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Adélcio de Sousa Cruz
NARRATIVAS CONTEMPORÂNEAS DA VIOLÊNCIA:
Fernando Bonassi, Paulo Lins e Ferréz.
Faculdade de Letras – Estudos Literários
Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG
2009
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1
ADÉLCIO DE SOUSA CRUZ
NARRATIVAS CONTEMPORÂNEAS DA VIOLÊNCIA:
Fernando Bonassi, Paulo Lins e Ferréz.
Tese de doutorado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Letras: Estudos
Literários, da Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Minas Gerais
Linha de Pesquisa: LEA Literatura e
Expressão da Alteridade como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do
título de Doutor em Letras Literatura
Comparada.
Orientador: do Professor Doutor Eduardo de
Assis Duarte.
Belo Horizonte
Fale – UFMG/ 2009
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2
Ficha catalográfica elaborada pelos Bibliotecários da Biblioteca FALE/UFMG
Cruz, Adélcio de Sousa.
C957n Narrativas contemporâneas da violência [manuscrito] :
Fernando Bonassi, Paulo Lins e Ferz / Adélcio de Sousa
Cruz. – 2009.
228 f., enc.
Orientador: Eduardo de Assis Duarte.
Área de concentração: Literatura Comparada.
Linha de Pesquisa: Literatura e Expressão da Alteridade.
Tese (doutorado) Universidade Federal de Minas
Gerais, Faculdade de Letras.
Bibliografia: f. 200-206.
Anexos: f. 207-228.
1. Bonassi, Fernando, 1962- Crítica e interpretação
Teses. 2. Lins, Paulo, 1958- Crítica e interpretação
Teses. 3. Ferréz, 1975- Crítica e interpretação Teses. 4.
Literatura brasileira Séc. XX História e crítica Teses. 5.
Violência na literatura Teses. 6. Violência urbana Teses.
7. Literatura e sociedade Teses. 8. Segregação Brasil
Teses. I. Duarte, Eduardo de Assis. II. Universidade Federal
de Minas Gerais. Faculdade de Letras. III. Título.
CDD: B869.09
3
I imagine that one of the reasons
people cling to their hates so stubbornly
is because they sense, once hate is gone,
they will forced to deal with pain.
James Baldwin’s Notes of a native son (1968)
4
Pro-vocação...
A quem dedicar um estudo sobre narrativas contemporâneas da violência?
Àqueles que não possuem nenhuma espécie de temor
ou àqueles que a tudo e todos temem?
5
Ao meu pai, Salvador, que viveu a violência das marmitas reviradas
ao se encaminhar de casa para o trabalho...
(In memorian)
À minha mãe, Adelina, que lutou a seu modo contra a violência dos anos de chumbo...
À minha filha, Mayra, para conhecer sobre os perigos que nos espreitam...
À minha esposa e companheira, Aline, que com seus verdes olhos ilumina meus dias e noites...
6
Agradecimentos...
Ao meu orientador Eduardo de Assis Duarte
por sua coragem, seu apoio e amizade
durante mais essa jornada...
Aos professores Dalmir Francisco e Marcos Antônio Alexandre
pelas conversas instigantes e conselhos de valioso quilate...
Aos poetas e pesquisadores Anízio Vianna e Marcos Fabrício
agradeço pela amizade, pelos diálogos e parcerias poético-musicais
que possibilitaram me manter no rumo...
Aos colegas de pesquisa do NEIA
agradeço pelo apoio e pela torcida
durante todo esse caminho de descobertas.
Ao CNPq que viabilizou técnica
e economicamente este trabalho.
7
RESUMO
Este trabalho analisa as narrativas contemporâneas da violência, as quais são
representadas por Passaporte (2001), escrita por Fernando Bonassi; Cidade de Deus
(1997), cujo autor é Paulo Lins e, a mais recente publicação dentre eles, Manual prático
do ódio (2003) escrito por Ferréz. Embora ambos os autores pertençam ao corpus da
literatura brasileira, Bonassi pode ser estudado como herdeiro da linha estética de
Rubem Fonseca, autor de Feliz ano novo (1975), a qual foi por mim denominada
mercadoria da crueldade. A contrapartida é representada pela literatura ruidosa
produzida por Paulo Lins e Ferréz. Suas tradições derivam de autores como Lima
Barreto e outros tais como Carolina Maria de Jesus e seu romance Quarto de despejo
(1960), João Antônio e seu Malagueta, Perus e Bacanaço (1963). Tanto a mercadoria
da crueldade quanto a literatura ruidosa se utilizam da violência como tema e recurso
estético. Enquanto a primeira reforça estereótipos em relação à representação do
subalterno, a segunda tem, por sua vez, vozes narrativas que apresentam aspectos
humanos ocultos ou negados às personagens subalternas.
Palavras-chave: Violência; Literatura Brasileira Contemporânea; Representação do
Subalterno; Violência Urbana e Ficção.
8
ABSTRACT
This work analyzes the contemporary narratives of violence, which are represented by
Passaporte (2001), written by Fernando Bonassi; Cidade de Deus (1997), whose author
is Paulo Lins and, among them the more recently published Manual prático do ódio
(2003), written by Ferréz. Although both writers belong to the Brazilian literature
corpus, Bonassi can be studied as an inherited aesthetic line from Rubem Fonseca, the
author of Feliz ano novo (1975), which it was named by me as commodities of cruelty.
Its opponent is represented by the noise literature produced by Paulo Lins and Ferréz.
Their heritage goes back to authors like Lima Barreto to others such as Carolina Maria
de Jesus and her novel Quarto de despejo (1960), João Antônio and his Malagueta,
Perus e Bacanaço (1963). Both the commodities of cruelty and the noise literature use
violence as theme and an aesthetic resource. While the first one reinforces stereotypes
concerning subaltern representation, the second has for instance narrative voices to
present the hidden or neglected human aspects to the subaltern characters.
Keywords: Violence; Contemporary Brazilian Narratives; Subaltern Representation;
Urban Violence and Fiction.
9
SUMÁRIO
Introdução ....................................................................................................................... 7
Capítulo 1 – Crueldade como mercadoria ..................................................................... 24
Afinal, de que violência se fala aqui? ................................................................ 26
Violência e narrativas contemporâneas ............................................................. 29
Quanto mais negro, mais alvo... .................................................................... 38
A metamorfose da literatura em mercadoria ..................................................... 42
Mercadoria instituída, despersonificação garantida .......................................... 46
Incômodos cartões-postais ................................................................................. 53
Paradoxos brasileiros ......................................................................................... 56
Mundo não tão vasto ......................................................................................... 63
Relatos de auto-destruição e auto-flagelo ......................................................... 68
A crueldade da mercadoria ............................................................................... 72
Capítulo 2 – Cidade de Deus: divisor de águas das narrativas da violência
A literatura ruidosa: uma introdução ................................................................. 79
Ruído na periferia brasileira: duas narrativas antecedentes ............................... 89
Delineando estatutos: da poética do silêncio àquela do ruído ........................... 99
A Gênese de CDD ............................................................................................116
A voz do escritor e intelectual afro-brasileiro ................................................. 121
Cidade de quem? ............................................................................................. 124
Memória e Recordação: nomeações do passado ............................................ 130
Costura narrativa: referência às culturas afrobrasileira e popular urbanas ......139
Capítulo 3 – Manual prático do ódio: narrativas da “vida loka” ................................ 151
O lado de lá da ponte ....................................................................................... 166
Episódios de suburbanos invisíveis ................................................................. 175
Conclusão: Réquiem à civilização, à malandragem e aos seus heróis? ...................... 191
Retomando o percurso dos capítulos ............................................................... 194
À guisa do epílogo ........................................................................................... 198
Referências .................................................................................................................. 200
Anexos ......................................................................................................................... 207
10
Introdução
11
Poderia simplesmente pleitear que esse trabalho trata, basicamente, da
representação da alteridade em textos que denominei narrativas contemporâneas da
violência. E não diria isso sem razão, pois um grande número de escritores que,
desde os idos de 70, no século XX, até a presente data, não cessam de produzir novas
publicações, tratando do tema da violência urbana ou apresentando esse mesmo
elemento como o principal ingrediente do caldo estético, que tem adquirido consistência
e, por conseguinte, dado corpo a esse veio literário. Por que o tema ainda fascina?
não foi esgotado pela chamada literatura de testemunho que pulula desde o fim da I
Grande Guerra, passando por relatos dos mais diversos sobre os horrores perpetrados
pelos países do Eixo (1939-1945), que cessaram com o lançamento de duas bombas
atômicas sobre o Japão? Os relatos sobre a violência percorrem, ainda, os governos
caudilhescos que ganharam vigor durante o ping pong da Guerra Fria e deságuam,
finalmente, nessa ficção contemporânea que através da representação, tenta de algum
modo fazer a crítica sobre as contínuas barbáries cotidianas? Os escritores continuam a
ser surpreendidos pela capacidade humana em superar, nesse caso, negativamente todas
as expectativas...
A representação da violência não pode ser feita sem que a alteridade esteja
presente, diretamente envolvida, confirmando a ideia filosófica de que o inferno vai
permanecer habitando o Outro. E quando esse Outro, seja qual for sua categoria, desde
que seja subalterna, ao tornar-se muito visível, parece ser necessário colocá-lo em seu
devido lugar. E para tanto, na ausência dos grandes conflitos do século passado, sobra à
humanidade a escolha pela pulverização da barbárie localizada, numa adaptação da
solução malthusiana de eliminar o “excesso” de competidores diante da, cada vez maior,
“escassez” de recursos. Contudo, não se trata exatamente disso, eliminar a
12
“concorrência” por comida ou coisa que valha. Esse motivo continua causando baixas
por onde quer que se dirija o olhar... Porém, tortura e morte, tortura e cárcere, tortura
e roubo, tortura e estupro... uma miríade de formas de violência a serem listadas,
mas não é essa a intenção aqui. Interessa-me a maneira como esses elementos tornam-se
tema, forma literária e, simultaneamente, um modo de inquirir a realidade através da
arte. E justamente nesse ponto, o texto tentará romper a linha do silêncio sutil e
educadamente colocada sobre o incômodo do real invadindo a seara literária.
O silenciamento da alteridade, quando não o seu controle através de uma
“eterna” sala de espera, é sempre proposto quando qualquer reivindicação, por menor
que seja, ameace romper a cordialidade de frases como “é apenas literatura” ou “são
apenas textos de ficção”. Contudo, os argumentos iniciais para um debate mais
profundo poderiam perder força quando passa a estar em voga, não subitamente, a
questão da pouca importância dada ao texto literário e à leitura de livros em si, como
modo de apreensão e compreensão de informação e conhecimento. Se eles estão, mais
uma vez, perdendo terreno ora para a TV, ora para o rádio, ora para o cinema, ora para a
Internet e as novas formas de mídia digitais, por que tanto “barulho”?
A resposta pode ser tão desagradável como a leitura de uma cena de violência
física ou simbólica presente nos romances, nos contos e nas novelas: o ponto de vista
da narração continua quase inalterado, partindo de um homem branco, escolarizado
(ensino superior) e pertencente à classe média. Do outro lado, encontra-se o alvo sob os
mais diversos tipos de mira: a “vítima preferencial” (DALCASTAGNÈ, 2005)
pertencente a um grupo bastante distinto jovens, mulheres, crianças e idosos não-
brancos, que na sua maioria são pobres ou situados abaixo da linha da pobreza. Para
uma literatura nacional relativamente nova, isso até que não seria um grande empecilho,
não fosse o fato de ser produzida num país que continua a se gabar como “democracia
13
racial”, mesmo que durante muito tempo de sua história tenha praticado justamente o
oposto. Parece que uma das epígrafes utilizadas por Edward Said em Orientalismo
(2007) cabe aqui. Trata-se de uma afirmativa retirada de O 18 brumário de Luís
Bonaparte, de Karl Marx: Eles não podem representar a si mesmos, devem ser
representados”. Alguém poderia discordar dessa afirmação, tentando utilizar como
argumento o sem número de personagens advindos do estrato subalterno, que sempre é
encontrado em parte considerável da prosa na literatura brasileira. A literatura será
tratada aqui com o foco nas escolhas feitas por narradores utilizados pelos autores
contemporâneos e que, através das filiações a determinadas linhas de produção literária
ou mesmo tradição –, procura desvendar as novas operações escriturais e suas
respectivas poéticas.
Apontar autores e obras que receberão uma denominação diferenciada é fruto de
um longo período de trabalho, que possui alguns marcadores como o período de
graduação em que fui bolsista de iniciação científica: a trajetória de pesquisa sobre
literatura afro-brasileira desenvolvida, primeiramente no antigo GIEAB (Grupo
Interdisciplinar de Estudos Afro-brasileiros), que mais tarde, em meu curso de
mestrado, o grupo se transformou no NEIA (Núcleo de Estudos Interdisciplinares da
Alteridade). Devo incluir aqui o trabalho de escritores que tornaram possível uma
publicação como Cadernos negros; a convivência com a cena cultural mineira e afro-
mineira seja nos campos da literatura, da música e do teatro.
Retorno no tempo, ao ano de 1998, quando prestei os exames de seleção para o
mestrado em Teoria Literária, nesta mesma faculdade. O projeto apresentado por mim e
que, então, recebeu aprovação possuía o seguinte título: “Invisibilidade e ausência: a
não-presença do negro na literatura brasileira”. Era essa a ideia que movia os primeiros
e ousados passos na pós-graduação. A amplidão do material a ser examinado não
14
intimidava-me nem um pouco. Não porque era mais jovem, pois raros eram os “jovens”
negros ou afro-brasileiros a tatearem aquele universo e, como previam as estatísticas, eu
passava dos trinta anos de idade... A “invisibilidade” referida no título era relativa,
pois havia personagens negras ou descendentes na literatura: escravos (séc. XIX) e toda
a gama de profissões subalternas que eram passíveis de ser representadas (séc. XX). Já a
“ausência” era a que se tratava de pessoas como eu e outros(as) estudantes, os(as) quais
raramente ou jamais se viam representados(as) nos textos da “literatura brasileira”
canônica. Muitos insistiam que tudo não passava da imaginação e do exagero de
“militantes” do Movimento Negro e do Movimento Estudantil. Cabia aos(as) novos(as)
pesquisadores(as), portanto, retirar do limbo e trazer à luz do dia esse tema crucial.
Devido à estatura da tarefa, fui obrigado a deter-me em um escritor apenas, o avô dos
“pretos-bomba”
1
, o escritor carioca Lima Barreto, que se vivesse hoje, talvez
encontrasse eco e companhia para sua produção igualmente “explosiva”e portanto
ruidosa... O estudo de dois de seus romances Clara dos Anjos e Recordações do
escrivão Isaías Caminha possibilitou vislumbrar três conceitos que ainda são
essenciais para a análise das três narrativas escolhidas para essa tese. Os termos teóricos
são, respectivamente, a “linha de cor” e “dupla consciência” (DU BOIS: 1994) e a
“morte social” (PATTERSON: 1982), que serão explicitados ainda nesta parte
introdutória.
Mais recentemente, posso dizer que fui tomado de surpresa e alegria ao ler as
constatações feitas pela pesquisadora da UnB, a professora Regina Dalcastagnè, quanto
ao período de 1990-2004
2
, no qual analisou a publicação da “prosa de ficção nacional”
1
A expressão aqui refere-se aos negros/afro-brasileiros que possuem um discurso politizado e mais
contundente no tocante à questão racial no Brasil, pois seu discurso provocante é quase sempre emitido
como uma “explosão” vocal, diante do silenciamento imposto à grande maioria da população negra e/ou
afro-brasileira.
2
Ver Regina Dalcastagné, “A personagem do romance brasileiro contemporâneo” In
http://www.cronopios.com.br/anexos/regina_dalcastagne.swf link postado em 3/5/2007; acesso em 2008.
15
foco nas três editoras que publicaram os autores mais significativos da literatura
brasileira. Muitos de meus/minhas colegas de graduação, talvez, não tiveram acesso à
pesquisa de Dalcastagnè devido às escolhas obrigatórias da sobrevivência, que os/as
afastaram, de certo modo, do mundo acadêmico. Reaparecia ali, materializada no texto
da pesquisadora da UnB, parte da realização de muitas vozes que também trilharam
parcela significativa do caminho universitário.
Tais divisores de águas - se coadunam com a análise de Jurandir Freire Costa
(2000) no tocante à conturbada fratria que se descortina na cultura sob o olhar crítico:
(...) Ela é o centro da vitalidade expansiva, a condição da cooperação
entre os pares e não os iguais! na criação da diversidade, da
experimentação e do desejo de aperfeiçoar o que pode ser
aperfeiçoado. A lei, nessa cultura, não é a emanação de “um outro”
além do tempo e dos esforços culturais; é o conjunto de regras
contingentes e experimentais, feitas e refeitas pelos interessados em
alcançarem metas com que sonharam ou poderão vir a sonhar. A
cultura é o espaço transicional dos irmãos que se reconhecem como
artífices do próprio destino”. (p. 26)
Trazendo a análise de Freire Costa para a seara da palavra literária, pretende-se,
realçar os elementos que transformam em “pares” os três escritores estudados
Fernando Bonassi, Paulo Lins e Ferréz. Eles representam diferentes faces das narrativas
contemporâneas da violência, vertente atuante tanto na literatura brasileira quanto na
literatura afro-brasileira. Portanto, devo como outros o fizeram, trazê-los para a cena
da análise, do diálogo e da “leitura” do texto literário. O trabalho sobre esses irmãos na
“letra” não ocorre com o objetivo de equalizá-los, porque isso seria o mesmo que
silenciar qualquer nuance que os torna “pares” e diferentes, nesse “espaço transicional”
(COSTA, 2000:26) estético do texto literário. Nele é possível pensar as mais diversas
possibilidades e “conjuntos de regras contingentes e experimentais, feitas e refeitas
pelos interessados” (ibidem) – a pletora de escritores e leitores.
16
A escolha por autores relativamente novos, considerando a data de suas
primeiras publicações, a princípio, traz sempre desafios. O primeiro deles é vinculado à
tradição, isto é, a aparente ausência de precursores, o que se mostrou problema menor
devido ao tema e à estética que se pauta na violência. As “influências” tanto teóricas
quanto literárias pareciam se proliferar em dimensões assustadoras, para o tempo em
que uma tese de doutorado deve ser apresentada a contento. Originalmente, havia no
projeto inicial seis escritores, número que foi reduzido à metade, pois à medida que
crescia o espectro do volume de textos a serem analisados foi capital decidir pela
diminuição do corpus literário. Permaneceram como alvo da pesquisa, desse modo, os
escritores Paulo Lins (Cidade de Deus, 1997), Ferréz (Manual prático do ódio, 2003) e
Fernando Bonassi (Passaporte, 2001).
A partir da próxima seção inicia-se a tarefa de quebrar o silêncio... Não se é
educado no Brasil para a prática do debate... A tarefa parece ser bem mais dolorosa do
que realmente é, se permanece a prática dos “panos quentes”, sob a tentativa de
afirmar que somos todos iguais... Não, não somos... A violência presente na literatura
contemporânea desses autores “veio aqui por isso”...
Quebra de protocolo e do silêncio
Romper o silêncio em torno da estética da violência em textos literários
brasileiros contemporâneos é passar, também, pela cisão de protocolos no que diz
respeito a pensar as questões da representação da alteridade tanto no campo social
quanto, nesse caso particular, da literatura. A presença da violência como marca
estético-discursiva da “diferença aberta”, ao que parece, vem se colocando em oposição
17
ao distanciamento proposital elaborado por instâncias legitimadoras do cânone literário
que, no caso brasileiro, evitam dialogar com textos que trabalhem esteticamente o tecido
esgarçado das ideias que sustentam a nação ou a própria literatura brasileira. Gayatri
Spivak (1994), ao indagar se o subalterno relativo às relações de gênero poderia
“falar”, termina seu ensaio sentenciando a impossibilidade desse ato enunciativo.
Contudo, o conceito de “literatura silenciosa” cunhado por Edmilson de Almeida
Pereira lança novo olhar em direção a uma possibilidade não apenas da fala”, mas da
repercussão da mesma após ser emitida, após ser pensada e esteticamente realizada.
Assim, o conceito de literatura ruidosa vem aliar-se àquela denominação
literária a partir do silêncio que também a afeta. Desta forma, tais narrativas ora se
encontram sob a mira antropológica, ora, sob o escopo regulamentar da teoria literária.
A narrativa contemporânea advinda das margens que, apesar do silêncio inicial, sob as
mais variadas tentativas de mantê-la na invisibilidade, não podemais ser ignorada.
Ela, assim como diversas formas de manifestações artísticas, vem abrindo mais um
espaço de diálogo, discutindo à sua maneira os aspectos problemáticos da fratria, tanto
da letra quanto do corpo social. O que também passa a fazer parte da cena literária,
agora, é esta literatura ruidosa:
São Paulo, dia primeiro de outubro de 1992
Oito horas da manhã
Aqui estou, mais um dia
Sob o olhar sanguinário do vigia
Você não sabe o que é caminhar
Com a cabeça na mira de uma HK
Metralhadora alemã ou de Israel
Estraçalha ladrão que nem papel
Na muralha, em pé mais um cidadão José
Servindo um Estado, mais um PM bom
Um passa-fome metido a Charles Bronson
Ele sabe o que eu desejo
Ele sabe o que eu penso
O clima tá nervoso, o dia tá tenso
(Trecho de “Diário de um detento”, de autoria de Jocenir e música
dos Racionais MC’s - 1997)
18
Logo apareceram outros companheiros dos andares acima que
estavam em regime comum. O “boi” permitia a comunicação com
dez celas acima, e havia solidariedade, companheirismo. Era o nosso
fedorento e nauseabundo veículo de comunicação. Só que era preciso
ter estômago. Subia o maior cheirão de merda o tempo todo. Com o
tempo, acostumava, diziam eles.
Todos queriam colaborar para minorar meu sofrimento. Não conhecia
quase ninguém ali, mas minha posição, de estar ali nu e sofrendo o
frio intenso, me fazia amigo de todos. Carlão mandaria um sabonete e
um pedaço de linha. Ferramentas úteis na “pescaria” via encanamento
de esgoto.
(Fragmento do conto “Cela forte”, de Luiz Alberto Mendes, autor de
Memórias de um sobrevivente)
Os excertos desta narrativa ruidosa não foram escolhidos sem razão
3
. O primeiro
é o registro do “ponto-de-vista interno”, presente em textos e relatos dos detentos, a
partir do massacre de 111 “internos” do extinto Carandiru – que foi o maior presídio da
América Latina. O texto escrito por Jocenir para a música dos Racionais trafega no que
é denominado “estrutura episódica” (VIANNA, 2005) do rap. A partir de um
“episódio” central, o massacre perpetrado pela polícia militar paulistana, breves cenas
preparam e costuram o que em um romance é denominado de enredo. A
intertextualidade à flor da pele com o diário e os relatos de testemunho expõem a
diferença de perspectiva, confrontando, dessa maneira, outras formas de relato como
aquela produzida pela imprensa, por exemplo. o fragmento em prosa é de um conto
publicado pela primeira vez na revista Cult, em julho de 2002 e, três anos mais tarde,
em uma antologia organizada por Ferréz (2005). O narrador em primeira pessoa no
conto de Mendes repete o explosivo ponto de vista interno, presente por sua vez no
“depoimento” do eu-lírico na letra-poema de Diário de um detento”. O enredo traz um
dos diversos modos de “morte social” (PATTERSON, 1982) herdados das formas de
3
A letra do rap “Diário de um detento” é tomada aqui como texto literário, de acordo com as
considerações feitas a partir do estudo de Anízio Vianna (2005), pesquisa na qual foi levada em conta a
forma por ele denominada “estrutura episódica” que, por sua vez, remete diretamente ao ato de narrar,
presente também no texto épico ocidental. As semelhanças entre tais textos são a narrativa, os episódios
que na épica corresponde aos “cantos” ou “rapsódias” e o tom pedagógico presente em ambos.
19
castigo exercitadas exaustivamente durante a escravidão. A personagem é totalmente
despida e lançada na chamada “cela forte” – “Se bem que não conhecesse nenhuma cela
‘fraca’ por ali” (MENDES, 2005: 110) em pleno inverno nos idos de 1973. Esta cela
utilizada como “solitária” tinha seu chão ladrilhado e de suas paredes escorriam grossos
filetes de água. A porta de ferro maciço possuía apenas uma pequena janela com furos,
por onde entravam pouca luz e o ar frio da estação. O “boi” é a metáfora para vaso
sanitário, que após a retirada da água se transformava simultaneamente em microfone e
caixa de ressonância para a comunicação entre aqueles mortos em vida. Um ponto
diferencial nesse texto, e que a reportagem da revista Cult deixou escapar, era
justamente o fato da personagem, de cunho autobiográfico, ser um leitor. No exato
momento em que é recolhido de sua cela, ele lia o livro Luzia Homem. Aqueles que
acompanham a narrativa do prisioneiro sem nome se espantam com a seguinte frase,
após uma revista nas partes íntimas e as ameaças de violência física por parte dos
guardas: “Era extremamente humilhante. Me encolhi com meu exército de palavras
desmantelado e minha alma menos minha” (2005: 109). O corpo da personagem, após a
posse da “alma”, passaria a ser um objeto, um mero detalhe: socialmente morto...
Os excertos da literatura ruidosa a literatura produzida a partir de estratégias
estético-políticas da literatura e cultura afrobrasileira urbana, como a adaptação do
ponto de vista do eu-lírico do rap e da “narrativa episódica”, para citar dois elementos
cruciais, são apenas a ponta do iceberg da produção literária contemporânea. Pode
parecer pouco a mudança daqueles que produzem o foco narrativo das obras que tratam
da violência os narradores não o mais uma criação exclusiva de alguém que
pertença à classe média e que seja branco e detentor de um diploma de curso superior.
Isso, entretanto, irá permanecer no minado campo das aparências, pois afeta
diretamente, por exemplo, a construção e a apresentação das personagens que buscam
20
fugir dos estereótipos utilizados muito pela literatura de autores já consagrados.
Pode-se notar que, ao contrário do que é mostrado em muitos textos canonizados, a
personagem de “Cela forte” possui uma subjetividade, até então, sub-representada ou
invisibilizada pela utilização indiscriminada e, quase, naturalizada dos estereótipos que
cerceiam as mais variadas camadas subalternas da população.
A experiência cotidiana de Ferréz e de Paulo Lins é um dos elementos que,
curiosamente, também compõem a “literatura silenciosa” identificada por Edimilson de
Almeida. O texto produzido no cárcere se assemelha à criação do escritor
afrodescendente no seguinte aspecto: criar a partir de uma realidade que o autor conhece
“antes de tudo por vivência” (Conceição Evaristo em entrevista a Walter Sebastião,
2004). E através desse ato criativo, talvez seja possível “exorcizar a realidade” e,
simultaneamente, incorporá-la esteticamente ao texto. Outro ponto de contato entre a
literatura produzida nas prisões e aquela realizada por pessoas de ascendência africana:
“escrever nesse caso pode ser muitas vezes deixar fluir o recalcado, o silenciado da
História” (ibidem).
Sendo assim, um conceito como “hiper-realismo” talvez não seja adequado para
abarcar a pletora de narrativas, e consequentemente de escolhas estéticas nem tão
distintas assim, que lançam o olhar sobre o que denominaremos de experiências limites
com a alteridade, o que na maioria das ocasiões, infelizmente é traduzido simplesmente
por violência. Um breve panorama deste debate foi tema de reportagem da revista Cult
(julho 2002). A matéria que ganhou destaque na capa possuía como título “Vozes da
prisão: pena de sangue”. Os escritos do cárcere possuem como companheiros de
experiência no obscuro mundo prisional e literário (sobre os quais vêm sendo lançadas
luzes) ninguém menos que Dostoievski, Jean Genet, e Graciliano Ramos.
Recentemente, chegou ao mercado uma nova edição do livro de José do Patrocínio
21
Filho (2003), com o relato memorialístico de sua experiência na prisão inglesa, onde
esteve por mais de um ano por ocasião da Primeira Guerra Mundial. Apenas para
termos uma amostra das ideias envolvidas no debate provocado pela publicação das
obras de autores como Paulo Lins, Ferréz, Jocenir, Luiz Alberto Mendes, Rubem
Fonseca, Patrícia Melo, reproduziremos aqui o trecho referente à declaração de Ferréz à
já citada revista:
Ferréz é admirador de Jocenir e Mendes e não suporta escritores de
classe média que exploram o tema da miséria. “A Patrícia Melo é a pior.
Deixa transparecer o nojo que a classe média tem pela gente. Mata
personagens por brincadeira, é cruel e sem essência”. (Revista Cult,
2002: 40, v. 59).
Polêmica. A palavra que talvez seja a mais adequada quando se trata de obras
como estas que pretendemos analisar. O fragmento da entrevista com o escritor
originário do bairro de Capão Redondo, periferia da megalópole paulistana, expõe senão
o problema central da produção de tais escritos, uma das questões de grande relevância:
o ponto de vista interno ou externo dos narradores/autores. As narrativas
contemporâneas da literatura brasileira trazem, acima de tudo e além da controvérsia, a
marca da diversidade. Parece, à primeira vista, que estamos assistindo a uma disputa
pelo direito de exclusividade sobre a temática da violência. E mesmo sete anos depois
da referida reportagem, talvez paire a dúvida, agora não mais somente da professora da
USP, Andrea Saad Hossne, entrevistada à ocasião pela revista Cult: quais estratégias
serão utilizadas para diferenciar o texto dos “excluídos reais” daquele que simplesmente
“tematiza a miséria”. Exemplos de textos produzidos de “fora” e que repetem o
estereótipo do subalterno sem nenhuma possibilidade de mudança, no que tange à
representação, é o que não faltam. Veja o excerto a seguir:
22
Miltão entrou, durante os comerciais. Desliga a TV, disse para o Jaú.
Babacas, ele falou, olhando para os meninos. Babacas cagões.
Perdemos o Melão por causa de cinco bostas fedidos babacas cagões.
Tenho cinco bostas fedidos babacas cagões de merda putos imbecis
trabalhando para mim. Cinco bostas fedidos e cegos. Imbecis. Venha
aqui, ô otário. Imbecil. Só matando. Cagão. Você primeiro, Reizinho.
Os outros fazem fila. E eu achando que neguinho tinha futuro, você
mesmo, Reizinho, pensei que neguinho conectava com cré. Ele
sempre dizia isso, o Miltão. com cré. Babacas. Vem cá, babaca.
Reizinho se aproximou. Miltão tirou um revólver da cintura, encostou
o cano da arma na palma da mão do garoto e detonou. (MELO, 2000:
17)
O trecho é retirado do romance Inferno (2000), escrito por Patrícia Melo,
narrado em terceira pessoa. A cena aqui transcrita, não por acaso, se repetirá em parte
no mini-relato “011 crucificação” de Passaporte (2001), de Fernando Bonassi. O estilo
de narração adotado no romance de Melo é bem similar ao que pode ser encontrado nos
textos de Bonassi. Personagens são reduzidas às “vias de fato” da ação sem a menor
condescendência, pois as regras foram “devidamente” explicadas por Miltão – o líder
do tráfico criado para a narrativa por Patrícia Melo, bem como considerável conteúdo
do livro, ao que parece, a partir de referências retiradas, principalmente, de Cidade
partida (1994), de Zuenir Ventura e de Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins. A
referida cena se desenrola quando os “olheiros”, especialmente Reizinho (personagem
central da trama), falham em avisar sobre a chegada da polícia ao morro. O ato
“educativo” de repreensão é dispensado a todos os meninos, para que nenhum deles se
esqueça de suas “obrigações”. As sentenças curtas se proliferam por toda a narrativa,
dando ênfase à ação das personagens, presas invariavelmente a estereótipos da
marginalidade, em detrimento de qualquer possibilidade de consistência ou
humanidade, por menor que fosse.
23
Felizmente, nem todas as narrativas apresentam a tácita aceitação da
naturalidade com que a violência do texto literário atinge suas “vítimas preferenciais”.
Isto parece ocorrer quando os narradores e alguns dos autores, como provocou o escritor
paulistano Ferréz, moram dentro do tema. Apresenta-se em tais textos a possibilidade
de diferença a partir do “local de enunciação”, em busca de marca distinta àquela do
texto canônico. As narrativas contemporâneas de Paulo Lins, Ferréz e, em certa medida,
Fernando Bonassi, possuem assim, a atitude estética que Dalcastagnè identifica como
“trazer o narrador para o centro da narrativa”. Os dois primeiros autores o fazem de
modo a não silenciar a alteridade, há possibilidade de voz. Já, Bonassi produz um
narrador que apresenta cenas de modo que a alteridade se transforma em parte do
cenário, com poucas exceções como o mini-relato “086 crônica do dia 17/8/98 (com o
poema/aviso “Fuga da Morte”, de Paul Celan, na cabeça), no qual a significativa
mudança de uma voz narrativa que é a “personagem” ameaçada pela sombra neo-nazista
e extremamente xenófoba.
É justamente nos textos de Paulo Lins e Ferréz que reside um dos ruídos da
literatura ruidosa. A ética da voz narrativa não se vale da alteridade apenas como
recurso estético, ela se afilia àquela do mundo que rege os corpos das personagens
participantes da trama. Porém, não basta fazer “laboratório” nas ruas das grandes
cidades como Aluísio Azevedo no século XIX, para pesquisar a realidade com o intuito
de criar personagens mais “factíveis”. Eclodiu na literatura do Pré-Modernismo, em
Lima Barreto, uma tentativa explícita de escapar do realismo-naturalismo: a
subalternidade étnica procura romper o ciclo imposto pelo cânone de somente falar
sobre os pobres ou ainda falar pelos pobres.
Entretanto, a utilização da violência como recurso literário, por si só, não seria
suficiente que, por exemplo, ela é explorada diariamente na mídia jornalística.
24
Figuras de linguagem a metonímia, a metáfora, a zoomorfização, a coisificação são
acrescentadas ao expressionismo (recurso utilizado em dois romances de Lima Barreto:
Clara dos Anjos e em Recordações do escrivão Isaías Caminha).
A partir das considerações a respeito da representação da subalternidade, surge a
possibilidade de incorporar à análise das personagens, mais uma vez, os conceitos de
“morte social” (PATTERSON, 1982), “dupla consciência” e “linha de cor” (DU BOIS,
1994), advindos da área das ciências sociais para a literatura. O primeiro deles refere-se
ao status social impingido a todos os povos escravizados a partir do império romano:
uma vez tornado escravo, sua “humanidade” cessa de existir, transformando-o em
“coisa”. Tal condição foi agregada ao mundo ocidental quando elege os “marginais”,
especialmente, sobre as bases, como no caso brasileiro, do “preconceito de marca”
aquele que se vale da cor da pele para discriminar os indivíduos, segundo as ideias
fundamentadas em Oliveira Viana e Oracy Nogueira (MUNANGA, 1999: 71). O
segundo termo diz respeito à condição do negro na sociedade norte-americana “um
americano, um negro” que se constantemente lançado ora em um extremo e outro.
Quanto ao terceiro, a “linha”, indica a demarcação da fronteira social a partir dos tons
de pele de cada indivíduo e, consequentemente, raça/etnia.
Devo chamar a atenção para a peculiaridade de tais termos “morte social” e
“linha de cor” aplicada no estudo de textos literários brasileiros. Eles se encontram
marcados por sua constante imbricação com as questões de gênero e classe. Sua
correspondente no âmbito das figuras de linguagem seria a coisificação e a
zoomorfização. Já a “dupla consciência”, ora identificada na voz narrativa ora nas
personagens, seria uma estratégia para romper os dois obstáculos da “morte social” e da
“linha de cor”. A utilização do conceito criado por Du Bois é aqui readaptada e
apropriada com base na estratégia de constante movimento de sobrevivência a partir da
25
diáspora africana em terras do Novo Mundo. O termo, cunhado no início do século XX
remete ao passado colonial e simultaneamente ao futuro quando identifica o obstáculo
da “linha de cor”. Entretanto, para o estudo das narrativas em foco nessa tese, o
significado de “dupla consciência” deve ser ampliado. exemplos nos três textos
literários que denotam o dilema cotidiano das personagens: pertencem à cidade, mas
estão excluídas da cidadania; pertencem ao bairro, mas estão alijadas quanto à questão
de gênero, por exemplo; pertencem ao grupo de moradores jovens, porém alguns deles
ficam ironicamente retidos na “linha de cor”; ainda, a personagem que pertence à
família, mas deve viver às escondidas para que não cause mais embaraço ao núcleo
familiar; pertencem à humanidade, mas dela estão apartados devido à condição étnica
(judeus, negros, ciganos, muçulmanos). A lista parece não ter fim... E para alguns deles
essa condição agônica só termina quando um corpo tomba ao chão... como é possível
perceber nos episódios narrados em Cidade de Deus (1997) e em Manual prático do
ódio (2003).
Essas personagens, diferentemente de Isaías Caminha, não foram agraciadas
pelo tempo de uma aglomeração urbana que engatinhava para a modernização. Elas
subsistem e resistem ao período em que o espaço da cidade se encontra em franca
decomposição. O livro de Fernando Bonassi parece ser o aperitivo para a teoria presente
em Planeta favela, de Mike Davis (2006), um estudo provocante e incômodo sobre o
crescimento e uma espécie de “naturalização” e aceitação passiva de áreas de exclusão
em que são alocadas vastas camadas populacionais. Estas parcelas tornam-se alvos
fáceis para as balas e “armas brancas” tanto do mundo real quanto da ficção, que sempre
terminam por transformá-las nas denominadas “vítimas preferenciais”. Pode-se
continuar a argumentar que a literatura é “só” literatura. Porém, tal afirmação não
contribui para o debate, visto que permanece na esfera das atitudes cômodas que
26
insistem no não reconhecimento da diferença e que terminam apenas naturalizando a
violência, como ocorre com boa parte das narrativas sobre o tema. O combustível básico
de tais narrativas foi devidamente identificado por diversos pesquisadores e pelo
esforço das Nações Unidas: a desigualdade provocada pelo crescimento sem
precedentes da população urbana do planeta, obviamente representada pelo que, no
Brasil, é denominado de “favela” (DAVIS, 2006: 14,18 e 31).
Como tal característica estaria presente nos mini-relatos criados para a narrativa
de Passaporte? O uso constante de imagens preconcebidas e baseadas nos diversos
preconceitos seja de raça/etnia, classe, gênero e/ou opção sexual termina por lançar os
inúmeros “sujeitos” numa estranha classificação: todos se transformam, ao final de cada
cena, em parte dessas angustiantes paisagens. Será que além de perpetuar o modo de
representação, em alguns pontos, similar àquele das personagens criadas para as
narrativas realistas-naturalistas ao final do século XIX, a literatura da mercadoria da
crueldade passa a constituir uma ficção em que a própria capacidade de autores em
“ficcionalizar” o mundo à sua volta, acabe sempre num trabalho sísifico de repetição
e/ou reiteração do “real” e no processo de naturalização da violência, em especial contra
as camadas subalternas da sociedade? Herdeira da tradição criada por Rubem Fonseca
em meados da década de 1970, a narrativa de Fernando Bonassi desponta como uma
espécie de síntese das obras cujos narradores encontram-se sempre no corpo de uma
personagem que é um homem branco, com diploma universitário, pertencente à classe
média e/ou média-alta. “O macho adulto branco/sempre no comando” (VELOSO, 1989)
parece ser o mote no espaço ficcional da mercadoria da crueldade, muito embora no
tocante ao gênero do narrador, não escapatória mesmo no que diz respeito à
literatura ruidosa: a voz que narra é, muitas vezes, masculina.
27
As narrativas contemporâneas da violência serão, por fim, analisadas a partir
dessa fratria literária formada por Passaporte (2001), de Fernando Bonassi, a ser
estudado no primeiro capítulo, sendo considerado um representante síntese da
mercadoria da crueldade; Cidade de Deus (1997), de Paulo Lins, cuja análise será
realizada no capítulo segundo, a partir da gênese do que denomino literatura ruidosa; e,
no terceiro tempo de leitura é a vez de Manual prático do ódio (2003), escrito por
Ferréz e que liga o mundo narrado no rap “Da ponte pra cá” (ANEXO N), dos
Racionais, com a neofavela descrita no romance de Lins.
28
Capítulo um
Crueldade como mercadoria
29
A utilização literária da violência urbana na literatura brasileira ocorre de modo
mais sistemático, a partir da segunda metade do século XX. Esse recurso interfere
diretamente no âmbito da representação da alteridade. Aqui se buscará a explicitação
tanto deste uso literário quanto das “vítimas preferenciais” (Dalcastagnè, 2005)
negros/afrodescendentes, mulheres, crianças, jovens e homossexuais que a literatura
contemporânea, a exemplo da exclusão perpetrada também no “mundo real”, possui
como seus alvos prediletos. A literatura da mercadoria da crueldade será aqui
representada por Passaporte, de Fernando Bonassi, cuja narrativa surge como um dos
segmentos derivados do braço contemporâneo criado a partir da obra de Rubem
Fonseca.
O breve levantamento de exemplos em textos canonizados levará em conta o
momento em que a violência passa a ser representada como eliminação das referidas
“vítimas” ou repressão social e política das mesmas. Os recursos literários aos quais tais
narrativas largamente se valem são a zoomorfização e a coisificação. Assim,
representando literariamente o ato destituidor das características humanas das
personagens que sucumbem sob a forma de seu uso (simbólico ou físico), a maioria dos
textos canônicos trafega pelo terreno perigoso da naturalização e da banalização da
mesma. Consequência seguinte a este desenfreado uso é a não reflexão por parte do
leitor, que ficaria anestesiado e insensível, alienado de sua capacidade crítica.
Para tanto, serão retirados breves exemplos das narrativas de Rubem Fonseca
(Feliz ano novo: 1975) e, mais detidamente os relatos de viagem presentes em
Passaporte (2001), de Fernando Bonassi. Este último livro sintetiza o modus operandi
estético que se faz majoritário na literatura canônica brasileira, a presença da violência
como um fator estético, aparentemente sem nenhum interesse nos desdobramentos desse
30
recurso numa insistente representação silenciadora das diferenças. No entanto, parece
que tal efeito se faz presente nos textos canônicos.
O desafio que se apresenta de agora em diante é dos mais árduos, pois a
representação literária é acrescida do fator violência. Para mostrar a complexidade que
esse jogo tem incorporado no tocante à alteridade, seja de autores, narradores e
especialmente das personagens, trarei para a cena desse princípio de debate três contos
de Rubem Fonseca, precisamente, “Feliz ano novo”, “Passeio noturno – Parte I” e
“Passeio noturno Parte II”. Os contos pertencem ao polêmico livro de nome
homônimo ao primeiro dos textos Feliz ano novo (1975) e foi lançado no período
em que a ditadura militar atingia, talvez, o maior índice de repressão, eliminando
fisicamente os últimos oponentes que pegaram em armas e lutaram contra o regime de
exceção. Curiosamente, o mal-estar provocado pelo livro não se ligava a essa violência
específica, ou seja, provocada por razões políticas vinculadas às tendências de direita ou
de esquerda. O tema que percorre os textos trata essencialmente daquela provocada pelo
crime comum e até mesmo pelo crime de fundo psicótico.
O trato estético dessa temática exposto no texto contemporâneo a partir do
livro de Rubem Fonseca confirma a análise de Regina Dalcastagnè sobre autores que
reservam “para si o princípio da linguagem” (2005A), principalmente quando se trata da
alteridade que é reconhecidamente subalterna. Interromperei aqui para, antes, tratar da
conceituação do termo violência e suas implicações no campo da literatura
contemporânea.
31
Afinal, de qual violência se fala aqui?
A violência é, antes de tudo, uma questão de
agressões e de maus-tratos. Por isso a
consideramos evidente: ela deixa marcas.
(MICHAUD, 1989: 08)
Serão necessárias incursões na busca de uma delimitação do conceito de
violência, especialmente no que se refere à representação. Essa, como outras tantas
palavras, parece gasta pelo uso indiscriminado e fácil, talvez pela quase onipresença
cotidiana, devido, por exemplo, à sua banalização pela pletora de vezes com que é
utilizada para “explicar” as mais diversas irrupções sociais. A literatura, embora muitos
desejassem, é claro não ficaria de fora desse fenômeno. De acordo como Yves Michaud
(1989, 08) a origem latina da palavra (violentia) remete a um “caráter violento ou
bravio, força” e refere-se ainda a violare e vis. O primeiro termo indica “tratar com
violência, profanar, transgredir”, enquanto o outro aponta para:
(...) força, vigor, potência, violência, emprego de força física, mas
também quantidade, abundância, essência ou caráter essencial de uma
coisa. Mais profundamente, a palavra vis significa a força em ação, o
recurso de um corpo para exercer sua força e portanto a potência, o
valor, a força vital. (MICHAUD, 1989: 08)
O autor corrobora assim com o pensamento de Michel Maffesoli, pois em
Dinâmica da violência (1987) é encontrada também a ideia de utilização de força
invocada para a simples destruição de algo ou alguém, bem como aquela de “força
vital” (leia-se também viço, vigor). Esse elemento teria tanto o poder de criação quanto
aquele vinculado à destruição física e/ou simbólica. O problema, de acordo com
32
Michaud e Maffesoli, se instaura quando o uso dessa “força” rompe todos os acordos e
normas estabelecidos em cada sociedade.
Yves Michaud passa então a considerar a conceituação do termo a partir de seu
aspecto legal, a definição do código penal francês. Contudo, isso não limita sua análise,
pois ele apresenta ao leitor referências significativas a respeito da temática em questão,
a saber: “o caráter” de complexidade quando o envolvimento de vários atores; a
diferença entre os modos de “produção da violência” aquela cometida por um indivíduo,
um fuzilamento, e “assinar uma ordem de bombardeio”; a temporalidade da violência
“pode ser ministrada de uma vez (maciça) ou gradualmente, até insensivelmente
(distribuída)”. Ao finalizar a exposição desses elementos o autor chama a atenção sobre
a dificuldade de se diferenciar “estados de violência” dos “atos de violência”. Enquanto
o segundo, basicamente, se vincula a fatos específicos como um assassinato, uma
agressão física ou uma coerção, o primeiro perpassa praticamente toda e qualquer
situação de dominação nas sociedades. É essa “estrutura constante do fenômeno
humano” que praticamente impossibilita a identificação desses referidos “estados”.
4
Existe um significado de violência que está relacionado ao total
desregramento, ou seja, vincula-se à ideia de caos e por extensão ao temido “caos
social”. Parece ser esse o sentido de preferência da mídia contemporânea para a palavra.
E os fatos desses tempos atuais não ajudam: terrorismo, tanto de Estado quanto de
determinados grupos políticos; religioso; e ainda do “crime organizado”. Michaud
recorre a Hannah Arendt para tocar no elemento da completa “imprevisibilidade” a
partir do momento em que a sociedade e seus indivíduos se aproximam do “âmbito da
violência”.
5
Curiosamente, a exploração dessa verve caótica da violência pode ser
4
MICHAUD, 1989: 10-11. Obs.: referência para todas as citações no parágrafo.
5
MICHAUD, 1989: 12-13.
33
identificada na sua representação literária brasileira nos últimos quarenta anos,
aproximadamente (DALCASTAGNÈ, 2005 e 2007).
É Michel Maffesoli (1987) quem, no entanto, mais se aproxima de um sentido
próximo da análise da representação literária contemporânea da violência. O autor
utiliza a expressão “desordem fecunda” para tentar explicar o modo presente de
utilização desse elemento. E parece haver embutida uma possibilidade de se pensar o
seu significado a partir do caos provocado pela “imprevisibilidade” desse fator (que
inegavelmente trará sempre efeitos colaterais). E mais importante ainda, para este
estudo, é sua colocação a respeito do convívio social: este último baseia-se
preferencialmente na discórdia, no dissenso e não na concordância tácita de todos os
envolvidos no processo (idem, 1987: p. 15). E finalmente, a pedra de toque que articula
a questão do estilhaçamento da fratria e da filiação a um grupo, elementos que podem
gerar a violência:
A figura do neikos é, segundo o filósofo Empédocles, o complemento
necessário da philia. A heterogeneidade gera a violência, mas ao
mesmo tempo é fonte de vida; ao contrário do idêntico (ou
homogêneo) que, quanto mais pacífico, mais potencialmente
mortífero. (Idem)
A importância do pensamento de Maffesoli é crucial para a crítica da ideia de
“cordialidade”, que não pode ser contestada e é sempre justificada pela ânsia da criação
de um nacionalismo literário brasileiro. Transportando os conceitos de neikos e philia
para o campo da literatura, tem-se a retirada do véu que encobre a relação entre os
conceitos de alteridade e violência. Ideal esse que pretende forjar um “idêntico”
simultaneamente às práticas que buscam tornar invisível toda e qualquer alteridade.
Assim, por exemplo, os conceitos de literatura feminina, negra/afrobrasileira,
homoerótica, e, bem como de qualquer outro termo relacionado às chamadas
34
“minorias”, são dissonantes/dissidentes à pretensão do canto em uníssono de uma
“literatura brasileira”. A “costura da vida”
6
sempre necessita alinhavos e por isso
retomo o pensamento de Michaud expresso na epígrafe dessa sessão para iniciar nova
etapa, a saber: analisar as “marcas” deixadas no texto literário pela violência.
Violência e narrativas contemporâneas
Em meu percurso de busca por pistas para melhor trato da questão relacionada à
presença da violência na literatura deparei-me com Jacques Leenhardt (1990), Ronaldo
Lima Lins (1990), Maria Antonieta Pereira (2000), e suas valiosas contribuições.
Começando por Leenhardt (1990: p. 15), que destaca a ambivalência presente nos
discursos sobre a violência e que invocam o “não-social” (toda e qualquer violência)
para a defesa de um “social existente” ou de outro que se anuncia, o crítico salienta,
porém, que em ambos os casos” a manifestação de uma “tensão” que se estende
sobre uma “desordem”, provocando como consequência um “relato”. Amplio o termo
por ele utilizado: tanto tensão quanto desordem proporcionam narrativas das mais
diversas. E Jacques Leenhart acrescenta:
Daí que todo discurso sobre a violência é dela necessariamente uma
representação e não uma descrição, mostrando-se, por essência, da
ordem da ficção. É por essa via, enfim, que a violência e literatura se
acham tão intimamente ligadas.
(...) Aos discursos ficcionais, cabe finalmente a amarga tarefa de
situar a violência, de colocá-la no interior de um quadro vivo, de
conferir-lhe o peso da experiência através da sua representação.
Somente ali ela pode produzir seus efeitos necessários: os efeitos da
tomada de posição. (Idem, 1990: p. 15)
6
PERERÊ, Sérgio. Costura da vida. TAMBOLELÊ. Kianda. Belo Horizonte: Lei Estadual de Incentivo à
Cultura; Governo do Estado de Minas Gerais; TIM, 2000: faixa 1.
35
As observações do excerto aproximam os diversos discursos produzidos sobre a
violência e, dentre todos eles, destaca o que interessa a esta pesquisa: o caráter ficcional.
antecipo que alguns setores das áreas de História e do Direito refutariam
veementemente esta afirmação, por verem sua produção textual sobre o tema ser
classificada como pertencente também ao mundo da ficção. E tanto numa área quanto
noutra, os textos são passíveis de diferentes interpretações. Ao contrário das áreas
citadas, a literatura possui um maior espaço para a utilização do que Leenhardt
denomina “efeitos da tomada de posição”. E esses efeitos são provocados por escolhas
feitas no âmbito da narrativa, por uma voz que às vezes se insinua entre falas de
personagens, ora se quer oculta, dando aos leitores a sensação de “imparcialidade” e
maior proximidade de uma verdade.
Curioso é pensar que tanto o historiador quanto o jurista se aproximam do
narrador literário, porém fortemente delimitados por amarras institucionais, que são
relativas, por sua vez, às funções sócio-políticas de cada um. Quanto às limitações
impostas ao narrador ficcional, estas servem-lhe, paradoxalmente, de estímulo para a
criação de novos modos de fazer artístico. A “tensão que se abre sobre uma desordem
que se inicia” transforma-se no elemento catalisador da narrativa contemporânea
brasileira, e o conflito aqui é provocado pela intensa presença da violência. Leenhardt
conclui que devido à ausência de um “discurso absoluto sobre a violência”, a literatura
pode afastar-se profundamente das tentativas de racionalização exercitadas em outros
campos. E mais, na impossibilidade da literatura e seus modos representacionais
dirigirem-se à “razão pura”, restam a eles o que o autor denomina de “razão prática”.
Esta última será aqui tomada como a produção das narrativas da violência. Passo a
seguir às contribuições dos outros teóricos a partir do surgimento da obra de Rubem
Fonseca, que provocou um verdadeiro rebuliço na crítica e no mercado das letras.
36
O livro de Rubem Fonseca que sacudiu a literatura nos idos de 1970 foi Feliz
ano novo. Os contos retomavam um mundo que aparecera somente no realismo-
naturalismo, na obra de Lima Barreto. Mais tarde, esse mundo reaparece retratado em
parte pelo Romance de 30, também nos anos 60 com Carolina Maria de Jesus, João
Antônio e o dramaturgo Plínio Marcos. O elemento que se sobressai na obra de
Fonseca, além das personagens pertencentes ao mundo das alteridades, é a violência.
Para um breve histórico do estudo das referidas narrativas, recorro a Maria
Antonieta Pereira (2000) cujo trabalho de pesquisa sobre a obra de Rubem Fonseca
contém um panorama das leituras críticas sobre o escritor. No texto de apresentação
para o livro de Pereira, escrito por Lélia Parreira Duarte, destacam-se dois pontos de
convergência com o pensamento de Regina Dalcastgnè (2005) a respeito da construção
narrativa: o texto como um “espaço de conflito” permeado pela dissimulação, por
encenação, fingimento, deslocamento, por espelhamento e, ainda, pelo desvelamento de
bastidores e por reduplicação. Todos esses elementos permitem a constituição de “jogos
de engano, sátira e paródia”. O outro elemento similar ao encontrado no raciocínio
desenvolvido por Dalcastagnè é “o narrador como um detetive desconfiado que olha
para trás e para a frente no trajeto obscuro da ficção e, nesse trabalho mnemônico e
prospectivo, em si mesmo ficcional, desloca o passado e o futuro para o momento da
enunciação” que, no entender de Pereira, mescla o saber logos ao jogo ludus
(PEREIRA, 2000: 11).
O percurso de Maria Antonieta Pereira pela fortuna crítica de Rubem Fonseca
revela que o leitor é pensado como um “cúmplice” do narrador, pois ao compactuarem
com a exposição e admiração de elementos que não se encaixam no que
tradicionalmente é classificado como belo, numa expressão, o que traz algum alívio,
consolo ou embevecimento ao leitor/espectador da obra. Pereira retoma Aristóteles para
37
mostrar que, mesmo na era Clássica, pensava-se sobre o porquê da “admiração” pelo
grotesco. E a resposta parecia ser simples e direta, pois se relacionava com dois
momentos experimentados pelo que denominamos, hoje, leitor/espectador: um que se
detinha na repulsa e outro a partir do fascínio e prazer. Consequentemente:
Tateando entrelinhas embaraçadas, o leitor ora é convocado a deter-se
na elucidação de um crime lugar da lei , ora é seduzido a
identificar-se com assassinos, traficantes, estupradores, prostitutas
ausência da lei. Nesse périplo sem destino certo, tensionado sob o
efeito de insolúveis paradoxos, o receptor não pode omitir-se da co-
autoria. (PEREIRA, 2000: 13)
Jacques Leenhardt mencionava a importância de uma “tomada de posição” a
partir da relação entre o texto literário e a violência. Pereira identifica exatamente esta
espécie de convocação ao leitor para que o mesmo saia da comodidade e proteção da
sua sala de leitura ou dos minutos reconfortantes recostado junto aos travesseiros. A
presença da alteridade através do mundo do crime e das pequenas contravenções
sacudirá o universo das personagens, até então, apresentadas aos leitores. Reforça-se
dessa maneira a idéia de jogo entre narrador-texto-leitor. Segundo Maria Antonieta
Pereira, na obra de Rubem Fonseca, o leitor ainda pode vislumbrar a possibilidade de
catarse.
Já Sandra Lúcia Reimão aproxima-se da linha de pensamento de Leenhardt
(1990), que admite a literatura como espaço para tudo aquilo que não pode ser
admitido/assimilado pela sociedade e, por consequência, deve ser expurgado,
segregado. Ainda de acordo com Reimão, assiste-se à criação de “micro-sistemas
marginais”, que além da geração de conflitos nem sempre administráveis –, cria a
“ilusão” de que tais problemas poderiam ser “eliminados”, caso existisse “outra
estrutura social”. Já Maria das Graças Rodrigues Paulino também toca no argumento
38
relativo à ausência de consolo ao leitor que busca algum alívio diante de uma narrativa
que “volta-se contra seu receptor e o sistema no qual ele vive, transformando-os em
alvo de uma linguagem violentadora” (PEREIRA, 2000: 16). Se o leitor/consumidor,
pertencente à classe média fica sem consolo, o que dizer das “vítimas preferenciais”,
jogadas à própria sorte, representadas, quase sempre, sob a mira de narradores como os
que regem as páginas de autores como Rubem Fonseca?
Em seu conto “Feliz ano novo”, publicado em livro homônimo (FONSECA,
1975: 9-15) o autor inaugura outra maneira de representação da marginalidade,
mantendo, no entanto, os estereótipos do realismo-naturalismo. O que de novidade,
então? A voz narrativa é deslocada para um dos personagens que participa ativa e
decididamente para que os fatos se desenrolem diante dos olhos do leitor. Um modo de
narrar que, por sua vez, tenta simular uma espécie de aproximação do público com o
universo da camada subalterna e marginal, num roteiro seguro pelo mundo do crime.
Por que a necessidade de fixar o estereótipo da personagem? Esse manuseio
pode sugerir uma garantia da manutenção de visões dualistas sobre o subalterno e,
principalmente, a respeito daquele que passa a praticar crimes. Em “Feliz ano novo”
o grupo de três assaltantes que, às vésperas da passagem de ano, esperam algo que
realmente modifique suas vidas. Vale chamar a atenção para o fato de que apenas dois
deles são nomeados durante toda a narrativa e, ainda, recebem codinomes durante a
tumultuada e caótica ação na casa dos “grã-finos”. A primeira personagem a ter seu
nome revelado é Pereba. Note-se a utilização da metonímia e da referência, mesmo
que de modo popular, à área da saúde: pereba é uma pequena irritação de pele que
provoca ferimentos que, com o passar do tempo, vão se infeccionando, caso não haja
tratamento. Resumindo a caracterização fornecida pelo narrador numa palavra culta:
pústula. A definição recheada de detalhes, dada ao leitor pelo parceiro de sina, é cruel e
39
lapidar: “Pereba, você não tem dentes, é vesgo, cego, preto e pobre, você acha que as
madames vão dar pra você? Ô Pereba, o máximo que você pode fazer é tocar uma
punheta. Fecha os olhos e manda brasa” (FONSECA, 1975: 9). Essa “pústula” humana
carrega todos os estigmas que maximizam sua vulnerabilidade para se tornar alvo” da
discriminação: a boca em mal estado de conservação, a deficiência ocular e para não lhe
deixar nenhuma brecha para respirar, Pereba é fixado entre a “linha de cor” (DU BOIS,
1994: 9)
7
e a de classe. É Rubem Fonseca quem inaugura no campo literário o que
denomino de first person shooter narrator (narrador/atirador em primeira pessoa), pois
todo o peso do discurso preconceituoso é deixado sobre os ombros e a partir da fala da
personagem que narra o conto. Desse modo, tal descrição busca uma identificação por
parte do leitor com esse discurso, acessando a parte mais recôndita em que fica
guardado tanto o desprezo pelo Outro quanto o desejo, mesmo inconsciente, de
aniquilá-lo. E isso ocorre de maneira a deixar de fora a mínima misericórdia que seja
pela vida humana.
A partir desse ponto, substitui-se o modo de ataque, passando a uma espingarda
calibre 12 que, como ensinado pelo discurso televisivo, leva o leitor a experimentar
puxar o gatilho, assistir a sua vítima ser lançada para trás e pregar-se à porta de madeira,
mesmo que seja por poucos segundos. Resta ainda a sensação de estar ao volante de um
possante carro que atropela suas vítimas, sempre à noite.
Deter-me-ei brevemente nos contos “Passeio noturno – Parte I” e “Passeio
noturno parte II”. As duas narrativas apresentam a violência praticada por alguém
7
De acordo com Du Bois (a seguir em tradução minha): “O problema do século XX é o problema da
linha de cor a relação entre a raça mais escura e as raças mais claras de homens na Ásia e África, na
América e nas ilhas oceânicas. Foi uma fase desse problema que provocou a Guerra Civil...” (1994: p. v)
Na edição brasileira (traduzida por Heloísa Toller Gomes, 1999) a expressão foi traduzida como “barreira
de cor”. Não a utilizo dessa forma por um motivo estratégico: o termo “linha” seria mais adequado para
análise das situações discriminativas que atingem aos negros e aos seus descendentes, pois expõe diversas
possibilidades de atuação da discriminação racial. O termo “barreira”, por sua vez, pode mais facilmente
passar a ideia de um obstáculo visível e identificável, algo que, em se tratando do Brasil e América
Latina, apresenta-se de modo bastante complexo.
40
“acima de qualquer suspeita”, um alto funcionário de uma companhia, cujo cargo e
setor de atuação não são revelados. A estratégia de utilização de um narrador-
personagem reforça o efeito de aproximação com os fatos apresentados, ao criar uma
espécie de simultaneidade entre o momento da leitura e a ação narrada, propondo um
padrão de cumplicidade entre o narrador-personagem e leitores. Porém, parece que, na
maioria das vezes, o leitor não se dá conta do ato solitário que se constitui a leitura, uma
atividade que isola seu ator do mundo à sua volta. Isolamento que reforça sobremaneira
essa atitude de cumplicidade com o discurso apresentado no campo da ficção. A
pergunta, ainda sem resposta satisfatória, é: qual a razão que continua a sustentar o
fabrico de tais narrativas, nas quais esse recurso – o narrador/atirador em primeira
pessoa – e seus alvos (as “vítimas preferenciais”) permanecem?
Os dois contos de Rubem Fonseca se complementam à guisa de capítulos. No
segundo episódio, o passeio pela noite da personagem se completa na atrocidade
motorizada que trava contato perigosamente próximo com aquela que se tornaria sua
mais recente vítima. Não importa se uma típica mulher do subúrbio e suas compras para
a refeição frugal – café da manhã, almoço... – ou aquela “fêmea”, sem ocupação
definida e que pertence à classe média alta. O que realmente importa para a personagem
que assume o volante é a emoção provocada pela facilidade com que realiza sua tarefa
noturna: atropelar uma mulher. A ausência de nomes das personagens torna impossível
a empatia com as “vítimas preferenciais”, como pode ocorrer por parte do leitor no
conto que título ao livro. Ali, quem perpetua a violência não se encaixa no perfil
“acima de qualquer suspeita” do funcionário da companhia. Ao contrário dos contos de
João Antônio, aqui, não há o que Jacques Leenhart (1990: 15) chama de situar a
violência num “quadro vivo”, ou ainda a apresentação das personagens “em pé de
igualdade”, no que tange à dignidade, como apresentado no ensaio-prefácio “Na noite
41
enxovalhada”, de Antonio Candido (2004). E como seria analisado um livro como Feliz
ano novo a partir da ideia bakhtiniana de proximidade entre autor e um “presente
inacabado”, repleto de paradoxos, mas ao mesmo tempo representado de modo similar
ao Naturalismo do século XIX, no qual as mulheres e as crianças sempre têm
preferência, pois morrem primeiro? Como lidar com essa indiferente proximidade
semeada na “zona de contato”? Veja alguns excertos dos contos “Passeio noturno
parte I” e “Passeio noturno – parte II”:
(...) mas ao ver os pára-choques salientes do meu carro, o reforço
especial duplo de aço cromado, senti o coração bater apressado de
euforia. Enfiei a chave na ignição, era um motor poderoso que gerava
a sua força em silêncio, escondido no capô aerodinâmico. Saí, como
sempre sem saber para onde ir, tinha que ser uma rua deserta, nesta
cidade que tem mais gente do que moscas. Na avenida Brasil, ali não
podia ser, muito movimento. Cheguei numa rua mal iluminada, cheia
de árvores escuras, o lugar ideal. Homem ou mulher? Realmente não
fazia grande diferença, mas não aparecia ninguém em condições,
comecei a ficar tenso, isso sempre acontecia, eu até gostava, o alívio
era maior. Então eu vi a mulher, podia ser ela, ainda que mulher fosse
menos emocionante, por ser mais fácil. (...) havia árvores na calçada,
de vinte em vinte metros, um interessante problema a exigir uma
grande dose de perícia. Apaguei as luzes do carro e acelerei. (...)
(FONSECA, 1975: 49-50)
Apaguei as luzes do carro e acelerei o carro. Tinha que bater e passar
por cima. Não podia correr o risco de deixá-la viva. Ela sabia muita
coisa a meu respeito, era a única pessoa que havia visto o meu rosto,
entre todas as outras. E conhecia também o meu carro. Mas qual era o
problema? Ninguém havia escapado.
Bati em Ângela com o lado esquerdo do pára-lama, jogando o seu
corpo um pouco adiante, e passei, primeiro com a roda da frente e
senti o som surdo da frágil estrutura do corpo se esmigalhando e
logo atropelei com a roda traseira, um golpe de misericórdia, pois ela
estava liquidada, apenas talvez ainda sentisse um distante resto de
dor e perplexidade.
Quando cheguei em casa minha mulher estava vendo televisão, um
filme colorido, dublado.
Hoje você demorou mais. Estava muito nervoso?, ela disse.
Estava. Mas já passou. Agora vou dormir. Amanhã vou ter um dia
terrível na companhia. (idem: 53)
42
Os fragmentos retirados dos referidos contos apresentam com precisão a
cerimônia que antecede os atropelamentos. O leitor não pode deixar passar despercebida
a escolha do verbo pelo narrador-personagem para indicar que ligará o carro: “Enfiei a
chave na ignição...”. O verbo utilizado possui conotação erótica, especialmente fora da
linguagem padrão, vinculando a performance sexual e a potência do motor de um carro.
Automóvel: símbolo fálico... A indiferença pelo fato de sua vítima ser homem ou
mulher termina quando o “alvo” surge caminhando numa calçada de rua deserta, pois
segundo o personagem ao volante, a emoção provocada ao atropelar uma mulher seria
menor e compensada apenas quando a demora quase frustrasse seu intento. Duas
atitudes permanecem como parte do ritual em ambos os contos e elas são expressas
pelos verbos “acelerar” (o veículo) e “apagar” (os faróis). O “som surdoda estrutura
óssea que se parte sob as rodas é o que o acalma, pois o dia seguinte na “companhia”
não será dos mais agradáveis...
Essa maneira de narrar antecipa a sensação dada pelos atuais jogos de “vídeo
game” (um exemplo seria o Grand Theaft Auto, que permite ao jogador “atropelar”
pedestres, dentre outras infrações), d a denominação escolhida para essa forma de
narração, referindo-se aos jogos de ação em “primeira pessoa”. E isso denota uma
diferença crucial entre o que denominei commodity literária e a literatura ruidosa: a
literatura da mercadoria se presta em primeira instância, mesmo revestida de
evidenciados recursos estéticos, ao entretenimento, enquanto a segunda propõe uma
reflexão constante. Os textos mencionados de Rubem Fonseca inauguram a vertente da
commodity, da mercadoria da crueldade.
Qual seria o outro elemento peculiar à linha literária desenvolvida por Rubem
Fonseca? É bastante evidente a escolha de nomes para personagens citadas por
Zequinha o terceiro integrante do bando e que foram simplesmente eliminadas. Não
43
bastava apenas a repetição do estereótipo relativo ao subalterno, pois a primeira das
personagens mortas pela polícia é conhecida pela alcunha de Bom Crioulo. Sua morte
confirma os requintes da crueldade: foram acionados dezesseis tiros para matá-lo. Devo
lembrar ao leitor que a vítima tem o mesmo nome da personagem criada por Adolfo
Caminha em seu romance sobre um marinheiro negro e homossexual. E o último colega
de “profissão” citado por Zequinha tem, de acordo com ele, a morte mais cruel:
“Tacaram fogo nele. Virou torresmo” (FONSECA, 1975: 10). A agressividade dos
“homens” se relaciona, talvez, com o seu apelido Tripé –, uma metonímia que trata
dos dotes físicos e, a partir daí, das vantagens sexuais que ele materialmente “exibiria”.
Assim, ao eliminar o portador dessa peculiaridade ou ao igualar a violência do
subalterno com a do executivo que possui um Jaguar, tal narrador atua como um mestre
de cerimônia de um RPG (Role playing game), permitindo ao leitor experimentar o
manejo da arma, seja uma escopeta seja o volante do automóvel com motor de oito
cilindros. Entretanto, pouco se modificam os alvos, perpetrando uma naturalização da
violência contra mulheres, pobres, negros, idosos etc.
Quanto mais negro, mais alvo...
que se nomear a violência utilizada pela quase totalidade das narrativas
canônicas da literatura brasileira: atinge-se invariavelmente qualquer alteridade que fuja
do modelo branco, masculino e de, no mínimo, oriundo da classe média. Uma marca de
alteridade que, infelizmente, os setores hegemônicos da sociedade e, por extensão, uma
parcela significativa da crítica literária, insistem em negar é aquela que se refere à
questão do racismo no Brasil: a cor da pele. O subtítulo provocação dessa parte foi
retirado de um verso do poema “brancos”, de Ricardo Aleixo (2001). As vítimas que
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tombam sob as estocadas ou rajadas literárias nas narrativas contemporâneas urbanas
pertencem, não por obra do acaso, ao grupo negro/afrobrasileiro. A estatística da ONU
sobre as vítimas de crimes neste país parece reproduzir-se como num passe de gica
nos números levantados por Regina Dalcastagnè (2005) em relação à representação da
população brasileira no romance contemporâneo. A coincidência permanece em relação
ao perfil do que Dalcastagnè denomina “vítimas preferenciais”: são sempre os
habitantes da periferia, não-brancos com idade entre doze e vinte e cinco anos.
O quadro passa a ganhar mais complexidade. Além da violência racial, regida
pela “linha de cor” (DU BOIS, 1994), atua a violência de classe bastante explorada
pelo texto machadiano e pelo Romance de 30 –; a violência de gênero, que parece ser a
mais recorrente; e a mais velada em relação ao texto literário: a violência baseada na
homofobia. Não foi esquecida também a violência étnica, que suplanta a representação
das culturas nativas e oriundas do período pré-cabralino.
A explosão da rotina das cenas de violência na literatura e me refiro a todas
as formas citadas anteriormente – ocorre a partir do final da década de 1960 e início dos
anos 70, se instalando definitivamente no espaço urbano da ficção. A narrativa cáustica
de Rubem Fonseca (1975) em Feliz ano novo seria apenas a ponta de um iceberg que
passou a navegar pelas águas da literatura brasileira contemporânea. A partir daí,
surgiram autores como Patrícia Melo, Marcelino Freire e Fernando Bonassi, entre
outros. Sobre o impacto causado por tais narrativas, é basilar o ensaio introdutório de
Alfredo Bosi (2002), presente na organização do volume O conto brasileiro
contemporâneo. Ele sentenciava ao final do texto de apresentação da coletânea:
Essa literatura, que respira fundo a poluição existencial do capitalismo
avançado, de que é ambiguamente secreção e contraveneno, segue de
perto modos de pensar e de dizer da crônica grotesca e do novo
jornalismo yankee. Daí os seus aspectos antiliterários que se
querem, até populares, mas que não sobrevivem fora de um sistema
45
de atitudes que sela, hoje, a burguesia culta internacional. (p. 17-18,
grifos do autor)
As dicotomias apresentadas por Bosi texto foi publicado nos anos 70 (século
XX) poderiam ser as pistas necessárias para a fundamentação da não-validade da
violência. O embate entre o dilema do subdesenvolvimento que se contrapunha ao
“capitalismo avançado” foi renomeado de paradoxos do “capitalismo tardio”. A
“crônica grotesca” teria seus antecedentes no conto “Pai contra mãe”, de autoria de
Machado de Assis. Os aspectos “antiliterários” seriam condensados por nada mais, nada
menos que a utilização da violência tanto como tema quanto como forma.
Contudo, um ponto peculiar nas observações de Alfredo Bosi que remonta a
seguinte parte do pensamento de Mihkail Bakhtin (2003: 10-12), qual seja: os “aspectos
antiliterários” se encontram vinculados a um “sistema de atitudes” que, por sua vez, é
regido por “valores éticos e cognitivos” que devem estar subordinados ao “todo da
personagem”, a fim de alcançar “a objetividade estética” (2003: 11). Ainda de acordo
com Bosi, tal sistema seria regido pelo conjunto de normas estabelecido pela “burguesia
culta internacional”. Entretanto, a complexidade desta “comunidade”, atualmente, é
bem mais profunda. Não implica mais, de modo simplista, um grupo mundial” que
utiliza seu “capital cultural” apenas com o intuito de obtenção de lucro financeiro. Esse
grupo possui certas normas estéticas bem similares, pois são irradiadas a partir do
continente europeu e, desde o fim da II Guerra Mundial, também são emitidas dos EUA.
A similaridade termina quando, em seus próprios territórios, cada um desses grupos
elege, a partir das manifestações culturais internas, aquilo que interessaria à idéia de
“cultura” ou “literatura” nacional tendo em vista, contudo, os parâmetros “universais”
dos já mencionados centros irradiadores de cultura.
46
O aspecto levantado aqui, a violência da “linha de cor”, aparenta ser um eco
derivado da tão conhecida “luta de classes”? Parece, no entanto, ser bem mais que isso.
ainda o retorno do desejo de se alcançar certo grau civilizatório, mesmo que tardio,
que satisfaça aos anseios das elites semi-ocidentalizadas do grupo chamado Países em
Desenvolvimento. No caso brasileiro, tem-se o conceito da “síndrome de Nabuco”, que
explica, em parte, o complexo de inferioridade das elites locais. O final do século XIX é
marcado também por idéias que geraram as chamadas “políticas de embranquecimento”
da população.
Dois conceitos representam esse velho novo “sistema de atitudes” no que diz
respeito à narrativa de Fernando Bonassi em Passaporte: o “Atlântico Norte”,
desenvolvido por Sérgio Costa (2006: 17), e a “Euro-América”, formulado por Èdouard
Glissant (2005: 16). A primeira postulação se baseia “na metáfora do Atlântico Norte,
reproduz a imagem de uma sociedade mundial monocêntrica, mas que culmina, em seu
dever ser, com a universalização das conquistas modernas”. a “Euro-América”, de
Glissant, consiste no grupo europeu que, após navegar para as Américas, procurou
manter sua cultura de forma mais intacta possível, ou seja, sem diálogo com as culturas
ameríndias e africanas. Glissant identifica geograficamente esta prática no Quebec,
Canadá, Estados Unidos e parte do Chile e Argentina. A “Euro-América” de Glissant
pode ser identificada em todos os países do antigo “Novo Mundo”, pois em cada um
deles uma elite com padrões de vida bastante similares: vivem em condomínios
fechados e possuem residência fora de seus países de origem, consomem
preferencialmente produtos importados desde itens básicos de alimentação, roupas,
utensílios domésticos, desaguando até nos produtos culturais (artes e entretenimento). A
noção predominante de cultura e arte, principalmente a que se mantém sob o título de
“alta cultura” é européia tanto em suas origens quanto na prática estética, seja na
47
literatura, nas artes plásticas, no teatro ou na música. A “Euro-América” seria, por assim
dizer, a versão do “Atlântico Norte” transplantada para as Américas que não desejaria
por completo a chamada universalização dos direitos humanos e repetiria o lema, criado
por George Orwell em Animal farm (1978), no qual todos seriam iguais, mas alguns
seriam mais iguais que os outros. Especialmente se esses outros pertencessem à camada
não-branca da população, como é apresentado em textos da narrativa de Fernando
Bonassi que tratam desses personagens – negros e índios.
Considerando a problemática em questão, a literatura talvez tenha apresentado
eficácia expressiva, pois na impossibilidade de eliminar fisicamente a alteridade do
mundo real via “políticas do embranquecimento”, decidiu, mesmo que de forma
inconsciente, às vezes, invisibilizá-la ou até destruí-la no campo ficcional. Começa-se a
delinear, então, o que denomino mercadoria da crueldade.
A metamorfose da literatura em mercadoria
Definir esta literatura como mercadoria da crueldade passa obrigatoriamente
por autores que marcaram as letras brasileiras com um “sistema de atitudes” e “valores
éticos e cognitivos” que validaram a representação da alteridade sob a ótica da violência
a partir do século XIX, como já foi ressaltado no início deste capítulo. Faz-se necessário
percorrer brevemente um aspecto importante no que diz respeito à mercancia da
literatura e por consequência da utilização da violência ora como mote, ora como
recurso de captura do leitor, por parte da imprensa europeia e do “romance-folhetim”,
mais especificamente do romance policial. É justamente que surgem os fundamentos
e estratégias daquilo que é denominado “literatura de massa”.
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O papel da mídia jornalística do século XIX é examinado com precisão por
Walter Benjamin (1989) em seu ensaio sobre Charles Baudelaire “Paris do Segundo
Império”. São desvendados nas três seções que compõem o texto “A Boêmia”, “O
Flâneur” e “A Modernidade” – os desenredos que levam autores do universo das “belas-
letras” a se transformarem em escritores da “literatura de massa”. As dificuldades
impostas aos periódicos pelo governo francês a partir de 1830 apenas circulavam
jornais que conseguiam obter assinantes levam a imprensa a buscar alternativas que
possibilitassem o aumento do número de leitores e consequentemente de lucro dos
proprietários. Observe:
Quem não pudesse pagar a elevada quantia de 80 francos pela
assinatura anual ficava na dependência dos cafés, onde, muitas vezes,
grupos de várias pessoas rodeavam um exemplar. Em 1824 havia em
Paris 47 mil assinantes de jornal; em 1836 eram 70 mil, e em 1846,
200 mil. La Presse, o jornal de Girardin, tivera papel decisivo nesse
aumento. Trouxera três importantes inovações: a redução do preço da
assinatura para 40 francos, o anúncio e o romance-folhetim.
(BENJAMIN, 1989: 23)
A transformação provocada pelas modificações aplicadas pelo La Presse foram
definitivas para o processo de metamorfose da literatura em mercadoria. E curiosamente
o trabalho com o folhetim (aliado a outras atividades como a de funcionário público,
advogado, engenheiro e militar) permitia aos seus autores acumular o valor necessário
para publicar em livro, mais tarde, um trabalho mais elaborado esteticamente, além é
claro, de permitir-lhes romper a barreira social da pobreza (o exemplo mais contundente
das letras brasileiras é o de Machado de Assis). Também deve ficar patente que nem
todos eles se arvoraram a mergulhar fundo na seara literária, preferindo segurança
financeira à posteridade no mundo artístico.
Dois estilos de publicação literária se destacaram dentro do que se convencionou
denominar romance-folhetim: as “fisiologias” e o “romance policial”. Os dois são de
49
valia para esse estudo devido a duas características. A primeira delas pertence às
“fisiologias” o ato de observar e tentar definir a cidade e seus habitantes a partir de
alguns traços peculiares; já o segundo pertence ao “romance policial” e concerne à lente
clínica do narrador na busca de “patologias” de suas personagens, “doenças” que podem
levá-las, invariavelmente a cometer crimes. E os autores que mais se destacam quanto
ao segundo tipo de folhetim são Arthur Conan Doyle e Edgar Alan Poe. Ambos fazem a
opção por tratar mais da violência psicológica e do suspense em detrimento da descrição
simples e direta ao modo das atuais páginas policiais dos noticiários.
A análise feita por Walter Benjamin pode ser acrescida de um ensaio de autoria
de Muniz Sodré (1978) que trata da “literatura de massa”. Os dois trabalhos se
aproximam devido ao viés marxista que, no caso de Sodré, trata da composição formal
do texto literário e da influência da imprensa, além das condições de produção material
do mesmo. É interessante observar a divisão por ele identificada a partir da estrutura
folhetinesca, a saber: “o herói”, a “atualidade informativo-jornalística”, as “oposições
míticas” e a “preservação da retórica culta”. O primeiro desses termos possui como
destaque, para o estudo agora empreendido, “a consciência exaltada e solitária” e que
“disputa o exercício de um poder investido das características românticas que
acentuavam toda a ideia de destino e de uma especial rejeição de regras sociais”
(SODRÉ, 1978: 83). Quanto à próxima característica, há a questão da “demonstração de
tese” presente no romance-folhetim, além da divisão dos gêneros “policial, ficção
científica, aventuras, sentimental, horror etc” que demonstra certa busca de
especialização tanto por parte do texto literário quanto em relação ao leitor. A utilização
das “oposições míticas” ocorre, de acordo com Sodré, como instrumento de
mistificação e sedução pela estrutura ideológica” (idem). Coincidentemente, isso é
proporcionado pela presença de “oposições binárias”, típicas também do discurso
50
racista, por exemplo, que “persegue repetitivamente, obsessivamente, uma identidade
do criminoso, no romance policial; do ser humano, na ficção científica, etc” (1978: 84).
Quanto ao quarto item, a “preservação da retórica culta”, Muniz Sodré (1978:
84) busca diferenciar o que denomina “a fase fundadora dos roman populaireda etapa
seguinte, na qual haveria um decréscimo na qualidade dos textos literários publicados
em jornais. Para ele, o período de fundação conseguia escapar aos “esquematismos” e a
única “oposição míticaera representada, basicamente pelos conflitos que afetavam a
subalternidade: “o povo bom e generoso contra os impiedosos (aristocratas, policiais,
jesuítas e outros)”.
A violência adquire como tema e forma nova dimensão a partir da migração do
texto literário para o cinema. O uso da imagem transforma sobremaneira o alcance da
commodity incômoda e constante da violência. A transposição de narrativas do gênero
romance-folhetim para o cinema é feita com certa facilidade no tocante ao esquema da
construção de personagens, especialmente no que diz respeito às películas que irão se
valer da violência: vítimas e seus algozes estavam previamente constituídos. Recorro
novamente a Walter Benjamin (1989) e a Muniz Sodré (1978).
É ainda em “Paris no Segundo Império” que Walter Benjamin trata das
adaptações para o folhetim de narrativas como O último dos moicanos, de James
Fennimore Cooper. O conflito entre as etnias moicana e huron é transferido para as ruas
das cidades europeias e as gangues de marginais de Paris, por exemplo, são registradas
aos moldes de uma violência descontextualizada. Esclareço: o fato de nomear uma
determinada facção de moicana” não significa que ela representaria o “bom-selvagem”
e, em contrapartida, ao indicar outra como “huron” não significa automaticamente que
ela abrigaria o “mau-selvagem” ou simplesmente o “mal”. Esta nova selva, agora
urbana, não era o espaço ideal para re-encenar a ficção criada por Cooper. O recurso das
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“oposições binárias”, identificado por Sodré (1978, 84), passa a ser repetido à exaustão
e o delineio das personagens a partir do que, na contemporaneidade, Regina
Dalcastagnè (2005) denomina “vítimas preferenciais”, tem suas bases nas referidas
“oposições”, que, por sua vez, facilitam a institucionalização da representação da
subalternidade vinculada ao estereótipo.
Sendo assim, a criação das personagens subalternas para o cinema foi
pavimentada pela literatura, sendo que os roteiristas e os diretores seguem à risca tal
procedimento de cunho maniqueísta, ao lidarem com a “sétima arte” apenas como
entretenimento, a receita das “oposições binárias”. E isso não se restringe ao cinema
hollywoodiano, pois as produções de outros países, mesmo diferenciadas do modelo
norte-americano de “câmera, ação!”, acabam por repetir a alta dosagem de violência,
atingindo a representação de corpos excluídos, por motivações mais variadas, do mundo
real. Cabe indagar se a utilização da violência está vinculada ao ponto de vista das
“vítimas preferenciais”, levando, obrigatoriamente, a criação das personagens que
representassem os grupos subalternos. Vale lembrar que a prática da representação
maniqueísta desta categoria implica em despersonificação, ao esvaziamento da
dimensão humana dos seus integrantes.
Mercadoria instituída, despersonificação garantida
A violência reforçou seu caráter de commodity literária ao trazer para as páginas
das narrativas contemporâneas os conflitos demarcados pelas regras de exclusão
similares às do mundo real, “naturalizando” a eliminação das categorias subalternas se
valendo, para tanto, do recurso da despersonificação e, de um narrador que se quer
52
distanciado de tudo que relata enquanto, simultaneamente, chama para si a atenção do
leitor. Ao fazer da violência uma mercadoria de troca no universo literário, este narrador
parece flertar perigosamente com a mesma indiferença propagada no seio da elite e da
classe média brasileira em relação à alteridade subalterna. O leitor, ao que sugere a
aceitação acrítica de tais narrativas, continuará se deleitando com as cento e cinquenta
chibatadas nas costas do “bom crioulo”. Tal cena, recriada pela narrativa
contemporânea traz personagens com diferentes instrumentos de castigo: no lugar da
chibata o revólver 38, a escopeta calibre 12 e o suplício pode continuar mesmo após
o corpo se encontrar ao chão, sem vida. Importante: a cor do corpo que recebe as balas,
e suportava as chicotadas, raramente se modifica...
A literatura da “violência como forma” ou do “Atlântico Norte”, agora
denominada mercadoria da crueldade, a partir de Passaporte, se caracteriza por seis
elementos que passo a enumerar. E devo antecipar que, mesmo pertencendo a esta
categoria, o livro de Fernando Bonassi aponta possíveis caminhos de crítica à visão
estereotipada da alteridade perpetrada pela maioria da produção literária brasileira
canônica.
O primeiro deles se constitui pela presença do narrador onisciente que, no
entanto, não se compromete com as cenas por ele descritas limita-se a isso: descrever
– podendo ser denominado narrador Polaroid. Talvez, diante da existência de máquinas
fotográficas digitais, cada vez mais avançadas tecnologicamente, a metáfora que
nomearia este narrador devesse ser outra. Entretanto, os leitores poderão perceber que
os “relatos de viagem” foram escritos/fotografados/publicados/revelados como se não
houvesse possibilidade de retoque. Por esse motivo a escolha do nome de uma máquina
de fotos reveladas instantaneamente. E acrescento retomando a quarta capa: a narrativa
criada por Bonassi revela os “instantâneos sórdidos da pós-modernidade”. Tal narrador,
53
assim, indicaria a marca enunciativa de um ponto-de-vista externo. Veja-se a seguir,
como exemplo, duas narrativas do livro de Bonassi (2001):
094 paisagem com remédios
Na Baixada do Glicério um prédio inacabado foi conquistado por
sofás velhos, encerados puídos, cachorros e pessoas vira-latas. Muito
perto, o entreposto do Inamps bafeja uma fumaça de remédios
vencidos. Filas e filas de receitas médicas encardidas, empunhadas as
orações. Gosmentos de vergonha das suas sujeiras, os engenheiros
cobrem o Tamanduateí com placas de concreto. Deixarão correr uma
autoestrada moderníssima por cima. Os meninos vão rachar a cabeça
nessas pistas lisinhas. Quem viver verá na TV.
(São Paulo – Brasil – 1993)
098 rodeio
Ezequiel voou parafusado. Quando estava de boca pro céu, as estrelas
e as luzes da arena formaram um telegrama manchado nos seus olhos.
Bateu chapado no chão. Ouvido apitando. Deu até vontade de rir...
Mas não é que o touro desceu com uma pisada tão forte que as
costelas se esmigalharam por cima do coração?! Foi menos que
suspiro e mais que dolorido. Ele ainda levantou o chapéu e batendo a
poeira das calças! Ezequiel, esse insistente... Os braços valeram pra
isso. Mas também pra isso, porque ao cair de novo já foi de cara...
e completamente morto.
(Barretos – Brasil – 1996)
Em “094 paisagem com remédios” e “098 rodeio” é patente a opção por esse
narrador que denomino Polaroid. A proximidade do ato de narrar com os
acontecimentos narrados se faz de modo a privilegiar o “instante” e praticamente
elimina tudo à volta daquele que acompanha a cena sob a ótica desse narrador.
Importante ressaltar que em “094...” há a exploração da ambiguidade na frase
“Gosmentos de vergonha das suas sujeiras, os engenheiros cobrem o Tamanduateí com
placas de concreto”. A vergonha” gosmenta tanto pode se referir às condições de vida
de “cachorros e pessoas vira-latas” quanto ao “higienismo” da engenharia de tráfego
moderna. em “098...”, o narrador reforça a sua posição alguém próximo da cena
54
no entanto, distante da vida, mesmo que ficcional, do sujeito da ação. Esteticamente,
percebe-se o uso de frases curtas e precisas, acompanhadas por doses maciças de
sarcasmo, como por exemplo, na observação da testemunha ocular: “Deu até vontade de
rir...”.
Entretanto, o mini-relato “098 rodeio” é herdeiro direto de uma cena descrita por
outro narrador num livro de contos publicado em 1975: Feliz ano novo, de Rubem
Fonseca. “Mas não é que o touro desceu com uma pisada tão forte que as costelas
esmigalharam por cima do coração?!”, escrita por Fernando Bonassi repete os ossos
triturados não por um animal de rodeio, mas pelos parachoques de um reluzente
automóvel. Enquanto no conto “Passeio noturno parte I” (1989: 62), o executivo de
classe media alta é sádico e relata como narrador-personagem: “Peguei a mulher acima
dos joelhos, bem no meio das duas pernas, um pouco mais sobre a esquerda, um golpe
perfeito, ouvi o barulho do impacto partindo os dois ossões (...)”, no mini-relato de
Bonassi, o sadismo passa a constituir a visão do narrador Polaroid de modo tão
instantâneo quanto se revelava a fotografia” e se condensa nas frases finais quando
afirma sobre a última utilidade dos braços de Ezequiel: levantar o chapéu e bater a
poeira das calças. Conectam-se desse modo dois narradores da mercadoria da crueldade,
sendo a gênese aquele criado por Rubem Fonseca e este moldado por Fernando Bonassi,
que é um dos herdeiros.
É interessante perceber também que este narrador se caracteriza por uma atitude
bastante contemporânea: “o problema de quem narra” se desloca para “o centro da
obra” (Dalcastagnè: p. 15, 2005A). Há que se notar a informação dada logo após a ficha
catalográfica: “A maior parte deste livro foi escrita com bolsa do Kunstlerprogramm do
DAAD Deutscher Akademischer Austauschdienst”. Logo a seguir tem-se a revelação
que alguns dos textos foram publicados pela “primeira vez na coluna ‘Da Rua’, do
55
jornal Folha de São Paulo”. um narrador que passou a dialogar com os relatos de
viajantes a partir do século XV e, de não menor importância, com o eu-lírico criado pelo
poeta Baudelaire em seu livro As flores do mal. Ali, a cidade, o aglomerado urbano é o
objeto presente, incômodo e pulsante em cada poema. por assim dizer, duas
maneiras de se pensar a viagem: a primeira delas se refere ao percurso entre diferentes
lugares do Brasil e do Velho Mundo; já a outra está vinculada à visão instantânea, como
àquela apresentada pelo narrador, de um fragmento de uma megalópole como São Paulo
ou uma cidade com a importância histórica de Berlim para o século XX.
Entretanto, deve-se considerar uma diferença crucial entre os textos de
Baudelaire e Fernando Bonassi. Para o escritor e intelectual francês havia a busca
intencional pela beleza de seu tempo presente, composta não somente por elementos
que, à primeira vista, agradem à visão. O eu-lírico dos poemas dirigia o olhar para
fatores não “iluminados” pelo processo de modernização da cidade de Paris, apontando
assim, diferentes possibilidades para o conceito de “belo”. o narrador presente nos
textos de Bonassi faz opção pelo desencanto, pela representação cruel de um mundo que
se divide em espaços cada vez mais contrastantes, reforçando, quem sabe, a ideia de
impossibilidade de qualquer coisa que possa ser adjetivada como bela.
O segundo componente é a utilização da violência, nas concepções física e
simbólica, visando apenas efeito estético e a catarse, consistindo exatamente no
resultado, para os leitores, de que todas aquelas cenas, terminada a leitura do livro,
permanecerão ali. Esta mercadoria da crueldade também se vale, e se tem o terceiro
item, da repetição dos estereótipos relativos às minorias, valendo-se da zoomorfização e
da coisificação, principalmente; isso reafirma uma marca estética de grande parte da
literatura brasileira que representa a alteridade somente como objeto, completamente
56
destituída de humanidade. Um bom exemplo desses fatores é o mini-relato que se
segue:
005 pró-álcool
(Pra Luah)
Jardinópolis não tinha asfalto. Nem zona aberta de dia. Os restaurantes
serviam prato feito com feijão separado na cumbuca e sorvete vinha
com pedaço de fruta. Primeiro derrubaram as árvores que faziam
cortina com Ribeirão Preto e espetaram os tubos das usinas no lugar.
Depois chegaram as moscas verdes. Desse tamanho, sujando pudins. E
sete igrejas numa praça. Entre os caminhões, largando um rastro de
cana morta pela rodovia. É ali que agora as meninas deram pra cuspir
filhos de três meses, enquanto as marmitas esperam no acostamento.
(Jardinópolis – Brasil – 1997)
A localidade é apresentada desde a primeira frase como uma cidade sem as
benesses da modernização e, portanto, nem tão civilizada e moderna assim, pois além de
não dispor de ruas asfaltadas, não se presta a ter um prostíbulo aberto no período diurno.
Modernidade e civilização representadas por dois ícones díspares, numa colocação nada
sutil por parte do narrador. o contraste da bucólica e talvez saborosa refeição, mas
nada de conforto para o leitor: “tubos das usinas” substituem árvores que constituíam
uma fronteira verde. Rompida a barreira “natural”, o caminho está aberto para a
exploração racionalizada do agronegócio latifundiário. A violência das enormes
“moscas verdes” cuja dimensão é sugerida pelo uso da expressão coloquial “desse
tamanho” contaminando os doces, praticamente desaparece para dar lugar ao verbo
“cuspir” que, por sua vez, substitui a expressão “dar a luz”. Vale ainda registrar a
ambiguidade de “rastro de cana morta pela rodovia” e “meninas deram pra cuspir filhos
de três meses”. Na primeira sentença é possível interpretar que a “morte” da cana é
57
causada pela própria estrada. Na frase seguinte, o verbo “dar” pode ser lido
popularmente como o ato sexual, amplificando ainda mais a violência imposta pela
conclusão da cena. É justamente na última sentença que se tem o verbo “esperar”
aplicado não às meninas ou quaisquer outras pessoas, mas personificando “as
marmitas”.
Desse modo, os elementos que garantem o “conforto” necessário ao leitor
encontram-se vinculados à distância garantida pela voz que narra e à maneira sintética
com que tais cenas são expostas, repetindo mesmo assim, o tratamento dado às minorias
em boa parte da literatura produzida nos períodos do realismo-naturalismo, do
modernismo e da produção contemporânea mais recente.
A quarta peça, que integra este tipo de narrativa, filia-se esteticamente ao
“sistema de atitudes” compreendido na “Euro-América”/ “Atlântico Norte”, e percebe-
se a partir daí a presença de um certo tom de lamento em relação ao fracasso da ideia de
justiça social advinda da expansão das conquistas modernas. Paradoxalmente, contudo,
vários dos fragmentos do livro de Fernando Bonassi trazem uma visão irônica e até
sarcástica sobre as imagens que desfilam diante do olhar Polaroid.
A narrativa se vale de recursos advindos da escrita jornalística para a
constituição de sua característica de mero cinco. Exemplo disso é a forma sucinta de
cada relato em frases curtas e diretas. A eles acrescenta-se ainda a repetição de
características estereotipadas das personagens, o que corrobora com a indicação de uma
pretensa “moral da história”: não haveria para elas, desse modo, outro destino possível.
Sem abandonar o campo da intertextualidade com a mídia impressa, a narrativa atua
como poderoso interlocutor com as páginas policiais de jornais que saem agora, no
Brasil, no formato tablóide.
58
E o sexto integrante deste rol de peculiaridades é a recorrente e quase incessante
busca de referências em todos os mini-relatos sejam literárias ou histórico-político-
econômicas tentando à guisa de uma mini-enciclopédia, abarcar a quantidade imensa
de imagens que desfilaram diante do narrador Polaroid.
4.3 – Incômodos cartões-postais
O livro Passaporte (relatos de viagem), de Fernando Bonassi, é um convite de
embarque em uma jornada para diversos lugares contemporâneos, especialmente, a
metrópoles como São Paulo, Rio de Janeiro, Nova Iorque, Berlim, Praga. A publicação
instiga o leitor a partir de seu formato: uma imitação/citação do documento oficial de
viagem, um passaporte. E não um passaporte qualquer ou “genérico”, mas uma
referência ao documento emitido para os brasileiros que viajam ao exterior. Cores de
capa e gina são similares àquela do passaporte oficial. Contudo, a exceção ocorre no
tocante ao brasão da República. Em seu lugar, na capa, há o desenho de uma lâmina de
barbear. Não será mostrada, ali, a unidade imaginada para aquilo que se autodenomina
nação, apenas recortes feitos à mão, que viajam ao sabor das imagens captadas pelos
olhos do narrador bastante peculiar. O subtítulo, que não aparece na capa do livro,
remete o trabalho de Bonassi ao vasto rol de relatos de viajantes. A paródia é inevitável.
Passaporte é composto por cento e trinta e sete fragmentos cênicos, ao modo de
fotografias, ou como está registrado na quarta capa: “cartões-postais da desilusão”. Os
mini-relatos, como passo a denominá-los a partir deste ponto, além de ocorrerem em
grandes metrópoles no Brasil e fora dele, são “postais” que se sucedem também em
pequenas localidades em que a modernidade estaria “ainda” por chegar de forma plena.
59
Contudo, os “relatos de viagem” colocam em dúvida exatamente isso, reforçando a ideia
de desilusão: a modernidade passa por muitos lugares, mas não se realizará plenamente
em nenhum deles, e no Terceiro Mundo especialmente. A mercadoria da crueldade é
composta também pelo desencanto.
É através desses “relatos de viagem” que o narrador Polaroid fica exposto para o
leitor e a crítica. Um ponto importante a ser considerado é o distanciamento quase
higiênico e a economia dos relatos, evitando o envolvimento daquele que narra com os
acontecimentos à sua volta. Não parece haver dificuldade em descrever uma cena sobre
“cachorros suicidas” (mini-relato 019)
8
ou uma “adaptação” contemporânea do ritual da
crucificação (mini-relato 011). Escolhi o segundo para uma breve análise:
011 crucificação
Quarenta graus que a areia manda. Mar calmo. A música desafinada
das gaivotas. De um lado o horizonte de petroleiros, de outro, as
senhoras de bens catando lixo na floresta com medo de cobra.
Macumbas derretem e grudam nas pedras pichadas. Banhistas na sua,
em torno, no sol. Carros soltam reflexos lentamente. Cinco guardas de
barriga aparecem com três garotos desossados. Perfilados e
bronzeados piscam sem parar, sem camisa. O traficante chega de
Civic, pergunta pelos 30 dinheiros, tiro em cada palma de mão e
vai embora.
(Rio de Janeiro – Brasil – 1996)
O minirrelato prima por valer-se de imagens da crueldade. A violência parece
ser o único argumento que regula o mundo habitado pelos “três garotos desossados”
note-se a presença de figuras de linguagem decisivas em relação à alteridade,
despersonificação através da zoomorfização, pois o adjetivo “desossados” utilizado na
linguagem se refere ao processo de abate de animais em frigoríficos. O neo-bucolismo
8
As páginas do livro não contêm a numeração usual, portanto utilizarei apenas a marcação indicativa de
cada mini-relato.
60
inicial é repleto de paradoxos: o calor enviado pela areia, a calma reinante no mar se
contrapõem ao distúrbio tonal de gaivotas. Antes do desfecho surgem imagens narradas
sob a ótica irônica e sarcástica: a presença de petroleiros” na baía de Guanabara em
oposição ao medo que assalta “senhoras de bens” que recolhem lixo na floresta.
O fragmento é dividido por uma alusão ao poema de Carlos Drummond de
Andrade – “Inocentes do Leblon” – , com a inscrição da sentença “Banhistas na sua, em
torno, no sol”. Esse recurso é a fronteira para a mudança de tom: os “desossados
bronzeados” aguardam sob tensão explícita no nervosismo do piscar de olhos. A frase
final escancara para o leitor o motivo do título do relato: os “crucificados”
contemporâneos são baleados na palma de cada uma das mãos. O traficante no carro
importado e os “guardas de barriga” substituem os antigos soldados do Império romano,
expondo à luz do dia a velha nova ordem imperial.
A linguagem do mini-relato “011” dialoga com a objetividade de uma notícia de
jornal. Completa-se assim o papel do narrador Polaroid, amarrando esteticamente todos
os elementos axiológicos de sua filiação ao “sistema de atitudes” da “Euro-América”.
Não se pode esquecer uma frase que atua fundamentalmente a partir do estereótipo
Macumbas derretem e grudam nas pedras e o deixa dúvidas sobre a axiologia do
fragmento. Esse narrador passa à próxima cena com a mesma tranquilidade dos
banhistas ao sol e do traficante que surge no carro importado para cobrar dívidas. Quase
nada escapa à crueldade sarcástica da voz, nem mesmo a pseudoautoridade policialesca
dos “guardas de barriga”.
A cena descrita no mini-relato “011” se passa no mais conhecido cartão-postal
do Brasil: a cidade do Rio de Janeiro. O quadro ali presente não seria jamais retratado
em alguma propaganda turística ou souvenir. A rapidez e simultaneidade dos
acontecimentos são representadas pela forma sintética do texto. O narrador Polaroid se
61
valerá da concisão própria da linguagem jornalística. As imagens são apresentadas
como informação de um privilegiado correspondente internacional hoje talvez uma
das duas faces do narrador identificadas por Walter Benjamin (1994) um viajante,
como se estivessem sendo enviadas para uma agência estrangeira de notícias. Desse
modo, a nacionalidade, a identidade étnica, o gênero, as preferências políticas desse
narrador se tornam irrelevantes diante da objetividade exigida por seu trabalho: aos
leitores/expectadores desta “notícia” interessam apenas os “fatos”. Estes, por sua vez,
são acompanhados de outras referências sinestésicas como calor e som: “Quarenta graus
que a areia manda. Mar calmo. A música desafinada das gaivotas”.
Esses incômodos cartões-postais transpostos para os mini-relatos se tornam uma
inusitada coleção: neles são escancaradas imagens dos desníveis apresentados por
diferentes localidades seja no Brasil, seja mundo afora. A maneira como cada um é
apresentado ao leitor parece tornar cada vez mais nítida a presença do narrador
Polaroid, tudo é congelado em um momento instantâneo no qual não cabem retoques. O
distanciamento desse narrador pode ser percebido como uma visão quase asséptica, em
relação aos locais e pessoas registrados por ele. Entretanto, a acidez da crítica presente
no texto pode respingar no leitor que se identificar com tal postura. Para uma melhor
análise, foi necessário estudar esses fragmentos por temas, a saber: paradoxos
brasileiros e mundo não tão vasto.
Paradoxos brasileiros
Os minirrelatos deste subtema também dialogam com os outros assuntos. Decidi
começar pelo número 074, em que é descrita uma simples reunião de condomínio, que
62
não por acaso intitula o relato. O texto é narrado a princípio em terceira pessoa, para
provocar a sensação de distanciamento. Quase ao finalizar a cena, no entanto, ocorre
uma modificação abrupta na voz narrativa e surge o registro na primeira pessoa do
singular e a primeira do plural, alternadamente. Revela-se, então, para os leitores, o
ponto-de-vista das personagens a respeito da alteridade: o distanciamento da voz
narrativa é reduzido estrategicamente para provocar o impacto, ao expor o alvo da
exclusão, novamente, as “vítimas preferenciais”.
074 reunião de condomínio
Vinte e uma peruas preocupadas, mais que preparadas prum natal
distante, enrolam as pulseiras nos cachos dos poodles; trezes senhores
de alta estima após darem seus golpes de baú nessas bolsas de valores,
além do síndico de muitas obras e poucos orçamentos, querem saber
por que essas escusas garotas solitárias chegam sem mais nem menos
que um a toda hora. Por que as crianças daquelazinha podem gritar até
tão tarde? Que estranho anda metendo carro nas nossas garagens?
Garoto da pizza fica é na portaria, sem televisão. Qualquer problema a
gente sobe muro e espeta grade!
(São Paulo – Brasil – 1998)
O foco do narrador/viajante se volta para um momento da classe média, a
reunião de condôminos. Este fragmento expõe a vida fútil e insensível que leva uma
parcela da elite brasileira, bem como a latinoamericana em geral. Aqui a cena é narrada
com uma proximidade e intimidade raras vezes tratada na literatura. Pode-se perceber a
destreza do narrador ao jogar com expressões bastante conhecidas, golpes de baú” e
“bolsas de valores”.
A “reunião” pode ser mais uma das breves alegorias sobre os modos de mando
na sociedade brasileira, pois ali também se encontram sintetizados alguns preconceitos:
“Garoto da pizza fica é na portaria, sem televisão. Qualquer problema a gente sobe muro
e espeta grade!” Invariavelmente, o “garoto” que entrega as pizzas nas megalópoles
63
como São Paulo, mora em bairros como Capão Redondo, Cidade Tiradentes, Jardim
Ângela para citar apenas três e todos estes localizados na periferia. E ainda de
acordo com o pensamento dos moradores do condomínio, o “garoto” não teria direito a
lazer ou entretenimento. No mini-relato 074, expressa-se em alto volume a hegemonia
do “sistema de atitudes” que coaduna a “Euro-América” e o “Atlântico Norte”. O
narrador onisciente descreve a partir do estereótipo “peruas preocupadas” e do
recurso da ironia “senhores de alta estima” o desejo de exclusividade no tocante às
benesses da cidadania plena, representada ali pelo direito de ampliar os muros e acima
deles instalar grades pontiagudas. O princípio oculto da “democracia racial” brasileira
consiste na certeza que cada um deve saber o “seu lugar”. O minirrelato em questão
parece ser a síntese disso.
Fernando Bonassi traça seu roteiro de viagem à similaridade de outros autores
que se preocupam com a permanência do “passado presente”. Valendo-se da
intertextualidade e da paródia, o narrador repassa cenas registradas pela história oficial e
as re-escreve de forma crítica. Não possibilidade de se pensar em homenagem aos
“grandes descobridores” e fundadores do que hoje se chama Brasil. Três minirrelatos
atuam na linha da completa ausência de consolo, a “síndrome de Nabuco” talvez
permaneça adormecida, mas pronta para sair do leito e das gavetas ao menor sinal de
incivilidade. Iniciarei com a narrativa que dialoga com uma cena bem familiar aos
leitores de história brasileira:
003 turismo ecológico
Os missionários chegaram e cobriram das selvagens o que lhes dava
vergonha. Depois as fizeram decorar a ave-maria. Então lhes
ensinaram bons modos, a manter a higiene, e lhes arranjaram
empregos nos hotéis da floresta, onde se chega de uísque em punho.
Haveria uma lógica humanitária exemplar no negócio, não fosse o fato
das índias começarem a deitar-se com os hóspedes. Seus maridos,
64
chapados demais, não sentem os cornos. De qualquer maneira, todos
levam o seu. Só mesmo esse Deus civilizador é quem parece ter
perdido outra chance.
(Cuiabá – Brasil – 1995)
O texto se inicia com uma frase que revisita o documento escrito por Pero Vaz
de Caminha, procurando lançar outro olhar sobre a colonização e sua história. O mesmo
trecho da carta fora parodiado por Oswald de Andrade em Pau-Brasil. A inversão de
sentido é repetida aqui e reforçada pelo “novo” episódio protagonizado por missionários
e nativos da terra. O fracasso do passado com seu intento civilizatório se repete na
sentença final. Esta por sua vez, remete à segunda sentença do minirrelato “Depois as
fizeram decorar a ave-maria” talvez buscando evidenciar ainda mais os resultados do
catecismo parcial. Aprendem a rezar e são deslocadas no tempo e espaço: tornam-se
trabalhadoras de um hotel em meio à floresta, local em que elas são parte da atração
“ecológica”. Essa viagem não é provocada pela busca de trabalho, não. Não é um
negócio... e os copos de uísque, empunhados como se fossem armas, anunciam prazeres
e desesperos. A ironia grassa na expressão lógica humanitária”, que poderia ser
traduzida como: tudo continua a funcionar bem, mas apenas em favor dos “brancos”...
Estranha essa neo-literatura de testemunho ocular que, se não extasia leitores,
joga-lhes interrogações ininterruptas sobre sua passividade diante da cena. A releitura
de Bonassi remete ainda ao trabalho de Tzvetan Todorov, A conquista da América.
Nele, Todorov repassa o embate desigual em que as Américas, especialmente sua
parcela hispânica, são renomeadas e tomadas pelos europeus cristãos. E para quem
prefere sempre o humor, a ironia e o sarcasmo, este, dizem, “é o país da piada
pronta”. Adiante, mais uma amostra:
65
015 índios aprendem depressa
Índios não m anticorpos ou cabides. Índios não acreditam que o sol
vai nascer amanhã, necessariamente. Índios têm tesão na lua e
dificuldades pra se matar, porque desconhecem nossa experiência no
assunto. Índios pagam o dobro por uma calça Lee. Índios cozinham
macacos e jogam a pele fora. Índios ficam fascinados com
embalagens. Índios fazem cachaça de qualquer coisa. Índios fazem de
tudo na frente uns dos outros e na hora que têm vontade... mas os
índios aprendem depressa e, se antes davam suas filhas de presente,
agora começam a cobrar por isso.
(Cáceres – Brasil – 1987)
Esse minirrelato, de forma incisiva, aponta novamente na direção do passado
recente do Brasil. A narrativa é composta de sentenças curtas que, ao serem
vislumbradas em seu conjunto, remetem à imagem de uma coletânea de lugares-comuns
sobre a população descendente dos povos pré-cabralinos. Todas as frases dariam ao
leitor a possibilidade de compreendê-las como a expressão de verdades incontestáveis,
caso não houvesse a intervenção do narrador. Ele se vale do recurso da ironia ao
comparar as pretensas “dificuldades pra se matar” dos “índios” com a experiência da
sociedade ocidental sobre o tema. É também nesse ponto que a voz narrativa traz à cena,
alusivamente, Eros e natos. Essa interferência quebra a atmosfera de certeza sobre a
estranheza provocada pela falta de civilidade daqueles chamados de “índios”, um termo
que silencia a pluralidade desses povos. Ao leitor ingênuo restaria não considerar a frase
final. Contudo, a um narrador diferenciado como esse, sobram armadilhas a serem
utilizadas para capturar tal leitor e lançá-lo num desfecho sem consolo.
Sobressai-se no fragmento em questão, mais uma vez, o tom de lamento em
relação ao fracasso do processo civilizatório no Brasil. O mini-relato 015 reforça a ideia
expressa naquele de número 03 “Só mesmo esse Deus civilizador é quem parece ter
perdido outra chance”. A crítica à colonização ressoa e resvala no excludente
66
procedimento que insiste em anular as alteridades ou destruí-las, em sua sanha
contemporânea.
Ainda na mesma linha crítica via ironia e sarcasmo, o narrador volta sua lente
sobre o fascínio provocado pelos produtos oferecidos aos ditos “selvagens” pelo mundo
civilizador – a calça jeans de marca norteamericana e as embalagens que encantam mais
que as mercadorias ali contidas. Barbárie econômica é fazer desembolsar o “dobro” por
algum artigo de consumo. E o fazemos sem a menor hesitação diante de ingressos de
shows, eventos esportivos, peças teatrais, como se cada “acontecimento” desses fosse
realmente indispensável às nossas vidas. Nossos reinos por uma “calça Lee”? Ninguém
mais se rebaixa por um “prato de lentilhas”? As personagens, bem como a maioria de
nós na vida real, têm seus desejos reificados. Assim, a despersonificação se torna ainda
mais eficaz.
O fragmento “076 êxodo rural” transporta o leitor para outro paradoxo
apresentado pelo Brasil. Este fato, em especial, tem sido apontado como uma das causas
do “inchaço” dos grandes centros metropolitanos de todo planeta: a fuga das populações
do campo para a cidade. E aqui, não parece ser diferente de outros países da América
Latina.
076 êxodo rural
É uma cidadezinha. O comércio funciona na casa das pessoas. Por que
abrir loja? Se troca arroz por porco-do-mato, macaco por camisa, uma
família de rede por uma canoa de casca... O médico que não entender
um pouco dessas ervas que crescem por nem precisa parar.
Defender criança de enxame de marimbondos é o máximo de ação que
os PMs podem encontrar. A gente tem dois. Em turnos de 12 horas.
Sábado e domingo, também. Eles não se importam. Moram na rua de
trás. É uma cidadezinha. “Zinha” mesmo... tanto que na primeira
chance, por pior que seja, a turma se manda.
(Sumidouro – Brasil – 1997)
67
Esse minirrelato vale-se da ironia ao utilizar o diminutivo “cidadezinha” para
adjetivar o pequeno aglomerado urbano. As relações econômicas são erigidas no
sistema de escambo dos mais diferentes “produtos” (se é que podemos chamá-los
assim). A medicina por aquelas bandas, talvez, ainda não seria dominada pelos grandes
laboratórios transnacionais e, o mais importante a ser destacado no enredo: violência se
resume a um “enxame de marimbondos” ameaçando crianças. A ironia é utilizada como
crítica à visão idílica do ambiente rural e, ao mesmo tempo, parece conter lá nas
entranhas, uma ponta de inveja (também irônica?) pela impossibilidade desse modo de
vida não grassar nas metrópoles. O efeito irônico se torna mais ácido ao final, devido ao
tom de desesperança que não suporta uma localidade com a força policial composta por
dois indivíduos apenas em resumo, a inexistência do stress provocado pela constante
presença da violência tão comum aos grandes centros urbanos e isso é o suficiente
para fazer com que “a turma” abandone o local na “primeira chance... por pior que
seja”. Não bastasse o conjunto de motivos apresentados pelo narrador, que empresta sua
voz a um suposto morador da “cidadezinha” lembre-se que ele não quer se
comprometer com tomadas de posição. O minirrelato apresenta outra ironia: o nome do
local descrito é ali representado pelo substantivo “sumidouro”.
A partir deste vocábulo pode ser feita a conexão com os outros minirrelatos que
tratam da viagem desse narrador por outros países. O significado de sumidouro remete a
um local “escondido”, “oculto”, “distante” e, ainda, a “mictório”, “mijadeiro”,
“mijadouro”, “urinol” e “penico”. Cabe ao leitor crítico especular algumas razões para
tal escolha por parte do narrador. A “cidadezinha” não se encaixa no modelo desejado
pela civilização ocidental: não comércio, não a medicina e seu arsenal de
remédios fomentados pela indústria farmacêutica, não a onipresente permanência da
violência urbana. Esse lugar descrito em “076” está excluído tanto das benesses –
68
capitalismo avançado e sua cidadania volátil, equipamentos eletrônicos dos mais
diversos quanto das mazelas no caso do fragmento, o destaque fica por conta da
ausência da violência mesmo na presença de “vítimas preferenciais”. Passo ao
próximo momento, que tratará de um mundo não mais tão vasto.
Mundo não tão vasto
Fernando Bonassi recria por meio de seu narrador um novo tipo de turista,
aquele que observa não os monumentos e sim os seres que habitam, comumente,
desapercebidos entre uma ponte famosa, ora na “cidade luz”, ora numa Berlim sem
“muro”. Os que buscam apenas atrações e paisagens deixam de conhecer, ou pelo
menos ouvir o relato, uma história do garoto que grita tourist shit(turista de merda!
tradução minha), enquanto o desconhecido se prepara para jantar e depois fazer sexo
com “a senhoria” no andar superior da moradia barata.
9
Desumano relacionamento? Sob
o olhar narrativo apenas mais um acontecimento da ordem do humano. À medida que a
viagem se desenrola, o mundo parece menos vasto porque mais miserável. Não somente
a miséria provocada pela escassez e/ou má distribuição dos recursos financeiros, a
miséria tão peculiar à humanidade.
A viagem do narrador Polaroid, tanto entre cidades diversas como dentro de
uma delas em particular, vem revelar ao leitor outra forma de desencanto com a
humanidade. Não parece haver consolo nem sob o ar cult de uma Europa (agora, em
termos, unificada comercialmente) e muito menos sob os céus do Rio de Janeiro ou de
São Paulo, que com suas promessas de progresso e liderança eterna, na busca por uma
9
Mini-relato “116 um amor na eslováquia”: In BONASSI, 2001.
69
pujança financeira, crescem num ritmo desenfreado. A representação da metrópole ao
final do século XIX não parece se diferenciar muito daquela que ocorreu no período
seguinte e, muito menos, deste início de século XXI.
O narrador desta peculiar “literatura de viagem” se vale de um distanciamento
tão estratégico que não se podem ouvir as falas das figuras retratadas e sim arremedos
de suas vozes, audíveis apenas sob a forma de murmúrios. Deste modo, tem-se mais
uma característica que permite aproximar este narrador daquele tão caro ao Naturalismo
da literatura brasileira. Similarmente às personagens daquele período, em Passaporte,
elas parecem não possuir o poder necessário para a emissão de seu próprio discurso, que
lhes permitiria avaliar e confrontar, criticamente, o mundo que as cerca. Diferentemente
das personagens criadas por autores como Paulo Lins e Ferréz, elas não se inscrevem no
mundo, são escritas nele, mediante a curtíssima cena capturada em cada um dos mini-
relatos. Para tanto, se seguirão à análise de fragmentos que explorem esse aspecto de um
mundo não mais tão vasto, as características dessa mercadoria da crueldade
espelhadas/espalhadas pelo continente europeu.
Escolho o texto intitulado “086 crônica do dia 17/8/98”, que reproduzo e passo a
analisar em seguida:
086 crônica do dia 17/8/98
(com o poema/aviso “Fuga da Morte”, de Paul Celan, na cabeça)
Hoje o Die Republicaner colocou um cartaz nessa rua cheia de árvores
que aguarda para os próximos dias a abertura de um Kindergarten:
“Estrangeiros Criminosos, Fora!”. Mais uma vez não pude evitar os
maus pensamentos dessa Alemanha que ainda chora leites
derramados. Não quero ver o começo de alguma coisa. Seria absurdo.
muitos sinais de que nada será como antes. Bombas explodem em
toda parte, menos aqui. Não posso pensar que, como no poema, a
figura diabólica vai se construindo lentamente, uma música terrível.
Leite negro na madrugada, te cuspo horrorizado...
(Berlim Ocidental – Alemanha – 1998)
70
A escolha desse minirrelato em particular se deve às condições, infelizmente,
ainda imutáveis quando se trata da convivência com o Outro que habita, seja temporária
ou definitivamente, os mais diversos países da atual União Europeia. Parafraseando
Paulo Lins, “o negócio aqui” tem que ser a literatura. Mas, o que analisar se for
desprezada a memória?
A literatura de viagem existe graças a esse esforço, quase ao modo de Sísifo, da
recordação, em que o topo dos acontecimentos sempre escapa, restando fragmentos e
imagens fugidias. E o diferencial em “086” é a postura de aproximação/identificação do
narrador, um raro momento, com o Outro. Ele se reconhece como passível de se tornar
mais um alvo, criando uma espécie de “leitura” em primeira pessoa, indicada na forma
verbal. A sutileza do distanciamento lhe desperta o horror, ao sinal do menor perigo que
pudesse atingi-lo. A sombra do anti-semitismo é trazida à tona e a etnia judaica passa a
representar todos os estrangeiros.
Vale alertar o leitor: a faixa que conclama os intolerantes a se unirem contra esse
Outro estrangeiro é patrocinada por um veículo de mídia. O horror poderia ser mais
explicitado por parte da voz narrativa se houvesse uma “tradução” do termo
Kindergarten (jardim de infância, crecheem livre tradução). A sombra pode ser ainda
simbolizada pela descrição física da rua “cheia de árvores” –, o que traria maior
dramaticidade à presença do cartaz quando fosse notado ao final da tarde, diante da
penumbra que anuncia a noite. O incrédulo narrador se vale do poema (ANEXO B) de
Paul Celan e repete a metáfora do diabo para explicar o intragável e absurdo cartaz. E a
memória ativada lançará sobre o narrador e seus possíveis leitores um vaticínio: todo
aquele horror rememorado é somente obra do humano. Mesmo que ao final, o
“narrador-personagem” desse mini-relato, recuse o “leite negro da madrugada”, retirado
71
do primeiro verso do poema de Paul Celan. Em tempo: a sequência do verso é “nós o
bebemos de noite”. Essa terceira pessoa do plural remete ao descaso advindo da
omissão e do silêncio diante de tanto horror. O narrador de Bonassi cuspiu o leite.
Contudo, uma interpretação mais consistente de “086” por parte do leitor
comum fica prejudicada sem o conhecimento do poema de Paul Celan. Este minirrelato
se torna um dos mais tocantes e consistentes do livro de Fernando Bonassi. É nele que,
especialmente, vem à tona uma voz narrativa que procura, mesmo timidamente, dialogar
e/ou interferir de forma mais concreta no mundo que o cerca. O narrador de “086” alerta
a todos os viajantes, seja o “turista” comum ou àquele em viagem de estudo ou
negócios, sobre o perigo do reaparecimento das práticas de extrema-direita. O mais
assombroso é que a “vítima preferencial” anunciada pelo cartaz, muitas vezes, sai de
seu país de origem em busca de melhores condições de vida, não importa se movida por
problemas de cunho estritamente econômicos ou políticos. Talvez, mais assustador que
a ousadia do próprio sinistro “anúncio”, seja aquela terceira pessoa do plural, composta
por pessoas comuns e do “leitor comum” que, em silêncio, sorvem em silenciosos goles
o maldito leite...
A viagem à Europa, especialmente à região em que se inicia o confronto da II
Grande Guerra, não passará em brancas nuvens no tocante à memória do conflito. Para
tanto, veja o próximo minirrelato:
010 vésperas
Em Miedzyrzecz, no dia 30 de setembro de 1939, Kryziztov sai de
casa pra comprar pão, mas leva mesmo é merengue, porque está com
uma larica das bravas. Karina lava e estende a colcha de florzinha,
como faz todo trimestre. Tadeusz, que fuma dois cigarros por dia,
resolve enrolar quatro. Andrej pratica piano na casa da senhora
Grajew. O velho Cytrynowicz sangra dois porcos e manda Roney
comprar sal. Irina troca a folga com Maciej, que adia sua viagem...
72
mas nada disso adianta, porque daqui a pouco a História vai passar por
cima de todo mundo.
(Miedzyrzecz – Polônia – 1998)
O destaque nesse fragmento é pensar a II Guerra como alegoria máxima de todos
os eventos em que a violência, seja da História ou mesmo aquela provocada pelo
chamado “crime organizado”, muda para sempre a trajetória das pessoas, ora por
indiferença sem atentar às suas peculiaridades ora por motivação intolerante, que
atinge “vítimas preferenciais” (sua identificação pode variar de local para local,
mantendo sempre na “lista” mulheres, crianças, jovens e idosos, além daqueles grupos
notadamente desfavorecidos economicamente).
A voz narrativa é emitida na contemporaneidade, mas evoca o que Paul Ricoeur
(2007) denomina “passado presente”. A cidade polonesa favorece a recordação do
trauma. Os fatos cotidianos da vida de pessoas desconhecidas se tornaram
extremamente importantes à narrativa, contudo simultaneamente voláteis. O sarcasmo
e/ou a indiferença da voz do narrador são despejados sobre as personagens à guisa da
violência histórica. O paradoxal distanciamento de uma testemunha não ocular, mas
que, pela via da ficção, simula um “conhecimento” e uma “intimidade” com o fato
histórico de décadas atrás. A voz narrativa traz ao leitor a sensação de ter conhecido de
perto cada uma daquelas personagens, no exato momento anterior ao turbilhão que lhes
atravessaria o caminho. Onisciência e onipresença narrativas? Texto contemporâneo e
técnica narrativa, em diálogo, remontando o século XIX, podem ser algumas pistas para
tentar delinear outra característica desse viajante e acrescentá-la à visão ácida e talvez
até cínica.
Esse final relembra a crônica de Paulo Mendes Campos (1979) denominada “Os
diferentes estilos”, em que nomeia o “estilo Nelson Rodrigues”: “usava gravata de
73
bolinhas azuis e morreu”
10
. As falas das personagens são confundidas com seus atos,
pois não há espaço suficiente na narrativa para que se possa ouvi-las. O narrador apenas
enfileira cada uma das ações de suas personagens, frágeis como moscas, a serem
varridas da página. A frase é seca e curta, como se a narrativa quisesse fazer o leitor
recordar, e na construção dos minirrelatos, fazer-se crer que as cenas narradas foram
recortadas uma a uma, por uma lâmina de barbear, e logo depois foram coladas numa
sequência enumerada que, no entanto, o deve trazer em si nenhum sentido de
ordenação.
O tema do conflito da II Guerra será retomado em outros minirrelatos, expondo
personagens e seus murmúrios de memórias que insistem em lhes marcar o presente.
Contudo, um ponto de contato entre a Europa contemporânea, pós-queda do Muro,
com outros locais do planeta: a despersonificação/desumanização provocada pela
presença das drogas e todo seu aparato comercial e de violência. Quando se leva tal
elemento em consideração, o mundo deixa de ser tão vasto e passa a mergulhar numa
indigesta similaridade.
Relatos de autodestruição e auto-flagelo
A violência capitaneada pelas drogas é vista normalmente na mídia como aquela
em que se arma e despeja saraivada de balas sobre adversários, polícia e “cidadãos de
bem”. Contudo, existem aspectos que são sistematicamente ignorados. Provavelmente
porque não atrairiam a atenção do público que, avidamente, consome notícias sobre o
mundo do crime e das desgraças alheias. Ao contrário do jornal barato de grande
10
CAMPOS, Paulo Mendes. Os diferentes estilos. In Para gostar de ler. São Paulo: Ática, 1979. v. 4. p.
39-42
74
circulação, o impacto dos minirrelatos não será fruto de jargões sensacionalistas.
Embora o narrador aproveite o estilo objetivo de sentenças simples e curtas, muito
utilizadas em tais jornais, ele não se vale de expressões de baixo-calão. certo tom
minimalista na forma dos textos, talvez almejando o recurso poético de alcançar o
máximo utilizando-se o mínimo de frases e palavras possíveis, sem, no entanto deixar
de ser narrativa. Os minirrelatos “013 encomenda”, “039 comunidade europeia”, “042
os cobradores” e “071 os músicos” certamente divergem da linguagem jornalística
usual, mas todos captam algo essencial que escapa aos diários e matutinos: uma
diversidade que se assemelha em descrédito e desgraça.
O primeiro desses relatos de viagem apresenta a personagem Rashid, um
paquistanês que se envolve com o tráfico internacional em troca de “três mil dólares” e
alguns sonhos de consumo. O texto é narrado em terceira pessoa, como se fosse uma
reportagem. As primeiras sentenças são exemplos disso: “Rashid trouxe do Paquistão
tudo que mandaram, em 20 pequenas bolsas, dentro do estômago. Nem quer lembrar o
que foi engolir”. O que poderia ter se transformado em suicídio traz um desfecho
inusitado. O tom de reportagem, ao narrar um fato ocorrido, é deixado de lado ao final
do texto e o narrador se faz presente, assim como o tempo dos verbos, diante da cena
constrangedora de Rashid: “... botar toda a encomenda pra fora, o que não está sendo
nada fácil”. O humor sarcástico toma a cena e apresenta ao leitor o auto-flagelo da
personagem do Terceiro Mundo, na busca da promessa de sucesso financeiro. A
violência se fez presente no início do texto Rashid transporta a encomenda que foi
“engolida”, não sem algum sacrifício e a mesma retorna ao final, enquanto a narrativa
opta por provocar o riso num leitor espantado ante o inusitado desfecho: Londres sem
nenhum glamour.
75
Em “039 comunidade europeia”, o narrador-personagem viaja acompanhado por
uma personagem de nome Stella e que evita comentar sobre a cena dantesca exposta na
autoestrada: “... pode-se ver os garotos chapados nos barrancos. muita gente, numa
mistura de campo de extermínio com jardim hippie”. A descrição/definição feita pelo
narrador faz alusão a outros locais de morte e com a visão psicodélica – “jardim hippie
– do movimento de contracultura dos anos 60. O que se apresenta é um quadro misto de
terror e êxtase, sendo que o segundo é extremamente mais momentâneo e fugaz que o
primeiro. A droga do momento, ali, não é mais uma mercadoria apenas de passagem
pelo território de Portugal, pois agora ela se tornou objeto de consumo. A palavra
“integração” que representa a perspectiva político-econômica contrasta com o
esfacelamento dos usuários de heroína e de suas famílias. uma nova ética
percorrendo aquela estrada: roubar às mães dos conhecidos daquele trajeto não leva
ninguém à prisão, já que isso não os levará ao paraíso...
Em “042 os cobradores”, o leitor é apresentado a dois empreendedores da velha
nova ordem mundial que agora assola a cidade natal de Kafka. Hoje, Praga é a capital
da República Checa, um dos países resultantes da fragmentação pós-perestroika. Cyrilla
e Václava conhecidos popularmente como os “Cowboys de Radosoviká”, possuem
uma atividade perigosa e lucrativa de acordo com o narrador: são cobradores que
operam a favor do comércio de haxixe. Método de cobrança: violência. A ironia está
estampada em seus uniformes de cowboys “camisetas do Che e botas mexicanas” o
que sugere um cáustico rebaixamento de Che e Pancho Villa para o rol dos criminosos
comuns. E todo o progresso das personagens em sua empreitada é fruto do esforço de
um grupo pertencente a uma ex-república soviética e que é nomeado como a “turma
do Casaquistão” que, por sua vez, surge como uma referência geográfica inesperada.
76
Tráfico regional entre os territórios sob a influência da antiga “Cortina de Ferro”? Uma
irmandade sórdida e sangrenta.
Por fim, a Berlim Ocidental é retratada pela “linha 7 do metrô” e duas
personagens que se valem da autodestruição para sobreviverem. No minirrelato “071 os
músicos”, o autor revela que nem todos os transeuntes são indiferentes à desgraça
alheia. Francisca e Reihardt são corpos em decomposição, ao modo daquelas
personagens apresentadas em O rei de Havana (2001), de Pedro Juan Gutiérrez
11
. Seus
corpos se desfazem a olhos vistos devido ao consumo de heroína – lembra-se da
personagem Rashid, no texto “013 encomenda”? que lhes modificou a tonalidade da
pele amarelo aveludado” e deixou-lhes somente “meia dúzia de dentes úteis por
cabeça”. Os berlinenses generosos não resistem aos primeiros versos da canção
(ANEXO A) I’ll Be Your Mirror (Eu serei o seu espelho) de Lou Reed (1998) entoada
por eles: I’ll be your mirror/I’ll be your mirror/Reflect what you are/Reflect what you
are” (Eu serei seu espelho/Eu serei seu espelho/Reflete o que você é/Reflete o que vo
é – tradução minha)
12
. Muito provavelmente, é quase certo que os passageiros da linha 7
não conheçam as personagens de Pedro Juan Gutiérrez, mas apenas dois versos
entoados por Francisca e Reihardt poderiam ser mais que suficientes. Contudo, da
mesma forma que ocorreu com o minirrelato “086”, o desconhecimento do intertexto
por parte dos leitores nem todos teriam acesso à letra da música de Lou Reed
modifica o impacto dessa narrativa. O tema da composição está vinculado a uma relação
amorosa, em que um dos parceiros se recusa a perceber” o outro. O que provocaria o
impacto nos passantes além dos versos do refrão?
11
Em O rei de Havana, Guitiérrez cria personagens que vão sendo apresentadas em um franco processo
de decomposição tanto moral quanto física. O caráter das personagens, bem como seus corpos, vai se
desfazendo à medida que sua trajetória se desenrola na narrativa. Tudo é exposto de maneira tão direta
que o leitor acaba por perder a noção do que está se deteriorando mais rápido: possibilidade de formação
identitária e/ou cidadã ou os corpos.
12
REED, Lou. Perfect Night – Live in London. Reprise/WEA, 1998. CD audio.
77
Três versos assolariam a tranquilidade dos “passageiros da linha 7”: When you
think that the night has seen your eyes/That inside you’re twisted and unkind/ Let me
stand to show that you are blind (“Quando você pensa que a noite tenha visto seus
olhos/ E que por dentro você está confuso e indiferente/ Deixe-me ficar aqui e mostrar-
lhe que você está cego” tradução minha). A partir deles, torna-se possível entender o
pânico dos passantes que, assaltados pela própria insensibilidade e indiferença, decidam
deixar qualquer contribuição aos músicos. Todos os dias, a partir daquela canção,
Francisca e Reihardt retornam para casa sem problemas para manter sua subsistência:
quase sempre teriam algum dinheiro.
A crueldade da mercadoria
O que torna tão cruel a violência que percorre cada recanto de cenas rápidas
trazidas por estas micro-narrativas? Alguns elementos devem ser retomados para uma
recolha de dados levantados até essa etapa da análise das obras, detendo-me, no caso,
em Passaporte. A presença de uma voz narrativa onisciente parece ser a neo-expressão
de um tom realista-naturalista de certa literatura produzida no Brasil do século XIX e
que ecoou pelo século XX afora: a impossibilidade de retoque nas cenas/imagens
narradas/fotografadas sela tanto a representação quanto o destino das personagens. No
dizer de Regina Dalcastagnè (2005A: 15) ao trazer “o problema de quem narra” para os
holofotes que iluminam a obra, o enunciado recai para as sombras de um segundo plano
no cenário exposto ao leitor. Esse narrador Polaroid e seus “instantâneos sórdidos”
transformam o enunciado em cena acabada, selando a opinião dos receptores dos textos
(ou seriam também fotos escritas, descritas de forma sucinta?).
78
Os próximos fatores que dinamizam assustadoramente a crueldade da
mercadoria são respectivamente a utilização da violência visando apenas efeito estético,
pois o enunciado se torna “cena” que permanecerá segura, ali no livro, bem como a
violência relativa ao narrado, assim que concluída a leitura. Outro elemento é a reedição
dos estereótipos no tocante às minorias, que por sua vez, se desdobra nas figuras de
linguagem da zoomorfização e da coisificação. A sequência parece estar quase
completa, pois aos olhos dos leitores toda aquela variedade de violência não parece
mesmo atingir alguém que seja humano.
O quarto constituinte desse rol é o tom de desencanto acompanhado de ironia e
pessimismo, por parte do narrador Polaroid no que diz respeito à modernidade e suas
conquistas. No caso de muitos dos minirrelatos, o que permanece é a ideia de fracasso
de um modelo civilizatório. Vale contudo realçar um paradoxo exposto naqueles
quadros, seja em São Paulo, no mais longínquo ponto urbano brasileiro ou numa estação
do metrô em Berlim: tal fracasso, ao contrário do que relata, por exemplo, Joaquim
Nabuco em Minha formação (1981), não se concentra mais apenas no Novo-Mundo ou
na África.
o próximo fator de composição dos minirrelatos é advindo da produção do
texto jornalístico: o modo sucinto e seco de narração, buscando uma objetividade que
deixe de fora qualquer marca de impressão da individualidade. Numa palavra: opinião.
E a opinião do narrador Polaroid tenta não de maneira discreta corroborar com uma
“moral da história”, valendo-se do reforço da caracterização estereotipada das
personagens, que, por sua vez, são tão breves quanto à velocidade de narração que
limita o espaço físico do texto dos minirrelatos. Isso parece atender à máxima da
urgência jornalística: as manchetes necessitam de chegar rapidamente aos leitores... O
79
intertexto com os jornais diários, em formato tablóide, se apresenta também
inevitavelmente nessa quinta característica.
Para concluir a lista de fatores que compõem a mercadoria da crueldade,
identifico o uso recorrente da alusão na maioria dos mini-relatos. Esse fator, em sua
busca frenética por intertextos no campo literário ou histórico-político-econômico, tenta
registrar num estranho mini-atlas as mais diversas cenas, formando um panorama que
tende a equalizar as diferenças pela via da violência, uma internacionalização funérea,
sem esperanças de qualquer modificação. O destino das personagens fica, portanto,
definido, torna-se mais cela de presídio do que uma fotografia. Tudo lacrado no
calabouço do estereótipo, a mais eficiente masmorra quando se trata de representação da
alteridade.
Devo ainda tratar de um recurso utilizado pelo narrador Polaroid que, quase
desapercebidamente, joga sobre o leitor um véu, uma fina rede dissimuladora: os
números que “classificam” cada mini-relato. o obstante a pseudo-ordenação por eles
impingida à narrativa percebe-se, ao se observar mais detidamente, que essa numeração
amplia a indiferença no tocante ao destino das personagens. Números são frios,
inumanos e incapazes de decodificar a desesperança no grito do garoto deficiente que
brada tourist shit! (Turista de merda!), enquanto sua mãe oferece algum calor feminino
e um prato de macarrão ao estrangeiro que ocupa o segundo pavimento da moradia,
temporariamente. “Ninguém, ninguém é cidadão”... todos são mais ou menos “coisas”
que compram e, quando não o podem, são vendidos por valores ínfimos, como o
carinho momentâneo do “turista”. Os exemplos pululam em cada mini-relato e a
crueldade dessa numerologia reificadora grassa rumo a uma eternidade semelhante
àquela imposta a Sísifo e a Prometeu. Ninguém ali, no entanto, roubou o fogo aos
80
deuses... Tais números colocam sempre diante do leitor cenas indigestas, a crueza quase
primal se não fosse a sofisticada commodity da violência.
Classificar o texto de Fernando Bonassi como mercadoria da crueldade não foi
um ato baseado numa observação fortuita da violência presente nos textos de
Passaporte. A utilização da crueldade como elemento constituinte da estética literária
não é novidade no mundo das letras. que se notar, entretanto, que em cada geração
surgem autores que conseguem ampliar a perspectiva sob determinados recursos.
Diferentemente do livro de um Aluísio Azevedo, a crueldade não surge naturalizada
pelo narrador, e aqui ele se aproxima de Paulo Lins e Ferréz, ao lançar sobre o leitor
cenas como aquelas que foram analisadas nesse capítulo. A crueldade escolhida por
Bonassi para costurar os retalhos de narrativa é aquela apontada por Ângela Maria Dias
(2004: 18) a partir de Clement Rosset, que identifica a palavra em suas origens: cruor,
crudelis (cruel) e por fim, crudus que remete àquilo que não é digerido, indica o que é
indigesto, o que é cru.
De acordo com a pesquisadora, lida-se com dois princípios de crueldade na
representação literária contemporânea. O primeiro deles refere-se à “violência sádica,
agressividade, mais ou menos sutil, embutida nas imagens perversas do consumo, da
cobiça e da promiscuidade pornográfica que nos rodeiam” (DIAS, 2004: 18). O
momento seguinte desse princípio é relativo à realidade posta como obstáculo à
representação artística, porque o que se denomina “crueldade do real” se faz presente no
aspecto “único, e consequentemente irremediável e inapelável desta realidade”. Esse
segundo ponto traz duas implicações: impossibilidade de se atenuar ou de se afastar da
realidade, o que a torna inevitável; e não menos problemática apresenta-se para o
artista/escritor a “insuficiência do real”. Sendo assim, escrever colado à realidade em
81
que foram baseadas personagens, enredo e espaço narrativo tornaria essa literatura
menos “literária”, por assim dizer.
O texto de Bonassi joga perigosamente com essa proximidade, de modo a
mostrar cenas cada vez mais indigestas não pela crueza apresentada sob a forma de
corpos perfurados, estupros e martírios. Tais cenas também se fazem presentes, porém
são colocadas lado a lado com relatos em que a violência não se atira de chofre sobre o
leitor, mas o envolve num abraço frio de cobertor curto demais para baixas temperaturas
a metáfora aqui é a ausência de calor do mármore do inferno, de acordo com os
preceitos islâmicos. A crueldade se coloca a partir do distanciamento do narrador não
solidário, a não ser quando trata de tentar preservar a si mesmo vide mini-relato “086
crônica do dia 17/08/98”. Ela se ampliará ainda mais quando se busca a aproximação de
todos mini-relatos referentes às viagens pelo Brasil. E para tanto devo recorrer
novamente ao texto de Ângela Maria Dias, quando ela destaca e analisa a fissura social
brasileira e a sua representação seja na literatura, no teatro ou no cinema:
A própria constituição estruturalmente desigual da sociedade
brasileira, atualizada através da História como uma das mais injustas
do planeta, agrava e aprofunda o mútuo estranhamento dos brasileiros,
em seu convívio. (...) Cada linguagem à sua maneira mais ou menos
crítica ou contaminada pelo clima sádico dominante busca
dramatizar nossos convívios partidos” entre miséria, indiferença,
ressentimento. Mas o que se depreende como extraordinária constante,
na maioria dos enredos à disposição, é justamente o corte, o abismo
das distâncias sem resgate, o mútuo estranhamento entre seres e
mundos forçados a confrontos. (2004: 21)
O “mútuo estranhamento” a que se refere Dias é apenas a ponta do iceberg da
desigualdade. E esse confronto se aprofunda à medida que é negado às “vítimas
preferenciais” o direito ao “ressentimento”. O narrador criado por Bonassi expõe e
amplifica a indiferença dos habitantes de condomínios, da “elite perversa e branca”, dos
82
consumidores de grifes transnacionais de alto-luxo para se distanciarem da chamada
“classe-média alta” e dos herdeiros do poder que por aqui, raramente, muda de donos
diante da miséria de considerável parcela da população. Talvez a única alternativa de
alívio, para minimamente suportar esse quadro, seja valer-se do “clima sádico
dominante”. Contudo, em Passasporte o narrador abusa da ironia, do cinismo e
sarcasmo para provocar um desconforto ao turista desavisado que se aventura nessa
concisa narrativa de viagem.
Ainda assim, mesmo se diferenciando em parte dos narradores da literatura
brasileira criados por Rubem Fonseca e, mais recentemente por Patrícia Melo, o que se
destaca nesses mini-relatos de Fernando Bonassi é a sua vinculação ao modelo chamado
“Atlântico Norte”: é constante o tom de decepção quanto à precária civilidade brasileira.
Permanece ainda o eco do pensamento de um Joaquim Nabuco, o eterno pessimismo
diante de tanta diversidade, seja ela geográfica ou humana. Mas o que o narrador deixa
às claras, apesar de sua filiação, é que alguns permanecem “mais” humanos que os
Outros. O texto de Bonassi parece habitar uma fronteira de transição, em que uma
tomada de consciência surge após um mergulho nas periferias do mundo que o rodeia.
Fica patente, contudo, uma escolha feita pelo narrador ao solidarizar-se, mesmo
a uma distância segura, com os integrantes de algumas minorias, indígenas e judeus em
especial. A viagem percorre uma variedade de rostos, mas parece ser color-blind (cega à
cor), principalmente se tratando de negros/afrobrasileiros/afrodescendentes. Nesse
ponto, o narrador Polaroid parece ter desligado seu olhar-câmera para essa alteridade
em particular e repete o tom narrativo, presente desde os tempos coloniais, que
invisibiliza, na atualidade, a existência e as contribuições de quarenta e nove por cento
da população do Brasil (de acordo com dados do IBGE). Como explicar que numa
viagem, mesmo aleatória como mostram os fragmentos narrativos, fiquem de fora os
83
rostos de tonalidade mais escurecida, não há nem mesmo uma personagem relativa ao
mundo dos esportes, para ficar apenas no “lugar comum” da pseudo-democracia racial.
Solidarizou-se e ficou horrorizado esse narrador quando se trata do vestígio neo-nazista
de Berlim ocidental, porém desliza uma lente encoberta pela película que afirma serem
apenas todos “brasileiros”. Entretanto, não será o que virá adiante, a partir das narrativas
de Paulo Lins e Ferréz. O leite nazista da madrugada deveria ter outra cor qualquer, não
a coloração negra. A propósito, a face neo-nazista e o capuz da Ku-Klux-Klan não são
negros...
84
Capítulo dois
Cidade de Deus: divisor das narrativas da violência
Grampearam o menino do corpo fechado
E barbarizaram com mais de cem tiros.
Treze anos de vida sem misericórdia
E a misericórdia no último tiro.
Aldir Blanc
85
A literatura ruidosa: uma introdução
O contraponto à escrita representada por Fernando Bonassi surge nas páginas de
Cidade de Deus, do carioca Paulo Lins, e de Manual prático do ódio, do paulistano
Ferréz. Nestas duas obras, ocorre a retomada da linha estética de uso literário da
violência pretendida pelo escritor Lima Barreto: valer-se da violência não para
representar meramente a alteridade fixa e alvo único de sua ação. O que se pretende é
que ela possa ser retomada como uma marca estética de uma nova representação desta
mesma alteridade.
Antes, buscarei evidenciar o pertencimento do local de enunciação dos
narradores criados por Paulo Lins e Ferréz. Seus narradores, como aquele criado por
Lima Barreto em Clara dos Anjos e em Recordações do escrivão Isaías Caminha, se
filiam esteticamente à corrente do “Atlântico Negro”, a saber:
(...) Pensar o Atlântico como um sistema político e cultural que foi
introduzido na historiografia e intelectualidade negras pela matriz
econômica e histórica da qual o latifúndio escravista capitalismo
desnudado – foi um momento especial. Os padrões fractais de troca e
transformação política e cultural que tentamos e especificamos
inadequadamente através de termos como “crioulização” e
“sincretismo”, indicam como ambas, etnicidades e culturas políticas,
têm sido executadas de formas tão diversas que são significantes, não
somente para os povos do Caribe como para a Europa, África
Libéria e Serra Leoa em especial e, naturalmente, para a América
negra. (Gilroy: 1993, p. 15) (Tradução minha)
13
13
(…) A concern with the Atlantic as a cultural and political system has been forced on black
historiography and intellectual history by the economic and historical matrix in which plantation slavery –
capitalism with its clothes off was one special moment. The fractal patterns of cultural and political
exchange and transformation that we try and specify through manifestly inadequate theoretical terms like
creolisation and syncretism indicate how both ethnicities and political cultures have been made anew in
ways that we are significant not simply for the peoples of Caribbean but for Europe, for Africa, especially
Liberia and Sierra Leone, and of course for Black America.
86
Aqui o “sistema de atitudes” identificado por Alfredo Bosi (2002: 17-18) é
acrescido de diferentes temporalidades, sendo representadas pelos momentos de
colonização sob a égide econômica do “latifúndio escravista”. Esses momentos, para a
escrita de Paulo Lins e Ferréz são retomados para reflexão sobre as atuais condições
culturais e materiais da população negra e afrodescendente que, num sentido mais
amplo, constitui a maioria inconteste das “vítimas preferenciais”. Devo ressaltar o
caráter diverso da proposta do conceito de Paul Gilroy, que não funciona a partir de
“um” sujeito étnico e, sim, a partir da performance das diversas formas de “etnicidades”
e “culturas políticas” no âmbito do, por ele denominado, “Atlântico Negro”.
As referidas narrativas de Paulo Lins e Ferréz filiam-se esteticamente a este
espaço não com o intuito de propagar apenas a etnicidade de origem africana – entenda-
se, por exemplo, aquela fortemente vinculada às tradições da religiosidade
afrobrasileira. Estratégias advindas da cultura negra urbana e releituras de cenas do
passado colonial, ou da recente modernidade do Brasil, somam-se e tornam
diferenciados os romances desses escritores que serão aqui analisados. Os narradores
dos dois romances apresentam um diálogo com o rap e a cultura Hip Hop. E mais do
que apenas isso, trata-se de textos literários que, semelhante ao rap e demais
manifestações artísticas negras no EUA, bem como a literatura afrobrasileira, produzem
para um contexto bastante diverso. Tais narrativas se inscrevem a partir de um ponto-
de-vista afrodescendente e/ou não-branco, para um público leitor e consumidor, num
contexto cultural e político majoritariamente branco
14
. ainda um tom pedagógico
em alguns momentos, numa tentativa de alertar sobre os riscos constantes na vida dos
que habitam a periferia das grandes metrópoles brasileiras.
14
Cf. ROSE, Tricia. (1994: 5.); CUTI (2002: 23)
87
Tais narrativas também não ocultam os paradoxos em que se encontram imersos
os integrantes de grupos subalternos: os rompimentos dos laços de solidariedade. A
periferia mantém ativos em seu bojo alguns mecanismos de controle regulados por
“linhas” de discriminação, a saber: etnia, gênero, classe, orientação sexual, idade. O
desespero que se instaura nas relações, quase completamente deterioradas, parece advir
do desejo e do equívoco de romper/derrotar todas as barreiras discriminatórias “apenas”
quando se ultrapassa a “linha da pobreza”. Obsessão que invariavelmente leva alguns
membros desse esgarçado corpo social à utilização da violência, como o meio mais
rápido de alcançar às benesses trazidas pelo vento do consumo. Os exemplos dessa
ausência de solidariedade subalterna estão dispostos por todo o enredo de CDD e MPO.
As duas narrativas transmutam em “forma literária” o que Loïc Wacquant identifica
como “um círculo auto-alimentador de decadência urbana e violência mortal,
empurrando bairros inteiros a uma espiral de deterioração” (2005: 84)
15
. A ausência do
Estado não é completa devido à presença da polícia que, por sua vez, se divide em
proteger a população de tais áreas e impedir que o “crime” chegue ao “asfalto” e
perturbe de vez a vida dos “cidadãos de bem”.
Narrativas como CDD e MPO tornam tal aproximação extremamente
interessante por possibilitar o exame dessa transposição de dimensões do real em
“forma literária”, bem como das condições de produção dos textos nessa intensa e tensa
15
É corrente nos EUA a utilização de um termo sociológico underclass (subclasse, em tradução minha,
mas talvez o mais adequado fosse “não-classe”) para classificar uma população de áreas urbanas que
possuíam condições semelhantes às dos moradores das favelas e bairros das periferias de grandes cidades
brasileiras. A perversidade incrustada nessa classificação está presente na “certeza” de que tais pessoas
seriam “incapazes” de se tornarem aptas ao modo de vida do “norte-americano médio” branco, casado,
pai de, no máximo, dois filhos, empregado ou profissional liberal e, ainda, com diploma de uma
instituição de educação superior.
88
“zona de contato”. É nessa área de atrito que o leitor se depara com o embate entre o
“Atlântico Negro”/“Neo-América” e o “Atlântico Norte”/“Euro-América”
16
.
A busca inconsequente e de forma exclusiva por um modo de vida sem tantos
obstáculos materiais (modelo da classe média) e, que, por sua vez, é baseada no sistema
“Atlântico Norte/Euro-América”, como mostra a trajetória das personagens mais
evidentes, criadas por Paulo Lins em CDD e por Ferréz em MPO, revela-se em uma
procura que opera sob o mote da violência. As personagens são arremessadas num
vórtice não-solidário que as devora. E esse mesmo vórtice é o responsável pela
aceleração e escalada dessa mesma violência.
Cito dois exemplos de CDD que sintetizam esse aspecto a busca por
reconhecimento e cidadania via bens de consumo: eles estão representados pelo
episódio da personagem Lúcia Maracanã e pelos assaltos aos veículos que fazem
entregas de mercadorias no conjunto habitacional de Cidade de Deus, especialmente o
caminhão de gás. Lúcia trabalha como empregada doméstica e decide espremida por
se ver acuada “entre o crime e a necessidade” praticar pequenos furtos na feira-livre
como um modo de “ampliar” seu orçamento. Com isso, ela tenta garantir um futuro
diferente para os seus filhos: romper a linha de pobreza que os jogaria sempre no mundo
do trabalho subalterno. Quanto aos assaltos descritos na parte inicial do enredo A
história de Cabeleira nota-se uma forma direta de violência que, atinge duplamente ao
subalterno: primeiro, ataca trabalhadores (motorista e seu ajudante) que muitas vezes
também residem em conjuntos habitacionais ou em outra “periferia” do Rio de Janeiro;
a consequência dessa prática leva ao segundo golpe: a redução do atendimento dos mais
diversos serviços à população que mora nesses locais.
16
Os termos Neo-América e Euro-América encontram-se em GLISSANT, 2005: p. 13-14. A partir daqui
tais conceitos serão combinados com “Atlântico Negro” (GILROY, 1993: p. 15) e “Atlântico Norte”
(COSTA, 2006).
89
Assim, o vórtice não-solidário atua através da personagem de Lúcia Maracanã
ao fazê-la por em prática uma ética pessoal – a “ética maracanã” – que atende primeira e
exclusivamente aos “seus” desejos, reafirmando a regra da exclusão da qual somente
“poucos” escapariam, envoltos nesse ciclo de eterna manutenção da pobreza. Por outro
lado, a violência é de certa forma semi consentida no fortuito momento de caminhada
entre as barracas da feira-livre, numa operação que consiste em subtrair quantias
destinadas à alimentação. No entender da “ética maracanã”, o que sempre se leva é o
“excedente”, pois as madames “nem” perceberiam o ocorrido. o assalto ao caminhão
de gás demonstra outra ação que também não se converte em ganho coletivo, pois o
dinheiro se esvai rapidamente sob a forma de bebidas, do tira-gosto e, até ali, da
maconha. Tanto as personagens de Lúcia Maracanã quanto de Cabeleira parecem
repetir, cada um a seu modo, os espancamentos praticados pelo ex-escravo Prudêncio de
Memórias póstumas de Brás Cubas, quando se torna ele próprio, um pequeno e também
perverso “senhor de escravos”. O ápice do poder desse vórtice não-solidário em CDD é
a personagem Zé Pequeno...
No caso desta pesquisa, a presença tensa das narrativas contemporâneas da
violência expõe questionamentos sobre a própria noção de uma estética que se esquiva,
muitas vezes, de valer-se do real; indaga à própria história literária brasileira jogando a
luz dos holofotes sobre a “outra literatura brasileira” (Ribeiro, 2003). As alteridades
presentes em Cidade de Deus, de Paulo Lins, e em Manual prático do ódio, de Ferréz, o
modo como são narradas bem próximas de suas “éticas” peculiares, são exemplos dessa
“outra literatura”.
Essas narrativas exemplificam a tensão provocada pela emergência de
procedimentos, por exemplo, advindos da literatura afro-brasileira que alcança maior
visibilidade a partir dos anos 80 do século passado – e da incorporação de características
90
e recursos estéticos dela oriundos para se apresentar, não apenas como novidade. Os
elementos presentes tanto na literatura afro-brasileira quanto nos textos de Paulo Lins,
Ferréz e outros, são, por exemplo, a reescrita da história de uma comunidade através da
ficção; a ressignificação de termos utilizados para tornar o Outro, cada vez mais, apenas
um subalterno; a ficcionalização da ideia de “dupla consciência” (Du Bois, 1903)
detectada no texto Recordações do escrivão Isaías Caminha (Barreto, 1949b) durante
minha pesquisa no mestrado (CRUZ, 2002). A condição desses textos é semelhante
àquela da literatura negra/afro-brasileira identificada por Cuti, no tocante à
representação, ao analisar os estudos sobre a presença do negro na literatura brasileira.
O autor alerta: “Na maior parte do material que se apura, o negro é tema. Branco é
sistema, ou seja, sujeito, foco, onisciência, célula de onde emanam a concepção e
organização da linguagem” (2002: 23). Substituindo “negro” por “morador da periferia”
ou “subalterno”, a situação parece se repetir, pois como já demonstrado por Dalcastagnè
(2005), o “branco”, “classe média” / “classe média alta”, “escolarizado”, permanece
sendo “sistema”...
Dessa maneira, as narrativas chocam-se com boa parte das obras da literatura
brasileira, rompendo a cômoda tranquilidade estética e social que estas últimas,
continuadamente, tentam apresentar. E o ponto de vista interno da narrativa de vozes
subalternas, como se pode perceber a partir dos textos de Paulo Lins e Ferréz, é
essencial para a sua plena realização. Portanto, essa nova “outra literatura brasileira” é a
literatura ruidosa das narrativas contemporâneas da violência.
A literatura ruidosa é constituída pelas narrativas contemporâneas da violência,
produzidas por vozes advindas de estratos subalternos e que se aproximam do conceito
“Atlântico Negro” (GILROY, 1993). Essa literatura dialoga com o cinema, a música e o
movimento Hip Hop, buscando romper a ideia de representação da “diferença fechada”
91
(Edimilson Pereira, 2002), que sempre argumenta a favor de uma literatura brasileira
que se quer harmônica e sem fraturas. Por que, então, o adjetivo ruidosa para um
substantivo como literatura? A fala subalterna, de acordo com Spivak (1984) consiste
paradoxalmente na impossibilidade de pronúncia, ou seja, o subalterno não fala e/ou não
lhe é permitido falar. Entretanto, manifestações artísticas populares, como no caso das
Irmandades do Rosário estudadas por Edimilson de Almeida Pereira, produzem textos
que são por ele classificados de “literatura silenciosa”. Quero aqui tomar algo desse
“silêncio” como um ato contra-moderno, na busca de inscrever-se numa cultura que,
salvo em momentos de exceção, não considera a oportunidade de diálogo com tais
manifestações de cunho performático e que não se encontram sob a chancela ocidental
do registro literário. Esse elemento identificado por Edmilson Pereira, aqui
reinterpretado, é o clima não declarado de insurreição: não capitulo, executo e pratico o
canto-poema, logo resisto. Esse narrador que se apresenta nos textos da literatura
ruidosa, não raro, procura não ser simplesmente a redoma ficcional que protege o
ideário de um indivíduo vinculado exclusivamente à sociedade branca, monoteísta e
ocidental.
O elemento que rompe o liame desse tecido literário que se quer cordial e
representante de uma ideia de nacionalidade, reforço, sem contrastes visíveis, é a
violência. O romance contemporâneo que parece marcar definitivamente a inscrição
desse modo narrativo, apontando assim um divisor de águas para as narrativas
contemporâneas da violência é Cidade de Deus, o primeiro publicado por Paulo Lins.
Dele são herdeiros Capão pecado e Manual prático do ódio, de Ferrez, para ficar
somente em dois exemplos.
A ideia de ruído como característica da inscrição do subalterno no mundo
contemporâneo também é particularmente cara ao movimento Hip Hop e ao rap,
92
movimentos de origem eminentemente urbana e a partir da exclusão territorial imposta a
determinados grupos populacionais (hoje, exclusão não mais restrita aos negros e aos
seus descendentes):
O rap traz consigo um entrelaçado de alguns dos mais complexos
temas sociais, culturais e políticos da sociedade contemporânea norte-
americana. As articulações contraditórias do rap não são sinais de
ausência de clareza intelectual; elas são um traço comum de diálogos
comunitários e populares que sempre oferecem mais de um ponto de
vista cultural, social e político. Estas conversações polivocais,
abundantes e o-usuais, podem parecer irracionais quando
arrancadas de contextos sociais nos quais ocorre a luta diária sobre
recursos, prazer e significados. (ROSE: 1994, p. 2)
17
Trouxe propositadamente para a discussão a análise feita por Tricia Rose na qual
a cultura negra urbana norte-americana é caracterizada exatamente pelo ruído. O título
do trabalho em questão é Black noise (Ruído Negro, em tradução minha). A apropriação
e resemantização do termo ruído passa a valer não mais como “ausência de” e sim a
presença da referida cultura. O elemento comum à literatura ruidosa é esta presença de
vários pontos de vista no tocante à existência e representação cultural e política dos
grupos que habitam as periferias dos grandes centros urbanos no Brasil, captados e
inseridos de forma fragmentária no enredo de Cidade de Deus (1997). Nele se
encontram presentes elementos da cultura afro-brasileira, cultura de massa música,
cinema, televisão e da cultura popular. Tais caracteres atuam de forma polifônica na
composição das personagens e de suas escolhas de ação no decorrer da trama, tornando
arriscado tentar fixar a maioria delas sob um aspecto somente, por exemplo, àquele
vinculado ao desejo de romper a “linha de classe”. Algumas dessas presenças são:
17
Tradução minha, a partir de: “Rap brings together a tangle of some of the most complex social, cultural
and political issues in contemporary American society. Rap’s contradictory articulations are not signs of
absent intellectual clarity; they are a common feature of community and popular dialogues that always
offer more than one cultural, social, or political viewpoint. These unusually abundant polyvocal
conversations seem irrational when they are severed from the social contexts where everyday struggles
over resources, pleasure, and meanings take place”.
93
(...) revistas Sétimo Céu (...) (p. 18)
(...) A garotada assistia National Kid. Os que não tinham televisor
iam para a janela do vizinho apreciar as aventuras do super-herói
japonês. (p. 28)
(...) conjuntos musicais tocavam canções de Jorge Ben, Lincoln
Olivetti, Wilson Simonal e outros. (p. 36)
Os brevíssimos excertos que apresento repetem-se, nesse formato, ora como
índices que podem ser interpretados como marcas temporais, ora como pistas para que o
leitor identifique algum outro aspecto que adjetive uma personagem ou o grupo ao qual
ela, porventura, pertença. O primeiro recorte se refere a uma publicação que focaliza um
ramo extinto do entretenimento: a fotonovela
18
. O National Kid é o “tataravô” dos
atuais personagens de mangá japoneses que pululam sob a forma de desenhos animados
na televisão. Consistia num herói que combatia os invasores extraterrestres e comparsas
“terráqueos”, armado, é claro, com uma pistola de raio laser. Era um frenesi na plateia –
pois como no romance, a “sessão” era pública devido ao reduzido número de aparelhos
de TV quando o Kid aplicava golpes de artes marciais ou ainda, literalmente,
pulverizava monstros com sua arma. Os “conjuntos musicais” fecham com “chave de
ouro” essa pequena trilogia de cultura popular. Duas das citações são dois expoentes da
denominada Brazilian Black Music e da cultura urbana afro-brasileira: Jorge Ben (hoje,
Jorge Benjor) e Wilson Simonal. Benjor permanece como exemplo de hitmaker
(compositor de sucessos) e reverenciado pelos novos talentos. Simonal foi o ícone negro
que se tornou a pedra no sapato da elite racista: tudo bem o negro fazer sucesso como
18
A fotonovela consistia numa adaptação do folhetim e das histórias em quadrinhos, permanecendo
sempre no clichê temático de relacionamentos amorosos mesclados, às vezes, com intrigas e aventuras.
Atualmente, a referida publicação não circula, tendo, entretanto, deixado “herdeiras” do formato e que
modificaram seu conteúdo: passou a ser uma revista que traz as “notícias” do mundo dos artistas da TV e
do cinema, com “dicas” de comportamento, principalmente, para o público feminino. A adaptação de
narrativas folhetinescas foi completamente suprimida.
94
músico Paulo César Caju era seu correspondente no mundo do futebol mas nada de
alardear discursos sobre autoestima
19
.
o instrumentista (pianista), compositor e arranjador Lincoln Olivetti não se
encontra citado ali por acaso, porque além de ter suas músicas executadas pelos
conjuntos de baile – tanto da ficção quanto da realidade daqueles tempos era o músico
que, aos treze anos, trabalhava nas festas dos subúrbios cariocas
20
. Tais referências
culturais compõem de modo fragmentário, os raros momentos de trégua das diversas
histórias nas quais a violência entrelaça as trajetórias nada aleatórias do ódio com
endereço: os inimigos, a classe média da Zona Sul carioca e moradores do conjunto
habitacional, geralmente, atingidos no fogo cruzado.
O rap e o mundo Hip Hop não estão nominalmente citados nesse romance de
Paulo Lins, como ocorre com outra marca inconfundível do “Atlântico Negro”: o
mundo do samba. Em CDD, o rap é representado por um elemento dessa literatura: a
“estrutura episódica” e pela contundência de cada “episódio” ali narrado. Outra razão
justifica a lacuna: ela é devida à temporalidade e à localização da chegada do
movimento Hip Hop. A sua recepção é feita ao final dos anos 80 e ocorre
principalmente em São Paulo. Além disso, vale lembrar que, no Rio de Janeiro, a cena
musical Black foi fortemente marcada, à época descrita no romance, pela influência da
soul music norte-americana capitaneada pela influência de James Brown. Reflexo disso,
atualmente, é a adaptação/recriação/releitura pela periferia da batida funk, fazendo
surgir o que hoje é chamado funk carioca. Para se ter um exemplo dessa mudança,
tome-se como exemplo a face sambista relida pela versão midiática do pagode da
19
Apesar de ser o único cantor que transformou a plateia do Maracanãzinho em coral, pagou caro quando
tentou punir, por conta e risco, um contador que lhe subtraía lucros: os “contratados” para “dar um susto”
no “suspeito” eram policiais do antigo DOPS e espancaram-no pra valer. O homem “suspeito” virou
vítima e o artista ficou estigmatizado como “dedo-duro” patrocinado pelo regime militar.
20
Cf. Lincoln Olivetti – Dados Artísticos. In Dicionário Cravo Albim da Música Popular Brasileira:
http://www.dicionariompb.com.br/detalhe.asp?nome=Lincoln+Olivetti&tabela=T_FORM_A&qdetalhe=a
rt . Acesso em 09 de maio, 2009.
95
quadra do bloco Cacique de Ramos. a cena Hip Hop e a música rap inicialmente
possuem um volume de enunciação bem maior na cidade de São Paulo. Atualmente, o
mais importante festival a premiar aos artistas do movimento é capitaneado pela CUFA
e acontece no Rio de Janeiro.
Ruído na periferia brasileira: duas narrativas antecedentes
A literatura ruidosa, por sua vez, ocorre em mídia diversa àquela das
Irmandades do Rosário e ainda do rap: o livro. O primeiro “ruído” captado não é o ato
de enunciar-se a partir da periferia, como às vezes é tomado à primeira vista. O que
deve ser destacado é a presença de uma voz narrativa que se quer representante, em
termos, de uma complexa comunidade. Tal “ruído” pode também ser detectado na
linhagem da literatura afro-brasileira. A princípio, em textos de autores como Luiz
Gama e Cruz e Sousa dois diferentes modos de manifestação do ruído: no primeiro
se manifesta através do riso, e, em Cruz e Sousa, explode como angústia. Deve-se
mencionar o recentemente recuperado romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, que
é o registro primordial da escrita negra feminina. Já em Lima Barreto, esse ruído
representacional se percebe agônico, no sentido de confrontar as publicações em prosa
das duas primeiras décadas do século XX. O uso da violência na linguagem, entendida
por ele como inscrever na seara literária a outra língua portuguesa, a língua falada não
apenas a partir dos salões que se miravam somente na Europa, mas àquela proveniente
das ruas. E juntamente com essa linguagem, trazer à tona os problemas vividos por
aquela multidão invisibilizada. Duas referências de personagens são retiradas de Clara
dos Anjos: a jovem Clara e o “doutor” Marramaque. Lembrando ao leitor que o referido
romance de Lima Barreto possui o subúrbio do Rio de Janeiro como espaço ficcional
96
considerável da narrativa, marcado pelos embates fronteiriços com o processo de
“modernização” da cidade, aspecto explorado em algumas passagens pontuais da trama.
E mais do que apenas representar esteticamente a periferia dos grandes centros,
há certo tom pedagógico na narrativa da literatura ruidosa, buscando retirar essa mesma
comunidade do ciclo de exclusão e violência em que se encontra. O jogo de
representação aqui não se faz a partir de uma narrativa político-religiosa, porque ocorre
preponderantemente nos espaços urbanos, nos quais tais narrativas possuem outros
concorrentes disputando espaços de poder. Assim, procura-se romper o tom maniqueísta
com que sempre foi e continua a ser representado o subalterno, em parte considerável da
literatura brasileira.
Essa escrita, contudo, possui precursores. Passo em seguida a tratar de dois
exemplos que dialogam com os romances de Paulo Lins e Ferréz. Os textos são
Malagueta, Perus e Bacanaço (1963), de João Antônio, e Quarto de despejo (1960) de
Carolina Maria de Jesus. No intuito de salientar a excepcionalidade de tais narrativas no
campo da representação do subalterno, vale retomar o argumento de Mikhail Bakhtin
em “Epos e romance” (2002). De acordo com Bakhtin, o romance substitui o modo de
representação da narrativa épica de forma radical com relação a três aspectos que
destaco a seguir: a possibilidade de se narrar o presente, ao contrário da épica e seu
passado atemporal; a proximidade do narrador em relação aos fatos que narra “zona
de contato” (idem, 2002: 417) que, por sua vez, se desdobra na possibilidade de
apresentar uma infinidade de personagens e ambientes que se encontravam banidos da
cena de representação.
Importante ressaltar que o referido estudo de Bakhtin trata ainda da presença da
figura do autor, que passa a interferir de modo mais incisivo na criação. O que gostaria,
no entanto, de tratar nessa tese é o “suplemento” de tal idéia: não se trata somente do
97
“autor”, levarei em consideração a inscrição de vozes narrativas e suas alteridades e,
portanto, a figura dos narradores e sua interferência a partir da “zona de contato”, tanto
no âmbito da representação quanto da recepção desses textos literários. Se no entender
de Bakhtin (2002: 417): “O romancista gravita em torno de tudo que ainda não está
acabado”, aqueles que produzem a narrativa contemporânea que vive de “instantâneos”,
de alteridades pressionadas entre centros e periferias, percorrem a órbita de elementos
em estado de constante modificação e de maneiras jamais previstas pela sociedade
ocidental.
Os anos sessenta apresentam duas novidades na cena literária brasileira. Surge
João Antônio e seu Malagueta, Perus e Bacanaço (1963), com uma prosa enxovalhada
pelo cotidiano da marginalidade paulistana. Suas personagens transitam entre os dentes
de uma metrópole que parece triturar todos aqueles que habitam as áreas destinadas aos
não-cidadãos. os pequenos marginais que frequentam os botequins, descritos nos
contos de João Antônio, se assemelham aos malandros de beira-de-cais retratados por
Jorge Amado em diversas de suas narrativas.
A outra surpresa ficaria por conta de Carolina Maria de Jesus e Quarto de
despejo (1960). O livro “caiu como uma bomba”, pois não vinha escudado por um
nome advindo da classe média branca e masculina. A autora, que partiu para tentar
melhor sina em São Paulo, era a moradora de uma favela, como muitas que ainda
compõem o dilacerado mapa da megalópole paulistana. A voz narrativa não se situa
mais no gabinete da repartição pública ou no escritório de um banco ou outra empresa,
ressoa a partir do interior dos “barracos da cidade”. Depois de Carolina de Jesus,
começa a ficar mais difícil para a crítica literária brasileira continuar insistindo que toda
representação da violência desaguava do conflito de classes... A representação literária
ganha outro fôlego a partir de um ponto de vista interno à comunidade negra/afro-
98
brasileira. A publicação do primeiro trabalho da autora vem revelar, de uma vez por
todas, essa mudança explicitada na narrativa sem, todavia, vir intencionalmente eivado
de tom panfletário pertencente a uma corrente ideológica A ou B.
Quarto de despejo foi alvo, simultaneamente, de sucesso e críticas. Um dos
pontos mais polêmicos foi a questão da autoria, pois os textos publicados foram
selecionados pelo jornalista Audálio Dantas. Essa tentativa de desacreditar o livro e sua
autora caiu por terra ao se confirmar o volume de registros feitos por Carolina Maria de
Jesus em diversos cadernos que ela encontrava no lixão próximo à favela em que
morava. A crônica do cotidiano de uma “periferia” localizada bem próxima ao “centro”
de uma grande cidade como São Paulo não seria de se estranhar. O divisor de águas é
que essa mesma escrita é produzida por uma moradora, uma voz “interna”. Ou ainda
como gosta de afirmar o paulistano Ferréz, do bairro de Capão Redondo, a voz daquela
narrativa em forma de diário é de alguém que “mora dentro do tema”. O texto traz um
reforço à guisa de “suplemento” para a linguagem oswaldiana presente em Pau-Brasil
(1991): a sintaxe utilizada pela população com pouco ou nenhum acesso à escola.
Acrescento a esse elemento a observação atenta de Carolina a cada evento de sua
comunidade e de sua época. Se, no entender do rapper afro-norte-americano Chuck D
21
,
o Rap se constitui numa espécie de “CNN do Povo Negro”, a narradora presente em
Quarto de despejo seria uma privilegiada mescla precursora dessa repórter, cronista e
historiadora, enfim, uma inventariante de cotidianos de escassas alegrias, a exemplo do
MC dos grupos de rap brasileiros.
Atenção aos trechos que virão a seguir:
2 de maio ... Ontem eu comprei açúcar e bananas. Os meus filhos
comeram banana com açúcar, porque não tinha gordura para fazer
21
Informação retirada de BEST, Steven. KELLNER, Douglas. “Rap, Black Rage and Racial Difference”:
Enculturation. Vol. 2. No. 2, Spring 1999. http://enculturation.gmu.edu/2_2/best-kellner.html . Artigo
também presente em http://www.gseis.ucla.edu/faculty/kellner/essays/rapblackrageracialdifference.pdf .
99
comida. Pensei no senhor Tomás que suicidou-se. Mas, se os pobres
do Brasil resolver suicidar-se porque estão passando fome, não ficaria
nenhum vivo.
3 de maio Hoje é domingo. Vou passar o dia em casa. Não tenho
nada para comer. Hoje estou nervosa, desorientada e triste. Tem um
purtuguês que quer morar comigo. Mas eu não preciso de homem. Eu
já lhe supliquei para não vir aborrecer-me.
... Hoje o Frei veio rezar a missa na favela. Ele pois nome na favela
de Bairro do Rosário. Vem varias pessoas ouvir a missa. No sermão o
padre pede ao povo para não roubar.
... O senhor Manoel chegou e começamos a conversar. Falei de uma
menina de um ano e meio que não pode ver ninguém mover a boca,
que pergunta:
– O que é que você está comendo?
É a ultima filha do Binidito Onça. Percebi que a menina vai ser
inteligente.
4 de maio Deixei o leito as 6 horas, porque o senhor Manoel quando
dorme aqui não deixa eu levantar cedo.
... Eu não nasci ambiciosa. Recordei este trecho da Bíblia: “Não
acumules tesouros, porque lá estará o teu coração.”
Sempre ouvi dizer que o rico não tem tranquilidade de espírito. Mas o
pobre também não tem, porque luta para arranjar para comer.
(JESUS, 1960: 154-155)
A cada fato registrado nota-se a interferência de um comentário da narradora. Os
comentários por sua vez são contumazes, pois exploram tanto as atitudes diante da
violência perpetrada pela condição econômica e suas consequências coletivas e
individuais. A aparente simplicidade presente nos excertos esconde os complexos temas
ali costurados: a premência da pobreza, a condição feminina em confronto com as
imposições de uma sociedade machista (“... eu não preciso de homem”), a hipocrisia do
discurso católico e as precárias condições de sobrevivência daqueles que habitam o
“Bairro do Rosário”. Essa costura temática está vinculada à experiência da autora
agregada à voz narrativa. Não grandes problemas em se afirmar isso, pois o gênero
do texto – o diário – colabora para que esse aspecto não seja rechaçado pela crítica. Essa
100
experiência é que traz em si o ineditismo do o menos polêmico “ponto-de-vista”
enunciativo. A fragmentação narrativa aqui não se faz por arranjo ou arremedo estético,
decorre em parte da própria ausência de intenção estética nos moldes da cultura letrada.
A escolha do nome pode sugerir a presença majoritária da população negra e/ou
afrodescendente que tem Nossa Senhora do Rosário como um de seus santos de
devoção. Deixo como destaque final a perspicácia da menina, “ultima filha do Binidito
Onça”, que ao perceber o movimento da boca das pessoas que a rodeiam, logo indaga
sobre o possível “cardápio”. A narradora registra isso como um sinal de inteligência da
garota. A escrita do diário acrescenta mais um fator de alteridade à narradora, que se
apresenta como uma integrante igual aos de seu grupo. Ao mesmo tempo, ela está
consciente das diferenças que os hierarquizam, ainda que, dentro das fronteiras não-
cordiais da subalternidade.
Em Malagueta, Perus e Bacanaço, João Antônio também privilegia um narrador
que se aventura por essa “zona de contato” com a periferia da cidade de São Paulo. No
entanto, essa periferia não chega a ser a favela e sim o subúrbio que inclui os chamados
“remediados” (baixa classe média) e operários. Sua narrativa se desloca pela caserna,
por bares frequentados por malandros, jogadores de sinuca, operários, revelando, por
conseguinte, espaços eminentemente “reservados” à masculinidade. Talvez, daí se possa
ampliar o escopo da observação de Antonio Candido (1996) sobre a “ausência completa
de sentimentalismo, quer se trate de amor, da rotina dos quartéis, da miudeza de cada
dia, da malandragem”. Candido aplica a expressão “neutralidade estratégica” e é
possível acrescentar, a título de complemento, o conceito “zona de contato”
(BAKHTIN, 2002) para que o “destaque” dado ao real saliente-se ainda mais na “prosa
dura” (CANDIDO, 1996) em que se desenvolvem os contos do livro, estilo adequado
para “representar a força da vida”. Tal análise vem corroborar com minha hipótese de
101
aproveitamento do conceito “zona de contato”, originalmente pensada a partir do gênero
romance, para a narrativa curta. A proximidade e o mergulho da voz do narrador nessa
área de atrito com o real, seja no campo da linguagem seja na observação do mundo no
qual vive o autor, são fundamentais para o que Candido denomina “coragem tranquila
de elaborar a irregularidade” (2004: p. 8). Perceba como o narrador-personagem do
conto “Meninão do Caixote” trata de suas ações e dos fatos que o rodeiam:
(...) ia eu, Meninão do Caixote, um galinho de briga. Um menino,
não tinha quinze anos.
(...) A gente joga para a gente, a assistência que se amole. E meu jogo
nem era bonito, nem era estiloso, que eu jogava para mim e para
Vitorino. O caixote arrastado para ali, para além, para as beiradas da
mesa.
Minha vida ferveu. Ambientes, ambientes do joguinho. No fundo,
todos os mesmos e os dias também iguais. Meus olhos nas coisas. O
trouxa, a marmelada, o inveterado, traição, traição. Ô Deus, como...
por que é que certos tipos se metiam a jogar o joguinho? Meus olhos
se entristeciam, meus olhos gozavam. Mas havendo entusiasmo,
minha vida ferveu. Conheci vadios e vadias. Dei-me com toda a
canalha. Aos catorze, num cortiço da Lapa-de-baixo conheci a
primeira mina. Mulatinha, empregadinha, quente. Ela gostava da
minha charla, a gente se entendia. Eu me lembro muito bem. Às
quinta-feiras, quatro pancadas secas na porta. Duas a duas.
(ANTÔNIO, 2004: 134-135)
Nesse conto, João Antônio apresenta aos leitores o mundo proibido do
“joguinho”, como o narrador se refere à sinuca e ao ambiente ao qual aquele garoto
passa a pertencer e frequentar assiduamente. A voz narrativa em primeira pessoa, por si
só, não convenceria leitores sobre a possibilidade dos atos praticados pelo personagem
com idade tão precoce: a percepção das regras “outras” daquele espaço fluido das ruas e
mesas de bar, a sexualidade, as divisões de raça “mulatinha” e de classe
“empregadinha” sem falar na conexão entre essas “linhas” e a voracidade do apetite
sexual: “quente”. Aspectos de um passado colonial que permanecem vivos, ora no
pensamento de um personagem, ora ali nas esquinas da vida a cercearem o “ir e vir”
102
daqueles que facilmente podem ser identificados como não-cidadãos. O curioso é que
tais elementos parecem ser utilizados em tom elogioso, seriam “qualidades” mais do
que simplesmente “características” da primeira amante. E são paradoxos como esses
apresentados pela voz narrativa vivenciar e, de certa forma, recusar a abraçar aquele
mundo por completo que possibilitam perceber como a “irregularidade” do mundo
habitado pelo autor vai sendo absorvida e transformada em matéria literária viva, isto é,
ganha fôlego no estrato ficcional.
Bem, deve-se constatar, a partir de Antonio Candido, que a contrapartida da
“regularidade” que, por sua vez, pode ser estabelecida ou percebida tanto no âmbito da
ficção quanto naquele que concerne ao real entendendo-se aqui a sociedade em que
tais textos possam ser produzidos. A “regularidade” seria, por exemplo, a ngua padrão
e grupo social que a utiliza, o trato estético dado a essa manifestação da língua e,
consequentemente, a literatura produzida a partir daí. uma outra observação
importante feita por Antonio Candido e diz respeito à representação do subalterno na
literatura através do narrador presente nos contos de João Antônio. Cito:
Aqui não há, com efeito, um narrador culto que reserva para si o
privilégio da linguagem de outra esfera através da imitação de sua
linguagem irregular, que serve para manter a distância. Longe disso,
narrador e personagem se fundem, nos seus contos, pela unificação
do estilo, que forma um lençol homogêneo e com isso define o
mundo próprio a que aludi. Não se trata, portanto, de mais um autor
que usa como pitoresco, como coisa exterior a si próprio, a fala
peculiar dos incultos. Trata-se de um narrador culto que usa a sua
cultura para diminuir as distâncias, irmanando a sua voz à dos
marginais que povoam a noite cheia de angústia e transgressão, numa
cidade documentariamente real, e que no entanto ganha uma segunda
natureza no reino da transfiguração criadora.
Uma das coisas mais importantes da ficção literária é a possibilidade
de “dar voz”, de mostrar em de igualdade os indivíduos de todas
as classes e grupos, permitindo aos excluídos exprimirem o teor da
sua humanidade, que de outro modo não poderia ser verificada. Isto é
possível quando o escritor, como João Antônio, sabe esposar a
intimidade, a essência daqueles que a sociedade marginaliza, pois ele
faz com que existam, acima de sua triste realidade. Nos contos deste
livro, mas sobretudo nos finais, ele é um verdadeiro descobridor, ao
desvendar o drama dos deserdados que fervilham no submundo; dos
103
que vivem das lambujens da vida e ele traz com a força da sua arte ao
nível da nossa consciência, isto é, a consciência dos que estão do lado
favorável, o lado dos que excluem. Sob este aspecto, João Antônio
faz para as esferas malditas da sociedade urbana o que Guimarães
Rosa fez para o mundo do sertão, isto é, elabora uma linguagem que
parece brotar espontaneamente do meio em que é usada, mas na
verdade se torna língua geral dos homens, por ser fruto de uma
estilização eficiente. (CANDIDO: 2004)
A longa citação é necessária, pois nela estão presentes elementos caríssimos à
análise que efetuo dos textos contemporâneos. O primeiro ponto, o que se refere à
representação de cunho apenas “mimético”, uma cópia chapada de costumes e
linguagem pertencentes ao cotidiano de grupos subalternos. Surge aí, porém, a
expressão “fala peculiar dos incultos”. Se por “incultos”, Candido entende grupos não-
escolarizados e/ou de pouca educação formal seria possível, com ressalvas, a aceitação
do “adjetivo”. Entretanto, ao continuar o raciocínio no parágrafo seguinte surge outro
elemento que nos interessa: o ato de fala dos subalternos pela voz de um terceiro, ou
seja, o narrador, que, de acordo com Candido, não é um narrador qualquer, é o
“narrador culto”. Devo abrir uma ressalva ao cuidado do crítico ao tentar separar esse
narrador da utilização do mundo das margens apenas como algo “pitoresco” e “exterior”
ao autor. Essa ressalva traz de volta o texto “Epos e romance” (BAKHTIN, 2002),
justamente no ponto em que o crítico russo destaca a força da ação do autor sobre a
criação da obra artística. Então, é possível identificar e diferenciar em diversos textos
literários a existência de representações estéticas que levam em conta e se aproximam
daquela “zona máxima de contato” com o objeto (sociedade) e seres representados,
enquanto a contrapartida daquilo que poderia ser denominado de sequestro da fala
subalterna, de modo a mantê-la exterior ao autor e, portanto, à voz que narra e costura o
enredo. O que ainda sobressai desse jogo de representação é, contudo, um incômodo ou
paradoxo: uma espécie de permissão aos “excluídos exprimirem o teor da sua
104
humanidade, que de outro modo não poderia ser verificada”. Bem, o que isso pode
significar, os excluídos são incapazes de uma fala própria ou mesmo de tratarem via
trabalho estético a sua condição? O passaporte para o reconhecimento artístico de um
texto estaria, nas palavras de Candido, no cerne “de uma estilização eficiente”, que mais
do que utilizar uma linguagem advinda de um meio qualquer é transformá-la na “língua
geral dos homens”. É deveras curiosa a operação que permitiria “mostrar em de
igualdade os indivíduos de todas as classes”, porque ela deve ser executada dentro de
parâmetros completamente alheios ao discurso do subalterno para que, dessa forma, os
excluídos adquirissem existência, fossem humanizados apenas quando narrados, de
forma culta...
A teoria de Mikhail Bakhtin e a análise de Antonio Candido sobre o livro de
João Antônio abrem uma interessante perspectiva para a discussão da representação da
alteridade e da violência nas narrativas contemporâneas. Entre as fissuras da fala de
autores, narradores perpassarão a bala, a representação da alteridade, a pele e a fictícia
transpiração da personagem... O trato literário da experiência calcada no real pode
acarretar ao autor aquele mesmo de carne e osso alguns aborrecimentos. Sempre
houve confusão entre a pessoa que produz a obra e a voz narrativa que apresenta o
enredo.
Contudo, o caso brasileiro é bem diverso, pois quando alguém da classe média
alta produz uma obra de qualquer área artística, tendo como base realidades similares
àquelas tratadas por boa parte das narrativas contemporâneas é logo classificado como
vanguarda ou algo que valha. o escritor nascido na periferia, dependendo “como”
105
apresenta os mesmos aspectos, é logo acusado de fazer “apologia ao crime”
22
. E isso é
apenas a ponta do iceberg de querelas que rondam essa forma de produção literária.
Delineando estatutos: da poética do silêncio àquela do ruído
Quando se quer falar do ruído é preciso demonstrar que antes dele foi
possível o silêncio. É por essa razão, deliberadamente óbvia, que devo iniciar o esboço
que se transformará no quadro, na cena, no filme, no caminho que trilha outro sistema
de atitudes. Para tanto, a título de esclarecer o “ruído” provocado pela literatura de
Paulo Lins e Ferréz, tomarei de empréstimo o conceito “literatura silenciosa” utilizado
por Edimilson de Almeida Pereira para analisar os “cantopoemas” da tradição poética
afro-brasileira. Essa literatura “nasce do esforço de indivíduos negros e mestiços que
transformam o silêncio e o isolamento em matérias do canto e da celebração”
(PEREIRA: 2002, 41-42). O mundo exilado em que se torna a “literatura silenciosa”, de
acordo com o pesquisador, revela cada palavra como “uma penca de ideias”. Tal
literatura, apesar do exílio, incomoda o cânone estabelecido e se constitui como lugar de
enunciação dos “indivíduos destituídos de voz” para que seja possível estabelecer sua
“autorrepresentação”.
Os textos selecionados pelo pesquisador não se apresentam, contudo,
primeiramente em formato de livro, como seria desejável aos estudos literários
canônicos. Esses são encontrados na oralidade e na performance também musical
das Irmandades do Rosário. Portanto, os “cantopoemas” são advindos do contato
22
Conferir o artigo “Violência: a dita desdita”, de Carlos Eduardo Schmidt Capela, publicado na Revista
Z do PACC-UFRJ e que trata de parte dessa polêmica:
http://www.pacc.ufrj.br/z/ano3/03/capela.htm .
Acesso em fev/2009.
106
cotidiano com o sagrado de, no mínimo, dois mundos: aquele pertencente à cultura
banto, naou ioruba e as interfaces de uma ou mais delas com o catolicismo. Este
ponto de partida o mundo do sagrado – pode também definir a ideia de “silêncio” que
o estudioso aplica aos “cantopoemas”, pois eles não são constituídos com o intuito
primeiro de uma publicação em livro ou CD. E mais importante ainda: não possuem a
violência como um operador estético definidor. Como destacado por Edimilson Pereira,
vale lembrar que muitos destes registros seja a transcrição das letras/poemas, seja a
gravação das performances musicais e dos próprios rituais religiosos são feitos por
“intermediários”: antropólogos, estudiosos dos campos da linguística e da
etnomusicologia.
Ainda relacionada à metáfora do silêncio temos a contribuição de Conceição
Evaristo (s/d: 120-121) que destaca o interdito à população negra/afro-descendente
desde o tempo do Brasil colônia. Para ilustrar seu pensamento, ela recorre à imagem da
escrava Anastácia (sempre representada pelo rosto de uma mulher negra, de olhos
claros, sob uma máscara que lhe cobre estrategicamente a boca). É exatamente esse
“silêncio” que irá orientar uma fala que sempre se remeterá a três temporalidades dos
antepassados africanos: o tempo anterior ao cativeiro, o momento relativo à escravidão
nas Américas e, por fim, o período pós-Abolição. Tais temporalidades despontam nos
textos da “literatura silenciosa” bem como nas narrativas contemporâneas de autores
como a própria Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, na poesia de rian Alves,
Esmeralda Ribeiro, Cuti. Com os romancistas Paulo Lins e Ferréz não seria diferente,
em especial aos dois últimos espaços temporais: breves referências ao passado
escravocrata e um mergulho na trajetória contemporânea de afrodescendentes que se
veem às voltas com condições que ainda retomam as primeiras décadas logo em seguida
ao fim do regime de trabalho escravo.
107
Gostaria de destacar alguns aspectos que aproximam a literatura ruidosa
daquela estudada por Edimilson de Almeida Pereira. dois modos de entender a
“literatura silenciosa”. Primeiramente, encarar tal produção discursiva como “diferença
fechada, isto é, aquela em relação à qual o cânone literário não alimenta expectativas de
diálogo”. Dessa forma, ela é alocada como “pré-literatura” ou confinada às áreas da
etnografia e antropologia. Entretanto, o outro modo de entendê-la implica em admiti-la
como um dos caminhos para além do maniqueísmo que limita a ideia de literatura e
“assumir a diferença como expressão da autonomia de outras identidades legitimadas a
partir de outros paradigmas também significativos” (PEREIRA: 2002, 43-44).
Devo ainda chamar a atenção para a passagem do estatuto de “literatura
silenciosa” àquele da literatura ruidosa. Os textos abrangidos pelo segundo conceito
romperam a fronteira do silêncio imposto às manifestações artísticas afro-brasileiras e
adentraram o ambiente literário, tanto nos aspectos do mercado editorial quanto da
pesquisa acadêmica. O ruído provocado no âmbito dessas duas áreas é marcado pela
surpresa de ambos diante da qualidade dos textos e sua ligação tanto com outras formas
de arte (tais como o cinema, a música popular, os quadrinhos, etc.), quanto com a
agilidade presente nas mídias da atualidade. Essa nova face da literatura contemporânea
brasileira surpreendeu ainda pela maneira como incorpora, esteticamente, discursos
políticos de movimentos sociais, tais como o Movimento Negro e o Movimento Hip
Hop sem, no entanto, deixar de dialogar com instâncias que representam outros anseios
e reivindicações dos moradores da periferia de grandes centros urbanos.
A partir desse ponto, passo a reunir as características que despontam em
narrativas como Cidade de Deus (1997) e em Manual prático do ódio (2002), sendo a
primeira e mais evidente delas a violência. Para que ela não seja apenas mais um
recurso estético a provocar a sensação de incômodo ao leitor, à critica e ao próprio texto
108
literário, é necessária à narrativa questionar a respeito da representação literária de
personagens advindas de instâncias subalternas. O princípio básico está vinculado ao
tratamento aparentemente similar àquele dado pela literatura brasileira tout court.
Porém, ao lidar com referentes como raça/etnia, gênero e classe, a literatura ruidosa
busca romper o estereótipo. Ao trazer a violência para a cena acaba por expor
subjetividade, seja a partir o ethos da personagem e do grupo a que ela possa pertencer
ou de ações que a humanizem como a relação familiar, laços de amizade, gostos
pessoais como tipo de música preferida, para citar alguns exemplos. Desse modo,
procura-se tornar mais evidente a diferença no tratamento da representação da
alteridade, principalmente, quando se trata do que Dalcastagnè (2005) denomina
“vítimas preferenciais”. Em CDD o narrador expõe de maneira fragmentária o ethos de
cada grupo e/ou personagem mais significativo. O trecho a seguir, trata desse código
regulador da violência para a personagem Marreco:
(...) Olhou para o céu, depois para o chão, conclui que Deus ficava
muito longe. Os aviões voavam alto e não chegavam nem perto do
paraíso. A Apolo 11 fora até a Lua. Para chegar ao céu tem que
passar por todas as estrelas e as estrelas ficam longe pra caralho. Se o
inferno é embaixo da terra ele está muito mais próximo. Temia a ira
de Deus, mas tinha vontade de conhecer o Diabo, faria um pacto com
ele para ter tudo na terra. Ao perceber a proximidade da morte, se
arrependeria de todos os pecados, ganharia dos dois lados. Foda seria
se morresse de repente. Resolveu parar de pensar em besteiras. Voltou
para perto dos amigos. (CDD: 29)
As informações trazidas no excerto colocam o leitor diante dos parâmetros
díspares de conduta da personagem Marreco. O tom de proximidade com o pêndulo
ético em que o “bicho-solto” se joga, aponta para a dúvida na qual ele mergulha, mesmo
que por pouco tempo, pois o tormento deve cessar e o homem busca rapidamente
alguma área de escape, que lhe permita sair ileso de certa forma, contentando a Deus
quando demonstrar sincero e profundo arrependimento em seu momento final. O
109
raciocínio simplista da personagem planeja agradar às duas extremidades de seu
movimento pendular: realizando todos os desejos carnais auxiliado pelo Diabo e
alcançando a salvação de sua alma que viveu, sempre e por escolha própria, desgarrada
do rebanho das “ovelhas” que obedeciam a uma ética cristã. Interessante notar a
interferência do narrador ao escolher a metáfora que dará ao leitor a medida exata da
distância que separa a personagem de um dos objetivos: a absolvição dos feitos nada
recomendáveis em sua vida terrena. Ao colocar frente a frente às novas conquistas
tecnológicas a viagem do homem com a Apolo 11 à lua, popularmente conhecida
como morada de São Jorge, o santo guerreiro e a crença na existência de espaços que
pertencem à ordem divina e à sua oposição direta, o inferno, expõe também o desalento
de Marreco: ele está desesperadamente mais próximo do Diabo... a solução é não perder
a oportunidade e formar” com ele. Seu breve devaneio devia terminar ali e ele deveria
retornar para próximo dos amigos, como solução provisória para afastar o temor do
pensamento que se avizinhou à ideia de morte. A fragilidade da personagem é exposta
para que o leitor possa tentar compreender, mais adiante na narrativa, os motivos que
servirão de combustível a cada ato de violência. Nada mais conveniente e poderoso que
ter Deus e o Diabo como argumento para cada acerto e deslize, isentando, desse modo,
o “bicho-solto” de qualquer tipo de responsabilidade.
O exemplo de Marreco se une a outros e permite que a voz narrativa expresse
um tom pedagógico, ao simular o “eu-lírico”
23
presente nas letras do rap (ex.: MV
Mensageiro da Verdade Bill), o que constitui a segunda marca da literatura ruidosa.
Portanto, tem-se a emissão do discurso mergulhado no mundo da marginalidade e que
23
Compreendida nesse estudo a partir da inversão do significado de um elemento presente na concepção
de “lírica moderna” (FRIEDRICH, 1978: 15), denominado “dramaticidade agressiva do poetar moderno”
(que consiste em ampliar a distância entre significante e significado). No caso da literatura ruidosa o
oposto, mas que continua a provocar um “choque” no leitor, através da reflexão constante. Para Anízio
Vianna (2005: 96-97) o “eu” enunciador do rap é considerado uma forma coletiva, não representando
aquele indivíduo universal requerido por uma estética com base apenas no Ocidente.
110
escancara para o leitor as éticas fluidas apresentadas no decorrer da narrativa. Ela se
torna uma voz que dialoga com o “sistema de atitudes” do “Atlântico Negro”, sem, no
entanto, implicar na vinculação exclusiva com uma “identidade negra”. Desse modo,
essa voz apresenta a consciência da exclusão a que é submetida a população que habita
a periferia. Ela traz em si, reinterpretando o conceito de “dupla consciência” criado por
Du Bois (1994), o pertencimento tanto ao mundo dos excluídos quanto, mesmo que
através da demonstração do desejo, a fazer parte do outro lado: aquele do reconfortante
apoio financeiro e legalizado mundo da cidadania que “reside” na Zona Sul.
o elemento de número três se inicia a partir cumplicidade da voz narrativa
com a ética do “sistema de atitudes” do mundo real em que foi baseado. Além de
reduzir drasticamente o distanciamento necessário ao lavor estético, simultaneamente,
esse item deve traduzir para o texto o que Bosi (2002: 12) denomina “aspectos
antiliterários”, a saber: poluição existencial do capitalismo avançado”, segundo ele se
constitui simultaneamente em “secreção” e “contraveneno”, proximidade dos “modos
de pensar e de dizer da crônica grotesca” e o “novo jornalismo yankee”. Tais traços
surgem em CDD a partir de inserções de breves histórias que parecem ter sido retiradas
de “uma notícia de jornal” publicadas na seção dedicada à reportagem policial. Elas
possuem como tema crimes passionais, nos quais transborda violência, e que não
aparentam relação direta com a trama central do romance como, por exemplo, o
assassinato de um recém-nascido perpetrado por um “bicho-solto” e seu orgulho ferido
pelo ciúme e desconfiança (CDD, 1997: 78-93). Quanto à “poluição existencial do
capitalismo” pode ser identificada por todo o romance, pois a linha de classe aparece
como prioridade a ser superada. O meio mais rápido de realizar esse feito, não apenas
de acordo com o texto ficcional, é o crime. A representação literária se transformaria, no
entender de Bosi, em um “contraveneno” que contribuiria para realizar a crítica a esse
111
mundo que, cada vez mais, subtrairia o valor da vida humana. O fracasso desse
“contraveneno” está retratado no livro de Ferréz, Manual prático do ódio (2002), pois
tem como principal mote do enredo a tentativa de uma quadrilha que parte em busca da
“correria” definitiva para abandonar a vida do crime e incluir-se de vez no mundo da
cidadania, via consumo e posse de capital.
O quarto ponto a integrar as características é responsável por produzir uma
narrativa literária sem a confortante catarse, por romper, quase totalmente, o
distanciamento estético. Essa quebra propõe o incômodo durante todos os momentos do
enredo e intenta, dessa maneira, possibilitar a constante reflexão aos leitores a partir de
cada história narrada.
A literatura desses autores tem início e é sempre marcada por suas experiências
cotidianas, inscrevendo-se no texto e na voz narrativa, a exemplo do que ocorre com a
“literatura silenciosa”. Aqui, portanto, se enumera o quinto componente da literatura
ruidosa. Ferréz, por exemplo, definiu esse elemento como “morar dentro do tema”,
enquanto Conceição Evaristo (SEBASTIÃO, 2004: 4) o denomina como
“escrevivência”, para conceituar, por sua vez, a experiência feminina e afro-brasileira.
As referências à cultura afro-brasileira se fazem presentes em CDD tanto pelo registro
de práticas religiosas das personagens, quanto pela trilha sonora passível de ser
identificada através dos nomes de cantores que embalam os bailes do clube do conjunto
habitacional.
A literatura ruidosa passa então a se configurar seu sexto integrante: uma
poética da periferia. Tratando-se de uma poética que faz questão de expor o “local” de
enunciação, ela busca também incorporar características do movimento Hip Hop
24
,
24
Cf. BASTOS, Maria Beatriz (2005), tese de conclusão de doutorado em que ela desenvolve mais
detidamente a aproximação entre o livro Cidade de Deus, de Paulo Lins, e o rap a partir da produção
112
dentro do que foi denominado ruído negro (Black noise) por Tricia Rose (1994), aliadas
a outras formas discursivas urbanas como os quadrinhos. Devo acrescentar, ainda, a
estes elementos a busca por novos modos de escritura a partir do que Anízio Vianna
(2005) denomina “poética rap e sua “estrutura episódica”. Estes dois últimos são,
respectivamente, a voz narrativa ecoando o lugar de enunciação do MC (Mestre de
Cerimônia) e a recriação da vida da população da periferia urbana, entrecortada pelas
histórias do mundo da marginalidade para as páginas dos romances de Paulo Lins e
Ferréz.
Devo abrir um parêntese obrigatório sobre a classificação da “poética rap” como
narrativa musical afrobrasileira. O rap foi em suas duas primeiras décadas uma forma
musical exclusivamente negra/afronorteamericana. Sua chegada nas metrópoles
brasileiras se fez pela mesma via, é acolhida como uma produção negra/afrobrasileira e
veiculada dentro e para essa população, demonstrando, assim, a força de uma
manifestação artística e cultural pertencente ao “Atlântico Negro”. O fator agregador da
arte é que ela sempre está aberta a outros agentes, no caso, as parcelas da população das
periferias que não pertencem ao segmento negro/afrobrasileiro. Sendo assim, a “poética
rap” é compreendida como forma aberta. Entretanto, tal abertura possui um limite claro:
espera-se um discurso solidário, pelo menos dentro por parte dos possíveis leitores nas
comunidades da periferia urbana, no sentido político de luta contra a opressão imposta
pela condição subalterna.
Finalmente, o sétimo e último componente é uma atitude que pode ser
considerada neo-expressionista no tocante à construção de personagens. Especialmente
Ferréz retoma o recurso expressionista de que se valeu Lima Barreto em dois romances
artística do grupo Racionais MC’s, avaliando o papel do intelectual negro subalterno. Refiro-me
novamente à dissertação de VIANNA, Anízio (2005), na qual consta um levantamento das estratégias e
da poética Hip Hop e do rap.
113
Clara dos Anjos (1949a) e Recordações do escrivão Isaías Caminha (1949b) nos
quais a alteridade é descrita a partir do destaque ou da exacerbação de características
físicas e psicológicas. Em Clara dos Anjos, de Barreto, temos tal elemento aplicado na
constituição da personagem de Marramaque (CRUZ, 2002)
25
. Em Manual prático do
ódio (2003), Ferréz apresenta sua versão neo-expressionista para a personagem
Neguinho da Mancha na Mão, cuja escolha de apelido já é indicativa do destaque dado.
Como será também demonstrado no próximo capítulo, tais narrativas visam
romper o muro do silêncio constantemente construído ao redor desses sujeitos. Por isso,
que venha o ruído...
Passo agora à breve introdução de CDD, exemplo de narrativa que denomino
literatura ruidosa. Paulo Lins, em seu romance publicado em 1997, escolhe
personagens vinculadas ao mundo do crime para fiar a narrativa, nomeando os
capítulos, respectivamente: 1- A história de Cabeleira; 2- A história de Bené e 3- A
história de Zé Pequeno. O espaço geográfico do conjunto habitacional Cidade de Deus é
recriado no enredo a partir dos anônimos moradores que cruzam os descaminhos dessas
três personagens.
Cabeleira lidera a formação de marginais que passou a ser conhecida como Trio
Ternura, numa referência ao grupo vocal negro, das décadas de 60 e 70. Algumas
informações sobre a trajetória desse sucesso musical são necessárias, até mesmo para
que se possa compreender melhor a extensão da ironia criada a partir da nomeação do
“trio” capitaneado pelo “bicho-solto”. O grupo torna-se famoso ao acompanhar o cantor
negro Tony Tornado, no ano de 1970, com a música “BR-3”, vencedora do Festival
25
Refiro-me à minha dissertação de mestrado Lima Barreto: a identidade étnica como dilema na qual
foi analisado esse aspecto, referente à utilização de um viés expressionista por Lima Barreto, para que se
constituísse a personagem Marramaque em Clara dos Anjos, um homem deformado fisicamente e que
atuava como rábula. Isso fez com que as pessoas o chamassem, irônica e pejorativamente, de “doutor”.
114
Internacional de Música
26
. Detalhe importante que, de certo modo, deixou o Trio
Ternura de fora da denominada soul music brasileira, muito embora seguissem moldes
estéticos da música negra norte-americana de então: eles surgiram no bojo da Jovem
Guarda, conhecido momento da música popular do Brasil que ficou marcado por uma
postura despolitizada. Talvez por essa posição desconectada das condições da
população negra da periferia do Rio de Janeiro, o apelido de Trio Ternura tenha sido
dado ao grupo marginal, formado por Cabeleira, Marreco e Alicate. Para completar a
“desconexão” com a periferia, o grupo gravou a música “Por isso eu digo: Brasil eu
fico” (ANEXO F, autoria de Fábio/Paulo Imperial compacto de janeiro de 1971
gravadora CBS), numa alusão ao lema do governo Médici, “Brasil, ame-o ou deixe-o”.
É evidente que a denominação dada aos “bichos-soltos” remete à negativa
notoriedade adquirida por eles devido à vida na trilha do crime. Mesmo que a origem do
apelido não tenha sido vinculada a uma crítica à ditadura, fica ainda mais visível o
divórcio entre a realidade e a imagem do ideal de nação desejada pelo regime militar à
época. A utilização do mesmo nome para dois grupos” tão díspares o trio musical e
aquele que atormentava o conjunto habitacional de Cidade de Deus reforça o efeito
irônico provocado pela escolha da comunidade e seu reaproveitamento pela narrativa.
O anonimato povoado em apelidos dos mais diversos serve de contraponto a
qualquer tentativa de hegemonia da narração: ali a alteridade pulula como nunca. Essa
mesma alteridade que somente teve seu registro, além das manchetes e dos inquéritos
policiais, nas páginas do romance de Paulo Lins. O termo-valise “pobreza” não é
suficiente para definir a complexidade da violência quando as alteridades se deparam
26
O trio musical era formado por Jussara, Jurema e Robson. O grupo teve seus álbuns, seguintes ao
sucesso da apresentação de “BR-3”, produzidos por Raul Seixas. O Trio Ternura era um dos três grupos
vocais de grande projeção na mídia da época formado por cantores negros. Seus concorrentes diretos
eram os cantores da família Corrêa, membros dos Golden Boys e do Trio Esperança, esse último formado
por Evinha, Marizinha, Márcio e Regina que alternou participação com Márcio.
115
frente a frente. Muitas das vezes, porém, o último embate/abate é solucionado com
disparos ou lâminas atingindo alvos humanos.
O texto de CDD rememora mais outra diáspora: os moradores de favelas da
zona sul carioca são desalojados em massa e alocados no recém criado conjunto
habitacional popular que, inspirado em Santo Agostinho, recebe o nome de Cidade de
Deus. Mais do que homenagear a comunidade local, ao nomear o livro de modo
homônimo, o título da narrativa talvez indague a quem aquela cidade” pertence: se diz
respeito a Deus ou às personagens. A violência aumenta a tensão e o volume da voz
narrativa à medida que vão desaparecendo das ginas os rastros de Cabeleira, Bené e
Pequeno. Girando no mesmo redemoinho surgem outras personagens que se auto-
devoram e consomem seus des-semelhantes. Essa expressão surgiu ainda da
necessidade de incorporar o conceito de “morte social” (PATTERSON, 1982) advindo
da antropologia para a literatura.
A representação dos habitantes do conjunto habitacional sob a forma de
personagem ganha outra dimensão a partir da narrativa de Paulo Lins (1997) em CDD.
É necessário acrescentar as noções de “lugar” e “espaço”, relativas à escrita
autobiográfica na América hispânica abordadas por Sílvia Molloy (2003). Estou
transpondo aqui conceitos utilizados para analisar um romance que expõe de forma
radical as fraturas do espaço urbano e consequentemente da memória que se denomina
brasileira. Não somente um fio narrativo e o “espaço”, por sua vez, está convertido
em vários “lugares”. Ao contrário das narrativas que se preocupam com a memória de
uma coletividade como os exemplos expostos por Molloy –, o narrador presente neste
romance é o biógrafo não-autorizado. Ele revelará histórias que a cidade maior, o Rio de
Janeiro, faz tudo para que se tornem invisíveis. O desejo de pertencimento àquele grupo
não se faz presente, em parte, no texto de Paulo Lins. Da mesma maneira que as
116
personagens de Plínio Marcos (1978), em Quando as máquinas param, o constante
desejo de se livrarem daquela condição estanque. Nenhum deles é favelado somente por
própria escolha... Veja o episódio lançado em forma de flash back, contando parte da
história da luta de uma ex-moradora da favela de Macedo Sobrinho, em busca de um
futuro diferente para seus filhos:
(...) sua mãe conseguia uma casa em Cidade de Deus logo nos
primeiros dias de sua fundação, depois de ir ao Mário Filho, na época
das grandes enchentes, passando-se por flagelada.
Iria de qualquer jeito para a Cidade de Deus. Ter água encanada para
poder fazer comida e tomar e ter luz em casa facilitaria sua vida,
mesmo tendo que acordar de madrugada para trabalhar: deixaria
comida pronta para as crianças e que Nossa Senhora do Sagrado
Coração de Jesus tomasse conta delas. Sim, iria abandonar a Macedo
Sobrinho, lugar que desgraçara sua vida, lugar de bandidos
desalmados que dão armas paras as crianças saírem por fazendo
besteiras. Confiava em Deus, que Eduardinho iria aquietar o facho
longe dali, daquele inferno.
Mudou-se para uma casa em Cima, levou consigo a esperança de
bonança que nunca sairia de seu sonho, a disposição de levar a vida
sozinha com os três filhos, a determinação de fazê-los pessoas de
bem, nem que parasse de dormir e comer e somente trabalhasse.
(CDD: p. 185-186)
Esta é uma das muitas histórias dentro das três narrativas vinculadas às
personagens de Cabeleira, Bené e Pequeno. O modo aparentemente sem importância
com que surge em meio às investidas dos “bichos soltos”, que parecem predominar na
cena ficcional, não deixa que o leitor capte de pronto o verdadeiro peso dessa espécie de
mini-crônica no romance. Esse tipo de narrativa é uma das várias “gêneses” que
compõem a totalidade de CDD. O espaço geográfico-ficcional é convertido em
“Portugal Pequeno”, conjunto habitacional Cidade de Deus e, à medida que os novos
moradores chegam, surgem denominações como “Lá em Cima”, “Lá em Baixo” e
“Apês”. Todos esses nomes encaixam-se no conceito de “lugar” (MOLLOY, 2003) e
117
são índices que indicam fraturas da comunidade, em seu mais precioso ponto: a
memória. Os moradores do conjunto, como essa senhora sem nome ou sobrenome, mãe
de três filhos, partiram de um local de exclusão – a favela.
O pensamento daquela personagem, como o narrador o apresenta ao leitor, é o
de não-pertencimento à condição quase eterna de excluídos e o desejo de transformar
seus filhos em “pessoas de bem”. Note-se que a mulher se anula completamente,
pretendendo inocentemente, “deixar de dormir e comer e somente trabalhar”. Curioso
notar que suas maiores preocupações se voltam para o filho que lhe mais trabalho.
Sua escolha pela nulidade se torna absurdamente concreta quando o narrador revela a
forma carinhosa com que ela chama o filho: “Eduardinho”. O leitor verá, ao longo do
enredo de CDD, que todo esse sacrifício por parte da personagem fracassa, pois essa
senhora tem como um de seus filhos ninguém menos que Eduardinho, Dadinho ou
simplesmente: Zé Pequeno...
As figurações presentes na narrativa que recria o conjunto habitacional da
Cidade de Deus (Rio de Janeiro-RJ) parecem sofrer, durante todo o tempo em que
decorrem as diversas tramas, de uma constante tensão que conscientiza tais personagens
da ausência de “lugares protegidos” e “lugares privilegiados” dos quais se poderia
“inscrever gestos de restauração comunitária” (MOLLOY, 2003: 269). A
impossibilidade desta “restauração” esbarra num obstáculo radical: a violência. O
deslocamento de corpos que criou o conjunto não respeitou, de maneira alguma, as
histórias daquelas comunidades de onde eles foram deslocados e a narrativa incorporou
esse aspecto. A “neo-favela” transforma-se, desse modo, na exacerbação do
deslocamento forçado das populações pobres e negras em sua maioria, fato que vinha
sendo denunciado pelo escritor Lima Barreto, no início do século XX, quando esse
processo de limpeza etno-geográfica (retirar os negros e os “pobres” das áreas centrais
118
do Rio de Janeiro) seus primeiros passos. A estagnação espaço-econômico-
identitária
27
, presente também na peça de Plínio Marcos (1978), ganha em Cidade de
Deus contornos extremamente dramáticos, nunca antes alcançados. O número de
personagens como de e Nina
28
, em Quando as máquinas param, se multiplica de
maneira não vista até então. Vale ainda lembrar que a noção de “deslocamento”
proposta no texto de Sílvia Molloy (idem, p. 270) difere radicalmente do ocorrido para
que fosse criado o espaço de Cidade de Deus (conjunto habitacional).
Esse outro “deslocamento” narrado no livro de Paulo Lins tem lugar dentro da
mesma cidade e não é feito por um “Ulisses” joyceano apenas. São corpos das
alteridades mais diversas, organizados em famílias que se separaram e bandos
criminosos que se mesclam, irmanados somente pela necessidade de se sobreporem à
violência de outros grupos. A “neofavela de cimento” (LINS,1997: 17) é resultado
desse neodeslocamento excludente, imposto por mais um “ciclo” de neomodernidade
aqui compreendida como sucessão de tentativas para preencher vácuos e/ou falhas
deixadas em processos de modernização. Tanto o casal e Nina, de Plínio Marcos em
Quando as máquinas param, quanto a pletora de outras personagens de Paulo Lins
resistem, cada um à sua maneira, à exclusão. Resta agora mostrar um dos muitos
silêncios provocados pela parada das máquinas na “neofavela”.
Ivete Walty (2005, p. 25) retoma a observação de que é impossível a “contenção
da diversificação almejada pelo planejamento da cidade moderna”, isto é, as alteridades
urbanas se mostrarão, mesmo quando excluídas. Um dos componentes principais desse
27
Expressão que aqui significa tanto formas de imobilidade geográfica (impossibilidade de se mudar para
um local em melhores condições), quanto de classe (permanência numa mesma categoria de trabalho e/ou
subemprego sem perspectiva de mudança) e, por fim, da categorização como grupo social: “os pobres”,
“os desempregados”, “os marginais”...
28
A peça de Plínio Marcos traz dois personagens e Nina que disputam entre si o exíguo espaço de
felicidade no casamento acossado pelo desemprego e, consequentemente, pela escassez de recursos
financeiros e oportunidades. O casal mergulha no vórtice não-solidário e o lado mais fraco, Nina, sofrerá
todo o peso da violência praticada por Zé, seja psicológica e/ou física. A cena final é o ápice de todas as
violências: Nina, grávida, leva um soco de seu marido justamente na barriga.
119
processo de retomada de visibilidade é, sem dúvida, a violência. O silêncio se impõe
após os disparos que atingiram o corpo de Cabeleira:
Deitou-se bem devagar, sem sentir os movimentos que fazia, tinha
uma prolixa certeza de que não sentiria a dor das balas, era uma
fotografia amarelada pelo tempo com aquele sorriso inabalável,
aquela esperança da morte ser realmente um descanso para quem se
viu obrigado a fazer da paz das coisas um sistemático anúncio de
guerra. Aquela mudez diante das perguntas de Touro e a expressão de
alegria melancólica que se manteve dentro do caixão. (LINS: 1997,
202)
A figura de Cabeleira denota como sua alteridade é fixada por uma
característica física, uma metonímia. Longe de defini-lo, seu nome, como o de outros
personagens, parecia indicar um estranho aspecto: todos eles eram superfícies de
possibilidades, a vida por um fio a cada instante. O fragmento-episódio assim
denomino cada pequena história dentro de outras mais amplas que relata o fim do
marginal tem início à página 200. A denominada “paz das coisas” é transformada em
prenúncio de guerra e se assemelha àquela tranquilidade que reina, momentaneamente
no “olho do furacão”. Mas, similar à condição real da tempestade, as “paredes”
moventes do furacão se deslocam e o centro da tormenta nunca se fixo. São essas
paredes que atingem o corpo da personagem, simbolizadas pelas balas da arma do
policial Touro.
O silêncio de Cabeleira diante das perguntas remete à sentença capital: “Falha a
fala. Fala a bala” (idem, p. 23). Esta sentença se transforma em mote, substituindo-se às
vezes a palavra bala por lâmina. Em Cidade de Deus, as máquinas não produzem outra
coisa senão “presuntos”. Ali, são elas: o revólver calibre 38, a pistola 45 automática, a
escopeta calibre 12 e a metralhadora, esta última apelidada de “xereca” – um dos nomes
populares atribuídos ao órgão sexual feminino por um policial (idem, p. 173). A única
coisa que se sobrepõe ao estrondo destas máquinas é o choro das mães. Para Cabeleira,
120
entretanto, o leitor fica apenas com a “mudez” tranquila que acompanha o corpo da
personagem no caixão. Permanece ainda a incômoda indagação sobre a quem
pertenceriam, de fato, aqueles espaços da CDD. A voz narrativa que desponta nas falas
de personagens das mais diversas parecem disputar, além de uma nesga de dignidade, o
direito sobre a literatura ruidosa da violência.
A perspectiva interna dos narradores que suturam as rias trajetórias das
alteridades que compõem a periferia dos grandes centros urbanos brasileiros revela uma
atitude estética que atua, performaticamente, diante do que Homi K. Bhabha (1998)
denomina “uma negociação complexa”. Essas narrativas trazem vozes
preferencialmente silenciadas ou representadas sob a forma de estereótipos atuando
em conjunto etnia/raça, classe e gênero pela literatura canônica que, como foi
destacado a partir do conceito de “literatura silenciosa”, age sob as condições do embate
cultural “consenso/ dissenso” (SOLLORS, 1986), “antagonismo/afiliação” em Homi
Bhabha (1998). Ainda segundo Bhabha:
O “direito” de se expressar a partir da periferia do poder e do
privilégio autorizados não depende da persistência da tradição; ele é
alimentado pelo poder da tradição de se reinscrever através de
contingência e contraditoriedade que presidem sobre a vida dos que
estão na “minoria”. O reconhecimento que a tradição outorga é uma
forma parcial de identificação. Ao reencenar o passado, este introduz
temporalidades culturais incomensuráveis na invenção da tradição.
Esse processo afasta qualquer acesso imediato a uma identidade
original ou a uma tradição “recebida”. Os embates da fronteira acerca
da diferença cultural têm tanta possibilidade de serem consensuais
quanto conflituosos; podem confundir nossas definições de tradição e
modernidade, realinhar as fronteiras habituais entre o público e o
privado, o alto e o baixo, assim como desafiar as expectativas
normativas de desenvolvimento e progresso. (BHABHA, 1998: 21)
Re-encenar o passado e, ao fazê-lo, trazer para a narrativa contemporânea da
violência “outras temporalidades culturais incomensuráveis”, provocará assim uma
tensão permanente tanto em relação à tradição quanto à modernidade. O que está sendo
121
aqui analisado não pode correr o risco de ater-se às dicotomias. Bhabha chama a
atenção justamente para o fato dos embates culturais carregarem em si o conflito e o
consenso, às vezes, simultaneamente. Interessa-me, a princípio, apontar as trocas entre
as cargas de “contingência” e “contrariedade”. Gostaria, contudo, de apropriar-me
desses dois últimos conceitos e acrescentar-lhes dados da complexidade que tanto
envolve a produção de subjetividade, bem como àquela que diz respeito aos mais
diversos registros artísticos.
É necessário, especialmente no caso brasileiro e, em certa medida, nos casos
latino-americanos e caribenhos, lembrar que mecanismos representados pelas questões
de raça/etnia, de gênero e de classe se interconectam, às vezes, na formação da condição
de subalternidade. E isso nem sempre ocorre de forma explícita, devido a um fator como
a “democracia racial”, para citar um exemplo. A literatura ruidosa atua no sentido de
interpelar uma suposta homogeneidade das literaturas contemporâneas nacionais no que
diz respeito à representação da alteridade subalterna urbana. Dessa maneira, tal
concepção literária traz em seu bojo a “contingência” e a “contrariedade”: o primeiro
item se refere à intenção de fazer parte de uma literatura contemporânea nacional (o
termo “afrobrasileiro” aplicado às artes é um exemplo disso) e, o segundo, seria seu
caráter ruidoso de interpelação e rompimento com o silêncio dos acordos,
principalmente aqueles em que o subalterno não passaria de um elemento coadjuvante.
A literatura ruidosa que constitui duas das narrativas que integram esse estudo
se caracteriza, ainda, pela releitura de figuras de linguagem como a metonímia, a
coisificação e a zoomorfização. Dessa maneira reiteram a escrita de Lima Barreto e
outros autores afrodescendentes: a cada vez que tais recursos surgem em textos
canônicos, invariavelmente, atingem de modo bastante preconceituoso as mais diversas
alteridades, sejam estas relacionadas à raça/etnia, à questão de gênero ou à classe social.
122
Basta recordar obras como O demônio familiar, peça teatral de José de Alencar, e O
cortiço, de Aluísio de Azevedo, para citar dois clássicos exemplos sempre presentes nos
programas de literatura do Ensino Médio e Superior. Tal releitura de modos de
representação é feita a partir da “dupla consciência” de pertencimento tanto ao
“Atlântico Negro” quanto às tradições literárias da “Euro-América” – a língua e a forma
são ocidentais
29
. Outra característica marcante da literatura ruidosa é possuir lugares de
enunciação eminentemente urbanos, o que chama a atenção para a constituição de
alteridade bastante complexa, por flutuar, no mínimo, entre as questões de raça/etnia,
gênero e classe.
A Gênese de CDD
(...)
Já que nasci feio, sou temido
Já que nasci pobre, quero ser rico
e assim meu corpo oculta outros
que ao me verem se despiram da voz
Voz solta virando grito
Grito louco ao som do tiro
Sou eu o dono da rua
O rei da rua sepultado vivo no baralho
desse jogo
O rei que não se revela
nem em paus
nem em ouro
(...)
(LINS, Paulo: in CEBRAP, 1989)
A oportunidade de escrever um trabalho final de disciplina sobre performance
afro-brasileira, valeu-me um convite para publicação e começava a se delinear a partir
daquele artigo a pergunta sobre quem seria o “deus” em CDD. O tema escolhido me
29
Devo ressaltar que os conceitos “Atlântico Negro”, “Euro-América” e “Atlântico Norte” serão re-
apropriados nesse estudo levando-se em consideração as especificidades tanto das obras literárias
estudadas quanto das questões e do debate sobre raça/etnia, gênero e classe no tocante à realidade
brasileira contemporânea.
123
direcionou a uma comparação entre poesia afro-brasileira e a manifestação da memória,
da identidade e história. Decidi analisar, a partir do conceito de performance, uma faixa
do álbum de João Bosco, intitulada “Gêneses”, que englobava uma música homônima e
mais duas bastante conhecidas do grande público: “Ronco da cuíca” (ANEXO C) e
“Tiro de misericórdia” (ANEXO D)
30
. Das três composições a que escancarava a
resposta era exatamente a última. O verso de Aldir Blanc gritava... mas, curiosamente,
veio diante de meus olhos o trecho do romance que mencionava o histórico Charles 45.
Caía outra ficha – a música “Charles, Anjo 45” também passou a soar em meus ouvidos.
Porém, ainda faltava um elo que conectasse todas essas referências. E ele se
materializou num poema escrito pelo próprio Paulo Lins (1989) e publicado na Revista
Cebrap. Tudo muito confuso? Hora de colocar os pingos nos “i”s.
O poema sem tulo dialoga diretamente com as letras produzidas por Aldir
Blanc, e aqui citadas, para as músicas de João Bosco. Embora seja possível relacionar
tais composições com o lema criado por Helio Oiticica – “Seja marginal, seja herói” – o
clima apresentado pelo poema de Lins é calcado em veio oposto à ideia de glamorização
da marginalidade. Não que a proposta de Oiticica fosse exatamente o fácil elogio da
criminalidade, mas ele deve ser lido em seu contexto histórico e político os nada
agradáveis “anos de chumbo”. Os três primeiros versos do poema contêm uma leitura da
origem da marginalidade, cuja ideia também se faz presente, em trechos de textos de
autores como Gabriel, o Pensador em seu rap classe média “Pátria que te pariu” e com
Fernando Bonassi em O pequeno fascista (2005). Essas são as palavras de Lins que
possuem eco” nos referidos autores: “Fui feto feio feito no ventre do Brasil/ estou
pronto para matar/ que sempre estive para morrer (...)”. Mais do que intertexto para
outros artistas, o poema em questão pode ser lido também como um prenúncio do
30
Cf. / CRUZ, 2007.
124
romance Cidade de Deus, publicado por Lins oito anos depois. Trafega ainda no mesmo
sambódromo de letras a música “Pivete”, de Chico Buarque e Francis Hime, “Meu
guri”, também de Chico Buarque e os roteiros de Pixote, a lei do mais fraco (1981) e de
Querô (2006). Porém, os versos catalisadores de Paulo Lins conseguem ser mais duros e
precisos, numa espécie de interface entre o sambalanço “suingado” de Jorge Ben em
“Charles 45”, o canto-e-violão afro-beat de João Bosco/Aldir Blanc, o rap dos
Racionais MC's, as letras sofisticadas de Chico Buarque, o rap digerível de Gabriel, o
Pensador. Ao metamorfosear-se em romance, o poema serviu de filtro para todas as
narrativas em verso a música popular é a nossa versão poético-contemporânea do
texto épico que, por sua vez, contribuíram de alguma forma para a gênese de CDD
(1997). A “estrutura episódica” (VIANNA: 2005) está multiplicada nos passos da voz
poética que se divide em ações no poema. No romance, no entanto, se torna pletora... e
não estou falando de alegria...
A epígrafe abre-alas é retirada de um poema publicado por Paulo Lins nos
Cadernos CEBRAP vinte anos, como mencionei. Os versos não se encontram
acompanhados de um tulo, parece não caber mais nada naquele texto poético banhado
num afluente de imagens da rua de qualquer grande centro urbano brasileiro. E esse
poema dialoga diretamente com outro “poema” que narra uma origem, a letra de
“Gênese”, de Aldir Blanc com música de João Bosco
31
. A música serve de introdução às
narrativas que se desenrolam em “O ronco da cuíca”, “Tiro de misericórdia” e em “As
escadas da Penha”. O mote dessas narrativas musicadas está presente no enredo de
Cidade de Deus (1997), bem como no poema de Paulo Lins: o mundo regido pela
31
Gênese - Quando ele nasceu/ foi no sufoco.../ Tinha uma vaca, um burro e um louco/ que recebeu seu
sete.../ Quando ele nasceu/ foi de teimoso /com a manha e a baba do tinhoso. / Chovia canivete... /
Quando ele nasceu / nasceu de birra... / Barro ao invés de incenso e mirra, / cordão cortado com gilete... /
Quando ele nasceu / sacaram o berro, / meteram a faca, ergueram ferro... / exu falou: ninguém se mete! /
Quando ele nasceu / tomaram cana, / um partideiro puxou samba... / Oxum falou: esse promete... In
BOSCO, João. João Bosco ao vivo – 100ª apresentação. Faixa 7. Phillips; Polygram. Brasil, 1989.
125
violência e pelo crime. Outra coincidência: tanto o poema de Lins quanto o show de
João Bosco vieram a público no ano de 1989. Diferentes maneiras de escrever um
prelúdio ao clima de guerra não declarada que vivia a “cidade partida” do Rio de
Janeiro. Não há meio melhor de amplificar o diálogo do que trazer o poema completo:
Fui feto feio feito no ventre do Brasil
estou pronto para matar
já que sempre estive para morrer
Sou eu o bicho iluminado apenas
pela fraca luz das ruas
que rouba para matar o que sou
e mato para roubar o que quero
Já que nasci feio, sou temido
Já que nasci pobre, quero ser rico
e assim meu corpo oculta outros
que ao me verem se despiram da voz
Voz solta virando grito
Grito louco ao som do tiro
Sou eu o dono da rua
O rei da rua sepultado vivo no baralho
desse jogo
O rei que não se revela
nem em paus
nem em ouro
Se revela em nada quando estou livre
renada quando sou pego
pós nada quando sou solto
Sou eu assim herói do nada
De vez em quando revelo o vazio
De ser irmão de tudo e todos contra mim
Sou eu a bomba humana que cresceu
entre uma voz e outra
entre becos e vielas
onde sempre uma loucura está para acontecer
Sou seu inimigo
Coração de bandido é batido na sola do pé
Enquanto eu estiver vivo
todos estão para morrer
Sou eu que posso roubar o teu amanhecer
por um cordão
por um tostão
por um não
Me meço e me arremeço (sic) na vida
lançando-me em posição mortal
Prefiro morrer na flor da mocidade
do que no caroço da velhice
Sem saber de nada me torno anacoluto insistente
Indigente nas metáforas de tua língua vulgar
126
Que não se comprometeu
Pois a minha palavra
( a bela palavra )
Inaugurada na boca do homem, a dama maior do
artifício social
perdeu a voz
Voz sem ouvido é mero sopro sem fonemas
É voz morta enterrada na garganta
E a pá lavra vida muda no mundo legal
me faz teu marginal
Mas o assunto aqui” é literatura, “vim aqui por isso”... Duas expressões se
destacam nesse texto“sepultado vivo” e “bomba humana” – e a primeira delas remete
exatamente a duas criações literárias das décadas iniciais do século XX: Recordações do
escrivão Isaías Caminha e o derradeiro Cemitério dos vivos, ambos escritos por Lima
Barreto. E Recordações o personagem Isaías se descobre “invisível” e percebe que
outros de sua cor, mas sem os mesmos recursos “culturais”, são mortos que caminham,
tomando de empréstimo a expressão de Orlando Patterson (1982), estariam mortos
socialmente. Já, em o Cemitério dos vivos, o que se apresenta é a reunião de outros
“mortos sociais” confinados nas fixas galés do hospício. Quanto à segunda, muito antes
da popularização do “homem bomba” como arma de guerra, Paulo Lins apresenta um
eu-lírico que se atrevia a mergulhar nas mais turvas águas e trazer à tona o desespero
que aguardava o momento mais oportuno para eclodir. Ele é “bomba humana”
exatamente por ter consciência de sua “morte social”, mais um neo-emparedado em
vida “no baralho do jogo” cuja regra mais ferina é a exclusão que cria formas cada vez
mais inescapáveis de não-existência. A aliteração escancarada no verso inicial do poema
“Fui feto feio feito no ventre do Brasil” irá ecoar no romance, pois esse “feto feio
crescerá sem direito à fala. Falhando a fala, o poema já prevê o desfecho: “Enquanto eu
estiver vivo/ todos estão para morrer”. E uma importante elipse nesses versos, o
127
adjetivo “sepultado”... Quando for possível perceber sua ausência, poderá ser tarde
demais.
O poema, no entanto, traz outra interessante possibilidade de leitura, pois ao
final, a voz que se enuncia parece mudar de “dono”: deixa de ser somente a “fala”
do “sepultado vivo” e passa também a ser a “fala” daquele que escreve o texto, o autor,
o poeta. Esse interessante exercício é retomado constantemente no romance Cidade de
Deus (1997), o narrador vai alternando, de acordo com a necessidade requerida em cada
história apresentada, com a “fala” a personagem. O uso da “bela palavra” como
“artifício social” não é desejado num mundo no qual o “papo tem que ser reto”, sem
“meias-palavras” e “negaceios” como desejam os setores hegemônicos da sociedade. As
narrativas anunciadas pelo poema de Paulo Lins e pelas músicas de João Bosco e Aldir
Blanc serão compostas, a partir de então, pelo ruído, “suplemento” para a “bela
palavra”.
A voz do escritor e intelectual afro-brasileiro
A revista Caros amigos (2003: 30-35) trouxe uma entrevista de Paulo Lins que
revela um pouco do estilo “preto bomba” que compõe parte dos intelectuais afro-
brasileiros. A expressão se refere ao modo direto de pontuar determinadas observações
no calor dos debates e discursos, mesmo quando o clima nem é tão tenso assim...
Porém, falar sobre questões como exclusão social nas suas mais diversas formas
torna-se campo minado, principalmente quando o debate se encaminha para tratar das
regiões periféricas dos grandes centros urbanos. A referida publicação destacou a
seguinte frase do texto da entrevista para compor a chamada de capa: “Tem pouco
128
bandido no Brasil”, acompanhada da foto do escritor. Entre os entrevistadores se
encontrava também outro autor da literatura ruidosa, o paulistano Ferréz. As
declarações dadas por Paulo Lins corroboram boa parte das escolhas estéticas aplicadas
ao romance.
Destaco, além da bombástica frase, outra menção do autor em relação à
intelectualidade brasileira, pertencente ou não ao meio universitário, que possui como
forte característica a prática de permanecer fora dos grandes debates políticos e/ou
culturais, como se realmente fosse de todo possível segregar tais instâncias. O
intelectual e o autor parece se revezar para cada resposta dada aos entrevistadores.
Numa dessas “trocas” fica patente o movimento pendular entre o desejo do intelectual –
expor a realidade no texto literário e o limite do escritor que não pode trazer por
completo o real para a literatura, pelo risco de transformar o romance em documentário
ou reportagem. Mas é exatamente esse ponto que apresenta uma questão embutida e que
fica sem resposta: a mudança de nome de personagens após a adaptação do livro para o
cinema. A obrigação em modificar os registros considerados ficcionais, por se tratar
claramente de um romance, demonstra a fragilidade do estatuto de “intocável” que vem
sendo, há séculos, pleiteado pela literatura.
Ao contrário de outros artistas, os processos judiciais contra Paulo Lins não
foram motivados pela leviana e hipócrita acusação de “apologia ao crime” e sim porque
alguns moradores do conjunto habitacional foram impelidos a requerer “compensação
financeira” por alguma similaridade com personagens do romance. A gota d’água que
transbordou o copo das reivindicações foi justamente a adaptação fílmica que, ao final
da montagem, acrescentou imagens de entrevistas dadas a um jornal televisivo de
grande audiência, pelas “pessoas reais” envolvidas nos confrontos das gangues do
agora, internacionalmente conhecido, bairro e conjunto habitacional carioca. Não por
129
acaso, o ponto-de-vista narrativo utilizado no filme é radicalmente oposto ao do livro,
pois os diretores optaram por um ponto de vista “fotográfico” das histórias. Não uma
visão fotográfica qualquer, mas aquela que parte exatamente da imprensa, veiculando
sempre a imagem de uma periferia como “localda violência, da pobreza, da ausência
do “Estado de Direito” – o que justifica as constantes ações da polícia.
O intelectual afro-brasileiro relata alguns fatos de sua vivência, adaptados em
conteúdos literários, como a frase “posso chegar a presidente da república”, lançada
pela personagem Vanderley (um militar da brigada de paraquedistas do Exército
Brasileiro) ao discutir com o detetive Touro, num dos bailes do clube frequentado pelos
moradores da CDD. Paulo Lins, antes de se formar em Letras na UFRJ, foi fuzileiro
naval e como ele mesmo declara na entrevista, deixou a vida militar por não se adaptar
ao meio: excesso de disciplina e a manutenção da não menos fabulosa democracia
racial” (“Negro e índio, soldado até sargento, oficial é tudo branco”; ao responder se
haviam negros no regimento...)
32
.
Não é por acaso que a representação das forças militares no romance,
especialmente a polícia (militar e civil) repete a sensação popular sobre tais
corporações. Escrito ainda nos estertores da ditadura, na chegada do movimento
“Diretas Já”, o romance incorpora a rejeição da população da periferia à ação truculenta
das polícias. Nesse ponto, a literatura ruidosa, mesmo não trazendo os dados
“impublicáveis” como afirma o próprio escritor, imprime no mundo da “bela palavra”
parte do ponto-de-vista subalterno que ora permanece invisibilizado. E esse mesmo
subalterno ao ser exposto pela chamada “imprensa marrom”, aparece apenas como uma
32
(Caros amigos, 2003, p. 32). O relato de Paulo Lins corrobora com a cena descrita no início do século
XX no romance Recordação do escrivão Isaías Caminha, na qual a personagem de Isaías observa a
passagem de um pelotão e da banda do corpo de fuzileiros: “praças de um país” (“batalhão de cipaios”:
guarda colonial formada por africanos), enquanto os oficiais eram brancos em sua totalidade. Cf. CRUZ,
2002.
130
forma de consolo, para mostrar à classe média como seus problemas são de fácil
solução, se comparados àqueles dos moradores dos conjuntos habitacionais das
periferias. Desse modo, o narrador criado por Paulo Lins aproxima-se da ética fluida e
opressora que rege o mundo de suas personagens. Porém, insisto. A literatura ruidosa
não anda desacompanhada...
Cidade de quem?
A invisibilidade pode também ser pensada em relação a esse “rei”, porque seu
corpo “oculta outros corpos”, todos sedentos de desejo e ele não quer apenas ter sua
existência reconhecida: anseia soltar a voz em volume nada agradável, sons de grito e
tiro. Atrevo-me a um palpite abusado em relação ao livro Cidade de Deus (1997): o
romance nasceu literariamente no poema publicado na revista acadêmica mencionada
anteriormente, pois parece ser ali que principia o processo de se diferenciar o texto
literário do registro documental antropológico. Simultaneamente ao ato de diferenciação
através da escrita, possibilita algo inusitado ao trazer à tona da representação de “outros
corpos” despidos de vozes, note-se bem. Não destituição, desnudamento, numa
operação bastante diversa daquela apresentada por Machado de Assis em “O espelho”.
O exato momento no conto, em que os escravos subitamente se ausentam da cena de
enunciação, é que se faz ouvir de maneira radical e ensurdecedora a voz desses
“outros”. Assim, o narrador cai em si e desce as escadas com veludo nos tamancos”
(ANEXO E)
33
. A partir do romance de Paulo Lins, as estratégias opostas de Machado
de Assis e Lima Barreto podem ser também pensadas como precursoras do que
33
CÉSAR, Chico. “Respeitem meus cabelos, brancos” (2002: faixa 1. CD de áudio).
131
denominei literatura ruidosa. o apenas devido aos tiros narrados, pois eles se
tornariam estampidos bastante comuns se não fossem acompanhados do “auxílio
luxuoso” dessa voz e sua nova poética, num misto de revolta e razão.
A narrativa de Paulo Lins em Cidade de Deus caminha no intuito de estremecer
o conceito de transposição do real para a ficção, bem como da constituição de sujeitos
de representação nas palavras de Paulo Jorge Ribeiro (2003) sobre o romance do
escritor carioca. Não seria abusivo lançar mão, adiante, de uma longa citação do
referido artigo. É imprescindível fazê-lo devido à fissura, ela novamente, exposta, mas
simultaneamente ignorada. E a partir da reflexão de Ribeiro, farei as conexões
necessárias com os textos críticos de Edouard Glissant e Sandra Contreras:
Acredito que daqui possa alinhavar o que evoquei anteriormente
como uma zona de contato. Segundo Pratt (1999: 27), as zonas de
contato são “espaços sociais onde culturas díspares se encontram, se
chocam, se entrelaçam uma com a outra, frequentemente em relações
extremamente assimétricas de dominação e subordinação, onde estes
encontros são marcados por diálogos provisórios e localizados entre
os atores envolvidos”. Cidade de Deus marca esta provisoriedade de
posições, debates e articulações em sua recepção, ampliando o que
Foucault chamou de “princípio de refração de um discurso”. “O
novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta”
(1996: 26). Como pode ser facilmente discernível nestas
problematizações, todas as polêmicas sumariamente destacadas acima
têm de levar em consideração as apropriações que Cidade de Deus
envolve e seus respectivos posicionamentos políticos e as resistências
a estas apropriações. Artefatos culturais como Cidade de Deus não
mais conferem espaços para a constituição de sujeitos fixos ou
genéricos de representação. Tanto sua eficácia política, estética e
cultural como seus agenciamentos estão hoje claramente
condicionados pelos lugares que ocupam em suas redes de
enunciação, em suas especificidades históricas.
O fragmento anterior é extremamente útil devido aos seguintes destaques:
primeiro, inicio pelo acerto teórico relativo à “constituição de sujeitos fixos”; segundo,
o fator “zonas de contato”; terceiro, a questão do “princípio de refração do discurso”,
132
que por assim dizer, afetaria a recepção crítica do livro de Paulo Lins. A referência a
Foucault oculta, no entanto, uma prática do discurso da “democracia de acordos”, pois
intenta ignorar o enunciado subalterno/periférico. Dessa forma, é possível deslocar a
atenção do receptor para o ambiente social de sua própria leitura ou recepção,
procurando, assim, deixar no limbo do esquecimento a fala que emerge e foge ao
controle do centro.
Modifiquei arbitrariamente a ordem em que tais pontos surgem no texto de
Paulo Jorge Ribeiro. Como utilizo alteridades e não apenas “sujeito” da representação,
busco reforçar a ideia de um conceito não monolítico e que possa transitar pela
multiplicidade de personagens que surgem numa narrativa como Cidade de Deus. O
próximo item refere-se às “zonas de contato” pelas quais trafegam a narrativa. Terá se
tornado o texto de Paulo Lins uma destas conturbadas “zonas” de encontro entre
culturas? E mais, seriam tais culturas às quais se referiu Edouard Glissant (2005)
“Meso-América”, “Euro-América” e “Neo-América”? E como se comporta a questão do
real se pensada a partir de uma narrativa como essa, tendo em vista as considerações de
Sandra Contreras (2005: 26) a respeito de uma literatura que, talvez, “não quer conhecer
a realidade, quer fazer realismo”, um realismo que problematize a própria representação
que a alteridade tem recebido pela literatura, brasileira nesse caso, até então?
O espaço narrativo em que se transformou o conjunto habitacional de Cidade de
Deus parece carregar consigo uma forma diferente de “zona de contato”, marcada sim
por relações de poder assimétricas e extremamente arbitrárias – ali os subalternos
estabelecem e talvez mimetizem modificando-a para uma utilização eficaz na “neo-
favela” a hierarquia que cerca suas fronteiras. Os “rastros/resíduos” (GLISSANT,
2005: 85) da “Neo-América” encontram-se bastante difusos e em permanente contato
133
que ocorre não sem atritos com a “Euro-América”
34
. referências aos rituais do
campo da religiosidade afro-brasileira, “citações” que ocorrem sem uma plena
consciência por parte das personagens. Vale lembrar que todas elas, sem exceção,
encontram-se limitadas ora pela “linha de cor”, ora pela linha da pobreza, ora por
fronteiras das relações de gênero reforçando desse modo a importância cultural ou do
pertencimento a uma comunidade que cultue e conserve, de algum modo, por exemplo,
aspectos de práticas religiosas afrodescendentes.
É justamente em CDD que essa “zona de contatose torna mais agressiva, pois
está representada ali, de forma muito mais explícita, a junção entre a “Euro-América” e
o “Atlântico Norte” (Sérgio Costa, 2006)
35
. Isso é especialmente apresentado no desejo
das personagens pela obtenção de bens de consumo, um sinal quase irrefutável, na
narrativa, de acesso à cidadania. A existência social se materializaria, por assim dizer,
através do consumo e, na ausência deste último, não apresenta outro caminho a não ser
aquele da violência. “Euro-América” + “Atlântico Norte” estariam presentes, também,
através da “juventude branca da Cidade de Deus” (LINS: 1997, p. 227), representada
pelo grupo dos “cocotas”. Mais adiante no enredo, esse grupo ganha um grande
admirador e novo adepto: o traficante Bené. Veja o ritual de autoinclusão criado” pelo
próprio:
Sou playboy! dizia Bené a todos que comentavam sua nova
indumentária. Tatuou no braço um enorme dragão soltando
labaredas vermelhas pelo focinho, o cabelo ligeiramente crespo
foi encaracolado por Mosca. Sentia-se agora definitivamente
rico, pois vestia-se como eles. O cocota pediu a Mosca que
comprasse uma bicicleta Calói 10 para que pudesse ir à praia
34
Tais conceitos se referem à divisão feita por Glissant, baseada nos entrelaçamentos culturais e políticos
da cultura européia com outras práticas do referido campo, nativas das Américas e do continente africano.
A “Euro-América” seria o Quebec, o Canadá, os Estados Unidos e uma parte (cultural) do Chile e da
Argentina. A “Neo-América” desenvolve-se nos espaços de crioulização: Caribe, nordeste do Brasil, as
Guianas e Curaçao, o sul dos EUA, a costa caribenha da Venezuela e da Colômbia e uma grande parte da
América Central e do México. A “Meso-América” se refere aos povos autóctones. (Glissant: 2005, p. 13-
14).
35
Cf. p. 41 do capítulo um – “A mercadoria da crueldade”.
134
todas as manhãs. Rico também anda de bicicleta. Iria freqüentar
a praia do Pepino, assim que aprendesse o palavreado deles. Na
moral, na moral, na vida tudo é uma questão de linguagem.
Alguns bandidos tentaram fazer chacota do seu novo visual. O
traficante meteu a mão no revólver dizendo que não tinha cara
de palhaço. Até mesmo Pequeno prendeu o riso quando o viu
dentro daquela roupa de garotão da Zona Sul. (LINS: 1997, p.
278)
A condição de existência social implicando em consumo parece ser a estratégia
simplista da personagem. As marcas em seu corpo são impressas pelo próprio traficante
e não pelas balas de algum tiroteio com bandos rivais ou mesmo a polícia. Tatuagem na
pele, cabelo modificado e novas roupas. Dessa maneira, a personagem cria uma espécie
de alter-ego em pleno desenrolar da narrativa. Há uma frase capital que aponta para a
interferência do narrador: “na vida tudo é uma questão de linguagem”. Aqui ocorre um
flash que ilumina momentaneamente a disputa pelo direito à fala e à constituição de
alteridades no interior da narrativa da violência. Quando outras personagens, entretanto,
tentam interferir na metamorfose de Bené, acirra-se a virulência da linguagem, e
reassume o mote do início do romance: se falhar a fala, falará a bala.
No trecho em questão, o ato de “encaracolar” o cabelo é antológico, pois
representa uma das várias maneiras de lidar com os obstáculos que cerceiam àqueles
que possuem “cabelo crespo” e pele não branca. Não pode ser lido como ato de
maquiagem, talvez esteja mais próximo de um modo de “tradução”. Quem assume tal
“escrita” é, como mencionado, a própria personagem. A passagem da estética do
“Atlântico Negro” para o “Atlântico Norte” não ocorrerá na tranquilidade suntuosa de
acordos polidos. Além de romper o clima descontraído que parecia se mesclar à cena, o
relato funciona com o intuito de criar o que Contreras (2005: 19) denomina “produção
de um efeito de real”. A transposição de Bené traficante para Bené Zona Sul é eficaz
135
imageticamente, tanto que a capa da segunda versão modificada do livro lançado à
ocasião do filme homônimo – traz uma foto da sorridente personagem após a mudança.
Entretanto, há uma frase no trecho que é de uma perspicácia ferina. É a sentença
que se refere à consciência por parte da personagem ou do narrador? sobre o poder
que a linguagem exerce nas relações entre os espaços anteriormente mencionados. Ao
ser emitida no bojo de uma descrição das novas vestimentas adquiridas pela
personagem Bené, a sentença “Na moral, na moral, na vida tudo é uma questão de
linguagem” poderia permanecer “invisível”. Contudo, a “questão de linguagem” está,
naquele momento, apontada para uma espécie de escrita com e no corpo atuante na cena
apresentada. Quando a alteridade derivada do “Atlântico Negro” não é facilmente aceita
pela sociedade que a sitia e não outra palavra para indicar a situação de localidade
de algumas alteridades presentes nas periferias das metrópoles – esta mesma deve
buscar outra maneira de se inscrever/escrever. o por acaso esse outro modo é
vinculado à “Atlântico Norte”. A ação de encaracolar os cabelos significa uma tentativa
de apagamento dos “rastros/resíduos” do “Atlântico Negro” do corpo de Bené. Pode-se
encaracolar os cabelos, vestir roupas de grife, mas isso tudo ainda não é suficiente para
“clarear” a pele...
Outro exemplo de tentativa de modificação do vestuário por parte de uma
personagem marginalizada está presente em Clara dos Anjos (1949a), de Lima Barreto.
O trajeto de um malandro bem peculiar o “vilão” Cassi Jones, um misto de bufão e
personagem trágico pela cidade do Rio de Janeiro revela as estratégias camaleônicas:
vestir-se ao modo das pessoas que transitam e habitam a parte mais respeitável da
cidade. No entanto, sua mudança é malograda pelo resultado caricatural do arremedo de
roupas e trejeitos. Enquanto Cassi Jones não é recebido/percebido da maneira que ele
esperava pelos habitantes do “outro” Rio de Janeiro, a personagem Bené, em CDD,
136
também sofre consequências dessa perspectiva caricatural. Porém, ao contrário de Cassi
Jones, ela possui outros “argumentos” que silenciam, por exemplo, o debochado riso de
Zé Pequeno: armas de fogo.
O embate entre os conceitos de Glissant (2005) se apresenta em CDD como uma
disputa no âmbito da narrativa e suas personagens. Essa “neo-área” nascida a partir de
uma fazenda que remonta o passado escravista (“Nas terras dos senhores, edificaremos
um novo lugar.” CDD: 17) aglutina uma pletora de vidas que habitavam favelas da
cidade do Rio de Janeiro e da Baixada Fluminense. A maioria dessa população é de
afrodescendentes e pertencentes a outros grupos deslocados pela precariedade, como os
nordestinos, por exemplo. A provisoriedade e a rapidez com que tudo aquilo foi
constituído mapeiam de maneira diversa as identidades: agora, nenhuma delas se coloca
de forma fixa e fechada, mesmo que, conscientemente, escape alguma atitude de
confronto com a alteridade. O antigo “Portugal Pequeno” é denominado Cidade de
Deus”. Porém, quando outra violência se instaura, aquela ligada ao crime comum, num
primeiro momento, e, com o passar dos anos se torna a mais grave de todas (a guerra
financiada pelo tráfico de drogas). A pergunta que título a essa parte do capítulo
insistirá em permanecer: a quem pertence essa cidade?
Memória e Recordação: nomeações do passado
A gênese do enredo de CDD, no tocante à escolha do narrador, ocorre
simultaneamente no campo da memória individual através da história da personagem
Busca-Pé – e da memória coletiva das diversas comunidades representadas pelos grupos
de moradores das antigas favelas e ocupações em “áreas nobres” na cidade do Rio de
137
Janeiro. Enquanto a memória se institui de modo a delinear um coletivo difuso no
sentido de perda dos antigos laços de identidade construídos no convívio cotidiano nas
comunidades de origem de cada grupo de moradores –, a recordação é o modo que
alguns indivíduos lançam mão para recuperar os elos, na tentativa de preencher os
espaços lacunares que consomem as possibilidades de identificação com o passado, nem
tão distante assim, vivido nos antigos locais de moradia. Curiosamente, a divisão das
pessoas de acordo com esse parâmetro – o espaço em que residem – acaba por remeter a
outras formas de organização. É interessante notar que uma forte necessidade de
pertencimento a uma agremiação (escola de samba, torcida de futebol, uma congregação
religiosa, por exemplo) ou a um bairro ou localidade (o morro do Livramento).
Contudo, tal premência afeta principalmente àquelas pessoas abaixo das linhas de cor,
classe e gênero, para citar as mais relevantes à análise dessa representação em CDD. A
alteridade, compreendida como diferença, particularização para os antigos moradores
dos morros e favelas do Rio, sofre um choque de equalização: agora todos são os novos
residentes do conjunto habitacional. A narrativa corrobora com essa sensação vivida
pelos personagens:
Os grupos vindos de cada favela integraram-se em uma nova rede
social forçosamente estabelecida. A princípio, alguns grupos
remanescentes tentaram o isolamento, porém em pouco tempo a força
dos fatos deu novo rumo ao dia-a-dia: nasceram os times de futebol, a
escola de samba do conjunto, os blocos carnavalescos... (CDD: 1997,
p. 35)
A importância das agremiações foi crucial para uma retomada de algo próximo à
“normalidade”. Esse processo doloroso de criação de uma nova “familiaridade” surge
no âmbito coletivo: futebol, escolas de samba e blocos carnavalescos. O lócus de
recuperação e recriação da memória coletiva se concentra numa subdivisão do que
138
denomino ethos do prazer e do entretenimento: tanto as partidas de futebol quanto as
escolas de samba e blocos carnavalescos possuem um limite de tempo que possibilita
seus membros retornar para as atividades produtivas. Assim, funcionam como válvulas
de escape dentro das quais é possível exercitar toda alteridade refreada no eito moderno,
ou como querem os “bichos-soltos”, a “vida de otário”. A alternativa a esse modelo de
retomada da memória é apresentada pelo narrador com a personagem Busca-Pé.
A cena que dispara as lembranças de Busca-Pé marca uma linha que separa dois
conceitos: recordação e memória. O primeiro deles se encontra vinculado ao “Atlântico
Negro” + “Neo-América”, pois trata da reconstituição do passado a partir da voz
subalterna. Devo obrigatoriamente retomar Lima Barreto, porque é devido às
Recordações do escrivão Isaías Caminha (1949a) que surgiu a ideia de redefinir o ato
de rememoração por parte da alteridade marginalizada. Quanto ao termo memória
refiro-me ao ato de historicizar o espaço que é, hoje, o conjunto Cidade de Deus. Isso
ocorre por parte da voz oficial, os registros da interferência da sociedade via Estado, que
estão representados na narrativa pela afirmação dos “homens daquele carro de chapa
branca” (CDD: 17): transformar as “terras dos senhores” em um “novo lugar”. Os
excertos da recordação da infância pelo jovem Busca-Pé sinalizarão a divisa a que me
referi:
(...) Repousou o olhar no leito do rio, que se abria em circunferências
por toda sua extensão às gotas de chuva fina, e suas íris, num zoom
de castanhos lhe trouxeram flash-backs: o rio limpo; o goiabal que,
decepado, cedera lugar aos novos blocos de apartamentos, algumas
praças, agora tomadas por casas; os pés de jamelão, assassinados,
assim como a figueira mal-assombrada e as mamoeiras; o casarão
abandonado que tinha piscina e os campos do Paúra e Baluarte
onde jogara bola defendendo o dente-de-leite do Oberom deram
lugar às fábricas. Lembrou-se, ainda, daquela vez que fora apanhar
bambu para a festa junina do seu prédio e tivera que sair voado
porque o caseiro do sítio soltara os cachorros em cima da meninada.
Trouxe de volta ao coração a pêra-uva-maçã, o pique-esconde, o
139
pega-varetas, o autorama que nunca tivera e as horas que ficava nos
galhos da amendoeira vendo a boiada passar. Remontou aquele dia
em que seu irmão ralou o corpo todo, quando caiu da bicicleta no
Barro Vermelho, e como eram belos os domingos em que ia à missa e
ficava até mais tarde na igreja participando das atividades do grupo
jovem, depois o cinema, o parque de diversões... (CDD: 12 grifos
meus)
A disputa pelos “corações e mentes” em CDD sinaliza o embate ocorrido na
“neo-favela” do mundo real. A marca de um momento decisivo está no início da
narrativa e trata das recordações da personagem Busca-Pé. A exemplo do que está
presente em MPO, a cena primordial”
36
, que acumula os diversos gatilhos a serem
disparados no futuro, encontra-se na infância. A referida cena de Busca-transcorre
por quase duas páginas e, se “tudo é uma questão de linguagem” (CDD, p. 278) de
acordo com o que atravessará os caminhos de outra personagem, o leitor deve atentar
para os verbos utilizados quando o gatilho da recordação é acionado (CDD, p. 12-13).
São estes: “repousou”, “lembrou-se”, “remontou”. Cabe destacar as sentenças
compostas por expressões como “... suas íris, num zoom de castanhos, lhe trouxeram
flash-backs” e “trouxe de volta ao coração...” Tais verbos e expressões denotam a
parcela da infância em que a consciência da violência que ocupava boa parte de sua vida
passava despercebida. Porém, a transparência dessas imagens irá se turvar:
Era infeliz e não sabia. Resignava-se em seu silêncio com o fato do
rico ir para Miami tirar onda, enquanto o pobre vai pra vala, pra
cadeia, pra puta que o pariu. Certificava-se de que as laranjadas
aguadas-açucaradas que bebera toda a sua infância não eram tão
gostosas assim. Tentou se lembrar das alegrias pueris que morreram,
uma a uma, a cada topada que dera na realidade, em cada dia de fome
que ficara para trás. Recordou-se de dona Marília de dona Sônia e de
outras professoras do curso primário dizendo que, se estudasse
direito, seria valorizado no futuro, porém estava ali desiludido com a
possibilidade de conseguir emprego para poder levar seus estudos
adiante, comprar sua própria roupa, ter uma grana para sair com a
36
Cornejo Polar, 2000.
140
namorada e pagar um curso de fotografia. Bem que as coisas
poderiam ser como as pessoas afirmavam, pois se tudo corresse bem,
se arranjasse um emprego, logo, logo compraria uma máquina e uma
porrada de lentes. Sairia fotografando tudo o que lhe parecesse
interessante. Um dia ganharia um prêmio. A voz de sua mãe
chicoteou sua mente:
Esse negócio de fotografia é pra quem tem dinheiro! Você tem é
que entrar pra Aeronáutica... Marinha, até mesmo pro Exército, pra
ter futuro garantido. Militar é que com dinheiro! Não sei o que
você tem na cabeça, não! (p. 12-13 – grifos meus)
A mudança de tom é drástica e surge a sentença “Doeu pensar na mosquitada
que sugava seu sangue... durante a primeira e a segunda infância”, seguida pela
constatação Era infeliz e não sabia”. O verbo “certificar” aparece diante da certeza do
presente em relação ao excesso de açúcar e água em seu suco de fruta, distantes no
tempo em que fora criança, nunca possuíra o sabor agradável que ele pensara ter. Os
elogios da professora devido a sua habilidade e inteligência para os estudos e, para
agravar ainda mais, seus sonhos com a carreira de fotógrafo se esvaíam sob o chicote”
da voz de sua mãe. O “conselho” de sua mãe apontava na direção de uma carreira
militar, como ainda acontece principalmente nas famílias de afrodescendentes,
majoritariamente estagnadas entre a “linha de cor” (Du Bois, 1994) e a “linha de classe”
integrando a grande parcela da população que se encontra presa no fosso de todos os
indicadores sociais.
Podem-se identificar os verbos vinculados às recordações de parcos momentos
em que sua auto-estima era articulada por felicidades fugazes como o “pêra-uva-maçã”,
as partidas de futebol e o discurso quase inacreditável de sua professora devido à sua
inteligência. Assim, semelhante a Isaías Caminha, criado por Lima Barreto (1949b),
Busca-Pé parece não ter direito à sua própria memória, sendo deslocado somente para
os clarões das recordações de sua infância. A memória por sua vez permanece atada ao
discurso “Atlântico Norte” e que, paradoxalmente, escoa pelo som do chicote
141
mimetizado na voz de sua própria mãe. A experiência dos antepassados de Busca-Pé
também se torna presentificada pelo verbo “chicotear”, re-instituindo uma “cena
primordial” no tocante à diáspora dos povos africanos nas Américas. O chicote torna-se
a própria linguagem, dispensando artefatos de couro animal ou outro material que valha
para dar cabo à tarefa.
A memória permaneceria assim comprometida sempre com as lembranças das
bases do processo civilizatório. Essa possessão se impõe através da linguagem
primeiramente, renomeando o território e tudo que ali se encontra (Tzvetan Todorov,
1993). Entram em cena duas novas definições que diferenciam o conceito de “espaço”
daquele de “lugar” (Gabriela Nouzeilles, 2004). O primeiro refere-se a “uma dimensão
abstrata e quantificável”, enquanto o segundo pode ser “entendido como unidade
espacial híbrida, marcada por experiências e aspirações de vários sujeitos sociais”.
Portanto, “espaço” e memória ficariam sob o escopo de um mapeamento singular, que
visa apagar os “rastros/resíduos” (Glissant, 2005) da experiência vinculada ao
“Atlântico Negro” + “Neo-América”. O “lugar” relativo ao latifúndio é soterrado pelas
obras do conjunto habitacional, permanecendo, quando muito, a lembrança dos antigos
senhores na velha nomeação do território: “Portugal Pequeno”, a residência temporária
dos que sempre almejavam o retorno à Península Ibérica.
A vivência do regime de trabalho escravo o participa da memória, pois
permanece nos “rastros/resíduos” não apenas culturais, mas conectados à violência. Não
interessa à recordação apenas o que Homi Bhabha (1998) denomina “reconhecimento
outorgado por parte da tradição”. E o embate entre tais experiências se acirrará cada vez
que a “contradição” reduzir a margem de participação da contraditoriedade” (idem). O
desejo de Busca-Pé em torno da carreira de fotógrafo é parte dessa última ação. O
chicote colocado na voz de sua mãe, absurdamente ecoa o movimento de “contradição”,
142
obedecendo aos ecos do fantasma do “sinhô” internalizado. Isso, também, é violência...
Encontros limites com a alteridade passam a ser a norma e não mais a exceção.
A “cena primordial” da recordação é rompida pela intromissão dos efeitos
nefastos causados diante da visão do rompimento da bolha de crime no conjunto
habitacional de Cidade de Deus: “(...) notou que a água do rio encarnara. A vermelhidão
precedera um corpo humano morto. (...) Vermelhidão esparramando-se na correnteza,
mais um cadáver. As nuvens apagaram a montanha por completo” (CDD, 1997: 14). A
outra cor que se apresenta para compor o quadro é aquela que deixa o dia acinzentado.
E nessa coloração as lembranças se turvam estampando nas ginas iniciais do enredo,
acontecimentos pertencentes aos desfechos que atingirão cada grupo de personagens.
Assim, a parte relativa à história de Cabeleira condensa e serve de incubadora à guerra,
à “bala perdida a se achar em corpos inocentes”, às escaramuças entre os bandos em
busca de vendetta, como no caso de Mané Galinha, e à tomada das bocas-de-fumo dos
concorrentes. A angustiante coleção de recordações, que desfiou até quase rasgar o
íntimo de Busca-Pé, compunha a “cena primordial” deslocada no fio temporal do
enredo. Todo aquele féretro aquático colocava sob o mesmo plano os corpos, as
sanguessugas, “calças Lee, tênis Adidas”, a pouca ou a inexistente importância daquelas
vidas e o desespero dos sobreviventes. O recurso do flash back permitiu que a
“vermelhidão” das águas fosse narrada no período da infância de Busca-Pé e
Barbantinho, quando um “bicho solto” enfrenta um caminhão repleto de soldados da
PM e morre alvejado (CDD: 92-93). Repete-se a expressão que representa o desespero
dos garotos diante daquela atrocidade corpo boiando na água repleta de lixo e que
marca, juntamente com modificação da cor das águas: “Sem calçarem os chinelos,
saíram correndo, dando ao vento lágrimas que tantos olhos prometeram” (CDD, p. 93).
143
Ao se tornarem adolescentes, no entanto, nada de lágrimas diante do retorno da cena,
indesejado deja vu. Não por indiferença, mas por desespero...
A narrativa se desenvolve, então, a partir dessa cicatriz inscrita no tecido, que
segue re-mapeando com suturas a memória retalhada por incisões do esquecimento. A
saudade do “Portugal Pequeno” é revirada com os cortes no terreno para a fundação da
moradia moderna, não que para os recém-chegados representasse a inclusão na
modernidade. Significava exatamente o oposto: a exclusão neo-higienista que
amontoava longe do centro e da zona sul cariocas a população negra/afro-brasileira, os
retirantes nordestinos e demais migrantes internos, prisioneiros da categoria de
“pobres”. Nessa análise, tomo os “homens do carro chapa branca” e a constante
presença da polícia como alegorias do Estado brasileiro. Portanto, outras personagens
derivadas dessa categoria, como a escola e hospitais, não fazem parte das possibilidades
de protagonismo.
É curioso notar que a escola como alternativa à violência e ao narcotráfico
encontra-se representada explicitando a fragilidade e o pouco ou nenhum poder de
transformação que ela possa trazer à vida daquelas personagens. Em CDD, apenas a
personagem de Busca-Pé parece procurar se beneficiar direta ou indiretamente do
conhecimento que, porventura, possa adquirir na escola:
Está certo que a companhia dos amigos do colégio era muito
satisfatória, mas quando estava na companhia dos cocotas da favela
também se sentia à vontade, ria-se gostoso das besteiras faladas,
gostava de se encafuar no mato para fumar maconha com eles. E o
baile? O baile era divertido: todo mundo de calça abaixo da cintura,
camisa reng teng, dançando e mascando chiclete. O pessoal da escola
não entendia porque Busca-Pé tatuou o corpo e parafinou o cabelo.
Silvana sempre pedia que ele mudasse seu modo de vestir, acabasse
com aquelas gírias de favelado, que era bem-apresentado, tinha
estudo e convivia com pessoas ali do Méier, bairro onde se situava a
escola. Busca-Pé argumentava qualquer coisa e mudava o rumo da
conversa, mas no fundo concordava com a namorada, pois os cocotas
144
eram rudes, detestavam música popular brasileira. A maioria nunca
tinha assistido a um show, teatro nem pensar. Diziam que Caetano e
Gil eram viados (sic), Chico Buarque era comunista, Gal e Bethânia,
sapatonas. Papo bobo, não tinham sensibilidade para entender as
metáforas das canções, não sabiam nem o que era metáfora. (CDD,
2007: 184)
Busca-Pé é a personagem que no início do enredo tem um sonho: ser fotógrafo –
uma profissão mergulhada no mundo da arte. E esse desejo não se construía do nada,
pois como está exposto no trecho, ele se diferenciava radicalmente do grupo de jovens
que frequentava, por um olhar e ouvidos atentos a outras imagens e sons. Esse interesse
abriu novas perspectivas para a personagem, mesmo em meio ao caldo de violência,
exclusão e ódio que o cercavam. Isso parece se configurar num tênue escudo que o
diferencia em relação ao grupo dos “cocotas” e a seus colegas de pequenas aventuras na
área próxima ao conjunto, como Barbantinho, por exemplo. Interessante perceber ainda
que a personagem Busca-Pé não se deixa levar facilmente por um apelo “consumista”
que fascina, por exemplo, a Bené. Contudo, ele não resiste a duas tentações tatuando o
corpo e “parafinando” o cabelo, talvez buscando maior aceitação no grupo da
“juventude branca da Cidade de Deus” (CDD, 1997: 227).
Não posso deixar de chamar a atenção do leitor para as solicitações da namorada
de Busca-Pé: “Silvana sempre pedia que ele mudasse seu modo de vestir, acabasse com
aquelas gírias de favelado, que era bem-apresentado, tinha estudo e convivia com
pessoas ali do Méier...” (CDD, 1997: 184). Aproveito os argumentos apresentados pela
personagem para explicitar três linhas de comportamento que regulam a visibilidade da
diferença. O vestuário, a fala calcada no estudo, e o contato com pessoas que moravam
num “bairro” – e não em um “conjunto habitacional” eram itens que obrigatoriamente
passavam a moldar o “novo” Busca-Pé. Ironicamente, parecia ser mais importante não
ultrapassar as três linhas do que possuir “identidades”, “pontos de identificação” com
145
cada um dos grupos que constituía as vivências daquele adolescente. As escolhas a esse
respeito passam a sofrer forte pressão externa. Entretanto, Busca-Pé parece lidar de
maneira engenhosa, não decide a luta através do confronto direto e consegue sobreviver
aos invisíveis obstáculos. A invisibilidade destes se molda justamente na tenuidade do
discurso, por isso “linhas” e não “barreiras”. Busca-Pé sobrepõe-se à violência por
possuir o dom de várias falas e cria desse modo várias passagens, acessos a outras
alteridades dentro da própria narrativa.
Costura narrativa: referências a cultura afro-brasileira e popular urbanas
Surpreendeu-me positivamente o número de entradas ligadas a cultura afro-
brasileira e popular urbanas, especialmente presentes na primeira parte do romance. É
possível traçar através delas a leitura a partir de outro fio narrativo que não o da
violência, o que salientaria de sobremaneira a questão da representação da alteridade.
Importante notar que não uma preocupação por parte do narrador em criar uma
hierarquia ao apresentar tais aspectos ao leitor. Outro ponto crucial em relação a essas
menções culturais é o seu gradual “desaparecimento”, à medida que a violência passa a
dominar os fragmentos de vida das personagens do enredo referente ao crime. Quais
referências estariam, então, colocadas como componentes de importância estratégica?
Esperava-se que o mundo do samba se sobressaísse na pletora de entradas
culturais. No entanto, como a própria narrativa indica, bastante espaço para a
televisão, o rádio, o carnaval, o forró, que se não se hierarquizam sob a marca do juízo
de valor, indicam pertencimentos geográficos-identitários das personagens. Um
exemplo disso é o aparelho de rádio ligado e lançando ao ar a voz de Luiz Gonzaga,
146
quando o policial nordestino ia ao encalço de Cabeleira e outros “bichos-soltos” (CDD,
p. 153). A primeira entrada do que denomino elementos de cultura popular urbana no
plano da narrativa, se faz para apresentar a diversidade da população que passa a habitar
o recém-criado conjunto habitacional. O trecho traz um rol em prosa, separando por
vírgulas os diversos itens de uma coleção bastante peculiar, na qual estão:
(...) revólveres, orixás enroscados em pescoços, frango de despacho,
samba de enredo e sincopado, jogo do bicho, fome, traição, mortes,
jesus cristos em cordões arrebentados, forró quente para ser dançado,
lamparina de azeite para iluminar o santo, fogareiros, pobreza para
querer enriquecer, olhos para nunca ver, nunca dizer, nunca, olhos e
peito para encarar a vida, despistar a morte, rejuvenescer a raiva,
ensanguentar destinos, fazer a guerra e para ser tatuado. Foram
atiradeiras, revistas Sétimo Céu, panos de chão ultrapassados (...)
(CDD, p. 17-18)
O excerto da listagem de particularidades reúne mais uma vez o que Homi
Bhabha denomina o embate constante entre a “contradição” e a “contraditoriedade”, que
pode ser também interpretado como o confronto agônico entre o “Atlântico Negro” e o
“Atlântico Norte”. O pólo da “contradição” e, por consequência do “Atlântico Norte”, é
feito de “revólveres”, jesus cristos em cordões arrebentados” e as “revistas Sétimo
Céu”.
As três alegorias podem ser interpretadas como a colonização e ocupação do
território, representadas pela arma de fogo e pelo crucifixo, enquanto a publicação sobre
as frivolidades referentes à vida dos artistas da recém-chegada televisão, vale como
alegoria para mais outra etapa de cunho modernizador. A “contraditoriedade” e o
“Atlântico Negro” encontram-se nos “orixás enrolados em pescoços”, “samba de enredo
e sincopado”, “jogo de bicho” (invenção “nacional” para arrecadar fundos para o
zoológico do Rio de Janeiro, jogo que mais tarde torna-se contravenção), “lamparinas
147
de azeite para iluminar o santo” (tanto ao afro-brasileiro quanto ao católico, sendo
assim, um elemento de fronteira) e no “forró quente para ser dançado” elemento que
não se configura especificamente como produção afro-brasileira e, mesmo tendo sua
origem no espaço do latifúndio monocultor, permanece no grupo da cultura popular.
Note-se que nessa primeira lista ficam de fora outros estilos de música e a TV
propriamente dita, mesmo que essa última tenha sido citada indiretamente, cabendo,
contudo acrescentar que a referida revista trazia também a chamada fotonovela”, uma
forma narrativa extinta definitivamente com a massificação das novelas televisivas.
A “contraditoriedade” e o “Atlântico Negro” representam, por sua vez, formas
de ruído que nomeiam essa literatura, compreendendo que aqui tal nomeação não é
tomada como ausência de comunicação no âmbito da linguagem e da cultura e, sim,
como constituinte necessário à representação literária da alteridade subalterna. Já a
expressão “peito para encarar a vida” busca de algum modo concretizar vontade nos
corpos das personagens para a viagem pelas traiçoeiras tramas do enredo, na ânsia de
“despistar a morte”. A barbárie prevalece nos momentos em que se ausenta a cultura...
Paulo Lins (CDD, p. 131-136) reescreve o conto “A cartomante” (MACHADO
DE ASSIS, 1994) em versão atualizada, com componentes da cultura afro-brasileira.
Essa história é uma das muitas que costuram a trama principal a trajetória de
Cabeleira, Bené e Zé Pequeno. O episódio do triângulo amoroso é recontado com
personagens bastante diferentes daquelas criadas pelo “bruxo do Cosme Velho”. A
cartomante é substituída por uma “mãe-de-santo”, traduzindo o elemento representativo
do oráculo para a cultura afro-brasileira. O casal burguês e branco é substituído por dois
cearenses, sendo que o homem é trabalhador da construção civil e retorna ao lar, às
vezes, “antes das cinco”. O terceiro elemento da relação adúltera é um peixeiro. A
pessoa que conselhos à jovem cearense sobre as maravilhas da vida sexual é sua
148
vizinha. Ela torna-se a alcoviteira da esposa infiel e também lhe indica o terreiro de
umbanda. A explicitação do tema da sexualidade demonstra a diferença de abordagem
quanto ao trato do corpo e do prazer. É essa quinta personagem que não se encontra
presente no conto original. Já o neo-oráculo a recebe em transe, permitindo a “presença”
surpreendente de um “sexto personagem, a voz da pombagira
37
. Nenhum dos
personagens dessa história possui nome próprio à exceção da porca pertencente ao casal
de cearenses: Margarida.
Mesmo com uma característica dessas o narrador não demonstra distanciamento
dos fatos, pois conhece e seleciona todos os detalhes que, para o leitor de páginas
policiais, seriam os mais relevantes. E o outro final acatártico se joga sobre o espectador
ao desfecho da mini-trama desse fragmento-episódio, anunciado previamente pelo
espancamento da esposa ao solicitar do marido uma “variação” para a rotina íntima do
casal. O narrador remonta à certeza da cartomante (do conto de Machado) sobre a não
desconfiança do marido, com a sarcástica observação da pombagira em relação ao
reforço da confiança do cearense em sua mulher, à medida que esta intensificasse os
encontros com o peixeiro.
Outro ponto de contato entre a releitura e o texto machadiano, dessa vez não
explícito, é a referência à peça Hamlet, de William Shakespeare. Paulo Lins faz opção
por um índice que remonta não apenas o adultério da ficção shakespereana que deságua
na tragédia do príncipe da Dinamarca, mas ao escolher um peixeiro “negro” como
personagem do triângulo amoroso, remete a Otelo, o mouro de Veneza. A tragédia de
Otelo é cometer assassinato sem a menor comprovação de suas suspeitas sobre
Desdêmona. o personagem cearense, criado por Paulo Lins, mantém o código de
37
Muitas representações icônicas da pombagira referem-se a uma mulher vestida com blusas e saias
típicas de ciganas, criando desse modo uma espécie de tradução da cartomancia para o universo afro-
brasileiro.
149
honra vigente em sua terra de origem, o sertão nordestino. Mas, há a possibilidade de se
vislumbrar um pensamento do senso comum e do imaginário sobre o homem negro
presente nas duas histórias: o único capaz de satisfazer sexualmente a uma mulher de
forma plena. O cearense é uma projeção do desejo não explicitado de Iago que, em
última instância, seria o intento de eliminar Otelo fisicamente como penalidade à tão
decantada superioridade e permissividade sexual do negro.
Outros triângulos amorosos são utilizados para trazer à tona o fictício mar de
“biografias” não autorizadas, retratando tramas não sutis, pois não diálogos e nem
digressão à guisa da temporalidade do romance burguês. Entre a mera suspeita e a
constatação de adultério propriamente dito a narrativa parece ter predileção, quase
jornalística, de atentar aos fatos cruciais e com desfechos violentos e/ou regados com
requintes de crueldade. E às vezes, não se faz necessária a consulta ao oráculo de
origem afro-brasileira, para que se confirme a sina e mais uma tragédia se inscreva na
página.
Dentre as histórias nas quais estão presentes muitas relações amorosas e
violência, uma se destaca em particular, não por envolver necessariamente um triângulo
amoroso, mas pelo envolvimento de uma mulher, a namorada de Cabeleira, que o
convence a consultar-se no terreiro para obter qualquer sinal que lhe tranquilizasse em
relação à caça e à jura de morte pelo policial Cabeção. Segue o excerto da visita feita
por Berenice e Cabeleira ao terreiro de Osvaldo:
(...) Segunda-feira à noite, Cabeleira foi tomar um passe no terreiro do
Osvaldo:
com medo de morrer, esse menino?! com medo de virar Exu?!?
gargalhava. Quanto tempo faz que você não vem falar comigo?
gargalhava. Eu não cobro a mais do que trato. Dou proteção aos
moços e os moços não liga pra mim. Quando a coisa melhora os
moços esquecem do que eu peço. Mas fui eu quem foi lá no teu sonho
gargalhava. O butina preta com vontade de fazer tua passagem,
mas não ligue não, que ele amarrado no meu pé! disse a
pombagira.
150
Em seguida, pediu ao cambone que escrevesse o nome de Cabeção
num pedaço de papel, atravessou o papel com um punhal e colocou-o
dentro de um copo com cachaça. Deu baforada de charuto no copo,
gargalhou e continuou:
Tu vai ter que enterrar isso aqui em Calunga Grande na segunda-feira
e deixa o resto comigo. Depois de vinte tempo o butina preta vai se
foder na sete encruzilhada que passar. Depois você volta aqui pra falar
comigo. Agora você bebe um pouco disso aqui e pede em pensamento
o que você quer.
Cabeleira pediu proteção das balas, sorte com dinheiro, muita mulher
em sua vida e saúde para ele e a esposa, que, no caminho para o
terreiro, anunciara gravidez. (CDD, p. 160-161)
Interessa-me ressaltar nesse episódio o papel estratégico do terreiro como
espaço privilegiado de manutenção de uma comunidade que está em vias de
esfacelamento devido aos desvios de alguns de seus membros, mais especificamente
aqueles que escolheram a vida do crime. A revelação da gravidez de Berenice, ao final
do trecho, carregaria uma esperança de modificação do comportamento e das escolhas
de Cabeleira. Porém, ele pedira em segredo que seu corpo fosse fechado imune às
balas – dinheiro em demasia e uma profusão de mulheres. O último dos pedidos revela a
ética fluida do “bicho-solto”: desejava saúde para Berenice, pois agora se tornaram um
núcleo familiar. E não por acaso se instala uma linha de comportamento diversa para ele
e outra para a “mãe” de seu filho que, a partir dali, não pode mais ser a única a lhe
proporcionar prazer, pois terá que cuidar de seu futuro “herdeiro”.
A entidade que se apresenta como oráculo para Cabeleira é a pombagira, uma
figura vinculada aos prazeres do corpo e, como mencionei, muitas vezes é
representada como uma cigana. Essa metáfora passa de vez do imaginário para o campo
das artes através da personagem Carmem, imortalizada na ópera de Bizet. No caso de
CDD e a história específica de Cabeleira, a pombagira sinaliza ainda para o modo de
vida no qual o “bicho-solto” nunca deseja se livrar: sempre ter dinheiro e mulheres à sua
disposição. Mesmo sendo relapso com sua forma de fé, Cabeleira é acolhido no terreiro.
151
O que ele parece não se dar conta é que te um preço a ser pago. Transparece um
comportamento semelhante ao doente, que apenas recorre ao médico, quando a situação
está, praticamente, saindo do controle. Ele consegue se livrar de Cabeção, mas esse não
era o único inimigo a lhe perseguir. Seu maior obstáculo era a trajetória que, a ele e a
todos naquele mundo apartado de oportunidades, sempre fora oferecida, de maneira
quase irresistível: a vida regida sob o crivo da violência.
Por sua vez, a resposta da pombagira, ao atender aos pedidos do “bicho-solto”
ainda mimetiza uma estratégia narrativa que aponta para o ethos
38
de cada personagem
e, consequentemente, ao contato desse mesmo elemento com cada “sistema de atitudes”
– aqui representado pelo “Atlântico Negro” e pelo “Atlântico Norte”. Do primeiro
sistema, temos a presença da tradição religiosa afro-brasileira, as rápidas passagens pelo
mundo do samba e da música negra brasileira de Jorge Ben, Gilberto Gil, Wilson
Simonal, Martinho da Vila e Luiz Melodia estes últimos citados em momentos de
confraternização da comunidade, como o baile no clube (CDD: 36), o carnaval (idem:
100-101) e em momentos específicos da história para a personagem Busca-Pé (idem:
184). Reafirmo a importância dessas “entradas”, pois são responsáveis pela quebra do
paradigma de representação da periferia como espaço aculturado, mesmo que surjam em
meio a mais profusa narrativa sobre a violência contemporânea urbana.
o ethos que se vincula ao “Atlântico Norte”, incluindo o mundo do trabalho
capitalista, nesse romance rompe a expectativa de representação ao colocá-lo no mesmo
plano o universo do crime, através da ética fluida de personagens, que se valem da
violência para se incluírem no mundo das benesses da cidadania zona sul,
proporcionadas pela posse de propriedades e bens de consumo. Dentre esse grupo, o
38
O termo é tomado aqui de empréstimo do sentido originário de ação humana individual, acrescida da
ação do “sistema de atitudes”. Deve-se levar em consideração que a “ação” se constitui através da vida
ficcional das personagens, que por sua vez, aproxima o real da ficção por meio do ato da narrativa. O
encarregado dessa operação é o narrador que se torna, por assim dizer, “cúmplice” de cada ação.
152
ethos que sobressai é aquele que servirá de mote ao romance do escritor Ferréz: o ódio.
Ele é a característica gatilho das escolhas feitas pelas personagens de Cabeleira (CDD,
p. 25-26 e p. 51), Marreco (idem, p. 30), Dadinho/Zé Pequeno (idem, p. 77) e, ainda, do
“bicho-solto” conhecido como Grande (idem, p. 206). Em todos esses trechos apontados
a conexão entre a linha da pobreza e a “linha de cor” (DU BOIS, 1903). O narrador
apresenta as pistas que o aproximam do escritor Paulo Lins. Ao ser indagado se não
ficava revoltado com a situação da dead end street (rua sem saída) em que caminhava
grande parte da população das periferias, representadas na população do conjunto
habitacional de Cidade de Deus, respondeu sem hesitar: “Fiquei. Escrevi Cidade de
Deus” (Caros amigos, 2003: p. 34).
O tom pedagógico da narrativa expõe a revolta, o ódio e resultado da governança
imperiosa da violência. Apenas a personagem de Alicate consegue sobreviver ao
desmantelamento do “Trio Ternura” formado por ele, Cabeleira e Marreco. Ao deixar a
vida de “bicho-solto”, a personagem retorna, no término do romance, para confirmar
que sua escolha fora a mais acertada. Outra personagem que nunca flertara com a vida
bandida de maneira a se comprometer a fundo com o mundo do crime é Busca-Pé.
A cultura popular urbana e seus desdobramentos são os índices que pertencem
simultaneamente aos “dois Atlânticos”, o “Negro e o “Norte”, façanha que possibilita
trazer em seu bojo tanto a “contradição” quanto a “contraditoriedade”. Alguns
elementos como a televisão, o rádio e o cinema povoaram a infância das personagens
bem como em seu período de maturidade, às vezes criando ilhas de alívio temporal para
o leitor, assim como nas pequenas passagens em que a música toma conta do ambiente
narrado. As referências aos desenhos animados e seriados de TV na narrativa de CDD
são: National Kid (p. 28), Speed Racer (p. 46), Bonanza, Buffalo Bill e o Zorro (p. 66),
Batman, Super-Homem e o cão Rin Tin Tin (p. 102), Kojak (p. 161).
153
Os hiatos culturais que surgem e se vão no decorrer da narrativa podem servir,
entretanto, como modelo para as perseguições entre a polícia e os “bichos-soltos”. O
que se destaca, num desses episódios, chama bastante a atenção do leitor por ser
exemplo da simultaneidade temporal entre a narrativa que é transmitida pela TV com
aquela decorrente da voz do narrador e das personagens.
Exilados temporariamente no morro do Salgueiro, sob a proteção de Charles
Quarenta e Cinco, os “bicho-soltos” da Cidade de Deus aguardavam que as batidas
policiais cessassem e eles pudessem retornar ao ritmo cotidiano de suas investidas.
Enquanto uma chuva os obrigava a permanecer trancados num dos barracos que
pertenciam ao “Anjo 45”, passavam o tempo diante da TV:
no Salgueiro, Texas Kid subiu para o segundo andar do saloon e
escolheu uma posição com vista panorâmica. Cada vez que colocava a
arma para o lado de fora da janela acertava três homens de Spack,
sempre acima do pau do nariz.
A única opção do bandido era fugir de River Sun City. Desceu as
escadas, seus filhos o acompanharam. Saíram pelos fundos. Texas Kid
não hesitou em segui-los. Ao montar em seu cavalo, uma chuva caiu
de repente e um raio derrubou um poste.
Puta merda! Logo agora que ia ficar quente a porra da luz acaba!
exclamou Cabeleira ao desligar o televisor.
– Aperta mais um aí. Com esse toró, só se endoidando mermo
sugeriu Carlinho Pretinho. (CDD, p. 93)
O nome da cidade habitada por Texas Kid “River Sun City” já se atira
furtivamente diante dos espectadores da cena que, envolvidos pela trama, não podem
perceber a similaridade onomástica entre o Rio de Janeiro e a localidade da TV. O
narrador opta por pregar uma peça no leitor “Lá no Salgueiro, Texas Kid...” ao
anunciar os locais em que a ação se passa. A simulação de simultaneidade entre as
brincadeiras de infância (mocinho X bandido) e a vida de “bicho-solto” continua a ser
narradas, agora, no seriado de televisão derivado dos quadrinhos e dos folhetins baratos
154
vendidos em bancas de jornal. Porém, a magia da ficção é interrompida por um poste
derrubado sob o peso da tempestade de verão chove em River Sun City do Rio de
Janeiro. Cabeleira se irrita com a interrupção, em mais uma cena na qual as personagens
se encontravam aliviadas, sem a presença da violência. A chuva, como em outra
passagem das personagens Busca-Pé e Barbantinho, vem irromper a fronteira entre a
pesada rotina de suas vidas e a momentânea fuga proporcionada ora por um “baseado”,
ora pela TV. Após a tormenta climática, surgirão outras... E todas elas, à guisa de mini-
clímax de cada uma das diversas histórias fragmentadas, deságuam sem misericórdia na
violência. A alteridade é reduzida a um dos corpos abatidos no tiroteio entre Cabeleira e
o policial Cabeção, na troca de saraivadas de bala entre as quadrilhas de Pequeno e
Mané Galinha. Na medida em que os ataques e escaramuças se sucedem, as ilhas de
referências relativas às culturas afro-brasileiras e populares no tocante à religiosidade
e à música vão tornando-se cada vez mais raras. Os versos de uma conhecida música
de Martinho da Vila foram utilizados para a cerimônia de despedida de Bené, numa
releitura do lema fugere urbem: “Moro onde não mora ninguém/ onde não vive
ninguém/ onde não passa ninguém/ É onde moro que eu me sinto bem”. A segunda
parte do livro – “A história de Bené” – termina assim e isso é o que mais se aproxima de
alguma coisa parecida com a ideia de catarse da tragédia grega. Mas, o negócio aqui é o
romance, uma narrativa que promove outro modo de ensinamento: não quer ninguém
aliviado ao final da trama para se encaixar na ordem da polis, porque o intuito da
narrativa é o de provocar inquietude, reflexão. Por isso, o ruído... Por isso, a alteridade
subalterna colocando o dedo no gatilho fictício e disparando a literatura ruidosa na face
dos leitores...
Fiz a escolha proposital de concentrar a análise na primeira e segunda partes de
CDD. Em “A história de Pequeno” desaparecem as referências à cultura, como
155
afirmei. A exceção fica por conta da citação dos seriados Bonanza, Jerônimo, o Herói
do Sertão (narrativa radiofônica), o longa-metragem Roberto Carlos em Ritmo de
Aventura, todos relacionados à página 401, e os versos de um samba de partido alto,
cinquenta e cinco ginas depois. E é só... Sai de cena a cultura. Instala-se de vez uma
barbárie, promovida não raro pela própria civilização capitalista. O agravante é que
aqueles que estão ali mergulhados no ódio, no sangue jurado enquanto correm por becos
e vielas do conjunto habitacional, acabam por desperdiçar uma energia inigualável, caso
fosse utilizada noutra direção que não aquela da violência.
Não por acaso, a versão cinematográfica feita a partir do livro de Paulo Lins
amplifica o clima de caos e desesperança sobre o tema da violência urbana, porque
centra a leitura da narrativa apenas na terceira parte do livro. Assim, as referências
culturais viram adereço de luxo, não permitindo nenhum vislumbre de alteridade, pois o
ponto de vista do narrador é o da imprensa, é o olhar fotográfico de um narrador externo
(uma adaptação do narrador Polaroid) à questão e que não possui outro compromisso
além de apresentar os fatos ocorridos. O roteiro do filme quer ser documentário, quer
ser historiador, ao buscar as raízes da violência urbana brasileira, mas aposta todas as
fichas na culpa da favela, do conjunto habitacional, do bairro de periferia, ecoando a
observação do detetive Touro no baile do clube: “Todo mundo aqui tem cara de
bandido. Quase não tem branco” (CDD, 1997: 39).
A literatura ruidosa inaugurada pelo romance Cidade de Deus (1997) vem
combater, dentre tantos obstáculos, esse tipo de despolitização do debate e da própria
arte. Fazer o quê? Ninguém escapa à sanha da commodity, nem mesmo a literatura
ruidosa que permanece a poucos graus de distância da linha imaginária na qual transita
a mercadoria da crueldade.
156
Resta uma pergunta profundamente inquietante e dolorosa. Quem é o deus da
Cidade de Deus? Volto ao início de minha análise do romance e recorro à letra de “Tiro
de misericórdia”, escrita por Aldir Blanc, e ao poema de Paulo Lins. Enquanto a
personagem Pequeno se iludia diante do poder instantâneo adquirido sob a égide da
eliminação física de seus oponentes, outros deuses se avizinhavam da próxima
oportunidade. Os anti-heróis dos versos de Blanc não são apresentados por completo,
talvez, por conter um remoto desejo de esquerda que esses atores sociais realmente se
rebelassem, seguindo o lema “seja marginal, seja herói”, nascido sob as botas da
ditadura. Contudo, os tempos assinalavam que outra narrativa estava sendo escrita. O
poema de Lins atualiza o “deus de bermuda e pé-de-chinelo” que combatia sob a
proteção do panteão de Orixás. Os garotos da Caixa-Baixa nascem sepultados vivos ou
“mortos socialmente”, adaptando o entender de Orlando Patterson (1986) sobre o
processo de escravização promovido pelo Ocidente e que, penso eu, seja possível
estender para esses tempos de miséria globalizada: não são mais corpos, novamente são
“peças”, “coisas”. A personagem de Cabeleira (CDD, 1997: 25) repete o verso
necessário à conclusão do raciocínio “Tô pra matar e morrer” , inaugurando o
ódio que vai se multiplicando exponencialmente através dos “bichos-soltos” e,
finalmente, dos “caixas-baixa”. Deus e os Orixás não poderiam descer em meio àquela
saraivada de balas dos mais diferentes calibres, a não ser que, como no sertão de
Riobaldo, viessem armados... E no céu ficcional daquela Cidade de Deus, nenhuma
divindade, somente pipas... E retomo a epígrafe de Aldir Blanc em que está decretada a
breve expectativa de vida daqueles que se aventuram pelo mundo dos “bichos-soltos”.
Mais grave ainda é o novo mote regulador que paira sobre todas as cabeças.
Misericórdia? Talvez, somente a bala derradeira que em meio a centenas delas, durante
uma saraivada, fará com que o coração cesse de bater...
157
Capítulo 3
Manual prático do ódio: narrativas da “vida loka”
(...) Às vezes eu acho que todo preto como eu
Só quer um terreno no mato, só seu
Sem luxo, descalço, nadar no riacho,
Sem fome, pegando as fruta no cacho
Aí truta, é o que eu acho, quero também
Mas em São Paulo, Deus é uma nota de cem... (...)
(RACIONAIS MC’s, “Vida Loka II”)
158
O trecho da música “Vida Loka II” (ANEXO K) anuncia a mudança de espaço
geográfico e do material artístico de cunho popular urbano que faz coro e dialoga com a
literatura produzida pelo paulistano Ferréz. Paulistano? Vinha afirmando isso com a
certeza de quem foi capturado pelo peso do discurso geopolítico e termina por repeti-lo
sem opção, como está registrado na certidão de nascimento ou na carteira de identidade.
O livro de Paulo Lins, Cidade de Deus (1997) havia dado mostras do quanto à
univocidade da nação e, consequentemente, da ideia de brasilidade passaram a ser
relativizadas. Ali pairava o questionamento de quem seria o “deus” daquela cidade. Os
textos de Ferréz já nascem acompanhados do ruído negro (ROSE, 1994) da enunciação-
resposta dos Racionais MC’s. A constatação das fraturas que irrompem a aparente
homogeneidade da pergunta “natural de onde?fica clara a partir das observações de
Tia Dag (presidente da ONG Casa do Zezinho) e de Mano Brown que se
complementam com outro depoimento da educadora no documentário A Ponte (2008):
“Esse jovem da periferia, ele não é paulista, ele não é paulistano, ele não é brasileiro. É
periferia. A cidade não acolhe ele, a cidade não quer saber dele, a cidade não aprimora
ele. Então ele é o que? A identidade dele aqui”. Parece óbvio, se a periferia não faz
parte da ideia de nação “brasileira”, o “mano” também não faz... E cria a sua alternativa
para isso, mesmo com todas as implicações que essa nova “fratria” possa trazer (KEHL,
2000).
Curiosamente, está presente também no excerto de “Vida Loka II” um dos
objetos de desejo dos “bichos-soltos” da narrativa de Paulo Lins: uma espécie de neo-
fugere urbem que, de alguma maneira, pudesse preservá-los da guerra particular” que
afeta, de modo mais contundente, os espaços urbanos destinados à exclusão dos
159
subalternos. Esse desejo de possuir um “terreno no mato” repete-se na mente de uma
das personagens da narrativa de Ferréz.
A análise do romance de Ferréz, Manual prático do ódio, se iniciará com dois
momentos: o primeiro refere-se ao livro de estreia do autor Capão pecado (2000)
agora em segunda edição; o segundo é representado por um outro recorte temporal
relativo a um texto, solicitado ao escritor pelo jornal Folha de São Paulo (ANEXO H),
à ocasião de um assalto ocorrido em um semáforo da capital paulistana com o
apresentador de TV Luciano Huck.
O texto de Capão pecado apresenta ao leitor o personagem Rael anagrama de
“real” –, um jovem que se apaixona por uma bela garota do bairro. Ao contrário da
Clara dos Anjos criada por Lima Barreto, ela não se rende a uma versão atualizada de
Cassi Jones, mas torna-se amante do patrão do rapaz. O desespero e a falta de
perspectiva atiram Rael ao vórtice devorador da opção que levará ao trágico fim da
trama: o crime. Esse enredo aparentemente simplista (a trajetória de um personagem
advindo da periferia da megalópole paulista) é acompanhado por cinco pequenos
“manifestos” assinados por representantes do movimento Hip Hop, dentre eles o rapper
Mano Brown com o texto-intervenção “A número 1 sem troféu”. Nele surge a frase-
aviso aos desacostumados leitores: “No Capão Redondo é onde a foto não tem
inspiração pra cartão-postal” (BROWN, 2000: 24). Tais componentes tornam explícita a
escolha por uma narrativa sem consolo, sem catarse, é uma das mais marcantes
características da literatura ruidosa.
A primeira edição do livro traz ainda fotos (coloridas e preto-e-branco) do bairro
de Capão Redondo, ambiente em que se desenvolve o enredo. Gostaria aqui de chamar
atenção para esses aspectos que transformaram a referida narrativa num romance-
manifesto, trazendo para a seara literária uma espécie de projeto coletivo a partir da
160
ideia de subjetividade advinda do movimento Hip Hop (VIANNA, 2005: 13): algo que
pertença a todos e a ninguém especificamente. Se o livro não foi o que Ferréz esperava,
um modo de trazer o hábito da leitura para dentro da “comunidade”, o mesmo atuou
como uma catapulta que o inseriu no mundo da literatura e da agenda cultural dos
“segundos cadernos” dos jornais de grande circulação do país.
O escritor relata sua experiência com uma biblioteca comunitária no Capão
Redondo:
(...) Eu montei uma biblioteca, tá ligado, básica, tinha uns livros que a
gente recebeu de doação até do pessoal do “Estado de São Paulo”, do
“Estadão” que doou, entendeu? O pessoal gente fina pra caramba
que nem o Aroldo, e a gente pôs alguns livros lá, compramos outros
livros colocamos. que o cara não pegava o livro mano, entendeu?
O dia inteiro eu lá na biblioteca o cara não pegava um livro. O cara ia
lá trocava idéia comigo, tal tal, pedia pra ver meu livro, olhava o meu
livro: Ah, essa rua aqui é onde eu moro, essa rua aqui... Mostrava
pros outros, levava meu livro emprestado, mas o pegava mais
nenhum livro. Nenhum tipo de literatura interessava pra ele. Até que
surgiu uma moda lá que pegaram aquele livro do Policarpo Quaresma
lá, tá ligado, do Lima Barreto, aí um emprestou pro outro, achou legal
tal, passou uns três mão, foi o máximo que eu consegui. Ninguém
mais, eu tive que fechar a biblioteca. Não tinha público, mano.
39
O breve relato de sua primeira e frustrada tentativa de criar uma biblioteca
comunitária expõe um dos grandes dilemas enfrentados pelos intelectuais periféricos:
convencer que a leitura e a educação possam ser um caminho a ser trilhado para romper
a “linha de cor”, a linha de classe a famosa “linha da pobreza” dentre tantas que
cerceiam os habitantes dos lugares desassistidos por estados do mal-estar, que
comparecem ali com a polícia e o carro do IML. Essa luta desigual entre o escritor e
intelectual contra o “meio” tem sua maior derrota na própria escola desses bairros: ali,
um misto de total descrédito por parte dos professores, baixos salários e falta de infra-
39
Depoimento retirado de “Cultura e sociedade: As Linguagens da Violência” – promoção SESC,
UNESCO e do Consulado Geral da França em São Paulo. Debate do dia 13/09/2001: “Linguagens da
violência, violência da linguagem”. Acesso em março de 2005. In
http://www.sescsp.org.br/sesc/conferencias/subindex.cfm?referencia=2948&autor=2965&ParamEnd=6&I
D=161
161
estrutura se aliam à famigerada frase-açoite apregoando que “filho de pobre tem que
trabalhar”... A permanência dessa população abaixo de todos os indicadores sociais e
econômicos registrados por órgãos como a ONU parece ser inevitável. E como nem
todo mundo vai se “conformar” com isso, surge uma das maiores polêmicas provocadas
por tentativas “outras” de inserção: a escolha pela via do crime. O escritor vale-se do
mundo contraditório e de éticas “fluídas” para criar suas narrativas ficcionais a partir de
tais pontos de vista vinculados a esse mesmo universo.
Como seu trabalho vem sendo reconhecido tanto pelo público brasileiro quanto
em Portugal, Espanha, Itália e, mais recentemente na Alemanha. Dessa maneira, ficou
difícil para o escritor ser ignorado pela grande mídia. O assalto ao apresentador Luciano
Huck, ocorrido em São Paulo, valeu-lhe o convite para escrever um artigo na Folha de
São Paulo, ainda no calor do fato. Logo após a publicação, o escritor Ferréz foi
convidado para comentar as afirmações feitas por Huck sobre a necessidade de mais
segurança para os “cidadãos de bem”. O apresentador em questão ficou sem o famoso e
caro relógio Rolex e motivou o texto, por ele intitulado, “Pensamentos quase póstumos”
(ANEXO G)
40
. A seguir, alguns excertos iniciais do referido artigo de Luciano Huck:
Pago todos os impostos. E, como resultado, depois do cafezinho, em
vez de balas de caramelo, quase recebo balas de chumbo na testa
LUCIANO HUCK foi assassinado. Manchete do "Jornal Nacional"
de ontem. E eu, algumas páginas à frente neste diário, provavelmente
no caderno policial. E, quem sabe, uma homenagem póstuma no
caderno de cultura.
Não veria meu segundo filho. Deixaria órfã uma inocente criança.
Uma jovem viúva. Uma família destroçada. Uma multidão bastante
triste. Um governador envergonhado. Um presidente em silêncio.
Por quê? Por causa de um relógio.
Como brasileiro, tenho apena dos dois pobres coitados montados
naquela moto com um par de capacetes velhos e um 38 bem
carregado.
40
Texto publicado na Folha de São Paulo, Tendências e Debates, em 1º de outubro de 2007.
162
Provavelmente não tiveram infância e educação, muito menos
oportunidades. O que não justifica ficar tentando matar as pessoas em
plena luz do dia. O lugar deles é na cadeia. Agora, como cidadão
paulistano, fico revoltado. Juro que pago todos os meus impostos,
uma fortuna. E, como resultado, depois do cafezinho, em vez de balas
de caramelo, quase recebo balas de chumbo na testa.
Adoro São Paulo. É a minha cidade. Nasci aqui. As minhas raízes
estão aqui. Defendo esta cidade. Mas a situação está ficando
indefensável.
(...)
Onde está a polícia? Onde está a "Elite da Tropa"? Quem sabe até a
"Tropa de Elite"! Chamem o comandante Nascimento! Está na hora
de discutirmos segurança pública de verdade. Tenho certeza de que
esse tipo de assalto ao transeunte, ao motorista, não leva mais do que
30 dias para ser extinto. Dois ladrões a bordo de uma moto, com uma
coleção de relógios e pertences alheios na mochila e um par de armas
de fogo não se teletransportam da Rua Renato Paes de Barros para o
infinito.
Passo o dia pensando em como deixar as pessoas mais felizes e como
tentar fazer este país mais bacana. TV diverte e a ONG que presido
tem um trabalho sério e eficiente em sua missão. Meu prazer passa
pelo bem-estar coletivo, não tenho dúvidas disso.
O apresentador abre o texto com uma proposta de ficcionalizar a própria morte,
o que de acordo com sua narrativa provocaria uma verdadeira “comoção nacional”. Não
foi nada inocente a escolha da estratégia narrativa inicial partir de uma frase em
terceira pessoa pois, seu autor é um profissional da área de comunicação e possui
conhecimento necessário para calcular muito bem o impacto provocado por essa forma
de abordagem do público. Porém, a partir da sentença seguinte modifica o narrador para
“primeira pessoa”, como se estivesse falando para os telespectadores de seu programa
de TV.
E mais adiante, o tom dessa “conversa” se modifica: o assunto é bastante sério
para a mescla de humor-negro e indignação esta última baseada no pagamento de
impostos – a percorrer colunas de um dos jornais de maior circulação nacional. A
mesma armadilha representacional que pulula nas obras literárias brasileiras sobre o
163
tema se faz presente na sentença: “Como brasileiro, tenho até pena de dois pobres
coitados montados naquela moto com um par de capacetes velhos e um 38 bem
carregado”. A construção parece uma paráfrase de narrativas escritas por Rubem
Fonseca, Sérgio Sant’Anna ou Patrícia Melo. Contudo, nesse caso um agravante: o
possível clima de humor desvia-se para o deboche, reforçando o estereótipo sobre de
uma vez por todas. Mas por que o estranhamento? Ele apenas manifesta sua opinião...
defendendo pontos-de-vista do “sistema de atitudes” ao qual pertence sua classe: o
“Atlântico Norte” (para ater-me aos conceitos que utilizo para analisar os textos
literários)... Todas as pessoas concordam que o crime não deve ser a saída para os
problemas financeiros. O problema dessa emissão de opiniões se agrava a partir do
brado “Chamem o comandante Nascimento!”, afinal “a situação está ficando
indefensável”. Penso que foram essas as colocações que serviram de catalisador para a
provocante resposta dada pelo escritor do bairro de Capão Redondo, porque a última
frase – “situação... indefensável” – foi parafraseada para concluir a réplica.
Ao aceitar o convite para publicação na mesma seção do jornal, Ferréz não
enviou um artigo de opinião e sim, como o próprio afirma, um texto de cunho ficcional,
que poderia se classificado de mini-conto. Mas qual o motivo da peleja? A seguir, o
trecho de “Pensamentos de um correria”:
(...) Era da seguinte opinião, nunca iria num programa de auditório,
se humilhar perante milhões de brasileiros, se equilibrando numa
tábua para ganhar o suficiente para cobrir as dívidas, isso nunca faria,
um homem de verdade não pode ser medido por isso.
Ele ganhou logo cedo um kit pobreza, mas sempre pensou que apesar
de morar perto do lixo, não fazia parte dele, não era lixo.
A hora estava se aproximando, tinha um braço ali vacilando. Se
perguntava como alguém pode usar no braço, algo que pra
comprar várias casas na sua quebrada. Quantas pessoas que
conheceu, trabalharam a vida inteira, sendo babá de meninos
mimados, fazendo a comida deles, cuidando da segurança e limpeza
164
deles e no final ficaram velhas, morreram, e nunca puderam fazer o
mesmo por seus filhos.
Estava decidido, iria vender o relógio, e ficaria de boa talvez por
alguns meses.
O cara pra quem venderia, poderia usar o relógio e se sentir como o
apresentador feliz que sempre está cercado de mulheres seminuas em
seu programa.
Se o assalto não desse certo, talvez cadeira de rodas, prisão ou caixão,
não teria como recorrer ao seguro, nem segunda chance.
O correria, decidiu agir. Passou, parou, intimou, levou.
No final das contas todos saíram ganhando, o assaltado ficou com o
que tinha de mais valioso que é sua vida, e o correria ficou com o
relógio.
Não vejo motivo pra reclamação, afinal num mundo indefensável até
que o rolo foi justo para ambas as partes.
O texto foi publicado na Folha de São Paulo, Tendência e Debates, 08 de
outubro de 2007 e no blog do escritor (ANEXO H)
41
, no post de 10 de novembro de
2007. O vocábulo “correria” é utilizado na periferia para referir-se a um trabalho
informal, conhecido popularmente como “biscate” e também um ato ilícito, com intuito
de lucrar algum dinheiro. Esse ato ilegal pode ser um “carteado”, uma partida de sinuca
na qual a disputa implica apostas em dinheiro, até o roubo e o assalto à mão armada,
como ocorre no caso em questão.
A partir do longo excerto o leitor descobriu as razões que levaram até a
intimação para depoimento na delegacia, pois a Promotoria Pública do Estado de São
Paulo alegou que o “mini-conto” era pura “apologia ao crime”. Bastou que o autor
criasse uma personagem baseada no criminoso e apresentasse os seus dilemas humanos
o que é uma das características fundamentais da literatura ruidosa para que os
“cidadãos de bem” se alvoroçassem. Ferréz recebeu várias mensagens de apoio em seu
blog. Além do movimento Hip Hop e dos moradores de diversos bairros de São Paulo,
um comment do professor Idelber Avelar, que leciona literatura latino-americana e
brasileira na universidade de Tulane, em Nova Orleans (EUA). Avelar se coloca a
41
www.ferrezblogspot.com
165
disposição do escritor para, inclusive, vir prestar um depoimento favorável a Ferréz,
devido à experiência no tema, assessorando artistas que sofreram represália semelhante.
Então, é permitido somente a Rubem Fonseca, Patrícia Melo e Fernando Bonassi
escreverem a partir do ponto de vista da marginalidade? Carlos Eduardo Schmidt
Capela
42
, em artigo na Revista Z, do PACC/UFRJ dispara uma crítica à censura às
manifestações artísticas advindas de camadas populares, como o funk carioca, por
exemplo:
A censura implicada, em conluio com a ausência de critérios para
criminalizar ou indiciar, ou não, criações culturais, em outros termos,
a arbitrariedade não poderia ser no caso pensada, ao menos a
princípio, como (mais) um sintoma da proverbial e sociológica
cordialidade brasileira, atuando com toda a potência da hipocrisia? A
cordialidade, afinal, não configura ou suscita uma política de
representação?
O mesmo tipo de intimidação ocorreu também, em algumas ocasiões, com o
público e os produtores dos shows do grupo Racionais MC’s. A atividade artística que é
explicitamente engajada continua sendo recebida como “arte menor” ou “não-arte”.
Outro exemplo dessa censura velada aconteceu com o álbum Respeitem meus cabelos,
brancos (2002), do cantor e compositor Chico César, utilizado como uma metáfora
dessa tensão no capítulo anterior. A faixa título é seguida pelos versos “quando o negro
fala / o branco sai da sala com veludo nos tamancos” (ANEXO E) praticamente evitou
que o artista fosse recebido com “bons olhos” pela grande crítica e mídia, graças aos
auspícios do “racismo cordial”. A mesma “boa vontade” desses setores em relação à
música “Mama África” desapareceu quando outras cartas foram colocadas na mesa em
busca de diálogo. Os versos que antecedem a frase-título e refrão “chegou a hora de
falar/ vamos ser francos” continuam a revelar o limite da tolerância da “linha de cor”
42
http://www.pacc.ufrj.br/z/ano3/03/capela.htm : Acesso em fev/2009
166
ao se tratar da questão racial. Resta apenas uma margem quase ínfima de liberdade por
parte da voz subalterna, beirando a trágica conclusão de Spivak sobre o direito de fala
dessa multiplicidade de sujeitos. Mas, para encerrar a possibilidade de debate colocou-
se a toda a “culpa” na vírgula e numa palavra, que saiu do plural para o singular,
modificando assim sua categoria: de adjetivo tornou-se substantivo. Tais modificações,
ao se intrometerem na releitura da frase de um antigo samba de sucesso da MPB
(ANEXO J)
43
, cometeram o deslize de incomodar a tranquilidade da “democracia
racial”...
Retomando Ferréz, a estética de “Pensamentos de um correria” procura aplicar
ao texto algumas condições extremas do acontecimento, tais como a velocidade, o
suspense, a falta de espaço – simbolizada em meu entender pelo uso das vírgulas
entrecortando a organicidade da sentença padrão e frases curtas repetindo a oralidade
da periferia da capital paulista. Identifico ainda o mesmo componente presente na peça
de Plínio Marcos Quando as máquinas param e em Cidade de Deus, de Paulo Lins:
as personagens procuram romper a imobilidade social a todo custo. A diferença é que
no texto dramático o objetivo é frustrado, pois as duas personagens não logram romper
o imobilismo provocado pela linha de gênero no caso da personagem Nina, grávida,
que é atingida com um soco na barriga à cena final da peça e pela linha de classe, que
por sua vez, frustra os sonhos de e de sua esposa Nina por uma vida melhor. Já no
romance isso ocorre momentaneamente para poucos personagens apenas. Ao mergulhar
na “correria” resta pouco ou quase nenhum tempo para se dedicar ao ato de pensar de
planejar seus passos. Como bem demonstra o texto de Ferréz, ali, o pensamento é
simultâneo à ação. Uma sequência em especial parece sintetizar os elementos descritos:
“O correria, decidiu agir. Passou, parou, intimou, levou”. Note-se que o verbo “intimar”
43
“Respeitem ao menos/ os meus cabelos brancos” (...); versos do samba “Cabelos brancos” de autoria de
Marino Pinto e Herivelto Martins.
167
é utilizado num sentido absurdamente inverso ao seu significado na linguagem jurídica.
A palavra é também empregada para indicar um convite ou uma tomada de decisão por
parte de um terceiro: “vou intimar a mina para o baile”.
Nenhuma dessas últimas prevalece, entretanto, na voz do narrador criado por
Ferréz. A conclusão da voz narrativa ao referir-se a um “mundo indefensável” para que
o leitor dê-se por satisfeito com o desfecho irrita profundamente a consciência, nem
sempre limpa, do “cidadão de bem”... A polêmica resultante parece expor uma batalha
tensa sobre o direito à representação da voz do subalterno, que é retratado no texto de
Luciano Huck sem nenhuma subjetividade ou humanidade
44
.
em “Pensamentos de um correria” algo da tensão raskohlnikoviana e da
simultaneidade ação-pensamento presente em Crime e castigo (2008). No romance de
Dostoievski, a descrição da cena de violência e morte, na qual está envolvida a principal
personagem da trama, não ocupa mais que uma página (dependendo do formato da
edição). É ali, a única passagem em que os verbos “agir” e “pensar” parecem se
equivaler. Ao contrário do enredo do romance, no mini-conto de Ferréz, a elaboração da
justificativa do ato criminoso ocorre antes do fato em si. Não uma preparação prévia
para assaltar e levar especificamente o relógio daquele “famoso apresentador de TV”.
Em Crime e castigo toda uma elaboração anterior que é narrada de modo oposto:
primeiro o ato criminoso, depois a “justificativa”. no texto do escritor do bairro de
Capão Redondo, o personagem “correria” não possui nome próprio, apesar de ter sua
vida miserável exposta ao leitor logo ao início da trama. Tudo ocorre ao acaso “A
hora estava se aproximando, tinha um braço ali vacilando” (2007) e as frases
44
E somada à antipatia de parte da intelectualidade m-se ainda as intimações judiciais. O curioso é que
até o momento, à exceção de Rubem Fonseca durante o regime militar e, mais recentemente, do cineasta
João Moreira Salles devido ao documentário Notícias de uma guerra particular (1999), não obtive
informação sobre o fato de algum artista de classe média comparecer à delegacia para prestar depoimento,
num processo similar ao que está submetido Ferréz.
168
incorporam diferentes ritmos: uma musicalidade própria da poética do rap e outra que
representa o zig-zag da motocicleta em meio aos corredores deixados pelos milhões de
veículos que trafegam na megalópole. O “final felizninguém ferido ou morto é
obra do mesmo acaso que vitimou Huck, não foi uma criação literária, a priori. E,
portanto, não como acusar o autor do texto de “apologia ao crime”, porque ele cria o
narrador e a personagem. Essa aproximação entre o real e o ficcional já foi identificada
por Mikhail Bakthin (2002: p. 420) em “Epos e romance”. O conceito de “zona de
contato máximo” implica que o “objeto de representação” esteja em extremamente
próximo de sua “imperfeição presente” – o real.
O ponto de ebulição da análise do mini-conto e, por conseguinte, de parte das
narrativas contemporâneas da violência é a expansão nunca experimentada da chamada
“zona de contato máximo” outra manifestação característica da literatura ruidosa,
esse rompimento quase total do distanciamento estético, aliada ainda a mais um
elemento: a experiência cotidiana do autor, transferida de modo ficcional para os textos.
Mesmo com toda liberdade de criação literária, assiste-se a uma generalizada quebra de
temporalidade no que diz respeito à representação: não mais o mergulho na mente de
uma personagem ou de várias delas, escreve-se mimetizando a agilidade da escrita
movida a bits, a instantaneidade das câmeras de aparelhos telefônicos celulares, numa
voracidade tamanha em que são volatizados escritores, a imprensa e os leitores. E outra
característica inegável: o aprendiz de Raskolhnikov que pilota a motocicleta provoca
pânico quando representado literariamente por um motivo simples: pode realmente
trafegar nas ruas e nos abordar no “farol”, não lembra em nada um ex-estudante russo
que vive num minúsculo quarto, noutra metrópole também nomeada a um santo: São
Petersburgo. A coincidência dessa nomeação é assustadora Petersburgo: “cidade de
Pedro” e São Paulo o ex-cobrador de impostos do Império Romano. O primeiro
169
nome significa a “base” sólida sobre a qual foi edificada a Igreja. Parece que, em
tempos pós-dostoieviskianos, esse nome tornou-se o alicerce dessa forma
contemporânea de narrativas da violência, que pululam, por sua vez, na urbe dedicada
ao apóstolo Paulo. Homem cuja função, antes de se converter ao cristianismo, não era
outra que cobrar impostos para o Império Romano...
Ferréz possui uma atuação diferenciada de Paulo Lins no tocante à sua condição
de escritor e intelectual. Para reforçar sua inserção no mundo das artes e tentar
demonstrar aos jovens do bairro de Capão Redondo que é possível não se entregar ao
crime, ele agora possui, além de sua loja de street wear, um estúdio de gravação e a
editora Literatura Marginal, sem esquecer as postagens em seu blog na Internet. Ainda
no campo da mídia, ele entrevista convidados para o programa Interferência que vai ao
ar pela TV Cultura, de São Paulo, dentro de um programa dedicado à juventude da
periferia paulistana, o Manos e minas. Quanto ao seu trabalho literário, Ferréz lança
dentro de sua editora a coleção “Selo Povo”, cujo objetivo de publicar os talentos da
periferia está alinhado com a ação para interferir positivamente junto à sua comunidade:
O Selo Povo foi criado para fazer o livro chegar a quem realmente
precisa ler, é também uma forma de mostrar ao mercado a falta de
senso referente ao preço das obras, pois um livro de bolso chega a
custar até R$ 20,00 em livrarias. Privilegiando a distribuição nos
bairros, nós da L.M. colocamos a periferia no centro do trabalho,
que somos nós que produzimos todo o conteúdo e depois temos de
"viajar" para encontrar um local que venda nossos produtos. Cultura
da periferia em alta voltagem (ANEXO I).
45
Ferréz ataca um dos pontos cruciais quando se trata de cultura e educação: o
acesso. Talvez, cansado de ouvir que a população da periferia “não gosta de ler”, ele
passou do discurso para a prática. A crítica direta às grandes editoras, que está no trecho
selecionado, precisa ganhar também a mídia de massa e os debates que ocorrem nos
45
Texto retirado do blog dedicado à coleção “Selo Povo”: postagem do dia 27 de março de 2009. In
http://www.selopovo.blogspot.com/ .
170
congressos de educação e literatura. O tom de protesto é claro quando se refere à alta
voltagem” dessa cultura produzida na periferia dos grandes centros urbanos e mostra “as
várias faces da caneta que se manifesta na favela” uma das frases que compõe o
“Manifesto de abertura: Literatura Marginal”. Primeiramente, a ideia de garimpar os
talentos artísticos e literários foi posta em prática com os dois números especiais da
revista Caros amigos, intitulados A cultura da periferia ato I e A cultura da periferia
ato II. O referido manifesto foi publicado no primeiro” volume e contou com a
participação de diversos escritores: Sérgio Vaz, Erton Moraes, Jocenir, Paulo Lins,
Atrês, Cascão, Ferréz, Garret, Edson Veóca e Alessandro Buzo. A antologia se
transformou em livro organizado por Ferréz e foi editada pela Agir com o título de
Literatura Marginal: talentos da periferia (2005). Os autores presentes são: Preto
Ghóez, Eduardo Dum-Dum (integrante do grupo de rap Facção Central), Dona Laura,
Gato Preto, Ridson, Maurício Marques, Santos da Rosa, Alexandre Buzo, Luiz Alberto
Mendes e Erton Moraes. Ferréz, além de organizador, prefacia o livro com outro
manifesto de título nada sutil, que também está em A cultura da periferia ato II:
“Terrorismo literário” (2005: 9-16).
As bases dessa literatura periférica estão assinaladas nos textos de abertura das
revistas e do livro. Neles se encontra a definição “papo reto” dessa escrita: “A Literatura
Marginal, sempre é bom frisar, é uma literatura feita por minorias, sejam elas raciais ou
socioeconômicas” (2005: 12). A conceituação dada por Ferréz a essa “nova” estética
marginal literária é bastante ambiciosa, porque abarca tanto produção que perpassa a
“linha de cor” (DU BOIS, 1994) quanto à “morte social” (PATTERSON, 1982). Os
textos publicados em Cultura da periferia ato II apresentam uma grande variedade de
autores que vão desde Dona Laura, uma senhora da colônia de pescadores Z3, em
Pelotas (RS), ao artista do HQ e escritor Lourenço Muttareli, chegando ainda ao
171
Subcomandante Marcos e a um dos ícones da literatura afrobrasileira, o poeta Solano
Trindade. A literatura desses escritores é também pensada a partir da necessidade de
provocar pontos de contato com as parcelas da sociedade, em ambos os lados da ponte
(expressão utilizada em São Paulo, em relação à ponte sobre o rio Pinheiros, que separa
a megalópole de sua “periferia”). Contatos que dizem respeito à formação e à
informação de leitores dentro da periferia e, do outro lado, para que o “asfalto” tenha
oportunidade de ouvir e conhecer “os excluídos” sem o filtro da mídia de massa, que
apenas decide mostrar da periferia, na maior parte das vezes, os confrontos entre
facções criminosas, corpos no chão e esgoto a céu aberto. Novamente, as vozes de tia
Dag e de Mano Brown vêm somar à de Ferréz no tocante à divisão desses “mundos”
que também possuem sua imagem correspondente para demarcar as fronteiras artístico-
literárias:
Cansei de ouvir:
– Mas o que cês tão fazendo é separar a literatura, a do gueto e
a do centro.
E nunca cansarei de responder:
O barato separado muito tempo, só que do lado de
ninguém deu um gritão, ninguém chegou com a nossa parte, foi
feito todo um mundo de teses e de estudos do lado de lá, e do de
mal terminamos o ensino dito básico.
(FERRÉZ, 2005: 13)
O que Ferréz não deve imaginar, entretanto, é que nem todos que escrevem teses
e estudos sobre a literatura, especialmente produzida por ele, terão esse trabalho
recebido com a mesma boa-vontade por alguns setores do meio acadêmico. Porém, a
tarefa aqui não é alcançar unanimidade, especialmente quando se trata do registro da
diferença. A questão, a meu ver, fica por conta da diferença do registro que está
proposta pela poética periférica e seus narradores, eu lírico de múltiplo papel
(representa não apenas um indivíduo, mas uma ou mais comunidades) lançando prosa e
172
verso para o “lado de cá”. O que está em jogo nesta tese é simples como uma armadilha
para principiantes: não basta apontar apenas as diretrizes que evocam as peculiaridades
de cada um dos autores, pensando agora em Ferréz, Paulo Lins e Fernando Bonassi. Por
mais estranha que possa ser essa fratria literária, a violência percorre as linhas de alta
tensão em cada um dos textos aqui estudados, e, é justamente ela que irá separar a
produção de Ferréz daquilo que ele mesmo denomina “Literatura marginal”. Ao
contrário de outros escritores que surgiram nas coletâneas por ele organizadas, seus
trabalhos já alcançaram espaços de divulgação fora das fronteiras nacionais,
ironicamente, dentro dos salões literários e dos cursos de pós-graduação em literatura,
citando como exemplo, o estudo que é feito por estudantes e professores da
universidade de Hamburgo. A arte parece cumprir seus papéis, ora atribuídos pelos
produtores, ora pela recepção crítica e por leitores não-especializados. Essa introdução
às narrativas da “vida loka” deve se encerrar por aqui, para que as personagens e o
narrador de Manual prático do ódio se apresentem. Através deles será possível transitar
nesse espaço de representação hiperbolicamente ampliado que é tão caro à literatura
ruidosa. Os seis elementos que a constituem estão presentes nesse romance: a) uso da
violência não apenas com intuito estético, pois questiona a representação desta no
tocante às personagens subalternas; b) o tom pedagógico desfilando através da voz
narrativa, similar ao eu lírico do rap; c) cumplicidade demonstrada pela voz narrativa
com a ética do “sistema de atitudes” do mundo real em que foi baseado, reduzindo
drasticamente o distanciamento necessário ao lavor estético e, simultaneamente,
traduzindo esteticamente para o texto o que Bosi (2002: 12) denomina “aspectos
antiliterários”; d) rompimento quase total do distanciamento estético, provocando desse
modo a ausência de catarse (como ocorrido no texto “Pensamentos de um correria”) e a
reflexão contínua por parte do leitor; e) experiência cotidiana dos autores para Ferréz
173
definida como “morar dentro do tema”; f) poética da periferia composta pela
representação literária dessas áreas de exclusão urbanas, aliada ao ruído negro (ROSE,
1994) do rap e da estética do movimento Hip Hop, que ainda de acordo com Anízio
Vianna se desdobram na “poética rap” e na narrativa episódica”; g) retomada do
recurso expressionista utilizado por Lima Barreto em Clara dos Anjos (1949a), ao
exacerbar aspectos físicos e/ou psicológicos das personagens, representado em MPO
pela personagem Neguinho da Mancha na Mão.
O lado de lá da ponte... (ANEXO N)
Se contudo concordarmos em nos referirmos simplesmente ao fato
visível, à experiência de todas as idades e à Gazette des Tribunaux,
veremos que a natureza não ensina nada, ou quase nada, ou seja, ela
obriga o homem a dormir, a beber, a comer, a se garantir bem ou mal
contra as hostilidades da atmosfera. Também é ela que leva o homem
a matar seu semelhante, a comê-lo, a seqüestrá-lo e a torturá-lo; pois
assim que saímos da ordem da necessidade para entrar na do luxo e
dos prazeres, veremos que a natureza pode aconselhar o crime.
(Charles Baudelaire em “O pintor da vida moderna”, p. 244).
A epígrafe retirada do ensaio de Baudelaire que investiga os paradoxos
apresentados pelo desafio que se tornou o ambiente urbano em franco crescimento, no
século XIX, traz o eco da ideia de que a cidade pode ser mesmo interpretada como uma
“selva de pedra” e que uma face “selvagem” adapta sua fúria ao mundo do capitalismo
que predomina no ambiente urbano da contemporaneidade. Essa ânsia permanece viva e
além de se manifestar de modos cada vez mais violentos e mesclados aos mais diversos
setores da sociedade, permite criar narrativas bem peculiares. A ética que emerge desse
sistema, se é possível assim denominá-la, passa também a compor o universo
representacional, quando suas características são transpostas para as personagens.
174
‘Vale-tudo’ parece ser uma expressão insuficiente para tentar compreender a fluidez de
normas, que passa a reger a estranha orquestração das bruscas mudanças na vida de
cada uma das personagens que compõe um grupo de marginais retratado no romance.
O enredo de Manual prático do ódio gira em torno das “correrias” de seis
integrantes de uma quadrilha que desejava fazer o último trabalho e angariar fundos
suficientes para abandonar de uma vez por todas a vida do crime. Ferréz não se encontra
sozinho, no entanto, nessa empreitada: o primeiro roteiro desse tipo de trama está
presente em “Vida loka II”, música dos Racionais Mc’s. O sujeito lírico da letra de
Mano Brown ainda traz, na história relatada, o intertexto com a passagem bíblica do
“bom ladrão”, que segundo a voz do poema-letra foi o “primeiro vida loka da história”.
Porém, não se trata de mera “apologia ao crime” como se costuma bradar em alto e bom
tom aos “leitores à primeira vista” e aos ouvintes de “primeira audição”. Não final
feliz, nem na menor das hipóteses, pois em ambos os casos as personagens não saem
ilesas. Diferentemente do roteiro que o inspira, Ferréz ainda escolhe tratar da infância
de suas personagens a partir do registro de flash backs, apresentando a diversidade
descrita como pessoas aprisionadas entre o “crime e a necessidade”, como registrado em
texto de abertura da adaptação para os quadrinhos do conto “Os inimigos não mandam
flores” (MAYO, 2006). Seria essa a nova forma de “emparedamento” apresentada pela
contemporaneidade? Seria esse um não-lugar em que todas as barreiras – “linha de cor”,
gênero, classe, para ficar nas três que mais se destacam parecem convergir para a
quase completa eliminação das “vítimas preferenciais”? Ou ainda, como anuncia a
epígrafe baudelaireana, tudo não passa de uma influência “natural”, seja esta provocada
pelos instintos primais, despertados cada vez mais pela voracidade de consumo do
mundo das commodities? Deixo o trecho de Baudelaire em stand by, pois será retomado
mais adiante. Nesse ínterim, trago a companhia de alguns dos versos de Mano Brown
175
para deixar o leitor a par daquilo que denominei de “roteiro”, sem o qual a narrativa de
MPO provavelmente tomaria diverso rumo. E talvez, arriscaria a dizer que o primeiro
romance de Ferréz Capão Pecado –, sem as poético-narrativas dos Racionais Mc’s,
também não chegaria a resvalar no muro das letras contemporâneas com o mesmo
impacto.
A letra de “Vida Loka II” (ANEXO K) relata o cotidiano da zona sul paulistana
e seus moradores, à deriva no mar da cidadania, pois essa última se faz comumente via
consumo. O tom pedagógico desse relato é inaugurado com a mescla da cosmogonia da
cultura e religiosidade afrodescendente “Champanhe para o ar, qué pra abrir nossos
caminhos”, numa referência ao panteão dos Orixás, mais especificamente a Exu, o
senhor dos caminhos e com o discurso publicitário adaptado ao universo do Capão:
“de cordão de elite, 18 quilate/(...) de lupa, mochilon, bombeta branco e vinho”. Essa
moda pode ser traduzida como um colar/ “corrente” de ouro; a “lupa” é sinônimo dos
óculos esporte; o “mochilon” seria a mochila de grife e, por fim, a “bombeta” é o boné
do mesmo estilo daquele usado pelos jogadores de beisebol. O terceiro elemento que
compõe a abertura do poema/letra é o “ódio”, que, por sua vez, vem acompanhado de
um perigoso e paradoxal flerte com o mundo da “correria”, da “vida loka”, do crime... E
tal impressão é acentuada devido à crítica constante do grupo em relação à violência
policial, representada na letra pela alegoria e pela reinterpretação da passagem bíblica –
“E um canalha fardado cuspiu em Jesus” o que incita negativamente os ânimos das
corporações responsáveis pela segurança pública. E como bem notou Maria Beatriz
Bastos (2005: p. 147) o desconforto gerado tanto pelo “confronto com a polícia” bem
como pela visão “crônica do crime”, esta última dada através da imprensa, é parte do
problema exposto e vivido naquelas comunidades. Na realidade, o foco da discussão
176
“desloca-se do crime para a percepção do conflito racial brasileiro como principal fonte
de violência”.
Esse diálogo entre Férrez e o rap dos Racionais MC’s foi estabelecido desde o
primeiro romance, Capão pecado (2000). Em seu segundo romance, MPO (2003),
Ferréz aprimora o uso da narrativa episódica presente nas letras de rap, colocando frente
a frente dois modelos que, à primeira vista, parecem antagônicos: a letra de música e o
romance. Esse diálogo é tenso, pois a “poética rap
46
traz um contundente eu lírico que,
por sua vez, se tornará o narrador em MPO. A preocupação em trazer à tona do caldo da
violência a vida humana esquecida, coloca em prática a estratégia identificada por
Dalcastagnè (2005A), na qual a voz de quem narra passa a ser o centro do debate e da
cena. No caso específico do rap e da literatura produzida por Ferréz, tem-se tal recurso
como elemento crucial, porque como ele e outros autores anunciam, o basta “falar
de”, é necessário “ser de”. Tal postura ético-estética não se constrói de maneira
tranquila, por expor propositadamente as divisões sociais que deveriam permanecer
diluídas sob o argumento de que “literatura é literatura”. Em MPO, o narrador poderia
escolher algo semelhante à pletora de “episódios” que pululam em CDD, mas fez a
opção por centralizar sua trama ao redor de um número mais contido de personagens. A
referida economia” mimetiza, assim, a maneira de narrar presente nas letras de rap. O
bando formando por Celso Capeta, Aninha, Lúcio Fé, Neguinho da Mancha na Mão,
Régis e Mágico se torna a alegoria para a mudança de tom no mundo crime. Os
episódios irão desaguar no mesmo desfecho de “Tô ouvindo alguém me chamar”
(ANEXO L) e “Rapaz comum” (ANEXO M), duas composições dos Racionais MC’s.
46
Rap é obra performatizada. Obra compreendida como o que poeticamente comunicado”
simultaneamente ao seu movimento de criação. (...) “O feio é a substância estética do rapper: formas
violentas (palavrões, fotos de cadáveres) para transmitir um contexto de violência”. (VIANNA, 2005: 94-
96)
177
Os elementos centrais do romance de Ferréz o ódio e a traição estão presentes nos
episódios narrados nessas duas letras cantadas pelos Racionais.
A narrativa criada por Ferréz não abandona a perspectiva de contestação
proposta pelo movimento Hip Hop a partir das letras de rap. Entretanto, amplia-a no
intuito de abarcar outras alteridades que, por sua vez, também são envolvidas nesse
turbilhão de conflitos urbanos. Suas personagens centrais, representadas pelo já referido
grupo de criminosos, parecem inconscientes no que diz respeito à sanha da “linha de
cor” e de classe e gênero. Porém, quando cada um deles se encontra e frente a frente
com situações que lhes “mostram o seu devido lugar”, a resposta imediata é a violência,
pois falhou a fala, falou a bala, retomando o refrão criado para a narrativa de Paulo
Lins. Essas cinco personagens parecem ser movidas pelo verso dos Racionais
“dinheiro é puta e abre as porta dos castelo de areia que quiser” – e possuem a
esperança de trocarem o mundo do crime por uma vida digna de classe média, de
cidadãos que nunca são o alvo predileto de uma blitz policial. Como alguns desses
aspectos, no entanto, se transformam na literatura ruidosa de MPO? Esse romance
incorpora e desenvolve a “poética rap e a “estrutura episódica” (VIANNA, 2005),
elementos ensaiados em Capão pecado (2000). O segundo deles consiste em narrar
os episódios das personagens “que fazem parte do cotidiano do gueto e apontam
possíveis soluções (prováveis culpados), tudo dentro de uma lógica dual” (VIANNA,
2005: 112)
47
.
Desde já, devo chamar a atenção dos leitores para uma diferença crucial entre o
grupo de personagens apresentado em MPO e a trajetória de Cabeleira, Bené e
Pequeno. No romance de Paulo Lins, uma tessitura entre a vida das personagens,
47
Ainda de acordo com Anízio Vianna, o rap se vale da “estrutura episódica” para “criar um outro
território existencial, uma subjetividade de emergência que evidencie a invisibilidade social sofrida por
aqueles moradores”. (idem)
178
suas opções pelo mundo do crime e o agravamento das escolhas feitas por uma parte
delas, quando o tráfico de drogas passa a dar as cartas. A comparação proposta pela
narrativa de CDD é bastante didática para a compreensão da escala do crime e da
violência: Cabeleira assaltava casas, motéis e o caminhão de gás, mas Pequeno
comandava o tráfico e, por fim, o território da CDD com requintes de violência, fazendo
cair por terra a regra não escrita de “poupar” os moradores da região. O fato mais
significante é o estupro da namorada de Manoel, um “negro alto e bonito que trabalhava
como cobrador de ônibus” (CDD, 398-399).
O caso de MPO revela outra estranha fratria que se vale da violência para
romper a linha da pobreza, nunca mais ter patrão, ser obrigado a transitar em coletivos
lotados e, no final das contas, ser humilhado pela “patroa”, como ocorreu com a mãe de
Régis. Essa irmandade se desfaz de modo similar àquela construída por Be e
Pequeno, quando o advento do tráfico torna-se o negócio mais lucrativo do mundo do
crime. Para demonstrar como a solidariedade de seus integrantes é devorada pelo
vórtice da violência, vou examinar, atentamente, mais adiante, alguns momentos de
quatro das personagens: Régis, Lúcio Fé, Aninha e Neguinho da Mancha na Mão.
Antes de partir para o exame das personagens, devo trazer à baila a análise de
Maria Rita Kehl (2000) sobre o rap dos Racionais. Em artigo presente no livro dedicado
ao estudo do conceito de fratria, a pesquisadora questiona o modelo alternativo de
civilização que parece estar proposto no trabalho do grupo. Ela utiliza a expressão
“esforço civilizatório” para tentar explicar qual ethos rege a prática artístico-discursiva
dos manos, pois seu diagnóstico, a partir da psicanálise, identifica uma fraternidade
problemática pela razão de não possuir um “pai” simbólico. No tocante a esse aspecto, o
resultado de sua crítica coincide com o dito popular que “filho feio não tem pai”. A
179
periferia sem possibilidade de “sublime”, no entender estético, e acossada do “outro
lado da ponte” (ANEXO N) propõe sua versão narrativa de sobrevivência:
É como se cada um deles se considerasse um rapper em potencial,
capaz de contar sua vida no ritmo repetitivo e opressivo, nas rimas
obrigatórias, às vezes preciosas, às vezes brutais, executando a dança
que não autoriza alegria alguma, sensualidade nenhuma disto que
nasceu na periferia de algumas cidades americanas como rhythm and
poetry e se espalhou pelo Brasil, partindo de São Paulo, é claro: a
mais opressiva das cidades brasileiras. (KEHL, 2000: 209-210)
Capturar a atenção de cada mano é a intenção primeira do MC (mestre de
cerimônia) e das letras do rap. Desse modo, não se diferencia de uma narrativa escrita
que pretende chegar a cada leitor, em seu mundo particularizado. A oposição, no
entanto, se faz por dirigir-se especialmente à população da periferia urbana, seja em São
Paulo ou outra metrópole qualquer. A falha na análise de Kehl consiste em isolar o
discurso dos Racionais do movimento Hip Hop como um todo. O que ela denomina
“dança que não autoriza alegria alguma, sensualidade alguma” é apenas fruto desse
recorte, que determina a perda de uma dimensão performática constituída por cinco
elementos: o B Boy (dançarino de dança de rua), o grafite, o MC, o break e o rap.
Talvez, a ausência de “alegria” seja resultado da presença opressora de uma realidade
que parece não fornecer muitas “válvulas de escape” à exceção do álcool, das drogas
ilícitas e do discurso apocalíptico das religiões neo-pentecostais, além, é óbvio, da
exclusão naturalizada pelas “linhas de cor”, de gênero e de classe.
As “rimas preciosas, às vezes brutais”, são transpostas para a narrativa de Ferréz
como raros momentos de lucidez. Representando a parte “preciosa” estão as relações
amorosas e trégua no confronto entre os “inimigos”. Já a brutalidade, esta se faz
presente pela exposição frontal do ódio nas memórias da infância de cada uma das
180
personagens. Tanto o texto de Maria Rita Kehl quanto o narrador de MPO coincidem
num ponto: a revelação das armadilhas do consumo propostas pelo sistema capitalista
que, na via do crime para adquirir os bens materiais ditos supérfluos, não passa de uma
“inclusão” momentânea.
Porém, ao concluir seu artigo a respeito do “esforço civilizatório”, a psicanalista
e pesquisadora (limitada a uma epistemologia ocidental, de matriz burguesa) a fratria
dos manos como “excludentepor se colocar “fora do laço social”. Trata-se de um
engano, pois essa comunidade foi “colocada/deslocada” para o “outro lado da ponte”,
espaço geográfico para o qual os habitantes não se mudaram para por vontade ou
gosto próprios alertando que esta mencionada faixa populacional poderia se
transformar em “gangue” (KEHL, 2000: 237). É um equívoco de generalização, pois
essa última “associação” é representada, na verdade, por facções criminosas e não por
fãs e seus grupos de rap. O romance de Ferréz trata, além do ódio, da brutal falência da
escolha pelo crime como solução à exclusão do modelo consumista de cidadania. O rap
dos Racionais transmutado em um dos elementos da literatura ruidosa vem, desse
modo, corroborar com a leitura de que a periferia das metrópoles atuais pode ser
interpretada como nova versão dos guetos norte-americanos ou dos banlieue franceses
(WACQUANT, 2005), ou ainda, uma versão “menos” pesada dos campos de refugiados
espalhados nas diversas regiões de conflito ao redor do mundo. Agora, é observar o que
conta o narrador criado para um manual nada sutil...
No livro de Ferréz, uma interessante estratégia narrativa, que consiste em
nomear os capítulos a serem lidos como uma espécie de tulo-epígrafe. Em MPO tais
nomeações seguem o universo da periferia da capital paulistana e do submundo
criminoso que trafega entre ruas desertas e vielas. Não por acaso, parecem ser os
preceitos a serem obedecidos por aqueles que se enveredarem a seguir, na vida real, os
181
descaminhos das personagens centrais. Os títulos se seguem, a saber: Capítulo 1 Os
inimigos são mais confiáveis; Capítulo 2 Quem é não comenta; Capítulo 3 Meu
nome é amor, meu sobrenome é vingança; Capítulo 4 Não dei minha lágrima pra
ninguém; Capítulo 5 Eu te amo, Márcia; Capítulo 6 – Lembra a última vez em que foi
feliz?; Capítulo 7 – A única certeza é a arma; Capítulo 8 – Paz a quem merece; Capítulo
9 A morte é um detalhe; Capítulo 10 Na terra da desconfiança; Capítulo 11
Abismo atrai abismo e Capítulo 12 Onde tem ar por aqui? concluindo os passos
desse caminhar sobre a corda-bamba da periferia.
Essa estratégia é similar, ainda, àquela encontrada no índice do romance
Robinson Crusoe (1994), cuja primeira edição ocorreu em 1719. Ali, toda a trama tem
seu fio narrativo exposto em fases através dos títulos. O livro de William Defoe foi
produzido na aurora do gênero e, por isso, necessitava de pistas para indicar o caminho
do texto para o leitor. A atitude didática de Defoe também é corrente nos textos de
Ferréz, pois como ele mesmo afirmou, a imperiosa necessidade de levar o livro
àqueles que não têm acesso devido a uma exclusão quase ancestral. Para tanto, basta
pensar no processo civilizatório das Américas, algo que o texto de Kehl também deixa
de fora ao classificar algumas atitudes do grupo de rap, Racionais MC’s, de “esforço
civilizatório”. O narrador de MPO se aproxima do explosivo didatismo do eu-lírico
presente nas letras de rap, constituindo mais uma estratégia da literatura ruidosa: uma
voz narrativa que representa “mais de cinquenta mil manos”.
Ainda tratando do enredo de MPO, temos um aumento considerável da
velocidade dos acontecimentos e da perda de vidas a partir do sétimo capítulo do
romance, cujo título, não por acaso, é “A única certeza é a arma”. As personagens
humanizadas pelo narrador ladrões bem armados, assim pensavam tornam-se alvos
fáceis para a turma que se arvorava a ser “dona do pedaço”: o bando chefiado pelo
182
jovem traficante Modelo, epíteto que indica o “novo” padrão que, da mesma maneira
apresentada na narrativa de CDD, irá substituir e aniquilar a antiga malandragem que só
desejava “acertar a boa”, executar a última “correria” e deixar, definitivamente, a vida
do crime. Entretanto, como anunciam os títulos em cada parcela da trama, o ódio e a
traição não deixarão essa tarefa de “despedida” ser cantada no tom desejado. E aí, sim,
serão acompanhados por uma “uma dança que não autoriza alegria alguma,
sensualidade alguma”...
Episódios de suburbanos invisíveis
A literatura ruidosa se apresenta aqui o primeiro de seus componentes: o uso da
violência, não apenas como função estética e sim para indagar criticamente a
representação literária de personagens subalternas. Isso ocorre em conjunto com a
narrativa articulada ao modo de imagens fragmentadas, expostas em MPO através do
recurso de flash back e da reconstituição de raros momentos da memória de eventos
relacionados à família de cada uma das personagens do grupo de outlaws (foras-da-lei)
que desejava realizar a derradeira “correria” que lhes livrasse para sempre da vida do
crime. Se o Capão Redondo em sua primeira versão fictícia era um espaço “sem
inspiração pra cartão-postal”, a trama de MPO reedita a desmistificação da denominada
“vida bandida”, feita através das letras de rap do grupo Racionais MC’s, e o desfecho
de cada parte da narrativa traz justamente outro importante elemento dessa literatura ––
uma história, por sua vez, sem a mínima inspiração para finais felizes ou, no mínimo,
satisfatórios aos olhos do leitor. Os feitos e desatinos estão registrados pela “estrutura
episódica”, acrescida do tom pedagógico e do desfecho acatártico de cada um deles.
183
Dentre essas personagens, é Régis que primeiro apresenta ao leitor a “cena
primordial” (CORNEJO POLAR, 2000)
48
relativa à infância. É a partir dela que a
memória do ódio germina e vai se cultivando diariamente. Mais do que simplesmente
narrar um dos milhares episódios da desigualdade, o referido trecho, que virá a seguir, é
escrito com a incorporação da velocidade do diálogo entre a e do menino Régis e a
“patroa”. As vírgulas aparecem no local em que deveria se encontrar o “ponto final” da
sentença, modificando, desse modo, a recepção/percepção do leitor. Esse mesmo
recurso remete ainda ao tempo de compreensão de realidade presente, segundo o ponto
de vista do adulto que dialoga com as memórias fragmentadas de sua infância. Curioso
notar, ainda, que tanto a mãe quanto a “patroa” possuem nomes próprios, sua alteridade
consiste nos papéis sociais que cada uma delas exerce, respectivamente, subalternidade
e poder. É preciso destacar que a despersonificação dessas personagens femininas,
especialmente no caso da mãe, denota que tais corpos não se rebelaram com a condição
subalterna que lhes foi impingida pela sociedade. Talvez devido a esse fator, Régis
parece não possuir outra lembrança de sua mãe que não seja aquela das humilhações
diante do açougueiro, como nas ocasiões nas quais ela sempre comprava “pé de
galinha”, por ser este o prato “preferido” pelo filho.
A patroa da mãe de Régis lhe disse uma coisa que ficou esse tempo
todo, e ele guarda como o começo de todo o ódio que nutria por
quem tinha o que ele sempre quis ter, dinheiro. Um dia, durante uma
conversa entre a patroa e a mãe, a patroa perguntou de que bairro eles
eram, sua mãe disse o nome do bairro, a patroa passou a mão na
cabeça do pequeno e disse:
– Então é esse pivete que um dia vai crescer e vir roubar minha casa?
48
Compreendida aqui como o momento primeiro que define a violência como um elemento constante da
vida de cada uma das personagens. Para Polar (2000), a “cena primordial” refere-se ao fatal encontro
entre os espanhóis e os povos pré-colombianos, num episódio em que, uma bíblia atirada ao chão, pelo
fato do líder nativo não conseguir “ouvir” nenhuma palavra do livro, provoca a primeira de muitas
carnificinas ocorridas desde então.
184
Régis não entendeu a piada, nem sua mãe entendeu o que a patroa
quis dizer, mas imitou a patroa na risada, a patroa ria que se acabava
e a mãe de Régis tentava acompanhar aquela que lhe pagava o salário
todo mês, que sustentava sua família, afinal a patroa era tão estudada
que deveria estar certa de achar graça em seu filho talvez ser um
futuro marginal. (MPO: p. 44)
A cena dessa indigesta memória irá perseguir a personagem por toda sua
trajetória e se transformará no leitmotiv que moverá a revolta e o ódio de Régis contra
aqueles que tudo possuem. O “preconceito geográfico” está explícito na fala da patroa
após indagar à mãe de Régis sobre seu bairro. A simples localização geo-espacial da
família de sua empregada doméstica era suficiente para definir de maneira
indiscutível o futuro do menino, que de acordo com o raciocínio da “patroa” era selado
por um riso cínico e debochado. Se em uma das fotografias do bairro de Capão
Redondo, exibidas na primeira edição de Capão pecado, havia a legenda “sem
inspiração pra cartão postal”, o relato desse episódio da vida de Régis seria, por assim
dizer, sem inspiração para biografia (compreendendo que isso indicaria a pouca
importância dada à vida daquelas personagens pelo mundo “oficial e legalizado do
asfalto”, bem como aos moradores da periferia nos quais se baseiam). O futuro sem
saída e que leva ao caminho do mundo do crime tenta ser transformado,
paradoxalmente, em alternativa que levasse Régis e seus companheiros de volta à
cidadania. O ódio não poderia ser descartado por aquele menino, diante do riso sem
graça de sua mãe que, forçosamente, tentava acompanhar, sem compreender, às
gargalhadas sinistras de sua “patroa”.
A partir desse fragmento memorialístico, o leitor também perceberá uma
aproximação, cada vez maior, da voz narrativa com a ética do mundo do crime e que, ao
final do texto, irão selar o destino do grupo que buscava a última “correria” da “vida
loka”. A extrema proximidade do ponto de vista narrativo com a ética do crime consiste
185
em mais um dos elementos da literatura ruidosa. Para mostrar o quão próximo se torna
o narrador, acrescento ao “episódio” inicial da personagem Régis dois outros
momentos.
O primeiro deles trata-se de um encontro com Nego Duda (MPO: 33-35) –
personagem que terá seu destino encurtado pela arma de Régis – devido a uma proposta
para cometer um assassinato. Nego Duda procura Régis buscando conselho sobre qual a
melhor maneira de executar o crime sob encomenda e confessa seu receio, pois o
indivíduo que deveria ser morto morava em outra área, o bairro do Brás. Régis
aconselha Nego Duda sob um clima tenso, que vai se desfazendo à medida que o jovem
candidato a matador de aluguel explica-lhe o caso. Régis, então, se tranquiliza e diz ao
malandro que era pedir o dinheiro adiantado, o retrato do alvo e marcar o encontro
para a entrega da grana e do retrato em um lugar ermo. Assim que recebesse tudo, Nego
Duda deveria matar o mandante ali mesmo, evitando problemas futuros. Porém, o
“episódio” não termina como Nego Duda esperava (MPO: 49-50). Mal executara o
mandante que havia lhe entregado o envelope com dinheiro, ali, no “escadão do
colégio” como gis havia sugerido e a arma do “conselheiro” disparava contra as
costas de Nego Duda. O final inusitado coincide ainda com o título-epígrafe do capítulo
2 Quem é não comenta que pode ser interpretado, nesse caso em particular com o
fato de ser “proibido” e extremamente desaconselhável sair por contando sobre os
planos e trabalhos que renderiam uma quantia considerável como a que foi oferecida a
Nego Duda: cinco mil reais.
Como se não bastasse o ato gratuito de traição com o “aspirante” a matador,
Régis protagoniza uma cena estarrecedora: ao ser levado por Celso Capeta a um pai-de-
santo, o bandido se exalta. Veja a seguir a transcrição do ato desesperado de Régis:
186
Nesse momento o pai Joel aponta para Régis que fica meio espantado
e tenta indagar algumas palavras que não saem de sua boca.
Num fala nada não, meu fio, ele querendo você, você tombou ele
de bruços?
– Quem pelo amor de Deus?
– O seu último.
Bom... num lembro, sei que matei, mas se ele caiu de bruços eu
num lembro.
– Pois ele tá querendo você, meu fio.
– Porra, jão! E o que é que tenho que fazê?
Primeiro, você tem que me chamar de pai, jão é a puta que o pariu,
segundo, você tem que derramar o sangue dum animal pra ele, senão
ele acaba pegando você.
Régis levanta e, mesmo com o protesto de Celso Capeta, ele sai, Celso
continua conversando com o pai Joel, pergunta ao pai-de-santo se ele
acha que o assalto que estão tramando muito tempo iria dar certo
ou não, mas antes da resposta do pai-de-santo, Régis entra
violentamente na sala com uma galinha branca na mão e pergunta:
– Essa aqui serve pro vagabundo me deixar em paz?
– Serve sim, meu fio.
Após a resposta do pai-de-santo, Régis puxa uma faca e corta
violentamente o pescoço da galinha e, enquanto o sangue esguicha,
grita bem alto.
Toma aqui, safado, você morreu porque era pilantra, agora toma
aqui.
Celso Capeta e pai Joel não acreditam na cena, Régis se retira
novamente e volta em seguida com mais uma galinha, que dessa
vez preta, corta o pescoço como fez com a outra e grita:
pra ter certeza, safado, toma aqui, bebe o sangue, mas que você
era pilantra era.
– Deus do céu.
Foi o que o pai-de-santo disse ao olhar para Régis que logo que saiu
do estado de fúria lhe pediu desculpa, pagou a conta e puxou Celso
para fora da casa. (MPO: 121-122)
Cabe destacar a alternância entre a voz do narrador e os diálogos entre as três
personagens envolvidas na cena. A atitude de respeito ao pai-de-santo por parte de
Celso é levada com descrédito por Régis, desde o momento em que chegam ao local que
encontrariam pai Joel. O tom de galhofa de Régis só se modifica ao ser alertado sobre o
“inimigo” que queria levá-lo para o mundo dos mortos. E era justamente aquele que
187
fora assassinado pelo bandido havia pouco tempo. Gostaria de comparar a atitude de
Régis com a de outra personagem em situação semelhante. Em Cidade de Deus (1997:
160-161), Cabeleira vai a um terreiro, preocupado com os pesadelos que tinha com
antigos colegas, todos já falecidos. Sua companheira, Berenice, lhe acompanhava na
visita. Curiosamente, dois pontos comuns entre a prática de duas personagens
Celso e Cabeleira que vão àquele espaço com certa crença na religiosidade de matriz
africana e, ainda, movidos por um interesse bastante prático: pedir proteção e saber se
lograriam sucesso em suas empreitadas.
Mas as semelhanças param por aí, quando Régis entra em cena. O único recurso
que ele sabe lançar mão é a demonstração de força através da violência, mesmo para
enviar um “recado” para o “além”, o “limbo”, o “purgatório” em que vagava sua vítima
mais recente. Mesmo o ato de sacrificar animais também possuía suas regras, fato que é
completamente desconsiderado pelo bandido. Tudo que ele queria era resumido numa
palavra: solução. Não por acaso, os animais sacrificados são duas galinhas – uma
branca, outra preta surgem exatamente no sétimo capítulo. Elas representam a ligação
entre o mundo dos vivos e dos mortos, para algumas religiões de matriz africana. A
partir de sua rápida passagem na trama, o destino das personagens que compõem o
bando da “última correria” parece estar violentamente selado. O ato sacrificial
desesperador perpetrado por Régis é o índice que marca a derrocada do plano principal
de todos eles: livrarem-se da vida do crime. E a última frase de pai Joel diante da cena
resume o absurdo desejo de Régis em mover, somente a seu favor, as leis que regem até
mesmo o mundo dos mortos... Qualquer tentativa de movimento em favor de alguma
identificação positiva com o universo da religiosidade de matriz africana, por parte das
personagens que trafegam naquele ambiente sitiado pelo crime, cai por terra, como os
sonhos embalados pelo acesso “fácil” e rápido” à cidadania de consumo. Não
188
espaço para o “Atlântico Negro” quando este se toma o caminho escolhido por Régis,
parecendo que ganha terreno apenas a vinculação à ética de cunho capitalista do
“Atlântico Norte”, por ele reelaborada com a opção pelo crime, a “vida loka”.
A ligação de Régis com as outras personagens, pertencentes ao que pode ser
denominado “núcleo central” do enredo, é mais profunda do que o simples fato de todas
elas serem integrantes da mesma quadrilha. São episódios referentes a ele que abrem e
encerram o romance, tornando-o uma espécie de “costura” tanto no que diz respeito ao
tema da violência quanto a outros momentos relacionados, por exemplo, à vida familiar
(Régis é casado com Eliane e os dois têm um filho, Ricardo), às aventuras amorosas (ele
é amante de Vânia) e ao hiato comum a todos que integram o bando: nenhuma amizade
que possa ser fundamentada em palavras como verdade e confiança.
O papel dessa personagem em MPO difere radicalmente do que ocorre em CDD,
pois, no romance de Paulo Lins, há uma pletora sufocante de personagens, o que
impossibilitaria a importância atribuída pelo narrador aos episódios que envolvem
Régis, como ocorre em MPO. Suas ações pontuais se concentram em um episódio no
princípio, aproximadamente na metade da narrativa e ao final dela. Pensando, ainda, na
“estrutura episódica” do rap, tem-se em músicas como “Tô ouvindo alguém me
chamar” e “Rapaz comum a linha tortuosa que cede seus fios de alta voltagem do
embate entre exclusão social/racial e a violência
49
. O vórtice não-solidário que devora
as personagens do romance de Paulo Lins irá se repetir em Manual prático do ódio
(2003). A ausência de perspectiva reduz a possibilidade de escapar do canto da sereia”
despejado pelo mundo do crime nas periferias. A infância de Régis, Lúcio Fé, Aninha se
assemelha a alguns dos momentos vividos por Marreco, Dadinho, Bené: para todos eles,
49
Infelizmente, no Brasil, as estatísticas que se enveredam sobre as vítimas da violência usualmente não
trazem uma radiografia que mostre o item que vincula à raça e/ou à etnia. Tais dados só aparecem quando
as pesquisas são feitas por órgãos como o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento)
ou instituições como a Fundação Ford ou a Anistia Internacional.
189
o refrão entoava “cada um é o que tem”. Como nada possuíam de valor, em
conformidade com a escala do consumo, as personagens encenam o mote do mundo real
e são fisgadas entre o exíguo espaço que sobra “entre o crime e a necessidade”.
O volume do ruído irá crescer com a “cena primordial” relacionada à infância e
adolescência de Lúcio Fé. O flash back ocorre num dos momentos mais tensos do
enredo para essa personagem. Ele caminha pelo bairro e não encontra guarida em
nenhuma casa, em nenhuma nesga de sombra de alguma viela mal iluminada. Quando
se realmente conta de que o ódio e o vazio se apossaram de sua fé, Lúcio vagueia
pela “quebrada” e pula o muro da escola que abandonara em alguma parte de sua vida.
Ele caminha pela escola, sala por sala e verifica sem espanto que ali nada mudara “o
tempo não era tão cruel assim” (MPO: 143) e logo em seguida se dirige ao pátio para
sentar-se no mesmo local em que saboreava seu lanche: “o prato de sopa quente, a
caneca azul cheia de chocolate com leite”. A imagem se quebra a partir desse ponto
como um frágil cristal, as sentenças se sucedem sem ponto final e separadas por
vírgulas, apenas, e a ação da memória é abruptamente interrompida. Novamente, o
recurso de reproduzir em parte o tempo do diálogo, agora mais se assemelha àquele do
fluxo de consciência. Tem-se a impressão de que os acontecimentos narrados ocorrem
numa espiral descendente, partindo de algum ponto aquecido pelo calor do “prato de
sopa quente” para a temperatura que cai a níveis infernais o fogo que estranhamente
nunca aquece a alma. Surge a lembrança dominante da “falta do que comer em casa”, e,
essa imagem é lançada sobre o papelote de cocaína que se abre. Irônica e tragicamente
seu conteúdo explosivo foi separado por um cartão telefônico com motivos ligados ao
movimento negro – “pulou o texto que seguia, olhou mais abaixo e viu o nome da série,
era Consciência Negra” (MPO: 145) – e nem se deteve na reprodução de “duas senhoras
negras”, mesmo que uma delas lhe lembrasse a avó. Seus contatos pessoais mais
190
próximos, anotados em um papel que trazia em seu bolso, serviram de veículo ao “pó
branco” que lhe invadiu as narinas, apagando momentaneamente a fome que habitara
sua infância e adolescência. A dor provocada por sua solidão fora, também,
parcialmente estagnada naquele ato.
A única personagem feminina do bando é Aninha. O diminutivo de seu nome
não capta sua tempestade interna e esse carinho nominal não afasta os riscos que a sua
“profissão” lhe impinge. Essa menina-mulher, pois não aparenta a real idade, remonta a
outras personagens da literatura que assumem posturas masculinizadas para
sobreviverem ao universo bélico que as rodeia. Sua beleza poderia ser de outra textura,
que não a dureza de gemas não lapidadas. Ela desejava ter uma “vida comum” na qual
pudesse ser amada e não necessitasse se envolver nas brigas de seu primo à saída das
aulas na escola do bairro. Ela não mandava recados, valendo-se de atitude e de um trinta
e oito municiado na cintura, resolvia sozinha os desafetos no caminho de sua minúscula
família – constituída unicamente por Aninha e o primo.
Aquela migrante que viera do interior da Bahia praticava assaltos à mão armada
para aliviar uma pequena parcela da dor que carrega dentro de si, como exemplificado
pela “fita” que fizera naquela loja de roupas de grife, auxiliada por Mágico, que lhe
emprestara o carro. Após o assalto, seu pensamento buscava consolo num raciocínio
torto, misto de cristianismo e justiça a la Robin Hood, pois acredita naquele instante que
Cristo estaria “ao seu lado” (MPO: 57), o lado das minorias que integram a “maioria” da
população estagnada abaixo da linha da classe média. O ganho com a correria? Ele se
esvai “duas semanas depois”, pois a inclusão nesse rol de cidadania via crime é sempre
momentânea e ferozmente efêmera.
191
Essa personagem se torna coisificada de que maneira? A resposta parece
direcionar-se à infância, e os fragmentos de memória individual poderiam ser
representativos de um número significativo de outras integrantes de sua pertença social.
(...) e sem se dar conta parou no tempo e viu cenas de sua infância,
suas amigas novamente, todas de tranças, pulando corda, sua mãe lhe
avisando que estava na hora de seu pai voltar do serviço, os pés do
querido pai, ouviu seus passos novamente. Aninha se via correndo
em direção à cama e fechando os olhos, não passava dez minutos e o
que queria está acontecendo, seu pai chega perguntando e vai ver sua
menininha que es supostamente dormindo, seis anos fazendo a
mesma brincadeira e ele sabe que ela fingindo, mas não parece saber,
e faz carinho na pequena, passa a mão pelos cabelos enrolados da
menina, cabelos castanhos, e diz baixinho:
– Filhinha? Aqui é o papai.
Ela abre os olhos lentamente, na sua mente ele nunca a tocou, na sua
memória ele nunca fez nada que a fizesse sofrer, ela lhe dá um grande
abraço, e essas imagens se afastam, e fica a lembrança de algo
bom lá atrás. (MPO: 58)
Aninha recria na memória a infância que nunca teve: o carinho do pai, as amigas
e as brincadeiras. A personagem ficcionaliza a própria vida, inventa um passado em que
possa se apoiar, raízes enfim, com o intuito de tornar mais suportável o tempo presente.
Tais alicerces familiares não passam de “imagens que se afastam”, a sugestão que fica –
“na sua mente ele nunca a tocou” é a de um pai que tentara abusar sexualmente da
menina, magoando-a e cravando em seu íntimo os distúrbios que tenta sufocar com os
agrados fáceis de um vestido angariado numa “correria” numa boutique de grifes. Muito
embora, mesmo diante dessa “ficção” criada por ela, sua esperança é que permaneça
alguma coisa confortante e boa. Aninha, ao contrário de Régis, luta para não cultivar o
ódio que despejaria tanto contra algum “jão” que lhe atravessasse o caminho, quanto
contra o mundo “do outro lado da ponte” que separa o Capão Redondo da cidade
planejada e burguesa. Aninha será a única sobrevivente do bando por ensaiar uma
192
feminilidade diante do espelho de seu quarto barato. Esses pequenos fragmentos de
subjetividade a infância e a condição de mulher são vividos intensamente durante
aqueles momentos, pois somente ela conhece deles a importância. Ana de Várzea do
Porto (sua cidade natal, no estado da Bahia) fecha os olhos, “monta e desmonta uma
pistola” automática que, quem sabe, mantenha pulsando o seu coração contra as vielas
da periferia.
Passo agora à análise da personagem Neguinho da Mancha na Mão. É a partir
desse apelido nada condescendente que ele fica conhecido até a cena em que seu corpo
é observado pela família e conhecidos, deitado em seu caixão, quando o narrador
deixa escapar, pela terceira vez apenas, durante toda a narrativa, o inusitado nome da
personagem aos leitores: Windsor. Ainda quanto ao “nome de guerra” da personagem,
deve-se lembrar que o sufixo diminutivo – “inho” – denota uma infantilização do
sujeito, prática muito comum que afeta mais diretamente categorias como o negro, a
mulher, o judeu, o colonizado, etc. Interessante notar, contudo, que não uma
explicação no enredo que conta, para o leitor, sobre a natureza da “mancha” que
distingue Neguinho. Seria relacionada a alguma queimadura adquirida durante a
infância ou uma cicatriz devido a um ferimento por arma de fogo? Nenhuma pista...
Entretanto, no que diz respeito a Neguinho da Mancha na Mão é que tal alcunha registra
outro constituinte da literatura ruidosa: o viés expressionista utilizado por Lima Barreto
na construção de personagens, dando destaque a uma característica física ou
psicológica. O número de baixas letais na ambiência da ficção coincide com as
estatísticas do mundo real e a personagem masculina, negra/afrodescendente, também
não logrará sobrevivência, principalmente após seu ingresso no caminho do crime.
Em Neguinho ocorre também oscilação entre o amor dedicado à personagem
Eduarda e a violência e a frieza extrema, com que atua ao vingar a morte de seu primo
193
Miltinho (MPO: 24). O espantado leitor torna-se testemunha do encontro do marginal
com Eduarda, seu único e verdadeiro amor, e do relato da vingança pessoal na mesma
sequência. A ética do narrador expõe os seus paradoxos, ora humanizando a
personagem, ora coisificando-a pela metonímia “mancha na mão”. Outra marca para um
neofilho de Cam?
Interessa analisar um pouco mais de perto essa personagem quadruplamente
marcada. Neguinho da Mancha na Mão é subalternizado pela “linha de cor”, pela linha
de classe, é criminoso e, como se não bastassem essas três identificações dadas pelo
narrador, possui a “mancha na mão”. Possivelmente, o último sinal poderia ser
traduzido pelo sangue que carrega em sua mão, devido ao assassinato de Guile (parceiro
de Modelo que matara o primo de Neguinho). Essa marca de “sangue” irá persegui-lo
até o final da trama, eliminando sua tia antes dele. Depois foi a vez de Lúcio Fé, seu
colega de “correria” (MPO: 196-199), Mazinho logo em seguida (um garoto que salvara
a “banca” antes que fosse exterminada por um grupo de justiceiros, logo ao início da
narrativa).
um ponto importante em relação à personagem Neguinho se comparado a
todos que compõem a pequena quadrilha chefiada por Mágico: ele é o único sem
lembrança alguma de infância. O jovem apaixonado por Eduarda é apresentado pelo
narrador da seguinte maneira: “Neguinho da Mancha na Mão nunca havia passado o dia
todo em casa, o revólver na cintura era de praxe, afinal os inimigos não dão aviso prévio
(MPO: 21)...Essa personagem sem memória, sem passado é colocada na corrente de
águas rápidas do enredo com uma arma como extensão natural de seu corpo. Os únicos
momentos de afetividade são vividos ao lado de Eduarda. O primeiro encontro ocorre na
mesma noite em que ele, ao dirigir-se para o bar do Neco, encontra e elimina o
assassino de seu primo. A morte de Guile será mais uma sentença a pairar sobre sua
194
cabeça, já que ao final do romance é revelado o verdadeiro elemento motivador do
desmantelamento do grupo: Régis. Neguinho da Mancha na Mão, ou Windsor, seu
nome de registro, que utilizado quando ele estava a sós com Eduarda, tornou-se
quase naturalmente a escolha do narrador e da personagem Régis para ser a vítima a ser
imolada, aquela que padeceria por todos os males que os rodeavam. Transcrevo a cena
final de Neguinho:
Eduarda chorou muito, os pais a seguraram para que não caísse, o
caixão estava muito bonito, flores de todas as cores, o enterro de
Windsor estava cheio, todos comentando que Neguinho da Mancha na
Mão era uma pessoa muito boa, que apesar de fazer o que fazia, de
correr atrás de uma vida de ilusões, era um ser humano dos mais raros,
educado e cavalheiro. O pai de Eduarda estava indignado, falava a
todo momento no ouvido de sua esposa: Um vagabundo, muié, nós
quase deixamos nossa filha ficar com um vagabundo, eu nunca gostei
desse cara. A mulher ouvia tudo calada, sabia que o marido também
havia gostado de Neguinho, sabia que até um jogo eles haviam
marcado, mas olhava o rosto de Neguinho pelo vidro do caixão e
achava injusto um menino tão novo estar com tantos pontos na
face.
Dona Ana olhou bem de perto, e lembrou do pequeno menino que ia
buscar leite para ela todas as manhãs, as moedas do troco animavam o
pequeno que saía correndo pela rua em direção à padaria, lá compraria
um sonho, e foi atrás disso que Neguinho da Mancha na Mão passou a
vida inteira, atrás de um sonho. (MPO: 239-240 – grifo meu)
Intriga-me essa personagem sem passado e que até mesmo a fugaz memória de
um momento na infância, só é apresentada ao leitor a partir da lembrança guardada por
Dona Ana. Em nenhum ponto da história tem-se qualquer alusão feita sobre quem e
porque teria dado a ele tal apelido. Para a família de Eduarda ele era Windsor nome
dado pelo pai, segundo o próprio Neguinho que também afirmava não saber o
significado. E mesmo com todos os motivos, segundo a trama, para não ser querido por
sua própria comunidade, ou melhor dizendo, ele “pertencia” à periferia, todos os que
foram ao enterro simpatizavam-se com sua humanidade. Características como “educado
195
e cavalheiro” não seriam plausíveis no mesmo “homem” que, ao matar Guile, “efetuou
vários disparos e pra conferir se aproximou e deu um tiro em cada olho, estava vingada
a morte de seu primo Miltinho” (MPO: 24). Quando a violência desmedida atinge
somente aos que estão diretamente envolvidos no mundo do crime, parece haver uma
tendência em minimizar ou relevar os atos cometidos por Neguinho.
No entanto, o pensamento da mãe de Eduarda, à beira do caixão de Windsor,
vem revelar ao leitor o peso inigualável das linhas de comportamento sobre aquele
jovem que era velado: elas não lhe pouparam nem quando é chegada a morte. Negro e
morto, negro e “marcado”, como se fosse essa a última oportunidade para a vida lhe
diferenciar de todos os outros seres humanos, destituindo-o de vez de qualquer traço de
humanidade. A representação do confronto urbano entre a vida bandida, os órgãos de
segurança pública e os matadores de aluguel (“pés-de-pato”) surge na derradeira cena
em seu volume máximo: Windsor, transmutado em Neguinho da Mancha na Mão,
termina “com tantos pontos na face”, justamente, para não contrariar as estatísticas...
Tais fragmentos de imagens da infância e de outros momentos mais particulares
da vida das personagens o dispersos estrategicamente pela narrativa. Desse modo,
reforça-se a escolha do narrador por apresentar o enredo composto à guisa de uma
montagem cinematográfica. Isso poderia ser considerado mais um “aspecto anti-
literário” (BAKTHIN, 2003: 85) similar à utilização da linguagem jornalística por parte
das narrativas contemporâneas, como foi identificado por Alfredo Bosi (2002: 17-18).
Estariam tais construções literárias da atualidade sendo criadas como embriões de
roteiros cinematográficos? A história do grupo de criminosos formado pelas cinco
personagens está entrecortada de outras mini-narrativas, sugerindo a simultaneidade de
acontecimentos que, na maioria das vezes, encontram-se invisibilizados pela profusão
de ambientes urbanos e sua mirada seletiva: nem toda alteridade permanecerá à vista,
196
usufruindo as benesses da megalópole paulistana. Cabe também destacar que o espaço
físico das periferias urbanas a proximidade e o tamanho reduzido das construções
favorece a percepção de uma pletora de fatos que ocorrem num mesmo instante, sejam
dentre esses as discussões amorosas, os conflitos entre familiares devido à falta de uma
peça de roupa ou o acerto de contas entre os “parceiros” de “correria”, indicando uma
confusa ausência de privacidade. Essa estranha sincronia provocada pela falta de
espaços privados torna-se, também, outra característica anti-literária”. É isso que
Ferréz denomina “morar dentro do tema”, aproximando cada vez mais, através da
“escrevivência” seu narrador do “sistema de atitudes” que permeia o mundo real de
onde são retiradas suas personagens.
Manual prático do ódio mimetiza a forma narrativa de Cidade de Deus ao
apresentar a trama fragmentada, escrita que corrobora a ideia de simultaneidade entre o
ato de narrar e os acontecimentos ao redor da voz que relata cada cena do enredo. No
romance, principalmente no episódio final da personagem Régis, surgem referências da
cultura popular urbana (de seriados de TV a marca de produtos de consumo), todas elas
se referindo à infância e aos sonhos naufragados no sangue dos parceiros e de seu
próprio. A trilha sonora não anunciada por índices como nomes de cantores e músicas,
como ocorre em CDD, percorre a narrativa em sua “estrutura episódica”. Cada breve
história, a exemplo das personagens Mazinho, Guile ou os três garotos que se
encontravam na calçada próxima à casa de Modelo e foram alvejados por Régis (MPO:
217), remonta a acontecimentos similares que povoam as letras do grupo Racionais
MC’s. A estranha fratria que se forma na “banca” a cargo de Mágico (o cérebro que
planejava todas as ações de “grosso calibre”) irá se desfazer diante dos olhos de gis
ao constatar enquanto:
197
Olhava para o copo cheio e chegou à mesma conclusão a que sempre
chegava, dinheiro, dinheiro era a razão de tudo, sabia que nenhuma
fita que fizessem daria mais dinheiro que o tráfico, o tráfico era um
comércio contínuo, vivia fluindo, o crime era instável, tinha seus altos
e baixos, uma fita boa ali, um acerto com os homens acolá, uma boa
carga num lugar, um desacerto com alguém em outro, na maioria das
vezes o dinheiro ganho com um bom roubo era aplicado para a
compra de mais armas, as armas emprestadas, não se podia negar nada
para um parceirinho da vida torta, muitos eram presos ou perdiam as
armas no acerto com os policiais, a dívida rolava, dificilmente era
paga.
Régis sentia que o jogo dessa vez estava perto de acabar, pela primeira
vez tinha a impressão de que no tabuleiro havia poucas peças. (MPO:
207)
Essa paralisante epifania da personagem traz a realidade para o seio da narrativa
literária, simulando o depoimento, a análise conjuntural da segurança pública, o
comentarista que aborda o tema da violência urbana, seja no jornal impresso ou em um
blog. Régis se torna um astuto jogador nesse cenário de guerra que se desloca, se
modifica e se adapta com precisão e rapidez espantosas. Reproduz-se no espaço
ficcional de MPO a alteração de ordem provocada com o surgimento do tráfico de
drogas no mundo real, em escala nunca antes prevista. O excerto apresenta ainda uma
concepção que parece colocar em lados opostos o mundo do crime (basicamente
povoado por assaltantes e ladrões) e o universo do tráfico de drogas formado por um
número, cada vez mais em expansão, de profissões e pertencimento a classes sociais das
mais diversas. O pensamento absolutamente negativo de Régis conflui com os versos da
música “Vida Loka Parte II dos Racionais MC’s, que é uma das epígrafes deste
capítulo: “Aí truta é o que eu acho/ Quero também/ Mas em São Paulo/ Deus é uma
nota de cem”...
198
CONCLUSÃO:
Réquiem à civilização, à malandragem e aos seus heróis?
Exus na capa da noite soltaram a gargalhada
E avisaram a cilada pros orixás.
Exus, orixás, menino, lutaram como puderam
Mas era muita matraca pra pouco berro.
E lá no horto maldito, no chão do Pendura-Saia
Zambi Menino Lumumba tomba na raia
Mandando bala pra baixo contra as falanges
do mal
Arcanjos velhos, coveiros do carnaval.
(Aldir Blanc)
199
As narrativas contemporâneas da violência constituem o minado terreno da
fratria literária no Brasil. Os três autores aqui analisados produzem textos que
representam algumas das opções de abordagem estética, temática e porque não dizer
também, discursiva e política. Curiosamente, Passaporte (2001), Cidade de Deus
(1997) e Manual prático do ódio (2003) formam um contundente e provocador trio
lítero-vocal que anuncia, às vezes em tom de desencanto, não apenas as mazelas do
cotidiano das metrópoles. Eles tentam, cada um a seu modo, reelaborar o incômodo e a
perplexidade com os rumos e sombrias veredas que se descortinam diante de autores,
públicos e críticos literários, a partir do trabalho artístico. Então, Bonassi, Paulo Lins e
Ferréz são meros constatadores do fracasso das sucessivas tentativas de aplicação e
adaptação do modo de vida ocidental? São bem mais do que isso... Enquanto o autor
dos minirrelatos (“instantâneos sórdidos da pós-modernidade”) parece alertar sobre esse
“fracasso” em estabelecer uma civilização plena, seja aqui nos trópicos ou no Velho
Continente – o que relembra a “síndrome de Nabuco” – os narradores criados por Lins e
Ferréz descortinam a quebra de expectativa exposta na espera de uma “reação” vinda
dos morros e periferias diante do aprofundamento da desigualdade social perpetrada
pelo processo de formação do país e exacerbada pelos vinte anos de regime ditatorial.
A epígrafe representada pela letra de Aldir Blanc é um marco para esse choque
de realidade. Morre baleada tanto a civilização” (leia-se a opção pelo modo de vida
capitalista do Ocidente) quanto uma terceira via concebida a partir do ideário da
“malandragem”: Nem Salgueirinho, nem Lúcia Maracanã ou ainda, muito menos heróis
idealizados durante os resquícios dos anos de chumbo como “Zambi Menino e
Lumumba” da letra de Aldir Blanc, que foi musicada por João Bosco. Curiosa e
infelizmente seus herdeiros na vida real e na ficção não fariam a tão esperada mudança
no tocante à desigualdade que se aprofunda e é quase naturalizada (bem como parece
200
ser aceita passivamente pelo grosso da população de periferia). Como resposta a esse
quadro “sem inspiração pra cartão-postal”, proliferam as “milícias” e a escolha feita por
jovens nos quais foram inspiradas as personagens Zé Pequeno e Bené em CDD, Régis e
Modelo em MPO. Mais do que um réquiem, tais trabalhos literários seriam anúncio,
alerta e, simultaneamente, tomada de posição via narradores diante dessa enormidade de
obstáculos que se tornou a convivência humana. Os entraves são inúmeros e
possibilitaram o surgimento da expressão em forma de pergunta “humanidade
excedente?”
50
(DAVIS, 2006: 175) para identificar as parcelas “invisíveis” da
população alocada nos espaços urbanos nos quais o Estado se ausenta. São essas sobras
humanas que, por sua vez, se encontram representadas nas referidas narrativas.
Entretanto, os romances de Paulo Lins e Ferréz tratam, esteticamente, daquelas
personagens, mortas socialmente, que perderam a “paciência” de esperar por horas
quase infindas na fila do transporte, da busca por emprego ou pela merenda escolar...
Não são “cobradores” como aqueles presentes nos textos de Rubem Fonseca e em um
dos minirrelatos de Fernando Bonassi, pois resolveram, por conta e risco, tentar
alcançar a falácia da “cidadania” pela via do crime... E assim, eles foram cooptados pela
armadilha discursiva popular, a qual apregoa que “o dinheiro compra tudo”, como está
gravado na narrativa episódica de “Vida Loka – volume II”, retomando o diálogo com a
epígrafe-fragmento (versos finais da mesma música) do terceiro capítulo:
É questão que fartura alegra o sofredor
Né questão de preza, nêgo a idéia é essa
Miséria traz tristeza e vice-versa
Inconscientemente vem na minha mente, inteiro
Na loja de tênis, o olhar do parceiro, feliz
De poder comprar o azul, o vermelho,
50
A questão que intitula o nono capítulo do livro de Mike Davis, Planeta favela (2006), é baseada nas
informações contidas no relatório da ONU The Challenge of Slums (2003) “O desafio das favelas”
no qual a afirmação de que “as cidades tornaram-se o depósito de lixo de uma população excedente
que trabalha nos setores informais de comércio e serviços, sem especialização, desprotegida e com baixos
salários” (DAVIS, 2006: 175 – grifo meu)
201
O balcão, o espelho, o estoque, a modelo
Num importa, dinheiro é puta
e abre as porta dos castelo de areia que quiser.
Preto e dinheiro são palavras rivais, heh?
Então mostra pr’esses cu como é que faz
E seu enterro foi dramático como um blues antigo
Mas de estilo, me perdoe, de bandido
O excerto retirado da letra dos Racionais MC’s corrobora com a ficcionalização
feita pelo escritor Ferréz sobre o assalto sofrido pelo empresário e apresentador de TV
Luciano Huck. No mini-conto produzido pelo autor do bairro de Capão Redondo o
personagem apenas denominado “um correria”, que, além da ação criminosa, tem sua
subjetividade apresentada pelo narrador. Com essa representação ficou latente para o
leitor o ponto de vista e, consequentemente, as “razões” daquele que praticou o delito. É
essa explicitação de alguém que recusa o passivo papel de “humanidade excedente”
leia-se também aquelas enormes parcelas imobilizadas na pirâmide econômica
constitui considerável volume do ruído da literatura escrita por autores como Paulo Lins
e Ferréz. O verso dos Racionais – “É questão que fartura alegra o sofredor” – é
complementado por outra explicitação: os vários objetos do desejo que podem ser
alcançados pela posse do dinheiro, que financiaria a compra dos pares de tênis e de tudo
mais à sua volta, incluindo “a modelo”. Mas há um verso dúbio que prenuncia o
fracasso desse modo de vida: “Dinheiro é puta e abre as portas dos castelos de areia que
quiser”. A rapidez que faz surgirem as “mercadorias”, subtraídas ou adquiridas com o
dinheiro também roubado, torna mais voraz o pouco tempo que pode ser dedicado ao
aproveitamento em vida das mesmas. Esses “objetos de desejo” são meros “castelos
de areia” que serão desfeitos pelas velozes águas do tempo ou das faces de mães alheias
depois do tiroteio... Cenários sem esperança de modificação? Retomo o trato final dado
aos textos dos três autores analisados para alinhavar o tecido de retalhos criado a partir
da reunião dessa tríade.
202
Retomando o percurso dos capítulos
As narrativas contemporâneas da violência expõem os paradoxos da fratria
literária representada por Passaporte (2001), de Fernando Bonassi, Cidade de Deus
(1997), de Paulo Lins e pelo Manual prático do ódio (2003), de Ferréz.
A mercadoria da crueldade, cuja origem é a estética criada por Rubem Fonseca
e se encontra sintetizada no livro de Bonassi, revela ao leitor o narrador Polaroid, que
explora um ponto-de-vista colado às ideias, muitas delas preconceituosas, da classe
média brasileira. Esse modo narrativo não está desacompanhado, pois é o primeiro
elemento dessa vertente. Pode-se comprovar através dos minirrelatos analisados no
Capítulo 1 A mercadoria da crueldade – o quanto o afastamento desse narrador diante
de cada “instantâneo sórdido” garante o estabelecimento do segundo traço: a utilização
da violência com intuito estético apenas. Com isso, a catarse está garantida aos leitores,
porque todos aqueles incômodos ficam satisfatoriamente atados por fios elétricos, mas
ficcionais... tudo permanece ali quando se fecha o livro, não é necessário nenhuma
reflexão, repetindo o efeito first-person-shooter-narrator (narrador-atirador em primeira
pessoa) presente em contos de Rubem Fonseca que tratam da violência. O clima de
videogame assegura, portanto, a tranquilidade na sala de estar.
O próximo elemento é bastante familiar aos leitores, muito embora a maioria
deles não fosse acostumada a refletir sobre seu impacto. Tem-se a repetição de
estereótipos relativos à representação do subalterno: a zoomorfização e a reificação.
Essa característica reafirma a marca estética de grande parte da literatura brasileira que
representa a alteridade subalterna somente como objeto, completamente destituída de
subjetividade. A humanidade das personagens, quando muito, é representada por dor,
203
transpiração corpórea, fome e muito, muito sangue, se for levada em conta a literatura
contemporânea que retrata o cotidiano das metrópoles do país.
O quarto ponto é a presença de valores ético-estético-políticos advindos do
diálogo com o “sistema de atitudes” (BOSI, 2002) do “Atlântico Norte” (COSTA,
2006). Tal elemento contribui para a retomada da “síndrome de Nabuco”, o tom de
lamento pelo fracasso de acordo, ainda, com o pensamento de parte da elite brasileira
em constituir uma civilização ocidental plena. Paradoxalmente, alguns minirrelatos
trazem uma visão irônica e/ou sarcástica sobre as imagens que desfilam diante do olhar
Polaroid.
Recursos adaptados a partir da escrita jornalística são os integrantes desse
penúltimo componente da mercadoria da crueldade. Exemplo disso é a forma sucinta
de cada minirrelato composto por frases curtas e diretas, visando o rápido e
metaforicamente instantâneo acesso do leitor às imagens narradas. a reiteração do
ponto-de-vista da imprensa sobre as “populações perigosas” ou “humanidade
excedente”, indicando uma pretensa “moral da história”: não haveria outro destino para
as personagens ali representadas, elaborando uma “conclusão” que, por sua vez,
mimetiza a ideia que boa parte do “outro lado da ponte do Rio Pinheiros” faz dos
habitantes da periferia. Ainda relativo à imprensa, há em alguns minirrelatos uma
paródia das páginas policiais de jornais que saem agora, no Brasil, em formato tablóide.
Por fim, o último integrante desse rol de características é a alusão em todos os
minirrelatos, numa quase incessante busca por intertextos sejam referências literárias
ou histórico-político-econômicas para tentar abarcar a quantidade imensa de imagens
que passaram diante do narrador Polaroid.
O contraponto à vereda trilhada por Rubem Fonseca e seus seguidores é a
literatura ruidosa de Paulo Lins e Ferréz, analisada no Capítulo 2 Cidade de Deus:
204
divisor das narrativas da violência –, e no Capítulo 3 – Manual prático do ódio:
narrativas da “vida loka”. Em seus romances, a presença contundente de vozes que
aproximam o leitor da ética fluida que pulula nas congestionadas veias, ora do conjunto
habitacional Cidade de Deus, ora no Capão Redondo, ao mesmo tempo em que
descortina a subjetividade e a humanidade das personagens.
Contudo, tais episódios poderiam ocorrer em muitas localidades das periferias de
qualquer metrópole brasileira. Diferentemente da narrativa de Passaporte (2001), os
livros de Paulo Lins e Ferréz parecem integrar um contexto bastante movimentado, pois
dialoga com o mundo do Hip Hop e de outras manifestações da cultura negra/afro-
brasileira urbana e, em maior ou menor medida, acabam por tentar provocar alguma
mudança concreta, por mínima que seja, na vida real das pessoas dos lugares que se
tornaram cenário de seus textos de ficção. A seguir, retomo a lista dos elementos dessa
literatura ruidosa.
O primeiro componente dessa vertente é a violência. Entretanto, esse traço não
trata apenas de mais um recurso estético, pois se faz necessário à narrativa que indaga
criticamente a representação literária de personagens advindas de instâncias subalternas.
Estas últimas são referentes, por sua vez, às questões de raça/etnia, gênero e classe; isso
se torna mais evidente quando se trata do que Dalcastagnè (2005) denomina “vítimas
preferenciais”.
Nos referidos romances, a voz narrativa segundo elemento assume um tom
pedagógico, tendo, portanto, a presença de um narrador similar ao “eu-lírico” das letras
do rap (ex.: MV Mensageiro da Verdade – Bill). Ela se vincula ao “sistema de
atitudes” do “Atlântico Negro”, sem, no entanto, implicar na vinculação exclusiva com
uma “identidade negra”. Dessa forma, a exposição de uma consciência da exclusão
ou como indicou Du Bois (1994), o aspecto por ele denominado “dupla consciência”.
205
O próximo constituinte desse rol é cumplicidade demonstrada pela voz narrativa
com a ética do “sistema de atitudes” do mundo real em que foi baseado, reduzindo
drasticamente o distanciamento necessário ao lavor estético e, simultaneamente,
traduzindo esteticamente para o texto o que Bosi (2002: 12) denomina “aspectos
antiliterários”, aos quais torno a me referir: “poluição existencial do capitalismo
avançado”, segundo ele se constitui simultaneamente em “secreção” e “contraveneno”,
proximidade dos “modos de pensar e de dizer da crônica grotesca” e o “novo jornalismo
yankee”.
O quarto elemento que compõe essa literatura rompe, quase na totalidade, o
distanciamento estético a partir do ponto-de-vista narrativo. Desse modo, a produção
de uma narrativa literária sem a confortante catarse, pois propõe o constante incômodo e
não dá trégua aos leitores, incitando-os à reflexão sobre a realidade a partir da narrativa.
Com o item seguinte, de número cinco, tem-se a experiência cotidiana dos
autores marcando o texto e a voz narrativa, a exemplo do que ocorre com a “literatura
silenciosa”. Ferréz definiu-a como “morar dentro do tema”, enquanto Conceição
Evaristo (SEBASTIÃO, 2004: 4) a denomina como “escrevivência”, para conceituar a
experiência feminina e afrobrasileira.
O penúltimo e sexto ponto integrante da literatura ruidosa passa a configurar o
que seria passível de identificar como uma poética da periferia, que faz questão de
expor o “local” de enunciação. Ela também busca incorporar características do
movimento Hip Hop, dentro do que foi denominado ruído negro (Black noise) por
Tricia Rose (1994), aliadas a outras formas discursivas urbanas como os quadrinhos.
Devo acrescentar, ainda, a esses elementos a busca por novos modos de escritura a
partir do que Anízio Vianna (2005) denomina “poética rap” e sua “estrutura episódica”.
206
Concluindo a lista de características da literatura ruidosa, a sétima delas é a
retomada do recurso expressionista de que se valeu Lima Barreto em dois de seus
romances Clara dos Anjos (1949a) e Recordações do escrivão Isaías Caminha
(1949b) nos quais a alteridade é descrita a partir da exacerbação de peculiaridades
físicas e psicológicas de personagens, sem, no entanto, deixar de fora outros aspectos
importantes de suas subjetividades (cf. CRUZ, 2002).
À guisa de epílogo...
O trajeto desse estudo comparou autores contemporâneos que produzem
narrativas a partir do violento cotidiano que os cerca. Mais do que a aceitação tácita da
imensa presença da violência, como tema e/ou como recurso estético em tais textos
literários, cada um à sua maneira, possibilitou modos diferenciados de se lançar luz
sobre questões reconhecidamente incômodas e atuais no tocante à representação da
alteridade, principalmente no tocante à literatura escrita no Brasil.
A demarcação das particularidades encontradas nesses textos não foi feita a
partir da intenção de separar àquela emitida de dentro do mundo classe média” ou do
planeta periferia. Tal divisão está dada pela realidade. Para autores como Ferréz e
Paulo Lins que escrevem, também, com a intenção de interferir nesse “estado de
coisas”, a luta é ingrata e às vezes infrutífera. Eles compartilham da opinião-metáfora
que afirma: “há pouco bandido no Brasil”. Isso significa que muitas pessoas
aparentemente conformadas com a descomunal desigualdade que assola os mais
diversos setores da vida urbana. Fernando Bonassi não possui o mesmo nível das
urgências que assolam a periferia (o “lado de cá” da ponte sobre o Rio Pinheiros), ainda
207
assim, quando sua agenda permite, ele está presente na área de Ferréz, o bairro de
Capão Redondo.
O que essa tese aponta é o aspecto ao qual nenhum deles escapa: a tentação e a
prática de produzir literatura a partir dos “sistemas de atitude” pelos quais eles
simultaneamente são influenciados e também provocam interferências como resposta.
Não escapam ainda da vigilância do deus que usa ora coturno, ora “colarinho branco”
ou bermuda e pé de chinelo... pois, na verdade, nunca se sabe com certeza qual deles
apertará o gatilho...
208
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VELOSO, Caetano. Estrangeiro. In Estrangeiro. Polygram, 1989. Disco de vinil. Faixa
1.
216
ANEXOS
217
I’LL BE YOUR MIRROR (ANEXO A)
Lou Reed
I’ll be your mirror
Reflect what you are, in case you don’t know
I’ll be the wind, the rain and the sunset
The light in your door to show that you’re home
When you think the night has seen your mind
That inside you’re twisted and unkind
Let me stand to show that you are blind
Please put down your hands
‘Cause I see you
I find it hard to believe that you don’t know
The beauty that you are
But if you don’t let me be your eyes
A hand in your darkness, so you won’t be afraid
When you think the night has seen your mind
That inside you’re twisted and unkind
Let me stand to show that you are blind
Please put down your hands
‘Cause I see you
I’ll be your mirror
218
FUGA DA MORTE (Todesfuge) (ANEXO B)
Paul Celan
Leite negro da madrugada nós o bebemos de noite
nós o bebemos ao meio-dia e de manhã nós o bebemos de noite nós o bebemos
bebemos]
cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado
Um homem mora na casa bole com cobras escreve
escreve para a Alemanha quando escurece teu cabelo de ouro Margarete]
escreve e se planta diante da casa e as estrelas faíscam ele assobia para os seus
Mastins]
assobia para os seus judeus manda cavar um túmulo na terra
ordena-nos agora toquem para dançar
Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos de manhã e ao meio-dia nós te bebemos de noite nós bebemos
bebemos]
Um homem mora na casa e bole com cobras escreve
escreve para a Alemanha quando escurece teu cabelo de ouro Margarete
Teu cabelo de cinzas Sulamita cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz
apertado
Ele brada cravem mais fundo na terra vocês aí cantem e toquem
agarra a arma na cinta brande-a seus olhos são azuis
cravem mais fundo as pás vocês aí continuem tocando para dançar
Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos ao meio-dia e de manhã nós te bebemos de noite nós bebemos
bebemos]
um homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete
teu cabelo de cinzas Sulamita ele bole com cobras
Ele brada toquem a morte mais doce a morte é um dos mestres da Alemanha
ele brada toquem mais fundo os violinos vocês aí sobem como fumaça no ar
aí vocês têm um túmulo nas nuvens lá não se jaz apertado
Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos ao meio-dia a morte é um dos mestres da Alemanha
nós te bebemos de noite e de manhã nós bebemos bebemos
a morte é um dos mestres da Alemanha seu olho é azul
acerta-te com uma bala de chumbo acerta-te em cheio
um homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete
ele atiça seus mastins sobre nós e sonha a morte é um dos mestres da Alemanha
teu cabelo de ouro Margarete
teu cabelo de cinzas Sulamita
(Tradução de Modesto Carone)
CARONE, Modesto. A poética do silêncio, João Cabral de Melo Neto e Paul
Celan . São Paulo: Perspectiva, 1979.
219
O ronco da cuíca – João Bosco e Aldir Blanc (ANEXO C)
Roncou, roncou,
Roncou de raiva a cuíca,
Roncou de fome...
Alguém mandou,
Mandou parar
– a cuíca é coisa dos home.
A raiva dá pra parar, pra interromper.
A fome não dá pra interromper.
A fome e a raiva é coisa dos home.
A fome tem que ter raiva pra interromper.
A fome e a raiva de interromper.
A fome e a raiva é coisa dos home,
É coisa dos home,
É coisa dos home,
A raiva e a fome
Mexendo a cuíca
Vai ter que roncar.
Tiro de misericórdia – João Bosco/Aldir Blanc (ANEXO D)
O menino cresceu entre a ronda e a cana
Correndo nos becos que nem ratazana.
Entre a punga e o afano, entre a carta e a ficha
Subindo em pedreira que nem lagartixa.
Borel, Juramento, Urubu, Catacumba,
Nas rodas de samba, no eró da macumba.
Matriz, Querosene, Salgueiro, Turano,
Mangueira, São Carlos, menino mandando,
Ídolo de poeira, marafo e farelo
Um deus de bermuda e pé de chinelo,
Imperador dos morros, reizinho nagô,
O corpo fechado por babalaôs.
Baixou Oxalufã com as espadas de prata,
Com sua coroa de escuro e de vício.
Baixou Caô-Xangô como machado de asa,
Com seu fogo brabo nas mãos de corisco.
Ogunhê se plantou pelas encruzilhadas
Com todos seus ferros, com lança e enxada.
E Oxossi com seu arco e flecha e seus galos
E suas abelhas na beira da mata.
E Oxum trouxe pedra e água da cachoeira
Em seu coração de espinhos dourados.
220
Iemanjá, o alumínio, as sereias do mar
E um batalhão de mil afogados.
Iansã trouxe as almas e os vendavais,
Adagas e ventos, trovões e punhais.
Oxum-maré largou suas cobras no chão,
Soltou sua trança, quebrou o arco-íris.
Omulu trouxe o chumbo e o chocalho de guiso
Lançando a doença pra seus inimigos.
E Nanã-buruquê trouxe a chuva e a vassoura
Pra terra dos corpos, pro sangue dos mortos
Exus na capa da noite soltaram a gargalhada
E avisaram a cilada pros orixás.
Exus, orixás, menino, lutaram como puderam
Mas era muita matraca pra pouco berro.
E lá no horto maldito, no chão do Pendura-Saia
Zambi Menino Lumumba tomba na raia
Mandando bala pra baixo contra as falanges
do mal
Arcanjos velhos, coveiros do carnaval.
– Irmãos, irmãs, irmãozinhos,
Por que me abandonaram?
Por que nos abandonamos
Em cada cruz?
– Irmãos, irmãs, irmãozinhos,
Nem tudo está consumado.
A minha morte é só uma;
Ganga, Lumumba, Lorca, Jesus...
Grampearam o menino do corpo fechado
E barbarizaram com mais de cem tiros.
Treze anos de vida sem misericórdia
E a misericórdia no ultimo tiro.
Morreu como cachorro e gritou feito um
porco
Depois de pular igual a macaco
Vou jogar nesses três que nem ele morreu:
Num jogo cercado pelos sete lados.
221
Respeitem meus cabelos, brancos (Chico César) (ANEXO E)
Respeitem meus cabelos, brancos
Chegou a hora de falar
Vamos ser francos
Pois quando um preto fala
O branco cala ou deixa a sala
Com veludo nos tamancos
Cabelo veio da áfrica
Junto com meus santos
Benguelas, zulus, gêges
Rebolos, bundos, bantos
Batuques, toques, mandingas
Danças, tranças, cantos
Respeitem meus cabelos, brancos
Se eu quero pixaim, deixa
Se eu quero enrolar, deixa
Se eu quero colorir, deixa
Se eu quero assanhar, deixa
Deixa, deixa a madeixa balançar
Por isso eu digo: Brasil eu fico (ANEXO F)
Fábio/Paulo Imperial
Ah, ah, ah, ah ] 2 X
Lá no alto da montanha
Jesus Cristo no altar
Lá do alto tudo é mar
São as cores do meu Rio a passar
Por isso eu digo: Brasil eu fico
Por isso eu digo: Brasil eu fico
Por isso eu digo: Brasil eu fico
Nas histórias desse mundo
Eu ouvi desistir de sonhar
Vou vivendo acordado
São as cores do meu Rio a passar
222
Por isso eu digo: Brasil eu fico
Por isso eu digo: Brasil eu fico
Por isso eu digo: Brasil eu fico
Vivendo acordado vou
Dizendo a você
Sempre do teu lado eu vou
As cores são você
Por isso eu digo: Brasil eu fico
Por isso eu digo: Brasil eu fico
Por isso eu digo: Brasil eu fico
PENSAMEMTOS QUASE PÓSTUMOS (ANEXO G)
Pago todos os impostos. E, como resultado, depois do cafezinho, em vez de balas de
caramelo, quase recebo balas de chumbo na testa
LUCIANO HUCK foi assassinado. Manchete do "Jornal Nacional" de ontem. E
eu, algumas páginas à frente neste diário, provavelmente no caderno policial. E, quem
sabe, uma homenagem póstuma no caderno de cultura.
Não veria meu segundo filho. Deixaria órfã uma inocente criança. Uma jovem
viúva. Uma família destroçada. Uma multidão bastante triste. Um governador
envergonhado. Um presidente em silêncio.
Por quê? Por causa de um relógio.
Como brasileiro, tenho até pena dos dois pobres coitados montados naquela
moto com um par de capacetes velhos e um 38 bem carregado.
Provavelmente não tiveram infância e educação, muito menos oportunidades. O
que não justifica ficar tentando matar as pessoas em plena luz do dia. O lugar deles é na
cadeia. Agora, como cidadão paulistano, fico revoltado. Juro que pago todos os meus
impostos, uma fortuna. E, como resultado, depois do cafezinho, em vez de balas de
caramelo, quase recebo balas de chumbo na testa.
Adoro São Paulo. É a minha cidade. Nasci aqui. As minhas raízes estão aqui.
Defendo esta cidade. Mas a situação está ficando indefensável.
Passei um dia na cidade nesta semana – moro no Rio por motivos profissionais –
e três assaltos passaram por mim. Meu irmão, uma funcionária e eu. Foi-se um relógio
que acabara de ganhar da minha esposa em comemoração ao meu aniversário. Todos
nos Jardins, com assaltantes armados, de motos e revólveres.
Onde está a polícia? Onde está a "Elite da Tropa"? Quem sabe até a "Tropa de
Elite"! Chamem o comandante Nascimento! Está na hora de discutirmos segurança
pública de verdade. Tenho certeza de que esse tipo de assalto ao transeunte, ao
motorista, não leva mais do que 30 dias para ser extinto. Dois ladrões a bordo de uma
moto, com uma coleção de relógios e pertences alheios na mochila e um par de armas
de fogo não se teletransportam da Rua Renato Paes de Barros para o infinito.
Passo o dia pensando em como deixar as pessoas mais felizes e como tentar
fazer este país mais bacana. TV diverte e a ONG que presido tem um trabalho sério e
223
eficiente em sua missão. Meu prazer passa pelo bem-estar coletivo, não tenho dúvidas
disso.
Confesso que andei de carro blindado, mas aboli. Por filosofia. Concluí que
não era isso que queria para a minha cidade. Não queria assumir que estávamos vivendo
em Bogotá. Errei na mosca. Bogotá melhorou muito. E nós? Bem, nós estamos
chafurdados na violência urbana e não vejo perspectiva de sairmos do atoleiro.
Escrevo este texto não para colocar a revolta de alguém que perdeu o Rolex, mas
a indignação de alguém que de alguma forma dirigiu sua vida e sua energia para ajudar
a construir um cenário mais maduro, mais profissional, mais equilibrado e justo e
concluir com um 38 na testa que o país está em diversas frentes caminhando nessa
direção, mas, de outro lado, continua mergulhado em problemas quase "infantis" para
uma sociedade moderna e justa.
De um lado, a pujança do Brasil. Mas, do outro, crianças sendo assassinadas a
golpes de estilete na periferia, assaltos à mão armada sendo executados em série nos
bairros ricos, corruptos notórios e comprovados mantendo-se no governo. Nem Bogotá
é mais aqui.
Onde estão os projetos? Onde estão as políticas públicas de segurança? Onde
está a polícia? Quem compra as centenas de relógios roubados? Onde vende? Não
acredito que a polícia não saiba. Finge não saber.
Alguém consegue explicar um assassino condenado que passa final de semana
em casa!? Qual é a lógica disso? Ou um par de "extraterrestres" fortemente armado
desfilando pelos bairros nobres de São Paulo?
Estou à procura de um salvador da pátria. Pensei que poderia ser o Mano Brown,
mas, no "Roda Vida" da última segunda-feira, descobri que ele não é nem quer ser o tal.
Pensei no comandante Nascimento, mas descobri que, na verdade, "Tropa de Elite" é
uma obra de ficção e que aquele na tela é o Wagner Moura, o Olavo da novela. Pensei
no presidente, mas não sei no que ele está pensando.
Enfim, pensei, pensei, pensei. Enquanto isso, João Dória Jr. grita: "Cansei". O
Lobão canta: "Peidei".
Pensando, cansado ou peidando, hoje posso dizer que sou parte das estatísticas
da violência em São Paulo. E, se você ainda não tem um assalto para chamar de seu, não
se preocupe: a sua hora vai chegar.
Desculpem o desabafo, mas, hoje amanheci um cidadão envergonhado de ser
paulistano, um brasileiro humilhado por um calibre 38 e um homem que correu o risco
de não ver os seus filhos crescerem por causa de um relógio.
Isso não está certo.
LUCIANO HUCK, 36, apresentador de TV e diretor-presidente do Instituto Criar de
TV, Cinema e Novas Mídias. In Folha de São Paulo, 01/10/2007.
224
Pensamentos de um “correria”. (ANEXO H)
Ele me olha, cumprimenta rápido e vai para a padaria. Acordou cedo, tratou de
acordar o amigo que vai ser seu garupa e foi tomar café.
A mãe já está na padaria também, pedindo dinheiro para alguém para tomar mais
uma dose de cachaça, ele finge não vê-la, toma seu café de um gole e sai pra missão,
que é como todos chamam fazer um assalto.
Se voltar com algo, seu filho, seus irmãos, sua mãe, sua tia, seu padrasto, todos
vão gastar o dinheiro com ele, sem exigir de onde veio, sem nota fiscal, sem gerar
impostos.
Quando o filho chora de fome moral não vai ajudar.
A selva de pedra criou suas leis, vidro escuro para não se ver dentro do carro,
cada qual com sua vida, cada qual com seus problemas, sem tempo pra
sentimentalismo.
O menino no farol não consegue pedir dinheiro, o vidro escuro não deixa
mostrar nada. O moto boy tenta se afastar dele, desconfia pois ele está com outro na
garupa, lembra das 36 prestações que faltam para quitar a moto, mas tem que arriscar e
acelera, tem 20 minutos para entregar uma correspondência do outro lado da cidade,
se atrasar a entrega perde o serviço, se morrer no caminho, amanhã tem outro na vaga.
Quando passa pelos dois na moto, percebe que é da sua quebrada, um toque
no acelerador e sai da reta, sabe que os caras estão pra fazer uma fita.
Enquanto isso, muita gente em seus carros, ouvem suas músicas, falam em seus
celulares e pensam que estão vivos e num país legal.
Ele anda de vagar entre os carros, o garupa está atento, se a missão falhar, não
terá homenagem póstuma, deixará uma família destroçada, porque a sua já é, e não terá
uma multidão triste por sua morte. Será apenas mais um coitado com capacete velho e
um 38 enferrujado jogado no chão, atrapalhando o trânsito.
Teve infância, isso teve, tudo bem que sem nada demais, mas sua mãe o levava
ao circo todos os anos, só parou depois que seu novo marido a proibiu de sair de casa,
ela começou a beber, a mesma bebida que os programas de televisão mostram nos seus
comerciais, só que neles ninguém sofre por beber.
Teve educação, a mesma que todos da sua comunidade tiveram, quase nada que
sirva para o século 21. A professora passava um monte de coisa na lousa, mas pra que
estudar se pela nova lei do governo todo mundo é aprovado?
Ainda menino, quando assistia as propagandas, entendia que ou você tem ou
você não é nada, sabia que era melhor viver pouco como alguém, do que morrer velho
como ninguém.
Leu em alguém lugar que São Paulo está ficando indefensável, mas não sabia o
que queriam dizer, defesa de quem? Parece assunto de guerra.
Não acreditava em heróis, isso não! Nunca gostou do super-homem nem de
nenhum desses caras americanos, preferia respeitar os malandros mais velhos que
moravam no seu bairro, o exemplo é aquele ali e pronto.
Tomava tapa na cara do seu padrasto, tomava tapa na cara dos policiais, mas
nunca deu tapa na cara de nenhuma das suas vitimas. Ou matava logo ou saia fora.
Era da seguinte opinião, nunca iria num programa de auditório, se humilhar
perante milhões de brasileiros, se equilibrando numa tábua para ganhar o suficiente para
cobrir as dividas, isso nunca faria, um homem de verdade não pode ser medido por isso.
Ele ganhou logo cedo um kit pobreza, mas sempre pensou que apesar de morar
perto do lixo, não fazia parte dele, não era lixo.
225
A hora estava se aproximando, tinha um braço ali vacilando. Se perguntava
como alguém pode usar no braço, algo que dá pra comprar várias casas na sua quebrada.
Quantas pessoas que conheceu, trabalharam a vida inteira, sendo babá de meninos
mimados, fazendo a comida deles, cuidando da segurança e limpeza deles e no final
ficaram velhas, morreram, e nunca puderam fazer o mesmo por seus filhos.
Estava decidido, iria vender o relógio, e ficaria de boa talvez por alguns meses.
O cara pra quem venderia, poderia usar o relógio e se sentir como o apresentador
feliz que sempre está cercado de mulheres seminuas em seu programa.
Se o assalto não desse certo, talvez cadeira de rodas, prisão ou caixão, não teria
como recorrer ao seguro, nem segunda chance.
O correria, decidiu agir. Passou, parou, intimou, levou.
No final das contas todos saíram ganhando, o assaltado ficou com o que tinha de
mais valioso que é sua vida, e o correria ficou com o relógio.
Não vejo motivo pra reclamação, afinal num mundo indefensável até que o rolo
foi justo para ambas as partes.
Ferréz
É morador do Capão Redondo, e autor de: Capão Pecado, Manual Prático do ódio,
Amanhecer esmeralda e Ninguém é inocente em São Paulo (todos pela Objetiva). In
Folha de São Paulo, 08/10/2007.
Selo Povo (ANEXO I)
Selo feito para livros de bolso, livros esses escritos por e para mãos operárias, rebeldes,
marginais, periféricas.
Que possa alcançar o público despossuído de recurso que geralmente o livro como
um item raro e elitista.
Um vinho guardado e nunca degustado, enquanto queremos que todos bebam pelo
menos sua tubaína diária.
Um selo em um livro de bolso, para ser posto na sexta básica, para ser lido na rua, no
horário de almoço, nas prisões, nos acampamentos, nas zonas, nos bares, barracos e
barrancos desse imenso país periferia.
Esse selo garante um livro de fácil leitura e que será lido, relido, emprestado, e gasto,
andando de mão em mão até que volte para onde veio, a vida.
Ao preço de 1 cerveja e meia, e mais barato que um prato feito, a desculpa para não ler
acabou.
Bem vindo ao Selo Povo, feito pra você e pra todo mundo.
Ferréz
Texto postado no blog “Selo Povo” em 27 de março de 2009, às 06:30 da manhã.
226
Cabelos brancos (samba, 1949) (ANEXO J)
Marino Pinto/ Herivelto Martins
Não falem desta mulher perto de mim
Não falem pra não lembrar minha dor
Já fui moço, já gozei a mocidade
Se me lembro dela me dá saudade
Por ela vivo aos trancos e barrancos
Respeitem ao menos
os meus cabelos brancos
Ninguém viveu a vida que eu vivi
Ninguém sofre na vida o que eu sofri
As lágrimas sentidas,
os meus sorrisos francos
Refletem-se hoje em dia
nos meus cabelos brancos
E agora, em homenagem ao meu fim
Não falem desta mulher perto de mim
VIDA LOKA II (Vol. II) (ANEXO K)
“Firmeza total, mais um ano se passando aí, graças a Deus a gente tá com saúde aí,
morô? Muita coletividade na quebrada, dinheiro no bolso, sem miséria e é nóis. Vamu
brindá o dia de hoje, o amanhã só pertence a Deus. A vida é loka...”
Xêu falá procê:
Tudo, tudo, tudo vai
Tudo é fase irmão
Logo mais vamu arrebentá no mundão
De cordão de elite, 18 quilate
Põe no pulso logo um bright
“– Que tal?
– Tá bom.”
De lupa, mochilon, bombeta branco e vinho
Champanhe para o ar qué pra abri nossos caminho
Pobre é o diabo e eu odeio ostentação
Pode rir, pode rir, rir
mas num disacredita não
É só questão de tempo o fim do sofrimento
Um brinde pros guerrero, “Zé povim” eu lamento,
Vermes que só faiz peso na terra
Tira os ói, tira os óio, vê se me erra
Eu durmo pronto pra guerra
e eu num era assim
227
Eu tenho ódio e sei o que é mau pra mim
Fazê o quê se é assim, vida loka cabulosa
O cheiro é de pólvora e eu prefiro rosas
E eu que, eu que sempre quis um lugar
Gramado e limpo, assim verde como um mar
Cercas branca, uma seringuera com balança
Dis ... pipa, cercado de criança
“Ho! Ho, Brown, acorda sangue bom!
Aqui é Capão Redondo tru, não Pokemon
Zona sul é invés, é stress concentrado,
Um coração ferido por metro quadrado”
Quanto mais tempo eu for resistir
Pior que eu já vi meu lado bom na UTI
Meu anjo do perdão foi bom, mas tá fraco
Culpa dos imundo do espírito opaco,
Eu queria ter pra testar e ver
um malote com glória, fama embrulhada em pacote,
“Se é isso que cês qué vem pegá
Jogar no rio de merda e vê:
Vai pulá...”
Dinhero é foda, na mão de favelado é mô guela
Na crise, várias “pedra noventa” esfarela
Vou jogar pra ganhar, o meu money vai e vem
Porém, quem tem, tem
Não cresço os ói em ninguém
O que tivé que ser será meu
Tá escrito nas estrela, vai reclamá com Deus
Imagina nós de Audi ou de Citroen
Indo aqui, indo ali
Só pan, de vai-e-vem
No Capão, no Apurá, vou colá na pedreira do São Bento,
na Fundão, no Peão sexta-feira
de teto solar o luar representa
ouvindo Cassiano, ah! os gambé num guenta
É, mas se não der, nêgo, o quê que tem?
O importante é nóis aqui, junto ou no que vem.
E o caminho da felicidade ainda existe
é uma trilha estreita, e é em meio à selva triste
Quanto cê paga pra ver sua mãe agora?
E nunca mais vê seu pivete imbora?
Dá a casa, dá o carro, uma Glock e uma FAL
Sobe cego de joelho mil e cem degrau
Quente, é mil grau, o que o guerrero diz
“O promotor é só um homem, Deus é o juiz.”
Enquanto o “Zé povinho” apedrejava a cruz
e o canalha fardado cuspiu em Jesus, oh!
aos quarenta e cinco do segundo, arrependido,
salvo e perdoado é Dimas, o bandido!
É loko o bagulho, arrepia na hora! Oh!
Dimas, primeiro vida loka da história.
228
Eu digo glória, glória!
Sei que Deus tá aqui
E só quem é, só quem é vai sentir
E meus guerrero de fé quero ouvir, quero ouvir.
Meus guerrero de fé quero ouvir:
“Irmão, programado pra morrê nóis é
Certo é, certo é, dê no que dé.”
Ao lado direito do parque é quente
Firmeza, né questão de luxo, né questão de cor
É questão que fartura alegra o sofredor
Né questão de preza, nêgo a idéia é essa
Miséria traz tristeza e vice-versa
Inconscientemente vem na minha mente, intêro
Na loja de tênis, o olhar do parceiro, feliz
De podê compra o azul, o vermelho,
O balcão, o espelho, o estoque, a modelo
Num importa, dinheiro é puta
e abre as porta dos castelo de areia que quisé.
Preto e dinheiro são palavras rivais, heh?
Então mostra pr’esses cu cumé que faz
E seu enterro foi dramático como um blues antigo
Mas de estilo, me perdoe, de bandido
Tempo pra pensar, qué pará,
quê cê qué, viver pôco com um rei
ou muito como um “Zé”?
Às vezes eu acho que topo preto como eu
Só qué é um terreno no mato só seu
Sem luxo, descalço, nadá no riacho,
Sem fome, pegando as fruta no cacho
Aí truta, é o que eu acho, quero também
Mas em São Paulo, Deus é uma nota de cem...
Vida Loka...
Porque o guerrero de fé nunca gela
Num agrada o injusto e não amarela
“O Rei dos reis” foi traído e sangrou na sua terra
Mas morrer como um homem é o prêmio da guerra
Mas ó, conforme for, se precisar afogar no próprio sangue
Assim será... nosso espírito é imortal, sangue do meu sangue!
Entre o corte da espada e o perfume da rosa
Sem menção honrosa, sem massagem!
A vida é loka, nêgo!
E nela eu tô de passagem!
“A Dimas, o Primeiro!
Saúde guerrero!”
Dimas...
229
TÔ OUVINDO ALGUÉM ME CHAMAR (ANEXO L)
(Aí mano, o Guina mandou isso aqui pra você...)
Tô ouvindo alguém gritar meu nome.
Parece um mano meu, é voz de homem.
Eu não consigo ver quem me chama.
É tipo a voz do Guina .
Não, não, não, o Guina tá em cana.
Será? Ouvi dizer que morreu.
Última vez que eu o vi, eu lembro até que eu não quis ir, ele foi.
Parceria forte aqui era nós dois.
Louco, louco, louco e como era.
Cheirava pra caralho, (vixe) sem miséria.
Todo ponta firme.
Foi professor no crime.
Também maior sangue frio, não dava boi pra ninguém (Hamm...)
Puta aquele mano era foda.
Só moto nervosa.
Só mina da hora.
Só roupa da moda.
Deu uma pá de blusa pra mim.
Naquela fita na butique do Itaim.
Mas sem essa de sermão, mano, eu também quero ser assim.
Vida de ladrão, não é tão ruim.
Pensei, entrei no outro assalto pulei, pronto, aí o Guina deu mó ponto:
- Aí é um assalto, todo mundo pro chão, pro chão...!
- Aí filho da puta, aqui ninguém tá de brincadeira não!
- Mais eu ofereço o cofre mano, o cofre, o cofre.....
- Vamo lá que o bicho vai pegar!
Pela primeira vez vi o sistema aos meu pés.
Apavorei, desempenho nota dez.
Dinheiro na mão, o cofre já tava aberto.
O segurança tentou ser mais esperto, então.
Foi defender o patrimônio do playboy, cuzão. (tiros)
Não vai dar mais pra ser super-heroi.
Se o seguro vai cobrir (hehe), foda-se, e daí ?
Hamm... O Guina não tinha dó.
Se reagir, bum, vira pó.
Sinto a garganta ressecada.
E a minha vida escorrer pela escada
Mas se eu sair daqui eu vou mudar
Eu to ouvindo alguém me chamar (2x)
Tinha um maluco lá na rua de trás.
Que tava com moral até demais.
Ladrão, ladrão, e dos bons.
Especialista em invadir mansão.
230
Comprava brinquedo a reviria.
Chamava a molecada e distribuía.
Sempre que eu via ele tava só.
O cara é gente fina mas eu sou melhor.
Eu aqui na pior, ele tem o que eu quero.
Jóia escondida e uma 380.
Num desbaratino ele até se crescia.
Se páh, ignorava até que eu existia.
Tem um brilho na janela, é então.
A bola da vez tá vendo televisão.
(Psiu....Vamo, vai, entramo)
Guina no portão, eu e mais um mano.
- Como é que é neguinho?
Humm.... Se dirigia a mim, e ria, ria, como se eu não fosse nada.
Ria, como fosse ter virada.
Estava em jogo, meu nome e atitude. (tiros)
Era uma vez Robin Hood.
Fulano sangue ruim, caiu de olho aberto.
Tipo me olhando, Hee, me jurando.
Eu tava bem de perto e acertei os seis.
O Guina foi e deu mais três.
Lembro que um dia o Guina me falou.
Que não sabia bem o que era amor.
Falava quando era criança.
Uma mistura de ódio, frustração e dor.
De como era humilhante ir pra escola.
Usando a roupa dada de esmola.
De ter um pai inútil, digno de dó.
Mais um bêbado, filho da puta e só.
Sempre a mesma merda, todo dia igual
Sem feliz aniversário, Páscoa ou Natal.
Longe dos cadernos, bem depois.
A primeira mulher e o 22.
Prestou vestibular no assalto do busão.
Numa agência bancária se formou ladrão.
Não, não se sente mais inferior.
Aí neguinho, agora eu tenho o meu valor.
Guina, eu tinha mó admiração, ó.
Considerava mais do que meu próprio irmão, ó.
Ele tinha um certo dom pra comandar.
Tipo, linha de frente em qualquer lugar.
Tipo, condição de ocupar um cargo bom e tal.
Talvez em uma multinacional.
É foda, pensando bem que desperdício.
Aqui na área acontece muito disso.
Inteligência e personalidade, mofando atrás da porra de uma grade.
Eu só queria ter moral e mais nada.
Mostrar pro meu irmão.
Pros cara da quebrada.
231
Uma caranga e uma mina de esquema.
Algum dinheiro resolvia o meu problema.
O que eu tô fazendo aqui?
Meu tênis sujo de sangue, aquele cara no chão.
Uma criança chorando e eu com um revólver na mão.
Ou era um quadro do terror, e eu que fui ao autor.
Agora é tarde, eu já não podia mais.
Parar com tudo, nem tentar voltar atrás.
Mas no fundo, mano, eu sabia.
Que essa porra ia zoa minha vida um dia.
Me olhei no espelho e não reconheci.
Estava enlouquecendo, não podia mais dormir.
Preciso ir até o fim.
Será que Deus ainda olha pra mim?
Eu sonho toda madrugada.
Com criança chorando e alguém dando risada.
Não confiava nem na minha própria sombra.
Mas segurava a minha onda.
Sonhei que uma mulher me falou, eu não sei o lugar.
Que um conhecido meu (quem?) ia me matar.
Precisava acalmar a adrenalina.
Precisava parar com a cocaína.
Não to sentindo meu braço.
Nem me mexer da cintura pra baixo
Ninguém na multidão vem me ajudar.
Que sede da porra, eu preciso respirar.
Cadê meu irmão?
Eu to ouvindo alguém me chamar (2x)
Nunca mais vi meu irmão.
Diz que ele pergunta de mim, não sei não.
A gente nunca teve muito a ver.
Outra idéia, outro rolê.
Os malucos lá do bairro.
Já falava de revolver, droga, carro.
Pela janela da classe eu olhava lá fora.
A rua me atraia mais do que a escola.
Fiz dezessete, tinha que sobreviver.
Agora eu era um homem.
Tinha que correr.
No mundão você vale o que tem.
Eu não podia contar com ninguém.
Cuzão, fica você com seu sonho de doutor.
Quando acordar cê me avisa, morô?
Eu e meu irmão, era como óleo e água.
Quando eu sai de casa trouxe muita mágoa.
Isso a mais ou menos seis anos atrás.
Porra, mó saudade do meu pai!
Me chamaram para roubar um posto.
232
Eu tava duro, era mês de Agosto.
Mais ou menos três e meia, luz do dia.
Tudo fácil demais, só tinha um vigia.
Não sei, não deu tempo, eu não vi, ninguém viu.
Atiraram na gente, o moleque caiu.
Prometi pra mim mesmo, era a última vez.
Porra, ele só tinha dezesseis.
Não, não, não, to afim de parar.
Mudar de vida, ir pra outro lugar.
Um emprego decente, sei lá.
Talvez eu volte a estudar.
Dormir a noite era difícil pra mim.
Medo, pensamento ruim.
Ainda ouço gargalhadas, choro, vozes
A noite era longa, mó neurose.
Tem uns malucos atrás de mim.
Qual é? Eu nem sei.
Diz que o Guina tá em cana e eu que caguetei.
Logo quem, logo eu, olha só, ó.
Que sempre segurei os B.O.
Não, eu não sou bobo, eu sei qual é que é!
Mas eu não to com esse dinheiro que os cara quer.
Maior que o medo, o que eu tinha era decepção.
A trairagem, a pilantragem, a traição.
Meus aliado, meus mano, meus parceiro.
Querendo me matar por dinheiro.
Vivi sete anos em vão.
Tudo que eu acreditava não tem mais razão, não.
Meu sobrinho nasceu.
Diz que o rosto dele é parecido com o meu.
Hee, diz, um pivete eu sempre quis.
Meu irmão merece ser feliz.
Deve estar a essa altura.
Bem perto de fazer a formatura.
Acho que é direito, advocacia.
Acho que era isso que ele queria.
Sinceramente eu me sinto feliz.
Graças a Deus, não fez o que eu fiz.
Minha finada mãe, proteja o seu menino.
O diabo agora guia o meu destino.
Se o Júri for generoso comigo.
Quinze anos para cada latrocínio
Sem dinheiro pra me defender.
Homem morto, cagueta, sem ser.
Que se foda, deixa acontecer
Não há mais nada a fazer.
Essa noite eu resolvi sair.
Tava calor demais, não dava pra dormir.
Ia levar meu canhão, sei lá, decidi que não.
É rapidinho, não tem precisão.
233
Muita criança, pouco carro, vou tomar uma ar.
Acabou meu cigarro, vou até o bar.
( E aí, como é que é, e aquela lá ó?)
To devagar, to devagar.
Tem uns baratos que não da pra perceber.
Que tem mó valor e você não vê.
Uma pá de arvore na praça, as crianças na rua.
O vento fresco na cara, as estrela, a lua.
Dez minutos atrás, foi como uma premunição.
Dois moleques caminharam em minha direção.
Não vou correr, eu sei do que se trata.
Se é isso que eles querem.
Então vem, me mata.
Disse algum barato pra mim que eu não escutei.
Eu conhecia aquela arma, é do Guina, eu sei.
Uma 380 prateada, que eu mesmo dei.
Um moleque novato com a cara assustada
(Aí mano, o Guina mandou isso aqui pra você)
Mas depois do quarto tiro eu não vi mais nada.
Sinto a roupa grudada no corpo.
Eu quero viver, não posso estar morto.
Mas se eu sair daqui eu vou mudar.
Eu to ouvindo alguém me chamar.
RAPAZ COMUM (ANEXO M)
Parece que alguém está me carregando perto do chão
Parece um sonho, parece uma ilusão
A agonia, o desespero toma conta de mim.
Algo no ar me diz que é muito ruim.
Meu sangue quente. Não sinto dor.
A mão dormente não sente o próprio suor.
Meu raciocínio fica meio devagar.
Quem me fodeu?
Eu tô tentando me lembrar.
Cresceu o movimento ao meu redor.
Meu Deus! Eu não sei mais o que é pior.
Mentir a vida toda pra si mesmo.
Ou continuar e insistir no mesmo erro.
Me lembro de um fulano:
\"mata esse mano!\"
Será que errar dessa forma é humano?
Errar a vida inteira é muito fácil.
Pra sobreviver aqui tem que ser mágico.
Me lembro de várias coisas ao mesmo tempo.
Como se eu estivesse perdendo tempo.
234
\"A ironia da vida é foda!\"
Que valor tem? Quanto valor tem?
Uma vida vale muito, vim saber agora.
Deitado aqui e os manos na paz, tudo lá fora
Puxando ferro ou talvez batendo uma bola.
\"Pode crer. Deve tá mó lua da hora\"
Tem alguém me chamando, quem é?
Apertando minha mão, tem voz de mulher.
O choro a faz engolir as palavras.
Um lenço que enxuga meu suor enxuga suas próprias lágrimas.
No rosto de uma mãe que ora baixinho.
Que nunca me deixou faltar, ficar sozinho.
Me ensinou o caminho desde criança.
Minha infância, mais uma eu guardo na lembrança.
Na esperança da periferia eu sou mais um.
\"Clip, clap, bum!\"
Rapaz comum.
\"Clip, clap, bum!\"
\"A lei da selva é assim\"
\"Clip, clap, bum!\"
Rapaz comum.
\"A lei da selva é assim\"
\"Clip, clap, bum!\"
\"Predatória\".
Rapaz comum.
\"Preserve a sua glória!\"
Queria atrasar o meu relógio.
Pra mim vale muito um minuto a mais de ódio.
Mas me sinto fraco, indefeso, desprotegido.
Eu vou mais alto, cusão! Pra te levar comigo!
Vou ser um encosto na sua vida.
Você criou um monstro sem cura, sem alternativa!
Me enganar pra quê?
Se o fim é virar pó!
Fiquei muito pior.
Segura o seu B.O.!
O preto aqui não tem dó!
Mais uma vida desperdiçada e é só.
Uma bala vale por uma vida do meu povo.
No pente tem quinze, sempre há menos no morro, e então?
Quantos manos iguais a mim se foram?
Preto, preto, pobre, cuidado, socorro!
Quê que pega aqui? Quê que acontece ali?
Vejo isso frequentemente, desde moleque.
Quinze de idade já era o bastante, então.
Treta no baile, então. Tiros de monte!
Morte nem se fala!
Eu vejo o cara agonizando!
235
\"Chame a ambulância! Alguém chame a ambulância!\"
Depois ficava sabendo na semana
Que dois já era.
Os preto sempre teve fama.
No jornal, revista e TV se vê.
Morte aqui é natural, é comum de se ver.
Caralho! Não quero ter que achar normal
ver um mano meu coberto de jornal!
É mal! Cotidiano suicida!
Quem entra tem passagem só pra ida!
Me diga. Me diga: que adianto isso faz?
Me diga. Me diga: que vantagem isso traz?
Então...
A fronteira entre o Céu e o Inferno tá na sua mão.
Nove milímetros de ferro.
Cusão! otário! que pôrra é você?
Olha no espelho e tenta entender
A arma é uma isca pra fisgar.
Você não é polícia pra matar!
É como uma bola de neve.
Morre um, dois, três, quatro.
Morre mais um em breve.
Sinto na pele, me vejo entrando em cena.
Tomando tiro igual filme de cinema.
\"Clip, clap, bum!\"
Rapaz comum.
\"Clip, clap, bum!\"
\"A lei da selva é assim\"
\"Clip, clap, bum!\"
Rapaz comum.
\"A lei da selva é assim\"
\"Clip, clap, bum!\"
\"Predatória\".
Rapaz comum.
\"Preserve a sua glória!\"
Minha idéia tá clareando.
Eu fico atacado, mó neurose, o tempo tá esgotando.
Não quero admitir, meus olhos vão abrir.
Vou chorar, vou sorrir, vou me despedir.
Não quero admitir que sou mais um.
Infelizmente é assim, aqui é comum.
Um corpo a mais no necrotério, é sério.
Um preto a mais no cemitério, é sério.
Eu tô me vendo agora e é difícil.
Minha família, meus manos.
No centro um crucifixo.
Meus filhos olhando sem entender o porquê.
Se eu pudesse falar talvez iriam saber.
236
Não acredito que esse mano veio até aqui!
Me matou, quer certeza e quer conferir.
Me acompanham até a sepultura.
Vejo um tumulto no caixão. Hã!
E alguém segura!
Mais uma mãe que não se conforma.
Perder um filho dessa forma é foda!
Quem se conforma?
Como eu podia imaginar no velório de outras pessoas.
Hoje estou no lugar.
No buraco desce o meu caixão.
Jogam terra, flores, se despedem na última oração.
Tão me chamando, meu tempo acabou.
Não sei pra onde ir!
Não sei pra onde vou!
Qual que é?
Qual que é?
O quê que eu vou ser?
Talvez um anjo de guarda pra te proteger
Não sou o último nem muito menos o primeiro
A lei da selva é uma merda e você é o herdeiro!
DA PONTE PRA CÁ (ANEXO N)
A lua cheia clareia as ruas do Capão,
Acima de nós só Deus humilde né não? né não?
Saúde: plim, mulher e muito som,
Vinho branco para todos um advogado bom
Cof, cof, ah, esse frio tá de fuder,
Terça-feira é ruim de rolê, vou fazer o que
Nunca mudou nem nunca mudará
O cheiro de fogueira vai, perfumando o ar
Mesmo céu, mesmo CEP no lado sul do mapa,
Sempre ouvindo um rap para alegrar a rapa
Nas ruas da sul eles me chamam Brown,
Maldito, vagabundo, mente criminal
O que toma uma taça de champagne também curte
Desbaratinado, Tubaína, tutti-frutti.
Fanático, melodramático, bom-vivant,
Depósito de mágoa quem está certo é o Saddam, ham...
Playboy bom é chinês, australiano,
Fala feio e mora longe não me chama de mano
"- e aí brother, hey, uhuuul, " pau no seu c... aaaíí,
Três vezes seu sofredor odeio todos vocês
Vem de artes marciais que eu vou de Sig Sauer,
Quero sua irmã e seu relógio Tag Heuer
237
Um conto se pá, dá pra catar,
Ir para a quebrada e gastar antes do galo cantar.
Um triplex para a coroa é o que malandro quer,
Não só desfilar de Nike no pé
Ô vem com a minha cara e o din-din do seu pai,
Mais no rolé com nóis ? Cê? não vai
Nóis aqui, vocêis lá, cada um no seu lugar.
Entendeu? se a vida é assim, tem culpa eu?
Se é o crime ou o creme, se não deves não teme,
As perversa se ouriça e os inimigo treme
E a neblina cobre a estrada de Itapecirica...
Sai, Deus é mais, vai morrer para lá zica
Não adianta querer, tem que ser tem que pá,
O mundo é diferente da ponte pra cá
Não adianta querer ser tem que ter para trocar,
O mundo é diferente da ponte pra cá
Outra vez nóis aqui vai vendo,
Lavando o ódio embaixo do sereno
Cada um no seu castelo, cada um na sua função,
Tudo junto, cada qual na sua solidão
Hei, mulher é mato a maryjane impera,
Dilui a rádio e solta na atmosfera
Faz da quebrada o equilíbrio ecológico,
Distingui o judas só no psicológico
Hó, filosofia de fumaça analise,
E cada favelado é um universo em crise
Quem não quer brilhar, quem não? mostra quem,
Ninguém quer ser coadjuvante de ninguém
Quantos caras bom, no auge se afundaram
Por fama
E tá tirando dez de Havaiana
E quem não quer chegar de Honda preto em banco de
couro,
E ter a caminhada escrita em letras de ouro
A mulher mais linda sensual e atraente,
A pele cor da noite, lisa e reluzente
Andar com quem é mais leal e verdadeiro,
Na vida ou na morte o mais nobre guerreiro
O riso da criança mais triste e carente,
Ouro, diamante, relógio e corrente
Vem minha coroa onde eu sempre quis pôr,
De turbante, chofer uma madame nagô.
Sofrer pra que mais se o mundo jaz do maligno,
Morrer como homem e ter um velório digno
Eu nunca tive bicicleta ou video-game,
Agora eu quero o mundo igual Cidadão Kane,
Da ponte pra cá antes de tudo é uma escola,
Minha meta é dez, nove e meio nem rola
238
Meio ponto a ver, hum e morre um,
Meio certo não existe truta o ditado é comum
Ser humano perfeito, não tem mesmo não,
Procurada viva ou morta a perfeição
Errare humanus est, grego ou troiano,
Latim, tanto faz pra mim: fi de baiano
Mas se tiver calor, quentão no verão,
Cê quer da um rolé no capão daquele jeito,
Mas perde a linha fácil, veste a carapuça,
Esquece estes defeitos no seu jacu de camurça
Jardim Rosana, Três Estrela e Imbé,
Santa Tereza, Valo Velho e Dom José.
Parque Chácara, Lídia, Vaz,
Fundão muita treta pra Vinícius de Moraes
Refrão
Mas não leve a mal tru, ce não entendeu,
Cada um na sua função, o crime é crime e eu sou eu.
Antes de tudo eu quero dizer, pra ser sincero
Que eu não pago de quebrada mula ou banca forte.
Eu represento a sul, conheço loco na norte,
No 15 olha o que fala, Perus, chicote estrala
Ridículo é ver os malandrão vândalo,
Batendo no peito feio e fazendo escândalo
Deixa ele engordar, deixa se criar bem,
Vai fundo, é com nóis, super star, superman, vai...
Palmas para eles digam hey, digam how,
Novo personagem pro Chico Anísio Show
Mas firmão né, se Deus quer sem problemas,
Vermes e leões no mesmo ecossistema
Cê é cego doidão? então baixa o farol!
Hei hou, se qué o quê com quem Joe?
Tá marcando, não dá pra ver quem é contra a luz
Um pé de porco ou inimigo que vem de capuz
Hey truta eu tô louco, eu tô vendo miragem,
Um Bradesco bem em frente a favela é viagem
De classe "A" da "TAM" tomando JB
Ou viajar de Blazer pró 92 TP
Viajar de GTI quebra a banca,
Só não pode viajar c'os mão branca
Senhor, guarda meus irmão nesse horizonte cinzento,
Nesse Capão Redondo, frio sem sentimento
Os manos é sofrido e fuma um sem dar guela,
É o estilo favela e o respeito por ela
Os moleque tem instinto e ninguém amarela.
Os coxinha cresce o zóio na função e gela
Refrão....
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