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GABRIELA PEREIRA DE FREITAS
DOS BANCOS DE IMAGEM ÀS COMUNIDADES VIRTUAIS
Configurações da linguagem fotográfica na internet.
Dissertação apresentada ao Curso de
Mestrado do Programa de Pós-Graduação
em Comunicação Social da Faculdade de
Comunicação da Universidade de Brasília,
como requisito parcial à obtenção do título
de mestre em Comunicação Social
.
Linha de Pesquisa: Imagem e Som
Orientadora: Profa. Dra. Susana M. Dobal Jordan
BRASÍLIA
Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília
2009
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2
Para Angelo.
Sem sua compreensão e apoio
eu não teria chegado até aqui.
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3
Agradecimentos
- Ao meu marido e companheiro, Angelo, por estar sempre ao meu lado.
- Ao meu querido irmão, Guilherme, pelo incentivo, mesmo de longe.
- Aos meus amigos do mestrado: Mike, Roberta, Dany, Braz, Barba, Rômulo,
Raquel, Lina e David, pela troca de ideias, livros e referências; pelas
conversas, desabafos e também pelos momentos de descontração.
- À professora Susana Dobal, que me conduziu de forma objetiva e preciosa
nesta pesquisa, apontando os vários caminhos possíveis.
- Ao professor Gustavo de Castro, que desde o início deste percurso me ajudou
com seus ensinamentos, comentários e pareceres dando-me a oportunidade
de aprofundar meus conhecimentos e minha sensibilidade para a Estética, a
Arte, a Comunicação e a Poesia.
- Ao professor e colega de pós-graduação Duda Bentes, pelas conversas, trocas
de ideias, pela oportunidade de expor minha pesquisa em sala de aula, pelos
esclarecimentos sobre a agência AGIL fotojornalismo e pelas pequenas
observações que fizeram uma grande diferença em meu trabalho.
- Aos professores Marcelo Feijó e Milton Guran, pelos comentários e sugestões
valiosos dados no momento de qualificação desta pesquisa
- Aos meus pais, Vanildo e Rosário, por tudo que me ensinaram até hoje.
- A todos aqueles que entenderam minhas ausências e me apoiaram com
palavras carinhosas e de incentivo.
4
Não quero ter a terrível limitação de quem vive
apenas do que é passível de fazer sentido.
Eu não: quero uma verdade inventada.
Clarice Lispector
5
RESUM O
A partir de uma análise das fotografias e dos diálogos entre membros de bancos
de imagem e comunidades virtuais na internet, principalmente no flickr, esta pesquisa
busca compreender quais são as práticas fotográficas contemporâneas dos usuários da
rede mundial de computadores e dos meios de comunicação. Dessa forma, procuramos
traçar um breve histórico da evolução da linguagem fotográfica de modo a inseri-la em
um contexto que permita entender as atuais configurações dessa linguagem em ambiente
online. Também procuramos investigar o surgimento e desenvolvimento das dinâmicas
dos bancos de imagem e comunidades virtuais. Por fim, buscamos propor alguns rumos
que levem a linguagem fotográfica a um caminho expressivo, possibilitando a criação de
novas visibilidades para a realidade aparente por meio das práticas do diálogo e da
contemplação.
Palavras-chave: fotografia, comunidades virtuais, bancos de imagem, flickr, diálogo,
contemplação
ABSTRACT
From an analysis of photographs and of dialogues between members of image
banks and virtual communities on the Internet, especially on flickr, this research seeks to
understand which are the contemporary photographic practices of the worldwide web and
communication media users. Thus, we trace a brief history of the evolution of the
photographic language in order to insert it into a context that allows us to understand the
current settings of this language in the online environment. We also seek to investigate
the emergence and development of the dynamics of image banks and virtual
communities. Finally, we try to propose some directions that could take the photographic
language into an expressive way, enabling the creation of new visibilites to the apparent
reality through the practice of dialogue and contemplation.
Keywords: photography, virtual communities, image banks, flickr, dialogue,
contemplation.
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO - 09 -
1.
CONFIGURAÇÕES DA LINGUAGEM FOTOGRÁFICA
1.1 A invenção da fotografia e o registro do acontecimento
- 18 -
1.2 Do surgimento da fotografia à consolidação de uma
linguagem fotográfica
1.2.1 O Pictorialismo e a quebra com o compromisso
da mimese - 33 -
1.2.2 V
anguardas do século XX: a fotografia começa
a desenvolver uma linguagem própria - 36 -
1.2.3 Experimentações contemporâneas - 40 -
1.3 A constituição de gêneros fotográficos
1.3.1
Os gêneros emprestados da pintura - 44 -
1.3.2 Os gêneros
desenvolvidos na história da fotografia - 46 -
1.3.3 Os gêneros próprios da fotogr
afia - 49 -
1.4 A fotografia digital e a internet
1.4.1 Questões técn
icas e seus reflexos na
linguagem fotográfica - 63 -
1.4.2 A di
fusão e a facilidade de inserção de
imagens online - 69 -
1.4.3 A con
stituição de identidades e laços
sociais na rede - 73 -
7
2. BANCOS DE IMAGEM
2.1 Um breve histórico - 101 -
2.2 A realidade dos bancos de imagem
hoje - 108 -
3. COMUNIDADES VIRTUAIS: O CASO FLICKR
3.1 O que são comunidades virtuais e
por que
estudar o flickr - 123 -
3.2 Como se dá a interatividade e o diálogo en
tre
membros das comunidades virtuais? - 129 -
4. CONTEMPLAÇÃO E DIÁLOGO NA ERA D
A INTERNET
4. 1 Sobre a contemplação e o diálogo - 134 -
4.1.1 O diálogo fotógrafo-fotóg
rafo - 135 -
4.1.2 O diálogo aparelho-fotógrafo - 144 -
4.1.3. Os diál
ogos entre o fotógrafo e o mundo
visível, entre o fotógrafo e suas imagens
inte
rnas e entre o espectador e a fotografia - 148 -
4.1.4 A contemplação e o instante
poétic
o bachelardiano - 154 -
4.2 Exemplos de sites e comunidades virtuais
voltadas p
ara fotografia - 169 -
8
5. CONCLUSÃO - 176 -
5.1 Como comunidades virtuais podem levar ao
diálogo e à c
ontemplação? - 179 -
5.2 Como as imagens de comunidades virtuais podem
ser uma alternativa à padronização estética dos
bancos de imagem tradicionais?
- 186 -
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS - 193 -
9
INTRODUÇÃO
Na época de seu surgimento, e durante algumas décadas ainda seguintes, a
fotografia se caracterizava por ser uma atividade cara e que demandava certo
conhecimento técnico, sendo a sua prática mais restrita e compartilhada entre pequenos
grupos de profissionais ou amadores interessados no assunto. Com o aparecimento das
máquinas fotográficas de pequeno formato e a necessidade de menor tempo de exposição
dos objetos fotografados, deu-se a primeira expansão da fotografia, aumentando seu
número de adeptos. Mais tarde, com as máquinas digitais, essa expansão intensificou-se
e, após a internet, esses novos fotógrafos passaram a ganhar cada vez mais visibilidade
junto a outros membros de comunidades virtuais das quais começaram a fazer parte,
mudando a maneira de produzir imagens e ampliando as possibilidades de circulação da
informação visual.
Em seu livro Por que as artes e as comunicações estão convergindo, Lúcia
Santaella ressalta que desde o surgimento da fotografia, arte e tecnologia têm convivido e
se beneficiado mutuamente. É aí que se encontra o ponto de partida desta pesquisa. Ao
perceber a ampla difusão da atividade fotográfica e a facilidade de acesso e circulação das
imagens em ambiente online, nosso primeiro questionamento se volta às transformações
sofridas pela linguagem fotográfica contemporânea enquanto prática cultural que vai
além do registro da vida doméstica, tornando-se um veículo de comunicação entre
pessoas de diversos países e promovendo o estreitamento de laços sociais entre elas.
Para dar forma a esta proposta, iremos investigar as imagens disponíveis na
internet, tanto em comunidades virtuais quanto em bancos de imagem, de modo a situar
essa produção fotográfica dentro de um histórico da fotografia que demonstre o porquê de
algumas opções de produção de imagem em determinadas épocas. Em seguida,
buscaremos contextualizar a era da globalização e da internet como norteadora, também,
dessa produção. Ainda em relação às comunidades virtuais e bancos de imagem,
procuraremos definir o que são e como funcionam, além de investigar quais são seus
papéis como definidores de padrões estéticos para a produção de imagens fotográficas.
Também analisaremos como essas comunidades estimulam a produção de imagens e
como atuam na constituição de laços sociais. Por fim, investigaremos as possibilidades de
geração de diálogo e contemplação pela fotografia contemporânea nesse universo de
acúmulo de imagens, tendo em vista que essas categorias constituem nossa proposta de
10
um possível caminho para o desenvolvimento de uma linguagem fotográfica em ambiente
online que proporcione a problematização do mundo em que vivemos por meio da
imagem. A definição dos critérios para o que chamamos aqui de diálogo e contemplação
será feita no quarto capítulo.
No primeiro capítulo, portanto, faremos um breve histórico das diferentes
realidades fotográficas com o intuito de percebermos sua consolidação enquanto uma
linguagem variável ao longo da história. Para isso, começaremos com a fotografia e o
registro da realidade, entendida como espelho do real, de uso principalmente científico na
época de sua invenção – essa abordagem é, hoje, irrelevante ao estudo da fotografia mas
deve ser revisitada para que possamos entender o processo de evolução e as
transformações sofridas pela linguagem fotográfica até a contemporaneidade. Deveremos,
então, analisar a fotografia como inicialmente foi compreendida enquanto signo icônico e
indicial, chamando especial atenção para as viagens daguerreanas, para o papel da
fotografia na ciência positivista, para o surgimento das primeiras sociedades fotográficas,
bem como para o início da expansão da fotografia - que alterou as configurações próprias
dessa linguagem. Mais adiante nos voltaremos ao desenvolvimento da fotografia
documental, de caráter simbólico e mais subjetiva.
André Rouillé, em seu livro La Photographie. Entre document e art contemporain
(A fotografia. Entre documento e arte contemporânea), contextualiza essa mudança do
entendimento indicial ao entendimento simbólico da fotografia, que contribui para o
desenvolvimento da linguagem fotográfica. Segundo o autor, essa transformação está
relacionada a um fenômeno mais global: “[...] a passagem de um mundo de substâncias,
de coisas e corpos a um mundo de acontecimentos, de incorporais. A passagem de uma
sociedade industrial a uma sociedade da informação.”
1
(2005, p.175). Rouillé ainda
afirma que a percepção da fotografia como espelho do real, “[...] repousava sobre uma
tripla recusa: aquela da subjetividade do fotógrafo, aquela das relações sociais ou
subjetivas com os modelos e as coisas, e aquela da escrita fotográfica.”
2
(2005, p.207).
Para o autor, é justamente a inversão desses elementos que caracteriza o que ele chama de
1
Tradução da autora. Quando o original não for encontrado em português, a tradução será sempre da autora e o trecho
original será transcrito em nota de rodapé:
“[...] le passage d’un monde de substances, de choses et de corps, à un monde d’événements, d’incorporels. Le passage
d’une société industrielle à une société d l’information.”
2
“[...] reposait sur un triple refus: celui de la subjectivité du photographe, celui des relations sociales ou subjetives avec
les modeles et les choses et celui de l’écriture photographique.”
11
“fotografia-expressão”
3
, mais subjetiva e interpretativa. Nessa modalidade, segundo
Rouillé, ganham força o papel individual do fotógrafo e o diálogo tanto com os modelos
referenciais como com o outro. O autor também ressalta que esse modelo de fotografia
não recusa sua finalidade documental, mas propõe que a ela sejam adicionadas outras
visões da realidade material.
Arlindo Machado também defende o entendimento de uma linguagem fotográfica
como expressão e conceito, em que a fotografia, sendo símbolo, possa “[...] ser ‘lida’
como a criação de algo novo, de um conceito puramente plástico a respeito do objeto e de
seu traço [...]. A verdadeira função do aparato fotográfico não é, portanto, registrar um
traço, mas sim interpretá-lo cientificamente.”(2001, p. 129)
Para tratar dessa ruptura com a tradição indicial da fotografia, nosso referencial
teórico se baseará, principalmente, nos conceitos dos pesquisadores Frizot (1998), por sua
abordagem histórica da evolução da fotografia – de seus usos e interpretações -; Machado
(2001), por pensar a formação e o fortalecimento de uma linguagem tipicamente
fotográfica por meio do entendimento da fotografia como símbolo; Ritchin (1999), por
tratar das transformações sofridas pela linguagem fotográfica principalmente com o
advento da fotografia digital, levando a uma drástica quebra dos modelos tradicionais da
fotografia-ícone e da fotografia-índice; Rouillé (2005), por seu pensamento que corrobora
o esforço de Machado em estabelecer critérios para a consolidação de uma linguagem
fotográfica própria, principalmente por seu caráter pessoal e simbólico.
Em um segundo momento, investigaremos como determinadas práticas e
movimentos fotográficos procuraram contribuir para as novas possibilidades da fotografia
enquanto linguagem por meio das transformações que promoveram. Prosseguiremos,
então, abordando momentos como o pictorialismo - segundo Costa, Silva (2004),
Fontcuberta (2003), Frizot (1998), Rouillé (2005) e Turazzi (1995) -, os movimentos de
vanguarda do século XX, como a Bauhaus, o Surrealismo - segundo a abordagem de
Arbaïzar, Picaudé (2004), Costa, Silva (2004) e Krauss (2002) -, o Modernismo no Brasil
- usando a abordagem de Costa, Silva (2004) - e as experimentações contemporâneas -
segundo conceitos e exemplos fornecidos por Machado (2001), Baitello (2005) e Fatorelli
(1998) -, olhando com especial atenção o trabalho de fotógrafos brasileiros como
Rosângela Rennó, Carlos Fadon Vicente, Kenji Ota e o de Cláudia Andujar (que, com
suas fotografias, conseguiu unir o caráter experimental ao documental).
3
Photographie-expression.
12
Devemos ressaltar que não é nossa intenção traçar um histórico linear da
fotografia, mas buscar exemplos que nos ajudem a compreender as transformações
sofridas pela linguagem fotográfica e que nos permitam vislumbrar as configurações que
estão sendo assumidas por essa linguagem no ciberespaço atualmente. Não se trata de
uma substituição de velhas por novas configurações, mas sim de entender a evolução
fotográfica seguindo uma lógica de acumulação, onde o novo se soma ao antigo, e os dois
coexistem. Daí a importância de traçar essa perspectiva histórica.
O próximo passo avança rumo ao entendimento da constituição dos gêneros
fotográficos. Para tanto, analisaremos os gêneros emprestados da pintura - retrato,
paisagem, natureza morta - bem como os gêneros que se transformaram dentro da
fotografia e, por fim, os gêneros próprios da fotografia - como o documental, o
fotojornalismo, a fotografia publicitária, a fotografia experimental e a fotografia
doméstica e afetiva. Utilizaremos conceitos apresentados por teóricos como Abraïzar,
Picaudé (2004), Barthes (1957), Becker (1995), Bourdieu (1965), Druckery (2001),
Fatorelli (1998), Fontcuberta (2003), Frizot (1998), Humberto (2000), Ritchin (1999) e
Sousa (2004). O estudo dos gêneros fotográficos torna-se relevante para esta pesquisa,
pois, mesmo de maneira implícita, eles guiam a produção de imagens e sugerem
categorias possíveis para se compreender afinidades dentro do imenso volume de
fotografias disponíveis online, servindo, também, como forma de fortalecer o debate que
critica a divisão, muitas vezes maniqueísta – como denuncia Fatorelli –, que se faz entre
os gêneros fotográficos.
O último aspecto a ser abordado nesse primeiro capítulo diz respeito à fotografia
na internet: as questões técnicas, a super produção e a difusão. Buscamos o embasamento
teórico em Castells (2008), Druckery (2004), Lèvy (2007) e Ritchin (1999). Também
trataremos da consolidação de identidades e laços sociais através da imagem em ambiente
virtual - aqui nos voltaremos aos conceitos de identidade, comunidade e globalização
encontrados na obra de Bauman (2005), de Castells (2008) e Silva (2008).
No segundo capítulo traçaremos um breve histórico dos bancos de imagem, desde
a formação das agências de fotografia, tanto no contexto do fotojornalismo como da
fotografia publicitária, até a consolidação dos bancos de imagem na internet, que
possibilitam a facilidade de exposição, compra e difusão de imagens. Nesse último
contexto (dos bancos de imagem), apontaremos as principais diferenças entre os bancos
de imagem tradicionais (o gettyimages – www.gettyimages.com -, por exemplo) e os
amadores, organizados, muitas vezes, no formato de comunidade e abertos a todos os
13
usuários da internet. Alguns dos autores abordados nesse capítulo foram escolhidos
principalmente pela sua contribuição para entender o surgimento do fotojornalismo,
inicialmente na Alemanha, bem como das primeiras agências de notícias, no Brasil e em
todo o mundo. Nesses autores também encontramos indícios da relação entre o
desenvolvimento da fotografia publicitária e o surgimento dos bancos de imagem. Entre
eles temos: Freund (2008), Frizot (1998), Magalhães, Peregrino (2004) e Newhall (2006).
O terceiro capítulo será dedicado a um panorama geral das comunidades virtuais,
especialmente do flickr (www.flickr.com), escolhido para uma análise mais aprofundada
devido à quantidade de membros, à quantidade de imagens inseridas por minuto e às
possibilidades de organização em grupos de interesse pelas funcionalidades disponíveis
no site. Daremos especial atenção ao caráter interativo dessas comunidades, à questão do
diálogo e à troca de informações entre seus membros. Para tanto, nossa base teórica
tomará como referência os conceitos de Castells (2003, 2008), Lèvy (2003), Rheingold
(1996), Santaella (2005) e Sontag (2004, 2008).
No quarto capítulo investigaremos as possibilidades de diálogo e contemplação
promovidas pela linguagem fotográfica na internet. Procuraremos entender como essas
categorias podem vir a constituir caminhos que levem a um uso das novas tecnologias de
modo a entendermos a fotografia como geração de conhecimento e de interpretação da
realidade a partir de múltiplos pontos de vista – evitando, assim, a simples produção pela
produção da imagem. Para isso, deveremos analisar as fotos e o teor do relacionamento
estabelecido entre os membros das comunidades virtuais. O referencial teórico, portanto,
se apoiará em autores como Arantes (2005), Bachelard (2007), Barthes (2006), Bourdieu
(1965), Castro (2007), Debord (1997), Dubois (2006), Fontcuberta (2003), Flusser
(1998), Guran (1999), Heidegger (1957, 2002), Humberto (2000), Lissovsky (2008),
Machado (2001), Medeiros (2005), Nietzsche (1999, 2007), Rouillé (2005) e Sontag
(2004, 2008). Ainda investigaremos exemplos de sites de fotógrafos, fotoclubes e
comunidades que possam ser possibilidades desse diálogo e dessa contemplação na
linguagem fotográfica veiculada na internet.
Por último, após todo esse percurso, procuraremos entender como os bancos de
imagem e comunidades virtuais transformam a linguagem fotográfica contemporânea,
como podem estimular o diálogo e a contemplação, criando novas visibilidades para a
imagem. Ainda questionaremos como as comunidades virtuais poderiam representar uma
alternativa à padronização imagética dos bancos de imagem tradicionais, apesar de
percebermos que, tanto nessas comunidades quanto nos bancos de imagem – mesmo nos
14
menos tradicionais –, já impera uma certa padronização estética das imagens. No entanto,
apesar desse cenário, existem alguns exemplos de experimentação - alguns dos quais
mostraremos ao longo dos capítulos -, fruto de um diálogo entre os fotógrafos dessas
comunidades (seja ela um blog ou um site ou ainda uma comunidade de relacionamento
ou um banco de imagem, entre outros), ou entre o fotógrafo e suas imagens internas (e
consequente embate com as imagens externas do mundo visível), ou ainda entre o
fotógrafo e o aparelho fotográfico. Notemos que é no estabelecimento desses diálogos
que podemos perceber, muitas vezes, a necessidade da contemplação, da qual falaremos
mais adiante – especificamente no quarto capítulo.
Gostaríamos de ressaltar que o interesse pelo tema aqui pesquisado surgiu a partir
da observação das atuais dinâmicas de uso das comunidades virtuais voltadas para
fotografia e da inquietação com a padronização das imagens usadas pelo jornalismo e
pela publicidade presentes nos meios de comunicação – onde encontramos imagens
escolhidas, aparentemente, sem um cuidado quanto à questão do diferencial criativo,
privilegiando apenas a questão indicial e o papel da imagem como mera ilustradora de
uma notícia ou anúncio. Com as novas comunidades, inicia-se uma produção
descentralizada, em que todos podem contribuir e discutir sobre a fotografia, adicionando
imagens produzidas sob múltiplos olhares. Por isso faz-se necessária uma investigação de
como a linguagem fotográfica está evoluindo nessas comunidades. O autor e a realidade
visível da qual faz parte determinam os recortes a serem feitos sobre essa mesma
realidade através da fotografia. Segundo Milton Guran:
A fotografia é uma extensão da nossa capacidade de olhar e constitui uma técnica
de representação da realidade que, pelo seu rigor e particularismo, se expressa
através de uma linguagem própria e inconfundível. Sendo a participação do autor
(fotógrafo) balizada por uma técnica completamente vinculada às especialidades
de uma determinada realidade, a foto resultante pode traduzir com bastante rigor
a evidência dessa realidade.(GURAN, 1999, p.15)
Na dinâmica atual das comunidades virtuais, temos acesso às múltiplas
interpretações do mundo visível por vários fotógrafos de todo o mundo, direto na tela do
nosso computador. Não temos nem mesmo a necessidade de sair de casa. Essa situação
certamente promove transformações na linguagem fotográfica, na forma como lidamos
com a imagem e na expansão das possíveis visibilidades dessa imagem. Partimos, ainda,
da observação de que a fotografia, mais que índice e ícone, pode funcionar como símbolo
15
em sua abordagem do real. Por isso, pode tanto difundir informações quanto provocar
prazer estético concomitantemente.
Ao observarmos a história da fotografia e como a linguagem fotográfica se
configurou ao longo dessa história, notamos que a sua percepção enquanto forma de
conhecimento da realidade visível se expandiu bastante. As primeiras viagens
daguerreanas, por exemplo, tinham como propósito promover, ao público geral, um
conhecimento do mundo sem a necessidade de sair de casa, uma situação bem parecida
com o que expusemos em relação ao cenário atual construído pela internet. No entanto, a
grande diferença está no fato de que, na época das viagens daguerreanas, esse
conhecimento de realidades distantes baseava-se no aspecto indicial da fotografia.
Acreditava-se que, sendo um espelho do real, a imagem bastava para a promoção desse
conhecimento. Porém, ao entendermos a fotografia como símbolo, ou seja, como forma
não apenas de apontar a realidade, mas também de conferir a ela novos significados e
interpretações, vemos que a fotografia possibilita muito mais que a apreensão da imagem
de uma única e possível realidade visível, mas, também, o seu entendimento como forma
de conhecimento do mundo a partir de múltiplos pontos de vista, de acordo com os
modos de ver de cada fotógrafo.
Com as facilidades de uso dos aparelhos e as várias possibilidades de circulação
da imagem em escala global por meio da internet, podemos compartilhar nossas visões de
mundo com outras pessoas, e compará-las entre si, conferindo à realidade material um
maior número de visibilidades a partir de nossas próprias casas. Portanto, a diferença está
no fato de que não recebemos mais passivamente uma única interpretação do mundo
visível, proveniente de um único fotógrafo ou de um pequeno grupo deles. Todos nós
produzimos imagens e recebemos uma grande quantidade delas. Por isso torna-se
importante a presença do diálogo diante da proliferação de imagens, como citamos
anteriormente, para que possamos confrontar essas múltiplas interpretações e não apenas
entendê-las como dadas e certas – o que nos aproximaria mais de uma postura indicial e
não simbólica como defendemos aqui.
O início de uma produção descentralizada que possa ser capaz de aumentar a
pluralidade estética e as visibilidades da imagem já se deu. Cabe agora refletirmos sobre
essa produção, ver a que caminhos ela pode guiar a linguagem fotográfica contemporânea
e qual é o papel do autor usuário de comunidades virtuais nesse processo. Esperamos que
essas mudanças levem a fotografia a ampliar suas possibilidades expressivas, tanto no
campo da comunicação quanto no campo das artes, mais do que apenas tornar homogênea
16
a produção fotográfica por meio da sua difusão massiva, submissa a determinados
estereótipos estéticos baseados em clichês imagéticos que garantem uma leitura rápida e
padronizada da realidade visível, sufocando, portanto, as possibilidades de diálogo e
contemplação.
17
1. CONFIGURAÇÕES DA LINGUAGEM FOTOGRÁFICA
18
CONFIGURAÇÕES DA LINGUAGEM FOTOGRÁFICA
1.1. A invenção da fotografia e o registro do acontecimento
Apreender o silêncio, o espírito, as metáforas, o vento, a pureza ou o abandono. O
poeta Manoel de Barros coloca em palavras a possibilidade de apreendê-los, todos,
através da fotografia. No início do século XIX, época de seu surgimento, provavelmente
quem propusesse tais feitos seria apontado como louco ou desprovido de razão. O que
haveria de ser a fotografia além de um meio técnico cuja função era apreender a realidade
tal qual se mostrava diante dos olhos, de uso especialmente útil à ciência? Aquele que
tentasse usá-la para outro fim teria de assumir a sua irracionalidade. Pois o sábio poeta os
responderia simplesmente: “Eu assumi: entrei no mundo das imagens.” (BARROS, 2007,
p.47).
A fotografia sempre esteve no centro do debate entre razão e poesia, técnica e
arte. Segundo Frizot, “[...] a história da fotografia teve de inventar para si mesma razões
para sua existência as quais não eram simplesmente uma vaga forma de capturar o mundo
em imagens.”
4
(FRIZOT, 1998, p.10). E, nesse ponto, a história da fotografia difere da
história da pintura, que privilegia uma análise das variáveis de aspectos formais ou
iconográficos.
O início da fotografia está ligado à invenção do daguerreótipo em 1839
5
. Nesse
processo, usava-se a incidência da luz para produzir uma imagem em preto e branco sobre
uma placa de metal sensibilizada com vapor de iodo (formando iodeto de prata sobre a
lâmina) que se encontrava dentro de uma câmara escura. Com o tempo, a técnica tornou-
se menos custosa e se difundiu, estimulando, assim, uma legião de fotógrafos que
passaram a registrar imagens de diversos lugares. O mundo, em todos os seus aspectos
(retratos de personagens da sociedade, lugares inacessíveis, fenômenos invisíveis a olho
nu, entre outros), parecia destinado a ser preservado como imagem ou como curiosidade.
A fotografia encantava pela sua aparência de espelho do real.
Para Frizot, a palavra que melhor descreve a visão que se tinha do daguerreótipo é
“científico” ao invés de “documental”, devido a sua natureza precisa e fiel. No entanto,
segundo ele, o daguerreótipo talvez tenha sido o único meio, até então, que, de certa
4
“[…] the history of photography has had to invent for itself reasons for existence which are not merely a vague way of
capturing the world in images.”
5
Daguerre leva o crédito de inventor da fotografia em 1839. No entanto, um francês radicado no Brasil, em Campinas
especificamente, de nome Antoine Hercule Romuald Florence teria realizado a “[...] descoberta independente e isolada
de um processo fotográfico a partir de 1833.” (KOSSOY, 2002, p.141)
CAPÍTULO 1
19
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
forma, proporcionou uma união da arte com a ciência – essa última, por sua vez, fez
muito uso dessa técnica para o estudo do corpo humano, por exemplo.
Com a invenção do calótipo por Talbot, na Inglaterra, passou a ser possível a
duplicação de imagens a partir do original negativo. Além disso, os tempos de exposição
necessários para fixar a imagem no suporte diminuíram com a evolução tecnológica tanto
da ótica das objetivas quanto dos processos químicos, o que fez com que a fotografia se
difundisse ainda mais. Um dos aspectos de relevância a serem observados nessa época é a
fotografia documental arqueológica, principalmente sobre o Egito. Muitos fotógrafos
ingressaram em expedições fotográficas no Vale do Nilo, entre outros locais que
pareciam exóticos, de modo a proporcionar documentos para a ciência. Os fotógrafos
tinham de carregar um equipamento que poderia chegar a pesar mais de 200 quilos. Eles
levavam tendas escuras, placas de metal revestidas de nitrato de prata e produtos
químicos. Algumas vezes, dependendo do tipo de placa usada, tinham de levar todo o
laboratório consigo, pois o colódio, por exemplo, amplamente utilizado a partir de 1850,
exigia utilização de uma placa úmida e revelação imediata após sua exposição na câmera
escura. À diferença do que era a realidade de então, hoje em dia, com a fotografia digital
e a internet, o fotógrafo tem a possibilidade de enviar as fotos para a redação de um jornal
logo após o clique, necessitando, para isso, carregar apenas sua câmera e um laptop.
O crescente interesse em relação à fotografia levou à criação de sociedades
fotográficas. Em 1851 o Baron de Montfort criou a Societé Heliographique
6
(Sociedade
Heliográfica) com a proposta de reunir pessoas que se interessassem pelo estudo e prática
da fotografia. A sociedade elaborou o jornal “La Lumière” para contribuir com a
propagação da fotografia. Mais tarde, ela se tornou a Société Française de Photographie
(Sociedade Francesa de Fotografia). Na Inglaterra, a primeira exposição dedicada
totalmente à fotografia aconteceu em dezembro de 1852 na Royal Society of Art
(Sociedade Real de Arte), o que culminou, no mês seguinte, no surgimento da
Photographic Society of London (Sociedade Fotográfica de Londres), que mais tarde se
tornaria a Royal Photographic Society (Sociedade Real Fotográfica). Nos Estados Unidos
surge a Photographic Society of Philadelphia (Sociedade Fotográfica da Filadélfia) em
6
O processo fotográfico da heliografia foi desenvolvido por Joseph Nicéphore Nièpce por volta de 1825. Consistia no
uso de uma placa de vidro ou metal coberto por betume que endurecia em contato com o sol. Após a exposição, a placa
era lavada com óleo de lavanda, permanecendo apenas a imagem da parte endurecida. No entanto, a Sociedade
Heliográfica não se utilizava apenas desse procedimento, mas, também do calótipo e do colódio, o que contribuiu
enormemente para descobertas e melhorias técnicas do processo fotográfico.
CAPÍTULO 1
20
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
1862. Essas sociedades podem ser consideradas as precursoras dos fotoclubes que
surgiram posteriormente em todo o mundo – e sobre os quais falaremos mais adiante.
No Brasil a expansão da fotografia não contou com o apoio de instituições
específicas da área. Seu desenvolvimento se deu principalmente devido à vinda de
fotógrafos europeus para o país e ao entusiamo do Imperador Dom Pedro II - um dos
primeiros monarcas a praticar a fotografia no mundo - que promovia, através da Casa
Imperial, fotógrafos, eventos e as exposições nacionais e internacionais de arte que
contemplavam a fotografia, como abordaremos posteriormente.
Com a crescente difusão da fotografia, aumenta também o número de estúdios
fotográficos e o retrato torna-se mais acessível a um maior número de famílias de classes
sociais menos abastadas. E assim, com o tempo, a fotografia passou a se relacionar com a
vida cotidiana, com os acontecimentos, e, cada vez mais, o espaço de tempo entre um
acontecimento e seu registro diminuía, até tornar o fotógrafo testemunha dos eventos. No
entanto, apesar de ser a testemunha dos fatos, o ponto de vista do fotógrafo muitas vezes
ainda não era levado em conta. No Brasil, por exemplo, a Guerra do Paraguai coloca-se
como a primeira a ser acompanhada por correspondentes fotográficos, cujas imagens
eram copiadas e reproduzidas em jornais brasileiros. No entanto, as imagens trazidas
pelos fotógrafos, reais testemunhas dos fatos, eram muitas vezes manipuladas e
censuradas. Apesar de se caracterizar como uma guerra sangrenta, as imagens que
chegavam ao público leitor da Guerra do Paraguai, após a censura, referiam-se à
exaltação dos militares brasileiros, promovendo o surgimento de um sentimento
patriótico, como relata o autor Joaquim de Andrade (2004).
Como dissemos anteriormente, o tempo entre o registro do acontecimento e o
envio desse registro às redações de jornais vem diminuindo constantemente. No entanto,
a prática das manipulações da fotografia e das censuras impostas pelos editores
permanece e, muitas vezes, não leva em conta a experiência do fotógrafo enquanto
testemunha do acontecimento. Fred Ritchin denuncia essa prática:
Atualmente, o fotojornalista é considerado como alguém que provê uma
multiplicidade de imagens para que o pessoal da publicação faça a seleção. A
contextualização da imagem pelo título e layout é geralmente feita por outros
também. O fotógrafo, comprometido com a neutralidade como um jornalista,
acaba cobrindo quase tudo perseguindo a justiça sem ser capaz de finalmente
CAPÍTULO 1
21
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
articular seu ponto de vista. Esse sistema é tão intrincado que muitos nem mesmo
percebem sua existência.
7
(RITCHIN, 1999, p.98)
Num sistema ideal, a edição seria feita pelo fotógrafo juntamente com o editor,
levando em conta tanto o conhecimento íntimo do fotógrafo como testemunha dos
eventos quanto o olhar distanciado do editor. De modo contrário, o fotógrafo perde cada
vez mais seu espaço, passando a ser visto apenas como um fornecedor de matéria bruta –
tendo em vista que a manipulação digital é feita, hoje, nas próprias redações dos jornais
pelo diretor de arte, muitas vezes também sem o acompanhamento do fotógrafo.
Devemos lembrar, ainda, que a imagem pode despertar diferentes interpretações e tanto o
texto quanto o layout da publicação em que a foto será inserida têm papel fundamental na
sua contextualização e futuro entendimento dessa imagem por parte do leitor.
A fotografia continua a se expandir na segunda metade do século XIX e seu
destaque se volta principalmente às descobertas de novas pessoas, nações, lugares e
paisagens. Essa necessidade de saber era reforçada pelo fascínio do exótico, do pitoresco,
pela expansão colonial e pelo crescimento do turismo. Também foi impulsionada pelas
inúmeras revistas que, cada vez mais, eram ilustradas por fotografias. Viagens
organizadas para explorações fotográficas, o crescimento dos estúdios e o advento dos
distribuidores e editores de fotografia, tudo isso combinado fez do mundo um lugar mais
integrado – dinâmica semelhante à que acontece hoje com a internet, porém em uma
escala bem maior, englobando maior número de pessoas de lugares cada vez mais
distantes.
As técnicas fotográficas continuaram a evoluir e ainda durante o século XIX a
fotografia alcançou maior precisão, menor tempo de exposição, menor preço, maior
facilidade de reprodução e passou a sofrer menos deterioração.
Como expusemos anteriormente, a fotografia, no seu surgimento, era entendida
como uma prova da existência daquilo que era registrado. Daí a sua larga utilização pela
ciência. Dubois (2006) classifica esse primeiro momento do entendimento da fotografia
como espelho do real; simples mimese. A valorização maior dava-se à sua natureza
técnica e não à participação do fotógrafo. A arte, então, opunha-se à fotografia. Durante
todo o século XIX os artistas se mostraram contrários ao domínio crescente da indústria
técnica na arte. A técnica fotográfica poderia até ser utilizada por artistas, desde que
7
“Rigth now the photojournalist is in large measure considered to be someone who provides a multiplicity of images
for the publication’s personnel to select from. The image’s contextualization by caption and layout is usually
accomplished by others as well. The photographer, pledged to neutratilty as a journalist, ends up covering almost
everything in pursuit of fairness without being able to finally articulate his or her own point of view. This system is so
entrenched that many do not notice its existence.”
CAPÍTULO 1
22
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
servisse como um instrumento de estudo. Para o poeta Baudelaire, a fotografia era um
“[...] simples instrumento de uma memória documental do real […] enquanto a arte era
entendida como […] pura criação imaginária. ” (1973, apud DUBOIS, 2006, pp. 29, 30).
Dubois, por sua vez, critica a opinião de Baudelaire, classificando-a como:
[...] uma concepção elitista e idealista da arte como finalidade sem fim, livre de
qualquer função social e de qualquer arraigamento na realidade. Para Baudelaire,
uma obra não pode ser ao mesmo tempo artística e documental, pois a arte é
definida como aquilo mesmo que permite escapar do real.
(DUBOIS, 2006, p. 30)
Levantaremos mais adiante a discussão sobre a separação maniqueísta que se faz
entre os gêneros da fotografia: documental ou criativo, ou ainda, de cunho estético ou
social. A fotografia está tão presente na vida cotidiana que é difícil pensar no estético
separado do social. Bourdieu afirma que mesmo o que um esteta não classificaria como
fazendo parte do campo da estética, deve ser considerado como tal, pois levou em conta
uma determinada experiência do fotógrafo. E o autor Antônio Fatorelli questiona como
separar o documental do criativo quando o fotógrafo que registra o acontecimento é o
mesmo que é imbuído de uma determinada cultura e de experiências de vida que
determinarão seu recorte pessoal da realidade.
Ainda sobre a discussão da fotografia em relação à arte, há os que acreditam que a
fotografia liberou a pintura e a arte em geral do dever de representar o mundo visível,
abrindo caminho para novos movimentos surgidos ainda no final do século XIX, como o
Impressionismo, na década de 1860, seguido dos movimentos de vanguarda do início do
século XX. Essa visão, no entanto, ainda separa a fotografia da arte, colocando esta no
âmbito da atividade humana e do subjetivo e aquela no âmbito do aparelho e da técnica.
Dubois, por exemplo, deixa claro que não quer negar o realismo da fotografia.
Para o autor, antes de ser símbolo, a foto é ícone, é uma “imitação perfeita da realidade”
(2006, p. 27) material que ficou impressa no filme. Porém, defendemos aqui que, nem por
isso, a fotografia perde sua característica subjetiva que a faz ser entendida como um
possível código para decifrar um fragmento específico da realidade, assim como também
acreditam André Rouillé e Arlindo Machado.
É somente a partir do século XX que se começa a conceber a ideia da fotografia
como transformadora do real. Contra a mimese, surgem discursos que entendem a
fotografia enquanto código. Esses defendem que no ato fotográfico existiria uma escolha
CAPÍTULO 1
23
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
do fotógrafo ao retratar um objeto real. Escolha que começa pelo ângulo de visão, pela
distância em relação ao objeto, pelo enquadramento, pela escolha da luz, entre outros.
Isso tudo mostra que a câmera não é de todo inocente. E que a imagem final diz
muito das interpretações do fotógrafo sobre a realidade escolhida para sua produção
fotográfica. Existe um código cultural que rege essas escolhas e, consequentemente, as
imagens produzidas. A fotografia passa a ser reveladora de uma verdade interior –
usando o termo utilizado por Dubois. O autor cita como exemplo as análises feitas por
Susan Sontag sobre o trabalho da fotógrafa Diane Arbus: “[...] é por meio do artefato,
assumido como tal, da pose, que os sujeitos alcançam sua realidade intrínseca, ‘mais
verdadeira que ao natural’.” (1979, apud DUBOIS, 2006, p.43)
Diane Arbus não deixava de retratar o mundo visível. Suas fotografias mostram
claramente o personagem e o seu ambiente. No entanto, não percebemos apenas a
presença de um ser humano taxado como travesti, anão ou gigante. Algo a mais nos é
revelado em suas fotografias, algo que vai além das aparências “reais”, desvelando as
verdades interiores de quem olha e recorta essa realidade: o fotógrafo.
As concepções aqui apresentadas não esgotam o verdadeiro papel da fotografia. A
primeira, de espelho do real, estaria ligada à ideia de fotografia enquanto ícone. A
segunda, de transformação do real, à da fotografia como símbolo. Dubois apresenta ainda
a concepção da fotografia ligada à ideia de índice, dotada de um valor todo singular,
determinada por seu referente, como traço de um real.
Essa ideia poderia funcionar como um denominador comum em relação às outras
duas, pois toda fotografia é, segundo esse autor, em primeiro lugar, índice, por possuir um
traço do real. Só depois, essa foto pode ser uma mera cópia do real - exercendo o papel de
ícone - ou atribuir determinado sentido ao real - exercendo o papel de símbolo.
Brevemente, Dubois define que:
[...] os índices são signos que mantêm ou mantiveram num determinado momento
do tempo uma relação de conexão real, de contiguidade física, de co-presença
imediata com seu referente (sua causa), enquanto os ícones se definem antes por
uma simples relação de semelhança atemporal, e os símbolos por uma relação de
convenção geral. (2006, p. 61)
Ao entender a fotografia, antes de tudo, como índice, esse valor singular do qual
fala Dubois acaba por restringir a fotografia ao papel de representante de uma realidade
única, e, portanto, não subjetiva e não plural, diferente das possibilidades de múltiplas
interpretações da realidade da fotografia simbólica que defendemos aqui nesta pesquisa.
CAPÍTULO 1
24
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
Quando desmistificamos a ideia da fotografia enquanto mimese pura e simples, e
consideramos a possibilidade de produção de sentido, além da representação, levamos em
conta não apenas o ato de produção da fotografia, mas, também o de recepção,
contemplação e interpretação dela.
Vê-se, portanto, que durante muito tempo a ideia da fotografia como espelho do
real prevaleceu e o seu caráter de registro foi privilegiado em detrimento, e
separadamente, do seu possível caráter experimental ou autoral. Diferentemente do
pensamento de Baudelaire, acreditamos na possibilidade de uma fotografia que seja
documental e experimental ao mesmo tempo, um documental-criativo, como já proposto
por Antônio Fatorelli (1998), ou até mesmo subjetivo. Nomes não faltam para comprovar
essa possibilidade. Nos Estados Unidos, por exemplo, tivemos Walker Evans, Robert
Frank, William Klein, Diane Arbus, entre tantos outros. No Brasil, podemos citar, dentre
vários fotógrafos, Cláudia Andujar, Miguel Rio Branco e Arthur Omar.
Walker Evans nasceu no estado de Missouri, nos Estados Unidos em 1903. Seu
trabalho teve grande importância para o registro da história Americana. Suas fotos
mostraram, de maneira inusitada, o povo e a época característicos do período da grande
depressão americana pós-1929. No entanto, esse é apenas um dos aspectos de sua
fotografia. Evans nos revela outras possibilidades de abordagem da linguagem
fotográfica documental, praticando uma fotografia mais subjetiva, que ele mesmo
classifica de “documental transcendental” (FONTCUBERTA, 2003, p.45). Trachtemberg
(1996) acredita que Evans conseguiu mostrar que a fotografia documental pode ser tão
complexa quanto uma obra de arte literária, apontando para uma maneira original de ver
as coisas.
A inovação de Evans reside em sua descoberta de que as fotografias podem se
estruturar enquanto uma psicologia, um discurso eloquente para leitores
interessados. Sob uma visão, as imagens de Evans mostram uma nação
mergulhada em oposições e diferenças [...]. Sob outro ponto de vista suas
imagens oferecem, por sua atitude, uma alternativa aos métodos de observação
comerciais e instrumentais aos quais elas se opõem. Na forma de livro, elas
proporcionam um caminho alternativo de ver e perceber a América, tornando a
realidade da nação em uma experiência individual. Experiência estética [...]
torna-se experiência política, uma forma de definir a si mesmo em relação à
coletividade.
8
(TRACHTENBERG, 1996, p.285)
8
“Evan’s innovation lies in his discovery that photographs can be arranged in the form of a psychology, an eloquent
address to interested readers. In one light, Evan’s pictures show a nation caught within oppositions and differences [...].
In another light they offer by enactment an alternative to the commercial and instrumental methods of seeing which
they oppose. In the form of the book they provide an alternative way of seeing and realizing America, making the
CAPÍTULO 1
25
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
Com suas imagens, Evans conseguiu transcender o caráter meramente
documental, transformando-as em obras de arte. Em 1938, uma exposição foi organizada
no Museu de Arte Moderna, em Nova Iorque: Walker Evans: American Photographs
(Walker Evans: Fotografias Americanas). Essa foi a primeira exposição, nesse museu,
dedicada ao trabalho de um único fotógrafo, que compreendeu a fotografia documental de
maneira bem menos científica do que era a tradição até então.
Fig. 1: Família Sharecropper, Alabama, 1936. Fig. 2: Caminhão de entregas, New Orleans, 1935.
Foto de Walker Evans Foto de Walker Evans
Outro fotógrafo importante na transformação da linguagem fotográfica foi Robert
Frank. Apesar da nacionalidade suíça, ele retratou como poucos a realidade norte-
americana dos anos 50. Influenciado por Walker Evans e de posse de uma bolsa da
Guggenheim Foudation, ele viajou pelos Estados Unidos realizando um trabalho
polêmico que mudou os cânones do fotojornalismo e da fotografia documental.
Esse trabalho deu origem ao livro The Americans (Les Américains - Os
americanos - no título original em francês) publicado primeiro na França e depois nos
Estados Unidos, onde foi bastante criticado por certas características como os desfoques e
os granulados, entendidos, por alguns, como falta de cuidado por parte do fotógrafo. Suas
fotos deixavam em aberto a decifração de seu próprio significado, pois o fotógrafo estava
ciente de que a interpretação de cada observador é que iria completá-lo – e a interpretação
está diretamente ligada ao tempo de contemplação, tema sobre o que discorreremos no
quarto capítulo. A partir de então, a objetividade começa a perder espaço nas fotografias
documentais e fotojornalísticas.
nation real as one’s experience. Aesthetic experience [...] becomes political experience, a way of defining oneself in
relation to a collectivity.”
CAPÍTULO 1
26
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
Les Américains simboliza a tentativa de superação entre o ato de criação e o seu
autor e o ato de observação do observador. A expressão fotográfica de Frank não
visa ascender à universalidade. É antes uma expressão fotográfica humilde, interna
ao fotógrafo ou ao observador, intimista. Com Robert Frank, começou a perder força
a herança ideológica da objetividade que se havia introduzido no discurso
fotodocumental e (foto) jornalístico. A polissemia fotográfica de Frank impede a
construção de sentidos propositadamente unívoca do documentarismo social anterior,
assente na verossimilitude. (SOUSA, 2004, pp. 148, 149)
Fig. 3: Desfile - Hoboken, New Jersey, 1955. Fig. 4: Café - Beaufort, South Carolina 1955.
Foto de Robert Frank Foto de Robert Frank
André Rouillé afirma que Robert Frank foi um dos primeiros fotógrafos que
percebeu as mudanças na linguagem fotográfica, de um caráter indicial (espelho do real)
a um caráter mais simbólico e, consequentemente, mais subjetivo. Seu trabalho, segundo
o autor, constitui mesmo um dos “sintomas” dessa transformação.
Frank vai ratificar o desaparecimento da antiga unidade que unia a imagem e o
mundo, ele vai quebrar a concepção perspectivista do espaço, ordenada a partir de
um ponto único, e colocar sua subjetividade no centro de sua caminhada. Ele vai,
em uma palavra, subverter as formas de ver e as maneiras de mostrar que
prevaleceram até então com a fotografia-documento.
9
(ROUILLÉ, 2005, p.220)
Frank influenciou fotógrafos como William Klein e Diane Arbus. Arbus trouxe
para a fotografia a figura do bizarro, do marginal, do não-convencional, enquanto Klein
mostrou o caos do dia-a-dia, por meio de imagens distorcidas, granuladas e impactantes.
9
“Frank va entériner l a disparition de l’ancienne unité qui rassemblait l’image et le monde; Il va briser la conception
perspectiviste de l’espace, ordonné à partir d’un point unique, et placer sa subjectivité au centre de sa démarche. Il va,
en un mot, bouleverser les façons de voir et les manières de montrer qui ont prévalu jusqu’alors avec la photographie-
document.”
CAPÍTULO 1
27
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
Fig. 5: Sem Título, 1970-1971. Fig. 6: Loja de cigarros, New York 1983.
Foto de Diane Arbus Foto de William Klein
Enquanto Frank obteve recursos através de uma bolsa de Guggenheim
Foundation, Evans partiu para a realização de seu trabalho documental a pedido da FSA –
Farm Security Admnistration – um órgão ligado ao departamento de agricultura nos
Estados Unidos e que tinha como objetivo combater a pobreza rural após a grande
depressão de 1929. No Brasil, um projeto que se assemelha em termos de documentação
de “realidades” até então desconhecidas é o da Comissão Rondon, realizada entre 1907 e
1915. No entanto, embora tenham realizado um trabalho importante na história da
fotografia no Brasil, os fotógrafos da comissão partiram de um contexto diferente do
norte-americano. Ao contrário de Walker Evans, eles não estavam interessados no
desenvolvimento de uma linguagem fotográfica mais subjetiva, mas, sim, em registrar
novas paisagens, seguindo um objetivo mais próximo ao das viagens daguerreanas.
O marechal Cândido Rondom era o responsável pela expedição que tinha como
objetivo principal a construção da primeira rede telegráfica a chegar à região amazônica.
Eles deveriam sair de Cuiabá e seguir até a cidade de Santo Antônio do Madeira, em
Rondônia. Sylvia Cayubi Novaes, na apresentação do livro A imagética da Comissão
Rondon, de Fernando de Tacca, explica que “Em torno desse trabalho principal
agruparam-se outras atividades como o levantamento geográfico e topográfico, da fauna,
flora, mineralogia, geologia, climatologia, etnografia, pacificação dos índios, observação
de seus costumes, línguas etc.” (TACCA, 2001, p.7), bem no espírito das grandes
expedições do século XIX.
Todas essas atividades foram registradas por meio de fotografias e filmes. O
próprio Rondon criou, em 1912 a Seção de Cinematografia e Fotografia da Comissão, sob
a responsabilidade do então tenente Luiz Thomaz Reis. O tenente – futuro major Thomaz
CAPÍTULO 1
28
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
Reis, como ficou conhecido - chegou a ir para a Europa para comprar os equipamentos
necessários a tais registros e se tornou o principal fotógrafo e cineasta da Comissão
Rondon.
A criação de uma seção especializada em documentação em material
fotossensível foi uma ação inovadora para os padrões da época, necessitando
altos investimentos e a apropriação de uma tecnologia especializada inexistente
no país, principalmente se levarmos em conta que o uso desse material se daria
em péssimas condições ambientais como alta umidade e dificuldades de
transporte. A documentação imagética foi considerada como outras atuações
científicas da Comissão, apresentando relatórios e publicações. (TACCA, 2001,
p. 16)
O material fotográfico mais consistente referente a esse trabalho foi publicado em
três volumes com o título de Índios do Brasil, nos anos de 1946 e 1953. Além do major
Thomaz Reis, outros fotógrafos se juntaram aos trabalhos da Comissão, tais como: “José
Louro, doutor Benjamin Rondon, coronel Joaquim Rondon, Charlotte Rosenbaum e o
expedicionário Carlos Lako.” (TACCA, 2001, p.16).
Figs. 7 e 8: Fotos 418 e 419 do livro Índios do Brasil, volume 1, p.254
10
Fotos da Comissão Rondon
O mesmo tema dos índios foi documentado de maneira bem diferente nos nossos
dias por outros fotógrafos, longe da perspectiva científica que norteou a prática da
Comissão Rondon, e buscando inovar a linguagem fotográfica. Dentre esses fotógrafos,
temos o caso de Cláudia Andujar, com seu trabalho Yanomami realizado nos anos 70. A
fotógrafa suíça, que se naturalizou brasileira na década de 50, não quis apenas
documentar etnograficamente os costumes e hábitos de um povo, ela seguiu o caminho
contrário: passou longos períodos na aldeia, convivendo com os yanomami para poder
10
TACCA, Fernando. A imagética da Comissão Rondon. Campinas: Papirus, 2001, pp. 36 e 37
CAPÍTULO 1
29
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
atingir um conhecimento profundo daquele povo e entendê-los melhor. Inicialmente
trabalhando como fotógrafa para publicações de notícias, Cláudia Andujar se destacou
por sua obra intimista, de uma sensibilidade estética apurada, que busca transmitir, a
fundo, experiências vividas, fazendo até mesmo com que nos esqueçamos de seu caráter
também documental. Anna Carboncini, na apresentação do livro Yanomami, nos fala
sobre estes aspectos que a fotógrafa conseguiu captar, indo além do mero referente em
suas imagens: “Yanomami não é apenas um ensaio fotográfico, é um convite a sentir e
compreender a alma de um povo. […] As imagens são soltas, fluidas, os significados são
expressos por símbolos.” (ANDUJAR, 1998).
Fig. 9: Yanomami, 1972-1976. Fig. 10: Yanomami, 1972-1976
Foto de Cláudia Andujar Foto de Cláudia Andujar
A experimentação fotográfica presente no trabalho de Andujar também pode ser
encontrada em trabalhos de outros fotógrafos brasileiros, como é o caso de Miguel Rio
Branco e Arthur Omar, por exemplo. O Brasil, aliás, está muito presente nas fotografias
de Miguel Rio Branco, seja nas cores fortes, ou no olhar sobre aqueles que estão à
margem da sociedade no Rio ou em Salvador, ou ainda sobre os índios. Ele reuniu poesia
e documentarismo de forma a enriquecer a linguagem fotográfica indo na direção do que
Rouillé e Machado entendem por uma fotografia simbólica e subjetiva, como citamos
aqui anteriormente.
Miguel Rio Branco também é pintor, diretor de cinema e criador de instalações
multimídia. Tornou-se correspondente da agência Magnum em 1978 – função que exerce
até hoje - e realizou várias exposições nacionais e internacionais ao longo de sua carreira.
O fotógrafo já expôs em vários museus voltados à arte contemporânea em todo o mundo e
ainda possui obras no acervo de coleções públicas e particulares europeias e americanas,
incluindo as seguintes instituições: Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Museu de
Arte Moderna de São Paulo, Museu de Arte de São Paulo, Centro Georges Pompidou em
CAPÍTULO 1
30
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
Paris, Museu de Arte Moderna de São Francisco, Museu Stedelijk em Amsterdam, Museu
Metropolitano de Nova Iorque e Museu de Artes Fotográficas de San Diego.
11
Seu livro Silent Book, de 1997, é um exemplo de construção de uma narrativa sem
texto, apenas com imagens, tratando de temas como a violência, a morte, a dor, entre
outros, sob uma forte abordagem estética, muito além do mero documental. As cores
fortes, os detalhes e texturas de ambientes e objetos abandonados, das academias de
boxe, cicatrizes, restos de animais, entre outras particularidades nos revelam as
percepções de fragmentos do cotidiano pelo fotógrafo. O silêncio proposto pelo autor, já
no nome do livro e na própria diagramação da publicação, que alterna algumas fotos com
páginas pretas - pausas -, é aquele típico da poesia; que respeita o tempo da contemplação
e desperta para a reflexão, estimulando o surgimento de várias interpretações subjetivas
de uma mesma fotografia. Assim, Miguel Rio Branco demonstra ser possível unir o
caráter documental ao experimental e até mesmo poético na fotografia, mostrando, em
imagens, o que o poeta Manoel de Barros já disse, com palavras, sobre a apreensão do
silêncio.
Fig. 11: Silent Book, 1997 Fig. 12: Silent Book, 1997
Foto de Miguel Rio Branco Foto de Miguel Rio Branco
Arthur Omar destaca-se, também, tanto na fotografia quanto no cinema. O
fotógrafo, assim como Miguel Rio Branco, trabalha com instalações, além de vídeos,
música, poesia, ensaios teóricos, entre outros. Omar experimenta com as linguagens dos
diferentes meios com os quais lida. Temas como o êxtase estético e a violência social e
sensorial caracterizam a sua obra. O artista foi destaque na Bienal de São Paulo em 2002
com Viagem ao Afeganistão, um conjunto de 30 fotografias feitas entre Cabul e Bamyan
mostrando cenas de uma zona de guerra.
11
http://www.miguelriobranco.com.br/portu/biografia.asp . Acessado em 17/10/09.
CAPÍTULO 1
31
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
No entanto, seu maior trabalho na área da fotografia foi o Antropologia da Face
Gloriosa, resultado de mais de 25 anos de dedicação, entre 1973 e 1997. Nele Arthur
Omar brinca com a técnica e a própria linguagem fotográfica, procurando mostrar
sensações transmitidas por rostos misteriosos capturados no momento do êxtase durante
os carnavais do Rio de Janeiro. Para isso, o fotógrafo joga com o tempo de exposição
provocando “borrões” nas fotos, faz uso da técnica de dupla exposição, entre outros
artifícios que mostram o domínio da linguagem fotográfica no intuito de exprimir, de
forma subjetiva, a realidade, unindo o caráter documental ao experimental. “O gesto
básico de nossa pesquisa é retirar cada face do seu contexto original e deixá-la viver por
si mesma, com sua carga de ambiguidade e mistério. [...] Mas aqui, antropologia se torna
sinônimo de proliferação poética.” (OMAR, 1997, p. 7)
Fig. 12: Leite Zulú para Harmonia Química Nacional Fig. 13: Menina dos Olhos
Foto de Arthur Omar Foto de Arthur Omar
Existem muitos outros fotógrafos que poderiam entrar nessa lista, tanto
nacionalmente ou mundialmente reconhecidos, assim como novos talentos ainda
desconhecidos que surgem a cada dia. O site zonezero (www.zonezero.com) é um
exemplo de onde se podem encontrar trabalhos de fotógrafos do mundo inteiro em
categorias classificadas como “experimental”, “documental”, “street photography”, “nu”,
“paisagem”, “retratos” entre outras. Ao navegar pela área “documental” encontramos
vários trabalhos que conseguem aliar essa categoria a um olhar mais contemplativo.
CAPÍTULO 1
32
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
Fig. 11: Efigenia 5, 2005. Fig. 12: Avô, 2000
Foto de Pablo Gonzalez
12
Foto de Yves Callewaert
13
Esse breve percurso que levantamos aqui é importante, principalmente, para
perceber a mudança de uma visão que surgiu atrelada à fotografia, de seu entendimento
como espelho do real, para uma visão que a entendia de maneira mais simbólica e
subjetiva. Essa transição também se constituiu num dos fatores que ajudaram na
consolidação de uma linguagem fotográfica que, por sua vez, também se fortaleceu
graças a outros fatores como o relacionamento da fotografia com os movimentos
artísticos do final do século XIX e início do século XX até chegarmos às experimentações
contemporâneas, como veremos adiante.
12
Esta foto faz parte de uma série documental realizada pelo fotógrafo argentino sobre a senhora Efigenia, “a rainha do
papel de bala” que, depois de se tornar viúva, e com nove filhos, se descobre como artista de rua. “Meu trabalho tenta
mostrar essa artista e sua beleza”, diz Pablo Gonzalez. (http://www.zonezero.com/comunity/portfolios/index.html)
13
Esta e outras fotos foram realizadas em 2000 durante uma viagem a Cuba pelo fotógrafo belga.
(http://www.zonezero.com/comunity/portfolios/index.html)
CAPÍTULO 1
33
CONFIGURAÇÕES DA LINGUAGEM FOTOGRÁFICA
1.2. Do surgimento da fotografia à consolidação de uma linguagem
fotográfica
1.2.1. Pictorialismo
Vimos anteriormente que a concepção da fotografia como espelho do real
prevaleceu durante quase todo o século XIX. Somente no final desse século alguns
fotógrafos quiseram ir contra essa tradição fotográfica com intuito de levar a fotografia
para o campo da arte, quando surge, então, o Pictorialismo. Influenciado pelo
Impressionismo, Simbolismo e pelo Naturalismo, esse movimento buscava unir os
objetivos daqueles três movimentos influenciadores que se caracterizavam,
respectivamente, por um desejo de expressar os sentidos na tela, por um desejo de evocar
sensações a partir da realidade - compreendendo-a enquanto símbolo e buscando
significados atemporais - e por um comprometimento com temas ligados à paisagem, à
natureza e à vida no campo - no que diz respeito às manifestações fotográfica e pictórica.
Foi o movimento pictorialista que primeiro alterou a linguagem fotográfica,
tirando-a de uma visão estereotipada de espelho do real e ligando-a a arte. Apesar de que
ainda não podíamos dizer que essa conquista se deveu a uma linguagem própria da
fotografia, mas sim a uma tentativa de imitar a pintura através da fotografia.
Para os pictorialistas, era comum tratar a foto como uma pintura, fazendo
intervenções sobre o negativo e provas com pincéis, lápis e vários outros químicos e
instrumentos. Um importante grupo representante do movimento é o “The Linked Ring”,
criado em 1892 e que buscava “[...] produzir trabalhos de beleza poética através da
fotografia”
14
(FRIZOT, 1998, p.306). Também podemos citar o fotógrafo Alfred Stieglitz
como um dos representantes do movimento pictorialista nos Estados Unidos. Stieglitz
dirigia a revista Camera Notes, voltada para a fotografia pictorialista. Tal revista mais
tarde veio a se chamar Camera Work e se colocava, também sob a direção de Stieglitz,
como uma publicação de alto nível tanto em relação às fotos quanto em relação à
impressão. Ela continha, além de imagens, artigos, críticas de exposições e publicações
fotográficas.
O pictorialismo foi, em suma, uma reação de ordem romântica que […] tentou
introduzi-la (a imagem fotográfica) no universo da arte através de uma concepção
14
“ […] to produce works of poetic beauty through photography.”
CAPÍTULO 1
34
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
clássica de cultura. Entretanto, por mais conservadora que tenham sido as suas
intenções, abriu um vasto campo de questionamento para a fotografia por meio
do experimentalismo. […] O dado positivo da atividade pictorialista foi dar à
fotografia o estatuto de obra de arte e permitir a uma camada de aficionados da
burguesia acesso à expressão artística. (COSTA, 2004, p. 27)
Fig. 13: Um canal veneziano 1894. Fig. 14: Pavimentador de asfalto, New York, 1892.
Foto de Alfred Stieglitz Foto de Alfred Stieglitz
Apesar desse cenário, podemos observar que o movimento contrário também
existia. Alguns pintores passaram a fotografar não apenas como uma prática de estudo – o
que era bastante comum -, mas porque perceberam que a fotografia era uma arte livre,
cercada de uma atmosfera própria, que não se aplicava à pintura e vice-versa. No entanto,
esses ainda eram poucos. Mesmo com a presença do componente subjetivo personificado
no fotógrafo que está atrás das lentes, a fotografia continuava a ser valorizada por sua
ligação a um referente real. A pintura, por sua vez, não possuía tal ligação imperativa
com o real. Assim, a fotografia acabou contribuindo com a liberação da pintura e da arte,
de um modo geral, do dever de representar o mundo visível, abrindo caminho para novos
movimentos surgidos ainda no final do século XIX e início do século XX, como o
Impressionismo, o Fauvismo, o Cubismo, o Futurismo, o Surrealismo, o Dadaísmo, entre
outros.
No Brasil, percebemos que a relação da fotografia com a pintura se deu quase
desde o seu início. “No primeiro espaço onde a imagem fotográfica foi vista em público
estava intimamente associada à arte, em particular à pintura.” (TURAZZI, 1995, p.111).
Essa primeira apresentação ocorreu em 1842, na terceira Exposição Geral da Academia
Imperial de Belas-Artes, criada em 1826. Diante da falta de um espaço próprio da mostra
CAPÍTULO 1
35
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
voltado para fotografia, as imagens foram expostas no próprio gabinete do diretor da
Academia.
Maria Inês Turazzi destaca que o desenvolvimento da fotografia no Brasil se
relaciona com a história das exposições no país, “[...] dentro de um processo mais amplo
de construção e afirmação de uma ‘identidade brasileira’ […].” (TURAZZI, 1995, p.109).
Ela relata ainda que, em relação ao espaço destinado à fotografia nessas exposições, elas
passaram do gabinete do diretor em 1842 para uma seção destinada aos “artefatos da
indústria e aplicação das belas-artes” – seguindo uma tendência mundial -, em 1859. Em
1862, ingressou na seção de “arquitetura”. Depois permaneceu vários anos na seção
“geral” até que em 1879 foi contemplada com a criação de uma seção específica de
“fotografia”, assim como existiam as seções de “pintura” e “escultura”. Esse trajeto
mostra a progressiva aceitação da fotografia no campo das artes no Brasil.
Antes disso, como mencionamos anteriormente, a fotografia já flertava com a arte,
seja pela “[...] associação entre profissionais, como fotógrafos e pintores; seja na fusão de
habilidades distintas num único profissional (o fotopintor, por exemplo); na troca e
apropriação de certas técnicas, ou ainda na definição de uma estética.” (TURAZZI, 1995,
p. 112). A autora cita o nome de conhecidos fotopintores no Brasil, como Auguste
Moreau, J. Courtois, Ulrich Steffen, Ernest Paft, Joaquim Insley Pacheco, entre outros.
Em um país cujo imperador, Dom Pedro II, era um devoto da fotografia, sendo
provavelmente o primeiro brasileiro a praticar a daguerreotipia e o primeiro monarca a
adotá-la em sua rotina doméstica – segundo Turazzi (1995, p.105) -, a fotografia
desenvolveu no país uma relação particular com a pintura que aproximava mais as duas
áreas, conferindo um maior caráter de arte à fotografia, diferentemente do que acontecia
nos países mais centrais.
André Rouillé, em seu livro La Photographie. Entre document et art conteporain,
fala sobre a importância do movimento pictorialista para o início da formação de uma
linguagem fotográfica que ganha força própria principalmente ao reconhecer a fotografia
como interpretação e não mera representação; ao valorizar o papel subjetivo do fotógrafo
em seu entendimento particular da realidade que o cerca. Segundo o autor, o pictorialismo
defende um regime fotográfico baseado na fluidez, na interpretação e na subjetividade
(2005, p.345), elementos essenciais e necessários para inserção da fotografia no campo da
arte.
CAPÍTULO 1
36
CONFIGURAÇÕES DA LINGUAGEM FOTOGRÁFICA
A rejeição vigorosa da fotografia pura está nos fundamentos próprios do
pictorialismo que vê nela a encarnação perfeita daquilo que ele recusa: o registro,
a automatização, a imitação servil, a máquina, a objetividade, a cópia literal.
Segundo a “grande narrativa” pictorialista, a pureza mecânica é imanente à
fotografia. Ela é igualmente incompatível com a arte, pois as qualidades exigidas
de uma prova artística são de uma outra ordem: não o registro automático mas a
intervenção humana, não a imitação servil mas a interpretação, não a máquina
mas a mão, não a objetiva mas o olho, não o olhar mas a visão, não a objetividade
mas a subjetividade. É somente nessas condições que a prova fotográfica pode
passar da cópia literal (objetiva) à interpretação (subjetiva) sem a qual a arte não
existiria.
16
(ROUILLÉ, 2005, p.339)
O pictorialismo continuou a se desenvolver, e ganhou muita força com o
surgimento do movimento fotoclubista, ainda no final do século XIX. O auge do
pictorialismo europeu se deu entre 1890 e 1914, no entanto, ele continuou a influenciar o
fotoamadorismo internacional ainda por várias décadas. Com o pictorialismo, o
movimento fotoclubista “[…] assumiu um projeto estético que uniformizou a sua
produção e definiu-lhe uma identidade.” (COSTA, SILVA, 2004, p.25).
1.2.2. Vanguardas do século XX
No início do século XX, o movimento pictorialista estava consolidado e passou a
sofrer as influências dos movimentos artísticos que surgiam como o Cubismo, o
Fauvismo, o Futurismo e o Dadaísmo, voltados a uma arte mais abstrata. As texturas até
então usadas pelos pictorialistas perdem lugar para a precisão visual e temas urbanos. A
fotomontagem ganha espaço e muda a face da fotografia na imprensa, em pôsteres e na
publicidade, acompanhada de cores, slogans políticos, tipografia e desenhos gráficos.
Com suas composições gráficas, quase abstratas, os trabalhos dos artistas
Moholy-Nagy, Tschichold e Rodchenko abrem novas possibilidades para a linguagem
fotográfica. Também a escola Bauhaus e o grupo construtivista soviético liderado por El
Lissitzky se destacam nesse período por seu trabalho voltado a uma fotografia que
16
“Le rejet vigoureux de la photographie purê est aux fondements mêmes du pictorialisme qui voit en elle l’incarnation
parfaite de ce qu’il refuse: l’enregistrement, l’automaticité, l’imitation servile, la machine, l’objectivité, la copie litérale.
Selon Le “grand récit” pictorialiste, la pureté mécanique est immanente à la photographie. Elle est également
incompatible avec l’art, car lês qualités exigées d’une épreuve artistique sont d’un tout autre ordre: non pas
l’enregistrement automatique mais l’intervention humaine, non pas l’imitation servile mais l’interpretation, non pas la
machine mais la main, non pas l’objectif, mais l’oeil, non pas le regard mais la vision, non pas l’objectivité mais la
subjectivité. C’est à ces seules conditions que l’épreuve photographique peut passer de la copie litérale (objective) à
l’interprétation (subjective) sans laquelle l’art ne serait pas.”
CAPÍTULO 1
37
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
experimentava as diferentes possibilidades do processo fotográfico, como é o caso do
fotograma e da fotomontagem. Nesse período dá-se início à valorização de uma
linguagem tipicamente fotográfica que privilegia uma composição que busca bons
ângulos e enquadramentos.
Fig. 15: Moça com Leica, 1934. Fig. 16: O construtor, fotomontagem com autorretrato,1924.
Foto de Alexander Rodchenko Foto de El Lissitzky.
Rodchenko é um exemplo de um trabalho fotográfico muito caracterizado pelas
fotomontagens e por uma linguagem gráfica e geométrica – clara influência da escola
russa construtivista da qual fazia parte. Ele foi muito influenciado também pelo cineasta
Dziga Vertov, que filmava o cotidiano das cidades russas, no intuito de usar a câmera
como o olho sempre atento do fotógrafo aos acontecimentos do dia-a-dia.
Em certa medida, a fotografia anunciava o homem da câmera de Dziga Vertov
que dirigia a objetiva da câmera, como se de um olho desmesuradamente aberto
se tratasse, sobre os acontecimentos. Percorria o mundo em estado de alerta. A
silhueta do fotógrafo repórter, grande provedor de imagens, artesão de um dos
primeiros meios de comunicação, se perfila no horizonte. [...] Sobretudo porque
a fotografia, ao abordar todos os temas com uma compreensão parecida, permite
que o banal possa se converter em material de uma imagem interessante. Traduz
os acontecimentos de uma forma distinta da pintura. Verte nas artes o tumulto da
sociedade; destaca uma cena, retém os elementos que a resumem; [...].
17
(ARBAÏZAR, in ABRAÏZAR, PICAUDÉ, 2004, pp.77, 79)
Assim o instante recortado da realidade aparente pelo fotógrafo mostra que,
apesar de vinculada a um referente real, a fotografia é capaz de desvencilhar-se do
17
“En cierta medida, la fotografia anunciaba al hombre de la câmara de Dziga Vertov que diria su objetivo, como si de
un ojo desmesuradamente abierto se tratase, sobre los acontecimientos. Recorria el mundo en estado de alerta. La
silueta del fotógrafo reportero, gran proveedor de imágenes, artesano de uno de los primeros medios de comunicación,
se perfila en el horizonte. [...] Sobre todo porque la fotografia, al abordar todos los temas con una comprensión pareja,
permite que lo banal pueda convertirse en materia de una imagen interesante. Traduce los acontecimientos de una forma
distinta a la pintura. Vierte en las artes el tumulto de la sociedad; destaca una escena, retiene los elementos que la
resumen; [...].”
CAPÍTULO 1
38
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
estigma da mimese, produzindo novas visibilidades, criando novas versões da realidade,
possibilitando o despertar de emoções individuais sem a necessidade de imitar modelos e
processos alheios a si mesma.
O cenário dessa época serve de base para o surgimento do Surrealismo, nas
décadas de 1920 e 1930. A fotografia assume um importante papel dentro do movimento
surrealista, com imagens ligadas aos conceitos da Bauhaus, como a obsessão pela forma,
porém marcadas pela presença de uma realidade menos evidente. Os fotógrafos passam a
se distanciar cada vez mais da vida real, aumentando o espaço entre o que é mostrado e o
que pode ser subentendido em uma imagem, atribuindo cada vez mais valor ao aspecto
interpretativo da fotografia.
O movimento surrealista tinha dois pólos de atração: “[...] o automatismo abstrato
por uma parte; o academismo ilusionista por outra parte [...]” (KRAUSS, 2002, p.109).
Eram imagens ligadas ao universo dos sonhos e da livre associação, unidas “[...] em torno
do conceito da imagem metafórica concebida irracionalmente.” (KRAUSS, 2002, p.109).
Rosalind Krauss elenca alguns exemplos ao observar os gêneros da fotografia surrealista:
1. As imagens totalmente banais realizadas por Boiffard para Nadja de Breton; 2.
As fotografias menos banais, mas igualmente não manipuladas publicadas por
Boiffard em Documents [...]; 3. As imagens documentais de objetos estruturais
igualmente “não-manipuladas”- mas que colocam diversas interrogações sobre o
estatuto do testemunho fotográfico -, que não possuíam outra existência além da
que a fotografia lhes emprestou e que foram imediatamente desmantelados depois
de fotografados [...]; 4. A utilização frequente de tiragens de negativos; 5. O
recurso às exposições múltiplas ou tiragem de vários negativos superpostos,
dando um efeito de montagem; 6. Diferentes tipos de manipulações, com o
auxílio de espelhos, como nas Distorções de Kertèsz; 7. Os dois procedimentos
que Man Ray celebrizou: a solarização e a imagem realizada sem máquina
fotográfica – o raiógrafo. (KRAUSS, 2002, p. 115)
Os fotógrafos do Surrealismo também davam grande importância ao
enquadramento e se utilizavam bastante da fotomontagem – já usada anteriormente pelos
dadaístas. Outra técnica muito usada pelos surrealistas foi a da duplicação. O duplo era
entendido como o simulacro do real. Assim, eles queriam transmitir a ideia de uma “[...]
realidade constituída em signo – ou ainda o da presença transformada em ausência.”
(KRAUSS, 2002, p. 120). A realidade é entendida como interpretação e essa é uma das
ideias principais de todo o movimento surrealista. Para os surrealistas, o enquadramento
definido pelo fotógrafo já é dotado de importância, pois representa a separação do
elemento escolhido da realidade visível. O enquadramento já significava, portanto, uma
CAPÍTULO 1
39
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
ruptura na “experiência instantânea do real.” (KRAUSS, 2002, p. 124). Alguns nomes
que se destacaram na fotografia surrealista foram: Man Ray, Moholy-Nagy, Brassaï,
Boiffard, entre outros.
Fig. 17: O violino de Ingres, 1924. Fig. 18: Fotograma, 1926.
Foto de Man Ray. Foto de Laszlò Moholy-Nagy.
Dentre os movimentos de vanguarda, o Surrealismo é especialmente
representativo porque buscava uma realidade associada ao inconsciente e se utilizava da
fotografia para comprovar a existência dessa “realidade” no mundo visível, ou seja, uma
perspectiva bem diferente do positivismo indicial que guiou o início da linguagem
fotográfica. Além dessa visão da realidade ligada ao inconsciente, o Surrealismo levou a
fotografia a ser entendida como uma linguagem propriamente dita, com sua própria
sintaxe, associações e variações de significado, destacando o papel da imagem como
forma de contemplação e interpretação do mundo visível.
Outros movimentos artísticos também fizeram uso da fotografia com perspectivas
diversas, abalando o status realista da fotografia. No Brasil, podemos citar o fotógrafo
José Oiticica Filho. Oiticica participou do Photo Club Brasileiro e mais tarde do Foto
Cine Clube Bandeirante. Ele seguiu a vertente abstracionista, sob forte influência
geométrica, utilizando-se de intervenções no processo de revelação e ampliação e de
técnicas como a fotomontagem “[...] para fugir à característica documental que
considerava inerente à fotografia. ” (COSTA, SILVA 2004, p. 74). O artista ainda ganhou
projeção no campo do Construtivismo, fotografando, em preto e branco e em alto
contraste, quadros anteriormente pintados por ele mesmo, fotografias que “[...]
representam seus melhores momentos artísticos”, segundo Helouise Costa e Renato
Rodrigues da Silva (2004, p.75). Outro fotógrafo brasileiro que foi influenciado pelo
CAPÍTULO 1
40
CONFIGURAÇÕES DA LINGUAGEM FOTOGRÁFICA
concretismo e o neo-concretismo dos anos 40 – movimentos que, por sua vez
influenciaram também as artes plásticas e a literatura – foi Geraldo de Barros. O fotógrafo
também frequentou o Foto Cine Clube Bandeirante e se caracterizava pelo nível de
experimentalismo de suas fotografias.
Fig. 19: Sem Título, circa 1940. Fig. 20: Triângulos semelhantes, 1949.
Foto de José Oiticica Filho. Foto de José Oiticica Filho.
Fig. 21: Sem Título, 1948 Fig. 22: Sem Título, 1950
Foto de Geraldo de Barros Foto de Geraldo de Barros
1.2.3. Experimentações contemporâneas
Os movimentos de vanguarda deram início a muitas outras transformações na
fotografia. Além disso, o grande desenvolvimento tecnológico, social e econômico vivido
durante o século XX certamente influenciou muitos campos da arte e da cultura. Esses
dois fenômenos juntos servem de base para o entendimento de uma fotografia que, no
CAPÍTULO 1
41
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
século XX, às vezes se volta à esfera intimista, de caráter subjetivo e experimental. Os
fotógrafos desenvolvem técnicas e formas que subvertem a ideia da fotografia como
representante fiel da realidade, fortalecendo ainda mais uma linguagem fotográfica
particular.
Ainda é importante nos lembrarmos do impacto da eletrônica sobre a fotografia.
Hoje, a fotografia pode se transformar em um código digital binário que possibilita sua
manipulação por softwares gráficos, tornando-a fluida e liberta de seu referente. Arlindo
Machado já nos alerta que: “A consequência mais óbvia e mais alardeada da hegemonia
da eletrônica é a perda do valor da fotografia como documento, como evidência, como
atestado de uma preexistência da coisa fotografada, ou como árbitro da verdade.”
(MACHADO in SAMAIN, 2005, p.312).
Não queremos dizer que as imagens contemporâneas ignorem por completo o
mundo visível, mas que o diálogo entre a imagem e o visível é agora mais mediado. O
fotógrafo está mais livre para suas experimentações, e a imagem assume uma estética que
pode estar em constante mudança.
Arlindo Machado nos diz que as novas poéticas fotográficas ainda estão aquém
das possibilidades oferecidas pela eletrônica. Muitos trabalhos representam somente um
deslumbramento com as possibilidades tecnológicas e não um trabalho conceitual. Esse
cenário nos relembra a busca por uma filosofia da fotografia defendida por Flusser, que
afirma que fotógrafo é aquele que consegue ir além da programação do aparelho - da
câmera. Pois bem, estamos, agora, diante de mais um aparelho: o computador com seus
softwares de edição que, por sua vez, também estão imbuídos de um programa. Cabe ao
fotógrafo, enquanto artista, desprogramar esses aparelhos e subverter a sua própria
função. No entanto, essa subversão exige reflexão do fotógrafo, o que se consegue apenas
mediante a destinação de determinado tempo à contemplação e ao diálogo – do fotógrafo
com a máquina, do fotógrafo com o mundo visível, do fotógrafo com outros fotógrafos e
do fotógrafo com suas próprias imagens internas -, como veremos no quarto capítulo.
Arlindo Machado cita o exemplo do fotógrafo Carlos Fadon Vicente. Segundo
Machado, em seu trabalho é possível ver:
[...] um diálogo entre o artista e a máquina [...] resultando desse procedimento
respostas não previsíveis da máquina. Na obra de Fadon, produz-se um esforço
metodológico no sentido de dar expressão dialógica ao trabalho criativo,
transformando o computador em co-autor das imagens e o ato criativo num
processo de interação entre as intenções do artista e as respostas inesperadas da
máquina. (MACHADO, 2001, pp. 98,99)
CAPÍTULO 1
42
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
Fig. 23: Medium, 1991. Fig. 24: Medium, 1991.
Foto de Carlos Fadon Vicente. Foto de Carlos Fadon Vicente.
Podemos citar, também, outros fotógrafos brasileiros que são representantes da
fotografia experimental e que não fazem uso das ferramentas disponibilizadas pela
eletrônica. O exemplo mais proeminente é o de Rosângela Rennó, fotógrafa que não
fotografa, não usa a câmera, mas resgata fotos já existentes e, de alguma maneira,
esquecidas. Frente aos excessos imagéticos das comunidades virtuais, fruto de uma época
que Norval Baitello caracteriza como a era da iconofagia
18
, em que somos
constantemente bombardeados por imagens que devoramos sem ao menos “degustá-las”,
Rosângela Rennó propõe uma mudança de postura frente a própria fotografia,
recuperando e transformando imagens já descartadas e esquecidas pela sociedade. Em
seus trabalhos e instalações o anonimato fotográfico é preservado.
Ao invés de identificarem, as obras de Rosângela apagam a diferença entre as
pessoas, justamente por elaborarem técnicas de massificação. [...] A dimensão
social do anonimato fotográfico é uma preocupação constante da artista, que
mostra os mecanismos institucionais de dissociação entre memória e imagem. Em
vez de pessoas, Rosângela apresenta nosso hábito adquirido de lidar com tipos.
(CHAIMOVICH in RENNÓ, 1996, p.08)
O que a artista defende é que a fotografia representa mais do que o estereótipo de
uma identidade pessoal e social aparentemente deduzida pela imagem. Segundo ela, a
fotografia pode ser entendida, antes de tudo, como uma linguagem própria que constitui
uma forma de conhecimento. No entanto, esse conhecimento só é gerado quando se tem o
tempo da contemplação e da reflexão. No caso de seu trabalho realizado com imagens de
presidiários do Carandiru tiradas no início do século XX, Cicatriz, é claro o seu
18
Termo de autoria de Norval Baitello Júnior e desenvolvido em seu livro A era da iconofagia (2005) e que se refere ao
mundo saturado de imagens em que vivemos.
CAPÍTULO 1
43
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
questionamento em relação aos estereótipos desses homens tatuados que se situavam à
margem da sociedade, bem como em relação às práticas fotográficas no ambiente
institucional do cárcere. Rosângela Rennó enxerga nessas fotos pedaços de verdades
internas que revelam outras identidades além daquelas inicialmente aparentes.
Fig. 25: Série Cicatriz, 1997. Fig. 26: Série Cicatriz, 1997.
Rosângela Rennó. Rosângela Rennó.
Ainda outro exemplo de fotografia experimental brasileira não ligada à
manipulação eletrônica pode ser encontrado no trabalho de Kenji Ota. O fotógrafo
subverte o resultado de suas fotografias ao jogar com o controle químico e matemático do
processamento da foto. Sobre o artista, Arlindo Machado diz que:
Quanto mais introduz a imprecisão, a descontinuidade, o processamento sem
cronômetro e medição técnica, mais as imagens se decompõem em anamorfoses,
manchas e alteridades gráficas, fazendo a fotografia se distanciar da homologia
icônica e do traço documental, para se aproximar da pintura abstrata.
(MACHADO, 2001, pp. 137, 138)
Fig. 27: Sem Título, 1993. Fig. 28: Sem Título, 1993.
Foto de Kenji Ota. Foto de Kenji Ota.
CAPÍTULO 1
44
CONFIGURAÇÕES DA LINGUAGEM FOTOGRÁFICA
1.3. A constituição do gênero fotográfico
1.3.1 Os gêneros emprestados da pintura
Com a possibilidade do registro fiel da realidade, a fotografia começou a ocupar o
lugar da pintura em algumas de suas funções sociais ligadas à vida cotidiana. Uma delas
foi a do retrato. Além de mais fiel, a fotografia era mais rápida e barata, o que fez com
que a pintura logo deixasse de ser procurada por pessoas que queriam um retrato próprio.
Assim, até mesmo muitos pintores abandonaram o antigo ofício e se tornaram fotógrafos,
abrindo um estúdio próprio.
Porém, a fotografia ainda era vista como uma técnica apenas, fruto da ciência.
Muitos fotógrafos, ou por almejarem o status de artista ou apenas por seguirem uma das
principais referências iconográficas da época, voltaram-se a gêneros até então
prestigiados pela pintura, como a Natureza Morta. Vemos aqui o desenvolvimento de um
gênero fotográfico que em princípio não reforça uma linguagem fotográfica própria, mas
que busca a valorização pela imitação de gêneros oriundos da pintura. Posteriormente, a
natureza morta fotográfica ganharia especificidades com a expansão do seu uso na
fotografia publicitária, por exemplo.
Os fotógrafos realizavam determinadas composições que seriam fotografadas e
constituiriam, assim, sua obra de arte. Temos o exemplo de Still-life (Natureza Morta) de
Roger Fenton (1858). O fotógrafo britânico foi um dos primeiros fotógrafos de guerra, no
final do século XIX, famoso por cobrir a guerra da Criméia (1853 – 1856). No entanto,
depois da guerra, o fotógrafo dedicou-se ao estudo de fotos de estúdio, o que mostra que,
apesar de se dedicar mais especificamente a um determinado gênero da fotografia, os
fotógrafos, por vezes, se dedicavam a vários deles - numa fluidez de limites que é
característica não apenas das escolhas dos fotógrafos, mas dos próprios gêneros
fotográficos.
Roger Fenton produziu fotografias suscetíveis de pertencer a vários espaços
discursivos. Como fotógrafo do British Museum, realizou numerosos documentos
científicos, refratários do sistema de gêneros, sobretudo devido a uma
simplicidade factual que se opõe à profusão de suas naturezas mortas “artísticas”,
gênero em que também se sobressaiu. Ao ter certas pretensões artísticas enquanto
fundador da Photographic Society, produziu também trabalhos destinados a
serem expostos e que respondiam à definição acadêmica de gêneros: nus
orientalistas, paisagens pitorescas e, sobretudo, naturezas mortas. Entretanto, foi
com outra série de fotografias com a qual alcançou sua fama de fotógrafo em
CAPÍTULO 1
45
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
meados do século. Sua célebre série da Guerra da Criméia não tem equivalente na
história da representação pictórica: O Vale da Morte, a mais conhecida dessas
‘naturezas mortas de Guerra’, que apresenta uma paisagem desolada, semeada de
balas de canhão, também poderia ser definida como natureza morta, paisagem ou
quadro de história; [...] – o que, uma vez mais, demonstra a profunda
instabilidade do gênero da fotografia.
19
(ARMSTRONG, in ABRAÏZAR,
PICAUDÉ, 2004, p. 155)
Outro gênero emprestado da pintura é a Alegoria, que se caracteriza por uma
representação artística simbólica, de ideias abstratas e que nega o realismo, como é o caso
da obra L’aurore de Michel-Ange (A aurora de Miguelangelo) de Adolphe Bilordeaux
(1859). Podemos citar ainda o gênero do Tableau Vivant, que tem na obra de Oscar G.
Rejlander, The two ways of life (Os dois caminhos da vida), 1857, um notável exemplo.
Na tentativa de fazer uma fotografia que se assemelhasse a uma parábola, o fotógrafo fez
uso de 30 negativos diferentes que teve de juntar para poder obter uma imagem final de
conotação moralista, mostrando os possíveis caminhos a se seguir na vida: um voltado à
religião, à piedade e ao trabalho e outro voltado à preguiça, à luxúria e ao jogo.
Fig. 29: Natureza morta, 1858. Fig. 30: O vale da morte, 1855.
Foto de Roger Fenton. Foto de Roger Fenton.
19
“Roger Fenton produjo fotografias susceptibles de pertenecer a vários espacios discursivos. Como fotografo del
British Museum, realizo numerosos documentos científicos, refractarios del sistema de géneros, sobre todo debido a
una simplicidad factual que se opone a la profusión de sus naturalezas muertas ‘artísticas’, género en el que además
sobresalió. Al tener ciertas pretensiones artísticas en tanto que fundador de la Photographic Society, produjo también
trabajos destinados a ser expuestos y que respondian a la definición académica de géneros: desnudos orientalistas,
paisajes pintorescos y, sobre todo, naturalezas muertas. Sin embargo, fue con otra serie de fotografías con la que
alcanzó su fama de fotografo a mediados del siglo. Su celebre serie de la guerra de Crimea no tiene equivalente en la
história de la representación pictórica: El valle de la muerte, la más conocida de estas ‘naturalezas muertas de
guerra’que presenta un paisaje desolado, sembrado de balas de cânon, también podría ser definida como naturaleza
muerta, paisaje o cuadro de história; [...] – lo que, una vez más, demuestra la profunda inestabilidad del género en
fotografía. “
CAPÍTULO 1
46
CONFIGURAÇÕES DA LINGUAGEM FOTOGRÁFICA
Fig. 31: Aurora de Miguelangelo, 1859. Fig. 32: Os dois caminhos da vida, 1857.
Foto de Adolphe Bilordeaux. Foto de Oscar G. Rejlander.
Também o gênero de Paisagens, largamente explorado pela pintura, foi
incorporado pela fotografia, voltado às paisagens tanto urbanas quanto campestres. Esse
gênero teve o seu impulso com as viagens fotográficas realizadas por todo o mundo, com
intuito principal de registrar diferentes topografias.
1.3.2. Os gêneros desenvolvidos na história da fotografia
Outros gêneros, no entanto, se originaram ou se desenvolveram graças ao
surgimento da própria fotografia. O registro do acontecimento, por exemplo, tanto
histórico, já presente na pintura, quanto do cotidiano ampliou-se, devido a então
valorização da fotografia por sua característica de espelho do real. A fotografia foi
largamente utilizada, nesse período, principalmente para registrar e divulgar imagens de
guerras.
Ainda vista como espelho do real, a fotografia também passou a ser usada na
visualização do que antes era invisível ao olho humano, como é o caso das fotos
microscópicas e macroscópicas. As primeiras são realizadas com o auxílio de um
microscópio, e possibilitaram o registro de imagens de células, bactérias, entre outros
microrganismos. Já as fotos macroscópicas são realizadas com lentes específicas que
permitem uma grande aproximação do objeto a ser fotografado sem perda de nitidez,
facilitando o arquivamento de informações visuais importantes sobre esse. Muitas vezes,
para visualizar o todo do objeto, a partir dos detalhes fotografados separadamente, era
CAPÍTULO 1
47
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
necessário fazer uso de técnicas de colagem e montagem de negativos ou de fotos já
reveladas. Hoje, com a fotografia digital, essas técnicas foram substituídas pelas
ferramentas dos softwares de edição que unem os vários arquivos de imagem de cada
parte do objeto em um só arquivo, tornando possível a montagem do conjunto. Assim, a
fotografia tornou-se uma grande aliada no desenvolvimento de estudos científicos, nos
mais variados campos da Ciência.
[…] ela (a fotografia) suscitou diretamente o interesse dos arqueólogos, dos
engenheiros, dos arquitetos, dos médicos, etc. Todos aqueles que, em seus
domínios respectivos, quiseram acompanhar os movimentos do mundo, usaram a
fotografia para confeccionar uma miríade de álbuns sobre os monumentos
distantes ou nacionais, as construções de pontes, ou de caminhos de ferro, as
transformações urbanas, o estudo das doenças de pele, a observação de povoados
indígenas, e evidentemente sobre os indivíduos próximos ou célebres. Essa
profusão de álbuns foi o efeito e o instrumento de uma maneira moderna de ver
que ordena o mundo visível decupando-o e relatando-o segundo séries
classificadas de visões. Ao contrário das obras de arte destinadas a serem
contempladas, expostas e admiradas, as imagens assim reunidas foram antes
consultadas, arquivadas, utilizadas.
20
(ROUILLÉ, 2005, pp. 41, 42)
Outra característica importante da fotografia que passou a ser valorizada foi a
possibilidade de captura do momento, graças ao desenvolvimento técnico das câmeras
fotográficas que progressivamente diminuíam o tempo de exposição do material
sensibilizado. Era possível registrar um momento ínfimo, capturando detalhes que antes
passavam despercebidos. O passo seguinte foi a captura da velocidade através da
fotografia. A partir daí, tornou-se possível identificar cada etapa de um determinado
movimento, o que, mais à frente, promoveu o surgimento da imagem em movimento no
cinema. Essa característica não constitui um gênero fotográfico próprio, mas foi essencial
para o desenvolvimento, mais tarde, da fotografia de esportes, por exemplo. Além disso,
esse desenvolvimento técnico que possibilitou a captura de um instante foi importante
para a consolidação do que Cartier-Bresson chamou de Momento Decisivo. Em seu livro
L’image d’après nature (O imaginário segundo a natureza), o fotógrafo diz: “De todos os
modos de expressão, a fotografia é a única que fixa um instante preciso. Nós jogamos
20
“[...] elle a d’emblée suscite l’intérêt des archéologues, des ingénieurs, des architectes, des médicins, etc. Tous ceux
qui, dans leurs domaines respectifs, ont voulu suivre les mouvements du monde l’ont utilisée pour confectionner une
myriade d’albums sur les monuments lointains ou nationaux, les constructions de ponts ou de chemins de fer, les
bouleversements urbains, l’étude des maladies de la peau, l’observation de peuplades indigènes, et évidemment sur les
individus proches ou célèbres. Cette profusion d’albums a éte l’effet et l’instrument d’une manière moderne de voir qui
ordonne le monde visible en le découpant et en le raportant à des séries classees de vues. À l’inverse des oeuvres d’art
destinées à être contemplées, exposées et admirées, lês images ainsi rassemblées ont été plutôt consultées, archivées,
utilisées.”
CAPÍTULO 1
48
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
com as coisas que desaparecem, e, quando elas já desapareceram, é impossível de as fazer
reviver.”
21
( CARTIER-BRESSON, 1996, p.21)
Com o desenvolvimento das técnicas fotográficas, também gêneros como o
abstracionismo passaram a ganhar destaque. O abstracionismo foi muito influenciado por
movimentos como o Construtivismo e o Suprematismo russos, a escola Bauhaus e o
próprio Surrealismo. Por isso, vários expoentes desse gênero abstrato também fizeram
parte desses movimentos, como é o caso de Lászlò Moholy-Nagy, Alexander Rodchenko,
Man Ray, entre oturos. No Brasil podemos citar novamente os nomes de José Oiticica
Filho e Geraldo de Barros.
A fotografia abstrata permanece atual e é praticada por muitos fotógrafos
contemporâneos. Em Brasília temos o exemplo de Rinaldo Morelli. Segundo o fotógrafo,
“[...] o abstrato nega o figurativo, e de certa forma nega o real, isto instiga o fotógrafo.”
22
Fig. 33: Abstractus, 1987 Fig. 34: Abstractus, 1987
Foto de Rinaldo Morelli Foto de Rinaldo Morelli
Com o desenvolvimento do abstracionismo, a fotografia se distancia ainda mais
da realidade e a linguagem fotográfica se fortalece como uma linguagem própria, levando
à compreensão de gêneros que são próprios da fotografia.
21
“De tous les moyens d’expression, la photographie est le seul qui fixe un instant précis. Nous jouons avec des choses
qui disparissent, et, quand elles ont disparu, il est impossible de les faire revivre.”
22
MORELLI, Rinaldo. Disponível em <http://www.fotoclubef508.com/post.php?id=39>. Acessado em 13.09.09.
CAPÍTULO 1
49
CONFIGURAÇÕES DA LINGUAGEM FOTOGRÁFICA
1.3.3. Os gêneros próprios da fotografia
Os gêneros da fotografia são, na verdade, construções sociais que surgem de
acordo com os usos e o entendimento que fazemos dela, atribuindo-lhe determinados
valores e significados. Assim, é possível classificar as imagens, segundo os critérios de
pertencimento que estabelecemos para elas. Para Frizot, no entanto, os gêneros criados na
fotografia representam apenas convenções profissionais. O que o autor busca é:
[...] a essência interior da unidade fotográfica, a partir da qual todas elas se
tornam parte da “Fotografia”, um campo amplo e diversificado que inclui tanto
criação artística quanto trabalho de rotina e que se manifesta no estúdio
fotográfico, no álbum de família, na propaganda, no ponto de vista do turista, na
imagem exótica.
23
(FRIZOT, 1998, p.13)
Apesar da opinião de Frizot, alguns gêneros se estabeleceram como típicos da
fotografia. Isso ocorre porque hoje questiona-se a existência de uma essência fotográfica
única, como se procurou por tanto tempo, e busca-se assumir que os gêneros e
caracterísiticas da fotografia são o produto de práticas sociais e podem mostrar diversas
interpretações de uma mesma realidade visível. Esses gêneros típicos são: o documental,
o fotojornalístico, o publicitário, o experimental ou artístico e o doméstico ou afetivo. Ao
analisar os gêneros próprios da fotografia, torna-se possível entendê-la como uma
linguagem específica. Sua prática certamente é guiada por esquemas de criação que
constituem, também, a base dos critérios de categorização da imagem, que possibilita o
surgimento de um determinado gênero.
Não devemos, aqui, confundir linguagem com gênero. A reflexão em torno dos
gêneros fotográficos nos ajuda a entender como a linguagem fotográfica tem sido
decifrada ao longo de sua história pelo uso dos próprios gêneros, além de nos fornecer
bases teóricas para entender as atuais transformações sofridas pela linguagem fotográfica
em ambiente virtual.
Assim, partindo da construção desses gêneros, almejamos chegar ao entendimento
da enorme massa de fotografias presentes nos bancos de imagem e nas comunidades
virtuais atualmente, além de verificar se é possível a existência de uma fotografia que
23
“[…] the essencial inner core of photographic unity within which they all form part of ‘photography’, that broad,
disparate ensemble which includes both artistic creation and routine work, which manifests itself in the photographic
studio, the family album, the advertisement, the tourist view, the exotic image.”
CAPÍTULO 1
50
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
englobe tanto o aspecto criativo quanto o rotineiro; tanto a experimentação quanto a
documentação.
A fotografia documental surge no início do século XX junto à onda de reformas
sociais ocorridas nos Estados Unidos. Segundo Howard Becker, a fotografia documental
deve “[...] estar comprometida com a sociedade, exercer um papel ativo nas mudanças
sociais, ser socialmente responsável, preocupar-se com os efeitos do seu trabalho na
sociedade em que é distribuída”
24
(BECKER, 1995). A fotografia documental, portanto,
surge acompanhada de um certo engajamento social.
Jorge Pedro Sousa (2004, p.52) amplia esse conceito e afirma que pode-se
encontrar algum traço do que viria a ser o fotodocumentarismo nos seguintes casos: a) na
fotografia de viagens e curiosidades etnográficas de meados do século XIX; b) na
documentação da conquista do oeste americano; c) nos levantamentos etnográficos dos
índios norte-americanos no final do século XIX; d) na fotografia de orientação
colonialista europeia na África e no Oriente; e) na obra de Henry Mayhew, que retratou
os efeitos da industrialização britânica na publicação London Labour and London Poor,
(Londres Trabalho e Londres Pobre) por meio de gravuras de madeira executadas a partir
de daguerreótipos; f) nos trabalhos de Carlo Ponti, que realizou uma série de fotografias
dos vendedores das ruas de Veneza; g) nas obras de fotógrafos da cultura social e na dos
pioneiros da fotografia humanística, como Thompson, Riis, Atget, Zille, Sander, Hine,
entre outros.
Com a fotografia documental, o desejo de conhecer o outro se estabelece como
uma das grandes motivações da fotografia do século XX. A intenção dos fotógrafos é dar
um testemunho através de um enquadramento contextualizado e com compromisso social,
como foi o caso, por exemplo, de Riis e Hine.
24
“[…] be ‘concerned’ about society, play an active role in social change, be socially responsible, worry about its
effects on the society in which its work is distributed.”
CAPÍTULO 1
51
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
Fig. 35: Beco Mullen, Cherry Hill, 1888. Fig. 36: Mecânico da casa de força, 1920.
Foto de Jacob Riis. Foto de Lewis Hine.
Segundo o diretor do programa fotográfico da Farm Security Administration, Roy
Stryker, o fotodocumentarismo é:
[...] uma atitude e não uma técnica; é uma afirmação e não uma negação […]. A
atitude documentarista não implica menosprezar os elementos plásticos que
devem permanecer como critérios essenciais em qualquer trabalho. Simplesmente
dota a esses elementos limitação e direção.
25
(FONTCUBERTA, 2003, p. 41).
Na tendência humanística do documental, percebe-se também a motivação gerada
pela vontade de explorar o banal, aspectos do dia-a-dia, fazendo uma cobertura de todo o
espectro social de determinado povo. Um dos projetos mais importantes já realizados
dentro do fotodocumentarismo foi a exposição The family of man (A família do homem),
inaugurada em Nova Iorque em 1955, que se propôs a ser um espelho dos elementos e
emoções do cotidiano universal. Participaram dois milhões de fotógrafos de todo o
mundo, dos quais 273 foram selecionados, exibindo 503 fotos dentre as 10.000
inicialmente classificadas. O propósito da exposição era mostrar que todo o mundo
formava uma única família, num sentimento universalista de pertencimento a uma
sociedade que se revela em suas ações cotidianas em comum, como o nascimento, a
morte, o trabalho, entre outros.
Roland Barthes criticou a proposta da exposição. Segundo ele, The Family of Man
mostra a humanidade de forma simplista e estereotipada, não levando em conta o peso da
História. Barthes concorda que o nascimento e a morte, por exemplo, são fatos da
25
“[...] una actitud y no una técnica; es una afirmación y no una negación [...] La actitud documentalista no implica
menospreciar los elementos plásticos, que deben quedar como critérios esenciales en cualquier trabajo. Simplemente
dota a estos elementos de limitación y dirección.”
CAPÍTULO 1
52
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
natureza e, portanto, fatos universais. No entanto, segundo o autor, se desconsiderarmos o
aspecto histórico desses fatos, qualquer coisa que digamos sobre eles corre o risco de cair
num discurso tautológico.
A falha da fotografia me parece ofensiva nesta relação: reproduzir morte ou
nascimento nos diz, literalmente, nada. Para que esses fatos naturais ganhem
acesso a uma linguagem verdadeira, eles devem ser inseridos em uma categoria
de conhecimento que signifique alegar que eles podem ser transformados, e
claramente submeter sua naturalidade à nossa crítica humana. Mesmo que sejam
universais, esses fatos são o sinal de uma escrita histórica.
26
(BARTHES, 1957)
A fotografia documental não deve ser entendida como uma categorização de
conceitos, mas sim um testemunho do acontecimento, um engajamento que requer um
esforço de interpretação da realidade e não de conceitos gerais. Fred Ritchin alerta para o
fato de que as fotografias são escritas na linguagem das culturas de onde vêm, e diz:
Family of Man, a exposição mais bem sucedida de todos os tempos, peca pela visão
simplista de que somos todos iguais e que podemos nos entender imediatamente através
da fotografia.”
27
(RITCHIN, 1999, p.93).
A partir desses conceitos podemos fazer uma distinção entre as fotografias de
bancos de imagem como é o caso do gettyimages e a fotografia documental. As imagens
comerciais destinadas tanto a fins editoriais quanto publicitários não podem ser
consideradas documentais. Elas se pautam e se classificam por conceitos gerais que são
definidos pela própria empresa que as comercializa e que, por sua vez, se baseiam em
clichês imagéticos universais. Daí levantarmos o questionamento sobre o caráter da
imagem hoje usada nos meios de comunicação; uma imagem de leitura rápida, que não
exige um esforço de interpretação e dispensa, portanto, o tempo da contemplação e
reflexão.
26
“The failure of photography seems to me to be flagrant in this connection: to reproduce death or birth tells us,
literally, nothing. For these natural facts to gain access to a true language, they must be inserted into a category of
knowledge which means postulating that one can transform them, and precisely subject their naturalness to our human
criticism. For however universal, they are the signsof an historical writing.”
27
Family of Man, the moste successful photography exhibition of all time, is perhaps most at fault for the simplistic
impression that we are all the same and can immediatly understand each other through photographs.”
CAPÍTULO 1
53
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
Fig. 37: Mãe migrante, 1936. Fig. 38: Sem Título, 1953-1955.
Foto de Dorothea Lange. Foto de Wayne Miller.
As imagens mostradas acima (de Dorothea Lange e Wayne Miller) fazem parte da
exposição The Family of Man. No livro que eterniza a exposição, várias fotos são
precedidas de frases que tentam contextualizar as imagens. No entanto, essas frases não
são suficientes para exprimir toda a complexidade da interpretação do fotógrafo sobre o
tema específico. Como lembra Barthes, os aspectos históricos e culturais também são
necessários na tentativa de decifrar essa interpretação.
A primeira foto, de Dorothea Lange, é precedida da seguinte frase: “Qual região
da terra não está cheia de nossas calamidades?”
28
(VIRGIL, in STEICHEN, 2006, p.150).
Apesar da sugestão interpretativa, não sabemos, de início, de onde vem essa foto. Quem é
essa mãe? O que ela teve de abandonar e por quê? A que “realidade” ela está ligada?
Apesar de defendermos o aspecto interpretativo, devemos relembrar que a fotografia não
se desprende totalmente de seu referente real, e somente a partir dele é que se torna
possível propor novas visibilidades para o mundo aparente por meio da imagem.
A foto de Miller, por sua vez, está precedida da frase: “O universo ecoa com o
choro alegre Eu sou.
29
(SCRIABIN, in STEINCHEN, 2006, p. 23), em alusão ao
primeiro choro de um bebê que anuncia a sua vinda ao mundo. A foto, no entanto, mostra
apenas uma das tantas faces atribuíveis à “realidade” do nascimento. De quantas formas
diferentes pode se desenrolar essa mesma situação? Na floresta amazônica ou em uma
tribo africana o despertar para a vida certamente é diferente do que é mostrado na imagem
de Wayne Miller, no intuito de ilustrar o que seria um momento cotidiano “universal”.
28
“What region of the earth is not full of our calamities?”
29
“The universe resounds with the joyful cry I am
CAPÍTULO 1
54
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
O fotojornalismo, por sua vez, passa a ser uma prática comum aos jornais no
início do século XX, diretamente ligado à mídia impressa, com o intuito de mostrar tanto
a evidência de acontecimentos cotidianos como de crimes e acidentes, fornecendo provas
daquilo que, de outra forma, não se poderia acreditar. Somando-se ainda ao
desenvolvimento dos aparelhos e técnicas, o fotojornalismo possibilitou, em sua fase
inicial, principalmente o registro e a divulgação das guerras, por exemplo, embora esse
registro tenha começado antes de a fotografia ser impressa em jornais.
Na década de 20, uma atitude experimental resultante da colaboração entre
fotojornalistas, editores e proprietários de revistas ilustradas promove o aparecimento da
candid photography (algo como “fotografia informal”). Era um estilo de fotografia não
posada e não protocolar, que procurava retratar também o cotidiano, e que se tornou
possível, entre outros motivos, graças ao surgimento de máquinas menores e providas de
objetivas de boa luminosidade como a Leica – usada por Cartier-Bresson.
A candid photography está inserida no contexto do fotojornalismo moderno dos
anos vinte. Segundo Jorge Pedro Sousa, as transformações ocorridas nessa época são
fruto de uma mudança de atitudes e ideias sobre a imprensa. Antes, diante de um
fotógrafo, as pessoas paravam, olhavam para a câmera e posicionavam-se diante dela. A
partir da ascensão do fotojornalismo moderno, elas passaram a mostrar que estavam mais
à vontade, o que levou, inclusive, a uma valorização do instantâneo e do espontâneo –
característicos da candid photography.
Erich Salomon, um dos expoentes da candid photography, buscava surpreender as
figuras públicas quebrando com os ritos sociais e as poses oficiais. Para tanto ele usava
um obturador que permitia o disparo sem fazer ruído. Além disso, buscava se posicionar
em lugares inusitados para que pudesse passar despercebido e captar os momentos do
cotidiano da forma mais natural possível.
Fig. 39: Encontro de conciliação franco-germânica Fig. 40: Reunião de estrelas do cinema, 1930
1928. Foto de Erich Salomon Foto de Erich Salomon
CAPÍTULO 1
55
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
Após a Segunda Guerra Mundial surge a agência de fotografias Magnum,
formada, inicialmente pelos fotógrafos Robert Capa, Henri Cartier-Bresson, George
Rodger, David Seymour e William Vandivert. O intuito desses fotógrafos era conseguir
realizar ensaios e não apenas se submeter à demanda do mercado. As fotos por eles
produzidas carregavam o crédito do fotógrafo que as havia realizado. Através do formato
de ensaio era possível aprofundar no assunto a ser fotografado e não simplesmente
realizar uma fotografia ilustrativa de alguma reportagem, por exemplo. Era possível unir
o olhar expressivo próprio do fotógrafo ao objetivo fotojornalístico ou fotodocumental
desejado, aliar a experimentação à documentação, em imagens que não se enquadravam
na categoria de rápida leitura, mas que podiam provocar uma reflexão e despertar uma
nova forma de olhar um determinado aspecto da realidade retratada.
Fig. 41: Soldado caindo, 1936. Fig. 42: Crianças nas ruínas, Espanha, 1933
Foto de Robert Capa. Foto de Henri Cartier-Bresson.
Com o constante desenvolvimento da tecnologia e dos aparelhos, chegamos aos
dias de hoje em que, graças à máquina digital e à internet, os fotojornalistas conseguem
mostrar a realidade quase que em tempo real, no momento em que os eventos acontecem,
alimentando a frenética busca por informação de nossa sociedade e a proliferação de
imagens de leitura e compreensão rápida, como alertamos acima. Como diz Thimothy
Druckery em seu texto “Poshistoria/Historia autónoma”, ao comentar sobre a fotografia
em tempo real, “[...] este experimento só aumentará a demanda de informação sem
reflexão. [...] Seremos incapazes de distinguir esta informação daquela que for
manipulada ou fabricada”
30
. (DRUCKERY, 2004, p. 311)
Sobre a história do fotojornalismo, José Pedro Sousa diz que:
30
“[...] este experimento solo aumentará la demanda de información sin reflexión. [...] Seremos incapaces de distinguir
esta información de la que esté manipulada o fabricada.”
CAPÍTULO 1
56
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
[...] é uma história de tensões e rupturas, [...] de oposições entre a busca da
objetividade e a assunção da subjetividade e do ponto de vista, [...] entre o valor
noticioso e a estética, entre o cultivo da pose e o privilégio concedido ao espontâneo
e à ação, entre a foto única e as várias fotos, [...] uma história que assiste à expansão
do que merece ser olhado e fotografado. (SOUSA, 2004, p.14)
Em relação à fotografia publicitária, podemos situar o seu surgimento após a
Primeira Guerra Mundial, com o desenvolvimento da economia e a simplificação nos
métodos de impressão fotográfica. Ela sofre a influência de escolas como a Bauhaus, o
Construtivismo soviético e o Surrealismo, levando os pôsteres publicitários ao status de
arte aplicada. Nessa época surge a fotografia em cores e a indústria editorial também
passa a utilizar mais a fotografia, aprimorando a técnica fotográfica e formando grandes
bibliotecas de imagens. Alguns fotógrafos passam a acumular um verdadeiro banco de
imagens. Vários desses fotógrafos contratavam intermediários que organizavam seus
arquivos e faziam o contato com editores e diretores de arte. Assim, surgiram os agentes
fotográficos que, mais tarde, fundaram grandes bancos de imagem como Dephot,
Weltrundschau, Alliance Photo, Rapho, Keystone, Black Star e Associated Press.
Uma característica importante a ser notada sobre a fotografia publicitária é que ela
trabalha com conceitos. Essa fotografia segue determinadas convenções para passar as
ideias centrais presentes em quase todo anúncio publicitário: a felicidade, o sucesso, o
prazer. Por isso, muitas vezes os fotógrafos valem-se de padrões estéticos para
contemplar essas convenções facilmente identificadas pelo imaginário coletivo dos
consumidores, como é o caso das fotografias dos bancos de imagem tradicionais.
Nesses bancos é possível fazer uma pesquisa que ajuda o usuário a restringir suas
possibilidades. Geralmente as fotografias são classificadas pela situação com a qual se
relacionam e pelo tipo de sentimento nelas transmitido. Podemos, por exemplo, realizar
buscas usando palavras-chave tais como: “homens e mulheres de negócios bem-
sucedidos” ou “família feliz em férias” ou ainda “casal de idosos sorrindo” e assim por
diante para obtermos os modelos imagéticos correspondentes a esses estereótipos.
Ainda sobre a associação de imagens a conceitos, vale apresentar aqui a nova
ferramenta do banco gettyimages: o moodstream
31
. Para usá-la, deve-se deslizar um
cursor e selecionar entre cada um dos seguintes pares de adjetivos-conceito, (com níveis
de gradação entre um extremo e outro): feliz/triste, calmo/agitado, humorístico/sério,
nostálgico/contemporâneo, quente/frio. Ao final, a ferramenta oferece várias imagens,
31
http://moodstream.gettyimages.com/usa/
CAPÍTULO 1
57
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
vídeos e músicas que se adequam aos conceitos escolhidos, fornecendo uma solução
publicitária completa. Além disso, se o usuário estiver em dúvida sobre como irá criar a
combinação perfeita que atenda às suas necessidades, a ferramenta disponibiliza alguns
conjuntos de conceitos pré-definidos, tais como:
1) Inspire – “Belos e surpreendentes momentos, com a promessa do inesperado.”,
2) Excite – “Uma combinação de força e energia. Essa combinação mantém você
em movimento.”
3) Refresh – “Feliz. Calmo. Aquele lugar para onde você vai quando precisa
relaxar.”
4) Intensity – “Uma combinação com calor, que ilumina tudo em volta.”
5) Simplicity – “Algumas vezes você necessita de um pouco menos de caos.
Pensamento leve, moderno e aberto.”
6) Stabilize – “Confiável. Constante. Convidativo. Te faz lembrar que tudo está
OK.”
Fig.43:
Tela que mostra a ferramenta moodstream (http://moodstream.gettyimages.com/usa/)
O software, portanto, sugere quais são as possibilidades imagéticas de
determinados conceitos. Não é o fotógrafo que vivencia a experiência do momento do ato
fotográfico e, através de sua fotografia, mostra a sua interpretação da realidade,
atribuindo a sua classificação – leitura – à foto. Existe um padrão a seguir, determinado
pelos próprios meios de comunicação. A atribuição de classificação por parte do
fotógrafo, portanto, faz toda a diferença. Essa é uma das funcionalidades que diferencia,
CAPÍTULO 1
58
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
por exemplo, as fotografias de bancos de imagem das fotografias de comunidades
virtuais, onde quem insere a imagem pode classificá-la (fazendo uso das tags) como
quiser. Quando nos aprofundarmos mais nas análises sobre os sites flickr e gettyimages
falaremos melhor dessas questões, principalmente sobre suas relações com a recente
parceria entre os dois sites.
Percebemos, portanto, como, ao trabalhar com conceitos, a fotografia publicitária,
apesar de romper com uma tradição documental e icônica da fotografia enquanto espelho
do real, também se insere na dinâmica dos meios de comunicação. Assim, ela acaba por
privilegiar uma imagem de leitura rápida, facilmente interpretada pelo observador e
calcada em valores já conhecidos e difundidos no inconsciente coletivo da cultura na qual
estiver inserida.
Ao discorrer sobre os tipos de gêneros da fotografia, Howard Becker diz que
muito de sua classificação depende do seu contexto de aplicação, mas não somente disso.
Ele fala ainda da fotografia artística ou experimental e de como ela dialoga com os outros
tipos de fotografia para se estabelecer. Para Becker, a fotografia experimental apenas tira
do contexto os demais tipos de fotografia, postura da qual discordamos. Com esse
raciocínio, o autor nos leva a pensar que a fotografia experimental ou artística não se
configura como um gênero próprio, mas como um gênero que é na medida em que outro
deixa de ser. O que se busca através da arte é dar a essas fotografias outros significados,
chamando atenção para outros aspectos e outros pontos de vista, diferentes dos a ela
conferidos originalmente, assim como faz Rosângela Rennó em seu trabalho Cicatriz,
citado anteriormente.
Apesar de sua afirmação anterior, o autor também ressalta que não é suficiente
apenas deixar um contexto implícito para transformar um determinado tipo de imagem
em arte. Segundo Becker, o contexto confere significado às imagens, ensinando, quem as
vê, a chegar a determinadas conclusões por meio de reflexões próprias. A partir daí
podemos perceber uma contradição e um preconceito na fala do autor, que percebe a
importância do contexto para a significação e interpretação da imagem ao mesmo tempo
em que afirma que a fotografia experimental ou artística prescindiria de contexto próprio.
A fotografia experimental, portanto, não se atém às questões miméticas. Não está
preocupada com a sua força de evidência. Isso porque ela não se configura apenas como
ícone ou índice, mas, também, como símbolo. Enquanto símbolo, a fotografia não se atém
ao caráter referencial, mas, sim, a um caráter mais abstrato, capaz de despertar a reflexão
ou vários tipos de sensações - que se manifestam tanto no momento de produção da
CAPÍTULO 1
59
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
imagem quanto no momento de sua fruição. Essas sensações podem ser despertadas, no
autor, por um objeto comum ou um acontecimento que lhe revela, naquele momento, um
aspecto poético do cotidiano ou de um acontecimento, por exemplo, e que se deseja
apreender. Bourdieu fala sobre essa fotografia como a que “[...] fornece os meios de
dissolver a realidade sólida e compacta da percepção cotidiana em uma infinidade de
perfis fugazes como as imagens de sonho [...]”
32
. (BOURDIEU, 1965, p.60)
O que acontece nestes momentos é uma experiência estética - aisthesis
33
- que,
por um instante sacralizado, e que se deseja imortalizar, revela mais do que os olhos
aparentemente conseguem ver. E é esse significado que existe além da aparência, que se
deseja captar. O “sem-fundo” descrito por Heidegger (1957, p. 26) que representa o real
para além da realidade, o princípio do fundamento, que nos sensibiliza sem sabermos por
quê.
Daí termos essa manifestação como subjetiva, pois a mesma experiência estética
que afetou uma pessoa, pode não afetar outra. E é por isso que as interpretações do
momento de fruição dessa mesma imagem poderão levar a outras interpretações
diferentes da que foi dada pelo fotógrafo no momento de produção. Trata-se de uma
imagem-símbolo que necessita um momento de reflexão para ser assimilada e
compreendida. Faz-se necessária uma pausa, para deixar-se tocar por ela. Pausa que os
meios de comunicação não estão dispostos a fazer e que a sociedade da informação não
nos permite tirar.
Devemos notar que não é pelo seu caráter subjetivo e simbólico que a fotografia
deixa de ter valor documental. Antônio Fatorelli critica a separação quase que
maniqueísta que se tem feito entre documento e arte na fotografia, e defende uma
fotografia documental-criativa, caracterizada “[...] pelo espírito ativo de descoberta e
inventividade”.
Ao proporem novas visualidades e usos imprevistos dos equipamentos e dos
materiais fotográficos, as imagens produzidas sob este signo estão tateando as
fronteiras do fotográfico, criando novas formas de visualização, referidas aos
temas sobre os quais trabalham, com o sentido de enriquecer o conhecimento e a
percepção sobre eles. (FATORELLI, 1998, p. 86)
32
“[...] fournit le moyen de dissoudre la realité solide e compacte de la perception quotidienne en un infinité de profils
fugaces comme des images de rêve [...]”
33
Aisthesis, segundo Maria Beatriz de Medeiros significa estética no sentido grego do termo; é um estar aberto ao
mundo, aberto ao sensível do mundo e deixar-se contaminar. (MEDEIROS, 2005, p.13)
CAPÍTULO 1
60
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
O caráter informativo permanece, porém mostrado sob outro ângulo, de outra
maneira. Aliás, de várias outras maneiras. E esse é o seu diferencial em relação às
imagens icônica ou indicial, convenientes a uma rápida leitura e aos padrões editoriais e
mercantis, baseada em clichês amplamente difundidos. Flusser chama essas imagens de
imagens técnicas, que, segundo ele, emancipariam o homem da necessidade de pensar
conceitualmente. Já sobre a fotografia que entendemos por contemplativa e sobre a qual
nos aprofundaremos no quarto capítulo, Luis Humberto, importante fotojornalista
brasileiro, em seu livro Fotografia, a poética do banal, diz:
É uma transcrição livre e fragmentária de uma realidade, a partir de uma
deliberação extremamente pessoal, de um interesse que pode ser apenas
momentâneo por uma coisa ou pessoa, algo singelo ou corriqueiro que, resgatado
de sua banalidade, ganha uma nova significação e pode, eventualmente, tornar-se
uma síntese indicativa de uma realidade muito mais complexa. (HUMBERTO,
2000, p. 57)
Esse olhar sobre a realidade do dia-a-dia nos remete também à fotografia que aqui
chamamos de doméstica ou afetiva. É a fotografia realizada geralmente por amadores,
que retrata a intimidade de forma convencional, constituindo os álbuns de família e os
registros de férias, por exemplo. No entanto, alguns fotógrafos profissionais também
voltaram seu olhar para essa realidade, abordando-a de maneira diferenciada, fazendo
com que suas fotografias adquirissem, por vezes, além do valor afetivo, um valor
documental. Temos o exemplo do francês Jacques-Henri Lartigue que retratou as férias
em família, corridas de automóveis, as mulheres parisienses, encontros de amigos, entre
outros. No Brasil podemos citar o trabalho do fotojornalista Luis Humberto que registra a
intimidade de sua família em seu ensaio Feito em casa (disponível na internet -
http://fotosite.terra.com.br/portfolios/luishumb.swf). Frizot fala sobre a importância dessa
fotografia doméstica ou afetiva para a compreensão dos próprios relacionamentos
humanos:
Apesar de a fotografia ter suas afinidades com muitas outras práticas documentais
relacionadas à ciência e às artes visuais, sua afinidades com as relações amorosas,
as peculiaridades de família, o júbilo da infância e a clara percepção da passagem
do tempo, de coisas relembradas, a tornam quase que orgânica em relação ao
entendimento que podemos ter dos relacionamentos individuais com o outro.
34
(FRIZOT, 1998, p. 337)
34
“Though photography has affinities with many other documentary practices relating to science and the visual arts, its
affinities with love-relationships, family intrigue, and jubilation of childhood, and the acute awareness of the passing of
CAPÍTULO 1
61
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
Fig. 44: Uma das fotos do ensaio Feito em casa. Fig. 45: Avenida do bosque Bologne, Paris, 1911.
Foto de Luiz Humberto. Foto de Jacques-Henri Lartigue.
O que acontece na fotografia doméstica ou afetiva é que ela passa a exercer
funções sociais, assim como coloca Bourdieu em seu livro Un art moyen: essai sur les
usages sociaux de la photographie (Uma arte mediana: ensaio sobre os usos sociais da
fotografia), 1965. Inicialmente essas funções estavam ligadas à vida em família e aos
momentos importantes da vida, como o casamento e, mais tarde, a primeira comunhão e o
batismo. Citando Durkheim e a importância dessas festas para o entendimento do grupo
social enquanto uma unidade, Bourdieu coloca a fotografia como elemento importante
para tornar solenes esses momentos e consolidar o sentimento de identidade e
pertencimento.
Hoje, o que se observa é que os usuários de internet utilizam as ferramentas
disponibilizadas pelas comunidades virtuais para, nesse ambiente, criarem seus álbuns
familiares, muitas vezes tornando público o que antes fazia parte apenas da esfera
privada. A intimidade e os sentimentos expressos nas fotos tornam-se acessíveis a
milhões de novos “amigos” ou “contatos” que também se conectam à mesma rede virtual.
No caso dos bancos de imagens gratuitos e abertos à participação de qualquer
fotógrafo, percebe-se que os conceitos imagéticos até então trabalhados pelos bancos
tradicionais ganham outras conotações. Aí também a vivência do privado se coloca à
disposição para uso inclusive comercial, alterando a estética padrão, pautada por critérios
técnicos. O imperfeito e o cotidiano se mostram, assim, como novas possibilidades de
visualizar o que antes seguia os padrões estabelecidos pelos meios de comunicação.
Essa abordagem feita sobre os gêneros da fotografia, portanto, é importante para a
compreensão do material hoje produzido em profusão na internet. Veremos que o
ambiente virtual abre espaço para todo o tipo de fotografia dentre os gêneros clássicos
aqui citados (o documental, o fotojornalístico, o publicitário, o experimental e o
time, of things remembered, make it almost organic to the understanding we can have of the individual’s relationship to
the other.”
CAPÍTULO 1
62
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
doméstico ou afetivo). Cabe-nos, agora, fazer uma análise dessa produção para
verificarmos a possibilidade, nesse novo ambiente que nos é colocado à disposição, de
encontro de uma fotografia que fortaleça a própria linguagem fotográfica, aliada a
práticas que valorizem, mais do que o referente real, a subjetividade interpretativa do
fotógrafo capaz de conferir várias visibilidades à realidade aparente.
CAPÍTULO 1
63
CONFIGURAÇÕES DA LINGUAGEM FOTOGRÁFICA
1.4. A fotografia digital na era da internet
1.4.1. Questões técnicas e seus reflexos na linguagem fotográfica
É certo que o desenvolvimento das câmeras fotográficas digitais e das ferramentas
disponíveis na internet impulsionou ainda mais a difusão da prática fotográfica e a
circulação da imagem. No entanto, essas facilidades, muitas vezes, fazem com que a
prática fotográfica seja realizada de forma automática, levando a uma desvalorização do
olhar como ato principal do fotógrafo em detrimento do simples ato de disparar o
obturador. Basta o apertar de um botão e temos uma fotografia. Na verdade, temos várias
fotografias, para registrar cada momento vivido freneticamente pela sociedade da
informação instantânea. Temos também um lugar para expô-las, público para vê-las,
comentá-las e facilidades para comprá-las com poucos cliques.
No entanto, não devemos nos esquecer de que esse novo cenário da imagem
digital e virtual fortalece a ideia de que a fotografia não é apenas uma mera representação
do real, como se acreditou durante mais de um século após a sua invenção. As
possibilidades quase que automáticas de manipulação da imagem digital despertaram a
sociedade para o questionamento dessa imagem, ajudando na percepção de que a
fotografia é símbolo e não apenas índice ou ícone; ajudando, também, a fortalecê-la como
uma linguagem própria e que pode despertar diversas interpretações. “A Fotografia, por
150 anos basicamente um meio perceptual, pode agora se transformar num meio
altamente conceitual também.”
35
(RITCHIN, 1999, p.124)
Fred Ritchin, em seu livro In Our Own Image, também afirma que a fotografia
digital não se trata de outro gênero, mas de outro meio. “E esse novo meio pode se tornar
distinto de seu predecessor, assim como a fotografia da pintura [...].”
36
(1999, p. xii). Daí
a importância de entendermos a evolução da linguagem e dos gêneros fotográficos ao
longo da história para termos o subsídio teórico que nos permita fazer comparações e nos
ajude a iluminar o caminho que hoje começa a ser trilhado pela fotografia digital na
internet.
Percebemos que as recentes transformações, fruto do surgimento de novos sites e
ferramentas disponíveis na rede, colocam a fotografia em um ponto crucial de mudança.
35
“Photography, for 150 years basically a perceptual médium, can now become a largely conceptual one as well.”
36
“And this new medium may turn out to be as distinct from its predecessor as photography was from painting [...].”
CAPÍTULO 1
64
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
E uma das mais importantes mudanças percebidas é a possibilidade de que o usuário
desses meios de comunicação se porte não mais apenas como consumidor de mercadorias
e, consequentemente de imagens, mas também como produtor – são os prosumers
37
,
como previu Alvin Tofler, escritor do livro A terceira onda, de 1980. E, enquanto
produtor, possa contextualizá-las conforme sua própria experiência subjetiva, atribuindo-
lhe diversos significados e interpretações. Essas mesmas ferramentas interativas da
internet, que permitem ainda o diálogo entre usuários de redes sociais
38
e comunidades
virtuais
39
, também tornam possível a troca de diferentes interpretações e opiniões sobre
uma mesma imagem, entre seu autor e seu (s) receptor (es), bem como a associação, por
parte do prosumer, de diversas outras formas de manifestação cultural, graças às
possibilidades multimídias desses meios.
Em seu livro, A Sociedade em Rede, Manuel Castells reflete sobre as
consequências que essa dinâmica de produção mais participativa pode imprimir sobre a
cultura, principalmente no que diz respeito às possibilidades da característica multimídia
da internet.
Finalmente, e talvez a característica mais importante da multimídia seja que ela
capta em seu domínio a maioria das expressões culturais em toda a sua
diversidade. Seu advento é equivalente ao fim da separação e até da distinção
entre mídia audiovisual e mídia impressa, cultura popular e cultura erudita,
entretenimento e informação, educação e persuasão. Todas as expressões
culturais, da pior à melhor, da mais elitista à mais popular, vêm juntas nesse
universo digital que liga em um supertexto histórico gigantesco, as manifestações
passadas, presentes e futuras da mente comunicativa. Com isso, elas constroem
um novo ambiente simbólico. Fazem da virtualidade nossa realidade.
(CASTELLS, 2008, p. 458)
37
Termo originado da junção entre as palavras producer (produtor) e consumer (consumidor), e que reflete exatamente
o tipo de usuário a que estamos nos referindo.
38
De acordo com Danah Boyd e Nicole Ellison (2007), os sites estruturados em uma rede social constituem serviços
disponíveis na web que permitem aos indivíduos (1) construir um perfil público ou parcialmente público dentro de um
sistema restrito, (2) articular uma lista de outros usuários com os quais compartilham a conexão e (3) visualizar e cruzar
suas listas de conexões com aquelas feitas por outros dentro do sistema.
“We define social network sites as web-based services that allow individuals to (1) construct a public or semi-public
profile within a bounded system, (2) articulate a list of other users with whom they share a connection, and (3) view and
traverse their list of connections and those made by others within the system.”
39
“As comunidades virtuais são os agregados sociais surgidos na Rede, quando os intervenientes de um debate o levam
por diante em número e sentimento suficientes para formarem teias de relações pessoais no ciberespaço.”
(RHEINGOLD, 1996, p. 18)
“A comunidade virtual é uma rede eletrônica autodefinida de comunicações interativas e organizadas ao redor de
interesses ou fins em comum, embora às vezes a comunicação se torne a própria meta.” (CASTELS, 2008, p. 443)
CAPÍTULO 1
65
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
Esse cenário nos coloca no centro de uma transformação que ainda não tomou seu
rumo, mas que acena para diversas possibilidades, principalmente por considerar a
alternativa de um ambiente simbólico. Castells segue afirmando que a própria base da
cultura se encontra na representação simbólica, não fazendo distinção entre essa e a
própria realidade. Segundo o autor, o que muda com a comunicação organizada pela
integração eletrônica “[...] não é a indução à realidade virtual, mas a construção da
realidade virtual.” (2008, p. 459)
Sobre a virtualidade, Pierre Lèvy nos alerta quanto a confusão que se faz ao opor
o real ao virtual, questão importante para entendermos o que Castells quis dizer com “a
construção da realidade virtual.” Lèvy, em seu livro O que é o virtual?, diz que:
Na filosofia escolástica, é virtual o que existe em potência e não em ato. O virtual
tende a atualizar-se, sem ter passado, no entanto à concretização efetiva ou
formal. [...] Em termos rigorosamente filosóficos, o virtual não se opõe ao real,
mas ao atual: virtualidade e atualidade são apenas duas maneiras de ser
diferentes. (LÈVY, 2007, p. 15)
No entanto, devemos entender, como alerta Lèvy, que o virtual não transforma a
realidade em um conjunto de possíveis. Ela “[...] fluidifica as distinções instituídas,
aumenta os graus de liberdade, cria um vazio motor. Se a virtualização fosse apenas a
passagem de uma realidade a um conjunto de possíveis, seria desrealizante.” (2007, p.18).
Assim, conseguimos entender que o que Manuel Castells quer dizer é que a comunicação
mediada pela integração eletrônica gera novas abordagens ou novas visibilidades – se
pensarmos na comunicação feita por meio de fotografias, por exemplo – da realidade por
meio da representação simbólica em ambiente virtual.
Ainda segundo Lèvy, “A virtualização é um dos principais vetores de criação da
realidade.” (2007, p.18). Entendemos, portanto, que, no caso da produção cultural, dentro
da qual destacamos a produção fotográfica, essa virtualização, propiciada pelas
ferramentas e sites da internet, se apoia em uma dinâmica construída por símbolos, num
processo de criação que permite uma expressão subjetiva sobre um fragmento da
realidade, segundo experiências únicas e particulares. Conforme diz Castells, essa
situação gera uma virtualidade real.
Então, o que é um sistema de comunicação que, ao contrário da experiência
histórica anterior, gera virtualidade real? É um sistema em que a própria
realidade (ou seja, a experiência simbólica/material das pessoas) é inteiramente
captada, totalmente imersa em uma composição de imagens virtuais no mundo do
CAPÍTULO 1
66
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
faz-de-conta, no qual as aparências não apenas se encontram na tela
comunicadora da experiência, mas se transformam na experiência. (CASTELLS,
2008, p.459)
Castells compara ainda esse meio – a internet – com o Aleph de Jorge Luís
Borges, aquele ponto que “[...] absorve [...] toda a experiência humana, passado, presente
e futuro” (CASTELLS, 2008, p. 459) ou, segundo o próprio conto do escritor argentino,
“[...] um Aleph é um dos pontos do espaço que contém todos os pontos.”
40
(BORGES,
2007, p.750).
Partindo dessa metáfora e da compreensão da internet como espaço de vivência de
experiências por meio de imagens na sociedade contemporânea, percebemos que as trocas
(de identidades, de histórias, de interesses, entre outros) ocorridas nas comunidades
virtuais, por exemplo (muitas delas usando a fotografia como suporte), nos levam a
entender o meio digital também como lugar de desenvolvimento de diversas
manifestações culturais, onde temos contato com as múltiplas interpretações e
codificações da realidade. Notemos que essas dinâmicas já eram possíveis antes do
surgimento da internet. O que mudou foi o espectro de abrangência e a velocidade com
que se dão essas dinâmicas hoje na web. Isso porque a internet é um meio
desterritorializado, global e que permite a troca de informações em tempo real. Ela
permite a expansão do nosso campo de conhecimento para além da realidade que nos
cerca. A televisão já tinha dado o primeiro passo nesse sentido. No entanto, com a
internet a diferença é que nós somos também participantes ativos nesse processo de troca.
Somos mais que receptores, somos emissários e podemos fazer escolhas com base em
interesses particulares estabelecendo canais de comunicação imediatos, o que propicia
maior desenvolvimento e maior quantidade dessas manifestações plurais.
As possibilidades de transformação do entendimento e dos usos da imagem
fotográfica - tendo a fotografia como parte da cultura -, portanto, são tangíveis. No
entanto, neste ponto de mudança devemos fazer certos questionamentos para que não nos
percamos nesse amontoado de informações visuais e de opiniões, transformando o que
poderia ser um diálogo enriquecedor em uma verborragia individualista e sem sentido.
Esses novos desenvolvimentos representam tanto aberturas para novos
conhecimentos quanto um convite a sua constrição. Depende de como a
fotografia seja entendida, seja representada por si mesma, e de quem a controle,
40
“ [...] un Aleph es uno de los puntos del espacio que contiene todos los puntos.”
CAPÍTULO 1
67
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
bem como se ela sucumbe, assim como grande parte da comunicação de massa, à
proliferação sem sentido de dados e de disseminação de preconceitos antigos
camuflados de maneira cada vez mais inteligente como informação valiosa. Isso é
um problema que, entre outras dimensões, é intensamente político, desafiando as
premissas de uma democracia que requer eleitores informados.
41
(RITCHIN,
1999, p. 126)
Usaremos as novas tecnologias para reforçar a realidade que já conhecemos ou as
usaremos para problematizar o mundo em que vivemos, procurando compreendê-lo e
desvelá-lo a partir dos múltiplos pontos de vista possíveis? Ritchin conclui seu livro com
a mesma preocupação, e sugere: “Cabe a nós, se pudermos, tirar vantagens das potenciais
perspectivas iluminadoras das novas tecnologias; de outra forma, seremos nós os
explorados e diminuídos, congelados em nossa própria imagem.”
42
(1999, p.128)
Vivemos um momento, então, em que podemos romper definitivamente com a
ideia de fotografia como espelho do real. A metáfora do espelho, aliás, é bem
interessante. As atuais mudanças na linguagem fotográfica exigem que tenhamos uma
postura destemida e corajosa, de propor novas visibilidades para a imagem; que
estabeleçamos o contato com este mundo fragmentado, multifacetado, que só pode ser
compreendido segundo interpretações variadas e complementares. Não se trata mais do
mundo refletido no espelho, mas do mundo que está do outro lado dele. Assim como a
personagem de Lewis Carroll, somos convidados a atravessar o espelho e descobrir o que
se encontra do outro lado, além do aparente reflexo. As novas tecnologias, portanto, nos
dão a possibilidade de escolhermos se queremos ser Alices ou Narcisos.
No país das maravilhas ou no mundo dentro do espelho, Alice não é passiva diante
do que vê. Ela observa, questiona e, principalmente, interage e se integra à realidade
fantasiosa que surge diante de seus olhos. Ela se sente confusa muitas vezes, mas
continua seu caminho. Já Narciso, ao deparar-se com o próprio reflexo na água do rio,
encanta-se com aquilo que vê - o próprio reflexo - e torna-se inerte; passivo. Sem
coragem de se afastar da contemplação de si mesmo, de questionar as diversas
visibilidades do que enxerga, Narciso se consome em sua própria imagem. “Não sabe o
41
“These new developments represent both openings to new knowledge and an invitation to its constriction. It depends
upon how photography is understood, is itself represented, and who controls it as to whether it succumbs, as does much
of mass communication, to meningless proliferation of data and the dissemination of overriding preconceptions ever
more cleverly camouflaged as valuable information. It is a problem that, among other dimensions, is intensely political,
challenging the premises of a democracy which requires informed voters.”
42
“It’s up to us, if we can, to take advantage of the new technolgy’s potentially illuminating perspectives; otherwise, it
will be we who are taken advantage of and diminished, frozen in our own image.”
CAPÍTULO 1
68
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
que está vendo, mas o que vê excita-o […]. Essa sombra que vês é um reflexo de tua
imagem. Não é nada em si mesma.” (CIVITA, 1973, p. 434).
Voltando ao exemplo do Aleph, levantado por Manuel Castells, vemos que no
conto de Borges, o personagem principal afirma ter visto, pelo Aleph, “[…] todos os
espelhos do planeta e nenhum me refletiu, […]”
43
(BORGES, 2007, p.753). Ou seja, para
Castells, sendo a internet uma espécie de Aleph, deveria, portanto, ser um meio onde não
existissem Narcisos, onde não nos encantássemos com nossos próprios reflexos, mas com
o que se mostra além das aparências das imagens; um meio onde adotássemos uma
postura questionadora – assim como Alice -, de descobrir o que se encontra nesta nova
realidade ali percebida, ou, como coloca Castells, nesta virtualidade real que a nós ali se
apresenta.
Castells observa que nessa outra realidade, tempo e espaço se transformam
radicalmente. Segundo o autor, o espaço de fluxos substitui o espaço de lugares e “[...] o
tempo é apagado […] já que passado, presente e futuro podem ser programados para
interagir entre si na mesma mensagem.” (CASTELLS, 2008, p. 462). O espaço, portanto,
é de fluxos e o tempo é intemporal, e ambos constituem, segundo o autor, as bases
principais de uma nova cultura, “[...] que transcende e inclui a diversidade dos sistemas
de representação historicamente transmitidos: a cultura da virtualidade real, onde o faz-
de-conta vai se tornando realidade.” (CASTELLS, 2008, p.462)
Para o autor, o espaço de fluxos é responsável por organizar as práticas sociais de
tempos compartilhados na sociedade em rede. Esse tempo não é mais linear, irreversível e
mensurável, mas fragmentado, e se utiliza das novas tecnologias “[...] para fugir dos
contextos de sua existência e para apropriar, de maneira seletiva, qualquer valor que cada
contexto possa oferecer ao presente eterno.” (CASTELLS, 2008, p. 526)
Na sociedade em rede, o tempo perde seu ritmo cronológico e segue o ritmo do
contexto de seus usos sociais. Segundo Castells, isso faz com que a cultura dessa
sociedade se caracterize por ser uma cultura do eterno e do efêmero. “É eterna porque
alcança toda a sequência passada e futura das expressões culturais. É efêmera porque
cada organização, cada sequência específica, depende do contexto e do objetivo da
construção cultural solicitada.” (CASTELLS, 2008, p.554)
A fotografia, como parte dessa dinâmica cultural da sociedade em rede, se coloca,
também, no meio desse impasse temporal bem como do questionamento de se deve ser
43
“[...] todos los espejos del planeta y ninguno me reflejó, [...]”
CAPÍTULO 1
69
CONFIGURAÇÕES DA LINGUAGEM FOTOGRÁFICA
analisada sob a postura de Narciso ou Alice, como indagamos acima. Levantamos aqui,
então, que, diante dos caminhos que a linguagem fotográfica pode seguir na internet,
optamos por aquele que desperte o diálogo e a contemplação; que privilegie, portanto,
uma postura corajosa, tal qual a da pequena personagem de Lewis Carroll e que perceba
que, em uma temporalidade intemporal, o ritmo cronológico não tem mais importância.
Sua duração não é mensurável. Daí a necessidade de suscitarmos a importância da
contemplação e de entendermos o tempo enquanto um instante poético – como faremos
mais adiante, pela ótica de Gaston Bachelard.
1.4.2. A difusão e a facilidade de inserção de imagens online
Uma das maiores transformações sofridas pela fotografia com o advento da
internet foi o aumento das possibilidades de circulação da imagem em escala global. A
fácil acessibilidade a esses sites fez com que milhões de usuários em todo o mundo
passassem a colocar as suas imagens online tornando possível a pessoas de países e
culturas diferentes terem acesso à produção imagética uns dos outros e trocarem ideias
sobre essas imagens.
Um dos sites abordados nessa pesquisa, o flickr (www.flickr.com), conta com
milhões de usuários
44
, mostrando, em sua página inicial, a quantidade de fotos que é
inserida a cada minuto. No início desta pesquisa, em março de 2008, o site apontava, em
sua página inicial, a quantidade de, aproximadamente, 3.000 uploads de fotos por minuto.
Um ano e meio depois, a quantidade varia em torno de 6.000 uploads de fotos por
minuto
45
. Esse, seguramente, é um dado a ser levado em conta e reflete o aumento dessas
possibilidades de acesso, uso e colocação de imagens na internet, como afirmamos acima.
Susan Sontag, em seu livro Sobre a Fotografia fala de pessoas que teriam
compulsão por fotografar, por “[...] transformar a experiência em si num modo de ver.”
(SONTAG, 2004, p.35). Por fim, segundo a autora, a própria experiência se confunde
com sua imagem. Ela cita Mallarmé: “[...] o mais lógico dos estetas do século XIX, disse
44
“Há dados estatísticos reveladores: enquanto em 2005 tinha (o flickr) 1,2 milhão de membros, em 2006 já contava
com 2,5 e em 2007 chegou aos 5 milhões.” (SILVA, 2008, p.192)
45
Dado obtido na home do site flickr (www.flickr.com). Em 18.10.09, às 17h10 chegamos a encontrar o dado de 6.997
uploads por minuto.
CAPÍTULO 1
70
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
que tudo no mundo existe para terminar num livro. Hoje, tudo existe para terminar numa
foto.” (SONTAG, 2004, p.35). Essa prática indiscriminada da fotografia nos mostra que
não são todas as pessoas que praticam tal atividade em seu entendimento enquanto arte. A
prática mais comum da fotografia se liga a seus usos sociais, principalmente no ambiente
familiar. E parte da produção que vemos hoje na internet, consequentemente, se volta,
também a esses usos, como veremos mais adiante.
Ainda sobre o site flickr, devemos destacar que ele se posiciona como uma rede
social, que proporciona o armazenamento e compartilhamento de fotografias entre seus
membros. Através desse site, cada usuário pode expor suas fotografias (em caráter
público ou privado), entrar em contato com diversos outros fotógrafos (amadores ou
profissionais), dividir suas experiências e fazer comentários sobre as imagens de outros
membros em nível global, formando uma comunidade. Uma característica importante que
deve ser ressaltada é que o usuário pode classificar e contextualizar sua foto como quiser,
de acordo com suas interpretações e experiências e participar ou fundar grupos com
objetivos específicos, unindo-se a pessoas que queiram compartilhar fotos relacionadas
aos mesmos temas e interesses.
O flickr também permite a participação de forma gratuita (com limitação da
quantidade de fotos e álbuns) ou paga (sem limites para quantidade de fotos e álbuns e a
um custo de R$ 45,90 por ano). O usuário pode fazer o upload de suas fotos de várias
maneiras: através do próprio site, através de inúmeros programas gratuitos que existem na
internet, ou do próprio celular (alguns modelos possuem essa ferramenta), ou também
através de plug-ins para programas de computador, por e-mail, ou ainda por meio de um
software disponibilizado pelo próprio site, o flickr uploader. Basta o usuário escolher o
que lhe for mais conveniente de acordo com os meios aos quais tem acesso no momento.
Outro site de grande conhecimento do público usuário de internet é o
stockXchange (www.sxc.hu). Ele possui mais de 30.000 fotógrafos cadastrados como
membros e mais de 350.000 imagens disponíveis para o compartilhamento e uso gratuito.
O próprio site tem estatísticas sobre os fotógrafos mais ativos, as imagens mais populares
e as cidades mais participativas (vale notar que a cidade mais participativa é São Paulo, e
o Brasil é o segundo país de maior representatividade no site, somente atrás dos Estados
Unidos).
Como as imagens disponibilizadas nesse site são de uso gratuito, e a participação
é aberta a qualquer usuário, independente de critério, não existe uma seleção mais rígida
sobre as imagens que podem fazer parte desse banco e, por isso, nem sempre
CAPÍTULO 1
71
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
encontramos fotos de boa qualidade técnica, conceitual ou de boa resolução disponíveis
nesse ambiente. Ao fazermos uma busca de imagens, o site nos mostra os resultados de
fotos de seu próprio banco e algumas outras imagens pertencentes ao banco StockXpert,
que é parceiro do StockXchange e trabalha com imagens pagas (de valores que variam
entre US$ 1,00 e US$ 20,00 de acordo com a resolução da imagem), escolhidas segundo
critérios de seleção próprios para permissão de comercialização dessas imagens no site
46
.
Para comercializar fotos na internet, existem outros sites além do StockXpert
(www.stockxpert.com), como é o caso do iStockPhoto (www.istockphoto.com) e do
ShutterStock (www.shutterstock.com), por exemplo, que permitem que um usuário se
cadastre tanto para comprar fotos a preços módicos (segundo exemplo citado acima para
o caso do StockXpert), quanto para enviar fotos próprias e ganhar um percentual sobre
cada download realizado de uma foto sua - que pode variar, dependendo do site, entre
15% e 40% do valor da imagem vendida. O usuário deixa de ser apenas consumidor de
imagens antes disponíveis apenas nos bancos de imagens tradicionais e passa também a
ser produtor de imagens que serão comercializadas. Tudo isso é realizado a partir do
computador, fazendo com que o usuário seja um participante ativo nessas comunidades
virtuais sem necessitar nem mesmo sair de casa.
Com todas essas facilidades disponíveis online, a linguagem fotográfica volta-se
para a intensificação do presente. É possível registrar cada minuto, cada acontecimento e
enviá-los quase em tempo real para os álbuns das comunidades virtuais. Coloca-se aí a
questão sobre o nível de reflexão que se faz acerca e a partir dessas imagens.
Lembremo-nos também das fotografias de bancos de imagens tradicionais, como
o gettyimages, por exemplo. Com os avanços das máquinas digitais e as rápidas
possibilidades de envio de arquivos através da web, um fotógrafo pode registrar um
momento por meio de uma grande quantidade de fotos e enviá-las diretamente aos bancos
de imagem e redações de jornais. Só então é que essas imagens sofrerão um processo de
edição e reflexão, tendo em vista, não a concepção do fotógrafo - que realmente
vivenciou o momento -, mas dos responsáveis por adequar essa imagem a um objetivo
mercadológico ou editorial.
Diante desse cenário, voltamos à pergunta, já realizada, que questiona qual o
caminho que deveremos seguir neste momento de transformações no campo da
46
O usuário que deseja comercializar suas fotos no site deve enviá-las para que sejam selecionadas ou não e, a partir
daí, ele ganha um percentual – entre 15% a 40%, dependendo do site - sobre a venda de suas imagens.
CAPÍTULO 1
72
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
fotografia. Adotaremos uma postura conservadora que não questiona as novas tecnologias
e apenas reforçará a realidade visível que nos cerca – consolidando clichês imagéticos
que saturam os meios de comunicação? Ou procuraremos estabelecer novas visibilidades
para as imagens, possibilitando um olhar fragmentado sobre a realidade?
Norval Baitello em seu livro A era da Iconofagia alerta para o fato de que quanto
mais imagens produzimos, menos visibilidade temos. Segundo o autor, o olhar, hoje,
significa apropriar-se. Daí a necessidade de registrar cada experiência da vida cotidiana
como se a própria vida nos fosse escapar da memória ou de nós mesmos – como também
analisa Sontag:
Fotografar é apropriar-se da coisa fotografada. Significa pôr a si mesmo em
determinada relação com o mundo […] Imagens fotografadas não parecem
manifestações a respeito do mundo, mas sim pedaços dele, miniaturas da
realidade que qualquer um pode fazer ou adquirir. (SONTAG, 2004, p.14)
E a partir dessa lógica, proliferam imagens em tal quantidade que submetem a
fotografia e nós mesmos a um regime visual acelerado, eliminando o tempo da
contemplação e da decifração. A leitura rápida das imagens é privilegiada em detrimento
de sua interpretação, negando-nos a possibilidade de entrar em contato com os vários
fragmentos da “realidade” e impossibilitando o acesso a um maior número de subsídios
que contribuam para o entendimento da nossa própria realidade.
O autor nos lembra, ainda, que a imagem, registrada sobre um suporte material,
nos permite esse tempo de contemplação – única forma de decifrá-la. Assim como a
escrita, a fotografia “[...] exige decifração e tudo o que não deciframos nos devora. [...] O
tempo lento é o tempo da decifração.” (BAITELLO, 2005, p. 33)
Quando se tem o tempo de ler um livro, ler um romance, olhar um quadro,
mergulhar numa imagem e contemplá-la, entra-se na realidade regida por uma
temporalidade distinta, aquela da permanência, da perenidade, da imortalidade.
(BAITELLO, 2005, p.33)
Baitello relaciona esse tempo da contemplação com as possibilidades de diálogo
que se estabelecem entre as imagens externas e as nossas imagens internas. O autor
acredita que somente por meio desse diálogo é que nós aprendemos a ver a nós mesmos e
ao mundo.
Vemos, portanto, que no ciberespaço o caminho que resta à linguagem fotográfica
para que ela não seja absorvida pelo fluxo acéfalo de imagens é o da contemplação e do
CAPÍTULO 1
73
CONFIGURAÇÕES DA LINGUAGEM FOTOGRÁFICA
diálogo, como afirmamos anteriormente. Somente no tempo da contemplação é que
conseguimos absorver as imagens e interpretá-las à nossa maneira e, assim, estabelecer
um diálogo com elas, com nós mesmos, com os outros e com o mundo visível. De outra
forma, a imagem se torna ilustração, espelho do real que não gera conhecimento e não
propões novas formas de realidade, mas reforça o que está aparente. Mais adiante
discutiremos as possibilidades dessas manifestações na fotografia em ambiente online.
1.4.3. Constituição de identidades e laços sociais na rede
O site que analisaremos mais a fundo, o flickr, se diferencia dos outros sites de
armazenamento e compartilhamento de fotografia como o fotolog (www.fotolog.com),
por exemplo. Em geral, o fotolog tem um caráter apenas de “álbum de eventos”. O
usuário desse último site costuma publicar imagens de si mesmo em eventos sociais ou
com outros amigos. O seu intuito é criar relacionamentos entre pessoas que tenham os
mesmos objetivos, caracterizados, por vezes, por uma exposição excessiva da própria
imagem. O usuário do flickr também usa o site para esse fim, mas em menor proporção.
Alguns dos membros do flickr expõem fotografias que consideram fruto de sua produção
subjetiva ou de uma experiência (como uma viagem ou um momento marcante, por
exemplo) e querem compartilhar essa produção com outras pessoas de mesmos interesses,
criando uma espécie de fórum, onde se dividem desde as sensações despertadas pela
imagem até aspectos técnicos referentes a essa mesma imagem.
Como dissemos anteriormente, o usuário do flickr pode constituir vários grupos
diferentes, de acordo com os seus interesses, que podem se voltar a assuntos específicos
sobre fotografia ou apenas usá-la como forma de visualização de seu objeto principal.
Temos, por exemplo, grupos voltados aos gêneros específicos da fotografia (como o
fotojornalismo, a fotografia documental), às técnicas de revelação e edição, aos tipos de
câmera, aos conceitos transmitidos pelas imagens, entre outros. No entanto, também
temos grupos voltados para diversos outros assuntos, como bichos de estimação, design
de camisetas, bandas, decoração entre outros. É possível cadastrar uma única imagem em
diferentes grupos, e, assim, o usuário pode entrar em contato com várias pessoas que
possuem os mesmos interesses que os seus, construindo um sentimento de pertencimento
CAPÍTULO 1
74
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
a um grupo e fortalecendo uma ou mais identidades próprias através das fotografias que
publica e compartilha em rede.
Ao observar alguns desses grupos, percebemos que o fato de o flickr constituir um
meio digital não quer dizer que não se discuta a fotografia analógica nesse ambiente.
Existem inúmeros grupos voltados para a fotografia analógica, sem manipulação posterior
digital - no entanto, devemos lembrar que o simples fato de querer compartilhar essa
imagem, fruto de um trabalho analógico, já exige do usuário sua digitalização, para que
possa mostrá-la no ciberespaço. O flickr ainda disponibiliza uma área do site só para
interessados em fotografia analógica, acessível nos ítens de submenu do botão Explorar
do menu. Essa área se chama Explore Analog, e mostra vários grupos do flickr voltados
especificamente para a fotografia com filme. Destacamos aqui também, o culto à
lomografia
48
que é muito presente no site. O objetivo dessas pessoas, em geral, é
compartilhar experiências e informações, discutir e conhecer a produção de várias outras
pessoas ao redor do mundo; produção muitas vezes pautada por temas específicos ou por
tipos de revelação, técnica, filme, máquina fotográfica, posição geográfica, entre outros.
Existem ainda blogs, fóruns e sites de fotógrafos profissionais e amadores voltados para a
exposição de ensaios fotográficos e para a discussão da fotografia.
Temos exemplos como o da fotógrafa brasileira Helga Stein que discute a questão
da identidade, da autorrepresentação em comunidades virtuais e da fotografia como
representação fiel da realidade (www.flickr.com/photos/helgastein
). Ela realizou uma
série de autorretratos nos quais brinca com alterações das proporções do rosto, dos olhos,
do nariz e da boca com o auxílio de um software de edição de imagens. Assim nasceu o
projeto Andros Hertz que pode ser visto no flickr ou no site www.projecto.com.br
Apesar de manter um site específico sobre seu projeto, a fotógrafa faz questão de
exibi-lo no flickr, tendo em vista que a comunidade também é um local de divulgação de
trabalhos. Essa escolha ainda se adequa à proposta da artista, que questiona a
autenticidade das identidades forjadas em ambientes virtuais bem como o próprio registro
fotográfico. Assim, a fotógrafa “[...]explora as possibilidades latentes da imagem. [...] A
cada novo autorretrato surge uma figura que preserva suas características originais, mas
48
Referente aos usuários de máquinas fotográficas analógicas Lomo. Originalmente russas, foram descobertas por
empresários austríacos que se encantaram pelas fotos que essas câmeras geralmente produziam, caracterizadas pela
saturação de cor e ocasional desfoque.
CAPÍTULO 1
75
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
que é percebida como um novo sujeito.”
49
Sobre a inspiração para esse trabalho, Helga
diz:
Minha área de pesquisa envolve a forma com que as pessoas se relacionam com
suas imagens e a tecnologia envolvida na produção dessas imagens. O embrião do
projeto Andros Hertz surgiu em 2004 e é fruto de uma vivência frequente em
comunidades virtuais como fotolog, orkut, flickr, multiply etc. Interesso-me pela
maneira como as pessoas constroem seus perfis de identidade e que tipo de
imagens são utilizadas nas autorrepresentações.
50
Como observa Helga e como podemos perceber num rápido passeio pelo flickr, a
presença do autorretrato é uma constante no site como forma de criar a(s) identidade(s)
desejada(s) que permite(m) a inserção no(s) grupo(s) escolhido(s). Uma observação
interessante é que, não apenas no caso de Helga Stein mas também de alguns outros
perfis de usuários, esses autorretratos se encontram descontextualizados de sua condição
indicial. Os fotógrafos se utilizam de símbolos e conceitos para criarem interpretações de
si mesmos e através delas apresentarem-se aos outros – estabelecendo laços sociais em
rede por meio da fotografia. Ao deformar o próprio rosto, Helga questiona se “[...] esses
novos rostos resultantes da manipulação digital serão tratados como novas
identidades?”
51
E nós nos questionamos sobre como será a real Helga Stein, bem como
sobre a veracidade dos autorretratos de vários outros usuários do flickr.
Outro ponto problematizado por Helga é a questão do narcisismo e do
exibicionsimo, traços desse processo de construção de representações de nós mesmos em
ambientes digitais: “Ironizo o consumo passivo de imagens e ideiais de beleza através de
pessoas que não existem. Ideiais de beleza que, em sua maioria, são irreais e inatingíveis,
mas que, mesmo assim, são fortes o suficiente para dominar nosso desejo.”
52
A partir dessa afirmação abre-se um espaço para questionar se as imagens
produzidas por Helga seriam realmente consideradas autorretratos ou se constituem
49
Trecho disponível no site de apresentação do projeto. Disponível em <http://www.projecto.com.br/andros/>.
Acessado em 13.09.09.
50
CARVALHO, João. Entrevista com Helga Stein. Disponível em
<http://netart.incubadora.fapesp.br/portal/Members/vera_bighetti/document.2006-08-30.2308739953>.
Acessado em 13.09.09.
51
Trecho disponível no site de apresentação do projeto. Disponível em <http://www.projecto.com.br/andros/>.
Acessado em 13.09.09.
52
Entrevista feita pela personagem Andros Hertz à sua criadora, Helga Stein. Disponível em
<http://fotosite.terra.com.br/novo_futuro/barme.php?http://fotosite.terra.com.br/novo_futuro/ler_fs_online.php?id=16>.
Acessado em 13.09.09.
CAPÍTULO 1
76
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
imagens de um “eu” diferente do da fotógrafa. Podemos comparar seu trabalho com o de
Claude Cahun
53
ou de Cindy Sherman, que também realizaram muitos “autorretratos”.
Segundo Rouillé, “Ao tomar mil aparências, Cindy Sherman não se apodera mais de
nenhuma. E suas obras, que fazem referência à outra coisa que não ela mesma, não têm
nada de autorrretrato.”
54
(2005, p.491). A partir dessa frase, o autor levanta a questão do
autorretrato e sua relação com o estabelecimento de identidades.
A dialética “em superfície”da identidade e da não-identidade se substitui aqui
pela dialética em profundidade, da aparência e da personalidade própria ao
autorretrato tradicional. Em Cindy Sherman, Thomas Ruff, Jeff Wall, e
certamente em Thomas Florschuetz e muitos outros artistas do fim do século XX,
o retrato se tornou impossível porque a aparência se desfez, porque o sujeito
individual perdeu sua antiga unidade com sua antiga profundidade.
55
(ROUILLÉ,
2005, p.492)
A postura de Helga Stein assim como de outros fotógrafos citados por Rouillé é
intencional. Eles passam da profundidade à superficialidade como forma de questionar a
própria identidade. Em alguns casos observamos essa prática presente no flickr, mas não
sempre. Dentre as várias comunidades virtuais, apenas o flickr ainda abre algum espaço
para essa práticas, o que não ocorre no fotolog ou no orkut, por exemplo. Voltaremos
novamente a esse assunto mais adiante.
Figs. 46 e 47: Duas fotos do ensaio Andros Hertz.
Fotos de Helga Stein.
53
Fotógrafa francesa do início do século XX que realizou muitos autorretratos que questionavam o papel da mulher na
sociedade e se pautavam por uma estética de influência surrealista.
54
“À prendre mille visages, Cindy Sherman n’en possède plus aucun. Et ses oeuvres, qui font référence à autre chose
qu’elle même, n’ont rien d’autoportrait.”
55
“La dialectique ‘en surface’de l’identité et de la non-identité se substitue ici à la dialectique ‘en profondeur’de
l’apparence et de la personnalité propre au portrait tradicionnel. Chez Cindy Sherman, Thomas Ruff, Jeff Wall, et bien
sûr chez Thomas Florschuetz Le portrait est devenu impossible parce que le visage s’est défait, parce que le sujet
individuel a perdu son ancienne unité et son ancienne profondeur.”
CAPÍTULO 1
77
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
Outro fotógrafo cujo trabalho iremos comentar é o do americano Mark Velásquez.
Com forte conotação sexual e exploração questionável, muitas vezes descontextualizada e
gratuita, da figura da mulher em suas fotos, seu trabalho se volta a ensaios com modelos,
sátiras e releituras de diversos temas, como o excêntrico, os sete pecados capitais, a
sociedade americana, entre outros. O fotógrafo expõe seus trabalhos tanto no seu perfil do
flickr (www.flickr.com/photos/markvelasquez) quanto em seu site pessoal
(www.markvelasquez.com/), reforçando o papel de lugar de exposição ocupado pela
comunidade flickr.
A escolha desse fotógrafo deve-se justamente pelos temas por ele abordados e à
forma que se dá essa abordagem, de maneira apelativa e muitas vezes constrangedora,
fora dos padrões familiares, como classifica o próprio site flickr. Assim, várias das fotos
de Mark são catalogadas como parte de uma conta não segura ou restrita na comunidade.
Esse filtro serve para dizer que as fotos ali disponíveis não são consideradas familiares.
Por isso, ao tentar ver as imagens do fotógrafo, o flickr nos avisa que estamos prestes a
entrar em uma área restrita e que podemos escolher prosseguir ou evitar prosseguir.
As categorias de classificação das fotos são: seguras, moderadas e restritas. As de
primeiro tipo são aquelas consideradas adequadas ao público em geral. As moderadas são
assim classificadas quando não se tem certeza de que o conteúdo é adequado para o
público em geral, mas não se acredita que elas tenham a necessidade de serem
categorizadas como restritas. Já as de último tipo são as que fazem parte de um conteúdo
que, segundo o próprio site: “[...] você provavelmente não mostraria para sua mãe e que
definitivamente não deve ser visto por crianças.”
56
O próprio usuário pode fazer essa classificação e, caso opte por não fazê-la, os
administradores do flickr poderão impor essa classificação baseados nos pedidos de
outros usuários. Ao escolhermos entrar na página de Mark Velásquez, em que a maioria
das fotos são consideradas “restritas”, nos deparamos com um botão sempre presente que
diz: “Leve-me a um lugar seguro”. Além disso, enquanto estamos observando suas fotos,
ainda temos a opção de bloqueá-las para que não corramos o risco de vê-las de novo, caso
realizemos alguma busca com palavras-chave comuns a outras fotos no futuro. Uma
observação interessante é que, ao clicar no botão “Leve-me a um lugar seguro”, o próprio
site redireciona o usuário para uma página cujas fotos mostradas são todas de filhotes de
56
Disponível em <http://www.flickr.com/help/filters/ >. Acessado em 14.09.09.
CAPÍTULO 1
78
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
gatos, como se tivéssemos sido redirecionados para uma página de resultado de uma
busca com esse tema específico (www.flickr.com/search/?q=kittens&w=all&s=int).
Destacamos aqui que o filtro de fotos familiares (que permite apenas a
visualização de fotos seguras) não pode ser desabilitado nos seguintes países: Hong
Kong, Cingapura e Coreia do Sul, pois essa restrição faz parte dos termos de serviços
locais do site nesses países. No caso da Alemanha, os termos locais proíbem a
visualização de conteúdos restritos, permitindo apenas os seguros ou moderados - esse
fato nos faz questionar a liberdade de expressão na internet, que, em muitos países deve
seguir determinadas leis que proíbem o livre acesso e uso desse meio. Mas esse seria um
outro tema que possibilitaria o desenrolar de um longo debate.
Essa funcionalidade do flickr reforça a percepção de que existe um código
subententido do tipo de foto que deve fazer parte da comunidade e do tipo de foto que
deve ser banida. Não são os administradores do site que tomam essa decisão. Ela parte do
próprio usuário ou de um conjunto de usuários que sugere determinada postura aos
administradores, dentro de uma dinâmica de uso do site.
O trabalho de Mark Velásquez, portanto, provoca. São fotos de uma estética
visual muito parecida às fotos mais populares do flickr, com cores saturadas e visível
trabalho de pós-produção – características do que a jornalista do The New York Times
Magazine, Virgínia Heffernan, chamou de flickr style, e sobre o qual falaremos mais
adiante. No entanto, elas se destacam principalmente pelo incômodo derivado da
interpretação - bastante apelativa e polêmica - que o fotógrafo imprime sobre temas
considerados tradicionais. Mark Velásquez também se preocupa com o processo de pré-
produção das fotos, o que é percebido, por exemplo na preparação dos cenários, da
maquiagem e do figurino das modelos. Não entraremos no mérito de julgar se as fotos de
Mark Velásquez são boas ou ruins. Cabe apenas uma ressalva quanto à conotação sexual
por vezes descontextualizada do tema das fotos, como se o fotógrafo usasse a figura da
mulher em poses sexualmente apelativas apenas como forma de atrair a atenção para o
seu trabalho. E, se esse é mesmo seu objetivo, ele parece estar no lugar certo. O fotógrafo
poderia usar apenas o seu site pessoal para expor seu trabalho, mas opta por fazê-lo
também no flickr, assim como fazem outros fotógrafos, como veremos mais adiante.
O ensaio The New Americans foi inspirado, segundo o próprio Mark diz, em
imagens antigas do fotógrafo Guy Bourdain. Mark buscou conferir uma atmosfera
CAPÍTULO 1
79
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
fashion e de glamour às suas fotos - provável influência de seu trabalho com moda.
57
Vários temas foram abordados, como a justiça, a saúde, os valores familiares, a inocência,
a ignorância, entre outros. Nessas fotos percebemos claramente o tom de crítica dado aos
temas, no entanto, questionamos a necessidade de serem usadas figuras femininas, em
trajes de banho e poses sexualmente apelativas ou que subjuguem a mulher para
conseguir tal objetivo crítico. Até mesmo por essas características, o ensaio faz parte das
fotos classificadas como não “familiares” pelo flickr.
Fig. 48: Justiça Americana, 2007 Fig. 49: Serviço de Saúde, 2007
Ensaio The new Americans Ensaio The new Americans
Foto de Mark Velásquez Foto de Mark Velásquez
Podemos certamente levantar vários outros nomes de fotógrafos. A revista Photo
District News - uma publicação mensal voltada para fotógrafos profissionais que há mais
de duas décadas fornece notícias sobre inovações da indústria fotográfica, portfólios de
fotógrafos, entrevistas, entre outros - divulgou recentemente em seu site (pdnonline,
www.pdnonline.com)
58
uma lista com o nome dos cinco fotógrafos mais badalados da
internet. O critério dessa escolha altamente subjetiva, segundo afirma o próprio site,
buscou alguma legitimidade ao procurar usuários que se destacassem em quantidade de
fotos postadas, quantidade de comentários recebidos e interações com os demais usuários
57
“The original inspiration for this series came from looking at old Guy Bourdin images. I thought that if I could take a
topic I've been thinking of a lot and portray it with a very high glamor, high fashion style it might just make for some
interesting photographs. You decide.”
Tradução: A inspiração original para essa série veio da observação de imagens antigas de Guy Bourdin. Pensei que se
eu pegasse um tópico sobre o qual vinha pensando bastante, e o retratasse com muito glamour e um estilo fashion, isso
poderia resultar em algumas fotografias interessantes. Você decide.
Disponível em: < http://www.flickr.com/photos/markvelasquez/sets/72157600806511708/>. Acessado em 14.09.09.
58
Artigo divulgado em 26 de junho de 2009: “The Five Biggest Photographers on the Internet.” Disponível em:
< http://www.pdnonline.com/pdn/content_display/esearch/e3ida6dda5bd97c11673e2214eec8804863>
Acessado em 15.09.09
CAPÍTULO 1
80
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
dentro das cinco plataformas de rede social mais populares da internet: blogs, youTube,
flickr, twitter e facebook. Além disso, o pdnonline também usou como critério o fato de
esses fotógrafos serem conhecidos principalmente por seu trabalho mostrado na internet,
e não em outro suporte. Também procurou evitar contemplar aqueles fotógrafos que se
destacam na rede apenas por seus comentários de equipamentos e técnicas fotográficas.
Segundo afirma o site pdnonline nesse artigo, sucesso online nem sempre se
traduz em trabalhos: “[...] todos os fotógrafos dão crédito à internet por tê-los levado a
algum trabalho e, em pelo menos um caso, sucesso financeiro. E é difícil dimensionar a
satisfação pessoal de ter uma legião de fãs online.
59
O que importa, portanto, segundo os
fotógrafos em questão, é muito mais a questão social, que se traduz no perfil de um
usuário popular online, do que a real possibilidade de obter trabalho e ganho financeiro
pela internet.
A lista é composta de um fotojornalista que se tornou educador, uma artista
plástica, um fotógrafo de editoriais e de fine art, um fotógrafo de casamento e um
jornalista multimídia. Ex-fotojornalista do The Baltimore Sun, David Hobby se destaca
por seu blog (www.storbist.blogspot.com), que chega a ter por volta de 350.000 leitores
regulares. Além das dicas de fotografia, de iluminação, de novos equipamentos entre
outras que dá em seu blog, o fotógrafo também disponibiliza imagens realizadas por ele,
tanto nesse ambiente quanto no flickr (http://www.flickr.com/photos/davidhobby/).
A artista plástica citada no artigo é a usuária islandesa Rebekka Gudleifsdóttir
cujo perfil é um dos mais visitados do flickr (www.flickr.com.br/photos/rebba). A
fotógrafa também mantém um site (www.rebekkagudleifs.com). Uma de suas fotos mais
populares, um autorretrato com uma maçã parada no ar em frente ao seu rosto, já teve
mais de 122 mil visualizações no flickr. Segundo o artigo do pdnonline, Rebekka ajudou
a fortalecer uma mania surrealista no flickr, uma espécie de tendência estética das fotos
postadas na comunidade, como veremos mais adiante.
Outro fotógrafo citado é Noah Kalina. Ele trabalha com arte e editoriais, tem um
site (ww.noahkalina.com) e um perfil no flickr (www.flickr.com/photos/noahkalina).
Kalina se destacou por um vídeo postado no youtube em 2006 e que recebeu mais de 13
59
“[...]all of these photographers credit the Internet with leading to some work, and in at least one case, financial
success. And it’s hard to overstate the personal satisfaction of having a legion of online fans.” Disponível no mesmo
endereço citado acima.
CAPÍTULO 1
81
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
milhões de visualizações (http://www.youtube.com/watch?v=6B26asyGKDo). Nesse
vídeo podemos ver uma sequência de fotos que o fotógrafo tirou de si mesmo durante 6
anos (de 2000 a 2006), sempre enquadrando seu rosto num close frontal. O fotógrafo
ainda dá continuidade a esse projeto, que pode ser acompanhado no site
http://www.everyday.noahkalina.com. Segundo o fotógrafo, o flickr traz mais trabalhos
profissionais do que seu próprio site: “Novos diretores de arte estão varrendo aquele site
(flickr) procurando por bons trabalhos.”
60
Christopher Becker é fotógrafo de casamentos. Ele começou na internet em 2005
com um blog (http://blog.thebecker.com), chegando a ter 5.000 leitores por dia. Em 2008
“The Becker”, como é comercialmente conhecido entrou para o facebook onde já tem o
número máximo de amigos virtuais permitidos pelo site. Ao realizar um casamento, o
fotógrafo insere em seu perfil do facebook fotos selecionadas e as classifica com o nome
da noiva. Invariavelmente amigos da noiva identificam outros amigos nas fotos,
classificando-as segundo seus interesses sociais. Quem é identificado por outra pessoa
numa foto no facebook recebe uma notificação do site e, assim, se alguns desses usuários
algum dia precisarem de um fotógrafo de casamentos, estarão de certa forma já ligados a
Becker. O fotógrafo já conseguiu muitos trabalhos por meio do facebook. Ele não possui
conta no flickr, tendo em vista que o seu intuito é fazer girar seu negócio e não criar uma
legião de fãs online. Em outubro de 2008, Becker lançou o site [b] school
(http://www.thebschool.com/), cujo objetivo é se estruturar como uma rede social para
fotógrafos profissionais onde eles possam trocar informações, mostrar seus trabalhos mais
recentes, entre outros. A participação no site é paga (US$ 10,00 por mês). Em junho de
2009, quando foi escrito o artigo, esse site já contava com 1600 fotógrafos associados.
O pdnonline também se refere ao jornalista multimídia Jim MacMillan que se
destaca pela quantidade de seguidores no twitter (www.twitter.com/JimMacMillan). Em
junho de 2009 o fotógrafo contava com 46.000 seguidores. Três meses depois seu perfil é
seguido por 56.000 pessoas. MacMillan é jornalista do Philadelphia Daily News e
comenta principalmente notícias em tempo real. No entanto, como foi fotojornalista por
17 anos, ele aproveita a notoriedade do twitter para divulgar seu trabalho e seu blog
(http://jimmacmillan.com/resume/) na tentativa conseguir se consolidar como jornalista
independente e voltar a fazer ensaios fotográficos.
60
“Younger art directors are scouring that site looking for good work”. Disponível em:
<http://www.pdnonline.com/pdn/content_display/esearch/e3ida6dda5bd97c11673e2214eec8804863?pn=4>
CAPÍTULO 1
82
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
Como o foco desta pesquisa se volta às comunidades virtuais e, principalmente, ao
flickr, analisaremos mais a fundo o trabalho da fotógrafa islandesa Rebekka
Gudleifsdóttir, pela sua grande popularidade na comunidade. Em seu perfil verificamos
uma grande presença de autorretratos. No entanto, diferentemente das fotos de Helga
Stein, não vemos em Rebekka nenhum intuito de usar suas imagens de maneira a
problematizar a questão da formação das identidades na rede, assim como faz Helga.
Nas fotos de Rebekka, notamos um trabalho cuidadoso de pós-produção baseado
na manipulação digital – característica que, dentre outras, faz parte do que o The New
York Times Magazine chamou de Flickr Style, em um artigo publicado em seu site em 27
de abril de 2008
61
. Esse seria um tipo de estilo comum às imagens mais populares da
comunidade. A jornalista Virginia Heffernan detalha esse estilo como formado por:
[...] imagens digitais que “saltam” com as cores-tulipa, características das
câmeras digitais Canon. [...] geralmente surreais [...], evocando a pintura
perturbadora de De Chirico e Balthus, nas quais partes específicas são bonitas e
formalmente representadas, mas algo não está completamente ajustado no fim das
contas. As imagens embaçadas e fantasiosas do Flickr, muitas delas retratos
“eróticos” (ao invés de sexys), que foram forçadamente manipuladas com truques
digitais, se colocam em contraste à fotografia mais crua e granulada de 35
milímetros que ainda é canonizada por instituições augustas como o Centro
Internacional de Fotografia.
63
A jornalista quer, com isso, apontar uma tendência que se observa em várias fotos
no flickr. Características que se apresentam inicialmente em perfis esporádicos e que, por
sua vez ganham notoriedade e, sem nos darmos conta, se consolidam como um padrão a
ser seguido. Essa é uma estética de grande popularidade e que garante sucesso na
comunidade, sendo usada, muitas vezes, não com um objetivo de experimentação ou de
busca por uma nova estética fotográfica, mas com fins de identificação e aceitação do
usuário por um grupo. Apesar de Rebekka demonstrar um cuidado visual com suas fotos,
a maioria delas tem o intuito de ilustrar a fotógrafa em suas atividades e humores do dia-
a-dia, em poses sensuais que ressaltam sua beleza e seus atributos físicos – o que se
61
Disponível em: < http://www.nytimes.com/2008/04/27/magazine/27wwln-medium-t.html>. Acessado em 15.09.09
63
“[...] digital images that “pop”with the signature tulip colors of Canon digital câmeras. [...] (these images are) often
surreal [...], evoking the unsettling paintings of de Chirico and Balthus, in which individual parts are beautiful and
formally rendered, but something is not quite right over all.. Flickr’s creamy fantasy pictures, many of them
“erotic”(rather than sexy) portaits that have been forcibly manipulated with digital tricks stand in contrast to the rawer
and grainier 35-millimeter photography that’s still canonized by august institutions like the International Center of
Photography
.” Disponível no mesmo endereço citado acima.
CAPÍTULO 1
83
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
reflete nos comentários, que se dividem entre os superficiais (que observam tons,
luminosidade e enquadramento em elogios cheios de adjetivos) e aqueles que elogiam
fisicamente a artista. Em suas imagens encontramos muitos exemplos característicos do
flickr style: as cores fortes e saturadas, uma conotação surrealista e alguns elementos
embaçados (principalmente nas fotos de paisagens, em que o céu, levemente desfocado
devido às longas exposições, se destaca do resto do cenário, por exemplo).
Fig. 50: Apocalipse Fig. 51: Olhando as estrelas
Foto de Rebekka Gudleifsdóttir Foto de Rebekka Gudleifsdóttir
Somente em alguns casos vemos que a fotógrafa se propõe a explorar um
conceito, revelando a sua interpretação subjetiva daquilo que fotografa. Seu projeto de
graduação em artes plásticas é um exemplo disso. Ele se constitui em uma série de fotos
entituladas “O mito do felizes para sempre”, mas, ainda assim, não deixa de fazer amplo
uso de técnicas de pós-produção.
CAPÍTULO 1
84
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
Fig. 52: Série “O mito do felizes pra sempre”
Fotos de Rebekka Gudleifsdóttir
www.flickr.com.br/photos/rebba
Também loira e bonita, Helga Stein deforma suas feições criando personagens
quase anormais, quase aberrações que nos levam a parar e pensar sobre o que está errado
ali, justamente em um espaço onde o autorretrato é um estilo pensado cuidadosamente
para reforçar a(s) identidade(s) desejada(s). Suas fotos provocam e despertam reflexão. Já
no caso de Rebekka, o trabalho de pré ou pós-produção apenas reforça suas
características físicas, mesmo que ela envolva a imagem em algum conceito específico.
Fig. 53: Um exercício em futilidade Fig. 54:Eve
Foto de Rebekka Gudleifsdóttir Foto de Rebekka Gudleifsdóttir
A matéria do The New York Times Magazine também aponta outro fotógrafo
muito popular na comunidade por suas imagens digitalmente manipuladas e que seguem
CAPÍTULO 1
85
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
o Flickr Style, principalmente pelas cores fortes e saturadas e pela atmosfera surreal que
confere às suas fotos: Merkley (www.flickr.com.br/photos/merkley).
Fig. 55: Robin - Fetal Positioned Red Head Fig. 56: Autorretrato
Freckled Jazz Singer With Bar Foto de Merkley
Foto de Merkley
Dos exemplos mostrados acima, vemos um autorretrato do fotógrafo. Como
dissemos anteriormente, esse é um tipo de foto muito comum no flickr. Ao realizarmos
uma busca com a palavra “autorretrato” em inglês, encontramos mais de 1 milhão de
resultados. A mesma busca com a palavra em português forneceu mais de 36.000 fotos.
Podemos observar que a maioria das imagens de autorretratos é de mulheres, mas o mais
importante é que essas imagens não constituem meros cliques. Percebemos uma
preocupação com a composição da foto, com sua pré e pós-produção. Nesses
autorretratos não encontramos as pessoas do cotidiano. Elas parecem mais reais do que
são na realidade, mais maquiadas, em situações exóticas e cheias de atitude, adequadas às
necessidades de ilustração estereotipada de identidades admiradas pela comunidade.
No entanto, quanto mais fantasiosas são essas imagens, mais nos questionamos
sobre a sua classificação como autorretrato. Conforme afirma Rouillé sobre Cindy
Sherman, ao assumir várias aparências, a fotógrafa deliberadamente não se apodera mais
de nenhuma. A partir desse fato e das reflexões de Bauman sobre a formação das
identidades voláteis e fluidas em nossa sociedade contemporânea – pensamento que será
aprofundado a seguir -, vemos que os autorretratos encontrados na comunidade flickr se
encaixam, portanto, nas expectativas de seus usuários, que não querem ter uma identidade
CAPÍTULO 1
86
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
única e comum. Eles buscam várias identidades, que se movimentem e se transformem
conforme a necessidade ou situação. Identidades fantasiosas, que desafiem o real.
Fig. 57: Bem, agora não me peça para sorrir Fig. 58: A bela arte da autodestruição
Foto de Ola Bell Foto de Sala Boli
http://www.flickr.com/photos/oladios/2789342644/ http://www.flickr.com/photos/salaboli/2439880681/
Acessada em 15.09.09 Acessada em 15.09.09
As imagens desses fotógrafos, tão populares no flickr, contrastam com a estética
granulada da fotografia analógica em 35 mm e que caracterizou uma época da fotografia:
o surgimento das máquinas de pequeno formato, o desenvolvimento do
fotodocumentarismo e do fotojornalismo, as imagens de Cartier-Bresson, Robert Capa,
entre outros. O resultado dessa estética 35 mm são imagens mais vaporosas, que se
contrapõem às imagens contemporâneas cuja exatidão e perfeição são conseguidas graças
ao desenvolvimento da tecnologia fotográfica. Por isso podemos entender porque muitos
usuários do flickr consideram, segundo descrito no artigo do The New York Times
Magazine, as fotos analógicas embaçadas e sem foco, pois já se habituaram à estética de
pós-produção digital. Imagens que se utilizam da manipulação digital para intensificar as
cores, as sombras, buscando uma realidade mais real que o visível; uma realidade em
“alta definição” que tende, na verdade, ao fantástico e à imaginação.
Para ilustrar essa postura, o artigo traz o exemplo de um membro do flickr – não
identificado – que postou em seu perfil uma imagem de Cartier-Bresson como se fosse
sua - a de uma bicicleta passando por uma escada em espiral – diante da qual outros
membros se manifestaram: “Por que a escada está tão “mole?”
64
, pergunta um usuário.
64
“Why is the staircase so ‘soft’?”
CAPÍTULO 1
87
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
“Balanço de câmera?”
65
, indaga outro. “Cinza, embaçado, pequeno e enquadramento
estranho.”
66
, afirma um terceiro.
Percebemos que os comentários voltam-se, principalmente, a aspectos técnicos de
resolução da imagem. Diante do desenvolvimento tecnológico de equipamentos e
softwares de edição, as pessoas tendem a se deslumbrar com as possibilidades dos
aparelhos e a se esquecerem da própria natureza da fotografia em sua relação com o
tempo, que Bresson soube captar tão bem com seu Momento Decisivo
67
. Falamos aqui do
instante captado pelo fotógrafo no momento em que esse reconhece o aceno do novo e do
inusitado no cotidiano e que, por mais que cronologicamente tenha durado frações de
segundo, para o fotógrafo essa duração é da dimensão do subjetivo, uma dimensão muito
mais poética que racional.
Não há problema em querer que sua imagem seja mais real que o mundo visível e
se utilizar de referências fantasiosas e imaginárias para concretizá-la, se assim o fotógrafo
enxerga o mundo que o cerca. O problema está em acreditar na manipulação digital como
única forma de se conseguir isso, e utilizar essa estética “flickr style” somente por ser
tendência em uma comunidade ou grupo, sem questioná-la; apenas para efeitos de
socialização. Acostumar-se com uma única estética e tê-la como opção exclusiva
significa aceitar a proposição de que existe apenas uma realidade, quando essa é
fragmentada e subjetiva. Daí a necessidade de questionarmos essa produção fotográfica
virtual, para que ela não caia nos padrões de determinados grupos, mas seja fiel ao
sentimento e à interpretação de quem está atrás da câmera naquele momento. A estética
saturada é válida tanto quanto a estética granulada dos filmes 35 mm do início do século
passado.
Além disso não podemos nos esquecer de exemplos como o fotógrafo William
Klein, já citado aqui, que escolheu intencionalmente uma estética embaçada como
linguagem fotográfica própria que expressasse a sua interpretação do mundo visível. Essa
estética também pode ser observada no trabalho Yanomami da fotógrafa Cláudia Andujar
(que mostramos anteriormente) e sem a qual ela não transmitiria sensações, com suas
65
“Camera shake?”
66
“Gray, blurry, small, odd crop.”
67
O nome do célebre livro de Henri Cartier-Bresson em francês é Images à la Sauvette, algo como Imagens Furtivas
em português. O nome com que passou a ser conhecido, "O Momento Decisivo", foi dado à edição americana do livro
pois a editora acreditou ser "The Decisive Moment" uma expressão mais forte e mais direta. O nome desejado por
Bresson na tradução para o inglês era "The Given Instant"(O Instante Dado). Fonte: KATO, Gisele. O pescador de
Flagras in REVISTA BRAVO, São Paulo: Editora Abril, ano 11 número 145, setembro de 2009.
CAPÍTULO 1
88
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
imagens, de maneira tão impactante como conseguiu fazer. O movimento pictorialista, na
tentativa de conferir um status de arte à fotografia, também aderiu a essa estética
desfocada, ressaltando um aspecto granulado fruto de intervenções manuais no negativo
da foto, nas cópias ou até mesmo diretamente na objetiva da câmera, usando materiais
como vaselina. O pictorialismo, por sua vez, também foi seguido de uma reação que
buscou um retorno à nitidez, numa época pós-Primeira Guerra Mundial em que a
fotografia retoma seu caráter documental. Vemos, portanto, que as configurações
fotográficas, mesmo antes da era digital, sempre variaram também conforme o contexto
histórico.
As possibilidades da manipulação digital, da qual tanto falamos aqui, certamente
facilitam a edição da fotografia e o trabalho do fotógrafo. No entanto, são muitas vezes
usadas de forma automática, não refletida. Assim, corremos o risco de, como alerta
Flusser, termos expostas, em algumas imagens manipuladas digitalmente, as memórias e
as experiências de um aparelho e não de um ser humano. Isso acontece quando o uso das
ferramentas técnicas não é direcionado pela intenção estética do fotógrafo, mas apenas
pela vontade de inserir as imagens numa tendência estética corrente ou de experimentar
as possibilidades exatas do aparelho apenas por esstarem disponíveis.
Flusser afirma que o fotógrafo – e aqui nos referimos àquele que interpõe a sua
visão subjetiva entre a realidade material e a câmera, não reduzindo a fotografia apenas
ao ato do clique – manipula o aparelho (a câmera e também os softwares de edição)
sempre em busca de novas potencialidades. Por isso o fotógrafo não trabalha com o
aparelho, mas brinca com ele, segundo o autor. Para Flusser, o aparelho deve ser
complexo e impenetrável; suas possibilidades, inesgotáveis. Por isso ele o chama de caixa
preta. “Se o aparelho fotográfico não fosse uma caixa negra, de nada serviria ao jogo do
fotógrafo: seria um jogo infantil, monótono. […] . O aparelho funciona, efetiva e
curiosamente, em função da intenção do fotógrafo [...]”(1998, p.44).
Portanto, retomando nossa reflexão acerca da manipulação, se ela se constituir em
um ato pelo próprio ato, guiado apenas pelo deslumbramento técnico de possibilidades à
disposição, daí sim, teremos, como afirmamos anteriormente, uma imagem que
representa a memória de uma máquina, desprovida de intencionalidade estética e de carga
subjetiva de interpretação sobre o mundo visível. Essa fotografia é também desprovida de
conceitos e voltada apenas à questão técnica. Arlindo Machado, também compartilha
desse ponto de vista. Segundo o autor:
CAPÍTULO 1
89
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
A angústia de sentir que o aparelho é mais competente que o usuário e o excede em
possibilidades de acontecimentos leva muitas vezes esse último a praticar uma
verdadeira overdose de efeitos, como se lhe fosse possível, num único trabalho,
“esgotar” todas as possibilidades do programa. A facilidade e a disponibilidade
imediata de uma quantidade hiperbólica de recursos explicam, em boa parte, por que
tantos aplicativos multimídia e tantas homepages na Internet mais parecem cabines
de avião. (MACHADO, 2001, p.39)
Existem ainda milhões de outros membros amadores que se utilizam dessas
comunidades para outros fins. A própria quantidade de fotografias que apenas o flickr
recebe diariamente, minuto a minuto, nos faz pensar sobre o modo como o indivíduo tem
se relacionado com a imagem. Flusser diz que “[...] os homens já não decifram as
imagens como significados do mundo, mas o próprio mundo vai sendo vivenciado como
um conjunto de imagens” (1998, p. 15).
Grande parte dos participantes virtuais se preocupa apenas com as questões
técnicas e em revelar minuto a minuto uma realidade doméstica e cotidiana com o intuito
de se enquadrar em uma determinada comunidade, criando identidades próprias e
estabelecendo relacionamentos em redes sociais compostas de pessoas com interesses em
comum. Muitos dos grupos aos quais se associam, inclusive, usam a fotografia apenas
como suporte para ilustrar o seu verdadeiro interesse, que não se relaciona propriamente a
ela (como é o caso, no flickr, de grupos voltados para bolos de casamento, bonecos
artesanais de feltro, carros, guitarras, eventos sociais, dentre tantos outros temas).
CAPÍTULO 1
90
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
Figs. 59 a 62: Fotos pertencentes os seguintes grupos, respectivamente: I made this wedding cake (Eu fiz
esse bolo de casamento), Felt Toys (Bonecos de Feltro), Cars, (Carros), Guitar World (Mundo das
guitarras).
Nesses grupos os comentários nem sempre se referem apenas ao enquadramento
ou às cores das fotos. Em muitos casos o centro do comentário é o objeto que aparece na
cena, destacado. Os usuários trocam ideias e dicas sobre o assunto de interesse do grupo.
No entanto, ainda vemos que grande parte dos comentários se volta aos aspectos físicos
da foto, e, principalmente, encontramos convites de membros de outros grupos de temas
relacionados ou do mesmo tema para que aquela imagem também faça parte de seu
grupo, revelando uma forte dinâmica de estabelecimento de laços sociais e de
identificação entre os usuários da comunidade. Um fato observado é que essas imagens,
apesar de não terem a linguagem fotográfica como foco principal, não prescindem
totalmente de uma preocupação estética. Assim como vemos um cuidado com as fotos de
autorretrato sobre as quais já falamos aqui, observamos que os elementos são colocados
em primeiro plano, geralmente sobre um fundo infinito ou neutro que dê destaque ao
objeto-tema do grupo presente na foto. Muitos membros usam o flickr como uma vitrine
de seus trabalhos artesanais ou aquisições materiais. Outros usam apenas como ilustração
do cotidiano, onde por vezes se deparam com seus objetos de interesse.
Vemos, portanto, que os usos da fotografia se alteraram muito desde a época de
seu surgimento até hoje. Na comunidade flickr o entendimento da fotografia como
suporte de construção de identidades e geração de laços sociais provoca uma produção
enorme de imagens, que nos fazem pensar que todo momento vivido passou a ser um
momento solene. Tudo deve ser registrado e compartilhado. A partir daí nos
perguntamos: o que mudou do início do século passado para cá? Essa mudança se deve a
fatores que não nos aprofundaremos aqui, como a questão do hedonismo e do apelo da
CAPÍTULO 1
91
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
sociedade, muitas vezes frustrado, para vivenciar intensamente o presente - características
próprias da pós-modernidade. O que se percebe é a configuração de uma dinâmica que
seleciona os tipos de momentos que têm status de fotografável para serem compartilhados
com a comunidade. Esses momentos não se restringem mais apenas aos rituais sociais ou
momentos marcantes da vida, mas se estendem a saídas corriqueiras com os amigos, a
fatos, pessoas ou objetos engraçados e curiosos ou que chamaram a atenção de alguma
forma no dia-a-dia, bem como objetos que falam das atividades cotidianas como
mostramos acima. No flickr existem alguns grupos, como o “um dia na vida de...”, que se
organizam escolhendo uma data para que todos os seus membros divulguem fotos que
foram tiradas no dia estipulado, ilustrando um dia de suas vidas.
Esse tipo de fotografia se assemelha mais ao gênero doméstico e afetivo, sobre o
qual fala Bourdieu. Essas fotos, portanto, não se aproximam do documental, visto que seu
objetivo se afasta da ideia de uma fotografia que seja instrumento de conhecimento e
exploração das múltiplas faces da realidade. Essas imagens, mesmo buscando o diálogo
com outros membros da comunidade, voltam-se ao universo individual, não ao
humanista.
Muitos usuários, inclusive, se utilizam dessas comunidades virtuais como forma
de armazenar suas fotos de família. Os sites mais usados para esse fim são o Picasa
(www.picasa.google.com) e o Yahoo! Photos (www.yahoo.com/photos), mas muitos
também usam a funcionalidade de criar álbuns do flickr para tal fim. Em uma rápida
busca pela comunidade
71
, encontramos 35.475 grupos sobre ‘família’, 19.448 grupos
sobre ‘bebê’ e 18.966 grupos sobre ‘casamento’.
O que se observa é que a fotografia de família, antes relacionada à esfera privada
agora se estende à esfera pública. E o álbum de família perde parte de suas características
mais marcantes. O pesquisador Armando Silva levanta algumas dinâmicas que englobam
o universo do álbum familiar. Entre elas está a de anexar objetos como maços de cabelo,
pulseirinhas de maternidade, cartões, telegramas, flores secas, ingressos, velas de
batizados, entre outros. O álbum é um livro não apenas de memórias, mas de histórias e
que muitas vezes é apreciado em conjunto, numa espécie de ritual, onde alguém
(geralmente uma mulher da família) se porta como o contador de histórias e os demais
como ávidos espectadores.
71
Busca realizada no dia 22 de julho de 2009.
CAPÍTULO 1
92
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
Com o álbum digital esse ritual se perde. Não se contam histórias. Não se anexam
“pedaços de memória”. Cada um vê as imagens e as interpreta individualmente. Perde-se
o encontro. O tempo do diálogo online é outro, diferente do que se estabelece
pessoalmente. Na internet a conversa pode ser intercalada por longos silêncios, o que não
acontece ao vivo. Não há troca instantânea e o envolvimento emocional é menos intenso.
Apesar da possibilidade dos comentários, perde-se aí justamente a dinâmica de contar
histórias, em que uma traz a lembrança de outra e todos se envolvem no mesmo contexto
concomitantemente. Os comentários das comunidades são esporádicos, muitas vezes
esparsos e breves, numa linguagem textual característica da web em que abreviamos tudo
e tentamos dizer o mínimo necessário para o estabelecimento de algum nível de
comunicação (vide o sucesso do twitter e seus 140 caracteres). Já na foto em papel, como
destaca Silva referindo-se a Barthes, privilegia-se o punctum. Na tela os arquivos “[...]
tendem mais para ação do que para a contemplação.” (2008, p.63)
Armando Silva ainda diz que “[...] ver nossa imagem é o início de uma relação de
identidade [...]” (SILVA, 2008, p.77). Com a dinâmica das comunidades virtuais, nós
exibimos mais do que contemplamos nossas próprias imagens. Nós posamos, e na foto
posada, segundo Silva, “[...] a expressão espontânea torna-se deliberada, esquemática [...]
determinada pelas circunstâncias sociais.” (2008, p.110). Nessa dinâmica de levar os
álbuns para a internet, portanto, “[...] o delírio como registro narcisista começa a encher
as páginas daquilo que era o álbum de família.”(SILVA, 2008, p.63). Segundo o autor, a
pose não deixa espaço para as relações com o imaginário, dá a interpretação pronta, sem
esforços e enfraquece as identidades, posição da qual discordamos em parte. A pose no
álbum de família pode até ter, por vezes, essa conotação de expressão esquemática.
Vários fotógrafos, no entanto, encontram na pose um artifício necessário sem o qual não
conseguiriam atingir seus objetivos conceituais e dar vazão às suas imagens internas, e
interpretações do visível, chegando a uma fotografia que seja o fruto do embate entre
essas imagens e o mundo externo, guiadas pelo imaginário do fotógrafo. Basta
lembrarmos do trabalho das fotógrafas Diane Arbus e Cindy Sherman, por exemplo.
Segundo Fernanda Bruno, em seu artigo “Quem está olhando? Variações do
público e do privado em weblogs, fotologs e reality shows”, numa cultura regida pelo
ego, a vida privada busca um olhar que ateste a sua visibilidade, “[...] é preciso ser visto
para existir.” (2006, p.148) Segundo a autora, a subjetividade aí presente existe na medida
em que é exteriorizada. “Depoimentos de ‘blogueiros’ e estudos sobre a escrita de si na
internet mostram como a prática da exposição de si coincide com o processo de
CAPÍTULO 1
93
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
constituição do que os indivíduos tomam como seu ‘eu’e sua identidade.”(BRUNO, in
BRUNO, FATORELLI 2006, p.149)
Para a autora, a atualidade leva a subjetividade para o espaço aberto dos meios de
comunicação. Por isso vemos nos autorretratos comentados anteriormente uma grande
presença de situações inusitadas e fantasiosas, como se os usuários quisessem gerar
identidades a partir da exposição de sua subjetividade, não da forma pela qual se veem,
mas pela qual querem ser vistos. Narcisos cibernéticos para os quais nenhuma situação,
por mais irreal que seja, é impossível. “Se não realizo o que desejo num mundo em que
tudo é possível, a insuficiência é minha, o limite está em mim.”(BRUNO, in BRUNO,
FATORELLI, 2006, p.151)
Essa postura é reflexo de uma tendência da nossa sociedade que, como alerta
Bauman, encara o espaço público como um palco para as confissões privadas. Os
usuários de redes e comunidades virtuais traçam perfis na tentativa de se inserirem em um
contexto que os identifique com os outros membros dessas comunidades. No entanto sua
única conquista é conseguir externar a sua identidade solitária, encontrando conforto na
percepção de que são todos os outros tão solitários quanto ele.
Outra mudança sofrida no álbum de família é que, em ambiente virtual, o álbum
passa a englobar outros assuntos. O espaço público passa a competir com o doméstico. Os
amigos, a paisagem urbana e demais percepções do cotidiano tornam-se parte das nossas
memórias. Somos “paparazzi do cotidiano” como define Silva. Coletamos informação 24
horas por dia, com nossas câmeras e celulares. A quantidade de fotos é tão grande e sua
produção é tão frenética que elas são colocadas nos álbuns virtuais com o intuito de serem
armazenadas e não contempladas, como se a lógica de pertencimento subentendida nessas
comunidades virtuais fosse a da quantidade de fotografias. Quanto mais imagens, mais o
usuário se identifica com os outros membros do grupo, mais ele aparentemente vive e
aproveita a sua vida.
Esse comportamento reforça a prática do colecionismo, que na época do
surgimento da fotografia era restrito a poucos de uma classe mais abastada - as despesas
com álbuns de família, por exemplo, entravam no orçamento familiar. Com o tempo essa
prática tornou-se mais acessível e com as comunidades e álbuns virtuais na internet, o
colecionismo popularizou-se ainda mais, fazendo com que grande parte das imagens
colocadas em rede só estejam ali para serem armazenadas.
Segundo Susan Sontag, “[...] o resultado mais extraordinário da atividade
fotográfica é nos dar a sensação de que podemos reter o mundo inteiro em nossa cabeça –
CAPÍTULO 1
94
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
como uma antologia de imagens. Colecionar fotos é colecionar o mundo.” (2004, p.13). A
autora descreve bem o sentimento dessa sociedade que vive suas experiências de vida,
conforme já afirmamos acima, através de imagens. No entanto, ela ressalta que é
justamente o colecionador, quem “[...] pode agora, em boa consciência, sair a escavar os
fragmentos mais seletos e emblemáticos [...]” (2004, p.91) da realidade.
Diante do acúmulo de imagens e das transformações sofridas pela linguagem
fotográfica, observamos uma diversidade de atitudes. Ítalo Calvino, em seu conto A
aventura de um fotógrafo por meio de seu personagem Antonio Paraggi adverte seus
leitores sobre algumas dessas posturas:
Basta que se comece a dizer sobre alguma coisa: “Ah, que belo! Precisava
fotografá-lo!”, e já se está no terreno de quem pensa que tudo aquilo que não é
fotografado é perdido, que é como se não tivesse existido e que, então, para viver
de verdade, precisa-se fotografar o máximo que puder, e para fotografar o
máximo que puder é necessário: ou viver do modo o mais fotografável possível
ou considerar fotografável cada momento da vida. O primeiro caminho leva à
estupidez, o segundo, à loucura.
72
. (CALVINO, 2002, p.54)
O personagem de Calvino vive uma história na qual inicialmente se sente excluído
de seu grupo de amigos que, nos finais de semana, saem com a família para o campo e
fotografam seus filhos e seus momentos de lazer. Antônio Paraggi não tinha família nem
gostava de fotografar. Quando passa a fotografar, Paraggi começa a questionar a própria
fotografia que, inclusive, o leva à loucura por ele mesmo preconizada. Ele se apaixona
por uma mulher, Bice, a qual fotografa até que sua identidade se esmigalhe em uma
“poeira de imagens”
73
(CALVINO, 2002, p.62). Nesse momento, Antônio Paraggi
acredita que a fotografia só teria sentido se esgotasse todas as imagens possíveis e passa a
fotografar a vida de Bice minuto a minuto, agindo da mesma maneira que seus amigos,
por ele mesmo antes criticados.
Paraggi segue o caminho de um colecionador individualista que, diferentemente
do que sugere Susan Sontag, não escava os fragmentos da realidade, mas ignora-os. Não
dá lugar nem mesmo ao tempo de questionar essa realidade ou até mesmo de fruí-la. Suas
fotografias tentam apreender aquilo que elas mesmas chegariam a afastar – a própria
72
“Basta che cominciate a dire di qualcosa: "Ah che bello, bisognerebbe proprio fotografarlo!" e già siete sul terreno di
chi pensa che tutto ciò che non è fotografato è perduto, che è come se non fosse esistito, e che quindi per vivere
veramente bisogna fotografare quanto più si può, e per fotografare quanto più si può bisogna: o vivere in modo quanto
più fotografarle possibile, oppure considerare fotografarle ogni momento della propria vita. La prima via porta alla
stupidità, la seconda alla pazzia.”
73
“[...] pulviscolo di immagini.”
CAPÍTULO 1
95
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
Bice. Ele vive sua vida como um voyeur e abre espaço para que os demais assumam a
mesma postura. Ao começar a fotografar, o personagem de Calvino parece deixar de
questionar a prática fotográfica.
Geralmente, ao enviar uma fotografia ao grupo, o usuário acaba por submetê-la a
uma prática coletiva instituída. Por mais que se perceba o olhar do fotógrafo, há uma
determinada prática fotográfica identificada com o uso doméstico e que exprime o
sistema de percepção, de pensamento e apreciação comum a todo o grupo. Os
julgamentos estéticos do grupo constituem um sistema de valores, “[...] do ethos
correlativo de pertencimento a uma classe”
74
(BOURDIEU, 1965, p.26). E são esses
valores que podem ser questionados, principalmente em nosso ambiente de observação
que são as comunidades virtuais.
Apesar de passados mais de quarenta anos da reflexão de Bourdieu, ela nos
desperta o interesse para entender a participação em massa de pessoas de todo o mundo
em comunidades virtuais de discussão sobre a fotografia. O contexto atual certamente se
diferencia do da época em que Bourdieu publicou seu livro sobre os usos sociais da
fotografia, em 1965, mas é certo que as pessoas continuam se organizando em grupos
com os quais se identificam, estreitando relacionamentos sociais. A diferença é que as
práticas, antes locais, agora se desfazem dos limites espaciais e são compartilhadas com
inúmeras outras pessoas. É curioso notar, no caso do flickr, a quantidade de grupos que se
criam dentro do site. Como dito anteriormente, cada tipo de interesse dá origem a grupos
diferentes. E é, segundo Bourdieu, na esfera desses grupos que se dá a imposição estética
manifestada através da fotografia e que permite a inserção como membro. No caso do
flickr, no entanto, por mais que se observem características estéticas particulares a cada
grupo, existe uma estética quase consensual da comunidade como um todo, que se
aproxima do que o The New York Times Maganize chamou de flickr style. Nos grupos
individuais, as fotos mais comentadas, mesmo quando o foco não é o aspecto físico mas
sim o tema de interesse representado no elemento de destaque na foto, são aquelas que se
inserem no padrão estético geral da comunidade. Até mesmo por ser uma estética do
exagero (muitas cores e efeitos), que permite fantasiar a “realidade”, talvez esse estilo
seja até mesmo um sintoma da sociedade contemporânea que o flickr, como um meio de
comunicação largamente utilizado por essa sociedade, torna visível.
74
“[...] de l´ethos correlatif de l´appartenance à une classe.”
CAPÍTULO 1
96
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
O que é interessante notar é que, sendo uma estética de cada grupo individual ou
da comunidade como um todo, essa é uma prática que visa, muitas vezes, tão somente
expor uma produção que se encarregue de engendrar identidades perante os outros
membros da rede, que demonstre os interesses do indivíduo que a externa e possibilite o
estabelecimento de laços sociais virtuais, assim como acontece em tantos outros sites em
rede social que têm o formato de comunidade e não são voltados especificamente para a
fotografia, como é o caso do orkut ou do facebook, por exemplo. A prática fotográfica
dos usuários dessa comunidades que usam eventualmente a fotografia é muitas vezes
descompromissada, manipulam o aparelho fotográfico para reproduzir o mundo visível tal
qual se mostra frente aos olhos, apenas visando seus fins de socialização.
Quando falamos sobre o fotógrafo de casamentos Christopher Backer destacamos
ali uma dinâmica de uso das fotos muito comum nessas comunidades como orkut e
facebook. Sobre as imagens é possível fazer pequenos quadrados identificando as pessoas
que estão ali. Assim, ao ser identificado, o usuário e seus amigos recebem uma nota do
próprio sistema do site sobre essa identificação, o que gera um movimento de ida à
página aonde está a foto. A partir daí, inicia-se um ciclo de contatos por meio de recados
e mensagens curtas entre os membros da comunidade que tenham um relacionamento
online bem como fora da rede, em muitos casos, gerando mais comentários, mais
identificações, entre oturos, e estreitando os laços já existentes. Vemos, portanto, que o
uso da fotografia no orkut e facebook, por exemplo, é diferente do flickr, mesmo no que
diz respeito à dinâmica de socialização (que no flickr se dá principalmente pelos grupos
de interesse). Além disso, naquelas comunidades a preocupação com a linguagem
fotográfica inexiste. O importante é o uso da fotografia como suporte de representação
fiel de um acontecimento ou um encontro, na maioria das vezes, para fins quase que
exclusivamente sociais.
Essa ânsia em busca de uma ou de várias identidades, é muito característica do
mundo globalizado atual, onde, segundo Bauman (2005), as oportunidades são fugazes e
a segurança é frágil. Daí a própria mobilidade e volatilidade dessas identidades – que
necessitam, por sua vez, de quantidade e atualização frenéticas de imagens para
acompanhar as mudanças desejadas. Segundo o sociólogo, “[...] tende-se a trocar uma
identidade escolhida por uma rede de conexões. Viver em movimento passa a ser
obrigatório.” (BAUMAN, 2005, pp. 37, 38)
CAPÍTULO 1
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CONFIGURAÇÕES DA LINGUAGEM FOTOGRÁFICA
Bauman ainda sugere que o grande uso de redes virtuais denota, no fundo, uma
falta das redes reais de relacionamento. “As agendas dos celulares e os contatos da
internet ocupam o lugar da comunidade que nos faz falta.” (BAUMAN, 2005, p. 100)
Outro aspecto a ser observado na dinâmica de criação de identidades em escala
global nas comunidades virtuais é a semelhança que existe entre as elites de diferentes
países. Elas são capazes de constituir identidades mais parecidas entre si do que seria
possível entre a elite de um determinado país e as classes socialmente mais baixas desse
mesmo país. “Existe uma maioria excluída do bazar multicultural”, segundo Bauman
(2005, p.103). Por isso encontramos fotografias equivalentes de pessoas que habitam
espaços geográficos tão distantes. E por isso essas pessoas podem encontrar traços em
comum e identificarem-se umas com as outras em grupos virtuais na internet. Com a
possibilidade de referenciar geograficamente as fotos, podemos fazer uma busca no
mapa-múndi do flickr por determinados temas e encontrar algumas dessas equivalências.
Abordemos, então, o tema do autorretrato, tão comum na comunidade. Ao realizarmos a
busca, encontramos muitas fotos de pessoas diante do espelho com a câmera na mão, por
exemplo. Da Ucrânia à Índia, do Brasil à Bélgica, vemos fotos similares de usuários que
fazem parte do bazar multicultural de Bauman, que trocam informações culturais em
comum, apesar de suas nacionalidades diferentes, e identificam-se entre si.
CAPÍTULO 1
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CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
Figs. 63 a 69: Fotos de autorretrato com câmera. Nacionalidades, da esquerda para direita, de cima para
baixo: Austrália, Bélgica, Brasil, Canadá, Índia, Ucrânia e Estados Unidos.
A questão que se coloca, portanto, diz respeito ao nível de reflexão que essas
fotografias despertam. Será a preocupação principal dessa produção a adequação a uma
estética estabelecida do grupo ou uma comunicação com as imagens internas de quem
está atrás da câmera? O fotógrafo, antes de disparar o obturador, concebe, consciente ou
inconscientemente, sua intenção estética e política, daí a necessidade do conhecimento da
técnica: para que possa atingir suas concepções e aproximar-se de suas imagens mentais.
Por isso a técnica é útil sim, mas entendida como ferramenta para desprogramar o
aparelho fotográfico, como coloca Flusser. Do contrário, o que temos é uma produção-
padrão que segue a programação do aparelho, fazendo com que a fotografia se comporte
apenas como ícone, reproduzindo a realidade material e ligada, apenas, às suas funções
sociais. A produção subjetiva da fotografia enquanto símbolo e de cunho estético, deve,
portanto, buscar a desprogramação. Segundo Flusser, a liberdade estaria justamente aí,
em jogar contra o aparelho. As imagens que usam as reais possibilidades da técnica e
rompem com os cânones da fotografia tradicional são aquelas que causam surpresa,
fazem a diferença e valorizam o olhar do fotógrafo, não apenas o gesto de apertar um
botão.
Apesar dessa reflexão, devemos, antes de prosseguir, fazer uma ressalva colocada
por Bourdieu em relação às classificações estéticas. Ele diz que o que para um esteta pode
ser considerado uma antiestética, do ponto de vista sociológico é ainda uma estética, já
que ela ainda assim pressupõe uma experiência vivida ou um sentimento de beleza, não
importa qual seja. Daí não podermos falar que essas comunidades prescindam totalmente
de uma preocupação estética, pois existe essa manifestação e a troca de experiências,
independentemente do julgamento que se faça delas.
CAPÍTULO 1
99
CONFIGURAÇÕES DA LING U AG EM FOTOGRÁFICA
Veremos mais adiante, então, que tipo de estética é essa. Seria uma espécie de
estética social – ou de socialização? – que adequa a fotografia aos seus usos sociais e
serve como critério de pertencimento a um grupo? Ou seria uma estética que questiona o
tempo da experiência, tanto no momento do ato fotográfico, quanto no momento da
contemplação, como já propusemos aqui? Ou os dois?
A história levantada anteriormente aqui sobre a fotografia nos ajudou a ver como
se deu o aparecimento e a evolução de gêneros como a fotografia documental, por
exemplo, que se consolidou como uma forma de questionamento da realidade,
principalmente quando abre espaço à interpretação subjetiva do fotógrafo, fortalecendo,
por sua vez, a própria linguagem fotográfica. No flickr encontramos a presença da
fotografia documental em grupos voltados para esse gênero, no entanto, esse não é o foco
principal da comunidade. Diante da realidade flickeriana de acúmulo de imagens,
poderemos continuar a entender a fotografia como forma de problematizar as
visibilidades do mundo material? Conhecemos melhor o mundo, como propõe o próprio
site, ou repetimos estereótipos consolidados globalmente por um grupo restrito de pessoas
inseridas nas novas dinâmicas de comunicação e identificação em escala global?
Nesse cenário, percebemos que as ferramentas que são colocadas à nossa
disposição na internet, como é o caso do flickr, por exemplo, têm um grande potencial
que permite um avanço da linguagem fotográfica no sentido de uma troca enriquecedora
de visões e interpretações diferentes da realidade, oriundas de pessoas espalhadas por
todo o planeta. Nossa proposta é que, para tomar esse caminho, os usuários dessas
comunidades estabeleçam um diálogo consistente, não apenas entre eles, mas um diálogo
mais holístico, que envolveria o relacionamento desse usuário, enquanto fotógrafo, com
suas imagens internas, com o próprio aparelho que manipula, com o mundo visível e com
os demais fotógrafos, como já falamos aqui. Nos aprofundaremos mais detalhadamente
em cada um desses diálogos no quarto capítulo e em como algumas dessas dinâmicas
dialógicas se relacionam com a questão da contemplação.
CAPÍTULO 1
100
2. BANCOS DE IMAGEM
101
BANCOS DE IMAGEM
2.1 Um breve histórico
Para entender a formação dos bancos de imagem, temos que entender suas
relações com as agências de fotografia, que surgiram no início do século XX, com o
crescimento da indústria editorial e consequente desenvolvimento do fotojornalismo. A
introdução de fotografias na imprensa amplia as visibilidades do real, permitindo que o
homem, antes conhecedor apenas de sua realidade local, entre em contato com os
acontecimentos do mundo. A fotografia “[...] muda a visão das massas. [...] Com a
fotografia se abre uma janela para o mundo.”
75
, como afirma Gisèle Freund (2008, p.96).
Esse processo de ampliação das fronteiras do visível tem início com as viagens exóticas
do século XIX, e evolui com o início da fotografia de guerra, cujo primeiro fotógrafo de
destaque foi Roger Fenton que fotografou a guerra da Criméia, como mencionamos
anteriormente.
Inicialmente, como aponta Freund, a foto era usada como forma de dar mais
credibilidade aos artigos, ou seja, mera ilustração que consistia na compreensão da
fotografia como espelho do real. Quando aparecem os primeiros repórteres fotográficos,
sua reputação era péssima. Devido ao pesado equipamento que usavam, muitas vezes
esses eram selecionados mais pela força do que pelo talento: “O objetivo de tais
fotógrafos buscava, antes de tudo, conseguir uma foto, coisa que então queria dizer que a
imagem teria que ser clara e fácil de reproduzir.”
76
(FREUND, 2008, p.98). Os fotógrafos
de imprensa eram muitas vezes depreciados e seus trabalhos não eram nem mesmo
assinados. Essa situação durou por, mais ou menos, cinquenta anos até, pelo menos, o
início do fotojornalismo, na Alemanha. Ainda assim, mesmo após o surgimento do
fotojornalismo, muitas fotografias continuaram a ser assinadas apenas pelas agências e
não pelos fotógrafos.
Essa mudança gradual representou não apenas um maior respeito ao trabalho do
fotojornalista, mas o entendimento da fotografia como forma de contar uma história –
passando a ser, então, janela do mundo e não mais apenas espelho -, segundo afirma
Gisèle Freund:
75
“Cambia la vision de las masas. [...] Con la fotografía, se abre una ventana al mundo.”
76
“El objetivo de tales fotógrafos buscava ante todo conseguir una foto, cosa que entonces quería decir que la imagen
teria que ser clara y fácil de reproducir.”
CAPÍTULO 2
102
BANCOS DE IMAGEM
A tarefa dos primeiros repórteres fotográficos da imagem consistia em fazer fotos
isoladas para ilustrar uma história. Teremos que esperar para que a própria
imagem se converta em história que relata um acontecimento em uma série de
fotos, acompanhada de um texto limitado com freqüência a meras frases, para que
comece a fotografia.
77
(FREUND, 2008, p.99)
Segundo Beaumont Newhall, em seu livro The History of Photography, “[...] no
final da década de 1920 existiam mais revistas ilustradas na Alemanha do que em
qualquer outro lugar do mundo.”
78
(2006, p.258). Esse cenário foi favorável para o
desenvolvimento do fotojornalismo no país, baseado em um estilo que priorizava a
integração entre texto e imagem. “O novo estilo era uma ativa colaboração entre os
editores e os fotógrafos.” (NEWHALL, 2006, p.259). Essa postura promovia a realização
de ensaios fotográficos, que eram geralmente precedidos de um trabalho de pesquisa
realizado pelos fotógrafos. As imagens passam a contar histórias e trazem para os meios
de comunicação a vida cotidiana das pessoas comuns. “A revista ilustrada chega a ser um
símbolo da mentalidade liberal da época.”
79
(FREUND, 2008, p.107)
As revistas alemãs mais importantes da época eram a Berliner Illustrierte Zeitung
e a Münchner Illustrierte Presse, e o fotógrafo mais célebre do período era Erich
Salomon, em torno de quem se reúne um grupo de fotógrafos. Erich Salomon faz parte de
uma geração de fotojornalistas que recupera o respeito da profissão, suas fotos são
assinadas e, muitas vezes, eles mesmos escrevem os textos e as legendas de suas imagens.
A maioria desses fotógrafos fazia parte da burguesia alemã - que passava por um
momento de dificuldade financeira após a Primeira Guerra Mundial - e tinham estudos,
diferentemente das gerações de fotojornalistas anteriores. Alguns desses fotógrafos mais
tarde formaram a Agência Dephot (Deutcher Photodienst), umas das primeiras agências
de fotografia de imprensa do mundo, fundada em 1928. Fotógrafos como Alfred Marx,
Felix Man, Umbo e Robert Capa (que futuramente participaria da fundação da Magnum)
passaram pela agência.
As agências de fotografia vendiam suas imagens principalmente para jornais e
revistas. Existem agências que apenas empregam os fotógrafos e outras, como a Magnum,
que são formadas pelos próprios fotógrafos, onde esses têm mais liberdade de escolha dos
temas a serem trabalhados e são donos de seus direitos autorais. Podemos ainda entender
77
“La tarea de los primeros reporteros fotográficos de la imagen consistia en hacer fotos aisladas para ilustrar una
historia. Habrá que esperar a que La propia imagen se convierta en historia que relata un acontecimiento en una serie de
fotos, acompañada de un texto limitado con frecuencia a meras frases, para que comience la fotografia.”
78
“In the late 1920s there were more illustrated magazines in Germany than anywhere else in the world.”
79
“La revista ilustrada llega a ser un símbolo de la mentalidad liberal de la época.”
CAPÍTULO 2
103
BANCOS DE IMAGEM
o funcionamento das agências, distinguindo-as entre aquelas que comercializam
fotografias de notícias, minuto-a-minuto, e aquelas que se concentram em temas mais
gerais, de interesses mais humanistas e apelo a longo termo. Esse último tipo de
fotografia é voltado, principalmente, para editoras de livros, bem como para alguns
jornais. Um exemplo do primeiro tipo de agência é a Gamma (www.gamma.fr) e do
segundo tipo de agência é a Rapho (www.rapho.fr), ambas atualmente sob o comando de
uma empresa, a Eydea (www.eyedea.fr) que também concentra outras agências como a
Hoa-Qui, a Jacana, a Explorer, a Top, a Keystone e a Stills.
Não é apenas na Alemanha que a indústria editorial se desenvolvia. Na França
surge a revista Vu e nos Estados Unidos, a Life. A Life tinha grande influência do
fotojornalismo alemão e da revista Vu e atraiu grandes fotógrafos alemães que tinham
deixado o país fugindo de Hitler. A revista foi fundada em 1936 e publicada até 1972.
Outras agências surgiam na Europa e nos Estados Unidos como a Parisian
Alliance Photo, fundada em 1934 e que contou com trabalhos de fotógrafos como Robert
Capa, Henri Cartier-Bresson, David Seymour e Pierre Verger. A Alliance mantinha
contatos com a agência americana Black Star (www.blackstar.com), fundada em 1936 por
imigrantes alemães e que existe até hoje.
A Associated Press, fundada em 1846, durante a guerra entre México e Estados
Unidos, inaugurou seu serviço fotográfico em 1927. Em 1935 já possuía um sistema de
WirePhoto que permitia enviar as descrições das fotos por linha telefônica, numa
antecipação do que seria a imagem em tempo real que temos hoje, transmitida pela
internet às redações de jornais logo após sua captura pela câmera.
Podemos citar ainda a Agence France Presse (www.afp.com), fundada em Paris,
em 1945, após o fim da Segunda Guerra e a Magnum (www.magnumphotos.com) -
lendária agência formada em 1947 por Robert Capa, Henri Cartier-Bresson, David
Seymour e George Rodger. A Magnum tinha uma estrutura cooperativa e que permitia a
seus membros manter a posse de seus direitos autorais bem como desenvolver projetos
particulares. Essa estrutura, no entanto, não manteve afastada as mudanças sofridas pelos
meios de comunicação nos anos que se seguiram. A Magnum teve de se adaptar aos
novos tempos, buscando seu crescimento em diferentes bases que permitissem cobrir
estrategicamente eventos em várias partes do mundo e fornecer essas fotografias mais
rapidamente do que as equipes das próprias revistas e jornais.
As mudanças de tecnologia no fim do século XX, início do século XXI, também
influenciaram a dinâmica de funcionamento das agências de fotografias. Com a fotografia
CAPÍTULO 2
104
BANCOS DE IMAGEM
digital, a foto estava pronta para ser enviada à redação logo após a sua captura. A internet
intensificou esse processo, possibilitando o envio imediato de forma rápida e fácil. Essas
possibilidades deram a ilusão de que o leitor poderia estar cada vez mais perto dos
acontecimentos, pois teria acesso a eles quase que em tempo real. No entanto, o que
aconteceu foi que o processo de edição dessas fotos passou a ser feito, frequentemente,
sem a presença do fotógrafo, aquele que realmente foi a testemunha do acontecimento. E
a pós-produção passou ao cargo de diretores de arte que por vezes impõem à foto um
tratamento que não condiz com a visão do fotógrafo, podendo chegar a alterar as
intencionalidades iniciais daquela imagem. A fotografia perde sua função documental ou
fotojornalística e se transforma em uma mera ilustração do texto que acompanha,
servindo aos interesses comerciais da publicação – que prezam por uma rápida leitura da
imagem por parte do leitor.
A partir de então, observa-se uma proliferação de imagens muito semelhantes em
diferentes meios de comunicação, como se existisse apenas uma forma possível de
visualizar e interpretar um determinado acontecimento. A fotografia dos meios de
comunicação assume um padrão estético e conceitual. Quando lemos determinado tipo de
matéria parece que podemos antecipar o estilo de fotografia que virá adiante: seus
ângulos, recortes e até mesmo cores. O espírito do fotojornalismo alemão das décadas de
1920 e 1930 fica cada vez mais distante.
No Brasil podemos citar o surgimento de algumas agências independentes criadas
por fotógrafos, na tentativa de achar “[...] um caminho de luta para o direito autoral,
aliando o senso estético a uma produção fotográfica mais crítica, que se distanciava da
linguagem superficial e fragmentada da imprensa diária.”(MAGALHÃES, PEREGRINO,
2004, p.91). A primeira agência de fotógrafos, a Image, surge em 1961 no Rio de Janeiro,
liderada por José Medeiros e Flávio Damm, repórteres da revista O Cruzeiro. Também no
Rio de Janeiro surge a Agência Câmara 3, reunindo os fotógrafos Claus Meyer, Walter
Firmo e Sebastião Barbosa. A Agência Fotocontexto, por sua vez, foi fundada em 1969
no Rio Grande do Sul por Assis Hoffmann, e contava com fotógrafos como Ricardo
Chaves, Olívio Lamas e Antônio Vargas, abrangendo tanto as áreas de jornalismo quanto
publicidade, audiovisual, banco de imagens e fotografia industrial.
Foi mesmo a partir dos anos 70 que as agências proliferaram. Em 1979 temos o
surgimento da Agência F4, em São Paulo, fundada por Delfim Martins, Juca Martins,
Nair Benedicto e Ricardo Malta. A Agência F4 teve um papel importante na luta pelos
direitos autorais de fotografias e se engajou na regulamentação da profissão de fotógrafo.
CAPÍTULO 2
105
BANCOS DE IMAGEM
Um núcleo da F4 foi aberto no Rio de Janeiro, contando com fotógrafos de peso como
Ricardo Azoury, Ricardo Beliel, Rogério Reis, Zeka Araújo, João Roberto Ripper e
Cynthia Brito. Em 1980 surge em Brasília a Agência AGIL, formada por Milton Guran,
Duda Bentes, André Dusek, Júlio Bernardes, Kim-Ir-Sem e Beth Cruz. A AGIL tinha
representantes em 15 estados brasileiros e teve uma atuação bastante significativa.
Chegaram a editar dois livros: O Brasil ano 20, de 35 fotógrafos de Brasília e o Perfil do
Poder, de Orlando Brito. Um incêndio de origem duvidosa ocorrido em 15 de fevereiro
de 1985 na sede da agência, bem no período de transição da ditadura para a democracia,
após a eleição, ainda indireta, de Tancredo Neves – que seria o primeiro presidente civil
depois de 20 anos de regime militar -, mostra a importância da atuação dos fotógrafos
dessa agência bem como a força e o poder da imagem. Sobre esse fato, um dos fotógrafos
fundadores da AGIL, hoje professor da Universidade de Brasília, Duda Bentes, diz:
Sobre o incêndio da AGIL Fotojornalismo paira o mistério e o indício de que ele
teria sido um atentado contra a memória dos movimentos sociais do Distrito
Federal, um acerto de contas com as forças de repressão que não gostariam de ser
identificadas (queima de arquivo, literalmente falando) e um estorvo no trabalho
que fazíamos junto ao Comitê de Imprensa do presidente da república eleito
pelo Colégio Eleitoral (eleição indireta), o Senador Tancredo Neves. O sinistro da
AGIL se seguiu a um outro incêndio que havia acontecido no comitê de
campanha de Tancredo e, também, culminou com uma sequência de atentados à
bomba nas bancas de revistas que vendiam jornais contrários a perpetuação da
ditadura e defendiam a volta ao Estado de Direito. Por sua vez, não havia uma
causa para o incêndio e testemunhas disseram ter ouvido uma explosão, e nada no
laboratório, onde ficavam os arquivos de negativos, poderia causar uma explosão.
O sinistro aconteceu em 15 de fevereiro de 1985, uma sexta-feira, por volta das
13 horas. Foram perdidos na ordem de 600 mil imagens em negativos que
representavam, nas palavras do Guran, e que eu endosso, "um invejável acervo
que registrava parte da história sócio-política nacional, da posse do presidente
Figueiredo à eleição de Tancredo Neves." A repercussão foi grande com matéria
no Correio Braziliente (16/02/1985) e outros jornais. Na matéria do
Correio, Guran, em entrevista, salienta que "está sepultado, assim, o esforço de
106 profissionais de todo o país que contribuíram para a formação do arquivo." A
notícia foi veiculada em outros jornais como o Última Hora, Jornal de Brasília, O
Globo e o Estado de São Paulo. Nessas matérias, além do prejuízo para a
memória, foram destacados o prejuízo material que foi calculado na ordem de Cr$
100 milhões. Dessa forma, a AGIL Fotojornalismo teve que lutar em duas frentes
para se recuperar, de um lado tínhamos que manter o ritmo de cobertura pois
naquele momento o presidente eleito fazia as viagens nacionais e internacionais
para se apresentar como novo representante do executivo brasileiro, por outro
lado, tínhamos que reconstruir o laboratório de fotografia e recuperar o que havia
sobrado do arquivo de negativo, este danificado pelo fogo do incêndio e pela água
dos bombeiros. Isso esgotou nossas forças e recursos materiais. A morte do
presidente eleito selou o fim do projeto pois o vice-presidente não nos via com
bons olhos, isto é, não fazíamos parte dos planos para a reconstrução nacional, já
que tudo deveria ficar da mesma forma. O mercado editorial brasileiro passou a
CAPÍTULO 2
106
BANCOS DE IMAGEM
viver uma crise quando revistas foram fundidas (Senhor e Isto É, clientes de
nossas pautas) e uma mudança de linguagem se impôs, a cobertura política que
era basicamente feita em preto-e-branco, passou a ser feita em cores de forma a
atender a demanda dos patrocinadores (agências de propaganda e marketing da
empresa jornalística). Não tínhamos mais fôlego e por isso fomos nos
dispersando, até que, com o fechamento da sede em Brasília (chegamos a ter um
escritório em São Paulo), desmembramos o acervo de negativos, devolvendo para
os respectivos fotógrafos e repórteres fotográficos, que chegavam nesse momento
a mais de 130 cooperativados e agenciados, no Brasil e no exterior. Enfim, foi
uma história, para a qual estou reunindo material, muito bonita, apesar do trágico
momento, pois foi um momento de reunião de pessoas inteligentes e
determinadas, com uma visão de mundo que valorizava a dignidade humana e a
volta ao Estado de Direito. Além disso, tínhamos a força da expressão fotográfica
para fazer ver a história do presente.
80
Encontram-se ainda registros da Agência Angular, criada em São Paulo por
Cristina Villares, Marisa Carreão, Marcos Rosa; da Agência Fotograma, fundada em
1985 também em São Paulo, por Emidio Luisi, Rosa Gauditano, Ed Viggiani, João Ramid
e Jorge Rosemberg; da Agência ZNZ formada por Sérgio e Dário Zalis, Sérgio Nedal,
entre outros.
Podemos citar, ainda, a Imagem da Terra, “[…] uma espécie de Centro de
Documentação sem fins lucrativos, criado em 1984, por João Roberto Ripper, […] (onde)
encontramos um viés político mais marcante.” (MAGALHÃES, PEREGRINO, 2004,
p.92). Suas fotos eram usadas como base de processos em favor de trabalhadores
brasileiros, exigindo certo conhecimento do assunto pelo fotógrafo.
Hoje, existem no Brasil representações das maiores agências do mundo e os
maiores jornais do país também possuem a sua própria agência de fotografias, como é o
caso da Agência Estado (do jornal Estado de São Paulo – www.ae.com.br), da Folhapress
(da Folha de São Paulo - www.folhapress.com.br/) e da Agência O Globo (do jornal O
Globo - www.agenciaoglobo.com.br/). O governo brasileiro também mantém uma
agência de fotografias, a Agência Brasil (www.agenciabrasil.gov.br). Existem ainda
outras agências de menor representatividade e com trabalhos voltados a temas
específicos, como é o caso da Oikos Imagem (www.oikosimagem.com.br), sediada em
Brasília e voltada para fotos de natureza e de povos indígenas; do SambaPhoto
(www.sambaphoto.com.br), com imagens gerais sobre o Brasil; do Imagens do Brasil
(www.imagensdobrasil.art.br), com fotos das regiões Norte e Centro-Oeste; entre outros.
A fotografia publicitária também acompanhou o desenvolvimento da indústria
editorial, e logo as agências de fotografia passaram a gerenciar também esse tipo de
80
Duda Bentes nos forneceu gentilmente esse esclarecimento por email em 20 de setembro de 2009.
CAPÍTULO 2
107
BANCOS DE IMAGEM
produção, como intermediárias na distribuição das imagens entre o fotógrafo e o
consumidor. Ela também sofreu grande influência da fotografia surrealista e
abstracionista, e os trabalhos experimentais desses fotógrafos ajudaram a consolidar a
ideia de que a fotografia não representa a ‘realidade’. Assim, a fotografia publicitária
“[…] se concentrou em criar uma atmosfera associada a um objeto mais do que apenas
retratar o objeto em si, usando os princípios promovidos pela escola Bauhaus e pelos
surrealistas.”
81
(FRIZOT, 1998, p.560)
A fotografia passou a fazer parte de catálogos, brochuras e demais materiais de
promoção de grandes lojas. Dessa maneira, o trabalho do fotógrafo publicitário se
transformou radicalmente. Durante um bom tempo, era o fotógrafo quem controlava todo
o processo, mas com o desenvolvimento da indústria da publicidade, certo controle
externo foi imposto ao fotógrafo. Agentes, diretores de arte, redatores, editores, entre
outros profissionais passaram a se envolver na produção das imagens, demandando e
organizando as sessões de fotos e fazendo cada vez mais uso das fotografias stock
82
que,
ou resultavam do trabalho do fotógrafo, ou eram fruto de uma demanda específica. E
assim, muitas agências de fotografia passaram a comercializar, também, imagens
publicitárias, além de fotojornalísticas.
Com as funcionalidades disponíveis hoje na internet, as agências ganharam em
tempo de distribuição e maior alcance. A imagem está disponível a qualquer momento e
para qualquer lugar onde se acesse a internet. Muitas dessas agências de fotografia
passaram a ser chamadas de bancos de imagem, principalmente aquelas voltadas à
fotografia stock publicitária. Outra mudança introduzida com a internet é a possibilidade
de que qualquer um monte seu banco de imagens e comercialize suas fotografias.
Existem, inclusive, sites que já se estruturam como bancos de imagens, com todas as
ferramentas de exibição, busca e compra das fotos, esperando apenas que o fotógrafo-
internauta faça uso delas. Como destaca Lúcia Santaella, em seu livro Por que as artes e
as comunicações estão convergindo, “A mais atual revolução é aquela que permite que
milhões de pessoas com renda média possam se tornar produtores de suas próprias
imagens, [...] que se tornem produtores culturais sem sair de casa.” (2007, p.59)
81
“[...] concentrated on creating a mood associated with an object rather than recording the object itself, by using the
principles promoted by the Bauhaus school and the Surrealists”
82
As fotografias stock são aquelas produzidas visando antecipar uma necessidade de uso criativo de imagens. Assim, os
bancos de imagens criam coleções de fotos conceituais que são comercializadas principalmente para agências de
publicidade, dispensando a necessidade de contratar um fotógrafo específico para o trabalho em questão. Hoje em dia a
maior parte das fotografias stock está disponível online para visualização, compra e download.
CAPÍTULO 2
108
BANCOS DE IMAGEM
2.2 A realidade dos bancos de imagem hoje
Sem dúvida, um dos maiores bancos de imagens que existe hoje na internet é o
gettyimages (www.gettyimages.com), com mais de 60 milhões de imagens
83
para usos
tanto publicitários quanto editoriais. O gettyimages surgiu em 1995, a partir da aquisição
do banco de imagens Tony Stone. Outras aquisições foram feitas nos anos seguintes: a
coleção do fotojornalista Slim Aarons, o PhotoDisc, o AllSport, o Image Bank, The
Hulton Deutsch Collection, The Dupe Master Collection, a Liaison Agency – que devido
a sua parceria com a Gamma Presse conta com aproximadamente 750 fotojornalistas
espalhados pelo mundo -, entre outros.
Além de imagens, o site também vende vídeos e músicas. A coleção creative
royalty-free
84
é composta de dez coleções diferentes - que fazem parte do acervo do
gettyimages - e 45 coleções de parceiros (entre eles, o flickr). A coleção creative rights-
managed, por sua vez, é formada por 13 coleções próprias e 54 de parceiros (também
aqui o flickr está incluído)
85
. As fotos do flickr são escolhidas pelos administradores do
gettyimages. Cada usuário do flickr, ao definir seu perfil na comunidade, pode escolher se
suas fotos estão ou não abertas a convites do gettyimages, mas a seleção de imagens é
sempre desse último banco.
As fotografias editoriais se dividem em algumas áreas de classificação: Notícias,
Esportes, Entretenimento, Arquivo, Arquivo por Calendário, Perfil, Destaques, Viagens,
Retratos, Institucional, Realeza e Reportagem.
O site também se coloca à disposição para realização de demandas específicas,
tanto no campo publicitário quanto no campo editorial, com fotógrafos espalhados pelo
mundo inteiro e capazes de lidar com a produção desde o conceito à pós-produção –
segundo eles mesmos anunciam.
Ao comprar as coleções dos maiores bancos de imagens e ao fechar parceria
recente com o flickr, o gettyimages nos leva a questionar a estética fotográfica e a própria
linguagem da fotografia ali veiculada. Sendo grande parte das imagens ou das referências
visuais para a produção de imagens veiculadas nos meios de comunicação provenientes
83
Dado obtido no site http://www.answers.com/topic/getty-images-inc. Acessado em 03.08.09.
84
Royalty-free permite a compra de uma imagem uma única vez para uso sem tempo e fim determinado, diferentemente
das Rights-Managed que libera a licença de uso da foto para um período de tempo e finalidade determinados.
85
Para ver todas as coleções e parceiros tanto royalty-free quanto rights-managed do gettyimages:
http://www.gettyimages.com/CreativeImages/ImageCollection. Acessado em 04.08.09
CAPÍTULO 2
109
BANCOS DE IMAGEM
de uma única fonte – o gettyimages – essa estética estaria atrelada ao interesse de uma
única empresa – isso sem contar os vídeos e as músicas.
Retornemos ao caso da ferramenta moodstream já apresentada aqui e que sugere
as imagens (músicas e vídeos também) de acordo com os conceitos-chave por ela
estipulados e “escolhidos” pelo comprador. Essa ferramenta nos dá a ilusão de que é
possível existir apenas um ponto de vista sobre algum aspecto da realidade. Pode-se até
argumentar que as imagens ali disponibilizadas provém, originalmente, de bancos de
imagens diversos, ou de fotógrafos diferentes, no entanto, elas são escolhidas,
organizadas, classificadas e oferecidas ao público consumidor segundo a lógica de uma
única empresa, que certamente se apoia em determinados critérios que façam aumentar
suas vendas de imagens, de acordo com os usos que os meios de comunicação fazem
delas.
Essa prática é reforçada com serviços disponibilizados pelo próprio site como o de
“galerias de tendências” (trend galleries), por exemplo, que é oferecido em parceria com
o Yankelovich Research – uma empresa que pesquisa tendências de consumo no mercado.
No próprio site podemos ver a seguinte frase: “Essas galerias de tendências destacam as
últimas mudanças no comportamento consumidor, atitudes e valores, e identificam
oportunidades emergentes de mercados.”
86
No dia em que acessamos a página do site
referente a essa área de galerias de tendências, três tendências ganhavam destaque:
‘Heróis’, ‘Auto-Diagnóstico e ‘Miniaturas’. Junto a cada galeria específica, há um
relatório da Yankelovich explicando o porquê daquela tendência e um texto de abertura da
galeria apresentando o tema. Essas imagens podem até não ser as imagens finais que
serão usadas em um anúncio veiculado em algum meio de comunicação, mas elas servem
como referência imagética, como um padrão estético ou modelo a ser seguido. E, mais
uma vez, caímos no perigo de ter acesso a uma gama de imagens que se baseie em apenas
um ponto de vista: uma estética, uma ideologia, uma “realidade”, determinados, sempre,
pela mesma empresa e pelos mesmos interesses.
86
These trend galleries highlight the latest shifts in consumer behaviors, attitudes and values, and identify emerging
market opportunities.” Informação obtida no site: http://imagery.gettyimages.com/yankelovich/default_usa.html,
acessado em 04.08.09.
CAPÍTULO 2
110
BANCOS DE IMAGEM
Figs. 70 e 71: Galeria da tendência “Heróis”. Texto de apresentação da galeria: “Explore os Heróis. Temos
rastreado o desejo por ‘gurus’ e ‘heróis’ desde 2006, quando descobrimos que mais de 50% de nossas
imagens mais vendidas eram retratos e nossa análise global de clippings de publicidade mostrou que 51%
das imagens eram retratos. Com a crescente globalização, um simples retrato permite que você converse
com um grupo bem específico de pessoas. E como editores de revista sempre souberam, um rosto na capa
com contato visual é um atrativo humano. Mas quando consumidores estão menos confiantes, o “heróico”
precisa ser visualizado com cuidado. Retratos precisam ser humanos antes de ser icônicos, por isso a
imagem nessas galerias é sobre a celebração da nossa humanidade.”
CAPÍTULO 2
111
BANCOS DE IMAGEM
Figs. 72 e 73: Galeria da tendência “Auto-Diagnóstico”. Texto de apresentação da galeria: “Explore o Auto-
Diagnóstico. Imagens de equipamentos de medida têm um papel na tendência do auto-diagnóstico e miram
em uma das ansiedades que guiam o auto-diagnóstico – o excesso de informação. Escalas, monitores
eletrônicos e instrumentos médicos, todos comunicam uma objetividade e uma certeza para consumidores
que estão amedrontados por tantos conselhos conflitantes. Isso se aplica a qualquer mercado. Ligado à
tendência de bem-estar, consumidores estão fazendo cada vez mais uma associação da saúde com questões
ambientais, de ecologia pessoal com ecologia planetária. Como as mudanças de clima se tornaram um
ponto de comprometimento pessoal, o imaginário sobre cuidados pessoais será uma metáfora visual
conectada com aspirações maiores relacionadas aos cuidados com o clima.”
CAPÍTULO 2
112
BANCOS DE IMAGEM
Figs. 74 e 75: Galeria da tendência “Miniaturas”. Texto de apresentação da galeria: “Explore Miniaturas.
Miniaturas são representadas por simplicidade visual, isolando uma imagem para dar-lhe foco, claridade e
balanço – atributos muito valorizados, especialmente por consumidores inquietos com as recentes variações
econômicas. Imagens de miniaturas podem ter duas leituras. Por um lado, levam à ideia de “bonitinho”, o
que os japoneses chamam de ‘kawaii’ e que é emocionalmente aconchegante, mirando no nosso lado
criança. O outro lado mira na ideia de se parecer com Deus, de estar no controle (veja também “Auto-
Diagnóstico) e exercendo poder de escolha. Para grandes marcas querendo parecer pequenas e amigáveis,
ou para pequenas marcas querendo comunicar poder e controle, a imagem de miniatura supera as
expectativas.”
CAPÍTULO 2
113
BANCOS DE IMAGEM
A fotografia, presa a um único ponto de vista, não pode ser compreendida como
fonte de conhecimento, não desperta o diálogo. Para ser lida de forma mais rápida e
entendida por um maior número de pessoas, a imagem se liga a ideias comuns,
estereotipadas e não explora as possibilidades das diferentes interpretações subjetivas de
cada fotógrafo; ela se rende a uma lógica de consumo que provoca, apenas, um acúmulo
cada vez maior de imagens não digeridas. Quando o gettyimages se associa ao flickr, ele
tenta adequar à sua estética uma tentativa de pluralidade imagética. Se não é uma
tentativa ainda tão bem sucedida, é uma ferramenta em potencial para conseguir tal feito.
O gettyimages disponibiliza, portanto, a coleção do flickr
87
, mas ele a classifica
conforme os seus padrões, seus critérios e suas categorias de busca e entendimento
daquela imagem, diferente do que acontece no flickr, em que a imagem é classificada
pelo próprio fotógrafo. A ferramenta que mostra a coleção flickr é o flickr clouds
88
, que
tenta simular um ambiente de comunidade onde o usuário teria alguma interação com o
site (o gettyimages) e seu conteúdo – o que não acontece.
Na verdade a participação aí possibilitada se resume ao fato de o usuário fazer
uma busca dentro da coleção fickr no gettyimages, de acordo com alguma categoria ou
conceito. Esse é o primeiro filtro. A partir do resultado dessa busca, fornecido pelo
gettyimages, composto por imagens sugestionadas por seus administradores, o usuário do
site pode fazer agrupamentos particulares de fotos. Esse seria o segundo filtro. No
entanto, essa “livre escolha” de fotos que compõem a sua nuvem se dá dentro de um
resultado prévio, fruto da primeira busca que se guia pelas formas de classificação do
gettyimages, ou seja, dentro de uma estética previamente determinada. Esses
agrupamentos – clouds (nuvens) – podem ser vistos por outros usuários e podem ser
favoritados. Cada usuário pode ser seguido por outros. No entanto, não existe nenhuma
funcionalidade que permita a comunicação e o diálogo entre um membro e outro da
‘pseudo-comunidade’. Ou seja, é possível apenas ver as nuvens de outros usuários. E só.
Pode-se criar quantas nuvens quiser – cada uma sempre referente a um único conceito
específico - e levar todas as fotos escolhidas em sua nuvem direto para o processo de
87
A coleção conta, atualmente, com 32.500 fotos.
http://www.gettyimages.com/search/search.aspx/1/creative?brands=fkm,fkf,fks&isource=usa_flickrFrontDoor_BrowseFlickr -
acessado em 05.08.09.
88
As “nuvens” aqui fazem referência à forma de funcionamento desse sistema de interação em que o usuário pode
montar agrupamentos de imagens conceituais (que, graficamente, formam nuvens), conforme seus critérios de escolha.
No entanto, as escolhas só podem ser feitas a partir de imagens que constam do resultado fornecido pelo gettyimages de
uma busca prévia que o usuário deve fazer com o conceito desejado.
CAPÍTULO 2
114
BANCOS DE IMAGEM
compra. Além disso, a ferramenta só serve para mostrar as fotos vindas do flickr numa
tentativa de dar um clima comunitário e participativo que, reforçando, não existe.
Voltando à ideia das imagens de leitura rápida, tão adequadas aos interesses de
venda de bancos de imagem como o gettyimages, vemos que, ao restringir as
possibilidades de busca de imagens (o que já provém da própria escolha inicial de qual
imagem do flickr poderá ser comercializada pelo banco de imagens), esse site reforça
uma estética baseada no senso comum. O que conta é a quantidade que representa vendas,
e não a qualidade. Por se constituir como uma comunidade menor, o flickr clouds no
gettyimages poderia promover uma experiência mais específica de escolha e diálogo
sobre a imagem. Ele, no entanto, veta qualquer possibilidade realmente livre de
participação do usuário. Já no flickr, mesmo quando se faz um mal uso das ferramentas, o
usuário tem acesso a várias possibilidades de diálogo, o que permite que eles mesmos
estabeleçam a dinâmica de funcionamento da comunidade.
Portanto, essa ferramenta - o flickr clouds -, talvez, pudesse se adaptar bem ao
próprio flickr, que oferece funcionalidades de comentários, estimulando a troca de ideias
entre os usuários e possibilitando o adicionamento de outros membros como amigos ou
contatos, formando uma rede social. Ali, ela poderia fortalecer o caráter de comunidade
do site, mas não gettyimages cujos objetivos se voltam principalmente ao consumo.
Fig. 76: Aplicativo que mostra a coleção flickr dentro do gettyimages por meio de flickr clouds.
CAPÍTULO 2
115
BANCOS DE IMAGEM
Fazendo uma busca simples com o tema “amor” podemos verificar,
superficialmente, as semelhanças entre as fotos que são dadas como resultado no
gettyimages. A maioria delas tem como elemento a figura humana, geralmente em duplas,
como exemplo de relacionamentos amorosos ou familiares. Quando figuram objetos, são
geralmente corações ou têm a forma de coração. No caso do flickr também encontramos
fotos desses gêneros, mas encontramos também uma gama maior de imagens que
quebram com esse padrão estético, e que representam um maior número de possibilidades
de interpretação do mesmo conceito por pessoas (fotógrafos) diferentes. No caso das
imagens do flickr que estão no gettyimages, observamos, com algumas exceções, a
mesma lógica da figura humana, geralmente em duplas, e do coração. Percebemos,
portanto, que ao se apropriar de imagens do flickr, o gettyimages acaba por escolher e
adequar essas imagens de acordo com a sua interpretação dos conceitos e,
consequentemente, da realidade. Ao invés de oferecer “fotos escolhidas a dedo que
capturam a personalidade das pessoas e de lugares ao redor do mundo”, como eles
mesmos divulgam
89
, o gettyimages acaba por impor a sua lógica e a sua estética
promovendo uma proliferação de imagens clichês de leitura rápida e que nos permitem
enxergar a realidade a partir de apenas um único ponto de vista.
89
http://www.gettyimages.com/Creative/Frontdoor/Flickr?isource=usa_nav_images_whatsnew_flickr
CAPÍTULO 2
116
BANCOS DE IMAGEM
Figs. 77 a 80: Imagens resultantes da busca pela palavra “amor” no site gettyimages: família, casal e
coração – essas imagens são todas rights-managed.
Figs. 81 a 74: Imagens resultantes da busca pela palavra “amor” no site flickr: interpretações e experiências
pessoais nem sempre positivas. Além de classificar a imagem, o fotógrafo pode dar um título para ela. A
primeira: “Mal se Agarrando ao Amor” (Just Barely Hangin Onto Love); a segunda: “Então, o que é o amor
para você? (So, what’s love to you?); a terceira: “Procurando por amor” (Looking for Love); a quarta: “Dia
267: O amor machuca” (Day 267: Love hurts)
CAPÍTULO 2
117
BANCOS DE IMAGEM
Figs. 85 a 88: Imagens resultantes da busca pela palavra “amor” na coleção flickr do site gettyimages:
imagens que se assemelham à estética encontrada no restante da coleção do gettyimages.
O próprio flickr funciona como um banco de imagens. Muitas agências de
publicidade, escritórios de design, entre outros, já têm recorrido ao site em busca de
imagens para serem usadas em seus trabalhos. Alguns membros da comunidade,
inclusive, já fazem uso do site pensando nessa possibilidade. Cada usuário pode conceder
um tipo de licença Creative Commons a sua foto, de acordo com o uso que permite que
seja feito dela. O Creative Commons (www.creativecommons.org) é uma organização
não governamental que propõe o uso de licenças gratuitas por criadores que desejam
resguardar alguns direitos autorais e, ao mesmo tempo, facilitar o compartilhamento,
distribuição e transformação de suas obras artísticas, não apenas no âmbito da imagem,
mas também da escrita, da música, entre outros. Alguns exemplos dessas licenças são as
seguintes: Atribuição de crédito, Uso para fins não comerciais, Uso conforme original e
Compartilhamento pela mesma licença, conforme ilustra a imagem abaixo.
CAPÍTULO 2
118
BANCOS DE IMAGEM
Fig. 89: Explicação resumida dos tipos de licença Creative Commons, retirada do flickr.
(http://www.flickr.com/creativecommons/ - acessado em 07.08.09)
Dessa forma, abre-se uma possibilidade de circulação dessa imagem, entre seu
criador e o usuário final. Nesses casos, geralmente, além de classificar a sua foto segundo
uma das licenças Creative Commons, o fotógrafo também já coloca à disposição o
download das imagens em tamanhos variados, de acordo com a resolução. Assim, mesmo
não tendo uma foto escolhida pelos critérios do GettyImages, qualquer membro do flickr
pode ter uma foto sua usada para diversos fins que sejam apenas aqueles intencionados
por seu autor. Essa é, sem dúvida, uma possibilidade interessante, mas para que seu uso
fortaleça uma linguagem fotográfica mais plural - principalmente nos meios de
comunicação -, ele poderia ser embasado em uma prática que enfatizasse o diálogo e a
contemplação, como já defendemos aqui e nos aprofundaremos mais à frente. Caso
contrário, essa mesma funcionalidade, que pode, talvez, até proporcionar uma quebra com
alguns clichês imagéticos na rede, poderá servir, ao contrário, para reforçar essa mesma
prática, num ciclo em que os usuários se baseiam em uma estética padrão para produzir
suas imagens, ditada pelos grandes bancos de imagem e pelos meios de comunicação, e,
consequentemente, reforçando essa mesma estética na comunidade, para que não
prejudiquem o estabelecimento de seus laços sociais ou o atingimento de outros objetivos
como a divulgação de suas imagens.
CAPÍTULO 2
119
BANCOS DE IMAGEM
Como o flickr, apesar de ser considerado uma vitrine de imagens, não
disponibiliza ferramentas de comércio dessas imagens, os usuários que quiserem vender
suas fotos, deverão classificá-las sob o critério “todos os direitos reservados” e, nas
configurações de segurança, proibir o download de suas imagens, para evitar que algum
usuário se aproprie delas indevidamente. Nesses casos, muitos fotógrafos aproveitam a
comunidade também para divulgarem seus contatos e o site onde comercializam suas
fotos.
Fig. 90: Exemplo de imagem do flickr protegida por algumas licenças Creative Commons.
Ainda dentro de sua característica de banco de imagens, o flickr possui uma área
de seu site chamada The Commons (http://www.flickr.com/commons/)
90
, onde
disponibiliza arquivos de fotografias públicas de todo o mundo para seus usuários. Os
membros da comunidade podem ainda comentar as fotos, adicionar alguma informação
que detenham a seu respeito, ou classificá-la sob alguma tag que acharem coerente com a
imagem. Até o momento, fazem parte dessa coleção algumas instituições como:
Biblioteca do Congresso Americano, Museu Powerhouse, Instituto Smithsonian,
Biblioteca de Toulouse, Galeria George Eastman House, Biblioteca de Arte-Fundação
Calouste Gulbenkian, Museu Nacional de Media da Inglaterra, entre outros. Qualquer
instituição que tenha um banco de imagens online pode se registrar no flickr e participar
do The Commons.
90
site acessado em 07.08.09
CAPÍTULO 2
120
BANCOS DE IMAGEM
Fig. 91: Exemplo da famosa foto de Dorothea Lange disponibilizada pela Biblioteca do Congresso
Americano pelo The Commons do flickr.
(http://www.flickr.com/photos/library_of_congress/3551599565/in/set-72157618541455384/)
Existem ainda outros tipos de bancos de imagem na internet, voltados apenas para
fotos royalty-free. São aqueles que disponibilizam seu espaço virtual, ou seja, seu site,
para que qualquer usuário comercialize ali suas imagens, como é o caso do StockXpert
(www.stockxpert.com) e do iStockPhoto (www.istockphoto.com). O istockPhoto foi o
primeiro banco de imagem desse gênero a surgir na internet, em 2000. Inicialmente sua
proposta era de formar uma comunidade de fotógrafos que trocassem imagens, ou seja, as
imagens não seriam comercializadas, mas disponibilizadas, assim como ainda funciona o
StockXchange, sobre o qual já falamos aqui e que conta com grande participação de
fotógrafos – amadores e profissionais – brasileiros. Hoje, o iStockPhoto funciona
basicamente como o StockXpert, com imagens que podem ser comercializadas por
qualquer usuário a preços que geralmente variam entre US$ 1,00 e US$ 20,00 de acordo
com a resolução.
O gettyimages, no entanto, também comprou parte da coleção do iStockPhoto,
que, atualmente, conta com 4.580 fotos. Essa atitude nos leva a crer que toda iniciativa de
uma produção fotográfica esteticamente mais plural e diferenciada parece ser alvo das
investidas do site, reforçando a situação de que os usuários de imagens stock acabem por
se submeter a um universo imagético determinado apenas segundo um único ponto de
CAPÍTULO 2
121
BANCOS DE IMAGEM
vista. Além de não proporcionar o diálogo entre posturas e interpretações diferentes, a
fotografia aí encontrada também não desperta a contemplação, visto que se volta a um
padrão de fácil leitura, não preocupado com a questão da reflexão.
CAPÍTULO 2
122
3. COMUNIDADES VIRTUAIS
123
COMUNIDADES VIRTUAIS
3.1 O que são Comunidades Virtuais e por que estudar o flickr?
Segundo Manuel Castells afirma em seu livro A Sociedade em Rede, baseando-se
na argumentação de Rheingold, a comunidade virtual “[...] é uma rede eletrônica
autodefinida de comunicações interativas e organizadas ao redor de interesses ou fins em
comum, embora às vezes a comunicação se torne a própria meta.” (CASTELLS, 2008,
p.442)
A origem das comunidades virtuais está ligada às BBS (bouletin board system
sistema de quadro de avisos). Segundo Rheingold, “Uma BBS é constituída por um
computador pessoal [...] que executa o econômico software de painel de mensagens
eletrônicas, ligado a uma vulgar linha telefônica por intermédio de um [...] modem.”
(1996, p.166). O autor chama atenção para um fato interessante sobre o surgimento das
BBS e que fez parte, também, das características do surgimento das comunidades
virtuais: elas são fruto da organização de indivíduos e não de instituições ou de governos.
Apesar de o surgimento da rede e do próprio desenvolvimento dos computadores pessoais
estar ligado à tecnologia militar e de guerra, as comunidades virtuais surgiram de uma
necessidade de comunicação de cidadãos comuns, fazendo uso das ferramentas
disponíveis que vão surgindo ao longo dos anos.
Nos últimos dez anos, a minha observação direta do comportamento online em
todo o mundo levou-me a concluir que, sempre que a tecnologia de CMC
91
se
torna acessível em qualquer lugar, as pessoas inevitavelmente constroem
comunidades virtuais com ela, tal como microorganismos inevitavelmente se
constituem em colônias. (RHEINGOLD, 1996, p.19)
Essa característica das comunidades virtuais as tornam lugares de conversação,
em uma sociedade cada vez mais globalizada que acaba com os locais de encontro e de
consumação das comunidades, ou, como chama Oldenburg, os “terceiros lugares”.
Os terceiros lugares situam-se em terreno neutro e servem para reduzir os
participantes à mesma condição social. A atividade primária característica desses
lugares é a conversação, a qual desempenha o papel de principal veículo de
exposição e apreciação da personalidade e individualidade humanas. Os terceiros
lugares são dados adquiridos, discretos na sua maioria. (OLDENBRUG, 1991,
apud, RHEINGOLD, 1996, p. 42)
91
Por ‘CMC’o autor entende: Comunicações Mediadas por Computador
CAPÍTULO 3
124
COMUNIDADES VIRTUAIS
Rheingold afirma que os terceiros lugares são as ágoras irreconhecidas da vida
moderna. Podem ser as “[...] conversas informais de café, de salão de beleza e de praça
pública [...]” (1996, p.42), consideradas por muitos como tagarelice, ou os
relacionamentos nas comunidades virtuais, considerados por outros como conversa fiada,
como coloca o autor. No entanto, segundo o autor, “A conversa fiada cria um contexto
onde vamos aprender qual o tipo de pessoa que somos, as razões por que pode ou não
confiar-se em nós e quais são os nossos interesses.” (1996, p.81).
Conversa fiada ou não - falaremos sobre isso mais adiante no quarto capítulo,
quando analisarmos a comunicação existente entre usuários do flickr -, fato é que o
conteúdo produzido na comunidade flickr é certamente fruto de uma dinâmica
descentralizada e merece nossa atenção. No caso de nossa investigação sobre a linguagem
fotográfica, nos voltamos ao flickr, que é a maior comunidade virtual voltada para
fotografia na internet. Já alertamos aqui para o fato de que a linguagem fotográfica
contemporânea passa por grandes transformações. E as comunidades virtuais têm um
papel importante nesse processo. No entanto, até o momento, ainda não temos como
saber para que caminho essas transformações levarão a fotografia. Alertamos também
para o fato de que um dos caminhos nos leva a reforçar as interpretações já existentes
sobre o mundo visível, enquanto o outro nos leva a problematizar o mundo e suas
possíveis visibilidades, entendendo a fotografia de maneira simbólica e como forma de
conhecimento sobre a realidade material. Segundo defende André Rouillé, “Fotografar
não consiste mais na produção, segundo a distinção platônica, de boas ou más cópias do
real; consiste, a partir de agora, em atualizar, em tornar visível o aqui e o agora, os
problemas, os fluxos, os afetos, as sensações, as densidades, as intensidades, etc.”
92
(2005, p.613)
Rheingold foi pioneiro no uso das comunidades virtuais, desde a década de 80, e
ele também alerta para o caráter dúbio dessas comunidades dependendo do uso que seja
feito delas.
Temos oportunidade de acedermos temporariamente a um instrumento que pode
estimular o convívio e a compreensão entre as pessoas e que poderá auxiliar na
revitalização da esfera pública. O mesmo instrumento, se controlado e
manipulado de modo impróprio, poderá tornar-se um instrumento da tirania. A
visão de uma rede de telecomunicações delineada e controlada pelos cidadãos do
92
“Photographier ne consiste plus à produir, selon la distinction platonicienne, des ‘bonnes ou des mauvaises copies’du
réel; cela consiste désormais à actualiser, en les rendant visibles ici et maitnant, des problèmes, des flux, des affects, des
sensations, des densités, etc.”
CAPÍTULO 3
125
COMUNIDADES VIRTUAIS
mundo é uma versão da utopia tecnológica que pode ser apelidada de visão de
“ágora eletrônica”. […] Pode, no entanto, ilustrar-se a utilização imprópria da
Rede através de uma imagem sombria de um local menos utópico – o Panóptico.
(1996, p.28)
Se trouxermos essa citação de Rheingold para o cenário do flickr e dos demais
bancos de imagem, podemos pensar em como se dá a dinâmica de usos da fotografia
contemporânea nesses ambientes online, principalmente da fotografia stock, e analisar se
as ferramentas hoje disponíveis na internet seguem o caminho da revitalização da esfera
pública ou o caminho da tirania - associado, pelo prórpio autor, à figura do panóptico.
Vimos que o gettyimages, ao adquirir quase todas os bancos de imagem
independentes bem sucedidos, impõe um olhar centralizador, instituindo um padrão
estético que acaba por controlar a produção fotográfica comercial contemporânea. Nesse
contexto, o gettyimages assume o papel do panóptico e o risco de materialização dessa
metáfora torna-se real. Daí a importância de abordarmos a questão, já levantada aqui,
sobre o caminho a ser seguido: utilizaremos as ferramentas da internet para reforçar as
atuais visibilidades sobre a realidade visível ou as usaremos para problematizar o
mundo em que vivemos, procurando compreendê-lo e desvelá-lo a partir dos múltiplos
pontos de vista possíveis?
Outra característica importante das comunidades virtuais que deve ser observada é
a relação entre a participação dos usuários e a construção de suas identidades. “Da mesma
forma que os anteriores meios de comunicação dissolveram as barreiras sociais
relacionadas com o espaço-tempo, os recentes meios de comunicação mediados por
computador parecem estar também a dissolver as barreiras da identidade.”
(RHEINGOLD, 1996, p. 185). Esse meio virtual e despersonalizado preserva a verdadeira
identidade de seu usuário, permitindo que ele assuma múltiplas identidades, ou
identidades novas e falsas. Segundo Rheingold, a sintaxe de jogo de identidade é
intrínseca à gramática dos meios de CMC. (1996, p. 186).
No caso da comunidade virtual flickr, esse jogo de identidades é realizado por
meio de imagens, inicialmente pela escolha da própria foto do perfil e, posteriormente,
pelas classificações dadas pelo fotógrafo às suas imagens, pelas escolhas de grupos dentre
os quais participar e pelo adicionamento de contatos na rede, de acordo com os interesses
em comum. Se as imagens de um determinado usuário figuram entre as favoritas de um
grande número de pessoas e, se esse mesmo usuário é adicionado como contato de vários
outros membros, ele é um usuário popular, cuja identidade é admirada. Essa identidade
CAPÍTULO 3
126
COMUNIDADES VIRTUAIS
admirada é construída sobre imagens que se pautam por uma estética que determina o
ethos daquele grupo, como coloca Bourdieu. Assim, podemos aplicar, ao flickr, a
afirmação que Manuel Castells escreve na conclusão de seu livro sobre a sociedade em
rede: “A liderança é personalizada, e formação de imagem é geração de poder.” (2008,
p.572). Ainda mais em nossa sociedade que além de estar estruturada em rede é, também,
multimídia e não se expressa mais apenas pela palavra escrita.
Toda comunidade determina seus padrões estéticos e com o flickr não seria
diferente. Vimos o The New York Times Magazine falar sobre um Flickr Style, apontando
uma estética que está ali, de forma perceptível através do uso de cores saturadas, efeitos
de manipulação digital, entre outros. Mas como se dá a dinâmica que torna essa estética
uma estética de grande popularidade dentro da comunidade? O flickr, de certa forma,
possui mecanismos próprios que influenciam nessa escolha. O interestingness é um
exemplo disso.
Essa funcionalidade do site mostra as imagens mais interessantes escolhidas pelos
administradores do flickr nos últimos sete dias. O usuário também pode acessar um
calendário que mostra, a cada dia, quais foram as fotos classificadas pelo interestingness.
Segundo o próprio site, os critérios para escolha de uma foto “interessante” são: taxas de
cliques em uma foto, quantidade de comentários sobre a foto, quantos usuários favoritam
uma foto, as tags usadas pelos fotógrafos, entre outros. As próprias tags são mostradas
sob os critério de “mais populares”
93
, dando-nos uma dimensão de como os usuários, de
uma forma geral, classificam suas fotos no site. Tanto o interestingness quanto as tags
servem como parâmetro do que é considerado popular ou admirável dentro da
comunidade. Por isso essa estética se coloca como o modelo a ser seguido, com o
objetivo final principal de estabelecimento de laços sociais.
Observamos que os temas das tags mais populares são também muito comuns ao
universo da publicidade, mostrando que a maior quantidade de fotos do flickr se insere
num universo de valores e conceitos promovidos pelos meios de comunicação que
acabam por definir, de forma global e não apenas dentro do flickr, as referências culturais
e de identidade. Esses valores admirados pela sociedade em geral, contribuem para a
constituição daqueles “momentos solenes” que questionamos anteriormente e que,
consequentemente, são fotografados à exaustão. Esse fato também nos relembra o conto
de Ítalo Calvino, em que o autor denuncia uma prática fotográfica difundida por mera
93
As tags mais populares desde o surgimento do site são: ‘arte’, ‘praia’, ‘califórnia’, ‘canon’, ‘família’, ‘amigos’,
‘japão’, ‘música’, ‘natureza’, nikon’, ‘festa’, ‘viagem’, ‘casamento’.
CAPÍTULO 3
127
COMUNIDADES VIRTUAIS
necessidade de pertencimento a uma dinâmica imposta pela sociedade. Sobre essa
dinâmica, Flusser diz:
De modo geral, toda gente possui um aparelho fotográfico e fotografa, assim
como, praticamente, toda a gente está alfabetizada e produz textos. Quem sabe
escrever, sabe ler; logo quem sabe fotografar sabe decifrar fotografias. Engano.
Para captarmos a razão pela qual quem fotografa pode ser analfabeto fotográfico,
é preciso considerar a democratização do ato fotográfico. […] O aparelho
fotográfico é comprado por quem foi programado para tal. Os aparelhos de
publicidade programam essa compra.[…] Quem possui aparelho fotográfico de
ultimo modelo, pode fotografar bem sem saber o que se passa no interior do
aparelho. Caixa negra. […] Já não sabe olhar a não ser através do aparelho. Deste
modo, não está face ao aparelho […]. Está dentro do aparelho, engolido pela sua
gula. Passa a ser o prolongamento automático do seu gatilho. Fotografa
automaticamente. A mania fotográfica resulta numa torrente de fotografias. Uma
torrente-memória que a fixa. Eterniza a automaticidade inconsciente de quem
fotografa. (1998, pp. 73 e 74)
Tudo isso reforça a importância das questões social e de identidade na
comunidade flickr, para as quais a fotografia é o suporte escolhido que torna possível o
funcionamento dessas dinâmicas.
A preocupação estética da comunidade, portanto, não se volta ao belo, mas à
adequação a um padrão de inserção social, assim como fala Bourdieu sobre os usos
sociais da fotografia. Susan Sontag também defende que a fotografia, por se voltar a uma
vasta gama de temas, não poderia ser entendida pelo belo, mas pelo interessante.
A fotografia foi a arte em que “o interessante” triunfou primeiro, e bem cedo: a
nova maneira fotográfica de ver propunha que tudo era um tema potencial para a
câmera. O belo não poderia consentir numa gama tão vasta de temas; e bem cedo
passou, ainda por cima, a parecer retrógrado como um julgamento. (SONTAG,
2008, p.24)
A fotografia, portanto, se afasta da beleza apolínea proposta por Nietzsche - uma
beleza tradicional, ligada à harmonia, à forma e à proporção -, e se aproxima mais da
beleza dionisíaca, por sua vez mais ligada ao caos, à loucura e à paixão. Segundo
Umberto Eco, a beleza dionisíaca seria aquela mais característica e pertencente à
modernidade. (2004, p.58). O “interessante” de Sontag, certamente tem relação com o
dionisíaco nietzschiano.
O que é interessante? Sobretudo aquilo que, previamente, não foi tido como belo
(ou bom). […] Chamar algo de interessante implica desafiar antigas normas de
elogio, tais julgamentos desejam ser insolentes ou pelo menos engenhosos.
CAPÍTULO 3
128
COMUNIDADES VIRTUAIS
Especialistas no “interessante”- cujo antônimo é o “chato”- gostam de
estardalhaço, não de harmonia. (SONTAG, 2008, p.25)
No entanto, a autora alerta que o amplo emprego do critério “interessante” acabou
por enfraquecer sua essência transgressiva, remetendo-a à atmosfera do consumo. “O
interessante é agora, sobretudo, uma ideia consumista, vergada sob o peso da ampliação
do seu domínio: quanto mais coisas se tornam interessantes, mais o mercado se expande.”
(2008, p.25).
Essa análise nos serve como base para pensar justamente os critérios e a dinâmica
de classificar fotos pelo interestingness do flickr. O “interessante” da comunidade
representa uma quebra com a beleza tradicional ou representa uma estética do consumo?
A julgar pela quantidade de usuários com perfil pago
94
e pela recente associação do flickr
ao gettyimages, somos levados a acreditar no caminho do consumo, movido pela
perspectiva de estabelecimento de laços sociais.
Uma comunidade que se apresenta, portanto, como uma ferramenta democrática,
de amplo acesso e voltada à fotografia, na verdade utiliza esses mesmos argumentos para
inserir-se numa lógica de consumo – o que também justifica a quantidade exorbitante de
imagens colocadas no site por minuto, pois o que acontece ali é um consumo exagerado
dessas imagens. A possibilidade do diálogo entre os fotógrafos, tão necessária e tão
importante na definição do caminho a ser tomado pela linguagem fotográfica em
ambiente virtual, portanto, parece se perder frente a interesses maiores de mercado.
94
Relembrando que o perfil pago do flickr desembolsa a quantia de R$ 45,90 por ano para se ter espaço ilimitado de
armazenamento de imagens. Todo perfil classificado como”pro” na comunidade é um perfil pago.
CAPÍTULO 3
129
COMUNIDADES
VIRTUAIS
3.2 - Como se dá a interatividade e o diálogo entre membros das
comunidades virtuais?
Rheingold, em seu livro Comunidades Virtuais, relata como era o relacionamento
entre os membros dessas comunidades ainda em seu início, na década de 80, quando
existiam apenas centenas de pessoas usuárias de comunidades virtuais na rede. Ele
destaca o clima de companheirismo, de solidariedade, de troca de ideias, intimidades e
desabafos, bem como da formação de amizades que extrapolaram a internet e se
concretizaram fora da rede. Se alguém tinha um problema, corria para o computador, diz
o autor, pois sempre algum outro membro da comunidade saberia a resposta ou como
chegar a ela em minutos. Ele mesmo conta uma história de uma vez em que ele e a esposa
encontraram um carrapato na cabeça de sua filha de dois anos e, sem saber como tirar o
inseto, sua mulher tentou entrar em contato com o pediatra pelo telefone, enquanto ele foi
ao computador. Em minutos um médico membro da comunidade lhe disse o que fazer,
bem antes que sua mulher conseguisse algum progresso no telefone.
O autor foi um dos primeiros membros da WELL, uma comunidade restrita que
surgiu na Baía de São Francisco em meados da década de 80. Para ele, comunidade
virtual significava um espaço de expressão democrático e, principalmente, solidário. Ali
se estabeleciam laços de apoio e amizade que eram levados para a “vida real”. “Desde o
início que me senti como fazendo parte de uma comunidade autêntica, porque a WELL
pertencia ao meu mundo físico cotidiano.” (RHEINGOLD, 1996, p.14). Uma comunidade
virtual com essa dinâmica, estimula o diálogo e a troca de informações e afetos entre seus
membros, e chega perto do que Pierre Lèvy chama de ‘Inteligência Coletiva’. Segundo o
Lèvy, o estabelecimento de laços sociais por meio de comunidades, que criam e
compartilham conteúdo, promove a construção dessa inteligência coletiva formada a
partir dos savoir-faire de cada um.
Os conhecimentos vivos, os savoir-faire e as competências dos seres humanos
estão prestes a ser reconhecidos como fonte de todas as outras riquezas. […] A
informática comunicante se apresentaria então como a infra-estrutura técnica do
cérebro coletivo ou de hipercórtex
95
de comunidades vivas. (LÉVY, 2003. p. 25)
95
“A bela palavra cunhada por Roy Ascott, em Toulouse, em 1992, por ocasião da manifestação FAUST, em sua
conferência intitulada “Telenonia”. […]” (LÈVY, 2003, p. 25, nota de rodapé)
CAPÍTULO 3
130
COMUNIDADES VIRTUAIS
Segundo Lèvy, só teremos uma democratização do acesso à informação quando
cada ser humano, independentemente de sua instrução ou situação social, puder contribuir
para enriquecer a inteligência coletiva, e tiver o direito ao reconhecimento de uma
“identidade de saber”. No entanto, esse tipo de organização entre pessoas que começou de
modo solidário, se expandiu consideravelmente em poucos anos, e parte dessa
característica se perdeu. Manuel Castells, em seu livro A Galáxia da Internet, diz que
“[...] a interação social na Internet não parece ter um efeito direto sobre a configuração da
vida cotidiana em geral, exceto por adicionar interação online às relações sociais
existentes.” (2003, pp. 100, 101).
Vemos, portanto, que o diálogo antes estabelecido entre membros de comunidades
virtuais não continua sendo o mesmo da época de seu surgimento. E, ainda mais
importante, ele não extrapola mais os limites virtuais da rede, pois de nada adianta um
cenário de ricos diálogos online se seus frutos não se refletirem na sociedade em que
estão inseridos.
O flickr oferece funcionalidades que podem promover um debate proveitoso sobre
a fotografia, no entanto, é subutilizado, pois esse não é o objetivo de seus membros. Os
usuários da comunidade estão preocupados em formar laços sociais mas não da mesma
forma que seus predecessores da década de 80. Essa preocupação reflete uma necessidade
de se sentir aceito pelo grupo, e, consequentemente, conseguir aceitar a si mesmo. Toda a
dinâmica gira em torno de um uso narcísico da imagem e da própria ferramenta.
Como já propusemos aqui, o diálogo representa um dos caminhos a serem
seguidos para que a linguagem fotográfica possa se fortalecer enquanto símbolo e não
enquanto ícone, configurando-se, assim, como fonte de conhecimento. No caso do flickr,
como veremos mais a frente, nem sempre é isso o que acontece.
Para que o diálogo aconteça em ambiente virtual, é necessário que exista
interatividade, que as interfaces sejam amigáveis, tornando possível a participação do
usuário. Quanto mais integrada estiverem a forma da interface e seu conteúdo, quanto
menos o usuário tiver de pensar para agir, mais sua participação será intuitiva e mais a
ferramenta, por meio de sua interface, será compreendida como uma extensão do corpo
humano, como defende McLuhan, e capaz de envolver o usuário. “Enquanto houver
atenção para o manipular, o prazer estético estará comprometido.” (MEDEIROS, 2005,
p.63). Somente assim, portanto, poderá o membro de comunidades virtuais, como o flickr,
CAPÍTULO 3
131
COMUNIDADES VIRTUAIS
se envolver no uso do site de forma que a sua participação gere prazer estético, e ele
consiga perceber que a imagem que ele produz e que ali existe pode carregar mais
significados do que a simples repetição do mundo visível e de si mesmo.
A interatividade, portanto, está ligada à interface de um site e exige um esforço de
arquitetura de informação para seu funcionamento ideial. Santaella, ao falar sobre o
‘interativo’ ressalta as etapas de recebimento e manipulação, ou seja, de acesso e
participação.
O adjetivo “interativo” surgiu como o termo mais inclusivo para descrever o tipo
de arte da era digital, a ciberarte, […] tendo em vista criar interações com os
usuários que, graças à internet, irão receber a arte em suas próprias máquinas,
manipulando essa arte ao participar de rotinas pré-programadas que podem variar
e ser modificadas de acordo com seus comandos ou movimentos.
(SANTAELLA, 2005, p. 63)
O acesso que falamos aqui é possibilitado pela tecnologia. O computador e a
internet, com suas ferramentas colaborativas das comunidades virtuais, tornam possível a
participação. O flickr, por exemplo, conta com várias ferramentas interativas, como os
comentários, as possibilidades de classificar uma foto, de criar grupos específicos, de
adicionar contatos, de participar do blog, além dos apelos feitos na própria página para
que coloquemos nossas fotos online. São ferramentas fáceis de usar e, por isso, chamam à
participação. Mas por que, então, diante das possibilidades interativas da comunidade,
muitas vezes vemos que não se estabelece um dialogo sólido entre seus usuários?
Isso se refere a uma dinâmica de cunho mais social do que tecnológico. Tendo
acesso aos meios e às ferramentas, o homem, por sua própria tendência em se relacionar
socialmente, se manifesta e promove a participação de outros em relação a sua obra ou a
um tópico de interesse comum, estabelecendo um laço. Percebemos que se forma, na
verdade, um ciclo sócio-interativo. A interatividade proporciona o acesso e a
participação, que, por sua vez, fortalecem os laços sociais na rede. E, quanto mais as
pessoas se relacionam, mais elas tendem a buscar o acesso e a participação, ou seja, a
interatividade, para continuarem se relacionando. É a preocupação com a manutenção do
funcionamento desse ciclo e da inserção nele que abafa a busca pelo diálogo genuíno e
enaltece os mecanismos de identificação e reconhecimento nesse ambiente.
CAPÍTULO 3
132
COMUNIDADES VIRTUAIS
Sem o diálogo, a linguagem fotográfica se volta às imagens clichês, apenas
reforçando uma realidade já conhecida, e, ao navegar pelo flickr, por exemplo, por vezes
temos a sensação de estar vendo muito do mesmo. Assim como algumas agências de
fotografia como a Magnum, e outras surgidas no Brasil na década de 80, como
mostramos aqui, as comunidades virtuais poderiam ser, na era da internet, o estandarte da
fotografia independente, que privilegiasse o olhar subjetivo do fotógrafo sobre o mundo
visível.
Hoje, com as possibilidades da tecnologia, todos nos tornamos potenciais
testemunhas de eventos, a qualquer hora. É muito comum encontrarmos na própria
imprensa imagens de pessoas comuns que fotografaram um determinado acontecimento
em que não havia fotojornalistas presentes, por exemplo. Todos ganhamos um espaço
para mostrar um trabalho documental, com a possibilidade de denunciar ou apenas expor
uma realidade local, muitas vezes desconhecida do grande público, imprimindo sobre ela
o olhar diferenciado de nossa experiência subjetiva com o assunto ou o acontecimento.
No entanto, mesmo com as facilidades técnicas, a dinâmica das identidades muitas vezes
prevalece.
Basta fazermos uma comparação rápida, por exemplo, entre quantos grupos
existem no flickr voltados ao pôr-do-sol e quantos existem sobre a fome? Fazendo uma
busca pelo nome em inglês - sunset -, idioma mais usado na comunidade, obtivemos
aproximadamente 55 mil grupos voltados para o tema pôr-do-sol. Dentre eles, um se
apresenta como contendo imagens de pôr-do-sol de 106 países, e conta com 54.953
membros
96
. Sobre ‘flores’ conseguimos encontrar ainda mais grupos do que sobre o pôr-
do-sol, 59.722. No entanto, ao buscar por hunger (fome), encontramos apenas 315
grupos. Sobre fotografia documental, foram encontrados 1.025 grupos e sobre
fotojornalismo, 1.654 grupos.
Esses dados revelam os temas de importância para os membros dessa comunidade
e que os estimulam a trocar ideias, a estarem juntos. É dentro desses grupos que as
referências da estética fotográfica e o diálogo sobre a fotografia se desenvolvem, ou, na
verdade, deveriam se desenvolver. Mas como desenvolvê-las quando a preocupação
maior da produção fotográfica dessas comunidades volta-se ao próprio fotógrafo e aos
usos da fotografia como passaporte para uma(s) identidade(s), num ritmo frenético de
atualização de imagens minuto a minuto?
96
http://www.flickr.com/groups/sun/ - site acessado em 08.08.09
CAPÍTULO 3
133
4. CONTEMPLAÇÃO E DIÁLOGO NA ERA DA INTERNET
foto de fata. M0rgana
http://www.flickr.com/photos/natalia_pescador/4002264855/
134
CONTEMPLAÇÃO E DIÁLOGO NA ERA DA INTERNET
4.1 Sobre a contemplação e o diálogo
Vimos nos capítulos anteriores como tem se configurado a linguagem fotográfica
na internet em nossa sociedade. Vimos também que a fotografia vive um momento de
mudanças e que alguns caminhos se abrem rumo a uma possível linguagem fotográfica
virtual. Diante desses caminhos, recolocamos a questão já apresentada aqui tantas vezes:
usaremos as novas tecnologias para reforçar significados e interpretações já consolidados
ou as usaremos para problematizar o mundo em que vivemos, procurando compreendê-lo
e desvelá-lo a partir dos múltiplos pontos de vista possíveis?
Por várias vezes defendemos aqui o caminho do diálogo e da contemplação. Mas
o que entendemos por diálogo e contemplação? É possível consegui-los ou percebê-los
nas imagens que encontramos na internet hoje?
Barthes, em a Câmara Clara, diz que uma foto pode ser objeto de três práticas (ou
de três emoções, ou de três intenções): “[…] fazer, experimentar, olhar. O operator é o
fotógrafo. O spectator somos todos nós que consultamos […] fotografias. E aquilo que é
fotografado é o alvo […] (e) poderia muito bem chamar-se spectrum.” (BARTHES,
2006, p.17). Essas três práticas se relacionam com o que propomos como diálogo e
contemplação na fotografia em comunidades virtuais. No entanto, faremos alguns
acréscimos à ótica de Barthes e proporemos que a foto também pode ser objeto de um
diálogo que se desenvolve entre o fotógrafo e o aparelho bem como entre o fotógrafo e
outros fotógrafos, principalmente no caso das comunidades virtuais da internet.
Analisaremos, portanto, as possibilidades desse diálogo entre os fotógrafos da
comunidade – observando, o estabelecimento dos laços sociais bem como a troca de
ideias acerca da fotografia e de interpretações da realidade. Também nos voltaremos ao
diálogo entre o fotógrafo e a câmera fotográfica – buscando caminhos que indiquem as
possibilidades de subversão do aparelho pelo fotógrafo, como defendido por Flusser.
O diálogo do fotógrafo consigo mesmo, ou com suas imagens internas, privilegia
o seu imaginário e a sua forma de olhar o “real”, consequentemente, não pode se separar
do diálogo que se dá entre o fotógrafo e o mundo visível. O papel do fotógrafo, portanto,
é pensado levando em conta essas duas formas de diálogo. Por isso, o operator
barthesiano, não pode ser considerado apenas como ator de um mero registro da
realidade, como era entendido até então. Se assim o fosse, não precisaríamos nos
debruçar sobre o diálogo do fotógrafo com suas imagens internas, mas apenas sobre o
CAPÍTULO 4
135
CONTEMPLAÇÃO
E
DIÁLOGO
NA
ERA
DA
INTERNET
diálogo entre esse e o mundo visível. Ao registrar a realidade, como tantas vezes
expusemos aqui, o fotógrafo imprime a sua interpretação subjetiva sobre ela, impregnada
de suas vivências e experiências individuais. A fotografia é o resultado do embate entre as
imagens endógenas do fotógrafo e as imagens exógenas fornecidas pelo mundo visível.
Essas duas primeiras formas de diálogo, portanto, levam em consideração o operator – o
fotógrafo –, o spectrum – o mundo visível - e a relação que existe entre eles.
Por último, analisaremos ainda o diálogo entre o espectador e a fotografia, que
privilegia a prática do spectator barthesiano. Como para o acontecimento dessas três
últimas formas de diálogo é necessária a prática da contemplação, também o diálogo
entre o espectador e a fotografia será discutido junto aos dois anteriores e essa discussão
já introduzirá alguns conceitos relacionados à contemplação, para, mais adiante, nos
voltarmos apenas a ela, com base em sua relação com o conceito de instante poético,
defendido por Bachelard.
4.1.1. O diálogo fotógrafo-fotógrafo
Uma rápida observação da dinâmica das comunidades virtuais nos leva a uma
resposta superficial, e por vezes enganosa, de que o diálogo entre fotógrafos na rede tanto
é possível que já acontece. O flickr, por exemplo, disponibiliza ferramentas de
comentários, blogs, flickr mail entre outros, para que as pessoas troquem ideias e
informações. Mas isso é o suficiente para que haja diálogo?
Nessa mesma rápida observação, mas dessa vez voltando-se ao teor dos
comentários, encontramos vários deles que dizem: “Lindo!”, “Incrível”,“Bem tirada!”,
“Parabéns!”, “Belo foco”, “Boa Composição”, “Amei as cores!”, entre outros adjetivos
soltos ou comentários técnicos de algum tipo. Geralmente quando os comentários se
aprofundam percebe-se, pelo contexto, que são feitos por pessoas que conhecem o
fotógrafo fora da rede. Muitas vezes vemos a resposta dos usuários aos comentários feitos
por outros membros, que, frequentemente, se limita a um “obrigado”. Uma prática
informal, mas da qual todo usuário do flickr está ciente, é que quando alguém comenta
uma foto sua, dizendo que gostou, é de bom tom, pelo menos visitar a página do
comentador e olhar as fotos dessa pessoa e, claro, também comentá-las.
CAPÍTULO 4
136
CONTEMPLAÇÃO E DIÁLOGO NA ERA DA INTERNET
Percebemos, então, que o “diálogo” nessas comunidades se dá, principalmente,
pela troca de elogios mútuos – na maioria dos casos – que privilegia apenas o contato
social ali estabelecido e em que quase ninguém sai da superficialidade e expõe as
sensações despertadas por determinada fotografia, ou questiona a subjetividade do
fotógrafo, por exemplo. Também raros são os fotógrafos que contextualizam a sua
imagem, para que quem as observe tenha mais elementos que ajudem em sua
interpretação. Quem comenta as fotos, aparentemente não observa nem mesmo como o
fotógrafo classificou sua imagem. Essa é uma das funcionalidades do flickr que
possibilitam uma grande expressividade do fotógrafo, mas ninguém a observa. Não há
questionamentos.
Um fotógrafo pode adicionar até 75 tags à sua foto, o que vai ao encontro do que
dissemos aqui sobre o fato de a imagem não se restringir a uma classificação única, ou a
um gênero único. Essas tags nos dão um indício de como e porque o fotógrafo recortou
aquela realidade específica. Somando-se a isso também a possibilidade de fazer
comentários, o flickr tem as ferramentas necessárias para despertar a discussão entre
interessados em fotografia, o que promoveria um aumento do espectro de possíveis
visibilidades do real bem como de formas de compreender o mundo. No entanto, nem
sempre é isso o que acontece.
As palavras trocadas muitas vezes são rasas e sem sentido. Não dialogam com as
imagens, muito menos com o mundo ali representado por elas. A foto de Vanessa,
apresentada a seguir, é cheia de emoções, como podemos ver no comentário de um dos
usuários, mas elas vão muito além do “encantador” ou do “lindo”. Que emoções são
essas? Vemos pela classificação atribuída à imagem pela própria fotógrafa que se trata de
um autorretrato. Será que é assim que Vanessa se vê? Ou é assim que ela quer ser vista
pela comunidade? Claramente não se trata de uma foto de um momento decisivo. Ali
houve preparo, a foto foi pensada, realizada sobre uma espécie de fundo infinito, como já
vimos em outras fotos do flickr apresentadas anteriormente. A foto caracteriza-se mais
como uma forma de externar seu imaginário e suas imagens internas sobre ela mesma,
dentro da tendência defendida por Fernanda Bruno de externalização da subjetividade, o
que a torna “[...] inseparável dos dispositivos de visibilidade.”(BRUNO, in BRUNO,
FATORELLI 2006, p.145).
O que a fotógrafa quis transmitir com essa foto? Será que ela quis parecer mesmo
sensual, como comenta um membro da comunidade (pode ser o extra-campo da imagem
ou a boca vermelha que nos leva a esse caminho)? A foto também passa uma atmosfera
CAPÍTULO 4
137
CONTEMPLAÇÃO E DIÁLOGO NA ERA DA INTERNET
de melancolia, de solidão, de perda (as cores sóbrias, as sombras, a posição dos braços, a
água que cai como se fossem lágrimas). Essas são apenas algumas das leituras possíveis.
Existem outras. A fotógrafa aqui não nos dá muitas pistas sobre seus motivos. A foto não
tem nome, no entanto, se observarmos os grupos (mostrados na figura 93) dos quais faz
parte, vemos que a fotógrafa leva em consideração as questões artísticas, de luz e o
imaginário despertado pela imagem. Portanto, cabe a nós, leitores dessa imagem, “just
imagine”, como sugere a própria fotógrafa.
Fig. 92: Sem Título. Foto de Vanessa Ho (http://www.flickr.com/photos/vanka/3686496387/)
acessada em 24.07.2009 e considerada intresting pelo site flickr no dia 04.07.2009
Fig. 93: Comentários
97
, Tags
98
e Informações Adicionais referentes à foto acima.
97
Tradução dos comentários: “Ótimo : )”, “Encandador”, “oh! Vanessa!! Que lindo é isso!!!!”, “Adoro os tons!”,
“Cheio de emoções...”, “Muito bom!”, “Lindo!!”, “Muito sensual...muito bem feito!”
98
Tradução das tags: “Vanessa Ho”, “Vaneska Thomz”, “Autorretrato”, “Arte Livre”
CAPÍTULO 4
138
CONTEMPLAÇÃO E DIÁLOGO NA ERA DA INTERNET
Fig. 94: Álbuns e grupos
99
dos quais a foto faz parte
E assim é a fotografia. Não há uma leitura única de uma imagem. Nem mesmo o
fotógrafo que a concebeu atribuiu a ela um significado único. Muitas vezes ela é fruto de
uma junção de fatores, de sentimentos, de experiências e relações que o fotógrafo faz
inconscientemente e que exigem um esforço próprio de decifração de sua fotografia para
compreendê-la. Por isso que uma foto é, frequentemente, “classificada” com várias tags.
No entanto, o que percebemos nos comentários do flickr, em geral e nesse exemplo
acima, é uma postura completamente contrária, voltada à leitura única e à incapacidade de
perceber outras dimensões da imagem além da icônica. “Encantador”, “Adoro os tons”,
“Cheio de emoções”, são comentários evasivos e superficiais que preferem se manter na
segurança de um elogio ou no destaque de algum aspecto físico da foto por não
conseguirem se aprofundar em seu real significado, complexo e subjetivo.
Ao analisarmos as fotos da usuária Rebekka no flickr, podemos encontrar, em
uma delas, um raro exemplo de um comentário
100
um pouco mais questionador, entre os
153 realizados, sobre a foto abaixo. O comentário diz:
“Hm. Mãos amarradas (confinamento e desamparo), uma sugestão sexual, cabeça
pendurada, com vergonha ou amargura, árvores quase sem vida sugerindo pistas
de um tema de “terra devastada” como T.S. Elliot…e ainda algumas roupas
jogadas na cena… Eu sinto um comentário sobre as expectativas que são
99
Tradução dos grupos: “Arte Livre – apenas fotos convidadas”, “Apenas imagine – convite do administrador”, “Luz
e sombra”, “The Moulin Rouge”, “Um mundo cinemático (apenas fotos convidadas pelo administrador)”, “O ponto”.
100
Foto postada no dia 18 de maio de 2009. Comentário postado dias depois. Página acessada no dia 25.07.2009 -
http://www.flickr.com/photos/rebba/3541527467/in/set-72057594112345061/
CAPÍTULO 4
139
CONTEMPLAÇÃO E DIÁLOGO NA ERA DA INTERNET
colocadas sobre as mulheres e as vidas de servidão que esperam que elas vivam?
Feito lindamente! Os tons são realmente fantásticos, acima mesmo do seu próprio
padrão.”
101
(usuário Dave Ward)
Fig. 95: Sem Título. Foto de Rebekka Guleifsdóttir
102
Fig. 96: Álbuns, grupos e tags
103
dos quais
a foto faz parte
101
Hm. Tied hands (constraint and helplessness), a hint of sex, head hanging in shame or sorrow, bare lifeless trees
suggesting hints of the "wasteland" theme like T.S. Elliot... and even some laundry thrown in... I sense a comment on
the expectations that are placed on women and the lives of servitude they are expected to live? Beautifully done. The
tones here are really fantastic, even above your usual standards.”
102
(http://www.flickr.com/photos/rebba/3541527467/in/set-72057594112345061/) acessada em 25.07.2009.
103
Tradução dos grupos: “Minhas favoritas pessoais”, “Clube dos 100 – todas as fotos devem ser favoritadas pelo
menos 100 vezes”, “1000 visualizações + favoritadas 100 vezes”, “Grande Galeria de Imagens favoritadas 100 vezes”,
“Fotógrafos Islandeses”.
Tradução das tags: “Surreal”. “Auto-retrato com ávores mortas”.
CAPÍTULO 4
140
CONTEMPLAÇÃO E DIÁLOGO NA ERA DA INTERNET
Fig. 97: Comentários referentes à foto acima.
Diante do comentário, a fotógrafa não dá nenhuma resposta. Mais à frente, o
mesmo usuário reaparece, quase se desculpando pelo comentário anterior, como se
estivesse infringido alguma regra da comunidade: “Se minha interpretação está certa,
talvez eu não devesse tê-la jogado assim! Heh! Fique à vontade para apagá-la se ela
revelou demais.”
105
A fotógrafa responde a outros comentários, mas não a esse. Como revelado pela
própria fotógrafa, ela falaria mais à respeito dessa foto em seu blog pessoal
106
. No
entanto, ao visitar o blog, encontramos apenas uma descrição de todo o caminho
percorrido com os galhos de árvores na procura por um lugar ideial para sua foto, nada
mais. Voltando ao flickr, vemos que a fotógrafa insere sua foto apenas em grupos que
105
Página acessada no dia 25.07.2009.
http://www.flickr.com/photos/rebba/3541527467/in/set-72057594112345061/
106
http://rebekkagudleifs.com/blog/2009/07/ - acessado em 25.07.09.
CAPÍTULO 4
141
CONTEMPLAÇÃO E DIÁLOGO NA ERA DA INTERNET
enaltecem a quantidade de visualizações e ‘favoritações’ de suas fotos. As classificações
por ela atribuídas, se restringem a um estilo – ‘surreal’ – e à descrição literal da foto –
‘autorretrato com árvores mortas’.
Algo instigou o fotógrafo Dave Ward a analisar aquela foto. E, certamente, algo
também instigou a fotógrafa a realizá-la. Quando vemos a tentativa de estabelecimento de
um diálogo genuíno por parte de um membro da comunidade, logo em seguida, vemos
que esse membro se desculpa por sua ‘ousadia’. Talvez seu comentário tenha realmente
revelado muito da fotógrafa que, aparentemente ou se sentiu ofendida ou indiferente – ou
talvez nem mesmo tivesse ainda pensado sobre o significado da sua foto. No entanto, esse
é um exemplo do que poderia ser o uso de tal potencial espaço virtual de discussão como
é o caso do flickr. Se não quisesse se expor, a fotógrafa não deveria fazer parte da
comunidade. O que é bastante contraditório, pois vemos que, de acordo com a busca em
classificar e publicar sua imagem em grupos, a fotógrafa demonstra grande preocupação
em expô-la e, claro, expor a si mesma, já que seu trabalho é quase em sua totalidade
baseado em autorretratos.
Dentro da dinâmica das comunidades virtuais, todo usuário está exposto aos
comentários dos demais, seja qual for o teor desse comentário. Afinal, essa é uma
comunidade estruturada como uma rede social em que o estabelecimento de contatos e a
comunicação entre usuários têm um papel importante para seu próprio funcionamento.
Nesse ambiente, a dinâmica dos laços sociais acabou por intensificar as funções
sociais da fotografia, que a acompanham desde o seu surgimento e se transpuseram para
as comunidades virtuais, onde ganharam uma dimensão global jamais vista até então.
Assim, dentro desse contexto, e também devido à grande popularização da fotografia nas
últimas décadas, muitos fotógrafos se isentaram de uma preocupação genuinamente
estética
107
ao praticá-la, o que acarretou no desenvolvimento de uma “estética popular”,
como a denomina Bourdieu.
É nesse campo das funções sociais da fotografia que se encontra o diálogo
fotógrafo-fotógrafo na rede, e não nas preocupações estéticas. Segundo Bourdieu, ao se
conformar com a estética de determinado grupo, o fotógrafo tenta refutar uma prática
vulgar (1965, p.101). Ele busca legitimar a sua produção e fortalecer o sentimento de
pertencimento ao grupo – que, no caso do flickr, pode ser tanto a comunidade geral
quanto um grupo específico. Lembremo-nos do que o próprio autor falou sobre o olhar
107
Por “genuinamente estética” entendemos aqui uma estética tradicional, ligada ao belo, à harmonia e à ordem, como
classificava Nietzsche a estética apolínea.
CAPÍTULO 4
142
CONTEMPLAÇÃO E DIÁLOGO NA ERA DA INTERNET
sociológico a respeito da estética fotográfica, que a entende como fruto de uma
experiência vivida ou de um sentimento de beleza qualquer. Carl Georg Heise fortalece
essa opinião ao dizer que: “[…] as coisas não são necessariamente feias ou belas. Um
olho tanto exercitado é capaz de descobrir a beleza oculta […]. Não há nada que esteja
desprovido totalmente de beleza”
108
(HEISE, 1928 in FONTCUBERTA, 2003, p.141).
Essa postura ganha força nas comunidades virtuais, onde se percebe uma fotografia
voltada ao cotidiano, em que situações privadas, particulares e aparentemente sem sentido
ganham destaque e importância.
Ainda sobre essa “estética popular”, segundo Bourdieu:
[…] para as classes populares e médias, a estética que se exprime tão bem na
prática fotográfica como nos julgamentos sobre a fotografia aparece como uma
dimensão do ethos, de modo que a análise estética de grande massa das obras
fotográficas pode legitimamente se reduzir, sem ser reducionista, à sociologia dos
grupos que as produzem, das funções que lhes atribuem e os significados que lhes
conferem, explicitamente e, sobretudo, implicitamente.
109
(1965, p.138)
Vemos, portanto, que no caso das comunidades virtuais, a preocupação estética se
volta principalmente ao aspecto social. No entanto, trata-se de uma estética socializante e
não social, ligada ao estabelecimento de laços sociais e que reflete o cerne do diálogo que
se estabelece entre os fotógrafos da rede.
Bauman, ao analisar a sociedade contemporânea, afirma que as “[...] sensações
são, pela própria natureza, tão frágeis e efêmeras, tão voláteis quanto as situações que
desencadearam. A estratégia de carpe diem é uma reação a um mundo esvaziado de
valores que finge ser duradouro.” (2005, p.59). Fontcuberta completa esse pensamento ao
afirmar que os fotógrafos não discutem sobre seus valores porque, na verdade, não os têm
(2003, p.16). Essa situação se reflete tanto na qualidade quanto na quantidade de
fotografias que vemos na rede.
Como afirma Susan Sontag, tudo hoje existe para terminar numa foto.
Colecionamos nossas experiências através de fotografias. Elas são a prova de que estamos
vivos e de que aproveitamos a vida. São provas para nós mesmos e para os outros, pois
108
“[...] las cosas no son necesariamente feas o bellas. Un ojo un tanto ejercitado es capaz de descubrir la belleza oculta,
[...]. No hay nada que esté desprovisto totalmente de belleza.”
109
“[…]pour les classes populaires et moyennes, l’esthétique qui s’exprime aussi bien dans la pratique photographique
que dans les jugements sur la photographie apparaît comme dimension de l’ethos, en sorte que l’analyse esthétique de
la grande masse des oeuvres photographiques peut légitimement se réduire, sans être réductrice, à la sociologie des
groupes qui la produisent, des fonctions qu’ils leur assignent et des significations qu’ils leur confèrent, explicitement et
surtout implicitement.”
CAPÍTULO 4
143
CONTEMPLAÇÃO E DIÁLOGO NA ERA DA INTERNET
aproveitar a vida é hoje algo para poucos e que confere determinado status a quem o pode
fazer. É, certamente, uma característica que abre portas para participação em grupos
sociais. Ainda segundo afirma Bauman, o mundo finge ser mais duradouro do que é.
Talvez essa necessidade de sentir o mundo como um lugar mais seguro e estável explique
essa estética exagerada (o flickr style) mais real que o real, tão apreciada na comunidade
flickr. Ali os defeitos do mundo são corrigidos no Photoshop
110
e o mundo ganha uma
atmosfera de sonho e fantasia.
Não apenas as sensações são frágeis e efêmeras. Bauman também fala sobre a
efemeridade e a fragilidade das relações:
[…] quem sabe o recurso de multiplicar e acumular relacionamentos não vai
tornar o terreno menos traiçoeiro? Graças a Deus você pode acumulá-los –
justamente porque eles são, todos eles, frágeis e descartáveis! E assim buscamos
a salvação nas “redes”, cuja vantagem sobre os laços fortes e apertados é
tornarem igualmente fácil conectar-se e desconectar-se. (BAUMAN, 2005, pp.75,
76)
Nesse tipo de relacionamento virtual, o envio e recepção de mensagens é
fragmentado, não exige simultaneidade e continuidade, o que impede, segundo Bauman, e
segundo também acreditamos, o desenvolvimento de um diálogo genuíno – vide o caso
do comentário da imagem da fotógrafa Rebekka, mostrado anteriormente. Conforme diz o
autor, “[...] as identidades são para exibir, não para armazenar e manter” (2005, p.96) e
essa postura se reflete na produção fotográfica da comunidade, porque é através das
fotografias que se estabelecem as identidades nesse ambiente.
Percebemos que o flickr tem potencial para ser uma grande ferramenta
fomentadora do diálogo em torno da fotografia, sem deixar de se voltar ao
estabelecimento dos laços sociais na rede, o que também tem sua importância na
dinâmica social atual. No entanto, se a preocupação fotográfica se limitar ao
exibicionismo narcisista, como alertamos anteriormente, corremos o risco de tomar um
caminho que leve a linguagem fotográfica a um uso individualista e mesquinho.
110
Software popular de edição de imagens de uso tanto doméstico quanto comercial
CAPÍTULO 4
144
CONTEMPLAÇÃO
E
DIÁLOGO
NA
ERA
DA
INTERNET
4.1.2. O diálogo aparelho-fotógrafo
Voltemos nossa atenção agora para outra forma de diálogo: aquele entre o
fotógrafo e seu aparelho. Flusser alerta para essa relação, dizendo que somos cada vez
mais “[…] operadores de rótulos, apertadores de botões, ‘funcionários’ das máquinas,
lidamos com situações programadas sem nos darmos conta delas […]” (1998, p.13). Ao
olharmos as tags mais usadas no flickr percebemos que duas marcas de câmeras
fotográficas
111
se encontram ali. O que leva tantos fotógrafos a classificarem suas
imagens de acordo com a câmera fotográfica usada? Ao olhar as fotos classificadas com
as categorias das marcas das câmeras, encontramos, principalmente, imagens do
cotidiano: famílias, viagens, amigos, festas. As fotos também estão classificadas sob
outras categorias, mas o que chama atenção é que essas categorias das câmeras,
especificamente, estejam entre as mais populares.
Ao relacionar-se com o mundo ao redor e com o seu próprio cotidiano mediado
por um aparelho e deixando que esse interprete o mundo visível por ele, o fotógrafo age
como alguém que se deslumbra com os avanços tecnológicos e se esquece que cada
aparelho tem uma capacidade limitada de possibilidades: “O seu intresse está concentrado
no aparelho e o mundo lá fora só interessa em função do programa. Não está empenhado
em mudar ou modificar o mundo, mas em obrigar o aparelho a revelar suas
potencialidades” (FLUSSER, 1998, p.43).
Como comentamos anteriormente, usando as palavras de Flusser, da mesma forma
que se acredita que quem sabe escrever sabe decifrar textos, também se acredita que
quem sabe fotografar sabe decifrar fotografias, o que, em ambos os casos, não é sempre
verdade. E o fotógrafo que não saber decifrar imagens torna-se escravo do aparelho. Sua
fotografia não representa o seu recorte sobre o mundo visível, essa não parece ser a sua
preocupação. A fotografia se encontra, nas comunidades virtuais, num mecanismo de
inserção em grupos e padrões estéticos admirados pela comunidade e que intensifique
seus laços sociais, ajudando a fortalecer as características que o usuário escolheu para sua
identidade.
A reprodução automática e pautada pelo deslumbramento em relação à tecnologia,
por sua vez, leva a um excesso de imagens como já apontamos aqui. A repetição
exagerada acaba por levar à estereotipia, aos clichês e à homogeneidade. Além do diálogo
111
Nikon (6.928.770 fotos) e Canon (6.551.727 fotos) – dados acessados no dia 24.07.09.
CAPÍTULO 4
145
CONTEMPLAÇÃO E DIÁLOGO NA ERA DA INTERNET
com a câmera, o fotógrafo também se relaciona hoje com outro aparelho que é o software
de edição. Se não houver o diálogo entre o fotógrafo e o software, aquele corre o risco de
ceder aos estereótipos estéticos (como é o caso, por exemplo, da estética do flickr
apontada pelo The New York Times Magazine), submetendo-se a uma pressão social da
qual muitas vezes não se dá conta, e que está implícita nos mecanismos identitários de
associação a grupos ou nos mecanismos dos meios de comunicação - sempre atentos às
estéticas-padrão que estabelecem os valores de identificação com os grupos. Arlindo
Machado destaca que:
A multiplicação, à nossa volta, de modelos pré-fabricados, generalizados pelo
software comercial, conduz a uma impressionante padronização das soluções, a
uma uniformidade generalizada, quando não a uma absoluta impessoalidade,
conforme se pode constatar em encontros internacionais tipo Siggraph, nos quais
se tem a impressão de que tudo o que se exibe tenha sido feito pelo mesmo
designer ou pela mesma empresa. (MACHADO, 2001, p. 41)
A subversão do aparelho, como coloca Flusser, é, portanto, de extrema
importância. Ela consiste em dominar as possibilidades da máquina, em saber jogar,
inclusive com os erros do aparelho, como aponta Arlindo Machado. Vemos que o diálogo
entre a máquina e o fotógrafo ainda é incipiente. Mesmo entre os seguidores da
lomografia, tão presentes no flickr, e que acreditam realizar uma fotografia experimental.
Será mesmo experimental a foto que realizam? Os resultados são diferentes do
tradicional, mas a máquina já vem programada para obtê-los: a saturação da cor , o efeito
fisheye, os vazamentos de luz ou ainda fotos com predominância de determinadas cores.
Até mesmo a dupla exposição, que poderia ser uma escolha do fotógrafo, já é divulgada
como uma funcionalidade da câmera. Tudo isso já faz parte de seu marketing. A câmera é
que acaba por ditar como a realidade deve ser interpretada e não o fotógrafo que é
estimulado a fazer escolhas que atendam a seus objetivos.
Flusser cita, como alternativa à prática automática da fotografia, os fotógrafos
experimentais que “[...] tentam […] obrigar o aparelho a produzir uma imagem
informativa que não está no seu programa.” (1998, p.96). Apenas quando temos o
controle da máquina podemos participar da construção de uma Filosofia da Fotografia,
que se faz tão necessária, segundo o autor, “[…] porque é uma reflexão sobre as
possibilidades de se viver livremente num mundo programado por aparelhos. Uma
reflexão sobre o significado que o homem pode dar à vida, onde tudo é um acaso
estúpido, rumo à morte absurda.” (1998, p.96).
CAPÍTULO 4
146
CONTEMPLAÇÃO E DIÁLOGO NA ERA DA INTERNET
Arlindo Machado, por exemplo, diz que ainda estamos muito aquém das
possibilidades proporcionadas pelos aparelhos digitais e virtuais. Ele lembra a questão da
interatividade, caso em que “[…] a experiência estética deixa de ser exclusivamente a
manifestação de um saber ou de um sentimento e se assume como um universo pleno de
movimentos, onde esse sujeito age ao mesmo tempo em que se transforma.”
(MACHADO, 2001, p.102).
Outra questão levantada pelo autor e que pode ainda desenvolver o diálogo
fotógrafo-aparelho (seja o aparelho, a câmera fotográfica, ou os softwares de edição ou
até mesmo as ferramentas de sites e comunidades virtuais), é a multimidiática, ou da
hipermídia, como coloca. Com as possibilidades da hipermídia podemos fundir em um
único meio todos os outros meios, e invocar todos os sentidos, exprimindo situações
complexas que antes eram impossíveis a um sistema de escritura sequencial e linear.
Nesse sentido, um aplicativo de hipermídia jamais exprime uma determinada
linha de raciocínio. Ele se abre para a experiência plena do pensamento e da
imaginação, como um processo vivo que se modifica sem cessar, que se adapta
em função do contexto que, enfim, joga com os dados disponíveis. (MACHADO,
2001, p. 109)
A comunidade flickr, por exemplo, já disponibiliza aos usuários a possibilidade de
inserirem vídeos. Por meio do uso de softwares específicos, muitos usuários têm montado
arquivos multimídia que se utilizam dos sentidos auditivo e visual, adicionando música
ou algum áudio específico a uma sequência determinada de imagens - de acordo com suas
intenções -, ou inserindo vídeos propriamente ditos. As tags de classificação mais
comuns
112
dos vídeos postados na comunidade são: ‘bebê’, ‘gato’, ‘cachorro’, ‘família’,
‘Japão’, ‘filme’, ‘música’, ‘água’ e ‘vídeo’. No entanto, como vemos, essas tags revelam
que os assuntos mais comuns estão ligados ao lazer, à vida afetiva, aos amigos, à família,
entre outros, o que denota um uso da imagem não tão preocupado em interpretar a
realidade visível que os cerca, questionando-a ou buscando contrapô-la com outras
realidades para além de sua pequena “aldeia”.
Apesar dessa funcionalidade de vídeo, o foco da comunidade flickr, é mesmo a
fotografia apresentada de forma não multimidiática. Os grupos voltados especificamente
para vídeo têm menos membros que os de fotografia. Vemos, portanto, que existe uma
possibilidade de diálogo e produção fotográfica relacionada a outros meios mas ainda não
tão explorada na comunidade.
112
Dado obtido no site http://www.flickr.com/explore/video/ no dia 26.07.09.
CAPÍTULO 4
147
CONTEMPLAÇÃO E DIÁLOGO NA ERA DA INTERNET
Fig. 98: Tags mais populares dos vídeos postados no flickr - http://www.flickr.com/explore/video/,
acessado no dia 26.07.09.
Sobre as situações complexas citadas anteriormente, podemos dizer que elas são
um reflexo da sociedade contemporânea. Se as identidades são consideradas fluidas,
assim também acontece com a cultura e a arte. Priscila Arantes ressalta que : “A atividade
perceptiva e sinestésica começou a ser valorizada como forma de conhecimento do
mundo.” (2005, p.118). E dentro desse contexto ela defende uma estética digital que seja
também, por sua vez, fluida e interativa.
[…] é a partir da interface com o interator que a obra pode se manifestar. À
semelhança da poiésis aristotélica, que se refere à maneira como a arte, por meio
da ação do artista, “imita”, o processo criativo da natureza, a interpoiésis (isto é,
intercriação/interação), como a denomino, refere-se à maneira como as artes em
mídias digitais engendram seus processos criativos a partir de seus fluxos
informacionais. (ARANTES, 2005, p.171)
Vemos, portanto, que as mídias digitais e as possibilidades tanto do digital quanto
do virtual podem representar um grande avanço para as artes de um modo geral e para a
linguagem fotográfica – que é aqui nosso objeto de investigação. No entanto, esse
relacionamento entre o manipulador e a máquina ainda deve evoluir, pois as
possibilidades de interação não são inerentes à natureza digital dessa relação, mas sim
decorrentes dos usos que os manipuladores fazem dela. Por isso, apenas por meio do
diálogo é que se conseguirá ultrapassar as restrições impostas pelo aparelho e buscar uma
estética plural, fluida e interativa – como propõe Priscila Arantes -, condizente com as
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dinâmicas de nossa sociedade e que seja, efetivamente, fonte geradora de conhecimento e
não apenas repetição de estereótipos aos quais já estamos habituados.
4.1.3. Os diálogos entre o fotógrafo e o mundo visível, entre o fotógrafo e suas
imagens internas e entre o espectador e a fotografia
Para que o diálogo entre o fotógrafo e o mundo visível seja realmente diálogo, ele
pressupõe, também, o diálogo entre o fotógrafo e suas imagens internas, daí a necessidade
de falarmos sobre eles em conjunto. “[...] fotografar é um ato pessoal e intransferível,
resultante da imprescindível interação entre o fotógrafo e o conteúdo da cena abordada.”
(GURAN, 1999, p.18). Somente a partir do nosso próprio imaginário, povoado pelas
nossas experiências individuais, é que podemos interpretar a realidade que nos cerca,
buscando compreendê-la. O fotógrafo funciona como uma “antena do universo”, como
diz Luis Humberto.
Na verdade, a produção de cada um de nós é decorrente de um universo de
referências – todas bem determinadas – que se recombinam de modo
inconsciente, temperadas pela decantação de nossas vivências e pelos desejos e
expectativas formados em nosso espírito, mutável o tempo todo pelas
circunstâncias que os envolvem. (HUMBERTO, 2000, p.99)
Por isso é que não podemos falar em uma única realidade. A realidade é
fragmentada pelos modos de ver. “Sua natureza fragmentária (da fotografia) permite o
desvendamento de microrrealidades, em uma reordenação do real a partir dos nossos
modos particulares de ver e sentir” (HUMBERTO, 2000, p.100). Susan Sontag defende
que a fotografia é justamente esse ‘modo de ver’ e não a visão em si. E como os modos
de ver estão ligados às percepções subjetivas do fotógrafo, temos a sensação de que “[…]
a realidade é ilimitada e o conhecimento não tem fim. […] A câmera define para nós o
que permitimos que seja ‘real’- e empurra continuamente para adiante as fronteiras do
real.” (SONTAG, 2008, pp.137, 138).
Muitas vezes, antes de apertar o botão da máquina, o fotógrafo já tem a imagem
na sua cabeça. Essa imagem se forma em sua mente porque foi estimulada por algo que
lhe chamou atenção. E nesse momento é que se dá o diálogo do fotógrafo com o mundo
visível, que só pode ser compreendido no diálogo com suas imagens internas, fruto de seu
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imaginário e de suas experiências. O que se dá aí é uma experiência estética. Naquele
instante (mais à frente definiremos melhor esse instante), que cronologicamente pode ter
sido ínfimo, algum aspecto do mundo visível revelou-se de uma nova maneira para
aquele fotógrafo, num embate entre o visível e seu imaginário interior. Esse instante é,
portanto, mais poético do que cronológico. Ele não tem duração, pois a duração pertence
à dimensão horizontal e, portanto, cronológica. Esse instante é profundo, por isso é
desvinculado do tempo tradicional e ligado à dimensão vertical. O poeta argentino
Roberto Juarroz, relaciona a sua poesia a esse tempo ‘atemporal’. Chama-a de “Poesia
Vertical” e em seus poemas nos dá um vislumbre do que é essa dimensão.
Um tempo presente pode ser mais presente que outro tempo presente, como um
agora com mais tempo. Não obstante, todo presente é uma fuga. Teria o tempo
formas secretas de se interromper ou de se deter, com atos de uma duração
distinta? A poesia crê perceber esses instantes heréticos. Talvez ali resida parte de
seu destino maior: reconhecer essas pequenas ilhas de presente que caem como
uma lúcida rajada no centro do ser.
113
(JUARROZ, 2005, p.467)
Segundo Heidegger, a essência
114
de algo se encontra em sua representação: “O
ser do ente é procurado e encontrado no estar-representado [Vorgestelltheit] do ente.”
(HEIDEGGER, 2002, p.113). E representar, para o filósofo, é um “[...] pôr diante de si e
para si” (2002, p.115), é conceber o mundo como imagem. É essa essência que
procuramos. Não aquela que busca uma verdade única, que reduz o mundo à apenas uma
possibilidade de interpretação, mas a essência que se apresenta na imagem do mundo e,
portanto, compreendida a partir de uma forma subjetiva e individual, de acordo com a
percepção de quem está aberto a enxergá-la.
Percebemos, então, que quando existe um diálogo do fotógrafo com o mundo
visível, que acontece acompanhado de um diálogo seu com suas imagens mentais, o
fotógrafo sente a necessidade de apreender aquele instante para, num momento posterior
de contemplação, desvelá-lo e tentar compreendê-lo. Susan Sontag afirma que “As fotos
retratam realidades que já existem, embora só a câmera possa desvelá-las.” (2004, p.138).
E para desvelá-las, é preciso capturá-las para sua posterior contemplação e reflexão.
Apenas a imagem permite essa contemplação posterior.
113
“Un tiempo presente puede ser más presente que otro tiempo presente, como um ahora con más tiempo. Sin
embargo, todo presente es una fuga. ¿Tendrá el tiempo formas secretas de interrumpirse o detenerse, con atos de una
duración distinta? La poesia cree percibir esos instantes heréticos. Tal vez allí resida parte de su destino mayor:
reconocer esos islotes de presente que caen como una lúcida plomada en el centro del ser.”
114
Entendemos que o que chamamos aqui de ‘essência’refere-se ao ‘ser’de Heidegger. A aparência, ou seja, o que se
apresenta à nossa percepção no mundo visível, é o que Heidegger chama de ‘ente’.
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As imagens oferecem aos seus receptores um espaço interpretativo: são símbolos
“conotativos”. […] O vaguear do olhar é circular: tende a voltar para contemplar
elementos já vistos. Assim, o “antes” torna-se “depois”, e o “depois” torna-se
“antes”. […] Ao circular pela superfície, o olhar tende a voltar sempre para os
elementos preferenciais. Tais elementos passam a ser centrais, portadores de
significado. Deste modo, o olhar vai estabelecendo relações significativas. O tempo
que circula e estabelece relações siginificativas é muito específico: tempo de magia.
[…]. No tempo da magia, um elemento explica o outro, e este explica o primeiro. O
significado das imagens é o contexto mágico das revelações reversíveis. (FLUSSER,
1998, p.28)
Para Heidegger, a expressão ‘temos a imagem de algo’ significa que “[…] a
própria coisa está diante de nós, tal como está no seu estado para nós.” (2002, p.112). O
filósofo dá continuidade ao seu pensamento, ao dizer que, quando o mundo se torna
imagem, a posição do homem concebe-se como mundividência. E ele alerta para o
equívoco de que a palavra ‘mundividência’ possa sugerir um contemplar passivo do
mundo pelo sujeito, o que não é a intenção do filósofo nem a nossa, quando defendemos a
necessidade do diálogo na prática fotográfica. Ao contemplarmos o mundo passivamente,
assumimos a posição de Narciso e não de Alice, como já afirmamos anteriormente. Para
Heidegger, ‘mundividência’ significa ‘intuição de vida’, o que quer dizer que:
“[…] o homem trouxe a sua vida, enquanto subjectum, para a primazia do centro
de referência. Tal significa que o ente só vale como algo que é, enquanto e na
medida em que está envolvido e remetido para esta vida, ou seja, na medida em
que é vivenciado [er-lebt] e se torna vivência [Erlebnis].” (HEIDEGGER, 2002.
p.117)
Portanto, o homem só consegue contemplar ativamente o mundo visível através
de imagens quando dele faz parte e o vivencia. A experiência do mundo, por sua vez,
pressupõe o fator estético, que desperta no homem - enquanto sujeito que contempla e
enquanto objeto que faz parte do mundo contemplado - a sensibilidade necessária para
reconhecer o aceno da essência do mundo na realidade aparente. Conforme afirma Susan
Sontag, a fotografia converte o mundo num objeto de apreciação estética (2004, p.126). E
é apenas esteticamente que a contemplação se realiza - e, consequentemente, também é
esteticamente que se realizam o diálogo entre o fotógrafo e o mundo visível e o diálogo
entre o fotógrafo e suas imagens mentais. Arlindo Machado, cita o autor Ronaldo Entler
ao dizer que essa experiência estética da qual falamos “[...] deixa de ser exclusivamente a
manifestação de um saber ou um sentimento e se assume como um universo pleno de
movimentos, onde esse sujeito age ao mesmo tempo em que se transforma.” (ENTLER,
2000 apud MACHADO, 2001, p. 102)
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Essa dinâmica influencia a forma como a fotografia decorrente desse diálogo será
vista, interpretada e contemplada pelo espectador num momento posterior. Minor White,
em seu artigo O olho e a mente da câmera
115
, diz que “Sentir e fotografar aquilo que nos
faz vibrar não assegura que outros sentirão o mesmo.”
116
(WHITE, 1952 in
FONTCUBERTA, 2003, p.242). E estaríamos nos contradizendo se acreditássemos no
contrário. Assim como se dá com o fotógrafo, que interpreta a realidade de acordo com a
forma em que se deu o encontro dessa com o seu imaginário e suas experiências, também
o espectador, ao contemplar uma fotografia, será atingido por ela conforme o seu embate
com as imagens mentais e as vivências do contemplador. Ele poderá ressignificar aquela
imagem, vendo outro lado da mesma “realidade” que ali está impressa no papel
117
. Para
Minor White, “[…] só na imagem mental existe a possibilidade de que ocorra uma função
metafórica.” (1963, in FONTCUBERTA, 2003, p.250).
A interpretação da fotografia pelo espectador é, portanto, subjetiva e metafórica -
no sentido em que ela é compreendida e ganha significado próprio através de associações
e comparações daquilo que é visível em sua superfície com as imagens internas
resultantes das experiências individuais de quem a vê. E isso só é possível porque o
fotógrafo reteve um determinado instante dando-lhe a oportunidade de ser contemplado
num segundo momento. Com a fotografia em mãos, o espectador pode sentir, pensar e
criar novas interpretações e significados para o que antes era aparentemente indiscutível.
Ao apontar o que de novo e diferente se escondia na paisagem visível, o fotógrafo muitas
vezes não tem, como preocupação principal, reter o tempo, que parece se esvair sem
controle, mas apenas recriar uma realidade específica, a partir de algo corriqueiro que ele
resgata de seu cotidiano, conferindo-lhe novo significado.
A fotografia, portanto, revela ao espectador um mundo que só faz sentido para ele
de acordo com a sua vivência; de acordo com os mecanismos de projeção e identificação
que partem do espectador em relação àquela imagem que se coloca a sua frente. Portanto,
a interpretação de uma imagem diz mais sobre o próprio espectador do que sobre a
imagem. Nesse caso, a fotografia deixa de ser um espelho real, como se pensava na época
115
El ojo y la mente de la câmera (1952) in FONTCUBERTA, 2003.
116
“Sentir y fotografiar aquello que nos hace vibrar no asegura que otros sentirán lo mismo.”
117
Segundo Norval Baitelo: “O tempo da imagem registrada sobre materiais permanentes permite o tempo lento da
contemplação. [...] O tempo lento é o tempo da decifração.” (BAITELLO, 2005, p.33)
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de sua descoberta e se transforma em um “[…] espelho de alguma parte de nós
mesmos.”
118
(WHITE, 1963 in FONTCUBERTA, 2003, p. 253)
Percebemos, então, a importância desses diálogos na fotografia (fotógrafo-mundo
visível, fotógrafo-imagens internas e espectador-fotografia) para concebê-la como fonte
de conhecimento do mundo e de si mesmo. Segundo Luis Humberto, “A fotografia
transcende seu valor como registro. Composta de visões de vida, ela revela nossos
mundos íntimos em suas belezas e perversões. Põe à mostra nossa sensibilidade ou
rudeza, revela nossos mistérios e segredos, zelosamente acobertados.” (2000, p.101)
No entanto, esses diálogos só se concretizam enquanto forma de conhecimento se
acolherem, no cerne de sua dinâmica, a contemplação. Esse é o diferencial entre
adotarmos uma postura individualista ou uma postura voltada à comunidade; entre
escolhermos o caminho de Narciso ou o de Alice.
A sociedade de consumo em que vivemos hoje nos impõe um ritmo de vida fabril,
que Guy Debord chama de tempo pseudocíclico: “O tempo pseudocíclico não só se baseia
nos traços naturais do tempo cíclico mas também cria novas combinações homólogas: o
dia e a noite, o trabalho e o descanso semanais, a volta dos períodos de férias.” (1997,
p.104). O autor completa seu pensamento ao dizer que o tempo pseudocíclico consumível
é o tempo espetacular, tempo em que “[...] a realidade do tempo foi substituída pela
publicidade do tempo.” (1997, p.106).
Esse tempo espetacular não privilegia a contemplação, pois a contemplação requer
um tempo desvinculado do consumo e voltado à reflexão. E a reflexão hoje é tida como
perda de tempo. Sem a contemplação, a linguagem fotográfica acaba por cair numa
produção frenética e sem sentido, como a que vemos hoje no flickr, por exemplo.
Segundo Susan Sontag:
A razão final para a necessidade de fotografar tudo repousa na própria lógica do
consumo em si. Consumir significa queimar, esgotar – e, portanto, ter que se
reabastecer. À medida que produzimos imagens e as consumimos, precisamos de
ainda mais imagens; e mais ainda. (SONTAG, 2004, p.195)
A reflexão e a contemplação requerem a vivência de um tempo que não é
regulado cronologicamente, mas vivido na profundidade do instante poético. Enquanto
formos vítimas não questionadoras da publicidade do tempo, ou seja, da forma imposta
pelos meios de comunicação de como devemos vivenciar e partilhar esse tempo, nosso
118
“[...] espejo de alguna parte de nosotros mismos.”
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relacionamento com as imagens e, consequentemente, com o mundo, se dará, apenas, por
meio das dinâmicas do consumo.
Os meios de comunicação, por exemplo, grandes mediadores entre as imagens e
os espectadores, não nos dão o tempo de leitura dessas imagens. E para não comprometer
seu entendimento, acabam optando pelas imagens clichês que não exigem um esforço de
contemplação e reflexão - são consumidas rapidamente, devoradas sem interpretação. E
nós, enquanto espectadores e produtores de imagens, acabamos por sustentar tudo isso
para não ficarmos de fora da engrenagem do tempo espetacular e das dinâmicas de
consumo, porque o consumo é um dos elementos que mais determina os mecanismos de
identificação com valores e grupos sociais em nossa sociedade.
E assim, sem a contemplação, corremos o risco de vivenciar o mundo e o
relacionamento com nós mesmos e com os outros de forma voyeurística, iludidos de que
esta é a única forma de reter as fugazes “experiências” de vida. No fundo, não vivemos a
vida e, na tentativa de retê-la, tentamos consumi-la numa profusão absurda de imagens
produzidas minuto a minuto. Susan Sontag nos revela que essa relação voyeurística com
o mundo acaba por nivelar o significado de todos os acontecimentos. Se voltarmos ao
pensamento de Heidegger, essa situação nos condena ao ente, afastando-nos do ser. Para
ser temos que participar, temos que estar dentro do mundo e entendê-lo contemplando-o
como imagem, percebendo a nós mesmos como sujeitos que observam e como objetos
que são observados.
Sontag ressalta que nós consumimos imagens num ritmo cada vez mais rápido e
alerta: “As câmeras são o antídoto e a doença, um meio de apropriar-se da realidade e um
meio de torná-la obsoleta.” (2004, p.196). Portanto, temos na câmera uma possibilidade
de ampliar nossos conhecimentos e usá-la pautando-nos por uma prática dialógica que
valorize a contemplação. Ou temos a possibilidade de nos afundarmos cada vez mais num
número maior de imagens não questionadoras do mundo, diminuindo suas possíveis
visibilidades e, consequentemente, nossas próprias experiências de vida.
As ferramentas das comunidades virtuais, da mesma forma que a câmera, podem
potencializar os usos da fotografia, tanto para um caminho quanto para o outro. Luis
Humberto, por exemplo, vê com otimismo as novas tecnologias. Segundo ele, elas podem
ser “[…] novos intermediários entre a sensibilidade do homem e sua possibilidade de
criação.” (2000, p.19). Como afirmamos anteriormente, a linguagem fotográfica na
internet hoje se encontra em transformação. Devemos acompanhar de perto como se dará
a sua evolução para entender o caminho escolhido pelos usuários da rede. No entanto, já
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temos aqui vários direcionamentos que podem nos levar ao enriquecimento dessa
linguagem e que se ligam, todos eles, ao conceito de contemplação embasado no instante
poético bachelardiano.
4.1.4. A contemplação e o instante poético bachelardiano
Bachelard, em seu livro A intuição do instante contrapõe as ideias de Bergson e
Roupnel sobre o tempo. O primeiro se volta ao entendimento do tempo como duração,
enquanto o segundo entende o tempo pelo instante. Acreditamos que o tempo da
fotografia, em seus diálogos, bem como o tempo da contemplação é o tempo do instante
poético, sobre o qual também fala Bachelard.
Mas antes de falarmos sobre o instante poético propriamente, devemos falar sobre
o instante. Entender a fotografia pela lógica do instante requer pensar o tempo. Antes
mais ligada à apreensão da realidade, a fotografia permanecia principalmente no domínio
do espaço. A partir do momento em que se percebe o caráter subjetivo da fotografia e se
dá, também, o desenvolvimento das técnicas fotográficas, permitindo a captura de
fragmentos de segundo, surge a fotografia moderna e a linguagem fotográfica passa a se
relacionar mais com o tempo do que com o espaço.
O domínio sobre o instante mudou o rumo da fotografia, conferindo-lhe o perfil e
a importância que ela tem hoje e consolidando definitivamente a figura do autor
no processo fotográfico. Até o começo deste século, para se obter uma foto era
necessário um tempo de exposição de muitos segundos e um equipamento
relativamente pesado. O fotógrafo, na prática, dividia a autoria intelectual da
imagem com o fotografado, que fazia a pose ou com a “produção”, que
determinava o que ia ser registrado e como. A partir do surgimento de câmeras
mais leves como a Ermanox e mais tarde a Leica, e de filmes mais rápidos, o
fotógrafo ganhou liberdade de atuação e a fotografia, como um todo, novo
caminho estético. (GURAN, 1999, p.52)
Esse é um passo muito importante porque fez com que a fotografia tivesse mais
domínio sobre o tempo e, ao ligar-se ao tempo, a fotografia se liga à dimensão daquilo
que não se pode perceber imediatamente no mundo visível; que pressupõe o diálogo com
as imagens internas do fotógrafo - no momento do ato fotográfico -, ou do espectador
com a imagem - no momento de decifrá-la. Maurício Lissovsky acredita que é “[…] no
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âmbito do tempo que a fotografia, através da fotografia moderna, vai encontrar um
invisível que lhe é próprio.” (2008, p.26)
No livro de Bachelard, vemos que Roupnel propõe que “[...] o tempo é uma
realidade encerrada no instante” (2007, p.17), e que “[...] o mundo é o sempre-presente e,
de um modo radical, o instante” (2007, p. 9). Essa última afirmação de Roupnel nos
remete ao “ser-aí” de Heidegger. Para o filósofo, o homem existe enquanto um ser no
mundo e no tempo, que faz parte da História e vivencia experiências de seu tempo. A
partir do ser-aí heideggeriano, chegamos à verdadeira essência do homem. Ou seja, a
partir da vivência do próprio tempo, conseguimos enxergar além da aparente realidade,
concebendo o mundo como imagem e, portanto, passível de contemplação. De modo
contrário, existimos apenas em aparência – ente – e, portanto, não somos.
Como já afirmamos aqui, Susan Sontag acredita que as fotos retratam realidades
que já existem, embora só a câmera possa desvelá-las. Edward Weston também acredita
na fotografia como possibilidade de desvelamento das aparências do mundo visível.
Segundo ele,
A fotografia […] oferece ao fotógrafo a possibilidade de olhar em profundidade a
natureza das coisas, e de apresentar ao sujeito em termos de sua realidade básica.
Permite a ele revelar a essência do que está frente a sua objetiva, com tal
claridade de percepção que o espectador pode chegar a encontrar a imagem
recriada mais real e compreensível que o próprio objeto.
119
(WESTON, 1943, in
FONTCUBERTA, 2003, p.205)
Ao desvelar a realidade através da fotografia, por meio do congelamento do tempo
e sua posterior contemplação, produzem-se “[…] novos cânones da beleza, mais
inclusivos” (SONTAG, 2004, p. 127). São mais inclusivos na medida em que aceitam a
interpretação subjetiva do mundo visível e, consequentemente, aceitam uma beleza mais
plural, não discriminatória, como era a beleza relacionada ao belo tradicional. Ao invés
de uma beleza estigmatizada pelos cânones renascentistas da proporção, da harmonia e da
ordem, a beleza fotográfica é “[…] esse algo indefinível que tem o poder de enriquecer a
um grupo de pessoas relativamente pequeno, a nível fortemente emocional, no momento
da percepção.”
120
(HEISE, 1928, in FONTCUBERTA, 2003, p.133). Seja essa percepção
119
“La fotografía [...] oferece al fotografo la posibilidad de mirar en profundidad la naturaleza de las cosas, y de
presentear al sujeto en términos de su realidad básica. Le permite revelar la esencia de lo que está frente a su objetivo,
con tal claridad de percepción que el espectador puede llegar a encontrar la imagen recreada más real y comprensible
que el propio objeto.”
120
“[...] ese algo indefinible que tiene el poder de enriquecer a un grupo de personas relativamente pequeño, a nivel
fuertemente emocional, en el momento de la percepción.”
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realizada pelo observador, em sua contemplação da imagem, ou pelo fotógrafo, no ato
fotográfico, quando percebe algo além da aparente banalidade do cotidiano.
Segundo Benjamin, “[…] o observador sente a necessidade irresistível de procurar
na imagem a pequena centelha
121
do acaso, do aqui e agora, com a qual a realidade
chamuscou a imagem.” (BENJAMIN, 1996, p.94). Essa necessidade também se
manifesta no fotógrafo que, por sua vez, busca a centelha do acaso no cotidiano do
mundo visível. E, ao deparar-se com essa centelha, ele – fotógrafo ou contemplador –
encontra-se no campo da estética, mais especificamente, do prazer estético.
Minor White, define esse momento de prazer estético como um momento em que
a fotografia se transforma em um “[...] espelho que se pode atravessar”, convidando o
espectador a agir assim como a personagem Alice, de Lewis Carroll.
O momento em que a fotografia se transforma em um espelho que se pode
atravessar, seja quando a estamos contemplando ou recordando, deve sempre
permanecer um segredo, porque a experiência ocorre dentro do indivíduo. É
pessoal, é uma experiência privada, inefável e intraduzível.
123
(WHITE, 1963, in
FONTCUBERTA, 2003, p.251)
Para retomar a discussão anterior, ressaltamos que tanto o prazer estético, sobre o
qual falamos acima, quanto a contemplação estão atrelados ao tempo. E, segundo
Bachelard, o tempo só pode ser percebido pelo instante. Para o filósofo, a duração seria
“[...] uma poeira de instantes” (2007, p.37). No entanto, o autor de A máquina de esperar,
Maurício Lissovsky, questiona esse conceito de instante defendido por Bachelard.
Segundo ele, “O instante seria a marca de uma filosofia e de uma ciência instantâneas
fruto de uma inteligência interesseira, que está limitada à ação.” (2008, pp. 36, 37).
Diante da afirmação de Lissovsky, cabe aqui deixar claro que não se deve
confundir o instante com o instantâneo. O instantâneo, na fotografia, está ligado ao
aspecto técnico, fruto da evolução das câmeras fotográficas e que permitiu a tomada
instantânea, diminuindo o tempo necessário de exposição da película fotográfica à luz e -
destacando sua importância - ajudando na consolidação da linguagem fotográfica
121
A centelha da qual fala Benjamin, nos lembra bastante o seu conceito de aura: “Em suma, o que é a aura? É uma
figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais próxima
que ela esteja” (BENJAMIN, 1996, p.101)
123
“El momento en que la fotografía se transforma en un espejo que se puede atravesar, ya sea cuando se la esté
mirando o recordando, debe siempre permanecer un secreto, porque la experiencia ocurre dentro del individuo. Es
personal, es una experiencia privada, inefable e intraducible.”
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moderna. No entanto, pautar o ato fotográfico pelo instantâneo é deixar-se levar apenas
pelas questões técnicas e correr o risco de se transformar num servo do aparelho, como
alerta Flusser. Para que isso não aconteça, devemos observar que o instante pode ser de
outra dimensão que o instantâneo, principalmente quando nos referimos ao instante
poético - sobre o qual Bachelard fez questão de se aprofundar no pósfácio de seu livro A
intuição do instante, deixando mais claro, assim, a diferença entre o instante físico e o
instante poético.
Em seu livro Semiótica, Pierce fala sobre o instantâneo:
As fotografias, especialmente as do tipo ‘instantâneo’, são muito instrutivas, pois
sabemos que sob certos aspectos são exatamente como os objetos que
representam. Esta semelhança, porém, deve-se ao fato de terem sido produzidas
em circunstâncias tais que foram fisicamente forçadas a corresponder ponto por
ponto à natureza. Sob esse aspecto, então, pertencem à segunda classe de signos,
aqueles que o são por conexão física. (PEIRCE, 2008, p. 65)
Para o autor, portanto, o “instantâneo” na fotografia diz respeito ao seu caráter
indicial e não simbólico que, consequentemente, desconsidera a experiência do instante.
Ou seja, Pierce só poderia entender o instante como ligado ao aspecto físico e
cronológico, diferente do aspecto simbólico e plural defendido por Bachelard em seu
instante poético.
Quando Lissovsky fala sobre o fato de o instante estar “limitado à ação”, ele
complementa a sua crítica:
Ainda que simpatize com o esforço de Bachelard em valorizar o instante, há
duas coisas que me incomodam em sua tese. A primeira, é que o único lugar
atribuível ao instante é o lugar de inaugurar uma ação, jamais de consumá-la.
[…] A segunda é esta assimilação do instante primordial a um ato de “decisão”,
como se esse não pudesse ser precedido pela intensa agonia da indecisão.
Afinal, que melhor exemplo de experiência pela duração do que a indecisão?
Dura-se na indecisão; na indecisão o tempo pesa. […] Minha ‘intuição do
instante’ é que podemos remetê-lo à experiência da duração. Para que tal
remissão seja bem-sucedida, devemos pensar o instante imanentemente, e não
como uma exterioridade que se abate sobre o contínuo (LISSOVSKY, 2008,
p.39)
Lissovsky parece entender tanto a duração quanto o instante em suas
correspondências meramente cronológicas ou materiais, não metafísicas. Bachelard diz
que “O instante não contém uma duração em seu seio.” (2007, p.51). Ele ainda diz que o
instante é fecundo, pois “[…] a ele se acrescenta uma novidade temporal
convenientemente adaptada ao ritmo de um progresso.” (2007, p.84). O instante, portanto,
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carrega a aura da originalidade que permite a um contemplador – do mundo ou de uma
imagem – deslumbrar-se com a beleza que encontra. Beleza, essa, que é fruto de uma
interpretação própria da realidade, gerada pela impressão material que ressoa em seu
imaginário, confrontando-se com ele e gerando uma experiência estética.
Bachelard se aprofunda ainda mais em sua definição de instante, alargando-a ao
conceito de instante poético. Para o filósofo, o instante poético é como um instante
complexo e que “[…] para atar, nesse instante, simultaneidades numerosas, […] o poeta
destrói a continuidade simples do tempo encadeado.” (2007,p.100). Por isso que, para
entender o instante poético, não podemos ter como referência o tempo cronológico ou de
uma duração horizontal. Dizemos horizontal, porque o tempo do instante poético,
segundo Bachelard, é aquele cuja “[…] meta é a verticalidade, a profundidade ou a altura
(2007, p.100).
Gustavo de Castro propõe que os conceitos de verticalidade e horizontalidade
devam ser entendidos não como direções, mas como dimensões. A dimensão horizontal
está ligada à superfície, à aparência. A dimensão vertical, à subjetividade. Segundo
Castro, ambas se complementam, ou seja, fazem parte da mesma realidade, o que quer
dizer que “[...] a superfície contém profundidade” (CASTRO, 2007, p.48).
Na fotografia podemos entender essas dimensões ao analisar o diálogo entre o
fotógrafo e o mundo visível e o fotógrafo e suas imagens internas, por exemplo. O
primeiro diálogo é da dimensão horizontal, enquanto o segundo, da dimensão vertical ou
profunda e, portanto, mais interpretativa e, principalmente, subjetiva. E, como afirmamos
anteriormente, o primeiro tipo de diálogo não pode ser entendido sem o acompanhamento
do segundo, assim como a dimensão vertical não pode ser entendida separadamente da
horizontal.
Para que as duas dimensões se complementem, é necessário que exista, segundo
os pensadores da complexidade apontam, uma “[...] visão transversal da realidade em
que, simultaneamente, deve ser levado em conta a parte e o todo de cada objeto
pesquisado.”(CASTRO, 2007, p.49). Essa visão transversal é, como propõe Gustavo de
Castro, o espaço do Aberto: “Aberto é aquilo que não restringe, não impede, não tem
limite [...]”. (2007, p.50). Voltando à fotografia, não podemos esquecer que nas
dinâmicas dialógicas que propusemos aqui a visão conjunta da parte e do todo pressupõe
uma contextualização e o entendimento de que aquilo que é fotografado é recortado do
restante da realidade visível segundo a escolha subjetiva do fotógrafo. Por sua vez, o
fotógrafo, para realizar esse recorte, deve estar aberto ao aceno do inusitado no cotidiano,
CAPÍTULO 4
159
CONTEMPLAÇÃO E DIÁLOGO NA ERA DA INTERNET
deve permitir deixar-se levar pela contemplação e pela experiência estética do instante em
que reconhece esse aceno, não importando se esse instante, cronologicamente, é longo ou
curto. O que define esse instante é a profundidade da experiência subjetiva, determinada
pela aisthesis, sobre a qual já falamos aqui, e que, segundo Maria Beatriz Medeiros,
significa um “[...] estar aberto ao sensível do mundo.”
Ao admitirmos estar abertos ao sensível do mundo, podemos nos sentir como
parte desse mundo, vivenciando-o, assim como propõe Heidegger. Dessa forma, podemos
entender o mundo para além da representação, levando em conta, também, a interpretação
e as formas individuais de ver, compreender e sentir. Essa dinâmica, portanto, se
relaciona com dimensão vertical e profunda proposta por Bachelard. Segundo Castro:
Em Bachelard, a verticalidade é um princípio de ordem, um ‘axioma’, uma lei de
filiação, uma escala ao longo da qual experimentamos os graus de uma
sensibilidade especial. Isso quer dizer que a verticalidade é o eixo fundamental da
vida: a vida da alma, todas as emoções finas e contidas, todas as esperanças, todos
os temores, todas as forças morais que envolvem um porvir. Tudo aquilo que
realmente vale a pena tem uma diferencial vertical. (2007, p.55)
Se Lissovsky entendesse a duração sobre a qual fala por uma perspectiva vertical,
desvinculada de seu aspecto cronológico, veria que sua tese de que devemos entender o
instante de forma inseparada do contínuo, poderia concordar com a teoria do instante
poético bachelardiano. O autor tanto entende a duração sob seu aspecto cronológico que,
ao assumir como hipótese que o instante exista, ele faz uma crítica àqueles que não
acreditam no instantâneo, baseando-se apenas em critérios técnicos:
Assumo, por ora, que existe o instante. […] Para que ele prevaleça é preciso
recusar primeiro o argumento falacioso de que não existe instantâneo, pois toda
exposição fotográfica ‘dura’ alguma coisa. Essa duração objetiva, no entanto, é
verdadeiramente uma abstração: uma abstração cronométrica. Nossa acuidade
perceptiva é limitada. A fotografia transpôs esse limiar da indiscernibilidade na
década de 1870. (LISSOVSKY, 2008, p. 40)
O instante poético não se refere a “acuidades visuais” ou progressos da fotografia
e suas câmeras. No entanto, também não é totalmente desprovido de duração. O instante
poético tem uma duração própria, que é a duração da experiência estética. No instante em
que o contemplador reconhece o aceno do inusitado no mundo visível, não importa sua
duração cronológica horizontal, mas sim sua duração vertical, profunda e subjetiva. Esse
instante pode ter durado, cronologicamente, apenas alguns segundos, menos até, mas a
duração da intensidade da experiência estética individual por ele proporcionado é o que
CAPÍTULO 4
160
CONTEMPLAÇÃO E DIÁLOGO NA ERA DA INTERNET
realmente conta. Esses instantes “[…] removem o ser da duração comum.”
(BACHELARD, 2007, p.105). Ao reconhecer esse aceno do mundo, relacionando-o com
o seu imaginário individual, o contemplador e o fotógrafo demonstram a sua sensibilidade
poética.
É justamente isso o que acontece na fotografia. O próprio Lissovsky afirma que
“O ‘decisivo’ em Cartier-Bresson, diz menos respeito a um momento da evolução das
formas no tempo, mas à implicação de uma escolha no ato fotográfico […] O aparelho
fotográfico é o ‘mestre do instante’, ‘questiona e decide ao mesmo tempo’.” (2008, p.77)
Essa escolha no ato fotográfico depende do fotógrafo, da experiência vivida no instante
do aceno metafísico. Quando o autor usa as palavras de Cartier-Bresson sobre o aparelho
ser o ‘mestre do instante’ nós, ao contrário, propomos que quem deve ser o mestre desse
instante é o fotógrafo que manipula o aparelho e que, sob o efeito do instante poético,
vivenciando sua experiência, “questione e decida ao mesmo tempo”, criando novas
visibilidades para a realidade. O homem, fotógrafo ou espectador, age como sujeito e
objeto de forma quase instintiva, despertado por um instante poético. A duração
cronológica desse instante e dos que se seguem a ele não importa. Até porque essa
duração é ínfima cronologicamente, e por isso é tão importante levarmos em conta o
papel da intuição e do envolvimento do fotógrafo com o ambiente a ser fotografado. São
eles que acabam por determinar o momento do clique.
E é justamente por trabalhar sobre o momento, que a fotografia hoje se faz única
na função de representar a realidade. O momento fotográfico, nunca é demais
lembrar, é o momento intuído. A fotografia é uma fatia muito rápida da realidade.
Mais rápida, aliás, do que pode perceber conscientemente o olho humano. Por
isso mesmo, escolher o momento exato só é possível a partir do envolvimento do
fotógrafo com a cena que se desenrola no visor. (GURAN, 1999, pp. 52, 53)
Mesmo com a fotografia digital, em que o papel de pós-produção tem um grande
peso, o instante poético ainda é – ou deveria ser – o momento em que nasce a imagem
final. É no instante poético que o fotógrafo concebe a imagem mentalmente, não no
momento da manipulação digital. Na pós-produção a imagem já foi concebida, está na
mente do fotógrafo, e esse apenas se utiliza das possibilidades da manipulação digital
para fazer os ajustes necessários que o permitirão chegar à imagem desejada presente em
seu imaginário. Se a imagem não foi pré-concebida pelo fotógrafo, interiormente, ele
corre o risco de ceder às possibilidades do aparelho, nesse caso o software de edição, e
acabar por produzir um fruto de uma experimentação técnica e não de sua criação
CAPÍTULO 4
161
CONTEMPLAÇÃO E DIÁLOGO NA ERA DA INTERNET
subjetiva. Por isso a importância do instante poético como elemento fundante e
precedente do ato fotográfico.
Esse instante, então, pressupõe o diálogo do observador/fotógrafo tanto com o
mundo visível quanto com suas imagens mentais. E só assim poderia ser, portanto, um
instante poético. Minor White diz que “Ao não existir um equivalente exato para a
palavra poético em fotografia, sugeriremos a palavra visão, querendo significar com ela
não somente ver fora, mas também ver dentro.”
124
(WHITE, 1963 in FONTCUBERTA,
2003, p.251)
A decisão no instante poético, portanto, não pode ser reduzida a um simples ato.
Ela é o reflexo de uma experiência estética que tem uma duração desvinculada da duração
cronológica. Bachelard, ao relacionar o instante ao ato, o faz baseado na ideia de vontade,
“[…] na consciência que se empenha em decidir o ato” (2007, p.26). Consciência que
pode até mesmo agir de forma inconsciente, se é que podemos dizer isso, por ser tomada
pela experiência estética, da ordem da intuição. Essa vontade ou consciência empenhada
na decisão do ato constiuti a ação.
Então, a ação que, segundo Bachelard, “[…] se desenvolve por trás do ato entra já
no domínio das consequências lógicas ou fisicamente passivas.” (2007, p.26). O ato,
portanto, está ligado principalmente ao aspecto físico. Na fotografia seria o simples
apertar do botão. Já a ação engloba tudo aquilo que se desenrola antes do ato, levando até
esse momento. A ação se desenrola no instante poético.
Retomando outra crítica de Lissovsky, o autor diz que o instante seria o lugar de
inaugurar uma ação, mas jamais de consumá-la - ato. No entanto, o autor se esquece de
que os instantes se sucedem. Se num primeiro instante há a decisão e a vontade - a ação
que precede o ato -, o instante seguinte pode se concretizar no ato em si. Bachelard
reconhece a importância da ação, necessária para dar consistência ao ato, o que não quer
dizer que ele desconsidere o ato. E assim, entendemos porque Bachelard, baseado nas
ideias de Roupnel, defende que o instante encerra uma contemplação ativa e não passiva,
o que também corrobora o pensamento de Heidegger sobre a forma que devemos
conceber o mundo como imagem, contemplando-o sem deixar de fazer parte dele.
Veremos então que a vida não pode ser compreendida numa contemplação
passiva: compreendê-la é mais que vivê-la, é efetivamente impulsioná-la. Ela não
corre ao longo de uma encosta, no eixo de um tempo objeto que receberia como
124
“Al no tener un equivalente exacto para la palabra poético en fotografía, sugeriremos la palabra visión, queriendo
significar con ella no sólo ver afuera sino también ver adentro.”
CAPÍTULO 4
162
CONTEMPLAÇÃO E DIÁLOGO NA ERA DA INTERNET
um canal. É uma forma imposta à fila dos instantes do tempo, mas é sempre num
instante que ela encontra sua realidade primeira. (BACHELARD, 2007, p. 27)
No caso da fotografia podemos falar do instante em que o fotógrafo reconhece o
aceno do mundo, ou seja, o instante em que nasce a sua vontade, e do instante seguinte
em que temos o ato: o apertar de um botão. São dois instantes distintos. No primeiro o
fotógrafo visualiza mentalmente a sua foto, que ainda não existe. No segundo momento,
ao apertar o botão, ele concretiza sua vontade e não há mais nada que ele possa fazer.
“Portanto, fotografar é efetivar um reconhecimento antecipado: aquilo que é visto não
pode mais ser fotografado, porque já passou.” (GURAN 1999, p.18). O próprio Lissovsky
fala sobre essa dinâmica quando se refere ao fetiche fotográfico:
O fetiche fotográfico não é outra coisa que não o a posteriori da espera. O seu
“retorno” do futuro para o passado, daquilo que na espera uma fotografia terá
sido. Nesse percurso em direção ao clique, imagina Durand, as fotografias se
fazem imagem-pensamento: ‘é este desequilíbrio (esta claudição temporal) que a
fotografia tenta pensar e tornar visível, imagem de um pensamento dentro do
instante onde ela busca retornar sobre ela mesma, capturar ela mesma.’ […] É na
abertura para o futuro que a fotografia ainda pensa. (LISSOVSKY, 2008, p.210)
Lissovsky afirma que “Na duração da espera, o tempo devém instante”. (2008,
p.60). Mais uma vez vemos que o autor toma a duração por seus aspectos cronológicos,
pois considera que o tempo só é instante quando no momento da espera. Toda espera tem
uma duração, que pode ser medida pelo tempo cronológico ou não. Mas não é isso o que
importa para o instante poético. A partir desse ponto de vista, toda espera é um instante,
seja uma espera longa ou extremamente rápida. A duração cronológica dessa espera e,
consequentemente, do instante poético, é determinada por quem a sofre.
Queremos deixar claro que a aceitação do instante poético não quer
necessariamente acabar com a duração. Bachelard, citando Roupnel, considera a duração
uma “poeira de instantes”, como já expusemos aqui. Ou seja, existe uma duração formada
por uma sequência de instantes, no entanto, Bachelard ressalta que “[…] a duração
depende sempre de um ponto de vista. […] A memória, guardiã do tempo, guarda apenas
o instante; ela não conserva nada, absolutamente nada, de nossa sensação complicada e
factícia que é a duração.” (2007, pp.38, 39)
Lissovsky atribui um caráter paradoxal ao instante e se utiliza das palavras de
Philippe Dubois para isso:
“[…] a noção de instante (único, pontual, etc.), tantas vezes dada como
consubstancial à própria ideia que se tem do ato fotográfico, é de fato uma noção
CAPÍTULO 4
163
CONTEMPLAÇÃO E DIÁLOGO NA ERA DA INTERNET
menos evidente e menos simples do que parece, em particular porque não exclui
uma certa relação com a duração, nem a existência de uma grande mobilidade
interior. (1994, p. 166 apud LISSOVSKY, 2008, p. 43)
Também acreditamos que o instante poético não exclui a duração, mas essa é uma
duração não cronológica. Se observarmos no livro O ato fotográfico de Dubois, ele diz:
[…] o fragmento de tempo isolado pelo gesto fotográfico, a partir do momento
em que é capturado pelo dispositivo, tragado pelo buraco (pela caixa) negro (a),
passa de uma só vez, definitivamente, para o ‘outro mundo’. E começa a jogar
uma temporalidade contra uma outra. Abandona o tempo crônico, real, evolutivo,
o tempo que passa como um rio, nosso tempo de seres humanos inscritos na
duração, para entrar numa temporalidade nova, separada e simbólica, a da foto:
temporalidade que também dura, tão infinita (em princípio) quanto a primeira,
mas infinita na imobilidade total, congelada na interminável duração das estátuas.
A pequena porção de tempo, uma vez saída do mundo, instala-se para sempre em
algo como o fora-de-tempo da morte. Parada (definitiva) em imagem. (DUBOIS,
2006, p.168)
Dubois se refere aí a uma temporalidade que abandona o tempo crônico e
evolutivo para entrar numa dimensão mais simbólica, ou seja, numa dimensão de
interpretações e ressignificações, de duração subjetiva, assim como também é a duração
do instante poético. A partir dessa reflexão, podemos supor que ao recortar um fragmento
do tempo, ou seja, ao capturarmos um instante, podemos retê-lo e, assim, ter a
possibilidade de contemplá-lo. Susan Sontag afirma que as “[...] fotos podem ser mais
memoráveis do que imagens em movimento porque são um nítida fatia do tempo, e não
um fluxo. […] Cada foto é um momento privilegiado convertido em um objeto diminuto
que as pessoas podem guardar e olhar outras vezes.” (2004,p.28). Dessa forma,
apropriando-se desse fragmento, entramos em contato com uma pequena fração do
tempo, do ser e do mundo, que, no cotidiano sem pausas, passa despercebida, não
contemplada – já que a reflexão e a contemplação são cada vez mais colocadas em
segundo plano frente ao imediatismo dos acontecimentos.
Somente a fotografia é capaz de fixar um momento fugidio, em constante
transformação. E quando esse momento se esvai, não há nada que o faça voltar. No
entanto, a contemplação de uma imagem por aquele que vivenciou o momento, pode
fazê-lo “voltar”, na dimensão do prazer estético e das imagens internas. Luis Humberto
diz que “Fotografar é reduzir a complexidade a um momento do tempo […]. Diante do
mesmo fato visível, cada indivíduo reage de modo diverso.” (2000, p.45). De modo que,
para o autor, esse instante em que reduzimos a complexidade, “[…] acontece quando se
CAPÍTULO 4
164
CONTEMPLAÇÃO E DIÁLOGO NA ERA DA INTERNET
dá o encaixe entre os significados descobertos no objeto de nosso interesse e alguma
coisa preexistente dentro de nós.” (2000, pp. 45, 46). Ou seja, quando existe um diálogo
entre o mundo visível e o mundo interno do fotógrafo ou do observador.
A fotografia, portanto, se apresenta como forma de capturar essa ínfima porção de
tempo, que, congelada, pode ser minuciosamente observada. Luis Humberto também
afirma que:
Por sua natureza fragmentária, a fotografia permite-nos a reavaliação de
uma realidade, pela recuperação de valores perdidos na invisibilidade do
convívio cotidiano. A fotografia lida – o tempo todo – com o corriqueiro
e o preexistente, comprometida com a constante reinvenção dos espaços
e com a construção de uma poética do banal. (HUMBERTO, 2000, p. 41)
Acreditamos que a fotografia é uma forma de conhecimento. No entanto, para
compreendermos melhor essa afirmação, devemos entender como se dá a apreensão do
instante. O que faz com que o fotógrafo queira eternizar um determinado momento e não
o anterior ou o imediatamente seguinte?
Ao escolher um determinado instante, o fotógrafo entra na dimensão vertical do
tempo; de um tempo interrompido e que desvela um ponto específico da aparente
realidade. O fotógrafo, assim como o poeta, encontra simultaneidades que juntam seus
estímulos externos, vivenciados no mundo, com as suas imagens mentais ou interiores
preexistentes. Para perceber essa simultaneidade é necessário se valer da sensibilidade,
deixar-se levar pela experiência vivida esteticamente. Walker Evans, fotógrafo americano
que documentou a sociedade americana durante a época da Grande Depressão, dizia que
o seu trabalho se tratava de um tipo de fotografia “documental transcendental”, uma
fotografia “[...] fruto do contato entre a realidade externa e o espírito interno”
125
(FONTCUBERTA, 2003, p. 45).
É a voz interior do fotógrafo que reconhece o novo no cotidiano e que nos torna
capazes de ver e ouvir o que o Universo tem a nos mostrar além da aparência visível do
real. O mesmo processo ocorre com as outras artes e por isso defendemos que não há
dúvidas de que a fotografia é, também, uma forma de arte. “A arte é a escuta dessa voz
interior. [...] Ela nos conduz ao sítio primordial de nosso Ser e ao Lugar imenso no qual
estamos no Universo inteiro” (BACHELARD, 2007, pp. 96, 97). O que torna a arte
125
“fruto de un contacto entre la realidad externa y el espíritu interno”
CAPÍTULO 4
165
CONTEMPLAÇÃO E DIÁLOGO NA ERA DA INTERNET
original, por sua vez, é a maneira como o artista expressa essa voz interior, a maneira
como ele capta as impressões sutis do mundo que o rodeia.
A meta dos melhores fotógrafos, assim como a de todos os verdadeiros artistas,
não é só a de produzir uma imagem, mas de gravar em seu positivo a impressão
que sentem diante da presença do tema e transmiti-la aos demais. [...] Em um
sentido amplo todos os artistas são impressionistas. Não retratam o objeto em si,
mas o que têm consciência de ver.
126
(CAFFIN, 1901, in FONTCUBERTA,
2003, p. 97)
Assim como o pintor se utiliza de pincel e tinta, o fotógrafo usa a câmera como
forma de expressão. Ela é a sua técnica. Por isso a importância de conhecer suas
funcionalidades e conhecer a linguagem fotográfica, pois, no momento em que algo se
revela a nós no cotidiano, se não dominarmos a técnica, não nos deixamos levar pela
sensibilidade.
E, assim, a fotografia seria apenas uma técnica que permitiria apreender os
momentos importantes para nós, apenas por sua função social, e não pela experiência que
essa situação provoca. Não seria movida por uma sensibilidade despertada por aquele
momento, mas, sim, pela vontade de eternizar um instante que constituirá parte da
memória meramente iconográfica do fotógrafo. Entendida dessa maneira, a fotografia se
comporta como um espelho fiel do real. Sem a sensibilidade não vivenciamos a
experiência. E, mais adiante, ao tentarmos relembrar o momento eternizado na fotografia,
ela não nos dirá nada além do que se pode ver nos aspectos formais e físicos ali
mostrados: as pessoas, suas roupas, suas posições. As fotos posadas de casamentos,
batizados, aniversários, nada mais são do que um registro de um evento, para quem não
vivenciou aquela experiência. Registro não criativo e não sensível, mas social.
Apesar de dotada de certa característica estética, como já ressaltamos aqui
fazendo uso das palavras de Bourdieu, essa “fotografia social”, preocupada com o
fortalecimento dos laços sociais e das identidades móveis, não pode ser encarada como
forma de geração de conhecimento pelo sensível, assim como falávamos anteriormente da
fotografia baseada numa estética do instante, da experiência e ligada à voz interior do
fotógrafo. Ela se posiciona mais como uma fotografia preocupada com a duração
cronológica, com o registro e a possibilidade da preservação formal da memória e não
126
“La meta de los mejores fotógrafos, así como la de todos los verdaderos artistas, no es solo la de producir una
imagen, sino la de grabar en su positivado la impresión que sienten ante la presencia del tema y transmitir ésta a los
demás. [...] En un sentido amplio todos los artistas son impresionistas. No retratan el objeto mismo, sino lo que tienen
conciencia de ver.”
CAPÍTULO 4
166
CONTEMPLAÇÃO E DIÁLOGO NA ERA DA INTERNET
sensorial. Desprovida da experiência do instante, essa imagem não desperta reflexão; não
convida à contemplação. As análises feitas sobre ela são superficiais, formais e, portanto,
não podem chegar à essência – como propõe Heidegger - da aparência ali capturada.
Como já explicamos aqui, para o filósofo Heidegger, a imagem que se pauta por
uma estética da experiência, que se relaciona com as imagens interiores do fotógrafo e de
seu contemplador são mais que uma mera representação. A imagem de algo pode ser mais
real que seu próprio referente, por revelar-lhe o que existe além da aparência
constituindo-se, assim, numa forma de conhecimento mais profunda.
Fazer-se imagem de algo quer dizer pôr o ente mesmo, no modo como está no
seu estado, diante de si, e, enquanto posto desta forma, tê-lo constantemente
diante de si. Mas falta ainda uma determinação decisiva na essência da imagem.
‘Temos a imagem de algo’ não quer apenas dizer que o ente nos é em geral
representado, mas que ele, em tudo aquilo que lhe pertence e que nele está
reunido, está diante de nós como sistema. [...] Imagem do mundo, compreendida
essencialmente, não quer, por isso, dizer uma imagem que se faz do mundo, mas
o mundo concebido como imagem. (HEIDEGGER, 2002, pp.112, 113)
A fotografia, portanto, é um meio que possibilita o conhecimento pelo sensível,
assim como outras formas de arte, unindo razão e poesia na apreensão do instante
possibilitando sua posterior contemplação. A imagem é entendida como forma de
conhecimento, como um dos elementos que faz parte da nossa vivência e experiência. “O
conhecimento é um processo cumulativo de experiências que atravessa o tempo”
(HUMBERTO, 2000, p.28). É exatamente isso que faz a fotografia, congela um
momento, uma experiência vivida para que ela resista ao tempo e assim possa ser
contemplada mais tarde, despertando a reflexão e abrindo o caminho para o saber.
A imagem contemplativa é aquela também realizada na síntese do instante, que
reflete a identidade do fotógrafo, não essa identidade móvel e instável tão característica
de nossa sociedade pós-moderna, mas a identidade do ser; a identidade fundante.
O que se observa hoje com o desenvolvimento tecnológico das câmeras digitais,
celulares, álbuns e comunidades virtuais voltadas para fotografia é a predominância de
uma fotografia superficial que acompanhe o ritmo das constantes mudanças. E assim, o
que se tem como resultado da facilidade em tirar uma foto, expô-la para os amigos na
internet e substituí-la constantemente por fotos mais recentes, é que não apenas a
fotografia se tornou um produto de consumo, mas também o instante passou a ser
consumido e não contemplado.
CAPÍTULO 4
167
CONTEMPLAÇÃO E DIÁLOGO NA ERA DA INTERNET
O tempo, desvinculado do espaço – tornado produto -, passa a ser consumido
constantemente. Não podemos parar e, assim, não conseguimos viver o instante poético
de Bachelard, mas o instante pós-moderno que se constitui numa experiência fugaz e
superficial que, quando a percebemos, ela já passou, já está datada e outra experiência nos
chama. Esse instante nos lembra o conceito de tempo real de Druckery, exposto
anteriormente, em que o autor nos alerta para o perigo de entrarmos em um ciclo de
consumo de imagens sem pausas, levando a um acúmulo de informação sem reflexão.
Esse instante, portanto, não se estende verticalmente, mas horizontalmente -
cronologicamente. E como sua duração é ínfima, ele se apresenta, na verdade, como um
ponto sem profundidade. É apreendido somente como forma de promover uma interação
social no futuro, mostrando ao outro todas as experiências “intensamente” vividas e
construindo uma identidade multifacetada de um indivíduo em constante movimento. É aí
que entra a fotografia. Ela serve como registro desses momentos voláteis, experimentados
superficialmente e que duram somente até o próximo momento importante para a
construção de uma de suas identidades, quando, então, a identidade anterior será
descartada.
No flickr vemos uma dinâmica de substituição frenética de imagens, que seja
capaz de acompanhar as mudanças constantes de postura e identidades sofridas pelo
sujeito pós-moderno, contemporâneo ao que Bauman (2001) chama de a época da
modernidade-líquida.
Os grupos voltados ao culto da lomografia (já citada aqui), por exemplo, que se
pautam por uma fotografia do acidental e que chegam a apresentar resultados
interessantes, na verdade têm seu interesse ligado ao espírito fluido da pós-modernidade,
de identidades e momentos fugazes e sem profundidade. Basta observarmos o que
propõem como suas dez regras básicas
127
: 1) Leva a tua Lomo onde você for; 2) Fotografe
a qualquer hora do dia ou da noite; 3) A Lomografia não interfere na sua vida, ela é parte
dela; 4) Aproxima-te o mais possível do objeto a ser fotografado; 5) Não pense; 6) Seja
rápido; 7) Você não precisa saber antes o que fotografou; 8) Nem depois; 9) Não
fotografe com os olhos; 10) Não se preocupe com as regras.
Suas imagens não provêm de uma captação do instante em que a realidade entra
em contato com a voz interior do fotógrafo, mas sim de um instante que possa ser lido e
compreendido rapidamente, para que o próprio fotógrafo e os demais possam consumi-las
127
Regras disponíveis em: http://lomos.com.br/blog/lomografia-as-10-regras-basicas/. Acessado em 22.07.09
CAPÍTULO 4
168
CONTEMPLAÇÃO E DIÁLOGO NA ERA DA INTERNET
e se convencerem daquela configuração identitária momentânea. Esse processo acaba por
se transformar em um ciclo, pois, devido à sua efemeridade, não se abrem brechas à
reflexão e acabamos por perder a visibilidade sobre o mundo e sobre nós mesmos. E sem
visibilidade não compreendemos, não temos referências, o que nos leva a correr contra o
tempo (outra vez) em busca de novas visibilidades para o mundo e para nós; para nossa
identidade. E, assim, seguimos contribuindo para a consolidação de uma sociedade rasa e
frágil, incapaz de ser vivenciada imageticamente e incapaz de entrar em contato consigo
mesma - vide o tipo de comentário que em geral as imagens suscitam na comunidade
flickr, por exemplo. Esses comentários não levam em conta sua capacidade de captarem o
mundo e de revelarem algo sobre ele mas reduzem-se a detalhes formais ou técnicos
dessas imagens.
Por isso, defendemos aqui, acima de tudo, que o caminho a ser tomado pela
linguagem fotográfica nas comunidades virtuais e na internet se apoie na experiência do
instante poético (tal como o descreve Bachelard) e que promova o encontro do ente com o
ser (como propõe Heidegger). Assim, poderemos perceber os múltiplos caminhos
possíveis de interpretação da realidade e possibilitar um maior entendimento do mundo
como um todo, provando que é possível, sim, unir razão e poesia na construção do
conhecimento. Dessa forma, através da fotografia, o homem não precisaria abdicar de sua
sensibilidade para progredir, podendo, assim como o acredita Hölderlin, habitar a terra de
forma poética e, enquanto poeta, “[...] refazer o mundo por imagens, por eflúvios, por
afeto” (BARROS, 2007, p.23).
CAPÍTULO 4
169
CONTEMPLAÇÃO E DIÁLOGO NA ERA DA INTERNET
4.2. Exemplos de sites e comunidades virtuais voltadas para fotografia.
Ao procurar sites e comunidades virtuais voltadas para fotografia na internet,
vemos que, além dos já mencionados, existe também um grande número de fóruns e
blogs, o que mostra que os usuários de internet têm se valido da possibilidade de emitir
opiniões e postar material na rede para se pronunciar. Mas assim como fizemos com o
flickr, nós procuraremos analisar alguns desses sites, fóruns, comunidades e blogs de
grande uso na internet para melhor compreensão de como as ferramentas e o espaço de
manifestação aí disponibilizados estão realmente sendo usados.
A comunidade virtual fotolog (www.fotolog.com.br), pertence ao grupo Google e
é um exemplo de uso da fotografia com fins apenas sociais. À diferença do facebook e do
orkut, em que o principal meio de comunicação é pela escrita, os membros do fotolog
usam fotografias para montar seus perfis e estabelecer contatos em rede. O exemplo mais
comum de uso desse site é o de perfis que postam imagens próprias, tiradas em momentos
privados, ou em festas e eventos com outros amigos com algum comentário explicando
um pouco sobre a foto. Qualquer outro usuário do site pode comentar a foto. O site
também dá a possibilidade de adicionar amigos e criar grupos.
Um dado interessante que vemos logo na página principal do site é o ‘Fotolog
Star’. Essa funcionalidade chama os usuários com o slogan: Become Famous! (Fique
famoso). Ao clicar no banner, o usuário tem a possibilidade de enviar uma foto sua com
uma pequena descrição. Essa foto aparecerá durante 24 horas na página principal e em
mais duas outras páginas da comunidade, sempre dentro do banner do Fotolog Star. O
usuário deve pagar para isso a quantia de R$ 4,99. O mais incrível é que existe uma
galeria mostrando quem foi Fotolog Star nos últimos sete dias, e lá encontramos 42
membros
128
.
128
http://flog.fotolog.com.br/fotologstar_gallery - site acessado no dia 29.07.09.
CAPÍTULO 4
170
CONTEMPLAÇÃO E DIÁLOGO NA ERA DA INTERNET
Fig. 99: Página da galeria do Fotolog Star
Fig. 100: Página de usuário do fotolog
http://www.fotolog.com.br/vampira_bunbury/24326206 - acessado em 29.07.09.
O fotolog também permite e criação de grupos com interesses em comum.
Existem 12.967 grupos
129
classificados em várias categorias. A categoria com maior
número de grupos é a ‘Pessoas e Estilos de Vida’, com 4.519 grupos. Essa categoria
também é composta das subcategorias: ‘Corpos’, ‘Emoções’ e ‘Amigos’, entre as quais a
de ‘Emoções’ contém maior número de grupos. Voltando às categorias, a segunda que
129
Todos os dados sobre grupos foram obtidos no dia 30.07.09.
CAPÍTULO 4
171
CONTEMPLAÇÃO E DIÁLOGO NA ERA DA INTERNET
contém maior número de grupos é a de ‘Entretenimento’, seguida, respectivamente, pelas
de ‘Arte Fotográfica’, ‘Vestuário e Moda’, ‘Arte, Cultura e Sociedade’, ‘Esportes’,
‘Animais e Natureza’, ‘Lugares e Viagens’, ‘Escolas e Associações’, entre outros.
A comunidade também indica quais são os grupos mais populares dentro de cada
categoria. Dentro da categoria ‘Pessoas e Estilos de Vida’, o grupo mais popular é o
Piercingplace’ (‘Lugares com piercing’). Na categoria ‘Vestuário e Moda’, o grupo mais
popular é voltado à personagem Hello Kitty, e na categoria ‘Arte Fotográfica’, o grupo
que mais se destaca é o ‘Olhos’. Portanto, percebemos que os usuários se utilizam das
categorias e grupos como forma de criar um relacionamento social baseado
principalmente na exploração da própria imagem. A postura dos usuários aqui é, portanto,
justamente aquela que mencionamos de Narcisos.
Outra comunidade virtual voltada para fotografia é o Devian Art
(www.devianart.com). Na verdade, o site é voltado para várias formas de arte, como
‘Filmes e Animação’, ‘Arte Tradicional’, ‘Artesanato’, ‘Designs e Interfaces’, ‘Arte de
Desenvolvimento de Jogos’, ‘Literatura’, ‘Desenhos e Quadrinhos’, ‘Mangás’ e, também,
‘Fotografia’. Os membros podem adicionar amigos, montando a sua rede social, e
também podem participar de grupos, apesar de não ser esse o foco principal da
comunidade. O Devian Art se apresenta como uma espécie de ‘vitrine’ para que o usuário
possa expor seus trabalhos em seu portfólio pessoal e possa colocá-los a venda ou deixá-
los disponíveis para download, se quiser. O foco do site, portanto, não é o
estabelecimento de laços sociais, apesar de eles existirem, mas servir como uma
ferramenta de propaganda de trabalhos considerados artísticos por seus realizadores. Na
comunidade os membros também podem comentar os trabalhos uns dos outros, no
entanto, os comentários são quase sempre de elogios expressados por meio de adjetivos.
O Devian Art parece estimular uma busca pela popularidade dos trabalhos
expostos. Na página principal do site, ficam expostos os trabalhos mais populares (mais
vistos) postados nas últimas 8 horas. As páginas de cada categoria também exibem as
fotos mais populares, refletindo uma preocupação da comunidade. Quanto mais
populares, mais admirados e mais facilmente vendidos são os trabalhos. Não há discussão
sobre a fotografia. Os objetivos aqui são apenas os de consumo e publicidade.
Outro tipo de site voltado para fotografia e que é muito utilizado são os fóruns.
Entre eles, o mais conhecido em âmbito mundial é o Photo.Net (www.photo.net), que na
verdade é um site com outras funcionalidades além do fórum, mas essa é a mais usada do
site. Um fórum muito conhecido no Brasil é o Brfoto (www.brfoto.com.br). Esse é um
CAPÍTULO 4
172
CONTEMPLAÇÃO E DIÁLOGO NA ERA DA INTERNET
exemplo de fórum mesmo, em que as perguntas mais comuns são relacionadas a dúvidas
técnicas ou de equipamentos, e por isso não nos aprofundaremos numa análise desse
fórum.
No Photo.Net existem várias categorias de fóruns, voltadas a questões técnicas, de
equipamentos e sobre outros temas gerais relacionados à fotografia. As categorias com
maior participação são a ‘Crítica Fotográfica’ e a ‘Nikon’ (lista completa de categorias:
http://photo.net/community/)
130
. A categoria de ‘Crítica Fotográfica’ tem uma proposta
interessante de permitir que o usuário classifique sua foto, de acordo com algumas tags
determinadas e que os demais usuários a comentem. As tags com maior número de fotos
em ordem decrescente são: ‘Paisagens’, ‘Retratos’, ‘Natureza’, ‘Street’, ‘Viagens’, entre
outras. Apesar da proposta ser interessante, muitas dessas fotos submetidas à crítica não
chegam a receber nem, ao menos, um comentário.
Outra categoria do fórum é a ‘Discussão da Foto da Semana’. Nessa categoria,
pelo tempo que a foto fica disponível aos comentários, durante uma semana, percebe-se
uma maior participação dos usuários. Aí também podemos encontrar alguns comentários
superficiais, no entanto, grande parte deles se aprofunda um pouco mais em suas análises,
tanto em relação a questão técnica quanto em relação a interpretação particular da
imagem. O interessante é notar que, em alguns casos, o fotógrafo responde aos
comentários e desenvolvem-se comentários paralelos entre usuários distintos, que trocam
ideias entre si. Essa troca enriquece o debate sobre a foto, traz à tona várias formas de
compreendê-la, bem como maneiras diferentes de explorá-la tecnicamente e contribui
para um melhor entendimento daquela realidade recortada na imagem.
Uma foto postada no dia 16 de março de 2009 tem uma discussão bem
interessante que questiona seu conceito, além de questões técnicas como a composição e
a iluminação, por exemplo. Um dos usuários, Landrum Kelly, ressalta o tom crítico da
foto, chamando atenção para seu título, Education: “Sim, isso é educação – educação de
como manipular mulheres. Tal pai, tal filho – ensinando por meio do exemplo,
tipicamente. O filho aprende olhando como o pai faz, usando mulheres e depois jogando-
as fora.”
131
. Logo em seguida o autor da foto confirma a interpretação do usuário, dizendo
130
Site acessado em 29.07.09.
131
Yes, this is education - education as to how to manipulate women. Like father, like son - teaching by example,
typically. The son picks it up from watching how Dad does it, using up women and then throwing them away. - opinião
do usuário Landrum Kelly, disponível em (http://photo.net/photo-of-the-week-discussion-forum/00Slug)
CAPÍTULO 4
173
CONTEMPLAÇÃO E DIÁLOGO NA ERA DA INTERNET
que ele conseguiu captar o conceito que o fotógrafo quis passar. O mesmo usuário, então,
volta a dialogar com o fotógrafo:
Para mim essa imagem não defende tanto uma posição política particular como
representa a realidade: essa é a maneira pela qual as pessoas realmente usam pessoas
(e alguém pode achar um jeito de reverter isso, para que sejam as mulheres que usem
as cordas, se alguém assim o escolher). Consequentemente, o ponto não é discutir a
favor ou contra o feminismo aqui, mas reconhecer que de alguma forma a foto é
sobre manipulação, e eu não quero dizer manipulação digital, etc., mas o
CONCEITO de manipulação (nesse caso de um homem manipulando uma mulher,
mas em outro caso possivelmente o reverso, ou algum outro tema, como banqueiros
de Wall Street ou publicitários da Madison Avenue manipulando consumidores, etc.
ad infinitum). [...] ela (a foto) “fala” sobre “educação” de uma maneira não
didática.
132
Fig. 101: Education. Foto de Andi Popescu, postada em 16 de março de 2009
http://photo.net/photo-of-the-week-discussion-forum/00Slug
O Photo.Net ainda disponibiliza uma área de Galeria com fotos dos membros do
site, aonde cada membro pode ter um portfólio. As fotos podem ser avaliadas pelos outros
usuários e são classificadas de acordo com as avaliações recebidas. Existem ainda áreas
voltadas para técnicas fotográficas e equipamentos. Os editores do site também fazem
suas escolhas e as exibem em galerias classificadas sob algumas categorias, como
‘Documental’, ‘Linhas Abstratas’, ‘Paisagens’, ‘Verão’, ‘Shows’, ‘Abstrato’, entre
132
To me this image does not so much advocate a particular political position as represent a reality: this is the way
people do in fact use people (and one might find a way to reverse it so that it is women wielding the strings if one so
chose). Therefore the point is not to argue for or against feminism here, but it is to recognize that in some sense the
photo is about manipulation, and I do not mean digital manipulation, etc., but the CONCEPT of manipulation (in this
case of a man manipulating women, but in another case possibly the reverse, or some other theme, such as Wall Street
bankers or Madison Avenue advertising types manipulating consumers, etc. ad infinitum ), […] it “talks” about
“education” in a non-didatic way.” Disponível em (http://photo.net/photo-of-the-week-discussion-forum/00Slug)
CAPÍTULO 4
174
CONTEMPLAÇÃO E DIÁLOGO NA ERA DA INTERNET
outros. Existe, ainda, um projeto fotográfico mensal, com um tema proposto pelo site, do
qual qualquer usuário pode participar. O usuário deve postar uma imagem inédita, que
não faça parte do site ainda e ao fazer parte do projeto do mês, ela pode sofrer os
comentários de outros usuários.
O site se propõe a ser uma ferramenta útil na discussão sobre a fotografia, com
uma postura voltada mais para o debate do que para a formação de comunidades e laços
sociais. Existem fóruns e avaliações e não grupos de interesse e formação de redes de
contatos. No entanto, é preciso ainda haver uma troca de ideias maior entre os usuários
para que se possa realmente aproveitar suas funcionalidades. Muitos membros apenas
postam fotos, esperando comentários e avaliações, mas não dão a contrapartida de
comentar e deixar a sua opinião sobre as fotos de outros. Eis aí um bom exemplo de
possível enriquecimento da linguagem fotográfica, porém, cabe a cada usuário escolher o
caminho a seguir dentre as possibilidades oferecidas.
Existem ainda sites que exibem portfólios de fotógrafos. O Masters of
Photography (http://www.masters-of-photography.com/), por exemplo, se volta apenas ao
trabalho de fotógrafos consagrados, como Ansel Adams, Eugene Atget, Brasaï, Robert
Doisneau, Walker Evans, Roger Fenton, William Klein, Robert Mapplethorpe, Sebastião
Salgado, Fox Talbot, Garry Winogrand, entre vários outros. Já o Photography-Now
(http://photography-now.net/international_photography_index/), exibe tanto um portfólio
de fotógrafos consagrados quanto de fotógrafos contemporâneos. Esses sites apresentam a
vantagem de tornar mais acessível as obras de grandes fotógrafos atuais e consagrados
para um maior número de pessoas.
O site Zone Zero (www.zonezero.com) tem como foco principal os portfólios de
fotógrafos contemporâneos e a área ‘Galeria’, onde são publicados ensaios fotográficos
sob a curadoria dos editores do site. Muitos desses fotógrafos exibidos no portfólio não
são tão conhecidos, mas encontram ali um espaço para divulgar seus trabalhos – que são
classificados segundo as seguintes categorias: ‘Paisagem’, ‘Retrato’, ‘Nu’,
‘Experimental’, ‘Documental’, ‘Street’ e ‘Vários’. O site não possui funcionalidades que
permitam o comentário das fotos por outros usuários. Ele ainda disponibiliza alguns
artigos, centralizados na área ‘Magazine’.
Um site chamado Burn (www.burnmagazine.org) também tem a proposta de
receber ensaios e imagens de fotógrafos contemporâneos não muito conhecidos. Os
ensaios são o foco principal do site e permitem comentários por outros usuários. Existe
uma área também de fotos selecionadas, igualmente abertas a comentários. O site não
CAPÍTULO 4
175
CONTEMPLAÇÃO E DIÁLOGO NA ERA DA INTERNET
funciona como uma comunidade, ou seja, não se adicionam membros formando uma rede
social e não existem grupos de interesse, apenas a discussão das imagens e ensaios
publicados por meio dos comentários. Todas as fotografias e ensaios passam pela
curadoria de um membro da Magnum, o fotógrafo David Alan Harvey. Aqui vemos uma
proposta de discussão sobre fotografia que é bem utilizada. O fotógrafo pode
contextualizar seu ensaio, com um texto, da forma que achar mais conveniente e pode
também fazê-lo com cada foto individualmente. Os comentários geralmente são diretos e
relevantes e podem conter tanto elogios quanto críticas. Abordam as questões técnicas,
principalmente, mas dão muita atenção ao aspecto conceitual também.
Além desses exemplos mostrados aqui, existem ainda uma infinidade de blogs e
sites de fotógrafos individuais ou de grupos de pessoas interessadas em fotografia
133
, que
trazem notícias de eventos, descobertas de novos fotógrafos, artigos, curiosidades,
trabalhos próprios, entre tantos outros tópicos. Existe, portanto, uma possibilidade de
pegarmos o caminho ‘Através do espelho’, ou melhor, através da tela do computador, que
permita um relacionamento proveitoso com a fotografia, de forma a enriquecer a
linguagem fotográfica. No entanto, não é sempre esse tipo de uso que verificamos nos
sites, blogs, fóruns e comunidades voltadas para fotografia. Um uso mais consciente das
possibilidades que temos ao alcance de nossas mãos e dentro de nossas próprias casas
levaria a um maior entendimento e enriquecimento da linguagem fotográfica
contemporânea e, consequentemente, a um maior entendimento de que a fotografia é uma
forma de interpretação e de conhecimento tanto do mundo quanto de nós mesmos. Assim,
retomamos, mais uma vez, a proposta de Flusser, de que se pense em uma filosofia da
fotografia, por ser essa, talvez, segundo o autor, a única forma de uma “[…] reflexão
sobre as possibilidades de se viver livremente num mundo programado por aparelhos.”
(FLUSSER, 1998, p.96).
133
Alguns exemplos de blogs e sites brasileiros voltados para fotografia: Trama Fotográfica
(www.tramafotografica.wordpress.com), Câmara Obscura (www.camaraobscura.fot.br),
Fotoclube f/508 (www.fotoclubef508.wordpress.com), Pictura Pixel (www.picturapixel.com),
MyClix (www.myclix.com.br/blog), entre outros.
CAPÍTULO 4
176
5. CONCLUSÃO
177
CONCLUSÃO
Ao propor uma pesquisa sobre as configurações da linguagem fotográfica na
internet, nos voltamos principalmente às dinâmicas de uso da fotografia em comunidades
virtuais, ambiente onde verificamos a existência de um acúmulo de imagens cujo
aumento contínuo nos chamou atenção. Nesse cenário de produção desenfreada de
imagens, em que tanto as máquinas fotográficas quanto, e principalmente, os meios de
distribuição e compartilhamento de fotografias tornaram-se mais acessíveis, procuramos
investigar as possíveis alterações nos padrões estéticos da fotografia bem como em sua
função como elo social.
Assim, começamos por uma perspectiva histórica da fotografia para entendermos
o que levou ao surgimento de uma linguagem fotográfica própria, bem como quais são
suas características. Esses dados são extremamente importantes na investigação da
linguagem fotográfica contemporânea, inclusive por nos fornecer alguns parâmetros
comparativos. A perspectiva histórica também nos ajudou a encontrar as recorrências de
determinados usos e práticas da fotografia entendida como símbolo e não como índice ao
longo da evolução da linguagem fotográfica de modo a consegurimos propor caminhos
para uma linguagem que se encontra, hoje, em plena transformação e cujos resultados
ainda não sabemos quais serão.
Além das comunidades virtuais, outros sites que controlam a venda, distribuição,
e uso de fotografias são os bancos de imagens. Por isso, dedicamos um capítulo para a
investigação de cada um desses ambientes. Como surgiram, como funcionam, quais as
dinâmicas promovidas por seus usuários, etc. Buscamos, durante toda a pesquisa, dar
relevância ao papel desses usuários, pois são eles que, sendo fotógrafos profissionais ou
amadores, fazem uso da fotografia na contemporaneidade. Dentre as dinâmicas
investigadas, aquela que mereceu maior atenção foi a relacionada ao estabelecimento de
identidades, promotora dos laços sociais na rede, e como essa preocupação excessiva com
o aspecto identitário levou a um esquecimento do papel simbólico da fotografia como
forma de conhecimento e de promoção de uma estética fotográfica mais plural.
Por fim, diante desse cenário, e comparando-o aos exemplos que temos, na
história da fotografia, de percepções da linguagem fotográfica de forma mais subjetiva
(que gera conhecimento e se distancia do pensamento indicial de espelho do real),
propusemos o diálogo e a contemplação como caminhos possíveis para que a linguagem
fotográfica continue sua evolução rumo a uma compreensão cada vez maior de seu poder
interpretativo da realidade visível. Para isso, fizemos uso das teorias de Bachelard sobre o
instante poético. De modo contrário, diante da enorme produção acéfala de imagens,
CAPÍTULO 5
178
CONCLUSÃO
vemos que a linguagem fotográfica pode acabar se encaminhando na direção de uma
dinâmica que apenas reforce conceitos e visibilidades estereotipados da realidade, sem
questionamento – situação favorável ao funcionamento dos meios de comunicação
atualmente, que promovem imagens de leitura rápida e, consequentemente, uma estética
padrão e não plural.
Assim, levantamos duas perguntas finais que podem ajudar na reflexão de
propostas que vão de encontro a um caminho mais expressivo da fotografia: 1) Como as
comunidades virtuais podem levar ao diálogo e à contemplação? 2) Como as imagens de
comunidades virtuais podem ser uma alternativa à padronização estética das imagens dos
bancos de imagem tradicionais?
CAPÍTULO 5
179
CONCLUSÃO
5.1 Como comunidades virtuais podem levar ao diálogo e à
contemplação?
Vimos que a linguagem fotográfica na internet passa por grandes transformações
que acompanham não apenas as mudanças tecnológicas mas sociais também. Diante
dessas transformações percebemos que se abrem tanto um caminho que entende a
fotografia apenas como reforçadora da atual compreensão que temos sobre o mundo
visível, baseada em antigos clichês, quanto um caminho que concebe a fotografia como
forma de conhecimento das múltiplas visibilidades possíveis da realidade, fruto da
interpretação subjetiva daqueles que entendem o mundo como imagem e usam a
fotografia nesse processo. A escolha do segundo caminho, como defendemos ao longo de
toda a pesquisa, nos leva não apenas a uma realidade mas também a uma estética mais
plural, estimulando a troca de informações, de conhecimentos e o questionamento entre
pessoas e grupos diferentes. Para tomarmos o segundo caminho, propusemos aqui a
escolha de uma relação com a fotografia que promova o diálogo e a contemplação.
O diálogo proposto deve se estabelecer de cinco formas. Primeiramente, supomos
que para ocorrer o diálogo entre o fotógrafo e o mundo visível deve existir uma pré-
disposição desse ator em estar aberto (sensivelmente) a captar o aceno do inusitado no
cotidiano do mundo visível e essa abertura, para existir, depende do tempo de
contemplação, mas não um tempo cronológico como fizemos questão de ressaltar, mas
um tempo que é entendido pelo instante poético bachelardiano, de duração vertical (como
propõe o filósofo), particular e subjetiva, de acordo com a experiência daquele que o
vivencia. Por isso, esse diálogo entre o fotógrafo e o mundo visível não pode existir
dissociado do segundo diálogo proposto nesta pesquisa: aquele entre o fotógrafo e suas
imagens internas. É esse processo que vai determinar como o fotógrafo vai imprimir a sua
interpretação da realidade material na fotografia, por meio de suas escolhas. Nessa
relação, chamamos atenção para o papel da experiência. Segundo Heidegger, o homem só
se configura como um ser a partir do momento em que ele se entende como parte desse
mundo, vivenciando suas experiências no tempo e no espaço desse mundo. E, assim, ao
conceber o mundo como imagem, na tentativa de comprendê-lo, o homem, numa
contemplação ativa – pois contempla-o ao mesmo tempo em que faz parte dele -, tem o
mundo diante de si, podendo interpretá-lo subjetivamente a partir de seu papel de sujeito
e objeto nessa relação.
CAPÍTULO 5
180
CONCLUSÃO
Isso nos leva ao terceiro tipo de diálogo que propusemos: aquele que acontece
entre o fotógrafo e o aparelho. Para conseguir imprimir a sua interpretação subjetiva da
realidade na fotografia, o fotógrafo deve saber manipular o aparelho, fazendo dele um
aliado, subvertendo-o e não se rendendo às possibilidades de uso que ele aparentemente
oferece. Caso contrário, teremos uma imagem que denota o deslumbramento com as
possibilidades do aparelho, muitas vezes fruto do uso não refletido dessas possibilidades.
O quarto diálogo pressupõe uma participação e uma troca de informações entre os
próprios fotógrafos. Esse diálogo é importante para o fortalecimento de todos os outros.
Abordamos, então, as possibilidades desse diálogo nas comunidades virtuais que se
apresentam, em sua concepção inicial utópica, como ágoras virtuais do mundo
contemporâneo. No entanto, ao analisarmos o flickr e os comentários trocados entre seus
usuários encontramos um mau uso das ferramentas de comunicação que disponibiliza. O
teor desses comentários não ultrapassa a esfera do superficial, de análises técnicas de
aspectos indiciais das fotos. Ali, em sua maioria, os membros da comunidade se
esquecem dos aspectos simbólicos das imagens. O que se vê é uma troca de elogios por
meio de um emprego excessivo de adjetivos cujo objetivo principal é demonstrar
admiração para, assim, também atrair admiradores. E, nesse ciclo, os usuários buscam
seguir determinados padrões estéticos – entre eles encontramos características de um
estilo que o The New York Times Magazine chamou de flickr style – para garantir a
inserção no grupo, fortalecendo suas identidades, chamando a atenção dos outros
membros da comunidade e, consequentemente, atraindo comentários, favoritações que
tornem seu perfil popular e aumente a sua rede de laços sociais. Encontramos nesse
processo uma dinâmica em ciclos, pois a consequência dessa preocupação é a atração dos
comentários que exemplificamos acima. E assim a dinâmica se reinicia.
Essa postura leva a uma produção fotográfica narcísica cujo único objetivo é
seguir um determinado padrão que garante a popularidade dentro da comunidade e o
fortalecimento das identidades e laços sociais. Não por acaso, um dos tipos de fotografia
mais comuns no flickr é o autorretrato, assim como já mostramos aqui com vários
exemplos. Ao seguir esse caminho, os usuários deixam de lado o papel interpretativo e
simbólico da fotografia, reforçando um aspecto indicial que acaba por levar a um reforço
dos estereótipos.
Dessa forma, percebemos que o último tipo de diálogo que apresentamos, aquele
entre a fotografia e o espectador, acaba não acontecendo. Ao invés de estimular a
decifração e questionar a realidade visível, a fotografia voltada a um objetivo narcísico e
CAPÍTULO 5
181
CONCLUSÃO
individual reforça os clichês, e, portanto, não necessita do tempo da contemplação para
ser decifrada. Ela é lida de maneira rápida, imediata. Não há troca nem diálogo. Não há
contemplação, apenas imposição. Queremos deixar claro que não defendemos nesta
pesquisa uma postura elitista de que a manifestação fotográfica de amadores, bem como a
ampliação do uso da fotografia seja o causador dessa situação. Como afirmamos, segundo
Bourdieu, qualquer uso fotográfico, por mais social que seja, não é completamente
desprovido de uma intencionalidade estética, pois de certa forma, representa a vivência de
uma determinada experiência. Daí a importância do diálogo, pois somente por meio dele
podem ser entendidas essas intencionalidades, mesmo aquelas não decifradas
rapidamente, fora de um padrão determinado.
Devido à força desse fator social nas práticas fotográficas das comunidades
virtuais como o flickr, o diálogo e a contemplação, nesses ambientes, dificilmente irá
suprimir a função social da fotografia. Essas práticas (dialógica, contemplativa e social)
devem, portanto, acontecer simultaneamente. No entanto, vimos aqui que a mera
preocupação em usar a imagem para estabelecer laços sociais pode nos levar pelo
caminho dos reflexos inebriantes de Narciso, fazendo com que nos afundemos em nossas
próprias imagens e não percebamos as demais nuances do mundo visível. Por isso, o
primeiro passo para que as comunidades virtuais possam estimular o diálogo e a
contemplação na linguagem fotográfica em rede parece ser o de resgatar o aspecto
solidário tão comum às comunidades virtuais do final da década de 70 e início da década
de 80, como vivenciado por Rheingold.
Nessa época era mais fácil monitorar o uso das redes sociais. Algumas centenas
de pessoas, concentradas principalmente nos Estados Unidos, experimentaram essas
ferramentas em seu início e chegavam a consolidar as relações construídas na rede em
ambiente offline com encontros reais, estreitando os laços sociais e de amizade, o que, por
sua vez, ajudava no fortalecimento do caráter solidário das comunidades. Com a
expansão do uso de computadores e da internet, milhões de pessoas em todo o mundo
passaram a estar online constantemente e, consequentemente, passou a ser mais difícil
extrapolar essas relações virtuais para o mundo real. As relações se tornaram mais fluidas,
menos intensas e mais efêmeras, como também aponta Bauman. E assim, a solidariedade
entre os membros dessas redes perdeu cada vez mais força. E por caráter solidário
entendemos aqui não apenas a ajuda que pode ser oferecida a um outro usuário da
comunidade, mas, principalmente o respeito e apreciação por suas opiniões e diferenças.
CAPÍTULO 5
182
CONCLUSÃO
Solidariedade no sentido de entender que além de um espaço que possibilita a expressão
pessoal, as comunidades virtuais são, principalmente, um espaço de troca.
O fortalecimento de uma identidade
134
muitas vezes se confunde, nessas
comunidades, com o fortalecimento da individualidade. Castells defende que:
Afirmação de identidade não significa necessariamente incapacidade de
relacionar-se com outras identidades [...], ou abarcar toda a sociedade sob essa
identidade (por exemplo, o fundamentalismo religioso aspira converter todo
mundo). Mas as relações sociais são definidas vis-à-vis as outras, com base nos
atributos culturais que especificam a identidade. (CASTELLS, 2008, p. 58)
É por isso que as ferramentas dessas comunidades são chamadas de colaborativas.
Elas já disponibilizam todas as funcionalidades para que possam ser assim caracterizadas
e, para tanto, dependem apenas do uso que é feito delas. O usuário de internet está
descobrindo que as dinâmicas de comunicação características do século XX, em que
havia um centro emissor da mensagem para receptores passivos, estão desaparecendo. Em
seu lugar, surge um sistema de comunicação em que o receptor também é produtor e não
recebe mais passivamente a mensagem, mas a interpreta individual e coletivamente.
Nesse sistema, a mensagem é segmentada, adapta-se “[...] às ideologias, valores, gostos e
estilos de vida. Assim, devido à diversidade da mídia e à possibilidade de visar o público-
alvo, podemos afirmar que no novo sistema de mídia, a mensagem é o meio. Ou seja, as
características da mensagem moldarão as características do meio.” (CASTELLS, 2008,
p.425)
Essa dinâmica justifica o fato de afirmarmos que as comunidades virtuais podem
contribuir com o diálogo e a contemplação para o desenvolvimento da linguagem
fotográfica dependendo do uso que seus membros atribuam a elas. A partir do momento
em que os usuários de comunidades virtuais se apoderarem das possibilidades de
expressão descentralizadoras que as redes oferecem e perceberem como podem alterar a
forma de interpretar e compreender o mundo visível através de sua própria produção –
seja por meio de textos, imagens, produtos audiovisuais, etc. –, as dinâmicas
participativas de comunicação se consolidarão, e os próprios meios terão de se adaptar a
essa nova realidade.
134
Manuel Castells sugere uma boa definição de identidade no contexto da sociedade em rede que analisamos e que
também é analisado por ele: “Por identidade, entendo o processo pelo qual um ator social se reconhece e constrói
significado principalmente com base em determinado atributo cultural ou conjunto de atributos, a ponto de excluir uma
referência mais ampla a outras estruturas sociais.” (2008, pp. 57, 58)
CAPÍTULO 5
183
CONCLUSÃO
Para tanto, devemos, novamente, nos lembrar de Flusser, que alerta para a
necessidade de sabermos manipular o aparelho de forma a não sermos controlados por
ele. Vimos que diante do deslumbramento que muitos revelam frente às possibilidades
tecnológicas das câmeras e softwares de edição e da ampla disbribuição e circulação da
imagem nos sites e comunidades da internet, as práticas fotográficas por vezes sucumbem
às facilidades da reprodução desenfreada e sem apelo à reflexão, gerando cifras como as
que vemos na página inicial do flickr (em torno de 6.000 uploads de fotos por minuto)
135
.
Por isso devemos superar essa fase do fascínio inicial para conseguir vislumbrar as
concretas possibilidades expressivas que temos em nossas mãos, usando as ferramentas
disponíveis nas comunidades virtuais como aliadas na construção de uma linguagem
fotográfica que se apresente, também, como forma de conhecimento por meio da imagem.
O flickr, por exemplo, poderia estimular mais a discussão em torno da fotografia.
A exemplo do que faz o Photo.Net, se uma comunidade como o flickr escolhesse algumas
fotos entre as que são expostas no interestingness todos os dias, e propusesse um debate
em torno daquela imagem por uma semana, por exemplo – para que os usuários tivessem
tempo de observá-la e interpretá-la –, o entendimento e o olhar desse usuário sobre a
imagem gradativamente evoluiria. Outra possibilidade que poderia ser melhor explorada
no flickr é o The Commons. Sem tirar a possibilidade de que qualquer um possa comentar
as fotos de acervos públicos, muitas delas contendo obras de mestres da fotografia, o site
poderia trazer explicações e interpretações de teóricos da arte e da fotografia, o que
agregaria também mais informações relevantes à imagem e ao usuário da comunidade.
Essas são algumas pequenas e simples sugestões, em uma rápida observação sobre
as funcionalidades do site, que talvez pudessem incentivar o usuário comum a
desenvolver seu relacionamento com a imagem. O flickr já possui uma interface acessível
e de fácil entendimento por parte do usuário, diferentemente do Photo.Net, que usamos
aqui para comparação. Uma interface não intuitiva dificulta o uso da ferramenta e impede
que o membro da comunidade virtual desfrute de todas as possibilidades que ela tem a
oferecer. Já falamos aqui sobre a importância da interface para a subversão e o uso
consciente dos aparelhos tecnológicos, ainda mais em um mundo em que não apenas a
fotografia é mediada pela internet, mas grande parte de nossos relacionamentos sociais.
No entanto, essa observação mais técnica representa apenas o ápice do problema
de como usar as comunidades virtuais para estimular a evolução da linguagem fotográfica
135
Dado obtido na home do site flickr (www.flickr.com) em 18.10.09: 6.997 uploads no último minuto.
CAPÍTULO 5
184
CONCLUSÃO
com base no diálogo e na contemplação. Essas ferramentas do flickr citadas acima como
exemplo já existem, apenas a forma de usá-las é que sofreria alguma alteração e faria
alguma diferença, que, por sua vez, se manifestaria em um maior entendimento das
diferentes formas de interpretar o mundo visível.
E talvez este seja o maior aprendizado que as comunidades virtuais possam
oferecer ao desenvolvimento da linguagem fotográfica tal como defendemos aqui: o
entendimento de que as realidades são diferentes dentro de um mesmo mundo visível; de
que podemos e devemos respeitar o diferente e as diversas formas de olhar. É aí que
voltamos ao nosso ponto de partida que diz respeito à solidariedade. Se mantivermos o
respeito e soubermos apreciar opiniões diferentes das nossas, construindo um diálogo,
trocando ideias e despertando reflexões, poderemos contribuir para uma realidade cujo
conhecimento seja mais plural e descentralizado.
Não queremos exigir aqui que o fotógrafo amador e usuário das redes sociais
pratique a fotografia apenas se for detentor de uma base teórico-filosófica voltada à área.
Já deixamos claro que essa prática – a fotográfica - não tem como se desvincular de seus
usos sociais. No entanto, se o usuário passar a se preocupar com a recepção de sua
imagem por outros membros, sabendo que a sua experiência de mundo é mostrada
naquela fotografia como uma forma diferente de interpretação da realidade e se, de
maneira solidária, respeitar outras formas de ver de diversos outros usuários, ele acabará
contribuindo, mesmo que não intencionalmente, para o desenvolvimento da linguagem
fotográfica de forma a estimular o diálogo e a contemplação. E para seguir esse caminho,
podemos tomar como exemplo uma dinâmica muito própria à fotografia doméstica e
familiar: a de contar histórias.
Armando Silva, em seu livro Álbum de família: a imagem de nós mesmos, ao
estudar esses objetos durante a sua tese de doutorado, nos relata diversas situações
ocorridas durante sua pesquisa com famílias colombianas em que se estabelece um
verdadeiro ritual familiar para a visualização do álbum, em que todos se reunem e alguém
mostra as imagens enquanto conta histórias relacionadas a elas. Não se trata apenas de
observar a imagem como um espelho do real – como reflexo. Existe um contexto que
confere significado às imagens, que convida todos os interlocutores daquela história a
atravessarem o espelho da realidade aparente da fotografia e descobrirem o que existe por
trás dela. Trata-se de uma experiência: a experiência de ver o álbum em conjunto e
compartilhar histórias referentes a um determinado contexto social.
CAPÍTULO 5
185
CONCLUSÃO
Os usuários de comunidades virtuais podem, da mesma forma, convidar seus
contatos, seus amigos virtuais a compartilhar histórias com eles, contextualizando suas
imagens, conferindo a elas novos significados e gerando novas experiências, dentro de
um ambiente social, afinando-se com ideia de Bourdieu de que a fotografia, em seus usos
sociais, não se desvincula totalmente de um caráter estético. Diante do deslumbramento
tecnológico muitos ainda não perceberam que experimentar o mundo não quer dizer
registrar cada momento da vida para que eles não desapareçam. Quer dizer contextualizar
as experiências e o cotidiano, ou seja, contar histórias e, assim, entender o mundo como
imagem, como propõe Heidegger, dentro da perspectiva que apenas somos quando nos
percebemos como sujeitos que experienciam o espaço e o tempo desse mundo e, ao
entendê-lo como imagem, também entendemos que fazemos parte dele – e dessa imagem.
Daí a importância da experiência e, consequentemente, da contextualização; da história.
Contar histórias pressupõe uma experiência estética que permite enxergar além
das aparências do mundo visível. E assim, a contemplação ativa e não passiva, ganha
importância, como propõe Bachelard, desvinculada do aspecto cronológico, e ligada à
experiência. Se vivenciarmos o mundo apenas através de imagens repetitivas baseadas em
clichês e estereótipos, com medo de que, de outra maneira, os momentos se esvaneçam,
acabaremos por não experimentá-los tão plenamente quanto pretendíamos e
apreenderemos apenas seus reflexos e não os momentos propriamente ditos. No entanto,
se nossas imagens forem fruto da experiência estética contextualizada socialmente, fruto
da vivência do instante poético como expusemos no corpo desta pesquisa – caso em que
podemos até vislumbrar a elaboração e exposição de ensaios fotográficos conceituais e
conjuntos de imagens que fortaleçam uma nova visão da realidade nessas comunidades –,
aí sim poderemos atravessar o espelho da realidade, desvelando-a. E poderemos convidar
os espectadores de nossas imagens a fazerem essa travessia conosco na busca por sua
interpretação própria da imagem e do mundo visível, promovendo o diálogo e a
contemplação.
CAPÍTULO 5
186
CONCLUSÃO
5.2 Como as imagens de comunidades virtuais podem ser uma
alternativa à padronização estética
das imagens dos bancos
de imagem tradicionais.
Manuel Castells afirma que no novo sistema de mídia as características da
mensagem podem moldar o meio. Portanto, com a disponibilização de funcionalidades,
sites e comunidades virtuais na internet que potencializam a participação de qualquer
usuário da rede, tornando-o produtor sem a necessidade de sair de casa, ou seja, em
emissor no novo sistema de comunicação, essa transformação tende a se consolidar. No
entanto, ainda falta uma maior conscientização de uso e de apropriação dos poderes de
expressão e troca de ideias proporcionada pela internet e pelas novas tecnologias. E,
claro, falta também torná-la mais acessível às diversas camadas da população. Por mais
que o seu uso tenha aumentado exponencialmente nos últimos anos em todo mundo,
ainda existe uma legião de excluídos desse bazar – como coloca Bauman – não apenas
cultural mas também digital.
A inclusão tem sido um esforço comum entre diversos projetos mundo afora. No
Brasil temos vários exemplos, como o projeto Imagens do Povo coordenado por João
Roberto Ripper no Rio de Janeiro; o projeto Viva Favela realizado pela ONG Viva Rio
também no Rio de Janeiro; o projeto Coque Vive em Recife, o projeto Libertas em
Brasília, entre tantos outros. De um modo geral, esses projetos buscam fazer com que
pessoas socialmente excluídas produzam imagens que falem da sua realidade, sob seu
ponto de vista, seja através de fotografia ou de vídeos. E a internet tem se mostrado um
excelente meio de divulgação para esses trabalhos, mostrando a estética da favela e da
prisão, por exemplo, de um ponto de vista diferente daquele dos meios de comunicação,
livre dos estereótipos e ligado às experiências de quem vivencia essas realidades.
O Imagens do Povo (www.imagensdopovo.org.br) “[...] desenvolve ações nas
esferas da educação, comunicação e cultura com intuito de democratizar o acesso à
linguagem fotográfica, apresentando a fotografia como técnica de expressão e visão
autoral da sociedade.”
136
O projeto foi criado em 2004 como parte da proposta sócio-
pedagógica do Observatório das Favelas. Seu objetivo é ser um centro de documentação e
formação de fotógrafos documentaristas. “Os participantes são estimulados a desenvolver
uma concepção fotográfica crítica que perpassa a produção das imagens, visando
136
Disponível em: <http://www.imagensdopovo.org.br/ip/paginas/index.asp?id_pagina=1>. Acessado em 19.09.09.
CAPÍTULO 5
187
CONCLUSÃO
contribuir para o respeito aos direitos humanos e a construção de uma sociedade mais
justa.”
137
O foco, portanto, é sobre um trabalho autoral que valorize a história e as
práticas culturais da comunidade do fotógrafo. No próprio site temos acesso a um banco
de imagens próprio que permite a compra das fotografias mediante escolha das imagens e
solicitação do orçamento.
Fig. 102: Primeiro turno das eleições de 2008 Fig. 103: Dia de calor na Maré
Nova Holanda Maré – Rio de Janeiro Parque Maré – Rio de Janeiro
Foto de: AF Rodrigues Foto de: AF Rodrigues
O fotógrafo AF Rodrigues, autor das fotos acima, tem um perfil no flickr
(www.flickr.com/photos/af_rodrigues/) e é o fundador de um grupo chamado ‘Fotografia
Documental’ (www.flickr.com/groups/517568@N25/)
138
na comunidade, que conta com
440 membros de várias nacionalidades além da brasileira. Na descrição de seu grupo, o
fotógrafo usa uma frase de João Roberto Ripper, que coordena o Imagens do Povo: “O
documentarista é, sobretudo, um fotógrafo que rompe com a hipócrita imparcialidade
jornalística.”
Apesar da proposta do grupo, percebemos que a maioria dos usuários, mesmo aí,
também se restringem aos comentários superficiais, adjetivados e de caráter indicial sobre
as fotos. As últimas postagens de AF Rodrigues, mostram fotografias tiradas do
movimento “Grito dos Excluídos” que no dia 07 de setembro de 2009, dia da
comemoração da independência do Brasil, realizou uma passeata no Rio de Janeiro. O
movimento é organizado em toda América Latina e acontece por meio de eventos locais
que podem ser acompanhados pelo site http://www.gritodosexcluidos.com.br/. Ao
procurar na internet a cobertura do evento por algum meio de comunicação de grande
porte, não encontramos nada. O resultado de nossas buscas acaba apontando para o site
do movimento e outros sites de pouca expressividade, reforçando o papel da cobertura de
137
Disponível em: <http://www.imagensdopovo.org.br/ip/paginas/index.asp?id_pagina=1>. Acessado em 19.09.09.
138
Ambas as páginas do flickr – a do perfil e do grupo de AF Rodrigues – foram acessadas em 19.09.09
CAPÍTULO 5
188
CONCLUSÃO
uma realidade local por quem faz parte dela, longe dos interesses de grandes empresas de
comunicação, cujo objetivo é, na grande maioria das vezes, o consumo.
Fig. 104: Grito dos excluídos 2009 Fig. 105: Grito dos Excluídos 2009
Foto de: AF Rodrigues Foto de: AF Rodrigues
O projeto Viva Favela (www.vivafavela.com.br) foi criado em 2001 e se estrutura
em um portal de notícias sobre as favelas, abordando temas como cotidiano, cultura,
esportes, emprego, economia, serviços, entre outros. Eles contam com uma equipe de
jornalistas e correspondentes comunitários – moradores de favelas capacitados a atuarem
como repórteres e fotógrafos. O projeto tem como metas “[...] a inclusão digital, a
democratização da informação e a redução da desigualdade social. […] E o resultado
mostra que há muito mais para se contar sobre as favelas do que histórias de violência e
narcotráfico.”
139
O projeto não está presente no flickr, mas possui uma comunidade no
orkut (www.orkut.com.br/Main#Community.aspx?cmm=33684890) e um perfil no
twitter (http://twitter.com/vivafavela).
Já o projeto Coque Vive (www.coquevive.org)
140
de Recife, realizado
principalmente pela Universidade Federal de Pernambuco juntamente com algumas
outras organizações, tem como objetivo melhorar a imagem da comunidade do Coque na
cidade. Por ser um lugar com alta taxa de criminalidade, os meios de comunicação geram
estereótipos sobre o lugar, usando termos como “a gente perigosa do coque” e reforçando
a discriminação da sociedade recifense em relação às pessoas que lá vivem.
[…] o projeto tem atuado junto aos jovens do bairro oferecendo cursos de
formação crítica e oficinas de capacitação para o manuseio técnico-expressivo das
mídias. Busca-se por meio dessa formação, crítica e técnica, estimular o
surgimento de estratégias de comunicação alternativas capazes de ofertar novos
139
Disponível em: < http://novo.vivafavela.com.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=41350&sid=72>.
Acessado em 19.09.09
140
Acessado em 19.09.09
CAPÍTULO 5
189
CONCLUSÃO
conteúdos sobre o Coque produzidos, agora, pelos seus próprios jovens (jornal
comunitário, fanzines, vídeos, fotos, blogs etc).
141
A produção fotográfica dos que participam do projeto pode ser visualizada na
galeria de fotos do site que leva o usuário a perfis criados no flickr, um para cada uma das
galerias mostradas no site – nove, ao todo. As fotos que são expostas nos perfis, de um
modo geral, atraem menos comentários do que as postadas em grupos, pois o grupo é o
local de encontro na comunidade. Por isso, infelizmente, vemos que as fotos do projeto
CoqueVive praticamente não têm comentários, o que reforça a prioridade dada à dinâmica
social no flickr e que, para se desenvolver, requer um know how de como transitar na
comunidade para estabelecer os laços sociais.
Fig. 106: Sapo Fig. 107: Sem título
www.flickr.com/photos/olharsobreocoque/2729654673/ www.flickr.com/photos/olharsobreocoque/1247905091/
O projeto Libertas foi realizado pelo fotógrafo Humberto Lemos, do fotoclube
f/508, que promoveu uma oficina fotográfica com menores detentos do CAJE (Centro de
Atendimento Juvenil Especializado) em Brasília (www.fotoclubef508.com.br/
/post.php?id=125), conseguindo, inclusive, uma ordem judicial que permitiu levar seus
alunos a uma exposição fotográfica em cartaz em um museu da cidade durante o período
das aulas. O resultado desse projeto são imagens que mostram muito da personalidade e
do imaginário subjetivo de cada participante, nenhuma delas ligada a um contexto de
violência, tão reforçado pela mídia.
As 550 imagens produzidas pelos alunos, que atuaram como fotógrafos livres de
qualquer censura, foram tomadas pelo grupo como base para criação de narrativas
visuais, com a intenção de mobilizar “o pensar” crítico do cotidiano nesta
141
Disponível em: <http://www.coquevive.org/base.php?p=coquevive&s=oprojeto>. Acessado em 19.09.09.
CAPÍTULO 5
190
CONCLUSÃO
instituição. No olhar compartilhado propiciado pelo ato fotográfico, em nenhuma
das fotos produzidas é retratada a violência. Acreditamos, assim, ter encontrado
diversos estímulos que levaram a repensar, refletir e redimensionar as relações
estabelecidas entre o eu e o outro, entre alunos com diferentes características e
necessidades de aprendizagem. No diálogo desencadeado durante o processo de
produção e leitura das fotografias, foram reveladas características e
especificidades que aproximam e distinguem os sujeitos que estão envolvidos e
interagindo nesse processo.
142
O projeto conta, além da divulgação no site do f/508, com uma divulgação no
flickr, em um álbum no perfil do fotoclube f/508. Assim como no caso das fotos da
comunidade do Coque, as fotos do projeto Libertas, por estarem expostas fora de um
grupo no flickr, acabam não recebendo muitos comentários. Ainda assim, esse caso
constitui mais um exemplo que busca essa comunidade virtual como forma de tornar de
conhecimento público um trabalho ou projeto realizado numa esfera local
(www.flickr.com/photos/fotoclubef508/sets/72157617869383755/). As fotos abaixo são
de dois detentos do CAJE, alunos dessa oficina, e mostram, como dissemos
anteriormente, ao invés do contexto da violência, um olhar que busca, aparentemente, na
primeira foto, a liberdade - do pássaro João de Barro que, ao contrário do detento, pode
escapar da prisão dos arames – e, na segunda foto, busca aquilo que está além das
restrições físicas da cadeia, em uma visão que se volta ao que está do outro lado de uma
janela - uma visão através da janela -, reforçando um conceito ligado à passagem para um
mundo diferente daquele em que a fotógrafa está inserida.
Fig. 108: Sem Título Fig. 109: Sem título
Foto de: Gabriel Foto de: Aline
Esses são apenas alguns projetos de inclusão dentre vários outros existentes. No
entanto, apesar das excelentes iniciativas, a inclusão, apesar de necessária, não é o
142
Disponível em: <http://www.fotoclubef508.com/post.php?id=125>. Acessado em 19.09.09.
CAPÍTULO 5
191
CONCLUSÃO
suficiente para promover uma expansão dos usos da rede que supere a situação de
deslumbramento tecnológico inicial em que vivemos. As ações em ambiente digital
devem extrapolar cada vez mais as fronteiras do virtual, e se integrarem à vida real.
Assim, espera-se que o usuário se torne cada vez mais ciente de seu poder de expressão e
se enxergue enquanto cidadão, desenvolvendo o espírito crítico necessário para
questionar a imposição da imagem de leitura rápida, ligada a uma estética que nada tem a
ver com a sua história e experiência de vida. A partir de então, ele, talvez, poderá até vir a
não mais se identificar com as imagens repetitivas e estereotipadas, pois elas não lhe
dirão nada, já que essas imagens são usadas, principalmente pelos meios de comunicação
de forma massificada, descontextualizada e para fins meramente ilustrativos.
Numa visão utópica, o funcionamento dessa dinâmica poderia gerar um ciclo em
que o usuário, ao se fortalecer como cidadão, tornar-se-ia ciente de seu papel participativo
na sociedade, e quanto mais ele questionasse, mais os próprios meios de comunicação se
sentiriam obrigados a responder a esses questionamentos e a se adaptarem às novas
demandas, chegando ao ponto em que os meios de comunicação se inspirassem no
comportamento do consumidor e não o contrário. Mas, claro, essas são suposições
bastante utópicas mas, esperamos, não impossíveis.
As transformações estão apenas começando, e podem nos levar a uma mudança de
estética da imagem que contemple também aquilo que não é perfeito, aquilo que faz parte
do cotidiano das pessoas comuns, uma estética um pouco mais “suja” ou até mesmo um
pouco mais “fantástica”, mais real que a realidade, fruto de formas mais plurais e
descentralizadas de interpretar a realidade. As ferramentas já estão aí. Apesar das
mudanças que podem vir a sofrer, devemos permanecer atentos ao nosso papel enquanto
usuários delas e prezar por um uso dos aparelhos que dê voz às nossas expressões sem
cedermos ao deslumbramento das possibilidades disponíveis. Essa postura se refletiria
num uso consciente do aparelho, que promoveria o externamento de nossas imagens
endógenas, imprimindo a nossa interpretação subjetiva sobre a realidade.
Dessa forma talvez a participação dos usuários comuns de internet, como os
membros da comunidade flickr, pudesse fazer frente à prática de bancos de imagem
tradicionais como o gettyimages, por exemplo, que tentam cooptar as tentativas de
inovação na internet adequando-as ao seu padrão e aos seus interesses – que atendem de
maneira geral, às demandas dos meios de comunicação de massa.
Num cenário de participação massiva, porém consciente, as imagens poderiam
estar ligadas a uma prática que privilegiasse o diálogo e a contemplação sem se
CAPÍTULO 5
192
CONCLUSÃO
desvencilharem de seu aspecto social – já que é por meio das vivências sociais que se
concretizam as experiências de vida. Aí, sim, teríamos conseguido uma integração entre
mundo real e mundo virtual.
Portanto, vemos que para que as comunidades virtuais sejam uma alternativa à
padronização estética dos bancos de imagem tradicionais, a mudança deve começar pelas
pessoas e o uso que fazem das comunidades e da imagem. As lógicas sociais de projeção,
identificação e construção de identidades acabam por ditar o caminho do
desenvolvimento da linguagem fotográfica na internet. Se nos ativermos às práticas
solidárias características da época do surgimento das comunidades virtuais, e resistirmos
à tentação narcísica de nos afundarmos em nossas próprias imagens por mero
exibicionismo efêmero, talvez possamos promover um descentramento da produção de
imagens veiculadas na sociedade. Caso contrário, é provável que fiquemos presos de um
único lado do espelho, hipnotizados pelo reflexo aparente do mundo atrelado a uma
fotografia entendida como espelho do real. Enquanto isso, Alice, na expectativa de uma
postura que seja menos passiva e mais questionadora da realidade visível, que promova o
diálogo com nós mesmos, com os outros e com o mundo, permanecerá do outro lado a
nossa espera, mas nós não a enxergaremos.
CAPÍTULO 5
193
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