Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Comida forte e comida fraca
Alimentação e Fabricação dos corpos entre os Kaingáng da Terra Indígena
Xapecó (Santa Catarina, Brasil)
Philippe Hanna de Almeida Oliveira
Florianópolis
2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
ii
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Comida forte e comida fraca
Alimentação e Fabricação dos corpos entre os Kaingáng da Terra Indígena
Xapecó (Santa Catarina, Brasil)
Philippe Hanna de Almeida Oliveira
Orientadora: Profa. Dra. Esther Jean Langdon
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal de Santa Catarina como
requisito parcial para a obtenção do grau de
mestre em antropologia social.
Florianópolis
2009
ads:
iii
Philippe Hanna de Almeida Oliveira
Comida forte e comida fraca
Alimentação e Fabricação dos corpos entre os Kaingáng da Terra Indígena
Xapecó (Santa Catarina, Brasil)
Banca examinadora:
__________________________________________
Dra. Esther Jean Langdon (Orientadora) PPGAS/UFSC
__________________________________________
Dr. Maurício Soares Leite Departamento de Nutrição/UFSC
___________________________________________
Dra. Alicia N. González de Castells PPGAS/UFSC
___________________________________________
Dra. Eliana Elisabeth Diehl Departamento de Ciências Farmacêuticas/UFSC
___________________________________________
Dra. Sônia Weidner Maluf PPGAS/UFSC (Suplente)
Florianópolis, dezembro de 2009
iv
AGRADECIMENTOS
Agradeço aos meus pais, Leila e Oscar pelo apoio inestimável que me deram para a
realização deste trabalho. À Valmor, pela força e carinho e a meu irmão Fabrício.
À orientadora Jean, pelas longas conversas sobre o conteúdo dessa dissertação e ao
aprendizado que propiciou desde a graduação. Ao professor Flávio pelas aulas em pesquisa
de campo, ao professor Crepéau pelas conversas em campo e aos professores Oscar, Sônia,
Rafael, Alberto e Cármen, pela minha formação em Antropologia durante a graduação e o
mestrado.
Matilde, Paulo, Preta, Ina, Kokój e Koasan por me receberem em suas casas para a
realização da pesquisa de campo. Valdemar, Diva, Lúcio, Nilson, Ducão, Doni, Emiliana,
Lúcio, Maria, Antônio, Ducão e Vardinho, pelas contribuições à pesquisa e por muito me
ensinarem.
Às grandes amizades de Ari, Arthur, Ananda, Bel, Bené, Beto, Caco, Dani, Daniel,
Diego, Edu, Elias, ET, Érika, Fernanda, Galego, Gê, Gi, Gersom, Léo, Louis, Lucas,
Mauro, Marcelo, Moreno, Moscão, Nádia, Pablo, Paulo, Rafa, Raquel, Sílvia, Tomás,
Vekho e Xanda. Agradeço também à Suka pela ajuda durante a escrita deste trabalho e a
Rafael Buti pela revisão do texto.
Agradeço enormemente aos membros da banca, Maurício, Eliana e Alicia, pela
disposição de participarem da defesa deste trabalho em uma data tão inconveniente.
Por fim, agradeço ao CNPq pelo incentivo à pesquisa científica desde a graduação.
v
Acreditamos que os estudiosos da Etnologia
brasileira precisam ser mais incisivos em seus
pronunciamentos sobre o desenvolvimento
prático das ações oficiais destinadas a proteger e
assistir os silvícolas. Precisam, também, se
preocupar mais com o destino das populações
tribais que estudam, formulando e defendendo
normas claras de ação a serem aplicadas pelos
administradores responsáveis pela proteção e
assistência. Precisam, finalmente, demonstrar
aos executores do indigenismo oficial que não
são meros colecionadores de artefatos ou simples
curiosos de exóticas formas de matrimônio,
parentesco, sistemas econômicos, explicações
ideológicas ou estruturas lingüísticas. Mas sim
que são estudiosos das composições culturais,
que o homem conseguiu formular em sua luta
pela sobrevivência, e que além disso vêm seu
objeto de pesquisa antes de tudo como homens.”
(Sílvio Coelho dos Santos, 1970:13)
vi
RESUMO
Este trabalho se propõe a compreender a alimentação dos Kaingáng da Terra Indígena (TI) Xapecó
(SC) por uma perspectiva antropológica, contemplando seus aspectos práticos e simbólicos. Entre
os povos ameríndios a alimentação articula-se intimamente com suas concepções sobre corpo,
influenciando-o diretamente. Entre os Kaingáng, a fabricação dos corpos articula-se com a mudança
ocorrida na alimentação entre o “tempo dos antigos” e hoje. De acordo com a rede semântica nativa,
a “comida antiga” era mais “forte” que a atual, bem como o corpo das pessoas que dela comiam. A
nova comida, do “branco”, considerada “fraca”, estaria construindo corpos também “fracos” e mais
suscetíveis à doenças entre os jovens. São abordados ainda festas, jogos, visitas e outros modos de
compartilhamento de comida. Esses eventos serão analisados à luz da cosmologia Kaingáng, a fim
de entender a lógica da generosidade e as diversas trocas operadas nesses contextos, seja entre
homens ou entre homens e deuses. Essas práticas são compreendidas como práticas de auto-atenção
à saúde do grupo um como todo, tendo em vista que fortalecem todo o corpo social, além de
valorizarem a distribuição e produção de “comida forte”, considerada saudável pelos Kaingáng.
Palavras-Chave
Etnologia Indígena, Estudos Jê, Antropologia da Alimentação, Índios Sul-Americanos,
Corporalidade
ABSTRACT
This study seeks to understand alimentary practices of the Kaingáng of the Xapecó Indian
Reservation from an anthropological perspective that considers its practical and symbolic aspects.
Among Amerindian peoples, food is closely tied to their views on the body, influencing it directly.
Among the Kaingáng these bodily aspects are articulated with changes in alimentation between the
"time of the elders” and today. According to the native semantic network, "ancient food" is
"stronger" than that which has been introduced with contact, as well as the bodies that consumed it.
The new food, "white" food, is considered "weak", and it is producing the "weak" bodies of the
youth, making them more susceptible to illness. Festivities, games, visiting and other occasions that
involved the sharing food were studied. These events were analyzed in the light of Kaingáng
cosmology, in order to understand the logic of generosity and the various exchanges performed in
these contexts, be they between humans or between humans and gods. These practices are also
considered to be health practices for the group as a whole, since they strengthen the social body, and
value the distribution and production of the "strong food" considered healthy by the Kaingáng.
Key-Words
Indigenous Ethnology, Jê Studies, Anthropology of Food, South-American Indigenous,
Embodiment
vii
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AIKA Associação Indígena Kahnru
AIS - Agente Indígena de Saúde
AISan - Agente Indígena de Saneamento
CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
FUNAI Fundação Nacional do Índio
FUNASA Fundação Nacional de Saúde
GERE - Gerência Regional de Educação
INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
PI - Posto Indígena
PRONAF - Programa Nacional de Agricultura Familiar
SJM São João Maria
SISVAN Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional
SPI Serviço de Proteção ao Índio
SPILTN - Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais
TI Terra Indígena
viii
SUMÁRIO
Apresentação.........................................................................................................................1
Bases teórico-metodológicas.................................................................................................2
Comida ou Alimento? ................................................................................................2
Alimentação e antropologia .......................................................................................5
Metodologia e trajetória do pesquisador .................................................................13
Capítulo I O Povo Kaingáng e a TI Xapecó
1.1 - Breve histórico sobre o povo Kaingáng .......................................................................15
1.2 A Terra Indígena Xapecó: Histórico e caracterização.................................................20
1.2.1 Desmatamento ..............................................................................................22
1.2.2 - A questão da terra .........................................................................................23
1.2.3 Cooperativa ..................................................................................................27
1.2.4 - Arrendamento das terras ..............................................................................28
1.2.5 Educação e Saúde ........................................................................................31
1.2.6 - Cosmologia, Igrejas e Religiões ...................................................................37
1.2.7 - Política e Relações Interétnicas ...................................................................43
1.3 - Fontes de renda e subsistência na TI Xapecó ..........................................................45
1.3.1 - Cultivo “pro gasto” ......................................................................................45
1.3.2 - Emprego e outras fontes de renda ................................................................48
1.3.3 Aquisição de Alimentos ................................................................................51
1.3.4 - Caça, Pesca e Coleta ....................................................................................54
1.3.5 - Cotidiano - Breve descrição etnográfica ......................................................56
1.4 - Conclusões acerca desse capítulo.................................................................................59
ix
Capítulo II - Aspectos práticos e simbólicos da Comida
2.1 - Percepções nativas sobre as mudanças: “O tempo dos antigos..................................60
2.2 - As “comidas antigas ..................................................................................................67
2.3 - Comida forte e Comida fraca: Processos de fabricação dos corpos e pessoas ..........71
2.3.1 Dietas ...........................................................................................................76
2.4 - Comida como prática de auto-atenção no sentido estrito ............................................79
Capítulo III - Práticas sociais de compartilhamento de comida: Festas, jogos e visitas
3.1 As festas de antigamente .............................................................................................87
3.2 - “Se não tiver churrasco, não tem festa”........................................................................89
3.2.1 - Festas de santos “Partilha” ......................................................................89
3.2.2 - Festas Evangélicas “Missão” ...................................................................93
3.2.3 Aniversários ...............................................................................................102
3.3 Jogos...........................................................................................................................104
3.3.1 - Bocha de Cancha ........................................................................................104
3.3.2 - Sobre o futebol ............................................................................................108
3.4 - Entre homens e deuses: relações horizontais e verticais ............................................112
3.5 - Visitas e outras formas de comensalidade .................................................................116
3.6 Mitos sobre Generosidade e Avareza ........................................................................120
3.7 - Sobre compartilhar a comida forte .............................................................................121
3.8 - Considerações acerca desse capítulo .........................................................................124
Considerações finais .........................................................................................................125
Referências ........................................................................................................................130
Anexos ...............................................................................................................................140
1
Apresentação
O presente trabalho se propõe a compreender a alimentação dos
Kaingáng da Terra Indígena (TI) Xapecó por uma perspectiva
antropológica, contemplando seus aspectos práticos e simbólicos. Em
primeiro lugar é apresentada a diferença entre comida e alimento, sendo
que a comida refere-se aos aspectos culturais da alimentação, e não
apenas a satisfação de necessidades fisiológicas (GONÇALVES, 2004).
Entre os povos ameríndios a comida articula-se com suas concepções
sobre corpo, influenciando-o diretamente (SEEGER et al., 1987 [1979]).
Para os Kaingáng, esses aspectos relacionam-se com a mudança
ocorrida na alimentação do “tempo dos antigos” até hoje em dia.
Segundo os índios mais velhos, no “tempo dos antigos, como dito por
eles, a comida era mais “forte”, bem como o corpo das pessoas que dela
comiam. A nova comida, do “branco”, é considerada “fraca”, qual
estaria constituindo os corpos dos jovens também “fracos” e mais
suscetíveis à doenças. Desse modo a alimentação, em seus diversos
aspectos, é compreendida como uma prática de auto-atenção à saúde
(MENÉNDEZ, 2003).
No capítulo I, com o intuito de contextualizar a análise e o
leitor, será traçado um breve histórico do contato entre os Kaingáng e a
sociedade ocidental, contato que influenciou de diversas maneiras seu
modo de vida, inclusive a alimentação. Dentre as principais
conseqüências acarretadas está a confinação em exíguos espaços de
terra, muitas vezes espoliadas ambientalmente.
O capítulo II trata mais especificamente da relação entre a
alimentação e o corpo Kaingáng, de acordo com suas representações
sobre essa relação. Serão também apresentadas as percepções Kaingáng
sobre as mudanças ocorridas e as conseqüências dessas mudanças para a
vida cotidiana e a saúde das pessoas. Para compreendê-las serão
explanadas as noções de força (tar) e fraqueza (krój), fundamentais para
o entendimento da concepção nativa de saúde e sua relação com a
comida.
Festas, jogos, visitas e outros modos de compartilhamento de
comida serão descritos no capítulo III. Esses eventos serão analisados à
luz da cosmologia Kaingáng, a fim de entender a lógica da generosidade
e as diversas trocas operadas nesses contextos, seja entre homens ou
entre homens e deuses. Essas práticas são compreendidas como práticas
de auto-atenção à saúde do grupo como um todo, tendo em vista que
fortalecem todo o corpo social, além de valorizarem a distribuição e
2
produção de “comida forte”, a qual é considerada saudável pelos
Kaingáng. As práticas e concepções nativas sobre comida e saúde são
importantes para problematizarmos as políticas públicas de atenção à
saúde indígena, particularmente no que se refere à intervenção
nutricional. Uma reflexão sobre tais aspectos será realizada nas
considerações finais do trabalho.
Bases teórico-metodológicas
Comida ou Alimento?
Este trabalho pretende explorar as práticas alimentares entre os
índios Kaingáng da TI Xapecó por uma perspectiva antropológica.
Portanto é importante situarmos a noção de “comida” utilizada neste
trabalho, a qual se difere substancialmente de como o “alimento” é
compreendido pela biomedicina e as ciências da nutrição. Segundo
Gonçalves (2004), duas vertentes nos estudos de “alimentação”. A
primeira abarca aqueles estudos que compreendem a alimentação como
uma resposta “natural” à fome, ou seja, uma maneira de atender às
necessidades básicas e suprir o corpo com proteínas e vitaminas. Nas
palavras do autor: “Enquanto uma necessidade natural, a fome vem a ser
satisfeita por qualquer tipo de alimento; assim como a sede é satisfeita
pela água” (GONÇALVES, 2004:5). Esse viés pressupõe um dado
modelo de natureza humana, no qual o ser humano é visto como um ser
incompleto, na eterna busca de maximizar seus prazeres e minimizar seu
sofrimento, mesmo que para isso precise se beneficiar em detrimento
alheio. Para Sahlins (1996), essa concepção de homem como um ser
biológico, imperfeito, egoísta e infeliz definido pela falta e pelas
necessidades - é o que fundamenta as Ciências Econômicas
1
desde
Adam Smith, concepção formulada a partir de uma tradição
“hobbesiana-judaico-cristã”. Ironicamente, esse “homem econômico”
formulado por Adam Smith, seria uma imagem de Adão após a queda
do Paraíso, tendo de lutar contra um ambiente hostil para garantir sua
sobrevivência. De acordo com Gonçalves:
Se nossa reflexão estiver baseada na “fome”
enquanto uma necessidade natural (...) a sociedade
será concebida como uma “coleção de
indivíduos”, e a cultura como um conjunto de
instrumentos por meio dos quais a natureza
1
E conseqüentemente o modelo econômico capitalista, bem como outras ciências.
3
humana, supostamente fraca e dependente, poderá
e deverá ser compensada. Nessa perspectiva, a
natureza humana tende a ser concebida em termos
biológicos (Gonçalves, 2004:5).
A outra vertente apontada por Gonçalves prioriza a “comida” ao
invés do “alimento”, dando enfoque ao “paladar” e não a “fome”. O
paladar é definido por regras, proibições e dinâmicas culturais, ou seja,
por escolhas culturais e mesmo individuais. “A comida é assim social e
culturalmente significativa e conseqüentemente distinta da experiência
estritamente fisiológica de alimentar-se” (Gonçalves, 2004:6). O autor
pontua ainda que na noção de “comida”, a “fome” é substituída pelo
“apetite”, sendo assim uma questão de escolha cultural, e não de simples
satisfação fisiológica. Enquanto a “comida” é relacionada às noções de
corpo e paladar como culturalmente formados, o “alimento” remete a
um corpo estritamente biológico, definido pela satisfação de suas
necessidades fisiológicas. Outra distinção refere-se aos aspectos sociais
e culturais da “refeição”, a qual se difere substancialmente do simples
ato de alimentar-se; a refeição é coletiva e pressupõe um processo
culturalmente construído de preparação, apresentação e consumo da
comida, algumas vezes altamente ritualizado (GONÇALVES, 2004).
Seguindo também a abordagem de Menéndez (2003), as práticas
alimentares serão compreendidas como práticas de auto-atenção à saúde,
não apenas processos de satisfação fisiológica. Utilizando o conceito de
auto-atenção em seu sentido mais lato podemos considerar os ritos, os
casamentos e organização de parentesco, a cosmologia, as narrativas
míticas, práticas de subsistência, a distribuição de comida, etc., as quais
caracterizam práticas de auto-atenção para a manutenção e reprodução
do corpo social como um todo. Em seu sentido mais estrito, podemos
citar as dietas, as classificações de comida, os valores associados aos
alimentos e suas utilizações terapêuticas que remetem às práticas de
auto-atenção no sentido estrito, como definidos pelo autor
(MENÉNDEZ, 2003:198-199). Para o autor, a auto-atenção é uma
atividade fundamental do processo saúde/enfermidade/atenção, sendo
uma atividade constante. Para definir este conceito de uma maneira mais
precisa me utilizarei das palavras do autor:
Por autoatención nos referimos en este trabajo a
las representaciones y prácticas que la población
utiliza a nível de sujeto y grupo social para
diagnosticar, explicar, atender, controlar, aliviar,
aguantar, curar solucionar o previnir los processos
que afectan su salud em términos reales o
4
imaginarios, sin la intervención central, directa e
intencional de curadores profesionales
(Menéndez, 2003:198).
Desse modo, proponho realizar neste trabalho um estudo
antropológico da comida Kaingáng em suas diversas facetas, não uma
análise de seus determinantes nutricionais. Portanto, mesmo quando for
utilizado o termo “alimento” nesse trabalho estarei me referindo à
comida, e não às substâncias (proteínas, carboidratos, etc.) ingeridas
para a satisfação das necessidades fisiológicas.
Maffesoli (2005) se preocupa em demonstrar como a vida
cotidiana representa um fato social de extrema importância. Propondo
uma sociologia do cotidiano que consiga penetrar na “lógica do
doméstico”, tal autor compreende a comensalidade como um modo de
enaltação da “sagrada sociedade”. Remetendo a Durkheim, a
comensalidade é compreendida como um fato social e um momento
de caráter “religioso”, pois consagra a sociedade. Porém, além de um
espaço de agregação, a mesa (na sociedade ocidental) é também um
espaço onde se demonstram as diferenças e se expressa hierarquia.
Paradoxalmente ambíguo, o momento da refeição reúne e separa, numa
liminaridade que nos remete às noções de Turner (1974). Para Maffesoli
(2005), em torno da mesa é onde ocorre a reunião das mais sólidas
amizades, como também é o espaço onde acontecem as discussões mais
ferrenhas. Desse modo, a mesa é comparada aos ritos e ao teatro, sendo
um espaço onde ocorre a teatralização das relações sociais. Entretanto, a
agregação em torno da mesa pode acontecer com a presença dos
alimentos, e sem esses a reunião não acontece e até mesmo a própria
casa poderia dissolver-se. São os alimentos que unem a mesa à
estruturação social, essa dependente tanto da mesa como dos alimentos.
A reunião em torno da comida tanto gratifica o corpo como permite a
troca, sendo assim um “modelo insuperável do fato social”
(MAFFESOLI, 2005:97).
Analisarei, portanto, os aspectos sociais e culturais da
alimentação dos Kaingáng, referindo-me particularmente às práticas
sociais de compartilhamento de comida e às representações nativas
sobre corpo e saúde. Buscarei compreender essas práticas e
representações utilizando-me da cosmologia e dos discursos nativos. A
compreensão de tais aspectos torna-se um empreendimento fundamental
para efetivar-se uma atenção diferenciada à saúde dos povos indígenas,
a qual tem sido alvo de políticas públicas muitas vezes etnocêntricas.
5
Alimentação e antropologia
A alimentação é objeto de estudo antropológico desde o fim do
século XIX. Entre os trabalhos mais antigos podemos citar o artigo de
Garrick Mallery, “Manners and meals”, publicado em 1888 no primeiro
ano da revista American Anthropologist. Em 1921, Franz Boas descreve
detalhadamente as receitas de salmão preparadas pelos Kwakiutl,
podendo também ser dado como exemplo de um dos primeiros trabalhos
antropológicos que dão ênfase à alimentação (MINTZ e DU BOIS,
2002). No Brasil, Luis da Câmara Cascudo, considerado por Gonçalves
(2004) um antropólogo nativo, publica em 1954 o Dicionário do
Folclore Brasileiro (CASCUDO 1962 [1954] apud GONÇALVES,
2004), o qual contempla entre diversos aspectos da cultura popular
brasileira também comidas e bebidas.
Na década de 60, vi-Strauss publica a teoria estrutural,
abordando entre outros temas a articulação simbólica entre alimentação
e os processos culturais
2
. Mary Douglas escreve em 1966 o livro
“Pureza e Perigo”, analisando as concepções de poluição e tabu,
inclusive alimentares, de modo comparativo em diferentes sociedades.
A autora continuará seus estudos sobre alimentação em outros artigos,
como em “Decyphering a Meal” (1975), onde critica o binarismo de
Lévi-Strauss na análise dos alimentos, afirmando que o projeto
estruturalista é muito pretensioso ao buscar significados universais ao
fenômeno humano da alimentação e propõe então realizar uma leitura
das refeições tal como fossem poemas, analisando cada contexto
cultural em particular. Esses trabalhos demonstram como o interesse no
estudo da alimentação enquanto um aspecto cultural existia desde as
décadas de 60 e 70, em diferentes “centros” da tradição antropológica
(CARDOSO DE OLIVEIRA, 1993) França, Inglaterra e Estados
Unidos - mesmo que por abordagens diferentes.
Na antropologia brasileira, os hábitos alimentares foram foco de
um projeto interinstitucional na década de 70. Este projeto, coordenado
pela Universidade de Brasília e pelo Museu Nacional, enfocou os
hábitos e ideologias alimentares em vários grupos de baixa renda do
2
Podemos citar aqui três títulos das Mitológicas, que se referem à comida: “O Cru e o Cozido”
“Do Mel às Cinzas” e “A origem dos modos à mesa”, além do texto “O triângulo culinário”,
primeiro texto de Lévi-Strauss que aborda alimentação, publicado na revista “L‟Arc” em 1965
(LÉVI-STRAUSS, 1965, 2004a, 2004b, 2006).
6
Brasil. Woortman (1977) e outros pesquisadores deram diversas ênfases
ao tema, entre elas, os aspectos cognitivos e simbólicos, a lógica da
produção camponesa, as estratégias desenvolvidas para assegurar
padrões definidos de subsistência, o consumo e as identidades. Entre a
diversidade de abordagens, ressaltamos o trabalho entre uma
comunidade cabocla, feito por Maués e Maués (1978), referente ao
“reino da reima”, que busca compreender as interdições alimentares dos
alimentos “reimosos”, presente em muitas sociedades amazônicas.
Adotando o viés de Douglas (1996) sobre a oposição simbólica de “puro
e impuro” e a relatividade das categorias juntos a estados liminais e
modos de preparação de comida, os autores analisam como os alimentos
impuros (reimosos) devem ser afastados de pessoas em estados
liminares, havendo o perigo de agravarem sua contaminação e trazer
conseqüências para a saúde.
Entre os povos indígenas, as noções de corpo e de substância são
fundamentais para compreendermos suas práticas e representações
referentes à comida. Tais noções passam a ser utilizadas no estudo das
sociedades ameríndias a partir das pesquisas de Seeger (1980), Da Matta
(1976), e Viveiros de Castro (1977) sendo sintetizados no artigo clássico
e inovador destes autores, intitulado A construção da pessoa nas
sociedades indígenas brasileiras” (SEEGER et al. (1987 [1979]). Para
compreender as sociedades indígenas das terras baixas, sul-americanas,
os autores propõem uma abordagem que não se embase nos modelos
melanésios ou africanos, calcados nas idéias de “linhageme “clã”. É
proposta, entretanto, uma perspectiva que consiga abarcar a construção
de pessoas e a fabricação dos corpos nas sociedades indígenas, temas
recorrentes nas práticas e nas cosmologias desses povos. Desse modo, é
formulado um viés teórico que se utiliza complementarmente das
perspectivas de “Victor Turner (o pólo corpóreo-sensorial de toda
metáfora ritual; 1967, 1974), Mary Douglas (a experiência corporal
lança mão dos processos sociais para se tornar pensável; 1970, 1976) e
C. Lévi-Strauss (as qualidades sensíveis, e a experiência do corpo, como
operadores de um discurso social; 1962, 1966, 1967)” (SEEGER et al.,
1987:11). Os autores articulam a corporalidade com significações
sociais e cosmológicas ameríndias, compreendendo o corpo como
“matriz de símbolos e um objeto de pensamento”. A sociedade
ameríndia é percebida de modo “substancializado”, sendo que restrições
e prescrições alimentares dos indivíduos influenciam todo o universo
social, estando a sócio-lógica indígena embasada em uma físio-
lógica” (SEEGER et al., 1987).
7
Em 1981, Kensinger e Kracke organizaram um simpósio sobre
proibições de comida nas terras baixas, o qual resultou na publicação de
umas das primeiras coletâneas ressaltando o tema e a relação entre
hábitos alimentares e cosmologia, além da influência entre tabus
alimentares e aspectos ecológicos. Esta importante coletânea sobre a
alimentação ameríndia conta com artigos de Patrick Menget, Thomas
Langdon, Irving Goldman, Greg Urban e Kenneth Taylor.
Os estudos que buscam compreender a alimentação de povos
indígenas atualmente são realizados por duas correntes principais;
grosso modo, uma enfoca principalmente a predação e as práticas de
caça, enquanto a outra mais ênfase aos aspectos do cotidiano e da
convivialidade a partir da alimentação. Num desdobramento dessa
noção de pessoa e corporalidade (SEEGER et al., 1987), aliado ao
perspectivismo ameríndio (VIVEIROS DE CASTRO, 1996), Carlos
Fausto (2007) realiza uma revisão bibliográfica sobre o tema. Neste
trabalho, a predação é associada a um amplo campo de relações sócio-
cósmicas, nas quais humanos e animais estão envolvidos numa relação
de reciprocidade. Referindo-se exclusivamente ao consumo de carne,
Fausto argumenta que a comensalidade não opera meramente um
processo de produção de corpos, mas implica comer como e com
alguém, realizando a produção de related bodies ou bodies of a kind
(FAUSTO, 2007). É importante ressaltar que o compartilhamento de
carne não é apenas uma característica da relação entre parentes, mas de
fato produz parentesco, operando como um modo de produção de
“pessoas do mesmo tipo”, num processo denominado pelo autor de
“familiarização” (FAUSTO, 2007).
Langdon (2007), comentando o artigo de Fausto, questiona o
enfoque que privilegia a caça e a predação. A autora afirma que essa
abordagem é limitada, pois exclui muitas outras metáforas recorrentes
nas sociedades indígenas, como por exemplo, a generosidade e a
domesticação. Estes últimos temas seriam mais ligados à domesticação,
feminilidade e à mãe criadora”, os quais são encontrados em diversas
cosmologias amazônicas. O questionamento da centralidade das
metáforas de caça e predação são também apresentados por outras
autoras que se referem ao gênero e à agência feminina nas sociedades
indígenas (LANGDON, 2007; OVERING, 2006; MCCALLUM, 1998;
RIVAL, 2001; VIEGAS, 2007).
Em um estudo sobre a metáfora da mãe criadora entre os
Achuar, Laura Rival demonstra que, de modo similar à afinidade dos
homens aos seus “guias animais” para a caça, as mulheres Achuar
8
mantém uma relação consangüínea com as plantas que cultivam. A
heroína Achuar, chamada Nunkui, possui grande importância para o
cultivo dos alimentos, sendo associada ao espírito das plantas e
considerada guardiã das plantas em crescimento (RIVAL, 2001:58-59).
Rival sugere, dessa maneira, que a consangüinidade de mulheres e
plantas é regida por uma relação maternal entre Nunkui, as mulheres
Achuar e as plantas cultivadas (RIVAL, 2001).
A segunda corrente, do cotidiano e da convivialidade a partir da
alimentação, é inspirado por Joanna Overing (1991, 1999, 2000, 2006).
Preocupada com a construção do “senso de comunidade” através do
cotidiano, ela analisa como o “certo e do bem comumabarca aspectos
políticos, morais e estéticos. Overing (1999) enfatiza a importância do
cotidiano para a compreensão da socialidade das sociedades indígenas
das terras baixas. Ao invés de perceberem as práticas rotineiras como
simples e entediantes estas devem ser realizadas de maneira “bonita” e
de bom grado, de modo a contribuir para o alto moral do grupo
doméstico. Para que as pessoas vivam e trabalhem juntas, é necessária a
criação cotidiana de boas relações entre elas, por meio do bom humor e
da realização prazerosa das tarefas, e não pelo estabelecimento de leis e
regras. Essa moralidade ameríndia, baseada na confiança e não na
coerção, apresenta-se em diversos aspectos da vida cotidiana. Podemos
tomar a alimentação como exemplo: apesar de os Piaroa valorizarem
bastante a autonomia individual de produção e consumo, a gula é
considerada um comportamento hostil, avaro e até mesmo patológico
ou, como a autora busca argumentar neste artigo - esteticamente “feio”.
Aquele que se porta mal deve submeter-se à cura xamânica, pois não
controla seus atos, estando “doente” (OVERING, 1991). Outro exemplo
interessante é como ocorre o casamento entre os Piaroa, efetivando-se
pelo compartilhamento das habilidades do casal: caso um rapaz Piaroa
ofereça os produtos de sua caça a uma moça solteira, e esta os prepare e
cozinhe para depois oferecer ao caçador, eles estão, por este ato,
casados. Engajarem-se juntos nas atividades produtivas, ligadas à arte
de alimentar e ao contexto conjugal, não estabelece um status de
casados, porém cria a prática de estarem casados (OVERING, 1999).
A arte culinária dos Piaroa é descrita de modo mais detalhado
em um trabalho mais recente de Overing (2006), onde a autora
demonstra como as mais diversas instâncias da vida são relacionadas à
arte culinária. Esta não se restringe apenas ao ato de cultivo e preparo
dos alimentos, porém incluem-se curar doenças, fazer belas cestas e
dardos de zarabatana, como também rir, compartilhar e cuidar. Ou seja,
9
a arte verbal e a maneira de rir, que são ligadas à habilidade de gerar
vínculos sociais, são intrínsecas às artes da culinária. A autora se
preocupa em descrever os pormenores da vida cotidiana Piaroa, a fim de
argumentar que a culinária nas sociedades indígenas vai além da
subsistência, sendo mais uma arte do que uma prática para a
sobrevivência. Para Overing (2006), a culinária indígena é claramente
associada ao paladar, ao desejo e às relações cosmológicas, não à fome e
à satisfação de necessidades fisiológicas. Gow (1989), aluno de
Overing, descreve a “economia de subsistência” Piro, porém tecendo
uma crítica à noção de subsistência como mera satisfação das
necessidades humanas. A “economia de subsistência” proposta por Gow
se refere às relações sociais, culturalmente construídas a partir da
produção, circulação e consumo de trabalho e bens entre as pessoas. Os
trabalhos de Gow (1989) e Overing (2006) remetem-nos às idéias de
Gonçalves (2004), explanadas anteriormente.
É importante ressaltar que para os Piaroa é através da corrente
sanguínea que os pensamentos circulam através do corpo, fornecendo a
cada membro inteligência para agir. Desse modo, as artes verbais e
outras habilidades são corporificadas. A arte culinária também está
relacionada à capacidade de manipular venenos. Isso se deve ao fato de
que na Amazônia, para conseguir caça (uso do curare, veneno para caça)
e pesca (venenos para inebriar peixes), é necessário conhecer e saber
manipular os venenos. Além do mais, algumas plantas cultivadas são
venenosas (como é o caso da mandioca brava), sendo necessário saber
transformá-las em comestíveis por meio do cozimento. Os animais da
selva são também considerados venenosos, e são necessárias habilidades
xamânicas para torná-los apropriados para o consumo. Igualmente, o
veneno está presente nos corpos das pessoas, sendo o ato diário das artes
culinárias comparável a andar na corda bamba: “corpos abertos tem de
suportar os venenos advindos de seus próprios processos corporais e dos
processos corporais de outras pessoas, na medida em que todas se
reúnem para executar as tarefas diárias” (Overing, 2006:34). As artes
culinárias venenosas são tanto facilitadoras de uma comunidade de
relações sociais, quanto destruidoras dessa mesma vida e sociabilidade.
Portanto, para que as relações sociais sejam fortuitas, estas devem ser
muito bem trabalhadas: elas precisam ser conscientes. Desse modo,
Overing (2006) demonstra nesse trabalho como opera uma “comunidade
de substância”, onde pensamentos, ações e fluídos corporais são
estritamente relacionados.
10
Seguindo a abordagem de Overing, Cecília McCallum (1998)
realiza um estudo da vida cotidiana Kaxinauá. Também embasando-se
no trabalho de Marilyn Strathern (1988), The gender of the gift, a
sociabilidade é associada à constituição social e moral de relatedness
(estar relacionado), sendo decorrente da “ação humana” (utilizando a
noção de agência, human agency) em suas diversas formas. Porém, para
melhor descrever a construção das relações sociais e de gênero são
diferenciados os termos “socialidade” e “sociabilidade”. É demonstrado
como, entre os Kaxinauá, a socialidade é construída no curso da vida
diária, havendo diferentes modos de agência social para homens e
mulheres. Os homens aprendem sua agência para lidar com o exterior,
especializando-se na predação e na troca, sendo sua tarefa levar objetos
do mundo exterior (como caça, remédios, comidas e produtos variados)
ao interior do contexto familiar. A agência feminina é a contrapartida da
masculina; é tarefa das mulheres processarem as aquisições e produtos
masculinos e torná-los apropriados ao consumo. Depois de
transformados, os produtos são servidos pelas mulheres, reafirmando
assim, seu poder de presentear os que vão consumir. As duas agências
são inter-relacionadas, pois
colocar nas mãos da mulher o produto da caça ou
dos negócios é afirmar a centralidade da mulher e
efetuar a reinserção do homem no interior. (...) a
mulher, ao transformar e distribuir o produto não
simboliza o interior mas também o recria, pois
fazer parentesco é fazer o lugar dos meus
parentes” (McCallum, 1998:129).
Além das relações de gênero, McCallum se preocupa em
descrever os processos de sociabilidade entre as mulheres, relatando
como elas saem “para caçar” utilizando-se das regras de dádiva entre as
mulheres de diferentes aldeias. É descrito como grupos de mulheres
saem de uma aldeia à outra, com o intuito de visitar parentes, mas
também comer e conseguir comida, sendo considerada pela autora uma
“atividade predatória”. Ser bem recebida e receber comida em fartura
tornam as visitantes e a anfitriã “mais aparentadas”. Desse modo são
opostos os atos socializantes, de servir boa comida às visitantes das
aldeias distantes, dos atos “anti-sociais”, como se negar a oferecer ou
sovinar comida. Assim, McCallum (1998) conclui que a “socialidade”
pode vir a ser o produto de várias “sociabilidades”, não se limitando a
apenas uma delas, e que o resultado desses vários tipos de sociabilidades
que se entrelaçam pode ser, ou não (dependendo dos atos dos agentes,
que podem agir de maneira anti-social), socialidade.
11
Elsje Lagrou (2002) descreve como os laços sociais são
construídos através da convivência, da comensalidade e do
compartilhamento de substâncias vitais. Lagrou (2000) ressalta a
importância do processo de cozimento para a transformação dos
alimentos em “comida verdadeira”. A relevância dada pelos Kaxinawa
ao cozimento é associada aos seus mitos de origem, como o roubo do
fogo culinário, e às noções corporais, de que os bebês são “cozidos”
durante a gestação. Desde a gravidez o feto deve ser 'cozido' no útero da
mãe e 'moldado' pelo pai através do intercurso sexual. Durante o
crescimento da criança o compartilhamento de comida, dentre outros
processos de co-substancialização, atua literalmente como construtor do
'corpo social'. É utilizado o termo 'corpo social' pois este processo o
opera apenas na construção dos corpos individuais, mas do 'corpo
coletivo'. Isso é expresso de diversas formas, sendo uma delas a
preocupação com pessoas que aparentem estar magras, o que seria um
sinal de que a pessoa não está bem. Parentes próximos, com quem se
compartilha não apenas comida mas também pensamentos, experiências,
memórias e substâncias corporais são chamados de 'nosso corpo'. Os
Kaxinawa dizem que pessoas que compartilham práticas sociais e
refeições possuem um 'corpo parecido'. Para os Kaxinawa, uma pessoa
que passe a viver longe da aldeia, e assim deixe de compartilhar
substâncias, incluso comida, com outros Kaxinawa, pode vir a se tornar
um não-índio, e até mesmo não-humano (LAGROU, 2000, 2002).
Viegas (2003) interpreta a socialidade como resultado da
interação cotidiana diariamente atualizada por meio de ações de
cuidado. Embasando-se em Merleau-Ponty, a socialidade é vista como a
experiência vivida do sujeito. Viver é situar-se no mundo, ou tornar-se
um ser-no-mundo, o qual possui um caráter eminentemente
intersubjetivo (VIEGAS, 2003, 2007). Podemos tomar como exemplo o
cotidiano das mulheres e das crianças dos Tupinambás de Olivença.
Nesse contexto, para que um vínculo entre mãe e filho seja estabelecido
é preciso que este último seja diariamente “agradado” pela sua mãe (seja
essa a mãe “legítima” ou “de criação”), por meio da comida e de
cuidados como banho e vestuário. Assim, a relação mãe-filho é
construída todos os dias, “pouco a pouco”, através da alimentação e do
cuidado diário (VIEGAS, 2003). A partir desses trabalhos, podemos
perceber como a comensalidade é um dos mais importantes modos de
socialidade e construção do corpo social nas sociedades indígenas.
Viegas (2007) claramente demonstra como entre os Tupinambás
de Olivença:
12
As refeições são feitas em momentos
determinados do dia, mas não qualquer hábito
de juntar os habitantes da casa ao redor de uma
mesa. Pelo contrário, é comum que cada um
busque um tamborete e se sente para comer
isoladamente, dentro ou fora da casa. (....) aquilo
que une aqueles que habitam uma mesma casa é o
fato de consumirem alimentos cozinhados no
mesmo fogo, e não o fato de se juntarem para
consumi-los (Viegas, 2007:84).
“Comer do mesmo fogo” é uma maneira de comensalidade,
compartilhar uma refeição, podendo ser compreendido como uma
metáfora da mesa”, descrita por Maffesoli para as sociedades
ocidentais. Viegas, entretanto, enfatiza que o mais importante no ato de
alimentar, para a construção da socialidade e do parentesco indígena,
está além da comensalidade. Entre os Tupinambá, a partilha dos
alimentos ocorre de maneiras não comensais, seja por meio do cuidado
diário ou pelo compartilhamento de comida através da troca entre
diferentes casas. As práticas cotidianas de convivialidade, aliadas ao ato
de “comer do mesmo fogo” possibilitam a construção da socialidade e
do parentesco através de uma consubstanciação, uma partilha de
substâncias (VIEGAS, 2007).
Por meio dessa breve revisão bibliográfica podemos perceber, por
meio de diversos exemplos, como a comida é uma “substância”
fundamental para a “sócio-lógica” indígena. Além de atuar como um
mediador para a socialidade e construção do corpo social, a comida é
também fundamental para a fabricação dos corpos das pessoas, sendo
que a quebra da ética alimentar do grupo (negar compartilhar comida,
quebrar um tabu alimentar ou comer comida sem a benção de um xamã)
pode acarretar graves conseqüências para o corpo da pessoa, podendo
causar doenças e até mesmo a morte. Isso demonstra como, para os
povos indígenas, comida, sociedade e processos de saúde/doença estão
estritamente relacionados. Além disso, a comida permeia outros
aspectos das sociedades ameríndias, como a socialidade, reciprocidade e
ocasiões festivas, as quais são fortemente relacionadas ao compartilhar e
à produção da comida. Embasando-me neste referencial teórico,
buscarei contemplar tais aspectos da vida cotidiana dos Kaingáng
(visitas, festas e demais maneiras de compartilhar comida), os quais são
fundamentais para a construção do corpo social. Discutirei também suas
percepções sobre os processos de saúde/enfermidade/atenção relativos à
comida e suas implicações para a fabricação dos corpos das pessoas.
13
Metodologia e trajetória do pesquisador
Meu contato com os Kaingáng da Terra Indígena (TI) Xapecó se
deu a partir da inserção em um projeto de pesquisa
3
em saúde indígena
coordenado pela professora Esther Jean Langdon, em maio de 2004.
Desse modo, tive a oportunidade de realizar uma pesquisa de campo na
TI, entrevistando diversos Agentes Indígenas de Saúde (AIS) e outros
atores envolvidos na atenção à saúde na TI Xapecó. A partir desse
contato, em 2005 realizei meu Trabalho de Conclusão de Curso
buscando etnografar o processo de implementação de uma rádio
comunitária na TI e colaborando no processo quando fosse necessário
(HANNA, 2005).
Esta dissertação é resultado de minha inserção no projeto de
pesquisa intitulado Projeto Avaliação do modelo de atenção
diferenciada aos povos indígenas: os casos Kaingáng (Santa Catarina) e
Munduruku (Amazonas).” A escolha do tema deveu-se tanto à um
interesse pessoal como também à possibilidade de auxiliar na realização
dessa pesquisa, que contempla entre outros aspectos, a alimentação.
Realizei a pesquisa de campo entre setembro e dezembro de
2008, por um período total de dois meses. Fiquei hospedado na casa de
Matilde Koito, curandeira evangélica e filha de Vicente Fokae, rezador
do Kiki
4
e pensador Kaingáng. Vicente, falecido, publicou textos em
co-autoria com Wilmar D‟Angelis (D‟ANGELIS & FOKAE, 1994),
além de possuir uma grande articulação com outros antropólogos, sendo
um “informante-chave” de diversas pesquisas realizadas na TI Xapecó.
Devido aos conhecimentos apreendidos com seu pai, particularmente
sobre os processos de saúde/enfermidade/atenção nativos, Matilde foi
uma colaboradora-chave para essa pesquisa. Outra importante
colaboradora (não apenas de minha pesquisa, mas de outras etnografias),
foi Dona Diva (Divaldina Luiz Jacinto), 70 anos, curandeira católica que
reside na aldeia Pinhalzinho, freqüentemente procurada por índios e
não-índios para consultas sobre saúde, devido aos seus conhecimentos
sobre plantas e processos de cura. O professor bilíngüe Pedro Kresó, 40
3
A referida pesquisa intitula-se “O Subsistema de Atenção à Saúde do Índio em Santa
Catarina (Distrito Sanitário Especial Indígena Interior Sul): o papel do Agente Indígena de
Saúde e a articulação entre as práticas de medicina tradicional e a biomedicina” e contou com a
participação dos pesquisadores Flávio Wiik, Eliana Diehl e Raquel Dias-Scopel.
4
O ritual do Kiki é um dos mais importantes ritos Kaingáng, sendo os “rezadores” as pessoas
responsáveis por sua realização. O Kiki será descrito mais detalhadamente no Capítulo 3.
14
anos, residente da aldeia Sede e o ex-cacique Nilson “Machado” Belino,
historiador e também residente na aldeia Sede, auxiliaram com suas
reflexões sobre a atual situação econômica e política da TI Xapecó,
dado que ambos são professores na escola da Aldeia Sede e conhecem a
política interna da TI. João Vivaldino (Seu Vardinho), 80 anos,
agricultor residente da aldeia Samburá, colaborou compartilhando seus
conhecimentos de cura e enfermidade, além de relatar suas percepções
sobre as mudanças ocorridas na TI Xapecó desde a metade do século
passado. Dona Urtília tem 73 anos e reside na Aldeia Sede, é devota e
rezadora de São João Maria e auxiliou na pesquisa contando sobre
quando conheceu o “monge” do contestado e as curas feitas por ele. Por
fim, Dona Emiliana, 71 anos, residente da aldeia Paiol de Barro, que em
muito ajudou com seus detalhados relatos sobre o “tempo dos antigos” e
as mudanças que ocorreram até os dias atuais.
O conhecimento e a experiência desses colaboradores foram
registrados por meio de entrevistas abertas e semi-dirigidas (BRIGGS,
1986), gravadas em meios digitais; registro em caderneta, diário de
campo (EMERSON et al., 1993), vídeo e fotografias. É importante
ressaltar que a maior parte de meu trabalho de campo foi realizada na
Aldeia Sede, embora me deslocasse eventualmente para as aldeias do
Pinhalzinho, Paiol de Barro, Samburá, Limeira, Fazenda São José,
Olaria e Cerro Doce, nas quais geralmente entrevistava seus moradores
mais antigos. A Aldeia Sede é atualmente a maior aldeia indígena do
estado de Santa Catarina, sendo que em 2006 contava com uma
população de 1491 indivíduos, segundo dados da FUNASA (2006).
Utilizei a metodologia proposta por Marcus (1995), chamada
follow the thing”, com o objetivo de “seguir a comida” nos diversos
espaços que fossem pertinentes. Participei assim de diferentes eventos
em que acontecia comensalidade, como festas religiosas (evangélicas e
católicas), aniversários, jogos de bocha e futebol, merenda escolar e
refeições em diferentes casas. É interessante notar que comida - nos seus
mais diversos aspectos, seja produção, aquisição ou consumo - é um
assunto corrente nas mais diferentes rodas, sejam homens, mulheres,
adultos ou idosos; diferente de saúde ou religião que são assuntos
restritos a determinados “experts”. Isso me levou a entrevistar pessoas
que nunca tinham sido interlocutoras em pesquisas científicas, que os
demais assuntos “clássicos” em antropologia (saúde, xamanismo,
religião) são de domínio de experts. A comida, ao contrário, parece
estar literalmente na “boca” de todos.
15
Capítulo I O Povo Kaingáng e a TI Xapecó
1.1 - Breve histórico sobre o povo Kaingáng
Os Kaingáng o uma etnia indígena situada nas regiões sul e
sudeste do Brasil. Seu idioma, o Kaingáng, pertence ao tronco
lingüístico Macro-, no qual se incluem as famílias lingüísticas Bororo,
Cariri, Fulniô, e outras. Junto às línguas Timbira, Kayapó, Apinaye,
Suyá, Aquém, Panará e Xokleng, o Kaingáng faz parte da família .
Tradicionalmente os Kaingáng ocupavam vastos territórios que iam do
oeste de São Paulo até o noroeste do estado do Rio Grande do Sul, ou do
rio Tietê ao rio Ijuí. Junto aos Xokleng de Ibirama, os Kaingáng compõe
o grupo dos Jê-Meridionais
5
(ver RODRIGUES, 1986).
A denominação Kaingáng passa a ser utilizada no final do século
XIX, a partir dos trabalhos de Telêmaco Borba (BORBA, 1904, 1908).
Antes disso, eram denominados Coroados, Shokleng, Guanana,
Gualachos, Gualachí, Chiqui, Cabelludo; Tain, Tayen, Ingain,
Ivoticaray; Nyacfateitei; Votoron, Kamé, Kayurukré, dentre outros
nomes utilizados para designar os povos não-guaranis do sul do Brasil
(ISA, 2009). Foram também chamados de Botocudos de Santa Catarina,
sendo confundidos com os Xokleng de Ibirama.
Segundo Moreira Neto (1971 apud Nacke, 1983), “os primeiros
contatos permanentes e intencionais com os Kaingáng deram-se por
volta de 1810 nos campos de Guarapuava, na forma de uma guerra
ofensiva, ordenada pelo então Príncipe Regente D. João VI. Em 1814
foi organizada uma expedição com o intuito de abrir um caminho
ligando os campos de Guarapuava aos de Vacaria no Rio Grande do Sul,
a fim de transportar o gado do Rio Grande do Sul para São Paulo e
Minas Gerais (VEIGA, 2000). Esse caminho apenas foi efetivado em
1848 por Francisco Rocha Loires, atravessando no sentido Norte-Sul os
rios Chapecó e Chapecozinho; atual localização da TI Xapecó (NACKE,
1983).
A abertura dessa rota, entretanto, não cumpria com os objetivos das
guerras ofensivas, que eram livrar a região das populações indígenas.
Para esse fim, foi criado em 1869 a Colônia Indígena de Palmas, a qual
5
Estudos arqueológicos demonstram que possíveis ancestrais dos Kaingáng, chamados de
Proto- Meridionais (Silva, 2001), habitavam a região num período datado entre 8.670 e 5.970
anos antes do presente. Os vestígios denominados como “cultura alto-paranaense” são
definidos pala construção de casas subterrâneas e túmulos circulares com valas e fossas
características dos Jê-Meridionais (Schimtz, 1981 e Rohr, 1984 apud Veiga, 2000).
16
também não obteve êxito em aldear os indígenas. Após essas infrutíferas
tentativas em pacificar os índios arredios, o governo passou a se utilizar
dos grupos Kaingáng pacificados, como foi o caso do Cacique
Victorino Condá, que chegou a receber uma quantia em dinheiro para
que aldeasse o maior número possível de índios em Guarapuava
(Moreira Netto, 1971 apud NACKE, 1983).
Para estimular a colonização dessa região, o governo brasileiro
concedeu terras a empresas nacionais e estrangeiras, dentre elas a Brazil
Railway Co., responsável pela construção da Ferrovia São Paulo - Rio
Grande. Essa companhia recebeu como pagamento pela estrada de ferro,
“terras equivalentes a quinze quilômetros de largura, ou igual ao produto
da extensão quilométrica da estrada multiplicada por 18...” (Piazza,
1982:213 apud Nacke 1983:21). Essas terras foram então concedidas à
Brazil Development & Colonization Co., subsidiária da mesma empresa.
A subsidiária, por sua vez, passou a tarefa de povoar a região para
diversas companhias colonizadoras, em sua maioria empresas gaúchas
(NACKE, 1983). As terras concedidas, entretanto, eram habitadas
por milhares de pessoas, dentre essas fazendeiros e posseiros que não
aceitaram facilmente ceder suas terras às empresas colonizadoras,
disputa que culminou na Guerra do Contestado (PEREIRA, 1995). De
acordo com Pereira, “a Guerra do Contestado teve sua fase mais
violenta nos anos de 1912 a 1916, depois que a Companhia Estrada de
Ferro São Paulo - Rio Grande protagonista principal dos
acontecimentos que desembocaram no conflito armado demarcou e
passou a tomar posse, exercendo domínio efetivo de terrenos marginais
aos trilhos, no vale do rio do Peixe, e dando os primeiros passos para a
efetiva colonização da região(Pereira, 1995:108)
6
. Uma figura central
da Guerra do Contestado foi o monge São João Maria, que lutou contra
a expropriação das terras e sobre o qual existem diversas histórias de
curas e milagres entre os Kaingáng
7
.
6
O autor interpreta a construção da ferrovia São Paulo-Rio Grande como “um reflexo da
política econômica em nível nacional e regional, associada ao modelo agro-exportador
(fortemente alicerçado no café e nos produtos de subsistência fornecidos pelo sul) e ao capital
internacional, interessado na construção de ferrovias” (Pereira, 1995:110). Santa Catarina
figurava nesse cenário apenas como um espaço de passagem entre pólos externos, no caso, São
Paulo ao Rio Grande do Sul.
7
Historicamente existiram três figuras do Monge do Contestado, entretanto, foram unidas
miticamente em uma só, ao qual são atribuídos os diversos milagres. Alguns de meus
colaboradores disseram que o conheceram, e que o monge ainda aparece de tempos em tempos,
às vezes na forma de animal, noutras na forma de criança. São João Maria é um santo popular,
17
Após a expansão pastoril relatada anteriormente, na década de 1920
ocorre uma nova frente de expansão, dessa vez agrícola e aliada à
construção da ferrovia, a qual efetivamente ocupa a região com colonos
vindos principalmente do Rio Grande do Sul e outras regiões de Santa
Catarina. Os colonos interessavam-se não apenas pelas terras baratas,
mas também pela rica mata de pinheiros, que cobria quase toda a região
(NACKE, 1983:22). Os Kaingáng não aceitaram passivamente a perda
de seu território, desferindo ataques freqüentes aos colonizadores e
criando “verdadeiro pânico na população” (PEREIRA, 1995). Nesse
período os índios são retirados à força de suas terras, seja pelas armas
dos jagunços e bugreiros profissionais, contratados pelas companhias
colonizadoras, ou pela coerção da polícia e da justiça (SANTOS, 1970
apud NACKE, 1983:22; PEREIRA, 1995:117).
Com o intuito de apaziguar os conflitos entre indígenas e agentes
colonizadores (assim como a pressão da sociedade civil organizada e
comunidade internacional, as quais criticavam o massacre da
população indígena) são criadas em 1902 e 1903 respectivamente as
áreas indígenas de Palmas e Xapecó. No ano de 1910 é também criado o
Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores
Nacionais (SPILTN), a fim de prover “proteção oficialaos indígenas.
Entretanto, o real intuito dessa política era garantir que não ocorressem
mais entraves ao “progresso” da região, confinando os indígenas em
pequenas áreas sob a tutela do SPILTN e liberando assim as terras às
companhias colonizadoras (PEREIRA, 1995). Nesse contexto, aos
Kaingáng não restou outra opção além de retirarem-se ou serem
forçosamente deslocados para as reservas de Palmas ou Xapecó
(NACKE, 1983:22).
Para melhor compreendemos as conseqüências do processo de
confinamento para os Kaingáng, trarei o relato de Telêmaco Borba, um
dos primeiros autores a descrever seu modo de subsistência tradicional:
“Não teem habitação permanente; geralmente se
mudam todos os annos, á proporção que vão
rareando os meios naturaes de sua subsistência.
Quando encontram local abundante em caça e
mel, constroem grandes ranchos, de 25 a 30
metros de extensão, cobertos e cercados com
folhas de palmeira, sem nenhuma divisão interna,
não reconhecido pela Igreja Católica, que costuma ser guia dos Kujá (curandeiros) Kaingáng.
O dia de São João Maria é comemorado todo 15 de novembro na TI Xapecó, sendo ele um
santo central do catolicismo popular na região sul do Brasil. Explicações mais detalhadas sobre
o Monge e a festa do dia de São João Maria serão apresentadas no capítulo 3.
18
com uma pequena abertura em cada extremidade,
servindo de porta, por onde pode passar,
abaixada, uma pessoa; no centro destes ranchos
accendem os fogos para cada família; dormem
sobre cascas de arvores, extendidas no solo, com
os pés para o lado do fogo, indistinctamente
homens, mulheres e creanças. Nunca varrem seos
ranchos; quando estes ficam muito sujos e cheios
de pulga, os queimam e constroem outros. (...)
Alimentam-se de peixes, que apanham em seos
parys, mel, fructas, caça, para apanhar a qual são
destrissimos e grandes corredores do matto; de
algum milho, abobora e feijão que por acaso
plantam. Tendo o que comer, comem a toda hora
que lhes vem o apetitte. Comem todos juntos á
mesma panella, de cócoras, servindo-se das mãos
ou de pedaços de taquara ou madeira para
levar o alimento à bocca.
Quando teem o que comer, são grandes comilões;
porém, o pouco tambem basta a muitos, e cada um
satisfaz-se, às vezes, com um só bocado. Como no
território onde vivem a caça é muito abundante,
não comem certos animaes e escolhem aquelles
cuja a carne é mais a seo paladar. As caças que
mais apreciam são a anta, macaco (caierê), bugio
(gonguê), porcos do matto (crenguê), tatetos
(ókxá), quaty (xeê); comem muitas hervas do
matto e entre ellas ortiga grande, caragoatá e uma
espécie de alga ou musgo de ramos mui finos e
delicados que nasce nas pedras das cachoeiras dos
grandes rios. Não comem a carne dos veados
(carubé), pacas (cocamé), cotias (queróngue) e
outros animaes. Quando acabam de comer limpam
as mãos no cabello e logo depois vão lavar todo
corpo ao rio, o que fazem todas as vezes que
comem de dia.” (Borba, 1908: 8-11)
Pela descrição de Borba, é possível dizer que Kaingáng eram um
povo semi-nômade, mudando-se de tempos em tempos, conforme
escasseavam-se os recursos de um dado território. Entretanto,
Tommasino afirma não ser pertinente classificar os Kaingáng como um
povo nômade, pois o nomadismo implicaria em um completo abandono
de seu território e a ocupação de outro, o que não confere com a
19
atualidade nem com a descrição histórica desse povo (TOMMASINO,
2000).
A araucária (Araucaria angustifolia), além de ser uma planta
utilizada no rito do Kiki
8
, como fruto o pinhão, o qual é uma comida
muito apreciada pelos Kaingáng, um recurso fundamental para a
sobrevivência nos meses de inverno e atrativo para a caça. Talvez por
esses motivos as vastas matas de araucária estabeleciam as fronteiras
entre os territórios de diferentes grupos Kaingáng (Mabilde
9
, 1983 apud
Tommasino, 2000). Segundo a descrição de Pierre François Alphonse
Booth Mabilde, engenheiro belga, que acompanhou o grupo Kaingáng
do Cacique Braga para a abertura da picada do Pontão, entre os rios
Turvo e da Prata, durante o ano de 1850 (D‟ANGELIS, 2006):
todos os frutos (...) podem ser apanhados
indistintamente em qualquer lugar do mato, por
qualquer indivíduo das tribos. O mesmo caso,
porém, não se com o pinhão, única fruta
privilegiada e de que muito gostam.
Os pinheirais em que os selvagens (sic) têm seu
alojamento são repartidos e divididos em
territórios correspondentes, em tamanho, ao
número de indivíduos que componham as tribos.
(...)
O limite entre um e outro território é assinalado na
casca de um pinheiro que serve de marco de
divisa. A casca é cortada com um machado de
pedra, para fazer a marca de cada tribo, na posição
vertical e ao correr das árvores (...)
O território do pinheiral, compreendido entre duas
marcas, pertence exclusivamente à tribo que nele
habita por ordem do cacique principal e nesse
território é que todos os indivíduos daquela tribo
apanham pinhão para seu sustento. A invasão de
outra tribo, para esse fim, é motivo de uma guerra
de extermínio, para a qual são convocadas todas
as demais tribos (Mabilde, 1983:126-127 apud
Tommasino, 2000).
8
No ritual do Kiki, ou Kikio-ko-ia, um rito tradicional Kaingáng de congregação dos vivos
com os ancestrais, a bebida ritual era fermentada em um tronco de araucária. Descreverei-o
mais detalhadamente no capítulo 3.
9
Apesar da data da publicação datar de 1983, seus escritos foram realizados entre 1836 e 1866.
20
Apesar dos registros de Mabilde serem questionados em sua
veracidade por DAngelis (2006), essa descrição permite
compreendermos o valor dado pelos Kaingáng ao pinhão e às matas de
araucária, bem como problematizarmos sua condição de povo nômade.
De um modo ou de outro, a nova situação de confinamento em um
território limitado não condiz com seu modo de vida tradicional,
baseado na caça, pesca, coleta e agricultura de pequena escala. Isso
implica não apenas em uma dificuldade de subsistência, mas em
questões de ordem cosmológica, dado o valor mítico que os Kaingáng
atribuem aos seus territórios. Segundo Tommasino; “A conquista
instituiu um novo tempo, o tempo da vida dependente, subordinado ao
poder tutelar (TOMMASINO, 2000:214).
1.2 A Terra Indígena Xapecó: Histórico e caracterização
A área compreendida entre os rios Xapecó e Xapecozinho foi
concedida aos Kaingáng do aldeamento de Formigas pelo Governo do
Paraná em 1902. A demarcação oficial compreendia por volta de 50.000
ha., tendo sido doadas pelo governo do Paraná como uma recompensa
pela ajuda na abertura da estrada que ligava os Campos de Palmas ao
Rio Grande do Sul (Santos, 1970:43 apud Nacke, 1983:47). De acordo
com Manfroi (2008:54), as terras foram requeridas pelo Cacique
Vahnkrê como pagamento pelo trabalho de abertura de uma picada para
linha telegráfica, executado entre 1890 e 1893. Apesar do documento de
doação ter sido assinado no ano de 1902, pelo Presidente do Estado do
Paraná, o Posto Indígena (PI) Xapecó somente foi efetivado em 1941,
graças às pressões do Dr. Selistre de Campos. Este atuou como juiz da
comarca de Chapecó no período compreendido entre 1931 e 1943,
defendendo a causa dos Kaingáng. Publicou também diversos artigos
nos jornais regionais, esclarecendo a situação dos Kaingáng para a
população não-índia. Com seu falecimento em 1957, em homenagem, o
PI passa a ser chamado PI Dr. Selistre de Campos, nome que se manteve
por mais de uma década (MANFROI, 2008).
O título definitivo de propriedade foi expedido apenas em 1965,
constando no registro uma área de 15.009,08 ha - menos de 1/3 da área
originalmente prevista (NACKE, 1983). O PI Xapecó passa então a ser
tutelado pelo SPI
10
, período em que o órgão arrenda oficialmente as
10
Inicialmente denominado Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores
Nacionais, posteriormente apenas Serviço de Proteção aos Índios. Foi criado pelo Decreto-Lei
21
terras indígenas, com a escusa de angariar fundos extra-orçamentários
para sua própria manutenção (NACKE, 1983:48). Dessa maneira,
passam a se instalar no PI diversas famílias de colonos arrendatários das
terras. O arrendamento oficial persistiu até 1975, quando a FUNAI
realizou um cadastramento de todos não-índios que habitavam a área.
Dentre os cadastrados, 69 famílias apresentavam documentação oficial
do SPI permitindo sua permanência na área, outras 158 famílias seriam
“intrusas”, ou seja, não-índios que estariam instalados ilegalmente em
terra indígena. Muitos desses agricultores ocupavam a terra do PI por
falta de alternativas, devido ao aumento dos preços das terras dessa
região, que haviam sido bastante valorizadas, em decorrência do
implemento da agricultura mecanizada e da instalação de muitos
aviários na região. Outro motivo das invasões se deveu ao fato da
suposição, por parte daqueles que as ocuparam, de que as terras do PI
eram terras “do governo”, sujeitas, portanto, à posse (NACKE,
1983:50). A relação entre agricultores e índios nesse momento é descrita
como “paternalista” por Nacke, sendo baseada em relações amistosas,
porém atendendo aos interesses econômicos e políticos dos não-índios.
Em 1978, a FUNAI um ultimato para a expulsão dos intrusos do PI
Xapecó, sendo estes remanejados para outras localidades da região ou
para núcleos de colonização do INCRA (idem, 1983:53). Bloemer
descreve esse período de mudanças na política econômica nacional e
internacional da seguinte maneira:
o modelo de exploração agrícola vigente na região
se transformou. A policultura associada à criação
de animais foi gradativamente substituída pela
monocultura mecanizada de produtos, valorizados
no mercado regional e mesmo internacional, como
é o caso do soja. Como conseqüência, ocorreu a
valorização das terras, especialmente as que
apresentavam topografia adequada ao uso da
mecanização. As terras indígenas, oportunamente
liberadas da presença dos agricultores não ficaram
a salvo dessa nova investida (Bloemer, 2003:33
apud Savoldi, 2006).
O professor Sílvio Coelho dos Santos inicia em 1963 o projeto de
pesquisa “Os grupos Jê em Santa Catarina”, buscando compreender a
relação entre índios e brancos no estado, fazendo uma análise
comparativa de sua organização social. Se utilizando da teoria da fricção
nº 8.072, de 20 de junho de 1910, sendo extinto em 5 de dezembro de 1967, quando passa suas
atribuições à atual FUNAI (Fundação Nacional do Índio).
22
interétnica de Roberto Cardoso de Oliveira, Sílvio Coelho interpreta de
maneira crítica o contato e a condição atual de vida dos povos indígenas
do sul. Com os aportes teóricos do marxismo e do estruturalismo,
considera que a exploração e o sofrimento dos povos indígenas são
advindos do contato com as “frentes de expansão capitalista”,
utilizando-se de mais um conceito de Cardoso de Oliveira (SANTOS,
1979; CARDOSO DE OLIVEIRA, 1972:103; CRÉPEAU, 2009).
Porém, o professor Sílvio vai além da teoria, pois sua obra possui um
caráter engajado, relatando de maneira detalhada a exploração dos povos
Xokleng e Kaingáng, bem como de seus territórios. Nesse intuito,
liderou uma pesquisa sobre as conseqüências das políticas públicas de
desenvolvimento para os povos indígenas, como a construção de
barragens para usinas hidroelétricas. Vejamos no próximo item algumas
passagens de seus trabalhos, os quais descrevem a massiva devastação
ambiental ocorrida na TI Xapecó.
1.2.1 Desmatamento
Além do arrendamento das terras, outra atividade realizada
oficialmente pelo SPI, que visava administrar o posto indígena como
uma empresa, era a exploração de madeiras, principalmente araucária e
imbuia (Ocotea porosa). Nesse período, entre as décadas de 60 e 80, foi
instalada oficialmente uma serraria no PI, a qual funcionou até 1988.
Sobre o desmatamento na TI Xapecó, o professor Sílvio descreve o
seguinte:
A devastação que ocorreu nas reservas florestais
da área indígena foi praticamente total. As
empresas madeireiras da região, que muito
vinham se ressentindo do escasseamento da
matéria prima, passaram a trabalhar 24 horas por
dia. Sessenta mil pinheiros, aproximadamente,
foram derrubados na reserva indígena (Santos,
1970:65-66)
Relatos dos índios mais velhos, registrados por Fernandes
(2006:17 apud Rocha, 2008:52) demonstram como aconteceu esse
processo: “Onde tinha pinhal eles mandaram medir, onde tinha madeira
os madeireiros pegava, onde não tinha madeira ficava pros índios”.
Além da serraria do próprio SPI, haviam vários madeireiros agindo na
área. Santos conta que:
cerca de 30 empresas madeireiras atuaram na área
indígena, entre 1964 e 1966. O mero de
23
empregados dessas empresas era expressivo.
Trabalhava-se dia e noite derrubando, guinchando
e transportando toras. (...) O fato concreto é que
em 1968, quando realizamos pesquisa de campo
nessa área, os pinheiros existentes eram em
número diminuto... (Santos, 1979:36-37)
O desmatamento associado ao advento da agricultura mecanizada
e o arrendamento de terras mudou drasticamente a paisagem da TI
Xapecó. Vastas áreas de mata de araucária se tornaram imensos campos
de lavoura de soja, trigo ou milho. Tratando sobre as ações dos chefes
de posto e as conseqüências da política adotada pelo SPI, Santos
constatou que:
os encarregados (...) jamais puderam entender a
trama de relações que se encontram envolvidos.
Jamais um chefe (...) pode perceber que a
exploração dos recursos florestais ou
arrendamento de terras na reserva determinava o
desequilíbrio ecológico da área, com prejuízos
diretos para os índios. Em Xanxerê, os índios hoje
não podem obter qualquer complemento alimentar
pela atividade de caça ou coleta porque os
gringos
11
acabaram com tudo, ou seja, com aves e
árvores (Santos, 1979:32-33, grifos do autor).
1.2.2 - A questão da terra
Mesmo com a efetivação do posto em 1941, a TI Xapecó foi
homologada apenas quarenta anos depois, em 29/10/1991, pelo decreto
297, com uma área de 15.623 ha. Em 2006 contava uma população de
4.161 indivíduos, distribuídos pelas 14 aldeias da terra indígena, sendo
que uma das aldeias é composta também por população Guarani
(FUNAI/AER Chapecó, 2006 apud ISA, 2009). Situada no oeste do
estado de Santa Catarina, entre os paralelos 26°30” e 27° de latitude sul
e os meridianos 52° e 52°30” a oeste de GRW, está a cerca de 23km da
cidade de Xanxerê, 8km da cidade de Bom Jesus, 15km de Ipuaçu e
30km da municipalidade de Entre-Rios (NACKE, 1983).
11
Gringo é um termo utilizado na região para caracterizar depreciativamente o colono
descendente de migrantes italianos. É utilizado para designar tanto os pequenos quanto os
médios proprietários de terra que atuam na região. os grandes proprietários são designados
granjeiros ou fazendeiros. Na época desse relato haviam ainda os madeireiros. (Coelho dos
Santos, 1979)
24
Fonte: Adaptado de AMAI (1998) por Diehl (2001)
25
Croqui da TI Xapecó (Diehl, 2001:35)
A questão da distribuição da terra no interior da TI é um assunto
delicado de se tratar, pois os que nada possuem, assim como os que
ocupam grandes áreas. Quando indagados sobre como isso ocorreu, a
maioria dos indígenas diz que, no passado, muitos venderam os direitos
de posse, geralmente por preços irrisórios, para a obtenção de dinheiro
imediato. Alguns interlocutores dizem que deveria haver um limite
máximo para a posse de terras, o que impossibilitaria a concentração de
muita terra nas mãos de poucos. Apesar de não existir registro escrito de
posse das terras no interior da TI, todos sabem quem é dono de qual
pedaço. Segundo o ex-cacique Nilson “Machado” Belino, existem o
pequeno (até 2 ha), o médio (até 20 ha) e o grande proprietário (mais de
20 ha). O primeiro plantaria com o pica-pau (ou Xaxo, máquina movida
à mão), enquanto os últimos, considerados latifundiários por Machado,
plantam com trator, seja terceirizado, arrendado ou da cooperativa.
Desse modo, existem atualmente “latifundiários” indígenas, os quais
chegam a possuir mais de 20 ha de terra, geralmente arrendados para
colonos da região ou cultivados com os tratores da cooperativa, caso
sejam ligados a ela. Segundo Bloemer e Nacke (2009), “os dados
26
indicam que apenas parte das famílias utiliza o modelo produtivista, o
que revela, também, que um privilégio para alguns no uso da terra
concebida como comunitária em detrimento da maioria(Bloemer e
Nacke, 2009:94).
O professor Pedro Kresó associa esse processo à chegada
do pensamento capitalista”, que levou os “maiores” a comprar a terra
dos pequenos produtores. Segundo Kresó, além da desigualdade
econômica ocasionada pelo capitalismo, esse acarretou um novo modo
de produção, baseado na agricultura mecanizada e o uso de agrotóxicos.
Quando eu falo no sistema capitalista, eu posso
ver aldeia por aldeia hoje, quem tá bem de vida. E
sabe quem bem de vida, é o pessoal que tem
suas lavouras mais grandes. As terras indígenas
tem muito disso aí. O sistema é diferente, a pessoa
já não tá mais com seu arado de boi, com sua
máquina [Xaxo, máquina manual; nota do autor].
Existe as plantadeiras agora, tratores e tal. Até pra
colher um milho hoje, você não o pessoal
quebrando milho. A ceifa chega e puxa... É muito
difícil hoje usar enxada, facilitou muito passar
veneno. Polui todas águas ainda. O pessoal às
vezes sem ser conscientizado, usa veneno. A
gente sabe que não presta, não pode, é arriscado e
tal. “É mais fácil”, eles dizem, então vamos lá,
passar veneno. Mudou todo o sistema. (Pedro
Kresó, 2008)
. É importante compreendermos o contexto de desigualdade na
distribuição das terras para também compreendermos os diferentes
modos de uso da terra. Os pequenos proprietários geralmente trabalham
em uma agricultura de subsistência, ou “pro gasto” como será descrito a
seguir, sem o uso de tratores para o cultivo. os grandes proprietários
dependem da produção mecanizada e dos agrotóxicos para poderem
cultivar toda sua terra. A diferença na distribuição das terras reflete
obviamente em uma desigualdade econômica entre as famílias. Os
grandes proprietários de terra podem possuir casas de alvenaria,
equipadas com diversos eletrodomésticos e algumas vezes automóveis.
os pequenos produtores podem morar em pequenas casas de madeira,
ou apenas com revestimento de lona, em precárias condições de
habitação.
Além da desigualdade entre as famílias, as condições de vida
são percebidas como distintas nas diversas aldeias da TI Xapecó. Na
aldeia Samburá, por exemplo, mesmo sendo próxima à Sede, difere-se
27
desta nas possibilidades de cultivo e arrendamento. Residentes dessa
aldeia disseram que não conseguem que o trator da FUNAI vá prestar
serviço por lá, pois, segundo eles, fica apenas na Sede, a serviço “das
lideranças”. Outra queixa dos que moram no Samburá é que quase não
conseguem arrendar terra, pois é tudo “terra dobrada” (de relevo
acidentado, sinuoso), o que impossibilita o cultivo mecanizado.
As aldeias pertencentes ao município de Entre-Rios (Paiol de
Barro, Linha Guarani, e Limeira) também vivem uma realidade
diferente das de Ipuaçu, pois estão sujeitas a diferentes gestões dos
serviços de atenção à saúde e participam de diferentes projetos nos mais
diversos âmbitos. Em entrevista com o vice-prefeito de Entre-Rios, João
Roque, Kaingáng residente na aldeia Limeira, foi possível ouvir sobre
vários projetos que estão acontecendo apenas nas aldeias desse
município, os quais supostamente levam a diferentes possibilidades de
cultivo e uso da terra. Por exemplo, para o cultivo mecanizado, a
prefeitura fornece o trator e o “tratorista”, e por meio de um projeto com
o Ministério do Desenvolvimento Social conseguem sementes de milho
e feijão, além do óleo diesel para o trator.
1.2.3 Cooperativa
na área indígena uma cooperativa, situada na aldeia Sede,
chamada “Cooperativa Agropecuária e de Alimentos Indígena Xapecó”
ou Cooperindígena”, a qual possui 4 tratores e 2 plantadeiras para o
cultivo mecanizado de soja dentro da TI. Segundo Bloemer e Nacke
(2007), a Cooperindígena foi criada em 1999 com o intuito de amenizar
a exploração da TI por parte de não-índios. A cooperativa foi formada
com a participação de 25 sócios, sendo atualmente um importante canal
para o recebimento e distribuição de recursos do Programa Nacional de
Agricultura Familiar (PRONAF), que beneficia 350 famílias. Entretanto,
tratando sobre outra cooperativa mais antiga na TI, a Cooperativa
Agrícola Mista Regional Pindorama Ltda., Nacke (1983:100) argumenta
que esta contribui para a formação de uma hierarquia dentro da TI,
distinguindo os cooperativados, que são patrões em potencial, daqueles
que devem se submeter à condição de assalariados desses ou dos não-
índios de fora da área.
Segundo o ex-cacique Machado Belino, a cooperativa encontra-
se “no vermelho” desde o assassinato do Cacique Orides ocorrido em
1997, situação difícil de ser revertida, dado o atual tamanho da vida.
De qualquer maneira, atualmente a cooperativa está funcionando, sendo
28
possível ver os seus tratores passando de um lado para outro da aldeia
Sede quase todos os dias. Os cooperativados geralmente são
“proprietários” de grandes áreas de terra, e podendo usufruir do
maquinário da cooperativa, não precisam arrendá-las aos granjeiros
(não-índios) da região. Alguns interlocutores me disseram que antes do
falecimento de Orides e do endividamento da cooperativa, quase não se
arrendava terras, pois se conseguia financiamento pelo Banco do Brasil
para cultivo, o qual quitavam após a colheita. Porém, com a dívida atual
encontram-se impossibilitados de obter novos empréstimos para realizar
o plantio mecanizado, que implica gastos elevados para a compra de
óleo, sementes, contratação de maquinário e tratorista. Além da
cooperativa não conseguir financiamento devido à divida, há dificuldade
em se obter empréstimos particulares, pois não escrituras individuais
das terras, apenas acordos verbais entre os indígenas. As terras não são
consideradas, legalmente, dos proprietários indígenas, pois são
propriedade da União. Desse modo, cada agricultor não possui terras
como garantia para a obtenção do empréstimo. Outra dificuldade é a
possibilidade da colheita ser ruim, gerando ainda mais dívidas ao
produtor caso tenha plantado com dinheiro emprestado.
1.2.4 - Arrendamento das terras
Devido à dificuldade de conseguir verba para o cultivo,
acontece freqüentemente o arrendamento das terras. Apesar de ilegal, é
notória a exploração de grande parte da terra indígena por meio do
arrendamento para fazendeiros da região, feito “por debaixo dos panos”.
Mesmo com a cooperativa da aldeia Sede, a maioria das pessoas não
possui maquinário suficiente para cultivar todas as terras da área e,
como dito anteriormente, também não conseguem empréstimos para
arcar com as despesas do cultivo, sendo praticamente obrigados a
fornecer suas terras para o arrendamento, a fim de obter alguma renda
de suas terras. Pedro Kresó, professor bilíngüe na escola da aldeia Sede,
o atual arrendamento de terras como uma conseqüência da
administração do SPI, sendo que ele considera o que acontece hoje um
processo ainda parecido com o daquele tempo:
“Na época o chefe de posto arrendava. Hoje é o
índio que arrenda. É assim, é parecido, que na
época era branco com branco, hoje é o contrário, é
índio com branco daí. É parecido o processo daí.
A diferença é que os posseiros moravam dentro da
área. Vinham com aquela idéia de trabalhar e
29
moravam. Hoje é o contrário, o pessoal vem de
fora.” (Kresó, 2008)
Na verdade, é difícil dizer se os reais beneficiários desse
processo são os índios ou os fazendeiros não-índios que nelas plantam e
colhem. Em seu relatório, Rocha coloca a questão da seguinte maneira:
Nas aldeias que pertencem ao município de
Ipuaçu, segundo informações de não-índios que
trabalham nesta região da terra indígena, em
média 60% das plantações caracterizam-se como
agricultura extensiva, sendo propriedade de
agricultores “brancos” que arrendam estas terras
na ilegalidade (Rocha, 2008).
É interessante o caso da empresa Agroeste
12
, que em 1995
cultivava na TI como arrendatária e acabou sendo “expulsa” pelos
Kaingáng, que fizeram um levante contra o então cacique, o qual seria o
responsável pelo arrendamento das terras
13
. Algumas pessoas contaram
que trabalhavam para a Agroeste na época do arrendamento, e que as
condições de trabalho eram péssimas, pois não forneciam nenhum
equipamento para trabalhar nas lavouras de milho. Era comum as
pessoas trabalharem muitas vezes de sandália e sem nenhuma proteção
ao sol. Sobre esse período, Bloemer e Nacke relatam o seguinte:
A partir do final da década de 1990, as decisões
relativas à exploração dos recursos foram
centralizas na liderança indígena da TI, que
passou a controlar todos os empreendimentos em
execução: dentre outros, a olaria construída com
recursos provenientes da venda do maquinário da
serraria e de empréstimo obtido junto à prefeitura
municipal de Marema; a exploração de pedras
semi-preciosas com o apoio da mesma prefeitura;
e em 1995 o arrendamento ilegal de 300 ha das
terras indígenas para uma empresa da região que
era produtora de sementes (Bloemer e Nacke,
2007:53).
Com a liberação das terras ocupadas pela Agroeste, essas foram
repartidas entre a população. Esse processo, porém, não ocorreu de
forma sistemática, o que aumentou a desigualdade na distribuição de
terras dentro da reserva. Pedro Kresó, fala sobre a expulsão da Agroeste
e a distribuição das terras liberadas:
12
A Agroeste é uma empresa que foi fundada em 1966 em Xanxerê, tendo sido comprada em
2007 pela multinacional Monsanto.
13
Ver Anexo 3 - Portaria da FUNAI Nº 089/PRES, de 05 de fevereiro de 2002.
30
Eu lembro quando entrou a Agroeste pra trabalhar
aqui, depois a Agroeste saiu, ela foi expulsa daqui
pela PF. Com certeza tinha muita denúncia sobre
a empresa, tanto de dentro da área como pessoal
de fora, porque envolve daí a questão política
externa (....). Daí ela foi expulsa daqui. A partir de
que levantaram o acampamento deles,
maquinário, tudo. Com certeza, nessa época, que
daí são outra administração interna, não é os de
hoje, a divisão ficou entre a administração interna
na época. Não sou conhecedor disso... Daí quando
a gente descobriu, a terra era de fulano, a outra de
ciclano, aquela é daquela mulher e tal... Foi uma
distribuição rápida, não teve participação da
comunidade. (Pedro Kresó, 2008)
A agricultura mecanizada é uma opção atrativa de renda para o
“médio proprietário” Kaingáng, que o cultivo “pro gasto” não gera
muitos excedentes para serem comercializados. Como dito
anteriormente, os Kaingáng não conseguem financiamento para cultivá-
las por meio da agricultura mecanizada e os equipamentos disponíveis
na cooperativa indígena não conseguem atender a demanda de todos os
produtores, ficando limitada aos cooperados. Arrendar as terras, além de
garantir o recebimento de dinheiro à cada colheita, não acarreta os riscos
da produção ser ruim e libera o agricultor para engajar-se em outras
atividades produtivas, como o cultivo “pro gasto” ou trabalhar para
empresas da região. Por esses motivos o arrendamento, apesar de ser
uma prática ilegal e favorecer os arrendatários não-índios que ficam
com até 85% da ceifa, torna-se uma opção atrativa para os médios e
grandes proprietários indígenas.
31
Trator realizando colheita mecanizada de trigo na TI Xapecó
1.2.5 - Educação e Saúde
na aldeia Sede uma grande escola, a Escola Indígena de
Educação Básica Cacique Vânhkre, que funciona nos períodos matutino,
vespertino e noturno, fornecendo à população indígena educação
bilíngüe e diferenciada, nos níveis fundamental e médio. De acordo com
Piovezana (2007), a escola contava com 39 professores, atendia 60
alunos na educação infantil, 422 no ensino fundamental e 128 no ensino
médio. Além dessa, há pequenas escolas em cada aldeia.
32
Merenda na escola Escola Indígena de Educação Básica Cacique Vanhkre
É servida merenda no intervalo das aulas nos turnos matutino e
vespertino. A diretora da escola relatou-me que nesse ano começou um
projeto piloto de merenda específica para a escola indígena. Até os
primeiros meses de 2008, vinham enlatados (de carne, salsicha, frango)
diretamente do governo estadual, portanto enviados de Florianópolis.
Tanto as diretoras quanto as merendeiras (todas Kaingáng) queixaram-
se bastante da qualidade da merenda, pois mesmo após deixar o
conteúdo dos enlatados de molho por bastante tempo, ainda fediam ao
cozinhar e as crianças não comiam. Desde janeiro de 2008 começaram a
se queixar ao órgão competente. Após as queixas, mudaram a origem da
merenda, sendo agora a verba encaminhada ao GERE (Gerência
Regional de Educação) de Xanxerê, que faz uma licitação entre os
mercados da cidade e envia a merenda toda semana para a escola. A
merenda escolar é uma importante fonte de alimentos para as crianças
das famílias mais pobres da TI. As merendeiras disseram que os alunos
gostam da “comida de sal” (risoto, o macarrão, feijão...) e reclamam
quando são servidos apenas biscoitos e frutas.
33
No que se refere à atenção à saúde, até o ano de 1981 o
atendimento de toda população da TI Xapecó (na época com 1.714
indivíduos) era realizado apenas por uma enfermaria localizada na
aldeia Sede (BLOEMER e NACKE, 2007). Hoje postos de saúde
nas aldeias Sede, Pinhalzinho, Paiol de Barro, Linha Guarani e Fazenda
São João, provendo atendimento médico e odontológico à população. As
aldeias Sede e Pinhalzinho possuem atendimento de uma EMSI (Equipe
Multidisciplinar em Saúde Indígena) exclusiva, devido ao tamanho da
população. A EMSI é composta por um médico, um odontólogo,
enfermeiros, auxiliares de enfermagem, AIS (Agentes indígenas de
Saúde), AISan (agentes indígenas de saneamento) e uma nutricionista.
Dentre as ações realizadas no “postinho”, são freqüentes a
pesagem de crianças e o acompanhamento das mães gestantes. Muitas
pessoas vão ao posto para conseguir remédios para enfermidades
menores, como febre ou dores de cabeça (DIEHL, 2001). São também
realizadas pelos AIS visitas semanais às residências de todas as aldeias,
principalmente para a distribuição de medicamentos.
Mesmo com o aumento da infra-estrutura de atendimento, as
condições de saúde da população são precárias. Autores que trabalharam
na área descrevem um quadro epidemiológico com doenças infecto-
parasitárias, como infecções intestinais, verminoses e afecções cutâneas
(BLOEMER e NACKE, 2007; DIEHL, 2001). A maior parte das
residências não tem acesso aos serviços básicos de saneamento, como
fossas sépticas, água encanada e coleta de lixo, caracterizando um
precário quadro de saneamento na aldeia, o qual contribui para a
situação de saúde descrita. Além dessas patologias, são também
recorrentes doenças crônicas, como hipertensão e diabetes, as quais são
associadas, tanto pelos indígenas quanto pelos profissionais de saúde,
com as mudanças ocorridas na alimentação.
De acordo com o Mapa da Fome entre os Povos Indígenas no
Brasil II (1995), todas as TIs no Sul e Sudeste do Brasil caracterizavam
quadros de carência alimentar e/ou fome na época do estudo, ou seja,
estariam com sua segurança alimentar comprometida. Verdum define
segurança alimentar como:
a capacidade de uma sociedade ou grupo social de
fazer frente à demanda alimentar do conjunto de
sua população, de forma suficiente, estável,
autônoma, sustentável e equitativa. Logo, por
fome, estamos falando aqui especificamente da
incapacidade ou impossibilidade de uma
sociedade ou grupo social de fazer frente,
34
satisfatoriamente, a suas demandas alimentares
(incluindo água), comprometendo sua
sobrevivência social e física, presente e futura
(Verdum, 1995:7).
A situação da TI Xapecó foi caracterizada no mapa como
carência alimentar, com a maioria da população sendo atingida, sendo
que as causas atribuídas a essa situação eram o desgaste (baixa
qualidade) da terra, falta de trabalho, desmatamento e venda das
madeiras. Carência alimentar é a situação em que a população possui
dificuldades de obter alimentos durante quase o ano todo, porém não tão
gravemente quanto nos quadros de fome. Entretanto, a falta de acesso
aos alimentos não é o único fator que leva a esses quadros; a fome e a
carência alimentar são ocasionadas por fatores múltiplos, como falta de
saneamento, condições de habitação, assistência à saúde e o próprio
acesso à terra (LEITE, 2007).
Entre os Kaingáng da TI Mangueirinha, Kühl et al. (2009)
relatam o seguinte sobre sua condição nutricional:
Em termos gerais, a antropometria Kaingáng
revela um quadro semelhante àquele descrito para
outras comunidades indígenas no país:
manutenção da proporcionalidade corporal,
revelada pelas baixas prevalências de baixo peso
diagnosticadas pelos índices de PA e IMCI, e a
baixa estatura apresentando-se como o principal
déficit antropométrico, seguido pelo baixo PI (...)
é entre os adultos que o sobrepeso e a obesidade
assumem magnitudes elevadas e por vezes
alarmantes. O surgimento de casos entre crianças
e adolescentes, ainda que em prevalências
reduzidas, ganha relevância não somente diante da
magnitude do problema entre adultos em
contextos específicos, mas também diante das
evidências de importantes mudanças no estilo de
vida dos povos indígenas. Essas geralmente
acontecem em direção à redução dos níveis de
atividade física e à ocidentalização da dieta, o que
inclui o aumento do consumo de carboidratos
simples e gorduras, e a redução da ingestão de
fibras, e parecem estar associadas ao surgimento
de doenças crônicas não-transmissíveis (Kühl et
al., 2009:412-414, grifos meus).
As categorias utilizadas pelos nutricionistas para mensurar a
condição nutricional são as seguintes: PI déficit de peso para idade;
35
PA baixo peso para altura; IMCI (baixo peso segundo o índice de
massa corporal para idade). São apresentados os diversos fatores sócio-
ambientais que influenciam na condição nutricional dos Kaingáng.
Dentre esses é analisado o material utilizado na construção das
habitações, observando que “crianças que residiam em habitações com
paredes feitas de materiais não-duráveis como madeira reaproveitada e
lona tiveram cerca de três vezes mais baixo PI do que as demais”
(KÜHL et al., 2009:415). Além disso, “evidenciou-se a influência do
analfabetismo materno, da fonte de água de consumo doméstico, do
destino dos dejetos e da ausência de geladeira na residência sobre o
crescimento das crianças (KÜHL et al., 2009:417).
Podemos perceber, desse modo, como diversos fatores são
associados aos índices nutricionais dos Kaingáng de diferentes áreas do
sul do Brasil. Outro importante aspecto a ser ressaltado aqui é a
diferença entre os índices, bastante desfavoráveis, se comparados com
as populações não-indígenas da mesma região. Uma pesquisa realizada
por Hökerberg et al.(2001) no Rio Grande do Sul, demonstra como o
número de óbitos evitáveis pela assistência básica à saúde era bem
menor entre a população não-indígena desse estado. Leite apresenta
dados em que a mortalidade infantil entre os colonos de Rio da Várzea
era de 12/1000, entre os Kaingáng que residem nas proximidades o
índice era de 140/1000 (LEITE, 1995:43-44). Segundo Hökerberg et al.,
“a grande quantidade de óbitos por desnutrição poderia estar associada
ao arrendamento das terras para colonos da região, em razão de
restringir o espaço para plantio de subsistência em Ligeiro, Cacique
Doble e Guarita” (HÖKERBERG et al., 2001:269).
Para alterar positivamente o quadro nutricional da TI, estão sendo
realizados diversos projetos de intervenção alimentar, muitos
fomentados pelo Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional
Indígena (SISVAN Indígena). De acordo com a Fundação Nacional de
Saúde (FUNASA) (2009), o Sisvan Indígena é uma rede de informações
criada para medir a condição de alimentação e nutrição dos povos
indígenas, procurando encontrar seus fatores determinantes. Entretanto,
o Sisvan é mais que uma rede de informações, já que estão sendo
realizadas diversas ações de intervenção nutricional, como a distribuição
de cestas básicas e suplementação vitamínica.
A distribuição de cestas básicas, de competência da FUNAI,
deveria ocorrer todos os meses. Entretanto, isso não acontece, sendo
distribuídas mais ou menos de 3 em 3 meses (variando, podendo
demorar mais ou menos). Um caminhão distribui as cestas em cada uma
36
das aldeias, sendo feita uma enorme fila para recebê-las. A família que
não tem salário recebe uma cesta inteira e aquela que tem recebe apenas
meia cesta, informação dada pela assistência social do município de
Ipuaçu. Não é preciso apresentar identidade, pois o AIS que conhece a
todos acompanha a entrega. Durante a entrega que presenciei, foi
distribuído feijão, arroz, macarrão, açúcar, fubá, leite em pó e óleo.
Distribuição de Cestas Básicas na Aldeia Sede (Outubro de 2008)
Em agosto de 2008, junto com as cestas básicas, foi aplicada
vacina para rubéola, sendo que para receber a cesta era obrigatório
tomar a vacina. A nutricionista da EMSI contou que conseguiu mudar
um pouco o conteúdo da cesta, através de uma solicitação para Brasília,
incluindo leite, frutas e açúcar amarelo e eliminando os sucos artificiais.
Às famílias com crianças desnutridas são dadas cestas básicas especiais,
com acréscimo de leite em pó, vitaminas e leite especial (Nan), caso seja
necessário. Estas cestas básicas são compradas pelo convênio da
AIKA
14
com a FUNASA. Esses projetos e ações teriam trazido
resultados positivos, segundo FUNASA (2006). De acordo com os
14
Associação Indígena Kahnru, uma ONG coordenada pelos Kaingáng da TI Xapecó,
responsável pelo atendimento de saúde na TI por meio de um convênio com a FUNASA.
37
dados do órgão, entre 2002 e 2005 foram reduzidos em 64,3% os casos
de desnutrição entre os indígenas do estado de SC. A nutricionista que
atua na TI Xapecó contou como aconteceu a diminuição dos casos de
desnutrição de 19 para 10 na TI: os agentes indígenas de saúde estavam
avaliando de maneira errada o que seria desnutrição ou baixo peso, ou
seja, apenas mudando a maneira de avaliar, foram reduzidos pela
metade. Atualmente estão reduzidos de 10 para 1, através do
fornecimento de vitaminas A-D que as mães de crianças desnutridas
devem administrar a seus filhos diariamente, procedimento
acompanhado de orientação nutricional para as mães. Entretanto, como
descrito anteriormente, outros problemas relacionados à saúde
continuam presentes no cotidiano da TI.
Foto do índice de Desnutrição e Obesidade Infantil da TI Xapecó, fixado no Posto de
Saúde da Aldeia Sede, parabenizando a equipe pelos resultados positivos
1.2.6 - Cosmologia, Igrejas e Religiões
Os trabalhos etnográficos recentes têm se concentrado na
cosmologia e organização social dos povos Jê
15
e a presença de religiões
15
Para os Kaingáng, ver Crepéau, 1997, 2002, 2005; Veiga, 1994, 2000; Almeida, 2004a
38
cristãs nas TIs. A sociedade e a cosmologia Kaingáng são
compreendidas como dualistas, para os quais o mundo é formado por
duas metades complementares: Kamé e Kairu
16
. Kamé é associada ao
sol, possuindo as características de ser forte, seco e resistente; Kairu
está relacionada à lua, à umidade, fragilidade e objetos redondos
(VEIGA, 2000:79). A organização social Kaingáng também seguia
17
essa lógica, sendo que cada pessoa pertencia a uma das metades clânicas
e deveria se casar com uma pessoa da metade oposta, caracterizando
uma sociedade exogâmica e patrilinear. De acordo com Crepéau
(2002:116), “o pertencimento patrilinear à metade ou à seção está
inscrito no nome atribuído à pessoa quando de seu nascimento”. Além
do nome, as pessoas possuem características físicas da metade a que
pertencem. Os Kaingáng dizem ser possível identificar a qual metade a
pessoa pertence observando suas características físicas, como as unhas,
que caso sejam arredondadas, indica que a pessoa é Kairu, se forem
compridas e finas é Kamé (ROSA, 2008).
Os primeiros contatos entre religiosos não-índios com os
Kaingáng (na época ainda chamados de Gualachos ou Guayanás) se
deram no século XVII, através do Pe. Antônio Ruiz de Montoya, nas
missões jesuíticas de Conceição e São Pedro (MELIÁ, 1983 apud
ROSA, 2005). Entretanto a destruição das reduções de Guairá e São
Ignácio pelos bandeirantes, em 1631, causou a dispersão dos índios e o
colapso desse modelo de catequese. O próximo registro de contato entre
missionários e Kaingáng se dá apenas no séc. XIX, pelos escritos do Pe.
Francisco das Chagas Lima, que os chama de Xocrens, Cames e
Votorons. Esse missionário chega aos campos de Guarapuava em 1810,
junto com uma expedição armada, que possui o objetivo de colonizar
aquela região. Mesmo considerando os Kaingáng “cruéis”,
“debochados”, “perversos”, “abomináveis” e “repugnantes para serem
doutrinados”
18
, até 1824 este padre teria realizado mais de 400 batismos
(LIMA, 1821, 1842 apud ROSA, 2005).
A influência da catequese na cosmologia e xamanismo
tradicional dos Kaingáng pode ser percebida nos dias atuais, com
devoção a santos como São João Maria e o Divino Espírito Santo, sendo
que o catolicismo popular é considerado pelos Kaingáng sua religião
16
Ver Anexo 1 O mito de origem Kaingáng, transcrito por Telêmaco Borba
17
Pelo menos na TI Xapecó, disseram que isso é coisa do “tempo dos antigos”, que não se
segue mais a prescrição de casar com alguém da metade oposta.
18
O que mais preocupava o Pe. Francisco das Chagas Lima era a prática da poligamia, tendo
em vista que os homens Kaingáng uniam-se com até quatro mulheres.
39
“tradicional”. Muitos kujà
19
possuem santos católicos como espíritos-
auxiliares, ao lado de animais como a onça e o gavião, que podem lhes
ensinar sobre as plantas, trazer visões e auxiliar na identificação das
causas de doenças (OLIVEIRA, 1996; ROSA, 2005).
São João Maria é uma figura central no catolicismo popular
Kaingáng. O monge, como é chamado, fazia diversas profecias
escatológicas, algumas das quais se referem à nova agricultura e novos
alimentos. O monge pregava que apenas alimentos que nasciam
embaixo da terra, como batata-doce e mandioca, iriam dar durante um
certo período. Em uma entrevista cedida por Dona Urtília, rezadora das
orações de São João Maria e residente na aldeia Sede, conta que o
monge dizia o seguinte sobre o milho híbrido:
Ele falava que ia dar seca desse milho. Mas já deu
aqui, duas vezes. Não chove e o milho não
vingava, o feijão também não. O que vai dar diz
que é debaixo do chão, batata doce, mandioca.
Ta acontecendo bem certo o que ele falava. Dois
anos já deu seca. (Dona Urtília, setembro de 2008)
É comum ouvir relatos do monge com sua panelinha, onde com
muito pouca comida alimentava várias pessoas. Alguns interlocutores
contaram que comeram junto com São João Maria, de sua pequena
panelinha em que comiam mais de dez pessoas, deixando todos
satisfeitos. Dona Urtília fala sobre a capacidade de São João Maria fazer
a comida render:
Ele tinha uma cuia de mate bem pequena.
Esquentava a chaleirinha separada, daí ele ficava
tomando do dele. Ele passava a cuia pra nós, mas
da nossa ele não pegava. Comia só couve. Ele
fazia farofinha no couve dele. Panelinha
pequenininha. Daí ele mandou meus filhos caçar
tatu. Eles foram e logo voltaram com um tatu
bem pequeno. Ele então assava a carne de tatu no
espeto, que lhe durava uma semana. (...) Um ovo
dura 10 dias pra ele. Ele falava vamos comer ovo
cozido filha, e eu dizia, mas se eu comer vai
acabar tudo. Não vai terminar, ele dizia pra mim.
E vai comendo, vai comendo e fica o mesmo tanto
aquele ovo cozido. Ele ficou 15 dias com nós.
(Dona Urtília, setembro de 2008)
19
Segundo Oliveira (1996), existem três tipos de especialistas Kaingáng: Curandeiros, Kujà e
Feiticeiros. Os Kujà seriam o equivalente Kaingáng para xamã ou pajé, com suas próprias
atribuições e especificidades.
40
Vejamos outra história de São João Maria, contada por Vicente
Fokae e registrada por Almeida:
Então São João Maria saiu no mundo, ele tinha
poder. Então ele pegou a caminhar. Foi às águas,
fazer curativo. Aonde ele caminhava, chegava nas
casas. Algumas casas conseguiam pouso pra ele,
outras não. Chegou na primeira casa, chegou ali,
conversando. Anoiteceu, daí ele pediu pouso,
esperou oferecerem, mas não.
- O senhor me dá pouso aqui? Eu sair meio cedo.
- Aqui não tem cama, não tem coberta, não tem
forro.
- Tá bom. Disse São João Maria.
ele desgostou, vontade. Daí cedo, depois
que ele saiu, a mulher saiu fazer cocô e mijar.
Saíu, ficou mijando, não parava a mijadeira dela.
Até que chegou meio dia, passou até a tarde.
anoiteceu. [Sáo João Maria] chegou de tarde no
outro vizinho, o segundo vizinho. Muito boenacha
a mulher dele, muito dada, foi conversando ali.
Ao meio dia ele fez um foguinho embaixo de uma
sombra. E, ele [o segundo vizinho] olhando ele. Ia
conversar com ele tomando chimarrão. Carrega
o chimarrão ele [São João Maria], com a
chaleirinha dele, de Chico lateiro. Foi vê o que ele
tava fazendo. Olhando o que ele tava fazendo.
Pegou a panelinha, assim. Puxou aquele masso de
couve, já ponhou na panela.
O pessoal chegou ali para eles verem ele fazendo
a comida. Ele estava fazendo pra eles verem como
ele tinha poder para fazer aquela comida. Daí
aquela mulher que ele não ganhou pouso, ele deu
castigo pra ela. Deu essa doença. mandaram
chamar ele. Entrou, mas eles não conheceram ele.
Aí ele perguntou:
- Por que está doente? [risos]
-É, aconteceu assim, não sei o que deu em mim.
Saiu de novo e perguntou:
- Não teve alguma pessoa aqui, um viajante
pedindo pouso?
- Chegou.
- E daí ele pousou? Deram pouso pra ele?
41
- Não, nós não tínhamos forro, não tínhamos
cama.
- É! Então isso é pecado, ele é são João Maria.
- A é!
- Eu quero cura de São João Maria.
- É ele quem está aqui, sou eu.
- Ah! Mas não pode, não é ele não.
-É, sou eu.
Já mudou ali. Disse o São João Maria:
- A Senhora vai buscar um copinho de água pra
mim?
Ela foi devagarzinho, quando ela chegou era
perfeitamente outro, já estava outra pessoa.
Ele vira em gente, gente velha, gente nova,
mulher velha ou mulher nova.
Ele é um homem baixo e gordo, carnudo, um
homem forte.
Quando foi de tarde chegaram uns índios por aqui
e ele foi campear uma água.
- Eu vou fazer meu fogo ali.
- Mas não companheiro, pouse aqui com nós. Pra
nós conversar. Pouse com nós aqui pra tomar um
chimarrão, fumar um cigarro.
- muita fruta por aqui? [ Perguntou São João
Maria]
- Dá. Pinhão, guavirova, tudo quanto é fruta.
Peixe, caça, tem bastante. Abelheiro, abelha tem
de toda qualidade. Então nossa vida é assim muito
boa.
- Sempre vocês não queiram aceitar [disse São
João Maria]. Que um tempo vai chegar pra
terminar este mato. Que pessoas de longe de outro
país. Por aqui mesmo, vão ser enganados vocês.
Acontece, mas vocês vão ter que abrir o olho.
Vocês vão lembrar de mim, quem é que contou
esta palavra. Vocês vão alcançar, outros não
alcançam. Vai terminar o mato, vai terminar o
peixe.
Então explica quando ele andava no Imbu.
tem outra água santa. Lá que ele falou com o
índio.
- Algum tempo aqui vai criar purungo. Esse
tempo que vai ser tomado. E, com o tempo vai
voltar.
42
A terra tem que voltar, é do índio. Então, aqui
também, explicou:
- Vai ter uma confusão, troca de religião,
enganação. Vai entrar muito engano (Fókâe, dez.
1995 apud Almeida, 2004b)
Nesta história são contemplados diversos aspectos relacionados
à figura de São João Maria. O primeiro refere-se aos infortúnios que
recaem sobre as pessoas que lhe negam abrigo ou comida. Um segundo
aspecto são as escatológicas profecias sobre o futuro, associadas ao
desmatamento da terra e à falta de comida. Por fim, a chegada de novas
religiosidades, colocada como enganação ou troca de religião, reflexo da
expansão de igrejas evangélicas na TI.
Esta ultima previsão de São João Maria condiz com a realidade
atual, em que uma diversidade de igrejas evangélicas se estabeleceu na
TI Xapecó. Hoje a auto-identificação religiosa, ou seja, ser católico ou
crente, atua no grupo como um fator de identidade e organização social
junto à divisão tradicional de metades. De fato, a primeira igreja a ser
construída foi a Igreja Batista, em meados da década de 1950, sendo que
a primeira capela da Igreja Católica foi construída apenas vinte anos
depois. Por volta de 1985, a Assembléia de Deus inicia sua missão
construindo um templo na aldeia Sede, de onde rapidamente expandiu
para outras aldeias. Os novos templos da Assembléia de Deus eram
geralmente construídos de frente para os da Católica e Batista,
demonstrando sua clara oposição à essas Igrejas (ALMEIDA, 1998).
Existem na TI Xapecó mais de seis Igrejas Evangélicas
diferentes, dentre as quais podemos citar: Assembléia de Deus da
Missão, Assembléia de Deus Pentecostal do Brasil, Rei da Glória, o
Senhor é Deus, Deus é Amor e a Cadeia da Prece. Além das igrejas
evangélicas, existem também a Igreja Católica Oficial e a Igreja Batista
(ALMEIDA, 1998:71). Essas igrejas estão espalhadas pelas diversas
aldeias da Terra Indígena, porém as mais antigas, como a Assembléia de
Deus da Missão, possuem igrejas em quase todas as aldeias. Os pastores
dessas igrejas são em muitos casos Kaingáng, porém em algumas delas
podem vir não-índios de Xanxerê ou Abelardo Luz para realizar o culto.
De qualquer modo, em todas as igrejas evangélicas costumam ser
chamados pastores não-índios para a realização de eventos especiais,
como cultos nos fins de semana ou para festas promovidas pelas igrejas.
Devido à forte diferenciação entre “crentes” e “católicos” na TI,
eventos organizados pelos crentes, como churrascos para a
arrecadação de verbas para obras na igreja, e pelos católicos, que
realizam festas de santos. As diferenças são expressas também em
43
práticas cotidianas, como abstenção de álcool, vestuário e a participação
em jogos (bocha, futebol), a qual é proscrita por algumas igrejas. Essas
festas e jogos, que são também momentos de comensalidade, serão
descritas mais densamente no capítulo 3.
1.2.7 - Política e Relações Interétnicas
Como a TI abarca parte do território dos municípios de Ipuaçu e
Entre-Rios, os Kaingáng são eleitores de uma localidade ou outra,
chegando a constituir metade do eleitorado de cada município.
O período eleitoral não costuma ser dos momentos mais
tranqüilos na área indígena, havendo desavenças entre as pessoas que
tomam partido de um candidato ou outro. Essa divisão em facções
causa certa tensão na TI, resultando algumas vezes em conflitos que tem
de ser resolvidos pela Polícia Federal (Fernandes, 2006). No ano de
2002 foram eleitos três vereadores indígenas em Ipuaçu, sendo o então
cacique Orides Belino eleito vice-prefeito. Em maio de 2003, Orides foi
assassinado na porta de sua casa, vítima de uma emboscada.
diferentes histórias sobre quem o teria assassinado, porém, seu irmão
Valdo Correia da Silva, que havia sido cacique da TI Xapecó, foi
condenado em abril de 2004 por ter planejado e fornecido a arma para o
homicídio.
Nas eleições de 2008 muitos Kaingáng se candidataram ao
cargo de vereador, cada qual associado a um dos candidatos não-índios
a prefeito de Ipuaçu. Algumas atividades da equipe de saúde, como a
distribuição de leite em pó especial para crianças desnutridas, tiveram de
ser paralisadas no período próximo às eleições, para que tais ações não
fossem confundidas com campanha política. Na época de campanha
para eleições municipais, comenta-se que há a prática de compra de
votos com cestas básicas e outros produtos ou serviços. Atualmente um
morador da aldeia Limeira, João Roque, é vice-prefeito do município de
Entre-Rios e dois Kaingáng da aldeia Sede vereadores em Ipuaçu.
Na campanha para as eleições municipais de 2008, que
aconteceu no período em que realizei a pesquisa de campo, foram
distribuídos CDs nas aldeias Sede e Pinhalzinho. No CD estava gravada
a conversa de um grande empresário de Ipuaçu e financiador da
campanha de um dos candidatos a prefeito, que teria sido gravado sem o
conhecimento do mesmo. O financiador é flagrado falando mal dos
índios, dizendo que eram “que nem bicho” e que comprava seus votos
com pneus carecas e gasolina. Segue abaixo um trecho transcrito do que
44
é dito nesse CD, em que uma pessoa não-identificada pergunta-lhe
algumas questões intrigantes. Usarei a letra Q para a pessoa que lhe faz
as questões e a letra F para o financiador da campanha do candidato a
prefeito:
F: O negócio é o seguinte, tem que entrar lá dentro, o [Candidato 1]. e o
vice, pra fazer a campanha lá dentro (...) Tá empate a pesquisa.
Q: Vocês tão comprando muito cedo F.
F: Mas da outra vez foi assim também.
Q: Começou em agosto e foi até outubro? (...)
F: Foi três meses, julho, agosto e setembro... Agora é só dois meses, que
é só dois meses de campanha.
Q: E vão gastar muito menos agora?
F: Quase nada, quase nada! O Leonir [atual prefeito e candidato à
reeleição Nota do autor] e eu gastamos cento e cinqüenta mil da vez
passada [na última eleição nota do autor], e dessa vez não vamos
gastar cinqüenta.
Q: (...)- Mas fizeram uma coisa boa ali, de deixar os índios fazer o
rancho e depois só entregam..
F: (...) O índio é que nem bicho, que nem bicho. Ele não pensa no
amanhã, quer saber de hoje, daí amanhã já é outro dia. Não é que nem o
italiano que trabalha hoje pra durar cem anos e cem anos ter dinheiro O
índio não, e o caboclo é assim também, ele trabalha hoje pra comer hoje,
amanhã é outro dia. O italiano é um demônio, quer trabalhar hoje pra ter
seu dinheiro pra daqui dez anos.
Q: E os rancho, dando pros índio também não ta resolvendo?
F: embaixo não pega nada, o Pinhalzinho. (...) Ali virado, nos
rancho e promessa e coisarada,
Q: E uma gasolina?
F: Gasolina. (...) Pneu novo não devia ter dado pra ninguém,
recapado. Pros índios pode dar pneu careca que eles pegam.”
(Transcrição do CD distribuído nas Aldeias da TI Xapecó durante o
período eleitoral; Outubro de 2008)
Esse trecho é importante para compreendermos o contexto
político e as relações interétnicas na região. Como dito anteriormente, a
população indígena constitui metade do eleitorado dos municípios
vizinhos, sendo fundamental o apoio indígena para a eleição dos
candidatos não-índios para prefeito. Para isso, são utilizados diversos
artifícios para conseguir seus votos, como a “doação” de cestas básicas
45
(ou rancho, como dito na gravação), gasolina e pneus, além de
promessas e a realização de eventos, alguns dos quais são servidas
refeições para muitas pessoas. Mesmo nesse contexto de fricção
interétnica, os Kaingáng conseguem participar das decisões políticas e
eleger seus próprios representantes (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1972).
1.3 - Fontes de renda e subsistência na TI Xapecó
1.3.1 - Cultivo pro gasto
Grande parte da população sobrevive do cultivo de pequenas
roças, nas quais se planta principalmente milho, feijão e mandioca.
Além dessas espécies, são também cultivadas abóbora, pepino,
amendoim, “batatinha”, batata-doce e “salada”
20
, não sendo rara a
criação de galinhas e porcos. Uma pesquisa realizada por Diehl (2001)
demonstra que 45,3% da população da aldeia Sede da TI Xapecó tinha
como ocupação o trabalho de manutenção de roças próprias, sendo que
13,5% desses indivíduos trabalhavam também em roças de terceiros
(DIEHL, 2001). O cultivo é geralmente feito com máquina manual para
plantio de sementes, popularmente chamada de “xaxo” ou “pica-pau”,
mas também se faz uso de carro de boi para o preparo do solo.
20
O termo “salada” é usado na região para designar vários tipos de folhas, como radite, alface,
repolho e almeirão.
46
Seu Roquinho e filho, residentes próximos da Aldeia Sede, descansando durante a
lavração do solo com Carro de Boi
O feijão, particularmente, é o produto mais cultivado “pro
gasto”. Isso deve tanto à tradição Kaingáng de plantar feijão, quanto ao
alto preço desse produto no mercado. Alguns interlocutores me disseram
que não vale à pena vender o feijão produzido, pois pagam apenas
R$120,00 numa bolsa de 60 kg (ou seja, R$2,00 por kg), enquanto para
comprar no mercado custa de R$5,00 a R$6,00 por kg. Desse modo, o
cultivo do feijão “pro gasto” pode reduzir consideravelmente o custo
mensal de uma família com alimentação, que o feijão é um alimento
consumido diariamente, até duas vezes ao dia, no almoço e na janta
indígena
21
. O milho é cultivado tanto “pro gasto” quanto para o
comércio. Além do uso culinário, o milho é usado também como ração
das galinhas e porcos, que algumas pessoas criam. Em escala reduzida,
plantam-se variedades de milho “dos antigos”: milho cunha, palha roxa,
cateto, cravinho e outras, as quais são usadas para o preparo de pratos
considerados também “antigos”
22
.
21
Descreverei os pormenores do cotidiano alimentar mais adiante.
22
Tratarei sobre as “comidas antigas” no capítulo 2.
47
Seu Vardinho ao lado de seu paiol com milho “dos antigos” – Aldeia Samburá, outubro
de 2008
As aldeias com maior número de habitantes, Aldeia Sede e
Pinhalzinho, possuem mais de mil pessoas cada uma. Nessas aldeias, as
casas são mais próximas umas das outras, o que dificulta o cultivo de
roças no entorno das casas. As famílias dessas aldeias, quando plantam,
geralmente possuem suas roças afastadas da casa, com um paiol para
guardar ferramentas e eventualmente pernoitar. Muitos colaboradores
me disseram que as famílias da aldeia Sede são as que menos plantam,
como nos relata Dona Salete, que reside nessa aldeia:
48
Que nem esses, dessas casas tudo por aqui assim,
tudo esses não tem nada plantado. O que planta
é nós aqui. Esses por assim, não plantam nada.
É bem pouquinho que eu sei que planta. O mais só
compra. Mas daí não é justo. Não é fácil a gente
comprar, comprar. 2 kg de feijão, doze pila.
Doze pila! Se for bastante gente ainda... Tem
gente que é bastante, que gasta seis, sete pacotes
de farinha no mês... E o preço que tá... Essa
farinha baratinha que a gente compra tem lá, bem
baratinha, só que não presta. Farinha preta. Eu
gasto um pacote no mês. Eu faço pão, mas é
eu, daí dura mais. (...) Mas tem gente que gasta
bastante. Que nem essa menina que tá... meu deus,
eles são em nove, tem bastante criança. Eles
plantaram bastante feijão, e colheram, e deixaram
tudo pro gasto... Ainda que ela plantou tudo ali
pra baixo. Na casa dela é gramado, daí eles
pediram pro trator, o trator veio e passou pra ela.
Ela plantou abóbora, plantou moranga, plantou
mandioca, plantou batata-doce, plantou de tudo.
Ainda que ela planta de tudo, que nem ela diz.
Chega o tempo de verdura e a gente tem
abobrinha, tem mandioca nova, tem 3 meses
comendo mandioca nova. (Dona Salete, novembro
de 2008)
o costume de se fazer as meia para o cultivo pro gasto ou
para o plantio comercial. Trata-se de um acerto feito entre duas partes
para realizarem em parceria o cultivo de um determinado pedaço de
terra, geralmente realizado entre pessoas da própria TI. Muitas
comentaram estar plantado as meia com alguém, geralmente algum
compadre ou parente. O acerto pode ser feito de várias maneiras: por
exemplo, uma das partes pode entrar com a semente e a outra com a
terra, dividindo daí o trabalho e a colheita; uma parte pode entrar com o
trabalho apenas e a outra com semente e terra, etc. Como esse cultivo
geralmente é feito pro gasto, apenas o excedente é vendido ou trocado
por outros produtos.
1.3.2 - Emprego e outras fontes de renda
O que garante a subsistência de muitas famílias, associado ao
plantio “pro gasto”, é o recebimento do benefício “Bolsa Família, o
recebimento de aposentadoria, a prática de trabalhar para fora,
49
empregos na própria TI e a venda ou troca do excedente produzido nas
roças. A renda proveniente dessas fontes permite que as famílias
comprem gêneros alimentícios que não são cultivados, como é o caso do
arroz, por exemplo, o qual se come todos os dias, mas muitos poucos
cultivam.
A maioria das famílias com filhos recebe o benefício “Bolsa
Família” do governo federal, o qual fornece pouco mais de R$100,00
para cada uma delas, independente do número de filhos. As condições
para o recebimento são que os filhos estejam com a vacinação em dia e
indo à escola. Apesar do valor recebido ser apenas um quarto do salário
nimo atual, a maioria das famílias que recebe o benefício elogiou o
programa, dizendo que essa renda ajuda muito no orçamento da casa.
Esse dinheiro geralmente é gasto assim que recebido, sendo que alguns
interlocutores me disseram que nem mesmo vêem o dinheiro, pois esse
iria direto para o patrão
23
, seja para fazer o rancho ou pagar o
financiamento de algum móvel ou eletrodoméstico. Diehl (2001)
descreve ser prática comum que os donos de mercados da região
retenham os cartões de aposentadoria, que os aposentados costumam
gastar quase tudo o que recebem em seus estabelecimentos. Algo similar
acontece com os cartões do programa Bolsa Família, mas em escala
reduzida, tendo em vista que a assistente social do município verifica a
condição de recebimento do benefício. O dinheiro de aposentadoria
também é uma importante fonte de renda, dado que muitos idosos
dependem de seus filhos e não podem mais trabalhar, renda que faz-se
valiosa para essas famílias.
Na área da saúde possibilidade de emprego como Agente
Indígena de Saúde (AIS), Agente Indígena de Saneamento (AISan) ou
técnico em enfermagem, o que provê uma fonte de renda para as
famílias dos que se empregam nesses ofícios. As escolas da TI
empregam indígenas como professores bilíngües, merendeiras ou na
direção.
Muitos Kaingáng trabalham em frigoríficos da região, que
comercializam principalmente carne de porco ou frango. Outros
trabalham para empresas que plantam no entorno da TI. A empresa
Agroeste emprega cerca de 80 pessoas da TI para trabalhar no cultivo do
milho em plantações vizinhas à área. Atualmente, a fim de evitar
23
Termo nativo, utilizado para designar os donos de mercados e supermercados das
localidades vizinhas
50
processos legais de seus funcionários contra a empresa, é fornecida uma
sofisticada roupa de proteção ao sol, óculos, botas e garrafão d‟água a
cada um dos funcionários, condição bastante distinta da descrita por
meus colaboradores que trabalharam nas terras arrendadas pela Agroeste
na década de 1990.
Paulo Koito em uniforme de trabalho para as lavouras de milho no entorno da TI.
51
1.3.3 - Aquisição de Alimentos
Independente do cultivo “pro gasto”, todas as famílias têm que
comprar alguns gêneros alimentícios arroz, farinha de trigo, macarrão,
sal, açúcar, banha, carne e erva-mate. As famílias sem fonte fixa de
renda compram apenas esses itens essenciais, que não conseguem
produzir, pois a roça supre grande parte de sua demanda “pro gasto”
cotidiano (com o cultivo de feijão, milho, moranga, mandioca, batata,
“salada” e a criação de frangos e porcos). as famílias com melhores
condições, seja por emprego, arrendamento, etc., compram a maior parte
da comida que consomem (incluso feijão, cultivado por muitos na TI) e
não costumam fazer roças.
Devido à proximidade com os municípios da região, muitas
pessoas fazem suas compras maiores nos mercados dessas localidades
ou até mesmo nos supermercados de Xanxerê, já que uma linha de
ônibus passa todos os dias pela TI rumo à cidade. As pessoas que
moram na Sede costumam comprar nos mercados de Bom Jesus,
enquanto as do Pinhalzinho geralmente compram nos supermercados de
Ipuaçu. A vantagem de comprar nos mercados dessas localidades,
principalmente para os índios mais velhos, aposentados, é que o
“patrão” busca-lhes na aldeia, leva à cidade para sacar o dinheiro da
aposentadoria, fazer as compras e ainda entrega o “rancho” na
residência do comprador.
Em uma das ocasiões em que pude participar da compra do
“rancho”, geralmente feito uma vez por mês, foram comprados os
seguintes itens em um supermercado de Xanxerê: frango (8kg), farinha
de trigo (10kg) (pois era boa e estava barata), feijão (2kg), arroz (5kg),
banha (1 pacote), carne moída (500g), batata (8kg), café (500g), leite
(2l), óleo de soja (1l), fubá (1kg), doce de leite, cebolas, beterraba,
vinagre e açúcar (5kg), além de iogurte por insistência das crianças. A
carne, de frango ou porco, é adquirida nos mercados da região, mas
também ocasionalmente no açougue de Xanxerê. Essa compra é um
bom exemplo dos itens costumeiramente adquiridos por uma família que
não planta, tendo de comprar toda a comida de consumo diário.
52
Matilde Koito fazendo o “rancho” em um supermercado de Xanxerê
mascates que passam quase todos os dias pelas aldeias da
TI, vendendo diversos itens como ovos, sorvetes, doces, cigarros e CDs,
porém o que mais vendem são os pães de trigo, sendo que as pessoas os
chamam de “padeiros”. Tanto nas aldeias maiores (Sede e Pinhalzinho)
quanto nas menores existem as “bodegas”, estabelecimentos que
vendem produtos de primeira necessidade, tais como frango, farinha,
arroz, erva-mate, produtos de higiene pessoal, além de doces e
refrigerantes. Costuma-se comprar nessas “bodegas”, de proprietários
indígenas, apenas o que realmente “falta”, pois os preços podem ser bem
superiores aos dos mercados de fora da área. Os donos de bodega
disseram que os itens mais vendidos são refrigerantes, doces e miúdos
de frango. Os miúdos são uma opção barata de carne, custando apenas
três reais o pacote com 3kg, sendo comprados quando não dinheiro
para a carne de frango ou porco. Este último, apesar de ser o predileto
pela maioria das pessoas, é também mais caro. Algumas bodegas são
importantes espaços de sociabilidade, onde as pessoas param para
prosear e jogar baralho ou sinuca.
53
Um dos mascates que trabalha na TI vendendo produtos diversos
Bodega da Dona Amélia, importante espaço de socialização na Aldeia Sede
54
1.3.4 - Caça, Pesca e Coleta
Dada a condição de desmatamento da TI, as atividades de caça,
pesca e coleta são realizadas em pequena escala por algumas pessoas
que se empenham nestas atividades. Haverroth (1997) considera que tais
atividades constituem mais uma prática de lazer do que uma forma de
suprir suas necessidades. Apesar do discurso corrente de que não tem
mais caça, algumas pessoas ainda se empenham em caçar. É também
presente o discurso de que antigamente se comia muita carne de caça,
e assim não era preciso comprar carne. Hoje caçam principalmente
pássaros e tatus, mas também veados e cotias. Cabe lembrar aqui que,
segundo o trabalho de Telêmaco Borba (1908), os Kaingáng “Não
comem a carne dos veados (carubé), pacas (cocamé), cotias (queróngue)
e outros animaes”. Entretanto, esses três animais foram descritos como
caça por meus colaboradores.
Existem três tipos de tatu: o “rabo mole”, o “amarelo” (pois sua
banha é amarela e tem a carne mais forte) e um outro que é pequeno,
chamado de tatuzinho. O preferido para o consumo é o rabo mole, pois
possui a carne branca e mais macia. A caça de tatus é feita à noite, com
cães que farejam a toca, podendo-se então abater o tatu a pauladas. O
veado é também caçado com cães, mas pela manhã, sendo necessário o
uso de espingarda. Para a caça desses animais é preciso ter cachorros
treinados, sendo preciso ensinar aos cachorros pegar o faro. Para caçar
cotia é preciso de paciência, pois se coloca uma isca com milho, e
espera-se em cima de uma árvore, a noite toda se for preciso. É comum
também a caça de aves, principalmente da saracura e do pombão,
geralmente feita com arapuca, uma armadilha utilizada para esse fim.
Apesar do discurso de que a pesca está comprometida, devido
às barragens e à poluição dos rios, ainda são pescadas carpas, traíras,
cascudos e jundiás. Geralmente pescam na beira rio Chapecó, tanto
jovens como adultos. Houve recentemente a execução de um projeto de
piscicultura, que visava à implementação de um açude com peixes na
aldeia da Olaria. Entretanto, a contenção do açude cedeu e os peixes
foram perdidos.
A coleta era uma prática fundamental na subsistência
Kaingáng. Além de frutas, os Kaingáng conhecem vários tipos de
folhas, coquinhos e insetos comestíveis. O pinhão, por exemplo, era um
produto bastante consumido nos meses de inverno. Entretanto, muitas
pessoas afirmam que hoje em dia é necessário comprar até mesmo o
pinhão, devido à escassez de araucárias, e ao fato de que muitas pessoas
55
colhem pinhão quando ainda está verde (período entre abril e junho).
Frutas, coquinhos (ingá, butiá e guarirova) e “comidas do mato”
(égoro)
24
são também coletadas nos matos remanescentes da TI. Até
algumas décadas atrás o mel era coletado freqüentemente pelos
Kaingáng. Uma interlocutora contou que espantavam as abelhas com
fumaça, guardavam o mel em canudos de taquara e os favos em cestos
de caitê, prática que ela chamou de “melar”. Quem coletasse muito,
costumeiramente recebia visitas que iam pedir mel, o qual era
prontamente compartilhado. Hoje em dia coleta-se pouco mel, mas
escutei relatos sobre coletas realizadas recentemente, feitas com fumaça
para espantar as abelhas. Muitos se queixam que quase não mais
abelhas, atribuindo isso aos venenos utilizados nas granjas
25
, o qual
estaria matando além das abelhas os pássaros.
Caçador orgulhoso de sua caça
24
Descreverei os diversos égoro e outras “comidas antigas” no Capítulo 2.
25
Granja é o termo utilizado para se referirem às grandes plantações, geralmente de soja ou
milho, que existem no entorno e mesmo dentro da TI.
56
Pescador com um bagre recém pescado no lago da aldeia Olaria
1.3.5 - Cotidiano - Breve descrição etnográfica
O dia começa com o acendimento do fogo do fogão a lenha, o
qual é utilizado na grande maioria das casas, geralmente utilizando-se
uma sacola plástica como combustível inicial. A importância do fogo no
cotidiano das casas é muito grande, pois além de ser utilizado para
cozinhar é onde se deixa as chaleiras com a água quente para o
chimarrão e também para lavar louça. Muitas vezes se come pão caseiro
(émi) no café da manhã, mas em outras ocasiões pode-se comer alguma
comida “dormida” que tenha sobrado do jantar, como virado, arroz com
feijão e carne. O almoço, que se come por volta do meio dia, começa a
ser preparado após o café, sendo geralmente arroz, feijão, porco ou
frango e alguma “salada” que eventualmente possa ser preparada
(repolho, radite, etc.). Algumas vezes também se prepara macarrão,
sendo que as casas que possuem a “máquina” podem até mesmo fazer
sua própria massa.
A janta, pelo menos na casa em que fiquei, era comida por volta
das 21:00 ou 22:00. O conteúdo da janta geralmente é o mesmo do
almoço; arroz, feijão, carne de porco ou frango e um eventual
57
complemento, que pode ser batatas, farinha torrada, couve, abóbora,
macarrão, etc. O arroz com feijão constitui as refeições (tanto almoço
quanto janta) da maioria das casas, porém sempre com alguma carne ou
ovo em último caso. Apenas em um dia de minha permanência em
campo não comi feijão, pois este “azedou” devido à falta de geladeira.
Geladeira é um bem de consumo difícil de ser visto na maioria das
casas. Opta-se, quando possível, por um freezer horizontal, onde se pode
guardar carne congelada por mais tempo do que resfriada em uma
geladeira
26
.
A carne, por ser uma comida bastante valorizada, é geralmente
dividida igualmente. Não é feita nenhuma distribuição, pois cada pessoa
pega na panela um ou dois pedaços, dependendo da quantidade
disponível, sendo que os homens adultos podem eventualmente pegar
um pouco mais que as outras pessoas da casa. Se sobrar carne, após
todos se servirem, não é malvisto repetir. Na casa em que fiquei, havia
um bebê de seis meses de idade, que além de mamar, comia de todas as
refeições, independente do que fosse. Geralmente a avó dava-lhe a
comida na boca, depois de mastigar um pouco o alimento.
Presenciei algumas vezes conversas entre mulheres sobre a
diferença entre cozinhar “no gás” ou “na lenha”. O fogão a lenha é
considerado mais prático, pois não se tem o perigo de queimar a comida,
além de que a mantém aquecida por mais tempo. o fogão à gás é
utilizado quando se tem que “cozinhar ligeiro”, como no caso de receber
uma visita, por exemplo. Os homens algumas vezes cozinham, caso for
preciso, porém a cozinha é um espaço feminino, sendo geralmente
deixada aos homens apenas a função de cortar lenha (não que as
mulheres não executem tal tarefa, mas muito pelo contrário executam-na
quando preciso). De qualquer modo, as mulheres são responsáveis pela
comida dentro de casa, desde a estocagem até o preparo. As crianças
muitas vezes são solicitadas para ajudar nas tarefas domésticas, sendo
que as meninas ajudam na cozinha desde novas, atividade que aprendem
de bom grado e fazem questão de participar.
Não há o costume de sentarem-se juntos em uma mesa para
comer. Assim que a comida está pronta, cada qual serve seu prato no
fogão e senta onde achar conveniente. É prática corrente deixar as
pessoas mais velhas servirem-se primeiro (“os mais velhos tiram
antes”). Caso alguém esteja visitando a casa na hora da refeição, a
26
Não que a maioria das casas possua freezer, muitas não tem como guardar os alimentos
resfriados, porém, é mais comum ver freezers nas casas do que geladeiras.
58
pessoa é sempre convidada a comer junto, convite que não costuma ser
recusado. Come-se com colher, sendo usadas as mãos para comer os
pedaços de carne que precisem ser cortados. Na minha primeira refeição
na aldeia, havia colheres e garfos disponíveis como talheres; todos
optaram por colher, apenas eu usei garfo e faca. Após esse dia, para não
causar estranhamento, passei a usar colher em todas as refeições em que
era convidado. Por mais que todos comam com colher, é interessante
notar que por eu ser fóg
27
sempre me ofereciam garfo e faca em
qualquer casa que eu fosse comer.
Almoço com Dona Diva na casa de Matilde, onde residi na aldeia Sede
Na aldeia Sede é comum a falta de água durante grandes períodos
do dia ou até mais de um dia. Quando isso acontece, torna-se difícil
cozinhar, pois é preciso buscar água no lageado, que fica próximo à
aldeia Sede, para cozinhar e lavar a louça. A chuva paralisa quase todas
as atividades realizadas fora de casa, desde à colheita de mandioca até o
trabalho dos tratores nas lavouras, devido ao barro que causa nas
estradas da TI. O culto das igrejas evangélicas também não acontece,
27
Palavra Kaingáng para designar os não-índios, utilizada geralmente para os brancos.
59
pois muitas pessoas nem mesmo saem de casa por causa do barro. Quase
todas as noites culto em alguma das igrejas evangélicas da aldeia
Sede, geralmente com o som alto, para que a pregação possa ser ouvida
também fora da igreja.
1.4 - Conclusões acerca desse capítulo
A partir dos trabalhos apresentados e da descrição de sua
situação atual, podemos perceber como a terra dos Kaingáng da TI
Xapecó foi paulatinamente explorada ao longo das últimas décadas do
século passado, sendo que o cotidiano nas diversas aldeias foi
influenciado pelo chegada das frentes de expansão capitalista
(CARDOSO DE OLIVEIRA, 1972), dos produtos industrializados e sua
inserção na política regional. Dada a condição de devastação ambiental
das terras, os indígenas não puderam manter o sistema dos antigos ou
o sistema do índio, baseado na caça, pesca, coleta e agricultura de
subsistência
28
.
Não é interessante pensarmos em termos deterministas e
aculturalistas, porém, é inegável a influência do sistema econômico (e
político) ocidental e a (in)conseqüente devastação ambiental que este
acarretou na TI Xapecó. Com o comprometimento de caça, pesca e
coleta e dos modos Kaingáng tradicionais de interação com o ambiente,
gerou-se uma dependência do mercado e do dinheiro, em detrimento da
dependência de sua própria terra para a subsistência. Entretanto, os
Kaingáng não deixaram de realizar essas atividades, mesmo que em
menor escala, sendo possível encontrar diversas famílias que ainda
plantam e colhem quase tudo o que consomem, além de caçar, pescar,
coletar frutos e égoro.
A descrição sócio-econômica feita nesse capítulo nos permitirá
compreender melhor as representações e práticas Kaingáng em relação à
comida nova e à “comida antiga”, tema que será contemplado no
capítulo a seguir.
28
Esse sistema será descrito adiante, quando serão apresentadas as percepções dos índios mais
velhos sobre o “tempo dos antigos” e o “sistema do índio”, termos utilizados pelos próprios
Kaingáng.
60
Capítulo II - Aspectos práticos e simbólicos da comida
2.1 - Percepções nativas sobre as mudanças: O tempo dos antigos
“Cada um fazia um canteiro. Homem plantava milho e feijão, e as
mulher plantavam planta miúda. Quando chegava o tempo a criançada
tudo ia buscar, era festa.” (Dona Emiliana, 70 anos, residente na aldeia
Paiol de Barro)
Neste capítulo apresentarei as percepções nativas sobre as
mudanças ocorridas do “tempo dos antigos” para hoje. Desse modo
poderemos melhor compreender as diversas representações nativas
sobre a comida, bem como as categorias nativas de “força” e “fraqueza”,
as quais são utilizadas pelos Kaingáng para descrever as mudanças na
alimentação e a relação desta com a fabricação dos corpos e do corpo
social.
Como demonstrado no capítulo anterior, muitas mudanças
ocorreram nas terras Kaingáng desde o início do século passado,
principalmente nos aspectos ecológicos e econômicos da vida na terra
indígena. Os depoimentos registrados não apenas em minha pesquisa de
campo, mas descritas em diversas outras etnografias sobre o povo
Kaingáng, trazem queixas sobre esses dois aspectos. Os índios mais
idosos, assim como os adultos, fazem referência ao tempo passado como
antigamente ou no tempo dos antigos”. É dito que “no tempo dos
antigos” não precisavam comprar quase nada, pois havia caça, pesca e
frutas em abundância, além de que a maioria das pessoas fazia roça para
subsistência. Relatarei nesse capítulo como descrevem cada uma dessas
práticas no passado. “Passado” é compreendido aqui como o tempo
lembrado nas narrativas dos índios mais velhos, descrito por
Tommasino (2004) como Wãxi”, palavra Kaingáng para “tempo
passado
29
. Vejamos a descrição da autora sobre a oposição entre o
tempo dos antigos” e a situação atual:
A vida na reserva se opõe ao tempo “dos antigos”.
O antes é (re)vivido como o tempo de abundância,
de muita comida, de muita saúde e de muita festa,
porque tinham as matas, que forneciam a caça e a
pesca, o mel e os corós, os remédios. O hoje é
vivido como o tempo da escassez e da ausência de
29
Utilizarei os termos no pretérito, porém, ao dizer caçavam” não significa que não cacem
mais, é apenas uma maneira de descrever o “tempo dos antigos”.
61
tudo, porque os brancos invadiram suas terras e
derrubaram suas matas, acabando com a caça. Os
pinheirais, palmitais, e taquarais foram destruídos
e substituídos pelas cidades e pelas fazendas de
café e de gado. A falta de comida é recorrente em
todos os depoimentos dos mais velhos, que
chegaram a conhecer, na infância, o tempo dos
antigos. Porque tinham muitos alimentos, o tempo
passado aparece como o tempo em que a vida era
“sossegada”. Foram também expropriados do
espaço habitado pelos espíritos de seus ancestrais
e pelos seres sobrenaturais, que configuram o
universo simbólico Kaingáng. (Tommasino,
2000:214-215)
O seguinte depoimento de Dona Emiliana é emblemático sobre o
wãxi, as comidas antigas e as mudanças para atualmente:
Eu me criei com as comidas de antigamente. Pão e
arroz não tinha, tinha bolo na cinza, que comia
com carne de porco.... Casca, hoje não tem mais,
mataram tudo os tatuzinhos... O branco não deixa
criar nada. Termina tudo. Primeiro foi o nosso
mato, nossos pinheiros. Nem madeira não tem
mais. Antes não tinha cadeira, sentava no sepo.
Cama, usavam folha de palmeira. Panela de
gancho, não tinha prato, usava purungo. Colher
era de taquara. (...) Nós plantava. Minha mãe, meu
pai, na Água branca, plantavam muito daquele
amendoim cavalo. O amendoim quando dava,
tirava banha da própria caça, torresmo para comer
com pishé, com bolo socado no pilão, socava
milho pra tirar farinha, fazer bolinho. A gente
comia torresmo daquelas carne.(...) Tudo
plantava, milho branco, milho cateto, palha roxa,
milho amarelo. Hoje não plantam mais, vem de
saquinho não sei da onde... Viu como mudou? (...)
Plantava milho, batata-doce, amendoim, feijão,
moranga, mandioca, melão, melancia, nós não
comprava essas coisas. Tinha purungo cheio de
mel de abelha, do mato. (D. Emiliana, novembro
de 2008)
Neste trecho podemos notar a nostalgia sobre antigamente como
um período farto, em que se caçava, pescava, melava e plantava, não
precisando comprar quase nada. De acordo com meus colaboradores, era
realizada a caça de diversos animais: tatu, quati, cotia, ratão, veado,
62
lebre, capivara, paca, anta, macaco e porco do mato. Além desses
animais, caçavam pássaros como o pombão, saracura, jacu e tucano. A
caça era feita com o uso de arco e flecha, espingarda ou armadilhas de
vários tipos. Dona Emiliana conta um pouco sobre a caça no tempo
antigo e como exemplo os motivos da extinção da saracura, um dos
pássaros que era caçado.
Caçavam bicho do mato, quati, cateto, porco do
mato, tirava o toicinho e tirava banha pra nós
comer. Quati, tatu, cotia, macaco, hoje não tem
mais. Tinha um campinho no Paiol, tinha perdiz.
Às vezes no Imbu alguma saracura, mas
punharam veneno pra matar a saracura (Dona
Emiliana, novembro de 2008).
O ratão não é mais caçado, pois consideram que está envenenado
pelo veneno das plantações. outros, como o porco do mato, foram
extintos já bastante tempo. Uma colaboradora de setenta anos contou
que se lembra de quando seu pai matou o ultimo porco do mato, quando
ela tinha oito anos.
A pesca no “tempo dos antigos” era realizada com parins, uma
armadilha feita com pedras colocadas na margem dos rios; Dona
Emiliana também conta sobre isso:
Pescava de parins. Faz um chiqueiro de pedra, daí
ceva lá com canjica , quirera socada. Daí os
bichinho entram tudo lá, quando tava cheio
tapavam aquele buraco e daí pra vazava a água
e tirava o peixe. Pegava os maiores daí. (Dona
Emiliana, novembro de 2008).
Faziam a coleta de diversos tipos de frutas, como guarirova, ingá
e jabuticaba. Além de frutas, coletavam palmito, cocos como o butiá e
diversos tipos de égoro. Sobre o pinhão, comida que era fundamental
para a subsistência durante os meses de abril a julho, havia em tamanha
abundância que era usado até mesmo para alimentar animais de criação.
Comia-se também larvas e corós
30
de troncos de palmeira, pinheiro ou
taquara. O mel é um produto que não é mais coletado como
antigamente, como nos relata D. Emiliana:
Ia no mato buscar, ficavam do lado com a fumaça
pra tocar as abelhas. Enchia canudo de taquara.
Enchia cesto de caitê com favo dentro. „Quem tem
bastante mel é fulano‟, enchia de índio naquela
casa pra comer. Todo mundo comia ali, quando
30
Coró é uma espécie de larva encontrada na taquara em troncos apodrecidos.
63
aquele lá também... Hoje não, hoje cada um pra si,
por todo custo, ninguém planta mais, ninguém
mela mais, não existe mais abelha. O veneno que
colocam nas roças mata as abelhas, termina tudo.
Que nem agora, tem mato atrás que tão
derrubando pra tirar palanque pra vender.
Devido à abundância de caça, pesca e os diversos alimentos
coletados, aliado ao fato de que muitas pessoas plantavam, os Kaingáng
mais velhos dizem que antigamente tinham de comprar sal, açúcar e
banha. Hoje de se comprar quase tudo, pois mesmo as famílias que
plantam “pro gasto” costumam cultivar apenas feijão, milho, abóbora e
mandioca, sendo esses os únicos itens que não precisam ser comprados
por aqueles que os plantam. Além de não ser preciso comprar quase
nada, antigamente com pouco dinheiro se comprava muito mais, pois as
coisas eram mais baratas, hoje em dia o dinheiro não rende, pois é
tudo mais caro. Seu Vardinho, o residente mais velho do Baixo
Samburá, comentou o seguinte:
Hoje um jeitinho, mais as coisas são mais
fracas. vem explorado por fora. (...) Naquele
tempo era de bolsa, e agora é de pacotinho. Sal era
de quarta, agora é de quilo. Não é mesmo? (Seu
Vardinho, setembro de 2008)
Esse discurso não é recente, pois mais de quarenta anos
eram feitos depoimentos nesse sentido. Em 1968, Sílvio Coelho dos
Santos registrou o seguinte relato:
(...) antigamente os índios viviam bem, faziam
uma rocinha, caçavam e estudavam (conservavam
e ensinavam suas tradições tribais SCS). Agora
não podem fazer mais isto porque estamos como
gringo. Segunda-feira a gente começa a lidar e
descansa no domingo. O pessoal vive todo
extraviado, trabalhando e ninguém estuda mais.
Antes o índio vivia e não precisava lidar que nem
nóis. Agora nóis vive lutando, lutando (...). O
gringo aos poucos foi levando o índio a gostar da
comida dele e isto fez com que o índio acabasse
acostumando ao trabalho que o gringo oferecia
(...) o gringo ia dando as coisas pra o índio, este ia
esquecendo de fazer sua roça e depois acabava
passando o tempo de fazer a roça e o índio não
tinha a sua. Daí restava continuar a trabalhar
pro gringo. (Luiz Mendes, Kaingáng residente na
aldeia do Pinhalzinho, 1968 apud Santos, 1979)
64
Ou seja, além da escassez de pesca, caça, frutas, mel e até
mesmo lenha, as pessoas afirmam ter perdido o costume de plantar o
necessário para a subsistência, sendo agora preciso comprar quase tudo.
A situação de escassez atual é atribuída à degradação ambiental, à
devastação das matas, à caça predatória do homem branco e à
contaminação causada pelas plantações, que mata muitos pássaros e
outros animais, como, por exemplo, o “ratão” que hoje em dia não
caçam por estar “contaminado” e as abelhas que estariam morrendo por
causa dos agrotóxicos utilizados nas “granjas”. A falta de pesca é
atribuída à poluição dos rios e à construção de barragens. a falta de
frutas e lenha é também associada à derrubada das árvores.
O preparo de algumas receitas também estaria comprometido
devido à degradação ambiental, como é o caso do bolo d‟água, “bolo de
30 dias”, ou “bolo de 60 dias”
31
. Para prepará-lo é preciso deixar o
milho ou pinhão de molho na água do rio por uma semana (apesar do
nome ser “30 dias”). Como as águas dos rios estão poluídas, as pessoas
não se arriscam mais a fazer essa receita. Dona Emiliana conta sobre
isso:
Fazia, como dizia o bolo de 60 dias e não é. Com
8 dias tira o milho, bem azedo. 60 dias é modo
de dizer. Daí tira, soca, soca bem socado, quando
pra penerar penera, quando não faz no caitê
mesmo. Pra comer com carne de caça . As
crianças às vezes diz credo, aqueles são
relaxado, tão comendo coisa azeda. (...) Agora é
perigoso, tem que escolher uma água que vem do
mato, uma água sadia, pra gente poder punhar o
milho na água, porque nessas tem muitas coisas
pra cima. Daí contamina o rio da gente. A gente
pensa que vai comer uma comida boa, igual a
gente fazia, quando já ta misturado com
sujeira, então não fazemos (...) punhava no balaio,
daí tampava com folha de xaxim, deixava lá. Até
espiga de milho. Dai ele incha que nem milho
verde e depois fazia assado na brasa. Era
divertido. que hoje ninguém come mais essa
comida.
31
Dependendo da pessoa, poderá ser chamado por um nome diferente.
65
O abandono de outros pratos, como o bolo de cinza, é atribuído
à atual arquitetura das casas, pois muitas não possuem mais o fogo de
chão, importante para o preparo do bolo de cinza e da batata doce na
brasa, por exemplo. O advento do fogão a lenha modificou o modo de
preparo da comida, que antes era feita “no gancho”, no qual se
pendurava as panelas sobre o fogo de chão. Apesar desse discurso,
muitas residências possuem uma casa de fogo de chão ao lado da casa,
geralmente onde residem os índios mais velhos.
Adão Gaspar, 80 anos, em sua casa de fogo de chão na Aldeia Sede. Nota-se a panela com
“gancho” descrita como algo do “tempo dos antigos”
66
Outra lembrança freqüentemente relatada é que antigamente
havia mais “união”, pois as pessoas se reuniam mais freqüentemente
para plantar segundo o sistema de “puxirão”, o qual era geralmente
seguido de um baile. É dito que isso quase não acontece atualmente,
pois são amplamente utilizados veneno e trator, os quais teriam
substituído o trabalho coletivo. O puxirão é um modo de cultivo coletivo
no qual é trocado meio dia de trabalho pelo mesmo tempo na roça da
outra pessoa em uma data futura. Aquele que pede o puxirão deve
preparar um almoço para a turma depois do serviço. Apesar do discurso
de que não acontece mais, pude presenciar uma ocasião de puxirão. Em
um dos meus primeiros dias em campo cheguei à casa de Dona Diva,
onde estavam várias mulheres cozinhando uma grande quantidade de
comida. Os seis rapazes que estavam no puxirão eram aparentados de
alguma maneira, sejam filhos, sobrinhos ou afilhados de Dona Diva, que
“chamou o puxirão” para limpar sua terra para plantar feijão e milho.
Diva retribuiu o puxirão servindo um grande almoço para todos, com
émi
32
, feijão, massa, arroz, frango e salada de alface com tomate. Apesar
desse exemplo que pude presenciar, Seu Vardinho conta sobre os
puxirões de antigamente e a mudança para atualmente:
Pegava três quatro morador, repartia um pedaço.
Tinha puxirão, tinha união. Carneava um porco,
dois porco. Ia e cortava tudo até meio dia, dois
três alqueire, tudo aquele pessoal. Bebiam pinga,
comiam carne, tudo era unido, agora não tem mais
unido...
Não faz mais puxirão?
Não faz. Hoje pagam. (risos) É assim que fazia,
como diz, hoje o puxirão é meu... Um sábado para
cada um... Vamo no puxirão do seu fulano,
vamo.... Com vasilha d‟água e outro com vasilha
de pinga. E ninguém brigava naquele tempo... e
baile velho, tiro velho pra cima. Fazia lona com
folha de palmeira, tudo dançava armado. Agora
vai fazer desse agora... nunca! (Seu Vardinho,
outubro de 2008)
Os dados etnográficos, não apenas de meu trabalho,
demonstram como mudanças econômicas, ecológicas, sociais e culturais
(na qual inclui-se a culinária) estão estritamente relacionadas. Ou seja, a
espoliação ambiental e o contato com a sociedade ocidental
32
Um tipo de pão típico Kaingang, o qual descreverei mais densamente a seguir.
67
comprometeu não apenas a produção da comida antiga e a obtenção de
caça, mas devastou também o espaço sagrado do mato, habitado pelos
seres sobrenaturais e comprometeu a coesão do corpo social, que “não
tem mais união”. Apesar dessa situação, Tommasino (2000) demonstra
como o tempo passado (wãxi) encontra-se ainda em determinados
espaços, como nas trilhas que ligam as aldeias e nos matos que ainda
existem, fornecendo caça, pesca, égoro
33
e vehn kagtá
34
. Mesmo que em
menor escala, essas práticas ainda existem na TI Xapecó, fazendo com
que o “tempo dos antigos” permaneça presente. Do mesmo modo com
que mantém o tempo passado existindo no presente, os Kaingáng se
apropriaram do modelo branco e o re-significaram segundo sua lógica
cultural, seja ocupando o espaço urbano ou tornando-se eles mesmos
pastores de igrejas pentecostais, por exemplo. Por mais que a lógica de
mercado tenha espoliado seus territórios, trechos de mata ainda existem
mesmo na TI Xapecó, que é uma das terras Kaingáng mais desmatadas,
permitindo que o wãxi (passado) e suas comidas existam no uri
(presente).
Enfim, os Kaingáng da TI Xapecó lembram o wãxi como um
tempo com mais fartura do que o presente, no qual a comida é
considerada fraca e “custosa para conseguir”. Havia abundância de
alimentos dos mais diversos tipos, sendo que estes eram “naturais”, ou
seja, não possuíam “veneno” como atualmente, e, como claramente
expresso nos discursos, os alimentos antigos eram mais fortes, bem
como os corpos das pessoas que deles se alimentavam, sendo sempre
enfatizadas a resistência às doenças e a longevidade dos “índios puros”
que viviam no “tempo dos antigos”.
2.2 - As comidas antigas
Quando indagados sobre as comidas antigas, dos tempos
antigos, muitas pessoas lembram-se em primeiro lugar da comida do
mato. Existem dois tipos de comida do mato: égoro e vehn kom
égoro. Égoro são as folhas, como o radite do mato e a serraia, comidas
cruas como salada, geralmente temperadas com vinagre e sal, chamadas
em português de salada do mato. Os vehn kom égoro são as verduras
do mato, como a varana, purfé (urtiga), kumí (folha da mandioca
brava), inrã (samambainha), pého féj (cambuquira, folha da moranga) e
33
Termo Kaingáng para as “comidas do mato”, explanarei mais detalhadamente a seguir.
34
Palavra Kaingáng para os “remédios do mato”, preparados com plantas para curar
enfermidades
68
caruru, que precisam ser cozidas para comer. Entretanto, é corrente
utilizar o termo égoro para designar os dois tipos de comida do mato.
Falemos de cada um dos vehn kom égoro especificamente, aos quais
muitas vezes são atribuídas propriedades terapêuticas.
O kumí é a folha da mandioca brava. Na colheita são escolhidas
as folhas mais novas, pois teriam menos veneno. Para o preparo é
preciso socá-lo num pilão antes de cozinhar. Durante o cozimento é
importante deixar a colher de pau dentro da panela para puxar o
veneno; que segundo Matilde Fokae é o segredo do preparo. Após
cozinhar bastante o kumí, a água do cozimento é escorrida, as folhas
lavadas e bem espremidas, para que escorra todo o caldo e saia o
veneno. Isso é feito com bastante cuidado para que o veneno saia todo.
Contaram-me algumas histórias de pessoas que comeram sem tirar o
veneno e chegaram a ser hospitalizadas.
35
É importante pontuar que se
come apenas as folhas do ku, sendo que não escutei nenhum relato de
consumo de suas raízes.
Matilde Koito preparando o kumí no pilão
35
Notemos como o preparo dessa planta é relacionado à arte de manipular venenos, como
descrito por Overing entre os Piaroa (2006).
69
A varana é o caule de uma planta, que após ser colhido parece
um palmito, o qual é preciso cozinhar para comer. Essa planta é
considerada tanto comida quanto remédio, sendo também utilizada para
a fabricação dos corpos
36
.
Coleta da Varana
A folha da urtiga (purfé) tem de ser colhida com facão e uma
sacola grande para que a pessoa não se queime ao pegá-las. Assim como
o kumí, são escolhidas as folhas mais novas. Esse égoro precisa ser
cozido junto com a samambainha, pois se cozinhar apenas o purfé ele
fica liguento, sendo ambos cozidos numa panela com água, banha e
sal. A cambuquira, ou pého féj, são as folhas da moranga, as quais são
cozidas como o purfé e a samambainha, na água com banha e sal.
36
Esse tema será tratado mais detalhadamente no próximo item.
70
Coleta do Purfé
Outras comidas antigas, que costumam acompanhar os
diversos tipos de égoro, são o pishé, os vários tipos de émi e a canjica,
todos feitos de milho. O pishé é feito de milho pururuca
37
torrado e
socado num pilão, tornando-se uma farinha bem fina. Essa é das
comidas consideradas mais típicas, sendo ainda feita em algumas
casas que tem pilão e que cultivam do milho antigo. Porém, Dona
Jesus, curandeira do Cerro Doce que prepara muitas comidas antigas,
me disse não mais fazer pishé, pois tem vergonha dos fóg que
freqüentemente vão à sua casa consultar com ela.
Émi, segundo o dicionário Kaingáng-português de Ursula
Wiesemann (2002) e também segundo meus interlocutores, significa
pão, porém é algo um pouco diferente do pão do branco, pois se refere
a pães, broas e bolos em geral. Antigamente, a massa feita era feita
apenas a partir de farinha de milho e dependendo do milho e modo de
preparo era um émi diferente. Hoje em dia, o pão de farinha de trigo e
mesmo os bolos são também chamados de émi, tendo variações de
acordo com o que ou como for preparado: emi-kusan (vermelho, de
37
Milho Pururuca é a variedade de milho “crioulo”, com espigas de cores roxa e amarela,
diferente do milho chamado “híbrido” que possui apenas a cor amarela.
71
milho), emi-kupri (branco, de trigo ou milho branco), emi-si (pequeno,
bolinho), emi tonoj (polenta), mrej emi (bolo de cinza), emi-san (preto,
nega-maluca) e emi-gr~e (bolo doce). Amesmo o queijo é um tipo de
emi: Monh Fi emi (literalmente, significa émi de boi). O mrej emi
também é considerado um dos pratos mais típicos pelos Kaingáng,
pelo fato de ser feito no borralho.
Existem diversas etnoespécies de milho: milho cravinho, milho
palha roxa, milho cateto, milho pururuca, milho branco, etc. Cada uma
dessas variações é utilizada para o preparo de diferentes tipos de receita.
Por exemplo, para fazer canjica, o melhor é o milho cravinho, para
fazer o pishé o ideal é o pururuca.
A canjica antiga era feita no pilão, sendo socada junto com
cinza. Essa canjica é considerada mais forte do que a canjica atual,
comprada no mercado. Como dito anteriormente, os égoro são
idealmente comidos com émi, canjica ou pishé. Atualmente são também
comidos com arroz e feijão ou farinha de milho torrada.
Antigamente se comia principalmente carne de caça,
considerada mais forte que a atual, geralmente frango ou carne de porco
dos frigoríficos da região. De qualquer maneira, é importante que se
tenha alguma carne para que a refeição esteja completa, seja de frango,
porco ou carne de caça; caso não se tenha outra opção, ovos podem
substituir a carne. A carne é o alimento por excelência para os
Kaingáng, sendo dito que se não tem carne, não tem comida”,
existindo até mesmo uma palavra Kaingáng para designar a fome de
carne especificamente: prúfér.
2.3 - Comida forte e Comida fraca: Processos de fabricação dos
corpos e pessoas
As “comidas antigas” são ainda preparadas atualmente, porém, é
dito que antigamente as pessoas “se criavam comendo” mais égoro, émi,
pishé, canjica, mel de abelha e carne de caça, comidas consideradas
mais fortes do que a comida atual, comprada no mercado. Hoje se come
mais arroz, massa, pão e carne de frango, comidas ditas “mais fracas” do
que as antigas. As comidas “antigas”, também chamadas de
“grosseiras”, geralmente não podem ser compradas no mercado, sendo
necessário plantar ou coletá-las, enquanto a comida “fina” do branco
vem do mercado. Ao falar de comida “grosseira se referem
72
principalmente à canjica, “virado”
38
, quirera, farinha torrada ou pishé. A
canjica é um produto que até pode ser comprada no mercado, porém,
como já dito no item anterior, é considerada mais fraca do que a canjica
socada no pilão com cinza. Alguns interlocutores consideram a comida
comprada no mercado “envenenada”, pois tem muito agrotóxico.
Portanto, mesmo que se prepare canjica comprada ela é considerada
mais “fraca” do que a antiga, por não ser feita no pilão com cinza e ser
utilizado agrotóxico no plantio do milho.
O milho “antigo” com que é feita a canjica tradicionalmente, é
chamado de milho “do comum”, assim como a carne de porco criado na
própria terra indígena, chamado de “porco do comum”. O “comumé
considerado mais forte que o porco ou o milho das “granjas”, que
recebem agrotóxicos, vacinas e venenos.
Segundo os Kaingáng mais velhos, o consumo de comida fina
e contaminada acarreta conseqüências para os corpos dos jovens e das
crianças. É corrente o discurso de que os jovens estão mais fracos,
com a natureza fraca, ou que ficam doentes mais freqüentemente.
Dona Emiliana, residente da aldeia Paiol de Barro, conta sobre os
tempos antigos e sua percepção sobre as mudanças que aconteceram
para os tempos de hoje:
Agora as crianças tem nojo das comidas da gente.
Aonde veio as fraquezas do pessoal, essas doenças
tudo, diferentes. Vem remédio não sei da onde pra
aplicar na gente. Essa fraqueza por causa da
mudança de comida. Agora a gente come galeto,
arroz, massa comprado, come pão, comida
branca, batatinha não planta mais, só compra. E
é tudo com veneno, pra dar bem, põe adubo, põe
uréia pra crescer. Antigamente nós plantava, desse
o que desse na terra, nós comíamos aquele. O
adubo era a própria cinza. (...)As crianças vem
fracas de natureza. (...) Banha tem que comprar
do açougueiro. Daí já vem temperado com um
monte de coisa, e as crianças que vão se fazendo
vem com isso, daí é fraco, como que uma
criança vai ter resistência? (Dona Emiliana,
novembro de 2008)
38
O virado é um prato bastante popular na terra indígena, o qual pode ser feito com várias
coisas: feijão, porco, lingüiça... sempre misturado com farinha.
73
Esse monte de coisa a que D. Emiliana se refere são venenos
e conservantes. É corrente a noção de que os agrotóxicos utilizados no
cultivo dos alimentos, assim como as vacinas e remédios dados aos
animais de criação, geram problemas de saúde e comprometem o
desenvolvimento do corpo dos jovens. É interessante notar que a falta de
abelhas, aves e caça são atribuídas ao veneno presente nas “granjas” que
existem ao redor da aldeia. O veneno é considerado um dos principais
agentes de destruição desses recursos naturais, assim como de
enfraquecimento dos corpos das pessoas.
Esse discurso está presente também em outros trabalhos
realizados na TI Xapecó. Diehl (2001) registrou uma entrevista em que
a interlocutora afirma que as doenças atuais são causadas pela comida,
que desde o plantio demandam uso de adubo e veneno. Os jovens
também estariam mais fracos, pois comem comida contaminada e os
animais dos quais se alimentam são criados sob ração e vacinas, e não
como antigamente, à base de milho e pinhão. Assim, a fraqueza dos
jovens e as doenças atuais são atribuídas a mudanças na alimentação e
no modo de produzir os alimentos, que “atualmente precisam de
máquina, adubo, veneno e a maioria das comidas já vêm pronta do
mercado” (Diehl, 2001:97). Rocha também registra um discurso similar
de seus interlocutores: a água encanada, assim como os alimentos, é
contaminada e cheia de remédios” (Rocha, 2005:38). Muitos
interlocutores disseram que alguns índios mais antigos costumam buscar
seu próprio balde de água do rio, pois não tomam água encanada.
Seu Vardinho fala sobre esse assunto:
[Antigamente] sempre tinha o que comer. Era
grosseiro mas não faltava. (...) Hoje em dia chega
a faltar. Hoje em dia é mais fácil de viver, mas
mais custoso também. (...) É mais custoso por
causa da saúde. Por causa da saúde mais fraca, por
causa do alimento. Se a pessoa não consegue
comer bem... (...) A gente vai em certos lugares,
Canhadão... A gente é tudo corado... Comem
comida grosseira. Hoje dá um jeitinho, mais as
coisas são mais fracas. (Seu Vardinho, outubro de
2008)
Seu Vardinho atribui a causa da saúde fraca aos alimentos, que
são também fracos. Ele diz que as pessoas do Canhadão (área próxima à
TI Xapecó) são coradas pois consumiriam “comida grosseira”, ou
seja, canjica, égoro, feijão, enfim, as “comidas antigas”. Estas são
também chamadas de “comida grossa” ou “grosseira”, em oposição à
74
comida nova (arroz, macarrão, farinha de trigo) ou “comida fina”,
considerada “fraca”.
Outro motivo apontado para o enfraquecimento causado pelo
consumo da comida dos fóg é que o corpo dos Kaingáng não seria
acostumado a essa comida. Para explicar esse assunto, Matilde Fokae
deu o exemplo da gripe: nas cidades a vacina para gripe é dada apenas
às pessoas acima dos 60 anos, enquanto na TI é aplicada em todas às
pessoas, pois os Kaingáng não estariam acostumados a essa doença,
sendo necessário vacinar todos. A mesma lógica se aplica à comida, pois
os Kaingáng não são acostumados à comida do branco e, por isso, lhes
causaria doenças e a constituição de um corpo mais fraco, já que o corpo
dos Kaingáng seria feito para comer comida Kaingáng e não comida
do branco.
Outra alegação sobre o motivo de terem deixado de preparar as
“comidas antigas” é que “as crianças não gostamou até mesmo nem
comem, pois gostam apenas de “comida fina”, ou seja, arroz, feijão e
massa. Alguns dizem que essa mudança no gosto das crianças aconteceu
devido à introdução da merenda escolar, que serve “comida fina” para
as crianças, acostumando-as a esse tipo de comida. Outros alegam que
os jovens não gostam ou não comem as comidas antigas, pois m
vergonha ou mesmo não querem ser índios, por isso gostam da comida
fina” do branco.
Os índios mais velhos também se queixam de que os jovens
hoje não os respeitam mais, pois as mães não educam seus filhos
adequadamente. Falam que no tempo dos antigos prestava-se total
respeito aos anciãos, relação que hoje não acontece dessa maneira. Seu
Vardinho conta sobre seu tempo de criança e sua percepção sobre a
criação das crianças atualmente:
Eu era pequeno, saía com a mãe, com a avó,
falavam assim: „não levanta daqui‟ onde eu sentar
você senta... Tomavam chimarrão, pito e tudo.
Davam um pedaço de bolo, com rapadura, um
prato de leite. As crianças „aliado‟ com comida, e
os velhos „aliado‟ com chimarrão e fumar. Agora
qualquer desses desteimam a gente, me
chamaram de bobo e louco. É neto e não pode
educar, os pais não educam. Eu não criei eles
desde o começo, a mãe dele saiu de mim e criaro
eles, se criou assim, sem educação. (Seu
Vardinho, outubro de 2008)
75
Rocha, tratando sobre a construção dos corpos e dos sujeitos
sociais, diz que na casa é a mulher quem exerce controle sobre os corpos
dos membros da família (ROCHA 2005). Sobre esse assunto, Veiga
(2000) afirma que, para os Kaingáng, é o homem quem fabrica a criança
para a mulher, refletindo as concepções ameríndias do papel do sêmen
na produção do corpo do bebê. Porém, “os homens podem ter o controle
da reprodução („o homem é quem faz o filho‟, dizem os Kaingáng), mas
seu controle é parcial, posto que são as mulheres que controlam a
fecundação, dão a luz, nutrem e cuidam das Crianças” (ROCHA,
2005:73). Veiga enfatiza a centralidade da nutrição na constituição de
laços similares aos da consangüinidade, demonstrado pelo exemplo da
amamentação, pois “se uma mulher amamenta o seu próprio filho e o
filho de outra, essas duas crianças se tornam irmãos de leite e isso é
sempre frisado por eles” (VEIGA, 2000:100). Desse modo, além de
“criadoras”, responsáveis por nutrir as crianças, ou seja, pela fabricação
de seus corpos, as mulheres são também responsáveis pela transmissão
dos valores éticos e morais, ou seja, pela construção dos sujeitos sociais.
Assim como descrito no trabalho de Viegas (2007) e Lagrou (2000),
entre os Kaingáng dar de comer e amamentar também são atos
fundamentais para a constituição das relações de parentesco e para a
fabricação dos corpos dos jovens.
Outro modo de fabricação dos corpos se pela utilização de
certas plantas em determinadas fases da vida das pessoas. Caso se queira
que uma criança não seja esganada para comer, seja magra e tenha
resistência à fome, podendo passar longos períodos sem comer, é dado
varana para ela como seu primeiro alimento ou enquanto ainda bem
nova. Isso faz com que ao longo de toda a vida a pessoa mantenha essas
características. O dar de comer é acompanhado de uma oração, não
bastando apenas comer a planta. Dona Emiliana fala sobre esse uso da
varana:
A varana pra criança é com idade de 3 anos, que dá
pra criança barrigudo. Pra que a criança tenha
tabela de comer. Isso é remédio dos índios mesmo,
assava a varana na cinza, bem assadinho, daí
pra criança comer com um pouquinho de carne.
Porque a criança se controla pra comer e a barriga
abaixa. Daí não é muito faminto não é esganado
(Dona Emiliana, novembro de 2008).
Por meio desse exemplo podemos ver como os corpos das
crianças são fabricados através da utilização de determinadas plantas ou
substâncias. Além da varana, contaram sobre outras plantas e animais
76
utilizados para que a criança tenha determinados atributos, como
agilidade ou calma. Dentre esses podemos citar, por exemplo, o olho do
serelepe
39
, que é passado na criança para que seja esperta e tenha a boa
visão, além de algumas plantas que são passadas nas pernas da criança,
para que seja ágil e aprenda a caminhar mais rápido.
Dona Diva realizando o benzimento de um bebê para aprender a caminhar cedo e ser
uma pessoa ágil
2.3.1 Dietas
As crianças vêm fracas de natureza. Hoje pra nascer um
nenê, dependendo do lugar tem que ir na mão do médico, parto normal
é bem pouco que acontece na reserva indígena. Antigamente quando
ficava grávida, com 3 meses começava a tomar chazinho do mato. A
primeira comida que dava pras crianças era canjica de pishé, depois
dos 9 meses apenas, bem pouquinho, senão estraga o intestino. Sopa da
canjica firma o intestino da criança. Era assim, agora não é mais, dão
papá de bolacha, dão leite, dão coisa que nem sabe o que é (Dona
Emiliana, novembro de 2008).
39
Uma espécie de esquilo
77
Outro aspecto que se relaciona com a fabricação dos corpos são
as “dietas” (vahnkre), as quais são prescritas principalmente em
momentos liminares da vida, como o nascimento, morte ou adoecimento
(OLIVEIRA, 1996). Nesta fala de D. Emiliana, podemos ver tais
aspectos relacionados ao enfraquecimento do corpo dos jovens. Segundo
ela, o processo de enfraquecimento vem desde a gravidez, com o
abandono da prática de se tomar os vehn kagta, ou chazinho do mato
como dito nesse trecho. Outro ponto importante é a dieta do recém-
nascido, para o qual deveria ser dada canjica de pishé e não “papá de
bolacha”, feito a partir de produto industrializado e, portanto, “cheio de
veneno”. O abandono dessas dietas estaria levando os corpos a se
tornarem fracos.
Além da dicotomia comida forte e fraca (ou grosseira-
fina e mesmo “natural”-“industrializada” ou “plantada”-“comprada”)
há outra que costuma aparecer nas situações em que é preciso fazer dieta
para curar alguma doença: é a diferença entre comida enxuta e
comida molhada. Caso se tenha uma doença contagiosa e necessite se
fazer dieta, ficam proibidos os alimentos molhados, pois esses
dificultariam a cura da doença. D. Emiliana fala o seguinte sobre esse
ponto:
Depende da doença. Depende do remédio
também. Se a doença pegar tem dieta. Doença que
passa tem dieta. Não come banha de porco, não
toma café, não come repolho, não come cebola,
não toma leite, não come queijo. Que essas
comida branca amolece tudo, nunca enxuga,
nunca sara, ele conserva... Tem que comer
comida enxuta. Carne de galinha caipira assada no
espeto, com pouquinho sal ... Agora não tem
pishé, seca farinha de polenta bem secada... pra
comer durante o remédio que tá tomando. Daí não
pode ter nada com ninguém, tem que ficar ... até
sarar. (Dona Emiliana, novembro de 2008)
Assim, as comidas brancas são consideradas “molhadas” e
portanto não devem ser consumidas nessas situações. Como nem sempre
se tem pishé, pois poucas famílias o preparam, é apontado um
substituto: a farinha de milho (fubá) torrada. A outra restrição apontada
no fim desse trecho é que a pessoa fazendo dieta para se curar de uma
doença contagiosa não deve ter relações sexuais (“não pode ter nada
com ninguém”).
78
Em seu trabalho realizado na TI Xapecó, Oliveira (1996) relata
duas modalidades de restrições e prescrições alimentares, ambas
referentes a momentos liminares (TURNER, 1974): o nascimento e a
morte. A dieta do nascimento prescreve uma série de cuidados não
apenas alimentares, que os pais devem tomar em relação ao recém
nascido e a si mesmos quando nasce uma criança. Essa dieta tem início
com a gestação, quando a gestante deve começar a tomar uma colher de
sopa de chá de guarirova por dia, sendo que no dia do nascimento deve
ser tomado um capão do chá, porque dá suador
40
.
A dieta continua após o nascimento da criança, sendo prescrito
resguardo dos pais, ficando a mãe proibida de ingerir comidas como
“ovos fritos, torresmo, carne de porco, leite, feijão ou qualquer comida
molhada e deve comer comida “enxuta” (OLIVEIRA, 1996, p.43).
O café da manhã “enxuto”, como descrito por Oliveira, é água doce
queimada, casca de laranja, vassourinha (Cunila angustifolia, ou
vassourinha de São João Maria) macela (Achyrocline satureoides) e
folha de guarirova, tudo isso acompanhado com pishé (milho pururuca
torrado e socado com pilão, que fica um polvilho) (OLIVEIRA,
1996). Dona Urtília contou que primeiro deve-se dar para o bebê apenas
“comida leviana”, como “sopinha de arroz” ou de batata, para depois ser
dada “sopinha de feijão, considerada mais “pesada”. Tratando sobre a
dieta pós-parto, Dona Urtília diz o seguinte:
Tem que tomar o remédio do mato pra poder
comer tudo quanto é comida... Quando vem
minhas filhas o remédio ta cozido já. Depois toma
sopinha de feijão com arroz, de galinha, mingau
de polenta. Eles nunca ficaram na fineza de arroz,
de batatinha, de massa não. Porque hoje a vida
não ta fácil pra ficar na fineza. As minhas
quando tiveram crianças, com sete dias tava
lavando roupa já. Tem gente que pega 40 dias,
isso é dieta de gente rica. As minhas tomam
remédio do mato pra depois comer a comida que
eles querem. Tem que tomar remédio do mato pra
depois poder comer de tudo. O que eles não
comem assim é miúdo, risoto, que é muita banha.
(Dona Urtília, outubro de 2008)
40
Essa prescrição nos remete ao trabalho de Tempesta (2004), realizado entre os Wapichana e
os Macuxi. Segundo a autora, esses povos estabelecem uma relação entre restrições/prescrições
alimentares, fluídos corporais e os orifícios corporais. Ou seja, ingerir um copo do chá de
guarirova, que “dá suador”, facilita o parto. Isso indica que os Kaingáng possivelmente
estabeleçam relação entre os três aspectos apontados por Tempesta.
79
Nesse momento liminar não se come “comida molhada”,
gordurosa (“que é muita banha”), podendo acarretar problemas de
saúde. Notemos, portanto, a dicotomia “comida enxuta” e “comida
molhada” presente em diferentes casos de dieta, sendo que a comida
molhada algumas vezes está associada à comida “fraca”, do branco, e
não deixaria “enxugar” a doença.
Em outros casos, segundo a etiologia nativa, a pessoa que esteja
doente, portanto “fraca”, não pode comer comida muito “forte”,
principalmente à noite, pois é muito pesada para seu corpo fraco. Houve
o caso de uma pessoa que operou o apêndice e durante o período de
recuperação comeu carne de porco à noite, comida considerada “forte”,
tendo assim uma recaída. Apesar do consumo de comida forte criar
resistência às doenças, essa não pode ser consumida quando a pessoa
está com o corpo debilitado ou doente.
Quando a pessoa está tomando vehn kagta, dependendo do
remédio, não se pode consumir vinagre, pois este eleva a temperatura do
organismo, como explicado por Seu Vardinho:
Mas conforme a temperatura da pessoa, de acordo
com o remédio que a pessoa toma, o vinagre não é
bom. O vinagre dá temperatura no organismo.
Porque corta o efeito do remédio, igual pinga.
(Seu Vardinho, outubro de 2008)
Oliveira (1998) enfatiza a sacralidade do milho nativo em casos
de dieta, sendo que o pishé, preparado com esse milho, é uma comida
recomendada em muitas dietas. O pishé é seco e forte ao mesmo tempo
e, além disso, o milho nativo é associado a dois mitos Kaingáng: o mito
de Nhar
41
, o deus que se sacrificou para dar o milho aos Kaingáng, e as
profecias soteriológicas de São João Maria (SJM), o qual prega que se
deve voltar a plantar do milho antigo, para que o grupo se salve da fome
que assolará o mundo.
2.4 - Comida como prática de auto-atenção no sentido estrito
A maioria das comidas do mato é também considerada remédio,
sendo a elas atribuídas qualidades nutricionais, como por exemplo, que
o kumí é vitamina. Os termos utilizados para designar o remédio do
mato (vehn kagta) e comida do mato (vehn kom égoro) são parecidos,
pois ambos possuem o prefixo vehn, que significa mato. A própria
41
Ver Anexo 2.
80
noção de que as comidas antigas são fortes remete também a isso: são
fortes pois alimentam mais (no sentido de serem pesadas, terem
sustança) e constituem um corpo também mais forte. Isso é expresso no
discurso de que atualmente os jovens ficam mais doentes devido à
mudança na comida e à perda do costume de se tomar os vehn kagta,
pontos fundamentais para a construção de um corpo forte.
Diversos égoro, além de ser comida, são também utilizados
como remédio. Descreverei a seguir algumas das comidas antigas e as
propriedades terapêuticas a elas atribuídas.
O Fãe, ou caraguatá, é uma fruta considerada remédio pra
amarelão, bronquite, asma, sendo também indicado em casos de
reumatismo. Segundo Dona Diva para se fazer o remédio é preciso moer
e fervê-lo, fazendo um xarope. Outros “coquinhos” diversos são também
descritos como bons para a saúde, pois “tem vitaminas”.
O Pyrfé (urtigão) é considerado bom pra bexiga, rim, vesícula,
pressão alta e hipertensão. A samambainha (povéj g) faz bem para as
veias, nervos e circulação. Suas propriedades o associadas às
características morfológicas da planta, que se parece com veias. O radite
do mato é também associado às suas características, sendo considerado
“bom para a anemia”, pois “tem veias”.
Nota-se as “veias” do radite do mato
81
Silva (2002) descreve como os Kaingáng do Rio Grande do Sul
também fazem associações de propriedades terapêuticas com
características morfológicas do vehn kagta utilizado. Silva descreve
como os efeitos dos remédios Kaingáng são associados à suas
características:
Os remédios Kaingáng operam por homologia,
isto é, por transmissão ritual de suas qualidades ao
paciente, nos casos que me foram relatados.
Madeiras fortes, “que não secam debalde, que
duram”, são consideradas como possuidoras de
poder curativo ou preventivo de doenças. Por
exemplo, a árvore denominada ken ta (açoita
cavalo) é concebida como remédio porque “não
pega doença”, e, quando cortada, brota
rapidamente, “não se termina”. a figueira (ken
ven fï), por “espremer, abafar, matar e tomar o
lugar de outras árvores” , é percebida como
“remédio brabo”, isto é, para “ficar brabo, lutar”.
A ponta do pinheiro (carbonizada ou em forma de
chá) é usada para ter destreza e não escorregar ao
subir nele. O “carvãozinho” ou o chá são passados
nos pés do indivíduo. Os cupins do mato, por
atacarem madeiras duras, fortes, são utilizados
para fortalecer o corpo e proteger contra a doença.
Os cupins, juntamente com ervas-remédio, são
queimados. A fumaça d proveniente é usada
para atropelar a doença dos corpos que a ela são
expostos” (Silva, 2002:206).
A samambaia chamada Povéj , não é um égoro, porém é
indicada para as mães que estão sem leite, pois favorece o aleitamento,
mas não é comida. A serraia, assim como as outras saladas do mato, é
usada em casos de amarelão. O Pého j, a folha da moranga, é
utilizado para dor no estômago, sendo dito por uma colaboradora que
tem vitamina A. o caruru, um égoro que dá na roça, e não no mato,
é bom para os ossos, pois tem cálcio. O kumí, assim como a varana, é
considerado “vitamina”, pois tem ferro, sendo atribuídas as propriedades
de ser “bom pro sangue” e para a memória, além de ser recomendado
em casos de anemia. A canjica faria efeito “igual o sonrisal”, que
limpa o estômago e faz bem para o intestino.
82
O Fuá, uma planta que é encontrada nas áreas Kaingáng do Rio
Grande do Sul
42
e também utilizada na alimentação, é considerado bom
para o útero. O mate, além de diurético, é indicado em casos de pressão
alta ou baixa. No mate também são colocadas outras plantas com função
terapêutica. As mulheres, principalmente, costumam colocar em suas
cuias a macela e outras plantas, dependendo do efeito que se deseja.
A couve é considerada comida e remédio, pois além de comida
é utilizada para fazer compressas. Um dado para ser ressaltado são os
relatos de que o milagroso curador São João Maria comia muita couve,
uma comida-remédio. Outra comida considerada remédio é o peixe. De
acordo com Matilde Fokae, peixe é remédio, pois vem da água e sua
mãe dizia ser remédio, mas apenas se preparado na brasa. o tatu,
em oposição ao peixe, não pode ser comido por pessoas doentes,
podendo acarretar em sua morte. Segundo Matilde, essa interdição se
deve ao fato do tatu viver embaixo da terra, onde se enterram os mortos.
É interessante pensar como o modo de preparo faz com que seja
remédio ou não. Isso muitas vezes é associado com o contato com
brasas ou cinzas, o qual transforma a comida também em remédio.
Aquino (2008) descreve como os Kaingáng do Rio Grande do Sul
atribuem propriedades terapêuticas à cinza e ao bolo de cinza (émi ).
Segundo o autor, “a importância de assar embaixo da cinza está
associada às qualidades curativas (combate à azia, por exemplo) e
protetivas (afasta o espírito dos mortos) da cinza para os Kaingáng
(AQUINO, 2008:106-107).
Falando sobre os égoro e suas propriedades terapêuticas,
Matilde Fokae indicou diversas propriedades provenientes do discurso
biomédico, como “tem cálcio”, “tem ferro” “tem vitamina A” ou “é
igual sonrisal”. Ela contou que certa vez uma pessoa promoveu um
curso na TI para ensinar as propriedades das plantas tradicionais e por
isso ela teria aprendido essas propriedades. Diehl (2001) descreve como
os Kaingáng associam algumas plantas a efeitos de remédios ocidentais,
bem como alguns curadores incorporaram “remédios da farmácia” no
preparo de seus vehn kagta (remédios do mato). Podemos compreender
esse processo pela perspectiva da intermedicalidade, formulada por
Greene (1998). Neste trabalho, a autora descreve como o conhecimento
e o discurso biomédicos são incorporados de acordo com a lógica do
42
Segundo meus colaboradores, o fuá não é encontrado na TI Xapecó, enquanto no Rio Grande
do Sul não se encontra pyrfé nem kumí.
83
sistema médico nativo, constituindo medicinas híbridas, por um
processo chamado pela autora de relação intermédica (GREENE,
1998).
É dito que os “índios puros” não tem câncer de maneira alguma,
apenas os “misturados”. Também dizem que os fóg que têm por
costume comer muita comida “forte” não ficam doentes. Deram-me o
exemplo de um fóg que morava na TI e era casado com uma Kaingáng.
Essa pessoa se acostumou a comer muita “comida de índio”, e assim
“não pegava nem gripe”, pois tinha o corpo forte devido à alimentação.
Assim como os Kaingáng dizem que as comidas antigas são
mais fortes e que deixam o corpo forte, os Napo Runa também
identificam a asua
43
com “efeitos físicos positivos” como a força
(UZENDOSKI, 2004). O autor busca compreender o valor dado pelos
Napo Runa a determinados alimentos, como a asua e a carne de caça,
seguindo a abordagem de Terence Turner sobre a apropriação do vídeo
pelos Kayapó (TURNER, 1990). Uzendoski (2004) argumenta que a
valorização de determinados produtos “tradicionais” como “fortes” é
uma maneira de resistência cultural
44
, valorização da identidade étnica e
do “sistema do índio” (ou “sistema dos antigos”) frente à economia de
mercado capitalística.
Essa análise aponta aspectos relevantes para o presente
trabalho, pois entre os Kaingáng, para que possam ser feitas as comidas
antigas, é preciso que esteja presente o sistema dos antigos ou o
sistema do índio, assim como para que possam ser colhidas as
comidas do mato, é preciso que tenha mato, espaço relacionado ao
tempo dos antigos (wãxi) e à cosmologia Kaingáng (TOMMASINO,
2000). Outro modo de valorização da comida antiga se expressa na
soteriologia de SJM, que prega a volta do cultivo das comidas antigas,
em detrimento das “plantações modernas”, que envenenam o solo e “vão
ficar três anos sem dar produto”. Além disso, podemos notar nos
discursos apresentados uma recorrência sobre o envenenamento da terra
e da comida, a qual estaria envenenando agora as pessoas que os
consomem, criando assim corpos fracos e que adoecem mais
freqüentemente. A associação da comida e bebida estrangeira ao veneno
43
Bebida fermentada de mandioca
44
A valorização da identidade étnica pela comida é constatada por Bloemer e Savoldi (2008)
entre os caboclos do oeste catarinense, vizinhos dos Kaingáng. A comida considerada
“tradicional” pelos caboclos é a quirera de milho e carne de porco, similar à comida
considerada “tradicional” pelos Kaingáng.
84
é relacionada ao contato com a sociedade ocidental, quando o sal e o
álcool eram suspeitos de ser veneno. Almeida traz um relato sobre esse
contato:
E trouxe comida também, bastante comida, pras
polícia, pra eles agradarem os índio, também
açúcar e arroz, tudo essas coisa, farinha, e
trouxeram panela também. (...) Daí uma ele
chegou mas, diz que parece que o cheiro[da
pinga] era bem doce, parece que né. Daí, ele
chegou lá e olhou dentro assim e o cheiro já
vinha pro nariz dele. E, ele cheirava por tudo em
roda assim, e a polícia espiando ele. Daí ele, como
o índio também não é bobo, né, diz “eu vou
experimentar”, bota um dedo pra experimentar.
Daí, ele botava um dedo e chupava, experimentou.
Diz, “eu vou botar mais uma vez!” Botou de
novo. E, chupou também. Ele, queria ver se é
veneno, né. Porque o índio, também, não era
bobo, de certo. Porque se é veneno, ele cai ali.
Mata ele, né. Mas não. Daí ele botou mais uma
vez. Botou três vez o dedo, né. Daí ele tomou,
chupou de novo. Mas, gostou. Ficou meio
gostoso. Diz, “agora eu vou fazer concha com a
minha mão” [risos]. (Almeida, 2004a:207, grifos
meus)
Vejamos também o seguinte discurso de Vicente Fokae,
registrado por Crepéau apud Oliveira:
Julho, antigamente, plantava as roças de milho
e feijão. Hoje modificado. Até esse ta
modificado. Pelo que que nós tamo vendo, a
história dos antigos é diferente. Porque agora
terminou o mato, a água é envenenada, já ta
dando doença no povo, essa cerração abaixa, das
barragens que fazem, e tá dando muita doença
porque existe veneno na água. Então por isso que
a cerração doença no povo. Então o século ta
chegando (Fokae, 1995 apud Oliveira, 1996:142)
O veneno não se encontra apenas nas comidas, está nas águas
dos rios e até mesmo na cerração, o que causa doenças nas pessoas. Isso
seria sinal da chegada do século, período de penúria e sofrimento, como
profetizado por SJM. Vejamos as recomendações de SJM, registradas
por Oliveira e contadas por Karói, curandeiro de Xapecó:
85
A recomendação que ele faz pra gente é de voltar
a plantar as comidas antigas, porque vai chegar
um tempo que vai escassear o pinhão e os outros
alimentos também, que vai ficar três anos sem ter
produto, porque hoje eles plantam pensando no
dinheiro. Eles não trabalham pela pobreza, eles
trabalham pelo dinheiro. Tamos enxergando tudo
de longe, por isso tamo plantando milho cateto,
milho branco, caina, abóbora, porque outras
plantações [modernas] não vão produzir mais.
Porque antes existia várias qualidades de plantas.
Agora já ta ficando pouco. Deixaram de plantar
porque dava pouco peso, e a gente ta ficando cada
vez mais pobre. Dinheiro não vai valer mais.
Aquele que é pra fazer dinheiro ta terminando.
Também às vezes a gente vai na cidade e vê que a
fome ta muita. (Karói apud Oliveira, 1996:144)
nos discursos apresentados uma recorrência sobre o
envenenamento da terra e da comida, a qual estaria envenenando as
pessoas que os consomem, criando corpos fracos e que adoecem mais
freqüentemente. Esse discurso reflete o histórico do contato, marcado
pela devastação ambiental, envenenamento dos solos e das águas. O
histórico e o modelo atual de produção agrícola influenciam na rede
semântica dos Kaingáng, fazendo uma associação simbólica (GEERTZ,
1989) da nova comida com venenos. A “comida antiga” é valorizada
como sendo “forte” e “boa para saúde”, enquanto a “comida nova” é
depreciada, considerada “fraca” e “envenenada”. Ao longo desse
capítulo podemos perceber como a alimentação, além de um modo de
valoração cultural, constitui-se claramente como uma prática de auto-
atenção, nos termos de Menéndez (2003). As comidas antigas são
consideradas fortes, capazes de fortalecer os corpos, torná-los mais
longevos e resistentes às doenças, além de possuírem diversas
propriedades terapêuticas. Ademais, a representação de que a nova
comida, estrangeira, está envenenando as pessoas, fabricando corpos
fracos, de pouca longevidade e baixa resistência, ou seja, a comida fóg é
considerada impura, do ponto de vista simbólico (DOUGLAS, 1966).
Desse modo, podemos compreender como para os Kaingáng a
comida é um elemento fundamental para a saúde do grupo como um
todo (o corpo social), bem como para a fabricação dos corpos das
pessoas (SEEGER et al., 1987 [1979]). Suas representações sobre a
comida do fóg como envenenada, e o modo de produção a essa
associado como envenenador, parecem refletir a representação dos
86
Kaingáng sobre o histórico do contato, marcado pela espoliação
ambiental de suas terras e conflitos com não-índios.
No que se refere aos modos de produção, preparo e consumo da
comida, é interessante pensarmos em termos de transformação e
persistência, como propõe Leite (2005, 2007), ao invés de noções
aculturalistas, que percebem a cultura das sociedades não-ocidentais
como sendo simplesmente substituída por nossos valores. Durante a
realização de minha pesquisa de campo, algo curioso sobre a dicotomia
“comida tradicional” e “comida introduzida” me chamou a atenção. Ao
falar sobre as “comidas antigas”, um dos primeiros pratos citados é o
famoso “bolo na cinza”. Ao perguntar como é feito esse bolo, me
disseram ser feito com farinha de trigo, um ingrediente “do branco”
sendo utilizado para o preparo de um prato tradicional. Esse é um
exemplo interessante para repensarmos a dicotomia comida
“tradicional x “introduzida”, como proposto por Leite (2005; 2007);
apesar de ser uma dicotomia enfatizada o tempo todo por meus
colaboradores, que opõem a “comida antiga”, “forte”, da “comida do
branco”, “fraca”.
87
Capítulo III - Práticas sociais de compartilhamento de comida:
Festas, jogos e visitas.
3.1 - As festas de antigamente
Para falar sobre as atuais festas Kaingáng é preciso antes relatar
como eram realizadas as festas antigamente. Um dos principais e dos
últimos ritos realizados entre os Kaingáng é o Kiki, também chamado de
Kiki-Koia, que significa literalmente comer o Kiki (Kíki = bebida, o =
conjunção, Ko = comer, Ia = pretérito) (Nimuendajú, 1993 [1913]:67
apud ALMEIDA, 2004a). O Kiki é uma festa organizada por parentes de
um recém-falecido, devendo haver mortos das duas metades, Kamé e
Kairu. Os parentes dos falecidos devem consultar os rezadores para
marcar as etapas do ritual e assim iniciar sua preparação. Um processo
importante é a preparação da bebida ritual, o kiki, um fermentado
alcoólico preparado originalmente à base de mel, pinhão, milho e água,
fermentado em um cocho de araucária. A bebida será consumida
conjuntamente pelas duas metades exogâmicas, em um ritual de três dias
de duração. É necessária a presença de rezadores poderosos para rezar o
kiki, havendo momentos do rito que contam com a participação dos
recém-falecidos e outros espíritos do “mundo dos mortos” (numbê).
Caso seja rezado de maneira indevida, o rito pode colocar em risco a
vida de pessoas de todo o grupo, principalmente dos rezadores. Com
uma reza efetiva os espíritos dos falecidos são encaminhados ao mundo
dos mortos e os viúvos são devidamente reintegrados na comunidade,
podendo voltar a realizar suas atividades cotidianas (VEIGA, 2000;
ALMEIDA, 2004a).
O Kiki-koia é uma festa de grande integração do corpo social,
sendo possível compreendê-lo como uma forma de comensalidade, pois
é o momento onde as duas metades se juntam para comer o kiki. Este
rito agrega as metades Kamé e Kairu, bem como os vivos e os mortos,
englobando o corpo social em uma forte comunhão coletiva, como
descrito por Oliveira:
Enquanto vivo os frutos do pinheiro servem de
alimento para o homem e animais, e como morto
seu tronco é um vaso, receptáculo, verdadeiro
útero para fermentação do Kiki, sendo que a água
que dele verte, vai formar um remédio ao se
combinar com os outros elementos, em certo
sentido, a principal “terapêutica” do coletivo. A
ingestão do Kiki é o ápice de um ritual em que se
88
busca a “restauração da unidade” no sentido
formulado por Mauss (1974), do grupo como um
todo em sua religiosidade tradicional, ao
homenagear seus mortos. O nível da
comensalidade comunal estava presente nos dois
momentos, ritual e cotidiano, uma vez que os
pinhões deveriam também ser distribuídos àqueles
que não puderam armazená-lo e se prevenir para o
inverno. (...) Como sacrificado, o pinheiro
possibilita o encontro da comunidade que no final
vai se reunir e “comer” junto o Kiki, abrindo um
novo ciclo, de restauração de pessoas nutridas
pelo Kiki, de recuperação de nomes, de volta ao
cotidiano para os vivos e de retorno às suas
aldeias daqueles mortos que vieram festejar juntos
(...) (Oliveira, 1996:62-64).
O Kiki foi realizado pela última vez na TI Xapecó no ano 2000.
Além do Kiki, eram feitos outros bailes para os mortos e na ocasião de
falecimentos. É possível notar no trabalho de Baldus, citado por
Almeida, que os Kaingáng associam a mudança nas estações do ano de
acordo com eventos relacionados à produção de alimento. Segue abaixo
um trecho da descrição de um baile que visava apaziguar o espírito dos
falecidos, demonstrando tal associação:
Para êsse fim, no tempo em que o milho fica
verde e as frutas das araucárias amadurecem, ou
seja, entre o meado do abril e o meado do junho,
os Kaingáng realizam o grande baile chamado
veingréinyã [dança], do qual participam homens
e mulheres (Baldus, 1937 apud Almeida, 2004a).
Outro modo de se fazer festas antigamente, também associado à
produção de alimentos, era o puxirão, o qual muitas vezes era seguido
de um baile. Segundo Seu Vardinho, uma mudança ocorrida nas festas
refere-se à união que existia entre as pessoas para realizar uma festa ou
um puxirão
45
. Em seu discurso é possível notar que puxirão e festa se
confundiam, não havendo uma distinção rígida entre lazer e trabalho:
Pegava três quatro morador, repartia um pedaço.
Tinha puxirão, tinha união. Carneava um porco,
dois porco. Ia e cortava tudo até meio dia, dois
três alqueire, tudo aquele pessoal. Bebiam pinga,
45
O puxirão ainda é realizado por algumas famílias, como já descrito anteriormente, entretanto,
é corrente o discurso de que não se faz mais puxirão.
89
comiam carne, tudo era unido, agora não tem mais
unido(...) É assim que faz... Como diz, hoje o
puxirão é meu... Um sábado para cada um... Vamo
no puxirão do seu fulano? Vamo! Com vasilha
d”água e outro com vasilha de pinga. E ninguém
brigava naquele tempo. Baile velho, tiro velho pra
cima. Fazia lona com folha de palmeira, tudo
dançava armado. Agora vai fazer desse agora?
Nunca! (Seu Vardinho, outubro de 2008).
As festas do “tempo dos antigos eram formas de forte
interação do corpo social, sendo importante notar que eram marcadas
pela comensalidade e associadas à produção de alimentos. Serão
descritas adiante as festas e jogos realizados atualmente na TI Xapecó:
festas para diversos santos católicos, festas de igrejas evangélicas e
aniversários, além de jogos de bocha e futebol. A descrição etnográfica
desses eventos se deve ao fato de que são importantes momentos
comensais de interação interétnica e coesão do corpo social.
3.2 - “Se não tiver churrasco, não tem festa”
3.2.1 - Festas de santos “Partilha”
As diversas festas que acontecem na TI Xapecó são um lócus
privilegiado para observarmos as práticas sociais de consumo coletivo
de comida. As festas de santos católicos (São João Maria, Divino
Espírito Santo, Santo Antônio, Nossa Senhora Aparecida) envolvem
uma partilha, onde o festeiro a comida para muitos convidados, os
quais podem colaborar levando alguma coisa para a festa. O festeiro é a
pessoa que promove a festa, sendo responsável por sua organização,
fornecendo a casa, comida, fogos e também convidando as pessoas. Esse
papel pode ser adquirido hereditariamente (no caso dos pais fazerem a
festa para determinado santo e o filho ou filha continuar fazendo) ou
devido a uma promessa realizada, em que a contrapartida ao milagre do
santo é a realização da festa todos os anos, no dia deste santo. Ser
festeiro é também sinal de prestígio social, pois para realizar a festa é
preciso despender uma boa quantidade de dinheiro, principalmente para
a aquisição da carne (ou, no caso dos que criam porcos, pode-se também
abater um dos animais). A carne, geralmente dada pelo festeiro, possui
posição central na festa, já que é uma comida a que se muito valor,
pois como dito no capítulo anterior, se não tem carne, não tem
comida, bem como se não tem churrasco, não tem festa. Antes,
90
durante e depois da festa fala-se sobre quantos quilos de carne tinha, se
era um porco inteiro ou meio porco, por exemplo.
Almeida (2004a) sistematizou a celebração dos dias de santos
católicos na TI Xapecó da seguinte maneira:
Em certos casos estas festas caracterizam uma
distribuição anual, como pode ser percebido no
Xapecó: seis de janeiro, Reis Magos; vinte de
janeiro, São Sebastião; vinte de maio, dia do
Divino; treze de junho, dia de Santo Antônio;
vinte e quatro de junho, dia de nascimento de São
João Batista; vinte e seis de junho, dia de Nossa
Senhora do Socorro; quinze de setembro, dia de
nascimento de São João Maria do Agostinho;
doze de outubro dia de Nossa Senhora Aparecida;
doze de dezembro, dia de Nossa Senhora de
Guadalupe padroeira dos índios; vinte e cinco de
dezembro, dia de Natal (Almeida, 2004a: 93).
Talvez a mais importante festa em que participei durante minha
pesquisa de campo foi a festa feita no dia de São João Maria, que
acontece todo 15 de setembro. Como descrito no capítulo 1, São João
Maria é um santo fundamental para os católicos da TI Xapecó, havendo
diversos relatos de suas peregrinações pela região.
No dia de São João Maria, logo de manhã bem cedo,
começam a estourar foguetes. Quando cheguei na casa onde estava
acontecendo a festa, havia por volta de oitenta pessoas. Os homens
estavam do lado de fora da casa, conversando e cuidando das carnes que
estavam sendo assadas numa churrasqueira, enquanto as mulheres e
crianças estavam dentro de casa, preparando a salada e proseando. As
mulheres estavam preparando uma salada de repolho, pães, risoto e
maionese na cozinha, enquanto os homens assavam a carne do lado de
fora. Conversei então com Pedro (Ducão), que promove a festa
quatro anos, depois de fazer uma promessa para sua filha de criação. Ela
tinha um ano na época, tendo sido recém adotada, e estava na UTI do
hospital de Xanxerê, bem ruim dos fígados e intestinos (segundo ele
era uma infecção generalizada). Ducão levava ao hospital a água santa
46
de São João Maria para a criança beber, para que ela melhorasse. Ele
prometeu que caso ela melhorasse, iria fazer a festa dedicada ao santo
todos os anos, até que ela cresça e se case, quando então ela poderá
passar a fazer a festa, caso queira. Após três dias na UTI ela sarou e ele
46
na região diversos açudes e cursos d‟água que foram abençoados por São João Maria. À
água dessas fontes são atribuídas propriedades terapêuticas e milagrosas.
91
então passou a fazer a festa, quando paga quase tudo, apenas um ou
outro ajudando com uma galinha ou salada. Na festa havia bastante
carne de porco, que ele comprou em um açougue de Xanxerê. Na
churrasqueira havia uma pessoa responsável pela carne, um assador
que disse sempre ser chamado para assar carne em várias festas.
Mulheres preparando comida para a festa de São João Maria
Antes da refeição, foi feita uma oração a São João Maria,
quando rezaram o terço. Quando as mulheres começaram a reza, os
homens estouraram vários foguetes, o que continuaram fazendo ao
longo de toda a oração. Depois da reza foi servida a comida numa mesa
na varanda. As mulheres serviram primeiro as crianças, com quem elas
comem junto em torno da mesa (a cozinha e a varanda eram espaços
exclusivos das mulheres e crianças). Os homens ficaram de fora da casa
durante toda a festa, em torno da churrasqueira, sem utilizar pratos,
comendo a carne cortada diretamente do espeto e passando a faca para
que cada um se servisse; e caso quisesse, com pão e um pouco de
salada. Foi possível notar uma etiqueta bem diferente quanto ao servir e
comer para homens e mulheres: essas últimas fazendo pratos com
salada e arroz para comer com a carne, enquanto todos homens
compartilhavam apenas uma faca para cortar a carne diretamente do
92
espeto e eventualmente comendo algum pão. As crianças transitam
pelos dois espaços livremente, independente de seu sexo.
Oração na Festa de São João Maria
Ouvi relatos sobre outras festas de santo que passaram a ser
feitas a partir de uma promessa. Nessas histórias, após a pessoa pedir
algo que se realiza (geralmente a cura para graves problemas de saúde
de algum familiar) passa a ser o festeiro de determinado santo. Outros
passam a fazer festa para algum santo porque seus pais faziam ou
simplesmente por serem devotos desse santo. A festa do Divino Espírito
Santo, por exemplo, é realizada por várias pessoas, tendo mais de três
festeiros. Dona Diva, que faz a Festa do Divino todos os anos na aldeia
Pinhalzinho diz que é uma partilha, em que muitos ajudam levando
comida, e sempre tem fartura. Segundo ela, comem primeiro os anjos
(as crianças) para depois comerem os mais velhos
47
. Contou-me também
que seu pai já era festeiro do Divino e sobre a última festa que ele fez, já
com 125 anos, em que após a refeição ele veio a falecer de maneira bem
47
É interessante notar que nas festas ocorre uma inversão da prática que acontece no cotidiano,
quando “os mais velhos tiram primeiro” (se servem primeiro). Podemos fazer um paralelo com
as noções de Victor Turner, de inversão da estrutura em contextos ritualizados (Turner, 1974).
93
serena.
Durante a realização de minha pesquisa anterior na TI Xapecó,
pude participar de uma festa do Divino, promovida por Dona Jesus,
residente do Cerro Doce e curandeira famosa na região. Havia cerca de
quarenta pessoas, muitas dessas de fora da área indígena. Havia uma
grande churrasqueira cavada no chão, com muitos espetos de carne de
porco cruzados em cima. Aproveita-se todo o porco, inclusive a
cabeça
48
, que também estava sendo assada. A carne (de um porco
inteiro) havia sido dada por D. Jesus, e os convidados ajudaram trazendo
pães, cucas e refrigerantes, numa grande fartura de comida. Um dos
visitantes, não-índio, me contou que participa da festa mais de 15
anos e desde então não teve mais nenhuma enfermidade.
Churrasqueira O espaço dos homens (e também das crianças)
48
Contaram que nas festas de ano novo o costume de se comer carne de porco,
principalmente a cabeça, que é comida para dar boa sorte. Há também a “simpatia” de se comer
o focinho em particular, talvez por ser a parte mais “pra frente” do porco, o que traria boa sorte
no novo ano.
94
Comida sendo servida pelas mulheres
Comensalidade A área interna da casa é um espaço exclusivamente feminino
95
Os fogos de artifício, lançados pelos homens principalmente durante a reza feita pelas
mulheres, são um importante elemento nas festas de santos católicos.
3.2.2 - Festas Evangélicas Missão
Durante minha pesquisa de campo pude presenciar duas festas
evangélicas, chamadas de “missão, realizadas para arrecadar dinheiro
para a reforma de igrejas. Para esse fim, nessas festas são vendidas
bebidas e comida. Como nas outras festas, o prato principal é o
churrasco, fundamental para uma verdadeira festa Kaingáng, sendo
vendidos espetos de carne, pratos de salada, pão e refrigerante.
A primeira dessas festas aconteceu no Toldo Imbu
49
, numa
Igreja Evangélica situada bem ao lado do atual assentamento. Chegando
lá, após conversar com o cacique dessa área, fui para a cozinha ver os
preparativos para a festa, na qual havia cerca de cem pessoas. Na
cozinha as mulheres estavam preparando a salada de repolho e a
maionese e um homem estava preparando os espetos de churrasco.
49
Toldo Imbu é uma área situada no município de Abelardo Luz, cidade próxima à TI Xapecó.
96
Mulheres preparando e vendendo a salada
As carnes eram espetadas na varanda da cozinha e levadas para a
grande churrasqueira que ficava próxima. Havia três homens assando a
carne e cuidando da venda das mesmas. As mulheres faziam e vendiam
a salada e maionese. Fui com Lúcio, pastor Kaingáng da Igreja
Pentecostal Rei da Glória, e sua irmã Matilde comprar um espeto de
carne de porco, que custava R$10. Depois de analisarem um pouco,
escolheram um espeto, no qual o churrasqueiro anotou o nome de Lúcio
e lhe deu uma ficha. Voltaram então para o culto que acontecia na
igreja ao lado. Depois que esse terminou, Lúcio foi verificar se a carne
estava assada para almoçarmos. Enquanto isso, fui conversar com as
cozinheiras, para saber como funciona a festa. Disseram que é uma
“promoção” da igreja, pois quase não lucro. Um Pastor que ouviu a
conversa, falou que o importante é a “obra do senhor” e não o lucro. As
cozinheiras disseram que cuidam da salada e os homens assam a carne,
que é “mais coisa de homem”, mas que ajudam eles a espetar e salgar se
for preciso. Enfatizaram que enquanto o espeto de sua festa está sendo
vendido a R$10, na festa de outra igreja (que estava acontecendo no
mesmo dia) estavam vendendo por R$25.
97
Espetando e levando a carne para a churrasqueira
Venda dos espetos de carne (pode-se notar Matilde Koito escolhendo o espeto e o
vendedor anotando o nome do dono)
98
Quando fomos comer, os pães que estavam sendo vendidos
tinham acabado, então fui com Matilde comprar numa padaria em
Abelardo Luz. Como era domingo, não encontramos nenhuma padaria
aberta e voltamos apenas com um refrigerante (que Matilde ganhou na
venda
50
em que paramos, pois a dona era uma conhecida sua, pois ela
lhe fazia remédios quando morava no Toldo Imbu). Quando voltamos,
nossa carne estava quase assada, porém, não tínhamos pão. Matilde
falou então para suas netas irem buscar na casa de uma parente que
mora no Imbu. Comemos então a carne de porco de que compramos o
espeto, repolho (que compramos na festa), pão (que as meninas
buscaram na casa da parente) e refrigerante (que ganhamos na venda).
Depois de comer, Matilde guardou a carne que sobrou para terminarmos
de assá-la em casa. Durante o culto da tarde, conversei com uma
senhora que mora perto da igreja. Ela falou que fazia 15 dias que
estavam organizando a festa, que compraram a porca de uma granja e
que o preparo rendeu uma grande lata de banha, além dos mais de
200Kg de carne que venderam.
Performance dos pastores no culto em Abelardo Luz
50
Um mercado pequeno, próximo ao Toldo Imbu.
99
Durante o momento de comer foi interessante notar como cada
“grupo” que havia comprado seu espeto sentava-se no chão, com o
espeto no meio da roda. Essa etiqueta configura um modo típico
Kaingáng de se comer churrasco nessas situações de festa (lembrando
aqui que “pra ter festa, tem que ter churrasco”).
Comensalidade
A segunda festa evangélica que pude presenciar era também
uma missão, porém dessa vez para uma igreja de dentro da TI
Xapecó, e com um Pastor Kaingáng, Lúcio, irmão de Matilde e também
filho de Vicente Fokae. Os preparativos para essa festa começaram
muito antes da data marcada, cerca de duas semanas antes estavam
arrecadando carne para sua realização. Como era período eleitoral,
muitos quilos de carne foram doados por candidatos aos cargos de
prefeito e vereador, tanto fóg como índios. Cada candidato doava
conforme podia, tendo sido feitas doações de 10 até 25 Kg de carne, que
somando-se todas as contribuições, renderam cerca de 80Kg de carne,
os quais foram vendidos em 40 espetos de 2Kg cada um. A venda dos
espetos também foi feita antecipadamente, sendo que um dia antes da
missão já estavam quase todos vendidos. No dia anterior à festa havia
100
alguns homens fazendo os espetos ao lado da igreja.
“Irmãos” da igreja fazendo os espetos no dia anterior da missão
Chegado o dia da festa, os homens da igreja acenderam a
churrasqueira bem cedo. Para espetar a carne com o peso correto em
cada espeto usaram uma balança mecânica emprestada com Doni, dono
de uma bodega e de uma cancha de bocha que fica próxima à Igreja Rei
da Glória, que promoveu a “missão”. A carne era pesada para que cada
espeto tivesse 2Kg de carne, e assim um espeto não ficasse maior que o
outro. Enquanto os homens salgavam, pesavam e espetavam a carne, as
mulheres preparavam uma salada de maionese na cozinha de Matilde.
101
Pastor Lúcio e os “irmãos da igreja tomando um chimarrão enquanto o churrasco
estava sendo assado
Churrasco sendo preparado durante a “missão”
102
O Pastor Lúcio disse que a carne estava toda reservada desde o
dia anterior, só faltava todas as pessoas pagarem e escolherem seus
espetos. Ligaram um som alto, tocando música evangélica na igreja e
não foi feito culto pela manhã. Enquanto a carne estava sendo assada, as
pessoas ficavam conversando nas proximidades da churrasqueira,
tomando chimarrão e conversando. Por volta do meio-dia a carne estava
assada (custava R$10 o espeto de carne de porco e R$15 de carne de
boi). Na cozinha da igreja estava sendo vendida maionese, pão, salada
de repolho e refrigerante. Como a maioria das pessoas que compraram a
carne residia na aldeia Sede, quase todos comeram em suas respectivas
residências. O culto começou às 14h e foi até às 17h. Após o fim do
culto, foi vendido o que sobrou de pães e refrigerante.
3.2.3 Aniversários
A comemoração de aniversários parece ser uma prática recente na
TI Xapecó. A festa, entretanto, é como as outras festas: tem que ter
churrasco. Além do churrasco, nas duas festas que compareci haviam
grandes bolos de aniversário.
A primeira festa de aniversário que participei foi a de Seu
Donivir (Doni), dono de uma bodega e de uma cancha de bocha na
aldeia Sede, que estava comemorando seus 53 anos. Convidaram-me
para tirar fotos da festa, convite que prontamente aceitei. Cheguei à festa
na hora em que as mulheres estavam servindo a mesa com arroz, salada
de alface e carne de porco (do comum, criado nos interior). Havia
em torno de trinta pessoas, em sua maioria parentes ou vizinhos de
Doni, mas também estavam presentes alguns fóg, provavelmente
parceiros comerciais ou companheiros de jogo do aniversariante. Ao
lado da casa estava uma roda de rapazes e o aniversariante tomando
alguma bebida alcoólica com refrigerante, que me ofereceram, mas
recusei alegando que estava trabalhando. O aniversariante também
perguntou se eu bebia de tudo, disse-lhe que sim, mas que não podia
por estar em serviço. As pessoas então começaram a se servir, primeiro
os mais velhos e depois os mais novos. Deram-me um prato, garfo e
faca, apesar de todos estarem comendo apenas com colher ou garfo,
sentados onde havia lugar: na escada, nas muretas, etc. Foi servido
refrigerante para todos. Doni falou que ali todos eram parentes de
alguma maneira. Perguntei-lhe quem assou a carne, pois estava muito
103
boa, e ele respondeu que foi seu sogro
51
. Serviram ainda um bolo,
comprado em Bom Jesus, depois da janta. Após o aniversariante partir o
primeiro pedaço, sua filha Senira foi cortar e servir as fatias em pedaços
de papel de um livro.
Senira ajudando seu pai Donivir a cortar o bolo de aniversário
A outra festa de aniversário em que participei foi da filha de um
professor bilingüe, que estava fazendo 16 anos. Quando fui para a festa,
por volta das 20:00, encontrei o professor que estava na casa de sua
sogra e disse que já tinham jantado, pois o jantar havia sido servido mais
cedo. Quando chegamos à festa, onde estavam em torno de trinta
pessoas, alguns ainda estavam comendo, e assim que terminaram foi
servido o bolo. Como na outra festa, o bolo foi partido pela
aniversariante após o Parabéns para você, para então ser distribuído a
todos, em pedaços de papel de livros. Algumas mulheres haviam levado
suas próprias vasilhas para levar um pedaço do enorme bolo que havia
sido feito ali mesmo, preparado desde a manhã por várias mulheres.
51
Depois fui saber que é também o sogro quem cria os porcos “do comum”, “no interior”. O
“interior” é como são chamadas as aldeias mais distantes da Sede.
104
3.3 Jogos
3.3.1 - Bocha de Cancha
O jogo de bocha tem sua origem na Europa e foi trazido para o
Brasil por imigrantes italianos no final do século XIX. Popularizou-se
principalmente nas regiões onde se estabeleceram esses imigrantes,
como é o caso da região da TI Xapecó. Devido às relações com
imigrantes italianos, o jogo é praticado já bastante tempo na TI,
sendo que os meus interlocutores mais velhos contam que a bocha é
praticada por lá desde seus tempos de criança.
Desse modo, a partir do contato com os imigrantes italianos, a
bocha tornou-se um jogo muito popular na TI Xapecó, sendo jogado de
duas maneiras que se diferem da bocha de pista bastante popularizada
no Brasil. A primeira e mais popular, é o jogo de um time contra o
outro, sendo cada time composto por seis jogadores
52
. Nesse jogo o
intuito é marcar um número pré-determinado de pontos para que um
time ganhe a partida. Em cada jogada o participante deve arremessar
três bochas a fim de derrubar o maior número de bochas da cancha e
assim somar pontos para seu time. A cancha é uma plataforma de
madeira colocada a 12 metros de distância, com cinco bochas que
devem ser derrubadas para marcar pontos. Cada time joga
alternadamente até que o número de pontos seja alcançado. A cada
rodada os pontos são somados para verificar quantos faltam até o fim do
jogo. O time que perder deverá pagar a refeição que será consumida
depois do jogo junto com o time vencedor. Durante o jogo sempre
enfatizam que A gente come tudo junto igual.
Existem diversos times na área indígena, organizados por aldeia,
sendo que cada um tem sua cancha: duas no Pinhalzinho, duas na Sede
(uma de Doni e outra do cacique), uma no Cerro Doce e uma no Paiol
de Barro. Esses times costumam jogar entre si nos finais de semana,
havendo um tom de jocosidade quando se referem aos jogos ocorridos:
“Esse fim de semana ganhamos um almoço do pessoal da outra aldeia”.
Alguns informantes disseram que não jogam contra os colonos de
Ipuaçu, pois bebem demais e acabam arrumando confusão; porém,
com os colonos de Bom Jesus disseram não ter problemas. Isso talvez se
deva ao fato dos índios não concorrerem politicamente em Bom Jesus,
52
A segunda maneira será apresentada mais adiante.
105
ao contrário de Ipuaçu, onde ocuparam o cargo de vice-prefeito e
ainda ocupam vagas de vereador.
Assisti em uma ocasião a um jogo do time da aldeia Sede contra
o time da cidade de Bom Jesus. O pessoal da Sede começou os
preparativos para o jogo desde cedo com quatro ou cinco pessoas
ajudando a montar a cancha (feita de xaxim) e indo comprar carne e
cerveja. O jogo principal, de seis índios contra seis colonos, começou
por volta das 17hs. (antes disso estavam jogando para aquecer, valendo
cervejas). No jogo principal estavam valendo 10Kg de carne e um tatu
que estavam sendo assados na churrasqueira (a carne é pesada
precisamente com uma balança), além da guarnição de maionese, pão e
salada de repolho. Apesar do clima de competição, os participantes
brincavam sempre em tom jocoso: Vamos ganhar o tatu ou Vamos
comer junto igual. Enfatizaram que sempre jogam valendo uma janta
(ou nos fins de semana um almoço). Neste dia, o custo da janta (carne e
guarnição) foi de R$150, que o time perdedor (nesta ocasião os colonos)
teve que pagar. Eles se queixaram bastante que a cancha estava muito
longe (15m, enquanto estão acostumados a 12m). Após o jogo, que
durou mais de quatro horas regado à cerveja, e no qual algumas pessoas
se queixavam da fome, foram jantar as duas equipes numa mesma
mesa. A carne foi trazida pela mulher do anfitrião (D. Amélia, dona da
bodega), cortada numa grande bacia, além das saladas de repolho e
maionese. Foi possível notar uma diferença entre índios e colonos no
modo de se comer a carne: enquanto os primeiros usam as mãos para
comê-la, os últimos usam garfo e faca para cortar no prato. Após comer
e fazer mais algumas piadas sobre o resultado da partida, todos foram
logo embora, que eram por volta de 22:00. É interessante que por
mais que o time perdedor esteja insatisfeito com o resultado da partida,
esse irá sentar e comer junto com o time ganhador, que comerá de graça.
106
Jogador lançando a bocha na cancha de modo performático
Churrasco sendo assado durante o jogo de bocha
107
Pessoas se servindo após o jogo
Momento comensal entre índios e não-índios
108
Outro modo de se jogar bocha valendo comida é o Porco no
48, que funciona da seguinte maneira: uma dada pessoa coloca o
porco, então inscrevem-se pessoas para jogar, para tentar ganhar o
porco, custando R$2,00 a tentativa com 4 bochas. Por exemplo, se o
primeiro fizer 40 pontos, o próximo deve fazer essa pontuação ou mais
(se estabelecendo então como novo líder), e assim por diante, até que
todos desistam de quebrar o recorde estabelecido. Cada um que quiser
tentar quebrar essa pontuação deve se inscrever e pagar os R$2,00 pelas
quatro bochas e, caso não consiga, poderá novamente pagar mais
R$2,00 para tentar mais quatro bochas. O dinheiro arrecadado com as
inscrições vai para o dono do porco (aquele que colocou o porco). Quem
fizer a maior pontuação leva o porco para casa. Essa modalidade é
diferente do jogo por janta (no qual são dois times de 6 disputando a
carne para comerem juntos). No Porco no 48 o jogador joga
individualmente, e se ganhar leva o porco para casa, não ocorrendo a
comensalidade.
Outras vezes também se joga de maneira mais informal, valendo
apenas um refrigerante, por exemplo, do qual todos que estão jogando
ou assistindo o jogo tomam. Em uma dessas ocasiões, enquanto
conversávamos numa tarde de calor, perto da cancha de bocha, chegou
um senhor que Doni intimou para jogar, tirando do bolso uma nota de
R$20,00 para provocá-lo jocosamente. O senhor hesitou, mas por fim
fizeram duas duplas para jogar valendo um guaraná. Doni foi buscar as
bochas em sua casa e trouxe um refrigerante da bodega, enquanto um
garoto arrumava as bochas na cancha. A dupla que fizesse 100 pontos
primeiro ganharia e o guaraná seria pago pelos perdedores. A dupla de
Doni perdeu a primeira partida e logo intimaram para mais um jogo,
valendo outro guaraná. Muitos que estavam por ali, espectadores,
crianças e jogadores, tomaram do guaraná durante o jogo, o que ajudou
aliviar o forte calor que fazia.
3.3.2 - Sobre o futebol
O futebol é um esporte amplamente praticado na TI Xapecó,
principalmente por homens, mas também por mulheres. Algumas vezes,
assim como na bocha
53
, joga-se valendo uma refeição ou cervejas.
campeonatos dentro da TI competindo os times das diversas aldeias.
53
Comparando a bocha com o futebol, certa vez um interlocutor me disse que ambos são
“jogar bola”, um joga com as mãos e outro com os pés.
109
Também costumam jogar em campeonatos nas cidades próximas, como
Xanxerê e Bom Jesus. O jogos de bocha e futebol, assim como as
festas, são espaços de relações interétnicas, não necessariamente
amistosas. Seu Belino, um senhor dono de uma cancha no Pinhalzinho,
contou sobre os jogos de bocha e futebol:
Seu Belino: Domingo ficamos brincando,
joguemos ali no Alemão, abaixo de chuva. Os
atirador, atiravam a bocha pertinho... daí que nós
perdemos o jogo. E hoje tudo diferente né, o
jogo de futebol também, quando tem jogo
muito grande, daí eu vou olhar, olhar também.
Eu também jogava bola, mas dme quebraram
tudo... É um jogo que machuca tudo. Agora não
jogo, to velho já, antes disputei campeonato em
Ipuaçu, Samburá, campeonato da região. É um
jogo muito bruto. Eu tenho olhado campeonato,
eles dão cada carrinho no outro.Querem ganhar,
vale dinheiro né... Dinheirão.
Philippe: E na bocha não tem trapaça?
Seu Belino: Não tem. pra comer. Come tudo
junto.
Philippe: Ninguém leva dinheiro?
Seu Belino: O dono do jogo que segura o dinheiro
depois, cobra um pouco a carne, vende uma
cerveja. um lucrinho. E é seis contra seis.
Comem, almoçam depois...
E sobre os jogos com os colonos, o filho de Seu Belino, Silo, contou o
seguinte:
Silo: Esses dias tava trabalhando quase lá no Irani.
Me atraquei a jogar bocha, ganhei dezenove
cervejas deles. Eles disseram: Pá, mas esse
indinho joga bem. Daí eles me pegaram, entre
eles lá, me pegaram de companheiro. Mas aquela
comunidade tem gente boa. Acostumei com
eles. Mas quando briga de bocha, é feio né. O
pai que conta, uma vez ali em Bom Jesus, um
homem errou uma bochada no outro e tava uma
porca atrás, pegou bem no meio da cabeça da
porca, matou. os grito de porca, ele disse.
Errou do outro e deu bem no meio da cabeça da
porca.
Belino: Mas agora não sai. Tem policiamento pra
prender.
Philippe: E porque que discutiram?
110
Silo: É bebida né... Quem pagou o pato foi a
porca... Daí diz que parou a briga ali, depois que
mataram a porca. Vamos preparar a porca e
vamos comer ela disseram...
Philippe: E agora não tem dado mais discussão
não?
Silo: Agora tem policiamento, não dá.
É interessante notar que a causa das brigas é atribuída ao
excesso de bebida, assim como o policiamento é colocado como solução
para os conflitos nos jogos. Nesse trecho também é possível perceber
como o jogo de futebol é considerado mais violento pois o prêmio dos
torneios geralmente é em dinheiro e não comensalidade. também
os jogos de futebol valendo janta, que são menos conflituosos, pois são
eventos menores (assim como os prêmios) e há a comensalidade entre os
dois times.
O trabalho de Fassheber (2006) é importante para
compreendermos o valor do futebol para os Kaingáng e os povos
indígenas do Brasil em geral. Em seu trabalho, o autor explica como no
jogo de futebol a noção nativa de Tar (força) é bastante aplicada. A
força e resistência dos corpos Kaingáng são vistas como seu maior
trunfo para as vitórias sobre os times dos fóg. A vantagem de ser forte e
resistente é utilizada para vencer as partidas contra os fóg, pois sendo
fortes, os Kaingáng jogam duro, tendo mais força para chutar a
bola, menos sede durante o jogo e conseguem se manter menos
cansados ao longo de toda a partida. Como indicado numa entrevista
registrada pelo autor, a alimentação é um fator bastante relevante para
que se tenha tais atributos:
Além do controle da água, os Kaingáng
diferenciam-se dos Fóg também na ingesta
alimentar, como disse-me um Kaingáng de seus
cinqüenta anos:
Pesquisador: O Fóg também tem o Tare?
Kaingáng: O Fóg também m o Tare. Mas não
[...] ele não chega a pareiar com o índio, que o
índio ele come tudo coisa natural né? aqui drento
né?, ele não come esses coisa assim [...] não
querer falar do senhor (risos), é que tudo química
né?, e esses coisa, mais da metade aqui drento
que a gente consome é tudo natural. Crioulo
[milho] nosso mesmo. Então eu acho né?, cada
um tem um jeito né?, mas acho que o índio tem
mais força. Que o índio pode jogar 120, 180
111
minutos que não cansa e o Fóg já não...
(Fassheber, 2006:143)
Sobre o caráter da dinâmica social interna e das relações
interétnicas que o futebol proporciona, Fasshebber chega à seguinte
conclusão:
O Futebol pode ser percebido, então, pela
interação e pela integração social dos moradores
da TI entre si, destes com os de outras TIs e com a
população e equipes da cidade, dado que vários
amistosos e torneios são marcados com os
Kaingáng e dado que alguns Kaingáng participam
de equipes da cidade em competições municipais
e regionais. O Futebol serve-lhes, pois de
poderoso "salvo conduto" por suas terras e pelas
cidades. (Fassheber, 2006:151)
Desse modo, o jogo de bocha e o futebol são importantes
espaços para suas dinâmicas de relações entre as diversas aldeias da TI,
assim como das relações com os fóg, pois permite aos Kaingáng
mostrar-se como uma sociedade coesa, capaz de interagir com os fóg em
pé de igualdade e mesmo de superioridade, nas ocasiões em que ganham
as partidas.
A noção de Tar é também importante nessas relações. Como
podemos ver no jogo de bocha relatado anteriormente, os fóg se
queixaram que a cancha estava muito longe, sendo preciso mais força
para lançar as bochas, condição em que os Kaingáng levariam vantagem
por serem mais fortes ou possuírem mais Tar.
Nos jogos que envolvem a comensalidade após a partida, as
relações interétnicas são ainda mais estreitadas e de um caráter
amistoso, levando os Kaingáng e os fóg a comerem juntos numa mesma
mesa, cada qual com sua etiqueta alimentar e seu modo de preparar os
alimentos. Em uma ocasião que os Kaingáng foram jogar fora da aldeia,
contaram que comeram uma “janta italiana”, com polenta, risoto e
galinha. Em outras ocasiões essa comensalidade dificilmente
aconteceria, porém nessas situações ocorre o que é considerado por
alguns autores o mais alto grau de socialidade, a comensalidade, ou
como nas palavras dos Kaingáng referindo-se à refeição feita após os
jogos: nós comemos tudo junto. Apesar de um dos times pagar a
refeição, não verdadeiros perdedores ou ganhadores, que o prêmio
é consumido conjuntamente e o time que perdeu hoje poderá ganhar
amanhã.
112
3.4 - Entre homens e deuses: relações horizontais e verticais
No primeiro capítulo podemos perceber como as relações entre fóg
e Kaingáng foram, e ainda são, marcadas por conflitos dos mais
diversos tipos
54
. Cardoso de Oliveira (1972) caracteriza “sistemas
interétnicos”, ou “áreas de fricção interétnica” como aqueles contextos
em que são estabelecidas trocas (econômicas, sociais e políticas)
sistemáticas entre índios e não-índios. Como descrito anteriormente,
esta é a situação em que os Kaingáng se encontram, muitas vezes
chegando a serem estigmatizados como índios aculturados, dado o seu
grau de interação com a sociedade envolvente, e também devido à
região em que se encontram, onde existem diversas “frentes de
expansão” da sociedade ocidental.
Entretanto, as festas e jogos apresentados no presente capítulo são
espaços onde o encontro interétnico é marcado pela jocosidade e
cooperação. Esses espaços de interação podem ser compreendidos como
uma expressão do sistema interétnico, bem como das concepções
cosmológicas Kaingáng. Nesses contextos liminares e performáticos
ocorre uma inversão do contexto conflituoso do cotidiano (TURNER,
1974). Em algumas ocasiões, a conflituosidade dessas relações são
teatralizadas de maneira jocosa, como no jogo de bocha, e em outras
torna-se mais ríspida, como no jogo de futebol.
O relato apresentado na página 109 sobre os conflitos que
ocorrem nos jogos de bocha e futebol demonstra como é tênue o
“enquadre” performático, de brincadeira, que possibilita a inversão das
relações conflituosas em amistosas (BATESON, 1972; TURNER,
1974). Mesmo no jogo de bocha, que seria bem “amistoso”, relatos
de conflitos entre os grupos de participantes índios e fóg. Os índios
atribuem a causa do conflito ao excesso de álcool ingerido pelos fóg,
numa forma de acusação às avessas, dado que o alvo dessas acusações
são geralmente os índios. Segundo Bateson (1972), esses contextos
lúdicos, ou de “brincadeira (na tradução do termo do autor), criam
enquadres paradoxais que não representam a verdade, ou seja, os sinais
de amizade dados durante esses contextos lúdicos são de algum modo
não-verdadeiros, pois são “de brincadeira”. Essa proposição de Bateson
nos auxilia a compreender as brigas ou discussões que podem surgir
nessas situações.
54
Todo o histórico do contato é marcado por violentos conflitos, os quais ainda eventualmente
ocorrem. Em 2004 a luta pela terra no Toldo Imbu ocasionou a morte de um não-índio e levou
três índios à prisão.
113
As festas de aniversário podem ser compreendidas como uma
celebração “improvisada” das festas brancas, trazendo novos elementos
externos, mas transformados à maneira Kaingáng: o bolo e a
performance do “Parabéns para você”. Sàez (2004) interpreta algumas
festas Yaminawa, em que são incorporados novos elementos do mundo
dos brancos, como ocasiões em que os índios “testam suas habilidades
de agir como „brancos‟” (Sàez, 2004:163 tradução minha). Essa
incorporação dos elementos brancos é compreendida como uma
reinvenção dos rituais brancos à maneira indígena, sinal da continuidade
histórica da cultura dos povos indígenas, e não de sua aculturação
(SÁEZ, 2004:169).
Outras mudanças ocorridas entre o modo de se fazer festa no
tempo dos antigos e atualmente se referem a como o calendário das
festas se alterou. O que antes seguia um calendário agrícola, ligado aos
ciclos de colheita ou coleta de determinados alimentos, passa a seguir
um calendário religioso (católico) e político. Assim como em diversos
outros grupos indígenas
55
, a época de festas era o período de fartura de
comida, ou seja, entre maio e julho, época de pinhão e colheita de
diversos produtos, como milho, feijão e batatas. O kiki-koia era
realizado nesse período, como nos informa Melatti (1976).
Atualmente, uma época de “fartura” é o período de campanha
política, quando se pode facilmente “predar” carne ou dinheiro de algum
dos candidatos, seja para a realização de festas ou consumo cotidiano.
Cardoso de Oliveira relata como essa prática vem desde o Estado Novo,
quando:
com o restabelecimento da vida democrática no
País, os partidos políticos começaram a procurar
as aldeias com o objetivo de conquistar eleitores
entre aqueles que porventura soubessem assinar
seus nomes. Para o índio isso representava, de um
lado, relações mais simétricas com o “civilizado”,
pelo menos enquanto durasse a propaganda
eleitoral; por outro, passava a receber naquele
período alguns presentes e um vale (...) se votasse
em determinado candidato (Cardoso de Oliveira,
1972:37)
Santos (1997, apud Crépeau 2009) também faz uma interpretação
nesse sentido, dizendo que ao invés de caçar nas matas de pinhal que
55
Ver, por exemplo, Viveiros de Castro (1986) e Labiak (1997).
114
outrora existiam, os Kaingáng agora buscam conseguir seus recursos na
selva da burocracia nacional:
Na falta de condições de tirar da natureza o que
necessitam para sobreviver, parece que os índios
agora se especializam em fazer suas incursões de
„caça e coleta‟ nos espaços urbanos,
particularmente nos domínios da burocracia
(Santos, 1997b: 118-119 apud Crépeau, 2009)
É interessante notar que em todas as festas descritas há um
caráter de “dádiva”, no sentido utilizado por Mauss (2001), ou seja,
sempre aquele que “dá” a festa. No caso das festas de santos católicos
um festeiro, que decide dar a festa todos os anos, seja porque seus
pais o faziam ou, em um caso mais exemplar de dádiva, em troca de
uma graça recebida do santo homenageado (como Ducão, que passou a
ser festeiro de SJM depois do milagre que salvou sua filha). Há também
um caráter agonístico nas festas de santos católicos, pois ser festeiro é
sinal de status social, e quanto maior a festa, ou melhor, quanto mais
comida e convidados, maior o status do festeiro. Sempre é ressaltado
durante e depois da festa: “Tinha tantos quilos de carne”. Essa mesma
comparação é estabelecida por Gonçalves (2009:31), ao tratar das festas
do Divino no Rio de Janeiro.
Além disso, Gonçalves (2009) demonstra como nas festas do
Divino operam relações de dádiva e contra-dádiva, tanto entre homens
como entre homens e o “Divino”. Isso também ocorre nas festas
católicas da TI Xapecó, mais particularmente na festa do Divino. A
“partilha”, situação de comensalidade farta, é oferecida em troca das
graças alcançadas, assim como pelas graças ainda a serem atendidas. A
festa do Divino envolve um pedido de boa saúde dos participantes,
como foi dito por uma pessoa que participa 15 anos, e que desde
então nunca ficou doente. a de São João Maria estava sendo feita
como pagamento de uma promessa feita para que a filha do festeiro
tivesse boa saúde.
Nas festas evangélicas, chamadas “missões”, a carne é muitas
vezes doada por donos de frigoríficos da região, políticos ou pessoas
mais ricas. O dinheiro arrecadado com a comida que será vendida nessa
festa não servirá apenas para a realização de reformas na igreja, mas
também para a viabilização da “obra do senhor”, ou seja, por meio da
ajuda de diversos voluntários (quem a carne e aqueles que trabalham
na festa, seja cozinhando, fazendo os espetos ou assando a carne), se
busca realizar a “obra do senhor” mais ampla (cosmologicamente) que a
mera reforma da igreja. Assim, aqueles que ajudam podem esperar
115
alguma graça pelos serviços prestados ou pela comida doada “ao
senhor” e sua “obra”.
Além de ser um campo de relações interétnicas, as festas
religiosas compreendem também uma relação entre homens e deuses.
Crepéau (1997) demonstra como a relação entre homens e deuses no
caso Kaingáng se alterou. Os guias animais foram substituídos ou
colocados ao lado de guias santos, como é o caso de São João Maria.
Alguns kujá possuem tanto seu guia animal como um guia santo, ou
apenas o guia santo. As festas de santos católicos, bem como as festas
evangélicas, podem ser compreendidas como uma nova forma de
relação entre homens e deuses, intermediada agora pelo festeiro e os
rezadores (ou o pastores), ao invés do kujá
56
.
Podemos perceber como o sistema interétnico regional permeia
essas festas. As festas de santos católicos são freqüentemente visitadas
por não-índios que vivem na região, e que costumam “consultar” com o
festeiro ou festeira (dado que muitos festeiros de santos católicos são
também curadores, kujás ou remedieros). As festas evangélicas feitas na
TI podem ser visitadas por pastores da cidade ou como acontecem mais
freqüentemente, os Kaingáng evangélicos costumam ir às festas
promovidas na cidade. Além disso, a carne para a festa é muitas vezes
doada por candidatos políticos fóg ou índios (os quais geralmente
possuem suporte de algum financiador branco ou de seu partido político,
sendo o partido uma instância ligada ao mundo branco). Mesmo o ritual
do Kiki contou com a participação de não-índios em sua organização e
registro (ALMEIDA, 2004a:139). Além das relações interétnicas, outro
aspecto que perpassa todas essas festas é a comida, um elemento
essencial para que essas relações aconteçam, seja no sentido vertical
(entre homens e deuses) ou horizontal (entre homens, intra ou inter
etnicamente). Nas festas religiosas, seja doando a comida, consumindo,
comprando ou preparando-a, “um grande número de pessoas (...) se
envolvido direta ou indiretamente nessas extensas relações de dádiva e
contradádiva que tornam possíveis as relações entre homens e o Divino”
(Gonçalves, 2009:20-21). Desse modo a comida media as relações entre
a comunidade e o exterior, bem como entre homens e os deuses.
56
Entre os Karipuna, Tassinari (1998) também encontra uma similaridade entre as atuais
maneiras de mediação entre rezadores e santos padroeiros e os pajés com os karuãna.
116
3.5 - Visitas e outras formas de comensalidade
Algo que também nos remete ao tema de compartilhar
comida são as visitas periodicamente feitas entre os Kaingáng, seja na
condição de visitar alguém ou receber uma visita. Borba (1908)
descreve a hospitalidade Kaingáng no início do século passado:
São muito francos do que teem em seos ranchos;
quando alguém chega a elles, a primeira cousa
que fazem é perguntar se tem fome; nos dias de
abundancia nem isso fazem; sem nada dizer, vão
pondo deante da pessoa a comida, dizendo - coma
(acó); nunca negam a comida que se lhes pede;
do pouco que teem comem juntos (Borba,
1908:14).
Tommasino (2000:195) diz que no “tempo dos antigos”, "as
visitas entre parentes dos diferentes grupos locais eram muito freqüentes
e a recepção margem dos rios, na soleira da casa) era feita
ritualmente". Essas ocasiões de reciprocidade são também ritualizadas
atualmente: a recepção é quase sempre feita nas varandas ou em algum
espaço externo da casa, sendo que na maioria das vezes em que se
recebe alguém é oferecido chimarrão e eventualmente algo para comer,
como pipoca, biscoitos ou bolinhos (comidas que podemos chamar de
comida para visita, pois não é algo que se costuma comer como
refeição). O mate é uma das mais tradicionais formas de compartilhar
substância e construir relações sociais entre os Kaingáng. Isso é comum
inclusive com os pesquisadores que fazem pesquisa por e
costumeiramente tomam mate com seus colaboradores. Entretanto, pude
registrar relatos sobre os índios mais antigos que não tomam mate com
qualquer um, apenas “com quem conhece”. Quando não possuem nada
para oferecer, as pessoas se desculpam por não ter nada pronto ou por
não estarem com a água quente para fazer um mate.
Caso a visita chegue na hora da refeição, se oferece para que
coma junto com as pessoas da casa, principalmente se for um
compadre
57
ou uma comadre, os quais são sempre convidados para
ficar até a hora da refeição. Havia um compadre e uma comadre de
Matilde, ambos de sua igreja, que costumavam comer conosco pelo
menos uma vez por semana. Pude também notar em outras casas que
parentes (geralmente filhos da dona da casa) costumavam aparecer na
57
“Compadre” não é necessariamente um parente de sangue, porém são pessoas com que se
estabelecem trocas de comida e ajuda mútua.
117
hora do almoço. Na casa de Matilde, onde eu costumava almoçar e
jantar, seu filho, nora e netos almoçavam e jantavam todos os dias.
Segundo Matilde, é um costume Kaingáng que os filhos comam na casa
dos pais.
Quando o visitante é um compadre ou parente de outra
aldeia, além da comida e do mate oferecidos, costuma-se dar algo para o
visitante levar para casa, geralmente cultivado ou colhido por aquele que
dá; em momento algum vi ser dada comida comprada/industrializada.
Nas diversas ocasiões que presenciei, ao visitar casas de aldeias mais
distantes da Sede com meus colaboradores, as pessoas visitadas
costumavam dar alguma coisa para levarmos para a casa, sempre
comida plantada, comida antiga, égoro, mudas ou sementes.
Certa vez fomos visitar um compadre de Matilde, que
plantava muitas coisas em suas terras próximas da aldeia Sede. Nessa
ocasião ganhamos uma grande sacola de batata-doce, produto que ele
estava colhendo ao preparar a terra para o próximo cultivo. Comemos as
batatas-doces no jantar desse mesmo dia. Como eu costumava visitar as
casas de aldeias distantes com Matilde, pude presenciar outras situações
em que ela foi presenteada com mandioca, radite, moranga ou milho-
verde. Uma vez também ganhamos sementes de milho cunha, uma
variedade tradicional Kaingáng. Em uma visita que fiz com D. Diva à
casa de seu filho que reside no Cerro Doce, ela pediu ramas de
mandioca para levar, as quais foram prontamente colhidas para ela,
sendo também presenteada com uma moranga e raízes de mandioca para
cozinhar.
118
Dona Diva com os presentes recebidos na visita; as ramas de mandioca à esquerda, a
moranga e as mandiocas
Rocha (2005) relata como muitos grupos domésticos da TI
Condá possuem hortas, onde geralmente plantam milho, batata-doce,
feijão, abóbora, mandioca e moranga (comidas “tradicionais Kaingáng”,
“fortes”). Segundo a autora, nem todas as famílias do grupo doméstico
participam do cultivo, porém “faz parte das regras de reciprocidade
Kaingáng dividir com os parentes as roupas e alimentos que cada
família consegue” (Rocha, 2005:43).
também o costume de se “emprestar” caso falte algum
produto. Se pega emprestado de outra pessoa para devolver depois,
quando fizer o rancho
58
. Geralmente os produtos emprestados são
industrializados, como erva mate, açúcar, sal ou farinha de trigo. Na
maioria das vezes vi o intermédio ser feito pelas crianças: a mãe manda
as crianças pedirem algo emprestado ou devolverem. Em uma ocasião,
vieram algumas crianças à casa em que eu estava, com um pote de erva
mate, que Matilde guardou em seu pote maior de erva, devolvendo o
potinho vazio para as crianças. Perguntei para Matilde de que se tratava
58
Expressão regional para as compras de comida da casa.
119
e ela respondeu que outro dia emprestou erva para a mãe dessas
crianças, e que agora estavam devolvendo.
Outro modo da comida circular entre as casas é presentear
comida preparada. Um dia foi feita canjica por Matilde, uma comida
tradicional, que não se costuma cozinhar rotineiramente (como arroz,
feijão, macarrão) e quando estávamos comendo uma das crianças da
casa perguntou para Matilde: Posso levar um prato para as parentes? e
Matilde prontamente fez um grande prato para ser levado pela criança.
Perguntei quem eram e ela respondeu que eram suas parentes que
moram perto de sua casa, e que sempre que fazem uma comida
diferente costumam levar para elas e vice-versa.
É importante notarmos que todos esses alimentos dados de
presente eram plantados pela própria pessoa que os presenteou ou por
alguém de sua casa. Entre os Kaingáng, o alimento considerado
“criado” ou “do comum” tem um valor distinto do industrializado, sendo
os primeiros geralmente dados de presente, não se costumando dar
comida comprada. O alimento comprado tem seu preço: todos sabem
quanto custa um quilo de arroz ou feijão nos mercados. a mandioca
ou a batata-doce são “comida tradicional” e não costumam ser
encontrados nos mercados da região, portanto não possuem um valor
monetário definido.
Isso nos leva a pensar sobre o valor dado a esse tipo de comida
em relação às comidas industrializadas compradas no mercado. Richard
Reed (1995) argumenta que entre os Guarani do Paraguai a permanência
dos modos de produção de subsistência (o cultivo do feijão e do milho,
por exemplo) permite que as redes de troca tradicionais se mantenham.
Esse modo “tradicional” de produção não é simplesmente suplantado
pela lógica de mercado, porém é justaposto à compra de produtos
industrializados, formando uma “economia mista”, baseada tanto na
compra dos produtos ocidentais, quanto na dependência de sua própria
produção alimentar. O autor apresenta o caso de uma família que
plantava muito pouco e acabou sendo excluída do sistema de trocas,
pois nada tinham a oferecer, portanto não costumavam também receber
ajuda de seus parentes e vizinhos. O fato de não plantar exclui a família
(ou a casa) das redes de troca, uma vez que os alimentos plantados são o
bem mais trocado e dado entre as famílias. Segundo o autor, “a family‟s
garden produce is unquestionably shared with kith and kin, the social
character of purchased commodities is more ambiguous and
contentious” (Reed, 1995:136). Segundo o autor, isso se deveria ao fato
de que os bens industrializados nunca são abundantes, mas entre os
120
Kaingáng estes costumam eventualmente ser trocados por produtos
plantados no caso de necessidade por parte de alguma família.
3.6 - Mitos sobre Generosidade e Avareza
Vimos como a reciprocidade é praticada através da comida pelos
Kaingáng de diversas maneiras (MAUSS, 2001). Além da
reciprocidade, há outro aspecto de se compartilhar comida que refere-se
à doação de alimentos para parentes, vizinhos ou outras pessoas que
necessitem. Isso difere dos presentes, pois um presente geralmente é
retribuído e no caso da doação não se espera nada de volta. Robert
Crépeau diz que a generosidade e a reciprocidade Kaingáng estão
embasadas em seus mitos de origem:
De acordo com os Kaingáng, troca e
reciprocidade não são nem dados inconscientes
(Lévi-Strauss) nem função da organização dual
(Maybury-Lewis), mas algo instituído no passado
pela ação dos heróis culturais ancestrais: a) que
roubam os elementos básicos da vida dos
Kaingáng, tais como fogo, água ou mel de seus
proprietários primordiais egosístas; b) que
generosamente deram à humanidade, por
exemplo, o milho através de Nhar (ou Milho)
após sua morte; c) que criaram as metades e as
seções associadas após a destruição dos primeiros
humanos pela inundação ou dilúvio (Crépeau,
2005:14).
Esses dois heróis ancestrais, o proprietário primordial egoísta,
que negava-se a compartilhar as sementes e o fogo, e Nhar, que se
sacrificou para dar as sementes do milho e outras plantas para a
humanidade, opõem-se em seu modo de agir, porém seus mitos pregam
uma mesma lógica, isto é, ser generoso e dividir o que tem com aqueles
que necessitem, numa espécie de generosidade generalizada, sem
sovinar. A generosidade é narrada como um modo digno de conduta,
em detrimento da avareza, comportamento considerado esteticamente
feio, nos termos de Overing (1991, 2006). Essa lógica prescreve a
conduta de doação de comida na TI Xapecó.
O costume de presentear com sementes de milho, feijão ou
ramas de mandioca nos remete ao mito de Nhar, que distribuiu as
primeiras sementes ao povo Kaingáng. Dar sementes ou ramas é uma
maneira de manter o modo tradicional de produção, incentivando o
121
cultivo próprio em detrimento da compra de comida nos mercados. É
também uma forma de dádiva que leva a uma abundância de produtos,
pois é dado algo que vai se multiplicar e eventualmente retornar a seu
doador na próxima colheita.
As atuais histórias sobre o monge São João Maria,
freqüentemente contadas pelos mais velhos e, portanto, presentes no
cotidiano e no imaginário das pessoas, também possuem por pano de
fundo uma moral similar ao mito de Nhar. A maioria das histórias que
ouvi sobre o monge contava sobre infortúnios, principalmente relativos
à saúde (GHIGGI, 2006), que recaem sobre as pessoas que não lhe
ajudam. É possível também perceber esse valor na lenda da latinha ou
“panelinha” de São João Maria, da qual compartilha com todos os
presentes, saciando a fome mesmo que a comida seja pouca.
Em entrevista, D. Diva me contou sobre a história de uma
mulher que lhe negou comida. São João Maria teria passado na casa
dessa mulher e pedido um pedaço de pão. Ela lhe jogou o pão por cima
do portão, caindo no chão. O monge humildemente recolheu o pão do
chão e levou consigo, deixando-o depois na forquilha de uma árvore
próxima à uma ponte. Ele então foi para a beira do rio, curar as pessoas
que iam lhe procurar. A mulher então ficou sabendo que um curandeiro
estava na região, e como ela sofria de uma grave enfermidade, foi se
consultar. Chegando na beira do rio descobriu que o curandeiro se
tratava do mendigo para quem ela atirou o pedaço de pão. Ela se
surpreendeu e pediu-lhe perdão. São João Maria disse que iria curá-la,
indicando-lhe seu remédio: Sabe aquele pedaço de pão que você jogou,
eu não comi ele, coloquei na forquilha da árvore ao lado da ponte. e
coma desse pão que você será curada. A mulher foi e encontrou o pão
na forquilha, embolorado, comeu do pão e curou-se da sua
enfermidade
Tanto nas atuais histórias sobre São João Maria como nos mitos
fundadores da sociedade Kaingáng, as pessoas avarentas ou egoístas são
castigadas por suas atitudes, porém, após mudarem sua conduta esses
infortúnios são revertidos.
3.7 - Sobre compartilhar a comida forte
Passemos às práticas cotidianas desses discursos: a doação de
comida para vizinhos, parentes ou quem necessite. Ao perguntar sobre a
fome na área indígena, muitas pessoas diziam que não existe, pois todos
122
na família reserva
59
se ajudam, não permitindo que ninguém passe
fome. Em uma ocasião, enquanto conversava com uma colaboradora,
parou uma pessoa na frente de sua casa, com uma sacola plástica cheia
de vários pacotes de comida. A colaboradora deu-lhe então um pacote
de farinha de milho. Perguntei-lhe quem era e ela contou-me que era a
“Mudinha”, que sempre passa pedindo comida e todos ajudam, pois ela
parou de trabalhar. Falou também que seu irmão a surra e gasta todo o
dinheiro que ganham em cachaça. Em outra ocasião parou a Mudinha na
porta da casa de outro colaborador, e sua mulher deu-lhe uma sacola de
roupas. Perguntei então para outras pessoas sobre a Mudinha, que me
confirmaram que ela passa quase todos os dias pelas casas da aldeia
Sede, e que muitos a ajudam. Disseram que ela recebe aposentadoria,
mas que é costume passar pedindo, que ela não podia trabalhar e que
seus irmãos eram alcoólatras, por isso as pessoas lhe ajudavam.
A “Mudinha” recebendo uma sacola com comida
59
É importante problematizarmos a questão do parentesco, pois diversas vezes foi dito que na
reserva são todos parentes de certo modo.
123
A premissa da generosidade, entretanto, não se aplica às
relações comerciais das bodegas, que são de donos Kaingáng, pois
dificilmente vendem fiado seu produto, talvez pela inadimplência que
essa prática pode trazer. Um senhor que foi dono de bodega me disse
que apesar de alguns compradores pedirem para comprar fiado,
alegando que o filho estava passando fome, ele nunca vendia, pois “a
gente tem dos outros, mas os outros nunca têm da gente”. Porém,
enquanto conversávamos, a Mudinha parou na porta de sua casa, e sua
mulher deu-lhe uma sacola de roupas. A moral da generosidade é
desafiada ao se aproximar da lógica do capital, pois nesse contexto
vender fiado seria como dar o produto, e provavelmente não haveria
retorno em dinheiro no futuro, apenas em produtos que a pessoa poderia
vir a ter em excesso, caso plantasse algo (e dinheiro é um bem escasso,
como argumentado por Reed, 1995).
Falando sobre troca de produto por produto, é muito comum a
prática do “brique”, a troca de uma coisa por outra, como escambo.
Durante a pesquisa sempre ouvi as pessoas dizerem que “briqueou” uma
coisa por outra, até mesmo o local de residência. Seu Roquinho, por
exemplo, contou-me que planta feijão, milho e mandioca, “tudo para o
consumo”, mas também faz brique do que sobra por outros produtos que
lhe faltam ou por dinheiro. Caso a pessoa precise de um determinado
produto, mas não tenha nada que interesse à outra parte para oferecer em
troca, o dinheiro torna-se um produto como outro qualquer, pois poderá
ser convertido naquilo que seja necessário. O dinheiro não é um bem
para ser acumulado, porém para ser usado conforme a necessidade.
Como falou um senhor Kaingáng, referindo-se a sua aposentadoria:
“agora tô comendo o papel que ganho do governo”.
Algo que também nos remete a esse assunto é o episódio do CD,
distribuído no período eleitoral. Em uma ocasião, numa roda de
chimarrão em que havia fóg e Kaingáng conversando sobre esse CD, no
qual o fóg financiador de campanha política diz que os índios, diferente
dos italianos, trabalham pensando apenas no que vão comer hoje, não se
preocupando com o amanhã (vide transcrição nas páginas 43-44). Em
meio a certa polêmica, os Kaingáng concordaram com o fóg, dizendo
que o índio “come tudo de uma vez”, me dando o exemplo de uma festa
em que havia tanta comida, que se comeu carne de porco até que todos
passaram mal.
Diferente de outros grupos indígenas, como descrito por Overing
(1991) por exemplo, a gula não é considerada um comportamento
inadequado entre os Kaingáng. A menos que a comida seja escassa, e
124
principalmente quando uma ocasião em que se pode comer
fartamente, é bem visto que o seja feito, sendo sinal de que a comida
está boa. Como brincou um interlocutor certa vez, quando íamos para
um almoço oferecido pelo projeto de pesquisa que participei em 2005:
“Vamos comer uns cinco quilos”. Porém, quando a comida ou a carne
são escassas, divide-se a fim de matar a fome de todos, deixando sempre
mais para os homens mais velhos da casa
60
.
3.8 - Considerações sobre esse capítulo
O costume de dar comida plantada pela própria pessoa, mudas,
sementes e “comida antiga”, pode ser compreendida como uma maneira
de fortalecer o corpo social e também os corpos individuais. Incentivar a
produção e consumo de comida “forte”, além de fortalecer o corpo
social e suas relações tradicionais, é uma maneira de tornar os corpos
fortes e menos suscetíveis a doenças, sendo também uma prática de
auto-atenção no sentido estrito (MENÉNDEZ, 2003). A própria
realização de jogos e festas é também um modo de auto-atenção no
sentido amplo, a qual fortalece todo o corpo social. Essas práticas
constituem-se, portanto, como práticas de auto-atenção no sentido
amplo do grupo como um todo.
A moral da generosidade e o modo de distribuição de comida
que ela acarreta também é uma prática de auto-atenção, tanto no em seu
sentido amplo como estrito (MENÉNDEZ, 2003). Essa moral e suas
práticas tornam reduzidos os casos de pessoas que realmente passam
fome, pois estar inserido nesse jogo de relações permite que se peça
comida a um vizinho ou parente em caso de necessidade, a qual
provavelmente não será negada. São muito mal vistos, por exemplo, os
filhos que não cuidam bem de seus pais idosos ou não lhe dão comida
de maneira adequada. Do mesmo modo, são mal vistos os pais que não
dão comida ou não cuidam adequadamente de seus filhos. Os poucos
casos de fome relatados por meus colaboradores foram atribuídos à
bebida: os pais bêbados não alimentariam seus filhos direito, além de
que não teriam dinheiro para comprar comida, pois gastariam tudo em
bebida ou até mesmo trocariam comida por cachaça. Enquanto realizei a
pesquisa de campo pude ver o drama social (TURNER, 2008) que
uma situação dessas acarretou, chegando ao ponto de tirarem a filha de
60
Borba descreve a mesma coisa em 1908: “Quando teem o que comer, são grande comilões;
porém, o pouco também basta a muitos, e cada um satisfaz-se, às vezes, com um bocado”
(Borba, 1908:10)
125
uma senhora com auxílio do conselho tutelar, sob alegações de que ela
estaria bêbada todo o dia e, portanto, não cuidaria adequadamente de seu
filho.
Considerações Finais
Ao longo do trabalho podemos perceber como a alimentação
dos Kaingáng da TI Xapecó foi influenciada pelo histórico do contato
com a sociedade ocidental e as frentes de expansão capitalista
(CARDOSO DE OLIVEIRA, 1972), principalmente devido ao
desmatamento ocasionado no exíguo território em que foram
confinados, mas também pelo acesso a produtos industrializados.
Decorrente desse processo histórico, a condição nutricional e de saúde
dos Kaingáng é precária, especialmente se comparada aos não-índios
que habitam próximos à TI, conforme descrito na página 34 segundo
as pesquisas de Höckerberg et al. (2001) e Leite (1995).
A distribuição de cestas básicas é de grande ajuda à população
da área indígena, porém essa prática gera uma dependência do modo
ocidental de produção e consumo, podendo ser considerada
“paternalista”. As cestas básicas, bem como a distribuição de sementes
geram a dependência de seu fornecimento, como pontuado por Bloemer
e Nacke:
[Um] aspecto a ser ressaltado diz respeito à perda
da autonomia dos grupos familiares sobre o
processo produtivo. Passam a depender
diretamente de políticas governamentais que
atendam às suas necessidades para produzir dentro
do novo modelo. Esta dependência foi registrada
ao longo do processo dos recorrentes projetos
desenvolvimentistas implementados por meio da
atuação assistencialista histórica da Funai. Assim,
a cada safra os Kaingáng dependem de
fornecimento de sementes e insumos agrícolas
destinados à correção de solo, e ficam à mercê,
muitas vezes, de auxílios provenientes de órgãos
municipais, estaduais ou de associações com
agricultores regionais para a implementação de
suas lavouras (Bloemer e Nacke, 2009:92).
Outro aspecto a ser problematizado é como esta configura uma
prática política, sendo uma maneira do órgão tutelador (a FUNAI)
conseguir credibilidade, tanto junto aos índios quanto aos olhos da
sociedade nacional. Como são distribuídas pela prefeitura do município
126
(responsável pelo transporte e distribuição das mesmas), é utilizada
também como ferramenta política pelo governo municipal em
momentos de campanha eleitoral.
A distribuição é aceita de bom grado por parte dos Kaingáng,
formando-se uma enorme fila para receber as cestas básicas. Mas
devemos problematizar a prática paliativa de distribuição de cestas
básicas. Enquanto os Kaingáng mais velhos falam que o mais adequado
é voltarem a comer “comida forte” e sem agrotóxicos, a doação de
cestas básicas da FUNAI com comida industrializada (portanto “fraca” e
“cheia de venenos”) contradiz o discurso nativo sobre saúde e
construção de corpos “fortes”. Se refletirmos sobre o discurso nativo de
que a comida “do branco” ou industrializada é “fraca” e causadora de
doenças (ou corpos mais fracos e suscetíveis a ficarem doentes),
podemos questionar seriamente essa prática de intervenção. Esta é uma
prática de atenção não-diferenciada, que a cesta básica fornecida é a
mesma dada às famílias de populações não-índigenas, sendo que seu
conteúdo contradiz o discurso nativo sobre o que é uma alimentação
saudável. A nutricionista que atua na TI conseguiu alterar um pouco o
conteúdo da cesta, em poucos itens, incluindo leite, frutas e açúcar
amarelo e eliminando os sucos artificiais. Foi apenas uma pequena
mudança e, segundo ela, com grandes dificuldades burocráticas para
realizá-la, já que teve que recorrer a “Brasília” (provavelmente à FUNAI
ou FUNASA).
Muitos dos profissionais de saúde atribuem os problemas
nutricionais dos Kaingáng, bem como dos povos indígenas em geral, ao
fato de que os índios “não sabemescolher seus alimentos. É dito que
“práticas alimentares inadequadas”, desde a aquisição (ou seja, os
índios “não sabem escolher” os alimentos e compram produtos com
validade expirada) até o preparo e consumo. Sobre o preparo, me foi
dito por um dos profissionais que atua na TI que os índios não lavam os
alimentos de maneira adequada e não fervem a água que consomem.
Sobre o consumo um discurso ainda mais etnocêntrico e higienicista,
que afirma que eles dividem seu prato com os cachorros. Além disso,
são atribuídos pelos profissionais das equipes de saúde que atuam na TI
aspectos depreciativos à “comida forte”, como é o caso do “virado” e o
costume de se preparar a comida na banha de porco, os quais são
considerados muito gordurosos, com muito colesterol e portanto
possíveis causadores de doenças. Conforme o trabalho realizado por
Langdon et al. (2006), do qual fui um dos assistentes de pesquisa, as
127
queixas sobre os profissionais das equipes de saúde por parte dos
indígenas são pontuais:
os AIS de Xapecó lembravam de um enfermeiro
que a seus olhos demonstrou uma atitude de
preconceito quando argumentou contra o uso do
fogo de chão nas casas indígenas, acusando-os de
sujos: “O índio não é sujo; todos nós têm roupa
limpa no varal (Langdon et al., 2006:2642)
Tal preconceito por parte dos profissionais de saúde que atuam
entre as populações indígenas expressa uma dupla hierarquia: a do
branco em relação ao índio, considerando-os sujos e ignorantes, e outra,
do saber biomédico frente à medicina indígena, sendo o primeiro
considerado superior às outras formas de conhecimento (LANGDON,
2000).
No intuito de alterar essas práticas, vistas como prejudiciais pelos
profissionais de saúde, são feitas campanhas de orientações desde a
aquisição (como olhar a data de validade e comprar mais frutas e
verduras) até o preparo (recomendando práticas de higiene como
limpeza da cozinha, lavar as mãos, usar água fervida, lavar as mãos das
crianças, etc.).
O discurso de ensinar ou culpabilizar os índios (particularmente
as mães), sem levar em conta as circunstâncias históricas do contato,
não considera o campo de possibilidades (VELHO, 1994) em que os
Kaingáng encontram-se inseridos. Uma interpretação de sua atual
situação nutricional deveria se ater mais às condições de vida na aldeia,
como as precárias condições de habitação e saneamento, do que
simplesmente culpabilizar suas práticas alimentares por um olhar
etnocêntrico.
Não podemos negar o cruel histórico do contato com a
sociedade ocidental, o qual acarreta conseqüências nefastas ainda
atualmente. A condição nutricional (no qual se inclui o acesso aos
alimentos, tanto em quantidade como qualidade) é determinada por
múltiplos fatores, como proposto por Leite (2007). O autor pontua que
os déficits nutricionais em áreas indígenas não são associados apenas à
escassez de alimentos, mas também às condições de saneamento básico
das aldeias e o acesso aos serviços de saúde. Melhorar tais aspectos da
vida nas aldeias far-se-ia mais frutífero do que campanhas de “educação
nutricional embasadas em nossas concepções do que é
“nutricionalmente adequado”.
128
De acordo com Leite (2005, 2007), não podemos compreender
a mudança da alimentação nas sociedades indígenas apenas como uma
mera “aculturação”, na qual a alimentação “antiga” é substituída pela
“nova” e os alimentos “tradicionais” são substituídos pelos
“introduzidos”. O autor demonstra como ocorre a adoção de novos
elementos, muitas vezes sendo incorporados aos “tradicionais”, segundo
a lógica e as escolhas alimentares nativas, processo que quebra com a
dicotomia alimentos “tradicionais” vs “introduzidos” O autor não os
Warí como vítimas passivas das transformações”, mas como agentes
que “têm um papel central na definição de suas trajetórias, pensando e
decidindo, isto é, optando ativamente por suas condutas” (Leite, 2005:7-
8). Ou seja, ao incorporar um determinado alimento em seu cardápio,
essa é uma escolha feita segundo a lógica nativa, e não devido à uma
“imposição” do mundo ocidental. Reconhecendo a dinamicidade da
cultura (GEERTZ, 1989), a mudança na alimentação deve ser vista
como uma permanência da cultura (LEITE 2008), dado que as
mudanças ocorrem no sistema simbólico nativo, de acordo com sua
própria lógica.
Murrieta (1998) propõe que não devemos nos ater apenas aos
processos micro (simbólicos, individuais, sociais) ou macro
(determinantes ecológicos, econômicos, históricos e políticos), mas
avaliar a complexa interação entre esses múltiplos fatores influenciando
as escolhas alimentares. Nas palavras do autor, escolhas alimentares
estão imbricadas em um “processo infinitamente mais complexo que
um mero reflexo de forças produtivas; onde fatores "limitantes",
ecológicos e econômicos, são traduzidos localmente dentro de um
número de variáveis restritas, onde opções e preferências
movimentam-se e são (também!) articuladas emocional e
culturalmente” (Murietta, 1998:25).
As escolhas e práticas são determinadas pelos fatores de
ordenamento simbólico da realidade, mas também pelas limitações e
possibilidades impostas pelo contexto histórico, político e ambiental. O
campo de possibilidades atual foi dado historicamente, com o
desmatamento da área e o confinamento em um território restrito. A
prática de comer “miúdo de frango” industrializado, comum entre as
famílias mais desfavorecidas da TI, não pode ser compreendida
simplesmente como uma escolha dos Kaingáng, porém como o
permitido por seu campo de possibilidades econômicas de se comer
carne todos os dias (lembrando novamente que para os Kaingáng “se
129
não tem carne, não tem comida” e que preferem comer carne de porco à
carne de frango, ou mesmo carne de frango ao invés de miúdos).
Percebemos neste trabalho como diversas práticas nativas,
como troca ou doação de alimentos e a valorização das comidas
“antigas”, constituem-se como práticas de auto-atenção, tanto no sentido
amplo como estrito. Entretanto, algumas dessas práticas são criticadas
pelos profissionais de saúde. Enquanto os Kaingáng consideram a
comida “forte” saudável e boa para a construção de um corpo forte (caso
não seja consumida por uma pessoa que esteja doente, enfraquecida), os
profissionais de saúde as condenam, atribuindo aspectos depreciativos a
esses alimentos. Em suma, para que se efetive uma atenção diferenciada
à condição nutricional dos povos indígenas é preciso que seja revista a
perspectiva biomédica que considera as escolhas dos alimentos ou
modos de preparo nativos enquanto “práticas inadequadas de
alimentação”. De igual modo, é necessária uma reformulação das
práticas paliativas de doação de alimentos, não adequados ao que os
nativos consideram “saudáveis”. Na perspectiva nativa, a comida doada
nas cestas básicas é considerada “fraca” e “cheia de veneno” pelos
Kaingáng mais velhos, um veneno que age em longo prazo, constituindo
corpos fracos e mais suscetíveis ao adoecimento.
Além de culturalmente diferenciadas, futuras ações de
intervenção deveriam ser orientadas pelas escolhas e anseios nativos, os
quais se guiam por diretrizes mais amplas e focadas em longo prazo do
que ações paliativas. Podemos usar como exemplo a recomendação de
SJM de voltar a plantar “as comidas antigas”. Além de ser culturalmente
adequada, essa seria uma prática ecologicamente correta, dado que as
“comidas antigas” são consideradas saudáveis pelo sistema médico
nativo e seu cultivo não demanda agrotóxico como o milho e a soja
híbridos, amplamente cultivados na TI. Nesse contexto, caso não seja
estimulado esse modo de agricultura tradicional, em detrimento do
cultivo de milho e soja transgênicos cultivados para a venda no mercado
nacional e internacional (e que mesmo assim não trazem grandes
benefícios econômicos aos Kaingáng), as profecias de São João Maria
sobre a comida e o meio ambiente, sempre lembradas pelos Kaingáng
mais velhos, podem vir a se tornar reais.
130
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Ledson Kurtz. Dinâmica religiosa entre os Kaingang do
Posto Indígena de Xapecó. 1998. 165 f. Dissertação (Mestrado em
Antropologia Social) PPGAS, UFSC, Florianópolis, 1998.
______. Análise Antropológica das Igrejas Cristãs entre os
Kaingáng Baseada na Etnografia, na Cosmologia e no Dualismo.
2004. 278 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) PPGAS,
UFSC, Florianópolis, 2004a.
______. "História dos antigos" como objeto de reflexão sobre o
cristianismo entre os Kaingáng. In: K. Tommasino; Lúcio T. Mota.
Francisco S. Noelli (Orgs.). Novas contribuições aos Estudos
Interdisciplinares dos Kaingáng. Londrina: Editora da EU, 2004b.
p.285-316.
AQUINO, Alexandre Magno de. Ën Ga Uyg Ën Tóg (“Nós
Conquistamos Nossas Terras”): Os Kaingang No Litoral Do Rio
Grande Do Sul. 2008. 213 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia
Social) PPGAS, UnB, Brasília, 2008.
BATESON, Gregory. "A Theory of Play and Fantasy" in Steps to an
Ecology of Mind. Chicago: University of Chicago Press, 1972. 191p.
BLOMER, N. M.S.; NACKE. A. A precarização de políticas públicas e
suas repercussões na auto-sustentação dos kaingang do oeste
catarinense. Ilha. Revista de Antropologia, Florianópolis, (no prelo),
2009
______. As áreas indígenas Kaingáng no Oeste Catarinense. In: Neusa
Maria Sens Bloemer; Aneliese Nacke; Arlene Renk; Leonel Piovezana.
(Org.). Os Kaingáng no Oeste Catarinense: tradição e atualidade.
Chapecó: Editora Argos, 2007, p. 43-78.
BORBA, Telêmaco M. Observações sobre os indígenas do Estado do
Paraná. Revista do Museu Paulista, São Paulo, v.6, p. 53-62, 1904.
______. Actualidade Indígena. Curitiba: Impressora Paranaense, 1908.
172 p.
BRIGGS, Charles. Learning How to Ask: A Sociolinguistic Appraisal
of the Role of the Interview in Social Science Research. Cambridge:
Cambridge University Press, 1986. 155p.
CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. A Sociologia do Brasil
indígena. Brasília: Tempo Brasileiro, 1972. 149 p.
______. "O movimento dos conceitos na antropologia". Revista
de Antropologia, São Paulo, v.36, p.13-31, 1993
131
______. O trabalho do antropólogo: Olhar, ouvir, escrever. In: O
trabalho do Antropólogo. Brasília: Paralelo, v.15, 1998, p.17-35
CRÉPEAU, Robert. A contribuição de Sílvio Coelho dos Santos ao
estudo dos Jê do Sul. Ilha. Revista de Antropologia, Florianópolis, (no
prelo), 2009
______. Os Kamé vão sempre primeiro: dualismo social e reciprocidade
entre os Kaingáng. In: Anuário Antropológico. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2005. p. 9-33.
______. A prática do xamanismo entre os Kaingang do Brasil
meridional: uma breve comparação com o xamanismo Bororo.
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 8, n. 18, p. 113-129, dez.
2002.
______. Mito e ritual entre os Indios Kaingáng do Brasil meridional.
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v.3, n. 6, p. 173-186, 1997.
DA MATTA, Roberto. Um Mundo Dividido: A Estrutura Social dos
Índios Apinajé. Pétrópolis:Vozes, 1976. 254p.
D‟ANGELIS, Wilmar da Rocha. Mabilde e seus “apontamentos” sobre
os coroados selvagens: tentando separar informação de mistificação e
preconceitos. In: Reunião Brasileira de Antropologia, 25, 2006, Goiânia.
Anais... Associação Brasileira de Antropologia. 2006.
D´ANGELIS, Wilmar R.; FÓKÂE, Vicente Fernandes.Toldo Imbú. O
cacique Condá, os índios do Xapecó e as terras do Imbú. Série
Documentos, n.3. Chapecó: UNOESC CEOM, 1994. 126p.
DIEHL, Eliana E. Entendimentos, práticas e contextos sóciopolíticos
do uso de medicamentos entre os Kaingáng (Terra Indígena Xapecó,
Santa Catarina, Brasil). 2001. 230f. Tese (Doutorado em Saúde Pública)
ENSP, Fiocruz,, Rio de Janeiro, 2001
DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo. São Paulo: Perspectiva, 1996.
216p.
______. Deciphering a Meal. In: Implicit Meanings: Selected Essays in
Anthropology. London: Routledge & Kegan Paul. 1975.231p.
EMERSON, Robert M., Rachel I. FRETZ, and Linda L. SHAW. 1995.
Writing Ethnographic Fieldnotes. Chicago: The University of
Chicago Press. 272p.
132
FASSHEBER, José Ronaldo Mendonça.. Etno-Desporto Indigena:
contribuições da antropologia social a partir da experiência entre os
Kaingáng. 2006. 172f. Tese (Doutorado em Educação Física) 2 FEF,
UNICAMP, Campinas, 2006.
FAUSTO, Carlos. Feasting on People: Cannibalism and Commensality
in Amazonia. Current Anthropology, Chicago v. 28, p. 497-530, 2007.
FERNANDES, Ricardo Cid. O 15 e o 23: políticas e políticos Kaingáng.
Campos, Curitiba, v.7, n.2, p. 21-46, 2006.
FUNASA. Atenção à Saúde da População Indígena: Uma proposta de
integração ao Sistema Único de Saúde em Santa Catarina. Abril de
2006. Disponível em:
<http://www.saude.sc.gov.br/geral/planos/programas_e_projetos/saude_
indigena/PLANO%20ESTADUAL%20DE%20ATENÇÃO%20À%20S
AÚDE%20INDÍGENA%20versão%20abril%202006.pdf>. Acesso em:
20 out. 2009
FUNASA. Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional Indígena
(Sisvan - Indígena). Importância para a Funasa, definição e objetivos.
Disponível em:<
http://www.funasa.gov.br/internet/vigSubII_vigAlimentar.asp>. Acesso
em: 20 out. 2009
GARNELO, Luiza. Políticas de Saúde Indígena na Amazônia: Gestão e
contradições. In: Elenise Scherer e José Aldemir de Oliveira. (Org.).
Amazônia: Políticas Públicas e Diversidade Cultural. 1 ed. Rio de
Janeiro: Garamond, 2006, p. 133-160.
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC.
1989. 326p.
GHIGGI, Ari. Representações e Práticas no Tratamento de
Infortúnios entre os Kaingáng Crentes da Aldeia Sede da Terra
Indígena Xapecó. 2006. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação
em Ciências Sociais), Departamento de Sociologis e Ciências Política,
UFSC, Florianópolis, 2006.
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A Fome e o Paladar: a
antropologia nativa de Luis da Câmara Cascudo. Estudos Históricos
(Rio de Janeiro), Rio de Janeiro, v. 33, p. 40-50. 2004.
______. A escassez e a fartura: categorias cosmológicas e
subjetividade nas festas do Divino Espírito Santo entre imigrantes
açorianos no Rio de Janeiro In: Cavalcanti, Maria Laura V.C.;
Gonçalves, José Reginaldo S.. (Org.). As festas e os dias: ritos e
sociabilidades festivas. Rio de Janeiro: Contracapa, 2009. p.11-35.
133
GOW, Peter. The Perverse Child: Desire in a Native Amazonian
Subsistence Economy. Man, Illinois, v. 24, n. 4, p.567-582, dec. 1989.
GREENE, Shane. The Shaman‟s Needle: development, shamanic
agency, and intermedicality in Aguaruna Lands, Peru. American
Ethnologist, Illinois, v.25, n.4, p.634-658, 1998.
HAVERROTH, Moacir. Kaingáng: um estudo etnobotânico - uso e
classificação das plantas cultivadas na área indígena Xapecó (oeste de
SC). 1997. 192f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) -
PPGAS, UFSC, Florianópolis, 1997.
HOKERBERG, Yara Hahr Marques; DUCHIADE, Milena Piraccini
and BARCELLOS, Christovam. Organização e qualidade da
assistência à saúde dos índios Kaingáng do Rio Grande do Sul, Brasil.
Cadernos de Saúde Pública [online]. v.17, n.2. p.261-272. 2001.
Acesso em: 28 out. 2009.
ISA - Instituto Socioambiental, 2009. Kaingáng. Disponível em:<
http://pib.socioambiental.org/pt/povo/kaingang/283> Acesso em 07
out.2009.
KENSINGER K., KRACKE W. 1981. Working Papers on South
American Indians: Food Taboos in Lowland South America.
Bennington:Vermont, 1981.198p.
KÜHL, Adriana Masiero et al. Perfil nutricional e fatores associados à
ocorrência de desnutrição entre crianças indígenas Kaingáng da Terra
Indígena de Mangueirinha, Paraná, Brasil. Cadernos de Saúde Pública,
Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, p.409-420, fev. 2009.
LABIAK, Araci Maria. Frutos do Céu e Frutos da Terra: Aspectos da
Cosmologia Kanamari no Warapekom 1997. 164f. Dissertação
(Mestrado em Antropologia Social) - PPGAS, UFSC, Florianópolis,
1997.
LAGROU, Elsje Maria. "Homesickness and the Cashinahua self: a
reflection on the embodied condition of relatedness". In Overing, J. &
Passes, A. Eds. The anthropology of Love and Anger: The Aesthetics
of Conviviality in Native Amazonia. London & New York: Routledge,
2000, p. 152-169.
______. O que nos diz a arte Kaxinawa sobre a Relação entre Identidade
e Alteridade? Mana ,v.8, n.1, p. 29-61. 2002.
LANGDON, Esther Jean. Saúde e Povos Indígenas: Os desafios na
virada do século. Antropologia em Primeira Mão, No. 41. Florianópolis,
SC: Programa de Pós-Graduação em Antropologia, UFSC, 2000
______. Uma avaliação crítica da atenção diferenciada e a colaboração
entre a antropologia e profissionais de saúde. In: LANGDON, E. J.;
134
GARNELO, L. (Org.). Saúde dos povos indígenas: reflexões sobre
antropologia participativa. Rio de Janeiro: ContraCapa: ABA,2004, p.
33-51.
______. Feasting on People. Comments E. Jean Langdon. Current
Anthropology, v. 48, pp. 517-518. 2007.
LANGDON, Esther Jean.; DIEHL, Eliana E. Participação e autonomia
nos espaços interculturais de Saúde Indígena: reflexões a partir do sul do
Brasil. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 16, n. 2, p.19-36, 2007
LANGDON, Esther Jean et al. . A participação dos agentes indígenas de
saúde nos serviços de atenção à saúde: a experiência em Santa Catarina,
Brasil. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 22, n. 12, Dec. 2006 .
LEITE, Jurandyr Carvalho Ferrari. Sul e Sudeste: Fome e os equívocos
da ação indigenista. In: Ricardo Verdum (org.). Mapa da Fome entre
os Povos Indígenas no Brasil (II). Contribuição à Formulação de
Políticas de Segurança Alimentar Sustentáveis. Brasília: Instituto de
Estudos Socioeconômicos, Museu Nacional, Associação Nacional de
Apoio ao Índio/Bahia, 1995. p.40-44.
LEITE, Maurício Soares. Transformação e Persistência: Antropologia
da Alimentação e Nutrição em uma Sociedade Indígena Amazônica. 1.
ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 2007. 239p.
_______. Transformação e persistência: notas sobre práticas
alimentares, cosmologias e mudanças entre povos indígenas. In: 26a
Reunião Brasileira de Antropologia, 2008, Porto Seguro. CD ROM
(vol I) da 25ª Reunião Brasileira de Antropologia. 2008.
______. 'Você quando chegou aqui não entendia nada' Do estudo de
caso Warí a uma reflexão sobre as abordagens em pesquisas sobre
alimentação e nutrição de povos indígenas.In: Congresso Brasileiro de
Ciências Sociais e Humanas em Saúde da Associação Brasileira de Pós-
Graduação em Saúde Coletiva, 3, 2005, Florianópolis. Anais.... Rio de
Janeiro: ABRASCO, 2005.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Le triangle culinaire. L 'Arc. 26:19-29, 1965.
______. Mitológicas I: O Cru e o Cozido. São Paulo: Cosac Naify,
2004a.
______. Mitológicas II: Do Mel às Cinzas. São Paulo: Cosac Naify,
2004b.
______. Mitológicas III: A Origem dos Modos à Mesa. São Paulo:
Cosac Naify, 2006.
MAFFESOLI, Michel. O mistério da conjunção: ensaios sobre
comunicação, corpo e socialidade. Porto Alegre: Sulina. 2005. 104p.
135
MANFROI, Ninarosa Mozzato da Silva. A história dos Kaingáng da
terra indígena Xapecó (SC) nos artigos de Antônio Selistre de
Campos : Jornal a Voz de Chapecó 1939/1952. 2008. 143f. Dissertação
(Mestrado História) Programa de Pós-Graduação em História, UFSC,
Florianópolis, 2008.
MARCUS, George. Ethnography in/of the world system: the emergence
of multi-sited ethnography. Annual Review of Anthropology, n 24, p.
95-117, 1995
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a Dádiva. Lisboa: Perspectiva do
Homem. 2001. 70p.
MAUÉS, Raimundo Heraldo; MAUÉS, Maria Angelica Motta. O
modelo da reima: representações alimentares em uma comunidade
amazônica. Anuário Antropológico, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p.120-
147, 1978.
MCCALLUM, Cecília. Alteridade e Sociabilidade Kaxinauá:
perspectivas de uma antropologia da vida diária. Revista Brasileira de
Ciências Sociais, São Paulo, v. 13, n. 38. p.127-133, 1998.
MELATTI, Delvair. Aspectos da organização Social dos Kaingáng
paulistas. São Paulo: FUNAI, 1976.172p.
MENENDEZ, Eduardo L. Modelos de atención de los padecimientos:
de exclusiones teóricas y articulaciones prácticas. Ciência e Saúde
Coletiva, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p.185-208, 2003.
MINTZ, S. W.; DU BOIS, C. M. The anthropology of food and eating.
Annual Review of Anthropology, n.31, p. 99-119, 2002.
MURRIETA, R. S. S. O Dilema do Papa-Chibé: Escolhas Alimentares,
Nutrição e Práticas de Intervenção na Ilha de Ituqui, Pará, Brasil.
Revista de Antropologia , São Paulo, v. 41, n. 1, p. 97-150, 1998.
NACKE, Anelise. O índio e a terra : a luta pela sobrevivência no Posto
Indígena Xapecó-SC. 1983 190f. Dissertação (Mestrado em
Antropologia Social). PPGAS, UFSC, Florianópolis, 1983.
OLIVEIRA, Maria Conceição de. Percepção Corpórea e a questão da
dieta em momentos de Liminaridade. In: I Conferência Macro-Regional
sobre Prevenção de DST/Aids entre povos indigenas, 1998, Londrina.
Anais.... Brasília : Editado pelo Ministério da Saúde - Programa
Nacional DST/Aids, 1998. v. I. p. 69-78.
______. Os curadores Kaingáng e a recriação de suas práticas:
estudo de caso na Aldeia Xapecó (Oeste de SC). 1997. 246f. Dissertação
(Mestrado em Antropologia Social) - PPGAS, UFSC. Florianópolis,
1997a.
136
______ . Os Especialistas Kaingáng e os Seres da Natureza:
curadores da aldeia Xapecó - oeste de S.C.. 1. ed. Florianópolis:
Fundação Catarinense de Cultura - FCC Edições, Imprensa Oficial do
Estado de Santa Catarina, 1996. 102 p
OLIVEIRA, Philippe Hanna de Almeida. Rádio Kahnru - O processo
de implementação de uma rádio comunitária na TI Xapecó. 2005.
Trabalho de Conclusão de Curso. (Graduação em Ciências Sociais)
CFH, UFSC, Florianópolis, 2005.
_______. Aspectos da vida diária Kaingáng: Papéis de Gênero na
Aquisição, Distribuição e Preparo dos Alimentos. In: Seminário
Internacional Fazendo Gênero 8, 2008, Florianópolis. Anais.
Florianópolis: Editora Mulheres, 2008.
OVERING, Joanna & Alan Passes., (eds.) 2000. "Introduction:
Conviviality and the opening up of Amazonia anthropology". In: The
Anthropology of Love and Anger: the aesthetics of conviviality in
native Amazonia. London: Routledge, 2000. p.9-14.
OVERING, Joanna. A estética da produção: o senso de comunidade
entre os Cubeo e os Piaroa. Revista de Antropologia, São Paulo, n. 34,
p. 7-33, 1991.
______. Elogio do Cotidiano: A Confiança e a Arte da Vida Social em
uma Comunidade Amazônica. Mana, Rio de Janeirs, v.5, n.1, p.81-107,
1999.
______. O fétido odor da morte e os aromas da vida: poética dos saberes
e processo sensorial entre os Piaroa da bacia do Orinoco. Revista de
Antropologia, São Paulo, v.49, n.1, p.19-54, 2006.
PEREIRA, Walmir da Silva. Ferrovia São Paulo - Rio Grande e os
índios Xokleng - relações interétnicas e modernidade no Brasil
meridional. 1995. 195f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social)
PPGAS, UFSC, Florianópolis, 1995.
PIOVEZANA, L. A educação no contexto indígena Kaingang. In:
Leonel Piovezana. (Org.). Os Kaigang no Oeste Catarinense: Tradição
e atualidade. Chapecó: Argos, 2007. p.101-122.
REED, Richard. Household Ethnicity, Household Consumption:
Commodities and the Guarani. Economic Development and Cultural
Change , v.44, n.1, p.129-145, 1995.
RIVAL. L. Seed and Clone: The symbolic and social significance of
bitter manioc cultivation. In: Laura M. Rival & Neil L. Whitehead
(eds.). Beyond the Visible and the Material: the Amerindianization of
society in the work of Peter Riviére. Oxforrd: Oxford University Press,
2001. p.57-79.
137
ROCHA, Cinthia C. 2008. Estudo de avaliação da metodologia
utilizada pelo PRAPEM/ Microbacias 2 junto às populações
indígenas de Santa Catarina. Relatório Final.Florianópolis: EPAGRI,
2008.
______. Adoecer e Curar: Processos da sociabilidade Kaingáng. 2005.
160f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) PPGAS, UFSC,
Florianópolos, 2005.
RODRIGUES, Ayron Dall‟Igna. Línguas brasileiras para o
conhecimento das línguas indígenas. São Paulo: Edições Loyola.1986.
ROSA, Patrícia Carvalho. A Noção De Pessoa E A Construção De
Corpos Kaingang Na Sociedade Contemporânea. Espaço Ameríndio,
Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 15-43, jan./jun. 2008.
ROSA, Rogério Réus Gonçalves da. "Os Kujá são diferentes": um
estudo etnológico do complexo xamânico dos Kaingang da terra
indígena Votouro. 2005. 416f. Tese (Doutorado em Antropologia
Social) PPGAS, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto
Alegre, 2005.
EZ, Oscar Calavia. In search of ritual. Tradition, outer world and
bad manners in the Amazon. Journal of the Royal Anthropological
Society, v. 10, n. 1, p.157-173, 2004.
SÁEZ, O. C. ; NAVEIRA, Miguel Carid ; GIL, Laura Pérez. O saber é
estranho e amargo. Mitologia e sociologia do conhecimento entre os
Yaminawa.. Revista Campos, Curitiba, v. 4., p.9-28, 2003.
SAHLINS, Marshall. The sadness of sweetness - The native
anthropology of Western Cosmology. Current Anthropology, vol. 37,
n. 3. p.395-415, 1996.
SANTOS, Silvio Coelho dos. Indigenismo e expansão capitalista: faces
da agonia Kaingáng. Trabalho apresentado para o concurso publico de
professor titular em Antropologia. Florianópolis, UFSC, 1979.
________. A integração do índio na sociedade regional.
Florianópolis: Editora da UFSC, 1970. 138p.
________.Os Grupos em Santa Catarina. Projeto de pesquisa. Rio
de Janeiro: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, 1963
SAVOLDI, Adiles. Olhares sobre a Terra Indígena Xapecó. Cadernos
do CEOM, Chapecó, v.19, n.24, p. 53-81, jul.2006.
SEEGER, Anthony, DA MATTA, Roberto e VIVEIROS DE CASTRO,
Eduardo. A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras.
In: J. Pacheco de Oliveira Filho (ed.), Sociedades indígenas e
138
indigenismo no Brasil. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ/Marco Zero,
1987 [1979]. p.123-154.
SEEGER, Anthony. Corporação e corporalidade: ideologia de
concepção e descendência. In: Seeger, A (Orgs). Os Índios e Nós:
estudos sobre sociedades tribais brasileiras. Rio de Janeiro: Campus,
1980. p. 127-131.
SILVA, Sergio Baptista da. Dualismo e cosmologia Kaingáng: o xamã e
o domínio da floresta. Horizontes Antropológicos [online]. v.8, n.18,
p. 189-209, 2002.
STRATHERN, Marilyn. The Gender of the Gift. California:
University of California Press, 1988. 422p.
TASSINARI, Antonella. Contribuição à história e à etnologia do
baixo Oiapoque: a composição das famílias Karipuna e a estruturação
das redes de troca. 1998. 365f. Tese (Doutorado em Antropologia
Social) PPGAS, USP, São Paulo, 1998.
TEMPESTA, G. A. A produção continuada dos corpos. Práticas de
resguardo entre os Wapichana e os Macuxi em Roraima. 2004.
Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) IFCH, UNICAMP,
Campinas: 2004.
TOMMASINO, K. Território e territorialidade Kaingang Resistência
cultural e historicidade do grupo Jê. In: MOTA, L. T.; NOELLI, F. S.;
TOMMASINO, K. (orgs) Uri e Waxi Estudos Interdisciplinares dos
Kaingang. Londrina: Eduel, 2000. p.191-226.
TOMMASINO, Kimiye, MOTA, Lúcio Tadeu, NOELLI, Francisco
Silva. Novas Contribuições aos Estudos Interdisciplinares dos
Kaingáng. Londrina: Eduel. 2004. 413p.
TURNER, T. Visual Media, Cultural Politics, and Anthropological
Practice. Some Implications of Recent Uses of Film and Video among
the Kayapo of Brazil. C.V.A. Review, p. 8-13, spring 1990.
TURNER, Victor W. Dramas. Campos e Metáforas. Rio de Janeiro:
EdUFF, 2008. 278p.
______. O processo ritual. Petrópolis: Vozes, 1974 248p.
UZENDOSKI, Michal A. Manioc Beer and Meat: Value, Reproduction,
and Cosmic Substance among the Napo Runa of the Ecuadorian
Amazon. Journal of the Royal Anthropological Institute. v.10, n.4,
p.883-902, 2004.
139
VEIGA, Juracilda. Organização Social e Cosmovisão Kaingáng: uma
introdução ao parentesco, casamento e nominação em uma sociedade
Meridional”. 1994. 217f. Tese (Doutorado em Antropologia Social)
IFCH, UNICAMP, Campinas, 1994.
______. Cosmologia Kaingang e suas práticas rituais Encontro Anual da
Anpocs, 24, 2000, Campinas. Anais. Rio de Janeiro: ANPOCS, 2000.
VELHO, Gilberto. Projeto e Metamorfose: Antropologia das
Sociedades Complexas. Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 1994.
VERDUM, Ricardo (org.) Mapa da Fome entre os Povos Indígenas no
Brasil (II). Contribuição à Formulação de Políticas de Segurança
Alimentar Sustentáveis. Brasília: Instituto de Estudos
Socioeconômicos, Museu Nacional, Associação Nacional de Apoio ao
Índio/Bahia, 1995.79p.
VIEGAS, Susana de Matos. Terra Calada: os Tupinambá na Mata
Atlântica do Sul da Bahia. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007. 344p.
______. Eating with your favorite mother: time and sociality in a South
Amerindian Community (South of Bahia/Brazil). Journal of the Royal
Anthropological Institute. , v.9, n.1, p.21-37, 2003.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Araweté: os deuses canibais. Rio
de Janeiro: ANPOCS, 1986. 744p.
______. Indivíduo e Sociedade no Alto Xingu: Os Yawalapíti.
Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), PPGAS/Museu
Nacional/ UFRJ, Rio de Janeiro, 1977.
______. Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio.
Mana, Rio de Janeiro, v.2/2, p.114-144, 1996.
WIESEMANN, Úrsula Gojtéj. Dicionário Bilingüe Kaingáng -
Português. Curitiba, Brazil: Editora Evangélica Esperança, 2002.
WOORTMAN, Klaas. Hábitos e Ideologias Alimentares em Grupos
Sociais de Baixa Renda. Relatório Final. Série Antropologia v.20,
Brasília: UnB. 1977
140
ANEXOS
Anexo 1: Mito de origem Kaingáng, narrado pelo Cacique Arakxô
a Telêmaco Borba em 1908:
“Em tempos imemoráveis, deu-se um dilúvio que cobriu a terra
inteira, habitada de nossos antepassados. Somente o cume da serra
Krinjinjimbé ( Serra do Mar) sobressaía das águas diluviais. Os
Kaingang, Kaiurucré e Kamé nadavam na direção dela, cada um com
um luminoso tição entre os dentes. Os Kaiurucré e os Kamé cansaram,
afundaram-se e pereceram; suas almas foram habitar o interior da
montanha. Os Kaingang e uns poucos Curutons atingiram com
dificuldade o cume da serra, onde permaneceram uns no chão, outros
nos ramos das árvores porque não acharam mais lugar. Lá passaram uns
dias sem alimento e sem que as águas baixassem. Já esperavam a morte,
quando ouviram o canto das saracuras que traziam cestinhos de terra ,
que deitavam nas águas. Assim, as águas foram recuando devagar. Os
Kaingang clamavam às saracuras que se apressassem. Estas redobraram
suas vozes e pediram aos patos que as ajudassem. Em pouco tempo
conseguiram formar uma planície espaçosa no monte, que dava bastante
campo aos Kaingang, com exceção daqueles que se refugiaram nas
árvores. Estes foram transformados em macacos e os Curutons em
macacos urradores. Desaparecida a inundação, os Kaingang
estabeleceram-se nas proximidades da serra do mar. Os Kaiurucré e os
Kamé , cujas almas moravam no interior da serra, começaram a abrir
caminhos. Depois de muitos trabalhos e fadigas, uns puderam sair de um
lado, os outros do outro. Na abertura de onde saíram os Kaiurucré , teve
sua nascente um belo arroio e não havia pedras; daí veio que eles têm
os pés pequenos. Pelo contrário o caminho dos Kamé levava sobre
terreno pedregoso, daí eles terem os pés compridos. Na noite em que
tinham saído da abertura da serra, acenderam fogo e Kaiurucré formou
de cinzas e carvão tigres e lhes disse: ide e devorai homens e animais ! E
os tigres se foram rugindo. Não tendo mais carvão para pintar, fez de
cinzas as antas e disse-lhes: ide e comei folhas e ramos! Kaiurucré
estava outra vez a formar um animal ; faltavam a estes ainda os dentes, a
língua e umas garras quando apontou o dia. Não tendo mais forças de
dia, pôs-lhe uma vara na boca e disse-lhe: não tendo dentes, vive de
formigas! Isto é a razão porque o tamanduá é um animal não acabado e
imperfeito. Na noite seguinte continuou e formou outros animais, entre
eles as abelhas boas. Kamé também fez animais, porém diversos, para
combater aqueles. Assim ele fez os leões americanos, as cobras
141
venenosas e as vespas. Acabado este trabalho, marcharam e foram se
unir aos Kaingang. (...) Depois de terem chegado a uma grande planície,
reuniram-se e aconselharam-se como deviam casar os filhos. Casaram
primeiro os Kaiurucré com as filhas dos Kamé, e vice-versa. Quando
porém, restavam ainda muitos jovens, casaram-nos com as filhas dos
Kaingang. E daí veio que os Kaiurucré, os Kaingang e os Kamé são
parentes e amigos.”
Anexo 2: Mito de Nhara, por Telêmaco Borba (1908):
142
Anexo 3: Decreto nº 564, de 08 de junho de 1992
PORTARIA 089/PRES, de 05 de fevereiro de 2002.
O PRESIDENTE DA FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO - FUNAI,
no uso das atribuições que lhe são conferidas pelo Estatuto, aprovado
pelo Decreto 564, de 08 de junho de 1992, e tendo em vista o que
consta do Processo 08620-0905/98 e Processo 565/99,
RESOLVE :
Art. Determinar a instauração do Processo Administrativo
Disciplinar, para apurar possíveis irregularidades administrativas
praticadas pelo servidor VALDO CORREIA DA SILVA, Tratorista,
nível NA-A.III, matrícula 0444209, quando do exercício da função
pública de Chefe do Posto Indígena Xapecó, DAS-101.2, jurisdicionado
à Administração Executiva Regional de Chapecó, concernentes:
a) ao arrendamento das Terras Indígenas Xapecó pela Empresa
AGROESTE, e permissão de arrendamentos das terras indígenas, feitos
diretamente pelos índios com os plantadores (não-índios) daquela
região, mediante "contrato", cujo modelo é fornecido na própria sede o
Posto Indígena de Xapecó;
b) seqüestro e cárcere privado de índios e funcionários do DIA
(Documentação Indigenista e Ambiental).
(...)
Art. Conceder o prazo de 60 (sessenta) dias, para a conclusão dos
trabalhos.
Art. Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação.
GLENIO DA COSTA ALVAREZ
Presidente
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo