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(...) Seu nome é contornado mesmo por eles, que o guilhotinam, suprimindo o
resto do corpo da palavra e reduzindo-o à primeira sílaba – NEO, CE-A – para
não conjurar, não invocar, para que ele fique longe, lá nele, no Trópico para
onde o desterrou o poeta. Sai... O polvo feroz e chupaz, gerado fora
do útero,
quintessência das
molas hidatiformes susceptível de deitar raízes em qualquer
tecido, de ser a um templo placenta e feto que se protrai, que nasce só para
necrosar e feder, exaurindo a fonte de onde tira força adquirida para morrer – o
aranhol, a tarântula, a medusa, o caranguejão de pesadelo – que vem a ser?
Doença mesmo? individualizável? e dependente de causalidade coerente? Ou
nem isto e só conjunto reacional das causas mais diversas e assim devendo ser
considerado muitas doenças – um n de doença. É um ladrão que ninguém sabe
se está – porque bate às portas pelo lado de dentro. Uma célula se dementa, não
é rejeitada, fica e começa a se dividir fora de qualquer regra biológica. Quando
se dá pelo fenômeno, ela já foi elevada ao quadrado, ao cubo, a várias potências,
já tem raízes mais fortes que o solo, já passou a matriz, deu filiais e manda
metástases para todos os lados como um fogo de artifício, uma explosão
atômica, um vulcão. Cessam as incertezas e as perguntas que todo homem ou
mulher acima dos quarenta se faz quando é de espírito prevenido. Já estará? em
mim. Onde? ai de mim! que assim me interrogo nas noites longas. Onde?
Estará? no pulmão a que dei tanto fumo. No fígado? a que dei os espíritos e as
especiarias e a cuja neutralização atirei a toxicidade das vitualhas engolidas
rabelaisianamente. Mea culpa. Na pequena curvatura? Na bexiga? Próstata?
partes cansadas do baixo ventre? Nos fatigados ossos? armação, estrutura,
vigamento que sustentou meu corpo no bem e no mal... Bato na madeira, rezo,
faço figa, passa-fora, fica lá-nele, fica na galáxia – SAI, CÂNCER.
Quando se sabe que já é, que está e onde está – é a hora da pugna inglória em
que a casual vitória só acontece uma vez em cem. Tanto? assim ou uma vez em
mil, dez mil. Valerá a pena? então, lutar. Vale porque a luta no caso é a
protelação e, na porca da vida, um instante mais que se ganhe, é vitória. Adiar.
Protelar. Procrastinar. O positivo é que um dia derrotaremos o monstro – como
já o fizemos à tísica, às epidemias, às endemias. Temos obrigação de combater.
Cirurgia e a luta palmo a palmo, a depeçagem em que se tenta erradicar a morte
pedaço por pedaço. Mais um pouco. Mais um lóbulo de pulmão, mais um metro
de tripa, mais um fragmento de circunvolução uma fatia de fígado, um pulmão
inteiro, um rim todo. O simétrico, o par, o suplente que trabalhe, o vigário que
entre em cena. Até não se poder tirar mais nem um pouco sem penetrar nos
arcanos da vida. Então vem a vez da irradiação que depila e queima e esteriliza.
Terceira etapa, os imunossupressores que também arrancam os cabelos,
amolecem os dentes, suprimem a libido e tiram os sobejos que ficaram da
potencinha que garantia uma triste meia-bomba. Finalmente a sobremesa de
água com açúcar da imunoterapia. O quê? O bicho que esgueirou-se às foiçadas
da cirurgia, que resistiu ao lança-chamas da bomba de cobalto, que não
sucumbiu à suprema poluição dos imunossupressores será? que vai ceder agora,
ao velho BCG. Também não mas tentou-se de tudo e a família exausta faz, por
fim, um enterrinho barato do defunto caro com o pouco que sobrou da ganância
terapêutica
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NAVA, Pedro. Galo das trevas: memórias 5. 2. ed.
Rio de Janeiro:
José Olympio, 1981. p. 79-81.