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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Pedro Nava – cronista de uma época: Medicina e sociedade
brasileira (1890-1940)
Vanda Arantes do Vale
Belo Horizonte, MG
2009
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Vanda Arantes do Vale
Pedro Nava – cronista de uma época: Medicina e sociedade
brasileira (1890-1940)
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
História da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito
para a obtenção do título de Doutor em História
Linha de Pesquisa: Ciência e Cultura na História
Orientadora: Profª. Drª. Betânia Gonçalves Figueiredo
Belo Horizonte, MG
2009
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Tese defendida pela aluna Vanda Arantes do Vale em 03 de dezembro de 2009 e aprovada,
pela banca examinadora constituída pelas professoras:
____________________________________________________
Profª. Drª. - Betânia Gonçalves Figueiredo - ORIENTADORA
Universidade Federal de Minas Gerais
____________________________________________________
Profª. Drª. - Dilene Raimundo do Nascimento
Fundação Oswaldo Cruz
____________________________________________________
Profª. Drª. - Júnia Sales Pereira
Universidade Federal de Minas Gerais
____________________________________________________
Profª. Drª. - Maria Gabriela Silva Martins da Cunha Marinho
Universidade de São Paulo
____________________________________________________
Profª. Drª. - Rita de Cássia Marques
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte, MG
2009
RESUMO
O médico e literato Pedro Nava (1903-1984) publicou seis livros de Memórias no período de
1972 a 1983. Os livros Baú de ossos: memórias, Balão cativo: memórias 2, Chão de ferro:
memórias 3, Beira-mar: memórias 4, Galo das trevas: memórias 5 e O círio perfeito:
memórias 6 somam, aproximadamente, 2.500 páginas. Traçam um amplo painel da sociedade
brasileira. O memorialista reconstituiu a trajetória estudantil e profissional de seu pai, o
médico José Nava (1876-1911), em Baú de ossos: memórias, e também a sua nos demais
livros. A obra memorialística de Pedro Nava constitui fonte documental para os estudos das
relações Medicina e sociedade brasileira (1890-1940).
Palavras-chave: Pedro Nava. Memórias. Medicina e sociedade brasileira.
ABSTRACT
Pedro Nava (1903-1983), Brazilian physician and writer, published six memoirs books
between 1972 and 1983. The works Baú de ossos: memoir, Balão cativo: memoir 2, Chão de
ferro: memoir 3, Beira-mar: memoir 4 , Galo das trevas: memoir 5 and O círio perfeito:
memoir 6 add up approximately 2.500 pages. They draw a wide panel of the Brazilian society.
The memorialist rebuilt his father´s scholar and professional path, the physician José Nava
(1876-1911) in Baú de ossos: memoirs and his own in the other books. Pedro Nava´s memoirs
work composes a documental source for studies related to medicine and Brazilian society
(1890-1940).
Key-words: Pedro Nava. Memoirs. Medicine and Brazilian society.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO................................................................................................ 6
2 NORTEADORES QUE AUXILIAM NO ENTENDIMENTO DA
ESCRITA DO “UM POBRE HOMEM DO CAMINHO NOVO”...............
13
3 MEMÓRIAS E INFORMAÇÕES BIOGRÁFICAS DE PEDRO NAVA.. 45
4 FORMAÇÃO E PROFISSIONALIZAÇÃO DE PEDRO NAVA (1903-
1984)...................................................................................................................
117
5 CONCLUSÃO.................................................................................................. 160
BIBLIOGRAFIA..................................................................................................
165
6
1 INTRODUÇÃO
Nossa proposta na pesquisa Pedro Nava cronista de uma época: Medicina e sociedade
brasileira (1890-1940) é, partindo da obra literária do autor, identificá-la como documentos para
os estudos das relações Medicina e sociedade. O mundo acadêmico tem-se debruçado sobre os
textos de Pedro Nava (1903-1984) e estudado diversos de seus aspectos, e nós temos buscado
enriquecer esse campo apresentando e publicando aspectos parciais de nossas pesquisas
1
. Os
estudos sobre os escritos naveanos são, em sua maioria, feitos por profissionais das áreas de
Letras. Nava é muito citado em textos das áreas de Ciências Humanas e Sociais como epígrafes,
ilustração de ideias, mas nunca como objeto de estudo. Desse modo, este trabalho é pioneiro no
estudo da obra de Nava como um documento histórico para o estudo das relações Medicina e
sociedade
Pedro Nava escreveu seis livros de Memórias: Baú de ossos: memórias; Balão cativo:
memórias 2; Chão de ferro: memórias 3; Beira-mar: memórias 4; Galo das trevas: memórias 5 e
O círio perfeito: memórias 6. A leitura das Memórias desvela diversos aspectos da sociedade
1
Destacamos textos apresentados em eventos e publicados: VALE, V. A. Contribuição da obra de Pedro Nava para
a história da Medicina. Verbo de Minas Revista de Cultura Juiz de Fora, publicação do Programa de Pós-
Graduação do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora, 2001, v. 3, n. 5, p. 59-69. ______. O corpo nos escritos e
nas memórias de Pedro Nava. In: I CONGRESSO DE SAÚDE, GÊNERO E CORPO DO CMS WALDYR
FRANCO. Anais... Rio de Janeiro: CMS Waldyr Franco Programação e Trabalhos, 2003. p. 57-67. ______. A
obra de Pedro Nava como contribuição ao estudo da história da Medicina brasileira (1890-1940). In: XIII
ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA ANPUH-MG. Belo Horizonte. Anais... Juiz de Fora: Clio Edições
Eletrônicas, 2002. p. 106-125. ______. Medicina portuguesa nos escritos de Pedro Nava. In: COLÓQUIO DO
POLO DE PESQUISA SOBRE RELAÇÕES LUSO-BRASILEIRAS. Anais... Rio de Janeiro: Real Gabinete
Porttuguês de Leitura, 2004. Disponível em: <www.realgabinete.com.br/coloquio/autor>. ______. Baú de ossos:
memórias e Balão cativo: memórias 2 documentos para a história social da Medicina em Juiz de Fora (1889-
1913). In: I SEMINÁRIO DE HISTÓRIA ECONÔMICA E SOCIAL DA ZONADA MATA MINEIRA. Juiz de
Fora. 2005. Anais... Juiz de Fora, 2005. 1 CD-ROM. ______. Memória e Memórias de Pedro Nava – contribuição
para a história da Medicina. In: II CONGRESSO INTERNACIONAL SOBRE PESQUISA (AUTO)
BIOGRÁFICA, 2, 2006, Salvador. Anais... Salvador: CIPA, 2006. ______. Um caminho para se estudar as
memórias de Pedro Nava como documentos para a história da Medicina. In: III SIMPÓSIO INTERNACIONAL
CULTURA E IDENTIDADES, 2007, Goiânia. Anais... Goiânia, 2007. 1 CD-ROM. ______. Escritos de Pedro
Nava – contribuição para a história da Medicina (1890-1940). In: VI CONGRESSO DE LETRAS – I SEMINÁRIO
DE EDUCAÇÃO E LINGUAGEM; I SIMPÓSIO BRASIL – ARGENTINA. CARATINGA (MG) Centro
Universitário de Caratinga, 2007, Caratinga. Anais... Caratinga: VI Congresso de Letras, 2007. ______. A doença
nos escritos de Pedro Nava. In: NASCIMENTO, Dilene Raimundo; MARQUES, Rita de Cássia; CARVALHO,
Diana Maul (Org.). Uma história brasileira das doenças. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006. p. 92-115.
7
brasileira no período de 1890 a 1940. Importa ressaltar, recortamos os textos que, especificamente,
remetem à Medicina. Pedro Nava, em 1972, publicou o primeiro livro de suas Memórias:
EU SOU um pobre homem do Caminho Novo das Minas dos Matos Gerais. Se
não exatamente da picada de Garcia Rodrigues, ao menos da variante aberta pelo
velho Halfeld e que, na sua travessia pelo arraial do Paraibuna, tomou o nome de
Rua Principal e ficou sendo depois a Rua Direita da Cidade do Juiz de Fora.
Nasci nessa rua, no número 179, em frente à Mecânica, no sobrado onde reinava
minha avó materna. E nas duas direções apontadas por essa que é hoje a Avenida
Rio Branco hesitou a minha vida. A direção de Milheiros e Mariano Procópio. A
da Rua Espírito Santo e do Alto dos Passos
2
.
Assim se inicia o primeiro livro Baú de ossos: memórias, de autoria do médico Pedro Nava
(1903-1983). Trata-se de uma paráfrase o texto de Eça de Queiroz (1845-1900) “Eu sou um
pobre homem da Póvoa do Varzim...”, trecho de uma carta dirigida ao jornalista João Chagas
(1863-1925)
3
. A influência do Realismo de Eça de Queiroz é perceptível na escrita naveana,
notadamente nos textos relacionados com os estudos de Anatomia, na descrição minuciosa,
destaque a aspectos considerados socialmente repugnantes, etc. O livro de Nava foi sucesso de
público e de crítica. Surgiram, então, informações sobre o autor, junto ao grande público. Sabe-se
que era reconhecido e referendado médico ortopedista
no Rio de Janeiro
4
e que fora ativo
participante do Movimento Modernista, em sua vertente mineira.
2
NAVA, Pedro. Baú de ossos. Memórias. Rio de Janeiro: Sabiá, 1972. p. 13.
3
Carta escrita em Londres. In: GOMES, Teixeira M. Correspondência. Lisboa: Amigos do Livro, 1960.
4
Destacamos em ordem cronológica: 1933 membro da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro
(SMCRJ); 1936 docente de Clínica Médica da Universidade do Brasil; 1941 Diretor do Hospital Carlos Chagas
e membro do Conselho Editorial da Revista Médica Municipal; 1945 – titular do Instituto Brasileiro de História da
Medicina (IBHM); 1951 designado pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC) para estudar, na Europa, a
organização de clínicas reumatológicas; 1952 – Professor da Escola de Aperfeiçoamento da Policlínica Geral; 1954
– membro fundador da Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação (ABBR); 1956 organizador do Serviço
de Reumatologia Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro (HSRJ); 1959 catedrático de
Reumatologia da Escola Médica da Pontifícia Universidade Católica (PUC); 1961 membro da Academia
Nacional de Medicina (ANM), etc.
8
No período de 1972 a 1983, foram lançados os 6 livros das Memórias naveanas
5
e,
dependendo das edições, os textos somam aproximadamente 2.500 ginas. Numerosos prêmios e
homenagens mostram o reconhecimento do meio intelectual à obra naveana.
6
A escrita das
Memórias ocorreu após a aposentadoria do médico, junto ao Serviço Público, em 1969; o autor,
entretanto, permaneceu atendendo em seu consultório particular até 1983. O abandono da
atividade médica deveu-se ao início de surdez, conforme nos informou Anna Nava, irmã do
escritor
7
. O autor tinha 69 anos quando do lançamento do primeiro livro em 1972 Baú de ossos:
memórias.
Na introdução de nosso texto, faremos como que uma Memória da escrita do mesmo.
Temos trabalhado na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) com a disciplina História da
Arte, de 1979 até a presente data. Graduamo-nos em História e cursamos o Mestrado em História
e Crítica da Arte, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 1995. Nossa dissertação,
junto ao programa mencionado, teve o título de Pintura brasileira do século XIX – Museu
Mariano Procópio (1870-1930). Nesse texto, buscamos identificar a coleção de pinturas do
referido museu (143 telas), como uma amostragem da pintura brasileira do período.
Correlacionamos esse universo com as transformações e propostas da sociedade brasileira do
período. Apresentamos e publicamos textos sobre essas pinturas.
5
Obras de Pedro Nava em ordem de publicação: NAVA, Pedro. Território de Epidauro. Rio de Janeiro: C. Mendes
Júnior, 1947. ______. Capítulos da história da Medicina no Brasil. Rio de Janeiro: Brasil Médico-Cirúrgico, 1949.
______. Baú de ossos: memórias. Rio de Janeiro: Sabiá, 1972. ______. Balão cativo: memórias 2. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1973. ______. Chão de ferro. Memórias 3. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976. ______.
Beira-mar: memórias 4. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. ______. Galo das trevas: memórias 5. 2. ed.
Rio de Janeiro:
José Olympio, 1981. ______. O círio perfeito: memórias 6. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
______. Cadernos 1 e 2. São Paulo: AtelCultural, 1998. ______. Viagem ao Egito, Jordânia e Israel. São Paulo:
Ateliê Editorial, 1998. ______. O bicho urucutum. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999. ______. O anfiteatro. São
Paulo: Ateliê Editorial, 2002 (compilação de textos de Nava que tratam da vida estudantil e profissional feita pelo
herdeiro do memorialista, Paulo Penido). ______. A medicina de Os Lusíadas. Cotia, SP: Ateliê Cultural, 2004.
6
1973 Personalidade Global e Prêmio Luísa Cláudio de Sousa; 1974 Prêmio Jabuti mara Brasileira do
Livro e Prêmio Fernando Chinaglia Prêmio de Literatura da Associação Paulista dos Críticos de Arte; 1975
Prêmio Fundação Cultural do Distrito Federal Brasília e Personalidade Global Literária (TV Globo e Jornal O
Globo; 1983 Diploma de Homenagem Especial, conferido pela União Brasileira de Escritores em 1985. Esse
prêmio passou a ser denominado “Pedro Nava” e, em 1984, ele recebeu o Prêmio José Olympio, conferido pelo
Sindicato Nacional do Editores de Livros.
7
Informações que nos foram fornecidas pela Profª. Anna Nava, em encontro no dia 20 de março de 2001.
9
Vale destacar que, entre os anos de 1995 e 2000, demos continuidade ao nosso trabalho e
estudos em História da Arte, buscando a correlação da criação artística com o contexto social
8
.
Temos o gosto e o hábito da leitura. Os livros que tratam de Biografias e Memórias sempre
chamaram nossa atenção e apreço. Temos lido e relido as Memórias de Pedro Nava. Na
elaboração da Dissertação de Mestrado, aproximamos mais dos textos de Nava. O contexto
histórico de 1870-1930, as observações sobre Juiz de Fora e a mordacidade das críticas
modernistas sobre este universo estético levaram-nos à aproximação dos dois objetos de pesquisa.
Identificamos o acervo de pintura brasileira do Museu Mariano Procópio, em Juiz de Fora, que se
compõe de 143 telas, como um texto visual das propostas de segmentos da elite brasileira do
período: a construção de um imaginário nacional racional, branco e urbano, como continuação da
Europa. Vimos, na organização da Academia Imperial de Belas Artes Escola Nacional de Belas
Artes, parte do universo institucional organizado no Império (Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, Faculdades de Direito de Recife e São Paulo, Faculdades de Medicina da Bahia e Rio
de Janeiro, Museus Nacional, Paulista e Goeldi), que se ajustou à República e sobreviveu até a
década de 1930. Nava reconstituiu esse universo, e seu último livro O círio perfeito. Memórias 6 é
testemunho das questões presentes na década de 1930, início da Era Vargas com a proposta de
construir uma nova nação: racional, mestiça e com características próprias de uma nova
nacionalidade.
8
Destacamos: VALE, V. A. Artes plásticas brasileiras (1870-1930) Museu Mariano Procópio. Juiz de Fora:
FAPEMIG/UFJF, 2001. 1 CD-ROM. ______. Pintura brasileira do século XIX Museu Mariano Procópio. Rio de
Janeiro: Escola de Belas Artes/Programa de Mestrado em História e Crítica da Arte da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, 1995. 310 f. Dissertação (Mestrado em História e Crítica da Arte) – Centro de Letras e Artes,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1995. Publicado eletronicamente como livro. ______.
Pintura brasileira do século XIX – Museu Mariano Procópio. Juiz de Fora: Clio Edições Eletrônicas, 2002.
Disponível em: <www.clioedel.ufjf.br>. Em publicações na área de Ciências Humanas, destacamos: VALE, V. A.
Academia Imperial de Belas Artes Escola Nacional de Belas Artes. Expressão Revista do Centro de Artes e
Letras , Santa Maria, RS, p. 7-14, jun. 1998. ______. Ismael Neri a partir de Pedro Nava. Revista Cultura Vozes,
Petrópolis, p. 92-105, abr. 1995. ______. Arquitetura latino-americana da industrialização Juiz de Fora (1880-
1930). LOCUS Revista de História, Juiz de Fora, p. 81-89, jan. 1995. ______. Arquitetura e colonização latino-
americana. Revista Vozes Cultura, Petrópolis, p. 33-41, maio 1994. ______. Pintores estrangeiros no Brasil
Museu Mariano Procópio. Revista Vozes Cultura, Petrópolis, p. 55-62, abr. 1993. ______. Notas sobre a pintura
brasileira do século XIX Museu Mariano Procópio. Revista Exatas, Juiz de Fora, p. 55-63, 1992. Trabalhos
publicados em Anais de eventos: VALE, V. A. Artes plásticas e filosofia na formação do imaginário liberal. In: IX
SEMANA DE FILOSOFIA “TENDÊNCIAS FILOSÓFICAS PARA O SÉCULO XXI”. Juiz de Fora. Anais... Juiz
de Fora: EDUFJF, 1999, p. 69-87. ______. A pintura brasileira do século XIX Museu Mariano Procópio. In:
ACTAS DEL IX CONGRESO INTERNACIONAL DE AHILA, 1996. Liverpool. Anais Liverpool, 17-22
septiembre de 1996. p. 178-200. ______. Notas sobre a função das artes visuais no Brasil Colônia, Império e
República Velha. In: IX ENCONTRO ANPUH/MG, Juiz de Fora. Anais... Juiz de Fora: ANPUH/UFJF, 1994, p.
65-75. ______. A preocupação social na obra de René Porto Carrero, Livio Abramo e Julio Alvarez. In: VI
SEMANA HISPANO-AMERICANA INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA. Juiz de Fora. Anais... Juiz de
Fora: EDUFJF/FAPEMIG, 1993. p. 315-318.
10
O aspecto que mais nos chamou a atenção nos livros de Nava foi a Medicina. Em 2000,
começamos a sistematizar nossas leituras e estudos sobre as mesmas. Interessando-nos em
contextualizar historicamente os textos naveanos, nas referências feitas à Medicina, ingressamos
no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),
linha de pesquisa Ciência e Cultura na História com o projeto de tese de Doutorado intitulado
Pedro Nava cronista de uma época: Medicina e sociedade brasileira (1890-1940) e iniciamos
atividades docentes sobre o assunto. Continuamos a ministrar as aulas de História da Arte na
graduação (História, Arquitetura e Música) e, desde a criação do Curso de Especialização em
Ciências Humanas e Saúde (2007), na Universidade Federal de Juiz de Fora, temos trabalhado
com a disciplina intitulada Temas de História da Medicina, buscando enriquecer as pesquisas
sobre Pedro Nava. Correlacionando as Memórias e as relações Medicina e sociedade, temos
apresentado e publicado resultados parciais de nossas pesquisas
9
.
9
Destacamos textos apresentados em eventos e publicados: VALE, V. A. Contribuição da obra de Pedro Nava para
a história da Medicina. Verbo de Minas Revista de Cultura publicação do Programa de Pós-Graduação do
Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2001, v. 3, n. 5, p. 59-69. ______. O corpo nos escritos e
nas memórias de Pedro Nava. In: I CONGRESSO DE SAÚDE, GÊNERO E CORPO DO CMS WALDYR
FRANCO, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: CMS Waldyr Franco Programação e Trabalhos, 2003. p. 57-
67. ______. A obra de Pedro Nava como contribuição ao estudo da história da Medicina brasileira (1890-1940). In:
XIII ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA ANPUH MG, Belo Horizonte. Anais.... Juiz de Fora: Clio
Edições Eletrônicas, 2002. p. 106-125. ______. Medicina portuguesa nos escritos de Pedro Nava. In:
COLÓQUIO DO PÓLO DE PESQUISA SOBRE RELAÇÕES LUSO-BRASILEIRAS, Rio de Janeiro. Anais... Rio
de Janeiro: Real Gabinete Português de Leitura, 2004. Disponível em: <www.realgabinete.com.br/coloquio/autor>.
______. Baú de ossos: memórias e Balão cativo: memórias 2 documentos para a história social da Medicina em
Juiz de Fora (1889-1913). In: I SEMINÁRIO DE HISTÓRIA ECONÔMICA E SOCIAL DA ZONADA MATA
MINEIRA, Juiz de Fora. Anais... Juiz de Fora, 2005. 1CD-ROM. ______. Memória e Memórias de Pedro Nava
contribuição para a história da Medicina. In: II CONGRESSO INTERNACIONAL SOBRE PESQUISA (AUTO)
BIOGRÁFICA, Salvador, 2. Anais... Salvador: CIPA, 2006. ______. Um caminho para se estudar as memórias de
Pedro Nava como documentos para a história da Medicina. In: III SIMPÓSIO INTERNACIONAL CULTURA E
IDENTIDADES, Goiânia, 2007. Anais... Goiânia, 2007. 1 CD-ROM. ______. Escritos de Pedro Nava
contribuição para a história da Medicina (1890-1940). In: VI CONGRESSO DE LETRAS I SEMINÁRIO DE
EDUCAÇÃO E LINGUAGEM; I SIMPÓSIO BRASIL ARGENTINA. CARATINGA (MG) Centro
Universitário de Caratinga, 2007. Anais... Caratinga: VI Congresso de Letras, 2007. ______. A doença nos escritos
de Pedro Nava. In: NASCIMENTO, Dilene Raimundo; MARQUES, Rita de Cássia; CARVALHO, Diana Maul
(orgs.). Uma história brasileira das doenças. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006. p. 92-115.
11
Nava, em entrevista à Revista Veja (Páginas Amarelas), de 14 de março de 1974,
observou:
Repórter A medicina lhe deu grandes prazeres? Teria, por si só, preenchido
sua vida?
Nava Teria preenchido e preencheu muito bem. Por outro lado, minha obra
literária não deixa de ser obra de médico. Quem olhar com atenção, perceberá o
médico em cada página, a experiência dele na apreciação do ser humano.
Podemos complementar a transcrição afirmando que, no texto naveano, encontra-se a
escrita de um médico anatomista e, como tal, Nava dissecou a sociedade brasileira revirando suas
entranhas. Escrita de características enciclopédicas e da qual separamos um verbete
“Medicina”, considerando-se os diversos aspectos que envolvem a atividade médica. A pesquisa
intitulada Pedro Nava cronista de uma época: Medicina e sociedade brasileira (1890-1940)
busca identificar as diversas questões relacionadas com a atividade profissional do memorialista.
Interessam-nos a formação, o pensamento de Nava sobre a profissão, suas atividades
profissionais, as relações com os pares, o reconhecimento social, bem como aspectos específicos
da Medicina do período que foram vivenciados pelo médico, além das políticas estatais de saúde.
Intentamos identificar os escritos e as memórias naveanos como uma síntese dos diversos
aspectos que estiveram presentes nas questões relacionadas com a Medicina no Brasil, no período
de 1890-1940. A delimitação proposta do período inicial para a pesquisa deve-se ao fato de Nava
ter reconstituído a trajetória de seu pai, também médico, JoNava (1876-1911), em Baú de
ossos: memórias, em que se encontram dados sobre a formação profissional paterna na década de
1890 e formatura em 1901. A obra O círio perfeito: memórias 6, último livro publicado, informa
sobre atividades profissionais do memorialista na década de 1930, motivo pelo qual delimitamos
o final de nossa pesquisa em 1940. A proposta de escrita deste estudo fica assim dividida:
Capítulo II. Norteadores que auxiliam no entendimento da escrita de “um pobre homem
do Caminho Novo”. O objeto de nossa pesquisa exige que se façam observações sobre Literatura
e História, Memória, Medicina e História Social da Cultura. Nessa parte do trabalho,
destacaremos textos que são norteadores de nossa pesquisa e retomados em momentos
12
posteriores ao de nossa escrita. Buscaremos apontar para a correlação destes estudos com
informações biográficas do memorialista.
Capítulo III. Memórias e informações biográficas de Pedro Nava. Buscamos apresentar a
obra de Pedro Nava e os aspectos gerais da mesma. Procuramos traçar um painel da obra,
destacando suas características enciclopédicas. Destacamos a formação e atuação profissional do
médico José Nava (1876-1911), pai do autor. Mencionamos a influência que a Psicanálise tem na
biografia naveana.
Capítulo IV. Formação e profissionalização de Pedro Nava (1903-1984). Nessa parte,
tratamos do ensino e das estratégias de sobrevivência adotadas pelo memorialista. Faculdade de
Medicina em Belo Horizonte (1921-1928). Serão consultados os livros: Baú de ossos: memórias;
Balão cativo: memórias
2; Chão de ferro: memórias
3; Beira-mar: memórias
4 e Galo das trevas:
memórias
5. Serão feitos destaques à formação escolar, às amizades, às leituras e aos contatos
sociais do memorialista.
Na conclusão, esperamos ter demonstrado que os textos naveanos são documentais para
os estudos das relações Medicina e sociedade brasileira, no período de 1890 a 1940.
13
2 NORTEADORES QUE AUXILIAM NO ENTENDIMENTO DA ESCRITA
DE “UM POBRE HOMEM DO CAMINHO NOVO”
A arte que assim serve à verdade, como um meio específico de conhecimento
tanto por sua forma quanto por seu objeto, é precisamente realismo. Chamamos
arte realista a toda arte que, partindo da existência de uma realidade objetiva,
constrói com ela uma nova realidade que nos fornece verdade sobre a realidade
do homem concreto que vive numa determinada sociedade, em certas relações
humanas histórica e socialmente condicionadas e que, no marco delas, trabalha,
luta, sofre, goza ou sonha
10
.
O texto de Vasquez, transcrito como epígrafe, identifica nossa postura na leitura da obra
naveana. Cremos que a obra de arte e a Literatura, com suas especificidades, sempre mostram a
realidade histórica. Apresentaremos, neste capítulo, autores que são marcantes para a condução
desta pesquisa, cuja proposta de trabalho é apresentar os textos de Pedro Nava como documentos
para os estudos relativos às relações Medicina e sociedade brasileira, no período de 1890-1940.
Buscamos historizar a obra memorialística de Nava e, para tanto, alinhamo-nos com diversos
historiadores com esse propósito. Dentre os vários estudos que tratam da Literatura como
documento histórico, destacamos a obra de Sidney Chalhoub Machado de Assis: historiador – e
os textos dos seguintes autores: John Gledson “A História do Brasil em Papéis avulsos, de
Machado de Assis; Jefferson Cano “Machado de Assis: historiador”; Ana Paula Palamarchuk
“Jorge Amado: um escritor de putas e vagabundos?”. Esses historiadores e outros publicaram
suas pesquisas no livro A História contada: capítulos de História Social da Literatura no Brasil
11
.
Na apresentação da obra, os organizadores Sidney Chalhoub e Leonardo Affonso Pereira
destacam:
(...) Em outras palavras, a proposta é historicizar a obra literária – seja ela conto,
crônica, poesia ou romance – inseri-la no movimento da sociedade, investigar as
suas redes de interlocução social, destrinchar não a sua suposta autonomia em
relação à sociedade, mas sim a forma como constrói ou representa a sua relação
com a realidade social algo que faz mesmo ao negar fazê-lo. Em suma, é
10
VAZQUEZ, Adolfo Sanchez. As ideias estéticas de Marx. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. p. 36.
11
CHALHOUB, Sidney; PEREIRA, Leonardo Affonso de M. (Org.). A História contada: capítulos de História
Social da Literatura no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
14
preciso desnudar o rei, tornar a literatura sem reverências, sem reducionismos
estéticos, desacralizá-la, submetê-la ao interrogatório sistemático que é uma
obrigação do nosso ofício. Para os historiadores a literatura é, enfim, testemunho
histórico
12
.
Chalhoub, em Machado de Assis: historiador, trouxe contribuições aos estudos da obra
literária como documento histórico
13
. O autor tem-se dedicado a temas sobre a escravidão e vida
operária no Brasil, no período de 1850 a 1910, nos livros Visões da liberdade: uma história das
últimas décadas da escravidão na Corte Imperial (1996) e Trabalho, lar e botequim: o cotidiano
dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque (2001). Ele se agrupa com estudiosos da
Literatura que a inserem nas propostas de História Social. Nesses textos, são observadas as
influências de historiadores como E. P. Thompson, Eugene Genovese, Robert Slenes, entre
outros.
Chalhoub busca mostrar a história social e política do Brasil como aparece transcrita na
obra machadiana. Acresce aos estudos sobre Machado de Assis os textos de Roberto Schwarz e
John Gledson. Schwarz é autor de Ao vencedor as batatas (1977), Um mestre na periferia do
capitalismo (1990), dentre outros textos. Estuda a obra machadiana, alinhando-se com os textos
marxistas de Luckács, Benjamin, Brecht e Adorno. Continua com os estudos de Antonio Candido
que destacaremos posteriormente. Gledson, historiador inglês, é autor de Machado de Assis:
ficção e história (1986), Impostura e Realismo (1991), Por um novo Machado de Assis (2006) e
organizador de edições sobre estudos machadianos e crônicas do escritor.
Os autores citados têm contribuído com os estudos sobre as relações Literatura e
sociedade. Identificam, na obra machadiana, as contradições e especificidades da sociedade
brasileira que estão explícitas ou implícitas nos textos de Machado de Assis. Consideramos que o
aspecto mais importante desses estudos é a busca da correlação da obra literária com seu
momento histórico. A questão tem sido estudada por teóricos da Literatura, filósofos, sociólogos
e historiadores. Importa ressaltar que não faremos, aqui, um levantamento sobre esses estudos. Os
títulos destacados são identificadores da proposta buscada em nossa pesquisa, ou seja, desvelar,
na obra naveana, as relações Medicina e sociedade brasileira no período de 1890 a 1940.
12
Op. cit., p. 7.
13
CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
15
Alinhamo-nos com as preocupações dos autores e buscamos o reforço às mesmas,
recorrendo aos estudos de Antonio Candido (1918), autor que tem grande visibilidade no meio
acadêmico brasileiro. A obra Literatura e sociedade: estudos de teoria e história é referência, no
Brasil, nos estudos sobre o tema. As observações do autor serão como nossos marcos na busca de
correlacionar as Memórias com a sociedade brasileira. As propostas de Candido para o estudo de
uma obra literária destacam o estudo das influências concretas exercidas pelos fatores
socioculturais. Considera como prioridades as ligações com a estrutura social, os valores e as
ideologias. Enfatiza a posição social do artista, a configuração da obra, bem como sua recepção
14
.
Os aspectos enunciados por Candido são aprofundados por diversos autores, dentre eles
os citados anteriormente. Nosso interesse sobre o assunto insere-se nas novas propostas de
História Social, História da Cultura e História da Literatura. Nesse sentido, entendemos a
Literatura como resultado da relação do homem (social) com o objeto (produzido em sociedade),
originando a obra literária. Criação de uma realidade, não a da natureza, mas a da estética.
Estudar a obra literária como fonte histórica é desvelar os diversos aspectos que a envolvem. Nos
textos naveanos, a especificidade a se destacar é o gênero literário Memórias gênero literário
menor, reabilitado por Nava. Nos próximos parágrafos, apresentaremos outros autores que
contribuem na formulação do instrumental teórico condutor desta pesquisa.
A proposta deste estudo, vista anteriormente, é a identificação dos textos naveanos
como contribuição aos estudos sobre as relações Medicina e sociedade brasileira no período de
1890 a 1940. Na leitura desses textos, buscamos respostas às seguintes perguntas: a) O que estes
textos representam para a sociedade brasileira?; b) Quem foi Pedro Nava, “pobre homem do
Caminho Novo”?; c) O que o memorialista testemunha sobre a Medicina?; d) O que Nava nos
informa? Pelas especificidades do objeto de estudo e devido à necessidade de identificarmos
nossa postura de pesquisa, com a produção de outros historiadores, informamos que inserimos
nosso trabalho no grupo de pesquisas que se convencionou denominar “Ciência e Cultura na
História”, como já citado anteriormente.
Os pilares desta pesquisa são os textos dos estudiosos Nestor Garcia Canclini, Ludwick
Fleck e Pierre Bourdieu, que serão estudados ao final deste capítulo. Destacamos Fleck pelo
pioneirismo ao enfatizar as relações sobre Ciência e sociedade. Canclini é destacado pelos
14
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 5. ed. São Paulo: Nacional,
1976. p. 17-39.
16
estudos que correlacionam as relações sociais na produção intelectual latino-americana. Os textos
de Boudieu, para este estudo, são fundamentais nas observações que faz sobre a introjeção
individual dos aspectos sociais. Consideramos serem necessárias observações sobre concepções
de História ao fazermos um trabalho na área. A seguir, faremos destaques às concepções de
História que se foram fazendo no Ocidente, nos dois últimos séculos. Entendemos que o assunto
se faz necessário para a compreensão de nossas observações.
Pedro Nava fez seus estudos secundários no Colégio D. Pedro II, no Rio de Janeiro. Foi
aluno de João Ribeiro, autor que formou gerações de brasileiros com suas publicações. Nas
observações de Nava sobre João Ribeiro, podemos observar a concepção de História dominante
no período e o que se enfatizava em seu ensino
15
. Na época mencionada por Nava,
predominavam, nos estudos de História, concepções herdadas do século XIX século de
revoluções burguesas, organização do mundo capitalista e da escrita das histórias nacionais. Os
franceses organizaram a École des Chartres, em 1821; os ingleses, o Departamento de Registros
Público, em 1838, e, em 1826, os alemães iniciaram a publicação da Monumental História
Alemã, “enquanto a doutrina de que a história devia basear-se na escrupulosa avaliação dos
documentos originais era lançada pelo prolífico Leopold von Ranke (1795-1886)"
16
. O trabalho
do historiador consistia em consultar documentos, identificar os "fatos históricos", coordená-los e
expô-los coerentemente
17
.
A proposta de uma História com bases científicas firmou-se no mundo contemporâneo
seguindo os postulados iluministas de fins do século XVIII. A influência do Positivismo de
Augusto Comte (1798-1857) se fez presente nos diversos aspectos que envolvem a escrita da
História. O ensino e o aprendizado da disciplina, com valoração à memorização de datas, nomes,
etc., foram responsáveis pela formação de gerações as quais acreditaram que ao ensino de
História se fazia necessária a “boa memória” para se “guardar” nomes, fatos e datas. A concepção
de História adotada por João Ribeiro (1860-1934) foi a dominante no período, perpassada por
postulados positivistas, os quais defendiam a necessidade de se utilizar e analisar o maior número
possível de documentos analisados por leitores neutros. Ribeiro foi um dos intelectuais brasileiros
mais representativos e respeitados do período. Humanista, deixou obras em Filologia, História,
15
NAVA, Pedro. Chão de ferro: memórias 3. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976. p. 240-241.
16
HOBSBAWM, Eric J. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras,
1995. p. 309.
17
CARDOSO, Ciro F.; BRIGNOLI, Héctor P. Os métodos da História. 8. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2002. p. 21.
17
além de ensaios em diversas áreas. Foi professor concursado do Colégio D. Pedro II, fato que o
referendava socialmente como um intelectual. Foi membro do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, da Academia Brasileira de Letras e jornalista.
Também a descrição física que Nava faz do professor é perpassada pela influência do
Positivismo. O memorialista era apaixonado pela Anatomia disciplina que se foi firmando ao
longo do século XIX e pelo exercício da Medicina, que foi tomando o caráter científico no
período, também sob orientação positivista. Escolhemos uma transcrição identificadora de uma
postura de estudos da História. A nossa escrita, neste texto, contudo, é a identificação de
propostas que fizeram críticas a essa concepção. Nos próximos parágrafos, buscaremos
identificar como, ao longo do século XX, novas propostas e estudos historiográficos foram se
formando.
Shorske (1988), em Viena fin-de-siècle, estudou aspectos da sociedade austríaca no
período em que foi cunhada a expressão Bélle Époque
18
, período que podemos colocar de 1870 a
1914. Bela Época, percepção otimista de setores da burguesia europeia sobre o período.
Expressão dos que acreditaram no progresso contínuo e na condução racional das sociedades.
Crença na vitória dos postulados iluministas. Shorske parte da construção da parte nova de Viena
Ringtrasse, biografias de Freud, Gustav Klint, Gustav Mahler e Arnold Schonberg
correlacionando economia, política e a construção do novo universo simbólico. Historiza a
organização da sociedade capitalista na Áustria e a importância do conhecimento deste “estudo
de caso” para o entendimento das contradições, que se tornaram explícitas com o conflito de
1914-1918.
O Liberalismo na Áustria, como em outras nações europeias, caracterizou-se pela luta
contra a aristocracia e o absolutismo barroco. Os liberais chegaram ao poder em 1848 e
estabeleceram um regime constitucional nos anos 1960. A sustentação liberal, no período, estava
restrita a alemães e judeus alemães de classe média urbana. Na década de 1980, em oposição
aos liberais, camponeses, artesãos e povos eslavos, foram formados partidos de massas para
enfrentar a hegemonia liberal. Foram organizados os partidos de orientação social-cristã,
pangermânica e antissemita.
18
SHORSKE, C. Viena fin-de-siècle: política e cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
18
Shorske, sobre o assunto, assim se expressa:
Nos últimos anos do século XIX, a Áustria-Hungria parecia servir, como
observou um de seus poetas de “pequeno mundo onde o grande faz seus testes”
testes para a desintegração social e política da Europa. O Império Habsburgo
estava se desfazendo em suas costuras internas, como a Europa se desfazia
internacionalmente: nas linhas verticais da nacionalidade e nas linhas horizontais
da classe e ideologia. Até os anos de 1890, as forças políticas em confronto
tinham sido as classes liberais versus conservadoras. Mas agora estratos sociais
inferiores geravam forças para contestar o poder das elites mais antigas. Dos
operários surgiu o socialismo, da classe média baixa surgiram o nacionalismo e
o socialismo cristão virulentos.
(...) as forças do preconceito racial e do ódio nacional, que se julgavam
dissolvidas pela luz da razão e domínio da lei, ressurgiram com um ímpeto
avassalador, enquanto “o século do progresso” soltava seu último suspiro
19
.
O livro de Shorske correlaciona a criação cultural com as questões socioeconômicas.
Trata da Belle Époque em Viena. Esses dois aspectos levam-nos a considerá-lo como inspirador
desta pesquisa, pela escolha de nossa temática e período estudado. Também, no período das
Memórias, surgiram crises do Liberalismo e houve a ascensão de novos grupos sociais no Brasil.
Os cenários mais importantes da obra de Nava são Juiz de Fora, Belo Horizonte e Rio de Janeiro.
Na história desses centros urbanos, são observados aspectos sócio-históricos da Belle Époque
brasileira. A história de Juiz de Fora, codinominada “Manchester Mineira” no período de 1880 a
1930, é exemplar das questões que envolveram o capitalismo monopolista na América Latina
20
.
Em Juiz de Fora, capitais excedentes do café foram investidos na instalação de indústrias de bens
de consumo, no processo denominado “industrialização tardia da América Latina” por João
Manuel Cardoso de Mello
21
. Pedro Nava, em Baú de ossos: memórias, Balão cativo: memórias 2
e Galo das trevas: memórias 5, registrou o cotidiano da cidade em seus diversos aspectos. Nos
dois primeiros volumes, encontramos a Juiz de Fora das últimas décadas do século
XIX
e a
primeira do século
XX
e, em Galo das trevas, temos o testemunho do jovem médico Pedro Nava
e suas experiências na cidade, no ano de 1928.
19
SHORSKE, C. Viena fin-de-siècle: política e cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 182-183.
20
ANDRADE, Sílvia Maria Belfot Vilela. Classe operária em Juiz de Fora: uma história de lutas (1912-1914). Juiz
de Fora: EDUFJF, 1984.
21
MELLO, João Manuel Cardoso de. O capitalismo tardio. São Paulo: Brasiliense, 1982.
19
Belo Horizonte está presente em inúmeras páginas dos textos de Pedro Nava. Em 1913,
com dez anos, o memorialista acompanha a família em mudança para a capital mineira. Páginas
de Balão cativo são mostras do final da Belle Époque da capital mineira cidade que é um ícone
do período, onde se buscou pôr abaixo os resquícios coloniais que adentraram pelo Império. A
presença das propostas do urbanismo da segunda metade do culo
XIX,
que teve como focos
irradiadores Paris e Viena, fez-se presente nos projetos de Aarão Reis, na construção da cidade.
As construções e o cotidiano de Belo Horizonte são os cenários das Memórias de Nava evocados
nesse volume. Nava deixou Belo Horizonte em 1915, rumando para o Rio de Janeiro a fim de
estudar no Colégio D. Pedro II. Beira-mar: memórias 4 trata da capital mineira na década de
1920 e mostra as contradições da Belle Époque nas questões nacionais.
Chão de ferro: memórias 3 tem como palco o Rio de Janeiro, local em que Nava conviveu
com os parentes paternos ligados à intelectualidade local e estudou no Colégio D. Pedro II. Os
textos naveanos traçam um painel da então capital federal de meados e final da década de 1910.
A historiografia europeia põe o final do período em 1914, eclosão da Primeira Guerra Mundial.
No Brasil, a visibilidade da crise do Liberalismo se fez com mais nitidez na década seguinte.
Nava trata da questão em Beira-mar: memórias 4. Na reconstituição do Modernismo em sua
vertente mineira e no ensino da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte, estão setas que
apontam para a necessidade da construção de uma nova sociedade. As contradições visíveis, após
1914, eram prenunciadas desde meados do século XIX.
O Romantismo e o Realismo, movimentos culturais e artísticos, nasceram das questões
mencionadas e tiveram consciência disso. Nas palavras de Ernest Fischer: “O romantismo foi um
movimento de protesto apaixonado e contraditório contra o mundo das “ilusões perdidas”, contra
a prosa inóspita dos negócios e dos lucros”
22
. Segundo o autor, desde os Discursos de Rousseau
até a publicação do Manifesto Comunista (1848), o Romantismo foi o pensamento dominante nas
artes e literatura europeias. Os nacionalismos, aspecto marcante do Romantismo, exercerão papel
fundamental na crise do Liberalismo. Colocamos como Realismo o aprofundamento em questões
levantadas por alguns românticos, tais como questões sociais e do comportamento humano,
que foram aprofundadas após a segunda metade do século XIX. No próximo parágrafo,
desenvolveremos observações sobre o assunto.
22
FISCHER, Ernest. A necessidade da arte. 9. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
20
As contradições do Capitalismo, forjado nas propostas do Liberalismo, ficaram
explicitadas nas Revoluções de 1848. Delineou-se, no momento, o Socialismo como ideologia do
proletariado urbano. Ocorreu, na França, não uma luta política, mas uma luta de classes. As
propostas nacionalistas românticas da unificação da Itália (1861) e da Alemanha (1871) se
concretizaram. No período que se convencionou chamar Realismo, três grandes linhas
materialistas se impuseram: Positivismo, Materialismo Histórico e Dialético e Materialismo
Científico e Evolucionista. Propostas, visões de mundo e realizações que se fizeram presentes nas
décadas finais do século
XIX
e adentraram pelo século XX. A seguir, destacaremos alguns
aspectos sobre o Materialismo Histórico e Dialético e questões que essa proposta trouxe para os
estudos de História.
Karl Marx (1818-1883), seguindo Hegel, fez da História objeto de suas reflexões.
Enquanto Hegel viu a Revolução Francesa com entusiasmo, a expressão máxima da
racionalidade, Marx se choca com a miséria decorrente da industrialização e do Liberalismo.
Observa que a ideologia burguesa justifica a ordem econômica criada por ela e para ela e que
toda filosofia é um instrumento ideológico do estado
23
.
Marx afirmou que a História é o resultado das ações do homem concreto. Relações
humanas (sociais) tecem a História e são materiais (relações de produção). Nascem da maneira
concreta do “produzir”, denominam-se forças produtivas. A estrutura social é formada pelas
forças produtivas e relações de produção. As demais relações são superestruturais e determinadas
pelas estruturas. A vida, nas sociedades capitalistas, é plena de contradições. A principal e mais
evidente é a contradição entre trabalho e capital, isto é, entre burguesia e o proletariado
24
. A
superação dessa contradição seria a revolução proletária: “As circunstâncias fazem o homem na
mesma medida em que estes fazem as circunstâncias”
25
. Ainda afirma que o pensamento não é
autônomo; a teoria nasce na observação de uma “práxis”. Resumidamente, estes são os eixos
temáticos do pensamento marxista que estiveram presentes no século
XX
como que em fluxos e
refluxos.
Em fins do século
XIX,
as influências do pensamento de Karl Marx se fizeram sentir,
notadamente após sua morte. Após 1890, o marxismo era estudado em algumas universidades
23
LARA, Tiago Adão. Caminhos da razão no Ocidente: a filosofia do Renascimento aos nossos dias. 2. ed.
Petrópolis: Vozes, 1986. p. 86.
24
KONDER, Leandro. Marx: vida e obra. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
25
Ibid. p. 66.
21
europeias. Houve, no período, a consolidação do marxismo como teoria social debatida no
movimento socialista e o início de sua influência nas diversas áreas das Ciências Humanas
26
.
Segundo Marx:
Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a
fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam
diretamente, ligadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações
mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos. E justamente quando
parecem empenhados em revolucionar-se a si e às coisas, em criar algo que
jamais existiu, precisamente nesses períodos de crise revolucionária, os homens
conjuram ansiosamente em seu auxílio os espíritos do passado, tomando-lhes
emprestado os nomes, os gritos de guerra e as roupagens, a fim de apresentar a
nova cena da história do mundo nesse disfarce tradicional e nessa linguagem
emprestada. Assim, Lutero adotou a máscara do apóstolo Paulo, a Revolução de
1789/1814 vestiu-se alternadamente como a República Romana e como o
Império Romano, e a Revolução de 1848 não soube fazer nada melhor do que
parodiar ora 1789, ora a tradição revolucionária de 1793/1795. De maneira
idêntica, o principiante que aprende um novo idioma traduz sempre as palavras
deste idioma para sua língua natal; mas, quando puder manejá-lo sem apelar
para o passado e esquecer sua própria língua no emprego da nova, terá
assimilado o espírito desta última e poderá
produzir livremente nela
27
.
A transcrição apresentada é como uma síntese do pensamento de Marx e, talvez, por isso
seja um dos textos mais conhecidos do autor. Recorremos ao texto por reconhecermos a
necessidade de contextualizar o objeto de estudo deste trabalho e também por acreditarmos que
nosso olhar e nossa escrita são comprometidos com nossa trajetória como seres sociais. A
proposta de realizar o estudo seguindo os postulados da linha de pesquisa Ciência e Cultura na
História está inserida em toda uma movimentação que tem sido presente na historiografia
contemporânea. Nos próximos parágrafos, faremos considerações sobre a questão.
História Social? História da Cultura? História Social da Cultura? Os cadernos de
resumos dos Congressos da Associação Nacional dos Professores Universitários de História
(ANPUH) são amostragens da quantidade de pesquisas em andamento e de diversidades
temáticas. Parece-nos que a história brasileira está sendo vasculhada pela quantidade de estudos
26
CASANOVA, Julián. La historia social y los historiadores. Barcelona: Editorial Crítica, 1990. p. 20.
27
MARX, Karl. O 18 de brumário de Louis Bonaparte. São Paulo: Centauro, 2003.
22
que priorizam questões locais e temáticas diversas. São dezenas de Simpósios Temáticos. Os
números identificam as subdivisões do assunto reconhecidas pela instituição organizadora dos
eventos.
Inúmeros Simpósios Temáticos mostram a intensa movimentação que está acontecendo na
área de História. Encontramos, no meio acadêmico, observações sobre esses aspectos. Críticas
afirmam que a quantidade de trabalhos não tem sido acompanhada da necessária qualidade.
Também se fala da existência de um paroquialismo na escolha temática, da mera descrição das
fontes, da ausência de análises, do ecletismo metodológico, etc. Olhamos, com otimismo, a
volumosa produção na área, espectadores e atores que somos. Formamo-nos em História e
iniciamos nossas atividades como docente na década de 1970. Em razão de nossa trajetória,
podemos afirmar que houve uma revolução na área. Currículos dos cursos de Graduação foram
alterados, e a pesquisa foi incorporada ao ensino. A expansão da Pós-Graduação deslocou o
monopólio da produção historiográfica do eixo Rio-São Paulo. Dissertações e Teses de
doutorados têm renovado e ampliado a História no Brasil. Cremos que os ganhos para a área
foram maiores do que a existência de alguns trabalhos que podem ser questionados pela
qualidade.
A produção sistemática dos estudos da História do Brasil inicia-se com a criação do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) em 1838, parte do aparato institucional que se
estava organizando do estado nacional
28
. A ação e influência da produção dos historiadores
ligados ao IHGB foram predominantes até os anos de 1930. A organização desse Instituto é
contemporânea das inúmeras instituições que se estavam organizando em diversos países com o
avanço do capitalismo. Destacam-se, no Brasil, a Academia Imperial de Belas Artes Escola
Nacional de Belas Artes, as Escolas de Direito de Recife e São Paulo, as Escolas de Medicina do
Rio e Bahia e o Museu Nacional. Essas instituições discutiram modelos e propostas para a
construção de um estado nacional brasileiro. Discussões perpassadas por propostas racistas. Essas
instituições foram criadas ou reorganizadas como parte do aparato urbano que se estava
implantando e são contemporâneas à preocupação da intelectualidade com o reconhecimento de
uma identidade nacional.
28
GUIMARÃES, Manoel L. S. Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o
projeto de uma história nacional. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 1, p. 5-27, 1988
.
23
Na década de 1890, a intelectualidade brasileira dividiu-se na adesão ao Positivismo de
Comte, ao Darwinismo Social e ao Evolucionismo de Spencer. A abordagem racista marcou o
pensamento dos precursores das Ciências Sociais no Brasil, como os escritos de Sílvio Romero e
Nina Rodrigues. Esse ideário é presente na formação de José Nava, pai de Pedro Nava, trajetória
reconstituída em Baú de ossos. Quando Adolfo Varnhagem (1819-1878), em carta a D. Pedro II,
explicou suas preocupações ao escrever a História do Brasil, estava identificando a proposta e a
função do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado em 1838. O IHGB serviu de
modelo aos similares instalados no país. Guimarães, citando Varnhagem, afirma:
Em geral busquei inspirações de patriotismo sem ser no ódio a portugueses, ou à
estrangeira Europa, que nos beneficia com ilustração; tratei de pôr um dique a
tanta declamação de servilismo à democracia; e procurei ir disciplinando
produtivamente certas ideias soltas de nacionalidade
29
.
Até 1890, a produção do IHGB era laudatória. Preocupou-se com biografias das elites e
com a descrição das riquezas do país. Na década de 1990, começaram a aparecer discussões sobre
o negro e o índio, vistos como “problemas”. Podemos identificar as ideias dominantes nos
estudos da instituição como: a herança do pensamento iluminista de civilização e progresso; o
Brasil posto como um desdobramento da Europa nos trópicos; a nação brasileira tratada como
branca, ficando excluídos negros e índios por não serem civilizados. A solução do grupo ligado
ao Evolucionismo Positivista era a instrução escolar; a vertente religiosa propunha a redenção
civilizatória-catequética; os românticos queriam o indígena como símbolo nacional e os
ideólogos do branqueamento, como Sílvio Romero, defendiam a mestiçagem. João Ribeiro,
mencionado anteriormente, foi expoente da instituição. Objetivou-se, no IHGB, no Rio, em
Recife e em São Paulo, a montagem da identificação nacional e a elaboração de uma tradição da
elite brasileira
30
.
29
Op. cit., p. 7.
30
SHWARCZ, Líllian Moritz. O espetáculo das raças: cientistas e a questão racial no Brasil 1870-1930. São
Paulo: Companhia das Letras, 1993. ARRUDA, José Jobson; TENGARRINHA, José Manuel. Historiografia luso-
brasileira contemporânea. Bauru, SP: EDUSC, 1999. p. 39.
24
Queremos observar que, nas últimas décadas do século
XIX
e nas iniciais do
XX,
apareceram estudos que não são pertencentes à linha laudatória e descritiva predominante no
IHGB. Destacam-se com propostas diferentes: Euclides da Cunha Os sertões; Alcântara
Machado Vida e morte do bandeirante e Paulo Prado com Retrato do Brasil ensaio sobre a
tristeza brasileira. Devem-se destacar os estudos de Capistrano de Abreu (1853-1927) que, em
1876, publicou O caráter e as origens do povo brasileiro e, em 1899, Os caminhos e o
povoamento do Brasil. Rompe com os paradigmas erigidos por Varnhagem em sua História
Geral do Brasil. Abreu, citado por Arruda e Tengarrinha, traça um quadro original da história
brasileira. Partiu de documentos inéditos. Identificou o Brasil pela vida cotidiana de comunidades
interioranas, nos caminhos, nas fronteiras, e ainda foi precursor da moderna historiografia
brasileira dos anos 30
31
.
Vale lembrar que 1922 é um marco na História do Brasil. Nesse ano, foi fundado o
Partido Comunista Brasileiro e o Centro de Estudos D. Vital. Também houve a Semana de Arte
Moderna, a Rebelião dos Tenentes e as Comemorações do Centenário da Independência. Esses
episódios identificam rachaduras na organização sócio-política brasileira que, advinda do
Império, adentrara pela República. A intelectualidade brasileira, na década de 1920, discutiu
novas propostas para a construção de um novo Brasil e de uma nova nacionalidade brasileira
32
.
Ainda nessa década, estiveram visíveis questões que identificaram outras crises do capitalismo e
a gestação de formas autoritárias de governo. A Revolução de Outubro de 1917, na Rússia, a
organização dos partidos nacionais-socialistas, na Alemanha e Itália, e a Crise da Bolsa de Nova
Iorque, em 1929, foram sinais no universo internacional de questões não resolvidas após o
conflito de 1914-1918. É no "entre-guerras" que historiadores trazem novas questões para estudos
de História. Período em que as observações feitas por Shorske em sua obra Viena de fin-de-siècle,
transcritas anteriormente, ficaram mais visíveis e se expandiram.
Para os historiadores, novas questões se colocaram no universo que foi denominado por
Hobsbawm “Era dos extremos”. Identificamos, nos estudos sobre a historiografia produzida ao
longo século
XX
, destaques à influência dos Annales denominação dada a historiadores
franceses que publicaram suas propostas e pesquisas na Revue des Annales, por exemplo: Marc
31
ARRUDA, José Jobson; TENGARRINHA, José Manuel. Historiografia luso-brasileira contemporânea. Bauru,
SP: EDUSC, 1999. p. 39.
32
São diversos os estudos sobre a questão, destacamos os textos organizados por LORENZO, Helena Carvalho;
COSTA, Wilma Peres (Org.). A década de 1920 e as origens do Brasil moderno. São Paulo: EDUNESP/FAPESP,
1997.
25
Bloch, Lucien Febvre, Fernand Braudel, Jacques Le Goff, entre outros. Não sendo nosso objetivo
o aprofundamento em historiografia, pontuaremos apenas aspectos que consideramos relevantes
para o aclaramento sobre o trabalho do historiador.
José Carlos Reis, em A Escola dos Annales: a inovação em História, sobre as bases
teóricas dos Annales, afirma:
A iniciativa de uma Nouvelle Histoire não partiu de historiadores mas de
filósofos durkheimianos. A Nouvelle Histoire representou, portanto, uma ruptura
com a influência da filosofia sobre os estudos históricos e a opção pelo apoio
teórico das novas ciências sociais: o homem deixou de ser considerado como
"sujeito", "consciência" e "produtor da história" para tornar-se "objeto",
"inconsciência", "produto da história", embora essa sua condição de "objeto"
nunca se radicalize entre os historiadores dos Annales, sendo apenas uma
orientação geral da pesquisa
33
.
A citação de Reis mostra que nossa proposta de trabalho se tornou possível com o
rompimento do Positivismo do século
XIX
e que adentrou no século
XX.
Como marco das
inovações em Ciências Sociais, deparamo-nos com os escritos de Émile Durkheim, As regras do
método sociológico, em 1895, e de Max Weber, A objetividade do conhecimento nas Ciências e
Políticas Sociais, em 1904. A Europa que emergiu do conflito de 1914-1918 era um continente
que deixara de ser o centro do mundo. Segundo Reis, nesse período, "(...) a instituição histórica,
controlada pela história metódica, ficou sem sustentação. Ela sobrevivia sem sua base efetiva,
falava de um mundo que já não existia mais”. Foi nesse contexto que surgiu a expressão Nouvelle
Histoire que significou a aceitação de alguns historiadores, das críticas dos sociólogos
durkheimianos e da Revue de Synthèse Historique
34
.
Reis assim resumiu as linhas gerais que caracterizaram a Nouvelle Histoire:
Em linhas gerais, esse rompimento com a tradição pode ser descrito assim:
abandonou o pressuposto da história produzida pelo sujeito consciente através
do Estado-Nação, recusando a história política, radicalizando excessivamente o
33
REIS, José Carlos. A Escola dos Annales: a inovação em História. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 37-38.
34
Ibid., p. 61.
26
projeto de Simiand; abandonou o pressuposto do estudo do singular, do
específico, do irrepetível, recusando o "evento"; abandonou o pressuposto do
fim que justifica todo o passado, o presente e o futuro, recusando a forma
narrativa do discurso histórico; abandonou o pressuposto do sujeito consciência
cívica, de si ou de classe, recusando a ação social prescrita por essas
consciências; abandonou o pressuposto da história partidária, parcial, a serviço
de poderes religiosos e políticos, recusando a ideologização do discurso
histórico; abandonou o pressuposto do tempo cronológico, linear e irreversível,
recusando o evolucionismo progressista; abandonou o pressuposto da história
conhecimento do passado, recusando a "história-museu". O rol das recusas é,
portanto, extenso. Quais seriam as novas propostas?
35
Observamos que essas propostas foram contrárias às abordagens de João Ribeiro,
mencionado anteriormente. No Brasil, três livros na década de 1930 são identificadores de novas
questões colocadas pela História e Ciências Sociais. Nos anos 1930, Gilberto Freyre (1933)
publicou Casa Grande & Senzala; Caio Prado Júnior (1933) publicou Evolução política do
Brasil e Sérgio Buarque de Holanda (1936) publicou Raízes do Brasil. São obras fundadoras do
Modernismo em História e Sociologia no Brasil, na cada em que se buscava entender o país
para a construção de uma nova identidade nacional. Sérgio Buarque de Holanda busca, nas
Ciências Sociais, notadamente nos estudos de Max Weber e na influência dos Annales, suportes
para a construção de um entendimento da sociedade brasileira. Em Holanda, deparamo-nos com
observações e posturas que, posteriormente, receberam as denominações de História Cultural,
Mentalidades, Cotidiano, etc. Gilberto Freyre, influenciado pela Antropologia norte-americana,
usa novas fontes na busca de uma compreensão da sociedade brasileira. Caio Prado Júnior parte
do materialismo histórico para a escrita de uma História do Brasil
36
.
Essas obras são identificadoras de linhas de estudos da sociedade brasileira nas cadas
seguintes. A década de 1930, no Brasil (Era Vargas, 1930-1945), foi palco de modernização da
sociedade conduzida pelo Estado, período marcante nas relações Medicina e sociedade. Nos
Estados Unidos e Europa, o período justifica o epíteto de Hobsbawm (1995) na obra Era dos
extremos: o breve culo
XX
: 1914-1991. Destaca-se que dois grupos de intelectuais são
marcantes, no período, em estudos de História. Na Inglaterra, encontramos os historiadores que
ficaram conhecidos como historiadores marxistas e, ao final do século, neomarxistas. O estudo de
35
REIS, José Carlos. A Escola dos Annales: a inovação em História. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 67.
36
Dentre os estudos sobre os autores mencionados, destacamos: VELOSO, Mariza; MADEIRA, Angélica. Leituras
brasileiras: itinerários no pensamento social e na literatura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.
27
Ciências Humanas e Letras no Brasil, desde o século
XIX
, sofreu influência francesa. Se a
historiografia do IHGB foi norteada pelo Positivismo do francês Augusto Comte, a produzida
pelas universidades será influenciada por questões e propostas dos Annales e dos neomarxistas
ingleses. Nos próximos parágrafos, exporemos algumas das ideias norteadoras dos Annales e de
Hobsbawm. Esta exposição objetiva o reconhecimento de ideias que influenciaram a
historiografia brasileira. Enfatizaremos, contudo, os aspectos que tratam de História Social da
Cultura.
Neste momento, iniciaremos a exposição de temas que são os pilares de nossa proposta
metodológica para a condução de pesquisas em Ciência e Cultura na História. Vale lembrar que
1929 foi o ano da queda da Bolsa de Valores de Nova Yorque, início da "Depressão" e
visibilidade das contradições do Liberalismo. A fundação da revista dos Annales na França, no
mesmo ano, por Marc Bloch e Lucien Febvre, é a visibilidade, o reconhecimento da inadequação
de concepções sobre os estudos em História formuladas no culo
XIX
. Os dois eventos são
marcos identificadores de questões que, oriundas do século
XIX,
adentraram pelo
XX.
Nos
próximos parágrafos, pontuaremos aspectos das propostas dos Annales
37
. Contudo, não nos
estenderemos sobre o assunto. Destacaremos, posteriormente, os estudos de Hobsbawm.
A revista Annales Histoire Économique et Sociale difundiu os trabalhos de seus
membros que possuem diversidade. Podemos distinguir três orientações nos Annales. A primeira
fase tem como destaque a difusão das pesquisas de Marc Bloch e Lucien Febvre, fundadores da
publicação. Bloch (1974), em Apologie pour l`Histoire, propugna pela aliança com as Ciências
Sociais para a escrita de uma História-problema. Nessa proposta, o historiador deve formular
perguntas e questionar o passado para a escrita da História total ou global. A segunda fase é
marcada pela influência de Fernand Braudel (decênio 1950/60), que, a partir de 1968, cerca-se de
Jacques Le Goff, Le Roi Ladurie, Robert Mandrou e Jacques Revel. A terceira fase tem como
destaque os estudos de Le Goff e Duby. São identificáveis dois eixos centrais nas propostas dos
Annales: reivindicação de uma história experimental científica e a unidade em construção entre
História e Ciências Sociais.
A História, na década de 1930, por influência dos Annales, deixa o foco político e volta-se
para as questões do social, dialogando com as Ciências Sociais. Após a Segunda Guerra Mundial
37
Diversos livros e textos estudam a História dos Annales. Destacamos: REIS, José Carlos. Annales: a renovação
da História. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
28
(1939-1945), chama a atenção dos membros dos Annales o livro de Lévi Strauss (1949) intitulado
Estruturas elementares do parentesco. Os estudos em torno da obra de Strauss, caracterizados
por forte historicismo, ficaram conhecidos como Estruturalismo. Braudel (1958) foi o membro
dos Annales que mais se aproximou do Estruturalismo, como mostra o seu artigo sobre a "longa
duração". Carlos Antônio Aguirre Rojas (2000) é autor do livro Os Annales e a historiografia
francesa: tradições críticas de Marc Bloch e Michel Foucault
38
. Em ensaios escritos no período
de 1985 a 1994, identificam um quarto momento nos Annales. Discutem as reflexões teórico-
historiográficas com atenção nas diversas propostas marxistas e dos historiadores dos Annales.
Arruda e Tengarrinha (1999), em Historiografia luso-brasileira contemporânea, ao
estudarem a produção historiográfica brasileira e portuguesa nas quatro últimas décadas,
destacam como aspectos principais, nas décadas de 1960 e 1970, as influências dos Annales, do
marxismo e da linguística. Nos anos 1980, é visível a influência da vertente marxista da História
Social Inglesa, da Escola de Frankfurt e da segunda geração dos Annales. No período, diversos
trabalhos foram feitos sob as observações de Foucault ao tema da micro-história. Na década de
1990, diversas pesquisas caracterizam-se pela renovação de temas e enfoques sob a orientação de
propostas de História das Mentalidades e da História Cultural. A orientação marxista na escrita de
historiadores brasileiros se fez com a influência dos ingleses Eric Hobsbawm, E. P. Thompson,
Cristopher Hill e Perry Andersen. Interessa-nos os estudos de Hobsbawm, sobretudo as
observações feitas sobre História Social
39
.
Diversas conferências proferidas por Hobsbawm foram publicadas no livro intitulado
Sobre História. Destacamos as observações que o historiador fez no Capítulo intitulado “Da
História Social à história das sociedades”. O ensaio foi escrito em 1972. Hobsbawm inicia a
exposição de suas ideias afirmando que, até aquele momento, três acepções seriam dominantes no
entendimento de História Social. A primeira acepção de História Social seria identificada pelos
estudos que trabalham com as classes inferiores e seus movimentos; a segunda é identificada
pelos trabalhos sobre a diversidade de atividades humanas, e a terceira é identificada por tratar
como "social" os aspectos econômicos
40
.
38
ROJAS, Carlos Antônio Aguirre. Os Annales e a historiografia francesa: tradições críticas de Marc Bloch e
Michel Foucault. Trad. Jurandir Mallerba. Maringá, PR: EDUEM, 2000.
39
ARRUDA, José Jobson; TENGARRINHA, José Manuel. Historiografia luso-brasileira contemporânea. Bauru,
SP: EDUSC, 1999.
40
HOBSBAWM, Eric. Da História Social à história das sociedades. In:______. Sobre História. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998. p. 83-105.
29
A História Social nas acepções identificadas se queriam opostas à leitura de Ranke. O
interesse dos trabalhos estiveram centrados nas questões econômicas, notadamente entre classes e
grupos sociais
41
. Contudo, seguindo as observações do autor, nenhuma dessas abordagens
produziu um campo acadêmico em História Social até 1950. Em 1958, na Inglaterra, foi fundado
o periódico Comparative Studies in Society and History. Hobsbawm reconhece o
desenvolvimento da História Social nos últimos 20 anos. Identifica como aspectos visíveis, nos
estudos com essa abordagem, a especialização crescente da História Econômica e o crescimento
da Sociologia que demandou ramos históricos. Destacamos uma observação do historiador sobre
a questão:
(...) Muitos historiadores (como os marxistas), que anteriormente haviam se
rotulado como econômicos porque as questões em que estavam interessados
simplesmente não eram incentivadas ou sequer consideradas pela história geral
ortodoxa, viram-se expulsos de uma história econômica que rapidamente se
estreitava e aceitaram ou acolheram de bom grado o título de "historiadores
sociais", principalmente se eram deficientes em matemática
42
.
Continuando, no mesmo texto, assinala que, no período, revoluções e lutas de
emancipação políticas dos países coloniais ou semicoloniais levaram ao alargamento do interesse
pela História. Segundo Hobsbawm, a História Social não pode ser uma especialização, pois seu
tema não pode ser isolado. Nas palavras do autor:
(...) Mas os aspectos sociais ou societais da essência do homem não podem ser
separados de outros aspectos do seu ser, exceto à custa da tautologia ou da
extrema banalização. Não podem ser separados, mais que por um momento, dos
modos pelos quais os homens obtêm seu sustento e seu ambiente material
43
.
41
HOBSBAWM, Eric. Da História Social à história das sociedades. In:______. Sobre História. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998. p. 84.
42
Ibid., . p. 143.
43
Ibid., p. 84.
30
Na segunda parte do ensaio, o autor trata das relações da História com as Ciências
Sociais. Reafirma a importância de Marx para os estudos históricos:
(...) claro que Marx sabia que os modelos econômicos, para serem úteis à análise
histórica, não podem ser separados das realidades sociais e institucionais que
incluem certos tipos básicos de organização comunal ou familiar, para não falar
das estruturas e premissas específicas a formações socioeconômicas particulares
enquanto culturas. No entanto, embora não seja à toa que Marx seja um dos
principais fundadores do pensamento sociológico moderno (sem reservas e por
seus seguidores e críticos), fica o fato de que seu principal projeto intelectual
assumiu a forma de análise econômica. Não somos obrigados a concordar nem
com suas conclusões, nem com sua metodologia. Mas seríamos imprudentes em
negligenciar a prática do pensador que, mais do que nenhum outro, definiu ou
sugeriu o conjunto de perguntas históricas para os quais hoje são atraídos os
cientistas sociais
44
.
A terceira parte do ensaio se inicia com a pergunta: Como devemos escrever a história da
sociedade? Hobsbawm faz a proposta de apontar algumas direções. Em suas palavras: "(...) pode
ser útil apresentar um pequeno e diversificado sortimento de placas de direção ou advertência
para o trânsito futuro"
45
. São placas apontadoras de uma direção às observações do autor: a) A
história da sociedade é História. Uma de suas dimensões é o tempo real. O historiador não está
preocupado somente com estruturas e seus mecanismos de persistência e mudança, mas também
com o que de fato aconteceu. Conclui: "A história da sociedade é, portanto, uma colaboração
entre modelos gerais de estrutura e modelo social e o conjunto de fenômenos que de fato
aconteceram"
46
; b) Inicia com a afirmativa: "A história da sociedade é entre outras coisas, a
história de unidades específicas de pessoas que vivem juntas, unidades que são definíveis em
termos sociológicos"
47
. Não se trata de bichos, mas de seres humanos.
44
HOBSBAWM, Eric. Da História Social à história das sociedades. In:______. Sobre História. o Paulo:
Companhia das Letras, 1998. p. 89.
45
Ibid., p. 91.
46
Ibid., p. 92.
47
Ibid.
31
Desse modo, o consenso entre os historiadores no estabelecimento de um modelo
operacional seria:
Parte-se do ambiente material e histórico, passa-se para as forças e técnicas
produtivas (entrando a demografia em algum ponto intermediário), a estrutura da
economia resultante: divisão do trabalho, troca, acumulação, distribuição do
excedente, assim sucessivamente e as relações daí derivadas. Essas poderiam ser
seguidas pelas instituições e a imagem da sociedade que lhe o subjacentes. A
forma da estrutura social é assim estabelecida, suas características específicas e
detalhes, na medida em que derivam de outras fontes, podem ser então
determinados, na maioria das vezes por estudo comparativo
48
.
As observações de Hosbawm serão por nós seguidas na condução da pesquisa.
Acrescentamos que nossas preocupações são como os sujeitos se formam, sobrevivem e se
organizam em determinados contextos históricos. A História Social tem-se agrupado nos últimos
10 ou 15 anos em torno dos seguintes temas: a) demografia e parentesco; b) estudos urbanos; c)
classes e grupos sociais; d) história das "mentalidades" ou "consciência coletiva" ou da "cultura"
na acepção dos antropólogos; e) a transformação das sociedades (por exemplo, modernização ou
industrialização); f) movimentos sociais e fenômenos de protesto social
49
. Alinhamo-nos com o
terceiro grupo. Hobsbawm destaca, como pesquisas que tratam de classes e grupos sociais, os
estudos de Emmanuel Le Roy Ladurie, Camponeses de Languedoc; Edward Thompson, A
formação da classe operária inglesa e Adeliene Daumard, Les bourgeois et la bourgueoisie en
France depuis 1815. Na opinião de Hobsbawm, a maior dificuldade em se trabalhar com grupos
sociais seria:
Surge do fato de que classe não define um grupo de pessoas em isolamento, mas
um sistema de relações, tanto verticais quanto horizontais. Assim, é uma relação
de diferença (ou semelhança) e de distância, mas também uma relação
qualitativamente diferente da função social, da exploração, da dominação do
sujeito
50
.
48
HOBSBAWM, Eric. Da História Social à história das sociedades. In:______. Sobre História. o Paulo:
Companhia das Letras, 1998. p. 93-94.
49
Ibid., p. 95.
50
Ibid., p. 99
32
As observações de Hobsbawm sintetizam os aspectos que devem ser observados nesta
pesquisa em Ciência e Cultura na História. Ele expôs, no ensaio, os aspectos mais importantes
que são caracterizadores dos estudos em História Social. O autor tem grande contato com
pesquisadores brasileiros em diversas universidades do país e exerce influência nos estudos deles.
A aproximação com a Antropologia (desde 1960), no estudo das construções das identidades
sociais e das relações que engendravam, trouxe contribuições à historiografia. Essa aproximação
levou a História Social a privilegiar as abordagens socioculturais. A aproximação com a
Antropologia Histórica, na França, fez-se presente nos estudos da vida cotidiana. Na Inglaterra,
tal aproximação ocorreu a partir dos estudos de E. P. Thompson com a "História vista de
baixo"
51
.
No intercâmbio Antropologia História, destaca-se a influência da Antropologia
Interpretativa, proposta de Geertz: "Toda ação humana (e não apenas o hábito ou o costume) é
culturalmente informada para que possa fazer sentido num determinado contexto social"
52
.
Destaca-se, ainda, a influência de Foucault em pesquisas que se debruçam sobre aspectos
culturais de práticas científicas. Ainda, no período, tem-se a identificação das propostas da micro-
história, uma reivindicação dos italianos. Destacam-se os trabalhos de Ginzburg, que parte do
micro para o macro, juntando os eixos estrutura e experiência.
Hebe de Castro, na identificação de estudos em História Social, no Brasil, afirma que
nessa área predominou a influência dos Annales (1950-1960), notadamente na Universidade de
São Paulo (USP). Destaca a importância da liderança de Florestan Fernandes para o grupo que
ficou conhecido como Escola Sociológica Paulista nos estudos de História Social dos negros e da
escravidão. Aconteceu, no país, nas décadas de 1970 e 1980, a consolidação e profissionalização
do historiador, junto da crise de referenciais teóricos. Três eixos são dominantes nos estudos de
História Social do Brasil: História Social da Família; História Social do Trabalho, História do
Brasil Colonial e da Escravidão
53
.
Nossa proposta, ao nos debruçarmos sobre as Memórias de Pedro Nava, é a escrita de um
texto que se insira em Ciência e Cultura na História. Cultura entendida no sentido antropológico,
51
HOBSBAWM, Eric. Da História Social à história das sociedades. In:______. Sobre História. o Paulo:
Companhia das Letras, 1998. p. 51.
52
Ibid., p. 52.
53
CASTRO, Hebe. História Social. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo. Domínios da História:
ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 45-60.
33
ações vivenciadas: valores, instituições, objetos que identificam e perpassam uma sociedade
54
.
Como visto anteriormente, cremos que a Literatura pode ser estudada em seu contexto
historicamente determinado. Buscamos, nos textos naveanos, a identificação com aspectos da
Medicina em suas relações com a sociedade. Concordamos com Marilena Chauí, que parafraseia
o texto de Marx, citado anteriormente neste trabalho: “A cultura se torna, portanto, a captura mais
perfeita do tempo e da história, na medida em que submete o fluxo temporal das coisas à ação
temporal dos homens, que fazem sua própria História ainda que não saibam e em condições que
não escolheram”
55
.
As propostas metodológicas de Hobsbawm e de outros estudiosos em História Social
fundamentam esta pesquisa; consideramos, entretanto, que outros estudos contribuem para o
trabalho. Dentre a vasta produção historiográfica e suas vertentes, destacamos a História Social
da Cultura. Com essa denominação, deparamo-nos com “estudos sobre artes, ciências, cotidiano,
festas e tantos outros”. José D´Assunção Barros (2004) afirma: “Qualquer objeto produzido pelo
homem faz parte da cultura”, em O campo da História: especificidades e abordagens
56
. As
observações de Barros na obra citada e de Sandra Jatahy Pesavento (2004), na obra História e
História Cultural, norteiam nossas observações, juntamente com as de Hobsbawm sobre o
assunto que será desenvolvido nos próximos parágrafos
57
. Os autores identificam, na década de
1970, o surgimento de novas questões para os historiadores. Nessa década, são criticados o
marxismo e os Annales, o que não significou rupturas com os mesmos. Nesse contexto, surgiram
as propostas denominadas História Cultural ou Nova História Cultural.
Destacamos como marcos, nos estudos em História Cultural, as contribuições dos
marxistas ingleses (neomarxistas), sobretudo Thompson, Hobsbawm, mencionados como
historiadores sociais, e Cristopher Hill. Esse grupo enriqueceu os estudos marxistas ao
repensarem o Materialismo Histórico, notadamente os conceitos de estrutura e superestrutura.
Perceberam a cultura como parte integrante do modo de produção e não como seu mero reflexo.
Com essa perspectiva, identificam uma interação e retroalimentação entre a cultura e as estruturas
54
LARAIA, Roque de Barros. Cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
55
CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 3. ed. São Paulo: Moderna, 1982.
p. 58.
56
BARROS, José D´Assunção. O campo da História: especificidades e abordagens. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2004.
p. 61.
57
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. p. 10.
34
econômicas da sociedade
58
. Nossa pesquisa trabalha com duas expressões culturais Literatura e
Medicina. As bases de nossas observações sobre História, Literatura e Medicina são perpassadas
por essas vertentes, somando-se as contribuições de Canclini, Fleck e Bourdieu. Segundo Alfredo
Bosi: “Uma das conquistas teóricas do marxismo foi ter descoberto que é nas práticas sociais e
culturais, fundamente enraizadas no tempo e no espaço que se formam as ideologias e as
expressões simbólicas em geral”
59
.
Cremos que Bosi, nessa transcrição, sintetizou a grande contribuição dos textos marxistas.
Entendemos que o desafio, para os pesquisadores em Ciências Humanas e Sociais é o de
acrescentar contribuições a partir dos textos marxistas. Estudando as Memórias de Pedro Nava e
buscando correlacioná-las com a sociedade, nosso interesse maior é o desvelamento autor-obra-
sociedade. Novamente, recorremos a Bosi quando afirma:
As práticas, tomando-se a palavra no seu sentido mais lato, são o fermento das
ideias na medida em que estas visam a racionalizar aspirações difusas nos seus
produtores e veiculadores. A ideologia compõe retoricamente (isto é, em
registros de persuasão) certas motivações particulares e as dá como necessidades
gerais
60
.
O livro de Ludwick Fleck (1986), intitulado La genesis y el desarrollo de un hecho
cientifico: introducción a la teoria de pensamiento e del colectivo de pensamiento [A organização
e o desenvolvimento do fato científico], auxilia-nos na compreensão da formação das Ciências,
aspecto fundamental na leitura do texto naveano. Também, diversos textos do sociólogo francês
Pierre Bourdieu, bem como dos estudiosos de sua obra e do antropólogo Nestor Garcia Canclini
sobre questões culturais, alargam nossa leitura da obra naveana. Esses autores fundamentam esta
pesquisa e terão suas propostas desenvolvidas nos próximos parágrafos.
Ludwick Fleck foi médico, judeu polonês, dedicado a pesquisas de laboratório e pioneiro
no reconhecimento da importância do contexto histórico no estudo das Ciências. O livro que
58
BARROS, J. D. Op. cit., p. 62.
59
BOSI, Alfredo. A escravidão entre dois liberalismos. Estudos Avançados, São Paulo, v. 2, n. 3, p. 4,. set./dez.
1988.
60
Ibid.
35
divulgou Fleck (1979) junto ao blico, no Ocidente, foi A organização e o desenvolvimento de
um fato científico, mas o autor já havia sido reconhecido anteriormente no meio científico
polonês. O texto de Fleck teve expressiva repercussão junto aos estudiosos de Epistemologia,
História e Sociologia das Ciências. Fleck nasceu em 1896, em Lwow, cidade pertencente ao
Império Austro-Húngaro, posteriormente inserida na Polônia pós-unificação e hoje pertencente à
Ucrânia. Viveu pouco tempo na Polônia como país independente, fato ocorrido em 1918. A
Polônia sofreu o domínio soviético e nazista no conflito de 1939-1945. Após o final da Segunda
Guerra Mundial, em 1945, Fleck retomou as atividades de pesquisador, publicou 87 artigos e
emigrou para Israel em 1956, onde morreu, em 1961.
Fleck foi pesquisador dedicado aos estudos em laboratório. Interessado por aspectos
históricos e sociológicos de sua profissão, dedicou-se ao estudo sobre o assunto. Ficou conhecido
nos países ocidentais, na década de 1970, com a reedição de A organização e desenvolvimento de
um fato científico, em alemão, e com a edição, em inglês, em 1979. Em 1986, o texto foi
traduzido para o espanhol
61
. É conhecida a influência do texto de Fleck na obra de Thomas Kuhn
(2003) intitulada Estrutura das revoluções científicas, texto muito lido no Ocidente. Nos
próximos parágrafos, desenvolveremos observações do autor que aclaram a proposta de
identificação da obra de Nava, como documento para os estudos das relações Medicina e
sociedade brasileira (1890-1940).
Fleck toma, como exemplo de fato científico, as questões que envolveram a Reação de
Wassermann. Trata-se de procedimento de análise do sangue sifilítico, levado a público em 1906.
Fleck inicia o Prólogo com uma pergunta: “Que é um fato!?” e, ao respondê-la, expõe o propósito
do livro: “Considera-se o fato o fixo, o permanente e o independente da opinião subjetiva do
pesquisador, o oposto da transitoridade das teorias. É a meta de todas as ciências. A crítica para
estabelecê-los constitui o objeto da teoria do conhecimento”
62
. Esta é a proposta de Fleck,
identificação da organização e do desenvolvimento que envolvem os fatos científicos.
A proposta de Fleck é o estudo social e histórico das atividades científicas. Sobre o
método desse autor, para esta proposta, destacaremos alguns aspectos. Observa que o
conhecimento pré-científico tem similaridades com o científico. Contextualiza a pesquisa
científica em seu momento histórico. O autor foi contemporâneo e opositor dos intelectuais que
61
FLECK, Ludwick. La genesis y el desarrollo de un hecho cientifico: introducción a la teoria de pensamiento e del
colectivo de pensamento. Prólogo de Lothar Shafer & Thomas Schnelle. Madrid: Alianza Editorial, 1986.
62
Ibid., p. 43.
36
ficaram conhecidos como integrantes do “Círculo de Viena”, propositores de uma nova leitura do
Positivismo. As observações fleckianas vão em direção oposta às posturas dos pertencentes ao
mencionado grupo que veem a ciência como autônoma e se limitam à descrição de sua
formulação.
Fleck considera que o conceito científico está imbricado ao desenvolvimento histórico do
pensamento. Atenta-se para o fato de que, em ciências, não há erros absolutos e tampouco
verdades absolutas
63
. Entende as abordagens científicas como parte de um processo evolutivo:
“queiramos ou não, não podemos livrarmo-nos do passado (...) não existe geração espontânea dos
conceitos (...). O passado é muito mais perigoso ou melhor dizendo, é perigoso quando
nossos contatos com ele se mantêm inconscientes e desconhecidos”
64
. Cremos que Demétrio
Delizoicov et al. bem sintetizam o pensamento fleckiano:
(...) Valoriza o contexto histórico-psicocultural ao analisar como se processa a
introdução de um cientista numa nova forma de pensar, ou, como ele denomina,
num novo “estilo de pensamento”. Integra na sua análise, portanto, aspectos
relativos à determinação social da investigação científica envolvidos no processo
de produção do conhecimento, usando e caracterizando suas principais
categorias epistemológicas em franca oposição ao positivismo lógico do Círculo
de Viena
65
.
Ainda, destacaremos os seguintes conceitos formulados por Fleck coletivo de
pensamento, estilo de pensamento, círculos esotérico e exotérico, sobre os quais faremos breves
comentários. Coletivo de pensamento grupo ou comunidade de pessoas que estão em sintonia e
interação de pensamento. Estilo de pensamentoaspectos do pensamento que lhe são próprios ou
característicos.
63
FLECK, Ludwick. La genesis y el desarrollo de un hecho cientifico: introducción a la teoria de pensamiento e del
colectivo de pensamento. Prólogo de Lothar Shafer & Thomas Schnelle. Madrid: Alianza Editorial, 1986. p. 43.
64
Ibid.
65
DELIZOICOV, Demétrio et al. Sociogênese do conhecimento e pesquisa em ensino: contribuições a partir do
referencial fleckiano. In: II ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS II
ENPEC, 1999, Valinhos, SP. Anais... Valinhos, SP, 1999.
37
Segundo Shafer e Schnelle, falando sobre estilo de pensamento em Fleck, no prólogo do
livro em estudo:
O estilo de pensamento estrutura-se em círculos esotéricos concêntricos onde
mantêm coerção mais intensa e a partir dos quais interage com os círculos que
lhe são exotéricos. É no processo de desenvolvimento dos estilos de pensamento
que surgem matizes nesses estilos. Os diferentes coletivos de pensamento se
relacionam e se articulam entre si através dos círculos esotérico e exotérico: “A
delimitação pelos especialistas de um campo de problemas dentro da
generalidade científica”
66
.
Buscamos destacar os aspectos desenvolvidos por Fleck por acreditarmos que são
relevantes para o entendimento da obra naveana. Em Baú de ossos: memórias, no Capítulo I,
intitulado “Setentrião”, Nava reconstitui a trajetória de seu pai, o médico José Nava (1876-1911).
Na reconstituição feita pelo memorialista, temos um exemplo de como se formou um médico do
período. José Nava foi formado profissionalmente dentro dos princípios do Sanitarismo. Nas
Memórias naveanas, temos informações de manuais adotados, posturas e discussões de
professores sobre a profissão. As questões nacionais, bem como as soluções apontadas para as
mesmas, desvelam os estilos de pensamento que estiveram envolvidos na formação desses
profissionais. A geração de José Nava formou-se no período em que a Medicina Científica
buscava conquistar sua hegemonia junto à sociedade brasileira. Estratégias adotadas, tais como
contato com o Estado, criação de uma conduta, organização de associações profissionais e
difusão interna (publicações especializadas) e externas (imprensa), são exemplares dos círculos
esotéricos e exotéricos destacados por Fleck.
Na formação acadêmica de Pedro Nava e em sua trajetória profissional, temos exemplos
dos conceitos propostos por Fleck. Na leitura das Memórias e nos escritos naveanos, estão
explícitos o contexto histórico e a formação da geração modernista. Assim denominamos a
geração de intelectuais, nascida nas cadas de 1890 e 1910, atuantes nos anos 1920 e
construtores de espaços políticos nas décadas subsequentes. Nava, em Chão de ferro e Beira-
mar, reconstitui a trajetória dessa geração, em suas preocupações estéticas, políticas e do ensino
médico. Constrói documentos sobre o ensino, a formação dos professores, manuais adotados,
66
Op. cit., p. 33.
38
procedimentos didáticos, etc. Acreditamos que esses aspectos são os elementos formadores de
um “estilo de pensamento”. A relação entre os círculos médicos está presente em diversos textos
das Memórias.
O aspecto mais importante na obra de Fleck é o seu pioneirismo. Em 1935, questionou a
neutralidade científica. Antecipou-se a análises que foram possíveis na década de 1960. Fez a
proposta de construção de uma Epistemologia social e histórica. Aspectos vistos na divulgação de
sua obra epistemológica são exemplares para os estudos sobre circulação do conhecimento.
Detemo-nos na exposição de aspectos biográficos de Fleck e seus conceitos pelo fato de a
bibliografia sobre o mesmo ainda ser pequena e pouco difundida. Estudos posteriores, como os
de Canclini, Bourdieu e outros da área de História Social da Cultura, aprofundam aspectos
levantados por Fleck.
Pierre Bourdieu (2005) contribui para o alargamento das observações de Fleck; na obra
intitulada Esboço de autoanálise, expõe sua trajetória acadêmica. Busca expô-la usando as
propostas que ele desenvolveu em suas pesquisas. Justifica as posições que tomou ao longo de
sua carreira, debruçando-se sobre o mundo acadêmico francês da cada de 1950. Destaca sua
origem humilde, o sucesso escolar como forma de inserção social e os jogos de força entre os
pensadores franceses, por exemplo, Ayron, Foucault e Sartre
67
. A obra do filósofo francês,
diferente do texto fleckniano, é extensa, com numerosos textos traduzidos para o português e tem
sido norteadora na construção de textos acadêmicos de diversas áreas.
O sociólogo francês teve formação filosófica, atuou como antropólogo e teve ligações e
contatos com o estruturalismo, marxismo e aproximações com Althusser, Habermas e Foucault.
Rejeitou a redução objetivista do estruturalismo, o descritivismo da fenomenologia e tomou do
marxismo as ideias da luta pela dominação e da “consciência de classe”, integrado no conceito de
Habitus”. Afasta-se das categorias marxistas ligadas à luta de classes (falsa consciência,
alienação, mistificação), defende que toda dominação é igual à violência, bruta ou simbólica.
Opõe-se ao Positivismo, que, no seu entender, obscurece o fato social. Considera que o fenômeno
social é produto das ações sociais individuais. Este aspecto, para nós, é o de maior relevância,
pois o consideramos como aprofundamento das propostas de Hobsbawm.
Bourdieu marcou o retorno do sujeito. Buscamos, na leitura dos textos naveanos, o
desvelamento das relações Medicina e sociedade brasileira (1890-1940). Na trajetória de Pedro
67
BOURDIEU, Pierre. Esboço de autoanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
39
Nava, são perceptíveis as observações de Bourdieu, observando-se que as questões naveanas são
perpassadas por visões de mundo do grupo social onde o memorialista viveu. Bourdieu tratou de
variados aspectos que envolvem a vida nos diversos setores das sociedades do culo
XX
. No
texto “O campo científico”, retoma e desenvolve conceitos expostos em outros trabalhos. Destaca
que o “universo ‘puro’ da mais ’pura’ ciência é um campo social como outro qualquer, com suas
relações de força e monopólios, suas lutas e estratégias, seus interesses e lucros, mas onde essas
inavariantes revestem de formas específicas”
68
.
Acreditamos que conceitos desenvolvidos por Bourdieu aprofundam os estudos de
Hobsbawm, ao tratar da importância do contexto social, e de Fleck, ao destacar a importância dos
estudos da sociedade para o entendimento da Ciência. A identificação das Memórias como
documentos para o estudo da história da Medicina torna-se mais esclarecedor, quando se busca
correlacionar a biografia de Nava com as observações de Bourdieu. O memorialista reconstituiu a
trajetória médica de seu pai em Baú de ossos e também a sua nessa obra e nas outras.
Pedro Nava foi alfabetizado em Juiz de Fora, estudou no Colégio Anglo-Mineiro em Belo
Horizonte, Colégio D. Pedro II, no Rio de Janeiro, e cursou Medicina em Belo Horizonte.
Exerceu a atividade médica em Belo Horizonte, Juiz de Fora, Monte Aprazível e Rio de Janeiro.
As informações sobre suas atividades médicas são documentais sobre a Medicina do período.
Cremos que os escritos de Bourdieu sobre Educação e Sociologia aprofundam as questões
destacadas por Hobsbawm e Fleck. Bourdieu, no mencionado livro, retoma conceitos
desenvolvidos em outras pesquisas. Para nossa pesquisa, são grandes contribuições Habitus,
Campo, Capital, Capital Social e Capital Científico – que aclaram o entendimento de como Nava,
filho de família pobre, construiu sua carreira em meio a uma elite profissional.
Nava estudou em colégios formadores da elite política e social, vivenciou humilhações
por sua pobreza, mas, nesses locais, adquiriu o que Bourdieu denomina Habitus, domínio de
códigos culturais que são incorporados ao indivíduo: fluência em língua estrangeira, hábito de
leitura e interesse pela Literatura e Artes Plásticas. A internalização desses elementos culturais
foram reforçados pelo contato com Salles, tio do memorialista, jornalista e escritor, marcando sua
trajetória e formando sua distinção social. Na formação secundária de Pedro Nava, o mesmo
travou relações de amizade com colegas ligados à elite brasileira, Afonso de Mello Franco, por
68
BOURDIEU, Pierre. O campo científico. In: ORTIZ, Renato. Pierre Bourdieu: sociologia. São Paulo: Ática,
1983. p. 122-155.
40
exemplo. Esses contatos sempre lhe asseguraram indicações para empregos públicos, associações
profissionais e contatos pessoais com o mundo político.
Lendo as Memórias, identificamos, na vida profissional de Nava, questões que Bourdieu
conceitua como “campo”: “Esse universo é um mundo social como os outros, mas que obedece a
leis sociais mais ou menos específicas”
69
. A vida social é constituída por campos, microcosmos
ou espaços de relações objetivas que possuem uma lógica própria. Resultam do processo de
diferenciação social, da forma de ser e do conhecimento do mundo. A posição, em um campo,
determina a forma não só como consumimos objetos, mas também como assimilamos o ensino, a
política, as artes. Desse modo, os agentes precisam de um montante de “capital” para ingressarem
no campo.
A trajetória naveana corrobora os diversos conceitos propostos por Bourdieu em seus
numerosos textos. Bourdieu entende as relações entre as condições de vida, a consciência, as
práticas e as ideologias como constituintes da matriz determinante do indivíduo
70
. A dinâmica
social se no interior de um campo/um segmento social, cujos agentes/indivíduos e grupos têm
disposições/específicas que o autor francês denomina Habitus”, ou seja, um sistema de
disposições – modos de perceber, de sentir, de fazer, de pensar que nos levam a agir de
determinada forma em uma circunstância dada
71
.
Nas Memórias, estão as informações de como Nava interiorizou as estruturas sociais. O
convívio com a família paterna, os estudos no Colégio D. Pedro II no Rio, a interação com
professores e colegas no Anglo-Mineiro, em Belo Horizonte, formam o Habitusdeste “pobre
homem do Caminho Novo”. A maneira de perceber, julgar e valorizar o mundo, a conformação
da forma de agir, corporal e materialmente. No Habitus”, Bourdieu estuda o processo pelo qual
o social se interioriza nos indivíduos e consegue que as estruturas objetivas concordem com as
subjetivas. Segundo Micelli: Habitus” é uma “recuperação “controlada” do conceito de classe
72
.
É produto da experiência biográfica individual, da experiência histórica coletiva e da interação
entre essas experiências.
69
BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia do campo científico. São Paulo: UNESP,
2004.
70
THIRY-CHERQUES, Hermano Roberto. Pierre Bourdieu: a teoria na prática. Revista de Administração Pública,
Rio de Janeiro, v. 40, p. 27-56, 2006. Disponível em: <www.ebape.fgv.br>. Acesso em: 20 out. 2008.
71
Op. cit, p. 5.
72
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1982
.
41
Destacamos, ainda, o conceito de Capital (cultural, social e simbólico) em Bourdieu
(1998), desenvolvido em Escritos de Educação. A aquisição desses capitais é complexa e não se
limita ao dinheiro
73
. Na inserção social de Nava, família e escolaridade, deparamo-nos com os
elementos que formaram seu Capital Cultural, bens simbólicos, gosto por Literatura, Artes e
domínio de línguas estrangeiras. O capital social é visível na trajetória do memorialista pela
valorização da educação por parte da família e pelos contatos sociais estabelecidos nessas
atividades. O capital simbólico está ligado a rituais de reconhecimento social e que compreendem
o prestígio e a honra. Como veremos, Nava foi “ácido crítico” das instituições, notadamente as
médicas, mas inseriu-se nas mesmas, talvez por conhecê-las por dentro, e foi referendado
(prêmios, homenagens) por várias delas.
Terminamos os destaques a Bourdieu recorrendo ao texto de Canclini (2008) intitulado La
sociologia de la cultura de Pierre Bourdieu
74
. Concordamos com Canclini, o qual identifica três
momentos em que Bourdieu prolonga o marxismo: a) Marx busca explicar o social por suas bases
materiais. Ao estudar temas da Ciência e Educação, Bourdieu confere ao marxismo uma
coerência mais exaustiva; b) Bourdieu aprofunda o marxismo quando estuda as modalidades
concretas de determinação: a autonomia relativa, a pluralidade e a interdependência de funções;
c) o sujeito em Bourdieu tem peso muito diverso do identificado por Marx, rechaça a concepção
de aparato ideológico e, no conceito de “Habitus”, recorre à História Social e do indivíduo:
La historia de cada hombre pode ser leída como una especificación de la historia
de su grupo o su clase y como la historia de la participación en las luchas del
campo. El significado de los comportamientos personales surge complejamente
de esa lucha, no fluye en forma directa de la condición de clase
75
.
Esses aspectos aprofundam nosso ponto de partida textos de Hobsbawm e Fleck.
Continuando com as observações de Canclini, agora tratando do que separa Bourdieu do
marxismo: a) não há, em Bourdieu, a Utopia de outra sociedade; b) Bourdieu busca “uma
explicação simultaneamente econômica e simbólica dos processos sociais”. Segundo Canclini, o
73
BOURDIEU, Pierre. Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes, 1998.
74
CANCLINI, Nestor Garcia. La sociologia de la cultura de Pierre Bourdieu. Disponível em:
<www.catedras.fsoc.uba.ar/rubinich/biblioteca/web/canclini1>. Acesso em: 12 jun. 2008.
75
Ibid., p.16-17.
42
mérito de Bourdieu é recordar Marx por seus esquecimentos. As Memórias do modernista Pedro
Nava são como pontas de icebergs para o estudo das relações Medicina e sociedade brasileira
(1890-1940). Cremos que os textos de Bourdieu, Fleck e Hobsbawm, em muito, ajudam na
identificação de nossa proposta de estudo. Vale lembrar, o aspecto que julgamos relevante para
esta pesquisa é a questão da Memória.
O livro de Ecléa Bosi (1983), intitulado Memória e sociedade: lembrança de velhos, é
pioneiro no Brasil nos estudos sobre envelhecimento, memórias e história oral. A autora recorreu
a oito entrevistados sobre fatos sociais e políticos acontecidos em São Paulo, na década de 1920.
São atores sociais de gêneros e segmentos sociais distintos, que deixam testemunhos e versões
diversas sobre os mesmos. As observações da autora são norteadas pelos estudos de Henri
Bérgson (1999), em Matéria e memória, e de Maurice Halbwacs (2006), na obra A memória
coletiva
76
. Posteriormente, desenvolveremos observações sobre o segundo autor. Antes de
debruçarmos sobre os textos de Halbwacs, recorremos ao livro de Ecléa Bosi Capítulo II,
intitulado “Tempo de lembrar”. Transcreveremos, a seguir, dois longos parágrafos e,
posteriormente, faremos comentários sobre os mesmos:
Heródoto conta uma pequena história da qual se pode aprender muito. Quando o
rei egípcio Psamênito foi vencido e caiu prisioneiro do rei dos persas, Cambises,
este resolveu humilhá-lo. Ordenou que colocassem Psamênito na rua por onde
passaria o triunfo persa e fez com que o prisioneiro visse passar a filha em vestes
de escrava enquanto se dirigia ao poço com um balde na mão. Enquanto todos os
egípcios elevaram prantos e gritos àquela visão, só Psamênito permaneceu mudo
e imóvel com os olhos no chão; e, quando viu o filho conduzido à morte no
cortejo, permaneceu igualmente impassível. Mas, quando viu passar entre os
prisioneiros um dos seus servos, um homem velho e empobrecido, então
golpeou a cabeça com as mãos e mostrou todos os sinais da mais profunda dor.
A situação fica aberta à nossa interpretação. Por que teria chorado o rei
Psamênito? Penso em possíveis respostas. Psamênito chorou porque a visão do
velho servo foi a gota d´água que fez transbordar seu cálice, depois de ter
assistido impassível ao aprisionamento de seus entes mais caros. Psamênito
chorou porque o velho servidor, testemunha de sua infância e da existência de
seus pais e avós, era um elo que unia e confirmava a geração real. Seu
arrastamento e prisão simbolizavam o esfacelamento da dinastia. Psamênito
chorou porque a princesa poderia tramar nos bastidores a seu favor; o príncipe
poderia articular uma revolta e libertar sua mãe e irmãs, mas ao velho servidor já
não restavam forças, sendo, portanto, inútil e cruel sua humilhação
77
.
76
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz Editor Ltda., 1983.
77
Ibid., p. 44-45.
43
Tanscrevemos os parágrafos por considerá-los como sínteses para as questões que
envolvem um estudo sobre Memórias. Subjetividades. Por que o memorialista destaca aspectos
de sua trajetória? Por que oculta outros? Por que nos detemos sobre determinados trechos?
Subjetividades nossas e do memorialista em comum formadas socialmente. Em Halbwacs,
temos observações que nos auxiliam no estudo sobre a questão
78
. Possibilidades e não certezas,
como bem assinalou Bosi sobre o pranto de Psamênito. Halbwacs publicou o livro A memória
coletiva em 1925, e seus textos adentraram nas décadas posteriores. O autor é sempre
mencionado, principalmente após a década de 1970, nas discussões e pesquisas de diversos
estudiosos sobre Memória, Patrimônio Cultural, História Oral, etc. que sempre recorrem ao autor.
O aspecto principal destacado por Halbwacs, no estudo sobre Memórias, é seu caráter coletivo. A
história individual é formada dentro de um grupo. Interessam-nos as observações do autor sobre
aspectos formadores desse assunto. As observações de Halbwacs, certamente, auxiliam no
desvelamento das Memórias de Pedro Nava, pois:
Nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos
outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais somente nós vimos. Não
é preciso que outros estejam presentes, materialmente distintos de nós, porque
sempre levamos conosco e em nós uma certa quantidade de pessoas que não se
confundem
79
.
Canclini (1974), na obra A produção simbólica: teoria e metodologia em sociologia da
arte, propõe um modelo de pesquisa em Ciências Humanas e Sociais
80
. Traça etapas a serem
seguidas em pesquisas que buscam correlacionar o objeto estudado com seu contexto social.
Buscaremos seguir o roteiro proposto por Canclini. Nos próximos parágrafos, destacaremos as
propostas do autor e o que estudaremos em cada uma delas. No modelo de pesquisa proposto por
Canclini, o item 1 “Situação do objeto pesquisado na estrutura social” abrange os seguintes
aspectos: a) análise da estrutura geral e sua localização relações de dependência dentro do
78
HALBWACS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.
79
Op. cit., p. 30.
80
CANCLINI, Nestor Garcia. A produção simbólica: teoria e metodologia em sociologia da arte. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1974. p. 75-76.
44
sistema capitalista (modo de produção, formação socioeconômica e conjuntura; b) lugar atribuído
ao objeto no conjunto da estrutura social, suas relações com as demais partes (economia,
tecnologia, política, religião, etc.) e a vinculação com a estrutura de classes. Destacamos, nas
Memórias de Pedro Nava, a organização capitalista, sustentada pelo ideário do Liberalismo e as
questões de saúde e doenças no período. Enfatizamos as questões do capitalismo monopolista
para o Brasil e a importância da Medicina neste contexto.
No item 2 proposto por Canclini “A estrutura do campo” –, há os seguintes aspectos: a)
meios de produção (os recursos tecnológicos e modificações ocorridas pela introdução de novos
recursos; b) relações de produção (entre a Medicina, intermediários e público: relações
institucionais, comerciais, publicitárias; interação dentro do país e com a medicina estrangeira.
Destacamos como os avanços da Microbiologia foram marcantes no Sanitarismo, bem como as
diversas estratégias dos grupos de médicos na luta pela hegemonia científica.
Finalmente, Canclini destaca dois aspectos: a) elaboração no exercício profissional dos
condicionamentos socioeconômicos; b) elaboração ideológica realizada por outros profissionais,
difusores e público (manifestos, entrevistas, ensaios, críticas, jornalísticas, autobiografias,
inquéritos, etc.). Apontamos as ideias formadoras das duas gerações abordadas por Nava, as
questões das relações dos profissionais com o Estado, com os pares e com o público. Cumpre
ressaltar que as observações de Canclini permeiam nossa pesquisa, mas esta não está rigidamente
apresentada na ordem proposta pelo autor. Canclini é o condutor deste estudo, e a recorrência a
outros autores ocorrerá com base nos conceitos apresentados por esse autor.
45
3 MEMÓRIAS E INFORMAÇÕES BIOGRÁFICAS DE PEDRO NAVA
A caracterização da arte essencialmente por meio de seu peso ideológico
esquece este fato histórico capital: que as ideologias de classe vêm e vão, ao
passo que a verdadeira arte permanece. (...) Mas, ao mesmo tempo, não se pode
esquecer de que a obra artística é um produto historicamente condicionado, e de
que o universal humano que ela realiza não é o universal abstrato de que falam
as estéticas idealistas após estabelecerem um abismo entre arte e ideologia, ou
entre arte e sociedade, mas sim o universal humano que surge no e pelo
particular
81
.
O texto escolhido para epígrafe do capítulo sintetiza nossa proposta de estudo. Buscamos
demonstrar que a obra naveana é historicamente determinada. Contudo, por captar momentos
humanos que são universais, ultrapassa e sobrevive aos mesmos. Apresentaremos informações
biográficas de Pedro Nava obedecendo a uma ordem cronológica. Julgamos esse procedimento
necessário para melhor entendimento das observações posteriores. As informações sobre o
assunto foram recolhidas nas Memórias e nos diversos documentos de seu arquivo que se
encontram no Arquivo do Museu de Literatura Brasileira (AMLB) da Fundação Casa Rui
Barbosa, no Rio de Janeiro. Valorizamos as informações factuais por considerá-las necessárias à
nossa proposta de trabalho, todavia não nos prenderemos às mesmas. Nos próximos capítulos,
buscaremos fazer as correlações entre Medicina e sociedade brasileira, que constituem um recorte
dentro das Memórias, sendo que a cronologia biográfica ajuda no entendimento de nossa
proposta.
Ressaltamos que traçar uma cronologia biográfica de Pedro Nava, modernista e médico,
seria impossível sem correlacioná-la com sua obra literária. Sua biografia está inserida nos
diversos aspectos da modernização da sociedade brasileira (1880-1930), das propostas do
movimento modernista e da organização da Medicina (1880-1930). Em longa entrevista a Jorge
de Aquino Filho, no encarte Manchete Especial da Revista Manchete, com o título “Pedro Nava:
autorretrato do artista aos 80 anos”, o memorialista também deixou suas observações sobre as
questões História e Memórias.
81
VASQUEZ, Adolfo Sanchez. As ideias estéticas de Marx. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. p. 29-30.
46
A seguir, transcreveremos fragmento da entrevista:
Pedro Dantas disse que você colocou nas suas memórias dois séculos de história
social. Você teve realmente essa intenção?
–Tive, porque descendo de uma família de classe média antiga, que conhece a
sua história e suas tradições. No princípio, não tinha a ideia de publicar essas
memórias. Queria tão-somente escrever minha experiência sobre a tradição
familiar, para deixá-la para meus parentes e para quem quisesse entender um
pouco do que eu entendia e saber um pouco do que eu entendia e saber um
pouco do que eu estava sabendo, uma vez que os velhos da família estavam
morrendo. Daí por que, para mim, não foi uma surpresa o Pedro Dantas
constatar tal circunstância na minha obra. Eu comecei a escrever com esta
intenção, porque minha família é muito antiga não só no norte do Brasil – que
descendo de nortista pelo lado paterno – como também no Sul – pelo lado
materno
82
.
A Revista de Enfermagem da Escola Ana Nery recentemente publicou entrevista
concedida, em 2003, pela Professora Anna Nava, irmã do memorialista, que ministrou aulas na
instituição por um longo período. Anna Nava confere às origens familiares a mesma importância
de seu irmão:
Eu sou de uma família que sofreu para libertar o país: uns eram republicanos,
outros eram monarquistas. Meu trisavô era irmão de d. Bárbara, a heroína da
Confederação do Equador, ele foi trucidado, o filho dele morto com revólver no
coração, minha bisavó nasceu no mato. De modo que eu sou descendente de um
mártir. Minha família mudou até de nome por causa do nacionalismo. Jaguaribe
é nome inventado, o rio Jaguaribe era aquela corrente que ia salvar o nordeste da
seca. A avó do historiador Hélio Jaguaribe era irmã do meu avô
83
.
Explicando a inserção da família na capital mineira, Anna Nava informa: “(...) nós não
fomos pioneiros de BH, mas ainda encontramos gente chorando porque a capital tinha mudado de
82
AQUINO FILHO, Jorge de
.
Pedro Nava: autorretrato do artista aos oitenta anos. Manchete, Rio de Janeiro, p. 1-7,
jun. 1983.
83
BARREIRA, Ieda de Alencar. Anna Nava, baluarte da Escola Anna Nery. Revista de Enfermagem, Rio de Janeiro,
v. 17, n. 3, p. 543-550, jul./set. 2009. Disponível em: <www.cean.ufrj.br/revista_enf/20093/artigo%2011.pdf>.
Acesso em: 12 dez. 2009.
47
Ouro Preto. Fizemos muito boas relações lá, muito boas amizades. Foi fantástica nossa vida em
BH”
84
.
A obra literária de Pedro Nava seria: “Um destes monumentos que se erguem a cada cem
anos” no dizer de Francisco de Assis Barbosa e “mais importante para a cultura brasileira do que
Proust para a França”, segundo Otto Maria Carpeaux, citados por Witkowski
85
. As experiências
pessoais do autor aparecem no primeiro volume e vão até 1937 em O círio perfeito: memórias 6.
Escrevia os capítulos iniciais do sétimo volume de suas Memórias – Cera das almas, quando, aos
81 anos, suicidou-se na cidade do Rio de Janeiro. Portanto, as informações biográficas contidas
nas Memórias terminam quando o autor tinha 34 anos. As informações posteriores foram
organizadas a partir de consulta a seu arquivo.
Pedro da Silva Nava nasceu em 1903, na cidade de Juiz de Fora, MG, Brasil. Filho do
médico cearense José Nava e de Diva Jaguaribe Nava. Em 1908, a família se transferiu para o
Rio de Janeiro, então capital federal, onde José Nava foi admitido no Serviço Público, como
médico legista e sanitarista. Ele morreu em decorrência de doença contraída no exercício da
Medicina, em 1911. A mãe ficou viúva com quatro filhos menores, e Pedro era o mais velho.
Estaria grávida da quinta filha que nasceria dias depois. Então, diante desse quadro, voltou para
Juiz de Fora. A família passou a residir na casa da avó materna e, com a morte desta, mudou-se
para Belo Horizonte, em 1913. Nos anos de 1913-1914, Pedro Nava estudou no Colégio Anglo-
Mineiro, na capital do estado de Minas Gerais. Transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde estudou
e concluiu o curso secundário (1916-1920) no Colégio D. Pedro II. Retornou a Belo Horizonte,
local em que cursou Medicina (1921-1927) e, para custear os estudos, empregou-se no Serviço
Público – Diretoria da Higiene do Estado, cargo que ocupou no período de 1921 a1926.
Como médico, funcionário da Saúde Pública do Estado de Minas Gerais (1928-1930),
trabalhou em Belo Horizonte e Juiz de Fora. Atuou como médico, em Monte Aprazível, cidade
do interior do Estado de São Paulo (1931-1933), mudando-se, em 1933, para o Rio de Janeiro,
onde residiu até sua morte. Foi médico do Serviço Público, professor universitário e, na década
de 1940, foi pioneiro na especialidade de Reumatologia. Em 1943, assinou o Manifesto dos
Mineiros, o que significou a demissão dos cargos públicos para os 92 signatários. Foi aposentado
84
BARREIRA, Ieda de Alencar. Anna Nava, baluarte da Escola Anna Nery. Revista de Enfermagem, Rio de Janeiro,
v. 17, n. 3, p. 543-550, jul./set. 2009. Disponível em: <www.cean.ufrj.br/revista_enf/20093/artigo%2011.pdf>.
Acesso em: 12 dez. 2009.
85
WITKOWSKI, Ariane. Pedro Nava ou a renovação da autobiografia. Leitura, São Paulo, v. 18, n. 9, p. 15, set.
2000.
48
de suas atividades no Serviço Público pelo Art. 177 e reintegrado em 1946. Em 1949, foi
Membro Fundador da Sociedade Brasileira de Reumatologia. Escreveu, aproximadamente, 350
artigos sobre questões pertinentes à Medicina, apresentados em Congressos Médicos ou
publicados em revistas científicas. Aposentando-se em 1968, começou a redigir suas Memórias
no mesmo ano; o primeiro livro, Baú de ossos: memórias, foi publicado em 1972.
Quando adolescente e estudante no Colégio Pedro II, colaborou na publicação do jornal
estudantil A Tocha fazendo ilustrações para o mesmo. Em 1921, ilustrou, em Belo Horizonte,
Folhas que caem, livro de poesias de Batista Santiago. Participou do Movimento Modernista em
sua vertente mineira, convivendo com intelectuais que tiveram atuação marcante na vida
brasileira do século XX. Em 1922, com Carlos Drummond de Andrade e outros, fundou A
Revista, publicação difusora das propostas da década que foi palco do nascimento de correntes de
pensamento e propostas norteadoras do Brasil no século XX.
Ilustrou, em 1926, o livro de Austen Amaro intitulado Juiz de Fora, e, em 1928, ilustrou,
a cores, o exemplar da primeira edição de Macunaíma, de Mário de Andrade, com quem
manteve, por longos anos, correspondência e laços de amizade. Em 1937, ilustrou Roteiro lírico
de Ouro Preto, autoria de Afonso Arinos de Melo Franco. Em 1938, publicou o poema “O
defunto”, que, em 1946, apareceu na Antologia dos poetas brasileiros bissextos contemporâneos,
organizada por Manoel Bandeira. Ainda, atuando como médico, publicou, em 1947, Território de
Epidauro e, em 1949, Capítulos da história da Medicina no Brasil.
Entre os anos de 1972 e 1984, foi reconhecido pela crítica e pelo meio intelectual, como
comprovam os prêmios recebidos: em 1973 Personalidade Global e Prêmio Luísa Cláudio de
Sousa; 1974 Prêmio Jabuti Câmara Brasileira do Livro e Prêmio Fernando Chinaglia
Prêmio de Literatura da Associação Paulista dos Críticos de Arte; 1975 Prêmio Fundação
Cultural do Distrito Federal Brasília e Personalidade Global Literária (TV Globo e Jornal O
Globo); 1983 – Diploma de Homenagem Especial, conferido pela União Brasileira de Escritores.
Vale lembrar que, em 1985, esse prêmio passou a ser denominado Pedro Nava e, em 1984,
Prêmio José Olympio Sindicato Nacional de Editores de Livros. Apresentaremos os temas
abordados em cada livro de memórias, buscando demonstrar os aspectos enciclopédicos das
Memórias naveanas.
Baú de ossos: memórias (1972) reconstitui as raízes familiares; trajeto da família materna,
que se desloca das regiões auríferas de Minas Gerais para Juiz de Fora, cidade em processo de
49
industrialização; trajetória e deslocamentos da família paterna pelo Maranhão, Ceará e Rio de
Janeiro; reconstituição biográfica do pai, José Nava (1876-1911), nascido no Ceará, estudante por
um ano na Bahia, onde iniciou os cursos de Farmácia e Medicina concluídos, respectivamente,
em 1898 e 1901, no Rio de Janeiro; exercício da Medicina, e atuação do médico José Nava em
Juiz de Fora (1903-1908), mudança da família para o Rio e admissão, como médico, no Serviço
Público; falecimento e retorno da viúva com quatro filhos e grávida da quinta para Juiz de Fora,
em 1911. O primeiro parágrafo de Baú de ossos: memórias, livro lançado em 1972, transcrito no
início de nossa pesquisa, será aqui repetido, pois fornece indícios biográficos da trajetória
naveana:
EU SOU um pobre homem do Caminho Novo das Minas dos Matos Gerais. Se
não exatamente da picada de Garcia Rodrigues, ao menos da variante aberta
pelo velho Halfeld e que, na sua travessia pelo arraial do Paraibuna, tomou o
nome de Rua Principal e ficou sendo depois a Rua Direita da Cidade do Juiz de
Fora. Nasci nessa rua, no número 179, em frente à Mecânica, no sobrado onde
reinava a minha avó materna. E nas duas direções apontadas por essa que é hoje
a Avenida Rio Branco hesitou a minha vida. A direção de Milheiros e Mariano
Procópio. A da Rua Espírito Santo e do Alto dos Passos
86
.
A Avenida Rio Branco, em Juiz de Fora, aponta para as direções das antigas cidades
mineradoras e do Rio de Janeiro. A vida de Nava e a história de Juiz de Fora hesitam nessas duas
direções. Cidade mais próxima do Rio de Janeiro do que de Ouro Preto (antiga capital) e Belo
Horizonte. Centro urbano formado às margens do Caminho Novo, aberto no século
XVIII,
ligando Borda do Campo ao Rio de Janeiro. Cidade onde os excedentes do café foram investidos
na industrialização (1870-1930) de bens de consumo. Organizou-se Juiz de Fora, espacialmente e
institucionalmente, com a industrialização. O Ecletismo de seus palacetes, a arquitetura de suas
fábricas e vilas operárias fizeram com que a cidade recebesse o epíteto de “Manchester Mineira”.
Cidade que se quis oposta aos centros urbanos coloniais
87
.
86
NAVA, Pedro. Baú de ossos: memórias. Rio de Janeiro: Sabiá, 1972. p. 13.
87
Diversos estudos acadêmicos tratam desses aspectos. Destacamos os seguintes autores: ANDRADE, Sílvia Maria
Belfort Vilela. Classe operária em Juiz de Fora: uma história de lutas (1912-1914). Juiz de Fora: EDUFJF, 1984.
CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira. “Europa dos pobres”: a belle époque mineira. Juiz de Fora: EDUFJF, 1994.
50
A história de Juiz de Fora é uma síntese das questões que envolveram a sociedade
brasileira no período. Os palacetes ecléticos e bitos urbanos evocavam as conquistas da Belle
Époque, e os conflitos sociais eram o avesso desse período. Pedro Nava, aos 10 anos, em Juiz de
Fora, testemunhou fato exemplar das questões que perpassaram pela sociedade brasileira no
período greve operária. A história de Juiz de Fora é uma amostragem do que estava ocorrendo
nacionalmente. Nava, nas observações sobre o procedimento de seus parentes diante do
acontecimento, deixou um testemunho sobre as contradições da Manchester Mineira:
Foi dali e do lado do Largo do Riachuelo que vi, um dia, bando escuro vir
desfilar desajeitadamente na Rua Direita, com estandartes, cantos e bandeiras
(tão lento que parecia uma procissão!) e ser dispersado a espaldeiradas diante da
casa de minha avó, que aplaudia da janela a destreza dos polícias. Ouvi pela
primeira vez a palavra greve dita por uma de minhas tias, o baixo e com um
ar de tal escândalo, que pensei que fosse uma indecência igual às que tinha
aprendido no Machado Sobrinho, e corei até as orelhas
88
.
As vidas de Baú de ossos são de atores sociais que, em Fortaleza (família paterna), no Rio
(família paterna) e em Juiz de Fora (família materna, os pais e o autor), viveram as questões
socioeconômicas de seu tempo. Baú de ossos, Balão cativo e parte de Chão de ferro estão
inseridos no período conhecido como Belle Époque, expressão identificadora do período que vai
das últimas décadas do século XIX ao início da Primeira Guerra Mundial, em 1914. Nessa época,
o Brasil se inseriu no mundo capitalista monopolista, e as questões envolvidas com esse momento
estão presentes na obra de Nava. Nos próximos parágrafos, apresentaremos informações sobre os
temas abordados nos seis livros de Memórias de Pedro Nava.
Baú de ossos: memórias foi lançado em 1972. Capítulo I “Setentrião” reconstitui a
trajetória da família paterna no Ceará, estabelecida em Fortaleza e participante da vida intelectual
da cidade; o Capítulo II “Caminho Novo” trata da trajetória da família materna oriunda de
Santa Bárbara, região mineradora, e seu deslocamento para Juiz de Fora, cidade que, no período,
tem sua população adensada com oriundos de centros mineiros e imigrantes. No Capítulo III
Paraibuna” uma reconstituição da vida estudantil de José Nava em Salvador e no Rio de
Janeiro, exercício profissional em Juiz de Fora, o cotidiano da cidade, organização da Sociedade
88
NAVA, Pedro. Baú de ossos: memórias. Rio de Janeiro: Sabiá, 1972. p. 15.
51
de Medicina e Cirurgia de Juiz de Fora (SMCJF) e participação de José Nava na mesma,
testemunhos do memorialista sobre práticas de cura, etc. Pedro Nava afirma: “Foi quando
mudamos para cá. (...) meu Pai resolveu afinal vir para o Rio com mulher grávida e três filhos.
Para a Rua Aristides Lobo, nº. 106. Vinha fazer concurso para legista e sanitarista”
89
. O Capítulo
IV “Rio Comprido” retrata o convívio com parentes paternos na capital federal, as atividades
médicas do pai, a morte deste e o retorno da família para Juiz de Fora, em 1911.
Balão cativo: memórias 2 foi lançado em 1973. Capítulo I “Morro do Imperador”
denominação dada ao ponto mais alto da cidade de Juiz de Fora. Nava trata da permanência na
cidade, no período de 1911 a 1913, na casa da avó materna; experiência escolar; resquícios
escravocratas nas relações domésticas; hábitos urbanos e conflitos sociais, doença e morte da
avó: “Nossa mudança para Belo Horizonte ficou marcada para o dia 25 de dezembro de 1913.
Natal. Uma família acabava na Rua Direita. Uma família recomeçava em Belo Horizonte.
Natal”
90
. Capítulo II “Serra do Curral” trata do estabelecimento da família em Belo
Horizonte: “Com dez anos subi o nosso Caminho Novo, mudado para Belo Horizonte”
91
. A
capital de Minas Gerais nas primeiras décadas do culo
XX
urbanismo, povoamento, hábitos,
etc.; término do ensino primário no Colégio Anglo-Mineiro: “DESTINADO a abrir-se em
princípios de março de 1914, o Ginásio Anglo-Mineiro, com sua piscina, seus recreios e
pavilhões luxuosos, devia vir se construindo desde 1912”
92
. As primeiras amizades; dificuldades
e preconceitos enfrentados no colégio por causa da pobreza de sua família; Capítulo III –
“Engenho Velho”: “A DATA BISSEXTA está num caderno do meu tio Antônio Salles: ‘29 de
fevereiro de 1916 Pedro veio para nossa companhia’”
93
. Ida para o Rio, em 1916, a fim de
estudar no Colégio D. Pedro II –; contato com o meio intelectual da capital federal; o cinema;
livrarias; contato com a literatura portuguesa e brasileira do período; costumes alimentares e
ingresso no internato do Colégio D. Pedro II.
Chão de ferro: memórias
3
foi publicado em 1976
94
. O Capítulo I “Campo de São
Cristóvão” trata da rotina do internato D. Pedro II no período de 1916-1920, convívio com os
colegas e facetas do ensino.
89
NAVA, Pedro. Baú de ossos: memórias. Rio de Janeiro: Sabiá, 1972. p. 296-297.
90
______. Balão cativo: memórias 2. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973. p. 81.
91
Ibid., p. 85.
92
Ibid., p. 116.
93
Ibid., p. 183.
94
NAVA, Pedro. Chão de ferro: memórias 3. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.
52
Nava apresenta os seguintes relatos sobre o assunto:
ESSA DECLARAÇÃO de amor à França pode ser subscrita por toda a minha
geração, salvo, está claro, poucas e aberrantes exceções. Em mim, esse estado de
espírito, melhor, esse modo de ser, derivam de Antônio Sales, de Floriano de
Brito. Mais tarde seria completado pelas companhias e pela influência literária
de Aníbal Machado, Milton Campos e Carlos Drummond de Andrade. Além
deles, trabalhou no mesmo sentido o espírito da época em que me integrei nas
humanidades: em tudo se sentia a presença da França. Não foi pela gramática
de Jean-François Halbout e pelos outros livros adotados pelo Floriano de Brito
que eu e meus colegas vivíamos naquele país admirável. Mesmo nas outras
disciplinas estudávamos textos franceses, em livros franceses. Nas matemáticas
figurava outro Jean François, o Callet, com suas Tables de Logarithmes (On y
trouve, avec sept décimales, les logarithmes des nombres jusqu’à 108.000). Que
grande chato! Quel emmerdeur! Dava-se o mesmo com a Geografia, a Física, a
Química com as páginas de Crosselin-Delamarche, Ganot e Manouvrier,
Troust e Péchard, Remy Perrier, Pizon e Aubert. A maioria dos meninos do meu
tempo, se não dominava a língua, pelo menos a arranhava o bastante para
entender esses tratadistas
95
.
No Capítulo II, intitulado “Rua Major Ávila”, encontram-se observações sobre o período
em que os parentes paternos, no Rio, residiram em rua com esse nome; férias escolares e leituras
na Biblioteca Municipal de Belo Horizonte; observações sobre a cidade, novos conhecimentos e
reencontros:
(...) Nessa minha frequência à Biblioteca é que prestei atenção num moço um
pouco mais velho do que eu, que lá passava o dia estudando. Aquilo me
humilhava, de ficar a tarde naquela literatura de segunda ordem enquanto ele lia,
estudava, tomava notas e escrevia o tempo todo. Era um jovem moreno, traços
finos, ar muito abstrato. Conhecê-lo-ia mais tarde. Também o Brasil conhecê-lo-
ia mais tarde. Era Pedro Aleixo
96
.
(...) Outra recordação dessas férias essa amável a do primeiro carnaval que
brinquei em Belo Horizonte. Claro que com a roda de amigos que mencionei e a
que só me referia chamando seus componentes: os meus distintos. Lembro como
se o estivesse vendo o grupo dos
apaches e gigoletes
97
.
95
NAVA, Pedro. Chão de ferro: memórias 3. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976. p. 25.
96
Ibid., p. 107.
97
Ibid., p. 109-110.
53
Retornando ao Pedro II e ao contato com a família paterna, nos finais de semana,
apresentamos observações sobre formas de convívio social do memorialista:
Disse que as reuniões familiares promovidas por tia Candoca eram, além de
musicais, literárias. Porque, como era moda então, o recitativo era coisa
obrigatória. Dele se encarregava Alpha Rabelo Albano, esposa de Ildefonso
Abreu Albano, primo-irmão do Joaquim Antônio. O casal aparecia sempre e
geralmente acompanhado por Mercedes, ou Maria Júlia, ou Carminha – uma das
irmãs solteiras do Ildefonso. Este era moço e tinha nessa época exatamente trinta
e dois anos. Era alto, elegante, moreno, cabelos e bigodes muito pretos, olhar
sereno e firme. Parecia um belo árabe. Conversava admiravelmente, ria pouco e
jamais perdia sua linha cerimoniosa de homem perfeitamente bem educado.
Tinha sido Prefeito de Fortaleza e o futuro reservava-lhe ocupar novamente esse
cargo, representar seu Estado na Câmara Federal e, como seu vice-presidente,
terminar o mandato de Justiniano de Serpa. Publicista e escritor, sua obra de
mais voga seria Jeca Tatu e Mané Chique-Chique ensaio polêmico e otimista
respondendo ao pessimismo de Lobato nos Urupês. Sua esposa Alpha, filha do
coronel-Presidente Marcos Franco Rabelo, era clara, alourada, olhos enormes,
vivos, muito escuros, dentes muito brancos fisionomia agradável e expressiva.
Era comunicativa, inteligente, dotada de magnífica voz e de grande talento
cênico. Isto fazia-a dizer (era a expressão da época) notavelmente os versos e
trechos de prosa que recitava. Lembro da minha emoção de quatorze anos
ouvindo-a na dramaticidade de O Cura Santa Cruz o conto
de
Daudet posto
em poema vernáculo por Gonçalves Crespo. Conhecem a história? Era coisa
espanhola e bárbara, revelando as façanhas de
O implacável carlista, o Cura Santa Cruz,
Que em nome do seu rei, e em nome de Jesus,
Da Navarra febril leva do sul ao norte
O ódio, a perseguição, o incêndio, o estrago, a morte.
Um dia cai nas mãos do fanático um jovem republicano. Impõe-se-lhe o
fuzilamento ou o viva ao rei. O moço escolhe a morte mas quer se confessar e
quer a absolvição. Decerto. E o cura senta-se para ouvi-lo. Perdoa seus pecados.
E em meio da febril convulsão da batalha,
Enquanto rompe e rasga os ares a metralha,
Viu-se o Cura depois de abençoar, ligeiro,
A fronte juvenil do heroico prisioneiro,
Pegar de uma clavina, e dando um passo, ao lado,
Varar tranquilamente o crânio do soldado.
Era sinistro. Palmas das mãos suando frio, eu armazenava os versos, juntava-os
aos de Guerra Junqueiro ouvidos ao Chagas, no Anglo e começava a socar tudo
junto nos alicerces de meu anticlericalismo
98
.
98
NAVA, Pedro. Chão de ferro: memórias 3. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976. p. 124-125.
54
Ainda no Capítulo II, encontra-se o testemunho de Pedro Nava sobre a gripe Espanhola,
transcrevendo um de seus aspectos:
(...) Dizia-se de famílias inteiras desamparadas uns com febre outros com
fome; da criança varada, sugando o seio da mãe morta e podre; dos jacás de
galinha reservados para os privilegiados, para a gente da alta e do Governo,
passando sob a guarda de praças embaladas aos olhos de uma população que
aguava. Seria verdade? Era. Posso testemunhar contando o que passei, o que
passamos, na casa em que estava pura e simplesmente fome. Conheci essa
companheira pardacenta. Lembro que depois de um dia de pirão de farinha, de
outro engabelado com restos de cerveja, vinhos, licores e azeite do alvorecer
do terceiro, sem café da manhã nem nada e da saída de um Nestico recém-
curado, pálido e barba grande, de um Ennes de Souza cara fechada, chapelão
desabado, sem gravata. Ambos dispostos a tudo. Sobraçavam cestas de vime,
iam armados de bengalório e ao fim de uma campanha de horas, voltaram. O
Ernesto trazia um saco de biscoitos Maria, um pedaço de toucinho e uma latinha
de caviar; seu tio, uma dezena de latas de leite condensado. Durante três dias
essa foi a alimentação de sãos e doentes – severamente racionada pela tia
Eugênia, como num naufrágio e como se a casa de Major Ávila fosse a jangada
dos escapados do Méduse
99
.
O memorialista contraiu a gripe e, quando se sentiu melhor, tomou conhecimento que sua
prima Nair, na mesma casa, estava agonizando:
(...) Era a Nair que caíra e estava piorando sempre. Mais um dia, o Paulo
levantou-se. Mais dois e subi me arrastando. Estava bom: que muito fraco,
tão fraco que no primeiro dia tive uma espécie de desmaio. Fui para a janela da
frente, sentei, em uma hora vi descerem três enterros malacompanhados por
Barão de Mesquita e entrei para fugir da visita triste da rua vazia, animada de
vez em quando pela passagem dum funeral. Vim devagar pelo corredor, a porta
da Nair estava aberta, parei, olhei e fiquei aterrado. Não era a moça radiosa que
eu conhecia. Aquela pessoa discreta que não gargalhava e que apenas sorria; que
não alteava a voz, que cochichava, tão baixo falava como um canto bocca
chiusa; a pele de camélia, os lábios de pétala vermelha, os cabelos prodigiosos –
tudo mudara e era como se eu a visse outra, como se outro ente, outra coisa, uma
espécie de demônio estivesse entaipado dentro dela. Envultada pelo sínoco,
tomada da influência, seus cabelos tinham perdido o brilho e o suor colava-os às
têmporas escavadas; os olhos brilhavam, mas como brasa, da vermelhidão do
99
NAVA, Pedro. Chão de ferro: memórias 3. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976. p. 202.
55
que fora o seu branco e estavam estranhamente desviados, como num
estrabismo; tinha as pálperas inchadas, as narinas inchadas, as maçãs do rosto
carmesins e contrastando com a palidez da testa, do contorno da boca e dos
lábios gretados e de cor azulada
100
.
No Capítulo III, intitulado “Avenida Pedro Ivo”, o memorialista deixa a casa dos parentes
da Rua Major Ávila e muda-se para a casa dos parentes. À noite, dorme em casa de pessoa
aparentada fazendo companhia: “A pobre senhora, com as filhas menores, não dormindo,
todas amontoadas numa cama e tiritando de medo até que chegasse o dia”
101
. Este arranjo foi
após as mortes e os acontecimentos relacionados com a gripe Espanhola. Os efeitos sobre o
memorialista estão na primeira página do capítulo:
(...) Foi nessa estada em casa da Clara que comecei as faltas de sono e insônias
de que já dei alguma notícia contando minhas noites no internato. Isso se iniciou
mesmo, para valer, depois da morte da Nair devido à morte da Nair. Eu sentia
dela uma falta obscura, como se tivesse sido amputado dum pé, duma perna,
dum braço, falta tanto mais pungente quanto seria despropositado chorar como
os outros choravam já que ela não era minha filha, nem sobrinha, nem irmã, nem
prima, nem
noiva bem-amada. Mas por não ser nada disso não poderia ser outra
coisa? Um pouco mais?
102
A insônia, que acompanhou o memorialista por toda a vida, aprofundou o seu gosto pela
leitura. Ainda nas noites que passava insone, na casa de Clara, Nava deixou observações sobre
livros e leitura:
Sem sono, no claro, procurava o que fazer ler. Foi assim que ergui devagar a
tampa da escrivaninha e descobri aqueles volumes grandes e encadernados de
escuro. Pardo? Cor de vinho? Abri um corri as capas de todos. Tinham a
designação genérica de O Romance de Fon-Fon. Eram dum sujeito chamado
Miguel Zévaco. Tinham capas berrantes e títulos sugestivos. Os Pardaillan,
Uma Epopeia de Amor, Fausta, Fausta Vencida, O Capitan, Triboulet, O tio
dos Milagres, Buridan, A Ponte dos Suspiros. Os Amantes de Veneza. Decidi-
100
NAVA, Pedro. Chão de ferro: memórias 3. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976. p. 207-208.
101
Ibid., p. 211.
102
Ibid., p. 211-212.
56
me por este, pensando que havia de ser uma história de sacanagem, figurações
em cima de gôndolas com banhos surubáticos nos canais. Não era e vi que
aquele era a continuação de A Ponte dos Suspiros. Fui a ela, interessei-me
profundamente e fiquei devendo a essa orgia de capa e espada a nota 10 que me
daria mais tarde o Delpech no exame de História Universal. (...) Nunca sob tio
Sales eu me teria dado a essa qualidade de literatura. Mas faz mal não. Ela foi
tão útil. Me ensinou muita história. A mim e a tantos outros. Não é que ela
aparece? numa reminiscência de Vinícius e num poema de Carlos Drummond de
Andrade? Está justificada... Assim enchi minhas noites em casa da Clara
103
.
O hábito de leitura de Nava foi sendo forjado desde a infância. Juliana Ferreira de
Melo
104
, no texto “A construção de si como herdeiro: Pedro Nava e os episódios de Baú de
ossos”, aborda alguns aspectos dessa questão. A autora destaca o papel da família paterna na
formação intelectual de Nava, o que é perceptível nas obras do memorialista. Estes parentes são
diferentes dos ancestrais de Juiz de Fora que, na Manchester Mineira, mantinham hábitos
escravocratas. Segundo a autora:
É interessante notar, assim, os modos pelos quais os parentes paternos
incentivavam Pedro Nava, quando menino, a ir ganhando gosto pelo mundo da
escrita. Eles o presenteavam com livros, revistas e cadernos para desenhar:
permitiam que ele circulasse nos espaços da casa destinados às atividades de
leitura e escrita, e também, muitas vezes, destinados aos encontros de familiares
e amigos para conversar; deixavam que ele, efetivamente, utilizasse esses
espaços e manipulasse os objetos que se encontravam. Além disso, sua mãe e
os familiares paternos apresentavam uma atitude muito positiva em relação a
ele, destacando-se os momentos em que o menino estava às voltas com o mundo
da cultura escrita: “Eu sentado à escrivaninha de tio Salles, desenhando e
enchendo de admiração meus pais e a roda deslumbrada das tias e tios. Esse
menino é um gênio”. Desse modo, observam-se os modos e as condições que
possibilitaram a Pedro Nava transformar-se em um herdeiro; mais do que isso,
na perspectiva da Análise do Discurso, é possível verificar as estratégias
utilizadas pelo memorialista para se (re) construir, por meio da escrita, como um
herdeiro
105
.
103
NAVA, Pedro. Chão de ferro: memórias 3. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976. p. 213.
104
MELO, Juliana Ferreira. A construção de si como herdeiro: Pedro Nava e os episódios de Baú de ossos.
Disponível em: <www.alb.com.br/anais16/sem10pdf/sm10ss08_06.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2009.
105
Ibid.
57
Ao longo dos textos memorialísticos, encontramos informações sobre a formação
intelectual do autor. Melo percebe Nava como um herdeiro: “Assim é possível identificar o que
Pedro Nava escolheu herdar, tendo em vista o que revela sua escrita, bem como sua trajetória,
documentada em estudos sobre o escritor, em pistas que se encontram fora de sua obra”
106
. Chão
de ferro: memórias 3 finda com o retorno de Nava a Belo Horizonte, onde ingressa no curso de
Medicina e no emprego público para manter os estudos.
Beira-mar: memórias 4 (1978)
– Pedro Nava dividiu o livro em quatro capítulos: Capítulo
I “Bar do Ponto”; Capítulo II “Rua da Bahia”; Capítulo III – “Avenida Mantiqueira” e
Capítulo IV “Rua Niquelina”. Trata-se de um testemunho sobre o Modernismo em Belo
Horizonte e a vida estudantil. Numerosos estudos acadêmicos têm sido dedicados ao Modernismo
em sua vertente mineira. Destacamos o estudo de Fernando Dias (1971) na obra O movimento
modernista em Minas: uma interpretação sociológica e em textos de Júlio de Souza Valle Neto:
“O nacional e o universal n´A Revista modernista mineira” (2009); “O modernismo e as
memórias de Pedro Nava” (2008); Identidade pessoal e coletiva em Pedro Nava” (2008) e O
universo particular de Pedro Nava. Dias faz uma leitura sociológica da produção literária do
grupo mineiro em revistas, periódicos, livros e sua repercusão na sociedade mineira. É pioneiro
nos estudos das relações da produção modernista e sociedade do período. Valle Neto, doutor em
Teoria Literária, tem-se dedicado especificamente à obra de Nava.
Nossas observações sobre as relações Modernismo em Minas e sociedade muito devem
aos estudos de Dias. Contudo os textos de Valle Neto, em muito, alargam o entendimento sobre a
questão. A obra de Nava é um texto de um modernista escrito na pós-modernidade. Escrita de um
septuagenário sobre sua juventude. Geração pertencente a um movimento político e literário que
propunha a ruptura com o passado. Entretanto, na proposta de construção de uma nova
nacionalidade brasileira, essa geração resgatou a arte colonial mineira
107
. Nava esteve entre os
intelectuais defensores do colonial mineiro como a raiz da cultura brasileira.
106
MELO, Juliana Ferreira. A construção de si como herdeiro: Pedro Nava e os episódios de Baú de ossos.
Disponível em: <www.alb.com.br/anais16/sem10pdf/sm10ss08_06.pdf>. Acesso em: 10 jul. 2009.
107
CHUVA, Márcia. Fundando a nação: a representação de um Brasil barroco, moderno e civilizado. TOPOI
Revista de História do Programa de Pós-Graduação em História Geral da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, p. 313-331, jul./dez. 2003.
58
Consideramos relevante a seguinte observação de Valle Neto sobre o assunto:
Como fica claro, a maior parte dos argumentos destinados a repensar o grau de
afinidade entre Nava e o modernismo original reside precisamente nesse
pressuposto: o movimento é hostil ao passado. De todo modo, é bom lembrar
que mesmo esse pressuposto tão difundido, quase banalizado, comporta
ressalvas. Sobre a caravana modernista dos paulistas a Minas histórica
recepcionada por Nava, como lemos em Beira-Mar –, Brito Broca tentava
desfazer a contradição verificada nessa viagem dos estetas do futuro pelo
barroco mineiro. Para ele, “o divórcio em que a maior parte dos nossos
escritores sempre viveu da realidade brasileira fazia com que a paisagem de
Minas barroca surgisse aos olhos dos modernistas como qualquer coisa de novo
e original, dentro, portanto, do quadro de novidade e originalidade que eles
procuravam” (Broca apud Santiago, 2002:121). Além disso, a volta às origens
da nacionalidade integraria o universo modernista
108
.
Temos, no testemunho de Nava, o interesse dos modernistas pelas vanguardas europeias.
O autor faz uma minuciosa reconstituição das obras lidas em Belo Horizonte, no período. A
participação no movimento artístico, o curso de Medicina e o emprego público são correlatos. Em
momento posterior, destacaremos as observações de Nava sobre o ensino.
Galo das trevas: memórias 5 (1981)
foi dividido em duas partes: Primeira Parte
Negro”, Capítulo Único: “Jardim da Glória à beira-mar plantado”, e Segunda ParteO Branco e
o Marrom, Capítulo I: “Santo Antônio do Desterro” e Capítulo II: “Belorizonte Belo”
comentários e evocações em sua residência no Rio: morte do sobrinho José Hipólito; codinomes
Zegão e Egon; considerações sobre a história da Medicina; reflexões sobre a profissão médica;
confronto com o Professor Werneck; amizade com a família Andrada; trabalho para eliminação
da epidemia de tifo em Sabará, Brumadinho e Santo Antônio do Monte; trabalho em Juiz de Fora
(codinome de Santo Antônio do Desterro); indisposição na cidade com o grupo de médicos da
Santa Casa; episódios que envolvem os contatos desastrosos com a Sociedade de Medicina e
Cirurgia de Juiz de Fora e alguns parentes da cidade; retorno a Belo Horizonte; início da clínica
particular; reencontro com a prostituta Biluca e fatos que assinalam a proximidade da Revolução
de 1930. Resumimos, anteriormente, os temas tratados nesse volume. Inicia-se com numerosas e
108
VALLE NETO, Júlio Souza. O Modernismo e as Memórias de Pedro Nava. Disponível em:
<www.iel.unicamp.br/revista/index.php/set/article/view/298/260>. Acesso em: 20 fev. 2008.
59
amargas páginas sobre a solidão e a velhice. Nava relata os primeiros anos como profissional em
Juiz de Fora e Belo Horizonte. Os temas relacionados com a vida profissional serão destacados
em momento posterior desta pesquisa.
O círio perfeito: memórias 6 (1983)
é apresentado com o subtítulo “O Branco e o
Marron” e subdividido em: I “Belorizonte Belo”, II “Oeste Paulista e Campo de Santana”.
Nava escreveu sobre sua atuação como médico nos acontecimentos relacionados com a
Revolução de 1930 em Belo Horizonte; impressões sobre Antônio Carlos Andrada; trabalho na
Santa Casa; episódios que envolvem o confronto do Reitor da Universidade de Minas Gerais com
estudantes; romance com Lenora; suicídio de Lenora; ida para Monte Aprazível no oeste paulista;
transferência para o Rio de Janeiro em 1933; reencontro com amigos de Juiz de Fora e Belo
Horizonte; Ismael Neri e Murilo Mendes; entrada para o Serviço Público do Rio de Janeiro na
Reforma Pedro Ernesto; introdução das sulfamidas; atividades médicas na enfermaria Genival
Londres; amizade com Afonso Arinos de Mello Franco; Academia Nacional de Medicina;
itinerários do Rio de Janeiro; comentários da Reforma Pedro Ernesto; início da influência da
Medicina norte-americana, por exemplo, a hidratação; perfis médicos e reencontro com o amigo
que recebe o codinome de Comendador. Os temas relacionados com a prática médica serão
destacados em momentos posteriores deste texto.
Temos afirmado que as Memórias de Nava são documentos para o estudo da História da
Medicina no Brasil. Ao reconstituir a vida acadêmica e profissional de seu pai, igualmente,
médico, José Nava (1876-1911), em Baú de ossos, bem como sua trajetória como acadêmico e
médico em Chão de ferro, Beira-mar, Galo das trevas e O círio perfeito, Pedro Nava contribui
para os estudos da história da Medicina Ocidental e seus aspectos visíveis na sociedade brasileira.
Em Chão de ferro e Beira-mar, escreveu textos documentais sobre o ensino médico do período,
costumes e inquietações intelectuais de sua geração. Nava reconstituiu e testemunhou os diversos
aspectos que envolveram a Medicina no período de 1890-1940. Em Balão cativo. Memórias 2,
relata que, aos dez anos, testemunhou o episódio relacionado com doença que levaria sua avó à
morte: “Assombrou-me o desvio do rosto e a expressão distante do olhar pasmo, vidrado, fixo
nos aléns. Surpreendi, depois, muitas vezes, essa expressão terrível que resulta do golpe de clava
da congestão cerebral”
109
.
109
Op. cit., p. 74.
60
Nava descreve o tratamento feito por sangrias com sanguessugas. Mostra, ainda, como
sua postura diante da profissão foi modificada em fato ocorrido na década de 1950:
(...) Prefiro então referir-me a um caso que me marcou a vida profissional e deu-
me o que me faltava no momento da formatura: otimismo e crença nas nossas
possibilidades de salvar o próximo. Mas efetivamente SALVAR empregando
recursos sem os quais, e sem a nossa presença, a morte. (...) Esse sentimento me
governou até que pude ver, produzido por minhas mãos, um milagre terapêutico.
Foi quando chefiei o Serviço Almeida Magalhães do nosso velho Hospital do
Pronto Socorro. Uma manhã encontrei num dos leitos um rapaz de cerca de 20
anos. Estado semicomatoso. Rigidez de nuca. Sinal de Kerning. Feita a punção,
vem o resultado do laboratório: meningite pneumocócica. Transmiti a meus
assistentes a sentença. Sentença de morte. Mas resolvi fazer acreditando fazer
por fazer – penicilina a LA DESESPERADA: pelo músculo, pela raque em dose
máxima. Ao fim de três dias tinha nas mãos um homem consciente, sem febre,
sentando-se na cama e salvo da morte. Salvo por mim. Mas eu também estava
daí por diante salvo, salvo pelo meu doente, salvo do pessimismo. Passei a
acreditar que me era possível, a nós médicos, viver na esperança de ser útil e
livre do cepticismo
110
.
.
Nava foi um “modernista”, como outros intelectuais de sua geração. Na década de 1920,
questionou o sentido de “ser moderno, construir uma nação e a inserção do Brasil no mundo”.
Essas questões tiveram várias respostas que se conciliaram ou se hostilizaram no governo de
Getúlio Vargas (1930-1945). As propostas modernistas de crença na Ciência e consciência de
uma missão salvadora e educadora são visíveis na Medicina do período e perpassaram pelas
observações de Nava em Galo das trevas e O círio perfeito. A biografia do médico Pedro Nava é
um texto em que podemos identificar as questões que estiveram presentes na sociedade brasileira
de fins do século
XIX
aos anos 1980 do século
XX
.
Nos diversos textos de Bourdieu e Canclini, existem destaques sobre a circulação da obra
de arte ou literária em sua referendação pela sociedade. Temos mencionado os prêmios recebidos
por Nava e alguns comentários da crítica especializada. Carlos Drummond de Andrade prefaciou
o primeiro livro de Pedro Nava – Baú de ossos: memórias.
110
MANIFESTO dos mineiros. Rio de Janeiro, 30 de março de 1977. 11 f. Datilografado. Português. Arquivo Pedro
Nava. Fundação Casa Rui Barbosa, Arquivo Museu de Literatura Brasileira (PNDV) – Recorte de o Pulso – junho de
1962. “Conte a melhor história de sua carreira”.
61
Destacamos, a seguir, algumas observações do poeta que intitulou a apresentação de “Baú
de surpresas”:
PEDRO NAVA surpreende, assusta, diverte, comove, embala, inebria, fascina o
leitor, com suas memórias da infância, a que deu o título de Baú de Ossos. Seus
guardados nada têm de fúnebre. Do baú salta a multidão antiga de vivos, pois
este médico tem o dom estético de, pela escrita, ressuscitar os mortos.
E não eles, mas também o espaço e o tempo em que suas vidas se situaram
são restituídos por um criador poderoso, que se vale da memória como serva da
arte. Pessoas, lugares, dias, fatos e objetos começam a delinear-se, a
desvendar-nos sua fisionomia e correlação, sua profunda unidade cultural e
humana, em torno de um menino que tem dimensão normal de menino, e não a
de monstro incumbido de fazer menção de tudo. Dois passados se justapõem e
formam um tecido contínuo com o presente do narrador: o seu próprio passado
de criança, e o de seus ascendentes, que vem desaguar no dele, impregnando-o
de memórias de memórias, de pré ou pós-vivências concentradas num ser
profundamente integrado no complexo familial. (Integração que não estorva o
senso crítico de um analista ao mesmo tempo carinhoso e acerbo acima de
tudo, perspicaz.)
Então, a crônica individual de Pedro Nava se converte em panorama social de
várias regiões brasileiras, pois o itinerário do sangue o faz remontar a raízes de
clã no Nordeste, e deter-se em terra carioca, antes de aflorar em Minas como
produto do entrelaçamento de famílias que são forças em movimentos no Brasil
do século 19
111
.
Drummond corrobora os estudos de Halbwacs quando afirma: “(...) a crônica individual
de Pedro Nava se converte em panorama social de várias regiões brasileiras”
112
. O fragmento
transcrito pertence a texto de duas páginas que bastaram para Drummond sintetizar o livro Baú de
ossos. Andréas Huyssen (2000), na obra intitulada Seduzidos pela memória, considera o apreço
pela escrita e leitura de Biografias e Memórias como um dos elementos caracterizadores do Pós-
Modernismo
113
. Identifica a proliferação desse tipo de literatura com os acontecimentos que
marcaram o Ocidente após a década de 1970. Destaca como marcos políticos o ocaso das
ditaduras latino-americanas, nos anos 1980, e a queda do Muro de Berlim, em 1989. Identifica,
no Modernismo, a proposta de ruptura com o passado e a crença no futuro. São propostas
111
ANDRADE, Carlos Drummond. Baú de surpresas. In: NAVA, Pedro. Baú de ossos: memórias. Rio de Janeiro:
Sabiá, 1972. p. 6.
112
Ibid.
113
HUYSSEN, Andréas. Seduzidos pela memória. Rio: Aeroplano, 2000. p. 6.
62
políticas do Modernismo: Comunismo, Fascismo e Nazismo. Desejos de construção de novas
sociedades para novos homens. Segundo Huyssen:
Desde os mitos apocalípticos de ruptura radical do começo do culo XX e a
emergência do “homem novo” na Europa, através das fantasmagorias assassinas
de purificação racial ou de classe, no Nacional Socialismo e no stalinismo, ao
paradigma de modernização norte-americano, a cultura modernista foi
energizada por aquilo que poderia ser chamado de “futuros presentes”
114
.
De acordo com as considerações do autor citado anteriormente, o Pós-Modernismo não
acredita em utopias e no futuro, sendo que a arquitetura do mundo globalizado é um bom
exemplo da afirmativa. Por não acreditar no futuro, volta-se para o passado. A explosão da
publicação de Memórias e Biografias seria decorrência dessa postura. Buscando periodizar os
termos empregados, situaríamos o Modernismo no período de 1900 a 1950 e o Pós-Modernismo,
nas décadas subsequentes. Essa divisão é tão-somente uma busca para facilitar a contextualização
histórica. Aspectos e características desses movimentos se fazem em épocas diferentes nos
diversos lugares. Pedro Nava lançou seu primeiro livro de Memórias, Baú de ossos, em 1972.
Pelo gênero literário escolhido e data de lançamento, Nava é um pós-moderno. Ele pertenceu,
contudo, a uma geração que esteve ligada ao Modernismo Brasileiro em seus diversos aspectos.
Ao reconstituir sua trajetória e a de seus antepassados nas Memórias, traça um painel
enciclopédico do Modernismo Brasileiro. Pelos motivos expostos, consideramos que as
Memórias de Pedro Nava são textos documentais sobre o Modernismo Brasileiro em seus
diversos aspectos. A trajetória do médico e literato é uma amostragem das propostas de uma
geração.
Brasília, uma cidade inaugurada em 1960, no governo de Juscelino Kubitscheck (JK), é o
ápice do Modernismo, em arquitetura e urbanismo, no Brasil. JK formou-se pela Faculdade de
Medicina de Minas Gerais em 1927 e, nessa época, foi colega de turma de Pedro Nava. O
presidente ocupa poucas páginas nas Memórias. É testemunhada a amizade entre o Presidente e o
memorialista em poucos parágrafos. JK, quando Governador de Minas Gerais, construiu o
Conjunto da Pampulha. Nesse conjunto arquitetônico e paisagístico, estão os germes da
114
HUYSSEN, Andréas. Seduzidos pela memória. Rio: Aeroplano, 2000. p. 9.
63
construção de Brasília, ícone do Modernismo. Nava, nas Memórias, também construiu um
monumento do período. O memorialista inicia a redação de suas Memórias no ano de 1969. O
Ato Institucional Nº. 5 (AI-5), em 1968, cassou os direitos políticos de JK, de diversos políticos,
simbolicamente cassando diversas propostas de uma geração que buscou, no Modernismo, a
construção de um novo Brasil
115
.
Nava passou parte de sua juventude em Belo Horizonte. A arquitetura da capital mineira é
marco da formação do imaginário dos sujeitos das Memórias naveanas. Esta foi uma cidade
construída dentro dos princípios do urbanismo de Hausmann, em Paris, e de sua influência, em
Viena. Proposta de se substituir a Colonial Ouro Preto com seus símbolos do Padroado, resquício
colonial que adentrou pelo Império. Nessa cidade republicana, valorizou-se a Higiene e a
Racionalidade. A arquitetura dos prédios públicos e residenciais Ecletismo valorizou formas
do passado, usando os materiais da industrialização. Cidade onde segmentos das oligarquias
locais tiveram expressiva participação na Revolução de 1930 e na construção da Era Vargas
(1930-1945). Em Belo Horizonte, os “futuristas”, epíteto dado genericamente aos modernistas,
questionaram a ordem vigente e propuseram a centralização para a construção de uma nova
nacionalidade. Não temos notícias da participação de JK nas discussões intelectuais com seus
colegas de curso e amigos. Contudo, foi a Pampulha, depois do Ministério da Educação e Saúde,
o marco arquitetônico de ruptura com o Ecletismo.
Desde fins dos anos 1960, tornam-se presentes, no Ocidente, sinais e percepções de
desmoronamento. O mundo sobrevivente da Segunda Guerra Mundial, polarizado em
Capitalismo X Comunismo, mostrou fissuras em ambos os lados. Negros norte-americanos, em A
Marcha para Washington, em 1963, tornam visíveis as contradições da democracia norte-
americana. Jovens atletas negros Panteras Negras nas Olimpíadas do México, erguem os
punhos em protesto contra questões raciais norte-americanas, denunciando-as. Em 1967, o Estado
de Israel invade terras de Gaza e aumenta seu território na Guerra dos Seis Dias. Desconstrói-se
todo um olhar sobre o Sionismo. Em 1968, Dubeck busca conciliar, na Checoslováquia, a
economia planejada com liberdades democráticas. A União Soviética, através do Pacto de
Varsóvia, invade o país e abafa as tentativas de desestalinização. O episódio que ficou conhecido
115
Dentre os numerosos estudos sobre as correntes de pensamento do Modernismo Brasileiro, destacamos:
CHUVA, rcia. Fundando a nação: a representação de um Brasil barroco, moderno e civilizado. TOPOI
Revista de História do Programa de Pós-Graduação em História Geral da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, v. 4, n. 7, p. 313-331, jul./dez. 2003.
64
como “Primavera de Praga” aprofundou o descontentamento com o “Socialismo Real”, nas
discussões dos marxistas ocidentais.
Ficou conhecida como “Maio de 1968” a série de acontecimentos que se iniciaram nas
universidades de Nanterre e Paris. Protestos estudantis contra o sistema educacional e o
estabelecido. Protestos que se estendem aos trabalhadores e se alastram pela Europa e Estados
Unidos. Caracterizam-se os protestos e seus desdobramentos pela ampliação dos conceitos de
“política” e de “liberdade”. Eros e a civilização, de Herbert Marcuse (1981), é a radiografia
identificadora de liberdades que devem ser buscadas. Liberdade dos corpos, dos gêneros e
convívio com as diferenças. O movimento hippie, os Beatles e os protestos contra a Guerra do
Vietnan assinalam aspectos da contracultura e do questionamento ao estabelecido.
Para a América Latina, a década de 1960 foi a de esperanças e destroçamentos das
mesmas. A vitória da Revolução Cubana, de caráter comunista, em 1959, revitaliza o pensamento
de esquerda no continente. A década é palco de surgimento de organizações populares,
movimentos estudantis, propostas de reformas políticas, sociais e culturais. Pelo continente,
jovens se engajam em protestos e propostas de construção de novas sociedades. Esses
movimentos foram derrotados por forças de direita. Ditaduras militares apoiadas pelos Estados
Unidos se apoderaram do continente e construíram sociedades que se caracterizaram pela
violência e exclusão social.
Em 1960, foi inaugurada Brasília. Apogeu e início do declínio do Modernismo em
arquitetura. Em 1964, militares depõem o presidente eleito e instalam o governo militar. Em
1968, as contradições entre os que tomaram o poder e segmentos da sociedade se tornam
evidentes. O AI-5 suspende direitos civis e instala-se a ditadura militar, que sobreviverá até os
anos 1980. Em 1969, o médico Pedro Nava, colega de turma de JK, aposenta-se do Serviço
Público e começa a redação de suas Memórias. Costuma-se identificar o período como “Anos de
Chumbo”. Intelectuais foram banidos da cena pública, políticos foram cassados, a censura
tornou-se onipresente nos meios de comunicação e nas universidades. Nesse contexto, deu-se a
escrita e a divulgação das Memórias. Nava morreu em 1984, ano de visibilidade das “Diretas Já”,
movimento identificador da organização de forças da oposição.
Nas três últimas décadas do século
XX
, buscou-se a desconstrução da Modernidade.
Globalização, flexiblização de leis trabalhistas, direitos das minorias, estudos culturais, etc. são
palavras que marcam o período. Discutem-se as preocupações com o sujeito na História. Na
65
impossibilidade de se construírem novas sociedades com revoluções, buscou-se a luta por
segmentos segregados, maiorias minorizadas economicamente. A “atenção” dada ao sujeito
tornou o período receptivo às Biografias, Autobiografias e Memórias. Entendemos a obra
naveana como uma “escrita de si”, que se constitui como uma amostragem de um grupo de
intelectuais e profissionais que tiveram ativa participação na sociedade brasileira, ao longo do
século
XX
. Reconhecemos, como “escrita de si”, diversos tipos de correspondências, biografias,
autobiografias, entrevistas e memórias. O assunto tem merecido atenção no mundo acadêmico em
diversas áreas. Consideramos textos marcantes sobre o assunto: Jacques Lee Goff (1988)
História e memória; Maurice Halbwacs (1950) A memória coletiva; Philippe Lejeune (1975)
O pacto autobiográfico; Pierre Nora (1984) Entre memória e história: a problemática dos
lugares e o de Pierre Bourdieu (1996) A ilusão biográfica. Os autores estudam os diversos
aspectos que envolvem a memória e as escritas de Memórias. Ocorrem, nessa atividade, aspectos
mencionados por Líllian Hellman (1980), em seu livro de memórias intitulado Pentimento: um
livro de retratos:
À medida que o tempo passa, a tinta velha em uma tela muitas vezes se torna
transparente, quando isto acontece, é possível ver, em alguns quadros, as linhas
originais: através de um vestido de mulher surge uma árvore, uma criança
lugar a um cachorro e um grande barco não está mais em mar aberto. Isto se
chama pentimento, porque o pintor se arrependeu, mudou de ideia. Talvez se
pudesse dizer que a antiga concepção, substituída por uma imagem ulterior, é
uma forma de ver, e ver de novo, mais tarde.
Essa é a minha única intenção a respeito das pessoas neste livro. A tinta ficou
velha, e quis ver como me pareciam antigamente, e como me parecem agora
116
.
Os estudos acima mencionados tratam de questões que envolvem a escrita de Memórias.
Partindo dos trabalhos desses autores, historiadores brasileiros escreveram obras relevantes sobre
o assunto. A temática tem sido abordada na leitura de textos literários e estudos sobre História
Oral. Cumpre ressaltar que não pretendemos discutir a bibliografia sobre o assunto “memória”.
Pontuaremos aspectos relacionados com a memória que se fazem relevantes e são destaques em
116
HELLMAN, llian. Pentimento: um livro de retratos. 2. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora,
1980. p. v.
66
nossa pesquisa. O primeiro destaque a ser feito é o que se volta ao passado com o olhar do
presente. As observações feitas são baseadas no texto de Halbwacs, mencionado anteriormente.
Pedro Nava começou a redação de suas Memórias em 1969, aos 66 anos. Partindo de
recortes, anotações e pesquisando em jornais, iniciou seu trabalho literário. Escrita de um velho,
amargurado com a aposentadoria, a velhice, e sujeito a crises depressivas que o acompanharam
por toda a vida, aspectos encontrados ao longo da obra. Sim. Olha-se para o passado com o olhar
do presente. A pergunta feita pelo historiador é a seguinte: como se forma este olhar? Olhar de
Pedro Nava. Achamos relevante o destaque dado à questão das Memórias nas palavras do
memorialista.
Nava deixou reflexões sobre a memória em entrevistas e ao longo de sua escrita literária.
Buscamos, assim, fazer uma apresentação de como a questão da memória e as observações
memorialísticas foram abordadas por Nava, cujos escritos consideramos de igual importância
para os estudos da sociedade brasileira, como os textos de Gilberto Freyre (1933) Casa Grande
& Senzala, Sérgio Buarque de Holanda (1936) Raízes do Brasil e Caio Prado nior (1942) – A
formação do Brasil contemporâneo. O sucesso de público e crítica fez com que o autor
concedesse numerosas entrevistas à imprensa falada e escrita. As perguntas referentes à memória
foram comuns nesses momentos. Recortamos trechos sobre o assunto nos livros de Memórias de
Pedro Nava e observações sobre a memória apresentadas pelo memorialista. Ainda, destacamos
alguns textos buscando exemplificar o aspecto enciclopédico das Memórias.
Pedro Nava foi médico (1927-1968). Na juventude, participou ativamente do Movimento
Modernista, em sua vertente mineira, em Belo Horizonte, como já visto anteriormente. Foi
considerado promissor talento em artes plásticas. Contudo, após a formatura, dedicou-se
ativamente à Medicina, escrevendo textos de caráter científico, apresentados em congressos ou
publicados em órgãos especializados, discursos em eventos da área. Também incursionou em
história da Medicina por meio da escrita dos livros Território de Epidauro (1947) e Capítulos da
história da Medicina (1949), também já mencionados. Em vida, doou seus papéis, anotações,
rascunhos, documentos, etc. ao Arquivo do Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa Rui
Barbosa, no Rio de Janeiro.
Nava aposentou-se em 1968, momento em que começou a redação das Memórias, que
pretendia ser tão-somente um livro que ficaria no âmbito familiar. Incentivado por amigos, em
1972, publicou Baú de ossos: memórias. Seguiram-se a publicação de mais cinco livros. Escrevia
67
os capítulos iniciais do sétimo, Cera das almas: memórias 7, quando, em 1984, suicidou-se na
cidade do Rio de Janeiro
117
. As experiências pessoais do autor aparecem no primeiro volume
Baú de ossos: memórias – e vão até 1937, em O círio perfeito: memórias 6. Portanto, as
informações biográficas contidas nas Memórias terminam quando o autor tinha 34 anos. As
informações posteriores foram organizadas a partir de consulta a seu arquivo.
Nava, em entrevista, explicou os motivos que o levaram à escrita de suas Memórias:
Eu comecei a escrever as memórias para mim. Para guardar recordações
familiares, para não deixar que fossem esquecidas, já que eu tinha boa memória.
Mas a coisa foi se desenvolvendo e foi aparecendo um certo espírito literário
dentro daquilo. Eu sempre procuro escrever com muito cuidado, de modo que o
livro foi nascendo, mais ou menos aos poucos. Do desconchavado inicial foi
tomando mais forma e de um volume para outro, mais ainda. Inicialmente, fiz
aqui em casa leituras para minha família. Espalhou-se a notícia de que eu estava
escrevendo. E alguns amigos quiseram ler. Entre esses, o Fernando Sabino, o
Carlos Drummond. E eles deram a ler ao Oto Lara Rezende, ao Hélio Pelegrino,
a várias pessoas. E todos então me inventaram na pessoa do homem de letras,
dizendo que eu tinha de publicar, que aquilo não era uma coisa para ficar apenas
como um arquivo particular, um arquivo secreto. Novamente foram os amigos
que me empurraram
118
.
Os amigos mencionados eram pessoas de destaque no meio intelectual e editorial no Rio
de Janeiro. Nas palavras de Nava:“E todos então me inventaram como homem de letras”,
destacam-se aspectos presentes na obra de Bourdieu. O capital social de Nava, conceito
desenvolvido pelo autor francês, no caso, amizades com os intelectuais citados que tiveram
acesso a seus escritos. Essas pessoas eram influentes no mercado editorial e estimularam a
publicação das Memórias. Aparentemente, o projeto de Nava era a escrita de um só livro Baú
de ossos: memórias (1972), não enumerado. Supomos que o sucesso junto ao público e crítica
estimulou o autor a trilhar o caminho do memorialismo. Vale lembrar que os livros posteriores
117
O suicídio, em pleno sucesso, foi divulgado pela imprensa, que não falou sobre a causa do mesmo. Quando
lançado o livro de VENTURA, Zuenir. Minha história dos outros. São Paulo: Planeta, 2004, uma luz se fez sobre a
questão. A parte intitulada “O suicídio mal contado” (p. 153-155) tratou da morte de Nava. Esclareceu que o
suicídio foi causado pela pressão que o memorialista vinha sofrendo por parte de um jovem homossexual com quem
mantinha relacionamento. Este teria ameaçado Nava com uma foto comprometedora. Após receber um telefonema,
Nava saiu de casa, sentou-se em um banco de jardim e desferiu um tiro no ouvido. Intelectuais ligados ao
memorialista pediram para que a Imprensa não publicasse a notícia e as fotos. Eles foram atendidos.
118
MANIFESTO dos mineiros. Rio de Janeiro, 30 de março de 1977. 11 f. Datilografado. Português. Arquivo
Pedro Nava. Fundação Casa Rui Barbosa, Arquivo Museu de Literatura Brasileira (PNDU-53).
68
são enumerados. Os títulos são significativos e remetem ao conteúdo e ao desespero do autor, que
culminou com o suicídio. Baú de ossos é referência a esse objeto, feito em madeira, onde uma tia
guardava os ossos de uma filha falecida na adolescência. Balão cativo remete ao balonismo em
Juiz de Fora, no início do século
XX
. Chão de ferro trata da mudança da família para a região
produtora desse minério Belo Horizonte. Beira-mar relata experiências no Colégio D. Pedro II,
no Rio de Janeiro, e o curso de Medicina, em Belo Horizonte. Galo das trevas refere-se ao Ofício
das trevas nas cerimônias noturnas dos três dias da Semana Santa que antecedem ao sábado. A
igreja fica iluminada apenas por um candelabro de 13 pontas (Galo das trevas) que vão se
apagando. O círio perfeito: memórias 6 o círio é o símbolo mais importante da Vigília Pascal.
Em meio à escuridão, acende-se um grande círio em uma fogueira previamente preparada. A vela
tem uma inscrição em forma de cruz, acompanhada da data do ano e das letras Alfa e Ômega, o
princípio e o fim. Tem incrustados cinco cravos de incenso, simbolizando as cinco chagas de
Cristo. Fica aceso em todas as celebrações durante as sete semanas do tempo pascal, até à tarde
do domingo de Pentecostes. Nava escrevia os capítulos iniciais de Cera das almas: memórias 7,
quando ocorreu o suicídio. Cera das almas é a dominação popular dada aos restos das velas que
foram acesas durante a Semana Santa. É costume os sacristãos venderem para os fiéis as ceras
restantes das cerimônias litúrgicas.
Ainda na entrevista anteriormente transcrita, Nava explica a razão de ter iniciado a escrita
de Memórias: "Pelo fato de a progressão de nossa vida nos levar a um confinamento, a uma
redução de atividades, a uma redução de amizades. E esse vácuo que vai-se fazendo nos traz para
uma vida mais interior. E eu aproveitei e comecei a conviver mais comigo mesmo"
119
.
Em entrevista à Revista Veja (Páginas Amarelas), fala da longa e inconsciente preparação
para a escrita e a importância da profissão na elaboração das Memórias:
(...) Mas tenho a sensação de que inconscientemente tinha a ideia mais
tempo. Mesmo para mim, meu trabalho, quando relido, a impressão de uma
preparação muito maior. E, de fato, trinta ou quarenta anos eu registro coisas
e sou incansável guardador de papéis
120
.
119
MANIFESTO dos mineiros. Rio de Janeiro, 30 de março de 1977. 11 f. Datilografado. Português. Arquivo Pedro
Nava. Fundação Casa Rui Barbosa, Arquivo Museu de Literatura Brasileira (PNDU-53).
120
VEJA. São Paulo: Abril Cultural, 17 abr. 1974. p. 4.
69
As menções ao confinamento, solidão, desespero e forças inconscientes são constantes
nas observações do autor. Lendo Pedro Nava, bem como as considerações de Ecléa Bosi e de
Halbwacs sobre a memória, podemos observar que, nos momentos de maior introspecção e
solidão, o memorialista está acompanhado pelos que partilharam de sua trajetória. A escrita de
Memórias é resultado de um olhar para o passado e sua retomada. Olhar estimulado pelas
questões do presente e selecionado pelo mesmo. Nava conheceu os princípios da Psicanálise
quando estudante e testemunha a influência desse conhecimento em sua trajetória pessoal. Em
momento posterior deste capítulo, desenvolveremos aspectos concernentes a essa questão.
Como último texto desta amostragem de entrevistas sobre o tema “memória” nas
Memórias de Pedro Nava, transcreveremos um fragmento da entrevista que o autor concedeu a
José Mariano Pereira Filho. Nava fala das Memórias e da influência de Proust na observação
desse assunto:
– Fala-se muito da influência de Proust em sua obra. O que pensa a respeito?
– Minha primeira leitura não foi entusiástica. O Martins de Almeida dizia que ele
deveria ser tomado às colheradas, e não de uma vez, como em chope duplo.
Gosto muito do Proust. Até hojeo dispenso a velha edição na qual o li. Fiz um
índice que me é valioso. Tenho um amigo médico, Hélio de Lima Castro, que é
um conhecedor admirável do autor francês. Sempre que descobrimos alguma
coisa nova na Recherche nos escrevemos. Comparo o estilo de Marcel Proust a
uma orquestra. Só o passar dos anos, o estudo, a intimidade, nos dão a capacidade
de distinguir os instrumentos. Existem dois tipos de memória: a voluntária e a
involuntária. A primeira é quando decidimos reconstruir um período da existência
por vontade própria. A segunda ocorre por associações. Quando visitei a casa de
minha infância, na rua Aristides Lobo, ela estava tão diferente que não pude me
lembrar de quase nada. De repente acendeu-se uma luz, e apareceu o desenho no
vidro da janela. Isso bastou para me restituir a casa antiga, o meu pai, a vida
dele, de maneira proustiana
121
.
Marcel Proust (1871-1922) é referência em diversas Vanguardas (1890-1930). A escrita
proustiana dos sete volumes que compõem a principal obra do autor intitulada Em busca do
tempo perdido (2006) marcou profundamente a geração. Pela primeira vez, a homosexualidade
foi abordada em obra literária perpassada por conflitos e solidão. A influência da cultura francesa
121
MANIFESTO dos mineiros. Rio de Janeiro, 30 de março de 1977. 11 f. Datilografado. Português. Arquivo
Pedro Nava. Fundação Casa Rui Barbosa, Arquivo Museu de Literatura Brasileira (PNO-24).
70
foi determinante na geração de Pedro Nava. O memorialista, atuante no movimento literário e
artístico modernista, em especial, foi admirador e influenciado por essa cultura. Em artes
plásticas, pelas Vanguardas parisienses, e, na Medicina, pelas propostas clínicas francesas. Nava
conheceu a Psicanálise por tradução francesa. Se Halbwacs identifica os fatores sociais que
conformam a memória individual, Freud estudou aspectos na ocorrência da mesma. Vale lembrar
que Pedro Nava conheceu também os textos freudianos. Nas palavras do memorista, eles tiveram
importância em sua vida profissional. Diríamos que, igualmente, tiveram influência em sua
escrita que é a “escrita de um médico”, em suas palavras. As observações com referências à
Psicanálise são constantes nos escritos de Nava. Em O círio perfeito: memórias 6, relata como
conheceu a Psicanálise:
(...) E como a conversa dos doentes é reveladora! Como todos, mesmo os chatos,
se tornam interessantes quando falam de seus males. O Egon sabia dessa
necessidade de conversar com o paciente, aprendera isto do Ari e não do Ari
mas de seus outros mestres e amigos – Galba Moss Veloso e Iago Pimentel que
primeiro tinham lhe falado em Freud. Ele tinha lido alguma coisa do bruxo de
Viena La psychopathologie de la vie quotidienne, Totem et tabou, Introduction
à la psychanalyse – e vira que sem conversa não se chega a nada e que é
conversando que a gente se entende... Lera os livros nas traduções de Payot. Não
sabia bem por que, mas destas pessoas e destes livros é que viera sua mania de
conversar com os doentes, de pesar as palavras deles e depois as suas
122
.
Em Beira-mar: memórias 4, o memorialista refere a si como Egon, codinome que Nava
adotou nos três últimos livros de Memórias. A afirmativa acima identifica as fontes em que Nava
teve contato com a Psicanálise. Procurando informações sobre os mestres de Nava, na questão do
contato com a Psicanálise.
122
NAVA, Pedro. O círio perfeito: memórias 6. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. p. 213-214.
71
Fomos informados que Iago Pimentel e Galba Moss Veloso foram atuantes como
psiquiatras, e Ari Ferreira foi clínico e tisiologista em Belo Horizonte
123
. Em outro momento,
comentando sobre o conteúdo de A Revista, Nava disse: “Com relação ao estrangeiro aparecem
os primeiros conceitos, emitidos em Minas, sobre Proust, divulga-se o movimento dada, o
suprarrealismo, Erick Satie, Cocteau. Iago Pimentel difunde inauguralmente no nosso Estado
ensinamentos sobre a Psicanálise e Freud”
124
. Suprarrealismo, mencionado por Nava, é mais
conhecido como Surrealismo e, como os outros nomes citados, é perpassado pelo conhecimento
de textos freudianos.
Em Chão de ferro: memórias 3 e Beira-mar: memórias 4, encontramos uma minuciosa
reconstituição do curso de Medicina e da vida social de Belo Horizonte nos anos 1920. Entre os
anos de 1921 e 1923, Nava, com amigos, envolveu-se com atividades intelectuais que são parte da
história do Modernismo em Minas Gerais. Reuniam-se no Café Estrela, na Rua da Bahia, daí o
epíteto de Grupo Estrela a esses jovens. Destacam-se: Carlos Drummond de Andrade, Abgar
Renaut, Emílio Moura, Aníbal Machado, João Alphonsus, Milton Campos, João Pinheiro Filho,
Gabriel Passos, Pedro Aleixo, Hamilton de Paula, Heitor Augusto de Souza, Francisco Martins de
Almeida, Gustavo Capanema, João Guimarães Alves, Alberto e rio Álvares da Silva Campos e
Mário Casasanta. Posteriormente, juntaram-se ao grupo: Dario de Almeida Magalhães, Ciro dos
Anjos, Guilhermino César, Ascânio Lopes, Luis Camilo de Oliveira Neto e outros
125
. Esses nomes
foram atuantes nas diversas esferas da sociedade brasileira.
123
Iago Pimentel nasceu em São João del Rei, foi diretor do Instituto de Educação de Belo Horizonte e professor de
Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Filho de Aureliano
Pereira Corrêa Pimentel, também médico psiquiatra de São João del Rei. Informação prestada pela Profª. Rita de
Cássia Marques – pesquisadora do Centro de Memória da Medicina – UFMG.
Galba Moss Veloso nasceu em Cataguases, em 1889. Formou-se em 1915. Clinicou em Itaguara, Cláudio e Pará de
Minas. Professor da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte em 1927. Fez parte do corpo clínico do Raul Soares,
assumindo a direção em 1934. Sob sua liderança, o Instituto Raul Soares e toda a psiquiatria mineira atingem
grande prestígio nacional. Foi membro da redação da Revista Arquivos da Assistência Hospitalar. Em setembro de
1938, funda os Arquivos de Neurologia e Psiquiatria. Defendeu tese de doutoramento intitulada Em torno do sinal
de Babinski. Em 1945, em consequência de seu envolvimento com o Manifesto dos Mineiros, foi demitido do cargo
do Raul Soares. Faleceu em 10 de março de 1952. In: GUSMÃO, S. N. S.; CORREA, E. J. 85 anos da Faculdade
de Medicina da UFMG. Belo Horizonte: Faculdade de Medicina da UFMG/COOPMED, 1997. p. 98.
Ari Ferreira, tisiologista, filho do fundador da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte – Ari Ferreira.
124
NAVA, Pedro. Beira-mar: memórias 4. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. p. 220.
125
VALE, Vanda A. Literatura e História da Medicina na obra de Pedro Nava (1903-1984). Curso ministrado no
XIII Congresso da ANPUHMG. Belo Horizonte, 2002.
72
Drummond e Nava tiveram ativa participação na edição de A Revista (três números) que,
em seu lançamento, em 1925, trouxe artigo de Iago Pimentel, do qual transcreveremos um
fragmento:
Sobre a Psycho-analyse.
Sobre a doutrina de Freud ou psycho-analyse, tão divulgada, tão mal conhecida e
tão mal interpretada, procuraremos dar aqui, em ligeiros traços, um rápido
apanhado, remetendo o leitor que tiver interesse em melhor conhecê-la, à leitura
de uma série de conferências, feita pelo próprio Freud, em 1909, na Universidade
de Clark, nos Estados Unidos, cuja publicação iniciaremos no próximo número
desta revista e onde se acham succintamente expostos todo o histórico e evolução
da doutrina.
Freud tem uma concepção dynamica da vida psychica, que elle considera como
um systema em evolução de forças antagonistas ou componentes; uma
pequena parte dessas forças constitue o consciente do indivíduo, em opposição a
outra parte, o inconsciente, composto de elementos muito mais numerosos e,
sobretudo, muito mais activos no determinismo da actividade mental. Estes
ultimos elementos em geral de conteudo erotico, estando muito freqüentemente,
em oposição com as tendências da personalidade consciente do individuo,
educado e submetido às coersões moraes, ethicas e sociais da civilização, ficam
como que rejeitados no inconsciente e ahi são mantidos por uma força de
resistencia. Mas por estarem reprimidos, esses elementos, não perdem o seu
dynamismo e continuam permanentemente a influenciar os phenomenos
psychicos, esforçando-se constantemente por virem à tona da consciencia, que
não os podendo tolerar na brutalidade e sua nudez, os recebe disfarçados e
desfigurados e os exteioriza, symbolicamente, por meio de varios phenomenos:
no homem são, por tendencias artisticas, literarias, particularidades do caracter,
sonhos, etc., no doente, por obsessões, hallucinações, delírios, dissociações da
consciencia da personalidade, em uma palavra, por symptomas de nevrose e
psyco-nevrose. Tal é, em resumo, a doutrina de Freud ou psycho-analyse.
Como muito bem diz E. Regis, a doutrina de Freud não deixa de ter grandeza, e a
grandeza não de uma doutrina psychologica, mas também, como o fizeram
observar de uma doutrina religiosa. Assim se explica a sua repercussão e a
vehemencia apaixonada com que tem sido, quer defendida, quer combatida.
Freud não é o que se possa chamar propriamente um philosopho. Sua theoria
surgiu simplesmente da observação de um medico que, preocupado com dar
allivio a seus doentes, procurava, para tentar removê-los, interpretar os symtomas
estranhos, e até então mysteriosos, das nevroses e psycho-nevroses. “Antes de
tudo, impelliu-me a necessidade pratica”, diz o proprio Freud.
E foi assim que, explorando minuciosamente, analisando com paciente
curiosidade a alma de seus doentes, ao espírito obs...
126
126
BRASIL, Psicanálise e Modernismo. São Paulo: MASP, 2001. Esta transcrição encontra-se, também, na
Internet, na seguinte página sobre o alcoolismo: Disponível em: <http:zzp.com.br/html/comentario90.htm> Acesso
em: 5 jun. 2008.
73
As informações biográficas sobre Iago Pimentel, conseguidas por nós, são fragmentadas.
Sabemos que foi psiquiatra do Hospital Raul Soares e diretor do Instituto de Educação de Belo
Horizonte. Encontramos um livro de sua autoria Noções de Psychologia aplicadas à educação
e, na primeira página, há informação de que o autor é professor de Psicologia Educacional na
Escola Normal de Belo Horizonte. O livro, provavelmente, foi escrito como um manual na
formação de professores, espaço social pioneiro nos estudos da Psicologia. No capítulo I “Os
methodos de estudo da Psychologia” – destaca:
O acervo de conhecimentos psychologicos colhidos com o auxílio do methodo
pathologico é hoje relativamente avultado. Inestimaveis dados sobre a
linguagem, a memoria, a attenção, a vontade, a affectividade, conseguidos por
meio da observação de individuos que, por qualquer motivo, apresentam uma
anormalidade do espirito são quasi incontaveis. Basta lembrar que, de estudos
feitos em nevropathas, sobretudo em hystericos, é que tanto Janet como Freud
partiram, para poder explicar muitos dos mais misteriosos phenomenos que se
passam na alma humana
127
.
Nava estudou Psiquiatria no sexto ano (1927) do curso de Medicina, disciplina ministrada
por Galba Moss Veloso. Sobre a disciplina e o contato com o professor, comentou:
O Docente Galba Moss Veloso era apenas um pouco mais velho que seus alunos
e vários dentre nós tínhamos a prerrogativa de sermos seus amigos de fora da
Faculdade. (...) Ele frequentava muito o nosso Grupo do Estrela, sempre com seu
inseparável Iago Pimentel. Eram ambos particularmente amigos de Alberto e
Mário Campos e por intermédio desses dois é que vim conhecer aqueles jovens
médicos. Eles se distinguiam pelo fino humanismo e pela cultura geral que eram
sua marca. Para mim foi um prazer encontrar entre meus mestres do sexto ano o
Galba, como eu o chamava, que nossa convivência e simpatia tinham
permitido que eu lhe tirasse o “doutor” e não precisasse lhe dar agora o
“Professor”. A ele devo essa admirável experiência do mestre próximo e
acessível e as vantagens que disso advêm para o aproveitamento de seus alunos.
Muito atualizado, o Galba procurou nos dar um conhecimento aproximado da
importância da Psiquiatria, da classificação das doenças mentais, detendo-se
sempre, na prática, quando os pacientes do Raul Soares lhe permitiam mostrar
quadros ao vivo. Mais do que isto, foi do Galba que ouvimos os primeiros
ensinamentos sobre o
valor da
Psicanálise como recurso de indagação
127
PIMENTEL, Iago. Noções de Psychologia aplicadas à educação. São Paulo: Melhoramentos, [s. d.]. p . 19.
74
psicológica e a profunda revolução que Freud e seus seguidores representavam
para a Psiquiatria
128
.
Até este momento, nossa busca foi a identificação das possíveis fontes de conhecimento
da Psicanálise por Nava, procurando esclarecer como isso se fez presente em seus escritos e
como o autor determinou suas observações sobre as relações médico-paciente. Encontramos
diversas observações sobre essa questão. Por problemas de espaço, escolhemos um fragmento
de um texto da obra memorialística e outro dos estudos de história da Medicina. Encontramos,
no último livro de Memórias intitulado O círio perfeito: memórias 6, as seguintes
observações:
O médico precisa duma grande curiosidade de si mesmo e de suas reações diante
dos fatos, das doenças e dos doentes para saber se está agindo bem e dentro do
interesse primacial do seu paciente. Em outras palavras, deve se analisar em
todas as circunstâncias procedendo a um verdadeiro exame de consciência (no
sentido católico) ou a uma severa autocrítica (no sentido marxista-leninista). (...)
Pois bem, grande número de erros vem do estado de punição que o prático quer
cominar ao seu doente por motivo qualquer principalmente pelos motivos de
rejeição pessoal, marginalização e discriminação que qualquer coisa no paciente
torna-o passível aos olhos do seu médico. Uma simples antipatia dele pelo caso é
o bastante. E como são antipáticos os antipáticos mesmo, os chatos, os pegajosos,
os gliscroides, os maníacos, os incuráveis, os repugnantes, os grandes doentes
sem mais nenhuma defesa ou remédio e para os quais os canalhas aventam a
necessidade da eutanásia. Mas são todos criaturas humanas da importância
imensa que cada indivíduo se com todo direito. Cada um pode cantar a letra
daquele velho fox I’m siting on the top of the world... Cada doente deve ser
julgado pelo como ele se julga e não pelo julgamento que faz dele o seu curão.
(...) O outro polo disto são o diagnóstico a que não se chegou e a terapêutica
errada ou dolorosa tudo dado ou feito com caráter o mais curativo, mas
punitivo
129
.
Nos arquivos de Pedro Nava e em seus escritos, não encontramos informações sobre
experiência de Nava como paciente da Psicanálise, mas as questões dessa disciplina e referências
à mesma são constantes. Em Território de Epidauro, publicado em 1947, Nava dedicou-se a
observações de vários aspectos históricos da Medicina, a exemplo: Algumas origens da Medicina
128
NAVA, Pedro. Beira-mar: memórias 4. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. p. 381.
129
NAVA, Pedro. O círio perfeito: memórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. p. 227.
75
brasileira; Apontamentos sobre as origens da Medicina espanhola; Apontamentos para o estudo
dos primórdios da cirurgia vascular no Brasil; As origens francesas da Medicina brasileira, etc.
Destacamos Revivescências escrito dividido em duas partes. Em Revivescência I (Esboço
histórico e interpretativo da posição do espírito do doente diante do tratamento), apresentou um
sumário no qual sintetiza os assuntos tratados: posição do espírito do doente em relação ao
tratamento, determinado pelo psiquismo profundo. Nava citou a pesquisa de Mário de Andrade
(1980) Namoros com a Medicina, trabalho antropológico. Percebemos, então, que Nava, ao
pretender escrever sobre a história da Medicina, fez observações de caráter interdisciplinar,
postura valorizada na década de 1990.
Na obra Território de Epidauro,
destacamos a influência freudiana no seguinte comentário
de Nava:
É sempre muito interessante, para o médico observador, verificar a posição e as
reações obscuras do psiquismo dos doentes, com relação aos remédios e
tratamentos que lhes são impostos. E a análise dessas simpatias e antipatias,
aparentemente sem explicação, vai mostrá-las radicando nessas dobras da
personalidade, onde vivem sua vida profunda, as ideias mágicas, os complexos
de culpa com as necessidades correlatas de punição, os conceitos de
inviolabilidade de todo individual, os instintos de comunhão com a energia
universal
130
.
Nava tratou, no texto, da postura dos pacientes diante de determinados tratamentos e como
estes podem estar vinculados a aspectos mágicos. Destacamos duas das diversas observações
feitas pelo autor: a) correlação do uso das cataplasmas, emplastros, sinapismos, ventosas, etc.,
como agentes que castigam e aliviam; b) posturas do paciente diante da cirurgia em que é
percebida a necessidade de conservação colocada ao lado da cerimônia de purificação das
possíveis culpas responsáveis pelas moléstias.
Em Revivescências II, sumarizou os temas com o subtítulo: Complexo de vísceras e
hormonioterapia”. Nava observou como o interesse do homem por seu corpo identifica a
influência das sceras sobre o comportamento humano nas expressões “maus bofes”,
“atrabiliário”, “fígado podre”, etc.
130
NAVA, Pedro. Território de Epidauro. Rio de Janeiro: C. Mendes Júnior, 1947. p. 17-18.
76
Destacamos de Revivescências II o seguinte fragmento:
(...) As transfusões de sangue atendem ao psiquismo profundo dos doentes, pelo
seu coeficiente de prodígio e, mais ainda, pelo que elas representam de conteúdo
real e simbólico de incorporação da vida alheia. A anuência jubilosa do paciente
que deseja, pede e consente nesses tratamentos é, ainda, tênue lembrança
antropofágica. Cada um de nós possui adormecido no subconsciente o papão, o
ogre, o vampiro
131
.
Pedro Nava foi um modernista brasileiro. Homem que viveu por 80 anos no século XX.
Testemunha que observou e relatou aspectos da sociedade brasileira no período de 1890-1940.
Seus escritos sobre a Medicina alargam o conhecimento sobre o Modernismo. O movimento tem
merecido estudos, predominando os centrados no Rio e em São Paulo. Entretanto, a vertente do
Movimento Modernista em Belo Horizonte foi ativa e marcou a sociedade brasileira, como
pudemos ver nos nomes transcritos anteriormente. Estudos acadêmicos têm-se debruçado sobre o
período, em Minas, como mencionamos anteriormente
132
. São estudos que se preocupam com a
política, sociedade e cultura. Na leitura da obra de Nava, percebemos que a Psicanálise foi um
importante aspecto do Modernismo em sua vertente mineira. Sociedade “dissecada” por Nava.
Propositadamente, adotamos vocábulo que diz respeito aos estudos de Anatomia, disciplina que
sempre encantou o autor. Destacamos o texto que se encontra em Beira-mar: memórias 4, obra
em que Nava falou das possíveis razões de seu apreço aos estudos anatômicos:
DOTADO de espírito visual, dono de uma memória óptica que poucas vezes
falha, ao ponto de saber, até hoje, se na página da direita ou na da esquerda de
um livro que li muitas vezes (o Testut, por exemplo, Descritiva e Topográfica) e
na dita página, se no alto, meio ou embaixo, está a figura ou o trecho que procuro
– essa prenda concorreria para fazer de mim o grande estudioso de Anatomia que
sempre fui. Se eu tivesse tido conselheiros vocacionais a orientar-me no curso
131
NAVA, Pedro. Território de Epidauro. Rio de Janeiro: C. Mendes Júnior, 1947. p. 26.
132
Destacamos: BOMENY, Helena. Guardiães da razão: modernistas mineiros. Rio de Janeiro: EDFRJ/Edições
Tempo Brasileiro, 1994. BUENO, Antônio Sérgio. O modernismo em Belo Horizonte: década de vinte. Belo
Horizonte: UFMG/PROED, 1982. DIAS, Fernado Correia. O movimento modernista em Minas: uma interpretação
sociológica. Brasília: Ebrasa, 1971. CURY, Maria Zilda Ferreira. Horizontes modernistas: o jovem Drummond e
seu grupo em papel jornal. Belo Horizonte: Autêntica, 1998. DULCI, Otávio Soares. Política e recuperação
econômica em Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG, 1999.
77
médico não teria hesitado entre a clínica externa e a interna, tampouco entre as
especializações, para escolher finalmente a Reumatologia. Teria ficado com
minha primeira namorada do curso superior a morfologia do corpo humano.
Para isto teria concorrido minha curiosidade profunda pela nossa estrutura,
curiosidade jamais saciada e que em mim, mesmo no erotismo, se junta a uma
espécie de animus dissecandi – se se permite esse macarronismo latino
133
.
Separar com um instrumento cortante e analisar, minuciosamente, as partes que formam
um corpo são procedimentos nos estudos de Anatomia. Vimos como Nava e os modernistas
tiveram contato como a Psicanálise em Belo Horizonte, na década de 1920. Recepção similar
houve em São Paulo e no Rio, por psiquiatras e intelectuais
134
, período que mostra as fissuras da
sociedade que fez da Abolição (1888) e da República (1889) apenas ajustes institucionais,
preservando as estruturas que adentraram pelo Império. Observações anatômicas e referências à
Psicanálise perpassam pela escrita naveana. Percebemos essas posturas no memorialista, no trato
com os diversos aspectos abordados em seus escritos.
Em entrevista, na qual fala sobre a importância da Medicina em sua obra literária, Nava
afirma: “(...) Por outro lado minha obra literária não deixa de ser obra de médico. Quem olhar com
atenção, perceberá o dico em cada página, a experiência dele na apreciação do ser humano”
135
.
Cremos que a postura de anatomista em Nava o fez receptivo aos princípios da Psicanálise. Não
seria a Psicanálise a dissecação do comportamento humano? Contudo, Nava e obra estão inseridos
em seu contexto histórico. A recepção da Psicanálise por Ari Ferreira, Galba Veloso, Iago
Pimentel e Pedro Nava foi contemporânea a fatos que assinalaram a inadequação da sociedade
brasileira do pós-guerra. O ano de 1922 foi o da Fundação do Partido Comunista, do Movimento
dos Tenentes e da Semana de Arte Moderna, eventos que mostram as fissuras da sociedade
brasileira.
A Era Vargas (1930-1945) institucionalizou e realizou propostas de algumas das vertentes
modernistas na organização das relações trabalhistas pelo Estado, atrelando os sindicatos ao
poder. Além disso, houve adoção de reformas educacionais, quando foram aplicadas propostas da
Psicologia; criação de universidades; organização da burocracia estatal; instalação de indústria de
133
NAVA, Pedro. Beira-mar: memórias 4. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. p. 72.
134
PERESTRELLO, Marialzira. Primeiros encontros com a Psicanálise os precursores no Brasil (1889-1937). In:
FIGUEIRA, Sérvulo Augusto (Org.). Efeito psi: a influência da Psicanálise. Rio: Campus, 1988. p. 151-181.
135
MANIFESTO dos mineiros. Rio de Janeiro, 30 de março de 1977. 11 f. Datilografado. Português. Arquivo
Pedro Nava. Fundação Casa Rui Barbosa, Arquivo Museu de Literatura Brasileira (PN11-53).
78
base, etc. A Psicanálise, no período, foi assimilada como mais uma nova ferramenta científica.
Desvelando aspectos do comportamento humano, poderia contribuir para melhor inserir os
indivíduos na sociedade. A leitura da Psicanálise, a exemplo daquela feita por Nava, orientada
pelos professores, é perpassada pela visão positivista, em que se identificam questões,
descrevendo-as minuciosamente, estabelecendo-se padrões de normalidade e anormalidade e
prescrevendo-se soluções. Segundo Christian Ingo Lenz Dunker:
A assimilação disciplinar da psicanálise, atestada pela sua associação posterior ao
“movimento higienista” combina-se, portanto, com uma assimilação liberal,
atestada pela sua associação às vanguardas intelectuais e artísticas. Esta dupla
filiação estende-se até a década de 50. Por um lado a serviço do projeto
desenvolvimentista, a psicanálise era um útil instrumento ideológico para
subsidiar a política de saúde mental, educação e progresso, assim como servia
para os que viam com distanciamento e crítica os efeitos assistencialistas e
patriarcalistas de tal proposta
136
.
No trabalho de busca da influência da Psicanálise nos escritos naveanos, trilhamos pelos
livros de sua autoria. Constatamos que a influência da Psicanálise, na obra de Pedro Nava, não foi
apenas um instrumento para as considerações do autor sobre sexualidade, atos falhos, associações,
alucinações, ideias suicidas, etc. Essa influência, principalmente, foi determinante em sua conduta
nas relações médico-paciente e, a partir disso, Nava criou textos literários que são documentos
para os estudos sobre o assunto.
O médico Pedro Nava, escrevendo suas Memórias, dissecou a sociedade brasileira e
mostrou suas entranhas. Nos escritos naveanos, está à mostra o material estudado por Holanda,
Freyre e Prado Júnior. Quando menino, observou a permanência de práticas galênicas em
tratamento de pessoas de sua família. Jovem, estudou em uma instituição que foi ícone das
propostas da organização da Medicina científica brasileira. Contemporaneamente ao curso de
Medicina, foi participante do Modernismo, um movimento que apresentou propostas diversas para
a construção de um novo Brasil. Filho de família pobre, pôde, com o “capital social” de suas
136
DUNKER, Christian Ingo Lenz. Inscrições da Psicanálise na cultura brasileira: modelos de tratamento e modos
de subjetivação. Revista de Psicoanálisis y Cultura. Disponível em: <www.acheronta.org>. Acesso em: 13 jun.
2002.
79
relações pessoais, inserir-se na elite intelectual e médica do país. Podemos observar, na obra de
Nava, o caráter antropofágico da sociedade brasileira, notada por Oswald de Andrade, em 1928
uma sociedade que digeriu a Psicanálise e a transformou em um dos elementos da cultura nacional
nas décadas posteriores.
Como já visto anteriormente, Pedro Nava nasceu em Juiz de Fora no ano de 1903.
Repetindo o final do primeiro parágrafo que inicia a obra Baú de ossos: “(...) nas duas direções
apontadas por essa que é hoje a Avenida Rio Branco hesitou a minha vida. A direção de
Milheiros e Mariano Procópio”
137
, observa-se que a Avenida Rio Branco é a principal artéria de
Juiz de Fora – cidade mineira, mais próxima do Rio de Janeiro do que da capital Belo Horizonte.
Centro urbano onde capitais excedentes do café possibilitaram a industrialização de bens de
consumo. Nasceu, assim, a "Manchester Mineira". Na obra Baú de ossos: memórias, encontram-
se questões que perpassaram pela sociedade brasileira no período: transição do trabalho escravo
para o assalariado, imigração, sanitarismo, industrialização, a alteração desses fatos no cotidiano
e resquícios escravocratas que adentraram pela República. Destacamos do primeiro livro de
Memórias a reconstituição que Nava faz da trajetória de seu pai, exemplar formação de um
sanitarista. Marina Maluf, em Ruídos da memória, afirma:
A memória pessoal não é tábula rasa capaz de sozinha, com suas próprias forças,
perceber traços e contornos que trariam de volta às imagens do passado. A
reconstituição individual não é um fato isolado e fechado em si mesmo, uma vez
que, para se atingir uma lembrança, não basta reconstituí-la em suas infinitas
partes. Para que uma lembrança possa ser recuperada e reconhecida, é preciso
que essa reconstituição “se opere a partir de dados ou de noções comuns que se
encontram tanto no nosso espírito como no dos outros”, escreveu Halbwacs
138
.
Na transcrição apresentada, encontramos observações pertinentes a esta parte de nossa
pesquisa. Pedro Nava, em entrevista concedida a Helena Bomeny, afirmou: “Inconscientemente
quis continuar com a história de meu pai”
139
. O pai do autor, que também era médico, José Nava
(1876-1911), morreu aos 35 anos. Na escrita sobre a curta vida do pai, Nava desvela aspectos da
137
Op. cit., p. 13.
138
MALUF, Marina. Ruídos da memória. São Paulo: Siciliano, 1995. p. 36.
139
Entrevista concedida a Helena Bomeny e René Batista em 3 de abril de 1983. Este material é inédito, e a
entrevistadora, generosamente, forneceu-nos uma cópia.
80
sociedade brasileira do período e aponta como essa trajetória marcou sua existência. Na
reconstituição da trajetória familiar paterna, encontramos aspectos que irão marcar a formação da
personalidade do autor.
Em Baú de ossos: memórias, como visto anteriormente, Nava reconstituiu o percurso
da família paterna no Maranhão, Ceará e Rio de Janeiro. No primeiro livro de Memórias, trata da
trajetória de seus antepassados que confluíram para Juiz de Fora no período de 1860 a 1903. A
avó materna, Maria Luísa, bem como os familiares oriundos de Santa Bárbara, região aurífera,
estabeleceram-se em Juiz de Fora, na década de 1960 do século
XIX
. Nesse centro urbano, casou-
se com o germânico Halfeld, um dos pioneiros da cidade e, ao enviuvar-se, contraiu matrimônio
com Joaquim Jaguaribe, natural do Ceará. A avó e a família materna, na escrita naveana, são
apresentadas como pessoas que possuíam hábitos escravocratas em plena República. São
oriundos do centro mineiro, antiga família mineradora, origem comum de muitos pioneiros de
Juiz de Fora. Vale lembrar que hábitos escravocratas eram comuns na Manchester Mineira. A
mãe do autor, Diva Jaguaribe, casou-se com o médico José Nava, nascido no Ceará e formado no
Rio.
Em Baú de ossos, primeiro livro de Memórias, há reconstituições e testemunhos. O livro
termina quando o autor tinha oito anos. Dois centros urbanos são destaques nesse volume:
Fortaleza e Juiz de Fora. As revivescências naveanas sobre essas cidades constituem-se em
crônicas sobre a Belle Époque no Brasil e suas especificidades locais. Nos centros urbanos
mencionados, ocorreram questões que estiveram presentes na sociedade ocidental, no período de
1870-1914. A trajetória de José Nava se deu em Fortaleza, Salvador, Rio e Juiz de Fora. As
origens da família paterna estão no Capítulo 1 “Setentrião”. Informa a trajetória dos
antepassados de José Nava no Maranhão e Ceará. Pedro Nava, contudo, costuma refletir,
elocubrar e se adiantar na abordagem dos fatos. José Nava nasceu em Fortaleza, em 1876, filho
do comerciante abastado Pedro da Silva Nava, proprietário de Casa Importadora. Na
reconstituição naveana da trajetória do avô paterno, encontramos informações sobre aspectos de
questões ligadas às transformações da sociedade brasileira no período. Nava pergunta e comenta:
Teria meu avô vindo para o Ceará por iniciativa própria ou mandado por alguma
casa do Maranhão? Quando teria chegado na Fortaleza? Levando em conta a
data do casamento e sua idade, provavelmente pelos 1868, 69 ou 70. Justamente
81
na época em que a cidade principiava a modificar-se e a adquirir certas
características menos primitivas devido ao desabrochar da vida social e,
principalmente, da vida intelectual com o aparecimento da folha maçom de
Pompeu Filho, Capistrano de Abreu, João Lopes e Rocha Lima. Esse jornal,
sequência de uma tradição de imprensa que vinha de longe, teve importância
maior que seus antecessores, não só pela qualidade intelectual dos que nela
militavam, como por ser o porta-voz da luta entre os pedreiros livres liberais e
progressistas contra o clero conservador e reacionário. O próprio aspecto
material de Fortaleza começava a renovar-se, pois caía o preconceito de que suas
areias não aguentavam construções pesadas e a ideia otomana de que particular
não podia morar em casa mais alta que a do sultão-presidente. Construía-se
melhor, mais amplamente, assobradava-se, requintava-se nos móveis e nos
ornatos externos e a casa passava a desempenhar o papel de elemento de
convivência social além do de simples moradia. São desse período os sobrados
cheios de dignidade das ruas José de Alencar, Formosa, Sena Madureira, do
Major Facundo que se elevaram entre as casas baixas de “beira e bica”. As
lindas bicas de metal, longas como as trombetas do Juízo e que, quando vinham
as grandes chuvas, atiravam a água fora das calçadas para o banho blico da
meninada
140
.
Em diversos momentos, Nava menciona o anticlericalismo do período. O processo
católico conhecido como Ultramontanismo ou Romanização atravessa os textos naveanos
141
.
Esses dois aspectos levam-nos a perceber tensões e conflitos entre os diversos setores do Brasil
que se iam urbanizando. Pedro Nava, avô paterno na escrita do memorialista era homem de
hábitos urbanos, dominava o francês e excursionou pela Europa. As transformações urbanas de
Fortaleza ícones da modernização foram contemporâneas a graves questões sociais e
econômicas. Nava supõe que o contato com a Europa e com a epidemia de varíola, que assolou
Fortaleza em 1878, tenha sido marcante na família paterna: “Não é dificil conjeturar os motivos
que trouxeram meus avós para a capital do Império. Primeiro, as viagens à Europa, requintando a
mentalidade dos dois e dando-lhes ambição de vida mais alta, em meio maior e mais elegante”
142
.
Nava conjetura que outros fatos podem ter motivado a família a deixar Fortaleza. A região foi
assolada por violenta seca, em 1877, e epidemias de varíola no mesmo ano e em 1878. Nava
consultou textos e recorreu às memórias familiares para escrever sobre o assunto.
140
NAVA, Pedro. Baú de ossos: memórias. Rio de Janeiro: Sabiá. p. 27.
141
Ibid.
142
Ibid., p. 62.
82
O tema voltado para a desgraça que se abateu sobre Fortaleza, cuja região fora assolada
pela seca e epidemias de varíola, atingindo também a família de Nava sua tia Marout foi
acometida pela doença – está inserido no seguinte parágrafo:
Depois a tremenda desgraça que se abateu sobre a província com a seca de 77 e
o seu cortejo de horrores. A desorganização coletiva acarretada pelas migrações
dos retirantes, a desgraça de cada um encarando a fome e as fúnebres
companheiras do flagelo: epidemias de cólera e de bexigas. Segundo Pedro
Sampaio, a varíola tinha entrado no Ceará com o tráfico africano e desde 1804
começam as notícias de suas devastações. Mas nunca ela se abateu em parte
alguma do Brasil com a violência com que pesou sobre as populações agora
debilitadas pelas caminhadas, ressecadas pela sede e exauridas pela fome. Nos
anos terríveis de 77 e 78, levando em conta a população de Fortaleza, o
morticínio acarretado pela pustulenta foi muito maior que o de calamidades
clássicas como a peste de Atenas e a peste-negra da Idade Média. Basta dizer
que, em dois meses, a capital cearense viu morrerem 27.378 vítimas da doença e
o Barão de Studart conta que houve um dia em que foram dar ao Cemitério de
Lagoa Funda 1.008 cadáveres. O esfalfamento dos coveiros deixava-os por
enterrar. Num enxame de moscas e num voejar de urubus, eles cresciam dos
caixões, das redes e dos sudários-roxos, da “hemorrágica”; esfolados, da
“confluente”; dourados da crosta simples – as barrigas imensas papocando ao sol
incorruptível. Além de testemunharem essas cenas incomportáveis de passarem
o dia, à porta, socorrendo famintos, de verem nas ruas da cidade a dança
macabra dos esqueletos ainda vivos de uma população em agonia meus avós
tiveram o toque da doença em pessoa muito cara. Minha tia Marout foi atingida
e, ao levantar-se, era um espectro do que tinha sido. Seus imensos olhos escuros
reduziram-se, apertaram-se e ficaram piscos de receberem a luminosidade que os
cílios perdidos não amorteciam; suas tranças, grossas como cordas e escuras
como a noite, grisalharam e ficaram ralas; sua pele mais lisa que a dos jambos
ficou toda áspera e lembrando casca de goiaba branca. Cuspiu, um por um, trinta
e dois dentes perfeitos que foram substituídos pela fosforecente dentadura dupla
que, anos depois, eu a via lavar e escovar, tomado, ao mesmo tempo, de
sentimento de pejo e de ideias mágicas e ancestrais
143
.
O quadro ocorrido no Ceará foi comum em diversas cidades brasileiras. Após meados do
século
XIX
, encontramos sinais de atenção do Governo Imperial à questão, germens da
centralização administrativa. Estabeleceu-se a Junta Central de Higiene Pública (1850), que
passou a coordenar as atividades de polícia sanitária, vacina antivariólica e fiscalização do
143
NAVA, Pedro. Baú de ossos: memórias. Rio de Janeiro: Sabiá. p. 62-63.
83
exercício da Medicina
144
. A ação do órgão era restrita devido às distâncias, à escassez
populacional, etc. A atuação do Estado se limitava à internação de doentes graves em lazaretos e
enfermarias improvisadas e à internação de doentes mentais fundados no Rio e em São Paulo
(1852), Recife (1861), Salvador (1874) e Porto Alegre (1889)
145
. A família Nava, instalada no
Rio, continuou bem sucedida financeiramente, construiu novos laços sociais e continuou com
antigos de Fortaleza, igualmente migrados para o Rio. Ao convívio da família foi acrescentado
um sócio na Casa Comissária que trouxe consequências futuras. O escritor reconstitui possíveis
trajetos de seu antepassado e de cenários urbanos cariocas. O avô de Nava, conforme
informações do memorialista, teve dificuldades de adaptação ao clima do Rio.
O memorialista, sobre o assunto, assim se expressa:
(...) Desde o nascimento de sua filha mais nova, em dezembro de 1879, meu avô,
que trabalhava mais que nunca, tinha começado a tossir. Só um pouco. E parecia
que o verão, que entrara rijo, era mais violento que o anterior e fazia-o sofrer
mais que dantes. Ele sufocava e queimava ao sol duro da manhã, às labaredas do
meio-dia, ao bochorno da tarde e ao forno insuportável e molhado das noites.
refrescava um pouco estirado hora inteira, na banheira de mármore, imensa
como sarcófago etrusco, cheia até a borda da água fria que se amornava ao calor
de seu corpo febril. Num dia particularmente quente falhou o seu juízo e ele
chegou em casa mais cedo, ar deliberado, acompanhado de galego portador de
uma barra de gelo. (...) O Lequinho indo, afinal, buscar o Doutor Torres Homem
que entrou arfando olhou, perguntou, palpou, percutiu, auscultou, jurou ao
doente que não era nada e levou a família para a sala de visitas onde, com a
franqueza grave que lhe era habitual, pronunciou a sentença de morte: “Tísica de
forma aguda – a que eu chamo galopante. Pobre moço!”. (...) E foi assim por uns
sessenta dias vai, vem, afina, engrossa e a 31 de maio de 1880, aos trinta e
cinco anos, sete meses e doze dias de existência, Pedro da Silva Nava pesou nos
braços da amada com a violência e a densidade marmóreas do Cristo da Pietá e
rolou no tempo que não conta recuando de repente às distâncias fabulosas e
cicloidais onde estavam seu pai, seu avô imigrante, seus antepassados
milaneses,
genoveses, lombardos, germanos orientais, o primeiro homem e o último
antropoide
146
.
144
Alguns autores tratam da questão. Destacamos: TEIXEIRA, Luiz Antônio; ESCOREL, Sarah. História das
Políticas de Saúde no Brasil de 1822 a 1963: do Império ao desenvolvimento populista. In: GIOVANELLA, L. et al.
(Org.). Políticas e Sistemas de Saúde no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008. p. 333-384.
145
CUNHA, Maria Clementina Pereira. O espelho do mundo: Juquery, a história de um asilo. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1986. p. 29.
146
NAVA, Pedro. Baú de ossos: memórias. Rio de Janeiro: Sabiá, 1972. p. 75-77.
84
Tísica galopante era o nome dado a uma forma de tuberculose – enfermidade contagiosa e
ameaçadora até o advento de medicação específica no culo
XX.
Nava menciona a doença em
vários momentos das Memórias, pois, como médico, teve momentos marcantes de experiência
com essa enfermidade. A viúva empobrecida, Dona Nanoca, por ter sido lesada pelo sócio do
marido, Vaz Junior, retorna para Fortaleza: “Assim ela embarcou no Largo do Paço, carregando
nos braços sua filha Maria Euquéria, de seis meses e em cacho nas suas saias, Cândida, de sete
anos; Dinorá, de seis; Alice, de cinco; José de quatro”
147
. Em 1881, morreu Adelaide Cândida,
irmã de Nanoca. “Uns dois ou três anos depois, seu viúvo casa-se com minha avó”
148
. José Nava
nasceu e viveu em Fortaleza até os 20 anos (1876-1896) quando se dirigiu para Salvador, onde
estudou por um ano. Depois se transferiu para o Rio de Janeiro, onde se formou em Farmácia, em
1898, e em Medicina, em 1901. José Nava era enteado do tabelião Joaquim Feijó de Melo. As
revivescências do memorialista sobre a família paterna são pertinentes a um grupo da média
burguesia que viveu na capital da Província do Ceará no período conhecido como a Belle Époque
(1870-1914). A seguir, Nava comenta sobre o padrasto de seu pai e outros familiares:
Convivente, cavalheiro, gostando de receber e fazendo-o como um fidalgo, o
velho Feijó influiu poderosamente na maneira gentil e na boa educação de meu
Pai. Militante histórico da imprensa da terra e homem de espírito, foi também a
primeira impressão intelectual sentida pelo enteado. A segunda foi a de José
Carlos da Costa Ribeiro Junior, que entrou para a família em 1884, por seu
casamento com Maria Feijó da Costa Ribeiro. José Carlos – que meu Pai
considerava como cunhado e tinha por “mestre e amigo”, era um tipo de letrado
provinciano, dos mais admiráveis do seu tempo. Filósofo, crítico, contista, poeta,
jornalista, foi o Bruno Jacy da Padaria Espiritual. Bacharel pela Faculdade de
Direito do Recife, em 1882, sequaz das ideias de Tobias Barreto, foi Promotor
Público na capital pernambucana e mais tarde Procurador dos Feitos e Secretário
de Estado da Fazenda, Juiz, Chefe de Polícia e Advogado na Fortaleza. Sua mais
notável atividade foi, entretanto, a de professor, tendo sido diretor do Liceu do
Ceará, onde regia a cátedra de Alemão
149
.
Na observação de Nava “na boa educação de meu Pai” e na continuação do texto, temos
um bom exemplo dos estudos de Bourdieu mencionados no capítulo anterior. Em outro
147
NAVA, Pedro. Baú de ossos: memórias. Rio de Janeiro: Sabiá, 1972. p. 79.
148
Ibid., p. 80.
149
Ibid., p. 82.
85
fragmento de texto, Nava amplia a informação. José Nava, no convívio com familiares e
intelectuais locais, teve acesso às discussões que estiveram presentes no final do século, diríamos
internacionalmente. Como veremos nas informações sobre as leituras do pai do memorialista,
ideias positivistas, darwinistas, evolucionistas fazem parte do ideário do capitalismo monopolista
que se estava expandindo em caráter global. Nos textos naveanos sobre Fortaleza, deparamo-nos
com diversos aspectos que perpassaram pela sociedade brasileira após a cada de 1870. A
intensificação da urbanização e a adoção de hábitos burgueses foram visíveis na Belle Époque
nacional. Em Fortaleza, como em outras cidades brasileiras, houve adequação urbana aos novos
tempos. Setores dessa sociedade estiveram envolvidos em questões como a Abolição, em 1888, e
a Proclamação da República, em 1889. Nas Memórias, estão as contradições que estiveram
presentes no Ceará, nesse período.
Nava reproduz a visão tradicional sobre os problemas acarretados pelas secas nordestinas.
Nessa abordagem, tem-se uma Fortaleza de intensa vida intelectual e que, por fatalidades de
fenômenos naturais, está sempre sob a ameaça destes. Esta postura leva à explicação das
desigualdades sociais no Nordeste devido às secas. Ana Maria Matos Araújo tem abordado a
questão, seguindo as propostas de Lefebvre e identificado políticas econômicas voltadas a
práticas exclusivas, como um elemento permanente na história do Ceará
150
. A Fortaleza
reconstituída por Nava é a cidade que foi remodelada em fins do século
XIX
e princípios do
XX
.
Cidade que foi elevada a Vila, em 1726, e capital da província, em fins do século
XVIII
, quando a
mesma se separou de Pernambuco.
Após a Independência, a exportação de algodão enriqueceu setores da sociedade em
Fortaleza. Ampliou-se a exportação desse produto para a Inglaterra, sobretudo no período da
Guerra de Secessão, ocorrida nos Estados Unidos (1860-1865). As construções da ferrovia
Fortaleza Baturité, em 1850, do Lazareto da Lagoa Funda (1856), da Santa Casa (1861), da
Alfândega Nova (1891), a redefinição do espaço urbano por Adolfo Hertbster (década de 1870), a
elaboração do Código de Posturas (1893), a criação do Mercado de Ferro (1902), da Fênix
Central Associação Comercial (1905) e do Teatro de Jo Alencar (1912) são marcos
identificadores das propostas arquitetônicas do período. Essas propostas traduziram os anseios,
em Fortaleza, de uma burguesia preocupada em estabelecer novas formas de relação com o
150
ARAÚJO, A. M. M. O êxodo dos trabalhadores rurais para a cidade à luz de Lefebvre. Scripta Nova Revista
Eletronica de Geografia y Ciencias Sociales, Barcelona, v. 6, n. 119, ago. 2002. Disponível em:
<www.ub.es/geocrit/sn/sn119121.htm>. Acesso em: 3 mar. 2006.
86
mundo rural. Esse grupo, na capital cearense, foi constituído por comerciantes ligados à
importação e exportação, a técnicos e profissionais europeus e seus descendentes.
A arquitetura eclética, tomando formas do passado com materiais da industrialização, tais
como ferro, estrutura metálica, vidros, encanamento, etc., compunha o cenário urbano criado por
Haussmann (1809-1891), em Paris, entre 1853 e 1870. Esse modelo, que marcou o urbanismo do
século XIX, foi exportado pelo mundo. Em Fortaleza, os ecos de Haussmann estão nas avenidas
que foram construídas e que demandavam ao centro da cidade, ligando a praia ao Palácio do
Governo e à Assembleia Legislativa, passando pela Alfândega, armazéns de exportação,
Secretaria da Fazenda e
151
. Nesse espaço, não houve lugar para os pobres, que foram para as
periferias, comportamento que atendia aos princípios do Sanitarismo e Higienismo os quais viam,
na pobreza e em seus hábitos, uma ameaça constante à saúde da cidade.
José Nava pertencia aos segmentos sociais acima mencionados, e seu pai, Pedro Nava
(1843-1878), foi próspero proprietário de Casa Comissária em Fortaleza e Rio de Janeiro, como
visto anteriormente. Mas, com sua morte, a família ficou empobrecida. O casamento da viúva
com o intelectual e Tabelião Feijó, pertencente aos segmentos médios, possibilitou o contato de
José Nava com a intelectualidade da terra. Diversos aspectos têm sido estudados sobre Fortaleza.
Consultando estes autores, podemos conhecer o contexto histórico da cidade reconstituída por
Nava
152
. Em Fortaleza (1870-1914), estiveram presentes as questões e propostas colocadas em
151
As informações sobre a arquitetura de Fortaleza no período de 1870-1914 estão em: CASTRO, J. L. Arquitetura
eclética no Ceará. In: FABRIS, Annateresa (Org.). Ecletismo na arquitetura brasileira. São Paulo: EDUDP, 1973.
p. 208-255.
152
Dentre os trabalhos acadêmicos que tratam desta questão, destacamos: ALBUQUERQUE, A. M.; SAMPAIO
NETO, A. O discurso urbano acadêmico sobre Fortaleza em fins do século XIX e início do XX. Disponível em:
<www.igea.uerj.br/VIVBG-2004/Eixo1%20.425.htm>. Acesso em: 5 abr. 2006. ARAÚJO, A. M. M.; CARLEIAL,
A. N. O processo de metropolitização em Fortaleza: uma interpretação pela imigração. In: III COLÓQUIO
INTERNACIONAL DE GEOCRÍTICA. Barcelona: Universidad de Barcelona. Disponível em:
<www.ub.es/geocrit/sn-94-73.htm>. Acesso em: 3 abr. 2006. BARREIRA, I. A. A cidade no fluxo do tempo: a
invenção do passado e patrimônio. Disponível em: <www.scielo.br/scielo.php?script=sci_artext&pid>. Acesso em:
5 abr. 2006. In: XIV ENCONTRO REGIONAL DE HISTÓRIA DA ANPUHMG, 2004, Juiz de Fora. Anais... Juiz
de Fora, 2004. 1 CD-ROM. COSTA, M. C. A cidade e o pensamento médico: uma leitura do espaço urbano.
Mercator –. Revista de Geografia da Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2004.
Disponível em:
<www.mercator.ufc.br/index.php/mercator/article/view/File/181/147>. Acesso em: 10 jun. 2006.
ORIÁ, R. A história em praça pública os monumentos históricos de Fortaleza (1888-1924). Disponível em:
<www.historia.uff.br/labhoi/primeiros_escritos/pe7-3pdf>. Acesso em: 5 abr. 2006. PONTE, Sebastião Rogério.
Fortaleza Belle Époque: reforma urbana e controle social (1860-1930). Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2001.
SILVA, A. A. Félix Marques; PEREIRA, L. A. S.; DOMINGUES, V. K. Modernização e desigualdades sociais em
Fortaleza na segunda metade do século XIX. In: XIV ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS
POPULACIONAIS, ABEP, Caxambu, 2004. Disponível em:
<www.abep.nepo.unicamp.br/site_eventos_abep/PDF/ABEP2004_94.pdf>. Acesso em: 5 abr. 2006. SOUZA, S.
Uma nova história do Ceará. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2000.
87
discussão nacionalmente. Nava, em numerosas páginas, reconstitui a trajetória desse grupo
urbano
153
. A família paterna do autor esteve ligada ao grupo de comerciantes e exportadores de
algodão, que, em Fortaleza, foram responsáveis pela organização espacial e intelectual no
figurino da Belle Époque de setores da cidade.
Destacamos como emblemas da organização sociocultural, no período de 1870 a 1920, em
Fortaleza: Atheneu Cearense (1863), Academia Francesa do Ceará (1872) locais em que as
teorias científicas darwinismo e evolucionismo – foram divulgadas, Gabinete Cearense de
Leitura (1875), Clube Literário (1886), Instituto do Ceará (1887); Academia de Letras do Ceará
(1894) e Faculdade de Direito (1903). Chamou-se Padaria Espiritual o grêmio literário
organizado em Fortaleza, com o objetivo de reunir intelectuais da cidade. Nava, partindo de
livros, memórias familiares e escritos dos membros desse grupo, diversos aparentados com o
memorialista, assim conclui sobre o ideário da Padaria Espiritual, em que atuou no período de
1892 a 1898:
(...) Não é difícil descobrir quais eram, diante dos laivos de positivismo e de
fraternidade que transparecem na sua história e no seu modo de ser. Esses
aspectos vinham de vogas da época. Contismo. Maçonaria. É muito tênue o que
se encontra como influência do primeiro e tudo talvez nem fosse intencional e
tivesse tocado os padeiros como espírito do século
154
.
(...) QUASE NÃO é hipótese, mas certeza. A Padaria era extremista,
socializante, levemente anarquista. Num país verde e amarelo basta lembrar a
escolha da cor do lábaro da associação: pena e espiga de trigo bordados em
campo de sangue, do vermelho da revolução e da anarquia, do vermelho da luta
da
gente vulgar pobre, que vive de pada, e água, ou pouco mais; e habita
pobremente, e assim se veste: o vulgo
155
.
O ideário comentado por Nava é o referido por s em momento anterior que perpassou
pelas instituições brasileiras. José Nava, adolescente, participou desse grupo e, quando o
memorialista reconstituiu os elementos formadores do pensamento paterno, sintetizou a formação
de um intelectual do período. Na transcrição, também temos a exposição do método usado por
153
NAVA, Pedro. Baú de ossos. Memórias. Rio de Janeiro: Sabiá. p. 26-27.
154
Ibid., p. 94.
155
Ibid., p. 96.
88
Nava, para conhecer a formação intelectual de seu pai, que se fez no Liceu do Ceará, fundado em
1887:
(...) O conhecimento que prepararia nele um médico diferente do comum e
mais puxado para o gênero do seu futuro amigo Aloysio de Castro o
conhecimento, dizia eu, de Raimundo Correia, Augusto de Lima, Artur
Azevedo, Rodrigo Otávio, Araripe Junior, Bilac, Gonçalves Crespo, Machado de
Assis, Álvares de Azevedo, Castro Alves, Luis Murat, Sílvio Romero, Francisco
Otaviano e Tobias Barreto. Conhecimento de Camões, Eugênio de Castro,
Antero de Quental, Eça de Queiroz, Guerra Junqueiro, Alexandre Herculano,
Ramalho Ortigão, João de Deus e Antônio Feliciano de Castilho. No estrangeiro,
o de Racine, Zola, Musset, Hugo, Lamennais, Théophile Gauthier, Lamartine,
Alphonse Daudet, Théodore de Banville, Loti, Catulle Mendès, Comte,
Shakespeare, Tennyson, Byron, Cowper, Longfellow, Heine e Schopenhauer.
Tudo isto intimidade que está comprovada na curiosa coleção de recortes e de
retratos de meu Pai uma daquelas miscelâneas bem do seu tempo e das quais
possuo a sua, a de minha Mãe, as de meu tio Antônio Salles. Curiosos
repositórios para estudo de uma personalidade, onde ainda surpreendo, por parte
de meu Pai, a preferência, entre os pintores, por Rubens, Rafael e Van Dick.
Admiração musical por Mendelssohn e pela virtuosidade de Battistini e da
divina Malibran. Gozação do lado grotesco do físico de Lopes Trovão “O
Arara” e da vaidade imensa de Campos Sales “O Pavão do Catete” e
preocupações políticas com Benjamin, Deodoro e Floriano. Foi isto tudo que ele
aprendeu no Ceará. E mais a valsar, amar, polcar e sonhar. Aprendeu também o
dom de ser amigo e o de dedicar-se. O de usar a prenda de fazer o próximo
estourar de rir e rir, ele próprio, a bandeiras despregadas. E foi assim que em
princípios de 1896 ele foi para a Bahia, onde se matriculou nos cursos de
Farmácia e de Medicina da nossa mais velha faculdade. Era o ano em que o Belo
Horizonte alvorecente batia o pleno das suas construções, em que surgiam no
sertão os primeiros incidentes com Antônio Conselheiro, em que tomava posse
no Governo do Ceará o Doutor Antônio Pinto Nogueira Accioly e em que
Prudente de Morais moderava a República a rédea leve. Meu Pai tinha 20
anos
156
.
Na transcrição apresentada, temos informações mais completas sobre a formação de José
Nava e os relacionamentos (Capital Social) que o colocam congênere à intelectualidade do
período (Habitus), e Nava reconhece que é uma educação diferenciada (Distinção Social). No
Capítulo III, intitulado “Paraibuna”, de Baú de ossos, Nava reconstitui a trajetória de seu pai
como aluno dos cursos de Farmácia e Medicina em Salvador e no Rio de Janeiro. Na formação de
156
NAVA, Pedro. Baú de ossos. Memórias. Rio de Janeiro: Sabiá. p. 98-99.
89
José Nava, encontramos questões que envolveram a intelectualidade no período de 1870 a 1920.
A expressão Belle Époque identifica o período correspondente ao Capitalismo Monopolista
(1850-1914), quando o mesmo se estendeu mundialmente. A vida urbana e as conquistas da
industrialização fizeram com que as pessoas do período tivessem a consciência de que viviam
tempos novos, a Bela Época. Cremos que, para o entendimento dos diversos aspectos que
estiveram ligados à formação de José Nava nascido, educado e profissional da Belle Époque –,
devam ser destacados aspectos da sociedade brasileira no período de 1870 a 1930.
José Nava, em 1896, matriculou-se nos cursos de Farmácia e Medicina de Salvador,
transferindo-se, em 1897, para o Rio de Janeiro, onde se formou em Farmácia (1898) e em
Medicina (1901). Radicou-se em Juiz de Fora, permanecendo até 1909, quando se transferiu
para o Rio, onde faleceu, em 1911, aos 35 anos.
Pedro Nava, ao comentar o período em longo parágrafo, característica de sua escrita,
falou sobre esse momento:
E aqui? Também tivemos a nossa belle époque, por sinal que feia como sete dias
de chuva. Começou com a República. Basta comparar a iconografia imperial
com a posterior, para ver a coisa inestética que veio depois de D. Pedro II.
Gravuras de Debret e Rugendas, pintores régios, figuras de Angelo Agostini
cheias dos nossos usos, costumes, tipos, ruas, casas, campos, estradas, árvores,
céus e alegorias tudo é substituído pelo duro documento fotográfico e pelas
pinturas sebentas de Gustav Hastoy, de Manuel Santiago, de Almeida Junior, de
Batista da Costa e Giuseppe Boscagli, representando marechais anacrônicos em
fardas do tempo da Guerra da Crimeia, ou Presidentes soturnos nas suas
sobrecasacas de croque-morts. Uma densa e tristeza desprende-se da história
da República. Vêm, de saída, o despudor do Encilhamento e Floriano deglutindo
o Deodoro que ainda digeria a coroa do benfeitor. A Revolução Federalista
ensanguenta o Sul. Degolamentos simples e de volta. Conhecem a variedade?
Não se corta de fora para dentro, como às galinhas. Mete-se longa e afiada faca
embaixo da orelha, entre o maxilar e o esterno cleido. Ela sai do outro lado do
pescoço e então puxa-se de dentro para fora: de volta. Saldanha da Gama é
lanceado e seus companheiros, sangrados. Eleição e posse de Prudente. Canudos
e mais mortes. A cabeça do Conselheiro chega ao litoral da China, "onde
deliravam multidões em festa..." O Marechal Bittencourt morre salvando o
Presidente. Sem nenhuma convicção. O magnicida Marcelino Bispo foi
reabilitado pelos que o executaram na calada da noite. Mais sangue: o de Gentil
de Castro. Encerra-se a década, encerra-se o Século deixando como lembranças
amáveis a fundação de Belo Horizonte, a instalação da Academia de Letras, a
risada de Artur Azevedo. Abrem-se os novecentos com as festas do Quarto
Centenário e o retrato da bem amada de um Ministro nas notas de cinquenta mil-
réis. O prestidigitador Chapot-Prevost, num golpe circense, corta um monstro
90
em duas meninas. Santos Dumont contorna a Torre Eiffel num balão e voa em
aeroplanos virados às avessas. Rocca e Carleto escrevem meu primeiro romance
policial e Oswaldo Cruz sai das páginas de Monsieur de Phocas para acabar com
a febre amarela. Acabou também com a peste, comprando ratos; com a varíola,
comprando os ódios que explodiram na rebelião de Lauro Sodré. Passos,
Frontin, Lauro Müller Cais do Porto, Avenida Central, Flamengo. Pinheiro
Machado discursa no Palácio da Liberdade e suas palavras começam a forjar o
ferro que serviria mais tarde a Manso de Paiva. Carlos Chagas se iguala a
Oswaldo Cruz e os dois fazem pelo Brasil o que os charlatães da política nunca
tinham feito. Não contando os burros acatados por trazerem dentro do ventre-
caldeirão o "senso grave da ordem" dizem que nela, política, havia gênios
também. David Campista, Carlos Peixoto, João Pinheiro, Gastão da Cunha. Em
terra de cego quem tem um olho é rei. Em terra de rei quem tem um olho é cego.
Em terra de olho quem tem um cego é rei... Afonso Pena morreu traído e dizem
que os trinta dinheiros foram para Itajubá. "Toma, cachorro!" o as últimas
palavras ouvidas por Euclides da Cunha caindo no chão que ele engrandeceu. O
"almirante" João Cândido vestido de ouro e prata acabou com a chibata,
escapou da cal viva da Ilha das Cobras e dos fuzilamentos do Satélite para dar,
depois, entrevistas de negro velho. Águia de Haia ou Papagaio de Haia? "Fala,
fala, fala, meu bem..." Ganhando, mas não levando. Urucubaca era a dele. O
outro foi para o Catete, onde se dançou o corta-jaca na era da jupe-culotte. Mil
novecentos e doze vem com a morte do Barão de Quintino e novamente sangue
na burrice do Contestado. Mais um ano, dois anos e ouviu-se aqui ribombo que
ninguém entendeu o eco do tiro de Prinzip. Que foi? Que foi? Foi nada, não.
Um maluco matou um arquiduque e não temos nada com essa opereta. O diabo é
que tínhamos. Pois foi nessa belle époque que doenças, necessidades,
obrigações, compromissos, acaso, destino o fatum fizeram convergir para o
Rio de Janeiro gente da família de meu Pai, da de minha Mãe
157
.
Ao contrário do que afirma Nava na transcrição apresentada, as grandes transformações
superestruturais ocorridas no Brasil não se deram com a República, mas nas duas últimas décadas
do Império. Na transcrição, Oswaldo Cruz e Carlos Chagas aparecem com Euclides da Cunha,
Canudos, Contestado, Encilhamento e Chapot-Prevost (cirurgião). Desenvolveremos, em
parágrafos posteriores, a importância do Sanitarismo no momento. Quanto à “fealdade” do
período, mencionando a criação artística do mesmo, é visão comum dos “modernistas”. A
extinção do tráfico de escravos, em 1850, o início da imigração e as discussões sobre o assunto,
entre 1870-1900, o interesse pelo Darwinismo Social, Evolucionismo e Comtismo, nas décadas
de 1870 e 1880, são mostras de emergência de valores urbanos. Esse ideário esteve presente na
formação de José Nava, como podemos observar nas informações sobre a adolescência do
mesmo e nas experiências enquanto estudante e profissional de Medicina, assunto que será
157
NAVA, Pedro. Baú de ossos: memórias. Rio de Janeiro: Sabiá. p. 208-209.
91
abordado nos parágrafos a seguir. Sílvio Romero (1851-1914), citado por Leite (1983),
contemporâneo das transformações mencionadas, assim percebeu o seu tempo:
De repente, por um movimento subterrâneo, que vinha de longe, a instabilidade
de todas as coisas se mostrou e o sofismo do Imrio apareceu em toda a sua
nudez. A Guerra do Paraguai estava a mostrar a todas as vistas os imensos
defeitos de nossa organização militar e o acanhado de nossos progressos sociais,
desvendando repugnanemente a chaga da escravidão; e então a questão dos
cativos se agita e após é seguida da questão religiosa; tudo se põe em discurso: o
aparelho sofístico das eleições, o sistema de arrocho das instituições políticas e
das magistraturas e inúmeros problemas econômicos; o partido liberal expelido
do poder comove-se desusadamente e lança aos quatro ventos um programa de
extrema democracia, quase um verdadeiro socialismo; o partido republicano se
organiza e inicia um programa que nada faria apagar. Na política, é um mundo
inteiro que vacila. Nas regiões do pensamento teórico, o tratamento da peleja foi
ainda mais formidável, porque o atraso era horroroso
158
.
Nas considerações apresentadas por Sílvio Romero, deparamo-nos com inúmeras setas
(Hobsbawm), as quais apontam para questões que formaram o arcabouço cultural da sociedade
brasileira do período. Destacaremos alguns desses aspectos, sobretudo os que julgamos mais
pertinentes a esta pesquisa, a qual, no momento, está tratando da trajetória de José Nava. Como
mencionamos anteriormente, a imigração e as discussões sobre as questões envolvidas com a
mesma estiveram presentes no período. Dois aspectos são de nosso especial interesse nas
discussões que envolveram a imigração: racismo e Higiene.
O mundo que se organizou norteado pelo Capitalismo Industrial (1782-1914) tem como
um de seus postulados a laicização. A Razão Científica, postulada como neutra, descobriu, nas
características e peculiaridades étnicas, justificativas para as políticas expansionistas e
nacionalistas de países europeus, além de explicações para as contradições sociais em países
como o Brasil, apontado, na época, como caso único de miscigenação.
158
Transcrição em: LEITE, Dante Moreira. O caráter nacional brasileiro. 4. ed. São Paulo: Fundação Bienal, 1983.
p. 195.
92
Homens de Ciência, como assim se consideravam, formularam teorias que, na prática,
referendavam a dominação econômica e as desigualdades sociais
159
. Thomas Buckle (1821-1862)
viu, no determinismo climático, a impossibilidade de se ter uma civilização no Brasil. E. Renan
(1823-1892) concluiu que negros, amarelos e mestiços são povos inferiores.
Os estudos de Charles Darwin (1809-1882), publicados em 1859, com o título A origem
das espécies (2005), concluíram que, na vida natural, os vencedores são os mais fortes e aptos na
luta pela sobrevivência. O Darwinismo Social aplicou os mesmos princípios na vida social,
quando defendeu que as nações e raças mais fortes, brancos civilizados, predominam sobre as
inferiores e atrasadas, como as amarelas, negras e mestiças. Herbert Spencer (1820-1903), cujas
ideias ficaram conhecidas como “Evolucionismo Social”, viu a evolução como lei universal,
parte de um ciclo, associada ao progresso. Por último, citamos Joseph Arthur Gobineu (1816-
1842), mais conhecido como Conde de Gobineau, cuja amizade com Richard Wagner assegurou
a popularidade, nos estados germânicos, de seu livro Ensaio sobre a desigualdade das raças
humanas (1967). Quando embaixador da França no Brasil, de 1869 a 1870, assim Gobineau
descreveu os brasileiros:
(...) É preciso reconhecer que a maioria do que chamamos de brasileiros
compõe-se de sangue mestiço, sendo mulatos e filhos de caboclos distintos. Eles
estão em todos os escalões sociais. O Senhor Barão de Cotegipe, atual Ministro
das Relações Exteriores, é mulato; no Senado homens desta categoria; em
uma palavra, quem diz brasileiro diz com raras exceções, homem de cor. Sem
entrar no mérito das qualidades físicas ou morais destas variedades, é impossível
desconhecer que elas não são laboriosas, ativas ou fecundas. As famílias
mestiças destroem-se tão rapidamente que certas categorias existentes apenas
vinte anos não mais existem, como por exemplo, os mamelucos. E, por outro
lado, a grande maioria dos fazendeiros, cuja desagradável situação econômica
expus-lhe ainda agora, vive um aspecto muito próximo da barbárie, no meio de
escravos, e deles não diferenciam nem por gostos nem por gestos mais
sofisticados, nem por tendências morais elevadas
160
.
159
Dois textos norteiam nossas observações sobre o assunto: SARAIVA, José Flávio Sombra; IONGE, Klaas.
África e América: o tráfico negreiro e a gestação do racismo. Humanidades 28, Brasília, v. 8, n. 2, p. 197-202,
1992. SCHWARCZ, Lílian Moritz. O espetáculo das raças: cientistas e a questão racial no Brasil – 1870-1930. São
Paulo: Companhia das Letras, 1993.
160
RAEDERS, Georges. O inimigo cordial do Brasil: o Conde de Gobineau no Brasil. Trad. Rosa Freire d’Aguiar.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 117.
93
A discussão racial envolveu instituições brasileiras de 1870 a 1930. O assunto foi
abordado nos estudos de Frenologia dos Museus Etnográficos, na leitura dos germânicos pela
Escola de Recife, na análise liberal da Escola de Direito de São Paulo, no meio católico
evolucionista dos Institutos Históricos e Geográficos, nas questões eugênicas das Faculdades de
Medicina e no ensino da Academia Imperial de Belas Artes e Escola Nacional de Belas Artes.
Essas instituições foram criadas ou reorganizadas como parte do aparato urbano que se estava
implantando, e foram contemporâneas à preocupação da intelectualidade com o reconhecimento
de uma identidade nacional. Na década de 1880, a intelectualidade brasileira dividiu-se na adesão
ao Positivismo de Comte, ao Darwinismo Social e ao Evolucionismo de Spencer. Segundo Ortiz,
o contorno racista marcou o pensamento dos precursores das Ciências Sociais no Brasil, como os
escritos de Sílvio Romero, Euclides da Cunha e Nina Rodrigues. As propostas do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro estudadas por Guimarães já foram destacadas no Capítulo I
deste trabalho.
A criação, em 1828, das Faculdades de Direito de Recife e São Paulo teve a finalidade de
formar uma elite intelectual apta a ocupar os cargos burocráticos do país. Na Faculdade de
Recife, o evolucionismo foi presente na leitura que Tobias Barreto fez de Haeckel e Buckle, na
difusão de Spencer, Darwin, Litré, Le Bon e Gobineau. Sílvio Romero representou o apego ao
evolucionismo, quando propôs a mestiçagem como solução para a homogeneidade nacional. A
Faculdade de Direito de São Paulo, cidade que, após a década de 1970, despontou como centro
político e financeiro, impôs-se como instituição formadora da elite político-administrativa
nacional até 1930. Defendendo a ão de um estado liberal acima das desigualdades raciais,
embebida por postulados positivistas, essa elite evidenciou sua adesão ao evolucionismo, por
exemplo, quanto à imigração.
Schwarcz exemplifica como a Sociedade Central de Imigração (1883-1891), influenciada
por políticos paulistas, referiu-se ao caráter "atrofiado, corrupto, bastardo, depravado e em uma
palavra detestável da raça chinesa". Continua a autora, chamando a atenção para o Decreto nº.
528, de 1890, que abria o Brasil a imigrantes que tivessem boa conduta em seus países, com
exceção de africanos e asiáticos
161
.
161
SCHWARCZ, Lílian, Moritz. O espetáculo das raças: cientistas e a questão racial no Brasil – 1870-1930. São
Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 184-185.
94
Transcrevendo o jornal Correio Paulistano, de 19 de julho de 1892:
[...] O que são os chineses... os escravos com todos os horrores e vícios não
foram tão perniciosos como a contratação dos chineses... O negro sabia ser
sensual idiota, sem a menor ideia de religião... Já os chineses são gente lasciva
ao ultimo grao, escoria acumullada de países de relachadíssimos costumes... São
todos ladrões, jogadores a um grao incompreensivel... e de introduzir estes
leprosos de alma e corpo quanto custará ao Estado de São Paulo em cárceres
com o aumento da criminalidade
162
.
Concluindo as observações sobre as Faculdades de Direito de Recife e São Paulo,
Schwarcz assinala que:
Guardadas as diferenças o que se pode dizer, no entanto, é que para ambas as
faculdades "O Brasil tinha saída". Por meio de uma mestiçagem modeladora e
uniformizadora, apregoada por Recife. Por meio da ação de um Estado liberal,
como tanto desejavam os acadêmicos paulistanos. A figura do purista
permanecia, em meio a toda essa batalha, como que intocada. Confiantes em sua
posição de "missionários", buscavam os puristas brasileiros cunhar para si
próprios uma representação que os distinguisse dos demais cientistas nacionais.
Eram eles "os eleitos" para dirigir os destinos da nação e lidar com os dados
levantados pelos demais profissionais de ciência. Na sua visão, encontravam-se
distanciados do trabalho empírico dos médicos, das pesquisas teóricas dos
naturalistas dos museus, da visão eclética e oficial dos intelectuais dos institutos
históricos e geográficos. Entendiam-se como mestres nesse processo de
civilização, guardiães do caminho certo
163
.
Dando continuidade às observações sobre o aparato institucional montado no Brasil, ao
longo do século
XIX
, passaremos ao estudo do exercício e ensino médico. A Medicina no Brasil
colonial, exercida por barbeiros, práticos e parteiros, também teve sua adequação ao século
XIX.
Como outras instituições, as primeiras tentativas de organização do ensino médico estão entre as
medidas do Príncipe Regente D. João, na tentativa de se montar o funcionamento da Corte no
162
SCHWARCZ, lian, Moritz. O espetáculo das raças: cientistas e a questão racial no Brasil 1870-1930. o
Paulo: Companhia das Letras, 1993. p.185-186.
163
Ibid., p. 187.
95
Brasil. As Escolas de Medicina do Rio e Bahia foram fundadas em 1813 e 1815
164
. Em 1829,
criou-se a Sociedade de Medicina, com a incumbência de se analisar o ensino médico. As
sugestões da Sociedade foram acatadas na reforma de 1838, quando as Escolas Médico-
Cirúrgicas transformaram-se em Faculdades. O ideário desses estabelecimentos de ensino médico
foram as Revistas Médicas da Bahia e do Rio, cujas publicações fundamentam-se no
Evolucionismo e no Positivismo. Com Nina Rodrigues (1894-1957) e outros da faculdade baiana,
dá-se destaque à preocupação de análise racial e, após os anos 1920, aos estudos de Medicina
Legal análise frenológica. No Rio, os estudos voltaram-se mais ao Saneamento e à Higiene.
Tanto na Bahia quanto no Rio, o negro era visto como um problema. As questões sociais teriam
causas e tratamentos médicos, como observou a Gazeta Médica da Bahia, em 1923:
A mestiçagem deve ser até certo ponto encarada psy-chologicamente como
factor de degeneração. Entre nós, é constituída de elementos de várias
procedências portadores de caracteres étnicos diversos e condições especiais que
sob as influências mesológicas devem trazer uma perturbação do equilíbrio
inobstável. A mestiçagem extremada aqui encontrada... retarda ou dificulta a
unificação dos typos, ora perturbando traços essenciais, ora fazendo reviver, nas
populações, caracteres atavicos de indivíduos mergulhados na noite dos tempos.
É preciso mudar as raças...
165
164
Dentre a expressiva bibliografia, destacamos trabalhos de amadores e historiadores: CAVALINO, Daniela
Buono. Jesuítas e Medicina no Brasil colonial. Disponível em: <www.scielo.br>. Acesso em: 10 fev. 2009.
LOPES, Rodrigues. Anchieta e a Medicina no Brasil colonial. Belo Horizonte: Apolo, 1934. MARQUES, Vera
Beltrão. Natureza em boiões e boticários no Brasil setecentista. Campinas: Unicamp, 1999. MIRANDA, Carlos
Alberto Cunha. A prática da Medicina no Brasil colonial: espaços e limites da cura. Disponível em:
<www.bases.bireme.br>. Acesso em: 22 maio 2009. SANTOS FILHO, Licurgo. História Geral da Medicina. São
Paulo: HUCITEC/EDUSP, 1991. SILVA, Lenina Lopes. As “misturas do humano com o divino” na Medicina
popular do Brasil colonial. Mneme Revista Humanidades, Caicó, RN, v. 9, n. 24, set/out. 2008. Disponível em:
<www.cerescaico.ufrn.br/mneme/anais>. Acesso em: 22 maio 2009.
165
Jornal Gazeta Médica da Bahia
,
1923, p. 256.
96
A revista Brasil Médico do Rio de Janeiro conclui que a demência é um caráter racial
negro. Vejamos:
Claro está que um branco imbecil será inferior a um preto intelligente. Não é
porém, com excepções que se argumenta. Quando nós referimos a uma raça, não
individuallisamos typos dela, tomamo-la em sua acepção mais lata. E assim
procedendo vemos que a casta negra é o atraso; a branca o progresso a
evolução... A demência é a forma em que mais avulta os negros. Pode-se dizer
que tornam-se elles dementes com muito mais frequência, por sua constituição,
que os brancos...
166
A bibliografia sobre a organização da Medicina no período é expressiva e tem desvelado
diversos aspectos que envolvem essa atividade. Destacamos os estudos de Dominichi Miranda Sá
(2006) na obra A Ciência como profissão: médicos, bacharéis e cientistas no Brasil; Flávio
Coelho Edler (1992) As reformas do ensino médico e a profissionalização da Medicina na
corte do Rio de Janeiro, dissertação defendida em 1992; Madel Luz (1982) Medicina e ordem
política brasileira: políticas e instituições de saúde; Michel Herschmann, Simone Kropf e Clarice
Nunes (1996) Missionários do progresso: médicos, engenheiros e educadores no Rio de
Janeiro. Os textos mencionados e outros com os aspectos estudados por Sidney Chalhoub (1996)
Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial e por Nicolau Sevcenko (1999)
Literatura como missão analisam as tensões sociais e criação cultural na Primeira República.
Os textos nomeados são perpassados pela identificação do ideário comentado anteriormente e
identificam como as questões de saúde e doença ocupavam espaços entre a intelectualidade.
Não podemos deixar de mencionar o Positivismo nestes comentários sobre as ideias
dominantes, em algumas instituições brasileiras, de 1870 a 1930. O Positivismo de Augusto
Comte (1798-1857) ocupou importante posição no pensamento do século XIX, como método e
como doutrina. Como método, graças à certeza rigorosa de experimentação, a partir da qual se
podem elaborar teorias; como doutrina, apresentou-se como revelação da própria Ciência. Essas
características do Positivismo mostram a confiança da burguesia em sua capacidade de dominar o
mundo em todos os seus aspectos. Ao lado do Evolucionismo de Spencer, o Positivismo ganhou
a adesão de grande parte da intelectualidade brasileira. Ideias positivistas foram discutidas e
166
Revista Brasil Médico, Rio de Janeiro, 1904, p. 178.
97
assumidas por grupos ligados à Proclamação da República. Entre os focos de difusão das ideias
comtistas, destacam-se a Escola Militar e a Sociedade Positivista, no Rio, e a Faculdade de
Direito de São Paulo. O pensamento de que a sociedade pode ser entendida como um organismo
vivo, onde se detectam questões e aspectos que podem ser resolvidos com raciocínio científico,
garantiu a organização da República apenas como um ajuste institucional, sem alteração das
estruturas sociais.
Concluímos nossas observações no âmbito nacional (1870-1930), afirmando que as
Faculdades de Direito e Medicina, o IHGB, os Museus Etnográficos, a Academia de Letras, a
Academia Imperial de Belas Artes Escola Nacional de Belas Artes, bem como outras
instituições que foram criadas ou reformuladas no período, funcionaram como instrumento
ideológico para a inserção do Brasil na ordem capitalista. A Abolição, em 1888, e a República,
em 1889, foram modernizações institucionais que garantiram a permanência no poder das
oligarquias do Império até 1930. As fraturas dessa organização se fizeram visíveis com o
movimento dos Tenentes em 1922, 1924 e 1926, a fundação do Partido Comunista e a Semana de
Arte Moderna em 1922.
Retornando ao Baú de ossos: memórias Capítulo III “Paraibuna” podemos observar
que a família nuclear de Pedro Nava permaneceu na cidade até 1913, quando a avó materna “Nhá
Luísa” faleceu. Acompanhando o pai, Joaquim Jaguaribe, a mãe de Nava mudou-se com os filhos
para Belo Horizonte. Pedro Nava retornou à cidade como médico, permanecendo na mesma no
ano de 1928. Destacaremos dois aspectos nas Memórias que consideramos marcantes no processo
de urbanização de Juiz de Fora (1880-1892): a transição para o trabalho livre junto com a
permanência de hábitos escravocratas e a atuação de José Nava como médico:
Descendente de uma família citadina, filho de um comerciante liberal, meu Pai
assim que conheceu melhor a sogra rural, escravocrata, dominadora e violenta,
tomou-lhe horror. Protestou logo contra a pancadaria, a palmatória e marmeleiro
a que Inhá Luísa submetia as numerosas crias que tinha dentro de casa e achou
ruim esse ersatz da escravidão. Abolida esta e o se podendo mais comprar o
negro, as senhoras de Minas tomavam para criar negrinhas e mulatinhas sem pai
e sem mãe ou dadas pelos pais e pelas mães. Começava para as desgraçadas o
dormir vestidas em esteiras postas em qualquer canto da casa, as noites de frio, a
roupa velha, o nenhum direito, o pixaim rapado, o descalço, o tapa na boca, o
bolo, a férula, o correão, a vara, a solidão
167
.
167
NAVA, Pedro. Baú de ossos: memórias. Rio de Janeiro: Sabiá, 1972. p. 259.
98
Em Juiz de Fora, capitais excedentes do café possibilitaram o investimento em indústrias
de bens de consumo no período de 1880-1930. Estes aproximadamente 50 anos foram o período
em que a burguesia e a intelectualidade da cidade denominaram o local de Manchester Mineira”
e “Atenas Mineira”, criando, com tais epítetos, a ideia de modernismo e progresso. Na
transcrição de Nava, estão observações de fatos ocorridos em Juiz de Fora, na primeira década do
século
XX
, testemunhas da permanência de práticas escravocratas que adentraram pela
República. Estas posturas são contemporâneas do surgimento de novas forças e grupos sociais,
por exemplo, o operariado. Ocorreram, em Juiz de Fora, pioneiras greves operárias no período de
1912-1924.
Inúmeros estudos acadêmicos têm-se ocupado da história de Juiz de Fora
168
. Baú de ossos
e parte de Balão cativo são documentais para os que estudam os diversos aspectos da cidade.
Recortaremos as observações naveanas sobre a atuação de seu pai na Sociedade de Medicina e
Cirurgia de Juiz de Fora. Essa instituição foi fundada em 1889 e, em sua organização e
discussões, estão presentes questões que foram discutidas nacionalmente. Selecionamos alguns
textos de Nava sobre a instituição e, posteriormente, faremos observações sobre as questões
tratadas. A Sociedade de Medicina e Cirurgia de Juiz de Fora foi fundada pelos médicos João
Nogueira Penido e Romualdo César Monteiro de Miranda. Trata-se de um local onde José Nava
teve ativa atuação. Foi a segunda entidade médica fundada no país. A seguir, Nava fala sobre o
discurso de João Nogueira Penido na reunião inaugural da instituição:
Seu discurso de abertura é uma ode às últimas conquistas da Arte, que ele
enumera entusiasmado: a anestesia pelo clorofórmio; a aplicação dos
medicamentos por via hipodérmica, segundo a técnica de Pravaz; o achado da
medicação antitérmica; o advento das ideias de Pasteur sobre a fermentação, os
proto-organismos e suas consequências a antissepsia pelos corpos da série
168
Destacamos os livros publicados: ANDRADE, S. M. B. V. Classe operária em Juiz de Fora: uma história de
lutas (1912-1924). Juiz de Fora: EDUFJF, 1987. CHRISTO, Moraliz de Castro Vieira. “Europa dos pobres”: a
belle époque mineira. Juiz de Fora: EDUFJF, 1994. GIROLETTI, D. O processo de industrialização em Juiz de
Fora: 1850-1950. Juiz de Fora: EDUJF, 1988. Pesquisas em andamento cujos resultados parciais foram
apresentados no 1
o
. SEMINÁRIO DE HISTÓRIA ECONÔMICA E SOCIAL DA ZONA DA MATA MINEIRA e
os Anais publicados em CD-ROM: BARROSO, E. L. Medicina social (1889-1920): locus para a intervenção do
Estado frente aos subalternos. LANA, V. Uma associação científica no “interior das Gerais!: a Sociedade de
Medicina e Cirurgia de Juiz de Fora (SMCJF); PINTO, J. A. A. A caridade e a ordem: ação e contribuição da
cristandade na organização do espaço público da cidade de Juiz de Fora na passagem à modernidade oitocentista
1890/1924; SCOTON, R. M. S. Médicos acadêmicos e curandeiros na Manchester Mineira (Juiz de Fora, MG,
1890-1940).
99
aromática, ácido carbólico à frente e as inoculações pelos vírus atenuados.
Depois dele, falou o Dr. Eduardo de Menezes, sabichão, citando, além de
Hipócrates e Bichat, os moderníssimos Orfila, Brown-Séquard, Claude Bernard,
Lépine, Charcot e Bouchard
169
.
As menções dos fundadores remetem a nomes que identificam etapas do percurso da
Medicina ao longo do século
XIX
. As preocupações da Sociedade de Medicina e Cirurgia de Juiz
de Fora com a Higiene e o Saneamento mostram o alinhamento de seus membros à orientação de
Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro. Dentre as várias lutas da Sociedade junto à municipalidade,
Nava destaca:
A esses beneméritos, ao seu trabalho na Sociedade e a sua ação social, Juiz de
Fora ficou devendo a luta contra o pó, pelo calçamento; a elevação dos planos
das Ruas Santa Rita, Conde d’Eu e do Sapo, para as mesmas poderem receber os
tubos de esgoto e de abastecimento d’água; a secagem e aterro do pântano da
cadeia, resultante do corte feito no Paraibuna pela Estrada de Ferro D. Pedro II;
o aterro das ruas cujo declive favorecia o acúmulo de imundícies e lama podre; a
remoção e a cremação do lixo; a crítica e as sugestões ao sistema de esgotos a
ser adotado; a análise da água a ser fornecida à população; o saneamento do
Paraibuna e do córrego da Independência, onde eram atiradas as fezes, os
restolhos, as porcarias e os bichos mortos (...)
170
.
José Nava, junto com o farmacêutico José Rangel, foi secretário da SMCJF de 1904 a
1907. Em Juiz de Fora, no breve período de 5 anos, José Nava, segundo Pedro Nava, exerceu
diversas atividades:
Meu Pai foi Diretor da Higiene Municipal em Juiz de Fora, nos períodos de
administração dos Drs. João d’Ávila e Duarte de Abreu: princípios de 1903 a
dezembro de 1907. Coube-lhe, nesse cargo, apoiar e fiscalizar as feiras rurais
que se realizavam nos arredores da cidade e socorrê-la durante o verdadeiro
flagelo que foram as enchentes de 1906. O Paraibuna furioso invadiu a parte
baixa da zona urbana, transformando-a numa espécie de Veneza, em que se
andava de barco quase até a Rua de Santo Antônio.
169
NAVA, Pedro. Baú de ossos: memórias. Rio de Janeiro: Sabiá. p. 288-289.
170
Ibid., p. 289.
100
(...) Mas o principal serviço prestado por meu Pai a Juiz de Fora foi ter
erradicado dali a febre amarela, introduzindo as medidas preconizadas pela
Teoria Havanesa, como ele próprio disse em correspondência enviada ao Brasil-
Médico, a 14 de abril de 1903:
De acordo com os processos seguidos pela higiene moderna, tenho tomado
todas as medidas de precaução, fazendo queimar piretro nos aposentos,
aconselhando o uso de cortinados, promovendo a destruição das larvas do
Stegomyia nos sifões das ruas e nos pântanos...
Além de Diretor da Higiene, meu Pai foi, em Juiz de Fora, Presidente do Liceu
de Artes e Ofícios; Professor de Terapêutica e Matéria Médica da Escola de
Odontologia do Granbery o que o coloca entre os pioneiros
do ensino
paramédico e de que resultou o médico, na cidade; e Diretor do Hospital de
Isolamento Santa Helena, que ele refundiu e de que varreu tudo o que ficara do
antigo lazareto
171
.
A organização da Sociedade de Medicina e Cirurgia de Juiz de Fora es inserida na
organização da profissão médica na sociedade capitalista. A luta pela hegemonia da Medicina
com bases científicas, na Europa, estendeu-se ao longo do século
XIX
. No Brasil, a Reforma
Saboia, posta em prática após 1882, assinala, na história da Medicina no Brasil, a inserção dessa
atividade no universo capitalista. Sistematizou-se o combate a práticas médicas que sobreviveram
da colônia e organizou-se todo um aparato institucional para se fazer da Medicina Científica o
único modelo no tratamento de doentes. José Nava foi médico por dez anos (1901-1911) e, em
sua atuação em Juiz de Fora, temos o exemplo de como os médicos organizaram todo um
discurso institucional que lhes autorizava, como única voz, opinar sobre saúde. Segundo Madel
Luz, foram os profissionais da Medicina os primeiros intelectuais orgânicos brasileiros,
utilizando concepção de Gramsci
172
.
Luz (1982) estuda a questão em Medicina e ordem política brasileira: políticas e
instituições de saúde e juntamente com Pedro Sales (1971) na obra História da Medicina no
Brasil
173
. Apresentam a cronologia da organização institucional dessa profissão no país. Médicos
e Medicina discutiram e propuseram soluções para as questões de saúde da população brasileira.
Segundo Hochman, o Sanitarismo foi a estratégia utilizada para a elaboração de um projeto de
171
NAVA, Pedro. Baú de ossos: memórias. Rio de Janeiro: Sabiá. p. 292-294.
172
LUZ, Madel. Medicina e ordem política brasileira: políticas e instituições de saúde (1850-1930). Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1982. p. 4.
173
______; SALES, Pedro. História da Medicina no Brasil. Belo Horizonte: G. Holman, 1971.
101
nação. A Ciência possibilitaria o resgate de uma população doente e sua inserção na nação
174
.
Caracterizou-se o período (1889-1930) pela organização de instituições voltadas ao saneamento e
preocupadas com epidemias. Não desconhecemos resistências a esses modelos, entretanto
queremos identificar as propostas de um segmento médico.
A assistência individual, no período anteriormente mencionado, tinha o caráter liberal
para os que podiam pagar e era inacessível para a maioria da população. Essas diretrizes foram
orientadoras na organização em: 1890 Diretoria Geral de Higiene atuando, nos Estados, o
Inspetor de Higiene, em cada capital, e Delegado de Higiene, em cada município; 1891 A
Constituição estabeleceu o regime federativo e os estados ficaram responsáveis pelos Serviços de
Higiene; 1893 Diretoria Geral de Higiene e Assistência Pública; 1904 Decreto Legislativo
1151 – Diretoria Geral de Saúde Pública com os estados englobados em 10 Delegacias de Saúde;
1919 – Serviço de Profilaxia Rural; 1920 – Departamento Nacional de Saúde Pública – vinculado
ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Em 1923 o Decreto nº. 16.300 descentralizou
funções e enfatizou medidas preventivas como a obrigatoriedade de carteira de saúde para
empregados e ainda intensificou medidas de saneamento. A criação desses órgãos, destinados aos
cuidados da saúde, mostram que, mesmo a República tendo caráter descentralizador no período, o
Estado se fez presente na organização do Sanitarismo. Em 1930, foi criado o Ministério da
Educação e Saúde no Governo Vargas, e nova abordagem foi dada à questão
175
.
Se, na atuação de José Nava, em Juiz de Fora (1903-1909), temos um exemplo das
questões médicas e suas ligações com o processo da urbanização, na formação dica de Pedro
Nava, em Belo Horizonte (1921-1927), temos a presença de questões das relações do
Modernismo e suas implicações na Medicina. As Memórias naveanas, em Belo Horizonte,
abrangem os anos de 1913-1914, 1921-1927 e 1929-1931.
Retomando o livro Balão cativo, deparamo-nos com mais observações de Nava sobre a
questão da Memória:
NA EVOCAÇÃO que venho fazendo de minhas andanças com tio Salles não
posso separar o que pertence a 1916 ou a 1917. Aliás é impossível restaurar o
passado em estado de pureza. Basta que ele tenha existido para que a memória o
174
HOCHMAN, Gilberto. A era do saneamento: as bases da Saúde Pública no Brasil. São Paulo:
HUCITEC/ANPOCS, 1998. p. 76.
175
SALES, Pedro. História da Medicina no Brasil. Belo Horizonte: G. Holman Ltda, 1971.
102
corrompa com lembranças superpostas. Mesmo pensando diariamente no mesmo
fato, sua restauração trará de mistura o analógico de cada dia – o que chega para
transformá-lo. É como navegar, arrastando dentro do mar-tempo um fio e um
anzol que são sempre os mesmos mas sobre os quais se grudam as camadas e as
camadas de plâncton que acabarão por transformar a coisa filiforme e aguda
numa espécie de esponja. A viagem da memória não tem possibilidades de ser
feita numa direção: a do passado para o presente. Não é a sós que velejamos
para os anos atrás em busca dos nossos eus. Levamos conosco uma experiência
tão inarrancável que ela é elemento de deformação que nos obriga a agir com as
nossas recordações como os primitivos que pintavam a Natividade, o Pretório e
a Ressurreição, dando à Virgem, a São José, a Nosso Senhor, a Pilatos e aos
centuriões, roupas medievais em ambientes italianos, flamengos e espanhóis
176
.
Nava reconhece as interferências ocorridas nos aspectos que envolvem a memória, então,
cabe ao historiador os desvelamentos desses fatores. Podemos afirmar que o universo naveano
tratado em Baú de ossos: memórias e Balão cativo: memórias 2 abrange, preponderantemente, os
anos de 1890-1917, ou seja, um período de visíveis transformações na sociedade brasileira, pois
aceleraram-se a urbanização e as questões dela decorrentes. Dentre o enciclopedismo das
Memórias, temos destacado a contribuição da obra naveana para os estudos das relações
Medicina e sociedade. Em Baú de ossos: memórias, Nava reconstituiu a vida estudantil e
profissional de seu pai, o médico José Nava (1876-1911). Em Chão de ferro: memórias 3, iniciou
o relato de seu ingresso na Faculdade de Medicina de Belo Horizonte (1921). As atividades
médicas ocupam importante espaço em sua obra literária e constituem importante contribuição
aos estudos sobre o assunto. As obras Baú de ossos: memórias e Balão cativo: memórias 2
abrangem o período de 1890-1916. Assim, Nava, ao escrever sobre seu percurso nesse período,
em Juiz de Fora, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, traçou um painel do cotidiano dessas cidades
que são contribuições aos estudos da sociedade brasileira do período. Greve operária, inovações
tecnológicas (luz elétrica, telefone, gramofone, bondes, etc.), adoção de esportes ingleses,
modificações no comportamento feminino, convivência com imigrantes, livrarias, grupos
intelectuais, atividades na imprensa, cinemas e crescimento das cidades, além de questões que
envolvem o urbanismo, mereceram a atenção do autor. Por isso podemos afirmar que esses dois
livros são fundamentais àqueles que estudam a sociedade brasileira no período. O autor, em Baú
de ossos, deixou páginas com considerações sobre a Belle Époque. Trata da questão
internacionalmente e nacionalmente. Reconstituição estética de período estudado por
176
NAVA, Pedro. Balão cativo: memórias 2. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973. p. 221.
103
profissionais de Ciências Sociais e Humanas. Transcreveremos um longo parágrafo, em que o
memorialista trata do entrudo em Juiz de Fora comemoração carnavalesca que, nos anos 1920,
foi perdendo as influências portuguesas; um Pierrot prenunciava a transformação:
Água não era de chuva e de enchente. Mais abundante era a dos entrudos.
Carnaval. Passavam uns escassos mascarados, dominós de voz fina, diabinhos
com que o Benjamin Rezende se divertia arrancando os rabos e quebrando os
chifres. O Paulo Figueiredo, encantando minha avó com seu Pierrot recamado de
lantejoulas. Os primeiros lança-perfumes Vlan e o Rodo.
Mas o bom mesmo
era o entrudo.
Havia instrumentos aperfeiçoados para jogar água, como os
relógios, assim chamados porque esses recipientes imitavam a forma de um
relógio fechado, com dois tampos metálicos flexíveis que, quando apertados,
deixavam sair um delicado esguicho de água perfumada. Havia de todos os
tamanhos, desde os pequeninos, que vinham no bolso, aos enormes, que ficavam
no chão e eram acionados com o pé. Havia os revólveres seringas que
imitavam a forma da arma – cano metálico e o cabo de borracha que se apertava,
apontando quem se queria molhar. Os limões de todos os tamanhos e de todas as
cores que eram preparados com semanas de antecedência e em enorme
quantidade. Continham água de cheiro, água pura, água colorida, mas os que
caíam da sacada do Barão vinham cheios de água suja, de tinta, de mijo podre.
Desciam ao mesmo tempo que as cusparadas das moças. Além dos relógios, dos
revólveres, dos limões, eram mobilizadas todas as seringas de clister e
improvisados seringões com gomos de bambu. Todos os pontos estratégicos das
casas eram ocupados com jarras, baldes, latas e bacias para esperar os atacantes.
Porque havia os assaltos de porta a porta. Éramos investidos pelos Pinto de
Moura e depois do combate, encharcados, confraternizávamos, para atacar a
casa das Gonçalves. Logo depois era um grupo maior que avançava sobre as
fortalezas fronteiras dos Couto e Silva e do tio Chiquinhorta, onde nos
esperavam valorosamente o Antonico e o Mário Horta. Meu Pai comandava a
refrega protegido nas dobras de um vasto macfarlane, cujas asas davam-lhe
gestos de pássaro gigante. Acabava tudo numa inundação de vinho-do-porto,
para rebater e cortar o frio. À noite meu Pai penava com asma...
177
Depois de reconstituir o Carnaval, o memorialista trata de festa familiar, na qual ocorre
episódio que aponta para práticas escravocratas que adentraram pelo Império:
Em 1908, logo depois do Carnaval, no mês seguinte, a 7 de março, foram as
Bodas de Ouro de meus tios-avós Regina Virgilina e Francisco Alves da Cunha
Horta. Nunca Juiz de Fora assistiu a folguedos iguais. Foram sete dias de bródio,
177
NAVA, Pedro. Baú de ossos: memórias. Rio de Janeiro: Sabiá, 1972. p. 261-262.
104
uma semana, com as manhãs ocupadas em missas, bênçãos e ações de graças. Os
dias, em piqueniques na Borboleta, no Morro do Imperador, no Parque Halfeld;
em caçadas para os aléns de São Mateus ou pescarias e banhos de rio nas águas
do Paraibuna. As tardes, em jantares pantagruélicos com peru e porco. As noites,
em bailes que iam até o raiar do dia. (...) Desta cidade vieram a prima
Marianinha, tia Joaninha e o tio Júlio todo carrancudo, disparatando com os
sobrinhos e os moleques de servir, mas todo terno com as sobrinhas e com as
crias. Sempre que ele via uma, com menino no colo, vinha acarinhar a criança
para, na confusão, pegar nos peitos da ama-seca. Fungando e de cara amarrada.
Reclamar, quem podia? contra aquela fera. Além dos filhos, todos os netos e
netas, entre os quais Laura. Teria a minha idade, cinco anos. Não a deixei um
minuto. (...) Essa festa de Bodas de Ouro virou legenda de família. Fala-se nela
até hoje. Serve nossa cronologia. Nas bodas. No tempo das bodas. Antes das
bodas. Depois das bodas. O retrato das bodas. Contemplo o grupo familiar onde
estão quarenta e sete parentes. Vivos seis, porque quarenta e um se
passaram desta
178
.
Em Baú de ossos e Balão cativo, Nava testemunhou, em Juiz de Fora, questões presentes
na sociedade brasileira. Vimos, na transcrição, a permanência de prática escravocrata, assédio
sexual, mas, também nas páginas iniciais de B de ossos, deparamo-nos com novas forças
sociais e políticas, tal como uma greve operária mencionada anteriormente.
Em Chão de ferro, destacamos um fragmento de texto em que o autor faz referência a
questões que envolvem o Memorialismo e a História:
É COM ESSA PERGUNTA que entro nesta fase de minhas memórias, fase tão
irreal e mágica e adolescente como se tivesse sido inventada e não vivida. Se eu
fosse historiador, tudo se resolveria. Se ficcionista, também. A questão é que o
memorialista é forma anfíbia dos dois e ora tem de palmilhar as securas
desérticas da verdade, ora nadar nas possibilidades oceânicas de sua
interpretação. E como interpretar? o acontecido, o vivido, o FATO que ele,
verdadeiro ou falso, visão palpável ou boato tem importância igual seja
um, seja outro. Porque sua relevância é extrínseca e depende do impacto
psicológico que provoca. Essa emoção, desprezível para o historiador, é tudo
para o memorialista cujo material criador pode, pois, sair do zero. Mentira?
Ilusão? Nada disso – verdade. Minha verdade, diferente de todas as verdades
179
.
178
NAVA, Pedro. Baú de ossos: memórias. Rio de Janeiro: Sabiá, 1972. 262-263.
179
______. Chão de ferro: memórias 3. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976. p. 166.
105
A concepção de Nava sobre a objetividade necessária ao historiador é dominante em sua
geração. Vale lembrar que deixou páginas sobre o ensino de História no Colégio Pedro II, onde
foi aluno de João Ribeiro, historiador positivista. Nava, em Chão de ferro, faz uma extensa
crônica dos anos 1910 do século
XX,
no Rio de Janeiro. Destacamos a reconstituição que faz do
ensino, colegas e professores do Colégio D. Pedro II.
A seguir, apresentamos um episódio (1919) envolvendo o memorialista e o professor de
inglês Guilherme Afonso de Carvalho (Pissilão), conhecido pelo rigor nas avaliações:
(...) Parecia uma bruxa de Goya, um Daumier dos mais duros, ou o evadido
duma masquerade de William Hogarth. Devíamos ter pena, entretanto não o
poupávamos. Nem ele a nós. Suas notas iam do 0 (frequente) ao 6 (raríssimo).
Acima disto nunca marcara valores mais altos em toda sua vida de professor.
Nos exames reprovava sessenta; simplificava trinta e nove; dava plenamente seis
no restante de cada lote de cem. Caberia a mim romper esse tabu com o Inglês
que eu trouxera do Jones, do Sadler e que ia se tornando lendário no Internato.
Foi logo nos nossos primeiros contatos com o Pissilão. Ele surpreendeu-me
passando adiante uma chulipa, deu logo zero em comportamento e quis agravá-
lo com o de aplicação. Chamou-me à pedra. Eu pedi dispensa, que a aula,
Professor, está quase no fim. Não tem importância não, nhonhô, faltam dez
minutos e temos tempo de sobra para uma versãozinha. Vamos a ela, tomando
como ponto de partida a sua alegação. Escreva na pedra: a aula está quase no fim
mas meu mestre ainda tem tempo de me dar o duplo zero que é a ordem de
minha privação sábado próximo. Aquilo era o cúmulo da má fé. Início de aulas e
jamais ele tinha ensinado a passar uma palavra, a menor sentença para o
Inglês. Inda mais de improviso! Era mesmo para me achatar. Sob seu olhar
maldoso peguei o giz. Rindo, o Pissilão encostou-se na cátedra para gozar
melhor. Escrevi The lesson is nearly over (olhei, vi o suspense dos colegas e o
homem começando a recolher o riso) but my master has still time (tornei a olhar
e bati nuns bogalhos arregalados e numa bocaberta de estupor) to give me the
double 0 that will be a writ to arrest me next saturday (remirei e para completar
o pasmo do homem, para puxar-lhe bem o saco, voltei à pedra, apaguei o M
minúsculo e substituí-o por um maiúsculo na palavra Master). Tiniram as
campainhas, a aula terminara, mas o Pissilão, subjugado, bateu com a mão na
mesa, restabeleceu o silêncio, pediu-me explicações daquele inglês, sobretudo
daquele writ to arrest que o empolgara. Modesto, mandou-me restabelecer a
minúscula do master, anulou meu zero em comportamento e pela primeira vez
na vida deu um grau dez em lição de aluno. Fiquei logo favorito e abusei disso
fazendo do mestre o que queria e o que queriam os colegas
180
.
180
NAVA, Pedro. Chão de ferro: memórias 3. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978. p. 156-157.
106
Em Beira-mar, Nava apresenta relatos sobre o período de estudos e formatura em Belo
Horizonte:
Ali vivi de meus dezessete aos meus vinte e quatro anos. Vinte anos nos anos
Vinte. Sete anos que valeram pelos que tinha vivido antes e que viveria depois.
Hoje, aqueles sete anos, eles só, existem na minha lembrança. Mas existem
como sete ferretes e doendo sete vezes sete quarenta e nove vezes sete trezentos
e quarenta e três ferros pungindo em brasa
181
.
Nessa obra, encontramos textos que são documentais sobre o Modernismo (Literatura,
Artes Plásticas, Política, etc.) em Minas Gerais e outros que tratam do ensino médico. Nava
comenta sobre o tratamento dado a essas atividades do seguinte modo:
Os caprichos de minha narrativa, certas analogias, algumas associações, muita
estória puxa estória vieram me trazendo até aos albores de 1924 antes que eu
desse por findo tudo que teria de dizer sobre 1922 e 1923. Tinha de ser assim,
para narrar meus estudos e a formação do Grupo do Estrela. Para fazer um relato
absolutamente cronológico teria de cair no que tenho evitado, que é o diário.
Prefiro deixar a memória vogar, ir, vir, parar, voltar. Para contar um baralho de
cartas a única coisa a fazer seria arrumá-lo diante do interlocutor, naipe por
naipe e destes, colocar a seriação que vai do dois ao ás, ao curinga. Mas para
explicar um jogo, um simples basto, para dizer duma dama é preciso falar no
cinco, no seis, no valete, no rei; é necessário mostrar a barafunda das cartas e
depois como elas vão saindo ao acaso e organizando-se em pares, trincas,
sequências. Assim os fatos da memória. Para apresentá-los, cumpre dar sua raiz
no passado, sua projeção no futuro. Seu desenrolar não é o de estória única mas
o de várias e é por isto que vim separando os paus de meus estudos, as espadas
de minha formação médica, os ouros de minhas convivências literárias e os
corações do Movimento Modernista em Minas
182
.
As obras Chão de ferro e Beira-mar trazem as Memórias dos 13 aos 25 anos de Pedro
Nava. Destacam-se, nesses dois livros, as observações naveanas sobre o Modernismo em Minas
Gerais. Longos parágrafos são escritos sobre seu conhecimento e amizade com Carlos
181
NAVA, Pedro. Beira-mar: memórias 4. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. p. 12-13.
182
Ibid., p. 176
.
107
Drummond de Andrade. O poeta, formado em Farmácia, em 1925, nunca exerceu essa profissão.
Foi funcionário público, jornalista e participante ativo da vida intelectual brasileira. Poucos
intelectuais, como Drummond, foram reconhecidos pela crítica e tiveram tanto sucesso junto ao
público. Nava, que abandonara a Literatura em sua juventude, foi marco nessa atividade quando
se dedicou à escrita das Memórias. Caminhadas diferentes que convergiram para um ponto em
comum: ambos são destaque na Poesia e no Memorialismo brasileiros.
Caracterizou-se o período de 1870-1920, na América Latina, pela industrialização, como
visto anteriormente, e pelos reajustes institucionais necessários à nova realidade
183
. Políticas
nacionais de saneamento foram implantadas. Iniciaram-se discussões sobre sistemas nacionais de
saúde e educação. Houve crescimento de setores médios urbanos e também surgiram questões
operárias nos centros industriais. No Brasil, a Abolição (1888) e a Proclamação da República
(1889) foram ajustes institucionais que permitiram às oligarquias do Império permanecer no
poder até 1930. Na década de 1920, novas questões foram postas em discussão. Destacamos as
questões relacionadas com o Modernismo e o Nacionalismo. Os efeitos da Primeira Guerra
Mundial trouxeram questionamentos às democracias e ao Liberalismo. A Revolução Russa de
1917 incentivou estudos sobre o assunto e a organização de partidos políticos com orientação
marxista. Os nacionalismos italiano e alemão, igualmente, trouxeram novas propostas para as
discussões de questões nacionais.
As propostas e discussões sobre o que seria Modernismo, no Brasil, estiveram presentes
no pensamento dos intelectuais brasileiros em diversos pontos do país. Discutiram-se questões
como a dependência brasileira e concepções de nacionalismo e Estado em seus diversos aspectos.
Intelectuais, no período, identificaram questões e se viam como os únicos capazes de apresentar
soluções para os problemas sociais. A Era Getúlio Vargas (1930-1945) colocou em prática
algumas dessas propostas que nortearam a sociedade brasileira até a década de 1980. Belo
Horizonte fora ícone da modernidade na década de 1990 da República. Cidade planejada por
Aarão Reis com traçado seguidor dos postulados positivistas de racionalidade do espaço. Oposta
à barroca colonial Ouro Preto, então, capital da província. Engenheiros e arquitetos planejaram
uma cidade com propostas do Ecletismo que se queria diferenciar e se opor ao universo cultural e
simbólico da Colônia que adentrara pelo Império. Helena Bomeny (1994), em Guardiães da
183
SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas latino-americanas: polêmicas, manifestos e textos críticos. São Paulo:
EDUSP/FAPESP/Iluminura, 1995.
108
razão: modernistas mineiros, identifica, nas propostas dos modernistas mineiros, questões que
remetem à organização de Belo Horizonte como capital de Minas Gerais.
Nava reconhece o papel de liderança de Drummond para a geração de modernistas
mineiros. Sobre o grupo, assim se expressa:
ele e eu? Não. Era enorme o grupo a que o Carlos me apresentou. Era
composto do próprio poeta, de dois moços da casa da Madame Francisco
Martins de Almeida e Hamilton de Paula e mais de Abgar Renault, João
Guimarães Alves, Heitor Augusto de Sousa, João Pinheiro Filho, dos irmãos
Alberto e Mário Álvares da Silva Campos, de Emílio Moura, Mário Casassanta,
Gustavo Capanema, Gabriel de Rezende Passos, João Alphonsus Guimaraens e
Milton Campos. O tempo traria ainda para nossa convivência Dario Magalhães,
Guilhermino César, Ciro dos Anjos, Luís Camilo e Ascânio Lopes. Escrevendo
o nome desses amigos de mocidade e vendo o que eles foram depois – não posso
deixar de dizer do orgulho de ter pertencido a grupo tão ilustre. Dele sairia, já
nos anos vinte, a contribuição mais importante de Minas para o Movimento
Modernista. Tínhamos o hábito de nos reunir na Livraria Alves e principalmente
no Café e Confeitaria Estrela. Daí, além do pejorativo futuristas que nos davam
os infensos, a designação de Grupo do Estrela – como nos chamavam os
indiferentes. Mas tudo isto é uma longa história...
184
Repetindo uma frase do parágrafo transcrito: “Escrevendo o nome desses amigos de
mocidade e vendo o que eles foram depois – não posso deixar de dizer do orgulho de ter
pertencido a grupo tão ilustre.” Comentando sobre A Revista:
O ano de 1925 foi da maior importância para “aqueles rapazes de Belo
Horizonte”. Marcou o aparecimento de A Revista, o da série de artigos de A
Noite do Mês Modernista e foi o ano em que Austen Amaro escreveu seu livro
Juiz de Fora/Poema lyrico. (...) Seus verdadeiros criadores foram os dois
primeiros diretores Francisco Martins de Almeida e Carlos Drummond de
Andrade e os dois primeiros redatores Emílio Moura e Gregoriano Canedo.
(...) Tomei conhecimento de A Revista, como coisa decidida, certa tarde de Café
Estrela, ouvindo os planos de seus fundadores. (...) Assim como houve no Rio a
adesão ao Modernismo de Graça Aranha, Manuel Bandeira, Ronald de Carvalho
e outros nossa A Revista foi a oportunidade mineira para a adesão de Mílton
Campos, Mário Casassanta e Abgar Renault
185
.
184
NAVA, Pedro. Beira-mar: memórias 4. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. p. 91-92.
185
Ibid., p. 210-211.
109
Em capítulo posterior, voltaremos aos textos naveanos que tratam do grupo mencionado.
Esses jovens ocuparam espaços políticos na década subsequente. A escrita do quinto livro de
Memórias Galo das trevas foi iniciada quando Nava tinha 75 anos. Novamente, apresenta
relatos sobre a escrita das Memórias:
A elaboração de minhas memórias foi decorrendo da minha necessidade de
isolamento porque nosso encontro mais importante é noscos mesmos.
Conversando comigo, nessa espécie de falar sozinho é que no dia 1º de fevereiro
de 1968 comecei a redigir minhas lembranças. Por elas reduzi ao mínimo minha
convivência até com amigos, até com os que mais quero, para não fragmentar e
destruir meu tempo, o tempo de que preciso para mim. E essa fase foi a da
punção como num poço, a penetração a fundo de outro homem como eu, outro
misantropo e eterno esnobado, vivendo vida de exílio dentro do nosso próprio
país. Refiro-me ao que tem sido meu companheiro cada vez mais chegado, meu
sósia, primo, amigo de infância, colégio, faculdade, vida, profissão afora. Falei
dele no Chão de Ferro e no Beira-Mar. É o que no Pedro II e Faculdade de
Medicina de Belo Horizonte era conhecido como Zegão e que depois de
formado passou a ser o Doutor José Egon Barros da Cunha...
186
Quando do lançamento das Memórias, parte do público ficou estarrecido com a
linguagem desabridada do escritor e o erotismo de muitos trechos. O erotismo é uma marca forte
nos escritos de Nava. Na Exposição Navalha do Tempo, organizada pela Universidade Federal de
Juiz de Fora, em comemoração ao centenário de nascimento do autor, deparamo-nos com
desenhos e anotações que foram gênese das Memórias. Essa mostra foi organizada com papéis e
objetos cedidos pelo Arquivo Museu de Literatura Brasileira Fundação Casa Rui Barbosa e por
familiares do escritor. Uma sala da exposição foi dedicada ao erotismo e à pornografia.
Selecionamos um texto erótico, encontro do médico com uma prostituta em Juiz de Fora, como
amostra dessa face de Pedro Nava:
(...) com a morena, o Egon olhou mais que não cansava de olhar aquele trem
divino. Ela encostou bem as costas na parede, firmou-se, esticou as duas pernas
e pegou com os pés as panturrilhas do médico que apertou num movimento de
tesoura. Ele, calado, segurou os tornozelos secos, bem ossos-do-vintém assim
mocotós quentes à sua o e que se deixaram levantar até ele descansá-los em
186
NAVA, Pedro. Galo das trevas: memórias 5. 2. ed.
Rio de Janeiro:
José Olympio, 1981. p. 85.
110
cima dos seus próprios joelhos, sentindo calor de sola calcanhar atravessando as
pernas das calças. Então se inclinou para estudar aqueles pés com gravidade de
anatomista, seriedade de topógrafo, atenção de geômetra para tal conjunto de
linhas volumes perfeitos. Eram pés recurvos, altos, cavos, elegantes. Tinham
uma suscetibilidade de mãos e pareciam preênseis, talvez devido à agilidade do
antepé hipermóvel que dava impressão de que todas as articulações tarso-
metatarsianas tinham a propriedade de ir até posições consentidas pela
luxação. Ele experimentou as juntas engates encaixes um por um como se
estivesse fazendo um exame clínico. Acompanhou esfregando com o dorso dos
seus dedos a órbita daquela sola uma, duas, dez, vinte vezes como se fosse o
escultor criando, esculpindo e inventando aquela curva sideral. A manipulação
que fazia era mais detalhada que manobra médica: era extra-sutil porque tateio
erótico. Os pododáctilos perfeitos da estátua de bronze. O contraste do róseo
melancia da planta com o moreno do dorso. Inventariava cada saliência óssea
dos artelhos e a ligeira penugem acima deles mais perceptível como simples
sombra. E a pele lustrosa esticada pelas cristes das tíbias. Um acinzentado mais
espesso dos joelhos que ele descamou de leve com a unha, soprando as
películas. Mas ele pôs-lhe as solas no chão levantou-se e deu-lhe as duas mãos
para ajudá-la a emergir e se pôr de pé. Ficavam quase da mesmaltura. Ela
continuava a sorrir de Gioconda, de Nefertiti estupenda e estúpida sem pensar
em nada. Os dois, túmidos, estavam como que inchados pelo desejo que os
catapultava um para o outro.
– Cumé cocê chama? bem.
– Iracema.
– Ai! então vem, talhe de palmeira, abelha, favo de jati.
Ela não entendeu a sugestão alencariana da frase mas foi sensível ao tom
sussurrado dentes cerrados e com o mesmo riso incrustado à face chegou a
boca-aberta ampla e úmida dando uma ngua que vivia e vibratremia chama
duma vela
187
.
Em O círio perfeito: memórias 6, estão os fatos da vida de Nava que ocorreram até 1937.
Nesse livro e em outros, contudo, o memorialista, ao mergulhar no passado, faz referências e
correlações com fatos posteriores; observando isso, Nava comentou: "As associações de ideias, o
encadeamento dos fatos e sua narrativa quebram constantemente o tempo. O narrador é arrastado,
muitas vezes, para trás, mergulha no passado; doutras, é puxado para a frente e invade o futuro
dos acontecidos "
188
.
Até então, temos nos preocupado em mostrar e exemplificar a diversidade de temas que
estiveram nas Memórias de Nava. Cumpre ressaltar que, da obra O círio perfeito: memórias 6
último livro naveano – selecionamos um trecho de seu tumultuado romance com a jovem a quem
deu o codinome de Lenora. Nava escreveu numerosas páginas sobre o assunto: o comportamento
187
NAVA, Pedro. Galo das trevas: memórias 5. 2. ed.
Rio de Janeiro:
José Olympio, 1981. p. 220-221.
188
______. O círio perfeito: memórias 6. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. p. 283.
111
transgressor da jovem, a relutância em se comprometer, os trajes, os passeios, os diálogos, etc. A
jovem suicida-se no Rio. Transcrevemos fragmento do texto em que o jovem médico narra seu
sofrimento em razão dessa perda:
O médico numa tonteira ouvia toda aquela história. Tomou a mão que a prima
da noiva (noiva?) lhe estendia, beijou-a, quis falar qualquer coisa mas estava
literalmente mudo, goelas engasgadas por garrote de ferro. Saiu aos trancos-e-
barrancos como um bêbado. E nunca mais reencontrar-se-ia com os Bleuer.
Correu pra casa e fechou-se no quarto. Os primos respeitaram seu isolamento.
a prima Diva entrava para levar-lhe os alimentos e mudar a moringa d´água
fresca. Começou para ele um período de vida miserável. Não queria ver
ninguém, tinha horror de conversar com quem quer que fosse e para poder ficar
nessa solidão, trocava seus dias pela noite. Quando dormia era ao clarear do dia,
hora em que entrava em casa com todos ainda deitados. Fazia seu café, comia
com ele um pedaço de pão de véspera, trancava-se, ia para a cama. Se podia,
dormia; se não, ia trabalhar numa longa carta que vinha preparando
laboriosamente para seu amigo irmão Joaquim Nunes Coutinho Cavalcanti que
andava na sua luta de médico, operador e parteiro do interior paulista no
distrito de Engenheiro Schmidt, em São José do Rio Preto. Às vezes dormia
profundamente, de outras cochilava mal que mal, entremeando sono e pesadelos
que o acordavam. Andava pelas ruas noite inteira e tinha mais ou menos sempre
o mesmo itinerário. (...) Ninguém. Só ele e seu inseparável fantasma. Fechava os
olhos para rever uma por uma suas perfeições, chorava e rangia os dentes ou
esmurrava a pedra fria do seu assento até fazer-se mal às mãos diante do
inelutável, do inexplicável e do absurdo daquele trespasse. (...) Parava para
procurar o lugar possível onde eles tinham tocado. Tinha vontade de baixar-se e
beijar aquelas pedras com o mesmo ímpeto com que um dia faria em Jerusalém
sobre a vera pedra onde tinham estado os pés de seu Salvador à hora dos ultrajes
e dos escárnios. E quando ele fizera isto anos e anos depois, a imagem da Lenora
passara-lhe pela mente de raspão. É que ele estava se lembrando das paixões e
das mortes que sofrera naquele fim de maio e princípio de junho nas pedras
duma João Pinheiro transformada na sua Via Dolorosa de Belo Horizonte.
189
(...) Os fatos narrados aqui passaram-se em 1930 e 1931. Só em 1977 por
intermédio de um primo de Lenora o Egon foi informado de que quando ela
tinha se matado estava condenada. Ia viver só mais uns poucos meses pois
fora-lhe diagnosticada uma leucemia. Essa revelação renovou a velha ferida do
Egon e ele ressofreu a morte da pobre moça como se ela tivesse sido cominada
mais uma vez. Sua família e ela sabiam da doença e do prognóstico e o médico
padeceu de novo e padece ainda quando se lembra da rainha: Infandum regina...
Tudo que ele achara estranho na família sempre sumida, nas bizarrices do
comportamento da moça era a consciência de que havia ali uma condenada à
morte que levou sua vida aos limites da conservação de sua imagem de
juventude poderosa. Quando viu que a moléstia ia desfigurá-la, aviltar-lhe o
189
NAVA, Pedro. O círio perfeito: memórias 6. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. p. 97-99
.
112
corpo maravilhoso e a cabeça divina – retirou-se em beleza e foi ao encontro dos
deuses seus irmãos
190
.
Nas páginas dedicadas a Lenora, codinome de Zilah Pinheiro Chagas, Nava compara os
sofrimentos resultantes da paixão pela jovem e a dor de sua perda com episódios da Via-sacra. A
referência a temas religiosos como metáforas é presente nas páginas naveanas. São inúmeras as
entrevistas dadas pelo memorialista em que ele trata da questão sobre suas Memórias. Fizemos
recortes em que Nava trata desse assunto. O que aqui destacamos sobre a memória, nas
Memórias, é apenas uma amostragem do que se pode fazer em um estudo mais aprofundado
sobre o assunto nos escritos de Nava. Observações e escrita de um médico, perceptíveis nas
posturas de observação, diagnóstico e prognóstico. Nava pertenceu a uma geração de jovens
nascidos na primeira cada do século
XX,
em Minas Gerais, e que tiveram ativa participação
nacional nas décadas posteriores, como pode ser verificado nos nomes transcritos anteriormente.
Estudos acadêmicos têm-se debruçado sobre esse período, em Minas
191
. São estudos voltados
para a política, sociedade e cultura. Após a leitura da obra de Nava, vemos que a Medicina foi um
dos mais importantes aspectos do Modernismo mineiro.
O tema central de nossa pesquisa é a identificação das relações Medicina e sociedade. Na
busca da contextualização dessa atividade, procuramos inserir as observações de Hosbawm sobre
o assunto, destacadas no Capítulo I. A obra de Nava está inserida na etapa do capitalismo
monopolista e de suas crises. Em Baú de ossos e Balão cativo, temos os ecos dessa expansão,
visíveis no ensino médico recebido por José Nava, na industrialização de Juiz de Fora e na
organização do Ginásio Anglo-Mineiro, em Belo Horizonte. São feitos e propostas de uma
geração a qual considerava que “Moderno” e “Modernização” estariam ligados à adoção de
hábitos europeus, laicização e valorização das ciências. Na organização ou reorganização de
instituições do período, vemos propostas e discursos que referendam essa etapa do capitalismo.
Não queremos reduzir a organização institucional como mero reflexo.
190
NAVA, Pedro. O círio perfeito: memórias 6. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. p. 102-103.
191
Destacamos: BOMENY, Helena. Guardiães da razão: modernistas mineiros. Rio de Janeiro: UFRJ/Edições
Tempo Brasileiro, 1994. BUENO, Antônio Sérgio. O Modernismo em Belo Horizonte: década de vinte. Belo
Horizonte: UFMG/PROED, 1982. DIAS, Fernando Correia. O Movimento Modernista em Minas: uma
interpretação sociológica. Brasília: Ebrasa, 1971. CURY, Maria Zilda Ferreira. Horizontes modernistas: o jovem
Drummond e seu grupo em papel jornal. Belo Horizonte: Autêntica, 1998. DULCI, Otávio Soares. Política e
recuperação econômica em Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG, 1999.
113
Os textos de Bourdieu mostram como os Campos” são mais complexos. São campos de
antagonismo e de lutas por hegemonia. A grande contribuição do sociólogo francês é a
identificação dos meandros e das especificidades sociais. O capitalismo, para a sociedade
brasileira, significou a urbanização, aumento populacional com a imigração, transição do trabalho
escravo para o assalariado e abertura para novas áreas de povoamento, por exemplo, Juiz de Fora.
Podemos identificar na formação de JoNava, sob a égide da Reforma Saboia de 1882, indício
de mudanças nas questões de saúde, no aspecto da formação profissional. O ensino do período
buscou inserir a pesquisa experimental no campo educacional. Segundo Edler e Fonseca, na
Reforma Saboia, foram construídos 11 laboratórios e inovações curriculares de orientação
germânica que enfatizava a prática
192
. Os autores refutam publicações as quais consideram que a
experimentação se fez presente, no Brasil, após a geração de Oswaldo Cruz. José Nava é
exemplo de sanitarista formado, no período, pelo ensino recebido e atuação profissional. Pedro
Nava reconstituiu a trajetória do ensino profissional de seu pai no Capítulo III – “Paraibuna” – da
obra Baú de ossos.
Nava consultou textos, buscou informações sobre currículos para a reconstituição.
Destaca as disciplinas, os livros adotados, os nomes de professores, etc. José Nava iniciou os
cursos de Farmácia e Medicina em Salvador, no ano de 1895. Em 1896, transferiu-se para o Rio
de Janeiro, onde concluiu seus estudos, formando-se em Farmácia, no ano de 1898 e, em
Medicina, em 1901.
Como proprietário da Farmácia Nava, na reconstituição de Pedro Nava, seu pai teria
trabalhado e vivido questões como:
Estavam no primeiro caso os remédios que curavam as anemias, as tosses, os
vapores, as asmas, os esgotamentos, as descompensações, as pontadas, as
dispepsias, as sífilis e as gonorreias da belle époque, como os cacodilatos, os
metarsinatos e as lecitinas de Clin; os mercúrios simples da solução de Panas e
os idodados de Pro-khrow; a papaína do Dr. Niobey, o Gonosan Riedel, os pós
de Legras, o sândalo Midy, as soluções de Trunecek, Picot e Barbosa Romeu.
(...) No segundo, os óvulos, os percolatos, os xaropes, os elixires, os electuários,
os supositórios, as velas, os comprimidos, as pílulas, as cápsulas e os papéis
todo o estadear triunfante da era do julepo gomoso que meu Pai edulcorava,
tamisava, pulverisava, fervia, distilava, decantava, coava, secava, espoava ou
192
EDLER, Flávio; FONSECA, Rachel Fróes. O surgimento da medicina experimental e reforma curricular.
Cadernos ABEM, v. 2, p. 17, jun. 2006.
114
moldava com os requisitos da farmácia galênica. Ele manteve a botica e por
ela foi mantido até formar-se e a passou adiante quando se atirou à clínica do
interior
193
.
O memorialista afirma: “No curso médico meu Pai encontrou-se com Ernesto de Freitas
Crissiuma, que dava Anatomia Descritiva pelos passos de Cruveilhier, cujo tratado antecedeu o
de Testut na preferência dos nossos mestres”
194
. Assim fez com outras disciplinas, identificou
programas e manuais. Transcreveremos a reconstituição naveana de cirurgia pioneira assistida
por seu pai:
Entretanto, quem deixaria mais profundas lembranças no seu espírito, dentre os
mestres do segundo ano, seria Eduardo Chapot-Prevost. Não como histologista,
mas como cirurgião e figura humana. Chapot ligou definitivamente seu nome ao
da moderna Cirurgia Brasileira, cuja história ele inaugura sombolicamente com
a famosa operação de Maria-Rosalina. Para realizá-la, ele preparou-se
experimentalmente, criou e treinou um sistema pessoal de ligadura hepática,
inventou uma mesa cirúrgica destinada ao xifópago e que, separados os mesmos,
dividia-se também, indo cada metade para um lado da sala, servida pela
respectiva equipe operatória que não interrompia, assim, um instante, o ato
cruento tornado duplo. Essa contradança foi repetida e ensaiada, até ficar
impecável, pelos atores do autoestrelado por Chapot (cujo elenco compunha-se
de canastrões como os doutores Pinheiro Junior, Paulino Werneck, João Lopes
(quem não se lembra do Lopão egrégio?) e o mano José Chapot; de vedetes
como Sílvio Muniz, Ernâni Pinto, Dias de Barros, Paula Rodrigues, Figueiredo
Rodrigues e Chardinal d´Arpenans; de comparsas como Azevedo Monteiro,
Amaro e Jonatas Campelo). Digo bem auto, drama, teatro pois o estardalhaço
que Chapot armou em torno do caso não tinha precedentes e escandalizou a
compostura de nossa Medicina Oficial
195
.
José Nava teve contato com a Cirurgia, contudo, a geração à qual pertenceu teve como
preocupação central o Sanitarismo. Como visto, na atuação de José Nava, na Sociedade de
Medicina e Cirurgia de Juiz de Fora, os temas centrais das discussões eram as epidemias. Esse
médico pertenceu a uma geração que, em sua formação, acreditou que a solução para os
193
NAVA, Pedro. Baú de ossos: memórias. Rio de Janeiro: Sabiá, 1972. p. 217-218.
194
Ibid., p. 212-213.
195
Ibid., p. 213-214
.
115
problemas brasileiros seria a imigração. Morreu aos 35 anos quando o olhar médico sobre o país
começou a mudar. O problema brasileiro não seria a mestiçagem, mas a doença, questão vivida
pela geração de seu filho Pedro Nava.
O tempo delimitado para nossa pesquisa (1890-1940) e a temática da mesma é palco para
a formação da geração de dois médicos JoNava e Pedro Nava. Buscando correlacionar a
Medicina como parte do universo institucional da República Velha, apresentaremos outras
instituições organizadas no período. Com isso, queremos chamar a atenção para esforços
anteriores à Era Vargas de inovações e de preocupações científicas. A geração de José Nava foi
contemporânea do Positivismo e influenciada por essa corrente, que ocupou espaço nas questões
ligadas à organização da República. O período é marcado pela criação, notadamente em São
Paulo e Rio, de várias instituições: em São Paulo: Instituto Agronômico de Campinas (1887),
Instituto Vacionogênico para o desenvolvimento das vacinas (1892), Instituto Bacteriológico
(1893) e o Instituto Butantan (1901); no Rio: Instituto Manguinhos (1900). Segundo Simon
Schwartzman (2001), na obra intitulada Um espaço para a Ciência: a formação da comunidade
científica no Brasil, “essas instituições foram responsáveis pela ciência brasileira até a cada de
1930
196
. A organização de estabelecimentos de ensino em São Paulo, Rio, Porto Alegre e Belo
Horizonte mostram a expansão do campo educacional com novas preocupações e objetivos. Por
haver uma correlação com nosso interesse de estudo, destacamos Minas Gerais. Segundo
Schwartzman:
Além disso, Belo Horizonte atraía os cariocas por uma razão aparentemente
pouco plausível: o tratamento da tuberculose. Marques Lisboa, Borges da Costa,
Almeida Cunha, Hugo Werneck, Ezequiek Dias todos eles médicos e
graduados de Manguinhos eram tuberculosos, e trocaram o clima úmido e
pouco saudável do Rio pelas montanhas de Minas Gerais, levando consigo seu
acervo de educação, sua experiência de trabalho e os contatos pessoais. Ezequiel
Dias, por exemplo, era aparentado com Oswaldo Cruz, e a abertura de uma filial
de Manguinhos em Minas Gerais parece ter sido principalmente uma forma de
prolongar a vida do pesquisador. A Faculdade de Medicina de Belo Horizonte se
beneficiaria com a experiência trazida do Rio por esse grupo, que a fazia
funcionar com a colaboração de José Baeta Viana, conhecido por seus estudos
sobre o bócio e fundador de uma atividade local de pesquisa no campo da
química fisiológica
197
.
196
SCHWARTZMAN, Simon. Um espaço para a Ciência: a formação da comunidade científica no Brasil. Brasília:
MCT, 2001. p. 99.
197
Op. cit., p. 133.
116
Os nomes mencionados ocupam uma grande fração nas Memórias naveanas. Foram
professores da instituição onde Nava fez sua formação profissional. Esperamos ter sintetizado,
neste capítulo, os diversos aspectos que se fizeram presentes na formação e nas Memórias de
Pedro Nava. O memorialista identifica os parentes maternos, em Juiz de Fora, como pessoas
rudes e com práticas escravocratas; enquanto a família paterna é apresentada como portadora de
hábitos refinados urbanos e com preocupações intelectuais. No desenvolvimento da obra,
percebe-se que Nava optou pela herança do lado paterno.
117
4 FORMAÇÃO E PROFISSIONALIZAÇÃO DE PEDRO NAVA
O caráter livre, espontâneo, quase onírico da memória é, segundo Halbwacs,
excepcional. Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer,
reconstruir, repensar, com imagens de hoje, as experiências do passado. A
memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência
do passado, “tal como foi”, e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A
lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa
disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência. Por
mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ele não é a mesma
imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de
então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas ideias, nossos
juízos de realidade e de valor. O simples fato de lembrar o passado, no presente,
exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua diferença
em termos de ponto de vista
198
.
Na transcrição de Ecléa Bosi (1983), encontram-se referências pertinentes ao último
capítulo da obra Memória e sociedade: lembrança de velhos. Trataremos, aqui, de observações e
olhares retrospectivos de uma vida profissional. Em 1920, Pedro Nava, aos 17 anos, respondeu a
um “questionário” no Colégio Pedro II, no Rio. Esse tipo de enquete era comum entre colegas de
turmas. Elaborado por Carlos Paiva Gonçalves, destacamos três perguntas e respostas:
– 4. Que pensas da vida?
A vida é como um anfiteatro anatômico: aí estudamos as chagas sempre abertas,
vemos a podridão, o mal, o horror, o cancro e o pior de tudo a “hipocrisia do
otimismo”, tudo num montão de lama – a sociedade.
– 6. Que carreira pretendes seguir?
A medicina.
– 7. Por que a escolheste?
Porque, é a que me oferece mais encantos, porque por intermédio dela, estudarei
este emaranhado de vasos, esta reunião de músculos, esta teia de nervos, que
compõem este monte de elementos apodrecidos
199
.
Nas três respostas de Nava, encontramos as setas que indicam sua trajetória. Compara a
vida a um anfiteatro anatômico e, na escrita das Memórias, fala de seu encantamento com a
198
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembrança de velhos. Rio: Paz e Terra, 1983.
199
MANIFESTO dos mineiros. Rio de Janeiro, 30 de março de 1977. 11 f. Datilografado. Português. Arquivo Pedro
Nava. Fundação Casa Rui Barbosa, Arquivo Museu de Literatura Brasileira (PN-422).
118
disciplina. A comparação dos materiais deteriorados com a sociedade é a visão de mundo que o
escritor deixou em sua obra literária. Nava realizou o seu projeto e anteviu sua trajetória.
Observou atores e a sociedade brasileira como se estes estivessem colocados em um anfiteatro de
estudos anatômicos. Esta postura de busca de desvelar o oculto é presente nos textos do
memorialista. A primeira menção de Nava à Medicina trata de episódio ocorrido em Juiz de Fora,
por volta de 1908 ou 1909. Rememoração de um parente e de doença em um amigo:
Além de genealogista, o tio Itriclio era um hábil curão. Vivia sugerindo
tratamento, receitando mezinhas e aconselhando as pílulas de Matos (invenção
milagrosa do boticário cearense Antônio José de Matos). o estou longe de
imaginar que a vocação médica de meu Pai filho de comerciante, enteado de
notário tivesse vindo do contato com seu tio. Hábil carimbamba, eu ainda o vi
tratando do Chiquinho, filho do bravo Major Mendes, que era nosso vizinho e
aparentado do Dr. Duarte de Abreu – este, comensal, amigo e mentor político de
meu Pai. Retrospectivamente, faço o diagnóstico do menino que regulava idade
comigo: reliquats benignos de paralisia infantil. Porque eu fosse companheiro
do garoto, o velho Itriclio vinha me buscar, diariamente, para ir com ele até o
largo do Bispo, onde era a casa do major. (...) O digno militar, velho aluno de
Benjamin Constant, tinha ideias próprias onde se combinavam perfeitamente
postulados positivistas, revelações da teosofia e prescrições místico-sanitárias da
Christian Science. Era admirador do Padre Kneipp, devoto de Raspail, sequaz
das teorias de Hahnemann e infenso à alopatia. Saindo destas bases, era
inevitável sua crença numa panaceia. Esta, para o velho Itriclio, era a banha da
cobra cascavel, que ele recebia diretamente do Ceará – porque só servia a boa, a
verdadeira, a do Aracati. Essa banha curava os reumatismos, depurava os
humores, fortalecia os músculos, limpava a vista, desanuviava as ideias,
dissipava a melancolia, levantava os corações, descarregava os rins, desopilava o
fígado e era um porrete nas perclusões. Segundo meu tio-avô, nem era preciso
dá-la internamente. Bastava a aplicação externa porque ela entrava pelo
tegumento graças a uma finura superior à do azougue. “Tão fina” dizia ele
“que posta na palma, dentro de minutos atravessa pele, nervos, ossos e começa a
pingar pelas costas da mão...” (...) Mas acontece que o Major Mendes aceitou
avidamente as teorias terapêuticas do velho cearense, despachou o falante Dr.
Austregésilo, mandou passear o taciturno Dr. Pinto Portela e entregou-lhe o
tratamento do filho. Como disse, assisti a várias dessas sessões terapêuticas.
Eram longas massagens feitas com a banha de cobra no e perna doentes e
depois sua contenção corretiva dentro de um sistema de talas, invenção também
do algebrista amador. Eram fabricadas por ele: com folhas de papel endurecido a
goma arábica. Pois apesar da chacota de meu Pai, do tédio do Dr. Duarte e da
indignação do João Abreu, o Chiquinho melhorou, cresceu, andou, botou corpo
e virou num mocetão do meu tamanho como eu o reencontrei anos depois,
acompanhando sua irmã Amelita, numa viagem a Belo Horizonte
200
.
200
NAVA, Pedro. Baú de ossos: memórias. Rio de Janeiro: Sabiá, 1972. p. 48-49.
119
Para melhor entendimento do significado do episódio, apresentamos uma pequena
explicação sobre o vocabulário usado na transcrição. “Carimbamba” é a designação dada a
curandeiros. Aluno de Benjamin Constant”, militar identificado por sua adesão ao Positivismo.
Encontramos adeptos de duas correntes médicas entre os positivistas: a) Positivistas e adeptos de
Hahnemann (1755-1834) – homeopatia; b) Positivistas, adeptos e defensores da alopatia. Posturas
opostas e de difícil explicação. Segundo Rizzoto, a introdução e aceitação de postulados
positivistas na Medicina, método que seus seguidores defendiam como capaz de uma produção
“objetiva e neutra do conhecimento, reforçou a posição dominante dessa profissão e
profissionais no campo da saúde
201
. Cumpre ressaltar que não encontramos informações que
justifiquem a adesão de numerosos positivistas brasileiros à homeopatia.
Christian Science, proposta de uma Medicina feita pelo pregador norte-americano
Sylvester Grahan, que preconizava dietas vegetarianas para o restabelecimento da saúde. Raspail
adepto do uso da cânfora para diferentes doenças. Padre Kneipp foi o criador da hidroterapia,
que tem grande número de adeptos até nossos dias. Finalmente, “algebrista” identifica pessoas
em Portugal, no período colonial, que se dedicavam a tratar de fraturas ósseas. No texto
transcrito, observamos o conflito de opiniões de discursos médicos em confronto com as
propostas terapêuticas de um “prático”. O episódio poderia ter ocorrido em qualquer cidade da
Europa e Américas, no período. A Medicina e os serviços médicos, como hoje os entendemos,
foram sendo elaborados no Brasil, ao longo do século XIX, e buscam sua hegemonia ao longo do
século
XX
. O convívio de práticas de curas advindas da Colônia e que adentraram pelo Império,
com diversas propostas de medicina e a organização da Medicina Científica, foi comum no
período de 1880-1910. Betânia Figueiredo estuda o assunto em questão em sua obra intitulada A
arte de curar: cirurgiões, barbeiros, médicos, boticários e curandeiros no século
XIX
em Minas
Gerais
202
.
As questões estudadas por Figueiredo são encontradas na escrita de Nava. Além do
episódio mencionado, seu avô materno também era um “prático”, que, no interior de Minas,
socorria a população. No episódio narrado por Nava, ocorrido em cidade apontada pelo
pioneirismo da recepção à Medicina Científica, a Sociedade de Medicina e Cirurgia de Juiz de
201
RIZZOTTO, Maria Lúcia F. História da Enfermagem e sua relação com a Saúde Pública. Goiânia: AB, 1999. p.
27.
202
FIGUEIREDO, Betânia. A arte de curar: cirurgiões, barbeiros, médicos, boticários e curandeiros no século XIX
em Minas Gerais. Rio de Janeiro: Argvmentvm, 2002.
120
Fora foi fundada em 1898, a primeira fora da capital federal. O embate ocorreu entre membros da
SMCJF e um curandeiro, parente de um deles. Em Baú de ossos: memórias, Nava reconstitui a
criação dessa Sociedade e a atuação de seu pai na mesma. Vale lembrar, essa questão foi
estudada em capítulo anterior. Vanessa Lana estudou a questão em Uma associação científica no
“interior das gerais”: a Sociedade de Medicina e Cirurgia de Juiz de Fora (SMCJF) 1889-
1908
203
. Abordaremos a questão no próximo parágrafo.
Lana destaca a preocupação da SMCJF no sentido de organizar um espaço para
legitimação da categoria profissional. Identifica os contatos dos associados com revistas médicas
europeias, reuniões para discussão de casos, busca de intervenção no espaço urbano, contato com
a imprensa e atuação junto à administração pública. Dentre as inúmeras referências a aspectos da
Medicina em Juiz de Fora, Nava reconstituiu relato familiar sobre episódio ocorrido em 1905:
(...) Alice. Doce e branca. Era filha de meus tios Luna Freire. Estava passando
tempos em Minas. Uma tarde veio coxeando do colégio. Não é nada não,
Mamãe, uma dorzinha fina aqui em baixo... Vai passar. Passou nada. Foi é
engrossando, a febre subindo e a barriga endurecendo. Era tempo de na tripa
e logo o Dr. Dutra chegou querendo dar um clister elétrico. O Dr. Beauclair
sugeria, antes, um gole de azougue de quatro em quatro horas para o peso,
empurrando, forçar a massa a descer e assim desentupir. O Dr. Vilaça preferiu
abrir. A operação foi na nossa sala de jantar, a menina deitada numa
escrivaninha anestesiada a cloretila por meu Pai. Pus, em torrente, da fossa ilíaca
direita. Hoje chama-se apendicite
supurada e no caso de minha prima, apesar das
injeções de electrargol, a coisa terminou em septicemia e morte. Não tenho disso
senão o
conhecimento do que contava minha Mãe, que ajudara no ato fervendo
guardanapos na cozinha. Cirurgia de 1905
204
.
Após alguns anos da morte de Alice, a mãe da menina leva os ossos para o Rio e os
conserva em uma caixa, origem do título do livro Baú de ossos. A organização de hospitais como
locais de tratamento de enfermos, na Europa, ocorreu nas primeiras décadas do século XIX,
influência do Iluminismo. As Santas Casas, no mundo luso-brasileiro, foram locais de assistência
aos desvalidos nos períodos do Brasil colonial e Império. Essas instituições passaram pela
203
LANA, Vanessa. Uma associação científica no “interior das gerais”: a Sociedade de Medicina e Cirurgia de
Juiz de Fora (SMCJF) 1889-1908. 109 f. Dissertação (Mestrado em História das Ciências da Saúde), Fundação
Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2006. Disponível em: <www.dominiopublico.gov.br>. Acesso em: 12 jun. 2007.
204
NAVA, Pedro. Baú de ossos: memórias. Rio de Janeiro: Sabiá, 1972. p. 234.
121
organização como locais de tratamentos de doentes, em Minas Gerais, Belo Horizonte (1905) e
Juiz de Fora (1907).
Em Baú de ossos e Balão cativo, deparamo-nos com outras observações naveanas sobre
a Medicina realizada em Juiz de Fora, nas primeiras décadas do século XX. Destacamos em Baú
de ossos: a da tia materna Matilde Luísa por tifo
205
, atuação da parteira Senhorinha
206
, a
apresentação do sanitarista Belizário Pena na cidade
207
, asma e tratamento de José Nava
208
,
atividades de José Nava como sanitarista e luta para defender a teoria havanesa na SMCJF
209
.
Transcrevemos o contato de Nava com Belizário Pena:
Belisário era o próprio Dr. Belizário Pena, ainda não genial, nem sanitarista,
nem discípulo de Oswaldo Cruz, nem o homem do famoso slogan das três
necessidades do Brasil: “Botina, Necatorina e latrina!”. Ele aparecera em Juiz de
Fora pela mão de seu parente, o Dr. Feliciano Augusto de Oliveira Pena, na fase
modesta em que o último era diretor da Academia de Comércio. Depois, quando
o Conselheiro Pena foi Presidente do Estado e Presidente da República, é que o
bi-cunhado Feliciano começou a intervir na política municipal e a dar audiência
nos seus paços dos altos da Rua Halfeld... Temperamento inquieto e arrebatado e
taquipsíquico, querendo ir logo ao fim das coisas e estripar a galinha dos ovos de
ouro o Dr. Belizário Pena não teve, apesar de bom médico, as qualidades que
fazem o bom clínico e cedo arrepiou carreira. Atirou-se à industria dos laticínios,
depois de falir nos secos e molhados não em pequena escala, mas à
grandalhona planejando fartar de leite, queijo e manteiga Juiz de Fora, Minas;
o Brasil, as Américas, o Mundo... Dotado de notável inteligência, de palavra
fácil e fluente, de uma prodigiosa chalaça, de uma simpatia irradiante e da
personalidade de líder que o Brasil conheceria um dia – não foi difícil transmitir
suas ilusões aos que se lhe associaram na empresa. Entre estes, o nosso Dr.
Andrès, com as economias granjeadas nos suores da análise gramatical, da
análise lógica, das declinações latinas, das tabuadas, das equações, do eixo da
terra, da inclinação eclíptica, da história pátria e da história universal... Foi-se
tudo na quebra geral e o pão que sobrou à razão Belisário & Cia. foi duro e sem
manteiga. Magnífico! porque perdeu-se um industrial desastrado, mas lucrou-se
o fabuloso sanitarista que se envultou no seu papel com a mesma originalidade e
potencial histriônico que garantiam o sucesso invariável de suas sortes e
pantomimas no Clube Juiz de Fora. Não se sabia onde acabava o apóstolo e
começava o charlatão; onde terminava o higienista e principiava o caixeiro-
viajante do vermífugo, naquela bolinha humana de largura igual à altura que
percorreu o Brasil como uma espécie de pregador, de mestre, de camelô, de
messias, de orador popular, de empresário e redentor gozado e sublime!
205
NAVA, Pedro. Baú de ossos: memórias. Rio de Janeiro: Sabiá, 1972. p. 199.
206
Ibid., p. 252.
207
Ibid., p. 266.
208
Ibid., p. 274.
209
Ibid., p. 266.
122
falando a crianças, a adultos, a velhos; discursando nos grupos escolares, nos
ginásios, nas faculdades, nas ruas, nos cinemas (como assisti em Belo Horizonte,
pelos vinte, no Odeon, onde ele urrava: “Dizem que sou caixeiro- viajante!
Sou! Sou o caixeiro-viajante da higiene! Caixeiro-viajante da saúde! Sou e
sou!”); orando a analfabetos e a homens cultos; ao povo e aos políticos; a
governados e governantes; nas fazendas, nas cidades; no Norte e no Sul –
ensinando seu Evangelho: “Botina, Necatorina e latrina!” Nada de pés descalços
por cujas solas penetra a larva filariforme depois da terceira muda... “Botina,
meus senhores! Abaixo os remédios caseiros, as receitas de comadres, as
garrafadas, as coajinguvas, os cozimentos e as pévides de abóbora... Necatorina,
meus amigos! Necatorina e Necatorina... Necatorina Merck, cápsulas
gelatinosas de tetracloreto de carbono puríssimo, fabricadas por Merck, nos
laboratórios de Darmstadt, na Alemanha, representados no Brasil,
exclusivamente por Daudt, Oliveira & Cia. E sobretudo nada das cagadas ao
vento dos campos, à margem dos rios, em touceira de banana... Buraco no chão,
fossa sanitária, latrina, sempre latrina, só latrina, minhas excelentíssimas
senhoras!
210
O longo parágrafo trata de pessoa que marcou o Sanitarismo brasileiro na década de
1920. Na atuação de Belizário Pena, perceberam-se propostas diferentes dos profissionais da
geração de Oswaldo Cruz focados no saneamento urbano. Belizário foi do grupo de sanitaristas
voltados para o saneamento dos “sertões”, instrumento ideológico de construção nacional
211
. A
atuação desse grupo e conquistas políticas foram resultado da criação da Liga Pró-Saneamento
em 1918. Abandonou-se o diagnóstico dos problemas brasileiros causados pelas “raças”
indígenas e africanas. O diagnóstico da década é a necessidade de resgatar os sertões da doença,
abandono e atraso. Na década, deparamo-nos com políticas públicas que marcam a crescente
intervenção do Estado. Belizário Pena, nas décadas de 1910 e 1929, lutou pela centralização
administrativa e, na organização federal de órgão de saúde, percebemos o encaminhamento nessa
direção. Exemplos do encaminhamento na direção centralizadora são: 1919 criação do
Departamento Nacional de Saúde Pública com maior complexidade e implementação dos
Serviços de Profilaxia Rural. Em fins de 1920, os serviços profiláticos se faziam presentes em
quase todas as regiões. Belizário Pena foi chefe do Departamento Nacional de Saúde e Ministro
210
NAVA, Pedro. Baú de ossos: memórias. Rio de Janeiro: Sabiá, 1972. p. 266-267.
211
SANTOS, Luiz Antonio de Castro. O pensamento sanitarista na Primeira República: uma ideologia de construção
da nacionalidade. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 28, n. 2, p. 193-210, 1985.
123
do Ministério da Educação e Saúde blica (MESP), mas, ao incompatibilizar-se com Getúlio
Vargas, deixa o cargo e ingressa no Integralismo
212
.
Destacamos aspectos do Sanitarismo porque estes serão marcantes nas questões de
saúde, nas décadas posteriores. Retomando as práticas populares referentes à saúde,
apresentamos outro episódio acontecido em Juiz de Fora, em 1913. Em Balão cativo,
observações sobre o conhecimento da Medicina popular pela criada Justina e a morte da avó,
decorrência do “feitiço” feito por Justina, após ser espancada pela patroa. Nava relata o episódio
em que diversos aspectos são destacados:
(...) Ninguém entendeu aquela queda do objeto e ainda mais num quarto
fechado. tia Iaiá adiantava uma explicação. Era feitiçaria da Justina, porque
ela estava contando o caso da negra à Ernestina do Hilário Tucano e quando
dissera “aquela cachorrona da Justina!, a essa palavra “Justina”, ouvira o
estouro. E logo espelho quebrado. Que agouro! Mas ela ia pegar-se com São
Francisco do Canindé e não havia de ser nada. (...) Olhou e viu a Inhá Luísa
como que abestalhada, derramando tudo, a cara puxada para um lado, metade do
corpo se firmando e metade, de pedra, resvalando. Cortada ao meio. Correu com
a Rosa, impediram a queda e vieram trazendo a velha, trôpega, para a sala de
jantar. Eu vi sua entrada, lembro! arrastando as pernas. Assombrou-me o desvio
do rosto e a expressão distanciada do olhar pasmo, vidrado, fixo nos aléns.
Surpreendi, depois, muitas vezes, essa expressão terrível que resulta do golpe de
clava da congestão cerebral. O Almada chegou correndo. Examinou minha avó
na cadeira de balanço em que a tinham colocado. Sangrou, logo, generosamente.
Levar para cima? Nem por nada. Armem uma cama aqui mesmo, nesse quarto
de baixo e mandem chamar o Elias. E que ele venha com as sanguessugas.
Mandem também no Altivo, comprar um capacete de gelo. As crioulas saíram
voando. Espero, espero. Está visto que espero, gente! Uai! Vocês tratem de parar
de gritar porque eu saio daqui deixando a prima Maria Luísa muito bem
medicada. Sentou e ficou segredando com o tio Meton que arriara os bigodes
que nem cortina nele, sinal de raiva, de preocupação, de tristeza. O Seu Elias
era talvez o último representante de uma raça extinta a do cirurgião-barbeiro.
Cortava os cabelos, fazia os cavanhaques, peras, andós dos cavalheiros de Juiz
de Fora
213
.
No episódio apresentado, temos a sobrevivência de uma atividade colonial a dos
barbeiros que adentrou pelo Império e, nas primeiras décadas do século
XX,
esteve em
212
HOCHMAN, Gilberto; FONSECA, Cristina. O que há de novo? Políticas de Saúde Pública e Previdência, 1937-
1945. In: PANDOLFI, Dulce (Org.). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: FGV, 1999. p. 73-94.
213
NAVA, Pedro. Balão cativo: memórias 2. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1973. p. 73-74.
124
cooperação com a Medicina Científica. Preocupamo-nos em destacar os contatos do memorialista
com esses episódios, pois serão questões da futura profissão do mesmo. Estes, se rememorados,
foram destaque e reconhecida sua importância. Com a morte da avó materna, em 1913, Diva
Jaguaribe Nava, a mãe do memeorialista, com os filhos, acompanha o pai na mudança para Belo
Horizonte. Nava, que fez os primeiros estudos no Colégio Andrès em Juiz de Fora, aos 11 anos
foi matriculado no Ginásio Anglo-Mineiro, em Belo Horizonte.
No período de 1860 a 1890, houve visível expansão do ensino particular no país,
notadamente o confessional católico, “consagrado o caráter religioso, literário e retórico do
ensino secundário”
214
. No Capítulo II “Serra do Curral –, da obra Balão cativo, Nava inicia
uma crônica sobre os primórdios de Belo Horizonte. Para ilustrar, destacamos seu ingresso no
Ginásio Anglo-Mineiro:
DESTINADO a abrir-se em princípios de março de 1914, o Ginásio Anglo-
Mineiro, com sua piscina, seus recreios e pavilhões luxuosos, devia vir se
construindo desde 1912. Foi possivelmente nessa época, por iniciativa de
Mendes Pimentel, que os “homens bons” de Belo Horizonte se reuniram para
criarem uma instituição que fosse, em Minas, e Seu Eton e o anti-Caraça
215
.
Setores dos grupos dominantes, no Brasil, adeptos do Liberalismo, viram, nos princípios
da educação inglesa e norte-americana, o atendimento ao desejo de progresso e dinamismo
proposto pelos republicanos. Durante dois anos, Nava permaneceu no estabelecimento, onde as
disciplinas eram dadas em inglês, incentivava-se o esporte e o trabalho. A pobreza das roupas, em
comparação com as de seus colegas, deixaram profundas marcas no memorialista. Nava, por não
ter roupas adequadas, refugia-se na leitura. Rapidamente, aprende a se comunicar em inglês, a ler
os clássicos do idioma e se destaca como bom aluno nos anos de 1914 e 1915. Estabelece
amizade com colegas, filhos de pessoas dos segmentos privilegiados da sociedade, que serão
encontrados em outros momentos de sua vida.
Com o fechamento do Anglo-Mineiro, Nava transfere-se para o Rio de Janeiro, onde faz
exame de admissão, tendo sido aprovado no Colégio D. Pedro II, local em que estudou como
214
YASBECK, Lola. As origens da universidade de Juiz de Fora. Juiz de Fora: EDUFJF, 1999. p. 32.
215
NAVA, Pedro. Balão cativo: memórias 2. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973. p. 116.
125
interno. Trata-se de um estabelecimento público destinado a preparar setores privilegiados para o
ingresso nos cursos superiores. Nos finais de semana, ia para casa dos parentes paternos,
intelectuais e funcionários públicos. O adolescente se espanta com o que vê: “Nunca eu tinha
visto tanto livro como na biblioteca de meu tio”
216
. Outra observação sobre a residência dos tios:
“As reuniões noturnas da Pensão Moss adquiriram caráter nitidamente literário com a mudança
para a mesma do poeta Heitor de Lima
217
.
O adolescente teve gratificante acolhida dos parentes e estímulo para dedicação aos
estudos e leitura. As experiências do período adentram pelo terceiro livro – Beira-mar. No
Colégio Pedro II, entre os colegas, destacou-se pelo domínio do inglês e talento com o Desenho.
Permaneceu na instituição de 1916 a 1921. No período, testemunhou a epidemia de gripe que
ficou conhecida como “Espanhola” e o cotidiano da intelectualidade carioca. Nava ampliou seu
capital cultural (francês, literatura), social (contatos com filhos dos grupos dominantes) que
formaram o capital simbólico (boas maneiras, domínios de código da “boa educação”), que lhe
permitiram ascender socialmente, mesmo sendo de família pobre. Para atingir o objetivo deste
capítulo, ou seja, a identificação das questões ligadas à Medicina, destacamos o texto relativo à
História Natural:
(...) Quando principiou o ano letivo encontramos o Lafayette tinindo e pronto
para começar suas aulas. A primeira que ele nos deu foi também a de sua estreia
como professor do Colégio Pedro II. (...) Ele acrescentou então que os livros
adotados seriam o Paula Lopes, o Pizon, o Aubert e o Remy Perrier. Mas que o
livro principal seria ele mesmo, ele, Lafayette, que ia dar um curso, e não ficar
nessa de marcar lição, tomar lições. (...) Explicou que aos reinos de Linneu,
Collerson acrescentara mais um o planetário, cujo exemplo típico estava no
Sol, como para o animal, no Homem, para o vegetal, na Vinha, para o mineral,
no Ouro. Mostrou Geofroy de Saint-Hilaire, orgulhosamente, querendo separar
essa imundície humana num quinto reino onde tronaria sozinho o Homo sapiens.
Ele, Lafayette, era contra isso e propunha que dividíssemos os seres da natureza
num primeiro grupo de inérticos, ou inorganizados, ou brutos; e num segundo,
comportando os seres vivos ou orgânicos. Nesse estávamos nós, os homens, em
comum com as serpentes, os morcegos, os sapos, as lesmas, as zebras, as hienas.
Mostrou o homem feito de células, falou de sua continuidade, quase eternidade
omnis cellula ex cellula. Disse destas se dispondo em tecidos; das funções e
propriedades desses tecidos; das localizações do encéfalo. E a alma? doutor,
onde? fica nossa alma. Ele riu largamente. Que alma? Foi uma bomba. Ouvimos
pela primeira vez os nomes de Claude-Bernard, Berthelot, Cuvier, Huxley,
216
NAVA, Pedro. Balão cativo: memórias 2. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973. p. 191.
217
Ibid., p. 115.
126
Hooke, Malpighi, Mirbell e Fontana. Ouvimos palavras prodigiosamente novas e
sonantes como cariocinese, mitose, nucléolo, cromossômio, mitocôndrio. O
verbete cromatina cintilou, como faísca acesa de repente.
Dentro de nosso ensino vagamente antiquado e cheio de preconceitos quase
escolásticos, as aulas do Lafayette foram como a abertura de largas janelas aos
ventos da natureza e do mundo, tudo junto, num largo sopro de vida orgânica
218
.
A abordagem do professor marcou a concepção de Nava sobre a vida. Na abordagem de
Fleck, “denominada estilo de pensamento”, uma questão que deve ser aprofundada é a
veiculação, na educação, de uma concepção de Ciência. Os autores citados no texto são
materialistas, corrente que se tornou vitoriosa ao final do século
XIX
. Ensino possível a uma
minoria, o que nos aponta questões a serem formuladas. No período, em que uma minoria tinha
acesso ao ensino, qual seria a concepção de Ciência predominante? Cremos que a concepção
mencionada na transcrição foi veiculada a um pequeno número de jovens, matriculados em uma
escola laica. O ambiente republicano possibilitou a veiculação desses valores. Concepção que
acompanhará Nava. Nos próximos parágrafos, buscaremos identificar as concepções que o
memorialista desenvolveu sobre o assunto.
Nava, em vários momentos, refletiu sobre o sentido da profissão. Temos buscado
identificar como se formou esse pensamento. Até então, procurando informações sobre o
contexto social e as especificidades de sua biografia, acreditamos poder afirmar que o autor, ao
lado de uma formação de valorização da Ciência, teve um suporte de bases humanísticas, como
podemos identificar na reflexão sobre o significado de sua atividade:
(...) Que a Medicina é, assim, instável – a construção duma cidade sobre solo em
terremoto permanente. Que disso nascem a insegurança íntima do médico e uma
espécie de angústia ruim que o habita – e altera sua alma. (...) E o Egon pensava
no desamparo que seria o da humanidade no dia em que ela soubesse do nosso
segredo e que alguém tivesse bastante coragem para dizer também O
SEGREDO DA MEDICINA É QUE TODAS AS DOENÇAS SÃO
INCURÁVEIS. A cura, a cicatriz pode ser outra doença. Uma válvula
cardíaca inflama, cura, cicatriza e se retrai e é nessa cura paradoxal que vai se
entaipar a morte paciente esperando os efeitos a longo prazo da insuficiência e
da estenose (...) Um amputado das pernas, das duas pernas, escapa, cicatriza.
Tem a dita alta curado. Mas já não é um homem. É uma variedade d´homem é
um mutilado. O Egon infiltrava com seus ensinamentos, essas pastilhas de
218
NAVA, Pedro. Chão de ferro: memórias 3. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976. p. 236-239.
127
veneno. Mas dava também o antídoto. Ensinava, honestamente, que as doenças
não têm cura, mas que todas têm tratamento. Este é outro segredo do médico.
Auxiliar o equilíbrio somático acompanhando a natureza na sua reconstrução
provisória. Nunca remando contra a maré. Sabendo desde o princípio que toda a
Medicina é o ato gratuito de saber diagnosticar. Depois medicar pouco e na hora,
não ser ativista terapêutico. Entender o doente. Conversar o doente. Saber ouvi-
lo com paciência. Amparar com o remédio sintomático. Consolar com a
presença, a palavra oportuna, a bendita mentira, o santo perjúrio. Ser bom e
simples. Guardar e repetir a cada instante a melhor coisa que ensinou Miguel
Couto em frase um pouco rebuscada: “Se toda a Medicina não está na bondade,
menos vale dela separada
219
.
Nava foi profissional voltado para a Clínica e, em 1949, esteve entre os fundadores da
Reumatologia no país. Buscando evitar equívocos na leitura das transcrições, lembramos que
foi visto, em capítulo anterior, que, nos três últimos volumes, Nava usa para si os codinomes de
Zegão e Egon. Neste capítulo, nosso interesse é a Medicina e, nessa atividade, fizemos o recorte
“doença”. Procuraremos destacar os aspectos que envolvem essa questão nos escritos de Pedro
Nava. Dilene Raimundo Nascimento (2005), em As pestes do culo XX: tuberculose e Aids no
Brasil, uma história comparada, faz observações sobre a doença como objeto da História. Destaca
questões que envolvem os estudos sobre o tema e discute a bibliografia existente. Consideramos
relevante para esta pesquisa a seguinte observação: “(...) Pois a doença não é tão-somente um
conjunto de sintomas que nos leva a procurar um médico, mas também um acontecimento que
ameaça e modifica nossa existência, seja individual ou coletivamente, muitas vezes com graves
consequências”
220
. Essas considerações nortearão nosso texto. Perceberemos que Pedro Nava, ao
se referir ao doente, está falando de um ser que está existencialmente ameaçado.
Nosso interesse é recortar os textos que dizem respeito às doenças e, portanto, à formação
médica do autor, às suas atividades profissionais e ao contexto social que foram palco dessas
questões e o significado das mesmas naqueles momentos. Segundo Ana Lúcia Rissoni Santos, no
artigo intitulado “O conceito de doença: uma interlocução entre Medicina e Filosofia”: “A
Medicina, por ter o patológico como objeto de estudo, encerra uma reflexão sobre a vida”. A
autora discute, nesse texto, as posições defendidas por Claude Bernard e Georges Cangilhem.
Cumpre ressaltar que a leitura desse artigo em muito nos ajudou no entendimento de várias
219
NAVA, Pedro. Galo das trevas: memórias 5. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. p. 403-404.
220
NASCIMENTO, Dilene Raimundo. As pestes do século XX: tuberculose e Aids no Brasil, uma história
comparada. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005.
128
observações feitas por Pedro Nava
221
. Destacaremos, ainda, Jean-Charles Sournia, autor do artigo
“O homem e a doença”, o qual afirma:
“(...) as doenças têm apenas a história que lhes é atribuída pelo homem”. “(...)
entidade abstrata ao qual o homem um nome”. (...) A partir das indisposições
sentidas por uma pessoa, os médicos criam uma noção intelectual que agrupa os
sintomas de que sofre o “doente”, os sinais que um observador pode constatar,
as lesões anatômicas, por vezes, uma causa ou um grande causal, e a este
conjunto aplicamos uma etiqueta chamada diagnóstico, do qual decorre um
tratamento destinado a agir sobre os sintomas e, se possível, sobre a causa
222
.
Baú de ossos tem muito de reconstituição e de testemunho. Ao final dessa obra,
encontramos o episódio da doença e morte do pai do memorialista aos 35 anos. Este fato é
determinante na escolha da profissão do escritor, que tinha oito anos quando do ocorrido. Nava
afirmou em entrevista: “inconscientemente quis continuar com a história de meu pai”
223
. Na
reconstituição da trajetória de José Nava, temos informações sobre o ensino secundário,
preparatório para o ingresso em um curso superior, o ensino médico (currículos e manuais),
estratégias de sobrevivência do profissional e questões que envolveram a profissão no período,
aspectos destacados em capítulos anteriores. José Nava ingressou no Serviço Público, por
concurso, na cidade do Rio de Janeiro, em 1909. Como foi mencionado anteriormente, ele era
asmático. A seguir, serão transcritos fragmentos que retratam a doença e morte de José Nava:
(...) Na Delegacia de Saúde do Meier, o trabalho era, principalmente, o das
visitas domiciliares para verificar as notificações compulsórias. Icterícia febril
na Rua Dias da Cruz. Caso suspeito de cólera em Capitão Rezende. Tifo em
Arquias Cordeiro. Peste em São Brás. Lá ia o moço doutor no calhambeque da
Saúde, tirado por magras pilecas, pelas ruas do subúrbio. Ia com alegria e boa
221
SANTOS, Ana Lúcia Rissoni. O conceito de doença: uma interlocução entre Medicina e Filosofia. Disponível
em: <http://fafich.ufmg.br/~scientia/art_ana.htm>. Acesso em: 19 ago. 2006.
222
SOURNIA, Jean-Charles. O homem e a doença. In: LE GOFF, Jacques. As doenças têm história. 2. ed. Lisboa:
Terramar, 1995. p. 359-361. O memorialista foi um compulsivo “guardador de papéis”, anotou observações do
cotidiano e de narrativas familiares. No próximo episódio que transcreveremos, encontra-se uma das inúmeras
reconstituições. O fato ocorreu em Juiz de Fora em 1905 e mostra que a Santa Casa local, não tinha, ainda, a função
de tratamento de doentes.
223
Entrevista concedida a Helena Bomeny e René Batista em 3 de abril de 1983. Este material é inédito, e a
entrevistadora, generosamente, forneceu-nos uma cópia.
129
vontade. Bem consigo e com a vida, bem remunerado e cheio de esperança
vendo no horizonte a clínica que não podia falhar, a Academia com que lhe
acenara o Aloysio e quem sabe? a Faculdade, com que todos sonhavam.
Coragem! porque essa vida de plantão suburbano, entre febricitantes, e de
plantão no necrotério, entre defuntos, é apenas o primeiro passo. E lá ia o
doutor: ao sol, ao vento, à chuva, constatar os disentéricos, os varilosos, os
tetânicos, os esporádicos e últimos casos de febre amarela. Assim é que naquele
30 de junho ele foi ver, na Rua Honório, uma criança com difteria.
(...) No quarto ele tomou o clássico leite pelando, com conhaque, mas quem
disse que aquela chapueraba evitava gripe? Veio primeiro o esperado acesso de
asma e às onze da noite o termômetro já tinha subido, como um foguete, para 40
graus centígrados. (...) No terceiro dia as coisas se definiram e o Dr. Duarte de
Abreu enunciou o diagnóstico. Augusto e solene como um verso.
Broncopneumonia gripal infecciosa. E nem ele nem o Adolfo estavam
satisfeitos. Ainda se fosse num homem forte, lá... Mas numa criatura fraca,
esgotada por dois concursos, pelo excesso de trabalho, num asmático que
sufocava cada noite, que entrava em crise a cada três dias... Com aquele
enfisema...
(...) As poções, os xaropes, os electuários cintilavam, de todas as cores, dentro
de vidros cujas rolhas e gargalos se revestiam da chapeleta pregueada de papel
impermeável. Agite antes de usar. Misturavam-se às caixas cheias das pílulas
rolando no licopódio, às das cápsulas, às dos papéis parafinados, às das empolas
brancas da cafeína, da esparteína e das azuis do óleo canforado, cuja entrada em
cena foi recebida como augúrio nefasto. Era considerado remédio extremo para
males extremos. Minha mãe aprendera a fazer as injeções e aplicava-as sem
parar,
na hora dos delíquios. O doente
já não podia mais. O electrargol fracassou
fragorosamente. Começaram as rezas, as promessas, as velas acesas, os projetos
de subida da Penha de joelhos. Os conhecidos mandavam bentinhos, medalhas
milagrosas, agnus-dei. A Dona Leonídia Teixeira chegou um dia brandindo uma
saia branca da santa Zélia Pedreira. (...) Afinal rebentou o vaso da ira e depois
da vômica a febre moderou seu incêndio, estabilizou-se entre 37 e 38, meu Pai
parou de divagar, emergiu do delírio, passou a reconhecer as pessoas e a
agradecer as xícaras de mingau que tomava confortado. Os médicos
entusiasmados, já falavam em convalescença e autorizavam o champanha quatro
vezes ao dia. A 30 de julho de 1911, um mês depois de doente, meu Pai pasmou
de repente, derramou a vasilha de leite que bebia sentado e caiu sobre os
travesseiros. Todos acorreram aos gritos da tia Candoca chamando o José está
morrendo! – minha Mãe quebrou a agulha da última injeção, e o Crucifixo
arrancado da parede passou para as mãos do agonizante. A vela do trânsito era
um absurdo na luminosidade daquelas nove horas da manhã e um clamor atroou,
rebentou contra as paredes como uma onda que sobe, submerge, estoura, baixa e
recua fervendo. Quando a casa silenciou, todos foram cambaleando e abraçados
para o quarto de trás, enquanto o Lafaiete e o Heitor Modesto trancavam-se no
da frente carregando a casaca, botinas de verniz, roupas engomadas, a gravata
imaculada, um vidro de álcool, o pacote de algodão e os apetrechos de barbear.
Seria a última vez...
224
224
NAVA, Pedro. Baú de ossos: memórias. Rio de Janeiro: Sabiá, 1972. p. 385-389.
130
José Nava foi de uma geração de médicos formada pelos princípios do Sanitarismo, como
já visto anteriormente neste estudo. Formado dentro das propostas de ensino médico sob a
Reforma Saboia (1881-1882). Com a Reforma, deu-se maior ênfase à prática, permitiu-se o
ingresso de mulheres e o ensino médico por perpassado por discussões, estabelecendo maior
contato com a Microbiologia. A profissão se fazia visível na sociedade e se tornou mais
prestigiosa socialmente
225
. Desde fins do século
XVIII
, segundo Sayd: “A doença produto da
magia ou possessão perdeu seu estatuto e volta a ser um evento natural”
226
. Objeto de estudo
como os outros, a ser classificado e ordenado em seu reino. Diversas questões foram levantadas e
discutidas, como concepções de vida, doença, saúde, relações das mesmas com o Estado,
modificações no ensino, organização de instituições profissionais, etc. O período de 1880 a 1930
foi de intensas transformações na sociedade brasileira. As questões que envolveram a Medicina
naquele momento foram pontas de icebergs da organização social e econômica do Brasil. A
historiografia sobre esse período já foi apontada em outro momento do texto.
Os anos de 1890 a 1930 caracterizaram-se pela organização de instituições voltadas ao
saneamento cujos membros estavam preocupados com epidemias. Na transcrição apresentada,
vimos que, como Servidor Público, a função de José Nava era a de identificar casos epidêmicos
notificados. A assistência individual, no período anteriormente mencionado, tinha o caráter
liberal para os que podiam pagar, sendo inacessível para a maioria da população. O memorialista
elocubra sobre os possíveis projetos do pai: consultório particular, entrada para a Academia e o
ensino. Esses projetos eram possíveis a profissionais de grandes centros e inseridos em
determinados grupos. A aprovação no concurso público seria a aqusição do primeiro capital
simbólico para a realização desses projetos. A morte de José Nava significou o retorno da família
para Juiz de Fora. A mãe de Nava conheceu grandes dificuldades financeiras, sobreviveu, por
largo período, trabalhando como autônoma em atividades diversas, recebendo uma mesada da
família do marido, finalmente, ingressando no Serviço Público, na década de 1920. Contudo,
possivelmente influenciada pela convivência com a família do marido, percebeu que a solução
financeira para seus filhos estava na aquisição de instrução escolar. Ela conseguiu realizar esse
projeto.
225
Dentre outros estudos, destacamos: COELHO, Edmundo Campos. As profissões imperiais: Medicina, Engenharia
e Advocacia no Rio de Janeiro, 1822-1930. Rio de Janeiro: Record, 1999.
226
SAYD, Jane Dutra. Mediar, medicar, remediar: aspectos da terapêutica na Medicina Ocidental. Rio de Janeiro:
UERJ, 1998. p. 45.
131
Chão de ferro: memórias 3 termina quando o memorialista volta para Belo Horizonte e
ingressa na Faculdade de Medicina, em 1921. Viu-se frente à penosa situação financeira de sua
mãe e sentiu necessidade de conseguir um emprego que auxiliasse na manutenção do curso. O tio
materno, Antônio Salles, conseguiu uma carta de recomendação para ser apresentada ao
Secretário Afonso Pena Júnior, autoridade administrativa de Minas Gerais. Já havia conhecido a
negativa de duas cartas dirigidas para autoridades, em que pedia a indicação para um emprego
público. Segundo Nava:
(...) Numa tonteira ali c sentado diante do Secretário Afonso Pena Júnior.
Notei que ele tinha as sobrancelhas muito levantadas no centro o que lhe dava a
expressão tristonha e aplicada que vemos nos flautistas durante a execução.
Fiquei olhando para ele bestificado, trêmulo, ofegante, esperando ser
escorraçado como das outras vezes. Ele percebeu minha pertubação e
imediatamente sorriu e teve a delicadeza dos grandes que é a de pôr à vontade os
menores. Fez-me repetir meu nome, disse que conhecera meu Pai no Juiz de
Fora era bem seu pai, não era? em casa de seu tio Feliciano. Que mocinho
assim da sua idade, fui várias vezes à casa de sua avó para as partidas que o Dr.
Jaguaribe gostava de dar. E como vai ele? Agora, doutor, está no Jequitinhonha.
Então você quer trabalhar para estudar? Vendo que eu estava ainda meio no ar,
Afonso Pena Júnior com a maior paciência voltou à minha família, por ele e ali,
soube que minha avó Maria Luísa e o Conselheiro pai dele tinham se batizado
no mesmo dia, na mesma igreja, um depois do outro, em Santa Bárbara. Porque
vocês são como nós de Santa Bárbara do Mato Dentro. Mostrou-se conhecedor
do folclore de minha gente. Parece que foi com parenta sua, morrendo, uma que
não ensinava receita de seus quindins a ninguém, nem dos seus bolos e pudins
que aconteceu aquele caso. Ria agora de gosto, contando. As velhas vizinhas
chegando fofas mandando dizer Jesus! irmã, e fazendo perguntas. D. Florência,
quantas colheres de açúcar? no seu quindim. Duas e meia arquejava a alma
sem defesa. Diz Jesus! irmã, e no bolo Santa Cecília mistura a calda com o leite
de coco ou o leite de coco com a calda. Mistura sim mas, depois de frio e é
que se torna a esquentar. Passou macete por macete. Eu ria ainda quando o
Secretário voltou ao assunto. Pois então, se você precisa trabalhar para estudar, o
emprego tá garantido
227
.
Este é um aspecto que perpassa pela a sociedade brasileira, ou seja, troca de favores,
valorização a parentescos, relações sociais, e que também estava presente na vida de Pedro Nava.
Em O círio perfeito: memórias 6, o autor narra seu ingresso no Serviço de Saúde, no Rio de
227
NAVA, Pedro. Chão de ferro: memórias 3. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976. p. 345-346.
132
Janeiro, em 1932 (Reforma Pedro Ernesto). Foi indicado por Virgílio de Mello Franco, membro
de família de políticos influentes, com a qual Nava sempre manteve laços de amizade, feitos no
Anglo-Mineiro e fortalecidos no Colégio D. Pedro II. Nava não participou da vida pública como
político, contudo, ocupou “cargos de confiança” por indicações políticas.
Em Beira-mar: memórias 4, Nava escreveu textos documentais sobre o ensino médico do
período, vida social e preocupações intelectuais de sua geração. Matéria escolar por matéria
escolar, reflexões sobre os conteúdos e comentários sobre os professores caracterizam esse
volume, que é também fonte documental sobre o Modernismo em sua vertente mineira. Temos
procurado nos textos de Nava, como aluno e professor, elementos que formaram seu pensamento
e posturas enquanto médico. Percebemos, nas observações que Nava faz sobre seus professores,
diversidades de posturas e de adesão a propostas nas questões médicas.
Em páginas de grande admiração pelo professor Henrique Marques Lisboa (1876-1967),
Nava fala sobre a formação desse profissional (1897-1903):
(...) A turma de Marques Lisboa presenciou um profundo movimento de
renovação de ideias no nosso ensino médico e na nossa Medicina. Assistiu ao
desvanecer de seu aspecto puramente acadêmico e oratório e ao configurar de
sua fisionomia científica e experimental. Recebeu a influência internística de
Azevedo Sodré, Benício de Abreu, Nuno de Andrade e de Francisco de Castro; a
externística de Lima e Castro, Domingo de Góis e Brant Paes Leme. E,
principalmente, viu a criação de nossa Cirurgia moderna, com a operação tática
e experimentalmente planejada de um monstro teratópago-xifópago por Chapot-
Prevost e, com o ensino de João Paulo de Carvalho, a consolidação da nossa
fisiologia experimental, cujas bases tinham sido lançadas por Kossuth Vinelli.
Coube ainda a essa turma testemunhar a inauguração, em 1901, do ensino oficial
de Bacteriologia, com Rodolfo Galvão. Toda a didática dessa época foi
influenciada pela transformação introduzida na Arte por Claude Bernard,
Pasteur, Koch, Villemin, Langhans, Panum, Roser, Metchinikoff, Buchner, von
Behring, Kitasato, Bordet, Wassermann, Finlay, Patrik Mason, Carter Kilbone,
Laveran os fisologistas, os bacteriologistas, os veterinários, os médicos
militares, os tropicalistas, que com a descoberta de bactérias e protozoários
patogênicos, dos fenômenos imunitários e alérgicos, dos soros, das vacinas, dos
vetores apontavam, então, à mocidade interessada no estudo do homem,
perspectivas tão vertiginosas como as abertas à investigação atual pela
desintegração atômica e pelos aparelhos interplanetários. É esse ambiente que
explica a qualidade dos experimentadores da turma de 1902: Marques Lisboa,
Ezequiel Dias, Carlos Chagas, Cardoso Fontes, Artur Neiva
228
.
228
NAVA, Pedro. Chão de ferro: memórias 3. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976. p. 325-326.
133
Lisboa foi contemporâneo de Jo Nava. O grupo de médicos com essa formação foi
predominante no ensino médico da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte. Instituição criada
em 1913, momento de ampliação do número de Faculdades de Medicina no país e aumento da
interferência do Estado nas questões de Saúde
229
. Esses profissionais, formados, em sua maioria,
pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, tiveram formação em princípios voltados para o
Sanitarismo. Belo Horizonte foi fundada dentro dos ideais de salubridade do período. A escolha
do local para a nova capital obedeceu à orientação de engenheiros, desenhistas e médicos
sanitaristas
230
.
A organização do ensino médico da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte foi feita
por professores, em sua maioria, com formação sanitarista. Eles organizaram o ensino médico,
buscando a formação de clínicos sob a orientação francesa. O currículo cursado por Nava
compreendia: ano: Química Médica, Física Médica e História Natural Médica; ano:
Anatomia Descritiva, Histologia, Fisiologia; ano: Anatomia (2ª parte), Microbiologia e
Fisilogia (2ª parte), Propedêutica Cirúrgica e Propedêutica Médica; 4º ano: Anatomia Patológica,
Patologia Geral e Farmacologia, Dermatologia, Oftalmologia; ano: Anatomia Topográfica,
Clínica Cirúrgica, Clínica Médica, Terapêutica Clínica; ano: Medicina Legal, Higiene, Clínica
Médica e Clínica Obstétrica, Pediatria, Pediatria Cirúrgica e Ortopedia, Ginecologia, Neurologia
e Psiquiatria.
Esse currículo foi contemporâneo da expansão do ensino médico e, até finais do século
XIX,
circunscrevia-se às Faculdades da Bahia e Rio de Janeiro, organizadas desde 1813 e 1815,
respectivamente. A fundação da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte foi contemporânea
das Faculdades de Medicina de Porto Alegre (1911) e de São Paulo (1912). O alargamento da
formação de profissionais médicos estava em meio às questões que envolviam as relações da
profissão com o Estado e o papel social deste.
Lendo Beira-mar, podemos observar que Nava faz uma minuciosa reconstituição de
disciplinas que estavam ligadas diretamente à formação do clínico, bem como dos programas das
disciplinas, livros adotados, informações profissionais dos professores e observações sobre as
229
CARVALHO, Maria Celeste da Silva. Medicina e ensino médico: “vertentes” de um processo de
desenvolvimento econômico e social: uma história da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte. 1987. 278 f.
Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 1987..
230
JULIÃO, Letícia. Belo Horizonte: itinerários de uma cidade moderna (1891-1920). 1992. 200 f. Dissertação
(Mestrado em Ciência Política) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1992.
134
mesmas. Reconstituindo o contato com a disciplina Patologia Geral, mostrou diversos aspectos
que envolvem as concepções de doença, saúde e Medicina:
A PATOLOGIA GERAL é, em suma, toda a filosofia médica. Ela estuda as
regras, os princípios, as leis da ciência e da arte hipocráticas; ensina nossa
linguagem especial, a nomenclatura dos sintomas, dos sinais, das entidades;
mostra sua divisão, sistematização e classificação; cuida dos princípios da vida e
da morte e estuda o que constitui o estado de moléstia e aqueles comuns a todas
ou a quase todas as doenças. Assim esclarece não o contágio da febre tifoide
mas o Contágio tomado como situação abstrata traçando a fisionomia e o
aspecto de como ele aparece nas outras infecções. Assim com a Febre, a Dor, a
Convalescença, a Cura, a Agonia, o Coma. Recapitula ou entreabre as portas de
toda a Medicina é a própria concepção da Medicina. (...) Na nossa era de
tecnicismo foi suprimida como coisa inútil e este fato é um dos responsáveis
pelo que assistimos atualmente a Babel de internistas que esquecem que lhes
compete apenas OBSERVAR e que se metem a EXPERIMENTAR
231
.
Essa abordagem da Medicina marcou profundamente a vida profissional de Pedro Nava.
A valorização da clínica, do contato médico/paciente e da observação pode levar, em um
primeiro momento, a se acreditar que o memorialista tenha sido um opositor ferrenho às
pesquisas e à tecnologia. Pela leitura das Memórias, pode-se chegar a essa conclusão. As
observações de Nava sobre o Prof. José Baeta Vianna, organizador da Biblioteca da Faculdade de
Medicina, são de hostilidade:
(...) Vi suas primeiras estantes, os primeiros livros que por donativo foram
começar a enchê-las. Muitos exemplares do Testut, do Gley, do Branca, do
Mathias Duval, do Chantemesse e Podwyssotsky descarregados de suas casas
por médicos e professores que queriam se ver livres desses cartapácios
veneráveis. Também as primeiras revistas e livros americanos que iam auxiliar o
Baeta a trabalhar em favor do pragmatismo que ele conseguiu implantar na
mentalidade de seus sequazes. Seus alunos passavam por verdadeira bourrage
de crâne nas aulas de Química, onde se aprendia exemplarmente a matéria e
também a execrar a Europa e sua decadência, a admirar superlativamente os
Estados Unidos e sua onisciência. Também ele fazia um trabalho de cupim ou de
coral às avessas para desmontar nossas concepções sobre a parte prática da
Medicina a Clínica que ele mostrava como amontoado de erros para dar
valor ao que podíamos ter da Química, da Física, da Microbiologia e da
231
NAVA, Pedro. Beira-mar: memórias 4. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. p. 239.
135
Anatomia Patológica. Sob sua orientação se formaram vários cientistas. Ele
tentou aliciar-me no princípio e conquistar-me para a Pesquisa e a
Experimentação. Era difícil, pois a essa época eu era interno de Ari Ferreira e
estava moldado definitivamente para a Observação e para o exercício da Clínica.
Além disso eu via com olhos suspicazes o apostolado dum homem que dizia
horrores da Europa, que achava a latinidade decadente, que não entendia
patavina de literatura ou de arte. (...) Caso perdido, continuei a admirar a Europa
e a fazer o diagnóstico das doenças do estômago sem exame químico do suco
gástrico e a julgar perfeitamente das do fígado e da vesícula sem fazer os
doentes passarem pelo suplício das tubagens duodenais
232
.
Ao ouvirmos a entrevista concedida a Helena Bomeny e René Batista, em 3 de abril de
1983, percebemos que Nava priorizou o contato médico/paciente, mas não negou a grande
contribuição da tecnologia para o tratamento das doenças. Transcrevendo fragmentos da
entrevista:
(...) Mas em certo terreno, vamos dizer no terreno cardiológico. O exame clínico
pode se tornar absolutamente desnecessário. Você toma a pressão arterial
automaticamente, com eletrocardiograma e ecografia, com essa coisa toda...
Você registra os sons do coração com uma precisão que o ouvido humano é
incapaz de registrar. Antigamente ficava aquela discussão, “mas esse sopro é
sistoico, não é bem sistoico”. Hoje não, hoje sai escrito, sai junto com o
eletrocardiograma, ao mesmo tempo. De modo que você tem aquilo no tempo,
na intensidade, na qualidade, no som, tudo aquilo é registrado. (...) De modo
que, aliás, essa ânsia do médico de penetrar o doente com poucos meios levava a
um apuro de sentido melhor do que hoje e esse apuro de sentido deve ter
influência psicológica. Não sei se você sabe, que tem de demorar mais junto do
doente. E o doente, o que ele prefere, o que ele deseja principalmente é
conversar. E conversar com o médico. Ele se tranquiliza mais
233
.
Voltando às observações sobre o contato com a Patologia Geral, encontramos as ideias
norteadoras do pensamento médico do período. Quando mencionamos a influência francesa na
organização da Medicina brasileira, temos de assinalar a diversidade de propostas que foram
elaboradas na França. As Escolas de Montpellier e Paris têm propostas de distintos matizes, que
232
NAVA, Pedro. Beira-mar: memórias 4. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. p. 317-318.
233
Entrevista concedida a Helena Bomeny e René Batista em 3 de abril de 1983. Este material é inédito, e a
entrevistadora, generosamente, forneceu-nos uma cópia
.
136
foram se organizando desde os finais do século XVIII aos fins do XIX. Essas propostas foram
discutidas pelos médicos brasileiros, aqui rechaçadas ou aceitas, e determinam suas concepções
de doença. No texto transcrito da obra Beira-mar, podemos observar duas concepções de doença
e vida, presentes no exercício da Medicina:
Vi com Lisboa que a vida e a morte são amálgama inseparável, condição uma da
outra e que não podem existir isoladamente. Entrei com o mestre na patologia
comparada e compreendi pela moléstia nossa essência de animais submetidos
pela lei da natureza à condição de tudo que é vivo, inclusive os vegetais que
nascem, crescem, reproduzem-se, caem doentes, morrem como todos nesse
baixo mundo. Estudei a compreensível Etiologia e a hermética Patogenia de que
apenas conseguimos abarcar parte do mistério e de que sabemos tanto quanto o
ignoraram os médicos de todos os tempos. Aprofundei o que pude a primeira,
seguindo Lisboa nas causas determinantes específicas das moléstias com a
Teoria Microbiana de Pasteur, as bactérias, os fungos, os filtráveis, os
parasitismos. As infecções e a febre. A alergia, a imunidade, a defesa. A
constituição mórbida individual, as predisposições, a hereditariedade. O sexo. A
idade. O meio ambiente. As causas determinantes comuns para que Lisboa
gostava da velha nomenclatura latina. (...) Os processos gerais das doenças e
toda a síntese da anatomia patológica com as degenerações, atrofias,
hipertrofias, hiperplasias, aplasias, displasias. A inflamação. A demência celular
dos cânceres e a festividade do fogo de artifício das metástases. Crise.
Convalescença. Cicatrização. Cura. Hesitações do Período de Estado. Piora.
Desorganização. MORTE
234
.
A adoção ao Vitalismo é percebida na obra de Nava. Em inúmeras vezes, ao longo das
Memórias e de seus escritos, ele condenou o aborto e a eutanásia, com base nessa proposta.
Também, a valorização da observação que, tantas vezes, é enfatizada por Nava, igualmente foi
defendida pelos vitalistas. Em 1926, cursando o quinto ano do curso de Medicina, Nava
conseguiu, como interno voluntário, trabalhar na enfermaria onde funcionava a Cadeira de
Clínica Propedêutica Médica, dirigida por Samuel Libânio. O convívio com o assistente Ari
Ferreira foi significativo para a
formação do médico. Segundo Nava, por influência de Ari
Ferreira, ingressou numa corrente de pensamento internístico que o fez pertencer a uma linhagem
espiritual de grandes clínicos. A comparação da atividade médica com a de um sacerdócio e o
caráter sacro da profissão estão presentes nos escritos de Nava.
234
Op. cit., p. 245.
137
No livro Território de Epidauro e Capítulos da história da Medicina e na conferência
intitulada A Medicina de Os Lusíadas, Nava tratou da mescla de práticas de cura que se fizeram
dominantes no período colonial e são sobreviventes em nossos dias. Tratamos da questão na
comunicação “Medicina portuguesa nos escritos de Pedro Nava uma introdução”
235
. Nesse
texto, destacamos a postura de Nava frente às práticas populares e de outras abordagens de cura.
Ele considerou esse material apenas como curiosidade para o entendimento de costumes entre a
população. Entendeu que, somente com as propostas iluministas, as luzes da razão começaram a
aclarar a obscuridade das práticas de cura no mundo luso-brasileiro. Em Beira-mar, com
curiosidade e humor, observou que, na enfermaria, os doentes expressavam-se em linguagem
própria:
(...) Naquelas manhãs do Libânio aprendi nova língua a interpretativa e
pitoresca das pacientes, que eu tinha de traduzir para as papeletas. Ai! doutor,
senti como se eu fosse um monte de gelo derretendo, não vi mais nada e caí. A
coisa em linguagem médica queria dizer: suores e lipotímia. Assim era feito com
a série de figurações verbais que cada um usava para exprimir suas dores,
agonias, aflições. Lembro as que guardei para sempre. Tenho o tornozelo cheio
de vidro moído. Uma dor como se as carnes estivessem despregando dos meus
ossos. Sinto um rebolado no joelho. Meu Deus, doutor! tenho sensação de
formigamento que vai da papada à ponta do e ao mesmo tempo parece que
estão enchendo minha perna e minhas cadeira que nem pneumático de
automóvel. Meu sangue tem pimenta. Tenho uma canga no pescoço e a cabeça
feito mingau. Uma correria dentro de mim. Sofro de fisgadas ardidas. Meu corpo
fica feito bacia de saboada quando as bolhas tão rebentando ele arde e chia,
bate todo por dentro, e com perdão da palavra, treme até na via da vagina.
Tem estrelinhas de metal debaixo de minha pele. Uma corrente de ar nos ossos
da perna afora. Me deu um ronco na cabeça. Isto tudo era preciso fazer repetir,
perguntar como era, captar e afinal transcrever na linguagem técnica com que se
classificam as dores, as aflições, as sensações falsas do ptiatismo, as parestesias
revestidas de comparações fantasistas
236
.
O último texto que recortaremos, o qual contém elementos sobre as experiências de Nava
como acadêmico, em Beira-mar, trata da visão que o memorialista aprendeu a ter sobre o corpo
235
VALE, Vanda Arantes. Medicina portuguesa nos escritos de Pedro Nava uma introdução. In: COLÓQUIO
DO POLO DE PESQUISA DAS RELAÇÕES LUSO-BRASILEIRAS, 2004, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro:
Real Gabinete Português de Leitura, 2004. Disponível em:
<http://realgabinete.com.br/coloquio/autor.asp?indice=73>. Acesso em: 20 ago. 2006.
236
NAVA, Pedro. Beira-mar: memórias 4. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. p. 330-331.
138
humano e os aspectos que o ameaçam constantemente. Vida, doença e morte. Vemos, nessas
observações, a influência do Vitalismo de Bichat, popularizada nos manuais escolares para quem
a “vida é um conjunto de funções que evita a morte”:
Mas fantástico na vida do futuro médico é o que vai tirando da experiência
adquirida dia a dia na exploração dessa coisa prodigiosa que é o corpo humano.
Ele é sempre admirável. Admirável no crescimento, no milagre da adolescência,
na saúde plena e na eurritmia da idade madura, da vida em sua pujança, seu
transbordamento na reprodução. Igualmente admirável na impotência, nos
desequilíbrios da velhice, na senectude, na cacoquimia, na doença, na
desagregação e na morte. Tudo isto tem harmonias correlatas e depende de
trabalho tão complexo para criar, como para destruir, para fazer a vida e fabricar
a morte. Temos de reconhecer essas forças da natureza e delas tirar nossa
filosofia médica e nossa lição de modéstia. Cedo compreendi que nós, doutores,
podemos, quando muito, alterar e modificar a vida pelo ferro cirúrgico e pelo
veneno remédio, procurando que a alteração introduzida esteja no caminho da
vis medicatrix naturae. Nesse sentido ajudamos e ajudamos quando remamos
a favor da maré. Je pense, Dieu guérit dizia humildemente Ambroise Paré o
Pai da Cirurgia. O grande equívoco de todos doentes e médicos é julgar que
prolongando a vida por alteração de condições, estamos combatendo a Morte.
Jamais. Tanto quanto imbatível ela é incombatível. Prova: ampliamos vida
que existe. Em seu lugar não temos o poder de colocar mais nada porque na
medida que ela se retrai, diminui e bate em retirada, cada milímetro é
conquistado implacavelmente pela Morte Triunfante
237
.
Nava terminou o curso de Medicina em 1927, colando grau em janeiro de 1928. Ingressou
como médico na Secretaria de Segurança Pública e, como tal, foi designado para trabalhar no
Centro de Saúde de Juiz de Fora. Conforme destacamos em momentos anteriores, Nava foi
apaixonado pelos estudos de Anatomia. Sempre que fez referências às pessoas presentes em suas
Memórias, fez isso com a descrição de um anatomista ao olhar os aspectos externos do corpo.
Ainda com a postura anatômica, tratou dos elementos que formam a vida interior dos sujeitos.
Por sua formação, desenvolveu o hábito de observar os “sinais” do corpo que apontam
enfermidade e morte. Escreveu longos textos sobre o assunto.
237
NAVA, Pedro. Beira-mar: memórias 4. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. p. 332-333.
139
A seguir, apresentamos uma síntese de algumas observações de Nava sobre os sinais do
corpo que apontam enfermidade e morte:
(...) Gosto de estudar estas duas maneiras da indesejada trabalhar sempre que
estou no meio de velhos: nas festas da Academia Nacional de Medicina quando,
ludicamente, procuro nos fácies quem dará a vaga vindoura. E geralmente
acerto... Pensando nisto durante as caladas da noite de insônia assalta-me o
desejo de me
estudar também. Mas não! Fujamos desse grande medo com a
leitura
238
.
(...) Médico, não posso enganar a mim mesmo e sei que já estou contado,
pesado e medido. Mas consola-me pensar que nós só somos em função do nosso
princípio vital. Só somos enquanto vivos. NÃO TEMOS ABSOLUTAMENTE
NADA COM NOSSO CORPO MORTO. Nosso? Nem nosso porque já não
somos nem existimos. Nós acabamos no último instante de vida. E sofremos
tanto, à ideia da morte, porque emprestamos ao cadáver que continua nossa
forma as ideias que temos sobre a morte, o enterro, a decomposição. Nada disso
é nós
239
.
(...) Cogitação não só das horas de insônia como de todas as horas, cogitação que
à medida que envelheço se torna obsessão é a de prever quando? e a de saber
como? por onde? Trazemos estas respostas mais ou menos nítidas no recado
genético de que somos portadores. Nascemos com a vida animal traçada e
destino biológico marcado. Os últimos capítulos são os do encontro do terreno
com a causa determinante específica encarada pelos etiologistas do século
passado. Essa agirá na hora certa e entrará pela porta sempre aberta que vamos
escancarando sica e psiquicamente existência afora. Essa porta é o point
d´appel dos clínicos e patologistas franceses, é o locus minoris resistentiae cujo
conhecimento nos vem dos antigos. Sabemos de sua existência, sua força, mas
ignoramos tudo sobre o gênero de eletividade de que depende a fragilidade dum
sistema, dum aparelho, dum órgão, dum tecido misteriosamente mais
vulnerável que o resto da economia e por onde entrará ou onde se instalará a
Moléstia onipotente e de muitos ardis
240
.
Nava, nas Memórias, descreveu inúmeras doenças e as terapêuticas usadas no período.
Vimos destacando algumas reflexões feitas sobre essas questões. O Câncer é a doença que mais
diretamente está associada à morte, para a maioria das pessoas. Cremos que é a doença que mais
mostra a fragilidade da vida e que apresenta aspectos identificadores como uma crueldade. Nava
tratou essa questão como médico e, como literato, construiu metáforas sobre essa doença:
238
NAVA, Pedro. Galo das trevas: memórias 5. 2. ed.
Rio de Janeiro:
José Olympio, 1981. p. 55.
239
Ibid., p. 57.
240
Ibid., p. 76-77.
140
(...) Seu nome é contornado mesmo por eles, que o guilhotinam, suprimindo o
resto do corpo da palavra e reduzindo-o à primeira sílaba NEO, CE-A para
não conjurar, não invocar, para que ele fique longe, nele, no Trópico para
onde o desterrou o poeta. Sai... O polvo feroz e chupaz, gerado fora
do útero,
quintessência das
molas hidatiformes susceptível de deitar raízes em qualquer
tecido, de ser a um templo placenta e feto que se protrai, que nasce para
necrosar e feder, exaurindo a fonte de onde tira força adquirida para morrer o
aranhol, a tarântula, a medusa, o caranguejão de pesadelo que vem a ser?
Doença mesmo? individualizável? e dependente de causalidade coerente? Ou
nem isto e conjunto reacional das causas mais diversas e assim devendo ser
considerado muitas doenças um n de doença. É um ladrão que ninguém sabe
se está porque bate às portas pelo lado de dentro. Uma lula se dementa, não
é rejeitada, fica e começa a se dividir fora de qualquer regra biológica. Quando
se dá pelo fenômeno, ela já foi elevada ao quadrado, ao cubo, a várias potências,
tem raízes mais fortes que o solo, passou a matriz, deu filiais e manda
metástases para todos os lados como um fogo de artifício, uma explosão
atômica, um vulcão. Cessam as incertezas e as perguntas que todo homem ou
mulher acima dos quarenta se faz quando é de espírito prevenido. estará? em
mim. Onde? ai de mim! que assim me interrogo nas noites longas. Onde?
Estará? no pulmão a que dei tanto fumo. No fígado? a que dei os espíritos e as
especiarias e a cuja neutralização atirei a toxicidade das vitualhas engolidas
rabelaisianamente. Mea culpa. Na pequena curvatura? Na bexiga? Próstata?
partes cansadas do baixo ventre? Nos fatigados ossos? armação, estrutura,
vigamento que sustentou meu corpo no bem e no mal... Bato na madeira, rezo,
faço figa, passa-fora, fica lá-nele, fica na galáxia – SAI, CÂNCER.
Quando se sabe que já é, que está e onde está é a hora da pugna inglória em
que a casual vitória acontece uma vez em cem. Tanto? assim ou uma vez em
mil, dez mil. Valerá a pena? então, lutar. Vale porque a luta no caso é a
protelação e, na porca da vida, um instante mais que se ganhe, é vitória. Adiar.
Protelar. Procrastinar. O positivo é que um dia derrotaremos o monstro como
o fizemos à tísica, às epidemias, às endemias. Temos obrigação de combater.
Cirurgia e a luta palmo a palmo, a depeçagem em que se tenta erradicar a morte
pedaço por pedaço. Mais um pouco. Mais um lóbulo de pulmão, mais um metro
de tripa, mais um fragmento de circunvolução uma fatia de fígado, um pulmão
inteiro, um rim todo. O simétrico, o par, o suplente que trabalhe, o vigário que
entre em cena. Até não se poder tirar mais nem um pouco sem penetrar nos
arcanos da vida. Então vem a vez da irradiação que depila e queima e esteriliza.
Terceira etapa, os imunossupressores que também arrancam os cabelos,
amolecem os dentes, suprimem a libido e tiram os sobejos que ficaram da
potencinha que garantia uma triste meia-bomba. Finalmente a sobremesa de
água com açúcar da imunoterapia. O quê? O bicho que esgueirou-se às foiçadas
da cirurgia, que resistiu ao lança-chamas da bomba de cobalto, que não
sucumbiu à suprema poluição dos imunossupressores será? que vai ceder agora,
ao velho BCG. Também não mas tentou-se de tudo e a família exausta faz, por
fim, um enterrinho barato do defunto caro com o pouco que sobrou da ganância
terapêutica
241
.
241
NAVA, Pedro. Galo das trevas: memórias 5. 2. ed.
Rio de Janeiro:
José Olympio, 1981. p. 79-81.
141
Nas observações naveanas sobre o Câncer, percebemos a afirmação de Bichat
mencionada: a vida resistindo à morte. Também corrobora a concepção de Dilene Nascimento
sobre a questão. A segunda Parte da obra Galo das trevas “O Branco e o Marron” é dividida
em Capítulo I: “Santo Antônio do Desterro” e Capítulo II: “Belorizonte Belo”. O nome “Santo
Antônio do Desterro” é codinome dado por Nava a Juiz de Fora, cidade que teve como primeiro
nome Santo Antônio do Paraibuna. O memorialista, que se mudara da cidade aos 10 anos, a ela
retornou, como médico, aos 26 anos, funcionário do Serviço Público na área da Saúde. Nomeado
pelo Governo estadual, que tinha o tio de Nava Constantino Paleta como opositor na cidade, o
jovem médico viveu aborrecidas e dolorosas experiências em Juiz de Fora. Antes de se mudar
para essa cidade, trabalhou como médico em epidemias de tifo em cidades circundantes de Belo
Horizonte. Em Juiz de Fora, teve experiências desagradáveis com os parentes maternos e com o
meio médico local. Importa ressaltar, o aspecto que mais marcou o memorialista foi não ter
conseguido ser admitido na Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora, único hospital da cidade,
no momento. Nava lamenta o fato do seguinte modo:
Cada dia que passava o Egon sentia mais agudamente a verdade de certas
opiniões do seu chefe Ari Ferreira, com relação ao médico e à atividade
hospitalar.
O hospital é indispensável ao médico. Médico sem vivência nas enfermarias
não é médico. A clínica de consultório é cheia de limitações ao arbítrio do
profissional em pedir exames, repeti-los, fazer o máximo indispensável para
evitar sua inexorável tendência ao erro e servir os pobres-coitados
compulsoriamente postos sob sua responsabilidade. Além de melhorar e
esmerar-se na prática, o médico, dentro do hospital e da enfermaria, vive
ensinando e aprendendo e mais do que isto exercendo uma função moral. É
por natureza de ofício o amigo dos sem- amigos, família dos sem-família.
Vincula-se e compromissa-se com a coletividade de que faz parte. Serve-a
servindo justamente os menos protegidos, os mais indigentes, os mais
explorados. Tem de dedicar-se completamente para ressarcir um pouco de sua
própria culpa a de ser também um chupim do pobre na sua doença e sua
morte
242
.
242
NAVA, Pedro. Galo das trevas: memórias 5. 2. ed.
Rio de Janeiro:
José Olympio, 1981. p. 274-275.
142
A valorização da Clínica e a “função moral” do médico, um sacerdote, são constantes na
escrita naveana. Ele que, em Baú de ossos, escrevera sobre a rudeza e a mesquinharia dos
parentes maternos, opostos aos paternos, em Galo das trevas, acrescentou os atritos com médicos
ligados à Sociedade de Medicina e Cirurgia de Juiz de Fora e à Santa Casa local. Caricaturizou o
grupo médico dominante como um bando de beatos católicos, reprimidos e repressores. Nessa
época, estava sendo implantado, na cidade, o projeto católico, conhecido como Romanização. Em
resumo, poderíamos afirmar que esse movimento foi a busca de se inserir o catolicismo no
mundo moderno, hierarquizar a estrutura religiosa e atuar junto aos grupos dirigentes. O grupo de
médicos juiz-foranos, em sua maioria, aderiu a esse projeto. Esse período tem sido estudado por
historiadores e é representativo de questões nacionais, destacando-se a aproximação da República
com a Igreja
243
.
Nava, em Galo das trevas, afirma:
(...) Aos seus amigos de idade mais ou menos a mesma e aos mais velhos, como
os Doutores Cesário, Martinho, o Professor Manso e o Primo Antonico – o Egon
ficou devendo profundo conhecimento do Desterro. Viu que aquilo tinha sido
em tempos, cidade como as outras de Minas, que de repente se desportugalizara
e passara a viver como se tivesse sido ocupada por duas forças: a espanhola,
duma beatagem inquisitorial, feroz e obtusa que esmagara sua velha e doce
religião; a de cristãos-novos dum mercantilismo ávido, insaciável e impiedoso
que amarrara sua antiga industriosidade e amor ao trabalho
244
.
Nava montou um consultório na cidade e se agrupou com jovens amigos, vistos como
transgressores pelo grupo dominante. Iniciou o relacionamento com os médicos Martinho da
Rocha (pai e filho) que, posteriormente, foi retomado no Rio de Janeiro. Nos intervalos das
consultas ou das atividades no Serviço Público (Higiene), dedicou-se à leitura, mencionando:
Martinet Diagnostic Clinique e Cardarelli Lezione Scette “ensinando a ter como elemento
principal da clínica, acima das virtuosidades dos processos auxiliares do diagnóstico a
OBSERVAÇÃO esse ramo da semiologia ainda numa espécie de limbo porque até hoje ainda
243
Destacamos: CAMURÇA, Marcelo Ayres; TAVARES, Fátima Regina Gomes (Org.). Minas das devoções:
diversidade religiosa em Juiz de Fora. Juiz de Fora: UFJF/PPCIR, 2003.
244
Op. cit., p. 302.
143
não teve o seu Claude Bernard a dar-lhe as leis encontradas para a EXPERIMENTAÇÃO”
245
. Em
1929, retornou a Belo Horizonte, a fim de exercer atividades na Santa Casa e em seu consultório
particular. Antes, em 1928, presenciou uma epidemia de febre amarela que assolou Juiz de Fora,
trabalhando exaustivamente para combater a doença.
Nava apresenta o seguinte depoimento sobre seu trabalho no combate à febre amarela:
Quando a febre amarela chegou ao Desterro, já encontrou gente apta para
combatê-la. Repetiu-se o que Fraga estava fazendo no Rio e a epidemia reduziu-
se a umas dezenas de suspeitos e a poucos verdadeiramente doentes. Destes,
quase todos foram casos benignos da chamada por Sinval Lins a forma frusta ou
renal. um se apresentou com aspecto grave, maligno, hipertóxico. O Egon
pôde assim observar coisa que poucos médicos de sua geração terão podido ver:
uma forma clássica de vômito negro. Nesse paciente ele assistiu ao que Torres
Homem cansara de ver e que descrevia tão magistralmente: as siderações, os
aspectos congestivos, as dores do tronco e dos membros, a cefalalgia tirana, as
diarreias, a anuria, a icterícia de açafrão, as hemorragias, o vômito negro, o
coma, a morte... Teve a vantagem, graças à epidemia e ao seu espírito de
observação, de estender sua mão, mergulhá-la no tempo, senti-la segura por
Torres Homem e de entrar na cadeia da Escola Clínica do mestre incomparável.
E mais: a prerrogativa de prestar um pequeno serviço à sua terra de
nascimento
246
.
Os fatos narrados ocorreram em 1928, mostrando que, na “Manchester Mineira”,
epidemias e progresso estavam lado a lado, pois fora realizado um intenso combate à febre
amarela nessa cidade.
A obra O círio perfeito: memórias 6 último livro de Memórias, lançado em 1983,
mostra o retorno do médico para Belo Horizonte, onde presenciou os fatos envolvidos com a
Revolução de 1930, deixando inúmeras observações sobre o atendimento aos feridos. Iniciou-se,
para Nava, um período de tranquilidade financeira e de desenvolvimento profissional: assistente
na Santa Casa, funcionário público e consultório particular. Envolveu-se em um namoro com Zilá
Pinheiro Chagas, a quem dá o codinome de Lenora. A jovem, de comportamento transgressor
para os padrões da época, ocupou inúmeras páginas desse livro. O suicídio de Zilá levou Nava a
abandonar Belo Horizonte e mudar-se para Monte Aprazível, no oeste paulista, onde se
245
NAVA, Pedro. Galo das trevas: memórias 5. 2. ed.
Rio de Janeiro:
José Olympio, 1981. p. 379.
246
Ibid, p. 273-274.
144
encontrava o antigo colega Cavalcanti. A região estava sendo aberta ao plantio de café, atraindo
imigrantes e migrantes, mas a população estava enfrentando problemas com doenças.
Em Monte Aprazível, permaneceu nos anos de 1931 a 1932. Nessa cidade, Nava teve
experiências profissionais comuns aos médicos do período. Atendimento no consultório
particular, partos difíceis em lugares distantes e casos difíceis de paludismo, epidêmico na região.
O problema mais grave do ponto de vista clínico-sanitário de Monte Aprazível era o da febre
tremedeira, febre dos pântanos, malária, paludismo
247
. Ainda estava na região quando ocorreu o
Movimento Constitucionalista de 1932 e seus desdobramentos no interior paulista. Refeito das
causas que o levaram para essa região, mudou-se para o Rio de Janeiro em 1932, ingressando no
Serviço Público Municipal, na Reforma Pedro Ernesto de 1933: “(...) do êxito de suas gestões
junto ao prefeito Pedro Ernesto Batista a quem chegou apresentado pelos seus amigos Rodrigo
Melo Franco de Andrade, Afonso Arinos e Virgílio de Melo Franco. A eles ficou devendo o lugar
em que fez sua carreira na assistência pública carioca”
248
.
As páginas de O círio perfeito se constituem de relatos do ambiente médico, questões de
um Pronto Socorro e de aspectos que envolveram as relações Saúde e Estado na Era Vargas.
Nava inseriu-se no mundo médico do Rio de Janeiro, e o livro mostra vários aspectos disso. O
Pronto Socorro era dirigido pelo médico Genival Londres, homem de grande prestígio político.
Isso leva Nava a conhecer outros profissionais referendados pela sociedade e meio médico do
Rio: “Assim seria também, de festa, o dia em que ele fora, a convite do Londres, visitar o serviço
em que este trabalhava como assistente de Clementino Fraga, na Santa Casa de Misericórdia do
Rio de Janeiro”
249
.
No contato com o meio intelectual, conheceu Murilo Mendes, o qual solicitou que Nava
atendesse Ismael Neri, artista plástico e poeta, tuberculoso. Reconstituindo o diálogo
médico/paciente: “– Como eram essas reações? Aumento de minha febre, da tosse, suores
noturnos que me acabam, fora dores de cabeça, aumento dos escarros...”
250
. Neri fora internado e
se submetera a tratamento pela tuberculina e não tivera êxito. Pedro Nava, em Belo Horizonte,
tivera experiências com o tratamento de tuberculosos, assunto tratado ao longo da obra O círio
247
NAVA, Pedro. O círio perfeito: memórias 6. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
248
Ibid., p. 274.
249
Ibid., p. 361.
250
Ibid., p. 280.
145
perfeito e, em momentos anteriores desse livro, deixou observações sobre o assunto. A respeito
do tratamento dado a Ismael Neri, comentou:
Que os pariu...! Com esse tratamento desumano foi-se tudo quanto é defesa
desse moço e suas reservas de imunidade foram arrasadas. Daí aquela febre
contínua que só abrandava um pouco durante o dia. Nunca inferior a trinta e sete
e meio, e oito, e nove, trinta e oito. E aquela sideração que dava uma impressão
tífica, o abatimento. De madrugada eram as subidas até quarenta, quarenta e
meio. A queda começando e os suores. E o curioso é que as radiografias
mostravam lesões miliares disseminadas, mas nenhuma cavitação. Era mesmo
uma forma tóxica gravíssima, tifo-bacilose de Landouzy (que a chamavam os
antigos) e ele não queria ser Egon e rasgaria seu diploma se não fosse o
resultado de aniquilamento das defesas do doente tudo, mas tudo mesmo,
provocado por um tratamento de consequências ainda não bem apreciadas na
época, feito como a um animal de laboratório e não naquele homem que ali
estava aquele homem de fina qualidade. Anima nobilissima... Era isso mesmo
e... que os pariu...!
251
Nava aceitou cuidar de Ismael Neri. Paralelamente, junto com o colega Eliezer:
“Entrosavam-se assim na tradição da linha de centro da clínica médica brasileira nobilitada por
sua saída das mãos de Miguel Couto, Francisco de Castro, Torres Homem e do criador de nossa
medicina interna: Manuel Francisco de Valadão Pimental, barão de Petrópolis”
252
. Nesse
momento, participou do uso pioneiro das sulfamidas e comentou que ele e outros não sabiam que
estavam participando do início de uma revolução que seria completada nos anos 1940 com a
penicilina. Nas palavras de Nava: “A clínica interna reabilitando-se de anos de inércia – ia
começar realmente a curar e emparelhar-se com o fabuloso desenvolvimento a que tinha chegado
a cirurgia no nosso século”
253
. Sobre a assistência a Ismael Neri e o resultado da mesma, Nava
afirma:
(...) Sua medicação principal era a sintomática dirigida a todos os sintomas e
sinais, sobretudo os que mais o atormentavam como a tosse, a febre, os suores.
Assim o Egon estava sempre a ministrar-lhe a codeína, o piramido, a aspirina, e
251
NAVA, Pedro. O círio perfeito: memórias 6. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. p. 280.
252
Ibid., p. 297.
253
Ibid., p. 311.
146
a fazer a reposição do quido perdido com a ingestão de água, das tisanas ou
mesmo com a ministração de soro salino, soro glicosado – puros ou carreando o
Normet. Para ficar bem com sua consciência e para dar-se a satisfação de que
estava lutando, o médico dava ainda mais os reconstituintes e tônicos para
combater a adinamia, a medicação suprarrenal nos delíquios. Dava também o
Gadusan que fazia milagres então, o cálcio, a Emulsão de Scott e todas as
panaceias industriais em moda no tratamento da bacilose. A doença foi se
mantendo mais ou menos no mesmo quadro até fins de março de 1934 quando
aumentaram os sinais de fraqueza e, pior, sonolência que logo passou a uma
situação de torpor grave do qual ele mal emergia. Quando voltava um instante à
tona,
impressionavam sua bravura,
sua paciência, sua resignação e sua piedade.
Era católico e como tal acabaria
254
.
Na agonia e morte de Ismael Neri, estão as questões que envolveram a tuberculose no
período. Nava foi discípulo de Ari Ferreira na condução terapêutica dessa doença. Em diversos
momentos, menciona procedimentos e diversidade de casos. A obra O círio perfeito termina com
o memorialista agindo no Serviço Municipal do Rio de Janeiro, proposta inovadora do
interventor Pedro Ernesto. As estratégias de sobrevivência de Nava, no Rio de Janeiro, são
exemplares do período:
(...) Na cidade o Egon aparecia muito no escritório do Adauto, no Edifício
Odeon, na hoje praça Mahatma Gandhi nº. 5. Quando o Egon discutiu com o
Adauto sua ideia de transferir-se, este levou-o ao consultório de seu irmão Fausto
Cardoso sempre muito por dentro da vida médica do Rio de Janeiro. Ele disse
que não podia haver época mais propícia com as alterações por que passava a
saúde pública e a prometida reforma que Pedro Ernesto ia realizar nos serviços de
pronto-socorro da cidade.
Depende de pistolão. Mexa-se e movimente seus amigos poderosos que ficará
por aqui. Se posso dar um conselho, prefira a assistência...
255
Em Anexo de O galo das trevas, Nava informa de seu encontro com o prefeito Pedro
Ernesto, assunto mencionado anteriormente. O contato de Nava com a família Mello Franco deu-
se no Ginásio Anglo-Mineiro, em Belo Horizonte, e, no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro. As
relações dos Mello Franco com Vargas ficam explícitas na nomeação de Rodrigo para o Serviço
de Patrimônio Histórico Artístico Nacional (SPHAN), em 1937. Posteriormente, essa geração de
254
NAVA, Pedro. O círio perfeito: memórias 6. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. p. 313.
255
Ibid., p. 274.
147
intelectuais mineiros rompeu com o governo em 1943 no episódio conhecido como “Manifesto
dos Mineiros”.
O encontro de Nava com Pedro Ernesto ficou registrado do seguinte modo:
Fui no dia seguinte ao velho Palácio da Prefeitura. Peitei um contínuo, não mofei
muito, fui recebido por Pedro Ernesto Batista. Jamais esqueci esse nosso primeiro
encontro. (...) Leu com atenção toda a longa carta do Virgílio. Encarou-me
sorrindo
e sem hesitação
certificou que eu seria nomeado médico auxiliar e que
a Reforma sairia dentro de mês, mês e meio. E quando eu ia abrindo a boca ele
estendeu a mão me interrompendo. Não me agradeça o, jovem colega.
Agradeço eu. Sim senhor, eu, porque graças a você vou ter a oportunidade de
prestar um serviço ao Virgílio que é homem de pedir raramente. Agradeço a
você muito obrigado. Riu mais, levantou-se, levou-me até à porta com a mão
passada no meu ombro. Duas audiências... Uma, com velho conhecido; outra,
com pessoa que nunca tinha visto. A primeira serviu-me para encerrar uma
amizade, a segunda, para começar a servir dedicadamente um dos melhores
homens que já encontrei. A seguir. Foi o que eu fiz pelo resto de sua vida. Segui-
o, visitando-o na prisão, no Quartel de Frei Caneca, no Hospital da Penitência,
deste hospital a sua casa no dia do livramento, no seu novo consultório e depois
no caminho derradeiro que levamos mais de três horas para percorrer – do
Necrotério da Casa de Saúde Doutor Eiras ao Cemitério de São João Batista.
Mas tudo isto eram coisas por vir
256
.
Ficaram conhecidas como Reforma Pedro Ernesto (1932-1935) as reformas
administrativas que o médico, com esse nome, implantou na cidade do Rio de Janeiro. Nomeado
pelo Governo Vargas para prefeito do então Distrito Federal, tornou visíveis propostas em Saúde,
Educação e Urbanismo que, posteriormente, foram adotadas no Estado Novo (1937-1945). Foram
inovações e características da administração Pedro Ernesto: a) ações na construção de uma rede
educacional pública, leiga; b) organização de um sistema de assistência médica à população. Vale
ressaltar que nos interessa, neste estudo, as questões relativas à saúde. Recorreremos a textos de
Nava como norteadores da pesquisa.
O aspecto principal da Reforma Pedro Ernesto é o de intervenção do Estado nos assuntos
de Saúde, marca do Governo Vargas (1930-1945). Na Era Vargas, ocorreu a concretização de
propostas que viriam de décadas anteriores. Os textos de Luiz Antonio Santos (1985) – O
pensamento sanitário na Primeira República: uma ideologia de construção da nacionalidade – e de
256
NAVA, Pedro. Galo das trevas: memórias 5. 2. ed.
Rio de Janeiro:
José Olympio, 1981. p. 481.
148
Gilberto Hochman (1983) “Regulando os efeitos da interdependência: sobre as relações entre
saúde pública e construção do Estado” – tratam dessa questão.
Hochman destaca que a Saúde teve papel central na organização e intervenção do Estado.
Identifica-se com o Movimento Sanitarista, concordando com Santos, ao afirmar que esse foi o
mais importante projeto de construção da nacionalidade. E discorda: “Ao invés de observar uma
ideologia de construção da nacionalidade em suas dimensões simbólicas interessa-nos o resultado
concreto desse processo, qual seja, a construção de aparatos públicos e centralizados para
implementar políticas de saúde”
257
. Santos identifica, nos discursos sobre o saneamento dos
sertões, instrumentos ideológicos para a construção nacional. Discute as políticas públicas,
interventoras do Estado, na área de saúde, presentes na República Velha.
Nas discussões e propostas da década de 1920, a Saúde, por diversas questões, foi-se
transformando em um bem público e coletivo, exigindo arranjos coercitivos ou voluntários.
Hochman (2001), no artigo intitulado “A saúde pública em tempos de Capanema: continuidade e
inovações”, reforça suas opiniões anteriores. Considera que as ações governamentais na área da
Saúde, no pós 1930, foram: “umas das políticas-chave no estabelecimento do Estado Varguista e
dos trabalhadores urbanos
258
. Enfatizamos que aspecto marcante e inovador do governo Vargas foi
a presença do Estado nas áreas de Educação e Saúde. A ação de Pedro Ernesto é uma amostragem
da época varguista.
Apresentaremos a historiografia sobre o assunto de interesse de nosso texto e traços
biográficos de Pedro Ernesto. Acreditamos que o destaque à atuação desse político ajuda no
entendimento das observações de Pedro Nava. Os estudos sobre aquele período, nas questões de
saúde, não são numerosos. Os aspectos educacionais que envolvem a administração Pedro Ernesto
têm despertado maior interesse nos estudos acadêmicos, notadamente a ação educacional de
Anísio Teixeira. Três pesquisas abordam essa administração no campo médico: Alexandre Elias
da Silva (2006) Política e populismo: Rio de Janeiro, 1931-1936
259
; Cláudia Regina Rodrigues
257
HOCHMAN, Gilberto. Regulando os efeitos da interdependência entre Saúde Pública e construção do Estado
(Brasil 1910-1930). In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 6, n. 14, p. 40-61, 1983. Disponível em:
<www.bvshistoria.coc.fiocruz.br>. Acesso em: 2 mar. 2008.
258
______. A Saúde Pública em tempos de Capanema: continuidade e inovações. In: BOMENY, Helena (Org.).
Capanema: o ministro e seu ministério. Rio: FGV/Bragança Paulista: Universidade de São Francisco, 2001. p. 127-
151. Disponível em: <www.cpdoc.jgv.br>. Acesso em: 30 mar. 2008. p. 40-61.
259
SILVA, Alexandre Elias da. Política e populismo: Rio de Janeiro, 1931-1936. 2006. 163 f. Dissertação (Mestrado
em História), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2006. p. 118. Disponível em: <www.bdtd.uff.br>. Acesso
em: 25 abr. 2008.
149
Ribeiro Teixeira (2004) A Reforma Pedro Ernesto (1933): perdas e ganhos para os médicos do
Distrito Federal
260
e Antônio Carlos Leme (1992) Saúde e Educação na década de 30: o
município do bem-estar social
261
.
André de Faria Pereira Neto (1997) abordou a questão no artigo
intitulado “O modelo de assistência médica de Pedro Ernesto (1932): algumas considerações”
262
.
Os princípios norteadores da Reforma Pedro Ernesto estão no Decreto Lei nº. 4.252, que
regulamentou o funcionamento da Diretoria Geral da Assistência Municipal. A biografia de Pedro
Ernesto (1884-1942), em seus diversos aspectos, ajudam a entender suas propostas
administrativas
263
. Nasceu em Recife, filho de pequeno comerciante e membro da Maçonaria. As
posturas de solidariedade defendidas pela Maçonaria, apreendidas com o pai, podem ter
influenciado na escolha da Medicina como profissão
264
. Iniciou o curso de Medicina em Salvador.
Depois, transferiu-se para o Rio, formando-se em 1908. Por dificuldades financeiras e para ajudar
no sustento dos estudos, trabalhou em uma Farmácia-Prática
265
. O trabalho lhe propiciou
conhecimento com o médico Augusto do Amaral Peixoto. Aproximou-se dos filhos desse médico,
os oficiais da Marinha: Augusto Júnior e Ernâni, contatos que o inserem no mundo profissional.
As relações com a família Amaral Peixoto aproximam Ernesto da família de Getúlio Vargas.
Atuou como médico, continuando o atendimento na Farmácia e na Policlínica de Botafogo
(1908-1918), onde foi diretor de Clínica Cirúrgica. Essas atividades facilitaram seus contatos com
diversos segmentos sociais. Segundo Teixeira, Sandoval e Yumietakaoka: “Estes relacionamentos
talvez expliquem o fato de ter conseguido obter não empréstimos bancários, como auxílios de
comerciantes portugueses para a construção em 1918 e posterior ampliação, em 1923, de sua Casa
de Saúde, à rua Henrique Valadares, na Lapa – região próxima ao centro da cidade
266
. Os
acontecimentos da década de 1920 repercutiram na vida de Pedro Ernesto. Junto com os irmãos
Peixoto, participou da oposição a Arthur Bernardes. A prisão e morte de José Aníbal Duarte,
260
TEIXEIRA, Cláudia Regina Rodrigues Ribeiro. A Reforma Pedro Ernesto (1933): perdas e ganhos para os
médicos do Distrito Federal. 2004. 107 f. Dissertação (Mestrado em História das Ciências e da Saúde) Casa de
Oswaldo Cruz/Fiocruz, Rio de Janeiro, 2004.
261
LEME, Antônio Carlos. Saúde e Educação na década de 30: o município do bem-estar social. Rio: UERJ
(Mestrado), 1992. Não tivemos acesso a este material
262
PEREIRA NETO, André de Faria. O modelo de assistência médica de Pedro Ernesto (1932): algumas
considerações. Revista de História Regional, v. 2, n. 2, 1997. Disponível em: <www.rhr.uepg.br/v2n2/andre.htm>.
Acesso em: 15 abr. 2008.
263
DICIONÁRIO histórico-biográfico brasileiro pós 1930. 2. ed. Rio: FGV, 2001, v. 2. p. 2008-2012.
264
TEIXEIRA, L. A.; SANDOVAL, M. R. C. ; YUMIETAKAOKA, N. Instituto Pasteur de São Paulo: cem anos de
combate à raiva. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 3, p. 751-766, 2004.
265
Estabelecimentos em que se vendiam remédios e serviços médicos.
266
Op. cit, p. 751-766.
150
primo de sua mulher, na repressão aos “Dezoito do Forte”, levou-o a aproximar-se das questões
políticas e aprofundar-se nelas. Opositores ao governo foram ocultados na Casa de Saúde. Como
membro da Aliança Liberal, apoiou a candidatura de Vargas e participou como chefe do corpo
médico das tropas que, em Minas Gerais, lutaram contra a posse de Júlio Prestes. Segundo
Teixeira, Sandoval e Yumietakaoka:
Ao longo de duas décadas que se seguiram à sua formatura, Pedro Ernesto
conseguiu consolidar sua carreira profissional, destacou-se como dirigente pelo
trabalho em sua clínica particular e foi reconhecido como militante nos
acontecimentos políticos de 1930. A visibilidade pública na direção de sua Casa
de Saúde e o envolvimento direto na defesa militar da Aliança Liberal foram
elementos que deram a Pedro Ernesto a confiança e a legitimidade política e
social para que fosse nomeado por Getúlio Vargas, então chefe do Governo
Provisório instalado em outubro daquele ano, para exercer o cargo de diretor do
“Departamento Nacional de Assistência Pública”, no dia 14 de novembro de
1930
267
.
Teixeira, Sandoval e Yumietakaoka dividem a trajetória política de Pedro Ernesto em três
momentos: a) Chefe do “Departamento Nacional de Assistência Pública” (11/1930 a 09/1931).–
nomeação pelo Governo Provisório de Getúlio Vargas; b) Interventor do Distrito Federal (10/1932
a 04/1935); c) Prefeito do Distrito Federal (eleição indireta) pelo período (04/1935 a 04/1936).
Também atribuem a nomeação de Ernesto ao desejo político de Getúlio de se aproximar da
Aliança Liberal. Este partido tinha fortes bases no Rio, onde Getúlio teve inexpressiva votação. O
Departamento Nacional de Assistência Pública (DNAP) era subordinado ao Ministério da Justiça
e Negócios Interiores. Com a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública, em dezembro
de 1930, o DNAP passou a pertencer a esse ministério. A ação de Pedro Ernesto ficou submetida à
autoridade de Francisco Campos, primeiro Ministro da Educação e Saúde. No período em que
esteve à frente desse departamento, saneou as finanças e diagnosticou problemas.
267
TEIXEIRA, L. A.; SANDOVAL, M. R. C. ; YUMIETAKAOKA, N. Instituto Pasteur de São Paulo: cem anos de
combate à raiva. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 3, p. 751-766, 2004.p. 751-766.
151
Segundo Teixeira, Sandoval e Yumietakaoka:
Podemos constatar que a passagem de Pedro Ernesto pelo “Departamento
Nacional de Assistência Pública” caracterizou-se, sobretudo, por sua habilidade e
competência em gerenciar os recursos financeiros de que dispunha. Com esta
capacidade, Pedro Ernesto teve a possibilidade de ampliar o número de leitos nas
unidades de assistência do Distrito Federal. É possível que sua atuação bem
sucedida na iniciativa privada tenha lhe fornecido os elementos imprescindíveis
para que pudesse ter desempenhado, com êxito, a função que lhe fora delegada
268
.
O período em que Pedro Ernesto foi interventor do Distrito Federal (10/1931 a 04/1935)
caracterizou-se por propostas inovadoras nas áreas de Educação e Saúde; além disso, foi um
momento de embates políticos entre os grupos que apoiaram Vargas. Em Educação, o nome e a
atuação de Anísio Teixeira como Diretor de Instrução apontam para diversas questões. Dentre os
vários aspectos que envolveram as questões educacionais, destacamos os conflitos de propostas de
extensão do ensino público leigo por AnísioTeixeira X grupos católicos, defensores de escolas
particulares e confessionais
269
. Para Diretor da Assistência Municipal, foi nomeado o médico
Gastão de Oliveira Guimarães. Nas visitas feitas aos diversos subúrbios, bairros e aglomerações,
Ernesto conheceu a situação de saúde da cidade e estabeleceu contatos com lideranças locais, o
que lhe permitiu fundar o Partido Autonomista do Distrito Federal (1933). Os recursos para a
execução de seus projetos vieram dos impostos de 25% sobre o jogo
270
. Teve início a organização
e construção dos serviços médicos e hospitalares. Ressaltamos que esse assunto será desenvolvido
em momento posterior.
O terceiro momento da trajetória política de Pedro Ernesto se de 04/1935 a 04/1936
Prefeito da cidade do Rio de Janeiro e encerramento de sua vida pública. Podemos resumir como
marcos desse período, citando Teixeira, Sandoval e Yumietakaoka: “(...) consolidação de seu
projeto para a assistência médica, com a inauguração de duas unidades hospitalares, e por seu
progressivo afastamento do projeto político do governo federal”
271
. Crises entre o prefeito e o
Partido Autonomista e a Intentona Comunista levam a caminhos que encerram a carreira política
268
Op. cit, p. 751-766.
269
Vale lembrar que apenas pontuamos a presença de Anísio Teixeira. A bibliografia sobre o assunto é vasta.
270
Teixeira, Sandoval e Yumietakaoka identificam as discussões sobre a questão (p. 36).
271
Op. cit., p. 751-766.
152
de Pedro Ernesto. O projeto liberal-democrata de Pedro Ernesto começou a se chocar com a
política de Vargas. O apoio popular não impediu que Ernesto fosse preso em 1935, suspeito de
envolvimento com a Intentona. Absolvido e libertado em setembro de 1937, foi preso em
novembro e libertado em janeiro de 1938. Retirou-se da vida política, manifestando-se, em 1942,
contra o Eixo. Morreu no mesmo ano, aos 58 anos de idade, por problemas cardíacos.
Nos próximos parágrafos, focaremos a organização da assistência médica, no Rio de
Janeiro, na Reforma Pedro Ernesto. O Decreto nº. 4.252 regulamentou o funcionamento da
Diretoria da Assistência Municipal (DAM) e suas atribuições: a) perícia para os funcionários da
prefeitura; b) assistência social e previdenciária à mãe, à criança, ao inválido, ao desempregado e
ao morto; c) o modelo proposto em 1932 completava-se com o setor de assistência médica
hospitalar. Os aspectos factuais seguirão os assinalados por Pereira Neto.
Os serviços médicos hospitalares foram organizados de maneira regionalizada e
centralizada. A organização abrangia: Pronto Socorro, Hospital Regional, Dispensário Clínico e
Hospital dos Incuráveis. O Pronto Socorro era voltado para a prestação de socorros urgentes a
qualquer hora (via pública, domicílio e acidentes de trabalho). No Hospital Regional, ficariam os
doentes que não fossem portadores de doenças incuráveis ou mentais. Os Dispensários Clínicos
seriam voltados para tratamento ambulatorial de enfermos pobres, em ambulatórios de clínicas
gerais e especializadas e no Hospital para Incuráveis
272
.
A rede hospitalar, construída dentro das propostas da Reforma, ainda é referência no Rio
de Janeiro: Miguel Couto (Gávea), Getúlio Vargas (Penha), Carlos Chagas (Marechal Hermes),
Rocha Faria (Campo Grande), Jesus (Vila Isabel) e Paulino Werneck (Ilha do Governador). Os
serviços médicos eram gratuitos aos que o estivessem empregados e os relativamente
necessitados pagariam uma pequena taxa. O Serviço Social seria encarregado de fazer a triagem
para o atendimento na rede pública. Diversos aspectos podem ser desvelados na leitura das
Memórias de Nava e nas ações de Pedro Ernesto, anteriormente mencionadas. Destacaremos, nos
próximos parágrafos, as observações de Nava e a reação de grupos médicos à Reforma.
272
PEREIRA NETO, André de Faria. O modelo de assistência médica de Pedro Ernesto (1932): algumas
considerações. Revista de História Regional, v. 2, n. 2, 1997. Disponível em: <www.rhr.uepg.br>. Acesso em: 14
mar. 2008.
153
Nava afirma:
Enquanto esperava sua nomeação para a assistência pública, o Egon passou a
aproveitar suas manhãs acompanhando o José Martinho à enfermaria que ele
frequentava no Hospital São Sebastião, chefiada por seu irmão Martinho da
Rocha Júnior, a esse tempo no apogeu de sua carreira e considerado um dos
pediatras mais insignes do Rio de Janeiro. (...) Esse hospital, a que se ligam os
nomes de seu fundador, os de Oswaldo Cruz, Carlos Seidl, Carlos Chagas,
Zeferino de Meireles, Leão de Aquino e Garfield de Almeida, está também
vinculado à história das doenças infecciosas e epidêmicas no Rio de Janeiro,
principalmente às da varíola, da febre amarela e, depois, da tuberculose. (...) A
essa época, o hospital, a que se prende também a crônica de nossa enfermagem
científica com o trabalho das moças formadas na Escola Ana Neri, reluzia de
ordem, asseio e perfeição técnica na assistência aos infectados.(...) Inseparáveis
dele como por ligação siamesa, as figuras hoje legendárias das enfermeiras
Rachel Haddock Lobo e Sílvia Maranhão
273
.
A família Martinho da Rocha tem vários de seus membros como médicos. O pai de José
Martinho, mencionado na citação, foi médico “(...) que exerceu longos anos em Juiz de Fora
clínico geral e ‘médico de família’ de raro êxito...”
274
.. O contato com essa família em Juiz de
Fora e sua retomada, no Rio, auxiliaram a inserção de Nava no meio médico carioca. Seguindo na
mesma página, referindo-se a esses contatos: “Foi na enfermaria de Martinho da Rocha Júnior
que o Egon foi apresentado por ele ou pelo José a figuras que quando vinham ao São Sebastião
nunca deixavam de passar para o café, no serviço de crianças
275
. Nava foi nomeado a 3 de junho
de 1933 como cirurgião auxiliar e tomou posse a 13 do mesmo mês e ano. Nava no Pronto
Socorro:
Enquanto não se reestruturou o serviço Benício de Abreu, o Egon começou seu
trabalho externo nas ambulâncias do referido centro de tratamentos. Neste
chamado serviço externo os plantões eram de 8 às 14 horas, destas 14 às 20
horas e destas às 8 do dia seguinte, completando um horário semanal de 24
horas. (...) Iam quatro pessoas no veículo – o motorista-padioleiro, o outro
padioleiro, o enfermeiro e o médico. (...)
273
NAVA, Pedro. O círio perfeito. Memórias 6. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. p. 284-285.
274
Ibid., p. 286.
275
Ibid.
154
Aquelas saídas de dia cedo, no pino, ao entardecer e noturnas encantavam o
Egon. Primeiro, pela ida aos desconhecidos da patologia que era mister resolver
na hora e que representavam sempre um desafio para os que tinham uma
verdadeira alma de médico, com sua curiosidade, interesse, devotamento,
solidariedade humana e piedade simples pena do seu semelhante. Segundo,
pelo desvendamento de todos os Rios-de-Janeiro o milionário, o riquinho, o
remediado, o pobre e o da miséria negra das casas-de-cômodo e favelas. Dos
palácios de Copacabana ao morro, a aflição era a mesma, una e singular a do
indivíduo que sofre, está se despencando na morte e que é preciso segurar com
todas as forças
276
.
Ao longo da memorialística naveana, surgem informações sobre linhas conflitantes na
organização da Medicina Científica. Nava sempre foi adepto dos seguidores da orientação
francesa. Percebe-se a presença, em menor número, de seguidores dos germânicos e o início da
influência norte-americana. O memorialista viu a profissão como sacerdócio e pertencente a uma
dinastia de médicos. Seguindo os relatos das Memórias, foi organizada, no Pronto Socorro, a
Enfermaria de mulheres e de Clínica Médica de homens. A seguir, um depoimento de Nava da
época em que trabalhou na Enfermaria de mulheres:
(...) Eram poucas doentes para cada e bom para elas porque assim eram melhor
observadas, mais bem assistidas, e perfeitamente tratadas. O Eliezer, o
Esmaragdo, o Egon e o Nava eram médicos do interior recentemente instalados
no Rio e que não fizeram má figura (muito antes pelo contrário) perante o chefe
e os companheiros de formação carioca como Acilino, saído da escola de Miguel
Couto, e Múcio, da de Aloysio de Castro. Entrosavam-se assim na tradição da
linha de centro da clínica médica brasileira nobilitada por sua saída das mãos
de Miguel Couto, Francisco de Castro, Torres Homem e do criador de nossa
medicina interna: Manuel Francisco de Valadão Pimentel, barão de Petrópolis.
Essa escola de origem nitidamente francesa teve sempre como adversa, outra, a
mais germânica, de Rocha Faria, Nuno de Andrade e Agenor Porto. A última era
esnobada pela primeira, chamada pelos partidários destaa linha auxiliar
277
.
Nava foi médico no período de 1928 a 1983. O período foi de modificações no exercício
da profissão, em seus aspectos específicos (novas terapêuticas), nas relações da mesma com o
276
NAVA, Pedro. O círio perfeito. Memórias 6. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. p. 289-290.
277
Ibid., p. 297.
155
Estado, além de intensas mudanças da sociedade brasileira. Testemunhou o uso inicial da
insulina, o desenvolvimento da radiografia e, nos anos 1950, a penicilina. No Pronto Socorro:
Eram realmente as primeiras sulfamidas aparecidas no Rio. Iam ser
inauguralmente usadas no serviço Benício de Abreu. Todos começaram a
empregá-las sem saber que estavam iniciando uma revolução que no limiar dos
anos 40 seria completada com o aparecimento da penicilina. A clínica interna
reabilitando-se de anos de inércia ia começar realmente a curar e emparelhar-
se com o fabuloso desenvolvimento a que tinha chegado a cirurgia no nosso
século
278
.
Vimos como Nava foi nomeado por Pedro Ernesto. Este teve grande popularidade e apoio
inicial da imprensa. Contudo sofreu oposição de setores da Saúde, Educação e Política. As
discussões, pelos médicos, do papel do Estado nas questões de saúde foram estudadas por And
de Faria Pereira Neto (2001) Ser médico no Brasil. Estão presentes, nessa obra, a busca de
estratégias que não ameaçassem o caráter liberal da profissão. Aceitavam e até defendiam a ação
do Estado nas questões de saúde, desde que fossem confinadas aos pobres. Teixeira estuda a
questão no trabalho mencionado, partindo dos textos: Brasil Médico, Vida Médica, Imprensa
Médica e o Boletim Médico Brasileiro. As publicações mostram a inquietação dos profissionais.
Nas publicações citadas, os médicos defendem a gratuidade aos necessitados. Cobram medidas
severas e coercitivas para categorizar os necessitados ou indigentes. Um mês após a edição do
Decreto, a Imprensa Médica publicou artigo do Dr. Gastão Pereira da Silva:
Para o clínico que pretende viver exclusivamente de sua profissão, a atividade
desta é quase impossível. Entretanto, todos os dias abrem-se postos de
emergência, ambulatórios, clínicas especializadas e quejandas, que visam apenas
roubar o cliente do médico que o espera como o pão nosso de cada dia
279
.
278
NAVA, Pedro. O círio perfeito. Memórias 6. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983
.
p. 311.
279
SILVA, Gastão Pereira da. Imprensa Médica, Rio de Janeiro, v. 9, n. 148, p. 427.
156
O Sindicato dos Médicos propôs auxiliar o Estado na fiscalização quanto aos
indigentes
280
. O Decreto nº. 5.046 instituiu a Delegacia Social, órgão responsável pelo registro e
matrícula dos necessitados, o que não minimizou os ataques dos médicos. No artigo intitulado
“Retirada dos dez mil”, o Sindicato Médico Brasileiro se manifestou abertamente contra a
reforma implantada pelos Decretos nº. 4.252, 4.397 e 5.046. O signatário do artigo, Dr. Xavier do
Prado, “ponderava que as consultas haviam afastado um contingente considerável 10 mil de
clientes dos consultórios médicos
281
. Esses profissionais eram nomeados diretamente por escolha
do administrador. A reinvidicação de concursos para a admissão também esteve presente em
alguns discursos.
Pedro Nava comenta sobre os antagonismos em seu ambiente de trabalho:
Foram aumentados os quadros de serventuários subalternos, burocráticos,
enfermeiros e médicos. Essa majoração do funcionalismo foi feita por nomeação
e no quadro médico, Pedro Ernesto, com sua experiência e a colaboração de
Gastão Guimarães, Alberto Borgerth, Celso Brito, Victor Cabral de Teive,
Francisco de Bastos Melo e Alcides Marques Canário saiu-se com rara
felicidade. Salvo escassas e políticas exceções o novo quadro compunha-se, na
sua maioria, de profissionais competentes dentre os quais o tempo iria fazer que
se destacassem realmente grandes clínicos, grandes cirurgiões e grandes
tocólogos. As chefias de serviço foram preenchidas com o maior escrúpulo por
internistas, operadores e parteiros com capacidade de mando e preparo
reconhecido. Entretanto o quadro dos médicos antigos quase todos admitidos
por concurso na década de 20 não se mostrou lá muito satisfeito com o que
parecia uma invasão de protegidos na casa onde anos só entrava doutor
depois de passar pela porta estreita das provas de habilitação. Começou por isso
uma guerra aberta ao diretor e aos seus colaboradores imediatos. Os antigos
começaram a hostilizar os novos e os primeiros tempos da reforma não foram de
relacionamento
agradável nos plantões em que se juntavam esses dois grupos.
Gastão Guimarães que se gabava muito de “não se deixar montar” centrifugou
os cabeças dessa oposição para
os hospitais
periféricos,
para o serviço externo
de ambulâncias ou para o
degredo das ilhas o que mais exacerbou o elemento
veterano contra o recente. Diga-se ainda que nessa coisa andou também o
saudosismo trabalhando contra tudo que dependeu da Revolução de 30
282
.
280
TEIXEIRA, L. A.; SANDOVAL, M. R. C.; YUMIETAKAOKA, N. Instituto Pasteur de São Paulo: cem anos de
combate à raiva. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 3, p. 751-766, 2004.
281
Ibid.
282
NAVA, Pedro. O círio perfeito. Memórias 6. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. p. 415-416.
157
O ano de 1922, no Brasil, foi pródigo em acontecimentos simbólicos: a) Semana de Arte
Moderna com propostas de criação de um novo universo estético; b) Fundação do Partido
Comunista Brasileiro – busca da revolução pelos proletários; c) movimento dos Tenentes –
insatisfação de setores médios urbanos com as oligarquias republicanas; d) fundação do Centro
D. Vital por grupo de católicos que buscavam a renovação e construção de uma outra cristandade.
Signos identificadores de busca de construção de universos diferentes. Esses grupos e outros
apoiaram a Revolução de 1930. O Governo Provisório de Vargas (1930-1934) procurou conciliar
esses apoios e, nesse momento, temos a atuação dos vários segmentos. No Período
Constitucionalista (1934-1937), os antagonismos se acirraram entre os grupos de Esquerda
(Comunistas e Liberais) e Direita (Integralismo).
Pedro Ernesto, que tinha propostas liberais, começou a se distanciar de Vargas. O Partido
Autonomista Liberal elegeu 20 dos 22 vereadores; Pedro Ernesto foi o mais votado
283
. O
distanciamento fica mais visível entre abril de 1935 e abril de 1936. O caráter autoritário de
grupos que estavam em ascensão no Governo Vargas e que desembocaria no Estado Novo (1937-
1945) se articulam. É o momento da formação de uma frente, na imprensa, liderados pelo jornal
O Globo, de oposição a Pedro Ernesto. Somavam-se imprensa, setores do Governo Federal e a
Igreja Católica. Uma pergunta feita por estudiosos do período: Vargas via-se ameaçado pela
popularidade de Ernesto?
284
Iniciou o ocaso de Pedro Ernesto com sua prisão. Nava testemunhou
o episódio relacionado com a Intentona:
A coisa passou-se na época malfadada que se seguiu ao levante do 27 de
novembro de 1935. O governo em pânico reagia à situação com a maior
brutalidade, violência e crueldade. Muitos médicos do pronto-socorro, amigos de
Pedro Ernesto, tinham tido nesta ocasião pecadilhos, pecados e pecadões mortais
por opiniões que emitiam desde as timidamente rosadas, às arrogantemente
vermelhas. Uns tinham pecado por pensamento, os mais levianos por palavras,
os mais politizados por obras. Entre os do último grupo estava um dos
assistentes de Genival Londres de que se poderia dizer o nome porque ele já está
morto. Entretanto é bom calá-lo porque, sabe-se lá? no Brasil tudo é possível e
não será por este escrito que seus netos serão black-boulés. (...) Mas voltemos ao
assistente do Londres... Um dia o Egon estava de passagem na assistência, suas
duas da tarde, quando entra um Múcio de Sena aflitíssimo. As inscrições para
283
SILVA, Alexandre Elias da. Rio de Janeiro: política e populismo, 1931-1936. 2006. 163 f . Dissertação
(Mestrado em História), Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2006. p. 118. Disponível em: <www.bdtd.uff.br>
. Acesso em: 25 abr. 2008.
284
Ibid.
158
prêmios e a entrega das monografias na Academia Nacional de Medicina se
encerravam às dezessete horas. E ele tinha confiado o trabalho que ia apresentar,
para colher sua opinião, ao tal colega de quem se falou e que tinha desaparecido
do Rio, sovertido, sumido, evaporado, entrado de chão adentro três ou quatro
dias medo da polícia de Felinto Müller. O Múcio tinha ido a seu apartamento,
vasculhado o mesmo com pessoa da família e o demônio do seu ensaio não
estava lá...
– Vim aqui ao hospital dar uma busca no armário dele... Vamos lá comigo.
(...) Muito simples. Arrombe o armário e depois você manda consertar tudo à
sua própria custa.
(...) Arrombaram o armário. Os preciosos originais estavam à vista, mas também
estavam umas cinco pistolas 45, armamento de exército. Aquilo ali, naquela
época de espionagem e interpretações capciosas, era uma verdadeira
catástrofe
285
.
Diversos fragmentos de textos de O círio perfeito: memórias 6 testemunham o cotidiano
de Nava ainda que não mais no exercício de Pedro Ernesto. Uma geração separa Ernesto de
Nava. Ambos pertenceram a famílias de setores médios urbanos, empobrecidas. Famílias que
viram na aquisição de uma profissão liberal pelos filhos, como estratégia de sobrevivência. A
Medicina foi profissão possível a esse segmento, uma vez que essa atividade estava em expansão.
A inserção política de Pedro Ernesto e a profissional de Nava se deram por contatos de ambos
com famílias ligadas ao poder político.
Nava, nos colégios onde estudou, travou conhecimentos com a família Mello Franco, que
lhe abriu os caminhos no Rio. Em Belo Horizonte, tivera o primeiro emprego graças ao contato
de seus familiares com Afonso Pena (1921). No governo de Antônio Carlos, reatou os laços de
amizade com a família deste, que era de Juiz de Fora. Essa relação lhe valeu o segundo emprego
(1928).
Pedro Ernesto ascendeu politicamente pelos contatos com a família Amaral Peixoto.
Médico e político de seu tempo, viu na expansão dos serviços de saúde um meio de controlar os
segmentos desfavorecidos, adequando-os às necessidades da construção de uma sociedade urbana
e sustentação de sua base política.
Nava e Ernesto foram médicos com propostas diferentes sobre a profissão. Nava buscou,
no exercício da Medicina, a atividade clínica que lhe garantisse a sobrevivência. Ernesto buscou a
sobrevivência e poder político. Ambos viram Vargas como um político capaz de construir uma
285
NAVA, Pedro. O círio perfeito: memórias 6. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. p. 424-425.
159
nova nação centralizando o poder. Tornaram-se oposição quando os fatos e as propostas do
Estado Novo começaram a se delinear.
160
CONCLUSÃO
Esperamos ter demonstrado que as Memórias de Pedro Nava são fontes documentais para
os estudos das relações Medicina e sociedade brasileira no período de 1890-1940. Os livros
abrangem temas de meados do século
XVIII
às quatro primeiras décadas do culo
XX
.
Destacamos o período de 1890 a 1940, pois, no mesmo, encontramos os picos propostos para
esta pesquisa. Procuramos mostrar a obra naveana como fontes documentais para os estudos das
relações Medicina e sociedade brasileira. Entretanto, consideramos que a Medicina está inserida
em um momento histórico, por conseguinte, correlacionada com outras áreas. O caráter
enciclopédico da memorialística naveana aponta para essas correlações. Os textos naveanos estão
inseridos no processo de urbanização da sociedade brasileira. São visíveis dois momentos desse
processo: a inserção do país no capitalismo monopolista (1870-1920) e a busca de soluções para a
criação de uma nova sociedade após a crise do modelo que se fez sentir após o conflito de 1914-
1918. Pedro Nava, em Baú de ossos, observa o cenário europeu no período de 1880 a 1914,
décadas finais da Belle Époque:
La belle époque... O que teria sido ao justo essa belle époque? Diferente das
outras épocas? Melhor? Ao pensar nela, em conjunto, tem-se a impressão de
uma farândula de sobrecasacas e cartolas de mil reflexos, de senhores – catleias
na lapela, de senhoras numa nuvem de plumas – vastas mamas, cinturas finas e
generosas nádegas, evoluindo ao som dos primeiros fonógrafos, à luz das
primeiras lâmpadas elétricas, ou sob os céus de Longchamps cortados pelos
primeiros aeroplanos. Príncipes ostensivos e reis incógnitos evoluem no
Maxim’s, em Montecarlo e na Promenade des Anglais, dando o braço a
cocottes complicadas como polipieiros, como máquinas, como besouros, como
armaduras. (...) La belle époque. Teria sido, ao menos, bela? Ou julgamo-la
bela pela ilusão de que tudo estava pronto – quando tudo estava é por destruir e
que era necessário recomeçar da primeira pedra. Foi apenas um ponto alto de
montanha, vingado. Mas era preciso descer de novo, tornar a subir, outra vez
descer, ainda subir, mais uma vez rolar. Aquela parada
durou uns vinte e quatro
anos e ficou entre dois estouros: o da bomba de Vaillant, que sacudiu a Câmara
dos Deputados Franceses La séance continue... e o do tiro de revólver de
Prinzip, que sacudiu Serajevo, a Áustria, a Europa, o Mundo, e depois do qual
nada continuou. Belle époque fenômeno francês, no tempo em que a terra
tinha uma capital Paris. (...) Quando começou essa época? Na hora em que
Proust ouviu, na Sorbonne, a primeira aula de Bergson, ou quando Guilherme
II meteu o na bunda de Bismarck? Ou quando Sadi Carnot foi sangrando,
161
em Lyon, por um menino italiano? Depois vieram a degradação de Dreyfus, a
luz lunar acendida por Roentgen e que torna os homens translúcidos, gentis
homens postos a nu, no incêndio do Bazar de la Charité (eles abriam caminho,
assomando, a bengaladas, damas em chamas); outro incêndio, o J’Accuse de
Émile Zola. O século XIX agonizando juntamente, com Félix Faure – nos
braços da bela Madame Steinheil. (...) Foi no apagar das luzes do século que se
apagou a consciência da Inglaterra e que ela se atirou à Guerra dos Boers.
Mais! para comer. Mais um diamante para a coroa de Sua Majestade Graciosa.
Londres vibrou com a vitória de Vitória. Que euforia! Ennes de Souza, que lá
estava, assistiu, num teatro, a um quadro apoteótico. Aparecia primeiro o mapa
da África. Uma espada brandida por trás dilacerava-o aos acordes do God save
the Queen. E pelo rasgão aparecia a rameira que brandira o o vestida de
escocês, gorda de riso e remexendo a bunda azeda debaixo do kilt. O
republicano, indignado, quis ficar sentado em sinal de protesto, mas foi logo
arrancado de sua cadeira por mil mãos e atirado à rua aos socos, às caneladas,
às joelhadas, aos pontapés. Consolou-se das contusões com as mortes
sucessivas de Umberto Primo, às mãos de um anarquista; da própria Rainha
Vitória, às unhas do Tempo, de Draga e Alexandre da Sérvia, na garra dos
Karajorges. Em compensação reinavam pela graça da beira de cama e
aclamação unânime dos povos, Emilienne d’Alençon, Cleo de Mérode, Liane
de Pougy e a Bela Otero. O pórtico do século foi a Exposição de Paris. A Ponte
Alexandre III era o caminho do futuro. Não foi. Assunção de Anatole France
em corpo e alma. O Kaiser desce em Tanger com ouropéis que faziam desse
histrião um misto de beduíno, de arcanjo, unicórnio e dominó. Ninguém viu o
casamento de Pierre Curie e da exilada polaca Maria Sklodowska, mas hoje
todos sabem de que coito nasceram as bombas de Nagasaki e Hiroxima, cujo
fogo continuou, bateu na lua e não terminou sua reação em cadeia. E mais
sangue, sangue real derramado em Portugal. Dom Carlos e o Príncipe são
caçados a carabina, na montaria do Terreiro do Paço. O porco Abdul-Hamid foi
expulso, deixando no palácio um quarto fechado, como o do Barba- Azul:
estava cheio de concubinas decepadas umas, penduradas, outras, deitadas
num chão vidrado de sangue. E veio o outro estouro, o bom, o de Serajevo
pondo ponto final num mundo imundo
286
.
Na transcrição apresentada, Nava contextualizou o cenário internacional de Baú de ossos
e Balão cativo. Partindo de marcos factuais, sintetiza o ápice do período e as crises em gestação
do mesmo. Nas cidades abordadas por Nava nos dois primeiros livros das Memórias, Juiz de
Fora, Belo Horizonte e Rio de Janeiro, os marcos visuais das propostas do período estão na
arquitetura e nas propostas urbanistas. Em Juiz de Fora, “Manchester Mineira”, aspectos ligados
à industrialização fazem, no estudo da cidade, no período de 1880-1930, uma amostragem das
propostas de segmentos das elites nacionais. São visíveis os esforços de se colocarem abaixo os
resquícios coloniais que adentraram pelo Império. Na reconstituição da atuação de JoNava na
286
NAVA, Pedro. Baú de ossos. Memórias. Rio de Janeiro: Sabiá, 1972. p. 206-208.
162
Sociedade de Medicina e Cirurgia de Juiz de Fora, temos a amostragem de questões que
envolveram a Medicina no período. Na mudança da família para Belo Horizonte (1913) e nas
evocações sobre os estudos no Anglo-Mineiro (1914-1915), estão testemunhadas propostas
educacionais de parte das elites mineiras do período. Na transferência para o Rio de Janeiro, em
1916, Nava testemunhou o cenário da Belle Époque carioca. Testemunho que adentra pelos três
primeiros capítulos de Chão de ferro.
Nas Memórias de Pedro Nava, a Belle Époque tem parte de reconstituição e parte de
testemunho. A curta trajetória de José Nava (1876-1911), reconstituída e testemunhada pelo
memorialista, é exemplar da biografia de um jovem médico do período. Temos, nas informações
biográficas de José Nava, as questões propostas que surgiram para partes dos setores médios da
população. O período de 1870 a 1914, tanto em Medicina como em outros aspectos, caracteriza-
se por inúmeras descobertas. Louis Pasteur (1822-1875) criou a vacina antirrábica, Roberto Koch
(1843-1910) identificou o bacilo causador da tuberculose, em 1882, e o bacilo do cólera em 1884;
Albert Neisser (1855-1916), o gonococo; Armaner Hausen (1841-1912), o bacilo da lepra; Karl
Joseph Eberth (1835-1926), o bacilo do tifo; Friedrich Loefer (1852-1915), o bacilo do morno,
junto com Edwin Klebs (1834-1913), o bacilo da diferia; Albert Fränkel (1848-1910), o bacilo da
pneumonia; Arthur Nocolaner (1862- ?), o bacilo do tétano; Alphonse Laveran (1845-1922)
identificou o parasita unicelular plasmódico nos glóbulos vermelhos do sangue de doentes de
malária; James Carrol (1854-1907) e Jessé Lazear (1866-1900) identificaram a mosca
transmissora da febre amarela; Joseph Lister (1827-1912) usou o ácido carbólico como
desinfetante e Robert Listou (1794-1847) usou a anestesia em cirurgia. Descobertas científicas
que devem ser entendidas em seu contexto histórico e tornadas possíveis pela aceitação do
materialismo que se impôs até fins do século
XIX
287
.
As “descobertas” são setas indicadoras de questões que envolvem concepções de doenças
e saúde. Os textos de Fleck e Bourdieu, em muito, ajudam a entender e desvelar aspectos da
trajetória de José Nava. Nossas observações sobre o assunto foram perpassadas pelas propostas
desses estudiosos. Enfatizamos que as concepções de Hobsbawn sobre a pesquisa em História é
norteadora de nossas observações. Esperamos ter identificado, na trajetória de José Nava, como
se formou seu “estilo” de pensamento e os capitais sociais, simbólicos e culturais, que o mesmo
287
ROSEN, George. Uma história de Saúde Pública. Trad. Marcos Fernandes da Silva Moreira. 2. ed. São Paulo.
UNESP; Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva/Manguinhos, 1994.
163
teve à sua disposição. Buscamos enfatizar os aspectos sociais e políticos nacionais e a relação dos
mesmos com a adoção de postulados do Sanitarismo pela geração de médicos atuantes de 1880 a
1910. Nava retornou a Belo Horizonte e ingressou no Curso de Medicina em 1921, assunto que
ocupa as páginas finais do Capítulo
II
“Rua da Bahia” de seu livro Beira-mar. Buscamos um
texto do memorialista que sintetizasse aspectos da década de 1920 como relativo à Belle Époque
e cremos que o encontramos:
Afinal começava o 1921 com seus trabalhos. Era o primeiro ano da década
fundamental da vida de minha geração. O tufão dos whirling twenties, des
années folles estava ali e não tínhamos percebido nenhuma diferença. Ela seria
vista como tudo, no Tempo, quando olhada em perspectiva. Sem os trinta não
teríamos entendido a loucura desencadeada nos vinte e pontuada por dois socos.
O primeiro de Dempsey pondo KO Georges Carpentier. O elefante esmagando o
tigre. O segundo começado por Antônio Carlos, continuado pelo Cardeal e
acabado por Getúlio pondo por terra o nosso Braço Forte. Onde? a
invencibilidade do Barbado. Foi, segundo a frase do Andrada, o abacaxi
descascado com lâmina gilete. 1921. Eu iniciaria minha Medicina com o
entusiasmo que nunca mais me deixaria pela profissão admirável. Alguma coisa
havia no ar que ninguém entendia, que a Guerra abafara e que a belicosa paz dos
vinte ia fazer explodir dentro dos que seguiam paralelamente à sua, a vibração
da idade do século. Um sussurro se ouvia para os lados de São Paulo onde um
poeta de trinta e um anos chamado Oswald de Andrade publica um artigo
chamado O meu poeta futurista, sobre Mário de Andrade, então com vinte e oito
artigo que desencadearia a reação burguesa boçal contra o último de repente
posto de lado e perdido seus alunos. Não sabíamos nada disto mas nas várias
ruas de Belo Horizonte estavam trafegando, àquele ano, uns poucos moços que
iam se conhecer, se compreender, desafiar a cidade, serem nela marginalizados.
Ainda não tinha acontecido mas se o caso de São Paulo fosse levado em conta,
cada um veria o símbolo de muita coisa que ia suceder na nossa jovem capital.
Mas tudo tão ainda por chegar... Àquela hora eu descia meu caminho a para
as aulas da Faculdade. Aproximei-me temeroso imaginando o recomeço da
estupidez da véspera mas, não. Tinha acabado, o trote durava um dia só e
estavam no pátio os grupos que iam para as aulas. Em frente às escadas o do
nosso primeiro ano. Fomos nos abeirando uns dos outros e travando
conhecimento. Logo divisei várias caras do Anglo. Tinham crescido, botado
corpo, virado uns mocetões. estavam Paulo Gomes Pereira, Otávio Marques
Lisboa, Guy Jacob, Clodoveu Davis, Antônio Jacob, Roberto Baeta Neves.
Comigo, sete representantes dos tempos do Jones. Logo nos juntamos refazendo
a velha camaradagem e nos apresentando a uns e aos outros novos
conhecimentos
288
.
288
NAVA, Pedro. Chão de ferro: memórias 3. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973. p. 318-319.
164
Diversos aspectos podem ser observados na transcrição apresentada. Pedro Nava olha
para seus 18 anos na perspectiva de um septuagenário. Em diversos momentos, destacamos os
aspectos que envolvem as Memórias e a subjetividade que lhe é própria. O autor coloca como
marco uma luta de boxe, a do norte-americano Jack Dempsey nocauteando o francês Georges
Carpentier em 1921. Essa luta marcou o esporte. O norte-americano é referência no esporte
mundial e a transmissão da luta pelo rádio foi evento inovador. Pontua políticos brasileiros,
Antônio Carlos e Getúlio. Destaca os nomes de Oswald de Andrade e Mário de Andrade,
referência do Modernismo brasileiro. Finalmente, descreve fatos sobre o seu primeiro dia de aula
na Faculdade de Medicina e o reencontro com antigos colegas do Ginásio Anglo-Mineiro. Estas
citações são como setas que apontam para aspectos que serão desenvolvidos nos volumes
posteriores. Nava identificou, na década de 1920, a gestação das que estavam por vir.
Beira-mar: memórias 4 é documental sobre o Modernismo e o ensino médico na capital
mineira. Estão presentes as discussões estéticas e políticas que propunham a construção de uma
nova nacionalidade. Como vimos, diversos jovens modernistas tiveram ativa participação na
construção da Era Vargas (1930-1945). Na organização do curso médico em Belo Horizonte, bem
como na contratação de professores e organização do currículo, temos um dos aspectos mais
relevantes do Modernismo, as questões relacionadas com a Medicina e que estarão na pauta de
discussões da década de 1930. Em Beira-mar: memórias 3, Galo das trevas: memórias 4 e O
círio perfeito: memórias 6, Pedro Nava desenvolve os aspectos pontuados na transcrição. O
ensino médico, em Belo Horizonte, e a atuação profissional, em Juiz de Fora, na capital mineira,
interior de São Paulo e Rio de Janeiro são prioridades nas Memórias.
Na pesquisa referente à identificação de textos documentais naveanos, fomos conduzidos
por diversos autores. Estudos que se complementam na busca de compreensão das relações
Literatura e sociedade, observações sobre a Memória, História Social e História das Ciências e
Saúde. Esses textos nos possibilitaram a leitura dos livros naveanos como documentos históricos
para melhor compreensão da organização nacional e internacional da Medicina Ocidental. Este
foi o propósito de nossa pesquisa e esperamos ter alcançado esta meta nos capítulos que
compõem este trabalho.
165
BIBLIOGRAFIA
1. Obras de Pedro Nava em ordem de publicação
NAVA, Pedro.Território de Epidauro. Rio de Janeiro: C. Mendes Júnior, 1947.
______. Capítulos da história da Medicina no Brasil. Rio de Janeiro: Brasil Médico-Cirúrgico,
1949.
______. Baú de ossos: memórias. Rio de Janeiro: Sabiá, 1972.
______. Balão cativo: memórias 2. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.
______. Chão de ferro: memórias 3. 2
.
ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.
______. Beira-mar: memórias 4. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.
.
______. Galo das trevas: memórias 5. 2
.
ed.
Rio de Janeiro:
José Olympio, 1981.
______. O círio perfeito: memórias 6. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
______. Cadernos 1 e 2. São Paulo: Ateliê Cultural, 1998.
______. Viagem ao Egito, Jordânia e Israel. São Paulo: Ateliê Editorial, 1998.
______. O bicho urucutum. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999.
______. O anfiteatro. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002 (compilação de textos de Nava que
tratam da vida estudantil e profissional feita pelo herdeiro do memorialista, Paulo Penido).
______. A Medicina de Os Lusíadas. Cotia, SP: Ateliê Cultural, 2004.
2. Bibliografia consultada
ALBUQUERQUE, A. M; SAMPAIO NETO, S. O discurso urbano acadêmico sobre Fortaleza
em fins do século XIX e início do XX. Disponível em: <www.igea.uerj.br/VIVBG-
2004/Eixo1%20.425.htm>. Acesso em: 5 abr. 2006.
166
ANDRADE, Carlos Drummond. Baú de Surpresas. In: NAVA, Pedro. Baú de ossos: memórias.
Rio de Janeiro: Sabiá, 1972.
ANDRADE, Mário. Namoros com a Medicina. 4. ed. Belo Horizonte: Martins/Itatiaia, 1980.
ANDRADE, Sílvia Maria Belfort Vilela. Classe operária em Juiz de Fora: uma história de lutas
(1912-1914). Juiz de Fora: EDUFJF, 1984.
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Português. Arquivo Pedro Nava. Fundação Casa Rui Barbosa, Arquivo Museu de Literatura
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