para o pré na mesma idade
que eu entrei naquela escola. Com seis mais ou menos eu acho que ela estava. Acho que
era isso. É eu estava com nove ou dez e ela estava com mais ou menos isso. Pra essa
mesma escola, então ou pagava pra mim ou pagava para ela. Então não iam mais
pagar pra mim e quando falaram isso, absurdo porque existe ainda essa coisa.
Hoje, eu tenho outra visão, mas naquela época eu não tinha e dá até pra concordar com
isso. ‘Vai tirar de uma escola particular pra por em uma escola pública! Vai perder a
qualidade, ela é tão inteligente, ela é tão isso, ela é tão aquilo’. Então eu fui uma das
primeiras pessoas a ter bolsa nesta escola por conta da luta das professoras, por conta
daquilo que elas conheciam de mim, da capacidade e daquilo que eu demonstrava, mas
não que a minha mãe tinha se esforçado para isso. Aí precisava de alguém da família ir
lá por causa da bolsa. Tinha que ir lá fazer tipo um questionário de pobreza. Coisa de
caracterização de clientela mesmo. Mas não foi nem ela que foi. Foi a minha vó. Eu fui,
minha vó foi, mas ela não. Não me lembro da minha mãe ou do meu pai terem se
interessado por isso.
Nossa e era difícil, porque eu estudei com essa turma. A gente estudava em uma pré-
escola. Quando foi pra ir para essa outra, foi todo mundo e a gente continuou
estudando junto e era assim, era só aquilo que eu conhecia. Não tinha. Eram os amigos
que eu tinha e também os pais deles, a gente frequentava a casa para fazer trabalhinho
e tal. Era o que eu conhecia, eu não conseguia pensar em ir para outro lugar que eu
não conhecia ninguém. Se lá em uma escola pública. A escola pública que tinha era
uma que tinha na esquina da minha casa, mas não lembro assim. Lembro que a minha
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 126
irmã estudou lá um tempo. Antes de ela ir para esta escola, minha mãe queria que ela
ficasse um ano em escola pública. Ela fugia todo dia e eu ia levar e ir buscar algumas
vezes.
Mas era outra estrutura. Era outra estrutura de prédio, outra estrutura de limpeza de
banheiro, era uma outra estrutura das coisas. Não era uma escola barata também a que
eu estudava não. E quando eu passo para a quinta, aí eu já era mais adolescente.
[silêncio] Essa coisa da professora eu tinha, eu acho, a minha vó teve assim uma
importância, porque ela acompanhou algumas coisas. As excursões ela acompanhava.
A minha vó, eu era a filha, a neta mais velha. A minha vó casou e teve um filho e meu
avô casou e teve três filhos. Aí ficaram viúvos e se casaram e tiveram a minha mãe. E eu
sou a primeira filha dessa filha única do segundo casamento. Então minha... Viveram
na ordem...
Então eu tinha... [risos], eu gostava de dizer que eu era o giraia, mas assim, bom. Mas
daí, quando foi passar para quinta série, eu já acho que foi assim o início da
adolescência porque a gente sente isso na escola, porque mudava de período mudava
de uniforme e mudava de uniforme de educação física. Era uma frescura. E mudava
muita coisa. Mudava assim acho que começou mudar o jeito que a gente gosta dos
meninos e tinha uns meninos que eu achava bonitinhos. Lembro de cada um deles de
cada série.
Na primeira era o Tiago, na segunda era o Arthur na terceira era o Arthur de novo, na
quarta era o Felipe. Sabe? Eu lembro e com alguns eu ainda tenho contato e a gente dá
muita risada de lembrar essas coisas que a gente fazia e eu acho que teve uma mudança
importante. Não sei se foi mais na quinta ou mais na sexta. Onze ou doze anos. Eu
comecei a mudar, a me impor mais, a ser mais eu, mais gente. Por que eu era meio
Tonga, assim não era muito de me aparecer. Eu acho que aquela menina boazinha, que
obedecia tudo, continuou. Isso é bom e isso é ruim. Eu acho que foi ruim no sentido de
que aceita tudo e fica sempre quietinha e passar por situações pelas quais eu passei e
ficar quietinha. E aí a gente engole sapo.
A minha terapeuta que falava... E ela falava assim: ‘engolir sapo sozinho não é fácil.
Engolir sapo com comida.’ Então eu acho que juntou. Ficou mais claro a obesidade.
Assim, mais claro o tanto que eu fazia isso para irritar e o tanto que eu fazia isso por
ansiedade das coisas que eu não falava. Eu acho e essa consciência só veio depois. Eu
acho que até pouco tempo atrás, eu estava falando um pouco mais do que comendo eu
acho que eu voltei a fazer isso. Eu tenho essa impressão. Ou tenho fumado muito mais.
Porque hoje eu tenho esse outro vício.
É. [silêncio] Mas então, porque eu acho que esse grupo da escola sempre o mesmo, a
gente tinha uma afinidade muito grande assim. Eram três salas diferentes, mas a gente
foi sempre muito, muito, muito amigos. Pra onde saia, um saia outro. A gente sempre foi
muito amigo. Ah! Na infância meus pais chegaram a se separar. E daí eu lembro que...
Será que eu posso falar isso? Eu acho que até posso. Eu acho assim: eu achei bom
porque eu acho que foi um momento em que a minha irmã ainda era nenê, essa que está
viva e eu tinha seis anos. E é o momento em que a minha mãe começou a dar atenção
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 127
que eu não tinha. Sabe assim aquela coisa de ter medo de ficar com trauma. E mal
pensava que eu já tinha outros, né? Mas eu era de sentar no colo dela e de conversar
com ela e de falar nossa mãe, mas agora eu não tenho mais pai. E ela explicar que não.
Não era que não tínhamos mais pai, mas nós íamos ficar com ele só no fim de semana.
E daí ele ia buscar no final de semana a gente ia para a pracinha, tomar sorvete. E tudo
o que eu não fazia quando eles estavam juntos [gargalhando] eu fazia nessa época.
[rindo]
Então eu não achei ruim. Foi difícil meu pai saindo de casa, foi difícil ver a volta dela.
Tinha uma laje assim e ela jogando a roupa dele e falando que ele não ia mais entrar
em casa por conta de uma fofoca de uma empregada que tinha em casa e depois ela
mesma falou que era mentira o que ela mesma tinha falado. Mas minha mãe acreditou
na empregada e não nele e eles ficaram um mês separados. Eu me lembro disso
também. Então, mas daí na adolescência teve essa coisa também de se começar a fazer
bailinho. A gente não saia à noite. Meu pai começou a deixar sair bem depois que meus
amigos já estavam saindo. Com quatorze, quinze por aí. Mas meus amigos começaram
a sair bem antes. Nesses bailinhos era difícil porque daí a gente começa a sentir a
diferença e os preconceitos das pessoas. Todo mundo prefere a menininha bonitinha
magrinha. Hoje eu não penso dessa forma. Mas, naquela época eu achava. Eu acho que
tem uma época que e assim mesmo. Da parte dos meninos de repente. Eu acho.
É. Eu tinha as minhas paixonites, mas não tinha namorado. É, mas o menino que eu
gostei da sexta até a oitava, que daí eu tinha tudo dele: camiseta, pulseirinha. Ele
assim, não era recíproco. Deixava claro isso, mas respeitava. Não era de tirar sarro
por conta dos bilhetinhos que eu mandava. Nunca foi. Ele agradecia. Mas eu me lembro
bastante dele. Hoje ele mora nos Estados Unidos e eu até conversei com ele algum
tempo atrás, porque ele foi no salão da minha mãe desencravar uma unha. Os pais dele
ainda moram ali. Ah! Eu até mostrei a foto para você. Lembra que eu falei meu ex-
sogro e minha ex-sogra? Na foto? São os pais dele. Eu lembro. Eu conheci o irmão
dele. O irmão dele é super gente boa. Eu nem sabia que os pais deles eram amigos da
minha mãe. Mas foi uma época legal. Depois as fotos e as coisas que eu tinha eu acabei
entregando para os pais dele. Não faz muito tempo não. Também não tinha mais o
porquê, e também eu não ia jogar fora o que de repente um pai ou uma mãe gostam de
ter.
Eu tinha fotos dele pequeninho..., maior..., maior..., maior... Eu lembro que até a fita da
formatura, da época em que ele se formou eu acho que eu comprei. E na escola era
mais difícil porque tinha um monte de professor e essa coisa materna acabou ficando
meio de lado. Mas sempre na quinta, na sexta, sempre tinha uma com quem eu
conseguia fazer isso. Mas era uma relação mais de amizade do que materna. E não sei
se a materna também não seria mais de amizade. Se a gente fosse pensar numa família.
Não sei dizer, acho que sim. De repente adolescente já começa a ter essa relação.
Não sei por que a minha mãe sempre foi fria. Até na adolescência e eu acho que depois
ficou pior. Porque a minha mãe é uma pessoa que não sabe falar de sentimento. Eu
acho que é até por causa do signo, pois eu acho que outras pessoas que são do mesmo
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 128
signo ou tem o mesmo problema ou são todos assim. Não conseguem falar dos
sentimentos. Tipo dar carinho com outras coisas, mas não sabe falar eu gosto de você,
eu estou com saudades. Acho que ela aprendeu a fazer isso por eu estar aqui. Mas não
lá. E eu lembro quando eu tinha dezesseis anos e eu vou falar porque isso é um
questionamento meu que algum dia talvez eu até pergunte isso pra ela, porque quando
eu fiz dezesseis anos e eu já saia com minhas amigas. As coisas que eu vivia, não era
aquilo que eu queria viver. Então eu comecei a sair com amigas da minha mãe.
Então eu ia para os pagodes, pra churrasco que ia ficar o final de semana inteiro e eu
ia. Eu sempre tive amigos mais velhos. Eu acho que as pessoas me consideravam, não
sei, talvez até eu me considere madura demais. Então assim, tinha umas coisas que
meus amigos não queriam, mas eu queria. Então eles estavam mais nessa coisa assim
do tecno, discoteca. E eu achava uma bobeira ficar lá pulando. Eu queria mais um
pagode. E beber, e beber. Ah! Eu comecei beber, tomar cerveja bem cedo. O povo não
se conformava de minha mãe deixar. Então eu bebia. E bebia bem. Hoje eu bebo bem
menos. E fumava. Comecei com dezesseis. Aí eu pedi pra ela. Eu quero fumar e ela
ensinou. [risos]. Ela achou que eu ia fumar uma vez, tipo assim...
[Nesse momento o telefone tocou. Ela não atendeu, mas a conversa foi interrompida. Ela
desligou o telefone do fio, para não interromper mais. Então a narrativa foi reiniciada.]
Mas assim... Eu lembro que tinha uma madre. É madre que fala. Que uma vez ela
conversou comigo, porque ela achava que eu estava muito triste, porque todo mundo já
tinha namoradinho e porque eu não tinha. Mas também eu não sei por que eu não tinha.
Porque eu gostava. Gostava daquele menino e se não fosse para ficar com ele também
não queria. Mas se eu ia no clube, também ficava de escanteio. Tinha uma amiga que
era..., na verdade era um trio, tinha uma delas que depois tomou outro caminho e aí
ficou eu e a Sílvia, que é uma pessoa que eu conheci, desde que eu tinha cinco anos, em
uma colônia de férias. A gente nem estudava junto, mas que eu tenho a foto da gente
junto. Japonesa, japonesinha. E que a gente foi muito amiga durante muito tempo, até
eu operar, depois isso se perdeu um pouco. Apesar de ela ter insistido ultimamente, mas
eu não tenho mais vontade de voltar, porque eu acho que eu não consigo mais ser do
jeito que eu era, depois eu percebi algumas coisas.
Mas nessa época a gente era muito amiga. A gente saia junto e essa coisa de eu gostar
de pagode e daí ela também começou a gostar. Mas as pessoas discriminavam um
pouco a gente porque ela era uma escola elitista mesmo. Não tinha negro e que foi o
que eu já até falei, que eu descobri que essa irmã perguntou se eu não tinha
namoradinho, porque eu não gostava, mas não era que eu não gostava. É que eu não
gostava dos meninos, mas daí eu descobri que também eu não gostava de homem
branco, que eu não gostava de homem branco, talvez por culpa do que eu tenha vivido.
Mas não sei se o homem negro é diferente ou se tem a ver com essa coisa do pagode
que eu gostava.
Mas é a gente começou a viver isso assim e minha mãe sempre foi preconceituosa, neste
sentido, é ainda. Mas eu ia escondido para uns lugares e esses amigos dela, negros
inclusive, acabavam defendendo um pouco e cuidando também. Então eu ficava meio
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 129
tranquila. Mas eu ia, e daí vivia umas coisas assim. Eu acho que tem uma coisa que me
marcou na adolescência. É só da infância que eu tenho que falar? [fiz sinal com a
cabeça que não]. Que eu acho que não dá pra não falar disso. Por que eu acho que têm
importância pra mim pelo que foi e pelo que é hoje. Nestas saídas para estas boates
com os amigos mais velhos da minha mãe, tinha um rapaz por quem eu me apaixonei,
mas ele era bem mais velho que eu. Tipo eu tinha quinze, dezesseis e ele tinha vinte e
nove. Mas ele era muito legal. Eu descobri que essa pessoa com quem eu estava na
escola tendo essa relação muito mais materna era a coordenadora da escola que tinha
trinta e quatro anos também. E era assim.
Eu aprontei muito na adolescência. A gente aprontava umas coisas engraçadas e a
madre ficava louca com a gente. Tinha umas plantas que dava tudo assim
[gesticulando]. E aí ela apareceu e tinha camisinha enfiada. [risos] A gente aprontava:
por biriba na cadeira do professor. Coisa louca! Ah! Então e na oitava série eu ia todo
dia à sala da coordenadora. Então quando ela não ficava, ela já deixava um bilhetinho
assinado que eu entregava para o professor. E eu não entrava na sala. E ela faltava
muito e deixava o bilhetinho assinado e escondido. Eu já sabia até onde estava. Eu ia lá
pegava e ia com a maior cara de pau. E no período contrário eu ia lá e ajudava ela. E
comecei essa coisa de interessar por escola e achar que era isso que eu queria e já
comecei ajudar ela um pouco. E aí eu descobri que ele era ex-marido dela. E era ex-
namorado de uma pessoa que trabalhava com a minha mãe. Um rolo. E nesse momento
ele estava com ela. Não sei. Eu sei que era uma relação dessa amiga que saia comigo,
mas, trabalhava com a minha mãe, era ajudante da minha coordenadora. Esse moço
que eu também estava apaixonada e que começou a frequentar a minha casa porque era
namorado... Um ‘furdúncio!’ [sic].
E pra quem que foi que eu falei? [perguntando a si mesma, tentando lembrar]. Eu não
lembro pra quem foi que eu falei, Claudia, mas eu inventei. Eu acho que eu inventei que
eu tinha saído com ele. E saiu o boato. E chegou o boato na escola. Uma escola de
madre. Então você imagina. E eu me prejudiquei. Eu não lembro muito bem qual foi a
minha fala, mas eu me prejudiquei a toa. Por uma bobeira. Não sei por que eu inventei
isso também. Não sei se por ciúme dele, dela. Ciúme de todo mundo. Não sei. Eu não
queria prejudicar ninguém. Tanto é que eu me prejudiquei sozinha. Mas daí eu lembro
que essa namorada dele ficou sabendo e veio conversar comigo e daí eu contei. E daí
ela chorou. E daí ela tinha terminado com ele. E daí. Porque daí a Lúcia também ficou
sabendo. E eu sei que eu tive que sentar. Minha mãe ficou um mês nos Estados Unidos e
daí esse bum estourou na escola.
Aí eu já tinha me formado. Eu me formei em dezembro e isso foi em fevereiro do outro
ano. E daí eu tive que..., a primeira coisa séria assim que eu tive que sentar com meu
pai e com a minha mãe e tive que contar. Olha! Eu fiz isso, isso e isso e agora eu tenho
que resolver. [tosse]. E eu acho assim. Se é bom ou ruim, eu acho a atitude deles
naquele momento, foi uma atitude boa. Ou não. Dependendo de ponto de vista. Porque
eles não me ajudaram. Mas eles deram..., falaram: ‘Você tem que ir lá porque se você
não for lá e contar para a Melissa que isso tudo é mentira, você não vai mais entrar em
casa’.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 130
Então foi difícil a relação com a família, mas foi bom pra mim porque eu comecei a
aprender a resolver as minhas coisas sozinha. Então eu fui mesmo. E minha mãe não
acreditou que eu iria. E o que ela falou, porque depois ela contou isso pra mim, foi pra
me por medo. Mas ela não achou que eu fosse. E eu fui na casa dela e ele estava lá. Que
tinha ido ver a filha. E eu conversei com ele, com ela. E ela fala até hoje ‘que nem gente
grande’. Fui conversei, pedi desculpas, falei que não sabia que ela não ia perdoar. E eu
senti tanto, tanto, tanto, tanto, tanto. Sabe? Porque era assim. Ela era uma pessoa que
eu gostava tanto. E eu não sei. Mas eu queria ser sincera com ela. Eu acho que se a
coisa tivesse acontecido, ela teria ficado meio brigada com os dois e comigo não. E o
negócio era comigo, não era com os dois na verdade. E eu fui e falei. E eu perdi a
amizade dela. Eu acho que dois anos e meio depois, quando eu tive coragem de voltar
lá um dia e conversar, e daí ela falou que já tinha perdoado por conta da minha atitude
de sinceridade.
É muito legal isso, porque hoje ela é uma das minhas melhores amigas. Hoje ela está
com quase cinquenta anos e é uma das minhas melhores amigas. E eu tenho conversado
com ela nessas minhas dificuldades, porque ela foi diretora muito tempo e
coordenadora muito tempo e eu tenho conversado com ela. Hoje ela está em uma
situação muito difícil e eu lembro isso. Acho que marcou um pouco a minha
adolescência pelo que foi assim. Acho que foi o primeiro problema sério que eu
enfrentei. E daí virou boato na cidade pequena. Eu lembro assim que daí eu perdi muito
dos meus amigos dessa época porque os pais não deixavam ficar junto. Eu era mau
exemplo pra todo mundo. Acho que foi um momento de solidão.
Eu acho que isso ajudou mais ainda eu ter esses amigos mais velhos que eram amigos
da minha mãe. Porque os meus já não eram mais. Só a Silvia que acabou ficando. E aí
eu fui fazer magistério. E eu acho que a relação com meus pais ficou cada vez mais
difícil. Mas eu acho que esses desafios que foram colocados, as dificuldades ou os
desafios, não sei, iam me fazendo crescer, porque a coisa aparecia e eu conseguia
mostrar. Mostrando para os outros, eu conseguia mostrar para mim mesma que eu
podia mais do que aquilo que era esperado de mim. Mas eu também acho, Claudia, que
assim, eu sempre ouvi que se for pra você ser mais uma, não serve. Não faça as coisas
para ser mais uma, faça para ser a melhor. E isso fica tanto na cabeça da gente. Uma
coisa que a mãe da gente fala, às vezes a gente se cobra mais do que aquilo do que a
gente precisava. E eu acho que eu tenho um pouco disso. Às vezes, então, às vezes eu
paro e penso. Por que eu preciso fazer isso tudo? Por que eu preciso ser tudo isso? Pra
quê? Não tenho essa necessidade.
Então eu sempre me cobrei muito. Na escola, nossa! Se tirasse nove e meio, eu queria a
morte. Sabe? Eu queria ser sempre, dar o melhor de mim. Mesmo que aquilo fosse além
da minha..., daquilo que eu podia oferecer. Eu sempre fiz bastante assim.
Principalmente na escola, porque era, talvez, o único lugar que eu pudesse. Não
trabalhava.
Bom daí eu decidi que queria fazer magistério, porque não me imaginava fazendo outra
coisa. E minha mãe queria que eu fizesse técnico em informática e depois que eu fosse
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 131
fazer direito, mas eu escolhi o magistério que era o que eu queria, era eu que tinha que
escolher. Então eu queria fazer em Itu, no colégio Objetivo, que hoje é a Faculdade da
minha irmã. Era esse lugar. Tinha o técnico, alguns colegiais técnicos e tinha o
magistério também, mas era..., não era uma fortuna, mas era um pouco caro. E daí eu
queria que meu pai continuasse pagando. Ele falou que não, que depois que eu me
formasse na oitava série eu tinha que me virar. E eu acho que eu sempre me virei. E eu
acho que eu me esqueci de falar isso. Eu acho que principalmente no ciclo dois, tinha
essa coisa da mesada e do dinheiro que eu guardava pra merenda. E o livro que tinha
que comprar, eles não compravam e algumas vezes meus amigos me emprestavam, mas
eu via que eles estavam enjoando, e daí eu alugava com o dinheiro que eu tinha eu
nunca senti muito a presença deles.
Do buscar de tudo e eu acho que vai criando uma coisa na gente e um dia eu vou
mostrar que eu posso. Um dia eu vou mostrar que eu posso. Um dia eu vou mostrar que
eu consigo. Um dia eu vou mostrar que apesar de tudo, eu acho que tem a birra por
tudo que aconteceu. Eu acho que inconscientemente a gente culpa sim. Não é? Porque
senão eu não tinha assim, no momento que saiu a legislação do maior de dezoito anos,
eu acho que eu não tinha pensado isso a primeira coisa. Eu acho que a gente culpa
inconscientemente. Não porque culpa. Porque é culpa mesmo. [sic]. É, e é estranho
assim, porque pensar que não é culpa minha. E pensar na minha irmã também que não
é culpa minha. E acho que tem algumas situações na minha vida que... [silêncio] É,
talvez eu me culpe mais do que aquilo que eu devia. Eu acho que isso acontece, ainda.
É, e daí eu fui fazer essa prova e meu pai falou que pagava só se eu passasse até
segundo lugar, porque a bolsa, primeira era de cem por cento, a segunda era de oitenta
por cento, a terceira era de sessenta e as outras eram de vinte, quarenta e por aí vai. Eu
lembro que eu estudei, estudei, estudei, estudei, estudei. Porque senão eu ia ter que ir
para a escola pública e esse preconceito que a gente tinha... Bom, aí eu não passei em
segundo lugar. Mas, eu passei em terceiro lugar. Mas era muita gente, Claudia. Mas
era muita gente! Eu acho que foram dois dias de prova. Lotado. Salas lotadas. Pra ficar
em terceiro lugar, eu me esforcei muito. Mas eu não fui a segunda, eu fui a terceira.
Então eu tive que abrir mão, perder essa bolsa. Porque daí ninguém ganhou a bolsa de
terceira. E ele não pagou. E eu fui pra escola pública. Na escola pública eu que tive
que me virar e fazer minha matrícula e foi um rolo. E daí tinha que ligar para ela
assinar e ela não queria ir. Eu tive que me virar bem. Mas daí no magistério, eu acho
que eu depositei um pouco dessa carência toda, já na profissão. Porque eu lembro
desde bem, no começo, eu fazia as coisas. Que no ciclo dois quando eu comecei com
essa coisa da liderança, eu era representante de classe, assim eu ficava na escola mais
do que devia. Eu organizava. Era bingo, eu organizava. Tinha retiro de não sei das
quantas, eu ia lá e ajudava. Tinha gincana não sei das quantas eu ia lá e ajudava.
Fazia. Gostava disso. E aí no magistério eu comecei. Então tinha uma apresentação.
Alguém tem que ensaiar o ciclo I para fazer não sei o quê. Então eu me propunha. Eu
ficava na escola o dia inteiro, não sei se pra não voltar pra minha casa. Eu acho que
era um pouco disso. Porque acho que chegou uma época assim que eu não queria mais
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 132
ficar. Sabe uma época que se pensa assim: ‘preciso guardar dinheiro, preciso ir embora
de casa; preciso viver longe, porque não aguento mais’.
E era muito difícil. Meu pai não me deixava sair. Eu tinha obrigações para fazer
durante a semana. Mas, no final de semana, eu não tinha o direito de sair. Entendeu? E
as minhas amigas tinham. E eu não me conformava com isso. Eu demorei muito tempo
pra começar sair à noite. Também quando comecei, dei uma ‘desbundada’ boa. Mas,
mas não, não eu demorei bastante tempo e não me conformava assim com essa situação
de não poder, de ter o dever e não ter o direito das coisas. E eu acho que o mais difícil
de morar com eles é isso, até hoje.
Eu sinto isso ainda quando eu vou viajar. Quando eu fico lá. Ainda é assim, porque não
vai mudar. Eu vou ter que voltar. Pra isso. São coisas que a vida traz pra gente. Coisas
que eu mesma trouxe. Bom, mas, aí, eu estou falando muito? [risos] É que parece que
estou falando mais do que a outra vez. Então, e aí assim, eu, eu fui fazer magistério e
ficava mais na escola do que devia. E eu comecei a dar aula, porque eu me propunha a
isso, antes até do que podia. Por que pra ser eventual tinha que ter dezoito. E eu não
tinha dezoito. Mas, desde o segundo ano eu ia, eu fazia. E assim e era bom assim. Aí
começaram a me valorizar pelo que eu fazia. E era legal. E eu achava o máximo.
Porque tinha eventual e professor que não dava conta da sala e eu dava. E eu ia e eu
fazia e acontecia.
E eu conheci o Junior que é meu amigo até hoje também e que acho que a minha
relação com ele vai ter a ver um pouco com a minha sexualidade, que a gente vai falar
depois. Mas eu lembro que ele estudava à noite e eu conheci ele, porque ele gostava de
fazer teatro. E daí a gente fazia. E ele falava assim: Vamos montar uma peça de teatro?
Vamos! Tipo a Dona Baratinha que era só dois personagens. A baratinha e o Dom
Ratão. Depois a gente via. Se tivesse alguém que quisesse participar, participava com a
gente. Daí a gente montava cenário e tudo lá. E íamos às escolas, tipo assim nas
EMEI’s nos CEMO’s, porque lá chama CEMO’s. A gente falava assim: ‘Somos do
magistério. Podemos apresentar teatro aqui tal dia? Aí você assina o estágio pra mim?’
E a gente ia e fazia e acontecia. E a gente fazia mesmo. Tanto é que a gente tinha 5 ou 6
mil horas de estágio e era pra fazer 400. [risos] Tudo valia estágio.
Então assim, eu lembro que teve uma olimpíada nacional das APAE’s, e era no mês de
junho inteiro e então ia ter gente do Brasil inteiro em Salto. Todos deficientes, com os
professores e ia ter olimpíada lá. E era olimpíada mesmo, com abertura e com não sei o
quê, não sei o quê, não sei o quê... E eu queria participar. E eu tive, eu esqueci de falar
isso também, eu sempre tive uma relação muito grande, com deficiente desde pequena,
por causa que a minha mãe sempre foi muito amiga da presidente da APAE. A primeira,
a segunda, porque, por conta de ser amiga mesmo por conta da minha irmã. E as
pessoas ajudavam e falavam um pouco do nada ser por acaso, eu acho que ela teve essa
coisa. Teve essa relação assim. Então a gente ia sempre nas festas da APAE, e uma
amiga dela que tinha um filho deficiente, MRC, que ainda está lá na APAE, e hoje ele é
órfão e está lá na casa do órfão. Então a gente ia, a gente brincava. Sabe uma coisa
assim? Eu sempre tive essa relação. Então assim eu comecei gostar também.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 133
Trabalhei nas olimpíadas e me acabei. Eu fiquei com a turma do Rio Grande do Sul e
fiquei até com sotaque. E eu não ia pra minha casa. Eu levei minha malinha pra lá e
dormia lá com eles na escola e ficava o dia inteiro. E ganhei o prêmio de melhor
monitora, porque eu me acabava. Era festa, eu me acabava; era pra organizar, eu me
acabava; era pra brigar, eu me acabava. Porque aconteceu isso ou aquilo eu ia lá e
brigava. Aí eu peguei até um certificado de monitora. Aí quando foi no quarto ano. Aí
eu já podia. E foi legal, por conta de ter essa relação com as escolas e com os
professores. Então quando os professores saberem que eu dava conta. O Junior já tinha
isso, porque o Júnior era bem mais velho que eu. Hoje ele está com quase quarenta eu
acho. Ou está com trinta e sete, por aí. Ele era bem mais velho que eu e daí, abriu a
minha portaria
22
.
Eu não precisava de esperar ou procurar aula. Eu podia escolher onde que eu queria ir,
porque todo mundo queria, porque todo mundo queria, porque todo mundo queria. E
algumas pessoas queriam porque conheciam minha mãe mesmo. Então assim, eu ia,
mas era um ir diferente. Não era um ir porque sabia, era um ir porque era filha da...
Acho que ate quando você me sugeriu ir na Delegacia de Ensino, eu não quero que
tenha essa conotação. É daí eu comecei dar aula, dar aula, dar aula. Mas antes disso,
eu tinha nessa época dezoito anos, mas quando eu tive dezessete anos, eu tinha
conhecido o MRC que é essa pessoa com quem eu tenho esse vinculo até hoje. E daí eu
já saia à noite e daí eu já dormia na casa da Silvia ou a Silvia dormia na minha casa. E
já contava que o clube que era..., que o dono do clube era amigo da minha mãe. E tinha
uns shows bons assim. E o show durava até cinco horas da manhã. E tanto eu, quanto
ela, morávamos perto. Então a gente ia, porque era as oito e daí ou ia na casa dela ou
ia na minha casa.
E eram duas juntas e a gente voltava a pé mesmo. E daí eu conheci ele. E é uma pessoa
importante na minha vida. Porque era uma pessoa que gostou de mim do jeito que eu
era. Eu acho assim que a primeira pessoa que eu senti algum tempo e hoje eu ainda
sinto isso. É a primeira pessoa que eu sinto que gostou de mim do jeito que eu era e sem
interesse nenhum. Porque eu achava que minha amiga era também assim, mas eu
descobri que não. Porque ela estava junto comigo, ela se sobressaia por conta desse
preconceito que as pessoais tinham com a obesidade mesmo. E que não sei. Eu acho
que no pagode era um pouco diferente assim. Já ouviu falar que negro gosta mais de
gordinha. Eu acho que na época eu sentia um pouco isso sim. Você pode perceber que é
mesmo. Eu acho que é mesmo.
Bom, e daí eu conheci o MRC. Ele não é negro não, mas ele é bem moreno. Não chega
a ser mulato. E que foi uma pessoa que eu conheci assim do nada. Bem, muito, muito
por acaso. Muito assim..., sem... A minha amiga estava ficando como o irmão dele e daí
eu lembro que um dia ele chegou e eu estava com a minha amiga e o irmão dela estava
junto. E ele chamava MRC e o irmão chamava Marcelo. ‘Ei! Marcelo, mas você vai me
deixar sozinho?’ Daí ele virou pra minha amiga e falou assim: ‘Essa daí é sua amiga?’
E daí ela falou: ‘É. Conversa com ela.’ E foi assim que a gente se conheceu e eu acho

22
Documento necessário para trabalhar como professor eventual na Secretaria Estadual de Educação (SEE).
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 134
que é uma das pessoas mais importantes da minha vida. Foi e ainda agora está
voltando a ser.
Isso é difícil assim, porque está muito longe demais. Mas eu estou achando que é.
[risos]. É e foi difícil, porque eu ainda tinha essas coisas de meus pais colocarem de
castigo. E quando eles queriam me colocar de castigo, eles punham. Eu tinha dezessete.
E daí essa noite a gente ficou junto. Daí íamos marcar para a semana seguinte, mas eu
fiquei de castigo um mês e aí eu não consegui falar com ele e aí depois era ele que
estava viajando. Era uma relação conturbada mesmo. Aí depois a gente se encontrava.
Daí a gente namorava um tempo. E aí alguma coisa acontecia que eu afastava. Ou eu
não podia, ou ele não podia. Eu sei que por vários anos a gente ficou assim. E teve uma
época que eu acho que eu estava muito, muito, muito apegada e foi a época da minha
formatura do magistério. Acho que no ano seguinte que eu o conheci. Que teve toda
essa coisa de escola e que eu ia trabalhar na festa junina e que a noite ele ia na festa e
a gente ia sair.
Sabe quando você dá mais do que aquilo que você pode? Porque eu sabia que a noite
eu ia ser compensada porque ia encontrar com ele. E aí ele não foi. E daí foi uma
decepção tão grande que eu não pensei duas vezes. Eu escrevi uma carta que eu não
queria mais falar com ele, que eu sabia que nunca eu iria esquecer, mas que ele sumisse
da minha vida. Sabe? Umas coisas assim. E mandei. Depois ele recebeu a carta e ficou
muito triste. O irmão dele veio falar comigo, inclusive assim, sabe? Umas coisas assim
do tipo: ‘Ele sabe que você nunca vai esquecer. Já que você está pedindo isso ele vai
fazer. Tentei voltar atrás, mas daí ele de birra não voltou. E daí ele conheceu outra
pessoa, a pessoa engravidou e ele casou.
Mas daí, no último ano do magistério, eu prestei um concurso de recreacionista. Porque
neste mesmo ano teve de professor, mas eu não podia, porque não era formada ainda.
Então eu fui fazer de recreacionista. E fui considerada inapta. Eu acho que por
preconceito do médico que olhou pra minha cara e falou: ‘Você não tem condições de
ser recreacionista, porque tem que sentar no chão e fazer isso e, fazer aquilo’. E eu
acho que essa minha relação com o MRC me mostrou que não tinha muito a ver. Eu
acho que eu conseguia fazer tudo que todo mundo fazia. Eu acho que prejudicou a
minha saúde e no momento que prejudicou mesmo, que a minha pressão foi a 20 X 18,
daí eu fui pensar em operar porque era a minha única opção.
Mas eu nunca deixei de dançar, de fazer, de acontecer, de sentar no chão. Eu fazia
mesmo. E eu não me conformava de ele ter falado isso pra mim. E difícil também
porque eu sabia que eu ia ouvir da minha mãe. ‘Eu sabia que isso ia acontecer’. E eu
não queria isso de maneira nenhuma, eu acho que quando você começa a ter, a pensar
em um trabalho que iria começar a te dar uma independência que era tudo o que eu
queria. É... Eu... Nossa! Eu fiquei o dia inteiro na rua, eu lembro. Porque eu não queria
de jeito nenhum voltar para a minha casa e dizer que eu fui considerada inapta. Mas eu
tive que voltar. E não foi nem pra minha casa. Foi pro salão da minha mãe que estava
cheio de gente. E daí eu ouvi isso na frente de todo mundo. Eu sabia que isso ia
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 135
acontecer. Mas tem que ir atrás, porque é isso mesmo. Acho que ela concordou um
pouco com o médico.
Apesar de eu ter ido atrás, ter entrado com recurso, ter feito escanometria para ver os
ossos da perna. Deu uma diferença que justificava um desvio realmente que só
apareceu depois do Raio X. Que não era um desvio visível, pois um desvio visível é
quando a pessoa anda torta. Mas no Raio X tudo é visível. Eu falei isso para o médico,
mas ele não aceitou. E acho que uma das piores sensações é quando uma pessoa faz um
atestado de inaptidão na sua frente e você sabe o quanto você tem capacidade de ir e
fazer. Mas isso foi em dezembro de noventa e nove. Bem na época do meu aniversário.
Que eu fiz aniversário dia quatro de dezembro.
E em março do ano seguinte eu entrei na APAE. E eu acho que por causa de eu entrar
na APAE, eu acho que toda quarta feira a gente tinha um jantar na casa de uma amiga
da minha mãe. E daí lá a gente conversava. E daí eu comecei a conversar com os
amigos dela que me conheciam e falavam que eu ia trabalhar, e que eu queria sim
trabalhar na APAE, mas que eu queria fazer qualquer coisa; mas que eu precisava de
um empurrãozinho. E aí eles começaram a pegar no pé da minha mãe: ‘Ah, você
conhece tanto a CIDA [Presidente da APAE], porque você não vai lá pedir? Você não
está pedindo esmola, está pedindo emprego pra sua filha. Ela que vai trabalhar, vai
mostra aquilo que ela quer’. Então quando eu fui com a minha mãe lá: ‘Então vamos!
Já que é pra ir, vamos amanhã’.
Sabe assim. E eu fui pra pedir emprego, não fui pra pedir pra ser professora. Apesar de
ser. Estar formada. Eu fui pedir emprego. E eu estava trabalhando com uma amiga dela
que serve marmitex. Então eu atendia telefone. Eu deixei de ser eventual. Porque eu
ganhei um Chevette e vendi o meu carro, por causa que ficava pegando muito no meu
pé. Então eu fui lá e vendi e falei: ‘Então é isso.’ [gesticulando como que devolvendo o
dinheiro]. Eu sempre busquei a minha independência desse jeito. Se é pra me dar isso
pra me segurar, então não dá. Se é pra dar para depois cobrar, então não dá. Eu
sempre fui muito assim, chata, orgulhosa, eu acho. Um pouco. Mas eu tinha que ter esse
orgulho, eu acho que por mim mesmo. Porque eles nunca me valorizaram, porque que
eu teria que esperar isso. Se eu não sentir orgulho de mim mesma. Não é? Eu não sei
que eu estou certa ou estou errada, mas eu acho que eu pensava assim. Não sei se ainda
penso. Agora eu vou ter que mudar para reestruturar meu pensamento. Acho que não
vou mais poder pensar desse jeito, mas e então, daí, eu fui lá e ela falou assim: ‘Ah!
Você tem magistério, não tem?’ ‘Tenho’. ‘Ah! Então a gente vai começar a trabalhar
com a educação precoce’, que era zero a três e ainda não tinha. Iam começar. ‘E daí
nós temos duas turmas e, eu já tenho uma professora, mas não tenho a outra. Você
quer?’ ‘Ah! Eu quero. Não tenho experiência, mas a gente tenta. Eu venho, sem
problema nenhum’.
Eu lembro que foi assim: na sexta feira eu fui levar o currículo e perguntar quando eu
começava. E mandaram eu começar na segunda. E a minha relação na APAE, foi bem
legal. A gente lutou por muita coisa, fez muito protesto pelas coisas que aconteceram,
pelas sujeiras políticas que aconteceram lá dentro. Traição e um monte de coisas. Mas,
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 136
eu acho que eu aprendi muito, eu acho que eu aprendi a me relacionar com as pessoas.
Porque eu tinha ainda essa coisa de sobressair e ajudar. Eu tinha, por exemplo, uma
Diretora Pedagógica, uma Administrativa e uma Presidente, e então se a Presidente
falava assim: ‘Carolina, faça isso! Põe isso aqui, esse copo aqui.’ Aí eu colocava. Aí a
outra falava: ‘Não põe esse copo aqui’. Aí vinha essa que mandou eu colocar o copo
aqui e brigava comigo porque eu coloquei o copo lá. Aí vinha a outra e falava: ‘Não!
Mas, coloca esse copo aqui’. Mas as três eram minhas chefes. Até que eu aprendi. Não!
Eu tenho que por um copo aqui, um copo aqui e um copo aqui. Não é? Porque se essa
viesse e falasse: ‘Não, mas ela pôs o copo aqui’. E questionasse: ‘Mas, porque que ela
pôs lá também?’ Porque ela mandou. E se você for tirar daqui, você vai lá e fala com
ela. Não é?
E aí eu aprendi a lidar com chefe. Mas eu sofri e apanhei, chorei bastante por causa
disso. Mas hoje eu tenho uma chefe que eu ainda apanho. Mas apanho de um jeito
diferente e já estou meio acostumada também. [risos] E daí trabalhou na APAE, cinco,
cinco anos. E eu acho que foi uma época difícil. Boa profissionalmente e difícil
pessoalmente. E quando eu estava na APAE eu voltei a ver o MRC, porque ele ligou lá e
perguntou se eu trabalhava lá ainda. E quando eu fazia magistério teve uma vez que eu
fiz um teatro e ele foi assistir com a escola dele. Então a gente teve sempre assim,
contatos. Mas não duravam, pois ele estava um pouco em São Paulo, um pouco aqui.
Começou a trabalhar, mas a gente nunca perdeu o contato.
Aí eu trabalhava na APAE e lá também quando tinha gincana e a gente ficava até tarde,
era eu que ficava responsável em fechar a escola, ou ficar lá e dormir a noite caso
acontecesse alguma coisa. E também comecei a me disponibilizar mais do que aquilo
que eu podia até fisicamente. Até por conta do meu peso. Não é? Porque você ficar o
dia inteiro em pé, pesando cinquenta quilos, é uma coisa. Agora ficar o dia inteiro em
pé e pesar mais de cem é outra. Não é? E eu acho que além da escola mesmo, por conta
das festas e por conta das coisas, exigirem demais da gente fisicamente, eu acho que eu
me disponibilizava mais do que aquilo que eu podia fazer.
Até que teve um dia que eu tive um ‘peti’, lá na escola. Passei mal, fui para o hospital, e
daí fui para o cardiologista. Na hora fui encaminhada. Mas eu até fiquei
impressionada, e falei: ‘Mas eu nunca tive’. E aí ele mediu e estava 20 X 18, e aí já
começou a correr com essa coisa da cirurgia do estomago, que no começo eu tive medo,
apesar de ter uma outra amiga, que tinha acabado de fazer, lá da APAE, também. Mas,
eu tive medo. Acho que eu sempre tive medo de médico, de hospital, de agulha. Sabe?
Não gostava muito não. E... Mas daí eu comecei a correr atrás disso. E fui convidada
pela minha Diretora para trabalhar com ela em uma outra escola particular que ela
tinha e o dinheiro aumentou um pouco e eu comprei um carro. Saí de casa um dia e
falei: ‘Não! Eu quero um carro’. Porque eu ia para os lugares e queria ter a minha
independência. Eu tinha a minha liberdade de sair de manhã e voltar à tarde e não dar
nem satisfação. O povo não se conformava, porque minha mãe nem cobrava mais. Mas
daí com carro eu podia ir bem mais longe. Não é? Mais longe. Então eu ia no
pesqueiro, passava o dia inteiro com as amigas e voltava só a noite. Daí eu conseguia
fazer isso.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 137
E daí eu saí. Eu acho que eu não tinha nem um real no bolso, mas eu falei: ‘Vou
comprar um carro’. Fui no banco, fiz empréstimo para dar entrada e financiei o resto.
Fiquei mais de um ano com o carro. Aí meu pai perdeu o emprego e eu tive que ajudar
com o meu dinheiro um pouco, depois que ele aposentou, ele trabalhou mais dois anos e
foi mandado embora. E juntou com a mesma época em que a minha mãe enfartou.
Juntou com a mesma época que eu ia voltar a ver o MRC de novo e daí ela enfartou
neste dia e eu não pude ir no centro que era a casa dele. Na rua da casa dele.
E daí eu vendi o carro. E meu pai falou: ‘Não! Se você quiser, eu pago’. Mas ele queria
que eu implorasse. E eu não imploro. Nada pra ninguém. Esse orgulho eu tenho
realmente. Se é um defeito eu não sei, mas eu tenho. E não. Então não! Eu me viro com
o que eu tenho, não precisa. Se é pra fazer desse jeito, então não. Tanto é que eu vou
para a minha casa, às vezes e falam: ‘Não viu fulano, não viu cicrano, não viu
beltrano’. As minhas amigas: ‘Você veio aqui e não veio me ver’ Não vou! Não vou!
Porque se eu tiver que implorar o carro para ir, então eu não vou. E agora que eu estou
sem a carta, eu tenho que implorar para me levar. Então eu não vou. Não vou. Mas não
vou mesmo. Então é assim.
Eu lembro depois que a gente mudou para a chácara. Depois que eu operei e que daí,
tinha até ônibus que passava, mas o ônibus rural que fazia mil lugares antes de ir,
passava às cinco horas da manhã. Meu pai podia me levar de carro. Igual hoje ele sai
com minha irmã, que a minha irmã vestiu essa carapuça de que aceita essas coisas que
ele faz, pra poder ter esses privilégios. Que eu podia ter sido filhinha de papai se eu
fizesse isso daí, mas eu não fiz. Eu acho que eu nunca ia me aceitar. Ai! Não aguento,
Claudia! Eu acho que não iria conseguir fazer nada. Sabe? Só pra... Mas eu vou ser do
jeito que você quer? Menininha certinha? Não dá... Não combina comigo. [risos]
Coitado... [risos]
Então eu levantava muito cedo. Muito cedo! Mas eu ia todo dia. Pegava esse ônibus e
andava, andava, andava e ia trabalhar e depois saía da APAE, almoçava na APAE e
daí eu ia para a outra escola. Aí, depois eu saia da outra escola e ia para a Unicamp.
Porque daí eu já tinha passado. E que passar no vestibular também não foi fácil,
porque vários anos eu tentei prestar e teve ano que eu não prestei por que não quis. Já
que você não precisa de nada, não precisa da minha assinatura e eu precisava, então
não vou prestar ou então dava a assinatura mas, não dava o dinheiro e era setenta e
cinco reais. E eu não estava trabalhando e então não podia prestar. Fui prestar
vestibular a primeira vez com vinte e dois. Podia ter prestado com dezoito, mas não.
Fui prestar com vinte e dois e daí eu paguei meu cursinho. E eu passei em uma
faculdade que também não precisava pagar também, entendeu? Pra não precisar pedir.
E não foi nem ele que me levou pra fazer a prova. ‘Então já que não precisa, então
arrume quem vá’. E eu arrumava e ele não se conformava. E eu passei. Passei em
oitavo lugar. E fui fazer aquilo que eu queria que era pedagogia, que ninguém queria
que eu fizesse. Fui fazer. E nossa! Foi muito legal a faculdade. As pessoas que eu
conhecia..., outra realidade. Todo dia pra Campinas. Ralei um ano, ia pra APAE,
depois pra particular e a noite pra Campinas. Daí depois eu larguei a particular por
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 138
conta dessa sujeirada que eu percebi na APAE. Aí eu fiquei na APAE e na Unicamp.
Até o terceiro ano. Quando foi no quarto ano. Eu fui prestar o..., a APAE, já estava
meio capenga, que agora já afundou de vez, mas ela estava meio capenga e aí saiu o
concurso do Estado que eu não queria fazer porque eu achava que eu ia ficar na APAE,
ser Diretora da APAE. O máximo que eu pensava.
E também a CIDA falou que empresta a perua pra gente ir é só por gasolina. ‘Você não
nos leva?’ E eu falei que levo. Então disseram: ‘Ah, Carolina! Já que você vai levar a
gente, faça a sua inscrição também. Não sei o quê.’ ‘Então tá bom, eu vou. Vou fazer a
prova e tudo bem’. E fui fiz a prova e das meninas todas, eu fui a única que passei.
[risos] E foi bom, porque daí foi a época do referendo. Porque daí meu pai,
literalmente, me colocou fora de casa, e acho que teve várias idas e vindas nessa época,
porque eu já me impunha mais. E já não ligava mais se eles fossem me dar um tapa, ou
fazer alguma coisa. Eu me impunha e dizia: ‘Então bate mesmo’. E tomei algumas
surras com essa coisa da imposição. Mas aí eu nem ligava mais, como eu falei, já no
começo da entrevista. E daí eu achava também que eu não tinha que ir, porque eu não
tinha nada fixo.
E minha mãe falava assim: ‘Nossa! Se meu pai falasse assim pra mim eu tinha que ir,
mas eu vou com você’. E a gente fez a mala e ela foi comigo, só que foi pro salão. Não
tinha mais estrutura, não tinha nada pra ficar. Eu fiquei uma semana. Tentei alugar na
casa da minha tia, eu trabalhava, ou, dormia no salão dela e no dia seguinte eu
levantava. Mas eu sabia, ela era fogo de palha, ela ia voltar e achou que eu ia voltar
junto e eu não queria voltar. Não voltei. Aí fiquei mais uns dois dias, meu pai foi
conversou, convenceu e eu vi que eu comecei a amolar os outros. Porque um dia eu ia
pra casa de uma amiga; um dia eu ia pra casa de outra. Ninguém tem obrigação de me
acolher, ninguém tem. Aí eu tive que aceitar, falei que voltava para casa, mas que eu ia
passar no concurso e aí eu saía de vez. Que eu não queria mais, porque fazia tempo que
a gente já estava nessa.
Tinha algumas coisas que eu não perdoava e é engraçado que eu acho que meus pais
sempre sentiram, nestas nossas conversas que tinha alguma coisa que fazia eu ter acho
que ódio deles e que eles não sabiam o que era. O meu pai ainda fala isso, às vezes. E
eu não sei. Assim. Antes de fazer terapia e antes disso tudo acontecer, eu não tinha
consciência de que era isso. Eu acho porque o que aconteceu eu quis apagar tanto da
minha mente que teve uma época em que eu não lembrava nem se era verdade, ou se
era mentira. Sabe? Assim? Será que eu inventei isso? Será que isso aconteceu mesmo?
Não, mas aconteceu mesmo. Não é? E ai eu lembro que foi assim bastante difícil lidar
com isso.
Quando eu me propus fazer terapia, falar sobre, mas eu tinha que fazer, pois se era isso
que de alguma forma influenciava, também na minha obesidade, por conta de, segundo
a minha terapeuta, não querer ser desejada, por conta do que aconteceu. Por conta
dessa birra, desse ódio crescente que eu tive dos meus pais e era uma maneira de
afetar. E que teve um momento que eu cheguei, que a gente chegou a conversar e eu
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 139
perguntei se eles tinham vergonha de mim e eles disseram que sim. E eu não me
conformava e eu falei isso pra eles. Eles sabem do MRC por isso.
Um dia eu falei que qualquer dia eu vou lá e vou falar que ainda eu tenho contato. De o
MRC gostar de mim do jeito que eu era e eles não. Entendeu? Eu não aceitava isso.
Não aceitava. E eu falei que a hora que eu emagrecesse, eles iam perder isso tudo. E eu
acho que hoje eu consigo trabalhar bastante isso. Que eu acho que eu ir pra minha casa
e ter coisas na geladeira pra um batalhão, que eu adoro canjica, mas a minha mãe
nunca fez canjica pra mim, até o dia que a minha terapeuta falou: ‘Carolina, faça
você’. E aí o dia que eu fiz, ela resolveu começar a fazer. E geralmente eu chego na
minha casa, mas não tem um potinho, tem um tacho. ‘Mas, Carolina, você não vai
comer canjica?’ ‘Mas eu já comi’ ‘Mas você não vai comer mais?’ ‘Não!’ ‘Por quê’
‘Porque eu não estou com vontade. Você fez porque você quis fazer. Eu não tenho que
comer aquilo que você quer que eu coma’.
E se impor dessa maneira e se eu estou com saudades, não é canjica que eu quero.
Apesar que canjica tem tudo a ver com mãe. Com amamentação [risos] Mas então
assim, e hoje eu faço isso. Eu sei que às vezes eu até magôo por estar sendo grossa
demais, mas eu não tenho, não tenho que comer aquilo que ela faz. E ela continua
fazendo isso. Mas ela perdeu um pouco dessa, dessa coisa dela. E perdeu um pouco
daquilo que poder agredir, porque... Não que eu esteja. Eu acho que eu estava até um
pouco mais magra, eu acho que eu dei uma engordada, mas dá pra manter assim, ou
emagrecer um pouco mais. Mas assim ainda faz a diferença e chegar no momento que
ela sentir que a coisa não era comigo, tudo aquilo que ela depositou, as frustrações
dela, não eram minhas. Eram delas.
Eu acho que depois que ela tomou contato com isso depois da cirurgia. Foi difícil pra
ela. E a cirurgia, a própria cirurgia foi. Tanto é que ela não me ajudou e ela não deixou
ninguém me ajudar. Nem a minha irmã. A não ser que eu pagasse. Então assim. Todo o
cardápio que eu, nos primeiros quinze ou vinte dias diferenciados, que eu teria que ter;
os líquidos leves, depois os grossinhos e depois as papinhas; até eu voltar na comida,
foi. Eu tive que fazer tudo antes e congelar, porque eu sabia que ela não ia fazer. E ela
falou que não ia fazer. Entendeu? Então eu fiz. E eu acho que eu passei não só por essa
cirurgia, mas por essa cirurgia dessa forma.
É. E eu acho que um pouco antes de operar, eu acho que eu já tinha bastante contato
com a minha terapeuta. Que eu já tinha falado isso, já tinha falado da minha irmã e
tudo e ela falou: ‘Porque você não conversa com ela? Você fala que hoje ela não é
criança. Que ela junto com você passou por isso’. Às vezes a gente conta isso para as
pessoas e quem conhece a minha mãe ainda vai falar: ‘Não! É um absurdo! Porque ela
é uma pessoa tão não sei o quê, não sei o quê, não sei o quê.’ Mas ela viveu. E era com
ela que eu tinha que ter um papo. E eu sentei um dia com ela e tive esse papo. E foi
assim difícil, mas a gente se entendeu bastante. Mas depois daquilo, acho que até hoje a
gente tem uma relação muito boa, muito estreita de falar de tudo e de conseguir ser a
pessoa que me apóia. Só ela mesmo. Até a pouco tempo atrás.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 140
E eu acho que ela tem uma relação importante. E foi nessa época que eu achei assim
bom. Ela é uma pessoa boa também. Ela é uma pessoa legal. E ela fala que o exemplo
que ela tomou pra vida dela não foi a mãe. Fui eu. E é legal ouvir isso. E saber que
apesar de todas as coisas que a gente enfrenta, a gente consegue ter uma vida legal.
Construir as coisas sem pisar nos outros. Tem importância pra isso. Acho que por isso
eu valorizo muito mais as pessoas do que dinheiro. E essa situação financeira difícil que
eu estou vivendo agora porque eu fiz empréstimo pra uma pessoa eu acho que o que
mais mexeu comigo, não é o dinheiro, mas é a atitude de não ter vindo falar: ‘Não
tenho dinheiro para pagar. Eu posso te dar isso’. Mas foi a atitude. Porque se ele
tivesse tido um atitude diferente e que não me faltasse o mínimo necessário como faltou,
eu acho que eu teria levado a amizade e a dívida numa boa.
[Nesse momento, a pesquisadora interrompeu e solicitou que ela contasse essa história
do empréstimo.]
O ano passado. Hoje eu moro em Jacareí, moro sozinha há três anos e aí, na minha
escola, tivemos algumas propostas de coordenação e nós tivemos um coordenador. E
marcávamos entrevistas, a supervisora ia fazer a escolha e o HTR, que se tornou meu
amigo, era um desses que estavam se propondo a ser coordenador da escola e foi o
escolhido. E logo na primeira semana a gente teve uma relação muito estreita. Porque
eu era a pessoa que estava voluntariamente exercendo essa função. Porque eu fazia
HTPC, eu fechava a escola e quando ele chegou, eu tinha que passar tudo aquilo que eu
estava fazendo pra ele. Os acompanhamentos dos projetos, o que estava sendo feito nos
acompanhamentos, o que era feito nos HTPC. Eu tinha que sentar com ele e falar de
tudo.
Mas eu acho que assim: esse momento foi um momento difícil pra mim, que eu sabia
que ele ia dando continuidade, não seria do jeito que eu tinha almejado. A finalização
de um projeto. Uma coisa que estava em andamento e isso me doeu um pouco. E no
momento que eu passei tudo, eu consegui naquele momento ter com ele uma relação tão
grande, que naquele momento, várias coisas eu já falei e a gente já começou a ter
aquela relação que eu achava que era amizade e hoje eu acho que naquele momento ele
percebeu que eu tinha o perfil pra fazer o que ele fez. Eu acho. Hoje eu acho isso. Que
eu não sei nem o que achar dele.
E isso foi numa terça, no ano passado, eu acho que deve fazer mais ou menos um ano.
Ah! Não foi na volta. Não foi mais ou menos nessa época mesmo. Um ano. E daí já
começamos a conversar. E ele já perguntou tipo na quinta, se na sexta ele podia vir em
casa, porque queria conversar. E aí eu falei que podia, porque eu não sabia se ele
vinha, porque eu senti assim uma pinta de homossexualismo no ar. Mas eu não sabia se
ele queria vir conversar a esse respeito eu não sabia se ele queria falar de escola, eu
não sabia se era interesse. E como eu não nego fogo pra nada, [rindo muito] aí eu falei
que podia. Aí ele veio e eu fiquei assim na espreita. Qual é a desse cara? Até que ele foi
e contou então.
Se é verdade ou não é, eu não sei. Mas ele falou que era homossexual. E a gente
começou a ter uma relação muito estreita. Ele vinha todo dia na minha casa. Tipo dez,
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 141
onze horas da noite e ficava até três, quatro horas da manha. De segunda a segunda.
Todo dia. Aí um dia a gente falava. Assistia a filme, saia. Um dia não sei o quê. E trazia
coisa. Mas era todo dia. A gente passava quase o dia inteiro na escola e daí vinha pra
cá. E daí ele contou que tinha comprado uma escola de educação infantil e queria
transformar também em escola técnica no período da noite. Porque o local e a estrutura
da escola podia, mas precisava fazer algumas reformas. Eu cheguei a ir na escola
algumas vezes, vi algumas coisas, sei que o irmão dele trabalhou lá. Tanto que ele
falava isso tudo.
E daí teve uma vez que ele falou que pra que esse ano a escola pudesse funcionar
legalmente, legalizasse a escola e não tivesse mais problemas administrativos que a
escola estava tendo, que ele ia mudar o nome e tudo mais, precisaria arranjar as
reformas pra que o fiscal fosse ver e o CNPJ saísse no final do ano, pra que esse ano
ele pudesse começar com a escola legalizada. E que o salário dele de coordenador ia
demorar um pouco pra sair. Então até ele esperar esse tempo e tal, que daí ele ia poder
fazer esse empréstimo, então se eu podia fazer. E que depois a gente ia acertando que
eu podia ficar sossegada, que todo mês ele ia acertar, que eu podia ficar tranquila, e eu
lembro que ele chorou e eu burra, pensei: ‘Ai coitado!’ E ele falou assim: que é única
coisa que ele tinha e já me contou umas histórias que o nome dele tinha sujado por
conta dos outros e acho que então todos os processos que ele tinha e que já tinha sido
despejado de uma casa, era tudo por culpa dos outros. E que a única coisa que ele tinha
pra me dar era a palavra dele. E se isso bastava. [gargalhada] E eu burra falei que
bastava.
Aí eu fui com ele lá na Nossa Caixa, fiz o empréstimo, no valor que ele nem falou que
tinha que ser esse valor. Tanto é que foi isso mesmo e que era isso que ele precisava. Aí
eu fui pedi. Fui lá com ele. Não! Dei meu holerite para ele para ver se podia fazer com
este valor. Aí fui. A gente fez lá uma simulação e aí eu vi lá o valor que dava pra ele
pagar, com o salário de coordenador que ele ia receber. Aí ele achou que setecentos e
pouco dava, porque, ele morava com pai e com a mãe e não tinha muito gasto. E dava
pra ele. E eu fiz o empréstimo, que foi de quase vinte mil. Dezenove e alguma coisa. E
na hora a gente já tirou cinco mil e fomos naquele lugar, ‘Constru alguma coisa’. Que é
na estrada. E já compramos algumas coisas pra escola. Indo pra São José, não tem?
Têm luminária, essas coisas. Já compramos algumas que ele precisava. Essas
estantinhas de plásticos.
E daí ele comprou várias para escola e me deu uma. Já na semana seguinte a gente já
foi pra Santos. E o objetivo de ir lá é que estavam vendendo carteiras de uma escola
que estavam renovando. Então não tinha como duvidar que aquilo era pra escola. Não
sei nem se era mesmo, mas enfim... Bom! E aí o resto eu transferi pra conta dele. Os
quatorze mil e pouco. Só tenho comprovante desses quatorze. E daí ele me pagou os
dois meses. Isso foi em julho e ele começou me pagar em setembro. E ai setembro e
outubro ele pagou normal. Veio e deu até mais do que precisava, pois tinha juros do
banco. E tudo cuidadoso com isso. No terceiro mês que foi dezembro, já foi picado.
Dezembro, eu já tive que quase implorar e de lá pra cá ele não pagou nunca mais.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 142
E eu procurei a família dele, procurei ele e falaram que ele sabe que tem que pagar,
mas ele não tem como. E eu então descubro que é a quarta pessoa eu ele faz isso. Que
ele já tem seis. Comigo é o sexto processo em cima dele e vi que na verdade essa
amizade que achei que era tão importante não era nada. Levei ele pra minha casa. Lá
em Salto, apresentei ele para os meus pais. Meus pais montaram um quarto para ele
ficar a vontade. E ele não valorizou nada disso. Nada disso. E hoje eu estou em uma
situação financeira difícil que mudou a minha vida completamente por conta dessa falta
de... Nem sei do que, dele, não é? Falta de consideração. Nem é falta de consideração.
É muito mais do que isso.
Por que a gente é, que nem a gente escuta. A gente fica com a consciência pesada de
fazer isso pra alguém, não é? E como é que pode você mudar a vida de uma pessoa
completamente. Tendo conhecido os pais dela e visto que não é nada assim luxuoso.
Que eu não sou nenhuma pessoa assim. Por não pensar que eu estou sozinha em uma
outra cidade e precisa. E estar construindo a vida. E conhece um pouco da história não
tudo, mas contei um pouco da história e sabe o quanto eu lutei pra chegar até aqui e
conseguir tirar isso tudo do outro e não ter remorso nenhum. Não é? Não é uma pessoa
normal.
E por conta disso tudo o que eu construí vindo pra Jacareí e construindo assim. Então,
essa mesa eu trouxe. O tapete também. O tapete da sala também. Não trouxe mais nada,
nem computador, foi muito tempo depois que eu resolvi trazer. Apesar de que ele estava
quebrado, parado e eu mandei arrumar e trouxe porque também estava jogado. Assim
tudo eu construí. Então, quando eu sabia que ia mudar, esse armário estava em
promoção e eu fui lá e comprei. Quando eu cheguei aqui, eu fiquei vários dias sem
nada, porque eu nem tinha tempo de ir pra cidade e nem dinheiro pra ir porque no
começo da mudança, demora pra gente receber. Então comprei um filtro e depois e eu
comprei fogão e a geladeira, e daí quando trouxe o fogão e a geladeira já montou o
armário, que era tudo das Casas Bahia.
E daí eu lembro que no bônus que foi bom eu usei quase que o bônus inteiro pra
compra o jogo de quarto. E daí eu tinha cama. Porque eu dormia em um colchão no
chão que era emprestado da vizinha que ficou com dó, porque eu vim sem colchão
mesmo. Eu tinha só colchonete. Depois eu comprei o que? Dai os livros ficavam no
chão. E passou o tempo eu comprei o DVD, que estava em promoção e deixei ele
guardado e daí quando eu fiz uma festa no ano retrasado aqui de aniversário, eu
convidei quarenta pessoas. Vieram dezessete, mas tudo bem, eu achava que eu tinha que
ter pelo menos um sofá. Daí eu comprei o sofá, mas não estava montado, no dia. Eu tive
uma raiva, mas ele estava aí. Televisão eu comprei no começo do ano passado. Quer
dizer eu mudei no ano retrasado. Fiquei um ano sem. Quer dizer, tudo o que tem aqui,
tem assim uma história de luta para conquistar e uma história de luta por conta, assim,
das pessoas que já passaram por aqui.
E eu acho que cada coisa que eu comprei, eu comprei pensando já, assim de montar
uma casa, mesmo que eu tivesse que levar tudo isso pra outro lugar. Eu não pensei
numa casa luxuosa, mas, numa casa que tivesse o básico que tivesse uma cor que eu
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 143
gostasse, que fosse de bom gosto também. Que você olha, a minha sala é bonitinha, é
fofa. Ela tem um pouco da minha cara. Não é nada luxo, mas eu gosto do jeito que é.
Da cor que eu queria, eu lutei porque veio vermelho e o homem falou que não podia
trocar e deu um rolo esse sofá, e depois tinha uma mancha de vinho. E cada coisinha
tem uma história.
Acho que vou ter que voltar pra minha casa porque não consigo mais bancar aluguel,
água, luz e telefone, mesmo tendo o salário de vice-diretora, que também não é lá essas
coisas, mas que daria para bancar, mas nesse momento não dá mais, porque mesmo
com tudo isso eu tenho que contar com a ajuda de meus pais mensalmente. Senão não
dá pra manter tudo o que eu queria. Eu acho! Bem, no berro! Senão eu vou estar todo
mês no limite, todo mês no limite. Daqui a pouco vou estar devendo de novo e com uma
dívida, não dá. E chegar e contar isso para os meus pais também não foi fácil.
E eu acho que eu demorei muito tempo para fazer isso. Acho que eu passei muito aperto
antes de chegar a essa etapa, porque aí... Depois de lutar tanto, depois de conseguir
chegar em um lugar que ninguém te conhece e chegar a ser diretora da escola, então é
um orgulho. Eu acho que também é um orgulho para eles, mas é um orgulho pra mim
principalmente, e de repente, dá um tombo destes, não é? E falar ‘não, eu preciso
voltar’, e depender de pai e mãe de novo é uma coisa que acaba comigo um pouco.
Tudo aquilo que eu busquei, busquei, busquei, busquei. Eu vou perder, mas por outro
lado acho que tudo tem o lado bom, porque senão a gente sofre demais. É um momento
de resgate com a minha família. Porque assim, vindo pra cá e morando tão longe, eu
descobri que eu também sinto saudade de ouvir essas coisas. Eu também sinto
saudades, gosto de você.
Mas, eu acho que esses anos todos eu ficava mais aqui do que viajava e eu acho que foi,
só não ter nada e poder contar só com eles, porque eu acho assim. As pessoas ajudam,
as pessoas têm dó de mim, as pessoas se preocupam, quando você conta essa história,
mas são quatro anos de dívida. E agora? As pessoas já esqueceram e de vez em quando
alguém tem que dizer a verdade. É uma coisa que vai continuar. E foi só assim,
contando pra eles, tomando uma surra de novo e ouvindo muita coisa e me
decepcionando com muita coisa e ouvindo: ‘Ah! Você nunca fez nada pela gente e como
é que você faz isso por outros.’ Porque eu sempre fiz mais pelos meus amigos do que
por eles mesmo. Mas eu não tenho dó de ouvir isso não. Isso eu não tenho dó de ouvir,
porque eles nunca fizeram nada por mim. Entendeu? Então eu tenho vontade de falar
isso, eu não respondo não, mas eu tenho vontade de falar. Eu acho.
Eu tenho medo de voltar pra casa, porque eu acho que em uma briga eu vou falar mais
do que deveria. Não sei. Não sei o que vai acontecer, mas eu acho que de repente está
chegando este momento. Não adianta chorar e falar assim: ‘Não é que ele é seu
beneficiário e se você morresse a gente ia ficar sem nada. Porque eles nunca me
fizeram nada, entendeu? Eu não conquistei tudo sem precisar deles? Eles nunca, nem
na minha formatura, eles foram, porque não era aquilo que eu queria, então comemore
sozinha. Então agora que eu tenho isso, porque era eles que eu teria que ajudar
primeiro? Porque eles são meus pais? Eu era filha. Não era? Eu não era filha? Então
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 144
eu não tenho dó. Eu acho que o sentimento que eu tenho é diferente. Estamos
construindo alguma coisa ainda.
Mas é. Não sei se vai ser a mesma coisa, se tivesse sido construído desde pequeno. Mas
e assim. Em alguns momentos eu tenho sentido só eles por perto. E acho isso bom, pois
eu consigo ir pra lá e ter uma relação boa que não dura muitos dias, mas eu consigo
ter. Eu percebo que eles se preocupam e em alguns momentos eu fiquei mal e a minha
mãe foi a primeira pessoa que eu liguei e contei e de vez em quando ela pergunta: ‘E
aí? A sua chefe está melhor?’ ‘Está melhor, mas eu acho que quem mudou foi eu, de ter
essa preocupação e de ter essa coisa.’
Eu acho que a nossa relação está mudando um pouco. E teve um momento que eu vi que
só com eles que eu podia contar. Que eu tinha 500 pessoas a minha volta, que eu estou
faz três anos e poderia ter construído um monte de coisas com um monte de gente e que
não. Que é só com eles que eu tenho pra contar. Então o que é que eu vou ficar fazendo
aqui? Apesar da volta ser difícil, eu penso. O que eu vou ficar fazendo aqui? Acho que
as pessoas com quem eu consegui construir essa liberdade, com quem eu poderia ligar
cobrar, exigir alguma coisa, foi o DJL, que depois eu vou falar dele e também não faz
mais parte da minha vida, e o HTR que não consigo pensar essa liberdade com outra
pessoa. Por mais que a minha relação com as pessoas seja estreita.
Eu sou muito caramujo. Eu brinco muito, mas para falar sério de mim, eu vou com
muito cuidado, mas também se eu fizer isso, eu volto na casca até sair de novo. Eu não
consigo e acho também que desistindo um pouco. Já que eu tenho que ir embora eu
canso um pouco. Então tem vez que eu não ligo muito. Acho que o cuidado até com a
casa não é o mesmo de antes. Quando você sabe que vai perder alguma coisa, não quer
continuar convivendo com aquilo. Então essa é a história do HTR. Me fez resgatar
essas coisas e ter que voltar para a minha casa e de vez em quando as pessoas
perguntam: ‘É isso que você quer?’ Bem se eu ganhasse, na verdade, não sei onde, não
ia ser isso que eu ia fazer. Com certeza não. Eu acho que eu ia pagar a minha dívida e
iria querer comprar uma casa e querer ficar aqui. Até a VLD estava falando: ‘Joguei,
se eu ganhar vou dar cinquenta mil para você. [rindo] Já pago a dívida e ainda compro
um carro!’ Mas não deu coitada, nem os cento e setenta que teve um pouco que ganhou.
Não ganhou nada.
Bom mas, aí voltar pra casa, só pra ter um gancho. É difícil também porque eu acho
que aqui eu construí uma coisa que eu não ia conseguir construir em outro lugar que é
ter a liberdade pessoal pra algumas coisas. E conseguir viver algumas coisas que eu
não iria conseguir viver num lugar que fosse distante, não muito. Por exemplo,
Campinas é um lugar distante, não muito. É distante, mas se você for no shopping, você
encontra muitos saltenses. Sorocaba... Jacareí não! Jacareí a gente nem conhece. Então
é bom. Ninguém sabe. Ninguém sabe das coisas que eu apronto [risos].
Bom, mas aí essa coisa de ter essa fase da minha vida de descobrir que eu gostava de
homem negro. Eu acho que um pouco antes disso foi uma fase difícil porque eu não
sabia nem se eu gostava de homem. Eu acho que não é fácil você descobrir que você é
diferente, mais do que já era. Mas a única coisa eu sentia era isso. Eu acho. Hoje eu
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 145
tenho essa percepção por conta dos comentários que hoje os outros falam, mas eu acho
assim.
Postura, a postura você consegue já perceber alguma coisa principalmente pra quem é
também. E eu acho que se existe um lado homossexual também eu acho que sempre foi
claro para todas as pessoas, mas nunca foi claro pra mim, apesar de eu ser sempre
questionada a respeito disso. E daí quando eu fui fazer terapia que eu falei sobre isso
mais abertamente, porque foi colocado em cheque, mas nem tanto. Assim aquilo que ela
sabia era o que eu contava e eu nem sei se fui muito sincera nas minhas respostas neste
sentido e acho que se eu tivesse sido sincera ela teria analisado de outra forma.
Então quando ela fala não, tenho certeza que não é. Eu não sei se ela tem razão. Então
eu não sei assim. Também eu não falava tudo porque eu já estava sentindo que também,
sei lá. Até pelas relações de amizades que eu estava tendo. Mas como minha mãe tem
salão e sempre frequentavam muitos homossexuais na minha casa, eu também achava
que era aquela questão de simpatizante. Não tem preconceito, não tinha preconceito.
Tinha uma afinidade legal e tal. E os iguais se atraem. A gente consegue perceber
aquilo que é parecido com a gente e se afinizar. Acho que um pouco, nessa questão é
assim. Você consegue perceber. Você chega em um lugar e bate olho. Você sabe que
você consegue ter um magnetismo maior. Assim foi a minha relação com o Junior que
há pouco tempo assumiu que era. Mas que nem precisava assumir, porque eu também
sabia, apesar de ter casado e tudo mais.
E foi minha relação com o DJL, foi minha relação com o HTR e têm até algumas outras
relações que eu não gostaria de dizer aqui, mas tem uma afinidade por conta disso,
apesar de eu achar que as pessoas não iam acreditar. Mas assim, o DJL foi uma pessoa
muito importante na minha vida. O DJL foi um professor que trabalhou na mesma
escola que eu em 2007. Trabalhou o ano inteiro. O DJL chegou a entrar no Seminário,
foi quase padre, até que ele achou que estava no seminário só por causa disso e aí
resolveu assumir e saiu. É, ele é assim. Uma pessoa muito legal, muito criativa. Aprendi
muito com ele, apesar de ser muito novo. Vivia também a vida que eu vivia, de
trabalhar em dois períodos e estudar à noite. Ainda vive esta vida, porque as pessoas
que têm contato com ele me falaram isso. E sabia muito. Me ensinava muito. Tinha o
dom da palavra.
Bom, mas daí a gente fez uma confraternização no meio do ano, em junho, e a gente já
tinha uma relação muito boa. Ele vinha e conversava comigo. Então ele começou a
contar de relações que ele tinha vontade de ter. A gente saia e passava alguém, tinha a
liberdade de fazer algum comentário. E a gente foi estreitando a nossa relação, muito,
muito, muito. E acho que até fisicamente. Essa coisa do abraçar. Eu não tinha ninguém,
ele não tinha ninguém. A gente era amigo. Até essa carência física, antes desse
envolvimento maior que teve, já existia e era perceptível para as pessoas, tanto é que as
pessoas achavam que a gente já tinha um relacionamento, antes dele acontecer.
Em julho, achavam que a gente já tinha, mas só aconteceu em setembro. A gente tinha
um contato muito próximo. A gente ficava grudada mesmo o tempo todo. Bom, mas daí
em julho, quando eu vim pra Jacareí, eu liguei pra vó do MRC, porque eu sabia que ele
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 146
não estava mais em Salto. Mas eu não ia mais morar lá e eu queria saber onde que ele
estava, se eu quisesse encontrar. Então eu liguei pra vó dele e ela me falou que ele
estava em Mogi. Mas não me contou em qual Mogi que era. E eu pensei que de repente
pudesse ser Mogi das Cruzes que é aqui próximo. Então quando eu encontrei o DJL que
mora em Mogi, eu falei pra ele. DJL, tem uma pessoa que mora em Mogi e você vai ter
que me ajudar a achar, nem que a gente tenha que ir em todas as fábricas de Mogi. E
ele falou: ‘Não que eu vou, porque não sei o quê, não sei o quê.’
Até que a gente fez uma confraternização no final do ano e ele perguntou como que era
o nome da pessoa e eu falei que era MRC. Aí tinha outros professores lá e tinha uma
pessoa que era inspetora da escola com quem eu tinha bastante contato de amizade
mesmo de vir aqui em casa e sair à noite. Daí ele falou: ‘Ah! O nome é MRC?’ Eu
achava que fosse uma mulher. E aí a outra também falou que achava isso. As outras
pessoas também falaram que achavam. E essa coisa que eu já tinha apagado um pouco
da minha mente depois que a minha terapeuta falou que não, eu acho que você não é.
Eu acho que isso voltou, porque daí eu fui falar que eu sempre me questionei.
Eu achei isso. Se eu passar num lugar, uma pessoa também me perguntou, como é que é
isso? Se eu passar num lugar e tiver, por exemplo, um grupo, de mulheres homossexuais
ali, eu me sinto atraída não no sentido físico, mas no sentido de me sentir igual. Então,
isso é muito estranho pra mim. Não sei. E daí é difícil, porque não só com o MRC, mas
assim com outras pessoas, com outros homens com quem eu me relacionei, o corpo
masculino me atrai. Então não sou homossexual, porque eu sempre achei que quem
fosse homossexual, gostava só do mesmo sexo. Eu tenho amigos que são assim, não
gostam e tal. Não querem. Então era uma dúvida que ficava na minha cabeça por conta
disso.
E tem uma coisa que eu queria falar. E eu já volto aqui. Porque foi em Campinas. E eu
já estou falando de Jacareí. Mas em 2006 eu morei em Campinas. Foi quando eu
ingressei no Estado. Eu acho que foi um momento que eu me permiti viver a minha
sexualidade de uma maneira maior. Porque assim, demorei muito para conseguir me
permitir a isso. Eu acho que eu precisei passar por dois anos e meio de terapia, eu
precisei fazer cirurgia, eu precisei emagrecer tudo o que eu estava emagrecendo, que
eu consegui entrar em contato com isso, porque daí você começa levar umas cantadas e
que era outra coisa, era outra vida. Mas daí eu acho que era outra dúvida, que ela falou
que não. Era tão presente em mim que eu acho que eu tive que vivenciar isso de uma
forma até banal assim.
E eu acho que em Campinas, eu acho que eu fui meio pervertida, em não ter nem limite
para isso. Sabe? De ir para a internet e marcar com uma pessoa para vir aqui agora, e
de ter cada dia uma pessoa diferente na minha cama e de ter até marcar dois no mesmo
dia. Um vai embora e chega o outro. E até o dia que apareceu um que me deu uma
surra que aí caiu a ficha. Mas acho que eu precisava de um: acorda! [risos]. E daí eu
parei um pouco com isso. Eu fiquei um pouco com medo de internet. Mas eu fiz isso e eu
me questionei, porque que eu fiz isso. Depois eu acho que foi assim de tentar firmar. É
isso que eu quero. É isso que eu gosto. Mas não sei. Isso foi só com homens.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 147
Com mulher eu só tive uma experiência e foi aqui em Jacareí e nem sei se eu vou me
permitir ter outra. Neste momento, eu estou só visualizando o MRC. Mas foi e eu acho
que foi assim muito banal. E assim, será que eu consigo falar isso. Eu acho que eu
consigo. Se tivesse tomado duas cervejas eu acho que eu falava. [gargalhadas] Mas eu
acho que eu consigo, até pra explicar essa relação comigo mesma. É, eu acho que
sexualmente falando, têm algumas coisas que me marcaram tanto que eu acho que eu
não consigo. Não consigo. É. Não consigo. Porque eu acho que eu consegui, mas não
conseguia fazer e vivenciar. Tanto é que têm coisas que eu consigo e têm coisas que eu
não consigo. Então eu acho que em Campinas eu me permitia tudo.
Essas coisas que antes eu não conseguia fazer, eu fazia, mas eu acho que eu não
gostava. Entendeu? E isso na verdade, me fez mal. Porque é assim, se eu não gosto do
que é básico, então na verdade, será que não é disso então que eu gosto? Então eu
comecei a achar também que eu tinha que ter outras experiências. Porque eu sou muito
assim, se eu tenho a dúvida, eu vou lá e vou tirar a dúvida, não vou ficar me
escondendo não, sabe? Só também porque é longe de casa, porque se... [gargalhadas].
Apesar de eu achar que muita gente de lá já sabe. [risos]
Principalmente ultimamente que eu tenho sido muito mais clara com as coisas. E então
é assim, eu comecei a me questionar um pouco mais. E daí voltando agora, o DJL me
colocou em cheque. E falou. Vamos sair. E começamos a sair juntos. Ele que nunca
tinha vivenciado absolutamente nada, nunca tinha nem beijado na boca. Porque levava
o celibato muito, muito sério. Muito mais do que ele precisava. E eu que achava que
tinha que fazer isso. Eu sou muito mais despojada. Então falava, vamos? Vamos. E nós
frequentamos alguns lugares. Acho que nos fomos em dois. Então eu lembro que no
primeiro ele queria morrer porque tinha dois homens se beijando. ‘E não, porque eu
não quero. Não é isso que eu quero pra mim’.
E ele nunca se conformou. Ele aceitou, mas no momento em que ele achou que ele tinha
que iniciar, ele não se conformou com isso. Então ele veio me pedir quase como que um
favor para uma amiga, e eu quase que já tinha sentido que ia acontecer e estava
pensando em fazer como se fosse um favor para amiga, de vivenciar essa sexualidade
de primeira vez. De tudo, porque nem beijado na boca ele tinha. E ele foi até conversar
com uma professora que tinha conversado com a gente e ela falou assim: ‘Professora
Carolina eu acho que você deveria, porque ele precisa de uma pessoa em quem ele
confia e precisa disso, e precisa daquilo. E você é essa pessoa’. E é que nem você falou.
Porque eu pensava assim: se eu falasse que sim a nossa amizade não ia ficar a mesma,
como não ficou. Mas se eu falasse que não, também não ia. Porque ele chegou num
ponto, tanto de confessar e chegar a pedir isso, que se eu falasse não ia desmoronar a
amizade. De qualquer maneira a nossa amizade não ia ser mais a mesma. ‘É, então
vamos. Eu falei. [rindo] Aceito tudo, então vamos’.
E daí ele, nessa época ele já frequentava a minha casa, já dormia comigo à noite. Até
isso acontecer ele já tinha ficado aqui várias vezes. E aí ele pediu. E aí aconteceu. E
aconteceu uma, duas e, foi acontecendo. E o que aconteceu? Ao invés da gente sair pra
ir para um lugar para procurar parceiro, a gente saia junto. Como se fosse um casal
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 148
mesmo. E daí começou a nascer ciúme, então a gente começava. A gente perdeu toda a
liberdade que a gente tinha. Entendeu?
E na escola ficou muito difícil, porque o meu círculo de amizade são as meninas
[professoras] e você acha que eu não ia contar? E o povo fazia um estardalhaço, a
gente teve uns problemas sérios, tanto é que depois ele foi embora. E quando ele foi
embora ele falava isso. Ele acha que o relacionamento que a gente teve,
inconscientemente teve a ver com a fuga daquilo que a gente devia ter vivido. Ele acha
isso. Não sei se eu concordo com ele. Acho que até concordo. Mas é assim. Ele foi uma
pessoa importante porque ele era muito mais feminino do que masculino.
Ele era uma pessoa que precisava muito mais ser controlado do que controlar. Ele era
muito mais conduzido do que conduzia. Então por ter essa liberdade, por ter que
cumprir esse papel, que na verdade é do homem, ou normalmente é do homem, ou o
senso comum fala que é do homem, eu acho que com ele eu consegui ter um pouco mais
de liberdade. E eu acho também que ele teve alguns problemas neste sentido, eu acho
que junto a gente conseguiu passar por muitas coisas e vivenciar muitas coisas que a
gente não conseguia por ter conversado sobre essas dificuldades. Então ele foi uma
pessoa importante neste sentido, de eu conseguir viver coisas que eu não conseguia e
gostar com ele, ou, por exemplo, mesmo com meu corpo que ainda eu tenho uma
dificuldade.
Foram poucas as pessoas. Porque como uma amiga minha falava: ‘O obeso operado é
assim. Primeiro ele é obeso. Depois ele e operado. Primeiro ele tem uma cicatriz,
depois ele fica flácido. Então ele sempre tem essas marcas’. Mesmo que eu faça plástica
eu vou ficar com cicatriz. Então não dá pra falar que, por exemplo, tem esse corpo,
porque foi dessa forma. Eu acho que lidar, a gente lidar com o espelho é um pouco
difícil. E eu acho que a gente tem uma liberdade maior com as pessoas que conseguem
lidar com isso numa boa. Então eu acho que o MRC que é uma pessoa que está
retornando neste momento e que é importante que me conheceu antes.
Tem o CDN que é lá de Salto que foi a pessoa com quem eu me permiti viver a primeira
vez, entre aspas, mas que também é uma pessoa que respeita e aceita numa boa e que já
chegou a vir em Jacareí passar um final de semana comigo e eu acho que quando eu
tenho que buscar alguma coisa mais assim, são essas pessoas que eu busco. E o DJL
que também foi uma pessoa que eu consegui, apesar de ter conhecido ele depois, foi
uma pessoa com quem eu consegui viver com isso numa boa e vivenciar o momento
mais a vontade. Não é tenso.
E com o MRC eu tinha medo de me decepcionar. Porque ele sempre foi um príncipe. E
se eu conseguia ter uma relação de quase idolatria com ele, é porque ele sempre foi um
príncipe. E eu precisava viver, para ver como ia ser a minha reação e a dele. E foi
muito legal, quando eu vi que eu estava aqui sozinha com ele. Ninguém pra encher o
saco, com uma baita de uma história que a gente já trouxe e eu acho que foi assim bem
legal. Não deu pra ser cem por cento. O fator relógio. [risos] Mas foi bem legal. E eu
tive que perguntar pra ele depois e falar que estava com vergonha, que estava, que eu
acho que eu estava toda caída. E foi legal ouvir dele assim que não fez, nunca fez
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 149
diferença. E eu sabia que nunca fez diferença. Durou onze anos. Um sentimento durou
onze anos, é porque isso nunca fez diferença. Nem as minhas transformações, nem as
dele. Ele veio careca, barrigudo. Ele veio mesmo. E eu acho que não é isso que faz
diferença. E que se eu estivesse com alguém que isso faria diferença, eu iria pensar se
realmente essa pessoa me merecia pela pessoa que eu sou. Então é legal ouvir isso de
alguém, eu acho que,... [silêncio] Eu não sei como é que vai ser isso daqui pra frente,
mas, eu acho que se eu pudesse, por exemplo, estar mais próxima, até para que ele
pudesse mesmo fazer isso que ele falou, de ter coragem de deixar a vida que ele tem,
pessoal, para construir uma outra comigo... Eu acho que já devia ter acontecido. Ou
não. Poder estar mais próximo.
Mas eu acho que neste momento, financeiramente, eu também não vou poder. Então
voltar pra casa, também é difícil por conta disso, porque eu podia estar indo para outro
lugar. Não precisava estar ficando em Jacareí, com tanta dificuldade que eu tive aqui.
Mas era um lugar onde eu poderia estar. E eu acho que depois de onze anos ter uma
oportunidade dessas. De ter quase trinta anos e achar que está na hora de definir
algumas coisas na vida, depois que você vivenciou tudo aquilo que você quis, e ver.
Eu acho que é mais a pessoa mesmo. Eu acho que a pessoa mais especial da minha vida
é ele. E que se ainda é, então não sei se a convivência iria destruir isso. Mas é uma
coisa que eu gostaria de poder, de estar perto, de viver mesmo assim, sempre. É, mas
voltando a falar do DJL, ele foi uma pessoa com quem eu vivi uma coisa que eu nunca
tinha vivido com ninguém. Que é essa coisa de ter a minha casa, com as minhas coisas,
de ele ficar aqui vários dias e ser quase o meu marido. Ele foi quase o meu marido. E
foi legal assim, de repente as outras pessoas destruíram por conta dos comentários e ele
foi embora, mas não sei.
Eu acho que das pessoas que eu mais gostei eu coloco na balança o DJL e o MRC, por
conta do DJL ser mais recente e, de repente, o MRC começa a ser recente de novo.
Então a gente liga todos os dias e ele vem. Eu não sei quanto vai durar, eu hoje tenho
vinte e oito anos. Bem eu quero encerrar falando que é legal, apesar de ter vivido tudo
isso, eu ver que eu tenho conseguido construir todas as coisas que eu quis, que agora eu
vou ter que desconstruir, porque eu não sei como vai ser daqui pra frente, mas eu acho
que eu provei pra mim, em todos os sentidos, que eu tenho capacidade e que
independente dos meus defeitos, eu sempre vou encontrar pessoas que me aceitam do
jeito que eu sou e isso é o mais legal. E também me permitir tudo aquilo que eu queria.
E acho que só.
Ela termina a narrativa, com um olhar profundo, voltado para dentro de si.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 150
3.3 A ANÁLISE DAS NARRATIVAS
As ideias e lembranças que temos não são nossas, mas fazem parte de nossas inspirações
construídas no contato com outras pessoas, que no decorrer do tempo passam a ter uma história
dentro de nós. Cada uma das histórias aqui transcritas passa, portanto, a fazer parte da vida da
pesquisadora, que por sua vez se encarregou de preservar o anonimato de cada uma delas. No
entanto, são histórias que parecem tão pessoais e farão para sempre parte de nosso cabedal,
mesmo tendo sido formuladas por outrem, conforme descreveu Bosi (1998).
As memórias da professora Paula trazem para este estudo os aspectos formativos e suas
contradições, pois os discursos pedagógicos fluem e atravancam a formação e a cultura. Há o
sacrifício, a renúncia e a regressão do esclarecimento à ideologia. Isso ocorre por estes discursos
decorados serem utilizados, pelos professores, de maneira irreflexiva, fazendo com que a teoria
não corresponda à realidade concreta, cotidiana, da prática docente: “[...] Eu acho que é
frustrante, porque a formação acadêmica te passa um aluno moldado, você vai receber um
aluno padrão e que ele vai aprender. Ele vai vir de uma família estruturada, você não vai ter
problema nenhum e a sua função ali é ensinar.” (PAULA).
A professora Marli trouxe vários aspectos para esta dissertação, como a presença de
Graciliano Ramos, que foi evocado não pelas mãos da pesquisadora diretamente, mas pela
história dessa professora, que nasceu em Quebrangulo e presenteou-nos com um pequeno
aspecto de sua memória e infância, que a faz singular e plural. Ela, que corajosamente se fez
narradora de sua vida para esta pesquisa e análise; “[...] Então era assim: às vezes meu pai
falava tanto, mas a gente não ouvia porque ele falava, mas, não vivia aqueles princípios que ele
falava. Ele tinha outros. Ele tinha uma fala e fazia outras ações.” (MARLI). Finaliza sua
história modestamente com o olhar e a fala de quem esperava ter contribuído. Ele, Graciliano,
que imortalizou as suas memórias de infância, preservou para sempre o menino que foi na luta
contra o homem, o qual nunca conseguiu dominar.
Seguros de que o rapaz não os denunciaria, o padre e a rapariga começaram a
maltratá-lo. Não se mencionou o gênero dos maus-tratos, mas calculei que
deviam assemelhar-se aos que meus pais me infligiam: bolos, chicotadas,
cocorotes, puxões de orelhas. Acostumaram-me a isso muito cedo – e em
conseqüência admirei o menino pobre, que, depois de numerosos
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 151
padecimentos, realizou, feito notável: prendeu no rabo de um gato um pano
embebido em querosene, acendeu-o, escapuliu-se gritando:
Levante seu papa-hóstia
Dos braços da Folgazona
Venha ver o papa-rato
Com um tributo no rabo.
Falta meia dúzia de linhas, não chego a reconstruí-las. Sei que, tendo-se
queimado roupas e móveis, a história finda assim, furiosamente:
Acuda com todos os diabos.
Esta obra de arte popular até hoje se conservou inédita, creio eu. Foi uma
dificuldade lembrar-me dela, porque a façanha do garoto me envergonhava
talvez e precisei extingui-la. Ouvindo a modesta epopéia com certeza desejei
exibir energia e ferocidade. Infelizmente não tenho jeito para a violência.
Encolhido e silencioso, agüentando cascudos, limitei-me a aprovar a coragem
do menino vingativo. Mais tarde entrando na vida, continuei a venerar a
decisão e o heroísmo, quando isto se grava no papel e os gatos se transformam
em papa-ratos. De perto, os indivíduos capazes de amarrar fachos nos rabos
dos gatos nunca me causaram admiração. Realmente são espantosos, mas é
necessário vê-los à distância modificados. (RAMOS, 1984, p. 19).
As recordações da professora Carolina trouxeram a este estudo as imagens em flashes
dos aspectos que são exaustivamente procurados na materialização da escrita para se fazer
conteúdo e forma, e que jamais teriam sido possíveis senão pela experiência da própria vida:
“Eu não podia porque era muito pequena e meu pai era mais forte que eu. Eu presenciei a
agressão e eu lembro assim que meu pai me colocava no quarto e eu voltava, ele me trancou e
eu pulei a janela.” (CAROLINA).
3.4 COM QUANTAS BIOGRAFIAS SE FAZ UMA HISTÓRIA?
Cada narradora, e dona de uma história, ao contar a sua experiência temática sobre a
violência doméstica contra a criança, se posicionou no lugar em que se encontrava, de acordo
com a função social que exercia quando se sentiu tocada pela violência doméstica contra a
criança. Cada qual se posicionou no lugar de protagonista representando um papel na sociedade
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 152
– como um cenário com seus personagens e um enredo movido pela lembrança que a pergunta-
provocação pode extrair de suas memórias e histórias pessoais.
O uso da palavra ‘toque’ foi propositalmente escolhido pelas representações que essa
palavra pode suscitar, conforme a experiência pessoal de cada um. A violência doméstica contra
a criança pode tocar na vida de um indivíduo de várias formas. A primeira narrativa, a da
professora Paula, traz em sua experiência pessoal, pela forma que narrou, esse assunto distante
de si. Com a lente afastada, ela olha o desenrolar de um macrossistema do qual ela não se
aproxima, senão raramente. Em seu locus social, vê a criança, vê outras professoras, vê a
sociedade, vê as reações, contradições e o sistema atravancando, o qual “[...] impulsiona o
indivíduo muito mais em direção à adaptação ao existente que ao aprendizado da distinção entre
o que lhe é próprio ou alheio” (ROGGERO, 2007, p. 57), no entanto ela não se olha nesse
cenário, tanto que seu discurso é em terceira pessoa:
Eu acho que pessoalmente me toca, porque eu vejo como o outro não tem
capacidade de entender o processo. Eu acho assim, me incomoda expor muito
essa criança, colocar em situações de risco até. Colocando coisas pra ele que
ele não tem capacidade de entender, porque se o pai não acompanha essa
criança como acontece na vida escolar e isso é colocado para ela, a todo
momento. A gente vê isso dos próprios colegas da gente e entre até a direção.
É frisado. Está vendo? O Fulano não faz a tarefa, o pai não acompanha e não
sei o quê. (PAULA).
A sua experiência pessoal não torna invisível a criança vítima da violência doméstica,
mas traz à tona a imobilidade da sociedade, a pseudoformação e a pseudoproteção que o sistema
alimenta na forma de instituição que não dá conta, ou seja, a escola que não dá conta, a família
das crianças que não dá conta, a formação acadêmica dos colegas que não dão conta de crianças
vítimas de violência doméstica, pois essas seriam diferentes das outras na forma de agir, se
comportar, de verbalizar e de aprender: “Porque nem aprender eles, conseguem. É como se o
mundo tivesse tirado mais uma coisa deles. Aqui a gente escuta eles falarem: ‘Deus não me dá
nada, nem inteligência’.” (PAULA). Nesse mundo adultocêntrico não existe lugar para a
criança, sobretudo se esta já foi uma vez abandonada pela família. Paula vê uma sociedade que
não tem lugar para essa criança, que é colocada em evidência como um problema que ninguém
quer assumir. Nem a escola. Afinal criança abandonada pela família e institucionalizada faz
parte do universo estrangeiro para o qual os fins culturais não valem, para a cultura que sempre
esteve restrita a um universo específico, conforme Marcuse (2004).
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 153
Essa professora relata que a escola não forma um profissional para trabalhar com um
aluno real. A escola idealiza um aluno, uma família que não existe e forma um profissional que
vai buscar esse padrão. Situação que é símbolo “[...] de uma consciência que renunciou à
autodeterminação” e que está “presa de maneira obstinada a elementos culturais aprovados”
(ADORNO, 1996, p. 1), os quais difundem a semiformação, pelo duplo caráter da cultura, se
disseminando contraditoriamente de acordo, e de forma perversa, com as necessidades
crescentes de pessoas conscientes do processo alienante que se retroalimenta. Só a
autoconsciência livraria o homem desse sistema perverso. Mas, o que se vê é cada vez mais o
indivíduo perdido nos tentáculos desse sistema, por estar preso em seu domínio:
Você não pode perder aquela criança porque ela é alguém. Ela conta um
número para a escola. Não existe aquela visão da criança como um todo, que
ela é limitada, que alguns aprendem uma determinada habilidade, outros não;
que a criança apanha em casa e se ela não aprende é porque alguma coisa
pode estar acontecendo. (PAULA)
Os pais, o professor, a família e a escola se influenciam mutuamente, ou seja, homens
que influenciam instituições e instituições que influenciam homens. Entretanto, tanto os homens
quanto as instituições modelam a vida, a individualidade e a singularidade muito mais as
negando do que as afirmando.
A crise na família e nas instituições é apontada no momento em que, além de não
oferecer mais refúgio, oferece o domínio e a negação, sendo que as influências que são
impressas no indivíduo correspondem à sua ausência, enquanto a proteção é representada na
presença onipotente de sua repressão. Tal repressão, por ser naturalizada nessa sociedade,
assume um conjunto de forças que impelem o indivíduo ao seu seio, mesmo que não se tenha
construído histórias de felicidade. As crianças institucionalizadas, ou abrigadas, como narra a
professora Paula, não têm nada, nem a inteligência. Falam para a professora, que até isso Deus
negou a elas. Afinal, sem a família, não há herança material, não há herança biológica. A
naturalização da família aparece inculcada no indivíduo que assume o ideário prescrito. Sendo a
família uma raiz, como acredita a professora Marli, a criança sem família é uma criança sem
raiz, sem vínculo, sem as bases necessárias para a vida. “A raiz dele estava lá na minha casa e
ela foi e tirou ele e ele agradece até hoje.” (MARLI).
Em uma perspectiva aproximada de si, essa professora olha a violência doméstica contra
a criança remetendo a sua lembrança à própria infância, à infância do filho e à infância de seus
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 154
alunos. Ao dividi-las em categorias diferentes, denuncia a impregnação dos valores de
naturalização da família, da divisão de classes e da indústria cultural. Aliena-se ao negar a
própria identidade e valor, o que foi afirmado no início da narrativa, quando diz quem é e de
onde veio. No momento em que postula a ideia de formação cultural, denegrindo um trabalho
socialmente útil – as ocupações das mães de seus alunos –, nega a própria identidade e
construção de seu percurso. É a formação cultural convertida em semiformação diante do
espírito alienado que sucede à formação acadêmica, que mais do que emancipar prende o
indivíduo em suas malhas, como aponta Adorno (1996). O que acontece na família plasma a
criança em sua mais tenra idade, como afirma Horkheimer (1990), tendo a família um papel
decisivo na formação das faculdades dos seus indivíduos e, como componente educativo mais
importante, cuida da reprodução dos caracteres humanos necessários à vida social e da aptidão
ao comportamento autoritário necessário para a sobrevivência da ordem burguesa: “A teimosia
da criança tem de ser quebrada, e o desejo primitivo de um desenvolvimento livre de seus
impulsos e faculdades deve ser substituído pela obrigação interior de cumprir o dever
incondicionalmente.” (HORKHEIRMER, 1990, p. 215).
Com esses valores impregnados, apesar de ter sofrido violência doméstica em sua
infância, ela não considerou esse fato como algo que a tocasse ou que a tivesse tocado de
alguma forma. Narra ter presenciado, enquanto criança, a violência doméstica do marido contra
a esposa, mas ressalta que ela brincava muito. Mesmo não relatando que nessa exposição tenha
sido vítima de violência psicológica, assume o quanto esse tipo de violência afeta o indivíduo
muito mais do que outros tipos de violência doméstica contra a criança: “E aquela tortura
interna, emocional, afetiva, que não se fala na mídia, que a gente não vê?” (MARLI). No
entanto, considera que ter podido brincar em sua infância a fizera uma criança privilegiada. Na
relação de autoridade da mãe para com todos em sua infância, foi antecipada em ampla escala a
estrutura de autoridade presente na realidade fora da família, à qual todos precisariam se
adaptar; ou seja, “as diferenças existentes nas condições de vida que o indivíduo encontra no
mundo têm que ser simplesmente aceitas, ele deve fazer seu caminho sob essa hipótese e não
mexer nisso.” (HORKHEIMER, 1990, p. 215).
A violência doméstica, quando ocorre como meio de adaptação ao mundo no qual os
membros terão que viver suas experiências adultas, se tornada legítima. “E a minha mãe fazia
isso, ela batia quando estava no extremo. E você não via isso como violência, como agressão.
Porque ela estava bem ou não. Era uma forma de ela corrigir.” (MARLI).
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 155
A professora Carolina traz os mesmos valores de naturalização da violência na
instituição familiar arraigados, os quais são demonstrados na busca da família, que se faz
presente em toda a sua história, desde a infância até o momento atual, nas relações simbólicas
que estabelece com os objetos de amor e ódio; nas relações de construção e destruição. Carolina
olha para o problema, olhando para si mesma; ela é vítima da violência doméstica e esse tema a
toca profundamente. Ela mostra que as instituições, família e escola, marcaram e marcam a sua
vida, as suas escolhas, os seus passos e tropeços: “E na escola eu acho que eu sempre busquei
essa coisa que eu não sentia na minha família, em outras pessoas que eu tinha. A professora do
ciclo I, que era mais fácil, que era uma professora só que tinha de ler.” (CAROLINA).
Analisando as três narrativas, pode-se observar que a violência doméstica contra a
criança toca a sociedade de diversas formas, e quanto mais perto está das vivências e
experiências do indivíduo, mais a violência vai formando esse indivíduo conforme os tipos de
experiência que ele vivencia, direta ou indiretamente, com esse tema. Contudo, mesmo aquele
que vivenciou a violência doméstica na própria pele demora a ter consciência disso, ou muitas
vezes nunca terá. A autoridade, o domínio e o poder das instituições são naturalizados e
alienadores, negando assim a autorreflexão, afirma Horkheimer (1990); para o qual os tipos
humanos predominantes, hoje, não foram formados para chegar à raiz dos problemas, eles
tomam a aparência pela essência.
A formação se converte em semiformação diante da alienação, como adverte Adorno
(1996). A família e a escola reproduzem a lógica da sociedade. Na sociedade o patriarca deve
ser temido, respeitado, obedecido e reverenciado pela grande massa de filhos, que serão
gratificados por isso com o amor, a herança e o reconhecimento. Mas, aos filhos que não
reverenciam o pai, resta o castigo, o abandono, a exclusão, como demonstra a história da
professora Carolina.
3.5 A VIDA NEGADA
A experiência materializada na memória individual não condiz necessariamente com a
experiência e memória do todo social, assim como toda cultura possui um sistema de forças que
agem e funcionam em sentido oposto. Essa característica da cultura, de modelos prontos, dos
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 156
discursos preparados, símbolos da pseudoformação, trouxe para este estudo uma relação
bastante estreita da violência doméstica com as limitações da aprendizagem escolar. Observar
isso a fundo apontaria para a necessidade de outra pesquisa, e por isso esse tema não será aqui
aprofundado. Todavia, é preciso apontar a contradição desses discursos que são do senso
comum, mas constantes entre docentes, tanto que apareceram nas narrativas de duas das
professoras.
Fala-se dos discursos acerca da aprendizagem dos alunos que não têm uma família
estruturada, ou que possuem alguma característica física, social ou de comportamento que não é
a idealizada pela sociedade burguesa. Para essas professoras esses alunos não aprendem. Essa é
mais uma ideologia à qual somos ensinados nessa sociedade que nega a individualidade e que é
comprovada na história de vida de Carolina, que desde a infância fugiu a todos os padrões de
família e estética impostos pela sociedade e, no entanto, se fez sujeito na relação com a
aprendizagem escolar, local em que buscava refúgio. A ela Deus não negou a inteligência, como
muitos podem pensar por Carolina ter sofrido abandono e diversas formas de negligência.
23
Longe de apontar a escola como salvação, pois seria mais uma ideologia, essa contradição
merece reflexão e estudos acerca dos preconceitos que apontam os problemas sociais como um
impedimento para a aprendizagem do aluno na escola.
3.6 FACES QUE SE TOCAM
Em Horkheimer e Adorno (1973), constata-se que a família tanto depende da realidade
social como também é mediatizada por essa dinâmica em toda sua estrutura, inclusive as mais
íntimas, assumindo importante papel educativo para o comportamento ideal à manutenção da
ordem burguesa. A família na formação da individualidade, para o ajustamento ao padrão
social, é o elemento presente nas três narrativas, apesar de suas contradições. Tanto implícita
como explicitamente, as narradoras apresentam a naturalização da lógica de dominação e do
caráter duplamente social em que a família está submetida, que nega a espontaneidade,
ensinamento primordial para o ordenamento social; por outro lado, essa mesma dinâmica, em
que a naturalização da família como espécie de refúgio e novo apoio contra essa mesma ordem

23
Situação que pode ser constatada na narrativa de Paula, quando esta afirma que as crianças que moram no
abrigo falam isso sobres si mesmas: Deus não me dá nada, nem inteligência.
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 157
que ela alimenta, aparece nas três narrativas. A professora Paula apresenta a importância da
família, ao se referenciar à ausência da mesma na vida de seus alunos abrigados. A professora
Marli aponta para esse refúgio em vários momentos de sua fala, quando conta de sua vida, da
vida de seus alunos, da vida de seu filho, da presença de sua mãe e, finalmente, de sua ausência
que ocorre com o falecimento. Ela fala como a mãe influenciou e influencia a sua formação, do
elo entre elas e do afeto. Traz a concepção naturalista da família que tem uma tendência
sociorromântica ou restauradora. Como afirmam Horkheimer e Adorno, “[...] segundo esta
concepção a família seria uma configuração natural e eterna, anterior a qualquer sociedade
organizada. A sua prioridade existencial e fisio-biológica justificaria o seu valor normativo e
supratemporal.” (1973, p. 135). Impregnada com os valores da relação burguesa de autoridade
aos quais a família se submete e reproduz aos seus filhos, “[...] a família convertera-se em
agente da sociedade: era o veículo pelo qual os filhos aprendiam a adaptação social; formava os
homens tal como eles tinham que ser para cumprir as tarefas impostas pelo sistema social.”
(HORKHEIMER; ADORNO, 1973, p. 139).
A professora Carolina, por sua vez, se liga à família, sobretudo com a mãe, por um elo
que ora é marcado pelo ódio, ora por lembranças sofridas, mas também pela busca do refúgio.
Todavia,
a família já não garante, de forma segura, a vida material de seus membros
nem pode proteger suficientemente o indivíduo contra o mundo externo, que
exerce uma pressão cada vez mais inexorável, ela é impotente para fazer
respeitar as normas sexuais tradicionalmente impostas. Vacila o equilíbrio e
equivalência entre o que a família exige e o que dá. (HORKHEIMER;
ADORNO, 1973, p. 140).
A formação cultural quando postulada em uma sociedade sem status e exploração não
produz ideologia, uma vez que nessa ideia de formação os indivíduos racionais afirmam-se em
sua racionalidade e esses indivíduos livres afirmam-se na sua liberdade.
No modelo liberal, isso seria tanto melhor atingido quanto mais cada um
estivesse formado por si mesmo. E quanto menos as relações sociais, em
especial as diferenças econômicas, cumprem essa promessa, tanto mais
energeticamente se estará proibido de pensar no sentido e na finalidade de
formação cultural. (ADORNO, 1996, p. 5).
A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A CRIANÇA NO DUPLO CARÁTER DA CULTURA 158
A violência doméstica contra a criança é um fenômeno que ocorre na família e se
reproduz na escola. Sendo a família uma instituição social, que na sociedade capitalista
contemporânea, em parceria com a escola, ensina aos seus membros o modelo ideal de
adaptação ao mundo administrado pelo poder econômico e pelos valores de troca, os quais
constroem padrões para a sociedade, que são reproduzidos na família, inclusive para o corpo.
Esses padrões são decorrentes da vontade de dominação e do controle sobre o outro, em que o
modelo padronizado é controlável na produção seriada. A essa ideologia também se curva a
escola. “Os melhores vencerão e os que não são tão bons, vão ficar [...]” (MARLI).
Com isso, é possível adentrar na última seção desta dissertação, na qual serão
apresentadas as conclusões desta pesquisa juntamente com algumas considerações.
159
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um texto da tradição oral diz: se somos escravos do ontem, somos donos do amanhã.
Pensando nisso, eu poderia afirmar que, destrinchando a própria história – a qual somos
escravos por herança – se chega a quem se é para se construir quem se deseja ser.
O homem construtor da técnica, a que se vê emaranhado pelo alienamento de seu
trabalho e produto, impregnado com a naturalização da submissão e dominação, assume lugares
e posições diferentes nas relações sociais, de acordo com a circunstância a que se remete
(ROGGERO, 2001). É um homem embrutecido. Essa afirmativa pode levar a um forte
sentimento de angústia, principalmente por ser um momento em que se conclui uma pesquisa
que trata de um tema tão marcante: a violência doméstica contra a criança.
Mas, antes de aprofundamentos teóricos e conclusivos, é necessário explicar duas
coisas. A primeira é por que nestas considerões assumo a primeira pessoa do discurso.
Acerca dessa aproximação, que faço de mim mesma com a minha pesquisa, tenho uma
justificativa, a qual me apoio em Roggero (2001), para explicá-la.
Roggero (2001), ao pensar a formação da subjetividade com os conceitos da teoria
crítica, pensa a sua própria formação sendo mediadora da própria autorreflexão e do próprio
autoprocesso.
Defendendo que nas relações do homem, tanto social como com a natureza, deva existir
uma expressão estimuladora da vida, Fromm (1970, p. 48) alega que:
Se amais sem atrair amor, isto é, se vosso amor é tal que não produz amor, se
através de uma expressão de vida como pessoa amante não fazeis de vos
mesmo uma pessoa amada, então vosso amor é impotente é um infortúnio.
Esse autor dá continuidade a essa ideia, apontando que não é só no amor que significa
dar e receber, uma vez que
o mestre é ensinado por seus alunos, o ator é estimulado por sua audiência, o
psicanalista é curado por seu cliente – contanto que não se tratem uns aos
outros como objetos, mas se relacionem uns com os outros genuína e
produtivamente. (FROMM, 1970, p. 48).
CONSIDERAÇÕES FINAIS 160
A trajetória de construção de uma dissertação, apoiada em narrativas biográficas de
professoras, resultou também em um estímulo para pensar a própria história pela relação de
respeito e produção advinda desse processo com as narradoras e com a orientadora.
Para pensar a própria biografia, nesta pesquisa, com os conceitos apresentados e com o
uso do método de história oral, foi necessária a prática do exercício de objetividade e
subjetividade onipresentes em cada momento da pesquisa e na sua materialização, a qual se deu
com a escrita desta dissertação, além de um exercício de aprendizado, como apresentado por
Roggero (2001, 2007), isto é, um autoaprendizado.
A coleta de dados nos momentos da gravação das narrativas exigiu, como aponta
Roggero (2007), a presença estimuladora da pesquisadora no momento síntese de
autoelaboração de ambas as partes. Penso que esses elementos por si só já explicariam essa
mudança para o discurso em primeira pessoa, mas não são apenas esses, como veremos logo
mais.
Retomando ao projeto desta pesquisa, a pergunta desafiadora era desde o início: Por que
acontece a violência doméstica contra a criança?
Dessa interrogação, foram surgindo outras:
Por que diante de quase vinte anos de Estatuto da Criança e do Adolescente este
fenômeno ainda resiste?
Por que a escola como fator de proteção e apresentada como solução não detém o
fenômeno?
Coexistindo com essas perguntas, eu observava um entusiasmado discurso político –
educacional – normativo que era divergente do cotidiano escolar. Cotidiano escolar esse que
venho demonstrando desde as primeiras páginas da introdução. Sendo assim, a experiência
pessoal da pesquisadora, que já estava presente na pesquisa, é, portanto, a outra justificativa que
prometi anteriormente. O exercício de distanciamento que foi necessário durante outras fases
deste estudo, neste momento pede pela aproximação. Peço, desse modo, a palavra para
apresentar esta experiência pessoal.
A atuação profissional que me trouxe diante deste tema, iniciou-se nos anos 90 em
hospitais, quando estudante de psicologia, formação que não concluí. Nesse período, trabalhava
na organização administrativa dos Prontos-Socorros, estendendo a atuação junto à equipe
médica e de assistência social nos encaminhamentos e orientações às famílias. Não foram
CONSIDERAÇÕES FINAIS 161
poucas as vezes em que o fenômeno se materializava diante dos olhos multiprofissionais pouco
orientados para lidar com o problema nessa instituição de saúde. Foram inúmeros os momentos
em que nos deparamos com crianças sacudidas, crianças espancadas, crianças com queixas
suspeitas e explicações pouco convincentes para suas queimaduras, infecções, escoriações,
traumatismos, intoxicações por medicamentos mal administrados e até mesmo morte.
As notificações não aconteciam porque a preocupação da instituição hospitalar era
prestar o atendimento e salvar a vida, e pouco se preocupavam os profissionais, nos quais eu me
incluía, com a origem dos ferimentos, exceto se tivessem ocorrido com armas brancas ou de
fogo, nesses casos fazíamos um boletim policial de ocorrência. A ideologia presente, embora
não tematizada nos momentos de reuniões de equipe, era a da família como instituição
inviolável.
Posterior a esse trabalho, atuei em uma instituição de internação terapêutica –
Comunidade Terapêutica de atendimento psiquiátrico para pacientes do sexo masculino. A
mesma mantenedora do hospital mantinha há anos um orfanato. No tempo em que trabalhei
nessa instituição, existiam nada mais, nada menos, do que vinte pacientes internados como
moradores advindos do orfanato, com psicopatologias graves registradas em seus prontuários.
Era nítida a sensação da equipe técnica, assim como a das próprias crianças, de que aos dezoito
anos, quando não poderiam mais fazer parte do orfanato, seriam internadas no hospital
psiquiátrico de onde, se tivessem alta médica, sairiam e teriam que cuidar da própria vida.
No início dos anos 2000, já formada em pedagogia, guinei profissionalmente para a área
da educação não formal, trabalhando em uma instituição de atendimento às crianças, que estava
iniciando um projeto de estudo e atendimento ao fenômeno da vitimização doméstica contra a
criança. Tratava-se de um projeto muito bem estruturado e multiprofissional, no qual
elaboramos muitos estudos e desenvolvemos atendimentos sistematizados às crianças e famílias
vítimas da violência; além de organizarmos, junto ao município, parte da política pública de
atendimento à infância. Esses anos de atuação nesse projeto foram de intenso estudo e reflexão
sobre o fenômeno da violência contra a criança, os quais iam se mesclando às vivências
profissionais que relatei, nas quais nem sempre sentia que algumas soluções para certos
problemas eram satisfatórias; porém, também não sabia apontar o melhor caminho para resolvê-
los. O projeto ao qual me refiro observava a escola, com muito entusiasmo, como um local para
a prevenção da violência doméstica contra a criança. Em contrapartida, como professora, cargo
que acumulava em exercício na educação infantil, eu não sentia da mesma forma. A ideologia
presente na escola era: família feliz representa criança solução para a sociedade e família
CONSIDERAÇÕES FINAIS 162
desestruturada representa criança problema para a sociedade. Essa fala pode parecer um clichê,
mas era assim que as relações se apresentavam. Mesmo sendo da área educacional, quando
procurava fazer um trabalho de inserção escolar com as crianças do projeto, eu era barrada pela
direção da escola que não aceitava bem a criança em decorrência de seu histórico. Ela era
estigmatizada na escola. Isso ocorreu há muitos anos, e essa forma de compreender o fenômeno
na escola parece ainda perdurar, pois aparece na narrativa da professora Paula, que atua
atualmente em uma instituição similar; e também na narrativa da professora Marli, quando se
refere aos seus alunos institucionalizados; porém, a compressão desse fenômeno é contraditória
na narrativa da professora Carolina, quando fala de si mesma, da sua relação com a escola e do
seu bom desempenho escolar, apesar da problemática familiar a qual era vítima.
A escola e a família, alimentadas pelo mesmo ideal da educação para a autoridade a qual
o indivíduo deve se sujeitar e se subordinar, não usam a obediência diretamente. Ambas
invocam o uso da razão do indivíduo para reconhecer o quanto é necessário que ele se adapte a
esses ideais para ser aceito. Na falta de uma dessas duas instituições pedagógicas, na vida da
criança, é difícil a atuação da outra pelo duplo caráter da cultura, aqui entendida como uma
conformação à vida, com o propósito de domesticação do homem. Esse elemento pode vir a
justificar os motivos pelos quais a professora Carolina não apresentou esse aspecto diretamente
em sua narrativa. Quanto a isso não podemos afirmar, apenas supor. Pois o que ela nos
apresenta em sua história não dá conta de responder a essa indagação.
A segunda explicação a que me referi e julguei necessária no início destas considerações
finais, está relacionada ao motivo que me levou a introduzir, com um texto da tradição oral
popular, as conclusões de uma pesquisa científica.
Essa explicação está vinculada à parte, presente na estrutura do projeto da pesquisa, que
diz respeito à hipótese.
Então, vamos revê-la.
A violência doméstica contra a criança é um fenômeno que foi historicamente
construído, aceito e arraigado na cultura, fazendo com que seja difícil a sua superação. E por
mais que a escola seja uma instituição importante na formação do indivíduo, não contribui para
mudar essa realidade.
Nesse momento, cabe refletirmos sobre o conceito de cultura.
A cultura, segundo Marcuse (2001), tem um duplo caráter. Assim como se divide a vida
em ócio e trabalho, guerra e paz, também se dividem as atividades em úteis e belas:
CONSIDERAÇÕES FINAIS 163
Na medida em que esta distinção não for questionada, na medida em que a
teoria ‘pura’ se consolida com os outros âmbitos do belo em uma atividade
autônoma ao lado e acima das outras atividades, desaparece a pretensão
originária da filosofia: de constituir a práxis em conformidade às verdades
conhecidas. (MARCUSE, 2001, p. 8).
Com isso a práxis burguesa se encarregou de desmembrar a cultura, descaracterizando-a
ao retirar dela o conceito da formação subjetiva do homem. A separação entre o útil e o
necessário do estético, do belo e da fruição, é o início da construção do materialismo burguês, o
qual foi enquadrando a felicidade e o espírito num plano à parte da cultura. Essa fragmentação
colocou de um lado o plano das ideias e do outro o plano dos objetos.
Conforme Marcuse (2001, p. 9), essa fundamentação ocorre “[...] ao se remeter o
conhecimento supremo e o prazer supremo à teoria pura e desprovida de finalidade: o mundo do
necessário, da provisão cotidiana da vida, é inconstante, inseguro e não livre.”
Sendo assim, na constituição material da vida não se pode encontrar a felicidade
suprema. Ela precisa transcender para atingir “[...] a metafísica, a teoria do conhecimento e a
ética, também a psicologia.” (MARCUSE, 2001, p. 9). Enquanto os setores inferiores da alma
aprisionam o homem na ganância e no domínio material.
Nessa fundamentação, o mundo ideal efetivamente é um mundo que se situa além das
condições de vida vigentes, além da forma de existência em que os homens são escravos de
homens e os valores são ditados pela comercialização. “[...] Na medida em que a reprodução da
vida material se completa sob o domínio da forma mercadológica, renovando continuamente a
miséria da sociedade de classes, nessa medida o bom o belo e verdadeiro transcende esta vida.”
(MARCUSE, 2001, p. 11).
Entretanto, tudo o que é necessário para se conservar a vida material é produzido nessa
ordem perversa, ditada pelo domínio do capital, do mercado e da escravização de homens.
Conquanto o restante torna-se naturalmente supérfluo. “[...] Tudo que é propriamente
importante para os homens, as verdades supremas, os bens supremos e as felicidades supremas
são um ‘luxo’, distanciando-se por um abismo de sentido do que é necessário.” (MARCUSE,
2001, p. 11). Não é à toa que a teoria pura só é apropriada como profissão por uma elite, sendo,
como demonstra Marcuse (2001, p. 11), “[...] vedada à maior parte da humanidade mediante
férreas barreiras sociais.”
CONSIDERAÇÕES FINAIS 164
Já na teoria de Platão, Marcuse (2001) encontra um ponto nodal na luta contra a ordem
mercantilista de Atenas, demonstrando assim que Platão, imbuído de motivações de crítica
social e pela perspectiva das ideias, nos apresenta, de fato, um mundo em que homens e
mercadorias se defrontam. A resposta de Platão a essa situação é a reorganização da sociedade a
partir de onde se localizaria a raiz do mal. Seria necessária a supressão da propriedade dos
setores dirigentes, incluindo mulheres, filhos e a proibição do comércio. O programa de Platão
baseou os conflitos da sociedade na essência humana. Ora, em uma sociedade em que a fruição
do bem e do belo é uma prerrogativa da elite minoritária, esse programa era ideologicamente
inviável. Marcuse (2001) aponta Aristóteles como sendo mais realista, na medida em que seu
idealismo é mais resignado. Para ele, o verdadeiro filósofo não é o estadista. Essa forma de
pensar faz aumentar a distância entre o fato e a ideia. Assim, “[...] a história do idealismo
também é a história da resignação em face ao existente.” (MARCUSE, 2001, p. 13). Nesse
sentido, o mundo material, sendo significado nas figuras de seus membros que fazem parte
dessa relação, se converte em realidade à medida que a ele se confere um valor (mercado); na
mesma medida em que a beleza e a bondade só podem advir do alto. A impregnação dos
valores essenciais como supérfluos libera a filosofia da responsabilidade com a miséria do
trabalho escravo, promove a degradação de homens e a transformação de pessoas em
mercadorias.
Na época burguesa a teoria da realização entre o necessário e o belo, entre o
trabalho e o prazer experimentou modificações decisivas. Em primeiro lugar
desapareceu o modo de ver segundo o qual a ocupação com os valores
supremos seria apropriada como profissão por determinados setores sociais.
Em seu lugar a tese da universalidade e validade geral da ‘cultura’.
(MARCUSE, 2001, p. 14-15).
Com a queda do antigo sistema feudal e a ascensão do novo sistema, ocorre a livre
competição dos indivíduos à medida que se dividem em compradores e vendedores de produtos
e força de trabalho. A relação do indivíduo com o mercado passa a ser imediata, sem
necessidade relevante das qualidades pessoais, a não ser como mercadorias, da mesma forma
como se torna imediata a relação com Deus, com a beleza, com a bondade e com a verdade. Ou
seja, “[...] assim como na práxis material o produto se separa do produtor, automatizando-se na
forma coisificada geral do ‘bem’, assim também na práxis cultural se solidifica a obra, seu
conteúdo, em um ‘valor’ de validade universal.” (MARCUSE, 2001, p. 15).
CONSIDERAÇÕES FINAIS 165
Essas explicações se fizeram necessárias até aqui para que pudéssemos adentrar no
conceito de cultura, ao qual me refiro como hipótese desta pesquisa para o problema
apresentado: a violência doméstica contra a criança; sendo que o tema desta dissertação é a
formação cultural e a violência doméstica contra a criança.
Conforme Marcuse (2001), existe um conceito de cultura que é caracterizado de forma
particular e que pode se apresentar com variantes: cultura brasileira, cultura romântica e cultura
germânica. Para ele, esse conceito “[...] joga o mundo espiritual contra o mundo material, na
medida em que contrapõe a cultura enquanto reino de valores e de fins autênticos ao mundo
social da utilidade e dos meios.” (MARCUSE, 2001, p. 16).
Trata-se de uma configuração histórica da própria cultura pertencente à época burguesa,
que veio distinguir o mundo da luta diária no cotidiano do mundo eternamente melhor. Nesse
conceito de cultura, as atividades e objetos culturais adquirem sua solenidade elevada e acima
do cotidiano, restringindo a cultura ao ato da celebração e exaltação. Esse conceito de cultura,
que separa a teoria da prática, consolidado pelo sistema capitalista burguês, é denominado por
Marcuse (2001) de cultura-afirmativa. Tem-se, portanto, que
numa sociedade em que se reproduz por meio da concorrência econômica, a
simples exigência feliz do todo já representa uma rebelião: remeter os homens
à fruição da felicidade terrena significa certamente não remetê-los ao trabalho
na produção ao lucro, à autoridade daquelas forças econômicas que preservam
a vida desse todo. (p. 22-23).
Nessa ordem de coisas, a felicidade tem um tom perigoso, pois as exigências dessa
ordem impelem à idealização da felicidade, porque a felicidade só pode aparecer como
exigência de uma mudança efetiva nas relações de existência do homem. A liberdade da alma,
na cultura afirmativa, é utilizada para justificar a miséria e a servidão. Porém, não aponta para a
solução em que por fim tudo se resolve, mas aponta que neste mundo a economia não decide a
vida do indivíduo. Em outras palavras, “[...] o homem não vive apenas de pão: uma verdade
como esta não se esgota pela falsa interpretação de que o alimento espiritual é um substituto
suficiente para a falta de pão.” (MARCUSE, 2001, p. 22-23).
O ideal da cultura, transformado em cultura afirmativa, assumiu o anseio por uma vida
mais feliz, pela qualidade humana, ao mesmo tempo em que afirma que esses valores não
pertencem a este mundo. Assim essa realização seria distinta do mundo efetivo das utilidades,
da vida prática, e seria transformada em um valor em si.
CONSIDERAÇÕES FINAIS 166
A biografia, ao remeter o indivíduo ao próprio cotidiano, pode permitir, como defende
Roggero (2001), uma reflexão crítica da própria cultura e apontar para as razões pelas quais a
dominação se sobrepõe à liberdade.
Pensar a violência doméstica contra a criança na formação cultural exigiu o
aprofundamento desse conceito, tanto nas elaborações pessoais, biográficas, como no conceito
de cultura historicamente construído.
Esse aprofundamento, que, como já expliquei, me permite tratar estas considerações
com o uso da primeira pessoa do discurso, também me impeliu a trazer para os capítulos os
trechos da tradição oral impregnados de cultura afirmativa, ou não, e, particularmente, para esta
finalização de dissertação o pensamento da tradição oral, que pressupõe a autorreflexão diante
da própria história para uma construção pessoal. Serviu também para demonstrar que ainda
existe um embrião da liberdade sobrepujado no indivíduo e na coletividade, e que eclode em
pequenas manifestações que seriam talvez cernes da emancipação do homem.
As narrativas das professoras apresentam todos os elementos da cultura afirmativa, mas,
em muitos momentos, apresentam a fagulha libertadora; termo que empresto de Roggero
(2001), por não encontrar melhor definição para a categoria que se repete nas três narrativas: o
interesse pela oportunidade de contar sobre si. Cada qual tomou a narrativa por um ângulo que
refletiu o anseio pessoal. A professora Paula, mesmo usando a terceira pessoa do discurso em
grande parte de sua narrativa, o que é justificável devido ao fato de que a sua impregnação com
o tema se dá neste momento de sua vida muito mais olhando para fora de si, por conta de sua
atuação profissional, colocando-nos diante do conceito de fragmentação da teoria com a prática,
traz na narrativa a importância de olhar para o sujeito: “[...] como falam para os professores,
tivesse que deixar os problemas em casa e que as crianças tivesse que ser dividida em duas.”
(PAULA). Ou a professora Marli, que para se apresentar faz uma referência de identidade
ligada ao lugar: “[...] Bom, eu nasci numa cidade chamada Quebrangulo, em Alagoas. O nome
pode parecer estranho, mas lá nasceu Graciliano Ramos, um dos autores, assim, que eu gosto
muito.” (MARLI). E a professora Carolina, que precisa sair de seu lugar para ser quem é, ou
descobrir a si mesma: “[...] aqui eu construí uma coisa que eu não ia conseguir construir em
outro lugar que é ter a liberdade pessoal pra algumas coisas. E conseguir viver algumas coisas
que eu não iria conseguir viver num lugar que fosse distante, não muito. Por exemplo,
Campinas é um lugar distante, não muito.” (CAROLINA).
A cultura afirmativa está impregnada de violência. E a violência doméstica contra a
criança é uma das formas de manifestação da violência social construída no processo de
CONSIDERAÇÕES FINAIS 167
formação fragmentada da cultura, o que dificulta a sua superação. A norma legal, no caso o
Estatuto da Criança e do Adolescente, apesar de sua contribuição, não garante por si só a
mudança daquelas forças que estão impressas na constituição do indivíduo alienado. A escola
por si só também não contribui, pois é vítima do mesmo processo e serve ao mesmo ideal. E
isso foi muito bem demonstrado nas narrativas das professoras, tanto no que diz respeito à
alienação quanto à ideologia. Esta pesquisa não respondeu todas as perguntas que fizemos
inicialmente, porém foi ao encontro de sua hipótese, ao constatar que a violência doméstica
contra a criança faz parte de um problema social: a violência de homens contra homens, a qual é
originada da relação de troca e da fragmentação do sujeito alheio às coisas da alma; situações
que fazem com que uns se subordinem aos outros.
Nessa relação, a criança é a maior vítima, porque se encontra na base dessa pirâmide
social. Quanto à escola, como um fator de proteção, não é uma garantia, pois o professor,
formado para reproduzir muito mais do que para criar, reproduz o sistema ditado pelo mundo
adaptado ao capital. O estético, o belo e a fruição aparecem para esse profissional como
supérfluos, no entanto, ao mesmo tempo em que isso o incomoda, não possui forças para lutar
contra essa realidade. Ele se sente só, mas precisa sobreviver; e, para sobreviver, ele se adapta,
mesmo que para isso tenha que negar a sua subjetividade e o que o levou a buscar uma
profissão que o colocasse diante da infância. Anestesiado como se encontra, por mais que a
violência contra a criança o toque, ele não sente esse toque em si, mas fora de si, a não ser que
tenha ele mesmo vivenciado esse fenômeno tão intensamente como foi com a professora
Carolina. Essas situações, se forem pensadas e tematizadas nas escolas, nos Conselhos
Tutelares, nos hospitais, nas universidades e, sobretudo, nas famílias, poderão oferecer novos
rumos para se pensar sobre a superação desse fenômeno.
Esta pesquisa objetivou responder uma pergunta e apresenta uma resposta tão ampla que
correria o risco de se perder no subjetivismo. Considero que acerca deste tema a pergunta não se
esgota, assim como não se esgota a sua resposta. O que me leva a concluir que é necessário que
o adulto resgate a criança, o menino, o moleque, que cada um é e que vive como um embrião
dentro do si, para desconstruir a pseudocultura.
A biografia do indivíduo e da sociedade, obtida por meio da narrativa de pessoas que
trazem de volta o cotidiano, pode permitir pelo contato com a experiência o início de algum
caminho melhor para a construção do futuro. Mas o futuro não pode ser longe do hoje. É
preciso pensar um futuro breve, pois a criança não pode esperar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS 168
Como pesquisadora que se preocupa com a questão da criança, a formação cultural da
sociedade e essa relação, o principal apontamento que faço como conclusivo nesta pesquisa,
apesar de no seu decorrer muitos caminhos terem se demonstrado como férteis campos que
precisam ser pesquisados, sobretudo aqueles que aparecem nas narrativas das professoras, está
relacionado à necessidade da formação, em todas as esferas das ciências humanas e da saúde, de
pessoas capazes de trabalhar com as peculiaridades da infância. É preciso que seja resgatado
nestes profissionais o verdadeiro valor da cultura. Diante desse resgate podemos acreditar na
escola como um fator de proteção da criança. No entanto, viver em uma sociedade em que se
necessita de instituições para livrar as crianças da violência de outras instituições, é viver em
uma sociedade contraditória, assentada em um modelo que necessita ser revisto em suas
estruturas.
A cultura que fornece a alma à civilização é constituída pelo entrelaçamento do espírito
com o processo histórico da sociedade, tanto no plano da reprodução de ideias com no plano da
reprodução material (MARCUSE, 2001); sendo este um conceito amplo de cultura, que é capaz
de fazer frente à opressão sofrida por aquele que na relação social ocupa o lado da submissão e
por aquele que do outro lado ocupa a posição da dominação. Ambos são vítimas de um mesmo
sistema. A cultura que não der conta disso é pseudocultura ou cultura afirmativa.
169
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