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conhecedor das obras vicentinas, desenvolvendo ao gosto cortesanesco (ora pela
métrica velha, ora pela medida nova) as suas lições, como mostramos em outro
momento, especificamente sobre seu teatro
. Também na Lírica Camoniana
podemos encontrar um eco do lírico Gil Vicente, e o exemplo é do mesmo auto.
Quando falo, estou calado;
quando estou, entonces ando;
quando ando, estou quedado;
quando durmo, estou acordado;
quando acórdo, estou sonhando;
quando chamo, então respondo;
quando choro, entonces rio;
quando me queimo, hei frio;
quando me mostro, m‟escondo;
quando espero, desconfio.
Não seria este poema de Gil Vicente o texto que, fértil em seus paradoxos,
ajudou a lapidar o engenho camoniano?
Afinal, anos mais tarde, Camões
mostraria sua mais alta expressão em textos como “Amor é fogo que arde sem se
ver” (de semelhante aproveitamento dos paradoxos ao utilizar um verso partido em
duas idéias contraditórias
), ou em “Tanto de meu estado me acho incerto” onde,
BARROS, Luiz Fernando de Moraes Amores de uma bem-maridada: o auto dos Enfatriões entre o
lírico e o cômico Dissertação de Mestrado, UFRJ, 2004.
V, p. 12 –o aproveitamento dos paradoxos é uma práxis bastante difundida naquele período.
Para não sermos mal compreendidos, logo na partida deste estudo, julgamos importante dizer
que não estamos obliterando toda a tradição petrarquista, em absoluto, na construção do gênio de
Camões ao “filiá-lo” à lição vicentina. Levantamos apenas a hipótese, jamais contestada por
nenhum estudioso (mas que por força da ausência de testemunho só pode mesmo figurar no
espaço da hipótese), de que Camões não somente leu Gil Vicente como identificou em seus autos
frescas linhas do mais vivo lirismo. Problematizaremos, em seguida, o modelo de ambos, já que o
jogo alusivo da intrincada lírica renascentista é bem mais complexo do que parece a um primeiro
olhar.
Considerando o critério de duplo testemunho quinhentista incontroverso para a atribuição autoral
de um texto quinhentista, sabemos que o soneto em questão possui insuficiente comprovação. Não
pretendemos, contudo, adentrar o caminho da crítica textual e/ou genética. Vale ressaltar,
entretanto, o nosso profundo respeito pelo trabalho dos professores Emanuel Pereira Filho, que
estabeleceu os critérios para a formulação de um cânone mínimo, bem como de Leodegário de
Azevedo Filho, que dedicou toda sua vida acadêmica a esta questão. Sem o objetivo de ferir os
ensinamentos dos mestres, acreditamos que a presente pesquisa deve buscar foco nas linhas
vicentinas e não propriamente nos versos, atribuídos legítima ou ilegitimamente, a Camões, embora
esse assunto seja de nosso particular interesse, considerando alguns trabalhos já realizados (“A
reprodução diplomática dos textos em Português do Manuscrito da Biblioteca da Real Academia da
História de Madrid”, sob orientação da profa. Dra. Marina Machado Rodrigues, ainda não publicado.