Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO
Programa de Pós-Graduação em Urbanismo - PROURB
Gabriella Savine Zubelli
O CAMINHANTE URBANO
Entre o pensamento e o sonho
Dissertação de Mestrado apresen-
tada ao Programa de Pós-Graduação
em Urbanismo PROURB, Facul-
dade de Arquitetura e Urbanismo, da
Universidade Federal do Rio de
Janeiro, como parte dos requisitos
necessários à obtenção de título de
Mestre em Arquitetura e Urbanismo.
Orientador: Professor Carlos Murad
Rio de Janeiro
2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
O CAMINHANTE URBANO
Entre o pensamento e o sonho
Gabriella Savine Zubelli
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Urbanismo PROURB, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal do Rio de Janeiro para obtenção do grau de Mestre em
Arquitetura e Urbanismo.
Aprovada por:
___________________________________
Prof. Dr. Carlos Alberto Murad – orientador
PROURB/FAU-UFRJ
___________________________________
Prof.ª Dr.ª Ivete Mello Calil Farah
PROURB/FAU-UFRJ
___________________________________
Prof. Dr. Celso Pereira Guimarães
PPGAV/EBA-UFRJ
Rio de Janeiro
2009
ads:
Z93
Zubelli, Gabriella Savine,
O caminhante urbano: entre o pensamento e o sonho/
Gabriella Savine Zubelli. – Rio de Janeiro: UFRJ/FAU, 2009.
102f. 30 cm.
Orientador: Carlos Alberto Murad.
Dissertação (Mestrado) – UFRJ/PROURB/Programa de
Pós-Graduação em Urbanismo, 2009.
Referências bibliográficas: p.100-102.
1. Urbanismo. 2. Espaço urbano. 3. Imaginário. 4.
Devaneios. 5. Poética. I. Murad, Carlos Alberto. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo, Programa de Pós-Graduação
em Urbanismo. III. Título.
CDD 711
AGRADECIMENTOS
Ao Prourb, pela oportunidade de absorção e disseminação do conhecimento
dentro deste grande centro referencial de arquitetura e urbanismo,
Ao CNPq, pela concessão de bolsa de estudos,
Ao orientador Carlos Murad, pela dedicação e orientação deste projeto,
Ao corpo docente desta instituição,
Aos amigos e família, pelo apoio e constante presença incentivadora no
desenvolvimento deste projeto e conclusão desta grande e importante etapa.
RESUMO
A presente dissertação trata dos conceitos ligados ao caminhar urbano,
ao ato de caminhar associado à construção das percepções, apreensão do
imaginário e o intermédio do corpo, passando por questões do caminhar nos
grandes centros, nas construções urbanas da arquitetura, juntamente com uma
abordagem devaneante e poética. A concepção do ato de caminhar como um
ato de ler e escrever o espaço urbano auxiliando na compreensão dos
processos sutis que transformam a cidade, o ser e a arquitetura através dos
tempos.
Palavras-chave: urbanismo; imagem poética; caminhar; imaginário; devaneio
ABSTRACT
The present work approaches concepts connected to the urban walking,
the act of walking associated with the construction of perceptions, capture of the
imaginary and the participation of the body, discussing the matter of walking in
the great urban centers, in the urban constructions of architecture, along with an
daydreaming and poetic approach. The comprehension of walking an act of
reading and writing the urban space helping the comprehension of the
processes the transform the city, the being and architecture throughout the time.
Key-words: urbanism; poetical image; walk; imaginary; daydream
SUMÁRIO
1 – INTRODUÇÃO 08
2 – PENSANDO O CAMINHAR
12
2.1 - Construindo percepções 15
2.2 - Apreendendo o imaginário 20
2.3 - O intermédio do corpo 25
3 - O VÔO DA BORBOLETA
32
3.1 - Com os s no chão 33
3.2 - As paredes perceptivas: Continuidades e Limites
41
3.3 - A malha e as interligações urbanas: Fluxos, espaço, tempo e lugar
50
4 – ARQUITETURA DO VÔO
59
4.1 - O habitar e o construir 62
4.2 – Compassos e mutações 75
5 – A POÉTICA DAS ASAS
81
6 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
93
7 – ANEXO
96
8 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
100
“No homem, tudo é caminho”
Gaston Bachelard
1. INTRODUÇÃO
O texto em questão tem a proposta de oferecer uma experiência de
leitura abordando as distintas nuances do caminhar urbano, mesclando as
apreensões de poetas, arquitetos e filósofos.
Este trabalho é centrado em questões de como o homem enxerga e
percebe a cidade, a partir de seus valores e significados, onde o homem é o
ator principal na arquitetura e a cidade é o palco de suas realizações. O homem
idealiza e a arquitetura realiza. Assim, o caminhar se torna o mediador entre a
cidade e o indivíduo.
Dentre as diversas motivações possíveis, o caminhar foi estudado a
partir duas vertentes: uma pragmática, direcionada ao pensamento e outra
devaneante, direcionada ao sonho. No desenvolver do texto, são questionados
os limites entre essas vertentes, passando por questões associadas ao tempo,
espaço e a relação corpo-movimento. Essas vertentes se interpenetram a todo
momento na consciência do caminhante, seja objetivamente ou subjetivamente.
A forma de agrupar o pensamento no decorrer do texto possui uma estrutura
rizomática, em temas que se entrelaçam entre si.
Os principais autores abordados foram Gaston Bachelard, Kevin Lynch,
Paola Jacques, Carlos Murad, Rubem Braga, Hilton Japiassú, François
Zourabichvili (citando Deleuze), passando também por abordagens de Marilena
Chaui, Maurício Plus, Walter Benjamim, Richard Sennett, Yi-Fu Tuan, Jane
Jacobs, Carlos Santos, Rubem Braga, Manuel Bandeira, Italo Calvino, Pablo
Neruda, Cristovão Duarte e Ivete Farah.
O primeiro capítulo, teórico, aborda o ato de caminhar associado à
construção das percepções, apreensão do imaginário e o intermédio do corpo.
Abordando principalmente a maneira como ocorre a impulsão do movimento de
caminhar, indo desde o desejo físico do movimento, até o ontológico.
A metodologia aplicada nos capítulos 2, 3 e 4, foi a criação de uma
narrativa a partir da apropriação do conto de Rubem Braga “A Borboleta
Amarela” juntamente com a criação do personagem O caminhante urbano,
sendo este o guia para expressar a compreensão das diferentes leituras do
caminhar e suas reflexões. Para o palco dessa expressão, temos o centro da
cidade do Rio de Janeiro, num trajeto focado em três locais, com três ritmos e
temporalidades distintas: a primeira abordando questões no centro urbano e
seu ritmo acelerado, a segunda questões dos valores arquitetônicos, num ritmo
moderado e a terceira os valores naturais, num ritmo desacelerado.
Assim, o capítulo 2 é chamado de O Vôo da Borboleta, caminhando nos
grandes centros urbanos, passando por questões sobre o pragmatismo urbano
versus fábula, o pensamento e o sonho; as continuidades e limites físicos e não
físicos; as interligações da malhas; a relação entre os fluxos, espaço, tempo,
lugar e território.
O capítulo 3 é chamado A arquitetura do vôo, associado diretamente às
construções urbanas na arquitetura, abordando questões sobre o habitar e o
construir com seus elementos arquitetônicos; as variações do ponto de vista, e
as mudanças do caminhar; a casa interna e externa, o labirinto, as memórias e
os caminhos; compassos e as mutações, com seus ritmos e mudanças físicas e
não físicas.
O capítulo 4 é chamado A poética das asas abordando questões do
caminhante em devaneio, associado com os ritmos internos do ser e da terra,
numa abordagem devaneante e poética.
O capítulo 5 é o conclusivo, e o 6 o anexo que leva o texto original de
Rubem Braga.
Desta forma, o ato de caminhar vai aos poucos, nos mostrando suas
diferentes facetas, nos permitindo a compreensão dos processos de
transformação internos e externos, assim como físicos e oníricos, os quais
contribuem para os processos de mudança da cidade, da arquitetura e do ser,
em suas respectivas temporalidades.
“Onde há uma vontade, há um caminho”
Gaston Bachelard
2. PENSANDO O CAMINHAR
Este capítulo procura trazer as linhas de pensamento e a base
filofica do caminho seguido no desenvolvimento dessa dissertação. O ato
de caminhar aparece associado às questões físicas e imaginárias, onde
passo a passo, fisofos, poetas, arquitetos e urbanistas o surgindo
permeados a reflexões sobre o caminhar na cidade. O movimento escrito flui
por trajetos, trajerias, ruas, estradas, cidades, labirintos e outros
caminhos. Discutiremos as diferentes questões e fatos ligados à dimeno
perceptiva e imagiria, passando pelo ato de caminhar, pela constrão de
percepções e apreensão do imaginário, pelo intermédio do corpo e os
diferentes ritmos do caminhar.
Uma das características do ser humano é a impulsão ao movimento.
Esta impulsão parece obedecer a diferentes motivões, que vão desde o
desejo físico de locomoção, até o ontogico: a vontade intrínseca de
mudança. Dentre os distintos modos de se realizar esta impulo, es o ato
de caminhar.
Quando nos movimentamos fisicamente, geramos mudanças de
realidade, de perspectiva, de percepções, de objetivos, de resultados, dentre
outros. Na ancestralidade, isso ocorria pela busca de alimento e pela
vontade de explorar e de se relacionar com o meio. Caminhando, os
primeiros humanos desbravavam continentes, delimitavam fronteiras,
territórios e lugares. E o homem aprendia a lidar com o espaço.
Instintivamente, em qualquer período histórico, ele buscaria explorar e
aventurar-se pelo espaço. Esse deslocamento, envolve mais do que a
movimentação dos membros e da busca da resolão das necessidades
básicas de sobrevivência. Engloba também, a maneira do ser interagir no
espaço e com todos à sua volta, como nos mostra Japias, comentando
Aristeles:
“Aristóteles define o movimento como passagem de poncia a
ato, distinguindo: o movimento como deslocamento no espaço; como
mudança ou alterão de uma natureza; como crescimento e
diminuição; e como geração e corrupção (destruição).
(JAPIASSÚ,
1989, p.195)
Ao caminharmos, nos deslocamos no espo em uma determinada
relação de tempo. As diferentes relações entre caminhar, espo e tempo
nos conduzem a diversas leituras do espo e do Ser. A partir da relação
entre o homem e o espo, surge o caminho, o tracejar, a trajetória. O
homem passa então a construir um sistema de relações efêmeras entre a
sua vida, a natureza e o espaço. O espo torna-se um objeto de
especulação intelectual e intuitiva, definindo sistemas de valores simlicos
atras dos modos do caminhar e da apreensão dos terririos percorridos.
Ao longo dos tempos a relação homem-espaço foi se desenvolvendo,
se modificando e se urbanizando, sobre diferentes formas coletivas de
convivência. As relações humanas tornaram-se mais complexas,
construindo-se o espaço urbano, que passou a fazer parte da crião das
cidades.
Caminhar tornou-se uma ferramenta de construção da identidade do
homem com o espaço e a cidade, onde as relações móveis e estáticas vão
se sucedendo de maneira individual e coletiva. O modo como elas
acontecem e coexistem vão am das escolhas funcionais, utilirias e
pragticas das trajetórias e dos percursos. Nessas variantes complexas o
indiduo constitui e é movido pelos seus desejos ontológicos e pela relação
com o habitar e a cidade. O caminhar é um ato de construção e
desconstrução, de mudança e alteração da natureza e do espaço urbano.
Observamos, sentimos e refletimos sobre o mesmo espaço físico
atras de formas diferenciadas. Na captura das imagens através da
consciência, nem todos os elementos que comem tal espo o
essenciais. Alguns m destaque e são escolhidos por vies de potenciais
oníricos contidos na natureza urbana:
“(...) o aqueles em quem o seu olhar marcouatraído pelos
seus potenciais oníricos fotogênicos.
(MURAD, 1998, p.7).
O olho que observa está sempre a criar novos caminhos, recortes
iluminados e novas perspectivas de visão. Ao caminhar, nosso olhar
percorre trajetos. Eno escolhemos nossos recortes, os quais se
transformam em material onírico para o devaneio, que transcende os valores
físicos da realidade.
Existem formas variadas de se perceber, sentir e interiorizar o espaço.
Um fotógrafocriador” provavelmente terá seus recortes direcionados ao
olhar; um deficiente físico aborda questões inclusivas e exclusivas; um
cego irá apreender essas imagens no seu imaginário pessoal a partir dos
seus sentidos aguçados que suprem a ausência da vio, e um dançarino
talvez recortará a partir da conscncia do potencial máximo do seu corpo
em relação ao espaço. Todos irão poetizar e se apropriar do espaço de uma
maneira única e individual.
“O habitante “poetizador”, após incorporar no seu imaginário
pessoal as ltiplas imagens da cidade irá ‘imprimir o produto de sua
olhicriação sobre o corpo da cidade.
(MURAD, 1998, p.8).
Quando olhamos, escolhemos, enquadramos, selecionamos e assim
imaginamos e criamos continuamente a cidade. Ao olhar e caminhar
experimentamos imagens urbanas e o movimento da cidade e do tempo.
Nesse movimento de escolha e apreeno, ocorrem instantes em que o
passado se dissolve e o momento presente se destaca.
2.1. Construindo percepeções
Ao caminhar, construímos percepções, tanto sobre o mundo físico
quanto sobre o imaginário. Percebemos e sentimos interna e externamente
o espaço à nossa volta. Segundo Chaui, o conhecimento ou experiência
sensível tem em suas formas principais, a sensação e a percepção.
“A sensação é o que nos dá as qualidades exteriores e
interiores, isto é, as qualidades dos objetos e os efeitos internos
dessas qualidades sobre nós.
(CHAUI, 2003, p.132)
Sentimos ambiguamente:- externamente possuímos as qualidades
puras e diretas das coisas, como cores, odores, sons, sabores,
temperaturas, texturas, etc. e, internamente, o que ocorre em nosso corpo e
mente quando estamos em contato com coisas, como alegria, tristeza,
prazer, dor, etc.
“(...) a sensação é uma reação corporal imediata a um estímulo
externo ou a uma excitação externa, sem que seja posvel distinguir,
no ato da sensação, o estímulo exterior e o sentimento interior.
(CHAUI, 2003, p.132)
A percepção seria eno uma síntese de sensações simulneas,
sendo sempre uma experncia dotada de significação. É uma relação do
sujeito com o mundo exterior, o qual é composto de um somatório de coisas
isoladas, organizadas em estruturas complexas, dotadas de sentido.
“O mundo percebido é qualitativo, significativo, estruturado e
estamos nele como sujeitos ativos, isto é, damos às coisas
percebidas novos sentidos e novos valores, pois as coisas fazem
parte de nossa vida e s interagimos com o mundo.
(CHAUI, 2003,
p.135)
A forma física dessa interação é atras das relações entre o mundo
e o nosso corpo, o corpo dos outros sujeitos e o corpo das coisas. Cada ser
humano tem diversas percepções sensoriais que foram desenvolvidas de
formas diferentes. Não existe uma forma única de ver, sentir e perceber o
mundo. Seja qual for a percepção em que a conscncia atue em
determinado momento, tanto s como as coisas pertencentes aquele
plano somos, durante esse tempo, nossa única realidade.
(BLAVATSKY apud
PEARSON, 1967, p.18)
“O mundo em que vivemos não é de modo algum um mundo de
coisas e lugares é um mundo de consciência: nossa conscncia!
s não criamos esse mundo. Ele surge em nossa conscncia como
resposta à impactos do espírito e da maria. Portanto, desde a
consciência, como vimos, é um reflexo da realidade, este mundo
partilha da natureza da realidade. O mundo físico surge em s em
resposta a impressões sensoriais.”
(PEARSON,1967, p.18)
Possuímos um campo perceptivo, o qual nos mostra que a perceão
vai am dos sentidos. Percebemos atras das relões, dos pensamentos
e dos femenos. Percebemos com o espírito e com a maria. (...)
apreendemos os objetos que nos cercam, também apreendemos a s
mesmos.
(PENNA, 1982, p.13).
A percepção está diretamente associada ao
sentir.
“A percepção é uma conduta vital, uma comunicação corporal
com o mundo, uma interpretação das coisas e uma valorão delas
(...).
(CHAUI, 2003, p.135)
Quando caminhamos percebemos e interagimos com o mundo ao
nosso redor. Ele é percebido através de como se recebe sentidos,
significados, qualidades, valores e afetos, e pela medida que envolve nossa
personalidade, hisria pessoal, social e cultural, através dos desejos,
paies, vontades, estímulos, sociedade e cultura.
(CHAUI, 2003, p.137)
“Na maioria das vezes, nossa percepção da cidade o é
abrangente, mas antes parcial, fragmenria, misturada com
considerão de outra natureza. Quase todos os sentidos eso em
operação, e a imagem é uma combinão de todos eles
(LYNCH, 1997,
p.2)
Especialmente a partir de nossos sentidos, apreendemos imagens
perceptivas e as significamos. Ao fazermos essa captura, por uma mediação
da consciência, estamos fazendo uma relação entre as diversas apreenes
do objeto real com o significado atribuído.
“Construímos aquilo que chamamos imagem ou representação
da cidade a partir de uma série de fragmentos selecionados
(voluntária e/ou involuntariamente), envolvendo fatores subjetivos
como, por exemplo, lembranças individuais e a familiaridade esta-
belecida com determinados lugares. Imprevisíveis e intercambiáveis,
os significados emprestados às formas são também mutantes ao
longo da vida dos indivíduos.
(DUARTE, 2002, p.1)
Desta forma, apreensões diferentes do mesmo fenômeno tornam a
percepção um modo único de ver, sentir e perceber. Um somatório de
fragmentos físicos e nãosicos são relacionados a todo o momento na
consciência do caminhante. Estas significações acontecem a partir de um
movimento de pensamento, que permite que criemos e re-criemos o mundo,
a todo momento, em nossa conscncia.
Quando o real é apreendido, o convertemos em imagem. A imagem é
a representação mental que retrata um objeto externo percebido pelos
sentidos. “O termo imagem designa uma certa maneira de a conscncia se
dar um objeto.
(SARTRE apud JAPIASSÚ, 2006, p.143)
. Para Bachelard
(2003)
, o
termo imagem é uma resultante da apreeno antecedendo o ato da
percepção.
Essas imagens apreendidas através dos sentidos variam de
significados, de indivíduo para indiduo, induzindo a representações
mentais, onde o reflexo do percebido e do imaginário são interiorizados.
Elas geram um movimento interno que dá início a sensações, pensamentos
e reflexões sobre a realidade vivida. Ao tomar conscncia do mundo,
significa que passamos a pertencer, agir, interagir em sua (re)constrão.
Assumimos e passamos a fazer parte dele, de sua construção, coexistir:
“Os nomes que atribuo às coisas, as formas através das quais
eu as identifico, as medidas com as quais eu as relaciono e comparo,
o modos de recortar” o meu objeto e transformá-lo num objeto de
pensamento. (...) Ao visar um objeto, a consciência imobiliza um
determinado aspecto do objeto, realizando, através da percepção,
uma operação de abstração. Nesse sentido, a abstração pode ser
vista como umacnica do pensamento que separa os objetos da
totalidade em que se encontram inseridos.
(DUARTE, 2002, p.5)
Sob esse aspecto, entendemos a abstração como um modo de
pensamento, uma maneira de operar - umacnica de pensamento que
recorta os objetos a partir de escolhas, percepções e sensões pessoais,
de sua totalidade. O próprio pensamento possui formas de criar abstrações.
Existe uma resignificação da captura priria do pensamento inicial, que dá
margem a novas abstrações e, assim, sucessivamente, onde diferentes
linhas atemporais se interligam no presente.
O movimento, seja ele interno ou externo, encontra na natureza
urbana um lugar privilegiado de realização, bem como sua ntese ajuda a
constituir os sentidos da natureza urbana. O movimento na prática constitui
uma participação intensiva no espaço urbano. Nesse sentido aão de
caminhar se torna reflexo da interligação entre o movimento “de dentro com
o movimento “de fora”. Essa incessante dialética formula operações de
abstração e materialização da natureza urbana.
Assim, o caminhar é uma ferramenta de ver e interagir o espaço
urbano. Do ponto de vista físico, pode-se dizer que o caminhar se torna uma
maneira de ler, escrever e interpretar este espaço. por um ponto de vista
ontogico, ele se torna uma maneira de interpretar, de refletir os anseios,
desejos e vontade do ser.
2.2. Apreendendo o imagirio
Inicialmente compreendemos que o imaginário “(...) é o conjunto de
representações, creas, desejos, sentimentos, através dos quais um
indiduo ou um grupo de indivíduos a realidade e a si mesmo. É
também (...) a capacidade que tem a consciência de nadificar o real, de
desligar-se da plenitude do dado e de romper com o mundo.
(JAPIASSÚ,
2006, p. 143)
“Em torno de cada imagem
Escondem-se outras.
(CALVINO, 2003, p.12)
Gaston Bachelard
(1993)
nos traz a refleo filofica do imaginal,
onde a irrealidade construída pela imaginação é um modo de exisncia real.
Esta imaginão o tem limite nem origem, é descontínua, espontânea e
metarfica; é a dádiva que nos diferencia, que nos impulsiona, é o desejo
de transmutação. E assim, também nos traz a valoração conceitual e
metodológica do devaneio sendo constituído como: movimento do
pensamento, processo este espontâneo e solitário, que existe tamm com
a apreeno de imagens. No devaneio, uma quebra da continuidade
tempo espacial, tempo suspenso, que rompe com a realidade e se estende à
ilusão. No espaço inexistente há uma quebra do controle, não existindo
certo e errado, verdadeiro e falso; os valores da dualidade racional ficam
suspensos, não existe sujeito nem objeto, os dois o permutados num
único elemento. Assim como explica Murad, abordando este pensamento
criado na apreeno de imagens:
“Tal gica se consti na esponnea eclosão e apreensão das
imagens poéticas. Imagens “imaginadas” que não se apresentam
como configurações instantâneas, e sim como dinamização de élans
imagéticos em nossa conscncia imaginante. (...) Uma repercussão
que nos coloca numa suspensão tempo-espacial onde, espon-
taneamente, saímos desta temporalidade cronogica “horizontal” e
ascendemos a uma temporalidade vertical.
(MURAD, 2006, p.5)
Essa repercuso das imagens vai am de nossa subjetividade,
atingindo camadas profundas do ser. O caminhar nos traz o além do objeto,
am da subjetividade, a criação e a associação dos símbolos da natureza
urbana e, é capaz de desencadear um fluxo de pensamentos. Podemos
imaginar esse movimento como camadas de consciência, devaneantes e
pragticas, que se interpenetram a todo momento, sem limitação nem
divio. Elas são ativas e ativadas num movimento contínuo de conscncia
do caminhante. A dimensão entre camadas íntimas do ser constitui o
movimento ontológico do caminhar. Neste movimento, o olho registra e o
devaneio cria asas, momentos de elucidação se misturam com o da criação.
Quando aderimos o nascimento e o renascimento da criação, percebemos
que não existe um início nem um fim, nem uma sequência ordenada; existe
apenas o movimento do pensamento: a imagem ptica.
“É necessário estar presente, presente à imagem no minuto da
imagem.
(BACHELARD, 1993, p.1).
Para Bachelard
(1993)
, a imagem poética possui uma dimica
ppria, uma explosão de crião única. Ela não es associada a um
passado, a uma hisria cronológica, mas é possível que ocorram
associações com alguns arqtipos, de forma inconsciente. Esta imagem
variável e por vezes singular, pode repercutir diretamente com o psiquismo,
ressoando com outras almas. Alma como palavra imortal que traduz a
esncia sentida e experienciada. “Alma e espírito o indispensáveis para
estudarmos os femenos da imagem poética em suas diversas nuanças
(...)”
(BACHELARD, 1993, p.6).
Como pontua Bachelard: Quando ocorre uma simples imagem poética
a alma se movimenta, se faz presente, em um poema, o espírito se
projeta.
“A poesia é uma alma inaugurando uma forma A alma
inaugura. Ela é aqui poncia inicial. É dignidade humana.
(PIERRE-
JEAN JOUVRE apud BACHELARD, 1993, p.6).
Essas imagens poéticas vivenciadas nos trazem um campo de
inúmeras experncias associadas a uma conscncia sonhadora, sem uma
necessidade de um saber pvio. O ser caminha no seu interior, no seu
limiar, explora terririos inexploveis, anda por campos e com passos
novos, se redescobre a cada momento, se surpreende, experimenta uma
forma nova.
Heidegger nos ensina que estamos fadados a permear
frequentemente nossa existência criadora entre a terra e o u
(in MURAD,
2006, p.2)
, onde estes dois mundos coexistem: questões pragmáticas se
misturam com o mundo dos sonhos e desejos, ou seja, um imaginário se
estabelece, se consti, expressando vontades intnsecas do ser.
Experimentar a cidade é permear esses dois mundos. O caminhar se torna a
ferramenta da experncia de crião de imagens. Essas representações
imagéticas o mutáveis como o movimento do caminhar.
Ocorre assim uma apropriação do momento presente, pode-se dizer
que o capturamos. É como se congessemos essa imagem na consciência
e atribuíssemos a ela um significado.
De uma certa maneira pode-se dizer que tais recortese apreenes
de imagens trazem à tona as representações ontogicas dos desejos
íntimos do ser.
“O pensamento criador bachelardiano trata os contornos,
aparências do mundo, (...) como figurações transitórias da
consciência. Ou seja, como representões a serem superadas
continuamente.
(MURAD, 2006 p.5)
O mundo dos fluxos da cidade e do caminhante encontra-se em
constante devir. Antes de sermos caminhantes, somos seres num devir-
cidade.
“Devir é nunca imitar, nem fazer como, nem se conformar a um
modelo, seja de justiça ou de verdade. o há um termo do qual se
parta, nem um ao qual se chegue ou ao qual se deva chegar.
(PARNET, apud ZOURABICHVILI, 2004, p.24).
Caminhar como um movimento de devir, de absorção, de criação, de
destruição, e de constante renovação. No devir tudo flui, nada é fixo, tudo se
transforma e se dissolve, nada remete a nada.
A diversidade contida no caminhar em devir, traz a irrelevância do
percurso, o andar simplesmente por andar. O caminhante em devir possui um
desejo íntimo de conhecer novos caminhos, de buscar, explorar o
desconhecido. O caminhar se mostra como um movimento incessante, que
rompe as dimensões entre homem, tempo e espaço; como um processo que se
desenrola, como fenômeno, como tudo o que é percebido, que aparece aos
nossos sentidos e à nossa experiência e que não possui uma continuidade
temporal.
Podemos também caminhar rizomaticamente, passando pelo movimento
complexo dos processos fragmentados e labirínticos.
"Diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta
um ponto qualquer com outro ponto qualquer, e cada um de seus traços
não remete necessariamente a traços de mesma natureza, ele põe em
jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não-
signos. O rizoma não se deixa reduzir nem ao Uno nem ao múltiplo... Ele
não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes, de direções
movediças. Não tem começo nem fim, mas sempre um meio, pelo qual
ele cresce e transborda. Ele constitui multiplicidades"
(ZOURABICHVILI ,
2004, p. 51)
Quando caminhamos acessamos nossa árvore interna, nossas raízes,
nossos ancestrais. Como aborda Zourabichvili
(2004, p.52),
falando sobre rizoma,
a partir de Deleuze: "muitas pessoas têm uma árvore plantada na cabeça".
Para um pensamento rizomático não existe um tempo de origem que inicie o
pensamento. Não existe um único caminho para o pensamento, ele flui sem
regras.
Assim, os sentidos do caminhante são alimentados a todo momento
com fluxos sensoriais contínuos. O exercício da consciência, das
impressões e sensações alteram elaboração da percepção e do conhe-
cimento, de maneira silenciosa, afetando os sentidos da existência do eu e
as nossas percepções do outro. Esses fluxos se interagem do interior e do
exterior, através do intermédio do corpo.
2.3. O interdio do corpo
O corpo é o intermediário entre o espo sico e o ontogico. Essa
relação entre corpo-cidade-indiduo foi se modificando ao longo do tempo e
da história. As situações decorrentes de cada época refletem diretamente a
postura dos habitantes do local em relação a como enxergam seus corpos e
como os deslocam na cidade. Os padrões ativos de cada época, de
comportamento, pensamento e emoções fazem com que os indivíduos
atuem na cidade como num teatro, escolhendo entre tornarem-se atores
principais, coadjuvantes ou espectadores. Como nos ensina Sennett:
“A forma dos espaços urbanos deriva de vivências corporais
específicas a cada povo
(1997, p.300)
A relação do homem com o corpo se reflete nas construções e nos
usos dos espos urbanos. A coletividade e a individualidade o questões
que se contrapõem às épocas. O corpo se torna então um meio de se
entender o passado, sendo um objeto da hisria, trazendo em si o histórico
das sensões físicas no espaço ao longo do tempo. Ele, como objeto físico
traz consigo a opreso e/ou a representação da identidade, numa relação
direta entre o corpo e o indiduo. A partir deste objeto, fazemos contato e
experienciamos o mundo ao redor.
Assim como as relações entre os corpos no espaço determinam as
reações tuas de como os indiduos se veem, se ouvem, se tocam ou se
distanciam, existe uma cancia dos sentidos fundamentada na auto-
proteção. Surgem, eno, alguns questionamentos: Como o espaço poderia
suprir essa necessidade do sentir? Se que alguns arquitetos perderam
essa conexão com o corpo humano em seus projetos? O que o corpo
humano devolve aos sentidos se vivermos com receio das experiências?
Como devem ser os espaços projetados e os caminhos por onde passamos?
Os princípios fundamentais da organização espacial giram em torno
do homem, com sua postura e estatura, e de suas relações entre pessoas.
O homem a partir dessa relação organiza seu espaço a fim de satisfazer
suas necessidades biogicas e sociais; e é atras dele que participa do
mundo. O corpo ocupa lugar no espaço e faz parte dele; e é também dirigido
e ordenado pelo homem.
“O homem, pela simples presença, impõe um esquema no
espaço.
(TUAN, 19307, p.42
)
Essa imposição pode ser consciente ou o. É atras do corpo que o
homem exe suas emoções, tem suas percepções e sensações, se
movimenta, sonha, cria. É nele onde a alma habita e se comunica com todas
as formas de experncias do mundo.
"Do corpo nascem e se propagam as significações que
fundamentam a existência individual e coletiva; ele é o eixo da relação
com o mundo, o lugar e o tempo nos quais a existência toma forma
através da fisionomia singular de um ator. Através do corpo, o homem
apropria-se da substância de sua vida traduzindo-a para os outros,
servindo-se dos sistemas simbólicos que compartilha com os membros
da comunidade"
(LE BRETON, 2006, p.7)
É atras do corpo que expressamos os sentimentos que vivenciamos
e da forma como repercurtem em s. A cada instante decodificamos
sensorialmente o mundo atras do corpo. É a partir dele que acontece o
fluxo de todas as relações, num movimento entre interior e exterior.
Segundo Bachelard:
“O exterior e o interior o ambos íntimos; eso sempre
prontos a inverter-se, a trocar sua hostilidade.
(BACHELARD, 1993,
p.221)
Para ele é possível explorar o ser do homem como o ser de uma
superfície, que separa as regiões dele próprio em relão às do outro. O ser
se manifesta e se oculta, em movimentos numerosos de abertura e
fechamento. “(...) o homem é o ser entreaberto.
(BACHELARD, 1993, p.225)
E esses movimentos possuem ritmos. O caminhar é também o ritmo
do corpo em movimento que se desloca pelo espaço. O ritmo do movimento
envolve mudanças de realidade, a qual es sempre em fluxo.
Assim, cada ser possui seu ritmo interno, e juntamente a ele
interagimos com o ritmo externo. Ao caminhar nos conectamos com eles, os
quais não existem separadamente, pois estão sempre em interação e em
tua alteração. A cidade tamm possui o seu ritmo numa conjugação de
inúmeros fluxos, que se relacionam diretamente com o caminhar. São ritmos
diferenciados em tempo-espaço, que se cruzam, interagem e permeiam-se
continuamente. A palavra ritmo designa aquilo que flui, que se move.
Nossos ancestrais utilizavam-se dos ritmos associados às sicas
para se guiarem pelos caminhos e estradas. Dessa mesma forma algumas
culturas baseavam-se nas músicas e nos cânticos para caminhar pela
estrada do mundo interno do ser, produzindo estados alterados de
consciência. Os diversos ritmos internos e externos existem
simultaneamente na cidade.
Observar as pessoas em movimento nas ruas nos demonstra
facilmente a diversidade dos tipos de ritmo e formas de andar. Nesse
movimento cada parte do corpo está diretamente ligada às demais, em um
conjunto gracioso que possui o seu próprio ritmo. Estes ritmos unificados
demonstram todas as partes trabalhando em conjunto, como se fosse uma
quina bem ajustada. A dança tamm nos demonstra isso, atras da
expressão máxima do corpo em movimento, harmonizando, sincronizando e
integrando tempo e espaço.
“A dança transforma o espaço em movimento: temporaliza o
espaço. A música, disciplina temporal, e a arquitetura, disciplina
espacial, se casam na dança, disciplina do movimento.
(JACQUES,
2003, p.85)
Segundo Aurélie Chêne, falando sobre as perceões corporais no
mundo urbano, a maneira pela qual as pessoas se comportam no espo
público está diretamente ligada à maneira de como daam:
(...) é a mesma forma corporal que se manifesta. (...) A
experiência corporal do dançarino é semelhante ao andar do citadino.
Com efeito, é no ritmo de uma sonoridade em dois tempos, que o
corpo se desloca de um pé para o outro (...).
(in JACQUES, 2006, p.142).
Essa experncia renova uma espacialidade cotidiana, a qual varia de
acordo com a cidade e os ritmos dos locais. Andar na cidade é uma
coreografia urbana, formada por uma sequência de daarinos com seus
compassos e ritmos internos individuais, que tem a capacidade de
espacializar e temporalizar o corpo em ação.
“Os corpos e os lugares encontram (...) formas de exisncia ao
mesmo tempo separadas e articuladas.
(JACQUES, 2006, p.144).
Movimentar o corpo faz emergir uma forma corporal urbana. Sempre
existe uma maneira específica de passar em meio à multidão ou em meio a
uma calmaria. O ritmo é o princípio vital desse movimento, é uma lei
universal a que tudo submete.
O ritmo e os fluxos dão vida à cidade, numa plenitude de beleza e
integração. Cada situação urbana e espaço sico tem um ritmo pprio.
Essa varião de compassos forma a sintonia de cada espaço. Em grandes
centros urbanos, por exemplo, o ritmo é acelerado e parece fazer com que
as pessoas anseiem por tudo mais rápido; é como se quase tudo fosse
projetado para correr. em locais onde o ritmo mais lento, as pessoas
parecem não ter pressa. Assim, os ritmos pessoais se relacionam e
interagem diretamente com o ritmo dos espaços.
Para percorrer a estrada da vida é preciso dançar os ritmos de cada
momento, de cada trecho, de cada hisria; ou acompanhamos, ou caímos
no vazio. É preciso aprender a dançar, harmonizar e sintonizar!
“O olhar percorre as ruas como
se fossem páginas escritas:
a cidade diz tudo o que você deve pensar.”
Italo Calvino
3. O VÔO DA BORBOLETA
Este capítulo aborda as questões do caminhar num grande centro
urbano, permeando as diferentes questões e fenômenos. A crônica “A
Borboleta Amarela”, do poeta Rubem Braga servi de eixo condutor, como
texto tetico, o qual direciona a trajetória dos pximos capítulos. Ele
se usado como método para desenvolver a narrativa, pontuando questões
a serem abordadas. O trajeto acontece a partir de alguns recortes desta
crônica, os quais interagem com a narrativa criada, juntamente com
reflees e digreses sobre o pragmatismo urbano, as interligações de
fluxos temporais e espaciais, as continuidades e limites.
O conto de Rubem Braga trata da odisséia de uma borboleta que
interrompe um caminhante no centro do Rio de Janeiro, onde ele passa a
seguir um novo caminho, alheio às suas inteões iniciais de trajeto. Ele faz
digressões com a companhia da borboleta, transitando nos meandros da
cidade.
Para a nossa trajetória a ser desenvolvida, apresentamos o
personagem: o homem urbano, um caminhante que nos conduzirá, no
decorrer dos pximos três capítulos, a diferentes trajetos na cidade do Rio
de Janeiro, a partir de variados ritmos, locais e relações de tempo-espaço.
3.1. Com os s no chão
Passo a passo vinha ele caminhando. Surgia calmamente em meio à
multidão. Para onde irá? De onde viria? Isso parecia não importar. Passos
leves e ao mesmo tempo firmes e suaves refletiam um desejo de alma de
seguir em frente, de explorar e interagir com o universo à sua volta. Ele
observava cada movimento ao seu redor. Parecia discernir e discriminar a
paisagem e os elementos que a compunham. Ele encontrava-se na típica cena
de um centro urbano contemporâneo e agitado, onde o barulho, a fumaça e o
frenesi dos carros mobilizavam o seu interior. Observava o tempo das pessoas
à sua volta: agitadas e muitas vezes desnorteadas. E num pequeno instante,
meio a tudo isso, ele avistou a Borboleta Amarela. estava ela, passeando
por entre os galhos de uma amendoeira, em pleno burburinho da cidade. O que
será que fazia ali, para onde iria?
“Passou roçando em meus cabelos, e no primeiro instante achei
que fosse uma bruxa ou qualquer outro desses insetos que fazem vida
urbana; mas, como olhasse, vi que era uma borboleta amarela.
Era na esquina de Graça Aranha com Araújo Porto Alegre: ela
borboleteava junto ao mármore negro do Grande Ponto; depois desceu,
passando em face das vitrinas (...).”
(BRAGA, 1952, p.1)
Pequena, leve e suave, ela rodopiou em volta dele, convidando-o a alçar
vôo. Resolveu acompanhá-la e aos poucos, deixando-se levar por qualquer
caminho escolhido. Não havia planos nem mapas que o direcionasse, não
sabia se eram caminhos desconhecidos ou apenas os velhos percebidos de
uma forma diferente. Seus olhos pareciam libertos dos véus que o cegavam,
desperto assim para o novo. Observava as pessoas à sua volta e a
multiplicidade dos usuários da cidade. Como era intrigante esta diversidade de
arquétipos do Ser! Ele observava a tudo e a todos, e se deixava observar.
“Uma rua viva sempre possui simultaneamente usuários e
observadores”
(CHOAY, 1979, p.295).
E poderíamos dizer sonhadores, que em uma rua, adquirimos papéis
diferenciados a todo instante. Somos usuários que observam e observadores
que usam, onde não existem divisões nem qualificações para essas duas
características. Captamos dados através dos nossos sentidos, os quais servem
de material onírico para o imaginário que substancializam, de novo, novas
percepções. Percebemos o local, interagimos com a paisagem de uma maneira
única e individual. Construímos lugares como a porção de um espaço seja ele
qual for, ou um ponto imaginário numa coordenada qualquer espacial
percebida.
Nosso caminhante avistou um sinal de trânsito, e estava ela do
outro lado da rua. Observou de longe os três estágios dessa sinalização:
tempos distintos para ações diferenciadas. Teve uma súbita vontade de parar
enquanto estava sinalizado para andar. Parou. Deixou que as pessoas
agitadas atravessassem à sua frente, correndo. Experimentou o contra fluxo.
Sentia seu corpo desconfortável sendo empurrado a favor do movimento.
Esperou o sinal fechar novamente, e então escolheu para qual lado seguir.
Atravessou, fluindo com a maré acelerada, chegando ao outro lado, onde a
esfregação da multidão o comprimia.
“As vias são canais de circulação ao longo dos quais os
observadores se locomovem de modo habitual, ocasional ou potencial.
Podem ser ruas, alamedas, linhas de trânsito, canais, ferrovias. Para
muitas pessoas, são estes os elementos predominantes em sua
imagem. Os habitantes de uma cidade observam-na à medida que se
locomovem por ela, e, ao longo dessas vias, os outros elementos
ambientais se organizam e se relacionam.”
(LYNCH, 1997, p.52)
As vias são elementos urbanos predominantes na cidade e podem
apresentar induções direcionais. Quando se caminha, esses fatores interagem
diretamente com o percurso escolhido, como por exemplo, o trajeto dos
caminhantes, existindo uma relação de identidade com o pedestre. Hábitos e
atividades individuais podem dar grau de importância a elas. Algumas pessoas
se deixam guiar pelo fluxo principal do tráfego. Qualidades espaciais também
ajudam a formar a identidade do local, onde assim, criamos uma relação de
preferência pelos caminhos.
“As pessoas tendiam a pensar em termos de destino das ruas e
de seus pontos de origem: gostavam de saber de onde surgiam e para
onde levavam. As vias com origem e destino claros e bem conhecidos
tinham identidades mais fortes, ajudavam a unir a cidade e davam ao
observador um senso de direção sempre que ele passava por elas.”
(LYNCH, 1997, p.60)
Quando caminhamos, podemos estar intencionados a mudar a direção,
mas, às vezes, isso acontece abruptamente, podendo haver um desconforto,
uma desorientação ou insegurança. Ter a visão clara das ruas adjacentes gera
uma sensação de conforto, que está associado à sinalização e ao
estreitamento e mudança, alinhamento, interseção e surgimento de elementos.
As mudanças bruscas ou sinuosidades nos caminhos criam pontos de
perturbação, de interrupções. Talvez seja mais fácil lidar com a simples relação
perpendicular e retilínea como, por exemplo, a estrutura em malha das
quadras.
As ruas e calçadas são elementos predominantes: elas servem para os
mais variados fins. São fundamentais para o funcionamento adequado da
cidade. As calçadas são a parte que cabe à circulação e aos pedestres.
Segundo Jacobs:
“A calçada por si não é nada. É uma abstração. Ela
significa alguma coisa junto com os edifícios e os outros usos
limítrofes a ela ou calçadas próximas.”
(JACOBS, 2000, p.29)
Este autor associa as ruas e calçadas como os principais locais públicos
da cidade, como “(...) seus orgãos vitais.”
(JACOBS, 2000, p.29)
, a partir de onde
os relacionamentos acontecem. Elas estão diretamente associadas à imagem
da cidade, a medida que “(...) se as ruas de uma cidade parecem
interessantes, a cidade parecerá interessante; se elas parecem monótonas, a
cidade parecerá monótona.”
(JACOBS, 2000, p.29)
. A rua é uma área de transição
entre o espaço público e o espaço privado. É palco dos desconhecidos,
mesmo que as pessoas residam umas perto das outras, pois o número deles é
maior do que o de conhecidos. A principal questão: como as pessoas sentir-
se-ão seguras e protegidas em meio a tantos desconhecidos? Segundo
Jacobs:
“(...) a paz nas calçadas e nas ruas não é mantida
basicamente pela polícia, sem com isso negar sua necessidade. É
mantida fundamentalmente pela rede intrincada, quase
inconsciente, de controles e padrões de comportamento
espontâneos presentes em meio ao próprio povo e por ele
aplicados.”
(JACOBS, 2000, p.32)
A questão de sentir-se ou não seguro nas ruas e calçadas pode fazer
com que a quantidade de caminhantes diminua, ou aumente, em determinados
locais da cidade. Este não é o único motivo para a diminuição de pedestres nas
calçadas. O desenvolvimento dos bairros, com a consequente existência de
longas distâncias para se chegar de um ponto ao outro, torna o caminhar uma
difícil escolha de locomoção. Isso não extingue o movimento de andar na
cidade, mas o setoriza em determinados trechos, onde o movimento acontece
em torno de intervalos de tempo e tomadas de decisão como, por exemplo,
procurar algum lugar para comer, fazer pequenas compras, etc. De qualquer
maneira, seja a cidade e o trecho que for, “(...) a presença de pessoas atrai
pessoas.”
(JACOBS, 2000, p.29).
Da mesma maneira, o nosso caminhante se
sentia atraído por explorar alguns trechos e outros não.
“Desde que a rua esteja bem preparada para lidar com
estranhos, desde que possua uma demarcação boa e eficaz de
áreas privadas e públicas e um suprimento básico de atividades e
olhos, quanto mais estranhos houver, mais divertida ela será.”
(JACOBS, 2000, p.41)
Existe um especial prazer nas pessoas em olhar as outras, em observar
o movimento e a diversidade existente. As calçadas são palcos de experiências
e de contato. É nelas que observamos os diversos personagens e, de alguma
forma, nos identificamos com eles. As crianças vão para a escola, o porteiro
varre rotineiramente as folhas de seu trecho de calçada, a dona da padaria
abre ritualisticamente as portas de seu comércio pela manhã, colocando as
mesas para o lado de fora, etc.
"Contarei que na cidade vivi
em certa rua com nome de capitão,
e essa rua tinha multidão,
sapateiros, venda de licores,
armazéns repletos de rubis.
Não se podia ir ou vir,
havia tanta gente
comendo ou cuspindo ou respirando,
comprando e vendendo trajes.
Tudo me pareceu brilhante,
tudo estava aceso
e tudo era sonoro
como para cegar ou ensurdecer.
Esta rua já faz tanto tempo,
já faz tempo que eu não escuto nada,
mudei de estilo, vivo entre as pedras
e o movimento da água.
Aquela rua talvez morreu
de morte natural.
(NERUDA, 2007, p.26)
De várias maneiras e formas, os personagens, com suas
particularidades, contribuem para gerar uma identidade no local. Eles vão
criando o cenário para que todos sejam os atores desse palco de diversidades,
como:
“(...) um balé complexo, em que cada indivíduo e os grupos
têm todos papéis distintos, que por milagre se reforçam
mutuamente e compõem um todo ordenado. O balé da boa
calçada urbana nunca se repete em outro lugar, e em qualquer
lugar está sempre repleto de novas improvisações.”
(JACOBS, 2000,
p.52)
Era assim que o nosso caminhante se sentia, dançando por entre as
ruas, como nunca havia feito antes. Esse balé é o reflexo da diversidade
existente nas ruas, onde os hábitos e habitantes variam de acordo com a fase
do dia. O balé pode sossegar ou acelerar, mas ele nunca para. Todos esses
elementos provocam um efeito conjugado sobre a calçada, mas de nenhum
modo específico. É ai que está a sua força como elemento componente
urbano: elas aí se inserem. São as vias pelas quais o nosso caminhante
observa, circula e baila ocasionalmente ou intencionalmente. Através delas, ele
pode observar a cidade e relacionar-se a outros elementos da imagem urbana.
Já o autor Kevin Lynch classifica esses elementos urbanos da rua como:
caminhos, limites, bairros, nós e pontos de referência, os quais são importantes
para compreendermos cada vez mais a cidade
(LYNCH, 1997).
Segundo Choay
as pessoas são levadas a caminhar pelos lugares mais atrativos. Ela ressalta
que o bom funcionamento da rua está associado à existência de um sentimento
inconsciente de solidariedade, entre os transeuntes, juntamente com o de
confiança, o qual se estabelece através de diversos contatos onde a calçada é
o palco.
(CHOAY, 1979)
“Certa rua começa algures e vem dar no meu coração.
Nessa rua passa um conto feito de pedacinhos de histórias
De ouro, de velhos, de estrume, de seleiros falidos.
Nesta rua acaba de passar
A menina-e-moça de tranças e blue jeans pela calçada
É um violão andando, um som
Unindo alugares de ontem a nenhures de eternidade.
(Carlos Drummond de Andrade)
Como Drummond nos ensina, a rua contém pedacinhos da história de
cada um, contém o tempo, a música, a poesia. E é por esses caminhos que
nosso caminhante nos leva, além das calçadas e dos lugares comuns, para
além dos espaços de circulação. Ele nos mostra a calçada como espaço de
múltiplos usos, onde acontecem diversas ações e fenômenos, tais como o
encontro e a troca. Elas servem de suporte ao deslocamento de informações,
mercadorias, pessoas, veículos, além de base para as variadas manifestações
populares e de lazer coletivo. Funcionam como uma área livre de convivência,
tal como se fosse uma praça linear. Dependendo do horário, este palco possui
ações qualificadas de formas diferentes: a sua densidade e os elementos nela
contidos provocam as diversidades funcionais. Servindo como palco de
ensinamento das relações sociais, permitindo a construção de relacionamentos
e de vivências diversas.
“Na rua está o transitório, o ambíguo, o excitante, o perigoso.”
(MALTA apud SANTOS, 1988, p.89).
As ruas são espaços públicos abertos que servem à circulação, aos
fluxos de veículos, pessoas, mercadorias e informações. Elas interligam blocos
de quarteirões e são de importância fundamental para a concepção da cidade.
“(...) territórios de ninguém e de todo mundo, são o palco
onde se desenvolvem os dramas e representações da sociedade.
acontecem desde a agitação de todos os dias até as
celebrações especiais (...)”
(SANTOS, 1988, p.91)
As ruas podem ter usos diversificados ou não: mistos, residenciais,
comerciais, etc. O seu traçado depende muito de onde foi implantada e das
características dos locais. Elas o pensadas e articuladas de acordo com o
que aconteça ao longo de seu percurso, por mais que as variações existam, a
idéia de sistema é a mesma: uma malha hierárquica de formato variado.
As calçadas e ruas também se tornam extensão de outros espaços, dos
restaurantes e bares, lojas, e das casas. É nela que saímos para tomar o ar
fresco, fumar um cigarro, namorar, trocar, ver o movimento da vida
acontecendo e, simultaneamente estamos inseridos dentro de codificações e
sinalizações urbanas. É nela que temos contato com o desconhecido, com o
anonimato, com o repentino esbarrão.
Passo a passo, instante a instante tudo vai acontecendo. E é assim que
o nosso caminhante continua seu trajeto. Andando nas ruas, tendo contato com
o próximo, percebendo que tudo o que visto é vivenciado e apreendido, mesmo
que de uma maneira rápida e singular. Assim, meio a tanta velocidade das
vias expressas, existe um resgate do valor da calçada, um retorno aos espaços
de convivência, um retorno ao pedestre.
3.2. AS PAREDES PERCEPTIVAS: Continuidades e Limites
O nosso caminhante continuava em sua jornada, passando por ruelas,
becos, pontes, elementos urbanos que existiam mais significantemente a partir
das pessoas que os usufruíam.
As ruas nos dão o caminho e essa passarela do andar nos traz
elementos de continuidade e descontinuidade. A partir desse movimento
lidamos com a relação interior-exterior e experiências de limites. Os elementos
lineares servem de limites para o caminhante, apenas delimitando-o como uma
fronteira entre duas fases, quebrando a continuidade, sem no entanto servir
como eixo direcionador.
Os cruzamentos são pontos de convergência dos caminhos, de lugares
de passagem de uma estrutura à outra, de descontinuidade. Também refletem
convergências de escolhas.
“Alguns desses nós de concentração constituem o foco (...)
sobre o qual sua influência se irradia e do qual constituem o
símbolo.”
(CHOAY, 1979, p.313)
O conceito de nós está associado diretamente a pontos de concentração
e disseminação, denominados núcleos. O conceito de núcleo está ligado ao
de caminho, que as ramificações o precisamente constituídas pela
convergência de uma série de caminhos.
(CHOAY, 1979, p.313
) Estes centros de
disseminação, dispersão ou centralização são estruturas das cidades, onde os
usuários vivem experiências associadas aos conceitos de continuidade e
descontinuidade.
O caminhante, mesmo sem saber, se depara com o conceito de limite.
Este conceito nos chega como: “(...) fronteiras entre dois tipos de áreas.
Funcionam como referências laterais.”
(LYNCH, 1997, p. 69)
. Podem ser barreiras
relativamente permeáveis. São capazes de conferir a unidade a áreas
diferentes. A continuidade e a visibilidade são questões fundamentais quando
se fala de limites. O conceito limite não quer dizer necessariamente
impenetrável; muitos limites possuem costuras e permeabilidades. Ao
caminharmos, esses conceitos também se tornam tomadas de decisões.
Podemos, assim como o caminhante, criar fronteiras não físicas, estabelecidas
pelo uso de nossa intenção no mundo cotidiano, da intuição e da observação,
através de pensamentos, palavras, ações e sentimentos.
Os pontos nodais o pontos estratégicos de uma cidade, “através dos
quais o observador pode entrar, são focos intensivos para os quais e a partir
dos quais ele se locomove.”
(LYNCH, 1997, p.52)
. Trabalham conceitos de junção
ou interrupção de fluxo, concentração e dispersão de atividades e fluxos,
convergências de caminhos e têm grande importância para o observador da
cidade, uma vez que abordam questões de tomadas de decisões.
Marcos, são pontos de referência, objetos físicos cuja escala pode ser
bastante variável, onde o caminhante observador encontra-se fora deles, mas
escolhe um elemento para ser usado como um ponto, num conjunto de
possibilidades. São usados também como indicadores de identidade.
Todos esses elementos “são apenas matéria-prima da imagem
ambiental na escala da cidade.”
(LYNCH, 1997, p.93)
. Eles coexistem e interagem
mutuamente. O caminhante observa e agrupa esses elementos em
organizações mentais complexas e individuais.
“O observador percebe o complexo como um todo cujas
partes são interdependentes e relativamente estáveis em relação
umas às outras.”
(LYNCH, 1997, p.94)
.
O usuário e observador da cidade examina a totalidade e a
complexidade dela a partir da compreensão das suas partes. Essa
compreensão não é única e fixa, vez que poderão existir grupos de imagens
que se superpõem e se inter-relacionam, com escalas variadas. Essas imagens
mudam de acordo com o ponto de vista e possuem variações e distorções
variadas da realidade. A pesquisa de Lynch está diretamente associada às
questões físicas e mentais de compreensão, leitura e localização na cidade.
Estas se associam indiretamente às questões intrínsecas que permeiam o ser
caminhante.
Retornamos ao nosso caminhante, que parecia perceber que os limites
entre físico e imaginário começavam a desaparecer. Ele andava continuamente
descontínuo, se deixando levar pela Borboleta, sem limites. Foi quando:
“(...) um amigo me bateu nas costas, me perguntou "como vai
bichão, o que é que você está vendo aí?" Levei um grande susto, e tive
vergonha de dizer que estava olhando uma borboleta; ele poderia
chegar em casa e dizer: "encontrei hoje o Rubem, na cidade, parece que
estava caçando borboleta".
(BRAGA, 1952, p.2)
O Homem da Borboleta caminhava de um modo a se deixar levar pelo
movimento desprogramado, à deriva. Deriva como uma prática experimental do
urbanismo unitário. Segundo o pensador Guy Debord, a teoria da deriva é um
procedimento situacionista¹ de estudo psicogeográfico, o qual estuda as ações
do ambiente urbano nas condições psíquicas e emocionais das pessoas. Onde
__________________
¹
A idéia de "situacionismo", segundo ele, se relaciona à crença em que os indivíduos devem construir as situações
de suas vidas no cotidiano, cada um explorando o seu potencial de modo a romper com a alienação reinante e a obter
prazer próprio.
(http://www.itaucultural.org.br/aplicExternas/enciclopedia_IC/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete=3654)
o caminhante parte de um lugar qualquer e se lança à deriva, deixando-se
rumar pelo meio urbano, onde este crie seus próprios caminhos. Esses estudos
fazem pensar por que motivo por exemplo, nosso caminhante resolveu dobrar
à direita e o à esquerda, e quais condições levam a tais escolhas de acordo
com determinadas zonas psíquicas que nos conduzem, trazendo os mais
variados sentimentos e sensações. Dessa forma, todos nós, caminhantes,
somos agentes construtores da cidade.
(JACQUES, 2003, p.54)
O personagem Flâneur, de Walter Benjamin, também inspira
características de um derivante que vagueia pelas ruas:
“A rua conduz o flanador a um tempo desaparecido. Para ele,
todas são íngremes. Conduzem para baixo, se não para as mães, para
um passado que pode ser tanto mais enfeitiçante na medida em que não
é o seu próprio, o particular. Contudo, este permanece sempre o tempo
de uma infância. Mas por que o de sua vida vivida? No asfalto sobre o
qual caminha, seus passos despertam uma surpreendente ressonância."
(BENJAMIN, 2000, p.185)
Nosso caminhante também recebe características de Flâneur à medida
que vagueia pelas ruas, nutrindo-se sensorialmente de algo experimentado e
vivido que ressoa em seu interior, com sua vida vivida.
“Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter
o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de
manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da populança (...). É
vagabundagem? Talvez. Flanar é a distinção de perambular com
inteligência. Nada como o inútil para ser artístico. Daí o desocupado
flâneur ter sempre na mente dez mil coisas necessárias, imprescindíveis,
que podem ficar eternamente adiadas..”
(RIO, apud VENEU, 2000, p.235)
Nesses passeios, sempre estamos entre o céu e a terra, entre devaneios
e pragmatismos, perambulando e observando, e foi assim que nosso
caminhante percebeu:
“Reparei que nenhum transeunte olhava a borboleta; eles
passavam, devagar ou depressa, vendo vagamente outras coisas as
casas, os veículos ou se vendo –, eu vira a borboleta, e a seguia,
com meu passo fiel.”
(BRAGA, 1952, p.1)
Ele observava as pessoas à sua volta, que pareciam habitar em
submundos individuais, como se fossem bolhas, onde cada um escolhia
quando, como e com quem compartilhar. Estas bolhas refletem os limites entre
interior e exterior. Cada indivíduo escolhe quando, de que forma e com quem
compartilhar esses submundos. Definimos assim nossas fronteiras. As bolhas
também funcionam como proteção e isolamento, nos quais o ser se volta para
o seu interior. É uma forma de diminuir o contato físico entre corpos.
(SENNETT,
1997, p.206)
É como se definíssemos uma fronteira, uma casa ambulante onde
inconscientemente nos sentimos seguros e protegidos. Quando resolvemos
‘abrir a porta’, é como se saíssemos de casa.
“Sempre que saímos de nosso próprio espaço, tornamo-nos
hóspedes de algum espaço alheio.”
(SAMS, 1951, p.351)
Assim, compartilhamos nosso espaço com outros, interagindo na cidade
de uma maneira única e individual. Ao interagirmos, estamos lidando com o
contato da experiência, juntamente com o medo do contato.
“O resultado mais comum nas cidades, onde as pessoas se veem
diante da opção de compartilhar muito ou nada, é o nada. Em lugares da
cidade que careçam de uma vida pública natural e informal, é comum os
moradores manterem em relação aos outros um isolamento
extraordinário. ”
(JACOBS, 2000, p.70)
Mas por mais que nos isolemos, o homem procura o homem e assim,
temos a certeza de que sempre existirá o contato físico. E esse contato
acontece diretamente através do corpo, que é o meio físico da alma de interagir
no espaço. É através das experiências corporais que nossos sentidos são
alimentados.
“As relações entre os corpos humanos no espaço é que
determinam suas reações mútuas, como se veem e se ouvem, como se
tocam ou se distanciam.”
(SENNETT, 1997, p.17)
Essas relações estão diretamente associadas à experiência do contato.
A necessidade de nos movermos no espaço, nos reloca no caminho das
experiências e neste deslocamento vivenciamos a experiência da velocidade.
Quanto maior a velocidade de deslocamento, maior é a desconexão do espaço.
“A condição física do corpo em deslocamento reforça a
desconexão do espaço. Em alta velocidade é difícil prestar atenção à
paisagem.”
(SENNETT, 1997, p.17)
Ao caminhar, diferentemente de se deslocar em outros meios móveis,
experimentamos a cidade e os corpos em movimento num tempo mais
humano. Também é possível caminhar ‘entorpecido ou ‘protegido’ das
experiências.
“O movimento autônomo diminui a experiência sensorial,
despertada por lugares ou pessoas que neles se encontrem. Qualquer
forte conexão visceral com o meio ameaça tolher o indivíduo.“
(SENNETT,
1997, p.214)
Assim, pode-se viver em “um cotidiano em que a vida se consome em
esforços tendentes a negar, minimizar, conter e evitar conflitos. As pessoas
fogem dos conflitos e demonstram forte desagrado ao serem alvo de
reivindicações e censuras por erros cometidos.“
(SENNETT, 1997, p.19)
. Essa
censura é sentida com o próprio corpo na cidade.
Essa relação, na sociedade urbana atual, se reflete em pades cada
vez mais rápidos, onde o ritmo é acelerado e muitas vezes desnorteado,
quando experienciamos a velocidade.
“Hoje, como o desejo de livre locomoção triunfou sobre os
clamores sensoriais do espaço através do qual o corpo se move, o
indivíduo moderno sofre uma espécie de crise tátil: deslocar-se ajuda a
dessensibilizar o corpo. Esse princípio geral vem sendo aplicado a
cidades entregues às exigências do tráfego e ao movimento acelerado
de pessoas, cidades cheias de espaços mútuos, cidades que
sucumbiram à força maior da circulação.”
(SENNETT, 1997, p.214)
O homem contemponeo entregue ao movimento acelerado das
cidades é levado a dessensibilização dos espaços, onde os deslocamentos
pidos, que visam somente sair de um ponto e chegar a outro, tornaram o
caminho uma queso muitas vezes de pouca imporncia, um lugar
somente de passagem. Espaços urbanos perdem seu valor, visto que parte
dos indiduos desejam atravessá-lo, neutralizando assim as sensações e
experiências que eles poderiam proporcionar-lhes.
O medo dos confrontos reflete o medo do contato, onde os seres
humanos muitas vezes sentem-se ameaçados pela presea de outros que
destoam de suas intenções. A massa de corpos se dispersa e fragmenta,
diminuindo ainda mais o contato. Hoje, a tecnologia, juntamente com o
consumismo, ajuda a aumentar essa distância.
A individualidade e a coletividade se fazem presentes nos espaços
urbanos, onde a forma deles “(...) deriva de vivências corporais específicas a
cada povo”
(SENNETT, 1997, p 300).
A relação do corpo e da cidade acontece de
forma diferenciada através das épocas em que cada povo viveu. As situações
daí decorrentes estão diretamente ligadas às posturas dos habitantes,
juntamente com os padrões, os quais podem torná-los marionetes ou atores
principais.
Quando o nosso caminhante observa alguns espaços físicos com falta
de contato corpóreo, podemos sentir um reflexo de desordem no espaço
urbano, onde existe também o medo da multidão. Os corpos são entorpecidos
pela velocidade e características do homem moderno onde a plenitude dos
sentidos e do sentir é tolhida individual e coletivamente:
“Os primeiros indícios dessa transformação são perceptíveis,
segundo esses críticos, a partir das mudanças de caráter da população
das cidades. A massa de corpos que antes se aglomerava nos centros
urbanos hoje está dispersa, reunindo-se em los comerciais, mais
preocupada em consumir do que com qualquer outro propósito mais
complexo, político ou comunitário. Presentemente, a multidão sente-se
ameaçada pela presença de outros seres humanos que destoam de
suas intenções.“
(SENNETT, 1997, p.19)
Na arquitetura, o medo do contato, da multidão e da experiência da
velocidade se refletem na criação de grandes condomínios fechados, onde
praticamente constroem-se ‘cidades’ dentro de cidades e estas são vendidas
como ideais de qualidade de vida, segurança e controle.
O caminhante que evade-se com o vôo da Borboleta, com os ssaros,
com o vento, com qualquer elemento no momento presente, resiste contra esse
estado de isolamento e se deixa levar por um estado de plenitude único,
divergente das questões sociais e pragmáticas da vida.
Assim, sabemos que as escolhas dos caminhos a serem percorridos
acontecem a partir de uma diversidade de questões abordadas neste item. A
predominância de como fazemos tais escolhas varia de acordo com a
individualidade de cada um, juntamente com relação aos elementos à sua volta
e com a identificação com a cidade. Esse movimento contínuo e descontínuo
acontece a cada momento, de maneira única, onde os limites físicos se
misturam com os não físicos do ser e seu interior onírico.
3.3. A malha e as interligações urbanas: fluxo, espaço, tempo e lugar
Nosso caminhante andava por calçadas, limites e perspectivas que
convergiam e indicavam o caminho a ser seguido. Ele olhava a rua e imaginava
a malha e como seriam as inter-relações das pessoas e dos limites no
quarteirão ao lado.
“(...) um jogo sem regras fixas, aberto de tentativas (...) as peças
são feitas de fragmentos, materiais disponíveis, (...) imaginação.”
(JACQUES, 2003, p.4)
Dentre alguns elementos dessa organização e interação, temos a malha
urbana, palco dessas interações, as quais acontecem a todo momento, numa
superposição de camadas, de pessoas, de encontros, de referências, de
movimentos, de espaços públicos e privados, de vontades, de borboletas,
como um grande quebra cabeça montado.
“A cidade não é construída por uma só pessoa, mas por um
grande número de usuários que pertencem a meios, temperamentos,
ocupações e classes sociais mais variados.
(CHOAY, 1979, p. 316).
Como observava o nosso caminhante: na cidade, existe a diversidade
perceptiva individual em um mesmo espaço. Se pensarmos na escala da
cidade, a mesma questão acontece: cada pessoa organiza a sua cidade e o
seu espaço de forma diferente. Essas interligações são dadas por fatores
diversos.
O espaço construído pode aperfeiçoar a sensação e a percepção
humana. Independente das construções ou do local, as pessoas são capazes
de distinguir diferença entre interior e exterior, aberto e fechado, de uma
maneira instintiva. O sentimento humano, percepção e consciência são
afetados pelo espaço à sua volta. Ele também articula as relações e a ordem
social.
“As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e
medos. Ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as
regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas
as coisas escondam uma outra coisa.”
(CALVINO, 2003, p.22)
O fator tempo também é uma ferramenta dessas interligações urbanas.
A relação do homem com o tempo está implícita em todos os lugares. É uma
relação de duração das experiências vividas.
“O espaço e o tempo ganharam subjetividade ao serem
orientados para o homem. Certamente espaço e tempo sempre
estiveram estruturados de acordo com os sentimentos e necessidades
humanas individuais.”
(TUAN, 1930, p. 137).
Tempo e espaço coexistem. Quando andamos mentalmente em um
espaço, nos movemos na linha do tempo, avançamos e retrocedemos. Quando
andamos fisicamente, um passo pode ser uma unidade de tempo, pois é
sentido como um movimento de esforço ou descanso, “(...) é um esforço
sentido como uma medida que pode ser observada.”
(TUAN, 1930, p. 145)
. A
intenção de ir a algum lugar cria um tempo histórico, onde o lugar passa a ser
um objetivo futuro e a partida, o presente. Para Tuan, uma das definições de
lugar é:
“(...) qualquer objeto estável que capta nossa atenção.”
(TUAN,
1930, p. 179).
Ela cita o exemplo de que, quando olhamos uma cena panorâmica,
nossos olhos são direcionados a pontos de interesse que chamam a atenção.
Segundo ela, este pequeno movimento é considerado uma atribuição de
significado e então se torna um lugar. O lugar também é um fator de conexão.
“A cidade é um lugar, um centro de significados, por excelência.
Possui muitos mbolos bem visíveis. Mais ainda, a própria cidade é um
símbolo.”
(TUAN, 1930, p. 191)
.
Para o sonhador que caminha nas calçadas, o lugar é o espaço que
adquire definição e significado. Os significados são atribuídos a partir de
valores de juízo pessoais. A permanência e a transitoriedade são elementos
importantes na idéia de lugar e estão diretamente associados ao tempo. A
sensação de tempo afeta a sensação de lugar, à medida que o tempo de uma
criança é diferente do de um adulto e de um idoso. As sociedades e os
indivíduos têm sensações e atitudes diferentes em relação ao tempo e ao
lugar.
“Essa cidade que não se elimina da cabeça é como uma
armadura de um retículo em cujos espaços cada um pode colocar as
coisas que deseja recordar (...) Entre cada noção e cada ponto do
itinerário pode-se estabelecer uma relação de afinidades ou de
contrastes que sirva de evocação à memória.”
(CALVINO, 2003, p.22)
Em cada lugar, o tempo, como os homens utilizam e agem, não são os
mesmos. Eles interagem no viver de cada instante. Cada ação se no seu
tempo, onde a vida social acontece em tempos diversos, em diferentes
momentos, processos e objetivos pessoais. O espaço é o meio dessa
coexistência de fluxos variados, unindo a todos.
“Espaço e lugar são termos familiares que indicam experiências
comuns. (..) O lugar é segurança e o espaço é liberdade: estamos
ligados ao primeiro e desejamos o outro. (...) tempo e lugar são
componentes básicos do mundo vivo.”
(TUAN, 1930, p.3)
A maneira que as pessoas atribuem significados e organizam o espaço e
o lugar, diferem em cada cultura, influenciando intensamente o comportamento
e os valores humanos.
O homem contemporâneo que vive e usufrui dos grandes centros
urbanos possui um ritmo acelerado, o qual interage com o ritmo da cidade, das
ações, dos afazeres, do ir e vir, da necessidade e do fluxo acelerado de
informações. Segundo Sennett, este ritmo e fluxos cada vez mais rápidos
levam a dessensibilização. Isto pode ser percebido através da observação do
homem com andar acelerado, mecânico e desatento. O nosso caminhante da
Borboleta é uma metáfora contrária a essa desatenção. Essas conjugações de
fluxos internos e externos variam de acordo com a intensidade das pessoas,
bem como com a localização espacial e qualidade do ponto em questão. Esse
excesso de informações cria uma desterritorialização, e tem a ver com a
associação de lugar e não lugar.
A desterritorialidade e a não identidade dos grandes centros urbanos os
fazem ‘world cities’, territórios genéricos, megalópoles, onde o ir e vir e o fluxo
de pessoas, mercadorias e informações se intensifica a cada momento,
tornando-as cidades sem fronteiras. O imediatismo define os padrões de
consumo: um desejo de ser e de ter mais, em menos tempo. Isso intensifica
o ritmo das informações, mercadorias e relacionamentos, os quais fluem cada
vez mais rápidos em espaços virtuais. A interação do homem com a tecnologia,
em um mundo globalizado, faz com que as interações físicas nos espaços
urbanos diminuam, por necessidade de rapidez e proteção. A relação de tempo
versus instantaneidade, entra em conflito com os grandes ciclos naturais:
geobiológicos, mudanças climáticas, germinações, ciclo dos rios, etc. Os
subúrbios americanos são um exemplo deste urbanismo acelerado - ‘fast urban
way of life’.
O modo de vida contemporâneo acelerado ao longo de um período de
análise é destrutivo, tanto para o homem, quanto para a cidade, em médio
prazo. Como as análises e implementações do urbanismo atualmente
acompanham o ritmo que a cidade impõe, ele vai acontecendo erroneamente.
As cidades crescem mais rápido que as infra-estruturas, e assim muitas ficam
desestruturadas.
Lawrence A. Herzog
(2007, infomação verbal)
nos traz os conceitos de Fast
and Slow Urbanism, onde os ritmos das cidades são expressões de valores
culturais. Ela aborda a existência de dois lados do mesmo urbanismo, com
ritmos opostos, não atrelados diretamente aos locais, onde é ressaltado que
possuímos percepções simultâneas e desejos que influenciam o modo como
experienciamos o espaço urbano. Ela mostra ainda, os reflexos nos grandes
centros urbanos onde o homem busca um ritmo desacelerado -”eco-centrism
vs ego-centrism”- como praticas na natureza, meditações, dentre outras, com o
objetivo de baixar o ritmo interno.
__________________
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) “Globalization, Sustainbility and Slow Urbanism Imagem da Cidade”.
PROURB, 21 de novembro, 2007. Palestrante convidado.
O homem citadino converge cada vez mais para os centros urbanos,
para os fluxos da cidade que ressoem com o seu fluxo interno, com o ritmo
acelerado do seu corpo. A compreensão da noção de centro da cidade e
centralidade faz com que os grandes centros urbanos possuam grandes fluxos
momentâneos de pessoas, onde os habitantes de um bairro existem em função
do seu centro. A cidade também possui seu tempo, a arquitetura está
diretamente associada às épocas.
“A matéria não está exposta no espaço, indiferente ao tempo; o
subsiste nele como alguma coisa que se gasta e se dispersa. Não é
apenas sensível aos ritmos: existe com toda a força do tempo, no plano
do ritmo, e o tempo em que ela desenvolve algumas manifestações
delicadas é um tempo ondulante.”
(BACHELARD, 1988, p.119)
Os ritmos, os objetos e os acontecimentos existem, mas o tempo e o
espaço são invenções do homem.
“E a vida vai tecendo laços
Quase impossíveis de romper
Tudo o que amamos são pedaços
Vivos do nosso próprio ser”
(BANDEIRA, 1970, p.21)
E por entre a multidão nosso caminhante continuou a andar, permeando
em meio às malhas, aos tempos, as interconexões diversas. O ar que entrava
em seus pulmões fazia o seu interior estremecer. Seu corpo fervia com o calor
do movimento ao seu redor. Seu sangue corria mais rápido em suas veias. O
ritmo frenético das pessoas ao seu redor fez com que ele acelerasse seus
passos sem perceber. Adentrou rapidamente ao ritmo do lugar. Sua mente
tagarelava e se lembrava de tudo ao mesmo instante. Ele perdia rapidamente
parte de sua identidade e se tornava parte do ritmo intenso. Foi quando avistou
a Borboleta Amarela.
“Em certo momento desceu até perto da minha cabeça, como se
quisesse assegurar-se de que eu a seguia, como se me quisesse dizer:
"estou aqui".
(BRAGA, 1952, p.2)
O caminhante adentrava ao fluxo, interagia com ele e depois saía.
Fazendo parte desse movimento, pode experienciar os diferentes ritmos da
cidade e perceber as variações de seus ritmos internos. Os movimentos
robóticos ao seu redor geraram sensações diversas no seu interior e foi assim
que ele acelerou mais ainda os seus passos. Começava a surgir um desejo
interno de fuga, de mudar o tempo interno e de acalmar o tempo externo.
Então, ela se foi.
“(...) minha borboleta amarela sumiu. Ergui-me do banco, olhei o
relógio, saí depressa, fui trabalhar, providenciar, telefonar... Adeus,
pequenina borboleta amarela."
(BRAGA, 1952, p.3)
Mas o sentido de evasão do nosso caminhante continua, passo a passo,
experiência a experiência, passando nos capítulos seguintes por questões dos
diferentes pontos de vista, habitar e construir, a experiência de se perder, os
diferentes movimentos e ritmos e os devaneios das asas do caminhar.
“A cidade não é feita disso,
mas das relações entre as medidas de seu espaço
e os acontecimentos do passado.”
Italo Calvino
4. ARQUITETURA DO VÔO
A Borboleta Amarela encontra novos ares, passeia pelos objetos
construídos do valor da arquitetura na cidade, convidando o nosso caminhante
a trilhar outros percursos, buscando novas reflexões.
Ela nos conduz para uma dimensão diferenciada dos movimentos e
dinâmicas sonoras da grande cidade e para ares que se condensam em
arquitetura, em multiplicidade de percepções.
Uma das percepções que nosso caminhante se depara andando pela
calçada é a sensação de estar sendo observado. Ao sentir isso, percebe a
dialética de ser imagem objeto, do observar e do ser observado. E então
começa também a observar. estava ela, uma senhora, olhando pela janela.
Observadora do alto, de fora do tempo espaço da cidade. Olhava os fluxos e os
personagens em seu silêncio. Quantos propósitos, diversidades, pessoas se
misturavam. Tempos internos e externos que se relacionavam a todo momento,
passado e futuro coexistindo no instante presente destes observadores e
objetos observados. Lembranças e expectativas se conectam nos olhares. A
mente sem fronteiras vagueia pela linha do tempo onde todas as dimensões do
observador, seja no dentro ou no fora, se fundem e se superpõem em uma
caminhada.
As janelas são como portais, nos fazem adentrar ao espaço interno de
algum lugar ou de alguém. Imaginamos algo além do que nossos olhos podem
ver. Transpondo os limites exteriores adentramos a imensidão interior. É quase
que um convite a explorar o desconhecido, a imaginar quem ali habitou, que
histórias aconteceram. O convite neste caso é o de adentrar ao interior do
próximo, ao imaginal. Desta maneira, imaginamos quem são os habitantes
daquele local, como caminham pela vida, por que estradas escolheram
percorrer.
“O homem é a única criatura da terra que tem vontade de olhar
para o interior da outra.”
(CAROSSA apud BACHELARD, 1990A, p.7).
Essa vontade, para Bachelard, torna a visão aguçante e penetrante, que
procura uma única e pequena brecha para adentrar ao oculto, ao mistério, aos
segredos. Olhar o físico e enxergar o não físico, uma curiosidade inspetora que
a imaginação realiza facilmente. É alimentá-la com os dados, as
ferramentas necessárias, que ela vaga pelo oculto. Na cidade todos esses
dados estão disponíveis, numa mistura de elementos, onde escolhemos quais
utilizar.
Andar na calçada ou contemplar o fluxo do movimento na janela nos
permite viver fora do tempo espaço da cidade e lidar simultaneamente com as
diferentes temporalidades, quer internas, quer externas, e que se justapõem e
se relacionam.
O espaço de contemplação da arquitetura, no fora e no dentro, se faz
presente. Olhar pela janela também é experienciar a cidade, participar dela.
Segundo Choay:
“Ninguém gosta de olhar por uma janela que para uma rua
vazia. Pelo contrário, um grande mero de pessoas pode distrair-se
durante o dia observando uma rua plena de atividades.
(CHOAY, 1979,
p.294).
A cidade possui ‘os olhos da rua’, que são os olhos dos proprietários
naturais, dos que ali habitam e participam e também contribuem para a
segurança do local.
“A cidade se embebe como uma esponja dessa onda que reflui
das recordações e se dilata. (...) A cidade não conta o seu passado, ela
o contém como linhas da mão, escrito nos ângulos, nas ruas, nas grades
das janelas, nos corrimãos das escadas, (...).”
(CALVINO, 2003, p.16)
A cidade e seus habitantes compõem uma mistura de temporalidades.
Todo traçado e seus elementos têm importância para os que ali passam ou
habitam, tudo tem história.
“A cidade não é feita disso, mas das relações entre as medidas de
seu espaço e os acontecimentos do passado.”
(CALVINO, 2003, p.15)
Quando saímos, percorremos caminhos novos e outros conhecidos.
Em todos os novos passos, existe sempre a descoberta, a volta às memórias e
o acesso aos desejos de alma. Podemos olhar para trás e admirar o caminho
percorrido; às vezes queremos voltar, mas quando tentamos, sabemos que os
passos dados nunca serão os mesmos. O antigo é assim experienciado de
uma maneira nova, mesmo que seja rotineira. Nessa volta, podemos
ressignificar os passos dados, tornando-os novos internamente, mas não
volta: seguimos em frente, ao encontro do novo.
Experienciar a cidade é vivificar a vida num espaço físico, em
submundos que se interagem como uma teia, onde tudo é possível. Possuímos
infinitas possibilidades de escolhermos nossos caminhos, onde os passos
nunca se repetem. Seremos sempre novos caminhantes a cada dia, a cada
instante. Onde temos a “(...) valorização da experiência pessoal, do próprio
percurso como a trajetória de um pensamento.”
(JACQUES, 2003A, p.9)
4.1. O habitar e o construir
Caminhar é também sair e voltar para casa, experimentar diferentes
nuances do habitar, caminhos e experiências, fronteiras e limites,
permeabilidades: descobertas.
Saímos e voltamos. Diferentes caminhadas sempre nos levam a algum
retorno, reencontramos algum lugar fixo, onde podemos nos sentir estáveis.
Essas nuances são partes conhecidas do ser que habita, mas que sempre são
redescobertas e revivenciadas.
Estar em casa é reviver, é reintegrar-se para novas caminhadas, reviver
o fixo, relembrar o estável. Voltar para casa também é lembrar-se de si mesmo,
recordando a sua essência e seu potencial:
O lar fica ali onde está o coração”
(SAMS, 1951, p. 289)
A casa não possui apenas um presente, possui também um passado,
ela é uma das maiores forças de integração para os pensamentos, lembranças
e sonhos dos homens. É nela que as recordações estão guardadas. Segundo
Bachelard, o princípio de ligação dessa integração é o devaneio:
O devaneio tem mesmo um privilégio de autovalorização. Ele
usufrui diretamente de seu ser. Então, os lugares onde se viveu o
devaneio reconstituem-se por si mesmos, num novo devaneio. É
exatamente porque as lembranças das antigas moradas são revividas
como devaneios que as moradas do passado são imperecíveis dentro de
nós.”
(BACHELARD, 1993, p. 26)
Quando habitamos cada vez mais a morada interna-da-alma e externa-
da-casa, o ser parece reintegrar suas partes, unificando-se. O ser que habita
está sempre em constante mudança, em reformas. Reforma da alma, do físico,
da mente e do espírito. Desconstruindo vários aspectos do ser, conceitos e pre-
conceitos, para então reconstruir. A partir das experiências vividas,
reintegramos partes do nosso ser anteriormente perdidas, retornamos à nossa
essência. Continuamos a caminhada por várias sendas, várias escolhas, nos
perdendo e nos encontrando. Aceitando e compreendendo a instabilidade e o
movimento da vida, caminhamos.
A arquitetura, o ser e o ente se co-relacionam, onde “a obra de arte é
primordialmente um ente: Todas as obras têm este caráter de coisa. (...) A obra
tem origem no artista e este também tem sua origem na obra, porque alguém
é artista pelas obras que fez”.
(PULS, 2006, p.464).
O princípio da arte está na
arte: “a arte não tem origem, mas é origem na sua própria essência”
(PERNIOLA
apud PULS, 2006, p.464).
Nosso caminhante segue seu percurso do centro do Rio até o aterro.
Visualizando a praia, ele se lembra do tempo que passou. Do que era e o
que é hoje. As paisagens urbanas construídas a partir da intervenção da mão
do homem são capazes de modificar o panorama das cidades, e estão
diretamente associadas aos elementos que interagem com ele. Assim, a
paisagem é modificada, intervida e interagida. As imagens se fazem aos olhos
de cada época. Mutação: Mútua ação de valores que se modificam no tempo e
também o espaço urbano.
E o nosso caminhante chega ao museu e se surpreende por dentre as
asas do MAM. Intervenção que resiste entre as épocas. União entre racional e
poética onde permeiam impulsões, num gesto de criação da paisagem.
Contornos de luz e sombra moldados à plástica e à imaginação.
“(...) uma coisa pura, tinha luz e ar e pousada em frente ao
mar.
(ANDRADE, 2000, p.24)
Forma material e imaterial que toca em poucas partes o solo. Flutua,
dando asas à imaginação. Ocorre a desmaterialização da forma e dos
materiais construtivos. O imaginário se perde na contemplação da imensidão
que adentra ao longínquo do oceano.
“Para compreender, sentir e amar alguma obra é preciso se lançar
no centro, no coração, no ponto em que tudo se origina e toma sentido.”
(BACHELARD, 1993, p.344)
Um dos pontos em que a arquitetura se originou foi o de dar abrigo ao
homem. Segundo Heidegger o construir pertence ao habitar
(PULS, 2006, p.469),
da forma e só chegamos ao habitar por meio do construir. Nem todas as
construções são moradas, mas todas abrigam o homem. As habitações não
são garantia de que ali existe um habitar. “O não sentir-se em casa deve ser
compreendido existencial e ontologicamente, como o fenômeno mais originário”
(HEIDEGGER apud PULS, 2006, p.470).
“Habitar e construir encontram-se, assim, numa relação de meios
e fins. (...) Construir não é, em sentido próprio, apenas meio para uma
habitação. Construir é em si mesmo habitar. (...) Construímos à
medida que explicitamos nosso projeto de vida (...) Construir é edificar
lugares... (...) A essência do construir não é a produção industrial de
espaços, mas a construção de lugares: A essência do construir é deixar-
habitar”
(PULS, 2006, p.471).
A arquitetura possui a capacidade de dar significado aos ambientes a
partir da criação de lugares. O habitar é o ideal que se impõe no construir. O
fundamental desse habitar está no desenvolver o abrigo de sua essência, de
sua alma. Habitamos à medida que conduzimos nossa essência na caminhada
da vida.
Norberg-Schulz baseado no ensaio do filósofo Heidegger “Construir,
habitar e pensar” usa o conceito de genius-loci, isto é:
“(...) a idéia do espírito de determinado lugar (que estabelece um
elo com o sagrado), que cria um ‘outro’ ou um oposto com o qual a
humanidade deve defrontar a fim de habitar. Ele interpreta o conceito de
habitar como estar em paz num lugar protegido
(NESBITT, 2006, p.443)
Ele também traz a importância dos elementos arquitetônicos básicos
percebidos como horizontes, fronteiras e enquadramentos da natureza.
(NESBITT, 2006, p.443)
. Ele conecta a essência do homem com a sua localização
de existência na terra. Existe assim o valor da arquitetura através do bem
construído.
Martin Heidegger em suas conferências sobre arquitetura, aborda
também questões sobre a importância do lugar e dos objetos construídos:
“Os objetos vistos e tocados têm uma espécie de acessibilidade
implícita, que, pelo fato de não ser uma propriedade material, como a cor
ou o volume, pode facilmente não ser percebida; mas dessa forma
apagamos o mistério de como as coisas chegam ao nosso
conhecimento aquilo que as faz tão radicalmente encontráveis. Não
encontráveis, na verdade, mas também inteligíveis, ao menos
potencialmente.”
(PULS, 2006, p.463)
Juntamente a essas abordagens, Heidegger afirma a importância do
ente, o qual não deve ser subestimado pelo ser. Ele mostra que ambos se
completam: “(...) a existência humana é estética no sentido mais fundamental,
pois para conhecer o ente o homem precisa deixá-lo ser aquilo que é (...)”
(PULS, 2006, p.464).
Desta maneira, empregamos nossos valores na cidade,
mediante fatores diversos, os quais agregados de juízo de valor ocasionam a
supervalorização ou desvalorização dos espaços. Ao utilizarmos o espaço nos
apropriamos dele. Segundo Bachelatd, tanto o interior quanto o exterior o
espaços íntimos, entramos e saímos de nós mesmos para nos situamos em
nossa existência
(1993, p.221).
Possuímos assim, um espaço íntimo pessoal associado ao nosso
corpo e à nossa alma. Ele é íntimo, um terririo pessoal, o qual vai além
dos limites físicos, engloba mais que habitações, pertences. Este espaço
também é composto pelo campo que geramos ao nosso redor, o qual contém
todos os nossos pensamentos, sentimentos, questões e percepções, posses,
criações e sonhos.
Também podemos construir dentro de s a noção de território ou
lugar, onde nos apropriamos de s mesmos. E assim, interagimos com o
mundo à nossa volta e nos apropriamos tamm de uma parte geográfica
física. De acordo com o momento ou situação, permitimos que outras
pessoas adentrem nosso espaço íntimo. Assim, construímos e establecemos
a noção de limite, definindo o teor de nossas participações na cidade,
nossas fronteiras. A partir dessa relação no espaço físico, nos permitimos
adentrar aos espaços íntimos alheios, através de um conjunto de relações
espaciais entre objetos e pessoas.
Somos seres que ocupam um lugar. Nosso corpo age no espaço e
interage com o ele, com o ambiente, situações, pessoas e elementos que o
compõem, a partir deste físico. É uma relação que oscila na ambivalência do
interior-exterior.
Cada aspecto do mundo manifestado possui seu espaço pprio para
poder se desenvolver criativamente. A interão entre esses submundos
acontece tramada em uma rede de relações como uma teia, e é por essa
teia que nossas jornadas das relações acontecem.
Intervir no espaço urbano é construir espaços que propiciam essa
relação interior-exterior. Segundo Japiassu
(2006, p. 91),
no sentido geométrico,
espaço é a contemplação abstrata de um ambiente vazio de todo conteúdo
sensível e caracterizado pela continuidade, homogeneidade e
tridimensionalidade. para Kant, o espaço é uma “intuição pura” ou “uma
forma a priori da sensibilidade. Quer dizer:
“não é uma construção no espírito nem tampouco uma realidade
independente de nós, mas um dado original de nossa sensibilidade, algo
que é construtivo de nosso modo de perceber e sem o qual não
poderíamos ter sensações distintas”
(JAPIASSU, 2006, p.91).
Assim, sentimos, qualificamos e damos valor aos espaços. Qualificar é
intrínseco ao ser humano.
“(...) a qualidade, manifesta uma relatividade de todo o
nosso ser. (...) a qualidade conserva o ser de um conhecido, de
um experimentado, de um vivido. A qualidade é aquilo que
conhecemos de uma substância. (...) O valor da qualidade está
em nós verticalmente; ao contrário, a significação da qualidade
está no contexto das sensações objetivas horizontalmente.”
(BACHELARD, 1990A, p.62)
Qualificamos à medida que nos colocamos à experienciar, onde
imaginamos, pensamos e sentimos. “Quando a felicidade do imaginar prolonga
a felicidade do sentir, a qualidade propõe-se como uma acumulação de
valores.”
(BACHELARD, 1990A, p.63)
A imagem ideal nos seduz em nossos
sentidos, nos faz envolver e sonhar. “Imaginar uma qualidade é dar-lhe um
valor que ultrapassa ou contradiz o valor do sensível, o valor real.”
(BACHELARD,
1990A, p.64)
Mas como sabermos o valor real, se a realidade está em contínua
mudança, se nossos valores mudam com nossas experiências? “(...) um
sentido é excitado por um outro sentido.”
(BACHELARD, 1990A, p.64)
Construir no espaço sempre abordará a união de elementos visíveis e
invisíveis: espiritualidade e materialidade. A arquitetura, como elemento
construído é capaz de revelar ao homem a natureza de ambos. Construir
associa-se à funcionalidade, mas a verdade implícita em uma construção vai,
além disso, como essência, como participação. Limitá-la a seu uso comum é
minimizá-la. Intervir na cidade é intervir no que foi, no que é e no que será.
“A utilidade é apenas uma expressão do homem, pois resulta da
adequação da coisa ao indivíduo. a solidez é uma ntese de homem
e natureza, pois resulta de um encontro entre a subjetividade e a
objetividade no qual reside o fundamento de todo o artefato.”
(PULS, 2006,
p.466).
E continuando seu trajeto, nosso caminhante percebia que matéria e
forma residem a uma natureza mais profunda. Quando a utilidade é
percebida, o objeto decai a mero utensílio. A intervenção e a construção criam
um mundo, sendo algo mais que o palpável e o apreensível.
Toda obra construída possui o reflexo de sua sociedade juntamente com
a identidade de que a criou. Intervir e construir no espaço é interagir, em
essência, entre os que ali experienciam. O modo como cada um ser sentir em
cada espaço construído, interage diretamente com o seu ser íntimo.
Nosso caminhante se deixava levar pela amarela Borboleta, permitindo-
se experimentar, sentir os espaços construídos, os caminhos, os labirintos da
cidade, explorando o desconhecido, sem mapas, sem regras, sem
programações. Ele se permite estar perdido, ficar a deriva. Deriva como uma
técnica de passagem rápida por ambiências variadas, num comportamento
lúdico-construtivo, entregando-se às situações, deixando-se levar por elas no
momento em que acontecem.
(JACQUES, 2003, p.87)
. Estar à deriva é
experimentar o labirinto.
“A complexidade do labirinto é temporal; quem se perde é aquele
que acaba de surgir, que desaparece tão depressa quanto surgiu. (...)
Conhecer um labirinto exige nele penetrar, nele se perder, para
descobrir as armadilhas do caminho. Em cada escolha a dúvida: Pode
ser que sim, pode ser que não. Jamais saberemos se estamos no bom
caminho; na realidade não bom caminho. A incerteza do caminho é
intrínseca ao labirinto. O percurso é o próprio labirinto. (...) Para desatar
a complexidade do percurso, é necessária uma ausência de objetivo. (...)
vagando ao acaso, a dúvida desaparece. São os que duvidam que se
perdem
.” (JACQUES, 2003, p.86)
Estar no labirinto é estar desnorteado, é se perder. Segundo Bachelard:
“Em nossos sonhos somos às vezes uma matéria labiríntica, uma
matéria que vive estirando-se, perdendo-se em seus próprios
desfiladeiros.”
(BACHELARD, 1990, p.162)
Estar em estado labiríntico é acessar “as perturbações inconscientes
antes dos embaraços da consciência clara”
(BACHELARD, 1990, p.162)
. Se não
acessássemos essa dimensão inconsciente, não ficaríamos nervosos ao estar
perdidos em uma simples esquina.
“Temos medo de nos perder, sem jamais nos termos perdido.”
(BACHELARD, 1990, p.162)
O labirinto produz imagens de estreitamento, de opressão, de
profundidade. “O espaço do indivíduo apreendido em sua primitividade é um
corredor onde desliza a vida, vida que está sempre crescendo,
aprofundando-se.
(BACHELARD, 1990, p.184)
Nele, hesitamos estranhamente
estar no meio de um caminho único. Imagens contrastantes que unem o
labirinto ao sonho e à vida, despertam e mostram que o indivíduo que o
experimenta, fica preso entre um passado bloqueado e um futuro obstruído.
“Compreenderíamos melhor a experiência imaginada do labirinto
se nos lembrássemos de um dos princípios da imaginação (...) a imagem
não tem dimensões definidas; a imagem pode passar sem dificuldade do
grande para o pequeno.”
(BACHELARD, 1990, p.175)
Quando adentramos ao labirinto, experienciamos mais que o nosso
corpo ‘labirintado no espaço. E quando smos, experimentando o ‘estar de
volta’, podemos querer nos perder novamente, experienciar o ir e vir, o descer
e subir. E era assim que o nosso caminhante sonhador se sentia ao
experimentar os labirintos da cidade.
(...) o labirinto é o espaço sensorial, e o espaço é real porque
ele afeta meus sentidos, antes de afetar minha rao.
(JACQUES, 2003,
p 93)
Muitas vezes no labirinto, temos vidas e o sabemos se
entramos ou o, pois nele não existe começo nem fim, são sensações de
experimentar que nos conduzem ao caminho a ser explorado. Assim, temos
a relação do interior-exterior como a própria experncia. A sensação de se
perder, se deixar levar está implícita na experiência labiríntica. Quando nos
perdemos e entramos em um labirinto, nosso eixo de orientão se desvia.
“Antes de ser forma, o Labirinto é um estado sensorial. Antes
de ser espaço, é um caminho. Antes de ser, deve tornar-se Labirinto
(JACQUES, 2003, p.84)
O labirinto o é o espaço seguro e, sim, desorientado de quem se
perdeu no caminho. Ele é o espaço que traz a experncia. Existe um
mistério no labirinto: os caminhos que se encontram possuem sempre
formas diferentes. Nele o é posvel se ter um mapa traçado, nem um
plano ou projeto a ser realizado. Talvez possamos experienciar a sensação
de estarmos presos ou sem saída.
“A verdadeira prio não é o labirinto, mas o próprio projeto.
Este é ainda pior do que o mapa, pois o mapa, ao contrio do projeto,
pode ser feito a posteriori; o projeto corta o devir, todas as
possibilidades e transformações possíveis. Segundo Bataille, o projeto
“é jogar a existência para mais tarde. O projeto é o inverso da
experiência, é a antecipação do mapa, a vista do alto do cume da
pirâmide, a vio total, ou seja, a impossibilidade da experncia do
labirinto. A teoria transforma os atores, participantes, em simples
espectadores.”
(JACQUES, 2003, p.93)
O projetar afasta o caminhante da experiência, desatrela a
expectativa, o imprevisto, faz com que os planos e projetos venham à tona.
Em oposão à rao, a experiência se torna obscura e temida. Os
sentimentos e as sensações o ampliadas, a insegurança em não se ter o
plano completo, a visão do todo traz o medo e a ansiedade de buscar a
saída. O labirinto traz a experiência imediata. Por este ponto de vista, temos
dois tipos de caminhares: o planejador e o experienciador. E o nosso
caminhante experiencia as duas formas à medida que desvenda os lugares.
Por vezes, quando nós somos os caminhantes, e então saímos para
caminhar, para devanear, para se perder, experienciar novos lugares e
explorar o desconhecido, somos motivados pelo desejo de nos
movimentarmos, de experimentar o novo, o desconhecido. Ao explorar estes
desejos, acessamos também os nossos medos inconscientes de explorar
novos caminhos. Quando viajamos, migramos, ou nos mudamos, estamos
experienciando essa sensações mais de perto. O migrar provoca rupturas
sociais e emocionais. Sempre que há um deslocamento, deixamos para trás
traços, laços e vestígios da ppria vida e da identidade. Criamos eno
novas relações e novas identidades, enfrentamos o desconhecido, nos
reintegramos e formamos novos valores.
As contradões se fazem presentes ao mesmo momento: a vontade
de explorar o desconhecido e o medo de ‘cair’ em algum lugar indesejado.
Mas há sempre um retorno, um caminho novo para o lar. De volta à nossa
casa interna e à nossa casa física, habitamos a nossa morada e nos
sentimos seguros. Habitamos assim, com uma parte do nosso eu que deseja
a estabilidade dentro do movimento constante da vida. Habitamos nossas
vontades, perspectivas e desejos. Habitamos o nosso ser com informações
drias e planos de chegar a um determinado ponto, mas habitamos a nossa
alma? Às vezes nos perdemos, outras, nos deixamos perder,
experienciamos sensações e sentimentos, onde a rao e a emoção se
misturam. Ao nos perdermos, escolhemos caminhos errados que talvez não
quissemos trilhar, mas quando nos encontramos, percebemos a
importância de todos os caminhos trilhados e valores agregados às
experiências.
As variáveis tempo, espo, corpo e movimento associadas ao ser
trazem as diversas identidades dos caminhantes. O movimento é
diversidade, é instabilidade, é mudança. E é essa vontade de mudar que
nos impulsiona e é animada por imagens simples e vivas. Vivemos e morremos
a cada ciclo. No crescer, florescer, estar vivo, gerar, criar, vivemos situações
que nos permitem colocar a teoria, na prática. Subimos e descemos.
Experimentamos a consciência plena e elevada e depois voltamos à terra.
Somos um laboratório itinerante. O corpo humano é um aparelho de
experiências e, nesse recipiente, são feitas as de maior valor.
“Nós somos seres profundos. Ocultamo-nos sob superfícies, sob
aparências, sob máscaras, mas não somos ocultos apenas para os
outros, somos ocultos para nós mesmos. (...) E a profundidade é em
nós, (...), uma transcendência”
(BACHELARD, 1990, p.197)
Vontades e desejos oriundos de seres encarnados num tempo-espaço
único, os quais vivenciam ciclos, caminhadas, percursos de vida. Quando
ansiamos, desejamos algo, os caminhos se abrem e então, escolhemos
adentrar neles ou não. Podemos caminhar em diversas estradas ao mesmo
tempo, com uma temática em cada uma. Somos seres experimentais, vivemos
no laboratório da vida. Somos cientistas que buscam descobertas e temem o
desconhecido. A experiência de nos perdermos permite lembrar essa busca
interna de trilhar o caminho certo.
Assim, nosso caminhante continuava. Pensava, sentia e agia. O
pensamento é uma forma de energia muito sutil, ele não conhece distâncias,
viaja pelo mundo e percorre o universo rapidamente. Agir é movimento, é
experiência, Às vezes pensamos diferente do que sentimos e agimos. É como
se trilhássemos caminhos distintos dentro de nós mesmos. O pensamento
percorre para um lado enquanto o sentimento e a ação, para outro. A partir do
momento em que alinhamos esses três percursos em uma só estrada, o
horizonte se cobre de certezas. Neste caso, o labirinto é aquele que o ser
percorre dentro de si próprio.
É possível que nos percamos. Se isto ocorrer, entramos nas incertezas
de novos caminhos. A errância urbana nos leva a adentrar às praticas
labirínticas da cidade e desta forma, nos é permitido escolher qualquer
caminho, seja ele qual for, não sem valor mas, conscientes das escolhas e
oportunidades existentes.
4.2. Compassos e mutações
Por um instante o nosso caminhante achou que a Borboleta havia
sumido, foi quando ele a avistou pousada numa roda. Por onde será que ela
gostaria de ser levada? Rodas que fluem e se movimentam ritmadamente,
seguindo em frente, seguindo o fluxo da jornada. Transitando o movimento, o
momento, o ritmo.
Ao caminharmos, interagimos com diversos tipos de movimento à nossa
volta. Andares, olhares, automóveis, bicicletas, etc. A diversidade dos
movimentos é um reflexo da variedade das relações de tempo-espaço; eles
são compartilhados e inter relacionados. Na mesma variedade, existe o parar,
a pausa, o repouso, os quais também têm seu valor. A ausência do movimento
enfatiza a transição e diversidade de momentos, de instantes, de escolhas.
Transições de movimentos, de ritmos, fases distintas num desenvolvimento
qualquer. Saímos da inércia e experimentamos o novo de uma forma diferente,
contraditória em si.
“O ser interior tem todos os movimentos.”
(MICHAUX appud
BACHELARD, 1990, p. 45)
A realidade está em contínua alteração, nada é fixo e determinado. “O
real é por natureza dinâmico, e sua essência é o movimento.” (
JAPIASSU, p.190)
.
Tudo foi ou será diferente neste momento. Movimento é a mudança de
realidade.
Possuímos um ritmo de imaginar, de interagir entre os mundos. “Impulso
e vibração são duas espécies de dinâmicas bem diferentes quando as
experimentamos em seu andamento vivo.”
(BACHELARD, 1990, p.67)
“(...) quando a imaginação põe em nós a mais atenta das
sensibilidades, nos damos conta de que as qualidades representam para
nós mais devires do que estados.(...) Dada a sua sensibilidade, entre o
não bastante e o demasiado, uma imagem jamais é definitiva, ela vive
em uma duração oscilando, em um ritmo. Todo valor luminoso é um
ritmo de valores. E esses ritmos são lentos, entregam-se precisamente a
quem quer vivê-los lentamente, saboreando o seu prazer.”
(BACHELARD,
1990, p.69)
Nossas qualificações e sensações são temporais, associadas
diretamente ao momento. Por vezes queremos revivê-las e experimentá-las
novamente, mas cada instante é um momento único, que não se revive.
Apenas se relembra-o, viajando a um tempo vivido, onde resgatamos aquele
momento que passou. O cérebro vivencia o passado de maneira nova, com
valores novos. Também acessamos mentalmente e sensorialmente as
lembranças, os cheiros, os momentos. Isso qualifica as experiências.
Nosso caminhante virou mais uma esquina e avistou uma criança, que
distribuía sorrisos para todos que passavam. Sorrisos leves e desimpedidos
dos acontecimentos de ontem e afazeres de amanhã. Refletiu sobre a
felicidade contida no momento presente, no estar, no ser. E logo a retribuiu
com alegria.
“(...) esta é apenas uma da muitas estradas que naquela manhã
se abriam para mim.”
(CALVINO, 2003, p.13)
A mudança seja ela de perspectiva, ponto de vista, atitudes, sentimento
ou emoções, nos leva a um ponto onde nunca estivemos e influencia nossas
ações; tudo está em estado de mudança de fluxo. Não veremos as coisas
amanhã da mesma maneira em que vimos hoje. Tudo muda o tempo todo.
algo profundo dentro de nós que consegue perceber e conceber esta mudança
constante das coisas.
(IYENGAR, 2001, p.133)
. Ressignificamos nossos valores
com o que experienciamos na vida, juntamente com os aprendizados
adquiridos.
quando mudamos o nosso ponto de vista, mudamos também nossas
perspectivas, nossa escala. As mesmas relações continuam acontecendo no
mesmo espaço, mas a lente e os filtros com os quais visualizamos, são
capazes de mudar completamente o olhar. Essas lentes e filtros acontecem
nas camadas conscientes e inconscientes do ser, podem ser formadas a partir
de conceitos pré estabelecidos, ensinamentos, cultura, valores pessoais.
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.(...)”
(CAMÕES, 1993, p.146)
Quando caminhamos, as variações do espaço físico e da natureza são
partes ativas do percurso, como o dia e a noite, as modificações do tempo,
dentre outros. Quando, por exemplo, encontramos um canto de sombra, este
pode evocar-nos os tremores da noite, da alma que sonha nas profundezas, ou
a solidão, a negação do universo.
“(...) o canto é um refúgio que nos assegura um primeiro valor do
ser: a imobilidade.”
(BACHELARD, 1993, p.146)
Esta imobilidade externa pode ser contrária ao movimento interno, onde
tudo se agita, tudo formiga. A agitação é multiplicidade e multiplicidade é ação.
Agitação íntima. Entramos em conflito íntimo de princípios materiais,
combatemos interna e externamente, ao menor pretexto.
Vamos em busca de núcleos internos de escuridão secreta, possuindo
signos de perturbações profundas, que anseiam por encontrar a luz. Quando
sonhamos em profundeza, despertamos emoções profundas e, um único
borrão, um único bueiro é capaz de nos levar aos fantasmas. Lutamos com
nossos personagens internos, somos síntese de qualidades contraditórias,
somos integração de muitos em um.
Entramos em noites escuras da alma, num momento, que acontece a
qualquer período de tempo onde o caos e a confusão reinam sem interrupção.
Experiências sem nenhum alívio visível e previsível. Nestes períodos somos
forçados a reavaliar os pensamentos, sentimentos, e saber o que continuamos
a carregar e o que deixaremos para trás. Assim, ajustamos a realidade que nos
cerca, à verdade interna, para depois encontrar novamente a luz
Assim, nosso caminhante vive permeando-se entre mundos, entre
percepções variadas das experiências da vida e do espaço. Segundo aborda
Bachelard em seu livro A Terra e os Devaneios do Repouso
(1990, p.59)
, os
mundos da expressão são experimentados em três divisões: Unwelt – O
mundo ambiental, que nos cerca e nos oprime. Mitwelt O mundo do inter-
humano. “o mundo dito real, o mundo percebido em evidência, com princípios
da imaginação material” e Eigenwelt O mundo pessoal, mundo dos
fantasmas pessoais. Fermentamos esses três mundos em nosso laboratório
interno, somos seres em experiência, experimentamos o mundo e as relações
e inter relações à nossa volta. Caímos, conflitamos, voltamos, andamos,
paramos, nos perdemos e nos encontramos, em espaços físicos, em relações
de tempo, em corpos, em momentos. Formigamos a vida itinerante dentro da
embarcação denominada corpo humano.
“Imaginar é ausentar-se,
é lançar-se a uma vida nova.”
Gaston Bachelard
5. A POÉTICA DAS ASAS
O pedestre sonhador buscou o novo, em trajetórias com rumos
inesperados. Nosso caminhante e a Borboleta encontram-se numa evasão
aérea, poetizando e devaneando caminhos.
“Entrar em contato com o que existe de mais profundo, de mais
verdadeiro nas coisas do mundo e, assim, buscar o significado que nos
une a elas.”
(FARAH, 2008, p.17)
As imagens que se apresentam à nossa frente não são as mesmas que
se formam no nosso interior. Essas imagens percebidas estão misturadas ao
nosso olhar em particular, o qual difere de pessoa a pessoa. Dentre muito ao
redor, nosso olhar ressalta e destaca uma parte de um todo, atribuindo-lhe
significados, valores, lembranças e memórias.
“A cidade aparece como um todo no qual nenhum desejo é
desperdiçado e do qual você faz parte (...)
(CALVINO apud FARAH, 2008,
p.30)
Nesse novo trajeto, o caminhante deparou-se com uma grande árvore,
meio à multidão. Árvores pouco vistas no corre corre da cidade. Ele sentou-se
num pequeno banco para observá-la. Linda árvore, grande ancestral. Tanto
tempo ali, no mesmo espaço, crescendo em direção ao sol e ao vento e para
baixo, com suas raízes para a terra. E ensinando sobre os ciclos, sobre o
tempo de germinação, sobre morte e renascimento, dando abrigo aos seres de
asas, e sombra ao seres de patas e pernas. Ele olhou seus pés e imaginou
raízes, pensou em si e no universo que o sustentava nessa caminhada da vida.
“(...) os dias felizes estão entre árvores, como os pássaros.”
(MEIRELES apud FARAH, 2008, p.105)
Os galhos se balançavam com a brisa que surgia num movimento em
conjunto. Ele observou como os galhos se conectavam: onde um dava origem
a outros e, assim, sucessivamente e rizomaticamente. Rizoma como ruptura de
uma síntese racional. Da mesma maneira que funciona a estrutura dos
pensamentos: um único objeto início a uma sequência de movimentos em
cadeia. Ele percebeu e entendeu a ligação do uno com o todo, do movimento
em conjunto com os fenômenos que acontecem interligados. Observou que o
universo parecia se comportar como um emaranhado de relações e inter
conexões de espaços físicos e não físicos, interagindo a todo momento.
“Sem cessar, a árvore toma impulso e faz fremir as folhas, suas
inumeráveis asas”
(SUARES appud BACHELARD, 1990, p.207)
As árvores nos lembram o tempo dos ciclos, o que plantamos, o que
colhemos, e o que minamos para as próximas primaveras e as passadas.
Elas são a força que conduz à vida terrestre e ao céu azul. Elas têm formas
diversas e divergentes, galhos sinuosos e tortuosos. Flores, frutos, estações,
mudanças num ritmo mais lento que o ritmo da cidade e estão sempre em
busca de seu equilíbrio aéreo: “a busca da luz e a dificuldade de manter-se”
(BACHELARD, 1990, p.209)
“Quando eu estou entre vocês,
Árvores destes grandes bosques,
Nisso tudo que me rodeia e que por vezes me esconde,
Na sua solidão na qual eu me recolho,
Sinto um grande ser
Que me escuta e que me ama.”
(HUGO, apud FARAH, 2008, p.185)
O caminhante se sentia como se as vibrações da árvore estivessem
penetrando nele. “(...) o ser, tranquilizado por um simples apoio, mal solicitado
por uma vida, imperceptível, sem nada tomar à substância do mundo, se sente
do outro lado do mundo, bem perto da lenta vontade geral, em acordo com o
tempo certo, estendido sobre a fibra sem nó.”
(BACHELARD, 1990, p.212)
O tempo arbóreo é sempre um tempo lento, calmo e preservante,
condensando vida germinal. O simbolismo contido nas árvores faz reverberar
dentro de s a angústia do homem perante a temporalidade de sua época,
fazendo com que busquemos desacelerar, nos lembrando dos tempos da Terra
e dos ciclos naturais, das estações. Esse vegetalismo cíclico faz com que
retomemos momentos vividos juntamente às estações:
“O ser humano incorpora esse tempo vegetante, passa a respirá-
lo e a vivê-lo em sua plenitude.”
(FARAH, 2008, p.105)
A árvore é sempre um abrigo, no sentido de acolhimento; sentimo-nos
amparados e, ao mesmo tempo sustentados, e repousados. No cotidiano
urbano, ela oferece aconchego ante a adversidade da cidade. Mas a árvore
não traz a segurança da casa. “A vida na árvore é assim, um refúgio e um
perigo”
(BACHELARD, 1993, p.217)
. A imagem da árvore traz consigo a formação
do mundo.
“Se os símbolos se transmitem tão facilmente, é porque crescem
no próprio terreno dos sonhos.”
(BACHELARD, 1993, p.224)
Desse mesmo simbolismo carregado de luz, também podemos ver a
sombra, a queda:
“Falta-nos asas, mas temos sempre bastante força para cair.”
(CLAUDEL appud BACHELARD, 1993, p.91)
Em nosso inconsciente “o medo de cair é um medo primitivo.”
(BACHELARD, 1993, p.91)
. Ele esta associado ao medo da escuridão. Não há
medo em encontrar pessoas, mas medo de não encontrar apoio, acolhimento.
É um medo ancestral, ligado às lembranças imemoriais dos enfrentamentos do
mundo. “Mas nunca nos precipitamos no chão”
(BACHELARD, 1993 p.92)
. A queda
por si só, é rara. “A queda deve ter todos os sentidos ao mesmo tempo: deve
ser simultaneamente metáfora e realidade”
(BACHELARD, 1993, p.93)
As metáforas de crescimento da vida acontecem para cima e não para
baixo “Crescer é sempre elevar-se”
(BACHELARD, 1993, p.94)
. A queda cria o
abismo e não o abismo é a causa da queda. também um desejo de ser
precipitado para cima, cair de baixo para cima, no céu como abismo invertido.
“Almas raras conhecem uma vertigem que gira na direção do
bem, então começa uma espécie de ascensão incondicionada, a
consciência de uma nova leveza. A transmutação de todos os valores
dinâmicos determina uma transmutação de todas as imagens.”
(BACHELARD, 1993, p.107)
Essas imagens não são produzidas pelo olhar, mas “projeções da
imaginação dinâmica”
(BACHELARD, 1993, p.107)
. Estar embaixo, cair, remete a
pertencermos a dois mundos, um do peso e da sombra e, o outro, da leveza e
da luz, numa dualidade que corresponde a um “bi-realismo do imaginário”
(BACHELARD, 1993, p.108)
em dualidade da natureza humana, o ser se alterna
entre mundos, entre o céu e a terra.
“É uno actu, é no próprio ato vivido em sua unidade que uma
imaginação dinâmica deve pode viver o duplo destino humano da
profundidade e da altura, a dialética do suntuoso e de esplendor.”
(BACHELARD, 1993, p.109)
A imaginação une os extremos e nos permite entender que algo em nós
se eleva, enquanto algo se aprofunda. Somos a união dos polos, do céu e da
terra, num único ser e ato. Ao nos depararmos com esta dualidade, a partir das
relações de medo, nos prendemos a laços que nos impedem de cair
subitamente no céu.
“Por vezes um ligeiro desequilíbrio, uma ligeira desarmonia rompe
a realidade do nosso ser imaginário: evaporamo-nos ou condensamo-
nos sonhamos ou pensamos. Oxalá pudéssemos sempre imaginar.”
(BACHELARD, 1993, p.110)
No ser, tudo é movimentação. A imaginação, razão e emoção misturam-
se nos instantes vividos. Em um instante podemos acessar o céu e, no
seguinte, voltarmos à terra. Escolhemos, manifestar nossas vontades internas,
desejos físicos e outros através das experiências vividas, somos atraídos e
repelidos para o aprendizado, a qualquer momento, como movimento da
consciência que almeja o céu.
Por momentos desejamos e levamos esse anseio adiante, da forma que
quisermos. Subitamente ele pode sumir, perdendo seu valor e dando lugar a
novos passos. Caminhamos nos desapegando dos passos dados, das
pessoas, dos lugares, dos desejos antigos, onde estes estavam atrelados a um
momento que carregamos pelo tempo que quisermos.
A vida à frente do caminhante, parecia a miniatura de muitos filmes,
onde ele selecionava e rememorava as cenas escolhidas: recortes que
expressavam seus valores do momento. Que partes deixar? Que partes levar?
Em decorrência desses recortes, o devaneio o levava para outras épocas de
sua vida. Lembranças se misturavam com o presente e com os desejos para o
futuro.
A Borboleta em seu vôo o levou em direção à orla, onde o rumo de sua
caminhada lentamente parecia ter ganho um novo ritmo, uma pulsação que
correspondia mais ao seu ritmo interno. Ao chegar à praia, colocou seus pés na
areia. Eles o conectavam com os elementos da natureza e com o próprio
corpo. Ele permitiu olhar e sentir. O horizonte o fazia contemplar a imensidão
do mar e o céu azul, a imensidão do seu ser e a integração.
“O céu azul, meditado pela imaginação material, é
sentimentalidade pura; é a sentimentalidade sem objeto. (...) que o azul
do céu é tão irreal, tão impalpável, tão carregado de sonho quanto o azul
de um olhar. Acreditamos contemplar o céu azul. De bito, é o céu azul
que nos contempla.”
(BACHELARD, 1993, p.168)
Céu líquido fluente, céu azul consolidado. Ele sentia-se fazendo parte da
natureza aérea do azul celeste, onde a unidade da simples cor traz uma leveza
do ser, simples e doce. Para o espírito, o céu é a imensidão. E o ser, sonha,
poetiza, admira e se perde nessa imensidão.
“O ser que medita é primeiro o ser que sonha. (...) O devaneio
encontra-se (..) antes da representação; o mundo imaginado está
justamente colocado antes do mundo representado, o universo está
colocado exatamente antes do objeto.
(BACHELARD, 1993, p.169)
Assim, o poeta nos mostra que o mundo é o nosso próprio devaneio. Se
este movimento não existisse, o ser seria encerrado em suas representações e
“escravos de suas sensações”
(BACHELARD, 1993, p.169)
, privando-se de seus
sonhos, ausentando-se de suas representações. O céu azul aborda uma
fenomenalidade sem fenômenos, os objetos são banidos. O céu azul é uma
imagem elementar.
O cheiro do mar remetia o caminhante a momentos de interiorização,
onde seus desejos íntimos afloravam. Nesse instante, sentia que não havia
mais a divisão entre o interno e o externo, ele era um, íntegro com o todo.
“O mundo é grande, mas em nós ele é profundo como o mar.”
(BACHELARD, 1993, p.189)
Contemplar a natureza nos coloca em um estado de espírito único, de
grandeza, de plenitude, de calma e unidade. Determina “um estado de alma tão
particular que o devaneio coloca o sonhador fora do mundo próximo, diante de
um mundo que traz o signo do infinito.”
(BACHELARD, 1993, p.189)
. Frente à
imensidão, podemos ressoar a renovação em s mesmos. Entramos em
contato com a nossa imensidão íntima, onde as lembranças, memórias,
devaneios se ativam sem um início delimitado. Ao mesmo tempo que
contemplamos o objeto, fugimos, vamos para além dele. O imenso deixa de ser
objeto e acessamos uma fenomenologia sem fenômenos, produzimos imagens
sem esperar fenômenos, acessamos o ser que admira. Ele remete-nos à nossa
consciência imaginante, construindo em nós o ser puro da imaginação pura”.
(BACHELARD, 1993, p.190)
. Também tomamos consciência da grandeza e a
insignificância de nosso ser. Trazemos à consciência que a imensidão está em
nós, sentimo-nos expandir, uma expansão da vida, de coisas infinitas, que
retomam a unidade do ser. “A imensidão é o movimento do homem imóvel”
(BACHELARD, 1993, p.190)
. Acessamos a grandeza oculta, a imensidão interior, a
expansão dos sentidos.
“Eu me crio com um traço de pena
Senhor do mundo
Homem ilimitado. “
(BACHELARD, 1993, p.191).
Entramos no silêncio que transcende o tempo e espaço. Ouvimos um
eco do interior que ressoa a essência do ser. Este espaço estende-se sem
limite e o poder da imensidão tem seu valor, não existindo contradição entre o
pequeno e o grande.
“Na alma relaxada que medita e sonha, uma imensidão parece
esperar as imagens da imensidão. O espírito e revê objetos. A alma
encontra no objeto o ninho de uma imensidão.”
(BACHELARD, 1993, p.196).
É possível encontrar a solidão e a solitude. Respiramos o ar que
repousa sobre o horizonte, o ilimitado entra em nossos pulmões calmamente,
longe das angústias humanas. Os valores sensíveis são enfatizados e nos
conduzem a pontos de sensibilidade extrema.
“Por todos os seres se desdobra o espaço único, espaço íntimo
no mundo...” “Quando um espaço é um valor (...) ele cresce.”
(BACHELARD, 1993, p.207).
Criamos assim a relação de lugar, a partir dos valores atribuídos a eles.
As coisas coexistem conosco no mesmo universo. A partir da nossa existência
podemos criar espaços íntimos e simultâneos de devaneios.
“Longamente ausente de mim mesmo, sem estar presente em
parte alguma, atribuo com demasiada facilidade a inconsistência de
meus devaneios aos espaços ilimitados que os favorecem.”
(BACHELARD,
1993, p.208).
Por vezes nos defrontamos com espaços delimitados e, ao os
encontrarmos, nos sentimos livres para acessar a imensidão íntima do ser.
Para entrar na fronteira do novo é necessário deixar o que sucedeu
para trás, como os passos que já foram dados, e assim dar espaço para o novo
entrar, invadir a alma, impulsionando a criação, viver uma nova caminhada.
Quando mudamos o espaço concreto, “Não mudamos de lugar, mudamos a
natureza.”
(BACHELARD, 1993, p.210).
E quando nosso caminhante olhou para o lado, estava ela, a
borboleta Amarela pousada em seu ombro, tocando o seu ser. Sua entrega o
permitiu explorar os ritmos variados, caminhando por diferentes partes da
cidade do Rio de Janeiro, mas desterritorializado, pois ele sabia que esta
caminhada poderia acontecer em qualquer tempo-espaço, pois o seu interior e
exterior permeavam constantemente.
“Pois estamos onde não estamos.”
(JOUVE apud BACHELARD, 1993, p.215).
A geometria existente na dialética do exterior e do interior pode nos abrir
os horizontes ou nos cegar, visto que não existem limites palpáveis para
concretizar esta divisão, esta geometria implícita no ser, demonstra que não
existe certo ou errado, aberto ou fechado, o aquém e o além. Existem
metáforas que ligam todos os sistemas.
“Apenas saído do ser, sempre há de ser preciso voltar a ele.
Assim, no ser, tudo é circuito, tudo é rodeio, retorno, discurso, tudo é
rosário de permanências, tudo é refrão de estrofes sem fim. (...) E que
espiral é o ser do homem! (...) não sabemos imediatamente se
corremos para o centro ou se nos evadimos.”
(BACHELARD, 1993, p.217).
Percorrendo caminhos desconhecidos o ser descobre seus limites, suas
fronteiras e numa intenção de aprimoramento, vai rompendo-as, volta, retoma,
segue adiante, intencionado ao céu, numa espiral de ascensão ilimitada. Por
vezes é estando fora de si que o ser encontra o seu âmago, sua essência. “(...)
é no âmago do ser que o ser é errante.” (
BACHELARD, 1993, p.218)
. O ser em seu
interior, recolhido em si mesmo, digere o seu nada.
Somos espirais em ascensão, em busca do u, para aprimorarmos e
evoluirmos nosso ser e nosso espírito. Caminhamos por estradas devaneantes
num ser-espírito sem limite, que exterioriza e interioriza.
“O exterior e o interior são ambos íntimos; estão sempre prontos a
inverter-se, a trocar sua hostilidade.”
(BACHELARD, 1993, p.221).
O interior e exterior são vividos pela imaginação, numa inversão e
reviravolta do ser nessa dialética. O Habitar aqui contempla entrar de novo em
si para situar-se sobre a sua existência. Nesse interior, podemos acessar
diversas sensações.
“Viver, viver realmente uma imagem poética é conhecer, numa de
suas pequenas fibras, um devir de ser que é uma consciência da
inquietação do ser”.
(BACHELARD, 1993, p.221).
Nesse ser errante, nos deixamos caminhar pela vida. Passar por
diversas portas, como fases, entrando e saindo, fechando e abrindo. Habitando
espaços e percorrendo trajetos e histórias íntimas do ser efêmero que anseia
sempre por novos caminhos. O ser que abre uma porta é diferente do mesmo
ser que a fecha. As novas portas que se abrem são como novas estradas a
percorrer, sempre detém consigo a curiosidade que tenta o ser, por um
desconhecido que não é sequer imaginado. Sensibilizamos o mundo próximo,
aguçando os símbolos da vida que caminham passo a passo por novas
descobertas, novas experiências, novos caminhos.
Nosso caminhante e a borboleta continuaram a caminhar, ele na terra,
ela no céu, habitando a caminhada da vida, por passos ainda a serem dados,
construindo e reconstruindo objetivos e vontades entre o nascimento e a morte,
entre a terra e o céu, entre o pensar, o sentir e o experimentar. Andando em
devaneio, a estrada é poetizada. E foi então que o nosso caminhante
simplesmente parou, e a borboleta se foi, seguindo uma nova estrada pelos
céus a serem desvendados.
“O que tento lhes dizer é mais misterioso,
entremeia-se nas raízes do ser,
na fonte impalpável das sensações.”
Gasquet
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os elementos abordados no decorrer desta dissertação têm sua
relevância, pois influenciam diretamente na relação do caminhante com o
espaço físico da cidade e com o espaço metafísico do imaginal. A partir de
questões como a escolha dos percursos, as tomadas de decisões, fluxos,
tempos, mudanças, interrupções e continuidades, dentre outras, entendemos
que estes elementos apresentados repercutem diretamente na cidade e no ser
que caminha. Assim, essa relação mútua de movimento entre espaço interno-
externo influencia e é influenciada pelas nossas escolhas íntimas, fazendo com
que adotemos e direcionemos o caminho a ser percorrido.
Cada ser é um universo inteiro a ser descoberto, um mundo a ser
compartilhado e o caminhar tem sua relevância nessa descoberta. As coisas
materiais são possíveis objetos da consciência, onde a cada momento estamos
optando por um desses movimentos, para manifestar a nossa experiência
atual. E quem escolhe é o observador, o caminhante. Ele é o espírito dentro do
traje do corpo, é a alma dentro da máquina, é a consciência que está dirigindo
o veículo. Qualquer informação que processemos, que assimilemos no
ambiente, vem sempre com as cores das experiências passadas e de uma
reação emocional que temos àquilo que nos é incorporado. Existe uma
superposição de caminhos, de faixas de realidade em potencial, até que
escolhemos um. Nestes caminhos existem ondas de possibilidades e quando
selecionamos, partículas de experiências. Assim, a particularidade dos
diferentes caminhos é explicada a partir dos pequenos conceitos.
A vida física e humana em nosso caminho, a qual se estende entre o
nascimento e a morte, é trilhado sobre a Terra e o céu e é experimentada por
todos os seres humanos. Cada ser humano que caminha pelo planeta possui
seu próprio caminho de vida. Este caminho é criado pelo entrelaçamento das
emoções, sonhos, pensamentos e experiências, desde o momento em que
nascemos até à nossa morte. Nossas vidas inevitavelmente mudarão de
direção à medida em que as experiências e escolhas forem surgindo. Cada
decisão que tomamos e cada mudança de percepção podem trazer
transformações no curso de nossas vidas, trazendo horizontes e perspectivas
novas. Cada vez que alteramos a prioridade, alteramos o caminho. Cada vez
que nos permitimos usar a imaginação, mudamos nossa visão de realidade.
Cada vez que decidimos mudar de direção, desenhamos e redesenhamos,
construímos e reconstruímos nossos estilos de vida, bitos, necessidades
pessoais e objetivos, abrimos e fechamos portas.
O movimento do caminhar na vida sugere mudanças, mas quando e
como, varia de pessoa para pessoa. As impressões físicas e o físicas feitas
por nossas escolhas mentais, emocionais e espirituais são aspectos intangíveis
que pavimentam nosso caminho, permeando o pensamento humano. À medida
que nossa percepção dos aspectos da vida à nossa volta vai desabrochando,
alcançamos novas formas de ver e sentir o universo e seu entrelaçamento de
cada aspecto da vida. Encontramos nossos caminhos individuais, juntamente
com nossas verdades pessoais.
Se você está vivo, está caminhando pela vida. E ela lhe traz sempre
novos metas a seguir, com diferentes direções. No entanto todos os caminhos
percorridos e a percorrer se encaixam na malha da vida, formando um único
percurso que representa a jornada individual de cada um. Os ritmos variam, o
movimento varia e sempre podemos escolher se andamos nas pontas dos pés
ou com passos fortes e firmes.
“Conduz-me suavemente ao amanhecer,
Onde meu sonho se transforma em luz,
Unindo-se à radiância do sol,
E espalhando o azul do vôo do meu espírito.
Conduz-me de volta ao mundo da vigília,
Com imagens vivas impressas no meu coração,
Segurando os mapas dos caminhos renascidos,
Para que minha vida se transforme em obra de arte viva.”
(SAMS, 1951, p.43).
7. ANEXO
A BORBOLETA AMARELA
Era uma borboleta. Passou roçando em meus cabelos, e no primeiro instante pensei que fosse uma bruxa ou qualquer
outro desses insetos que fazem vida urbana; mas, como olhasse, vi que era uma borboleta amarela.
Era na esquina de Graça Aranha com Araújo Porto Alegre; ela borboleteava junto ao mármore negro do Grande
Ponto; depois desceu, passando em face das vitrinas de conservas e uísques; eu vinha na mesma direção; logo estávamos
defronte da A.B.I. Entrou um instante no hall, entre duas colunas; seria um jornalista? – pensei com certo tédio.
Mas logo saiu. E subiu mais alto, acima das colunas, até o travertino encardido. Na rua México eu tive de esperar que o
sinal abrisse: ela tocou, fagueira, para o outro lado, indiferente aos carros que passavam roncando sob suas leves asas. Fiquei a
olhá-la. Tão amarela e tão contente da vida, de onde vinha, aonde iria? Fora trazida pelo vento das ilhas ou descera no
seu vôo saçaricante e leve da floresta da Tijuca ou de algum morro – talvez o de São Bento Onde estaria uma hora antes,
qual sua idade? Nada sei de borboletas. nascera, acaso, no jardim do Ministério da Educação? Não; o Burle Marx faz bons
jardins, mas creio que ainda não os faz com borboletas – o que, aliás, é uma boa idéia. Quando eu o mandar fazer os jardins
de meu palácio, direi: Burle, aqui sobre esses manacás, quero uma borboleta amare... Mas o sinal abriu e atravessei a rua
correndo, pois já ia perdendo de vista a minha borboleta.
A minha borboleta! Isso, que agora eu disse sem querer, era o que eu sentia naquele instante: a borboleta era minha –
como se fosse meu cão ou minha amada de vestido amarelo que tivesse atravessado a rua na minha frente, e eu devesse segui-
la. Reparei que nenhum transeunte olhava a borboleta; eles passavam, devagar ou depressa, vendo vagamente outras coisas
as casas, os veículos ou se vendo –, só eu vira a borboleta, e a seguia, com meu passo fiel. Naquele ângulo há um jardinzinho,
atrás da Biblioteca Nacional. Ela passou entre os ramos de acácia e de uma árvore sem folhas, talvez um "flamboyant"; havia,
naquela hora, um casal de namorados pobres em um banco, e dois ou três sujeitos espalhados pelos outros bancos, dos quais uns
são de pedra, outros de madeira, sendo que estes são pintados de azul e branco. Notei isso pela primeira vez, aliás, naquele
instante, eu que sempre passo por ali; é que a minha borboleta amarela se tornava sensível às cores.
Ela borboleteou um instante sobre o casal de namorados; depois passou quase junto da cabeça de um mulato magro,
sem gravata, que descansava num banco; e seguiu em direção à Avenida. Amanhã eu conto mais.
***
Eu ontem parei a minha crônica no meio da história da borboleta que vinha pela rua Araújo Porto Alegre; parei no
instante em que ela começava a navegar pelo oitão da Biblioteca Nacional.
Oitão, uma bonita palavra. Usa-se muito no Recife; lá, todo mundo diz: no oitão da igreja de São José, no oitão do
Teatro Santa Isabel... Aqui a gente diz: do lado. Dá no mesmo, porém oitão é mais bonito. Oitão, torreão.
Falei em torreão porque, no ângulo da Biblioteca, há uma coisa que deve ser o que se chama um torreão. A borboleta
subiu um pouco por fora do torreão: por um instante acreditei que ela fosse voltar, mas continuou ao longo da parede. Em
certo momento desceu até perto da minha cabeça, como se quisesse assegurar-se de que eu a seguia, como se me quisesse
dizer: "estou aqui".
Logo subiu novamente, foi subindo, até ficar em face de um leão... sim, uma cabeça de leão, aliás várias, cada
uma com uma espécie de argola na boca, na Biblioteca. A pequenina borboleta amarela passou junto ao focinho da fera,
aparentemente sem o menor susto. Minha intrépida, pequenina, vibrante borboleta amarela! pensei eu. Que fazes aqui, sozinha,
longe de tuas irmãs que talvez estejam agora mesmo adejando em bando álacre na beira de um regato, entre moitas amigas
e aonde vais sobre o cimento e o asfalto, nessa hora em que começa a escurecer, oh tola, oh tonta, oh querida
pequena borboleta amarela! Vieste talvez de Goiás, escondida dentro de algum avião; saíste no Calabouço, olhaste pela
primeira vez o mar, depois...
Mas um amigo me bateu nas costas, me perguntou "como vai bichão, o que é que você está vendo aí?" Levei um grande
susto, e tive vergonha de dizer que estava olhando uma borboleta; ele poderia chegar em casa e dizer: "encontrei hoje o
Rubem, na cidade, parece que estava caçando borboleta".
Lembrei-me de uma história de cio Cardoso, que trabalhava na Agência Nacional: Um dia acordou cedo para ir
trabalhar; não estava se sentindo muito bem. Chegou a se vestir, descer, andar um pouco junto da Lagoa, esperando condução,
depois viu que não estava mesmo bem, resolveu voltar para casa, telefonou para um colega, explicou que estava gripado, até
chegara a se vestir para ir trabalhar, mas estava um dia feio, com um vento ruim, ficou com medo de piorar e demorou um
pouco no bate-papo, falou desse vento, você sabe (era o noroeste) que arrasta muita folha seca, com certeza mais tarde vai
chover etc., etc..
quando o chefe do Lúcio perguntou por ele, o outro disse: "Ah, o Lúcio hoje não vem não. Ele telefonou, disse que até
saiu de casa, mas no caminho encontrou uma folha seca, de maneira que não pode vir e voltou para casa."
Foi a história que lembrei naquele instante. Tive por que não confessar? tive certa vergonha de minha
borboletinha amarela. Mas enquanto trocava algumas palavras com o amigo, procurando despachá-lo, eu ainda vigiava a minha
borboleta. O amigo foi-se. Por um instante julguei, aflito, que tivesse perdido a borboleta de vista. Não. De maneira que vocês
tenham paciência: na outra crônica, vai ter mais história de borboleta.
***
Mas, como eu ia dizendo, a borboleta chegou à esquina de Araújo Porto Alegre com a Avenida Rio Branco; dobrou à
esquerda, como quem vai entrar na Biblioteca Nacional pela escada do lado, e chegou até perto da estátua de uma senhora
nua que ali existe; voltou; subiu, subiu até mais além da copa das árvores que há na esquina – e se perdeu.
Está claro que esta é a minha maneira de dizer as coisas; na verdade, ela não se perdeu; eu é que a perdi de vista. Era
muito pequena, e assim, no alto, contra a luz do céu esbranquiçado da tardinha, não era fácil vê-la. Cuidei um instante que
atravessava a Avenida em direção à estátua de Chopin; mas o que eu via era apenas um pedaço de papel jogado de não sei
onde. Essa falsa pista foi que me fez perder a borboleta.
Quando atravessei a Avenida ainda a procurava no ar, quase sem esperança. Junto à estátua de Floriano, dezenas de
rolinhas comiam farelo que alguém todos os dias joga ali. Em outras horas, além de rolinhas, juntam-se também ali pombos,
esses grandes, de reflexos verdes e roxos no papo, e alguns pardais: mas naquele momento havia apenas rolinhas. Deus sabe que
horários têm esses bichos do céu.
Sentei-me num banco, fiquei a ver as rolinhas ocupação ou vagabundagem sempre doce, a que me dedico todo dia
uns 15 minutos. Dirás, leitor, que esse quarto de hora poderia ser mais bem aproveitado. Mas eu o quero aproveitar nada;
ou melhor, aproveito, no meio desta cidade pecaminosa e aflita, a visão das rolinhas, que me faz um vago bem ao coração.
Eu poderia contar que uma delas pousou na cruz de Anchieta; seria bonito, mas não seria verdade. Que algum dia deve
ter pousado, isso deve; elas pousam em toda parte; mas eu não vi. O que digo, e vi, foi que uma pousou na ponta do trabuco de
Caramuru. Falta de respeito, pensei. o sabes, rolinha vagabunda, cor de tabaco lavado, que esse é Pai do Fogo, Filho do
Trovão?
Mas essa conversa de rolinha, vocês compreendem, é para disfarçar meu desaponto pelo sumiço da borboleta amarela.
Afinal arrastei o desprevenido leitor ao longo de três crônicas, de nariz no ar, atrás de uma borboleta amarela. Cheguei a
receber telefonemas: "eu quero saber o que vai acontecer com essa borboleta". Havia, no círculo das pessoas íntimas, uma
certa expectativa, como se uma borboleta amarela pudesse promover grandes proezas no centro urbano. Pois eu decepciono a
todos, eu morro, mas não falto à verdade: minha borboleta amarela sumiu. Ergui-me do banco, olhei o relógio, saí depressa, fui
trabalhar, providenciar, telefonar... Adeus, pequenina borboleta amarela.
Rio, setembro de 1952
Rubem Braga
BRAGA, Rubem. A Borboleta Amarela. Rio de Janeiro: Editora Sabiá, 1963. p. 170-
176.
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE, Carlos Drummond de. A Rosa do Povo. Rio de Janeiro: Record,
2000.
_________. Carlos Drummond de. Glaura revivida. Discografia.
(site: http://letras.terra.com.br/carlos-drummond-de-andrade/1221850/e)
ARGAN, Giulio Carlo. A História Da Arte Como História Da Cidade. São
Paulo: Martins Fontes, 1984.
BACHELARD, Gaston. A Poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes,
1993.
_________. A Poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
_________. A Terra e os Devaneios da Vontade: Ensaio sobre a
imaginação das forças. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
_________. A Terra e os Devaneios do Repouso: Ensaio sobre as
imagens da intimidade. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
_________. O Ar e os Sonhos: Ensaios sobre a imaginação do
movimento. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
_________. A dialética da duração. São Paulo: Ática, 1988.
BANDEIRA, Manuel. Estrela da Vida Inteira: Poesias reunidas. Rio de Janeiro:
José Olympio, Instituto Nacional do Livro, 1970.
BRAGA, Rubem. A Borboleta Amarela. Rio de Janeiro: Editora Sabiá, 1963.
BENJAMIM, Walter. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. São
Paulo: Brasiliense, 2000.
CALVINO, Italo. As Cidades Invisíveis. Rio de Janeiro: O Globo, 2003.
CHAUI, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Editora Ática, 2003.
DUARTE, Cristovão Fernandes. Circulação e cidade: do movimento da
forma à forma do movimento. Rio de Janeiro: IPPUR-UFRJ, 2002.
FARAH, Ivete. Poética das árvores urbanas. Rio de Janeiro: Mauad X:
FAPERJ, 2008.
IYENGAR, B.K.S. A Árvore do Yoga. São Paulo: Globo, 2001.
JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.
JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
JACQUES, Paola Berenstein e JEUDY, Henri Pierre. Corpos e cenários
urbanos: Territórios urbanos e políticas culturais. Salvador: EDUFBA;
PPG-AU/FAUUFBA, 2006.
JACQUES, Paola Berenstein. Estética da Ginga. Rio de Janeiro: Casa da
Palavra, 2003.
_________. Apologia da Deriva: Escritos situacionistas sobre a cidade.
Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.
LYNCH, Kevin. A Imagem da Cidade. o Paulo, Brasil: Martins Fontes,
1997.
LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Petrópolis, Rio de Janeiro:
Vozes, 2006.
MILTON SANTOS. Pensando o Espaço do Homem. o Paulo: Edusp,
2004.
_______. Da totalidade ao lugar. São Paulo: Edusp, 2005.
MURAD, Carlos Alberto. A criação no pensamento das imagens, in
PINHEIRO
MACHADO, DENISE B. (org). Sobre o Urbanismo. Rio de Janeiro: Viana &
Mosley Editora/Editora PROURB, 2006.
MURAD, Carlos Alberto. Fotopoética da paisagem, in ANAIS do I ENEPEA,
Rio de Janeiro: UFRJ, 1998
NERUDA, Pablo. Últimos Poemas. Porto Alegra: L&PM, 2007.
NESBITT, Kate. (org). Uma nova agenda para a arquitetura. São Paulo:
Cosac Naif, 2006.
PEARSON, E. Norman. O espaço, o tempo e o eu. Wheaton, E.U.A.: The
Theosophical Publishing House, 1967.
PESSOA, Fernando. Poesias. Porto Alegre: L&PM, 2007.
PENNA, Antônio Gomes. Percepção e Realidade. Rio de Janeiro: Livraria e
Editora Mercurio Star LTDA, 1982.
PLUS, Mauricio. Arquitetura e filosofia. São Paulo: Annablume, 2006.
ROSSI, Aldo. A arquitetura da Cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
SANTOS, Carlos Nelson F. Dos. A cidade como um jogo de cartas. São
Paulo: Projetos Editores, 1988.
SAMS, Jamie. Dançando o sonho: Os sete caminhos sagrados da
transformação humana. Rio de Janeiro: Rocco, 1951.
SENNETT, Richard. Carne e Pedra: O corpo e a cidade na civilização
ocidental. Rio de Janeiro: Record, 1997.
TUAN, Yi-Fu. Espaço e Lugar: A perspectiva da experiência. São Paulo:
DIFEL, 1930.
VELOSO, Cláudia Barbosa Veloso. A imagem fílmica e poética urbana
Recortes/leituras e trajetos de Wim Wenders. Rio de Janeiro:
UFRJ/PROURB, 2006
VENEU, Marcos Guedes. Estudos históricos. Rio de Janeiro, vol.3, n.6,
1990. Discografia
(site:http://www.cesjf.br/cesjf/documentos/revista_letras_docs/art_alunos/LIT_L
ING_PORT/Trilhando_dialogos_com_Baudelaire.pdf)
ZOURABICHVILI, François. O Vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro:
Centro Interdisciplinar de Estudo em Novas Tecnologias e Informação, 2004.
Contato: gabriella.zubelli@gmail.com
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo