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JEFFERSON BAPTISTA MACEDO
PUNIÇÃO CORPORAL: DA TORTURA À PALMADA
A IDEOLOGIA DE UMA PRÁTICA PERVERSA DE DOMINAÇÃO
MOGI DAS CRUZES
- 2007 -
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JEFFERSON BAPTISTA MACEDO
PUNIÇÃO CORPORAL: DA TORTURA À PALMADA
A IDEOLOGIA DE UMA PRÁTICA PERVERSA DE DOMINAÇÃO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Semiótica, Tecnologias de
Informação e Educação, da Universidade Braz
Cubas, para obtenção do grau de Mestre em
Semiótica, Tecnologias de Informação e
Educação.
Área de Concentração: Tecnologias de
Informação, Semiótica e Educação.
Orientadora: Profª. Drª. Rosemary Roggero
MOGI DAS CRUZES
- 2007 -
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO,
PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
MACEDO, Jefferson Baptista.
Punição corporal: da tortura à palmada: a ideologia de uma prática
perversa de dominação / Jefferson Baptista Macedo. Mogi das Cruzes:
UBC, 2007.
Dissertação (mestrado) - Universidade Braz Cubas. Programa de Pós-
graduação em Semiótica, Tecnologias da Informação e Educação. Mogi
das Cruzes, SP.
Orientadora: Profª. Drª. Rosemary Roggero
1. Punição Corporal 2. Teoria Crítica 3. História de Vida
PUNIÇÃO CORPORAL: DA TORTURA À PALMADA
A IDEOLOGIA DE UMA PRÁTICA PERVERSA DE DOMINAÇÃO
Jefferson Baptista Macedo
Banca Examinadora
Profª. Drª. ____________________________________________________
Instituição _________________ Assinatura _________________________
Profª. Drª. ____________________________________________________
Instituição _________________ Assinatura _________________________
Profª. Drª. ____________________________________________________
Instituição _________________ Assinatura _________________________
Trabalho apresentado e aprovado em ____ de ____________ de _______.
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho ao Senhor Jesus Cristo, o qual,
quando em vida, ousou denunciar, de forma incisiva e
contundente, esta lógica de dominação que já, há muito
tempo, imperava nas relações sociais, por meio de uma
cultura discriminatória, de governos opressores e de
p
ráticas religiosas que se legitimavam falsamente em
nome de Deus.
Dedico ao homem Jesus, que sofreu talvez, uma das
mais injustas punições que o mundo já presenciou, mas
que, com sua própria vida, demonstrou o caminho para a
verdadeira emancipação, modificando e dividindo a
p
rópria
História, mas derramando apenas, seu próprio sangue.
Que este trabalho, comprometido em da
r
continuidade àquilo a que Ele se propôs a fazer, denuncie,
confronte e resista a esta mesma lógica, que
ilegitimamente, em Seu nome, proporcionou episódios de
barbárie, causando incontáveis sofrimentos a homens,
mulheres e crianças.
Toda honra seja dada a Aquele que foi o maio
r
exemplo de humildade, sabedoria, amor, respeito e
dignidade. Ao meu mestre, Mestre dos mestres... Jesu
s
Cristo.
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao Autor da vida, pela minha existência.
Agradeço à minha família pelo apoio em todos os momentos. Ao meu pai, William,
pelos cuidados com os pequenos detalhes que cercam minha vida; à minha mãe, Léia, pelo
apoio, carinho, paciência, pelas noites em claro e pelas orações,sem as quais, muita coisa
seria mais difícil. Ao meu irmão, Jackson, pelo exemplo de superação que tem sido para
minha vida e pela pronta disposição em colaborar. À minha cunhada, Roberta, pelo
reconhecimento, pelo carinho e pela importantíssima ajuda com as traduções da pesquisa.
Ao meu querido sobrinho, Mateus, que, mesmo ainda pequeno, tem sido a maior evidência
de que acreditar numa educação para a emancipação não é utopia. À Neuza, minha
segunda mãe, que, desde o dia do meu nascimento até os dias de hoje, tem cuidado com
muito amor e demonstrado carinho a cada gesto, sem nunca pedir nada em troca. Aos meus
primos Saulo, Sarah e Sahel por todos os bons momentos que tivemos até hoje e que
serviram, muitas vezes, como refrigério em meio a tantos desafios a serem superados. Aos
meus tios Samuel e Sulamita que, acreditando e confiando neste caminho por mim
escolhido, deram-me todo o apoio para que fosse possível chegar até aqui.
Agradeço a todos os meus professores, desde o “jardim da infância” até aqueles que
chegaram já em minha vida adulta, representados aqui, pela minha alfabetizadora Florinda,
a qual ensinou-me as primeiras letras.
Agradeço a todos aqueles que me incentivaram, torceram e oraram por mim nos
momentos em que pensei em desistir; aos que sempre me ofereceram palavras de ânimo,
fazendo-me refletir e ajudando-me a continuar. Ao Rodrigo, que, neste momento da vida,
além de amigo, tem compartilhado sonhos em comum, o que faz crescer, mesmo em meio à
tamanha alienação social, a esperança de que é possível transformar!
Agradeço à querida professora e amiga Gisele Aranha que, em mais de um momento,
demonstrou sua humanidade e carinho, revelando-se verdadeiramente companheira e que
não mediu esforços para que esta pesquisa pudesse ser apresentada com excelência e
digna da relevância pessoal e responsabilidade social que em si carrega.
Agradeço à querida Rose, muito mais que uma orientadora, minha mestra em especial
e que há sete anos atrás, fez despertar em meu íntimo, o espírito reflexivo que me levaria a
este processo emancipatório; Mostrou caminhos, levou-me a trilhá-los, experienciá-los e se
fez sempre presente, compartilhando as descobertas, impulsionando quando necessário e
acautelando nos momentos de euforia. Agradeço por sempre acreditar, mesmo quando,
nem mesmo eu acreditava.
De uma forma muito especial, agradeço a meus avós, Jorge e Carmelinda, dos quais,
recebi, por todo o tempo que passamos juntos, os maiores referenciais de humanidade que
alguém poderia receber. Mesmo longe fisicamente, sempre se farão presentes por todos os
meus dias.
Agradeço também, a todos que, na confiança, traíram; nos desafios, retrocederam; na
hora da verdade, mentiram; nas promessas, descumpriram; e, nos momentos decisivos,
foram embora. Por estes, a vida se revelou contraditória e por meio dessas contradições o
caminho da emancipação se iluminou, fazendo com que o sentimento de chegar até aqui
tivesse um valor de superação inigualável.
Sou grato a todos, pois, sou hoje, uma obra construída por um pouquinho de cada um.
A todos, meu muito obrigado!
“Aquele a quem a palavra não
educar, também o pau não educará.
Sócrates (470-399 a.C.)
RESUMO
MACEDO, B. J. Punição corporal: da tortura à palmada. A ideologia de uma prática perversa
de dominação. 2007. 165 f. Dissertação (Mestrado). Universidade Braz Cubas, Mogi das
Cruzes, São Paulo, 2007.
A História da humanidade traz consigo, todos os elementos necessários para que se possa
investigar a configuração de sua estrutura ideológica e o caráter manipulador com que se
desenvolve a natureza das relações sociais. Com esse pressuposto, a pesquisa traz como
objeto de estudo a naturalização da punição corporal como prática social que perpetua-se
por meio de um indiscutível e competente refinamento ideológico, apesar de tão vinculada à
barbárie. As relações sociais, por sua vez, constituem o cenário no qual, elementos como,
ideologia, autoridade e cultura sustentam a prática da punição corporal e processam sua
naturalização; assim, o indivíduo é instaurado em um processo de socialização que envolve
a mediação das instituições sociais pelas quais exercerá papéis na vida social. Para
investigar o fenômeno, a pesquisa traz como marco teórico os conceitos desenvolvidos pela
Teoria Critica da Sociedade para analisar o processo legitimador da sociedade que
descaracteriza o fenômeno da punição corporal como ato de violência e a mascara sob
pretextos pedagógicos, os quais estão, em sua essência, comprometidos com uma lógica de
dominação social reproduzida historicamente. O campo de investigação escolhido engloba
as instituições sociais que atuam como mediadoras das relações funcionais entre os
homens. Dentre elas foram destacadas a Família, o Estado, a Igreja e a Escola, pelo fato de
caracterizarem-se como as principais mediadoras deste processo ideológico. A História de
Vida Temática foi escolhida como metodologia empírica, na medida em que, possibilita uma
reflexão das narrativas que abrange representações, conhecimentos e valorizações, e, em
conjunto com o levantamento bibliográfico, conduz em direção a preencher espaços
capazes de dar sentido a uma cultura explicativa dos atos sociais, em especial o fenômeno
da prática da punição corporal, vivenciados pelas pessoas que herdam a vida no presente.
PALAVRAS-CHAVE: 1. Punição Corporal 2. Teoria Crítica 3. História de Vida
ABSTRACT
There are in the humanity history, all the necessary elements to investigate its ideological
structure and the manipulator ways that develop the essence of social relations. Starting by
this idea, the researching has as main subject the naturalization of physical punishment as a
social practice that maintain itself by a unquestionable and refined ideology in spite of being
so linked to barbarity. The social relations have a scenery where elements as ideology,
authority and culture make the base of the physical punishment practice and develop its
naturalization; in this manner, the individual is initiated in a process of socializing that
involves the mediation of social institutions where he will execute functions in the social life.
In order to investigate the phenomenon, the researching has as a theoretical base the
concepts developed by the Critical Theory of the Society to analyse the legitimator process
of the society to make away the physical punishment practice as a violent act and hide it
under pedagogical excuse compromised with the logic of the social domination reproduced
historical way. The investigation set chosen were the social institutions that work as a
mediator of the functional relations between the man which were pointed out the Family, the
Estate, the Church and the School because they are the principal mediators of this
ideological process. The History of Thematic Life was used as empirical methodology while it
makes possible a reflection of the narratives that achieves representations, knowledge and
valorizations and beside to the bibliography setting, it lead a fill up spaces that are able to
make sense to a culture that can explain social acts, in special the phenomenon of physical
punishment practice, seen by people that inherit the present life.
KEYWORDS: 1. Physical Punishment 2. Critical Theory 3. History of Life
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................................ 1
CAPÍTULO I O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DA PUNIÇÃO CORPORAL NA CIVILIZAÇÃO
OCIDENTAL.......................................................................................................................................... 10
1.1. AS PUNIÇÕES NA ANTIGÜIDADE ........................................................................................... 13
1.2. AS PUNIÇÕES NA IDADE MÉDIA ............................................................................................ 34
1.3. AS PUNIÇÕES NA IDADE MODERNA ..................................................................................... 49
1.4. AS PUNIÇÕES NA IDADE CONTEMPORÂNEA ...................................................................... 55
CAPÍTULO II - O MOVIMENTO IDEOLÓGICO DE NATURALIZAÇÃO DA PUNIÇÃO CORPORAL.. 67
2.1. SOBRE COMO A DOMINAÇÃO SE ESTABELECE NAS INSTITUIÇÕES............................... 70
2.2. SOBRE AS INSTITUIÇÕES SOCIAIS COMO MEDIADORAS DA DOMINAÇÃO .................... 81
CAPÍTULO III - PUNIÇÃO NATURALIZADA: UMA PRÁTICA A SERVIÇO DA DOMINAÇÃO.......... 99
RODOLFO GARCIA VELÁSQUEZ.................................................................................................. 105
JOHANN GREIZ .............................................................................................................................. 118
MARIANA NOVAES ........................................................................................................................ 125
CARMEN REGINA PALUCCI.......................................................................................................... 132
ANÁLISE DAS ENTREVISTAS ....................................................................................................... 143
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................................ 160
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................................... 169
1
PUNIÇÃO CORPORAL
A IDEOLOGIA DE UM PROCESSO DE DOMINAÇÃO
“Onde se faz necessária a coação, a autoridade falhou”
Hannah Arendt
INTRODUÇÃO
A História da humanidade traz consigo, todos os elementos necessários para
que se possa investigar a configuração de sua estrutura ideológica e o caráter
manipulador com que se desenvolve a natureza das relações sociais. Com esse
pressuposto, a pesquisa traz como objeto de estudo a naturalização da punição
corporal como processo ideológico de dominação. Trata-se de uma pesquisa que
tem como foco o movimento ideológico que naturaliza a prática da punição corporal
e que a faz perpetuar-se ao longo do processo civilizatório, apesar de tão vinculado
à barbárie. Diante deste cenário, constituído do entrelaçamento de culturas e
religiões distintas, o fenômeno da punição corporal apresenta-se com uma natureza
polissêmica e multifacetada em suas manifestações. Faz-se mister então,
caracterizar o fenômeno que, desde já, pode ser compreendido como um ato de
violência.
No universo jurídico, um ato de violência física só e caracterizado quando são
produzidos indicadores visíveis, como lesões corporais. Entretanto, existem casos
de punições corporais que podem não gerar tais evidências, não sendo possível, no
âmbito jurídico serem caracterizadas como violência física. Apesar disso, o
fenômeno já se constitui como um ato de violência na medida em que, quando em
sua concretização ou ameaça já alcança a esfera psicológica e esta, muitas vezes,
somente se manifestará tempos mais tarde, além do fato de que mesmo que
sintomas psíquicos sejam evidenciados, apenas com o auxílio profissional as causas
poderão ser determinadas.
Outro fator importante relacionado ao fenômeno que merece destaque é o
fato de ser impossível mensurar os graus de sentimentos relacionados à prática, tais
2
como: dor, angústia, humilhação, revolta, desespero etc. Todos estes e outros ainda,
em medidas diferentes, acompanham impreterivelmente o fenômeno, seja ele
praticado na forma ou intensidade que for. Alguns de seus efeitos podem ser vistos
em meio ao comportamento dos indivíduos na família e na sociedade, outros estão
profundamente arraigados nas entranhas da vida social, cultural e econômica.
Mais do que as diferentes nuances na sua percepção, sua natureza difusa
manifesta-se em diversos níveis e proporciona variação de tolerância. Ao mesmo
tempo e do mesmo modo que algumas práticas são repudiadas por alguns, são
consideradas necessárias por outros. Diante disso, surge a necessidade de se
caracterizar o fenômeno como sendo um ato de violência. Nesse sentido, a
Organização Mundial de Saúde
1
- OMS - em seu informativo anual sobre a violência
e a saúde, publicado no ano de 2003, assim a conceitua:
"...uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça,
contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma
comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar
em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento
ou privação."
O conceito usado pela OMS traz à luz o vínculo que existe da intenção com a
concretização do ato, independente das conseqüências que o mesmo produza -
excluindo-se, obviamente, os incidentes não intencionais. Para a OMS, a violência
não se estabelece somente na prática concretizada do ato em si, mas também está
expressa na "ameaça", ação que já alcança a esfera psicológica do indivíduo
vitimizado e que, somente se torna possível de ser analisada após a observação dos
possíveis efeitos que serão desencadeados.
Um outro aspecto relevante está relacionado com as implicações que podem
ser geradas pelo ato da punição corporal. A conseqüência primaz da ação já se
estabelece na "grande possibilidade de”, ou seja, independente do resultado, o
simples fato da existência de uma possibilidade caracteriza o fenômeno como sendo
um ato de violência. Neste sentido, depreende-se que, apenas já havendo a
possibilidade de quaisquer resultados contra o indivíduo, a violência já se
1
Organización Mundial de la Salud Informe mundial sobre la violencia y la salud. Oficina Regional para las
Américas de la Organización Mundial de la Salud. Washington, D.C., 2003, p.3.
3
estabelece.
Os resultados da violência descritos no conceito da OMS - lesão, morte, dano
psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação - também são relevantes
para a construção da compreensão do conceito. Resultados como lesão e morte são
físicos e visíveis, facilmente mensuráveis, já o dano psicológico abrange uma esfera
mais complexa, pois se relaciona à subjetividade do indivíduo. Esta esfera está
intimamente ligada a aspectos ideológicos de uma cultura e requer o
reconhecimento cada vez maior por parte dos estudiosos, pesquisadores e
profissionais relacionados à área, a necessidade de se discutir os atos de violência
que não são causados por força, lesão e morte, mas que impõem uma carga
substancial ao desenvolvimento de indivíduos, famílias e conseqüentemente
comunidades.
2
A filósofa brasileira Marilena Chauí
propõe uma formulação sobre o conceito
de violência ainda mais abrangente do ponto de vista das relações sociais,
revelando-a como uma manifestação do exercício da dominação de um sujeito sobre
outro e como conseqüência, a violação da humanidade deste sujeito por aquele.
Ampliando o conceito anterior, Chauí permite esta apreensão mais ampla sobre o
fenômeno que se revela complexo e que assume um caráter simbólico ao mesmo
tempo em que prático. Para a filósofa brasileira, a violência é:
"...uma realização determinada de força tanto em termos de
classes sociais quanto em termos interpessoais. Em lugar de
tomarmos a violência como uma violação e transgressão de
normas, regras e leis, preferimos considerá-la sob dois ângulos.
Em primeiro lugar, como uma conversão de uma diferença e de
uma assimetria, numa relação hierárquica de desigualdade, com
fins de dominação, de exploração e de opressão. Isto é, a
conversão dos diferentes em desiguais e a desigualdade em
relação entre superior e inferior. Em segundo lugar, como a ação
que trata um ser humano não como sujeito, mas como uma coisa.
Esta se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio
de modo que, quando a atividade e a fala de outrem são
impedidas ou anuladas, há violência."
3
2
Organización Mundial de la Salud Informe mundial sobre la violencia y la salud. Oficina Regional para las
Américas de la Organización Mundial de la Salud. Washington, D.C., 2003, p.3.
3
CHAUÍ, Marilena. Perspectivas antropológicas da mulher. s/e. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p.23.
4
Diante do exposto, uma inquietação faz surgir algumas indagações a respeito
da punição corporal: Quais os elementos ideológicos que fundamentam a existência
da prática da punição corporal em meio às relações sociais e que determinam a
forma das relações entre os indivíduos dentro das instituições sociais? Na medida
em que se interrelacionam, qual seria o mecanismo que legitima a prática fazendo
com que seja autorizada e admitida socialmente? Neste mecanismo, quais seriam as
formas que o fenômeno se mascara para que seja descaracterizado como ato de
violência, fazendo com que seja permitida, aceita e praticada ao longo da história? E
por fim, em meio a este cenário, quais seriam então, as possíveis implicações psico-
sociais?
Essas indagações proporcionaram caminhos para que se fossem
estabelecidos como objetivos da pesquisa: identificar os elementos ideológicos que
fundamentam a existência da prática da punição corporal e as bases das relações
dos indivíduos e instituições sociais; verificar os aspectos do processo social que
estrutura o mecanismo que legitima a prática fazendo com que seja autorizada e
admitida socialmente; analisar as formas que o fenômeno se mascara para que seja
descaracterizado como ato de violência, fazendo com que seja permitida, aceita e
praticada ao longo da história; e, por fim, relacionar as possíveis implicações que
todo este processo pode trazer ao indivíduo como ser social.
Dos objetivos estabelecidos foram delineadas quatro hipóteses. A primeira
delas leva em conta que a prática da punição corporal como ato de violência está
intimamente ligada às relações de poder entre indivíduos, a qual, todas as vezes
que é praticada, favorece um e desfavorece outro, amalgamando a lógica de
dominação à natureza social destes indivíduos. Esta lógica social não permite que
exista uma relação de direitos legítimos, condições justas e respeito quando as
bases das relações não são igualitárias, pois estão fundamentadas numa relação de
papéis hierarquizados com fins de dominação.
Considerando o fato do indivíduo se constituir como sujeito na medida em que
se insere nas relações sociais, estas se desenvolvem por meio da mediação de
instituições como o Estado, a Igreja, a Escola e em especial a Família. A autoridade
investida a alguns indivíduos dentro de cada instituição estabelece a legitimação
necessária para que a prática da punição corporal seja aplicada cada vez com mais
requinte e refinamento ideológico. Este movimento se reproduz em todas as
5
instituições, concreta ou simbolicamente. Numa convivência entre indivíduos
estabelecida com base no uso do poder para desenvolvimento do processo de
socialização, o uso da força física, independente de seus resultados, constitui um
ato de violência.
A segunda hipótese considera que os dispositivos ideológicos manifestos
pelas instituições sociais buscam descaracterizar a prática da punição corporal como
ato de violência na medida em que incorporam a ela características ligadas ao seu
próprio universo, seja ele religioso, legal ou pedagógico. Essa dissimulação é
reforçada quando agrega-se à ela, justificativas ideológicas, como: “expiar pecados”,
“ser uma necessidade”, “quem ama ‘corrige’, “bater, mas explicar” etc.
A terceira hipótese está intimamente ligada a segunda e busca explicar o
mecanismo alienante que descaracteriza a prática da punição como ato de violência.
Um duplo fator favorece esta dissimulação: o primeiro refere-se à reprodução da
prática nas diversas instituições sociais, que mesmo com características específicas,
diversificam e multiplicam a sua incidência. O segundo é que, além de reproduzida
em meio aos universos específicos em que atuam cada instituição social, a
incidência da prática pode ocorrer desde muito cedo e se manter presente ao longo
de boa parte da história de vida do indivíduo e na medida em que se repete no
cotidiano, acaba por incorporar-se à cultura. Com isso, proporcionam-se as
condições necessárias para que haja uma tendência do fenômeno se reproduzir de
geração em geração.
Os diversos universos em que a prática é aplicada - iniciando-se no universo
familiar - e o fato da possibilidade de repetição cotidiana acabam por descaracterizar
o fenômeno de tal modo que a prática passa a ser considerada, por alguns, como
uma prática natural e por outros até como necessária ao processo de socialização
do indivíduo.
A quarta hipótese relaciona-se às possíveis implicações que podem ser
geradas com prática da punição corporal. Apesar de o fenômeno abranger várias
áreas do conhecimento e se relacionar diretamente à subjetividade dos indivíduos
envolvidos no ato, a hipótese das possíveis implicações é direcionada aos aspectos
sociais, os quais estão ligados ao recorte da pesquisa. Sobre a questão, acredita-se
que a existência da prática provoca duas conseqüências básicas: a tendência de
sua reprodução de geração em geração, fazendo com isso, que a prática seja
6
incorporada à cultura social e perpetuando traços da barbárie em gerações futuras e
o desenvolvimento de um processo educacional construído utilizando como
referência a utilização da força de um indivíduo sobre outro. A enfatização do
processo de socialização com base em um tipo de “adestramento social”, uma
educação sobre alicerces de uma lógica de dominação social, o que percorre um
caminho contrário à de uma educação voltada à emancipação do indivíduo.
A realidade do fenômeno na sociedade brasileira causa uma preocupação
que justifica a escolha do tema. O fato é que, juridicamente, a punição corporal
dentro do universo familiar é permitida na legislação brasileira, visto que sua
caracterização como ato de violência no Código Civil Brasileiro, apenas se dá
quando, em sua ocorrência, for aplicada pelo pai ou responsável de forma
“imoderada”. Sob o prisma jurídico brasileiro, a remanescência da cultura da punição
corporal ainda é admitida e tolerada nos ambientes familiares com o argumento de
que se trata do uso da “violência moderada”, ou seja, a ordem jurídica tece, ainda
que de forma implícita, a tênue distinção entre violência moderada e violência
imoderada, e apesar de não ser possível uma mensuração que distingüa os dois
atos, dispõe censura explícita tão somente na ocorrência do último, e que se dá com
base em indicadores orgânicos como lesões, hematomas, feridas etc. Observe-se,
como conseqüência, que a punição “moderada” é, deste modo, admitida socialmente
e legalizada no universo jurídico, não implicando quaisquer sanções sobre o ato.
Um segundo agente motivador que justifica a escolha do tema está
relacionado ao enraizamento do fenômeno na cultura da família brasileira,
independente do seu aspecto legal. De acordo com pesquisas da ABRAPIA
(Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência),
apontou que a mãe é responsável por 48,6% das agressões e o pai por 25,2%.
Conforme outra pesquisa realizada pelo psicólogo Cristiano da Silveira Longo,
relatada em entrevista à jornalista Débora Kanarek
4
, em 99% dos lares brasileiros,
os filhos já levaram pelo menos uma palmada na vida.
Em outra pesquisa publicada no mesmo site, 52% dos pais entrevistados
disseram conversar com o filho na hora de uma punição, mas, na ausência de
resultados, apelam para a palmada, outros 35% conversam, mas em caso de não
4
KANAREK, Débora. “Um tapinha dói, sim...”. Revista Crescer. Disponível em:<http://revistacrescer.globo.
com/Crescer/0,19125,EFC532 455-2216,00.html. Acesso em: 02/05/07.
7
haver resultado aplicam castigos de privações, e apenas 12,7% não lançam mão
nem de castigos nem de punições corporais.
Pesquisas do Laboratório de Estudo da Criança (Lacri), da Universidade de
São Paulo, realizadas no ano de 2004, revelaram que a violência física, como a
palmada, o tapa ou o beliscão, foi responsável por 31% dos casos de violência
doméstica. De acordo com a pesquisadora responsável pelo LACRI, Maria Amélia
Azevedo, a estimativa é que 65% das pessoas já sofreram esse tipo de violência. De
acordo com dados do LACRI, entre os anos de 1996 e 2004 ocorreram 110.250
casos de violência doméstica no Brasil
5
.
Em outra pesquisa, as psicólogas Maria Amélia Azevedo e Viviane Nogueira
de Azevedo Guerra
6
trabalharam com 894 crianças de diversas classes sociais. Mais
de 50% das crianças revelaram ter apanhado em casa. Os meninos mais pobres são
os que mais sofrem, cerca de 75% apanham. O estudo conclui que a palmada é a
tática punitiva mais comum entre as mães.
Um terceiro aspecto ainda a considerar é que, independente da designação
que receber ou da intensidade com que são aplicadas, são formas de punição
corporal, em decorrência disso constituem atos de violência. Entretanto, a utilização
de termos como “agressão”, “surra”, “palmada”, “psicotapa”, uma falsa idéia é gerada
de que o ato não se constitui violência e acaba por ser considerado no senso
comum como uma prática aceitável.
Diante da realidade exposta, é possível verificar que a punição corporal é
essencialmente um fenômeno social, e este se desenvolve e se perpetua mesmo em
meio a processos de rupturas e continuidades produzidos na dinâmica da
transformação social. Nesta dinâmica, a punição corporal ora é envolta por aspectos
que a mascaram e com isso descaracterizam-na como ato de violência, fazendo com
que seja interpretada como algo necessário ao processo de socialização, ora por
aspectos que revelam valores subjacentes à sua prática, sendo identificada como
uma prática coercitiva, manipuladora, desigual e por isso violenta.
A co-existência temporal de mais de uma geração produz conflitos pela
5
AZEVEDO, Maria A.. Violência doméstica contra crianças e adolescentes – um cenário em (des) construção,
Instituto de Psicologia da USP. Laboratório de Estudos da Criança. Disponível em: <http://www.ip.usp.br/
labora torios/lacri/>. Acesso em 15/10/06.
6
Idem; GUERRA, Viviane N. A. Mania de Bater - A Punição Corporal Doméstica de Crianças e Adolescentes
no Brasil. São Paulo: Iglu, 2000.
8
manutenção/mudança de valores e critérios de convivência fornecendo indícios que
demonstram os caminhos desta dinâmica, revelando por meio das contradições
existentes, os valores - ora ocultos, ora manifestos - que reproduzem culturalmente a
prática.
Considerando que as concepções da sociedade brasileira contemporânea
foram construídas fundamentadas com base na cultura ocidental, especialmente
influenciada pela sociedade burguesa européia e pelo modelo educacional jesuítico,
coube como método, em primeiro momento, a pesquisa bibliográfica, a qual
favoreceu o aprofundamento da abordagem histórica e desenvolvimento do
referencial teórico para a análise do objeto.
A parte empírica foi desenvolvida com base na metodologia de História de
Vida Temática, cuja característica possibilita a construção de uma análise ainda
mais abrangente, na medida em que traz elementos relacionados a vivências
individuais, as quais são mediadas pelas instituições sociais, que revelam
experienciação subjetiva ao longo de percursos histórico-biográficos, que não
poderiam ser observados na pesquisa bibliográfica.
A estrutura da dissertação prevê o primeiro capítulo tratar da descrição do
percurso histórico da prática da punição corporal, a origem e os principais
motivadores que fizeram com que esta se estabelecesse em várias culturas ao redor
do mundo, tendo como objetivo identificar os aspectos relacionados à sua
reprodução e ao processo de sua naturalização no contexto da sociedade brasileira
contemporânea. As pesquisas de Mário Curtis Giordani, Jayme Pinsky, Georges
Duby e Philippe Ariès, Maria Amélia Azevedo, Viviane Guerra e Mary Del Priore
foram utilizadas como referencial teórico para o delineamento histórico-social da
investigação.
O segundo capítulo consiste no marco teórico conceitual para análise do
objeto da pesquisa. Este tem como base a Teoria Crítica da Sociedade, a partir dos
trabalhos de Max Horkheimer, Theodor Adorno e Herbert Marcuse que se
relacionam à cultura, à ideologia e ao princípio de autoridade, desenvolvidos nas
relações mediadas pelas instituições sociais, assim como os estudos sobre a relação
da coerção com a educação do médico e psicanalista suíço Heinrich Meng.
O terceiro capítulo traz a abordagem empírica, utilizando a metodologia de
9
Histórias de Vida Temática, de quatro narrativas e sua análise com base nos
referenciais histórico e crítico desenvolvidos nos capítulos anteriores. A abordagem
é fundamentada nos trabalhos de João Carlos Sebe Bom Meihy, Rosemary Roggero
e Marie-Christine Josso.
Nas considerações finais, são retomados os elementos centrais da pesquisa,
avaliando o resultado da investigação em relação às questões, às hipóteses e aos
objetivos propostos.
10
CAPÍTULO I
O DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO DA PUNIÇÃO CORPORAL NA
CIVILIZAÇÃO OCIDENTAL
“O desenvolvimento de cada ser humano, partindo do ser
primitivo até chegar ao membro da sociedade, é a repetição muito
abreviada, embora mudada, de um processo milenar, do qual não
se pode abstrair a coerção.”
Max Horkheimer
A História como estudo das ações humanas ao longo do tempo, assim como
dos processos que organizam as relações sociais, nos permite dividi-la, mesmo que
de modo arbitrário, em períodos que favorecem a compreensão da própria existência
humana. De certo que, apesar das periodizações serem expressões meramente
culturais e que evidenciam valores de uma determinada civilização, são de alguma
maneira, marcos que nos permitem realizar uma leitura da realidade tendo por base
uma perspectiva cronológica. Neste sentido, a construção do capítulo foi
desenvolvida fundamentada em uma concepção ocidental da História, que, apesar
de criticada por uns e utilizada por outros, proporcionou um caminho para o
desenvolvimento das investigações da pesquisa.
Esta conhecida periodização remonta aos humanistas do século XVII, a qual
postula a divisão da História em três partes, a saber: a Idade Antiga, a Idade Média,
a Idade Moderna. Mais tarde foram acrescidas à tripartição a Pré-História e a Idade
Contemporânea
7
. O período que antecede a Idade Antiga foi consolidado entre
historiadores franceses e alemães como Pré-História, motivados pelo fato de que
antes da invenção da Escrita a História não poderia ter sido descrita por não
existirem documentos, sobretudo, escritos. Os tempos pré-históricos seriam, então,
os que se iniciaram com a origem do homem na Terra e terminaram com o
aparecimento dos primeiros documentos escritos. Essa idéia predominou
principalmente na segunda metade do século XIX. Contudo, hoje em dia,
especialistas sobre o assunto foram levados a reconhecer a amplitude de fontes
7
GIORDANI, Mario Curtis. História da Antigüidade Oriental. 10 ed. Petrópolis: Vozes, 2006, p.15.
11
ágrafas (não escritas) que podem afirmativamente serem consideradas como fontes
de pesquisa histórica.
8
Assumir que a História começa com a invenção da Escrita, por volta do ano
4000 a.C., remete-nos a idéia de um processo de desenvolvimento social que
permitiu às nações européias considerarem-se superiores às outras sociedades,
servindo como uma das principais justificativas para a conquista de povos, nações,
reinos e até continentes inteiros durante séculos. A seqüência dos tempos não
produz necessariamente um processo de evolução - do inferior para o superior - e
nem fomenta a possibilidade de comparação entre duas culturas com o intuito de
estabelecer a superioridade de uma em relação à outra, pois os valores com os
quais se construiria tal julgamento estariam definitivamente comprometidos
etnocentricamente.
Diante disso, é importante ressaltar que a investigação inicia-se no período da
Antigüidade, não por estar comprometida com esta concepção, mas por ser neste
período que ocorreram os grandes descobrimentos que revelam os primeiros
indícios pertinentes ao objeto desta pesquisa. Sendo assim, a descrição dos fatos
relacionados à prática da punição corporal sob uma perspectiva cronológica e a
periodização histórica utilizada neste capítulo, mantêm o cuidado de proporcionar as
melhores condições para a percepção dos fatos sob um ponto de vista qualitativo
não-evolutivo e verificar as transformações que ocorreram no percurso do
desenvolvimento histórico-social.
Desde as sociedades sem Estado, amiúde é possível encontrar o indivíduo
investido do direito e, até em alguns casos, do dever de perseguir determinadas
ofensas, sendo estas quase sempre relacionadas contra a vida ou contra a
integridade corporal. Em atenção à universalidade de tal prática, nela, boa parte da
doutrina criminal contemporânea, sem distinção de escolas, localiza o modo primitivo
de aparição da punição. A aplicação da punição pelo ofendido aparece, em algumas
sociedades, regulada tão somente em relação aos fatos que a autorizam.
Estabelecia-se a punição depois de verificada a transgressão do indivíduo, cabendo
ao ofendido reagir de modo a impor punição ao culpado. Entretanto, ficavam a
critério deste ofendido a intensidade e a extensão da aplicação da punição que, em
geral, era corporal.
8
Ibid., p.11.
12
Contudo, com o passar do tempo, algumas sociedade concluíram que o
arbítrio individual como critério para aplicação da punição era a razão dos graves
prejuízos à coletividade, ou seja, as punições chegavam a estender-se até a morte,
independente da ofensa ter lesado a honra, patrimônio ou integridade corporal. Esta
relação penal, caracterizava a forma mais primitiva de punição, denominada
vingança privada.
9
Enrico Ferri
10
, sociólogo criminal, jurista e político italiano, considerado um dos
grandes mestres do Direito Criminal e o criador da Sociologia Criminal, apesar de
admitir a vingança privada como forma primitiva de punição, propôs que se
ajuntasse ao vocábulo vingança o termo defensiva. A proposta é recebida, visto que,
na reação do ofendido contra o ofensor, além do ressentimento de vingança pelo
ocorrido, há também a intenção relativamente consciente da defesa para o futuro. A
partir dessa análise, pode-se pensar que muito ao fundo da concretização da
prática, um outro aspecto aparece como fator motivador, o caráter condicionador
existente na prática da punição corporal e que, nos dias atuais, reveste algumas
delas como uma ação considerada de caráter “educativo. Já para o principal teórico
e fundador da Teoria Finalista do Direito Penal
11
, Franz von Litz, cientista penal
alemão, a natureza da punição e sua finalidade desde as sociedades mais remotas,
está imersa em aspectos intencionais de re-socialização do punido ao sistema. Para
Litz
12
, a prática da punição corporal vai além da simples reação a um ato cometido,
se constitui como um instrumento de controle de conduta – o que mais adiante se
verá na Família e Escola como um instrumento de controle comportamental.
"Nas sociedades de estrutura familial, dissertava, que precederam
a fundação do Estado (comunidades que têm o sangue por base)
encontramos duas espécies de pena, ambas igualmente
primitivas: 1.° a punição do membro da tribo que na sua
intimidade se fez culpado para com ela ou para com os
9
ANTUNES, Ruy da Costa. Problemática da Pena. In: Dissertação apresentada à faculdade de Direito da
Universidade do Recife no Concurso para Professor Catedrático de Direito Penal. Recife: Universidade do
Recife, 1958. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/biblioteca_virtual/prob_da_pena/indice.asp.
Acesso em 05.04.07.
10
FERRI, Enrico. Princípios de Direito Criminal: O Criminoso e o Crime. 1 ed. São Paulo: Russell, 2003. p.9.
11
Nesta teoria, encontra-se, além dos elementos objetivos (ação, nexo de causalidade e resultado), o elemento
subjetivo do tipo (dolo e culpa). A teoria finalista, trás na vontade seu próprio centro, seja no ato de assumir o
risco de praticar eventual conduta (dolo), seja na forma em que não observadas as medidas de cuidado,
acabou por praticar o fato penalmente incorreto (culpa).
12
LITZ, Franz von. Tratado de direito penal alemão. Tradução para o português e comentários de José Higino
Duarte Pereira, v. I, Rio de Janeiro, 1899, p.5-7.
13
companheiros; 2.° a punição do estranho que veio de fora invadir
o circulo do poder e da vontade da sociedade ou de algum dos
seus membros. No primeiro caso a pena nos aparece
principalmente como privação da paz social sob todas as suas
diversas formas, como proscrição. No segundo caso aparece-nos
principalmente como luta contra o estrangeiro e toda a sua raça,
como vindita ou vingança de sangue (blutrache), exercida de tribo
à tribo até que sucumba uma das partes contendoras ou a luta
cesse por esgotamento das forças de ambas (...) Carece
conseqüentemente de fundamento a opinião muito generalizada,
segundo a qual a pena tem a sua origem no instinto de
conservação individual, que se manifesta como instinto de
vingança. A privação da paz social, a vindita não é simples reação
do indivíduo, mas reação do agregado social como ordem da paz
e do direito; e as ações, contra as quais a reação se dirige,
constituem sempre, direta ou indiretamente, uma ofensa aos
interesses comuns do grupo, uma perturbação da paz, uma
violação do direito."
Este esboço de organização social revela o princípio da existência de uma
sociedade organizada mediante uma política formal, com regras estabelecidas para
governantes e governados; projetos que demandem trabalho conjunto e
administração centralizada; criação de um corpo de sustentação de poder;
incorporação de crenças por uma religião vinculada ao poder central direta ou
indiretamente; produção da expressão artística da cultura; a criação e o
desenvolvimento de cidades e, em muitos casos, a criação ou incorporação de um
sistema de escrita.
13
1.1. AS PUNIÇÕES NA ANTIGÜIDADE
De acordo com a concepção já mencionada, os povos da Antigüidade são
categorizados em povos da Antigüidade Oriental, que inclui a civilização egípcia, a
mesopotâmica, os fenícios, os hebreus e os persas; e povos da Antigüidade
Ocidental (ou Clássica) que inclui os gregos e os romanos. Essa divisão implica uma
seleção de povos que, com exceção da Mesopotâmia, desenvolveram-se na orla do
13
PINSKY, Jaime. As primeiras civilizações. 21 ed. São Paulo: Contexto, 2001.
14
Mar Mediterrâneo e cada uma, a seu modo, contribuiu para a formação dos traços
culturais e das relações político-econômicas da Europa. Foram civilizações centrais
no desenvolvimento do mundo europeu e os que primeiro se preocuparam em
registrar por meio da Escrita as histórias universais.
A Escrita faz uma diferença fundamental no estudo das civilizações já
extintas. Por meio dela, tem sido possível analisar com mais precisão, achados
arqueológicos não-escritos e com isso compreender, aspectos que compunham
práticas de suas culturas.
Muitas escavações realizadas no final do século XIX foram estimuladas pela
decifração da escrita cuneiforme, encontradas em tábuas e argila, permitindo com
isso que pesquisadores analisassem textos legais, contratos de propriedade,
produção, comércio e registros do cotidiano real e popular, dos quais, muitos
retratam a punição corporal como sendo uma prática usual nas sociedades da
época.
No caso da civilização egípcia, a organização político-social fundamentada
com base na terra e nos canais de irrigação, teve no Estado déspota, o controlador
de toda a estrutura econômica, social e administrativa por meio de suas instituições
burocráticas, militares, culturais e religiosas. A forma de sua organização baseava-
se no modo de produção asiático
14
que era também encontrado na Mesopotâmia e
que se desenvolvia, sobretudo, no regime da servidão coletiva.
Por volta de 3.500 a.C. dois reinos surgiram ao longo do rio Nilo: o do Alto
Egito, ao sul, e o do Baixo Egito, ao norte. No ano de 3.200 a.C., Menés, governante
do Alto Egito, impôs a unificação dos dois reinos, concentrando o poder e se
tornando o primeiro faraó. O faraó passou a ser considerado um deus vivo e a
personificação do Estado, caracterizando com isso o Antigo Império como uma
Monarquia Teocrática
15
. Após inúmeras revoluções internas, a crise econômica
produzida pela desorganização social facilitou invasões asiáticas ao norte do Nilo e
provocou o fim desse período do Império. Somente por volta do ano 2.061 a.C., sob
a liderança do faraó Menuhotep II, inicia-se uma luta vitoriosa contra os invasores e
os rebelados, restabelecendo o poder central e a unidade do Império. Foi neste
14
O modo de produção asiático é um dos sete modos diferentes de produção econômica e de propriedade de
terra definidos por Karl Marx em meados do século XIX e publicados na obra Formações Econômicas Pré-
Capitalistas.
15
GIORDANI, Mário Curtis. História da Antigüidade Oriental. 10 ed. Petrópolis, 2006.
15
período também que houve a chegada dos hebreus e a invasão do Egito pelos
hicsos
16
. Essa ocupação durou quase dois séculos e encerrou o Médio Império.
Por volta de 1.580 a.C., sob a liderança de Amósis I, iniciou-se uma
insurreição que levou à expulsão dos invasores, e a unidade política foi
restabelecida. Inaugurou-se o Novo Império que seria considerado o apogeu da
civilização egípcia. Neste período, ocorreu a escravização do povo hebreu, que por
volta de 1.250 a.C., sob liderança de Moisés, conseguiu fugir do Egito, relato este,
registrado na Bíblia Sagrada e conhecido como Êxodo. Foi nesse período também,
na 20ª Dinastia, durante o reinado de Ramsés III, entre 1.182 a.C. e 1.151 a.C., que
muitas leis foram desenvolvidas - embora não se tenha até hoje referência de
qualquer outro código semelhante ao de Hamurabi – o que será visto adiante.
Como em outras civilizações da época, havia muitas formas de punição
corporal que eram aplicadas de diversas maneiras, das quais muitas delas se
constituíam de penas capitais como estrangulamento, decapitação, fogueira,
crocodilos, empalação, embalsamamento em vida, dentre outras. A mutilação era
comum na época, e, dentre os órgãos afetados encontravam-se: o nariz, os olhos,
as mãos, a língua, além de bastonadas e trabalhos forçados nas fronteiras do país,
nas colônias ou nas pedreiras. Vários dos que conspiraram contra Ramsés III foram
condenados à morte. Registros em um papiro conhecido como Papiro Judicial de
Turim relatam a conspiração ocorrida no harém do rei, que envolvia oficiais de alta
patente do palácio, mulheres, guardas, o chefe do tesouro, comandantes do
exército, sacerdotes e outros eclesiásticos importantes.
Neste grande processo do Estado, houve julgamentos prévios em que os
nomes dos acusados eram modificados, o que simbolizava transformação do caráter
do acusado e indicavam suas punições. No mesmo registro, um homem chamado de
Rá-O-Ama, aparece como Mesed-su-Rá ou Rá o Odeia; outros aparecem como Pai-
Bak-Kamem, Esse Escravo Cego; Pen-Huy-Bin, Ele o do Grito Terrível; Bin-Em-
Waset, O Malévolo de Tebas; Pa-Re-Kamenef, Rá Irá Cegá-lo. Ainda, de acordo
com o registro, alguns eram cegados e levados a trabalhar nas pedreiras, outros,
16
O termo grego Hicsos deriva do egípcio Hik-khoswet, e significa "governantes de países estrangeiros".
"Período dos Hicsos" é um período ainda obscuro da história do Egipto e a sua suposta conquista é
entendida muito imperfeitamente. É consensoal que os Hicsos foram uma vaga de povos asiáticos do
corredor sírio palestino e dos desertos limítrofes que ocupou pacificamente e gradualmente o Delta do Nilo,
em busca de alimentos. Em resumo, o período de Dominação Hicsa consistiu essencialmente na mudança
de governantes e na forma de administração. Wikipédia. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Hicsos>.
Acesso em 17.09.2006.
16
tinham nariz e orelhas cortados e aqueles cujos nomes recebidos significavam
“ódios aos deuses” eram sumariamente executados.
17
Tais práticas encontradas na civilizão egípcia também existiam em outras
civilizações, contudo revestiam-se de aspectos culturais próprios. Por exemplo, em
termos políticos, o Egito caracterizou-se por ter na instituição monárquica,
personificada no faraó, o seu principal fator de unidade, enquanto na Mesopotâmia
esse fator de unidade, não era o faraó, mas a cidade. Portanto, enquanto a
identificação dos egípcios se dava pelo entendimento do povo como participantes de
algo maior, unificado, que incluía aldeias, nomos
18
e o faraó, acima de tudo, entre os
mesopotâmicos, a identidade se dava pela cidade à qual os indivíduos pertenciam.
Por volta de 2.400 a.C., a Mesopotâmia foi sendo ocupada progressivamente
pelo acádios, povo seminômade de origem semita que acabou por estabelecer sua
hegemonia durante muitos anos. O rei Sargão de Akkad unificou o centro e o sul
incorporando a cultura acadiana ao mesmo tempo em que submetia os sumérios ao
seu domínio. A sociedade acadiana era constituída por homens livres e escravos. Os
que eram livres subdividiam-se em duas categorias, os mashda, cidadãos menos
abastados dos que os mais ricos e os eren, que eram pessoas reduzidas à servidão,
embora não fossem escravos. Os escravos dividiam-se namra, estrangeiros que
eram prisioneiros de guerra sem nenhum direito e os geme, pessoas da própria
sociedade vendidas por dívidas, consideradas mais como criadas do que como
escravas.
19
Ao final desse período, a cidade que emergiu com maior poder foi a Babilônia,
a qual, sob a terceira dinastia de Ur, estendeu paulatinamente o seu poder,
tornando-se, assim, um principado independente. No ano de 1.792 a.C., Hamurabi -
Hammu-rapi ou Khammurabi - sobe ao trono e consolida sua posição frente às
cidades vizinhas. Hamurabi foi o sexto rei da primeira dinastia babilônica e ficou
famoso por desenvolver um código de leis que se tornaria conhecido como Código
de Hamurabi. O Código relacionava uma série de leis e punições que abrangiam
assuntos como o roubo, a agricultura, a criação de gado, danos à propriedade,
17
JOHNSON, Paul. História Ilustrada do Egito Antigo. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002.
18
Nomo era uma divisão administrativa do Antigo Egipto. A palavra nomo deriva do grego nomos
(plural:nomoi). Para se referirem a estas regiões administrativas os egípcios usaram primeiro a palavra sepat
e mais tarde, durante o período de Amarna, qâb. Wikipédia. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/
Nomo>. Acesso em 17.09.2006.
19
GIORDANI, Mário Curtis. História da Antigüidade Oriental. 10 ed. Petrópolis, 2006.
17
direitos da mulher, da criança e do escravo, orientações para caso de assassinato,
morte e injúria. Cada punição estava relacionada com as diferentes classes de
ofensores e vítimas. Elas eram intolerantes com desculpas ou explicações para
justificar erros e falhas. Todos tinham acesso ao Código, de modo que não havia
quem pudesse alegar ignorância sobre as leis, ainda que, na época, somente os
escribas fossem iniciados na leitura e escrita
20
.
Por volta de 1.700 a.C., Hamurabi mandou transcrever o Código numa estela
de diorito
21
em caracteres cuneiformes acadianos
22
. A motivação que o levou a
compilar o Código estava ligada diretamente a questões religiosas, pois, de acordo
com os relatos históricos, Hamurabi queria agradar aos deuses, pois, apesar de não
se identificar especificamente com nenhum deles, se autodenominava "o favorito dos
deuses". Um detalhe da imagem esculpida na parte superior do diorito prefigura o
momento em que Hamurabi recebe as leis do deus Samash (o deus que
administrava a justiça). O preâmbulo da lei possui o seguinte texto:
"Quando o alto Anu, Rei de Anunaki e Bel, Senhor da Terra e dos
céus, determinador dos destinos do mundo, entregou o governo
de toda a humanidade a Marduc; quando foi pronunciado o alto
nome da Babilônia; quando ele a fez famosa no mundo e nela
estabeleceu um duradouro reino cujos alicerces tinham a firmeza
do céu e da terra, por esse tempo Anu e Bel me chamaram, a mim
Hamurabi, o excelso príncipe, o adorador dos deuses, para
implantar justiça na terra, para destruir os maus e o mal, para
prevenir a opressão do fraco pelo forte, para iluminar o mundo e
propiciar o bem-estar do povo. Hamurabi, governador escolhido
por Bel, sou eu; eu o que trouxe a abundância à terra; o que fez
obra completa para Nippur e Dirilu; o que deu vida à cidade de
Uruk; supriu água com abundância aos seus habitantes; o que
tornou bela a nossa cidade de Brasíppa; o que encelerou grãos
para a poderosa Urash; o que ajudou o povo em tempo de
necessidade; o que estabeleceu a segurança na Babilônia; o
governador do povo, o servo cujos feitos são agradáveis a
Anuit."
23
20
Enciclopédia Digital Direitos Humanos. Código Hamurabi. Disponível em: <http:www.dhnet.org.br/direitos/
anthist/hamurabi.htm>. Acesso em 17.09.2006.
21
Monumento de rocha plutônica normalmente feita em um só bloco, contendo representações pictóricas e
inscrições. Wikipédia. Disponível em:<http://pt.wikipedia.org/wiki/Diorito>. Acesso em 17.09.2006.
22
Tipo de escrita feita com auxílio de objetos em forma de cunha de dialeto usado pelos assírios e babilônicos.
Wikipédia. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Cuneiforme>. Acesso em 17.09.2006.
23
O Código de Hamurabi. Disponível em: <http://paginas.terra.com.br/arte/hammurabi/leis.html>. Acesso em
23.04.07.
18
O Código de Hamurabi é indicado como o primeiro conceito penal da História
e existe em vários sistemas jurídicos modernos. A escala das penas que são
apresentadas possui sua classificação de acordo com os delitos e os crimes
cometidos. A base desta escala é a chamada Lei de Talião. Esta lei é conhecida no
campo de Direito como Lex Taliones, a qual estabelece certos limites entre a ofensa
e a vingança de maneira proporcional.
A punição de acordo com a Lei de Talião consistiria na pessoa ser maltratada
da mesma forma com que maltratou. Ela é descrita no Código de Hamurabi nos seus
artigos 196 e 197: "Se alguém arranca o olho a um outro, se lhe deverá arrancar o
olho. Se ele quebra o osso a um outro, se lhe deverá quebrar o osso".
24
Deste modo,
a pena, seria semelhante ao delito cometido, embora a prática de seu cumprimento
variasse conforme a posição sócio-econômica da vítima e do criminoso.
Atentando-se para estas penas nos fragmentos de leis, crônicas e códigos
das sociedades da Antigüidade, dois grandes grupos de formas de punir podem ser
classificados: o das penas capitais e o das penas expressivas ou poéticas, mais
conhecidas como talião simbólico. O talião simbólico significava, comumente, a
mutilação do órgão do criminoso imediatamente relacionado com a prática do crime,
que tinha como objetivo a intimidação para a redução da incidência do crime, prática
característica das penalidades do Estado Teocrático.
As Leis de Manu
25
preconizavam o talião simbólico com riqueza de detalhes.
Marcar com ferro em brasa a face do culpado utilizando para isso símbolos
indicativos do seu crime, como por exemplo, o que roubasse o ouro de um sacerdote
era marcado com a figura de uma pata de cão.
Dentre as penas capitais, Antunes
26
destaca como mais comuns duas
24
Enciclopédia Digital Direitos Humanos. Código Hamurabi. Disponível em: <http:www.dhnet.org.br/direitos/
anthist/hamurabi.htm>. Acesso em 17.09.2006.
25
”As chamadas ‘Leis de Manu’, são códigos de conduta conhecidos como Manava-dharma-sastra, ou escritos
sobre a justiça para a humanidade. São versos escritos em sânscrito, na métrica antiga, elaboradas entre o
século II a.C. e o século II d.C, contendo um compêndio das leis e costumes que eram seguidas e orientados
pelo rei e pelos Brahmanas, os sacerdotes. Este código foi escrito tendo em vista dar uma orientação para
que a humanidade não se perdesse novamente. O pedido para construir as leis partiu dos sete sábios, e três
importantes discípulos, uma vez que as leis haviam se perdido e somente Manu poderia trazê-las de volta.
Manu aprendeu as leis da conduta diretamente do Senhor Brahmaa, então se encarregou de ensinar os
sábios como Bhrigu, que pessoalmente aprendeu a métrica e do conteúdo das leis de Manu (...) Manu é o
semideus que se encarrega de dar as instruções e Leis de como um ser-humano deve agir (hu+manu=que
segue as leis). Ele é considerado o pai da humanidade.” Gita-Ashrama Brasil. Manu. Disponível em
<http://www.gita.ddns.com.br/hinduismo/manu.php>. Acesso em 05.04.07.
26
ANTUNES, Ruy da Costa. Problemática da Pena: in Dissertação apresentada à faculdade de Direito da
Universidade do Recife no Concurso para Professor Catedrático de Direito Penal. Recife: Universidade do
19
categorias: as de eliminação da vida, deixando-se íntegro o corpo do condenado,
como a morte por asfixia, envenenamento, crucificação, flagelação ou empalamento;
e as de supressão da vida associada ao propósito de aniquilar parcial ou totalmente
o corpo do condenado, estando dentre elas a morte pelo fogo e a decapitação. Na
Antigüidade, os egípcios aplicavam o talião simbólico a várias infrações. Cortavam
as mãos dos falsários; mutilavam os órgãos genitais daqueles que violassem
mulheres livres; amputavam o nariz das mulheres adúlteras e a língua dos espiões
que revelassem os segredos do Estado.
Apesar da organização penal além da prosperidade em que vivia o Estado e
parcelas da sociedade babilônica, neste período, muitas revoltas internas ocorreram
e novas ondas invasoras por cassitas
27
e hititas acabaram por provocar o colapso do
império e o surgimento de diversos reinos rivais. Os hititas possuíam um código que
não incluía crueldades mutiladoras como o antigo código babilônico, mas o desafio à
autoridade real recebia uma punição draconiana
28
: o infrator e sua família eram
apedrejados até a morte e sua casa era completamente destruída. Existia também o
castigo fatal, ou seja, a morte em caso de bestialismo e estupro. Para os hititas, as
leis se estendiam às relações exteriores abrangendo seus tratados, geralmente
inscritos em lâminas de ouro, prata e ferro e que possuía poder legal ratificado pelas
intensas crenças religiosas do povo. Um tratado comum invocava uma terrível
maldição sobre o signatário que não cumprisse o acordo. Um desses acordos, feito
com um rei vizinho por nome Duppy-Teshub, contava que se o mesmo fosse
descumprido haveria destruição divina para sua esposa, seu filho, seu neto, sua
casa, sua cidade, sua terra e tudo que a ele pertencia; e como testemunhas deste
acordo, aparecem os nomes de nada menos oitenta deuses e deusas hititas
29
.
Por volta de 1300 a.C., novamente os reinos foram submetidos a um poder
centralizado com a ascensão dos assírios. Civilização conhecida pelas suas formas
de punição e pelo forte Estado militarizado. Seu apogeu ocorreu por volta do século
Recife, 1958. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/biblioteca_virtual/prob_da_pena/indice.asp.
Acesso em 05.04.07.
27
Os cassitas foram um povo que se estabeleceram por volta de 1800 a.C. ao oeste do Irã. Pouco se sabe
sobre este povo, além das 300 palavras encontradas em documentos babilônicos. Wikipédia. Disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/ Sum%C3%A9ria>. Acesso em 17.09.2006.
28
As Leis Draconianas constituíram um rígido código de leis redigias em 621 a.C. por Drácon de Atenas, um
legislador ateniense, a fim de por fim em um conflito social existente na época. As leis draconianas possuem
grande relevância na história do Direito, por ser o primeiro código de leis escrito. Contudo as leis eram
tradicionalmente arbitradas pelos juízes cobrindo penas extremamente severas. Consagrava o direito de
jurisdição do pai sobre o filho, mas suprimia a vingança particular. Wikipédia. Disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/ Leis_draconianas. Acesso em 17.09.2006.
29
GIORDANI, Mário Curtis. História da Antigüidade Oriental. 10 ed. Petrópolis, 2006.
20
VII a.C., durante os reinados de Senaqueribe e Assurbanipal, tendo como capital a
cidade de Nínive, na qual foi construída e organizada uma biblioteca que continha
milhares de placas de argila com registros dos conhecimentos da época.
Entre os assírios são encontradas declarações de Assurbanipal, nas quais se
vangloria do aprisionamento e empalamento dos guerreiros conquistados. Seus
feitos sempre eram relacionados à orientação e à proteção divina. Na época, Marduk
e Asur foram duas divindades que se impuseram aos poucos sobre as outras e, com
freqüência, tomavam a forma humana e se comportavam como tal. Além das
divindades, existiam os espíritos bons e maus que combinavam características
divinas e humanas. Nesse mesmo período, os assírios estavam em marcha para o
oeste, levando armas assírias para o Mediterrâneo. Assurbanipal ficaria para a
história como o líder da campanha mais terrível e violenta de seu povo.
Certa feita, após saquear uma cidade, mandou empilhar os cadáveres como
lenha do lado de fora dos portões. Em outra ocasião, depois de uma batalha em que
três mil pessoas morreram e muitas outras foram feitas prisioneiras, Assurbanipal
mandou cortar fora as mãos de muitos e de outros, o nariz, as orelhas e os dedos,
além de arrancar os olhos de vários capturados. A política comum entre os assírios
era de provocar terror entre os povos subjugados e esses poucos episódios de
Assurbanipal dão uma idéia das formas com que eram aplicadas as penas e
punições pelo povo assírio. Após a morte de Assurbanipal, o império assírio entrou
em decadência com a invasão dos caldeus e medos. Por volta do ano 612 a.C., a
capital Nínive foi destruída e os caldeus acabaram por dar origem a um novo período
de governo Babilônico.
O Segundo Império Babilônico teve seu apogeu com Nabucodonosor por
volta do século VI a.C., quando grandes obras públicas foram realizadas, como os
grandes palácios com os famosos jardins suspensos. Em meio à expansão
territorial, Nabucodonosor sitiou Jerusalém, no período do reinado de Joaquim.
Capturou e escravizou o povo hebreu, fato este que é registrado no Antigo
Testamento da Bíblia Sagrada e que é conhecido na tradição judaica como o
Cativeiro Babilônico.
Na época do Cativeiro Babilônico, uma ocorrência de punição capital
incomum é registrada e ocorreu por rebeldia às ordens do rei. Em seu segundo ano
de reinado, Nabucodonosor construiu uma estátua de ouro e mandou ajuntar todos
21
os líderes, prefeitos, presidentes, juízes, conselheiros, oficiais e demais
governadores do Império a fim de consagrá-la. Neste dia, três jovens hebreus por
nomes Hananias, Misael e Azarias não acataram as ordens de se prostrarem e
adorarem a estátua. Como punição receberam a pena capital de serem jogados
numa fornalha ardente.
30
Apesar disso, de acordo com o relato bíblico, sobreviveram
à pena, o que causou tanto espanto que fez com que recebessem o perdão do
imperador.
Poucos anos mais tarde, por volta de 539 a.C., o Segundo Império Babilônico
foi invadido e submetido à supremacia dos persas sob o comando de Ciro I, que
viveu no período de 559 a.C. a 529 a.C. Ciro foi o principal conquistador persa,
bastante hábil em se aliar às elites dos povos conquistados, em vez de
simplesmente submetê-los. Entre eles, os direitos eram estabelecidos mediante a
vontade soberana de direito divino, ou seja, transgredir qualquer lei promulgada pelo
imperador era ofender a própria vontade divina. A punição corporal era uma prática
comum. Os pequenos delitos eram punidos com chibatadas que podiam ser, em
parte, substituídas pela multa pecuniária, o que garantia para os que tinham posse,
uma forma de se livrarem do sofrimento físico, além de ser uma forma também de
manter as fontes reais abastecidas. No caso dos crimes mais graves, a punição era
severa. Estas consistiam em marcas feitas a fogo no corpo, mutilação de órgãos e
membros, a cegueira e a própria morte, a qual era aplicada em casos de homicídios,
estupros, abortos, ofensas ao imperador e em casos de traição. Em caso de
rebeldia, a punição corporal recebida variava de mutilações do nariz a outras partes
do corpo. As pessoas punidas eram apresentadas publicamente e, em seguida,
eram encaminhadas à capital provinciana, na qual haviam praticado os respectivos
delitos, a fim de serem executadas.
Em relação à pena máxima, havia processos diversificados para sua
aplicação. Assim como nas civilizações já destacadas anteriormente, havia rituais de
empalação, envenenamento, enforcamento e apedrejamento; nesta época também
são encontrados registros de crucificação. Enquanto entre os persas e os
cartagineses a prática da crucificação era imposta a altos oficiais, comandantes e
rebeldes, anos mais tarde, entre os romanos, a pena era aplicada, sobretudo a
escravos, criminosos violentos e provincianos que participavam de rebeliões.
30
Daniel 3.1-10. In: Bíblia Sagrada – Nova Versão Internacional. Kenneth Barker (org.). 1 ed. São Paulo: Vida,
2003, p.1458-1459.
22
Normalmente a prática da crucificação era acompanhada de açoites e chibatadas.
Outra pena tipicamente persa é conhecida como escafismo, em que consistia
de colocar a vítima deitada em um bote onde ficava presa com outro por cima.
Deixavam apenas sua cabeça, mãos e pés para fora, as quais eram untadas com
uma mistura de leite e mel para que moscas e formigas o picassem. A tradição conta
que o rei Mitríades foi vítima desta pena, obra de sua própria criação, morrendo após
duas semanas de sofrimento.
31
Apesar das penas serem extremamente severas, a lei persa não permitia que
se punissem com a pena capital, as pessoas que tivessem cometido um único crime.
O próprio imperador exercia a função de juiz, sobretudo em matéria penal. Anos
mais tarde, já no reinado de Cambises (530-522 a.C.), filho de Ciro I, pessoas da
confiança do imperador eram nomeadas como juízes. O mais famoso deles foi
Sesamnés, um juiz real condenado à morte por corrupção, ou seja, havia recebido
dinheiro a fim de pronunciar uma sentença injusta. De acordo com relatos históricos,
após sua morte, arrancaram-lhe a pele que serviu de forro para a mesma cadeira
que usava para exercer suas funções. Esta pena foi aplicada pelo próprio Cambises.
O Império Persa teve seu apogeu no reinado de Dario I (524 a.C. - 484 a.C.),
o qual dividiu o reinado em províncias, as chamadas satrápias. Existia, assim como
em outros povos da Antigüidade Oriental, a servidão coletiva, em que pessoas
comuns prestavam serviços ao Estado. O comércio era desenvolvido por povos
subjugados, como os fenícios, babilônicos e hebreus. A religião oficial era
basicamente dualista, estabelecida pela crença em duas divindades antagônicas,
Ormuz-Mazda, deus do Bem e da luz, e, Arimã, o deus do Mal e das trevas. O
imperador, para os persas, representava o Bem na Terra, o qual mostrava sua
incansável luta contra o mal, ficando perceptível o forte vínculo que existia entre a
religião e as estruturas de poder. Apesar da religião oficial, o contato e convivência
com os povos dominados produziam uma religiosidade popular que abarcava outras
tantas divindades, o que gerava a tendência de práticas politeístas.
É dessa época também um outro relato de punição registrado entre o povo
hebreu que vivia sob o domínio persa desde o cativeiro babilônico. Ocorreu no
reinado de Dario I, quando constituiu cento e vinte presidentes que estivessem sobre
31
GIORDANI, Mário Curtis. História da Antigüidade Oriental. 10 ed. Petrópolis, 2006.
23
todo o reino. Sobre estes presidentes, Dario instituiu três príncipes aos quais se
deveria prestação de contas; dentre esses príncipes, estava um jovem hebreu
chamado Daniel. De acordo com o relato bíblico, Daniel se distinguia desses
príncipes e presidentes porque nele havia um espírito excelente, fazendo com que
despertasse o interesse em Dario em constituí-lo sobre todo o reino. Em decorrência
disso, os príncipes e presidentes conhecendo que, Daniel, como hebreu, praticava o
monoteísmo, criaram por meio de um conselho, um édito real estabelecendo que
durante um período de trinta dias, qualquer homem que fizesse uma petição a
qualquer deus, ou mesmo a outro homem, fosse punido severamente. Neste
período, Daniel fora flagrado fazendo orações a Jeová, como era de seu costume, e
com isso deveria receber a punição: ser lançado a uma cova de leões. O relato
termina com Daniel sendo lançado à cova por uma noite e, na manhã seguinte,
como ainda permanecia vivo, sendo libertado. Então, Dario ordenou que todos
aqueles que haviam feito a acusação fossem lançados na mesma cova, juntamente
com seus filhos e mulheres, acabando por serem devorados pelos leões.
32
Apesar de o povo hebreu passar dois longos períodos em cativeiros - o
egípcio e o babilônico - também aplicavam punições corporais entre si. Existiam
codificações semelhantes às mesopotâmicas. Em decorrência da saída do povo
hebreu do Egito, sob liderança do patriarca Moisés, iniciou-se uma jornada de 40
anos pelo deserto. Período esse, em que são estabelecidas as principais leis
hebraicas que incluem os famosos Dez Mandamentos e todas as demais leis
secundárias registradas nos cinco primeiros livros da Bíblia Sagrada - Gênesis,
Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. O conjunto desses cinco livros é
conhecido como Pentateuco e constitui o que os hebreus chamam de Toráh.
33
A Toráh descreve o Código da Aliança no livro de Êxodo (Ex.22-23) e
conserva determinada autoridade até mesmo nos dias atuais, posto que toda
interpretação do Direito hebraico apóia-se em tais textos, os quais, juntamente com
todos os outros livros que formam o Antigo Testamento é o principal registro
histórico do povo hebreu. Na Toráh, especificamente no livro de Levítico, é possível
encontrar uma série de leis e procedimentos aos quais o povo deveria obedecer de
32
Daniel 6.1-28. op. cit., p.1465.
33
A Toráh abrange todo o aprendizado passado de Deus para Moisés, e deste para as gerações seguintes.
Tudo acabou sendo registrado através de centenas de milhares de volumes que compõem todos os
ensinamentos de conduta, moral, preceitos e o código das Leis Judaicas. A Toráh. Disponível em:
<http://www.chabad.org.br/ tora
/index.html. Acesso em 22.09.2006.
24
forma rigorosa. Um exemplo disso é a punição com o apedrejamento como
procedimento ordinário prescrito pela lei:
“... aos filhos de Israel falarás, dizendo: Qualquer que amaldiçoar
o seu Deus levará sobre si o seu pecado. E aquele que blasfemar
o nome do Senhor certamente morrerá; toda a congregação,
certamente, o apedrejará; assim o estrangeiro como o natural,
blasfemando o nome do Senhor, será morto."
34
A prática era envolta por uma liturgia que consistia em arrancar as roupas do
condenado, deixando apenas uma faixa na região lombar, então a primeira
testemunha o lançava ao chão do alto de um tablado com cerca de dez pés de
altura. A segunda testemunha lançava a primeira pedra procurando atingi-lo no
peito. Caso este ato não causasse a morte, então, outras pessoas presentes
continuavam o apedrejamento até sua morte. Terminado o apedrejamento, o
cadáver era queimado e pendurado numa árvore para que ficasse em exposição
pública. Havia o cuidado em não condenar uma pessoa ao apedrejamento pela
denúncia de apenas uma testemunha.
35
Dentre os cinco livros que constituem a Toráh, o livro de Números registra
alguns detalhes sobre as severas penas aplicadas para aqueles que não
cumprissem a Lei. A Lei Mosaica também condenava a serem apedrejados os que
não “guardassem” o dia de sábado, pois como dia sagrado, ninguém deveria
trabalhar como forma de obediência a Deus
36
. Em Números é possível encontrar o
relato de um homem que havia sido flagrado apanhando lenha no dia de sábado e
sendo levado à presença dos líderes Moisés e Aarão. Diante de todos, foi
aprisionado e punido até a morte por apedrejamento realizado pelo próprio povo.
Outro tipo de punição também descrita no livro de Números é o enforcamento.
Neste caso, o livro relata a desobediência – pecado – dos hebreus quando se
estabeleceram na região chamada Sitim, perto da cidade de Jericó, onde cometeram
os maiores pecados sexuais com mulheres de uma terra chamada Moab,
ajoelhando-se a ídolos pagãos e rendendo culto a um deus chamado Baal-Fagor, o
34
Levítico 24.15,16. op. cit., p.195.
35
Números 35.30. op. cit., p.264.
36
Êxodo 31.13-16. op. cit., p.144.
25
deus da luxúria. Por esses motivos, de acordo com o registro em Números, foi
ordenado por Moisés aos juízes que capturassem todos os homens que haviam
participado desses atos e enforcados à luz do dia para que a ira do Senhor não
sobreviesse ao povo.
37
"Estando, pois, os filhos de Israel no deserto, acharam um homem
apanhando lenha, no dia de sábado. E os que o acharam
apanhando lenha o trouxeram a Moisés e a Aarão, e a toda a
congregação. E o puseram em guarda; porquanto ainda não
estava declarado o que se lhe devia fazer. Disse, pois, o Senhor a
Moisés: Certamente morrerá o tal homem; toda a congregação
com pedras o apedrejará, fora do arraial.”
38
Observando os códigos das religiões desses povos mais antigos do Oriente,
como o hebraico, assírio, babilônico e sumério, é possível notar também, que havia
determinações capitais quando os crimes se consistiam em delitos contra a
propriedade. O código meso-assírio relaciona uma série de castigos físicos que
incluíam a mutilação do rosto, castração, empalação e açoite até a morte. No caso
do código hebraico, havia a lei de talião.
"Olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé,
queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe. E
quando alguém ferir o olho do seu servo, ou o olho da sua serva,
e o danificar, o deixará ir forro pelo seu olho. E se tirar o dente do
seu servo, ou o dente da sua serva, o deixará ir forro pelo seu
dente."
39
Para a cultura hebraica, Deus (Yeováh) é o autor de toda a lei, não há
distinção entre lei religiosa e secular, ambas constituem uma unidade, assim como a
lei civil e criminal, é também, a lei moral. Esta unidade de origem na teoria legal
mosaica lega qualquer infração social, um ato de pecado contra a lei de Deus, em
que todos os crimes são pecados e todos os pecados são crimes, sendo assim
passíveis de castigo, a fim de afastar a ira divina sobre o povo.
37
Números 25.1-5. op. cit., p.249.
38
Números 15.32-36. op. cit., p.233-234
39
Êxodo 21.24-27. op. cit., p.128.
26
Como estrutura social, os hebreus organizaram-se em um governo teocrático
que tinha no sistema patriarcal seu modelo de Família – modelo este que forneceria
séculos mais tarde, os traços que constituiriam a autoridade do poder familiar – pater
familias - da sociedade burguesa. Do patriarca Abraão, o primeiro e principal
patriarca de todos, surgiu a divisão básica de todo o povo hebreu, as doze tribos de
Israel, as quais foram constituídas com base nas famílias dos doze bisnetos de
Abraão. A característica do patriarcado de Abraão baseava-se na importância da sua
relação com Jeová, o qual o havia chamado para possuir uma terra e constituir um
povo.
40
O princípio da autoridade paterna provinha diretamente da relação do
patriarca com a divindade e fortalecia o papel daquele no interior da família. Os
princípios e a legitimação desta autoridade também eram transmitidos
hereditariamente. O filho primogênito herdava a mesma condição de autoridade das
gerações anteriores: a legitimidade da autoridade pela relação com a divindade e os
aspectos que se relacionavam à pertença familiar, as propriedades.
“E disse-lhe Isaac, seu pai: Ora, chega-te, e beija-me, filho meu. E
chegou-se, e beijou-o; então cheirou o cheiro dos seus vestidos e
abençoou-o, e disse: Eis que o cheiro do meu filho é como o
cheiro do campo, que o Senhor abençoou: Assim, pois, te dê
Deus do orvalho dos céus, e das gorduras da terra, e abundância
de trigo e de mosto: Sirvam-te povos, e nações se encurvem a ti:
sê senhor dos teus irmãos, e os filhos da tua mãe se encurvem a
ti: malditos sejam os que te amaldiçoarem, e benditos sejam os
que te abençoarem.”
41
Deste modo, a manutenção dos papéis dos sujeitos dentro da instituição
Família está garantida. A legitimidade da autoridade paterna ancorada no princípio
de que o pai personifica a representação da própria divindade, outorga a este,
poderes de abençoar ou amaldiçoar as futuras gerações, produzindo com isso, mais
um fator que virá a contribuir para a reprodução de toda a ideologia. O movimento
cíclico que este mecanismo provoca proporciona certa estabilidade para que os
40
Estes dois elementos apareceriam, anos mais tarde, como características da família burguesa, a qual foi
marcada pela dominação do pater famílias e pela propriedade.
41
Gênesis 27.26-29. op. cit., p.50.
27
papéis se mantenham estáveis em meio às transformações sociais que ocorrem ao
longo da história.
“E Deus Todo-Poderoso te abençoe, e te faça frutificar, e te
multiplique, para que sejas uma multidão de povos; e te dê a
bênção de Abraão, a ti e à tua semente contigo, para que em
herança possuas a terra das tuas peregrinações, que Deus deu a
Abraão.”
42
Com efeito, a desobediência a esta autoridade representava também uma
desobediência à própria divindade. Desobedecer ao pai, em certa medida,
relacionava-se a desobedecer ao próprio Deus, ou seja, quando Deus para os
hebreus possuía o significado de criador, vestia-se da figura de "pai", aquele que
cuida, ensina, protege, corrige e também pune. A ideologia de dominação no
universo da família faz com que a prática da punição corporal se revista do status de
castigo, em que, apenas o sujeito autorizado ideologicamente teria a autorização de
aplicá-lo. Como o pai era a representação simbólica da divindade na família, é por
ele que iriam ocorrer as práticas punitivas.
Entre os hebreus, particularmente, a punição corporal voltava-se às vezes, de
forma extremamente brutal, às crianças, chegando a alguns casos até a morte - uma
prática autorizada pelas autoridades da época e que independia de classe social,
ocorria nas famílias mais pobres assim como nas mais ricas. Um exemplo disso é a
"lei do filho desobediente" descrita na Bíblia Sagrada, no livro de Deuteronômio:
"Quando alguém tiver um filho contumaz e rebelde, que não
obedecer à voz do seu pai e à voz da sua mãe, e, castigando-o
eles, lhes não der ouvidos, então seu pai e sua mãe pegarão nele,
e o levarão aos anciãos da sua cidade, e à porta do seu lugar; e
dirão aos anciãos da cidade; este nosso filho é rebelde e
contumaz, não dá ouvidos à nossa voz: é um comilão e beberrão.
Então todos os homens da sua cidade o apedrejarão com pedras,
até que morra; e tirarás o mal do meio de ti, para que todo o Israel
o ouça, e tema."
43
42
Gênesis 28.3,4. op. cit., p.51.
43
Deuteronômio 21.18-21. op. cit., p.296.
28
Do texto, infere-se que a punição corporal era cabível quando os meios de
persuasão verbal haviam falhado, ou seja, se os pais verificassem que a criança
continuava com o comportamento errado apesar das orientações, repreensão etc.,
eles poderiam apelar para a punição corporal e recorreriam aos juizes somente em
último caso. Diante disso, fica evidenciado que a noção da punição corporal era uma
atitude natural não só nas relações de punição a criminosos, mas no ambiente
familiar também. Essa concepção também pode ser observada em outros textos
bíblicos como o do livro de Provérbios:
"O que retém a sua vara aborrece a seu filho, mas o que o ama, a
seu tempo o castiga. (...) Castiga a teu filho enquanto há
esperança, mas, para matá-lo, não alçarás a tua alma. (...) Aplica
à disciplina o teu coração, e os teus ouvidos às palavras do
conhecimento. Não retires a disciplina da criança, porque,
fustigando-a com a vara, nem por isso morrerá. Tu a fustigarás
com a vara e livrarás a sua alma do inferno.”
44
Até aqui, é possível verificar que, historicamente, a punição corporal era
prática comum na maioria das civilizações, desde as mais antigas, independendo de
sua origem, religião predominante e às formas de governo. Apesar das civilizações
analisadas até o momento, mesmo distantes uma das outras, seja por tempo ou por
aspectos geográficos, um elemento duplo se revela comum a todas: a prática da
punição corporal ser usual dentro das instituições sociais e o fato de estar
intimamente ligada a aspectos religiosos.
Na medida em que o governante se confundia com a própria divindade,
personificando-a e incorporando a si os seus atributos, não foi difícil relacionar as
punições aplicadas por razões religiosas com as punições que serviam como forma
de controle e segurança para o governante. Esta tendência de transposição dos
motivadores religiosos para governamentais, acabou naturalizando-se com o passar
do tempo e incorporando a "legitimidade" outorgada pela religião a fim de que a
pena fosse aplicada pelo Estado.
Já na civilização grega, concentrada mais ao sul da península Balcânica, mais
44
Provérbios 13.24; 19.18; 23.12-14. op. cit., p.1074-1090
29
precisamente nas ilhas do mar Egeu e no litoral da Ásia Menor, as relações eram um
pouco diferentes. A origem desta civilização está intimamente ligada à ilha de Creta,
que exerceu domínio sobre áreas próximas ao Mediterrâneo Oriental, onde se
desenvolveu com base no comércio com regiões vizinhas, principalmente o Egito.
Um aspecto a ser destacado é o privilégio de que as mulheres desfrutavam
diferentemente de outras sociedades da Antigüidade. A religião, em conseqüência
disso, possuía uma tendência matriarcal, na figura da Grande Mãe, uma
particularidade extremamente distinta de outras culturas do mesmo período.
45
Na cosmovisão grega, o homem integrava uma deidade puramente racional, o
logos. Cabia-lhe ser participante naquilo que lhe é específico, ou seja, ser
responsável pelo seu próprio destino e agir neste mundo. Os gregos eram
politeístas, cultuavam vários deuses que governavam todas as esferas da atividade
humana. Relacionar-se com o “divino” de modo correto, respeitando a autoridade e
leis determinadas por ele, gerava a possibilidade de um destino favorável. Na ética
grega, uma das questões fundamentais, que era reiteradamente abordada pelo mito,
relacionava-se aos limites próprios da natureza humana, os quais, quando eram
transgredidos, geravam desequilíbrio, atraindo, segundo a mitologia, a punição
divina. Todos esses conceitos e valores culturais eram ensinados desde cedo às
crianças e estava profundamente enraizada à cultura. A mitologia grega exerceu
grande influência no mundo ocidental.
Alguns desses mitos também trazem aspectos relacionados a punições
corporais. Hécuba é um exemplo das mais apreciadas tragédias anti-bélicas de
Eurípedes. O trecho que descreve a punição refere-se ao momento em que os
navios gregos chegam à Tróia, após sua queda. No acampamento, a ex-rainha
Hécuba presencia sua filha ser sacrificada em honra a Aquiles, já morto; depois se
depara com o cadáver de seu filho Polidoro. A rainha reúne forças e pede a
Agamêmnon, comandante dos gregos, uma oportunidade para punir o rei trácio,
Polimestor. Com a ajuda de outras cativas troianas, Hécuba cega Polimestor e mata
seus dois filhos.
46
Alguns outros fragmentos esparsos no tempo também deixam indícios de
uma verdadeira escatologia pitagórica em que a alma, após a morte, está sujeita a
45
GIORDANI, Mário Curtis. História da Antigüidade Oriental. 10 ed. Petrópolis, 2006.
46
Hécuba. Disponível em: <http://greciantiga.org/lit/lit05c-6.asp>. Acesso em 23.09.2006.
30
um julgamento divino, seguido de um destino agradável e isento de maldades para
os bons que, podem numa posterior reencarnação, alcançar a Ilha dos Bem-
Aventurados e para os perversos, castigos no mundo subterrâneo.
47
Um dos mitos mais conhecidos é punição de Íxion. Íxion era um tessálio que
se casou com Dia, filha de Deioneus. Quando seu sogro veio buscar os presentes de
casamento prometidos, Íxion preparou uma armadilha para fazê-lo cair em uma
fossa com carvão em brasa. Mesmo tendo Zeus o perdoado desse assassinato,
Íxion manifestou ingratidão tentando seduzir Hera, a deusa. De sua união com Hera,
nasceram centauros e, como punição, Íxion foi sentenciado a ficar preso no Hades e
condenado a girar atado a uma roda por toda a eternidade
48
. Assim, estes e outros
mitos exerciam uma forte influência na organização social da civilização grega.
Para os gregos, em uma primeira época da estruturação de sua ordem social,
qualquer crime configurava um atentado contra os deuses e a punição aplicada tinha
como função aplacar a cólera divina. Em sua segunda época, o crime relacionava-se
não mais aos deuses, mas a uma agressão à conduta correta do ser “homem”, tendo
a punição, um caráter mais vingativo do que propriamente a função apaziguadora
anterior. Somente em sua terceira e última época, a punição corporal resulta na
reação do Estado contra a vontade individual, configurada como uma pena aplicada
ao ofensor
49
- o que será tratado mais adiante. Estas três épocas configuraram as
etapas de justiça punitiva do Direito Penal Grego e demonstram o movimento
ideológico da relação da autoridade divina com a autoridade terrena, estabelecendo
com isso, o caminho no qual transitou a legitimação da prática da punição entre os
gregos.
Em relação à educação, entre os gregos, havia uma grande separação entre
a dos homens e a das mulheres. As meninas não recebiam qualquer educação
formal, apenas aprendiam a realizar tarefas domésticas e trabalhos manuais com as
mães. Os meninos eram preparados para serem bons cidadãos e recebiam
educação técnica para exercer uma profissão ou negócio. Em Esparta, a educação
era organizada em modos militares. Os meninos viviam em casernas dos sete aos
trinta anos e sua educação incluía intermináveis exercícios de ginástica. Era uma
47
Os Pitagóricos. Disponível em: <http://greciantiga.org/fil/fil05b.asp>. Acesso em 23.09.2006.
48
A punição de Íxion. Disponível em: <http://greciantiga.org/img/pin/i459.asp>. Acesso em 23.09.06.
49
BORIANI, Adriano. Direito Penal Grego. Disponível em: <http/http://www.adrianoboriani.hpg.ig.com.br/direito
%20penal%20primitivo.html. Acesso em 04.04.07.
31
prática comum aos professores aplicar punições corporais severas aos alunos que
não apresentassem o desempenho desejado, a fim de reforçar a disciplina.
Os gregos desenvolviam sua cultura livremente, apesar de estarem sob o
domínio dos romanos, e seus conhecimentos serviram muito ao império. Em relação
aos romanos, o sistema político republicano era controlado pelos patrícios e possuía
um caráter oligárquico que vivia em tensão com a plebe.
50
Por volta do ano 500 a.C.
os plebeus revoltaram-se e retiram-se de Roma para o monte sagrado, exigindo
representação política. Os patrícios cederam às reivindicações dos plebeus e criam
o Tribuno da Plebe, além de outras concessões, a fim de atenuar as tensões
existentes naquele momento.
Um exemplo foi a elaboração do Decenviral ou Lei das XII Tábuas, que
também ficou conhecido como Lex Duodecim Tabularum. Na Tábua III, está definido
que para o pagamento de uma dívida, o devedor teria trinta dias de prazo.
Terminado esse prazo e a dívida não paga, o devedor seria morto, podendo ser
cortado aos pedaços. Na Tábua IV, a lei determinava que a criança que nascesse
com defeitos deveria receber punição capital. Na Tábua VIII, era determinada a pena
capital ao autor de injúrias ou ultrajes públicos difamatórios. Para agressores,
deveriam receber a lei de talião. Para os incendiários, a pena era ser amarrado e
flagelado pelo fogo. Para falso juramento, deveria o réu ser precipitado de uma
rocha. Para homicídios, envenenamentos, ajuntamentos noturnos de caráter
sedicioso, a pena também era a morte. É possível observar que havia penas capitais
para muitos crimes, principalmente relacionados à honra, o que variava, eram as
formas com que a pena era aplicada.
Foi neste período também, que a filosofia grega teve o seu maior
desenvolvimento, principalmente em Atenas. Sócrates, Platão e Aristóteles foram os
principais filósofos deste período e é com Sócrates que ocorre uma das punições
mais famosas da civilização grega. Na época, Sócrates exercia grande influência
sobre a juventude aristocrática. Demonstrava hostilidade à tirania exercida por
Crícias, sendo acusado de impiedade e condenado em 399 a.C. a envenenar-se
ingerindo cicuta, um veneno natural extraído de uma planta com o mesmo nome.
51
Quatro séculos mais tarde, ocorreria a punição que teria a maior repercussão
50
GIORDANI, Mário Curtis. História da Antigüidade Oriental. 10 ed. Petrópolis, 2006.
51
A Grécia Antiga. Disponível em: <http://greciantiga.org>. Acesso em 23.09.2006.
32
no mundo ocidental. Após a morte do imperador Otávio Augusto, sobe ao trono
Tibério Cláudio Nero Cezar, o segundo imperador da dinastia Julio-Claudiana e que
inaugurou uma sucessão de governantes tradicionalmente lembrados
negativamente. Foi no reinado de Tibério que Jesus Cristo fora crucificado.
A crucificação era um método de punição romana, primeiramente reservada a
escravos. Com ela, estavam presentes práticas de tortura, começando pela
flagelação, depois do réu ser despojado de suas roupas. Geralmente, a flagelação
era executada, estando o réu preso a uma coluna. O açoitamento era tão forte que,
muitas vezes, o réu morria em conseqüência do açoite. De acordo com o relato
bíblico, no caso de Jesus, os açoites deveriam ter sidos aplicados de modo que não
o matassem, a fim de ser inserido em novos tormentos.
52
Neste ato, era comum se colocar uma inscrição por cima da cabeça do réu
divulgando o seu crime. Era de costume também, o réu levava sua cruz ao lugar da
execução.
53
Na crucificação, a vítima era pendurada de braços abertos, amarrada ou
presa por pregos nos punhos e pés. O peso do corpo sobrecarregava a musculatura
abdominal que, aos poucos, tornava-se incapaz de manter a respiração,
ocasionando a morte por asfixia. Para abreviar o suplício, algumas vezes as pernas
eram quebradas para que o processo à morte fosse acelerado. No caso de Jesus
houve a perfuração abdominal ocasionada por uma lança desferida por um soldado.
Jucid Peixoto do Amaral
54
, em seu livro Manual do Magistrado traz uma cópia
autêntica da Peça do Processo de Cristo, existente no Museu da Espanha:
“No ano dezenove de Tibério César, imperador romano de todo o
mundo (...) sob o regimento o governador da cidade de Jerusalém,
Presidente Gratíssimo, Pôncio Pilatos; regente na Baixa Galiléia,
Herodes Antipas; pontífice do sumo sacerdote, Caifás; magnos do
Templo, Alis Almael Robas Acasel, Franchino Ceutauro; cônsules
romanos da cidade de Jerusalém, Quinto Cornélio Sublime e Sixto
Rusto, no mês de março e dia XXV do ano presente ~ Eu, Pôncio
Pilatos, aqui Presidente do Império Romano, dentro do Palácio e
arqui-residência, julgo, condeno e sentencio à morte Jesus,
chamado pela Plebe ~ Cristo Nazareno ~ e galileu de nação,
homem sedicioso contra a Lei Mosaica ~ contrário ao grande
imperador Tibério César. Determino e ordeno por esta que se lhe
52
Lucas 3.22; João 19.1. op. cit., p.1728.
53
Mateus 27.37. op. cit., p.1668.
54
AMARAL, Judic Peixoto. Manual do Magistrado. 4 ed. São Paulo: Forense, 1992.
33
dê morte na cruz, sendo pregado com cravos como todos os réus,
porque congregando e ajustando homens, ricos e pobres, não tem
cessado de promover tumultos por toda a Judéia, dizendo-se filho
de Deus e Rei de Israel (...) que seja ligado e açoitado, e que seja
vestido de púrpura e coroado de alguns espinhos, com a própria
cruz nos ombros para que sirva de exemplo a todos os
malfeitores...”
Durante o período em que o Império Romano dominou, apesar de estender-
se vastamente, ainda existiam áreas as quais nunca foram conquistadas, é o caso
das regiões leste do Reno e norte do Danúbio, habitadas por certo número de tribos
germânicas. Apesar da pressão existente nas fronteiras setentrionais do Império - as
fronteiras que ficavam ao norte do Império - o poder romano foi desfalecendo aos
poucos até que os germânicos conquistaram o oeste da Europa.
A maior unidade social e política dos germanos eram as tribos. Entre elas
havia os alemanes, os godos, os francos, os vândalos, os teutões e outras mais. O
seu conjunto era conhecido como os Germani e suas terras identificadas como a
Germânia. As várias tribos tinham uma linguagem e religião comum, fora isso, além
de possuírem muitas outras diferenças, os germânicos não eram unidos.
Entre os germânicos, assim como em outros povos, a estrutura social era
baseada nos laços de parentesco entre as famílias. A base da lei tribal era pessoal e
não territorial. Esse princípio de personalidade legal teria forte influência na era
Feudal da história da Europa Ocidental. O rei não era a fonte da lei, pois as leis da
tribo baseavam-se no costume e ninguém tinha o poder de alterá-las. Um exemplo
disso era a pena para um homem que agia covardemente em combate: a pena era
aplicada pelo sacerdote e não pelo rei
55
. Novamente, percebe-se a forte relação da
religião em aspectos referentes ao controle social. O costume do povo germânico
previa o ressarcimento para quase todas as espécies de crime, contudo, também
existia a pena de morte, as punições corporais e o ordálio.
56
Por valorizarem grandemente a família, muitas penas severas eram aplicadas
a crimes que se relacionavam à honra familiar. Quando uma moça era raptada, com
55
GIORDANI, Mário Curtis. História da Antigüidade Oriental. 10 ed. Petrópolis, 2006.
56
Ordálio ou ou Sentença Divina (do anglo-saxônico ordal = juízo) era um meio de comprovação em litígios
particulares e públicos, praticado em quase todas as culturas, especialmente nas indogermânicas. Foi um
meio de prova usada em processos penais em Portugal e na generalidade dos países europeus até o século
XIII. Wikipédia. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ord%C3%A1lio>. Acesso em 30.09.2006.
34
ou sem o seu consentimento, estuprada ou deflorada, o casamento era um fato
consumado, mas o raptor deveria pagar uma multa estipulada pelos costumes da
tribo. Contudo, se a moça voltasse à casa paterna, o raptor deveria pagar ainda
outra multa, e, caso não tivesse condição de saldá-la, deveria ser castrado. Falta
ainda mais grave era a descoberta de um incesto ou adultério. A repudia para tais
atos era tão grande que, para alguns grupos, a mulher deveria ser expulsa
imediatamente da casa do marido, em seguida estrangulada e jogada em um
pântano. Ao marido traído, era permitido matar os culpados. A lei dos francos,
escrita posteriormente, ratificava o costume de condenação à morte que era vista
por todos, até mesmo pela família da mulher adúltera, como a maior de todas as
vergonhas para toda a linhagem.
57
1.2. AS PUNIÇÕES NA IDADE MÉDIA
Recebidos inicialmente como trabalhadores agrícolas pelo Império, os
bárbaros foram arrendando terras até que, pouco a pouco, acabaram por invadir
definitivamente Roma no ano de 476 d.C., fato que serviu como um dos possíveis
marcos do início da Idade Média que tem seu término em uma das três datas que
assinalam eventos decisivos na História: a tomada de Constantinopla pelos turcos
em 1453 d.C. , o descobrimento da América em 1492 d.C. e o início do movimento
luterano em 1517 d.C.
58
Um dos casos mais famosos ocorreu na Alemanha Ocidental e ficou
conhecido como o caso da Jovem de Winbeby. Foi afogada quando tinha quatorze
anos de idade com os olhos vendados e um garrote ao redor do pescoço,
provavelmente como punição de adultério. Além de estrangulada, a mulher podia ser
queimada viva ou ser amarrada pelo pescoço a uma pedra e lançada ao rio. Seria
inocentada se porventura não afundasse.
Nesse período, existia punição para os estupradores, mas não para os
homens adúlteros. Os valores sociais eram determinantes para a aplicação das
punições, ou seja, no caso do adúltero, não há danos a não ser para sua parentela,
57
SÁNCHES. Maria Guadalupe. História da Idade Média: textos e testemunhas. 2 ed. São Paulo: Unesp, 2000.
58
GIORDANI, Mário Curtis. História do Império Bizantino. s/e. Petrópolis: Vozes, 1977, p.11.
35
pois, caso houvesse filhos com a mulher adúltera, estes pertenceriam ao marido. Ele
não se maculava com a própria copulação, contudo, a mulher era vista como
culpada nos dois crimes, pois além de tudo prejudicava o futuro da parentela pelas
conseqüências que poderia provocar. Nos casos em que a família da mulher se
posicionava em sua defesa, havia mais mortes, além de vinganças entre as
descendências.
Com o início dessas invasões germânicas, inicia-se o declínio do Império
Romano. Os bárbaros trazem consigo costumes e práticas que acabam por se
misturar com a cultura romana. Para os germânicos e outros povos bárbaros, Deus,
conhecedor do passado, podia castigar aquele que jura falsamente. As principais
provas dessa crença baseavam-se nos Ordálios ou Juízos de Deus. Existiam várias
formas de juízos divinos que iam desde o simples duelo judicial, até práticas, como
já mencionadas, de se lançar o acusado à água - se submergisse era inocente, caso
permanecesse na superfície, era considerado culpado. Existiam provas que
obrigavam o réu a colocar o braço dentro de uma vasilha com água fervente e ao
tirar, caso não sofresse nenhuma lesão, sua inocência era constatada. Outra forma
de ordálio era pela prova do ferro em brasa, a qual consistia do acusado ser
obrigado a segurá-lo com as mãos; caso não sofresse queimaduras também se
constatava sua inocência
59
. Tais práticas e tantas outras faziam parte do cotidiano
bárbaro, o qual, aos poucos, foi se misturando com os costumes dos romanos e
lançando uma maior variedade de penas e incrementando as punições com novos
instrumentos.
Neste período, uma das características que é, definitivamente, o principal
diferencial em relação ao período anterior é o alargamento dos horizontes
geográficos da mentalidade européia nos grandes eventos marítimos. O período
envolve pelos menos três civilizações: a Civilização Bizantina, a Civilização Árabe e
a Civilização Ocidental.
A história da Civilização Bizantina, nada mais é do que a continuação da
História de Roma na parte Oriental do Antigo Império, ao mesmo tempo em que os
francos tornam-se os maiores herdeiros da parte Ocidental. Nas tribos francas, o
poder tinha origem divina e guerreira. Era exercido pelo rei, eleito pelos guerreiros.
59
FUNARI. Pedro Paulo A. Antigüidade Clássica: A História e a cultura a partir de documentos. Campinas:
Unicamp, 1995.
36
Desprovidos de escrita, afora algumas runas
60
para fins religiosos, confiaram suas
normas de direito à tradição oral de alguns especialistas denominados
rachimbourgs. Estes decoravam cada artigo e acrescentavam as decisões tomadas
dia-a-dia. Constituíam-se da própria lei encarnada, pois bastava ser pronunciada
pelo juiz para ser legitimada. Tiveram a primeira lei escrita por volta do ano de 511
d.C. em que o roubo era punido com a morte. Além do ordálio, a tortura era outra
forma comum utilizada pelos bárbaros como forma de punição. Os escravos ladrões
podiam ser castrados, mas normalmente eram açoitados e torturados, prática
também encontrada entre os romanos.
A parte oriental tem a sua estruturação quando o imperador Constantino (272-
337 d.C.) que passou para a História como o primeiro imperador romano que se
declarou convertido ao Cristianismo, construiu sobre a antiga cidade grega de
Bizâncio, a capital do Império Romano, a qual passou a ser chamada, em sua
homenagem, de Constantinopla, hoje Istambul, na Turquia. Deste período destaca-
se também como um dos principais imperadores, Justiniano (527-565 d.C.), o qual
deixou como seu maior legado, as leis romanas desde o século II., O Codex
Justinianus, mais tarde denominado Corpus Júris Civilis, o qual fora redigido por dez
juristas e constituído da compilação de normas jurídicas e das constituições
imperiais.
61
Um fato relevante à pesquisa ocorrido neste período é descrito por Phillipe
Ariès em seu livro A História da Vida Privada. Gregório de Tours (538-595 d.C.) ou
Bispo de Tours, considerado o primeiro historiador da França, escreveu entre 567 e
593 d.C. a Historiae Eclesiasticae Francorum relatando o extraordinário grau de
sadismo existente na época tanto nos carrascos quanto na multidão. Abriam-se as
chagas recém cicatrizadas dos supliciados a fim de poder torturá-los num suplício
ainda mais longo. O mesmo Gregório conseguiu livrar um diácono, chamado Ricou,
da pena de morte, mas não da tortura. Gregório narrou os tantos golpes que sofrera
desde a manhã, pendurado numa árvore, com as mãos atadas às costas até à noite
quando o estenderam sobre um cavalete e despejaram golpes de bastão, chicote e
correias duplas, desferidos por todos aqueles que conseguiam se aproximar
62
. Tais
60
As Runas são um conjunto de alfabetos relacionados que usam letras características (as runas) e eram
usadas para escrever as línguas germânicas, principalmente na Escandinávia e nas ilhas Britânicas.
Wikipédia. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Runas>. Acesso em 30.09.2006.
61
GIORDANI, Mário Curtis. História do Império Bizantino. s/e. Petrópolis: Vozes, 1977.
62
ARIÈS, Philippe; DUBY, George. História da vida privada. vl.1. 7 ed. São Paulo: Cia. das Letras, 1989, p.440.
37
práticas perduraram anos, enquanto o sistema de ordálio cada vez tornava-se mais
comum entre os povos da época.
Outro fator importante a ser destacado foi a influência judaica nas concepções
do mundo ocidental na Idade Média, que ocorreu mais intensamente após a
destruição do Templo de Jerusalém no ano 70 d.C., quando o Judaísmo ficou sem
um centro para suas práticas de culto e espalhou-se pela Europa, ainda privada da
existência de um Estado. O que emergiu deste século é uma concepção de homem
que teria influenciado diretamente o pensamento cristão posterior.
No Judaísmo medieval, o coração do homem, ou seja, o que é mais privado
ao indivíduo - os seus sentimentos - foi a esfera que deveria estar idealmente ligada
às exigências de Deus e do próximo. Esta concepção foi estruturada com urgência e
rigidez pela firme fé de que, por meio da ação divina, um Estado social, na época
governado pelas forças destruidoras, cederia lugar entre os autênticos “herdeiros de
Israel”.
63
Passados três séculos, por volta do ano 499 d.C. foi terminada uma
compilação de leis e tradições judaicas, consistindo-se em 63 tratados de assuntos
legais, éticos e históricos. Este tratado continha comentários escriturísticos reunidos
desde antes de Cristo, além de poesias, orações, ritos, sermões, folclore, e regras
sobre a conduta social. Esta compilação foi chamada de Talmude
64
- termo que vem
do hebraico lamad e que significava originalmente “aprender”, tendo mais tarde
absorvido os sentidos de ensino, instrução, estudo.
São dois os talmudes existentes, um elaborado na Palestina, concluído por
volta do ano 400 a.C. e; o mais completo, que é o Talmude babilônico, concluído por
volta do ano 500 d.C. A edição principal do Talmude Babilônico foi publicada por
volta de 1522 d.C. em Veneza; o Talmude de Jerusalém foi publicado em 1523 d.C.
65
Ele é constituído basicamente por duas partes distintas, sendo a primeira, uma parte
63
Ibid., p.244.
64
Compilação da Lei Oral, que foi transmitida por Deus a Moisés, no Monte Sinai, tendo sido estudada e
dissecada, através dos séculos, pelos sábios que viviam em Israel e na Babilônia, até o início da Idade
Média. O Talmud tem dois componentes principais: a Mishná, um livro sobre a lei judaica, escrito em
hebraico, e a Guemará, comentário e elucidação do primeiro, escrita no jargão hebraico-aramaico.
STEINSALTZ, Adin. O que é o Talmud. Disponível em: <http://www.morasha.com.br/edicoes/ed43/talmud.
asp>.Acesso em 01.10.2006.
65
APOLINÁRIO, Pedro. O Talmude. Disponível em: <http://www.profecias.com.br/historia/talmude.htm>.
Acesso em 01.10.2006.
38
comum ao Babilônico e ao Palestino, chamada de Mishná
66
e a segunda, distinta.
Esta segunda parte, elaborada na Palestina, é chamada também de Talmude,
enquanto a elaborada na Babilônia é denominada de Guemará, que significa em
aramaico complemento.
O Talmude, desde os primórdios, é a base de valores de todo Judaísmo. É
um comentário detalhado das tradições judaicas a partir das Leis compiladas por
Moisés na Toráh. Estas orientações sacramentam a premissa da punição corporal
como prática natural na educação e cultura judaica. São confirmadas no livro de Ben
Sira
67
, um livro muito usado pelos judeus, o qual exerceu influência na liturgia judaica
e especialmente citado no Talmude.
A despeito das punições corporais, a tradição judaica, como já visto na
Antigüidade, é bastante rígida. No Talmude, as interpretações ganham detalhes que
ratificam as crenças antigas tidas como sagradas e acabam por reforçá-las
ideologicamente com os valores das épocas nas quais foram escritos. Em relações
às punições relacionadas à ação educativa, o Talmude
68
determina:
“Aquele que ama seu filho castigá-lo-á freqüentemente a fim de
que ele possa vir a ser uma alegria para ele quando crescer.
Quem desaponta seu filho estará beneficiando-o e orgulhar-se-á
dele entre os íntimos.”
O Talmude apresenta outros detalhes que não são tratados nos escritos
bíblicos, pois, como um escrito mais popular, reflete a vida diária das pessoas,
abrangendo um conglomerado de milhares de anos de costumes, filosofia, história,
legislação e lendas judaicas. Entre outras áreas do conhecimento, engloba das
ciências à lógica, aconselhamentos práticos, lições e relatos extraordinários,
palavras de inspiração e até mesmo alguns indícios de humor judaico. É uma mescla
66
O Mishná, que significa segunda Lei, é o compêndio onde estão registradas as leis tradicionais, preparadas
pelo rabino Judas, o Santo. Está escrito em hebraico, embora, nele, apareçam algumas palavras aramaicas,
gregas e latinas. Wikipédia. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Mishn%C3%A1>. Acesso em
01.10.2006.
67
O livro de Bem Sira é um livro muito usado no judaísmo; especialmente citado no Talmud e exerceu bastante
influência na liturgia judaica. Apesar de ser usado por alguns segmentos cristãos e fazer parte dos livros
religiosos de Alexandria, os teólogos dos primeiros séculos não o incluíram no cânone do Antigo Testamento,
sendo, portanto considerado um livro deuterocanônico. TAKAHASHI, Anna Maria. A criança judia na
Antigüidade. Disponível em: http://www.ip.usp.br/laboratorios/lacri/criancajudia. Acesso em 01.10.2006.
68
Bem Sira 30.1,2 apud TAKAHASHI, Anna Maria. A criança judia na Antigüidade. Disponível em:
http://www.ip.usp.br/laboratorios/lacri/criancajudia. Acesso em 01.10.2006.
39
de artes e ciências além de ser um livro de legislação. Nele encontram-se vários
exemplos de pais que praticam a punição corporal em seus filhos, a qual, muitas
vezes de forma tão severa, que a criança sofre lesões sérias, chegando até mesmo
a morrer. Além disso, ocorreu uma inovação na prática, antes não vista em outras
sociedades. Pais e professores passaram a ter o direito legal para o exercício da
punição. Os que exerciam a tarefa de disciplinar por meio de punições corporais não
sofriam nenhuma conseqüência legal, visto que a prática era, inclusive,
recomendada.
69
Outro fator a ser observado é a relação existente entre a autoridade do pai e a
do professor, em que aquele confere a este as condições necessárias de autoridade
para que a punição corporal seja aplicada. O pai quando entrega seu filho aos
cuidados do professor espera que este exerça sua autoridade exatamente como ele
mesmo o faria:
“O pai que bate no seu filho ou o professor que disciplina o seu
aluno: qualquer um que tenha batido e machucado – será
absolvido. Entretanto, se a criança for machucada sem razão –
eles serão considerados culpados”.
70
Outros textos sugerem também que a aplicação da punição corporal fazia
parte da vida diária do povo judeu. Este exemplo pode ser visto no texto a seguir em
que o indivíduo mencionado é o escriba, cuja função na Antigüidade era a de
professor e, quando se preparava para tanto, munia-se de uma correia para exercer
a punição corporal quando, de acordo com o pensamento judaico, se fazia
necessária:
“Um exemplo de um escriba que entra na escola e diz: tragam-me
uma correia! Quem fica preocupado? É aquele que sempre
apanha”.
71
69
STEINSALTZ, Adin. O que é o Talmud? Disponível em: <http://www.morasha.com.br/edicoes/ed43/talmud.
asp.> Acesso em 01.10.2006.
70
Talmud, Qam 9.11 apud TAKAHASHI, Anna Maria. A criança judia na Antigüidade. Disponível em:
http://www.ip.usp.br/laboratorios/lacri/criancajudia. Acesso em 01.10.2006.
71
Talmud, Sukk 2.6 apud TAKAHASHI, Anna Maria. A criança judia na Antigüidade. Disponível em:
http://www.ip.usp.br/laboratorios/lacri/criancajudia. Acesso em 01.10.2006.
40
No Talmude, sugere-se que os líderes judaicos conheciam casos verídicos de
professores que aplicaram punições corporais tão intensas às crianças que estas
chegaram à morte. Há também casos similares de morte por pais que puniam seus
filhos severamente.
Um famoso rabino que viveu na Babilônia no século III, chamado Radda
ensinou que quando um professor desejasse bater em uma criança deveria fazê-lo
com a correia de seu sapato para suavizar a punição
72
. Outro exemplo é o Tratado
Semahot que demonstra o sábio e sua audiência terem conhecimento de que, não
apenas o povo, mas também a família real batia em seus filhos. Midrash Tanhumá
também busca explicar o texto bíblico de Provérbios 31.1, que narra o fato do rei de
Massa, Lemuel, ter sido punido pela sua mãe:
“Rabino Akiba conta que um rei tinha quatro filhos. Um deles
apanha e fica quieto; o outro apanha e desafia; o terceiro apanha
e suplica enquanto o último diz a seu pai: 'castiga-me'!”.
73
Não era só o rei que aplicava a punição corporal em seus filhos, mas a rainha
também. Assim, as crianças da família real estavam sujeitas às mesmas punições
que as crianças do povo. Os mesmos valores que fundamentaram a prática em
pessoas que cometiam crimes sociais também nortearam a legitimação das
punições corporais em ambientes familiares. Como já visto, desobedecer ao pai, em
certa medida, relacionava-se a desobedecer ao próprio Deus.
Outra influência na formação da Cultura Ocidental começa a ocorrer quando,
por volta do século VI, quando os árabes já haviam se expandido do Mar Cáspio à
Cirenaica, com isso, o islamismo ganha dimensões universais, deixando de ser
apenas um fenômeno árabe, pois povos das mais diferentes origens acabam por se
converter e abraçar a doutrina de Mohammed
74
.
O mundo islâmico estabeleceu-se na grande metrópole econômica de
72
TAKAHASHI, Anna Maria. A criança judia na Antigüidade. Disponível em: http://www.ip.usp.br/laboratorios/
lacri/criancajudia. Acesso em 01.10.2006.
73
Talmud, Semahot 8.11 apud TAKAHASHI, Anna Maria. A criança judia na Antigüidade. Disponível em:
http://www.ip.usp.br/laboratorios/lacri/criancajudia. Acesso em 01.10.2006.
74
Mohammed ou Maomé, Muḥammad (Meca, c. 570 - Medina, 8 de Junho de 632) foi um líder religioso e
político árabe. Segundo a religião islâmica, Maomé é o mais recente e último profeta do Deus de Abraão.
Wikipédia. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Maom%C3%A9>. Acesso em 07.10.2006.
41
Damasco (Síria) e acaba por se tornar o centro do grande Império Islâmico, liderado
pelos turcos. Os ensinamentos de Mohammed, que reunia elementos judaicos e
cristãos, formam o Alcorão, livro sagrado, escrito após a sua morte, que norteia toda
a estrutura política, social, econômica e penal do Direito Islâmico com base em
fundamentos e princípios religiosos. O Direito Islâmico vale para toda a comunidade
religiosa islâmica, ou seja, o direito que rege todos os adeptos da religião islâmica,
onde quer que eles se encontrem, independente das leis locais e da facção religiosa
a qual pertençam, sejam sunitas
75
ou xiitas
76
. É o direito de um grupo religioso, e não
o direito de um povo ou de um país. Com a morte de Mohammed no ano de 632
d.C., a expansão religiosa prosseguia com objetivos de conversão daqueles que não
seguiam o islamismo, agora no contexto da jihad
77
.
O poder passa de Mohammed para seus sucessores, os califas, que, ao
mesmo tempo, exerciam tanto a liderança religiosa quanto a política. É um governo
que tem origem em Alá, ou seja, o tesouro da nação é o tesouro de Alá, o exército, é
o exército de Alá, os funcionários públicos, são funcionários de Alá. Aquele que
desobedece ao Alcorão, não apenas comete uma infração de ordem legal, mas
comete pecado e deve ser punido. A ordem jurídica e a religião são aspectos da
mesma vontade, a vontade de Alá. É desta vontade que deriva toda a trajetória da
comunidade islâmica que avançou para além dos povos árabes e acabou por
influenciar os aspectos sociais da Europa Ocidental.
É possível notar esta influência em todos os países que, até hoje, não
instituíram uma constituição, ou, mesmo códigos, por estarem regulamentados pelas
palavras do profeta Mohammed registradas no Alcorão, as quais, apesar de serem
na sua natureza, de ordem “sobrenatural”, possuem penas capitais e punições
corporais das mais variadas.
75
Os sunitas configuram o maior ramo do Islão, ao qual pertencem 85% do total dos muçulmanos. Os
seguidores da tradição Sunita são os Sunitas. maioria dos sunitas acredita que o nome deriva da palavra
Suna que é a forma de conduta do profeta Maomé. Alguns afirmam porém que Sunita deriva de uma palavra
que significa "um caminho moderado" referindo-se à ideia de que o Sunismo toma uma posição mais neutral
do que aquela que tem sido apercebida como mais extremada dos Xiitas e dos Caridjitas. Wikipédia.
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/sunitas>. Acesso em 22.10.2006.
76
Os xiitas são o segundo maior ramo de crentes do Islão, constituindo cerca de 10 a 15% do total dos
muçulmanos (o maior ramo é o dos muçulmanos Sunitas, que são 85-90% da totalidade dos muçulmanos).
Os Xiitas consideram Ali, o genro e primo do profeta Maomé, como o seu sucessor e olham com indiferença
os restantes três dos quatro Califas que o sucederam. Wikipédia. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/
wiki/xiitas>. Acesso em 22.10.2006.
77
O Jihad significa "exercer esforço máximo", podendo também ser entendida como "luta", mediante vontade
pessoal de se buscar e conquistar a "fé perfeita". Ao contrário do que muitos pensam, Jihad não significa
"Guerra Santa" nome dado pelos europeus à luta religiosa cristã (ex: Cruzadas). Wikipédia. Disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Jihad>. Acesso em 22.10.2006.
42
No arcabouço das punições islâmicas encontra-se a pena de morte, a pena
de talião, o talião simbólico, a legitimação para o assassinato de infiéis, chibatadas;
outras disposições sobre assuntos como adultério, homicídios, adoção, casamento,
calúnia, dividas, divórcio, jogo, embriaguez, falso testemunho, guerra, imunidades,
sucesso, lucro e usura
78
e muitas outras.
Dois exemplos podem ser encontrados na segunda sura
79
do Alcorão, a Al
Bácara, que significa “a vaca” e que determina:
”Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso (...) Ó fiéis,
está-vos preceituado o talião para o homicídio: livre por livre,
escravo por escravo, mulher por mulher. Mas, se o irmão do morto
perdoar o assassino, devereis indenizá-lo espontânea e
voluntariamente. Isso é uma mitigação e misericórdia de vosso
Senhor. Mas quem vingar-se, depois disso, sofrerá um doloroso
castigo. Tendes, no talião, a segurança da vida, ó sensatos, para
que vos refreeis. Está-vos prescrito que quando a morte se
apresentar a algum de vós, se deixar bens, que faça testamento
eqüitativo em favor de seus pais e parentes; este é um dever dos
que temem a Deus.”
80
A influência islâmica, assim como toda a diversidade religiosa existente desde
a queda do Império Romano em 476 d.C., perdurou durante séculos e preconizou
juntamente com o império da Igreja Católica, inúmeros eventos sangrentos que
renderam a morte de milhares de pessoas. Apesar disso, muita coisa ainda viria a
acontecer com a passagem da administração da península Itálica para a Igreja por
volta do século VIII. Século que teve em Carlos Magno o nome mais expoente do
período, estabelecendo o momento de maior poder dos francos na Alta Idade Média.
Carlos Magno foi responsável por uma experiência centralizadora que sobreviveu
até sua morte no ano de 814 d.C. A partir de então, hordas invasoras de vikings da
Escandinávia e novas incursões árabes levaram ao fim o poder estabelecido.
78
Usura é o nome dado a prática de se cobrar juros excessivos pelo empréstimo de uma determinada quantia
de dinheiro. Wikipédia. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Usura>. Acesso em 22.10.2006.
79
Sura ou Surata é nome dado a cada capítulo do Alcorão. O livro sagrado da religião islâmica possui 114
suras, por sua vez subdivididas em versículos (ayat). As suras não se encontram ordenadas por uma ordem
cronológica de revelação. Cada sura recebe o nome de uma palavra distintiva no início do texto. Cada sura
recebe um nome diferente no início do texto. Exemplo: a sura 1 é Al-Fátiha (a abertura), a 2 é Al-Bácara (a
vaca). Wikipédia. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Sura>. Acesso em 22.10.2006.
80
Alcorão 2.178-180.
43
Os vikings – normandos ou homens do norte – eram piratas noruegueses,
suecos e dinamarqueses vindos por mar da Escandinávia que percorreram as costas
da Europa durante o século VIII. Espalharam-se até Constantinopla e já no século IX
tornaram-se, no plano comercial, os intermediários entre Bizâncio e o Ocidente,
entre cristãos e mulçumanos.
Nessa época, raramente usava-se a escrita, pois a cultura da escrita era
monopólio dos padres. Entre os bárbaros, o mais importante era o crime ser
considerado objetivamente. Não havia muita preocupação com a culpa no seu
sentido amplo. A razão da pena era a quebra da paz, seja ela privada ou pública e
baseava-se na vindicta.
81
As punições corporais eram comuns e os ordálios consistiam em submeter o
acusado ao contato com o fogo e, se depois de algum tempo, apresentasse
queimaduras, era considerado culpado e se não apresentasse era considerado
inocente. A sentença provinha de um “deus justiceiro”, a figura predominante entre
os bárbaros.
82
Com o esgotamento do sistema feudal, abalado pelas transformações
demográficas ocorridas na Europa, origina-se um novo período na civilização
ocidental. A expansão demográfica passou a entrar em choque com o imobilismo do
sistema feudal, em que cada pequena cidade possuía seu próprio direito baseado
nos costumes locais e que proporcionava desigualdade social por não haver muitas
leis ou regras estabelecidas. A cultura era privilégio de poucos, geralmente homens
da Igreja que mantinham alguns poucos registros escritos. Um desses registros data
do final do século XI e foi escrito pelo monge Guillaume de Jumièges. Este registro é
a biografia de Guilherme, o Conquistador, e narra uma punição aplicada pelo avô de
Guilherme, o conde de Rouen Ricardo II, por volta de 1.015 d.C.
Numa época em que impor a ordem era uma tarefa difícil, tanto as
autoridades da Igreja, quanto às seculares, eram ameaçadas pelos camponeses da
Normandia que, um dia, acabaram por se revoltar. A rebelião havia partido de
camponeses que queriam viver como bem entendessem, rejeitando qualquer forma
de controle, assim como as taxas cobradas pelo uso dos bosques e das águas. Em
81
A Amanumissio vindicta nada mais era que a utilização do processo judicial em que se discutia a questão de
liberdade. E muito instrutivo examinar em que este consistia. DJI. Índice Fundamental de Direito. Disponível
em: <http://www.dji.com.br/constitucional/liberdade.htm>. Acesso em 23.10.2006
82
DUBY, Georges. Damas do Século XII – A lembrança das ancestrais. 1 ed. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
44
meio à revolta, delegados reuniram-se no interior do país em assembléia geral na
qual o tio materno do jovem duque ficaria incumbido de reprimir com ferocidade a
campesina. O historiador relata que os participantes foram capturados e mandados
para a casa, já “inutilizados”, com seus pés e mãos decepados.
83
A prevenção geral pela intimidação e exemplaridade pela punição corporal foi
levada a tamanhos excessos, mesmo após o renascimento de princípios de direito
romano e o advento de leis escritas. Era uma época em que a Igreja abarcava em
muitos lugares, confundindo-se com o poder secular pelo fato de, em muitos casos,
o soberano da Igreja ser a mesma pessoa do soberano do Estado.
A Igreja, em grande parte da Europa Ocidental, alcançou o seu apogeu e
conheceu um amplo domínio de poder jurisdicional, inclusive sobre os leigos, por
meio do Direito Canônico
84
do século XII. Certos domínios, inclusive do direito
privado foram regidos exclusivamente pelo Direito Canônico, durante vários séculos.
Qualquer conflito era resolvido pelos tribunais eclesiásticos. Entre os crimes
eclesiásticos estavam os delitos contra a autoridade da Igreja, contra as pessoas e
contra as coisas eclesiásticas, a heresia, o incesto, o adultério, a bigamia, a usura, a
insolvência dos deveres financeiros com a Igreja.
85
O poder era exercido de forma verbal, razão pela qual são quase inexistentes
documentos sobre as condenações e as punições daquele tempo. As penas eram
cruéis como o fato ocorrido no mosteiro de Watton, na Inglaterra, por volta de 1160
d.C., quando um rapaz foi castrado por ter mantido relações sexuais com uma freira.
Sem julgamento e podendo ser uma pena cruel para os dias de hoje, era uma
punição comum naquele século, a qual demonstrava também o alcance do poder da
Igreja sobre aqueles que interferiam nos seus interesses.
O fato está registrado em uma carta enviada ao abade de Fountain Abbey,
por Aelred de Reilvaux, abade cisterciense, cujo lamento ao castigo é expresso.
Aelred descreve que a freira, descoberta em estado de gravidez foi encerrada no
calabouço acorrentada. Mandaram buscar seu cúmplice que ao chegar fora jogado
83
Ibid., passim.
84
“Conjunto de princípios e normas estruturadores e disciplinares da Igreja Latina. Sua denominação deriva de
cânone, designação dada, no Oriente, à norma eclesiástica. É formado pelas normas estabelecidas pelo
Papa e pelos concílios, bem assim pelas concordatas entre a Santa Sé e os Estados, e as leis e decretos de
autoridades eclesiásticas de diversos planos hierárquicos.”. Disponível em: <http://www.dji.com.br/dicionario/
direito_canonico.htm>. Acesso em 23.10.2006.
85
GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. 2 ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1995.
45
ao chão e em causa de toda a infelicidade (a monja) foi introduzida como em um
espetáculo a fim de cortar com um instrumento empunhado com as próprias mãos
as partes viris do rapaz. O texto ainda registra que uma das monjas que segurava o
rapaz arrancou as partes que lhe haviam sido cortadas e enfiou-as na boca da
culpada tal como sujas de sangue.
Os francos conservavam, em matéria de justiça, ideais e processos distintos
dos romanos. Assim como outros povos antigos da Europa, praticavam o direito e o
dever de vingança designado em francês pelo nome corso de vendetto. A família
inteira era responsável pelos atos criminosos de cada um de seus membros -
fazendo com que os parentes da vítima entrassem em guerra com os parentes do
criminoso. Esta é a origem da guerra privada que perdurou por toda a Idade Média.
86
Para decidir os pleitos, os francos aplicavam multas e também empregavam o
processo de Ordálios, baseando-se no sentimento de que Deus intervinha em favor
do inocente. Quando um guerreiro acusava outro, o juiz fazia-os combater e
condenava o que era vencido – esta é a origem do duelo privado.
As mulheres e as pessoas que não possuíam condições de combate eram
submetidas aos ordálios que, neste caso, consistia em uma prova pelo ferro em
brasa ou água fervente. O resultado decidia a sentença
87
. Aos que tinham posses,
era lhes reservado o poder de julgar os habitantes de seu domínio, contudo, o
julgamento não consistia no dever de fazer justiça e sim para a aplicação de castigos
corporais como o chicote, a mutilação ou a forca
88
. Era uma época em que o poder
secular confundia-se com o poder religioso.
Uma das grandes e lastimáveis comprovações deste poder tem seu marco no
dia 20 de abril de 1233 d.C., quando o Papa Gregório IX editou duas bulas que
ficariam para a história como os documentos que deram início a uma das piores
expressões de dominação e atrocidades que o mundo já vivenciou: o Tribunal do
Santo Ofício, a Inquisição. Nos processos inquisitórios bastava-se a denúncia como
prova de culpabilidade. Cabia ao acusado a sua prova de inocência. Normalmente, o
acusado era mantido incomunicável e acorrentado.
As penas impostas variavam da simples censura com caráter de humilhação,
86
SEIGNOBOS, Charles. História Sincera da França. 1 ed. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1938, p.17.
87
Ibid., p.52.
88
Ibid., p.121-123.
46
passando pela reclusão carcerária e trabalhos forçados, até a excomunhão do
acusado, o que gerava sua condenação à fogueira. Tais punições eram comumente
acompanhadas de flagelação e confiscação de seus bens a favor da Igreja. Os
hereges pertinazes impenitentes – aqueles que não confessavam seus erros ou
negavam sua fé – eram sumariamente executados. Aos hereges penitentes eram
aplicadas as punições corporais pelo bispo ou inquisidor. E aos hereges relapsos –
os que incidiam na heresia – eram entregues ao braço secular para serem, desta
vez, executados.
89
Alguns dos instrumentos utilizados na Inquisição datam da Antigüidade,
enquanto outros eram aperfeiçoados para que o tempo de sofrimento fosse
prolongado sem causar a morte do condenado. Muitas máquinas para a tortura
foram desenvolvidas por pessoas que acabavam por se especializar no assunto,
fazendo com que a dor do suplício se multiplicasse antes de cessar a vida do
condenado.
90
Para os crimes mais hediondos, o criminoso poderia ser arrebentado vivo ao
expirar em um aparelho chamado roda de despedaçamento. Este tipo de
instrumento foi muito utilizado na Holanda, Inglaterra e Alemanha do século XII ao
século XVIII. Nela o condenado era amarrado e abaixo ficava uma bandeja metálica
com brasas incandescentes. À medida que o carrasco girava a roda lentamente, o
corpo do condenado era assado e dilacerado ao longo do processo.
Existiram muitos outros instrumentos utilizados para o suplício: a Dama de
ferro, uma espécie de sarcófago com espinhos na parte interna das portas; o Berço
de Judas, uma peça metálica em forma de pirâmide e sustentada por hastes, em
que a vítima era colocada sentada sobre a ponta da pirâmide e as correntes sendo
afrouxadas aos poucos até que o peso do corpo pressionasse e ferisse o ânus,
vagina ou saco escrotal; o Garfo, uma haste metálica com duas pontas nas
extremidades que eram presas entre o queixo e o tórax; as Garras de gato, uma
espécie de rastelo usado no açoite dos prisioneiros; a Pêra, instrumento metálico no
formato semelhante a um fruto, que era introduzido na boca, ânus ou vagina da
vítima, onde era expandido gradativamente por meio de um parafuso; a Cadeira,
89
DURANT, Will. A História da Civilização. vol.6. 2 ed. Rio de Janeiro: Record, 1957.
90
Apesar das práticas e penas aplicadas pela Inquisição terem o sofrimento físico como base, não havia o
caráter punitivo de forma objetiva nelas incutido. As torturas realizadas visavam a confissão do réu e a
eliminação de todos os que se opunham de alguma forma ao poder estabelecido da Igreja.
47
coberta de pregos, local onde a vítima sentava-se despida; o Cavalete, em que a
vítima era posicionada de modo que suas costas ficassem apoiadas sobre o fio
cortante do bloco
91
. O Esmaga cabeças, na forma de capacete, que possuía na parte
superior uma rosca que era girada pelo executor pressionando a cabeça da vítima
de encontro a uma base na qual se encaixava o maxilar; o Quebrador de joelhos,
composto por placas de madeira paralelas unidas por duas roscas e cones metálicos
pontiagudos que pressionavam os joelhos até esmagar a carne, músculos e ossos; o
Pêndulo, em que a vítima tinha seus pulsos amarrados com os braços para traz por
uma corda que se estendia a uma roldana e a um eixo - a corda, puxada pelo
torturados, deslocava e provocava diversos ferimentos nas costas e braços; os
Ferros de marcar a quente, que usavam-se para marcar alguns condenados no
ombro ou mesmo na face ou testa, em que o delito cometido era impresso na marca
por meio de um código; o Destroçador de seios, que eram tenazes com quatro
garras convergentes capazes de esmagar e dilacerar os seios de mulheres
condenadas por heresias, blasfêmias, adultério, magia branca erótica,
homossexualismo, aborto provocado e outros delitos; a Cegonha que consistia de
um grilhão que aproximava os pés e as mãos do condenado impedindo-lhe o
movimento, aparentemente um meio de imobilização, provocava depois de poucos
minutos, cãibras nos músculos retais e abdominais, o que se tornava extrema agonia
ao passar das horas; a Mordaça de ferro, instrumento usado desde a época romana,
na Idade Média foi aperfeiçoado com a colocação de farpas na caixa, fazendo com
que não silenciasse apenas o condenado, mas também o ferisse.
Giordano Bruno, um dos intelectuais mais brilhantes do século XVI, antes de
ser condenado à fogueira, sofreu com um tipo de mordaça de ferro com cravos que
lhe perfurava a língua e o céu da boca. Era usado tanto durante os interrogatórios e
as execuções, quanto para calar os prisioneiros mais inquietos. O Cinturão de Santo
Erasmo, apesar do nome, podia tomar a forma de um cinto como a de uma
vestimenta de malha de arame com inúmeras pontas de ferro voltadas para dentro.
Estando bastante apertada, feria e dilacerava a carne do prisioneiro a cada
movimento ou respiração, causando aos poucos infecções que eram ampliadas
quando insetos ou vermes carnívoros eram colocados nos ferimentos. O Potro, uma
mesa com orifícios laterais na qual a vítima era deitada e seus membros presos por
91
VILARINO. Cristine V. Compêndio de Instrumentos e Tortura e Execução na Idade Média Européia.
Disponível em <http://www.geocities.com/adtenebras/compendio.htm>. Acesso em 20.10.2006.
48
cordas que, na medida em que giravam, produziam um efeito de torniquete,
pressionando gradativamente os membros mais resistentes, como pernas e braços.
Na Espanha, havia até uma lei que regulamentava o número de voltas que deveriam
ser dadas na manivela para que, no caso da vítima ser inocente, não sofresse
seqüelas irreversíveis.
92
Os suplícios consistiram práticas comuns nos tribunais da Idade Média, sendo
utilizado como forma de punição até meados do século XIX, passando da Idade
Média para a Idade Moderna. Mesmo tratando-se de um fenômeno jurídico bárbaro
para os nossos dias, os suplícios eram técnicas de punição aceitas e respeitadas na
Europa por séculos. De acordo com o pensamento da época, os juízes – que muitas
vezes eram os próprios bispos – deveriam observar critérios precisos para que uma
punição corporal fosse aplicada. O suplício justo considerava a espécie do ferimento
físico, sua intensidade, a duração da gravidade do crime cometido, a pessoa do
criminoso e o nível social de sua vítima. Desta forma, por exemplo, definia-se o
número de golpes de açoites e a localização em que seriam desferidos no corpo do
condenado.
As razões por tais práticas perdurarem por tanto tempo, não se relacionavam
com a prevenção da criminalidade, mas antes, pela imposição de penas
sanguinárias. A Igreja – que se misturava com o Estado – pretendia demonstrar seu
poder inabalável frente à sociedade. Outro motivo era o fato de que, na Idade Média,
a moeda e a produção estavam ainda pouco desenvolvidas, o que fazia do corpo o
bem mais acessível para aplicação da punição.
93
Nos séculos seguintes, com as ameaças constantes de guerras civis em que
vivia o continente europeu, o suplício ainda se fazia presente, visto que as decisões
do soberano se davam de forma arbitrária e por meio da força. O rígido sistema
penal baseado nos valores religiosos, consistia em um dos mais valiosos elementos
de intimidação e controle social. E para que sua prática alcançasse sua finalidade,
as punições corporais, assim como as execuções, eram aplicadas em praças
públicas. Quanto mais agonizantes e hediondas eram as punições, solidificava-se a
força do governante frente ao povo.
92
Ibid., passim.
93
FISCHL. F. O Suplício e a na Colônia Penal de Franz Kafka. Disponível em: <http://www.wezen.com.br/
wezine /kafka>. Acesso em 15.10.2006.
49
Apesar disso, ocorreram numerosas revoltas camponesas contra os
senhores, ao mesmo tempo em que, nas cidades, os trabalhadores pobres das
guildas
94
se rebelavam contras os comerciantes ricos e contra os mestres artesãos
reunidos nos patriciados que dominavam os governos urbanos. Desencadeou-se
uma crise social, econômica e espiritual que, juntamente com a fome, obrigou muitos
camponeses a abandonarem suas terras.
A crise da Igreja manifestou-se com no cisma do Ocidente com o Oriente,
mantendo a Igreja dividida entre Roma e Avignon e favorecendo o aparecimento de
movimentos místicos e reformadores que pregavam o resgate da pureza das
práticas cristãs. Tais eventos enfraqueceram o sistema feudal e fizeram surgir um
período de transição para novas concepções de sociedade.
Uma vez superada a fase mais crítica da crise, o século XV surge como
período de transição para novas realidades sociais, econômicas, políticas e culturais.
Com o enfraquecimento da sociedade feudal e da estrutura das guildas, o
artesanato e o comércio ganharam maior liberdade para ampliar suas atividades e
adotar as fórmulas que, pouco a pouco, configuraram o modo de produção
capitalista. As monarquias, em destaque a francesa, inglesa e espanhola, reforçam
seu poder com a criação de exércitos permanentes e aparatos burocráticos,
estabelecendo um caráter autoritário que seria a prenunciação do aparecimento do
aparelho do Estado da Idade Moderna.
95
1.3. AS PUNIÇÕES NA IDADE MODERNA
Os Estados modernos europeus surgiram pela aproximação entre a
monarquia e a burguesia. Para tanto, muitos reis europeus estimularam os negócios
burgueses promovendo e gerenciando a expansão comercial com grandes
navegações. Assim como as Cruzadas dinamizaram o renascimento das atividades
comerciais na Europa, a expansão marítima provocou uma grande revolução
94
Durante a Idade Média e mesmo após, na Europa, as corporações de ofício, corporação artesanal ou guildas
eram associações de artesãos de um mesmo ramo, isto é, pessoas que desenvolviam a mesma atividade
profissional que procuravam garantir os interesses de classe e regulamentar a profissão. Wikipédia.
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Guilda>. Acesso em 23.10.2006.
95
A Idade Moderna. Disponível em: <http://www.nomismatike.hpg.ig.com.br/IdadeModerna.html>. Acesso em
21.10.2006.
50
comercial que acabou por culminar na estruturação de uma nova ordem
socioeconômica denominada capitalismo comercial ou mercantil, apesar de ainda
carregar vários elementos oriundos do feudalismo, a exemplo do poder e prestígio
advindos de questões hereditárias, como títulos da nobreza e do clero.
96
A hegemonia da Igreja começou a ser suplantada pelos valores burgueses e,
neste contexto, ocorreram o Renascimento cultural e artístico e a Reforma
Protestante. Dentre algumas características, encontrava-se a tendência cultural
laica, racional e científica, tendo como elemento central o Humanismo. O
Renascimento abriu grandes portas para o conhecimento e os estudos, que foram
enormemente beneficiados pela estrutura social estabelecida e pelos avanços
tecnológicos.
Neste novo quadro cultural, marcado por posições antagônicas, surgiu um
momento de altas críticas à Igreja Católica, culminando com a afixação das noventa
e cinco Teses de Martinho Lutero contra a prática das indulgências à porta da
catedral de Wittemberg no ano de 1.517 d.C. Lutero foi excomungado, mas não se
intimidou, conseguindo alguns aliados e com isso favoreceu o desabrochar da
Reforma Protestante.
Na Alemanha, algumas províncias aderem ao Protesto. Na Inglaterra
Henrique VIII proclamou a Igreja Anglicana, enquanto Calvino, na Suíça,
desenvolveu um credo paralelo. O poder da Igreja Católica foi abalado no seu
prestígio secular, ocasionando a grande retirada de numerosos bens nos locais onde
se estabelecera o protestantismo.
97
Na Inglaterra, ocorreu o caso do estadista Thomas More, que fora decapitado
por se recusar a fazer juramento ao rei Henrique VIII que consistia em firmar
lealdade acima de todos os governantes estrangeiros, negando, inclusive o papa,
como chefe da Igreja da Inglaterra. More, escritor e estadista, ocupava o cargo de
lorde chanceler quando renunciou no ano de 1.52 d.C. o mais alto posto judicial
inglês porque não quis apoiar a política do rei contra o papa. Sua sentença foi ser
arrastado pela cidade de Londres, onde deveria ser cortado vivo, o abdômen
dilacerado, o intestino queimado e repartido em quatro partes que deveriam ser
96
História do Mundo. Disponível em: <http://www.historiadomundo.com.br/idade-moderna/>. Acesso em
21.10.2006.
97
ABREU, Adriano. Reforma Religiosa. Disponível em: <http://www.saberhistoria.hpg.ig.com.br/nova _pagina_
30.htm>. Acesso em 21.10.2006.
51
fixadas em cima dos quatro portões da cidade e a cabeça na ponte de Londres. O
rei comutando a sentença mandou que apenas o decapitassem de forma rápida. O
caso More foi considerado na História, uma das mais graves e irreparáveis
sentenças aplicadas pelo Estado contra um homem de honra, pois os motivos que o
levaram à morte foram frutos do absolutismo déspota e não do senso de justiça.
98
Em Portugal, a Igreja Católica, já abalada por tantas dissensões, muniu-se de
duas armas na defesa de seus valores: a Inquisição, que perdurara desde a Idade
Média e a fundação da Companhia de Jesus. No ano de 1.534 d.C., a Companhia foi
fundada, tendo Inácio de Loyola como seu principal líder. Os chamados “jesuítas”
constituíram uma força líder no movimento da Contra-Reforma em reação à Reforma
Protestante, cujas doutrinas disseminavam-se rapidamente por toda a Europa, em
parte, graças à invenção de imprensa. A ordem pregava obediência total às
Escrituras e à doutrina da Igreja, tendo na declaração seguinte, a maior expressão
do fato: “Eu acredito que o branco que eu vejo é negro, se a hierarquia da igreja
assim o tiver determinado”.
99
Os jesuítas conseguiram ampla influência na sociedade dos primeiros anos
da Idade Moderna porque os padres exerciam, por muitas vezes, a função de
professores e confessores dos reis. Em 1540, os estatutos da ordem foram definidos
e aprovados, em Roma, pelo Papa Paulo III. Neles estavam contidos campos de
ação como o do ensino e confissão – áreas que a Ordem se dedicou
intensivamente. Os jesuítas, tendo como principal objetivo levar a fé católica para os
povos dos territórios da Europa e as regiões do Novo Mundo, utilizaram-se de
métodos para ensinar e catequizar, servindo duplamente aos interesses
colonizadores e aos princípios da fé católica, os quais foram reunidos e compilados
no documento conhecido como Ratio Studiorium. Surgiram, então, os colégios
jesuítas, que a princípio, eram locais de residências para jovens jesuítas em
formação. Mais tarde, a decisão de abrir espaços para o ensino a estudantes não
religiosos contribuiu sobremaneira para a expansão da Companhia de Jesus.
100
Nesse período, os estudantes deveriam aprender limites hierárquicos e não
podiam ser abandonados aos perigos da liberdade. Elas pertenciam a uma Ordem
98
Thomas More, a morte de um homem honrado. Disponível em: <http://educaterra.terra.com.br/voltaire/cultura
/2003/07/07/001.htm. Acesso em 22.10.2006.
99
A história secreta dos jesuítas. Disponível em: <http://www.desafiodasseitas.org.br/A_Historia_Secreta_dos_
Jesuitas.htm>. Acesso em 21.10.2006.
100
SOUSA, Jesus Maria. Os jesuítas e a Ratio Studiorium. Madeira: Universidade da Madeira, 2003, p.5.
52
que exigia uma disciplina e princípios mais restritos. Nesse cenário, a figura do
mestre-escola como um educador responsável pela alma dos alunos, mantinha uma
autoridade sobre o estudante que envolvia poderes de correção e punição.
101
O
método exigia um grande esforço de memorização dos estudantes, por meio da
prática exaustiva da repetição e periodicamente as sabatinas. Havia prêmios e
punições para os estudantes. O próprio Inácio de Loyola determinou nas suas
constituições, quatro níveis de punições conforme a gravidade da situação e a idade
dos infratores: advertências, recriminações, punições corporais e expulsão. As
punições corporais eram aplicadas nos casos mais graves por um funcionário
encarregado da tarefa chamado Corretor. Havia recomendações para que as
punições deferidas com réguas de madeira ou palmadas fossem aplicadas perante
testemunhas.
102
Esses princípios de disciplina também existiam nas escolas não jesuíticas.
Nelas, existia a figura do mestre-escola – os principales – que tinham como missão,
além de transmitir informações, formar os espíritos, inculcar virtudes, educar tanto
quanto instruir, preocupação que não havia antes. Os mestre-escola:
“... eram responsáveis pela alma dos alunos: monemus omnes et
singulos pedagogos presentes et futuros (...) ut sic intendant
regimini suorum domesticorum puerorum et scolarium. Para eles,
era um dever de consciência escolher judiciosamente seus
colaboradores, os outros mestres e submonitores viros bonos,
graves et doctos. Era um dever também usar sem indulgência
culpada de seus poderes de correção e punição, por isso envolvia
a salvação das almas das crianças, pelas quais eles eram
responsáveis perante Deus: ne eorum dampnationem.”
103
A própria organização dos colégios modernos tanto na sua estrutura
administrativa, quanto pedagógica, fazia com que diretores e mestres tornassem-se
depositários de autoridade superior. Essa organização autoritária e hierarquizada
dos colégios permitiria, anos mais tarde, o estabelecimento e o desenvolvimento de
um sistema disciplinar cada vez mais rigoroso.
101
ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. 2 ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981. p.116.
102
SOUSA, Jesus Maria. op.cit., p.17.
103
ARIÈS, Philippe. op. cit., p.117.
53
Ariès
104
define esse sistema distinguindo três características principais que lhe
era peculiar: a vigilância constante, a delação erigida em princípio de governo e em
instituição e a aplicação de castigos corporais. A aplicação da disciplina era de forma
humilhante. O chicote ao critério do mestre e a espionagem mútua em prol da
autoridade substituiu o modo de associação corporativa que existia entre os
estudantes anos atrás. Essa concepção de sistema disciplinar não foi particular à
infância, mas se generalizou e as punições corporais tornaram-se comuns numa
sociedade que, ao mesmo tempo, era autoritária e hierarquizada, em suma,
absolutista. Apesar disso, ainda assim existia uma diferença entre a disciplina das
crianças e adultos. Ao contrário das crianças e jovens que eram igualmente
surrados, alguns adultos escapavam mediante a posição social a qual ocupavam.
Ainda de acordo com a análise de Ariès
105
, um segundo fenômeno se revela, a
dilatação da idade escolar submetida ao chicote:
“...reservado de início às crianças pequenas, a partir o século XVI
ele se estendeu a toda a população escolar, que muitas vezes
beirava e outras ultrapassavam os 20 anos. Tendia-se portanto a
diminuir as distinções entre a infância e a adolescência, a fazer
recuar a adolescência na direção da infância, submetendo-a a
uma disciplina idêntica. Dentro do mundo escolar – pois isso não
se aplicava tanto às carreiras não escolares ou pouco
escolarizadas – o adolescente era afastado do adulto e
confundido com a criança, com a qual partilhava as humilhações
do castigo corporal, o castigo da plebe.”
No Brasil, havia tantos problemas com a educação dos meninos, que os
padres jesuítas foram levados a adotar cada vez mais a prática da sujeição e temor.
Cartilhas de alfabetização e ensino de religião eram comumente usadas. A disciplina
ficava por conta deste temor a Deus, obtido por uma educação pia e pela rotina
diária de orações realizadas ao levantar e ao dormir, as quais, além de disciplinar o
cotidiano, estabelecia os ritos da vida familiar que indicavam a entrada da criança
num mundo de novas atribuições
106
. A boa educação, na época, implicava em
punições físicas. As tradicionais palmadas não se constituíam de nenhuma novidade
104
Ibid., p.118.
105
Ibid., p.119.
106
DEL PRIORE, Mary. História das Crianças no Brasil. 5 ed. São Paulo: Contexto, 2006, p.166.
54
no dia-a-dia da família colonial. Sobre isso, Del Priore
107
destaca que:
“O castigo físico em crianças não era nenhuma novidade no
cotidiano colonial. Introduzido, no século XVI, pelos padres
jesuítas, para horror dos indígenas que desconheciam o ato de
bater em crianças, a correção era vista como uma forma de amor.
O ‘muito amor’ devia ser repudiado. Fazia mal aos filhos. ‘A muita
fartura e abastança de riquezas e boa vida que tem com ele é
causa de se perder’ admoestava em sermão José de Anchieta. O
amor de pai devia inspirar-se naquele divino no qual Deus
ensinava que amar ‘é castigar e dar trabalhos nesta vida’. Vícios e
pecados, mesmo cometidos por pequeninos, deviam ser
combatidos com ‘açoites e castigos’.
Da segunda metade do século XVIII, foram estabelecidas as Aulas Régias e
com elas, surge a palmatória como instrumento de correção por excelência. Del
Priore
108
cita um documento da época que dizia: “nem a falta de correção os deixe
esquecer do respeito que devem conservar a quem os ensina”. Narra também um
processo crime datado de 1756, movido na Vila São Sebastião em São Paulo, por
Catarina Gonçalves de Oliveira que revela imagens de outras violências – a de pais
contra filhos: “Nos autos, Catarina revela ter defendido seu enteado, uma criança
pequena de chicotadas desferidas pelo pai, ansioso por corrigir o hábito do pequeno
de comer terra”.
109
Ainda no Brasil, em relação às crianças filhas de escravos, estas não ficavam
entregues apenas à comiseração divina. Forças humanas, ou talvez fosse mais
apropriado dizer, desumanas, conduziam seu destino. A idéia era de que deveriam
ser tratadas analogamente ao cultivo de cana-de-açúcar, ou seja, deveriam ser
“batidas”, “torcidas”, “arrastadas”, “espremidas” e “fervidas”. O adestramento da
criança também se fazia pelo suplício; não o espetaculoso como o da Inquisição,
mas “o suplício do dia-a-dia, feito de pequenas humilhações e grandes agravos”.
110
Durante o período de expansão ultramarina européia, já muitos anos após a
abolição, as crianças pobres, órfãs e rejeitadas, principalmente filhos de pescadores,
107
Ibid., p.96.
108
Ibid., p.97.
109
Ibid., p.98.
110
Ibid., p.185.
55
eram recrutadas para compor a tripulação de caravelas, urcas e galeões. Quase
sempre eram recrutadas sem nenhuma preparação ou treinamento prévio. Para
manter a disciplina dessa tripulação, os oficiais e guardas recorriam a métodos
truculentos, nos quais, sem dúvida, as punições corporais estavam sempre
presentes, somadas à alimentação precária baseada em farinha de mandioca e
charque. Del Priore
111
cita um ofício queixando-se do fato:
“Dou parte a essa que ontem as 4h30 da tarde, por ocasião de
fazer-se exercício, o qual era dirigido pelo Guarda deste quartel,
Apolinário Joaquim de Almeida, deu-se o fato seguinte: estando
na forma o aprendiz artífice José Libanio de Azeredo, e não
cumprindo fielmente o que lhe ordenara o mesmo guarda, fora por
este chibateado e esbofeteado, apresentando disso estigmas no
corpo.”
Na época, tanto na Europa, quanto no Brasil – que, na verdade, era
reprodutor de toda a ideologia daquela - toda a infância, da criança de qualquer
situação social, era submetida a esses regimes degradantes. Apenas quando o
sentimento de particularidade da infância começou a aflorar, regada pela
observação de sua fraqueza, e despontar uma preocupação na França ao longo do
Século XVIII com o regime disciplinar escolástico, somando-se à condenação dos
jesuítas no ano de 1.773 d.C., é que vem ocorrer uma reorganização do sistema
escolar, reprovando o caráter servil e aviltador do castigo corporal
112
. Por esses
acontecimentos, é possível observar alguns indícios que foram, juntamente com
muitos outros, precursores de um processo cuja amplitude alcançaria seu auge
poucos anos mais tarde: a Revolução Francesa.
1.4. AS PUNIÇÕES NA IDADE CONTEMPORÂNEA
A Revolução Francesa foi o processo que marcou a transição da Idade
Moderna para a Idade Contemporânea, no qual se deu uma ruptura social em níveis
111
Ibid., p.201.
112
ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. 2 ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981, p.118.
56
imediatos e em longo prazo. Aboliu-se a forma de servidão que existia na época e os
direitos feudais na França. Foram proclamados os princípios universais de Liberte,
Egalité, Faraternité - Liberdade, Igualdade e Fraternidade – frase de autoria de Jean
Nicolas Pache.
113
Outra mudança que começou ocorrer foi a distinção entre o público e o
privado, na medida em que o público começava a se desprivatizar e apresentar-se
como a “coisa” do Estado. O privado, antes insignificante e negativo, passou a ser
revalorizado a ponto de se converter em sinônimo de felicidade. A vida pública
postulou a transparência, modificando ânimos e costumes, criou um homem com
uma nova linguagem, aparência e sentimentos em um espaço e tempo remodelados
por novos valores e significados. Em um prazo mais longo, a Revolução Francesa:
“... acentua a definição das esferas pública e privada, valoriza a
família, diferencia os papéis sexuais estabelecendo uma oposição
entre homens políticos e mulheres domésticas. Embora patriarcal,
ela limita os poderes do pai em vários pontos e reconhece o
direito do divórcio. Ao mesmo tempo proclama os direitos do
indivíduo...”
114
A partir dessa nova concepção e estruturação de sociedade, a punição
corporal tornou-se uma prática cada vez menos utilizada. Os castigos físicos
aplicados pelo Estado deram lugar às multas e punições de privação. Nos meios
burgueses, as crianças já não apanhavam muito em casa, apesar de ainda existirem
algumas famílias de classes mais pobres que se utilizavam de varas e açoites de
cordas, mesmo sendo cada vez mais reprovados.
Apesar das mudanças no âmbito público, em algumas escolas da França com
características militares, ainda perdurava a prática. Perrot
115
narra a lembrança do
educador liberal George Sand, quando aluno do Liceu Henry IV, fala de si:
113
Jean-Nicolas Pache foi duas vezes ministro da guerra no governo francês Girondist. Os Girondists era mais
um grupo dos indivíduos que prendem determinadas opiniões e princípios na terra comum do que um partido
político organizado, e o nome no início foi-lhes aplicado um tanto frouxamente devido ao fato que os
expoentes, os mais brilhantes de seu ponto da vista eram deputados do Gironde. Girondist. Disponível em:
<http://www.faktoport.com/wiki/pt/gi/Girondist.htm>. Acesso em 23.10.2006.
114
PERROT, Michelle (org). Outrora, em outro lugar. História da Vida Privada: da Revolução Francesa à
Primeira Guerra. 2 ed. São Paulo: Schwarcz, 1992, p.17.
115
Idem. Figuras e papéis. op. cit., p.18-20.
57
“Defensor feroz da autoridade absoluta (...) autorizou que um pai
inteligente mandasse seu negro espancar seu filho, diante de toda
a classe, convocada militarmente para assistir ao espetáculo
dessa execução ao gosto colonial ou moscovita, e ameaçada de
severa punição ao menor sinal de desaprovação.”
Entretanto, ainda de acordo com a própria Perrot
116
, as famílias protestaram e
o Estado interveio por meio de circulares acentuando que: “não se deve bater nunca
nas crianças”. Neste período, aumentou a distância entre os estabelecimentos
públicos e religiosos, estes, mais arcaicos em suas práticas pedagógicas, foram os
últimos a abrir mão do uso da palmatória. Em relação ao espaço privado,
principalmente entre as classes populares urbanas, pequeno-burguesas e no
campo, as sovas eram cotidianas e as vergastadas eram plenamente admitidas,
desde que não ultrapassassem certos limites: “O uso do bastão ou do açoite de
corda, geralmente empregado de mãos nuas, fica reservado aos mestres de
aprendizagem ou de instituições, como uma marca de exterioridade física”.
Perrot
117
ainda conta o caso do pequeno Jacques Vingtras-Vallès, o “burro de
carga” dos desejos de ascensão social dos pais, que mesclavam uma rudeza
camponesa e uma sede de respeitabilidade. O pai auxiliava no ensino do colégio e a
mãe tinha o desejo de que o filho se tornasse professor. Para isso instaurava-o em
uma disciplina férrea, que passava por um rigoroso controle das aparências. Nada
de carinhos e nem de palavras ternas:
“Minha mãe diz que não se deve mimar os filhos, e ela me açoita
todas as manhãs; quando não tem tempo de manhã, é ao meio
dia, raramente depois das quatro horas. Minha mãe me faz
receber educação, ela não quer que eu seja um camponês como
ela” Minha mãe quer que seu Jacques seja um cavalheiro.”
Apanhar fazia parte das lembranças da infância operária do Século XIX. Era
comum o aprendiz rebelde ou desajeitado receber punições corporais dos operários
adultos e mais experientes encarregados do ensino do ofício. A prática fazia
aumentar o número de adolescentes que se revoltavam com seus superiores. Os
116
Ibid., p.17-18.
117
Ibid., p.19.
58
símbolos revolucionários, ainda não muito bem definidos, invadiam o âmbito da vida
privada durante este período de estruturação e faziam com que as marcas da vida
privada também invadissem o espaço público. Os símbolos da vida familiar e
doméstica podiam exercer um efeito político, por isso público. Em decorrência disso,
as relações familiares, então privadas, carregavam o antagonismo do direito de
liberdade, ou autonomia do Estado, e a responsabilidade de exercer a igualdade, no
sentido de respeito humano, entre os indivíduos que as constituíam, em especial
toda representatividade que carrega o símbolo que configura a figura paterna. Na
família oitocentista, a figura do pai concentrava toda a autoridade, assentada e
justificada pelas concepções filosóficas, políticas e de direito da época.
118
Embora a Revolução Francesa, por meio da Declaração dos Direitos do
homem e do Cidadão, tenha trazido reformas importantes para a sociedade
burguesa da época, conservava muitas concepções antigas que ainda legitimavam
algumas formas de punição corporal, tanto praticadas no espaço público pelo Estado
quanto no seio da vida privada familiar. Sobre isto, Crochik
119
destaca que:
“Os ideais liberais expressados na Revolução Francesa
apontavam para uma sociedade livre e justa, nisto estando o seu
elemento de verdade, mas justificava a realidade existente, e aqui
residia a sua falsidade.”
Essas doutrinas que surgiram durante os séculos XVII e XVIII, em um período
de plena ascensão da classe burguesa, reivindicavam uma maior liberdade de ação
e de representação política diante da nobreza e do clero. Conseguiam fornecer uma
justificativa ideológica consistente aos movimentos revolucionários que estavam por
fundamentar a dissolução do feudalismo e à constituição do mundo moderno. Por
meio dos Iluministas.
A concepção filosófica que fundamentou a teoria dos direitos naturais e que
rompeu com a tradição do direito natural antigo e medieval foi chamada de
Jusnaturalismo Moderno e teve como destaque no século XVII o filósofo Inglês
Thomas Hobbes. O Jusnaturalismo Moderno foi a teoria que fundamentou, explicou
118
Ibid., p.20.
119
CROCHIK, José Leon. Teoria Crítica e Ideologia. Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento.
4 ed. São Paulo: Cortez, 2005, p.22.
59
e defendeu a existência do Direito Natural. Representou uma ruptura com a
concepção clássica, desligando-se de seus fundamentos ontológicos e teológicos, e
passando a ser instrumento de um racionalismo subjetivista, abstrato e a-histórico.
Deste modo, Deus deixou de ser visto como emanador das normas jurídicas. A
natureza passou a ocupar esse lugar, com um adendo: não foi a natureza que deu
aos homens esse entendimento, mas foi ele mesmo, por meio da razão, que
apreendeu esse conhecimento e o colocou em prática na sociedade.
A partir de certos princípios, procurou-se construir, dedutivamente, rígidos
sistemas de Direito Natural, dotados de validade universal e perpétua. Em
decorrência disso, nos séculos XVIII e XIX a essência do Direito Natural, que, apesar
de ter recebido uma pluralidade de significados ao longo de sua existência histórica,
caracterizou seu conteúdo como uma ordem de princípios eternos, absolutos e
imutáveis: a razão. Fez surgir o racionalismo, com o objetivo de construir uma nova
ordem jurídica baseada em princípios de igualdade e liberdade, proclamados como
os postulados da razão e da justiça.
120
O Jusnaturalismo Moderno exerceu forte
influência sobre as revoluções destes séculos. As principais Declarações foram:
A Declaração de Direitos de 1668, da assim chamada Revolução Gloriosa,
que concluiu o período da “revolução inglesa”, iniciado em 1640, levando à
formação de uma monarquia parlamentar;
A Declaração dos Direitos do Estado da Virgínia de 1777, que foi a base da
declaração da Independência dos Estados Unidos da América;
A Declaração dos Direitos do Homem e do cidadão da Revolução Francesa
de 1789 que foi o “atestado de óbito” do Ancien Régime
121
e abriu caminho
para a proclamação da República.
122
É relevante ressaltar que a tradição liberal dos séculos XVII e XVIII, tem como
120
XIMENES, Julia Maurmann. Reflexões sobre o Jusnaturalismo e o Direito Contemporâneo. Disponível em:
<http://www.unimep.br/fd/ppgd/cadernosdedireitov11/11_Artigo.html. Acesso em 25.05.2007.
121
Antigo Regime (em francês Ancien Régime) é o nome dado, na historiografia da Revolução Francesa, ao
regime político vigente na França até aquele momento histórico: uma monarquia absolutista, na qual o
soberano concentrava em suas mãos os modernos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Wikipédia.
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Antigo_Regime>. Acesso em 22.10.2006
122
TRINDADE, José Damiano de Lima. Anotações sobre a história social dos direitos humanos. In: Direitos
Humanos - Construção da Liberdade e da Igualdade. Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado,
São Paulo, 1998, p.23-163.
60
núcleo central os “direitos de liberdade”, que são, em sua essência, os direitos do
indivíduo (burguês) à liberdade, à propriedade e à segurança, fazendo com que o
Estado se limitasse às garantias individuais por meio da lei, sem intervir ativamente
na sua promoção. Com isso, não objetivava a intervenção na esfera dos direitos
individuais. Tais direitos são denominados direitos de liberdade negativa, pelo fato
de que, apesar de afirmar ser os homens livres e iguais, grande parte da
humanidade permanecia excluída desses direitos.
123
Punições corporais ainda continuaram a existir de forma legal durante vários
séculos. A aparente ruptura drástica com as concepções antigas e medievais
mascarava-se na legitimidade de uma classe social, a burguesa. Vários exemplos
dessas contradições podem ser encontrados. Nas colônias norte-americanas, as
Declarações de Direitos não consideravam os escravos como titulares de direitos
tanto quanto os homens livres. A própria Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão da Revolução Francesa não considerava as mulheres como participantes
dos mesmos direitos dos homens. Em geral as mulheres, os pobres e os não-
alfabetizados não podiam participar da vida política do país.
Outro ponto que merece destaque é que tais direitos não valiam nas relações
internacionais, tanto que neste período na Europa, ao mesmo tempo em que se
proclamavam os direitos “universais” do homem, havia um grande desenvolvimento
e disputas em relação à colonização e exploração dos povos não europeus,
excluindo, desses direitos, conseqüentemente, grande parte da humanidade.
124
É oportuno lembrar também que o desenvolvimento de um mercado mundial
só foi possível pela drenagem e acúmulos de enormes recursos dos povos
colonizados e pelo ressurgimento da escravidão – a qual havia sido abolida desde o
período da queda do Império Romano. A escravidão ressurgiu em alguns anos que
antecederam a Idade Contemporânea pelas “potências cristãs”, das quais Portugal
mantinha o monopólio do tráfico, estruturado em formas tão brutais e injustificáveis
quanto a barbárie do período Antigo ou Medieval. Tal prática ocorria abertamente
em contraste com a doutrina de liberdade e igualdade natural de todos os homens
da tradição cristã secularizada, trazendo o racismo como um novo “produto” do
etnocentrismo e do cientificismo europeu que a Antigüidade não conheceu.
123
TOSI, Giuseppe. História e Atualidade dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.espdh.hpg.ig.com.
br/texto1.html>. Acesso em 15.10.2006.
124
Ibid., passim.
61
Somente após a experiência de duas guerras mundiais, os líderes das
potências vencedoras criaram, em 26 de junho de 1.945, a ONU – Organização das
Nações Unidas – a qual possuía como tarefa primaz, a promoção da paz entre as
nações e a criação de uma declaração de direitos naturais do homem de forma a ser
conditio sine qua non
125
. Então, em 10 de dezembro de 1948, foi proclamada a
Declaração Universal dos Direitos Humanos como um dos primeiros atos da
Assembléia Geral das Nações Unidas, cujo primeiro artigo reza o seguinte: “Todos
os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e
consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.
126
Houve o cuidado de reunir numa única Declaração, as três palavras de ordem
da Revolução Francesa de 1.978 – liberdade, igualdade e fraternidade – reafirmando
o conjunto de direitos das revoluções burguesas. Engloba os direitos de liberdade:
direitos civis e políticos e os amplia a todos, proíbe a escravidão, proclama os
direitos das mulheres, defende os direitos dos estrangeiros, afirmando também
direitos da tradição socialista; os direitos de igualdade: direitos econômicos e sociais;
e inclui os direitos de fraternidade: a solidariedade e o cristianismo social.
127
Somente
a partir da Declaração dos Direitos Humanos, o fenômeno da punição corporal, que
era uma prática (como descrita na pesquisa) aceitável em muitas sociedades ao
longo da história, passou legalmente a ser caracterizada como um ato de “violência”
contra o ser humano.
É importante lembrar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi
desenvolvida e proclamada numa época em que ainda havia regimes coloniais por
todo o mundo. Grandes potências colonialistas que participaram de sua formulação
e a subscreveram, continuaram a manter sob força, as colônias a que tinham
domínio, muitas vezes por meio de lutas armadas. Em praticamente todos os casos,
só se retiraram depois de derrotados pelos próprios colonos à custa de muito sangue
125
A expressão conditio sine qua non significa “condição sem a qual não”, ou seja, trata-se de condição
indispensável para que aconteça determinada coisa. MORENO, Cláudio. Disponível em: <
http://www.sualingua.com.br/11/11_sinequanon.htm>. Acesso em 23.10.2006.
126
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/ deconu/textos/
integra.htm>. Acesso em 22.10.2006.
127
CASSESE, Antonio. I diritti umani nel mondo contemporâneo. Laterza: Roma-Bari, 1994. apud TOSI,
Giuseppe. História e Atualidade dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.espdh.hpg.ig.com.
br/texto1.html>. Acesso em 15.10.2006.
62
derramado.
128
A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi um marco inicial para outros
pactos, protocolos internacionais, conferências realizadas para que os direitos em
quase todo o mundo fossem desenvolvidos a partir de três tendências: a
universalização, a multiplicação e a diversificação.
A universalização: em 1.948, os Estados que aderiram à Declaração
Universal da ONU eram somente 48, hoje atingem quase a totalidade das nações do
mundo, isto é, 184 países sobre os 191 países membros da comunidade
internacional, iniciando assim um processo pelo qual os indivíduos estão se
transformando de cidadãos de um Estado em cidadãos do mundo.
A multiplicação: nos últimos cinqüenta anos, a ONU promoveu uma série de
conferências específicas que aumentaram a quantidade de bens que precisavam ser
defendidos: a natureza e o meio ambiente, a identidade cultural dos povos e das
minorias, o direito à comunicação e a imagem.
A diversificação: as Nações Unidas também definiram melhor quais eram os
sujeitos titulares dos direitos. A pessoa humana não foi mais considerada de
maneira abstrata e genérica, mas na sua especificidade e nas suas diferentes
maneiras de ser: como mulher, criança, idoso, doente, homossexual etc.
129
Em expansão aos Direitos Humanos, no ano de 1.989, as Nações Unidas
adotaram a Convenção sobre os Direitos da Criança
130
(CDC) que proclamou um
conjunto de direitos fundamentais – civis, políticos, econômicos, sociais e culturais –
de todas as crianças, assim como as respectivas disposições para que fossem
aplicados. Foi um importante instrumento legal devido ao seu caráter universal e
também pelo fato de ter sido ratificado por quase todos os países do mundo,
totalizando na atualidade, 192 países.
128
TRINDADE, José Damiano de Lima. Anotações sobre a história social dos direitos humanos. In: Direitos
Humanos - Construção da Liberdade e da Igualdade. Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado,
São Paulo, 1998, p.160.
129
TOSI, Giuseppe. História e Atualidade dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.espdh.hpg.ig.com.
br/texto1.html>. Acesso em 15.10.2006.
130
Apenas dois países, os Estados Unidos da América e a Somália, ainda não ratificaram a Convenção sobre os
Direitos da Criança. Direitos da Criança. Disponível em:<http://www.unicef.pt/artigo.php?mid=18101110&m
=1>. Acesso em 22.10.2006.
63
“A CDC não é apenas uma declaração de princípios gerais;
quando ratificada, representa um vínculo jurídico para os Estados
que a ela aderem, os quais devem adequar as normas de Direito
interno às da Convenção, para a promoção e proteção eficaz dos
direitos e Liberdades nela consagrados.”
É relevante destacar que, o Brasil é um dos 192 países que tomam parte da
Convenção sobre os Direitos da Criança, desde 24 de setembro de 1990. Ao ratificar
a Convenção, no livre e pleno exercício de sua soberania, o Estado Brasileiro
assumiu a obrigação de que seja assegurado à criança e ao adolescente, o direito a
uma educação não violenta, não apenas respeitado, mas também promovido entre a
nação. De acordo com os artigos 5º e 19 da CDC
131
:
"Artigo 5º - Os Estados Partes respeitarão as responsabilidades,
os direitos e os deveres dos pais ou, conforme o caso, dos
familiares ou da comunidade, conforme os costumes locais, dos
tutores ou de outras pessoas legalmente responsáveis pela
criança, de orientar e instruir apropriadamente a criança de modo
consistente com a evolução de sua capacidade, no exercício dos
direitos reconhecidos pela presente Convenção.
“Artigo 19 - Os Estados Partes tomarão todas as medidas
legislativas, administrativas, sociais e educacionais apropriadas
para proteger a criança contra todas as formas de violência física
ou mental, abuso ou tratamento negligente, maus-tratos ou
exploração, inclusive abuso sexual, enquanto estiver sob a guarda
dos pais, do representante legal ou de qualquer outra pessoa
responsável por ela."
Sendo assim, o artigo 5º, conjugado com o artigo 19, da Convenção sobre os
Direitos da Criança, veda explicitamente a utilização de qualquer forma de violência
contra a criança, seja ela moderada ou imoderada, mesmo que para fins
pretensamente educativos ou pedagógicos
132
. Consideram-se assim, ilícitas, práticas
punitivas empregadas por pais ou responsáveis que abarquem punições físicas em
131
UNICEF. Convenção sobre os Direitos da Criança. Disponível em:<http://www.unicef.org/brazil/dir_cri.htm>.
Acesso em 31.05.2007.
132
AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane N. A. A Violência Doméstica na Infância e na Adolescência. São
Paulo: Robe, 1995, p.77-85
64
qualquer grau.
133
O Brasil possui em sua Constituição de 1988, em Leis complementares como
o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8069/90) e em seus Códigos Civil e
Penal, garantias legais de proteção contra todo tipo de punição ou castigo de ordem
física, sejam eles aplicados pelo Poder Público ou em instâncias da vida privada.
A partir de 1989, foram introduzidos na cultura jurídica brasileira, novos
paradigmas inspirados pela concepção de criança como verdadeiro sujeito de direito,
em condição especial de desenvolvimento, fomentando a proteção integral e
consagrando uma lógica e principiologia próprias. Entretanto, mesmo com tantas
especificidades das legislações internacionais e nacionais, tais avanços têm sido
incapazes de romper com a cultura que admite o uso de punições corporais de pais
contra crianças, sob as mais diversificadas alegações, que vão de valores religiosos
a justificativas pseudo-pedagógicas.
A prática da punição corporal, apesar de repudiada no âmbito jurídico
internacionalmente se utiliza de uma refinada sutileza ideológica para legitimar sua
aplicação na esfera social. A remanescência dessa cultura, por vezes, ainda é
tolerada e aceita sob argumentos que remetem aos valores da Idade Moderna, ou
seja, é admitida quando o ato em si é classificado como “moderado”. É importante
ressaltar que a ordem jurídica tece, de forma implícita, sem critérios fundamentados
na ciência, sobretudo em aspectos empíricos da prova, a distinção da violência
moderada e imoderada, dispondo sanção explícita apenas na ocorrência desta
última. Observa-se, como conseqüência, que a punição corporal tida como
moderada é, deste modo, aceita e legalizada. O Código Civil Brasileiro, em seu
artigo 1.638 do Código, incisos I a IV determina que, in verbis:
“Art. 1.638 - Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a
mãe que:
I - castigar imoderadamente o filho;
II - deixar o filho em abandono;
III - praticar atos contrários à moral e aos bons costumes;
IV - incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo
antecedente.”
133
A respeito, importa frisar que a própria Declaração Universal, em seu artigo 26, já estabelecia que a instrução
deveria ser orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento e
do respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais.
65
Na prática, dispositivos legais como este, têm contribuído, sob alegação de
propósitos pedagógicos, com a cultura que aceita e tolera o uso da violência
“moderada” contra a criança e o adolescente, na medida em que se pune apenas o
uso imoderado da força física. Além disso, não há como serem determinados os
limites que distinguem a punição moderada da punição imoderada, o que,
supostamente tem propiciado o quadro de abusos e violência doméstica, citados na
pesquisa.
Diante disso, pode-se afirmar que a permissão do uso moderado de violência
contra crianças e adolescentes faz parte de uma cultura de violência, baseada em
três classes de fatores: ligados à infância, ligados à família e ligados à violência
propriamente dita. Especificamente no Brasil, em relação aos primeiros, persiste a
percepção da criança e adolescente como grupos menorizados, ou seja, grupos
inferiorizados da população, frente aos quais, explicita e legalmente o uso da
violência, é tolerado. Apesar de legal, a prática da violência moderada, não condiz
com o direito em si que todo indivíduo possui. Nesse sentido, a ONU, por meio do
Comitê dos Direitos da Criança, no parágrafo 17 de sua Discussão sobre violência
contra crianças na família e na escola, ressalta que a “ênfase deve ser na educação
e no apoio aos pais”.
134
Fundamentado no artigo 129, incisos I, III, IV e VI do Estatuto da Criança e do
Adolescente, ainda que, sob a alegação de propósitos educativos, os pais,
professores ou responsáveis, se aplicarem a prática, deverão ser encaminhados a:
programa oficial ou comunitário de proteção à família; tratamento psicológico ou
psiquiátrico; cursos ou programas de orientação; bem como a obrigação de
encaminhar a criança ou adolescente a tratamento especializado.
135
É relevante observar, no Direito Comparado, a tendência que há nos dias
atuais em confrontar e punir explicitamente o uso da violência contra a criança e o
adolescente, como aponta a Deputada Federal Maria do Rosário
136
, autora do
Projeto de Lei 2354/2003 apresentado à Câmara Federal:
134
Nações Unidas - Comitê dos Direitos da Criança, “Discussão sobre Violência contra Crianças dentro da
Família e nas Escolas”, CRC/C/111, 28 th Session, 28 de setembro de 2001.
135
BRASIL, República Federativa do. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei n.8069 de 13 de Julho de 1990.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L8069.htm>. Acesso em 25.05.2007
136
ROSÁRIO, Maria do. Projeto de Lei n.2354/2003. Disponível em: http://www.camara.gov.br/sileg/integras/
86335. pdf. Acesso em 25.05.2007.
66
“A título exemplificativo destacam-se: a experiência pioneira da
Suécia, que desde 1979 adotou a chamada "Anti-spanking law",
proibindo a punição corporal ou qualquer outro tratamento
humilhante em face de crianças; a decisão da Comissão Européia
de Direitos Humanos de que a punição corporal de crianças
constitui violação aos direitos humanos; a lei da Família e da
Juventude (Family Law and the Youth and Welfare Act), aprovada
na Áustria em 1989, com o fim de evitar que fosse a punição
corporal usada como instrumento de educação de crianças; a lei
sobre Custódia e Cuidados dos Pais (Parenthal Custody and Care
Act), aprovada na Dinamarca em 1997, a lei de pais e filhos
(Parent and Child Act), adotada na Noruega em 1987; a lei da
proteção dos direitos da criança (Protection of the Rights of the
Child Law), adotada na Letônia em 1998; as alterações no artigo
1631 do Código Civil, aprovadas na Alemanha em 2000; a decisão
da Suprema Corte de Israel, de 2000, que sustentou ser
inadmissível a punição corporal de crianças, por seus pais ou
responsáveis; a lei adotada em Chipre em 2000 (Law which
provides for the prevention of Violence in the Family and
Protection of Victims), voltada à prevenção da violência no núcleo
familiar e da Islândia (2003). Além destas experiências,
acrescente-se que países como a Itália, Canadá, Reino Unido,
México e Nova Zelândia têm se orientado na mesma direção, no
sentido de prevenir e proibir o uso da punição corporal de
crianças, sob a alegação de propósitos educativos,
particularmente mediante relevantes precedentes judiciais e
reformas legislativas em curso. Cite-se, ainda, decisão proferida
pela Corte Européia de Direitos Humanos, em face do Reino
Unido, considerando ilegal a punição corporal de crianças.
Como fenômeno social, é possível observar, pelo apresentado neste capítulo,
que a prática da punição corporal tem subsistido às transformações históricas,
contrariando muitas vezes, até mesmo, a esfera jurídica. Tal constatação demonstra
sua força ideológica, pela qual se estabelece na cultura e se reproduz de geração
em geração por meio de instituições sociais como a Família, a Escola, a Igreja e o
Estado. Torna-se agora, necessário, caracterizar o relacionamento dos indivíduos
com as instituições e identificar os aspectos do processo social que estabelecem
e legitimam algumas formas de punição corporal como ação educativa.
67
CAPÍTULO II
O MOVIMENTO IDEOLÓGICO DE NATURALIZAÇÃO
DA PUNIÇÃO CORPORAL
“A perpetuação da barbárie na educação é mediada
essencialmente pelo princípio da autoridade, que se encontra
nesta cultura, ela própria”
Theodor Adorno
A compreensão da punição corporal como prática social ao longo da história,
exige uma prévia consideração de suas origens e dos elementos que permitiram a
sua existência através dos tempos. Desde que admitida a necessidade da
indagação sobre as origens desta prática, parece que a pesquisa há de se dirigir,
obviamente, às suas formas embrionárias, para daí acompanhar o seu processo de
formação e final aparecimento como instrumento de controle social perfeitamente
definível. É razoável observar que, a presença da punição corporal em todos os
povos que deram origem ou que de alguma maneira contribuíram para a constituição
do Ocidente, induz à sua caracterização como um elemento universal da cultura, à
semelhança de outros como a organização familiar, a linguagem, a religião etc –
todos elaborados por uma pluralidade surpreendente de fatores.
Se há a necessidade de se encontrar uma explicação empírica para a gênese
da prática da punição corporal, há de se observar, em primeiro lugar, a natureza
social do homem impelindo-o à convivência para segurança e certeza do seu viver.
No homem, a experiência se contextualiza e o conjunto destas experiências –
indubitavelmente vividas socialmente, acabam por institucionalizar-se. Nesse
sentido, pode-se pensar que a diferença básica entre as sociedades animais e
humanas é que, estas, têm as suas condutas institucionalizadas.
Para a abordagem deste capítulo, a investigação tem como marco conceitual
os pressupostos da Teoria Crítica da Sociedade ou Escola de Frankfurt, a qual
situada no contexto político do colapso da social-democracia alemã da década de 50
se revela como um contraponto ao que se convencionou chamar de Teoria
68
Tradicional, que tem suas raízes no pensamento platônico e se caracteriza pela pura
contemplação desinteressada com a realidade, operando a partir de princípios
gerais. Os principais pensadores da Teoria Crítica, a saber: Max Horkheimer,
Theodor Adorno, Herbert Marcuse e Walter Benjamin buscaram construir um saber
racional que denunciasse o irracional que existe na História e na Sociedade.
Os também denominados “frankfurtianos” partem de pressupostos marxistas
para tratar de assuntos relacionados às estruturas da sociedade moderna capitalista,
postulando que a razão fora reduzida a uma razão prática e utilitária, ou seja, uma
razão instrumental, a qual nasce quando o sujeito do conhecimento toma a decisão
de que conhecer é dominar e controlar a natureza e os seres humanos, e para isso,
se utiliza das instituições mediadoras.
Como aponta Azevedo
137
, a Teoria Crítica é uma teoria de relações sociais,
uma teoria social e humana, que visa um processo em que o pólo oprimido encontre
seu caminho para libertação de seu estado inicial de dependência e ilusão,
revelando a eles a propriedade genética de sua falsa consciência que somente
poderia ter sido desenvolvida sob condições de coerção.
Por meio da reconstrução histórica realizada como base desta pesquisa, é
possível verificar que cada grupo humano – ou sociedade – plasma as suas próprias
instituições com as quais assegura a continuidade e o equilíbrio social necessário,
expressando o patrimônio comum de experiências valorizadas positivamente –
mesmo que do ponto de vista ideológico da minoria dominante. Mesmo as
sociedades mais antigas sintetizam as condições sine qua non de sobrevivência.
Com isso, respeitá-las, torna-se de certo modo, assegurar posição no cosmos, e,
infringí-las, arrastar o grupo à própria destruição.
A História evidencia que o agir em sentido antagônico ao institucionalizado
provoca essa reprovação enérgica, que por sua vez, racionaliza-se. Esta
racionalização passa por um processo de adaptação por meio das instituições
representativas erigidas de acordo com os valores de cada grupo, modelando a
cultura e, conseqüentemente, consagrando-a. Em meio a esta realidade expressa,
são desenvolvidos e aplicados os instrumentos que servem ao controle das relações
sociais em movimento espaço-temporal.
137
AZEVEDO, Maria Amélia. Notas para uma teoria crítica da violência familiar contra crianças e adolescentes.
In: Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento. 4 ed. Cortez, 2005, p.27-28.
69
Todo esse processo tem como ponto de partida a existência do indivíduo e o
fato de que, a vida humana é, essencialmente, e não por mera casualidade,
convivência, ou seja, o homem, na base de sua própria existência:
“Antes mesmo de ser indivíduo é um dos semelhantes, relaciona-
se com os outros antes de se referir explicitamente ao eu; é um
momento das relações em que vive, antes de poder chegar
finalmente à autodeterminação.”
138
Mesmo quem quisesse, com todos os esforços, chegar ao seu significado
único e absoluto sem prescindir o seu caráter funcional nas relações sociais, não
conseguiria chegar à sua pureza, à sua singularidade, mas a uma referência
indefinível, apenas como um princípio abstrato da unidade de sociedade, pois:
“Inclusivamente, a pessoa é, como entidade biográfica, uma
categoria social. Ela só se define em sua correlação vital com
outras pessoas, o que constitui, precisamente o seu caráter social.
A sua vida só adquire sentido nessa correlação, em condições
sociais específicas, e só em relação ao contexto é que a máscara
social do personagem também é indivíduo.”
139
A própria definição de homem expressa no conceito de pessoa remonta ao
termo romano persona, que designava a máscara do teatro clássico. Adorno e
Horkheimer
140
lembram que, em Cícero, a palavra fora sublimada para designar a
máscara do personagem com que alguém se apresenta diante de outros, o papel
que alguém representa nas relações sociais. Com isso, a própria constituição do
indivíduo como pessoa implica que:
“Antes de ter consciência de si, o homem deve sempre
representar determinados papéis como semelhante de outros. Em
conseqüência desses papéis e em relação com os seus
138
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Indivíduo. Temas Básicos da Sociologia. 2 ed. São Paulo:
Cultrix, 1978, p.47.
139
Ibid., mesma página.
140
Ibid., p.48.
70
semelhantes, ele é o que é: filho de uma mãe, aluno de um
professor, membro de uma tribo, praticante de uma profissão.”
Poder-se-ia até argumentar o fato de que cada homem constitui um ser
biológico individual, pois vem ao mundo como indivíduo, e que, diante disso, a sua
natureza social é derivada ou secundária. Entretanto, este fato não é
desconsiderado, mas, como destacam Adorno e Horkheimer:
141
“O conceito de individuação biológica é tão abstrato e
indeterminado que não pode expressar, de maneira completa e
apropriada, o que os indivíduos efetivamente são. Pode-se por
aqui de lado o fato de que a mera existência natural do indivíduo
já está mediatizada pelo gênero humano e, por conseguinte pela
sociedade.”
2.1. SOBRE UM DOS CAMINHOS PELO QUAL DOMINAÇÃO SE ESTABELECE
NAS INSTITUIÇÕES
Estabelecido o fato de que o indivíduo é um momento das relações sociais
em que vive, antes de poder chegar, finalmente à sua autodeterminação, põe-se à
vista dois elementos que, ao longo do percurso de sua construção histórica se farão
sempre presentes: o mundo, do qual recebe as condições materiais para sua
existência e convivência social; e o sobrenatural, de onde busca encontrar a
essência de sua própria vida.
As relações sociais, por sua vez, constituem o cenário no qual outros
elementos, os que sustentam a existência da prática punição corporal e processam
sua naturalização são encontrados: a ideologia, que, enquanto conjunto de idéias,
pensamentos, doutrinas e visões de mundo automatiza as ações sociais e se
encarrega de reproduzir as relações de dominação; o princípio da autoridade, pelo
qual a base dos papéis nas relações sociais é estruturada; e a cultura, que fornece o
vínculo necessário entre os indivíduos que tais papéis sejam atribuídos
ideologicamente.
141
Ibid., p.53.
71
Em relação à ideologia é importante considerar que existem vários sentidos
para a palavra. Mas é, sobretudo, no conceito de ideologia postulado por Karl Marx
que a pesquisa se desenvolve. De acordo com a concepção marxista, (fundamento
filosófico que é base da teoria escolhida como aporte da pesquisa), a ideologia
assume um sentido negativo, como instrumento de dominação. Gramsci, filósofo
marxista e cientista político italiano, diferenciou a ideologia historicamente orgânica,
(que são necessárias para organizar as massas e formar o terreno sobre o qual os
homens se movimentam, tomam consciência de sua posição na sociedade e lutam
por elas) das ideologias arbitrárias. Para Gramsci
142
, pode-se compreender a
ideologia como:
“...o significado mais alto de uma concepção de mundo que se
manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade
econômica, em todas as manifestações de vida individuais e
coletivas.”
Neste sentido, a ideologia tem por função atuar como fundamento da
estrutura social, colaborando para estabelecer o consenso dentro do grupo,
conferindo hegemonia à determinada classe social, que acabará por ser a
dominante. Sob esta ótica marxista, a ideologia possui um poder influenciador
marcante nas relações de poder, mascarando os privilégios que plasmam o pensar e
o agir dos indivíduos e sendo de tal forma insidiosa que, aqueles que a exercem não
percebem o seu caráter ilusório.
Com base no mesmo sentido específico do conceito, a filósofa Marilena
Chauí
143
entende que:
“A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de
representações (idéias e valores) e de normas ou regras (de
conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o
que devem pensar e como devem valorizar o que devem sentir e
como devem sentir o que devem fazer e como devem fazer. Ela é,
portanto, um corpo explicativo (representações) e prático (normas,
regras, preceitos) de caráter prescritivo, normativo, regulador, cuja
função é dar aos membros de uma sociedade dividida em classes
142
GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da História. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p.16.
143
CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 2001, p.113.
72
uma explicação racional para as diferenças sociais, políticas e
culturais, sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da
sociedade em classes, a partir das divisões na esfera de
produção. Pelo contrário, a função da ideologia é a de apagar as
diferenças, como as de classes, e de fornecer aos membros da
sociedade um sentimento de identidade social, encontrando certos
referenciais identificadores de todos e para todos...”
Nesse sentido, a ideologia se caracteriza pela naturalização de situações que,
na verdade, são produtos da ação humana, portanto, histórico-sociais e não
naturais. Seu caráter alienante faz com que também os que se beneficiam com
privilégios de classe, não enxerguem as práticas com parte de uma ação ideológica,
mas aceitem como natural sua dominação e considerem valores específicos de uma
cultura ou de uma classe, como sendo universais.
A partir daí, o indivíduo é instaurado em um processo de socialização que
envolve a mediação das instituições sociais pelas quais exercerá papéis na vida
social. Quatro dessas instituições foram destacadas nesta investigação: o Estado, a
Escola, a Igreja e a Família. Os critérios para a escolha destas instituições levam em
conta a sua relação direta com o objeto da pesquisa, o processo de naturalização da
punição corporal.
Dentro de cada instituição, dois aspectos merecem destaque. O primeiro
refere-se aos sujeitos que exercem papéis que personificam o princípio da
autoridade dentro das relações sociais e que conseqüentemente autorizam e/ou
aplicam a punição corporal. O segundo relaciona-se às máscaras ideológicas
144
pelas quais a prática se descaracteriza como ato de violência e se reveste da
“legitimidade” necessária para que seja autorizada socialmente.
As máscaras ideológicas das quais a punição corporal se reveste, trarão
consigo as características específicas de cada instituição dentro da qual é aplicada.
Será gradualmente refinada à medida que ocorrem as transformações sociais no
espaço e no tempo - são por essas máscaras que a prática da punição corporal
144
O termo máscara foi escolhido em meio a tantas outras alegorias (véu, cortina etc) utilizadas por filósofos,
sociólogos e psicólogos tendo por critério a relação das propriedades concretas do objeto com o conceito em
discussão. A máscara, diferentemente da cortina, que apenas esconde, e do véu que dificulta a visão, ao
mesmo tempo em que omite a verdadeira aparência, oferece uma imagem ao expectador que pode ser
apresentada conforme as condições que o momento exige. Com a máscara, cria-se a possibilidade de se
gerar uma falsa identificação do sujeito alienado com a estrutura alienante, o que facilita todo o processo
ideológico de dominação.
73
sobrevive até os dias atuais na cultura ocidental e está tão presente na realidade da
família brasileira.
Toda esta estrutura organizada permite o desenvolvimento do processo de
dominação no percurso da história que tem como base a lógica do capital e que no
ato da inserção do indivíduo nas relações sociais, faz com que estas correspondam
“ao motor que movimenta a evolução individual num processo permanente de
construção e reconstrução”.
145
Pelas diversas concepções que surgiram dentro da filosofia histórica, e em
meio a este processo de construção e reconstrução, uma característica pode ser
observada: as grandes linhas pelas quais o presente social está ligado às formações
mais antigas e aos períodos mais isolados do desenvolvimento social imprimem,
cada um por meio de uma forma singular, sua marca nos universos que estruturam a
vida social (economia, política, direito, arte, religião, filosofia). Sobre esta
característica, Horkheimer
146
observa que:
“Todas as culturas contêm ao mesmo tempo normalidades que
funcionam em sentidos opostos umas às outras. De um lado,
ocorrências que se repetem de forma semelhante como o
processo mecânico do trabalho, os processos fisiológicos de
consumo e propagação, o procedimento legal diário e o aparelho
social de circulação. De outro lado, no entanto, eles são regidos
por tendências que alteram permanentemente, apesar daquela
repetição, tanto a posição das classes sociais entre si quanto as
relações entre todas as esferas de vida, e finalmente, levam ao
declínio ou à dominação das culturas em questão.”
Essas normalidades proporcionam a estabilidade necessária para a análise
dos instrumentos das transformações culturais e dos elementos que participam
como protagonistas e coadjuvantes dos momentos de ascensão e queda de classes,
grupos e sociedades. Neste sentido, pode-se afirmar que toda cultura é, assim:
“...incluída na dinâmica histórica; suas esferas, portanto os
hábitos, costumes, arte, religião e filosofia, em seu
145
ROGGERO, Rosemary. A vida simulada no Capitalismo: percurso metodológico da pesquisa. s/e. 2007, p.1.
146
HORKHEIMER, Max. Teoria Crítica: uma documentação. s/e. São Paulo: Perspectiva, USP, 1990, p.179.
74
entrelaçamento, sempre constituem fatores dinâmicos na
conservação ou ruptura de uma determinada estrutura social.”
147
Nesta dinâmica, processos complexos e simultâneos acabam por ocasionar
momentos que, por vezes, consolidam a continuidade da estrutura vigente e por
outras desencadeiam algumas rupturas. Nesse sentido, é possível apreender que o
conceito de sociedade, encarado como relação entre os homens, no quadro da
conservação da vida total e, por conseguinte, mais como “fazer do que como “ser”,
é essencialmente dinâmico
148
. Com efeito, se o olhar do investigador não estiver
atento aos detalhes deste movimento de continuidades e rupturas, observando a
dinâmica das relações sociais e não somente os sujeitos que a compõem, além de
buscar minuciosamente a interpretação dos valores subjacentes a essas relações,
terá grande chance de incorrer no erro de creditar ingenuamente a alguns
fenômenos um momento de ruptura histórica, sem se dar conta de que as aparentes
transformações relacionadas a este, ocorrem apenas na esfera simbólica e não na
estrutura real de valores.
149
A punição corporal, sob a máscara que for (vingança, castigo, pena,
penitência, sanção, correção) tem sido aplicada em muitos processos de mediação,
autorizada por quase todas as instituições sociais e perpetuada ao longo de toda a
história da civilização ocidental. Sobrevive à dinâmica do percurso histórico por meio
do seu caráter utilitário e pelo indiscutível e competente refinamento ideológico, o
que será chamado aqui de processo de naturalização.
As instituições sociais, em meio a este processo, se sobrepõem umas às
outras, com isso, estabelecem-se novos modelos nas relações e criam-se novos
personagens, entretanto as relações sociais, ainda assim, se sustentam em uma
ideologia de dominação, a saber, uma dominação cada vez mais refinada, impessoal
e universal. Neste sentido, a punição corporal, mesmo sendo um ato de violência,
tem se mantido, como foi possível observar no capítulo I, como instrumento de
147
Ibid., p.181.
148
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Indivíduo. Temas Básicos da Sociologia. 2 ed. São Paulo:
Cultrix, 1978, p.32.
149
Este fato pode ser observado em muitos momentos históricos. Um bom exemplo para ilustrar o caso é o
próprio Artigo 1.638 do Código Civil Brasileiro citado no capítulo I, o qual, quando apresenta em seu
conteúdo a penalidade da perda do poder familiar do pai que castigar imoderadamente o filho, ao mesmo
tempo, acaba por diretamente autorizar o castigo “moderado” legalizando-o. O Artigo poderia facilmente ser
interpretado como uma ferramenta de inibição à prática, mas o valor implícito do seu conteúdo denuncia a
presença da ideologia de dominação.
75
controle nos processos de socialização, mascaradas sob as mais diversas formas,
assim como convincentemente justificadas.
Tais formas de socialização, sobretudo em um Estado organizado e
controlado, iniciavam-se com o refletir sobre a vida associada a algo substancial e
presente. Sobre este processo, Adorno e Horkheimer
150
evidenciam que a reflexão
sobre o caráter da sociedade resolve-se, quase sem problemas em um “exame das
suas instituições coisificadas”, as quais atuam como mediadoras das relações
funcionais entre os homens inseridos dentro de cada cultura.
A análise da história da cultura, os conhecimentos e aptidões humanas e o
aparelho material de produção de cada uma delas foram constituídos de tal maneira
que o processo social da vida podia desenvolver-se apenas diante de uma divisão
de trabalho, e este, em sua essência, apenas com o objetivo de suprir necessidades
vitais. Contudo, no rumo em que as formas de convívio humano e as estruturas
sociais se desenvolveram, produziu-se uma situação em que inúmeros indivíduos,
de acordo com a posição que tinham nesta totalidade, pagavam este
desenvolvimento, com uma miséria sem sentido, na maioria das vezes com
violência, e, em muitos casos, até mesmo com a própria morte.
151
É neste movimento dialético que o homem desenvolve sua própria base de
existência. E se por ela, apenas por ela, o homem se autodetermina, em última
análise, se constitui como ser nas suas relações com os outros antes de se
relacionar interiormente com a sua individualidade. O seu eu emerge dos momentos
das relações que vive. Nesse sentido, o homem, como ser social implica uma
consciência de si mesmo na esfera das condições sociais em que vive, ou seja,
sempre é, o que na verdade representa ser, como semelhante de outros. Sempre o
é pelo papel que representa no meio das relações sociais.
152
Esta integração entre indivíduo e sociedade também agrega o envolvimento
com a natureza – como meio de produção, ou seja, ditada como necessidade
econômica
153
- os quais, juntos, determinam este caráter dinâmico e variável dos
papéis que cada um vai adotando nas relações e que também demonstra um outro
fator relevante que se constitui como premissa desta análise: o indivíduo, mesmo
150
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER. Indivíduo. op.cit, p.26.
151
HORKHEIMER, Max. Teoria Crítica: uma documentação. s/e. São Paulo: Perspectiva, USP, 1990, p.181.
152
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Indivíduo. op.cit, p.47.
153
HORKHEIMER, Max. op. cit., p.178.
76
que consistente em sua singularidade sempre estará socialmente mediado
154
. Desta
mediação social em pleno movimento histórico, Adorno e Horkheimer
155
observam
que os momentos de conjunção e separação do homem em reprodução e controle
da natureza interna e externa, promanam, em sua própria vida, conflitos e formas de
dominação, das quais:
“...uns dependem dos outros sem exceção; na qual o todo só pode
subsistir em virtude das funções assumidas pelos co-participantes,
a cada um dos quais se atribui, em princípio, uma tarefa funcional;
e onde todos os indivíduos, por seu turno, estão condicionados,
em grande parte, pela sua participação no contexto geral.”
Neste contexto, o próprio conceito de sociedade tem seus alicerces nas
relações sociais entre os elementos que a constituem e nos acordos subjacentes a
essas relações, do que propriamente, nos elementos que a formam e suas
descrições comuns
156
. Nestas relações, o processo pelo qual o indivíduo é
socializado, começou a se manifestar, associado a algo que era substancial e
presente, incontroverso e sem contrastes, ou seja, resumiu-se à integração do
indivíduo em seu papel dentro das instituições coisificadas: “só existe constituição
social na medida em que a convivência entre os homens é mediada, objetivada e
‘institucionalizada’”
.
157
As formas do processo de constituição de sociedade - ou socialização -
produzem o que Adorno e Horkheimer
158
denominam de cortina da mistificação
societária, a qual se inicia com base também na divisão do trabalho para satisfação
das necessidades materiais, mas que se transforma rapidamente na medida em que
ocorrem avanços da civilização em decorrência do aumento quantitativo da
população e mudanças qualitativas da estrutura social.
159
Estes avanços, o crescente domínio da natureza e a crescente produtividade
do trabalho viriam a desenvolver e suprir as necessidades humanas somente como
um subproduto; a riqueza e os conhecimentos culturais crescentes forneceriam o
154
ADORNO T. W.; HORKHEIMER, Max. op.cit., p.49.
155
Idem, Sociedade. Temas Básicos da Sociologia. 2 ed. São Paulo: Cultrix, 1978, p.25.
156
Ibid., p.26.
157
Ibid., p.32.
158
Ibid., p.26.
159
Ibid., p.28.
77
material de destruição progressiva e a necessidade de uma forma de dominação
cada vez mais aprimorada. Esta dinâmica seria denominada por Marcuse
160
de
progresso da dominação, em que a hierarquia de funções e relações adquire a
forma de razão objetiva, fazendo com que a lei e a ordem identifiquem-se com a
própria vida em sociedade. Este mesmo progresso traria consigo todas as condições
para que os instrumentos de controle também acompanhassem o desenvolvimento.
Com isso, pode-se pensar que a aplicação da punição corporal que antes advinha
do sentimento de vingança passa por um processo de racionalização e é também
institucionalizada, recebendo a “legitimação” necessária para sua autorização legal e
aceitação social.
Para Horkheimer
161
, embora tantas teorias e abordagens idealistas e
racionalistas verifiquem e tentem explicar o funcionamento da sociedade pela
atuação da influência da natureza humana, da consciência, razão ou mesmo das
idéias morais e religiosas, não se dão conta da própria ligação das idéias mais
elevadas com relação aos poderes na sociedade, visto que tentam converter a
natureza humana, a razão e as idéias religiosas em realidades firmes e
independentes. Neste sentido a natureza social, na medida em que se integra numa
ordem estabelecida, mesmo que se justifique pragmática, moral ou religiosamente
em sua essência, origina-se de atos de coerção, os quais em larga escala
constituem apenas a interiorização ou complementação da violência física.
O papel da coerção, que caracteriza o começo e a evolução de todas as
formações sociais e políticas, consiste não somente nas punições de qualquer
indivíduo que saia da ordem, mas também na manutenção de sua posição social
162
.
É possível verificar que a aplicação das punições corporais passa a representar a
própria ideologia social de cada época e cultura, naturalizada em parte pelo próprio
processo de socialização, assim como também, de forma paradoxal, é combatida de
tempos em tempos, pela evocação dos instintos mais profundos da natureza
humana, nos quais se encontra o instinto de ser livre, ou, como assinala
Horkheimer:
163
160
MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. 4 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1969, p.90-91.
161
HORKHEIMER, Max. Ideologia. Teoria Crítica: uma documentação. s/e. São Paulo: Perspectiva, USP, 1990,
p.182.
162
Ibid., p.182-183.
163
Ibid., p.185.
78
“Devido à decadência econômica de um certo modo de produção,
as formas culturais de vida correspondentes já estão tão
relaxadas que o desespero da maior parte da sociedade se
transforma facilmente em revolta e precisa apenas da vontade
decidida de grupos progressistas para vencer a mera força das
armas.”
A punição corporal, como forma mais concreta de coerção, em sua origem,
era aplicada como vingança
164
, não por se considerar o malfeitor responsável de seu
ato, mas pela ira provocada por um prejuízo sofrido, expresso livremente contra
aquele que seria o causador desse prejuízo e sem critérios de proporcionalidade.
Inicialmente, a prática também esteve relacionada a questões concernentes à
emoção humana, a qual, muitas vezes, em detrimento de sua natureza irracional,
reduzia-se apenas na forma de sua expressão, desconectada em si, de sua real
finalidade
165
. Já sob uma perspectiva histórica, a punição corporal, esteve ligada
ainda a uma diversidade de outros motivos - tanto de ordem racional quanto
irracional - entre o viés do arbitrário e da reflexão; entre a vingança e a necessidade
de se defender; entre a educação e a religião.
A prática começa a ser racionalizada com fins de dominação e,
conseqüentemente institucionalizada pela lógica instaurada socialmente. Surge aí,
um poderoso instrumento de controle social que seria utilizado em todo o percurso
histórico da civilização ocidental, o que significou progressiva repressão e controle
cada vez mais absoluto dos instintos naturais do indivíduo em detrimento das
condições determinadas no progresso civilizatório.
166
Neste progresso, o princípio da autoridade surge como um fator dominante e
mais importante do que normalmente se admite. Sobretudo pelo refinamento das
formas autoritárias de governo contemporâneas, acaba por se apresentar como uma
realidade decisiva para análise das relações sociais. Em todas as formas de cultura
que se desenvolveram a partir das indiferenciadas comunidades antigas:
164
MENG, Heinrich. Coação e Liberdade na Educação. 2 ed. Lisboa: Moraes, 1977, p.15.
165
Ibid., p.10.
166
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Indivíduo. Temas Básicos da Sociologia. 2 ed. São Paulo:
Cultrix, 1978, p.133
79
“...ou poucas pessoas governam, como em situações
relativamente primitivas e simples, ou, como em situações
evoluídas de sociedade, grupos de pessoas governam o resto da
população, isto é, todas estas formas se caracterizam pela
dominação ou subordinação de classes.”
167
Apesar de existirem tantas diferenças entre povos e culturas separados por
condições geográficas ou em épocas distintas, é comum estes mesmos povos,
serem determinados, em seus aspectos essenciais, pela relação de dominação
específica de cada sociedade. Se cada indivíduo chega à sua autoconsciência a
partir da sua socialização, e, o seu eu, emerge das relações em que vive, então, isto
implica que:
“...impulsos e paixões, disposições de caráter e modos de reação
foram cunhados pela respectiva relação de poder na qual se
desenvolve o processo social da vida. Não só no espírito, nas
idéias, nos conceitos e julgamentos fundamentais, mas também
no íntimo do indivíduo, nas suas preferências e desejos se reflete
a classe na qual decorre seu destino externo.”
168
Para Horkheimer
169
é aparente que o processo social da vida implique na
formação de sujeitos sob o desenvolvimento de sentimentos de sujeição a uma
instância alheia, posto que todas as relações e formas de reação se achem sob o
signo da autoridade. Com efeito, o papel de uma relação de autoridade em seu teor
e época específicos, além dos níveis em que abrange cada indivíduo, exerce sua
influência sobre o significado psíquico da própria aceitação da autoridade. Este fator
é fundamental para que a dominação seja interiorizada em cada indivíduo de forma
a que aceitem, apesar de, quando em estado de sujeição, buscarem a emancipação,
as formas de controle impostas pelo próprio poder do sujeito com autoridade e
autorizadas pelos códigos e leis específicos de cada sociedade em épocas
determinadas.
Outro fator relevante a ser destacado, reside no fato de que as relações de
167
HORKHEIMER, Max. Teoria Crítica: uma documentação. s/e. São Paulo: Perspectiva, USP, 1990, p.192.
168
Ibid., p.192.
169
Ibid., p.194.
80
autoridade numa sociedade possuem, também, um caráter contraditório, a sujeição
do próprio interesse do subordinado semeada numa relação de dependência social
entre sujeitos mediante os papéis em que atuam. Esta relação de dependência é
gerada no momento que o indivíduo é iniciado na mais remota fase de sua
existência. As próprias condições de sua sobrevivência se tornaram autoritárias, pois
“o indivíduo entregue a si mesmo se via diante de uma força alheia à qual ele tinha
de conformar-se”
170
, o próprio processo que o insere socialmente lhe impõe
arbitrariarmente seus papéis preestabelecidos pela forma especial do processo de
contínua interação nas instituições sociais.
Uma sociedade específica em uma época específica, por influência das
condições reinantes, pelas forças da vida privada e pública e pelo exemplo de
pessoas que desempenham um papel no destino do indivíduo, constrói a relação
destes com a autoridade. Este desenvolvimento tem características, embora com
nuances próprias de uma época e cultura, de um processo civilizatório milenar em
que a relação do homem com o sobrenatural e a submissão à autoridade paterna
são dois princípios eternos de toda sociedade.
171
Estes dois elementos se
responsabilizam em iniciar todo esse complexo processo histórico-social. A
divindade constitui-se, como se verá adiante, como o elemento de onde emana todo
tipo de autoridade personificada nas instituições sociais.
Neste contexto, a relação dos indivíduos com o sobrenatural, demonstrava
não apenas um caráter de pura dependência, mas a representação divina fornece,
ao mesmo tempo, o quadro dos intermináveis desejos e sentimentos de vingança
172
.
A relação do indivíduo com o sobrenatural é, no seu aspecto funcional, a base para
o desenvolvimento do mecanismo interno que “legitima” a prática da punição
corporal: a divindade. À esta, pertence a capacidade de subordinar e adaptar
afirmativamente o indivíduo - consciente ou inconscientemente - a situações
existentes como tais nas esferas do sentir, do pensar e do agir; de viver na
dependência de ordens dadas e vontades alheias.
Em suma, a autoridade como uma marca da existência inteira. Fortalecer nos
próprios dominados o necessário domínio e a fé na autoridade é uma das funções
170
Ibid., p.199.
171
LÊ PLAY, F. apud HORKHEIMER, Max. Teoria Crítica: uma documentação. s/e. São Paulo: Perspectiva,
USP, 1990, p.224.
172
HORKHEIMER, Max. Teoria Crítica: uma documentação. s/e. São Paulo: Perspectiva, USP, 1990, p.184.
81
de todo mecanismo cultural de diversas épocas, cunhada não somente no espírito,
nas idéias e nos conceitos culturais, mas também no íntimo de cada indivíduo.
2.2. SOBRE AS INSTITUIÇÕES SOCIAIS COMO MEDIADORAS DA DOMINAÇÃO
2.2.1. O ESTADO
A relação do indivíduo com a autoridade foi se transformando mediante o
desenvolvimento da civilização. A partir daí, surge então a instituição que virá a se
sobrepor a todo indivíduo e aos grupos de indivíduos, o Estado. Para Hobbes
173
, o
Estado surge como uma restrição que o homem impõe sobre si mesmo, visto que
existe uma incompatibilidade estrutural entre o que ele chama de leis da natureza
(justiça, equidade, piedade etc.) e as paixões naturais dos homens, só sendo
possível o controle dessas paixões naturais por meio da coerção do Estado. Com
base nisso, apreende-se que o mesmo institui o mecanismo externo pelo qual se
organizam as relações e conseqüentemente se autoriza a prática da punição
corporal: a legislação:
“O fim último, causa final e desígnio dos homens (que amam
naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao
introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual os vemos
viver nos Estados, é o cuidado com sua própria conservação e
com uma vida mais satisfeita. Quer dizer, o desejo de sair daquela
mísera condição de guerra que é a conseqüência necessária das
paixões naturais dos homens, quando não há um poder visível
capaz de os manter em respeito, forçando-os, por medo do
castigo, ao cumprimento de seus pactos...”
Da compreensão do homem como um ser que deseja o poder sob uma forma
incessante de sobrevivência, Thomas Hobbes
174
infere a essência do Estado como
uma entidade que é constituída pela somatória de diversos poderes individuais dos
173
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Col. Os Pensadores.
São Paulo: Abril, 1979, p.103.
174
Ibid., p.76.
82
homens agrupados em sociedade. É neste momento que ocorre a passagem do que
Hobbes denomina de “estado de natureza” para o “estado de sociedade”, ou seja,
quando o individual é subjugado pelo coletivo. Para Hobbes, do ponto de vista
histórico, é um momento impossível de se determinar.
Apesar de alguns autores admitirem a existência de sociedades sem Estado,
e para isso, argumentam que onde há sociedade, há Direito; e que conjugando
ambos, o resultado necessariamente seria o Estado, pois o homem desde sempre
aparece associado a outros homens, plasmando institutos cujo ato de desrespeito é
punido de uma ou de outra forma. Em tais normas não se verificará verdadeiramente
o Direito e, por conseguinte, nem o Estado, apesar de ser inegável, como afirma
Antunes
175
, que nelas poderão ser encontrados os “embriões do Direito e do Estado”.
Nestes embriões encontra-se a necessidade de se exercer um controle sobre
a natureza humana, a qual, movida pelo desejo de poder incessante, inviabiliza a
vida em “estado de natureza”, forçando o ser humano a procurar saídas. A
institucionalização do Estado foi uma decisão racional a qual viabilizou a troca de
uma liberdade ilimitada, porém de pouco valor, do “estado de natureza”, por uma
liberdade controlada, mas que produz a sensação de pertença e segurança,
existente no “estado de sociedade”.
O Estado se constituiu essencialmente por ser possuidor de um poder muitas
vezes superior ao poder de qualquer homem individualmente. Esta é a base do
Estado e é esta uma condição sine qua non da sua existência:
“O maior dos poderes humanos é aquele que é composto pelos
poderes de vários homens, unidos por consentimento numa só
pessoa, natural ou civil, que tem o uso de todos os poderes na
dependência de sua vontade: é o caso do poder de um Estado.”
176
Cada indivíduo renuncia o seu direito à liberdade individual, da qual era
possuidor no estado de natureza, subjugando-se à autoridade, em busca da
175
ANTUNES, Ruy da Costa. Problemática da Pena. In: Dissertação apresentada à faculdade de Direito da
Universidade do Recife no Concurso para Professor Catedrático de Direito Penal. Recife: Universidade do
Recife, 1958. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/biblioteca_virtual/prob_da_pena/indice.asp.
Acesso em 05.04.07.
176
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Col. Os Pensadores.
São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1979, p.53
83
segurança existente no estado de sociedade. Assim, cabe ao Estado, por meio da
ameaça de punição àquele que descumprir o pacto mútuo entre os homens, a
manutenção do estado de sociedade, uma vez que é o detentor de um poder
supremo. Apesar disso, ressalta Antunes
177
:
“A heterogenização dos interesses, provocando a distorção entre
eu, tu, nós e ele, extingüindo a quase limitada solidariedade entre
os componentes do grupo, multiplicando e complicando as
instituições, afinal estruturando o Estado, tornou condenáveis
formas de comportamento até então toleradas: exigiu do poder
político, sobreposto ao familiar, que se fizesse coibir ações outrora
irrelevantes. Por isso mesmo, o fenômeno de transgressão das
normas, antes raro, foi se fazendo repetido (...) a atribuição de
punir desloca-se da coletividade para o poder político,
restringindo-se o âmbito das primitivas penalidades coletivas em
proveito de outras formas mais facilmente utilizáveis.”
A transformação dos modos de punir das sociedades da Antigüidade das
mais simples às mais sangrentas formas de repressão das primeiras sociedades
estatizadas, demandam das primeiras formas em que se deu a formação do Estado.
O poder político, provavelmente, despontou quando o grupo se fez numeroso e a
cultura material se adensou com a descoberta de novas técnicas e instrumentos
para a satisfação das novas necessidades postas para a vida “civilizada”. Dentre
eles, a propriedade individual apareceu com maior valor, conferindo certo status
social e prestígio aos indivíduos proprietários, fazendo com que, ao mesmo tempo,
desaparecesse a medida de homogeneidade características das sociedades sem
Estado.
Desse modo, alguns indivíduos acabaram por marcar ascendência sobre a
coletividade, tanto pela bravura de seus atos bélicos, quanto por ostentarem maiores
riquezas e propriedades. Como identifica Antunes
178
: “a chefia militar, anteriormente
ocasional, limiada aos períodos de guerra, fez-se permanente”. Esses chefes
acabavam por decidir sobre as relações internacionais como poder situado acima da
177
ANTUNES, Ruy da Costa. Problemática da Pena. In: Dissertação apresentada à faculdade de Direito da
Universidade do Recife no Concurso para Professor Catedrático de Direito Penal. Recife: Universidade do
Recife, 1958. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/biblioteca_virtual/prob_da_pena/indice.asp.
Acesso em 05.04.07.
178
Ibid., passim.
84
comunidade, fazendo com que a direção militar também se tornasse direção política.
A este também era agregado o poder de declarar um fato justo ou injusto,
estabelecendo deste modo, normas sociais:
“A observação de sociedades em vias de estatização tem
demonstrado que o chefe militar e político consolida
definitivamente a sua posição dirigente na comunidade ao se dizer
ou ser inculcado pelos sacerdotes, delegado da divindade ou até
mesmo um ente divino.”
179
Nesta etapa do desenvolvimento histórico da civilização, as classes também
se diferenciavam. As normas constituídas com vistas a garantir a sobrevivência, a
partir de então, não podem mais resultar exclusivamente dos costumes e interesses
individuais devido à heterogeneidade crescente, em conseqüência, nem tampouco
ser obra de um pensamento unânime da sociedade. A autoridade da lei necessitava,
portanto, repousar em um fundamento livre do acordo de vontades das classes
sociais, devendo emanar de uma força superior. Para que se tornassem
inquestionáveis, observa Antunes
180
:
“A divindade do governante ou o seu fabuloso prestígio junto à
divindade oferecia às leis o tom de autoridade indiscutível,
necessário para sujeitar totalmente os governados. As leis dir-se-
iam queridas pela divindade e, portanto, sagradas.”
Dois textos exemplificam essa relação de emanação da autoridade divina
para a autoridade terrena como fonte de legitimação do poder. O primeiro texto narra
a subida de Moisés ao Monte Sinai respondendo ao chamado divino para que
estabelecesse a ordem entre o povo hebreu. Neste texto, também pode ser
verificada a posição de Moisés como mediador direto da relação do povo com Jeová.
O próprio povo declara ser melhor dialogar com Moisés do que diretamente com
Deus, deixando clara, com isso, a posição hierárquica já estabelecida.
179
Ibid., passim.
180
Ibid., passim.
85
“E subiu Moisés a Deus, e o Senhor o chamou do monte, dizendo:
Assim falarás à casa de Jacó, e anunciarás aos filhos de Israel
(...) E veio Moisés, e chamou os anciãos do povo, e expôs diante
deles todas estas palavras, que o Senhor lhe tinha ordenado (...)
Então Moisés desceu do monte ao povo, e santificou o povo; e
lavaram os seus vestidos (...) E disse o Senhor a Moisés: Desce,
protesta ao povo que não trespasse o termo para ver o Senhor, a
fim de muitos deles não perecerem (...) Então disse Moisés ao
Senhor: O povo não poderá subir ao monte de Sinai, porque tu
nos tens protestado, dizendo: Marca termos ao monte, e santifica-
o... E disseram a Moisés: Fala tu conosco, e ouviremos: e não fale
Deus conosco, para que não morramos (...) E o povo estava em
pé, de longe. Moisés, porém, se chegou à escuridade, onde Deus
estava
.
181
O segundo texto relata o momento em que Jeová ordena a Moisés que
escreva o que ficou conhecido como “Os Dez Mandamentos”. A personificação da
autoridade divina estabelece a posição dos sujeitos na ordem social: o povo, em
posição de sujeição e, neste caso específico, a autoridade divina personificada no
homem, na figura de Moisés. A relação de dominação está determinada e a ordem
social para o povo hebreu na época estava estabelecida por meio do Decálogo
Sagrado:
“Disse mais o Senhor a Moisés: Escreve estas palavras; porque,
conforme ao teor destas palavras, tenho feito concerto contigo e
com Israel. E esteve ali, com o Senhor, quarenta dias e quarenta
noites; não comeu pão, nem bebeu água, e escreveu nas tábuas
as palavras do concerto, os dez mandamentos.”
182
Por meio de uma emanação sobrenatural, a constituição do primeiro tipo de
Estado estava formado, o Estado Teocrático, no qual as leis gozaram de notável
estabilidade e, com elas, os privilégios das classes dominantes. Desta formação de
Estado resultará as punições mais severas da História. Um ato praticado que fosse
considerado transgressão de qualquer esfera, seja ela política ou religiosa,
corporificava uma ofensa à divindade, ou porque a atingisse diretamente, ou porque
181
Êxodo 19.3-23; 20.18-21. op. cit., p.123-124.
182
Êxodo 34.27,28. op. cit., p.147
86
ofendesse aquele que a representasse, com efeito, como ressalta Antunes
183
: “a
pena, que nas sociedades sem Estado expressava a reprovação da coletividade,
manifestará, sob o Estado Teocrático, a reprovação dos deuses”.
A cólera divina demandava algo mais que a simples eliminação da vida do
culpado. A dor pela expectativa da morte deveria ser acompanhada de sofrimento
físico prolongado. Ademais, quase todas as religiões continham em suas práticas os
sacrifícios expiatórios, os quais, muitos deles, eram humanos. Até porque, com isso,
dois proventos eram alcançados: um de natureza política, ou seja, a intimidação dos
insubordinados à dominação oligárquica, oferecendo, ainda que aparentemente,
maior estabilidade ao poder público, e outro, de natureza mística, visando aplacar a
insaciável sede de sangue dos deuses.
As razões originadas na mística religiosa dos primeiros tempos iriam,
paulatinamente, sendo substituídas pelas razões de Estado. Com efeito, a
identificação do erro com o pecado que esteve presente durante milênios, arraigada
na consciência coletiva e fazendo com que a punição se apresentasse na forma de
castigo, passaria agora a assumir na esfera estatal – sem, contudo, substituir a
primeira, mas somando-se a mesma – a máscara ideológica da pena.
A flagelação e o açoitamento como punições também decorrem de
legislações teocráticas, contudo, com o triunfo de concepções religiosas contrárias
aos sacrifícios humanos, obrigou inexoravelmente, aqueles que detinham o poder, a
encontrar outra fundamentação para a crueldade das punições realizadas, fazendo-
se necessário justificar de outro modo a sua prática.
184
Atentando-se para estas penas nos fragmentos de leis, crônicas e códigos
das sociedades da Antigüidade, dois grandes grupos de formas de punir podem ser
destacados: o das penas capitais e o das penas expressivas ou penas poéticas,
estas, mais conhecidas como talião simbólico
185
. O talião simbólico significava,
comumente, a punição ao órgão relacionado diretamente com a prática em questão,
183
ANTUNES, Ruy da Costa. Problemática da Pena. In: Dissertação apresentada à faculdade de Direito da
Universidade do Recife no Concurso para Professor Catedrático de Direito Penal. Recife: Universidade do
Recife, 1958. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/biblioteca_virtual/prob_da_pena/indice.asp.
Acesso em 05.04.07.
184
Ibid., passim.
185
Esta forma de punição corporal é extremamente importante ser destacada, visto que, muitas punições hoje
aplicadas caracterizam-se como uma forma de talião simbólico. A exemplo disso temos os pais que se
utilizam de objetos como cintos, ferros, varinhas, correias, correntes, chinelos e até a própria mão –
independente do grau ou intensidade da aplicação - como instrumentos de punição corporal que é
caracterizada como uma pena poética ou talião simbólico.
87
e que se constituía de formas de torturas variadas à mutilação do respectivo órgão
do criminoso. O objetivo intimidativo era característico das penalidades do Estado
Teocrático.
186
2.2.2. A IGREJA
A defesa do Estado Teocrático e conseqüentemente as aplicações das
punições aos desordeiros passa, a partir de então, a ser apresentada como objetivo
glorioso das leis penais. A pena, como enfatiza Antunes
187
: “não passará de acerado
instrumento para a defesa das prerrogativas da oligarquia dominante”. Com todo
esse processo estabelecem-se também as condições para autorização legal da
prática da punição corporal como um instrumento legítimo de controle social.
Tais prerrogativas podem ser facilmente identificadas nas bases da
constituição da sociedade ocidental, a qual, apesar das condições econômico-
sociais em que foi forjada no espaço geográfico do Mediterrâneo, é a culminância da
mistura de elementos de três grandes vetores culturais: o Judaísmo, o Helenismo e
o Cristianismo. É o fruto resultante do confronto, diálogo, afirmação ou negação de
fundamentos que embasavam a concepção da existência humana de judeus,
romanos e gregos. Em contrapartida, com o advento do Cristianismo que acabou por
incorporar alguns princípios do movimento sócio-religioso do povo hebreu e outros
fundamentais do pensamento grego, foram traçadas algumas marcas expressivas de
suas feições na cultura ocidental.
É no Cristianismo difundido pelos apóstolos, dos quais, destaca-se o apóstolo
Paulo, a vários povos gentílicos que viviam aos redores do Mediterrâneo, que o
pensamento e as doutrinas são propagados. E é nesta nova cosmovisão que a
relação entre as figuras da divindade, do pai e do filho adquire maior consistência
por meio da riqueza de detalhes das bases em que as relações são estabelecidas.
Conforme descrito pelo apóstolo João, Deus envia seu Filho ao mundo:
“Porque Deus amou o mundo, de tal maneira, que deu o seu Filho unigênito, para
186
ANTUNES, Ruy da Costa. Problemática da Pena. In: Dissertação apresentada à faculdade de Direito da
Universidade do Recife no Concurso para Professor Catedrático de Direito Penal. Recife: Universidade do
Recife, 1958. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/biblioteca_virtual/prob_da_pena/indice.asp.
Acesso em 05.04.07.
187
Ibid., passim.
88
que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna”
188
. Neste texto é
possível observar que a palavra “Deus” passa a incorporar uma representação que
no Judaísmo não tinha, a característica paterna, pois tem um filho, que, vem ao
mundo e, mesmo em sua dor, se sujeita à vontade do Pai: “E disse: Aba, Pai, todas
as coisas te são possíveis; afasta de mim este cálice; não seja, porém, o que eu
quero, mas o que tu queres”
189
. O mesmo Deus que envia seu filho ao mundo pode
ser Pai de todos, e com isso firma as bases desta relação: “Porque, qualquer que
fizer a vontade do meu Pai, que está nos céus, este é meu irmão, e irmã e mãe”.
190
Esta relação entre a autoridade divina e a autoridade paterna também pode
ser identificada diretamente em um dos textos mais conhecidos no mundo cristão, a
oração do “Pai Nosso”. Nela, Deus é apresentado com características distintas do
Deus do Antigo Testamento bíblico. Na oração de Jesus, a característica paterna é
ressaltada. Deus é apresentado como “Pai da humanidade” e nesta nova condição
traz consigo também a responsabilidade relacionada ao seu papel – “o pão nosso de
cada dia nos dá hoje” - e a autoridade que o reveste – “seja feita a tua vontade,
assim na terra como no céu”:
“Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome;
venha o teu reino, seja feita a tua vontade, assim na terra como no
céu; o pão nosso de cada dia nos dá hoje; e perdoa as nossas
ofensas, assim como nós perdoamos aos nossos ofensores; e não
nos induzas à tentação; mas livra-nos do mal; porque teu é o
reino, e o poder, e a glória, para sempre. Amém.”
191
O princípio da autoridade divina, amalgamado às características paternas
herdadas deste momento histórico, virá a estabelecer raízes profundas nos primeiros
anos da Era Cristã, quando em meio à crise e à desorganização administrativa,
econômica e social provocadas pelas invasões germânicas e o desfalecimento do
Império Romano mantém o desenvolvimento ideológico da Igreja como um
instrumento importante de unificação da sociedade feudal então fragmentada pelos
eventos ocorridos.
188
João 3.16. op. cit., p.1792.
189
Marcos 14.36. op. cit., p.1710.
190
Mateus 12.50. op. cit., p.1637.
191
Mateus 6.9-13. op. cit., p.1626-1627.
89
Com a constituição da Igreja Católica, valendo-se de sua ascendente
influência religiosa e integrando-se ao sistema feudal por meio dos mosteiros, que
reproduzem a estrutura dos feudos, além de grande proprietária de terras, que a
autoridade divina agora é personificada em um líder que reunirá elementos
característicos paternos, religiosos e políticos: o sacerdote.
192
Esta autoridade político-eclesiática que era revestida de características
paternas, até pelo nome que lhe fora designado – Papa – foi determinante para que
a lógica de dominação percorresse todo o processo de transformação político-social
que passaria o ocidente. A autoridade que revestia a figura do sacerdote possuía
uma tripla legitimação: pela designação “Papa”, é invocada a autoridade que a figura
do Pai, desde os primórdios, mantinha nas relações sócias. Como representante da
autoridade única de Deus na Terra, o Papa trazia consigo todos os elementos de
autoridade da relação homem-divindade dentro das relações sociais. Por fim, com
base em documentação imperial, na qual Constantino teria doado todo o Ocidente à
Igreja - conhecida como Doação de Constantino – a autoridade papal se reveste do
último elemento necessário para que esta legitimação se concretizasse, a
legalização necessária fornecida pelo Estado e que acabava por determinar a
monarquia pontifical. Com isso a administração do Estado fica mais complexa,
misturando elementos que viriam, ainda mais, favorecer o processo de dominação.
Reis faziam papas,e papas faziam reis e a dominação se estendia.
Em decorrência da fusão das características em que a autoridade agora é
estabelecida, uma modificação importante ocorre durante este período. Algumas
características do Estado Teocrático são reconstruídas neste momento histórico. A
oposição à autoridade passa não ser apenas caracterizada como um crime contra o
Estado, mas reveste-se novamente com a característica de pecado. Com efeito, se a
autoridade é firmada na esfera sobrenatural, a oposição e os instrumentos de
controle também possuirão características sobrenaturais.
Novamente as punições corporais tornam-se instrumentos largamente usados
com um duplo fim: eliminar opositores - então denominados hereges - por meio de
192
É fato que a experiência da religião nasce também no campo da emoção do indivíduo que a vivencia, pois a
fé, como fenômeno essencial à ela, é gerada não de forma racional, mas a princípio emocionalmente, nada
tendo a ver com aspectos racionais. Este sentimento elementar de fé passou por várias fases antes que,
juntamente com outros aspectos relacionados a ela, tornasse pouco a pouco o que estabelece uma religião
institucionalizada, a Igreja - antes mesmo que ela se encontrasse com a ética e a razão. Da mesma maneira,
o castigo que existe, por origem, em situações da relação do humano com a divindade, ou seja, o castigo
sagrado está na base de todo o tipo castigo. OTTO, Rudolf. O Sagrado, 1985.
90
espetáculos de torturas minuciosamente elaborados, e, condicionar a vida dos
seguidores por meio de punições corporais que trariam como benefício espiritual a
absolvição dos pecados. A ideologia de dominação agora reveste a prática da
punição corporal com a máscara da penitência.
Entretanto, com o passar doa anos, a hegemonia da Igreja começa a ser
suplantada pela reestruturação social decorrida da expansão marítima, pelo
capitalismo comercial e pelo movimento da Reforma Protestante. Neste momento os
valores do Renascimento e da doutrina protestante-burguesa vem inaugurar um
novo cenário no processo de dominação social.
2.2.3. A ESCOLA
Com o prestígio secular abalado e seu poder balançado a Igreja se utiliza de
duas ferramentas na defesa de sua hegemonia, o Tribunal do Santo Ofício e a
fundação da Companhia de Jesus. É com esta última que a Igreja estabelecerá
outro caminho para a propagação de sua ideologia: a Escola.
O ensino jesuítico tinha como princípio ideológico a obediência total às
Escrituras e à Doutrina Católica. A mistura dos papéis de sacerdotes e mestres
confiavam aos jesuítas uma posição privilegiada. Como representantes da Igreja,
eram investidos de autoridade divina, pois traziam consigo a personificação desta, e,
como mestres, correspondiam aos interesses colonizadores, assim como, à
propagação da ideologia da fé católica.
Nesse novo cenário, como aponta Ariès
193
, a figura do mestre era responsável
pela alma dos alunos e mantinha uma autoridade sobre o estudante, o que
doravante envolvia poderes de punição. A escola passaria a ser a instituição que,
juntamente com a família se encarregaria de perpetuar a lógica de dominação por
meio do processo educacional.
Entretanto, paradoxalmente, é esta própria dinâmica que denuncia como a
lógica da dominação se utiliza das instituições e de mecanismos diversos, para
alcançar seus fins. Diferentemente da Família, na qual, em tempos remotos, a
punição corporal era vista como castigo a uma ofensa, na Escola, a punição corporal
193
ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. 2 ed. Rio de Janeiro: LTC, 1981, p.116.
91
além de se revestir de um caráter intimidativo, sofistica-se, na medida em que
incorpora um aspecto característico do meio em que será praticada, no caso,
incorpora um caráter “pedagógico”.
A própria organização administrativa dos colégios - jesuíticos ou não - fazia
com que os diretores e mestres se tornassem depositários de uma autoridade
superior que tinha como premissa desenvolver um sistema disciplinar hierarquizado,
rigoroso e conseqüentemente ideologizante. O algoz da Inquisição agora é visto,
como aponta Sousa
194
, como “Corretor”. A punição corporal dentro da Escola é
ideologicamente refinada. Sob uma ótica comprometida com a ideologia, a prática
passa a ser entendida como uma prática educativa. Reveste-se com a máscara da
correção. É então, autorizada no Estado, legitimada na Igreja e aplicada na Escola.
Chega a ser espantoso como a prática da punição corporal consegue
sobreviver a inúmeras transformações sociais, camuflando-se com requinte sob
formas específicas de cada época e absorvendo características próprias de cada
instituição. O caráter pedagógico dado a ela, talvez seja o aspecto mais utilizado
como justificativa para que a prática da punição corporal se perpetue mesmo com a
reestruturação social que viria ocorrer por meio da reorganização programática da
Família e pela necessidade de libertação das instâncias territoriais em relação à
autoridade de uma Igreja internacional e de um poder central que mediava as
relações sociais.
2.2.4. A FAMÍLIA
A mudança da estrutura ideológica do sistema feudal, a distinção entre o
público e o privado e a reorganização da Família com o fortalecimento do que
Marcuse
195
irá denominar de pater famílias, em que todas as autoridades terrenas e
todos os senhores se transformam em “pais”, serão elementos essenciais para o
delineamento uma nova forma e refinamento da prática da punição corporal. E para
isso outro importante fator ideologizante surge:
194
SOUSA, Jesus Maria. Os jesuítas e a Ratio Studiorium. Madeira: Universidade da Madeira, 2003, p.17.
195
MARCUSE, Herbert. Estudo sobre Autoridade e Família. Idéias sobre uma teoria crítica da sociedade. 2 ed.
Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p.79.
92
“A submissão do indivíduo à autoridade terrena aparece
exatamente como ‘natural’, evidentemente por si mesma, ‘eterna’,
na medida em que deve ser a submissão à autoridade do pai, que
tem em comum com ela sua origem na determinação divina.”
Como mediadora desta autoridade, a figura do pai personifica, no meio social,
a autoridade divina e mais o que dela provém: a renúncia à autonomia e a
subordinação da própria razão e vontade a conteúdos predeterminados
196
. Pois
numa sociedade em que o processo de dominação exige o disciplinamento por meio
do comportamento autoritário e o interesse no qual entra em questão a própria
subsistência, a religião se caracteriza como um excelente meio para se obter aquilo
que não se consegue por meio da coerção externa:
“Nessa transcendência a toda autoridade terrena colocada
simultaneamente com o reconhecimento de todo o sistema da
autoridade terrena se revela um dos momentos mais importantes
da doutrina cristã e burguesa da liberdade: sua tendência
autoritária.”
197
Convém expor os aspectos que justificam essa transcendência, pois para
Marcuse
198
, a autoridade existente numa figura terrena só pode ser fundamentada
por meio do recurso à autoridade geral: é preciso que exista autoridade, do
contrário, a ordem terrena desapareceria, pois o sistema de autoridade da ordem
existente assume a forma de uma relação isolada dos contextos sociais factuais,
torna-se algo eterno e fixado por Deus.
Essa relação de transcendência de autoridade pode ser observada pelas
características estabelecidas da família burguesa na própria realidade
contemporânea, a saber: o pai é o primeiro responsável pelos filhos; em regra, o pai
é o provedor do lar, quando os papéis das figuras se invertem, o fato não é bem
visto socialmente; o pai é o defensor da honra, é o que dá o nome, é o protetor
196
Ibid., p.57.
197
Ibid., p.59.
198
Ibid., p.66.
93
físico
199
. Com isso, nessa situação familiar:
“...que é decisiva para o desenvolvimento da criança, já é
antecipada em ampla escala a estrutura de autoridade da
realidade fora da família: as diferenças existentes nas condições
de vida que o indivíduo encontra no mundo têm de ser
simplesmente aceitas, ele deve fazer seu caminho sob essa
hipótese e não mexer nisso (...) o pai tem, direito moral à
submissão ao seu poder, não porque ele se mostre digno, mas ele
se mostra digno porque é o mais forte”.
200
Este fato aparentemente natural aparece ao mesmo tempo como uma relação
moral a respeitar que se origina na dupla raiz de sua força física juridicamente
secundada e de sua posição econômica, consistindo em um modelo eficiente para
desenvolver o comportamento especificamente autoritário na cultura ocidental, em
que, apesar de todo um discurso de ideal de liberdade, mantém em seu próprio
íntimo, a dependência real da posição que se ocupa nas relações sociais.
Situada em pleno fluxo da dinâmica social, como um resíduo do “estado
natural”, a Família, além de depender da realidade social, está socialmente mediada
desde sua estrutura mais íntima. Possui predominante importância entre os fatores
que influenciam de modo decisivo a formação psíquica da maior parte dos
indivíduos, tanto pelos mecanismos conscientes quanto pelos inconscientes. O que
ocorre no interior de suas relações:
“Plasma a criança desde a sua mais tenra idade e desempenha
um papel decisivo no despertar de suas faculdades. Assim como a
realidade se reflete no meio deste círculo, a criança que cresce
dentro dele sofre sua influência. A família cuida, como um dos
componentes educativos mais importantes, da reprodução dos
caracteres humanos tal como os exige a vida social, e lhes
empresta em grande parte a aptidão imprescindível para o
comportamento especificamente autoritário.”
201
199
ADORNO, Theodor. W.; HORKHEIMER, Max. Família. Temas Básicos da Sociologia. 2 ed. São Paulo:
Cultrix, 1978, p.133.
200
HORKHEIMER, Max. Teoria Crítica: uma documentação. s/e. São Paulo: Perspectiva, USP, 1990, p.215-216.
201
Ibid., p.214.
94
Esta atitude da família foi destacada especialmente na época da Reforma e
do Absolutismo como uma atitude consciente. O homem não devia mais se curvar
perante a Igreja, como acontecia no Catolicismo, como um meio de se conseguir a
salvação, mas devia aprender a se curvar, obedecer e trabalhar se transformando
crescentemente numa virtude que carrega, em si mesma, o seu valor. A sujeição ao
imperativo categórico do dever foi um objetivo consciente da família burguesa, em
que, quando ocorre um ato de desobediência ou teimosia na criança, aquela:
“deveria ser quebrada, e o desejo primitivo de um desenvolvimento livre de seus
impulsos e faculdades deve ser substituído pela obrigação interior de cumprir o
dever incondicionalmente”.
202
A família, tendo como base sua constituição natural, mantém esta estrutura
sistêmica de autoridade e liberdade, que causa uma identificação do indivíduo
dentro de uma ordem social na qual o primeiro sujeito detentor de autoridade em
relação a si, materializa-se, então, na figura do pai. Com efeito, esta ordem,
baseada na interpretação metafísica, traz consigo uma tendência muito significativa:
a formalização pela qual a ordem é decisiva para a lógica em que se organiza a
sociedade. Como assinala Horkheimer:
“Esta ordem social determinada por Deus para o mundo
pecaminoso significava, para Lutero, essencialmente um sistema
de ‘superpessoas’ e ‘subpessoas’. Sua formalização se revela em
que se separam a dignidade e o mérito, o ofício e a pessoa, sem
que essa contradição fornecesse um motivo para a crítica ou a
modificação dessa ordem. Nesse ponto, o sistema conjunto de
autoridades terrenas estava assegurado; era necessário obedecer
incondicionalmente a ele.”
203
Com isso a obediência se constitui como o mecanismo pelo qual a ordem se
mantém: “um sistema de subiectio e superioritas que parte da família e ao qual Deus
dá seu nome para defendê-la”.
204
Horkheimer destaca ainda, que esta ideologia
ganha, com Calvino, a sistematização necessária para sua materialização social,
quando este toma o pecado original, como sendo “desobediência”, ou seja, a ação
202
Ibid., p.215.
203
MARCUSE, Herbert. Estudo sobre Autoridade e Família. Idéias sobre uma teoria crítica da sociedade. 2 ed.
Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p.70.
204
Ibid., p.72.
95
pela qual definiu a condição do homem enquanto sujeito histórico. Nesse sentido,
qualquer ato de desobediência, mesmo que sem dolo, é passível de punição, seja
esta aplicada no vulto das emoções ou como justificados por muitos, como um
simples “ato de correção”.
A subordinação ao pai e a conquista de sua satisfação é o único caminho
para que não sejam provocadas pesadas recusas e conflitos - pensando o filho o
que quiser do pai. A idéia da autoridade é assim assimilada no universo da família
constituindo o pai, como o sujeito detentor da razão inquestionável, pois em seu
papel, representa o sucesso e a única possibilidade do filho manter no seu íntimo a
harmonia entre os ideais e a ação obediente. Quando esta razão é contrariada a
punição corporal entra como instrumento de controle para que a lógica do sistema se
mantenha no curso de seu processo. Como o poder econômico e educativo do pai é,
de certa maneira, indispensável para os filhos, porque na sua função educativa e
administrativa, mesmo que problemática, se impõe como uma necessidade social,
faz com que, já na infância, a submissão seja convertida em um hábito, que “une de
forma imperceptível a execução de uma função social qualificadora com o poder
sobre as pessoas”.
205
Toda esta estruturação ideológica de autoridade investida ao pai, gera as
condições necessárias para a prática do ato punitivo, semelhante ao indivíduo que é
julgado pelo Estado. Nos dois casos, apesar de universos exteriormente diferentes,
a lógica de sua aplicação é a mesma. Em ambos os casos, a punição atinge o
indivíduo que transgride algo proibido ou tido como inadequado. Ideologicamente,
independente da forma ou intensidade de sua aplicação, a punição corporal está
destinada a exercer:
“Uma ação psíquica indireta, antes de mais nada pelo medo, à
primeira reincidência, dum castigo análogo ou mais grave. O fim,
em vista, é o mesmo: a criança e o criminoso devem ser forçados
a dobrar-se às exigências da Sociedade.”
206
Como assinala Meng
207
, a autoridade suprema do pai – pater familias – não
205
HORKHEIMER, Max. Teoria Crítica: uma documentação. s/e. São Paulo: Perspectiva, USP, 1990, p.221.
206
MENG, Heinrich. Coação e Liberdade na Educação. 2 ed. Lisboa: Moraes, 1977, p.9.
207
Ibid., p.20.
96
permitia a distinção clara entre a punição no interior da família e a sanção penal do
Estado. Entretanto, no conjunto, o pai era mais livre do que um juiz, pois podia
castigar quanto queria e à sua maneira. Só pouco a pouco se puseram limites a essa
arbitrariedade. Mesmo após a Declaração dos Direitos Humanos e a sua influência
em muitos códigos e leis específicas repudiando o uso da punição corporal, tais
avanços têm sido incapazes de romper com a cultura que comporta a prática como
uma ação educativa no universo familiar.
Como um ato em si, a prática da punição corporal na família é revestida,
assim como na escola em tempos passados, como uma ação educativa, um ato de
correção. Ainda hoje, o pai considera mais a educação de seu filho como do seu
domínio próprio do que como uma tarefa que a Sociedade lhe confia.
Diante disso a prática da punição corporal é justificada sublinhando que a
ação é aplicada a seu “próprio” filho, ou seja, o caráter ideológico do princípio de
autoridade é tão intenso nesta estrutura cultural que cria no sujeito “pai” o
sentimento de “posse” do sujeito “filho”. Este sentimento carrega em si um caráter
ambivalente desde os primeiros princípios morais que são inculcados no interior da
família, o qual compreende: a idéia da disposição para punir, para ser punido e para
se punir a si próprio. Com isso, faz-se da punição, uma tendência ativa,
incorporando-a a personalidade do que pune e conseqüentemente repercutindo em
na formação do indivíduo que é punido.
208
A característica com que esta ordem social se apresenta impõe uma
reavaliação dos valores humanos desde a tenra infância. O “honrar” e o “temer”, em
lugar do amor, se torna elemento decisivo nas relações sociais. E no seio deste
ordenamento social determinado pelo sistema de troca, a família manteve-se como
instituição essencialmente feudal, que apesar de perpetuar-se como um elemento
irracional dentro da sociedade industrial, atua como uma primeira instância do
processo de adaptação à cultura ocidental, visto que somente a autoridade irracional
que foi adquirindo corpo na família pôde, no decorrer do tempo, causar uma
identificação com o conceito ideológico de autoridade, indispensável para reproduzir
as condições necessárias para o processo de dominação. Vistas essas condições,
Adorno e Horkheimer enfatizam que:
208
Ibid., p.21-23,53.
97
“Da sua relação com o pai, o filho apenas obtém a idéia abstrata
de um poder e de uma força arbitrários e incondicionados; e
procura então um pai mais forte, mais poderoso que o verdadeiro,
que já não satisfaz a antiga imagem, enfim, um super-homem e
super-pai como os que foram produzidos pela ideologias
autoritárias. O pai é, inclusive, substituído por poderes coletivos,
como a classe escolar, o ‘team’ esportivo, o clube e, por último, o
Estado. Os jovens manifestam a tendência a submeter-se a
qualquer autoridade, seja qual for o seu conteúdo, desde que ela
ofereça proteção, satisfação narcisista, vantagens materiais e a
possibilidade de descarregar sobre outros o sadismo, em que a
desorientação inconsciente e o desespero encontram uma
cobertura ”.
209
Indissoluvelmente ligada à sociedade, o destino da Família dependerá
necessariamente do processo social e não da sua própria essência como forma
social auto-suficiente. É ilusório pensar que se possam transformar as relações
sociais pela construção de uma família de pares iguais numa sociedade em que a
humanidade não é autônoma, mas escravizada por uma lógica perversa de
dominação, na qual os direitos humanos ainda não tenham sido realizados numa
medida mais concreta e decisiva do que a atual.
210
A partir da crítica, é possível perceber o conflito e a mudança como parte
necessária do processo de crescimento individual e de desenvolvimento social.
Azevedo
211
ressalta que a família patriarcal é conflitante em decorrência do fato de
nela se desenvolver um constante jogo de interesses entre sexos e gerações. Esse
confronto pode ser considerado como permanente, íntimo, privado e necessário.
“Como a família é patriarcal, a forma de solução dos conflitos é
por dominação oculta (violência simbólica, sutil) ou explicita
(violência física e manifesta). Na medida, porém que a família se
representa como ‘risonha e franca’, tende a representar-se
também como cordial e a negar, portanto, sua face violenta,
confinando-a a privacidade de suas paredes.”
209
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Família. Temas Básicos da Sociologia. 2 ed. São Paulo:
Cultrix, 1978, p.144.
210
Ibid., p.147.
211
AZEVEDO, Maria Amélia. Mulheres Espancadas: a Violência Denunciada. São Paulo, Cortez, 1985, p.59.
98
Identificados os elementos ideológicos que fundamentam a existência da
prática de punição corporal nas relações sociais, além dos aspectos do processo
social que estabelecem e legitimam algumas formas de punição corporal como ação
educativa; e, caracterizado o envolvimento dos indivíduos e instituições no
desenvolvimento desse tipo de prática, cabe agora, observar as formas como a
prática se apresenta, fazendo com que seja autorizada e aceita ao longo da História
e descaracterizada como ato de violência, para que se possa relacionar as possíveis
implicações que todo este processo pode trazer ao indivíduo como ser social.
99
CAPÍTULO III
A PUNIÇÃO NATURALIZADA:
UMA PRÁTICA A SERVIÇO DA DOMINAÇÃO
“A história joga luzes nas lembranças objetivadas em
documentos. A história oral busca excitar o lado esquecido, como
parte do todo explicativo dos fatos e emoções.”
José Carlos Sebe Bom Meihy
Seria ingênuo pensar poder analisar a prática da punição corporal, fenômeno
intimamente ligado à esfera da emoção, apenas pela reconstrução histórica
documental. Certamente, muito mais há a se desvendar, além da ocorrência dos
fatos, pois a dimensão simbólica de sua prática, além de camuflada pelas máscaras
ideológicas, produz efeitos que, apenas pelo relato das pessoas que a vivenciaram,
poderiam ser observados com maior propriedade.
Considerando a compreensão de Horkheimer
212
sobre o fato de que a pessoa
é, “como entidade biográfica, uma categoria social” e como tal se constitui nas
relações, pode-se pensar que, como metodologia de investigação empírica, a
narrativa que o próprio indivíduo faz de sua história, pode dar sentido e ajudar a
compreender certas situações sociais, em especial, no caso desta pesquisa, a
prática da punição corporal, observados, no presente, pelas próprias pessoas, que,
no passado, as vivenciaram.
Diante disso, é importante destacar que os mecanismos de análise da vida
pela história oral, podem permitir compreender melhor alguns aspectos do
desenvolvimento da consciência e, com isso, facilitar o entendimento de aspectos
subjetivos de fatos que, como destaca Bom Meihy
213
, “normalmente são filtrados por
racionalismos, objetividades e pseudoneutralidades esfriados pelas versões oficiais
ou dificultados pela lógica da documentação escrita que encerra um código diverso
do oral”.
212
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Indivíduo. Temas Básicos da Sociologia. 2 ed. São Paulo:
Cultrix, 1978, p.47.
213
BOM MEIHY, José Carlos Sebe. Manual de História Oral. 4 ed. Edições Loyola, 2002, p.30.
100
Neste sentido, como destaca Roggero
214
, a história oral possibilita apanhar,
simultânea e dialeticamente, “aspectos da individualidade e da identidade, que se
conflitam e se complementam na constituição do homem contemporâneo”,
despontando por meio das experiências familiares e institucionais, fatos notáveis e
acontecimentos corriqueiros que se revelam de forma abrangente. A História de Vida
abrange, além das diversas esferas de relações, o desenvolvimento histórico destas,
na medida em que, permite observar as contradições sociais e as formas de
alienação que se cristalizam culturalmente no indivíduo pela interação de inúmeros
elementos, dentre os quais, o princípio da autoridade.
Dialogando com Bosi, Roggero
215
observa que a memória possui uma
substância marcada pela força do tempo social. Deste modo, a construção histórica
do indivíduo é dividida em períodos que acabam por servir como rituais de
passagem de uma condição a outra, e, quando evocados da memória, vêm à tona
por meio de pontos de orientação que, dependendo do tipo de experiência, tornam-
se significativos à luz do momento presente, mesmo que reconstruídos em
categorias e não na forma pura da experiência original.
Por outro lado, em decorrência do teor nostálgico de quem evoca o passado,
a visão idealizada desse passado não corresponde a uma neutralidade narrativa,
mas é sempre uma reconstrução compromissada. É, na verdade, uma versão dos
fatos e não necessariamente os fatos em si. É uma captação das experiências de
pessoas que vivenciaram momentos de punições corporais e que estão dispostas a
falar sobre isso. A consistência reside exatamente no fato de que, quanto mais as
narrativas sejam contadas ao modo do narrador, mais relevante seria o seu
depoimento, em virtude da socialização da auto-descrição de um caminho, com suas
continuidades e rupturas, envolvendo aspectos relacionados a características
verbais, intelectuais e emocionais que, além de tudo, estão situadas, como aponta
Josso
216
, “na fronteira entre o individual e o coletivo”.
Posto que, a punição corporal necessariamente implique uma relação entre
indivíduos, aspectos como: os momentos das punições que são trazidos à
lembrança, a maneira como são narrados esses momentos e as circunstâncias em
214
ROGGERO, Rosemary, A Vida Simulada no Capitalismo - um estudo sobre formação e trabalho na
arquitetura. Tese de Doutoramento. Programa de Educação: História e Filosofia. São Paulo: Pontifícia
Universidade Católica, julho de 2001, p.90.
215
Ibid., 91.
216
JOSSO, Marie Christine. Experiências de vida e formação. 1 ed. São Paulo: Cortez, 2004, p.39.
101
que foram evocados tais momentos, estabelecem o que pode ser denominado de
consistência da narrativa. Esta, por sua vez, sempre nasce na memória e se projeta
no depoimento, que se materializa na representação verbal, a qual, como aponta
Bom Meihy
217
: “pode ser transformada em fonte escrita”.
Neste processo, quando se valoriza, nos aspectos da fala que organiza a
narrativa, o conjunto de conteúdos trazidos como fator decisivo para as análises,
questões feitas à memória despontam como caminhos indicativos aos exames
sociais. Com efeito, as histórias pessoais ganham relevo, pois expressam situações
comuns a grupos sociais ou determinadas, revelando elementos importantes para o
entendimento da sociedade mais ampla.
Por outro lado, a pesquisa que se utiliza da História de Vida como
metodologia, enfatiza também a subjetividade humana, fazendo com que se reflita
sobre o processo de socialização e o desenvolvimento do indivíduo nesse processo.
Diante disso, Josso
218
entende que a situação da construção da narrativa, exige uma
atividade psicossocial em vários níveis; entretanto, no plano da interioridade, implica
“deixar-se levar pelas associações livres para evocar as suas recordações-
referências e organizá-las numa coerência narrativa”, em torno do objeto da
pesquisa. São as recordações relatadas numa narrativa, a partir da associação livre,
que descrevem um “estado de coisas”, um complexo afetivo, uma idéia e também
uma situação ou um acontecimento. Essa narrativa apresenta o narrador ao outro
em formas socioculturais, em representações, conhecimentos e valorizações,
conduzindo em direção a uma reflexão, inevitavelmente, tridimensional -
antropológica, ontológica e axiológica.
219
Apesar disso, uma questão inevitável reclama reflexão: pode a História de
Vida, por meio de depoimentos individuais, refletir uma experiência coletiva? Para
Bom Meihy
220
, as limitações imputadas à história de vida como História Oral, também
se ajustam, em certa medida, aos documentos escritos ou iconográficos, que
guardam limitações idênticas. Assim, como uma única entrevista não seria capaz de
sintetizar as agruras coletivas da experiência dos imigrantes nordestinos para o Sul
do Brasil, na mesma ordem, sabe-se que nem um conjunto delas cobriria a vastidão
217
BOM MEIHY, José C. S. Manual de História Oral. 4 ed. Edições Loyola, 2002, p.53.
218
JOSSO, Marie Christine. Experiências de vida e formação. 1 ed. São Paulo: Cortez, 2004, p.39.
219
Ibid, p.40-41.
220
BOM MEIHY, José C. S. op. cit., p.69.
102
geral dos dramas contidos em um movimento tão característico e complexo. Com
isso, além da crítica ao método da representatividade, a História de Vida vindica um
respeito ético pela experiência narrada, garantindo-se assim, que uma de suas
atenções fundamentais é mostrar o grau de cuidado com o específico. Bom Meihy
221
entende que cada entrevista tem valor em si, e:
“Em vez de se deter nos pontos comuns que marcam uma
experiência coletiva, convém deixar claro que a história oral,
diferentemente das abordagens comuns à sociologia, se preocupa
com as versões individuais sobre cada fenômeno, e que ela
apenas se justifica em razão da soma de argumentos que
caracterizam a experiência em conjunto. Afirma-se pois que cada
depoimento para a história oral tem peso autônomo, ainda que se
explique socialmente.”
Como alternativa para se estudar aspectos sociais que requerem a presença
do passado no presente imediato das pessoas, a História Oral faz a sua razão de
ser. Implica uma percepção do passado como algo que tem continuidade hoje e cujo
processo histórico não está acabado. É isso que a marca como história viva. Neste
sentido, Bom Meihy
222
destaca que “a história oral não só oferece uma mudança do
conceito de história, mas mais do que isso, garante sentido social à vida de
depoentes e leitores, que passam a entender a seqüência histórica e se sentem
parte do contexto em que vivem”. Este é, sem dúvida, um aspecto de grande
relevância para se pensar na importância do método para a reflexão e crítica do
objeto.
Na pesquisa, foi utilizada uma variação da História Oral: a História de Vida
Temática. Esta é a que mais equipara o uso da documentação oral ao uso das
fontes escritas. Nesta variação, parte-se de um assunto específico e previamente
estabelecido – no caso, a punição corporal – e busca-se o olhar de quem vivenciou
ou presenciou o acontecimento. Diante disso, o critério estabelecido para a escolha
dos entrevistados foi exatamente a relação direta com o objeto da pesquisa, ou seja,
procuraram-se pessoas que teriam vivenciado situações em que receberam
punições corporais e que, além disso, se dispusessem a narrar os fatos relacionados
221
Ibid., p.70.
222
Ibid., p.15.
103
ao assunto. Aspectos como idade, sexo, religião, profissão ou quaisquer outros, não
foram levados em conta para determinação do perfil dos entrevistados. Mas, à
medida que o pesquisador buscava pessoas dispostas a dizer sobre sua
experiência, encontrou pessoas de idades muito próximas: todos são nascidos na
década de 1970. Dos quatro depoimentos colhidos, dois são de homens e dois são
de mulheres, cada qual de origens, profissões e contextos de vida distintos.
Visto que todos os entrevistados vivenciaram momentos de punição corporal,
buscou-se então, a identificação de todos os fatos, circunstâncias e sujeitos
envolvidos com o assunto, sem, contudo, emitir juízo de valor sobre o que fora
narrado, pois como observa Roggero
223
, neste processo, “não cabe julgamento sobre
a vida dos indivíduos, mas uma análise teórica, guiada por um princípio fundamental:
o ato de ouvir, qualificado tanto pela teoria que pontua a análise posterior, quanto
por um conhecimento da experiência narrada pelo depoente”.
Ainda com base em Roggero
224
, na pesquisa interessou captar a vida como
ela se apresenta, seja na sua face negada, seja naquela que vislumbra a
consciência, conforme cada indivíduo pudesse revelar. Nesse caso, as narrativas do
entrevistados não sugerem outro critério que não o da sua própria experiência e a
auto-reflexão sobre cada uma delas.
Como aponta Bom Meihy
225
, a História Oral permite preencher espaços
capazes de dar sentido a uma cultura explicativa dos atos sociais vistos pelas
pessoas que herdam a vida no presente. Falar sobre momentos de punição
vivenciados, requer uma reflexão que abrange com muita intensidade a esfera da
emoção. Reconstruir esses momentos traz consigo o desafio de rever fatos que
foram marcantes no passado e que também produzem sentidos na vida presente.
Requer, além da coragem de, em certa medida, revivê-los, a disposição de refletir
sobre si mesmo. A punição corporal, como fenômeno, se revela sempre como um
fato negativo, diretamente ligado a situações, que, independentemente de serem
racionalizadas posteriormente, à priori, remetem a circunstâncias nas quais estão
envolvidos elementos como coerção, submissão e dor. Diante disso, a História Oral,
amplia muito o registro histórico documental, visto que, abre um espaço importante a
223
ROGGERO, Rosemary, A Vida Simulada no Capitalismo - um estudo sobre formação e trabalho na
arquitetura. Tese de Doutoramento. Programa de Educação: História e Filosofia. São Paulo: Pontifícia
Universidade Católica, julho de 2001, p.103.
224
Ibid., p.103.
225
BOM MEIHY, José C. S. Manual de História Oral. 4 ed. Edições Loyola, 2002, p.20.
104
aspectos ocultos das manifestações coletivas: a experiência individual. É na
experiência individual que são revelados aspectos relacionados ao sentir. A História
Oral sempre abrigará uma visão redentora e passional do passado ou dos fatos e,
por isso, deixará transparecer, nas palavras dos narradores, o próprio
comportamento social, que nele se explica.
Além da interpretação, por conceitos da Teoria Crítica da Sociedade – como
autoridade, ideologia e cultura – os quais fazem pensar o movimento ideológico que
descaracteriza a punição corporal como um ato de violência, a narrativa da História
de Vida provoca a reflexão passando pela esfera do sentir, da experiência, da
significação individual. Traz consigo uma dimensão mais concreta da realidade
existente por traz da prática da punição corporal. Denuncia, inexoravelmente, a
violência camuflada pela lógica de dominação posta na cultura.
Para iniciar os entrevistados neste processo de auto-reflexão, a pergunta-
chave elaborada foi: O que representou a prática da punição corporal na sua
trajetória de vida e o que ela significa hoje para você? A partir desta pergunta são
apresentadas aqui, as narrativas de Rodolfo Garcia Velásquez, Johann Greiz,
Mariana Novaes e Carmen Regina Palucci
226
.
Foram realizados dois encontros com cada um dos entrevistados, visto que,
no primeiro, um fenômeno se revelou comum a todos os depoimentos: apesar de,
inicialmente, este pesquisador esclarecer o objeto da pesquisa e os elementos que o
envolviam, no caso, a relação com as principais instituições sociais – o Estado, a
Escola, a Igreja e a Família, os entrevistados (excetuando Rodolfo que narrou fatos
de sua vida escolar já na primeira entrevista), direcionaram seus depoimentos, de
forma espontânea, aos acontecimentos ocorridos dentro do ambiente familiar.
Respeitando esse fenômeno, que pode ser compreendido pelo grau de emoção que
envolve o processo, achou-se por bem retomar o contato com os sujeitos da
pesquisa, solicitando-lhes um segundo depoimento a fim de que fosse possível
verificar a possibilidade de levantar novos elementos para a análise. Todos se
dispuseram a realizar um segundo encontro, demonstrando grande interesse em que
a pesquisa fosse completada com sucesso. No segundo encontro, a pergunta-chave
foi retomada sendo direcionada às demais instituições sociais.
226
Os nomes utilizados são fictícios para que as identidades dos entrevistados fossem preservadas.
105
RODOLFO GARCIA VELÁSQUEZ
O professor Rodolfo Garcia Velásquez é chileno, casado, nascido em Los
Andes, em 19 de setembro de 1973. Sua entrevista foi concedida na noite de 8 de
maio de 2007, nas dependências do Instituto de Ensino Shaddai, na cidade de Mogi
das Cruzes. Tudo ocorreu com tranqüilidade, e, apesar do frio intenso, o ambiente
da entrevista foi aquecido por um clima de descontração, Rodolfo se mostrou muito
entusiasmado em prestar o seu depoimento.
Terça-feira, 15 de maio de 2007, 15h00.
Eu sou o quarto filho de uma família de cinco irmãos. A relação que nós
tínhamos era muito boa. Eu, às vezes, brigava com meu irmão mais novo, mas era
uma coisa sem importância, eram brincadeiras, brigas de crianças. Com meu irmão
mais velho, Jamil, eu sempre tive uma relação de mais confronto, pois sempre fui
elétrico, inquieto e ele, por outro lado, era um pouco mais reservado. Eu me lembro
que quando jogávamos bola, eu sempre queria ser do time dele, porque ele
carregava a bola. Eu sempre gostava de jogar perto do goleiro, na “boca do gol”, e
meu irmão brincava, jogava para lá e para cá e me passava a bola. Só que aí, eu
acabava jogando fora, não conseguia jogar no gol. Com isso eu ganhava alguns
pontapés. Doíam! Doíam... [risos]. Até agora eu me lembro disso!
Este irmão tinha problemas com meu pai, pois, pelas coisas erradas que nós
fazíamos, ele, na figura do filho mais velho, recebia as broncas e era
responsabilizado por tudo. Por exemplo, quando pegávamos um martelo do
quartinho que meu pai tinha para guardar ferramentas e usávamos durante a
semana, se não estivesse no lugar quando meu pai chegava em casa no final de
semana, meu pai logo o chamava e dizia: “Jamil, onde está o martelo?” Se ele
respondesse “eu não sei papai”, meu pai o repreendia: “seus irmãos são mais novos
e você não cuidou deles”. Aí eles acabavam brigando.
Eu me lembro também de um fato com outro irmão, o Lucas. Quando minha
mãe saia para fazer cursos, como por exemplo, de cabeleireira, nos deixava
sozinhos em casa. Minha casa era grande e, por isso, o Lucas nos deixava sentados
juntos na cozinha, sem fazer nada. Se alguém chorasse, recebia um soco na
106
cabeça! Ele foi o mais bruto que todos! Já o terceiro irmão, o Max, era mais “light”.
Com o caçula, Michel, eu sempre tinha “briguinhas”. Eu me lembro, uma vez,
quando eu tinha mais ou menos oito anos, fomos para a praia. Uma caravana...
[risos]. Imagine cinco irmãos, pai e mãe, todos juntos... [risos]. Chegou uma hora
que tivemos fome. Nossa mãe tinha levado um frango assado e quando chegamos à
metade do caminho da praia, em uma das pedras, meus pais decidiram parar para
almoçar, ali mesmo. Bem, eu tinha um costume de tirar comida da boca e dar para
um cachorrinho que tínhamos em casa. Eu sei que é um mau costume, não é
mesmo? Mas enfim, um dos cachorrinhos se chamava Male e a outra Mockie. A
Mockie sabia que quando eu comia, tirava da boca o que tivesse comendo, um
pãozinho ou um ossinho e dava para ela enquanto almoçava. Por isso, meu pai
sempre brigava comigo.
Mas, voltando à praia... Sentamos nas pedras para comer e meu pai, à minha
direita, e, meu irmão mais novo, o Michel, à minha esquerda. Enquanto estávamos
comendo, aparece um cachorrinho. Meu pai, logo em seguida, fala para mim: “Você
não vai dar comida para o cachorrinho!”. Eu disse: “Tudo bem pai”. Ele era
imponente, grandão. Insistiu: “Não vai dar comida ao cachorro!”. Eu disse
novamente: “Tudo bem papai”. De repente eu vejo um ossinho “voando” na minha
frente em direção ao cachorro. Meu pai olhou para mim e, “pá!”, me bateu! Não com
a palma da mão, mas com a mão ao contrário. Direto na minha boca. Fui de costas
ao chão. Eu chorava, chorava e dizia: “Não fui eu, não fui eu!” e ele dizia: “Eu disse
que não era para dar!”, e, eu insistia: “Mas, não fui eu!”. Ele dizia que tinha visto,
mas ele só viu o osso “voando”. Havia sido meu irmão mais novo.
Meu irmão mais novo era sempre o mais bonzinho de coração. Não que eu
não tivesse sido, mas ele era considerado sempre o “bebê” dos irmãos. Ele disse:
Papai, fui eu, não bate no Rodolfo! Não!”. A essa altura, eu já tinha o rosto todo
inchado. Eu nunca vou esquecer isso! Eu já liberei perdão para ele, porque o
sentimento estava muito forte dentro em mim. Agora eu falo sobre isso brincando...
[risos]. Eu não lembro se foi na boca ou no rosto, só lembro que foi forte. Meu pai
nunca batia, mas quando batia, batia de verdade!
Por volta dos meus quinze anos, quando queríamos ir a uma festa, sempre
íamos até ele conceder autorização. Ele mandava pedir a minha mãe. Nós íamos até
minha mãe para que meu irmão mais novo falasse com ela. Ela sempre nos
107
mandava falar com meu pai novamente. Aí ele dizia “sentem aí” e passava o
sermão. Nós sempre ficávamos muito desanimados e íamos tristes para a festa.
Eu lembro quando tinha uns dezesseis anos e ele me surpreendeu fumando.
Ele tirou o cigarro de minha boca e outra vez deu um tapa de revés. Não com a
palma da mão, virou a mão ao contrário e, “pá”!. Ele mandou lavar o rosto, pois
estava chorando, e, lavar a boca, porque estava cheirando cigarro. Era por volta das
quatro da tarde, me mandou que ficasse no quarto e não saísse mais. Eu torcia para
que ele não contasse para minha mãe, pois minha mãe é muito mais brava que ele.
Meu pai não era bravo, ele era “afiado” com a língua. Eu preferia que meu pai me
batesse a me deixar meia hora escutando seus sermões porque ele era “afiado”!
Não era grosseiro, mas nos “diminuía” muito. Eu sempre saía chorando desses
sermões, pedia licença e saía chorando.
Lembro-me também de uma outra vez, agora com a minha mãe. Quando
almoçávamos juntos, eu sempre ajudava minha mãe, era o único que gostava de
ajudar. Na cultura de nossa família, a mãe é quem serve. Depois de todos sentados,
a mãe serve o melhor pedaço de carne para o pai, pois os pequenininhos comem
como pequenininhos e os grandes comem como grandes. Então, primeiro para o pai,
por hierarquia. O melhor pedaço de carne, a melhor batata. Eu me sentava do lado
dela por último, pois sempre gostava de ajudá-la, com isso, o último que ela servia
era eu e, só então, ela se servia. Não me lembro direito do que estávamos
conversando e, de repente, falo, sem perceber, um “palavrão”. Minha mãe vira e,
“pá”! Direto, a quarenta centímetros de mim.
Lembro de outra vez, a mesma situação, comendo juntos, e, não sei porque,
minha mãe me jogou um garfo, talvez estivesse fazendo alguma coisa errada. Ela
gostava de jogar coisas. Imagine cinco garotos, todos “louquinhos”. Como controlar
os cinco? Não sei o que eu fiz, mas minha mãe jogou um garfo que cravou na minha
coxa. Até hoje eu tenho a cicatriz.
Eu lembro que meu irmão Jamil, com pelo menos treze anos, zombava de
minha mãe, fazia caretas. Ela ficava com muita raiva. Descendente de italiana, de
pele branquinha, ficava vermelha de raiva. Na minha casa tinha um jardim e na
beirinha do jardim tinha uns tijolos que separavam o caminho do meio. Minha mãe
pegou um tijolo e, “pum”! Jogou o tijolo! Se fosse a vassoura, jogava a vassoura.
Uma vez, ela quebrou um cabo de vassoura nas costas de um dos meus irmãos.
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Não sei como minha mãe não morreu dos nervos! Minha mãe sempre foi mais
agressiva do que meu pai. Meu pai quase não nos batia.
Hoje em dia ela diz que se arrepende disso. Sente-se mal quando eu conto
essas coisas, ela fala toda doída: “Não conta mais isso!”. Ela se sente mal e eu a
entendo. Meu pai era muito passivo dentro de casa Ele trabalhava, fazia a função de
pai, de homem da casa, mas não se comprometia com as coisas de dentro, como a
educação dos filhos. O pouco tempo que passava com o meu pai eu aprendia muito,
mas era com minha mãe que eu sempre estava fazendo as tarefas.
Eu lembro que aprendi a tabuada secando louça com minha mãe. Nós
tínhamos que ajudar minha mãe. Eu gostava de ajudar na cozinha. Minha mãe dizia:
Vamos aprender a tabuada hoje!”, e eu pequenininho, oito ou nove anos, aprendia
secando louça. Antigamente as pias eram grandes e ela deixava uma colher de pau
do lado e começava: “Dois vezes um?”. Se eu respondesse errado, então “pá”! Ela
me batia. Não lembro se na cabeça ou na mão. Ela não dava para machucar, mas
dava forte, e se eu chorasse, ela dizia: “Continua secando a louça aí!”, e continuava:
“Sete vezes dois?”, e se eu respondesse errado de novo, “pá”!. Eu acho que apanhei
mais, pois eu sempre fui mais distraído, sempre perdia as coisas. Ela batia até com
o fio do ferro. Antigamente o fio era ligado atrás do ferro e na tomada, ela tirava o fio
e batia.
Já o meu pai mostrava o cinto, e nós pequenininhos, o víamos grande e um
cinto grosso! Eu acho que levei algumas cintadas dele, mas eu lembro mais dos
sermões dele do que das surras. Ele tinha as mãos muito grandes! Se ele te desse
um soco, você desmontaria! Eu tinha medo do meu pai, por isso nunca conversei
com ele sobre muitas coisas. Meu pai falava, falava, falava, e eu só o ouvia, quieto.
Fazia-me chorar, e eu, só chorava. Eu nunca reivindiquei, nunca reclamei, nunca
falei: “Você está errado!”. Até agora é assim, hoje eu estou com trinta e três anos,
agora eu tenho um bom relacionamento com meu pai, mas como não moro com ele,
não conversamos diariamente. Hoje, por ter crescido e por já ser um adulto, eles me
escutam um pouco mais. Por exemplo, há uma semana, eu fui conversar com o
Jamil e o Michel se intrometeu na conversa. Eu não gostei. Aí o Jamil foi um pouco
rude comigo por isso a minha estratégia foi ficar quieto. Sempre eu fui assim com
meu pai também, ficava sempre quieto. Meu pai até dizia: “Se você fica em silêncio é
porque você está outorgando, ou seja, o silêncio outorga, o silêncio aceita. Você
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está assinando em baixo tudo o que eu falei”.
Meu pai foi sindicalista, sempre foi dono da razão, era comunista, era
presidente do sindicato das empresas cervejeiras do Chile. Sempre lidou com
pessoas abaixo do cargo dele. Eu lembro que uma vez, quando eu tinha uns vinte e
cinco anos, eu gritei algumas coisas que estavam no meu coração pra fora, há muito
tempo para o meu pai. Estas coisas voltaram à tona só há pouco tempo com um
pouco mais de maturidade. Só agora conseguimos conversar de boa maneira sobre
o que ocorreu.
Outro momento que me lembro foi em relação à escola. Na minha época, a
qualificação era de zero a sete, e se eu chegasse com um seis vírgula nove, todo
contente e mostrasse ao meu pai, ele me dizia: “Porque você não tirou sete?”. Isso
me “quebrava”; e para todos os filhos, de igual modo. Meu pai sempre dizia: “Se
você fizer uma coisa errada eu vou estar aqui te ensinando, te punindo, mas quando
você fizer uma coisa boa você só cumpriu com a sua responsabilidade”.
Uma vez eu gritei para ele: “Eu não sou seu empregado, eu não sou teu pião,
eu não sou teu trabalhador para falar rude comigo. Eu sou teu filho! Até quando você
vai me tratar dessa maneira?”. E ele ficou quieto. Eu acho que chegou nele. Eu
sempre me senti mais um empregado dele do que filho, principalmente nesses
momentos. Até hoje, a minha estratégia quando eu estou sendo, de alguma
maneira, criticado ou punido, é ficar quieto. Deixo terminar de falar e, depois, às
vezes, eu dou minha opinião, independente da pessoa aceitar ou não.
Com minha mãe não era assim. Com ela, não tinha conversa, não tinha nada,
era “pá!” e acabou. Um outro momento de apanhar que me lembro foi um dia por
causa da escada da minha casa, ela tinha dois andares. Se minha mãe falasse “Não
brinque na escada!”, falava no máximo duas vezes, somente duas vezes, na
terceira, pegava o cinto e “pá!”. Não tinha conversa! Minha mãe fazia mil coisas,
ademais, meu pai sempre trabalhava fora, passava dois meses fora e voltava um,
passava quinze dias fora, ficava cinco em casa.
Então, o relacionamento com o meu pai não foi tão presente, era um
relacionamento diferente, não digo que tenha sido ausente, mas diferente. Tão
diferente assim, que agora, quando estamos crescidos e conversamos sobre
algumas coisas, minha mãe sente saudades da época quando eu morava com ela,
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pois morei um bom tempo, até por volta dos meus vinte e cinco anos, quando era o
único que morava lá.
Minha mãe sempre foi mais rude que meu pai, até agora é assim, um pouco
explosiva. Meu pai não, ele é mais pela conversa, pelo sermão, mas com uma língua
“afiadíssima”. Minha mãe é mais do tipo “cara fechada”, não tem conversa com ela!
Em relação à punição, acredito que minha criação não foi muito conturbada.
Não vejo as punições que recebi como violência, pois não me senti maltratado.
Existiram as coisas que comentei, mas agora são como anedotas para mim. Acho
que não houve traumas! Agora, se tudo isso serviu para eu deixar de fazer as coisas
que fazia? Isso, não. Eu fumei até meus vinte e oito anos, ou seja, quando eu tinha
dezesseis anos, mesmo depois de meu pai ter-me dado um soco e ter me mandado
pro quarto, eu continuei fumando. Quando eles não davam permissão para irmos a
uma festa, nós fugíamos escondidos. Às vezes era ele quem ia para uma festa e,
nós é que íamos buscá-lo e trazíamos para casa, muitas vezes bêbado. Como eu
sempre tive medo do meu pai, eu nunca joguei nada disso em sua cara, mas sempre
fiz tudo escondido, até já crescido.
Hoje creio que penso diferente sobre muitas coisas. Eu entendo as reações
da minha mãe. Porém, apesar disso sou mais marcado pelas punições que recebi
dela, por serem mais constantes do que as que recebi de meu pai, mesmo sendo os
golpes dele, mais fortes. Apesar disso, minha mãe sempre estava conosco, já meu
pai, não.
Em relação às punições que recebi na escola, o que posso dizer é que sou do
tempo da palmatória. A professora dava uma “reguada” de madeira nas mãos e
ainda puxava os cabelos pela costeleta. Eu lembro que nós vivíamos em plena
ditadura militar no Chile, e eu ainda, quase não tinha costeleta, mas ela puxava
mesmo assim. Quando fazíamos alguma coisa errada, ela também puxava a orelha.
Uma das minhas professoras tinha um ponteiro, um pedaço de madeira
redondo que usava para indicar a lousa. Ela o chamava de “pepito canibal”. Lembro
que ela dizia: “pepito canibal tem fome, tem fome, irá ‘comer’ as bundas”. Ela dava
medo! Pegava aquele ponteiro e batia em que a desobedecesse. Mas eu nunca fui
muito bagunceiro, sempre fui da fileira do meio, nem no fundo e nem na frente.
Guardava-me pelos bagunceiros do fundo e pelos certinhos da frente.
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Eu lembro uma vez do meu irmão, o Michel. O professor mandou fazer
alguma coisa e o Michel acabou não fazendo. O professor, que era o diretor
também, bateu nele, e ele, chegou chorando em casa com os braços roxos. Minha
foi reclamar e acabou tirando o menino da escola. Ela não fez nenhuma queixa
formal, não fez nada, só o retirou da escola.
Outra coisa que lembro é que o professor de matemática dava cascudos,
raspando o dedo na nossa cabeça, algo que ele chamava de “fosforito”. Ah! Lembro
também já fui expulso para fora da sala, por fazer bagunça.
Eu lembro também que nós tínhamos que fazer fila em alguns momentos na
escola como os militares. Tínhamos que ficar com as mãos retas ao lado da perna,
com o dedo escondido e olhando para a nuca do outro. Quando não tínhamos os
dedos bem postos, ele batia com a régua em nossas mãos. Recordo que às
segundas-feiras tínhamos que marchar olhando para a bandeira nacional, só depois
íamos para a aula.
Depois que se fica mais velho, mais maduro, você toma consciência de
algumas coisas e fica sabendo de outras. Minha mãe apanhou muito. Eu lembro que
minha mãe contava que, quando ela era pequenininha, com uns sete anos, não
havia fogão à gás, só fogão à lenha. Minha avó, a mãe de minha mãe, jogava as
toras de lenha acesas neles quando bagunçavam. A mesma história se repete. Eram
sete crianças, todas mulheres, bagunceiras e minha avó muito autoritária, como
minha mãe. Ela contava que apanhava muito, às vezes ao extremo. Se ela fizesse
alguma coisa errada, recebia uma tora em brasas! Se você vir minha mãe agora,
apesar de já ter mudado muito, ainda possui algumas dessas características da
minha avó.
Outra coisa que me recordo é que minha mãe sempre ameaçava queimar
nossa boca no fogão quando mentíamos ou pegávamos alguma coisa, como por
exemplo, uma borracha ou lápis de algum colega da escola. Uma vez chegou a ligar
o fogão, pegou as minhas duas mãos pequenininhas, as colocou para trás junto com
as mãos dela e me inclinou para queimar a boca no fogão. Eu nunca fui queimado
por ela, nunca me queimou a boca, nunca me queimou as mãos, até porque eu
resistia. Eu dizia “Não mamãe, por favor! Não quero mamãezinha linda!”. Talvez se
eu não tivesse resistido, ela não iria queimar do mesmo jeito, lógico! Mas eu lembro
que ela colocou minha boca bem perto da chama do fogão.
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Eu entendo hoje, pela infância tão sofrida da minha mãe, que volta a se
repetir a mesma história. Minha avó, com muitas crianças, meu avô trabalhando fora,
com todas as precariedades que havia. Minha mãe tem sessenta anos, há cinqüenta
e três anos, imagine como era a situação? Zona rural ainda pra piorar! Sete crianças
dentro da casa, sem luz, sem água, o banheiro a cem metros para fora da casa. Era
tudo muito precário!
Minha mãe contava que minha avó jogava até o espeto do fogão, qualquer
coisa que achasse pelo caminho ela jogava, e eram meninas, só meninas. Eu acho
que por isso minha mãe fazia da forma que fazia. Meu pai, pelas poucas coisas que
eu lembro, foi mais “machão”, talvez por ser do campo. Tinha uma postura de chefe.
Porém, minha mãe, eu tenho certeza que foi porque ela apanhou. Ela aprendeu
inconscientemente como “educar” os filhos... [risos].
Em relação a mim, pelo fato de eu não ter um bom relacionamento verbal com
os meus pais, me sentia completamente incompreendido. Eu não conseguia me
abrir. Eles só puniam pela ação final e isso até agora me complica nas relações. Por
exemplo, as pessoas só vêem o fato que você fez, o final da ação, mas não
procuram saber o conteúdo para trás, o que te levou a fazê-lo. Você é julgado pelo
comportamento final, não pelo processo que levou você a ter tal comportamento. Por
exemplo, quando se faz algo e aí te dizem: “Você não deveria fazer assim”, “Você se
precipitou”, não procuram saber o porquê você fez o que fez. Ninguém pergunta, só
criticam ou punem. Então, eu me sentia punido, mesmo sabendo que, às vezes, era
bagunceiro ou irresponsável. Nunca me sentaram para conversar, para dizer que eu
devia ter senso de responsabilidade. O que meu pai falava cada vez que saíamos
para um baile, para a casa de alguém ou algum outro lugar era o seguinte: “Lembre
sempre quem você é: ‘Garcia Velásquez’!”. Isso até agora eu tenho na minha mente,
o peso do “nome” da família.
Pela falta da oportunidade que eu tive de me abrir, pois nunca deram este
espaço, eu sempre me senti inconformado e incompreendido. Era como se não
ligassem para mim. Só me puniam pelo meu comportamento final, mas os motivos
que o geraram nem se importavam em saber. Não sabiam o que eu estava sentindo.
Insisto, compreendo a situação, minha mãe tinha cinco filhos, muita coisa para
resolver; meu pai vinha uma vez por semana para casa, isso porque ele trabalhava
fora e não porque eram separados. Mesmo assim, era incompreensão o que eu
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sentia, porque ninguém me escutava. Eu acho que por isso eu tenho poucos
amigos, acho que você é o único com quem consigo conversar as coisas de forma
mais aberta, sem ter medo de ser punido.
Até hoje punem minha atitude pelo comportamento final, quando a atitude já
se transformou em erro, em equivocação. Não pesam o processo que levou a essa
equivocação. Então, ademais, eu sempre fui o filho do meio, sempre davam mais
atenção ao Michel que era considerado o “bebê”, diziam sempre: “Ai que lindo
bebê!”, era o mais bonito, sempre ligavam mais para ele. Talvez fosse algo
inconsciente ou algo que eu imaginava, mas sempre me sentia incompreendido, pois
ninguém me perguntava o porquê eu fazia o que fazia. Nunca me perguntaram: “Mas
por que você fez isso?” Não! Era só “pá!”. Chibatada, pronto e acabou! “Cala boca!”
e “Fica quieto!” E deixavam claro: “Eu sou o pai, ela é a mãe e você é o filho!”
Sempre foi essa hierarquia dominante.
Mesmo meu pai sendo comunista, nós vivíamos num regime militar lá dentro
de casa. Lembro que meu pai me acordava às seis da manhã para ajudá-lo a pintar
a casa, mesmo eu não querendo tinha que fazê-lo. Meu pai conversou algumas
vezes, mas sempre foi um monólogo. Nunca houve um diálogo verdadeiro. Ele
sempre lançou “monólogos” sobre mim. Eu nunca rebati, nunca respondi, nunca
reivindiquei, sempre fiquei quieto. Havia uma falta de comunicação real. Hoje, mais
velho, conversamos mais, nos expressamos, abrimos, mas antes, nada disso.
Eu não sei como foi com meus outros irmãos, mas comigo foi assim. Por
exemplo, o Michel, que é bem mais novo, tem outro comportamento, ele sempre
confrontou meu pai. Ele, por vezes, disse: “Não papai, não é assim! Você tem que
parar de fumar! Você errou! Você se equivocou!”. Eu nunca tive essa atitude. E até
hoje sou assim, quando numa conversa, as pessoas se impõem de alguma maneira,
de modo que eu me sinta mais fraco, eu baixo a guarda. Quando eu cumprimento
uma pessoa que tem uma posição maior, ou um cargo acima, eu sempre baixo o
olhar. Eu sei que não tenho o porquê baixar o olhar, mas baixo. Já tenho reparado
isso há algum tempo, insisto que talvez seja pela falta de comunicação com meus
pais.
Eu nunca falei de sexo, nunca falei de masturbação, nunca falei de nada
dessas coisas com meu pai nem com minha mãe. Sempre fui “punido por”. Meu pai,
por exemplo, nunca se sentou comigo para fazer um exercício de matemática.
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Sempre estava trabalhando e, nas raras vezes quando se sentava para explicar
alguma coisa, eu não entendia. Não sei se ele não tinha didática ou se por outro
motivo, mas eu nunca entendia direito. Lembro-me de uma vez que ele se sentou
para fazer um exercício comigo, mas isso não era uma coisa constante e só
aconteceu porque eu fui atrás dele, pois sabia que ele era bom de matemática e eu
tinha muitas dificuldades. Assim era o meu relacionamento como o meu pai.
Eu nunca contei, mas eu tenho um “filho”. Eu criei uma criança dos quatro aos
cinco anos de vida. Este menino, o Junior, estava aos meus cuidados porque eu tive
uma esposa, há alguns anos, quando morei em um país vizinho. Ela trabalhava fora
e como o trabalho que eu tinha proporcionava mais tempo livre, eu cuidava dele.
Preparava sua lancheira quando ia para a escola, estudava, brincava e até dava
banho nele. Pelo amor que tinha por ele e, talvez pelo fato de que, biologicamente
não era meu filho, nunca bati nele. Uma barreira me impedia de agir até certos
pontos. Apesar de ter tido vontade, nunca o puni com uma palmada.
Eu fui ensinado que, quando ocorre algum caso de desobediência, você deve
olhar para os olhos da criança e dizer: “filho, lembra que o papai falou que não era
para subir na cadeira e você fez errado, agora você vai receber um castigo, eu vou
te levar ao banheiro e vou te dar três cintadas, você vai chorar, mas vai saber
porque está chorando”. Eu tinha este conceito. Tinha que agir deste modo, sem ficar
com raiva, o mais tranqüilo possível, conversar com a criança da melhor maneira e
dar três cintadas como correção. Eu não bati no Júnior, mas eu era igual ao meu pai,
era “afiado de língua”, apesar de que, eu me policiava em relação a isso, porque a
criança já tinha a auto-estima baixa pelo fato de ter sido abandonada pelo pai.
Eu não compartilho da prática da punição corporal, mas que às vezes dá
vontade de bater, isso dá! Eu leciono para crianças de dois a seis anos e tenho a
impressão que elas já vêm mais agressivas de casa, como se estivessem esperando
uma atitude punitiva. Eu, pessoalmente, considero que não deve ser assim, mas
existe pouca informação para agir de outra maneira. Porém pelo fato do adulto ser
maior, mais forte ou por necessitar existir autoridade dentro de uma casa, além do
fato das crianças serem pequeninhas, ainda dependentes em muitos aspectos, elas
devem ser submissas.
Apesar disso, às vezes, você fica em xeque mate. E o que fazer quando elas
desobedecem? Optar pela punição verbal? Uma alternativa talvez, apesar de que
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gera medo da mesma forma. Por exemplo, as crianças têm pavor de falar com a
diretora da escola. Quando fazem algo errado, eu digo assim: “Eu vou anotar seu
nome na lousa e você vai falar com a diretora!”. Pronto, elas logo dizem: “Não
professor! Por favor, não!”. Eu entendo como se fosse a única “arma” para mantê-los
quietos. O medo que as crianças têm da diretora me ajuda a mantê-los quietos.
Insisto, temos poucas informações a respeito de como agir diante das situações de
indisciplina.
Eu sinto que faltam “armas”, pelo menos, eu sinto que me faltam essas armas
para não aplicar punições. Tentar determinar como a ação deveria ter sido feita para
que a criança não transgrida uma regra. Por exemplo, se a porta esta aberta e não é
para sair, aí a criança vai e sai. O que eu faço? Deixar no canto da sala ajoelhada no
milho? Colocar um chapeuzinho de burro? Bater? Brigar como ela? Ameaçar falar
com a mãe? Não se têm muitos recursos para resolver o problema. Mesmo assim,
eu não concordo com a punição corporal e, ainda mais, aplicada em um momento de
raiva. Particularmente, acho que falta aos pais, escutar mais seus filhos.
Meus pais nunca me escutaram, e eu, cresci. Agora que estou maduro,
entendo algumas coisas. Mas os pais deveriam escutar mais seus filhos para fazê-
los crescer de forma correta, espiritual e socialmente, com valores e princípios bem
sedimentados. Os pais deveriam estar abertos para escutar seus filhos. Por
exemplo, meu pai deveria ter me escutado mais, pois como filho, também possuo
sentimentos, também tenho opiniões. Mesmo que meu pai fosse a autoridade da
casa, eu também sou uma pessoa. Eu não era um “pai pequenininho”, por mais que
fosse seu “sangue”, seu filho, eu não tinha que pensar igual a ele. Eu me sentia
como “enquadrado”, porque meu pai queria que nós, filhos, agíssemos igual a ele,
pois ele sempre se achou o dono da razão. Por exemplo, eu não estaria nesta
entrevista hoje se meu pai tivesse aberto o jogo de alguma maneira, tivesse sentado
no chão comigo e explicado as coisas, se tivesse conversado mais.
Eu lembro dos beijos que dei em meu pai e dos abraços que recebi dele. Eu
nunca vou esquecer de uma imagem que tenho na minha mente. Eu até escrevi uma
vez sobre isso. Quando íamos almoçar, minha mãe gritava: “Está pronto o almoço!”.
Aí, nós íamos ao segundo andar, onde estava o banheiro principal. Meu pai fazia
uma fila, lavava o rosto e penteava o cabelo de todos os filhos. Eu lembro como se
fosse agora, as mãos ásperas de meu pai no meu rosto. Lindo! [muita emoção]. Não
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que eu tivesse um relacionamento íntimo com o meu pai, mas a posição dele como
“chefe da família” e a convicção filosófica que tinha, fez com que ele fosse duro e
rude, achando que seus filhos fizessem parte da ideologia que ele tinha no trabalho.
Eu amo meu pai... [emoção]. O fato dele ter lavado meu rosto cada dia de domingo
que estava em casa, e, quando eu sentia as mãos ásperas no meu rosto de criança,
mesmo sendo, por vezes, chamado de irresponsável ou bagunceiro, me fazia ter a
certeza de que eu podia contar com ele, e que ele era o meu pai. Nunca me senti
desprezado, apesar de ter sido bastante autoritária a minha criação. Bem, é isso que
posso dizer...
Eu acho que poderíamos fazer isso mais vezes, porque me sinto mais leve, o
sentimento é de bem estar, mesmo não sendo uma sessão psicológica... [risos]
Quinta-feira, 24 de maio de 2007, 22h30.
Pelo que eu lembro, em relação à Igreja, nós éramos todos evangélicos.
Minha mãe levava todo mundo junto, éramos cinco irmãos, parecia como uma
galinha com seus pintinhos. Íamos todos para a Igreja, mas nós, os menores,
acabávamos dormindo na hora do culto. Em relação à punição corporal, minha mãe
nunca usou justificativas religiosas para punir, pois era tão reacional que parecia
automático e nunca teve uma conversa sobre isso.
Na igreja não havia punição corporal, mas eu sinto que puniam as pessoas
com certo desprezo. Lembro-me que tinha por volta de quinze anos, quando fazia
parte de um grupo de jovens. Eu queria fazer algumas coisas como furar a orelha,
ter o cabelo cumprido como tenho hoje e eles queriam que eu usasse gravata e por
isso, de certa forma, me excluíam. As pessoas que não queriam fazer parte desse
formato eram punidas com um tipo de “exclusão”, éramos sempre tidos como
rebeldes. Eu não ia de gravata à igreja e me sentia punido por eles me excluírem.
Mas eles nunca fizeram nada comigo porque eu saí antes. Meu irmão foi posto em
disciplina porque tinha idéias diferentes do líder maior. Ele foi punido sendo deixado
de lado, proibido de participar das atividades e em decorrência disso acabou saindo
da igreja também.
Os líderes não aceitavam que ninguém discordasse. O topo da hierarquia da
Igreja era o “ancião”, e ele era o “maior” de todos. Não consideravam a opinião
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daqueles que estavam abaixo na hierarquia. As normas sempre vinham de cima
para baixo. Deus se “revelava” ao ancião e a ninguém mais. Era de cima para baixo
mesmo. Quando alguém numa reunião levantava a mão para colocar uma idéia
diferente, era “cortado” de tudo. Talvez a atitude da minha mãe em casa tenha tido
algum tipo de influência da religião, porque era muito rígida também. Talvez ela
sofresse uma pressão para nos castigar.
Em relação ao Estado, posso dizer que vivi já no ventre da minha mãe a
repressão da ditadura. Eu, como já contei anteriormente, vivi uma vida militarizada,
não podia sair após as dez da noite e tudo mais. Mas depois que fiquei jovem, quis
experimentar muitas coisas. Quando eu já era maiorzinho, e eu sendo músico, saía
para tocar nos ônibus e nas praças para ganhar meu dinheirinho, porque não
gostava de depender do dinheiro de meu pai. Eu paguei um ano de faculdade só
com o dinheiro que ganhei tocando nos ônibus e nas praças. Mas fui duas vezes
preso por tocar no ônibus, pois era proibido na época. Tiraram-me o dinheiro, o
instrumento e tudo mais.
Também me lembro quando fui representante de uma banda, um tipo em
empresário. Fazia contato para “shows” e programas de rádio. Aí um dia, após sair
de uma entrevista em um desses programas e apesar de estar bem arrumado,
estava esperando o ônibus no ponto e pára um carro de polícia, que me leva detido.
Eu não sabia porque levava pancadas na cabeça. Cada vez que eu perguntava,
recebia um soco na cabeça ou nas costas. Eu calculo que fiquei rodando as ruas de
carro por volta de três horas antes de me levarem para a delegacia. Quando cheguei
lá, me fizeram tirar a roupa, me deixaram de cueca e meias em uma cela junto com
outras pessoas, delinqüentes, cheirando a urina e fezes. Estava fazendo muito frio
naquele dia. Eu lembro também que levaram até o dinheiro que tinha na carteira.
Pela noite, passavam o cacetete nas grades para fazer barulho e não deixar
ninguém dormir.
De madrugada, trouxeram um rapaz na cela ao lado e batendo no rapaz,
perguntavam insistentemente se eu era “a pessoa”. Mandaram que eu levantasse o
rosto enquanto gritavam e batiam no rapaz. Eles tinham uma foto e mostraram ao
rapaz, comparam comigo e, depois de baterem muito nele, se convenceram de que
“a pessoa” que eles estavam procurando não era eu. No fim da história, eles
prenderam-me por suspeita e acabei passando frio, fome, perdendo meu dinheiro e
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liberado somente pela manhã. Eu não fazia idéia onde estava, nem sabia como sair
de lá. Deixaram-me no ponto de ônibus e deram-me o dinheiro da passagem. Eu
peguei o nome dos policiais para poder fazer alguma coisa a respeito, mas acabei
não fazendo nada. Apesar de fazer parte de alguns protestos, nunca fui levado
preso por outras questões...
Eu acredito que a repressão sempre causa danos ao ser humano... Tudo isso
me faz pensar que a punição corporal ou psicológica acaba por gerar uma de duas
conseqüências: transformam o indivíduo em uma pessoa mais temerosa ou em uma
pessoa mais rebelde, nunca equilibrada.
JOHANN GREIZ
Johann Greiz é brasileiro, músico, nascido na cidade de Mogi das Cruzes em
15 de Agosto de 1975. É casado com Júlia e pai de Vitor, de 4 anos. Concedeu esta
entrevista na tarde de 8 de maio de 2007, em sua atual residência, na qual também,
passou grande parte de sua infância e adolescência.
Terça-feira, 14 de maio de 2007, 17h00.
Em relação à minha família, éramos quatro pessoas em casa: minha mãe,
meu pai, meu irmão mais velho e eu. Eu e meu irmão apanhamos algumas vezes...
[apreensão]. A pior surra de que me lembro, foi algo muito ruim... [hesitação,
desconforto]. Eu não me lembro exatamente porque que foi que apanhei, mas
lembro que a surra veio acompanhada com “pimenta na boca”. Eu acho que foi por
ter falado algum “palavrão”, alguma coisa assim. Mas isso foi há muito tempo.
Inclusive estamos exatamente onde aconteceu tudo isso. Eu moro nessa casa hoje.
Engraçado pensar nisso agora! Quando eu vim para cá, não tive muitas
lembranças! Você está me fazendo lembrar essas coisas agora! Mas, voltando ao
assunto, por causa do “palavrão”, coisa que se escuta na escola e se acaba
repetindo, eu lembro que tomei uma surra. Levei um tapa na boca e, em seguida,
minha mãe pôs pimenta na minha língua. Isso foi a pior coisa! [pensativo]. O que não
me fez deixar de falar “palavrão”, algo interessante, não acha? Eu me lembro que foi
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algo muito ruim para mim.
Uma outra surra... [muito pensativo]. Bem, eu acho que a maioria das surras
que eu tomei, era porque brigava com meu irmão. Nós brigávamos muito e
tomávamos surras. Uma outra coisa que era muito ruim para mim, era quando eu e
meu irmão brigávamos. Minha mãe nos colocava abraçados por um bom tempo.
Para mim, era algo humilhante!
Eu não me lembro muito de surras, mas uma outra que apanhei foi do meu
pai. Estava havendo uma formatura em um colégio em frente nossa casa e, não me
lembro o que eu vim fazer, mas eu saí da formatura que já havia começado e vim
até minha casa. Até hoje, não sei por que meu pai veio até em casa também, mas
quando ele chegou, me pegou na área de entrada e me bateu na frente de um
amigo. Foi horrível, porque estava na frente de um amigo. Eu acredito que essas
foram as piores, mas houve outras vezes, com certeza.
Na escola, eu nunca sofri nenhuma punição desse tipo, mas eu me lembro de
que sofri perseguições na igreja que eu freqüentava. Não sei se isso tem a ver com
o assunto, mas eu me lembro de um diácono “pegando no meu pé”, todo lugar que
eu ia, ele ia atrás, não podia nem ir ao banheiro. Eu ia para a galeria, ele ia atrás. Eu
tenho a impressão que ele ia para a igreja só para pegar no pé... [risos].
Bem, voltando à minha casa, as surras eram corriqueiras, mas os gritos eram
muito mais freqüentes. Posso dizer que os gritos eram todos os dias e as surras, um
dia sim, outro dia não. Acho que me esforcei tanto, inconscientemente, para
esquecer tudo isso, que eu não me lembro de muitas delas, mas dos gritos eu me
recordo bem! Era algo comum em casa.
Do meu pai, eu me lembro de outra vez que apanhei. Houve um outro fato
que, para mim, foi horrível. Eu estava brincando com duas vizinhas e não queria
tomar banho para ir à igreja. Era um domingo à tarde, meu pai queria assistir a um
jogo do Brasil e eu não queria para de brincar para tomar banho. Aí, eu lembro que
ele me pegou com muita força, não me deu uma surra, mas me pegou com força, e
me fez tomar banho. Me vestiu e me fez assistir ao jogo com ele e com um amigo
dele, além de, à noite, me fazer ir à igreja.
Eu acho que eles bateram em mim e no meu irmão, porque foi assim com
eles também. Pelo menos com minha mãe eu acho que foi assim. Ela apanhou da
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minha avó, apanhou várias vezes. Não sei se era freqüente, mas apanhou. Apesar
disso, eu acredito que o fato de ter apanhado dos pais não dá o direito de bater nos
filhos, não é mesmo? Por exemplo, eu apanhei, mas nunca bati no meu filho. Eu não
sei se na forma como viam a educação, entendiam que as palmadas poderiam
talvez, futuramente, produzir filhos educados e “certinhos”, por isso batiam. Muitos
pensam assim. Não sei se isso tem a ver e nem sei se é verdade, mas muitas
pessoas dizem isso. Talvez também, o próprio relacionamento entre meu pai e
minha mãe não fosse muito bom e acabavam por descontar em nós. Eu, na verdade,
não consigo ter uma idéia exata porque faziam isso, pois dizer que eu e meu irmão
éramos de viver na rua com todo tipo de pessoas. Isso não! Nunca fomos assim!
Talvez só eles entendam porque agiam assim, se é que entendem. Eu não entendo.
Com meu filho faço diferente, eu sempre dou duas escolhas para meu filho,
por exemplo, ele pode colocar o dedo numa tomada, mas eu aviso antes: “você vai
tomar um choque e vai ter que arcar com isso”. Ele tem hoje quatro anos e já houve
dias que ele queria pular da janela sem ter nada embaixo, nem a cama nem colchão
e eu disse: “se você quiser pular, pula, mas você pode se machucar e aí não venha
chorando pra mim porque eu te avisei”. Aí ele pára e pensa. É muito interessante!
Uma vez ele pulou e machucou o pé, mas como ele já sabia que podia acontecer
algo assim, porque eu tinha avisado, ele até sentiu a dor, mas agüentou... [risos].
Ficou firme e forte, não chorou, porque ele já sabia que poderia se machucar, mas
mesmo assim decidiu fazer.
Eu sempre tento me transportar para a época da minha infância, mas não é
muito fácil. Eu acho que apanhar não resolveu no meu caso. Na verdade, o que eu
sentia era como um tipo de traição. Hoje eu vejo assim, um sentimento nada bom.
As mesmas pessoas que cuidam são as que agridem, então, será que se pode
confiar nelas? É um sentimento que faz com que você deseje crescer rápido, não
para se vingar, mas para deixar de apanhar. Mesmo sabendo que aquela surra não
é igual a uma surra que se toma na rua.
Querendo ou não, quando era criança, eu sabia que aquela era uma surra de
correção, não era uma surra de agressão, para machucar. Mas, mesmo sabendo
disso, ao mesmo tempo, você se fecha e se trava para falar sobre muitas coisas com
meus pais. Então, é algo que tem dois lados. Por um, você sabe que está
apanhando porque cometeu um erro, mas, por outro, carrega um sentimento de
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estar sendo traído. Parece que você não pode contar totalmente com aquela pessoa
que te bateu. As mesmas pessoas que cuidam são as pessoas que agridem, então
será que se pode confiar nelas? Você tem que ter algumas reservas. Será que eu
posso contar que hoje eu errei? Até então, está tudo bem porque a pessoa não sabe
o que você fez, mas será que hoje eu posso dizer que eu errei? Hoje, eu entendo
assim.
Quando meu filho faz alguma coisa errada, em um primeiro momento, quando
eu pergunto: “O que aconteceu?”, ele diz:Nada, papai!”. Aí eu insisto e pergunto
novamente: “O que foi que aconteceu?”, e ele repete: “Não, nada papai!”. Aí eu paro
de falar sobre o assunto e em várias ocasiões, ele espontaneamente vem me dizer:
“Papai, aconteceu isso” ou “Eu fiz aquilo”. Com isso, eu sei que conquistei a
confiança dele. Neste sentido, eu tenho que me esforçar para não decepcioná-lo.
Devo conversar sobre o ocorrido e demonstrar o que não poderia ter sido feito. Eu
não posso agredir ou achar ruim de uma forma mais enérgica, porque eu sei que eu
vou afastá-lo e perder sua confiança, pois na verdade, ele se abriu comigo.
Eu tenho me esforçado para, de alguma forma, mostrar que o que ele fez
estava errado, mas, ao mesmo tempo, não decepcioná-lo, para que ele possa, em
outras circunstâncias, se abrir comigo novamente. Eu já conversei com pessoas que
já apanharam e que, pelo menos aparentemente, não são decepcionadas por isso,
mas enfatizo, aparentemente. São pessoas que até dizem: “Foi bom ter apanhado e
por causa daquilo hoje eu sou assim, eu faço isso”. Em minha opinião, jamais se
deve bater em um filho!
Aliás, uma das maiores decepções da minha vida foi quando aprendi com
minha avó, por parte de mãe, mesmo não tendo nada a ver com crianças, que, se
meu cachorro urinasse no lugar errado, eu teria que segurar seu focinho bem forte e
esfrega-lo no local urinado. Uma vez eu fiz isso. Meu Deus do céu! Eu fiquei com
muita raiva de mim mesmo, porque depois eu vi que jamais poderia ter feito isso
nem com um animal, pois existe a forma certa para se ensinar. Depois que houve
esse fato, muito menos ainda com meu filho eu faria alguma coisa desse tipo!
Eu estou conseguindo, de uma forma ou de outra, educá-lo. Parece-me que
batendo, você tem um resultado imediato, mas não sei se verdadeiro. Eu estou
conseguindo, pelo menos com meu filho, de uma forma mais demorada, alcançar
resultados interessantes, pois com a conversa as coisas têm funcionado, mas
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demora um pouco mais. Eu estou conseguindo fazer com que ele saiba pedir,
perguntar se pode ou não fazer algo e falar sobre as coisas que ele faz.
Determinadas coisas que ele fazia, hoje não faz mais. Por exemplo, ele gostava
muito de escrever em paredes. Incrível, hoje ele não faz mais isso, pois ele sabe que
deve “cuidar da sua casinha”. Isso não foi coisa de um dia para o outro. Foi algo que
levou um tempo, mas eu acredito que dá para se conseguir resultados verdadeiros.
Tudo eu consegui sem nenhuma palmada, apenas com conversas.
Eu já vi mães no shopping, perto de mim, dando uma palmada na mão de
crianças muito pequenininhas e sem necessidade. Hoje, eu entendo isso como
agressão. Às vezes, um grito... [indignação], é como se fosse uma palmada,
dependendo da intensidade, ainda é pior! Pelo menos eu jamais vou usar essa
prática e, graças a Deus, minha esposa pensa da mesma forma, nunca bateu e
também não gosta nem um pouco disso. É isso que eu penso!
Existe uma frase que acho muito importante. Na realidade, eu não lembro
exatamente, mas é mais ou menos assim. “Não faça com os outros, aquilo que você
não quer que façam com você”. É isso que eu penso sobre a punição corporal.
Qualquer coisa que se faça, é uma sementinha que se lança. Tudo se colhe, de uma
forma ou de outra.
Ter falado sobre minha infância é algo que pode ser bom, pois tudo que você
coloca para fora se torna um alívio. É uma carga que você lança fora. Mas é
doloroso, porque se mexe com algo que tem a ver com o íntimo de todo o ser
humano, relação com os pais, infância. É uma sensação, resumindo, desagradável.
Ao mesmo tempo em que você faz uma limpeza, você quer preservar aqueles que
bateram, pois são seus pais. Não é bom, é ruim, pois ao mesmo tempo, parece que
está denegrindo a imagem de alguém. Não é uma sensação muito boa.
Quinta-feira, 24 de maio de 2007, 17h00.
Quanto à Escola, principalmente nas primeiras séries, tive momentos
marcantes. Eu lembro de duas professoras, a dona Flor e a dona Estela. Elas foram
as piores professoras que tive nesse sentido. Não me refiro à capacidade delas, mas
ao jeito como elas tratavam os alunos. Eram muito grosseiras. Da dona Flor eu não
me lembro de punições corporais, mas da dona Estela sim. Recordo de
123
chacoalhões, puxadas de braço, apertos e gritos o tempo todo. Lembro também de
um dia que eu estava na frente, escrevendo algo na lousa e não sabendo escrever
direito recebi um grito muito forte e aí é que eu não conseguia continuar. Aí ela me
puxou para voltar a sentar. Isso marcou muito! Depois de alguns anos, já no ginásio,
eu não me lembro de mais nada a esse respeito, mas da primeira à quarta série, por
causa dessas professoras eu acho que foi a pior fase. Agora, eu me recordo de um
fato quando estava na sexta série, eu tive uma professora de Biologia que era muito
grosseira também. Eu ficava sempre para recuperação na disciplina dela. Era um
terror para mim quando ela ia comentar sobre as provas na sala. Parece que quando
chegava a minha vez, ela fazia de maneira rude, grosseira. Bem, acho que é isso,
tirando os chacoalhões de que falei, não me recordo de ter apanhado.
Em relação à Igreja, eu me lembro mais das perseguições que comentei. Ah!
De uma coisa que aconteceu uma vez que para mim foi horrível. Eu e um amigo
estávamos sentados conversando em um dos bancos do coral da igreja que eu
freqüentava. Eu era criança ainda. Eu lembro que meu tio era regente do coral e
quando ele nos viu ali, olhou para minha tia como se tivesse pedindo que
mandássemos sair e aí, ela, na frente de todos, acenou enfaticamente com as mãos
para que saíssemos dali de uma forma que eu e meu amigo nos sentimos
completamente envergonhados diante de todos. Eu saí e não voltei mais para o
templo, fui ao banheiro e fiquei por lá.
Uma outra punição que me marcou bastante foi quando eu tinha por volta dos
meus dezesseis anos. Era natal, e eu fui experimentar um pouco de vinho. Bem, não
era costume da nossa igreja, tomar bebida alcoólica, apesar disso eu quis
experimentar um pouco de vinho e depois disso acabei contando o que tinha feito
para o líder da igreja. Quando ele ouviu aquilo, pediu para que eu comparecesse a
uma reunião fechada, só para membros e fosse a público, confessar o meu
“pecado”. Eu me recordo que coloquei uma roupa social, que era costume na época
e fui falar do que tinha feito diante de muitas pessoas na reunião. A igreja estava
lotada! Desde a frente até os fundos! Na minha frente, estavam todos os outros
líderes da igreja. Bem, aí eu contei o pecado que havia cometido a todos, fazendo o
gesto que havia tomado um pouco de vinho e pedi a todos que me perdoassem. Foi
uma sensação horrível! Mesmo assim, não adiantou nada, porque eu continuei
tomando vinho, mas agora com uma diferença... Eu não contava mais o que fazia!
124
Quanto ao Estado, que eu me lembrei agora, a pior punição foi quando eu fui
obrigado a servir o “tiro de guerra” por volta dos dezoito anos. Neste um ano que
fiquei servindo o governo, o ano de 1994, mesmo procurando ser exemplar, eu tive
algumas punições por ter chegado atrasado. Outra vez por não ter feito a barba
corretamente, acabei pegando vinte e quatro horas de guarda por isso.
Outro caso, muito humilhante aconteceu, porque, como eu era monitor, eu
tinha que checar todos os procedimentos no momento que eu fosse receber a
guarda. Nesse dia, como fazia sempre, eu chequei tudo, mas eu não percebi que,
atrás da prancheta, haviam escrito o nome do sargento junto a um “palavrão”. Eu
não vi isso! Bem, quando eu vi o que haviam escrito, a guarda anterior já havia ido
embora e aí eu tive que comunicar meu superior, porque se a guarda que fosse me
render visse aquilo, quem iria ser punido, era eu. Foi horrível esse momento! Porque
um outro sargento, que por sinal era uma pessoa muito religiosa, me xingou muito,
falou muita besteira e gritou sem parar. Pediu que eu pegasse uma palha de aço e
limpasse tudo aquilo, eu fui fazer, mas não funcionou! Eu lembro que eu fiquei
parado pelo menos uns quarenta minutos e ele só gritando comigo, até que chegou
o sargento que tinha o nome escrito na prancheta e acabou por acalmar os ânimos.
Depois desse dia, meu relacionamento mudou com aquele outro sargento.
Um outro caso foi um dia, quando conversei com outros três colegas
enquanto estávamos “em formação”; por isso, tivemos que limpar banheiros. Eu me
lembro desses fatos do passado ainda hoje, mas eu acho que sofro punições,
principalmente por causa da minha deficiência física, pois como pode ver, tive
problemas após meus dezoitos anos e acabei numa cadeira de rodas. Para mim, os
próprios obstáculos físicos que existem, como escadas em locais públicos, e que de
uma forma ou de outra há de ser superados, já me fazem sentir punido, apesar de
não ser culpado da necessidade especial que tenho, o que faz o sentimento de ser
ainda mais injusta a punição.
As punições que eu recebi em todos esses lugares marcaram a minha vida.
Das punições que recebi na igreja, eu tenho lembranças, mas acho que foram
menos significativas, porém, as punições que recebi na escola, foram algo que só
tive consciência quando estava no ginásio. Acho que me deixaram marcas. Por isso
penso que acabei por repetir a quarta, quinta e sexta séries. Hoje, quando se fala
em escola ou estudar em grupo, me causa medo, sentimento de incapacidade de
125
estar no meio de pessoas. Agora, em relação ao Tiro de Guerra, foi ruim, mas eu
sabia que era assim com todos. Era diferente na escola, pois havia uma classe
inteira e muitas coisas eram direcionadas a mim especificamente, parecia bem mais
pessoal. No Tiro de Guerra não vejo assim, era com todos e quem fizesse algo de
errado tinha que sofrer mesmo. Acho que foi uma coisa normal, para mim foi válido.
Em relação à igreja, não vou dizer que foram válidas, mas acredito que as
punições não me causaram traumas como a questão com a escola. Acho que na
escola, sim! Ali foram gerados alguns “traumas”. No caso da família, eu acho que
meus pais poderiam me ajudar mais com a questão da escola. Porque, por exemplo,
eu tive que aprender na raça, a fazer a assinatura da minha mãe, porque os bilhetes
vinham todos os dias para casa, e com isso eu sentia que já estava marcado e aí,
qualquer coisa que acontecesse, por mínima que fosse, por ser eu, já era motivo de
se mandar bilhete. Então, quando chegava aqui em casa, que eu tinha que mostrar,
era a pior coisa, porque era só grito!
Tinha uma agenda que a escola dava para os alunos e eu me lembro de uma
ocasião que eu fiquei preocupado por três noites porque eu não sabia como mostrar
para a minha mãe o recado da professora. Aí quando eu mostrei, eu me lembro
direitinho dela falando: “Você está me envergonhando! Eu não sei mais o que fazer!
Eu estou envergonhada!”. Depois disso, eu aprendi direitinho a fazer a assinatura
dela e resolvi o problema.
Bem, em relação ao Tiro de Guerra, eu sei que a minha família não poderia
fazer nada, quanta à igreja eu penso que poderia ser diferente na questão de obrigar
a freqüentar, só isso. Mas em relação à escola... [nesse momento houve um silêncio
profundo e a frase não foi terminada].
MARIANA NOVAES
A professora Mariana Novaes é brasileira, solteira, nascida em Mogi das
Cruzes, em 24 de Abril de 1971. É pedagoga com pós-graduação em Educação
Infantil. Sua entrevista foi concedida na noite do dia 09 de maio de 2007, nas
dependências do Instituto Shaddai, em Mogi das Cruzes. Estava uma noite muito
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fria, mas apesar disso, havia uma grande vontade de participar da pesquisa falando
sobre sua história de vida.
Terça-feira, 15 de maio de 2007, 22h00.
Sou a caçula de três filhos. Meus irmãos são casados, tenho sobrinhos lindos.
Sou professora. Falar da minha infância é meio complicado, porque tem muita coisa
que não lembro, mas enfim... Alguém que foi muito presente na minha infância foi
meu pai, mas eu não me lembro de ter apanhado dele. O olhar dele me dava medo,
muito medo, tenho medo até hoje, é muito forte para mim! Meu pai me bateu apenas
uma vez. Se eu ficar mais relaxada eu conto... [risos] Minha mãe sempre me dava
uns cutucões, e na verdade, eu nunca tive medo dela por causa disso, muito menos
respeito! Eu zombava dela! Não tinha medo de apanhar, não levava a sério!
Eu lembro uma vez que apanhei, eu era muito pequena. Meu tio tinha um
cachorro peludinho, bem gordinho. Minha mãe trabalhava o dia todo e eu ficava com
minha avó. Neste dia, eu sumi da casa da minha avó, saí com o cachorro. Só que eu
era tão pequenininha que, sentava em cima do cachorro e ele me levava... [risos].
Então, eu sumi! Esse dia eu fiquei na casa de uma vizinha... Minha família nunca
poderia imaginar. Quando minha mãe chegou do trabalho, encontrou minha avó toda
desesperada. Aí nesse dia, ela me bateu! Ela diz que nunca fez isso, mas fez. Ela
tirou toda minha roupa e me levou ao banheiro. Eu lembro que era tão pequena que
fiquei com as perninhas dentro do quadradinho do banheiro onde ficava o ralo. Ela
me bateu, bateu e bateu! Só que eu não lembro da dor. Apanhei, mas no outro dia ia
fazer a mesma coisa se pudesse. Isso não era forte o suficiente para me mudar.
Porém, o olhar do meu pai, isso era muito forte!
Eu acho que minha mãe me punia porque nunca teve muita paciência comigo.
Eu acho que vou chorar... [forte emoção]. Eu tinha um “cabelão” muito comprido e
toda vez que ela ia fazer “rabinho”, eu sentia que ela tinha muita raiva, pois ela
puxava muito forte meu cabelo. Apesar de que, eu acho que não parava quieta
mesmo, pois todo mundo diz que eu não parava. Eu era daquelas crianças que
ninguém queria na casa, que mexia em tudo. Eu me lembro desses momentos,
foram muito fortes!
Uma outra vez, eu apanhei por culpa da minha irmã. Eu estava na pré-escola,
127
na época se chamava “prontidão”. Sabe quando começam essas brincadeiras
infantis de beijar? Pois é! Eu fui escovar os dentes lá na escola, na EMEI, e um
menininho correu atrás de mim, junto com vários outros menininhos. Eu saí
correndo, e quando os menininhos me alcançaram, seguraram minha mão, e, ele
acabou me beijando. Lembro-me até hoje desse menininho, queria até encontrá-lo
qualquer dia... [risos]. Era minha irmã que me buscava na escola e a minha vizinha
que tinha visto o que tinha acontecido, porque estava no portão, falou para ela que
eu estava na escola, beijando! Não tinha sido nada disso! Minha irmã contou para
minha mãe. Esse dia eu apanhei também. Minha mãe me bateu com palmadas,
mas, às vezes, me batia com o chinelo do meu pai e à medida que fui crescendo, ela
começou a pegar uma varinha para me bater.
Às vezes ela batia, mas eu não ligava nem um pouco! Ela pegava uma
varinha e eu quebrava, ela pegava outra e eu quebrava também. Eu descobri todos
os esconderijos das varinhas e as quebrava antes dela me bater. Até ela conseguir
outra, aí já passava a raiva. Ela sempre fala, ainda hoje, que deveria ter me batido
mais, que às vezes eu tenho algumas atitudes porque apanhei pouco. Se ela tivesse
me batido mais, não iria agir de algumas maneiras. Então, eu acredito que ela não
me bateu tanto assim, pois eu aprontava muito.
Quando ela me trancava no quarto, eu pulava a janela. Eu ia para a rua, pois
era muito “moleca”. Foi uma fase muito boa da minha vida. Mas, em compensação,
eu nunca tive carinho e presença materna, até mesmo pela história de nossa vida...
[emoção]. Tanto que ela nunca se importou com os meus estudos. Nunca! Sempre
tudo que fiz, foi sozinha! Eu não me lembro muito deste tipo de relação com a minha
mãe. Eu não me lembro dela brincando comigo. Só dessas surras, que não foram
doloridas na hora, mas ficaram na memória. Porém, do meu pai, apesar de ter muito
medo dele, me recordo de alguns passeios que foram muito significativos para mim.
Depois que meus irmãos se casaram, meu pai passou a beber muito, tornou-
se alcoólico. Apesar disso, ele nunca sequer encostou a mão em algum de nós, nem
na minha mãe. Muito pelo contrário, se deixássemos, minha mãe é que batia nele.
Eu lembro que uma vez ela o colocou para fora de casa, para dormir no chão.
[Minha voz acabou... Totalmente psicológico! Como é que pode? Acho melhor você
mudar o tema da sua dissertação... ‘risos’]. Minha mãe que sempre mandava no
meu pai. Na verdade, eu penso que minha mãe se decepcionou muito quando casou
128
e eu acredito que ela não amava meu pai. Até hoje eu acho que minha mãe não
tenha perdoado meu pai pela época que ele bebia muito, apesar de ele ser outro
homem hoje.
A relação com o meu pai era diferente, ele nunca me bateu e eu nunca
respondi a ele, exceto em uma ocasião. Um dia, quando meu irmão já era casado, e
minha irmã ainda namorava, ele chegou bêbado em casa. Nesse dia, eu respondi
muito a ele, eu não lembro o que ele me falou, só sei que eu respondi. Ele estava
bêbado e veio para cima de mim, para me bater. Quando ele veio, eu deitei na cama
e empurrei os dois pés nele! Mas foi só isso que aconteceu, parou por aí!
Quanto à minha mãe, eu acredito que ela tinha essa prática porque ela não
tinha controle de si mesma. Minha família diz que ela sofreu muito com a bebedeira
do meu pai. Ela também ficou muito doente, inclusive na época do meu nascimento.
Ela era uma pessoa, como posso dizer, sem paciência nenhuma. A única coisa que
ela sabia era bater. Meus irmãos eram mais pacatos e por isso ela não tinha com
eles essa relação de bater. Comigo, eu acho que às vezes que ela bateu, foi porque
não sabia fazer outra coisa, ela não sabia conversar, nem me explicar porque estava
batendo. Por exemplo, quando eu sumi, ela só me bateu, não falou nada; e, na outra
vez, a mesma coisa, ela só bateu, pois acreditou na minha irmã. Dessa vez eu
chorava muito e falava que era mentira, nessa eu falei muitas vezes, mas não
adiantou. Na época, eu fiquei com raiva da minha irmã, pois eu acho que ela tramou
tudo só para me ver apanhando. Poderia ser diferente, mas pela condição de vida e
emocional, não seria de outra maneira. Eu até acredito que ela tenha batido pouco
pelo que eu fazia! Ela poderia ter me batido muito mais! No caso do dia em que eu
sumi, acredito que mereci apanhar. Eu mereci apanhar mesmo! Porque eu sumi! Eu
sempre fui muito rueira... [risos]
Apesar de apanhar, meu comportamento não mudava, eu continuava fazendo
o que fazia! Eu apanhava e esquecia logo em seguida. Eu acho que até hoje eu
esqueço as coisas fácil demais. Eu gosto de ir ao fundo de qualquer sofrimento. Eu
prefiro sofrer para ver o que vai acontecer do que deixar as coisas de lado. Eu acho
que devo ser masoquista... [risos]. Por exemplo, eu digo que não guardo as coisas,
mas talvez hoje, adulta, eu esteja descobrindo muitas coisas que guardei.
A minha relação com o apanhar era assim: apanhei hoje, vou apanhar
amanhã também, por mim posso apanhar, mas vou quebrar todas as varinhas que
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encontrar. Minha mãe falava que ia me bater e eu dizia: “Pode pegar porque eu vou
quebrar! Vou quebrar quantas forem necessárias!”. No momento que apanhava, de
minha mãe não tinha “peso” nenhum, mas, se eu apanhasse do meu pai, seria
diferente, com certeza. Eu não admitia errar com o meu pai. Com o meu pai, não! Eu
acho que minha mãe falava muito. Falava tanto e não cumpria nada.
Eu não tenho noção da dor de apanhar, tanto que eu acho incrível a minha
irmã ter bastante essa noção. Ela fica muito indignada com algumas coisas com as
quais eu não fico. Na verdade, não é que eu não fique, mas se eu vir, por exemplo,
no telejornal, que uma babá bateu em um bebê, isso não me toca, entendeu? Não
sei me expressar direito, mas, apesar de não conseguir ver as cenas, não fico assim:
“Nossa! Coitada da criança!”. Sinceramente, eu não fico. Eu nunca fiquei assim.
Tenho muito medo da punição verbal. Por exemplo, do que você fala com o
teu aluno. Eu acho que muitos professores hoje, principalmente os professores com
quem convivo, fazem muito pior do que se batessem. Talvez eu pense assim pelo
fato da punição verbal ter sido mais significativa na minha vida do que a própria
palmada em si. Apesar de que, quando a minha mãe me batia, não tinha lugar para
bater, onde acertasse, acertava. Mesmo assim, eu acho que essa prática não
deveria existir. É o cúmulo! Existem outras formas.
Eu penso que quando você inicia, na vida de uma criança, a conversa, você
encontra um caminho adequado. Acho que é bem assim na hora de educar: “Não,
não. Sim, sim”. Acho que deveria ser assim. Eu percebo muito isso na vida da minha
irmã, ela é um exemplo de educadora. Os filhos dela são crianças terríveis, são
normais, mas são terríveis, e ela, sabe lhe dar muito bem com isso. O que pode,
pode! O que não pode, não pode! Aprenderam assim desde muito pequenininhos.
Então, eles sabem o que pode e o que não pode. E aprenderam somente com
conversas, ela nunca precisou bater. A não ser agora, pois a minha sobrinha é
terrível. Minha irmã diz que só com a “vara”, bem como a Bíblia afirma, só com a
“vara”.
Sou totalmente contra bater e outras coisas desse tipo, beliscão, por exemplo.
Beliscão, eu levei bastante! Eu me lembro também de um dia que minha mãe me
bateu na mão e desde então, nunca mais esqueci. Isso foi muito positivo na minha
vida, muito! Eu até conto isso para os meus alunos.
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Era natal e havia aquelas “banquinhas” de cartões “de-para”. Eu achei um
lindo e peguei. Mas peguei sem ter noção de que estava roubando, eu devia ter uns
cinco ou seis anos. Eu lembro que tinha ido comprar material para a escola. Na volta
quando cheguei ao ponto de ônibus e mostrei para minha mãe... Nossa! Ela me deu
um tapa na mão! Só que ela me deu um tapa e depois me explicou porque tinha feito
aquilo. Então, eu nunca mais peguei nada de qualquer lugar sem pedir, até hoje é
assim, eu sempre peço. Quando eu estou com os meus alunos explicando que não
se deve mexer nos materiais dos outros, eu conto essa história. Esse tapa foi muito
positivo! Mas, beliscão, puxar orelha e coisas deste tipo, eu acho um absurdo! Hoje
posso dizer que eu não ousaria bater numa criança. Eu nunca tive vontade de bater!
Bem... Talvez... Só um pouquinho no bumbum... [risos]
Quinta-feira, 24 de maio de 2007, 20h00.
Em relação à escola, eu nunca sofri nenhum tipo de punição corporal, mas já
me senti muitas vezes punida. Uma coisa muito interessante aconteceu quando eu
estava na terceira série. Um dia, eu ganhei um cachorrinho e o perdi no mesmo dia.
Aí quando eu estava indo para escola, encontrei o cachorrinho no meio do caminho
e resolvi levá-lo comigo. Ele não era um cachorro de raça, mas era um cachorro
bonitinho. Ao chegar à escola, quando a professora viu o cachorro, falou na frente
de todo mundo: “onde já se viu você pegar um cachorro desses? Você não pode
ficar com o cachorro aqui! Ele está cheio de sarna! É um vira-lata!” E não era nada
daquilo! Eu disse que não ia soltar o cachorro, ia ficar na aula com ele, porque eu
não podia perdê-lo novamente. Ela me mandou sair e resolver o problema do
cachorro. Eu fui para casa da minha tia e levei o cachorro para lá. Mas me senti
muito punida pelo fato dela ter falado tudo aquilo na frente de todos.
Um outro fato se deu quando eu estava na sétima série. Eu nunca gostei de
Matemática, sempre tive muita dificuldade. Eu tinha uma prova na quinta aula e aí fui
apenas no momento da prova porque eu queria assistir a um filme. Fiquei sabendo
que uma amiga havia contado para a professora o motivo pelo qual eu não tinha ido
às aulas que antecederam a prova. Quando eu cheguei à sala, a professora me
expôs na frente de todos, passando o maior sermão e não me deixando fazer a
prova. Na época não atribuíam notas, mas conceitos e ela me atribuiu um “D” de
131
bimestre. Naquele tempo, é bem diferente dos dias de hoje, o que o professor falava
ou fazia, ninguém questionava! Então fiquei com aquele “D” tive que me esforçar
muito para não repetir o ano. Eu acho que foi uma punição que me marcou bastante.
Lembro também que houve um outro episódio de punição que foi ainda pior
porque acarretou problemas na minha vida profissional, no sentido de que, me
tornou mais insegura em relação à minha auto-confiança. O fato é que eu tive uma
professora de educação artística na oitava série que tinha sido professora da minha
irmã também, por isso ela conhecia o talento dela. Eu nunca gostei de desenhar e
nem sei fazer isso e minha irmã sempre foi muito talentosa para essas coisas, ela
sempre desenhou muito bem. Ela havia pedido um trabalho e eu me dediquei, fiquei
o tempo todo fazendo e acabou ficando muito bem feito, tanto que, quando eu
cheguei à sala de aula ela disse que não havia sido eu quem tinha feito o trabalho,
que tinha sido minha irmã. Isso aconteceu diante de todos os alunos. Eu acho que,
na época, as pessoas tinham o costume de expor as coisas dessa maneira. Eu disse
que havia sido eu, mas não adiantou. Apesar de ter feito aquele trabalho, me senti
completamente “pra baixo”, acabada! Rasguei o trabalho na frente dela e saí da
sala. Acho que depois ela refletiu e até percebeu, pela minha reação, que havia sido
eu, mas já era tarde. Isso fez com eu nunca mais tentasse desenhar. Como eu
sempre quis ser professora, tinha isso dentro de mim, o que aconteceu se tornou um
problema. Eu lembro que até minha mãe dizia que eu não poderia ser professora,
pois eu não sabia desenhar. Isso reforçou ainda mais meu complexo. No fim, eu
acabei sendo professora na área de Educação Infantil e mesmo assim, sempre tive
muito medo de desenhar, de expor meus desenhos às criancinhas.
Eu me recordo de uma vez que eu tive que substituir a professora de uma
quarta série e tive que fazer um desenho na lousa. Aquilo foi muito difícil, porque as
crianças de uma quarta série já se expressam bem, criticam, não é? Naquele dia eu
desenhei e me lembrei de que na educação infantil era assim, as crianças desenham
e acham que tudo está lindo. Isso me fez refletir e depois daquele dia eu voltei a
desenhar. A desenhar da minha maneira! Eu lembro disso porque me marcou muito.
Acho que eu tive muita punição verbal na minha infância.
Estou me lembrando de uma punição que sofri no primeiro ano do magistério
por um professor de Biologia. Eu tinha que escrever uma palavra na lousa. Até hoje
eu não sei falar direito isso, acho que é “ácido desoxirribonucléico”, o “DNA”. Aí eu
132
escrevi errado e, apesar de tentar corrigir, não conseguia escrever certo. Nesse dia,
eu fui fazer uma prova e ele me fez escrever na lousa, eu não conseguia acertar, eu
escrevi várias vezes. Na época, eu não percebia que estava sendo ridicularizada na
frente de todos. Eu acho que isso os professores ainda usam muito, mesmo que
inconscientemente. Isso também foi bem forte!
Eu nasci numa família católica e quando eu tinha mais ou menos uns dez
anos eu comecei a freqüentar a Igreja Batista. Sempre fui uma pessoa muito
dedicada e tive sempre ótimos relacionamentos como meus professores lá dentro.
Eles foram muito positivos na minha vida. Porém, eles me mostraram sempre um
Deus que castiga muito. Muitas vezes, para resolver pequenas situações de
comportamento na infância ou na adolescência, eles utilizavam Deus. Diziam que
Deus não gostava, que ele castigaria. Isso foi muito forte porque nós ficávamos com
medo de passear, sair com amigos, descobrir o mundo. Mas eu não me lembro de
ninguém nunca me expondo. Percebo que muito do que sou hoje tem um pouco dos
meus professores de escola bíblica dominical. A influência deles, principalmente na
minha adolescência foi muito forte. Agora, essa idéia que passavam de que Deus
castiga muito, você acaba trazendo para a fase adulta.
Em relação ao Estado, eu penso que ele acaba punindo o tempo todo, pois
ele tem as leis e toda uma organização para isso, mas quando você olha a prática
no cotidiano, por exemplo, a o sistema judiciário, é tudo diferente. Por exemplo, eu
ganhei uma ação na justiça, de mais de dezesseis anos de trabalho, mas até hoje
não recebi, porque é muita burocracia. Você não tem respostas, ninguém te orienta,
em minha opinião, os idosos são os que mais sofrem com isso. Contudo, as pessoas
mais esclarecidas ou influentes na sociedade, estão são favorecidas. Acho isso um
tipo de punição! É isso!
CARMEN REGINA PALUCCI
Nascida na cidade de Mogi das Cruzes, em 19 de Fevereiro de1974, Carmen
Regina Palucci é solteira, bacharel em Direito e concedeu esta entrevista nas
dependências do Instituto de Ensino e Educação Cristã Shaddai na tarde do dia 10
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de maio de 2007. Momentos antes de começar a entrevista, Carmen se emocionou
ao começar a se lembrar de momentos de sua infância.
Quarta-feira, 16 de maio de 2007, 15h30.
Quando eu penso a respeito da punição corporal, eu lembro principalmente
de dois fatos na minha vida. Eu apanhei muito porque eu era bastante levada, mas
eram tapas que, às vezes, não deixavam marcas, porque eram “tapinhas de nada”
que a minha mãe me dava. Mas, eu lembro muito bem de uma surra que levei do
meu pai quando tinha três anos. Ele chegou em casa para almoçar e, eu, como
criança, ficava brincando até o último minuto antes de ir ao banheiro. Muitas vezes,
não conseguia chegar ao banheiro a tempo e acabava fazendo “xixi” na roupa.
Minha mãe havia reclamado com meu pai por eu ter feito “xixi” em muitas calças e
deixado todas as calcinhas sujas. Nesse dia, meu pai me chamou e conversou
comigo dizendo: “Ah, filha não pode fazer ‘xixi’ na calça, porque isso não é coisa de
criança, de princesinha”. Aquela coisa de conversa de pai! Eu me lembro que saí da
sala e acabei fazendo “xixi” na calça de novo. Voltei, olhei para ele e falei: “eu fiz, eu
fiz!”. Ele levou aquilo como uma afronta, como se eu tivesse lhe desobedecido.
Eu lembro, até hoje, que o meu pai nunca foi de ir até onde estávamos para
brigar. Ele chamava e falava: “venha até aqui porque você vai apanhar ou porque
você vai ficar de castigo”. Naquele dia ele me chamou e disse: “venha até aqui
porque agora você vai apanhar!”. E eu apanhei mesmo, muito! E eu lembro até hoje
que, daquele dia em diante, nunca mais fiz “xixi” na calça. Apesar de que, eu me
lembro também de, algumas vezes, estar indo ao banheiro e acabar molhando um
pouquinho. Eu já começava a chorar porque achava que ele ia me bater de novo.
Naquele dia, ele me bateu com palmadas! Ele deu muitos tapas no bumbum! Então,
eu apanhei bastante, e isso me marcou, porque passei a ter medo sempre de não
conseguir chegar ao banheiro e levar aquela surra de novo.
Eu não fazia coisas erradas, mesmo tendo vontade, para não apanhar
novamente. Assim eu fui crescendo com medo do meu pai. Eu percebi, com certa
idade, que eu não tinha respeito por ele. Eu não lhe obedecia porque eu o
respeitava, eu lhe obedecia porque eu tinha medo de apanhar. Eu achava que,
mesmo crescida, ele ia me bater. Mas, quando eu cheguei a certa idade, eu percebi
134
que podia enfrentá-lo. Acredito que, por volta de uns dezoito ou dezenove anos,
quando eu já tinha certa independência financeira, pois já trabalhava, percebi que
não precisava mais ter medo e aí, eu o desrespeitava. Eu o enfrentava como se
fosse uma pessoa qualquer, não o meu pai! E até hoje é assim, eu converso com
ele, discuto com ele não como pai e filha, mas sempre como um homem e uma
mulher. Eu não tenho medo mais dele. Eu também não criei um vínculo de respeito
com ele, nunca! Eu criei um vínculo de medo e quando eu percebi que não
precisava ter mais medo, porque eu podia arcar com as conseqüências, comecei a
enfrentá-lo.
Outro episódio de que me lembro, aconteceu no início da minha adolescência,
devia ter uns treze ou catorze anos. Eu discuti muito com minha mãe e ela mandou
que eu fosse para o quarto: “Vai pro quarto!”, brigou muito comigo. Quando eu
cheguei ao quarto, achei que se eu fizesse um escândalo muito grande ia poder sair
dali, então comecei a gritar. Gritava muito alto. Eu gritava que queria morrer, que eu
preferia não estar naquela família porque eles estavam judiando de mim. Minha mãe
foi até lá e falou assim: “Olha, já que você falou que nós judiamos de você, agora
você vai saber o que é judiar”. Ela me pegou pelos braços e me sacudia, me jogava
contra a parede. Como eu já era mocinha e usava sutiã, o fecho do sutiã foi
pressionando minhas costas. Ela deve ter me jogado muitas vezes porque, depois
disso, eu cheguei a sangrar a tal ponto que, pelo machucado que fez, o sangue
escorria pelas minhas costas.
Foram coisas que me marcaram bastante, mas que não adiantaram, porque
ela não conseguiu nada com aquilo. Ela me bateu, mas ela não conseguiu que eu
mudasse de atitude. Eu apanhei! Ótimo! Continuei sendo a mesma coisa! Não foi
como o caso com meu pai. Quando eu era criança, eu tinha medo, então eu não
fazia para não apanhar. Neste caso, como eu já era adolescente, se eu apanhasse
de novo não tinha problema, eu continuava desobedecendo do mesmo jeito. Para
mim não foi uma correção, foi só um fato que marcou. Até hoje me lembro do que
aconteceu: ela me jogando contra a parede, batendo minha cabeça e ferindo minhas
costas. Depois, eu fiz questão de mostrar para todo mundo o que ela tinha feito. Eu
falava: “olha, ela me agrediu, ela machucou minha costas”. Eu fiquei bem apavorada
mesmo. Até hoje eu lembro... [emoção]. Quando o assunto é apanhar, são as duas
cenas que vêm à minha mente, até hoje!
135
Outro caso aconteceu com meu irmão. Eu deveria ter uns quatro anos. Ele
tinha medo de escuro, então achava que quando apagasse a luz, apareceriam
monstros e toda vez ele chorava. Meu pai o levava para a cama dele e da minha
mãe e meu irmão acabava sempre dormindo ali. Já com uns cinco anos, meu pai
conversou bastante com ele, levou ao psicólogo e de acordo com ele, noventa por
cento era manha e que os dez por cento restantes poderiam ter sido por algum tipo
de trauma. Quando meu pai soube disso, falou naquele mesmo dia que o trauma
poderia não ter cura, mas os noventa por cento iriam ser curados naquela noite.
Não preciso nem dizer, como sempre naquela noite meu irmão chorou. Meu
pai acendeu a luz e explicou que não tinha monstro, que não tinha nada e foi para o
quarto dele. O meu irmão continuou chorando. Ele voltou e disse: “Não tem monstro!
Papai já falou que não tem monstro!”, mas mesmo assim ele continuou chorando.
Meu pai voltou com um cinto na mão e bateu no meu irmão. Mas meu pai não sabe
bater, é um ser humano que não sabe bater! Ele bateu tanto no meu irmão com a
cinta que a minha mãe ficou desesperada e tentou faze-lo parar, mas meu pai dizia:
“Se você ficar aqui vai apanhar junto com ele, então você saia daqui porque ele vai
aprender a não ter mais medo de monstro”. Ele ficava encolhidinho no cantinho da
cama, pedindo pro meu pai parar de bater, mas meu pai não parava de bater. Bateu
tanto, que deixou meu irmão com o corpo todo cheio de marcas, nas costas, nas
pernas. Meu pai não olhava onde estava batendo, onde o cinto pegasse, pegava.
Ele ficou com várias marcas do cinto pelo corpo todo. Eu acredito que ele até podia
ver monstros nas outras noites, mas a surra foi tão grande, que jamais pediria
socorro pro meu pai novamente.
Meu irmão até hoje tem uma resistência com meu pai. Eles não são amigos,
não são de conversar e contar as coisas. Meu irmão conversa muito comigo ou com
minha mãe, mas somente conversa o essencial com meu pai. Não sei dizer se ele
criou uma resistência pelo que aconteceu, porque não comentamos sobre o assunto,
mas eu acredito que sim. Ainda hoje, eu lembro da cena dele encolhido na cama,
com medo do meu pai bater. São os três fatos que marcaram a minha infância.
Eu penso que a atitude deles, na verdade, é fruto de uma educação que veio
desde a época dos meus avós, bisavôs e tataravôs, passando de geração em
geração. Errou, tem que apanhar! Errou, apanha! Como se fosse uma punição. Eu
penso que eles tentaram educar da mesma forma como foram educados. Apesar de
136
que, a minha mãe, que eu saiba, não apanhou muito, porque ela morou muito tempo
na casa de outras pessoas, então, eu não sei como era a relação com as pessoas
com as quais ela morava, até porque minha avó sempre foi muito carinhosa, mesmo
com os netos, ainda hoje, ela é muito amorosa.
Em compensação, a mãe do meu pai é muito seca, teve que mudar a vida de
casada muito cedo, porque o meu avô se separou dela, então ela teve que lutar
sozinha para sustentar os filhos. Acredito que ela não era uma mãe carinhosa,
porque até antes de falecer ela não era muito de “beijos e abraços” com ninguém.
Nós chegávamos a casa dela, cumprimentávamos e nada mais, então, acredito que
eles não tiveram muito carinho. Eles eram tratados dessa forma e por isso acabaram
refletindo nos filhos aquilo que eles viveram. Acredito até que eles se arrependiam
depois, mas não podiam se desculpar por causa da posição de “autoridade” que eles
tinham que ter sobre os filhos. Penso que eles pensavam assim: “Agora, se eu pedir
desculpas porque bati, ela vai achar que eu não sou tão durão e vai acabar fazendo
de novo”. Então, acabavam permanecendo naquela postura para que não
perdessem a “autoridade” que eles estavam impondo.
Acredito que essas atitudes fizeram com que eu quisesse provar algo para
eles, então, eu pensava assim “agora eu vou mostrar que não vou errar mais”. Até
hoje comigo é assim, eu não gosto de errar, sempre acho que, quando eu erro, eles
vão me punir de alguma forma, eles vão me castigar de alguma maneira. Hoje em
dia, não me batendo, mas, com uma palavra ou com um gesto, uma fisionomia de
decepção. Eu procuro sempre estar muito correta para não decepcionar e não ser
rejeitada por eles. Tenho medo deles falarem: “Ah, você, você errou, você não está
certa, eu fiquei triste com isso que você fez, eu estou magoado!”.
Eu acredito que a forma mais comum de punir hoje não é mais tão física, mas
moral. Isso fez com que eu e, quem sabe, meu irmão, tivéssemos uma posição de
acreditar que não se pode errar. Eu me cobro para não errar. Para que eu não
receba uma atitude contrária por parte deles, uma atitude punitiva. Hoje em dia,
quando eu erro, eles têm mais carinho do que antes, acho que uma preocupação de
mostrar: “eu estou com você, mesmo que esteja errada, eu amo você do jeito que
você é”. Mas mesmo assim, eu não me sinto à vontade com eles numa situação ou
circunstância que envolva “erro”.
Lembro de outro fato quando fazia um curso de secretariado e resolvi desistir.
137
Avisei que ia largar o curso e falei: “olha, eu não quero, vi que não é o que eu quero
pra mim, então acredito que eu vou ficar reprovada no curso, porque eu vou fazer
outro”, e fui fazer outro curso no antigo segundo grau. Eu lembro que quando peguei
a reprovação, tinha medo de mostrar para eles, porque eu achava que mesmo
sabendo que eu ia reprovar, eles esperavam que eu não reprovasse, então, eu tinha
receio de chegar em casa e mostrar aquela reprovação. Foi interessante a situação,
pois, eles não falaram nada. Sabiam que eu poderia reprovar por não ter ido fazer as
provas finais, mas eu achei que eles iam se sentir decepcionados, então, como era
um “erro”, eu tive medo. Acho que até hoje eu tenho essa relação com eles. Uma
relação de “não errar”, de “estar sempre correta”, de olhar e me preocupar se eles
estão aprovando ou desaprovando minha atitude.
Acredito que a punição física, ou de qualquer outra forma, não traz nada de
bom. Ela gera medo e não respeito. Acho que eles poderiam ter adquirido respeito
por punir de uma boa conversa, ensinando: “Olha! Tudo bem! Você fez de novo!
Você errou de novo, mas papai e mamãe amam você! Papai não gosta quando você
faz isso!”. Numa conversa, pode-se ter opiniões contrárias e ensinar sem precisar
agredir.
Eu digo que às vezes a pessoa não agride fisicamente, mas fala palavras que
machucam mais do que se te dessem um tapa no rosto. Então, eu acho que é
melhor conversar. Acho que se ele tivesse conversado mais vezes comigo, até
porque eu era uma criança de três anos, seria diferente, pois não era uma criança
que tinha consciência do que estava fazendo. Naquele momento que eu voltei para
falar o que eu fiz, eu não queria afrontá-lo, eu queria dizer assim: “Olha! Eu fiz xixi!
Não foi de propósito papai! Eu errei de novo!”. Naquele momento, ele não teve essa
compreensão. Acho que ele poderia ter falado assim: “O papai não conversou com
você? Não falou que princesinha não faz isso?”. E eu, talvez, entendesse melhor e
procurasse não deixar mais isso acontecer. Na verdade, eu sempre tentei acertar
não para agradá-los, não para deixá-los felizes, mas porque eu tinha medo de sofrer
a punição. Eu acredito que a conversa é o melhor caminho.
Às vezes, as pessoas acham que um só tapinha, não tem problema, mas
dependendo, o tapa que é dado e a hora em que é dado, marca a vida da criança. E
se houvesse conversa, ela nunca faria isso novamente, ela entenderia. Com o tapa,
às vezes, a criança até volta a fazer para afrontar, não é mesmo? Eu não tive essa
138
atitude de afronta, eu tive medo.
Quando eu fiz aquele escândalo com minha mãe, se ela não tivesse falado
nada, tivesse ficado quieta, eu ia parar, porque eu ia ver que não estava surtindo
nenhum efeito. Ela poderia ter ficado quieta, ou até ido lá e falado: “Olha, eu não sei
porque você está fazendo esse escândalo, porque ninguém te agrediu, ninguém te
bateu, você está exagerando!”, e, talvez, com a conversa, eu falasse: “É, realmente,
acho que não é por ai, ia me conscientizar do que estava fazendo e não ia fazer de
novo!”. Quando minha mãe machucou minhas as costas, eu tive medo, na hora
chorei e quis distância, mas o resto eu não lembro muito bem. Acho que criança
esquece rápido!
Em relação àquela vez que apanhei do meu pai, eu fui conversar e o abracei,
mas com um pouco de receio por causa do que tinha acontecido, mas relação à
minha mãe, eu lembro que fiquei um bom tempo sem falar com ela. Eu acho que
fiquei algumas semanas sem conversar com ela, falando o estritamente necessário.
Falava “bom dia”, “boa tarde”, “quero isso”, “preciso daquilo”, mas não havia diálogo
verdadeiro. Eu demorei a confiar nela como confiava antes, a conversar sobre o que
se passava comigo. Eu criei uma resistência grande!
Eu acredito que, apesar de voltar a falar com ela depois, voltar a ser amiga e
amar minha mãe do mesmo jeito não aconteceu. Hoje eu não tenho coragem de
falar tudo o que eu gostaria de falar, expor meus sentimentos. Por exemplo, se eu
tiver vontade de gritar, eu seguro o meu grito porque, eu tenho a sensação que se
eu falar mais alto ou gritar, ela pode ma bater de novo. Acho que isso não vai
acontecer porque eu estou numa idade que não se apanha mais, mas eu lembro que
um bom período da minha vida foi assim, eu não respondia, não gritava, porque eu
tinha medo da reação dela de me bater de novo. Eu acho que a raiva maior foi com
a minha mãe, quando fiquei um mês sem falar direito com ela. Na verdade, não era
raiva, era uma forma de puni-la pelo que ela tinha feito: “Ah! Você me bateu agora
você vai sentir a rejeição”. Era para punir, para ela sentir a falta de amor um pouco.
Foi o que eu senti nesses momentos.
Em relação ao que aconteceu com o meu irmão, eu fiquei com dó dele. Fiquei
triste e, eu acho que se eu visse monstros, não iria chamar meu pai, porque iria
apanhar também. Eu criei essa relação: “Se tiver monstros eu não vou chamar o
papai, porque o papai não vai matar os monstros, vai me bater!”. Graças a Deus, eu
139
nunca vi monstros no escuro... [risos]. Mas por causa desse vínculo, mesmo se eu
visse um, eu não teria coragem para ir ao quarto dele pedir socorro.
Apesar de tudo isso, em minha opinião, há momentos em que há a
necessidade de bater. Eu não digo uma punição rígida, de se espancar a criança,
chegar ao exagero, mas eu acho que, depois de conversar várias vezes, após várias
oportunidades e ainda assim, não surtir efeito, pode-se dar um “tapa”. Lógico, não
espancar a criança! Eu sei de casos que o pai não dá um tapa, espanca! Não é isso
que eu falo! Eu quero dizer assim, pode-se mostrar de uma forma mais “forte” que a
pessoa está errada, aí a pessoa muda de atitude... mas sempre tem que ter uma
conversa antes.
Também já vi crianças que extrapolam, isso porque nunca apanharam. Nunca
tiveram uma punição! Falou-se a primeira vez: “Não jogue o copo no chão!”, e ela
joga, quebra o primeiro copo e ainda de propósito. Repete-se: “Não pode jogar no
chão porque quebra, o papai gastou dinheiro!”, aí ela vai e joga um segundo copo de
propósito e joga o terceiro, e o quarto, aí não dá! Conversou umas cinco ou seis
vezes e a criança ainda não entendeu, dá um tapa na mão dela e explica: “Você
está levando um tapa na sua mão porque você quebrou seis copos”.
Penso que, quando já se deram todas as oportunidades possíveis para ela
mudar e já se demonstrou todos os motivos para não fazer... “porque quebra”, “pode
machucar a mão”... E, ainda assim não resolver, então, eu acredito que nessas
situações, cabe dar umas palmadas. Só cabe quando há um extremo, não em
qualquer situação! Como por exemplo, a criança chorou, bate; a criança derrubou
uma coisa, bate; sem querer quebrou algo, bate. Não por uma coisa à toa, mas por
uma atitude cometida que realmente exija uma punição mais forte!
Eu lembro que a minha mãe batia muito, mas depois de certa idade, virou
festa. Mesmo sabendo que nós íamos apanhar, nós aprontávamos, pois sabíamos
que não ia doer, então nem ligávamos. Em outras vezes, saíamos correndo e nos
trancávamos no banheiro. Ficava ela, do lado de fora, querendo bater e, nós do lado
de dentro, dando risada! Havia perdido o significado daquele tapa; na verdade, não
tinha significado nenhum, não mudava nossas atitudes, nem nossa vida.
Conheço pessoas que corrigem seus filhos com vara! Pegam uma varinha,
deixam lá, e, quando a criança erra, batem com a varinha. Não é por aí, a criança
140
tem que ter a oportunidade de conhecer o que é certo e o que é errado. Mas, se ela
extrapolar, pode-se educar de uma outra forma. Antes de bater, ainda tem o “vai
pensar no que você esta fazendo”, “senta ali na cadeirinha do pensamento”, “vai
refletir no seu quarto”. Acho que há várias oportunidades que se pode dar antes de
se chegar a dar um tapa na criança. Acho também que o extremo é o tapa, quando
já se extrapolou todos os limites que poderiam ser aceitáveis. Aí, você dá um tapa
para ver se ela “acorda”. É como se ela tivesse em um tipo de “transe” e você tem
que dar uma sacudida na criança. Neste caso, você pode dar um tapa!
Eu também acho que, quem tem o direito de dar esse tapa é o pai e a mãe.
Não é qualquer pessoa que pode bater, educar dessa forma. Professor não tem que
encostar a mão na criança, pois existem várias outras formas de educar. Eu já dei
aula, tive um aluno que, era daqueles de subir na cadeira e quase quebrar a escola,
e, eu chegar e falar assim: “você vai sentar ali e pensar no que você está fazendo,
isso não é legal, a titia não gosta”. Muitas vezes ele não repetia mais a atitude,
porque sabia que não era legal. Não porque a professora “mandou” e nem porque
tinha “apanhado”, mas porque entendeu. Nunca encostei a mão em nenhum aluno...
Eles me obedeciam!
Eu lembro que a diretora falava: “Nossa! Sua classe é tão quietinha. Não sei
como você consegue por ordem”. Eu conseguia, porque conversava. Hora de brincar
é hora de brincar, e hora de fazer lição, é hora de fazer lição. Quando você coloca
os limites para a criança e ela sabe os limites dela, ela não ultrapassa, ela respeita.
Mas, ela tem que entender os limites. Se ela não entender, vai extrapolar. Você
pode explicar dez vezes e se não resolver, aí você iria lá e, vamos dizer, daria um
tapa. Mas, se você começar a explicar os limites, ela consegue entender, a criança
não é um ser que não pensa, às vezes, ela pensa muito mais do que um adulto.
Então, eu acho que pai e mãe podem “encostar a mão”, mas professor, tio,
primo ou qualquer outro parente, não. Eu ainda aceito o avô e a avó, porque são
“pais duas vezes”. Pais e avós podem porque são as pessoas mais próximas da
criança, mas, uma pessoa estranha ao meio social dela, ou mesmo uma professora
que não sabe como a criança vive dentro de casa, vai lá e “enfia a mão” na criança,
isso não!
Às vezes, a atitude da criança é uma reação ao que ela está passando dentro
de casa. Houve mais de um caso de alunos que eram rebeldes dentro de casa
141
porque a mãe teve um bebê e já não davam a mesma atenção de antes. Então, eles
acabavam extrapolando na escola. Lembro de um caso que a maneira de conseguir
atenção da mãe era com os bilhetes de reclamação que vinham da escola, o que
fazia com que ela sentasse e conversasse com ele. Às vezes, a atitude de uma
criança não é por ser uma criança levada ou mal educada, é estar refletindo uma
situação que se está vivendo. Primeiro, tem que se conhecer o “histórico”, para
depois se tomar uma atitude. Mesmo assim, nunca bater, pois o professor não é
uma pessoa tão próxima. Porém, o pai e a mãe, que estão convivendo o tempo
inteiro, sabem o que está se passando dentro de casa, sabem o que se passa na
escola, sabem de toda a situação e se acharem que há necessidade, em caso
extremo, tudo bem! Vai e dá um tapa na criança! É assim que vejo as coisas.
Bem, confesso que foi meio estranho falar sobre tudo isso. Quando eu contei
as histórias de criança, senti um “aperto no coração”... [emoção]. Deu vontade de
chorar, porque eu lembrei do que eu passei, daquilo que “doeu”. Uma experiência
ruim na minha vida! Quando se tem essas experiências, não se gosta muito de
lembrar. Guarda-se para sempre e não se gosta nem de falar, tanto que na minha
casa não se comenta nada sobre esses fatos, porque é ruim. Nós ficamos tristes,
então não se comenta. Eu senti essa sensação estranha, pois já é ruim falar de si
mesma e ainda de uma situação que marcou negativamente, é mais ainda. É
estranho expor o que se pensa sobre a punição corporal, pois nem sempre é o que
todo mundo pensa. Eu não me senti muito a vontade em falar a respeito.
Quinta-feira, 24 de maio de 2007, 21h00.
Em relação à escola, eu tive quase toda minha formação em um colégio
adventista, eles não tinham como prática esse tipo de punição corporal, nunca nos
puniram fisicamente. As punições que recebíamos eram privações do horário de
recreio. Quando se fazia algo de errado não deixavam-nos sair para o intervalo, ou
então, quando um professor era desrespeitado mandavam-nos escrever cinqüenta
ou cem vezes na lousa “devo respeitar meu professor”.
Eu lembro uma vez que estava bagunçando ou conversando com uma amiga
e não prestei atenção na aula, aí, como punição, a professora mandou escrever
umas cem vezes “não devo conversar na sala de aula”. Eu fiquei escrevendo
142
durante todo o intervalo e depois da aula também, a ponto de perder a perua escolar
e ter que voltar à pé para casa. Mas, fisicamente, assim como a minha mãe contava
que acontecia ano tempo dela, como a palmatória ou ajoelhar no milho. Graças a
Deus nós nunca passamos. Apesar de a escola ser muito rígida até por ser de
confissão religiosa, não havia nada de muito punitivo, só isso que contei.
Eu sou de “berço” evangélico, minha mãe era espírita e meu pai evangélico e
eu cresci nesse meio, minha formação é essa. A igreja era um auxílio para nossa
família, não havia nenhum tipo de punição corporal. Eu acredito que a punição
ocorria mais pela influência dos ensinamentos religiosos e que acabava fazendo
com que você se punisse na sua própria consciência. Por exemplo, a igreja ensinava
que mentir é errado, que a mentira é pecado e aí, quando você mente, você mesmo
se puni, fica se sentindo culpado. Daí você tem que orar e pedir perdão rápido para
que nada de mal lhe aconteça, a punição acontecia dessa forma, mas eu já vivi
situações um pouco piores. Quando se faz algo que diante do grupo é uma falta
considerada mais grave, então levam a pessoa diante do grupo e expondo o
problema dela, lhe punem com privações das atividades, funções e outras coisas.
Eu lembro que havia cometido um erro, que não vem ao caso citar... [risos]. Aí
eu fui levada diante de todos e eles falaram que eu tinha pecado contra a Igreja e
contra Deus e que eu estava em “disciplina”. Esse período durou três meses,
enquanto isso eu devia freqüentar as reuniões, mas não podia participar ativamente
de nada, perdi as minhas funções e fui proibida de participar de um momento
especial que é a “Ceia do Senhor”. Eu cumpri os três meses e depois me afastei da
igreja, pois eu achei que aquilo não combinava comigo. A punição que ocorria era
muito mais moral ou emocional do que propriamente física dentro da igreja.
Em relação ao Estado é diferente, a punição é ainda mais discreta, porque ele
nos pune sem, às vezes, nem nos dávamos conta; por exemplo, quando não se tem
uma condição financeira boa, não se consegue ingressar em um bom colégio, em
uma faculdade, eu vejo isso como uma forma de punição. Isso aconteceu comigo!
Eu acho que eu não consegui entrar numa faculdade de renome porque, depois de
um tempo, eu tive que mudar de escola e freqüentar uma escola pública no ensino
médio e daí não tive condições ideais, porque eu não tive uma base daquilo que é
exigido para se conseguir entrar. Então, eu me sinto punida dessa forma. Por isso e
outros motivos eu acho que somos punidos pelo Estado de uma forma discreta.
Quando se tem uma condição financeira mais favorável, nível cultural ou uma
143
posição social diferenciada, a pessoa é favorecida. Com isso, as que não têm, são
punidas de forma discreta por meio de discriminações, isso acontece a todo o
momento! Muitas vezes, a punição não ocorre diretamente, mas até por olhares e
atitudes que são praticadas, as pessoas são punidas! É isto que eu penso!
ANÁLISE DAS ENTREVISTAS
“No início da socialização podem se colocar condições que
impliquem uma ausência de emancipação durante toda a vida.”
Hellmut Becker
Ao mesmo tempo em que, na cultura se produz a alienação,
contraditoriamente, nela também, se trava o embate do sujeito consigo mesmo com
vistas à sua libertação. Por isso, refletir sobre uma prática que tem sido, geração
após geração, sistematicamente condicionada do ponto de vista ideológico, contém
a perspectiva de se deparar com vários desafios. Se, o próprio ato em si de reflexão,
já se defronta com tal perspectiva, pode-se supor que uma boa parte dos indivíduos
viva esse paradoxo, ou seja, enquanto a alienação, por meio de uma vida
condicionada ideologicamente desenvolve sua auto-afirmação sob a lógica da
dominação, a consciência se apresenta impedida de emergir. Mesmo estando
presentes os elementos que possibilitam uma auto-reflexão, estes não constituem
força suficiente para produzir a superação de uma prática alienada que, ao mesmo
tempo produz um efeito alienante: a prática da punição corporal.
227
Diante disso, ainda que, com risco desse desafio não ser superado, foi opção
analisar as narrativas com base em um recorte à partir da Teoria Crítica da
Sociedade, na forma de um diálogo que não tem por pretensão esgotar o que cada
uma delas possa revelar, mas iniciando-se daquilo que já se percebe, buscar na
teoria, elementos que permitam um processo reflexivo sobre a prática tendo como
227
ROGGERO, Rosemary, A Vida Simulada no Capitalismo - um estudo sobre formação e trabalho na
arquitetura. Tese de Doutoramento. Programa de Educação: História e Filosofia. São Paulo: Pontifícia
Universidade Católica, julho de 2001.
144
ponto de partida, como propõem Adorno e Horkheimer
228
, o “exame das instituições
coisificadas”, as quais atuam como mediadoras das relações funcionais entre os
homens, e, aproveitando o que a História de Vida, como metodologia, proporciona
como subsídio empírico: a expressão da subjetividade manifesta por indivíduos que
vivenciaram situações de punição corporal.
Sobre isso, as narrativas oferecem elementos consistentes para a análise. A
dimensão emocional é manifestada em diversos momentos das entrevistas, ora por
reações de profundo silêncio, ora pela indignação expressa por meio de frases
incisivas, tons de voz alterados, olhos lacrimejantes e batidas de mão à mesa. Todos
os entrevistados, em mais de um momento, trazem à tona esta dimensão que,
dentre outras coisas, remete à importância social da discussão da prática da punição
corporal na sociedade contemporânea.
Inicialmente, as narrativas já revelaram dois aspectos que chamam a atenção
sobre a relação da punição corporal com as instituições sociais, o que possibilitou a
análise sob duas perspectivas que se complementam. A primeira refere-se ao ato
em si da punição corporal aplicada dentro de cada instituição. A segunda revela o
fenômeno que exigiu o novo encontro com cada entrevistado: a Família concentra o
principal núcleo de reprodução ideológica da prática de punição corporal na
sociedade, na medida em que, converge para si, toda a lógica desenvolvida também
pelas outras instituições.
Apesar de logo no primeiro contato com os entrevistados, serem explícitos os
propósitos e principais aspectos relacionados ao objeto da pesquisa,
interessantemente houve uma tendência dos entrevistados, com exceção de um
deles, a fixarem seus depoimentos espontaneamente nas suas experiências de
punição corporal ocorridas no ambiente familiar. Diante do fato não previsto, um
segundo encontro foi marcado para se pudesse registrar as experiências vividas
relacionadas às demais instituições sociais relacionadas à pesquisa, além de se
constituir como um novo fenômeno de relevância para a análise na pesquisa.
Duas narrativas em particular revelaram formas distintas de punições
corporais aplicadas pelo Estado, a de Rodolfo e a de Johann. As punições que
Rodolfo recebeu já se constituem atos de agressão e abuso de poder, o que a forma
228
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Indivíduo. Temas Básicos da Sociologia. 2 ed. São Paulo:
Cultrix, 1978, p.26
145
da lei já se ocupa de enquadrar, ou seja, o ato em si não está mascarado, apesar da
prática realizada por policiais, já denunciarem a alienação que existe no próprio
sistema, pois, como “guardiões” da lei e da ordem, representantes legais do Estado,
haveriam de cumprir suas funções de proteger a integridade do cidadão e dos seus
bens, diferente do ocorrido. Tais os fatos em si, apesar de concretizar a barbárie, já
se revelam por si só contraditórios: “Cada vez que eu e perguntava recebia um soco
na cabeça ou nas costas... Quando cheguei lá me fizeram tirar a roupa, me deixaram
de cueca e meias em uma cela cheirando a urina e fezes... Pela noite eles
passavam o cacetete nas grades para que não dormíssemos”. A narrativa de
Rodolfo se aproxima das práticas de tortura que eram realizadas na idade média
(cap.I, p.45), assim como, evidencia essa lógica de dominação nas relações de
autoridade, como apontado por Antunes (cap.II, p.81).
Na narrativa de Johann, as punições apresentam um outro nível de
sofisticação ideológica, visto que, diferentemente da experiência narrada por
Rodolfo, a de Johann concretiza-se dentro da legalidade, ou seja, do ponto de vista
social, não houve crime, pois não é juridicamente considerada violência, apesar
desta, estar presente ideologicamente da mesma maneira. Entretanto, neste
episódio, um fator se revela alienante, pois a aplicação da punição entendida como
não pessoal, gera uma aceitação inconsciente da ideologia, mesmo que arbitrária.
Neste caso, a lógica se apresenta, ainda que não camuflada em sua totalidade,
alienante na medida em que é considerada positiva. Essa força pode ser observada
na fala de Johann: “Era diferente na escola, pois havia uma classe inteira e muitas
coisas eram direcionadas a mim especificamente, parecia bem mais pessoal. No tiro
de guerra não vejo assim, era com todos e quem fizesse algo de errado tinha que
sofrer mesmo. Acho que foi uma coisa normal, para mim foi válido”.
A despeito da naturalização, pode ser observada logo na primeira narrativa, a
de Rodolfo. Ela não ocorre para o indivíduo que sofre a punição, mas para os que,
representantes da “ordem” e em nome dela, tornam-se, contraditoriamente,
criminosos. Um segundo grau aparece na segunda narrativa – a de Johann –
quando, apesar dos momentos de humilhação, dos gritos recebidos e da punição de
lavar banheiros, tais momentos não constituíram carga emocional negativa como as
recebidas na escola, mas foi considerada positiva. Visto que a pena não foi
interpretada como uma punição pessoal, mas por se constituir de uma regra social, é
146
aceita. Este caráter impessoal que a instituição traz à prática revela a sutileza de sua
sofisticação ideológica.
Em relação ao Estado, outras formas de punições, que não corporais, mas
que revelam outros aspectos da mesma lógica perversa de dominação foram
descritas pelos entrevistados. Johann destaca o seu sentimento ao ser punido: “...eu
acho que sofro punições, principalmente por causa da minha deficiência física (...) os
próprios obstáculos físicos que existem, como escadas em locais públicos, e que de
uma forma ou de outra há de ser superados, já me fazem sentir punido...”. Mariana
ressalta seu sentimento em relação ao poder legal do Estado, quando afirma: “...eu
penso que ele acaba punindo o tempo todo, pois ele tem as leis e toda uma
organização, mas quando você olha a prática no cotidiano, por exemplo, o sistema
judiciário, é tudo diferente”. Carmem aponta outras formas de punições praticadas
pela sociedade: “...a punição é ainda mais discreta, porque ele nos pune sem, às
vezes, nem nos dávamos conta; por exemplo, quando não se tem uma condição
financeira boa, não se consegue ingressar em um bom colégio, em uma faculdade,
eu vejo isso como uma forma de punição”.
Apesar das três narrativas apontarem aspectos da lógica de dominação em
uma sociedade hierarquizada, e, estes, estarem presentes no cotidiano social, não
estão ocultos às reflexões. Entretanto, mesmo assim, subsistem ao tempo e às
transformações reproduzindo-se nas relações sociais, o que demonstra a força com
que esta lógica se mantém na veia da sociedade. Como aponta Adorno
229
, para que
essas reflexões surtam efeito “precisam ser transparentes em sua finalidade
humana”.
Os dois graus de naturalização observados na narrativa de Rodolfo em
relação ao Estado, aparecem nas narrativas relacionadas à Escola. Rodolfo narra
vários momentos de punições corporais concretas: “Eu lembro também que nós
tínhamos que fazer fila em alguns momentos na escola como os militares. Tínhamos
que ficar com as mãos retas ao lado da perna, com o dedo escondido e olhando
para a nuca do outro. Quando não tínhamos os dedos bem postos, ele batia com a
régua em nossas mãos”. A mesma relação de poder é, agora, transposta para a
figura do “mestre”, o qual passa a exercer com autoridade legitimada socialmente, o
229
ADORNO, Theodor W. A Educação contra a barbárie. Educação e Emancipação. s/e. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2000, p.161.
147
exercício da coerção por meio do medo, assim como torna-se “apto” a aplicar a
punição corporal (cap.I, p.18; cap.II, p.24). Aqui, a punição se caracteriza como ato
corretivo, em que o professor opera, por meio da aplicação da régua na mão do
aluno, como regulador do comportamento, ou seja, o papel que exerce na
instituição, além de outorgar a autoridade para aplicar a punição, também, de certa
forma, lhe exige como responsabilidade, a adequação dos comportamentos dos
alunos que demonstre essa hierarquização.
As mesmas práticas que ocorriam no século XV e XVI (cap.I, p.43-45), se
reproduzem após quatro séculos. Quatro momentos da narrativa de Rodolfo
demonstram o caso: os puxões de orelhas e costeletas; o fato da professora utilizar
o mesmo ponteiro que indicava a lousa, o qual chamava de “pepito canibal”, para
ameaçar e bater nos alunos; o “fosforito”, aplicado pelo professor de matemática e o
caso do seu irmão Michel, apanhando do professor, também diretor da escola.
Hábitos semelhantes são evidenciados na narrativa de Johann: “Recordo de
chacoalhões, puxadas de braço, apertos e gritos o tempo todo”. A representação do
mestre possui, ainda, uma posição privilegiada (cap.II, p.88,89).
Interessante destacar que, na vida de Rodolfo, anos mais tarde, o mesmo
sentimento de medo existente em sua experiência como aluno, aparece em duas
falas na sua experiência como professor em duas falas: “...as crianças têm pavor de
falar com a diretora da escola” e “O medo que as crianças têm da diretora me ajuda
a mantê-los quietos”. A narrativa possibilita a observação da ideologia subjacente às
relações, posto que, como enfatiza Horkheimer
230
, são desenvolvidas e controladas
por meio de mecanismos de coerção, o que implica na formação de sujeitos que
desenvolvem sentimentos de sujeição a uma instância alheia. O disciplinamento
ocorre de forma coercitiva pela ameaça da aplicação da punição – o que no caso, é
a acariação com a autoridade maior da escola, a diretora – e não pela reflexão sobre
o ato praticado. Consciente ou inconscientemente, já se constrói o caminho para
reprodução ideológica da dominação, que vai se manifestando aos poucos de
diferentes formas, graus de sofisticação e refinada discrição.
Acompanhadas ou não de violência física, as punições ocorridas na escola se
apresentaram como ocorrências freqüentes na prática de professores. O aspecto
dominador se mostra fortemente presente, como já apontado na pesquisa (cap.I,
230
HORKHEIMER, Max. Teoria Crítica: uma documentação. s/e. São Paulo: Perspectiva, USP, 1990, p.182,194
148
p.51; cap.II, p.88-89) e caracteriza-se pela coerção psicológica. Três falas merecem
destaque, a de Rodolfo, em relação à sua professora: “Ela dava medo”, a de
Mariana que relata: “Quando eu cheguei à sala, a professora me expôs na frente de
todos, passando o maior sermão e não me deixando fazer a prova (...) Eu acho que
foi uma punição que me marcou bastante”, e, principalmente na fala de Johann:
“...eu estava na frente, escrevendo algo na lousa e não sabendo escrever direito
recebi um grito muito forte e aí é que eu não conseguia continuar. Aí ela me puxou
para voltar a sentar. Isso marcou muito!”.
Concernentes à Igreja, é importante destacar que ainda que todos os
entrevistados tenham tido uma formação religiosa semelhante e apesar dos
segmentos aos quais pertenciam serem distintos - sobre alguns aspectos, até
antagônicos - contêm características peculiares desta lógica desenvolvida pela Igreja
ao longo dos séculos na História. Dentro deste universo, algumas práticas se
apresentaram comuns. Os relatos das experiências vividas se concentram em
punições não-físicas, mas práticas de dominação fortemente ideológicas (cap.I,
p.22-24,40,53; cap.II, p.78,88,93).
Essas práticas podem ser observadas nas falas de Rodolfo: “Os líderes não
aceitavam que ninguém discordasse. O topo da hierarquia da Igreja era o “ancião”, e
ele era o “maior” de todos (...) As normas sempre vinham de cima para baixo. Deus
se “revelava” ao ancião e a ninguém mais. Era de cima para baixo mesmo.”, a fala
revela a estrutura de hierarquização básica dessa lógica, assim como na de
Mariana: “...eles me mostraram sempre um Deus que castiga muito. Muitas vezes,
para resolver pequenas situações de comportamento na infância ou na
adolescência, eles utilizavam Deus. Diziam que Deus não gostava, que ele
castigaria.”, revelando a emanação da autoridade divina tratada nos capítulos
anteriores à autoridade terrena (cap.I, p.25,27; cap.II, p.77-78,86). O modo como se
dava a coerção por meio de algumas práticas, podem ser observadas nas falas de
Carmen: “...eu já vivi situações um pouco piores. Quando se faz algo que diante do
grupo é uma falta considerada mais grave, então levam a pessoa diante do grupo e
expondo o problema dela, lhe punem com privações das atividades, funções e
outras coisas.”; e ressaltada pela experiência que viveu Johann: “Era natal, e eu fui
experimentar um pouco de vinho. Bem, não era costume da nossa igreja, tomar
bebida alcoólica, apesar disso eu quis experimentar um pouco de vinho e depois
149
disso acabei contando o que tinha feito para o líder da igreja. Quando ele ouviu
aquilo, pediu para que eu comparecesse a uma reunião fechada, só para membros e
fosse a público, confessar o meu ‘pecado’”.
Diante do exposto, e, considerando que os mesmos indivíduos que mantém
relações sociais nas instituições como o Estado, a Escola e a Igreja, também são
participantes da Família, o relato das experiências dos entrevistados faz pensar a
influência ideológica destas instituições também na construção das relações dentro
da Família.
Quando Rodolfo narra o fato de seu pai ser um líder sindical, enfatizando que
sempre teve pessoas sob o seu comando e deixando claro o fato dele ter sido
sempre “dono da razão”, percebe-se a transposição de aspectos ideológicos da
autoridade política na esfera mais íntima das relações familiares, ou seja, o Estado
se faz presente ideologicamente na Família. O fato aparece em duas falas: “Eu tinha
medo do meu pai, por isso nunca conversei com ele sobre muitas coisas. Meu pai
falava, falava, falava, e eu só o ouvia, quieto. Fazia-me chorar, e eu, só chorava. Eu
nunca reivindiquei, nunca reclamei, nunca falei: ‘Você está errado!’. Até agora é
assim...”; e quando afirma: “...nós vivíamos num regime militar lá dentro de casa”.
Este comportamento especificamente autoritário, como tratado no capítulo II (p.15),
em que o estado de sociedade se sobrepõe ao estado de natureza do indivíduo, fica
caracterizado, na medida em que, como afirma Marcuse
231
: “...entre o povo e o
soberano não pode haver qualquer outra instância legal decisiva além do próprio
soberano, pois tal instância contradiria o ‘contrato original’”. Esta estrutura no seio
familiar serve como uma instância de adaptação à sociedade, inculcando aos
indivíduos ainda em formação, as forças que são indispensáveis à reprodução dessa
lógica de dominação
232
.
Outros momentos que merecem destaque encontram-se em três narrativas: a
primeira delas, de forma muito surpreendente, Johann conta a aplicação de “pimenta
na boca”, uma punição poética, ou talião simbólico (cap.I, p.19,20). A punição
poética é característica de Estados Teocráticos e, neste caso em particular, constitui
um ato de tortura aplicado a uma criança, mas apesar de realizado como ação
educativa: “Eu não me lembro exatamente porque que foi que apanhei, mas eu
231
MARCUSE, Herbert. Estudo sobre Autoridade e Família. Idéias sobre uma teoria crítica da sociedade. 2 ed.
Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p.94.
232
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Família. Temas Básicos da Sociologia. 2 ed. São Paulo: Cultrix,
1978, p.137.
150
lembro que ela veio acompanhada com pimenta na boca... por causa de ‘palavrão’
ou coisa que a gente escuta na escola e tal e acaba falando, eu lembro que eu tomei
uma surra. Tomei um tapa na boca e em seguida minha mãe pôs pimenta na minha
língua e isso foi a pior coisa... Eu me lembro que foi algo muito ruim para mim”.
A narrativa revela algo importante, pois não havia consciência, mesmo hoje,
por parte de Johann, do motivo pelo qual havia pronunciado um “palavrão”, fazendo-
se supor a mera reprodução do comportamento que se viu em outras pessoas, o que
é comum às crianças. A pena taliônica é praticada duplamente, com tapas e
aplicação de pimenta na boca.
A prática do talião simbólico, apesar de ter sua origem há centenas de
séculos, se faz presente nas relações sociais até hoje, assim como aparece nas
falas de Carmen: Conheço pessoas que corrigem seus filhos com vara! Pegam uma
varinha, deixam lá, e, quando a criança erra, batem com a varinha.”; e nas de
Mariana em duas ocasiões: Eu lembro que tinha ido comprar material para a escola.
Na volta quando cheguei ao ponto de ônibus e mostrei para minha mãe... Nossa! Ela
me deu um tapa na mão! Só que ela me deu um tapa e depois me explicou porque
tinha feito aquilo.; e quando, se refere à sua irmã comentando as dificuldades da
educação da filha: “Minha irmã diz que só com a vara, bem como a Bíblia fala, só
com a vara”
233
, Mariana revela de forma ainda mais direta os caminhos dessa
reprodução, que por meio da Igreja, se constrói voltando-se ao sagrado com base
em argumentos a que descaracterizam a prática como um ato de violência em si.
Desse modo, produz-se a alienação necessária para que a punição seja
aplicada, além de estabelecê-la como um ato sacramental, pelo qual, a figura que
representa a autoridade – o mestre na escola ou pai em casa – torna-se o principal
responsável pela “salvação” do indivíduo sob sua responsabilidade, ou seja, além da
descaracterização da punição corporal como ato de violência e o seu delineamento
ideológico com justificativa educacional, a influência da Igreja, instaura uma
dimensão transcendente à prática: o aspecto espiritual. Este aspecto vai além da
simples outorgação da prática, a constitui como um elemento qualitativo à relação
educacional pai-filho, ou seja, o pai que realmente sabe educar seu filho deve utilizar
a vara. Com isso, além de cumprir bem o seu papel como pai, obedece a um
preceito divino, se constitui como um “bom pai”, na medida em que cumpre o seu
233
A narrativa de Mariana remete-se ao texto bíblico citado no capítulo I, página 19.
151
papel nas relações e ainda, trará um benefício espiritual ao filho: “livrará a sua alma
do inferno”.
234
Este exemplo deixa clara a sobreposição ideológica de uma instituição sobre
outra como mecanismo que mantém a lógica presente em todas as esferas das
relações. O princípio de autoridade, que, como destacado por Marcuse
235
, irá
apresentar valores de uma ordem social em que o “honrar” e “temer” ocupam lugar
do “amor”, constitui-se elemento decisivo nas relações entre pai e filho, posto que,
esta tendência autoritária, se revela como um dos momentos mais importantes da
doutrina cristã e burguesa, em que toda autoridade terrena emana da autoridade
divina. Na irracionalidade da família, reflete a ideologia de uma sociedade em que,
aparentemente, tudo acontece com os ditames da razão e na qual, contudo, ainda
se mantém sob o domínio cego da irracionalidade, o qual subtrai a liberdade da
razão, criando em si uma ideologia com roupagens feudais.
São muitos os detalhes nas narrativas que evidenciam o que propõe Marcuse.
Rodolfo apresenta esta hierarquização quando descreve em detalhes o momento
em que a refeição é servida: “a mãe serve o melhor pedaço de carne para o pai, pois
os pequenininhos comem como pequenininhos e os grandes comem como grandes.
Então, primeiro para o pai, por hierarquia. O melhor pedaço de carne, a melhor
batata. Eu me sentava do lado dela por último, pois sempre gostava de ajudá-la,
com isso, o último que ela servia era eu e, só então, ela se servia”; e quando narra:
“Meu pai conversou algumas vezes, mas sempre foi um monólogo. Nunca houve um
diálogo verdadeiro. Ele sempre lançou ‘monólogos’ sobre mim. Eu nunca rebati,
nunca respondi, nunca reivindiquei, sempre fiquei quieto”. Deste modo, a família
converte-se em agente da sociedade, na medida em que se torna o veículo pelo
qual os filhos aprendem a adaptação social, formando os indivíduos tal como eles
têm de ser para cumprir as tarefas impostas pelo sistema social.
Assim, a família apresenta-se de fato, como uma interação de determinados
papéis, que, no seio do ordenamento social, atua como instância do processo de
adaptação à sociedade, causando nos indivíduos uma identificação com a
autoridade e com as relações de trabalho idealizadas pela lógica do capital. Para
234
Provérbios 23.12-14. op. cit. p.1090.
235
MARCUSE, Herbert. Estudo sobre Autoridade e Família. Idéias sobre uma teoria crítica da sociedade. 2 ed.
Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p.78-79
152
Marcuse
236
toda essa ideologia é demonstrada na família, com mais clareza do que
em qualquer outro lugar, onde “o filho pode pensar do pai o que muito bem quiser,
mas, se pretende evitar graves conflitos e desastres, deve empenhar-se em obter,
incansavelmente a satisfação paterna. Em relação ao filho o pai tem sempre razão, é
nele que se concentra o poder e o triunfo”.
O que Marcuse aponta pode ser observado neste momento da narrativa de
Rodolfo: “Eu me sentia como “enquadrado”, porque meu pai queria que nós, filhos,
agíssemos igual a ele, pois ele sempre se achou o dono da razão”; assim como na
de Carmen: “E eu, talvez, entendesse melhor e procurasse não deixar mais isso
acontecer. Na verdade, eu sempre tentei acertar não para agradá-los, não para
deixá-los felizes, mas porque eu tinha medo de sofrer a punição”.
Nesta estrutura, a única possibilidade que se deixa ao filho, se quiser, pelo
menos salvar o seu equilíbrio interior, é a de reconhecer o pai como mais forte e
poderoso, impondo-se como a única forma de ser aceito e não rejeitado. O poder
supremo do pai – pater familias – instaura-se como o principal fator regulador do
comportamento. O medo passa a estar presente de forma contínua nas relações. O
temor que tinha do pai é destacado em mais de um momento nas narrativas de
Rodolfo: “Eu tinha medo do meu pai, por isso nunca conversei com ele sobre muitas
coisas”. Aparece várias vezes também na narrativa de Carmen: “...eu apanhei
bastante, e isso me marcou, porque passei a ter medo sempre de não conseguir
chegar ao banheiro e levar aquela surra de novo”; assim como na de Mariana: “O
olhar dele me dava medo, muito medo, tenho medo até hoje, é muito forte para
mim!”.
A figura paterna é tão forte ideologicamente, que, apesar das narrativas
também apresentarem episódios de punições aplicadas pelas mães, os sentimentos
desenvolvidos pelos entrevistados revelam que a figura paterna, representa
simbolicamente um poder sobremaneira diferenciado.
Enfaticamente, Carmen afirma não fazer diferença das punições recebidas da
mãe: “na verdade, não tinha significado nenhum, não mudava nossas atitudes, nem
nossa vida”. Da mesma maneira, Mariana: “Minha mãe sempre me dava uns
cutucões, e na verdade, eu nunca tive medo dela por causa disso, muito menos
236
Ibid., p.138.
153
respeito! Eu zombava dela! Não tinha medo de apanhar, não levava como algo
sério!”. Este antagonismo que se manifesta nas narrativas, firma-se a respeito do
filho diante da autoridade paterna, representante direto de outras formas de
autoridade social, as quais reforçam toda essa lógica de dominação.
Apesar dos casos de palmadas e surras, narrados pelos entrevistados. Um
aspecto talvez mereça principal destaque: a aplicação da punição corporal, apesar
de mudar o comportamento momentaneamente, não produziu o efeito pelo qual se
esperava, ou seja, não houve qualquer modificação de sentimento dos que
receberam a punição, mesmo que estas lhes causassem dor, ou qualquer tipo de
sofrimento, a vontade permanecia a mesma, não havia transformação interna, o que
caracteriza a aprendizagem educacional.
Na narrativa de Johann, a respeito do momento que apanha e recebe como
punição “pimenta na boca”, conta com espanto fato e faz a seguinte indagação:
“...não me fez deixar de falar “palavrão”, algo interessante, não acha?”. Na narrativa
de Rodolfo percebe-se o mesmo efeito: “mesmo depois de meu pai ter-me dado um
soco e ter me mandado pro quarto, eu continuei fumando. Quando eles não davam
permissão para ir a uma festa, nós fugíamos escondidos”. Já Mariana, narra que:
Às vezes ela batia, mas eu não ligava nem um pouco! Ela pegava uma varinha e eu
quebrava, ela pegava outra e eu quebrava também. Eu descobri todos os
esconderijos das varinhas e as quebrava antes dela me bater. Até ela conseguir
outra, aí já passava a raiva”. Na narrativa de Carmen, lembra: “...saíamos correndo e
nos trancávamos no banheiro. Ficava ela, do lado de fora, querendo bater e, nós do
lado de dentro, dando risada! Havia perdido o significado daquele tapa; na verdade,
não tinha significado nenhum, não mudava nossas atitudes, nem nossa vida.”
Por meio das narrativas, pode-se verificar que, mesmo com pressupostas
“intenções educativas”, a aplicação da punição corporal não gerava transformação, o
comportamento desejado era conseguido apenas enquanto os filhos eram pequenos
e mesmo assim a mudança ocorria apenas externamente, um comportamento que
somente funcionava quando vigiado.
A dor que a punição incide na criança produz um efeito controlador, na
mediada em que, enquanto pequenas, estão destituídas de qualquer forma de
proteção ou defesa, mas com o passar do tempo, ocorrendo o desenvolvimento
físico, o sentido da dor se perde como mecanismo de controle. Os que sofrem
154
punição corporal passam a não se importar com a dor física e continuam a buscar
estratégias para que as vontades sejam saciadas.
É o caso narrado por Johann, que apesar de não receber punição física,
vivencia um momento que o faz desenvolver estratégias para continuar a prática
sem que receba futuras punições. O fato se deu quando desobedeceu uma norma
religiosa quando teve vontade de experimentar vinho: “eu continuei tomando vinho,
mas agora com uma diferença... eu não contava mais o que fazia pra ninguém”. A
tendência do desenvolvimento de estratégia para se esquivar da coerção exercida,
agora pelos pais, também aparece na fala de Rodolfo: “Quando eles não davam
permissão para irmos a uma festa, nós fugíamos escondidos!”.
Pelas narrativas dos quatro entrevistados, também é possível pensar que a
autoridade estabelecida nas relações, sob esta lógica de dominação, gera uma
percepção condizente com a ideologia, mas contrária à natureza do indivíduo, visto
que todos, naturalmente, se apresentaram sentimentos adversos à prática. Carmen,
afirma ter crescido sem respeito pelo pai, obedecendo pelo medo de apanhar. Ela
também supõe que o distanciamento da relação atual do irmão com o pai, decorre
do episódio narrado a respeito do monstro; Rodolfo destaca que se sentia
incompreendido, por ser punido sem ser escutado. Mariana conta que até hoje têm
medo do olhar do pai; e Johann expressa ser ruim o que sentia, mesmo sabendo
que era uma “surra de correção”, e que se “fechava” em falar sobre muitas coisas.
É relevante destacar a reflexão que Johann faz sobre o sentimento que tinha
na ocasião: “Parece que você não pode contar totalmente com aquela pessoa que te
bateu. As mesmas pessoas que cuidam são as pessoas que agridem, então será
que se pode confiar nelas?” É exatamente o que Meng
237
evidencia como uma
“amestragem autoritária”, baseada no chicote e nas coisas doces que aumenta
forçosamente as resistências da esfera afetiva, visto que: “...a energia dessas
resistências é alimentada pelo medo de uma moral autônoma, pela diminuição da
estima de si próprio e pelo recalcamento da dignidade pessoal”. Para Meng
238
, ainda,
há a tendência de uma geração transmitir à seguinte o impulso que foi dado pelo
precedente, assim, o sentimento de falta de liberdade e mesmo o de coerção,
aumentará cada vez mais.
237
MENG, Heinrich. Coação e Liberdade na Educação. 2 ed. Lisboa: Moraes, 1977, p. 175.
238
Ibid., p.170.
155
O que Meng propõe pode ser observado tanto no desenvolvimento histórico
descrito no capítulo I, quanto nas narrativas dos quatro entrevistados. Para estes, as
condições em que seus pais foram criados, assim como as relações que tinham com
seus avós, fizeram com que a prática da punição corporal se reproduzisse também
em suas relações.
Além da mera reprodução, um outro fator nos leva à reflexão: o
comportamento racional ou irracional de sua aplicação. Rodolfo conta que, com sua
mãe “...não tinha conversa, não tinha nada, era ‘pá!’ e acabou”; Mariana lembra que
sua mãe batia “não tinha lugar para bater, onde acertasse, acertava”; e Carmen
relata que, no episódio com seu irmão, seu pai “não parava de bater. Bateu tanto,
que deixou meu irmão com o corpo todo cheio de marcas, nas costas, nas pernas.
Meu pai não olhava onde estava batendo, onde o cinto pegasse, pegava”.
Para Meng
239
, o indivíduo intimidado será, talvez, obediente, mas desprovido
do impulso necessário a um comportamento moral autônomo. Assim, o
reconhecimento da força como algo à prática social, significa uma renúncia à própria
autonomia, uma subordinação da própria razão e da própria vontade a conteúdos
predeterminados, sem, contudo, haver sentido ou mesmo significação ao indivíduo
subjugado
240
. A este modo de pensar se confronta a idéia da formação de um
homem autônomo e emancipado com o modelo heterônomo e autoritário presente
na cultura ocidental.
Sobre isto, Adorno
241
entende que a concepção de Educação não se sustenta
na simples modelagem de comportamentos e nem na mera transmissão de
conteúdos, mas na produção de uma consciência verdadeira, pois como afirma: “não
temos o direito de modelar pessoas a partir de seu exterior”. Isto seria, inclusive, da
maior importância política, pois as tendências de apresentação de ideais exteriores
que não se originam da própria consciência emancipada, sem a existência do
diálogo, do processo reflexivo e da troca de experiências, a produção dessa
consciência torna-se algo minimamente possível.
Apesar dos quatro depoimentos possuírem em seu discurso, uma posição
239
Ibid., p.184.
240
MARCUSE, Herbert. Estudo sobre Autoridade e Família. Idéias sobre uma teoria crítica da sociedade. 2 ed.
Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p.56.
241
ADORNO, Theodor. A Educação contra a barbárie. Educação e Emancipação. s/e. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2000, p.141.
156
contrária à prática da punição corporal, dois deles, a de Carmen e Mariana
revelaram, em dois momentos, graus de comprometimento com a lógica. Mariana,
ao mesmo tempo em que declara ver a irmã como um “exemplo de educadora”,
relata que “...os filhos dela são crianças terríveis...”; e ainda afirma: “...ela lida muito
bem com isso...” – apesar de também ter afirmado que a irmã alega que para lidar
com a filha, “...só com a vara!”.
Carmen, por sua vez, ao falar sobre sua experiência com a punição corporal
afirma: “Eu não lhe obedecia porque eu o respeitava, eu lhe obedecia porque eu
tinha medo de apanhar (...) por volta de uns dezoito ou dezenove anos, quando eu já
tinha certa independência financeira, pois já trabalhava, percebi que não precisava
mais ter medo e aí, eu o desrespeitava. Eu o enfrentava como se fosse uma pessoa
qualquer, não o meu pai!”. Por outro lado, quando Carmen emite sua opinião a
respeito da prática no papel de professora e não no papel de filha, afirma
contraditoriamente: “Mas, se ela extrapolar, pode-se educar de uma outra forma,
referindo-se à aplicação da punição corporal, o que fica claro em outro momento
quando diz: “...eu acredito que a palmada cabe em algumas situações”.
Interessante destacar também, quando Carmen se refere às palmadas que
recebeu da mãe. Ela conta que: “Mesmo sabendo que nós íamos apanhar, nós
aprontávamos, pois sabíamos que não ia doer, então nem ligávamos. Em outras
vezes, saíamos correndo e nos trancávamos no banheiro. Ficava ela, do lado de
fora, querendo bater e, nós do lado de dentro, dando risada! Havia perdido o
significado daquele tapa; na verdade, não tinha significado nenhum, não mudava
nossas atitudes, nem nossa vida”; entretanto, ao se colocar novamente no papel de
quem educa, diz: “Eu não digo uma punição rígida, de se espancar a criança, chegar
ao exagero, mas eu acho que, depois de conversar várias vezes, após várias
oportunidades e ainda assim, não surtir efeito, pode-se dar um ‘tapa’”. Estas partes
da narrativa de Carmen demonstram o caráter alienante da lógica que faz com que o
indivíduo não consiga perceber a ideologia em questão.
Outro momento que também demonstra o mesmo efeito foi quando Carmen
se referiu às suas lembranças: “...eu apanhei bastante, e isso me marcou, porque
passei a ter medo sempre de não conseguir chegar ao banheiro e levar aquela surra
de novo”; e quando expressa sua opinião sobre a aplicação da prática nas crianças,
afirma: “Acho que a criança esquece rápido!”.
157
Com base nesses três momentos da narrativa de Carmen, pode-se verificar
de forma mais particular, a maneira como a prática da punição corporal se reproduz.
O poder alienante da lógica da dominação é tão forte que, à medida que o indivíduo
se emancipa fisicamente da condição inferior que naturalmente existe em relação
aos adultos, somando-se ao fato de alçar certa medida de autonomia financeira,
demonstra reproduzir a ideologia, talvez inconscientemente, que, discursivamente,
na sua expressão como filho, se opõe. Em relação a isso Meng
242
destaca que o
estudo das fases da vida fornece indicações preciosas para análise da questão, sem
esquecer que um adulto só raramente sabe realmente o que lhe foi proveitoso ou
prejudicial no percurso de sua criação, pois a maior parte da educação se mantém
inconsciente e outras, pelo contrário, são amplificadas, pois suas aspirações como
adulto são diferenciadas das aspirações de quando criança.
Os outros dois depoimentos, o de Johann e o de Rodolfo, demonstram em
medidas distintas, níveis de consciência e superação em relação à prática. Rodolfo,
com sua experiência, tanto no papel de pai, quanto como professor. Afirma ser
contra a aplicação da punição corporal, expressando a necessidade que tem em
saber como lidar com as situações de comportamentos inadequados dos alunos com
que trabalha.
Quanto a Johann, apesar de ser o único a não ter formação ou experiência na
área de educação formal, ele apresenta uma característica extremamente relevante
à discussão: uma aparente ruptura com o processo de reprodução da prática de
punir corporalmente. Ao narrar sua experiência pessoal com a punição corporal,
Johann teve bastante dificuldade em se lembrar de detalhes e entretanto, houve
grande motivação nos momentos em que narrava suas experiências na relação com
seu filho. Sobre elas, Johann demonstra um intenso esforço em manter o diálogo
como fonte de superação de conflito, apesar de contar que os resultados aparecem
de forma mais lenta, pois exige tempo de reflexão, experienciação e adaptação, mas
que pode ser compreendido como um indicador importante para a emancipação.
O que foi proposto por Rodolfo, Carmen e Mariana como necessário na
relação como os pais – o diálogo – aparece como o caminho utilizado por Johann na
educação de seu filho: “’O que aconteceu?’, ele diz: ‘Nada, papai!’. Aí eu insisto e
pergunto novamente: ‘O que foi que aconteceu?’, e ele repete: ‘Não, nada papai!’.
242
MENG, Heinrich. Coação e Liberdade na Educação. 2 ed. Lisboa: Moraes, 1977, p.54.
158
eu paro de falar sobre o assunto e em várias ocasiões, ele espontaneamente vem
me dizer: ‘Papai, aconteceu isso’ ou ‘Eu fiz aquilo’”. Este proceder, pressupõe, como
destaca Adorno
243
, a renúncia ao comportamento autoritário: “por isto, a dissolução
de qualquer tipo de autoridade não esclarecida, principalmente na primeira infância,
constitui um dos pressupostos mais importantes para a desbarbarização”.
O exercício da autoridade é necessário para que haja referências de
socialização, entretanto esta autoridade deve ser construída com base legítima na
relação de funções sociais e não de forma arbitrária baseada na predominância da
força física. Esta imposição arbitrária faz com que o princípio da autoridade esteja
vinculado diretamente ao exercício do poder sob uma ideologia de dominação social.
Apesar do caráter contraditório expresso nos discursos, um ponto em comum
os une. Todos afirmam convictamente, que, independente de como a punição foi
aplicada, ainda assim, as motivações não foram modificadas, e, mesmo com o risco
de receber a punição, persistiam em satisfazer as vontades, desenvolvendo, para
isso, estratégias para que não fossem descobertos e, com isso, punidos.
Todos compartilharam, além de experiências, estratégias para educar, e,
nisso também revelaram contradições. Queriam que as atitudes fossem diferentes
com eles, mas não sabem como fazer diferente com as novas gerações. Como ficou
evidenciado em uma das falas – a de Carmen – aquilo que se avalia como negativo
ou ineficaz é o que se propõe como solução. Estes aspectos contraditórios acabam
por denunciar a estrutura alienante desta lógica de dominação, assim como seu
caráter perverso.
Foi possível também, perceber que a submissão ocorria, até o momento em
que existiam diferenças substancialmente significativas entre os indivíduos, e, na
medida em que esta diferença, sob alguns aspectos, diminuía – força física,
independência financeira, autonomia intelectual, segurança – o enfrentamento à
autoridade imposta de forma coercitiva acontecia inevitavelmente.
Todos revelaram uma espécie de vergonha do desejo de reagir às punições.
Sentimentos como o de traição esteve presente na fala de Johann, o de humilhação
na de Mariana, o de incompreensão e perda da confiança na de Rodolfo e de raiva
na de Carmen. Porém, o medo foi algo que se manifestou comum a todos. Para
243
ADORNO, Theodor. A Educação contra a barbárie. Educação e Emancipação. s/e. Rio de Janeiro: Paz e
Terra , 2000, p.167.
159
Adorno
244
, por este sentimento a “cortina da mistificação” se revela e a cultura que,
conforme sua natureza, promete tantas coisas, acaba por não cumprir sua promessa
e divide os homens.
244
Ibid., p.164.
160
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela
renovação do vosso entendimento.”
Apóstolo Paulo
As três dimensões que sustentaram o desenvolvimento metodológico da
investigação proporcionaram uma análise que contemplou o objeto da pesquisa sob
perspectivas distintas, mas que se completam. A descrição histórica desenvolvida no
primeiro capítulo, trouxe à investigação o que Roggero
245
, em diálogo com Adorno,
ressalta: “quem quiser saber a verdade acerca da vida imediata, tem que investigar
sua configuração alienada, investigar os poderes objetivos que determinam a
existência individual até o mais recôndito nela”.
No percurso desta reconstrução histórica, as respostas às hipóteses não
foram reveladas na mesma ordem em que inicialmente foram feitas, pois, ao se
buscar os primeiros registros sobre a prática de punição corporal, foram
encontrados, logo de início, cenários e sujeitos relacionados à prática, determinando
assim, o caminho que a pesquisa se desenvolveria. Nesse meio, quatro universos se
destacaram como principais espaços em que a punição corporal se concretiza: a
Família, em primeiro plano, o Estado, logo em seguida, a Igreja como extensão do
Estado na história do ocidente, e, a Escola, como extensão dos domínios da Igreja.
Em relação às instituições, apesar de ser nítido que a Família teria
prerrogativa na condução desta socialização, como destacam Adorno e
Horkheimer
246
, ela “está socialmente mediatizada, mesmo em sua estrutura mais
íntima”. Com isso, foi possível verificar que, apesar da descrição histórica ter sido
construída metodologicamente de forma linear, as relações entre as instituições
mantiveram-se em pleno movimento, sobrepondo-se e revezando-se tanto no poder
245
ROGGERO, Rosemary, A Vida Simulada no Capitalismo - um estudo sobre formação e trabalho na
arquitetura. Tese de Doutoramento. Programa de Educação: História e Filosofia. São Paulo: Pontifícia
Universidade Católica, julho de 2001.
246
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Família. Temas Básicos da Sociologia. 2 ed. São Paulo: Cultrix,
1978, p.133.
161
do grupo social, quanto na influência sobre o processo de socialização do indivíduo.
Buscou-se, então, a partir da análise dos sujeitos envolvidos, contrastar as
características que lhes fossem comuns, a fim de que se identificassem os
elementos ideológicos que fundamentam a prática. Para tanto, a Teoria Crítica da
Sociedade, como aporte teórico, mostrou-se um caminho consistente para que a
análise fosse realizada, na medida em que, como aponta Azevedo:
247
“...é uma teoria ancorada no compromisso social com aqueles que
em determinadas relações sociais se incluem no pólo oprimido, a
partir do pressuposto de que toda relação social é uma relação de
poder que pode exercer-se sob a forma de dominação x
subordinação”.
Neste sentido, enquanto processo organizado de esclarecimento e
emancipação, a Teoria Crítica da Sociedade contribuiu para desvelar a ideologia que
constitui a base de toda a lógica que, ao mesmo tempo, mantém viva uma prática
típica da barbárie e adapta o indivíduo a uma estrutura alienante que tem, em seu
discurso, o desenvolvimento humano. Assim, a própria tensão que é gerada por
esse movimento, mantém a prática viva ao mesmo tempo em que a dissimula.
Como terceira etapa da investigação, a escolha da História de Vida, mostrou-
se um caminho fértil em busca de respostas às questões colocadas para a
investigação, além de acabar por confirmar a lógica que gera a continuidade de
muitas práticas apresentadas no primeiro capítulo. As narrativas possibilitaram
refletir sobre como a punição corporal influi no desenvolvimento do indivíduo, em sua
construção como sujeito dentro das relações sociais. A análise do desenvolvimento
histórico individual revelou tanto aspectos relacionados ao processo da reprodução
da lógica de dominação, quanto à possibilidade de libertação, conforme discutido no
Capítulo III.
Tendo como cenário as relações sociais, nas quais se processa a prática da
punição corporal, foram encontrados os três elementos que sustentam sua
existência: a ideologia, o princípio da autoridade e a cultura. Sobre a primeira, a
247
AZEVEDO, Maria Amélia. Notas para uma teoria crítica da violência familiar contra crianças e adolescentes.
Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento. 4 ed. Cortez, 2005, p.27.
162
ideologia, foi possível refletir sobre o seu papel mistificador que mantêm o indivíduo
sob uma forma de consciência que, como destaca Azevedo
248
: “promove falsa
legitimação, isto é, faz com que os agentes aceitem como legítimo o que, se eles
estivessem perfeitamente livres e completamente informados, não aceitariam como
legítimo”. Dessa reflexão, cabe ainda o desafio de separar os genuínos anseios,
valores e necessidades humanas, da peculiaridade dos desejos e necessidades que
a ideologia impõe ao indivíduo, colocando-o sob a pressão dos aparelhos
legitimadores da sociedade.
Diante disso, o princípio da autoridade surge como um fator dominante e mais
importante do que normalmente se admite, sobretudo pelo refinamento das formas
autoritárias de governo contemporâneas. Integrando-se ao processo, a autoridade
impõe sob o seu signo, camuflada pela ideologia, uma formação de sujeitos sob o
desenvolvimento dos sentimentos de sujeição a uma instância alheia. Neste sentido,
confirma-se a primeira hipótese de que a prática da punição corporal está
intimamente ligada à lógica de dominação e desenvolvida pela hierarquização dentro
das instituições sociais.
Sobre isso, ainda, a investigação revelou a gênese do percurso da emanação
de toda autoridade terrena: a divindade. Por esta emanação, as autoridades
constituídas em cada instituição recebem a legitimação necessária para que a
dominação ocorra. Ao pai, a autoridade emanada da divindade concede o “poder” de
abençoar ou amaldiçoar a prole; ao governante, é dado o poder de decidir sobre a
vida em sociedade dos indivíduos, quem deve viver e quem deve morrer; ao
sacerdote, o poder de decidir sobre o destino “após” a vida; e, ao mestre o poder de
inculcar, sob pretextos educacionais, o modelo de conduta ideologicamente
desejado.
O indivíduo nasce e cresce sob esta estrutura, e, ao longo do processo de
socialização, o que é alienado, torna-se alienante, pois, ao mesmo tempo em que
lhe é imposta, uma autoridade arbitrária, esta mesma será exercida mais adiante,
em alguma outra dimensão, pelo mesmo indivíduo sobre outros e, como aponta
Crochik
249
, aquele que não a segue “deve ser vigiado e perseguido como um ‘não-
ser’. Aquele que não se sacrifica pelo todo é desleal”.
248
Ibid., p.28.
249
CROCHIK, José Leon. Teoria Crítica e Ideologia. Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento.
4 ed. Cortez, 2005, p.22.
163
Assim, a lógica é estabelecida como estrutura social e, o indivíduo que se
rebela contra ela, é automaticamente alvo de um mecanismo punitivo que irá
trabalhar como inibidor do comportamento a favor da estrutura existente, gerando
um movimento reprodutor na cultura.
É por intermédio da cultura que as instituições sociais fazem, de acordo com
Adorno
250
, com que “...as pessoas continuamente experimentem fracassos,
desenvolvendo sentimentos de culpa subjacentes que acabam se traduzindo em
agressão”. A cultura fornece o vínculo necessário entre os indivíduos, como grupo
social, para que em meio a essa relação sejam atribuídos papéis e, com estes,
medidas de autoridade que servem à lógica de dominação, produzindo com isso
elementos de barbárie.
As instituições sociais servem como mediadoras desta lógica, fornecendo
mecanismos que, em conjunto, abarcam todas as esferas que constituem a vida do
indivíduo. As instituições, não apenas se encarregam por descaracterizar a prática
da punição corporal como ato de violência, mas agregam a ela características
peculiares aos seus universos, camuflam a própria prática em si. Constroem, deste
modo, argumentos ideológicos usados para justificar os fins de dominação de forma
cada vez mais refinada.
O Estado fornece os mecanismos externos de controle para que a prática da
punição corporal seja autorizada e legalizada socialmente. Como observa Hobbes
251
“O maior dos poderes humanos é aquele que é composto pelos poderes de vários
homens, unidos por consentimento numa só pessoa (...) é o caso do poder de um
Estado”. A Igreja fornece o mecanismo interno que gera a falsa legitimação
necessária para que a prática seja aceita pelo indivíduo como algo que transcende
sua própria existência. Como lembra Adorno
252
: “...o direito de punir continua a ser
um recurso sagrado”. A Escola, por sua vez, como uma das responsáveis pela
transmissão da cultura e saberes de uma determinada sociedade, acaba por ser
reprodutora da lógica que possibilita a perpetuação do processo. Como entende
Adorno
253
: “…que existam elementos de barbárie, momentos repressivos e
250
Ibid., p.164.
251
HOBBES, Thomas. Leviatã, ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Col. Os
Pensadores. São Paulo: Ed. Abril Cultural, 1979, p.53.
252
ADORNO, Theodor W. A Educação contra a barbárie. Educação e Emancipação. s/e. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2000, p.167.
253
Ibid., p.157
164
opressivos no conceito de educação (...) eu sou o último a negar. Justamente esses
momentos (...) produzem e reproduzem a barbárie nas pessoas submetidas a essa
cultura”. E, a Família, que pela característica sócio-biológica que agrega em si, é a
primeira instituição da qual todo indivíduo faz parte se encarregando naturalmente
pela sua inserção no processo de socialização, e, como afirma Horkheimer
254
:
“Plasma a criança desde a sua mais tenra idade (...) cuida, como uma das [sic]
componentes educativas mais importantes, da reprodução dos caracteres humanos
tal como os exige a vida social”.
A diversificação e reprodução da prática nas diversas instituições sociais,
assim como a sua freqüência ao longo da vida do indivíduo incorpora-se à cultura,
passando assim, de geração em geração. Em relação à reprodução desta lógica,
Meng
255
, dialogando com Freud destaca que “o inconsciente do educador age sobre
o inconsciente da criança”, com isso, o pai (educador) que se baseia, sobretudo em
meios de coerção, particularmente na punição corporal, revela inconscientemente à
criança o espírito de que está animado, demonstrando ele próprio estar impregnado
do sentimento de que o comportamento moral é um elemento exterior que pode ser
obtido pela coerção, pela força.
A presença da prática na diversidade de relações e a sua continuidade ao
longo da vida, causam ao indivíduo a impressão de naturalidade, com isso, a prática
ganha uma proporção majoritária no meio social. Assim, desde os primeiros
princípios morais, a criança toma consciência da disposição para punir, ser punida e
punir a si própria, entendendo que seu pai tem o poder de punir e que, identificando-
se com ele e se apropriando, tanto do seu comportamento como das suas
particularidades. Esse processo, que se inicia no inconsciente, depois, pouco a
pouco, emerge nas atitudes de forma a naturalizar-se socialmente em primeira
instância na família e depois se transpondo nas relações dentro das outras
instituições. Sobre isso, Meng
256
entende que ao mesmo tempo em que a criança se
ressente de modo passivo à educação e conseqüentemente à prática da punição
corporal, “...encara a necessidade de educação e de castigo como tendência ativa e
incorpora-a a sua personalidade”.
Além deste aspecto tratado por Meng, por meio das histórias de vida, foi
254
HORKHEIMER, Max. Teoria Crítica: uma documentação. s/e. São Paulo: Perspectiva, USP, 1990, p.214.
255
MENG, Heinrich. Coação e Liberdade na Educação. 2 ed. Lisboa: Moraes, 1977, p.169.
256
Ibid., p.23.
165
possível verificar que sentimentos como “incompreensão”, “traição”, “vergonha”,
estiveram presentes em vários momentos, e, o “medo” apresentou-se como um
ponto de convergência entre as narrativas. Sobre isso, Meng
257
destaca que, “a
aplicação de um castigo está ligada a um exemplo complexo que desencadeia
processos complexos”. Meng
258
também aponta que por meio do emprego da relação
de autoridade, a criança reconhece o estado de seu “educador”, identifica-se com
ele, formando-se segundo a natureza deste e não segundo suas aparências. Haverá
a tendência de ficar, interiormente, tal como é vista por aquele que a educa.
As narrativas trazem essa realidade à reflexão quando os entrevistados
justificam a prática de seus pais serem fruto da própria experiência deles. Sobre
isso, Meng
259
ressalta que “uma geração transmite à seguinte o impulso que lhe foi
dado pela precedente”.
A tendência da reprodução é, em particular, um dos objetivos maiores da
educação. É a base da sobrevivência de uma cultura. E se a prática de punir já faz
parte desta, pode-se pensar que, assim como outros aspectos como hábitos,
tradição ou folclore, é reproduzida pelas novas gerações. Para Meng
260
“uma
educação que apenas cultiva os laços de autoridade formará homens servis, quer
sejam submissos ou rebeldes, sujeitos ao seu chefe por amor ou por ódio”, pois
existe um apelo mórbido que se apresenta inabalável sem que possa ser atingido
por qualquer raciocínio, pois tem como raiz, a irracionalidade.
Outros elementos trazidos nos depoimentos fazem pensar as possíveis
conseqüências que a ação punitiva produz no indivíduo que a recebe. Nas
narrativas, algumas falas vinculam as práticas sofridas com as atitudes presentes.
Todas elas indicam que houve uma modificação na personalidade em direção a um
isolamento social, em dimensões variadas, mas relacionadas diretamente com os
episódios ocorridos no passado. O “baixar dos olhos” e o “calar” de Rodolfo; o
desconforto em “estudar em grupo” de Johann; o “medo de desenhar” de Mariana; e,
o sentimento da necessidade de “acertar sempre” de Carmen.
Com base nos depoimentos, é possível considerar que, a auto-estima de
257
Ibid., p.39.
258
Ibid., p.169.
259
Ibid., p.170.
260
Ibid., p.173.
166
todos foi negativamente afetada, pois como afirma Meng
261
:
“É evidente que uma ‘amestragem’ autoritária, baseada no chicote
e nas coisas doces, aumenta forçosamente as resistências da
esfera afetiva ao desenvolvimento. A energia dessas resistências
é alimentada pelo medo das responsabilidades e duma moral
autônoma, pela diminuição da estima de si próprio e pelo
recalcamento da dignidade pessoal.”
O indivíduo intimidado poderá, talvez, se mostrar “obediente”, mas tenderá a
ser desprovido do impulso vital que conduz a um comportamento autônomo. Esse
“medo” apresentado nos depoimentos é mobilizado precisamente por essa relação
de coerção, a ponto de danificar os laços de afeição que são garantias da criança à
educação.
Não basta apenas avaliar a prática da punição corporal pelos efeitos visíveis
(físicos) ou traumáticos (desordem emocional) que podem ser gerados quando esta
alcança o status de crime, é preciso que se reflita sobre os episódios de punições,
os quais são, muitas vezes, amplificados por incertezas inconscientes do indivíduo
que naquele momento está exercendo o papel de educador, pois tais episódios são
inevitavelmente percebidos introjetados pela criança, tornando-se parte integrante
da formação de sua personalidade.
A punição pode ser considerada como um pretexto de agressividade em que
o adulto, ordenando à criança o cumprimento de uma tarefa, e a criança, opondo-se
a isso, se encontram hostilmente um diante do outro. Sobre isso, Meng
262
entende
que é preciso ter consciência de que “os laços afetivos que ligam o filho aos pais e
os pais aos filhos... não contribuirão eficazmente para amadurecer a criança”. Uma
tendência contrária a esta pressuposta intenção pode se observada nas narrativas
dos entrevistados, quando, em pelo menos três momentos, enfatizam ter medo de
apanhar enquanto eram pequenos, mas à medida que cresciam tinham reações
como “ridicularização”, “indiferença” e “desrespeito” para com aqueles que a
aplicavam.
Como pode ser observado pelas narrativas dos entrevistados, “...o efeito do
261
Ibid., p.175.
262
Ibid., p.186.
167
castigo será discutível, quando as possibilidades de satisfazer as necessidades
naturais, favoráveis se não dispensáveis à alegria de viver, são insuficientes. Um
‘castigo’ aqui falhará; ele não fará mais que provocar os delitos”
263
. Por conta dessa
realidade Crochik
264
entende que é necessário compreender:
“Os imperativos categóricos que movem a ação humana não são
devidos à causalidade empírica e tampouco derivam-se da
sensibilidade: são aprioris calcados na liberdade humana. A
liberdade é o apriori do dever moral e reside no transcendente e
no empírico, embora seja neste que ele se manifeste.”
Diante deste quadro histórico-social construído no qual, aponta Adorno
265
,
ninguém está “livre de traços de barbárie”, resta saber se o indivíduo que tem se
produzido historicamente sob este domínio, pode tornar consciente sua prática,
convertendo-a em uma “fagulha libertadora” que lhe possibilite a emancipação desta
lógica de dominação, visto que, um grande desafio se apresenta diante todos, pois
como afirma Horkheimer
266
:
“Os tipos humanos que predominam hoje não foram educados
para chegar à raiz das coisas e tomam a aparência pela essência.
Por meio do pensamento teórico eles não são capazes de ir, por
conta própria, além da mera constatação, ou seja, a inclusão da
matéria em conceitos convencionais: também as categorias
religiosas e outras às quais se ousa chegar já se encontram
prontas; aprendeu-se a servir-se delas sem crítica.”
A resistência a essa lógica, e mais, a possibilidade de emancipação exige
necessariamente, um olhar voltado ao sujeito e aos motivos que o levam à prática.
Um processo de auto-reflexão destinado a revelar a verdadeira opressão imposta
pelo aparelho legitimador da sociedade. Tudo dependerá de orientar os mesmos
traços da barbárie da qual ninguém está livre, contra seu próprio princípio, em vez
263
Ibid, mesma página.
264
CROCHIK, José Leon. Teoria Crítica e Ideologia. Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento.
4 ed. Cortez, 2005, p.18.
265
ADORNO, Theodor W. Educação contra a barbárie. Educação e Emancipação. s/e. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2000, p.158.
266
HORKHEIMER, Max. Teoria Crítica: uma documentação. s/e. São Paulo: Perspectiva, USP, 1990, p.222.
168
de, como aponta Adorno
267
, “permitir seu curso em direção à desgraça”.
Faz-se mister a crítica das representações que os indivíduos mantêm acerca
da prática da punição corporal. Uma crítica que se fundamente não apenas em
juízos de realidade, mas também em juízos de valor. Como lembra Azevedo
268
, uma
crítica desmistificadora, que desvende as raízes sociais da consciência que os
indivíduos mantêm da realidade social, a qual pode ser ingênua, porque aceita sem
qualquer reflexão, e, ideológica, porque se constitui falsa, na medida em que,
mascara os verdadeiros interesses a que responde.
“A saída desse ciclo vicioso envolve a auto-reflexão, o pensamento
sobre a própria condição do indivíduo na sociedade e, ainda que
essa auto-reflexão não se desenvolva por si só – até porque
concorre com todo o aparato da cultura sob a lógica do capital – está
nela o caminho para o desenvolvimento da consciência e,
conseqüentemente, para a superação da dominação, em favor do
reconhecimento, não da incoerência como algo inerente à natureza
humana, mas como encontro com o que tem se tornando imanente a
ela, para ir além.”
Rosemary Roggero
269
267
ADORNO, Theodor W. A Educação contra a barbárie. op. ct, 158.
268
AZEVEDO, Maria Amélia. Notas para uma teoria crítica da violência familiar contra crianças e adolescentes.
Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento. 4 ed. Cortez, 2005, p.28-30.
269
ROGGERO, Rosemary, A Vida Simulada no Capitalismo - um estudo sobre formação e trabalho na
arquitetura. Tese de Doutoramento. Programa de Educação: História e Filosofia. São Paulo: Pontifícia
Universidade Católica, julho de 2001.
169
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