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Neste fragmento temos exatamente vinte e seis notas que supostamente corrigem as
imprecisões dos relatos escritos há mais de quinze anos. Supostamente porque as notas
acrescentam à narrativa um conjunto de informações que, por estarem condicionadas à
memória do narrador, tendem à imprecisão, mantendo o discurso sob a tensão constante entre
o certo e o incerto, o fato e a simulação, a verdade e o lapso, o equívoco, o engodo. Assim,
por exemplo, temos:
Em meu pai, gosto muito de sua despreocupação. Vejo um homem que
assobia baixinho. Ele tinha um nome simpático: André. Mas fiquei muito
decepcionado no dia em que soube que na verdade – digamos, nos registros
oficiais – ele se chamava Icek Judko, o que para mim não significava grande
coisa. (1995, p. 39)
8. Icek é evidentemente Isaac, e Judko sem dúvida um diminutivo de Jehudi.
De fato é possível que pudessem chamar meu pai André, assim como, de
forma quase igualmente arbitrária, chamavam seu irmão mais velho (o que
foi fazer fortuna na Palestina) Léon, quando seu nome no registro civil era
Eliezer. Na verdade, todo mundo chamava meu pai Isie (ou Izy). Sou o único
a ter acreditado, durante muitíssimos anos, que se chamava André. Tive um
dia de conversa com minha tia sobre o assunto. Ela acha que talvez fosse um
apelido que ele tivesse usado em suas relações de trabalho ou de café. De
minha parte, tendo a pensar que entre 1940 e 1945, quando a mais elementar
prudência exigia que chamassem alguém Bienfait ou Beauchamp em vez de
Bienenfeld, Chevron em vez de Chevranski, ou Normand em vez de
Nordmann, poderiam ter-me dito que meu pai se chamava André, minha mãe
Cecília, e que éramos bretões.
O nome de minha família é Peretz. Ele se encontra na Bíblia. Em hebraico
quer dizer ―buraco‖, em russo ―pimenta‖ em húngaro (em Budapeste, mais
precisamente) é assim que se designa o que chamamos Bretzel (Bretzel, aliás,
não é senão um diminutivo – Beretzele – de Beretz, e Beretz, assim como
Baruk ou Barek, é forjado a partir da mesma raiz que Peretz - em árabe,
quando não em hebraico, B e P são uma única e mesma letra).
Os Peretz de bom grado fazem remontar sua origem a judeus espanhóis
expulsos pela Inquisição (os Perez seriam marranos) e dos quais se pode
traçar a migração na Provença (Peiresc), depois dos Estados do papa, e
finalmente na Europa central, principalmente na Polônia, mas também na
Romênia e na Bulgária. Uma das figuras centrais da família é o escritor
iídiche polonês Isak Leibuch Peretz, a quem todo Peretz que se preze trata de
ligar-se por intermédio de pesquisas genealógicas às vezes acrobáticas.
Quanto a mim, seria sobrinho-bisneto de Isak Leibuch Peretz. Ele teria sido o
tio de meu avô.
Meu avô chamava-se David Peretz e viva em Lubartow. Teve três filhos: a
mais velha chama-se Esther Chaja Perec; o do meio, Eliezer Peretz, e o mais
moço, Icek Judko Perec. No intervalo que separa os três nascimentos, ou seja,
entre 1896 e 1909, Lubartow teria sido sucessivamente russa, depois
polonesa, depois russa de novo. Segundo me explicaram, um funcionário de
cartório que ouve em russo e escreve em polonês ouvirá Peretz e escreverá
Perec. Não é impossível que fosse o contrário: segundo minha tia, os russos é
que teriam escrito ―tz‖ e os poloneses ―c‖. essa explicação aponta, mais do
que esgota, toda a elaboração fantasmática ligada à dissimulação patronímica
de minha origem judaica que fiz em torno de meu nome e que marca, além
disso, a minúscula diferença existente entre a ortografia do nome e sua