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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
ANELISE DOS SANTOS GUTTERRES
A MORADA COMO DURAÇÃO DA MEMÓRIA
Estudo antropológico das narrativas e trajetórias sociais de núcleos familiares e
redes de camadas médias urbanas habitantes da cidade de Porto Alegre, RS
Brasil e do bairro de San Telmo, na cidade de Buenos Aires Argentina
Porto Alegre
2010
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ANELISE DOS SANTOS GUTTERRES
A MORADA COMO DURAÇÃO DA MEMÓRIA
Estudo antropológico das narrativas e trajetórias sociais de núcleos familiares e
redes de camadas médias urbanas habitantes da cidade de Porto Alegre, RS
Brasil e do bairro de San Telmo, na cidade de Buenos Aires Argentina
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
sob orientação da Prof ª. Dr ª. Cornelia Eckert.
Porto Alegre
2010
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FOLHA DE APROVAÇÃO
ANELISE DOS SANTOS GUTTERRES
A MORADA COMO DURAÇÃO DA MEMÓRIA
Estudo antropológico das narrativas e trajetórias sociais de núcleos familiares e
redes de camadas médias urbanas habitantes da cidade de Porto Alegre, RS
Brasil e do bairro de San Telmo, na cidade de Buenos Aires Argentina
Dissertação de Mestrado aprovada no Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pela seguinte banca
examinadora:
__________________________________________
Prof ª. Dr ª Maria Henriqueta Creidy Satt (PUCRS)
__________________________________________
Prof . Dr. Charles Monteiro (PUCRS)
___________________________________________
Dr ª. Ana Luiza Carvalho da Rocha (UFRGS)
___________________________________________
Prof ª. Dr ª. Cornelia Eckert (UFRGS) presidente da banca
Porto Alegre
2010
4
DEDICATÓRIA
À Lucinda de Jesus dos Santos por ensinar-me sobre
a singularidade da categoria família.
5
EPÍGRAFE
nossa história pessoal nada mais é que a
narrativa de nossas ações descosidas
(Gaston Bachelard, 1988:39)
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AGRADECIMENTOS
A realização deste trabalho teve a contribuição de muitas pessoas e instituições
a qual gostaria de agradecer:
À minha orientadora e amiga Prof. Drª. Cornelia Eckert por ter me apresentado
a antropologia, por seu voto de confiança, incentivo e apoio às minhas escolhas no
curso dessa formação. E pela leitura atenta e cuidadosa desse trabalho, muito obrigada.
À orientadora de iniciação científica, Drª. Ana Luiza Carvalho da Rocha, que
no curso desses anos acabou se tornando colega para outros projetos de vida e amiga.
Muito obrigada por me acompanhar desde o início nessa aventura de formação, e por
me ensinar, entre tantas coisas, que as palavras também formam imagens.
Aos colegas e amigos do BIEV, companhias constantes frente aos sucessos e
fracassos do cotidiano, obrigada por estarem juntos nessa mesma aventura e
proporcionarem discussões, aprendizados e trocas, todos os dias: Drª. Viviane Vedana,
Dr. Rafael Victorino Devos, Bacharel em Ciências Sociais Priscila Farfan, Mestrando
em Antropologia Social Rafael Martins Lopo - os antigos. os estudantes de Ciências
Sociais, Luciana Tubello, Ana Parodi, Stéphanie Bexiga - os novos. Os mestres em
Antropologia Social: Thais Cunegatto, Paula Biazus, Luciana Mello, Fernanda
Rechemberg e Olavo Marques, ex-integrantes do BIEV e agora colegas de profissão,
muito obrigada.
Às amigas, que compreensivamente entenderam as centenas de negativas para
os encontros, passeios e viagens, sempre apoiando minha escolha com longos
telefonemas e palavras de incentivo. Cris Moreira, Carol Cozatti, Pati D`Ávila, Fê
Gabardo, Leal, Mila e Ana Paula Marcante muito, muito obrigada pelo apoio e pela
amizade.
Ao Programa de s-Graduação em Antropologia Social da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul pela excelente formação proporcionada. Aos professores
do corpo docente, especialmente, Dr. Carlos Steil, Drª. Denise Jardim, Dr. Ruben
Oliven e Dr. Bernardo Lewgoy e aos funcionários, em especial a Rose, por sua
eficiência e atenção, muito obrigada.
Aos colegas de mestrado, Mayra Lafoz Bertussi, Janaína Lobo, Eduardo
Martinelli. Leal, Damiana, Fernanda Tussi, Leonardo Targa e Rojane Brum Nunes,
muito obrigada por compartilharem trocas tão ricas no curso das disciplinas que fizemos
7
juntos e pelos humorados encontros de estudos para as provas e trabalhos. Ao amigo,
colega de mestrado e de intercâmbio, João Rosito, por compartilhar vidas,
caminhadas, descobertas e risadas em Porto Alegre e em Buenos Aires. Ao colega
Daniel De Bem pelas conversas e trocas de experiência no curso do intercâmbio e a
Marcelo Tadvald pela rica introdução ao cotidiano porteño.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior pela bolsa
de estudos CAPES/PROEX, recebida no período de março de 2009 a julho de 2009 e de
novembro de 2009 a março de 2010.
À Red de Asociación de posgrado en Antropología Social formada pelo
programa Binacional de Centros Asociados de Posgrado em Antropologia entre Brasil e
Argentina, e da qual eu recebi uma bolsa de estudos CAPES pelo período de agosto a
outubro de 2009 para intercâmbio estudantil na Universidad Nacional de San Martín
UNSAM e trabalho de campo em Buenos Aires/Argentina.
Aos colegas da disciplina de Antropología Comparada, e aos professores
Federico Neiburg e Fernando Rabossi, agradeço pelas trocas em sala de aula. As
colegas que fiz da UNSAM, Ana Fabaron, Carina Balladares, muito obrigada pela
paciência e compreensão que tiveram no curso do meu aprendizado da língua espanhola
e pelas trocas sempre muito ricas entre os contextos das nossas diferentes cidades e
distintos trabalhos de campo.
Aos professores Alejandro Grimson, Sergio Visacowsky, Rosana Guber e Luis
Ferreira pela atenção e pela orientação que dispensaram ao meu trabalho durante o
período de intercâmbio. A funcionária Laura Spialta, pelo auxílio às questões
burocráticas e cotidianas do intercâmbio e da rotina da UNSAM, obrigada.
Aos colegas da disciplina Antropología Urbana, cursada na Facultad de
Filosofía y Letras - Universidad Nacional de Buenos Aires, em especial a Paula
Yacovino, as Mercedes, Pico e Bracco que me auxiliaram na realização do trabalho de
campo - tanto indicando pessoas, quanto na escuta e na troca das experiências vividas
junto aos atores da pesquisa. Ao professor Ariel Gravano, que inspirado pela mesma
paixão ao tema da cidade, mantinha um diálogo aberto e humorado com seus alunos.
Pelas ricas trocas intelectuais e por ter me recebido em sua classe com ânimo e respeito,
muito obrigada.
Aos colegas do grupo de pesquisa ligado ao projeto de Investigación de
Ciencia y Técnica (PICT) de la Agencia Nacional de Ciencia y Técnica (ANCyT):
Cultura, patrimonio y desarrollo social: disputas por las apropiaciones del espacio
8
público y la gestión de la alteridad en la Ciudad de Buenos Aires dirigido por Mónica
Lacarrieu na Facultad de Filosofía y Letras - Universidad Nacional de Buenos Aires.
À Monica Lacarrieu por ter me dado a oportunidade de participar das
discussões do seu grupo de pesquisa e pela atenção no período de intercâmbio na
Argentina.
À Claudia Fonseca, professora do corpo docente do PPGAS- UFRGS e do
PPGAS UNSAM, a qual eu tive o privilégio de ser aluna nesses dois contextos. Muito
obrigada pelas trocas e pelo apoio durante o meu período de intercâmbio.
À Tereza e Suzi Gargulio, Victor, Alejandro Ávila, Fulco, meu profundo
agradecimento por terem aceitado realizar junto comigo uma investigação acerca do
Bairro de San Telmo. A equipe do Hostel Noster Bayres, em especial a Fede, que não
mediu esforços em me auxiliar quando mais precisei, no início da minha instalação em
Buenos Aires. A Dani e Luiz da Nueva Fortaleza de San Telmo, pela conversa sempre
bem humorada no início de cada noite, pelo ótimo asado que comíamos junto ao balcão
de fiambres, entre um gole e outro de coca-cola, muito obrigada.
Aos amigos Juan Celaya, Vicky Bartel e Ju Gontijo e aos antropólogos Monica
Siqueira e Matías Godio, pelos lindos momentos que passamos juntos no curso desses
três meses de intercâmbio. Obrigada pela companhia, pelas risadas e por tornarem mais
interessante meu cotidiano em Buenos Aires.
À Olinda Dal Bó, por aceitar navegar comigo pelas histórias de nossa família.
Ao meu irmão Rafael e minha mãe Lucinda pelo apoio incondicional e
irrestrito. À Bianca Leal, minha cunhada, pelo carinho.
Finalmente, à Carla e Ainsley por seu tempo, por sua disposição e sua adesão a
investigação aqui apresentada. Muito Obrigada.
9
RESUMO
Essa dissertação aborda o tema dos ritmos temporais nas cidades moderno-
contemporâneas a partir da experiência etnográfica entre núcleos familiares e redes de
camadas médias urbanas. Inserida nas discussões sobre planejamento urbano,
construção e destruição de propriedade privada residencial, abordamos as
representações da morada a partir das imagens que a compõem. O estudo busca pensar o
espaço da morada como objeto do tempo nos bairros: Tristeza, Rio Branco, Floresta e
Petrópolis, na cidade de Porto Alegre, Brasil; e o Bairro de San Telmo, na cidade de
Buenos Aires, Argentina. A partir da pesquisa em imagens de acervo e dados oriundos
do método etnográfico buscamos pensar a transformação da cidade a partir das
narrativas biográficas e das trajetórias sociais dos integrantes desses diferentes
contextos etnográficos por intermédio da noção de memória e de uma etnografia da
duração.
Palavras-chave: Memória, Imagem, Trajetórias, Cidade, Bairro, Narrativa, Família,
Parentesco, Geração, Transformações Urbanas, Duração, Redes.
Title: The morada how long memory - Anthropological study of the narratives and
trajectories of social networks and family groups of middle-class inhabitants of Porto
Alegre, RS - Brazil and San Telmo, in Buenos Aires - Argentina
ABSTRACT
This thesis intends to establish how the representation of morada, in modern-
contemporary cities, from the perspective of an ethnographic experience affects the
family groups and networks of urban middle classes. The thesis discusses urban
planning, construction and destruction of private residential properties, specially
including several visual representations of the morada. It aims to ponder the morada
space, as an object changing in a time, in the neighborhoods of Tristeza, Rio Branco,
Floresta and Petrópolis, all in the city of Porto Alegre, Brazil, and San Telmo, in
Buenos Aires, Argentina. Searching the data and image collection gathered in an
ethnographic method, the thesis discusses the transformation the cities go through, from
the perspective of the biographic narratives and social trajectories of the members of
those different ethnographic contexts, from the perspective of memory and ethnographic
duration.
Key-words: Memory, City, Neighborhoods, Imagem, Narrative, Family, Kinship,
Generation, Urban Transformation, Duration, Image, Network, Trajectories
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Title: La morada en la duración de la memoria - Estudio antropológico de los relatos
y trayectorias de las redes sociales y grupos familiares de la población de clase media
urbana de Porto Alegre, RS - Brasil y San Telmo, en Buenos Aires - Argentina
RESUMEN
Esta tesis abarca la cuestion de las ritmos temporales en las ciudades moderno-
contemporaneas, desde la experiencia etnográfica entre los grupos familiares y las redes
de clase media urbana. Incluidos en las discusiones acerca de la planificación urbana, la
construcción y la destrucción de la propiedad residencial privada, hablamos de las
representaciones de la morada desde las imágenes que componen. El estudio tiene
como objetivo reflexionar sobre el espacio de la morada como un objeto de tiempo en
los barrios: Tristeza, Rio Branco, Floresta y Petrópolis, la ciudad de Porto Alegre en
Brasil, y San Telmo, en Buenos Aires, Argentina. Desde la investigación cerca de las
colecciones de imágenes de museos y arquivos e incluso datos de la etnografía
reflexionamos sobre la transformación de la ciudad desde las narrativas y trayectorias
sociales de los miembros de los diferentes contextos etnográficos utilizando el concepto
de la memoria y la etnografía de la duracion.
Palabras clave: Memoria, ciudad, barrio, imagem narrativa, familia, parentesco,
generación, las transformaciones urbanas, la duración, trayectorias, redes.
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LISTA DE IMAGENS
1
1. Mapa de itinerário etnográfico, na região do Bairro Floresta e Bairro Moinhos de
Vento....................................................................................................................................Pag. 22
Autoria: Anelise dos Santos Gutterres
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: BIEV-PPGAS-UFRGS Projeto Coleções etnográficas, Itinerários
urbanos, Memória Coletiva no Mundo Contemporâneo na Era das Textualidades Eletrônicas.
Orientação de Ana Luiza Carvalho da Rocha.
Ano: 2005
2. Telhados do Floresta....................................................................................................Pag. 22
Autoria: Anelise dos Santos Gutterres
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: Acervo Pessoal Anelise dos Santos Gutterres
Ano: 2004
3. Correiro de casas na General Neto.............................................................................Pag. 25
Autoria: Anelise dos Santos Gutterres
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: BIEV-PPGAS-UFRGS Projeto Coleções etnográficas, Itinerários
urbanos, Memória Coletiva no Mundo Contemporâneo na Era das Textualidades Eletrônicas.
Orientação de Ana Luiza Carvalho da Rocha.
Ano: 2005
4. Estilos de construção na Rua 7 de abril......................................................................Pag. 25
Autoria: Anelise dos Santos Gutterres
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: BIEV-PPGAS-UFRGS Projeto Coleções etnográficas, Itinerários
urbanos, Memória Coletiva no Mundo Contemporâneo na Era das Textualidades Eletrônicas.
Orientação de Ana Luiza Carvalho da Rocha.
Ano: 2005
5. Ruína na Corte Real.................................................................................................... Pag. 45
Autoria: Anelise dos Santos Gutterres
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: BIEV-PPGAS-UFRGS Projeto Coleções etnográficas, Itinerários
urbanos, Memória Coletiva no Mundo Contemporâneo na Era das Textualidades Eletrônicas.
Orientação de Ana Luiza Carvalho da Rocha.
Ano: 2005
6. Casa fechada na 7 de Abril......................................................................................... Pag. 46
Autoria: Anelise dos Santos Gutterres
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: BIEV-PPGAS-UFRGS Projeto Coleções etnográficas, Itinerários
urbanos, Memória Coletiva no Mundo Contemporâneo na Era das Textualidades Eletrônicas.
Orientação de Ana Luiza Carvalho da Rocha.
Ano: 2005
7. Casa fechada na Dr. Vale............................................................................................ Pag. 46
Autoria: Anelise dos Santos Gutterres
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: BIEV-PPGAS-UFRGS Projeto Coleções etnográficas, Itinerários
urbanos, Memória Coletiva no Mundo Contemporâneo na Era das Textualidades Eletrônicas.
Orientação de Ana Luiza Carvalho da Rocha.
Ano: 2007
8. Tapumes na Bento...................................................................................................... Pag. 46
1
Orientamos o leitor a acompanhar essa lista, lendo o conjunto de imagens das páginas citadas em
sentido horário e da esquerda para a direita, a fim de não se equivocar quanto às referências das mesmas.
12
Autoria: Anelise dos Santos Gutterres
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: BIEV-PPGAS-UFRGS Projeto Coleções etnográficas, Itinerários
urbanos, Memória Coletiva no Mundo Contemporâneo na Era das Textualidades Eletrônicas.
Orientação de Ana Luiza Carvalho da Rocha.
Ano: 2007
9. Zás Mudanças e a casa encolhida................................................................................. Pag. 46
Autoria: The Walt Disney Company
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: A Casa que Pensava In: Clássicos Disney. São Paulo: Ed. Nova
Cultural.
Ano: 1986
10. Che en la calle San Lorenzo........................................................................................ Pag. 46
Autoria: Anelise dos Santos Gutterres
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: Acervo Pessoal Anelise dos Santos Gutterres
Ano: 2009
11. Dario Pederneiras no Google Earth........................................................................... Pag. 49
Autoria: Google Earth
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: Software Google Earth
Ano: 2009
12. Casa vazia na Dario..................................................................................................... Pag. 52
Autoria: Anelise dos Santos Gutterres
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: BIEV-PPGAS-UFRGS Projeto Coleções etnográficas, Itinerários
urbanos, Memória Coletiva no Mundo Contemporâneo na Era das Textualidades Eletrônicas.
Orientação de Ana Luiza Carvalho da Rocha.
Ano: 2005
13. Terreno na Dario no Google Earth............................................................................ Pag. 52
Autoria: Google Earth
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: Software Google Earth
Ano: 2009
14. Tapume na casa vazia da Dario................................................................................. Pag. 52
Autoria: Anelise dos Santos Gutterres
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: BIEV-PPGAS-UFRGS Projeto Coleções etnográficas, Itinerários
urbanos, Memória Coletiva no Mundo Contemporâneo na Era das Textualidades Eletrônicas.
Orientação de Ana Luiza Carvalho da Rocha.
Ano: 2005
15. Ruins of West Front..................................................................................................... Pag. 53
Autoria: Joseph Mallord William Turner (1775-1851)
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: Acervo Museu Calouste Gulbenkian, Lisbon - Tate Gallery London
Ano: 1794-5
16. Jazigo em ruína na Recoleta....................................................................................... Pag. 53
Autoria: Anelise dos Santos Gutterres
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: Acervo pessoal Anelise dos Santos Gutterres
Ano: 2009
17. Telhado 1920................................................................................................................ Pag. 53
Autoria: Anelise dos Santos Gutterres
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
13
Fundo de Origem: BIEV-PPGAS-UFRGS Projeto Coleções etnográficas, Itinerários
urbanos, Memória Coletiva no Mundo Contemporâneo na Era das Textualidades Eletrônicas.
Orientação de Ana Luiza Carvalho da Rocha.
Ano: 2007
18. Soleira em ruína na São Manoel ............................................................................... Pag. 53
Autoria: Anelise dos Santos Gutterres
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: BIEV-PPGAS-UFRGS Projeto Coleções etnográficas, Itinerários
urbanos, Memória Coletiva no Mundo Contemporâneo na Era das Textualidades Eletrônicas.
Orientação de Ana Luiza Carvalho da Rocha.
Ano: 2007
19. Muro Rosa em Santo Ângelo ..................................................................................... Pag. 57
Autoria: Anelise dos Santos Gutterres
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: Acervo Pessoal Anelise dos Santos Gutterres
Ano: 2008
20. Muro em V na esquina da Bento............................................................................ Pag. 57
Autoria: Anelise dos Santos Gutterres
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: BIEV-PPGAS-UFRGS Projeto Coleções etnográficas, Itinerários
urbanos, Memória Coletiva no Mundo Contemporâneo na Era das Textualidades Eletrônicas.
Orientação de Ana Luiza Carvalho da Rocha.
Ano: 2007
21. Prédio inacabado na Dona Laura.............................................................................. Pag. 57
Autoria: Anelise dos Santos Gutterres
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: BIEV-PPGAS-UFRGS Projeto Coleções etnográficas, Itinerários
urbanos, Memória Coletiva no Mundo Contemporâneo na Era das Textualidades Eletrônicas.
Orientação de Ana Luiza Carvalho da Rocha.
Ano: 2007
22. Detalhe de Tapume Pixado na São Manoel............................................................... Pag. 57
Autoria: Anelise dos Santos Gutterres
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: BIEV-PPGAS-UFRGS Projeto Coleções etnográficas, Itinerários
urbanos, Memória Coletiva no Mundo Contemporâneo na Era das Textualidades Eletrônicas.
Orientação de Ana Luiza Carvalho da Rocha.
Ano: 2007
23. Tapume Pixado com árvore e cachorro..................................................................... Pag. 58
Autoria: Anelise dos Santos Gutterres
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: BIEV-PPGAS-UFRGS Projeto Coleções etnográficas, Itinerários
urbanos, Memória Coletiva no Mundo Contemporâneo na Era das Textualidades Eletrônicas.
Orientação de Ana Luiza Carvalho da Rocha.
Ano: 2007
24. Frame de Gravação em balcão de Fotos, na casa de Ainsley.................................. Pag. 75
Autoria: Anelise dos Santos Gutterres
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: Acervo Ritmos Temporais de vídeos etnográficos
Ano: 2007
25. Frame de Gravação de mudança, na casa de Ainsley...................................... Pag. 76 e 77
Autoria: Anelise dos Santos Gutterres
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: Acervo Ritmos Temporais de vídeos etnográficos
Ano: 2007
26. Camila de saia na sacada da Quintino....................................................................... Pag. 81
14
Autoria: José Mauro Volkmer Castilho
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: Acervo Pessoal Carla Castilho
Ano: desconhecido
27. Caco menina em P&B ................................................................................................ Pag. 83
Autoria: José Mauro Volkmer Castilho
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: Acervo Pessoal Carla Castilho
Ano:desconhecido
28. Marcos vestido de palhaço ......................................................................................... Pag. 84
Autoria: José Mauro Volkmer Castilho
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: Acervo Pessoal Carla Castilho
Ano: 1982
29. Jovem Carla em close.................................................................................................. Pag. 86
Autoria: José Mauro Volkmer Castilho
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: Acervo Pessoal Carla Castilho
Ano: desconhecido
30. Mauro em escritório.................................................................................................... Pag. 87
Autoria: desconhecido
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: Acervo Pessoal Carla Castilho
Ano: desconhecido
31. Irmãos no pátio, Camila de língua de fora................................................................ Pag. 87
Autoria: José Mauro Volkmer Castilho
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: Acervo Pessoal Carla Castilho
Ano: 1981
32. Frame de gravação de entrevista em vídeo om Martha Volkmer........................... Pag. 87
Autoria: Ana Luiza Carvalho da Rocha
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: Acervo Ritmos Temporais de vídeos etnográficos
Ano: 2009
33. Mapa da cidade de Porto Alegre.............................................................................. Pag. 134
Autoria: Prefeitura Municipal de Porto Alegre
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: Observatório POA
Ano: desconhecido
34. Vegetação na Beira do Rio Guaíba, Cachimbo....................................................... Pag. 138
Autoria: Anelise dos Santos Gutterres
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: Acervo Pessoal Anelise dos Santos Gutterres
Ano: 2004
35. Anúncio de Imóvel na Tristeza, tema verde............................................................ Pag. 138
Autoria:
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: Suplemento de Imóveis do Jornal Zero Hora de 15 de fevereiro, pág 23
Ano: 2008
36. Flora junto à beira do Rio Guaíba........................................................................... Pag. 138
Autoria: Anelise dos Santos Gutterres
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: Acervo Pessoal Anelise dos Santos Gutterres
Ano: 2004
37. Sociabilidade entre jovens junto ao Rio Guaíba .................................................... Pag. 138
15
Autoria: Anelise dos Santos Gutterres
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: Acervo Pessoal Anelise dos Santos Gutterres
Ano: 2004
38. Por do Sol da sacada da Quintino............................................................................ Pag. 140
Autoria: José Mauro Volkmer Castilho
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: Acervo Pessoal Carla Castilho
Ano: 19 de fevereiro de 1964
39. Vista da Quintino....................................................................................................... Pag. 141
Autoria: José Mauro Volkmer Castilho
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: Acervo Pessoal Carla Castilho
Ano: desconhecido
40. Vista da cidade a partir da Quintino....................................................................... Pag. 141
Autoria: José Mauro Volkmer Castilho
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: Acervo Pessoal Carla Castilho
Ano: 22 de setembro de 1964
41. Delimitación de comunas y barrios de Buenos Aires................................................ Pag. 159
Autoria: Ministerio de Gestión Pública y Descentralización
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: Revista Café de las Ciudades Ano 5 n. 46 agosto
Ano: 2006
42. Bairro de San Telmo no Google Maps..................................................................... Pag. 164
Autoria: Google
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: Google.com/maps
Ano: 2009
43. El Baño Ex-Conventillo en Brasil y Bolivar......................................................... Pag. 174
Autoria: Anelise dos Santos Gutterres
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: Acervo Pessoal Anelise dos Santos Gutterres
Ano: 2009
44. Porta do quarto Ex-Conventillo en Brasil y Bolivar............................................Pag. 174
Autoria: Anelise dos Santos Gutterres
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: Acervo Pessoal Anelise dos Santos Gutterres
Ano: 2009
45. Espaço interno Ex-Conventillo en Brasil y Bolivar............................................. Pag. 175
Autoria: Anelise dos Santos Gutterres
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: Acervo Pessoal Anelise dos Santos Gutterres
Ano: 2009
46. Daniel cortando a carne............................................................................................ Pag. 178
Autoria: Anelise dos Santos Gutterres
Fonte: Coleção Etnogfica A morada como duração da memória
Fundo de Origem: Acervo Pessoal Anelise dos Santos Gutterres
Ano: 2009
16
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ……………………………………………………………………..... 18
CAPÍTULO 1
A retórica da caminhada o percurso metodológico como revelador do
espaço............................................................................................................................. 21
1.1 A descrição de etnografia de rua para pensar o que o olho vê................................. 22
1.1.1 Aquele que escreve o que o olho vê................................................................... 26
1.2 Desvendando a familiaridade familiar: O percurso acompanhado e a familiaridade
como problema antropológico........................................................................................ 28
1.2.1 Olinda Dal-Bó e sua família............................................................................... 30
1.3 Revirando o tempo em busca do espaço................................................................... 34
CAPÍTULO 2
Em busca do espaço perdido........................................................................................ 39
2.1 Uma casa com gente dentro, ela não cai .......................................................... 43
2.2 A pergunta da ruína...................................................................................................45
2.3 A Cidade dos Tapumes..............................................................................................54
CAPÍTULO 3
Procura-se uma casa a ser destruída...........................................................................64
3.1 Os contextos de uma etnografia multi-situada..........................................................64
3.2 As histórias da casa em vias de desaparecer vamos fazer um filme?.....................65
3.3 A rede de aproximação e a noção de camadas médias..............................................68
3.4 Os contextos familiares e os personagens.................................................................71
3.4.1 A família de Ainsley: A casa na disputa entre herdeiros ....................................72
3.4.2 A família de Carla: A casa que ficou grande demais..........................................80
CAPÍTULO 4
A descoberta da mudança da casa como ato de permanência: a morada............... 90
4.1 A mudança (crônicas em vídeo DVD)...................................................................94
4.2 A duração da morada na genealogia de parentesco...................................................95
4.2.1 Ainsley e sua família .........................................................................................97
4.2.2 Carla e sua família ...........................................................................................111
4.3 Apenas aquilo que tem razões para recomeçar as narrativas biográficas.............118
4.3.1 Projeto de vida e as escolhas na construção de si Carla.................................120
4.3.2 Projeto de vida e as escolhas na construção de si - Ainsley..............................125
CAPÍTULO 5
A casa como lócus privilegiado para pensar a mobilidade social............................131
5.1 O estilo de vida e visão de mundo como forma de pensar os ritmos temporais da
morada no universo da cidade de Porto Alegre.............................................................133
5.1.1 A casa de Ainsley e o bairro Tristeza................................................................134
5.1.2 A casa de Carla e o bairro Rio Branco..............................................................140
5.2 A dialética do apego e do desapego o medo da dissolução do patrimônio..........145
5.2.1 Os objetos e a escolha do que irá sobrar do outro lado..................................148
17
5.2.2 O espírito do lugar.............................................................................................154
CAPÍTULO 6
A casa como objeto de interesse patrimonial e a magia de um bairro com
história..........................................................................................................................159
6.1 Porque San Telmo?..................................................................................................162
6.2 Entre Calles e Sillas: o mapeamento de uma rede de relações no bairro de San
Telmo.............................................................................................................................170
6.3 A Feira de San Pedro Telmo, Buenos Aires............................................................181
6.4 Os objetos circulantes e o comércio da memória....................................................187
6.5 O objeto e seu caráter anacrônico............................................................................197
CAPÍTULO 7
Do pó ao concreto, do concreto ao pó Adesões e rupturas de uma etnografia da
duração.........................................................................................................................201
7.1. Coleções etnográficas A morada como objeto temporal.....................................209
7.1.1 Coleções etnográficas - em DVD......................................................................212
CONCLUSÃO……………………………………………….......................................213
REFERÊNCIAS...................................……………………….....……………............217
18
INTRODUÇÃO
Esta dissertação, em Antropologia Social, está inserida no campo da
antropologia urbana, e dos estudos das e nas sociedades complexas (Velho, 1987:17), e
trata das problemáticas do cotidiano urbano, a partir das narrativas biográficas,
itinerários urbanos e trajetória social de seus habitantes. Tendo por universo mais amplo
a cidade de Porto Alegre e o Bairro de San Telmo na cidade de Buenos Aires, estuda-se
o tema da transformação urbana a partir da memória de camadas médias urbanas.
Aderindo a uma etnografia da duração na linha dos trabalhos de Ana Luiza Carvalho
da Rocha e Cornelia Eckert (2005) busca-se refletir sobre o espaço da cidade numa
abordagem fenomenológica das relações sociais.
A base de dados que integra o presente estudo é oriunda de pesquisa
etnogfica em diferentes contextos e com diferentes níveis de imersão. Em Porto
Alegre, a pesquisa foi realizada junto a dois núcleos familiares, de camadas médias, a
partir da experiência de mudança e destruição de sua residência. Em Buenos Aires a
pesquisa foi realizada junto a uma rede de trabalhadores e moradores do Bairro de San
Telmo no intuito de discutir os ritmos temporais na construção do espaço do bairro e a
dinâmica dos objetos face à problemática do patrimônio cultural nas grandes metrópoles
contemporâneas.
Realizada de 2006 a 2009, a investigação junto aos núcleos familiares tem foco
na trajetória social e narrativa biográfica das guardiãs da meria (Halwbachs, 2006) de
cada uma dessas famílias. Experiência que abordamos através do conceito de drama
social (Turner, 1986) a fim de refletir sobre os constrangimentos e as descontinuidades
na formação das relações familiares. Localizadas nos bairros Rio Branco e Tristeza na
cidade de Porto Alegre, as residências pesquisadas serão pensadas dentro de duas
diferentes escalas: como integrantes de uma lógica de transformação urbana e
mobilidade social nas cidades moderno-contemporâneas; e como integrantes de uma
lógica de acomodação e re-articulação das noções de família, parentesco e estilo de
vida, dessas guardiãs, a partir das noções de herança, transmissão e memória intra-
geracional.
Realizado de agosto a outubro de 2009, o trabalho de campo em Buenos Aires
foi produzido pelas mesmas técnicas que os dados etnográficos de Porto Alegre:
etnografia de rua, observação participante, técnica de rede e entrevista em vídeo.
19
Inserida nos estudos antropológicos de tempo e espaço, a partir da noção de
memória e de narrativa, essa dissertação investe no simbolismo da morada, seja na forma
de uma residência, de um bairro ou de uma cidade, como eixo interpretativo para
entender a duração trans-geracional de um conjunto de bens e valores representativos do
patrimônio seja familiar, seja urbano.
As trajetórias sociais dos interlocutores são interpretadas no âmbito da
disseminação dos postulados do individualismo moderno nos segmentos sociais de
camadas médias urbanas, com base nos trabalhos clássicos de Marcel Mauss (A noção
de pessoa, 2003), Alfred Schutz (A fenomenologia das relações sociais, 1979) e
Gilberto Velho (Individualismo e Cultura, 1987; Projeto e Metamorfose, 1994).
Os contextos de Porto alegre e Buenos Aires são trabalhados documentalmente
através das coleções etnográficas, método integrante de uma etnografia da duração
(Eckert e Rocha, 2005), conforme será desenvolvido no curso dessa dissertação. A
estrutura de construção dos capítulos buscou destacar na descontinuidade desses
contextos, geográficos, culturais e temporais, a duração de uma problemática acerca do
fenômeno da cidade moderno-contemporânea e do espaço como forma do tempo,
moldado pelas narrativas daqueles que o habitam.
No capítulo um (1), pode-se acompanhar o princípio de uma discussão acerca
dos ritmos temporais na cidade, a partir da imersão nos dados etnográficos produzidos
no Bairro Floresta, no curso de minha trajetória de formação em antropologia social,
iniciada em 2005, numa bolsa de Iniciação Cientifica junto ao projeto Coleções
etnográficas, Itinerários urbanos, Memória Coletiva no Mundo Contemporâneo na Era
das Textualidades Eletrônicas dentro do Banco de Imagens e Efeitos Visuais.
No capítulo dois (2) é trazido outro bairro da cidade de Porto Alegre para o
diálogo. O Bairro Petrópolis, é inserido a partir da narrativa de um habitante dele e
nessa interlocução ingressa-se nos processos que integram e incluem a dinâmica de
destruição e construção de propriedades privadas residenciais na cidade de Porto
Alegre. Neste capítulo ainda é trazido o conceito de ruína urbana para pensar a relação
entre patrimônio, memória coletiva e cidade, tanto no contexto de Buenos Aires como
de Porto Alegre, apresentando o núcleo familiar como integrante dessa dinâmica de
transformação urbana.
No capítulo três (3) serão apresentados os contextos de uma etnografia multi-
situada, na cidade de Porto Alegre e de Buenos Aires. Nele é mostrado a rede de
aproximação que possibilita o ingresso nos dois cleos familiares habitantes da cidade
20
de Porto Alegre, é mostrado a rede de relações que os compõem e nela o lugar das
nossas principais interlocutoras nessa pesquisa. Nesse capítulo também é trazida a
discussão a produção de dados etnográficos através do suporte do vídeo.
No capítulo quatro (4) é abordado o universo de mudança da residência, e a
partir dela são conhecidos os vínculos e as escolhas que compõem as relações de
parentesco de cada uma das famílias investigadas. A partir das narrativas biográficas
das nossas interlocutoras, são apresentados seus projetos de vida e a relevância da
mudança da casa na construção deles.
No capítulo cinco (5) uma reflexão sobre a mobilidade social provocada
pela mudança da casa, e as noções de estilo de vida e visão de mundo a partir da
transformação urbana dos bairros onde estão inseridas as casas que serão destruídas. O
drama social da experiência da mudança, aliado ao risco de descenso social e da
dissolução de uma visão de mundo ligada a uma memória familiar são abordados a
partir da lógica do apego e desapego de objetos ligados ao espaço da casa.
No capítulo seis (6) é apresentado o universo da cidade de Buenos Aires e da
relevância do Bairro de San Telmo para pensar os ritmos temporais e a circulação de
objetos ligados ao universo familiar e a um cotidiano urbano. A Feira de San Telmo
aparece como objeto de formação de redes em torno do comércio de objetos velhos e de
uma lógica de ocupação do espaço do bairro que reúne interesses comuns e dinâmicas
distintas.
O capítulo sete (7) está concentrado na discussão das adesões conceituais a
uma etnografia da duração a partir do vínculo aos projetos do BIEV e a metodologia das
coleções etnográficas como produtora da forma dessa dissertação.
Por último, esclareço aos leitores que com consentimento prévio dos
interlocutores optei por usar os seus nomes verídicos na construção dessa dissertação.
As imagens do contexto familiar deles e que aparecerão no curso do estudo, em
fotografias e em vídeo, também tiveram consentimento de uso, sendo algumas oriundas
do acervo pessoal das famílias investigadas.
21
CAPÍTULO 1
A RETÓRICA DA CAMINHADA
O PERCURSO METODOLÓGICO COMO REVELADOR DO ESPAÇO
Minha primeira recordação é um muro velho, no quintal de uma casa
indefinida. Tinha várias feridas no reboco e veludos de musgo. Milagrosa aquela
mancha verde e úmida, macia ao contato, quase irreal na sua beleza livre. Fecho os
olhos e ela me enche de luz, como um aviso da vida teimosa.
(Augusto Meyer, Segredos de Infância, 1988)
O início desta etnografia na cidade deu-se no Bairro Floresta, localizado na
zona leste da cidade de Porto Alegre, no estado do Rio Grande do Sul, Brasil, no ano de
2005. Sob a orientação da antropóloga Ana Luiza Carvalho da Rocha, iniciei essa
etnografia vinculada a um programa de iniciação científica
2
no projeto Banco de
Imagens e Efeitos Visuais
3
.
Essa experiência teve como metodologia e técnica de ingresso em campo, a
etnografia de rua, que de acordo com as autoras Ana Luiza Carvalho da Rocha e
Cornelia Eckert, é uma experiência que propõe ao aluno, a partir dos seus próprios
percursos na cidade, o reconhecimento de um contexto de investigação antropológica
sobre a dinâmica das interações cotidianas e representações sociais (2002:4). No
exercício dessa técnica, ainda como aprendiz da etnografia, buscava nos deslocamentos
por certas ruas do bairro Floresta reconhecer as formas de interação do antropólogo em
campo com o Outro e com os lugares do Outro, empenhada em produzir - pela
construção de roteiros e diários de saídas de campo - colagens desses fragmentos de
2
Coordenado pelas antropólogas Ana Luiza Carvalho da Rocha e Cornelia Eckert o BIEV é um projeto
que existe desde 1997 e que agrega pesquisadores de diferentes áreas de pesquisa e de diferentes níveis de
formação acadêmica em torno da discussão sobre acervo, patrimônio digital e produção de imagens. Os
grupos de trabalho são formados por esses pesquisadores em encontros semanais onde se discute as
abordagens e feições de cada pesquisa na produção de imagens seja ela em vídeo, em texto, em som ou
em fotografia. O grupo de vídeo na época de produção desta dissertação era composto pelos antropólogos
Rafael Devos e Ana Luiza Carvalho da Rocha, coordenadores do grupo; e pelos bolsistas de Iniciação
Científica (CNPq e Fapergs) e estudantes de Ciências Sociais: Stéphanie Bexiga, Ana Paula Parodi,
Luciana Tubello, e pelo mestrando em antropologia social, Rafael Lopo. O grupo do texto é coordenado
por Ana Luiza Carvalho da Rocha é composto por todos os estudantes citados acima e por: Priscila Farfan
Barroso também estudante de Ciências Sociais, e bolsista de Iniciação Científica. O grupo de Fotografia é
coordenado por Cornelia Eckert e integrado por todos os integrantes acima descritos, o grupo do som é
coordenado por Viviane Vedana e Ana Luiza Carvalho da Rocha e tem como integrante Stéphanie Bexiga
e Prisicla Farfan. Os projetos e a trajetória de pesquisa dos grupos podem ser acessados através do:
www.biev.ufrgs.br.
3
Bolsa de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnogico
CNPq, de 2005 a 2008.
22
interação com o objetivo inicial de situar o meu próprio ser em relação ao ser de
Outro na cidade.
A utilização desta técnica reforçou o exercício do estranhamento. Conforme
Michel De Certeau o ato de caminhar possibilita - pela escala dos passos e sua relação
com o chão - que encontremos nele uma primeira definição de enunciação
(1994:177). Caminhar é para o autor uma retórica à medida que o ato molda percursos,
extrai fragmentos, inventa atalhos, e com isso significa o espaço. O traçado geográfico
trazido na figura abaixo, nesse sentido, busca representar a retórica construída no
exercício da etnografia de rua
4
no contexto dessa experiência etnográfica inicial. O
intuito é acompanharmos essa caminhada concomitantemente a outra retórica: a da
formação do antropólogo. Onde pensando nas escolhas relativas à configuração desse
percurso possamos pensar na relação desses dados com a trajetória de formação do
objeto dessa investigação.
1.1 A descrição de etnografia de rua para pensar o que o olho vê
Trazer uma experiência etnográfica realizada no ano de 2005, contexto
histórico de construção do mapa, das fotos e dos trechos de diários e entrevistas trazidas
nesse primeiro capítulo, se torna importante metodologicamente, pois ela, na reflexão
4
Pela característica dessa técnica: a possibilidade de observação e de fruição, de uma dimensão
microscópica e específica, de um bairro ou de uma rua - que também fizemos uso dela na experiência
etnográfica realizada no Bairro de San Telmo, em Buenos Aires, na Argentina, e da qual nos ocuparemos
no capítulo seis dessa dissertação.
23
sobre a interioridade
5
da escrita antropológica nos possibilita pensar na construção do
objeto da presente investigação: as trajetórias familiares e sua relação com o espaço.
A definição do tema e do espaço de pesquisa ganhou contornos mais precisos
no processo de formação no projeto BIEV e na adesão a uma etnografia da duração, que
orienta metodologicamente o projeto.
A etnografia da duração, conforme desenvolveremos no curso dessa
dissertação é uma proposta de estudo para o fenômeno da memória coletiva e do
imaginário dos habitantes das cidades moderno-contemporâneas. Onde a partir da
problematização dos tempos narrados por estes habitantes de suas experiências na
vida cotidiana e arranjos sociais entendemos do ritmo e dinâmica de seu cotidiano.
No caso deste capítulo, refletir sobre a duração de um olhar preocupado com
a dinâmica dos ritmos temporais na cidade, no curso da produção desses dados iniciais,
nos possibilita meditar em torno da construção dos objetos científicos na antropologia e
em como eles não tem nada em comum com as unidades separadas pela percepção
ingênua (Bourdieu, Chamboredon & Passeron, 1999:46).
No livro A Profissão do Sociólogo, quando Pierre Bourdieu, Jean-Claude
Chamboredon e Jean-Claude Passeron, debatem a favor de uma postura epistemológica,
na reflexão e construção, do conhecimento produzido pelas ciências sociais o fazem em
uma crítica ao empirismo ingênuo. Para os autores o é possível evitar a tarefa de
construir o objeto sem abandonar a busca por esses objetos pré-construídos nomeados
pela sociologia espontânea. É sugerido que se reflita sobre a relação entre, a relevância
do estatuto de problema social como problema sociológico, à medida que têm mais ou
menos realidade social para a comunidade dos sociólogos. Dessa forma, pensar sobre o
percurso de uma formação em antropologia a partir da produção dos dados etnográficos
produzidos no curso dessa formação é também se perguntar no interior da própria
reflexão antropológica: os conceitos que orientam a produção dos dados, e o caráter
específico dessa abordagem face ao fenômeno do qual ela constrói. Nesse sentido
aderimos a Bourdieu, Chamboredon & Passeron e à condição epistemológica como
integrante do exercício do sociólogo para pensar a produção do dado etnográfico, de
modo a exercitar o controle e o distanciamento da ão sobre o real a partir da
construção de novas relações entre os aspectos das coisas.
5
Ver artigo fundamental para essa reflexão A interioridade da experiência temporal como condição da
produção etnográfica In: Cornelia Eckert & Ana Luiza C. da Rocha. O tempo e a cidade. Porto Alegre:
Ed. UFRGS, 2005, Pag. 121- 138.
24
Refutando a idéia de uma neutralidade na observação etnográfica, mergulhar
nas descrições produzidas sobre o fenômeno do bairro e da cidade é submeter às
interrogações do etnógrafo às interrogações sociológicas. Onde, a busca pelo controle
dos dados produzidos ao longo de uma extensa formação do sujeito que pesquisa é um
exercício de tornar consciente a relação problemática implicada em suas perguntas
(Bourdieu, Chamboredon & Passeron, 1999:57) e como, somente a consciência delas,
pode levar à compreensão da problemática que os sujeitos implicam em suas respostas.
A prática do exercício da etnografia de rua provocou, à medida que os diários
de campo foram relidos, reflexões acerca da escolha da área da etnografia, conforme
podemos acompanhar em um trecho de um diário de campo realizado em 2005:
Segui caminhando pela [Rua] General Neto, costas da Igreja São Pedro,
rumo ao centro. Observava o ritmo da rua, os carros passando com pressa,
subindo da [Rua] Câncio Gomes e descendo do [Bairro] Moinhos de Vento.
Subi numa mureta, que limitava o mato do morro, para fazer umas fotos dos
prédios e dos telhados marrons das casas que davam frente para a Av.
Cristóvão Colombo. Depois, segui por esse lado esquerdo da rua, na calçada
que faz limite com o morro Ricaldone, olhando a mata alta. Como eram
grandes os prédios, vistos aqui de baixo. E fechada a mata, também. Tirei
umas fotos do beneága de rico
6
: um prédio extenso e estreito, plantado no
meio da mata. Nem contei os apartamentos, mas eram muitos
Segui tirando umas fotos das composições entre a mata, os prédios novos, os
antigos, os arranjos urbanos: como luminárias, outdoors, tudo isso me
chamava muito atenção. Os [...] terrenos baldios, a calçada larga, o
supermercado Zaffari (antiga lojas Mesbla)
7
e a oficina. Essa oficina eu
lembro bem, de pequena mesmo. Quando subia o morro e bem ali onde
estava, nos fundos do Zaffari via a Cristóvão que parecia tão pequeninha
aqui de cima. Eu fiquei pensando em como não haviam tirado aquela oficina
dali, que era um espaço tão valorizado (ou não tanto?) que ela ocupava. A
borracharia / oficina de carros ainda conservava sua fachada para a curva
que desce da Luciana de Abreu, bairro Moinhos, curva do Ricaldone, porém
mantinha essa entrada fechada com uma grade. Muito larga. A fachada é de
madeira velha, grande, com uma estrutura de tijolos dos lados, tudo bem
com jeito de abandonado. Eu parei em frente à entrada lateral dessa oficina,
6
Cf. Adamastor Gidotti, Um Parque na Floresta? In: Folha da Tarde de 09 de agosto de 1980, pág. 06.
Pois é justamente sobre a Floresta que quero falar. Por incrível que pareça, esta imensa comunidade não
conta com suficientes áreas verdes para seu lazer e recreação As únicas exceções são a Praça Bartolomeu
de Gusmão (que ninguém conhece é a nossa Pracinha Florida), e um recanto infantil encravado entre a
Ramiro Barcelos e a Cristóvão Colombo, em meio aos miasmas do tráfego. Até mesmo a encosta do
Morro Ricaldone foi nos tirada, oculta por beneagá de rico.
7
Cf. Adamastor Gidotti, Um Parque na Floresta? In: Folha da Tarde de 09 de agosto de 1980, pág. 06.
Mas para não dizerem as autoridades que apenas surgem críticas, sem sugestões, gostaria de lembrar á
Secretaria Municipal do Meio Ambiente a Secretaria Municipal de Obras e Viação e ao assessor-
engenheiro de prefeito Villela que na Avenida Cristóvão Colombo existe ampla área semi-abandonada, há
várias anos. É onde ficava a instalação da Mesbla junto a Terceira Delegacia de Policia. Será que o
poderá ser aproveitada para um parque? Ou está destinada para novos espigões? Acho até que os
moradores do bairro não se importariam em contribuir com uma parte dos recursos necessários para a
desapropriação da área. Será que não existe uma linha de crédito junto ao Governo Federal com esta
finalidade? Não, acho que não. Deve permanecer a mesma situação que dá dinheiro para plantar, mas não
para comprar terra. Há recursos para edificar, mas não para preservar..
25
na [Rua] General Neto mesmo, em frente a saída / entrada do
estacionamento do Zaffari. Junto comigo na rua, havia uns motoqueiros
descansando na sombra, que essa parede de tijolos fazia na calçada e uns
trabalhadores do mercado, sentados junto ao meio fio, tomando refrigerante
e descansando no possível intervalo.
O terreno começava a fazer um declive, na esquina da Hoffmann com a
[Rua] Gen. Neto. À medida que ia me afastando do morro, somente algumas
árvores ainda podia ver entre as casas do lado esquerdo, em direção ao
Moinhos.
Havia na rua uma senhora e um senhor conversando na beira da calçada, em
frente a uma das portas. E eles saíram na foto que fiz dessas casas, meio
assim por acaso. Fui descendo lentamente, esperando alguma interjeição por
parte deles, já que vi que me olhavam. o demorou muito, enquanto
ensaiava outro quadro, para que ouvisse: vai querer comprar esse correiro
de casas.
A preocupação com os ritmos temporais da cidade, notada no trecho pela
descrição das ruas, fachadas de casa, construções habitacionais, onde um destaque
para a surpresa do velho em relação ao novo, percebemos os aspectos que construíam
essas categorias no sentido das representações do pesquisador aprendiz sobre os
mesmos. Aproximamo-nos, portanto, das reflexões de Gilberto Velho (1997) sobre a
produção antropológica no contexto das sociedades complexas (Velho, 1997:17), onde a
pesquisa na cidade dialoga com as impressões daquele que também vive na cidade.
A leitura e a pesquisa em acervo, de autores, cronistas e comentaristas de
outro tempo da cidade, também foram fundamentais para a construção desse olhar
preocupado com a dimensão rítmica do tempo, conforme veremos com mais cuidado no
capítulo dois.
Além de evidenciar, os vínculos da produção das descrições com as
representações sociais do seu produtor, a retomada dessa experiência etnográfica no
Bairro Floresta tem, também, outro objetivo. Propondo uma reflexão acerca da
hermenêutica de si no sentido de evidenciar os critérios de identidade pessoal do
antropólogo na configuração do método etnográfico em antropologia (Eckert & Rocha,
26
2005:126) vamos explorar a escolha de trabalhar com o limite de um bairro e em
especial deste bairro, em relação a outros da cidade de Porto Alegre, que serão
abordados no curso dessa dissertação.
A eleição do Bairro Floresta, no contexto do ano de 2005 se deu em função da
ligação afetiva da etnógrafa aprendiz com ele. Uma parte de sua ascendência materna
ainda morava nele, e as trajetórias sociais e narrativas biográficas desse tronco
8
familiar,
estão até hoje profundamente ligadas ao bairro. As histórias contadas a ela, desde
pequena, e as lembranças de infância que ela tinha da época que morou neste bairro, do
nascimento até os seis anos, orientavam-na secretamente na observação dos seus ritmos,
na caminhada por suas ruas.
A imagem deste bairro foi produzida pela etnógrafa em um processo de
constante comparação entre escalas de tempo e espaço distintos: a infância, a idade
adulta, a observação etnográfica, a fruição pessoal. Recortada por uma circulação no
bairro oriunda da participação em práticas cotidianas familiares de uma família
específica, que trabalhava e morava nele, a família da etnógrafa. Esse distanciamento
epistemológico promotor do discernimento das camadas que compõem os dados
produzidos em determinado contexto etnográfico, no campo da produção de narrativas
etnogficas da cidade, integra a transmutação da figura do antropólogo (Eckert e
Rocha, 2005:47) na figura do narrador.
1.1.1 Aquele que escreve o que o olho vê
Foram seis meses de constantes incursões no espaço da rua, onde eu, como
etnógrafa aprendiz, à medida que me deslocava entre as diferentes ruas do bairro ia
apreendendo suas diferentes zonas morais, seu distinto ritmo noturno e diurno, os fluxos
e itinerários das pessoas que circulavam pelas ruas rumo à grande Avenida Farrapos e
das pessoas que conversavam a beira das portas de suas casas, na calçada da Rua São
Carlos e General Neto. Conforme podemos observar no trecho do diário escolhido, a
observação primava pela descrição das ocupações urbanas do extrato percorrido,
observada nas construções residenciais e comerciais que contrastavam com edifícios da
década de sessenta e setenta.
8
Cf. Maria Cristina C. de C. França. Memórias Familiares em Festa: Estudo Antropológico dos Processos
de Reconstrução das Redes de Parentesco e Trajetórias Familiares. Tese de Doutorado, Porto Alegre,
UFRGS, 2009, Pag. 19, Tronco específico pode ser entendido como os núcleos que descendem de um
dos imigrantes ou de um dos filhos do imigrante no interior de uma grande família e que sendo formados
acabam abrindo a genealogia dela.
27
No contexto dessa dissertação, a leitura dos diários de outrora possibilita a
percepção dos recortes da paisagem realizados no espaço do texto
9
etnográfico da
aprendiz - o espaço da rua e a relação dele com o tempo, descritos relacionando
lembranças pessoais ao tema da transformação urbana. Investindo na observação de
contrastantes ocupações urbanas, lembranças e usos de espaço - apontados pelas
construções que ora fotografava, ora descrevia em românticas e incipientes descrições -
a aprendiz foi orientada a propor a uma única tia materna que ainda residia no bairro,
que a acompanhasse por um percurso em algumas das ruas que a mesma considerava
importante na sua história. Essa proposta foi aceita e em setembro de 2005, o percurso
entre as ruas Voluntários da Pátria, Ramiro Barcelos, São Carlos e finalmente Santa
Rita, onde Olinda Dal-Bó vive hoje com seu marido e seu filho mais novo, foi
realizado.
A complexidade do fenômeno temporal da cidade, explorada aqui pela
premissa que direciona o aprendiz de antropólogo a promover observações em sua
própria cidade, pode ser observada nas representações sobre a concepção de tempo que
orienta esse sujeito na descrição dos cenários observados. Se os diários de campo foram
para ele espaços para a reflexão comparativa entre as lembranças de infância e a
evidência da passagem do tempo nas formas urbanas, o foco dessas percepções foi à
relação afetiva com o bairro. Através da inteligência dessa relação como forma de
narração do espo que partimos a acessá-lo por intermédio de outros sujeitos habitantes
do bairro. A proposição, no entanto, de nivelar as percepções e afetos daqueles que
investigam com as percepções e afetos daqueles que são investigados, dentro do campo
da história da disciplina antropológica é uma prática que corre o risco de um anti-
empirismo. Porém, de acordo com Paul Rabinow (1999) as concepções de verdade e
falsidade são fatos históricos e sociais, e o contexto da antropologia pós-moderna e do
paradigma interpretativista nos permite fazer essas proposições sem correr o risco de
estar fazendo algo muito inovador do ponto de vista da investigação antropológica, pois
o proposições decorrentes de um evento histórico (Rabinow, 1999:75).
Investir na reflexão sobre a produção antropológica do pesquisador é nesse
contexto, transformar o aprendiz no Outro que descreve. Redimensionar a produção
9
Ressalto aqui o trabalho desenvolvido pelo GT Escrita e Etnografia (GRUEE) do Projeto Banco de
Imagens e Efeitos Visuais, da qual integro desde 2005. As reflexões aqui produzidas seriam possíveis
graças ao diálogo com o grupo que tem como seu principal foco a investigação acerca do texto
etnográfico como método para a pesquisa com memória. Ligado ao Laboratório de Antropologia Social
do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o
GRUEE é coordenado pela antropóloga Ana Luiza Carvalho da Rocha.
28
do conhecimento na escala da produção do sujeito pesquisador é uma forma de
evidenciar a dinâmica intrínseca em toda a produção científica. A evidência de que o
sujeito produtor do conhecimento também tem invenções, percepções e afetividades, e
que elas também são responsáveis pela construção do si e do Outro, nos aproxima da
noção da memória como um jogo de escolhas objetivas e subjetivas conforme a
abordagem do conceito de memória feito por Cornelia Eckert e Ana Luiza C. da Rocha
(2005). Trazer o resultado das incursões etnográficas passadas, no contexto presente
dessa dissertação evidencia a construção de uma hipótese de trabalho sobre as relações
afetivas dos sujeitos moradores da cidade com a mesma. Refletir sobre a produção de
dados etnográficos no contexto de uma trajetória de formação em antropologia destaca o
distanciamento sistemático, daquele que produz em relação ao que foi produzido, como
premissa para a investigação do tempo.
O encontro com o Outro, aquele que escreveu outrora os diários de campo no
bairro Floresta, foram fundamentais para o reconhecimento de que a produção
antropológica ela mesmo não está desvinculada de transformações daquele que a produz
e nem do tempo do mundo, do contexto específico de sua construção. Segundo
Gilbert Durand (2002), autor fundamental na construção de uma etnografia da
duração (Eckert & Rocha, 2005:143), pensar as representações como imagens do
tempo é pensar na mobilidade delas e em como o pensamento que produz também está
submetido às ações do tempo. Se o aprendiz de antrologo também ele constrói seus
jogos na construção do conhecimento sobre o Outro, pensar no resultado dessa
construção é refletir sobre a duração de uma hipótese de investigação da cidade a partir
dos jogos da memória (2005:117) que cada sujeito joga para construção de suas
representações de cidade.
1.2 Desvendando a familiaridade familiar: O percurso acompanhado e a
familiaridade como problema antropológico
Segundo L. F. D. Duarte & E. de C. Gomes (2008:32) trabalhos realizados no
interior da rede social do pesquisador colocam em cena o seu estatuto duplo pessoal e
profissional. Citando Bourdieu (2005:89-93 apud Duarte & Gomes, 2008), os autores
ressaltam que pesquisar um mundo social que conheço sem conhecer, como sucede em
quaisquer universos familiares, requer uma verdadeira conversão epistemológica.
Investindo numa reflexão epistemológica sobre o trajeto da construção desta
etnografia noto que a familiaridade esta presente, na relação familiar com o Bairro
29
Floresta; nas redes de aproximação que construíram a possibilidade de investigação com
outras famílias e em outros bairros; e ela é passível de status acadêmico. A condão
de estranhamento, que segundo esses autores esincorporado ao ethos (2008:32) do
antropólogo, no cerne de sua formação, nos termos da pesquisa nas sociedades
complexas (Velho, 1997), é também um processo de estranhar a cidade onde se
pesquisa, produzir a distância social necessária para que a familiaridade tire partido no
processo de estranhamento. No jogo dos processos heterogeneizantes e
homogeneizantes (1997:18-19) e da dinâmica social da qual se está sujeito quando se
investe no conceito das sociedades complexas, é importante problematizarmos sobre os
limites das concepções de: grupos, famílias, zonas, bairros, formas coletivas
homogêneas como objeto de estudo. A problematização (Rabinow, 2005:43), no
entanto, é a garantia da incerteza, da perda da familiaridade para com o fenômeno, e por
sua vez, é o caminho prévio para o entendimento e para a geração de outras
familiaridades, que para seguirem dinamicamente sendo compreendidas precisam de
outros problemas
10
e outras incertezas.
A etnografia de rua pelo Bairro Floresta abriu a possibilidade de reflexão
acerca daquilo que conduziu a investigação a ele, o pertencimento familiar. A relação
entre o pertencimento familiar e o bairro, a partir do percurso com a tia materna que
ainda habitava nele possibilitou outras indagações a respeito da memória familiar e sua
construção a partir de um pertencimento de bairro.
O espaço dessa dissertação será composto inicialmente de uma avaliação do
trabalho desenvolvido com essa tia, Olinda. Pois foi imergindo nas entrevistas
realizadas com ela, a partir de uma avaliação do que foi praticado, que pude seguir no
pressuposto que relaciona papéis sociais de gênero e transmissão de patrimônio;
memória intra-geracional e espaço da casa como centralizador dessas experiências
geracionais. E a partir desse pressuposto pude pensar essas relações nas outras famílias
que participaram dessa pesquisa.
10
Cf. B. Malinowski, Argonautas do Pacífico Ocidental, 1976, Pag. 26 quanto maior for o mero de
problemas que leve consigo para o trabalho de campo, quanto mais esteja habituado a moldar suas teorias
aos fatos e a decidir quão relevantes eles são às suas teorias, tanto mais estará bem equipado para o seu
trabalho de pesquisa [...] a capacidade de levantar problemas, no entanto, constitui uma das maiores
virtudes do cientista
30
1.2.1 Olinda Dal-Bó e sua família
Olinda é a primeira das quatro filhas de João Baptista dos Santos, filho de
portugueses, que desembarcou no Rio de Janeiro em meados dos anos trinta para prestar
serviços militares no Brasil. Registrado brasileiro e natural de Trás-dos-Montes -
Portugal, João Baptista trabalhou como auxiliar de artesões e pequenos empreiteiros
antes de viajar até Rio Grande, no estado do Rio Grande do Sul, onde conheceu Maria
Georgina. O casamento foi rápido, pois como suspeitam suas filhas, Maria tinha na
barriga o primeiro filho do casal, um menino que veio a falecer em Porto Alegre, alguns
anos depois. Chegam a Porto Alegre com poucos pertences e pouco dinheiro, e se
instalam no que Olinda refere como Bairro Floresta
11
, na altura da Rua Voluntários da
Pátria e Rua Moura Azevedo. João já trazia consigo o ofício de sapateiro, Maria o
ajudava na oficina, com o acabamento dos calçados. Nesta residência, em um quarto
alugado, nasceu Olinda que tinha um ano quando na enchente de 1941, tiveram que sair
às pressas desta habitação em busca de um lugar mais seguro. Com a baixa das águas e
a ajuda de alguns dos primos de Maria, que também moravam no bairro, alugaram uma
peça na Rua Ramiro Barcelos com Voluntários da Pátria, onde viviam e onde
funcionava também a oficina de trabalho de João Baptista. Essa peça tinha saída para
rua e segundo Olinda era um porão habivel onde tinham como vizinhos outras
famílias, uma delas dessa prima de Maria. Esse porão era parte de uma imensa casa, que
na época da entrevista funcionava como uma grande loja de tecidos. Como contou
Olinda, a grande casa era de uma família que em profundo descenso social alugava
essas partes externas, chamadas por ela de porões, e também alugava no interior da
casa, quartos para rapazes solteiros cuja entrada era feita pela Rua Voluntários da Pátria.
Essa separação espacial que ressalta Olinda, conforme Roberto Da Matta
possibilita pensarmos as segmentações sociais e econômicas a partir do espaço
12
(Da
Matta, 1997:30). As entradas separadas, a dimensão do familiar dada pela terminologia
do porão, elas ressaltam um reforço de distinguir, de um lado o privado familiar de
11
Cf. S. da C. Franco. Porto Alegre: Guia Histórico. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 4 Ed. 2006 Pag.
175, Os limites do bairro foram fixados em 1959, em razão de lei municipal n. 2.022. A localização
dada por Olinda antecede essa lei e o trecho referido já estaria dentro dos limites do Bairro Navegantes e
São Geraldo. Essas delimitações, todavia, são relevantes, pois, evidenciam diferentes disciplinamentos do
espaço, através do tempo e como os jogos da memória, também estão integrados a eles.
12
Quando negociamos as caminhadas pelo Bairro, não foi sugerido nenhum percurso específico. Usando
uma muleta na época, em razão de uma fratura na canela, Olinda levou-me a essa residência de sua
infância e segundo aponta Da Matta (1997:32), as escolhas narrativas não podem ser pensadas sem levar
em conta o espaço de enunciação, nesse caso construído pela caminhada.
31
outro o espaço da casa grande, onde havia circulação de homens solteiros e onde Olinda
estava proibida de entrar.
Sobre os sentidos reunidos em torno da imagem do porão, Gaston Bachelard
(1989) sobressai seu princípio de obscuridade, um ser que participa das potências
subterrâneas (Bachelard, 1989:36), da mais profunda intimidade. Compreendendo a
casa como um corpo de imagens o autor irá ressaltar a polaridade vertical entre o
sótão e o porão, para pensar a imaginação da subida e da descida e as diferentes
imagens ligadas a essas duas ações. Quando Olinda usa porão para falar da sua antiga
casa ela evoca raízes profundas em relação ao Bairro Floresta, vincula a lembrança dos
percursos de infância como razão da sua permanência como moradora do Bairro até os
dias de hoje.
Pensando nos espaços íntimos, o porão para Bachelard é onde a racionalização
é menos rápida e menos clara (Bachelard, 1989:36), ele reúne imageticamente
expressões de uma intimidade profunda, arcaica. O uso do recurso diminutivo para
nominar a casa parece estar mais ligado a essa representação acolhedora do porão, e
menos para a pequena metragem do espaço em que vivia Olinda, com suas outras três
irmãs, sua mãe, seu pai e onde funcionava na parte da frente, a sapataria da família.
- Não tinha essa calçada é óbvio, o casarão vinha até aqui, ta um velho
prédio olha, vinha até ali. Aqui era o armazém, era um armazém grande,
eles moravam ali, e aqui ó não existe o menor vestígio do cabaré que eu te
falei, eles remodelaram tudo.
Digamos aqui fosse a casa do Salvador, aqui, e aqui era o porãozinho do
pai, um porão que descia dois degraus, por isso que encheu de água. Ali é
Gaspar Martins e bem na frente tinha a Paner do Brasil os Hidroaviões
ficavam ali, então, mais ou menos aqui, era o porãozinho do pai. Esse chão
aqui nós fazíamos todos os dias.
O cabaré de que fala Olinda ficava em cima do armazém da comadre
portuguesa num imóvel que não existe mais. As mulheres que trabalhavam neste
cabaré iam arrumar seus sapatos de taco na sapataria de João Baptista e Olinda ainda
criança se encantava com aquele mundo secreto que via da rua, ao observar as cortinas
vermelhas do cabaré, no alto deste prédio. Enquanto atravessávamos a calçada em
direção a uma construção estilo fabril, de tijolos à vista, situada na esquina em frente ao
antigo poozinho do seu pai, Olinda ia conversando sobre o armazém que antes
ocupava o lugar da fábrica, nessa mesma esquina.
- Era armazém, mas tinha um corredorzinho que o velho português botava
umas mesinhas e ali tinha restaurante também, a portuguesa, era enorme
aquilo ali, fazia comida, dava comida ao meio dia, dava tudo. Uma
peculiaridade desse português, eu não gostava muito dele, ele cantava hinos
32
sacros atendendo as pessoas... Eu tinha uma gana daquele velho, porque
dava a impressão que ele, mas ele prestava atenção, ele sabia o que tu
querias, mas ele cantava todo o tempo. Mas é uma história bonita, meu
Deus!
À medida que avançamos, pela Rua Voluntários da Pátria, em direção ao
Bairro Navegantes, Olinda lembrou as histórias de sua infância e relacionou construções
que ainda existiam, às pessoas que faziam parte da sua rede de relações nessa época. À
medida que se deparou, com prédios e casas que não existiam mais, lamentou pelo
progresso e reconstruiu o espaço das construções com os braços, desenhando no vazio
o limite que no passado as casas tinham em relação à rua; as entradas e as saídas, e
quem entrava e saia delas.
- Ta lá. Quaker aveia em flocos, aqui era o corredor da Quaker, óbvio que
não era assim, porque tinha casas, pessoas que moravam aqui. Os
corredores, em Rio Grande existe muito isso, Corredor da Fábrica Engels, e
todo mundo fala assim Corredor da Fábrica Engels, pequenas moradias não
sei se era para funcionários.
- Como era assim, um corredor? - pergunto
- Era um corredor. Que deve ser mais ou menos como isso aqui ó, mas...
Lógico, tudo é diferente, mas era aqui. no fundo, no fundo, uma do
lado da outra, mas era uma construção. Aqui eu quase matei o teu avô uma
vez, porque existia um senhor uma vez, amigo do meu pai, chamado
Quevedo, morava nesse corredor. E eu ia vindo do colégio e ia saindo um
caixão, uma pessoa morreu. E eu vi todo mundo que eu conhecia e não via o
Quevedo. Eu cheguei em casa, olha, com a imaginação de criança, e a
minha era prodigiosa, daí cheguei em casa e disse, pai, tava saindo o
enterro, porque eu sempre tive pavor de enterro, caixão, confessionário
eram os meus tabus de criança. Não suportava aquelas, eu não suporto
nada que era fechado e escuro - ta aqui o corredor ó, esse é o corredor que
eu falo, isso era a Quaker né. Bom, eu cheguei em casa: pai tava saindo
enterro lá, pai, o Quevedo morreu. Há, há, há. Eu não disse que: eu acho
que foi o Quevedo, eu afirmei. E o pai ficou desnorteado, bah morreu o
Quevedo! E o pai não ia a enterro nem amarrado. Daí uns dias o pai entra
no armazém da comadre dele, quem ele sentado? Tomando uma
cachacinha, existia um copinho pequeno que chamavam de martelinho,
tomando um martelinho de cachaça: o Quevedo! Bom, o pai quase morreu!
Achou que estava vendo alma do outro mundo. E era tuudo invenção da
minha imaginação.
A capacidade de Olinda de narrar o espaço através do tempo, o realizando pela
repetição de antigos itinerários no bairro recupera a lembrança de algumas relações
sociais como construtoras de espaços que concretamente não existem mais. Nesse
sentido seguimos a abordagem de Cornelia Eckert em sua pesquisa sobre a identidade e
memória junto a uma comunidade de mineiros de carvão em La Grande-Combe, França,
como referencial teórico. Em sua investigação Eckert observa a permanência da
33
identidade dessa comunidade, mesmo com o desaparecimento dos espaços reais sobre
os quais o grupo fundou sua identidade (1993:15), neste caso a companhia mineira
onde trabalharam gerações de mineiros de carvão e a qual tinha uma dimica
recíproca na construção da vila como aglomeração urbana (1993:17). Aderindo a
identidade narrativa (Ricoeur, 1991;1994) que permanece em face à dissolução dos
espaços reais e provocados pelas narrativas de Olinda Dal-Bó, retomamos Gaston
Bachelard, em A Dialética da Duração, para refletir sobre os fenômenos temporais.
Para o autor o ser alternativamente perde e ganha no tempo; a consciência se realiza
nele ou nele se dissolve (1988:37). Nesse sentido quando nos referimos ao jogo da
memória (Eckert & Rocha, 2005:104) estamos nos referindo a um espaço de
construção do conhecimento e estatuto de uma linguagem de símbolos que reúne um
processo de reflexão inteligente. E o fazemos em diálogo com Bachelard, para quem é
impossível, vivenciar o tempo totalmente no presente, que a vivência do mesmo
não é direta ou imediata, é uma construção que se faz através da diatica do repouso e
da ação (Bachelard, 1988:7). Perceber a impressão da duração é ser capaz de observar a
substituição das recordações num meio de inquietação, pois não recordação sem o
tremor do tempo. Quando Olinda narra suas lembranças sobre as experiências vividas
nas ruas do bairro, parece o fazer com domínio de que reviver esse tempo desaparecido
é aprender a inquietude da sua própria morte (Bachelard, 1988:38).
Na interlocução com Olinda somos levados a pensar nessa construção dinâmica
das percepções do tempo, em face da dissolução dos espaços reais que ela como
habitante da cidade vivenciou durante o tempo de sua vida. O diálogo com ela foi
fundamental na continuidade de uma reflexão acerca do fenômeno relacional entre a
construção da permanência e a destruição dos espaços reais na e da cidade.
A evidência da cidade como objeto temporal da qual tratam Cornelia Eckert e
Ana Luiza C. da Rocha na reflexão desta como um repositório de excedente de
sentidos é uma adesão teórica que possibilita pensarmos na cidade como o lugar onde
os sujeitos vivem cotidianamente estratégias de negociação da realidade (2005:92).
Onde a dialética da construção e destruição das cidades é lócus para reflexão das
rupturas e descontinuidades vividas pelos sujeitos no interior dessa paisagem urbana.
Uma paisagem que no exercício de superação do destino mortal da civilizão urbana
dura na identidade social, que vibra e constrói a memória dos sujeitos.
A busca pelas distintas vibrações, nas narrativas aqui compartilhadas,
possibilita que pensemos como essa rítmica aparece na construção dos espaços
34
lembrados e naqueles que são esquecidos na concepção daquilo que é o Bairro
Floresta. O tempo de outrora narrado por Olinda, diante da presença ou da ausência
dos seus resquícios concretos pedaços de uma casa, canteiros de ruas, alargamento das
calçadas foram reveladores do papel do antropólogo como aquele que escuta e
interage. Dessa forma, aderimos ao ambiente de comunicação comum (Schutz apud
Wagner, 1979:32) como experiência fundadora o só da interação do Outro com os
Outros, mas fundadora da relação entre o antropólogo e o Outro, e do diálogo que
constrói a memória nessa experiência de interação.
Repensando as categorias de um conhecimento social (1988:255) Michel
Maffesoli declara a dificuldade de trabalhar-se a partir de um sujeito cognoscitivo
(1988:203), construtor da idéia de unidade que é altamente redutora da polissemia da
existência cotidiana. De acordo com a fenomenologia de Schutz, relacionada à
experiência do nós (Schutz apud Wagner, 1979:32-33) a intersubjetividade é
categoria ontológica fundamental para a existência humana e é em diálogo com ela que
buscaremos apresentar as vozes que integram essa dissertação. Não como ecos
isolados de experiências contextualizadas, mas como resultado da intersubjetividade de
sujeitos com diferentes éticas: atores da estética da experiência societal (Maffesoli,
1988:207). Teoricamente, dessa maneira temos condições de observar o que dentro da
interação está sendo sensivelmente compartilhado e como a partilha desse sensível
evidencia as peculiaridades éticas das histórias pessoais dos interlocutores dessa
investigação.
1.3 Revirando o tempo em busca do espaço
Musa da narrativa a memória benjaminiana é breve e difusa, a rememoração,
no entanto, a musa do romance, é perpetuadora e heróica. Essa diferença, todavia,
segundo o autor, só surgiu quando o romance começou a emergir do seio da epopéia
manifestando nesse movimento que a deusa épica a reminiscência possuía duas
formas: uma para a narrativa e outra para o romance. A diferença se deu pela
especificidade com que o tempo vibrava em cada uma delas. Enquanto no romance o
sentido e a vida, o essencial e o temporal se encontram somente no final; na narrativa
o sujeito o ultrapassa o dualismo da interioridade e exterioridade (Maffesoli,
1988:212), o essencial e a temporalidade se constroem na dialética, e o final não é o
fim, é a possibilidade de início de outra história.
35
A nossa filiação ao conceito de memória se apóia na transitoriedade que acaba
lhe dando o título de musa da narrativa. Com sua duração ligada à descontinuidade e
não a tangibilidade, a memória - como bem apontam as teóricas da memória como um
espaço fanstico, C. Eckert e A. L. C. da Rocha - não se configura apenas num
tradicionalismo de cunho nostálgico. Intangível porque simbólica, ela é perenizada
ordinariamente, no interior das manifestações culturais humanas (Eckert & Rocha,
2005:116) que constrangidas pelas intimações objetivas, se fixam no espaço de
estabilidade do ser (Durand apud Eckert & Rocha, 2005).
Sob essa perspectiva da memória, e da interação como promotora da narração,
a experiência com Olinda foi fundamental para vincularmos relações de afinidade e
parentesco, experiência geracional e ato da transmissão. Se para Walter Benjamin
(1936) a informação tem valor no momento que é nova, a narrativa conserva suas
forças e depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver. Essa capacidade de
conservar-se na desenvoltura é a dominante do ouvinte: assegurar a possibilidade da
reprodução (Benjamin, 1994:210).
Pela dinâmica da reprodução, e pelo princípio de conservação, os núcleos
familiares, seriam hipoteticamente espaços privilegiados de construção de memória. A
relação dos núcleos com o espaço de habitação, conforme ressaltou Olinda, promove
pontos de vista específicos sobre um cotidiano de bairro, delineiam itinerários urbanos e
descobrem transformações espaciais da cidade que por sua especificidade, tornam-se
invisíveis.
As paisagens construídas por Olinda em nossa viagem pelo Bairro Floresta
estão diretamente ligadas a sua vontade de narrá-las. Intrínseca a escuta, como vimos,
a narrativa foi o espaço para o deslocamento do si num Outro da infância, e se deu no
instante do percurso pelas cercanias de sua antiga casa.
Atualmente
13
com 69 anos, Olinda casou-se e teve seus seis filhos em
diferentes moradias dentro do bairro. Foi, depois da sua irmã mais nova, Lucinda, a
filha que mais estudou, tendo concluído todo o curso científico. Segundo sua
denominão, uma excelente aluna, Olinda conseguiu uma bolsa de estudos no
Colégio Bom Conselho e dele narra particularmente a descoberta da diferença de classe
social que se evidenciava nas roupas e nos tipos de livros que ela tinha em relação às
colegas. Trabalhou durante todo o curso científico em atividades administrativas ligadas
13
O termo atualidade faz referência ao ano de escrita dessa dissertação, 2009-2010.
36
a médias empresas, até conquistar um emprego numa repartição da prefeitura municipal
por onde se aposentou muito cedo, com cerca de 50 anos. Casada com um homem
vinte anos mais velho e que lhe auxiliou financeiramente com a conclusão dos estudos,
ela criou os filhos com a assistência de Serena, uma mulher negra e gorda, que cuidou
da casa e das crianças até elas tornarem-se adultas. Serena faleceu trabalhando na casa
de Olinda e as crianças, hoje com idades entre 32 e 50 anos, tem fotos e lembranças
ligadas a Serena e com freqüência a chamam de sua segunda mãe. Com Serena em casa,
o espaço da rua narrado por Olinda é um privilégio da sua trajetória social ligada ao
trabalho fora de casa e ao convívio com outras mulheres que, também, outrora
circulavam pela rua.
- Eu adoro Porto Alegre eu fui fazer aquele passeio
14
e eu falava dentro
do ônibus. Eu fui uma criança que andei muito pouco de condução então...
quando a vinha a Porto Alegre, nós caminhávamos do numero 33 até a
Igreja das Dores, porque a vinha a Porto Alegre para conseguir um
troquinho era louca por dinheiro. Trabalhava Anelise, era velha, limpava
uma igreja, cozinhava, era uma cabeça, que estava 100 anos à frente. A tua
vó, não tinha o jeito dela.
Quando narra os diferentes jeitos, da sua e da sua mãe, Olinda destaca
essas condições distintas entre a mulher que trabalha fora e a mulher que trabalha em
casa. Isso, mais adiante, será problematizado a partir das diferentes memórias,
construídas por mulheres de duas famílias distintas. Veremos suas relações com o
espaço da casa e com a cidade, a partir de como se constroem narrativamente no tempo,
num jogo entre heranças familiares, manutenção de estilo de vida e ethos familiar.
A ruptura epistemológica, entre ser sobrinha e ser pesquisadora, entre a condição
de flanêur e a condição de etnógrafa foram processos que produziram sempre mais
vidas que certezas à medida que os limites de cada definição iam se alinhavando, se
transformando e por fim se mostrando. O tema do antropólogo que pesquisa sua própria
cidade, seguido por Eckert e Rocha a partir do trabalho de Gilberto Velho, traz a noção
de sociedades complexas como um aporte importante para se trabalhar as questões do
familiar e do estranho, que, também lidamos com os processos de rompimento e
construção de papéis sociais à medida que nos relacionamos etnograficamente com os
sujeitos de pesquisa. Os estudos de família, em especial, trazem uma importante
contribuição para a pesquisa nas sociedades complexas, pois, a partir dele a noção de
14
Refere-se a um passeio pago, promovido pela Secretaria de Turismo de Porto Alegre, que é feito em
um ônibus de cobertura aberta. O circuito é concentrado na região mais antiga da cidade, o centro,
porém abarca bairros como: Bom Fim, Floresta, Farroupilha, Santana.
37
tempo encontra no parentesco uma chave para se pensar as redes sociais e as
transformações da sociedade sob a perspectiva das relações entre as diferentes gerações
familiares.
Na discussão sobre a suposta morte do narrador, proferida por Walter
Benjamin (1936), em face aos avanços urbano-industriais, dialogamos com Eckert e
Rocha (2005) para pensar o lugar do antropólogo na escuta e na escrita dessas
narrativas, reinventando a arte de narrar (Eckert & Rocha, 2005:47). Atento as formas
dos indivíduos ou grupos - esses praticantes ordinários da grande metrópole se
apropriarem do espaço, ele, o antropólogo, busca construir na caminhada da escrita,
uma retórica que interaja com as imagens escutadas.
A escolha de Olinda em percorrer a sua casa de infância possibilitou que
pudéssemos pensar sobre a relencia desse espaço para as relações sociais entre a
parentela, entre os vizinhos próximos, a partir da condição de morar no bairro. Os
itinerários dela - da casa ao colégio e os percursos que fazia pelas ruas a cobrar de porta
em porta os serviços do pai - a constituíram numa narradora privilegiada de um
cotidiano de bairro, onde conviviam esferas sociais muito distintas. Sua perspectiva
revelou um uso do espo ligado às relações de trabalho e a forte heterogeneidade étnica
devido à presença de imigrantes.
A passagem do tempo está presente na sua narrativa pela tensão: entre a
construção desses espaços vividos pela via de sua transmissão àquele que escuta; e pela
evidência de que eles fisicamente não existiam mais. Essa tensão, vivida em face ao
estado de deslocamento, no caso de Olinda o processo de caminhada pelo Bairro, é um
ponto fundamental no objetivo dessa investigação. Nos capítulos seguintes ao descrever
o processo de mudança de casa, agregado a sua destruição física voltaremos às reflexões
construídas em torno da passagem do tempo, por parte de outros narradores.
A etnografia de rua, inspirada nas andanças do flâneur na obra de Charles
Baudelaire (Benjamin, 1989), provocou, a partir do deslocamento, a interação e o
desdobramento de relações que revelaram usos de espaço diversos (Eckert & Rocha,
2001). O desdobramento promovido por essa narradora, na linha dos estudos da
proxêmica (Hall, 2005), encadeou a investigação acerca das teorias e observações
inter-relacionadas do uso do espaço (Hall, 2005:127) por intermédio da perspectiva
familiar de quem o habita. Pensar a relação, da construção e reconstrução dos núcleos
familiares a partir da experiência de dissolução do ambiente da casa, constitui-se, então
em uma proposta de pesquisa. Definindo não somente a cidade como objeto temporal,
38
mas a mudança da casa como objeto para uma reflexão sobre o tempo, seguimos adiante
para observar como ela repercute na construção da memória familiar de duas famílias
habitantes da cidade de Porto Alegre.
39
CAPÍTULO 2
EM BUSCA DO ESPAÇO PERDIDO
A investigação acerca dos ritmos temporais da cidade, além da preocupação
com a qualidade e o contexto dos dados pesquisados no fluxo da realização da pesquisa
etnogfica, prima por uma busca intensiva a imagens de outros tempos do acontecer
urbano (Monteiro, 2001:79), disponíveis em crônicas, poesias, monografias,
fotografias, sons, vídeos, arquivos históricos, estudos estatísticos. Assim como as
imagens estão indissociáveis da produção antropológica, essa última, parte da obra
humana e integrante dos fenômenos da cultura e das sociedades (Rocha, 2008:1),
outras produções também estão. Na adesão a uma etnografia da duração, a preocupação
com a autoria é relativizada pelo convite a imersão nos jogos da memória do Outro,
seja como buscamos mostrar no princípio do capítulo 1, o próprio pesquisador como
esse Outro. Dessa maneira, na dinâmica da imaginação (Rocha, 2008) essas imagens
produzidas convergem em torno de núcleos organizadores (Durand, 2002: 43), na forma
de conjuntos simbólicos, que adquirem um estado de constelação. Segundo Gilbert
Durand, a convergência, no entanto, é formada mais por homologia, do que por uma
analogia de imagens, e isso se torna metodologicamente importante de ser esclarecido
por dois motivos. Primeiramente para um esclarecimento da abordagem conceitual que
gravita em torno do entendimento que estamos tendo quando nos referimos à imagem.
Segundo porque a convergência, apesar de se realizar por atração, onde os símbolos
constelam porque são desenvolvidos de um mesmo tema arquetipal
15
, se dá em diálogo
com o antropólogo como narrador (Eckert & Rocha, 2005) figura atuante no interior do
processo de interpretação dessas imagens.
Na linha de um estruturalismo figurativo proposto pelo trabalho de Gilbert
Durand, no esforço de tornar clara a relevância do método de convergência para a
produção de uma etnografia da duração, Ana Luiza Carvalho da Rocha (2008), ressalta
o trajeto antropológico como processo fundamental para que consigamos pensar sobre
os eixos das intenções fundamentais da imaginação (Bachelard, 1990 apud Durand,
2002:41), que polarizam as imagens. O trajeto antropológico seria o intercâmbio
incessante (gênese recíproca, cf. G. Durand), que existe no nível do imaginário entre
15
Cf. Gilbert Durand os símbolos são variações do mesmo arquétipo (2002:43)
40
pensamento e matéria, o sentido e as coisas, o mundo das idéias e o mundo dos objetos
(Rocha, 2008:3), entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimações objetivas
que emanam do meio smico e social (Durand, 2002:41). Explorando a dialética que
funda a coerência entre o sentido e o símbolo (Rocha, 2008:2), através da observação
do trajeto antropológico, podemos pensar na duração dos fenômenos sociais, e das
representações a qual eles aderem. De acordo com Rocha, pensar o fluxo das imagens
como parte integrante das formas de pensar o fluxo da vida social é colocar a produção
da representação etnográfica no meio da construção do pensamento antropológico, em
suas diversas formas de produção. Por essa razão que as imagens aqui descritas,
transcritas e mostradas ou evocadas são oriundas de um processo de coleção. A coleção
é o ato de reunião em torno de um núcleo semântico de imagens, fruto do trajeto
antropológico produtor da convergência. Nessa dissertação algumas coleções
evidenciam-nos uma duração na produção de um conjunto de cidades, da qual Porto
Alegre também é integrante. Uma duração que possibilita a criação de diferentes
imagens do tempo no trajeto complexo da adaptação-acomodação (Rocha, 2008:11),
da acomodação-assimilação (Piaget, 1978 apud Rocha, 2008:2), ou da extraversão-
introversão (Bachelard, 1988 apud Rocha, 2008:2) dos pensamentos, movimento
produtor do mundo das coisas.
O método das coleções etnográficas proporciona e constrói um deslocamento
temporal em razão das diferenças: de fontes, épocas e formatos, que os dados possuem
entre si. Porém, nessa dinâmica é possível ter uma perspectiva da cidade a partir dos
seus ritmos e da multiplicidade de dados produzidos sobre ela. Quando Gaston
Bachelard, em sua obra A Poética do Espaço, propõe que pensemos o espaço como
um construto da imaginação criadora, repositório de diferentes níveis de intimidade, ele
está propondo que pensemos os espaços como imagens. Para Gilbert Durand, todavia,
pensar é imaginar, e em sua extensa obra acerca do imaginário, ele investe em
evidenciar os disciplinamentos do mesmo no decorrer da construção da história e das
disciplinas que promovem a produção de conhecimento sobre o homem, as chamadas
hermenêuticas redutoras e hermenêuticas instauradoras (1988). Para esse autor, o
imaginário não é a infância da consciência (Alain apud Durand, 2002:21), a imagem
não é produto de uma casa de loucos (Durand, 1998:13) e longe de ser a louca da
casa (2002:21), a imaginação, através do trajeto antropológico (2002:40) é uma
narrativa do mundo.
41
Ao usar o texto poético como mote para dissertar sobre a construção e a
especificidade da narração da intimidade, Bachelard ressalta que o espo convida a
ação e antes da ação a imaginação trabalha (Bachelard, 1989:31). Se para ele as regiões
de intimidade se reúnem por atração, o ato de imaginar é realizar antes que aconteça, ou
seja, é devanear, é pensar, reunir imagens íntimas no exercício do devaneio e assim
narrar, contar, viver. Por essa razão que para o autor o espaço é sempre um espaço
vivido quando é imaginado por alguém.
No contexto do primeiro capítulo, quando Olinda narrava seu porãozinho à
medida que caminhava pelas ruas do seu bairro de infância estava construindo, segundo
Bachelard, um movimento próprio para fazer repousar o passado. Construindo um
espaço onde ela pudesse se encontrar numa situação de onirismo, pois nessa condição,
ela possibilitaria que interpretássemos a constelação de imagens evocadas na narração,
por exemplo, da imagem do porão.
A investigação do espo urbano, que se iniciou pela experiência etnográfica
com Olinda, se desenvolveu no sentido da observação do tempo que ela comprimia na
narração do espaço da sua infância no bairro Floresta: desenhando formas por cima dos
lugares vazios e dos edifícios modificados. Pareceu-nos relevante observar a existência
desse tempo comprimido em uma etnografia junto a casas como aquela da qual Olinda
havia crescido: um espo, que operava como um arranjo de instantes, restituindo
aquele que o viveu na dinâmica do tempo passado e do tempo presente.
Dessa forma, observando através da dinâmica dos ritmos temporais e da noção
de uma paisagem urbana que considera as exuberâncias e riquezas de um tempo
descontínuo (Rocha, 2009:103), promovi - munida de câmera fotográfica - saídas
etnogficas em outras ruas que o as do Bairro Floresta. Impregnada das lembranças
narradas por Olinda pusme ao mesmo tempo a caminhar: por outras ruas, numa espécie
de flannerie do homem que anda um devaneio do caminho (Bachelard, 1989:30); e a
caminhar: no interior de imagens de acervo, em outras épocas da cidade de Porto
Alegre. Buscava diálogo com outros produtores de imagens, ou seja, outros narradores,
para pensar sobre essa cidade que se transformava; essa cidade que guardava espaços
através do tempo. Em busca do espaço perdido, reuni narrativas de outros moradores do
Bairro Floresta e outros habitantes da cidade de Porto Alegre que, também, estavam
atentos a mobilidade e a heterogeneidade das formas urbanas.
Ninguém falava em Cristóvão Colombo, rua da Floresta diziam todos, e que
nome sugestivo, acenando à imaginação com uma espessura verde e fresca,
42
incompatível com as casas e as calçadas, mas por isso mesmo, ainda mais
impregnada de misterioso encanto. Por ali passavam as coisas
surpreendentes do dia-a-dia, as carroças do lixeiro, do padeiro e do leiteiro, e
as que tomavam o rumo da praça, carregando aos poucos as terras do
barranco. A carroça amarela da Padaria Três estrelas, trazia nos tampos o
letreiro encarnado: Padaria ***.
Eu não sabia soletrar, mas as três estrelas iluminavam de um sentido
evidente a inscrição engenhosa [...]
Havia eno muita casinha de porta e janela na Floresta, muita chácara e
terreno vago, muito buraco e pedregulho. [...] Muros emendavam em
cerquinhas humildes, cresciam tufos de capim entre as lajes soltas e, ao
fundo das chácaras, azulejava à sombra a fachada branca dos casarões sob as
altas paineiras. [...] No silêncio de uma travessa perdida, o perfume das
glicínias e das frésias enchia toda a manhã do arrabalde. [...]
(Segredos da Infância, Augusto Meyer, 1996:31)
Em sua tese de doutorado, sobre a produção da história de Porto Alegre, em
1940 e 1972, o historiador Charles Monteiro
16
ressalta a subjetividade dos cronistas da
cidade, na construção de suas imagens sobre ela. Ligado ao campo teórico e
metodológico da Nova História Cultural, Monteiro trabalha os lugares de memória
dos autores, destacando a presença do eu do autor na produção delas. De forma mais
evidente quando tratamos da imagem figurada da fotografia, os enquadramentos e
posicionamentos construtores das imagens narradas, no texto, parecem solicitar mais
atenção. Charles faz esse exercício com pelo menos dois narradores importantes da
cidade, Nilo Ruschel e Aquiles Porto Alegre, de forma a destacar a construção do
sujeito narrativo no jogo do processo de recordação. Sobre o sujeito Aquiles Porto
Alegre, ele destaca a relação do Eu com o espaço urbano, mostrando no texto do
autor, como: a praça, vira tradicional praça; a catedral, vira antiga catedral, o
eu presencial do sujeito, se transforma na experiência urbana coletiva, ressaltada pelo a
nossa cidade, o nosso passado. Trabalhando com períodos onde Porto Alegre,
passava por profunda transformação política e econômica, Monteiro destaca trechos de
crônicas, revistas e álbuns comemorativos produzidos nessa época, buscando sempre
delinear o contexto de produção dessas memórias: contexto de profunda mudança.
A modernização de patrola promotora de uma transfiguração da experiência
urbana em vários dos espaços da cidade modificou práticas espaciais, costumes e
cotidiano. Eram contextos de mudança, que tinham uma especificidade narrativa de um
presente que se projetava para o futuro, através da evolução do passado. O trabalho de
16
Monteiro, Charles. Porto Alegre e suas escritas Histórias e Memórias (1940 e 1972). Tese de
doutorado, PUCSP, 2001. Pag. 263, 264, 265, 393.
43
Monteiro (2001) evidencia bem os valores agregados a essa modernização e a condição
de autoria daqueles que a estavam narrando.
No trecho do texto da página anterior, porém, sentimos que o presente do autor
narra o passado em outro tom, que não o tom do testemunho, ou o de evidência de um
patrimônio coletivo. A melancolia é delineada nas descrições dos cheiros e na variedade
da flora; e o coletivo do nosso é, prontamente esquecido em pró da exploração da
subjetividade do eu. Aderindo ao eu morador do bairro e ao eu menino no bairro,
Meyer busca na descrição dos sentidos táteis e sonoros, uma tentativa de evocar o olor
das formas, o tamanho das casas, a distância dos percursos do tempo da sua infância.
Uma estilística inspirada, provavelmente, no dispositivo do cheiro das madeleines de
Proust
17
onde, ao sentir o aroma através do presente o personagem é lançado ao passado
involuntariamente. Tanto em Proust como em Meyer, a tragédia da cultura (Simmel,
1935; 2006) encontra na melancolia seu espaço de repouso, e é nela que literariamente
se expressa a impossibilidade
18
de voltar-se ao que era antes.
O que nos interessa no diálogo com esses textos, para além de eles estarem
lidando com a mesma matéria que lidamos aqui: o tempo em movimento, é
evidenciarmos que para Olinda, por exemplo, a transmissão do seu reencontro com o
passado é possível pela via da tragédia. Não foi sem propósito, que ela me levou a
um caminho por entre pdios transformados, ruas modificadas, e a sua casa natal;
aquele espaço era a evidência do tempo perdido e nele também a possibilidade de
reencontrá-lo.
2.1 Uma casa com gente dentro, ela não cai né
As formas urbanas que remetiam a pergunta sobre outros tempos da cidade
foram, então, descobertas em crônicas, recortes de jornal, revistas, álbuns e entrevistas
já realizadas por outros pesquisadores no Banco de Imagens e Efeitos Visuais - BIEV,
minha principal fonte de pesquisa em acervo. À medida que avaliava a produção escrita
17
Marcel Proust autor francês nascido no século XIX, é autor da obra Em Busca do Tempo Perdido, que é
composta de sete romances que primam pela narrativa descritiva que explora as sensações e emoções
vividas no presente na sua capacidade de evocação do passado.
18
estava curioso, ávido de conhecer, aquilo que julgava mais verdadeiro que eu próprio, o que para
mim possuía o valor de me mostrar um pouco do pensamento de um grande gênio, ou da força ou mesmo
da graça da natureza, tal como se manifesta quando entregue a si mesma, sem a intervenção dos homens.
Assim como o belo som da voz de nossa mãe, reproduzido isoladamente pelo fonógrafo, não nos
consolaria de a termos perdido, também a tempestade, mecanicamente imitada, teria me deixado tão
indiferente [...] Cf. M. Proust, No Caminho de Swamm; À sombra das moças em flor. Rio de
Janeiro:Ediouro, 2002. Pag. 299.
44
e fotográfica de campo, buscava na etnografia de rua um convite a aproximação mais
duradoura (Eckert & Rocha, 2002:8), um encontro com narradores que pudessem a
partir de sua vivência na cidade, narrar sobre sua perspectiva, o espaço dela. Em uma
pesquisa no acervo do BIEV, tive contato com uma entrevista
19
realizada no contexto de
uma saída de campo no Bairro da Aldeia, em Cachoeira do Sul, Estado do Rio Grande
do sul. Essa mulher, de aproximadamente uns cinqüenta anos havia sido interpelada
pelo grupo de antropólogos que fazia um trabalho de campo na região. Eles pediam que
ela contasse a eles algo sobre o lugar onde morava: os fundos de um terreno onde havia
na frente uma antiga casa em ruína. A casa em questão foi buscada pelo grupo de
antropólogos por ser a casa mais antiga da cidade, conhecida como A Casa da Aldeia.
Era um dia de muita chuva e ao chamar por alguém desde o portão da rua os
antropólogos foram recebidos por essa senhora que prontamente os mandou entrar por
causa da borrasca. Ela era uma mulher negra, adiposa, que vestia roupas escuras e muito
simples, uma camiseta, um chinelo de dedo e uma bermuda de lycra. Questionada sobre
a história da casa a senhora disse que havia morado ali por muito tempo. Os três
seguiram andando até o interior da casa, que em razão dos imensos buracos no telhado
não os abrigou da água. dentro ela disse que morou ali até ser retirada pela dona e
herdeira do imóvel.
A imagem gravada pelos entrevistadores era de uma mulher falando entre
paredes mofadas, esburacadas e caídas. Ao fundo se via um buraco amplo onde entrava
a luz da rua, um espaço que em algum momento devia ter sido a janela de um cômodo.
O telhado estava caindo e o piso nada mais era do que imensas fendas unidas por tábuas
de madeira compridas, colocadas entre as vigas, e que eram o único caminho possível
de ser feito, para que os pés ficassem livres da grama molhada. Apesar da aparente
ruína, dona Nice
20
falava daquele espaço como uma casa.
Dona Nice, hoje morava atrás num cômodo que ajeitara nos fundos do
mesmo terreno. Não deixou de ressaltar durante a conversa, enquanto apontava para o
teto e para as paredes esfareladas, que considerava o estado da construção um estrago e
uma judiaria. Dizia que a casa o era grande, mas para pobre estava bom. Anos
19
Entrevista realizada, em vídeo, na cidade de Cachoeira do Sul em junho do ano de 2003 por alunos da
disciplina de Antropologia Visual, ministrada no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da
UFRGS, pelas professoras Cornelia Eckert e Ana Luiza Carvalho da Rocha. Por ocasião de minha Bolsa
de Iniciação Científica / CNPq, fui responsável pela edição do material gravado pelos alunos, de modo a
finalizá-lo no formato do documentário em DVD, um vídeo chamado: Tempos Vividos e Narrados
Etnografia Visual e Sonora nas Ruas de Cachoeira do Sul, NTSC / 42 min / MiniDV / 2005.
20
Optamos por usar um nome fictício para essa interlocutora.
45
depois pesquisando sobre essa casa no site do jornal da cidade
21
soube que ela foi
comprada, meses depois da entrevista, por uma Organização Não Governamental de
Cachoeira do Sul - ONG Defesa Civil do Patrimônio Histórico (Defender). Nesse
mesmo jornal dizia que a organização havia investido na proteção das ruínas dessa
construção, colocando tapumes altos em torno dela e uma lona na parte de cima de
forma a proteger o telhado das intempéries. Na ocasião da entrevisa, Nice disse que
também havia investido na proteção do telhado, porém com telhas brasilit, que ela
mesmo comprara para tapar os lugares onde as telhas haviam caído. Com data de
construção de 1848, a Casa da Aldeia provavelmente ficou muito tempo desocupada até
Nice ir morar ali. Em 2003, época da entrevista, ela também não morava mais na casa,
mas foi enfática, enquanto apontava para as paredes tombadas e os furos no assoalho e
no teto: uma casa com gente dentro, ela não cai né, depois que eu sai é que ela ficou
assim, é uma casa boa essa, mas tá assim.
As palavras de Dona Nice, retiradas dessa entrevista em Cachoeira do Sul,
permitiram a realização de novas perguntas a um fenômeno que vinha sendo
observado nas fotografias retiradas durante o processo da etnografia de rua, realizado
no: Bairro de Ipanema, Bairro Floresta, Bairro Rio Branco, Bairro Moinhos de Vento,
Bairro Petrópolis, Bairro Santana e Bairro Cidade Baixa. O fenômeno da ruína.
2.2 A pergunta da ruína
A evidência de uma quantidade de casas fechadas, a venda, ou para alugar, ou
definitivamente em ruína como a casa de Dona Nice chamou a atenção para a relação do
espaço da casa e a discussão acerca das políticas de patrimônio e de planejamento
urbano.
21
Disponível em [www.jornaldopovo.com.br], acesso em abril de 2008.
uma tragédia cósmica que envolve aos nossos
olhos, toda ruína nas sombras da melancolia:
porque então a destruição da obra arquitetônica
aparece como a vingança da natureza contra a
violência do espírito que a modelou e conformou
a sua imagem e semelhança
(As Ruínas, de Georg Simmel,1935:212)
46
Como pude perceber, no curso das minhas caminhadas, essas casas dentro de meses e às
vezes semanas eram destruídas para darem lugar a outros tipos de construção.
Primeiramente, nominei essas casas, de casas velhas na tentativa de me
referir a um tipo de moradia: com cinqüenta anos ou mais; que ocupava terrenos muitas
vezes privilegiados economicamente dentro da dinâmica do mercado imobiliário da
47
cidade; e que estavam desocupadas. Eram, no entanto, casas que para aqueles com quem
conversava no decorrer das minhas caminhadas pela rua, casas cheias de história.
A justificativa para o fechamento da casa por parte dos vizinhos delas girava
em torno da mesma premissa, a morte de algum familiar aliada ao tema do litígio entre
herdeiros. Essa morte anunciada do imóvel fazia dele um indicativo de uma iminente
transformação no espaço da rua e nas dinâmicas de vizinhança, pois a casa, passado o
tempo dos processos ou das resoluções judiciais teria como destino a demolição. Para
chegar até essas histórias de família ligadas a casa era preciso chegar até os herdeiros da
mesma e isso não foi possível através dos vizinhos, pois geralmente eles tinham
ligações com a pessoa que morreu e não tanto com aqueles que haviam herdado a casa.
Geralmente os filhos, algumas vezes os sobrinhos do morto eram pessoas consideradas
desinteressadas pelo bairro, conforme diziam os vizinhos. Viviam longe dali e estavam
empenhados em se desfazer do ivel velho. Sobre esse conflito geracional gerado
por distintos interesses ligados a valores de habitação e estilo de vida, Juliano, ressaltou
o papel econômico da propriedade como um fator importante na decisão da venda do
imóvel:
- É porque se vender para construtora, sabe como é que é, é para construir
prédio . Aqui, aqui por um lado me deu até uma tristeza né, a dona
Cristina até não tenho muita relação, mas a dona Terezinha nós tinha uma
relação com ela ai, bah, ela é uma veinha muito camarada, ela saiu, bah,
ela saiu aí, ela saiu como posso dizer, forçada , ela não queria sair, o
marido dela faleceu uns anos atrás, ai os filhos começaram a tomar
conta e ela não queria sair e ai, bah ela vem ai e se emociona, toda hora que
ela vem, ela vem quase todos os dias ai.
- Faleceu o marido e ela ficou sozinha? questiono Juliano
- Ela ficou sozinha, ai os filhos ficaram com ela e tudo, ela tem duas filhas
né, é muita ganância né, como eu falo, é muita ganância, tem e querem
mais, ai é complicado. Eu mesmo, para mim assim, eu sou uma pessoa do
interior, eu sou uma pessoa humilde, eu sou uma pessoa que fui criado
assim, com humildade, com simplicidade, respeito todo mundo para ser
respeitado, se tiver que, sou um cara sincero, sou uma pessoa sincera, assim
sempre carismático com todo mundo procuro ser, mesmo que não seja
comigo eu procuro ser, mas assim esse tipo de coisa assim, eu para mim eu,
é complicado porque no interior não é assim, por exemplo, a minha
faleceu faz de um s, e a minha vó tem sete irmãos, cujo um dos irmãos é a
minha mãe, e não pensaram em nada, não pensaram em dividir, ta lá como
ta, não foi vendida, não foi alugada, ta lá. Que dizer, é uma coisa que eles
não tão pensando e nem pensaram antes de ela falecer, pois aqui, deus que
me perdoe, mas aqui antes da velinha falecer já venderam a casa.
- Ela é bem velinha? pergunto sobre a idade de dona Terezinha
- Ah ela tem mais de oitenta anos. [...] vem com as filhas, ela ta morando
com a filha e com o genro, então é... ah, o nome eu não sei, sei que essa ai
que é onde ela está morando é la perto do estádio beira rio, estádio do inter,
na zona sul, perto de Ipanema.
- E a casa vazia? questiono
48
- Ta vazia agora, levaram tudo! que o que, que fizeram, levaram tudo,
uma parte ficou com a no caso com uma das filhas, a outra ficou com a mãe
do genro, entendeu? E ai, para onde vai as coisas? Tu acha que vai ficar
com ela, e ai tão prometendo disseram que compraram um apartamento na
[Rua] Praia de Belas só que tão esperando reformar ele, vamo ver, tomara a
deus que seja verdade, que ela não seja de uma de tantas que eu vi e
presenciei, também, aqui em Porto Alegre do fim ser um asilo, do final ser
um asilo. É, é complicado, é brabo isso ai. Eu mesmo, eu sou filho único,
minha mãe tem casa própria em Dom Pedrito, entre Bagé e Livramento,
na região da campanha e ela tem campo, tem carro, tem tudo e eu não penso
e por essa razão que eu não penso e não to pensando, que eu sai de
para não ficar dependente deles, para não ficar pegando o que não é meu e
vim para para uma cidade, que um ano e pouco eu to aqui e não
conhecia, e ter minha própria dependência. Criar minha família, com
minhas próprias forças, claro que algumas vezes quando eu tive meus dois
filhos doentes eu, um com pneumonia e outro com bronquite, tiveram no
hospital Santo Antonio, ai eu tive que, ela veio me ajudou, ai tudo bem, eu
precisei porque é só eu e ela. Toda a vez assim não penso, não peço, se tiver
que eu conseguir, não por orgulho, não sou orgulhoso, mas eu to tentando
fazer isso ai para os meus filhos futuramente serem iguais, não serem tão
dependentes, serem entre eles, fazerem por eles, como eu to tentando fazer
por mim e pela minha família, então, até alguns acham, não, tu é orgulhoso,
não é orgulho, é uma coisa assim, eu apreendi, o pai mesmo, o pai e a
mãe já me ensinaram, passou do quartel, tu tenta ser independente o
máximo possível, tenta ter tuas coisinhas o máximo possível, tenta lutar,
trabalha, não te envolve em droga, não te envolve em bebida, eu mesmo não
fumo não bebo, não tenho vicio, não sou consumidor de droga nenhuma.
Meu único vicio é jogar futebol. (eu rio) Isso eu jogo, jogo futebol desde
pequeno, jogo nesses campeonatos ai, mas é meu único vício. Quer dizer
então que eu não penso... No caso é isso ai né, porque como é que vão
vender uma coisa que ela não queria sair...
- Não queria? pergunto
- Não a principio não, o seu Raul, o seu Raul e a esposa dele cansaram de
dizer, ela não queria sair, tão forçando ela a sair, forçaram ela a sair, é a
ganância né, claro que isso aí, até, eu to comentando ai para ti, porque isso
ai fica só no caso aqui né, to dizendo por mim, e o pessoal que ta sempre ao
lado dela né, (aponta com a sobrancelha para a casa do seu Raul, em frente),
isso ai é uma coisa que é chato, eu tive sempre convivendo com ela
conversando com ela, o máximo que ela precisou eu sempre tava, porque ela
mora sozinha, dormia e morava sozinha né, fica brabo isso ai, quando
menos se espera deram prazo para ela sair, e assinaram, eu vi quando
assinaram o contrato dela, fizeram um circulo ali com a construtora e tudo,
levaram ela para dentro, quando ela voltou já tava com o contrato assinado.
Pô, então fica brabo né? E o que levaram de coisa daí, os filhos, bah, tinha
que ter, tu tinha que ter gravado isso ai.
Juliano trabalhava cuidando das casas em uma rua do Bairro Petrópolis que
tinha início na Avenida Ipiranga e terminava em uma rua paralela a Av. Protásio Alves.
Como ele disse tinha chegado à cidade fazia um ano e pouco, começara morando com
um amigo na Vila Fátima Pinto, e logo na primeira semana conseguiu trabalho fazendo
mudança de prédio. Em um mês começou a trabalhar em segurança, em uma
49
empresa no Bairro Passo dAreia. Em seguida trocou para outra empresa, que agora lhe
assinava carteira e passou a trabalhar na mesma rua em que está hoje. A empresa,
todavia, faliu e a outra que veio, com sede no município de Viamão, lhe contratou,
sendo que assim, já trabalhava no bairro pelo menos um ano. O setor de Juliano
abrangia uma quadra inteira, a quadra central da rua.
Meio e Fim da Rua Dario Pederneiras, Bairro Petrópolis.
Gravamos a entrevista durante o seu período de trabalho. Sentado no interior
da guarita de segurança, ele conversava comigo, porém sempre atento ao movimento da
rua. Cumprimentava os transeuntes conhecidos, os vizinhos, os empreiteiros e
corretores que circulavam na região. Controlava os carros que entravam nas garagens
vizinhas a sua guarita sempre com sorriso e um abano de mão. Era um homem baixo,
50
magro, de tez morena, cabelo raspado, trinta anos de vida. Era morador de uma casa no
Bairro Bom Jesus, onde vivia com a esposa e os dois filhos pequenos.
Em seu relato Juliano mescla ganância, injustiça e parentesco para comparar o
seu contexto familiar e de criação com o contexto da família de Dona Terezinha. Se
olharmos esse relato levando em conta a noção de um projeto
22
(Schutz, 1979 apud
Velho, 1999) de família chegaremos até uma diferença implícita ao relato de Juliano
que é o de classe social. Apesar de pertencer a uma classe trabalhadora o projeto
familiar de Juliano é um projeto centrado na sua família nuclear. Ele aciona as redes de
solidariedade e as relações de parentesco extenso quando necessita de ajuda econômica,
porém, em geral, o parentesco e a noção de geração aparecem vinculados aos valores
herdados, o a propriedade herdada. A ganância parece estar relacionada com um
desrespeito ao ancestral da família ou ao o reconhecimento do mesmo e da
importância do espaço de moradia desse ancestral e das suas coisas. Juliano vincula
esse desrespeito à noção do interior e do exterior, esse último, a cidade de Porto Alegre.
Conforme Bachelard (1989), o interior e o exterior não recebem do mesmo modo os
qualificativos (Bachelard, 1989:219) que são a medida da nossa adesão as coisas. Eles
formam uma dialética do esquartejamento onde a geometria evidente nela nos cega
tão logo a introduzimos em âmbitos metafóricos (Bachelard, 1989:219). Metaforizando
o interior vinculante e a cidade dura, Juliano não enxerga os vínculos que mesmo na
cidade hostil ele foi capaz de fazer e perpetuar, como aqueles com Dona Terezinha, cuja
idéia de rompimento, com a extinção da casa o deixa triste.
Como promotor da segurança da rua, Juliano era muito atento aos movimentos
da mesma e tornou-se um interlocutor privilegiado para questionamentos sobre as
transformações no bairro. Transformações, como as narradas anteriormente por ele, da
venda da casa de Dona Terezinha, que modificavam esteticamente a rua, à medida que
modificavam também as relações sociais de afinidade e de trabalho nela.
Como fazia bastante frio, brinquei com a forma da sua guarita uma casinhola
branca, com uma porta e vidros que pareciam janelas e em como ela se parecia com
uma casa. Ele rapidamente respondeu:
22
Cf. Schutz conduta organizada para atingir finalidades específicas.
51
- É, exatamente, porque aqui é minha segunda casa
23
, eu passo a noite em
casa, doze horas em casa e doze horas aqui. O único dia que eu passo 24
horas com a minha família é no domingo. Então quer dizer que aqui é como
se eles fossem meus vizinhos né, como se fossem meus segundos vizinhos
então é... Bah quantas vezes já ai me ajudaram com remédios para minha
família, não tem, por isso que eu digo, precisar sempre de mim aqui eu to
sempre as ordens, se eu continuar ai trabalhando com eles ai, não vendendo
as casas lógico, vou continuar, mas a principio eu acho que tão cedo eles
não vão vender. Pelo que eu to vendo ai pelos moradores, já vieram sondar,
a imobiliária e os corretores, eles não, pegavam o telefone ah quem
sabe um dia e ai deu. Tem uns que nem atender não atendem, nem
atendem...
Ah não, por exemplo, pega um, uma, duas casas dessa aqui da para fazer
um baita prédio, maior que esse daí (aponta para o prédio da frente), da
para fazer. Pega por exemplo a casa ali do Dr. Paulo Brossard, a entrada
dela é aqui e o final é la na Corte Real, olha o prédio que faz, faz um prédio
de entrada e saída, a casa dele, a do Coronel, pega a do Coronel e essa
aqui do lado faz um baita prédio também, então é brabo isso ai.
- Por isso que eles querem comprar tudo junto? pergunto sobre a ação
dos compradores
- Exatamente, o seu Moisés ali do lado do prédio ali, reformou toda a casa
dele, ali do outro lado daquele prédio ali, reformou toda a casa dele e
disse que não ta a venda, não vou vender. O seu Moises é dono de... Daqui é
um dos mais bem de vida, é dono de hotéis, pousadas, tem um hotel parece
que em santa Catarina que ele é dono também, ele é bem. Aqui os mais bem
credenciados da rua aqui é o Luiz Coronel, o Dr. Paulo Brossard, Dr. João,
é os mais bem credenciados, e são os mais visados né. Por exemplo, o Dr.
Luiz Coronel e o Dr. Paulo Brossard, são os mais visados né, porque estão
sempre na mídia né. Sempre na televisão.
Em sete de janeiro de 2009, conforme mostram as imagens de satélite do
software de imagens Google Earth, a Rua Dario Pederneiras continha 13 pdios, 31
casas, sendo que 5 delas haviam sido demolidas no ano de 2008, época em que
entrevistei Juliano. Vindo do interior do estado do Rio Grande do Sul, Juliano
estranhava e lamentava a venda massiva de casas na rua, pois para ele essa condição,
também, colocava em risco o seu trabalho. A construção de prédios não mudava a
paisagem da rua, ela modificava a dinâmica de circulação
24
na rua também. Cada novo
prédio vinha com um novo guarda particular, responsável pelo controle da entrada e da
23 Segundo o Código Civil Brasileiro, no Capítulo III, Título III, Do Domicílio - Art. 72: É também,
domicílio da pessoa natural, quanto às relações concernentes à profissão, o lugar onde esta é exercida.
Parágrafo único. Se a pessoa exercitar profissão em lugares diversos, cada um deles constituirá domicílio
para as relações que lhe corresponderem. De acordo com o Dicionário Houaiss, Ed. Objetiva, 2001, a
palavra domicílio pode significar: 1. residência habitual de uma pessoa; casa, habitação; 2. lugar (cidade,
distrito, região etc.) onde se situa essa habitação; 3. local onde se considera estabelecida uma pessoa para
os efeitos legais, onde se encontra para cumprir certos atos ou onde centraliza seus negócios, atividades,
o forçosamente o lugar onde dorme. Entendemos dessa forma, em diálogo com Juliano e com o uso do
termo segunda casa para falar do espaço de trabalho, que diferente de residência, domicílio ainda assim
constitui um vínculo de habitão.
24
Sobre esta questão ver o capítulo A implosão da vida pública moderna In: Caldeira, Teresa P. do R..
A cidade de muros. São Paulo: Ed. 34/Edusp, 2000. Pag. 301.
52
saída de veículos e de pessoas. Essa figura acabava dispensando o trabalho do guarda de
rua, já que os prédios tinham esquemas de segurança internos, meras e luzes que
controlavam desde o lado de dentro as calçadas e o movimento dos transeuntes.
Inicio da Rua Dario Pederneiras, Bairro Petrópolis
As casas ainda existentes tinham terrenos muito extensos. Havia me chamado
atenção um deles, que media 2.900 metros quadrados e do qual havia fotografado em
2006, quando a casa que ocupava o centro do solo, ainda estava de pé, porém
desocupada. Segundo Juliano o terreno estava vazio por determinação do meio
ambiental, que não havia aprovado o projeto de construção no terreno, porque o
mesmo previa o corte de muitas árvores.
Nos processos de transformação urbana em Porto Alegre, narrados por
Monteiro (2002) nas décadas de 40 e 70, a violência e a arbitrariedade do processo de
modernização era notado no cotidiano
25
do espo público da cidade - com destruição
massiva de casas, estabelecimentos comerciais, edifícios pequenos, malocas ou seja,
25
É um absurdo protestam os indignados cidadãos porto-alegrenses diante da febre de demolições que
acometeu a capital nesses últimos tempos. Onde vai morar essa gente que fica sem teto de uma hora para
outra? Na rua? Isso até é caso de polícia... João é o demolidor n. 1 de Porto Alegre e o terror das nossas
arcaicas e vetustas edificações coloniais In: Amado, J; Kefel, Ed. João Macaco, o demolidor, Revista
do Globo, Porto Alegre, ano 17, n 392, 11.8.1945, PP. 39-40 apud Monteiro, 2001, p. 78.
53
tudo o que estivesse bloqueando o horizonte da abertura de uma avenida. Atualmente
pode-se dizer que o processo de transformação passava pela remodelação dos espaços
privados e, a partir dele, o espaço público mudava sua feição.
Não é possível afirmar, no entanto, que o processo de ruína de uma casa ou
imóvel é etapa integrante do processo de transformação do espaço. Os valores modernos
(Caldera, 2000:301) se esforçaram em produzir cidades que, com a bandeira da
normatização dos espos públicos produziram uma fragmentação e uma
higienização que não permitiram a sobrevivência de muitas ruínas. Talvez a
possibilidade de existência de uma ruína nas cidades moderno-contemporâneas - seja
pelos extensos processos de litígios jurídicos familiares em torno da herança de uma
casa; seja pelo disciplinamento dos planos urbanos de regulação do espaço; seja pelas
diretrizes da lei ambiental vigente consista em uma forma regular de fazer as pazes
com aquilo que a própria cidade moderna tratou de destruir, a faculdade pública de
contemplação do tempo transcorrido.
A residência de Dona Terezinha, cuja venda foi narrada por Juliano com muita
tristeza, não chegou a ficar vazia, sem gente morando dentro, porém no bairro
54
Petrópolis e em muitos outros bairros a evincia desses espaços que segundo Simmel
(1935) são a mais extrema potência e plenitude da forma presente do passado
(1935:219). Neles o homem em sua passividade, atua como mera natureza. Pois, ao
permitir a degradação da matéria construída, ele deixar acontecer, desde o ponto de
vista da idéia humana uma passividade positiva (1935:213). Ao abandonar a
construção, o homem se faz cúmplice da natureza e adota uma forma de agir que é
diretamente oposta a sua verdadeira essência e nessa dialética da construção e do
abandono, nasce a ruína.
2.3 A cidade dos tapumes
Dominando a feição das mudanças é possível saber o estágio do processo de
transformação de um terreno vendido somente de observá-lo da calçada. Juliano
demonstrou ser um observador atento da cidade, quando me falando dos seus passeios
com a família na zona sul de Porto Alegre ressaltou as mudanças que havia visto por lá:
- Prédio? era poucos que tinha, é que agora tem uma evolução muito, muito
grande, aqui e na zona sul, bairro Ipanema, aquilo la ta, bah se ir para
aquele lado lá, para o Bairro Ipanema lá, o que tem de construção de prédio
lá, é um absurdo, eu tive a semana passada lá, passei o dia com a esposa
e, bah é, um absurdo, olha, eu vou te dizer assim, acho que é pior que aqui.
Tem mais prédio em construção do que aqui. Porque aqui ta começando,
que ta começando, mas ta começando bem né, porque tu vê que aqui, lá tem
um, aquele ta praticamente quase pronto, aqui, é vários, cada... é! isso
ai tudo, tudo é prédio, tudo, tudo, são prédios que não tem nem cinco anos.
Entendeu? É tudo prédio novo, não, olha ta....
Da calçada se observa a mudança. Comentando essa impressão com Juliano -
em momento onde relatei os processos de etnografia de rua pelo Bairro Petrópolis,
Floresta, Moinhos de Vento e Santana, e as mudanças que notara do início do processo,
em 2005 até o presente - ele me auxiliou na definição de alguns desses estágios de
destruição e construção do espo de uma casa. Usando para isso a experiência de
observação que ele havia desenvolvido no ofício da segurança da rua:
- É que acontece assim ó, por exemplo, ali isso está desde esse ano né, é
que agora tem que esperar uma coisa da prefeitura, a prefeitura tem que
autorizar, enquanto a prefeitura não autoriza... Porque ai tem a prefeitura,
tem essa do meio ambiental, que é a coisa de árvore, ah, tem um monte de
coisa ai, por exemplo, tem um monte de árvore, não sei se vão cortar ou
não, ai tem que esperar a autorização né, enquanto não autorizar, a
construtora não pode iniciar né. Aqui mesmo, compraram, a recém
compraram, ai tem a fase da demolição, primeiro tem o pagamento né, que
ainda não, parece que não se acertaram, se acertaram os preços, mas
parece que ainda não foi encaminhado nas contas deles no caso, ai vem a
parte da medição, ai vem a parte dos tapumes, é por etapa, né. Depois vem a
55
parte dos tapumes, depois ai vem a parte da demolição, ai vem a máquina,
vêm as caçambas tudo, depois ai sim, ai é um deus nos acuda ai deus
sabe a hora que vem que vão começar de novo né. Aquele lá, aquele coiso lá
de baixo ta o que, quase quatro meses (fala apontando para um terreno
fechado com tapumes). Eles tiraram tudo, demoliram tudo, já levaram
tudo o que tinham que levar lá, ta limpinho, limpinho, só que eles tão
esperando a prefeitura, e a prefeitura é muito demorada né para isso ai. Ela
vai ter que vir fazer a vistoria, a vistoria para ver se ta tudo certinho,
conforme tem que fazer, se aqui da para construir, depois que der tudo isso
ai, vier o visto de autorização ai sim, ai eles começam, e ai vai né. Ai
questão de um ano, dois anos já, esse prédio aqui levou um ano e meio, um
ano e meio, aquele lá da Felipe lá, la de cima lá, que é a EGL, outra
construtora [...] Aquele da EGL
26
ta desde o ano passado. A princípio
até o final do ano vão terminar, aquele prédio grande que aparece ali na
Felipe de Oliveira né, aqui na reta ali (se espicha para falar com alguém)
sim ta ta ta melhorando, brigadão mesmo, brigada mesmo (termina de falar
com o homem e olha para mim) - esse ai é o motorista do seu Paulo
Brossard. É, o, o que eu ia te dizer... é isso ai, agora é só esperar a
autorização da prefeitura e... Por exemplo, aqui ó, mudando de assunto,
essa casa ai do meio ó essa branca, tem a vermelha né, da dona Esther, que
é veterinária, a do meio é do Dr. Mauro, mas ali não é dele, é alugada, ele
paga um e meio, um e duzentos por mês, do lado é do Coronel, o Coronel, o
Coronel comprou essa casa, ele comprou a casa da dona, para não
construírem prédio, tu vê só como é...
- Medo de... - interpelo
- É que se construírem prédio ali, ele vai ser obrigado a sair né. [...] é, e
aqui o Dr. Paulo Brossard também ofereceu uma oferta para a dona
Vilma da casa do lado, sem ser essa branca a outra, e do lado de do Dr.
Paulo Brossard ele ofereceu uma proposta para ela, no caso se um dia
ela fosse vender, que ela não vendesse para construtora, vendesse para ele.
Tendo como primeiro estágio a venda da casa para a construtora. Fechado o
contrato, a casa era fechada com tapumes de madeira. O prazo para que se pudesse
efetuar a demolição, segundo o setor de licenciamento de demolição, da Secretaria de
Obras e Viação do Município de Porto Alegre, era de uma semana. Porém, segundo os
funcionários, havia ressalvas.
Atualmente, conforme as normas da prefeitura municipal, para entrar com
pedido de demolição de uma propriedade construída, é preciso entrar com um
formulário padrão para o requerimento da demolição. Esse formulário, no entanto, é um
instrumento para pedido de construção, pois nele diversas alternativas ligadas ao ato
de construção de uma habitação, prédio, estabelecimento comercial no espaço da
cidade. Os itens disponíveis no formulário são: aprovação de projeto e parcelamento do
solo, aprovação de projeto e licenciamento edificação, exame do estudo de viabilidades,
vistoria do parcelamento do solo, vistoria de edificação, exame do estudo de viabilidade
26
EGL Engenharia, empresa construtora que atua desde 1986 na cidade de Porto Alegre.
56
para construção. Abaixo, em um campo ao final de todas essas opções, chamado
Outros (especificar): é que o engenheiro responsável
27
pela demolição deve escrever
seu pedido de licença para tal ato.
Porém, como aconteceu em uma das casas que acompanharemos no capítulo 3,
4 e 5, nem sempre depois de comprado o imóvel é rapidamente demolido. Durante esse
tempo de espera entre a compra e a desocupação, até a demolição - é provável que a
empresa que adquiriu o terreno contrate um guarda, ou desloque um funcionário para
cuidar da casa vazia. Isso se dá por medo de que alguém entre na casa e passe a morar
nela enquanto a demolição não é solicitada ou liberada pela Prefeitura.
No âmbito da etnografia
28
no Bairro de San Telmo, na cidade de Buenos Aires,
Argentina e da qual nos ocuparemos no capítulo 6, esse estado de ocupação de casas
fechadas por famílias que não eram ligadas a família proprietária do imóvel era
chamado no contexto porteño, de casas tomadas. As casas tomadas eram
geralmente casas ou prédios muito antigos, com data do início do século vinte ou fim do
culo dezenove, que na década de 70 se encontravam em grande decadência física, por
vezes, reduzidos a alguns pedaços de cômodos no interior de baldíos. Por essa razão,
muitos deles haviam sido fechados por seus proprietários - a municipalidade ou os
herdeiros legais com correntes nas portas ou com tapumes. Ou seguiam funcionando
nessas condições degradadas, como hotéis ou pensões (Petit Hotel) - com administração
interna, por vezes, sem nenhum vínculo ou contrato com o proprietário legal do imóvel.
Vazias e fechadas essas construções foram ao longo dos anos recebendo famílias que
migrando do interior da província de Buenos Aires ou de países limítrofes da Argentina:
Peru, Bolívia
29
e Paraguai, ocupavam esses espaços e passavam a viver ali por muitos
anos. Maria Cristina Correa, viúva, e mãe de dois filhos e ex-moradora do bairro de San
Telmo, morou durante 25 anos em uma casa tomada nesse mesmo bairro. Na
27
Cf. diálogo com um Engenheiro Civil, a ART - Anotação de Responsabilidade Técnica, é uma
habilitação exclusiva para quem tem registro no CREA Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura.
É um documento especifico e individual para cada tipo de intervenção na qual o profissional se torna
responsável. A formação em Engenharia torna apto o profissional a qualquer tipo de responsabilidade no
ramo da construção civil. Outras profissões como arquitetos, técnico em edificações e geógrafo também
podem ter ART, porém com algumas restrições. A prefeitura municipal de porto alegre exige a ART para
conceder a licença da demolição.
28
Intercâmbio proporcionado pela Red de Asociación de posgrado en Antropología Social. Argentina
Brasil. Programa Binacional de Centros Asociados de Posgrado em Antropologia Brasil (PPGAS
UFRGS e MUSEU NACIONAL UFRJ) e Argentina (IDAES UNSAM) do qual fui contemplada com
uma bolsa de estudos CAPES pelo período de 3 meses.
29
Ver María Carman. Las trampas de la Cultura, 2006, p.182. sobre o cotidiano da comunidade boliviana
habitante de casas tomadas y baldíos en la cortada del Abasto, região limítrofe ao bairro Balvanera, na
cidade de Buenos Aires, Argentina.
57
entrevista que me concedeu durante minha etnografia no bairro, disse que o
desalojamento foi iniciado em razão de um processo de restauração do prédio,
considerado histórico
30
pelo município.
30
Ver M. Lacarrieu; R. Bayardo; M. Carman, Espacio, tiempo e imaginarios en el centro historico de
Buenos Aires,1996, p.52.
58
O prédio, no entanto, havia sido demolido fazia alguns anos e na esquina das Ruas
Independencia y Bolívar havia hoje extensos tapumes. Outro caso emblemático do atual
processo de remodelação dos espaços do Bairro de San Telmo é o prédio del Ex-
Patronato de la Infancia, chamado pelos vizinhos do bairro e pela mídia
31
local de
PADELAI
32
. O PADELAI é uma construção de 1887, localizada na esquina da Rua
Balcarce y Humberto Primo, originalmente construído para abrigar crianças e jovens
órfãos. Exercendo essa função até a década de 70, fica abandonado até a década de 80,
onde é tomado por famílias sem teto. O processo de desalojamento dessas famílias
foi deveras intenso e violento por parte da municipalidade da cidade de Buenos Aires, a
notar, pelos relatos daqueles que me vendo tirar fotos do local, paravam para contar
sobre o isolamento das nove quadras ao redor do prédio, das barricadas da polícia, da
resistência dos moradores em sair, das agressões com garrafas quebradas por um lado, e
cacetetes de outro.
Desocupado em 2003, o PADELAI segue hoje abandonado como na década de
setenta já havia acontecido. Fechado por altos tapumes e conservando ao redor sua
antiga grade, é um prédio em ruína. Todavia, em 2008, no âmbito dos processos de
31
El gobierno porteño firmará hoy con una agencia gubernamental española un acuerdo marco para
convertir el ex Padelai ese viejo edificio de San Telmo, abandonado desde 2003, cuando fueron
desalojadas las familias que lo ocupaban, en un megacentro cultural. Será el punto de partida para una
cesión en comodato por 30 años de esa construcción histórica, a la Agencia Española de Cooperación
Internacional para el Desarrollo, dependiente del Ministerio de Relaciones Exteriores de España. La obra,
que involucra unos 3500 metros cuadrados de construcción, debería estar terminada para la celebración
del Bicentenario de la Revolución de Mayo, en 2010. Pero antes de que se inicien las obras, el macrismo
deberá lograr la aprobación de una ley de expropiación, en favor de una cooperativa de ex ocupantes que
reclaman sus derechos sobre parte del predio Disponível em:
<http://www.pagina12.com.ar/diario/sociedad/3-106373-2008-06-20.html>. Acesso em 23 de outubro de
2009.
32
Sobre o processo do PADELAI ver a obra Con el Corazón mirando al sur. H. Herzer (org) Buenos
Aires: Espacio Editorial, 2008. Pag. 303.
59
transformação de San Telmo no bairro mais antigo da cidade
33
, iniciados em 1979, e
integrados ao projeto de delimitação do casco histórico do município - que incorpora
o Bairro de San Telmo e o Bairro de Montserrat foi selado o acordo que transformará
o PADELAI em um mega centro cultural.
A estética dos tapumes, portanto, aponta para uma série de questões que
envolvem a transformação do espo construído das cidades. Questões que envolvem
direitos de propriedade, interesses imobiliários e comerciais e políticas de patrimônio.
Essa última, no caso da cidade de Porto Alegre é determinada pela EPAC - Equipe de
Patrimônio Ambiental e Cultural, que associada a Programas como o Monumenta e de
acordo com o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental, de 1999, define os
imóveis de interesse histórico cultural, limitando e regulando intervenções ou
modificações nos mesmos. Listados na DM Declaração Municipal Informativa das
Condições Urbanísticas de Ocupação do Solo - fornecida pela Secretaria de
Planejamento Municipal, os prédios considerados de interesse histórico cultural ou
integrados a categoria compatibilização
34
, não recebem licença para demolição. Esse
documento, a DM, funciona como uma biografia do solo urbano, e ele é consultado para
qualquer tipo de intervenção urbanística realizada na cidade.
Segundo o site da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, em matéria
35
sobre o
andamento do Projeto Monumenta no âmbito do município, pode-se notar que o espaço
de algumas casas, principalmente na região do centro
36
da cidade de Porto Alegre,
passam com os processos de produção de patrimônio, a possuir valor histórico. Em
agosto de 2009, oito prédios públicos estavam em processo de restauração
37
, entre eles
33
Cf. A.G. Thomaz, El patrimonio y la memoria barrial: relaciones de hegemonía y subalternidad en
el barrio porteño de San Telmo, 2008. Pag. 1
34
Compatibilização é o termo usado para denominar um imóvel com características arquitetônicas
similares a outro, considerado histórico. Também se usa esse termo, segundo informações da SMOV,
para preservar um conjunto urbano que sofrerá dano estético ou cultural com a demolição.
35
Dispovel em: [http://www2.portoalegre.rs.gov.br/smc/default.php?reg=1&p_secao=227]. Acesso em
agosto de 2009.
36
Segundo o Diário Oficial de Porto Alegre de 25 de janeiro de 2008: o ato 10364 /2008 - Lei Municipal
- com data de 22 de janeiro de 2008, do processo 1039491064 /2006, altera o art. 1º da Lei nº 2.022, de 7
de dezembro de 1959, e alterações posteriores, alterando a denominação da zona Centro da cidade de
Porto Alegre para Centro Histórico da cidade de Porto Alegre. Dispovel em:
http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/dopa/usu_doc/25janeiro08.pdf. Acesso em: dezembro de
2009.
37
Segundo o Caderno Técnico 1 do Manual de Elaboração de Projetos de preservação do patrimônio
cultural, produzido pelo Programa Monumenta (2005:14) Restauração ou Restauro é o conjunto de
operações destinadas a restabelecer a unidade da edificação, relativa à concepção original ou de
intervenções significativas na sua história. O restauro deve ser baseado em análises e levantamentos
inquestionáveis e a execução permitir a distinção entre o original e a intervenção. A restauração constitui
o tipo de conservão que requer o maior número de ações especializadas.
60
uma igreja. Os privados contabilizavam doze prédios, entre eles, uma igreja, um hotel,
um clube, dois condomínios e sete casas, três delas com processo de restauro concldo
em 2008.
Esses processos de restauração de uma casa ou prédio, geralmente, buscam
estabelecer um simulacro de continuidade (Eckert, 2009:92), onde a macro esfera,
aqui representada por programas como o Monumenta, impõe a reforma sobre a ruína e
re-semantiza seus sentidos pela higienização e/ou espetacularização. A ruína, qual
discutimos anteriormente, é vista como uma paisagem negativa, impossibilitada de
durar em sua condição de luto, sendo totalmente, censurada do convívio
descontínuo.
Quando o imóvel, no entanto, o tem o status de patrimônio, as modificações
na paisagem ficam sob a égide do poder municipal, que tem o papel de regular e
autorizar cada etapa das construções
38
privadas, de acordo com as diretrizes do Plano
Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental de Porto Alegre. Composto de quatro
partes e dez anexos, o plano é bem específico quanto ao parcelamento do solo.
Na primeira parte dele Do desenvolvimento Urbano Ambiental, título II,
capítulo III, chamada Uso do Solo Privado, lê-se o seguinte:
A Estratégia de Uso do Solo Privado tem como objetivos gerais disciplinar
e ordenar a ocupação do solo privado, através dos instrumentos de
regulação que definem a distribuição espacial das atividades, a densificação
e a configuração da paisagem urbana no que se refere à edificação e ao
parcelamento do solo
39
Se a ruína aterroriza a cidade moderna (Eckert, 2009:92), a estratégia de
configuração da paisagem urbana de Porto Alegre, no presente, prima por um plano que
busque dar ao espaço, uma condição de lugar. Se a noção de estratégia, para Michel De
Certeau, é a manipulação das relações de forças (1994: 99) onde um sujeito do querer
e um sujeito do poder podem ser isolados, esse ato de isolar é, portanto, um ato de
constituição de um lugar para esse poder e querer próprios. Temos um plano que define
a partir de lógicas de regulação para distribuição do espaço, os próprios para cada
demarcação aludida na imagem da cidade que ele planeja. Assim como a noção
patrimonial que visa isolar a descontinuidade numa forma que evoque a estabilidade
38 Seção VII - Do Direito de Construir. Art. 1.299. O proprietário pode levantar em seu terreno as
construções que lhe aprouver, salvo o direito dos vizinhos e os regulamentos administrativos.
39
Cf. PDDUA, PMPA/SMP, 1999, art. 11 (grifos meus)
61
(De Certeau, 1994:201)
40
, o PDDUA de Porto Alegre, busca disciplinar o espaço a
partir de distintas imagens de cidades, definindo o lugar para o histórico, para a
transição, para o residencial, para o desenvolvimento.
As nove macrozonas que tem objetivo de representar regiões sócio-ambientais
da metrópole de Porto Alegre, seguem no rastro das grandes transformações e mudanças
associadas as reformas (Caldeira, 2000:302)
nas cidades capitalistas, desenvolvidas
desde o século XIX. Se o PDDUA de 1999, não é um plano que prevê grandes
modificações físicas na cidade, como abertura de viadutos, construção de autopistas, e
grandes avenidas - como foi realizado na década de 70 - ele promove, no entanto um
disciplinamento simbólico do espaço que, todavia, não deixa de produzir segregação e
fragmentação (Caldeira, 2000:303). No fluxo dessas representações da cidade, as
macro esferas jurídicas e institucionais concebedoras do lugar; e as representações
relativas às práticas sociais que em diálogo com esse lugar fundariam as trajetórias
espaciais dos sujeitos na cidade; ambas são operações de demarcação (De Certeau,
1994:208). Narrativas que exercem o papel do cotidiano em matéria de demarcação.
Quando nosso interlocutor de Porto Alegre Juliano se espanta com o
crescimento de empreendimentos imobiliários na região do bairro de Ipanema, ele está
dialogando com a imagem de Cidade Jardim, do plano diretor da cidade, que prevê para
essa região, tal conceito de lugar. Ele se impressiona que a homogeneidade, desse lugar
onde vai passear com a família nos fins de semana, também é heterogênea. Na tensão
entre essas duas lógicas ele também ressalta a visibilidade do Bairro Petrópolis
àqueles que talvez, em dlogo com Tereza Caldeira, estejam na invisibilidade. Uma
visibilidade que envolve uma noção de violência e de bandidagem, no qual o papel de
Juliano como segurança é fundamental no controle desse patrimônio. Para ele os
bairros mais visados eram: Bela Vista e Petrópolis, pois como avaliou estavam muito
perto das vilas: Bom Jesus, Morro da Cruz, Cachorro Sentado. Tem a pinto, a Fátima
Pinto, a Pio X, que são tudo da Bom Jesus; Jardim Carvalho, Jardim do Salso, tudo,
tudo, pertinho daqui. Partenon, é tudo perto, né.
O fato de Juliano ter uma guarita de segurança na rua, nos alerta para algo que
Tereza Caldeira enfatiza em sua obra a Cidade de Muros (2000:303), uma crise na
concepção de vida pública urbana. Jane Jacobs, uma das defensoras mais famosas dos
valores da vida pública moderna nas grandes cidades (1961:35 apud Caldeira,
40
Cf. De Certeau Um lugar é, portanto, uma configuração instantânea de posições. Implica uma
indicação de estabilidade (1994:201)
62
2000:302), reflete sobre o desaparecimento desses espaços como uma ameaça a
liberdade da cidade. Uma idéia de cidade que, segundo Caldeira (2000), se funda na
ficção do contrato social baseado em um principio de universalidade onde o espaço da
rua seria o espaço moderno do heterogêneo, do plural, do divertido (Young, 1990:139
apud Caldeira, 2000:305). Se a figura de Juliano precisa existir para garantir a ordem, e
a segurança da homogeneidade social daquele espo; a heterogeneidade da dimica
urbana ameaça, no entanto, essa homogeneidade que funda suas relações de trabalho e
de vizinhança, com os moradores da rua. A cidade dos tapumes é a cidade da
evidência da transformação, é a cidade do presente, é a cidade que convive com a
mudança. É muito diferente de uma cidade de muros, onde os enclaves fortificados
reconstroem um ideal de sociabilidade da cidade moderna para dentro de torres e
guaritas limitadoras de um interior protegido dos perigos do público.
Estar em transformação é estar em destruição e em construção. Como
frisamos os condomínios que ficam prontos atrás dos tapumes, iluminam a rua desde
dentro à medida que alguém é constrangido do lado de fora. O movimento de entrada e
saída de veículos transforma as ruas em corredores, não mais em espaço de práticas. As
árvores retiradas dos terrenos recebedores das construções são trocadas pelo município
por calçamento
41
de praça ou melhorias dos equipamentos urbanos da região. A lógica
de compra e venda de espaços, para a não construção de prédios com uma estética de
enclave, segue a lógica da manutenção de um estilo de vida de habitar o bairro que é
acessível aos doutores narrados por Juliano. São eles que têm a possibilidade de
competir economicamente com a oferta de uma construtora, adquirindo as casas dos
vizinhos do lado, a bem de conseguirem preservar ao seu redor um pequeno pedaço da
relação público privado com espaço da rua. Mesmo que essa, esteja mediada pelo
comando de Juliano e a setorização das quadras das ruas.
Essa dinâmica de construção e destruição de casas ou pequenos prédios, no
entanto, o pode ser entendida a partir da idéia de um caos ou da cidade como esse
lugar do crescimento de espaços individualizantes. A proposta aqui é entender a
dinâmica de destruição das cidades a partir de uma lógica que se repete ao longo dos
anos devido aos processos de transformação
42
ligados a um jogo da mudança nos estilos
41
Cf. Jornal Mais Petrópolis, ano 7, n 65, Março de 2009.
42
Sobre a questão da estética temporal das cidades brasileiras, e sua poética da instabilidade frente o
mito europeu do progresso ver o trabalho de Ana Luiza Carvalho da Rocha A retórica de um mito:
Brasil, um país sem memória! In: Eckert & Rocha, Cornelia & Ana Luiza C. da Rocha. O Tempo e a
Cidade. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2005, Pág. 24
63
de vida dos habitantes e seus diferentes valores na ocupação urbana de determinados
bairros. Para entender essa dinâmica a partir da antropologia, busquei encontrar
moradores desde o micro-espaço cotidiano da casa, que estivessem no centro dessa
lógica de venda das propriedades que iam ser destruídas. Pois dessa forma, em diálogo
com as histórias da casa narrada por eles e os motivos que os levaram a vendê-la
podemos chegar ao que está em jogo nessa decisão.
Essa perspectiva nos leva a reflexão sobre as descontinuidades nas noções de
um ethos urbano e de um estilo de vida de viver a cidade desde o ponto de vista desses
habitantes. Petrópolis, Floresta, Rio Branco e Ipanema, os bairros onde mais
acompanhei o processo de transformação urbana a partir da etnografia de rua, foram os
bairros onde busquei me aproximar dessas famílias a fim de acompanhar com elas a
venda da casa e a mudança de residência. Bairros, que conforme o senso do ano de 2006
(IBGE), são formados por uma população com alto poder aquisitivo; com fortes
características residenciais e a presença de casarios grandes construídos em terrenos
igualmente extensos. Na mudança de uma forma de habitar de uma classe média urbana,
esses bairros eram os mais buscados pelas empreendedoras e grandes construtoras e
também dialeticamente eram os bairros onde havia moradores interessados em realizar a
comercialização do seu patrimônio.
64
CAPÍTULO 3
PROCURA-SE UMA CASA A SER DESTRUÍDA
3.1 Os contextos de uma etnografia multi-situada
Porto Alegre têm um milhão e quinhentos habitantes (IBGE)
43
, conforme
estimativa para o ano de 2009. É capital do estado do Rio Grande do Sul, uma das vinte
e sete unidades federativas do Brasil. O estado do Rio Grande do Sul tem
aproximadamente dez milhões de habitantes (IBGE) e uma superfície de 282.000 km².
Com 496,827 km² a cidade de Porto Alegre tem uma região metropolitana com
superfície de 9.800 km² e uma população que chega a mais de 4 milhões de habitantes
(IBGE), em 2009.
A cidade de Buenos Aires (GCBA) é capital da Argentina. Tem uma estimativa
populacional para o ano de 2010 de três milhões e cinqüenta mil habitantes
44
. A
província de Buenos Aires, no entanto, cuja capital é La Plata, tem uma área de 307.000
km² e uma população estimada de 15 milhões trezentos e quinze habitantes, para o
mesmo ano. O Conurbano Bonaerense (AGBA) é integrado por 15 partidos que estão
localizados ao redor da cidade.
Integrada por 24 partidos, a Gran Buenos Aires (GBA),
tem uma área variável de 2.590 kcom população estimada em 11 milhões seiscentos
e vinte e três mil para o ano de 2010.
A entrada em campo, nessas diferentes metrópoles, foi feita a partir da
etnografia de rua, conforme havíamos mencionado no capítulo um. Com uma
densidade populacional de 2.878 habitantes por km² para 14.825 habitantes por km²,
respectivamente para Porto Alegre e Buenos Aires, o processo de ingresso em campo
não foi alheio a essa característica urbana de cada cidade. O tempo de trabalho de
campo em uma e outra, também, por razões etnográficas e institucionais foi realizado
em épocas diferentes do processo de formação da pesquisadora na antropologia e com
períodos de imersão distintos.
Sem nenhuma pretensão comparativa, a experiência na cidade de Buenos Aires
teve duração de três meses agosto, setembro e outubro de 2009 - e manteve o foco na
43
Cf. Estimativa das Populações residentes no Brasil, IBGE, 2009. Disponível em:
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/estimativa2009/POP_2009_TCU.pdf. Acessado em
dezembro de 2009.
44
Cf. Estimaciones de población total por departamento y año calendario periodo 2001-2010. - ed. -
Buenos Aires : Instituto Nacional de Estadística y Censos - INDEC, 2008.
65
linha de uma antropologia de bairro
45
como será explorado no capítulo onde trataremos
dela. A aproximação entre Porto Alegre e Buenos Aires, em seus contextos de formação
histórico-culturais distintos é um desafio que nos acompanhará até o fim dessa
dissertação, sendo abordado com mais profundidade no espaço do capítulo sete. Faz
necessário, no entanto, aproximar nesse momento as duas cidades a partir de uma
etnografia multi-situada no cenário de formação das cidades na América Latina.
No capítulo seis, portanto, mergulharemos no contexto da etnografia na cidade
de Buenos Aires, a partir da formação de uma rede de moradores e trabalhadores
ligados a Feira de San Telmo, no Bairro de San Telmo. Cristina, conforme vimos no
capítulo dois, é uma das integrantes dessa rede, que inclui: Tereza Gargiulo e Suzana
Gargiulo irmãs, nascidas no bairro e feirantes da Feira de San Telmo; Victor -
comerciante de objetos, há dez anos no bairro; Daniel Carniceiro no bairro há mais de
vinte e cinco anos; Alejandro Ávila artista, escultor de objetos em bronze, dono de
uma oficina no bairro; Fulco artista, escultor de peças em resina plástica, feirante da
Feira de Artistas da Feira de San Telmo; Peña criador da Feira de San Telmo;
Mercedes moradora do bairro desde o casamento, ativista de movimentos populares
e dona de casa; personagens de classe social e vies de mundo distintas, porém que
conectados pela rede dialogarão conosco no curso da exposição do estudo.
Tanto no contexto da etnografia no bairro de San Telmo, como na etnografia no
contexto de Porto Alegre - que viemos acompanhando no decorrer do capítulo um e
dois, nesse último, em interlocução com Juliano - o uso da câmera de vídeo foi
fundamental na interação e na produção dos dados etnográficos. E esse fundamento será
abordado no subtítulo seguinte.
Em sequência, ainda neste capítulo, teremos a descrição da rede que promoveu
a aproximação da pesquisadora a duas famílias na cidade de Porto Alegre: a família de
Carla e a falia de Ainsley habitantes, respectivamente, do Bairro Rio Branco e do
Bairro Tristeza, na capital. Com vistas a acompanhar o processo de mudança de
residência, em cada dessas famílias, ocorrido no ano de 2007 e 2006.
3.2 As histórias da casa em vias de desaparecer vamos fazer um filme?
Metodologicamente, o ingresso no campo junto a essas duas famílias se deu
através do uso da câmera de vídeo. Isso foi negociado já nos primeiros contatos pessoais
45
Cf. A. Gravano. Antropología de lo barrial. Buenos Aires: Espacio Editorial, 2003.
66
ou telefônicos. E não raro as interlocutoras vinculavam a gravação do processo de
mudança da casa com a realização de um filme.
O uso do vídeo, no entanto, possibilitou, a partir da construção das imagens no
âmbito da mudança; das entrevistas; e da gravação dos lugares referenciados pelos
interlocutores, pensar sobre o espaço do bairro e o espaço da casa da qual eles estavam
narrando. O tratamento documental dessas gravações buscou desmontar o material
gravado, em busca das mudanças de sorte (Ricoeur, 1994 apud Devos, 2007:142) do
narrador dentro da integridade de sua narrativa, de forma a reuni-las às coleções
etnogficas. Um tratamento que envolve a digitalização, a análise e a classificação
dessas falas (Devos, 2007:139) menos atrás do estive lá (Geetz, 2002:12) do
realizador em campo, e mais, nesse caso, atrás desses re-começos, esses fechamentos de
sentido (Devos, 2007:141) presentes ao logo da fala dos interlocutores ou do seu
percurso pela casa.
Conforme a discussão, entre memória individual e memória coletiva, feita por
Maurice Halbwachs (2006) o espaço do vídeo foi integrante e fundamental no
pensamento da produção do dado etnográfico no contexto do trabalho com memória. A
experiência compartilhada no processo de mudança da casa fundou as relações sociais
entre o pesquisador, que não integra a família; e o pesquisado, que a estava re-
significando no curso da investigação. A possibilidade de entender essas famílias por
parte do antropólogo estará sempre perpassada pela memória compartilhada na
experiência de mudança da casa, pois os atores investem nela como um laço importante
entre o seu mundo e do pesquisador. Conforme aponta Halbwachs (2006:39), não nos
basta o testemunho para que a memória de um se aproveite da memória de outros. Os
eventos vividos, as cenas lembradas, aquilo que foi sentido pode variar de indivíduo
para indivíduo, porém quando há pontos de contato entre esses sentidos; onde as
lembranças dos outros, apesar de diferentes nos dão a sensação de possuírem o mesmo
sentido, há uma base comum sendo reconstruída. Essa base, segundo Halbwachs é o que
sustenta e faz coletiva, a memória.
No estudo etnográfico nessas falias, a mudança da casa permite a
manutenção da relação a partir da memória que compartilhamos dessa experiência. As
imagens foram produzidas durante o processo e incluíam: situações constrangedoras
envolvidas no cotidiano da mudança; sensação de vulnerabilidade, diante da
mobilidade, daquilo que era considerado tudo o que a gente tem; uma condição
liminar de estar fisicamente cansada, suada, suja de pó, correndo, despenteada, no
67
esforço de: tirar prateleiras das paredes, desmontar veis, selecionar objetos, encher
caixas de papelão e esvaziar armários. Essas imagens quando vistas e lembradas pelos
atores tornam-se uma possibilidade de reflexão sobre o lugar onde estão hoje.
Seguindo Claudine de France, o enquadramento de base (1998:67) que tem
orientado a coleta desses dados está ligado a delimitação espacial que coincide com o
lo de interação principal da atividade, seja ela uma situação de escolha de fotografias
junto à pesquisadora e a sua câmera, seja nos percursos pelos espaços da casa
explorados em conjunto com as interlocutoras. O enquadramento de base, adotado para
a produção dessas imagens em campo buscou delimitar: os itinerários percorridos no
instante da gravação, no deslocamento espacial concreto das interlocutoras pela casa; a
organização e relevância dos objetos dispostos nela. Conforme veremos no DVD
interativo que integra o próximo catulo, foram esses os limites que guiaram as nossas
interações e nossa gravação.
O compartilhamento desse processo de mudança como um marco importante
na relação entre pesquisador e pesquisado, portanto, pôde ser reconhecida em razão
de um distanciamento dessa experiência. De 2006 e 2007, passaram-se de dois a três
anos até que houvesse uma nova entrevista com essas mulheres. Nesse período os
contatos foram constantes, porém, o intensos. Diante da expectativa de realização de
um filme, em fins de 2007 foi editado um vídeo
46
de 31 minutos sobre a experiência
delas na desocupação das casas, cujo DVD foi oferecido de presente a cada uma delas
em ocasião considerada relevante. Para Ainsley no aniversário de 55 anos e para Carla
na janta de formatura do seu bacharelado.
Seguindo uma etnografia da duração, esse tempo transcorrido permite que
pensemos na memória como uma capacidade de permanência dos laços sociais.
Repousando em diferentes matérias o sentido compartilhado, dura, conforme o
investimento na manutenção desses laços e a capacidade dos sujeitos de não se
fundirem a matéria. Reforçando a filiação aos estudos de narrativa e no âmbito desse
trabalho da figura do antropólogo como narrador (Eckert & Rocha, 2005:45), o uso
das novas tecnologias pode ser visto como de fato um investimento na interpretação do
dado etnográfico e não como mera ilustração de uma experiência presencial junto ao
grupo ou fenômeno pesquisado. Visto que as histórias vividas pelas famílias, são
trazidas até este trabalho por intermédio do registro com a câmera de vídeo e por
46
Do Concreto ao pó, NTSC / 31 min / 2007.
68
intermédio da minha interpretação como pesquisadora dessas histórias vividas,
entendemos, em diálogo com Eckert e Rocha, que esse repertório de narrativas dá
seqüência a uma longa tradição de técnicas e procedimentos de pesquisa antropológica
tais quais as clássicas anotações no diário de campo (Eckert & Rocha, 2005:45). Dessa
forma a ética que fundamenta o método antropológico desde a sua existência e no
percurso da sua construção, encontra novos desafios com o uso da tecnologia do vídeo
como recurso epistemológico para pensar as escolhas envolvidas nessa re-apresentação
do outro.
Nominação feita por Myriam Lins de Barros (1988:34) o guardião da
memória familiar torna-se também aqui figura fundamental para se compreender o que
M. Halbwachs chamou de marcas visíveis do passado. Marcas que serão procuradas a
luz dos conceitos de duração de Gaston Bachelard, e entendidas através da noção de
ruptura, que segundo esse autor o os centros decisivos do tempo onde o narrador se
orienta e se guia, num deslocamento constante e também, segundo Lins de Barros,
cíclico. Onde esse indivíduo é capaz de, observando as suas descontinuidades no
processo vivido, estabelecer uma ordem e um contexto para elas, e, portanto, avaliar a
sua permanência no tempo. Um descobrimento que é provocado pela experiência do
processo de interação que se dá em meio às diversidades, tenes e surpresas, acionadas
pelas diferenças trazidas por cada um dos indivíduos a relação.
As narradoras com quem estamos dialogando reúnem em sua figura, o
potencial narrativo de transmissão da sua memória do passado. Segundo a orientação
dos trabalhos de Walter Benjamim (1936), nesse sentido elas estariam evitando a sua
própria morte, que para esse autor o passado vivido é vivido quando narrado a
alguém. Neste caso, ao observarmos o desenvolvimento das narrativas do capítulo
seguinte como forma de construção do próprio narrador - tendo como ouvinte não o
neto, o filho, ou o pupilo, mas o antropólogo e sua câmera nós buscaremos pensar, na
linha de Gilberto Velho (1987), numa comunidade de sentido. Um sentido que
compartilhado é o catalisador da narrativa e pode nos levar a pensar sobre os papéis
envolvidos nele, relativo a gênero e a geração.
3.3 A rede de aproximação e a noção de camadas médias
[...] posso apenas me lembrar com um sentimento de culpa que, em 1952, quando
ela nos apresentou pela primeira vez, parte do material que havia recolhido sobre o
relacionamento e os papéis conjugais de casais em vinte famílias comuns de
Londres, finalizou nos perguntando: O que faço com isto? Eu e a Dra. Elizabeth
Colson dissemos juntos: escreva um romance.
69
(Prefácio de Família e Rede Social, Max Gluckman 1976:12)
Conforme Elizabeth Both (1976) em seu estudo sobre Família e Rede Social,
as famílias urbanas têm muitas relações externas, mesmo que não estejam contidas
dentro de grupos organizados (Both, 1976:110). Há fatores externos que afetam a
formação das redes cujo nexo depende das próprias famílias. Seu meio social
imediato deve ser compreendido não como a área local onde vive a família, mas como
a rede das relações sociais reais que elas mantêm. Situada entre a família e o meio social
a rede permite escolhas no campo dos relacionamentos sociais externos e elas, segundo
Both, são afetadas tanto pelos fatores situacionais como pelas personalidades dos
membros da família (1976:111).
Nessa linha interpretativa a investigação junto da Família de Carla e da Família
de Ainsley iniciou-se pela via dessas relações sociais externas que cada uma delas
mantinha ao redor de si. Integrante dessa rede, eu pude, por via dela, chegar até a
família dessas duas mulheres e propor uma investigação acerca do fator situacional que
me levava até elas: estava procurando famílias cujas casas em breve seriam destruídas.
Os itinerários realizados pela etnografia de rua, conforme acompanhamos no
capítulo um e dois, estavam, através das fotos e dos registros de campo, mostrando
sobre a rapidez do fenômeno de mudança e destruição de casas nos bairros por onde
percorria. Porém foi com surpresa que percebi que estava inserida no meio social onde
esse fenômeno estava acontecendo.
Iniciei divulgando em e-mails, nos grupos de pesquisa que participava e entre
amigos e conhecidos, a minha busca por famílias que morassem em casas construídas
no início do século XX e que estivessem - não importava a razão - em processo de
desocupação dessa casa a bem de vendê-la para outro fim que não o da ocupação por
outra família. Em geral as pessoas integrantes da minha rede social entendiam o que eu
estava buscando, ah voquer entrevistar alguém que esteja vendendo sua casa para
uma construtora, sim, podia ser entendido assim. A especificidade do fenômeno da
mudança aliado ao da destruição da casa era o foco da busca, onde eu gostaria de
observar, - junto ao grupo familiar - se a casa
47
tinha relevância na representação do
grupo no que diz respeito à categoria família e se o tinha, se a mudança da casa
47
Essas casas, no decorrer da etnografia, foram passaram a ser chamadas de casa de linhagem familiar,
em razão de estarem, há muitos anos, dentro de um movimento sucessório oriundo das relões de
parentesco e aliança.
70
acarretaria uma mudança: nas formas de sociabilidade das relações familiares ou
representações sociais da família.
As representações de classe social também formaram um conjunto de questões
a serem pensadas em torno do fenômeno da mudança e destruição da casa. A pergunta
era: a que camada social pertencia uma família que na cidade de Porto Alegre tinha esse
patrimônio como possibilidade de venda? No capítulo cinco observaremos a relevância
da casa nessa mobilidade social das famílias em mudança, porém adiantamos que de
acordo com os estudos de rede e a noção de sociedade complexa moderno
contemporânea (Velho, 1997:19) as classes sociais não podem ser analisadas sem levar
em conta seu caráter dinâmico; seu universo simbólico e a constante articulação delas
com os códigos mais restritos ou universalizantes que constituem suas experiências
diferenciadas. Ou seja, não estamos falando de classe social como entidades concretas
ou grupos reais, onde a maioria dos membros concorda sobre quais critérios devem ser
utilizados para descrevê-los (Both, 1976:163). Explicitar essa adesão, a uma imagem de
classe social como camada, é deveras importante, porque a imagem de camada pode
revelar as nuanças das mudanças diante da experiência dessas famílias em face à venda
do seu patrimônio.
Aderindo a categoria de camadas médias, buscaremos junto ao conceito de
trajeria social dar conta das fronteiras culturais entre indivíduos que segundo
critérios sócio-econômicos comumente usados em ciências sociais pertencem a uma
mesma categoria (Velho, 1997:106). Analisando o ritmo e a direção da trajetória
através da noção de projeto, daremos conta da margem relativa da escolha que
indivíduos e grupos têm em determinado momento histórico de uma sociedade (Velho,
1997:107) para pensar a que ethos
48
e visão de mundo esses sujeitos aderem, num
segmento de classe média.
No âmbito das sociedades complexas e da descontinuidade de seus universos
simbólicos, o contato dos indivíduos pertencentes a determinados estratos sociais com
outros segmentos, suas interações com redes de relações mais amplas afetariam sua
visão de mundo e seu estilo de vida. Este processo introduz variáveis significativas para
se pensar o tema da mobilidade social, do descenso ou da ascensão, de indivíduos e/ou
grupos no interior de um segmento social ou entre eles. Transformando por completo
48
Geertz fala em ethos quando pretende descrever os aspectos morais (e estéticos) e valorativos de uma
cultura determinada e visão de mundo quando quer se referir aos aspectos cognitivos existenciais
(Geertz, 1978 apud Velho, 1997:105).
71
uma situação de estabilidade e permanência que poderia haver em qualquer uma das
classes, médias, populares ou trabalhadoras (Velho, 1987:20).
Falar em camadas médias, conforme aponta Myriam Lins de Barros (1987:21),
é uma dificuldade teórica
49
à medida que as constatações empíricas apontam para uma
grande heterogeneidade de auto-representações. Ao trabalhar com trajetórias sociais e
narrativas biográficas o fazemos no âmbito das sociedades complexas (Velho, 1987;
1994), sobre a perspectiva de que as representações das interlocutoras sobre si mesmas,
além de heterogêneas estão também sujeitas as mudanças e transformações sob os
efeitos dos laços e pertencimentos que os atores acionam como estratégia para
durarem
50
no mundo.
A capacidade de durar está ligada aqui, na linha de uma etnografia da
duração (Eckert & Rocha, 2005:146) à condição epistemológica dos indivíduos nas
modernas sociedades complexas e que, no plano dos estudos de representações, supõe
a presença da velocidade das transformações dos processos externos, ainda que
percebidos, vividos ou observados e dos processos internos por eles vividos em suas
vidas cotidianas.
3.4 Os contextos familiares e os personagens
Nos dois tópicos que seguem acompanharemos os processos de entrada em
campo, em cada um dos contextos familiares etnografados, um deles ocorrido no ano de
2006 e o outro no ano de 2007. Procurei descrever a rede de inserção dimensionando o
tempo transcorrido e a intensidade que as relações foram adquirindo desde o início do
campo até o presente da escrita. De maneira a preservar textualmente a complexidade
do fenômeno, que por sua vez foi construído ao longo do compartilhamento de uma
experiência de mudança de casa. A, exemplo, de etnografias preocupadas com as
mudanças históricas ou culturais ao longo dos anos, e com interrupções e ausências no
49
Ao abordar o universo das camadas médias na obra Autoridade e Afeto, a autora traz alternativas já
apontadas por Abreu Filho (1980) e Heilborn (1984) que resgatam a possibilidade de recortar esse
universo social através das próprias representações sociais dos atores; através dos conceitos de ethos
(Gertz, 1978), visão de mundo e grupo de status (Weber, 1969) capazes de lidar com as categorias de
pensamento do grupo estudado (Myriam, 1987:22).
50
A duração é um conceito de G. Bachelard, que conforme Cornelia Eckert e Ana Luiza Carvalho da
Rocha, fundadoras da etnografia da duração como forma para se pensar o trabalho com memória, se
caracteriza por ser um fenômeno que surge de uma intuição do tempo, mas o resultado do movimento e
da construção produtiva da vida, gerada a partir de esquemas de pensamento singulares A memória,
portanto, não é cega aos processos da vida, mas manifesta operações de pensamento complexas, auto-
reguladoras e autocorretivas dos processos de transformação aos quais, a matéria achas-se submetida
(1989:146).
72
percurso delas, do qual destaco a pesquisa de Carlos Fausto entre os Parakañas
(2001:24), essa etnografia também não pode ser narrada sem levar em conta as
transformações que todos nela os envolvidos, passaram durante o tempo de sua
realização. Transformações que seguramente seguem ocorrendo. O entendimento dos
motivos que levavam a decisão da mudança de casa, e das histórias por trás dos
motivos, foi processual e estava ligado à experiência compartilhada, entre a
pesquisadora e as interlocutoras, de transmissão e escuta da narração do espaço da casa.
Se para Lev Vygostsky (1994 apud Eckert & Rocha, 2005: 38) lembrar significa
pensar, foi preciso lembrar a partir de esquemas e escritos dessa época de ingresso a
campo para que fosse possível estabelecer a distensão temporal dentro do texto capaz
de conduzir - ou se aproximar, já que é uma tentativa da complexidade dos projetos de
vida das duas interlocutoras, que também no percurso desses anos, foram mudando.
3.4.1 A família de Ainsley: A casa na disputa entre herdeiros
Em 2006, em razão de um feriado possibilitado pelo calendário católico da
páscoa, fui convidada por Fernanda a viajar com ela, seu namorado e uns amigos a casa
de praia dele, na localidade de Cidreira, litoral do Rio Grande do Sul. Fernanda era uma
daquelas amigas de praia, que acabaram virando amigas de cidade, tipo de relação que
também fundou a amizade de Thiago, Celso, Leonardo e Gabriel, conforme o esquema
da página seguinte.
Havia quatorze anos que eu conhecia Fernanda, diferente de Thiago, Celso,
Leonardo e Gabriel que se conheciam desde que nasceram. Fernanda e Thiago tinham
curso de graduação em Arquitetura, oportunidade em que se conheceram e se tornaram
namorados. Thiago se referia a Celso, Leonardo e Gabriel como os guris da praia e foi
nesse contexto que se conheceram e sempre que podiam, ou seja, tinham dinheiro para a
viagem, pegavam os carros e iam passar o fim de semana na casa de praia dos pais de
Thiago ou na casa de praia dos pais de Celso, em Cidreira.
Nessa viagem, a atividade principal do grupo foi a prática do surf, acordavam
cedo para ir à praia e voltavam tarde sempre muito cheios de histórias sobre as
manobras praticadas além da rebentação do mar.
Na rede, abaixo esquematizada, podemos acompanhar os personagens e os
vínculos entre eles, no instante da minha aproximação a família de Ainsley. Inspirada
no trabalho de Whyte (2005), sobre estrutura e mobilidade social no distrito de North
End em Boston, essa rede torna-se importante para pensar a mobilidade desses vínculos
73
no curso da investigação, face às mudanças de afinidades nas relações de parentesco.
Fazendo a leitura do esquema da esquerda para a direita temos a ordem no qual a rede
foi se desdobrando em relação tempo.
Na época Celso ainda freqüentava o curso de Administração, graduação que
concluiu ainda naquele ano. Leonardo e Gabriel tinham freqüentado diferentes cursos e
universidades, mas o haviam concluído ou pretendiam concluir nenhum deles. Os
três, Celso, Leonardo e Gabriel, gostavam de destacar o vínculo muito forte que
construíram a partir de uma viagem que realizaram com mais outro amigo, Zé, para
Austrália e para Bali, no ano de dois mil, aproximadamente. Na narração dessa
experiência, sempre se declaravam como sobreviventes. Ser referindo com muito terror
a um atentado a bomba
51
em uma casa noturna, em Bali, que teria acontecido trinta
minutos depois deles muito loucos terem deixado o local.
Celso morava na zona sul de Porto Alegre, Thiago e Fernanda moravam juntos
num apartamento do pai dela no bairro Partenon, Leonardo e Gabriel moravam com os
pais numa casa no bairro Lindóia. Todos tinham em torno de 28 e 30 anos. Fernanda e
Thiago possuíam um escritório de arquitetura em um dos cômodos do apartamento onde
viviam, Celso trabalhava num escritório de advocacia e estava pensando em cursar
direito após a formatura e Leonardo e Gabriel não trabalhavam nessa época.
51
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u46367.shtml. Acesso em dezembro
de 2008.
74
Soube nesse fim de semana que a turma se reunia com freqüência na casa de
Celso, no bairro Tristeza, na capital. Num dos intervalos, entre uma vinda e outra do
mar, pude conhecer melhor Celso, que se interessou em saber o que eu fazia. Gordo,
como era chamado entre os amigos e também, como pude ver depois, pelos seus
parentes, teve nesse dia, a partir da minha explicação, uma brevíssima noção do que
vinha a ser antropologia. E interessado pela investigação acerca dos processos de
transformação da cidade, narrou-me o caso da sua família e da casa da sua família.
Como vim saber depois, a casa da família de Celso foi construída em 1912
52
e
era uma das tantas propriedades que seus descendentes pela linhagem materna possuíam
na região do Bairro Tristeza. Inicialmente casa de veraneio, a chácara passaria a
residência fixa em meados dos anos 60, quando o avô de Celso volta a viver nela, em
razão de sua separação. Antes disso, ela recebe diferentes moradores, por diferentes
períodos de tempo, porém moradores e tempos de moradia ligados a figura da avó
paterna da mãe de Celso, Elvira.
A falia nuclear de Celso era composta por Rafael e Débora, seus irmãos
mais novos; Ainsley, sua mãe; Celso pai, seu pai.
Jorge, a figura que foi relatada por Ainsley como o responsável pela mudança
da família, e que aparece na rede de inserção da página 73, foi definitivamente o mais
citado no início desse processo de aproximação. O conflito entre ele e a prima Ainsley
tornaram-se fundamentais posteriormente, para o entendimento da estrutura de
parentesco da família e da qual nos ocuparemos no capítulo seguinte.
Nos primeiros contatos e nos encontros subseqüentes a esse primeiro contato
com a família de Ainsley, inclusive durante processo de mudança da casa, a rede de
relações sociais, concretas ou simbólicas, da família seguiu a forma do esquema
anterior.
No papel de guardiã da memória, Ainsley será, daqui para adiante, nossa
interlocutora principal no contexto dessa família, porém a partir da observação
participante
53
(Malinowski, 1976:25) e de entrevistas com ela pude ir construindo a
52
Cf. R. Pellin, Revelando a Tristeza II Volume. Porto Alegre, 1996. Pag. 27.
53
Cf. B. Malinowski, Argonautas do Pacífico Ocidental, 1976, pag. 25 é enorme a diferença entre o
relacionar-se esporadicamente com os nativos e estar efetivamente em contato com eles. Em defesa da
técnica da observação participante, ele, como fundador da mesma, ele preconiza o pesquisador deve se
afastar da companhia de outros homens brancos com objetivo de através deste relacionamento natural,
apreendermos a conhecê-los, familiarizamo-nos co seus costumes e crenças de modo muito melhor do
que quando dependemos de informantes pagos.
75
representação de alguns desses personagens e de suas relações, conforme descrevo
abaixo.
Ainsley.
A narradora da família é geniosa e braba, e justifica isso através do
zodíaco: leonina né!. Sempre escolheu muito bem as histórias que me contou, o que
no início tornou ainda mais difícil o entendimento dos conflitos familiares que estavam
em jogo na duração de suas relações de parentesco. Com o passar do tempo, quando
passamos a trocar dados, ela se tornou uma interlocutora mais paciente. Tinha cinqüenta
e cinco anos em 2008.
Seus cabelos eram ruivos como os do pai, a pele um pouco sardenta e clara,
os olhos escuros. Era extremamente vaidosa e tinha um cuidado especial no trato com o
cabelo. Insistia muito em me casar com o seu filho mais velho, Celso. Porém, à medida
que fomos construindo um novo papel social para minha persona: a mulher estranha
motivada pelas histórias da família; que foi o papel de antropóloga e amiga,
superamos, em parte, esse desejo.
Muito autoritária, se podia dizer que ela era a chefe da família. Era ela que
decidia se gostava ou não gostava das relações sociais que orbitavam em torno da casa e
o futuro daqueles que estavam ao redor dependia de uma resposta positiva.
O único filho que não morava junto a ela, era Débora, que vivia na casa da avó
materna, no bairro Menino Deus. A vó de Débora e mãe de Ainsley, se chamava Noeli e
sofria de Mal de Alzeimher fazia alguns anos. Ainsley a visitava toda a semana na
casa de repouso onde vivia.
O casamento de Ainsley e Celso tinha 32 anos quando a casa foi destruída. E
usando a expressão meu velho, ela o chamava até hoje. Sobre o dia em que foi selada
a aliança, ela relatou:
- Eu namorei, noivei e casei muito rápido, 8 meses. Foi muito rápido, foi um
amor lindo, meu velho estudava, fazia engenharia né, na PUC e eu
76
pedagogia, e foi uma carona que eu pedi [...] me casei na capela da escola
onde eu me formei. No Maria Imaculada, com os alunos todos presentes,
porque ali eu trabalhava . Eu terminei o curso normal. né? Que era o
magistério e ai depois ai fiquei trabalhando ai quando casei todos os
alunos estavam presentes, tão lindo, na hora do beijo todos bateram palma,
coisa mais querida.
Mesmo depois de Celso ter saído da casa, ele ainda a visitava, com beijo na
boca e tudo. Era ele que comprava para ela o perfume, o absorvente e o sabonete, pois,
segundo Ainsley, só ele sabia sua preferência.
Celso [gordo].
Alto, magro, cabelo escuro e raspado, olhos grandes e pretos. Uma tatuagem
em motivos tribais, larga e visível no braço esquerdo, torcedor fanático do Grêmio
Futebol Porto alegrense, surfista e morador da zona sul de Porto Alegre. Gordo era filho
mais velho de Ainsley e Celso e dono de Kirra, Baco e Preta, seus três cachorros. Em
uma noite, sentados com os cães no alto da enorme pedra que existe no terreno da casa,
um mês depois dela ser demolida, falávamos sobre a região:
- E aqui não é Porto Alegre eno? pergunto para ele.
- Não, aqui nós somos separatistas.
- Nós quem. - questiono
- O pessoal aqui dessa rua. A gente fala que Porto Alegre é daqui para lá,
para cá é chão batido, nem asfalto tem e ninguém quer. Mas tem uma união
do pessoal da rua. Tem uma brincadeira assim. [...] Eu me lembro quando a
gente veio morar aqui era direto, meu avô deixava isso aqui abandonado,
trancava a casa inteira, saia para trabalhar de manhã e deixava aberto, às
vezes até o portão ficava aberto. E daí vinha o pessoal e entrava, puta
merda, tinha gente que entrava e não queria sair. Dizia que: não, eu
quero ficar aqui!. Daí eu dizia: não! a casa é minha. Pô, mas eu
sempre vinha aqui, sempre vinha aqui colher fruta...
Inclusive tinha gente que passava, entrava aqui, e ele liberava para o
pessoal pescar, né. Me lembro, na segunda, terceira semana, teve um
barraco. Um cara que conseguiu entrar e o cara entrou, e naquela época eu
tava no quartel, eu tava enlouquecido, daí o cara disse que ia entrar, a gente
77
teve que chamar a polícia. Pergunta para mãe que ela vai te dizer. Foi um
saco.
As adees familiares, a casa e a região da zona sul, serão mais bem exploradas no
capítulo cinco. No entanto, essa concepção da zona sul da cidade como uma cidade separada é
uma ideologia muito forte em Celso. Ele narra o modo como seu avô vivia antes de sua mãe,
seu pai e seus irmãos chegarem para morar com ele. Esse despojamento do avô, que depois,
também será narrado por Ainsley é algo, que Celso se identifica quando fala do chão batido
em frente a casa, porém isso logo muda quando se trata de delimitar o privado da propriedade
em relação ao público da gente que passava por ali.
Osmar.
Caseiro da família há aproximadamente 15 anos, era um homem magro e baixo
que andava sempre correndo pelo pátio da casa, seguindo - ora a voz aguda de Ainsley,
ora as tarefas que a mesma deixava para ele fazer. Era Osmar que abria o portão para
que se pudesse entrar na casa, sem risco de ser atacado por nenhum dos três cachorros
grandes que circulavam sorrateiros pelo largo terreno. Sempre sorridente e com um
cigarro pronto para ser aceso ou ser apagado, ele cuidava com esmero do pátio da casa
de Ainsley. Nesse pátio, ele tratava o jardim, cortava o inço que crescia nas bordas do
beiral junto ao rio, podava árvores, lavava a louça, cozinhava e dava comida aos
cachorros.
Esse homem tinha aproximadamente uns quarenta e poucos anos, cabelo
desgrenhado e um pouco comprido. Era raro vê-lo com camisa e sem seu chinelo de
dedo, sendo que esse último avisava quando ele se aproximava e se afastava, em função
do som que fazia em contato com chão batido do pátio.
Ele se recolhia ao seu quarto, que ficava ao lado do de Celso, no lado de fora
da casa, em torno das nove horas da noite. Observando de longe seu quartinho dava para
78
ver a luz da TV acesa e o som dos programas que ele assistia, nos últimos anos, com a
companhia de um pouco de cachaça.
Laura.
Era namorada de Rafael desde 2006, depois eles terminaram o relacionamento
e voltaram mais uma vez a se relacionar em 2008, porém morando em casas separadas.
Ainsley, no entanto, o abençoou essa última volta de Rafael e Laura, como não
tinha abençoado a ida do gordinho à Austrália oito anos antes. Atualmente, na casa
onde uma estava a outra não podia entrar.
Laura tem cabelos loiros e compridos, unhas compridas assim como os cabelos,
sempre bem cuidados e lisos. Ela tem alguns anos a menos que Rafael, que tinha nessa
época, 26 anos. O casal foi o último a deixar de dormir na casa, que esperavam a
construção da nova, no terreno do lado, onde morariam juntos.
Ica (Ricardo).
Era um antigo namorado de Ainsley, que tornou a aparecer ou a ser procurado
em razão da separação dela e do pai de Celso, que ocorreu em 2006, no meio do
processo de desocupação da casa. Ele era muito citado no início da etnografia, depois
era mais citado em razão dos dias de aniversário dela, onde saiam juntos para jantar. A
única vez que o vi, estava de bombachas, lenço vermelho e camisa branca. Era um
homem baixo, de cabelos e barbas grisalhas. Ainsley o conhecia desde a época que
morava no centro da cidade, na Rua Duque de Caxias, quando tinha aproximadamente
quatorze anos.
A faxineira
Era assim que se chamava a mulher com quem o pai de Celso tinha passado a
viver, no período que a mudança da casa estava sendo anunciada. Ela nunca apareceu na
casa. Porém inicialmente era narrada, por Ainsley junto a uma quantidade de
impropérios. Depois passou a ser referida somente como A faxineira.
Desde 2006, ela vivia no Bairro Restinga, acompanhada do pai de Celso e
marido de Ainsley. Havia trabalhado na casa durante alguns anos, mas nesse ano não
trabalhava mais. Nos anos seguintes podia ouvir Celso, o filho, chamá-la de a mulher
do meu pai. E nos últimos meses de campo, em 2009, finalmente, ouvi seu nome ser
pronunciado pela primeira vez. Chamava-se Vilma.
79
Elizabeth.
Era uma senhora de oitenta e três anos em 2006. E seu nome era muito citado
quando o assunto era a relação da casa com a família, ou seja, ela era citada muitas
vezes. Era uma referência para a história dos descendentes paternos de Ainsley. Tinha a
pele bem clara e os cabelos brancos e finos, porém ainda um pouco louros. A única vez
que conversamos e onde ela fez questão de ressaltar seu desgosto pela câmera de vídeo,
ela usava um chapéu de palha largo, roupas coloridas, óculos e tinha na mão uma
bengala de madeira. Foi uma conversa rápida. Depois soube que Ainsley não a via tanto
quanto falava dela. Ela vivia sozinha, na casa ao lado, era filha de um irmão mais velho
da vó paterna de Ainsley, do qual tinha herdado a propriedade. Nasceu na Rua Mario
Totta, bem aonde chegava ao fim a rua onde morava hoje. Segundo Rafael ela tinha
mil anos, isso porque conservava os álbuns comemorativos de Porto Alegre, onde uma
parte da família aparecia estampada nas páginas principais, e era para ela que Ainsley
recorria quando queria lembrar e fofocar dos parentes.
O Jorge.
Foi muito difícil entender porque o Jorge era tão ruim. Ele era um dos mais
citados, por Ainsley, por Celso e até por Tiago que era o responsável pelo projeto
arquitetônico da casa nova de Ainsley. Em torno da figura dele que circulava o motivo
pelo qual aquela família tinha que se mudar às pressas. Uma questão que foi ficar
clara a partir do estudo das relações de parentesco e do qual nos ocuparemos no capítulo
quatro. Hoje Jorge não é mais parte ruim da família, Ainsley e ele voltaram a se falar e a
fazer churrascos em família no mesmo espaço que antes havia sido tema de litígio.
Ainda em 2006, Celso talvez já tivesse previsto o caminho dessa conciliação:
- Eu na real mesmo queria sentar com esse cara um 15 minutos, em paz, sem
ninguém em volta.
- O que tu ia dizer? eu pergunto a ele.
- Eu ia ouvir ele. Com certeza como eu fico às vezes maquinando coisa, ele
deve pensar alguma coisa né. Para perder tanto tempo comigo aqui, né,
trabalhando contra, ele deve ter alguma coisa para me dizer.
No que consiste às definições jurídico-legais brasileiras, os motivos que
levaram Ainsley a mudar-se de casa, estão ligados ao direito de sucessão legítima que
ela e mais dois outros herdeiros, descendentes da mesma classe
54
possuíam àquela
mesma propriedade no bairro Tristeza. Habitante da única casa da propriedade, Ainsley
54
Se concorrerem à herança somente filhos de irmãos falecidos, herdarão por cabeça Cf. Código Civil
Brasileiro, Livro V Do Direito das Sucessões, Título II, Capítulo I. Art. 1.843
80
foi acionada por um dos herdeiros, o tio Jorge, para que se cumprisse o processo da
partilha da herança
55
. Dessa forma ela foi obrigada, sob ordem judicial, a desocupar a
residência. E nesse período que nos conhecemos.
3.4.2 A família de Carla: A casa que ficou grande demais
Um ano depois da desocupação da casa de Ainsley, por intermédio de uma
amiga - e minha professora de Francês na época fui colocada em contato com Carla.
Camila Rocha conhecia a filha de Carla, também chamada Camila, desde quando
pesquisavam, no mesmo laboratório de biologia, no curso das suas graduações em
Ciências Biológicas.
O marido de Carla, também, estava vinculado ao meio acadêmico. Professor
universitário até seu falecimento, ele havia feito o mestrado e o doutorado no Rio de
Janeiro, de maneira que Camila e seus irmãos também tinham experiência de moradia
em outras capitais além de Porto Alegre. Ela e seus irmãos conheciam alguns países
do continente europeu, assim como seu pai, que conforme ressaltou Carla, viajou por
tudo. A única que não tinha essa circulação internacional, ou tardou a tê-la, foi Carla,
que optou sempre pela viagem de cuidar dos filhos.
Conheci Carla através de uma ligação telefônica, e devido à experiência
etnogfica de desocupação da casa de Ainsley, obtive mais sucesso na explicação dos
meus objetivos dessa vez. Ah essa casa tem muita história, mesmo, disse ela ao
telefone em resposta aos meus esclarecimentos de porque conversar com ela era
importante. A casa de Carla ficava na Rua Quintino Bocaiúva, quase na esquina com a
Rua Casemiro de Abreu, no bairro Rio Branco, na capital.
55
Até a partilha, o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, será indivisível
Cf. Código Civil Brasileiro, Livro V Do Direito das Sucessões, Título I, Capítulo II Art. 1.791
81
A família nuclear de Carla era constituída por ela; por seu marido falecido,
Mauro; por seus três filhos: Claudia, Marcos e Camila. Luis namorava Camila na época
e eles viviam juntos em uma casa no município de Ubirici. Claudia e o marido moravam
em Gramado, e Marcos era o único solteiro e que ainda morava em Porto Alegre.
Martha é mãe de Mauro, e a pessoa mais velha da família até hoje. Vive numa
casa de repouso em Canela, muito perto da casa onde Carla mora agora.
A leitura da rede de aproximação a família de Carla, segue a mesma lógica da
rede de aproximação da família de Ainsley. No papel de guardiã da memória Carla
sea narradora principal de sua família, e os integrantes da rede abaixo descrita, serão
retomados a partir de sua narrativa.
Camila.
82
É chamada de Pita entre os familiares. Ela tem trinta anos e é a filha caçula de
Carla. Tem estatura média, olhos castanhos claros e cabelos loiros, e é uma das crianças
que mais aparece nas fotos que Carla mostrou da vida da sua família na casa. Camila faz
doutorado em biologia e hoje mora no apartamento que era da sua irmã, em Porto
Alegre, no bairro Montserrat, perto da casa onde cresceu. Viveu junto com Luis até o
ano de 2008, numa cidade de 10.509 habitantes. Até hoje os dois ainda integram uma
ONG que protege e pesquisa um felino nativo dessa região serrana do estado de Santa
Catarina, porém estão separados desde este ano.
Camila foi a única filha que participou ativamente da mudança da casa da mãe.
Por essa razão era com ela que eu conseguia mais diálogo e para quem podia perguntar
acerca de algumas dúvidas; ou expor algumas observações. Era extremamente calada e
centrada, porém muito sorridente e tranqüila. Um dia antes da mudança oficial da casa
ela e Luis encheram um pequeno caminhão com coisas que foram dadas por Carla para
a casa de Urubici e coisas pessoais de Camila que ainda estavam na casa da mãe. As
coisas pessoais eram principalmente brinquedos, livros, agenda velhas, polígrafos, e
alguns objetos em estado de limbo: coisas que o se tinha coragem de jogar fora, mas
tampouco se tinha certeza de levá-las consigo. Os móveis e objetos dados pela mãe
eram artigos de casa, bujões de gás, Junker (aquecedor de água), aquecedores
elétricos. Camila também levou com ela as portas da casa, a fim de colocá-las em algum
cômodo da casa de Urubici. Eram portas de madeira em arco, desenhadas com filetes de
madeira torneada e vidros em craquelê. Ela também havia pedido para que o piso de
parquet da sala fosse retirado para que ela pudesse aproveitá-lo na casa de Urubici.
Porém a descoberta de muitos pregos nesses tacos, fez com que o intento fosse
abortado. Sobre essa operação de retirada de partes da casa, Carla me disse:
- A minha filha a Camila quando foi a Melnick que quase comprou ela tinha
falado com eles e eles disseram que ela podia tirar tudo o que ela quisesse
da casa, porque eles não vendem material usado, ta, eles dão. A Melnick tem
uma coisa bem legal, o senhor nos explicou, eles têm, eles mantêm uma
creche e, os pais das crianças da creche, eu acho que em Gravataí,
Cachoeirinha, eu não sei, aquilo lá, os pais das crianças das creches fazem
listas das coisas que precisam para suas casas e quando a Melnick vai
demolir uma casa ela para aqueles pais as coisas que eles precisam,
depois abre para os funcionários, vamos dizer até sábado dia 20, vocês
podem tirar o que quiserem, dia 21 daí toca a máquina, daí quebra tudo.
Então eles disseram bom, enfim, tu pode levar o que quiser, ela ia levar a
casa inteira, né. Agora esse não, esse ele disse que ele paga, ele faz um
acordo com a demolidora, ele contrata uma demolidora, a Melnick é ela
mesmo que demole. Ele não, contrata uma demolidora e em troca da
demolição, ele dá as coisas. Portanto se a minha filha quisesse muitas
coisas teria que tratar com a demolidora [...] É mas ele deixou e ela vai
83
tirar duas portas e essas aqui ela vai levar, ali tem para dentro da parede,
eu disse para ela: ele nem viu! Ele não pode ver o filme - ri, apontando com
os olhos para a câmera - ele nem viu aquela porta que está embutida igual a
essas aqui e ele viu muito rápido a casa, en passant assim, e essas
portas ela vai levar. [...] Ele deu para ela aquela porta grande que vai para
o pátio e ali na copa tem mais uma e essas duas ele deu. Porque a Camila
não tem casa ela pretende construir, ela ia tirar janelas tudo, e tudo isso ela
não vai poder tirar, mas as duas portas ele vai tirar mais essas daqui ele vai
tirar também. [...] Ela fez um acordo com ele, ela pode tirar aquelas duas
porque ela pediu, e ela pediu o parque dessa sala, não sei se vai conseguir
tirar, porque esse parquet é maravilhoso, claro, eles precisam de uma lixada
né, ele tem 60 anos e não tem um cupim, não, não tem nada, só ali ele pegou
um cupim porque tinha um sofá com cupim, eu não sei se ela vai conseguir
tirar mais ele deixou ela tirar.
Quando Carla pediu que eu fechasse a porta, ao sairmos todos pela última vez
daquela velha casa, a última coisa que eu olhei foram àqueles sacos brancos lotados de
tacos de parquet, encostados na parede e sobre o chão esburacado da sala.
Claudia.
Caco tem os cabelos castanhos como os do irmão, é a filha mais velha de
Carla. Quando Carla a citava em uma foto, se referia a ela como aquela que inventava,
ah isso era uma invenção da caco. Cláudia era médica e morava com o marido em
Gramado, uma cidade pequena e turística da serra do Rio Grande do Sul.
Em entrevista, Carla havia sido bem enfática sobre a posição dos filhos em
relação a ter filhos: tinham avisado que não iam ter. De maneira que ela falava isso
deixando transparecer um pouco de pesar, porém que logo se transformava em respeito
pela escolha deles. Carla tinha se dedicado a essa escolha, de ter e cuidar dos filhos, por
ao menos vinte anos de sua vida.
Em 2008, no entanto, nasceu Sophia, a primeira neta de Carla. No Orkut, uma
rede virtual de relacionamentos, sou amiga de Carla e através do seu álbum pude ver
84
as fotos de Sophia: junto de sua avó, de seus tios e junto de seu pai e de sua mãe,
Claudia.
Claudia e Camila tinham quatro anos de diferença de idade, e eram muito
amigas. Eu vi Claudia somente uma vez, na chegada da mudança de Carla na cidade de
Canela, onde ela participou da arrumação da casa junto com Camila e Luis. Nessa
ocasião ela passou todo o período fazendo graça com os objetos e as coisas antigas da
casa que ia re-encontrando ao abrir as caixas de papelão vindas da casa de Porto Alegre:
- Bule de ferro que ela nunca usou para, pensa e olha para Camila
quando fazia c e levava para cima quando a gente estava doente. [...]
Sabe o que tinha nesse pote? às gargalhadas, mostra o objeto para Camila,
caçoando de como ele era velho Umas velinhas de aniversário antigas!
[...] O que será que a mãe vai fazer com isso? de testa franzida, Claudia
pergunta aos risos a Camila ela vai usar isso? ra, olha para a ire
responde a si mesma não, põe fora - Camila abre outra caixa e se afasta
Acho que vou arrumar os livros artisticamente.
Marcos.
Maio, como era chamado pelas irmãs e pela mãe, era o único filho homem de
Carla, e tinha na época da mudança, trinta anos de idade. Era dele a maioria das fotos de
escola que Carla mostrou: foto do primeiro dia da escola, foto da fantasia da festa da
escola, foto dele fazendo trabalhos para escola. Era muito mais alto do que as irmãs e na
única vez que o vi, na festa de formatura de bacharelado de Carla, usava uma barba que
pelas fotos que Carla mostrou de Mauro quando jovem, o deixava muito parecido com o
pai. Segundo as irmãs ele foi o último a sair da casa de Carla, e se pudesse não saia.
Morava sozinho desde então, num apartamento no Bairro Boa Vista, em Porto Alegre.
Trabalhava na área da engenharia de aviões e tinha uma namorada. Segundo Carla ele
era muito namorador:
85
- Porque assim o Marcos ele teve varias namoradas ele foi um baita de um
namorador, então aqui tem várias caixas com cartas e bilhetes, aquele
amor, aquilo tudo, com as fotos da fulana... ai quando brigava, aqui
vrrrrruuuum, vinha tudo para cá. Porque já vinha uma nova e não podia ver
as coisas da antiga. E com isso eu tenho várias aqui coisas de amadas que
ele tem que ver o que ele vai fazer com isso né. Eu não posso fazer nada, eu
vou jogar fora as amadas dele, de certo vai né, mas sabe, tem que decidir.
De no meio do sótão da casa, Carla fez esse apelo ao filho, para que olhasse
o que queria levar, para que cuidasse daquilo que tinha passado, para que se
importasse. Muitas das coisas de Marcos que ela disse que ia botar fora nessa ocasião,
eu acabei revendo na chegada da mudança em Canela. As desculpas eram que o
apartamento dele era pequeno para poder guardar, por exemplo, um aero-modelo que
tinha feito com o pai quando criança, ou a bateria da época que tinha uma banda.
- Vou me mudar dia 5 de junho. Eu falei né, eu falei, eu já falei, cada
vez que me encontro com eles. Meus filhos vocês tem escolher o que vocês
querem, porque eu vou tirar de pá. que eles não vêm, a Camila é a única
que andou mexendo, pegou os diários dela que estavam aqui. Enfim,
agora eu não, eu não posso carregar isso, como é que vou levar essa
montanha de lixo para a minha casa. [...] Eu acho isso sabe, por que, como
eu te disse, aparentemente, não aconteceu nada: eu continuo morando aqui.
que aconteceu tudo! A casa foi vendida, eu vou ter que sair. E eles tão
meio, principalmente a Claudia e o marcos, a Camila já ta mais aterrissada
e até porque ela não mora em Porto Alegre, mas ficou aqui comigo por que
ela ta estudando na UFRGS e ela teve aqui uns 15 dias. Ela aproveitou e
mexericou porque ela ficou morando aqui. Agora os outros na verdade tão
fingindo que não aconteceu nada essa é a verdade, essa é a grande verdade.
O marcos agora sábado diz que vai fazer uma festa de despedida, vai
convidar todos os amigos,
- Aqui? - Pergunto um pouco impressionada
- É. Ele sempre usa a churrasqueira em cima, tem um super lugar para
festa , ih tem churrasqueira, e é um lugar bem legal, e a impressão que eu
tenho é essa: como o aconteceu nada; eu continuo morando;
aparentemente, ta tudo igual. que chegou o dia que foi, e isso aqui eu
tenho que ter uma solução, eu não posso levar, eu já disse para eles: não dá.
Começar numa casa nova com essa montanha de coisa, não tem como, eles
têm que vir aqui senão eu vou chamar a cidade de deus
56
. Até porque eu
acho que assim como tem a história do luto e tu tem que viver o luto e a
venda dessa casa é um tipo de luto e se tu não vive o luto é muito pior; com
relação ao meu marido e tudo mais, quando morreu o pai, ta meus filhos
eram grandes, mas mesmo assim, tu não pode fingir, tu tem que viver o luto,
tu tem que sofrer, tu tem que tudo, porque então tu sai viva do outro lado,
porque se tu não vive o luto, e... E separar essas coisas é uma, é um tipo de
viver o luto. Eles têm que mexer no passado, eles tem resgatar, eles têm que
pegar as coisas, eles têm.
56
A cidade de deus ou Caritas Arquidiocesana de Porto Alegre é também conhecida como O
Mensageiro da Caridade. Trata-se de uma entidade sem fins lucrativos, que atua na comercialização de
móveis, utensílios domésticos, eletrodomésticos provenientes de doações. Os doadores chamam por
telefone e a entidade se encarrega de ir buscar as doações em um caminhão. O lucro obtido é destinado
para manutenção da estrutura e para ajuda comunitária.
86
Carla.
Ela se define como muito agitada, rebelde, alguém que vai atrás. Com
cinqüenta
57
e cinco anos de idade, em 2007, Carla coordenou praticamente sozinha a
mudança de toda a casa. Encaixotando roupas, papéis, louças e objetos até o último
instante. Ela parecia ir se desfazendo das coisas à medida que as coisas iam
aparecendo na sua frente toma Anelise, leva para ti, disse ela ao me alcançar por
trás da câmera uma torradeira. Até tudo ser colocado no caminhão foram muitas as
coisas que apareciam, na casa que tinha: dois andares, duas salas, cinco quartos, três
banheiros, cozinha, dispensa, lavanderia, pomar, espaço para churrasqueira, garagem,
pátio, num terreno de aproximadamente 440 metros quadrados. Uma casa na qual tinha
morado por vinte e cinco anos:
- Então essa história, essa casa ligadíssima a minha vida, até por esse
resgate de infância, que eu era muito solitária por ser filha única não sei o
que, e na praia eu não tinha ninguém, e de repente me cai de pára quedas 6
amigas, eu fiquei muito amiga mesmo. [...] Adorava vir para , no começo,
que a gente se conhecia pouco, quando veio do primeiro verão que a gente
se encontrou, eu dizia tomara que ela me telefone, me convidando. Ela me
convidava, eu vinha aqui conversar com ela, entende? Eu namorei ele não
foi logo, a gente ficou amigo anos, ia ao cinema, saia todo mundo junto, até
que se degringolou em namoro, não foi exatamente no início. Eu conheci
elas em 65, tá, casei em 72, nesse meio tempo eu namorei ele um tempo eu
acho, em 69 eu fiz vestibular, eu era namorada dele, deve ter sido em 68
mesmo que eu comecei a namorar. A gente foi amigo uns 3 anos e eu sou
amicíssima dos irmãos dele, também, desse tempo. Ficaram meus cunhados
depois, mas tudo por tabela sabe, essas pessoas a gente ficou assim muito
irmão, muito legal, eu até me dou, não fazendo injustiça, mas falando assim
em termos de afinidade, mais com os irmãos dele do que com o meu que é
muito distante, mora longe e é mais moço. Então afinidade eu acho que
57
Cf. Myriam M. Lins de barros, 2009, pag. 25-26 que toma a mulher de 50 a 60 como referência para
sua pesquisa as mulheres dessa geração parecem viver uma experiência particular e distinta das gerações
anteriores e da que as segue imediatamente, isso pelo fato de terem pais vivos e filhos jovens. Ainsley se
encontra nessa condição, por ainda possuir a mãe viva e Carla, mesmo com os pais mortos, adere à sogra
como figura de referência a ancestralidade da família. Concordamos com Lins de Barros, que essa
especificidade é interessante para compreender as relações familiares contemporâneas.
87
tenho mais com esses cunhados que são irmãos. Então essa casa, essa casa
para mim pelo menos tem tudo a ver com a minha vida, tem tudo a ver, e a...
Eu faço força, muita força para me desligar de bens materiais e saber que a
vida muita volta e que a gente tem que sempre ir para frente. Tá, se eu
consegui sobreviver sem o marido, meu marido faleceu faz nove anos né, e
se eu consigo sobreviver sem ele, eu consigo sobreviver sem nada. Eu não
tenho que ficar presa, mas não é fácil, não é fácil.
Mauro.
Nascido em 46, no mesmo ano que sua família foi para a casa da Quintino
Bocaiúva, Mauro morreu em março de 1998, com cinqüenta e um anos. Era narrado por
Carla como um homem muito ativo, inventivo e amoroso com os filhos. Nas fotos que
ela me mostrou era raro ele aparecer, pois estava sempre do outro lado as produzindo.
Martha.
88
Nascida em 1915, Martha tinha noventa e três anos quando a entrevistei
58
. Era
uma mulher magra e baixa e clássica, segundo Carla. Sempre aparecia nas fotos em
vestidos e roupas muito recatados. Ela foi uma referência da história da casa desde o
início de meu contato com Carla:
- E a minha sogra que tava aqui comigo até o ano passado, apesar do
marido ter falecido a sogra morava comigo, e ela foi embora para a casa do
filho porque ela disse que não tinha, ela tem 92 anos e disse que ela não
tinha coragem de ver o fim da casa por isso que eu te disse, que se tu quiser
falar com ela nós vamos lá, ela não quer mais vir aqui porque eu estou
desmanchando a casa . Ela não quer, ela não quer ver.
Na época da mudança da casa, Martha morava no Bairro de Belém Velho,
junto com um dos filhos. Depois que Carla se mudou ela passou a viver numa casa de
repouso ligada a instituição católica em Canela, perto da casa nova de Carla, que a
visitava muitos dias por semana.
A casa de Carla, diferente da casa de Ainsley, estava sendo vendida para uma
construtora. Construída em 1945, segundo narrou Martha, a primeira moradora da casa
e sogra de Carla, ela foi destruída em fins de 2007.
Era uma casa em estilo geminado, como se diz de cada uma de duas casas
conjugadas, encostadas uma na outra, e separadas por uma parede. A outra parte
pertencia a Helga, irmã de Martha, na ocasião falecida. Era uma casa localizada no
alto de um morro, na Rua Quintino Bocaiúva, Bairro Rio Branco, uma região com
presença de muitas casas ainda, porém uma quantidade muito grande de pdios sendo
construídos.
Em 2007, Carla morava sozinha na casa da Quintino, fora as visitas, os
churrascos dos amigos de Marcos e os pousos esporádicos de Camila. A casa foi
vendida em fevereiro deste mesmo ano e paga em cinco parcelas iguais pela construtora
que comprou o terreno:
- A última prestação é 5 de junho e ai eu tenho que sair, esse é trato, o dia
da última eu tenho que sair, e eles são absolutamente pontuais e eu serei
também.
Ela foi pontual, conforme havia preconizado e saiu da casa no tempo
determinado pela construtora.
A partir do ingresso na rede dessas duas famílias a etnografia junto a elas se
desenvolveu no sentido de pensar a dinâmica social da mudança de casa através da
58
Entrevista realizada junto com a antropóloga Ana Luiza Carvalho da Rocha, responsável pela gravação
em vídeo e gravação do áudio da situação de entrevista.
89
noção de drama social, onde a mobilidade social e legado de um patrimônio familiar
estavam em jogo.
Nesse sentido, o processo de desocupação da casa, tanto de Ainsley como de
Carla será abordado no capítulo seguinte a partir das trajetórias sociais e narrativas
biográficas de cada uma dessas mulheres, para pensarmos suas diferentes
representações sociais de família e problematizarmos a relação delas com o sentido da
morada.
90
CAPÍTULO 4
A DESCOBERTA DA MUDANÇA DA CASA COMO UM ATO DE
PERMANÊNCIA: A MORADA
A escolha do tulo deste capítulo reflete o caráter processual dessa etnografia.
Tomando o trabalho de Gilberto Velho (2006), em Subjetividade e Sociedade, como
referência, os indivíduos que contam suas histórias de vida aqui, a contam para um
pesquisador próximo, ás vezes conhecido (2006:17). O caráter confessional, das
narrativas aqui expostas, não está relacionado a um compartilhamento geracional de
experiências históricas ou cotidianas, como no caso do trabalho de Velho, porém está
profundamente relacionado a uma condição de gênero. As duas mulheres com quem
dialogaremos nos próximos dois capítulos foram mplices da minha proposta acerca
das relações entre a transformação do espo e a transformação de seus projetos de vida.
E à medida que fui cúmplice das mudanças que estavam ocorrendo com a mudança de
casa, pude compreender as relações de parentesco que compunham a família, as
adesões e valores agregados a elas e a relevância da aliança na composição do projeto
de vida dessas mulheres.
A descoberta da morada, dessa forma, integra um percurso intelectual que está
diretamente relacionado ao percurso das mudanças na vida dessas duas mulheres e, por
conseguinte, de suas famílias. Conforme vimos no capítulo três, a mobilidade social
iminente, dada pela mudança de casa era um processo a qual passariam Carla e
Ainsley após longos anos de residência na mesma casa. Com histórias ligadas a sua
própria infância ou a infância dos filhos, não raro a casa era narrada como uma casa
com história, como uma casa que tem tudo a ver com a história da minha vida. Para
Bachelard, todavia, a imagem da casa natal (1989:33) está fisicamente inserida em nós,
e é integrante de um grupo de hábitos orgânicos onde os espaços de intimidade o
absorventes, de forma que aquele que os lê, revê o seu próprio espo íntimo.
Impulsionados pela descoberta desse espaço imaginado dialogamos com esse autor
propondo o exercício da topoanálise para se pensar a topofilia do espaço da morada a
partir das diferentes imagens que cada um dos espaços que a compõem evoca como
capacidade de devaneio.
- [...] Agora vamos olhar em cima, bom lá em cima o caos está instalado,
bom realmente aqui tem um quartinho, é muita bagunça Anelise, tu vai dizer
91
para o pessoal do teu filme que eu estou me mudando. [...] se tu tivesse
vindo dois meses atrás, tu teria visto a casa montada, foi pena que a gente
não se conheceu, porque tu teria visto a casa montada e agora tu teria visto
o processo de mudança que ta acontecendo.
Aqui Carla opõe o caos e a desordem à noção da casa montada e da ordem. Ela
supõe um viver anterior onde as coisas estavam em seu lugar e um momento presente
onde as coisas estão fora do lugar.
Analisando esse estado de mudança a partir da teoria do ritual, poderíamos
dizer que Carla estava em uma condição de liminaridade. Condição essa consolidada na
reflexão de Arnold van Gennep (1960 apud Turner, 1974), para quem os ritos de
passagem são os ritos que acompanham toda mudança de lugar, estado, posição social
de idade (Turner, 1974:116) e eles o compostos de três estágios, a separação, a
margem ou limiar e a agregação. Turner na análise do processo ritual emprega a noção
de estado para caracterizar qualquer tipo de condição estável ou recorrente,
culturalmente conhecida (Turner, 1974:116) e a opõe a noção de transição como
aquilo que produz a mediação entre diferentes estados. De acordo com o relato de Carla,
a partir da teoria do ritual, liminaridade poderia ser entendida como a transição entre a
casa montada e a nova casa, situação onde essas mulheres se encontram entre, no
meio de posições atribuídas e ordenadas por regras, convenções e costumes. Uma
situação de mescla de posições, indeterminação de estado, ambigüidade. Se
seguíssemos por essa linha, o estado de liminariedade sucederia o estado da separação e
antecederia o estado da agregação.
Conforme Turner a separação abrange o comportamento simbólico que
significa o afastamento do indivíduo (Turner, 1974:116) de um ponto da estrutura
social ou de um conjunto de condições culturais. Ela poderia ser entendida, no caso das
nossas interlocutoras, a partir do conjunto de condições históricas e sócio-econômicas
que interferem na possibilidade da casa permanecer existindo e que por sua vez estão
ligadas a mudanças no status
59
de cada uma dessas mulheres no âmbito de seus projetos
de vida, de casadas passam a: viuvez, no caso de Carla; e a mulher separada, no caso de
Ainsley. A agregação por sua vez, estado onde se consuma a passagem, estaria ligada
a estabilidade da casa nova, como possibilidade de voltar a ter uma casa montada.
59
A. L. C. da Rocha em sua dissertação sobre a construção da identidade social entre mulheres separadas,
entende o status de separação com uma situação de liminaridade social, onde os atores estão implicados
na disputa pela legitimidade, prestígio e reconhecimento social, num processo de negociação da
realidade (Velho, 1983 apud Rocha, 1985)
92
Uma estabilidade, claro, agregada das transformações passadas no período liminar. Uma
estabilidade conquistada.
O grande problema de abordar a mudança da casa como uma mudança de
estado, através da teoria do ritual, é que estaríamos entendendo o movimento da
mudança como a perda e conquista da estabilidade estrutural. Pela linha da duração, no
entanto, teríamos condições de analisar esse processo de mudança a partir da dialética
da ruptura e da continuidade que dá rítmica a emergência ondulatória da vida
(Bachelard, 1988:37). Se por um lado não abandonaremos totalmente a teoria do ritual,
por outro não seguiremos o entendimento da mudança a partir de um processo tão
totalizante e segmentado. Interessa-nos mais, a dimica da ação e do repouso para
compreendermos o que move a mudança e a relação dela numa onda de vida que é mais
extensa do que o ato de troca de casa. Entender a mudança como mais uma
transformação no curso da vida dessas mulheres é entender também a particularidade
dessa mudança em relação aos outros pontos de ruptura narrados por cada uma delas. Se
para Bachelard o ser alternativamente ganha e perde no tempo, a consciência se realiza
nele ou nele se dissolve (Bachelard, 1988:37), é impossível pensar o tempo como uma
intuição imediata.
O contexto do presente, instante em que acontece a mudança de casa das
nossas interlocutoras, é espaço privilegiado para esse tremor do tempo (Bachelard,
1988:38) que acompanha a recordação. Ao passo que a recordação do passado não é um
bloco uniforme, ela não existe sem a dialética com o presente que, tampouco, é
imutável. Estimamos que, analisando o ato da mudança como condição liminar,
estaríamos limitando o devir ao término do processo ritual, e deixando em plano
secundário, a conjuntura do presente como reinvenção do passado. O tempo do processo
ritual é um tempo em movimento, o um tempo de reflexão e o que as narrativas nos
mostram que é no jogo dos dois contextos temporais o passado e o devir - que se dão
as escolhas.
Seguindo uma posição mais relativista, chegamos até a dimensão projetiva do
trágico, onde o momento presente é o espaço para reviver o tempo desaparecido e
aprender a inquietude da nossa morte (Bachelard, 1988:38). A narrativa sobre as
representações de si, as relações de parentesco e os valores agregados aos objetos e ao
espaço da casa, não podem ser pensadas como dados de um passado pleno. Se a
narração ocupa o vazio dos tempos inativos, quando recordamos estamos misturando,
na dialética da ação e inação, a favor de um conhecimento especifico do tempo. Se o
93
trágico tem a faculdade de projeção, ele também por isso é fundamentalmente
dinâmico e ativo. Considerando a tríade temporal do passado, presente e futuro,
quando narramos, segundo Maffesoli, acentuamos um ou outro desses elementos. Esse
acento é o que compõe o conjunto de atos e representações (Maffesoli, 1988:174) que
estruturam as concepções que, Carla e Ainsley têm de si. É a partir dessa faculdade
projetiva, onde passado e futuro se constroem a partir das avaliações da condição do
presente, que entendemos a situação de mudança de casa de Carla e Ainsley.
Para o caso, da experiência compartilhada na mudança de casa, entre a
pesquisadora e as interlocutoras, nos valemos da idéia de uma antropologia da
experiência. Dessa forma a condição do trágico, anteriormente descrita, se aproxima da
concepção de drama social no qual trabalha Turner (1986), uma experiência situacional.
O caráter processual de um evento, que havia sido desenvolvido por Turner em O
Processo Ritual (1974) a partir do trabalho de Gennep (1960 apud Turner, 1974) ganha
na antropologia da experiência (Bruner, 1986) uma dimensão temporal mais transversal.
Em O Processo Ritual o tempo tem um caráter de distensão. A partir da transformação
inerente ao ritual, que transforma as noções e posições dos indivíduos numa perspectiva
de tempo processual, o indivíduo acaba como uma representação do tempo transcorrido.
A noção de experiência, no entanto, agrega ao paradigma de uma antropologia
simbólica, no qual Turner é expoente, algumas preocupações de uma antropologia
hermenêutica, interpretativista. A partir dos trabalhos de Clifford Geertz (1997:11)
busca-se situar o conhecimento oriundo da etnografia em relação aos rumos recentes
do pensamento moderno sobre o social, numa atitude menos "provinciana" e mais
"pluralista", a favor de um conhecimento mais "contextualista, antiformalista,
relativista" do que nas grandes teorias gerais sobre o Outro. O tempo da interpretação,
que é agregado posteriormente por Bruner (1986) na empresa de uma antropologia da
experiência, vem sendo, no entanto, desenvolvido nesse estudo a partir da figura do
antropólogo como narrador, desenvolvida por Eckert e Rocha (2005).
O drama social vivido por Carla e Ainsley, tem dlogo, todavia, a uma
dimensão material que bem trabalha Van Gennep (1978:36) nos ritos de passagem
material. As cerinias de mudança de domicílio (1978:38) que ritualizam as
entradas e as saídas dos lugares de moradia aproximam-se da experiência que Carla e
Ainsley vivem à medida que vão demarcando prazos, limites, cumprindo demandas,
para a entrada e a saída das casas. Demandas de fechamento de contratos de compra e
venda, de pedido de corte de luz da casa deixada, pedido de ligamento para casa de
94
entrada, limpeza dos espaços, ou mesmo como já nos narrou Carla a meta de não levar
uma montanha de lixo para a casa nova.
4.1 A mudança (crônicas em vídeo DVD)
Nesse capítulo acompanharemos a mudança de casa de Ainsley e Carla através
de crônicas em DVD interativo. Elas foram editadas a partir de imagens em vídeo, que
receberam tratamento documental conforme já foi explicitado no subtítulo dois do
capítulo três dessa dissertação. A intenção dessas crônicas é descrição etnográfica do
processo de mudança de casa. A intenção narrativa dos planos foi produzida em diálogo
com o conceito de sociedade documental (Satt, 2007:29) onde os enquadramentos e
os movimentos de câmera são produtos da interação que caracteriza o fenômeno
pesquisado.
95
4. 2 A duração da morada na genealogia de parentesco
Anotando com a câmera ou no caderno, analisando as fotos antigas da
parentela, o desmonte da casa auxiliou-me a perceber que relações de parentesco
estavam sendo acionadas na narração da família. A casa como repositório dessas
representações de parentesco, filiação e projeto de vida familiar, precisava ser lida
conforme os vínculos que haviam construído aquele espaço. De modo que foram dois
anos montando e aprimorando um mapa de parentesco para cada uma das famílias. Esse
estudo passou a figurar como um método de trabalho fundamental para pensar o fluxo
dos objetos transmitidos e o valor agregado a eles, bem como para entender as
descontinuidades evidenciadas por alianças mal sucedidas ou mortes e sua relação com
o tempo da estrutura de parentesco. Os objetos ultrapassavam gerações e evocavam
memórias ligadas as posições de membros parentais na estrutura de parentesco.
A noção de morada assume centralidade na construção e manutenção de uma
memória familiar que carrega consigo valores ético-morais associados a determinados
estilos de vida e visões de mundo (Velho, 1987). Percebemos que a mudança seguida da
destruição do patrimônio da casa, é responsável pela instalação do drama do
esquecimento e da lembrança de um legado a ser transmitido para as gerações futuras. O
tema da morte da casa compõe o drama social das interlocutoras a partir das suas
trajetórias sociais e narrativas biográficas (Eckert & Rocha, 2005), trazendo questões
singulares de re-orientação de projetos de vida, guiados ora pela noção de indivíduo
(Velho, 1987), ora pela noção de pessoa conforme analisaremos ainda nesse capítulo.
Esse drama se funda na lógica do apego e do desapego, dialética que nutre a relação
com o legado deixado pelos seus antepassados e que seria transmitido aos seus
descendentes.
As formas de sociabilidade em família como dimensão da vida urbana na
cidade de Porto Alegre, tornam-se relevante, visto que as transformações nos laços
sociais oriundos da separação e da viuvez re-orientaram nos últimos anos o campo de
possibilidades dos projetos de vida dessas mulheres. Localizadas em diferentes áreas da
cidade as casas das nossas interlocutoras são propriedades que ocupavam terrenos
amplos e largos, contendo quintal, pátio, árvores, jardins, garagem. A observação desses
espaços, a partir da análise dos dados, foi fundamental para pensar a que ethos e visão
de mundo as interlocutoras aderiam a partir da estética do interior de suas casas. Assim
como auxiliaram a interpretar qual o conjunto das práticas e de rituais familiares que ali
foram realizados e que por sua vez, seriam os grandes construtores da morada. À
96
medida que houve avanço no tratamento documental do processo de desmontagem da
casa, foi possível perceber o espaço da morada a partir das formas de sociabilidade que
ali transcorreram ao longo do tempo. Essa sociabilidade familiar era foco de detalhadas
descrições nos passeios que fazíamos por entre os modos da casa. Onde sempre eram
destacados os móveis que compunham a decoração dos diferentes espaços, da sala de
jantar aos quartos.
Conforme Ariès, antes do século XV as cenas no interior da casa são raras,
com representações mais freqüentes do quarto e da sala. Volta-se para a intimidade da
vida privada (1978:204), chegando a uma avalanche de imagens de família no século
XVI e XVII. Com influência dos pintores holandeses, as cenas cotidianas da família são
retratadas como cenas de gênero: os homens reunidos junto à lareira, uma mulher
tirando um caldeirão do fogo, uma menina dando de comer ao irmão (1978:207).
Cenas que, pela narrativa dessas mulheres e os espaços e objeto que escolhiam
descrever - evidenciaram que a casa por elas herdada e a ponto de desaparecer, era
testemunha de uma trajetória familiar, sua ou de sua ascendência. Ainsley, por exemplo,
em sua ascendência alemã, descrevia um patrimônio familiar ligado a costumes
europeus e um estilo de família burguesa européia. Esse era o passado que tinha sido
transmitido a ela por seus antepassados. Uma história de prestígio, que ela também
tratava de transmitir na guarda dos objetos e móveis dessa época próspera. O passado
das pequenas empresas de banha ou ourivesarias iniciadas pelos primeiros descendentes
da árvore de sua família (Woortman, 1994) instalados no Vale do Caí, na metade do
culo XIX, nunca era narrado por ela.
Como forma de pensarmos essas escolhas, acompanharemos abaixo trechos de
narrativas de Ainsley e de Carla. Eles nos remetem a relação com os bens móveis e
objetos que ficam para além da casa e, portanto, importantes para pensarmos a partir
deles na transmissão e na herança dos valores familiares que eles representam.
O espaço da casa narrado por Ainsley e Carla nos permitiu refletir sob os laços
de consangüinidade, os afetos, os dramas das relações familiares e, dessa forma, as
diferentes concepções de família em jogo na concepção da morada. As regras que
definem quem mora na casa, quem fica na casa, quem sai, podem ser definidas pelos
tipos de aliança que as partes têm entre si. De acordo com o estudo clássico de Lévi-
Strauss a natureza é indiferente às modalidades das relações entre os sexos, a natureza
impõe a aliança sem determiná-la, e a cultura só a recebe para definir-lhe imediatamente
as modalidades (2003:71). Dentro das modalidades das alianças de Carla e Ainsley
97
aliadas aos valores herdados ou pela adesão a uma família de procriação ou a família de
origem (apud Rocha, 1985) busco desvendar porque mesmo com a destruição da casa e
da aliança pela morte ou pela separação - a morada segue existindo.
4.2.1 Ainsley e sua família
60
Diferente da experiência na casa de Carla, a casa de Ainsley, foi conhecida
antes da mudança, ou seja, era uma casa montada. Nessa ocasião, ela rapidamente me
guiou ao interior da sala e passou a me mostrar os móveis e objetos da família.
Deslocava-se com alguma desenvoltura, apontando para os cômodos e os descrevendo
em relação ao atual e ao antigo usuário dele. Fazia isso com todos os móveis que
preenchia o espaço, cada um deles com uma história de transmissão intrageracional que
remetia a uma relação de parentesco que privilegiava a ascendência da linhagem
paterna.
- Pena que agora eu estou tirando, mas esse móvel é bem antigo, essa
penteadeira e aquele móvel, também. Aquele fechado. Tudo da vó, os
Frederico Mentz, isso aqui era dos Mentz, né. Eu não sei se começou com os
Trein ou começou com os Mentz [...] Essa é esposa do Frederico Mentz,
Catarina Trein Mentz me mostra a foto grande da "vó" Catarina. A vovó
Catarina, na verdade ela não é minha ela é minha bisa, né, Aqui é meu
pai e minha filha, aqui é minha mãe, ó. Porque na verdade isso era uma
coisa só né. Dai com a morte foram dividindo e foi ficando uma coisa
diferente. Na verdade eu sou bisneta do que começou né. [...] Esse roupeiro
aqui tem 100 anos, aqui a minha mãe tava grávida de mim, penteando o
cabelo e um pássaro pousou nela. Lindo, isso aqui é bisotê [...] É... Essas
coisas nem existem mais. [...] Esse móvel era do meu bisa né, porque meu
vô, como eu te disse, ele morreu com 36 anos, é aquele ali ela atravessa
sala e aponta para o retrato que está na parede em cima dos sofás e ao lado
de uma das quatro janelas da ante sala - Ele, no caso, é o genro do
Frederico: Gustavo Adolfo Albrecht. Minha faleceu com 94 anos, viveu a
vida né, eu não quero isso! Deus que me perdoe. Ah é, ali na cristaleira
também... Isso aqui também tem mais de 100 anos. Isso aqui também era
dela, que eu guardo o cabelo do meu pai, ó, que é ruivo como o meu. É ruivo
ó - diz isso rindo. Eu cortei, porque ele faleceu nesta casa, eu cuidei dele até
o final. E esse aqui é meu pai ó, só, porém bebê. Ó. Esse é o Gustavo, filho
daquele outro Gustavo. Têm muitas fotos aqui, lindas as fotos. O móvel que
estava com as fotos eu embalei. E aquele quadro ali foi minha que
pintou... Ela tinha 13 anos, Elvira, é um quadro que tu podes colocar assim
ou pode colocar assim - se refere à posição vertical ou horizontal do quadro
com motivos florais, que não interfere na apreciação. E aquele foi na
Alemanha - aponta para um quadro do outro lado da sala - porque quando
ela perdeu o pai ela foi para a Alemanha, Ficou meio louca. E ela pintou.
Aquele é de [...] Depois quando meu pai tinha 14 anos ela voltou, né.
Confundiram depressão com loucura, né.
60
Sugerimos que a leitura desse subtítulo seja acompanhada da estrutura de parentesco disponível na
página 110.
98
A família de Ainsley, como ficou evidente desde o primeiro encontro era
integrante de uma família importante na construção do empresariado
61
gaúcho. A
maioria dos bens móveis de que fala Ainsley estavam na casa e provavelmente estão
nela desde sua construção. Eles são testemunho de um estilo de vida da família paterna
de Ainsley, que na primeira década do século XX, construiu uma trajetória de prestígio
na cidade de Porto Alegre. Donos de empresas e indústrias importantes da capital
compunham uma elite dentro da comunidade porto-alegresense, com influência política
e econômica no desenvolvimento da cidade. Descendentes de grupos alemães que
imigraram à região do Vale do Caí no século XIX, as família Mentz e Trein integravam
o conjunto de empresários que estava à frente do desenvolvimento do alto comércio e da
indústria no estado do Rio Grande do Sul (Pesavento, 1991:42 apud Gans 2004:87).
Segundo Magda Gans havia uma circulação muito grande de teutos na cidade de Porto
Alegre na segunda metade do século XIX, porém era no centro que se concentravam os
teutos afortunados (Gans, 2004:31), em razão da instalação do seu local de comércio.
Conversando com Ainsley sobre as propriedades e imóveis da família ela recordou de
uma casa na região da hoje Rua Alberto Bins.
- Pode ser, eu só sei que ela era da São Rafael, [e ia] até a Voluntários, era
uma coisa muito grande. E a mãe quando se separou né, ali na partilha,
ficou para ela, ficou para ela...
- Então essa casa ainda, ela ainda existia nos anos 80? pergunto a Ainsley
- Sim, sim, eu me casei em 74, em 80 nasceu o Rafael desvia o olhar de
mim e passa a olhar para frente como se fizesse um esforço para lembrar -
ela foi vendida essa casa em 83, o Rafael tinha três anos é, eu me lembro em
função do, porque assim, quando venderam essa casa, a mãe presenteou os
dois filhos com um carro. Então eu fui, o Rafael tinha 3 anos, se prendeu no
banheiro, aquelas coisas então é uma coisa que tem, bem, bem presente né.
O rafa tinha três anos, então era 83 né, que foi vendida, é, então ali a parte
que era do pai ficou para a mãe né...
- Era uma família que tinha muitos imóveis né? pergunto
- É tinham, e tinham assim salas né, o Hotel Frederico né, Frederico Mentz
era deles ali na, era não, é né, porque o pai as salas dele vendeu logo em
seguida, o pai era muito desprendido assim de coisas materiais. [...] vendeu
muita coisa, vendeu, botou fora né, um homem novo, separado, com 33 anos
né, 33 os dois tinham 33 anos, super jovens né, é e eu me lembro que em
vida também muita coisa para ele né, assim dinheiro né, era uma soma bem
grande que ela dava, também, para as noras e para o genro, no natal e a
gente ganhava. A Oma não presenteava com presente, era dinheiro, eu me
lembro assim o natal, e isso muito tempo, muito tempo, tanto que, a última
lembrança, era cheque que ela dava, eu lembro que o último cheque que eu
ganhei de natal, meu deus do céu, ela botou dentro da caixinha com um
61
Cf. Sandra Pesavento (1986) acostumadas a riscos, essas famílias eram detentoras de bancos e
integrantes de associações de classe que inclusive foram patrocinadores dos revolucionários da Revolução
de 1930, se envolvendo em cargos políticos ou com intenções políticas a fim de manter suas fabricas em
atividade, e com isso, garantir a manutenção do seu patrimônio ligado a bens móveis e imóveis.
99
lencinho, e eu não vi, eu fui ver um mês depois quando fui pegar o tal de
lenço para botar na minha bolsa, sim bordadinho uhumm, isso nunca faltou.
É, e era uma soma bem... significativa né.
A Oma, como Ainsley chamava a avó, era filha de Frederico Mentz. No ano de
1893, Frederico, casa-se com Catarina Trein, filha de um Castilhista e empresário de
destaque no estado, Cristiano Jacob Trein. Numa lógica de alianças que buscava a
concentração de renda entre as famílias unidas pelo laço do casamento, os Trein, Mentz
e os Albrecht sobrenome da linhagem paterna do pai de Ainsley, foram transformando,
diversificando e prosperando seus negócios. Jacob Trein herda de seu pai Franz um
comércio pequeno na região do Caí, conforme reportagem:
Era êsse o ambiente colonial: ao lado da lavoura, com a necessidade da
colocação dos seus produtos surgia o pequeno comércio ou a pequena
indústria com base nos ofícios de quem eram portadores os louros
imigrantes.
Franz Trein contava então 31 anos e iniciava uma empresa que através dos
filhos, genros e netos, daria lugar a grandes firmas de comércio e indústrias
do Rio Grande. Ali nascia entre outras a firma Frederico Mentz & Cia, sua
herdeira direta cujo centenário comemoramos.
62
Publicada em 1947, ano do centenário da firma Frederico Mentz & Cia a
reportagem ressalta a garantia da prosperidade dos negócios a partir dos herdeiros
descendentes e dos genros que por sua vez representam o sucesso do regime da aliança:
étnica e entre um mesmo segmento sócio-cultural. Casando com Elisabeth Ritter, Jacob
se associa ao cunhado fundando a Trein & Ritter que existe até 1889, quando a
Republica é proclamada no Brasil e o cunhado se muda para Porto Alegre a fim de
montar uma pequena cervejaria na esquina das ruas Miguel Tostes e Mostardeiro.
Apesar de Castilhista o prestígio pessoal de Trein o faziam respeitado acima dos
partidos de luta (Revista do Globo, 1947:59).
No ano do início da Revolução Federalista, já casado com a filha de Jacob
Trein, Catarina, Frederico funda a Cia Trein & Mentz. Em 1909, Frederico Mentz deixa
a matriz da firma de São Sebastião do Caí nas mãos do amigo recém egresso na
família A. J. Renner que casado com uma irmã de Catarina icomandar a firma junto
com outro irmão de Catarina, Frederico Trein. Nesse ano Frederico Mentz se muda a
Porto Alegre e funda a Frederico Mentz & Cia. Na década de dez, as propriedades na
região do bairro Tristeza e Vila Conceição são construídas.
62
Revista do Globo de 6 de dezembro de 1947. Pag. 58
100
No capítulo sobre os sistemas complexos e assimétricos de trocas de mulheres,
Robin Fox fala dos sistemas complexos a partir do seu oposto elementar o sistema de
troca direta. Ou seja, quando minhas irmãs/fihas vão para outros homens (1986:271)
sem que se exija dos outros homens filhas ou irmãs em troca, temos um sistema
assimétrico de trocas. Assimétrico e cognático - quando o parentesco se estabelece tanto
por qualquer das linhas, masculina ou feminina (Fox, 1986:53) - são características dos
sistemas de parentesco de Carla e de Ainsley.
O modelo de formação do parentesco entre os antepassados de Ainsley, como
aponta Fox (1986): a ligação entre duas famílias ao longo das gerações a partir
aliança, chegou a ser bastante corrente entre as famílias nobres ou em certas estirpes do
mundo dos negócios, porém segundo ele são formas que se pode considerar
erradicadas hoje em dia (Fox, 1986:271). A crise nessa lógica de aliança, no entanto,
como ficará evidente mais adiante, é a crise que segrega a família de Ainsley na geração
dos seus pais e a partir dessa ruptura que o patrimônio da casa da Tristeza acaba
destruído.
Morto em 1931, Frederico Mentz e família aparecem destacados como ilustres
personalidades da capital, na obra comemorativa do bicentenário da cidade Porto
Alegre: Biografia duma cidade. Monumento do Passado, Documento do presente, Guia
do Futuro (Franco, 1941), em 1940. Na genealogia de parentesco abaixo podemos
acompanhar as alianças e as filiações das famílias, bem como a trajetória da casa nas
relações de herança e sucessão.
É no interior desta dinâmica de parentesco que Ainsley, como herdeira de
Gustavo Mentz Albrecht aparece na figura de guardiã da memória da família,
agenciando o deslocamento dos objetos herdados dos seus antepassados em face de
destruição do bem imóvel e da mudança de residência.
Após mostrar o interior de sua residência, Ainsley seguiu até a peça externa a
casa que tinha um aspecto de garagem, e o qual soube neste momento era chamado de
o cozinhão. Depois seguiu até a parte mais alta do terreno, em uma espécie de mirante
construído em cima de uma pedra enorme, que provavelmente existia na região na
época de construção da casa. O mesmo lugar onde, posteriormente, foi realizada a
entrevista com o filho dela, Celso.
O acesso a pedra era feito por uma dezena de degraus de concreto que
acompanhavam o formato da pedra até seu cume. La no alto havia uma área circular que
ainda permitia por mais uma escadaria interna, que se chegasse até o topo onde
101
finalmente se tinha um vista panorâmica por cima das copas das árvores, da cidade de
Guaíba na outra margem do rio.
- Parece mentira que ainda tem dentro de Porto Alegre, né? Um espaço
assim... aqui que eles trocaram o primeiro beijo, é a história que eu sei, aqui
no caso foi meu bisavô , não meu avô, mais ou menos por aqui. - Pára na
frente da escada e mostra o local do beijo. [...] Dai ele fez essa torre, tem 94
degraus, tem um primeiro lance depois tu sobe por dentro. Ela tinha 13
anos. Contou para minha mãe. E ai, ele achava ela muito bonita né. Minha
vó tinha os olhos violeta , que nem da Elizabeth Taylor. Ele com olhar
brejeiro né, disse quando tu cresceres eu vou casar contigo. E quando ele
pediu ela em casamento, para o meu bisa no caso né. Ele chamou a minha
vó para comunicar né, o que, que ela achava daquele pedido ela disse que já
sabia. Claro ela guardou aquilo né. [...] Ela é de 1900. De 1900 ela é. Ele
morreu com 36 anos. De acidente de avião. [...] Vamos? me convida a
subir até o alto da pedra - Aqui é uma pedra inteiriça, aquela árvore tombou,
quer dizer a natureza também sofre, né. Aqui eu me lembro quando criança
que eram servidos uns chás de muita pompa, sabe? Guardanapos de linho
sabe? Final de tarde.
Conforme o desenho abaixo, construído a partir dessas sucessivas incursões até
a casa, vemos a disposição dela no terreno, a citada torre da pedra e a localização da
residência em relação aos limites externos. É importante observar que a disposição dos
veis na planta baixa da casa, respeita a última organização observada antes que o
mobiliário fosse retirado do interior das peças em direção a um puxado que foi feito
ao lado do cozinhão, onde os móveis permaneceram até que a casa nova ficasse pronta.
102
A narração de Ainsley sobre uma época onde se usava guardanapos de linho
nos chás, evidencia uma separação, entre a geração dos avós e dos bisavós, e a geração
atual, através do estilo de vida aristocrático que marca os costumes de seus antepassados
e na qual ela mesmo foi criada. Segundo Ellen Woortmann, podemos pensar numa
sucessão feminina na posse dessas memórias, onde, através dos objetos guardados ou
das narrativas repassadas, a permanência da casa é feita a partir desses espaços que
seletivamente buscados no passado, constroem também seletivamente o presente
(1994:4). Dessa forma o espaço da casa passa a adquirir uma relevância na biografia da
família, pois à medida que ele guardava momentos e objetos, testemunhava e atestava a
permanência da família no tempo.
Os itinerários urbanos dessa falia em determinados bairros da cidade nos
ajuda a refletir sobre o lugar dela na estrutura econômica e política de Porto Alegre no
que se refere aos antepassados do pai de Ainsley. Pela narrativa dela reforçamos que sua
família dispunha de uma situação de status condicionadora da obtenção e manutenção
daquela residência, no bairro específico
63
onde está localizada. As casas construídas
num perímetro vizinho evidenciam uma circulação e uma sociabilidade familiar
específica conforme narra Ainsley.
- sim, eu nasci, exatamente, eu nasci aqui porque a mãe tava grávida aqui
né. Eu nasci depois de nove meses e dois dias, ela casou dia 8 de novembro
e eu nasci dia 18 de agosto. Tanto que as velhas fofoqueiras ficaram
contando os dias para ver se ela tinha casado grávida, eu sempre ouvi isso
né. É. Depois ela, enquanto isso, a lua de mel dela foi muito longa, foi em
Torres, daí o pai sempre dizia que eu fui feita aqui. E ela dizia que não, que
eu tinha sido feita em Torres, no Hotel Farol. Daí depois ela foi para ali,
tem o portão, do outro lado da rua, na Carlos Julio Becker, que eles
estavam construindo, mas o meu aniversário de um ano, foi lá, já foi lá, mas
a gravidez dela foi aqui, ai foi aqui, no quarto onde era o da Débora, acho
que filmasse o quarto da Débora. É isso. [...] moraram [aqui] todo esse
período, porque eu tenho impressão assim quando eu nasci, ela ficou um
pouco aqui e foi depois para a casa dela. [...] moravam aqui ai, enquanto a
casa não ficava pronta, e a casa ta ali ainda porque o projeto tudo isso foi o
pai que fez, ela ta intacta ali.[...] porque depois nós mudamos para a Vila
Assunção né, porque que o pai não quis ficar aqui, aqui embaixo como eles
diziam né. Aqui embaixo, então nós morávamos na Assunção, na Caeté.
Então natal eram todos lá, porque a mãe tinha cinco irmãs, eram quatro
63
Família como a de Ainsley, oriundas de uma burguesia industrial, e composta por profissionais liberais
ligados ao ramo da engenharia civil instalaram uma nova estética do viver comum (Monteiro apud
Gutterres, 2008:11) que investiu em transformações urbanas e na remodelação de um estilo de vida
urbano que se adequasse ao seu gosto. Essas transformações também incluíram a urbanização e a
construção da distinção de alguns bairros da cidade. Esse status parece perdurar até hoje de acordo com o
volume de lançamentos imobiliários nesses mesmos bairros e valor dos imóveis vendidos neles, que
conforme o Balanço de 2005 do Sinduscon-RS, ficou neste ano na faixa de R$ 114.000,00 a R$
289.000,00 (2005:3).
103
com ela cinco, e cinco irmãos, cinco homens e cinco mulheres, então era
tudo, eu lembro que tudo era na mãe. Passava assim a meia noite, ela
tinha duas irmãs que moravam lá na Vila Assunção e uma que era aqui a tia
Jurema, só a Silvia que morava na Gloria, então elas estavam sempre juntas
essas três irmãs mais a mãe. Somavam quatro né, jogavam bolão, aqueles
campeonatos aqui no tristezense, o grupo era o Grupo Saci, que era o grupo
delas, então eu me lembro que tudo era em casa. Porque o pai era uma
pessoa muito farta, e adorava era o natal, era essa coisa que eu tenho que tu
visse né, quando tu veio que tu dormisse aqui em casa, do natal né, te
lembra? Isso eu herdei do pai, porque nunca fizeram uma árvore de natal, a
mãe disse que nunca tinha feito uma árvore de casal antes de casar. E as
árvores de natal eram até o teto né, até o teto. Natural, aquele pinheirinho
alemão, que cortavam aquele filhotinho da árvore grande, que corta do
lado, é era assim. [...] Porque isso aqui era da Oma, do pai da Oma, mas em
vida, eu não sei se comprou, o meu avô comprou, ou se ganhou do sogro.
Isso é uma coisa que a gente tem que ver. [...] Então, quando ele faleceu
isso ficou não para a Oma, ficou para os filhos, mas eu me criei
acreditando, que isso aqui era da Oma. Porque a gente ia na casa da vó da
gente né. As festas, aqueles natais, aquela coisa mais linda né, porque se
ficava um pouco em casa e depois vínhamos todos para cá. Isso até os meus
doze anos, todos né, ano novo a mesma coisa. Ai era o contrário, passava-se
o, ficava-se um pouco aqui e então depois a meia noite se rompia em casa ai
com a família da minha mãe. Que todos iam para lá. Festas, a páscoa isso é
muito presente, aqui do lado aqui, ali onde é a casa do gordo, ali tinha um,
forno e os pãezinhos eram feitos ali, então eu me recordo que uma vez o meu
ninho estava ali então aqueles ninhos assim bem alemão, com ovo, ovo,
ovo normal de galinha, todo pintadinho, era um preparo assim, a Oma
tinha assim uma expectativa muito grande com a páscoa assim, apesar que a
mãe era católica né, porém não praticante, e a Oma era, eu fui batizada na
Igreja evangélica, depois para casar que eu me batizei na católica, em
função da sogra que era católica e eu não tinha o conhecimento da igreja
evangélica, fui criada toda a vida na escola de freiras né, das irmãs. Ai
casei na escola onde eu me formei, na Maria Imaculada, onde eu era
professora, com os alunos presentes tudo aquilo. Mas a mãe, gostava muito
da sogra, a Oma admirava muito a minha mãe. Pela força assim da mulher
né. Da mulher que a mãe era, ela gostava, depois claro que se afastaram né,
até de nós porque depois para visitar, a Oma morava ali com a filha né e eu
era a presença viva da dona Noeli né, eu era uma afronta e até hoje.
Pela via dos itinerários e da sociabilidade entre parentes promovida pelas festas
de natal, páscoa e ano novo, Ainsley nos apresenta a sua família de ascendência materna
pela primeira vez. Dona Noeli, diferente do pai de Ainsley, vem de uma família
simples da região do extremo sul da cidade. Conheceu Gustavo no cinema Gioconda,
existente no bairro Tristeza até meados de 1970,
64
e permaneceram casados por doze
anos, tempo muito significativo na narrativa de Ainsley, pois foi o período que ela se
afasta drasticamente da família paterna e passa a viver com a mãe e o irmão mais novo
64
Dispovel em: http://zerohora.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=
a2394155.xml&template=3898.dwt&edition=11650&section=1071, acessado em novembro de 2009.
104
em outra região da cidade. Discriminação, preconceito e traição aparecem no relato de
Ainlsey sobre a aliança da família da sua mãe com seu pai:
- A Oma que não discriminou assim, mas sempre houve uma discriminação
muito grande em relação à mãe . o, acho assim, que não tanto em
relação à questão financeira, mas muito cultural também né, porque a mãe
era uma moça de fora né. A mãe foi conhecer o mar em lua de mel com o
pai, dar descarga, onde ela morava era latrina, coisa assim de rua né, era o
banheiro, então essas coisas todas ela sempre disse que foi o pai né. O copo
de cristal essas coisas assim né, e ela aprendeu muito enquanto morou,
porque tinha, como é que é, vó Inês, tia Inês, vó Inês, que morava, tinha um
parentesco, mas eu não sei dizer assim, o luli é capaz de saber, mas ela se
esmerava muito, o comportamento , era uma pessoa que comia em
gamelas assim bem simples, uma vida simples no campo em cima de cavalo,
tirando o leite e de repente era o uso assim do guardanapo de linho, eu me
lembro na nossa casa era sempre guardanapo de linho, não tinha, não existia
guardanapo de papel na nossa casa, o pai não permitia. Eu me lembro assim,
as toalhas, os guardanapos tudo quarando , aquelas bacias grandes... Eu
tenho essa lembrança. E o pai assim, até bem tarde, depois ele resolveu
abolir, mas eram os famosos guardanapos de linho né. A mesa com toalha de
tecido, tudo isso né. Então esse choque acho que incomodou um pouco né, e
sei também, tem uma conversa assim bem, que a Oma testou os sentimentos
dele, porque ele era novo e ela também né, eram duas crianças. O pai tinha
21, fez em agosto e a mãe faria 21 em dezembro, 30 de dezembro, mas o
registro é antes, o registro da mãe é diferente, então ela casou ela não tinha e
antes de ter 21 anos, antigamente, não sei se agora tinha que pedir licença né,
o pai tinha que autorizar o casamento né. E ai a Oma, que é em alemão,
ela fez um, assim, foi uma pergunta que ela fez para ele. Que ela daria uma
viagem de volta ao mundo para ele durante um ano. Se ele não casasse com
a mãe. Lindo né? (ri) e ai ele não aceitou, não aceitou, a Oma diz que isso ai
foi para testar os sentimentos dele né, mas eu acho que isso ai tinha assim
muito, a Inge né, a tia Inge.
As diferenças étnicas, econômicas e culturais como diz Ainsley, são
ressaltadas por ela nas imagens contrastivas entre a da moça da roça e o rapaz da cidade.
A oposição entre, a polidez e os hábitos civilizados do uso do banheiro, é destacada de
maneira que nos remete a formação da sociedade aristocrática de corte (Elias,
1993:18), que nos narra o sociólogo alemão Norbert Elias, num contexto pré-nacional.
A idéia da civilização aliada aos bons costumes à mesa, aos guardanapos de linho, aos
copos de cristais, constrói uma diferença quase antagônica entre um lado e outro da
aliança formada entre o pai e a mãe de Ainsley.
Na época do casamento, o lado paterno da família de Ainsley gozava de
prestígio na sociedade porto-alegrense, sua descendência havia promovido a limpeza
ideológica que privilegiava a europeização do seu passado (Woortmann, 1994:3)
esquecendo sua trajetória inicial no Brasil, ligado ao contexto colonial. Integrantes de
álbuns comemorativos da cidade de Porto Alegre e usufruindo do status de burguesia
105
industrial estabelecida, a família da pompa como reforça Ainsley, não aceitou de
início a idéia do casamento. Moça sem estudo, a mãe de Ainsley tinha um Keim
ruim (1994:12) segundo os padrões de aliança da família do noivo, cuja geração era a
primeira a contrair casamento com uma pessoa completamente desconhecida das redes
familiares. Assim como o pai de Ainsley, seu irmão mais velho, também seguiu a
tendência de casar-se fora das redes de relações familiares, se casando com uma moça
que costurava para fora freqüentadora da casa da família por seu saber: a feitura dos
moldes para os vestidos.
A traição da mãe, aliada a uma ascendência que não estava de acordo com a
rede, e os padrões econômicos e étnicos, da família paterna do cônjuge, parecem ter
contribuído para que Ainsley também fosse vinculada ao keim ruim de sua mãe.
Conforme narra, os homens eram julgados, as mulheres não. E dessa forma, ela e o
irmão, crianças na época da separação, também foram julgados com a mãe, e vinculados
ao sangue ruim vindo da linhagem materna.
Essas imagens trazidas por Ainsley, portanto, talvez estejam profundamente
influenciadas pelas lembranças e incômodos da sua mãe, diante da disciplina que o
casamento lhe impôs: o regimento de uma boa conduta perante a mesa e o público.
Nota-se que no outro trecho Ainsley refere a si mesma pelos olhos da família paterna,
como a presença viva de Noeli - uma presença negativa diante dos fatos que
culminaram na separação do casal. A contradição, porém, é que o resgate da memória
familiar para Ainsley é um resgate da memória dos antepassados do seu pai, não da sua
mãe, são as histórias da mãe do pai, do avô do pai, as histórias que possuem valor. A
partir dos veis, dos quadros e dos objetos - todos levados para sua casa nova quando
se muda - ela vive o lado de filha do pai que lhe pareceu lesado com a separação. No
entanto a tensão é constante e ainda presente, entre ser do pai e ser da mãe, que
para ela um é uma opção de direito e o outro uma condição irrefutável.
- E tu acha que no final das contas essa casa foi o fim, foi a forma de dizer
bom vou rachar ao meio mesmo pergunto a Ainsley
- É... da uma risada longa e nervosa
- Porque ali também foi o fim e o inicio de outra relação né?- prossigo, me
referindo ao retorno das ligações com o primo Jorge, que ocorreram após a
destruição da casa
- Exatamente! que coisa né?
- É o que eu vejo, não sei se tu vê? - pergunto
- É, é, é, ahã, porque ficou uma coisa assim, a casa né, a casa, tipo eu tive
que alugar a casa para morar né,. Eu fui despejada da casa, da casa que um
terço era minha, quer dizer não tem explicação, à medida que eu assinei,
assinei, foi um atestado de burrice né, da minha parte, e depois, assim, eu
106
vim morar com meu pai né, uma coisa que era dele, e ai, gozado que a morte
também que resolveu né, (pensa) exatamente, porque foi a perda do pai, que
daí eu herdei né, são as ironias do destino daí eu não passei mais a ser a
filha do dono, mas sim a dona né, ah então ta. Então é a minha parte? Então
vamos derrubar, vamos pegar a patrola e passar por cima, e passei, e não
me arrependo.
- Não?
- Não. Às vezes me uma dor, assim sabe... que eu acho que ela, não
essa parte né, mas ela tem que ser derrubada, tem, tem espíritos ali dentro
ainda, têm pessoas que não saíram dali, eu sentia que tinha, mas não vi.
Agora a Rafael, a namorada isso ai tudo, viram né. E eu acho que ela tem
que vir ao chão, para bem de começar uma história nova. Eu acho. Eu acho
que querer recuperar aquilo ali não, não tem mais, a casa não tem mais
estrutura ela ta caindo, ela ta cheia de cupim, né. Me dói assim, porque eu
ainda entro ali né. [...] agora eu posso fazer o que eu quiser né, então para
ti ver o quanto era de maldade da parte dele né? Quer dizer não era o
interesse dele da casa em si, do que representava a casa, porque ele tinha
uma bela casa né. Então não era nem o valor estimativo da casa, não eu
quero, não, era só, a intenção era me tirar dali. No momento que me tirou,
porque que não veio arrumar? Porque ele não ta ali? Né? É, é uma coisa
assim, tudo uma casa né, que loucura, e assim às vezes, quando eu passo ali
eu olho ela com desprezo, puxa o que tu me fizestes passar né? Ordinária! E
às vezes eu passo ali e choro né, agora to emocionada Ainsley começa a
chorar
- Tudo bem, acho que é uma história... longa...
- longa e... mas vai passar ri, ainda chorando muito - vai passar, mas dói -
bate com força no peito enquanto limpa com a outra mão as lágrimas do
rosto - É uma casa como mexeu com todo mundo [...] ninguém acreditou né,
a minha atitude foi de verdadeira filha de Gustavo começa a rir - ninguém,
ninguém entendeu né, mas não era para entender: ah é minha, então ta,
então vai para o chão, porque como é que nós íamos dividir uma casa, parte
de lá, luli, eu no meio e, porque eu ainda troquei né as partes pro luli, tem
tudo isso. A minha parte era a pedra, era, é... então, tem as culpas né,
porque a pedra era (pausa) o amor do pai, porque ali a Oma trocou o
primeiro beijo, então representava muito aquela pedra ali também né, mas
chega né, então, porque também eu ia deixar o coitado do luli, com duas
partes lá, mais aqui, e eu no meio né, complicado, bem complicado. [...]
Eles já era os herdeiros né, porque eles herdaram do pai deles, porque isso
aqui era da Oma, do pai da Oma, mas em vida, eu não sei se comprou, o
meu avô comprou, ou se ganhou do sogro. Isso é uma coisa que a gente tem
que ver. Então, quando ele faleceu isso ficou não para a Oma, ficou para os
filhos, mas eu me criei acreditando, que isso aqui era da Oma. Porque a
gente ia na casa da vó da gente né.
Em razão do processo judicial promovido pelo primo Jorge, filho de um irmão
do seu pai, Ainsley precisou desocupar a antiga casa da avó paterna, pois Jorge
reivindicava os anos que ela morou na casa após a morte de seu pai Gustavo - sem
pagar aluguel. Jorge, primo pela linhagem paterna era junto com Ainsley e Luli um dos
três herdeiros da propriedade. Segundo Luli, em ocasião de um encontro onde se
decidiu e se distribuiu as propriedades e bens herdados entre os irmãos, a casa havia
sido declarada como valor zero. Ou seja, não haveria valor agregado a casa, somente
107
ao terreno. Esse acordo feito entre a geração dos netos de Frederico, portanto, definia
que o haveria motivo para uma disputa por essa casa, que a propriedade seria
dividida igualmente entre os três herdeiros designados a receber uma parte daquele bem.
Entre esses herdeiros estava o pai de Ainsley, o pai de Luli e a mãe de Jorge, que por
direito sucessório herdaram esse bem dos pais.
Após a morte do pai de Ainsley o irmão que mais morou na casa após a
infância, iniciou-se o processo jurídico contra ela. Durante a desocupação da casa
notava-se que havia contra esse primo Jorge muita raiva por parte de Ainsley, de seus
filhos e da turma da praia, que por sua vez ajudou na mudança.
Após a retirada do mobiliário do interior da casa, no prazo determinado pela
justiça, o clima entre os herdeiros era de negociação dos limites dos terrenos, num
processo que foi delineando a casa um valor bem maior que zero. Jorge começava a
demonstrar interesse na casa, alegando que ela deveria ficar na família. A decisão
inicial de partilha era de que uma das linhas divisórias pegaria um pedo da casa e,
portanto, a negociação era no sentido de compensar economicamente para cima ou
para baixo a quantidade de deslocamento de terra nos lotes a fim de preservar a
construção.
A declaração de Jorge, de que a casa deveria ficar na família, inflamou os
ânimos de Ainsley, que no fim de uma mande maio, contratou um operador de retro
escavadeira e derrubou por conta metade da casa que invadia a delimitação do terreno
que herdara do pai, sem qualquer licença prévia, acordo ou negociação com os outros
primos paternos. A derrubada dessas paredes é avaliada por Ainsley como um ato
impensado, mas que ela o se arrepende, pois, onde já se viu? ele queria que eu
pagasse aluguel daquilo que também era meu? referindo-se a Jorge.
Honrar seu lugar como herdeira legítima era requisitar uma visibilidade sobre
seu lugar na linhagem de parentesco do lado paterno e na noção de família de origem
que na visão de seu primo, Jorge ela o era integrante. Em diálogo com o trabalho de
Bourdieu entre os Cabile, o sentimento de honra é vivido diante dos outros, e dessa
forma o ato de defesa do nif (1968:170) no caso de Ainsley não foi diferente.
Derrubar a casa estabeleceu, pela destruição da possibilidade de qualquer um voltar a
morar nela, outra relação de poder entre os envolvidos na querela. Se de acordo com
Pitt-Rivers a essência da honra é à vontade (1992:20) a interferência do estado,
buscada por Jorge para resolver fraturas familiares do passado, encontrou resposta
combativa por parte de Ainsley: um sentimento e um fato social objetivo ao mesmo
108
tempo (1992:18). A partir de uma conduta de honra Ainsley buscou mostrar ao seu
primo paterno o lugar que ela ocupava na família, de igualdade perante o direito aquela
herança.
Aportados no Brasil em 1846 os parentes distantes de Ainsley, oriundos do
processo imigratório da Europa para o Estado do Rio Grande do Sul, vieram de
próximas, porém diferentes regiões do que hoje compõe a Alemanha. Entre esse grupo
étnico, conforme discute Woortmann, no artigo Árvore da Memória, tanto para os
colonos alemães, como os novos-ricos industriais, o parentesco é memória
(1994:13). Dessa forma as fraturas nas relações desse parentesco lembradas e
esquecidas durante a linhagem
65
sucessória da parentela remetem ao percurso de
negociação para permanência de uma certa família ao longo do tempo.
Os ancestrais de Ainsley, evidenciados nas relações entre os parentes mortos
nos leva a refletir como eles afetam as relações entre os vivos.
- Foi uma coisa bem delicada. A mãe se separou por uma pessoa da família
né. Um cunhado... Ela nunca negou. E naquela época as mulheres eram
julgadas né, os homens não. Mas as mulheres eram julgadas e ela foi
considerada meretriz né. Nós prestamos depoimento, eu tinha 13 para 14
anos. A gente teve que dizer com quem iria ficar né. Na verdade eu queria
ficar com meu pai, mas eu fiquei com ela porque eu sabia que ela que seria
uma pessoa para me criar. Eu tinha noção disso, porque o pai era muito
louco. [...] Foi muito, foi muito difícil, [...] Fui testemunha menina. [...] a
partilha demorou né, a mãe demorou para receber, agora a separação em si
que foi litigiosa, né, isso ai eu me lembro do, lembro do juiz dando o
veredicto. [...] Sim, sim, considerada meretriz, foi um choque né. A mãe não
pode mais entrar no clube, clube do comércio, nós éramos sócios, aqui na,
como é que é, o comercial, que eu fui fada e ela foi barrada né, na entrada a
mãe foi barrada, eu entrando para ser fada das debutantes, e ela não pode
entrar. A senhora por gentileza nos acompanhe, que o presidente precisa
conversar com a senhora, e eu entrei claro eu era criança né, guria, tinha
13 anos, e ai ela disse, entra, que já vão chamar as, e eu não podia ser vista
também para surpresa dos presentes né. [...] e tu vê ela não pode presenciar
isso ai. Porque não podia, uma mulher desquitada naquela época, estar na
sociedade, né. Também não sei se isso ai era no regimento desse clube né,
só sei que ela não foi mais. [...] Depois assim ela não deu uma ênfase maior
para isso ai sabe, ela foi nos poupando, depois. (dá ênfase com as mãos) no
decorrer do tempo é que foi comentado então as coisas assim, antigamente
eram muito escondidas né. [...] E assim, uma moça não ia sozinha em um
clube, então eu ia com as tias né, com as primas né,
- da parte da mãe?- pergunto
- da parte da mãe, casadas né, com a tia Prosperina, que não era uma tia de
sangue né, que era assim, uma costureira, uma né, aqui da Tristeza, tanto
65
Cf. Radcliffe-Brown a terminologia linhagem limita o laço genealógico oriundo da descendência de
um ancestral comum (apud Laraia,1969:53), diferente da noção de clã onde os membros o
considerados parentes, mesmo que não possam provar sua descendência. A noção de linhagem
transcende a abrangência da unidade doméstica, da família doméstica, ou seja, daquele grupo de
pessoas que num determinado tempo vivem juntas numa residência (apud Laraia, 1969:54).
109
que meu vestido de noiva foi ela que fez né, então eu ia com a Tia
Prosperina, com o Tio Gessi e com a filha, com a Nara. Esse vestido de fada
foi ela que fez, todos os vestidos das debutantes foi ela que fez, então, assim,
eu sempre saia com ela, porque uma moça nunca saia desacompanhada né.
De um casal né, não era nem de outra jovem, tu não podia sair né, de jeito
nenhum, eu era namorada do Celso, noiva, não podia andar no carro do
rapaz, mesmo noiva, era assim.
A traição de sua mãe com o cunhado, marido da irmã do seu pai, culminou no
julgamento citado por ela acima. A finalização legal dele parece ter acontecido somente
nos anos setenta, época em que a justiça autorizou que os bens que eram por partilha de
divórcio, de direito da mãe de Ainsley fossem de fato para ela. Sobre essa época,
Ainsley diz: ficou muito bem, a mãe ficou muito bem, ela era uma mulher rica. Os
bens e a situação econômica estável não evitaram, no entanto que Ainsley e o irmão,
logo após a separação, passassem por constrangimentos na entrada dos clubes que
costumavam freqüentar enquanto a mãe era casada. O status de meretriz afastou a
maioria dos familiares do lado paterno de uma aproximação mais cotidiana, Ainsley
narra apenas duas pessoas da linhagem paterna com o qual manteve boas relações
depois do ocorrido, a avó paterna e uma filha do irmão desta avó, Elisabeth, grande
interlocutora de Ainsley sobre as histórias do lado paterno.
O desejo público de reparação e de dignidade perdidos com a traição e a
relação sexual entre os concunhados era sempre indiretamente ressaltado por Ainsley. A
luz dos estudos de Robin Fox, mais do que a separação, a manutenção de relações
sexuais com o homem da irmã do seu marido, transforma a mãe de Ainsley numa
mulher meretriz. A consangüinidade que compunha o parentesco do pai com as crianças
é com isso rompido, e somente uma das consangüinidades (1986:38) envolvidas na
geração das crianças toma destaque: a da mãe. Os filhos, portanto, foram considerados
no mesmo status de filhos bastardos o que era muito grave dentro de uma moral étnica e
aristocrática constituinte da linhagem de parentesco paterna de Ainsley.
O isolamento promovido pela traição da mãe pareceu evidenciar o não fazer
gosto que desde o início rondou a aliança de Noeli e Gustavo por parte da família de
origem dele. A autonomia e a escolha pessoal características dos casais modernos,
(Velho, 2006:27) e que promoveu a escolha de Gustavo por construir um laço de
parentesco com uma família da qual os pais não conheciam ou consideravam pouco
convencional, chocou-se depois com a autonomia de Noeli, que rompe a rede de
relações construídas através do casamento em troca de uma opção no âmbito de uma
noção individualista e moderna, a paixão.
110
111
4.2.2 Carla e sua família
66
A entrada na casa de Carla foi parecida com a de Ainsley começou com uma
entrevista seguida de um tour pela sua casa, cômodos, andar de baixo, andar de cima,
pátio. À medida que caminhávamos, ela ia narrando: sobre os objetos que não abria mão
de levar e sobre aqueles, que ainda estava decidindo se dava, ou se guardava. Eram
mesas, bichos de pelúcia, fotos, armários, relógio, brinquedos da infância das crianças,
uma quantidade muito grande de objetos que cada vez que eram citados eram citados
em relação a um acontecimento, a uma pessoa, ou as duas coisas juntas.
Os objetos que Carla guardava, narravam para ela histórias ligadas família de
procriação. A aliança com o marido foi promotora de uma rede de sociabilidade
(Velho, 2006:27) que ela fazia questão de fortalecer à medida que cunhava o espaço da
casa como o local para encontros entre o grupo de parentesco e os amigos, através de
festas de aniversário, natais, batizados. O cotidiano do espaço da casa foi exibido,
também, na imensa quantidade de fotografias que Carla mostrou enquanto selecionava
aquelas que iria guardar e as outras que acabava jogando fora no processo dessa
escolha. As fotos em sua maioria mostravam uma sociabilidade da família nuclear. A
mesa do almoço e do jantar era espaço que ela fazia absolutamente questão de que
todos estivessem reunidos, e por razão dessa imagem que a mesa vai e não fica.
- O meu casamento foi aqui. O meu casamento foi aqui. Fizemos a festa
aqui, aqui era a sala de jantar tinha aquele balcão, tinha a cristaleira, mesa
com as cadeiras, sala de jantar, que também não usava, em ocasião
especialíssimas. Aqui era a copa e aqui é que eles viviam todas as refeições.
[...] Tem um banco aqui, essa mesa fica com um banco aqui, e eu tenho foto
de todos, os meus filhos eu criei ao redor dessa mesa, eu sempre digo isso e
a mesa eu vou levar comigo. Porque eu criei meus filhos aqui, a gente nas
refeições conversava, brigava eu fazia absolutamente questão de todo
mundo junto durante muito tempo. Depois, no fim, eu tive que largar né. [...]
a da vó nesse mesmo lugar ela levou, essa aqui eu comprei no rio. E ela tem
trinta anos e ela não tem um cupim, ela é maravilhosa [...] exatamente a
mesma posição que a mesa é outra, eu tenho foto dos aniversários dos
meus filhos em volta dessa mesa, de toda a vida né. Foto de aniversário de
todo mundo eu tenho uns dois três álbuns só de gente ao redor dessa mesa, a
família se criou aqui.
As fotografias que Carla guardou nesse processo de escolha eram relacionadas
a cenas da infância dos filhos. Bachelard (1989:52) tem uma citação que parece estar
associada à quantidade de eventos, histórias, lembranças ligadas ao período de infância
nessa casa - a dos seus três filhos e a do seu marido e seus irmãos - a inncia é sempre
66
Sugerimos que a leitura desse subtítulo seja acompanhada da estrutura de parentesco dispovel na
página 119.
112
maior que a realidade. Reunidas em uma caixa de plástico, as fotos que estavam soltas,
ou seja, que não haviam sido organizadas em álbuns específicos, eram fotos de diversos
momentos da vida dela e da vida de outros antepassados seus. Havia muitas fotos de sua
mãe, do seu pai, da sua infância, da juventude de sua mãe, da juventude de seu pai,
segundo ela fotos que acabaram ficando com ela em razão da morte deles e da
desocupação da casa onde moravam. Herdeira dessas fotografias, Carla jogou fora
algumas daquelas fotos que não reconhecia quem estava no retrato; jogou fora fotos que
não sabia o que fazer: como as fotos onde o marido aparece sozinho em viagens pelo
mundo. No processo de escolha ela foi achando fotos da casa da época que fora
construída, fotos dos irmãos do marido pequenos nos arredores da casa, fotos dela com
sua mãe, que ela fazia questão de guardar e fotos dos filhos em todas as idades
possíveis. Havia muitas fotos do Rio de Janeiro, onde viveram por aproximadamente
seis anos, porém nessas os filhos não apareciam com muito destaque. na casa, fotos
da década de oitenta, eram a grande maioria: filhos brincando, posando, jogando vídeo-
game, sozinhos, com os primos, na sala, no pátio, na mesa. Em álbuns pequenos, ou
soltas, essas fotografias enchiam quase duas caixas, além dos álbuns grandes onde as
crianças estavam organizadas por idade. Algumas delas tinham furos de alfinete nas
pontas o que dizia que elas haviam composto algum mural, organizadas conforme o
gosto de cada filho. À medida que ia reconhecendo as pessoas, ou ia encontrando
alguma foto da casa, virava e mostrava a mim. A partir das histórias que elas
desencadeavam foi possível construir a genealogia da família de Carla e a relação do
espaço da casa a partir da sociabilidade neles:
- Ah, isso aqui é um ano novo que a caco inventou os bolinhos da sorte, é um
porquinho ó. Tem uns que ela fez, não sei se esses ela fez, porque tem um
ano que ela fez e tem um ano que ela comprou. Mas é o Marcos com Jaque
de novo, aquela namorada, tem bastante foto dele com a Jaque. Aqui, isso
aqui meus filhos tinham um grupo de igreja não sei o que, acho que é um
aniversário. Não, mas tem enfeite de natal.
Não sei se aniversario ou natal, não sei o que é. Tem coisas de natal, mas
não é o dia de natal porque o dia de natal sempre foi exclusivamente
familiar e aqui tem os amigos delas. Esses são os amigos do CLJ. Que as
gurias faziam o CLJ e tudo mais. Sabe o que é CLJ?
- sim - respondo
- um grupo de jovens da igreja.
- casa cheia né? - comento
- sempre cheia criatura, sempre cheia. O que essa casa já viu e viveu
impressionante. Ó eu e minha cunhada que eu chamo de mana da frente do
armário ali. Ó... [...] Olha aqui vestidinho de tigre da uma risada - Ele
com os aviõezinhos, bem pequeninho já tinha os aviões ó. Surfando.
Aqui é ele saindo da água.
Aqui é ele indo para o colégio pela primeira vez de novo.
113
Aqui na praia, por acaso peguei um monte dele agora.
Olha aqui vestido, isso aqui é coisa do colégio. O Mauro fazia muito, tudo
que precisava.
Olha aqui, tudo que precisava o Mauro fazia, tem bastante de fantasia ó.
Meu deus quanta foto dele! Isso aqui devia ser dele, que ele tirou do quarto
dele e, ó, e por acaso eu peguei só ele aqui. Ó de novo ele aqui.
De novo aqui na sala. Não essa casa...
Agora to mandando de monte. De novo eu e minha cunhada mana em torres.
Essa cunhada assim a gente mora em cidades diferentes a vida inteira, com
exceção quando eu morei no rio e eles moraram lá também e, no entanto
quando a gente se encontra parece que a gente se viu ontem a coisa mais
natural do mundo.
Ah, esse eu quero mostrar para ele. O marcos mergulha também.
- ele gosta da água né - comento
- muito, eu também.
Ó aqui nesta mesa. Esta mesa!
Aqui o marcos com outra namorada na Europa. Essa já é a próxima.
Ó esta foto aqui... Meu deus o Mauro com aqueles óculos aqui, parece um
cego. Aqui na sala ó com o pai.
La em cima um churrasco num dia muito frio, Marcos com os amigos da
banda dele...
Essa tu separa que eu quero mostrar para eles, essa que eles tão com o
Mauro aqui na sala.
Isso lá em cima eles tocando, o tempo da banda. Eles botaram caixas de
ovos na parede para amortecer o barulho.
Ele e a banda dele indo para Garopaba. [...] são amigos de uma vida. Olha
aqui o marcos e a Camila na Europa...
Ao subirmos as escadas da casa em direção a uma espécie de sótão localizado
numa peça exatamente em cima da área de serviço do piso de baixo, fomos passando
pelos quartos e isso suscitava em Carla lembranças e reflexões. A qualidade dos móveis
de antigamente era reforçada por ela como característica que por si, já os colocava no
topo da lista dos objetos que iriam para a outra casa. Porém, em sua maioria, eram
veis que haviam sido comprados para a casa do Rio de Janeiro, no início do
casamento. Móveis que, atravessando o período na casa da Quintino Bocaiúva,
seguiriam para a casa de Canela. Objetos que carregavam um sentido de intimidade e
que iniciavam, à medida que eram escolhidos, a transformar a casa de Canela num
espaço vivido por todas aquelas histórias anteriores, que eles haviam participado.
Através deles a morada familiar se transformava em memória familiar, onde a última
superlotando a primeira, mobiliava-a com lembranças compósitas vindas de diversas
épocas (Bachelard, 1989:230-231).
- Não, isso, tem uma história, é uma vida que tem aqui, realmente, essas
coisas eu não me acho no direito de jogar fora sem que eles olhem, que
eu dei um prazo, vocês tem que vir separar. Eu tenho prazo para sair. É
claro que certas coisas eu não vou conseguir jogar fora, os brinquedos eu
até comprei umas caixas grandes dessas de plásticos, os playmobil, as
Barbie vou guardar, levo para minha casa, depois eu vejo. Livro de
114
história também, porque nós tínhamos o hábito de ler histórias para eles
todas as noites, sem exceção, eles adoram ler, tai um conselho para quem
tem filhos, todas as noite eu lia para eles e o Mauro, ele lia e inventava, eu
mais lia. Tem livros tão amados aqui que a gente não conseguiu dar, mas eu
dei muito, mesmo assim, esses livros vão, alguns brinquedos mais especiais
vão, mas esses troços da faculdade aqui, mais todos os polígrafos, todos os
cadernos, guardaram porque moram em casa, não dá. Ai é com eles, eles
tem que vir ai porque se eles não derem eu vou jogar fora. Ai meu deus aqui
tem uma tartaruga que a minha filha ganhou do meu pai, ah, mas ta sem
cabeça. Ganhou do meu pai quando fez um ano.
Os brinquedos, os livros e os objetos que não conseguiu jogar fora: os afetos de
Carla parecem todos ligados as histórias vividas com e pelos filhos. A condição de
morar em uma casa grande era ressaltada por ela como uma possibilidade de acumular
lembranças pelo acúmulo de objetos. Era como se ao remexer de uma vez, limpeza
que dizia fazer de tempos em tempos na casa, fosse uma forma de ela enfrentar de uma
só vez o esquecimento que a noção de acúmulo não a deixava encarar.
- Tinham muitas festas porque a medicina tem a tal da festa dos cem dias né,
adoravam a festa dos cem dias. E quando eram menores adoravam a coisa
do teatro, teatros mil, na praia, aqui, fantasia de todo tipo, no colégio. Mas
as festas da medicina foram muito elaboradas. Lembrança de viagem: o
berimbau que todo mundo trás, o chapéu do México, o bicho da Disney,
aquilo ali foi uma amiga. [...] Muito aniversário, muito aniversário. Eram
famosos. Sempre fiz janta para todo mundo, todo mundo festejava aqui, o
natal sempre foi aqui, agora festa de aniversário deles. Reunião dançante
daquele tempo de pequeno, assim, eventual, poucas, o Marcos fez mais.
Tinha uma época que era moda né, não sei se ainda é não tenho filho dessa
idade. É aqui feio, esse lugar ta abandonado, porque aqui ta fechado
sempre. Ta feio, aqui em cima ta horroroso porque cai uma coisa lá de
cima. É mais cai uma coisa horrorosa aqui ta vendo? Eu acho que é
formiga. Cor de barro né. É cor de barro, ou cupim que pegou barro não sei
te dizer. Então isso ai aos montes, o que vai cair desse telhado eu não sei te
dizer. Aqui tudo fica cheio se tu olhar em cima das prateleiras tu vai ver
quilos desse troco. Esse quarto aqui ficou como um guardado, eu considero
como se fosse um sótão, ta tudo aqui, e aqui a gente entra pouco. Quando tu
faz uma arrumação, quando a gente fazia uma arrumação em qualquer
armário... Tchuf, jogava para as coisas que tu não queria jogar fora, ao
invés de jogar fora na hora, fomos amontoando ao longo dos anos e vou te
dizer principalmente quem mora em casa, quem tem apartamento não tem
nada disso. Mas quem mora em casa tem essa possibilidade. E daí tu
começa, começa, começa. Eu tenho posto fora ao longo dos anos uma
quantidade inacreditável de coisas e mesmo assim parece que não botei
nada fora. Livros eu te disse, três ou quatro carros cheios, jogos, dei uma
caixa para essa minha amiga que tem uma creche, um centro social lá por
não sei, Cachoeirinha, Alvorada, livros infantis, também, dei para ela. A que
trabalha com crianças eu dei as fantasias, meu deus, eu já dei muito, muito.
Eu botei sacolas de papel fora e tu olha para aqui parece que não botei
nada.
115
Para Bachelard (1989) os qualitativos são a medida das nossas adesões as
coisas e o interior e o exterior não recebem os mesmos qualitativos (1989:219).
Quando Carla ingressa no interior daquilo que ela chama de tão, ela nos permite
pensar nos objetos acumulados ali ao longo dos anos, transferidos, da circulação e do
uso, para gavetas, armários e por fim ao sótão do fim do corredor. Para o autor de A
poética do Espaço, cada um desses espaços evoca um tipo de intimidade específica, um
qualitativo intransferível. O relato de Carla da trajetória dos objetos até o repouso no
sótão nos evoca a pensarmos por oposição na idéia de porão no qual Olinda nos
descreveu no primeiro capítulo. No exercício da topoanálise a verticalidade que liga o
poo ao sótão nos ajuda a determinar os devaneios ligados a cada uma dessas imagens,
se no poo agitam-se seres mais lentos, menos saltitantes e mais misteriosos
(1989:37), no tão a experiência é diurna, a escada para o sótão tem sempre a direção
da subida, enquanto a do poo, sempre nos leva ao subterrâneo. Se o porão
cósmico (Poe, apud Bachelard, 1989)
67
é signo dos poderes obscuros em repouso nas
profundezas, do poder desse elemento ainda adormecido (1989:41); o caminho ao
sótão traz o signo de ascensão (1989:43) para a mais tranqüila solidão.
Na narrativa de Carla, as relações afetivas que figuram a morada são
construídas na sociabilidade dos aniversários, festas, reuniões; essas são as lembranças
mais presentes quando ela se referia aos móveis ou aos objetos, e é nelas que repousa a
sua representação de família. O pertencimento familiar de Carla, aos antepassados do
marido, está ligado à adesão e a reinvenção desses espaços de sociabilidade construtores
da morada naquela casa. O tempo é aqui fundamental, pois, por seu depósito é que os
pertencimentos adquirirem o caráter de sempre foi assim em espaços que, todavia,
receberam modificações físicas e estruturais. As reformas, mudanças e transformações
no espaço da casa ao longo do tempo são fundamentais para a duração daquilo que faz
dela uma imagem homogênea passível de transmissão. A duração da morada, pela via
do pertencimento familiar pode ser pensada a partir de Simmel (2006:43), que diz que
a longevidade de um atributo herdado é o laço que estabelece uma verdadeira união
entre as dimensões mais inferiores e sua expansão e onde os espíritos que afetaram o
indivíduo penetram nele em tradições conscientes e inconscientes.
- Tudo que era da para mim, que a gente comprou da vó, foi mudando,
mudando aos poucos, quando viu tava completamente diferente. Era uma
casa clássica. Aqui era a sala de estar, de visita, que antigamente tinha, que
67
G. Bachelard se refere ao conto Gato Preto de Poe, publicado originalmente em 1837 no volume
Histórias Extraordinárias.
116
tinha cortinas escuras. Quando eu conheci ela não abria isso aqui, era a
sala de visitas, aquela coisa clássica, minha sogra era muito clássica, então,
aqui tudo arrumado com leques de plumas, uma coisa louca. Então eu
pintei, eu pintei ano passado depois que todo mundo foi embora. Quer saber
o que? Me revoltei, pintei de laranja, completamente diferente, mas a
estrutura é a mesma, a mesma lareira. Mas era aquela casa, quando eu
conheci, a minha casa era apartamento, mas a minha mãe gostava de tudo
muito aberto, eu dizia mãe aquela gente não abre a casa [...] Aqui é o
quarto onde morava a tia, antes aqui quando os guris, essa parte era deles,
eles tinham aqui a escrivaninha e aqui era o quarto deles, foi quarto das
gurias, depois de uma delas, foi de tudo aqui. No momento quando a
Camila vem, fica aqui. As camas das gurias, que era a cama delas, é tão boa
essa cama, que essa eu vou levar, porque essa cama foi comprada no mesmo
dia que foi comprada aquela mesa de baixo, no Rio, de cerejeira,
maravilhosa, tem trinta anos, não tem um cupim. [...] é outra madeira, é
uma madeira que não entra cupim, eu disse para as gurias, não posso jogar,
jogar, agora eu em Canela, como acho que vou receber mais gente porque
quando vão, vão ficar lá, num dos quartos vou botar as duas camas, elas são
duas camas de solteiro, mas como a Camila teve ai a gente junta quando ela
vem.
O tema das distintas mudanças da casa no tempo também este presente na
narrativa da sogra de Carla, Martha Volkmer, a primeira moradora da casa.
- Como é que foi a planta da casa? pergunto
- A empresa que construiu foi Ernesto Woebcke e o plano todo foi feito pelo
meu cunhado Dreyer porque eu não estava em Porto Alegre, nós não, meu
marido era... Eu não estava em porto alegre com a construção da casa.
- Onde a senhora estava?- pergunto
- Olha eu casei e o meu marido era inspetor bancário. Inspetor do banco do
comércio que também não existe mais nada disso né. Mas o inspetor tinha
que visitar as agências bancárias dos três estados do sul: Rio Grande do
Sul, Santa Catarina e Paraná. Ficamos os quatro anos, os primeiros quatro
anos de casado visitando as agências: Curitiba, Florianópolis. Uma
inspeção bancaria leva meses né, então nós passamos fora. Quando
voltamos para Porto Alegre em 45 a casa estava sendo construída, mas a
planta e tudo isso foi organizado pelo meu cunhado Dreyer, Ernesto Dreyer.
Nós fomos para com a casa pronta né, naturalmente a casa, como é que
eu vou dizer, não tinha garagem, era diferente né. Com o tempo foi se
aumentando né, meu cunhado uma hora colocou uma garagem, nós também
aumentamos. Nós, ambas as irmãs fomos para lá com dois filhos cada.
Depois tivemos mais filhos então foi preciso aumentar a casa, sempre se
aumentou.
- Ela foi se aumentando com o tempo então?- pergunto
- Sim, se aumentou. Nós aumentamos dos lados, porque o terreno tinha 22
metros de frente, com 40 de fundo né.
- é bem fundo ali né - comento
- fundo sim, mas quando nós fomos para nos fundos não tinha residência
nenhuma ainda, o pessoal... Era campo né. O pessoal atravessava para ir
para o IPA né, para ir para cima, e na frente também. A Rua Quintino
bocaiúva existia, mas ali na Dona Laura até tava interrompida porque tinha
uma pedreira também né.
- Mais ali embaixo... - comento
- Ali embaixo. Eu morei lá, nós fomos para em 46, 46, 47 não sei bem.
Meu marido faleceu em 74, faleceu na casa e eu ainda fiquei mais oito
anos, eu acho que então. Quando é que eu sai de lá? Em 70, eu acho que em
117
64, em oitenta e pouco a Carla foi morar né, ela veio do RJ, tinha feito
mestrado, meu filho né, então eu sai de lá. Depois eu voltei para lá, agora,
em 2000, fui morar dois anos com a Carla, antes de venderem a casa.
- Onde é que a senhora morou depois de sair lá da casa?- pergunto
- Ah eu morei no apartamento da minha nora, na lima e silva. Passei algum
tempo e depois o meu filho, meu terceiro filho foi transferido para Porto
Alegre, ele é juiz federal e eu fui morar com ele. Na Maryland, e a Carla
morava na Quintino Bocaiúva . Nem sei quanto a Carla morou, mas uns
vinte anos né?
- Uns vinte anos. - respondo
- E a Carla também fez reformas na casa, puxou para um lado, puxou para
outro, fez uma porção de reformas lá. [...] Eu tinha fotografias. A Carla não
mostrou fotografias?[...] No mais a fachada ficou sempre a mesma né. Com
exceção daquela árvore grande que não sei se ainda está lá. Pois aquela
árvore nós plantamos, também não sei em que ano, mas meu marido gostava
muito de árvore, era um flamboyant, uma árvore maravilhosa, muito bonita.
- Ta lá ainda, maravilhosa. - comento
- Ficava cheia de flores, bom eu pensava a primeira coisa que vão fazer é
tirar a árvore. Não tiraram ainda?
- Não vão tirar - respondo
- Não? Será que não vão tirar?
- Tem uma lei da prefeitura... - concluo
- Sim eu sei. Mas será que as raízes não vão... pois é, foi ele que plantou...
humm e depois não sei se foi influência daquela árvore porque ela ficava
linda no verão né, porque diversas outras residências que também
plantaram flamboyant ali na zona.
A partir do itinerário urbano e da trajetória social o estudo das representações
simbólicas através das quais os habitantes nesta cidade constroem seu tempo social
(Eckert, 2001:1) Martha demarca os acontecimentos da sua vida os relacionando a casa,
e as reformas que demarcam o tempo: o nascimento dos filhos, a compra do carro, os
oito anos após a morte do marido, a chegada de Carla a casa, o retorno a casa. São
sessenta anos de reformas que possibilitam a duração de uma morada para além da
construção destruída.
De ascendência alemã Martha Volkmer vem de uma grande falia da cidade
de Cruz Alta. Seu marido era descendente de estancieiros locais com influência política
na cidade. Assim como a família Mentz deu nome a duas ruas da cidade de Porto
Alegre, um cunhado da ade Zezinho, marido de Martha, também dá seu nome a uma
rua do município de Cruz Alta. O avô materno de Carla é ligado à fundação da Cia.
Varig, e o paterno, ligado ao setor do comércio; a linhagem materna da família de
origem do marido tornou-se parte das camadas médias intelectualizadas e eruditas da
cidade de Porto Alegre.
Diferente do marido, Carla, no entanto, concluiu a faculdade só depois da
morte dele. Segundo Gilberto Velho, dentro de seu campo de possibilidades, cursar uma
118
faculdade só era algo possível de ser realizado após a criação dos filhos - liberada de seu
papel nutriente no interior da família de procriação (Velho, 1983 apud Rocha,
1985:130). O início do curso, acoplado com a morte do esposo, acaba por se configurar,
segundo um dos seus relatos, em mais uma das viradas da sua vida, como veremos
adiante.
Diferente de Ainlsey, no entanto, o valor da família para Carla está mais ligado
com a possibilidade de duração da morada como espaço de sociabilidade da família. Ao
ponto que para Ainsley a morada dura à medida que ela evoca as relações do parentesco
paterno.
4.3 Apenas aquilo que tem razões para recomeçar as narrativas
biográficas
Conforme o ponto de vista dos nativos, no contexto na categoria família
pode-se dizer que os dados coletados integram uma experiência próxima (Geertz,
1997:87). À medida que o pesquisador tem suas experiências próximas em relação a
representações de família, tornou-se um desafio pensar onde o conceito era acionado
pelas interlocutoras da pesquisa. A que conjunto de sentimentos e motivações ele
integra e o que as representações de família dizem sobre e no universo que os sujeitos
vivem. A mudança de residência, e a venda deste patrimônio familiar adquirem quando
se sabe que a casa além de desocupada será demolida, a excepcionalidade (Pollak,
1990:10) de uma demarcação temporal. Observando a narração dessa experiência vivida
pelas mulheres entrevistadas passamos olhar as lembranças e esquecimentos que
integram a construção da memória relativa a casa, e com isso pensar a construção de sua
identidade a partir dela. Essa identidade, aliada ao conceito de identidade narrativa de
Paul Ricoeur (1991) é pensada aqui a partir de uma noção de projeto (Velho, 1994),
onde nesse jogo da memória (Rocha & Eckert, 2005) possamos observar o campo de
possibilidades disponível a esses sujeitos e a partir dele chegarmos aos limites e
mobilidades das categorias que os movem no mundo. São essas narradoras, portanto,
que constroem entre, rupturas e descontinuidades
68
, a representação de família que as
68
A noção de descontinuidade é usada aqui a partir da obra de Gaston Bachelard (A dialética da duração,
1988). Para pensar a dialética da duração na construção do sujeito, dialogamos com Gilbert Durand (As
estruturas antropológicas do imaginário, 2002) e a noção de trajeto antropogico que compreende o
sujeito como alguém que se constrói entre as tensões subjetivas e objetivas na narração de si mesmo.
Também podemos pensar aqui em diálogo com Paul Ricoeur (O si-mesmo como um outro, 1991), na
noção de Caráter como instância de manutenção, de permanência de si no tempo.
119
120
parece mais adequada para integrar a si, sua auto-representação de posição social, e sua
reconstrução de passado e projeção para o futuro.
Orientados então pelas construções de trajetória social e narrativa biográfica,
obtidas nas entrevistas formais e informais que se desenrolaram nas diferentes
instâncias da experiência de desocupação da casa e também após ela, que pensamos, nas
escolhas ligadas a uma noção de pessoa e a uma noção de indivíduo. Na dinâmica
dessas duas noções é que percebemos como as narradoras vão assumindo e suprimindo
diferentes papéis sociais: de mãe, de avó, de esposa, de profissional, no decorrer da
mudança e após ela. A heterogeneidade que delineia o trabalho em e com sociedades
complexas é discutida aqui a partir da forma narrativa que as interlocutoras constroem
em torno do conceito de família.
Em artigo elucidativo sobre as diferenças entre relato de vida, trajetória e
história de vida, Cornelia Eckert (1997) ressalta a tradição intelectualista francesa como
aquela que deixou a narrativa biogfica menos presa a uma abordagem longitudinal e
a tomou como visões de mundo e representações sociais coladas ao vivido: as
motivações inconscientes e subjetivas (1998:23). Seguindo essa tradição que
entenderemos as mudanças de sorte dos projetos das nossas interlocutoras.
4. 3.1 Projeto de vida e as escolhas na construção de si Carla
Diferente de Ainsley, Carla, integra uma classe média psicanalisada e
intelectualizada (Lins de Barros, 1987:23). Para ela o processo de mudança de
residência constitui também na oportunidade de fazer projeções e escolhas para o
futuro, reavaliar as muitas esquinas que sua vida tivera até então. Experimentar esse
processo para ela foi uma oportunidade de resgatar o passado e levá-lo para o futuro,
onde a matéria da casa não estaria mais presente.
O projeto de vida (Velho, 1994) inicial de Carla era um projeto familiar no qual
a casa da Quintino Bocaiúva acabou fazendo parte. Construída pela família do marido
em 1945, a parte da casa que pertencia por direito de herança aos outros três irmãos
paternos do marido de Carla tinha sido comprada pelo casal para dar lugar ao projeto de
criação dos três filhos pequenos, em Porto Alegre. A morte do marido e posteriormente,
orientados por projetos individuais, o fenômeno da saída dos filhos de casa vão aos
poucos desenhando o destino final dela: a venda.
- Não, elas são muito parecidas, apenas reformas internas um pouco
diferentes, tem aquela parte aberta ali na casa do lado é fechada, enfim
121
algumas coisas são diferentes. Aqui do lado tem entrada para o carro, lá, na
casa de lá, é uma peça, é uma sala. Aqui ó, seria aberto, tem uma sala,
então originalmente exatamente iguais depois mudaram.
Então elas ganharam essa casa do pai, vieram morar em 46, meu marido
nasceu em janeiro de 46, vieram para em fevereiro de 46, então ele veio
para com um mês, se criou aqui. E é delas a vida inteira, tá? E depois o
meu sogro faleceu e a casa ficou pros filhos. [...] Ela [Martha] tem 92, ela
teve aqui a vida inteira praticamente de casada, de casada, né, claro. Ela
morava sempre em Porto Alegre. Ela casou, não sei te dizer ao certo, mas
ela tem um filho de 42, é o irmão mais velho do meu marido, então ela deve
ter casado em 40, 41. E o marido dela era inspetor do banco, eles viajavam
muito, tanto que meu cunhado nasceu em Florianópolis, mas daí eles vieram
para Porto Alegre se estabelece..., são de Porto Alegre, mas daí ficaram
para valer aqui desde 46. Daí criaram todos os filhos, daí o meu filho, meu
sogro faleceu em 74, a casa ficou para os filhos, e nós, sou casada com um
deles, né, nós compramos dos outros, então a casa ficou nossa, mas sempre
na família né, que ficou para nós porque nós compramos a parte dos
irmãos. Foi muito tranqüilo, porque nós, meu marido fez mestrado e
doutorado no rio e a gente então morava lá. Porque gente casou foi para
e quando nós voltamos para porto alegre em 82, de todos os irmãos deles só
nós não tínhamos casa própria, porque a gente tava no rio, aquelas coisas...
Então não tinha casa, ai nós começamos a procurar uma coisa para
comprar, não tinha muito dinheiro e o que a gente podia comprar era um
apartamento de dois quatros com o nosso dinheiro, e tinha dois filhos, três
filhos na época, e daí o pessoal começou a vem porque vocês não
ficam com a casa da mãe? Até nós estávamos hospedados aqui para
procurar casa né, então, porque que não ficam com a casa da mãe? não
sei o que, e como são quatro, então um quarto era nosso, um quarto a gente
tinha em dinheiro e a outra metade a gente fez um financiamento e eles
foram muito legais, foi coisa de irmão eles fizeram uma avaliação e
normalmente essas avaliações são baixas , e eles venderam exatamente
pelo preço da avaliação. Foi um negócio de irmãos foram muito legais sem
nenhum problema e gostaram porque a casa ficou na família porque todos
gostavam dessa casa e foram criados aqui. Então a casa continua na
família. Eles não moram em Porto Alegre né, mas essa casa ficou sendo
sempre, vamos dizer assim, a sede da família. Todos quando vem a Porto
Alegre ficam aqui, os natais sempre foram aqui, aliás desde que a casa está
à venda nós já fizemos três natais de despedida da uma risada - porque a
gente sempre diz... É o último e no fim nunca é o último, mas agora
realmente foi o último, sempre, nunca, o natal sempre foi aqui, todo mundo
que pode vem, minha sogra sempre esteve durante todos esses anos. Ela
sempre foi a sede, os aniversários eram aqui, enfim, ela é a referencia da
família e agora que ela foi vendida e eu comecei a pensar onde eu ia morar
e meus filhos começaram: a mãe, nós não podemos imaginar tu em Porto
Alegre num outro lugar. Daí veio até, entre outras coisas, que desencadeou
essa coisa de eu ir embora, ir embora de cidade porque isso aqui é uma
referência para família sim, é o esteio da família essa casa e quando foi
para vender todo mundo ficou muito triste e o meu filho principalmente ele
ficou numa tristeza, ninguém queria vender [...] Mas é muito difícil, mas é o
seguinte ó, aqui do lado, como eu já falei, os filhos da tia ai do lado, irmã da
minha sogra são sete e moram, e ninguém mora aqui nesta casa e nem vai
morar, todos tem sua vida e um deles até mora no exterior e eles, porque a
casa é geminada é muito difícil, é muito legal ser casa geminada, mas por
outro lado é muito complicado, não para vender uma só, quer dizer, dá,
se tu for vender para uma clínica, uma coisa assim, agora essas casas
122
aqui hoje em dia, ninguém mais quer para morar é difícil. Pode ver ou vira
edifício ou vira um comércio, e daí nós ficamos meio que vinculados um ao
outro. daí eles ficaram perguntando se eu não queria vender, porque
para eles é só despesa, eles estão mantendo a casa estão pagando impostos,
não sei o que, ou eles alugavam para alguma coisa ou. E ai eles começaram
a pressionar não exatamente, mas sabe, e eu não tenho nem argumentos
porque eu estou sozinha numa casa enorme, né. Eu gosto daqui tudo mais,
mas eu tenho um filho que mora em Porto Alegre, minhas filhas não
moram aqui, o meu filho vem eventualmente, tipo assim, ele faz um
churrasco com os amigos, aqui tem piscina, ele vem para piscina no verão,
mas muito pouco para compensar eu dizer não, sentar pé, não vendo a casa.
Até porque eu não tenho dinheiro para manter assim como deveria e é uma
zona valorizada. E ai a gente de comum acordo, as primas aqui do lado e eu
- toca o telefone - elas vieram aqui e nós fizemos várias reuniões e nós
chegamos à conclusão que o melhor era vender.
De acordo com o fenomenologista Edmund Husserl (apud Wagner, 1979:16) o
mundo da vida contempla todas as experiências diretas dos seres humanos dele e nele.
Ele é toda a esfera das experiências cotidianas, onde os indivíduos concebem e
realizam seus planos. Estudando os fatores determinantes dos indivíduos na vida,
Schutz (apud Wagner, 1979) afirma que estes sempre estão, em qualquer momento, em
uma situação biográfica determinada, e cada um chega até essa situação segundo seus
objetivos; e avaliando de acordo com eles. Avaliação que por sua vez está enraizada na
história singular (Schutz apud Wagner 1979) de cada vida.
Quando Carla narra a aquisição da sua primeira casa, ela a narra dentro de um
projeto familiar de camadas médias: a aquisição da casa própria. Um projeto familiar,
porém não de uma família nuclear, individualizada, e sim uma família com
características de extensa onde ela pela aliança se integra e integra os valores que a
constituem. Os cunhados viram irmãos, a cunhada vira mana, a sogra vira avó, relações
de afinidade que apontam para uma construção de si que articula uma noção de pessoa.
Segundo Mauss (2003), o papel de todas as pessoas do clã é figurar cada um por sua
parte, a totalidade prefigurada do clã (2003:374), e Carla parece fazer isso quando
assume a herança de dar seguimento a família, assumindo o ônus e o nus de ficar
com a casa.
Destacando da narrativa de Carla a idéia dela de que: todo mundo seguiu
seus projetos individuais e que estavam adiantados na vida; vemos que o projeto
individual de Carla, todavia, parece ter iniciado com a morte do marido e a morte do
projeto familiar que tinham em conjunto. Ao ver ser sozinha, Carla muda e reforma a
casa, mas concorda com o clã, que a venda é a melhor alternativa. As peculiaridades
da casa geminada, que acabam se tornando um problema para a venda do patrimônio,
123
apontam para o fim de um projeto de vivenda coletiva entre famílias compartilhantes de
um mesmo projeto. A história singular da vida de Carla é uma história coletiva do
grupo familiar onde ela assume o papel de quem cuida, de quem mantém os afetos, da
agitadora que se considera ser. Para escolher a sua nova casa Carla escuta os filhos, que
reclamam pela casa da mãe, uma casa tranqüila e afável onde eles possam se sentir
acolhidos e em casa. Uma mesma imagem de casa que quiseram manter os irmãos de
Mauro quando optaram pela venda da casa da Quintino a ele e a Carla, a fim de mantê-
la na família. E é essa imagem de morada da que é transportada para Canela.
[...] Fizemos vários encontros, penosos encontros, a gente se muito bem.
Ah! eu tenho uma história pregressa onde eu entrei nessa história, porque
eu tenho uma, de criança eu tenho, toda a vida veraneei em Torres e a
gente morava num lugar que hoje em dia está cheiíssimo lá na Praia
Grande, mas antigamente quando eu era criança era praticamente só a
minha casa. E ai construíram uma casa na frente da minha casa que eram,
era essa família aqui do lado, sim essa tia aqui, eu não conhecia essa gente
eles fizeram uma casa na frente e... Eu tenho um irmão só, mas bem mais
moço e em Torres era um deserto, a minha casa e as irmãs aqui. São
simplesmente sete filhos, sendo que seis são mulheres, então de repente eu
ganhei seis amigas, foi maravilhoso, na praia nós nos conhecemos na praia
e agente ficou amicíssimas estudávamos no mesmo colégio aqui em Porto
Alegre, mas não nos conhecíamos. No Bom Conselho, tá e daí nós ficamos
super amigas eu tinha uns 15 anos nessa época, daí eu comecei, ficamos
amigas em Torres e quando terminou o verão a gente continuou amiga, eu
comecei a vir muito aqui, por que elas eram seis, eu era uma, eu morava
num apartamento elas moravam numa casa. Eu vinha muito a gente ia no
cinema ficamos super amigas mesmo e aqui nessa aqui morava o meu
marido entende? Porque eles eram, aqui era 4 homens, lá eram 7 filhos
sendo que 6 mulheres e eles eram super amigos por que se criaram juntos
eram primos né, e porque eu era amiga delas e a gente ficou amiga deles, e
começou a sair junto, sair junto ai que eu acabei namorando e casando e o
mais louco é que eu conheci essas pessoas, fiquei super amiga e quem diria,
que eu é que ia ficar aqui para apagar a luz né. A vida é muito louca, eu
penso nisso Meu Deus, como a vida é louca que faz isso com a gente.
A experiência da mudança, acionada pela decisão da venda da casa, possibilita
que Carla reflita e construa o mundo da sua vida. A narrativa sobre como ela, da Torres
deserta acaba com seis amigas que inclusive estudavam no seu colégio, é exemplo da
perplexidade dela ao se deparar com o lugar onde o seu próprio projeto de vida a levou.
De vizinha de praia, a amiga; a cunhada; a dona da casa da mãe; e a responsável pela
dissolução e continuidade do patrimônio familiar: trajetória de uma responsabilidade
que ela assume como sua, já que os herdeiros da casa ao lado, não parecem compartilhar
desse mesmo drama.
124
A guardiã do clã ao ir para Canela não o faz sem agregar aos seus cuidados
mais próximos a sogra e anciã da família, que havia vivido com ela antes. Sobre essa
decisão, Martha nos conta:
- Pois é... Eu não pretendia mais voltar para a casa, mas a Carla me levou
para lá a força, porque quando meu filho se transferiu pra Brasília eu quis
ir para uma instituição né. Porque eu tenho os quatro filhos todos queriam
me receber em sua casa né, mas é difícil né, cada um morando em um lugar,
um em Florianópolis, outro em Brasília, outro em Belém Velho, e eu resolvi
ir para uma instituição e me escrevi mesmo, tentei morar numa instituição
lá, mas a Carla não deixou, me levou, vai ficar comigo, vamos lá, ta, ta
então eu fui a Quintino Bocaiúva, mas depois também a Quintino Bocaiúva
se acabou lá, e a Carla veio morar aqui. Ela contou também da vinda dela?
- Contou - respondo
- Ela quando vendeu a casa não queria apartamento de jeito nenhum
porque inclusive as empresas interessadas queriam dar área construída,
ela não quis. Queria casa. E nesse meio tempo a filha dela veio trabalhar
aqui em Canela e nesse meio tempo ela disse olha achei uma casa para ti. E
é onde ela está hoje né. E então ela me trouxe para cá. E eu aqui estou
muito bem. To muito bem, as irmãs são muito boas.
- E é bem pertinho aqui a casa dela né? - digo
- É bem pertinho, ela vem aqui muito seguido. De momento ela ta muito
envolvida com a neta né. Ela é uma avó 100%, mas ela vem muito seguido.
- E como é que é a Sophia. - pergunto
- A Sophia é muito engraçadinha, ih, muito engraçadinha, ih, muito
bonitinha. Agora ta engatinhando né. Agora ta caminhando por tudo, eu vou
seguido geralmente eu passo um dia por semana lá com ela. Porque a
Claudia dica, assumiu o compromisso e tem que trabalhar né, então a
Carla que cuida da netinha, mas ela gosta muito da casa dela, se muito
bem.
Filha, mãe e avó, Carla assume personas distintas no objetivo da manutenção
do clã. No entanto, o projeto individual iniciado com a morte do marido: o ingresso
na faculdade de Turismo; e cuja formatura aconteceu no mesmo ano da venda da casa,
entra na avaliação dos motivos que a levam a Canela. Esse projeto lhe ajuda a se mudar,
ênfase à dimensão mais consciente da ação social, implica em uma avaliação, um
plano uma noção de tempo com etapas se encadeando (Velho, 1997:69).
- Vou para casa. Vou para casa. Isso que eu tava falando eu questiono muito
a minha maneira de ser, os meus pensamentos, acho que todo mundo é
assim né? Eu pensei meu deus até onde eu não estou sendo teimosa de me
encanzinar de ir para apartamento, mas eu fico tão infeliz num apartamento,
eu acho tão horrível e ai eu não sei, pode ser que eu seja louca, mas eu não
gosto de apartamento entendeu? Eu morei na casa a vida inteira entendeu,
por exemplo, um domingo eu não sou de sair assim todos os domingos, mas
um domingo em casa é beleza, mas um domingo em apartamento eu vou
morrer. Eu tenho que sair, em casa é muito diferente, eu estou acostumada
eu vou para o pátio, aqui tem piscina no verão vou para piscina, ou limpo a
piscina ou sento aqui na frente no meu degrauzinho entende? Mas num
apartamento ai! Ai eu cheguei ao ponto de se eu o posso morar numa
casa em Porto Alegre eu mudo foi isso que eu pensei e foi isso que me levou
125
eu ir para Canela. Claro que tem coisas que o turismo bom, e ainda não
to com trabalho lá, mas tenho muitos contatos espero conseguir e também
tenho uma filha que mora lá, minha filha é medica, mora em Canela, mora
em Gramado e trabalha em Canela é lógico, e também, essa minha sogra
aqui, esta minha sogra ri - a minha sogra tem uma casa em Gramado onde
a gente passou todas as férias de julho eu ia para lá com toda essa
criançada, não os filhos como os sobrinhos, então a gente tem muita
ligação vou para lá a vida inteira não to indo para um lugar desconhecido a
única coisa que é muito diferente que eu sou nascida em Porto Alegre,
criada, casada a vida inteira aqui e morar é uma coisa diferente, eu não
sei.
O projeto familiar e o projeto individual se intercalam nessa narrativa, de
forma que nele aparece o receio de deixar a capital que sempre viveu em troca de uma
cidade mais ao interior como a cidade de Canela. A perda do cosmopolitismo da
metrópole se choca com o desejo de viver em uma casa cujo espaço fosse similar ao da
casa da Quintino Bocaiúva, ou seja, onde pudesse preservar um estilo de vida de
moradia que não se adequaria a um apartamento. A divisão da herança com os filhos
que limitaria o valor a ser gasto numa moradia; aliado ao desejo da manutenção do
estilo de vida de viver numa casa; aliado ao projeto de trabalhar na área de turismo; e
aos vínculos afetivos com a serra, todas essas prerrogativas se mesclam na avaliação
relatada por Carla e compõem num repertório limitado de preocupações e problemas
(Velho, 1997:69) o seu campo de possibilidades.
4. 3.2 Projeto de vida e as escolhas na construção de si - Ainsley
Para cada um existe somente uma noção de honra, a sua.
Aqueles que a concebem de outra maneira simplesmente não a têm.
(A doença da honra, Julian Pitt-Rivers, 1992:18)
Por outro lado, o projeto de vida de Ainsley, parece seguir outra escala de
valores dentro das representações coletivas de camadas médias. Avaliando o
agenciamento dos postulados do individualismo moderno nos concentraremos na
narrativa de Ainsley e nas descontinuidades do seu projeto, a fim de pensarmos a
relevância do conceito de família na dinâmica social e econômica dos conceitos de
honra, memória e gênero, a partir do tema da herança e do patrimônio.
Segundo Velho (1997) o significado de uma família para um grupo social
(1997:68-69) está vinculado a outros significados que se constituem mais ou menos
sistemáticos e não necessariamente ajustados ou harmoniosos. Orientada por uma
noção mais individualista de si, Ainsley, contraditoriamente, também ressalta que os
126
filhos que saem de casa: solteiros para morarem sozinhos, o fazem porque não se dão
bem com a mãe, reforçando com isso o reconhecimento de um status positivo no
casamento (Rocha, 1985:122) e de uma compreensão de família que integra a aliança na
sua construção. Diferente de Carla, para Ainsley a mudança de residência, afeta o
projeto de legitimação e resgate de uma posição simbólica na estrutura de parentesco
ligada ao lado paterno, que ela entende como rompida desde a separação dos pais, em
meados dos anos sessenta.
Um projeto que se expressa pela narração da trajetória social a partir de uma
forte noção de indivíduo construída por Ainsley para dar conta desse resgate de uma
posição que, conforme, veremos adiante, deixa de ser individualista quando se delineia
como um resgate da honra feminina da mãe, perdida na separação.
Após a separação, quando tinha doze anos, Ainsley foi morar com a mãe, e
morou com a ela até se casar, na metade da década de 70. Após morar em diversos
lugares da cidade volta a morar com o pai, trazendo, o marido e os filhos, consigo e ali
fica por quinze anos. Depois de um desentendimento o pai sai de casa, e ela fica
morando nela com sua família de procriação (Rocha, 1985). Anos depois o pai retorna
a casa, para ser cuidado por ela e os filhos até sua morte. Com a morte do pai a
consangüinidade de Ainsley com ele, que se mostrou a orientadora da noção de
parentesco para a linhagem paterna, foi questionada pela ação judicial endossada pelo
primo paterno. Ele reivindicava o direito a casa e a propriedade e alegava que Ainsley
teria que sair daquilo que era da família. No embate Ainsley destruiu a casa e
estabeleceu seu lugar na linhagem de parentesco, permanecendo no terreno e
mostrando, com a demolição, que também tinha o sangue paterno. Ao se comparar
fisicamente com a linhagem paterna Ainsley sempre o faz ressaltando características
étnicas que aproximam os dois eu sou toda parecida com meu pai, o cabelo ó, ruivo
como o dele.
Nos termos de Pierre Bourdieu a vio androcêntrica impõe-se como neutra e
não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la (1999:18),
ciente da parcialidade da visão, Ainsley investe em legitimar seu lugar de mulher
herdeira para além do estigma da meretriz herdado da mãe pela condição de gênero.
Lidando com a reputação herdada pela via da mãe, o esfoo de Ainsley em
hon-la e ao mesmo tempo reivindicar seus laços de parentesco na linhagem paterna
corroboram para pensarmos na complexidade da noção de família e como a partir dela
podemos refletir sobre o que move os diferentes pertencimentos dos integrantes em
127
relação às categorias de etnia, classe social e nero. A noção de honra explicitada aqui
a partir da interlocução com Ainsley permanece um forte eixo de entendimento das
relações sociais familiares e suas complexidades em relação ao tempo.
- Ela tinha medo na verdade né, imagina uma caçula de dez filhos e de
repente com uma gente só falando alemão, que ela tinha que sempre estar se
espiando o comportamento, imagina, que tinham horário para tudo né, o tal
de sestear né, tinha que, almoçava, ela tinha que deitar, e grávida de mim
né, tinha vontade de comer as coisas e daí tinha que comer muito
pouquinho. Diz ela que até fome passou, mas a mãe é um pouquinho
exagerada né, mas ai ela aprendeu a falar alemão, porque ela ouvia, pegava
as palavras soltas e pimba, perguntava para o pai, as palavras isoladas
assim, ai ela montava a frase e, e ai que ela se deu conta que ela não era
bem recebida aqui. Ai ela começou a se desgostar né. Mas essa construção
levou nove meses, foi o meu tempo.
- O tempo de tu... - interfiro
- De eu nascer, ai ela ficou 8 dias no hospital, na minha vida tudo é oito ,
nasci no dia 18 do oito, ficou oito dias no hospital. [...] Eles ficaram 22 anos
né, o Josiel e a... Eles tinham um relacionamento, mas o Josiel se manteve
casado né.
- Eles continuaram se relacionando? - pergunto
- Sim, 22 anos - dá uma grande risada
- Era uma coisa que toda a família sabia? retomo a perguntar
- Todos sabiam, mas todos fingiam que não sabiam, ahã, ai ele tava lá na
frente da casa dela, ele ia embora ele vinha... Eu tava acostumada, eu
achava engraçado aquilo, porque a gente, eu nunca vi a mãe, por exemplo,
de mão com o Josiel, abraçada com Josiel, a gente sabia daquele
sentimento, do motivo da separação. E parava ai. E ele ia, assim
dificilmente a gente encontrava, assim a figura dele, a gente chegava da
escola e às vezes ele tava la, era assim, com a desculpa de que ele teria ido,
alcançar alguma coisa né, ele veio trazer alguma coisa sabe, e essas vindas
dele, para mim eram normais porque ele tava sempre na minha casa, claro
que ele tava envolvido, tanto que eu prejudiquei né, eu tenho essa culpa
da meretriz porque eu disse a verdade né. No meu testemunho, foi
verdadeiro. Me perguntaram e eu não neguei. E eu disse, eu vou, mas eu
digo a verdade, peguei eles de surpresa né, e isso gerou um desconforto,
gerou um desconforto grande entre nós, uma coisa assim que ficou, que nós
vamos resolver só em outra encarnação.
- Tu acha que nunca resolveram? - pergunto
- Não, não ficou resolvido, não ficou, porque eu sempre fui do pai né. Eu era
do pai, mas eu sabia que a pessoa do meu pai, o ser humano, a essência do
meu pai eu não podia ficar com ele, porque eu ia ser uma louca, drogada,
bêbada como ele sabe? Então isso eu tinha consciência, que eu amava meu
pai, mas que o melhor era ficar com a mãe. E fiquei, mas foi penoso.
- Porque tinha essa opção judicialmente ou não?- questiono
- Tinha, claro que tinha, mas ai eu ia romper com a família dela, [...] a
família da minha mãe era que eu amava, aquele referencial de família foi o
lado da minha mãe, porque essa alemoada é muito louca, que gente meu
deus. A Oma não, a Oma era toda amor, mas a família não, a mãe
desmanchou a família, a mãe assim ó, estraçalhou a família. Eu tenho, tenho
certeza, terminou tudo entendeu? Terminou, terminou, não teve mais nada.
E ela tem consciência disso... Claro que tem, tem e não se sente culpada,
não se sente, não se sente nada. Eu hoje, assim a gente muda né, porque teve
128
uma época que eu achava até corajosa a atitude dela né, mas depois
começou a ficar complicado para mim né.
- Por quê?
- É hoje, assim, atualmente, hoje, eu vejo que ela fez uma grande bobagem
né.
- Tu acha?
- Acho, acho, porque ela nunca deixou de amar o pai. Eu acho que foi um
desaforo que ela fez, que ela fez para ela e para todos , porque ela
disse que o grande amor da vida dela é o pai. E hoje quando eu vou e visito
ela na clínica, não é o Josiel que ela diz, que ta morto também, não é o
Josiel que ela diz quem vem buscá-la para passear, que agora ela tem
Alzheimer né, é sempre o pai. O pai acabou de sair, o Gustavo acabou de
sair daqui. Tava tão lindo... Ai ela descreve como ele tava vestido né, e
roupas que realmente ele tinha, porque o pai era um homem muito elegante
para se vestir, então usava aqueles coletes né, aqueles lenços de seda né.
Que trazia das viagens, ah era um homem encantador, lindo, lindo, aqueles
olhos verdes tudo e ela disse né, ele até me beijou, e eu digo ai que lindo! E
porque que não lembra do Josiel né, acho que realmente ela amou, mas em
um momento difícil ela se atrapalhou, se atrapalhou assim, muito, e de certo
tava precisando de carinho, de atenção, sei lá eu, e ai tava ali o lobo mau
tava ali né. Porque ele era 13 anos mais velho que a minha mãe, né.
- Ele era mais velho assim da Inge também?
- É, ele era mais velho que a tia Inge também, a mãe tem 77 a Ingeborg tem
81, cinco anos mais velha, ela é mais velha que a mãe né. Sim, porque os
filhos da Inge foram no casamento da minha mãe, o Jorge e a Cátia. Tem as
fotos tudo. Então ele foi cachorro né, eu sei que ele foi, mas...
- E vocês conversavam vocês duas ou vocês nunca chegaram a conversar
sobre isso?
- Conversávamos, conversávamos mas, é nós temos coisas, muitas coisas
mal resolvidas né. Porque antes eu via as coisas como filha né, aquela
coisa e depois não, depois quando eu construí uma família, eu vi de forma
diferente. Só que eu não tenho que julgar por mim né, essa é a história dela
né, a minha história eu que faço e a dela ela fez né, só que a história dela
complicou a de todo mundo. Tu vê o filho dela não teve uma família por
causa disso. E naquela época os filhos de uma desquitada, os filhos de uma
divorciada eram mal vistos. Eu passei a sentar na sala de aula, nas
carteiras, que eram as mesas, eu passei a sentar sozinha, eu sentava com a
Nídia, e a mãe da Nídia foi e apontou com o dedo, eu não quero mais, eu
ouvi, então eu sentava sozinha. Então assim ó eu estudava que nem uma
louca, eu era a primeira da aula para me sobressair . Claro, aquela aluna
aplicada maravilhosa, claro, tirava o ótimo com três estrelas, tudo assim,
mas é complicado... Hoje não né, hoje em dia ninguém, mas casa, tudo fica,
tudo, né? Então se fosse uma coisa de agora, talvez eu fosse, assim,
assimilar de forma diferente, mas na época foi bem difícil, bem difícil.
Depois voltaram ainda né, voltaram. E ele sempre disse que ela foi o grande
amor da vida dele. Sempre.
Conforme Raymond Firth, o parentesco é o sistema de relações interpessoais
que está associado à ligação biológica - por um lado, pelo casamento e procriação; e por
outro pela união social legalizada que envolve relações sexuais entre dois indivíduos
(1936:212). Essa premissa nos ajuda no entendimento da noção de família que traz
Ainsley, principalmente para discutirmos a questão da honra nesse ponto onde ela está
129
em intersecção com o parentesco e as questões de patrimônio e herança: nas relações
sexuais entre dois indivíduos.
Segundo Velho, o casamento dentro do código de aliança estabelece relações
entre grupos através da união de seus membros, quando uma traição ocorre dentro da
família, de certa forma, ela rompe duas vezes com os laços formados pela rede de
aproximação proporcionada pelo casamento. Mesmo que segundo Ainsley a sua mãe
nunca tivesse feito o gosto da família, suas escolhas promoveram conseqüências que
romperam os laços de parentesco construídos pela consangüinidade. E eram esses os
laços que Ainsley buscava recuperar através da permanência junto a casa.
Ao refletir que mudou de papel social durante sua trajetória de vida, ela o faz
dizendo que isso também a fez enxergar as coisas de outro jeito. Se anteriormente, no
papel social de filha, ela admirava a mãe pela noção do livre-arbítrio e do projeto
individualista da mulher que foi atrás daquilo que queria; no papel social de mãe ela tem
outro posicionamento. A família proporcionada pelo parentesco materno e pela rede de
ajuda mútua criada em razão da separação, o parece ser suficiente. No papel social de
mãe, Ainsley requer a sua legitimação perante o tribunal do sangue os primos paternos
- da sua condição de filha do pai e assim, o parentesco paterno toma importância como
parte da construção de si.
O valor falia segundo os fundamentos morais do gênero feminino
(dedicação, distinção, elegância, etc.), ressalta as opções da Ainsley em relação a qual
papel aderir. Oposto da mãe libertina, ela era a mulher de: costumes recatados; e
comprometida ao amor romântico de um homem somente. Ela seguia noções
individualistas - na construção de um projeto de família nuclear, por exemplo - ao passo
que se vinculava as regras, e as condições femininas de um século que nem vivera. Nas
entrevistas não raro Ainsley me perguntava se eu estava casada ou namorando, muito
curiosa em saber como eu sobrevivia e me sustentava. Ah, mas tu vai achar dizia ela
sempre que ouvia a minha resposta negativa a sua pergunta sobre meu estado civil de
solteira.
Quando eu fumava no pátio da casa, no intervalo do carregamento da mudança
Ainsley me dizia ah para com isso, menina, isso é feio, o Celso, detesta mulher que
fume, nem deixa ele te ver se referindo ao filho mais velho, do qual, inúmeras vezes
ela tentou insinuar uma aproximação amorosa. Intervenções que por nossas diferentes
visões de mundo evidenciavam como ela via o feminino ideal, e que lembravam,
130
todavia, o velho costume de arranjar casamento do qual a sua avó paterna tinha sido
alvo, conforme ela já contara em outras conversas.
Essas diferentes escalas de feminino, em diálogo com os papéis sociais que
cada uma de nós representava na ocasião apontam para a mutabilidade na adesão a eles,
a atemporalidade dessa adesão e o forte caráter de contraste que ele tinha. O último nos
auxilia a perceber, portanto, a que família ela construía lembranças a ver pelas
narrativas e pela socialidade com a pesquisadora - e como a noção de família podia
mudar à medida que pela perspectiva dos jogos da memória, a guardiã
69
dela também
estava em mutação.
69
Sobre a guardiã da memória familiar ver M. Lins de Barros. Memória e Família. In: Estudos
Históricos 3, Memória. Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989.
131
CAPÍTULO 5
A CASA COMO LÓCUS PRIVILEGIADO PARA PENSAR A MOBILIDADE
SOCIAL
O legado herdado - segundo os livros sobre partilha, direito sucessório e
herança do código civil brasileiro - na morte do cônjuge, é dividido entre a mulher
(casada ou amancebada mais de cinco anos com o morto) e os filhos. Esse
patrimônio, no entanto, pode ainda ser dividido entre herdeiros de mesma linha
sucessória, como irmãos ou primos, como o que ocorreu no caso de Ainsley. Essa
dinâmica da partilha coloca em pauta um drama social àqueles que mudando de casa
visam à divisão do patrimônio: o risco de descenso social, da perda de prestígio e status
social. E a construção da memória da família, muitas vezes, age para a manutenção
simbólica deles.
Segundo Pierre Bourdieu (2007), o capital simbólico transmitido no valor
família esta relacionado ao estilo de vida e a visão de mundo que se quer passar aos
filhos, a uma educação, nos moldes do sentimento moderno da família conforme
aponta Philippe Ariès (1986: 277). Um legado ligado, também, à manutenção de certos
objetos de decoração ou móveis, que por estar há anos na família, são repassados dentro
da estrutura de parentesco de forma a reforçar certas lembranças de um tempo passado,
dando seguimento à vida vivida pelos seus antepassados. Esse esforço dialético de
lembrança e esquecimento é ressaltado por Ellen F. Woortmann (1994:3), no caso das
famílias de descendentes de imigrantes alemães, na manutenção de certos objetos
instituidores de um passado heróico ou heroicizante, onde a memória faz a
descendência e a descendência faz a memória. No caso de Ainsley, o lote de terra à
beira do Guba, como já foi mencionado, outrora imenso e largo, foi repartido entre ela
e seus filhos, que passaram a dividir com ela seu uso, construindo suas casas
enfileiradas a casa materna. Observando o processo de ocupação atual do antigo terreno,
vemos um processo evidente e claro de descenso social vivido pela família dela ao
longo do tempo. Uma forma de ocupação que se aproxima de uma condição de moradia
muito semelhante a das classes trabalhadoras, onde em um mesmo terreno, há a casa dos
132
progenitores, em geral os provedores - à frente e aos fundos, em casas ainda menores,
a moradia dos filhos casados caracterizando uma unidade doméstica.
Mesmo que, no caso de Ainsley, a forma de moradia (da nova casa) possua
essa aproximação com a forma de moradia de classes operárias e/ou trabalhadoras, a
casa própria (Fonseca, 1997:7) permanece como distinção e reúne o seu destino ao de
Carla. Isso por que na venda desses casarões herdados o dinheiro é revertido em outra
moradia, condição fundamental nas representações de status de uma visão de mundo de
camadas média. Onde um bom investimento do dinheiro era um investimento em uma
moradia que fosse espaçosa o suficiente para reunir a família tranquilamente, no caso de
Carla e no caso de Ainsley o bom investimento era a permanência no bairro, mesmo que
em uma casa menor. Uma avaliação que fizeram avaliando também esse legado face às
gerações futuras, seus filhos e netos.
Ressaltado por Claudia Fonseca (1997:10) as mulheres chefes-de-família são
comuns desde o início do século XX no segmento das classes populares. Ela sugere, no
entanto, que o recente aumento do número de famílias chefiadas por mulheres está
ligado entre as camadas médias, ao movimento feminista e à nova autonomia da
mulher (Fonseca, 1997:26). Não gostaríamos de promover uma comparação superficial
entre as duas condições de vida, a de mulheres de camadas médias e aquelas
pertencentes às camadas populares. Entretanto, conforme a realidade aberta pela autora,
transformações na estrutura dos papéis sociais em famílias de camadas médias são
apontadas e aparecem no universo aqui pesquisado.
Ainsley e Carla, não se tornaram chefes-de-família em razão de movimentos
feministas, e nem em razão da opção por um estilo de vida autônomo. Pelo contrário
construíram seus papéis sexuais e de gênero dentro da clássica moral burguesa - dentro
do casamento, em conformidade com os projetos de suas famílias de origem
70
, na qual
foram geradas. Os dramas do sustento da casa, do ver-se sozinha no mundo depois do
fim de casamentos com mais de vinte anos de duração, é ressaltado por Carla, como
uma importante mudança de status social e que por sua vez ela relaciona com a casa e a
sua venda:
- Ele era muito hábil com as mãos, muito, muito, muito. Ele era um super
pesquisador, mas tinha uma habilidade manual incrível, tanto é que eu entre
outras tantas coisas que eu senti falta dele, claro que é essa é muito menor,
mas é a do faz tudo, ele fazia tudo: fio, cano, seja o que for, não tinha o que
70
Sobre a formação de projetos, ligados a família de origem e ou de procriação em mulheres separadas,
em Porto Alegre, ver a dissertação de mestrado de Ana Luiza C. da Rocha, A dialética do estranhamento,
1985.
133
ele não resolvesse, ai quando ele morreu me vi mal, né, porque tu tem que
achar o homem que é uma entidade, o homem do cano, o homem do fio e tu
te quebra com o homem. [...] Mas só, a casa do lado são sete filhos e o
casal já morreu, eles moraram ai até o fim, faleceram, no ano passado
faleceu, não, minto - acho que vão fazer dois anos em novembro - que
faleceu a senhora que era irmã da minha sogra, a casa vazia, porque os
filhos todos estão adiantados na vida, tem a sua casa e aqui o meu marido
faleceu e os meus filhos casaram e eu fiquei eu, então, não faz sentido
entende? A vida voltas e não faz sentido a gente ficar com ela,
infelizmente, se eu ganhasse na mega sena, daí eu compraria as duas,
faria uma pousada, como eu estudo turismo eu pensei: bah faço uma
pousada aqui, faço um negócio legal, mas é irreal, não dá, eu tenho, eu não
morro de fome, eu, eu tenho uma pensão, mas nada que eu possa manter
uma casa dessas, então a gente está deixando, ela, ela precisa de pintura, tá,
o telhado tem que dar uma olhada, ela tem cupim, ela tem não sei o que, e
eu fui deixando, fui deixando e com muita dor a gente vendeu, mas... Não
tem como.
A vulnerabilidade de chefiar uma família, nesses casos, aparece mais pela
moralidade imposta pela condição de viuvez ou separação perante a sociedade e menos
pela tarefa de criação dos filhos, esse último apontado por Cláudia Fonseca (1997)
como uma condição freqüente na classe popular e relacionada à condão de gênero
nestes segmentos sociais.
Ou seja, no caso das nossas interlocutoras uma vulnerabilidade
fundamentalmente associada à manutenção de um estilo de vida originado no
casamento, desde a saída da casa dos pais, onde a sua nova condição social, as confronta
com o pagamento de contas, o conserto da casa, sem a ajuda do homem ou a presença
masculina para assegurar seu sustento e suas decisões no âmbito do espaço público.
5.1 O estilo de vida e visão de mundo como forma de pensar os ritmos
temporais da morada no universo da cidade de Porto Alegre
A partir do mapa abaixo, retirado do site da Prefeitura de Porto Alegre,
podemos ter uma noção espacial da localização dos bairros que estamos trabalhando até
agora em relação ao limite da cidade. Nos subtítulos seguintes trabalharemos a relação
do espaço da casa com o espaço do bairro onde cada uma delas está inserida.
Aprofundando a questão da transformação urbana a partir do estilo de vida, que já
iniciamos no capítulo dois, porém agora partindo do contexto das famílias de Carla e
Ainsley.
134
5.1.1 A casa de Ainsley e o bairro Tristeza
A casa onde Ainsley morou e mora - a que foi destruída e a nova - ficam no
limite do Bairro Tristeza e do Bairro Vila Conceição
71
, esse um dos seis bairros de
Porto Alegre, onde de acordo com os dados do Observatório de Porto Alegre
72
67% a
78% dos responsáveis pelo domicílio têm renda maior do que 10 salários mínimos. Esse
dado é relevante no sentido de especificar que o meio onde a moradia da família de
Ainsley está localizada - a beira da orla do Guaíba e perto do Clube Jangadeiros - é uma
71
Segundo a coletânea a História dos Bairros, produzida pela Secretaria Municipal de Porto Alegre, esse
bairro era uma única chácara de propriedade de José da Silva Guimarães. Segundo essa mesma coletânea,
a volta composta pela Vila Assunção, Pedra Redonda, Camaquã, Tristeza e Vila Conceição eram
chamados somente de Tristeza. Secretaria Municipal de Porto Alegre. História dos Bairros, Observatório
da cidade de Porto Alegre, Porto Alegre, Pag. 103. Dispovel em :
[http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/observatorio/usu_doc/historia_dos_bairros_de_porto_ale
gre.pdf] . Acesso em 22 de dezembro de 2009.
72
Esse banco de dados reúne dados da cidade de Porto Alegre, oriundos de pesquisas realizadas pelas
secretarias do município, pela Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul e tem parceria
com os dados produzidos pela UFRGS e PUCRS.
135
parcela do bairro Tristeza que se diferencia do restante por suas casas amplas, em
terrenos amplos, oriundas na maioria de antigas chácaras de lazer, existentes na região
no início do século XX.
As chácaras de lazer, na região do bairro Tristeza, são ocupações do século
XX. Em regime de sucessão, as terras junto à orla foram exploradas de forma muito
diversa. Em 1830 funcionava na região uma charqueada que produzia carnes, couros e
produtos agcolas
73
para o centro da cidade. Com o fim da charqueada até 1896, as
terras passaram por intermédio da venda e depois pela via da herança, por diferentes
donos, até que com a emergente urbanização da região, no início do século XX, temos a
construção das propriedades que na atualidade estão sendo destruídas, para dar lugar a
outro sistema de moradia e ocupação urbana.
Morar à beira do rio, na Zona Sul da cidade era um valor importante para Celso
e para Ainsley. Ele fazia referência a um estilo de vida de habitar a cidade que pode ser
encontrado depois nas frases e textos dos encartes que divulgavam empreendimentos
imobiliários na região: nos cadernos de imóveis dos jornais
74
e sites de construtoras na
internet
75
. Em um desses sites o texto de promoção de venda, para um edifício chamado
Varanda: Zona Sul de aproximadamente 11 pavimentos, construído na Rua Mario
Totta, muito perto da casa de Ainley, diz assim:
A região mais inspiradora de Porto Alegre
No ar, o clima de uma cidade pequena. Ao redor, todas as facilidades de uma
cidade grande. Assim é o bairro Tristeza. Um refúgio ideal para quem não
abre mão da tranqüilidade e nem da infra-estrutura. Onde se vive junto a
hipermercados, lojas, excelentes restaurantes, clubes, parques, bancos,
escolas e tudo mais que você quer, sem a correria urbana, junto ao rio
Guaíba e a uma natureza sem igual. Um bairro com um estilo único. Um
estilo como o Varanda: quem conhece não troca por nada.
Diferente do pertencimento que ressaltava sua mãe, Ainsley, os motivos que
ligam Celso ao bairro dialogam com o texto do anúncio: a tranqüilidade que havia
nele, sua proximidade com a beira do rio, era um lugar onde ele podia ficar com os
amigos no fim de tarde, puxando pranchas de surf pela água ou brincando com os
73
Id. P.101.
74
Faço referência aqui ao suplemento ZH Imóveis, integrante no jornal Zero Hora, que por sua vez é
mantido pelo grupo RBS de comunicação, e um dos jornais de maior leitura no segmento de camadas
médias do Estado do Rio Grande do Sul. Acompanhei regularmente a publicação desse encarte, durante a
construção dessa dissertação. Interessada nas propagandas: de página inteira, ilustradas com mapas e
plantas baixas, me detive em acompanhar o encarte que circulava no dia de domingo, no entanto o
suplemento também é publicado às quartas-feiras, mas nesse dia a profusão de propagandas não é tão
intensa.
75
Goldsztein, Cyrela Brazil Realty. Varanda Zona Sul. Disponível em :
<http://www.goldsztein.com.br/empreendimento.php?codigo=68>. Acesso em 04 de outubro de 2008.
136
cachorros junto à orla. Era uma dezena de atributos que ressaltava um desejo de viver
76
perto da água, relacionados à prática do surf, a ligação com o rio, com os longos por
do sol que Celso narrava enxergar da janela do seu quarto. A segurança do terreno era
garantida por dois grandes cachorros da raça Rottweiller, um macho e uma fêmea, e de
uma cadela Dobermann. Leonardo e Gabriel, que também era irmãos, faziam parte
dessa irmandade do surf que também tinha na casa de Celso o lugar ideal para viver na
cidade de Porto Alegre.
A opção de Ainsley em permanecer ligada ao bairro também foi ponderada
frente a esses valores ressaltados pelo filho. Permanecer vivendo ali com sua família
também era uma opção de preservação de um estilo de vida transgeracional de
habitação no bairro, iniciado no século XX por sua família. Quando pergunto a Ainsley
se na época da mudança da casa não a procuraram para comprar o terreno ela me
responde:
- Pra vender? Uhhh aqui quando a gente limpou ali tudo para ter acesso
para carro tudo. O Osmar disse que estavam toda a hora né: a ta a venda?
Ta a venda? Pelo rio né, pela paisagem. O rio é que chama atenção. Não
sei, para mim é normal né, isso aqui faz parte da minha vida. Isso aqui para
mim é a minha vida, por isso que eu não poderia sair daqui. Imagina não ia
ser feliz, até poderia né, mas não ia ser feliz. Imagina eu dentro de um
apartamento. Me batia toda, ia viver roxa. Eu tentei morar em apartamento
uma época eu vivia roxa, me batia.
- Tu precisas de espaço? - pergunto
- espaço, eu sou uma pessoa que precisa de espaço, eu preciso plantar eu
preciso, ó, ouvir esse som, eu preciso. Certamente, se fosse necessário né...
Tanto que não vendi né. Que todo mundo achou que eu ia vender isso aqui
né. Acredito que até os irmãos. [...] Acredito que ninguém imaginou que eu
ia permanecer aqui né.
- E o que fez tu permanecer? - pergunto
- Aahhhh. Eu nunca pensei em não permanecer. As raízes né. O amor pelo
lugar. Tu meu pai nasceu aqui morreu aqui né. Embora assim ele não
fosse uma pessoa muito de falar né, o pai era uma pessoa assim que o
falava, não demonstrava muito né. Mas assim no finalzinho, já ali no quarto
dele, quando ele tava bem mal aquela coisarada toda né. Ai ele...
As raízes de que fala Ainsley, e que assume outras formas no discurso de seu
filho Celso, também é ressaltada por Elizabeth Mentz, a Betinha, vizinha da casa da
Tristeza e filha de um irmão da Oma Elvira, mãe do pai de Ainsley. Ela ressalta o
desejo de permanecer no lugar que nasceu, nos arredores da casa da Tristeza.
76
Cf. Alan Corbin, Le Territoire du Vide, 1988, g. 305 le rituel de la villégiature balnéaire é uma
uma réplica do modelo aristocrático de ocupação da praia no espaço das estões, sempre ligada à prática
de esportes, lazer e distinção. Usado pela burguesia para aproximar-se de um estilo de vida aristocrático o
gosto pela contempação da beira dágua e da praia do qual narram Ainsley e Celso, é analisado pelo
autor.
137
- A senhora gosta daqui? -pergunto
- De Porto Alegre? Pô eu nasci aqui né. Sou suspeita. Tu também decerto?
- Também.
- Eu gosto, eu estive em muitos lugares, mas sempre fico feliz quando
volto para né. Me sinto bem porque a gente nasceu aqui. Eu não nasci
nessa rua, nasci na Dr. Mario Totta. Lá tinha mais uma casa que o vôvo
comprou, [...] e ai ele posou o mais velho e o mais novo naquela casa. Era
uma casa enorme, só tem uma parte, a parte onde eu nasci não existe mais é
de um banco. Adesbam. Tu conhece aquilo decerto, tem churrasqueira lá.
Então eu nasci naquela casa. Ficou um paredão de uma parte e do outro
lado mora uma família. Tu já foste lá?
- Sim, já passei ali, então aquela parte que ficou foi...
- A que ficou era do tio mais velho né. E a outra parte... Mas depois era tudo
dele porque meu pai veio morar na casa que era do vovô. Porque ele fez
assim sabe, distribui entre os filhos. E dois filhos ele construiu casa no
centro. La na Gonçalo de Carvalho que é aquela rua que fica em frente ao
hospital Moinhos de Vento na Ramiro Barcelos né.
Mãe de três filhos, Ainsley dividiu o terreno herdado entre eles. Rafael e Celso
já haviam construído suas casas na extensão que lhes cabia, Débora a única filha mulher
de Ainsley era também a única que não morava ou tinha intenção de morar naquela
região. Talvez tentando fugir do destino de morar em um lugar onde era presença viva
de um keim ruim, vindo da sua e transmitido por sua mãe, Débora ironicamente
preferia morar na casa do Menino Deus, única propriedade que ainda restava em nome
de sua avó materna.
Caminhando pela região na companhia de Celso, chegamos até um lugar
distante alguns minutos da casa dele, a pé, na Vila Conceição. Tratava-se de um
recanto feito por uma pequena curva do rio.
Semanas depois, em retorno ao bairro pude fotografar um grupo grande de
jovens que aos domingos se reuniam para estar à beira dele. Chamada a Praia do
Cachimbo, a área era o único espaço do anel da Vila Conceição onde se tinha acesso às
águas. O restante do anel era coberto de propriedades, que como a de Ainsley, limitava
o acesso a água por estarem justamente em contato exclusivo com ele.
No cachimbo o beiral do mirante, construído com concreto, tinha a mesma
tipologia do beiral que existia na frente da casa de Ainsley e Celso: a vegetação
predominante era a mesma, a distância da água ao beiral, também. Tanto em um
como no outro lugar, podia se descer até as ilhas formadas pela terra acumulada, e fitar
o rio mais de perto. Porém não era possível caminhar pela beira da praia de um ponto
a outro, pois no percurso, trapiches extensos aterrados para dentro das águas, ou muros
altos, bloqueavam a circulação.
138
O entusiasmo diante das águas do rio parece não ser uma novidade entre os
jovens moradores ou freqüentadores da região. Ressaltando esse sentimento, Roberto
Pellin
77
destaca um poema, publicado por um jovem que escreve para guardar, Dr.
Dario de Bittencourt, em 1918, no jornal Conquista cujo nome é Da minha janela
dos fundos:
Vejo o Guaíba, majestoso e largo,
Que um céu reflete de turquesa ideal;
De sobrados e casas e letargo
77
Narrador, morador, entusiasta do bairro Tristeza, autor de dois volumes de um livro que conta as
histórias passadas no bairro.
139
E, arbóreos, muitos fundos de quintal
78
O bairro Tristeza conforme a representação do mapa de Porto Alegre
disponível nas primeiras páginas desse capítulo fica dentro de uma região definida pelo
Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental da cidade, como Cidade Jardim.
A notar pela cor, o texto e o ethos evocado pela figura masculina que estampa a
propaganda de apartamentos na região, o lugar da Cidade Jardim é predominantemente
residencial. No artigo 29 do capítulo II, do PDDUA, lê-se:
caracteriza-se pela baixa densidade, pelo uso residencial
predominantemente unifamiliar e elementos naturais integrados às
edificações, com especial interesse na orla do Guaíba
No mapa da página 134 notamos que a orla do Guaíba circunda a cidade,
abrangendo pelo menos seis das nove macro-zonas do PDDUA. Partindo dessa
característica, podemos pensar num estilo de vida que envolve morar no bairro e que o
diferencia dos demais, no sentido da relação com a orla. Vimos que um aspecto desse
estilo de vida, no caso da linhagem paterna de Ainsley, é construído a partir da
manutenção de um status familiar que por sua vez, está ligado ao bairro. Um bairro, que
é importante esclarecermos, é muito mais extenso que a região habitada junto à orla.
Diferente do contexto da cidade de Buenos Aires, que veremos no capítulo seis, onde os
bairros se formam, em sua maioria, a partir de identidades políticas e de vizinhança, os
bairros em Porto Alegre são integrados por conjuntos mais heterogêneos de ocupação e
de adesão. Neste caso do bairro Tristeza, o pertencimento que os moradores da região
da orla têm para com o mesmo é muito distinto do que os moradores da região do morro
do osso
79
o têm com o mesmo; que por sua vez também é diferente do pertencimento
que os moradores da região mais próxima da av. Cavalhada têm com o bairro. Ligado,
em geral, a aspectos geográficos as ocupações barriais em Porto Alegre seguem uma
dinâmica geopolítica de pertencimento e que por sua vez, dialoga com uma dimensão
sócio-histórica de formação dos mesmos, a exemplo do reforço nas macro-zonas
proposto pelo PDDUA.
78
PELLIN, Roberto. Revelando a Tristeza II Volume. Porto Alegre, 1996. p. 106.
79
Essa região do bairro Tristeza é limítrofe com o Parque Natural do Morro do Osso, e com uma zona
ocupada por grupos Kaingang localizada dentro do mesmo. Conforme dados do Banco de Imagens e
Efeitos Visuais, era uma área que até meados do século vinte era usada para extração de granito, atividade
que formou uma comunidade de trabalhadores ligados a essa atividade, alguns ainda habitantes da região,
conforme vem investigando a estudante Stéphanie Bexiga, no nível da Iniciação Cientifica, sob a
orientação da Dra. Ana Luiza Carvalho da Rocha.
140
5.1.2 A casa de Carla e o bairro Rio Branco
Carla era uma entusiasta da cidade de Porto Alegre. Havia morado em poucos
lugares desde que nasceu, porém segundo ela, tinha aprendido com o pai a se deslocar
na cidade e a gostar dela. Passava as férias em Torres, desde muito pequena e tinha um
irmão que era bem mais novo do que ela - e que conforme já nos contou no capítulo
quatro, foi um fato que contribui para seu investimento em intensa amizade com os
primos do futuro marido. Aderindo então a sua família de procriação para construir sua
narrativa de si é da casa da Quintino que ela tem histórias.
Falando sobre a mudança no ritmo da rua ela me disse:
- ela era muito tranqüila, quando eu conheci o Mauro era uma delícia e aqui
a gente enxergava todo o Guaíba, tá, tinha mais de 180 graus de visão lá de
cima, depois eu te mostro em cima e não tinha esse edifício, nada disso
tinha. Tem um edifício ali que depois eu vou te mostrar de cima, que a
minha filha a Camila exatamente, sentava no quarto dela e via o por do sol
e no dia que aquele edifício chegou na, na altura de tapar o por do sol ela
chorou desesperadamente, porque ela perdeu o por do sol que ela
enxergava da janela do quarto. Então mudou muito, mudou muito, depois se
tu falar com a minha sogra ela vai dizer que a Quintino com a Dona Laura
era uma pedreira, não era inteira, isso já não é eu, é a minha sogra.
Sogra de Carla, Martha, realmente narrava uma rua que nada se parece com
aquela que se vê hoje:
- Não havia condução até em cima, mais tarde é que surgiu uma
caminhonete, que subia a dona Laura, entrava na Coronel Bordini e subia,
ia lá em cima e o fim da linha era quase no IPA. Essa caminhonete, era uma
caminhonete pequena, nos levava ao centro. Porque pelo contrario os
meninos quando começaram, os meus filhos depois que saíram do IPA
foram estudar no colégio Anchieta... Longe. Então eles tinham que ir até a
linha do bonde, então eles tinham que tomar a linha do bonde para ir até a
praça da santa casa ali e dali ir a para o Anchieta. [...] No nosso
primeiro inverno ali em cima foi muito sentido, a casa era nova né, a casa
recém construída assim. Então o inverno era frio. Mas a gente tinha uma
vista muito bonita sobre Porto Alegre. Naquele tempo se via a chaminé da
energia, que hoje é o... Como é que se chama aquilo,
- O gasômetro? pergunto
141
- É, o gasômetro, mas naquele tempo se chamava a usina elétrica
funcionava ainda né, então a chaminé de manha espalhava fumaça e a gente
via aquilo. Via-se um por do sol maravilhoso lá de cima, hoje não se vê mais
nada porque esta tudo construído né, mas naquele tempo se via um pôr-do-
sol muito bonito. Até um dos meus filhos que era muito romântico, tirou
muitas fotografias bonitas da janela da nossa casa sobre o Guaíba né. Muito
bonito. Agora hoje ta tudo diferente não se mais nada, não tem mais
chaminé, não tem mais coisa nenhuma né.
- Mudou bastante o bairro né? questiono
- Sim. A, pois é, mas custou muito a crescer. As casas em frente a nossa, na
esquina foi construída antes, depois ficou um terreno baldio e hoje é um
prédio ali de três, quatro andares. Foi mais tarde. Cresceu aos poucos sabe.
Segundo o trabalho de Elena Salvatori (1996:195) sobre o estilo de vida dos
moradores do Bairro Bela Vista em Porto Alegre, podemos ler uma minuciosa descrição
do gosto e das preferências dos habitantes desse bairro. A partir desse trabalho nos
inspiramos a pensar naquilo que leva as construtoras de imóveis a investir em
determinados projetos arquitetônicos, acreditando que eles estão de acordo com a
representação de habitação do seu respectivo público alvo. Investindo principalmente
na construção dos itinerários
80
de ascensão social, que narram seus interlocutores até a
chegada ao ideal do Bairro Bela Vista, Salvatori desenha a especificidade da camada
social que esta lidando. Traz também a descontinuidade temporal no bairro pesquisado e
naqueles que seriam seus vizinhos, ressaltando a presença de casas de madeiras muito
simples e velhas, que convivem com prédios novos, altos. Essa diferente temporalidade
aparece, também, no relato de um dos seus interlocutores quando ele se refere ao Bairro
Montserrat como um bairro de gente muito pobre, pretos, basicamente (Salvatori,
1996:194). Vizinho ao Rio Branco, no bairro Montserrat até hoje se pode ver, como no
Petrópolis e no Bela Vista, presença de casas de madeira - de grade baixa e pátio verde
ao redor - casas que diferentes da casa de Carla possuem terrenos pequenos, estreitos e
80
Que passa por Bairros como o Moinhos de Vento e o Petrópolis, ambos bairros de forte concentração
de renda. (Salvatori, 1996:219)
142
como bem colocou Juliano, com quem dialogamos no capítulo dois,o dão um
prédio. Essas casas são como Halbwachs chamou: indícios de outros tempos; de
outros tempos de moradia e de sociabilidade. Que pela re-modelação de um bairro em
torno de um certo gosto, de uma camada social específica, acabam se transformando,
na fala delas, em um adjetivo de tempo na narração do bairro.
O espaço do bairro Rio Branco, conforme o Relatório da Intendência
Municipal (Intendente José Montaury, 1918 apud Sérgio da Costa Franco, 1988) no ano
de 1918, ou seja, quase trinta anos antes da construção da casa de Carla, foi narrado
assim:
Grande foram os melhoramentos executados no Bairro Rio Branco
(antiga Colônia Africana) e que vieram dar às ruas que as receberam
um aspecto agradável com a retificação dos seus alinhamentos,
modificação de seus perfis, facilitando-lhes o trânsito, colocação de
cordões, construção de calhas e de passeios. Ainda restam algumas
ruas que precisam de idênticos trabalhos e que foram iniciados. Muito
concorreram para a rápida transformação desse bairro a boa vontade
dos seus proprietários e os esforços do condutor encarregado dos
respectivos trabalhos.
81
Apesar de em 1912 ele ser chamado de Bairro Rio Branco, a antiga colônia
africana, no entanto, ainda aparecia nos anos 50 em matérias da Revista do Globo
82
como uma região onde as condições econômicas, sanitárias e habitacionais eram
precárias. Uma zona de contrastes invisíveis.
A região da zona sul, apesar das ocupações muito distintas, como pedreiras,
charqueadas, e área de despejos dos cabungos (na região da Vila Assunção), no que
tange ao comércio imobiliário notamos a aderência a um estilo de vida do início do
culo: uma Tristeza de maricás em flor
83
, de longos dias de verão e de alamedas
de plátanos. Mesmo os croquis e os projetos dos prédios construídos investem nas
áreas verdes, jardins e sacadas abertas como modo de, na forma das edificações,
reforçarem uma duração bucólica e veranil na região. Independente da diferente
identidade de cada nicho do extenso bairro Tristeza, elas foram ressaltadas pelo corte
feito pela Av. Wenceslau Escobar, promotora de outras heterogeneidades, ao dividir a
zona leste da oeste do bairro. A imagem de uma área verde, alheia a correria urbana,
no entanto, é lugar comum para quem habita ou deseja habitar essa região do bairro, em
81
Cf. S. da C. Franco, Porto Alegre: guia histórico, Porto Alegre, Ed. UFRGS, 1988, p.351
82
Revista do globo N. 616 de 10 de julho a 23 de julho de 54. Pág. 48,49 e 50.
83
In: Meyer, Augusto. Segredos da Infância e No Tempo da Flor Coleção Trilhas e Memória. Porto
Alegre: Editora da Universidade, 1996. Pag. 161
143
torno ou a oeste da avenida. Ressaltando que para Bachelard, a duração é aquilo que
recomeça, é uma trajetória de rupturas que ritmam uma permanência; da mesma
maneira que para Sahlins (1987), onde a noção de estrutura também segue essa linha da
permanência pela transformação, podemos observar a partir da transformação,
provocadas pelas mudanças nessas duas casas, que bairro permanece.
O bairro Rio Branco, diferente da Tristeza, parece uma região onde a duração
está na idéia de um bairro com potencial, um bairro atravessado pela idéia do progresso
que retifica alinhamentos e modifica perfis. Se a Quintino Bocaiúva era uma rua pacata,
agora ela tem um intenso fluxo de veículos, que vem da região do Centro, pela Av.
Mostardeiro ou pela Av. Cristóvão Colombo em direção aos bairros Petrópolis, Santa
Celia e Bela Vista. Cortado por uma grande perimetral, a Av. Goethe, que modificou a
rítmica de ruas como a Cabral, a Casemiro de Abreu, a Vasco da Gama e a Rua
Liberdade, separando suas numerações e dividindo o bairro, o Rio Branco perde a sua
idéia de unidade.
A heterogeneidade do bairro, agora evidente pelos nichos criados pelo aumento
do fluxo do trânsito e o crescimento das avenidas, vira homogeneidade quando
adotada por outros bairros. Se a parte sul, ao sopé do morro, é parte que menos sofreu
em termos de modificação do seu desenho de ruas e construção de binários. A face oeste
foi totalmente isolada do morro pela perimetral, e, o seu cotidiano e sua estética de
moradia, estão muito mais vinculados ao vizinho Bom Fim. A face nordeste, que é onde
morava Carla, é a parte que cessando as atividades da pedreira e as tentativas por parte
da intendência de urbanizar os acessos - o que expulsou populações e usos
inadequados é a parte que ficava com a vista para o rio. A construção da casa na
região inaugura uma dinâmica de construções de casas grandes, de famílias como as de
Martha - migrantes abastados vindos do interior e que se transformam em empresários
na cidade. Vizinha do Bairro Moinhos de Vento, do Bairro Montserrat e do Bairro Bela
Vista, essa região foi sendo procurada por uma classe média em ascensão (Salvatori,
1996:183) que aproveitando a altitude da região, buscava prédios altos e imponentes
onde através da vidraça de suas sacadas podiam mirar a vista da cidade se
transformando. Comparando o projeto arquitetônico da região do bairro Tristeza e o
projeto de edificação que está sendo construído no terreno onde era a casa de Carla,
notamos claramente os elementos que diferem um bairro do outro. O tamanho dos
terrenos fala também da horizontalidade e da verticalidade projetadas.
144
Mesmo com somente dois pavimentos a mais do que o prédio na zona sul, o
Mont Quintino - como será chamado o condomínio que está sendo construído na
antiga casa de Carla, na Rua Quintino Bocaiúva é um prédio que ascende ao céu,
imponente. Enquanto a escala do outro, na mesma altura das imensas palmeiras, investe
na área verde, e na proposta de uma vida coletiva mais intensa, que lembra o espaço
extenso de uma velha chácara.
Alto e envidraçado o Mont Quintino tem sua vista virada para o Bairro
Moinhos de Vento, onde ainda muitas casas. Diferente da face oeste do bairro que,
como apontou Carla, na década de noventa tinha sua vista para o rio Guaíba tapada
pela construção de prédios. O projeto da construtora aproveita a quantidade de casas que
ainda permanecem em no lado norte, para vender a vista
84
, cuja perda tinha feito
Camila chorar.
No site da construtora
85
, para quem Carla vendeu a casa pode-se encontrar as
chamadas para o novo empreendimento:
A MELHOR OPORTUNIDADE PARA VO VIVER DO JEITO
QUE SEMPRE QUIS
O Mont Quintino é um empreendimento sem igual, criado para ser
uma verdadeira inspiração para quem deseja viver bem. Sua proposta
valoriza o conforto e a qualidade em uma das localizações mais
privilegiadas de Porto Alegre, na Rua Quintino Bocaiúva, próximo a
várias facilidades e ao bairro Moinhos de Vento. Seu projeto foi
desenvolvido para cercar sua vida pela melhor infraestrutura. São
apartamentos de 3 dormitórios, sendo uma suíte, duas vagas na
84
Em campanha para a Construtora Imograpa, a agência de publicidade Zagaia utilizou a sensação de ter
uma janela com vista para vender apartamentos na região da Vila Jardim em Porto Alegre. Dispovel
em: http://www.queroessavista.com.br/ Acesso em: abril de 2009.
85
Disponível em: http://www.dibdib.com.br/mont-quintino-apartamentos-3-dormitorios.php Acesso em
dezembro de 2009. (grifos meus)
145
garagem e área de lazer completa que inclui piscina com raia, salão de
festas, espaço zen, fitness, playground e muito mais.
Você sempre quis morar em um lugar como o Mont Quintino.
Atentos a dinâmica dos ritmos temporais, os referidos anúncios e as descrições
de um processo de transformação urbana nos bairros investigados, nos auxiliaram a
pensar a relação da destruição da morada familiar e suas implicações no tema da
mobilidade social dessas famílias e da mobilidade social nos bairros da cidade. As
representações coletivas observadas entre as interlocutoras - sobre herança e patrimônio
- também foram feitas com atenção ao fenômeno da mudança de bairro e, em um dos
casos, da cidade de Porto Alegre. Sem promover um vínculo superficial entre classe
social e ocupação dos bairros, nosso objetivo foi justamente outro, pensar a mobilidade
social nesses bairros face ao fenômeno de destruão da casa, que por sua vez está
vinculado a fenômenos mais abrangentes, como o disciplinamento dos planos diretores
e os interesses econômicos, culturais e políticos do poder público e privado. Essa
reflexão, no entanto, nos provoca a pensar na dificuldade de aderir a uma visão
homogênea e estratificada de classe social ou de grupo social. Para nós é preciso afirmar
contra o realismo do inteligível (Bourdieu, 2004:136) que as classes que podemos
recortar do espaço não existem como grupos reais, embora expliquem a probabilidade
de se constituírem em grupos práticos. O que existe é um espaço de relações
(Bourdieu, 2004:137) que tão real quanto o espaço geográfico nos possibilita identificar,
no interior dessas relações, as experiências suficientemente significativas para criar
fronteiras simbólicas (Velho, 1997:16) entre os indivíduos no interior de uma
hierarquia social, tendo em vista a experiência da descontinuidade.
5.2 A dialética do apego e do desapego o medo da dissolução do
patrimônio
A partir da narrativa biográfica, a dinâmica do apego e do desapego reforça
uma regra que Ainsley e Carla têm para consigo, e que reflete sua relão com a
passagem do tempo e a mudança de papéis sociais ao longo dele. Desapegar é um
esforço em si mesmo, é um objetivo que legitima e orienta no jogo dos projetos
individuais e familiares as experiências de fragmentação-totalização (Velho, 1987:26)
de si. Um si que de acordo com essa dialética se constrói narrativamente entre a
modéstia da manutenção do si e o orgulho estóico da inflexível constância a si
(Ricoeur, 1991 apud Eckert e Rocha, 1995:138).
146
No jogo da escolha e do esquecimento acerca dos bens e objetos herdados e os
dilemas de seus desaparecimentos para as gerações futuras, teoricamente estamos
trabalhando na observação das escolhas que colocam o sujeito desde uma noção de
indivíduo ou de uma noção de pessoa (Mauss, 2003) para se pensar no mundo, como
analisamos no capítulo quatro.
Em seu trabalho com velhos moradores da cidade de Porto Alegre, Cornelia
Eckert (2001) chega até a noção de uma crise dos tempos, para definir a ruptura do
trajeto de identificação do indivíduo psicológico como o sujeito da consciência, da
vontade e autonomia, uma ruptura que também é observada nas motivações e
expectativas (Wagner, 1979) das nossas interlocutoras.
Na dialética do apego e do desapego, no entanto, o sujeito da consciência
aparece hierarquicamente submetido ao indivíduo psicológico. Rumo à decisão moral
de promover um si que não se fusione com a matéria na passagem do tempo. Integrante
de uma cultura urbana de camadas médias se apegar é uma condição de vínculo com
o passado. Nos termos de Norbert Elias (1998) trata-se de uma refleo sobre o
equilíbrio das tensões do compromisso e do distanciamento (1998:169) que configuram
as relações dos sujeitos da pesquisa em relação ao seu lugar de guardião de um
patrimônio familiar - tanto no que diz respeito a sua posição em relação aos
antepassados, quanto em relação às gerações futuras.
Há uma passagem do texto de Norbert Elias, em que ele se vale da parábola de
Edgar Alan Poe sobre os pescadores de Maelström, para explorar a interdependência
funcional entre o equilíbrio emocional da pessoa e o processo mais amplo que a
envolve (Elias,1998:165). Como imagem, a dialética descrita pelo autor
semanticamente nos remete a dialética do interior e do exterior encontrada nos conceitos
de Gaston Bachelard e que nos possibilita pensar a imaginação de si do lado de fora
como parte do estar do lado de dentro. Ou seja, para o caso dos sujeitos desse estudo,
que a casa nova, através da imaginação já existe mesmo antes de existir.
A noção de Elias, portanto, é provocativa para pensarmos a situação de análise
de nossas interlocutoras frente às decisões de desapegarem-se ou não a se certos objetos
e valores, diante da manutenção de uma visão de mundo. Pois, ela ressalta a tensão
entre o tempo da ação e a tempo da imaginão, onde a posição no processo é
condicionadora da precisa capacidade de alienação do sujeito para construção de um
modelo simbólico que o conduza, em situação de risco, a uma ação objetiva capaz de
fazê-lo sobreviver ao instante da escolha.
147
Para as interlocutoras da pesquisa, a decisão de qual destino dar a um bem
herdado transcorre ao longo de um processo de alteração de estado civil -
casada/separada, casada/divorciada, casada/viúva, solteira/casada. Isto é, o destino a ser
dado a uma herança decorre de uma mudança no campo de possibilidades delas no
interior de uma rede de parentesco e dos papéis sociais ddecorrentes. A condição de
herdeira traz consigo uma variante que redimensiona o projeto de vida do sujeito no
âmbito de um projeto familiar - muitas vezes reforçando os papéis sexuais já existentes.
Neste sentido, tais mulheres e suas famílias, encontram-se num momento de suas vidas
avaliando a permanência de um patrimônio familiar para as gerações futuras. Através da
migração para a nova casa, elas avaliam aspectos de um ethos e de uma visão de mundo
(Velho, 1994:50) herdados de seus antepassados.
A noção de medo (Eckert, 2001), portanto, pode ser abordada, no contexto
dessas famílias de camadas médias urbanas, como o como drama social da
desagregação familiar. A casa ocupada, representante da solidez familiar, à medida que
é destruída, concomitantemente ou posteriormente a uma desestruturação da rede
familiar em torno de uma unidade doméstica; é apreendida como uma destruão de
laços familiares, e dessa forma coloca em risco a noção de família idealizada pelas
interlocutoras.
Sob este aspecto torna-se importante o diálogo com outros estudos sobre o
tema da propriedade privada e da casa própria, derivados de etnografias com outros
segmentos sociais, tais como a pesquisa de Roberto A. C. da Silva (2007), sobre os
conflitos e tensões do processo de regularização fundiária de famílias na Vila Batista
Flores, num bairro da periferia, de Porto Alegre. Na busca pela regularização de suas
moradias, Silva ressalta a reivindicação dessas famílias, a uma ligação com o bairro
pelo pertencimento de laços de vizinhança
86
e do tempo de moradia, investindo com
isso na manutenção de um capital cultural e simbólico de origem.
A origem, os valores, as raízes são temas do apego ou do desapego,
quando definem o pertencimento que constrói um espaço. Representado por objetos ou
imóveis, no caso de nosso estudo, o pertencimento a uma camada social ou a um estilo
de vida faz da situação de risco mais uma camada do processo de arranjo de estruturas
espaço - temporais em jogo no percurso da mudança de casa. Compreendendo a partir
86
Cf. R. A. C. da Silva. Sobre lotes e sonhos Estudo antropológico sobre cotidiano, trajetória social e
ação política de moradores da Vila Batista Flores em Porto Alegre RS. Dissertação de Mestrado,
UFRGS, 2007.
148
de nossas interlocutoras que aquilo que é herdado das gerações passadas tem potencial
de evocar memórias para as gerações futuras, reconhecemos o guardião da memória
como o personagem central de ancoragem deste drama social.
5.2.1 Os objetos e a escolha do que irá sobrar do outro lado
Foco principal da dialética do apego e do desapego, o objeto, pela linha de
Maurice Halbwachs (2006:158) pode ser entendido desde o conceito dos quadros
sociais da memória. Esse objeto pela via da influência dos estudos do filósofo Henri
Bergson na obra do autor, poderia ser pensado como reservatório de reminiscência de
um passado, de uma memória concreta e perene. Dessa forma a representação da
passagem do tempo, pelo processo de mudança e permanência (Bachelard, 1989), pode
ser feita a partir de um objeto que está, por gerações, ligado a família. Conforme essa
linha, podemos pensar, que tais objetos podem se tornar a garantia de que determinada
história da família, estilo de vida, personagem ou origem familiar se mantenha para
além do instante onde o objeto passou a existir dentro da história familiar. Os objetos e
bens reunidos como herança de um patrimônio familiar trans-geracional soam como a
possibilidade de evocação de memórias e histórias, para além daquelas vividas na casa
pelos sujeitos da nossa pesquisa ou daqueles que estão por elas representadas.
Seguindo os estudos da imaginação simbólica em Gilbert Durand (1988), no
entanto, podemos pensar os bens e objetos herdados como um conjunto de símbolos
que, na ausência da casa onde estavam, podem falar do legado de uma família para além
de uma memória individual e uma memória familiar localizada. Logo, este objeto,
desvinculado de suas origens, alude a outras amarrações e lembranças para além da
sincronia temporal e do espaço/tempo de onde veio.
Nestes termos os vínculos entre - as histórias evocadas e os objetos - podem ser
pensados desde as disputas de um legado de valores, de saberes e de práticas sociais no
momento significativo da partilha de um bem herdado. Vínculos que ficaram evidentes
a partir da revalorização da casa da Tristeza, perante a partilha entre os primos
herdeiros, conforme vimos no capítulo quatro e a questão da destituição do valor zero,
outrora definido a casa.
A garantia da transmissão é passar a frente - das mãos do herdeiro
guardo para as gerações futuras - através das lembranças e reminiscência, o projeto
do seu passado para o seu devir.
149
A construção do espo íntimo da casa, como espaços de mais ou menos
vibração do tempo (Bachelard, 1989), nos levou a pensar os arranjos que integram essa
vibração. A noção de canto (1989: 146), nos ajudou a pensar tanto no que é escolhido
pelos sujeitos da pesquisa para estar em determinado local da nova morada como para
determinar um lugar temporário, porém protegido, para objetos que ainda não tem status
definido. O sótão de Carla, nesse sentido, pode ser tomado também como um canto,
que produz essa vibração.
Na dissertação de mestrado de Lucas Graeff (2005) sobre o mundo da velhice
entre velhos habitantes do Asilo Padre Cacique, em Porto Alegre - notamos uma relação
estreita entre os internos e seus armários. O conteúdo de cada interior toma proporções
universais quando eles são abertos ao antropólogo, pois há neles o centro de ordem que
protege toda a casa contra uma desordem sem limite (1989:92). Os armários, portanto,
o uma maneira desses moradores organizarem ou modelarem certo tempo de suas
vidas.
O exemplo, das vibrações dos cantos e dos armários, as noções de intimidade
de Bachelard nos permitem compreender os sentidos que orientam, no jogo da
lembrança e do esquecimento das guardiãs da memória, a re-construção e manutenção
dos espaços íntimos da casa acomodados desde a casa dos antepassados, agora
destruída - na sua nova morada.
A quantidade de tempo - de vida numa mesma casa ou vivendo numa mesma
rua, num mesmo bairro ou cidade é uma questão para pensarmos na construção desse
indivíduo que na dinâmica da lembrança e do esquecimento, produz a memória. Onde à
medida que a quantidade de tempo representa um acúmulo, do ponto de vista da
imaginação (Durand, 2002) ela representa a sobreposição de gestos de um vivido
anterior. De uma forma de viver o tempo que para durar precisa vibrar também na casa
nova. Uma casa que será, mais tarde, deixada como herança para as novas gerações,
gerando-se, assim, um novo ciclo de renascimento e morte de um patrimônio familiar.
A idéia de topofilia (Bachelard, 1989:31), a qual, já aderimos, é fundamental
para pensarmos determinadas casas como moradas, como espaços de acomodação do
tempo. Espos que não estão relacionados ao um tempo da matéria, mas a um tempo
do vivido e, portanto, nos evidenciam por que a morada desocupada e destruída não
deixa de existir com a destruição da casa. O ato de desapego, da casa como
condicionada ao seu contexto de origem, é fundamental para nossas interlocutoras, a fim
de que elas possam evocar a sua existência a partir de um tempo vivido na cidade, no
150
bairro e na casa, desgrudado da existência concreta dessa casa e dessa cidade. Desde a
noção de morada (Bachelard, 1989) a idéia de arranjo temporal, (Benjamim apud
Gagnebin, 1994) nos guia na compreensão dos jogos da memória que se valem os
sujeitos de pesquisa para iluminar, no tempo presente, os rastros de um tempo
passado: o dos seus antepassados. A identificação dos cantos da casa pelos herdeiros, no
momento da desocupação da morada; e as lembranças que tais cantos evocam na
construção da memória, são evidencia da relação entre as gerações de uma mesma
família, condensada em bens, móveis ou fotografias ali arranjados.
A acumulação de histórias proporcionada pela idéia de canto é ato que
proporciona o acervo de pequenos instantes de iluminação súbita
87
(Benjamim apud
Gagnebin 1994:83) num mesmo espaço. Apropriamos-nos dessa expressão para pensar
a potência desses cantos como integradores da experiência de si no tempo. Algo que
deriva, pela linha dos estudos das estruturas antropológicas do imaginário (Durand,
2002) do espaço fantástico - lugares que emanam um vivido para além da experiência
concreta - tal qual, trabalhados por Cornelia Eckert e Ana Luiza Carvalho da Rocha
(2005).
Pensar a construção da morada é pensarmos na sua duração no tempo. Paul
Ricoeur, em sua obra Tempo e Narrativa (1994), nos auxilia completamente nessa
empresa:
a história, seja a de nós mesmos ou a dos outros, desenvolve-se entre um
indício e um fim que não nos pertencem, pois a história da nossa concepção,
do nosso nascimento e da nossa morte, depende de ações e de narrações de
outros que não nós mesmos; e, portanto não começos nem fim absolutos
possíveis nessa narração que nós fazemos de nós mesmos. (Ricoeur,
1994:84)
Ciente das narrações e ações de outros na construção da história dos filhos,
quase como uma súplica, Carla pede que seus filhos mexam no passado. Para ela isso é
uma forma de resgatá-lo como espaço integrador da noção de família ligada à residência
na casa. Ela esperava que os filhos o guardassem, pois, para ela, o passado reunia
lembranças de diferentes rituais da vida cotidiana que tinham se passado naquela casa e
que para ela integravam a vida familiar projetada em conjunto com o marido e
representada: pela infância curtida no pátio da casa, na foto do primeiro dia da escola
tirada em frente à lareira, nos aniversários que reuniam amigos e família em torno da
87
Essa expressão foi usada por Benjamim para falar da fotografia como uma porta que chama um pedaço
de nós-mesmos a integrar o pedaço de outros.
151
grande mesa da copa, nos natais em torno da árvore enfeitada, nos jantares de família,
nos jogos e brincadeiras das crianças no chão da sala. Etapas e momentos que ela
suplicava para que fossem resgatados pelos filhos, a partir da escolha dos objetos,
roupas, livros, brinquedos reunidos ao longo desses anos no sótão da casa.
- Ah, outra coisa, eu disse para os meus filhos: vocês têm um prazo. Porque
tem milhares de coisas deles, porque eles foram embora, mas deixaram para
trás né, porque todo mundo se mudou para apartamentinho, mas a casa da
mamãe ficou tudo né, então eu disse para vocês, vocês tem um certo prazo
para levar as coisas de vocês, as Barbie, os playmobil, ta tudo ai. Os
autoramas, eu disse: ó eu não vou levar lixo, vocês tem um prazo e ó, depois
vou tirar de pá. Daí eu cheguei aqui ó e a Camila ta ó, começou a
juntar as coisas. Isso são coisas que ela separou e vai levar, atendeu o
meu pedido, os outros tão se fazendo. Ela veio aqui semana passada e
naquela caixa rosa ela já botou, não sei se já botou, ela comprou uma caixa
para colocar diários, ela escrevia diários. Lá atrás tem milhares dessas
coisas tu vai ver lá trás, tu vai ver, aquele quarto deus o livre. Ela
começou a separar. Ela disse: não mãe, não mexe nas minhas coisas que já
estão separadas. Isso são coisas que ela vai levar e isso também são coisas
que estavam dentro do armário, mas que não foram separadas. de bicho
de pelúcia eu dei três sacos. De livros, tenho até de pensar, mas eu
tenho uns rompantes, eu dei quatro carros paratis que eu tinha, eu dei
quatro paratis de livros para a biblioteca do Pão dos Pobres. Ai começa
daqui, ah mãe, e o livro? Mas não dá, eu não posso ficar com tudo, daí
depois me arrependo porque que eu dei, mas enfim dei, então isso aqui a
Camila ainda não separou, são coisas que ficaram no armário, não são
coisas dela. As gurias tinham mania de caneca, tem 500 canecas aqui, não
sei vão ter que fazer alguma coisa, ta. Aquele bicho é coisa mais metida do
mundo. Aqui é que tinha esse armário ó, muito bom que eu tinha feito
pouco tempo e que eu guardava lençóis ó, eu mandei arrumar porque ele
era perfeito, mas mandei partir ao meio, ele era bom justamente porque
tinha duas portas em baixo e duas portas em cima. E na casa nova ele o
vai caber e eu vou colocar dois armarinhos um em cada quarto para o
pessoal que for visitar. Esse quarto aqui coisas para serem escolhidas.
Coisas de chorar, porque também o homem tirou as coisas do armário
entende e eu fico dizendo vocês têm que vir, tem pilhas e pilhas, aviãozinho,
patins, tem vários patins, se tu mexer tu vai encontrar as coisas mais
estranhas. Bah, cheio de patins, meu filho tinha o negócio de
aeromodelos, tinha aviões, pedaços de aviões. Porque o homem tirou as
prateleiras, ta tudo no chão.
Os objetos que narravam o apego da mãe, não necessariamente demandavam
tanto apego para os filhos. Os brinquedos que para Carla representavam a lembrança
dos filhos pequenos, não representavam para eles o suficiente para serem escolhidos ou
levados para as suas próprias casas. Mesmo com a resistência de Carla, o lixo, foi
transferido para Canela, onde Barbies, Playmobil e Ferrorama
88
ocupavam parte do
estúdio da casa nova, junto a fotos e outros objetos que Carla não conseguiu esquecer.
88
Brinquedos muito populares entre crianças de um segmento de classe média, nos anos 80, em Porto
Alegre.
152
Na Introdução à Obra de Marcel Mauss, Lévi-Strauss, em desacordo a definição de
mana, extrínseca aquilo que o mana evocava para o pensamento indígena, defende
com vigor que: o mana é o mana, recusando-se a buscar a origem de sua noção fora
de uma ordem de sentimentos, volições e crenças (2003:39-40). O mana era
mistério fora do entendimento do campo de investigação. Alguns objetos eleitos por
Carla tinham esse mistério, estavam ligados a uma ordem de sentimentos que nem ela
sabia descrever. Outros eram eleitos por ela como aqueles que estavam acima de uma
ligação negativa, relacionada ao apego. Esses tinham uma explicação muito exata para
serem escolhidos, e eram como os outros, parte de uma lógica que organiza a dinâmica
da sua noção de família.
- Esse relógio que ta tocando, ele ta atrasado, esse relógio o avô do meu
marido ganhou, deu de casamento para a mulher em, eles casaram em
1904 eu acho, e ele funciona até hoje, perfeitamente, acabou ficando para
mim. Esse, eu não sou apegada, mas esse é uma das coisas que eu não dou
porque o meu sogro tinha uma irmã que cuidou da mãe até morrer, então
ela ficou com o relógio, ela era madrinha do meu marido, e então ela deu
para ele. Então como ficou para ele, esse realmente eu não dou, ta. [...] E
mais essa, eu não sou apegada, mas certas coisas , esta mesa aqui eu
disse eu vou me mudar para um lugar onde a minha mesa vai, têm uns
riscos aqui isso não vai sair no teu filme eu estou te contando por coisa,
porque o Marcos meu filho que hoje tem trinta anos subiu numa cadeira
pegou uma esferográfica e riscou essa mesa eu acho que ele tinha um ano e
meio, os riscos estão aqui até hoje aquele dia o meu marido ficou furioso
com ele, furioso, e os riscos ta ai e eu disse: não vou lixar a mesa porque
parece mentira... não aparece ó já ta muito gasto, mas ele riscou isso
quando ele tinha um ano e hoje ele tem 30 anos.
Se a morada conforme já vimos no capítulo dois é um objeto temporal para
pensar as transformações na cidade, ela é também um objeto temporal para pensar
transformações de uma família. Quando Bachelard diz que a casa natal é a casa
habitada, ele está falando dessa capacidade da morada em emanar o tempo. Os filhos de
Carla, provavelmente estavam dizendo a ela que não gostariam de fazer da sua casa uma
morada, com objetos que remetessem outro tempo; não queriam ser incumbidos
dessa tarefa de levar adiante pedaços desse espaço. Queriam esquecer, mas que
esquecidos, pudessem ser lembrados cada vez que fossem visitar a morada materna.
- Não. Vou entregar a chave e tchau. Eu vou dar um tempo para passar aqui
na frente de novo, é muito horrível né, a gente vê a história se demolindo ali,
não é simples. É, então eu faço força, como eu te disse, para não ser
apegada a bens materiais, mas não é só bem material é uma história
entende, é uma vida que tem aqui mais, mas a gente tem que saber que a
vida vai na cabeça, na memória, se eu consegui viver sem o meu marido vou
conseguir viver sem a casa e que a minha vida deu muitas voltas, que eu
153
fiquei viúva eu não podia imaginar isso tão cedo, os meus filhos casaram
[...] Então eu gosto de ficar aqui para quando eles vêm tem essa referência,
mas não faz sentido, não faz sentido, tem que saber que não faz sentido.[...]
Minha vida deu muita virada, minha vida deu muita virada, e o fato de eu
ter voltado a estudar para mim foi um recomeço e eu acho que os recomeços
são bons, eu não gosto de gente que fica presa no passado, acho
insuportável, eu podia passar o resto da vida chorando porque eu adorava o
meu marido, mas foi difícil, não foi fácil, não é fácil, não foi, não é fácil, fiz
terapia, fiz isso, fiz aquilo, mas eu luto para ir para frente. Porque eu acho
até em consideração a ele, até, que lutou tanto pela vida e não venceu o
câncer, mas lutou hein, que eu to viva tenho mais é que valorizar né. E eu
acho que é válido, a gente não deve ficar preso ao passado de jeito nenhum,
têm que ir para frente, tem que ir para frente e as mudanças fazem bem, as
mudanças renovam a gente senão tu vai ficando muito azeda. [...] então é
legal minha vida presa a essa casa, tenho muita coisa com ela, mas, vai
ser bom, espero que seja bom, to fazendo uma virada assim, mais uma vez,
mais uma vez monumental, porque eu não to saindo daqui né, eu to indo
embora daqui.
As mudanças de sorte, os rompimentos, construídos a partir do percurso por
essas fotos e por esses objetos da casa são avaliadas por Carla como mais uma virada
na sua vida. A história que será demolida com a casa logo é remediada pela avaliação de
que a história não é um bem material e que no fundo ela vai na cabeça da gente. A
lógica do apego e do desapego repousa justamente nessa dinâmica compensatória entre
aquilo que pode ser guardado abstratamente e aquilo que precisa ser guardado
concretamente num objeto, num móvel. A relação do consumo da matéria como
garantia das boas lembranças entra em conflito com a experiência da morte, onde os
afetos seguem existindo sem a presença do corpo. A mudança é segundo Pierre Janet
(apud Bachelard, 1988), no fundo bastante triste. E quase sempre, em todas as suas
formas, é o desaparecimento.
Por mais que a lógica por trás do desapegar-se é selecionar bem aquilo que tem
a concentração suficiente para emanar e evocar esquecimentos, ou seja, os objetos ao
qual nos apegamos, o risco da escolha é sempre tenso e sempre um duelo trágico com a
morte. O risco de desaparecimento desse indivíduo à medida que ele se constrói na
narração desses objetos, outrora dispostos pela casa e agora movidos a casa nova, passa
por dar-se conta de que a continuidade é apenas nossa emoção, nosso tumulto, nossa
melancolia, e o papel da emoção talvez seja apenas o de suavizar a novidade
excessivamente hostil (1989:47). Suavizar a antítese do recomeço: a morte, na busca
da síntese, a duração.
154
5.2.2 O espírito do lugar
De acordo com o uso que faz Ana Luiza Carvalho da Rocha em sua dissertação
de mestrado do conceito de honra de Max Weber (1985:74) ao avaliar a mudança do
status de casada para o status de separada, em mulheres de camadas médias de Porto
Alegre, podemos pensar as escolhas de Ainsley em relação à pertença ou não a um
grupo de status urbano, delimitado pela descendência e pelo parentesco. Onde sua
relação com o status, se relaciona a insistência em permanecer morando no terreno
herdado pela família, mesmo que não na mesma casa. Pensando no sentido do campo de
possibilidades de Ainsley, esta parece ser a forma encontrada por ela para se distinguir
positivamente, visto que a venda de sua parcela do terreno economicamente
viabilizaria a compra de uma moradia em outros bairros menos nobres da cidade.
A materialidade do espo torna-se fundamental para ela, pois permite que as
lembranças boas ligadas à linhagem paterna, vividas e profundamente relacionadas
aquele bairro, perdurem. Quando diz daqui saio morta Ainsley está justamente
defendendo esse direito de permanecer vivendo ali, um direito de pertencer àquela
linhagem.
Por outro lado, em comparação com sua parentela por descendência paterna, a
permanência na casa acaba lhe incluindo em um grupo de status negativamente
privilegiado (Rocha, 1985:75) visto que a remodelação da sua ocupação dentro do
terreno afeta negativamente sua posição social. Como podemos observar, no desenho da
próxima página, a configuração do terreno muda completamente com a partilha, assim
como o estilo de moradia, ocupação e fruição dos espaços antes narrados como nobres.
Ilustrando o terreno e o lugar da casa após a morte do pai de Ainsley e após a partilha da
propriedade entre os primos paternos, vemos pela diminuição da área útil e pela
configuração popular assumida pela nova casa de Ainsley e dos filhos a evidência desse
status negativo perante o estilo de vida do bairro.
155
O pontilhado, acima, divide a parte de outro herdeiro, Luli do restante do
terreno. É uma divisão oficial, porém, sua demarcação ainda é imaginária. Já abaixo, do
outro lado do terreno, onde se uma linha preta horizontal, há um muro de concreto
que divide fisicamente o terreno de Jorge do terreno de Ainsley.
A distinção de Ainsley, dada pela permanência nesse bairro, é contrastada a
partir do desenho, com o descenso sofrido as a saída da casa paterna, visto a evidente
diminuição e o constrangimento na ocupação do novo espaço para os padrões de
camadas médias que ela tinha até então. O acesso ao cozinhão, a única cozinha das
três moradias que se encontram dispostas na base da figura, é feito a partir de uma
pequena falha, localizada onde termina o muro que corre horizontalmente ao terreno
(limite com terreno de Jorge) e onde começa a mureta vertical que divide a propriedade
da área pública do rio. O status de permanecer, desta forma, se relaciona com a idéia de
manutenção de uma posição social pela adesão a linhagem de parentesco paterna, pois
ela para Ainsley garante um lugar social honrado. Em nome da honra o valor econômico
156
oriundo da possível venda desse bem imóvel perde simbolicamente como manutenção
de status.
Alguns móveis foram deslocados para a casa do mais novo, ou seja, a casa de
Rafael, construída no ano seguinte a demolição da casa, e que pode ser vista na base à
direita da figura. Outros móveis ficaram no quarto do mais velho, Celso, cuja moradia
era construída a partir da estrutura de uma área que originalmente integrava a
propriedade. O restante de todo o mobiliário existente na casa central foi encaixado
dentro da nova casa, à esquerda na base da figura. A posse desses móveis significa para
Ainsley a posse da guarda dessas memórias familiares, em relação ao resto da parentela
paterna por consangüinidade, em sua maioria composta de homens.
Observa-se também, nesse desenho, em comparação com a figura da casa
montada, disponível no capítulo quatro, a destruição de um pedaço da casa principal. E
que foi comandado por Ainsley, logo após a mudança.
Próximo de uma definição do século XVIII de família moderna, e diferente do
contexto de camadas populares, a casa de Carla parece manter-se mais à distância da
sociedade, confinando a família a um espaço limitado. Uma casa ampla, com
corredores de acesso onde mesmo quando os modos se comunicavam não se era
mais forçado a atravessá-los para passar de um ao outro (Ariès, 1986:265). O conforto
segundo Ariès data do século XVIII ele nasceu ao mesmo tempo em que a intimidade,
a discrição, e o isolamento, e foi uma das manifestações desses fenômenos. Ainsley,
no entanto, vive hoje numa casa que lembra os arranjos do século XV, uma instalação
num meio mais amplo, a aldeia, a fazenda, o pátio, porém em todos os casos, e
simbolicamente por diferentes motivos, a casa, permanece no século atual como
representação de espo de proteção
Ainsley não opta por ir embora, ela prefere ficar junto às raízes, a terra, a
história e ao legado dos pais que não estaria para ela em nenhum lugar para além do seu
sobrenome, dos móveis e objetos herdados e do status de pertencer a uma família
tradicional da cidade, com uma infância de dotes e bons costumes. A escolha de ficar,
mesmo atrelada a uma condição de moradia que evidencia seu descenso social, parece
estar muito mais condicionada ao bairro, ao espaço de circulação que ele permite, ao
ethos de habitante da zona sul da cidade. Ficar reforça os laços de descendência paterna
de Ainsley, mantendo para além da sua aliança de casamento, seu projeto ligado à
estrutura de parentesco, lugar onde ela constrói sua história de vida. Já Carla nas
particularidades e generalizações de reconstrução do seu projeto familiar a partir de um
157
projeto individual, consegue conforme Norbert Elias (1998) um maior distanciamento
da situação de mudança de casa, optando, apesar de todos os dramas e medos, ir viver
num lugar onde pudesse manter ou onde o sentisse tanto descenso no seu estilo de
vida. Economicamente, o patrimônio que deixará Carla aos seus descendentes está
muito mais próximo do que seu pai deixou para ela, do que o patrimônio que Ainsley
deixapara seus filhos, em relação ao que herdou dos seus pais. Lendo as estruturas de
parentesco através da herança e do patrimônio podemos pensar a mobilidade das
condições de gênero, das relações familiares e das classes sociais numa sociedade
complexa-moderno-contemporânea.
Para Myriam Lins de Barros (1989:33) que segue a perspectiva de memória
coletiva de Maurice Halbwachs a transmissão de uma história, sobretudo a historia
familiar, está ligada a transmissão de uma mensagem que se refere ao mesmo tempo a
individualidade da memória afetiva de cada família e a memória da sociedade mais
ampla, expressando com isso a importância e permanência do valor da instituição
familiar. Tanto Carla quanto Ainsley, à medida que narram diferentes paisagens
possíveis a partir das suas casas, nos evocam a pensar as transformações da cidade de
Porto Alegre a partir desse ponto de vista. Os momentos fixados pelas fotografias
familiares na mobilidade das relações articuladas pelas narradoras ou a partir da
descrição de hábitos, itinerários, práticas; podem evocar pelo conceito de história
vivida a memória coletiva de uma classe média moradora de Porto Alegre.
Quando Henri Bergson (apud Eckert & Rocha, 2005:145) irá pensar a
memória, diferente de Bachelard ele elegerá a matéria como um depósito de
lembranças, onde a relação matériamemória, não sofre interferência do presente no
resgate e construção das lembranças. Já para Bachelard (1988:32) é no instante que se
revive, ele é a única maneira de julgar a ordem, a sucessão, a duração em seu
relacionamento com a realidade. De acordo com o autor não teríamos controle sob
algum objeto ao ponto de afirmar que ele nos fará lembrar especificamente de
determinada sensação ou ocasião. Pois cabe a imaginão a propriedade de formar
imagens, e de deformar as imagens, de mudá-las, libertá-las, graças ao imaginário a
imaginação é essencialmente aberta, evasiva. É ela no psiquismo humano, a própria
experiência da abertura, a própria experiência da novidade (1998:1). Parafraseando o
poeta e pintor William Blake a imaginação não é um estado, é a própria existência
humana (1984). Para tanto o que nos move a acompanhar junto com as interlocutoras,
o processo de decisão: sobre que fotos levar, que fotos podem contar histórias, que
158
objetos deixar, que objetos podem e tem potencial de evocar histórias, estamos
implicados não na descoberta de que função eles tem, e sim na descoberta de que
imaginação existe neles, porque é o volume dela, que apostamos, definirá o destino do
que vai ir ou ficar.
159
CAPITULO 6
A CASA COMO OBJETO DE INTERESSE PATRIMONIAL E A MAGIA DE
UM BAIRRO COM HISTÓRIA
Todo era allí distinto para mis ojos nuevos.
Los edificios habían cambiado de fachada; sus colores ya no eran los de antes;
Los edificios habían crecido con los hombres,
Crecido o caducado con ellos;
Los hombres, no los reconocía ya, y la casa
Donde otrora yo había vivido, estaba allí sin embargo.
(Andanza por una calle con espectros, Lysandro Z. D. Galtier)
O trabalho de campo na cidade de Buenos Aires, conforme já mencionamos no
capítulo três foi possibilitado pela Red de Asociación de posgrado en Antropología
Social formada pelo programa Binacional de Centros Asociados de Posgrado em
Antropologia entre Brasil e Argentina
89
. A jornada de três meses, realizada no ano de
2009, teve como foco de investigão o Bairro de San Telmo, localizado ao sul da
cidade.
90
89
Programa Binacional de Centros Asociados de Posgrado en Antropologia: Brasil (PPGAS UFRGS e
Museu Nacional UFRJ) e Argentina (IDAES UNSAM).
90
Cf. a lei 1777, sancionada em 2005, as comunas são as unidades mínimas de gestão política e
administrativa da Cidade de Buenos Aires, nessa lei se establece que a través de las Comunas debe
realizarse la descentralización territorial de la ejecución de los programas presupuestarios que tengan
160
A definição do contexto de pesquisa de campo e o recorte no Bairro de San
Telmo foi feito em razão da existência nele, desde novembro de 1970, da Feria de San
Pedro Telmo, uma feira de objetos velhos, dependente do Museo de la Ciudad.
O percurso de criação da feira está diretamente ligado ao percurso de fundação
deste museu e ao processo de demolição de edifícios para o alargamento da Avenida 9
de Julio, no centro de Buenos Aires. Em face dos processos de destruição de parte da
cidade para construção da nova avenida foi criada em 1967, no curso da ditadura militar
da Argentina, a Comiso Técnica Municipal, encarregada de buscar entre os
escombros tudo o que fosse considerado um testemunho da arquitetura portenha.
Semelhante ao que aconteceu na cidade de Porto Alegre na década de 70, período em
que foram construídos os grandes viadutos da cidade
91
, o consenso do
desenvolvimentismo também se instalou na cidade de Buenos Aires, promovendo
grandes transformações urbanas. Resgatando peças, vitrais, portas, balcões, e outros
elementos considerados importantes para a história da arquitetura e do cotidiano da
cidade (Peña, 2003:13)
a comissão passou a arquivá-los em um galpão municipal à
medida que se efetuavam as demolições. Em 1968, o general que cumpria o posto de
Intendente Municipal desta época, aceitou a proposta feita por Peña e o museu
92
foi
criado.
A Feira de San Telmo nasceu, logo depois da criação do museu, de uma idéia
de Peña, que queria instalar em Buenos Aires uma feira como a que tinha visto em
outros países. Uma feira de coisas velhas, como ele gostava de dizer.
Para ele a aparição da feira chamaria a atenção para aqueles velhos objetos
que haviam ficado esquecidos em caixas ou sótãos por serem considerados passados de
impacto local específico en materia de desarrollo social, cultura, deporte y defensa de consumidores y
usuarios, entre otras. Y que entre sus funciones están las de la planificación, ejecución y control de los
trabajos de mantenimiento urbano de las vías secundarias y otras de menor jerarquía, y de los espacios
verdes; la elaboración participativa de su programa de acción y anteproyecto de presupuesto anual, su
ejecución y la administración de su patrimonio. Disponível em: http://www.legislatura.gov.ar/.
Consultado em janeiro de 2010.
91
Cf. Charles Monteiro. Porto Alegre e suas escritas histórias e memórias (1940 e 1972). Tese de
doutorado, PUC-SP, 2001. Pag. 322-324 sobre a reforma da matriz explicativa da história de Porto Alegre
O contexto de 1970-1972 coloca-se como um momento de ruptura do presente com as experiências
urbanas e as formas de produzir e gerir socialmente o espaço urbano. A transformação dos espaços
urbanos e das formas de sociabilidade desencadeou uma demanda de memória que foi respondida pela
administração Thompson Flores por meio de práticas comemorativas, da publicação de livros de historia,
de crônicas e do batismo de grandes obras publicas com nomes ligados ao passado da cidade (viaduto
Loureiro da Silva, viaduto dos Açorianos). de várias formas aquele momento foi apresentado [...] como
um momento de (re) fundação da cidade.
92
Cf. Peña museo edilício al poco tiempo llamado arquitectónico, e inmediatamente después, de la
ciudad
161
moda e sem interesse aparente (Pa, 2003:53). Objetos como aqueles que o foram
escolhidos por Ainsley e Carla em seu processo de mudança de casa.
No contexto dessa investigação a relevância dos objetos esquecidos, ou como
disse Peña, sem interesse aparente havia sido citada no sentido da dialética que
compõe a escolha feita por nossas principais interlocutoras dos objetos que escolheram
guardar. Aliado a isso, em 2008, na conjuntura das disciplinas de mestrado
93
, foi
realizada uma experiência etnográfica junto a um antiquário localizado no Caminho
dos Antiquários
94
no Bairro Centro de Porto Alegre, oportunidade em foi possível
pensar em outra dinâmica dentro do processo de esquecimento e lembrança dos objetos:
o corcio e a venda.
Em Buenos Aires, a feira de coisas velhas foi crescendo ao ponto de ser
conhecida internacionalmente, integrando guias turísticos que circulam em todo o
mundo. O mercado de antiguidades, no entanto, que teve uma presença tímida no início
das atividades da feira acabou tendo grande papel na divulgação dela. As poucas lojas
de antiguidades que ocupavam os imóveis ao redor da Plaza
95
Dorrego - local onde se
realiza a feira - cresceram em grande escala e hoje ocupam boa parte dessa região. Essa
presença contribuiu para transformação do local num ponto turístico por excelência,
onde aos domingos, dia de funcionamento da feira, uma imensa quantidade de
transeuntes, estrangeiros e moradores da província de Buenos Aires, circulam pelas ruas
do bairro.
Reiterando, a técnica inicial usada para o trabalho de campo em San Telmo foi
a da etnografia de rua, da mesma forma como foi realizada nos outros bairros de Porto
Alegre, conforme acompanhamos nos capítulos um e dois dessa dissertação.
93
Esse contexto de formação gerou uma monografia chamada O velho, o antigo e o novo: um ensaio
sobre a construção da antiguidade em objetos comercializados em antiquários em Porto Alegre, RS In:
Revista Iluminuras mero 22 Espaço, Territorialidade e Memória, Ano 2008. Disponível em
http://www.iluminuras.ufrgs.br/apresenta-revista.php?cod_rev=44
94
Segundo o site da prefeitura de Porto Alegre: O Caminho dos Antiquários é um projeto desenvolvido
pela Prefeitura de Porto Alegre em parceria com a comunidade e é uma iniciativa que está inserida no
Programa de Revitalização do Centro. Tem como objetivo valorizar o trecho que liga a Praça Daltro
Filho à Praça Marquesa de Sevigné compreendendo trechos das ruas Marechal Floriano Peixoto,
Demétrio Ribeiro, Coronel Genuíno e Fernando Machado. Esta região caracteriza-se pela grande
concentração de estabelecimentos que comercializam antigüidades. O espaço, já repleto de lojas de
antigüidades, foi transformado em uma grande feira a céu aberto que acontece todos os sábados.
Dispovel em: http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/vivaocentro/default.php?p_secao=98.
Acessado em julho de 2008.
95
É importante ressaltar que o espaço da Plaza em Buenos Aires, não tem as mesmas características que
tem as praças em Porto Alegre e quiçá no Brasil. Mesmo que a tradução principal da Plaza em espanhol,
em português seja Praça, ao contrário do espaço brasileiro a área da Plaza geralmente é construída, com
piso de lajotas e bancos de concreto, e a área verde em torno ou no centro dela é limitada a algumas
árvores, ou canteiros.
162
Antes de entrarmos em uma descrição mais densa da Feira de San Telmo e no
porque ela é relevante em uma etnografia sobre transformações urbanas, narrativas
biográficas e projetos de vida é preciso ingressar no contexto desse bairro que acolhe a
feira a fim de pensarmos nos motivos porque ela é instalada nele.
6.1 Porque San Telmo?
Os limites oficiais do bairro de San Telmo conforme o Guia T
96
iam da Rua
Chile ao leste, Rua Balcarce ao sul, Rua Brasil ao oeste e Rua Piedras ao norte. De
acordo com o guia do centro histórico de Buenos Aires, editado pelo jornal Clarín, os
limites do bairro, no entanto, encontram-se reduzidos a Autopista 25 de Mayo, Rua
Bolívar ao norte, Rua México e Av. Paseo Colon ao sul. Tratando-se de um guia
turístico, essa última delimitação do bairro nos ajuda, a analisar alguns dos processos no
qual San Telmo e os bairros da zona sul da cidade de Buenos Aires vem passando nos
últimos vinte anos.
De acordo com a coletânea de estudos Con el corazón mirando al sur
97
, a
região Sul da cidade de Buenos Aires é compreendida pelos bairros de La Boca, San
Telmo, Barracas e parte do Bairro de Montserrat. Essa área, em especial o Bairro de
San Telmo, da qual nos ocuparemos nesse capítulo, vem passando por uma importante
re-significação de seus limites desde a década de 90.
A partir desta década uma série de instrumentos de intervenção pública do
estado nacional e local orientou mudanças no espaço urbano (Bañuelos, Mera &
Rodríguez, 2008:59) do bairro. O plano urbano ambiental de Buenos Aires, finalizado
em 2000, impulsa la consolidación del rol internacional da cidade, mediante o
desenvolvimento de grandes equipamentos e infra-estruturas. Segundo trechos do PUA,
a cidade:
Tendrá que competir tanto para mantener su predominio local como para
encontrar nuevos espacios de equilibrio para un nuevo rol ampliado, que
deberá compartir con otras metrópolis y centros regionales como San Pablo,
Río de Janeiro, Montevideo y Santiago de Chile. (Bañuelos, Mera &
Rodríguez, 2008:53)
96
Guia T de Bolsillo, é um guia com mapas; itinerários de ônibus, metro e trem para locomoção de
pedestres na capital federal, editado pelo Editorial Betina. Ano de 2007.
97
Cf. Bañuelos, Imori, Ostuni & Silva, C., M., F. & R. G.. Renovación urbana y sector inmobiliario:
algunas reflexiones a partir de La Boca, Barracas y San Telmo In: Herzer, Hilda (org). Con el Corazón
mirando al sur. Buenos Aires: Espacio Editorial, 2008. Pag. 327.
163
Para essa empresa, no entanto, o plano elencava aspectos positivos e negativos
que estavam no caminho deste objetivo, os negativos
98
explicitavam os desequilíbrios
físicos e sociais que afetavam particularmente o sul e o sudoeste da cidade. O Código de
Planejamento Urbano, o CPU, também de 2000, estabeleceu o eixo de reforma na zona
sul, que foi qualificada como área de desenvolvimento urbano prioritário,
possibilitando a construção de edifícios de 24 metros de altura e de centros comerciais
em lugares onde previamente se autorizava construção de galpões de mercadorias.
Estabeleceu-se 40 áreas de proteção histórica (APH), e áreas de renovação urbana (RU),
essa última tinha objetivo de prevenir a deterioração de ruína, demolição e limpeza de
edifícios ou áreas irrecuperáveis; dar soluções a problemas emergentes por habitações
insalubres; recuperação, restauração, saneamento e salvaguarda de áreas de conservação
histórica. Esses postulados promoveram um grande investimento imobiliário na região,
que mesmo com a crise econômica de 2001, conseguiu manter um ritmo e se recuperar,
fazendo de San Telmo um dos locais mais valorizados da cidade para comércio ou
aluguel de imóveis. A chamada crise argentina, eclodida em fins de 2001, conforme
ressalta o antropólogo argentino Sergio Visacovsky, foi um dos mais duros episódios da
história recente da Argentina. Caracterizada por um colapso econômico e pela perda de
legitimidade dos dirigentes políticos, que restringiram a população a promover saques
de dinheiro de suas contas bancárias, assistiu-se nas ruas o que foi chamado de
cacerolazo
99
. Protestos seguidos por centenas de pessoas, às vezes reprimidos com
violência física dura, os cacerolazos se distinguiam dos protestos pós-período
ditatorial, pela população que os compunha: uma classe média habitante de bairros
tradicionalmente caracterizados por bem estar econômico, como Caballito, Palermo e
Recoleta.
O preço (Bañuelos, Imori, Silva & Ostuni, 2008:224) médio do metro quadrado
de um apartamento em San Telmo, no ano de 1999 era de U$S 774, em 2003 de U$S
417,00, em 2004 de U$S 555,00 e em 2006 ficava entre U$S 800 e U$S 1.300,00. Essa
cotação de valores, no entanto, estava fortemente relacionada com a zonificação do
98
Cf. Bañuelos, Mera & Rodríguez, C., G., & C.. Intervención no intervención: ciudad y políticas
blicas en el proceso de renovación del Área Sur de la Ciudad de Buenos Aires In: Herzer, Hilda (org).
Con el Corazón mirando al sur. Buenos Aires: Espacio Editorial, 2008. A identificação de aspectos
positivos e negativos formam parte de uma estratégia de marketing territorial (Benko, 2000 apud
Bañuelos, Mera, Rodríguez)
99
Cf. Sergio Visacowsky. Imágenes de la clase mediaen la prensa escrita argentina durante la llamada
crisis del 2001-2002’” In: S. Visacowsky e E. Garguin (org) Moralidade, economias e identidades de
classe media estudios históricos y etnográficos. Buenos Aires: Antropofogia, 2009. Pag. 247-249.
164
bairro, criada pelos agentes imobiliários que começaram a atuar nele desde a década de
70, porém que tiveram suas atividades intensificadas a partir da década de noventa.
Essa divisão de San Telmo em zonas é algo perceptível o somente nos preços
dos imóveis, mas nas formas de sociabilidade, nas formas de ocupação urbana e na
estética das ruas de cada uma das zonas. De acordo com o mapa abaixo, podemos ter
uma dimensão das zonas criadas pela iniciativa privada e pelos diferentes interesses
imobiliários na região.
100
A zona da Plaza Dorrego e de San Telmo-Montserrat é a zona com maior
concentração de comércio de antiguidades, de lojas de design, de cafés e bares, de
100
Mapa realizado conforme modelo desenvolvido por Bañuelo, Imori, Silva & Ostuni in Intervención
no intervención: ciudad y poticas públicas en el proceso de renovación del Área Sur de la Ciudad de
Buenos Aires (2008:226)
165
hostels e de casas de tango. Ela foi chamada por Catherine Black editora-chefe do
jornal El Sol de San Telmo em ocasião de uma entrevista, como o coração de San
Telmo. É nessa região que está situada a Plaza Dorrego, onde ocorre todos os domingos
a Feira de San Telmo, e é em torno dela que gravita a ocupação comercial mais recente
do bairro. É nessa região, também, onde se concentra os imóveis protegidos ou listados
pelo projeto do Casco Histórico da cidade.
O chamado eixo dinâmico (Bañuelo, Imori, Silva & Ostuni, 2008:226) é a zona
que abrange a Rua Defensa, considerada por Victor e Alejandro, dois interlocutores do
campo realizado em San Telmo, como a rua mais antiga da cidade. A Rua Defensa cruza
verticalmente todo o bairro, ligando o bairro La Boca ao sul, com o Bairro Montserrat
ao norte. O início dela se dá no largo da Casa Rosada, sede do governo da Argentina, e
após esse largo, há uma rua que faz uma linha continua com a Rua Defensa, porém leva
outro nome, Rua Reconquista.
O espaço verde situado bem ao sul é onde está localizado o Parque Lezama,
uma das únicas áreas verdes do bairro. Situado ao redor do Museu Histórico Nacional -
instalado em uma antiga casa colonial restaurada a área verde onde hoje era o parque,
fazia parte de propriedade privada que incluía essa casa. O restante dos espaços de lazer
do bairro, no entanto, são bem mais modestos, compostos em geral por pequenas
Plazoletas
101
, e pela Plaza construída em baixo da Autopista 25 de Mayo.
A zona de San Telmo-Constituición é a zona que nome a região limítrofe
entre os dois bairros. Esse eixo tem uma dinâmica de comércio diurno intenso, com
armazéns, açougues, pizzarias, farmácias, livrarias, circulação de escolares devido a
duas grandes escolas, kiokos, lojas de materiais rurais, pequenos supermercados. À
noite o movimento fica por conta de alguns hotéis e inferninhos que ficam na região da
Bernardo de Yrigoyen, avenida que é a continuação da Avenida 9 de Julio, ao sul. Ao
lado de uma enorme elevada que desova o fluxo da região da província de Buenos Aires
até a região do centro da cidade, prédios altos do início do século XX funcionavam
como casas tomadas e petit-hoteles. A calçada larga e escura estava freqüentemente
tomada de lixo e onde o cheiro de urina era sempre muito forte. A barreira formada pela
elevada dificultava o contato com o outro bairro: Constitución, que ficava no outro lado
da avenida, um bairro considerado por consenso de todos os interlocutores da rede
101
Plazoletas são praças secas, construídas em esquinas ou restos de espaços desapropriados pelas
construções das grandes avenidas que cortam o bairro horizontalmente.
166
como um bairro extremamente perigoso relacionado à prostituição e a presença de
imigrantes ilegais.
Cortado por quatro grandes avenidas: Independencia, San Juan, Juan de Garay
e a Autopista 25 de Mayo, o Bairro de San Telmo tem nessas construções uma prova
cabal de que a questão patrimonial é uma iniciativa que vem sendo moldada nos últimos
vinte anos, e possui ritmos bem diferentes. Construídas nos anos 70 essas avenidas
desapropriaram casas, prédios, destruíram ruas e possivelmente moradias e casarios com
tanto valor histórico quanto os que estão hoje sendo recuperados ou recebendo
investimentos internacionais.
Natural de Tucumán, com aproximadamente cinqüenta anos, Mercedes, ativista
política ligada a Asemblea Popular Plaza Dorrego, e a qual fui apresentada pela
antrologa M. Paula Yacovino, é moradora de uma casa na Avenida San Juan e passou
por esse processo de desapropriação de parte de sua casa. De acordo com o desenho que
fez com os braços, ao mostrar o tamanho da calçada em direção a esquina, sua casa teve
seu espaço diminuído consideravelmente para a passagem da avenida. O pedaço onde
ficava seu pátio foi desapropriado como foi feito com outra moradia que existia ao lado,
que por sua vez foi totalmente destruída. Esse espaço ficou vazio por quase trinta anos,
sendo ocupado em 2001 pela sede da Asemblea Popular Plaza Dorrego, cuja obra foi
levantada através de fundos estrangeiros.
Por conta dessas grandes avenidas, a região mais ao sul do bairro,
imobiliariamente não foi a mais privilegiada pelos investimentos e nem era região
privilegiada pelas delimitações do Casco Histórico. Nesse extremo sul, fora a região em
torno do Parque Lezama, onde pontualmente se desenvolvia um pequeno núcleo de
investimentos turísticos, o restante da região era composto por baldios, comércio de
frutas e legumes, lavanderias, pequenas padarias, prédios altos construídos na mesma
época das avenidas e uma grande quantidade de casas com aspecto de abandono.
Foi nessa região - extremo sul do bairro - na Rua Brasil, o local onde me
instalei. Num estabelecimento que fazia parte desse pequeno núcleo de re-valorização
de imóveis e de aquecimento dos investimentos na região. A quadra onde estava
localizado o Hostel onde vivi se diferenciava de todas as demais em torno. Na esquina,
da Rua Brasil com a Rua Defensa, em direção, a região da Costanera Sur, estavam dois
bares que eram muito destacados nos guias turísticos de San Telmo e do circuito de
cafés de Buenos Aires. Em frente a esses bares havia o Parque Lezama e na quadra em
direção ao sul, a quadra da Avenida Caseros que, em razão de sua arquitetura estilo Art
167
Nouveau, freqüentemente era usada em locações cinematográficas que buscavam uma
ambiência européia.
Na quadra da Brasil entre a Bolivar e a Defensa, havia quatro casas do início
do século vinte. Uma delas era ocupada pelo Hostel, outra era a casa de Tereza e Suzi
Gargulio, que ficava bem em frente, outra era um restaurante caseiro, que já funcionava
a mais de cinqüenta anos em regime de herança, a outra estava alugada para moradia em
cima e em baixo havia um espaço disponível para aluguel comercial. Tereza, como
comentamos no capítulo três, nasceu em San Telmo e atua vendendo botões antigos na
Feira de San Telmo desde sua fundação. Tem cinqüenta e quatro anos, é solteira e vive
com a irmã Suzi na casa herdada dos pais.
Na esquina da Rua Bolívar com a Rua Brasil, havia tanto de um lado como de
outro, pdios que datavam do fim do século XIX; prédios altos de mais de cinco
andares, com pátios internos e subsolo construído. Um deles era um prédio de moradias
e que estava com sua fachada em reforma, e onde a entrada para elas era feita pela Rua
Bolívar. Exatamente na sua esquina ochavada ficava a Nueva Fortaleza de San Telmo,
uma espécie de mini-mercado onde trabalhavam Luiz atendente e caixa e Daniel,
carniceiro e gerente. O outro pdio, a frente dele, estava desocupado fazia dois anos,
época em que foi iniciada uma reforma em sua estrutura interna e externa, limpeza e
projeto arquitetônico para abertura de um restaurante. O responsável pelo projeto se
chamava Bruno, e foi através dele que foi possível conhecer o interior do imóvel. Nessa
obra trabalhava Cesar Augusto, paraguaio e amigo de Alfredo que, por sua vez,
trabalhava como recepcionista e faz tudo no Hostel.
A quadra também era composta de prédios da década de 60, 70 e 80; o lado da
rua ao norte era caracterizado pela composição de comércio: uma farmácia, uma loja de
roupas, uma loja de artigos chineses, um kiosko, um restaurante e uma padaria, dois
hotéis, um deles de dois andares num prédio novo, outro um prédio alto de dez andares,
que como o da frente era um dos prédios mais altos dessa quadra.
168
O turismo, no Bairro de San Telmo parece ter se desenvolvido dentro de uma
tendência patrimonialista que se repetiu em outras cidades da América latina no que
consiste a formação de centros históricos. Uma combinação de ações por parte de atores
privados e estatais que girava em torno de uma crítica a modernidade; ou ao progresso
urbano como construtor de cidades que destroem seu passado, por não suportar a idéia
do velho. Na dinâmica patrimonialista se conservavam os edifícios monumentais
mesmo que com a transformação do contexto onde estão inseridos, valorando o bairro
como espaço de valor arquitetônico e simbólico.
Buenos Aires tiene uma calidad de vida urbana como ninguna outra ciudad
de América Latina, debe apostar a ser la París de América Latina. La ciudad
tiene capacidad para ofrecer cultura, lo cual atrae servicios financieros y
turismo (Jordi Borja, El renacimiento de las ciudades, entrevista
publicada en el diario de La Nación, Arquitectura, diciembre de 2001 apud
Gómez & Singh, 2008:325).
Em San Telmo, essas ações privadas e estatais estavam ligadas a atividades
culturais. Giesso, arquiteto que primeiro se instala no bairro, nos anos sessenta (Gómez
& Singh, 2008:342), abre seu estúdio e uma sala de teatro em um velho conventillo,
169
logo abrindo uma imobiliária que seria a maior da zona por muito tempo. A investida
imobiliária que se solidificou nos anos noventa transcendeu as intervenções urbanas
pontuais iniciadas pela equipe e pela iniciativa do Museo de La Ciudad, passando do
simples resgate da história para a empresa de conscientização e sensibilização onde as
políticas patrimoniais se converteram em políticas culturais. O componente localista
como atrativo do mercado imobiliário em San Telmo, atraiu o turismo do tipo itinerante,
caracterizado pelo visitante ansioso pelo cambio cultural y social aparente e onde a
fotografia é a evidência empírica irrefutável de que a viajem se realizou (Sontag, 1981
apud Gomez e Singh, 2008:336). A combinação entre patrimonialização e o êxito
comercial é o que vem valorizando a zona sul desde então, dentro de uma estratégia que
integra um projeto de Buenos Aires como a capital cultural da América Latina.
Conforme assinala Gorelik (apud Gomez e Singh, 2008:326) um turismo que valoriza
em Buenos Aires uma dupla diferença uma maior energia social em relação às cidades
desenvolvidas e uma maior densidade cultural e urbana em relação a outras cidades
latino-americanas.
Conforme destaca o argentino Ariel Gravano em sua Antropología de lo
barrial, a categoria bairro no contexto de Buenos Aires pode assumir diferentes adesões
no que se refere à autodenominação dos sujeitos para com ele. Espaço de produção de
sentido dentro dos processos de construção de identidades urbanas (2005:254) os
bairros assumem sua caracterização por oposição, onde se percebe a existência do
bairro-bairro, do anti-bairro para falar de sentimentos de maior ou menor adesão a
categorias nativas como tranqüilidade, juventude ou transformação. Pensando o Bairro
de San Telmo dentro da categoria de bairro como produção ideológica (Gravano,
2005:266) uma das cinco dimensões trabalhadas pelo autor para discutir as
representações de bairro sustentadas pelos atores, notamos que as diferentes expressões
referidas ao bairro por aqueles que o habitam, todavia não se acomodam plenamente
nessa nominação. Na etnografia desenvolvida, pelo menos duas dimensões de
vínculos entre aqueles que vivem o bairro, a dimensão de uma rede e a dimensão de
uma tribo. E essas duas dimensões, estão perpassadas pela ética das políticas de
transformação do espaço e pela circulação de objetos instituída pelas trocas comerciais -
seja pela força mágica do mana que os anima, seja pela idéia de um Genius loci, esse
sentimento coletivo que conforma um espaço (Maffesoli, 2006:209).
A tribo, conforme entendida por Michel Maffesoli (2006), se organiza em
torno de territórios reais ou simbólicos e em torno de mitos comuns (2006:200), onde a
170
multiplicidade de contextos, unidos por sentimentos comuns irá estruturar uma memória
coletiva que tem sua fundação na diversidade. Formada por turistas, visitantes,
consumidores, pessoas como Catherine Black que não conseguiu mais ir embora de
San Telmo, essa tribo freqüentemente usa a categoria heterogeneidade para falar de um
sentimento cosmopolita de pertencimento, ligado a uma classe média que circula
internacionalmente em busca de pequenos eixos de arraigo. A heterogeneidade de San
Telmo constrói a homogeneidade bairral que pode ser vinculada a zona da Plaza
Dorrego como local para desenvolvimento desta socialidade. Um bairro com história,
um bairro que cresceu mais não perdeu sua característica de bairro, um bairro com
magia, essas características ligadas ao bairro de San Telmo, pulsam em torno da
dialética da tradição e do progresso, constituidora da ética do instante que tem no
presente seu valor essencial (Maffesoli, 2006:207). Inserida em um contexto das
sociedades complexas moderno-contemporâneas, essa tribo não pode ser pensada como
alheia a essa natureza que lhe compõem: um mercado internacional cada vez mais
onipresente, a permanente troca cultural permitida por viagens, migrações; o fenômeno
da cultura e da comunicação de massa. Ou seja, não pode ser pensadas fora do campo da
trans-nacionalização da cultura (Lins Ribeiro, 1997:3) ou conforme aponta Gilberto
Velho (1994:38) do cruzamento das fronteiras entre Estados-Nações através de
diferentes níveis de relações econômicas, de poder e culturais.
Diferente da tribo, a noção de rede de relações (Velho, 1994:20), no entanto, é
o conceito que trabalharemos no próximo item para falar de relações sociais que -
dentro da dialética da unidade e da fragmentação - reúnem interlocutores de diferentes
origens étnicas e de diferentes grupos de status em torno da construção social de uma
identidade particular.
6.2 Entre Calles e Sillas: o mapeamento de uma rede de relações no bairro
de San Telmo
A rede de interlocutores do esquema abaixo deve ser lida em duas partes: parte
de cima e parte de baixo. A parte de baixo é resultado de um mapeamento feito pela
técnica da etnografia de rua e por onde foi descoberto o vínculo entre: uma rede de
vizinhança que agregava moradores e comerciantes da quadra da Rua Brasil, e uma rede
de trabalhadores reunidos em torno da Feira de San Telmo.
Na parte de cima, vemos uma rede de informantes chaves, que se formou em
torno de pesquisadores e antropólogos que investigam o bairro de San Telmo nos
171
últimos anos. Essa rede é relevante, pois, ela evidencia um movimento de pesquisas no
bairro que foi intensificado nos anos 90, em razão das transformações urbanas já
relatadas nas ginas anteriores. Essa rede é formada por lideranças políticas ou pessoas
ligadas às assembléias de bairro, que por sua vez se iniciaram no século XXI em razão
da crise econômica no país. Os dois eixos se ligam através da Feira de San Telmo, e pela
figura do Arquiteto Peña, criador e entusiasta da feira até a atualidade. A descrição da
rede de baixo segui o trabalho clássico de William Foote Whyte (2005) que prima
pela contextualização da história e as condições de produção
102
da investigação. A
rede de cima não será descrita densamente, portanto seus integrantes estão ou estarão
em diálogo com o objeto dessa dissertação.
102
G. Velho O observador Participante In: Whyte, W. F., Sociedade de Esquina. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2005. Pag. 10.
172
A rede de vizinhança percebida na Rua Brasil, aproximou a Feira de San Telmo
à investigação, não pela dinâmica dos objetos velhos vendidos nela, mas pela categoria
trabalho, que ligava Tereza e Suzana a ela. Victor outro interlocutor importante para o
desenvolvimento da pesquisa, também era um trabalhador dos arredores da feira, assim
como Alejandro, e como Fulco, artistas que tinham seu posto de trabalho em ruas em
torno da Feira de San Telmo.
A instalação do Hostel Noster Bayres na zona da Rua Brasil estava ligada ao
custo benefício dessa região do bairro em relação a outras e sua presença contribuía para
o crescimento dela nos últimos sete anos. Um crescimento diretamente relacionado à
desocupação ou desalojamento forçado de pessoas que ocupavam ilegalmente imóveis
na região. Conforme foi observado, a zona limite entre San Telmo e Constituición, que
pelas anotações de pesquisa começava na Rua Peru e ia até a Avenida Bernardo de
Yrigoyen, era uma região com muita incidência de casas tomadas. Casas de porta e
janela, edifícios, hotéis-pensão, havia uma quantidade grande de imóveis com ocupação
irregular. Os arredores da Rua Brasil, até a altura da Autopista 25 de Mayo, também era
uma região de casas tomadas, porém muitas delas haviam sofrido processo de
desocupação.
A irregularidade da moradia, da qual falamos aqui, é uma nominação que se
forma em diálogo com os processos recentes de transformação no bairro. Nota-se que
para Cristina, ex-moradora de uma casa tomada na Rua Independencia com a Rua
Bolívar, sua moradia não era irregular, porém ela concorda que nada pode fazer
judicialmente quando depois de 25 anos de moradia neste local a polícia a colocou na
rua, sem nenhum direito ou beneficio. Para alguns desalojamentos a municipalidade de
Buenos Aires prove as famílias com o pagamento de um soldo e da diária para uma
moradia, geralmente feita em hotéis ou pensões da região. Porém isso o aconteceu
com Cristina, que hoje vivia em Lanus, município ao sul, na Província de Buenos Aires,
distante 14 Km de sua antiga moradia, em San Telmo. Cristina trabalhava na Asemblea
Popular de San Telmo, vendendo roupas usadas no espaço térreo da agremiação, o
vínculo a ela garantia que pudesse manter seus filhos na escola pública do bairro, e a
manutenção deles na escola garantia o direito a Ciudadanía Porteña, um subsídio
mensal que mejora el ingreso de los hogares en situación de pobreza o indigencia
103
.
103
Disponível em:
[http://www.buenosaires.gov.ar/areas/des_social/ciudadania_portenia/fundamentacion.php?menu_id=219
37]. Acessado em outubro de 2009.
173
Integrante do Casco histórico de San Telmo, o prédio onde morava Cristina, havia sido
totalmente destruído.
Conforme narrou Gabriel, o policial responsável pela ronda ao redor do ex-
PADELAI, para os ex-ocupantes do prédio o governo ainda pagava auxílio moradia.
Isso, porque a maioria deles havia aceitado o subsídio, perante a justificativa de que o
prédio estava com risco de desabamento. A municipalidade inclusive demoliu algumas
partes internas do imóvel, porém em meio a disputas judiciais por parte de advogados
da cooperativa de ex-moradores e o governo da cidade, em 2003, o município entrou
com um projeto de lei que desapropriava o prédio e possibilitava o atual acordo com o
governo espanhol.
Integrante da policia especial e deslocado para a região, Gabriel havia dito que
em seguida a desocupação do ex-PADELAI a guarda do local era feita por ele e mais
sete policiais, tamanho era o receio de que o prédio voltasse a ser ocupado. Nos últimos
anos o número de policiais havia caído para quatro, porém as rondas eram constantes e
o medo ainda existia, que a proteção física do prédio era frágil. 90% para 10% era a
relação feita por Gabriel para classificar a quantidade de famílias de bem em relação à
gente mala que habitava o imóvel. As pessoas de bem segundo ele ainda viviam em
hotéis aos arredores, e lamentavam a saída cada vez que passavam a frente do prédio. A
segurança, no entanto, parecia ser feita para proteger o patrimônio da gente mala.
No contexto de uma investigação acerca da revalorização e exclusão no bairro
de San Telmo, um representante da associação dos antiquários diz:
- [PADELAI] Sí, esse es outro ítem importante. O sea, fue um hito negativo
cuando se copo y fue um hito positivio cuando se desalojó (...) Y el conflicto
es que ahí pasaba de todo: droga, prostituición, ahí no se perdía nada. Un
lugar que era prácticamente inaccesible, era como tener una villa de
emergencia adentro del barrio. Y después se notó muchísimo en la
poblacn. Esa gente que entraba y salía generaba mucha sensacn de
inseguridad e inseguridad real. Al desaparecer ese conflicto el barrio mejoró
mucho, ese es un hito importante (Cosacov & Menazzi, 2008: 318)
Irmã de Tereza, Suzi foi enfática ao falar de San Telmo de antigamente se
referindo à época que antecede a implantação da Feira de San Telmo no bairro, ou seja,
em torno dos anos 70. Suzi dizia que tinha vergonha de dizer que se habitava em San
Telmo, porque para os amigos o bairro era uma referencia de lugar perigoso, com ruas
escuras, ligadas a prostituição e a ocupões duvidosas. Ouvindo essa descrição de
Suzi era muito fácil confundir essa imagem de San Telmo com a imagem que hoje tem o
Bairro de Constitución para uma classe média que freqüenta ou mora em Buenos Aires.
174
Os arredores da Rua Brasil, no entanto, o eram os mais limpos e nem tinham as
calçadas mais bem cuidadas da cidade - dignas de passeios de fruição estética,
prometidos pelos guias turísticos àqueles que visitavam o bairro. Toda a região de San
Telmo, com exceção da zona da Plaza Dorrego tinha as calçadas totalmente irregulares
e com falta de lajotas, a escuridão da região Sul do bairro era aplacada pelos postes
de luz das avenidas, que ritmavam a caminhada daquele que cruza o bairro de norte a
sul. Os buracos nas calçadas aliado a falta de luz faziam dessa zona de San Telmo uma
região perigosa para tropeços. Tereza, que tinha 55 anos e um problema de circulação
em uma das pernas, sempre reclamava do calçamento do bairro, e o fazia culpando o
atual governante da cidade, Mauricio Macri, que freqüentemente era acusado de haver
abandonado San Telmo em detrimento do bairro de Barracas onde diziam, tinha
negócios imobiliários.
Na esquina oeste da casa de Tereza ficava um dos últimos pdios tomados da
região do Parque Lezama. Segundo os funcionários do Hostel Noster Bayres, Martha e
Alfredo, o processo de desalojamento de moradores tinha durado dois anos, até que por
fim, as ruas foram fechadas e os ocupantes retirados, a fim de que o prédio fosse
apropriado pelo novo dono, um empresário espanhol.
175
O público que freqüentava o armazém Nueva Fortaleza de San Telmo, na
esquina oposta a esse prédio tomado, era composto pelos imigrantes que trabalhavam
nessa obra e em outras, no curso da Rua Bolívar. O armazém também era freqüentado
por trabalhadores que em direção a estação de Constitución passavam pelo
estabelecimento para comprar mercadorias para a janta. Composta de um açougue, onde
se vendia: carne, fiambres e laticínios; o armazém também vendia bebidas, enlatados e
suprimentos alimentícios como massa, arroz, erva mate, bolachas, salgadinhos; e
material de limpeza. A mercadoria mais vendida, no entanto, a notar pela quantidade de
engradados que ocupava o chão e o mezanino, era a cerveja, comprada em quantidade
no final do dia, mediante a troca do casco vazio pelo cheio. O armazém era o
estabelecimento que funcionava até mais tarde, fechando às 22h, horário que Daniel e
Luiz cerravam as portas e seguiam em direção a estação a fim de pegar o último trem
para casa. Havia ainda o kiosko de Monica, localizado na Rua Defensa, e que ficava
aberto toda a noite, sob o cuidado do se pai, que atendia os consumidores através de
uma janela de vidro protegida pelas grades. Monica atendia durante o dia, vendendo
bebidas, guloseimas e artigos escolares. A parte desses estabelecimentos os bares El
Hipopótamo e Bar Britânico fechavam às 3h, sendo que esse último, a partir das 2h
tinha como clientela, além de alguns grupos de boêmios, os policiais que faziam a
guarda nos arredores do Parque Lezama. O ruído dos ônibus que vinham: da Rua
Bolívar em direção ao Bairro de La Boca, da Rua Defensa em direção ao centro, e da
Rua Brasil em direção a Av. Paseo Colon - era o som mais escutado à medida que os
estabelecimentos comerciais fechavam suas portas, diferente do ritmo ao redor da Plaza
Dorrego, que tinha movimento de comércio e de transeuntes até a chegada da manhã.
Nos dias de semana, a ocupação da Plaza, no entanto, era muito distinta dos
domingos de feira. Durante o dia, recebia mesas dos bares e cafés que possuíam seus
176
estabelecimentos ao redor dela, num movimento turístico que ia até aproximadamente
umas 22h quando a ocupação ia aos poucos se transformando. A partir das 23h, sem
as mesas e seus guarda-sóis com propagandas de cartões de crédito, a praça era ocupada
pelos amigos dos vendedores de artigos de couro, bijuterias ou artesanato que desde a
tarde vendiam sua mercadoria nas escadarias da praça. Tocando instrumentos
musicais ou reunidos em pequenas rodas, esses grupos às vezes passavam a noite na
praça, conversando e bebendo.
Fulco, um artista que vendia sua produção aos domingos - na feira de artistas,
localizada na Rua Humberto Primo e ligada a Feira de San Telmo - ao contar sobre sua
ligação com o Bairro de San Telmo, a faz narrando que a freqüentava desde
aproximadamente 65 - quando era hippie e vinha até o local para vender os cintos de
couro que produzia. Hoje com 55 anos, Fulco narrou a si quando jovem como um rapaz
que usava roupas coloridas, de ar despreocupado e que passava o dia na praça,
vendendo seus objetos, conversando com os amigos e fumando maconha. Nessa época a
que se refere Fulco, na Plaza Dorrego ainda funcionava a feira livre, cujo um simulacro
ainda podia ser visto dentro do Mercado de San Telmo, na quadra seguinte, na Rua
Bolívar com a Rua Carlos Calvo. Ao lembrar esse tempo, Fulco descreveu um bairro
repleto de moradores, que com suas sacolas vinham abastecer suas casas com frutas,
legumes e peixe, o grande responsável pelo cheiro fétido da região, oriundo do gelo
derretido que escorria pelas escadarias da praça em direção as três ruas que a rodeavam.
Funcionário do teatro municipal Fulco tinha aprendido diversas cnicas
ligadas à produção de figurino, cenários e manutenção de mobiliário de cena que
segundo ele muito o ajudaram no desenvolvimento do seu trabalho. Grande galanteador,
Fulco tinha tido duas mulheres, a primeira, muito e descendente de espanhóis e a
segunda, um anjo e descendente de indígenas, na qual estava casado até então. Tinha
duas filhas do primeiro casamento, e que pouco as via e pouco era procurado por elas. E
uma filha e um filho do segundo casamento, sendo que a filha o ajudava na
desmontagem do seu posto na feira. Se dava muito mal com sua mãe, que segundo ele
era uma mulher muito . Havia crescido e vivido com a avó em um conventillo na
zona de Abasto, fato que, todavia, o é possível afirmar se é verdade por que Fulco
gostava de criar histórias. Vendia os mitos que todo o turista visitante de San Telmo
gostaria de ouvir: bairro de tango, bairro boêmio, bairro de conventillos. Todos em
alguma escala integrantes da cultura urbana de Buenos Aires, porém que na arte de
Fulco eram vinculados especificamente a San Telmo. Habitante da zona de San Telmo,
177
no limite com Constitución, ele mantinha um atelier nesse último bairro. Certa época
havia alugado, na mesma galeria onde estava instalado Victor, uma peça onde vendia
suas obras, porém acabou voltando para a rua por não conseguir manter o pagamento do
aluguel. Deveras decepcionado com sua condição econômica, Fulco não havia se
recuperado da crise de 2001, da crise mundial de 2009 e nem da crise da Gripe A que
ainda afetava todos os comerciantes do país que de alguma forma dependiam do
turismo. Grande pensador das viradas da vida, Fulco se considerava o único que ainda
buscava a criação de um produto novo no meio de tantos artistas de uma obra , como
se referia aos seus vizinhos de feira. Sua obra era realizada em resina plástica, pintada a
mão por sua mulher. No seu atelele exibia algumas outras peças que ocupavam seu
tempo nos últimos anos, o teatro de autômatas e os pop ups o primeiro um teatro de
bonecos movido a um pequeno motor construído por ele e o segundo cartões que
quando abertos montavam um cenário urbano em três dimensões.
Outro narrador da juventude em San Telmo era Alejandro, cujo vínculo com o
bairro era oriundo de uma ligação familiar com o mesmo. Escultor de objetos em
bronze Alejandro vinculava - sua habilidade e seu gosto pela fundição - ao seu bisavô,
um espanhol, dono de uma Herraria na região da Rua Montes de Oca, próximo a Rua
Brasil, onde morava Tereza. Seu vínculo com San Telmo vinha atras do mito do
bairro histórico, espaço onde ele se sentia mais próximo de seus ancestrais. Cultivava
laços de pertencimento a locais como a sua oficina, um antigo ex-conventillo convertido
em galeria, cuja forma ele associava a primeira casa habitada pelo ana Argentina,
localizada no município de Avellaneda. Inserido no mercado de antiguidades, quando
mais jovem, Alejandro aprendeu e desenvolveu a técnica de fundição ao longo dos anos.
E se declarava como um dos poucos que dominava a técnica para o desenvolvimento de
objetos artísticos manuais. Quando questionado sobre o estilo de suas peças, ele foi
enfático em dizer que gostava da arte da década de 30 e que era nesse estilo que buscava
inspiração. No entanto, não deixou de reforçar o apelo estético dessas peças para um
público comprador de antiguidades, na qual suas peças, pela inspiração retrô, tinham
grande saída na rede internacional de comércio de antiguidades. Habitante do bairro na
infância, mais especificamente da Avenida Belgrano - que pelos limites oficiais já
pertencia ao Bairro Montserrat - Alejandro se impressionava com o aumento da
circulação de pessoas no San Telmo que outrora explorava com sua pequena bicicleta.
Porém estava seguro que não se mudaria mais de lá.
178
As entrevistas e conversas realizadas com os integrantes das redes seguiram o
fluxo das atividades desenvolvidas por eles. Dessa forma foi possível definir seus
horários de trabalho, partilhar do cotidiano dessas pessoas no bairro e observar
participando de sua rotina nele.
Daniel, carniceiro e gerente na Nueva Fortaleza de San Telmo, abria o
estabelecimento às oito horas da mane era acompanhado aas quatorze horas por
uma das filhas do dono, que atendia no caixa, cumprindo a função de Luiz, que chegava
às duas horas e saia às dez da noite, junto com Daniel. Um homem sorridente e baixo,
Daniel estava sempre vestido com um guarda-pó bordô, às vezes meio sujo de sangue.
Era um pouco careca e tinha a barba cerrada e branca, trabalhava com carne desde sua
juventude, passando por diferentes estabelecimentos: fábricas, carnicerias, armazéns,
indústria de congelados; e em diferentes turnos. Todo de la vaca era como se referia a
qualidade do animal como matéria prima da produção do país.
Narrando jornadas de quase vinte quatro horas de trabalho, em diferentes
empresas ligadas a vaca, Daniel estava vinte e cinco anos trabalhando no mesmo
estabelecimento, que, no entanto, tinha se mudado para aquele endereço fazia
aproximadamente dez anos. Ocupado antes por um bar, o armazém se mudou da Rua
Bolívar para esse local, na esquina da Brasil com a Bolivar, onde permanece localizado.
cinco anos, no entanto, o estabelecimento sofreu um grande incêndio. Com perda
total, Daniel foi responsável pela reconstrução do local, coordenando a reforma de todo
o espaço.
Apontando com pesar, mas ao mesmo tempo com orgulho, ele mostrou as
partes do armazém que tinham resistido ao incêndio, destacando os lugares onde se
podia ver um padrão de azulejos azuis que se diferenciava do restante das paredes. A
reconstrução do local deu a ele além da permanência no bairro, um novo nome, a antes
Fortaleza de San Telmo, havia se transformado na Nueva Fortaleza de San Telmo.
179
Localizado numa casa, no meio da quadra, o Hostel Noster Bayres tinha seis
funcionários fixos: Frederico, Martha, Estela, Alejandra, Alfredo, Gustavo e Laura.
Frederico era filho do principal acionista do estabelecimento, e era responsável pelo
gerenciamento e atendimento dos clientes. Tinha uns trinta anos aproximadamente,
usava cabelo comprido e sempre vestia preto; fumava tanto que o cheiro dos cinzeiros
do seu quarto eram sentidos nos corredores do quartos. Com exceção de domingo, ele
trabalhava todos os dias, chegando às nove da manhã e saindo às nove da noite. Quando
ele não estava Martha que resolvia os problemas e decidia sobre demandas
administrativas do hotel. Ela era uma espécie de governanta, porém fazia as compras
para abastecimento geral da cozinha e dos banheiros, enviava as roupas para lavar e
também era responsável pela limpeza dos quartos. E com freqüência era ela que servia o
café aos hospedes pela manhã. Estela tinha aproximadamente a mesma idade de Martha,
sessenta anos, e trabalhava como faxineira no hotel das cinco até as nove horas da
manhã, quando ia para casa. Sua jornada de trabalho começava, no entanto, às 3h,
quando limpava escritórios para o pai de Frederico em outros bairros da cidade. Tinha
uma mãe muito doente, que necessitava de cuidados hospitalares e por isso trabalhava
durante a madrugada para bem de poder atendê-la durante o dia. Alejandra trabalhava
somente aos fins de semana na limpeza do hotel e atendimento do café dos hóspedes.
Tinha aproximadamente uns quarenta anos.
Alfredo havia começado a trabalhar no Hostel ainda na etapa de reforma do
mesmo. Conforme o que aconteceu, e acontece no processo de aquisição dos imóveis na
região sul da cidade, a casa onde estava localizado o Hostel havia sido comprada em
2001 e até ser completamente reformado o local ficou fechado. Durante esse período
houve tentativas de arrombamento, ou seja, tentativas de tomada da casa. Segundo
Tereza, em razão do pai de Frederico ser advogado, facilmente se retiraram as pessoas
de dentro da casa, ficando Alfredo como responsável pela segurança da mesma.
Paraguaio, Alfredo morava no hotel, em um pequeno quarto no segundo andar da casa,
trabalhava de segunda a sexta, sendo que aos fins de semana ia para casa dos seus
parentes na região do conurbano de Buenos Aires. Através dele que foi possível
retornar outras vezes ao prédio da esquina, cuja reforma estava sob as ordens de Bruno
o arquiteto. Alfredo conhecia todos os trabalhadores desta obra e na companhia dele
foi possível conhecer melhor suas rotinas. Paraguaios como ele, vindos de regiões em
torno da capital Asuncion esses homens costumavam jogar baralho depois do trabalho,
num dos quartos desse velho hotel. Após isso iam para casa, na maioria localizada na
180
região de Avellaneda e no bairro de Constitución. Extremamente calado e tímido, na
companhia desses homens Alfredo era outra pessoa, risonho e extrovertido. Nessa
ocasião, Cesar Augusto, que como Alfredo morava junto ao trabalho, chamou atenção
para a quantidade de paraguaios que havia na região, destacando os populosos bailes
localizados na zona de Allevaneda e de Constitución, onde se tocava musica
paraguaia.
Trabalhadores do Hostel, como Martha, Alfredo, Alejandra e Estela, porém
integrantes de outro perfil profissional, Gustavo e Laura eram atendentes da recepção.
Os dois falavam fluentemente inglês, espanhol e português e Laura também falava
Francês. Tinham formação e experiência na área de turismo, Gustavo trabalhava aos
fins de semana e Laura durante a semana. No trabalho da recepção ainda havia Rocio,
titular de uma vaga que funcionava como um estágio de três meses, onde a cada novo
trimestre o estudante era trocado por outro.
Como outros tantos Hostels espalhados
104
pelo Bairro de San Telmo, o Noster
Bayres alugava quartos coletivos, com ou sem banheiro e possuía uma cozinha para
preparo dos alimentos, no andar abaixo aos quartos. Durante o período de dois meses de
estadia, todavia, foi observado um único uso por parte dos hóspedes, dessas instalações
da cozinha. Com fluxo de turistas prejudicado por causa do surto de Gripe A, o turismo
em Buenos Aires havia caído muito na época de agosto e setembro de 2009. Portanto o
ritmo das ocupações era pontual, apesar de constante. Como hóspedes havia um rapaz
de Córdoba que se hospedava no Hostel durante alguns dias, em função do trabalho;
além dele, houve 2 grupos de jovens: chineses, ingleses; casais: brasileiros, espanhóis,
italianos; grupos de mulheres: alemãs; famílias: alemãs e finlandesas.
Buscado mais por famílias e casais do que por jovens, o Hostel tinha na figura
agregadora de Martha a garantia de uma boa relação com os vizinhos da rua. Foi ela que
me levou até uma dessas casas vizinhas, localizada exatamente à frente. Era a casa de
Tereza e Suzi, duas irmãs que nasceram e cresceram nessa mesma casa, e que hoje
viviam sozinhas nesse patrimônio herdado dos pais. Em resposta a busca por
interlocutores que vivessem no bairro desde antes da transformação da década de
setenta, Fulco anteriormente havia sugerido que eu conversasse com a moça que
104
No site oficial de turismo de Buenos Aires, no entanto, registro de 3 estabelecimentos de
hospedagem para o bairro de San Telmo, em comparação com 13 listados para a região de Palermo e 31
na região da Recoleta e 81 na região do Bairro de San Nicolas que engloba o micro centro da cidade. A
hospedagem em San Telmo, apesar de abundante, a notar pelas placas e letreiros disponibilizados nas
portas dos prédios e das casas com porta para a rua, é uma hospedagem que esta ligada a uma rede de
internacional de turismo, que não necessariamente esta ligada a rede oficial de turismo da cidade.
181
trabalhava no posto de informes da Feira de San Telmo, dizendo que ela era alguém que
se encaixava nesse perfil. Essa moça era Suzi.
O exercício de deslocamento, que envolvia caminhadas por entre as ruas, foi
acompanhado de longas conversas nas cadeiras dos estabelecimentos dos interlocutores
ou em suas casas. Nessas ocasiões, além das entrevistas, era realizada a observação
participante (Malinowski, 1976:25) junto ao armazém onde trabalhava Daniel e Luiz;
junto a casa e ao posto de Tereza na feira; junto ao posto de Fulco na feira; junto à loja
de Victor, no Pátio Ezeiza e junto ao atelier de Alejandro na Rua Balcarce. Entre esses
dois movimentos foi possível construir uma descrição em torno dos ritmos desses
habitantes do bairro a fim de descobrir uma habitação nele ligada ao comércio do
passado, tanto como ao comércio de bairro. A formação dessa rede de relações pareceu
estar no cerne da coesão da tribo que anteriormente mencionávamos. Uma rede que
através dos códigos de vizinhança e de trabalho se formava, contrapunha e mantinha
elementos ligados à tradição, por ora vinculados ao comércio local e de bairro; e os
elementos ligados ao progresso, que por sua vez estava relacionado à instalação de
novos estabelecimentos comerciais, como era o caso do empreendimento de hotelaria a
qual pertencia o Hostel Noster Bayres.
Interseccionando tribos e redes de relações, a Feira de San Telmo mostrou-se
não somente um lugar para a expressão do comércio cultural ligado aos movimentos de
patrimonialização; ela era um importante lugar de trocas e de sociabilidade entre
vizinhos de posto e colegas de trabalho. Uma feira é importante lembrar, que ainda se
mantinha através do comércio de objetos velhos.
6.3 A Feira de San Pedro Telmo, Buenos Aires
Com diferentes fluxos de pessoas, porém de uma maneira uniforme o B. de San
Telmo, aos domingos, e a partir das 10h30 e até as 22h é um bairro bem diferente aquele
dos dias de semana. Na região do Parque Lezama, hordas de mães, empurrando
carrinhos de bebe ou levando suas crianças pelas mãos, sobem as barrancas do parque
em direção à sombra de algumas árvores. Casais de namorados circulam devagar entre
os passeios do parque e alguns turistas circulam fotografando os prédios.
Cheias de turistas estrangeiros, as ruas também ficam repletas de visitantes de
outros lugares da província de Buenos Aires e de outras províncias da Argentina que
vem até San Telmo para aproveitar o fim de semana, para passear, tirar fotos, fruir as
182
feiras, os espetáculos de tango na rua, e as apresentações de Murga - que concentram no
Parque Lezama e através da Rua Balcarce desfilam em direção a Rua Carlos Calvo. No
intuito de ver e ser visto, esses visitantes se misturam com - os vendedores ambulantes,
os vendedores das feiras, os atendentes dos cafés que entram e saem dos
estabelecimentos equilibrando uma bandeja, os vendedores de comida, os artistas e os
sicos formando um fluxo de milhares de pessoas que sobem e descem o chamado
eixo dinâmico a Rua Defensa, desde a Rua Cochabamba até quase Plaza de Mayo.
Especialmente aos domingos, em toda a extensão da Rua Defensa - mais
concentradamente da Av. San Juan até a Av. Belgrano - há muito comércio informal de
artesãos, hippies, músicos, pequenos artistas, vendedores ambulantes de comida, suco,
maní; vendedores de roupas, brinquedos, camisetas, porcelana. Os vendedores com
araras de roupas e com produtos alimentícios: empanadas, pasta flora, pan relleno, café
colombiano, suco de laranja - circulam pela rua, se misturando ao fluxo de pessoas que
desce e sobe a Rua Defensa. Nesse trecho os artesões e o comércio hippie atiram
panos coloridos no chão e o cobrem de mercadorias. Sentados junto ao meio fio das
calçadas, eles a usam como banco para olhar o movimento enquanto vendem os
produtos. Em ocasião desta prática, a rua inteira fica lotada tornando-se difícil, a
exceção de onde há uma esquina, de ingressar em um comércio ou apartamento que
tenha sua porta para a calçada. Esses vendedores andam geralmente em grupos: um
casal com bebe, uma mulher com amigos, um homem e seus companheiros. Eles
normalmente ficam sentados ao lado de suas grandes mochilas, com os amigos sentados
ao lado, ou encostados na parede logo atrás ao meio fio, conversando e, algumas vezes,
fazendo circular na roda uma garrafa de cerveja de litro. Essa disposição espacial quase
não permite que se circule na calçada, pois são muitos panos no chão e muitos amigos
em torno deles. A calçada faz-se, portanto, de uma espécie de fundos do posto de venda,
um lugar privilegiado também para observar aqueles que desfilam no meio da rua,
comprando coisas ou não. A grande questão dessa disposição espacial é que ela não
permite um acesso livre aos comércios pagadores de impostos. O aumento no volume
de pessoas que visitam San Telmo, nos últimos anos, fez com que os panos no chão e as
araras nas calçadas aumentassem e com isso muitas lojas investiram em uma espécie de
guardião para a porta da frente. Esse guardião geralmente é um homem, de quarenta e
poucos anos, que cuida da entrada e saída da loja e controla a sociabilidade e a
ocupação dos artesões da calçada. Tereza, que tem posto na Feira de San Telmo fazem
mais de vinte anos, reclama muito dessa ocupação ambulante que se estabelece aos
183
arredores da feira impossibilitando a circulação e claro, atrapalhando as vendas. Fulco
disse que essa ocupação é lamentável, pois tira do turista o dinheiro aos poucos: ele vai
gastando, gastando aos pouquinhos, em quinquilharias, e quando foram cem pesos,
quantia que ele podia ter investido em uma peça maior, mais artística, não cosas
chinas.
Em torno da Plaza Dorrego o comércio é dividido entre antiquários e Cafés,
basicamente. Em frente ao posto de Tereza, ainda há um hotel - na Defensa quase
Humberto Primo - e um prédio comercial para alugar ao lado. Há também uma
policlínica com entrada pela Humberto Primo, que fica fechada aos domingos. Na Rua
Defensa com a Humberto Primo há os dois prédios mais altos do em torno, residenciais
eles possuem lojas de antiquários na planta baixa. Na Rua Betlem somente casas
baixas, um dos espaços está por alugar e os restantes estão ocupados por antiquários.
Descendo em direção a Calle Bolívar, hotéis, uma casa vazia na esquina,
uma banca de revista e restaurantes/bares. Ainda na Humberto Primo, em direção a
Peru, restaurantes de esquina, e principalmente prédios grandes residenciais, da década
de 80 ou 70, ocupados embaixo por pequenos talleres, e comércios como kioskos e
papelarias. É nessa direção que Alejandro disse que come, pois o custo era mais barato e
os freqüentadores eram mais gente do bairro. Do outro lado, na Humberto Primo em
direção a Avenida Paseo Colon está a Igreja de San Telmo e em frente um colégio que
funciona num prédio histórico, ao lado um prédio novo dos anos 70. Ao lado da Igreja
há o Museu Penitenciário, e do outro lado uma pequena praça e uma quadra de futebol
pequena que está sempre fechada
105
. Do outro lado da rua está o patronato da infância,
ex-PADELAI.
Na Rua Defensa em direção a Av. Independência duas partes de ocupações
comerciais. Nas duas quadras seguintes a praça, a maioria dos comércios são
antiquários, e eles vão até a esquina da Av. Independência. Na esquina da Rua Carlos
Calvo, há uma franquia das lojas de chocolates Havanna e um restaurante tipo bistrô,
descendo em direção a Rua Estados Unidos, há lojas de design de roupas e objetos, uma
garagem, uma entrada para o mercado de San Telmo, a galeria do cine Cecil e alguns
105
Segundo Gabriel, o policial responsável pela guarda do Ex-patronato, essa quadra seria a única em
muitos metros, onde os meninos poderiam jogar ou brincar. Falava isso porque enquanto conversávamos
uns oito meninos em idade de dez anos aproximadamente, pularam o portão cadeado para dentro da
cancha. Pelo juízo de Gabriel isso tão pouco era um delito ou algo não permitido, em face da falta de
espaços para brincar. Isso me chamou a atenção, pela forma como os meninos o cumprimentavam e se
punham a escalar o alto portão em direção ao lado de dentro, como vizinhos.
184
pequenos restaurantes velhos onde se serve pizza com faina, e a decoração das
paredes é feita de bandeirolas de time de futebol.
Na Rua Defensa, atravessando a Av. Independência a ocupação urbana se
modifica. Começam a aparecer mais galerias de arte, tabacarias, cafés, o sítio histórico
El Zanjón de Granado
106
. Repleta de casarios históricos, essa quadra, da Rua Chile com
a Rua Defensa há uma tradicional pizzaria que tem cadeia por toda a cidade, a El
Continental que assim como a Havanna funcionam como franquia e representam o
presente de San Telmo, inserido na dinâmica da globalização das grandes cadeias e na
lógica do consumo de massa.
Na pequena Travessa São Lorenzo pubs, um escririo de engenharia, uma
casa tomada, um baldio, uma espécie de centro cultural, a casa mínima e a casa do pátio,
que é uma casa que tem ligação interna com outra casa na Rua Chile. Funcionando
como galeria e espaço para oficinas em baixo, o local escompletamente abandonado
no primeiro piso. Segundo a única comerciante do local, a casa foi comprada por um
espanhol, que a adquiriu, porém, não lhe promoveu reparos. Com pátio interno e
coberta por plantas e fungos nas paredes, a casa tem duas escadas diferentes que dão
acesso ao piso de cima, que atualmente está com as portas das habitações todas abertas
ou quebradas. Na rua paralela, Chile, ao contrário da Travessa San Lorenzo uma
profusão de cafés um ao lado do outro. Como acontece na Rua Estados Unidos, na
Travessa San Lorenzo uma feira de postos montados que se nominam como artesanos
da calle San Lorenzo. Na Rua Estados Unidos, no entanto, a feira que existe é ligada
ao movimento obreiro e revolucionário, declaradamente contra o atual governante da
cidade, Macri. Somente a feira de San Lorenzo integra o circuito da Feira de San Telmo.
A partir da Rua Chile o bairro passaria a ter outro nome, Bairro Montserrat,
porém a continuidade do fluxo do eixo dinâmico, na Rua Defensa faz com que todos ali
respondam que estão em San Telmo. Nessa quadra comércios pequenos de frutas,
algumas papelerias, e cafés; há um estacionamento, prédios residenciais, o Centro
Cultural Plaza Defensa, restaurantes, um museu do exército e a
Basilica de Nuestra Sra
del Rosario y Convento de Santo Domingo. Atravessando a Av. Belgrano um trecho
ocupado por grandes estruturas de ferro, relativas a reformas ligadas ao Casco Histórico.
Todo esse trecho está em reformas: calçamento, pavimentação e imóveis. Nessa quadra
106
Disponível em: [www.elzanjon.com.ar]. Acessado em setembro de 2009.
185
há Igreja dos Franciscanos e o Museo De La Ciudad, localizado numa antiga casa de
família do bairro Montserrat.
Manejando a Feira desde 1970, o museu possui um departamento exclusivo
para ela, acessado pelo ramal 208. A direção dele hoje está nas mãos de um homem,
que segundo Tereza e Suzi, foi criado por Peña e cujo nome é Eduardo Vazquez.
Totalmente regulada pelo museu, a Feira abre novas vagas para ocupação de novos
integrantes se algum dono de posto morre ou desiste dele. Hoje, como em 1970, o
número de postos é o mesmo: 265.
Montados a partir de uma estrutura de ferro fornecida pelo museu - deixada na
praça aproximadamente às seis horas da manhã de todos os domingos - os postos são
responsabilidade do feirante, que arca com a mão de obra da montagem e desmontagem
da estrutura, e com o deslocamento e armazenamento das mercadorias. No caso de
chuva, a feira se monta igualmente, porém Tereza e sua colega do lado, Irma, nunca vão
à feira quando faz chuva.
Segundo Peña, os antiquários foram os últimos a chegar na feira, que era
exclusivamente de coisas velhas, e não necessariamente de antiguidades. Esse
movimento de antiquários se deu na década de oitenta, período que Tereza considerou
que foi o mais próspero da história de vendas da feira.
A feira funciona das 10h às 17h da tarde, porém Tereza sai de casa, na Rua
Brasil, às 6h da manhã hora que começa a montar seu posto. Em torno das três e meia
da tarde ela começa a desmontá-lo. Ela ainda tem um posto, que divide com uma
colega, no mercado de San Telmo, onde vende os mesmos botões antigos que fazem sua
fama na Feira, e algumas outras coisas velhas que ainda possui em casa.
O caráter familiar narrado por Susi, Tereza e Peña sobre o cotidiano da feira
talvez tenha relação com o fato de que os feirantes são trocados com pouca freqüência.
Acompanhando Susi no posto de informes da feira observa-se a sociabilidade íntima
que entre alguns feirantes: que chegam, conversam, perguntando sobre questões
familiares e cotidianas uns aos outros. Antes mesmo de conhecer Tereza e Suzi, Fulco,
já havia se referido sobre essas irmãs ressaltando que tinham uma história um pouco
triste, fazendo referencia a morte abrupta do esposo de Suzi. A rede proporcionada
pelos trabalhadores ligados a Feira, promovia a circulação de histórias pessoais que unia
e estabelecia as diversas redes de feirantes que ali se estabeleciam.
A rede mais próxima de Tereza, composta por Irma, sua vizinha de posto e por
outros dois vizinhos de numeração, se mantinha fisicamente unida em razão da sua boa
186
pontuação no concurso de fantasias da festa de aniversário da Feira de San Telmo, que
ocorria no segundo e terceiro fim de semana do mês de novembro. Promovida pelo
Museu a festa era integrada por essa atividade, onde cada rede escolhia um tema e se
fantasiava de acordo, promovendo uma espécie de teatro ao público circulante. O
primeiro lugar do concurso tinha o direito de escolher o seu local na Feira, o restante se
distribuía conforme um sorteio, que sem falta ocorria a cada novo ano. Segundo Peña
isso era importante para a circulação e interação entre os donos de postos, porém, essa
não era a visão da rede de Tereza. Diferente de outros donos de postos, Tereza, Suzi e
Irma eram totalmente partidárias as iniciativas e atividades do museu. Suzi além do
trabalho no posto de informes atuava na montagem das exposições ligadas a artefatos
do cotidiano porteño - no interior do museu. Como Fulco, ela e Tereza tinham uma
trajetória profissional ligada ao teatro argentino. Suzi tinha feito parte de diversas
companhias de teatro na década de setenta, e percorrido o país com seu grupo de teatro:
os 33 onde atuava e montava as peças. As atividades do museu, a exemplo da festa de
aniversario da feira eram sempre grandes oportunidades para as irmãs representarem.
Para Tereza estar na feira já era estar representando, opinião que Fulco também
partilhava. Vestida com um grande chapéu colorido bordado com botões, e usando uma
jaqueta onde se lia nas costas o nome do seu posto El divino botón, Tereza não se
intimidava com câmeras, olhares e perguntas, sempre com uma boa anedota para trocar
com os clientes que não raro paravam para olhá-la. O espaço da feira como espaço da
rua, conforme ressaltam Abraham Moles e Elisabeth Rohmer evidencia o caráter de
passagem, re-encontro e descoberta relacionado à última, fazendo da primeira um
micro-evento (Moles & Rohmer, 1982:147) que transforma e condiciona uma forma de
interação jocosa, universalizada na pela categoria Feira.
Vestido quase sempre de vermelho e preto, para estar na Feira Fulco não abria
mão do seu chapéu de feltro, do lenço estilo gaucho e do bigode grande que se
destacava no seu rosto. Também fazia uso de um sino, do qual puxava a corda ou para
receber um bom espírito, ou para se livrar de um mau pensamento. Dono de um grande
bigode, Victor também compunha um personagem para a venda dos seus objetos, na
pequena loja chamada Argot, que ele mantinha no interior de uma casa antiga, na Rua
Defensa. Porém sobre ele nos ocuparemos no próximo item.
O ritmo de vendas da Feira pareceu inicialmente ter relação com fluxo de
pessoas que a freqüentavam conforme se pode ler no diário de campo de 16 de agosto
de 2009:
187
O horário de maior circulação é mesmo em torno das 17h, nessa hora
a rua é o cheia que mal dá para caminhar pelo ritmo próprio. Há que
se cadenciar pelo trote dos turistas que sacam fotos dos pdios, das
apresentações culturais, dos músicos, apontando suas lentes compridas
para todos os lados. O som é de uma mistura de inglês, alemão,
japonês, espanhol, aliado ao psss sissss psisssssis dos ônibus que
passam na rua do lado da Defensa: Rua Bolívar. O som dos diversos
tipos de tango que se pode escutar ao longo da rua, vindo de palcos
improvisados e amplificadores ligados pela ajuda do comércio vizinho
também se misturam no ambiente. Os cafés nessa hora estão cheios, e
se gente entrar e sair deles em cada esquina. A esquina é
privilegiadamente o lugar dos cafés, e a vuelta privilegia a
observação, já que as mesas internas junto às grandes janelas de vidro
deixam ver o movimento da rua. Essa sensação de estar observando o
movimento da rua através das grandes janelas dos cafés é uma
experiência que tive hoje pela primeira vez, dia 16, quando por
convite de Alejandro saímos de sua oficina para nos esquentarmos
com a bebida. Foi então que conheci talvez o mais popular café da
Praça Dorrego, e o mais antigo, chamado Plaza Dorrego Bar, que fica
na esquina da Humberto 1 y Defensa, ao número 1098..
Para aquele que trabalha diretamente na feira, que é o caso de Irma, Tereza,
Fulco e Victor a hora relatada no diário, a das 17h da tarde, apesar da grande circulação
de pessoas, é a pior hora possível para as vendas. Segundo os feirantes a essa hora os
clientes em potencial foram embora e a rua começa a ser tomada por jovens, murgas,
transeuntes sem interesse de compra. O fluxo troca, não é mais um vai e vem até praça.
Ele torna-se um só, em direção a Rua Chile.
Nessa hora apenas alguns donos de postos ainda estão desmontando a estrutura
metálica, como é o caso de Fulco. Nas ruas tem que se tomar cuidado para não ser
atropelado por um carro carregado de sies de vidro coloridos ou outros lotados de
caixas com grandes artefatos em ferro. O som desse desmonte é feito pela mistura: do
atrito da estrutura de ferro com a pedra do chão; dos gritos dos carregadores solicitando
espaço entre a multidão; do ranger dos carrinhos descendo e subindo as calçadas da
feira e do som dos objetos sendo embrulhados em jornal e colocados em caixas de
papelão. A maioria das portas das casas em torno do perímetro da praça, a essa hora
encontram-se abertas para receber os carrinhos com a mercadoria não vendida. São
casas que funcionam como depósito, guardando os objetos de cada posto até o domingo
seguinte, dia de feira. Esses objetos o o patrinio de venda de cada um dos donos
dos postos, capital acumulado, dentro das caixas, enrolados em jornal ou em sacos
plásticos eles já não possuem a magia que o cenário da loja ou da feira os confere. Sobre
188
essa magia dos objetos, ligado ao papel da troca e da mediação, dialogaremos com
Victor, no próximo item.
6.4 Os objetos circulantes e o comércio da memória
Victor é dono de um comércio de antiguidades e chirimbolos chamado Argot.
Um negócio que fica na Calle Defensa, 1179, numa antiga casa da família, de
sobrenome Ezeiza. Ele é um homem de cinqüenta anos, casado, pai de dois filhos. Filho
de pais que tiveram um único emprego no decorrer de toda a sua vida profissional, ele
não tinha recebido deles o capital simbólico que facilitava o acesso no mercado de
antiguidades, porém circulava nele. Questionado sobre a origem da palavra chirimbolo,
que consta no cartão de apresentação de sua loja, ele disse:
- La palabra Chirimbolo? De um lunfardo Argentino. Lunfardo Argentino,
sintetizado em Buenos Aires y en la zona del Puerto, en lo siglo pasado,
siglo desenueve, fin de siglo desenueve, principio de viente, llamavan esta
zona, que era zona portuaria, san telmo, era zona de puerto, veniam muchos
imigrantes, italianos, turcos, arabes, espanholes y juntavan todos por acá
entoces como se cada uno trazia su idioma nativo y van hacendo una mezcla
de palabras y generaran la sintesis de determinados objetos en conjunto,
cosas de poco valor, así como degradatoria no? Chirimbolos, cosas poco
útiles, Chirimbolos...
Descrevendo San Telmo a partir da imagem de uma solidariedade orgânica
(Maffesoli, 2006:171), constituinte das nteses promotora de partilhas, as coisas pouco
úteis significadas na palavra chirimbolo diziam muito daquilo que Victor vendia em seu
negócio e que em grande quantidade circulavam em San Telmo.
- Ahora me parece significativo que supieras que es que el Argot, el nombre
de mi negocio, tiene cosas mágicas, porque en un libro que leí, sí me
comentaba, me interava en algún momento que Argot, que el Argot es como
que un lunfardo en el sur de Francia, sur de Paris, sur de Francia, que
conglomeraba gente que venía de distintos lugares, formávam como que un
Argot, sí? Un lunfardo Y la palabra Argot, sí, para mi estaba limbada
también de otras connotaciones, otros significados que tiene que ver con lo
universo, sí, este, era un libro que estaba leyendo, de gente que venía del
planeta argot, es fantástico no, yo estaba leyendo y me parece fantástica la
historia, ah que linda, pensé en un momento que , cuando tenga un
negocio, que yo estaba con un plan de tener un negocio, voy a llamar Argot.
Por lo universo Argot, me dice no.
Como foi ficando claro durante as várias entrevistas que realizamos Victor, via
nas palavras, assim como nos objetos, constelações de imagens que longe de comporem
uma forma ingênua de enxergar o comércio deles, estavam ligadas a mesma dimensão
189
que Carla e Ainsley agregavam aos objetos quando se referiam a eles como
catalisadores de vínculos e lembranças.
As coisas sem valor, degradadas, partilhadas em um gueto compunham a
explicação de Victor sobre o sentido dos objetos no qual trabalhava. Não que os objetos
que vendesse literalmente estivessem sob essa categoria, porém Victor os classificava
assim para diferenciá-los das antiguidades e para dar-lhes uma lógica de coleção que os
reunia em torno de sua loja. Oriundos de diferentes lugares, procedências, tensões,
contextos e famílias os objetos que ele tinha na loja não podiam ser facilmente
classificados por época, estilo, linhagem, escola ou forma de fabricação, categorias que
facilmente definem a antiguidade de uma peça. Não raro enquanto conversávamos em
sua loja apareciam vendedores, mulheres, crianças e idosos, oferecendo a venda toda
sorte de objetos cotidianos. E essa era a dinâmica da compra nos postos das feiras, das
galerias e das pequenas lojas como a de Victor. Uma circulação de objetos feita porta a
porta, oriundos de sótãos, porões, cantos de antigas casas velhas; circulantes em face da
reforma e transformação do espo dessas casas ou prédios; e circulantes por razões
econômicas, onde o êxito da valorização monetária da cultura cotidiana rendia o
sustento de famílias que tendo esses objetos em casa, os vendia em troca do dinheiro
complementar à renda familiar.
A linguagem do Argot, no entanto, partilhada entre alguns poucos que
dominam seu universo fantástico e fechado parece muito própria para denotar as
histórias que reúnem os portadores de determinados objetos. Como descobrimos na
lógica da transmissão deles, no contexto das famílias de Ainsley e Carla.
Em diálogo a um projeto de ascensão social pelo trabalho com os objetos e
antiguidades, Victor havia instalado seu estabelecimento comercial em uma casa muito
antiga no bairro e estar nela, em relação à avaliação que faz de sua trajeria social, era
estar progressando. A descrição dessa casa pode ser conferida no trecho do diário de
campo realizado dia 9 de agosto de 2009. Nele vemos a observação da pesquisadora a
uma dinâmica na lógica de uso dos espaços das casas e prédios do fim do século XIX.
Conforme foi sustentado no decorrer dessa dissertação o uso dos espaços denota e
representa o contexto no qual estão inseridos, no caso de San Telmo, notamos como
esses prédios e casas - na atualidade, tombados pelo Casco Histórico do município - por
seu tamanho e referencial estético, estão, no presente, destinados a usos comerciais
relacionados ao consumo.
190
A construção onde sua loja está localizada, a exemplo do que também
ocorreu no hotel onde vivo, passou por diferentes usos até os dias de hoje.
No caso do meu hotel, começou sendo uma casa de família, passando depois
a casa de famílias, depois, passou a hospital para crianças, fechado o
hospital, a casa foi tomada por alguns anos, e então só depois, virou hotel,
em 2002. O caso da casa dos Ezeiza não é muito diferente: casa de família,
hospital, casa tomada e depois, no início do século 21, galeria para comércio.
El Patio de los Ezeiza, como pode se ler na placa ao lado da porta que
acesso a essa ex-vivenda de família, tem dois pisos. A planta baixa é
dividida em três pátios internos que o percorridos à medida que nos
direcionamos ao fundo da construção. O corredor de passagem fica a direita,
e à esquerda ficam os estabelecimentos comerciais. Essas lojas ocupam as
antigas áreas internas da casa, e em média o espaço de cada loja é referente a
um quarto. As portas das antigas habitaciones são altas e pesadas,
divididas em duas folhas e abrem metade para cada lado. No primeiro piso,
há uma sacada com vista para a planta baixa que acompanha toda a
construção. duas terrazas nesse piso em forma de quadrado, o piso
delas faz a cobertura que divide os pátios da planta baixa. É uma casa que
não está totalmente restaurada, porém esta minimamente conservada. Ao ir
ver Victor à tarde, era comum encontrar funcionários trabalhando em
melhorias: troca de cabo de luz, concerto de eletricidade, reparação de
rachaduras, reparo de tubulações. Era uma equipe que sempre estava lá,
colocando suas gigantes escadas por cima das portas, se ocupando do
cuidado da casa. As lojas pelo que observei estavam totalmente ocupadas:
por artesãos, artistas, antiquários, briques, havia um único bar/restaurante no
piso de cima, e outros comércios de regalos na parte de baixo.
O pátio, também batizado de Pasaje de la Defensa, era uma das casas
integrantes do Casco Histórico em San Telmo. Localizada numa quadra onde tanto de
um lado como de outro havia lojas de antiguidades, é em uma revista brasileira
especializada em objetos e antiguidades
107
que podemos encontrar uma pitoresca
descrição desse espaço:
PÁTIO DE LOS EZEIZA
BUENOS AIRES (Argentina)
Ir a Buenos Aires e não visitar a Feira de San Telmo, no domingo, é como ir
a Roma e não ver o Papa.
São mais de 500 antiquários comercializando toda sorte de antiguidades,
objetos de arte, decoração e colecionismo, que estendem suas barracas para
muito além da Plaza Dorrego, a mais antiga da cidade depois da Plaza de
Mayo.
O bairro de San Telmo é, na verdade, o local de fundação da capital
argentina e onde as famílias aristocráticas viviam até a metade do século
XIX, em mansões que ainda resistem na redondeza, como o Patio de los
Ezeiza, por exemplo, conhecida tamm como Pasage de la Defensa.
Depois de restaurada, a residência em estilo colonial dessa tradicional
família portenha foi transformada numa galeria de antiquários, em 1981, na
mais concorrida rua desse bairro: Defensa, 1179.
107
Disponível em [http://www.revistaretro.com.br/anter_02_full.htm#OLHO%20M%C3%81GICO]
Acessada em agosto de 2009.
191
Cheio de pequenos lugares comuns o texto é uma importante descrição do
mito
108
de fundação do bairro, centrado no exílio forçado - de San Telmo em direção ao
Bairro Norte feito por famílias aristocráticas da cidade de Buenos Aires, diante um
surto de febre amarela, que assolou a zona no século XIX. Frases como: local de
fundação da capital argentina e Ir a Buenos Aires e não visitar a Feira de San Telmo,
no domingo, é como ir a Roma e não ver o Papa; chamam atenção para a grande
difusão do caráter histórico do bairro, ligado a suas construções residenciais, mansões e
prédios públicos e sua suposta evocação de tempos de outrora, sempre vinculados a
riqueza, a beleza, a história e a raridade.
O mercado de antiguidades em San Telmo, na qual Victor e Alejandro estavam
inseridos diretamente e o restante dos interlocutores indiretamente, através da Feira de
San Telmo toma outra dimensão se pensado através da teoria da troca social de Marcel
Mauss. Fechado e auto-regulado esse mercado resulta numa escala ética importante
para pensar as transformações no bairro, e a relação - entre objetos antigos e
antiguidades ambas, dimensões que estão presentes em seu contexto de
transformação. Para Mauss o mercado é um fenômeno humano que não é alheio a
nenhuma sociedade conhecida (2003: 188), de caráter universalista, ele estrutura as
sociedades, onde os valores trocados nele especificam a forma como ele se apresenta.
Geralmente instalados no interior de lojas com grandes vitrines, o mercado de
antiguidades não funciona na rua como a feira, é feito ao telefone, através de e-mail, por
contatos entre uma rede de colecionadores e vendedores especialistas. Toda a sorte de
objetos vendidos na feira compunha um panorama cotidiano da cidade, que não
necessariamente tinha valor econômico de antiguidade. Falando sobre seu trabalho em
San Telmo, Victor nos ressalta algumas diferenças sobre os valores relativos a esses
objetos:
- Yo hasta dez años aproximadamente era um pasaro libre. Com mi cuerpo
ia donde queria, y cuando decidi instalarme tenia que lograr que esto fuera
unido donde iba permanecer mucho tiempo, para mi forma de estar em
mundo que es activa ay hoube un proceso de adaptación que
afortunadamente lo tengo todavia, por que me vengo com gusto, estoy con
gusto y me voy com gusto, porque eso también es un lugar de trabajo, no es
otra cosa yo no puedo hacer la ilusión que estoy en mi cueva, porque és un
lugar de trabajo. Acaba que me vengo a trabajar, que me vengo a producir,
en particular me vengo a transformar las cosas en diñeiro, sí, por esto estoy
vivo. Entoces, estes cuando no se dá, uno tiene que ir vendo que cosas,
donde estan la necesidades de los cambios para que producidos estos
108
Cf. M. Lacarrieu; R. Bayardo; M. Carman, Espacio, tiempo e imaginarios en el centro historico de
Buenos Aires,1996.
192
generen interese que la gente vengue y compre, por esto estoy modificando,
transformando, lo que antes era un lugar de antiquidades y chirimbolos y
algunas antiquidades transformarlos en las cosas que fueran otra ora viejas
o viejidades se transformem en cosas como que mas modernas, más, más
común a lo gusto de los jóvenes, porque los jóvenes me son de repente os
que me van a comprar.[...] los jóvenes con diñero sí, y también, lo
interesante que los jóvenes que no tienen dinero sí, puedan arreglar
conmigo y lo voy pagando, y cuando termino de pagarlo me lo llevo, cosa
que llego a me pasarme y me parece bien no, como que las cosas tienen, lo
aceso a las compras, cualquier cosa, para todos, que seya para todos, que
no seya ah un lujo venir y comprar en san telmo. San Telmo como que tiene
[...] tiene uma cosa fantasmagorica de ser um lugar caro, sí. Hay de todo,
hay lugares que son muy caros y hay lugares que son más acesibles... esta és
uma galeria, yo no pago muchos alquileres, soy mi único patrón - hace
comillas en la aire-. Los precios son relactivos estan relacionados muchas
veces a los precios que compran las mercadorias. Esas cosas que alguno no
valoran como discos de la década de sesenta, discos que acá los
escuchamos, como de pasta y de este material que no me acuerdo como se
llama
- Vinil? - pergunto
- Hay gente compradora de estos objetos, y como que compro barato y lo
vendo barato no, hacemos esas cosas.
- Hablamos ayer sobre ese valor relativo de los objetos, que es relativo como
que lo precio de compra
- Seguro
- Porque como es relativo decidir o que es viejo
- Lo conocer, lo saber sí, uno a medida que va trabajar en distintos metieres,
en distintos trabajos específicos, uno se esta despierto, va atentando que
cosas tienen cualidad, que cosas no tienen cualidad, va ubicando las épocas
en que fue criada en que contextos social también por que hay distintos
productos para distintas clases sociales, porque siempre hugo juegos, juegos
entre comillas, hablamos de lo lúdico para gente que tiene mucho dinero y
para gente que tiene poco y gente que tiene la media, este degrade de
valores también necesitan ser contados de alguna manera, sí, entonces esta
bien que haga gente, negocios especializados en la materia y otros como yo
que tienen un kiosko y que pueden tener eses objetos que son simples pero
que tienen un sentido, estéticamente lindos no, como por ejemplo ese
payacito pega lo payacito de porcelana y lo manipula - que es una
industria argentina de la década de sesenta, una buena porcelana, una linda
porcelana suelta lo payacito en la mesa otra vez me mira y toma otra
vez lo payacito en la mano y dice: no lo quieres comprar? esta barata
risos.
Como havia observado em Porto Alegre (Gutterres, 2008), Victor ressalta
como o tempo conta na formação de um especialista em antiguidade, tanto para aquele
que vai comprá-la quanto para aquele que vai vendê-la. A garantia de que aquele objeto
é genuíno, que o estado está perfeito, se foi restaurado ou não, qual o material usado, a
que época histórica - escola ou estilo - ele pertence; são informações que são passadas
pelo vendedor. A confiança nele é a confiança na loja, é a confiança no valor do objeto
que será comprado.
193
A transformação do gosto, - e a relação da passagem do tempo, na definição
daquilo que era cotidiano antigamente - se torna um fato importante no arranjo estético
dos objetos, nos postos, feira e lojas como a de Victor. Da mesma forma que numa casa
algumas fotografias têm mais destaque que outras no aparador e alguns objetos são
ressaltados nas paredes ou móveis, o destacamento também é produzido na arrumação
de uma loja. Seguindo outro campo de valores, porém dentro de uma mesma lógica de
seleção, o objetivo de Victor é que os objetos vendam, circulem, porque ai seu negócio
estará funcionando.
Diferente, todavia, da dimensão que os objetos antigos tinham para Carla e
Ainsley, o vendedor de objetos está preocupado com o valor econômico dele e que por
sua vez esrelacionado, como aponta Victor, a diferentes contextos sociais, de gosto e
de mercado.
Nas palavras de Victor, no entanto, a magia dos objetos, também está ligada a
sua trajetória social como comerciante de objetos e a sua instalação na região de San
Telmo, um lugar onde a tradição está na base dos processos de valorização cultural e
econômica do bairro. A capacidade de assombro como a capacidade de deslocar-se no
tempo é trazida por ele para justificar aquilo que move e reúne algumas pessoas em
torno do bairro, porém que também as diferencia de outras. Definir-se como mediador
ou invés de comerciante, é uma adesão de Victor que também fala sobre um estilo de
vida da qual ele se vincula e dos valores que agrega ou procura agregar para diferenciar-
se no seu trabalho.
- Es mucho interesante para mi saber que mi vida tiene un sentido, sí, a
margen de felicidade que uno tiene por cuestiones de la amistades, de
pareja, de hijos, de distintas cuestiones y también que uno tiene sentido en lo
laboral de acuerdo a que uno cree que es lo siente internamente, que es lo
sentido de su vida, me sinto comodo, entonces en el rol de comerciante es
muy frío hace unos gestos con las manos donde evoca lo gestual de la
compra y de la venta compro entonces el cambio, el rol de mediador me
da un sentido más verdadero a lo que quiero sentir a pesar de que soy, vivo
de lo comercio pero en realidad también puedo ser feliz se te regalo esto y
mas feliz se me dan veinte pesos por esto. Es un poco así, como un sentido,
como o que verdaderamente me hace bien.
- Ycomo iniciastes em ese...
- Por accidente. Por accidente, muchas cosas buenas suceden por
accidentes, entendendo accidentes algo que uno no busca, de repente se
presentan, que en la realidad no se esta buscando, o cuando se presentan
uno no ve.[...] Ayer en la década de ochenta tuvo en una métier de compra y
venta de objetos y en aquelle entonces compraba y vendía televisores usados
en blanco y negro y los oferecía eso como segundos televisores para la gente
que necesitaba entre comillas tenia que buscar, tenia que atar dos
puentas, alguien que tenia y alguien que necesitaba, hacías esas cosas no,
194
entonces, en un lugar determinado a comprar los televisores, un sótano de
un edificio y en ese edificio había un cuadro, muy grande, como de noventa
centímetros, largo cuasi un metro diría mede con las manos, espandindo
los brazos en el aire por dos metros de altura, eran tres mujeres cortando
flores en un jardín, era hermoso el cuadro y lo vi como tirado, lo vi como
propenso a ser lastimado sí, era gente que no, se lo habían regalado pero
ocupaba mucho espacio y lo habían tirado aí. Entonces le ofrezco un dinero
por el cuadro, me lo dan, o seya, yo lo compro, era mucho dinero para mi en
aquelle momento entonces lo necesito venderlo rápido, vengo a San Telmo,
lo convierto en un dinero major - toca el teléfono, Victor levanta y se va en
dirección a lo teléfono [...] desde que me enstalé en San Telmo, no acá,
porque acá, esta es una segunda instancia, en una primera instancia estuve
instalado con este amigo conforme comentaba a recen, instalamonos donde
hasta lo ano sesenta funcionaba un cine, sí desde el principio del siglo hasta
63, al siete..., no me recuerdo el número preciso, funcionaba un cine. De acá
hasta cinco cuadras, llamaba Cecil. Transformado en los años ochenta en
galería dividida muy simplemente, estebe ay, nos iniciamos con Alejandro
en esto que araño, Alejandro Ávila un amigo, este que es muy interesante en
eso que hazeres hoy, y nasció lo que hace hoy también hace más o menos
dez anos. Porque probamos comercialmente y lo dejo, lo de el es la creación
y comenzó a crear objetos y lo que aquí se denomina la fundición. Objetos
muy lindos y el tiene, es muy habilidoso con sus manos entonces talla cosas
también, lo da terminaciones a los objetos. [...] se me preguntar, o me
preguntan como me veyo daqui diez anos (suspira) este lugar voy seguir
tienendo y un espacio de garden en otro lugar quizá vendiendo carros, o
objetos de labranza, porque con la nueva tecnología todos eses objetos son
como que de museo para que entonces yo imagino que va estar bien que la
gente viene y visite como trabajaba la gente (risos) hasta lo siglo pasado
como su tecnología, sus enormes tractores, sus enormes moles, hacen un
trabajo que antes hacían esas personas que óooo (imita alguién con mucho
cansacio) trabajaba como, a ver, a tracción a sangre, o a caballos, a
burros quizá yo me veya así. [...] hay dos miradas por lo que me ocurre,
una la de quien se sorprende y dices: oiya, eso y dice como llegó hasta aí, a
esta situación, como una casa tan vieja se mantuvo a ciento y pico de años,
mira, que construcción solida, y otros que pasan sin ver no, nada (gira la
cabeza como se mirase a los lados), hay de todo. Hay de todo, a mi me
sorprende que la gente que entra por la primera vez en un lugar como ese,
vaya hablando de un tema, ajeno a este momento de estar paseando por acá.
Esas cosas yo las puedo distinguir, porque me actitudes es pasivas, yo lo
puedo ver o que pasa por acá. Y también están los otros que ah sus caras de
asombro, sí es muy interesante eso.
A categoria assombro, da qual usa Victor, esta relacionada à capacidade de
enxergar, mais do que a capacidade de ver. Mais do que um lugar de antiguidades, ele
parecia se referir a San Telmo, como um lugar onde a possibilidade de enxergar estava
facilitada pela presença constante desses quadros sociais da memória (Halbwachs,
2005:96) da qual os objetos eram ilustres representantes. Enquadramentos da vida
social, que são resgatados por intermédio de um objeto, uma cena, um fragmento do
passado capaz de reunir na sua existência todo um conjunto de práticas da qual um
sujeito se reconhece, mesmo que não necessariamente a tenha vivido. Essa dimensão do
195
objeto feita por Halbwachs, no entanto não evidencia a tensão que como já vimos por
de trás da construção de um possível quadro da memória. No caso do bairro de San
Telmo, esses quadros são reforçados por práticas de circulação urbana que buscam na
exaltação de um momento cultural da cidade, a instituição de uma memória coletiva
através dele. Porém, conforme vínhamos vendo, para essa instituição alguns espaços se
transformam e nessa transformação escolhas estão sendo feitas e esquecimentos são
gerados por lembranças; e por sua vez também evidenciam intenções econômicas e
políticas específicas.
A lógica do instante, no entanto, conforme ira ressaltará Victor, fundará tanto a
narrativa construtora do seu projeto individual ligado ao trabalho em San Telmo, como
instituirá a conexão que a circulação dos objetos pode proporcionar aquele que circula.
Essa dimensão do presente como núcleo que polariza as diferentes histórias pessoais em
tornos de instantes carregados de sentido, é o que fazem os momentos mágicos, que
nada mais são segundo Victor, sobreposições temporais.
- Yo fue quizá afinando el gusto también, porque me familia no era de
dinero no, de fuente trabajadora, pero había familias que habían
venido de Europa, este mas acaudaladas, tenían otra estructura, otra,
otro modário, entonces eso es una solidez, otra manera, entonces me
fue afinando el gusto [...] todo depende del sentido, del momento, la
oportunidad, solo lo quiero dicir que hoy yo encuentro un tronco de
madero en la mitad de la calle defensa y san juan no vale nada, quizá
yo lo corro, pero eso mismo tronco en la mitad de un río cuando
naufrago el barco que iba, ah es muy importante, na verdad me
parece que esta sujeito a ese tipo de mirada no, porque, hay gente que
todas esas cosas le parecen viejas, cuasí un nada y hay otras que sí,
que valoran no ¿ y esta bueno, esta bueno también despertale una
memoria dormida alí, como me paso en una oportunidad, tuvera un
carriño de bebe decorado con una estampa de los años setenta, sí? Y
una mama, una mujer que pasa y dice, este es lo carrito en que me
llevaban a y en que yo luego le regale a mi hija y este es lo
tapizado que le puso mi hija, y la mujer se puso a llorar, terminamos
siendo amigos, sí, terminamos siendo amigos, pero en realidad ay
una anedota, algo así muy fuerte que na realidad en la contada esa no
tiene la forza emotiva que tuve en aquel momento, creo que fue mas
mágico, mágico.
- Sí, Argot, no ¿
- Argot (rimos), claro, Argot, es una emoción bastante, como que
demodé quizás, la actitude de estar agradecido, yo estoy internamente
muy agradecido a mis padres, a mis hijos, a mi medio, a pesar de
tantas lidas, a pesar, pasan cosas buenos, y que no son
importantes, entre comillas no son importantes para el medio, por eso
no vejo en la tv, a tomar ese momento por ejemplo, los medios no
196
vienen a capturar esa cosa linda que dos personas totalmente ajenas
una da otra y eso parece que no va a existir para otro, pero eso si me
queda en mi memoria emotiva, queda como una cosa muy interesante,
y así como esto muchas otras situaciones que se fueran vivindo,
anedotas que valen para la emoción del momento. Después de la
contada perden peso, mas que existir, existirán.[...] a mi me parece
que son dos encuentros, son dos intenciones, o sea, la intención que
media, entre los encuentros - (saluda un colega con la mano) saludo
a un amigo, hablaba de esas dos intenciones, de esas dos energias de
repente, son canales de expresión fácil y, y tiene un sentido se hagan
fácil, y en otras oportunidades no se , y se no se no tiene en
cuenta, cuando se és que uno tiene en cuenta, cuando no se da, no
se da, no pasa nada. Sí se da, oh que lindo, insisto, eso es como que se
busca sin buscar, se encuentra, internamente uno esta buscando, con
una antenita no ¿ afortunadamente existe esas cosas de la pasión, de
lo espirito, de las personas, tienemos vida, y esa vida tiene energía y
esa energía despierta el futuro, hace valorar el presente en la verdad
tiene un monton de energía acumulada en esa expresión de vida y
toma la dirección que quiere, que se yo, de repente uno puede elegir
estar sentado charlando de este momento, de esas cosas que algo,
tiene que hacer previamente para que se pueda concretar, esa
intención que yo creo que no es mágica, hay una intención, lo otro si
fue mágico, en lo sentido de la oportunidad, es mágico, porque hay
cosas que se pueden y tiene que coincidir en el momento y el tiempo, o
sea, el tiempo, la predispoción, la actitude, y el tiempo tiene que a ver
dos coincidencias, y afortunadamente existirán esas dos cosas. Se
funcionó la predisposición y el tiempo, una sucesión de presentes, una
sucesión de actitudes que hacen un presente muy lindo. Me gusta eso,
como voy llevar o que voy hacer en el presente y tambn lo que hice
en este presente, si, como atitude, como forma de estar, para que,
para que cuando tenga que procurar en la memoria, pueda resgatarla
fácilmente, cuando uno puede imaginar una proyección, también
puede capatarla cilmente. Yo en ese metier tengo que estar muy
esperto para diferenciar lo que es un lindo payasio murano y lo que
es un lindo payasio hecho en china, con una cualidad distinta y todo
eso, esas cosas uno tiene que estar despierto para no equivocarce. Y
es un poco así la metier de ese espirito de explorador.
A intenção mágica do encontro, proporcionada pela troca dos objetos
possibilita segundo Victor, o encontro, aquilo que se está buscando sem buscar. O
passado não vivido, representado pelo objeto antigo, a partir da noção da magia - une os
admiradores torno dele. No relato de Victor, a magia ganha uma nuance que nos leva a
pensar na ligação do objeto com um mundo fantástico catalisador da conexão a um
passado, o objeto se torna a própria condensação de um aspecto dele. Onde a simples
existência dele é garantia do desejo da sua conservação e da sua continuidade, mesmo
que reunida a novos contextos e particularidades. A circulação dos objetos,
197
proporcionada, como coloca Gilberto Velho pela lógica globalizada dos contextos das
sociedades complexas, através do consumo encontra a possibilidade de permanecer, na
lógica descontinua que permite a duração de certo sentido, uma vibração que esta para
além do contexto onde foi originado ou produzido.
As coisas velhas, ou os chirimbolos, como reconhece Victor, não fazem parte
do mercado de antiguidades e dessa forma se relacionam de outra forma com o seu
contexto de origem. Diferente da antiguidade, o contexto dos chirimbolos não segue
parâmetros para ser mensurado senão o do valor agregado de alguma lembrança, ou de
algum esquecimento. Elos fundamentais dessa dinâmica entre o lembrar e o esquecer os
objetos chirimbolos fazem parte desse universo que agencia visão de mundo, cotidiano,
geração e transmissão, conforme vimos nos capítulos anteriores.
6.5 O objeto e seu caráter anacrônico
Falando das sociedades que nos precederam, no início do seu Ensaio Sobre a
Dádiva, Marcel Mauss (2002:189) irá dizer que antes da instituição dos mercadores, e
antes de sua principal invenção, a moeda propriamente dita, antes das formas modernas
do contrato e da venda, que envolve a moeda oficial, poderíamos ver como a moral e a
economia regia essas transações.
Geralmente por gostar de antiguidade ou ter disposição para adquirir o
conhecimento sobre os objetos e as pessoas que circulam na loja e no mercado, o
vendedor acaba adquirindo status de colecionador. Um sujeito que trabalha na maioria
das vezes sozinho, rodeado de dezenas de lustres; porcelanas antigas; cristais;
aparadores; quadros; bustos; santos; brinquedos de épocas e procedências distintas; no
momento que é abordado por um comprador é como se ele assumisse a posse dessas
peças, e falasse a partir delas. O vendedor adquire nessa hora o status de conhecedor, o
status de colecionador daquela quantidade de objetos.
Conforme o antropólogo Gilbert Durand, em sua obra As Estruturas
Antropológicas do Imaginário (2002), o imaginário exige que os contradirios sejam
pensados numa síntese. Portanto, quando i falar de história, falará de uma síntese
histórica, ou seja, uma história que contempla os estilos e as formas de pensamento de
todos os povos no tempo. Aderindo a essa linha de interpretação - como forma de pensar
como os povos organizam suas ões e transformações no tempo - podemos pensar a
construção da antiguidade para as peças vendidas em estabelecimentos como o de
Victor: com objetos oriundos, de mais uma das construções históricas possíveis e
198
imaginadas pelo homem. Pensando dessa forma podemos compreender melhor o que é
agenciado por quem adquire uma antiguidade dentro das representações da história
ocidental, da história da nobreza, da história da riqueza. Representações que esses
sujeitos que compram e que vendem - percorrem na construção de uma explicação
para o valor de antiguidade desses objetos.
Para dar conta da composição do que ele chamou temporariamente de
diversos, Marcel Mauss no seu ensaio As Técnicas do Corpo fará um esforço em
esclarecer aquilo que ele supunha: poderia unir e diferenciar, numa observação da
expressão corporal, diferentes grupos, épocas, origens e composições de sociedades
diferentes. Falando de uma maneira adquirida e o uma maneira natural de andar,
Mauss estará falando da cultura como formadora das expressões e formas de
movimentação do corpo. Ele descreve o Habitus (2003:404) como a palavra que melhor
exprime hábito, no sentido do adquirido, no sentido da faculdade de. Habitus para
Mauss não designa os hábitos metafísicos, a memória misteriosa, sua implicação era
descobrir que a estrutura social contemplava a educação dos corpos, construindo formas
de expressão e ação no mundo. Um corpo, pela sua expressão, revelava o contexto
social em que estava uma pessoa ou o contexto social que queria se inserir, que
Mauss também observava o caráter de maleabilidade do corpo, no sentido de ser ele um
instrumento da cultura.
Esses hábitos variam não simplesmente com os indivíduos e suas
imitações, variam, sobretudo com as sociedades, as educações, as
conveniências e as modas, os prestígios. É preciso ver técnicas e a obra da
rao prática coletiva e individual, lá onde geralmente se vê apenas a alma e
suas faculdades de repetição. (Mauss 2003:404)
Chamando a atenção para as construções sociais, Mauss nos remete a
capacidade humana que Hobsbawn (1984:271) irá enxergar como a faculdade de
inventar tradições. Falando do período de 1870 a 1940 esse autor estará preocupado em
observar as invenções oficiais que foram realizadas no decorrer desse período como
forma de instituir nações. Hobsbwan ressalta a formação de grupos de pertencimento
em torno de um mesmo sentimento compartilhado e evocado por um símbolo que por
sua vez remete a um todo maior. Pensados pelo autor: a bandeira, o hino, a construção
de rituais patrióticos foram eficazes para delimitação de um tipo de cidadão e para a
criação de um passado glorioso para os países ainda em formação. Grupos sociais,
ambientes e contextos sociais inteiramente novos, ou velhos, mas incrivelmente
transformados, exigiam novos instrumentos que assegurassem ou expressassem
199
identidade e coesão social e que estruturassem relações sociais (1984:271). Com base
nessas argumentações podemos pensar que essas antiguidades também estão envoltas na
construção de uma tradão. Uma fabricação que passa pela definição das qualidades
evocadas a partir da idéia de uma magia. A magia como tradição compõem um
mosaico que integra sentimentos de distinção, de gosto pela arte, de uma busca pelo
sagrado. Que a partir do reconhecimento comum, forma grupo de colecionadores, de
admiradores e amantes de antiguidades ou vejidades, os reunindo em torno dessa
concepção de magia como aquela que funda o desejo deles por determinada peça antiga.
Na classificação de um Sistema dos Objetos, Baudrillard (2004) vincula o
objeto antigo ao objeto marginal, os caracterizando como contraditórios às exigências
de um cálculo funcional (2004:81-84) que respondem a ordem do testemunho, da
lembrança, da nostalgia e da evasão. A tentativa de vê-los como uma sobrevivência da
ordem tradicional e simbólica, mesmo que, integrantes de parte da modernidade é o que
o autor destaca como o duplo sentido desses objetos.
A evidência do duplo sentido, da qual narra o autor no trecho que destacamos,
está relacionada à reflexão dele em torno da função dos objetos, intento que permeia
toda sua obra. O duplo nada mais é do que a manifestação nos objetos antigos de
elementos não facilmente mensuráveis para o quesito função. Ligado a semiologia, o
simbólico de que fala Baudrillard está relacionado à característica quase palpável
contida nesses objetos antigos. Entendendo o mbolo conforme a teoria de Durand
(2002), uma imagem é um símbolo por si, o contém ou é integrado por nenhum outro
atributo. Autônoma ela pode reunir em torno de si, outras tantas imagens que em
conjunto constelem uma relação de sentido, pom ainda assim, permanecem como
símbolos puros. Os objetos - conforme vimos ao longo desse trabalho - são imagens
poderosas, pois emanam em torno deles uma constelação de sentidos, agregados por
histórias, anedotas, matéria vivida.
Um objeto pode estar ligado ao seu contexto de fabricação, a forma peculiar
como foi manufaturado, como coloca Carlo Ginzburg, na introdução de Os Queijos e os
Vermes (2006), ao discutir que o valor de fabricação de determinado objeto é muitas
vezes o valor do objeto. Um valor invisível, mas presente na impressão de um valor
econômico gradativo, que é passado adiante no tempo da cultura.
Um objeto pode estar ligado ao compartilhamento de um mesmo imaginário
cronológico de uso: a quem pertenceu, por onde passou, a sua origem, a qual contexto
era usado. E isso é bem explorado por Baudrillard, nos diversos níveis de valores no
200
qual se busca enquadrar os objetos antigos: historicidade, mito de origem, autenticidade,
restauração, valores que no mercado do antigo são amplamente produzidos e
consumidos.
No entanto, a dimensão que buscamos explorar aqui é a do objeto e o seu
caráter anacrônico. Enquanto as antiguidades existem por seu caráter diacnico: uma
peça que representa a história de determinada cultura ou gosto no tempo, narrando
assim um desdobramento dessa cultura até o presente; e do seu caráter sincrônico: essas
peças só existem por seu deslocamento e isolamento em relação a um contexto histórico
específico, detalhe isolado pelo presente. O objeto anacrônico é um objeto na condição
de álibi, ele está em outro lugar, está fora do tempo, porque é, ele próprio, narrativa do
tempo. Fragmento de um sentido, evocação de histórias, ele é uma estrutura onde a
memória repousa, na descontinuidade, nas pequenas micro-rupturas, força motriz da sua
circulação.
Assumindo formas diferentes o tempo em cada espécie de objetos é evocado
pela troca e pela transmissão. Dentro das moralidades fundadoras da troca da qual
ressalta Mauss, o papel de mediador no qual assume Victor concentra o hau em seu
caráter latente. Estrutural, o objeto é então morada do tempo. Está aberto a não uma,
mas a diversas formas narrativas.
Dessa forma, a tragédia volta a figurar aqui como risco do esvaziamento de si,
de uma visão de mundo, de representações de mundo. Onde o risco do esquecimento,
agregado ao ato de dar-lo ou vendê-lo é também a possibilidade da lembrança daquele
que esqueceu, a partir do reencontro dessa sensação de perda, promovida pela
circulação dos objetos no mundo. Uma circulação que também evidencia a dialética da
lembrança e do esquecimento, da posse e da doação, da compra e da venda. É claro que
na dinâmica da produção de objetos em série a gica da compra e venda não parece
estar relacionada com a dinâmica do apego e do desapego, no sentido de que os objetos
produzidos em série, não parecem ter nenhuma peculiaridade anacrônica. No entanto, ao
levar algo para casa, seja o objeto um refrigerador novo, a circulação é realizada e o
sentido de pertencimento gerado, diferente, para cada um dos seus possuidores. Em
suma, em suas diferentes adesões, escolhas, lembranças e esquecimentos, destacamos os
objetos no seu caráter circulante como um aporte importante para pensarmos a
capacidade humana de produção da cultura.
201
CAPÍTULO 7
DO PÓ AO CONCRETO, DO CONCRETO AO
ADESÕES E RUPTURAS DE UMA ETNOGRAFIA DA DURAÇÃO
Compreender está preso ao código de transformações que assegura
uma correspondência e homologia a níveis distintos da realidade
social (Paul Ricoeur, 1978:36)
Estudante de Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul eu
integrava como free-lance diferentes equipes de profissionais que produziam
documentários e programas para televisão comercial aberta de Porto Alegre no Estado
do Rio Grande do Sul. Trabalhava principalmente na produção desses programas e na
assistência aos diretores dos episódios. Meu trabalho consistia em telefonar previamente
para diferentes instâncias das localidades que iríamos visitar: associações de bairro,
prefeitura, casas de folclore, casas paroquiais, museus e também para casas familiares, a
fim de encontrar personagens que pudessem compor os programas que estávamos
produzindo. Os temas dos programas em geral cercavam algum aspecto inusitado da
região: uma história conhecida na comunidade, um causo famoso, um personagem
controverso; ou estavam sendo produzidas em torno de alguma data comemorativa das
imigrações - italianas e alemãs - no estado. Essa experiência de produção fez-me
percorrer e mergulhar - mesmo antes de ir ao local a ser gravado - em contextos de vida
e aspectos temporais muito distintos, trazidos ora pelos livros pesquisados, ora pelas
descrições feitas pelos personagens através do telefone.
Uma experiência que distinta da antropologia também tinha seus choques entre
representações, ou seja, entre aquilo que eu imaginava das pessoas que iria encontrar: a
partir de sua voz ao telefone, do ritmo do seu sotaque, da sua descrição sobre si mesma
e sua família; daquilo que eu imaginava do lugar onde elas viviam: a partir das
indicações espaciais que elas narravam para que pudéssemos encontrar sua casa, da sua
descrição do local de moradia e o contraste dessas imaginações com aquilo que víamos
ao chegarmos a casa delas ou no lugar sugerido para a gravação.
Essa capacidade de projeção e imaginação daquilo que irá ou poderá acontecer,
foi uma habilidade que encontrou novos parâmetros e novos disciplinamentos dentro da
antropologia e da produção da etnografia. Pois é uma faculdade composta de dilemas
éticos, epistemológicos, teóricos e metodológicos que apreendemos no decorrer do
202
mestrado em antropologia social. E todos eles convergem na delimitação do como e o
que fazer com o que foi visto e escutado?
No caso da produção dos documentários, o que era visto e escutado, era
trabalhado e editado conforme as diretrizes dadas pela empresa de televisão e pelo
roteiro montado a partir do que tinha rendido das entrevistas e produção de imagens
dos locais. Quando parto dessa experiência profissional para a aventura antropológica
de produzir o conhecimento sobre os processos de descobrimento do Outro, estou me
convertendo também ao dogma de diretrizes. As diretrizes da disciplina antropológica.
Sobre a pesquisa em ciências sociais o antropólogo Roberto Cardoso de
Oliveira afirma que as ciências sociais estaria disciplinada pelos paradigmas e teorias,
através do caráter constitutivo do olhar, do ouvir e do escrever, na elaboração do
conhecimento próprio das disciplinas sociais (Oliveira, 2000:18). Ao preocupar-se com
o ouvir, Roberto Cardoso de Oliveira aponta para o caráter dialógico da relação entre
pesquisador e informante no momento em que este último é transformado em
interlocutor, ou seja, enfatiza a habilidade de ouvir o nativo e por ele ser igualmente
ouvido (Rocha & Vedana, 2009:38).
Com experiência em produção de imagens e em assistência de direção de
programas para televisão me aproximei da disciplina da Antropologia Visual e do
trabalho desenvolvido no Projeto Banco de Imagens e Efeitos Visuais - BIEV, através
da professora Cornelia Eckert. Em ocasião da gravação de uma entrevista para um
programa de televisão sobre a memória da imigração ale no estado, onde o
personagem era o seu pai, Kurt Eckert, Cornelia comentou-me sobre o trabalho
antropológico que tinha por tema o estudo da memória coletiva desenvolvido no BIEV.
Nesse mesmo ano fiz uma tentativa de cursar algumas disciplinas das ciências sociais
indicadas pela professora Cornelia, aproveitando meu nculo com o curso de Artes
Visuais, a qual freqüentava fazia alguns anos. O ingresso no BIEV, no entanto, se daria
quase um ano depois, através de uma seleção para uma bolsa de iniciação científica
vinculada ao trabalho no grupo do vídeo.
Como estudante de Artes Visuais e uma graduação em ciências da
comunicação, obtive por três anos iniciação científica em antropologia, junto ao projeto
"Coleções etnográficas, itinerários urbanos e patrimônio etnológico: hipertextos e
intertextualidades na produção de novas escritas etnográficas"
109
e junto ao projeto
109
Formação científica contemplada com Bolsa de Iniciação Científica CNPq do período de abril de 2005
a 2007.
203
Coleções etnográficas, Itinerários urbanos, Memória Coletiva no Mundo
Contemporâneo na Era das Textualidades Eletrônicas
110
dentro do Banco de Imagens
e Efeitos Visuais com orientação da antropóloga Ana Luiza Carvalho da Rocha. Esses
dois projetos do qual integrei foram desdobramentos do projeto de pesquisa inicial que
deu origem a criação do BIEV. Como integrante desses dois projetos integrei
voluntariamente a equipe de pesquisadores da Série Documental Narradores Urbanos
olhares em Antropologia Urbana
111
na qual participei da construção do roteiro e da
edição dos documentários. Ainda na linha da memória da antropologia editei junto com
a orientadora dessa dissertação, Cornelia Eckert, um vídeo
112
sobre a trajetória de
pesquisa de Roberto Cardoso de Oliveira. Na linha dos estudos de memória e
envelhecimento editamos outro vídeo
113
sobre a sociabilidade entre velhos moradores de
uma cidade no interior do estado do Rio Grande do Sul.
Iniciado em 1998, o projeto Banco de Imagens e Efeitos Visuais: coleções
etnogficas, itinerários urbanos e patrimônio etnogico foi criado em 1998 por Ana
Luiza Carvalho da Rocha e finalizado em 2007. Vinculado
114
institucionalmente ao
Laboratório de Antropologia Social LAS, ao Núcleo de Pesquisa sobre Culturas
Contemporâneas NUPECS e a linha de pesquisa em Antropologia Visual e da Imagem
coordenado por Cornelia Eckert no PPGAS/ UFRGS a partir de 1993, os projetos
subseqüentes ao BIEV acabaram sendo vinculados a ele. Não somente pela sigla, mas
por um mesmo núcleo de preocupações teórico-conceituais e metodológicas ligadas à
pesquisa da: memória coletiva, meio ambiente, cotidiano, formas de sociabilidades,
itinerários, trajetórias sociais, narrativas biográficas e estética urbana, em sociedades
complexas; através do uso de novas tecnologias, com vistas no: tratamento, resgate e
recuperação do o patrimônio etnológico do mundo urbano contemporâneo
115
.
110
Formação científica contemplada com Bolsa de Iniciação Científica CNPq do período de 2007 a
janeiro de 2009.
111
No âmbito desse projeto foram construídos os documentários sobre a obra intelectual e a trajetória de
pesquisa de Guilherme Magnani, Gilberto Velho, Ruth Cardoso, Eunice Durham e Ruben Oliven.
112
Iluminando a face escura da lua entrevista com Roberto Cardoso de Oliveira, NTSC / 60 min /
MiniDV / 2007.
113
O clube do pauzinho, NTSC / 25 min / MiniDV / 2007.
114
O grupo de pesquisa ligado ao BIEV, possui uma sala de trabalho onde são desenvolvidas as
investigações e experimentos acerca da produção de imagens e onde funciona também a sede do acervo
de imagens que integram o Museu Virtual: fitas Mini DV, Fitas BetaCam, fotografias, revistas, CDs,
DVDs, documentos e recortes de jornais. E também onde está localizado o servidor onde são guardadas
digitalmente as coleções e as imagens resgatadas dessas fontes de origem, pelo tratamento documental
desenvolvido pelos Grupos de Trabalho em Som, Vídeo, Fotografia e Texto que integram a pesquisa no
BIEV.
115
Para mais informações sobre os projetos reunidos em torno dessas preocupações acesse
[www.biev.ufrgs.br]. Disponível em janeiro de 2010.
204
Herdeira dessa tradição de autores e preocupações etnográficas com a produção
e o acervo do patrimônio etnológico, ao ingressar no BIEV - e com a intenção de uma
formação na área da pesquisa científica eu cursei algumas disciplinas do Bacharelado
de Ciências Sociais, na UFRGS: leituras etnográficas, antropologia simbólica e métodos
quantitativos; e participei sistematicamente dos eventos, palestras, seminários, mostras
de vídeo, exposições fotográficas e cursos promovidos pelo BIEV no âmbito do
Programa de s-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Foram três Feiras de Iniciação Científica, duas Reuniões de
Antropologia do MERCOSUL e uma Reunião Brasileira de Antropologia,
oportunidades em que apresentei o progresso da pesquisa etnográfica desenvolvida no
nível dessa iniciação cienfica, desenvolvida junto a este projeto de pesquisa.
Os desafios propostos pelo trabalho com imagem a partir da metodologia das
coleções etnogficas foram ao longo desse período sendo discutidas nas reuniões
semanais do grupo, pautadas por leituras vinculadas a orientação teórica e conceitual do
Projeto BIEV. Um arcabouço de autores ligados a linha de uma antropologia
interpretativista e simbólica, a um paradigma intelectualista, com universo de pesquisa
associado a uma noção das sociedades complexas moderno-contemporâneas, inserido
nas discussões sobre a formação das cidades modernas e dos postulados do
individualismo moderno. O novo paradigma para os estudos acerca da memória
(Eckert & Rocha, 2005:148) proposto pelo conjunto de projetos de pesquisa encadeados
do projeto do Banco de Imagens e Efeitos Visuais BIEV- foi se delineando como tal à
medida que eu produzia conhecimento em torno de uma abordagem conceitual acerca
da memória, apreendida a cada reflexão sobre uma nova saída de campo. Um paradigma
orientado por uma adesão fenomenológica e formista das relações sociais, por uma
adesão hermenêutica e imagética ao conceito de narrativa, e uma reflexão sobre o tempo
preocupada com as descontinuidades nas representações do mesmo.
Formada nas circunstâncias e vinculada às orientações teórico-conceituais
acima descritas essa dissertação se construiu por uma adesão a esse trabalho com a
memória construído no âmbito dos cinco grupos de pesquisa integrantes do projeto
BIEV. Nesses cinco grupos, ligados a diferentes suportes da imagem etnográfica -
texto
116
, som
117
, vídeo
118
, tecnologias da informática
119
e fotografia
120
- pesquisamos as
116
Coordenado pela antropóloga Ana Luiza Carvalho da Rocha o GRUEE GT Escrita e Etnografia é
formado pelos pesquisadores e estudantes: Stéphanie Bexiga, Rafael Martins Lopo, Priscila Farfan
205
imagens do tempo que agenciadas pelos jogos da memória emergem dos sujeitos a qual
dialogamos em nossas investigações. Em torno do método das coleções etnográficas as
representações produzidas nos diferentes suportes o sofrem hierarquia uma sobre a
outra e sim, estão sobredeterminadas por uma mesma imagem. Ou seja, a entendemos
como oriundas de contextos heterogêneos, porém compostas por uma mesma formação
inconsciente.
Participando efetivamente e inicialmente dos grupos de pesquisa em vídeo e
texto do Banco de Imagens e Efeitos Visuais e posteriormente do grupo de tecnologias
da informática, foram neles que encontrei espaço de discussão para as percepções,
emoções e sensações oriundas das experiências etnográficas iniciais na cidade,
conforme vimos no capítulo um. E foi através dos instrumentos metodológicos de cada
um deles - no âmbito do grupo do texto, exercícios e análise das diferentes escritas
antropológicas e no âmbito do grupo do vídeo
121
, descrição, transcrição e seleção de
planos gravados que pude apreender em cada uma dessas ações o deslocamento
epistemológico que possibilitava a descoberta das imagens que constituíam tais
registros como dados antropológicos. As discussões e reflexões nos grupos de pesquisa
do BIEV permitiram, posteriormente, no decorrer do curso de mestrado em
Antropologia Social refletir sobre o fenômeno pesquisado à medida que ele também
sofria transformações, inclusive transformações ligadas ao meu amadurecimento como
pesquisadora.
Vinculada desde a iniciação científica a linha de pesquisa da antropologia da
imagem e antropologia urbana, meu objeto de estudo se desenvolveu em diálogo com os
estudos antropológicos, de tempo e espaço a partir da memória e das narrativas.
Barroso, Luciana Caldas Tubello, Marize Schons, Renata Ribeiro, Ana Paula E. Parodi, Pedro Paim e
Maria Cristina França.
117
Coordenado pela antropológa Viviane Vedana, o GRUES GT Etnografia Sonora é formado pelos
pelos pesquisadores e estudantes: Priscila Farfan Barroso, Stéphanie Bexiga e Ana Luiza Carvalho da
Rocha.
118
Coordenado pelo antropólogo Rafael Victorino Devos, o GRUVI GT Narrativas Etnográficas em
Vídeo é formado pelos pesquisadores e estudantes: Luciana Caldas Tubello, Marize Schons, Ana Paula
E. Parodi, Pedro Paim, Stéphanie Bexiga, Rafael Martins Lopo e Renata Ribeiro.
119
Coordenado pela antropóloga Ana Luiza Carvalho da Rocha o GRUWEB GT Tecnologias da
Informática e Acervos Digitais é formado pelos pesquisadores e estudantes: Luciana Caldas Tubello,
Marize Schons, Ana Paula E. Parodi, Pedro Paim, Stéphanie Bexiga, Priscila Farfan Barroso, Rafael
Martins Lopo e Guilherme Deporte.
120
Coordenado pela antropóloga Cornelia Eckert, o GRUFOCO GT Fotografia e Coleções Etnográficas
- é formado pelos pesquisadores e estudantes: Luciana Caldas Tubello, Ana Paula E. Parodi, Priscila
Farfan Barroso, Stéphanie Bexiga, Rafael Martins Lopo.
121
Sobre a metodologia desenvolvida no GT Narrativas Etnográficas em Vídeo, ver: DEVOS, R. V..
Filmes de memória como hipertextos. Revista Chilena de Antropología Visual, v. 10, p. 137-162, 2007.
Dispovel em: [http://www.antropologiavisual.cl/rafael_devos.htm].
206
Investigando o simbolismo da morada e nas narrativas biográficas como forma de
entender a duração trans-geracional de um conjunto de bens e valores representativos do
patrimônio familiar, investiguei as transformações no estilo de vida e visão de mundo de
camadas médias urbanas, em Porto Alegre, relacionadas à problemática do patrimônio
cultural nas grandes metrópoles contemporâneas. Trilhando os caminhos e obstáculos
epistemológicos que transformaram uma intenção de pesquisa em antropologia em um
objeto de estudo orientado pelos conceitos do campo da Antropologia das Sociedades
Complexas.
A partir da adesão teórica ao projeto BIEV, a cidade de Porto Alegre e depois
posteriormente a cidade de Buenos Aires, passaram a ser compreendidas como objetos-
temporais (Eckert & Rocha, 2002:10). Metrópoles de diferentes escalas geográficas e
temporais que a partir da perspectiva da memória e dos estudos sobre o tempo, são
contadas e re-contadas, construídas e destruídas através da narrativa dos grupos que nela
habitam. Orientadora de laços e pertencimentos, de espaços e tempos na cidade, a
memória coletiva (Halbwachs, 2005), como vimos no decorrer nesses dois contextos de
cidade, foi entendida como a mantenedora de alguns itinerários, lugares, moradias
mesmo com dissolução concreta deles. No sentido dessa dissolução, em face ao ritmo
das modificações dos espaços urbanos, através de políticas de planejamento urbano
sempre em mutação, o cotidiano das metrópoles através dos estudos de memória na
linha dos trabalhos de Cornelia Eckert e Ana Luiza C. da Rocha tiveram uma
possibilidade dinâmica de entendimento.
Reunindo autores vinculados à psicanálise, a lingüística, a filosofia, a
epistemologia em torno de uma reflexão antropológica, Cornelia Eckert e Ana Luiza
Carvalho da Rocha desenvolveram um conjunto de técnicas, procedimentos reunidos
em torno de uma metodologia para pesquisa com imagens, cunhada por Ana Luiza
Carvalho da Rocha como método de coleções etnográficas
122
e da qual manifestamos
adesão no capítulo dois. Um método discutido e aprimorado dentro dos grupos de
trabalho do BIEV, e em torno dos problemas etnográficos de cada pesquisador
integrante desses grupos.
Campo de força dessas coleções, a duração bachelardiana, conceito chave para
o desenvolvimento de uma etnografia da duração põe em evidência os conflitos dos
122
Sobre esse método ver: ROCHA, Ana Luiza Carvalho da. Coleções etnográficas, método de
convergência e etnografia da duração: um espaço de problemas. Revista Iluminuras. Vol. 9, N 21 (2008):
todo e Interpretação na Construção de Narrativas Etnográficas.
207
instantes, dos ritmos sincrônicos que configuram o tecido temporal (Eckert & Rocha,
2005:151) e essa idéia da continuidade e da sucessão temporal no seio da
descontinuidade é o princípio de construção do acervo de imagens que reúne imagens
de diferentes investigações ao longo dos anos de existência do projeto BIEV. A reunião
das imagens dessas pesquisas e - da qual as imagens da coleção oriunda do processo de
construção dessa dissertação também provém e farão parte - documentadas em um
museu virtual (2005:180), proporcionam formas de recuperar o patrimônio
etnogfico do mundo contemporâneo.
A ruptura epistemológica implícita a essa minha conversão - de produtora de
imagens a produtora de imagens etnográficas - e a adesão teórica e metodológica que
repudia a separação da consciência imaginante das imagens concretas que
semanticamente as constituem (Durand, 2002:377) construíram o caminho que trilhei
no curso dessa dissertação. Pensando na história da antropologia desde os primeiros
cronistas de viagens e exploradores coloniais até as exigências metodológicas e teóricas
atuais, a intenção desse percurso foi a de construir junto com os autores da linha de
pesquisa onde atuo antropologia da imagem e antropologia das sociedades-complexas
- uma reflexão antropológica sobre o fenômeno pesquisado e a partir dela interagir com
o campo de conhecimento da antropologia.
A orientação do colega Rafael Devos, coordenador do grupo do vídeo desde o
meu ingresso no BIEV, foi fundamental na construção do vídeo em DVD
123
onde
construí uma primeira narrativa videográfica da experiência de desocupação da casa de
Ainsley e Carla e da qual uma cópia dei a elas após sua finalização. A produção desse
documentário foi uma primeira tentativa de reunir imagens de diferentes feições da
categoria analítica Ritmos Temporais e da categoria analítica Representações
Sociais - integrante da rede conceitual do BIEV, e integrantes da constelação das
imagens das minhas coleções - em torno de uma narrativa em vídeo.
A formação em comunicação, a experiência em produção de vídeos, e a
passagem por uma faculdade de artes plásticas, compuseram uma trajetória de
investigação onde a imagem configurou-se numa constante ou, onde ao menos a
intimidade com ela, o era. No entanto, foi aderindo ao arcabouço teórico-conceitual e
metodológico do BIEV que tive condições de refletir sobre a composição simbólica das
imagens e através da noção de duração a uma compreensão delas como integrantes da
123
Do Concreto ao pó, NTSC / 31 min/, 2007.
208
experiência, ao mesmo tempo individual e coletiva, e por isso integrante de todas as
culturas.
Pela adesão ao semantismo das imagens e perseguindo essa obra de recordar,
partida da intenção presente e onde nenhuma imagem surge sem razão, sem associação
de idéias (Bachelard, 1988:51 apud Eckert & Rocha, 2005:154) que podemos reunir,
no espaço dessa dissertação, contextos tão diferentes como os de Buenos Aires, de Porto
Alegre e de outras cidades e bairros que integram a constelação de imagens evocadas
nessa investigação. Através da etnografia da duração, o tratamento da memória como
conhecimento de si e do mundo por parte dos interlocutores que dialogaram conosco
nessa pesquisa permite que reunamos narrativas de diferentes contextos à medida que
elas remetem a uma mesma forma de narrar o tempo. Em propósito com a afirmação de
Bachelard, de que compomos nosso passado, e onde humanidade não é simples
repetição, ela é uma narração.
O contexto de formação vinculado a um projeto de construção de um Museu
Virtual preocupado com o acervo de um patrimônio etnológico de imagens abriu a
possibilidade de trabalho com imagens etnogficas de diferentes contextos sem que
para isso fosse realizada uma abordagem comparativa entre seus contextos de origem.
A idéia do patrimônio etnológico busca promover justamente a singularidade do
fenômeno a partir da diversidade das imagens consteladas pela coleção. Imagens que
em sua potência narrativa, seja em vídeo, som, texto ou fotografia possuam a faculdade
de relacionadas a outras promoverem uma narração de aspecto, estado ou representação
do vivido. Uma potência, no entanto, que nada mais é do que a capacidade de duração
de certas formas sociais em sua dinâmica de construção produtiva, ou seja, na sua
dinâmica de hesitação, dinâmica lacunar, e desconnua.
Na adesão a descontinuidade como promotora da duração o paradigma da
memória promove a construção do pensamento antropológico através de sua situação
epistemológica peculiar (Eckert & Rocha, 2005:148) investindo na faculdade de que a
disciplina reflita sobre si mesma. Apostando na duração da história pessoal do
indivíduo interlocutor ou do indivíduo pesquisador, como nada mais do que a narrativa
de nossas ações descosidas (Bachelard, 1989:39), pensar sobre a interlocução
promotora da interação e dos processos da produção do conhecimento originado dela,
dentro da abordagem do BIEV é contá-la, por meio de razões não por meio de durações.
Pensar na trajetória de investigação como espaço para concluo das adesões e
vínculos feitos durante a investigação, é pensar na experiência da nossa própria duração
209
passada, que por sua vez, se baseia para Bachelard, em verdadeiros eixos racionais, sem
os quais o arcabouço da nossa duração se desmancharia. Na linha dos estudos de Alfred
Schutz sobre as motivações que movem a experiência, e retomando a comunhão de
sentido do qual nos fala Gilberto Velho finalizamos nos perguntando sobre um grupo
de decisões experimentadas (1989:39), onde repousa a pessoa do pesquisador e a
pessoa dos interlocutores a fim de encontrar a interdependência da presença do Outro na
construção dessas narrativas orais, visuais e textuais.
A etnografia da duração por fim, no processo de construção do pensamento que
sintetiza essa investigação está ligada a constelação de imagens em torno de categorias
vinculadas a conceitos antropológicos específicos, do qual já viemos nos ocupando no
decorrer destes seis capítulos. Integrante desse último capítulo, o DVD disponível na
página 212 é resultado desse método de coleção de imagens. Nele podemos notar as
diferentes vibrações do tempo, como agregadoras de distintas imagens; que por sua vez
estão reunidas em torno de eixos narrativos dialógicos aos conceitos discutidos aqui no
percurso dessa investigação. Foi deste processo de coleção que surgiram as sínteses que
promoveram as discussões discorridas na estrutura dessa dissertação. Foi a partir desse
processo metodológico que tive condições de produzir as imagens de rede, as imagens
das estruturas de parentesco, os mapas e os esquemas aqui apresentados. As fotografias,
os textos e as imagens integrantes das reflexões que foram aqui desenvolvidas também
só puderam ser reunidas em torno do espaço de problemas de cada um dos eixos
narrativos da qual elas faziam parte. Imagens que consteladas promoveram: na adesão a
uma etnografia da duração; a noção de um patrimônio etnológico construído através do
dinamismo das imagens (Durand, 2002:190); e a uma opção fenomenológica da
imagem contra o psicologismo ontológico de tipo reflexivo; pensar na
universalidade dos arquétipos (Durand, 2002:377) que constituem as imagens.
Através dessas adesões que foi possível chegar até abordagens etnográficas mais
abrangentes para o fenômeno dos ritmos temporais. Reunindo imagens do contexto
etnogfico urbano de Porto Alegre e de Buenos Aires.
7.1. Coleções etnográficas A morada como objeto temporal
210
211
212
7.1.1 Coleções etnográficas - em DVD
213
CONCLUSÃO
Permaneci solitário durante um ou dois dias, até que, uma manhã, um homem que
chegara mais recentemente do que eu me abordou na estrada.
- Pode informar-me como se vai para a aldeia de West Egg? perguntou-me,
desanimado.
Dei-lhe a informação. E, ao prosseguir o meu caminho já não me sentia mais
solitário. Eu era um guia, um desbravador de caminhos, um colonizador autêntico.
Ele, casualmente, conferiu-me a liberdade de quem não se sente só.
E, assim com o sol a brilhar e grandes rebentos de folhas a crescer nas árvores,
exatamente como crescem as coisas nas rápidas películas cinematográficas,
experimentei a familiar convicção de que a vida recomeçava com o verão.
(Scott Fitzgerald, O Grande Gatsby, 1925:7)
Iniciamos este estudo nos perguntando sobre um grupo de decisões
experimentadas (Velho, 1989:39), enquanto percorríamos as calçadas do Bairro
Floresta em Porto Alegre escutando as lembranças evocadas por Olinda a partir da
matéria da cidade transformada. Terminamos o estudo em outro lugar em outras ruas,
e em outros territórios mito - imerso na matéria dessa transformação, desbravando um
ofício cuja existência é dependente da descontinuidade do tempo: o comércio de objetos
velhos. A matéria transformada foi, portanto, questão motriz para atravessarmos de uma
ponta a outra esse percurso etnográfico, observando contextos domésticos,
reconhecendo redes, relações familiares, relações de trabalho, apreendendo cotidianos e
itinerários urbanos. A própria investigadora, como aquela que profere a pergunta, foi
matéria transformada pelo percurso. Eu também precisei fazer a escolha do que iria
seguir e do que teria que descartar a fins de promover possíveis respostas, provocadoras
de novas questões e desafios. Construir o fim, ou a morte como metáfora mais
dramática da descontinuidade, é talvez a mais desesperadora das obras, pois sua
existência é parte do início sempre eminente. E foi exatamente nesse ínterim, caro leitor,
que instalamos nossa cabana.
No exercício da topoanálise, observamos a cidade de Porto Alegre e a de Buenos
Aires buscando transpor a antipatia protetora dos perigos típicos da metrópole. Para
investigar o estilo de vida metropolitano foi preciso promover ao mesmo tempo uma
busca do estilo metropolitano da investigadora, a fim de desviar o caminho rumo a
interação e não escorregar para a atitude do indivíduo blasé, que nos levaria à promoção
de uma investigação sobre o si-mesmo do investigador e não o do Outro. Mesmo que,
no contexto de Buenos Aires, muitas vezes me perguntasse quem afinal era o Outro
no jogo de interação, busquei todos os dias regar o vaso da conduta epistemológica
214
necessária ao ofício que buscava empreender. Observando o meu próprio olhar diante a
multiplicidade das formas de vida em uma metrópole, buscando constantemente não ser
desatenta às características do meu indivíduo como produto da metrópole simmeliana.
Estou segura de que não teria esses desafios caso investigasse a vida rural, ou cidades
sem características metropolitanas e Simmel resolveu para nós esta questão: na
metrópole prepondera o espírito objetivo sobre o subjetivo.
No âmago dessa tensão que re-encontramos a sensação de liberdade e de
independência do metropolitano nas palavras de Fitzgerald (no trecho acima transcrito),
e também a de solidão. Uma solidão que por si particulariza interações muito mais
efêmeras, mas que não caracterizam superficialidades; caracterizam encontro, troca e
bem-estar instanneo. E a cidade é o espaço dessas trocas.
A cidade, no entanto, como bem vimos nessa dissertação, nem sempre foi a
mesma, nem sempre foi como o presente a apresenta. Parto assim a uma reflexão sobre
o legado do conhecimento adquirido e repassado nessas páginas que vocês
acompanharam até agora. Se as cidades nem sempre foram as mesmas, que colaboração
tem a dar uma antropologia realizada em cima dessa premissa? Parece um fato obscuro
e duvidoso, sim, o tempo passa, as idéias cambiam, os espaços se transformam, porém,
quem está preocupado em escutar sobre a forma como ele passa, que reflexos ele tem
nas relações e no cotidiano de quem está subjetivando essas pulsões objetivas? Talvez o
papel desta dissertação seja mostrar as transformações sob a perspectiva de um conjunto
de indivíduos, todos, dentro de uma dinâmica da metrópole, preocupados com as
questões que lhes eram propostas, dispostos a narrar como se viam e o que viam na
transformação de si, do seu espaço de vida, e, portanto, do tempo. Coube a mim, como
pesquisadora, fazer o diálogo entre outros agentes externos para promover uma reflexão
que integrasse um conjunto de táticas e práticas disciplinadoras do espaço no qual todos
nós, como moradores das metrópoles, estamos inseridos. Houve a pergunta, porém a
resposta foi fruto da mais profunda interação e investigação acerca das dinâmicas
citadinas desses indivíduos, não foram respostas planejadas, tampouco esperadas.
Foram uma profunda descoberta. Meu objetivo, como autora deste estudo é provocar a
recordação do universo de relações e estratégias que estão em jogo quando ocorre
alguma mudança, cada vez que o leitor vier a se perguntar sobre os motivos dessa
mudança. Se me perguntarem se tenho alguma certeza na conclusão desse trabalho, a
única frase que me parece cabível de ser dada como resposta é a de que a transformação
não é ingênua e tampouco gratuita, e que ela tem uma lógica própria, a gica de quem
215
está disposto a narrá-la. E se a narrativa é a acomodação do tempo de cada indivíduo, o
resultado foi confirmar o postulado de que a duração é puro movimento.
não mais na condição de aprendiz de antropologia, e sim como investigadora
das representações sociais agenciadas na narração do tempo, ainda me pergunto que
outro caminho teórico conceitual poderia ter trilhado para dar conta do fenômeno das
metrópoles. E essa questão me leva a refletir sobre as adesões que fiz, sobre a formação
que tive dentro da disciplina antropológica e os meus próprios ancestrais da constituição
de um campo teórico e metodológico ligado a uma antropologia urbana na interface
com um profícuo debate de antropologia visual e da imagem no âmbito de um projeto
sobre memória coletiva em contextos urbanos (BIEV).
O papel de produtora de imagens, talvez mais do que o papel de investigadora,
tenha me proporcionado uma maior possibilidade de interação e de encontro com outros
produtores de imagens, e que interagiram no corpo desse estudo. Foram as dúvidas e as
inseguranças, muito mais do que as certezas, que proporcionaram os encontros e
estamparam a condição de escuta e de interesse com o que o Outro tinha a dizer. Não
foi uma tarefa fácil, dentro da característica afirmativa que também compõe as ciências
sociais. Porém devo essa postura às minhas mestras e aos meus ancestrais que dentro da
disciplina antropológica insistiram em limpar-me o ouvido com conceitos que
proporcionavam essa condição.
Finalizo esta conclusão refletindo acerca doque daqui para adiante, poderia ser
aprofundado no quê consiste a condição da morada como repouso dessa dinâmica da
descontinuidade. Não a casa, mas também a cidade como espaço íntimo talvez seja
um caminho importante a ser aprofundado, em face de noção da cidade como objeto
temporal. Um questionamento a respeito dos planos diretores constituintes de uma
dinâmica citadina e os regimes políticos de regulação da cidade, ligados aos interesses
privados e públicos é algo que foi apontado nesta dissertação, no entanto acredito
merecer um estudo em particular.
Diante da noção do instante, detenho-me à imaginação do futuro, como
oportunidade de vivê-lo e de construí-lo, e em diálogo a essa lógica, ainda temos muito
o que pensar e refletir acerca das práticas urbanas que no presente, construirão a lógica
de uma cidade futura. Trabalhando com a noção de camadas médias, detive-me nas
categorias agenciadas por elas, em relação a espaço público e à propriedade. No entanto,
quais outros grupos, camadas, redes não estarão sendo articuladas, formadas e vividas
no âmbito da metrópole como depósito de sentidos? Estas questões, contudo, não serão
216
respondidas neste trabalho, ficam em aberto para outra oportunidade de investigação. O
que dura, na leitura deste estudo, avalio, é a dimensão simbólica do espo seja da
casa, do bairro ou da cidade - como construtor de vínculos, relações, adesões e com
isso, construtor de narrativas e em como elas são importantes para entender a metrópole
não como uma massa homogênea e mutante, mas como uma imensa e ramificada
constelação de imagens.
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