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Universidade Federal do Rio de Janeiro
E AMOR NÃO TEM SAÍDA
A velhice enamorada à luz de Gil Vicente
Luiz Fernando de Moraes Barros
Rio de Janeiro
Dezembro de 2009
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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Faculdade de Letras
Comissão de Pós-Graduação e Pesquisa
E AMOR NÃO TEM SAÍDA
A velhice enamorada à luz de Gil Vicente
Luiz Fernando de Moraes Barros
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras Vernáculas da Universidade
Federal do Rio de Janeiro como parte dos quesitos
necessários para a obtenção do tulo de Doutor em
Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa).
Orientador: Profa. Dra. Cleonice Berardinelli
Co-orientador: Profa. Dra. Gilda Santos
Rio de Janeiro
Dezembro de 2009
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E AMOR NÃO TEM SAÍDA
A velhice enamorada à luz de Gil Vicente
Luiz Fernando de Moraes Barros
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos quesitos necessários para a
obteão dotulo de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa).
Orientador: Professora Doutora Cleonice Berardinelli
Co-orientador: Professora Doutora Gilda da Conceão Santos
Aprovada por:
_________________________________________________
Presidente, Professora Doutora Cleonice Berardinelli UFRJ PUC-Rio
_________________________________________________
Profa. Doutora Gilda Santos UFRJ
_________________________________________________
Profa. Doutora Marina Machado Rodrigues UERJ
_________________________________________________
Prof. Doutora Sheila Moura Hue Real Gabinete Português de Leitura
_________________________________________________
Prof. Doutor Ronaldo Menegáz Academia Brasileira de Letras
_________________________________________________
Prof. Doutor José Clécio Quesado UFRJ (Suplente)
_________________________________________________
Prof. Doutor Silvio Renato Jorge UFF (Suplente)
Rio de Janeiro
Dezembro de 2009
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BARROS, Luiz Fernando de Moraes Barros.
“E Amor não tem saìda: a velhice enamorada à luz
de Gil Vicente. / Luiz Fernando de Moraes Barros Rio de
Janeiro: UFRJ Faculdade de Letras, 2009.
xi, 198 f.
Orientadora: Cleonice Berardinelli
Co-orientadora: Gilda Santos
Tese (doutorado) Universidade Federal do Rio de
Janeiro/Faculdade de Letras/Programa de Pós-graduação
em Letras Vernáculas, 2009.
Referências bibliográficas: f. 183-198
1. Literatura Portuguesa. 2. Teatro. 3. Gil Vicente. I.
Cleonice Berardinelli. II. Gilda da Conceão Santos. III.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de
Letras, Pós-graduação em Letras Verculas. IV. “E amor
não tem saìda: a velhice enamorada à luz de Gil Vicente.
5
Resumo
E AMOR NÃO TEM SAÍDA
A velhice enamorada à luz de Gil Vicente
Luiz Fernando de Moraes Barros
Orientador: Professora Doutora Cleonice Berardinelli
Co-orientador: Professora Doutora Gilda da Conceição Santos
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Letras Vernáculas, Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de
Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título
de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa).
Investigação sobre o lirismo amoroso presente em diferentes autos de Gil
Vicente, principalmente no Auto do Velho da Horta e em A Comédia do Vvo, com
enfoque nas personagens que representam a velhice, ora libidinosamente
apresentada (senex amator), ora sentimentalmente constrda (senex amans). Para
tanto, foi necessária a problematização dos gêneros lírico e dramático e suas
interlocões na cena teatral, além de considerões sobre o jogo alusivo na
literatura, tendo como ponto principal as estratégias de imitatio e transformatio que
compõem o princípio emulativo. Ao longo da análise, outras obras ibéricas sobre o
mesmo tema foram colocadas em diálogo com os textos vicentinos, para que se
pudesse compreender a recorrência e as transformações dessa tópica no século
XVI, com indicativos de sua permanência nos séculos seguintes.
Palavras-chave: Lirismo amoroso; gênero dramático; jogo alusivo; velhice
Rio de Janeiro
Dezembro de 2009
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RÉSUMÉ
E AMOR NÃO TEM SAÍDA
La vieillesse passionée à la lumière de Gil Vicente
Luiz Fernando de Moraes Barros
Orientador: Professora Doutora Cleonice Berardinelli
Co-orientador: Professora Doutora Gilda da Conceição Santos
Résu da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Letras Vernáculas, Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de
Janeiro UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título
de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Portuguesa).
Recherche sur le lyrisme amoureux dans de différents Autos de Gil Vicente,
surtout dans l‟Auto do Velho da Horta et dans l‟A Comédia do Viúvo, abordant tout
particulièrement les personnages qui représentent la vieillesse, tantôt lascivement
présentée (senex amator), tantôt sentimentalement construite (senex amans). Pour
cela, il a fallu faire la problématisation des genres lyrique et dramatique et leurs
dialogues dans la scène théâtrale, par-deles consirations sur le jeu allusif dans
la littérature ayant comme point principal les stratégies de imitatio et transformatio
qui composent le principe de l‟émulation. Le long de l‟analyse, d‟autres oeuvres
ibériques sur le même sujet ont étés mises en dialogue avec les textes de Vicente,
afin qu‟on puisse comprendre la récurrence et les transformations de ce sujet au
XVI
e
siècle, avec des indicatifs de sa permanence dans les siècles suivants.
Mots-cs : Lyrisme amoureux ; Genre dramatique ; Jeu allusif ; Vieillesse
Rio de Janeiro
Dezembro de 2009
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AGRADECIMENTOS
À Fundação Caloustre Gulbenkian pela bolsa de estudos, sem a qual não seria
possível continuar esta investigação.
À Professora Doutora Cleonice Berardinelli, por ter re-escrito em mim, de
modo tão sensível, a produção vicentina; por ter acolhido esta pesquisa com
afeto e atenção.
À Professora Doutora Gilda da Conceição Santos, pela co-orientação
cuidadosa; por me acompanhar desde o mestrado com muito carinho e
muito critério.
Aos meus pais, por estarem sempre tão perto, mesmo que eu
esteja longe; pelo amor, pelo respeito, pela admiração. tuos.
Aos meus alunos, pelo saber que nos conjuga; pela vocação
da juventude em ser Nau a haver.
Aos meus amigos, por compreenderem minhas
ausências e continuarem amigos.
À Vênus e Shiva, por deixarem a minha vida
diariamente carinhosa.
Ao Teatro e à Poesia, cenas primeiras da
minha Literatura.
Ao Amor, porque este é o tema mais
caro a mim e a toda gente.
À Janaína Brasil, por tudo que
s somos.
Muito Obrigado.
8
Para Vó Heloísa, Vó Anna, Vô Silvio e Vô Tininho
9
SUMÁRIO
1. Considerações iniciais: por que Gil Vicente e a velhice? 11
2. Imitatio e Transformatio: do lírico ao dratico 21
2.1. Lirismo, subversão e imitão: um ponto de partida 22
2.2. Teatro, subversão e transformação: o jogo alusivo em Gil Vicente 36
2.3. Na rota do Amor: estudos sobre o lirismo vicentino 43
3. Senex Amator: lírico e libidinoso 60
3.1. O velho enamorado na tradição dramática 61
3.2. Diálogo entre Amor y un viejo e sua possível refundição anônima 69
3.3. A Celestina ou Tragicomédia de Calisto e Melibéia 89
3.4. O Senex Amator em Gil Vicente 103
4. Senex Amans: lírico e saudoso 122
4.1. A velhice na Europa do século XVI 125
4.2. O Senex Amans em Gil Vicente 133
4.3. Alguns viúvos depois de Gil Vicente 163
5. Amor omnia vincit 172
6. Bibliografia 183
10
“O maior risco da vida,
e mais perigoso, é amar;
que morrer é acabar,
e amor não tem saìda
Gil Vicente
Auto do Velho da Horta
s querría un incordio en cada lado
y en la parte contraria um escupido,
que verme viejo, loco, entretenido
del viento, y en el aire enamorado.”
Diego Hurtado de Mendoza (1503-1575)
Sonetos satíricos y burlescos, LI, vv.6-9
11
1. Considerações iniciais Por que Gil Vicente e a velhice?
...pela qualidade de seus versos, pela abrangência
de sua galeria de tipos e personagens, pela graça
atrevida, pela coragem na tira contra os grandes,
leigos ou eclesiais, pelas palavras e até pelos
silêncios que condenam, (...) por tudo que faz dele
um autor excepcional, e uso a palavra no seu
sentido etimológico puro aquele que é,
verdadeiramente, uma exceção.
1
Quando me propus a realizar uma investigação literária em nível stricto,
ainda não me parecia claro o objeto de estudo que deveria perseguir. Muitos eram
os meus desejos no âmbito da pesquisa, tantos quantas eram as minhas vidas
sobre a validade dos temas que me interessavam. Três predileções, entretanto,
acompanhavam-me desde a pesquisa que anteriormente realizei: o teatro, em
termos genológicos; o amor, na perspectiva temática; e o século XVI, como período
singular, sempre me foram particularmente caros.
Barcas generosas puderam-me levar ao curso de pós-graduação que a
professora Cleonice Berardinelli oferecia na Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro, cujo tema era justamente a obra vicentina. Mesmo como aluno de outra
instituição, inscrevi-me na condição de especial (assim é o nome no Brasil),
buscando uma aproximação sensível com os textos desse autor que é a mais alta
expressão teatral que a literatura portuguesa pôde vivenciar. Entre a Mestra e os
alunos (dos quais pela primeira vez eu fazia parte) versos de Mestre Gil. Qual não
seria o efeito apaixonante que, dentro de mim, faria tal encontro?
O principal questionamento, a partir daí, dizia respeito à valia de uma
incursão na obra vicentina em uma pesquisa de doutorado. Vivemos um momento
dos estudos literários em que a literatura do século XX parece ter assumido um
1
BERARDINELLI, Cleonice. Pera o longo amor, o curta a vida. In: Leituras, Revista da
Biblioteca Nacional, Lisboa, no. 11, 2002, p. 157.
12
relevo que, se por um lado é perfeitamente louvável, por outro deixa à sombra
autores e obras de fundamental importância inclusive para a formação do caráter
da literatura moderna como se mais nada pudesse ser dito daquela prodão.
Ariano Suassuna analisa a fundo a questão, defendendo-se dos que o acusavam
injustamente de uma tentativa de medievalizar o teatro brasileiro contemporâneo,
tendo em vista os evidentes pontos de contato entre suas obras e aquelas de um
tempo mais antigo:
Entenda-se de uma vez por todas que quando falo nessas
coisas o é pregando uma imposvel e ridícula cruzada no
sentido de medievalizar” ou europeizar” a cultura brasileira.
(...) meu encanto pelo teatro de Aristófanes, de Sófocles, de
Plauto, de Shakespeare, de Goldoni, de Calderón, de Gil
Vicente, ou pela novela picaresca, pela cavalaria, de
Cervantes e de Boccaccio vinha, mais, era do fato de eu
reencontrar em tudo isso um espírito correspondente ao do
Sertão, do Nordeste e do Brasil (...) os casos de crime, de
amor e de cme; as fomes das grandes secas e epidemias,
com seus cortejos de miséria, sofrimento e morte; as
legendas; a crítica social; as burlas; o ódio; o riso violento e
desmedido tudo isso alçado, porém, às alturas do poético,
do trágico e do cômico, pela foa arrebatadora e
transfiguradora do mítico.
2
Outro grande incentivo para aceitar a empreitada vicentina nesta
investigação foi o decisivo trabalho do professor José Augusto Cardoso Bernardes,
com quem pude conversar algumas vezes acerca de minhas intenções
investigativas. Já no prefácio de seu estudo, o vicentista também apontava seus
questionamentos sobre consagrar a Gil Vicente a sua tese de doutoramento,
revelando os pontos positivos e negativos, em nosso tempo, de tal oão:
Tive consciência de que era ainda uma decisão muito
emocional. Até porque, do ponto de vista prático, havia pelo
menos dois factores de monta a desaconselharem tal
empreendimento: a imensidão da bibliografia a consultar e a
dificuldade em encontrar novos rumos de pesquisa. Este
2
SUASSUNA, Ariano. Almanaque Armorial. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008, pp.214-215
13
inconvenientes eram no entanto contrabalançados com
alguns aspectos promissores: em primeiro lugar, o contacto
com os textos vicentinos constituía, por si só, uma garantia de
entusiasmo factor de aliciamento importante para quem se
dedica a tarefas de persistência; em segundo lugar não há
como escondê-lo animava-me a possibilidade de trabalhar
numa área dos estudos literários já sulcada por alguns dos
nomes mais ilustres da nossa tradão crítica.
3
Deste modo, encorajado pela experiente vicentista brasileira, de quem fui
aluno, e pelo jovem e erudito pesquisador português, autor dos mais recentes e
importantes estudos sobre o lirismo de Gil Vicente, resolvi assumir a empreitada e
coroar a paixão que sinto pelo teatro, pelo amor e pelo século XVI dedicando a
minha tese de doutoramento à obra deste grande poeta e dramaturgo. Para além
disso, parecia urgente resgatar os autos vicentinos no âmbito da s-graduação,
tendo em vista que o último estudo sobre o autor na Universidade Federal do Rio
de Janeiro data de 1980, quase trinta anos atrás
4
.
Por este caminho, é oportuno ressaltar que, se persigo o tema do Amor
neste trabalho, escolhendo mais uma vez o diálogo entre o lírico e o cômico, entre
a poesia e o teatro, como fiz em minha dissertão de mestrado, é porque entendo
que esta tópica foi empregada e desenvolvida não apenas de modo muito
constante pela tradição literária peninsular, mas também porque foi textualmente
empregada a partir de uma diversidade enunciativa tão rica que merece sempre
3
O testemunho do autor sobre a investigação que levou a cabo pode ser lido no prefácio de sua
tese (BERNARDES, José Augusto Cardoso, Sátira e Lirismo. Modelos de Síntese no Teatro de Gil
Vicente Coimbra: por Ordem Da Universidade, 1995, pp.5-6). O estudo de Jo Augusto Cardoso
Bernardes foi publicado em dois volumes pela Imprensa Nacional Casa da Moeda, em 2006, com
prefácio de Aníbal Pinto de Castro (BERNARDES, José Augusto Cardoso. tira e Lirismo no
Teatro de Gil Vicente Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2006). Na presente pesquisa,
cito a investigação de 1995, embora tenha consultado constantemente e edição mais moderna para
confrontar posicionamentos teóricos e possíveis revisões.
4
Trata-se da tese de doutorado de Maria Aparecida Ribeiro, intitulada Gil Vicente e a nostalgia da
ordem, sob orientação criteriosa do professor Leoderio de Azevedo Filho. Firmando-se como uma
refencia nos estudos vicentinos, o trabalho foi publicado quatro anos depois e ainda hoje conserva
sua importância. (RIBEIRO, Maria Aparecida. Gil Vicente e a nostalgia da ordem. Rio de Janeiro: Eu
e Você, 1984).
14
novas leituras. No teatro de Gil Vicente, é o tema do Amor o mais utilizado em
variadas situações, diferentemente do do Natal, por exemplo, que, por exigência
tipológica, sugere inequivocamente o modelo pastoril. É o tema do Amor que, por
isso, movimenta uma grande gama de personagens no universo de Gil Vicente. É,
por fim, o tema do Amor que engendra boa parte dos seus enredos, principalmente
em obras de caráter mais expressivo, embora também se faça sentir de maneira
substancial nos autos de estrutura mais narrativa, por assim dizer. Sempre
trabalhado a partir de um lirismo que desmancha as fronteiras, tênues, entre poesia
e teatro.
Este é, pois, o mote que glosarei no primeiro capítulo da minha investigação,
aproximando-me da História dos estudos sobre a lírica de Gil Vicente. Fez-se
necessário, neste momento, um levantamento um pouco mais detido sobre a
imitatio e a transformatio, estratégias emulativas que me ajudaram a pensar a
recorrência de temas, bem como autores e textos que influenciaram, de alguma
maneira, o gênio vicentino. As considerações sobre os jogos alusivos na literatura
do século XVI percorrem, de algum modo, toda esta investigação, motivo pelo qual
optei por realizar diálogos com os demais testemunhos quinhentistas
paralelamente às análises das obras vicentinas e lidos à luz delas, em detrimento
da elaboração de um capítulo sobre a influência de textos peninsulares em Gil
Vicente. Por isso, juntamente às análises dos autos de nosso dramaturgo, buscarei
sempre um diálogo com autores de notada importância no período, como Fernando
Rojas, Rodrigo Cota, Juan del Encina, Juan de Mena, António Ribeiro Chiado,
Lucas Fernández, Anrique da Mota, Jorge Manrique, Gaspar Gil Polo, bem como
Petrarca, Camões, Diogo Bernardes, Sá de Miranda, Jorge Ferreira de
Vasconcelos, António Ferreira, além das auctoritates da Antiguidade, como Virgílio,
15
Plauto, Sêneca e Cícero, ou mesmo os trovadores dos cancioneiros peninsulares
tradicionais.
Neste primeiro capítulo, de base mais trica do que analítica, ficará clara a
minha concordância com os trabalhos de José Augusto Cardoso Bernardes, pois o
vicentista aborda o lirismo sob uma perspectiva que compreende de modo
aglutinante poesia e teatro, ampliando lucidamente o conceito de Lírico e, portanto,
sua ocorrência estruturante nas peças, afastando-se, desta feita, dos estudos de
base folclórica que tradicionalmente marcaram as investigações sobre o lirismo
vicentino. Isso também justifica um certo desapego, nesta pesquisa, às cantigas
que fecundam os autos de Gil Vicente e que se encontram encravadas ora
integralmente, ora apenas referidas nas malhas do texto, não porque esteja
desconsiderando a sua importância, mas porque sobre elas muito já se falou. O
que busco no presente estudo é uma outra forma de pensar a rica amorosa nos
textos vicentinos, sem a ilusória ideia de que é posvel determinar os limites de
gênero, afinal, toda a sua obra, embora dramática, se faz a partir de um prodigioso
matiz lírico, sua mais sensível diferença entre seus epígonos.
No que diz respeito ao tema do amor, minha proposta inicial era realizar um
recorte de cenas e obras em que o sentimento amoroso estivesse sensivelmente
ligado ao tema da morte, considerando que o amador se condena a um morrer
diário simplesmente por amar. Se tivermos em conta os diferentes tipos criados por
Gil Vicente, muitos merecerão análise, pois o amor atravessa a quase totalidade
dos autos. Por isso, certo de que alguns personagens me perseguiriam por se
sentirem excluídos em minhas análises (e certamente muitos teriam razão), resolvi
fazer ainda outro recorte, tendo em vista que, a despeito de se falar sobre um tema
muito abrangente, sempre a armadilha em não se dizer nada. Elegi a velhice
16
como o tempo do amor e resolvi aproximar-me de personagens velhos que,
tocados pelo sentimento amoroso, integram algumas cenas de indiscutível lirismo.
E foi, permito-me confessar, o discurso lastimoso do Viúvo, na Comédia do Viúvo,
que me fez acreditar no recorte, ainda não realizado por nenhum outro estudo
vicentino, pelo menos em nenhum dos trabalhos de que tivemos notícia.
Para além das (a)venturas amorosas dos jovens cavaleiros, tópica
muitíssimo bem aproveitada por Gil Vicente, é evidente que o amor, tão governador
de tudo, estaria também presente no mundo dos velhos. A constrão do senex em
nosso autor, aliás, é digna de um ourives da escrita. Não houve até hoje,
entretanto, qualquer estudo sobre a lírica amorosa que tenha lançado um olhar
detido aos representantes da velhice vicentina. E as razões do descaso talvez
estejam em nossa própria cultura.
Se temos um precário conhecimento dos velhos do passado, isso não se
pelo fato de que o tema nos parece de algum modo sombrio, mas pela estranha
resistência nossa de encontrar, nos velhos, traços de significação vital. Simone de
Beauvoir, em seu tratado sobre a velhice, realiza um levantamento da condição dos
velhos através de diversas épocas e reconhece que esta não é uma empresa fácil:
Os documentos de que dispomos só raramente fazem alusão
a esse assunto: os idosos são incorporados ao conjunto dos
adultos. Das mitologias, da literatura e da iconografia destaca-
se uma certa imagem da velhice, variável de acordo com os
tempos e os lugares. Mas que relão essa imagem sustenta
com a realidade? É difícil determinar. A imagem da velhice é
incerta, confusa, contraditória.
5
Ora exaltado por sua experiência, ora marginalizado por sua condição física
e psicológica, o velho em Gil Vicente, quando inserido em um dilema de amor,
pode simbolizar um modelo de velhice, exemplo a ser seguido pelos jovens, ou se
5
BEAUVOIR, Simone de. A velhice. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990, p. 109.
17
transformar em alvo de críticas morais em uma clara atitude de reforma e de
defesa das virtudes e dos bons costumes. Por isso optei por construir dois
capítulos que, embora tenham o Amor como mote, desenvolvem glosas dramáticas
semanticamente distintas: a velhice enamorada do senex amator, libidinosa em
essência e portanto ligada à comicidade como estratégia de questionamento,
matéria do capítulo 3; e o Senex amans, modelares viúvos, muitas vezes de feição
petrarquista, muitas vezes com sua contraposão cômica, como veremos no
capítulo 4. Deste modo, o corpus vicentino de interesse para esta investigação
pôde ser delimitado e organizado em dois grandes grupos: de um lado o viejo
verde
6
, em que o Auto do Velho da Horta é seu melhor, mas não único
representante; do outro, o cortês eterno amante, cujo personagem-símbolo pode
ser entendido como o Vvo da Comédia do Vvo e seus desdobramentos em
outros textos, como na Comédia sobre a Devisa da cidade de Coimbra. Outros
autos serão aqui tratados, mas, como se percebe, não é numeroso o rol de
personagens velhos na obra vicentina, embora os poucos exemplos sejam
sobremaneira importantes. Por isso, retomo as palavras de Simone de Beauvoir
para que fique claro como Gil Vicente trata o tema de maneira diferente dos demais
autores quinhentistas:
Por que terá o século XVI atacado os velhos com tanto
encarniçamento? O pai estava longe de deter a autoridade do
paterfamilias romano. Aliás, não é bem ele o injuriado: é o
velho ricaço que se coloca como rival dos jovens. Nessa
época, tanto quanto nas precedentes, os velhos das classes
inferiores não interessam à literatura.
7
6
O termo viejo verde, que será trabalhado adiante, foi largamente utilizado para denominar o senex
que, diante dos encantos de uma bela jovem, deixa transparecer uma energia sexual que evoca o
tempo da juventude. Também aqui podemos voltar a citar o trabalho de Beauvoir: Do antigo Egito
ao Renascimento, vê-se que o tema da velhice foi quase sempre tratado de maneira estereotipada;
mesmas comparações, mesmos adjetivos. A velhice é o inverno da vida. A brancura dos cabelos e
da barba evoca a neve, o gelo: uma frieza do branco à qual se opõem o vermelho o fogo, o
ardor e o verde, cor das plantas, da primavera, da juventude” (Idem, p. 200, grifos nossos)
7
Idem, p. 191.
18
Ora, a velhice eleita por Gil Vicente não é aquela que representa uma classe
aristocrática, mas justamente os impedidos de qualquer ascensão social,
excetuando-se, talvez, o Doutor Justa Maior, personagem da Tragicomédia
Floresta d‟Enganos, texto também analisado no capítulo 3. Possivelmente a fraca
influência da Commedia dell‟arte na obra vicentina tenha deixado de fora
personagens-tipos como Pantaleão e Doutor
8
, muito mais ligados à tipologia
referida pela ensaísta.
Se a literatura do século XVI não deu muita importância à velhice,
continuando o silêncio observado na Idade Média, parece-me sobremaneira
importante atentar para os velhos de Gil Vicente que, embora poucos, fazem parte
de um teatro que sempre nos quer dizer alguma coisa. E é pela relação entre o
senex e o jovem, entre o passado e o presente, que os costumes da sociedade
portuguesa podem ser observados com bastante clareza. A outorga de poder do
Deus Pai ao Deus Filho sempre parecerá, em termos simbólicos, o anúncio (ou o
desejo) de um novo mundo.
Por fim, também considero que o tema da velhice enamorada é um elogio a
algo que habita em mim; ao grande prazer que tenho em constantemente acercar-
me dos velhos da minha vida (sejam eles escritores do passado, familiares ou
mestres); gente mais sábia do que jamais poderei ser enquanto a juventude ainda
limitar meu olhar. Por isso, optar pelo tema da velhice foi também para mim,
resgatando o comentário de Bernardes, uma decisão de caráter emocional.
8
Os dois bufões magistralmente tipificados pela commedia dellarte costumam ser apresentados
como mercadores aposentados dos negócios, ora ricos, ora pobres, chefes de família ou mesmo
solteirões, sempre avarentos como na Aululária plautina, e constantemente enamorados de jovens
donzelas (Pantaleão); ou como um pedante e estúpido velho que acredita deter o saber, como é o
caso do petulante Barão Sigismundo de Kernoberg, da peça Lição de Botânica, de Machado de
Assis (Doutor).
19
Para esta pesquisa, no que diz respeito ao texto vicentino, optei pela edição
de Marques Braga, publicada pela Sá da Costa editora
9
, mas não deixei de
consultar outras importantes edões como forma de realizar uma criteriosa
avaliação dos versos de Gil Vicente aqui citados, entre elas As obras de Gil
Vicente, sob direção científica de José Camões
10
; a antologia de Cleonice
Berardinelli
11
; a edição crítica de Segismundo Spina
12
; a edição eletrônica também
coordenada por José Camões, pela qual pude ter acesso aos originais da
Copilaçam
13
; e a edão de Maria Leonor Carvalhão Buescu
14
. No caso dos textos
de outros autores, indicarei em nota de rodapé as edições utilizadas.
Para concluir estas considerações iniciais, seria oportuno comentar o título
da investigação. Ao revelar-nos que morrer é acabar / e Amor não tem saída, o
Velho do Auto do Velho da Horta evoca a tópica lírica tão explorada pelos grandes
poetas quinhentistas. Absolutamente imerso nos conceitos petrarquistas da lírica
amorosa em voga cujos excessos serão satirizados na Tragicomédia Romagem
dos Agravados , nosso senex figura na obra vicentina como um apaixonado que
se debate nas teias das contradões semelhantes àquelas que aflingiram os
grandes poetas da Renascença. E esta atmosfera amorosa também poderá ser
9
VICENTE, Gil Obras completas Edição, prefácio e notas de Marques Braga. Lisboa: Sá da Costa,
1944, 6vol. Tendo em vista que a presente investigação não tem caráter filológico ou ecdótico, optei
por esta edição das obras de Gil Vicente, que, de todas, é a que apresenta melhor pontuação,
facilitando a leitura do texto vicentino.
10
VICENTE, Gil As obras de Gil Vicente. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2002, Vol.1
e 2. Embora esta edição seja a mais atual, resolvi não citar os versos vicentinos por ela, tendo em
vista as normas de transcrição do texto adotadas. Jo Camões propõe uma série de
modernizações na ortografia, com as quais concordamos, mas o interfere na pontuação dos
versos, optando por seguir, de maneira geral, as lições da Copilaçam.
11
BERARDINELLI, Cleonice Antologia do teatro de Gil Vicente Seleção, introdução, notas e
glossário de Cleonice Berardinelli. 3ª. Ed. Rio: Nova Fronteira / Instituto Nacional do Livro, 1984.
12
SPINA, Segismundo. Gil Vicente O velho da Horta, Auto da Barca do Inferno e Farsa de Inês
Pereira. Introdução, comentários e estabelecimento de texto de Segismundo Spina. São Paulo:
Ateliê Editorial, 2000.
13
Fundamental para pesquisas livre, com opção de metacaracteres, e bem apanhada de material
visual, além das edições facsimiladas da Copilaçam de todas las obras de Gil Vicente e dos autos
que circulavam em folhetos. (VICENTE, Gil. Todas as obras, sob direção de José Camões, ed.
eletrônica, s/d).
14
VICENTE, Gil Copilaçam de todalas Obras de Gil Vicente. Introdução e normatização do texto de
Maria Leonor Carvalhão Buescu. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1983.
20
sentida nos demais textos aqui trabalhados e em sua obra de modo geral, o que
assegura ao nosso dramaturgo o lugar inequívoco de poeta de grande engenho,
afinado culturalmente com os ditames da arte na Europa de seu tempo e estudioso
da tradição literária, pela qual demonstra grande respeito. Os jogos alusivos que Gil
Vicente realiza com outros textos deixarão isso bastante evidente.
O que quero fazer notar nesta investigação, que pretende oferecer
contribuições para estudos da rica vicentina, é que o Amor trará sempre em si a
imagem típica do Renascimento de um saboroso cativeiro (ou “capela
hermética, como o nomeia Segismundo Spina): embora ofera portas de entrada,
não poderá nunca disponibilizar uma saída.
21
2. Imitatio e Transformatio: do lírico ao dratico
O imitar é congênito no homem (...)
e os homens se comprazem no imitado
15
Tendo em vista o objetivo geral desta investigação percorrer e analisar a
velhice enamorada à luz da obra de Gil Vicente, realizando um estudo comparativo
com os demais textos ibéricos que se aproveitaram do tema e indicando sua
recorrência nos séculos seguintes consideramos fundamental uma recuperação
dos estudos até agora realizados sobre o lirismo vicentino, já que o enamoramento
dos velhos nos autos de nosso autor é apresentado, na maioria das vezes, a partir
de proposões líricas que remetem, sem sombra de dúvidas, à tradição poética,
quer italiana, quer ibérica, de textos modelares, considerando também autores
bastante coetâneos.
Para tanto, será necessário encontrar a matriz desse lirismo, basicamente
orientado pelas estratégias de imitação que compõem os jogos alusivos de todo
tempo e, em especial, do século XVI. Por este caminho, pretendemos demonstrar o
valor imitativo da poesia portuguesa que, se se realiza de modo engendrado com a
prática da transformatio, muito maior será esta quando da transposão dos temas
do gênero lírico ao campo da arte teatral.
Por isso, vale traçar, como ponto de partida, considerações sobre o caráter
subversivo do lirismo, entendendo as características genológicas dessa prática
literária em confronto com a sua teoria para, então, buscar nos versos de Gil
Vicente essa ars imitandi absolutamente transformada para servir aos propósitos
de sua ideação dramática. Neste sentido, teremos claro o quanto na prodão
15
ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Souza. Porto Alegre: Globo, 1966, trecho 13.
(grifos nossos)
22
vicentina se consubstancia a lírica tradicional na elaboração de um repertório capaz
de, ao mesmo tempo, superar todos os seus modelos no plano da dramaticidade e
agradar a corte pelo resgate de uma poética reconhecidamente exemplar.
2.1 Lirismo, subvero e imitação: um ponto de partida
Considerando a tradição literária, utilizamos o termo Lírico como uma
categorização. E em se tratando de poesia, o problema das categorias
classificatórias é que nenhum significante pode ser suficientemente pleno para
nomear/aprisionar algumas particulares apropriações da linguagem; nenhum
sistema de teorização consegue sustentação definitiva. A inscrição do Lírico é,
logo, inequivocamente da ordem da subversão e está, como veremos, atrelado ao
conceito de imitação. Subversivo pela indefinição de seus sempre difusos limites;
imitativo pela sua natureza de composição.
Um breve olhar sobre a ctica do Lirismo pode nos ajudar a compreender e
ampliar essas questões. Para tanto, consideremos três grandes momentos coesos
no tocante à compreensão teórica do fazer poético: da tradão clássica ao
Classicismo, que de fato nos interessa nesta investigação; o frescor do
Romantismo diante dos postulados daquele movimento que há séculos era
entendido como aristocrático e do qual se afasta e se aproxima; e a negação dos
postulados, até então erguidos pela tradição literária, feita pelos modernistas,
conferindo novo estatuto à palavra graças à avaliação crítica do percurso do
gênero ao longo dos tempos. Comecemos do mais recente ao mais antigo,
realizando o caminho inverso da evolução do lirismo mesmo porque nosso foco
23
principal é o século XVI para nos determos com mais apuro nas questões que
dizem respeito ao Renascimento.
A poesia moderna e sua teoria, que compõem o terceiro momento de
análise, são marcadas por um posicionamento crítico em relação ao Simbólico,
cuja linguagem, matéria-prima do fazer artístico, é a sua principal representante.
Desencantado e incrédulo, o poeta moderno, em seus textos, busca uma nova
forma de se relacionar com o Real, seja ela objetiva ou subjetiva, escapando às
teorizações mais abrangentes e exigindo tratamento particularizado do ponto de
vista da linguagem e do que propõe ao leitor, dado o grau de variações técnico-
formais (incluindo aí a negão de pressupostos técnicos) em que exercita o seu
mister. É curioso observar que o caráter da poesia moderna começa a ser
delineado a partir da experiência da cidade, tal qual a prática grega a partir e ao
redor da polis.
Rimbaud, Mallarmé, Valéry, e mesmo um Pessanha, um Cesário, um
Pessoa, um Sá-Carneiro, são exemplos da inviabilidade de construção de um
aparato teórico que dê conta de todos os seus peculiares trabalhos com o
Simbólico. É, portanto, um lirismo de caráter subversivo, pois inviabiliza uma
categorização única para todos os casos, mas talvez esse nível de subversão seja
bastante evidente desde as vanguardas revolucionárias que, a despeito de
Marinetti, mantiveram a imitatio, e não poderia ser diferente, mesmo que para
realizar uma completa transformação da arte. A imitação, como veremos, é
característica intnseca do fazer literário. Afinal, o novo só se impõe em confronto
com a referencialidade trazida pelo antigo e isso pode explicar a existência de
Platão e Virgílio dentro das máquinas do futurista Álvaro de Campos, por exemplo.
Vejamos, portanto, o outro momento no que diz respeito à evolão crítica do
24
lirismo: a revolão literária proposta pela burguesia em termos estéticos e
ideológicos.
Ora, foram os Românticos que abriram caminho para a modernidade
compreender o lirismo a partir de uma perspectiva histórico-social, mesmo porque,
diante das grandes revoluções propaladas e levadas a cabo nos séculos XVIII e
XIX, o poeta buscou re-configurar a sua função e, portanto, a fuão da poesia na
nova sociedade s-aristocrática. Também neste período o lirismo tem caráter de
discurso subversivo, avesso, pois, às teorias setecentistas, e não poderia aparecer
desvinculado de sua natureza imitativa, ainda que o princípio da originalidade tenha
tentado isentar o artista de todo o referencial anterior que compunha o seu gênio.
São os melhores textos líricos da época os testemunhos inquestionáveis disso e
também a crítica lançou, desde aquela época, tentativas gerais de compreender o
lirismo de maneira orgânica.
Hegel desenvolve aspectos da subjetividade
16
, Wordsworth teoriza sobre a
espontaneidade
17
, Coleridge fala de harmonia e de coerência métrica
18
. Até Allan
Poe arrisca o argumento da brevidade
19
. Todas essas abordagens, contudo, o
foram capazes de dar conta do fenômeno lírico. Salete de Almeida Cara, em seu
introdutório e importante levantamento, comenta a dificuldade de se tratar o lirismo
como um sistema fechado de regras, dando respaldo ao que estou chamando aqui
de subversivo. Diz a autora que
podemos afirmar que esses traços estilísticos, nascendo
principalmente do ritmo e da melodia, já mal caberão em
16
HEGEL, G. W. Friedrich Estética. trad. Álvaro Ribeiro e Orlando Vitorino, Guimarães Editores,
Lisboa, 1993.
17
WORDSWORTH, W. “Preface to Lyrical Ballads”. In Wordsworth. Poetry & Prose. Oxford: Oxford
University Press, 1960, pp. 150-176.
18
Ver principalmente o texto “Balada do velho marinheiro”, in COLERIDGE, S. T. Poemas e
excertos da biografia literária. Introdução e notas de Paulo Vizioli. Nova Alexandria, s/d
19
POE, Edgar Allan. Poetry and Tales, New York: The Library of America: ed. P. F. Quinn, 1984.
25
qualquer classificação: é só ver que, ao ler a “Canção
noturna do viajante, de Goethe, (...) Staiger precisou curvar-
se ao texto do poeta, único, irrepetível e, nesse sentido,
inclassificável
20
.
O primeiro momento já referido para compreender a evolução crítica do
lirismo, no qual estão contidos os princípios da Antiguidade Greco-latina e sua
respectiva imitação pelo Renascimento debate que de fato pode contribuir para
esta pesquisa , funciona como testemunho ab ovo do caráter subversivo do
gênero, tendo em vista que o próprio Aristóteles, em sua Poética, parece não ter
conseguido estabelecer definições precisas para o rico, optando assim por uma
abordagem consideravelmente vaga do assunto, talvez pela grande variação
métrica que não permitia a formulação de um enquadramento relativamente coeso
que pudesse dar conta de suas especificidades.
Para Gustavo Guerrero, em seu importante estudo intitulado Teorías de la
Lírica, o silêncio de Aristeles sobre o lirismo pode levantar uma série de
conjecturas, entre elas a especulação de que o para sempre perdido segundo livro
da Poética guardaria considerações sobre o gênero, ou mesmo um indicativo da
escassa sensibilidade literária do estagirita
21
. Para Guerrero,
Semejante laguna sorprende en un tratado dedicado a los
diferentes géneros de poesia y en la trayectoria de un
pensador que há sabido hallar una enseñanza valedera y
durable en los versos de los melopoioi, como podemos
comprobarlo en otros escritos suyos y, en especial, en la
Retórica.
22
Também Horácio deixou registrada a sua Ars Poetica na famosa Epístola
aos Pisões, cuja influência na Época Moderna, juntamente com o texto de
20
CARA, Salete de Almeida. A poesia lírica. São Paulo: Ática, 1986, p. 56
21
ainda os que defendiam que o lirismo tradicional haveria desaparecido no século IV antes de
Cristo, transformando-se em uma arte estritamente musical ou mesmo em um difuso gênero da
retórica (Cf. ELSE, G. F. Aristotle‟s Poetics: the Argument, Harvard, 1957, p. 15)
22
GUERRERO, Gustavo. Teorías de la Lírica México: Fóndo de Cultura Económica Lengua y
estudios literários, 1998, p.28)
26
Aristóteles, parece assentar-se em princípios mais ou menos semelhantes, como a
mímesis e a catarse. Afinal, ao realizar a sua ut pictura poesis na Epístola, Horácio
segue o princípio da imitação apontados no texto aristotélico, aproximando poesia
e pintura pela natureza imitativa de suas práxis. Os dois autores, entretanto,
ocupam-se quase que exclusivamente dos aspectos concernentes à épica e ao
drama, passando ao largo do gênero lírico, certamente porque à mímesis estava
articulada a natureza do personagem da ação, muito mais afeito à narrativa do
que ao lirismo.
No que diz respeito ao caráter imitativo, a poesia latina foi determinante na
produção do Renascimento europeu, emborao tenha sido a única literatura
aludida pelos nomes da Renascença. Virgílio aparece, pois, como o vate mais
digno de ser imitado que o próprio Homero e, portanto, autor de uma literatura
exemplar, embora aquele tenha inequivocamente realizado a imitatio deste. O
próprio Escalígero
23
refere-se ao poeta latino como divinos. No segundo capítulo do
Livro V, Escalígero alça Virgílio ao patamar de sagrado, dando à arte um valor de
imitação pela baseada em uma espécie de ontologia necessária. Antônio Maria
Melo, ao comentar a obra de Escalígero, atenta para a
superioridade de Virgílio relativamente a Homero. O vate
mantuano, só ele, é o melhor entre todos, logo com valor
idêntico a todos e a cada um deles. Homero espalhou, Virgílio
juntou; aquele dispersou, este reuniu. Por isso, Homero,
23
O humanista Júlio César Escalígero (1484-1558) pode ser considerado o modelo do sábio
renascentista, quer pelas frontais divergências com Erasmo de Roterdão, quer pelas obras de
exponência intelectual que deixou, como a De Causis Linguae Latinae, considerada a primeira
proposta de uma gramática entendendo o latim de modo científico. Seu principal estudo sobre
literatura é, talvez, o chamado Livro VI. Nele, encontramos como em nenhum outro testemunho
literio um vasto mero de poetas referidos, de obras analisadas e, principalmente, um variado
vocabulário crítico muito bem utilizado. Analisa as qualidades de obra poética a partir imitação e do
juízo crítico (porque era preciso reconhecer o valor do imitado) desde a Antiguidade até o século
XVI. Para maiores informações sobre a importância do Livro VI, indicamos o trabalho de Arnaldo
Espírito Santo, intitulado “Crìtica, teorização e história literária no Hypercriticus de
Escalìgero.Subsìdios para uma introdução ao livro VI”. In: Ágora. Estudos Clássicos em Debate 9,
Aveiro: Universidade de Aveiro, 2007, pp. 257-277.
27
quando nos ensinou dois modelos da nossa vida, a destreza
política na Odisia e a militar na Ilíada, haveria de os exibir
como duas características em dois varões; Virgílio a ambas
juntou num único Eneias...
24
Para além da divinização de Virgílio feita por Escalígero, vale considerar que
a influência latina no Renascimento europeu é ainda anterior à grega, tendo em
vista que, considerando as pticas disponíveis naquele período, somente a partir
das primeiras cadas do século XVI é que a teorização aristolica aparece
referida. A orientação do fazer poético na literatura renascentista é, portanto,
basicamente horaciana e a literatura de Virgílio, não restam dúvidas, aparece como
modelo primeiro, mas não único, da imitatio, uma variação, por assim dizer, da
mímesis aristotélica.
Não nos parece necessário, para o que pretendemos, realizar uma análise
das dissociações entre os termos mímesis e imitatio, mesmo porque essa
discussão se poderia estender a limites que pouco contribuiriam de maneira efetiva
ao interesse desta pesquisa sobre a velhice enamorada à luz da obra de Gil
Vicente. De modo geral, a mímesis estabelece uma relação entre as artes como
um todo e o mundo, enquanto a imitatio, que nos interessa, é construída pelo
aspecto relacional entre uma obra literária e outra(s) obra(s). Luiz Costa Lima
continua a ser referência primeira no debate sobre esses conceitos. Em um de
seus estudos, encontramos, já no primeiro capítulo, a complexidade desafiadora
que o conceito de mímesis ainda nos impõe hoje:
Enquanto sujeita a uma expectativa interna, a mímesis
aristotélica não poderia ser normativa, pois, embora eleja e
aconselhe topoi, ao tomar o terror e a piedade como partes
indispensáveis do efeito trágico, implicitamente descarta a
eficiência de uma fórmula para alcançá-los; enquanto impõe
24
MELO, António Maria Martins “A glória do divino Virgìlio: linhas de leitura para uma compreensão
do Livro V, o Crítico in: Ágora. Estudos Clássicos em Debate 9, Aveiro: Universidade de Aveiro,
2007, p. 237.
28
tortuosa e áspera estrada, exige a capacidade inventiva, tanto
do artista como do receptor. Ora, pelo menos desde o
Renascimento, a mímesis, entendida como imitatio, se tornou
explicitamente normativa. Cabe perguntar se para isso não
contribuiu decisivamente a distoão a que foi submetido o
papel da verossimilhança.
25
De qualquer modo, nem Aristóteles nem Horácio conseguiram explicar com
clareza a natureza imitativa da arte, abrindo a possibilidade de entender o Gênero
Lírico como da ordem da subversão, afinal observamos constantemente o
afastamento entre a teoria sobre a Lírica e a prodão que dela se vale. Maria
Lucília Pires resumiu com bastante propriedade essa questão ao dizer que
o texto teórico traça geralmente um ideal, um modelo perfeito,
num discurso de comedimento que busca o equilíbrio entre
foas em tensão. Mas o texto literário é, quando muito, a
realização contingente desse modelo; é muitas vezes a
quebra do equilíbrio ou a clara violão do ideal trico.
26
Talvez por isso a poesia lírica tenha chegado ao Renascimento sob a
inscrição da ambiguidade. Some-se a isso que, se a tradição clássica de Homero,
com Píndaro, Safo e Mimnermo, por exemplo, e de Virgílio, com Lucrécio e Odio,
concebiam uma relão intrínseca entre texto e música, sua dimensão oral, depois
de Gutemberg o caráter da palavra escrita assumiu contornos que desvinculavam,
pela primeira vez, o fazer poético de seu universo, reorientando os princípios
formulados e imitados de acordo com os condicionantes temporais.
É pelo fato de que todo gênero literário es sujeito a variações de tempo e
espaço que o Renascimento, ao recuperar os ensinamentos de Aristóteles e
Horácio, optou por uma leitura já transformada, entendendo que esses dois
25
COSTA LIMA, Luiz. Mímesis: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilizações Brasileiras,
2000, p.39
26
Embora seu estudo seja especificamente sobre a poética barroca, o que observamos é que o
gênero lírico, sua teoria e sua prática literária, nunca foram, nesta época e também no
Renascimento, categorias completamente gidas. PIRES, Maria Lucìlia. “Da poética barroca” In:
M.L.P., Xadrez de Palavras. Lisboa: 1996, p.15
29
baluartes do pensamento literário ofereciam uma visão um tanto normativa e/ou
preceptiva do gênero lírico (que é perfeitamente posvel de depreender-se da
Poética ou da Estola aos Pisões). Por isso o entendimento de Lírico, no
Renascimento, sublinha de modo determinante o princípio da imitão, conferindo
à poesia um lugar normativamente determinado. Foi o período de nossa literatura
escrita que mais testemunhos ofereceu sobre a conceituação dos gêneros
literários, dando à crítica moderna um importante campo de interesse. Diz Guerrero
que
los hombres del Renascimiento, que harán de la teoria
genérica una obsesiva paráfrasis de la Ptica, si tendrán que
enfrentearse con las limitaciones del tratado y, em especial
con este silencio de Aristóteles que (...) de convertirse en
un punto clave en la elaboración renascentista del concepto
depoesia lìrica.
27
Embora o Renascimento tenha sido o momento mais fecundo para a crítica
genológica, temos como certo que pelo menos até o século XIX a abordagem
da literatura seguiu também basicamente vinculada à noção de gênero, ainda que
esta mesma noção não possa ser, como nunca pôde, considerada de modo o
enrijecido. A poesia sempre guardará alguma subversão. Não há, contudo, melhor
tempo para investigar os princípios que regiam a arte poética do que no
Renascimento, quando a imitatio e a transformatio eram defendidas e praticadas
quer na teoria quer na prática da poesia. Sobre esse “determinismo genológico,
digamos assim, Victor Manuel de Aguiar e Silva já discorreu com bastante
propriedade:
Na prática e na teoria literárias do Renascimento tardio,
sobretudo após a difusão da Poética de Aristóteles e a sua
combinação, ou fusão, com a Epístola aos Pisões de Horácio,
a doutrina dos géneros literários alcançou um
27
Idem, p. 32
30
desenvolvimento, uma sistematicidade e uma minúcia que
transformaram, até o advento do Romantismo, num dos
factores mais relevantes da metalinguagem do sistema
literário.
28
Foi, em grande parte, gras a esta leitura de Aristeles e Horácio que a
poesia do Renascimento europeu, de modo geral, se orientou por um sistema de
normas estéticas e morais formuladas inicialmente pela imitatio italiana desses
modelos, sua vertente latina, determinante para o caso português, e pela francesa
dos séculos XV ao XVII, abaladas apenas com a Revolão Romântica no século
XVIII e XIX (claramente conduzida contra os modelos rígidos da arte em geral) e
reelaboradas pelos modernistas na virada do século XX.
Não percamos de vista, entretanto, que aquela tradição literária da
Antiguidade aludida pelo Renascimento havia sofrido modificações durante a Idade
Média
29
, gerando, deste modo, em Portugal, uma rede de influências que
corresponde à literatura greco-latina, italiana e ibérica. Vanda Anastácio afirma com
segurança que
Das poéticas e dos hábitos herdados de épocas anteriores, os
autores aproveitaram sobretudo o conceito central da
imitação, e é a partir dele que constituirão o intricado sistema
que é o do lirismo do renascimento. Assim, o que se verifica
na prática é que a produção poética é regulada por uma
tradição, constituída por textos selecionados de uma panóplia
de „bons autores‟, que no caso português inclui obras de
poetas greco-latinos, autores da área italiana, e autores
peninsulares anteriores. Esta postura é vivel nas reflexões
feitas, não por aqueles que se preocupam em regular a
prática poética, mas por aqueles que a ela se dedicam.
30
28
AGUIAR E SILVA, Victor Manuel. Os Gêneros Literários, Teoria e Metodologia Literárias. Lisboa:
Universidade Aberta, 1990, p. 110
29
Lembremos que Dante problematizara o estilo em modalidades: nobre (épico), médio (trágico) e
humilde (lirismo). Sabemos, contudo, que os matizes medievais impressos na tradição não
oferecem ao Renascimento apenas orientações concernentes aos gêneros literários, mas também
postulados de ordem ideológica, estética e temática que serão, evidentemente, lidos à luz do
Humanismo.
30
ANASTÁCIO, Vanda. Aspectos da História dos Géneros Líricos (sécs. XVI e XVIII) In:
www.vanda-anastacio.at/articles, 2005, p.2 (acessado em 3 de setembro de 2009).
31
A poesia provençal, neste sentido, foi de extrema importância na
reorientação de traços musicais, ainda que modestos se os compararmos ao
modelo grego, legados da tradão lírica ao lirismo do Renascimento. Mesmo que
aquelas notões se tenham perdido, o texto guarda musicalidade tão latente que é
impossível pensá-lo, pelo trabalho com a palavra, desvinculado da execão
musical.
O que pretendemos com este percurso é problematizar e descristalizar o
conceito de lirismo, ampliando-o para além das enrijecidas categorizações, já que
isso será indispensável para compreender a abordagem que daremos a este
aspecto em Gil Vicente: o Lírico não apenas como substantivo que nomeia um
gênero, mas principalmente como um adjetivo que orienta uma atitude para além
de quaisquer bases modais. Afinal, como nos ensina José Augusto Cardoso
Bernardes,
... o lirismo vicentino não deve ser avaliado de forma
seccionada: sem se ter em conta a sua inseão no modo de
representação dramática que lhe condiciona o alcance, sem
ser considerado na sua diversidade temática e enunciativa e,
por último, sem ser colocado num plano de correlação
dinâmica com os outros princípios estéticos-ideológicos que
integram a obra do autor.
31
Devemos, pois, como contribuição ao incontornável estudo de Bernardes,
acrescentar que os estudos sobre o lirismo vicentino devem levar em conta os
variados textos com os quais o autor constrói um dinâmico jogo alusivo,
característica de relevo do fazer poético dos humanistas e que ganhará foa com
o desenvolvimento dos postulados petrarquistas, dos quais de Miranda,
Camões e António Ferreira são seguidores mais fiéis do que o próprio Gil Vicente.
31
BERNARDES, José Augusto Cardoso. Sátira e Lirismo Modelo de síntese no teatro de Gil
Vicente. Universidade de Coimbra. Tese de Doutoramento.1995, p. 483.
32
Isso não significa, contudo, que nosso dramaturgo não fosse sensível à
recuperação de textos para a construção de uma literatura exemplar, mesmo
porque sabemos que toda obra é um mosaico de citações.
Nesse sentido, vale lembrar que, se por um lado Bakhtin nos ensina que
todo texto é um cruzamento de textos onde se lê pelo menos um outro texto
32
, e se
Kristeva, que cunhou o termo intertextualidade, segue a mesma linha de análise
33
,
ambos relacionando as alusões ao estatuto da literatura, independente da vontade
do autor, Conte, em contrapartida, compreende o jogo alusivo como um aspecto
do caráter sistemático da composão, sugerindo o controle do escritor
34
. De uma
ou de outra forma, entretanto, todo texto apresenta, voluntaria ou
involuntariamente
35
, alusões a outros anteriores ou mesmo contemporâneos
36
e
este aspecto deve fazer parte da abordagem do lirismo vicentino. Toda essa prática
alusiva, no Renascimento, transforma os gêneros literários, e o gênero lírico em
particular, em espaços operativos cujas fronteiras são instáveis
pois vivem, por um lado, numa permanente tensão entre essa
tradição, modelar herdada do passado que funciona como
32
Sugerimos o magnífico trabalho de Bakhtin sobre Rabelais como ponto de partida (BAKHTIN,
Mikhail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais.
o Paulo: Hucitec, 1999), tendo em vista que, embora o teórico russo tenha sido o primeiro a
levantar questionamento sobre as relações intertextuais, seus trabalhos giraram exclusivamente em
torno da obra de Rabelais e Dostoiévski. Para o estudioso, nenhum texto pode existir sem a
existência de outro, quer por atração, quer por rejeição. Bakhtin abriu, com isso, o campo de
investigação para outros teóricos ampliarem o conceito de dialogismo, como é o caso de Julia
Kristeva.
33
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. 2ª Ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. Também
sugerimos o estudo de Edmunds, que analisa o trabalho de Kristeva (EDMUNDS, Lowell.
Intertextuality and the reading of Roman poetry. Baltimore: Johns Hopkings University Press, 2001)
34
CONTE, G. B. The Rhetoric of imitation. Ithaca and London: Cornell University Press, 1996, p. 26
35
Umberto Eco parece oferecer-nos importante material de reflexão ao comentar sobre o “intérprete
paranóico”, leitor que se questiona constantemente sobre os motivos encobertos que levam
determinado autor a realizar um jogo alusivo, não considerando a involuntariedade de tal referência,
produzindo assim uma leitura tendenciosa e que segue os caminhos que mais interessam ao
próprio leitor (ECO, Umberto. Interpretão e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2005).
36
Vale lembrar o poema de Pero de Andrade Caminha sobre a imitação de António Ferreira: “A
imitação tem sua autoridade / Em seguir o antigo e escolhido. / Ganha assim melhor nome e
gravidade, / E com rao lhe é mais louvor devido. / Mas se alguém se igualar à antiguidade, / Por
que imitado o será e seguido? / Eu a meu Ferreira sempre imito / Igual em tudo a todo antigo
esprito.” (cf. HUE, Sheila Moura (org.). Antologia de Poesia Portuguesa Século XVI Camões
entre seus contemporâneos. 2ª edição. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007, p.60)
33
uma escie de memória do sistema e os elementos
adquiridos ao longo da prática e, por outro, de tentativas de
conciliação entre modelos locais incorporados, nestes
elementos tomados das culturas prestigiadas em cada
momento histórico.
37
Sendo assim, na esteira das alusões textuais que compõem um diversificado
repertório lírico recuperado por Gil Vicente e por ele transformado para servir aos
propósitos teatrais, comentemos as estratégias emulativas
38
engendradas pela
imitatio e pela transformatio. Acreditamos que este caminho nos permita
compreender, primeiro, o sensível sentido que o termo Lírico ganha em Gil Vicente,
aglutinado harmonicamente no discurso teatral, para, nos capítulos seguintes,
podermos realizar uma leitura particularizada desse lirismo a partir da análise da
velhice enamorada em seus autos.
Mas, antes de tudo, detenhamo-nos um pouco no que diz respeito à matéria
imitada e à natureza da imitação. Comecemos por apontar que todo autor que
assenta sua produção sobre a égide da imitatio oferece aos demais o
reconhecimento de seus predecessores, indicando também a tradição à qual se
encontra filiado. E assim o faz ao tomar por empréstimo versos inteiros ou parte de
versos, bem como temas específicos que, ao atingirem o leitor/espectador, se farão
reconhecer no processo de recriação e transformação.
A essa Ars imitandi, que apresenta pelo jogo alusivo um processo
intertextual dinâmico, devemos acrescentar o caráter emulativo que acompanha a
prática da imitatio. Ora, é na alusão a determinados poetas que encontramos não
uma cópia servil do imitado, mas a estratégia de superação dos modelos elegidos
como forma de aperfeiçoar-lhe algum aspecto ou mesmo lhes corrigir o que se
37
ANASTÁCIO, idem, p. 4
38
O conceito de aemulatio não diz respeito apenas à de superação do modelo, mas também à ideia
de homenagem àquele que o poeta admira, como veremos adiante.
34
entende como defeito. O poeta não pode, por isso, condenar-se a escravo de seu
exemplo. O conceito de aemulatio, nesse sentido, próximo à zelosis grega, e a
prática da imitatio, cuja correspondência é a mímesis de Aristóteles, fazem parte do
mesmo processo alusivo que compõe as relações intertextuais na literatura de
todos os tempos e que tem matrizes extremamente bem vincadas no
Renascimento. Russell explica que
os dois [aemulatio e imitatio] sempre se complementam; o
processo que eles denotam pode ser bem ou mal feito, e a
diferença não reside em mais ou menos mímesis ou mais ou
menos zelosis, mas na escolha do objeto, na profundidade do
entendimento e no poder do escritor de tomar posse do
pensamento para si mesmo
39
.
Como realizar, portanto, a escolha do objeto a ser aludido na representação
literária e como proceder no jogo intertextual para não construir efeitos indesejados
na recuperação do texto exemplar
40
? Primeiramente o objeto deve ser digno de
imitação e, com isso, a intenção surge como forma de homenagear determinado
modelo, embora também seja possível parodiar um verso ruim a partir do jogo
alusivo
41
. Também o poeta deve basear sua imitatio muito mais “no espìrito do que
na letra”
42
, o que favorece o “confronto estilìstico com o modelo
43
. Diante de uma
39
RUSSELL, D. A. De imitation in: WEST, David & WOODMAN, Tony Criative imitation and Latin
Literature. Cambridge: Cambridge University Press, 1979, p.1
40
Gennette é enfático ao dissociar três diferentes estragias intertextuais. Para o crítico, uma
grande diferença entre citação, plágio e alusão. A primeira, mais explicita e literal, pode acompanhar
o uso de aspas ou mesmo dispensá-las. A segunda, “menos explìcita e menos canônica”, é um
empréstimo ainda literal e jamais declarado. a alusão é “uma forma ainda menos explìcita e
menos literal (...), um enunciado cuja plena compreensão supõe a percepção de uma conexão entre
ele e um outro ao qual remete” (Cf. GENNETTE, rard. Palimpsestes la littérature au second
deg. Paris: Seuil, 1982, p. 8)
41
Normalmente a correção é feita pelo viés satírico, como observaremos na análise do Auto do
Velho da Horta. Embora saibamos que o processo de imitação siga uma complexidade que exclui
reduções, vale aqui recuperar as palavras de Afonso Romano de Sant‟Anna que, embora aborde a
questão de forma simples, mas o redutora, apresenta um argumento bastante sensível no que diz
respeito às recuperações e alusões textuais. Diz o escritor que “a paródia deforma, a paráfrase
conforma e a estilização reforma”. (SANT‟ANNA, Afonso Romano Paródia, paráfrase & Cia. ed.
o Paulo: Ática, 2001, p. 41)
42
VASCONCELLOS, Paulo Sérgio. Efeitos intertextuais na Eneida de Virgílio. São Paulo:
Humanitas, 2002, p. 36.
43
Idem, p. 37
35
imitação, para além do objeto, o público leitor também deverá reconhecer o modelo
aludido, sancionando, ou não, o valor daquele empréstimo, afinal, a alusão só
completa o seu sentido primeiro no reconhecimento que faz dela o
leitor/espectador. A imitatio, ainda, estará sempre ligada ao conceito de
transformatio, já que o objeto imitado deve ser recriado a partir de um tratamento
individual que contemple o novo contexto de que faz parte, bem como os
propósitos daquela alusão. Sobre isso, Vasconcellos nos ensina que
...a operação intertextual jamais pode ser neutra, isto é,
sempre cria novos sentidos que se sobrepõem ou contrastam
com o do original reproduzido ou evocado. As formas de
tratamento do material “tomado emprestado” são múltiplas (...)
e nem sequer podem ser catalogadas de modo esquemático
em sua totalidade, pois as possibilidades do jogo intertextual
são virtualmente ilimitadas
44
.
Por último, a imitatio deve evocar um sentido de competição com o modelo,
nomeado aemulatio, conforme dissemos. Embora não exista emulação sem
imitação, nem toda alusão pressupõe uma rivalidade. Como veremos em Gil
Vicente, muitas vezes o objetivo da prática alusiva pretende apenas provocar o riso
ao evocar um verso sério para, pelo exagero na maioria das vezes, construir
contextos cômicos.
No caso específico da velhice enamorada em Gil Vicente, poderemos
verificar uma articulação entre o senex, que representará os postulados da
tradição, dignos de se imitar ou parodiar em detrimento da juventude dos tempos, e
a sua face oposta, revelada quer pela jovem e formosa dama que lhe recusa as
investidas amorosas, quer pelo desejo de um tempo ditoso que não volta mais. De
todo modo, veremos que a alusão sempre fará referência a um texto e/ou contexto
ainda fresco no universo referencial do leitor/espectador no qual a alusão
44
Idem, p. 38
36
promoverá uma reorientação de sentidos. Será justamente nesse diálogo entre os
sentidos aludidos e os sentidos transformados que advirá o prazer da leitura
intertextual.
Antes de passarmos, contudo, à análise do senex em Gil Vicente, façamos
um breve inventário do jogo alusivo nos rios autos da Copilaçam para
compreender o aspecto lírico no autor e, com isso, a particular imitatio ali presente,
não apenas quando alude a um texto/contexto que lhe é anterior ou mesmo
coetâneo, mas também quando inaugura em Portugal um grau de intertextualidade
entre poesia e teatro, transformando proposões ricas do repertório ibérico e
italiano em argumentos da ação dramática.
2.2 Teatro, subversão e transformação: O jogo alusivo em Gil Vicente
Uma pergunta nos pode ajudar de saída: o que, ainda hoje, nos causa
interesse na produção vicentina? Não estaríamos errando ao afirmar que a obra de
Gil Vicente busca proporcionar ao espectador/leitor uma pintura dos sentimentos,
bons ou ruins, e dos estados interiores e exteriores dos homens (inclusive os do
próprio autor) a partir das matrizes culturais que caracterizam o povo ibérico, na
virada do século e das mentalidades. Esta atitude resulta primeiro num trabalho
etnográfico está claro o maravilhoso desfile de particularidades dialetais,
vestrio característico, crendices, costumes,... e depois num trabalho
psicológico, já que o autor, unicamente pela linguagem, consegue dar vida a tipos
que expressam sentimentos particulares. Tudo isso com uma flagrante naturalidade
37
capaz de evocar uma atmosfera lírica na mais despretensiosa experiência de
leitura. Lemos Gil Vicente na certeza de que lemos um Poeta tão completo que
consegue criar uma relação de continuidade e contiguidade entre a poesia e o
teatro, em lugar de simplesmente sobrepô-los.
É por isso, aliás, que os sequazes da chamada Escola Vicentina
45
não
tiveram o mesmo êxito que o Mestre justamente por não cultivarem o veio lírico em
seus versos, preocupados exclusivamente com a ação dramática. Essa ausência
de lirismo talvez tenha levado o gênero a um considerável declínio depois da morte
de Gil Vicente, que parece notória a modificação do discurso que se fazia sobre
a arte dramática no século XVII. D. Francisco Manuel de Melo, com sua Farsa do
Fidalgo Aprendiz, talvez tenha sido o melhor testemunho da manutenção do teatro
em língua portuguesa, embora bastante afastado do domínio cnico observado na
produção vicentina. Sequer nas composições de Anrique da Mota
46
, que ganhou
relevo no Cancioneiro Geral, podemos enxergar o notável caráter lírico observado
em Gil Vicente.
Contudo, o lirismo vicentino, ainda que seja uma vertente que venha
atraindo atenção especializada nas últimas cadas, se mantém como um assunto
45
O termo Escola Vicentina foi aplicado sem propriedade por Teófilo Braga. Conforme observam
Jorge de Sena e Salgado Junior, tal corrente de epigonia foi menos uma escola do que
propriamente uma formulação de época. Luciana Stegagno Picchio, em sua fundamental História do
Teatro Português, aliando-se à crìtica, diz que Gil Vicente vivia na Corte e ao seu serviço, [e] os
contemporâneos e epígonos fora”, o que o permitiria a formação de uma Escola. (PICCHIO,
Luciana Stegagno. História do Teatro Português. Lisboa, 1969, p.88)
46
Vale lembrar que o lugar que Anrique da Mota ocupa no Teatro Português ainda é controverso.
Luciana Stegagno Picchio coloca-o no capìtulo “Contemporâneo e epìgonos de Gil Vicente”
(PICCHIO, Luciana Stegagno. História do Teatro Português. Lisboa, 1969). Embora ambos tenham
escrito farsas, nero dramático mais cultivado no final da Idade Média e início do Renascimento, é
possível, pela estrutura menos elaborada dos textos de Anrique da Mota, considerar esse autor
como anterior a Gil Vicente, como fizera Neil Miller (MILLER, Neil T., Obras de Henrique da
Mota. As Origens do Teatro Ibérico. Lisboa: Sá da Costa,1982). José Oliveira Barata, em Invenções
e Cousas de folgar, a propósito da Farsa do Alfaiate, diz que “esse embrião farsesco encontrará
pleno desenvolvimento e dimensão estético-teatral em Gil Vicente, nomeadamente através do
„Velho da Horta‟ (BARATA, José Oliveira Invenções e cousas de folgar : Anrique da Mota e Gil
Vicente - introd., estabelecimento dos textos e sugestões de leitura de José Oliveira Barata.
Coimbra : Minerva, 1993, p.54)
38
modestamente tratado pela crítica. Stephen Reckert já havia posto o problema nos
seguintes termos:
Que Gil Vicente é o maior poeta dramático português de
todos os tempos, e que no dele (1465/ 70? - 1536/ 40) era
também o maior que até lá surgira na Europa pós-clássica, é
ponto assente. Menos geralmente reconhecido é o fato de se
tratar também de um poeta rico sem igual na própria língua
entre el-rei D. Dinis e Camões, ou na castelhana antes de
Garcilaso de la Vega
47
.
A maioria dos estudos sobre o lirismo vicentino fundamenta-se numa
perspectiva de base folclórica, como se verá, quer no sentido de orientar a
produção de Gil Vicente como um espaço dramático-operativo de possível
recuperação do repertório popular, quer considerando o caráter refundidor e,
portanto, autoral, de nosso dramaturgo. Em outras palavras, levando em conta uma
prática de alusão a textos/contextos presentes nos cancioneiros ibéricos e sua
utilização no plano do teatro. Sem dúvida este lirismo está presente de modo
vigoroso em nosso autor, mas não é no mero jogo alusivo que reside o interesse
desta investigação. Afinal, ao reportar-se às estruturas pticas medievais,
imitando-as, Gil Vicente se aproxima de uma realização lírico-dramática já
conhecida na Península Ibérica, especialmente verificada na produção pastoril de
Juan del Encina, ao passo que observado por seu caráter transformador desses
modelos aludidos nosso dramaturgo inaugura uma nova função operativa da
palavra ptica no campo da manifestação cênica. Não é, portanto, apenas o Pai
do teatro português, mas o patrono ibérico que verdadeiramente transformou, num
ato inaugural, a proposição lírica em teatro, utilizando, para isso, o jogo alusivo.
Opera-se uma dupla subversão: a primeira está ligada à própria essência do
47
RECKERT, Stephen. O Essencial sobre Gil Vicente. Lisboa: INCM,1985, p. 3
39
lirismo, sua imitação e transformação, seu afastamento dos ditames tricos, e a
outra, de vel mais profundo e original, associa, por contiguidade, Gênero Lírico e
Dramático.
Há ainda uma possibilidade de ler os textos de Gil Vicente em busca do
lirismo que marca nitidamente alguns autos, sobretudo as comédias e
tragicomédias (tendo em vista que este trabalho investiga a lírica amorosa) e que
está desvinculado das imediatas categorias de base modal verificadas na tradição,
indicando, pois, um processo alusivo mais complexo aos nossos olhos atuais,
afastados do tempo e da referencialidade de que se vestiam os versos do autor.
Para pensarmos, portanto, algumas questões ligadas à lírica vicentina,
comecemos pelo verso “Pois Amor o quis assi”, onde o sentimento amoroso,
poderoso em sua maiúscula forma, toma a frente do sujeito e organiza (ou
desorganiza) as venturas do homem. Poderia ser, claramente, uma linha
camoniana, pois a atitude de servidão aos ditames do Amor nos faz lembrar a
redondilha onde, em forma de carta, Camões se dirige à dama:
E quereis ver a que fim
em mim tanto bem se pôs?
Porque quis Amor assim
48
Trata-se, contudo, de um verso dos agravos de Colopêndio na Tragicomédia
Romagem dos Agravados
49
. Tudo indica, aliás, que Camões era um grande
48
Os versos citados fazem parte da redondilha “Querendo escrever, um dia,” (vv. 156-158). Os
textos de Camões citados nesta pesquisa seguirão as lições da edição de Maria de Lourdes Saraiva
(CAMÕES, Luís de. Lírica Completa. Prefácio e notas de Maria de Lourdes Saraiva. Lisboa:
Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1981, 3v).
49
“Pois amor o quis assi, / que meu mal tanto me dura, / o tardes triste ventura, / que a dor o
se doe de mi” (V, pp. 11-12). Os autos de Gil Vicente citados nesta pesquisa, conforme justificamos
nas considerações iniciais, seguirão as lições da edição da livraria Sá da Costa, sob organização do
professor Marques Braga (VICENTE, Gil. Obras completas. Com prefácio e notas do professor
Marques Braga. Lisboa: da Costa, 1944, 6 vols.) Doravante utilizaremos, pois, a referência desta
obra para os versos vicentinos (número do volume, seguido do número da página).
40
conhecedor das obras vicentinas, desenvolvendo ao gosto cortesanesco (ora pela
métrica velha, ora pela medida nova) as suas lições, como mostramos em outro
momento, especificamente sobre seu teatro
50
. Também na Lírica Camoniana
podemos encontrar um eco do lírico Gil Vicente, e o exemplo é do mesmo auto.
Quando falo, estou calado;
quando estou, entonces ando;
quando ando, estou quedado;
quando durmo, estou acordado;
quando acórdo, estou sonhando;
quando chamo, então respondo;
quando choro, entonces rio;
quando me queimo, hei frio;
quando me mostro, m‟escondo;
quando espero, desconfio.
51
Não seria este poema de Gil Vicente o texto que, fértil em seus paradoxos,
ajudou a lapidar o engenho camoniano?
52
Afinal, anos mais tarde, Camões
mostraria sua mais alta expressão em textos como “Amor é fogo que arde sem se
ver” (de semelhante aproveitamento dos paradoxos ao utilizar um verso partido em
duas idéias contraditórias
53
), ou em “Tanto de meu estado me acho incerto” onde,
50
BARROS, Luiz Fernando de Moraes Amores de uma bem-maridada: o auto dos Enfatriões entre o
lírico e o cômico Dissertação de Mestrado, UFRJ, 2004.
51
V, p. 12 o aproveitamento dos paradoxos é uma práxis bastante difundida naquele período.
52
Para o sermos mal compreendidos, logo na partida deste estudo, julgamos importante dizer
que o estamos obliterando toda a tradição petrarquista, em absoluto, na construção do gênio de
Caes ao “filiá-lo” à lição vicentina. Levantamos apenas a hipótese, jamais contestada por
nenhum estudioso (mas que por força da ausência de testemunho pode mesmo figurar no
espaço da hipótese), de que Camões o somente leu Gil Vicente como identificou em seus autos
frescas linhas do mais vivo lirismo. Problematizaremos, em seguida, o modelo de ambos, que o
jogo alusivo da intrincada lírica renascentista é bem mais complexo do que parece a um primeiro
olhar.
53
Considerando o critério de duplo testemunho quinhentista incontroverso para a atribuição autoral
de um texto quinhentista, sabemos que o soneto em questão possui insuficiente comprovação. Não
pretendemos, contudo, adentrar o caminho da crítica textual e/ou genética. Vale ressaltar,
entretanto, o nosso profundo respeito pelo trabalho dos professores Emanuel Pereira Filho, que
estabeleceu os critérios para a formulação de um cânone mínimo, bem como de Leodegário de
Azevedo Filho, que dedicou toda sua vida acadêmica a esta questão. Sem o objetivo de ferir os
ensinamentos dos mestres, acreditamos que a presente pesquisa deve buscar foco nas linhas
vicentinas e não propriamente nos versos, atribuídos letima ou ilegitimamente, a Camões, embora
esse assunto seja de nosso particular interesse, considerando alguns trabalhos realizados (“A
reprodução diplomática dos textos em Português do Manuscrito da Biblioteca da Real Academia da
História de Madrid”, sob orientação da profa. Dra. Marina Machado Rodrigues, ainda não publicado.
41
aliás, encontramos um jogo alusivo bastante notório (o último verso acima citado
parece estar na origem do camoniano “Agora espero, agora desconfio, embora
tenhamos em mente as lões de Petrarca, Boscán, Sanazarro e Groto). O que
observamos, contudo, é que tanto Gil Vicente quanto Camões encontraram em
Boscán as linhas bem talhadas para a realização da imitatio, como já apontara
Visconde de Juromenha, ao comentar o estudo de Faria e Souza, indicando o
verso “Caygo y levanto; espero e desconfio”, do poeta espanhol, como aquele que
teria provocado a imitação camoniana.
54
O que não dizer da cativa que torna o homem cativo, tópica recorrente e
amplamente utilizada pelos poetas palacianos, também empregada no texto
vicentino? Diz o Escudeiro na Farsa do Juiz da Beira:
eu andava namorado
de hũa moça pretezinha,
muito galante mourinha
um ferretinho delgado.
ó, quanta graça que tinha!
Então amores de moura,
ja sabeis o fogo vivo,
ella cativa eu cativo:
ora que morte moura
se há hi mal tão esquivo.
55
Como podemos perceber, a obra vicentina realizou densos mergulhos na
temática amorosa e, neste sentido, contribuiu vivamente para a compreensão das
O códice, por suas inúmeras atribuições de autoria, figura como documento importantíssimo para os
estudos da lírica de Camões que se baseiam nos testemunhos dos cancioneiros de mão para o
estabelecimento autoral e textual das lições.).
54
Os jogos alusivos da literatura do Renascimento compõem um repertório bastante intrincado.
Visconde de Juromenha, em seu estudo (Obras de Luís de Camões. Lisboa: Imprensa Nacional,
1861, vol.2, p. 567), faz um levantamento extenso dos versos camonianos em diálogo com os
demais autores entendidos como exemplos de imitação naquela época tecendo comentários sobre
as considerações de Faria e Souza (Rimas Várias de Luís de Camões comentadas por Manoel de
Faria e Souza, Lisboa: Edições 70, 1980). Sabemos, contudo, que o soneto em questão (“tanto de
meu estado me acho incerto”) realiza um jogo alusivo marcante com o texto Pace non trovo e non
ho da far guerra” de Petrarca. Por tudo isso, fica evidente que um único texto pode apresentar uma
variada linhagem quando o que está em jogo é a imitatio e seu desenvolvimento emulativo.
55
V, pp. 295-296
42
rias concepções de amor em voga. Está lá o sentimento cortês, de matriz
idealizante, ainda que enviesado pelo caráter satírico, como na fala insincera dos
Escudeiros (e a citação acima não é o único exemplo) ou nos pronunciamentos dos
velhos, completamente destituídos da ordem da Razão, como veremos no capítulo
seguinte.
Este lirismo amoroso, que tem inspirado parte dos estudos vicentinos nos
últimos anos, recebeu, contudo, variada abordagem crítica; algumas vezes os
estudiosos passearam com competência por um primeiro nível de leitura no que
concerne ao aspecto lírico de Gil Vicente, noutras, em menor quantidade,
realizaram um mergulho mais profundo. Se são muitos os matizes da crítica, muitos
mais são os do texto vicentino. Agostinho de Campos reflete com lucidez sobre o
lirismo do autor, deixando claro a algumas correntes teóricas que os autos de Gil
Vicente estão amalgamados a uma atitude poética para além das teorizações:
Chame-se a esse poder literário excepcional o que se queira:
lirismo dramático, poesia dramática. Eu direi apenas: essa
transfusão íntima e profunda, realista e efusiva, complicada e
espontânea, artística e sincera, do sujeito ao objecto, esse
dom de ficarmos s próprios através dos outros, ou de
sermos os outros através de nós mesmos só pode explicar-
se por um doseamento raro, e para nós portugueses quási
inconcebível, do poder de observação com faculdades de
emoção lidimamente líricas
56
.
Consideramos enormemente a sensibilidade com que Agostinho de Campos
define a questão, fruto de uma refinada leitura do nosso autor. É consensual, neste
sentido, que o olhar sensível não exclui a possibilidade de teorizão sobre o texto.
Por isso, buscaremos a transfusão ìntima e profunda, realista e efusiva,
56
CAMPOS, Agostinho de “O elemento lìrico nos autos de Gil Vicente” In: Academia de Ciências de
Lisboa, Lisboa, 1939.
43
complicada e espontânea” que caracteriza a lìrica amorosa de Gil Vicente,
realizando algumas opções tricas que merecem ser explicadas logo no início
deste trabalho.
2.3 Na rota do amor: estudos sobre o lirismo vicentino
Para começar uma discussão sobre o lirismo amoroso em Gil Vicente, é
imprescindível que esteja clara a nossa opção teórica, tanto no que diz respeito ao
modelo de análise, quanto no tocante ao conceito de Lírico, já que o segundo
participa claramente na elaboração do primeiro. Por isso, é importante apontar a
questão da lírica amorosa para, em seguida, realizar um levantamento sobre os
estudos do lirismo vicentino, verificando assim como a questão tem sido tratada e
justificando o tratamento que lhe daremos neste estudo.
Portanto, façamos a sinalização de alguns momentos líricos mais salientes
para depois aprofundar a análise na busca de um lirismo que pode ser considerado
como responsável pelo tom de muitos autos. Difícil será, contudo, apontar todos os
momentos em que o autor da Trilogia das Barcas se refere em versos de um
saboroso matiz lírico ao Amor. Seria preciso penetrar surdamente no reino de cada
auto, de cada comédia, de cada tragicomédia.
Veja-se, por exemplo, a estrutura poético-dramática observada nos
deliciosos queixumes de Felício, da Comédia de Rubena, onde a repetição sonora,
nada menos do que o próprio Eco, evoca um maravilhoso e ingênuo universo
musical de queixa.
44
Felício Oh o mais triste onde vou?
onde vou triste de mi?
ó dores matae-me aqui
onde nunca homem chegou.
Eco Hou.
Felício Hou males, quem me vos deu
deu-vos pera me acabar.
Ó! quem sofreu por amar
tamanho mal como o meu?
Eco Eu.
Felício Eu em me matar não peco.
nem sei se alguém me responde.
Que será, ou quem, ou donde,
que ande em valle tão sêco?
Eco Eco.
57
Os quinze versos citados dos 145 que compõem o queixume lírico
dialogado se encarregam de inserir o sujeito dentro da perspectiva do amor
não correspondido, dentro da fatalidade do sofrimento (Ó! quem sofreu por amar /
tamanho mal como o meu) que, tão grandioso e desumano, tão em desacordo
com a existência do sujeito, justifica até o suicídio (Eu em me matar o peco).
Ainda considerando este tipo de lirismo, recuperemos a atitude musical da
Moça no Auto do Velho da Horta, que revela uma composição ptica altamente
difundida e praticada até o século XV, pois a jovem cantando e colhendo flores
entoa uma cantiga paralelística semelhante às muitas que marcaram a cultura
portuguesa.
57
III, p.73. Ora, sabemos que a utilização do eco como recurso sonoro integra uma tradição
bastante antiga da poesia, principalmente no que diz respeito à lírica amorosa devido ao mito de
Narciso e a ninfa Eco. Talvez o mais importante modelo seja Ovídio, que durante a Idade Média e o
Renascimento era uma autoridade imprescindível para os eruditos (sua obra era matéria obrigatória
no Cogio das Artes na época de D. João III e diversos trechos figuravam nos manuais de ensino).
No terceiro livro das Metamorfoses, a repetição aparece bastante clara: <“Heu frustra dilecte puer!
totidemque remisit / verba locus; dictoque vale “Vale inquit et Echo!> (vv. 500-501). O mito de
Narciso será, pois, aludido “sem interrupção durante toda a Idade Média e até o Renascimento. Nos
poetas provençais, o vemos reduzido a exemplum, ou seja, utilizado como figura exemplar para
indicar uma precisa tipologia da loucura amorosa”, diz Barbara Spaggiari em artigo em que, de
modo competente, analisa o tema em um soneto de Diogo Bernardes, percorrendo os exemplos na
literatura provençal e italiana. A estudiosa ainda acrescenta que é “a partir dessa fábula grega que
Eco passa de nome próprio, a substantivo comum, para indicar aquele fenómeno astico devido à
reflexão de uma onda sonora por um obstáculo e percebido como a repetição de um som emitido
por uma mesma fonte” (SPAGGIARI, Barbara. O mito de Narciso num soneto de Diogo Bernardes”.
In: Revista HVMANITAS Vol. LI, Coimbra: Universidade de Coimbra, 1999, pp. 231-240).
45
Cual és la niña
que coge las flores
si no tiene amores?
58
Cogia la nina la rosa florida,
El horelanico prendas le pedia:
[Cual és la niña
que coge las flores]
si no tiene amores?
[Cogia la niña la rosa granada,
El hortelanico prendas le rogaba:
Cual és la niña
que coge las flores
si no tiene amores?]
59
Aires Rosado, escudeiro e mancebo que tangia viola”, como já revela a
didascália da farsa Quem tem farelos?, também surge em cena entoando uma
cantiga de amor. Esta bela composição lírica enquadra o primitivo lirismo dos
cancioneiros trovadorescos com uma simplicidade tão ingênua que ganhou
traduções em alemão, francês, além de ter sido musicada por Schumann
60
. Para
compreender a canção enquanto unidade estrutural, retiramos as falas de Aparo
e Ordonho, genialmente inseridas no meio dos seguintes versos cantados por
Aires:
Si dormís, doncella,
Despertad y abrid.
Que venida es la hora,
Si quereis partir.
Si estais descalza
Nam cureis de vos calzar.
Que muchas agoas
Teneis de pasar...
58
O tópico Collige, virgo, rosas é uma variação do Carpe Diem aplicado ao universo feminino.
Recorrente na literatura, a lição modelar é de Ausônio, poeta latino, e a ideia central contina a ser a
de que a vida é breve e, com ela, termina-se o prazer. Por isso, funciona como incentivo para que
se goze a época da juventude.
59
cf. LUCAS, João de Almeida. Líricas de Gil Vicente. Lisboa: Clássica Editora, 1965. Neste caso,
citamos a edição de João de Almeida Lucas para nos aproximarmos de uma tentativa de
reconstrução da cantiga citada no texto vicentino (Cf. nota 64).
60
Cf. CAMPOS, 1939.
46
Agoas dAlquebir;
Que venida es la hora
Si quereis partir.
61
Refinado artista da palavra, na língua da sua pátria ou na do vizinho, Gil
Vicente deixou espalhada por sua obra alguns dos mais belos testemunhos da
experiência amatória do homem, quer pela via do lirismo tradicional, como na
cantiga de amigo, também em espanhol, no Auto dos Quatro Tempos
Los mis amores primeros
en Sevilla quedan presos:
los mis amores
mal haya quien los envuelve.
(...)
En Sevilla quedan presos
per cordon de mis caballos
los mis amores:
mal haya quien los envuelve.
(...)
En Sevilla quedan ambos
los mis amores:
mal haya quien los envuelve.
(...)
En Sevilla quedan ambos
sobre ellos armaban bandos
los mis amores:
mal haya quien los envuelve
62
quer pela sátira, como no jocoso diálogo entre Fernando e Catarina na
Tragicomédia Pastoril da Serra da Estrela, ou nos entrechos amorosos de um auto
de devoção, como sugere a tavoada, onde a presunçosa sibila Cassandra,
61
V, pp. 70-72
62
I, pp.103-104. O pastor que simboliza o Inverno interfere na cantiga incluindo falas entres as 4
cobras que a compõem, inserindo o texto lírico de modo harmônico na estrutura da peça. Também o
Verão, que entra em seguida em cena, desenvolve uma cantiga intercalando-a com trechos falados.
Neste auto, observamos claramente e de modo lírico na maioria das vezes o desfile, técnica
cara ao nosso dramaturgo. As diferentes cenas repetem a estrutura de entrada, discurso, adoração
e saída, sem, contudo, promoverem uma compreensão fragmentada, pois Gil Vicente, ao fazer
desfilar suas personagens, insere-as numa perspectiva orgânica e de adição, construindo uma
enunciação geral do enredo a partir de partes, como todo bom texto alegórico.
47
presumindo ser a Virgem Imaculada de quem nasceria o filho de Deus, recusava
casar-se:
Abraão Y si cobras buen marido
comedido
y nunca apasionado?
Cassandra Nunca? Estais muy errado,
padre honrado,
porque eso nunca se vido.
Como puede sin pasión
y alteración
conservarse el casamiento?
Mudase el contentamiento,
en un momiento,
en contraria división.
sólo Dios es perfeccion
(...)
63
Cassandra, referindo-se à imperfeão do homem, insiste no argumento de
que Deus é a única perfeccion, o único correspondente masculino da estabilidade,
contra a instabilidade que caracteriza o casamento, onde sempre Mudase el
contentamiento / em contraria división. Ainda longe da experiência maneirista
incerta e duvidosa (que encontra nos contrários o elemento de potencialização do
sentimento, pois um contrário é amor a acrescentar, dirá Camões), Cassandra
figura no auto como uma donzela da vila, a desenvolver os temas do erro e do
desvario como forma de se opor à temática da vaidade e dos enganos por amor.
São, enfim, inúmeras as passagens em que Gil Vicente surge como poeta
lírico a versejar sobre as causas e efeitos da experiência amatória nas diferentes
personagens que seu gênio pôde construir. Não é difícil, pois, observar este enlevo
poético na obra de Gil Vicente, e os trechos até então mencionados são ainda um
63
I, pp. 66-67.
48
brevíssimo exemplo disso. Vejamos o estado da questão a partir de uma revisão
dos estudos sobre o lirismo vicentino.
Uma primeira corrente teórica ocupou-se, quase que exclusivamente, das
referências de base folclórica nos autos, que evocam, por isso mesmo, a presença
de marcas intimamente ligadas às manifestações populares. A maioria dos
exemplos citados até agora são desta ordem de análise. É certo que a
compreensão da lírica vicentina vinculada às estruturas poéticas medievais foi
responsável pela aparão de importantes estudos
64
, mas não nos parece que a
visão folclorista consiga dar conta do caráter lírico de Gil Vicente, embora não
restem dúvidas de que o autor aproveitou abundantemente as estruturas poéticas
herdadas da tradição peninsular (veja-se presença do ingênuo lirismo popular
expresso na paralelística trovadoresca
65
, os tradicionais vilancetes
66
, bailadas e
cantigas de romaria, hinos religiosos
67
, enfim, poemas nitidamente encravados no
corpo do auto).
Entretanto, observando a obra somente desta maneira, as investigações até
hoje feitas ainda não foram capazes de abarcar todos os matizes do lirismo do
autor. Voltemos também o nosso olhar para uma atitude lírica que, desvinculada do
formalismo incomum medieval, pode ser sentida sem dificuldade a partir de uma
64
Entre os estudos de base, consultar de D. Carolina Michaëlis “introdução” ao Cancioneiro da
Ajuda. T.II, e de J. J. Nunes As cantigas paralelísticas de Gil Vicente, Lisboa, 1910. Na defesa da
tese folclorista, os referidos autores propuseram reconstituições de poemas de base oral (e
registrados pela tradição manuscrita) aparentemente incompletos. Outros estudos oferecem vio
semelhante e novas tentativas reconstituidoras, como é o caso de Líricas de Gil Vicente, de João de
Almeida Lucas (LUCAS, João de Almeida Líricas de Gil Vicente. Lisboa: Clássica Editora, 1965).
65
Veja-se, por exemplo, a cantiga paralelística que inicia o Auto da Feira (Blanca estais colorada, /
Virgem Sagrada.” I, p. 245), ou a da Tragicomédia Templo de Apolo (“Pardeos, bem andou Castella,
/ pois tem Rainha o bella! IV, p. 188), ou ainda da Farsa de Almocreves (“A serra é alta, fria e
nevosa, / vi venir serrana gentil, graciosa.” V, p. 349), entre outras composições.
66
No Breve Sumário da História de Deus nos deparamos com um lindo vilancete, cujo mote
(“Adorae, montanhas, / o Deus das alturas, / tambem as verduras.” II, p. 185) antecipa com
beleza as voltas de Gil Vicente.
67
Um único exemplo pode ilustrar de modo pleno o lirismo vicentino quando o que está em questão
são os hinos religiosos: “Ó gloriosa Senhora do mundo, / excelsa princesa do ceo e da terra, / ...”
Auto Pastoril Português I, p. 192
49
prerrogativa refundidora de ordem técnico-dramática, como defendeu Eugenio
Asensio cadas mais tarde
68
. Neste sentido, formas pticas cultivadas pela
tradição, bem como temas também desta ordem difundidos, são não apenas
repetidos, mas variados. Gil Vicente repete para dar às motivações formais e
temáticas uma fuão nova a partir de variantes condicionadas ao discurso
dialogado característico do teatro. Sendo assim, a premissa folclorista torna-se
apenas um primeiro caminho de observação, já que insere a produção vicentina
dentro da perspectiva de repetão que caracteriza o tradicional fazer poético na
Idade Média, ao passo que Gil Vicente figura autoral de síntese entre o medievo
e o Renascimento opera também um processo de transformação em vez de
simplesmente repetirrmulas. Diz Asensio:
Gil Vicente, manuseando com mestria e liberdade tanto a
cantiga áulica como o “roteiro de seu tempo, operava não
como folclorista meticuloso, mas como poeta inovador que
molda e utiliza os mais diversos materiais para seus fins
estéticos
69
.
.
A contribuão de Asensio certamente ofereceu aos investigadores uma
compreensão menos estreita do aproveitamento das tradões líricas nos textos
dramáticos de Gil Vicente, enxergando-as não como composões meramente
aludidas e recuperadas, mas como elementos transformados a partir de uma
perspectiva que contempla a técnica do fazer teatral e, portanto, absolutamente
68
Os estudos sobre o lirismo de Gil Vicente ganharam, para am da premissa folclorista, essa nova
abordagem a partir das leituras de Eugenio Asensio, fundamentalmente por sua contribuição em “Gil
Vicente y las cantigas paralelìsticas restauradas: folclore o poesìa original?”, in Poética y realidad
em el cancioneiro peninsular de La Edad Media, 2ª. ed. Madrid: Gredos, 1970 p. 134-176.
69
Asensio, 1970, p.136 (“Gil Vicente, manejando com señorío y libertad igual la cantiga áulica y la
callejera de su tiempo, obraba no como folclorista meticuloso sino como poeta innovador que
moldea y utiliza los más diversos materiales para sus fines estéticos tradução livre)
50
inovadora em Portugal, considerando a aglutinão
70
do lirismo ao teatro. Asensio
foi o primeiro vicentista que ousou compreender nosso dramaturgo como Poeta
original.
Para além dos estudos já referidos, e que compõem a base das discussões
sobre o lirismo vicentino, diferentes abordagens têm vindo a lume nas últimas
cadas, de modo que não seria perder de vista o meu objetivo o ocupar-me um
tanto mais de algumas delas. Afinal, o percurso pelo campo teórico poderá justificar
as nossas opções de investigação.
Motivados, pois, pela clara atitude lírica de Gil Vicente, alguns outros
estudiosos também se debruçaram sobre a questão para tentar sistematizá-la.
João de Almeida Lucas
71
fala de três espécies de lirismo:
...um objectivo, em que o espírito ptico do autor reage
perante os dados percebidos pelos sentidos; outro subjectivo
ou pessoal, em que o poeta nos a imediata representação
das suas manifestações psíquicas, em que exterioriza os seus
sentimentos íntimos, próprios, pessoais; outro, que, à falta de
melhor nomenclatura, poderemos denominar objectivo-
subjectivo, em que o artista, analisando um tipo psíquico, se
lhe substitui, dando-nos a expressão dos sentimentos alheios,
penetrando-lhes e imitando-lhes a psicologia própria, com
maior ou menor argúcia e espírito de observação
72
.
Inicialmente sugere o crítico que consideremos o lirismo objetivo como a
capacidade de Gil Vicente em representar com a mais alta expressividade a
Natureza que o cerca. Sobre esse primeiro lirismo, o nosso poeta é dos maiores na
Literatura. Afinal, basta perceber que, de modo sensível e natural, adequado e
expressivo, o mundo campesino se afirma a tal ponto em Gil Vicente que dispensa
70
O termo aglutinação foi empregado por Jo Augusto Cardoso Bernardes, em seu estudo já
citado (BERNARDES, op.cit.). Retomaremos a questão mais adiante.
71
LUCAS, op.cit.
72
Idem, p. 6
51
qualquer representação cenográfica. Tudo gerado pelas particularidades de suas
tiradas líricas, verdadeiras provas da receptividade do poeta às mensagens da
Natureza. É também por esse primeiro lirismo que temos a certeza de que Gil
Vicente, embora seja a última grande expressão do tempo medieval, foi um
verdadeiro espírito do Renascimento, ocupando-se com o homem universal e seus
problemas.
Em seguida, Lucas aponta um segundo lirismo, nomeado subjetivo. Daqui,
depreender-se-iam os elementos autobiográficos ou as diretrizes bem vincadas da
psique do autor”
73
. Evidentemente este segundo tipo de manifestação rica pode
muitas vezes ser contestado, que a busca da biografia do autor na obra ainda
pode ser vista como um caminho tão sedutor quanto perigoso. Contudo, é certo
que a religiosidade de Gil Vicente foi expressa largamente em sua obra. O Auto da
Alma parece a mais profunda expressão do sentimento religioso do autor. Para
falar sobre a fé, não buscando uma condicionada finalidade social, Gil Vicente
colocava em cena uma figura digna e solene para representar esse universo tão
presente em sua obra: a Santa Madre Igreja.
O último tipo de lirismo de que nos fala Lucas é sobremaneira importante
dentro da lógica que buscou para organizar a questão. A definição de objetivo-
subjetivo parece querer dar conta de dois aspectos: é subjetivo, porque nele
encontramos a exteriorização de uma interioridade, dessa vez não mais do autor,
mas da personagem criada; é objetivo, porque os sentimentos dessa personagem
estão condicionados pelo meio. Se nos aproximarmos de Inês Pereira,
compreendemos este terceiro grupo lírico proposto por Lucas, pois esta farsa,
73
Idem, p. 9
52
embora participe, teoricamente, do gênero menos afeito ao lirismo
74
, nos mostra
uma considerável profundidade da personagem, bem como o aspecto exterior, seu
e do mundo, e, portanto, objetivo.
É, sem dúvida, uma possibilidade de leitura. O que vemos de redutor nas
considerações de Lucas é a sua insistência nas composições populares
encontradas em alguns autos. A Copilaçam é, em parte, responsável por este tipo
de leitura, já que oferece em diferentes momentos apenas o primeiro verso de
algumas cantigas tradicionais que, de tão conhecidas que eram, poderiam ser
evocadas a partir de um simples incipit.
A importância dessas composões em Gil Vicente é, evidentemente,
inquestionável, bem como a relação com a música na construção de seu caráter
lírico
75
. Contudo, ao limitar o lirismo vicentino aos aspectos formais da poesia
ibérica a que o autor faz alusão, e, repetindo, realiza um trabalho transformador,
Lucas deixa de considerar alguns momentos mais ou menos autônomos e
desvinculados do formalismo ptico medieval. Prova disto é a elaboração de uma
antologia ao final de seu estudo contendo diferentes composões líricas
tradicionais encontradas ao longo da produção vicentina.
Armando López Castro, embora considere os estudos de Asensio e,
portanto, se coloque para além das análises de base folclorista, ainda se limita
74
“... a farsa não se presta, em princìpio, à integração do discurso lìrico, reservando-se este mais
para géneros menos „representativos‟ e mais „manifestativos‟, aqueles em que a acção e os jogos
opositivos que ela implica em termos de desenvolvimento e de solução moral e social são menos
importantes do que a manifestação de sentimentos e idéias” (BERNARDES, José Cardoso
op.cit.,p.381). Para Bernardes, o lirismo nas farsas pode ser observado apenas quando, ele próprio,
cumpre uma função tipificante das personagens. Um exemplo deste procedimento está no Auto da
Lusitânia, quando uma falia judia entoa canções que funcionam como estruturadoras das
tipologias das personagens. Outro exemplo marcante é a tipologia do viejo verde, de que trataremos
adiante no Auto do Velho da Horta.
75
O trabalho de A. Beau ainda pode ser tomado como referência primeira no tocante à musicalidade
em Gil Vicente. Seguindo as palavras do estudioso "... em Gil Vicente, a música não é somente
elemento acessório, senão também e propriamente cénico, e a sua função não é somente a de
criar, como também a de exprimir ambientes sentimentais e psíquicos". Para o assunto, ver BEAU,
Alain Eduard. A música na obra de Gil Vicente. Coimbra: Edões de Biblos, 1939; separata
de Biblos, XIV (1938), pp. 329-355.
53
seguindo a linha da maior parte dos estudos que se referem ao lirismo vicentino a
pinçar trechos de alguns autos em que tais composições populares podem ser
notadas, dando uma importância reforçada às cantigas. Este movimento de
investigação que caracteriza a abordagem de López Castro e da maioria dos
trabalhos sobre a lírica de Gil Vicente pode ser considerado um importante primeiro
passo, ainda que incipiente, pois identifica o aspecto lírico apenas à sua
manifestação enquanto prática de poesia. Como fizera Lucas, Lopéz Castro
também organiza uma antologia de composões vicentinas ao final de seu estudo,
deixando claro que seu objetivo é proporcionar um diálogo entre as apropriações
poéticas de Gil Vicente e algum texto base que lhe tenha dado origem.
...a lírica vicentina, assim como seu teatro, precisa de uma
edão crítica que recorra à fonte ou fontes de onde se retirou
cada cantar, as inumeráveis variantes, analogias e imitações
dos textos; as distintas glosas que foram objeto das canções
e os paralelismos entre os cancioneiros e antologias que a
eles recorreram. Somente assim lograremos uma maior
aproximação ao texto base
76
.
A edição de João de Almeida Lucas, referida, recolhe um total de 23
poemas e os organiza em cinco partes (cantigas paralelísticas; cantigas, romances
e vilancetes; lirismo religioso; lirismo amoroso e lirismo patriótico), mesclando os
gêneros a partir de um critério temático. Por sua vez, Lopez Castro realiza uma
antologia um pouco mais numerosa que inclui os prólogos da Copilam e as
tavoadas dos cinco livros que a compõem, apontando os textos líricos de cada
auto.
76
LÓPEZ CASTRO, Armando. Lírica. Madrid: Cátedra Letras Hispânicas, 1993, p. 59 (“...la lírica
vicentina, lo mismo que su teatro, todavia necesita de uma edición crítica que recoja la fuente o
fuentes de donde se há tomado cada cantar, lãs innumerables variantes, analogías e imitaciones de
los textos; lãs distintas glosas de que fueron objeto las canciones y los paralelismos entre los
cancioneros y antologías que los han recogido. lo alograremos uma mayor aproximación al
texto base. tradução livre)
54
Dámaso Alonso, ao publicar Poesias, foi o pesquisador que deu, pela
primeira vez ao público espanhol, uma edição da lírica vicentina com 30
composições
77
. Thomas Hart, respeitável vicentista, fez publicar também a sua
obra Poesía, onde reúne 23 poemas em castelhano e 25 em portugs
78
. Outra
pesquisa de D. Carolina Michlis de Vasconcelos também oferece importante
material de reflexão
79
, bem como algumas antologias mais amplas de poesia
peninsular
80
.
Ora, é evidente que esses estudos trouxeram uma importante contribuição
no tocante ao lirismo vicentino, não apenas porque puderam verificar (ao coligir
textualmente manifestações populares de fato aludidas por Gil Vicente) um dos
muitos aspectos líricos do autor, mas porque a partir desta premissa permitiram
estabelecer a relação dinâmica operada na produção vicentina entre o tempo
medieval e o espírito da Renascença, entre a imitatio das composições tradicionais
e a sua transformatio em recurso teatral, entre poesia e cena dramática. Neste
sentido, não temos aqui nenhum movimento de desautorização dos estudos que
assim procederam. Apenas parece-nos que este tipo de investigação não
conseguiu dar conta, ainda, em termos precisos, do caráter lírico de Gil Vicente,
conforme já ressaltamos.
Afinal, basta nos aproximarmos do texto vicentino para percebermos que o
seu lirismo não se consubstancia apenas em um repertório modal de base
77
Originalmente publicado em Madrid: Revista Cruz y Raya, 10, 1934.
78
Importante observar que Thomas Hart comenta textos nos dois idiomas de que se valeu Gil
Vicente, o que julgamos fundamental para uma compreensão mais coesa de um teatro notadamente
bilíngue. (HART, Thomas R. Poesía Salamanca: Anaya, 1965).
79
VASCONCELOS, C. Michaëlis de Romances velhos em Portugal Porto: Lello et Irmão, 1980
fundamentalmente no tocante aos estudos dos romances vicentinos.
80
ALATORRE, Margit Frenk Lírica hispânica de tipo popular: Edad Media Y Renacimiento. México,
Universidad Nacional Autónoma, 1966 (onde podemos encontrar 30 poemas vicentinos) e, da
mesma autora, Corpus de la antigua lírica popular hispânica (siglos XV a XVII) Madrid, Castalia,
1987; ALÍN, JoMaría El cancionero Español de tipo tradicional Madrid: Taurus, 1968 (com 50
canções vicentinas acompanhadas das variantes nos diversos Cancioneiros); entre outras
antologias.
55
folclorista, recuperando as variadas estruturas medievais e incluindo-as, ainda
que reformuladas, no discurso dialógico que caracteriza o teatro (algumas vezes
como ornamentos menos comprometidos com o desenvolvimento da ão
dramática, outras como textualidade estruturante do enredo).
Há um outro tipo de lirismo, ao qual os vicentistas têm dado pouca atenção,
que incide com mais frequência sobre as comédias e que está relativamente bem
desvinculado do conjunto estruturante do repertório popular, ou seja, menos
“localizável”, em termos de recuperação nos diversos cancioneiros que nos
chegaram.
Portanto, se à Copilaçam se sucederam novas compilações (que apenas
pinçaram do texto original alguns momentos que eram, do ponto de vista temático-
estrutural, notadamente líricos), fazemos aqui uma opção por outro tipo de
abordagem do assunto, compreendendo a lìrica vicentina como um “princìpio
aglutinantede sua obra. Neste sentido, estaremos muito próximos dos estudos de
Asensio, referidos, e, fundamentalmente, da pesquisa de José Augusto Cardoso
Bernardes, vicentista que maiores pistas tem levantado atualmente sobre o
assunto, em um claro desenvolvimento das idéias iniciais de Asensio.
De fato, é meu entendimento que o lirismo vicentino não se
consubstancia só em trechos isolados de temas e formas
amplamente variáveis: para além dessas unidades textuais
relativamente circunscritas que podem ser lidas na
perspectiva de uma certa autonomia semiótica, o lirismo
vicentino constitui um princípio aglutinante que não só inspira
autos inteiros como atravessa modalmente todo o conjunto
da Copilaçam
81
.
Para Bernardes, os textos líricos de Gil Vicente tendo em vista as variadas
características cnico-formais que os compõem não são apenas aqueles em que
81
BERNARDES, idem, p. 385.
56
se verificam bases modais, mas os que, para além delas, se apresentarem de
modo aglutinado à estrutura de muitos autos, assumindo, por isso, função nova: o
lirismo, para ganhar o dinamismo técnico que exige a arte teatral, precisa
manifestar-se não apenas em composões mais ou menos independentes da
ideação dramática, mas também inspirando a totalidade do texto.
Por tudo isso, optamos aqui por seguir o posicionamento teórico de
Bernardes, observando os dois veis em que o lirismo pode ser descrito, segundo
o especialista:
um primeiro vel (...) em que seriam visíveis modelos de
referência descritiva como o conotativo, o celebrativo (que,
confiado ao protagonismo do pastor, incide essencialmente
sobre a Natureza e o Natal) e o demonstrativo que sob a
égide do par cavaleiro/dama incide sobre a temática
amorosa; num segundo nível, ao qual se tem acesso
apenas através de uma leitura paradigtica, situa-se uma
rie interligada de tipos que sustentam um verdadeiro
itinerário virtual decomponível em fases a que
correspondem o lirismo deplorativo, o penitencial, o
exortativo, o precatório e o exaltante.
O segundo nível, por assentar-se em pressupostos éticos e religiosos,
interessa-nos menos neste trabalho, tendo em vista que o nosso objeto de estudo é
o caráter lírico de feição amorosa em Gil Vicente, com enfoque principal na velhice
enamorada. Por isso, o primeiro vel de leitura proposto pelo autor é aqui a nossa
fonte inicial de investigação, fundamentalmente o lirismo demonstrativo, já que o
conotativo, ligado à metadiscursividade e, por essência, de base referencial
82
, e o
82
Os exemplos deste tipo de lirismo são, de resto, os mais quantiosos e os mais fáceis de
identificar, quer porque integram muitas vezes situações de assumida metadiscursividade, quer
porque no plano técnico-formal coincidem quase sempre com sub-géneros perfeitamente
reconhecíveis (romance, vilancico, cantiga, vilancete, glosa, etc.)” BERNARDES, idem, p.389
57
celebrativo, que aponta para uma ética do tempo
83
, não tematizam o amor suas
causas e seus efeitos como elemento fulcral na composão dos autos.
Ao desenvolver o aspecto do lirismo a que chama de demonstrativo,
Bernardes aponta para um primeiro tipo de atitude lírica ainda ligada à vertente de
base referencial ou conotativa, pois remete a passagens incrustadas nos autos e
que, do ponto de vista pragtico, compõem a maior parte das antologias sobre o
lirismo vicentino. Pontua, dentre os inúmeros entrechos possíveis, um exemplo na
terceira cena da Comédia de Rubena, a cantiga que finaliza a Tragicomédia
pastoril da Serra da Estrela e as várias encravadas no corpo da Tragicomédia
Triunfo de Inverno.
O segundo tipo de lirismo demonstrativo a que se refere o vicentista parece
estar em absoluta consonância com a abordagem que pretendemos dar neste
estudo sobre a velhice enamorada, e é tão bem colocado por Bernardes que
merece, por isso mesmo, desenvolvimento e investigação pormenorizada. Isto
porque diz respeito a feições menos folclóricas e mais variáveis, menos delimitado
a um modelo estruturante e mais dramatizado.
Com muita lucidez, Bernardes observa que este tipo de lirismo
demonstrativo tem maior ocorrência nas comédias e tragicomédias, bem como,
evidentemente, nos autos de Natal e nos demais de matéria religiosa, pois tomam
sempre a base lírica como premissa. Por sua vez, o lirismo vicentino é menos
sentido nas farsas, que dão à palavra a importância técnica para que ela funcione
como principal instrumento de ação, diferentemente do enredo (estruturado a partir
83
“Com efeito, ao passo que as situações meta-enunciativas características do lirismo conotativo
configuram uma idealidade de natureza estética, a celebração implica uma visão ética do tempo. De
um modo mais concreto e na medida em que se comemora a nese e a permanência da ordem,
pode dizer-se que este último tipo de lirismo acaba sempre por incidir sobre as origens dessa
mesma ordem, que tanto pode manifestar-se na narração do nascimento de Portugal como na
representação do Natal enquanto nascimento de um mundo novo.” BERNARDES, idem, p. 409
58
do desenvolvimento e esgotamento das falas das personagens) que caracteriza as
comédias e tragicomédias
84
. Esta diferença pode ser explicada facilmente se
levarmos em conta a irregularidade dos recursos técnico-formais na operação
dramática entre a Palavra e a Ação, afinal, qualquer um que se aproxime da
Copilaçam percebe, sem grandes dificuldades, que a produção do autor eslonge
de ser uniforme.
85
Fica assim, pois, justificada a nossa posão teórica na esteira dos estudos
de José Augusto Cardoso Bernardes, bem como a escolha dos textos de Gil
Vicente sobre os quais desenvolveremos nossas análises da velhice enamorada.
Neste sentido, o Auto do Velho da Horta ainda que seja uma farsa e ainda que
não seja somente isso será o principal enfoque do capítulo seguinte, quando
discutiremos a tipologia do Senex amator. Em seguida, buscaremos confrontar este
tipo vicentino com um outro enamorado depois da juventude, passando da libido
senil à lamentação daquelas personagens que chamaremos aqui de Senex amans,
cujo amor revelado não esdiretamente associado aos prazeres do corpo. Neste
momento, a Comédia do Viúvo será o texto principal de análise. Num e noutro
caso, contudo, buscaremos um produtivo diálogo com outros autos vicentinos, bem
84
Não percamos de vista que no Auto do Velho da Horta, embora tenha sido catalogado como
Farsa, compondo o livro V da Copilaçam, e embora o seu argumento também lhe atribua o caráter
farsesco, claro está que os amores do Velho pela Moça estão inseridos na ordem da comicidade,
desde seu desenvolvimento inicial até o lamento final, quando se inverte a lógica do riso, sugerindo
uma reflexão e indicando uma moralidade. Neste sentido, a Farsa que normalmente está
desvinculada das exigências da verossimilhança e do ensinamento moral ganha, no Auto do
Velho da Horta, uma rara ampliação de sentido, aproximando-se da Comédia, embora saibamos
que Gil Vicente tinha uma ideia mais ou menos precisa desse gênero. A relação deste texto
vicentino com a tragicomédia de Fernando Rojas será tratada no capítulo seguinte.
85
A aparente organização que Luis Vicente à Copilaçam pode enganosamente sugerir uma
regularidade, afinal, as opções classificatórias do filho do autor, como defendem Menéndez Pelayo
(MENÉNDEZ PELAYO, Marcelino Edición nacional de las obras completas de Menéndez Pelayo,
Orígenes de la novela. Madrid: Glem, 1943, p290) e Israel Salvator Révah (RÉVAH, I. S Recherches
sur le auvre de Gil Vicente. Édition critique du premier “Auto das Barcas”. Lisboa:: Instituit Français
au Portugal. 1951, p.17) o podem ser consideradas de modo o determinista, que nada nos
garante que Gil Vicente assim teria organizado sua obra, estando muitas vezes em desacordo com
as rubricas do autor.
59
como com obras de diversos autores ibéricos, para observar o jogo alusivo de Gil
Vicente na composição lírica do velho enamorado na cena dramática. Deste modo,
ainda que se perceba, em cada capítulo, um texto vicentino principal à luz do qual
conduziremos as análises, o que pretendemos é uma abordagem transversal de
alguns autos, utilizando, para isso, dois exemplos principais como força motriz da
investigação. Acreditamos que desta maneira diferente daquela que tem norteado
a tradição dos estudos vicentinos, com análises de autos isolados a presente
pesquisa poderá oferecer boas contribuições ao campo da rica amorosa na obra
de nosso poeta e dramaturgo ao eleger dois autos centrais como forma de realizar
um cruzamento de questões advindas de outros textos e autores.
Também acreditamos que o diálogo com alguns testemunhos literários sobre
a velhice enamorada poderá oferecer um contributo ainda maior, principalmente
porque fará sinal aos posveis jogos alusivos de nosso autor, evidenciando assim
o seu caráter transformador do lirismo ibérico em inovação para o campo teatral.
60
3. SENEX AMATOR: lírico e libidinoso
Bien quiere el viejo
ay madre mía
bien quiere el viejo
a la niña.
86
Para analisarmos a presença da velhice enamorada na obra de Gil Vicente,
iniciemos uma reflexão sobre a figura do ancião na tradição teatral. Afinal, presente
em todos os gêneros dramáticos, o velho é o personagem que tem o seu discurso
produzido no centro de todas as mudanças. Representante do tempo antigo, é ele
quem problematiza as novidades de uma sociedade em transformação, quer pela
afirmação autoritária e exagerada, para além do razoável, de seu poder contra o
novo, sempre balizado pelo saber de experiências feito, quer pela necessidade de
ocupar o lugar do jovem, que definitivamente não lhe pertence. De um modo ou de
outro, o que temos é a afirmação de que não se pode segurar as rédeas do tempo,
e a sociedade, para manter-se viva, precisa promover algumas mortes, mesmo
que, simbolicamente, através do recurso cômico. A função do Velho no teatro
peninsular de Quinhentos, como veremos, é, ao mesmo tempo, simbolizar e
defender a memória da comunidade e ilustrar os restos ridículos de uma sociedade
morta; é o senex quem se afirma como sábio, representando também os destroços
de um mundo caduco.
Os embates travados entre a velhice e a juventude alegorizam com muita
eficácia teatral a problemática do tempo em mudança e suas implicações na
sociedade. O velho é, portanto, uma personagem de profunda importância para o
debate, no teatro, sobre as transformações do mundo, para a manutenção, pelo
86
Cantiga que com prazer das frutas cantam as lavrandeiras na Comédia de Rubena (III, p. 71)
61
bem e pelo mal, dos códigos culturais, dando ou não continuidade ao repertório
mítico de sua nação.
Façamos, por tudo isso, o inventário da velhice na tradão teatral,
percorrendo as obras em que o velho aparece como figura central da ideação
dramática. Depois, analisaremos a apropriação vicentina do tema, dando ênfase,
evidentemente, ao Auto do Velho da Horta, cujo discurso enamorado do Velho pela
Moça se veste de poderoso lirismo burlesco, manchando com a deliciosa tinta da
tira os ditames do amor cortês a partir da intenção de construir uma ordem
contra natura. Em seguida, realizaremos um avanço no tempo, com breves
indicações da recorrência do tema nos séculos seguintes.
3.1 O velho enamorado na tradição dramática
Os velhos são figuras de clara importância na História do Teatro e gozam,
portanto, de uma vida textual bastante alongada no tempo. Plauto, o poeta cômico
mais influente nas literaturas dramáticas de origem neolatina, deixou-nos o
testemunho dessa importância em quase todas as suas peças, com exceção de no
máximo três, entre elas o Anphitruo, modelo primeiro, embora não único, dOs
Enfatres camoniano. Na obra plautina, o Velho assume sempre papel de grande
importância para que seja desenvolvido o argumento da comédia, aparecendo, não
raro, como protagonista do enredo.
62
Posto em cena das mais variadas formas, o senex em Plauto aparece na
maioria das vezes como um senhor de sessenta anos
87
, casado, pai de família e
conservador, ou como um viúvo (ou solteiro), de fuão hierarquizante pela
ascendência que exerce sobre o núcleo familiar. Quase sempre avarento, é
retratado como uma figura tola e vulnerável às trapaças dos escravos. Não por isso
estamos autorizados a falar de personagem-tipo, já que considerar que a função do
senex é a de representar um tipo fixo, aquele que se coloca no lugar do severus e
do credulus ao mesmo tempo, não condiz com a complexidade de traços
significativos dados por Plauto a seus Velhos. Como nos diz Duckworth
Considerar o senex como o tipo do pai rabugento, sempre
ríspido [severus], e prontamente enganado [credulus], está
longe de ser preciso; como pai, frequentemente o senex é
leniente e complacente; como marido, ele é menos atraente:
crítico de sua mulher, em geral briguento, não perde a
oportunidade de ser infiel; como amigo, ele está pronto a se
submeter a riscos surpreendentes para ajudar aos outros em
suas dificuldades. O termo todo-incluso velho” é muito
enganador.
88
Como fica claro, são muitas as nuances do senex plautino, o que não nos
permite uma análise totalmente fechada quando estamos diante da velhice em
suas obras. Deste modo, ampliando as palavras de Duckworth, temos em Plauto,
com frequência, o severus e credulus (Nicóbulo, das Bacchides, entre outros), mas
também observamos, ao lado, os tolerantes e indulgentes (Filoxeno, também das
87
Muito se discutiu sobre a partir de que idade um romano era considerado um senex. O estudo
mais aprofundado continua sendo o de Parkin, que fixa os sessenta anos como a idade mais
indicada, embora o estudioso reconheça a variação possível de situações. (PARKIN, 2003, pp.18-
25). Quando tratarmos do senex amans, levaremos a cabo essa discussão.
88
DUCKWORTH, G. E. The nature of Roman comedy: a study in popular entertainment. New
Jersey: Princeton University Press, 1952. p.242-243)
63
Bacchides), os pais afetuosos (Hegião, dos Captiui), os senhores prestativos e
amigos fis (Alcesimo, da Casina), etc
89
.
Duckworth, entretanto, não condena a conceituação de tipo para tratar do
velho enamorado, tendo em vista que esses senex são tipos fixos sem
individualidade”
90
. E é justamente pelo aspecto arquetípico desta personagem que
podemos utilizá-la como modelo de partida para considerações comparativas entre
os diferentes velhos apaixonados no teatro ibérico até Gil Vicente.
Devasso, infiel, marcadamente libidinoso, o senex que se envolve em
aventuras amorosas costuma seguir uma estrutura básica de ação teatral: o
enamoramento por uma jovem, interditado por diferentes motivos, entre eles, e
principalmente, pela sua idade. Por vezes enamora-se das companheiras de seus
filhos. Em Plauto, a personagem que melhor representa este tipo é Lisidamo, da
comédia Casina.
Ryder, em seu estudo
91
, faz o levantamento e a análise de sete senes
amatores, conceituando-os como qualquer velho que contrai uma paixão por uma
jovem e que tenta satisfazer essa paixão, utilizando-se de diferentes níveis de
comportamento para isso. Se considerarmos, entretanto, o senex amator a
personagem cujo principal traço de identificação seja estar apaixonado na velhice,
movimentando toda a ão dramática a partir desse fato, não poderemos contar os
sete defendidos por Ryder. Tendo vista essa concepção de amator marcado
inequivocamente pela paixão que sente e sustentando a estrutura do enredo sob
89
também velhos joviais destituídos de carga libidinosa, solícitos inclusive aos estrangeiros,
como o celibatário Periplectômeno, de Miles Gloriosus, além de outros rabugentos egoístas. De
modo geral, a menos frequente função de um senex na obra plautina talvez seja a do homem
paciente e sábio, presente em raros textos. Megadoro da Aululária é a personagem mais próxima
desta construção.
90
Duckworth, Idem, p. 246.
91
RYDER, K.C. The 'Senex Amator' in Plautus. Greece & Rome v.31 n.2, 1984
64
esta paixão Lisidamo é, sem vida, a mais acabada personagem plautina e
Casina o texto que pode servir de modelo
92
para o que estamos considerando ser o
Velho enamorado.
Comentemos, por isso, a ão de Lisidamo como forma de recolher o
arquétipo do senex amator para um possível diálogo com as demais obras que se
ocuparam do assunto tendo a produção vicentina como base comparativa.
Vejamos antes de tudo o enredo, já expresso por uma figura que não se nomeia no
prólogo da comédia, um exemplo perfeito de retractatio tendo em vista que este
mesmo prólogo é posterior a Plauto. A figura, depois de argumentar, em tom
alegórico, que as obras plautinas são como os bons e maduros vinhos, apresenta o
enredo a partir da anunciação das personagens que o compõem: o velho amante
(senex amator), sua esposa (matrona), o jovem filho (adulescens) e os escravos
(servi). Casina é a agenciadora de todas as complicações, embora seja apenas
nomeada, não aparecendo em nenhuma cena do texto. A figura do prólogo
também já antecipa aos espectadores que tudo terminará bem: Casina é
reconhecida como filha dos vizinhos de Lisidamo e Cleóstrata, e seu casamento
com o filho do casal é realizado, não antes, evidentemente, de deixar o senex
Lisidamo arrasado de amores já que, mesmo ausente de cena, ela é marcada por
ser uma rara especiaria e carregar os atributos necessários para despertar a
paixão em qualquer homem, mesmo em idade avaada e casado.
Traduzida na Inglaterra sob o tìtulo Miss Fragrance”, a peça Casina, de
Plauto, sugere mesmo essa imagem da mulher no próprio tulo
93
. O substantivo
92
Do ponto de vista da integridade do texto, Casina é uma das mais completas obras de Plauto que
nos chegaram até hoje. Nem todas as peças do autor, como se sabe, chegaram à atualidade tão
íntegras como esta comédia. Muitos textos o apresentam a parte inicial, como ocorre em
Bacchides, por exemplo; em outros tantos falta-lhes o final, como em Aulularia. ainda aqueles
textos com lacunas que podem prejudicar a compreensão do desenvolvimento dos fatos, como
Menaechmi (ausência dos versos 171-172; 455-456; 550a; entre outros). Em Casina, raro exemplo
de preservação, temos o argumento, o prólogo, o texto da ação em si (com pontuais lacunas que
o afetam a compreensão), bem como um final em forma de epílogo.
65
comum casia, cuja significação genérica é “canela”, aponta para a origem
etimológica do nome da personagem que intitula a obra, conferindo-lhe, pois,
caracterização de especiaria conforme dissemos. Na primeira cena de importância
para este estudo, o senex já aparece aproximando o amor aos condimentos. É o
que lemos na fala inicial de Lisidamo:
Acima de todas as coisas está o amor, eu penso, superando,
com seu esplendor, a luz [do dia]; duvido que consigas lembrar
agora de algo mais saboroso ou delicioso. Fico realmente
pasmo em como os cozinheiros, dentre todos os temperos que
utilizam, só não se sirvam desta especiaria, que supera todas
as outras.
94
A Moça de do Auto do Velho da Horta, de Gil Vicente, diferente de Casina, é
uma figura presente em cena e o enamoramento se justamente por escopia
corporal, semelhante à perdição pela qual passaram os grandes nomes da
Renascença
95
. Contudo, aproximando-nos do texto plautino, para além de
simplesmente ver a dama, os condimentos têm função agenciadora da paixão,
que a Moça, entrando pela horta do Velho, está em busca de cheiros pera a
panela. É o suficiente para que o espaço ganhe feição de jardim florido, não mais
de horta, e a dama seja erguida ao status de dona do coração do Velho e, por
conseguinte, tenha a vida dele em suas mãos.
93
Gratwick alerta-nos para os títulos das obras de Plauto, que podem ser, em verdade, inscrições
pós-plautinas. Para o estudioso, não se pode dizer que o título das comédias que nos chegaram
seja de fato da época de sua composição. Entretanto, levando em consideração o prólogo do texto,
cujas referências a odores são nítidas, mesmo que Plauto tivesse dado outro título a sua obra, não
se pode negar a coerência desta leitura, que, de um ou de outro modo, a peça apresenta um
ambiente específico ligado a este valor semântico. (GRATWICK, Adrian. Plautus Menaechmi,
introdução e notas de Adrian Gratwick. Cambridge: Cambridge, 1993, p.06).
94
PLAUTO, Cásina. Clássicos Gregos e Latinos. Edições 70, 2006 (vv.235-238).
95
Sobre a metáfora escópica em Camões, consultar AZEVEDO FILHO, Leodegário A. de. Lírica de
Camões: 3 Canções (Tomo I). Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985.
66
Em Casina, o embate entre a velhice e a juventude se justamente na
querela entre o pai Lisidamo e seu filho, tendo no amor de ambos pela jovem o seu
motivo central. Plauto utiliza-se, inclusive, de vocábulos ligados à guerra militar
para tratar desse embate. No Auto do Velho da Horta, o debate sobre a velhice,
em oposão à juventude, está evidente desde o icio do diálogo do Velho e da
Moça, que não se cansa de tentar demover o libidinoso senhor de sua paixão,
lembrando-lhe constante e realisticamente de sua idade por trás de seu amor.
O desfecho do texto plautino, como, aliás, costuma acontecer nas comédias,
um casamento final, evidentemente entre a moça em questão com um jovem,
resolve a situação do senex amator. A união simboliza a idéia de que a sociedade
patriarcal pode continuar perpetuando-se, já que mantém a ordem biológica para
esta perpetuação, garantindo a manutenção dos elementos estruturais que
sustentam o corpo social. O casamento é, neste sentido, um elemento estrutural e
simbólico que harmoniza, pela chancela do amor, o embate entre o passado e o
presente, e isso porque o Velho carrega consigo as considerações, postas à
encenação, de que o é possível o avanço social com a completa destruão da
tradição. Nenhuma revolução se dá em campo destruído. É por isso que, se
aparentemente o jovem triunfa, é porque foi capaz de se integrar às regras da
sociedade antiga. Na verdade, o que assistimos ao final do especulo é a
harmonização do embate entre velhice e juventude, que o Velho deixa de ser
obstáculo e passa a exercer a função de aliado dos jovens enamorados. Gil
Vicente, como veremos adiante, não tendo sido influenciado, pelo menos
diretamente, por Plauto, assinala um outro tipo de desfecho e, com ele, uma outra
moral.
67
Para encerrarmos a caracterização do senex amator como personagem-tipo,
consideremos a relação que ele estabelece com a sua própria esposa, matrona
que não mais consegue inflamar o coração do senex com amores e perdições. A
inversão que aparece encenada é responsável por muito do sentido cômico do
enredo, pois à mulher legítima, sem encantos, são dedicados os piores adjetivos e
atitudes contrárias às regras do amor. A começar pelo nome da personagem
plautina. Cleostrata é não menos do que “um exército glorioso (do grego Kléos,
glória; e Státos, exército)
96
, avesso à característica angelical buscada pelo amador
em sua dama. O Velho da horta vicentina, em divertido diálogo com sua matrona,
classifica-a das mais variadas formas pejorativas, iniciando por uma encomenda ao
diabo (“Ó! dou ó decho a chaçona / sem saber
97
) reiterada em seguida (“comendo
ó demo a gulosa”), e finalizando, quando da saìda da Mulher, com a sua expulsão
do espaço da horta e, por extensão, do lugar que havia emoldurado a paixão pela
Moça:
Dona torna,
Acertar por essa porta,
velha mal aventurada,
sair maora da horta.
98
96
Ainda que o nome da personagem possa ter sido atribuído tardiamente, como é frequente na obra
plautina, o texto Clerumenos (Os sorteadores) do comediógrafo grego Dífilo preserva a forma
Cleostrata, o que nos dá boa indicação da manutenção pelo poeta latino. Afinal, é bastante
evidente, além do anúncio que se faz no prólogo, que Plauto produzia uma adaptação do original
grego. Diz o prologador de Casina que “esta codia se chama „Clerumenos‟ em grego, em latim
„Sortientes‟. Dìfilo escreveu-a em grego, e depois a reescreveu em latim Plauto...”. Possivelmente o
poeta latino tenha optado pela manutenção do nome dado por Dífilo para não perder de vista a
metáfora que alimenta o nome da personagem, que a idéia beligerante será de grande
importância para o desenvolvimento da ação. A utilização do nome de origem grega em uma
encenação latina pode, contudo, não ter alcançado o efeito desejado, porque o público não era
exatamente conhecedor do idioma grego. Todavia, sabemos que muitas das piadas plautinas
pressupõe conhecimentos mínimos da língua de Aristófanes. Sobre o uso do vocábulo grego em
Roma, sugerimos MEILLET, A. Esquisse une histoire de la langue latine, Paris: Hachette, 1933 p.
177-187).
97
Dou ao diabo a mulher que tudo vê e descobre. Cf nota de BRAGA, V, p.152.
98
V, p. 157
68
Estabelecidas as características essenciais do velho enamorado,
considerando-o um possível tipo dentro da tradão teatral, busquemos os textos
peninsulares que trabalham com a mesma tópica amorosa na velhice, procurando
refazer o percurso dessa personagem desde sua origem, entendendo que o
primeiro desenho é de Plauto, até a farsa vicentina
99
, fazendo indicações nos
culos seguintes. Os demais testemunhos peninsulares nos auxiliarão, pois, a
compreender melhor a apropriação deste tipo feita por Gil Vicente, bem como as
inovações promovidas por ele. Para tanto, vale comentar três textos
espeficiamente: o Diálogo entre Amor y um viejo, de Rodrigo Cota, e sua
refundição dramática no anônimo Diálogo entre el Amor, el viejo y la hermosa,
além da Celestina, de Fernando Rojas. Comecemos pelo diálogo de Cota que
figura no Cancionero general de Fernandéz del Castillo (1511)
100
para, então,
tecermos considerações sobre o anônimo.
99
Vale aqui uma explicação sobre o percurso desta investigação, tendo em vista a abordagem
realizada do senex amator em Plauto. Por mais que se conte que Erasmo de Rotterdam teria
estudado Língua Portuguesa para ler Gil Vicente, encontrando em sua obra traços notórios de um
continuador de Plauto, parece-nos sobremaneira perigosa a afirmação, como, als, aponta
praticamente toda a crítica. Se Plauto foi o maior e mais antigo dramaturgo da língua latina, e se Gil
Vicente o foi da língua portuguesa, a deliciosa tarefa de encontrar vestígios daquele na obra deste é
um trabalho sem sentido. A intimidade com o texto vicentino revela a olhos vistos que nosso poeta
o seguiu qualquer preceito anteriormente formulado na construção de seu teatro, o que salienta o
caráter original daquele que produziu o primeiro conjunto de obras verdadeiramente teatrais em
Portugal. Não estamos, portanto, ao propor um percurso de Plauto a Gil Vicente, tentando encontrar
influências diretas. O que nos interessa aqui é a apropriação que a cultura dramatúrgica fez do tema
da velhice enamorada; um cotejo temático, sem a incoerente intenção de construir um certo senhor
Gil, leitor de comédia latina. Se tivermos de alçar algum escritor à condão de modelo das obras
vicentinas, não tenhamos dúvidas, será Juan del Encina, fundamentalmente nos textos pastoris.
100
Publicado em Valência, o cancioneiro em questão é o primeiro e único testemunho quinhentista
do texto de Cota. Em 1614, outra publicação retoma o Diálogo (Ylas cartas en refranes / de Blasco
Garay... con un dialogo entre el amor y un cavallero viejo / cõpuesto por Rodrigo Cota [Biblioteca
Nacional de Lisboa, microfilme, COTA: f.299]).
69
3.2 Diálogo entre Amor y un viejo e sua possível refundição anônima
Provavelmente inspirado no Libro de buen amor
101
, O Diálogo entre Amor y
um viejo, de Rodrigo Cota
102
, é comumente deixado de lado pelos estudos teatrais,
tendo em vista que apresenta mais características da lírica que emoldurou a
literatura espanhola de Quatrocentos do que propriamente aquelas utilizadas para
considerar um texto, stricto sensu, como representante do gênero dramático. Em
linhas gerais, é isso mesmo o que temos: trata-se de um Dlogo que evoca a
poesia de debate preservada da Idade Média, cuja estrutura dialógica, ainda que
se aproxime do caráter de representação, não apresenta elementos fundamentais
de um texto dramático, como, por exemplo, o tempo da ão, a presença de
indicações cênicas, espaciais e temporais, além de sugestões de vestimentas, etc.
Isso não nos autoriza, contudo, a desconsiderá-lo de nossa análise.
Iniciemos esta discussão a partir do posicionamento teórico de Sirera (1992),
que organiza os elementos dramáticos sicos que nos podem autorizar a
determinar o grau de teatralidade em textos cancioneiris. Além da questão
101
A obra de Juan Ruiz, datada de meados de 1300, parece ter sido bastante difundida em seu
século e no seguinte, tendo em vista que o poema, de 1728 estrofes, tem testemunho em três
manuscritos quatrocentistas preservados. A partir da estrofe 181, Alcipreste entra em um debate
com o Amor, condenando-o de toda maneira (“Si Amor eres, no puedes aquí estar, / eres mentiroso,
falso en muchos enartar, / salvar non puedes uno, puedes çient mil matar.” estrofe 182). Mas o
Amor, argumentando a seu favor, consegue demover Alcipreste de sua recusa, que vai à procura,
com ajuda dos conselhos de Vênus, de uma dama de “grand linage (estrofe 598). O Viejo de Cota
também se renderá ao Amor, depois de longa disputa. Para maiores informações sobre o Libro de
un buen amor, sugerimos consultar a introdução de Alberto Blecua à sua edição da obra (BLECUA,
Alberto, “Introducción”, In: Juan Ruiz, Arcipreste de Hita, Libro de buen amor. Madrid: Cátedra,
1992)
102
Quase nada sabemos sobre Rodrigo Cota, senão que escreveu uma obra provavelmente pouco
lida no seu tempo. Como dissemos, o texto do autor aparece no Cancionero de 1511 e desaparece
nas demais edições. O que lhe trouxe notoriedade foi a atribuição que posteriormente lhe deram da
Celestina. Hoje, independente de sabermos improvável esta tese, Cota figura entre os mais
importantes autores espanhóis de seu século pelo seu Diálogo. Para maiores informações sobre a
discussão de Cota na autoria da Celestina, sugerimos o estudo de Martinéz (1980), que defende
o apenas que Cota seria o autor da comédia Celestina (afirmando que Rojas assinaria apenas a
tragicomédia), como também lhe atribui o texto anônimo Diálogo entre el Amor, un viejo y la
hermosa; seguido do estudo de Severin (1980), que revê esses apontamentos.
70
espacial, temporal e cenográfica citada, Sirera inclui o caráter dialógico evidente
entre dois ou mais personagens o que é observado no Diálogo de Cota e a
ação, característica primeira que movimenta o drama. Embora alguma ação esteja
presente no texto referido, será no Diálogo anônimo que encontraremos um sentido
mais coeso de actio, principalmente no desenlace, conforme analisaremos em
seguida. Estaríamos, portanto, no caminho adequado para a análise da velhice
enamorada no teatro ao considerar o texto de Cota? A questão parece ser mais
complexa do que simplesmente classificar o Dlogo entre Amor y un viejo como
dramático ou lírico.
Vale ressaltar que, apesar da relativização que agora realizamos, Leandro
Fernández de Moratín já havia incluído Rodrigo Cota em seu estudo Origenes del
teatro español
103
, onde também reúne, em uma antologia final, textos dramáticos
anteriores a Juan del Encina, entre eles o Diálogo de Cota e três excertos
vicentinos (Comédia de Rubena, Comédia do Viúvo e Monólogo da Visitação). Ao
contrário de Moratín, outros estudiosos não se furtaram em considerá-lo um
incipiente exemplo teatral, ainda carente de um aparato dramático observado em
textos objetivamente preparados com caráter espetacular. Para Moratín, que
também escreveu textos teatrais tematizando o embate do amor e da velhice
104
, o
Diálogo entre Amor y un viejo apresenta todas as características para ser
103
Don Nicolás et don Leandro Fernández de Moratín, Orígenes del teatro español, In: Obras,
tomo II, Madrid: BAE, 1944. O texto de Moratín foi originalmente publicado em 1838 e sua obra
coligida em 1944.
104
El viejo y la niña, sua primeira peça, publicada em 1790 e El si de las niñas, de 1806. Para
maiores informações sobre o tema da velhice namorada na obra de Moratín, ver René Andioc:
Teatro y sociedad en el Madrid del siglo XVIII, Madrid: Castalia, 1987, e “Lectures inquisitoriales de
El de las niñas, Critique sociale et conventions tatrales In: Colloque International, 1, 2, 3
cembre 1988, Pau: Université de Pau, 1989, pp. 145-164. Também indicamos a importante
contribuição de María-Dolores Albiac Blanco “Viejos, niñas y cánones en el teatro de Moratìn (El
viejo y la niña en El de las niñas) In: Cuadernos de Historia Moderna. Anejos. Zaragoza:
Universidad de Zaragoza, 2007, VI, pp. 37-58
71
considerado um texto dramático
105
. Se comparado, contudo, ao anônimo Diálogo
del viejo, el amor y la hermosa, descoberto e publicado em 1886 por Alfonso Miola,
48 anos depois do estudo de Moratín, o texto de Cota parece carecer de elementos
teatrais tão bem definidos como os observados no texto quinhentista.
A dificuldade em se formular um cririo claro na classificação genológica
nos estaria, portanto, autorizando a considerar o Diálogo de Cota como um texto
híbrido? Sem vida; mas seria preciso explicar a natureza desse hibridismo, para
não repousarmos na superfície da questão, ainda que o caminho para isso seja um
pouco mais longo: sem a intenção de esgotar o debate entre a existência de
subgêneros, de textos semi-dramáticos, de teatro poético ou qualquer outra
conceituação das que se têm feito, julgamos importante levantar algumas
considerações que acabam passando ao largo dos estudos que tradicionalmente
se ocuparam da teatralização da poesia cortesanesca, tendo em vista que
consideraram, basicamente, os aspectos estruturais dos textos em questão, não
atentando ou, para não sermos injustos, dando rarefeita atenção a outras
fundamentais discussões no que diz respeito à arte teatral, entre elas a natureza da
receão dos textos, intrinsecamente ligada ao caráter recitativo e espetacular que
coloria as festas na corte. Afinal, o teatro tem no acontecimento social a sua base
e, por isso, a sociedade em que a manifestação teatral se desenvolve é, ao mesmo
tempo, quem sustenta e consome o drama. Merece, pois, ser considerada na
análise de conceituação genológica; nada menos do que um sistema de definição à
luz da ciência literária, mas também da apresentação do texto a um corpo social.
105
...es una representación dramática con acción, nudo y desenlace; entre dos interlocutores no es
posible exigir mayor movimiento teatral. Supone decoración escénica, máquina, trajes y aparato; el
estilo es conveniente, fácil y elegante; los versos tienen fluidez y armonía”. MORATÍN, idem, p.179
72
Diante disso, para falar do Diálogo entre Amor y un viejo, de Rodrigo Cota,
como um importante representante literário e testemunho do percurso do Velho
enamorado na literatura dramática ibérica, acreditamos ser necessária uma
considerável relativização no que concerne ao, ainda hoje, enrijecido critério de
classificação genológica para além das três divisões principais que compõem o
nosso repertório cultural de herança aristotélica, principalmente em se tratando de
um momento como o final do século XV, quando a literatura ibérica apresenta um
caráter sensivelmente híbrido. Ao fim e ao cabo, tudo diz respeito ao que hoje
consideramos teatro e como devemos analisá-lo no passado, quando, nas
festividades da corte, era possível observar diferentes manifestações que se
alimentavam, contudo, do mesmo espírito teatralizantes, muitas com protagonista
com máscara ou disfarces
106
. Diz Ana Rodado Ruiz, que
Nas cortes reais e nobiliárias, as formas sociais de relação
apresentam uma forte tendência à teatralização; os
acontecimentos cortesanescos são freqüentes: torneios e
passagem de armas, desfiles, jogos, entradas reais, festas
aristocráticas, etc. Entre esses jogos áulicos o mais
representativo é, sem dúvida, o momo, em que estão
presentes a sica, a dança e, em algumas ocasiões, a
poesia (...).
107
Sabemos que muitas composições poéticas do século XV, principalmente
aquelas de caráter dialogado (perguntas e respostas; debates; motes alheios como
106
Um excelente testemunho sobre as festas e representações na corte na segunda metade do
século XVI é La crónica del Condestable Miguel Lucas (cujo primeiro editor atribui a Juan de Olid,
criado do Condestável). Boa alise da crônica faz CLARE, L. “Fêtes, jeux et divertissements à la
cour du Connetable de Castille Miguel Lucas de Iranzo. Les exercises physiques”, in La fête et
lécritura. Théâtre de Cour, Cour-Théâtre en Espagne et en Italie, 1450-1530 Aix-en-Provence,
Universide Provence, pp. 5-32.
107
En las cortes reales y nobiliárias las formas sociales de relación presentan una fuerte tendência
a la teatralización; los fastos cortesanos son frecuentes: torneos y pasos de armas, desfiles, juegos,
entradas reales, fiestas aristocráticas, etc. Entre estos juegos aúlicos el más representativo es, sin
duda, el momo, en el que se dan cita la música, la danza y, em ocasiones, la poesía (...) (tradão
livre) RUIZ, Ana Rodado Poesía cortesana y teatro: textos semidramáticos en los cancioneros
cuatrocentistas. XVII Jornadas de Teatro Clássico: Almagro, 1994
73
desafio para glosa; etc), possuem claras possibilidades dramáticas. Muitos desses
poemas se revestiam exclusivamente do caráter oral e recitativo, e não da escrita
ou leitura. Assim sendo, o estamos muito distantes do que caracteriza o teatro,
para além da estrutura do texto que lhe serve de base; estamos, em verdade,
bastante próximos da manifestação representativa de cunho espetacular. Contudo,
a tradição imposta pelos estudos de gênero parece não nos autorizar a considerar
esses textos como peças dramáticas.
Lázaro Carreter, ao recolher várias obras que possivelmente foram
representadas alguma vez
108
, insiste em criticar a necessidade de os estudos
literários estabelecerem diferenciações precisas entre os gêneros. Para o
pesquisador, esta tarefa é tão inconveniente quanto desnecessária, tendo em vista
que a literatura espanhola do século XV possui limites absolutamente difusos e
que, por isso mesmo, não é afeita a classificações genológicas. É certo que a
presença de elementos dramáticos no texto de Cota não é suficiente para
considerar a obra potencialmente representável, embora a falta de alguns
elementos também não indique a negação dessa possibilidade. Mesmo Elisa
Aragone, notável editora do texto, está convencida disso quando afirma que
...o diálogo foi escrito e destinado não apenas para a leitura,
mas também para a representação, e acreditamos nessa
possibilidade de ter sido representado, ainda que em um
âmbito restrito de uma sala ou de uma capela palaciana, e
talvez com recursos cênicos mais felizes do que possamos
hoje imaginar
109
108
ZARO CARRETER, F. Teatro Medieval. Madrid: Castalia, 1984
109
...il Diálogo fu scritto destinato non soltando alla lettura, ma anche alla rappresentazione, e
riteniamo assai probabile che sia stato rappresentato, sia pure nel reistretto ambito de una sala
gentilizia o di una cappela palaciana, e forse con ricorsi scenici piu felici de quanto possiano oggi
imaginare(tradução livre) ARAGONE, Elisa Diálogo entre el Amor y un Viejo, de Rodrigo de Cota,
Introdução, texto crítico e vero comentada de Elisa Aragone. Firenze: Felice Le Monnier Editore,
1961, p.55
74
Por tudo isso, fazemos aqui a opção de considerar o Diálogo entre Amor y
un viejo como um texto híbrido, fundado primordialmente na relação dinâmica que
estabelece entre os gêneros em que foi elaborado. Nosso posicionamento pode ser
compreendido, em primeiro lugar, como uma chamada à flexibilização de critérios
o enrijecidos que certamente são incapazes de classificar algumas obras da
literatura e, em segundo lugar, como um apontamento sobre a dinamicidade com
que os gêneros se relacionam dentro do texto teatral. Temos em mente, por isso,
que o Dlogo de Cota está para além do Lírico, embora não seja estritamente
Dramático. Não reside aí, entretanto, o interesse genológico e, por conseguinte,
literário. Será a relação dinâmica entre esses dois gêneros que resultará em um
trabalho autoral de extrema habilidade e, por isso, merecedor de atentos olhares
por parte dos estudos sobre teatro e poesia.
Assim, levado a cabo este debate, justificamos o aparente uso
indiscriminado do termo dramático, abdicando, porque equivocada, da tarefa de
firmar uma nomenclatura particularizada que dê conta da natureza deste Diálogo
de tão intrincados limites. O hibridismo me parece um caminho mais confortável e
coerente, principalmente se considerado pela perspectiva da relação dinâmica
entre os gêneros. Uma quase dialética genológica, onde as diferenças conceituais
entre poesia e teatro produzem um conflito que justifica uma nova proposão
literária. E Gil Vicente, neste aspecto, é o maior escritor ibérico de seu tempo.
Sendo assim, passemos à análise mais detalhada do texto de Cota,
observando a construção da figura do senex amator em diálogo com os demais
velhos até agora apresentados, fazendo, quando necessário, visitas ao Velho da
horta que Gil Vicente criou.
75
O Diálogo entre el Amor y un viejo, a despeito de seu caráter híbrido, tem
como base a estrutura de debate
110
entre um senex e o próprio amor. Totalizando
630 versos, pode ser compreendido a partir de partes relativamente autônomas,
embora não haja qualquer divisão ao longo do texto.
Aliás, a única referência paratextual é o argumento inicial:
Comiença una obra de Rodrigo Cota a manera de diálogo
entre el Amor y un Viejo que escarmentado del, muy retraydo
se figura en una huerta seca y destruyda, do la casa del
plazer derribada se muestra, cerrada la puerta, en una
pobrezilla choça metido, al qual súbitamente parescio el Amor
con sus ministros, y aquel humilmente procediendo, y el Viejo
en áspera manera replicando, van discurriendo por su habla,
fasta que el Viejo del Amor fue vencido; y comento a hablar el
Viejo en la manera siguiente:
111
O texto de Cota, portanto, inicia-se com as duas personagens em cena. O
viejo, a quem bitamente parescio el Amor, é o primeiro debatedor, e abre a
disputa com queixas e lamentações, deixando claro já na primeira estrofe que a
presença de seu interlocutor é indesejada.
Cerrada estaua mi puerta.
A qué vienes? Por do entraste?
Dí, ladrón, por qué saltaste
las paredes de mi huerta?
110
Sobre o debate medieval, ver SIMÓ, Lourdes (Ed). Juglares y espetáculos: poesia medieval de
debate Tradução de Lourdes Simó, Eduardo Moga e Sérgio Gaspar. DVD, Barcelona, 1999. Nesta
obra, encontramos uma coleção de textos da Idade Média selecionados pela sua estrutura de
debate. Lourdes Simó atualiza a lição medieval e apresenta o texto original ao lado, organizando a
edição em diferentes modalidades de debate, desde as mais alericas, como aquelas em que
pares opostos como assunto debatidos, tais como o corpo e alma ou a água e o vinho, passando
por textos em que se tipificam os debatedores, como o clérigo e o cavaleiro, até diálogos mais
inusitados, como Pleito de los colores, de Pedro Gonzaléz de Uceda ou mesmo a curiosa Disputatio
rosae cum viola, de Bonvesin de la Riva.
111
Trabalharemos aqui com a edição facsimilada de 1511 feita em Madrid pela Real Academia
Española em 1958 e disponibilizada pela Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes.
76
Embora diga que La hedad y la razón o tenham curado dos males do
Amor, que enlouquecem o sujeito, o viejo entende o quanto aquela presença
inesperada é potencialmente perigosa, tendo em vista que já lhe transformara o
jardim, antes belo, com ordenadas calles, com muros de jazmín, com arroyos
corrientes, em uma decrépita horta onde ni las aves produzientes com los
cantos tan consolables existem mais. O jardim não é o único espaço que se
desfez: também sua casa é agora uma cabana. Esta é a primeira parte do Diálogo,
que abrange as quatro estrofes iniciais.
A horta funciona como metáfora da condição do viejo; um espaço em que
estão refletidos seu corpo, já destituído da juventude, e seu coração,
absolutamente ferido pelas armadilhas do Amor ao longo de toda uma vida. Ora,
mais uma vez temos o espo do jardim como lugar da enunciação, abrindo textos
em que um senex se envolve em um conflito amatório. Se o viejo de Cota leva 500
versos para se render ao sentimento amoroso, no Auto do Velho da Horta temos
uma rendição imediata: basta a Moça entrar em cena para o espaço se constituir
como área florida e tudo o mais passar a ser menos importante do que a dama.
Também no texto espanhol o Amor promete, como estratagema para conquistar o
viejo, transformar a horta seca, dando a ela frescos ramos. Mas o senex de Cota,
embora pareça amans, é na verdade um amator quando, em 5 estrofes, fica
rendido ao Amor, retornando em seguida à Razão e rechaçando outra vez o
visitante e suas promessas fatais. Definitivamente a imagem de frescos ramos
está distante da realidade do viejo, que se conforma dolorosa e eternamente.
De qualquer forma, é espaço cênico refletindo os efeitos do Amor: no
Diálogo, pela negativa; em Gil Vicente, positiva e libidinosamente apresentado,
77
afinal Ditoso he o jardim / que está em vosso poder: / podeis, senhora, fazer / delle
o que fazeis de mim
112
.
Depois de monologar em resistência ao Amor, repelindo-o de todas as
formas e nomeando os ministros del dolor que o acompanham
113
, feita, portanto,
a primeira argumentação do debate, o Diálogo de Cota abre espaço para a
interferência do Amor que pede insistentemente para ser ouvido, mas é repelido
pelo viejo, por mais que tente demovê-lo de sua amarga condição. O debate entre
os dois compreende 18 estrofes dinâmicas, de convencimento e recusa. É a vez,
portanto, de o Amor monologar, argumentando longamente a seu favor,
desmerecendo a melancolia e persuadindo o viejo através do tópico amor omnia
vincit
114
, dizendo que donde yo me llego / todo mal y pena quito e prometendo
trazer de volta a juventude perdida.
Yo hago las rugas viejas
dexar el rostro estirado
y sé cómo el cuero atado
se tiene tras las orejas.
Y el arte delos ungüentes
que para esto aprovecha.
Sé dar cejas en las frentes,
contrahago nueuos dientes
do natura los desecha.
Yo las aguas y lexías
para los cabellos roxos,
aprieto los miembros floxos
y do carne em las enzías.
A la habla tremulenta,
turbada por senetud,
yo la hago tan esenta
que su tono representa
la forma de juventud.
112
V, p.150
113
Afán, Desdén y Desseo, /Sospiro, Celos, Passión, / Osar, Temer, Afición, /Guerra, Saña,
Deuaneo, / Tormento y Desesperança, / Engaños con Ceguedad, / Lloros y Catiuidad, / Congoxa,
Rauia, Mudança, / Tristeza, Dubda, Coraje, / Lisonja, Troque y Espina / y otros mil deste linaje(vv
51-61)
114
A apropriação da máxima de Virgílio pode ser explicada no sermão do Frade do Auto das Fadas.
Trabalharemos mais adiante com a idéia do Amor omnia vincit.
78
O viejo ainda argumenta longamente contra a doctrina de macia do Amor,
que nos quita el sossiego e remata el saber, antes da contra-argumentação.
Agora retoma a palavra o Amor para lhe prometer, novamente, o rejuvenescimento
partindo mais uma vez da horta como metáfora do estado anímico em versos
de profunda dialética entre a dor e o prazer:
Dallí dizen ques locura
atreuerse por amar,
mas allí está s ganar
donde está s auentura.
Sin mojarse, el pescador
nunca coma muy gran pez.
No ay plazer do no ay dolor.
Nunca ríe con sabor
quien no llora alguna vez.
(...)
De verdura muy gentil
tu huerta renouaré,
la casa fabricaré
de obra rica, sotil.
Sanaré las plantas secas,
quemadas por los friores.
En muy gran simpleza pecas,
viejo triste, si no truecas
tus espinas por mis flores.
Ao provocar um cotejo entre o texto espanhol e o de Gil Vicente, um aspecto
fundamental parece apontar para a natureza diversa das obras: enquanto o Amor
tenta convencer o viejo de todo modo a cair em seus braços (e é o que acontece,
ainda que por um instante apenas), a Ma no texto vicentino se esfoa para
trazer o Velho de volta à Razão, sem sucesso. É provável que, por se tratar de uma
farsa, Gil Vicente tenha mais interesse em sinalizar a ruína do senex amator, não
apenas pelo que se extrai de substância cômica, como também para indicar uma
moral diferente daquela produzida no Dlogo do século XV. Por mais híbrido que
seja o texto de Cota, mesmo com alguma dinâmica entre-gêneros, somente a farsa
79
possui uma complexidade estrutural capaz de promover variadas situações cênicas
para além da longa argumentação típica do debate. Sem abrir mão, contudo, de um
caráter rico vigoroso absolutamente mesclado nas tramas da estrutura dramática.
É o que observamos na fala do Velho vicentino quando discorre sobre o Amor,
alimentando o lirismo do seu tempo com a tópica palaciana do conflito entre Amor
e Razão.
Quanto for mais avisado
quem d‟amor vive penado,
terá menos siso amando,
porque he mais namorado.
Em concrusão,
que amor não quer rezão,
nem contracto, nem cautela,
nem preito, nem condição,
mas penas de coração
sem querella
115
.
Usando todos os artifícios retóricos, o Amor conquista o viejo no Diálogo de
Cota, transformando o senex, de argumentador e opositor, em um servo (ves aquí
tu servidor) e aliado; em amator. Somente após o abraço entre eles, que selaria a
paz da contenda, é que o viejo percebe-se enganado, retomando as queixas ao
passo que o Amor zomba de sua credulidade. É neste momento em que temos as
duas estrofes que possivelmente deram origem ao texto anônimo Diálogo entre el
Amor, el viejo y la hermosa
116
. Com profecias de sofrimento por uma dama de muy
duro coraçón, o Amor lança a desdita futura do pobre viejo, ironizando seu
posicionamento frente ao sentimento amoroso. Atribuindo-lhe adjetivos
depreciativos (viejo triste, liviano...”, viejo triste entre los viejos...”, amargo
115
V, p. 147
116
Conforme dissemos atrás, alguns estudos têm assinalado a semelhança entre as duas estrofes
do texto de Cota, entendendo-as como o mote do Diálogo entre el Amor, un viejo y la hermosa.
Sobre as relações entre os textos, sugerimos o estudo de Severin (SEVERIN, Dorothy S. Cota, his
imitator, and La Celestina: the evidence re-examined. Revista Celestinesca 4. Valência:
Universidade de Valência, 1980, p.8).
80
viejo..., malaventurado...), o Amor encerra sua maldão. Ao viejo, resta somente
o pranto final das duas últimas estrofes, onde reconhece a derrota e critica sua
própria conduta diante de questão limite entre a vida e a morte simbólicas quando o
que está em cena é a condição a que Amor submete a todos:
El qual ynol
117
muerde, muere
por graue sueño pesado,
assí haze el desdichado
a quien tu saeta fiere.
¿A dó estauas, mi sentido?
Dime ¿cómo te dormiste?
Durmiósse triste, perdido,
como haze el dolorido
quescuchó de quien ste.
O Diálogo de Cota termina com uma estrofe nomeada no texto como Cabo.
É o fechamento característico das obras medievais em que há debate e tem a
mesma função da moral que encerra fábulas: pela alegoria do embate
apresentado, traça-se uma conduta moral como finda do texto. O cabo é a
sequência do pranto final do viejo onde, dirigindo-se ao seu sentido, à sua razão,
promove uma conciliação diante do quadro de sofrimento inescapável, do qual ele
e a própria razão são perdedores:
Pues en ti tuue esperança,
tú perdona mi pecar.
Gran linaje de vengança
es las culpas perdonar.
Si del precio el vencido
del que vence es el honor,
yo, de ti tan combatido,
no seré flaco cdo
ni tú fuerte vencedor.
117
Conforme nota do dicionário de língua espanhola, da Real Academia Española (22ª Ed.), ynol é
outra grafia de hipnal, uma víbora a quem os antigos atribuíam o sono mortal devido a uma mordida.
81
Pela exigência do gênero farsesco, Gil Vicente, por sua vez, produz um auto
cheio de contradições
118
que, em verdade, dão ao texto a dualidade e o conflito
necessários para a estruturação do enredo. Nesse sentido, a peça vicentina
também se encerra com um lamento final do senex amator
119
, contrariando todo o
tom de seu início. Para além do riso que se dilui na última cena (afinal, embora
esse tipo de texto tenha como base a comicidade, o que se percebe encenado
nunca é a gratuidade do risível, mas, antes, uma atitude que sublinha a matéria
cômica como elemento para a reflexão) note-se que o Velho vicentino também se
questiona sobre a Razão e indica a si mesmo uma condição de morte por amor,
tendo em vista que esta é a única possibilidade de libertação das dores. Oferece ao
público, com isso, mais do que uma moral para a história representada; uma
reflexão sobre a própria sociedade. Diz o Velho em seu lamento derradeiro:
Ó Roubado,
da vaidade enganado,
da vida e da fazenda!
Ó velho, siso enleado,
quem te meteo, desastrado,
em tal contenda?
Se os jovenes amores
os mais têm fim desastrado,
que farão as cans lançadas
no conto dos amadores!
Que sentias,
118
Embora no Diálogo de Cota possamos observar contradições, típicas de um debate, o que
verificamos na farsa vicentina é o jogo contraditório ao longo de todo o texto engendrado num
processo dinâmico dado o número de interlocutores que chegam ao Velho para, com ele, produzir
sentido pelo diálogo. Afinal, tudo nos leva a crer que o auto de Gil Vicente fora organizado a partir
de diferentes narrativas de gosto popular, concentrando, portanto, núcleos de ação diversos,
responsáveis por planos contraditórios em diferentes níveis de comicidade.
119
Na Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente, não marca de que quem fala é o Velho, mas
certamente as duas últimas estrofes são enunciadas por ele. Por continuidade, acredita-se que o
lamento final se inicie na antepenúltima estrofe. As edições vicentinas têm indicado diferentes
momentos para o início de sua fala. Marques Braga exclui a penúltima estrofe e indica apenas a
última como sendo enunciada pelo Velho. Outras edições indicam o verso 757 (oh roubado!), na
antepeltima estrofe. Assim o faz Cleonice Berardinelli (1984, p.275), posicionamento com o qual
concordamos. Cristina Almeida Ribeiro, em sua edição comentada, sugere o verso 755 (“oh que
estrela!), embora isso não nos pareça a intervenção adequada no texto. Cf. RIBEIRO, Cristina
Almeida. Vicente (coleção dirigida por Osório Mateus): Velho. Lisboa: Quimera, 1991 (e-book 2005).
82
triste velho, em fim dos dias,
se a ti mesmo contempláras,
souberas que não sabías
e víras como não vias,
e acertáras.
Quero-m‟ir buscar a morte,
pois que tanto mal busquei.
Quatro filhas que criei,
eu as pus em pobre sorte.
Vou morrer,
ellas hão de padecer,
porque não lhes deixo nada
de quanta riqueza e haver
fui sem rezão dispender
mal gastada.
120
Ao reduzir, em grau extremo, não apenas a dinâmica de ão dramática
estabelecida, mas também o nível de comicidade, Gil Vicente produz um efeito de
real inflexão com o pronunciamento final do velho. E nós, leitores de hoje, bem
como os espectadores da época é o que se leva a crer somos induzidos a uma
reflexão sobre nós mesmo. Utilizando a velocidade da mudança de atmosfera
como recurso teatral, o que revela o caráter primoroso de nosso dramaturgo, Gil
Vicente finaliza a farsa sem qualquer indicação, sequer de saída do Velho,
deixando-nos com o eco particular daquela inflexão final. Esta é uma originalidade
vicentina que merece atenção, como já nos assinalou Ribeiro:
(...) as suas palavras incitam o espectador a analisar também
os aspectos essenciais da história que perante seus olhos se
representou, mas, mais do que isso, sendo elas próprias
expressões de idêntico investimento analítico, determinam o
sentido em que deverá orientar-se essa nova reflexão,
certamente decalcada da do protagonista, que entretanto se
transformou numa espécie de duplo do espectador
121
120
V, p.176
121
RIBEIRO, idem, p. 30.
83
Nisso reside, aliás, a grande diferença entre os lamentos finais do viejo de
Cota e do Velho vicentino: enquanto no texto espanhol a moral proclamada pelo
senex acompanha o sentido de Amor relacionado ao pecado, limitando-o a
reflexões pautadas na dualidade com a Razão, a farsa vicentina para além do
ganho métrico, muitíssimo mais afeito à representação cênica do que as
declamativas redondilhas do viejo apresenta uma originalidade no tratamento do
embate entre a velhice e o Amor, oferecendo ao espectador algo mais do que uma
simples moral, um convite, ríspido, de inversão de estado. O que foi risível antes,
alimenta agora um novo olhar, muito mais reflexivo do que propriamente cômico.
Por isso precisamos apontar uma discordância ao posicionamento de Elisa
Aragone, já citada como a principal editora do texto de Cota, sobretudo quando
afirma que no início do século XVI
...um brilhante poeta ibérico, Gil Vicente, repete o mesmo
tópico de Cota no seu Auto do Velho da Horta: um velho,
passeando em sua horta, se vê diante de uma bela jovem que
busca ervas, e de súbito se enamora...
122
Ora, repetir o mesmo tema, e foi justamente essa semelhança que me levou
a analisar o texto de Cota, é uma afirmação sem dúvida coerente, mas não constrói
um cotejo criterioso entre as obras. Afinal, não estamos diante da repetição de um
tema de debate no território da farsa; estamos diante de um outro vel de
dramaticidade que articula comicidade e lirismo a partir da Imitatio e da
Transformatio.
122
“...un brillante poeta ibérico, Gil Vicente, reprende lo stesso tema di Cota nel suo Auto del velho
da horta: un vecchio, passeggiando nel suo orto, si trova improvvisamente dinanzi a una graziosa
fanciulla in cerca di erbaggi, di cui subito si innamora...” (tradução livre) ARAGONE, op.cit. p.27.
84
Ao abrir a possibilidade de construir, pelo teatro, um novo status social,
mesmo que momentâneo, oferecendo ao espectador um lugar de duplo da ação
dramatizada, Gil Vicente promove com uma cena final deslocada in extremis
daquilo que era risível inicialmente um novo teatro na península, diferente por sua
estrutura dinâmica, pelo tempo da ão, pelo jogo entre a matéria de riso e a de
reflexão. Mesmo Juan de La Cueva, que anos depois se apropriou do tema em sua
comédia El viejo enamorado e, como se espera de uma comédia, construiu um
desfecho da ordem do cômico, nem o dramaturgo de fim de século, dizíamos, foi
capaz de capturar da cultura uma temática tão tradicional como a do velho
concupiscente e dar-lhe um sentido para além da cena teatral como fizera o
humanista Gil Vicente com sua farsa de 1512.
*
* *
O Diálogo del viejo, el amor y la hermosa, descoberto e publicado em 1886
por Alfonso Miola, conforme já assinalamos, é outra obra que merece comentário,
considerando o percurso da tópica amorosa entre um senex e uma jovem. Tendo
apenas um único testemunho manuscrito preservado
123
, é a refundição bastante
livre e anônima do texto de Cota, como tem considerado a crítica
124
. A própria Elisa
123
Biblioteca Nazionale de Napoli: ms. XIII.G.42
124
Na realidade, embora a maior parte da crítica aponte a posteridade do texto anônimo em relação
do Diálogo de Cota, não sabemos exatamente se este está na linha direta de influência daquele.
Como dissemos, Cota era um escritor pouco conhecido em seu tempo, o que não levaria o anônimo
85
Aragone inclui o texto anônimo em sua edição do Diálogo de Cota, cercando-o de
comentários sobre a influência inter-textual que revela continuidade.
O que nos interessa, entretanto, não é a relação entre eles, mas,
fundamentalmente, como o escritor anônimo construiu o embate entre a velhice e a
juventude, marcado agora pela presença da dama, para mais uma vez fazermos
dialogar a aproprião do tema na construção do Auto do Velho da Horta.
Muito mais próximo do teatro em termos de classificação genológica, tendo
em vista a dinâmica das ações dramáticas e a variedade dos diálogos (o que nos
poupará dos comentários já feitos sobre o texto de Cota), o Diálogo anônimo,
organizado em estrofes de 10 redondilhas maiores, segue a mesma estrutura antes
observada: inicia-se com o lamento do Viejo, descontente com o mundo (versos 1-
60); apresenta a chegada do Amor, que deseja entrar, mas é repelido pelo senex
(versos 61-105); quando o Amor consegue dissuadi-lo e entrar não sem que o
Viejo lhe peça distância, como ocorrera no Diálogo de Cota , assistimos ao
momento mais feroz de embate, com comentários e réplicas (versos 106-440);
vencido, o Viejo entrega-se ao Amor, que ainda lhe dá conselhos sobre as
conquistas (versos 441-560).
AMOR Porque yo quiero
que tengas solo contigo
el secreto, buen testigo
del amor qu‟es verdadero.
Mas aquí trás esta puerta
estaré, donde te sienta,
con oreja bien dispuesta.
Tu, después d‟echa tu oferta,
con ser suyo te contenta.
Oye, oye, antes que vayas,
a necessariamente conhecê-lo. Existe, sem vida, um grande número de semelhanças entre os
dois diálogos, como assinalaram Salvador Martinéz (MARTINÉZ, H. Salvador. Cota y Rojas:
contribución al estudio de las fuentes y la autoría de La Celestina. Revista Hispanic Reviews 48.
Philadelphia: University of Pennsylvania, 1980) e Dorothy Severin (op.cit.), o que não permite,
contudo, uma filiação entre-textos.
86
nunca muestres que desmayas
de ser suyo, bivo y muerto.
(vv 547-560)
Se comparados aos versos vicentinos, o Amor nunca fora tão pouco lírico e
tão astucioso, pois a fala da personagem revela muito mais um estratagema banal
do Amor do que um acolhimento poético do amador. Gil Vicente jamais utilizou em
seus autos a figura do Amor como personagem-tipo, preferindo sempre a aparão
de Vênus anunciadora de casos de amor, como acontece nas Tragicomédias
Cortes de Júpiter e Frágua d‟Amor e no Auto da Lusitânia. O próprio Amor, ou
Cupido, embora seja referido em muitos textos vicentinos (no Auto do Velho da
Horta a alcoviteira, em ladainha, pede ao serafim de deos copido para consolar o
velho aflito, porque inda que contrito / vai perdido), apenas figura como
personagem na Tragicomédia Frágua d‟Amor e na Comédia Floresta d‟Enganos.
Nesta última, als, encontramos um discurso bastante original, já que é o Cupido
quem entra lamentando por amor, revelando uma atitude contrária à lógica de
causador dos males; um sofredor de suas próprias ações, como veremos nas
considerações finais desta investigação.
É a partir dos conselhos do Amor que os dois Diálogos se distanciam
fundamentalmente, para além do vel de dramaticidade que já era diferente desde
o primeiro verso: a cena recebe a figura de la hermosa, uma dama encantadora
que inflama o coração do Viejo, ausente no texto de Cota. E a sua aparão no
Diálogo anônimo revela o discurso galanteador do senex, ainda muito distante do
lirismo que coloriu a fala do Velho vicentino.
SENEX O divinal hermosura,
ante quien el mundo es feo,
imagen cuya pintura
pintó Dios a su figura!
Yo te veo y no lo creo.
87
Tales do contrario sinto
en contenplar tu eçelençia,
qu‟entre plazer y tormento,
detenido el sentimento,
no conozco tu presençia. (vv. 561-570)
Não aqui a intenção de apontar a má poesia nesta peça de teatro, ou
mesmo a ausência de lirismo no Diálogo del viejo, el amor y la hermosa, mas fica
evidente a qualidade dramatúrgica de Gil Vicente através de um simples cotejo
de cenas nucleares em aglutinar a proposição lírica à estrutura teatral, utilizando
ora um debate dinâmico entre o Velho e a Moça, ora estrofes inteiras de reflexões
poéticas sobre os efeitos do Amor.
No texto anônimo, como também no vicentino, por mais que o senex amator
tente estabelecer proximidade com galantarias, não consegue mais do que recusas
da dama (versos 561-645). Ao final, assistimos à lamentão do próprio desejo,
porque inapropriado, e os efeitos do poder do Amor, seguindo a lição de Cota
(versos 646-690): sem romper de modo extremo com o tom já instaurado no texto.
O Diálogo se encerra com um vilancete que discorre sobre a essência cruel do
Amor (versos 691-725), que pode ser comparado ao cabo que encerra o texto de
Cota.
Ora, o vilancete foi bastante utilizado no teatro ibérico como recurso musical,
e o próprio Gil Vicente não deixou de recorrer à forma ptica em seus autos
125
.
Mas, a despeito de um final com a estrutura de canção, o que demonstra que o
autor anônimo estava bastante inserido no universo cultural de seu tempo, o
Diálogo del viejo, el Amor y la hermosa não apresenta nem o caráter lírico
observado na fala do Velho vicentino, nem a proposão, que poderia revelar a
125
Veja-se o vilancete cantado a três vozes pelo Sol, a Lua e Vênus, na Tragicomédia Cortes de
Júpiter, ou aquele cantado pelo pastor Abel na obra de devoção Breve Sumário da História de Deus,
ou mesmo o entoado por três sereias na Tragicomédia Triunfo de Inverno, bem como aqueles que
encerram os autos da sebila Cassandra e dos Reis Magos.
88
qualidade dramatúrgica de alçar as palavras finais, a moral, para além da situação
enunciada, para além da ação representada, atingindo o espectador com uma
foa, notadamente rica, ao mesmo tempo de reflexão e de inflexão.
*
* *
A relação entre os dois diálogos, para além de todas as suas diferenças,
foi minuciosamente apontada no estudo de Miguel Ángel Pérez Priego
126
, quer do
ponto de vista do plano geral (o debate entre o amor e a velhice), quer em
inúmeras passagens localizadas em diálogo. Priego localiza ao menos seis
momentos de interseção entre as obras, embora pontue lucidamente, e com a
mesma minúcia, a existência de grandes diferenças entre elas.
Também a relação entre os dois diálogos e o Auto do Velho da Horta já foi
bem apontada por María Victoria Navas
127
, que comenta o espaço em que ocorre o
enamoramento, a horta, levanta elementos e referências pontuais e analisa de
modo coerente a organização da ão: o Amor é o vencedor do debate, mas, para
efetivar sua viria, terá de promover a rna do Velho e, com ela, um profundo
sentimento de humilhação e ingenuidade.
O que queremos propor com este caminho já trilhado é um acréscimo. Incluir
no plano de análise do senex amator uma obra capital da literatura espanhola,
observando como o tema percorreu pelos cancioneiros expressos nos Diálogos
analisados e como se transformou em proposão teatral de certa originalidade.
126
PRIEGO, Miguel Ángel Pérez. “La Celestina y el Diálogo entre el viejo, el Amor y la hermosa”, In:
Cinco Siglos de Celestina: Aportaciones interpretativas, ed. de Rafael Beltrán e José Luis Canet.
Valência: Universidade de Valência, 1997, pp. 189-198.
127
NAVAS, María Victoria. “O Velho da Horta de Gil Vicente”, In: Homenaje a Alonso Zamora
Vicente. Madrid: Castalia, 1988, vol.III, pp.253-264.
89
Possivelmente o passeio pela velhice enamorada em Gil Vicente será feito em uma
barca mais segura.
Portanto, ao realizar um percurso nos textos que evidenciaram a tópica do
amor, fundamentalmente no seu embate entre velhice e juventude, iniciando-se na
Casina de Plauto (entendendo-o como o primeiro alegorizador deste debate na
tradição teatral que se tem preservado), passando por dois Diálogos cancioneiris,
um notadamente mais preparado para o caráter espetacular do que o outro, resta-
nos antes de analisarmos o senex amator no Auto do Velho da Horta comentar
esta obra que, na esteira do que temos abordado, evoca o mais alto teatro e
desenha com clareza as linhas do que serão o romance e o teatro modernos. Falo
de Celestina, texto sobre o qual nos inclinaremos agora.
3.3 A Celestina ou Tragicomédia de Calisto e Melibéia
Muitos são os questionamentos em torno desta obra, quer de ordem
autoral
128
, quer de origem genológica
129
, quer ainda dos textos que estariam na
linhagem de sua feitura
130
. Não há, contudo, qualquer estudioso que tenha
128
Cf nota 102. Para maiores informações sobre a discussão de Cota na autoria da Celestina,
sugerimos o estudo de Martinéz (op.cit.), que defende o apenas que Cota seria o autor da
comédia (afirmando que Rojas assinaria apenas a tragicomédia), como também lhe atribui o texto
anônimo Diálogo entre el Amor, un viejo y la hermosa; seguido necessariamente do estudo de
Severin (op.cit.), que revê esses apontamentos.
129
Embora toda a estrutura dialogada característica do teatro esteja presente, a extensão do texto
nos leva a considerar a proximidade com a novela, dada a impossibilidade de representá-lo em um
único espetáculo, senão parcialmente. Por conta deste lugar intermediário, a crítica nomeou a
Celestina como “novela dramática”, como “novela dialogada”, entre outros termos. Para além disso,
o embate entre ser o texto uma comédia ou uma tragédia foi justificativa, inclusive, dos estudos
sobre autoria, afinal, os 16 atos de humor farsesco amoral criam uma polaridade extrema com os 5
finais, quando entra em cena a vingança, transformando o enredo cômico em pura tragédia. Por
esta rao, Martinéz afirma que Cota seria o autor de todos os 16 atos cômicos. De qualquer modo,
a Tragicomédia de Calisto e Melibéia aponta para uma real evolução na estrutura dialogada do
teatro, indicando com lucidez as bases da novela moderna.
130
O primeiro texto comumente relacionado à Celestina é o Diálogo del viejo, el Amor y la hermosa
(ver PRIEGO, 1987), entretanto, a linhagem da obra de Rojas é bastante complexa, tendo em vista
90
levantado questionamento sobre o valor da Celestina para a literatura espanhola e
européia de modo geral. Até Cervantes, no prólogo de Dom Quixote, dedica versos
à obra de Rojas
131
.
Por isso, em lugar de nos alongarmos em questões já bastante discutidas
pela crítica celestinesca, limitando-nos a indicar e comentar alguns estudos em
nota de rodapé para não perdermos o foco desta pesquisa, preferimos percorrer o
tema da velhice enamorada nesta grande obra, analisando a particular apropriação
do assunto feita por Rojas, sempre em diálogo com o texto vicentino.
A importância da obra, contudo, gerou uma vasta bibliografia ao longo dos
culos, mesmo para um recorte específico como o nosso. O próprio Rojas, no
prólogo da edição da Tragicomédia (1502), comenta a grande controvérsia que a
obra provocou de modo imediato (quando da publicação da Comédia de Calisto e
Melibéia, em 1499)
132
, produzindo talvez a primeira crítica da Celestina a partir de
questões, dentre elas genológicas, que ainda persistem nos estudos do século XXI.
Deste modo, procurarei me reportar aos estudos que ainda hoje figuram
como referência no cenário da literatura, tangenciando questões menores e dando
que as principais refencias o são da cultura popular, mas da erudita (Sêneca, Plauto, Terêncio,
Heráclito, Aristóteles, Homero,...). Isso não quer dizer, contudo, que Rojas não conhecesse bastante
bem as obras da vertente ibérica como as de Juan de Mena e Juan del Encina, por exemplo.
131
Na sátira aos poemas laudatórios que abrem a edição, Cervantes inclui versos com referência
direta à Celestina, adjetivando o livro como divino. Diz Sancho
Soy Sancho Panza, escude-
del manchego don Quijo-.
Puse pies en polvoro-,
por vivir a lo discre-;
que el tácito Villadie-
toda su razón de esta-
cifen una retira-,
según siente Celesti-,
libro, en mi opinión, divi-
si encubriera s lo huma-.
132
Diz Rojas no prólogo de 1502: “(...) até os impressores deram as suas picadas(...) discutiram
sobre o nome, dizendo que não devia chamar-se Comédia, mas que se chamasse Tragédia. (...) eu,
ao ver estas opiniões diferentes, entre estes extremos parti agora a discussão, e chamei-lhe
Tragicomédia(ROJAS, Fernando de. A Celestina Ed. José Bento. Lisboa: Assírio & Alvim, 1988, p.
10)
91
maior atenção à construção do debate entre o amor, a velhice e o desconcerto
amoroso.
A Celestina, de Rojas, tem sido analisada, basicamente, a partir de duas
vertentes principais: pela linha didático-moralizante
133
e pela ótica de que o autor,
como converso, veicularia uma visão pessimista da existência
134
. Alguns outros
trabalhos, contudo, não advogam uma ou outra posição, colocando-se um tanto à
margem do que comumente a crítica tem apontado. É o caso do estudo de Gallo
(1986), voltado para uma análise do neoplatonismo da obra, ponto este que
verdadeiramente nos interessa. Afinal, embora saibamos que Rojas conhecia os
escritores clássicos, tendo em vista o número de autores que cita em sua obra, é
bastante evidente também que todas essas citações não fossem apenas nomes,
mas referências concretas que participaram de modo decisivo em sua formação
intelectual. Para além disso, a leitura bembesca de Petrarca proporcionou a
transmissão de importantes conceitos neoplatônicos no mundo renascentista
135
,
mas também a literatura cortesanesca funcionou como fonte de concepções
platônicas e pôde legar a Rojas tal ideário, que era basicamente este o ambiente
do escritor.
De todo modo, a Celestina apresenta um imenso cabedal de teorias,
inclusive amatórias, quer pela via da afirmação dos pressupostos do amor cortês
133
O principal trabalho ainda é o de Bataillon (BATAILLON, Marcel. Marcel. La Celéstine selon
Fernando de Rojas. Paris: Didier, 1961). Outros autores podem ser incluídos nesta vertente, como
Maravall (MARAVALL, José Antonio. El mundo social de “La Celestina. ed., Madri: Gredos,
1972), a partir de uma moralização sociológica, e Morón Arroyo (MORÓN ARROYO, Ciriaco.
Sentido y forma de “La Celestina”. Madri: Cátedra, 1974), pelo viés teogico da moral. Sem dúvida,
o enredo e a organização das cenas conduzem à leitura de uma obra com intenção moralizante,
como veremos.
134
Ver principalmente o trabalho de Ayllón (AYLLÓN, ndido. La visión pesimista de La Celestina.
México: De Andrea, 1965)
135
No prólogo da Celestina (1502), é possìvel ler: “Achei esta sentença corroborada por aquele
grande orador e poeta laureado, Francisco Petrarca, dizendo: „sem luta e incômodo nenhuma coisa
engendrou a natureza, mãe de tudo‟.” (ROJAS, Fernando de. A Celestina Ed. JoBento. Lisboa:
Assírio & Alvim, 1988, p. 08)
92
para destruí-los (já que Melibéia passa por um processo de reificação, bastante
avesso à imagem da mulher no código amatório cortesanesco), quer pela sua
crítica direta que, na face inversa, desmistifica postulados como a vassalagem e a
mesura. Quer pelo sentimento do amador, satisfeito somente com ver a dama
virtuosa, quer pela angústia de querer consumar o amor em termos carnais, e tudo
que isso acarreta de pecado, arrependimento e juízo moral. Não obstante, grande
parte de todo este debate amoroso é travada a partir da dicotomia entre a velhice e
a juventude.
A Celestina tem em Calisto, personagem de nobre linhagem e medianas
posses, o eixo principal de todo o desenvolvimento da ão. Em sua loucura de
amor, dá a Melibéia, uma moça generosa e bem nascida, o lugar de dona de seu
coração e, neste sentido, tece argumentos que divinizam sua figura de donzela. O
espaço de enamoramento de Calisto, como verificado na tradição teatral, é
novamente o da horta. Diferente das demais obras, contudo, a horta é de Melibéia
e é nela que o senex adentra em busca de um falcão seu.
As recusas da dama, embora não estejam pautadas na diferença de idade
entre eles como no Auto do Velho da Horta, servem da mesma maneira que na
obra de Gil Vicente seguindo o modelo cortês para inflamar, ainda mais, a
paixão do senex amator, que confessa seu mal em tom de pura devoção: eu sou
melibeo, adoro Melibéia, em Melibéia creio e a Melibéia amo”.
Seu criado Semprônio, uma espécie de servus fallax da comédia latina,
contudo, não consegue observar a paixão de seu senhor sem apontar-lhe
detalhadamente o mal que há nas mulheres, numa fala de total desmérito e
grosseria que dissolve todo o enquadramento cortês de Calisto:
93
a história, estuda os filósofos, olha os poetas. Os livros
estão cheios de exemplos vis de decaídas que levaram com
elas os que, como tu, as exaltavam. Ouve Salomão quando
diz que o vinho e a mulher levam o homem à perdição.
Aconselha-te com Sêneca é péssimo o conceito em que as
tem. Escuta Aristóteles, segue São Bernardo. Judeus,
cristãos, gentios e mouros, todos estão de acordo. Mas
apesar do que já foi dito e delas ainda se diz, não aconselha a
que se façam generalizações. Houve e santas, virtuosas,
nobres, cuja coroa resplandecente de luz anula o vitupério
que se atribui a todas. Mas destas, das todas, ninguém
poderia contar as mentiras, indecências e leviandades, e
ousadias. (...) Anote a soberba, a falsa sujeição, sua gula, sua
inveja, sua luria, a sujeira, a covardia, o atrevimento,
feitiçarias, escárnios, em suma, a absoluta falta de vergonha
na cara. Considera também o cérebro não cabe uma valeçã
debaixo daquelas delicadas toucas. (...) Já rezaste nas festas
de São João e se diz: “A mulher é a mais antiga praga do
mundo. Começou expulsando Adão do Paraìso.
136
Mas o Velho tem na fala o limite de seu olhar, ampliado pela lente da paio:
não se importando com os argumentos de Semprônio, retoma a idealizão
platonizante para defender sua nobre dama de qualquer humilhação, que
Melibéia, diferente das demais mulheres do mundo, possui os atributos necessários
para conduzir o homem ao mais honesto estado de felicidade e realização:
Olha a nobreza e antiguidade de seu sangue, o gigantesco
patrimônio, sua mente privilegiada, virtudes resplandecentes,
a graça inefável, a beleza soberana, da qual te peço que me
deixes falar por algum tempo para que isso me sirva de
consolo. E estou me referindo apenas ao visível pois, se
pudesse te dizer do todo oculto, sei que calaria todos os
argumentos que empilhaste.
137
136
ROJAS, Fernando de. A Celestina L&PM: Porto Alegre, p. 22-23
137
Idem, p. 25
94
Calisto então discorre sobre sua dama, construindo-a metonimicamente
sempre com um à parte irônico de Semprônio ao percorrer-lhe os cabelos,
madeixas de ouro fino, os olhos, o nariz, a boca, os dentes, os lábios, o rosto, os
atrevidos seios, as tentadoras tetas, as mãos, as unhas. Finaliza refletindo sobre
a beleza interior que o se pode medir.
Ora, o senex da Celestina poderia ser mais amans do que amator se, para
conseguir a companhia de tão sonhada e virtuosa dama, o precisasse recorrer à
alcoviteira que nome à obra e se, em seu discurso amoroso, poupasse Melibéia
das conotações sexuais explícitas. Com isso, temos o desregramento total da
vertente cortês a partir de sua paródia, afinal, a dama inscrita em sua alma mas
também em seu corpo físico, pelo amor e pelo desejo carnal é de tal modo
inacessível que Calisto encontra valia nos imorais favores da velha Celestina. É,
portanto, a paródia dos postulados amatórios cortesanescos que, responsável pela
comicidade, construirá uma consequência moralizante para o enredo. Os cinco já
referidos capítulos finais, que carregam a peça de valor trágico, o chamado Tratado
de Centurio, dão o arremate moral que se pretende: Semprônio (servus fallax),
Pármeno (servus fidus) e Celestina são assassinados, Areúsa e Elícia, prostitutas
amantes dos servi, ao buscarem vingança, provocam a morte de Calisto, que cai
de uma escada depois de um momento de amor com Melibéia na horta. O que
resta à dama que já havia cedido ao velho, talvez fruto da feitiçaria de Celestina
é jogar-se do alto da torre, confessando seus pecados antes da queda. É a lição:
os vícios e sua necessária punição.
Têm razão, neste sentido, os estudos sobre o cunho didático-moralizante da
obra de Rojas, norteados por Bataillon (1961). Esta vertente crítica, contudo, ao
preferir uma leitura de caráter moral, exclui a possibilidade de o Tratado de
95
Centurio revelar o pessimismo de um judeu convertido
138
. Acreditamos, ainda, que
o que guarda valor em uma obra não é apenas o que ela pode revelar, mas o
quanto consegue esconder. Nosso posicionamento, por isso, segue a linha de
coerência desses estudos embora não se posicione deste ou daquele lado,
entendendo que a obra é de tal modo complexa, e de tão imbricados limites, que
merece ter um olhar da fronteira, onde esses estudos se encontram, para que não
ganhe, por fim, reduções desnecessárias. Com isso, fica claro que o que se
pretende aqui é apontar apenas um embate da crítica que, na realidade, representa
acima de tudo o caráter inovador de Rojas no cenário das letras, pois o autor foi
capaz de produzir um texto repleto de ambiguidades que ofereciam uma
interpretação plural ao leitor/espectador.
Qualquer que seja o posicionamento sobre a função da obra na sociedade,
ou sobre a intenção de Rojas com sua Celestina, o que temos em termos de
enredo é sempre o seguinte: o encontro do senex com a dama em tom cortês e as
recusas dela em nome da moral; o enamoramento imediato e as lamentações com
o criado; a burla do código cavalheiresco, tanto pela visão sexualizada de Melibéia,
quanto pelos meios espúrios para o senex fazer valer o seu amor; alguns quiprocós
agenciadores da comédia; a interveão de Celestina, pronta para levar vantagem
em qualquer tipo de situação; a correspondência do amor pela dama, que repeliu
inicialmente Calisto pela manutenção de um código que não podia seguir; e depois
disso apenas desencontro e morte.
Embora a constrão do embate amatório entre Calisto e Melibéia não tenha
como leitmotiv a diferença de idade entre eles, ou seja, embora estejamos diante
de um senex amator que se apaixona por uma jovem sem, no entanto, ter na sua
138
Para maiores esclarecimentos sobre a vertente didático-moralizante e a do pessimismo típico de
um judeu converso, indicamos vivamente o estudo de GONZÁLEZ, Mário Miguel. Celestina: o
diálogo paradoxal In: Cuadernos de Recienvenido 2. São Paulo: USP, 1996.
96
idade o grande fator de impedimento, não dúvidas de que na Celestina, de
Rojas, a questão da velhice no campo amoroso é tematizada de modo vigoroso. A
diferença é que Rojas parece deslocar as considerões sobre a senilidade para a
prostituta: é ela quem enuncia a maior parte dos comentários sobre a velhice e,
quando não, é sobre sua velhice que se reportam as demais personagens,
relacionando o seu corpo decrépito ao universo sexual que representa. É a puta
vieja, como alerta Semprônio:
Ela é chamada assim por toda parte. Se anda na rua entre
cem mulheres e alguém grita “Puta Velha!”, sem se incomodar
a mínima, até mesmo satisfeita, ela vira a caba e
cumprimenta com uma cara alegre. Nas reuniões, nas festas,
nos casórios, nos velórios, é assim que se chama por ela. Se
passa por cães, assim latem seu ladrido; se se aproxima de
aves é isso que elas cantam; se chega perto do gado é o
mugido que mugem, e “Puta Velha! coaxam as rãs no
alagado.
139
Calisto, com sua velhice enamorada, não é colocado no lugar da aversão, ou
pelo menos não é por causa de sua idade que é repelido por Melibéia. Neste caso,
a condição de senex é apenas uma atribuição para a construção do risível de sua
figura, ocupado com um amor que, via de regra, não seria possível considerando
a tradão que se ocupou do tema se não fosse a intervenção de Celestina; esta
sim, desenhada para causar aversão por sua velhice ainda em furor sexual, por
sua assimilação imediata entre amor e recompensa, por sua condição clandestina
de herege e alcoviteira. Recorta, por tudo isso, um lugar reconhevel na sociedade
e é daí que constrói, nos leitores/espectadores, a sua fuão cômica.
A aversão que provoca, als, está diretamente relacionada com os
fantasmas ideológicos que o corpo da mulher sempre inspirou. Mas esta aversão
139
Idem, p. 33
97
não pode ser reduzida a um arquétipo negativo, porque Celestina, para além de
uma velha, representa, de modo nada esquemático, as minúcias do
comportamento humano
140
. Estão centradas nela as trapaças, as mandingas, a
ganância. É ela a única de todo o enredo capaz de mediar a libido proibida de
Calisto. Também os pares amorosos, formados pelos criados Semprônio e
Pármeno com as prostitutas Areúda e Elícia, representam o caráter libidinoso do
amor, mas somente Celestina é a personagem que rne todos os cios, de
maneira absolutamente amoral, a partir da sua imagem, tão velha quanto aquela
sociedade que, ainda medieval, já sentia o frescor do Humanismo
141
.
Celestina ora utiliza sua velhice como arma positiva, baseada no princípio de
que na idade há experiência (“não prudência sem experiência, e não existe
experiência sem velhice”), ora como condição miseranda, carregada de predicados
negativistas. O que há de curioso nesta última situação é que, seguindo um recurso
característico do texto cômico, Celestina para conseguir contornar as recusas de
Melibéia e, com isso, lucrar a partir daquele jogo de amor acaba revelando todas
as suas fraquezas e tudo que de ruim na velhice. Ao tirar proveito das situações,
deixa vazar considerações realistas sobre sua idade avançada, fingindo um
140
Vale a pena a visita ao Auto das Regateiras, de António Ribeiro Chiado, onde a figura de uma
Velha parece tamm apontar para a existência de um personagem-tipo, responsável por conduzir
os espectadores a um passeio pelos vícios da sociedade. Embora o auto em questão não trabalhe
com a função imediata de alcoviteira, o autor -lhe os contornos semelhantes àqueles dados por
Gil Vicente em suas peças. É, na opinião de Cleonice Berardinelli e Ronaldo Menegáz, cuja edição
das obras de Chiado é a mais importante realizada, “a soma das Velhas do teatro quinhentista
tradicional, com uma excepcional vitalidade que se afirma nas perguntas em geral sarcásticas, nas
exclamações, nas ordens dadas com impaciência; fala torrencialmente, sempre muito segura de si.”
(CHIADO, António Ribeiro. Teatro de. Organização, fixação do texto e notas de Cleonice Berardinelli
e Ronaldo Menegaz, Porto: Lello & Irmão, 1994, p.108). Séculos depois, no texto “El mundo por de
dentro”, de Quevedo, encontramos preservada a figura da Velha que “por defuera tiene un cuerpo
de responsos, cómo por de dentro tiene un alma de aleluyas, las tocas negras y los pensamientos
verdes” (QUEVEDO Y VILLEGAS, Francisco de. Sueños y Discursos - edição e notas de
James O. Crosby. Madrid: Castalia, 1993, p.290)
141
É bem verdade que, pela sua data de publicação, não se poderia falar em Renascimento em
Espanha, mas em uma atmosfera que definitivamente anunciavam uma mudança. Bataillon (op.cit.),
entre outros estudiosos, entende que a obra já possui os contornos de um texto Renascentista.
98
disfarce que, se esconde sua intenção gananciosa, revela sua condição física e os
receios típicos da idade:
A velhice não é senão hospedaria de doenças, hospital de
pensamentos, angústia e ressentimentos, chagas incuráveis,
prontos pelo passado, stimas pelo presente, desespero por
qualquer futuro, o odor próximo da morte, cabana sem teto
onde chove o tempo todo, cajado de vidro que a qualquer
pressão se quebra.
142
O que presenciamos é a prática da mentira, porquanto Celestina nos tinha
sido apresentada anteriormente como enganadora, pronta a fabular noções morais
que em nada correspondem à sua imagem para conseguir enredar os pares
amorosos puramente pelo que espera de recompensa. É neste sentido que
observamos o posicionamento recatado da velha, apoiada nos princípios cristãos e
na devão amorosa alheia ao interesse material. Não há dúvidas, porém, para
quem lê ou assiste ao trecho representado, de que a personagem vale-se de
engenho malicioso, típico de quem busca benefício próprio das situações. A única
enganada é Melibéia. Diz a alcoviteira fingindo-se digna de fé:
Donzela graciosa e de tão alta estirpe! Tua fala suave e teu
gesto alegre, junto com a liberalidade que demonstras para
esta pobre velha, me dão a ousadia de dizer a que vim. Deixei
um doente perto da morte que, com uma única palavra saída
de tua nobre boca, que eu leve até ele escondida em meu
seio, eu tenho por fé que se cura dada a verdadeira devoção
que tem por tua beleza e gentileza.
143
Ao que tudo indica, a personagem Celestina pode ter atingido um grau
arquetípico de intermedria entre os casos de amor no teatro portugs; uma
142
Idem, p. 71
143
Idem, p. 75-76
99
proxeneta, por assim dizer. Veja-se, por exemplo, a velha cortesã Guiscarda, na
obra Vilhalpandos, de Sá de Miranda, que assume função de mãe alcoviteira,
buscando intermediar pela coba os amores da filha Aurélia
144
. Gil Vicente
parece ter sido sensível a este arquétipo da velha proxeneta, principalmente para a
construção da primeira alcoviteira, dentre as muitas que fecundam com ironia
cômica e moralidade os seus autos
145
. Referimo-nos à Branca Gil, do Auto do
Velho da Horta, que tenta conquistar a confiança do senex a partir de um discurso
autorizador daquela louca e senil paixão:
Mas ante senhor agora
na velhice anda o amor
o de idade d'amador
de ventura se namora.
E na corte
nenhum mancebo de sorte
nam ama como soía
tudo vai em zombaria
nunca morrem desta morte
nenhum dia
e folgo ora de ver
vossa mercê namorado
que o homem bem criado
até morte o há de ser
por dereito.
Nam per modo contrafeito
mas firme sem ir atrás
que a todo homem perfeito
mandou Deos no seu preceito:
amarás.
146
144
Para maiores informações, indicamos o estudo de Aires do Couto, intitulado “As comédias de Sá
de Miranda arremedos de Plauto e Terêncio”, In: Máthesis 13 Viseu: Universidade Católica
Portuguesa, 2004. Ao discorrer sobre Guiscarda, Couto estabelece paralelos importantes entre esta
personagem e a plautina Cleéreta, da comédia Asinaria.
145
Note-se a linhagem que se sucedeu depois da aparição de Branca Gil: Genebra Pereira, no Auto
das Fadas; Brízida Vaz, no Auto da Barca do Inferno; Ana Dias, na Farsa do Juiz da Beira; e a
alcoviteira anônima na Comédia de Rubena. Para maiores informações, indicamos o estudo de Júlia
Maria Sousa Alves da Silva, intitulado “A mulher em Gil Vicente”, Braga: APPACDM, 1995,
principalmente pp. 215-219.
146
V, p. 159-160
100
Celestina e Branca Gil, em suas falas mediadoras, têm um objetivo
semelhante e usam de semelhantes meios discursivos para concretizar seus
planos. Nos dois casos, a interveão da velha alcoviteira pretende iludir uma das
partes do embate amoroso a partir da falácia do puro do amor, encobrindo o desejo
de realização corpórea. Nos dois casos, temos a alcoviteira pronunciando um
discurso de alto valor o Amor em nome da salvação e, portanto, nobre em
essência para enganar um dos elementos do par amoroso, fazendo-o crer na
autenticidade e na legitimidade daquele querer.
Branca Gil eleva os sentimentos do Velho ao status de legítimo, dizendo que
não se ama mais como soia. A ele, em sua loucura senil, que não faz do Amor
zombarias, que é capaz de morrer desta morte, é oferecido o lugar de
verdadeiro amador, como nenhum outro jovem o poderia ser. Isto é, inclusive, um
degnio divino, um preceito de Deus que ordena: “amarás
Celestina procura conquistar a confiança de Melibéia a partir do mesmo
estratagema de Branca Gil: construir, pelo discurso, um sentimento de intenções
nobres e elevadas, baseado na tópica do Amor Cortês e na vontade divina,
soberana a todas as vontades. Melibéia figura, na fala de Celestina, como a única
capaz de curar o pobre enfermo Calisto, como milagre, santificada em sinais de
pura devoção. O Velho vicentino é, por sua vez, segundo Branca Gil, o
representante legítimo do amor elevado, cortês, que os tempos modernos têm
distorcido. Representa o código cavaleiresco e é eleito por Deus para conservar os
elementos da tradição.
O discurso, por isso, em ambos os casos, inscritos inequivocamente no
terreno da Comédia, funciona como paródia daquele sentimento que acometeu os
Trovadores e que ditou a atitude dos nobres nas novelas cavaleirescas. Ao
101
parodiar o Amor Cortês, Gil Vicente e Rojas apontam para aquilo que a poesia
palaciana começava a questionar: o humano tem altivez e vileza, alma e corpo
desejoso, e, por isso, funciona como matéria do risível destinada à prática da crítica
social. Tratá-lo como representante das virtudes e dos vícios é um dever moral.
As duas alcoviteiras, antes mesmo de ludibriarem suas vítimas, se valem da
feitiçaria como forma de conspiração em favor próprio. No texto de Rojas, com
elementos bastante característicos da iconografia de feitiço, como ratos e
morcegos, pós e elementos da ordem do grotesco. No texto vicentino, o que temos
é uma oração paradigmática às cristãs, mas de semântica totalmente pagã.
Também o caráter moralizante parece evidente nas duas obras: na
Celestina, o monólogo final de Plebério, pai de Melibéia, funciona justamente como
a moral da Tragicomédia e indica, em sofridos lamentos, que a culpa de todas as
mortes é do Amor:
Oh, Amor, Amor, não pensei que tivesses foa e
poderias destruir os que envolves. (...) A alcoviteira e
falsa Celestina morreu nas mãos de seus leais
companheiros, que ela empregava para o teu trabalho.
Morreram desolados. Calisto no despenhadeiro. Minha
filha acompanhou-o em morte igual e tão terrível. Tudo
causado por ti. A que deram um nome doce que tu
transformas em amargura. Não és igual para todos, e
toda lei tua é injusta.
147
Plebério, culpando o Amor com imagem bastante ligada à noção clássica
do deus (“Que fez por ti, ris? Que fez, Helena?) acaba ausentando de culpa
todos os envolvidos naquela aventura de amor e ganância. Plerio perdoa a
todos, como bom cristão que é. Quem não lhes perdoa é Rojas, que constrói uma
sucessão de mortes digna de uma tragédia shakespeariana. Ele próprio nos dá o
147
Idem, p. 240
102
indicativo moral quando, nos poemas que abrem a edição de 1502, diz na 11ª
estrofe que aparece sob a inscrição O autor, desculpando-se do seu erro nesta
obra que escreveu, contra si agúi e compara:
Oh, damas, matronas, mancebos, casados,
Olhai bem a vida que estes fizeram,
Tende por espelho o fim que tiveram:
A mais do que amores daí vossos cuidados.
Limpai já os olhos, os cegos errados,
Virtudes semeando com casto vivei
Deveis já fugir, a todo ocorrer,
Não vos lance Cupido seus tiros dourados.
148
Gil Vicente também não perdoa o Velho libidinoso, que cai em profunda
ruína, convidando o leitor/espectador a uma reflexão, como já assinalamos
anteriormente.
É evidente, como se pode notar, que a obra de Rojas se tornou uma
referência para vários escritores portugueses
149
, entre eles Gil Vicente. Don
Duardos apresenta o mesmo enamoramento no espaço da horta, quando
Flérida e por ela se apaixona. No Auto das Ciganas, Giralda cita Melibéia no jardim.
Em muitos momentos do texto vicentino podemos encontrar referências diretas e
indiretas à Celestina.
Por tudo isso, depois de ter percorrido dois textos cancioneiris e de ter
comentado a Celestina, sempre estabelecendo paralelos com a obra de Gil
Vicente, vejamos agora como a figura do senex amator se apresenta em outros
148
ROJAS, Fernando de. A Celestina Ed. José Bento. Lisboa: Assírio & Alvim, 1988, p. 7
149
O Filodemos, de Camões, tem bastante relação com a Celestina de Rojas. Diz Luciana Stegagno
Picchio que a obra é “romanesca, a meio caminho entre a Rubena de Gil Vicente e a Celestina de
Rojas” (PICCHIO, Luciana Stegagno “Comédia e Tragédia clássicas e o auto nacional no teatro de
Quinhentos” In: História e Antologia da Literatura Portuguesa Teatro Quinhentista s-vicentino.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p.16). A Codia Eufrosina (1543), de Jorge Ferreira de
Vasconcelos, é quase uma imitação da Celestina. Em Bristo (1553), de António Ferreira, também
podemos perceber a influência de Rojas.
103
textos vicentinos, em especial no Auto do Velho da Horta. Embora já tenhamos
analisado muitos momentos deste texto de modo comparativo ao longo do capítulo,
o senex vicentino merece ainda uma visita particular.
3.4 O senex amator em Gil Vicente
Comecemos por considerar que o Auto do Velho da Horta, diferente dos
demais exemplos apontados, é uma farsa
150
. Embora Celestina também se revista
de caráter farsesco, a problemática genológica que a obra apresenta não nos
permite classificá-la como tal, pelo menos não de modo strictu. Já o texto vicentino,
é assim nomeado na tavoada da Copilam e traz em seu argumento inicial a
confirmação desta modalidade dramática.
Esta seguinte farsa é o seu argumento que um homem
honrado e muito rico, já velho, tinha uma horta. E andando
uma man por ela espairecendo, sendo o seu hortelão
fora, veio uma Moça de muito bom parecer buscar
hortaliça, e o Velho em tanta maneira se namorou dela que
por via de uma Alcoviteira gastou toda sua fazenda. A
Alcoviteira foi açoutada e a Moça casou honradamente.
Entra logo o Velho rezando pela horta. Foi representada ao
mui sereníssimo rei dom Manoel, o primeiro deste nome.
Era do Senhor de 1512.
151
150
Consideramos que o melhor e mais moderno estudo sobre a farsa, do ponto de vista teórico-
estrutural e cnico-dramático, no campo dos estudos vicentinos, é a tese de doutoramento do
professor José Augusto Cardoso Bernardes, publicada em 2006 (BERNARDES, José Augusto
Cardoso. tira e Lirismo no teatro de Gil Vicente. 2vol. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da
Moeda, 2006). Na segunda parte deste estudo, o vicentista investiga a obra de Gil Vicente a partir
dos quadros europeus da sátira medieval e renascentista (o mico, o burlesco e o grotesco,
considerando também a cultura popular e o Carnaval).
151
V, p. 141 (A modernização do texto é nossa).
104
De maneira quase incomum, considerando os argumentos dos demais
textos vicentinos, no Auto do Velho da Horta temos a indicação, anterior à própria
ação, de todo o percurso da peça, pois que a didascália sinaliza a desgraça do
senex e a punição de Branca Gil, antecipando o que será visto. Traz, portanto, no
argumento inicial, a nomeação de farsa e a proposão moralizante, que
necessariamente a compõe. Um final anunciado previamente, indicador do
didatismo característico das obras de valor moral.
As comédias de ordem farsesca, de maneira geral, conseguem promover a
crítica a determinados modelos sociais e comportamentais a partir da sátira,
nutrindo-se de exageros como forma de reorganizar tarefa sempre impossível,
embora necessária do ponto de vista moral o mundo que aparece representado.
Normalmente apresenta desfecho extremamente didático como aponta o
argumento vicentino, pois propõe uma reflexão profunda sobre o agora e permite
uma contemplação do futuro a partir da resolução (ainda que em tom melancólico)
dos quiproquós agenciadores da ação dramática, dos enganos que alimentam a
movimentão das personagens no espo cênico, oferecendo ao leitor/espectador
material que ultrapassa o riso. O arremate do texto é sempre de base moral, afinal,
“tendo em conta que o engano, em Gil Vicente, excede o simples propósito
farsesco de fazer rir e pressupõe propósitos moralizantes, pode falar-se de uma
estratégia de recondão a uma ordem idealizada”, como já assinalou José
Cardoso Bernardes
152
.
É isso que observamos no Auto do Velho da Horta: uma constatação de um
amor serôdio, em tom de burlesco, que deseja do mundo uma nova organização,
fora do tempo por assim dizer; os enganos que alimentam a não-Razão do Velho,
152
Idem, p. 372
105
engendrados pela alcoviteira, autorizando aquele enamoramento contra natura; o
confronto com a realidade, que tenta demover o senex amator de sua loucura
amorosa; e a purgação, tanto de suas sandices, como das trapaças de Branca Gil,
como forma de reorganizar aquele espaço cênico que se construiu pela desordem.
É aí, como resultante deste percurso dramático, que se transferem para além da
quarta parede as reflexões lamentosas finais do Velho aos espectadores da corte,
gerando um recado social moralmente construído e com base na crença do mundo
Ideal.
Em todos os textos apresentados, encontramos a horta, tantas vezes
transfigurada em jardim, como lugar primeiro para o enamoramento, consoante já
assinalamos, analisando-a como reflexo da alma do senex amator. Entretanto, para
além dos textos que apresentam o debate entre o amor e a velhice, a horta parece
constituir um espaço cênico bastante recorrente para questões amorosas no
peodo do medievo e da Renascença Européia
153
. A poesia provençal, calcada
sobretudo na arte de trobar, que ditava uma série de regras para o tratamento do
amor, exerceu como sabemos influência incontornável na lírica galego-
portuguesa, recebendo também tratamento reelaborado pelo dolce stil nuovo
154
.
Nesta linha de influências, e observando os textos aqui trabalhados, a imagem da
horta/jardim parece ter-se constituído como um locus privilegiado para o encontro
amoroso.
O grande trovador proveal do século XII, Jaufré Rudel, já havia
comparado, seguindo a práxis exigida pelos ditames do Amor Cortês, o jardim a um
153
Cf. CURTIUS, Ernst Robert. El paisaje Idea”. In: Literatura Europea y Edad Media Latina,
Madrid: F.C.E., 1999, 6ª ed., Vol I, pp. 263-289
154
A Itália é, sem vida, o exemplo mais perfeito da apropriação dos temas provençais. Dante,
admirador desta poesia, dedicou-se às inovações que dela foram derivadas, legando à lírica
posterior as bases da poesia européia renascentista, da qual Petrarca é o principal representante e,
a partir dele, Caes.
106
verdadeiro palácio, idealizando aquele locus e conferindo-lhe lugar de segurança e
esplendor.
q'en breu veia l‟amor de loing
vereiamen, en locs aizis,
si qe la cambra e-l jardis
mi resemblen totz temps palatz!
155
O locs aizis da poesia provençal, reelaborado pelo espírito da Renascença,
do qual Gil Vicente sem dúvidas comunga, fez com que o jardim não significasse
apenas um lugar oportuno. Além de ser o espaço apropriado para a brisa, leve,
mas arrasadora, que simboliza o Amor, é também um locus que vai possibilitar um
diálogo frutífero entre os sentimentos do amador e o mundo ao seu redor.
Stephen Reckert já dera testemunho da importância, na lírica vicentina, de
um locus amoenus como lugar eleito para os amores, indicando-o como espaço
integrador e diversificado, onde diferentes elementos da natureza participam do
jogo amoroso
156
. Na introdão que faz à sua edição da Tragicomédia de Don
Duardos, Armando López Castro também analisa o locus amoenus que o jardim de
Flérida representa, apontando a harmonia entre o ser humano e o mundo natural,
pois entre el hombre y la naturaleza se estabelece una simpatìa, producto de um
mismo ritmo”
157
Ora, no Diálogo entre el viejo y el Amor, de Cota, de linhagem provençal, e
na Tragicomédia de Don Duardos, a natureza se comporta exatamente como lugar
155
A edição de Martín de Riquer, sensível e criteriosa, é considerada uma das melhores obras em
língua espanhola sobre o trovadorismo francês. O excerto do poema aqui citado, cujo incipit é
“Lanquan li jorn son lonc en mai”, foi retirado de sua edição (RIQUER, Martín de. Los Trovadores.
Historia Literaria y Textos, Barcelona: Planeta, 1975, III Vol., p. 165).
156
RECKERT, Stephen Espírito e Letra em Gil Vicente, Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda,
1983, pp. 147-149. Outro vicentista que também segue esta linha de análise, aprofundando as
considerações de Reckert sobre o erotismo contido nas imagens da natureza é Manuel Calderón
(CALDERÓN, Manuel. La lírica tradicional de Gil Vicente. Madrid: Alca de Henares, 1996).
157
VICENTE, Gil. Tragicomédia de Don Duardos. Edição e introdução de Armando López Castro,
Salamanca: Ediciones del Colegio de España, 1996, p. 56.
107
de harmonia entre o sentimento interior e o mundo exterior: o viejo sofredor tem
sua horta transfigurada em espaço seco e improdutivo; Don Duardos, nobre
cavaleiro, embora padeça de amores, sem abrir mão das exigências do Amor
cortês, não senão bem-aventurança na horta de Flérida. É neste auto que o
jardim, claramente indicado como locus amoenus no amoroso diálogo entre Julião
e Constança, aparece vivo e colorido, embora não mais do que a própria dama:
Julião Mirad mi alma el rosal
cómo está tan cordeal
y el peral tan lozano.
Costança Roiz Cuán alegre y cuán florido
está señor mi marido,
el jazmín y los granados;
los membrillos cuán rosados
y todo tan florecido,
los naranjos y manzanos.
Alabado sea Dios.
Julião Pues s florida estáis vos
158
.
Tanto as personagens da Tragicomédia de Don Duardos quanto o viejo de
Cota são construídos com características realistas e idealistas de modo
praticamente justaposto. A realidade que configura o sofrer de Amor se equilibra
com o idealismo do próprio sentimento amoroso. É exatamente aí que encontramos
a diferença fundamental entre todos os textos trabalhados e o Auto do Velho da
Horta: por se tratar de uma farsa, o protagonista desarmoniza o equilíbrio entre
Homem e Natureza, propalado desde a lírica provençal, colocando-se como figura
158
O verso final de Julião parece carregar mais sentido do que a crítica tem apontado. Ao comparar
o jardim à dama, Julião e por ele Gil Vicente estabelece mais do que uma comparação simples.
O que temos é um grau superlativo que coloca a mulher, merecedora de cortesias, acima da própria
natureza, mais florida que o próprio jardim. Sobre este verso, indicamos o estudo introdutório de
López Castro à sua edição da tragicodia, que analisa a “plenitude cósmica” desta sintonia entre o
amor e a natureza, preconizando assim a união de Don Duardos e Flérida (op. cit. p, 56). Também
indicamos vivamente as considerações de José Augusto Cardoso Bernardes, já que o vicentista
afirma que “...a horta de Constança e Julião, onde a Princesa e as suas damas tanto gostam de
passear, pode muito bem ser entendida como uma metonímia liricamente construída de um Portugal
reconciliado com a Razão, com a Natureza e como o Amor”. (op. cit. p. 431).
108
que representa apenas o ideal de amor, irrealizável fundamentalmente por sua
idade, deixando um buraco jocoso no plano da realidade que se torna o grande
responsável pelo efeito cômico que delineia o senex amator.
A horta de Flérida é uma espécie de correlato “sério”, por assim dizer,
daquela, manchada pela sátira, que observamos no Auto do Velho da Horta e,
portanto, as concepções amatórias relacionadas a este locus amoenus
apresentam-se diametralmente opostas nos dois textos. Neste sentido, a comédia
agora analisada propõe a burla do amor cortês na recorrente imagem do jardim de
amores, utilizando-se desse espaço caro à tradição provençal como motivador de
uma nova ordem, proibida, perniciosa, imoral. Por isso o horto que mais funcionaria
como modelo da lição vicentina seria, sem dúvida, o da Celestina.
O Velho da farsa de Gil Vicente é, por este percurso, um personagem-tipo
que revela não a outra face do Amor, mas a versão oposta do cavaleiro cortês, este
sim, desenhado pela juventude, pela assertiva do tempo e pelo amor idealizado,
mas possível. O senex vicentino é construído por um discurso de arremedo irônico
ao postulado cortês, quer na tópica que estabelece a incompatibilidade entre o
Amor e a Razão, quer na associação da Morte ao sofrimento amoroso, quer pela
afirmação, característica da poesia do seu tempo, da ausência de solões para
aquela situação amatória, afinal, amor não tem saída. Neste sentido, esta
personagem-tipo, tão relacionada ao viejo verde
159
que animou a literatura
espanhola, mas não só ela, é uma das maneiras encontradas por Gil Vicente para
formular, pela lógica contrária, proposões líricas que dessacralizam os topoi
159
Deste a literatura latina o adjetivo viridis vem sendo empregado como sinônimo de frescor e
juventude. No universo castelhano, verde seguiu com a mesma concepção do latim até pelo menos
o século XVII, aparecendo relacionado ao viejo com alguma frequência, muitas vezes indicando
conotações libidinosas. A partir daí, o ânimo e a juventude característicos do adjetivo ganham
contornos marcadamente sexuais. No Dicionário da Real Academia Española consta: Dicho de una
persona: Que conserva inclinaciones galantes impropias de su edad o de su estado. É a
correspondência, pois, do senex amator.
109
daquela poesia que encontrava grande espaço na corte. Desta maneira, nosso
poeta e dramaturgo afirma-se como artista extremamente refinado e afinado com o
seu tempo, pronto a realizar pelo sinal positivo, como na Tragicomédia de Don
Duardos, ou negativo, como no Auto do Velho da Horta um percurso poético
verdadeiramente aglutinado ao discurso teatral, criando organicidade entre os
gêneros e dinamizando a ação dramática a partir dos modelos então conhecidos
por seu público, com os quais realiza um jogo alusivo; recuperando e reinventando,
imitando e transformando.
Uma das melhores maneiras de se compreender esse caráter senil
inalterado, pelo menos até os momentos finais da farsa, é colocar o senex em
plano comparativo com o Parvo que aparece em cena logo depois da saída da
Moça, chamando-o para jantar por ordem de sua patroa. Se, no primeiro momento
da peça, a dama ajuda a construir o ridículo do Velho pelo discurso realista que
profere, com a entrada do Parvo, um dos muitos que povoariam outros textos
160
, a
construção do ridículo do senex se dá pela lógica (ou pela falta dela) da parvoice,
provocando o riso porque, contemplando o diálogo entre os dois, fica o
questionamento sobre o lugar da loucura:
Velho Deus me faria mercê
de me soltar as amarras.
Vae saltando,
aqui te fico esperando:
traze a viola e veremos.
Parvo Ah! Corpo de San Fernando!
160
O Auto do Velho da Horta (1512) é, talvez, a primeira peça em que a figura do Parvo aparece.
Antes desta farsa, poderíamos citar o Auto da Fama, cuja didascália aponta 1510, embora a data
seja absolutamente constestada por vários estudiosos. Tendo em vista a referência a determinados
episódios posteriores a 1510, como a tomada de Malaca, em 1511, ou a destruição de Adém, em
1513, Brito Rebelo (1912, p. 62) resolve fixar a data do Auto da Fama em 1516. A professora
Carolina Michaëlis de Vasconcelos, em suas Notas Vicentinas (1945, p. 478), sugere 1519. Révah
(1975, p. 25) argumenta a favor de que a representação se teria dado em 1520. De qualquer modo,
somente depois do Auto do Velho da Horta é que a figura do Parvo ganhará força na obra vicentina
(Auto da Barca do Inferno, 1517; Comedia de Rubena, 1521; Tragicomédia Frágua d‟Amor, 1525;
Tragicomédia Nau d‟Amores, 1527; Tragicomédia Pastoril da Serra da Estrela, 1527; Tragicomédia
Floresta dEnganos, 1536).
110
Estão os outros jentando,
e cantaremos?
161
O dado do Real trazido pelo Parvo, a necessidade de se alimentar (até
porque do louco só a realidade mais imediata, como a fisiológica, pode ser
esperada), é confrontado com o que o Velho apresenta como Ideal. O idealismo,
contudo, baseado em uma condição serôdia do amor e, por isso, agenciadora do
cômico, leva a personagem a constituir-se como poeta que crê para si uma
igualdade aos demais poetas da corte. A partir daí, sempre que o senex fica
sozinho em cena, o cantar d‟amor será sua companhia, marcando insistente e
obsessivamente aquele enamoramento contra natura. É mesmo o que pretende a
farsa: denunciar, pelo grotesco da desordem, as feridas nas convenções sociais e,
por que não, literárias.
A figura do senex amator no Auto do Velho da Horta é, portanto, um convite
para observar o mundo às avessas: embora os conceitos formulados pelo
protagonista estejam na esteira da tradição de Quinhentos, encontrando em
Petrarca as principais proposões sobre o amor, o Velho de Gil Vicente apresenta,
como matéria representada que busca o fato social, a decadência do tempo ditoso,
abrindo passagem ao viés moralizante que aponta o dedo comicamente, e talvez
por isso mais rascante, para as mazelas da sociedade. O que retorna para a platéia
é mais do que uma história para alegrar os serões: a lição do senex é a de que o
tempo passado, se lhe conservamos o frescor para além do corpo, pode manter-se
jovem sem temer nenhum tipo de substituão. Assim, os avanços da juventude são
mais produtivamente assimilados. O erro não seria, portanto, outro, senão tentar
recuperar o que, no tempo passado, é irrealizável do ponto de vista presente. Uma
161
V, p. 153-154
111
visão humanista precisa da Razão, mesmo que desequilibrada pela foa do Amor,
sugerindo o progresso das relações sociais.
O Auto do Velho da Horta, por isso, é um olhar sobre a sociedade
portuguesa de seu tempo, com enfoque para o embate entre a juventude
irrecuperável e o sentimento amoroso (e toda alegoria que esta oposão
representa em termos de lição moral à sociedade). Apresentado de forma lírica e
cômica, mas sempre com um caráter teatral estruturalmente concebido como
poucos textos em sua época, leva-nos do riso reflexivo, agenciados pelos delírios
do senex amator, ao quase silêncio inflexivo, notavelmente construído na cena
final, que provoca uma mudança in extremis de tom, conforme já assinalei. Um dos
mais perfeitos exemplos de farsa da literatura ibérica de Quinhentos.
Para além do Auto do Velho da Horta, onde a figura do velho enamorado
ganha destaque central, Gil Vicente ainda problematizou a questão do amor entre
desiguais em outros textos
162
. Na Comédia de Rubena, por exemplo, Crasto Liberal
derrama galanteios líricos ao encontrar Cismena:
Entra Crasto Liberal, velho muito loução, e diz:
Onde Felício guerrea
e Dario Ledo também,
não sei se zombará alguém
de o velho vir á tea
amador mais que ninguém.
E pois senhora Cismena,
pera todos tendes pena,
e a dais em abastança;
dai-me a mim a pequena
de vossa sancta esperança.
Cismena Cant‟á agora será bem
que diga de meu direito
que saude ou que proveito
162
Para além dos autos que serão comentados, vale lembrar que, na Tragicomédia Nau d‟Amores
(1527), um velho pede para embarcar na nau cujo capitão é o próprio Amor, mesmo que não
conheça exatamente o seu destino.
112
he o que Cismena tem,
que a seguis tanto a peito?
devêreis d'haver respeito
que sois casado e ja velho.
163
Cismena, tal qual a Moça no Auto do Velho da Horta, toma a palavra para
invocar a Razão, considerando a velhice incompatível com o sentimento amoroso.
A farsa de 1512 tem, na verdade, importância modelar na construção de Crasto
Liberal, na Comédia de Rubena, nove anos depois. Num e noutro caso, temos
contra a legitimidade do amor senil a fala da dama, carregada de severidade,
seguida da fala do Parvo, que também em ambos os textos promoverá uma
reflexão sobre a loucura do senex amator, ampliando as parvoices do Velho e, com
isso, a comicidade decorrente da situação. Diz o Parvo que entra procurando seu
senhor, lembrando-lhe que sua idade é o tempo de doença e o prenúncio da morte:
Entra hum parvo seu criado, por nome Afonso, em busca
delle, e diz:
Aff. Hou noss‟amo, diz nossama
qu'está hi o mestre esperando
pera vos curar estando
da gota na vossa cama;
e que não caiais na lama,
que sois ora quebrado.
164
Na Tragicomédia Triunfo de Inverno (1527), é o próprio Inverno quem
apresenta a quarta figura que lhe aparece: uma velha libidinosa que entoa
repetidas vezes a mesma canção. Diz o Inverno aos pastores:
Inv. Pastores, acul asoma
una vieja sin sentido,
que quiere um mozo marido;
y él dice que la toma,
y sacóle este partido:
que se esta sierra pasar
163
III, p. 67
164
III, p.69
113
a lloviendo y nevando,
luego la quiera tomar;
y ella por se casar
viene descalza cantando.
Vem a Velha cantando.
“Assi andando, amor andando,
assi andando m‟ora irei
165
Com o desenvolvimento do diálogo compreendemos o motivo de a Velha
estar descaa, atravessando a serra na época mais fria do ano, além da razão
daquele canto. Apaixonada por Fernando, um mancebo tão bem feito, jovem e
solteiro, é ela quem faz a proposta de casamento, mas recebe como condição a
travessia da serra sem levar nada nos pés. Embora a Velha nomeie aquele
percurso como uma obra pia, é bastante evidente, em seu discurso engendrado
pelo amor serôdio, que suas motivações são, entretanto, de ordem mais sensual do
que espiritual. Afinal, disposta a um casamento com prazer, teria feito a romaria
cada vez mais leve, aludindo ao esquecimento da mantilha que lhe protegeria
do frio e reforçando, assim, a ideia de amor sexualizado. Uma vieja verde que
anima pequeno entrecho da tragicomédia.
Na Tragicomédia Floresta d‟Enganos, represenatada em 1536, Doutor
Justiça Maior, um típico modelo de senex amator, apresenta-se como um
galanteador ingênuo pois, em nome do amor pela Ma, é por ela ridicularizado.
Este auto é o último texto de Gil Vicente. Em 1536, nosso autor já estaria
preparando a edão de suas obras a pedido de D. João III
166
. A participação do
senex nesta peça é deveras importante, e marca o enredo com uma comicidade
165
IV, p. 283-284
166
O trabalho de recolher os textos dispersos o foi completado por Gil Vicente, como sabemos.
Segundo Braamcamp Freire (1944), este é o ano da morte do autor, embora Carolina Michaëlis de
Vasconcelos (1944) defenda 1540. Sem ao vicentina na organização integral das obras,
perdemos também informações sobre a apresentação de muitos textos, que estes dados seriam
mais precisos se comentados pelo próprio autor.
114
que se constrói pelo embate amoroso entre a velhice e a juventude. De qualquer
modo, o texto não se baseia em um núcleo de ação específica com ênfase nesta
ou naquela personagem. É mesmo uma floresta de rios enganos
167
. O exercício
de escrita dramatúrgica e poética que Gil Vicente vinha realizando desde pelo
menos 1502, com a visitação inicial, aliado à experiência adquirida pelo autor que,
ao longo desses anos, teve a corte como patrocinadora e consumidora de suas
obras, deram a Gil Vicente um domínio espantoso da estrutura dramático-lírica, não
observado em outros autores iricos. A Tragicomédia Floresta d‟Enganos tem
dezoito personagens e é uma texto elaborado a partir de uma dinâmica bem urdida
entre as figuras dos enganadores e enganados.
Maria João Brilhante
168
sugere que o Gil Vicente também pudesse estar em
cena, principalmente porque os três personagens que não contracenam entre si o
Filósofo, o Mercador e o Doutor Justiça Maior, que parece à estudiosa o mais
conveniente são figuras de idade já avançada. Não se poderá jamais confirmar
essa sugestão, ainda que a idéia exerça qualquer coisa de fascinante aos
estudiosos mais apaixonados. Tal qual acontece no Velho da Horta, o espectador
fica sabendo de tudo o que se irá passar durante a encenação pelo argumento. Na
Tragicomédia Floresta d‟Enganos, contudo, a explicação do enredo se dará em um
prólogo em prosa dito pelo Filósofo, depois de uma curta cena em que este dialoga
com um Parvo que lhe vem atado ao ; uma alegoria que contempla a idéia de
que o Filósofo está fadado a ouvir tolices pela vida. No prólogo, contudo, não há
nenhuma referência ao engano a que o Doutor Justiça Maior é submetido: vestir-se
de negra e trabalhar peneirando na cozinha graças ao estratagema da Moça, que
167
Poderíamos localizar pelo menos três maiores enganos: o do Mercador, o do Cupido e o do
Doutor. Ao redor desses núcleos, outros enganos se engendram em cadeia.
168
BRILHANTE, Maria João. Vicente (coleção dirigida por Osório Mateus): Floresta. Lisboa:
Quimera, 1992 (e-book 2005)
115
não quer saber dos galanteios do senex e passa a ridicularizá-lo, aproveitando-se
da ingenuidade e da cegueira do amador. A omissão do engano do Doutor no
prólogo teria sido um equívoco editorial da Copilaçam (que, muitas vezes,
apresenta paratextos pouco fiéis ao texto que se representa), ou uma chave
cômica guardada para surpreender os espectadores? Certamente a surpresa teria
reforçado, em 1536, a comicidade.
Qualquer que seja a resposta, o episódio do Doutor é importante tanto do
ponto de vista temático, que nos interessa, quanto do ponto de vista estrutural
169
.
Este engano não citado no argumento corta em duas partes a história de Cupido
que, enamorado da princesa Grata Celia, tenta enganá-la mas é por ela enganado.
O que importa aqui é, recuperando a importância da cena do Doutor, sinalizar que
estamos longe de uma tentativa de, por situações alegóricas periféricas, conduzir
os espectadores por enganos desvinculados
170
. Todo o auto se organiza a partir da
entrada e saída de novas figuras, na maioria das vezes apresentadas pelas
personagens que as antecedem. No caso do senex amator, Doutor Justiça Maior,
quem o apresenta é o Rei Telebano, nomeando-o como Doctor muy sabio,
prudente. A partir daí, o que será encenado contrapõe-se radicalmente à
sabedoria e à prudência.
169
Maria João Brilhante, comentando sobre o uso da lìngua lusitana e da vizinha no auto, diz que “a
eficácia teatral dos dois idiomas usados, para além da convenção, consiste em criar um
contraponto, em ritmar, e é o episódio do Doutor, ao usar o castelhano e o português em
simultâneo, que ilustra a técnica de composição do auto” (Idem, p.4).
170
António José Saraiva considera incoerentes as cenas que buscam unidade pelos enganos
(SARAIVA, António José Gil Vicente e o fim do teatro medieval Lisboa: Europa-América, 1981, p.
103). Ao contrário do crítico, compreendemos que os entrechos supostamente periféricos inseridos
neste auto, e o mesmo acontece em tantos outros, são estragias dramáticas que aumentam a
eficácia da ação teatral, que tornam a estrutura do enredo, para além de mais complexa, melhor
articulada. Os enganos se sucedem alinhavados pela temática geral do auto e, por isso, ampliam-se
uns aos outros, mantendo o fluxo da dramaticidade. Talvez Saraiva estivesse procurando em Gil
Vicente uma estruturação de cunho mais Aristotélico, com bases no teatro grego e romano. Neste
sentido, tem rao o estudioso: o que se observa está bastante distante dos ditames do gênero
dramático clássico. Contudo, seria necessário recuperar toda a atmosfera de representação teatral
própria da corte portuguesa antes de considerar qualquer tipo de incoerência.
116
Encantado pela Moça que procura no senex um conselho sobre um pleito
(“por ver se tenho dereito”), o Doutor tenta repetidas vezes fazê-la entrar em sua
casa, coisa com a qual ela não concorda, lembrando-lhe sua condição de casado.
Contudo, a Moça continua pedindo-lhe um conselho a respeito da demanda que
traz apenas um motivo para o encontro, já que o pleito não é anunciado em
nenhum momento, dando lugar ao ridículo em que a dama coloca o senex,
somente porque lhe falou de amor. Diz o velho:
Dou. Yo no quiero
de vos plata ni dinero
mas privar con vos por cierto
em lugar mucho secreto,
por deciros quanto os quiero.
Yo daré, juro á Dios,
la sentencia em vueso hecho;
y aunque no tengais derecho,
todo ello saldrá por vos,
y hareis vueso provecho
171
.
O que se nota para além de uma consideração sobre a justiça corrompida
(tema que remete à situação de sua época e que simbolicamente é comum aos
rios enganos do auto, todos corrigidos ao final da apresentação, quando se bate
o martelo em nome do ajuste moral das relões amorosas) , é a completa
ingenuidade do Doutor. Embora a Moça tenha saído de cena entoando uma
cantiga de engano (“Enganado andais, amigo / dias ha que vo-lo digo”), a
mensagem parece ficar clara apenas para quem assiste ao auto, mesmo porque a
Moça faz um à parte explicando o que se passará (“Oh! Como hei denganar / hum
doutor que se enganou.”) e o senex, movido por um amor de matiz sexual que o
deixa cego, parece não perceber sua verdadeira intenção por trás do que havia de
correspondência amorosa no encontro noturno que ela combina.
171
III, p. 192
117
Na hora marcada, antre as nove e as dez, o senex amator aparece à porta
da Velha, onde morava a Moça, assoviando, conforme combinado, para acusar a
sua chegada. Vendo-o tão dedicado ao amor ainda que nada platônico e, por
isso, tão senil, a dama não se furta a fazer troça da situação, enredando o
apaixonado por falácias amorosas:
Moç. Olhai-me aquelle assoviar!
Como vai lindo e secreto
aquelle dissimular!
Crede que mao he dachar
hum letrado ser discreto.
Senhor Doutor,
verdadeiro he vosso amor,
pois vos traz per tal caminho.
Sobirei muito passinho,
e vindo por onde eu for
172
.
A partir daí, a Moça constrói situações falsas para ridicularizar o Doutor,
invertendo a ordem da hierarquia do poder quando retira do senex suas insignias
de saber (a vara, a loba, as luvas, o sobreiro e a beca de veludo) e lhe rebaixa a
classe social ao travesti-lo com símbolos de uma negra peneiradora, sob o pretexto
de que, se a Velha aparecer, dirá que a negra peneira.
Nesta tragicomédia, como se percebe, maiores são os momentos de
comicidade provocados pelos insultos da Moça e da Velha, reduzindo-o a hum
doutor daquella idade andando tam desarranjado, / em tal maneira, a um
Ermitão que endoudeceo, do que os lamentos de amor do senex. O que se
encena em 1536 não é o um discurso lírico-amoroso rendido ao digo cortês
(como na Comédia do Viúvo), nem a paródia deste amor cavalheiresco liricamente
trabalhada (como no Auto do Velho da Horta). O que se é a matéria cômica
172
III, p. 193
118
extraída da rna do senex amator, a quem, diante de toda a crueldade a que é
submetido, só resta questionar sua própria ingenuidade:
Dou. Quien pensara norabuena
que una rapaza de un año
hiciera tan grande engaño
á um doutor hecho em Sena?
173
A formação em Paris não fora suficiente para abrir-lhe os olhos sobre os
enganos do amor.
*
* *
Como pudemos verificar, a velhice libidinosa na obra de Gil Vicente costuma
aparecer como inimiga do amor, conquanto a dama sempre rechace o senex,
lembrando-lhe sua condição senil. A exceção parece estar em uma breve
consideração na Tragicomédia Exortação da Guerra (1514), onde podemos ler uma
clara defesa da velhice enamorada, quando Policena, sofrida e lamentosa (“Muito
triste padecer / no inferno sinto eu, / mas a dor que o amor me deu / nunca a mais
pude esquecer”), começa a enumerar para um Clérigo nigromante as
características fundamentais do perfeito cavalheiro. Seguindo as proposões das
novelas de cavalarias e do código de amor cortês, Policena transforma a Exortação
da Guerra em uma exortação ao guerreiro, mesmo que velho e tossegoso:
Cle. Qual he a cousa principal
porque deve ser amado?
Pol. Que seja mui esfoado:
isto é o que mais lhe val.
Por que hum velho ditoso,
173
III, p. 200-201
119
feio e muito tossegoso,
se na guerra tem boa fama,
com a mais fermosa dama
merece de ser ditoso.
174
Modernamente, o viejo verde permaneceu no teatro como um tipo capaz de
promover eficácia dramática e material para reflexão. Embora sua introdução no
campo da encenão remonte uma longa tradição, o senex amator, a despeito de
sua velhice, não morreu. Depois de Gil Vicente, ainda podemos encontrá-lo, atrás
de uma moça qualquer, ao longo da literatura. O próprio Dom Quixote carrega a
ingenuidade do senex observada na tradão teatral, parodiando os postulados das
novelas de cavalaria e do amor cortês, sempre em busca de sua fantasiosa
Dulcinéa.
Do século XVI ao XVIII, podemos encontrar o senex amator vigorosamente
representado na figura do Pantalo da Commedia dell‟arte. Na virada para o
culo XIX, a obra de Leandro Fernández de Moratín, El sí de las niñas, já citada,
parece ser o exemplo mais próximo na península (a lição moralizante deste texto,
contudo, não está na ridicularização de Dom Diego, o senex amator, mas na
afirmação do seu caráter de detentor de saber e experiência que a juventude deve
reconhecer: o jovem tomando o lugar do velho por assimilação de seus princípios).
No século XX, o Amor de don Perlimplín con Belisa en su jardín (1933), de
Federico Garcia Lorca, não apenas reorganiza o tema da velhice enamorada como
resgata também o locus amoenus representado pelo jardim ou horta. Com o
subtítulo de Aleluya erótica en cuatro cuadros, Lorca constrói o velho Perlimplín a
partir da tintura da rispidez, tendo em vista que ele não conhecia o amor, e isso fica
verificado por seu casamento à foa com Belisa, jovem moça que se apaixona por
174
IV, p. 144-145
120
outro jovem. Para o protagonista, o sentimento amoroso está relacionado à luta
contra as normas sociais, impondo-se contra qualquer suposta ordem natural. Não
aceita, pois, ser um amante contra natura. Também Francisco Ayala, escritor
espanhol do século XX, deixou registrada a aventura de um senex amator em seu
Diálogo entre el amor y un viejo, recuperando a estrutura do diálogo e realizando
uma evidente refundição do texto de Rodrigo Cota.
No século XXI, recomendamos vivamente a recondução deste personagem-
tipo na obra Memórias de minhas putas tristes, de Gabriel García Márquez, onde
um nonagenário libidinoso resolve saciar-se de amor com uma jovem que,
dormindo, desperta no senex um amor mais nobre do que os seus impulsos
sexuais.
Com o percurso agora realizado, de Plauto a Gil Vicente (com breves
indicações da permanência do tema nos séculos seguintes), no encalço do velho
libidinoso e sua função na literatura, pudemos constatar que o senex é o
representante do tempo antigo que confere o embate, necessário para aão
dramática, com o novo tempo que a jovem por quem ele se enamora representa,
dando com isso material de reflexão sobre as mudanças da sociedade e sobre a
inadequação de alguns princípios do passado no presente. Embora o senex
também possa sugerir o poder pelo saber e pela experiência de vida, o que
observamos nas comédias em que o este tipo aparece é uma conversão do seu
cajado de mando em bengala que sustenta o corpo cansado.
Não podemos, contudo, encerrar este capítulo sem deixar claro que o senex
amator não é apenas uma figura que ganhou recorrência na tradição teatral
simplesmente por que caiu no gosto popular de determinada sociedade, como
aconteceu com outros tipos e temas também recorrentes, principalmente quando o
121
espaço é o da comicidade. A comédia é sempre uma resposta a uma preocupação
real advinda do universo social. Por isso o teatro nos obriga, próximo aos ritos de
passagem, a confrontarmo-nos com as mudanças de gerão para geração
compreendendo aí tudo que pode haver de crueldade e esperança na esteira do
tempo afinal, outros virão inevitavelmente ocupar o nosso lugar.
122
4. SENEX AMANS: lírico e saudoso
O que dói não é perder o ser amado,
mas continuar a amá-lo mais do que nunca,
mesmo sabendo-o irremediavelmente perdido.
175
nos referimos ao senex amator, relacionando-o àquela velhice
enamorada muito mais próxima do amor como lugar da libido do que propriamente
como topos sentimental. No capítulo anterior, quando Auto do Velho da Horta foi o
principal texto vicentino tratado, embora não único, à luz do qual desenvolvemos
análises dialógicas com os demais exemplos ibéricos que se apropriaram da
temática do viejo verde, pudemos verificar não apenas a imitação de uma tópica
amplamente utilizada na literatura, mas também a elaboração de Gil Vicente
desses topoi a partir de transformações de ordem estrutural, convertendo
elementos líricos em proposões cênicas.
Feito isso, chegamos ao momento desta investigação em que se faz
necessário um olhar detido a outro tipo de velhice, não mais relacionada ao caráter
libidinoso do amor. Referimo-nos, evidentemente, às personagens que perderam
seu objeto amado e que, pela exigência amorosa, continuam ligadas àquele
sentimento que jamais poderá ser novamente concretizado. São os vvos que
aparecem nos textos vicentinos, ora regidos pela dor de amar, ora revestidos de
uma comicidade que zomba dessa mesma dor. De qualquer maneira, o que
buscamos agora é a abordagem do que estamos chamando aqui de senex amans;
um caso mais particular de velho que não está propriamente vinculado à tipologia
de caráter observada nas diversas obras anteriormente abordadas. Neste
momento, a Comédia do Viúvo será, como fora o Auto do Velho da Horta no
175
NASIO, J.D. O livro da dor e do amor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p.30
123
capítulo anterior, a obra central de análise, à luz da qual articularemos outros textos
de Gil Vicente (principalmente a Comédia sobre a Devisa da cidade de Coimbra) e
de diferentes autores.
Todavia, a construção das personagens que analisaremos a seguir encontra
poucos paralelos imitativos na Península Ibérica
176
, o que não significa dizer,
contudo, que o jogo alusivo se desfaça por completo quando a cena é ocupada
pelos saudosos velhos vicentinos. Ao contrário, sendo a Comédia do Vvo um
texto do início da década de 20, e sendo a Comédia sobre a Devisa da cidade de
Coimbra do final do mesmo decênio, Gil Vicente pode ser tomado como um autor
modelar, uma verdadeira auctoritas, já que, de modo geral, praticamente todas as
personagens viúvas observadas nos textos que nos chegaram do culo XVI são
posteriores ao testemunho vicentino e, para além disso, não possuem a elaboração
lírica e a importância dadas por nosso autor. Sequer participam do núcleo do
enredo, como é o caso do Padre Eugênio, personagem viúvo e pouco importante
na Diana enamorada
177
, de Gaspar Gil Polo, obra publicada em Valência em 1564,
pelo menos quatro cadas depois da aparição do primeiro velho saudoso
vicentino.
176
Não queremos dizer, com isso, que esta temática em Gil Vicente carecia de antecedentes. No
que diz respeito à morte da esposa, configurando assim a viuvez, de fato não teremos
predecessores tão numerosos, a o ser que nos debrucemos sobre as mulheres que a tradição
medieval frequentemente trazia à tona, como Dido e Isolda, pertencentes a um universo culto que
nosso autor substitui por uma proposta intimista e popular. Entretanto, se considerarmos a poesia
elegíaca sobre a morte, mesmo que desvinculada da tópica da viuvez, temos de dar conta que Gil
Vicente surge como a última manifestação de uma velha poética medieval cujo aparado fúnebre
aparece, agora, de maneira extremamente depurada. Basta termos na lembrança o conhecido texto
de Jorge Manrique (1420-1485?) sobre o falecimento de seu pai: Coplas que hizo Don Jorge
Manrique ala muerte de mastre de Santiago Don Jorge Manrique su padre, disponibilizado em cópia
digital pela Biblioteca Nacional de Portugal. Talvez esse seja o testemunho mais próximo que Gil
Vicente conhecia e ao qual possivelmente teria recorrido, fundamentalmente no que podemos
chamar de catálogo de encômio, quando o autor reforça não as lamentações do triste vivo, mas as
qualidades e virtudes do morto. Quando analisarmos a Comédia do Viúvo, retornaremos ao texto
manriquenho.
177
O texto de Gaspar Gil Polo, dedicado à Doña Jerónima de Castro y Bolea, é a segunda das sete
continuações que ganhou a obra Diana, do poeta português Jorge Montemor, cuja obra foi
basicamente publicada em Espanha. Considerada a primeira novela pastoril espanhola, a Diana de
Montemor havia ainda recebido tratamento anterior de Alonzo Pérez, também em Valência, 1563.
124
A mudança do adjetivo amator por amans, agora proposta, tenta dar conta
da alteração semântica das personagens em questão. O primeiro termo pode
abarcar um sentido pejorativo de dissoluto e libertino, considerando que assim já
fora empregado por Cícero
178
conforme nos informa Ernesto Faria
179
. Já o adjetivo
amans era utilizado de maneira geral para designar aquele que ama, enamorado e
parece muito mais próprio para qualificar as personagens que agora ganharão
foco.
Antes de tudo, será preciso justificar a atribuão de senex aos personagens
das duas comédias vicentinas, já que nada nos textos nos dá indicativos de suas
idades. Na Comédia do Viúvo, embora, pelos seus lamentos, saibamos de sua
viuvez e embora também saibamos que tem duas filhas, Paula e Melícia, já em
idade de casar, não há nenhum sinal da condição física do protagonista. Do
mesmo modo, na Comédia sobre a Devisa da cidade de Coimbra, o Lavrador
viúvo, com quatro filhos, também não revela sua idade.
Quando tratamos dos velhos no capítulo anterior, nossa preocupação estava
concentrada na conceituação do senex amator, já que em todos os textos
apresentados as personagens eram claramente identificadas com a velhice. Sendo
assim, seria razoável considerar agora o Viúvo e o Lavrador como exemplos de
velhos? A imagem do senex amans lhes caberia para a análise que pretendemos?
Para responder com critério, é necessário entender o que a sociedade européia
considerava ser a velhice no século XVI.
178
Em Pro Caelio, por exemplo, um dos mais importantes textos para o estudo da misoginia, Cícero
atribui este adjetivo a Clódia, com quem Célio mantinha relações, o que auxiliou na construção do
protótipo latino de meretrix.
179
FARIA, Ernesto. Dicionário escolar latino-português. Rio de Janeiro: Ministério de Educação e
Cultura, 1963, p.66
125
4.1 A velhice na Europa do século XVI
Tradicionalmente o tema da velhice tratado por diversos autores sempre foi
aludido a partir de duas posões diferentes: uma positiva e outra negativa. Os dois
principais textos que aprofundam a questão são De Senectude, de Cícero, e De
Brevitate Vitae, de Sêneca. No primeiro, encontramos Catão, o Velho, enumerando
todas as desvantagens da velhice:
Pensando bem, vejo quatro razões posveis para acharem a
velhice detestável: 1) Ela nos afastaria da vida ativa. 2) Ela
enfraqueceria nosso corpo. 3) Ela nos privaria dos melhores
prazeres. 4) Ela nos aproximaria da morte
180
.
Cícero, a quem a velhice atingia, dedica seu livro a Ático, amigo de
mesma idade, também acometido por uma certa depressão dada a proximidade da
morte. Colocando as palavras em defesa da velhice na boca de Catão importante
figura da cena militar, política e literária de Roma, autor da primeira e mais íntegra
História da Itália , Cícero confere ao tema grande dignidade, oferecendo
considerações pticas e filosóficas contra os argumentos negativos que, via de
regra, são disseminados pelo senso comum sobre a terceira idade. Por isso, ao
desenvolver seu pensamento, desconstruindo as quatro máximas apontadas no
início do texto, Catão passa a considerar a dimensão positiva da velhice:
Em verdade, se a velhice não está incumbida das mesmas
tarefas que a juventude, seguramente ela faz mais e melhor.
Não são nem a foa, nem a agilidade física, nem a rapidez
que autorizam grandes façanhas; são outras qualidades,
como a sabedoria, a clarividência, o discernimento.
Qualidades das quais a velhice não só não está privada, mas,
ao contrário, pode muito especialmente se valer
181
.
180
CÍCERO, Marco Túlio. Saber envelhecer. Tradução de Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2009,
p.16.
181
Idem, p. 19
126
Sêneca, em seu tratado De Brevitate Vitae, aproxima-se da dimensão
positiva apresentada por Cícero, cercando o tema de uma áurea bastante humana
e interior. No capítulo I, Sêneca, para quem a filosofia era o único conhecimento
capaz de conduzir o homem ao aprimoramento moral, inicia sua defesa sobre a
maneira de se viver a vida, transformando-a em tempo produtivo e capaz de alterar
substancialmente o conceito de velhice:
Não temos exatamente uma vida curta, mas desperdiçamos
grande parte dela. A vida, se bem empregada, é
suficientemente longa e nos foi dada com muita generosidade
para a realização de importantes tarefas. Ao contrário, se
desperdiçada no luxo e na indiferença, se nenhuma obra é
concretizada, por fim, se não se respeita nenhum valor, não
realizamos aquilo que deveríamos realizar, sentimos que ela
realmente se esvai. Desse modo, não temos uma vida breve,
mas fazemos com que seja assim
182
.
Nas duas obras, encontramos as dimensões negativas da velhice e a sua
defesa intimista a partir da análise da própria vida. Ora, esses dois aspectos,
negativo e positivo, na correspondência do tempo que passa e não volta, da vida
que segue um trajeto rumo àquele conhecido termo o desconhecido , estão
absolutamente fundidos na obra De Remediis utriusque fortunae, de Petrarca
183
.
Neste sentido, o legado petrarquista para além de toda a proposição amatória
que fecundará o Renascimento europeu também se estende às considerações
sobre a velhice, fundamentalmente em sua correlação entre vida e morte.
182
SÊNECA. Lúcio Anneo. Sobre a brevidade da vida. Tradução de Lúcia Sá Rebello, Ellen
Itanajara Neves Vranas, Gabriel Nocchi Maceldo. Porto Alegre: L&PM, 2009, p. 26
183
“...comincia ora la spiritualizzazione della vecchiaia e perdurerà trionfante per lo meno sino alla
seconda metà del secolo XVI (TENENTI, A. Il senso della morte e lamore della vita nel
Rinascimento. Torino: Einaudi, 1977, p. 47).
127
Sabemos que a difusão da obra de Petrarca se fez antes mesmo do século
XV
184
. Na obra anônima Bosco Deleitoso
185
, de profunda influência petrarquista,
encontramos alusões diretas ao De Vita Solitaria, importantíssimo texto do autor
italiano
186
. Também na Crónica de D. João I, Fernão Lopes toma a epístola de
Petrarca dirigida a Stefano Colonna em 1348 nas Familiares
187
.
Vanda Anastácio parece resumir bem a difusão desse legado na Península
Ibérica, problematizando as questões linguísticas que poderiam atravancar, de
algum modo, a circulação dos textos de Petrarca entre os autores de Língua
Portuguesa:
...se tivermos em conta a intensidade das trocas culturais
observadas entre letrados e aristocratas nos diversos centros
da vida política e intelectual peninsular entre a segunda
metade do século XIV e os finais do século XVII, bem como o
caráter itinerante das cortes peninsulares até finais de
quinhentos, talvez faça sentido considerar a Península Ibérica
no seu conjunto, mesmo tendo presente a especificidade da
área linguística do catalão
188
.
184
Os trabalhos mais relevantes sobre este aspecto o os de Mário Martins (MARTINS, Mário.
Estudos de Literatura Medieval. Braga: Livraria Cruz, 1959) e o excepcional levantamento de Rita
Marnoto (MARNOTO, Rita. O Petrarquismo português do Renascimento e do Maneirismo. Coimbra:
Universidade de Coimbra, 1997)
185
Como havia notado José Leite de Vasconcelos, esta obra, ainda que impressa no primeiro
quartel do culo XVI representa, porém, uma fase linguística muito mais antiga, dos começos do
século XV ou ainda dos fins do século XIV(VASCONCELOS, José Leite de Lições de Filologia
Portuguesa, Lisboa: Biblioteca Nacional, 1926, p. 136).
186
Indicamos os estudos de Aida Fernanda Dias (DIAS, Aida Fernanda. Um livro de espiritualidade:
o Bosco Deleitoso Santa Maria: Biblos, 1989, pp.229-245. Vol. LXV) e Zulmira Santos (SANTOS,
Zulmira. “A presença de Petrarca na literatura de espiritualidade do séulo XVI: O Bosco Deleitoso”.
In: Congresso Internacional Bartolomeu Dias e a sua época. Atas, Vol V Espiritualidade e
Evangelização, Porto: Universidade do Porto CNCDP, 1989, pp.91-108)
187
Cf. MARNOTO, op.cit.
188
ANASTÁCIO, Vanda. “Pensar o Petrarquismo”, pp. 4-5 In: www.vanda-anastacio.at/articles.
128
Considerando, portanto, que as elites letradas no final da Idade Média
mantiveram intenso contato com a prodão cultural italiana
189
, e levando também
em conta que as obras De remediis utriusque fortunae e De vita solitaria foram
amplamente documentadas, não apenas na área linguística catalã, como também
na de língua castelhana, Vanda Anastácio sugere com muita lucidez e coerência
um primeiro nível de influência do petrarquismo na Península Irica que se
despede do medievo:
A face mais visível do interesse pelas obras de Petrarca e dos
clássicos italianos talvez seja a produção de D. Iñigo de
Mendonza, Marquês de Santillana (...) Os escritos de
Santillana, tal como os de Juan de Mena e os de outros
intelectuais seus contemporâneos (como Fernando del
Pulgar, Martín de Avila, ou Pero Diaz de Toledo)
testemunham, de facto, um intenso contacto com muitas das
obras que viriam a ser tomadas como modelos bastante mais
tarde. Todos esses autores parecem tê-las lido à luz do
contexto ibérico quatrocentista, pelo que a interferência
desses textos com a produção local se traduziu, sobretudo, na
adopção de recursos formais, vocabulares, temáticos, etc.,
mais do que em transformações profundas de entender e de
escrever a poesia
190
.
Compreendendo, pois, que a temática tradicional da velhice em Cícero e
Sêneca se encontra fundida e re-elaborada na obra de Petrarca, autor cuja
influência na Península Ibérica pode ser notada desde pelo menos o final do século
XIV, que tratamento esta mesma temática terá sofrido entre os autores
portugueses e espanhóis? Este questionamento auxiliar-nos-á na compreensão do
189
Cf. SÁ, Moreira de. Humanistas portugueses em Itália. Lisboa: INCM, 1984. RAU, Virgínia
Portugal e o Mediterrâneo no século XV. Alguns aspectos diplomáticos e econômicos das relações
com a Itália. Lisboa: Centro de Estudos da Marinha, 1973.
190
Idem, p.6
129
Viúvo e do Lavrador vicentinos como representantes da velhice, autorizando-nos,
portanto, a considerá-los como senex dentro do universo de nossa análise.
Para tanto, tomemos as considerações dos autores peninsulares sobre esta
questão. Antes de tudo, não percamos de vista que o Renascimento espanhol
costumava dividir as etapas da vida em quatro, cinco ou seis partes, dependendo
da linhagem filosófica dos autores. Deste modo, aqueles que seguiam o modelo de
Ovídio, usavam as estações do ano como alegorias para representar a passagem
do homem pelo mundo, considerando a primavera como a infância, o verão como a
juventude, o outono como a virilidade e o inverno como a velhice. Para Sêneca,
entretanto, estas etapas contabilizavam seis momentos distintos e, desvinculando-
as da ptica sazonal, utilizava um caráter mais fisiológico para delimitá-las. Por
este caminho, temos a infância, a puerícia, a adolescência, a juventude ou
virilidade, a velhice e a idade decrépita.
No plano ibérico, são rios os relatos sobre as fases da vida no século XVI.
O humanista António de Guevara considera cinco etapas, tecendo considerações,
inclusive, sobre o tempo de duração de cada uma:
...la infancia que es hasta los siete años, y la puerícia que es
hasta los catorze, y la juventud que es hasta los veynte y
cinco, y la virilidad que es hasta los quarenta, y la senectud
que es hasta los sessenta
191
.
Dez anos antes de António de Guevara, outro testemunho sobre as etapas
da vida nos é oferecido no texto Consuelo de la vejez
192
. Este importante diálogo
191
GUEVARA, António. Epístolas Familiares, Valladolid, 1549, impressas por Juan de Villaquirán, 1ª
parte, Sebastián Martínez, parte II (Cf. GARCIA Y DE LA CRUZ, Felisa Consuelo de la vejez
Estudio y edicion crítica. Tese de Doutorado, Universidade Autónoma de Barcelona, sob orientação
de Alberto Blecua).
192
A primeira edição da obra foi publicada em Salamanca em 1539, sem indicação autoral ou
mesmo do impressor. Em 1544, o impressor Juan de Junta publica pela segunda vez a obra,
130
sobre a velhice, cuja melhor edição crítica e estudo até hoje desenvolvidos são
assinados por Felisa Garcia y de la Cruz
193
, apresenta dois velhos discutindo sobre
sua condição de vida e sobre a proximidade da morte, conforme nos informa o
frontispício da obra:
CONSUELO DE LA VEJEZ / Aviso de bien vivir /
Apercibimiento y menosprecio de la muerte por vía de diálogo
entre dos viejos: el uno llamado Albano que dize males y
oprobios de la vejez y otro viejo sabio y prudente llamado
Briciano, que buelve por ella y la defiende.
194
No texto, observamos claramente as divisões das fases da vida, muito próximas às
lições de Sêneca porquanto levam em considerão a filosofia do comportamento
humano. Dos 12 capítulos que compõem o Consuelo, o quarto parece dedicado a
delimitar as fases a partir das atividades relacionadas a cada uma delas:
...exercitando la niñez y la puericia en juegos y devaneos, y la
adolescencia y la juventud em deshonestos desseos y torpes
hechos, y la senectud em demasiada cobdicia, viene a tener
la hedad decrépita em continuos gemidos y diversas quexas...
Poucos anos mais tarde, Cristóbal Méndez parece concordar com as seis
subdivisões apresentadas no Consuelo, delimitando temporalmente como fizera
António de Guevara, embora muito mais desenvolvido as etapas da vida:
...ay seis edades: la primeira es la infância, que es hasta los
três años, aunque algunos dizen hasta cinco... la segunda es
também anônima. Somente em 1561, novamente em Salamanca, é que o texto aparece com
indicação de autoria: Licenciado Mérida. Esta terceira impressão, feita no prelo de Alejandro de
Cánova, será a última do século. Em 1581 a obra aparece no Index et Catalogus Librorum
Prohibitorum do Reverendo Gaspar Quiroga, arcebispo de Toleto. A proibição, sem qualquer tipo de
justificativa, pode ter se dado simplesmente porque a obra circulava com autoria anônima.
193
A autora faz um extenso levantamento sobre a história do texto e a problemática textual que o
envolve, apresentando um apêndice com todas as variantes entre as diferentes edições. Ao final,
ainda elabora uma edição crítica que nos parece incontornável (GARCIA Y DE LA CRUZ, op. cit.)
131
hasta catorce años, que se llama puericia... de las otras que
es la primeira la adolescencia y ésta es hasta los veynte y
cinco años... y algunos dizen que llegan a veynte y cinco et a
treynta y três... la quarta edad es la juventud... y cuéntasse
hasta quarenta o quaranta y cinco os... la quinta es la vejez
que es hasta los [sesenta]
195
años poco más o menos... la
sexta que es el decrépito que va de sesenta os en
adelante.
196
De modo geral, o que se percebe é que, em todos os testemunhos da época
sobre as etapas da vida, o homem do Renascimento considerava a idade entre 40-
45 anos e 60 como representativa da velhice
197
, deixando para depois dessa faixa
a chamada fase decrépita, que sem vida o é o caso nem do Viúvo nem do
Lavrador vicentinos. Aliás, sabemos que nem todos os homens da Renascea
chegavam à velhice e pouquíssimos conseguiam ultrapassar os sessenta anos que
representavam a decrepitude. Neste sentido, parece perfeitamente coerente
considerar as personagens de Gil Vicente que agora vamos analisar como
autênticos senes de seu tempo, tendo em vista que a idade inicial para esta
delimitação, segundo a mentalidade do século XVI, era por volta dos quarenta
anos.
Sendo assim, passemos à análise do senex amans na obra de Gil Vicente,
dando enfoque principal aos viúvos que, lamentando a perda do objeto amado,
lamentam, também, a juventude que se foi e que não mais poderá retornar, época
em que o mundo parecia conspirar a seu favor em contraposão à atual condição
195
No original se “quarenta”, mas é claro que estamos diante de um erro do impressor. A idade
sugerida, sessenta, segue a linha temporal, considerando a fase decrépita, que inicia, segundo
Cristóbal ndez, a partir desse número.
196
MENDÉZ, Cristóbal. Libro del exercicio corporal. Sevilla, Grigório de la Torre, 1553.
197
CREIGHTON, Gilbert. When did a man in the Renaissance grow old? In: Studies in the
Renaissance, no.14. New York: Renaissance Society of America, 1967, pp. 7-32. Em suas palavras:
“The Renaissance did call forty old (…). the case that between forty and sixty, the Renaissance
noticed most people stopped work and died”, p. 13.
132
miseranda provocada tanto pela ausência da amada quanto pela fugacidade do
tempo. De toda feita, as lamentações do senex amans vicentino são elaboradas a
partir de proposões líricas jamais vista no teatro ibérico de seu tempo, senão,
talvez, nos chamados autos pastoris. Deixando, contudo, o amor de feão religiosa
e seguindo pelo caminho da tópica amorosa votada à dama, será Gil Vicente o
maior poeta em solo dramático na primeira metade do século XVI. Mesmo tendo
em conta que a temática amorosa está, em fins de Idade Média e início do
Renascimento, extremamente relacionada à lírica religiosa, principalmente no que
toca ao culto mariano, o lirismo celebrativo do pastorilismo, inspirado por
circunstâncias felizes, como o Natal que anuncia aos pastores um nascimento (de
um novo Portugal?), é bastante diferente do lirismo deplorativo
198
que
acompanhará as anstias de nosso senex amans. A rica amorosa em Gil
Vicente, como temos tentado demonstrar ao longo desse estudo, encontra no plano
do teatro dado o número e a diferença de personagens uma realização
particularmente variável.
Vale nota o fato de que a investigação sobre a Comédia do Viúvo e sobre a
Comédia sobre a Devisa da cidade de Coimbra, que faremos a seguir, está em
perfeita consonância, portanto, com o chamado lirismo deplorativo, muito bem
desenvolvido por José Augusto Cardoso Bernardes, pois este tipo de proposição
lírica remete, indiscutivelmente, à existência de uma harmonia virtual, para sempre
198
As definições de celebrativo e deplorativo foram retiradas do estudo de José Augusto Cardoso
Bernardes, consoante apontamos no capìtulo 1 desta pesquisa. Para o crìtico, “o lirismo
deplorativo é sistematicamente colocado na boca de personagens humildes, podendo a humildade
decorrer de circunstâncias sociais ou acidentais, [e] resulta muitas vezes de uma mudança
contrastiva (o Viúvo ou o Lavrador que perderam a mulher, o pobre São Martinho que, de saudável
se tornou doente)”. BERNARDES, José Augusto Cardoso, op. cit. p. 450. Vale também indicar um
excelente estudo que contrapõe as figuras do cavaleiro e do pastor no teatro ibérico, revelando o
que de diferente entre o amor nos autos pastoris e aquele que marca as relações humanas:
DÍEZ-BORQUE, Jo María. Aspectos de la oposición Caballero /vs/ Pastor em el primer teatro
castellano (Lucas Fernández, Encina, Gil Vicente) Bordeaux: Institut d‟Étude Ibéro-Américaines de
l‟Université de Bourdeaux, 1970.
133
perdida e totalmente inalcançável do ponto de vista humano, associada à
estratégia de consolação por parte de interlocutores autorizados, ora para tentar
confortar as dores dos lastimosos viúvos, ora para zombar de seu luto. Portanto,
quando o caráter satírico assumir a cena nas comédias sobre as quais agora nos
debruçaremos, podemo-nos certificar de que não estaremos diante apenas de um
entrecho cômico que busca inverter a lógica do sofrimento, mas, e principalmente,
da apresentação daquela sociedade em todas as suas mazelas éticas e morais. A
comédia, como dissemos, é sempre um percurso para além do riso.
4.2. O Senex Amans em Gil Vicente
Não temos qualquer notícia dos atores que deram vida às personagens
vicentinas nos quase cinquenta autos que nos chegaram. É passível de crença,
entretanto, que Gil Vicente foi uma dessas entidades artísticas que, não apenas
escrevendo, mas encenando, pôde animar parte de um universo por ele mesmo
fabulado. Desde a visitação inicial, nosso autor responsável pelo teatro mais
desenvolvido da Europa cristã de seu tempo nos sugere a sua participação
textual e corporal, pois é passível de crença que o vaqueiro na câmara da Rainha
era Gil Vicente, artista completo, responsável pelo texto e por tudo o mais que
envolvia o caráter espetacular daquela saudação ao príncipe nascido. A qualidade
de seu trabalho foi tão notória que, depois do monólogo, em junho de 1502,
134
escreveu e produziu o Auto Pastoril Castelhano para o Natal daquele ano
199
a
pedido da Rainha, e talvez também tenha atuado, que a primeira figura do auto
chama-se Gil
200
. Outro importante texto em que podemos intuir a participação do
autor como ator é a Comédia do Viúvo representada em 1514, segundo a
Copilaçam
201
, tendo em vista que a pa, iniciada por um discurso amoroso
marcado pela saudade, é do mesmo ano em que Gil Vicente teria ficado viúvo de
Branca Bezerra. A crítica tem dado pouca importância a este auto, principalmente
no tocante ao lirismo do lamento inicial, talvez por não evocar imediatamente
nenhuma composão de estrutura tradicional típica do medievo. Pensemos o tema
do Amor e da Velhice nesta comédia do autor, percorrendo o desenvolvimento
lírico que Gil Vicente dá a esta tópica.
A primeira parte do texto, anterior à entrada de D. Rosvel, um dos muitos
príncipes encobertos que encontramos na obra vicentina
202
, pode ser observada a
partir de cinco momentos estruturantes: o primeiro seria o monologo inicial do
199
Recuperemos a didascália do Auto Pastoril Castelhano que, na verdade, encerra o Monólogo da
Visitação: E por ser cousa nova em Portugal, gostou tanto a rainha velha (D. Leonor) desta
representação [o monólogo] que pedio ao autor que isto mesmo lhe representasse às matinas do
Natal, enderençado ao nacimento do Redemptor. E porque a substância era mui desviada, em lugar
disto fez a seguinte obra” (I, p.7)
200
Existe, contudo, a possibilidade de que o nome da personagem principal seja uma curiosa
coincidência, tendo em vista que o antropônimo Gil era comumente utilizado para designar pastores.
O pprio Juan del Encina nos dá o testemunho disto na Égloga de Mingo, Gil e Pascuala (ENCINA,
Juan del. Égloga de Mingo, Gil e Pascuala. Reprodução facsimilada da Real Academia Española.
Madrid: Revista de Arquivos , 1928 - reimpressa em 1989, fols. 113r-116r.)
201
A crítica tem contestado esta data, sugerindo o ano de 1524, o que poderia ser explicado por um
erro de tipografia (um X a menos), tendo em vista que no livro das comédias na Copilaçam de 62 a
data de representação dos autos está fora de ordem. Considerando 1524, refaz-se a possível
cronologia (Comédia de Rubena em 21, Comédia do Viúvo em 24, Comédia sobre a Devisa da
cidade de Coimbra em 27 e Tragicomédia Floresta dEnganos em 36). Contudo, lembremos que, em
uma rubrica próxima do fim do auto, temos a seguinte indicação: Tirou dom Rosvel o chapeirão e
ficou vestido como quem era; e forão-se as moças a el rei dom João III, sendo príncipe (que no
serão estava) e lhe perguntarão(III, p.122). Com esta informação, fica descartado completamente
o ano de 1524, que D. João III subiu ao trono em 21, data limite para que nos referirmos a ele
“sendo prìncipe”. Este único exemplo nos dá a segurança de afirmar que a Copilaçam tenta
apresentar uma organização cronológica dos textos, embora nem sempre consiga.
202
O disfarce é uma das estratégias encontradas pelos príncipes, mascarando a sua identidade de
nobre em nome da possibilidade de realização amorosa. Note-se não apenas D. Rosvel, príncipe da
Uxônia, na Comédia do Viúvo, mas o príncipe da Síria, na Comédia de Rubena, e do príncipe de
Inglaterra, na Tragicomédia de Don Duardos.
135
Viúvo, onde encontraremos um rico campo de investigação sobre o lirismo
amoroso de Gil Vicente desvinculado das bases foclóricas de observação, pois o
pranto fúnebre da personagem não é comumente identificado como um co-texto
modal de similitude às cantigas tradicionais da península (no tocante à estrutura,
não propriamente à temática), apontando, pois, para uma nova concepção do
lirismo vicentino que estamos identificando ao longo deste estudo. O segundo
momento que compõe estruturalmente a primeira parte da comédia é o diálogo do
Viúvo com o Frade, que vem para consolar o choroso senex amans. No terceiro
momento, temos um diálogo entre o Viúvo e suas filhas para, em seguida, abrindo
o quarto momento, surgir em cena o Compadre, que inverte a lógica amorosa para
a convenção cômica. A primeira parte da comédia encerra-se com o Viúvo fora de
cena em um diálogo travado por suas filhas.
Serão estes os momentos fundamentais sobre os quais falaremos neste
auto, tendo em vista que as outras partes estruturais do enredo abandonam a
tópica do Amor e da Velhice. Por isso, interessa-me particularmente o lamento do
senex amans e seu diálogo com o Frade, porquanto será possível identificar este
modelo queixumes pela viuvez, intervenção de outra personagem e conselhos
na cena do segundo senex amans da obra vicentina: o Lavrador viúvo da Devisa
de Coimbra, de 1527. Também valerá a pena considerar o discurso do Compadre,
que insere o texto definitivamente no espaço da comicidade a partir da inversão
radical do sentimento de luto. Iniciemos.
Com didascália simples, da qual podemos apenas inferir o espaço
enunciativo, Burgos, cidade dos Reinos de Castela e Lo, uma maneira desviada
de dizer que o auto será em castelhano, a Comédia do Viúvo evoca, logo em seu
136
início, as lamentações picas de um amador que, separado de sua dama, enche a
cena de lirismo.
Esta desastrada vida
que perdiera yo en perdella,
cuando al mundo fue venida?
Pues amara y dolorida
es toda mi parte della,
que perdí mujer tan bella
como estrella.
Y pues triste me dejó,
muriera mezquino yo
y no ella.
Pluguiera á Dios que cupiera
la suerte suya por mia;
pues quedé, que no debiera,
robada mi compañera,
consumida mi alega.
Vida sin tal compañía,
noche y día,
me da tan triste cuidado,
que jamas seré, cuitado,
el que solia.
203
O Vvo, em seus líricos queixumes, repete o tradicional mote, tão fecundo
no Renascimento irico, de que desejaria ter morrido ele próprio, amador, antes
que ela, coisa amada
204
. A separação, neste sentido, aparece como o pior dos
203
III, p.85-86
204
A pica do ubi sunt?, fecunda desde pelo menos o século XV, articula a morte de um ente
querido com a inutilidade de continuar a viver. Vale lembrar que esta passagem (“y pues triste me
dejó / muriera mezquino yo / y no ella) foi suprimida na edição de 1586, talvez por sugerir uma
possível injustiça de Deus e um inequívoco desejo de morte. Muitos outros momentos sentiram a
pesada mão da censura, como nos revela António Jo Saraiva: “Das 49 obras mais importantes de
Gil Vicente, 15 foram inteiramente suprimidas; 13 sofreram profundos cortes, como a de cenas e
personagens inteiros, e alterações que vão até à mudança do carácter social dos protagonistas. (...)
Apenas 5 escaparam à tesoura da Censura. Segundo as contas de Braamcamp Freire, 1163 versos
foram suprimidos e 60 alterados (não contando, bem entendido, os das obras proibidas)” (SARAIVA,
António José. Hisria da Cultura em Portugal Lisboa: Gradiva, 2000. vol. III, p. 157. Também entre
as páginas 146-158, o autor aponta diversos exemplos da ação censora sobre os textos vicentinos).
As variantes entres as duas edições são tão marcadas que Alina Villalva considera o texto do Viúvo
137
castigos, que, sem mujer tan bella a vida deixa de ser viva, condenando o
senex amans, poderíamos dizer, a uma morte diária, aproximando, ainda mais, a
velhice da morte. O homem, que deixa de ser o que solía, experimenta o vazio do
viver e transforma este vazio, no plano do discurso, em lírica sentimental. Esta
mesma lição faz parte de uma temática fecundamente aludida por outros autores e
pode ser encontrada nos principais dramaturgos peninsulares: Lucas Fernández
também desenvolve o sentimento de perda do próprio ser
205
, bem como Rojas em
sua Celestina
206
, embora nenhum deles com o caráter rico tão bem desenvolvido
como o observado em Gil Vicente.
O lamento inicial, ou monólogo do Viúvo, ou ainda o único pranto fúnebre da
comédia, tem 80 versos, 10 por estrofe, e pode ser compreendido a partir de um
estágio de queixume que evoca a memória das virtudes da amada, o referido
catálogo de encômio, lembrança que leva o sujeito inevitavelmente a novos
lamentos. A métrica não é regular em muitas das vezes, embora o desenho das
partes e rimas seja bastante coeso. Depois de reclamar da desastrada vida que, de
tão amara y dolorida, consumiu toda a alegria de viver, o Viúvo relembra a imagem
perfeita da mulher
207
, referindo-se às qualidades da dama agora ausente do
mundo:
Que acordarme su nobleza,
su beldad, su perfeccion,
sus mañas, su gentileza,
su tan medida flanqueza,
de 86 como uma segunda edição. Cf. VILLALVA, Alina Vicente (coleção dirigida por Osório Mateus):
Viúvo. Lisboa: Quimera, 1990 (e-book 2005).
205
“Ya no soy quien ser solia...” in Farsas, p. 86 (Cf. nota da edição de Marques Braga, utilizada
nesta investigação).
206
“No soy el que solia” in La Celestina, 7º. Ato (idem, ibdem)
207
O catálogo de encômio elaborado por Gil Vicente pode ser lido em perfeito diálogo com a obra
de Fray Luís de León, denominada La perfecta casada (LEÓN, Fray Luís de. La perfecta casada.
Barcelona: Montaner y Simón, s/d.), fundamentalmente no capítulo II, onde o autor apresenta
“Cuánto es menester para que uma mujer sea perfecta, y lo que debe procurarlo ser la que es
casada.
138
quebrántame el corazón.
Ó qué humilde condición,
á la razón
cuan callada, cuan sufrida,
toda plantada y ingerida
en descrición!
208
O que observamos, para além de um simples levantamento das qualidades
da dama perdida, é a constatão da perda de uma harmonia habitual que reinava
no mundo antes do desaparecimento corpóreo do objeto amado que, morto no
plano do Real, continua vivo no Imaginário, sugerindo, pois, a finitude Simbólica do
senex amans. A presença da amada construía um espaço tão harmônico de
existência que o Viúvo aponta para uma possível simbiose do casal em relação aos
sentimentos do mundo e às expectativas de felicidade, produzindo um lamento que
vai além do simples relembrar as qualidades do objeto amado, mas também da
evocão de tudo aquilo que ainda ecoa desse objeto em seu corpo e mente:
Alegre com mi alegria;
com mi tristeza lloraba;
pronta à cuanto yo decia;
queria lo que yo queria;
amaba lo que yo amaba:
toda sua casa mandaba,
y castigaba,
sin de nadie ser oida,
ni de persona nacida
profazaba.
Amiga de mis amigos,
amparo de mis parientes!
209
muy humilde á mis castigos,
cruel á mis enemigos:
placentera á sus servientes;
tal que con fieras serpientes
impacientes
208
III, p. 86
209
Note-se a semelhança com uma estrofe de Jorge Manrique sobre a morte de seu pai, que
possivelmente teria servido de lição ao jogo alusivo em Gil Vicente. Na estrofe 25 das Coplas que
hizo Don Jorge Manrique ala muerte de mastre de Santiago Don Jorge Manrique su padre (fol.6),
podemos ler, no espaço próprio para os encômios sobre o falecido, Que amigo de amigos / que
señor para criados / y parientes”.
139
hiciera vida paciente:
no fue muger mas prudente
en las prudentes.
210
Estas duas estrofes talvez sejam as principais passagens do catálogo de
enmio, não somente porque evidenciam as qualidades da dama, segundo os
padrões da sociedade da época, como também porque, ao evidenciá-las, pontuam
o papel da mulher bem casada, que deveria ser tão temente a Deus quanto ao
esposo, uma verdadeira companheira e mãe, capaz de estar em casa seu
verdadeiro lugar de atuação disponível à opressão do marido
211
(“muy humilde á
mis castigos”) sem deixar nunca de amá-lo por isso. Seu amor por ele, aliás,
deveria ser maior do que por si mesma, servindo ao esposo de modo
absolutamente obediente e paciente, cuidando, assim, da honra de seu senhor,
sem levantar contradões de nenhum tipo nem queixas.
Um excelente estudo sobre o papel da mulher na sociedade no tempo de Gil
Vicente é o de Júlia Maria Sousa Alves da Silva, principalmente no capítulo
dedicado à mulher casada. Referindo-se a este momento específico agora citado,
diz a estudiosa:
Em Gil Vicente é na Comédia do Viúvo que encontramos o
retrato mais fiel desta esposa ideal, quando o mercador,
saudoso, exalta as virtudes da sua “muito nobre dona”,
recém-falecida. O Viúvo venera a “muger tan bella / como
estrella”. Este comparativo traduz sentido duplo, pois pode
abranger a beleza física e moral, tal como verificamos na
pintura da Virgem. De facto, bela e estrela são atributos
frequentemente utilizados para o retrato da mulher divina. O
Viúvo lastima o roubo de sua “compañera e alegria”, a
mulher que detinha um verdadeiro catálogo de virtudes: bela,
nobre e bondosa, gentil, devota, prazenteira e cortês, franca,
210
III, p.86-87.
211
Indicamos um tratado dedicado às jovens esposas elaborado por um escritor parisiense no final
do século XIV conhecido como Menagier de Paris. Um bom estudo sobre o texto pode ser
encontrado em A Medieval Home Companion. Housekeeping in the Fourteenth Century. New York:
Harper Collins, 1991. Tradução de Tania Bayard.
140
calada e discreta, alegre e triste com o marido, para que só
vive, para não dizer submissa, prudente, casta e honesta.
212
A memória da virtuosa esposa neste catálogo de encômio tem como função
ampliar o sofrimento, já que orienta a leitura no sentido de compreender o tamanho
real da perda: a viuvez é mais sofrida porque a mulher perdida era perfeita,
desenhada com todos os atributos físicos e espirituais que se esperam de uma
mulher bem casada, para quem os deveres do lar e as obrigações para com o
marido eram o princípio de sua dedicação em vida.
O psicanalista Erich Fromm, conhecido investigador das causas e efeitos do
Amor na cultura, dissera que o sentimento de separação é o mais duro golpe na
psiqué humana, toda ela formada a partir do desejo de ser amado. Para o
estudioso
O homem é dotado de razão; é a vida consciente de si
mesma; tem consciência de si, de seus semelhantes, do
seu passado e das possibilidades do seu futuro. Esta
consciência de si mesmo como entidade separada, a
consciência do seu próprio e curto período de vida, do fato
de haver nascido sem ser por vontade própria e de ter de
morrer contra a sua vontade, de ter de morrer antes
daqueles que ama, ou estes antes dele, a consciência de
sua separação, de sua impotência ante as foas da
natureza e da sociedade, tudo isso faz de sua existência
apertada e desunida uma prisão insuportável
213
.
Outro psicanalista de reconhecido trabalho sobre a dor de amar, inclusive
nas situações de perda do objeto amado, é J.D. Nasio, que, após lecionar trinta
anos na Universidade de Paris VII-Sorbonne, coligiu alguns de seus estudos e
seminários na obra O livro da dor e do Amor. Para o estudioso, o sentimento
212
SILVA, Júlia Maria Sousa Alves da A mulher em Gil Vicente. Braga: Edições APPACDM, 1995,
P. 160.
213
FROMM, Erich A arte de amar. Itatiaia: Itatiaia, 1995, p. 15
141
impactante causado pela perda do objeto amado está para além de simplesmente
reconhecê-lo perdido, mas, e sobretudo, no contínuo investimento amoroso a que
se dedica o amador depois do desaparecimento do objeto. Buscando inter-
relacionar as obras de Lacan e Freud, Nasio conclui a Lição IV de seu livro, sobre a
dor do luto, com as seguintes afirmações:
...a dor do luto não é dor de separação, mas dor de ligação.
(...) Pensar que o que dói não é separar-se, mas apegar-se
mais do que nunca ao objeto perdido. (...) a dor não é, pois,
dor de perder, mas de apertar fortemente demais os laços
com a representação do outro ausente. Assim, observemos
todavia que Freud, algumas páginas depois, conclui que a
causa da dor reside tanto no destacamente quanto no
superinvestimento: “tratando-se do luto, seria preciso pensar
que a dor se explica porque a intensidade do destacamente é
tão forte quanto a intensidade do investimento”.
214
Esta prisão insuportável, de que nos fala Erich Fromm, vivenciada de modo
angustiante pelo Viúvo por manter acentuado o grau de investimento no objeto
amado, conforme nos revela Nasio, ganha corpo discursivo a partir de versos
notadamente líricos e que desenvolvem o mote do sofrimento à luz de uma
observação humanística do mundo: Gil Vicente faz da personagem que nome à
comédia um representante absolutamente humano, cujas dores são maiores do
que qualquer acalanto divino, reorganizando, com isso, a hierarquia do poder. A
vontade de Deus não vale mais do que o desejo do Homem que, ainda vivo por
degnio Dele, sente-se morto por sua própria vontade. Por isso, o que lhe resta é
desejar a morte física, pois a morte de seu espírito, de sua anima, de sua gria,
deu-se aquando da separação do objeto amado:
214
NASIO, J.D. O livro da dor e do amor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p.166. Nasio aponta a
posição ambígua de Freud na dimensão econômica da dor de luto. Com auxílio dos trabalhos de
Lacan e da ppria prática psicanalítica, o estudioso localiza três etapas vividas pelo enlutado:
superinvestimento, desinvestimento e identificação.
142
En el punto que partiste,
no debiera quedar yo;
porque la vida que es triste
mas muere quien la resiste,
que el muerto que la dejó.
Áquel Dios que la lle
pido yo
muerte luego por vitoria;
pues la vida de mi gloria
ya pasó.
215
O leitor/espectador da Comédia do Viúvo, depois de assistir a este longo
pranto fúnebre que inicia o auto, poderá questionar-se sobre o gênero do texto.
Afinal, até o momento, passados 80 versos, não há sinais claros da comédia que
se anuncia no próprio título. O que se encena faz parte mais de um caudal,
chamemos assim, de poesia medieval, ainda que já tomada por uma dimensão
humanística evidente, relativa à morte e à dor. O bom senex amans de Burgos
aparece cercado de lágrimas e lamentos, apresentando sua infelicidade a partir de
um velho código sobre o bem casar que, sem sombra de dúvidas, funcionará, ao
cabo do auto, como lição para a filha, tomada por D. Rosvel, perpetuando, pois, as
qualidades que devem ter as jovens em seus casamentos.
Também a Comédia sobre a devisa da cidade de Coimbra se inicia com um
lamento fúnebre do mesmo tom. A diferença estrutural entre o princípio dos dois
textos é a presença de um prologador”, pois na Comédia do Viúvo o primeiro
enunciador é o próprio Viúvo, enquanto na Comédia sobre a Devisa da Cidade de
Coimbra há um Peregrino que explica o argumento da peça
216
. É esta personagem
215
III, p.88
216
São oito estrofes de arte maior com quebrado, em Português, onde o Peregrino faz uma
saudação inicial (obedecendo a uma premissa épica de saudar inicialmente os reis mais velhos,
“pois que o honor do mundo presente / se dá com razão à antiguidade, diz o argumento, e depois
“os príncipes da cristandade / que agora reinam...”). O Peregrino também faz menção ao fato de
que a presente comédia falará sobre a antiguidade da cidade de Coimbra, suas linhagens e, é claro,
sua devisa.
143
que anuncia o Lavrador o ainda como um vvo senex amans, que isso ficará
claro em suas vestes, mas como um sofredor que “se lamenta / da adversa
fortuna em que corre tromenta. Com base nos dois textos podemos concordar com
o Peregrino, que diz que “toda a comédia começa em dolores
217
: do Viúvo numa,
do Lavrador, também viúvo, noutra. Duas personagens sem nome em um teatro de
muitos nomes. Aproximemo-nos um instante da Devisa para fazer dialogar os
discursos dos dois velhos saudosos.
A didascália da Devisa, mais desenvolvida que a da comédia de 1514 do
ponto de vista referencial, indica o local de apresentação, Coimbra
evidentemente
218
; a quem foi representada, D. João III; e o enredo da peça, nada
menos do que falar da história lendária dos elementos que compõem a heráldica
conimbrense, voltando ao passado para construi-lo, no presente, de um modo
novo. E é bem isso que está textualizado, embora saibamos que a realização do
que nos diz a didascália só é posvel através de um processo dinâmico de cenas e
personagens e, portanto, variável. As didascálias de muitos autos de Gil Vicente
têm sido apontadas como paratextos que, em verdade, explicam de modo
deficiente o enredo das peças. No caso da Comédia sobre a Devisa da cidade de
Coimbra, a diferença entre o anunciado e o realizado pode ser explicada pelo
dinamismo exigido pela própria dramaticidade. De modo que não nos alongaremos
na análise das didascálias, textos muito possivelmente introduzidos a posteriori.
Voltemos ao nosso senex amans.
217
Muitos argumentos de comédias e tragicomédias apontam para esta ordem semântica na
organização do texto e isso é um traço da herança clássica, pois desde Plauto observamos prólogos
que indicam esta ordem. Vale lembrar, contudo, que na terceira edição da Celestina de Rojas a
tragicomédiaprincipia em prazer e acaba em dor”, invertendo a configuração do enredo cômico.
218
A Comédia sobre a devisa da cidade de Coimbra é o primeiro texto de uma série para entreter a
corte que fugira de Lisboa por causa da peste. Transferidos D. João III e D. Caterina, transfere-se
Gil Vicente, animador oficial dos palácios reais desde a época da Rainha Velha. Embora não seja a
primeira manifestação teatral da cidade, certamente o texto vicentino representou uma realização
absolutamente nova e desenvolvida para Coimbra.
144
Depois da fala do Peregrino, a entrada da primeira figura da comédia, o
Lavrador, precisa ser marcadamente diferente do prólogo inicial. Gil Vicente realiza
essa marca ao colocar o lamento do homem em redondilha, não mais em versos
de arte maior, e em castelhano, não mais em portugs como fizera com o
prologador. O Lavrador viúvo abre com dolores a comédia de temática cssica (a
linhagem e a divisa) falando em outra língua e na métrica popular:
Ávante, desdicha mia
pues corres em pos de mí,
no á ciegas;
acaba, que bien sería
la muerte que te pedí,
y me niegas.
Ó fortuna sin piedad,
como eres descompasada
sin medida!
Pues nací con brevedad,
dame muerte abreviada
y no complida.
219
Diferentemente do Viúvo de 1514, que anuncia já na primeira estrofe a sua
viuvez, o Lavrador de 1527 não esclarece os motivos de seus queixumes até
envolver o espectador com o lamento. Novamente temos a tópica da Morte ligada
ao sofrimento por Amor, pois o nosso segundo senex amans, em atitude
semelhante ao da Comédia do Viúvo, deseja não a vida, mas a muerte abreviada /
y no complida, deixando claro que a sua má fortuna o leva a um morrer diário:
si el nacer fue nun momento,
porqué muero en tantosas,
padeciendo
de suerte que siempre siento
la muerte de Jeremías,
yo viviendo?
219
III, p.134
145
Tú y los cielos y Dios
me tenéis muy mal tratado:
y lo peor
no haber siquiera en vos
piedad deste cuitado
labrador.
220
Ao sofrimento é acrescida a idéia de total impotência, visto que nem Deus
tem piedade do coitado Lavrador. Com isso, temos a potencialidade da dor, pois,
como em 1514, o apelo ao divino é ineficaz, já que nada pode alterar a causa do
sofrimento nem trazer de volta a felicidade. Por isso a única alternativa é desejar a
Morte como forma de acabar com a dor de existir sozinho. E se a lão da
Comédia do Viúvo modelar para a Comédia sobre a Devida da cidade de
Coimbra fora censurada na Copilaçam de 1586, talvez por sugerir uma injustição
de Deus, como dissemos, no texto de 1527, apresentado em Coimbra, o crivo
parece ter sido menosgido. Tanto que o Lavrador desenvolve ainda mais o mote,
questionando inclusive o paradeiro Dele:
y tú, fortuna y Dios,
con todas sus hierarquías,
adó estáis?
Sin nunca ser contra vos,
con las tristes ansias mias
os gosais.
Ó ! reniego de la vida,
pues tronos y dominaciones
y potestas,
y la orden mas subida,
con gloria de mis pasiones
hacen fiestas.
221
220
III, p.134
221
III, p.135
146
D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos já se referira em uma de suas Notas
Vicentinas à acusação feita pelo Lavrador ao Deus supremo
222
, que pode tudo,
mas é incapaz de livrar o homem da dor. Por isso o seu apelo às dominaciones,
hierarquia de anjos
223
, ainda que também estas não façam mais do que fiestas
diante da Paixão do sujeito, causa de sua dor; melancolia e páthos.
Nos dois textos agora analisados, temos uma ocorrência semelhante do
ponto de vista cênico: ambos os lastimosos velhos, chorosos de sua condição
miseranda, de sua morte em vida, são interpelados por uma personagem que é
inserida na trama para aconselhá-los: na Comédia do Viúvo temos um Frade
224
,
enquanto na Comédia sobre a Devisa da cidade de Coimbra temos um Ermitão
também viúvo, o terceiro da plêiade vicentina. Observando os dois conselheiros,
poderíamos imaginar que o primeiro, o Frade de 1514, traria uma lição mais ligada
ao cômico, pois, considerando a totalidade da obra de Gil Vicente, aos clérigos
estava reservada a lão degradada dos ideais cristãos, éticos e morais. Contudo,
Cleonice Berardinelli, em minuciosa investigação, já apontara o caráter deste
particular Frade em comparão aos outros dos textos vicentinos:
Sua ação benéfica na família, ele a exerce naturalmente,
voltado para o homem, com os olhos postos em Deus. Para
Gil Vicente, em seu tempo, seria um verdadeiro ápax, como a
provar, por sua existência singular, a possibilidade de haver
clérigos assim, abrindo um espaço de esperança, diante da
quase total impossibilidade de encontrá-los pelo mundo
225
.
222
VASCONCELOS, op.cit., IV, p. 158
223
Refere-se a Tronus, anjos da terceira ordem e primeira hierarquia, e potestas, anjos da sexta
hierarquia ou coro. (cf. nota explicativa de VICENTE, Gil. Todas as obras, sob direção de José
Caes, ed. eletrônica, s/d)
224
A rubrica apresenta a figura com um Frade e ele é assim identificado nos indicativos de fala. Em
sua última intervenção, contudo, o Viúvo o chama de Padre, dizendo-se consolado com suas
palavras, e a indicação Fra. é substituída por Pad. em um claro equívoco tipográfico. Paula, que
entra em cena em seguida sem qualquer indicação, também o chama de “padre tan honrado”.
225
BERARDINELLI, Cleonice. De clérigos, cônegos e frades. In: Revista Semear Revista. Rio de
Janeiro: Cátedra Pe António Vieira de Estudos Portugueses, PUC-RJ, v. 8, p. 35-47, 2003.
147
Estamos diante, portanto, do único religioso positivo da obra de Gil Vicente
dentre muitos os que figuram nos diversos autos. Será este Frade que, em 1514,
data da posvel viuvez do próprio autor, virá consolar sinceramente apoiado na
gloria y consolacion / daquel qu es padre eternal, salvacionista por excelência o
nosso mais antigo velho saudoso. Diz o clérigo:
Tomad un consejo, hermano,
deste amigo singular:
pensad como lo humano,
unos tarde, otros temprano
nacimos para acabar:
y todo nuestro tardar,
á buen juzgar,
por mas trabajo se cuenta;
pues no se escusa tormenta
neste mar.
226
Depois de ouvir a queixa do Viúvo, que pede por amparo y por abrigo, o
Frade o aconselha a pensar como humano, consciente de que todos s unos
tarde, otros temprano estamos fadados à morte e, consequentemente, à
separão dos objetos nos quais investimos afeto. O conselho, entretanto, não se
restringe à compreensão da fatalidade da vida e sua impotência diante dos
imperativos divinos, ainda que o Frade trate a morte não a partir de uma premissa
metafísica, mas de uma prerrogativa concreta e inevitável e, neste sentido, muito
mais humana do que sagrada, afinal, nacimos para acabar. O conselho, para
além do cunho, digamos, pedagógico sobre existência e a finitude de todas as
coisas, faz referência direta ao comportamento do Viúvo, principalmente no tocante
ao hábito de luto.
226
III, p.89
148
quitad el luto de vos,
y esos paños negregosos;
que cierto sabemos nos
negar los hechos de Dios
todos los que estan lutosos.
Que se muestran soberbiosos
de quejosos,
cargados de paños prietos,
repugnando los secretos
gloriosos.
227
Alonzo Zamora Vicente, em seu estudo sobre este auto vicentino, comenta a
atitude do Frade, relacionando-o à revelia do que já nos ensinou Marcel
Bataillon
228
a uma tópica tipicamente erasmista, não no que diz respeito à crítica
clerical cotidiana, a qual certamente o pesquisador francês assinala com correção,
mas no sentido reformista de sua atitude religiosa. Para Zamora Vicente, no
discurso do Frade da Comédia do Viúvo
Há algo mais. Este fradezinho dá um salto no tempo e se nos
coloca, em franco contraste com o medieval herdado, no
centro mesmo de uma atitude espiritual nova, reformista, de
um cristianismo interior. Quase comodamente, falazmente,
aproxima a palavra aos lábios: um mundo espiritual muito
afinado com o erasmista (...) Nada de pompas nem de
extremos dolorosos, senão um convite à intimidade, ao mais
escondido centro (...) Esta chamada à intimidade, à aceitação
da morte com ajuste à crença, exalta ainda mais a
continuação. Sim, não restam vidas, estamos pisando em
227
III, p.89-90
228
“[Gil Vicente] o era um humanista cristão, mas um porta-voz anticlericalista desde muito
enraizado no povo. Não precisava de Lutero nem de Erasmo para zombar das bulas, dos jubileus,
das indulgências e benefìcios com que Roma traficava” (BATAILLON, Marcel, Erasmo y España:
Estudios sobre la historia espiritual del s. XVI. Tradução de Antonio Alatorre. ed. corregida y
aumentada. México: Fondo de Cultura Económica, 1966, pp. 653-654) De fato, muito da crítica
exemplarmente elaborada por Gil Vicente fazia parte da atmosfera de seu tempo, sem falar no
fato de que a doutrina de Erasmo poderia ser pensada de uma maneira bastante próxima ao
irenismo, enquanto Gil Vicente mantinha um culto devoto à Virgem. Isso não nos autoriza, cremos
assim, a desconsiderar o humanismo vicentino.
149
um terreno seguro, muito diferente do anterior, quando o
Viúvo chorava sua mulher.
229
Todas essa consideração diz respeito à posão do Frade em relação às
vestes do enlutado senex amans. O luto, aliás, não é uma recorrência na obra
vicentina, tendo em vista que nosso autor utilizou esta palavra apenas duas vezes
em suas obras. A primeira delas foi justamente na Comédia do Viúvo, relacionando
o estado de perda à tópica amorosa. A segunda, de modo mais alegórico do que
em 1514, aparece na Tragicomédia Triunfo de Inverno, de 1529, justamente no
argumento da primeira figura do auto; nada menos do que o próprio Inverno
230
. Em
nenhum outro texto vicentino encontramos esta palavra e os motivos de sua
ausência em um teatro repleto de morte em vida e de vida após a morte podem ser
os mesmos que levaram a Inquisição a censurar a passagem acima transcrita na
Copilaçam de 1586, além de toda a estrofe seguinte
231
. O Frade condena o luto,
pois esos panos negregosos que negam os feitos de Deus parecem estar mais
229
Hay algo s. Este frailecito da un salto en el tiempo y se nos coloca, en agrio contrataste com
lo medieval herdado, en el centro mismo de una actitud espiritual nueva, reformista, de un
cristianismo interior. Casi modamente, falazmente, se acerca la palavra a los labios: un mundo
espiritual muy afín al erasmista (...) Nada de pompas ni de extremos dolorosos, sino una llamada a
la intimidad, al más escondido centro. (...) Esa llamada a la intimidad, a la aceptación de la muerte
con arreglo a la creencia, se exalta aún más a continuación. Sí, no cabe duda; estamos pisando un
terreno seguro, muy distindo del anterior, cuando el viudo lloraba su mujer.” (Tradução livre)
VICENTE, Alonso Zamora. Una introducción a la Comedia do Viuvo. Biblioteca Virtual Universal,
2003 (disponibilizado pela Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes)
230
aunque veais mi figura / hecha un salvaje bruto / yo cubro el aire de luto / y las sierras de
blancura”. (IV, p.267)
231
A estrofe omitida na Copilaçam de 1586 é a seguinte:
Los que mueren por la lei
mueren con dulce vitoria
por su ley y por su rey.
Solo con memento mei
son sus ánimas en gloria;
su muerte es tan notoria
de memoria,
que el luto desbarata;
mas antes la escarlata
es meritoria.
Possivelmente o crivo inquisitorial encontrou no trecho uma compreensão do luto diferente daquela
entendida pela Igreja.
150
associados aos hábitos judios. Ora, a Inquisição instaurada efetivamente em
1547
232
, embora a bula do Tribunal tenha sido promulgada em 1536, data da última
atividade vicentina precisou rever costumes largamente difundidos e praticados
por todo Portugal. Afinal, lembremos que o ano de 1521 é marcado pelo luto na
corte lisbonense devido à morte do venturoso D. Manuel. A grande diferença,
contudo, entre a Copilam de 1562 e a de 86 deve-se à ação de D. Jorge de
Almeida, que, fazendo publicar um novo Index prohibitorum em 81, reedita, em
verdade, o documento estabelecido pelo index tridentino em 64, contendo as dez
regras básicas redigidas por Frei Francisco Foreiro, um dominicano português.
Neste documento de 1581, entretanto, para sucesso da coerção da Igreja, Frei
Bartolomeu Ferreira acrescenta alguns “Avisos e Lembranças para o caso
específico de Portugal, esclarecendo e ampliando as determinações do Concílio de
Trento
233
.
Por tudo isso, levantemos a hipótese de que não é o luto um costume
condenável, tendo em vista que o Frade, ao condenar o hábito negro do Viúvo, é
quem perde palavras, versos e uma estrofe inteira. Condenável é condená-lo. O
luto surge, pois, como demonstração de que o homem, bicho da terra, é pequeno
demais no jogo da vida, onde Amar e Morrer, combinados com o sofrimento, são
peças potencialmente cruéis. O chamado Rei Filósofo D. Duarte, que subiu ao
trono em 1433, parece autorizar aquele sentimento relacionado à perda de uma
232
Neste ano aparece o Index de livros proibidos, embora apenas no segundo índice (1551)
encontramos o nome de Gil Vicente e a referência proibitória de nada menos do que sete autos.
233
Avisos e lembranças que servem para o negócio e reformação dos livros, onde se poem alguns
errores que nelles ha, para que se veja quam necessaria he a diligencia que nisto faz o Sancto
Officio, e o resguardo e cautela que se deve ter nesta matéria e na lição dos taes livros. E se manda
que se entreguem ao Sancto Officio para se emmendarem”. (RÉVAH, I. S.La Censure Inquisitoriale
Portugaise au XVIe siècle, Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1960, Cap.II, p.67). Na terceira
advertância, lemos com clareza a restrição que se fazia aos livros em que há desonestidade ou
amores profanos”, o que justifica, por isso, a edição emendada e comentada dOs Lusíadas em
1584, conhecida como dos Piscos. Para um estudo sobre a censura em Portugal, indicamos
RODRIGUES, Graça Almeida. Breve história da censura literária em Portugal. Lisboa: Instituto de
Cultura Portuguesa Biblioteca Breve, 1980.
151
figura amada em sua obra Leal Conselheiro
234
, texto que já foi tomado como o
primeiro testemunho da palavra saudade (suidade)
235
e no qual observamos a
diferenciação do nojo e da tristeza. No capìtulo XXV, chamado Do nojo, pesar,
desprazer, aborrecimento e saudade”, diz o Rei:
Entre nojo e tristeza, eu faço tal diferença, porque a tristeza
por qualquer parte que venha, assim embarga continuamente
o coração, que não dá espaço de poder em algo bem pensar
nem folgar. E o nojo é há tempos, assim como se na morte
de alguns parentes e amigos, onde aquele tempo que por
justa falta ou lembrança se sente, o sentimento é muito rijo.
Porém (...), passado o tempo (...) falam e despachadamente
no que lhes apraz pensam. E a tristeza não consente fazer
assim, porque é uma dor, e continuado gastamento com o
apertamento do coração. E o nojo não continuadamente,
salvo que tanto se acrescenta que termina em tristeza.
236
Isso justifica a lírica sentimental evocada em lamentos e lutos pelos dois
velhos saudosos. O Viúvo de 1514 e o Lavrador de 1527 podem, a partir desta
leitura temático-estutural, encontrar-se fora do texto vicentino, ligados pelo
sentimento de luto e, talvez, melancolia. Freud já realizara um estudo sobre estas
manifestações humanas, apontando para uma explicação bipartida da questão,
pois observava o tema enquanto caso clínico. Assim, não nos parece fecunda a
teorização pormenorizada do sentimento melancólico e do luto, tampouco de suas
234
Leal Conselheiro o qual fez Don Eduarte Rei de Portugal e do Algarve e Senhor de Cepta (para
um estudo do texto, ver a edição com ortografia atualizada, introdução e notas de João Morais
Barbosa. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982. p. 127-133)
235
Hoje, sabemos que a palavra havia sido empregada por D. Dinis na cantiga de amor Que
soydade de mia senhor ey”, com testemunho no Cancioneiro da Biblioteca Nacional e no
Cancioneiro da Vaticana, ambos anteriores ao texto de D. Duarte. Sobre a ocorrência da palavra
soydade entre os trovadores peninsulares, indicamos o estudo de Y.F.Vieira, que aponta os textos
em que o vocábulo aparece; apenas 15 ocorrências (VIEIRA, Y.F. “A soidade/suidade na lìrica
galego-portuguesa In: Estudos dedicados a Ricardo Carvalho Calero. Santiago de Compostela:
Parlamento de Galicia, 2000, vol.II, pp.807-824)
236
Idem, ibdem
152
diferenças intrínsecas. Entretanto, a correlão entre essas duas manifestações
pode iluminar a nossa compreensão. Para o psicanalísta
A correlação entre a melancolia e o luto parece ser justificada
pelo quadro geral dessas duas condições. Além disso, as
causas excitantes devidas a influências ambientais são, na
medida em que podemos discerni-las, as mesmas para
ambas as condições. O luto, de modo geral, é a reação à
perda de um ente querido, à perda de alguma abstrão que
ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade
ou o ideal de alguém, e assim por diante. Em algumas
pessoas, as mesmas influências produzem melancolia em
vez de luto
237
.
De todo modo, o próprio Freud abandona as diferenciações entre o
sentimento de luto chamado de normal, inicialmente pensado como uma lesão no
eu sua relação com grau de investimento afetivo no objeto e, portanto, ligado à
dissolão do vínculo, daquele outro luto de ordem patológica, assim ele o chama,
que caracteriza a melancolia. Se os primeiros escritos de Freud apontam para o
fato de que no luto normal o sujeito tem consciência daquilo que perdeu e no luto
patológico que caracteriza a melancolia ele apenas é acometido pela certeza da
perda, sabendo quem perdeu, mas não o que perdeu na pessoa desaparecida
(realizando, portanto, um investimento narcísico ao deslocar a dor, do objeto para o
eu), posteriormente o psicanalista deixará de lado as distinções, como, aliás, fará
Lacan, em detrimento de uma única dimensão do enlutado: a patológica.
Afora a teoria psicanalítica, temos, nas comédias vicentinas agora
trabalhadas, não apenas dois viúvos queixosos de sua condição solitária e
impotente, lastimosos de uma solidão não desejada. Temos também dois velhos
237
FREUD, S. Luto e Melancolia. Edição eletrônica Standart das Obras Completas de Sigmund
Freud (Cd-rom)
153
melancólicos que não se poupam em seus lamentos e que deixam vazar uma lírica
sentimental sofrida e saudosa. Mas do que sentem saudade? Apenas da mulher
que se foi e, com ela, toda uma ordenação do mundo? Não seria pouco, mas não é
tudo. Sentem falta também de outra coisa, do mesmo modo perdida e, pela viúvez,
severamente sentida: sofrem pela juventude passada, quando tudo era posvel,
donde se compreende a melancolia como partícipe do luto, afinal, o senex amans
sabe que, para além do objeto desaparecido no qual havia investimento de afeto,
tanto quanto se poderia entender de afetividade no casamento no século XVI,
perderam, junto à dama, todas as virtudes que ela detinha segundo os códigos da
época.
pudemos trabalhar o desejo de ter de volta a juventude perdida, quando
nos voltamos ao senex amator no capítulo anterior, em especial ao estudo do Auto
do Velho da Horta, de modo que não seria produtivo retornarmos a este assunto.
Note-se, contudo, que em todas as situações em que a velhice enamorada aparece
encenada em Gil Vicente, e também nos demais autores peninsulares que temos
trazido para esta investigação, é possível observar um desejo inequívoco do
retorno à juventude.
Até o momento, pudemos verificar a atitude modelar do Viúvo de 1514 na
lição da Comédia sobre a Devisa da cidade de Coimbra, de 1527: entrada do velho
saudoso; lamentos, luto e melancolia; e interveão de outra personagem para
conselhos. No primeiro texto, vimos o Frade positivamente operando sobre os
lamentos do sofredor. Na comédia de 1527, também seguindo a estrutura de
operação positiva, temos não mais um clérigo, mas um Ermitão conselheiro, o
terceiro viúvo da obra vicentina, que chega procurando um lugar áspero sin
alegria para si. Acontece que a desdicha do Lavrador parece muito mais sofrida
154
que a de seu interlocutor, de modo que o Ermitão prefere ouvir as queixas do outro
antes de revelar as suas, que são dolores de otra cura. É neste momento que
compreendemos, enfim, que o Lavrador sofre por ter perdido sua esposa. Depois
de dizer que é um hombre generoso / de noble sangre nacido e que escolheu la
vida del labrador / para el ánima salvar, queixa-se o viúvo ao Ermitão recuperando
a imagem perfeita da mulher que, como ele, havia optado pela vida naquela sierra,
abrindo mão de sua condição nobre:
Casé con una pastora,
que andaba en esta montaña
otra tal,
hija de grande señora
y del señor de Bretaña,
mi igual,
Y con la misma intención
que yo, dejó su estado
y su tierra,
y acertó per conjunción
casarmos entre el ganado
desta sierra.
Ella cada año paría
de dos en dos las crianzas
238
tan hermosas,
que en ellas se parea
y parece que son plantas
generosas.
Vino Dios ya sin razón,
estando resando ella
238
Este verso nos remete inevitavelmente à última cena da Comédia do Viúvo, quando o Clérigo
chega para casar as filhas do Viúvo e proclama divertidamente o preceito tão católico quanto
natural: casar e multiplicar. Diz o religioso para encerrar o auto:
El Señor sea con vos:
las manos aqui porneis,
y decid: Nombre de Dios,
Don Rosvel, recibo á vos
et cetera, ya lo sabeis
y aquel dicho de Noé;
le dijo Dios: multiplicad
enchid la tierra y holgad
con salud que Dios os dé. (III, p.128)
155
en mi corral,
consentió que un dragón
239
me hiciese biudo della
por mi mal.
240
A esposa do Lavrador era a própria celebrão da vida, pois produzia esta
mesma vida aos pares; fecundamente tratada, portanto. Sua morte, neste sentido,
abala toda a continuidade da existência e é justamente o que sente o Lavrador: um
abalo em seu mundo, capaz de desestabilizar todas as coisas mais que estejam
vivas. Está é, de fato, a consequência da separação: sem a provedora da vida, o
viver passara a ser seco, improdutivo, infértil, características não apenas do estado
interior do Lavrador, mas, e de modo mais cruel, do mundo externo que o cercava.
Com quatro filhos e sem conseguir garantir o sustento, a vida, lamenta-se o velho
saudoso:
No bastó: mas va en siete años
que no cogo pan ni nada
en mis heredades
con los inviernos tamaños,
que todo asuela la helada
y tempestades.
Estoy de hijos cargado
lloran por mantenimiento
en pos de mí.
La nieve mató el ganado,
la fruta llevóla el viento
por ahí.
241
239
A comédia tem base na narrativa alerica que conta a história da cidade à luz do que podemos
chamar de ficção-heráldica. O dragão a que se refere o Lavrador, contudo, parece mais ser uma
metáfora para a Morte o que já anunciaria a alegoria que passa a vigorar depois de o
interlocutor contar sua história do que propriamente uma identificação direta com Monderigon, o
dragão que transformara o Ermitão em um completo solitário.
240
III, p.138
241
III, p.138-139
156
Quando nos ocupamos do senex amator, pudemos ver o quanto a natureza
exterior, organizada cenicamente como uma horta, refletia os estados interiores do
velho, transformando-se ora em jardim florido, ora em espaço seco e improdutivo.
Novamente temos o mundo natural alegorizado para dar impulsão à ideação
dramática, correlacionando a morte da esposa com a finitude das outras coisas
vivas. E assim continua o lamento do Lavrador:
Las hierbas secó el frío,
las legumbres no nacieron,
mal pecado,
ni lleva peces el río;
hasta las aves se fueron
del montado.
Ya me canso de decir,
- hijos no sé que os haga:
no lo tengo. -
Señor queraisme acudir
con consejo en esta plaga
que sostengo.
242
Como na Comédia do Viúvo, lamenta-se não apenas a perda da mulher
perfeita e, com ela, do amor perdido, mas também, em líricos queixumes, o tempo
da juventude, incluindo o frescor do mundo externo. Antes dos filhos, a quem
deve agora alimentar, havia apenas ele e ela, havia vida, havia alimento.
Agenciadora do viver e do brotar, a esposa tipifica a dor do senex amans, pois faz-
se presente pela ausência de esperança em todos osveis.
É evidente que a crueldade da natureza na formulação dos problemas do
Lavrador já pressupõe a narrativa alegórica que caracteriza a Comédia sobre a
Devisa da cidade de Coimbra. São as condições inverossímeis (ausência completa
242
III, p.139
157
de gados, frutas, ervas, legumes, peixes, aves,...) que possibilitarão o
desenvolvimento do enredo e a construção da alegoria, já que o Ermitão, diante do
quadro de desordem do viver, dá conselhos mais práticos, mais pertos do real, do
que os que o Frade dera ao Viúvo em 1514: ensinar caça e pesca aos filhos, ainda
jovens para o exercício da sobrevivência autônoma. Estes, ao saírem pela floresta,
de par em par, primeiro Celipôncio e Liberata, depois Galameno e Heridea, estão
também dando início à aventura que pretende contar a História alegórica de
Coimbra. Os filhos do Lavrador são levados a conhecer a narrativa de Monderigón
pelas personagens que a compõem, em interação direta e reconstrutura, pois
atualizam, para o leitor de qualquer tempo e para o espectador do século XVI, a
história mítica da cidade de Coimbra, dando-lhea um novo passado a partir de um
presente. Monderigón se apaixona por Liberata e a narrativa inevitavelmente ganha
uma fresca atualização.
Nos dois textos, portanto, temos um viúvo lastimoso que recebe conselhos,
ora reconfortantes, ora práticos, de uma personagem que aparece com esta
mesma função: intervir e aconselhar. Há uma fundamental diferença, contudo, de
caráter operativo entre esses conselheiros: o Frade da Comédia do Viúvo não faz
mais do que acalentar o velho saudoso, enquanto o Ermitão da Comédia sobre a
Devisa da cidade de Coimbra acaba por organizar o enredo de todo o auto, seja
aconselhando o Lavrador a que mande seus filhos à floresta, onde se dará o
encontro e a (re)constrão da Divisa Conimbrense, seja porque assumindo novo
valor operativo na ideação dramática é também portador de uma história de Amor
e perda; o terceiro senex amans. Incitado pelo Lavrador, o Ermitão resolve contar
sua ventura: o selvaje Monderigon capturou, para seu pesar, uma filha, um filho,
quatro damas e quatro irmãos delas. É uma enxurrada de nomes, dos quais o mais
158
lamentado é o de Colimena, sua filha, símbolo original da cidade de Coimbra que,
no presente da enunciação, se faz mítica. O queixume tem o tom de indagação
desesperada e é de uma simplicidade lírica encantadora:
y este Monderigon
estando ellas jugando
descuidadas
a la fuente del balcon,
las llevó, como volando,
cautivadas.
Oh mi hija Colimena
243
Colimena la princesa
natural!
Dónde estás dulce serena
que nunca para estar presa
hiciste mal?
244
Tudo o que o Ermitão enuncia passa então a assumir, para o espectador,
concretude cênica, pois os filhos do Lavrador, na história encenada no presente,
entram em contato com as personagens da história contada pelo Ermitão, ocorrida
no tempo passado. É a fórmula para reinventar (por resignificação, evidentemente)
a História e a própria heráldica da cidade de Coimbra.
Ao ser também um enunciador importante para a estrutura do enredo, o
Ermitão acaba por acumular uma dupla função: a primeira diz respeito à sua ão
como conselheiro, aproximando-se da atitude do Frade da Comédia do Vvo.
Entretanto, ao intervir para aconselhar, acaba por intervir também na estrutura do
enredo. A segunda fuão do Ermitão acrescenta um novo lamento, ainda maior
que o primeiro, ampliando significativamente as dolores que tradicionalmente
243
A tônica do lamento nesta personagem é absolutamente coerente com a proposta do auto. Dirá a
personagem ao final: Eu assentei aqui esta cidade / e eu sou Coimbra”.
244
III, p.145
159
iniciam as comédias. Os queixumes do Ermitão portam em si, além de uma
adicional dor, uma nova história, o que não acontece com o Frade de 1514.
Compreendendo, portanto, que as dolores iniciais da Comédia sobre a
devisa da cidade de Coimbra utilizam o modelo de 1514, conforme vimos
apresentando, parece bastante coerente fazer dialogar, do ponto de vista técnico-
dramático, o Ermitão que aconselha e enuncia uma nova dor e o Compadre, o
segundo interlocutor do Viúvo no texto modelar.
Se, por um lado, o Ermitão se lamenta e, lamentando-se, acrescenta dados
que constroem o enredo do auto, por outro o Compadre também carrega uma
história própria. A diferença é de ordem semântica, pois o primeiro aprofunda o
sofrimento e, com ele, o tom lírico dos versos, enquanto o segundo insere o texto
definitivamente no terreno do cômico.
O Compadre, longe de ser um senex amans, inveja a condição do Viúvo e
diz rasgando definitivamente o pranto que até então prenominava no auto que a
morte de sua companheira seria uma excelente notícia. Para o Compadre, estar
sin mujer y sin abrigo é sair de uma prisão, tendo em vista que sua esposa o
possue os predicados da mulher que inspira saudade e, por isso, é pintada como
una sierpe com un rostro de lamprea. Para além dos atributos físicos, nada
louváveis, a dama também tem defeitos de outra ordem, como una habla á fuer de
aldea (portanto não é nobre, como a mulher do Viúvo), ou o fato de que é
mentirosa, fofoqueira, soberba, etc (portanto, sem o mesmo caráter que havia
desenhado a mulher perfeita no texto de 1514). No tempo em que o Viúvo reza e
se lamenta, o Compadre estaria rezando para agradecer.
Assim começa o confronto entre a dor e a felicidade, entre o louvar e o
deslouvar, responsável pelos contornos cômicos do texto, e que pode ser verificado
160
em diferentes testemunhos poéticos do século XVI
245
e mesmo em outros autos
vicentinos
246
:
Á la fe, dígote, amigo,
que te vino buena estrena:
eso haga Dios comigo.
Viúvo Oh calla que yo soy testigo
que es gran mal perder la buena.
Compadre Com cadena
quieres tu que el hombre tenga,
que muger con vida luenga,
aunque rebuena?
247
No estés compadre, triste
por salieres de prisión;
cuando tu muger perdiste,
entonces remaneciste;
mas fáltate el corazón.
Viúvo Según va sin conclusion
esa razon,
tu estás fuera de ti,
y aumentas mas en mí
la pasión.
248
O fato de que a morte da companheira deve ser vista como uma buena
estrena, um bom caminho, subverte o sentido do choro do Viúvo. Afinal, se ele
tivera uma rebuena dama, ou seja, muito boa para si, ao Compadre só resta
questionar o tempo que deve viver uma esposa, pois esse é também o marco
245
Lembremos da redondilha atribuída a Caes em que o poeta, no mesmo texto, oferece uma
lição para louvar e outra para deslouvar a dama (“Vós sois ũa dama / das feias do mundo”
transforma-se em “Vós sois ũa dama / do grão merecer”).
246
O discurso de insatisfação amorosa pode ser muito bem observado no Auto da Feira, quando
Amâncio Vaz e Denis Lourenço discutem sobre as más companheiras, sugerindo inclusive uma
troca, já que acreditavam que qualquer mulher seria melhor do que a que tinham.
247
A estrofe de nove versos evidencia a falta de um, certamente rimando com cadena. Parece-me
mais possível imaginar que a ausência deva-se antes à censura do que a um erro do autor.
Conforme demonstrei, a Comédia do Viúvo foi rasurada pela mão censora em diversos
momentos. Na fala do Compadre, também observamos isso, que na Copilaçam de 1586 os cinco
primeiros versos da última estrofe desta personagem foram totalmente apagados.
248
III, p.93-94
161
temporal entre a insatisfação e a felicidade, ou entre a prisão e a liberdade, como
sugere no início da segunda estrofe citada.
É evidente que o discurso do Compadre, no plano dramático, deve sugerir
também um conflito cênico, para além da oposição semântica já referida. O choque
de ideais é textualizado por Gil Vicente a partir de diálogos de franco debate. A
primeira fala contrária é a do próprio Viúvo, que, ouvindo as queixas inversas do
interlocutor, retoma os lamentos consolados pelo Frade em cena anterior. Esta
retomada do choro, contudo, tem valor re-significado e não pode mais, para quem
ou assiste, evocar aquele sentimento que deu o tom inicial da peça, porque,
depois da fala do Compadre, todo discurso de stima estará inserido no debate
cômico.
Também Paula, uma das filhas do Viúvo, estabelece conflito direto com as
reclamações do Compadre, defendendo que a esposa deste es mucho gentil
mujer. Contudo, à revelia do que dizem todos os indagadores, o jocoso
personagem segue seu lamento invertido, sofrendo por ainda ter esposa viva e e
desejando, para a glória de sua própria vida, enviuvar. Afinal, o triste quadro
sentimental em que se encontra é completamente sem alternativa:
Yo no la puedo trocar,
yo no la puedo vender,
yo no la puedo amansar,
yo no la puedo dejar,
yo no la puedo esconder:
Yo no le puedo hacer
entender,
sino que es ella una rosa,
y que está muy desdichosa
en mi poder.
249
249
III, p.98
162
Com a saída do Vvo e do Compadre, um em lembranças sofridas, outro
desejoso da viuvez, as irmãs Paula e Melícia ficam a sós em cena recordando a
morte da mãe, tecendo comentários sobre o significado de morrer e reforçando,
com isso, a lão a ser seguida pela sociedade da época, principalmente pelas
jovens mulheres, espectadoras do auto: as qualidades ideais de uma dama, como
assinalamos anteriormente, precisam ser compreendidas como um modelo. Elas
mesmas, filhas da falecida, enaltecem os predicados de sua mãe, apontando para
as virtudes exemplares de uma mulher de bem casar.
Para além da lição que fica do diálogo das duas, se fizermos uma leitura de
sua função estrutural no auto, aquele funciona também como divisor cênico, dando
não somente o arremate ao embate entre o pai e o Compadre, encerrando as
oposões entre a louvação do objeto perdido e o escárnio do objeto que se
desajaria perder, como também a deixa para a nova cena: a entrada de D. Rosvel,
um príncipe que oculta a própria identidade por amor, inclusive em nível linguístico.
Como foi possível perceber, a lamentação da vida diante da morte do objeto
amado pode aparecer condicionada à construção do argumento cômico. A viuvez,
nesse caso, deixa de ser característica de uma figura do auto para se transformar
em condição ou caminho que oriente a comicidade, ligada tanto à subversão de
postulados a princípio nada risível, quanto à elaboração de enganos próprios da
comédia. É o que observamos no escudeiro que vem disfaado de viúva para
enganar o Mercador na Tragicomédia Floresta de Enganos, já comentada no
capítulo anterior.
Ampliando o prazer que se tira do texto/representação pela grotesca
proposta da enganação, a falsa viúva não traz notícias de amores, nem inflama o
coração do Mercador. O que é encenado entre eles atende a outra lógica, tão mais
163
ligada às coisas terrenas do que às da alma: negociam uma quantia em dinheiro,
que a pobre e cansada viúva não recebe uma tença, sua de direito, que deveria ser
dada pelo Rei Telebano. Mostra ao mercador um papel que comprove a dívida e
pede-lhe ajuda financeira para não mais padecer da falta de proventos. É de todo
um entrecho farsesco, onde o Mercador, embora enganado, também não deixa por
menos, barganhando o grau de ajuda àquela fingida senhora. Não se trata, pois, de
uma (des)ventura amorosa, nem põe em cena um autêntico senex. Deixemos, pois,
esta falsa viúva com seu disfarce para outra investigação.
4.3. Alguns viúvos depois de Gil Vicente
Evidentemente, o tema da viuvez articulado com a velhice continou a ser
utilizado por alguns outros autores de teatro. Não são, entretanto, tão quantiosos
os exemplos de senex amans acometidos pela dor de amor causada quando da
perda de seu objeto de investimento na poesia dramática. Se procurarmos,
entretanto, em outros gêneros, testemunhos sobre a morte da mulher amada,
destituída de sua relação com a velhice, então será bem maior o corpus a
investigar. É o que vemos, por exemplo, em Sá de Miranda, no soneto Aquele
sprito, já tão bem pagado, dedicado à morte de sua mulher:
Aquele sprito, já tão bem pagado
como ele merecia, claro e puro,
deixou de boa vontade o vale escuro,
de tudo o que cá viu como anojado.
Aquele sprito que, do mar irado
desta vida mortal posto em seguro,
164
da glória que lá tem de herdade e juro
nos deixou o caminho abalizado.
Alma aqui vinda nesta nossa idade
de ferro, que tornaste à antiga de ouro
enquanto cá regeste a humanidade,
em chegando, ajuntaste tal tesouro
que para sempre dura! Ah vaidade:
ricas areias deste Tejo e Douro!
250
Justificando o falecimento de sua mulher como um natural percurso, não
pela idade, mas pelos atributos da dama, tão divina que nunca fora merecedoras
do mar irado desta vida mortal, associada a um vale escuro. O soneto é, sem
dúvida, um poema de despedida de um petrarquista, aluno da escola italiana e
professor português desta lição. Nele está presente todo o desejo de compreensão
da essência humana, desenhado por uma possibilidade de a Razão concertar o
mundo externo, tendo em conta que o interno guardará sempre o desconcerto. De
qualquer forma, a mulher que simboliza o objeto perdido parece figurar no poema
como uma Laura pronta para ser pintada, nunca possuída, diante de tudo que ela
representa em termos de virtudes que se contrapõem aos vícios do mundo. Se
comparado ao soneto camoniano Alma minha gentil, que te partiste, Sá de Miranda
não apresenta uma atitude lírica tão bem vincada sobre o tema, mesmo com a
impecável construção e o apurado trabalho sonoro do poema. Mas as contradições
camonianas, de um maneirismo capaz de distorcer as linhas de foa do
Renascimento, conferem à tópica da perda do objeto amado uma stima tão dda
que desorganiza a suposta ordenação racional do mundo. Sobre esse desconcerto,
sabemos, Camões é a máxima autoridade na literatura portuguesa, que só
250
MIRANDA, Sá de. Obras completas. Fixação do texto, notas e prefácio de Rodrigues Lapa, 4ª.
edição, LISBOA: Sá da Costa, vol.I.,1976.
165
conheceu outro brilhante sonetista com Bocage e Antero de Quental, séculos mais
tarde.
De volta ao universo teatral, vale fazer notar duas obras em que
encontramos personagens viúvos, ambas de autores que se sucederam ao texto
vicentino: La discreta enamorada (1604), de Lope de Vega, e El rufián llamado
Trampagos (1615), de Miguel de Cervantes. Na primeira delas, podemos encontrar
dois velhos viúvos envolvidos em situações amorosas: Belisa, uma senhora
autoritária que controla a filha já que não lhe agrada a liberdade da jovem
enamora-se de um capitão, também viúvo. O argumento cômico é construído a
partir do momento em que ele, indo à sua casa com intenções matrimoniais, pede a
mão da filha, e não a sua. A austera viúva, no entanto, resolve fazer a vontade do
capitão e concorda em lhe dar a filha em casamento, ainda que isso não agrade à
jovem:
Belisa ¿Qué dices?
Fenisa Que haré tu gusto,
pero cáusame disgusto
251
Fenisa, apesar de seu descontentamento, segue resignada, em uma clara
revelação do amor filial que caracterizava os relacionamentos parentais no Século
de Ouro espanhol
252
. Diante das insistências rudes de sua mãe, desprestigiada
pelo viúvo, a filha não encontra possibilidades de queixas, demonstrando uma lição
moralizante que propunha a manutenção de certos costumes. Não contrariar os
251
VEGA, Lope de. La discreta enamorada. Madrid: Col. Austral, Espasa-Calpe, 1967, I, VI, 39.
252
Um bom estudo sobre o tema é o levantamento de José Eugénio Borao (BORAO, José Eugénio.
La piedad filial en algunos autores del Siglo de Oro y de la China Ming. In: Padres e hijos ante el
matrimonio: España y el mundo hispánico. Siglos XVI y XVII. Madrid: Visor, s/d, pp. 89-108).
166
pais, neste sentido, é um comportamento modelar que, demonstrado por Fenisa,
pretende orientar os espectadores do texto de Lope de Vega:
Fenisa Si a tu edad vence interés,
a mi edad vence hermosura...
Desobedecerte fuera
cosa indigna a mi virtud
253
Mas a aceitação da filha atende também a outro propósito, muito comum no
teatro ibérico: somente dizendo sim às imposões daqueles que representam o
passado é que os jovens conseguem vencê-los. Por isso, Fenisa, enamorada do
filho do capitão viúvo, começa a rodeá-lo de perguntas que visam, nada menos, do
que deixar evidente o seu interesse pelo jovem Lucindo. Este, percebendo o
estratagema de Fenisa, também se coloca disponível aos serviços impostos por
Benisa. O desenrolar do enredo atende, como de costume
254
, ao tema das pcias
dobles, nas quais terminam casados os jovens entre si, e os velhos, como única
opção, também acabam em bodas. Tudo, entretanto, provocado pelos enganos
que os jovens tramam. Explica Lucindo ao final do texto:
Capitán Di, Lucindo, ¿a un padre noble
los buenos hijos engañan?
Lucindo ¿No es mejor que el padre mío,
con esta señora honrada,
que es madre de mi mujer,
se case, pues que se igualan
en méritos y en edad?
255
253
Idem, I, VII, 46
254
Segundo o estudo de Pedraza Jiménez, los protagonistas de la comedia viven la gozosa
aventura de ir trazando su propio destino con su astucia, su habilidad y su entusiasmo. Y casi
siempre logran burlar y vencer los obstáculos que les ponen los representantes del orden y la ley,
por lo común los padres o los hermanos de la dama (PEDRAZA JIMÉNEZ, F. Lope de Vega.
Barcelona: Teide,1990, p. 127). De vastíssima tradição desde a comédia latina, essa estruturação
do enredo cômico é comumente utilizada quando o amor contra natura, de um velho por uma jovem,
está em cena. Basta recordar todo o resgate elaborado por Ariano Suassuna, aludindo à Aululária
plautina, na peça O santo e a porca, escrita no Brasil em 1957 e montada em 1958.
255
Idem, III, XXII, p. 152
167
Apesar da ocorrência da figura do viúvo, o texto de Lope de Vega não coloca
em cena propriamente um senex amans, que nem o capitão nem Belisa estão
envoltos em uma atmosfera amorosa. O sentimento de amor é reservado aos
jovens, verdadeiros enamorados da peça.
O outro texto a que fizemos menção, El rufián llamado Trampagos, de
Miguel de Cervantes, foi publicado nove anos depois do de Lope de Vega, e um
culo após a Comédia do Viúvo. Bastante diferente do senex amans vicentino, o
rufião do autor espanhol dos muitos que povoaram o seu teatro tem tendências
muito mais próximas à figura do amator do que do amante dedicado. Sua pressa
em substituir a mulher morta por uma jovem de cabelos dourados, visando-lhe
apenas os atributos corporais, fazem de Trampagos uma espécie de pícaro, figura
que também se emprega em Dom Quixote
256
.
Embora sua primeira intervenção no entremês cervantino seja uma queixa
pelo falecimento de sua esposa, o rufião Chiquiznate, que entra em cena
questionando o luto do viúvo, se encarrega de aliciar o senex, apresentando-lhe o
lugar da marginalidade rufianesca. Trampagos mantém sua postura de amans
sempre que evoca Pericona, sua falecida esposa, deixando largo testemunho no
entremês sobre a infeliz perda do objeto de investimento afetivo. Ao longo de suas
lamúrias, deixa vazar o recorrente catálogo de encômio, tal qual fizera Gil Vicente
no século anterior. Questionado sobre a idade que tinha Pericona, Trampagos
responde trinta e dois, justificando sua resposta em seguida com base nas virtures
e atributos da dama. Diz o viúvo:
Si va a decir verdad, ella tenía
cincuenta y seis; pero, de tal manera
256
Cf. COLOMBÍ-MONGUIÓ, A. de. Los ojos de perlas de Dulcinea (Quijote, II, 10 y 11). El
antipetrarquismo de Sancho (y de outros) In: Nueva Revista de Filologia Hispánica, 32, Santa
Teresa: El Colegio de México, 1983, pp. 389-402.
168
supo encubrir los años, que me admiro.
¡Oh, qué teñir de canas! ¡Oh, qué rizos,
vueltos de plata en oro los cabellos!
(...)
¡Ejemplo raro de inmortal firmeza!
(...)
¡He perdido una mina potosisca,
un muro de la yedra de mis faltas,
un árbol de la sombra de mis ansias!
257
Entretanto, com a entrada de outros rufiões e das prostitutas Pizpita,
Mostrenca e Repulita, esta última a escolhida de Trampagos, além de músicos
para alegrar aquelas dolores de viuvez, o senex cervantino converte-se
libidinosamente em amator, dando inveja inclusive a Vademécum, seu criado, que
afirma que gracias al cielo, que he hallado a tan gran mal, tan gran remedio. Sua
atitude, a princípio, contraditória tem, na obra de Cervantes, um lugar bastante
consagrado, visando assim à crítica social a partir da premissa de que os homens
seguem os princípios corrompidos por entenderem que assim todos procedem no
seu tempo. Nesse sentido, a análise de Pérez de León vem ao encontro de nossa
leitura e pode esclarecer um pouco mais a constrão desse senex cervantino:
O lamento de Trampagos ante a audiência (...) pela morte de
sua amada, une o privado e sério do ato de um velório com
algo público e gracioso quando se manifesta em um gênero
como o do teatro breve. Sua atitude serve para contrastar a
existência dos protagonistas rufianescos com a dos referentes
objetos de sua imitação loucos enamorados, doentes de
amor (...) Trampagos está no vértice de um sistema
estamental em que a norma é imitar o comportamento
corrente na sociedade normal”, deixando perceber, no
processo, a distância entre a imitação e o imitado. O recurso
de que a vida se distancia dos ideais”, tão utilizado no corpus
257
Citamos a partir da edição princeps de El rufián viudo llamado Trampagos in: Ocho entremeses
nuevos nunca representados, compustas por Miguel de Cervantes Saavedra. Madrid: Viuda de
Alonso Martín, 1645, editado em forma eletrônica por Vern G. Williamnsen em 1997.
169
cervantino, se aplica aqui ao mundo (...) na constrão de
uma organização hierárquica, espelho de feitos e atitudes
contraditórias.
258
No século XVIII, Carmontelle deixou registrado o tema na comédia Le Veuf,
que seria reescrita, com leves alterações, pelo espanhol Ramón de la Cruz,
conforme podemos ter notícias no estudo de Francisco Lafarga
259
. Em ambos os
casos, por se tratarem de sainetes o gênero substituto do entremês a partir do
culo XVIII ou seja, por serem entrechos teatrais de um único ato, normalmente
bastante curto, misturado com música e dança, o tema da velhice enamorada não
ganha tanto relevo. A diferença entre o enredo dos dois textos es no desfecho,
que na versão francesa da história o viúvo vai com os amigos a uma ópera,
enquanto na obra de Ramón de la Cruz o destino é um sarau.
No século XIX, vale a pena reler o conto de Machado de Assis chamado A
mágoa do infeliz Cosme, no qual o lamento do viúvo, de 48 anos (um senex para o
Renascimento, mas certamente não para a vida oitocentista), por sua falecida
Carlota, longe de ser realizado com os contornos líricos que procuramos nesta
investigação, são a forma de passar a limpo uma sociedade baseada na vaidade e
258
El lamento de Trampagos ante la audiencia (...) por la muerte de sua amada, une lo privado y
serio del acto de un velorio con algo público y gracioso cuando se manifiesta en un género como el
del teatro breve. Su actitud sirve para contrastar la existencia de los protagonistas rufianescos con
la de los referentes objetos de su imitación - locos enamorados, enfermos de amor (...) Trampagos
está en el vértice de un sistema estamental en el que la norma es imitar lo planteado en la
sociedade "normal", dejado percibir, en el proceso, la distancia entre la imitación y lo imitado. El
recurso de que "la vida se distancia de los ideales", tan utilizado en el corpus cervantino, se aplica
aquí al mundo (...) en la construcción de una organización jerárquica, espejo de hechos y actitudes
contradictorias”. (Tradução livre) PÉREZ DE LEÓN, Vicente. Tablas destempladas. Los entremeses
de Cervantes a examen. Alcalá de Henares: Centro de Estudios Cervantinos, 2005. p.161
259
LAFARGA, Francisco. Ramón de la Cruz y Carmontelle. In: III Simpósio de la SELGYC.
Barcelona: atas do Simpósio, 1980, p.90-96. Lafarga sugere a leitura do texto de Ran de la Cruz
pelo manuscrito, tendo em vista que não edições rigorosas de El Viudo, principalmente pelo
relevo dado pelos estudos literários à obra Manolo considerada a mais importante do autor
espanhol. O original, autógrafo, encontra-se na Biblioteca Municipal de Madrid (1-157-35)
170
nos valores materiais, tendo na personagem Oliveira um ponto de confronto
amoroso identificado desde o início na narrão machadiana.
Para encerrar este capítulo, julgamos oportuno comentar brevemente a
Cantiga do Viúvo, publicada em 1928 na Revista de Antropofagia por Carlos
Drummond de Andrade e musicada em uma seresta por Heitor Villa-Lobos
260
.
Trata-se de um poema considerado àquela época um grande escândalo literário
onde podemos ler uma espécie de desconcerto do ideal romântico sugerido pela
temática em detrimento do que de banal na existência, expresso pela
coloquialidade do discurso lírico:
A noite caiu na minh'alma
Fiquei triste sem querer.
Uma sombra veio vindo,
veio vindo, me abrou.
Era a sombra de meu bem
Que morreu há tanto tempo.
Me abraçou com tanto amor,
me apertou com tanto fogo,
me beijou, me consolou.
Depois riu devagarinho,
me disse adeus com a caba
e saiu. Fechou a porta.
Ouvi seus passos na escada.
Depois mais nada... acabou
261
A espontaneidade com que o eu-lírico revela seu estado interior é
substituída por uma postura narrativa de controle das emoções. Esse encontro
noturno com a amada esvai-se, no tempo do poema, frustrando a idealização
260
As composições Pobre cega, Modinha e Desenho, Na paz do outono (dedicada a Guilherme de
Almeida) e Cantiga do Viúvo (dedicada a Maurício Gudin) pertencem à série de 14 serestas
compostas por Villa-Lobos entre 1923 e 1943. O texto de Drummond é conhecido como seresta no.
7.
261
Citado pelo manuscrito de Carlos Drummond de Andrade para Cyro dos Anjos, em 4 ago. 1936,
Acervo Cyro dos Anjos, disponibilizado In: Suplemento Acervo de escritores Mineiros. Belo
Horizonte: Edição especial da Secretaria de Cultura do Estado de Minas Gerais, 2007.
171
romântica do motivo geral a partir da ausência de revelações. A ironia da finda que
Drummond dá ao texto não deixa de sustentar, contudo, a cena amorosa que se
contrói já no primeiro verso. Mas é no sorriso de despedida, no aceno com a
cabeça, no fechar da porta e no fazer rimar escada com nada que reside a quebra
do ideal. Acabou.
E é neste acabar de Drummond, aliado à sensação de fim que o senex
amans do texto vicentino também apresenta diante do abandono causado pela
ausência da amada, que finalizamos esta investigação. O lirismo que nos norteou
ao longo do presente estudo, ora utilizado a favor da comédia, ora formulado a
serviço da lamentação, esteve sempre acompanhado das noções de eternidade
(da dama na memória) e de transitoriedade (do tempo da juventude). Esperamos
que este estudo possa ser não exatamente eterno, pois tudo envelhece e novos
jovens nos virão contradizer, nem propriamente transitório, já que algo do que
somos e fazemos sempre deixa alguma semente. Esperamos, sim, que em nosso
tempo, aos nossos olhos e no atual estado da questão da velhice enamorada, lida
aqui à luz de Gil Vicente, tenhamos contribuído de modo substancial para os
estudos de literatura portuguesa.
172
5. Amor omnia vincit
Dice el italiano: "un foco e venere
ch'il mondo cambia in cenere".
Y el castellano: "Amor nace del ánima
y la hace magnánima".
Y el portugués: "Quien naun de amor he subdito,
he paruo e morra subito".
Y del latino y toda gente plática
es "amor vincit omnia", real pragmática.
262
Não é de hoje que o Amor é entendido como uma foa capaz de alterar
radicalmente o estado interior de quem é ferido por suas flechas, desorganizando
uma suposta ordenação e conduzindo o homem por uma via sem saída. Tudo
porque o Amor é o sentimento mais primitivo, capaz de movimentar todos os
complexos tormentos de nossa psique. É ele que impõe ao sujeito a perda de sua
liberdade em nome do objeto amado. É ele que condena o enamorado a uma
cegueira quase completa, que retira o foco de todas as coisas em detrimento de
um único alvo de investimento. É ele, por fim, que engendra um alto grau de
suscetibilidade e vulnerabilidade; afinal, nunca estamos tão desprotegidos como
quando nos sentimos fisgados pelo Amor. E, apesar de toda a incerteza e de todo
o desconcerto por ele causados, passamos a vida a persegui-lo de modo
determinado, tornando-nos cativos, por vontade, de suas contradições. Amar e ser
amado são necessidades humanas de primeira ordem, mesmo que os efeitos
desse estado amatório se construam sob a égide da ilusão da completude ou da
felicidade. Afinal, ainda que contraditório, o Amor é a lei do universo e a foa
espiritual que molda a matéria simples [que] busca a forma.
Uma das mais belas definições do Amor no teatro português encontra-se na
comédia Eufrosina, de Jorge Ferreira de Vasconcelos, publicada em 1555 e re-
262
Bartolome Cairasco de Figueroa, canção Dos damas, aunque viven en oppósito, fol.184,
vv.123-130, In: NAVARRO DUN, Rosa Esdrújulos inéditos de Bartolomé Cairasco de Figueroa,
Revista de Filología 1, Tenerife: La Laguna, 1982, pp. 13-34.
173
editada em 1560, 1561 e 1566
263
. Mesmo sendo uma peça pouco movimentada e
de raras indicações cênicas, nela se encontra o personagem Zelótipo apresentando
o conceito de amor como sentimento contraditório e tirano, próximo à lão
amorosa camoniana, herdeira de Petrarca, e bastante afinada com a experiência
de muitos senes analisados nesta investigação. Diz Zelótipo referindo-se ao Amor:
Porque tu és Plutão. Tu a foa da nojosa necessidade, tu a
furiosa raiva, o mesmo luto. Finalmente, em ti se encerram a
verdade, a mentira, a quietação e o desassossego, a fraqueza
e a foa. Tu reinas em todo gênero de animal, na terra e no
mar, e nenhum dos deuses escapou de tua tirania, e quem
por tal não te conhece carece de todo sentido. (...) Tu és
esperança desesperada, paraíso triste, inferno glorioso,
pensamento sem cuidado, olhos sem vista, paz discorde,
honra com vergonha. Destruidor de foas, gerador de vícios,
conquistador de ociosos, roubador de liberdade, sem razão,
sem ordem e sem confiaa
264
A tirania do amor a que Zelótipo se refere e da qual nenhum dos deuses
escapou é também observada nos líricos pronunciamentos dos diversos amadores
ao longo da obra de Gil Vicente, sejam eles jovens ou velhos. O que se percebe é
que a filosofia amatória que deixou matrizes tão bem vincadas no culo XVI em
Portugal conjugando concepções da tradão ibérica com o filão italianizante foi
sensivelmente trabalhada por nosso poeta e dramaturgo da corte a partir de
enunciações que, se por um lado evocam uma atmosfera de instabilidade, por
263
A peça de Jorge Ferreira de Vasconcelos é primeira comédia da tríade escrita pelo autor, de
modo geral pouco conhecido, inclusive entre seus contemponeos, que “nenhum coevo o
menciona” como afirma Carolina Michaëlis (ver também ROSSI, Giuseppe Carlo A comédia
Eufrosina nas páginas de D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos e de D. Marcelino Menezes y
Pelayo Coimbra: Biblos, 1947, p. 554)
264
Ato II, Cena I, f.89. Cito pelo original de 1560, com a pontuação e a ortografia por mim
atualizadas. (VASCONCELOS, Jorge Ferreira. Comédia Eufrosina. De novo revista, & em partes
acrescentada. Impressa em Coimbra. Por João de Barreyra Impressor da Universidade. Aos dez de
Mayo de M.D.LX. Facsímile da edição, disponibilizado pela Biblioteca Nacional de Lisboa, Cota
225846).
174
outro buscam refazer o caminho da possibilidade de harmonia pela realização do
próprio amor. É o que observamos na fala das diversas personagens que
representam a velhice enamorada. Entretanto, o senex vicentino não é a única
figura dos autos que experimenta, de modo sofrido, as exigências do Amor. Muitas
são as personagens que, envoltas na tópica do desengano amoroso, fecundam o
universo criativo de Gil Vicente.
Para além de algumas ocorrências pontuais, em que o encontro de um
cavaleiro, nobre e jovem via de regra, com uma dama virtuosa termina em
núpcias
265
, não restam dúvidas de que os casos de amor irrealizáveis seja pela
ausência física da amada, seja pelos enganos produzidos por uma rica diversidade
de situações e motivos encontram na obra vicentina um vasto campo de
exploração. No primeiro caso, figuram os viúvos, lastimosos de sua perda e
desejosos da própria morte como forma de fazer cessar as dores d‟amor. No
segundo caso, o senex amator faz parte de um extenso universo figurativo que
merecerá sempre constantes re-leituras. Para além dos velhos, analisados nesta
investigação, outras personagens são afetadas pela “paz discorde do Amor. É isso
o que ocorre com o Negro, da Tragicomédia Frágua d‟Amor, que, embora saia da
forja de Cupido como um muito gentil homem branco, não consegue modificar o
seu falar, ocupando assim um sem-lugar que o inviabiliza de qualquer felicidade
amorosa, afinal
se mi falá namorado
a muier que branca sae,
ella dirá a mi bae, bae,
tu sá home ó sá riabo?
A negra se a mi falae
265
Nesses casos, as tópicas do príncipe encoberto e da coita de amor são recorrentes na obra
vicentina e basta observarmos duas imprescindíveis tragicodias, segundo a apócrifa catalogação
de Luís Vicente (D. Duardos e Amadis de Gaula), como exemplo disso.
175
dirá a mi sá chacorreiro.
266
Ugo Serani, em artigo intitulado “Seis personagens em busca do amor”
267
,
uma alusão à peça de Pirandello, levanta brevemente a questão a partir de três
obras vicentinas: o Auto Pastoril Português e as tragicomédias Frágua d‟Amor e
Pastoril da Serra da Estrela. Na primeira delas, seis pastores funcionam como
estratégia dramática para que se conte a impossibilidade de conduzir o amor. Essa
estrutura hexagonal é repetida nas tragicomédias citadas e, em todos os casos, é
uma sétima figura que intervém. No caso da Frágua d‟Amor, o próprio Amor,
personificado, é o capitão das mudanças que a tal engenhoca poderia efetivar. O
que o professor da Universidade de Roma nos mostra, para além dessa análise
estrutural, é que a recorrência do tema do desengano amoroso goza de larga
tradição na História da Literatura:
Na tradição literária européia, o topos do amor infeliz, da coita
de amor, que o Romantismo tanto exaltou, esentre os mais
recorrentes. Todos os grandes autores da literatura mundial
experimentaram o género (...) Também Gil Vicente, como era
de prever, prestou atenção aos amores e aos amantes e
soltou a rédea da sua veia criadora.
268
Cupido, referido ao longo de toda a obra vicentina, ganha corpo na Frágua
d‟Amor onde é o grande regente da orquestra dos martelos, o capitão, como
266
IV, p.116. Recomendamos vivamente o ensaio de Cleonice Berardinelli intitulado “Excluìdos ou
incluìdos?”, onde podemos ler a seguinte pergunta seguida de análise: “Que concluir desta
experiência tão dolorosamente frustrada? Que o que para os outros resulta em vantagem, para o
Negro, por ignorância sua (não soube exprimir completamente o seu desejo), resulta em mal muito
maior.” (BERARDINELLI, Cleonice. Excluídos ou incluídos?In: Fernando Pessoa: outra vez te
revejo... Rio de Janeiro: Lacerda editores, 2004, p. 410)
267
SERANI, Ugo Seis personagens em busca do amorIn: Leituras, Revista da Biblioteca Nacional,
no. 11, 2002, pp. 139-146. O texto ainda aponta a estrutura de seis personagens, com a
intervenção do sétimo, no poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade. Para Ugo Serani,
“Drummond construiu o seu poema exactamente como Gil Vicente elaborou o seu auto postoril. Um
quis escrever um poema burlesco, outro um auto devocional, mas no entanto o eixo criativo é
comum”. (Idem, p.145)
268
Idem, p. 140-141.
176
dissemos, das alterações de estado e na Floresta d‟Enganos ferido pela própria
seta e, portanto, arrebatado pelo enamoramento de que deveria ser o causador
mas, em ambos os casos, Gil Vicente desenha um Cupido complexo, núcleo,
senão de todo o enredo, pelo menos de boa parte dele
269
.
Na Frágua d‟Amor, o Negro deseja a brancura da pele, mas não conserta a
negritude da fala; a Justa, uma velha corcovada, torta, muito mal feita, com sua
vara quebrada, depois de grande esfoo dos Planetas, operários da máquina de
Cupido, é rejuvenescida e se liberta da corrupção (moedas escorrem pelas
roldanas durante a transformação) apontando para uma Reforma da Justiça
(galinhas e perdizes também saem da forja ampliando a comicidade); o Frade,
outro representante de uma classe na qual Gil Vicente revela seu caráter
reformista, quer ser novamente leigo, porque não lhe agradam a coroa, / o capelo
e o cordão, / o hábito e a feição, / e a vespora e a noa, / e a missa e o sermão”,
mas só pode entrar na máquina com autorização de outro sacerdote
hierarquicamente superior. Também dois Pajens e um Parvo vêm recorrer à frágua,
sempre em nome de outrem, mas esses episódios são apenas estratégias para
ampliar a eficácia teatral
270
. O ensinamento que percorre as diferentes
transformações é que o Amor é a força capaz de modificar as coisas do mundo
269
Vale lembrar que na Tragicomédia Nau d‟Amores, o capitão da embarcação não é outro senão o
próprio Amor. A figura que leva o nome do sentimento, sempre grafado em mascula, não é
referida como Cupido por nenhum dos passageiros, embora o Pajem o chame de Dios de amor.
270
Gil Vicente não a essas personagens mais do que uma estrofe de enunciação. Pelo tema
desta investigação, contudo, note-se que o Parvo, a servo de Vasco de Foes, trovador presente no
Cancioneiro Geral, diz a Cupido que seu senhor pede que o façais menino. O deus do Amor
ridiculariza o pedido, pois não reconhece a velhice do poeta, mas o Parvo revela que Vasco de Foes
pinta a barba em um delicioso trocadilho típico da parvoíce (no lugar de dizer trinta, a idade de seu
senhor, diz tinta). Embora estejamos reconhecendo o caráter episódico dessas três personagens,
resgatemos as palavras de João Nuno Sales, em seu estudo sobre o auto: “Devem faltar versos
neste diálogo (...) e parece haver corte na cena, enquanto se fazem alusões à barba pintada de
Vasco de Fóis. O Parvo veio fazer o seu papel e este parece-me mal aproveitado, uma vez que as
virtualidades cómicas que a figura oferece o foram desenvolvidas. No entanto, a sua presença
extemporânea, no meio de uma sequência de pajens, pode corresponder a um reforço da caricatura
de Vasco de is: até o pajem é Parvo.” (SALES, João Nuno. Vicente (coleção dirigida por Osório
Mateus): Frágua. Lisboa: Quimera, 1991 e-book 2005)
177
porque é em sua forja que se dão as mudanças. Tudo pode ser a matéria-prima
das esculturas de Cupido.
na Tragicomédia Floresta d‟Enganos, o Filósofo que entra com um parvo
atado ao pé anuncia desde o início o que se verá encenado, dando grande
destaque aos amores de Cupido, não fazendo sequer referência ao episódio do
senex amator Doutor Justiça Maior, que analisamos neste trabalho sem dúvidas
o mais divertido de todo o auto. Com ou sem o intuito de fazer segredo aos
espectadores, investindo talvez na surpresa do episódio do senex, o que temos na
explicação do Fisofo é um emaranhado de enganos, todos provocados pelos
amores de Cupido. Diz o texto:
(...) El segundo engaño será que, siendo Copido enamorado
de Grata Celia, la cual era hija del Rei Telebano, rei de
Tesalia; por lo cual siendo Grata Celia hija deste rei, y señora
de la mas excelente y estremada hermosura del mundo, no
podiendo Copido Haber com ella lugar solitario ni tiempo
oportuno, descanso de su angustiada vida, determinó de
engañar al Rei Telebano. Y el Rei Telebano, engañado del
Dios Apolo, llevó su hija Grata Celia engañada á la sierra
Minea, adonde com grande angustia su padre la dejó
desterrada y presa; y cuando Copido hubo alcansado y hecho
su engaño, descendió del cielo á la tierra donde presa estaba,
y fue della engañado dos vezes, y ella casada com el Príncipe
de la Gran Grécia.
271
Como se percebe, o mundo dos mortais não é o único acometido pelo
caráter arrebatador do Amor. Todos os deuses, como dizia Zelótipo na Eufrosina,
também sentiram os efeitos contraditórios da experiência amorosa. Júpiter é, sem
dúvida, a divindade pagã que melhor representa os imperativos de Cupido.
Transforma-se em cisne por Leda, em touro por Io e Europa, em águia para o rapto
de Ganimedes, em chuva de ouro por Dánae, e, abrindo mão de sua imagem
divina, metamorfoseia-se em homem por Alcmena. Tudo porque seu ser divino se
271
III, p.175
178
perdeu por cousa humana, como diz o próprio piter n‟Os Enfatriões camoniano.
Outras inúmeras histórias de amor animam o universo dos deuses, dentre elas a do
próprio Amor. Se a tradição mitológica nos oferece o episódio em que Cupido se
apaixonado por Psique, a Floresta vicentina refaz essa narrativa a partir do seu
arrebatamento amoroso por Grata Celia, senhora de la mas excelência [sic] y
estremada hermosura del mundo”. Neste auto, o segundo e último texto de Gil
Vicente em que Cupido é personagem, pelo menos nas peças de que temos
notícia, desfaz-se a mensagem expressa na Frágua d‟Amor: o Amor poderá
agenciar uma série de enganos, como de fato ocorre, mas ele também está sujeito
a cair nas próprias armadilhas quando se inserido na experiência amorosa. O
sentimento que Cupido personifica é maior que seu próprio representante. Por isso,
o menino de asas e flechas surge no auto como um amador desesperado,
apresentando os efeitos daquele amor a partir de lamentações de profundo lirismo.
Diz Cupido entrando em cena:
Á quien contaré mis quejas,
á quién diré mi tormento?
Remedio, porqué te alejas
de ver Amor, que solo dejas
neste término momento?
Oh justa esperanza mia!
Qué fue de mi y de ti?
Si te viese algun dia,
Ya no te conoceria;
Tanto ha que no te vi!
272
A aparão do mais jovem personagem vicentino
273
mesmo porque Cupido
sempre esteve cercado de caracteres referentes à puerilidade, indicando que o
amor não só não envelhece como também está relacionado à inconsequência que
272
III, p. 180-181
273
Na Comédia de Rubena, encontramos um quadro pico da obra vicentina: a vida pastoril. A
grande novidade é que os pastores são crianças. Cismeninha, Joaninho, Pedrinho e Afonsinho são
exemplos raros da presença da infância nos textos de Gil Vicente. Entretanto, Cupido não deixa de
simbolizar a meninice em sua fase mais primeva.
179
caracteriza a meninice resgata toda a tradição dos discursos amorosos, das
queixas, da coita. Cupido não difere de nenhum amador que se vê sem esperanças
diante dos dilemas do coração. Seus queixumes prosseguem, revelando o nome
da amada Grata Celia que, tal qual a Psique da Antiguidade, é retratada como a
mais bela flor do jardim, retomando com isso o espaço da horta (ou do horto) como
locus privilegiado para os casos de amor e, consequentemente, dos desconcertos
agenciados pelo sentimento:
Los que me pintan ciego,
no es ansí como conviene;
que amor tantos ojos tiene
como de muertes me ruego,
y ninguna me conviente.
Oh Grata Celia, alma mia,
flor del mas florido huerto!
Pues que á tu Dios tienes muerto,
arrepiéndete algun dia
de tan grande desconcierto.
274
Chamando-a de alma mia”, o que amplia as possibilidades de aproximar
Grata Celia e Psique, Cupido mostra-se completamente sin razon, sofrendo pelo
corazon esquivo da amada que mataste al Dios damor; / y, para mas mi dolor, /
me dejaste el amor vivo”, como podemos ler na estrofe seguinte. Com o desenrolar
dos enganos, Grata Celia é aprisionada na Floresta seguindo o argumento do
Filósofo anteriormente apresentado. Na cena em que se dará o encontro de Cupido
e sua amada, Gil Vicente parece preocupar-se com a utilização de ditames
clássicos do amor cortês, principalmente quando o menino apaixonado se refere ao
feliz acaso” que juntou os dois na floresta. A dama, contudo, literalmente
aprisionada, não pôde escapar dos galanteios de Cupido. Nesta cena, certamente
agradável aos espectadores que conheciam a mitologia, a comicidade decorrente
274
III, p.181
180
do fato de o deus do amor pedir amores a Grata Celia, quando ele mesmo é o
grande agenciador de arrebatamentos, se estrutura com os enganos que sofrerá,
construídos pela própria dama. Para comprovar o seu amor, Cupido deverá cumprir
o estratagema de sua “princesa e “señora, substituindo-a no cativeiro. Neste
momento, o amador já cativo dos encantos de Grata Celia experimenta uma
prisão que deixa de ser metafórica; afinal, as cadenas são denotativas e deveriam
ter, à época da representação, realidade cênica concreta.
Cupido consegue transferir o cativeiro a um Pastor, enganando-o para
conseguir sua liberdade. De todo modo, não terá mais argumentos para seduzir
Grata Celia, mesmo porque sua atitude em aprisionar a amada não zelando pela
sua segurança, nem cuidando, sem limites, de seu bem-estar depôs contra os
códigos de exigência cortês. O novo encontro de ambos será marcado pelo
confronto de idéias: Cupido ainda tenta, por lamentos, reverter a situação, mas
Grata Celia não aceita seu comportamento como digno de um verdadeiro amador.
Casa-se com o Príncipe da Grécia, que vem acompanhado de cinco Duques e
senhores peregrinos, além da Ventura peregrina. Nem Cupido poderá construir
para si um caminho de estabilidade no amor, pois que, quando o que esem jogo
é o sentimento amoroso, todas as vias são desgovernadas e ingovernáveis.
O que pretendo com esta brevíssima analise da presença de Cupido na obra
de Gil Vicente, como forma de elaborar minhas considerações finais, é estabelecer
um contraponto com o tema de minha investigação, reconhecendo no deus do
Amor a figura mais jovem do teatro vicentino. Mesmo que não haja qualquer
indicação de sua meninice, não podemos esquecer que tradicionalmente é essa a
imagem que temos do deus. Por isso, o amor realmente não apresenta saídas,
como anunciava o Velho da Horta, de Gil Vicente, nem para o próprio Amor, pelo
181
que se percebe na Floresta dos muitos enganos. Suas leis são aplicáveis à
totalidade dos seres, e isso independe de se tratar do jovem deus responsável pelo
arrebatamento ou de um senex, seja ele um viúvo saudoso ou um velho libertino;
invariavelmente, é o Amor superior a todos. Servimos a ele, porque é ele o
vencedor: Amor omnia vincit.
A lição de Virgílio é o testemunho mais antigo sobre o caráter imutável das
vitórias do sentimento amoroso sobre todas as coisas. Esta sentença, que es
expressa na Égloga X, verso 69 de suas Bucólicas, é matéria imitável por Gil
Vicente, que nosso dramaturgo propõe um direto jogo alusivo com a lição do
vate latino (como fizeram muitos outros poetas ibéricos, entre eles Encina, Rojas,
Rodrigo Cota, Lucas Fernández, etc), não somente ao anunciar a ausência de
saídas para o amor, na velhice ou juventude, mas também ao propor a
dramatização deste mesmo verso virgiliano em um sermão pregado pelo Frade no
Auto das Fadas. O pregador, queem quanto viveu foi muito namorado, não
profere nenhum versículo bíblico como tema
275
. É a poesia profana o seu mote:
Amor vincit omnia
Loco et capitulo: Jam per elegatis.
Discretas ilustres soras hermosas,
Em cuyo servicio es justo el morir,
la verba del tema quiere decir,
el amor vence á todas las cosas.
Ó que palabras tan maravillosas!
Ó qué palabras de tanto saber!
Escriviólas el gran poeta Vergilio;
guardaldas, señoras, que es muy gran alivio
á quien del amor se siente vencer.
(...)
Amor vincit omnia, hermanas prudentes,
el cual amor viene por três accidentes,
275
Sem ferir as regras da oratória, o sermão do Frade apresenta o tema (Amor vincit omnia, numa
inversão dos termos por melhoria sonora ou para atender à ordem da sintaxe portuguesa) e
localiza-o em termos de referencialidade (Loco et capitulo: Jam per elegatis, que, nas indagações
de Carolina de Michaëlis de Vasconcelos, “quere dizer: procurai vós, em que capìtulo e
versìculo?”). ver VASCONCELOS, Carolina Michaëlis de. Notas Vicentinas. Coimbra: Imprensa da
Universidade, 1922, p. 137.
182
sin vuestras Mercedes seren de culpar.
Del uno es causa vuestro mirar,
y la hermosura que mira com vos;
el otro, la gracia, cuitados de nos!
Que todas las cosas vencís a matar.
El outro accidente que mas atormienta,
rosas del mundo, y mas de sentir,
son los engaños del dulce decir,
con ciertos desvios em cabo de cuenta.
276
Para o Frade, ainda que o Amor vença todas as coisas, é um grande alívio ver-
se vencido por ele, principalmente porque os três accidentes que fazem nascer o
sentimento estão ligados às graças das damas, aos engaños del dulce decir. Ora, se
todos os seres, entre eles Cupido, são invariavelmente vencidos pelo Amor, não seria
possível imaginar que o senex vicentino fosse regido por outragica. Os jovens
poderão indicar uma falsa vantagem, considerando seu vigor físico e sua disposição
para amar, mas o coração de todos os seres é igualmente vulnerável aos imperativos
do Amor. Vencidos, o que lhes resta são lamentações que testemunham o caráter da
rica amorosa de seu tempo. E s, séculos depois, encaramos essas manifestações
literárias com certo reconhecimento, identificando naqueles versos algo que
culturalmente ainda nos diz respeito. O Amor o tem saída e vence a as marcas
inapagáveis do tempo.
276
V, p.195-196
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