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(...) na noite em que entrei em Ilhéus, fui a pé dar em uma aldeia que
estava a sete léguas da vila, em alto pequeno, toda cercada de água ao
redor de lagoas e as passamos com muito trabalho e, antes da manhã,
duas horas, dei na aldeia e a destruí e matei todos os que quiseram resistir
e na vinda vim queimando e destruindo todas as aldeias que ficaram atrás
e, por o gentio a se ajuntar e me vir seguindo ao longo da praia, lhes fiz
algumas ciladas onde os cerquei e lhes foi forçado deitarem a nado no mar
de costa brava. Mandei outros índios atrás deles e gente solta que os
seguiram perto de duas léguas e lá no mar, pelejaram de maneira que
nenhum Tupiniquim ficou vivo, e todos os trouxeram a terra e os puseram
ao longo da praia por ordem que tomavam os corpos perto de uma légua.
(Mém de Sá, Instrumentos de Seus Serviços. In Campos 1981:44, cf.
Marcis, 2004:30)
Como Susana Viegas assinala (Viegas, 2005:120), este trecho, que descreve o
genocídio de muitos Tupiniquins em alto mar, em número capaz de ocupar três
quilômetros de corpos na areia, escrito pelo seu próprio mandante, adquiriu
significado político ao longo das mobilizações dos Tupinambá no século XXI. Junto a
outros eventos ocorridos em tempos mais recentes, a descrição de Mém de Sá foi
recuperada como uma das provas dos massacres pelos quais a população indígena da
região foi submetida pelo branco, desde sua chegada.
O relato de Mém de Sá foi incorporado ao processo de reivindicação de direitos
dos índios Tupinambá de Olivença, particularmente desde 2001, quando o Conselho
Tupinambá de Olivença, com o apoio de setores da igreja católica, realizou a Primeira
Peregrinação em Memória aos Mártires do Massacre no rio Cururupe. Durante a
caminhada que se inicia em Olivença e termina em um ponto da estrada na altura
deste rio, próximo a Ilhéus, vários índios carregam faixas e entoam diversas canções de
autoria dos próprios Tupinambá, e outras comuns a outros povos indígenas do
Nordeste.
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Dona Nivalda fornece mais detalhes acerca deste episódio:
Mataram muito índio, tanto Tupinambá quanto Tupiniquim. Vi alguém
dizer que Mém de Sá foi um bom governo, numa reunião de lideranças e
deputados... Eu disse que para nós, Tupinambá, ele não fez, claro, mas ele
mandou, porque ele era o governador. O que ele fez... dizem né, eu não me
lembro porque eu não tava, mas minha avó contava tudo... Contava que
ele veio pra cá, aqui ele achou uma galinha de outro. Voltou e disse para o
prefeito da Bahia, antigamente chamava Salvador de Bahia: “Você ta
perdendo aquela galinha de ouro? Mas tem uma meia dúzia de índio, com
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Entre as canções de autoria própria, um refrão expressa o lugar ocupado pelas violências
cometidas aos antepassados dos Tupinambá na luta pela demarcação territorial:
Oh, devolva nossas terras que essas terras nos pertencem
Pois mataram e ensangüentaram os nossos próprios parentes.