Download PDF
ads:
MÁRCIO SCHEEL
A LITERATURA AOS PEDAÇOS: A FRAGMENTAÇÃO
DISCURSIVA E A PROBLEMÁTICA DA REPRESENTAÇÃO DO
PRIMEIRO ROMANTISMO ALEMÃO À MODERNIDADE E AO
PÓS-MODERNISMO.
Universidade Estadual Paulista - UNESP
Araraquara São Paulo
2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
RCIO SCHEEL
A LITERATURA AOS PEDAÇOS: A FRAGMENTAÇÃO
DISCURSIVA E A PROBLEMÁTICA DA REPRESENTAÇÃO DO
PRIMEIRO ROMANTISMO ALEMÃO À MODERNIDADE E AO
PÓS-MODERNISMO.
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Letras da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade
Estadual Paulista de Araraquara como parte dos requisitos para
obtenção do título de doutor. Área de Concentração: Estudos
Literários.
Orientadora: Profa. Dra. Wilma Patricia Maas.
Universidade Estadual Paulista - UNESP
Araraquara São Paulo
2009
ads:
BANCA EXAMINADORA
____________________________________
Profa. Dra. Wilma Patricia M. D. Maas
____________________________________
Prof. Dr. Marcio Roberto do Prado
____________________________________
Profa. Dra. Flávia Regina Marquetti
____________________________________
Prof. Dr. Adalberto Luis Vicente
____________________________________
Prof. Dr. Alcides Cardoso dos Santos
Araraquara São Paulo
2009
Dedico este trabalho aos meus pais, Oto Carlos Scheel e
Rosângela Pereira de Araújo Scheel, bem como aos meus
irmãos, Oto e Alexander. A família de onde vim e o lugar para
onde vou.
À Letícia Fonseca Borges, pela presença, pelo carinho, pela
que fez com que ela sempre, sempre acreditasse: com o amor e a
gratidão que eu jamais conseguirei, de fato, expressar. Aos seus
pais e irmão, que sempre me receberam como alguém da família
e que torceram, tanto quanto eu, pela realização desse projeto.
À Wilma Patricia Maas, orientadora e amiga, que, durante quase
dez anos, me guiou com preciosos conselhos e que me
apresentou a esse universo de infinitas idéias que pode ser a
pesquisa acadêmica
Ao amigo Eduardo Coleone, que reencontrei ―nel mezzo del
cammin di nostra vita‖, e com quem partilho a paixão pelas
idéias e aquele velho projeto de, um dia, ainda salvar o mundo.
AGRADECIMENTOS
À Letícia Fonseca Borges, que me ajudou tomando notas,
traduzindo, digitando e me aconselhando quando as coisas
pareciam fora do eixo.
À minha mãe, que me secretariou em várias oportunidades,
permitindo que me dedicasse quase que integralmente à
finalização desse trabalho.
Ao amigo e professor Edison Bariani, que tive o prazer de
conhecer, com quem tive o privilégio de trabalhar e, mais do que
isso, com quem pude discutir e problematizar algumas questões
decisivamente pertinentes a esse trabalho, e muitas outras
questões, também, nem tão pertinentes assim. Com a amizade de
sempre.
À FAPESP Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo pela bolsa de doutorado concedida.
Dedicou os seus escrúpulos e vigílias a repetir num idioma
alheio um livro preexistente. Multiplicou os rascunhos; corrigiu
tenazmente e rasgou milhares de páginas manuscritas. Não
permitiu que fossem analisadas por ninguém e cuidou para que
o lhe sobrevivessem. Em vão procurei reconstit-las. Refleti
que é lícito ver no Quixote final uma espécie de palimpsesto,
em que deverão transparecer os vesgios tênues, mas não
indecifráveis da prévia escrita do nosso amigo.
Infelizmente, um segundo Pierre Menard, invertendo o
trabalho do anterior, poderia vir a exumar e ressuscitar essas
Tróias...
Pensar, analisar, inventar (escreveu-me também) não são atos
anômalos, são a normal respiração da inteligência. Glorificar o
ocasional cumprimento dessa função, entesourar antigos e
alheios pensamentos, recordar com ingênua estupefação o que o
doctor universalis pensou, é confessar a nossa fraqueza de
espírito ou a nossa barbárie. Todo o homem tem de ser capaz de
todas as idéias e entendo que no porvir o será.‖
(Jorge Luís Borges, Pierre Menard, autor do Quixote)
RESUMO: O projeto que ora se apresenta procura localizar histórica, crítica e
teoricamente algumas linhas de força do pensamento filosófico, estético e artístico
desenvolvidas a partir do Primeiro Romantismo Alemão e que foram, ao longo dos
séculos, rejeitadas, negadas, revistas ou reconfiguradas, dando origem a questões
centrais no interior dos discursos críticos e teóricos da modernidade e do pós-
modernismo. Partindo das relações estabelecidas por Novalis e Schlegel principais
representantes do Primeiro Romantismo Alemão entre teoria, pensamento filosófico e
poética, bem como da elaboração consciente de uma estética do fragmento, buscaremos
compreender como a idéia do fragmentário engendra, na modernidade e no pós-
modernismo, uma problemática da crise: das possibilidades de representação do real, de
criação artística, de alcance e fixação da verdade, do discurso como instância ou como
meio através do qual o mundo, o real e os indivíduos são compreendidos, tomados,
discutidos e representados. Busca-se entender a crise da representação e a forma como
esta se vincula, no plano da criação artística, a outras noções igualmente importantes
discutidas ao longo do século passado: o estilhaçamento e a crise da noção de sujeito, a
legitimidade dos discursos, a busca incessante pela originalidade radical como única
forma de surgimento e manifestação do novo no domínio estético, a ruptura e o choque
entre certo relativismo do qual se acusa a contemporaneidade em relação a uma alta
tradão, uma alta cultura, que teriam produzido os últimos grandes modelos de
discursos teleológicos, com seus conceitos de verdade absoluta, de revolução possível,
de transformação plena da ordem estabelecida. Desse modo, além dos fragmentos
literários dos românticos, o trabalho em questão passa pela análise dos romances Nadja,
de André Breton e Vício, de Paulo JoMiranda, bem como por alguns comentários
pertinentes acerca de A Ópera Flutuante, de John Barth e W ou a memória da infância,
de Georges Perec, com o objetivo principal de identificar o sentido da estética do
fragmentário em três diferentes momentos estéticos: no Primeiro Romantismo Alemão,
(Frühromantik), na Modernidade e na s-Modernidade. Como decorrência dessa
identificação, pretende-se isolar questões fundamentais para a compreensão da
representação artística e literária. A partir dessa identificação, pretende-se chegar a
questões decisivas para o pensamento estético contemporâneo, como as noções de
representação, originalidade, verdade referencial e discursiva, bem como a possibilidade
da criação poiética ainda significar o espaço ou a forma de uma reflexão crítica e
conceitual sobre o próprio fazer literário.
PALAVRAS-CHAVE: fragmento literário; primeiro romantismo alemão; poiésis;
representação; modernidade; pós-modernidade; filosofia; teoria; crítica.
ABSTRACT: The project presented now tries to situate historically, critically and
theoretically some force lines of the philosophical, aesthetic and artistic thought
developed since the Early German Romanticism, which during centuries were rejected,
denied, reviewed or reconfigured, originating central issues within the critical and
theoretical discourse of the modernism and postmodernism. From the relation
established by Novalis and Schlegel the main representatives of the Early German
Romanticism between theory, philosophical and poetic thought, besides the conscious
elaboration of an aesthetic of the fragment, we seek out to understand how the idea of
the fragment brings forth in modernism and postmodernism a problem of crisis: the
possibilities of the representation of real; the artistic creation; the acquisition and
fixation of the truth; the discourse as instance or as a way in which the world, the real
and the individuals are understood, taken, discussed and represented. We seek to
comprehend the representation crisis and the way it is linked, on the artistic creation
area, to other notions equally important discussed throughout last century: the chipping
and the notion of subject crisis, the legitimacy of discourses, the incessant search or the
radical originality as the only way of appearance and manifestation of the new aesthetic
domain, the disruption and the impact between a kind of relativism in which the
contemporary is accused with regard to a high tradition, a high culture, which would
have produced the last important models of teleological discourses, bringing its
concepts of absolute truth, possible revolution, full transformation of the established
order. So, beyond the Romantic literary fragments, this work analyze the novels Nadja
by André Breton; Vício by Paulo José de Miranda; as well as some comments about The
Floating Opera by John Barthes and W, or the Memory of Childhood by Georges Perec,
with the main aim to identify the sense of the aesthetic of fragmentary in three different
aesthetic moments: the Early German Romanticism, (Frühromantik), in Modernism and
in Postmodernism. As a result of this identification, we intend to isolate some
fundamental issues to the comprehension of the artistic and literary representation.
From this identification, we intend to get to some decisive issues on the contemporary
aesthetic thought, like the representation notions, originality, referential and discursive
truth, as well verify if the possibility of poetic creation still means the space or the form
of a critical and conceptual reflection about the own literary making.
KEY-WORDS: literary fragment; Early German Romanticism; poiésis; representation;
modernism, postmodernism, philosophy, theory; criticism.
Sumário
Introdução ................................................................................................................... 10
1. Fragmentação e Poiésis no Primeiro Romantismo Alemão ................................. 33
1.1. Novalis, Schlegel e O Círculo de Jena: Idéias, Idéias, Idéias ............................. 33
1.2. Uma Crítica aos Pedaços: O Fragmento Literário e a Busca pela Totalidade
Perdida ........................................................................................................................... 57
2. Fragmento Literário, Fragmentação Discursiva e a Problemática da
Representação .............................................................................................................. 85
2.1. O Fragmento Literário como Darstellung Original: Poiésis, Crítica e
Exposição ...................................................................................................................... 85
2.2. Um Breve Passeio Pelos Bosques da Representação: Mímesis e
Crise da Referencialidade ........................................................................................... 100
3. A Modernidade Na Alça de Mira ......................................................................... 132
3.1. As Últimas Injunções Oraculares: De Baudelaire a Breton ............................... 132
3.2. Nadja e o Mito Modernista da Linguagem: Memória e Fragmentação .............. 145
4. Pós-Modernismo: Uma Literatura aos Pedaços ................................................. 181
4.1. Uma Tentativa de (In)Definição ........................................................................ 181
4.2. A Pós-Modernidade Literária ............................................................................ 198
4.3. A Escritura Fragmentária e a Deriva da Representação ..................................... 220
4.3.1. Paulo José Miranda: A Invenção do Outro ......................................... 220
4.3.2. O Século XIX, o Realismo e o Sujeito Ex-cêntrico em Vício ............. 225
4.3.3. Vício: Um Romance da Recusa ........................................................... 238
4.3.4. Metaficcionalidade e Hibridismo: Em Busca da Escritura .................. 246
4.3.5. A Ficcionalidade da Memória ............................................................. 260
Conclusão ................................................................................................................... 279
Referências Bibliográficas ..................................................................................... 295
Bibliografia Complementar ................................................................................... 302
Apêndice: Diário das Horas Vazias ....................................................................... 304
10
INTRODUÇÃO
Os fragmentos literários dos primeiros românticos alemães, principalmente os de
Novalis e de Schlegel, estão indissociavelmente ligados ao grande e ambicioso projeto
intelectual concebido por esses mesmos autores, isto é, buscar uma nova forma de expressão
que fosse capaz de incorporar, a um tempo, crítica, teoria e criação a partir da idéia de
poiésis, ou seja, de linguagem criadora. O fragmento, então, significa um modo de articulação
do discurso em que o conceitual crítico, nascido agora de um esforço teórico legítimo,
inovador, original, e não mais do poder judicativo dos tratados e das ars poetica clássicas,
aproxima-se da própria linguagem que determina e funda a criação artística. Se para o
classicismo do século XVIII, o valor da obra estava na sua capacidade de manter-se fiel aos
modelos e às regras pré-definidas de composição, privilegiando a beleza advinda do equilíbrio
e da perfeição formal, o romantismo extrairia esse valor da transgressão dos modelos, da
abolição das regras, da desagregação das formas e da hibridização dos gêneros, encontrando
na natureza mais íntima da escritura fragmentária o ideal de que diferentes tipos de
linguagem, formas e gêneros devem estar empenhados na criação de uma obra cuja marca
distintiva seria seu caráter aberto, inconcluso, inacabado, sempre em devir.
Sob muitos aspectos, Novalis e Schlegel contribuíram para lançar as bases da teoria da
literatura e da crítica literária moderna, já que foram os primeiros a conceber o ideal de que
era possível a aproximação de realidades discursivas distintas, como as teórica, filosófica e
poética, buscando novas formas de manifestação do pensamento. O fragmento literário, assim
com foi praticado por Novalis e Schlegel, deve ser compreendido, portanto, o apenas sob a
perspectiva teórica ou crítica, mas também como uma forma de expressão original através da
qual a teoria e a crítica afloram como filosofemas propostas de pensamento ou investigação
filofica que tomam à poiésis seu modelo de articulação discursiva, aproximando-se
mesmo da essência da criação poética que, ao mesmo tempo, buscam definir ou prefixar. Os
11
românticos alemães fizeram da idéia de poiésis sua pedra de toque. Criar era essencial.
Comunicar o impulso poético a cada idéia, pensamento ou palavra, era esse o principal
interesse de Novalis e Schlegel. E, para tanto, era preciso conceber uma forma de expressão
que fosse capaz de articular livremente o impulso criador e o exercício reflexivo. Esse esforço
é o que Novalis chama de ―poesia transcendental‖:
A poesia transcendental é mesclada de filosofia e poesia. Em fundamento envolve
todas as funções transcendentais e contém, em ato, o transcendental em geral. O
poeta transcendental é o homem transcendental em geral. (NOVALIS, 2001, p. 124)
A transcendência, aqui, pode ser entendida tanto por uma perspectiva metafísica,
característica do idealismo filosófico alemão, que buscava a elevação do ser para além dos
limites de sua realidade sensível, quanto de forma mais concreta, isto é, como a superação dos
limites discursivos que se impuseram entre os gêneros literários e os sistemas de pensamento.
Na esteira do idealismo filosófico, importava tornar a crítica e a criação os dois lados de um
mesmo processo que principiava como pensamento, refleo, exercício intelectual, mas que
ganhava contornos a partir de uma obra em constante devir, de uma linguagem livre de
qualquer fundamentação sistemática, fechada ou teleológica. Potencializar a linguagem
crítica, abri-la ao jogo dos sentidos que a poesia faz circular e, ao mesmo tempo, confundir as
fronteiras entre discurso filosófico, crítico, analítico e poético, foi a missão crítico-teórica de
que Novalis e Schlegel se deixaram imbuir. O projeto intelectual dos primeiros românticos
foi, antes de tudo, uma aventura pelos caminhos da linguagem criadora e de suas novas e
insuspeitadas formas de expressão.
É por meio do fragmento literário que o ideal de poiésis pode se realizar plenamente,
que a forma fragmentária evoca os caracteres essenciais da poesia e faz com estes se
manifestem no centro de discursos que, a princípio, parecem totalmente estranhos ou alheios a
natureza mais íntima da poesia. Sendo assim, entender o modo como o poético articula-se em
relação aos mais distintos tipos de discursos, faz com que voltemos a atenção justamente para
12
o ideal de poiésis como uma realidade discursiva muito mais presente no universo artístico-
literário do que sua característica mais singular, que é a articulação em versos. A poesia,
então, apresenta-se como um discurso que pode penetrar, furtivamente, neros tão estranhos
entre si quanto a teoria, a crítica, a narrativa ficcional e a filosofia, o que os românticos
alemães foram os pioneiros em notar e articular no interior de suas obras. Friedrich Schlegel,
por exemplo, em seu Conversas sobre a Poesia, lança mão da estrutura do romance, do teatro
e do discurso crítico para compor um ensaio acerca do fenômeno poético, da poesia e de suas
diferentes naturezas e formas de expressão. Assim como Novalis, em seus Hinos à Noite, faz
com que escrita em versos e fragmentos em prosa partilhem o mesmo espaço discursivo,
construindo uma obra que rompe as fronteiras estabelecidas entre os gêneros literários e
solicita uma nova chave de leitura.
A posis romântica de Novalis e Schlegel, essa hibridização dos gêneros literários,
esse cruzamento entre crítica e criação, entre reflexão teórica e construção poiética, tornar-se-
á, como veremos, um fator decisivo para o desenvolvimento das novas formas de narrativa
modernas, nas quais haveuma fusão indissociável entre a natureza dfana do poético e a
tendência à ordenação do mundo e dos acontecimentos que caracterizam os discursos
narrativos realistas
1
. Além dessa fusão, a literatura do alto modernismo irá incorporar a
mesma e profunda preocupação romântica com a linguagem, o que faz com que suas
narrativas manifestem um dos caracteres essenciais da literatura moderna: o jogo
metalingüístico. Dessa forma, ao nos concentrarmos num romance como Nadja, por exemplo,
nosso interesse é justamente o de revelar como a herança romântica da fragmentação e da
hibridização dos gêneros será reposta em circulação por uma perspectiva rigorosamente nova,
1
É o que podemos entrever nos mais importantes romances do início do século XX. Obras como Nadja, de
André Breton, O Som e a Fúria, de William Faulkner e Ulisses, de James Joyce, por exemplo, constroem-se
sobre o ideal de rompimento absoluto das fronteiras entre os gêneros literários, narrativos e discursivos. Tratam-
se, na verdade, de obras nas quais a linguagem e o ideal de criação estética avultam como o único lugar possível
do ser, como espaço e habitação do homem no mundo, como morada, abrigo, realização e busca de si. Este, por
exemplo, será o grande desafio do surrealismo: alçar o homem e a existência à dimensão do mito, fazendo da
literatura e da linguagem a expressão mais bem acabada dos anseios, desejos e dilemas que constituem nosso
caráter mais fundo.
13
na qual, graças à aventura surrealista, o indivíduo se reencontra consigo mesmo nos deslimites
da linguagem e da criação, afirmando-se, poeticamente, nos interstícios da obra de arte,
criando o mito moderno de uma literatura vital e de uma existência literária, artística, estética
a utopia por excelência do artista contra o desencantamento e a inessencialidade do mundo
moderno.
Nosso trabalho, então, busca definir de que modo a fragmentação literária dos
românticos alemães, bem como suas experiências criadoras e originais com os gêneros
discursivos, podem ser entendidas como os fundamentos inovadores da literatura moderna,
sobretudo no que diz respeito à aproximação entre crítica e criação, engendrando uma nova
forma de conceber, teórica e artisticamente, o discurso ficcional. Sendo assim, ao atentarmos
para a obra de André Breton, nos deparamos com algumas inquietações fundamentais que
estavam presentes no pensamento estético, crítico e teórico dos primeiros românticos alemães.
Inquietações estas que irão se consolidar, sobremaneira, com a modernidade artística
engendrada por Baudelaire, Rimbaud e Mallarmé, concebida sobre tensões que se expressam
a partir da relação aberta entre conceitos como os de antigo e moderno, clássico e romântico,
tradão e originalidade, rotina e novidade, imitação e inovação, evolução e revolução,
decadência e progresso. São essas inquietações que servem de força a movimentar a criação
artística, a teoria e a crítica nas últimas décadas do século XIX, assim como serão a ordem do
dia dos movimentos de vanguarda que inauguraram o modernismo estético no início do
século XX.
A modernidade não traz em si o peso escandalizador que, outrora, a obra poética e
crítica de Baudelaire provocara; ou aquele que as vanguardas disseminaram ao longo da
primeira metade do século XX. O grande projeto da modernidade inaugurado pela crença
iluminista nos postulados da razão, do cientificismo, do progresso alcança seu momento
mais contundente, mais revolucionário e, ao mesmo tempo, mais questionável a partir da
14
revolta estética promovida pelas vanguardas européias, voláteis, desagregadoras,
intransigentes, com suas faces estranhas, alheias, divergentes e protéicas, como imagens em
negativo de um mesmo movimento histórico. As vanguardas, interagindo criticamente com a
tradão, acabaram, elas mesmas, convertendo-se numa tradição, como afirma Compagnon,
em O Demônio da Teoria (2003), ao desvelar um dos grandes paradoxos da arte moderna, do
projeto estético da modernidade.
A modernidade deve compreender, afirmar, buscar ainda que inutilmente, ainda que
fadada ao seu próprio fracasso a superação de si mesma. Isso porque a própria modernidade
transformou a ruptura, a cisão, a descontinuidade e o fragmentário que os teóricos da
historiografia perceberam marcar o processo histórico em suas leis primordiais, em suas
únicas formas de inovação possível. É justamente a partir do conceito de descontinuidade e
ruptura com os modelos clássicos ou realistas
2
de representação literária, sobretudo aqueles
calcados na idéia de que a arte, a literatura, deve ser uma forma de emulação do mundo e da
natureza, que nosso trabalho deverá se orientar. Sendo assim, todos os nossos esforços
concentram-se na busca por demonstrar de que modo a aventura intelectual romântica faz do
fragmento literário uma forma de expressão original, além de pensar de que maneira a
fragmentação literária teorizada e praticada por Novalis e Schlegel está diretamente ligada à
problemática da representação discursiva, na modernidade, e da crise em que esta mergulhará
a partir dos anos cinenta do século XX, com o pós-modernismo
3
.
2
Vale ressaltar, aqui, que termos como clássico e realista são usados, no presente trabalho, em suas acepções
mais diretas ou específicas, isto é, em alusão ao Classicismo, que se consolidou ao longo do século XVIII e que
impôs o ideal de criação como respeito à paradigmas e modelos pré-estabelecidos de expressão, e ao Realismo,
surgido na segunda metade do século XIX e que pode ser caracterizado a partir de sua adesão a um tipo de
narrativa ficcional que toma de empréstimo o rigor formal dos discursos científicos para, com isso, conceber
uma literatura de forte tendência analítica, isto é, preocupada em incorporar, de forma totalizante, os mais
diferentes aspectos da realidade social, histórica e comportamental do mundo empírico que lhe serve de
referencial.
3
É preciso salientar que, para todos os feitos, termos como os de pós-modernidade, pós-moderno e pós-
modernismo apresentam-se como conceitos muitas vezes distintos entre si, ou com uma especificidade própria,
como muitos teóricos contemporâneos fazem questão de frisar. Ao longo de nosso trabalho, eles seo tomados,
muitas vezes, como sinônimos. Sabemos que para os teóricos do fenômeno pós-moderno isso se configura como
uma arbitrariedade crítica, mas nossa proposta não é, em momento algum, fazer uma revisão conceitual do termo
ou tomá-lo em todas as suas implicações políticas, ideológicas, teóricas ou culturais. Assim, nossa referência ao
15
Portanto, nosso trabalho parte da relação híbrida que Novalis e Schlegel principais
representantes do Primeiro Romantismo Alemão estabeleceram entre teoria, pensamento
crítico e poética, bem ao gosto da modernidade, que faria das formas híbridas de
representação discursiva seu veículo de refleo e criação estético-literária. O hibridismo das
formas, em Novalis e Schlegel, está em perfeita consonância com as teorias do fragmentário
que os mesmos pensaram e definiram com acuidade, abrindo caminho para que os modernos
encontrassem a natureza ideal para descrever um mundo em constante e irrefreável
transformação, em que o sujeito o é capaz de se definir ou afirmar senão pelo
estilhaçamento, pela fragmentação, pela cisão de sua própria consciência e da percepção que
ele tem do mundo, das coisas e do real. Há uma íntima conexão entre o fragmento literário
romântico com sua tendência à atomização dos sentidos, à precisão do comentário crítico,
ao corte conceitual e analítico baseado na instantaneidade das idéias e no caráter sempre em
devir do pensamento, da constelação fragmentária , as formas de fragmentação narrativas
que surgiram a partir das primeiras décadas do século XX, fundadas no ambicioso projeto de
fazer da própria criação artística um espaço de reflexão metadiscursivo no qual literatura e
experiência vital se fundem, utopicamente, como o novo lugar do homem, e as narrativas pós-
modernas, que usam a fragmentação e a desarticulação narrativa em conluio com uma
aparente retomada dos modelos realistas de representação justamente para revelar o caráter
manipulador da linguagem e para instaurar o dilema que cerca as noções de realidade e de
verdade referencial.
Novalis e Schlegel foram os responsáveis pelas primeiras elaborações teóricas
conscientes acerca de uma estética do fragmento literário, sendo que ambos adotaram a forma
fragmentária como veículo teórico e crítico de suas reflexões, harmonizando, desse modo,
forma, estrutura e significação, como podemos perceber em duas edições capitais das
pós-moderno é de natureza fundamentalmente estética e envolve determinadas características singulares da
manifestação desse fenômeno a saber, a fragmentação discursiva e a problemática da representação narrativa
no universo da literatura contemporânea.
16
traduções de alguns dos fragmentos deixados pelos poetas e pensadores do Primeiro
Romantismo Alemão: O Dialeto dos Fragmentos, de Schlegel, traduzido por Márcio Suzuki,
e Pólen, de Novalis, cuja tradução ficou a cargo do filósofo Rubens Rodrigues Torres Filho,
especialista brasileiro em Fichte, influência direta do pensamento dos românticos alemães. Na
modernidade, experimentou-se a crise dos modelos realistas de representação, fundados
sobretudo numa lógica positivista que reduzia o mundo literário ao mero reflexo das supostas
leis mecânicas e causalistas que regeriam o mundo empírico e a organização social. Tais
modelos de representação estavam calcados numa visão totalizante da realidade e na busca
por fixar, nas fronteiras do discurso, a verdade teleológica do mundo. Nesse sentido, a
linguagem servia como meio ou instrumento de descrição de uma realidade referencial,
objetiva e translúcida, que se evidenciava ou se realçava por meio da criação literária.
Coube aos escritores modernos, influenciados pela desnaturalização da linguagem
promovida pelos movimentos de vanguarda, romper com um modelo de discurso fundado na
onisciência do narrador realista e na onipotência da linguagem como veículo de reflexão
referencial do mundo, concebendo modelos de representação nos quais predominam o
monólogo, muitas vezes de caráter polinico, como em Ulisses, de James Joyce, ou O Som e
a Fúria, de William Faulkner, por exemplo, cuja fuão é promover uma sondagem profunda
do inconsciente humano, revelando que nossa percepção do mundo está sujeita aos nossos
movimentos interiores, e que a literatura deve empreender a busca por uma nova forma de
articulação da linguagem narrativa a partir da natureza fragmentária e dispersiva da memória.
O pós-modernismo, por seu turno, radicalizará o que fora a crise modernista da representação,
lançando-a numa espécie de deriva absoluta: se a linguagem é incapaz de abranger a
totalidade do mundo ou mesmo tocar a superfície referencial do mesmo, ela também não se
resolve apenas na afirmação da riqueza subjetiva da paisagem interior ou do ―pressuposto
humanista de um eu unificado e uma consciência integrada‖ (HUTCHEON, 1991, p. 15) do
17
indivíduo. Aos pós-modernos, ficou a tarefa de revelar, de forma auto-reflexiva, o caráter de
construto da linguagem, o fato de que mesmo a memória e seus impasses pode ser
manipulada.
Nosso objetivo, desse modo, consiste em compreender como a idéia do fragmentário
engendraria, a partir das experiências românticas com a desarticulação do discurso crítico-
poético, na modernidade e no pós-modernismo, uma problemática da crise: das possibilidades
de representação do real, de criação artística, de alcance e fixação da verdade, do discurso
como instância ou como meio através do qual o mundo, a realidade e os indivíduos são
compreendidos, tomados, discutidos e representados. Sendo assim, a fragmentação discursiva,
que se tornou um veículo de expressão original e inovador, profundamente associado à noção
romântica de desarticulação da identidade, associando-se à imagem de uma subjetividade
descentralizada e incerta, acabou por vincular-se, no plano da criação artística pós-moderna, a
outras noções igualmente importantes discutidas ao longo do século passado: o
estilhaçamento e a crise da noção do sujeito, a legitimidade dos discursos, a busca incessante
pela originalidade radical como única forma de surgimento e manifestação do novo no
domínio estético, a ruptura e o choque entre o relativismo político-ideológico do qual se acusa
a literatura s-moderna
4
e a valorização estética da alta tradição, da alta cultura modernista,
4
Terry Eagleton, teórico inglês de extração marxista, é um dos mais ferrenhos críticos da s-modernidade. De
forma geral, a acusação de Eagleton contra o fenômeno pós-moderno recai sobre a afirmação de que o mesmo
está diretamente associado ao profundo processo de despolitização pelo qual os anos 80 e 90 passaram. Em
livros como As Ilusões do pós-modernismo, A idéia de cultura e Depois da teoria, Eagleton coloca em jogo a
idéia de que o discurso pós-moderno representa os valores de uma sociedade formada por indivíduos
consumistas, ideologicamente vazios e hedonistas, que evitam os grandes conflitos políticos e sociais em nome
de uma auto-afirmação fetichista, narcísica e superficial, sem qualquer densidade, sem qualquer enfrentamento
para com o mundo, já que, como afirma em Depois da teoria, ―se for para o mundo poder fluir livremente, assim
como flui a subjetividade, o denso sujeito humano tem que desaparecer‖ e é nos interstícios dessa desaparição,
que Eagleton a ―cultura do pós-modernismo‖ como o lugar no qual ―a vontade volta-se sobre si mesma e
coloniza o próprio sujeito tão intensamente volitivo. nascimento a um ser humano volúvel e difuso,
exatamente igual a sociedade que o cerca‖ (2005, p. 256). Desnecessário dizer que a posição de Eagleton remete
a sua própria formação marxista, e que conceitos como os de despolitização ou alienação estão longe de se
afirmarem como critérios analíticos determinantes no julgamento estético. A própria tradição modernista a qual o
autor constantemente se refere como paradigma comparativo em relação à literatura e à cultura pós-moderna não
deixou de se calcar, sob muitos aspectos, na exploração revolucionária das formas e estruturas poiéticas em
detrimento de conteúdos francamente politizados. O Ulisses, de James Joyce, altera radicalmente a natureza da
narrativa e põe em xeque a sensibilidade, os valores e as tradições do mundo burguês, mas cria um labirinto de
18
que teria produzido, segundo os críticos do s-moderno, os últimos grandes modelos de
discursos teleológicos baseados num conceitual fundamentado na idéia de uma verdade
absoluta, incontesvel, que se produziria a partir da manutenção das velhas utopias
reformistas, calcadas no ideal de revolução social, política e cultura possível, que
transformaria, de forma plena e incontornável, a ordem estabelecida.
Tal conceitual acaba, então, por se fundar sobre os alicerces de um pensamento
maniqueísta, no sentido de acreditar que o mundo, a realidade, o sujeito e os acontecimentos
podem ser reduzidos à refleo crítica e teórica a partir de oposições binárias, dicotômicas,
calcadas em um conflito de natureza ideológica que se manifestaria a partir de alguns pares
opositivos clássicos, como os de burguesia e proletariado, consciência crítica e embotamento
político, cultura erudita e cultura de massas, sociedade revolucionária e sociedade de
consumo, participação e passividade, engajamento e alienação e etc. Assim, é na esteira desse
intricado jogo de idéias e conceitos, que nosso trabalho se propõe identificar o sentido da
estética do fragmentário em três diferentes momentos da hisria da crítica e da criação
literária: o Primeiro Romantismo Alemão; a Modernidade; e o que a crítica de matiz norte-
americano convencionou chamar de Pós-Modernismo, revelando que este, ao fundamentar
seu pensamento na noção de aporia, ou seja, de dúvida radical, de incerteza em relação a
qualquer verdade estabelecida ao longo da história, e por meio do que Lyotard chamou de as
―grandes narrativas mestras‖, não se desengajou, necessariamente, das questões referentes aos
conflitos sociais, políticos, culturais, históricos e estéticos que marcaram a modernidade, mas
apenas propôs uma nova maneira de encarar as cisões, choques e rupturas que caracterizam os
discursos críticos, teóricos e artísticos da contemporaneidade.
A partir dessa identificação, pretende-se chegar a questões fundamentais para o
idéias, sensações, formas e manifestações discursivas que o afasta e aliena da dinâmica social na mesma medida
em que se aproxima substancialmente das dimensões mais profundas do inconsciente individual. E, pode-se
afirmar, o mesmo se em um romance surrealista como Nadja, de AndBreton, que de modo ainda mais
contundente.
19
pensamento estético s-moderno, como as noções de representação, originalidade, verdade
referencial e discursiva, bem como a possibilidade da criação literária ainda significar o
espaço ou a forma de uma profunda reflexão conceitual sobre o próprio fazer literário, que
tanto os românticos alemães quanto os modernos e pós-modernos voltaram-se, em maior ou
menor grau, às discussões sobre a natureza mesma da concepção da obra, numa atitude
metaliterária que se acentuou com o tempo. Trata-se de pensar que a estética do fragmentário,
nas obras de Novalis e Schlegel, para os quais o fragmento é o veículo de aproximação entre
pensamento filosófico e linguagem simbólica, ainda não aponta para uma crise do ideal de
representação, principalmente porque serve às primeiras reflexões críticas e teóricas acerca da
obra de arte, do fenômeno estético e da natureza da linguagem por uma via que já acena para
as dúvidas e impasses desenvolvidos com a modernidade artística, sobretudo aquela discutida
e teorizada por Baudelaire, embora tais reflexões ainda se dêem a partir do idealismo
filofico alemão, cujo núcleo fundamental permanece calcado no essencialismo metafísico,
na busca pela unidade primordial do ser e da arte.
Isto posto, nosso foco de interesse desloca-se, naturalmente, para a afirmação da
modernidade estética e para a compreensão de que, no interior desta, a fragmentação é parte
de um processo crítico que não reconhece na arte um meio de abertura ao pensamento
reflexionante, de natureza filofica, em busca da expressão de um Eu Absoluto, pleno,
incondicionado, de acordo com os ideais da filosofia fichtiana, buscado pelos românticos, mas
sim como um discurso em que sujeito e sociedade passam a ser vistos como realidades
inevitavelmente complexas, singulares, partidas e descontínuas, em busca de um centro fixo a
partir do qual possam, novamente, se definir. A modernidade literária - sobremaneira aquela
que se grafaria sob o signo das vanguardas, no início do século XX resgata o ideário estético
da fragmentação como um dos princípios fundamentais da criação artística e literária, em que
o sujeito, a sociedade e o real seriam representados a partir da crença no domínio técnico, que
20
transforma o saber e o conhecimento em instrumentos de integração do homem com as
grandes estruturas sociais, políticas e culturais em que se encontra inserido, seja de forma
irrefletida e assente, como acontece com o futurismo, seja de modo questionador e
intransigente, como com o dadaísmo e o surrealismo.
O que nosso trabalho considera, então, é o fato de que, na modernidade, a
fragmentação ainda faz parte de um projeto de representação totalizante do sujeito e do
mundo no qual a proposta central é encontrar uma forma de integrar o indivíduo ao espaço em
constante transformação aberto com o domínio técnico e científico das primeiras décadas do
século XX: é o caso da aventura futurista, por exemplo, que, acabaria afirmando os valores do
fascismo e motivando, anos mais tarde, o surgimento do surrealismo como reação à
desumanização provocada pela técnica e como tentativa de alçar a exisncia humana
novamente ao espaço do simbólico, do tico, dada a profunda natureza poético-reflexiva da
experiência literária surrealista. Para tanto, é preciso levar em conta que entre as teorias
românticas do fragmento literário e a adesão moderna ao fragmentário, ao descontínuo, à
representação referencial sob suspeita, encontramos no grande movimento realista do século
XIX uma rejeição ao fragmentário e uma crença quase que absoluta na referencialidade, na
representação teleológica e totalizante do mundo. Para os românticos alemães, o fragmento
literário era uma forma de Darstellung (apresentação) que se divisava com o próprio ato de
criação artística, compartilhando do repertório verbal-criador do artista e instaurando um novo
modo de conceber a crítica e a teoria: o fragmento seria um dos meios de se difundir o ideal
de um gesto reflexionante incondicionado e infinito, juntamente com a alegoria e a ironia, que
engendraria a totalidade a partir do conjunto progressivo de idéias e reflexões que se
estilhaçam em cada fragmento, num processo francamente metonímico de apresentação.
No auge da modernidade artística as primeiras décadas do século XX , com os
movimentos de vanguarda impondo novos paradigmas críticos e poiéticos, a fragmentação do
21
discurso é concebida como uma forma de reação e resistência a uma certa ideologia realista
que se fiava na crença nos grandes ideais de representação estética de fins do século XIX, ou
melhor, na afirmação de uma representação total da realidade, capaz de tomar o real em seus
ltiplos e singulares aspectos, de cercá-lo e retê-lo nos domínios da escritura. Assim, na
modernidade, a fragmentação deixa de ser parte de um processo característico do gesto
reflexionante como queriam os românticos para ser o lugar ou o ponto de partida de uma
crise que, com o passar dos anos, irá agravar sua problemática essencial: a crise da noção
de representação. Desse modo, obras poéticas como As Flores do Mal, de Baudelaire; As
Iluminações e Uma Estação no Inferno, de Rimbaud; Os Cantos, de Ezra Pound; The Waste
Land (A Terra Devastada), de T. S. Eliot; Elegias a Duíno, de Rainer Maria Rilke; Um Lance
de Dados, de Mallarmé, para citar alguns dos autores mais representativos de fins do século
XIX e primeira metade do século XX, vão fazer da fragmentação e da descontinuidade, das
quebras e cisões do discurso uma forma de perceber, questionar e resignificar a própria
estrutura social, econômica e cultural do mundo em que estão inseridos, além de transformar a
criação num espaço de metadiscursividade profundamente crítico, chegando a questionar a
validade mesma da própria arte como paradigma ou modelo de revolução política, cultural ou
social, como sempre se acreditou.
No âmbito da narrativa, obras como Ulisses, de James Joyce; Um Homem sem
Qualidades, de Robert Musil; O Som e a Fúria, de William Faulkner; Nadja, de André
Breton, entre outras, adotarão o princípio fragmentário, a descontinuidade e o dilaceramento
da ordem discursiva como uma forma de por em xeque o ideal estético de representação
totalizante do mundo e da sociedade que a crença realista no racionalismo fizera circular nas
últimas décadas do século XIX. Dessa forma, a contribuição crítica e artística dos autores
relacionados ao pensamento estético e teórico moderno é decisiva. É a partir do fragmentário
que eles estabelecem o auge da crise e da contradão moderna: uma tentativa de representar o
22
real que traz em si o início de uma desconfiança em relação aos modelos e ideais de
representação. São estes autores, na esteira do pensamento aberto pelos românticos alemães e
apoiados na revolução estética promovida por Baudelaire, que acabarão por criar aquilo que
Octávio Paz denomina de tradição moderna. O grande conflito estético deflagrado pelos
modernistas diz respeito ao fato de que a arte não deve ser apenas uma forma de criação
derivada do real ou seu reflexo em negativo. O modernismo estabeleceu uma ruptura radical
com essa literatura de matiz realista que dominou o imaginário estético ao longo da segunda
metade do século XIX e que impôs à literatura a idéia de que todo discurso deve ser a
expressão de uma verdade referencial e empírica comprovável, científica, objetiva e
translúcida, omitindo ou ignorando o fato de que a linguagem nunca é neutra ou imparcial,
mas sempre marcada pelas ideologias ou idiossincrasias que caracterizam o indivíduo e suas
práticas sociais, políticas e culturais.
Nesse sentido, o grande esforço de autores pós-modernos como John Barth, em A
Ópera Flutuante, ou E.L. Doctorow, em O Livro de Daniel, por exemplo, foi o de resgatar o
ideal de representação realista, demolido pela tradição moderna, não para rejeitá-lo
sumariamente, mas sim para problematizá-lo em função das grandes convenções narrativas
herdadas do realismo. O s-modernismo questiona, de dentro, as estruturas narrativas postas
em jogo pela linguagem literária como uma forma de colocar sob suspeita aqueles modelos
discursivos tradicionais que engendraram o que Jean-François Lyotard denominou de
―narrativas mestras‖, ou seja, formas discursivas cuja legitimidade instaura-se a partir de
valores políticos, sociais, culturais ou ideológicos. Assim
O que está sendo contestado pelo pós-modernismo são os princípios de nossa
ideologia dominante qual, talvez de maneira um tanto simplista, damos o rótulo
de ―humanista liberal‖): desde a noção de originalidade e autoridade autorais até a
separação entre o estético e o político. O pós-modernismo ensina que todas as
práticas culturais têm um subtexto ideológico que determina as condições da própria
possibilidade de sua produção ou de seu sentido. E, na arte, ele o faz deixando
visíveis as contradições entre sua auto-reflexividade e sua fundamentação histórica.
Na teoria, seja ela s-estruturalista (termo que hoje parecemos utilizar para
23
abranger tudo o que existe desde a desconstrução a a análise do discurso),
marxista, feminista ou neo-historicista, as contradições nem sempre são tão visíveis,
mas costumam estar implícitas como ocorre na autoridade antiautorizadora de
Barthes ou na mestre-narrativização de Lyotard para nossa suspeita em relação às
narrativas mestras. (HUTCHEON, 1991, p. 15)
O s-modernismo assume uma atitude não de rejeição da herança realista ou de
ruptura radical com ela e seus discursos totalizadores. A idéia não é polemizar com a tradição,
suplantá-la ou recusá-la liminarmente, ao contrário, ele acaba por incorporar elementos
poderosos dessa mesma tradição, como o descritivismo, o detalhismo, a tendência ao
pormenor, os temas sociais, históricos e coletivos, para problemati-los, confundindo, por
exemplo, as vozes narrativas, usando, como Doctorow, em O Livro de Daniel, um mesmo
narrador que alterna entre a terceira e a primeira pessoa, imiscuindo-se profundamente,
envolvendo-se totalmente numa narrativa de caráter meta-historigráfico, ou no caso de
Georges Perec, em W ou a memória da infância, multiplicando as instâncias narrativas,
criando histórias paralelas acerca da perseguição nazista e dos sofrimentos experimentados
por uma criança durante a segunda guerra, para confundir história e fabulação, verdade
referencial e fantasia catastrofista, pondo em xeque as possibilidades de representar os
fenômenos extremos. Assim, importantes autores do s-modernismo lançam mão de um
modelo discursivo realista para contestar, por meio da fragmentação discursiva e da
metanarratividade, os limites mesmos da linguagem e da representação. Desse modo, a
literatura s-moderna nos faz pensar, ao contrário do modernismo, não em uma crise da
representação, mas em uma deriva da representação‖, isto é, no modo como esta perde, na
contemporaneidade, os grandes referenciais da alta literatura realista e os grandes valores
apreendidos pelas narrativas-mestras passadas, fundando um jogo discursivo em que o caráter
de artefato assumido pela obra é revelado, o que faz com que se evidencie a presença do autor
ou sua imagem dissimulada manipulando os cordéis narrativos, expondo ao leitor os
caracteres mais íntimos do discurso e problematizando a própria noção de verdade da obra,
colocando sob suspeição os limites da linguagem e a sua capacidade de dizer o mundo, o
24
homem e a sociedade de forma neutra ou distanciada.
Nossa proposta de trabalho, então passa por três questões fundamentais: o fragmento
literário enquanto gênero discursivo, ligado aos ideais de poiésis, criação e reflexão crítico-
teórica no primeiro romantismo alemão; a estética da fragmentação e as experiências abertas
pela modernidade e pelo modernismo no sentido de romper com os modelos tradicionais de
representação, sobretudo o modelo realista; e, por fim, como certa literatura contemporânea,
de extração s-moderna, irá conduzir a problemática da representação aos limites da deriva,
ou seja, como a estética do fragmentário acaba por se transformar num recurso discursivo no
qual algumas noções como as de autoria, sujeito empírico e sujeito ficcional, referencialidade,
metaficção, história e sentido, por exemplo, são questionados de dentro do próprio fenômeno
literário, incorporando à literatura uma reflexão crítica na qual os próprios fundamentos do
discurso são claramente manipulados e progressivamente implodidos, colocando em vida
o só o ideal de representação ou verossimilhança, mas a própria idéia de verdade discursiva.
Desse modo, o primeiro capítulo do presente trabalho deverá atender à necessidade de
apresentar o pensamento idealista dos primeiros românticos alemães, abordando a maneira
como inovaram o conceito de crítica de arte e fundaram uma teoria da literatura que rompia
com a noção de bom gosto e com o caráter judicativo das leituras cssicas em nome de uma
análise calcada, ao mesmo tempo, num conceitual crítico definido e na percepção individual
que o fenômeno estético requer. Assim, a idéia é demonstrar de que forma Schlegel e Novalis
acabam por se encontrar na base fundadora da modernidade, antecipando questões teóricas e
críticas e formas de abordagem do fenômeno estético que se afirmaria com a alta
modernidade artística consumada com o pensamento reflexivo e a obra literária de Baudelaire,
por exemplo. Novalis e Schlegel acreditavam que, no domínio da arte e da teoria, tanto a
criação literária quanto a reflexão crítica deviam partir de um mesmo princípio ordenador: o
ideal de poiésis original, ou seja, de uma atitude estética que orientasse o discurso criador e
25
que se manifestasse como uma forma de expressão autenticamente poética, isto é,
determinada por uma linguagem de caráter simbólico, cifrado, enigmático, capaz de trazer,
em si mesma, uma abertura ao pensamento e à reflexão.
Tanto Novalis quanto Schlegel empreenderam a busca por uma nova forma de
expressão que fosse capaz de articular linguagem criadora e rigor teórico-crítico numa mesma
unidade, reflexivamente arguta, desafiadora e indevassável, concebendo a fusão entre gêneros
discursivos diferentes, estabelecendo uma comunicação direta entre arte e julgamento crítico,
entre poesia e comentário analítico, pondo em circulação um modo ao mesmo tempo estético
e teórico de escrever e refletir sobre o processo escritural, um modo aberto e incondicionado
de reflexão, cujos movimentos interiores não respeitam regras, modelos ou padrões
judicativos de nenhuma espécie, que se mantém alheio aos modelos discursivos, filosóficos
ou críticos de explicação do mundo, do ser e da arte que se vinham praticando até então e que
se articulavam como sistemas fechados e totalizantes de representação. Esta nova forma de
expressão concebida por Novalis e Schlegel é a que se convencionou chamar de fragmento
literário. E, sob muitos aspectos, foi por meio do pensamento crítico e teórico acerca do
fragmento enquanto forma ou nero de expressão que os românticos alemães deram início ao
que Márcio Seligmann-Silva, com a acuidade e a precisão crítica que lhes são características,
denominou de ―poéticas da fragmentação‖
5
.
Dessa forma, o segundo capítulo do trabalho traria uma breve leitura da modernidade
5
Ver, principalmente, o último capítulo do livro O Local da Diferença, denominado justamente ―Poéticas da
Fragmentação‖, em que Seligmann-Silva rne três ensaios críticos acerca das relações abertas por Novalis e
Schlegel entre crítica e criação, poiésis e filosofia, elaboração estética e reflexão teórica. Como veremos, os
ensaios são reveladores sobretudo da maneira como os românticos acabaram por desenvolver uma linguagem
inovadora, de ruptura com os padrões normativos da tradição clássica, altamente simbólica no que diz respeito
ao seu pendor poético estetizante e profundamente reflexiva no que tange à elaboração do pensamento crítico-
teórico que vinham concebendo até então. Um dos elementos mais originais da reflexão estética e da criação
poética romântica diz respeito à liberação da linguagem e à inovação das formas de expressão. Não é por acaso,
então, que Novalis e Schlegel tenham cultivado, ao longo de vários de seus fragmentos, a idéia de poiésis,
criação, como manifestação original de um pensamento incondicionado, ou seja, livre, ilimitado e irrestrito, tanto
formal quanto significativamente, desvinculado de qualquer tradição ou, melhor dizendo, apropriando-se de
modo singular, pessoal e intransfevel de alguns elementos da tradição apenas para subvertê-los, para extrair
deles um novo e potencial sentido. Daí Schlegel afirmar, em um dos fragmentos publicados na revista
Athenaeum, que ―cada um encontrou nos antigos o que desejava ou precisava, principalmente a si mesmo‖ (in:
STIRNIMANN, Victor-Pierre (trad.). Conversa Sobre a Poesia, São Paulo: Editora Iluminuras, 1994, p. 103).
26
baudelairiana às vanguardas artísticas do século XX, demonstrando de que forma a estética do
fragmentário e o jogo com as formas de representação aprofundam-se e acabam vinculando-se
a algumas das noções mais caras ao pensamento, à reflexão e à criação artística moderna,
noções como as de choque/ruptura, tradição/inovação, permanência/descontinuidade, levando
os artistas modernos a uma busca incessante pela originalidade, que acaba se tornando um dos
fatores decisivos da produção estética moderna. Sob esta perspectiva, a modernidade e o
modernismo do século XX, na esteira da revolução promovida pelas vanguardas, farão da
fragmentação das formas de expressão um reflexo da descontinuidade e da ruptura com os
modelos de representação realistas de fins do século XIX, baseados num pensamento de
extração positivista, que reduziu a literatura à ilusão da verdade referencial, determinada por
relações causais, bem ao gosto do pensamento filosófico-científico da época. A questão
central, neste capítulo, seria demonstrar que, apesar da adesão ao discurso fragmentário
sempre marcado por cortes, cesuras e descontinuidades internas como forma de expressão,
os escritores da modernidade ainda o levam a representação aos limites de uma profunda
deriva, instabilizando os sentidos e a crença nas estruturas estáveis da tradição filosófica,
sociológica e cultural. Basta pensarmos, por exemplo, no surrealismo e na adoção da narrativa
poética como forma de reconciliar o ser consigo mesmo, com a realidade e com o mundo,
como vemos em Nadja, de André Breton, promovendo o resgate do mito baseado na
expressão total da existência, propondo uma arte vital, que superasse o desencantamento do
homem promovido pela afirmação futurista da técnica ou pelo niilismo radical Dada.
Trata-se de considerar que uma obra como Nadja é herdeira da grande tradição
moderna no sentido de que e em cena o ideal de uma liberdade estética suprema,
reformadora, em que o mundo moderno, fragmentário, dispersivo, caleidoscópico, aparece
filtrado pela ótica singular do artista, do escritor, igualmente cindido e estilhaçado, com suas
certezas vacilantes e seu estado de espírito caótico. Por esse prisma, Breton dá vazão ao
27
impulso moderno, vanguardista, de reconstrução do mundo e do indivíduo por meio da
linguagem. Numa narrativa fragmentada, em que e memória e o sonho se confundem ao
conceber a imagem de uma mulher absolutamente livre, mágica e encantadora, supra-real, na
verdade, porque figura simbólica da própria confluência entre arte e vida, Breton preserva
muito daquele idealismo moderno que ainda acredita na palavra como forma de exprimir uma
liberdade essencial, que é ao mesmo tempo filosófica, política e estética. Nesse sentido, a
linguagem passa a ser o lugar do homem, sua morada, sua única e verdadeira salvaguarda.
Morada onde o ser se encontra e realiza integralmente a partir de uma revolta profunda contra
todas as convenções, todos os modelos, todas as ideologias dominantes. A descontinuidade da
memória, o predomínio do sonho, da imaginação criadora, da liberdade espiritual, que
fragmentam o relato e o fundamentam sobre as bases de um conjunto de imagens que se
aproximam de forma desarticulada foi o meio encontrando por Breton para romper com a
representação realista dominante e estabelecer uma nova percepção de mundo e de sujeito que
não se deixa reduzir aos mecanismos causalistas do discurso positivista do realismo.
A questão central, aqui, é compreender que essa atitude de revolta e ruptura contra os
modelos estabelecidos de representação realista, que põem em crise a própria noção de
representação tout court, ainda está profundamente marcada pelo ideal salvacionista da arte,
ou seja, de que esta é capaz de resgatar o homem do limbo degradante no qual a guerra e o
pós-guerra o imergiu. A literatura, então, seria o lugar de uma redenção possível, o caminho
que resgataria o mundo e o homem das grandes fraturas abertas pelos conflitos que marcaram
o início do século XX. O surrealismo surge como uma reação ao dadaísmo, que se esgotara na
tentativa de manter viva uma atitude de permanente negação de todos os valores morais
burgueses, de fazer do escândalo e do choque elementos de uma profunda revolta e de uma
intensa denegação intelectual contra a sociedade burguesa. Nas palavras de Mario de Micheli,
em As Vanguardas Artísticas,
28
Essa pars destruens (do surrealismo) assume novo realce por ser colocada ao lado
de uma parte construtiva. De fato, enquanto o anarquismo puro do dadaísmo contava
unicamente com os humores derrisórios da sua polêmica, chegando no máximo à
concepção da liberdade como rejeição imediata e definitiva de toda convenção moral
e social, o surrealismo apresenta-se com a proposta de uma solução que garanta ao
homem uma liberdade realizável de maneira positiva. O surrealismo substitui a
rejeição total, espontânea, primitiva de dada, pela pesquisa experimental, científica,
baseada na filosofia e na psicologia. Em outras palavras, opõe ao anarquismo puro
um sistema de conhecimento. (MICHELI, 1991, p. 151)
Uma das contradições fundamentais do surrealismo, a noção de arte enquanto
liberdade vital, essencial, de certa forma mascara o fato de que defende a liberdade absoluta
de criação a partir de um projeto epistemológico que faz da fusão entre psicanálise, filosofia e
marxismo sua pedra de toque na compreensão e reinvenção do homem e da sociedade. A crise
da representação, neste momento, é a crise de um modelo narrativo, o realista, que ao invés de
questionar profundamente os valores sociais, políticos e, sobretudo, estéticos, estabelecidos,
acomodou os gostos e legitimou a arte como o reflexo do modo de vida e comportamento da
ordem burguesa. Então, a fragmentação discursiva em Nadja, por exemplo, atende ao projeto
surrealista de romper com os modelos estabelecidos de representação do mundo e da
sociedade como se vinham praticando até fins do século XIX e primórdios do século XX,
concebendo uma narrativa que se fundamenta nos influxos da memória e do inconsciente,
constituída por imagens de uma existência que se faz linguagem, imagens deslocadas e
descontínuas, vacilantes e desarticuladas, cuja proposta é revelar o que de mais íntimo,
fugidio e transirio no homem e no mundo moderno:
A posição dadá era uma posição proviria, surgida da náusea da guerra e buscada
no esfacelamento do pós-guerra. Agora, os temas haviam mudado, pelo menos em
parte; a situação tendia ao estancamento, os ―escândalos surgiam com cada vez
menos eficácia para manter vivo o significado da revolta intelectual contra a
sociedade. Ainda assim, a fratura da crise continuava aberta, gerando mal-estar.
(MICHELI, 1991, p. 151)
A questão, aqui, é considerar que, como uma obra representativa do modernismo e do
espírito das vanguardas, Nadja ainda se atém ao projeto modernista que concebeu o mito da
29
linguagem como fonte de revelação do indivíduo, criando uma nova teleologia baseada no
ideal de uma conciliação em devir, mediada pelas palavras, entre o sujeito e a sociedade, um
modo de superar a crise em que a sociedade mergulhou com o domínio técnico da razão
instrumental e com os horrores legados pela experiência traumática da guerra. Trata-se,
portanto, da crença de que a arte ainda poderia ser o veículo de consciência e superação da
crise em que o sujeito moderno mergulhou com a percepção da precariedade do mundo e de
sua própria precariedade:
A consciência dessa fratura, no surrealismo, foi extremamente aguda desde o início:
fratura entre arte e sociedade, entre mundo exterior e mundo interior, entre fantasia e
realidade. Por essa razão, todo o esforço dos surrealistas visava encontrar uma
mediação entre essas duas margens, um ponto de coincidência que permitisse
remediar as lacerações da crise. O elemento original desse movimento está
exatamente nisso. No expressionismo e no dadaísmo também encontramos o
sentimento da fratura, da crise, mas apenas no surrealismo a busca de solução
assumiu um empenho tão específico. (MICHELI, 1991, p. 152)
O intercurso entre modernidade estética, vanguardas e modernismo nos permite a
abertura necessária para pensar, mais detidamente, nas instâncias contemporâneas da criação
literária que ganham seus contornos com o pensamento crítico e teórico s-moderno. Alguns
dos autores importantes dos-modernismo, como John Barth, em A Ópera Flutuante, Paulo
José Miranda, com sua trilogia Natureza Morta, Um Prego no Coração e Vício e Georges
Perec, com W ou a memória da infância, farão da fragmentação discursiva, da
descontinuidade narrativa, da afirmação de um sujeito narrativo ex-cêntrico, os caminhos para
questionar a crença quase que sacralizada no poder da linguagem em representar, descrever,
ilustrar, reproduzir ou encenar o mundo e o real, o indivíduo e a sociedade, de forma
inequívoca, contundente, translúcida até, se pensarmos na proposta realista de reduzir a
realidade imediata, empírica, ao espaço do discurso. A leitura de um romance como Vício, de
Paulo José Miranda, por exemplo, nos permite olhar mais detidamente as questões
concernentes às teorias do s-moderno, sobretudo no que diz respeito às noções de escritura
e fragmentação discursiva ou à relação entre linguagem e realidade, que caminham para uma
30
deriva absoluta da representação na medida em que o romance põe em jogo a suposta voz de
Antero de Quental, poeta realista português de pendor filosófico, que escreve um diário no
qual registra os três últimos meses de sua vida antes do próprio suicídio. Numa obra assim, as
noções de autoria e de identidade pessoal vacilam, que se torna bastante difícil distinguir a
figura empírica de Antero de Quental de seu duplo narrativo, ao passo que o romance coloca
ainda outra problemática fundamental: o fato de que se trata de um diário e como todo
diário, fundado na memória individual do sujeito escritural concebido por outra pessoa.
Sendo assim, o romance de extração pós-moderna fratura profundamente a experiência
narrativa ou a idéia de que a narrativa se constrói a partir de grandes experiências coletivas,
sociais e históricas. Paulo José Miranda, em Vício, elabora uma narrativa marcada pela
experiência íntima e pessoal do sujeito, sendo que esta mesma experiência acaba assinalada
por um conflito insolúvel entre diferentes subjetividades: a de um Antero de Quental empírico
e histórico, irrecuperável, a da personagem, no interior do próprio discurso, e a do próprio
autor que se dissimula nos interstícios da narrativa. Trata-se de um discurso calcado na
fragmentação da memória e na manipulação seletiva dos episódios singulares que marcariam
a existência individual da personagem, mas uma memória ficcional, distante de uma verdade
referencial direta, translúcida, comprovável. Sob esta mesma perspectiva, então, um romance
como W ou a memória da infância, de George Perec, potencializa ainda mais a fragmentação
narrativa e a disseminação da memória como elemento de indeterminação de qualquer
verdade referencial ao criar uma obra em que o enredo se estilhaça sob o peso de um discurso
que alterna entre o registro fabular, hisrico e memorialístico.
Em A Ópera Flutuante, de John Barth temos a problemática pós-moderna da
incapacidade de criar uma narrativa linear, direta, causalista, calcada nos modelos realistas de
representação, já que a personagem central resolve rememorar alguns dos acontecimentos que
marcaram sua vida, principalmente os motivos que o levaram a desistir de um suicídio
31
anunciado, embora as explicações e justificativas sejam sempre adiadas, como se os
acontecimentos mais insignificantes de sua existência parecessem mais decisivos que sua
própria morte. Esta é uma das estratégias narrativas mais caras ao romance pós-moderno: o
adiamento do sentido, a recusa pela epifania ou pela revelação, o esvaziamento existencial, a
fragmentação da história individual em episódios singulares por sua própria in-signifincia.
John Barth recusa-se a praticar um modelo de narrativa que considera esgotado, a saber: o
modelo modernista, que elegeu o indivíduo e sua subjetividade a pedra de toque da literatura e
que fez da linguagem uma forma de investigação e desvelamento dessa mesma subjetividade.
Por sua vez, e em outra perspectiva, E. L. Doctorow, em O Livro de Daniel, ise
valer do discurso da história para compor um romance no qual os acontecimentos políticos
norte-americanos do período macarthista, de perseguição declarada aos comunistas e aos
artistas e intelectuais de esquerda, fundem-se com a memória individual de Daniel Lewin,
filho do único casal condenado à morte por espionagem e alta traição na história recente dos
Estados Unidos. Valendo-se de um momento delicado da história americana da década de 50
do século XX, Doctorow confunde história e memória num jogo ficcional que incorpora todas
as incertezas, desconversas e dissimulações ideológicas que caracterizam o pensamento
sociológico e político acerca do período. O próprio registro narrativo constrói-se sobre uma
indecidibilidade marcante, que o próprio narrador, ao referir-se a sua vida, aos seus pais
adotivos, a sua irmã e a seus pais biológicos, o faz em primeira pessoa, enquanto, ao tentar
compreender os movimentos hisricos que se abateram sobre seus pais e que conduziram os
Estados Unidos a uma profunda fratura democrática, adota a terceira pessoa e o modelo
narrativo realista, buscando simular uma neutralidade e um distanciamento críticos suspeitos e
comprometidos.
Desse modo, atentos a questão da fragmentação e da crise representacional, o terceiro
capítulo da tese significaria o ensejo de pensar o pós-modernismo não enquanto projeto,
32
movimento ou período literário demarcado na história da literatura da segunda metade do
século XX, mas sim como a fixão de um conjunto de caracteres transestéticos e trans-
hisricos que se afirma com os novos modelos narrativos da contemporaneidade e que são
resgatados, sobre muitos aspectos, de autores como Cervantes, Sterne, Novalis, Schlegel,
Baudelaire, Mallarmé, Joyce e Musil, entre outros, que construíram suas obras a partir de uma
profunda articulação entre criação artística e refleo teórica, num jogo metalingüístico que,
de certa forma, anuncia o atentado s-moderno contra a natureza supostamente
representacional da linguagem e os coloca em dissonância com a arte e o pensamento de seu
tempo.
33
1. FRAGMENTAÇÃO E POIÉSIS NO PRIMEIRO ROMANTISMO ALEMÃO
1.1. Novalis, Schlegel e O Círculo de Jena: Idéias, Idéias, Idéias.
Jorge Luis Borges, no plogo ao seu livro de poemas A Rosa Profunda, de 1975,
escreveu que a doutrina romântica da Musa que inspira os poetas foi a que professaram os
clássicos; a doutrina clássica do poema como uma operação da inteligência foi enunciada por
um romântico, Poe, por volta de 1846 (1999, p. 89)
6
. A constatação de Borges não deixa de
ser curiosa e importante, afinal, serve para revelar que o movimento romântico produziu mais
do que escritores e poetas preocupados unicamente em dar vazão aos dramas, sentimentos,
conflitos e paixões individuais que caracterizam a subjetividade humana e que se
popularizaram como elementos estéticos graças ao espírito revolucionário, inovador e
libertário engendrado pelo romantismo, que fez da afirmação do indivíduo e do culto do eu
sua profissão de fé, seu veículo de ruptura em relação à impessoalidade e ao formalismo
racionalista do classicismo. O que Borges parece ignorar é que essa dimensão do romantismo,
isto é, que esse outro romantismo, intelectualizado, consciente, crítico e reflexivo não surgiu
com Edgar Alan Poe, em 1846, mas, de certa forma, é um reflexo ou uma tendência que já se
manifestara na Alemanha, na última década do século XVIII, mais precisamente entre a
publicação do primeiro volume da revista Athenäum, editada por Friedrich Schlegel e seu
irmão August Wilhelm Schlegel, em 1798, até 1801, com a morte de Novalis, um dos
6
In: BORGES, Jorge Luis. Obras Completas III. São Paulo: Globo, 1999. Vale ressaltar que Borges é
considerado um escritor emblemático justamente por ter conciliado, com precisão e fineza, crítica e criação,
concebendo uma obra em que os limites entre a reflexividade poiética e a própria ficção se confundem e apagam
de forma singular e até mesmo paródica. Graças a alguns de seus contos, sobretudo aqueles publicados em
Ficções, de 1944, como, por exemplo, Exame da obra de Herbert Quain e Pierre Menard, autor do Quixote,
Borges pode ser considerado o escritor avant la lettre da literatura pós-moderna, já que ele foi um dos primeiros
autores da segunda metade do século XX a por em jogo um processo de criação literária que envolve a
metadiscursividade como recurso para a elaboração de uma obra em que predominam os jogos de espelho e as
estruturas labirínticas, baseadas no ideal de duplicação do autor, que se manifesta como personagem e que se
nega toda e qualquer substancialidade, e do mundo, que perde toda sua materialidade concreta e passa a ser um
simulacro de idéias, opiniões e argumentos literários , dissimulação e falseamento da verdade referencial,
manipulação do relato de forma a criar imprecisões e vazios que servem ao propósito de confundir o leitor,
preferência pelas formas breves, como o conto, e fragmentárias, fundamentadas num tom memorialístico que
contribui ainda mais para a construção de narrativas nas quais afloram o princípio de incerteza radical que mina
a própria aparência realista e causal assumida por essas mesmas narrativas.
34
principais representantes, juntamente com o próprio Friedrich Schlegel, daquele que ficou
conhecido como Primeiro Romantismo Alemão.
O Primeiro Romantismo Alemão foi um momento decisivamente importante para o
desenvolvimento não do conceito de crítica literária como o conhecemos hoje, mas
também da idéia de teoria como o referencial necessário para a compreensão mais funda do
fenômeno estético. Representados, sobretudo por Friedrich Schlegel e Novalis, os
Frühromantiker (primeiros românticos) constituem um grupo de poetas, escritores, filósofos e
intelectuais que desenvolveu suas idéias entre a última década do século XVIII e a primeira
do XIX, o que, por si só, os coloca numa posição de vanguarda diante da grande revolução
estética, política e cultural que representaria o movimento romântico europeu quase cinqüenta
anos depois. Os Frühromantiker integram aquele que ficou conhecido como o Círculo
Literário de Jena, que se reuniam na cidade universitária de mesmo nome e, a partir dali,
deram forma e substância às idéias estéticas e filosóficas que vinham desenvolvendo na
esteira do pensamento aberto por Kant em suas Críticas e por Fichte, com a sua Doutrina-da-
Ciência. Dessa forma, os primeiros românticos concebem o que podemos chamar de um
romantismo estudioso‖, em que avulta a preocupação crítico-teórica de compreender as
diferentes dimensões que constituem o fenômeno estético, buscando aliar reflexão, crítica e
criação no sentido de engendrar uma nova poiésis, ou seja, uma nova forma de concepção da
linguagem criadora.
A característica marcante da reflexão crítica e da criação poética de alguns dos
representantes do Primeiro Romantismo está diretamente ligada ao ambiente intelectual que a
cidade universitária de Jena oferecia aos jovens poetas e escritores que ali se radicaram.
Friedrich Schlegel e seu irmão August Wilhem Schlegel, deslocaram-se para Jena dada a
proximidade desta com Weimar, cidade que, em fins do século XVIII, hospedava Goethe e
Schiller, os dois grandes nomes do classicismo alemão e de quem os primeiros românticos
35
eram francos admiradores, sendo, possivelmente, os mais interessados críticos tanto de Os
Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe, quanto do ensaio de Schiller acerca da
criação poética, o seu Poesia Ingênua e Sentimental. Em Jena, os irmãos Schlegel
conheceram Novalis e Tieck, entraram em contato com a filosofia de Fichte e conceberam um
dos círculos literários mais originais e importantes da história da literatura alemã e da reflexão
crítica, teórica e estética que a Europa acabou por nos legar.
Schlegel e Novalis, criadores, artistas e pensadores da literatura nasceram, ambos, em
1772, sendo que essa é apenas uma das coincidentes afinidades que os caracteriza. O gosto
pelo pensamento, pela arte e pela reflexão crítico-teórica, ligaria os dois numa relação
profunda de amizade e reconhecimento tuo. Conheceram-se em 1790, quando Novalis
deslocou-se para a cidade universitária de Jena com a finalidade de estudar Direito, curso que
concluiria, três anos mais tarde, já em Wittemberg. Ainda que o período de aproximação entre
os dois amigos tenha sido relativamente curto, preservaram a amizade e a colaboração
filofico-literária até a morte de Novalis, em 1801. Os pontos de contato e os interesses
intelectuais de ambos eram tão fortes que levaram Walter Benjamin, em sua tese de doutorado
intitulada O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão, a elegê-los como os nomes
de destaque e de inquestionável relevância à formação reflexiva, crítica e teórica do período.
Em seu estudo, Benjamin destaca que a teoria romântica da crítica da arte de que tratará é
justamente a de Schlegel e que o direito de designar esta teoria como a teoria romântica
prom de seu caráter representativo‖ (1999, p. 22)
7
.
O encontro e a posterior colaboração literária que se deu entre Schlegel e Novalis
acabou por situá-los no centro dos estudos críticos e analíticos sobre a literatura e a análise
7
BENJAMIN, Walter. O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão. Trad. Apr. e Notas de Márcio
Seligmann-Silva. edição. São Paulo: Editora Iluminuras, 1999. Seligmann-Silva apresenta, com essa
tradução, um dos trabalhos críticos seminais para a compreensão das idéias e do conceito de teoria da literatura e
da crítica da arte desenvolvida pelos românticos de Jena. Benjamin mapeia a influência da filosofia do
conhecimento kantiana e da Doutrina da Ciência, de Fichte, sobre as reflexões de Schlegel e Novalis acerca do
pensamento e da criação estética.
36
literária que se desenvolveram, sobretudo, a partir dos anos de 1790, que os trabalhos
filoficos de Schleiermacher, considerado o fundador da hermenêutica moderna, e de
Schelling surgiram depois do contato destes com as obras de Schlegel e Novalis,
principalmente depois da leitura revolucionária que ambos fizeram da filosofia de Kant e de
Fichte, adaptando-as aos seus interesses críticos e estéticos. Desse modo, a importância do
círculo literária de Jena fica ainda mais destacada quando consideramos o fato de que tanto
Schlegel quanto Novalis foram os primeiros a propor uma aproximação indelével entre poesia
e filosofia, mudando decisivamente os parâmetros e modelos críticos acerca da natureza da
arte
8
no período.
Essa relação de amizade e de contribuição intelecutal entre Novalis e Schlegel será tão
profícua que, como aponta Walter Benjamin
A aproximação dos textos de Novalis com os de Schlegel justifica-se através da
completa unanimidade das duas perspectivas quanto às premissas e conseqüências
da teoria da crítica da arte. O problema em si interessou menos a Novalis, mas ele
compartilha os pressupostos gnosiológicos sob os quais Schlegel o tratou e, com
eles, defende as conseqüências desta teoria para a arte. Na forma de uma singular
mística do conhecimento e de uma importante teoria da prosa, ele formulou estes
temas muitas vezes de modo mais agudo e elucidativo do que seu amigo. Em 1792,
ambos com 20 anos, conheceram-se estes dois amigos que desde 1797
estabeleceram um intenso tráfego epistolar, no qual eles também comunicavam seus
trabalhos uma ao outro. Esta comunidade estreita torna em grande parte impossível a
pesquisa sobre as influências recíprocas. (BENJAMIN, 1999, p. 22-23)
Mais do que a impossibilidade de mapear, com precisão, de que forma se deram as
realções de influência entre Schlegel e Novalis, é preciso salientar que, muitas vezes, chega a
ser difícil distinguir quem é o verdadeiro autor de algumas idéias, conceitos, pensamentos ou
8
Vale destacar, neste momento, que quando falamos em arte e em crítica de arte no primeiro romantismo
alemão, pensamos basicamente na distinção feita pelo próprio Walter Benjamin em seu trabalho analítico acerca
do surgimento da moderna teoria da literatura entre os românticos. De acordo com Benjamin, sempre que se
pensa ou se discute a não de arte na obra de Schlegel e Novalis, refere-se diretamente à poesia, que ―as
demais artes têm, no período que aqui nos toca, uma relação quase sempre subordinada a ela‖, por isso, ―deve-se
entender no que se segue sob a expressão ―arte‖ sempre poesia [Poesie] e, na verdade, na sua posição central
dentro das artes –, e, sob a expressão ―obra de arte‖, a composição poética [Dichtung] singular‖ (1990, p. 21).
Para Novalis e Schlegel, poesia é sempre sinônimo de poiésis, de criação, manifestação, afirmação da arte, ou
seja, o poético. A poesia pode manifestar-se, então, em diferentes tipos de discurso, da filosofia à ciência, por
exemplo, cabendo ao artista, ao poeta, não se limitar unicamente à composição em versos, mas sim buscar novas
formas de expressão, como veremos ao longo do presente capítulo.
37
postulados críticos formuladas a partir das formas fragmentárias de discurso que ambos
praticaram. Em algumas publicações coordenadas por Friedrich Schlegel, especialmente
aquelas que vieram à público entre os anos de 1798 e 1800, nas páginas da revista Athenäum,
dirigida e publicada por August Wilhelm Schlegel e por seu irmão, a intervenção direta de
Friedrich sobre alguns textos de Novalis é significativa. O exemplo marcante dessa relação
franca, direta e aberta entre Schlegel e Novalis foi a publicação, em 1798, do primeiro número
da revista Athenäum, que estréia com a coletânea de framentos Blüthenstaub (Pólen ou,
literalmente, ―Pó de Florescência‖), de Novalis. Composta de mais de trezentos fragmentos
que versam sobre literatura, linguagem, poesia e filosofia, num tipo de exercício crítico de
pensamento que influenciaria sobremaneira a história da literatura, da crítica e da filosofia
romântica, a coletânea Pólen ganhou uma edição de Schlegel na qual ele reordenou os
fragmentos de Novalis ou mesmo chegou a inserir, entre os fragmentos do amigo, alguns de
sua própria autoria. Isso, hoje, torna a atribuição de autoria de alguns dos fragmentos sempre
duvidosa e, muitas vezes, questionável, ou requer um trabalho de análise genética dos
manuscritos nem sempre possível, já que alguns deles desapareceram:
O manuscrito de Pólen enviado por Hardenberg para publicação que deveria
conter as anotações e modificações do punho de Schlegel está, infelizmente,
desaparecido. No entanto, encontrou-se entre os papéis póstumos um manuscrito
completo, com o título de Vermischte Bemerkungen (Observões Entremescladas),
que seguramente foi utilizado como fonte para a elaboração do manuscrito perdido.
Sua publicação lado a lado com o texto de Pólen (tal como está impresso em
Athenaeum) permite, em certa medida, avaliar a intervenção que o texto sofreu,
embora nem sempre seja possível distinguir as modificações que teriam sido
introduzidas pelo próprio autor e as que se devem à iniciativa de Schlegel.
(NOVALIS, 2001, p. 23)
9
9
In: NOVALIS. Pólen. São Paulo: Editora Iluminuras, 2001, edição. A presente edição de Pólen rne um
amplo conjunto de fragmentos escritos e publicado por Novalis em 1798 na revista Athenauem, dirigida pelos
irmãos Schlegel, traduzidos por Rubens Rodrigues Torres Filho. Optamos pela leitura dos fragmentos traduzidos
que se trata de um trabalho extremamente criterioso realizado por um dos maiores especialistas brasileiros na
filosofia do idealismo alemão, particularmente na Doutrina da Ciência, de Fichte. Rubens Rodrigues Torres
filho é um filósofo e professor respeitável, tradutor e poeta de primeira grandeza. Os fragmentos de Novalis
selecionados para a presente edição abrangem desde suas reflexões filosóficas e críticas aos seus comentários
sobre poética e criação. Trata-se de um importante painel do pensamento crítico-teórico do poeta dos Hinos à
Noite. Além trazer à luz uma tradução dessa natureza, o trabalho de Torres Filho ainda se preocupa em
apresentar, por intermédio de suas notas explicativas, as conexões que o pensamento crítico-poético de Novalis
estabeleceu com o idealismo filosófico alemão e com a obra de outros poetas e pensadores igualmente
38
O importante, neste momento, é considerar que a relação de amizade e as afinidades
intelectuais de Schlegel e Novalis não permitem to-los de forma absolutamente
individualizada, nem tentar considerar, de modo singular, a contribuição reflexiva de cada um
à teoria literária e à crítica de arte no romantismo alemão. Ao estreitarem relações, ao se
aproximarem por meio de seus interesses estéticos e filosóficos, ambos revelam que acima
das questões autorais estava o próprio pensamento teórico, que além das preocupações
literárias e de criação artística predominava a busca por instituir um espírito crítico-teórico
inovador, original, que fosse capaz de criar, justificar e compreender um novo tipo de arte que
vinha sendo produzida então: uma arte que rompia com os ideais normativos do classicismo,
que se afastava das tradições estabelecidas e que buscava, sobretudo, novas formas de
expressão, mais condizentes com uma realidade na qual o conhecimento filosófico, como
veremos aqui, alcançava um patamar revolucionário graças aos trabalhos desenvolvidos por
Kant e suas três Críticas, além da influência da Doutrina da Ciência, de Fichte, que se
difundia largamente entre os românticos justamente por afirmar a precedência de um Eu
Absoluto, livre e incondicionado que seria a fonte de todas as reflexões e o centro irradiador
de todo pensamento.
O Círculo de Jena representou, então, ―um universo pensante e criador em constante
estado de ebulição, um mundo intelectualmente ativo, que iria rever e repensar a arte a partir
de um novo horizonte estético que se anunciava‖ (SCHEEL, 2005, p. 36-37)
10
. Os poetas,
críticos e teóricos que integraram o círculo literário e filofico de Jena abriram caminho para
uma nova compreensão do fenômeno artístico, buscando definir a arte em função de si
importantes em seu tempo, como Schlegel, Tieck e Schelling, por exemplo. A própria tradução de Rubens
Rodrigues revela sua preocupação em manter-se ligada aos próprios valores defendidos por Novalis em se
fragmento sobre a tradução, já que o filósofo brasileiro parece praticar, ele mesmo, o que o poeta alemão chamou
de ―tradução modificadora‖ que podemos entrever o profundo esforço do tradutor em preservar a dimensão
poética do discurso crítico e reflexivo de Novalis.
10
SCHEEL, Márcio. O Fragmento Literário como Crítica: a Poiésis em Novalis. Dissertação de Mestrado
apresentada ao programa de pós-graduação em Estudos Literários da UNESP, campus da Faculdade de Ciências
e Letras de Araraquara, 2005.
39
mesma, de suas características determinantes, de suas formas de manifestação e expressão,
o mais em fuão de modelos ou paradigmas determinados pelos tratados estéticos que se
disseminaram graças, principalmente, aos esforços do classicismo francês em estabelecer os
valores judicativos da arte do século XVIII. Sob muitos aspectos, autores como Schlegel e
Novalis concentram seus esforços em conceber não apenas uma nova literatura, mas também
uma nova crítica, sendo que ambas deveriam estar plenamente de acordo com os ideais
românticos de liberdade, imaginação e originalidade, buscando uma nova forma de reflexão e
expressão que fosse a manifestação de um eu e de uma obra incondicionados por qualquer
sistema absoluto, completo e fechado de pensamento.
August Wilhelm Schlegel, jornalista, poeta, tradutor e crítico, responsável por aquela
que seria uma das mais importantes traduções de Shakespeare para o alemão, além de ter
traduzido, também, Calderón, Petrarca, Lope de Vega e Camões; Schleirmacher, teólogo,
filósofo e pedagogo, desenvolveu o conceito de hermenêutica como método de interpretação
crítica; Schelling, teólogo e filósofo; Novalis, poeta, romancista, crítico e teórico do
romantismo alemão; Friedrich Schlegel, teórico, romancista e pensador do mesmo
romantismo; Hölderlin, poeta, crítico e tradutor; Ludwig Tieck, poeta, romancista, crítico,
tradutor de, entre outros, Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, e editor, são apenas alguns
dos nomes apontando por Wilhelm Dilthey, em um estudo publicado na tradução brasileira
dos Hinos à Noite
11
, de Novalis, que determinaram os caminhos do pensamento filosófico,
crítico e estético do primeiro romantismo alemão. Juntos estes autores ―revelam no primeiro
decênio de seu aparecimento, de modo mais efetivo, em relação a seu caráter intelectual, a
influência das condições sob as quais criaram conjuntamente‖ (DILTHEY, 1987, p. 14). Na
verdade, o primeiro romantismo alemão teve um forte cunho geracional, que se afirmou a
partir do encontro de poetas, escritores e pensadores que tinham em comum, além da
11
NOVALIS. Hinos à Noite. Tradução, seleção, introdução e notas de Nilton N. Okamoto e Paulo Allegrini.
Mairiporã, SP: Esfinge, 1987, p. 14.
40
juventude e do espírito crítico-reflexivo, o gosto pelas letras, a paixão pelas idéias e pelo
pensamento filosófico e o projeto de criar uma nova literatura.
Esse ambicioso projeto passa, por exemplo, pelo ideal goetheano de concepção de uma
Weltliteratur, ou seja, de uma ―literatura mundial ou, melhor dizendo, uma literatura
universal‖, que os românticos incorporaram, fazendo do exercício tradutório um dos caminhos
mais decisivos para o desenvolvimento da arte e da cultura em língua alemã. As reflexões de
Goethe acerca da Weltliteratur estão ligadas, de acordo com Antoine Berman, em A Provo do
Estrangeiro, ―a uma certa visão das trocas interculturais e internacionais‖, sendo que a
tradução seria o ato sui generis que encarna, ilustra e também permite esses intercâmbios,
sem ter, bem entendido, o monopólio deles (BERMAN, 2002, p. 99)
12
. O ideal de uma
literatura universal surgiu principalmente das relações de Goethe com suas próprias obras
traduzidas. Como aponta Berman, o fato de ter sido um autor traduzido não fez com que
Goethe se relacionasse com a tradução de forma narcísica, isto é, exclusivamente ligada à
satisfação pessoal, mas, ao contrário, que transformasse essa relação em uma experiência
concreta, em fonte de conhecimento, num modo de se relacionar com a cultura e, sobretudo,
de inserir a língua alemã no contexto cultural europeu, promovendo uma verdadeira interação
entre culturas e línguas, já que
a noção goetheana de Weltliteratur é um conceito histórico que diz respeito ao
estado moderno da relação entre as diversas literaturas nacionais ou regionais. Nesse
sentido, é melhor falar da idade da literatura mundial. É a idade em que essas
literaturas não se contentam mais em entrar em interação (fenômeno que mais ou
menos sempre existiu), mas concebem abertamente sua existência e seu
desdobramento no âmbito de uma interação incessantemente intensificada.
(BERMAN, 2002, p. 101)
Para Goethe, a tradução seria o caminho para a criação de uma literatura mundial
porque colocaria em circulação não apenas os valores cultuais, sociais, políticos, ideológicos e
estéticos intrínsecos às grandes obras consideradas patrimônios literários da humanidade, mas
12
BERMAN, Antoine. A Prova do Estrangeiro. Bauru, SP: EDUSC, 2002.
41
também porque contribuiria para o enriquecimento da própria língua e cultura nacional,
afirmando-se como parte desta, já que não há tradução que não incorpore as nuances da língua
e da cultura que lhe servem de destino. Mais do que a tentativa de superação das diferenças
políticas e culturais que separam as nações, a tradução seria o caminho para o surgimento e
consolidação de uma cultura cosmopolita, calcada num profundo intercâmbio de idéias,
reflexões, sentimentos e sensações que contribuiriam para o desenvolvimento e afirmação da
nacionalidade. A tradução, então, colocaria em jogo as relações entre o Eu e o Outro, a busca
pela construção de uma identidade nacional que se desse, sobretudo, a partir do encontro com
o estrangeiro, com o que é alheio, estranho, diferente e que, por isso mesmo, ajuda a iluminar
e desvelar o que há de mais fecundo em nossa própria cultura.
O objetivo, aqui, não é, evidentemente, o de mapear a teoria goetheana da tradução e
seu imbricamento com a Weltliteratur, menos ainda demonstrar como essa mesma teoria
afetou diretamente o pensamento dos Frühromantiker. Esse breve intercurso serve para que
possamos encontrar um dos lastros essenciais do pensamento crítico, teórico e criador dos
primeiros românticos alemães. Radicado em Weimar, cidade próxima a Jena, Goethe
influenciou sobremaneira o espírito inovador e experimental que tão bem caracteriza a arte e a
reflexão romântica, principalmente aquela engendrada por Novalis e Schlegel. O círculo
literário de Jena colocou em cena um grupo de escritores, poetas e filósofos que se deram a
tarefa de refletir sobre a criação literária não mais em função dos paradigmas clássicos
estabelecidos e o bem conhecidos, como aqueles que determinam o primado racionalista da
forma, da elegância, da retidão e da elevação do estilo, das formas totalizantes de expressão,
como a epopéia e o teatro trágico de influência grega, que chegaram à Alemanha por
influência francesa, mas sim a partir dela mesma, de seus elementos singulares, de suas
particularidades mais determinantes e que se manifestam por intermédio da própria
subjetividade criadora:
42
Uma tradução é, seja gramatical, ou modificadora, ou mítica. Traduções ticas são
traduções no mais alto estilo. Exem o caráter puro, perfeito e acabado da obra de
arte individual. Não nos o a obra de arte efetiva, mas o ideal dela. Ainda não
existe, ao que creio, nenhum modelo inteiro dela. No espírito de muitas críticas e
descrições de obras de arte encontram-se porém claros tros. É preciso para isso
uma cabeça, onde espírito poético e espírito filosófico se interpenetraram em sua
inteira plenitude. A mitologia grega é em parte uma tal tradução de uma religião
nacional. Também a madona moderna é um tal mito.
Traduções gramaticais são as traduções no sentido costumeiro. Exigem muita
erudição mas apenas aptidões discursivas.
As traduções modificadoras requerem, se devem ser genuínas, o mais alto espírito
poético. Resvalam facilmente para o travesti como o Homero em jambos de
Bürger o Homero de Pope as traduções francesas em seu conjunto. O verdadeiro
tradutor dessa espécie tem de na realidade de ser o próprio artista e poder dar a idéia
do todo assim ou assim a seu bel-prazer Tem de ser o poeta do poeta e assim poder
fazê-lo falar segundo sua própria idéia e a do poeta ao mesmo tempo. Numa relação
semelhante está o nio da humanidade com cada homem individual.
Não meramente livros, tudo pode ser traduzido destas três maneiras. (NOVALIS,
2001, p. 73)
A perspectiva de Novalis acerca da tradução expressa de forma aforística,
fragmentária, como ficou caracterizada boa parte de seu pensamento nos permite entrever, a
um só tempo, a preocupação com a tradução em si mesma, ou seja, forma de universalização
da literatura, da língua, da cultura alemã, herança evidente dos ideais goetheanos; a noção
romântica de que a própria tradução deve ser uma arte, um exercício estético; e a distinção
romântica entre os diferentes tipos de discursos ou formas de expressão. Os românticos
fizeram do ideal de arte, de criação, sua pedra de toque. Por isso Novalis afirma que o tradutor
das ―traduções modificadoras‖ tem de ser ―o poeta do poeta‖, pois o espírito romântico
colocou em jogo a noção da potencialidade do artista, que deveria se manifestar tanto no
pensamento quanto na filosofia, na literatura, na crítica, na teoria ou mesmo na tradução. O
grande esforço intelectual dos primeiros românticos alemães foi, sob muitos aspectos, criar
uma obra que estivesse de acordo com o clima e o espírito de sua época: um período marcado
pela revolução filofica levada a efeito pelas três Críticas kantianas, pela Doutrina da
Ciência, de Fichte, pela Revolução Francesa, cujos ideais andavam em curso por boa parte
da Europa, pela busca por um novo modelo de nação que deveria começar pela integração da
Alemanha à alta cultura européia:
43
Se acompanharmos um breve histórico das traduções alemãs de Shakespeare talvez
possamos ter uma idéia mais clara de sua importância dentro da literatura alemã. A
incorporação do grande dramaturgo ao espírito alemão foi uma longa trajetória de
malogros e vitórias parciais, que tendo início no século XVII, que eram meras
adaptações, passando por Lessing, a tradução em prosa de Wieland, a primeira
versão em forma poética de Herder, o entusiasmo generalizado entre os escritores do
Sturm und Drang, as traduções de Lenz, Bürger e Schiller, até culminar na grande
tradução de A. W. Schlegel, ntese e superação das anteriores e para citar outras
das sínteses admiráveis de Carpeaux –, reunindo de maneira extraordinária a maior
fidelidade à letra e ao espírito do teatro elisabetano e todo o vigor da língua poética
de Goethe: essa tradução é uma das maiores obras de arte verbal da literatura
universal‖. O importante é que essas traduções não foram projetos isolados, elas
transcendem amplamente as iniciativas individuais para serem o esforço de toda
uma comunidade para dar uma voz nacional que lhe é própria a uma voz que vem de
fora. É ao mesmo tempo a voz de Shakespeare em espírito alemão, sem deixar de ser
Shakespeare. (OKAMOTO e ALLEGRINI, 1987, p. 12)
Nesse sentido, o fragmento de Novalis revela-se bastante coerente com a proposta
romântica de fazer da tradução uma forma de integração da Alemanha no conjunto da cultura
européia, ao mesmo tempo em que afirma a primazia do artista como veículo desse processo,
sendo o único capaz de fazer com que o outro fale por sua própria voz, o único capaz de dar
voz ao outro. Esse breve excurso pelo universo da tradução romântica ajuda-nos a
compreender uma dimensão importante do primeiro romantismo que surgiu partir do circulo
literário de Jena: o fato de que seus representantes estavam profundamente ligados ao projeto
comum de criar uma nova literatura, uma nova crítica e uma nova cultura. A tradução não foi
a única forma de expressão plenamente cultivada pelos românticos, ao contrário, justamente
por estarem em busca de uma nova dimensão de criação e crítica, eles fizeram do universo da
literatura o lugar ideal para uma profunda experimentação estética, que fosse capaz de refletir
um pensamento inquieto, que busca o novo como uma forma de reagir e romper com o rigor
formalizante do classicismo, manifestação artística da crença na razão propagada pelo espírito
da Ilustração, ao mesmo tempo em que pudesse representar, de modo bastante significativo, o
surgimento de uma nova individualidade, que procura, agora, ―o senso do diferenciado, do
matizado e característico, que falta em boa parte ao racionalismo ilustrado‖ e que o
44
Romantismo o possui, e em alta dose, mesmo.‖ (ROSENFELD e GUINSBURG, 1978, p.
268-269)
13
Os românticos de Jena puseram em cena uma forma de pensar e, sobretudo, de
escrever, criar, expor suas ideias perfeitamente coerente com esse momento de percepção da
crise do homem, da subjetividade e, antes de tudo, da própria crise do individualismo, que
o corresponde mais ao idealismo racionalista da Äufklarung, que, para o homem da
Ilustração, o individualismo
se baseia na faculdade racional comum a todos os seres humanos e que os torna
essencialmente iguais. Se nem todos os homens têm o mesmo nível, não é por serem
uns mais ou outros menos dotados desta capacidade, pelo menos entre os que não
estão afetados por deficiência orgânica, mas por causa da educação, dos entraves
sociais e outros fatores extrínsecos. Abolidos tais impedimentos, todos os homens
deveo aproximar-se da plena racionalidade. Suas potências racionais tornar-se-ão
ato. Temos um idealismo que podemos chamar de abstrato. (ROSENFELD e
GUINSBURG, 1978, p. 269)
Os românticos de Jena serão os primeiros a questionar essa crença na igualdade dos
indivíduos estabelecida a partir dos postulados da razão ilustrada, ou seja, a noção de que o
desenvolvimento subjetivo, individual, está diretamente associado a fatores extrínsecos ao
próprio sujeito. Assim, o romantismo começa a
valorizar o indivíduo naquilo que o distingue de outro. E o que o distingue é sua
situação social, sua sensibilidade específica desenvolvida num certo âmbito nacional
e em outros elementos particularizantes. Assim, na medida em que é salientado o
papel dos matizes particulares, o valor passa a recair no peculiar, naquilo que
diferencia uma pessoa de outra, uma nação de outra, ou seja, na individualidade.
(ROSENFELD e GUINSBURG, 1978, p.269)
Essa afirmação da individualidade é importante na medida exata em que se apresenta
como um dos pressupostos estéticos do pensamento, da crítica e da criação literária no
primeiro romantismo alemão. É como se a reflexão crítica sobre a criação pudesse se
manifestar a partir da complexa relação estabelecida entre a objetividade analítica, o
13
Rosenfeld, A. e Guinsburg, J. ―Romantismo e Classicismo‖. In: O Romantismo. Organização de Guinsburg,
J. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978.
45
conceitual teórico determinado e os efeitos singulares que a obra provoca na subjetividade do
indivíduo. Sendo que os primeiros românticos alemães irão formular essa mesma reflexão
teórica sobre as bases de um duplo reconhecimento: de um lado, nenhuma obra e, por
consequência, nenhuma crítica, está totalmente acabada, completa, ou seja, tem seus sentidos
esgotados e encerrados em si mesma; de outro lado, a incompletude da obra e da análise
refletem e apontam a própria incompletude do sujeito, que não se reconhece à imagem e
semelhança do indivíduo racionalizado pela Ilustração. É preciso salientar, aqui, que tanto o
afã tradutório dos primeiros românticos alemães quanto a relação que estabeleceram com a
herança ilustrada fazem parte, como apontamos aqui, do projeto iniciado por Goethe de
situar a cultura alemã no contexto da Weltliteratur, buscando afirmar uma identidade própria,
singular, individualizada, construída do contato com outras formas de cultura e do
reconhecimento da necessidade de pensar a literatura, a criação e a crítica na esteira de novas
formas de pensamento e de reflexão.
A rejeição dos modelos clássicos de composição, o privilégio pelo novo, pelo original,
por aquelas formas de expressão que se apresentam de modo disjuntivo em relação à tradição
estabelecida fazem parte da proposta romântica de encontrar outra maneira de perceber o
mundo, a realidade e a criação artística. Schlegel e Novalis, como os dois grandes
representantes do primeiro romantismo alemão, foram, sob muitos aspectos, o responsáveis
o só por desenvolver o ideal goetheano de uma literatura universal, como também por situar
a produção literária e o pensamento crítico-teórico acerca da natureza da literatura e do
fenômeno estético no contexto da ampla reflexão teórica e filosófica que vinha sendo
produzida então. Basta pensarmos que entre 1781 e 1790, Kant publica suas três críticas: a
Crítica da Razão Pura (1781), a Crítica da Razão Prática (1788) e a Crítica da Faculdade de
Julgar (1790). Numa simplificação extremada da filosofia kantiana, podemos dizer que, com
as Críticas, Kant buscou esgotar a problemática acerca das possibilidades do conhecimento e
46
de suas diferentes maneiras de exposição. A questão, aqui, é pensar o impacto que a extensão
desses trabalhos teria sobre o pensamento crítico-teórico do primeiro romantismo alemão. Se
Schlegel e Novalis dedicaram boa parte de suas primeiras obras à problemática da crítica e da
análise da obra literária em função de seus caracteres específicos e do modo como estes se
relacionam e afetam a compreensão subjetiva do fenômeno estético, foi justamente pela
influência que a Estética Transcendental, primeira parte do capítulo um da Crítica da Razão
Pura, de Kant, exerceu sobre eles, pois, como já apontamos em outra oportunidade
Kant, na primeira parte da Crítica da Razão Pura denominada ―Estética
Transcendental‖ -, revela os termos de seu pensamento ao afirmar que
independentemente do modo ou da forma como um conhecimento vai se referir aos
objetos, ou seja, a maneira como ele se refere imediatamente às coisas, depende
sempre da intuição, sendo que é a ela que o pensamento tende. E a capacidade de
criar representações a partir do modo como somos afetados pelos objetos, pelas
coisas, é o que comumente chamamos de sensibilidade. A sensibilidade passa a ser,
então, uma faculdade de intuição. E é por meio dela que os objetos são tomados,
absorvidos, apreendidos e determinados pelo sujeito cognoscente, isto é, pelo sujeito
de conhecimento, pelo sujeito que conhece ou se aventura ao ato de conhecer.
(SCHEEL, 2005, p. 45)
14
Coube aos primeiros românticos alemães formularem, por meio de suas notas críticas,
mais especificamente, a partir do conjunto de fragmentos que produziram, uma reflexão sobre
a criação literária e a natureza da literatura que se desse como um desdobramento dos
postulados kantianos, sobretudo no que diz respeito à questão da sensibilidade ou dos efeitos
sensíveis da obra sobre a subjetividade mesma do crítico. Essa afinidade dos românticos
alemães, em especial de Schlegel e Novalis, com o pensamento filosófico de seu tempo é,
além de marcante, decisiva, d a formulação de Novalis segundo a qual a mais íntima
comunidade de todos os conhecimentos uma república científica é o alto fim dos doutos‖
14
SCHEEL, Márcio. O Fragmento Literário Como Crítica: a Poiésis em Novalis, 2005. 162f. Dissertação
(Mestrado em Estudos Literários: História da Literatura e da Crítica) Faculdade de Ciências e Letras,
Universidade Estadual Paulista, Araraquara. Aprovada para publicação pela Editora da UNESP atras do
PROPG: EDIÇÃO DE TEXTOS DE DOCENTES E PÓS-GRADUADOS DA UNESP, no ano de 2008. A
referida dissertação traz como elemento central de análise a problemática do fragmento literário e da
fragmentação discursiva no primeiro romantismo alemão. Nosso objeto de análise, no entanto, concentrava-se,
substancialmente, nos fragmentos de Novalis publicados sob o título de Pólen.
47
(2001, p. 85)
15
. A própria metáfora da república, usada para caracterizar a crença romântica
no conhecimento, ou melhor, na comunhão de todas as formas de conhecimento filosófico,
literário, estético, crítico e poético diz muito sobre o desejo romântico de estabelecer novos
paradigmas de julgamento analítico, novas formas de se relacionar com a arte e, de modo
mais amplo, de pensar uma cultura nacional verdadeiramente concreta, singular e influente no
contexto europeu da época. Apenas o conhecimento em suas ltiplas manifestações é capaz
de singularizar e particularizar o trabalho do artista, do crítico e do filósofo. Em lugar dos
modelos estabelecidos de criação, em lugar do ideal racionalista do indivíduo integrado,
pleno, em harmonia com o espaço social, político e cultural que o cerca, os românticos, ao
contrário, têm uma percepção crítica bastante acurada do ―homem como um ser cindido,
fragmentado, dissociado(ROSENFELD e GUINSBURG, 1978, p. 272) e da necessidade de
estabelecer uma busca incessante por sua totalidade perdida, porque
com efeito, quando a braços com fenômenos e vistas de maior amplitude, o
romântico, para caracterizá-los, não tenta retirar e abstrair seus elementos, mas
empenha-se sempre em captá-los em sua Ganzheit, ―inteireza‖, em sua Gestalt,
―configuração‖. Trata-se, na verdade, de ver cada singularidade em seu contexto
geral, cada ser humano na paisagem social que o enforma e emoldura, relacionando-
os por integração da parte no todo maior. (ROSENFELD e GUINSBURG, 1978, p.
269-270)
Por isso, a preferência dos românticos pela criação de suas próprias formas e modelos
de expressão; por isso o rompimento com o classicismo; por isso a descontinuidade reflexiva,
quer vai conceber uma forma de exposição do pensamento igualmente descontínua, o
fragmento literário, que se nega à qualquer sistematização e que se permite tomar como a
forma mais imediata e sempre em devir da reflexão; por isso a percepção de que é preciso ser
moderno e que a modernidade está em construir uma arte que seja não a expressão desse
novo ideal de indivíduo, mas que também esteja de acordo com a própria idéia de nação, povo
e cultura que eles, agora, colocam em jogo:
15
Fragmento 84 das ―Observações Entremescladas‖. In: NOVALIS. Pólen. São Paulo: Iluminuras, 2001.
48
Mais uma vez, evidencia-se quão diverso é o modo romântico de mirar as coisas, em
face do prisma do racionalismo classicista. Um tira os elementos do contexto para
focalizá-los, enquanto o outro se esforça para ilumi-los dentro de seu quadro
global. A partir desse ângulo, a recusa da preceituação normativa do Classicismo,
por exemplo, vem a ser mais do que uma simples rebeldia. Pois o romântico -se
quase obrigatoriamente levado a pensar: se os cânones clássicos foram estabelecidos
na Grécia antiga (como se afirmava então) é porque serviam para o seu povo
naquele momento, mas o mesmo modelo o pode adequar-se a outra nação, com
uma fisionomia coletiva diferente e em outra moldura histórica. Como pois aceitar
como regras eternas os ditamos artísticos do Classicismo? Uma nova época, um
novo contexto, uma nova Gestalt exigem uma arte, um estilo, um ritmo distintos.
(ROSENFELD e GUINSBURG, 1978, p. 270)
A perspectiva crítica, teórica e estética aberta por Schlegel e Novalis é uma tentativa
de estabelecer não novos parâmetros críticos e analíticos que pudessem dar conta daquilo
que de mais particular e característico na obra de arte, como também de pensar a literatura
a partir da idéia de que cada obra é uma realidade única, situada num momento único da
hisria e que, por isso mesmo, solicita uma forma igualmente única de expressão. A arte
clássica, por seu caráter modelar, por construir-se sobre os fundamentos de regras e formas
pré-determinadas de composição, acaba, de certo modo, por minar a capacidade do artista de
expressar suas idéias, reflexões e sentimentos de forma original, já que a racionalização
formal termina por impor a essas mesmas idéias e sentimentos uma sistematização rigorosa,
que busca o fechamento do sentido, o acabamento reflexivo, o rigor retórico-expositivo, que
acredita na expressão totalizante da Verdade por meio da linguagem criadora. Assim, como
concluímos outrora, ―a idéia neoclássica de Verdade estava permeada pelo antigo ideal greco-
latino de beleza, equilíbrio, harmonia(SCHEEL, 2005, p. 46). Para Novalis e Schlegel, é
possível afirmar, a idéia de verdade residia num processo contínuo de reflexão, sendo que esta
se caracteriza justamente por sua tendência ao inacabamento, à incompletude, à abertura
infinita do sentido. Desse modo, não é ocasional que ambos tenham feito do fragmento
literário sua forma de expressão, poética e crítica, bem como o veículo ideal para expor um
pensamento em constante devir. O fragmento, forma que aponta para seu próprio
49
inacabamento fundamental, é a expressão mais perfeita tanto da ruptura romântica com os
ideais clássicos quanto da tentativa estética de conceber um modelo moderno de expressão.
É preciso notar que a relação dos românticos com a obra kantiana é, para dizer o
mínimo, ambígua. De um lado, Schlegel e Novalis incorporam, em seus trabalhos críticos,
o apenas a questão dos conhecimentos que envolvem o objeto criticado, mas também os
diferentes modos de conhecê-los, analisá-los e descrevê-los, bem como da sensibilidade
subjetiva solicitada nesse processo reflexivo. Mas, de outro lado, a influência kantiana é,
sob muitos aspectos, superada por eles, principalmente no que diz respeito à forma de
exposição de suas críticas: Kant, dada a natureza de seu trabalho filosófico, concebeu uma
forma de exposição do pensamento rigorosa, sistemática e totalizante, que, como professor
universitário, deveria observar as regras e princípios que norteavam a elaboração das manuais
acadêmicos de acordo com as exigências universitárias de então, além de submeter sua obra à
estrutura e ao jargão científico predominante. Os românticos admitem a influência das teorias
do conhecimento postuladas por Kant, mas rejeitam sumariamente seus rígidos modelos de
exposição. Assim, Schlegel e Novalis propõem uma forma crítica fragmentária, descontínua,
que rejeita a idéia de sistema articulado e coloca em cena a imagem do pensamento que se dá
e se ilumina como um flash, um insight, uma pequena revelação, de forma alheia, disjuntiva,
livre e imediata. Assim, Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, irão constatar, no
capítulo A Exigência Fragmentária
16
, de L’ Absolu Littéraire (1978), que o romantismo
seria então o que põe em jogo um outro ―modelo‖ de ―obra‖. Ou ainda, e sendo mais
preciso, o que põe em obra [met l´oeuvre] de um modo diferente. O que não quer
dizer que o romantismo seja o momento, o aspecto, ou o registro ―literário‖ do
idealismo filosófico nem, de resto, que o inverso seja justo. A diferença no operar
[mise en oeuvre] pode-se dizer também: a diferença de operação que precisa ser
16
In: LACOUE-LABARTHE, Philippe. e NANCY, Jean-Luc. L’ Absolu Littéraire. Paris: Ed. du Seuil, 1978.
Nesta obra, os teóricos e pensadores franceses propõem um estudo das influências e do alcance do pensamento
crítico-teórico dos Românticos de Jena, sobretudo de Schlegel e Novalis, para as reflees acerca da literatura na
modernidade. O capítulo “A Exigência Fragmentária”, aqui utilizado, remete à tradução de João Camilo Penna.
In: Revista Terceira Margem. Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura. Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Centro de Letras e Artes, Faculdade de Letras, s-Graduação, Ano IX, 10, 2004,
p. 66-94.
50
sinalizada entre Schelling e o Athenäum para circunscrever a especificidade do
romantismo não remete de forma alguma à diferença entre o filosófico e o literário;
antes, ela a torna possível, sendo ela própria a diferença interna que afeta, neste
momento de crise, o pensamento da ―obra‖ em geral (moral, política, ou religiosa
assim como artística e teórica). (2004, p. 67)
Esse outro modelo de obra posto em jogo pelos românticos de Jena é um modelo
fracionado, desarticulado e original, já que rejeita os postulados estabelecidos da forma, a
normatividade rigorosa do classicismo e a sistematização totalizante da filosofia Ilustrada em
nome de um ideal de obra ilimitada, sempre em progresso, cujos sentidos se constituem da
soma de suas partes, de sua abertura infinita a uma reflexão que se divisa não com a
ciência, mas também com a própria arte:
Pensamentos entremesclados deveriam ser os esboços da filosofia. Sabe-se quanto
estes valem para os que conhecem pintura. Para aquele que não puder rascunhar
mundos filosóficos a lápis, não puder caracterizar com alguns rabiscos todo e
qualquer pensamento que tenha fisionomia, a filosofia jamais se tornará arte e,
portanto, tampouco ciência. Pois na filosofia o único caminho que leva à ciência
passa pela arte, assim como, ao contrário, por meio da ciência o poeta se torna
artista. (SCHLEGEL, 1997, p. 100-101)
17
Neste fragmento, o de número 302 na seleção de Márcio Suzuki, publicado
originalmente na revista Athenäum, Schlegel deixa entrever o quão radical é esse novo
modelo de obra que a crítica romântica propõe: de um lado, predomina o ideal de obra como
esboço, rascunho, inacabamento, elaboração permanente, para horror da sistematização
totalizante da filosofia da Ilustração; de outro lado, a afirmação ainda mais polêmica de um
novo modelo de artista, ou seja, aquele que funde criação e pensamento, ciência e elaboração
estética, filosofia e poiésis. De fato, Novalis e Schlegel fizeram do fragmento literário um
17
SCHLEGEL, F. O Dialeto dos Fragmentos. Trad. Apr. E Notas de Marcio Suzuki. São Paulo: Editora
Iluminuras, 1997. Marcio Suzuki, juntamente com Marcio Seligmann-Silva, é um dos mais importantes críticos
brasileiros do primeiro romantismo alemão, particularmente, da obra de Friedrich Schlegel. Sob muitos aspectos,
os estudos de Suzuki e Seligmann-Silva são complementares, pois enquanto o primeiro dedica-se à compreensão
da obra de Schlegel à luz do idealismo filosófico alemão, que se desenvolveu a partir da influência exercida
pelas Críticas de Kant, e do pensamento pós-kantiano, ou seja, concentrando sua atenção sobre as relações de
Schlegel com a filosofia crítica do período; Márcio Seligmann-Silva voltou-se, principalmente, para as questões
concernentes ao entendimento das relações que o idealismo filosófico alemão, de Schlegel e Novalis sobretudo,
estabeleceu entre reflexão filosófica, teoria da literatura, crítica literária e criação estética no primeiro
romantismo.
51
gênero de ruptura, pois a própria forma assumida por essa escritura estilhaçada, fracionada e
assistemática, já o coloca em meio à polêmica querela entre os antigos e os modernos, que, no
primeiro romantismo alemão, sobretudo no que concerne ao pensamento crítico de Schlegel,
se deu em razão da leitura que ele fizera do ensaio Poesia Ingênua e Sentimental, de Schiller,
outra influência decisiva para o desenvolvimento do ideal de teoria da literatura entre os
românticos alemães.
Schiller publicou seu Poesia Ingênua e Sentimental em sua própria revista, conhecida
como As Horas, no ano de 1795. Trata-se de um trabalho ensaístico no qual o poeta e
dramaturgo alemão fará sua inconfundível distinção entre antiguidade e modernidade em
termos do par opositivo ingênuo e sentimental. Para Schiller, um espírito dividido entre a
aspiração ao classicismo, com suas regras, preceitos e modelos exemplares, e os arroubos e
liberdades artísticas que ele vivenciara, na juventude, graças ao Sturm und Drang, era preciso
criar um projeto estético baseado na afirmação da exemplaridade modelar que a Antiguidade
Clássica legara e que deveria, a todo custo, ser restaurada. Assim, o ensaio de Schiller sobre a
poesia tinha como base de construção a distinção que ele mesmo estabelecia entre o espírito
classicizante de Goethe e sua própria personalidade. Schiller principia como um legítimo
representante do Sturm und Drang, o pré-romantismo alemão que teve em Os Sofrimentos do
Jovem Werther, de Goethe, sua obra definidora. Assim, ambos vivenciaram as liberdades de
espírito, o impulso criador e o sentimentalismo exacerbado em suas obras de juventude. Mas
Goethe, dez anos mais velho que Schiller, abandonara completamente esse ideal de arte
livre, impulsiva, mística e espontânea, que contrariava os postulados racionalistas do
Iluminismo, em favor do Classicismo de Weimar, do qual ele foi o mentor, o criador e o
maior representante.
Schiller, dada sua amizade com Goethe, acabará revendo seus ideais de juventude e,
ao fundar a revista As Horas, o fará em busca de um modelo de arte que fosse capaz de
52
recompor aquela imagem de natureza, mais especificamente de natureza humana, que,
segundo ele, os gregos viveram de forma absoluta e representaram, em suas obras, com
equilíbrio e serenidade:
Quando se recorda a bela natureza que envolvia os gregos antigos; quando se reflete
sobre quão intimamente esse povo podia viver com a natureza livre sob seu céu
feliz; quão mais próximos estavam da natureza simples seu modo de representar, sua
maneira de sentir, seus costumes, e que reprodução fiel dela são suas obras poéticas,
é de estranhar a constatação de que nesse povo se encontrem tão poucos vestígios do
interesse sentimental com que nós outros modernos podemos apegar-nos a cenas e
caracteres naturais. Com efeito, o grego é sumamente exato, fiel e minucioso na
descrição deles, embora não tanto e nem com mais participação do coração do que
na descrição de um traje, de um escudo, de uma arma, de um utensílio doméstico ou
de qualquer outro produto mecânico. Em seu amor pelo objeto, parece não fazer
nenhuma diferença entre o que é por si mesmo e o que é pela arte e vontade humana.
(SCHILLER, 1991, p. 54-55)
18
Não é que Schiller desaprove completamente o poeta moderno, identificado com o
conceito de sentimental, mas ―na tentativa de antecipação e prefiguração na literatura da
idealidade perfeita que ambos (Goethe e Schiller) supunham ter vigorado na poesia da
Antigüidade clássica (KESTLER, 2007, p. 2)
19
, acaba por buscar uma síntese entre a
ingenuidade típica da poesia grega antiga no sentido de que se preocupava em compor uma
imagem fiel da realidade, afastando-se dos efeitos que esta pode provocar no indivíduo, pois
a natureza parece interessar mais seu entendimento e sua avidez de saber do que seu
sentimento moral‖, ou seja, o poeta antigo ―não se apega a ela com afeição, com
sentimentalismo, com doce melancolia, como nós outros modernos‖ (SCHILLER, p. 55) e a
sentimentalidade da poesia moderna, que visa conformar o mundo à uma imagem ideal, a uma
representação superior, que a natureza, para o poeta moderno, passa a ser muito mais uma
aspiração ideal, eivada de um sentimentalismo nostálgico, do que uma realidade superior:
18
In: SCHILLER, Friedrich. Poesia Ingênua e Sentimental. Trad. Apr. e Notas de Márcio Suzuki. São Paulo:
Editora Iluminuras, 1991.
19
In: KESTLER, Izabela Maria Furtado. Friedrich Schiller X Friedrich Schlegel: Confrontos E
Convergências Em Torno Da Fundamentação Da Modernidade. Anais do Encontro Regional da ABRALIC
Literatura, Artes, Saberes. USP, São Paulo, 2007. Disponível em
<http://www.abralic.org.br/enc2007/anais/53/94.pdf>. Acesso em 06 de abril de 2009.
53
Como é que, sendo em tudo o que é natureza infinitamente suplantados pelos
antigos, podemos justamente aqui homenagear a natureza num grau mais elevado,
apegar-nos a ela com afeição e mesmo abraçar o mundo inanimado com a mais
calorosa sensação? Isso decorre de que, entre nós, a natureza desapareceu da
humanidade, e de que a reencontramos em sua verdade fora desta, no mundo
inanimado. Não é nossa maior conformidade, mas, muito ao contrário, é a
contrariedade com a natureza de nossas relações, estados e costumes que nos
impele a alcançar no mundo físico, uma vez que não pode ser esperada no moral,
uma satisfação para o crescente impulso de verdade e simplicidade, que, como a
predisposição moral de onde emana, reside incorruptível e indelevelmente no
coração de todos os homens. (SCHILLER, 1991, p. 55)
Agora, trata-se recompor a natureza por meio da beleza artística, da idealidade, do
racionalismo, de forma simples e verdadeira, restituindo-lhe, atras da arte, a elevação e a
dignidade que ela, em algum momento, perdera. Dessa forma
No estudo Poesia ingênua e sentimental, Schiller demarca o espaço da modernidade
literária em contraposição ao ideal da antigüidade através dos pólos
ingênuo/sentimental; natureza/cultura; antigo/moderno. A poesia innua, presente
na unicidade do poeta grego com a natureza, lugar nos modernos à reflexão, ao
sentimento da natureza. A partir da constatação de que entre os gregos a natureza
não degenerou tanto ao ponto de que abandonassem a natureza, Schiller escreve que
eles eram unos consigo mesmos e felizes no sentimento de sua humanidade.
(KESTLER, 2007, p. 3)
A proposta de Schiller, então, é resgatar os valores da Antiguidade Clássica, mas de
uma forma ainda mais ideal, ainda mais sublime, ainda mais condicionada à vontade criadora.
Assim, o Classicismo de Weimar será aquele que procederá a uma plena, absoluta e
totalizante estetização da natureza. A importância de Schiller e de seu ensaio não reside
apenas no fato do dramaturgo alemão ter criado uma tipologia poética bastante específica em
relação às formas de criação ideal vislumbradas por ele em fins do século XVIII nem pelo
fato de ter concebido uma teoria poética em que a imagem de natureza fica condicionada ao
trabalho intelectual do poeta, influência direta do racionalismo iluminista, sobretudo da
filosofia natural de Rousseau, mas, sobretudo, pelo fato de ter causado um impacto decisivo
sobre as perspectivas românticas acerca do fazer poético, influenciando sobremaneira o modo
como Schlegel e Novalis acabariam por desenvolver seu referencial crítico-teórico acerca de
uma arte baseada no Eu, no espírito individual, na intuição subjetiva. A extensão dessa
54
influência é tão notória que, no mesmo ano em que Schiller publicara seu Poesia Ingênua e
Sentimental, Schlegel havia composto seu mais conhecido, e um dos mais longos, ensaio de
juventude, o Über das Studium der griechischen Poesie (Sobre o Estudo da Poesia Grega),
publicado em 1797.
No Studium, como ficou conhecido, Schlegel ainda mantinha uma visão de poiésis e
de poesia profundamente marcada pelo ideal clássico de representação totalizante do mundo,
da realidade, das coisas e da natureza humana, o que equivale a dizer que os primeiros
românticos alemães, como constatamos em nosso trabalho sobre Novalis, olhavam com
interesse para as grandes obras que a cultura helenística legara à tradição filofica, artística e
literária européia. No início, em suas primeiras publicações, Schlegel e Novalis, sobretudo o
primeiro, irão afirmar sua crença no ideal de totalidade que emanaria dos clássicos. Nesse
momento, tal ideal ainda norteia a perspectiva crítica e teórica dos primeiros românticos, isso
porque, entre outras coisas, eles entreviam nessas obras o caráter modelar de representação
plena e integral do mundo, que se pode divisar por trás do conceito grego de mesis, forma
estética de apreender o real no que ele tem de absoluto e totalizante. O que equivale a dizer:
num primeiro momento, Schlegel vê nos clássicos uma espécie de paradigma da criação
estética, isto é, admitindo a organicidade histórica, que se definiria por sua capacidade de
representação plena, total, contínua; na unidade igualmente totalizante dos discursos
representativos principalmente aqueles da expressão estética ; na possibilidade de
objetivar, de direcionar a poesia moderna no sentido de constituir-se como essa unidade
totalizante alegada, como forma de representação plena do mundo, dos seres e das coisas
20
.
Nesse momento, Schlegel defende uma aproximação verdadeira e consciente com os
modelos clássicos de criação, admitindo mesmo que a época moderna
20
SCHEEL, Márcio. O Fragmento Literária como Crítica: a Poiesis em Novalis, 2005. 162f. Dissertação
(Mestrado em Estudos Literários: História da Literatura e da Crítica) Faculdade de Ciências e Letras,
Universidade Estadual Paulista, Araraquara, p. 52.
55
não tem mais que ―valor estético provisório‖ (idem, 119), quando, ao invés, ―há leis
puras para a beleza e para a arte, que devem valer sem excão (ibidem, 115).
Desta maneira, ―a falta de traços característicos parece o único traço da poesia
moderna, a perplexidade, a marca comum de suas obras, a ausência de lei, o espírito
de sua história e o ceticismo, o resultado de sua teoria(ib., 125). Caracterização
crítica tão veemente que se é levado a suspeitar que o sujeito acusado não é apenas a
poesia. Na verdade, como afirma passagem de resenha sobre o romance filosófico de
Jacobi, Woldemar, o efetivo sujeito do ataque de Schlegel é a própria época
moderna. (COSTA LIMA, 2005, p. 208-209)
21
Ao tomar conhecimento do estudo de Schiller, em 1797, e depois de ter
encaminhado seu Studium à publicação, Schlegel acabaria revendo suas teses acerca da poesia
clássica greco-romana, bem como sua visão a respeito tanto da época quando da própria
poesia moderna. As razões dessa mudança de perspectiva não são de todo claras ou precisas,
mas é possível pensar que, de algum modo, Schlegel intuíra o que há de artificial nos critérios
judicativos que orientavam a crítica da poesia clássica, sobretudo o gosto pela objetividade,
pela normatividade e pelo caráter legislativo dessa mesma crítica. Assim, ao rever as teses
defendidas no Studium, Schlegel o faz a partir da percepção de que o pensamento filosófico e
estético que se manifestava, na época em que vivia, solicitava uma nova sensibilidade, não
criativa, mas crítica, no sentido de que novos valores ou novos modelos de composição
solicitam novos pressupostos teóricos, daí
Independentemente do interesse de verificar-se como este Schlegel se conduzia
quanto ao Schiller que lhe fora decisiva, ressalta um problema que desde logo se
deve explicar: a renúncia à primazia concedida no ―Studium‖ ao critério da
objetividade está por certo orientada por uma visão oposta da obra poética. Ora, este
critério, desde os poetólogos renascentistas até Winckelman, se apoiara em uma
estética normativa, i. e., em uma legislação que oferecia normas positivas para o
julgamento, ―sem exceção‖, das obras. O abandono de tal critério significava para
este Schlegel leitor na época de Kant a renúncia à pretensão de alcançar uma
estética objetiva, sistemática? Aqui então se corrobora e melhor concretiza a
21
In: COSTA LIMA, Luiz. Limites da Voz. Montaigne, Schlegel, Kafka. 2ª edição. Rio de Janeiro: Topbooks,
2005. Trata-se de um dos mais importantes estudos deste que pode ser considerado um dos mais importantes e
influentes tricos da literatura no Brasil. Luiz Costa Lima propõe-se, aqui, um estudo acerca das relações entre
razão e imaginação desde o início do racionalismo, que principiara com Montagine, passando pelo seu auge, que
fora o pensamento kantiano e chegando à extremada desconfiança que a imaginação do absurdo kafkiana lhe
dedicou. Um trabalho abrangente que, sob muitos aspectos, se relaciona diretamente com uma das preocupações
teóricas centrais de Costa Lima, a questão da mimési e o modo como ela se submete, em determinados
momentos da história da literatura, ao ideal de racionalidade que se impõe, sobretudo, como uma forme de
controle do imaginário. Assim, o crítico maranhense restituiu à teoria da literatura uma constante tensão de
natureza filosófica, rompendo com as limitações da crítica especializadas, indo além de uma visão estruturalista,
formalista, semiótica ou afim.
56
necessidade de falar-se de Schlegel como teórico da literatura. (COSTA LIMA,
2005, p. 210)
Muito mais do que Kant e Schiller, como constatamos até aqui, será com o
pensamento de Fichte que Schlegel, e também Novalis, encontrará, por fim, a síntese ideal
para a sua concepção de crítica literária. Fichte, com a publicação de sua Doutrina da
Ciência, de 1794, acabou fornecendo aos românticos alemães aquele que seria o conceito
fundamental de seu pensamento crítico-teórico acerca da literatura e da criação poética: trata-
se do conceito de reflexão. De forma bastante reducionista, é possível afirmar que o trabalho
de Fichte se orientou no sentido de encontrar uma fonte para a reflexão, seu lugar ideal, no
qual ela se manifestaria como reflexão acerca de um objeto determinado, ou seja, como forma
de conhecimento de algo, de uma idéia ou de uma determinada realidade, e como reflexão da
reflexão, isto é, como a reflexão acerca do próprio conhecimento e do modo como esse se dá
na consciência reflexiva. Esse lugar ideal da reflexão seria o que Fichte chamou de Eu
Absoluto, quer dizer, o eu como autoconsciência pura, universal, fonte originária de todo
pensamento, um eu supra-individual, sem dimensão empírica, universal e incondicionado,
porque se faz de suas próprias reflexões, de seus próprios pensamentos.
A idéia do Eu como fonte de todo gesto reflexivo atrai profundamente o interesse de
Schlegel e irá influenciar, por extensão, o próprio pensamento novalisiano, sobretudo porque,
entre os inúmeros textos, trabalhos, anotações, fragmentos e estudos deixados por Novalis,
encontra-se os Fichte-Studiem (Estudos de Fichte), um longo e rigoroso conjunto de notas
cujo propósito é justamente promover uma análise crítica da teoria ficheteana da reflexão e do
conhecimento. Assim, os Früromantiker seriam os primeiros a se debruçar com atenção e
reverência às idéias desenvolvidas por Fichte em sua Doutrina da Ciência. A filosofia, a
crítica e a teoria literária, além da própria criação estética dos referidos românticos, afirma a
importância do Eu Absoluto na construção do pensamento teórico de Schlegel e Novalis e no
modo como estes, buscando a unidade absoluta do eu, e afirmando a incondicionalidade de
57
toda reflexão, concebem a necessidade de criar uma nova forma de expressão, que fosse capaz
de dar vazão à reflexão em sua absoluta instantaneidade: está forma autoconsciente foi o
fragmento literário (não ele, mas também a alegoria, a ironia e o Witz) um processo de
fragmentação estética que i atingir, na modernidade, não só a criação literária, mas as
próprias noções de sujeito, mundo, realidade, linguagem e conhecimento.
1.2. Uma Crítica aos Pedaços: O Fragmento Literário e a Busca pela Totalidade
Perdida
Se algo de verdadeiramente precursor da modernidade nas obras de Schlegel e
Novalis é, sem vida, o interesse que ambos partilhavam pelo pensamento, a reflexão, a
crítica e a teoria, pelo apagamento sistemático das fronteiras entre os gêneros literários, pela
metaliteratura de caráter investigativo, pela desarticulação dos fundamentos clássicos de
discursividade baseados na objetividade, na construção modelar, na regularidade e na
harmonia e pela investigação de novas formas e modelos de expressão que fossem capazes
de refletir as profundas contradições que a filosofia, a arte e a poesia sobre as quais se
detinham podia conceber. Como vimos, tanto Novalis quanto Schlegel orientaram seus
ideais críticos e poéticos sobre os fundamentos do idealismo filosófico que se desenvolveu
graças às idéias de Kant e Fichte. O primeiro, como demonstramos aqui, escreveu aquela
que seria a obra fundamental da Ilustração alemã: as três críticas Crítica da Razão Pura,
Crítica da Razão Prática e a Crítica da Faculdade do Juízo e revolucionou as relações que
o indivíduo estabelece com os objetos e os fenômenos da percepção, levando em consideração
que nossas idéias se fundamentam, sobretudo, em grandes dicotomias: mundo senvel e
mundo espiritual; sensibilidade e entendimento racional; ciência e moral; natureza e
espiritualidade‖ (SCHEEL, 2005, p. 18). Tais dicotomias representariam, então, a oposição
entre
58
a percepção imediata do real e a essência transcendente, metafísica dos fenômenos
que constituem o mundo, os seres e as coisas. Para Kant, o mundo real, sensível, é o
grande objeto da ciência: e tudo o que configura o mundo é dado pelo encadeamento
entre causa e efeito, o que faz com que o homem fique preso a uma realidade regida
por um determinismo inviolável. O homem, que tem suas inclinações, seus desejos,
suas paixões, e seus instintos, como qualquer outro animal, não poderia encontrar a
liberdade se não pudesse viver, também, uma realidade outra, espiritual, que o
libertasse dos imperativos do instinto e do determinismo do mundo. (SCHEEL,
2005, p.18)
Por sua vez, Fichte, discípulo de Kant, buscará desenvolver em seu Fundamentos da
Doutrina da Ciência, um pensamento que unificasse todas essas dicotomias, resolvendo o
problema da separação radical entre natureza e espiritualidade, mundo sensível e mundo das
idéias. Assim, ele cria a iia de um saber absoluto que parte, por sua vez, da noção de Eu
Absoluto por ele desenvolvida: para Fichte, era preciso pensar para dentro, pensar-se a si
mesmo, conceber um eu transcendente, incondicionado, puro, em cujo centro estaria o
princípio mesmo da realidade. Kant e Fichte buscaram, cada um a sua maneira, resolver os
problemas do conhecimento e do julgamento das coisas, dos fenômenos e do ser por meio da
afirmação da individualidade. Para Kant, a crítica seria a única maneira de apreender as
grandes dicotomias do conhecimento de forma plena e resolvê-las a partir da realidade
espiritual, por meio da afirmação dos valores morais e das virtudes do indivíduo. Para Fichte,
tudo poderia ser concebido a partir do próprio Eu, inclusive a realidade. Nesse sentido, a
palavra crítica ganha a conotação de exercício reflexivo cujo ponto de partida é sempre o
indivíduo e seu instrumento cognoscitivo, suas idéias, crenças e valores.
Isso quer dizer que, se em Kant ―era reaado o acordo entre as propriedades do
aparato transcendental e as propriedades dos objetos, graças ao qual a atividade crítica
escapava quer do ceticismo, que do dogmatismo‖, com a filosofia fichteana, toda a ação
reflexiva se concentra sobre a atividade do eu‖ (COSTA LIMA, 2005, p. 149). E é na esteira
da filosofia de Fichte e seu ideal de Eu Absoluto‖ que os primeiros românticos irão conceber
uma obra radicalmente nova e original, na qual poesia, crítica e filosofia se unem num mesmo
59
movimento significativo em busca da compreensão das relações estabelecidas entre o
individuo, o ser, a arte e até mesmo a própria realidade, como podemos perceber na citação
que Luiz Costa Lima faz da Doutrina da Ciência:
O eu determina a realidade e, mediante esta, a si mesmo. Ele põe toda a realidade
como um quantum absoluto. Fora dessa realidade não nenhuma. Essa realidade
está posta no eu. O eu está, portanto, determinado, na medida em que a realidade
está determinada. (FICHTE, apud LIMA, 2005, p. 149)
Assim, o que mais chama a atenção na influência que Fichte exerceu sobre Schlegel e
Novalis é justamente o fato de estes dois terem admitido sem reservas, e com grande fervor, o
idealismo fichteano, sobretudo valendo-se das noções acerca do eu como centro criador e
irradiador da reflexão crítica, do eu como o lugar em que se formam os conjuntos de valores
que devem ser postos em circulação no espaço da crítica e do pensamento teórico, fazendo
com que os conceitos analíticos surjam das relações que o eu estabelece com as obras no
interior da consciência, da subjetividade. Mas a adesão de ambos à filosofia e ao pensamento
idealista não se dá sem certa problematicidade, o que revela que tanto Schlegel quanto
Novalis fizeram muito bem o dever de casa que compete a todo pensador, a todo filósofo e,
sobretudo, a todo artista: se o novo modelo crítico que propunham fraturava a noção clássica
de arte como um conjunto de valores p-determinados, o artista como o realizador capaz de
extrair a beleza desses princípios estabelecidos, e o crítico como o juiz que analisa e pondera a
aplicação das ―normas‖ estilísticas, os primeiros românticos intuíram que para engendrar uma
crítica e uma obra verdadeiramente novas, capaz de compreender e refletir a arte de seu
tempo, a arte moderna, a partir do próprio eu, era necessário fraturar também as formas de
expressão, de apresentação do pensamento e da arte.
Para os românticos alemães, toda obra de arte é original no sentido de que existe e se
apresenta em função de si mesma, ou seja, não é a imitação ou a reprodução do mundo, do
homem ou da natureza, mas a criação ideal de uma outra realidade, isto é, produzida a partir
60
do gesto reflexivo do próprio eu, de suas inclinações estéticas, de suas idéias, de sua
autoconsciência, pois, como afirma Novalis em um de seus fragmentos, ―todo indivíduo é o
centro de um sistema emanacionista‖ (2001, p. 95). Vale destacar que emanar traz consigo,
mais do que o sentido de ―vir de algo‖, ―partir‖ ou ―ter origem em‖, a noção de ―espalhar-se
em partículas‖, o que nos faz pensar que, para Novalis e Schlegel, a individualidade é o centro
emanador da obra de arte, mas a forma como esta emanação se dá é dispersiva, particulada,
fragmentária. Assim, se os clássicos viam na obra de arte a manifestação de um sistema
totalizante, perfeito e acabado em si mesmo, cuja originalidade provinha justamente do
respeito às regras e aos modelos formais de composição, na qual o eu, como individualidade,
se anulava ou, ao menos, se retirava da obra, para os românticos, o indivíduo é celebrado
enquanto passa para as obras: em sua qualidade de ‗perfeito conhecedor da arte‘, ‗o ideal e o
conceito do indivíduo aqui se mostram quase fundidos‘‖ (COSTA LIMA, 2005, p. 210).
O mais curioso, neste caso, é pensar que o ideal romântico de obra passa
necessariamente pela percepção do homem, do indivíduo, como uma figura fraturada,
fragmentada, dispersiva, cujo núcleo mais íntimo o representa mais do que a massa de seus
pensamentos, idéias e sentimentos, e no qual a unidade e a totalidade do ser se perderam.
Sendo assim, o conceito de obra original, no primeiro romantismo alemão, se dá de forma
ainda mais contraditória, que, ao escolherem o fragmento literário com forma de
manifestação do pensamento, o fazem de modo que o fragmento, enquanto modelo de
exposição, aponte, principalmente, para o caráter nostálgico de suas reflexões: nostalgia da
unidade, da completude, da totalidade de um eu que só existe enquanto idéia ou conceito, mas
cuja definição, cuja gênese não pode mais ser resgata em sua plena integridade: ―Descrever
seres humanos tem sido impossível até agora, porque não se tem consciência do que é um ser
humano Se primeiro se souber o que é um ser humano, então se poderá também descrever
indivíduos de modo verdadeiramente genético‖ (NOVALIS, 2001, p. 99). Essa incerteza
61
quanto ao que é o ser humano é o que move a criação e a crítica romântica: Novalis e Schlegel
farão da individualidade um elemento dessa busca pelo que é próprio do homem no homem.
Consciência de si mesmo e autoconsciência de si fundem-se tanto no processo estético quanto
crítico-teórico, revelando que ―a individualidade é justamente o que há de original e eterno no
homem‖, sendo que, a função do artista e do crítico é ―impulsionar, como vocação suprema, a
formação e desenvolvimento da individualidade‖ (SCHLEGEL, 1997, p. )
Se, como dissemos, a influência central do pensamento de Schlegel e Novalis foi a
obra de Fichte, e este concebeu uma idéia de conhecimento ligado à noção de um Eu
Absoluto, no qual se resolveriam as diferenças entre o objeto do conhecimento e o próprio
conhecimento, sua forma de exposição do pensamento ainda era por demais teleológica,
buscando a criação de um sistema transcendental de reflexão. Desse modo, a adesão ao
idealismo fichteano deu-se de forma disjuntiva: Schlegel e Novalis rejeitaram conduzir o
idealismo reflexivo ao domínio da estética e da teoria da literatura pelos caminhos dos
grandes discursos totalizantes, que herdaram das antigas formas de representação do saber e
do pensamento clássico em vigor até fins do século XVIII. Para os românticos alemães, a
totalidade do Eu e do mundo, do espírito e das obras, poderia ser alcançada, por mais
paradoxal que isso seja, através de um discurso fragmentado.
O fragmento literário, então, atenderia ao propósito romântico de encontrar uma forma
de expressão e apresentação do pensamento que estivesse plenamente de acordo com a visão
idealista de que o mundo, o conhecimento e o sujeito se dão ao entendimento de forma
fragmentada, partida, estilhada, e que caberia ao Eu restituir a experiência humana dos
fenômenos, do indivíduo e do real como totalidade. Isso quer dizer que, sob muitos aspectos,
foram os românticos alemães os primeiros escritores a propor uma literatura que trouxesse,
em seu bojo, suas próprias preocupações estéticas e os primeiros a elaborar uma forma de
expressão autoconsciente, de caráter francamente metaliterário, que foi o fragmento. Na
62
verdade, graças ao fragmento, o primeiro romantismo alemão problematizou a noção de
gênero literário e, pode-se dizer, foi o primeiro momento da literatura européia em que se
buscou, conscientemente, formas de expressão que associassem reflexão, crítica e criação
poética num mesmo movimento discursivo. Novalis, por exemplo, é o autor de Heinrich von
Ofterdingen, misto de romance, ensaio teórico acerca da criação artística e reflexão filosófica;
dos Hinos à Noite, conjunto de poemas em que as formas alternam entre os versos
metrificados e passagens em prosa, além dos fragmentos que compõem o livro Pólen,
publicados pela primeira vez na edição número um da revista Athenäum, editada pelos irmãos
Schlegel. Em todas essas obras, predominam uma natureza investigativa profunda, uma busca
pela individualidade e pelas inquietações anímicas do sujeito como expressão estética
original, uma tendência à dispersão dos sentidos e à fragmentação das formas narrativas ou
discursivas.
Friedrich Schlegel, por sua vez, é o autor da Conversa sobre a Poesia, gênero
igualmente híbrido, que mantém a forma da novela e põe em cena um conjunto de
personagens que discutem os modelos artísticos e a criação poética a partir do referencial
teórico e crítico que construíram graças ao idealismo fichteano. Além da Conversa, Schlegel
também publicou um conjunto importante de fragmentos que servem como o exemplo mais
bem acabado dessa crítica em formação, que concentram em si a urgência idealista em
tomar a obra de arte como uma realidade autônoma, uma produção do espírito criador que
pode ser julgada quando incorporada pelo espírito crítico-reflexivo e, indo mais longe, quando
ambos, poeta e crítico, partilham da mesma matéria:
Poesia pode ser criticada por poesia. Um juízo crítico que não é ele mesmo uma
obra de arte na matéria, como exposição da impressão necessária em seu devir, ou
mediante uma bela forma e um tom liberal no espírito da antiga sátira romana, não
tem absolutamente direito de cidadania no reino da arte. (SCHLEGEL, 1997, p.
34)
22
22
SCHLEGEL, Friedrich. O Dialeto dos Fragmentos. Tradução, apresentação e notas de Marcio Suzuki. São
Paulo: Editora Iluminuras, 1997.
63
Neste fragmento, podemos entrever que, além da própria forma, da estrutura
atomizada, instantânea, que é a essência da fragmentação literária e crítica dos primeiros
românticos, temos a afirmação do ideal estético que orientou o trabalho teórico de Schlegel e
de Novalis: a crítica deve partilhar da capacidade criadora, original, desafiadora de seu objeto
de reflexão. O fragmento permite entrever a hipótese de que a melhor maneira de
compreender o fenômeno estético é partilhando de suas características originais, incluindo a
própria noção de ruptura formal, de inovação estrutural. Assim, não é casual que Schlegel
tenha sido o maior teórico e o principal defensor do fragmento literário como forma original
de expressão; nem que boa parte da obra de Novalis tenha encontrado no estilo quase que
aforístico sua manifestação mais natural. Tanto Schlegel quanto Novalis pareciam reconhecer
que tomar o mundo, o ser, as coisas, a arte e o próprio pensamento como totalidades
indivisíveis, que podem ser facilmente reduzidas ao aparelho conceitual da linguagem
filofica, estética ou literária é uma ilusão. Desse modo, ao escolherem o fragmento
literário como objeto de culto, discussão teórica e forma de expressão, promovem uma ruptura
decisiva com um certo tipo de saber herdado do velho humanismo escolástico da Idade
Média, substituído pelo racionalismo científico do Iluminismo no que concerne ao
pensamento em si mesmo, mas cujas formas discursivas este preservou seja por meio dos
ensaios filosóficos ou dos grandes tratados estéticos do pensamento clássico. A origem dessa
forma de criação estaria nas máximas e aforismos de Chamfort, nos pensamentos de Pascal e
até mesmo nos Ensaios, de Montaigne, mas, de certo modo, os ultrapassa, pois, como
afirmam Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy,
com o fragmento, os Românticos recolhem de fato uma herança, a herança de um
gênero que se pode caracterizar, pelo menos do exterior, por três traços: o relativo
inacabamento (―ensaio‖) ou ausência de desenvolvimento discursivo
(―pensamento‖) de cada uma de suas peças; a variedade e a mistura dos objetos que
podem ser tratados por um mesmo conjunto de peças; a unidade do conjunto, por
outro lado, como constituída de certa maneira fora da obra, no sujeito que se dá a ver
64
ou no juízo fornecido por suas máximas. Sublinhar esta parte considerável da
herança, não tem por finalidade reduzir a originalidade dos Românticos: trata-se, ao
contrário, de aquilatar o que eles tiveram a originalidade de querer realizar até o fim
e que constitui justamente o próprio gênero da originalidade, o gênero, falando
absolutamente, do sujeito, à medida em que este o possa ou não possa mais ser
concebido sob a forma de um Discurso do método e cuja reflexão ele ainda não
empreendeu verdadeiramente enquanto sujeito. (2004, p. 69)
Em busca de uma liberdade irrestrita de reflexão, de um pensamento incondicionado,
pronto a despertar, sempre, novas e mais incisivas dúvidas, outras alheias questões, Schlegel e
Novalis compreendem que não basta simplesmente romper com as velhas idéias e os antigos
conceitos recebidos da tradição filosófica que os precederam é preciso, também, encontrar
uma forma de expressão que possa r em evidência a liberdade criadora que sua urgência
reflexiva exige. O fragmento aproxima-se da poesia não pela forma e pela estrutura mais
evidente a brevidade, a concisão, o recorte metonímico , mas também pela própria
articulação simbólica, imagética, da linguagem de que lança mão para se manifestar: ―A
poesia é um discurso republicano; um discurso que é sua própria lei e seu próprio fim, onde
todas as partes são cidadãos livres e têm direito a voto(SCHLEGEL, 1997, p. 30). É preciso
salientar a riqueza imagética que orienta a construção do fragmento, criando um símile da
poesia como expressão da liberdade individual, como criação que fundamenta suas próprias
leis, como um sistema partido de representação que encontra sua força na soma das partes, na
interação que elas estabelecem umas com as outras. Esse é o projeto mesmo do fragmento
literário: buscar a totalidade perdida ou negada dos grandes sistemas de pensamento nos
interstícios de um discurso cuja unidade estrutural só pode ser vivenciada a partir das quebras,
cisões e silêncios que se estabelecem entre o conjunto total dos fragmentos e a escritura
fragmentária que o compõem.
O fragmento romântico liga-se, então, à consciência de que a modernidade solicita
uma arte que possa ser a expressão de uma nova visão de sujeito, mundo e natureza, ao
mesmo tempo em que se apresente como o reflexo de um pensamento individualizado, que se
transforma e se ilumina a cada nova idéia, num processo sempre aberto, progressivo e infinito.
65
Novalis intuiu e demonstrou essa tarefa de forma bastante direta ao afirmar que o
incompleto pode ser concebido pode levar-nos mais adiante. O completo é apenas fruído. Se
queremos conceber a natureza, então temos de -la como incompleta, para assim chegar a
um termo alternativo desconhecido. Toda determinação é relativa(2001, p. 154-155). Ao
afirmar que ―o completo é apenas fruído‖, o poeta alemão deixa entrever aquele princípio
clássico de que a arte deve atender ao postulado da beleza, da harmonia e da representação
bem acabada da natureza, entendida aqui em seus múltiplos significados (como o mundo
material, como o espaço natural, com seus elementos característicos, como as qualidades
intrínsecas do homem, seu caráter e temperamento e etc.), que levaria o indivíduo à
contemplação desinteressada e, consequentemente, à satisfação que o prazer esteticamente
orientado pode proporcionar. Ao contrário da perspectiva cssica, o ideal de incompletude é
importante para a reflexão romântica acerca da criação artística porque acena para a idéia do
desconhecido, daquilo que, justamente por estar inacabado, permanece aberto à toda reflexão,
sempre indeterminado. Desse modo, a poiésis romântica é aquela que se abre ao infinito, que
o se conclui em si mesma, que se como um projeto em devir. A poesia, assim como sua
crítica, a obra, assim como a reflexão, podem ser vivenciadas como a experiência imediata
do pensamento. O fragmento literário, então, assume a forma desse pensamento e dessa
criação que se anunciam como um processo livre, incondicionado, autoconsciente, o que quer
dizer que todo fragmento é projeto: o fragmento-projeto não vale como programa ou
prospecto, mas como projeção imediata daquilo que, no entanto, ele inacaba‖ (LACOUE-
LABARTHE e NANCY, 2004, p. 73)
Para uma nova maneira de perceber o objeto estético e o gesto criador, para uma nova
crítica, que elabora seus valores a partir da experiência reflexiva, autoconsciente, sempre
singular, o fragmento significa uma nova abordagem, igualmente particular, de tomar para si a
tarefa do comentário, da análise, do pensamento artístico. O fragmento literário é uma
66
extensão do gênio contraditório romântico: Schlegel e Novalis deixaram-se influenciar por
grandes sistemas de pensamento enquanto elaboravam, eles mesmos, uma obra não-
sistemática, que se nega o direito da exposição teleológica e totalizante do objeto artístico e
que, ainda que marcada pela filosofia fichteana, anuncia a crise e a superação do idealismo.
Ao rejeitar a sistematização das idéias, a construção de uma episteme totalizante, absoluta,
fazem da reflexão crítico-teórica um gesto sempre em andamento e tornam o fragmento
literário uma forma de exposição que traz em si a afirmação de seu próprio e irremediável
inacabamento. O fragmento é sempre um projeto em devir:
Um projeto é o germe subjetivo de um objeto em devir. Um projeto completo teria
de ser ao mesmo tempo inteiramente subjetivo e inteiramente objetivo, um indivíduo
indiviso e vivo. Segundo sua origem, inteiramente subjetivo, original, somente
possível justamente nesse espírito; segundo seu caráter, inteiramente objetivo, física
e moralmente necessário. O sentido para projetos que poderiam ser chamados de
fragmentos do futuro é diferente do sentido para projetos do passado somente pela
direção, que é progressiva naquele, mas regressiva neste. O essencial é a capacidade
de ao mesmo tempo idealizar e realizar imediatamente os objetos, de os
complementar e em parte executar em si. Uma vez que transcendental é justamente
aquilo que se refere ao vínculo ou à separação do ideal e do real, se poderia dizer
que o sentido para fragmentos e projetos é o componente transcendental do espírito
histórico. (SCHLEGEL, 1997, p. 50)
O grande paradoxo que a escolha do fragmento como forma de expressão revela diz
respeito ao fato de que os românticos, ainda que não concebessem uma representação
discursiva absoluta, plena, totalizante, acreditavam, idealmente, num pensamento capaz de
reter a totalidade do mundo, do ser e da obra, o que equivale a dizer que desautorizavam as
formas clássicas de exposição, mas não a certeza de poder apreender, pelo conhecimento e a
partir dele, a natureza absoluta das coisas. Desse modo, o fragmento passa a ser uma forma de
reflexão que, por seu caráter aberto, inconcluso, inacabado, busca exprimir o absoluto por
meio da disjunção, da ruptura, de uma construção atomizada cuja forma nega a plenitude que
o pensamento busca fixar e, ironicamente, reconhece suas próprias limitações:
A necessidade do fragmento ultrapassa uma suposta vocação atomizante do pensar.
Toda Darstellung, exposição, letra, implica finitude e limitação concretas; mas o que
busca expressão é nada menos que o absoluto. Nesse acoplamento impossível, o
67
infinito atua como linha de fuga que denuncia a imperfeição da forma.
(STIRNIMANN, 1994, p. 17)
23
O mais importante, neste momento, é compreender que o caráter original do fragmento
literário para Schlegel e Novalis advém da tensão que ele faz circular no interior da escritura e
da refleo estética: de um lado, o pensamento que almeja o absoluto, a totalidade, a
completude; e, de outro, uma forma de expressar esse mesmo pensamento que se manifesta,
de modo autoconsciente, como o arruinamento dos grandes modelos de representação e dos
grandes sistemas de pensamento. O fragmento mina a ordem clássica, que condenara a
reflexão crítica aos domínios da estética, aos limites do juízo normativo, do qual a imagem
emblemática são os tratados poéticos do século XVII, e propõe a ―simultaneidade de dois ou
rios pensamentos na consciência sequências(NOVALIS, 2001, p. 153). Desse modo, o
fragmento literário significou, para Schlegel e Novalis, a afirmação de um gesto reflexionante
livre e incondicionado, que se fundamenta na aventura teórica de pensar a arte, a literatura e,
sobretudo, a poesia a partir de um novo conceitual analítico que fosse capaz de tomar o objeto
estético como uma realidade em constante transformação.
Assim, como constatara Walter Benjamin, com o primeiro romantismo alemão a
figura do Kunstrichter (juiz da arte) é substituída pela figura do Kunstkritiker (crítico de arte)
e, indo mais longe, podemos afirmar que essa substituição não se deu apenas na inovação dos
modelos de análise e abordagem hermenêutica da arte, mas também, e fundamentalmente, na
revolução radical das formas e das manifestações discursivas. O fragmento é uma maneira de
reagir ao caráter legislativo da crítica clássica:
[...] a ação do Kunstrichter pressupõe o respaldo de uma legislação que aplica. Pode
também suceder, como fora o caso dos poetólogos renascentistas, que o Kunstrichter
seja simultaneamente o legislador. Ele então legisla sobre o que julga a seguir. A
diferença entretanto é bastante clara: o crítico, no sentido próprio do termo, supõe a
intervenção teórica e o a mera aplicação de normas preexistentes. O que vale
dizer, a intervenção trica se torna imediatamente motivada quando os valores
23
In: SCHLEGEL, Friedrich. Conversa sobre a Poesia. Tradução, prefácio e notas de Victor-Pierre Stirnimann.
São Paulo: Editora Iluminuras, 1994
68
legislados perderam vigência e deixaram de ser eficazes. Podemos pensar que, no
caso frans, a preceptística de Boileau deixara de ser vinculante porque a sociedade
de corte não impunha seus padrões de gosto sobre uma produção que,
preponderantemente, se dirigia a uma classe, a burguesia, cuja maioria dos membros
não a freqüentava. (COSTA LIMA, 2005, p. 203-204)
O gosto clássico perdera sua força porque a aristocracia já não era capaz de impor seus
valores artísticos a uma burguesia que não partilhava da cultura, da educação e dos princípios
sustentados pela nobreza do Ancién Regime. O romantismo da primeira metade do século XIX
irá se definir em função do gosto burguês, mas será com os primeiros românticos alemães,
ainda nos limites do século que principiava, que os padrões são rompidos e as obras de arte
passam a experimentar a liberdade criadora, que logo se tornará um valor em si mesmo,
acenando para a idéia de originalidade, tão cara à produção artística e à reflexão teórica que
Schlegel e Novalis conceberam. Não é por acaso que, em alguns fragmentos importantes, eles
irão teorizar acerca da poesia e da arte moderna em função de um ideal que aponta para a
superação do passado e para a afirmação do novo: uma poesia sem modelos, sem princípios,
gerada em consonância com os ritmos e os movimentos do espírito criador. Assim, o
fragmento literário o deixa de ser uma forma de expressão rigorosamente poética, cuja
feitura pressupõe a força simbólica e o poder de síntese que só a poesia manifesta.
Desse modo, como afirma Novalis, ―quem não é capaz de fazer um poema, também só
o julgará negativamente. A genuína crítica requer a aptidão de produzir por si mesmo o
produto a ser criticado. O gosto por si julga apenas negativamente‖ (2001, p. 122). Tanto
este fragmento de Novalis quanto o de Schlegel, aquele que afirma que a poesia, enquanto
objeto crítico, pode ser criticada por si mesma, em fuão de si mesma, podem despertar
algumas censuras por parte do crítico especializado. Para que isso o ocorra, convém pensar
que ambos falam de um ponto de vista bastante específico, bastante singular, afinal, Novalis e
Schlegel partilhavam, além do impulso crítico, teórico e filofico acerca da literatura, o
gênio criador, a disposição estética, a dimensão singular do artista, que busca, mais do que
representar o mundo, o indivíduo ou a natureza humana, reconstruir e redimensionar o
69
conjunto das experiências subjetivas a partir das tensões que a individualidade estabelece com
a realidade circundante. No caso dos românticos alemães, essa tensão advém, sobretudo, do
rompimento dos limites entre crítica e poiésis ou, como sugere Luiz Costa Lima, ―a crítica
o está nem dentro nem fora do puro espaço literário. Faz parte da poiésis, sem se confundir
com o poético‖ (2005, p. 215).
A noção de poiésis, então, é muito mais do que a própria realização do poético, ou
seja, do que sua manifestação por meio de uma forma determinada, no caso o poema, a partir
de uma linguagem determinada, no caso, a poética. A poiésis, para os românticos alemães, é
aquela dimensão do discurso que abrange não o gesto criador, mas também sua percepção
crítico-teórica, ou seja, ela é a própria natureza do discurso reflexionante, daí o fato de sua
manifestação romper com as fronteiras estabelecidas entre os gêneros literários, as formas de
composição, os julgamentos estéticos e, indo mais longe, as noções clássicas de que cada
episteme deve se realizar de acordo com seu paradigma específico, determinado e singular,
compartimentando os saberes cienficos e diferenciando-os profundamente. Em um dos
fragmentos de Schlegel, publicado no número 1, volume 2, da revista Athenäum, encontramos
a imagem ilustrativa do poeta e, consequentemente, da natureza da poiésis para os românticos
alemães: ―O poeta pouco pode aprender com o filósofo, mas este pode aprender muito com
aquele. É mesmo de temer que a lamparina do sábio possa extraviar alguém acostumado a
caminhar à luz da revelação‖ (1997, p. 68). Na verdade, o referido fragmento pertence a
August Wilhelm Schlegel, o que não chega a ser estranho ou incomum se levarmos em conta,
como apontamos aqui, que, de um lado, a edição dos fragmentos publicados na Athenäum
se deu de forma livre e assistemática, ou seja, sofrendo intervenções de toda ordem por parte
de Schlegel, e, de outro lado, acaba demonstrando o quanto os românticos estavam em
consonância no que diz respeito ao pensamento crítico e poético da época. O que interessa,
70
aqui, é notar que os Früromantiker aproximam, com naturalidade, poesia e filosofia, criação e
pensamento abstrato, interesse estético e trabalho filofico, analítica e metafísica.
O fragmento de August Schlegel nos permite entrever a determinação romântica em
demonstrar que tanto a crítica quanto a criação literária devem se conceber à luz da força
reveladora da poesia, sendo que esta deve, antes de tudo, potencializar a linguagem,
amplificar seus sentidos, penetrar os mais diferentes discursos, anulando os limites
epistemológicos e as fronteiras impostas aos múltiplos saberes. Poesia e filosofia não se
excluem, como queriam os filósofos desde a Antiguidade Clássica, mais especificamente,
desde que Platão baniu os poetas de sua república Ideal, acusando-o, justamente, de
corromper a verdade científica, de afastar os homens do conhecimento lógico, racional, em
nome de uma obra que se dá um função da fantasia, da imaginação, desviando a atenção dos
indivíduos das idéias puras e verdadeiras para as imagens irrefletidas dessas mesmas idéias.
Para os românticos, ao contrário, é a força incandescente da linguagem poética, sempre
desautomatizada, sempre imprevisível, sempre diferente e nova, estranha e alheia a si mesma,
que pode conduzir o pensamento e iluminar as idéias com suas insuspeitadas maneiras de se
expor e articular:
Distinção entre poetar e fazer um poema. O entendimento é a somatória dos
talentos. A razão e, a fantasia projeta o entendimento executa. Inversamente,
onde a fantasia executa e o entendimento projeta.
poesia romântica e retórica. (NOVALIS, 2001, p. 141)
Neste fragmento, Novalis distingue muito bem os diferentes modos de articulação do
discurso poético entre os românticos da primeira hora: poetar é muito mais do que fazer um
poema. A poesia romântica, na verdade, solicita uma profunda capacidade do poeta em
empenhar todas as faculdades do conhecimento no processo criador razão, fantasia e
entendimento, são as três dimensões que se articulam na exposição poética. A fantasia, a
imaginação estética, executa, ou seja, torna concreta, dá forma a uma idéia que surge por
71
intermédio da razão, do exercício reflexivo, e que se projeta, se lança em obra a partir do
entendimento, isto é, daquela dimensão do pensamento intelectual que envolve o julgamento
teórico, o pensamento analítico, buscando a natureza por meio da organização e unificação
das diferentes emoções empenhadas no jogo criativo, transformando-as em conceitos e juízos
críticos que permitem compreender e expor as múltiplas sensações provocadas pela vivencia e
pelo contato com o mundo sensível. Dessa forma, a poesia romântica, muito mais do que a
mera exposição da subjetividade, solicita o completo envolvimento do poeta com a idéia de
poiésis, entendida, de acordo com Luiz Costa Lima, como ―a prática da produção(2005, p.
213). Para os românticos de Jena, a expressão da subjetividade não se confunde, ainda, com
aquele romantismo mais comezinho, que se manifestaria ao longo da primeira metade do
século XIX, e que difundiu e popularizou a noção de poesia como revelão da natureza mais
profunda e pessoal do poeta. Para Novalis e Schlegel, em vez de a obra se definir como
transposição para o reino das palavras da idiossincrasia do escritor, ela é a produção de um
texto, i. e., de algo que o se justifica por um fim determinado; que, de imediato, não diz
para o que veio‖ (COSTA LIMA, 2005, p. 213).
Mais do que o simples impulso criador ou a livre manifestação da subjetividade de um
eu empírico, os românticos solicitam um ideal de criação que, de certa forma, antecipa a
noção moderna de arte como construção, como um pôr-se em obra do eu, mas um eu que é
pura idealidade, que, como dissemos, se afasta do eu empírico, autoral. Trata-se de um
modelo de arte, de poiésis, que se dá como tarefa do pensamento. Como afirma Walter
Benjamin
O pensamento na autoconsciência refletindo a si mesmo é o fato fundamental do
qual partem as considerações gnosiológicas de Friedrich Schlegel e, em grande
parte, também as de Novalis. a relação consigo mesmo do pensamento, presente na
reflexão, é vista como a mais próxima do pensamento em geral, a partir da qual
todas as outras serão desenvolvidas. Schlegel diz num trecho do Lucinde: ―O pensar
tem a particularidade de, próximo a si mesmo, pensar de preferência naquilo sobre o
que ele pode pensar sem fim‖. Com isso, entende-se também que o pensamento, fora
a reflexão sobre si mesmo, poderia encontrar um fim. A refleo é o tipo de
72
pensamento mais freqüente nos primeiros românticos; sustentar esta tese implica
remeter a seus fragmentos. Imitação, maneira e estilo, três formas que se deixam de
bom grado aplicar aos românticos, encontram-se cunhadas no conceito de reflexão.
Ora ele é imitação de Fichte (como sobretudo no primeiro Novalis), ora maneira
(por exemplo, quando Schlegel dirige a seu público a exigência de ―compreender a
compreensão‖), mas é reflexão em especial o estilo do pensamento, no qual os
primeiros românticos pronunciam suas mais profundas concepções, não de maneira
arbitrária, mas necessária. (BEJAMIN, 1999, p. 29)
O fragmento literário é a forma por excelência de um ideal de pensamento que está
ligado ao conceito de reflexão, que deve ser entendida como a concentração do espírito sobre
si mesmo, buscando um modelo de representação de idéias, conceitos, sentimentos e
impressões que evitam se precipitar em juízos críticos determinados a priori. A refleo, para
Novalis e Schlegel, é um processo de descoberta não apenas do eu e suas múltiplas sensações,
mas também uma forma incondicionada de avaliar, criticar e analisar o objeto literário. Sob
esta perspectiva, disjunção e ruptura são as marcas essenciais do fragmento literário e da
fragmentação do discurso crítico-teórico do primeiro romantismo alemão, assim como da
própria maneira como percebem a poesia, isto é, como um processo ativo do pensamento que
deve fazer dela objeto de construto do gesto reflexionante. Em um de seus fragmentos,
Schlegel evidencia essa nova natureza que caracteriza a poiésis romântica ao notar que
Em muitas obras vastas, particularmente as históricas, que são sempre cativantes e
bem escritas nos detalhes, sente-se o obstante uma desagradável monotonia no
todo. Para evitar isso, colorido, tom e mesmo estilo teriam de variar e ser
manifestamente distintos nas diferentes grandes massas do todo; por esse meio a
obra não se tornaria apenas mais diversificada, mas também mais sistemática. É
evidente que uma tal variação regular não pode ser obra do acaso, que aqui o artista
tem de saber bem determinadamente o que quer para o poder fazer; mas também é
evidente que é apressado chamar de arte à poesia ou à prosa antes que cheguem a
construir completamente suas obras. Não se deve temer que por isso o gênio se torne
supérfluo, uma vez que, do conhecimento mais intuitivo e da clara visão do que deve
ser produzido, o salto até aquilo que é perfeito e acabado permanecerá sempre
infinito. (1997, p. 139-139)
As variações de ―colorido, tom e mesmo estilo‖ entre as partes de uma mesma obra
referem-se ao ideal de fragmentariedade e de infinitude buscada por Schlegel como principal
elemento da poiésis romântica. A tarefa do pensamento, assim como a da própria criação, é
prolongar-se ao infinito. Nesse sentido, a fragmentação discursiva constituiria uma espécie de
73
eterno devir da obra e esse seria o mais expressivo sinal de sua perfeição. Esse tipo de
reflexão, por mais paradoxal que possa parecer, faz um grande sentido no contexto crítico-
teórico aberto por Novalis e Schlegel: ambos percebem a criação estética a partir de uma
íntima conexão entre arte, pensamento e vida, entendida como manifestação subjetiva do eu.
Por isso os fragmentos literários de Novalis e Schlegel constituem-se, a um tempo, como
tarefa do pensamento, reflexão crítica e exercício estético vazado pela subjetividade mais livre
e incondicionada do romantismo. Assim, para os românticos alemães, pensamento e poiésis,
reflexão crítica e criação interpenetram-se na busca, sobretudo, de novas formas de expressão,
de novos modelos discursivos, modelos estes que fossem capazes de refletir as inquietações
mais fundas de uma intelectualidade ltipla, inquieta e variada, por meio da qual o espírito,
nos dizeres de Novalis, ―efetua uma eterna autodemonstração‖ (2001, p. 39).
O fragmento literário seria, então, por seu caráter aberto e inacabado, por sua
incontornável inconclusão, a ―autodemonstração‖ constelar de um espírito, ou seja, de uma
subjetividade igualmente desarticulada, inconclusa, em permanente construção. Essa inter-
relação entre forma fragmentária e subjetividade estilhaçada marca, como aponta Márcio
Suzuki na apresentação a sua tradução dos fragmentos de Schlegel, uma crise do pensamento
e da refleo totalizantes que o ideal de sistematização absoluta do conhecimento, proposto e
desenvolvido por Kant em sua Crítica da Razão Pura, previa:
É sem dúvida um traço peculiar e surpreendente da filosofia de Friedrich Schlegel
que tente se firmar como um ―caos de fragmentos‖ exatamente num momento da
história da filosofia em que os maiores esforços estão voltados para a completitude e
acabamento sistemático da crítica kantiana. Mas seria possível entender essa nota
dissonante no conjunto do chamado s-kantismo sem recorrer às velhas teses sobre
sua insuficiência especulativa ou falta de sistematização? Para isso não faltam
certamente confiáveis guias de leitura. Em vez de sintoma de um fracasso
intelectual, a percepção da fragmentação e do dilaceramento da consciência poderia
ser antes considerado como um dos instantes em que o idealismo alemão se dá conta
de seus limites, em que passa a investigar seus próprios pressupostos e a corrigir
seus desvios: abdicar da pretensão de estabelecer, pelo viés da teoria, um sistema de
saber absoluto, minimizando o alcance especulativo da dialética. No caráter
assistemático da reflexão schlegeliana se evidenciariam os principais elementos
deflagradores da ―crise do idealismo‖, cujo desfecho será a filosofia da vida do
próprio Schlegel e a filosofia positiva do último Schelling. (1997, p. 11-12)
74
Além da influência exercida sobre a filosofia alemã de fins do século XVIII e início do
XIX, a crise do idealismo a qual se refere Suzuki, e que foi postulada a partir do
pensamento de Schlegel e de Novalis, estendeu sua problemática também sobre o domínio da
literatura, da crítica e da teoria, bem como da própria criação. Assim é que a percepção de um
eu fragmentado, de uma consciência que não se reconhece uma e indivisível fará com que
Novalis e Schlegel busquem uma nova forma de expressão que seja capaz de refletir essa
consciência estilhaçada e um pensamento que se nega a toda e qualquer sistematicidade,
privilegiando sua manifestação mais livre, afirmando-se como um constante devir. O
fragmento literário é a manifestação formal dessa rebeldia intelectual que reconhece no
pensamento, na reflexão, uma espécie de caos essencial, uma desarticulação anti-sistêmica
que se manifesta desde sua origem e que faz com que se dissemine em ltiplas direções,
como se estivesse sempre em seus primórdios. Trata-se, então, de uma luta contra toda
sistematicidade, que engessaria o pensamento ou o tornaria anti-natural, pois, como afirma
Márcio Suzuki, a busca de Schlegel orientou-se no sentido de ―despir a filosofia de seu
aparato artificial, tecnicista, tentando torná-la tanto quanto possível apta a expor o saber na
figura original em que ele mesmo imediatamente se manifesta‖ (1997, p. 12)
O fragmento literário coloca em jogo uma forma de manifestação do pensamento que
rejeita a noção ou o ideal de representação totalizante das idéias em um sistema coerente,
lógico e indivisível. Desse modo, a adesão ao fragmentário acena para o conflito aberto pelos
românticos em relação ao pensamento e suas manifestações estabelecidas de representação;
uma tentativa de romper com a primazia clássica dos modelos de composição consagrados
pela imitação da natureza, pela perfeição e pelo rigor coercitivo da forma sobre o pensamento
que esta veicula, pelo artifício estético, que simula um equilíbrio e uma harmonia expressiva
artificiais quando se considera que o pensamento, assim como a memória, foge ao controle
condicionante da razão, que, muitas vezes, se manifesta de modo descontínuo. Daí o
75
fragmento apresentar-se como a forma por excelência de um processo reflexivo que acaba por
duvidar de sua própria unidade:
Muitas obras apreciadas pelo belo encadeamento têm menos unidade que uma
diversificada porção de achados que, animados apenas pelo espírito de um espírito,
apontam para uma meta única. Tais achados, no entanto, se vinculam por aquele
convívio livre e igual em que, conforme asseveram os sábios, também se
encontrarão os cidadãos do Estado perfeito; por aquele espírito social
incondicionado que, na presunção dos fidalgos, só se encontra agora naquilo que tão
estranha e quase puerilmente se costuma chamar de alta sociedade. Em
contrapartida, alguns produtos, de cuja coesão ninguém duvida, não são, como bem
sabe o próprio artista, uma obra, mas apenas um ou muitos trechos, massa,
disposição. O impulso de unidade é, porém, tão poderoso no homem, que
frequentemente, durante a composição, o próprio criador complemente ao menos
aquilo que não pode absolutamente perfazer ou unificar; e frequentemente o faz com
grande riqueza de sentido, mas de modo inteiramente antinatural. O pior nesse caso
é que tudo aquilo que, para dar uma aparência de totalidade, se agrega às partes
lidas efetivamente existentes geralmente não passa de remendos coloridos. Se
estes o bons, ornados para enganar e guarnecidos com inteligência, tanto pior.
Então, de início se enganará tamm o indivíduo privilegiado que tem sentido
profundo para o pouco de esmeradamente bom e belo que ainda se encontra,
parcimoniosamente aqui e ali, tanto nos escritos quanto nas ações. Ele terá de chegar
à justa sensação somente mediante juízo! Por mais rápida que seja a dissecação, o
frescor da primeira impressão já passou. (SCHLEGEL, 1997, p. 35-36)
Neste fragmento é possível entrever a própria problemática da forma fragmentária na
medida em que Schlegel questiona justamente o ideal de unidade que perpassa determinadas
obras e que conduziria sua respectiva apreciação. É como se, de certo modo, o mais jovem
dos Schlegel nos alertasse para o caráter de construto da obra, ou seja, a unidade apreciada
o é mais do que aparência a disfarçar a natureza descontínua das reflexões, idéias ou
conceitos que a obra expressa. Sendo assim, uma ―diversificada porção de achados‖ e, aqui,
é impossível o pensar em seus próprios fragmentos têm mais unidade em si mesmos, em
suas manifestações ígneas, reveladoras, imediatas, do que todo esforço estético ou filofico
de conceber a obra como um sistema fechado e totalizante de representação. É a ilusão da
unidade que compromete a percepção do fragmentário como o reflexo do espírito que se
manifesta a partir da afirmação de sua inevitável incompletude, de sua busca infinita pelo
conhecimento de si e do mundo.
76
O conceito decisivo de poesia, entre os românticos alemães, foi desenvolvido por
Schlegel e diz respeito à noção de poesia como uma arte progressiva e universal, ou, como ele
mesmo define:
A poesia romântica é uma poesia universal progressiva. Sua destinação não é apenas
reunificar todos os gêneros separados da poesia e pôr a poesia em contato com
filosofia e retórica. Quer e também deve ora mesclar, ora fundir poesia e prosa,
genialidade e crítica, poesia-de-arte e poesia-de-natureza, tornar viva e sociável a
poesia, e poéticas a vida e a sociedade, poetizar o chiste, preencher e saturar as
formas da arte com toda espécie de lida matéria para cultivo, e as animar pelas
pulsações do humor. (1997, p. 64)
Este é um dos mais longos fragmentos de Schlegel e nele podemos perceber, de
forma bastante precisa, que o ideal de poesia proposto pelos românticos passa,
necessariamente, pelas múltiplas experiências discursivas. O fragmento literário, então, é mais
do que um modelo de representação ou de reflexão acerca do fenômeno estético, ele é,
também, uma peça literária, um exercício estético; ele partilha, também, do ideal de
metadiscursividade crítica, de forma que se reflete a si mesma, de gênero híbrido de
composição, que funde o princípio poético criador à sua própria crítica. Abertura do
pensamento, ruptura da forma o fragmento literário concebe-se, ao mesmo tempo, como
obra e teoria, como criação e crítica, como forma acabada e promessa futura de conclusão.
Como mescla e fusão de poesia, filosofia e crítica, o fragmento se dispersa e dissemina,
formando, o que pode parecer à primeira vista, um caos de idéias, conceitos e sentidos, mas
que, na verdade, assim como o ideal de poesia progressiva de Schlegel,
Abrange tudo o que seja poético, desde o sistema supremo da arte, que por sua vez
contém em si muitos sistemas, ao suspiro, o beijo que a criança poetizante exala
em canção sem artifício. Pode se perder de tal maneira naquilo que expõe, que se
poderia crer que caracterizar indivíduos de toda espécie é um e tudo para ela [a
poesia romântica]; e no entanto ainda não uma forma tão feita para exprimir
completamente o espírito do autor: foi assim que muitos artistas, que também só
queriam escrever um romance, expuseram por acaso a si mesmos. Somente ela pode
ser tornar, como a epopéia, um espelho de todo o mundo circundante, uma imagem
da época. E, no entanto, é também a que mais pode oscilar, livre de todo interesse
real e ideal, no meio entre o exposto e aquele que expõe, nas asas da reflexão
poética, sempre de novo potenciando e multiplicando essa reflexão, como numa
série infinita de espelhos. É capaz da formação mais alta e universal, não apenas de
77
dentro para fora, mas também de fora para dentro, uma vez que organiza todas as
partes semelhantes a tudo aquilo que deve ser um todo em seus produtos, com o que
se lhe abre a perspectiva de um classicismo crescendo sem limites. A poesia
romântica é, entre as artes, aquilo que o chiste é para a filosofia, e sociedade,
relacionamento, amizade e amor são na vida. (1997, p. 64-65)
Poesia, aqui, é a própria manifestação do espírito criador. Não se trata de teorizar
acerca da arte de escrever em versos ou de produzir um poema, mas sim de pensar a poesia
como uma força que se irradia e que deve penetrar os mais diferentes tipos de discurso e, indo
mais longe, que deve caracterizar a própria experiência existencial. Nesse sentido, deve-se
entender a poesia como a manifestação de uma atitude poética, criadora, original, renovadora
o só da arte mas também do próprio indivíduo, de sua maneira de pensar, refletir e
compreender a arte e os diferentes modos como ela se envolve, representa e significa o
mundo, a realidade e o indivíduo. A diferença é que essa poesia romântica, ao contrário da
arte clássica que a precedeu, o se entrega ao ideal de completude ou de acabamento, que
determina os gêneros clássicos de composição, pois, de forma autoconsciente, a poesia
romântica sabe que
Os outros gêneros poéticos estão prontos e agora podem ser completamente
dissecados. O gênero poético romântico ainda está em devir; sua verdadeira essência
é mesmo a de que só pode vir a ser, jamais ser de maneira perfeita e acabada. Não
pode ser esgotado por nenhuma teoria, e apenas uma crítica divinatória poderia
ousar pretender caracterizar-lhe o ideal. Só ele é infinito, assim como só ele é livre, e
reconhece, como sua primeira lei, que o arbítrio do poeta não suporta nenhuma lei
sobre si. O gênero ptico romântico é o único que é mais do que gênero e é, por
assim dizer, a própria poesia: pois, num certo sentido, toda poesia é ou deve ser
romântica. (SCHLEGEL, 1997, p. 65)
Projeto em devir, arte em devir, teoria e crítica igualmente em devir: essa é a principal
característica do ideal poético de Schlegel e de Novalis. Aliás, essa é a principal tensão que se
manifesta a partir do ideal poético romântico e de sua própria realização em obra: cada
fragmento deve ser tomado como uma peça crítico-criadora em sua mais rigorosa
singularidade, ao mesmo tempo em que cada fragmento aponta para um ideal de totalidade
que está sempre em progresso. Os românticos usam a fragmentação como uma forma de
78
romper com os discursos totalizantes ao mesmo tempo em que vislumbram, na soma
indefinida de sua massa de fragmentos, uma totalidade perdida, estranha, indefinível, mas que
subsiste como uma promessa futura. Assim, na esteira do que afirma Camelia Elias em seu
Towards a History and Poetics of a Performative Genre
24
:
Para os alemães, a estética do fragmento forma pragmaticamente a base para a sua
formulação de poiésis, ou a não de devir infinito da poesia romântica. Enquanto
para os escritores franceses o fragmento torna-se redundante ou supérfluo ou, na
melhor das hiteses, uma manifestação de particularidades gerais ou universais
aplicáveis (o aforismo), para os românticos alemães, o fragmento é uma potência
universal sempre em busca de sua categorização final. (2004, p. 9-10. Tradução
nossa.)
25
Desse modo, o fragmento romântico é parte do projeto estético pensado por Schlegel e
Novalis de criar um pensamento incondicionado sob todos os aspectos: de um lado, tal
pensamento rejeita a noção de sistema ao passo que essa rejeição se afirma, por outro lado, a
partir da própria forma fragmentária. As semelhanças entre os aforismos legados pelos
moralistas franceses e o fragmento romântico terminam na noção mesma de forma breve,
esteticamente pensada e construída, já que não podemos ignorar o fato de que, para os
alemães, o fragmento é, antes de tudo, a manifestação de uma nova e insuspeitada poiésis,
sempre em construção, sempre em devir, sempre inconclusa, que solicita uma forma
igualmente inacabada de apresentação. Esta talvez seja uma das dimensões mais originais do
pensamento teórico do romantismo alemão: a criação de uma forma de expressão que traz,
em si, a tensão entre antigo e moderno, entre imitação e originalidade, velho e novo, mundo e
24
ELIAS, Camelia. Towards a History and Poetics of a Performative Genre. Berna: Peter Lang AG
Publishers, 2004. Camelia Elias é doutora em inglês pela Universidade do Sul da Dinamarca; foi visitante, entre
2000 e 2001, do Departamento de Francês da Universidade de Colúmbia e desenvolveu, em 2003, sua pesquisa
de pós-doutorado no centro de Estudos Comparativos de Lisboa. Transitando entre a teoria literária, a filosofia e
a história da arte, Camelia Elias dedica sua atenção crítica e teórica à literatura contemporânea e, sobretudo, aos
estudos interdisciplinares acerca do conceito de fragmento e fragmentação na literatura, na crítica e na teoria
literária. Assim, a autora volta sua atenção para uma abordagem do fragmento literário numa perspectiva
histórica que abarca desde a herança heraclitiana, passando pelos românticos alemães e pelos principais
escritores modernistas, até as manifestações pós-modernas do fragmento.
25
For the Germans, the aesthetic of the fragment forms pragmatically the basis for their formulation of poeisis,
or the notion of infinite ‗becoming‘ of Romantic poetry. While for the French writers the fragment becomes
redundant, or superfluous, at best a manifestation of particularities with a general or universal applicability (the
aphorism), for the German Romantics, the fragment is a universal potential always chasing its own categorising
tail. (Idem, Ibidem.)
79
sujeito, criação e teoria. Sendo assim, sempre que se pensa a fragmentação discursiva, não
na literatura romântica, mas sobretudo a partir da modernidade estética de fins do XIX e
início do século XX, com suas narrativas disjuntivas, desarticuladas, excêntricas, até a pós-
modernidade, deve-se ter em mente essa dimensão metadiscursiva aberta pelo romantismo
alemão, que este período, segundo Camelia Elias, é tão significante a ponto de ser a
principal fonte de influência para todos os discursos teóricos subseqüentes sobre o
fragmento‖, além do fato de que ―o que constitui o fragmento romântico é a interação com a
teoria (2004, p. 21)
26
.
Assim, os românticos alemães concebem o fragmento literário como uma forma
complexa de análise e interpretação do fenômeno estético. Tal complexidade está diretamente
relacionada ao fato de que os fragmentos literários se situam nos interstícios do discurso, nas
fronteiras entre diferentes gêneros discursivos, ou seja, a filosofia das idéias e das formas, a
teoria e a crítica literária e a própria criação poética. É a partir dessa zona de sombras
indistinta que o fragmento literário dos românticos alemães se singulariza a ponto de elidir
sujeito e objeto, isto é, comentário crítico, teoria literária e conformação estética. A
singularidade do fragmento adm desse equilíbrio delicado entre: 1 a filosofia idealista,
que defende, entre outras coisas, um pensamento incondicionado, livre, espirituoso e original,
que o se submete a qualquer sistematização; 2 a teoria dos gêneros e das formas literárias,
encaradas sob a ótica da inovação e da transgressão, buscando adequar-se a esse novo modelo
de pensamento filosófico; 3 a crítica como interpretação, análise e intervenção criativa sobre
a obra de arte literária e, por fim, 4 a exigência de fazer com que a linguagem filosófica,
teórica e crítica encontrem uma forma de apresentação em que a própria poiésis possa se
manifestar livremente.
26
The Romantic period is significant insofar as it is a major source of influence for all subsequent theoretical
discourses on the fragment. What constitutes the romantic fragment is the interaction with theory (Idem,
Ibidem).
80
O fragmento literário revela-se, desse modo, como uma forma de exposição de idéias e
reflexões que, por seu próprio inacabamento, abre-se para o ideal de crítica e análise com um
processo tão inesgotável quanto a própria criação. As obras legadas pelo classicismo tinham,
em comum, a crença de que o resgate dos valores da Antiguidade Clássica era mais do que
suficiente para garantir a originalidade poética, já que bastava, para tanto, preservar as noções
de mímesis, isto é, reprodução do mundo e da natureza, bem como dos sentimentos e emoções
humanas, e construir uma obra em que equilíbrio e harmonia fossem garantidos pela perfeita
integridade entre cada uma de suas partes, pelo ideal de representação totalizante e pela
fidelidade aos modelos de criação herdados. Para os românticos, a originalidade advinha,
justamente, da fusão dos gêneros, da criação de um referencial teórico que se desenvolvesse
em função dessas mesmas fusões e na tentativa de afirmar o ideal de que cada nova época
solicita uma nova arte e uma nova floração estilística. Se a época romântica é aquela que
afirma a supremacia do indivíduo e a força da subjetividade, que percebe que o eu é uma
dimensão do pensamento e que ambos não se integram nunca como uma unidade, o fragmento
passa a ser a melhor forma de anunciar a individualidade descentralizada e desarticulada do
artista e da obra. Assim, como afirma Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy
A individidualidade fragmentária é, antes de mais nada, a multiplicidade inerente ao
gênero os Românticos pelo menos não publicaram um Fragmento único ;
escrever sob a forma de fragmento é escrever em fragmentos. Mas este plural é o
modo específico pelo qual o fragmento visa, indica, e, de uma certa maneira, põe o
singular da totalidade. É até certo ponto legítimo aplicar a todos os Fragmentos a
fórmula empregada por F. Schlegel para as Idéias: cada um deles ―indica o centro‖
(Idéias, 155. DF, p.164). Entretanto, nem um nem outro conceito empregado aqui
pertencem ao espaço dos Fragmentos propriamente ditos, e é preciso dizer que não
se trata com eles exatamente nem de um ―indicar‖ nem de um ―centro‖. Antes, a
totalidade fragmentária, conforme o que deveríamos nos arriscar a nomear a lógica
do porco-espinho, não pode ser situada em nenhum ponto: ela essimultaneamente
no todo e na parte. Cada fragmento vale por si mesmo em sua individualidade
acabada. (2004, p. 74)
Para um eu que se perdeu de toda centralidade, de toda definição racionalizada, de
todo princípio ontológico baseado na idéia de uma dimensão profunda ideal, coerente e
81
universal, que existe de forma abstrata, metafísica, os românticos concebem uma forma de
expressão estética, crítica e reflexiva capaz de assinalar, em sua própria dimensão formal, os
sinais, as marcas, os traços dessa diluição profunda do eu e dessa crise do pensamento e da
arte que marca o período. A subjetividade característica da dimensão mais profunda do eu
pode ser captada, no interior da criação, da obra, a partir de sua própria desagregação. E o eu
pode se recompor como manifestação estética, como sinal de sua ruína, como a promessa
em devir de uma rearticulação com o absoluto, com a totalidade. São as várias tentativas de
compreender-se e definir-se no interior da obra que leva o sujeito romântico a partir-se num
caos de fragmentos que apontam sempre para a idéia de que
totalidade plural dos fragmentos que não compõem um todo (de um modo, digamos,
matemático), mas que replica o todo, o próprio fragmentário, em cada fragmento.
Que a totalidade esteja presente como tal em cada parte, e que o todo seja não a
soma mas a co-presença das partes enquanto co-presença, finalmente, do todo a si
mesmo (já que o todo é também separação e acabamento da parte), tal é a
necessidade da essência que se desdobra a partir da individualidade do fragmento: o
todo-separado é o indivíduo, e ―para cada indivíduo infinitas definições reais‖
(Athenäum, 82. DF, p.59). Os fragmentos são, para o fragmento, suas definições, e é
o que instala a sua totalidade como pluralidade, e o acabamento como inacabamento
da infinitude. (LACOUE-LABARTHE e NANCY, 2004, p. 74-75)
Assim, como já apontamos aqui, com Friedrich Schlegel o primeiro romantismo
formulou a teoria de uma ―poesia universal progressiva‖, que se deixa envolver pelas questões
do pensamento, transformando o pensar-se a si mesmo numa reflexão filosófica incessante,
reflexão que deve criar suas próprias formas, condizentes com a proposta de infinitude que o
gesto reflexionante romântico demanda. Novalis, pensador e poeta de primeira hora,
encampou as idéias de Schlegel e, juntamente com ele, encontrou no fragmento literário sua
forma de expressão por excelência. Além disso, Novalis e Schlegel recriam, a partir da leitura
sistemática das grandes obras fragmentárias da Antigüidade clássica, do aforismo filosófico,
das máximas, anedotas e pensamentos dos moralistas franceses, o fragmento textual e
ampliam suas potencialidades latentes, fazendo surgir o fragmento literário, uma forma
diversa de escritura crítica, um novo modo de desenvolver o pensamento teórico sobre o ato
82
de criação. O fragmento literário ensaia sua própria filosofia da linguagem e seu próprio
conceitual crítico. Assim, como a própria designação sugere, a forma expressiva fundamental
do primeiro romantismo alemão tem sua razão de ser na fragmentação, na ruptura com as
formas totais de representação discursiva, e, paradoxalmente, é parte de uma busca pelo
Absoluto que a filosofia fichteana põe em cena. Paradoxalmente porque o fragmento, não
sendo uma totalidade, se quer parte incontestável desta; porque não sendo uma realidade
absoluta, é uma forma de manifestação desta.
Como dissemos, o fragmento literário está diretamente ligado ao conceito de poesia
progressiva universal um gênero que concebe a idéia de totalidade que se encontra por trás
da reflexão por meio da evolução constante de suas partes, em progresso infinito, e pela
abrangência de suas propostas de pensamento, através da universalidade de temas, idéias e
conceitos. Sob muitos aspectos, a obra poética e crítica de Novalis, bem como a obra teórica e
analítica de Schlegel, os fragmentos e as novelas ensaísticas, trazem em si o germe da
modernidade, sobretudo quando pensamos que esta se caracteriza, entre outras coisas, por
uma forte tensão e uma profunda crise em relação aos modelos artísticos e literários
praticados ao longo da alta tradição estética que a precedeu. Além disso, a modernidade
propôs a incorporação de seu próprio tempo e época à dimensão atemporal que a arte deveria
preservar, reorganizando o imaginário coletivo e rompendo com os modelos clássicos que
preservavam o passado como um monumento incontesvel, como um padrão de beleza e
verdade inconfundível, como se ambos não fossem uma construção humana sujeita as
rupturas e descontinuidades que o processo histórico impõe à consciência do indivíduo. A
modernidade fez das formas literárias da poesia e da narrativa antes de tudo uma realidade
tão instável, contraditória e mutável quanto o próprio homem.
Daí encontrarmos na obra de Baudelaire, décadas depois de Schlegel e Novalis, a
cadência de novas imagens, novos interesses estéticos, novas maneiras de se relacionar com
83
as formas de expressão artística e com o pensamento crítico. E na esteira de Baudelaire,
encontraremos, no alto modernismo do século XX, a idéia de que a criação não pode
prescindir do conceitual teórico e da reflexão crítica, o que levou os artistas de vanguarda, por
exemplo, a uma profusão de panfletos e manifestos que, por seu caráter mais do que
fragmentário, podem muito bem encontrar sua gênese na fragmentação escritural que os
primeiros românticos propuseram e desenvolveram como o projeto criador de uma arte
sempre em construção, infinita, que extrai sua força e vitalidade de seu incontornável
inacabamento. Assim, como negar que a modernidade também se fundamentará na proposta
de uma arte que se consolida como estado de devir constante, uma arte inconclusa, aberta,
polifônica, multissonante, que busca a verdade e a experiência nos intervalos do discurso, nos
silêncios abruptos, nas quebras e fraturas narrativas, estruturais, rítmicas, naquilo que só pode
se comunicar quando coloca em questão os limites da voz?
Por fim, o círculo literário de Jena Schlegel e Novalis sobremaneira associou o
idealismo filosófico alemão, que afirmava a importância da consciência individual na
construção e não só na apreensão do objeto com a qual se relaciona, ao trabalho incessante
de encontrar formas novas para expressar um conhecimento igualmente novo. Não seria um
exagero ou um equívoco afirmar que, para os primeiros românticos alemães, poesia e
reflexão, filosofia e pensamento abstrato, eram parte de um mesmo e indistinto processo de
reconhecimento: da arte, da criação poética, do mundo e do próprio indivíduo. Schlegel, por
exemplo, como nos revela Luiz Costa Lima, em Limites da Voz, ―não era um dramaturgo, um
poeta ou um romancista que por desfastio ou premência financeira também se dedicasse à
apreciação da obra alheia. A imagem contraria seria mais pxima da verdade. Até o seu
tempo, é o primeiro homem da modernidade que concentra toda sua formação a serviço do
alvo de ser um crítico‖ (COSTA LIMA, 2005, p. 202). Aos primeiros românticos, a criação
84
poética alcançaria sua máxima expressão quando fosse capaz de trazer consigo os
elementos crítico-teóricos que a definissem e justificassem.
Nesse sentido, pode-se afirmar que o grupo de Jena e, mais especificamente, Schlegel
e Novalis, traziam consigo os sinais da modernidade estética que ganharia seus contornos
mais ou menos definidos algumas décadas depois, com Baudelaire e sua aventura poético-
conceitual acerca do fenômeno artístico moderno, e com a literatura de vanguarda,
principalmente o surrealismo, que produziu um conjunto de obras metadiscursivas cuja
característica mais evidente repousa justamente na percepção de que escrever é um gesto que
envolve sua própria crítica e que, ao buscar o registro literário das dimensões mais profundas
do eu e da existência, encontra uma paisagem onírica em que a memória e o pensamento se
apresentam em sua mais absoluta e incontornável dispersão.
85
2. FRAGMENTO LITERÁRIO, FRAGMENTAÇÃO DISCURSIVA E A
PROBLEMÁTICA DA REPRESENTAÇÃO.
2.1. O Fragmento Literário como Darstellung Original: Poiésis, Crítica e
Exposição
O fragmento literário foi o nero crítico-poético através do qual Novalis e Schlegel
realizaram seu projeto estético de conceber uma forma de expressão que concentrasse poesia,
crítica e filosofia num exercício teórico inovador e original. Responsável por redefinir os
caminhos do pensamento e da reflexão acerca do fenômeno artístico e da criação literária, o
fragmento contribuiu para uma supervalorização do novo, do incondicionado, isto é, daquilo
que o é limitado por nenhuma regra, modelo ou norma p-determinada, manifestando-se
como um tipo de discurso no qual predominam as formulações iluminadas e livres, as
revelações cintilantes da consciência, a crítica como tarefa do pensamento, no sentido de que
nunca está terminada, que solicita, por sua própria relação com as obras e as transformações
hisricas, literárias e conceituais sofridas por elas, um constante trabalho de reinvenção, de
revisão, de recriação de si mesma. Assim, o fragmento avizinha-se da própria noção de poesia
romântica da qual ele, entre outras questões, se incumbiu de pensar: ―a poesia romântica, dirá
Schlegel explicitamente, é uma tarefa progressiva; poderia também haver dito, inexaurível,
infinita. Inacabado, o fragmento aponta para o livro que nunca se acabará de compor; que, por
isso, sempre se retoma e sempre se difere‖ (COSTA LIMA, 2005, p. 212).
Se o caráter essencial da obra de arte é não se deixar nunca reduzir a um sentido único,
preciso e inequívoco, dsua abertura ao infinito; se a poesia romântica é aquela que traz
consigo sua própria autocrítica, no sentido do idealismo filofico alemão, que Schlegel e
Novalis levaram às últimas conseqüências, do pensamento que se põe à consciência e se pensa
a si mesmo; a missão do fragmento, então, é realizar-se como pura poiésis, ou seja, como
86
aquilo que partilha do espírito criador, como aquilo que se como meio de reflexão: o
fragmento assume uma feição crítica não porque se ponha sobre a poesia, no sentido em que
se diz que o juiz se põe sobre os litigantes, mas porque partilha de sua natureza‖ (COSTA
LIMA, 2005, p. 212). Assim, em vez de dizer a poesia, de ser a crítica do poético, de se
colocar como pura análise das formas e meios de composição, o fragmento se avizinha da
própria poesia, solicita para si os contornos do poético e confunde-se com ele no processo de
pensá-lo:
Os românticos não compreendiam, como a Aufklärung, a forma como uma regra de
beleza da arte e sua observância como uma precondição necessária para o efeito
agradável e edificante da obra. A forma mesma não valia para eles nem como regra
nem mesmo como dependente de regras. [...] Toda forma como tal vale como uma
modificação particular da autolimitação da reflexão; ela não precisa de outra
justificativa, pois não é meio para a exposição de um conteúdo. O empenho
romântico quanto à pureza e à universalidade no uso das formas se baseia na
convicção de colher a conexão entre elas, enquanto momentos no medium, na
dissolução crítica da expressividade e na pluralidade delas (na absolutização da
reflexão conectada a elas). (BENJAMIN, 1999, p. 84)
De modo bastante específico, que nossa proposta não é nos aprofundarmos nos
debates filosóficos concernentes ao romantismo alemão, a questão do fragmento enquanto
forma discursiva está diretamente ligada ao ideal romântico de que cada Idéia, isto é, cada
tipo de pensamento, solicita uma forma de expressão que se ajuste, como meio reflexivo,
àquilo que se pensa. Assim, por exemplo, se Novalis e Schlegel entrevêem na poesia
romântica um momento de ruptura com o ideal clássico de composição, baseado sobretudo na
noção de representação do mundo e da natureza, e a associam ao princípio de reflexão, de
pensamento que se desdobra ao infinito, de nova percepção desse mesmo mundo e dessa
mesma natureza, é necessário que essa liberdade reflexiva defina-se, também, em função de
uma profunda liberdade formal:
A Idéia da arte como uma medium produz, então, pela primeira vez, a possibilidade
de um formalismo o dogmático ou livre, de um formalismo liberal, como diriam
os românticos. A teoria primeiro romântica fundamenta a validade das formas
independentemente do Ideal das conformações. [...] Quando então Friedrich
87
Schlegel exige do modo de se pensar sobre os objetos arsticos que ele contenha ―a
liberdade absoluta unida ao rigor absoluto‖, eno podemos estender esta exigência à
própria obra de arte, com respeito a sua forma. (BENJAMIN, 199, p. 84)
A poesia, para os românticos, deve ser muito mais do que a expressão dos dramas
do espírito ou do sentimentalismo fácil do eu empírico, reflexo das idiossincrasias individuais
que se manifestariam com a noção de eu-lírico do romantismo normatizado: ela é, ao
contrário, um meio de reflexão, uma forma de pensamento que solicita sua própria autocrítica.
Obra em devir e definição da obra, a poesia romântica existe em função de seu ideal de
progressividade universal, de obra inconclusa, que busca sua própria finitude em função de
sua abertura ao infinito, e o fragmento não deixa de ser, portanto, sua continuação ou, melhor
dizendo, a realização crítico-reflexiva da obra:
―Pequena obra‖, o fragmento o é, portanto, também, sem dúvida, enquanto miniatura
ou microcosmo da Obra. Mas o é também pelo fato de, detendo assim de alguma
forma a função de obra da obra, ou da operação [mise en oeuvre] da obra, operar, em
suma, ao mesmo tempo nas fundações da obra [en sous-oeuvre] e na cobertura da
obra [en sur-oeuvre]. O fragmento figura mas figurar, bilden e gestalten, é aqui
obrar, e apresentar, darstellen o fora do corpo da obra [hors-d’oeuvre] essencial à
obra, mais essencial à obra do que a própria obra. Ela funciona como a [palavra
francesa] exergue [exórdio], nos dois sentidos do verbo grego exergazômai:
inscrevendo-se fora da obra, e completando-a. O fragmento romântico, longe de
encenar a dispersão ou o despedaçamento da obra, inscreve a sua pluralidade como
exórdio da obra total, infinita. (LACOUE-LABARTHE e NANCY, 2004, p. 79)
Mais do que obra poética, ou seja, realização formal de um determinado gênero de
criação, o lírico, que solicita um certo conjunto de características próprias, singulares e
determinantes de sua natureza, como o verso, o ritmo, a sonoridade, a linguagem figurada e
simbólica, o conceito de obra de Novalis e Schlegel reside na concepção de obra como
produção, como aquilo que se coloca à reflexão com o objetivo de ser conhecido, pensado,
produzido, em suma, pelo próprio pensamento. O fragmento literário, então, inaugura um
gênero de produção que podemos chamar de metaliterário, no sentido de que e em obra a
explicação da obra, de que sua forma é a forma ativa do pensamento crítico e, ao mesmo
tempo, a realização estética dessa mesma crítica. Essa dimensão autocrítica da metaliteratura
88
aberta pelos românticos alemães é importante principalmente no que diz respeito ao fato de
que um dos matizes fundamentais da modernidade literária, desde Baudelaire, na segunda
metade do século XIX, até o evento que alguns críticos chamam de s-modernidade, é sua
adesão à autoreflexividade da obra, isto é, sua tendência a pensar-se ativamente, em seus
próprios interstícios.
Nesse sentido, o fragmento literário romântico anuncia outro processo fundador da
modernidade literária, o que nós chamamos, aqui, de escritura fragmentária
27
: a desarticulação
dos discursos narrativos baseados nos modelos de composição realista, principalmente do
realismo de fins do século XIX, que acreditava nas ltiplas possibilidades da linguagem em
representar o real de forma totalizante, ou seja, privilegiando as conexões referenciais entre o
mundo objetivo, empírico, e seu correlato ficcional, literário. De certo modo, o fragmento
literário romântico surge como elemento anunciador da crise do pensamento na filosofia
idealista alemão. Tanto Kant quanto Fichte, as duas influências decisivas do idealismo de
Novalis e Schlegel, conceberam seus discursos filoficos em vista do ideal de
sistematicidade, isto é, por meio de uma forma teleológica e causalista que fosse capaz de
representar, na íntegra e totalmente, a teoria e a crítica do conhecimento que vinham
produzindo. Novalis e Schlegel tornam instável qualquer possibilidade de conceber um
pensamento sistêmico, fechado e completo em si mesmo, já que, para ambos, a tarefa do
pensamento não se esgota na definição ou na expressão do mesmo, menos ainda na sua
demonstração, mas sim, prolonga-se como atividade infinita, inesgotável e relaciona-se,
diretamente, com a problemática da forma ideal de exposição.
Como afirma Schlegel, em um de seus fragmentos
27
É preciso salientar, neste momento, que ao nos referirmos à noção de escritura nós o fazemos a partir de uma
dupla visada: de um lado, como realização escrita, estilo, forma, modo de exposição discursiva e, de outro lado,
sempre que for necessário, no sentido que a filosofia da desconstrução, de quem Jacques Derrida foi o principal
articulador, consagrou, ou seja, como o jogo da diferença ativa e produtiva do pensamento filosófico-literário
que se fundamenta, sobretudo, na tentativa de compreender o processo gerador de significações e modo como
esse mesmo processo tende sempre à disseminação de sentidos.
89
Ao ins da exposição, em muitos poemas se encontra por vezes apenas uma
inscrição indicando que na verdade se deveria expor isto ou aquilo, mas o artista,
tendo sido impedido, pede humildemente perdão. (1997, p. 28)
O conceito de exposição referido por Schlegel é um dos postulados relacionados à
problemática dos modos e maneiras de representar o conhecimento proposto por Fichte em
sua Doutrina da Ciência, que buscava, como já apontamos em outro momento, um
mecanismo de expressão do conhecimento que fosse capaz de traduzir, de forma sensível, a
reflexão supra-sensível e retê-la, em sua absoluta mobilidade, em sua plena dinâmica, no
espaço do discurso. Segundo Rubens Rodrigues Torres Filho, em seus ensaio A Filha Natural
em Berlim (1987)
28
, essa preocupação fichteana consumiu três anos de sua vida e muito de
suas economias, que ele se dedicou integralmente à resolução desse problema. De fato, o
trabalho filosófico de Fichte estava concluído: sua preocupação com a forma de exposição
o dizia respeito, então, à organização do material pesquisado, de suas notas e conclusões
referentes à teoria do conhecimento que vinha desenvolvendo. Portanto, não se trata de um
problema de escritura, de redação, de elaboração do discurso filosófico, mas sim de encontrar
uma forma de expressar a questão da autoatividade do pensamento proposto por Fichte:
Assentada [a posição de Fichte] na exploração, inaugurada por Kant, dos atos
transcendentais constitutivos da objetividade, sua teoria da Darstellung do supra-
sensível no sensível que se configura na distinção entre o espírito (Geist) e a letra
(Buchstabe) o pode ser interpretada metafisicamente, como uma depreciação da
Representação, em nome da plenitude da Presença. Pelo contrário, ―espírito, nesse
contexto, é sinônimo de ―imaginação criadora‖, e o significa nenhuma realidade
supra-sensível de que a ―letra‖ fosse uma cópia de segunda mão: é a própria
produção do sensível, o qual, como seu produto, a designa legitimamente e lhe
assegura a única visibilidade de que ela é capaz. É na letra, e o além dela, que o
espírito tem corpo e realidade. (TORRES FILHO, 1987, p. 112)
Assim, grosseiramente, a busca de Fichte orienta-se no sentido de encontrar a
melhor maneira de expor um pensamento que se abre ao infinito, que se dá de forma
dinâmica, ativa, que não se deixa reduzir à simples representação, no sentido de expressão
28
TORRES FILHO, Rubens Rodrigues. Ensaios de Filosofia Ilustrada. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
Págs. 102-123.
90
rigorosa e formalizante de um conjunto de idéias sistematicamente dispostas. Se o espírito é a
própria imaginação criadora, a letra, seu modo de se presentificar, deve encontrar sua forma
ideal. Tal forma estaria localizada não inteiramente na própria obra, mas na ―faculdade de
liberdade da intuição interna‖ (FICHTE Apud TORRES FILHO, 1987, p. 117) do leitor
que
É ela que permite alcançar a interioridade daquilo que é posto em cena, perceber o
jogo de dupla face entre o exterior e o interior e mesmo superar os limites,
necessários ou contingentes, da Dastellung, para captar a esncia da obra. É a ela
que Fichte se refere ao falar em ―espírito‖ e é, enfim, por meio dela que o filósofo
liga indissociavelmente, com o rigor que lhe é próprio, a especificidade da doutrina-
da-ciência com o paradoxo da Darstellung, no conhecido texto de 1794: A
doutrina-da-ciência não se comunica pela letra, mas unicamente pelo espírito,
porque ―suas idéias fundamentais devem ser produzidas em todo aquele que a estuda
pela própria imaginação criadora, como não poderia deixar de ser em uma ciência
que vai aos fundamentos últimos do conhecimento humano, uma vez que toda a
operação do espírito humano parte da imaginação, e a imaginação pode ser
apreendida pela imaginação‖ (TORRES FILHO, 1987, p. 117)
Pode-se dizer que até a Doutrina da Ciência, de Fichte, não existia, de forma o
contundente, essa problemática da exposição do discurso filosófico. Desde a tradição
cartesiana, o modelo discursivo fora de matiz rigorosamente representativo, ou seja, o
discurso filosófico dava-se como a representação acabada, fechada e devidamente articulada
de uma reflexão que começa com o filósofo e se encerra na obra. A verdade estaria, então, ao
longo de toda a manifestação sistemática do discurso e restaria ao leitor a relação mais ou
menos tributária com a noção de verdade estabelecida. Os românticos alemães aderiram ao
ideal fichteano de reflexão justamente porque perceberam que a verdade é tão ativa quando o
pensamento, dinâmica, em constante movimento e imprescindível devir. A diferença é que,
rompendo com a exposição teleológica da reflexão, que Fichte acabou por desenvolver com
sua obra, eles radicalizam ainda mais o conceito de imaginação criadora e concebem uma
forma, pode-se dizer mesmo uma estrutura de pensamento que justamente por ter uma
dimensão aberta e inconclusa, acaba por sugerir o ideal de que toda reflexão é infinita tal é a
91
proposta do fragmento literário. Desse modo, como podemos perceber no fragmento de
Novalis,
A letra é apenas um auxílio da comunicação filosófica, cuja essência própria
consiste no suscitamento de uma determinada marcha de pensamento. O falante
pensa produz o ouvinte reflete reproduz. As palavras são um meio enganoso do
pré-pensar veículo inidôneo de um estímulo determinado, específico. O genuíno
mestre é um indicador de caminho. Se o aluno é de fato desejoso da verdade, é
preciso apenas um aceno, para fazê-lo encontrar aquilo que procura. A exposição da
filosofia consiste portanto em puros temas em proposições iniciais princípios.
Ela é só para amigos auto-ativos da verdade. O desenvolvimento analítico do tema é
para preguiçosos ou inexercitados. Estes últimos precisam aprender a voar
através dele e a manter-se numa direção determinada.
Atenção é uma forma centrante. Com a direção dada começa a relação eficaz entre o
dirigido e o objeto da direção. Se mantemos firmes essa direção, chegamos então
apoditicamente seguros ao alvo fixado.
Genuíno filosofar-em-conjunto é portanto uma expedição em comum em dirão a
um mundo amado na qual nos revezamos mutuamente no posto mais avançado,
que torna necessária a tensão máxima contra o elemento resistente, no qual voamos.
(2004, p. 109-110)
No fragmento acima, Novalis parece sugerir que a letra é apenas um meio de reflexão.
O que importa, de fato, é que ela possa expor a ―marcha de pensamento‖ que se encontra em
puros temas, proposições, idéias, como ele mesmo denomina, princípios. Os fragmentos,
então, seriam a forma por excelência do aceno, do suscitamento da reflexão. Apenas a forma
fragmentária pode colocar em jogo o pensamento em sua absoluta imediatez, em sua plena
manifestação instantânea, transitória, progressiva. Notemos que a Darstellung romântica
acena para um tipo de construção discursiva que rejeita o ideal tradicional de representação,
baseado na lisura da forma, no acabamento teleológico da demonstração, na articulação lógica
dos entrechos, que acabam por sugerir uma completude que, por mais contraditório que possa
parecer, o idealismo romântico de Novalis e Schlegel não pode conceber. Falar e ouvir tem
como extensões produzir e reproduzir. O fragmento seria essa fala inacabada, esse
pensamento interrompido, perfeito em si mesmo, em sua inevitável imperfeição. Assim, a
Darstellung romântica constrói-se sobre um conjunto de aporias que se resolvem não por
meio do pensamento idealista, da subjetividade pura, do Eu Absoluto, mas também dessa
forma desarticulada que é o fragmento literário, que se apresenta isoladamente, que se dá
92
como projeto e pensamento futuros, sempre anunciados mas nunca plenamente realizados,
que se dá em conjunto, que de forma constelar, ou seja, cada fragmento é autônomo em
relação ao demais fragmentos que compõem o seu espaço circundante.
O romantismo alemão é o que e em jogo um modelo de obra que se fundamenta na
idéia de trabalho infinito da crítica, do pensamento e da teoria. Infinito não num sentido
exclusivamente metafísico, mas, numa perspectiva menos essencialista, como uma tarefa
interminável, que o novo é aquilo que se apresenta à reflexão a cada dia, isto é, o novo
também é interminável. A obra total é uma quimera, porque pode ser entrevista como
projeta e vislumbrada como fragmento. A transitoriedade do novo exige um r-se ativo em
obra, um exercício reflexivo intenso e incansável, para que se encontre ou se vislumbre a
dimensão criadora da poiésis:
O poeta é, para Novalis, antes de tudo, autor de uma ação. Essa ação tem um valor
muito particular no universo das suas idéias. Ele a identifica com a ação (Handlung)
transcendental, tal como ela fora pensada por Fichte, ou seja, como uma
Tathandlung, ―estado-de-ão‖, na tradução consagrada de Rubens Rodrigues
Torres Filho (Fichte 1980). Para Fichte assim como para Novalis , eu e o-eu,
mundo material e espiritual, são fruto de uma ―posiçãoativa, de uma Tathandlung,
e apenas através de uma Handlung esse mundo pode ser exposto. Ora
paradoxalmente Fichte, levando às últimas conseqüências essa visão poiética e
dinâmica do Ser, visou, nas várias exposições do seu sistema, à auto-atividade
(Selbsttätigkeit) e não à mera compreensão conceitual da parte dos seus leitores.
Para ele, a imaginação poderia ser apreendida pela imaginação e essa faculdade
era vista como a fonte do funcionamento do espírito humano. (SELIGMANN-
SILVA, 2005, p. 309-310)
29
Outro elemento que leva os românticos a uma ruptura com a filosofia de Fichte é
justamente essa defesa do poético como manifestação do pensamento. Mais do que o próprio
autor da Doutrina da Ciência, foram Novalis e Schlegel os primeiros a perceberem que a arte
romântica deveria ser capaz de executar, em si mesma, essa auto-atividade reflexiva, essa
obra que se pensa enquanto se realiza em obra, ou, para usar uma expressão cara aos
29
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Hieróglifo, Alegoria e Arabesco: Novalis e a Poesia como Poiesis. In: O
Local da Diferença. 1ª edição. São Paulo: Editora 34, 2005.
93
românticos de Jena, enquanto, de forma ativa, se e em obra. A Darstellung romântica,
então, aproxima crítica, teoria e criação, poesia e filosofia:
Haveria, além disso, uma correlação íntima entre o pensamento de um modo geral e
o ptico. Daí por que Novalis pôde escrever: ―Poesia [Dichkunst] é decerto apenas
uso arbitrário, ativo, produtivo de nossas órgãos e talvez o pensar mesmo não
seria algo muito diverso e pensar e poetar, portanto, uma coisa só [einerley]‖
(Novalis 1978: II, 759 ss.). A teoria da autopoiesis e o paradigma da do poético (no
sentido de uma ―criação absoluta‖) representam, portanto, uma entronização do pôr
(Setzung) criativo, do princípio da poesia, mais do que da poesia em si (enquanto
gênero ou forma particular da linguagem). (SELIGMANN-SILVA, 2005, p. 310)
Neste ponto, o que Márcio Seligmann-Silva acaba por ilustrar muito bem é justamente
a noção de que a poesia romântica não é a pura externalidade do eu ou da subjetividade como
matéria-prima da realização poética. Para Novalis e Schlegel a poesia deve ser entendida
como a exposição de seus princípios organizadores, como teoria criadora e realização
artística, como reflexo de um pensamento que se articula na busca da compreensão crítica do
fenômeno estético. Assim, nada mais natural que o poeta e o filósofo partilhem de uma
mesma intenção, que é a concepção de uma obra que não pode extinguir-se ou demonstrar-se
em si mesma, porque é apenas parte de uma tarefa crítico-reflexiva que jamais se esgota
completamente, pois, como apontam Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy,
a poesia infinita do fragmento 116, ou ―espírito em devir‖ da poesia do fragmento
93 (Lyceum. DF p. 34), ou a ―poesia infinitamente valiosa‖ (Lyceum 87. DF. p. 33),
são essencialmente poesia na medida de sua natureza poiética. O que é poético é
menos a obra do que o que obra, é menos o organon do que o que organiza.
(LACOEU-LABARTHE e NANCY, 2004, p. 80)
O pensando romântico é o que se prolonga, o que se demora no próprio pensar.
Exercício reflexivo muito mais do que postulado, valor ou princípio analítico. Mesmo em
seus fragmentos críticos de caráter mais demonstrativo, quando se esforçam por categorizar e
melhor situar o objeto de sua crítica num contexto definido, os românticos não conseguem
romper com a linha-mestra de pensamento, como o fragmento de Schlegel nos revela:
94
Deve então a poesia ser pura e simplesmente dividida? Ou permanecer uma e
indivisível? Ou alternar entre separação e vínculo? A maioria dos modos de
representação do sistema cósmico da poesia ainda é tão grosseira e pueril quanto os
antigos modos de representação do sistema astronômico antes de Copérnico. As
divisões habituais da poesia são apenas armação sem vida para um horizonte
limitado. O que quer que alguém possa fazer ou o que quer que se aceite, a terra em
repouso permanece no centro. No próprio universo da poesia, porém, nada está em
repouso, tudo vem a ser, se transforma e move harmonicamente; e também os
cometas têm leis inalteráveis de movimento. Mas enquanto a trajetória desses astros
não puder ser calculada, enquanto o retorno deles não puder ser previsto, o
verdadeiro sistema smico da poesia ainda não estará descoberto. (SCHLEGEL,
1997, p. 139)
Como afirmamos acima, a poiésis romântica deve ser tomada como produção ativa
do pensamento que se desdobra em múltiplas direções, solicitando, a um tempo, uma
visada teórica, que seja capaz de acompanhar o fenômeno poético em sua constante
transformação, em seu caminhar resoluto para o novo, o diferente, o singular; uma realização
crítica, que possa intuir, analisar, julgar e revelar as propriedades dessa transformação e os
motivos dessa originalidade em vistas do pensamento teórico que eles mesmos concebem; e
uma forma de exposição que admita e conjugue, a partir de sua própria manifestação, um
trabalho intelectual tão rigoroso e inesgotável. A crítica de Schlegel à puerilidade dos modos
de representação do fenômeno poético, até então vigentes, está diretamente associada à idéia
de que a representação não passa de uma armação convencional, de um modo de pensar
criticamente a obra que ainda está ligado ao ideal de modelo, normatividade, regulamentação,
herança do pensamento tipológico do Classicismo do século XVIII. Em alemão, o termo que
traduz a idéia de representação é Vorstellung, um substantivo feminino formado pela
contração do sufixo vor, que quer dizer antes, diante de, perante‖, e do verbo stellen, cujo
significado oscila entre ―colocar-se, posicionar-se, fingir, entregar-se‖: desse modo, uma
tradução possível de Vostellung seria representação, no sentido daquilo que se posiciona
diante de algo preexistente, aquilo que diz o que já existe, o evidente, o determinado,
mantendo uma relação de absoluta referencialidade com o objeto dado.
Nesse sentido, ao criticar os modos de representação do sistema poético, Schlegel o
faz em vista da reflexão romântica acerca da poesia e, mais especificamente, da obra poética,
95
daquilo que se como pura produção. Os modos de representação do classicismo não podem
dar conta de dizer plenamente a poiésis romântica porque estão atados às imagens, idéias ou
conceitos estéticos pré-determinados pelo julgamento clássico, no qual o crítico assume a
função de juiz da arte, legislando, aplicando e executando as normas e modelos de
composição que estão de acordo com o gosto estabelecido. Se a poesia romântica extrai seu
valor primordial da inter-relação entre o poético e o filosófico, da afirmação da subjetividade,
no sentido de autoconsciência, no r-se em obra ativo da individualidade, experimentada
como a liberdade suprema da reflexão, a crítica romântica o pode se limitar aos modelos
representativos e tipológicos determinados pelo gosto clássico. Ao contrário, ela deve ir além
dos padrões normativos, romper com os modelos de composição e criar sua própria tipologia
ou, melhor dizendo, seu próprio referencial teórico, que deve mudar de acordo com as obras,
sendo que estas mesmas devem estar sempre no limite de suas formas, prontas a romper com
gêneros que as definem.
Um exemplo dessa disjunção romântica com o juízo normativo do classicismo pode
ser divisado na dedicação que Novalis e Schlegel deram ao gênero romanesco. O romance
ainda estava em formação, constituindo-se como gênero, no momento em que passaram não
só a dedicar seus fragmentos críticos à análise e compreensão do Wilhelm Meister, de Goethe,
como também empenharam seu próprio gênio criador na experimentação formal com as
estruturas narrativas, criando seus romances filosóficos, como o Heinrich Von Ofterdingen, de
Novalis, no qual a imagem simbólica de uma Flor Azul se manifesta nos sonhos do
protagonista, que parte em busca desse elemento místico que pode ser a própria poesia, a arte
mesma. Assim, contra os modelos estabelecidos de representação, sobretudo os modelos
poéticos do classicismo, Schlegel, por exemplo, irá criar uma narrativa como a Conversa
sobre a Poesia, um gênero discursivo híbrido, que funde enredo romanesco e ensaio crítico
numa obra em que predomina o encontro de jovens artistas num dlogo sobre a própria
96
criação literária, sobre a poesia como manifestação criadora e não como gênero literário,
sobre a história das manifestações poéticas desde a Antiguidade até a modernidade.
A Conversa Sobre a Poesia põe em cena sete amigos Amália, Camila, Andrea,
Antonio Marcus, Ludovico e Lotário que se dedicam a discutir a natureza da poesia a partir
de um intrincado e diferente jogo de idéias e opiniões. A discussão principia justamente sobre
o debate acerca dos limites e das fronteiras que separam os neros. Os amigos irão das
teorias acerca das épocas da poesia até a afirmação da idéia de que a fantasia e a imaginação
empenhadas na realização de obras devem ser tomadas e entendidas como valores em si
mesmos, livres de qualquer classificação, de qualquer rótulo, de qualquer denominão, de
qualquer taxonomia. Essa obra de Schlegel, estruturada sobre as bases do diálogo, compõe-se
como um misto de narrativa, ensaio, tratado filosófico, exercício crítico e diálogo socrático. O
objetivo de uma obra dessa espécie é justamente realizar, no plano da criação estética, aquilo
que as teorias expostas por meio de seus fragmentos vinham realizando. Ao romper com o
ideal estabelecido de representação, a Conversa sobre a Poesia e a sua estrutura híbrida nos
faz perceber que
A partir dessas indicações fica claro que a descoberta do fragmento como forma é
uma tentativa de solucionar problemas de natureza filosófica, ainda que seja lícito
presumir que com ele se pretende sair do âmago de uma filosofia estritamente
técnica e não é certamente um acaso que o romantismo venha ganhando cada vez
mais interesse no estudo das formas literárias. Se, como se viu, é a própria atividade
originária do eu que, pelo seu caráter reflexivo, implica fragmentação, determinando
a diversidade da poesia, um esforço de combinação dos gêneros poéticos tem então
de ocorrer no sentido inverso, numa tentativa de retornar à unidade inicial: a busca
de reunificação de todos os gêneros numa nova síntese de poesia e prosa, poesia e
filosofia, criação poética e crítica, é o que agora explica as formas mistas e
especialmente o romance, que não é de fato um gênero, mas o meio onde se
combinam os gêneros, o elemento para aquilo que Schlegel chama de poesia
romântica ou poesia universal progressiva. (SUZUKI, 1997, p. 16-17)
O conceito de obra de arte, no romantismo alemão, passa, dessa forma, pela fusão dos
gêneros, pela relação aberta, tensa e progressiva entre criação e crítica, pelas determinações e
influências mútuas entre poesia e filosofia, mas ele também se encontra, sobretudo, na
97
concepção da idéia de Darstellung. Ao contrário de seu correlato, Vorstellung, não se trata de
pensar a Darstellung como representação, ainda que alguns a traduzam também com esse
sentido. Entre os poetas e pensadores do primeiro romantismo alemão, Darstellung pode ser
entendida como exposição, como apresentação, ou seja, como manifestação formal de tudo
aquilo que se dá no espo da consciência de modo imediato, reflexivo, inusitado e novo. As
idéias de exposição ou apresentação definem melhor a noção romântica de Darstellung
porque trazem consigo o sentido daquilo que surge diante do olhar, daquilo que se presentifica
na teoria das formas literárias, sobretudo das formas poéticas, exposição seria muito mais do
que a ordenação de determinados elementos constitutivos do discurso artístico, mas a sua
própria manifestação no espaço do pensamento. Desse modo, Darstellung liga-se ao novo, ao
original, aquilo que se produz a partir do pensamento e ganha seus contornos nos interstícios
do discurso, como uma forma de revelação.
Sob muitos aspectos, é possível afirmar que a Darstellung romântica surge da crise
dos modelos clássicos de representação bem como da própria idéia de que a arte ou o discurso
de qualquer espécie possam mesmo se adequar a modelos representativos determinados,
circunscrevendo-se no espaço dos juízos e dos julgamentos normativos do gosto, respeitando
o ideal de que a fruição e o prazer estéticos adm do equilíbrio formal, da beleza e da
harmonia das partes que compõem a obra e que se disem num conjunto uniforme,
totalizante e teleológico. De certo modo, e retomando alguns argumentos discutidos aqui,
tal crise se precipitou sobre o pensamento filosófico do idealismo alemão quando Novalis e
Schlegel concluíram que auto-atividade do pensamento fichteano precisava de uma forma de
exposição que se desse como uma abertura progressiva ao infinito, como puro devir, ao
contrário da própria sistematicidade que o discurso da doutrina-da-ciência acabou por
engendrar. Foi pelo fato de terem tomado contato com a filosofia de Kant e Fichte, bem como
com o ensaio de Schiller sobre a poesia ingênua e a sentimental, que os românticos alemães
98
acabaram por perceber a necessidade de engendrar um modelo de reflexão que fosse capaz de
sugerir sua própria autocrítica. Assim, o ideal de exposição do pensamento e da obra, que
abrange os fragmentos literários de Novalis e Schlegel, bem como algumas de suas criações
literárias mais importantes, já se coloca como uma dúvida e uma descrença na capacidade dos
velhos modelos e métodos de reflexão em atingir a verdade da arte.
Essa constatação é importante principalmente quando consideramos que a
modernidade e a s-modernidade também literária i questionar, de dentro de suas
próprias obras, os postulados representacionais que legitimaram a prática do discurso realista
de fins do século XIX. Isso quer dizer que a crise moderna da representação encontra sua
origem no pensamento romântico, e que mesmo um filósofo como Jean-François Lyotard, ao
conceber suas colocações acerca do conhecimento na pós-modernidade e da problemática da
representação epistemológica determinada pelas grandes narrativas-mestras, o faz por meio de
uma constatação que, sob muitos aspectos, resgata e problematiza ainda mais a natureza do
fragmentário na história do pensamento:
Minha investigação sempre teve por objeto apenas um ―algo em curso‖. Nesse
curso, ora prevalece um pólo, ora outro. Pior até: sinto-me perfeitamente centrado na
linha de força que emana de um pólo, e aqui estou eu cobiçando os outros com uma
impaciência invejosa. Gostaria de me ocupar de todos os campos de atração ao
mesmo tempo. Como é impossível, toma forma uma espécie de inibição que
qualquer um que tente pensar conhece bem. Sente-se uma impotência para penetrar
nas nuvens do pensamento. Ela o é anedótica. Declaramo-nos filósofos ou
escritores, devemos nos confessar impostores. Não existe pensar verdadeiro que o
sentido de sua indignidade não escolte. A única maneira de sair desse atoleiro, pelo
menos em parte, é exibir o inelutável: pensa-se aqui e agora, em situação, e em uma
única situação de pensamento por vez. De modo que o que ameaça o trabalho de
pensar (ou de escrever) não é ele permanecer episódico, é ele fingir-se completo.
(2000, p. 19)
30
O que nos interessa, neste momento, é pensar de que maneira a crise das formas
30
In: LYOTARD, Jean-François. Peregrinações. Lei, Forma, Acontecimento. São Paulo: Estação Liberdade,
2000. Lyotard é um dos grandes pensadores e epistemólogos da s-modernidade. Ele foi, sob muitos aspectos,
um dos primeiros filósofos da segunda metade do século XIX pôr em questão a não de verdade teleológica e
os modelos de representação totalizantes que caracterizam o que ele denominou de narrativas-mestras, isto é,
aqueles modelos de discursos filosóficos, científicos, históricos ou literários que encontram legitimidade em sua
própria tradição, no rastro histórico que produziram e na afirmação conceitual que legaram. Lyotard é um dos
filósofos e críticos desses modelos narrativos que extraem seu valor do fato de serem marxistas, freudianos,
lacanianos, e etc.
99
românticas de pensamento e de criação, de crítica e análise do fenômeno literário, ao
engendrar o fragmento literário como modelo de apresentação de suas verdades estéticas e
teóricas, acabaria por evoluir, com a modernidade, para uma profunda crise dos modelos
narrativos de representação, ou seja, de que forma o discurso narrativo sobretudo o
romanesco acabaria, na modernidade, reagindo às estruturas realistas totalizantes e
monumentais, criando uma literatura metadiscursiva que, progressivamente, acabaria por
minar o conceito de representação mimética da realidade, tão cara ao realismo, engendrando
uma escritura fragmentária e autocrítica na qual a afirmação das supostas verdades
referenciais começa a ruir, de modo que, num romance como Nadja, de André Breton,
chegamos a um modelo narrativo que é a pura exposição ou apresentação de um ideal de
narrativa em que prevalecem os fluxos e influxos poéticos da memória, da paisagem interior,
das dimensões inconscientes do espírito. Procuramos, então, problematizar a questão da
fragmentação literária como herança romântica resgatada pela modernidade e pela pós-
modernidade, além de se apresentar como a dimensão formal, discursiva, estrutural de uma
abissal problemática da representação que se afirma com os autores s-modernos e que se
evidencia, principalmente, a partir da leitura que faremos do romance Vício, do escritor
português Paulo José Miranda; e de alguns comentários acerca de A Ópera Flutuante, de John
Barth; O Livro de Daniel, de E. L. Doctorow e W ou a Memória da Infância, de Georges
Perec.
A partir dessa leitura e desses comentários, nossa intenção é deixar claro que o s-
moderno não deve ser entendido apenas dentro da lógica da crise, como um discurso que
procura a saída da representação ou o abandono desta, que isto é o que os movimentos de
vanguarda aparentemente se propuseram a fazer. A idéia é demonstrar que, para os teóricos e
escritores da s-modernidade, a fragmentação é uma forma de conceber o que se pode
chamar de uma deriva da representação, colocando em jogo a instabilidade dos sentidos e
100
levando a linguagem ao limite do auto-questionamento, da manifestação de suas próprias
arestas e armadilhas estruturais. Desse modo, busca-se situar o fragmentário como um
universo teórico para o qual se trata de colocar em questão a representação não para negá-la
ou rejeitá-la sumariamente, mas para revelar suas instabilidades e, sobretudo, sua
disseminação de sentidos que leva o discurso a um impasse: qual a legitimidade de uma obra
que se dá como pura representação, ou seja, simulação, fingimento, construção deliberada,
orientada e manipulada de uma imaginação que se esconde nos interstícios da narrativa. Dessa
forma, deve-se pensar que a lógica do fragmentário o produz a crise da representação como
mero abandono da mesma, rejeição, renúncia ou negação, mas sim de que ela acaba por nos
conduzir a uma reflexão sobre a natureza da linguagem e a capacidade desta em dizer o
mundo, os seres e as coisas, o que se coloca como um problema filosófico não de matiz
metafísico, mas sim da própria construção e organização do discurso enquanto materialidade
que lida com questões delicadas, críticas mesmo, como as da memória, da lembrança e do
esquecimento, do real e da ficção, da verdade e da fantasia e estético, sobretudo.
2.2. Um Breve Passeio Pelos Bosques da Representação: Mímesis e Crise da
Referencialidade
Todas as discussões contemporâneas acerca das manifestações artísticas humanas,
como a pintura, a escultura, a arquitetura, o cinema e, particularmente, a literatura, sobretudo
no que concerne ao discurso ficcional, à arte narrativa, à fundamentação do romance, à
criação literária, à poiética dos gêneros e das formas, deixam-se atravessar por uma questão
central e incontorvel, que se impõe aos pensadores, filósofos e críticos literários como uma
espécie de pedra de toque que não pode ser ignorada porque se revela o ponto decisivo (ou o
centro irradiador) de toda a problemática teórico-cognitiva do fenômeno estético: a
possibilidade da linguagem dizer o mundo, descrevê-lo, tomá-lo, tocar o real e apreendê-lo,
101
revelando sua verdade substancial. Isto quer dizer que o pensamento contemporâneo
evidencia, cada vez mais, os limites, o alcance, as rupturas e as descontinuidades que
envolvem os processos de criação e a linguagem artística em relação àquele que deveria ser
seu objetivo primordial: a representação.
Até a segunda metade do século XIX com o grande romance realista, cuja extração
representacional fundamentava-se nos modelos estéticos da pintura e das artes figurativas
era uma espécie de ponto pacífico, intocável mesmo, a idéia de que a linguagem era capaz de
apreender, em todas as suas nuances e matizes, o real imediato em seus múltiplos aspectos. A
linguagem, sobretudo a artística, era uma forma de suporte em que o mundo e as coisas, mais
do que se revelarem, podiam ser divisados e descritos em sua inegável totalidade, em sua
absoluta realidade, de forma translúcida e unívoca. O realismo alimentou a ilusão de que não
um abismo indevassável entre as palavras e as coisas, entre a linguagem e a representação
estética do real. Tal crença advinha do próprio ideal latino de repraesentatio, ou seja, daquilo
que se ―põe sob os olhos‖, que se impõe diante do olhar, que representa ou retrata algo um
ideal que se constrói, sempre, sob a ordem da imagem, da descrição plena e exaustiva das
coisas, dos objetos e de tudo o quanto, podemos pensar, constitui o real. Assim, a arte realista
afirmava-se a partir do princípio de que a substancialidade das coisas poderia ser
perfeitamente refletida pela substancialidade significativa da linguagem.
Assim, a literatura realista, sobretudo aquela que se desenvolveu no espo do
romance, construiu-se sobre as bases de uma linguagem afirmada como o reflexo direto,
preciso e totalizante do mundo e das coisas, dos objetos e dos indivíduos, da cultura e da
sociedade, isto é, da realidade extralingüística ou, para dizer de outro modo, da realidade
extraliterária ou ficcional que circunda a obra. Desse modo, de acordo com Beatriz Jaguaribe
no ensaio Modernidade cultural e estéticas do realismo
31
,
31
In: JAGUARIBE, Beatriz. O Choque do Real. Estética,dia e cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
102
Desde o século XIX, quando o realismo surge como uma nova estética, a querela em
torno em torno de sua legitimidade enquanto ―representação da realidade‖
desenvolveu-se em campos antagônicos. Em linhas gerais, os que aderem aos
ideários estéticos do realismo enfatizam uma conexão vital entre representação e
experiência da realidade. Os que se opõem à legitimação privilegiada dos códigos
realistas insistem que o ―realismo é uma convenção estilística como outras que,
entretanto, mascara seus próprios processos de ficcionalização justamente porque as
normas de percepção cotidiana se medem pela naturalização da ―visão de mundo‖
realista do momento. (2007, p. 15)
Por este perspectiva, podemos afirmar, de forma genérica, de que bastava apenas que o
escritor dominasse os cordéis invisíveis da linguagem para criar personagens, situações,
acontecimentos e histórias que representassem, o mais fielmente possível, o mundo que o
cercava e que lhe chegava atras dos sentidos. Neste momento, é necessário afirmar que esta
crença tinha sua origem primordial em um grande equívoco histórico-filológico: a tradução
latina do conceito grego de mímesis
32
por imitātĭō imitação, cópia, retratação. Qualquer
leitura da Poética aristotélica, por mais desatenta ou superficial que seja, reconhecerá que,
para o filósofo grego, a mímesis é um processo muito mais complexo, dinâmico e diferencial
do que a simples imitação das coisas, dos objetos ou do real, que o engessamento conceitual
latino acabaria por promover.
Por isso Luiz Costa Lima, em Mímesis: Desafio ao Pensamento, afirma que a mímesis
é
vista como fenômeno fundado na semelhança ou que, mesmo levando em conta o
vetor ―diferença‖, o subordina àquele. Assim sucede no monumento paradigmático
da mímesis clássica, a concepção proposta pela Poética aristotélica. Procura-se
mostrar que essa dominância ou exclusividade da semelhança funda-se por sua vez
em uma concepção orgânica da mímesis, i. e., na suposição de que ela deva ser
homóloga à natureza embora, em termos aristotélicos, antes homóloga à natura
32
Parece necessário esclarecer que a nossa proposta, aqui, não é resgatar ou discutir a problemática da mímesis
em todas as suas implicações: históricas, tricas, filosóficas, críticas e estéticas. Este não é nosso objetivo bem
como essas implicações todas se encontram mais do que formuladas, sistematizadas e discutidas em
profundidade pela crítica e pela teoria literária contemporâneas. Se passamos por ela é porque, de algum modo, a
questão da representação solicita um excurso que traga em seu bojo a problemática da mímesis. Para um estudo
mais aprofundado do tema, ver, entre outros, as obras de Luiz Costa Lima Vida e Mímesis (1995), Mímesis:
Desafio ao Pensamento (2000) e Mímesis e Modernidade (2003) , de Erich Auerbach Mímesis: a
Representação da Realidade na Literatura Ocidental (2009) , de Philippe Lacoue-Labarthe A Imitação dos
Modernos (2000) e de João Guilherme Merquior A Astúcia da Mímese (1997).
103
naturans, i. e., produtora de formas, que à natura naturata, i. e., considerada quanto
às formas já produzidas. (2000, p. 24-25)
A mímesis aristotélica não se desvincula nunca do ideal de poiésis, ou seja, do próprio
gesto criador. Ela é sempre diferencial porque solicita não a abolição radical do modelo no
qual se espelha ou busca refletir, mas a afirmação da diferença que o gesto criador é capaz de
produzir em relação ao objeto sobre o qual se debruça. Dessa forma, ao traduzir o conceito de
mímesis por imitatio, os estetas latinos incorreram no engano de apagar, justamente, a
dimensão diferencial da mímesis aristotélica que busca re-criar, poieticamente, seu modelo
imediato em nome da cópia, da imitação, do reflexo descritivamente perfeito e completo do
modelo. A questão central, aqui, é notar que a produção literária de matiz clássico e depois
realista privilegiou a idéia de representação a partir da perspectiva latina de imitação, o que
equivale a dizer que colocou em jogo a afirmação de que a criação deve se fundamentar, antes
de tudo, na capacidade de emular modelos, formas, idéias e conteúdos que estejam de algum
modo relacionados à realidade imediata, à natureza extraliterária. Isso não quer dizer
necessariamente que os clássicos e os realistas não tivessem consciência de que a literatura é a
reprodução criadora do mundo. O problema reside no fato de que eles o fizeram tendo em
vista a realidade subjacente ao texto, manipulando o discurso e oferecendo ao leitor a imagem
que, de certo modo, ambos partilhavam do mundo e da sociedade.
E, seguindo a problemática da mímesis, é o próprio Luiz Costa Lima quem continua:
[...] Dupont-Roc e Lallot acentuam que mimeisthai é precisado pelo particípio
apeikazontes, cujo verbo apeikazein tem o sentido de ―formar uma imagem‖. Tal
uso, já atestado em Platão, mantinha ―um traço comum aos verbos de imitação entre
os dois autores: a ambivalência de base do acusativo de objeto‖. Acrescentam então
os filólogos: ao passo que a tradução tradicional, ‗imitar‘, ―seleciona abusivamente a
interpretação do acusativo como o do modelo, a passagem em causa ―imitar‘ em
imagens uma quantidade de objetos‖ mantém-se ambígua ―acerca do estatuto dos
‗objetos‘‖ (Dupont-Roc, R. e J. Lallot: 1980, 45). Assim, não se assegura se a
mimeisthai, o cognato verbal de mímesis, implica que a imagem produzida é uma
pia (imitação) ou apenas leva em conta o modelo. (2000, p. 34)
104
O fato é que, ao pensar a mímesis como o ato criador, como algo tão livre e
fundamental quanto o pensamento histórico, por exemplo, chegando mesmo a defender o
poeta como uma figura emblemática, mais importante que a do próprio historiador por
contar as coisas como elas poderiam ter sido e não como necessariamente o foram ,
Aristóteles acabou por transformar a mímesis na condição essencial da poiésis. O que equivale
a dizer: a linguagem artística o imita, simplesmente, ela concebe diferenças fundamentais
entre a criação e o modelo a qual esta se refere. A mímesis aristotélica é uma dimensão ativa
da criação, uma parte essencial da produção de sentidos, um modo reflexivo e transformador
do artista, do poeta, do escritor se relacionar com a realidade e os objetos que toma como
referência. Nesse contexto, a mímesis não pode ser tomada apenas como elemento gerador de
semelhanças, mas como uma forma do discurso se orientar em direção àquilo que assinala,
justamente, a diferença em relação ao objeto reproduzido.
Toda a pintura Renascentista, por exemplo, irá fundamentar-se no conceito latino de
imitatio. As grandes obras dos grandes mestres buscaram sempre a exatidão das formas, a
precisão dos gestos, a pia perfeita e severa do modelo representado. Aliás, foi a
predominância do pensamento latino ao longo de toda a Renascença que fez com que a idéia
de imitatio acabasse por se amalgamar profundamente à noção de repraesentatio. E o
surgimento do romance, séculos depois, acabou por se erigir sobre a mesma noção de
representação, na qual a linguagem literária deveria acompanhar os caminhos definidos pela
imitação figurativa, absoluta, totalizante e teleológica do mundo, das coisas e da realidade
empírica, que as artes plásticas haviam consagrado. A literatura, então, era possível no
horizonte de uma representação incondicional, que fizesse com que as palavras tomassem o
lugar das coisas, de forma ilusória, assim como os traços, as cores e os contornos, na pintura,
definiam com precisão as formas e retratavam fielmente os modelos estabelecidos. Nesse
sentido, a escritura estava presa à idéia de que a linguagem era perfeitamente capaz de dar
105
conta de todos os aspetos da realidade, mesmo os mais singulares, porque havia um vínculo
inegável entre o mundo representado e as palavras que lhe atribuíam sentido.
A modernidade estética que alcança sua formulação mais abrangente com Baudelaire
irá pôr sob suspeição a idéia tradicional de representação no discurso ficcional e em outros
tipos de discurso, como o filosófico, por exemplo (basta pensarmos no caso de Nietzsche), a
capacidade da linguagem em afirmar a plenitude totalizante do mundo, principalmente se se
levar em consideração a sistemática fratura da concepção e da percepção de mundo e de senso
de real aberta pelas estéticas de vanguarda do início do século XX, isso porque
passada a fase áurea da narração, a idade burguesa (sobretudo nos finais do XIX),
quando o realismo sugeria o real na sua simples existência e o sujeito como agente
reprodutor, a crença na representação começa a ser posta em debate. Entramos na
crise do romance tradicional, passível de ser comparado à cena italiana do teatro
burguês e sua técnica de ilusão, onde cabia ao narrador levantar a cortina e ao leitor,
participar da ação como se estivesse presente. (VILLAÇA, 1996, p. 59)
33
.
Desse modo, não é por acaso que a crise do romance tradicional nasça juntamente com
a crise do ideal de representação realista do mundo. Com as estéticas de vanguarda, o mundo,
as coisas e o próprio sujeito passam a ser entendidos como realidades cada vez mais
descontínuas, estranhas, complexas, fraturadas e irredutíveis à definições ou formas fechadas
de pensamento. A partir das reflexões abertas com a modernidade e com as vanguardas, a noção de
representatividade absoluta da linguagem passa a ser questionada a partir da idéia de que a
linguagem em si mesma, assim como o discurso ficcional, também é uma construção do
espírito. Sob muitos aspectos, os escritores do realismo o tinham isso em mente: trata-se,
no entanto, de pensar que o realismo subsumia a obra no contexto geral e mais amplo do
espaço social, como um reflexo deste, sem perder de vista o caráter ficcional da escritura.
Assim, como aponta Beatriz Jaguaribe,
33
VILLAÇA, N. Paradoxos do Pós-Moderno. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996
106
as estéticas do realismo crítico almejam captar as maneiras cotidianas pelas quais os
indivíduos expressam seus dilemas existenciais por meio das experiências subjetivas
e sociais que estão em circulação nas montagens da realidade social. Oferecem,
dessa forma, uma intensificação desses imaginários, na tentativa de tornar o
cotidiano amorfo, fragmentário e dispersivo mais significativo, embora, muitas
vezes, o retrato social que resulte disso seja o de cenários desolados. Mas isso não
exclui a segunda consideração, ou seja, de que essas estéticas são socialmente
codificadas, que elas são representações da realidade e não a realidade. O paradoxo
do realismo consiste em inventar ficções que parecem realidade. (2007, p. 16)
Representar é sempre da ordem do dizer. Mas acreditar que este dizer atravessa a
superfície das coisas, que as palavras podem substituí-las, que a linguagem é capaz de
perfazer todas as contradições, todos os estranhamentos, todas as particularidades do real, é se
alienar em relação a uma dimensão fundamental da criação estética e da própria linguagem: o
caráter simbólico e polissêmico do sentido. A crise da noção tradicional de representação é
uma forma de afirmar que a realidade não pode ser captada, apreendida ou tomada a partir de
signos, de palavras, de construções verbais precisas ou translúcidas, porque o signo nunca é
diáfano, nunca permite se contemplar em sua mais plena clareza, nunca se deixa entrever em
suas armadilhas significativas mais profundas. A modernidade solicita da linguagem algo
mais que a sua entrega resignada ao dizer exaustivo das coisas que a representação faz
circular no interior da escritura. Ao contrário, é preciso encarar a linguagem como a única
maneira de divisar o mundo a partir de sua inegável incomensurabilidade, em sua invariável
fragmentação, em seu caráter paradoxal, desafiador e, muitas vezes, espantoso. Só o re-
conhecimento da dimensão simbólica das palavras, a percepção de que uma realidade
fraturada e inconstante exige uma linguagem igualmente fraturada e volátil pode libertar o
discurso estético das imposições e dos artifícios retóricos sobre os quais se construíram os
grandes modelos narrativos dos séculos XVIII e XIX. É preciso compreender que a
linguagem também é uma construção; que ela não pode atingir a substancialidade das coisas
porque o dizer parte, sempre, da inconstância e da ex-centricidade das palavras postas em
cena por meio do livre jogo dos sentidos.
107
Não que não exista a verdade do mundo e das coisas, a realidade, os objetos, os
indivíduos tudo continua no mesmo lugar, apenas a linguagem aprende a re-conhecer suas
limitações, seu caráter de construto humano, seu vínculo inevitável com a consciência, e passa
a impor, para si mesma e para o homem, novas formas de manifestação, novas maneiras de
perceber a realidade, diferentes modos de penetrar no mistério insondável das coisas. Assim, a
crise da representação perpassa a crise da modernidade e a própria crise do pensamento e da
reflexão que a filosofia moderna, na esteira de Nietzsche e Heidegger, instaura. A arte e o
pensamento modernos buscam uma linguagem de desnaturalização, de desreferencialização,
de desligamento em relação ao ideal de expressão plena e absoluta do mundo. Essa linguagem
desreferencializada o significa, necessariamente, o rompimento com a ordem da mímesis,
ou seja, com a relação mimética entre a palavra e seu referencial concreto, mas sim uma
ruptura com os padrões latinos de imitatio, que contaminaram o conceito de representação e
impuseram à linguagem a árdua condição de tomar o lugar das coisas, do mundo, do real.
Representar, então, não deve ser sinônimo de imitação, cópia, descrição ou
retratação imagética, figurativa, das coisas; não deve se contentar com o simples ―pôr
diante dos olhos‖ a imagem fraudada de um mundo absoluto, total, finalista e causal. Ao
contrário, deve ser uma forma ativa de re-significação do mundo e de reordenação do real. A
representação não deveria se relacionar unicamente com a noção de verdade referencial do
mundo e das coisas, do sujeito e da obra, mas sim admitir sua condição de produtora ativa de
sentidos, mas, no entanto, acontece que
A ―representação pura e simples do ―real‖, o relato nu ―daquilo que é‖ (ou foi)
aparece assim como uma resistência ao sentido; essa resistência confirma a grande
oposição mítica do vivido (do vivo) ao inteligível; basta lembrar que, na ideologia
do nosso tempo, a referência obsessiva ao concreto‖ (naquilo que se pede
retoricamente às ciências humanas, à literatura, aos comportamentos) está sempre
armada como uma máquina de guerra contra o sentido, como se, por uma exclusão
de direito, o que vive não pudesse significar e reciprocamente. (BARTHES, 2004,
p. 187)
108
Assim, mais do que atingir a superfície do mundo e das coisas como são e se nos
apresentam, a representação deveria afirmar a ficcionalidade do discurso e dar-se como
produção incessante de sentidos. A representação deve manifestar-se como poiésis ativa e não
como imitação passiva de um determinado modelo ou dimensão do real. Ela deve pôr em
circulação a alteridade do real, aquilo que escapa à percepção imediata, que o se refere,
necessariamente, a qualquer particularidade empírica do mundo, das coisas ou dos homens. A
literatura realista, ao se aproximar do discurso histórico, sobretudo após a consolidação da
noção de história materialista do marxismo, passou a afirmar a idéia de que mesmo a narrativa
de caráter literário e não só o trabalho do historiador deveria ser capaz de articular, em seu
interior, a superfície da realidade, com suas tensões sociais aparentes, com suas perturbadas
relações humanas, articulando, de forma arbitrária, é certo, a totalidade das experiências
individuais. Trata-se, então, de considerar que
No campo da estética marxista existe uma importante discussão acerca do realismo
que envolve a idéia da arte como reflexo da realidade subjacente ao mundo das
aparências. Num debate ocorrido nos anos 1930, o pensador marxista húngaro
György Lukács e o dramaturgo alemão, também marxista, Bertolt Brecht
defenderam posições bifurcantes acerca da relação arte/realidade. A partir da teoria
de Marx sobre o fetichismo da mercadoria, fenômeno característico do capitalismo
no qual a mercadoria aparece para a sociedade como um relação social que exclui
seus produtores, tornando-se simplesmente uma relação entre coisas, Lukács
desenvolveu uma crítica à consciência reificada (coisificada). Se o capitalismo
fragmenta e reifica a vida e a experncia humanas, o pensamento reificado gerado
nesse processo é incapaz de perceber a totalidade das relações sociais e econômicas.
O papel da arte, em especial da literatura, seria o de reconstruir essa totalidade com
as suas contradições, penetrando além de sua aparência superficial. (FACINA, 2004,
p. 21-21)
34
Deve-se pensar que a literatura não pode se deixar reduzir a um modelo ou a um
princípio articulador definido. Foi justamente contra o risco de submeter a criação a valores
34
FACINA, Adriana. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. A citação vem a
propósito de demonstrar que há uma relação direta entre o realismo literário de fins do século XIX e os
pensamentos científicos e filosóficos da época. Principalmente no que diz respeito às relações da obra literária
com o discurso de natureza histórica. Mais um vez, a questão, aqui, nos interessa na medida em que se relaciona
especificamente com a não de discurso referencial e representação. O objetivo é revelar que a estética realista,
que se firmou graças ao relevo de alguns de seus maiores representantes, como Honré de Balzac, Gustave
Flaubert, Charles Dickens, Léon Tolstói, Eça de Queirós e, guardada as singularidades estilísticas, Machado de
Assis, acabou por se tornar um modelo de representação definido, no qual, muitas vezes, concebe-se a a priori a
reprodução totalizante das relações sociais.
109
normativos ou a formas determinadas de expressão que o romantismo alemão concebeu o
fragmento literário como Darstellung, apresentação ativa, dinâmica, original do pensamento e
da criação, e não como Vorstellung, representação modelar, regulada por instâncias ou
princípios que suplantem o próprio trabalho ficcional. Parece desnecessário afirmar que toda
literatura, que todo discurso, traz algum nível de relação com a realidade como dado imediato
da percepção: o equívoco está em pensar que a narrativa deve se deixar reduzir à condição de
correlato esteticamente orientado do mundo, em se permitir simular uma objetividade, uma
transparência e uma neutralidade diante dos fatos relatados que é impossível ou, no mínimo,
dissimulada, que a construção narrativa envolve, em maior ou menor grau, a manipulação
do discurso, ou seja, a produção ativa de sentidos.
É o que Antoine Compagnon procurar revelar ao afirmar que ―com o nome de poética,
Aristóteles queria falar da sèmiosis e não da mimésis literária, da narração e não da descrição:
a Poética é a arte da construção da ilusão referencial‖ (2003, p. 105). O que precisa ser
discutido é que o próprio Compagnon o compreendeu com clareza a idéia aristotélica de
mímesis, por isso, talvez, o capítulo O Mundo, de seu O Demônio da Teoria, seja muito mais
um arrazoado de idéias conflitantes com alguns indesculpáveis equívocos sobre o
pensamento platônico e aristotélico do que uma forma de compreender, profundamente, as
relações entre o ideal mimético e a representação mesma. O que faz a mímesis senão solicitar
do artista a capacidade de re-significar o mundo, de intervir, poieticamente, na realidade que
procura abranger através de suas manifestações estéticas? Compagnon não contribui para a
compreensão mais clara de conceitos como os de mesis, imitação e representação. Ao
contrário, sua argumentação está toda baseada num erro citacional: quando se refere ao Livro
X de A República de Platão, o teórico francês afirma que o filósofo grego bane o poeta da
cidade porque sua arte é uma forma de imitação ―distante dois graus daquilo que é (grifo
nosso)‖ (2003, p. 103). Na verdade, Platão afirma que a imitação do poeta está afastada em
110
três graus daquilo que supostamente representa, ou seja, o poeta seria aquele que cria
simulacros, de simulacros, de simulacros das idéias puras, isto é, da verdade. Assim,
Compagnon prossegue afirmando ainda mais o erro: ―Ela (a arte) faz passar a cópia por
original e afasta a verdade: por isso Platão quer expulsar da Cidade os poetas que não
praticam a diègesis simples‖ (2003, p. 103).
Para Platão, não se tratava de fazer passar a cópia por original, que as coisas
mesmas eram pias imperfeitas das idéias puras ou arquetípicas. Se o filósofo afirmasse
que o poeta está afastado em dois graus daquilo que imita, ele teria de reconhecer no poeta a
figura do demiurgo, do grande criador, e é justamente isso que não lhe interessava: o poeta,
como criador, estaria tão próximo da verdade que alcançaria o mesmo status que o do
filósofo. E foi isto que o sistema de pensamento platônico condenou com o alegórico
banimento do poeta de sua República ideal. Compagnon acerta ao afirmar que a arte deve
criar a ilusão referencial, pois sugere a impossibilidade de uma imitação fiel e completa do
mundo, mas fundamenta sua discussão num erro de leitura e interpretação. A ilusão
referencial pode existir quando o pacto ficcional desvela o mundo no que ele tem de
diferente, estranho ou aberrante, e não na suposta ordem racional, empírica e mecânica que se
procura extrair da realidade. A ilusão referencial é sempre da ordem da concepção de
ltiplas perspectivas que engendram ltiplos sentidos ou, como quer Lubomir Dolezel no
ensaio Mímesis Y Mundo Posibles,
Minha busca por uma semântica o-mimética da ficcionalidade tem sido guiada
pela observação de que as dificuldades da teoria mimética surgem de vincular as
ficções exclusivamente ao mundo real. Toda ficção, incluindo as mais fantásticas, é
interpretada como o que se refere a um ―universo de discurso‖, e só um, o mundo
real. A função mimética é uma rmula para integrar as ficções no mundo real. A
semântica mimética se enquadra em um modelo de mundo único. Uma alternativa
radical a mímesis seria uma semântica da ficção definida em quadro de mundos
múltiplos. A semântica mimética será substituída pela semântica da ficcionalidade
dos mundos possíveis.(1997, p. 77. Tradução nossa)
35
35
DOLEZEL, Lubomir. Mímesis y Mundo Posibles‖. In: Teorias de la Ficción Literatira. (Org. Intr. E Bibl.)
Domínguez, Antonio Garrido. Madri: Arco/Libros, 1997. P. 69-94. Conforme: Mi búsqueda de uma semántica
no-mimética de la ficcionalidad há sido guiada por la observación de que las dificultades de la teoria mimética
111
A deriva da representação, nas artes e principalmente na literatura contemporânea,
advém da ruptura com a crença na possibilidade de articular estética, lingüística e
estilisticamente o mundo, o universo de seres, coisas e objetos que nos cercam, transportando-
os para o interior da obra, ou seja, essa deriva se dá com a fratura do ideal de representação
realista, de natureza mimética e profundamente referencial, e se coloca como a problemática
de conceber o mundo como reflexo da poiésis ficcional, sendo que, com a s-modernidade,
este ideal de ficcionalidade se impõe como a concepção de um mundo que se reconhece, antes
de tudo, como textualidade. É preciso compreender que a linguagem artística, literária,
promove um desenraizamento entre as palavras e as coisas, afirmando sua condição
simbólica, seu poder de re-significação, que se dá por meio da poiésis criadora. Ao conceber o
jogo da fragmentação discursiva, as narrativas modernas e pós-modernas acabam, cada uma a
seu modo, por estabelecer como princípio estrutural da narrativa a sua desarticulação interna e
a sua disjunção em relação ao real empírico, revelando o quanto o mundo real é acidentado,
incerto e igualmente fragmentado. Ao conceber o mundo a partir de uma infinidade de
perspectivas possíveis, essas narrativas engendram a disseminação de sentidos, a abertura
reflexiva, a liberdade de revelarem as tábuas constitutivas de seu próprio solo, produzindo um
discurso metaliterário que não procura elidir suas manipulações, desconversas, imposturas e
limitações. Por isso, em Alegorias da Leitura, Paul de Man explicita que
a literatura, assim como a crítica a diferença entre elas é ilusória está condenada
a (ou tem o privilégio de) ser para sempre a mais rigorosa e, conseqüentemente, a
menos confiável de todas as formas da linguagem em termos da qual o homem se
nomeia e transforma. (1996, p. 35)
surgen de vincular las ficciones exclusìvamente al mundo real. Toda ficción, incluyendo las más fantásticas, es
interpretada em tanto que se refiere a un ―universo de discursoy sólo uno, el mundo real. La función mimética
es uma fórmula para integrar las ficciones en el mundo real. La semántica mimética se enmarca em un modelo
de mundo único. Una alternativa radical a la mímesis seria uma semántica de la ficción definida en um marco de
mundos múltiples. La semántica mimética será reemplazada por la semántica de la ficcionalidad de los mundos
posibles (p. 77).
112
A relação entre o mundo empírico, as coisas e a linguagem é altamente polissêmica,
promovendo sempre uma disseminação de sentidos que não pode ser controlada a partir da
ilusão da referencialidade pura, que evidenciaria, por sua vez, a capacidade do homem em
manter sob controle o real, o que não passa de outra ilusão. Sendo assim, pensar a natureza da
representação deve ser, antes de tudo, uma forma de não nos enganarmos, assim como
fizeram os escritores, poetas e artistas que estiveram a frente dos grandes movimentos de
vanguarda do início do século XX e que repensaram os alcances e as possibilidades da
linguagem em refletir o mundo ou em reproduzi-lo em sua totalidade. Antes, com a literatura
de vanguarda, a linguagem literária é desnaturalizada ao limite, criando novas maneiras de
apresentar o homem e o mundo, produzindo narrativas como Nadja, de André Breton, por
exemplo, que é um mergulho vertiginoso na interioridade mais profunda do indivíduo em
busca da percepção não de seu lugar no mundo, mas também em si mesmo e na própria
linguagem. Trata-se, nesse sentido, de uma busca ativa por novos modelos discursivos, pela
realização de um tipo de narrativa calcada principalmente na absoluta liberdade do gênero:
Da literatura, o romance faz rigorosamente o que quer: nada o impede de utilizar
para seus próprios fins a descrição, a narração, o drama, o ensaio, o comentário, o
monólogo, o discurso; nem de ser a seu bel-prazer, sucessiva ou simultaneamente,
fábula, história, apólogo, idílio, crônica, conto, epopéia; nenhuma prescrição,
nenhuma proibição vem limitá-lo na escolha de um tema, um cenário, um tempo, um
espaço; nada em absoluto o obriga a observar o único interdito ao qual se submete
em geral, o que determina sua vocação prosaica: ele pode, se julgar necessário,
conter poemas ou simplesmente ser ―poético‖. Quanto ao mundo real com que
mantém relações mais estreitas que qualquer outra forma de arte, permite-se-lhe
pintá-lo fielmente, deformá-lo, conservar ou falsear suas proporções e cores, julgá-
lo; pode até mesmo tomar a palavra em seu nome e pretender mudar a vida
exclusivamente pela evocação que faz dela no seio de seu mundo fictício. Se fizer
questão, é livre para se sentir responsável por seu julgamento ou sua descrição, mas
nada o obriga a isso: nem a literatura nem a vida pedem-lhe contas da forma como
explora seus bens. (ROBERT, 2007, p. 13-14)
36
36
ROBERT, Marthe. Romance das Origens, Origens do Romance. São Paulo: Cosac Naify, 2007. Intérprete
de Kafka, na França, e tradutora de importantes autores alemães, Marthe Robert, nesse que é um de seus estudos
interpretativos mais importantes, estabelece uma profunda relação entre o gênero romanesco e a própria vida,
levando às últimas conseqüências a análise psicanalítica do gênero e mapeando seu surgimento desde o século
XVII-XVIII, como Don Quixote e Robson Crusoé, até suas manifestações mais revolucionárias entre os
românticos e os realistas do século XIX, Robert mapeia o desenvolvimento de uma forma narrativa que, por sua
própria e relativa juventude, ainda não encontrou sua forma ou sua tradição mais bem definida.
113
Marthe Robert é precisa ao identificar no romance aquela que talvez seja sua essência
mais certa e menos questionável: a incrível capacidade de se auto-renovar, de se dar como
uma das formas poiéticas mais ativas. As infinitas possibilidades de combinação e a
incessante transformação de suas estruturas e formas de manifestação tornam o romance um
gênero em permanente estado de acabamento. Não é por acaso que os românticos alemães
elegeram o romance como uma de suas formas de expressão preferidas, assim como não é
casual que tenham se dedicado não a escritura dos romances, mas a sua crítica e, também à
teorização do gênero, como percebemos em alguns dos fragmentos de Novalis e Schlegel que
versam justamente sobre o Wilhelm Meister, de Goethe. O romance realista, ao preconizar a
exigência de uma forma representativa definida do mundo e da sociedade, foi duramente
questionado pelos movimentos de vanguarda que, de certo modo, viam nos postulados
estéticos do realismo uma perigosa armadilha literária: reduzir o nero a um veículo crítico-
social de natureza panfletária, limitando o alcance das reflexões e as intermináveis
possibilidades de sentidos que a narrativa arrasta consigo em nome de orientações políticas ou
ideológicas determinadas:
Em seu debate com Lukács, que na defesa do realismo criticava duramente a arte de
vanguarda, Brecht argumenta que a teoria do realismo era formalista, na medida em
que associava a sua escrita a apenas uma forma específica de romance. Para o
dramaturgo, o realismo não era uma questão de forma, pois os aspectos formais da
escrita teriam de se moldar às necessidades de ―apreender a funda a causalidade
social‖. Assim, Lukács, ao tomar o romance do século XIX como parâmetro
definidor do realismo, estaria defendendo como modelo de escrita uma forma
inadequada para expressar o momento histórico vivido pelos artistas e pelo público
no século XX. Por isso, Brecht propõe uma ampliação do conceito de realismo, pois
as transformações históricas exigem mudanças nas maneiras de a arte representá-las.
Portanto, as formas literárias são produtos históricos que buscam expressar
realidades também históricas, e não elementos universais e atemporais. Assim como
para Lukács, também, para Brecht a tarefa da literatura era a de denunciar e expor as
contradições da sociedade capitalista. Porém, para o dramaturgo, a maneira de fazê-
lo não deveria estar atrelada a uma opção formal predeterminada. (FACINA, 2004,
p. 22)
Sob muitos aspectos, o surrealismo de Breton desenvolveu-se na esteira de uma
adesão ideológica aos ideais e princípios do socialismo marxista, mas a forma de expressão
114
essa adesão não se deu a partir dos modelos realistas de representação, ao contrário, em Nadja
a ideologia revolucionária e libertadora do socialismo funde-se à percepção profunda da
individualidade, da subjetividade, do reconhecimento de que a vida apresenta-se como uma
tensão aberta e declarada entre as pulsões inconscientes, influência decisiva da psicanálise, e
as imposições, limitações, injustiças e conflitos que marcam as relações sociais. Assim, Nadja
pode ser entendido como o romance da revolução poética, ativa e inconsciente do homem em
direção a uma arte vital e uma vida estética. Breton faz da linguagem o lugar do homem ao
criar uma personagem que habita o espaço do mito, dada a sua natureza poética, e que busca
transcender o mundo e a realidade por meio da memória, do sonho, da expressão de seus
desejos inconscientes, de seus medos, de suas incertezas mais humanas. Assim, a ruptura com
a natureza formal do discurso é evidente e inquestionável. Isso permite entrever que, no
espaço da narrativa, um eu contraditório manifesta-se em sua plena interioridade,
contrastando com uma realidade não menos contraditória, estranha e equívoca. Como
veremos no próximo capítulo, a escritura fragmentária de Breton rompe com o modelo
narrativo realista, mas ainda acredita no poder redentor da linguagem, na palavra como uma
manifestação mítica, salvaguarda possível do humano.
Na literatura de extração s-moderna, essa ruptura com o modelo realista de
representação também acontece, mas a crença modernista na linguagem e sua força
transformadora, revolucionária, também perece. A literatura pós-moderna, em romances como
Vício, de Paulo José Miranda, A Ópera Flutuante, de John Barth e W ou a memória da
infância, de Georges Perec, problematiza ainda mais a questão das formas e modelos realistas
de representação porque levam às últimas conseqüências as dúvidas e impasses sobre o
alcance da linguagem, sobre suas manipulações, sobre o modo como ela constrói a realidade
de acordo com processos próprios, singulares, tornando cada vez mais difícil precisar o que
seria a verdade referencial, extralingüística, do mundo, do homem e do real.
115
Assim, nos romances modernistas, a fragmentação discursiva começa de dentro para
fora, ou seja, da própria palavra, da morfologia, da sintaxe, da construção frásica, em última
análise, da própria manifestação das forças psíquicas, inconscientes, que determinam a
grandeza do homem e a verdade da narrativa. Nos romances pós-modernos, não
experimentações radicais em nível lingüístico. A linguagem literária e o discurso permanecem
intactos, flertando inclusive com a correção estilística da linguagem realista: direta, objetiva,
clara, que seu intuito é afirmar a ideologia de que a referencialidade do mundo pode ser
refletida de forma translúcida pela própria linguagem, pelas palavras, pelo ritmo ordenado da
frase. As narrativas pós-modernas fragmentam-se a partir da própria estrutura do discurso
romanesco: as colagens, as superposições de vozes narrativas, os vazios e os silêncios que os
espaços em branco sugerem, as relações intertextuais e paródicas trazidas para o centro da
narrativa, as elipses e desarticulações que predominam no espaço estrutural do discurso, têm
como principal fuão empreender uma rasura no significado mesmo concebido pela obra. O
caráter metaliterário das narrativas já citadas aqui evidencia que a problemática entre a obra e
o mundo, o processo de significação e a realidade é muito mais profunda do que o modelo
realista permite supor. Os romances pós-modernos fragmentam-se como reação à idéia de
verdade, seja ela referencial, política, estética, cultural ou histórica, que as grandes ideologias
e as grandes narrativas do passado conceberam de forma totalizante, causalista e teleológica.
A problemática da representação e da referência na literatura s-moderna passa
necessariamente pela idéia de Fredric Jameson, em Pós-Modernismo - A Lógica Cultural do
Capitalismo Tardio, segundo a qual já
não se trata exatamente de ―ter‖ uma ideologia; na verdade, todo ―sistema‖ de
pensamento (não importa o quanto seja científico) é suscetível de uma
representação (De Man teria dito, em uma de suas mais atiladas mudanças
terminológicas, ―tematização‖), de tal forma que ela possa ser apreendida como uma
―visão de mundo‖ ideológica: é bem conhecido, por exemplo, que os mais
completos existencialismos ou niilismos que afirmam a falta de sentido da vida ou
do mundo e a falta de sentido das questões do ―significado‖ – também acabam
116
projetando sua própria visão significativa do mundo como um lugar sem significado.
(2007, p. 255)
37
Para Fredric Jameson, um dos grandes pensandores marxistas norte-americano, é
natural que seu esforço teórico em mapear as tendências culturais, políticas, artísticas,
estéticas e sociais da pós-modernidade configure-se como uma crítica ideológica a uma
característica que, de modo geral, outros intelectuais
38
marxistas entrevêem no momento s-
moderno: o esvaziamento, ou o suposto esvaziamento, ideológico, político e histórico dos
discursos da pós-modernidade. Para Jameson, a contemporaneidade sofre com as teorias pós-
modernas, pois, de forma geral, estas estariam empenhadas em afirmar a perda da
referencialidade, o descentramento da idéia de realidade, a rejeição aos modelos de
pensamento teleológicos, causalistas e totalizantes, sem, entretanto, conceber uma arte que,
como aquela do alto modernismo, estivesse interessada em pensar os destinos históricos,
políticos e sociais do homem. Assim, para Jameson,
o slogan ―representação designa agora algo muito mais organizado e semiótico do
que as antigas concepções de hábito ou mesmo os estereótipos de Flaubert (que
ainda são a despeito de sua precisão novelística, características gerais da consciência
burguesa). ―Representação é, a um só tempo, uma concepção vagamente burguesa
37
JAMESON, Fredric. s-Modernismo. A gica Cultural do Capitalismo Tardio. edição. São Paulo:
Editora Ática, 2007. Vale notar que Jameson, como um dos últimos grandes críticos de extração marxista da
segunda metade do século XX, fará uma crítica devastadora ao que os teóricos contemporâneos denominam de
pós-modernismo. Jameson identifica o s-moderno a uma manifestação da cultura contemporânea
ideologicamente vazia, orientada pela afirmação do consumo frenético, da glorificação irresponsável da
mercadoria, derivado diretamente do último estágio do capitalismo, que ele chama de tardio e que alguns autores
denominam de global ou transnacional, capaz de criar, ele mesmo, representações fragmentadas do mundo, da
mercadoria, da política, da sociedade, da cultura e de si mesmo, promovendo uma reificação profunda da vida
contemporânea e um embotamento absoluto da consciência crítica. Fredric Jameson toma o fenômeno pós-
moderno a partir de uma visada política e cultura. Nosso objetivo, aqui, é entender de que forma a fragmentação
discursiva romântica acabará por engendra, sob muitos aspectos, a escritura fragmentária pós-moderna. Indo
além, nossa preocupação é entender de que modo a escritura fragmentária pós-moderna e a conseqüente deriva
da representação que ela promove, abrindo-se à disseminação de sentidos, ao caráter polissêmico da linguagem e
à indecidibildiade significativa que ela traz consigo, surge como resultado de um esforço estético de desarticular
os modelos tradicionais de representação, criando uma forma narrativa ativa, flexível, instável, na qual a verdade
se transforma em algo móvel e cambiante, como as próprias certezas científicas, ideológicas, políticas ou
artísticas contemporâneas.
38
Podemos citar, aqui, Terry Eagleton, por exemplo, e uma de suas obras mais representativas: As Ilusões do
Pós-Modernismo. De forma bastante pontual, Eagleton também estabelece sua crítica ao pós-moderno a partir de
valores ideológicos que contrapõem os discursos da alta tradição crítica, teórica e filosófica do século XX, como
o marxismo e o materialismo histórico-dialético que se consolidaram como formas de explicação da dinâmica
social a partir desse período, afirmada relativização e negação desses mesmos discursos pela cultura pós-
moderna.
117
da realidade de um sistema de signos específico (no caso, um filme de Hollywood),
que agora tem que ser desfamiliarizado não pela intervenção da grande arte ou da
arte autêntica, mas por outra arte, através de uma prática de signos radicalmente
diferente. (JAMESON, 2007, p. 143)
Jameson percebe nas formas de representação da pós-modernidade apenas um modo
de reificação da lógica capitalista em seu estágio multinacional ou globalizante , surgida
como uma evolução do capitalismo de mercado e do imperialismo, que se desenvolveram ao
longo do século XIX e se consolidaram ao longo do século XX. De acordo com as idéias do
teórico norte-americano, as novas formas de circulação do capital determinam a lógica
cultural da pós-modernidade, criando um espectro social diluído, em choque diante da
ausência de valores, certezas ou perspectivas mais ou menos definíveis, modelado a partir dos
discursos imperativos da propaganda, da mídia, da própria ideologia consumista, que solicita,
constantemente, mudanças radicais da identidade individual e da representação do homem, da
experiência estética, da sociedade e do real:
Tal processo o é meramente uma questão de elaborar novos pensamentos, mas
sim algo bastante diferente e mais tangível, a produção de representações; e, com
efeito, a prioridade da análise literária e cultural sobre a investigação filosófica e
ideológica a esse respeito está precisamente na concretude e no detalhamento
completo que cada representação nos dá de seu próprio fracasso. O que é importante
é o fracasso da imaginação, e não suas realizações, uma vez que todas as
representações fracassam, e é sempre impossível imaginar. Isso equivale a dizer que,
em termos de posições políticas e ideológicas, todas as posições políticas radicais do
passado são equivocadas e isso precisamente porque fracassaram. (2007, p. 222)
Desse modo, Jameson compreende os discursos da s-modernidade como instâncias
alienadas em relação à história, à sociedade e à cultura contemporânea; incapazes de se
configurarem como modelos de resistência ao status quo determinado pela nova lógica
capitalista, que apaga fronteiras, subjuga sistemas políticos e econômicos, impõe a
reorganização de uma série de culturas subdesenvolvidas que não podem resistir à influência
de grandes sistemas financeiros, políticos e sociais hegemônicos. A s-modernidade, ao
relativizar o valor ou o peso das verdades estabelecidas pelos discursos totalizantes do
passado, sobremaneira o marxista, teria permitido ou facilitado o processo de reificação dos
118
valores e das verdades impostas pela sociedade de consumo, pós-industrial, através das
formas cada vez mais fragmentárias de representação que a s-modernidade supostamente
põe em jogo. A crítica de Jameson às manifestações artísticas e culturais do s-moderno
recoloca em cena os discursos acerca da alienação da arte e sua institucionalização como um
fenômeno de mercado, que muitos dos escritores s-modernos, por exemplo, publicam
suas obras como se fosse simples produtos de consumo alguns romances importantes, como
A Mulher do Tenente Francês, de John Fowles, ou O Livro de Daniel, de Doctorow,
apareceram em publicações de massa, como best-sellers quando se trata, talvez, de pensar
que o intrincado jogo fragmentário dessas narrativas e em relevo questões político-sociais
prementes, mas agora a partir de uma perspectiva em que o discurso realista, que se articula
em função da realidade extraliterária, buscando recompor o mundo na totalidade de suas
contradições, e as narrativas modernistas, que buscam reunificar as dimensões psíquicas
profundas do sujeito e do mundo pela linguagem, já não parecem possíveis, afinal, na
contemporaneidade, a realidade e o sujeito se constituem como elementos ainda mais
descontínuos e desarticulados do que os românticos alemães foram capazes de intuir.
Assim, com relação às artes particularmente no que diz respeito à literatura o
posicionamento de Jameson não deixa de revelar uma certa tendência luckasiana em
privilegiar as formas fechadas de representação, ou seja, aquele tipo de discurso absoluto, que
busca transformar esteticamente a realidade por meio de narrativas críticas, marcadas por uma
orientação realista que faz com que as obras busquem dar conta, em si mesmas, na
organização de seus enredos e no idéia de articulação orgânica dos trechos, partes e capítulos,
de todos os aspectos do real, recriando ao nível discursivo o que Marx chamaria de
superestrutura social. Assim, o foi por acaso que a crítica de ordem marxista tomou as
grandes obras realistas de fins do século XIX como modelos de arte literária e de
representação do mundo. O realismo crítico cria a ilusão de uma apropriação estética plena e
119
absoluta da sociedade ou do real que serve como ponto de partida para uma análise crítica
que irá privilegiar justamente uma abordagem histórica, contextual e sociológica do fenômeno
literário, tomando a obra como uma manifestação do tempo e das forças sociais que lhes são
exteriores.
O problema central do modelo realista de representação é justamente esse seu caráter
modelar que, ao esconder suas regras de construção, ao escamotear suas técnicas discursivas e
o modo como seleciona, recorta e reorganiza os dados por que não dizer fatos? extraídos
da realidade empírica que lhes servem como suporte narrativo, o faz em vistas de criar um
relato totalizante, de aspectos documental, histórico e crítico, no qual a verossimilhança age
como força idealizadora de uma narrativa no qual as relações entre o homem e o meio social
sociedade apareceriam de forma transparente, neutra e objetiva, vinculando uma idéia de
representação universalizante da verdade. Assim, paradoxalmente, a narrativa realista extrai
sua legitimidade, seu princípio de verdade, de um modelo discursivo que seleciona, escolhe,
recorte, avalia, usa ou descarta os elementos factuais, ao mesmo tempo em que elide esse
processo, ou seja, como a representação não pode atingir a realidade em toda sua lisura e
extensão, acaba por se constituir de um conjunto de elementos, pormenores, detalhes,
particularidades e minúcias que, por meio da descrição, ganham aos olhos do leitor uma
dimensão referencial, criando o efeito de realidade. Representação manipulada, manipulação
da verdade. Assim,
o ―pormenor concreto é constituído pela colusão direta de um referente e de um
significante: o significado fica expulso do signo e, com ele, evidentemente, a
possibilidade de desenvolver uma forma do significado, isto é, na realidade, a
própria estrutura narrativa (a literatura realista é, por certo, narrativa, mas é porque
nela o realismo é apenas parcelar, errático, confinado aos ―pormenores‖, e porque a
narrativa mais realista que se possa imaginar desenvolve-se segundo vias irrealistas).
É a isso que se poderia chamar ilusão referencial. A verdade dessa ilusão é a
seguinte: suprimido da enunciação realista a título de significado de denotação, o
―real‖ volta a ela a título de significado de conotação [...] é a categoria do ―real‖ (e
não os seus conteúdos contingentes) que é então significada; noutras palavras, a
própria carência do significado em proveito só do referente torna-se o significante
mesmo do realismo: produz-se um efeito de real, fundamento dessa verossimilhança
120
inconfessa que forma a estética de todas as obras correntes da modernidade.
(BARTHES, 2004, p. 189-90)
Assim, ao criticar os modelos de representação da s-modernidade como formas de
manifestação discursiva da lógica hegemônica do capitalismo contemporâneo, Jameson
propõe um pensamento marcadamente ideológico, capaz de se opor ao esvaziamento histórico
e político que alega caracterizar o discurso s-moderno. O teórico norte-americano entrevê
no resgate da totalidade crítico-realista um andoto ao estado de coisas aberto pela s-
modernidade. É o que sugerem Iná Camargo Costa e Maria Elisa Cevasco, no prefácio ao
Pós-Modernismo, ao afirmarem que Jameson nos ensina que ―a verdade de nossa vida social
como um todo nos termos de Lukács, como uma totalidade é cada vez mais irreconciliável
como nossos modos de representação‖, o que permite concluir que esse estado de coisas pós-
moderno nos conduz a uma proliferação de teorias do fragmentário, que acabam
simplesmente por duplicar a alienação e reificação do presente (2007, p. 6). Na verdade, a
narrativa fragmentária presente em alguns romances pós-modernos tem como principal
objetivo colocar sob suspeita o caráter atemporal, modelar e universal das formas realistas de
representação, propondo um novo tipo de relato, que tenha a função de deslegitimar o que
Jean-François Lyotard, em O Pós-Moderno, denomina de metarrelato, isto é, toda forma de
discurso que, seja no domínio da ciência, da literatura, da teoria, da crítica da filosofia,
recorre explicitamente a algum grande relato, como a diatica do espírito, a hermenêutica do
sentido, a emancipação do sujeito racional ou trabalhador, o desenvolvimento da riqueza‖
(1990, p. 16)
39
, enfim, tudo o que a ciência moderna usa como estratégia para legitimar-se.
Os metarrelatos são discursos fundamentados, então, no argumento de autoridade, sendo que
esta é alcançada a partir da tradição a qual esses discursos se vinculam e a conseqüente
reapropriação destes ao longo do tempo.
39
LYOTARD, Jean-François. O Pós-Moderno. 3ª edição. Reio de Janeiro: José Olympio, 1990.
121
O problema na crítica de teóricos como Fredric Jameson ou Terry Eagleton parece
estar no fato de que associam todas as idéias e todas as teorias do fragmentários-moderno a
um mero reflexo despolitizado ou situacionista de certas tendências do pensamento pós-
moderno, que colaboraria com os postulados e com a hegemonia do capitalismo s-
industrial, em que tudo, inclusive a arte, se transforma num produto de consumo de uma
sociedade de massas, controlada pela ideologia da propaganda e da alienação mercadológica.
A fragmentação dos discursos, que detona uma crise no próprio conceito de representação,
exe a impossibilidade de uma apreensão plena do real, mas não necessariamente contribui
para a alienação da consciência individual ou coletiva de nosso tempo, nem para a
reificação do capitalismo monopolista e multinacional que caracteriza o espectro político,
econômico e social da contemporaneidade. O que equivale a dizer: nem toda forma de
representação deve conter as estruturas marcadas e notadamente crítica das obras referenciais
ou modelares do realismo literário ou do que Jameson chama de alto modernismo.
A representação fragmentária do real ou do mundo não pode ser o alvo indiscutível da
crítica totalizante, que afirma o fragmentário do discurso pós-moderno como uma
assimilação, uma aceitação e uma forma reificada de transpor, para o domínio do pensamento
e da criação estética, a multiplicidade do real, concebida a partir das ilusões do capital, da
propaganda, da circulação incontrolável de imagens e informações, da mídia, da sociedade de
consumo. A crítica laudatória da representação nas-modernidade ignora justamente o
potencial crítico que essa aparente adesão à realidade construída pela lógica do capitalismo
tardio traz em si. Fragmentar o discurso é uma forma de fazer da representação uma fratura
crítica que toma a própria descentralização do real como ponto de partida para compreendê-lo
e questioná-lo. O discurso representativo, na pós-modernidade, não admite a ilusão de
entrever, no fragmentário, uma forma de resgatar a totalidade perdida como outrora
vislumbraram os românticos alemães. Trata-se, sim, de encarar a realidade como ela é: um
122
lugar cada vez mais desreferencializado, que não permite distinguir um centro ou um núcleo
mais ou menos definível. Para um referencial estilhaçado, fragmentário e distorcido, uma
representação igualmente descentrada ou ex-cêntrica que se constrói como um modo de
reação, de resistência também, e não só de reificação. Desse modo,
A função narrativa perde seus atores (functeurs), os grandes heróis, os grandes
perigos, os grandes périplos e o grande objetivo. Ela se dispersa em nuvens de
elementos de linguagem narrativos, mas também denotativos, prescritivos,
descritivos etc., cada um veiculando consigo validades pragmáticas sui generis.
Cada um de nós vive em muitas destas encruzilhadas. Não formamos combinações
de linguagem necessariamente estáveis, e as propriedades destas por nós formadas
não são necessariamente comunicáveis. (LYOTARD, 1990, p. xvi)
Ao fragmentar a narrativa, deslocando o real de seu centro e perturbando
profundamente o pacto ficcional realista e a ilusão referencial que este solicita, o romance
pós-moderno dá-se como puro jogo de linguagem, como metadiscurso que encena sua própria
construção, de modo auto-reflexivo, fraturando a ordem narrativa do realismo, que se
fundamentava, antes de tudo, no ideal de um enredo linear, cronológico e ornico, vivido por
personagens psicologicamente consistentes, agindo e reagindo diante das coisas, do mundo e
dos acontecimentos de acordo com o tipo que representam, de acordo com seu caráter, classe
e posição social. Num romance como A Ópera Flutuante, de John Barth, por exemplo, temos
a história de um advogado, Todd Andrews, que resolve escrever um relato sobre os motivos
que o levaram, anos antes, a abrir mão da decisão de suicidar-se. O problema é que o motivo
central da narrativa vai sendo progressivamente adiado a partir de um conjunto de digressões
que se amalgamam ao relato e que têm, entre outras funções, revelar as limitações do
narrador, sua incapacidade crônica de sustentar um relato de natureza realista, linear e
objetivo. Barth concebe uma narrativa que vai se construindo diante do leitor e que, graças a
perspectiva enviesada do narrador, põe em dúvida a veracidade do discurso.
John Barth fragmenta a narrativa com o propósito de questionar, de dentro do próprio
discurso literário, a ilusão referencial. Cria um narrador-personagem cuja vida segue
123
lentamente, em câmera lenta, sem grandes acontecimentos, sem atitudes heróicas, sem sequer
a capacidade de olhar de forma consistente para a própria existência e extrair dela um
significado, um sentido ou uma justificativa mais profunda. Assim, passa os dias adiando-se,
realizando as mesmas tarefas, os mesmos itinerários, as mesmas conversas e gestos, e olhando
ao redor, para os outros e para si mesmo, com um cinismo desiludido que as ironias e
imposturas digressivas, que a reflexão sobre as limitações de seu relato, o é capaz de
dissimular. Não , desse modo, uma história sendo contada: o narrador prefere conceber
desconversas, impasses e incertezas sobre sua própria compreensibilidade como uma
estratégia para não ter de se dizer de fato, de se revelar, de atingir o núcleo duro de sua vida
comezinha, medíocre, sem relevo. Assim, para escamotear-se a si mesmo, o narrador faz com
que o interesse por sua narrativa recaia sobre a sua própria tessitura, criando um relato
puramente textual em que o maior atrativo está, justamente, na exposição sistemática dos
mecanismos de construção discursivos e nas armadilhas estruturais que eles criam.
Para Jameson, a crítica ao pós-moderno passa, necessariamente, por esse tipo de
discurso e o modo como eles rompem com a representação referencial do mundo, alienando-
se em si mesmos:
O problema da referência tem sido singularmente deslocado e estigmatizado pela
hegemonia de rios discursos pós-estruturalistas que caracteriza o momento
presente (e com ele qualquer coisa que lembre ―realidade‖, ―representação‖,
―realismo e congêneres até a palavra história tem um r); somente Lacan
continuou sem nenhum pudor a falar sobre o Real‖ (definido, em todo caso, como
uma ausência). As soluções filosóficas respeitáveis do problema de um mundo
externo real e independente da consciência são todas tradicionais, o que significa
que mesmo que elas possam ser logicamente satisfatórias (e nenhuma delas jamais
foi muito satisfatória de um ponto de vista lógico), elas não são candidatas
adequadas para participar das polêmicas contemporâneas. A hegemonia de teorias da
textualidade ou da textualização significa, entre outras coisas, que o ingresso para a
esfera pública em que essas questões são debatidas é um acordo, tácito ou o, com
as proposições básicas de uma problemática geral, algo que as questões recusam de
antemão. (2007, p. 115-6)
A questão da referência ou a noção de referencialidade não pode ser absolutamente
descartada no livre jogo da representação que o pensamento estético da s-modernidade faz
124
circular. Não se pode admitir sem restrições a crença na pura textualidade ou na circulação
irrefreável de sentidos que emanam das estruturas internas da obra, como se cada signo fosse
uma instância completamente autônoma, desferencializada, sem qualquer dimensão ou
tendência mais substancializada, ideológica, política, cultural ou esteticamente marcada. Toda
obra acena para uma determinada instância referencial, ou seja, toda obra cria sua própria
referencialidade, ao mesmo tempo em que se deixa marcar por um conjunto de referências
que lhe são alheias: posições políticas, ideologias, contexto social, econômico e cultural, a
determinação histórica todos esses fatores estão sobremaneira presentes no processo de
criação estética e o podem ser ignorados em nome da afirmação plena da textualidade pura.
Estamos, aqui, diante da problemática do signo e sua arbitrariedade, usada de forma
consciente pelos escritores pós-modernos:
Era uma vez uma coisa chamada signo que, quando apareceu, na madrugada do
capitalismo e da sociedade afluente, parecia relacionar-se, sem nenhum problema,
com seu referente. Esse apogeu inicial do signo o momento da linguagem
referencial ou literal, ou das asserções não-problemáticas do assim chamado
discurso científico deu-se por causa da dissolução corrosiva das formas mais
antigas da linguagem mágica ou por uma forma que chamarei de reificação, uma
força cuja lógica é a da separação violenta e da disjunção, da especialização e da
racionalização, de uma divisão do trabalho taylorista em todos os domínios.
Infelizmente, essa força que fez surgir a referencialidade tradicional seguiu
adiante, sem se deter por nada, que é a própria lógica do capital. Então, esse
primeiro momento de decodificação ou do realismo não pôde durar muito tempo;
por uma inversão dialética, ele mesmo se tornou, por sua vez, objeto da força
corrosiva da reificação, que entra no domínio da linguagem para separar o signo do
referente. Essa disjunção não abala completamente o referente, ou o mundo objetivo
ou realidade, que ainda tem uma existência esmaecida no horizonte, como uma
estrela diminuída ou um anãozinho vermelho... Mas sua grande distância do signo
permite que este viva um momento de autonomia, de uma existência relativamente
livre e utópica, se comparado com seus antigos objetos. Essa autonomia da cultura,
essa semi-autonomia da linguagem, é o momento do modernismo e do domínio do
estético que replica o mundo sem ser totalmente parte dele, desse modo adquirindo
certo poder negativo ou crítico, mas também uma certa futilidade do outro mundo.
(2007, p. 117-118)
Neste momento, Jameson coloca em cena a narrativa do modernismo para revelar que,
ainda que as grandes obras desse período tivessem usado todas as suas forças para romper
com os modelos realistas de representação, o fizeram em busca de uma afirmação crítica do
sujeito em sua relação profunda com a linguagem e de uma busca declarada por um outro
125
modelo de mundo, mais coerente com o espírito transformador e revolucionário que os
movimentos de vanguarda propunham. O romance Nadja, de André Breton, cria o mito da
linguagem como o único caminha para re-significar o homem, promovendo um mergulho
vertiginoso e abissal na consciência do indivíduo revelando sua forma pessoal, singular e
particular de atribuir sentidos ao mundo, representando-o a partir das complexas relações,
efeitos e sensações que ele provoca na subjetividade ao mesmo tempo em que esta o modifica
em sua forma ativa de apresen-lo. É o ideal de poiésis como força produtora de sentidos.
Assim, de acordo com Jameson, o romance modernista não rompe drasticamente com a
representação referencial, mas apenas a suplanta, de forma crítica ou negativa, quando
subverte, pela livre expressão do inconsciente e sua percepção fragmentada do real, a lisura
referencial do signo solicitando sua dimensão simbólica o que seria uma forma de lutar
contra a reificação do indivíduo. No romance pós-moderno, no entanto,
a força da reificação que fora responsável por esse novo momento tampouco pára aí:
em outro estágio, potencializada, em uma espécie de reversão da quantidade pela
qualidade, a reificação penetra o próprio signo e separa o significante do significado.
Agora a referência e a realidade desaparecem de vez, e o próprio conteúdo o
significado é problematizado. Resta-nos o puro jogo aleatório dos significantes
que nós chamamos de pós-modernismo, que o mais produz obras monumentais
como as do modernismo, mas embaralha sem cessar os fragmentos de textos
preexistentes, os blocos de armar da cultura e da produção social, em uma nova
bricolagem potencializada: metalivros que canibalizam outros livros, metatextos que
fazem colagem de pedaços de outros textos tal é a lógica do pós-modernismo em
geral, que encontra uma de suas formas mais fortes, mais originais e autênticas na
nova arte do vídeo experimental. (2007, p. 118)
Por um lado, então, a questão da referência ou a noção de referencialidade não
pode ser absolutamente descartada no livre jogo da representação que o pensamento estético
da pós-modernidade faz circular. Não se pode admitir sem restrições a crença na pura
textualidade ou na circulação irrefreável de sentidos que emanam das estruturas internas da
obra, como se cada signo fosse uma insncia completamente aunoma, desferencializada,
sem qualquer dimensão ou tendência mais substancializada, ideológica, política, cultural ou
esteticamente marcada. Toda obra acena para uma determinada instância referencial, ou seja,
126
toda obra cria sua própria referencialidade, ao mesmo tempo em que se deixa marcar por um
conjunto de referências que lhe são alheias: posições políticas, ideologias, contexto social,
econômico e cultural, a determinação histórica todos esses fatores estão sobremaneira
presentes no processo de criação estética e não podem ser ignorados em nome da afirmação
plena da textualidade pura.
Por outro lado, entretanto, também não se pode cair na armadilha de um realismo
totalizante, que faria da obra um reflexo de uma realidade imediata e empiricamente dada ou
observável, como fizeram muitos dos autores modelares do grande movimento realista da
segunda metade do século XIX. Autores como Gustave Flaubert, Léon Tolstoi, Eça de
Queirós, Emile Zola, que conceberam suas obras como o esforço reflexivo e interpretativo de
uma certa realidade na qual estavam inseridos e que julgavam emergencial descrever,
analisar, julgar e representar da forma mais absoluta e total possível. Não é esse tipo de
referencialidade que está em discussão aqui: essa referencialidade objetiva, concreta, que
serviria de modelo à criação artística é um equívoco condenável. E é apenas em relação a esse
equívoco que a idéia da obra como textualidade pura emerge nas teorias do s-moderno,
porque qualquer pretensão a uma apreensão profunda do real, a uma representação totalizante
do mundo esbarra nos limites mesmo da linguagem e no caráter de construto que a envolve e
à obra como um todo. Dessa forma, é sempre inocente acreditar que a linguagem seja
verdadeiramente capaz de representar o real em seus múltiplos e nunca inequívocos aspectos.
A linguagem, então, é sempre um médium entre o referencial concreto e os sentidos que ela
põe em jogo no interior da obra.
A partir dessa perspectiva da linguagem como um médium -, algumas tendências da
crítica contemporânea querem demonstrar que a linguagem diante do real, das coisas e do
mundo nada pode ou muito pouco, limitada que está a si mesma, às suas próprias e
inquebrantáveis regras, ao universo de sentidos que concebe, mas que não se adéqua, nunca, à
127
qualquer referencial concreto. Assim, a linguagem transcende o real como uma segunda
potência deste, como o espaço, o lugar em que o mundo re-acontece ou é re-significado a
partir do próprio jogo semântico e estrutural da linguagem. A referencialidade, então, está no
cerne da própria linguagem. Essa é a perspectiva contemporânea acerca das relações entre a
linguagem e o real, ou o que chamamos de referencial concreto.
Não se trata de pensar a questão estética essencial da arte a sua potencialidade de
reproduzir o mundo, a realidade, as coisas tais como se nos apresentam em termos
puramente miméticos ou, o que é ainda mais questionável, em termos puramente imitativos. É
claro que a noção mesma de representação como uma forma da arte atribuir sentidos ao
mundo por meio da referencialidade concreta que este denotaria se deixa atravessar pelo
conceito de mímeses e de imitação, mas de uma forma radicalmente nova e distinta do ideal
platônico ou neoplatônico de cópia ou reprodução das coisas, das idéias ou dos sentimentos
que compõem o universo de sensações e experiências humanas, porque é justamente a partir
desse conjunto de sensações e experiências, idéias e conceitos que o artista reconstrói o real,
num interminável processo de subversão de sentidos. É no interstício desse jogo que atribui e
subverte os sentidos, dessa tentativa de reaver a concretude do mundo por meio da linguagem,
que o ideal clássico de representação ganha contornos e busca fixar-se. E é a partir da
descrença moderna nesse mesmo ideal que a representação entra em crise e passa a ser, ela
mesma, uma forma de subverter as regras do jogo representativo.
A linguagem estética que o século XX colocará em cena é uma linguagem que,
lentamente, vai evidenciando os mecanismos, os meandros e as normas das quais a
representação artística lança mão para legitimar-se enquanto uma forma de reaver e re-
significar o mundo, mas também e de modo paradoxal denunciando-se como um construto
da própria linguagem. Assim, afirma-se com os modernos uma tendência da própria
linguagem: o conflito entre a reelaboração estética do referencial concreto e a auto-
128
referencialidade da própria linguagem artística, sobremaneira a literária. De certa forma, esse
conflito sempre esteve presente no interior da obra de arte literária, mas é a partir da
modernidade que ele se exacerbará, no início de modo controlado, depois, entre os autores da
pós-modernidade, como uma disseminação absoluta. A auto-referencialidade da literatura
moderna permite que a obra instale, em seu próprio interior, uma dimensão teórica e crítica
que, a um tempo, lhe justifica e a excede como simples descrição ou re-organização do
mundo, das coisas, da realidade que busca refletir. Desse modo, a auto-referencialidade da
obra literária acaba por conduzir a literatura a uma condição de crítica de seu objeto primeiro
o real e de autocrítica de si mesma, desvelando os limites da criação e seu confronto
deliberado com o mundo e as coisas.
De certa forma, a literatura auto-referencial, que faz com que a obra tenha uma
dimensão crítica consciente e deliberada, existe desde as propostas teóricas e estéticas dos
primeiros românticos alemães. Novalis e Schlegel abriram caminho para a união, a comunhão
e o hibridismo de um discurso artístico que trouxesse consigo sua própria legitimidade
criativa e teórica. São obras fragmentárias que fundem o discurso crítico-teórico à capacidade
verbal-criadora do artista, inaugurando uma nova maneira de perceber e de conceber a criação
literária. A modernidade e sobremaneira a pós-modernidade irá acentuar drasticamente
esse registro crítico, esse jogo auto-referencial que a literatura põe em circulação como crítica
e crise das potencialidades da linguagem em representar o mundo, as coisas e o real a partir de
uma verdade referencial plena, absoluta e inalienável. A pós-modernidade evidencia parte do
caráter de construto da linguagem, que se refletiria nos mais variados discursos: político,
cultural, econômico, social, filosófico e, sobretudo, estético.
Assim, o conceito filosófico de verdade, por exemplo, ganha uma dimensão volátil,
altamente relativizada e relativista, porque sobredeterminada pelos mecanismos estéticos e
retóricos dos quais a linguagem lança mão no processo de articulação discursiva. Trata-se de
129
uma tentativa de liberar o conceito ou a noção de verdade de qualquer marca indelevelmente
metafísica, ou seja, a verdade é um saber que se produz a partir das malhas do discurso, uma
tessitura que se fia no interior mesmo da linguagem. Já não mais uma verdade certa,
absoluta, incontestável no sentido clássico do termo, uma verdade última alcançada por um
pensamento totalizante e teleológico. A verdade como produção deixa de ser parte da
experiência reveladora de um pensamento causalista e teleológico, ou epifânica de um
discurso mítico, metafísica, poético. Ela passa a ser uma elaboração discursiva que emerge da
linguagem e de suas relações estruturais, internas, tão relativa quanto a disposição dos signos,
das construções retóricas e da disseminação calculada dos sentidos. Desse modo, segundo o
pensador italiano Gianni Váttimo, em O Fim da Modernidade, é preciso ―se abrir para uma
concepção o-metafísica da verdade, que a interprete não tanto a partir do modelo positivista
do saber científico, quanto, por exemplo (segundo a proposta característica da hermenêutica),
a partir da experiência da arte e do modelo da retórica.‖ (1996, XVIII XIX). A problemática
que se instaura diz respeito ao risco de tomar esse modelo em termos absolutos: a total
volatilidade da noção de verdade e, por conseqüência, o progressivo esvaziamento de sentidos
que essa mesma noção deveria fazer circular. Isso porque o filósofo italiano discute essa
questão às últimas conseqüências:
em termos muito gerais e com um conjunto de significados que, aqui, são apenas
inicialmente explorados, pode-se dizer provavelmente que a experiência pós-
moderna (isto é, heideggerianamente, pós-metafísica) da verdade é uma experiência
estética e retórica; isso, como se verá nas páginas que seguem, nada tem a ver com a
redução da experiência da verdade a emoções e sentimentos ―subjetivos‖, mas,
antes, leva a reconhecer o vínculo da verdade com o monumento, a estipulação, a
―substancialidade‖ da transmissão histórica. (1996, p. XIX)
Se a verdade, na pós-modernidade, afirma-se como uma experiência ―estética ou
retórica‖, ou seja, um conceito liberado de qualquer substancialidade, um produto que se
constrói no interior dos discursos, através dos mecanismos da linguagem, o que dizer, então,
de conceitos ainda mais ligados aos artifícios da linguagem, como os de mundo, coisa, ser,
130
referencial concreto e representação? Sob o prisma das perspectivas teóricas da pós-
modernidade, estes conceitos o drasticamente volatilizados e podem ser entendidos em
função das próprias dimensões críticas que trazem consigo e que instauram no interior dos
discursos sob os quais se dobram. É assim, por exemplo, que a crítica contemporânea sobre o
ideal estético da representação do mundo, da realidade, das coisas e do próprio homem,
transforma-se numa crise (ou num impasse) da própria representação. É assim que
nessa perspectiva, um dos cririos de avaliação da obra de arte parece ser, em
primeiríssimo lugar, a capacidade de a obra pôr em discussão seu estatuto, seja de
forma direta e, com freqüência, então, um tanto rudimentar, seja de modo indireto,
por exemplo: como ironização dos gêneros literários, como reescrita, como poética
da citação, como uso da fotografia entendida não como meio para a realização de
efeitos formais, mas em seu significado puro e simples de duplicação. (VÁTTIMO,
1996, p. 42-43)
Realmente, na s-modernidade, a crise da representação desvela-se como uma crítica
deliberada da obra sobre si mesma, uma crítica implacável muitas vezes, que se fundamenta
na crise da verdade referencial, concreta, definível, manifestada na revelação auto-referencial
do jogo estético, lingüístico, estrutural e de pensamento que se precipita a partir da linguagem.
Nossa proposta, nos capítulos que seguem, é passar pela questão da estética da fragmentação
e pela problemática da linguagem no interior do jogo da representação em dois momentos
distintos da narrativa: a partir da modernidade, mais especificamente da manifestação da
vanguarda surrealista e da afirmação do mito da linguagem como lugar essencial do
indivíduo, como vemos em Nadja, de And Breton; e no s-modernismo, com suas
narrativas que instabilizam o ideal realista de representação ao mesmo tempo em que se
articulam como discursos metaliterários, ou seja, que rompem com a preocupação referencial
em nome de uma auto-reflexão profunda, desvelando-se como construções deliberadas, mas
sobre as quais o escritor jamais pode exercer um controle total e absoluto.
É o que veremos em romances como A Ópera Flutuante, de John Barth, W ou a
memória da infância, de Georges Perece, mas, sobretudo, em Vício, do escritor português
131
Paulo JoMiranda, no qual encontramos o suposto diário dos últimos dias de vida do poeta
realista Antero de Quental. Em todos esses romances percebemos a presença do discurso
memorialístico no qual se destaca a questão da escritura fragmentária e as relações
estabelecidas entre fragmentação discursiva bastante característica dos relatos
memorialísticos e as vacilações, equívocos e imposturas da memória como fonte do gesto
escritural. O fragmento, então, representaria a dissolução formal das lembranças e
recordões de narradores que, ao empreender o resgate de suas vidas e de suas experiências
individuais, se vêem as voltas com a problemática da construção discursiva, da legitimidade
ou da necessidade da escritura, das incertezas da memória, que oscila entre a afirmação dos
fatos, da vida, da existência, e o esquecimento mais sincero ou simulado, colocando em jogo
questões fundamentais à literatura contemporânea, como as de autoria, de verdade referencial
e verdade da obra, de sujeito narrativo excêntrico e estilhaçado, que já não se reconhece em si
mesmo na medida exata em que concebe o mundo, a realidade e o espaço social não mais
como representações unas e indivisíveis, mas sim como resultado de uma percepção
descentralizada e fragmentária que não se acredita capaz de tocar o real em toda a sua
inteireza.
132
3. A MODERNIDADE NA ALÇA DE MIRA.
3.1. As Últimas Injunções Oraculares: De Baudelaire a Breton
É possível afirmar que ao formularem os princípios da arte como atividade auto-
reflexiva, da criação que solicita seu próprio referencial teórico e sua imediata auto-crítica, da
poiésis como produção ativa do espírito que deveria se manifestar nos mais diferentes gêneros
literários ou modelos discursivos, promovendo uma verdadeira fragmentação das formas de
expressão e uma profunda hibridização dos gêneros, Novalis e Schlegel tenham, sob muitos
aspectos, aberto o caminho para a afirmação da modernidade estética, que se consagraria a
partir da segunda metade do século XIX e que se estenderia para além das fronteiras e limites
das vanguardas, nas primeiras décadas do século XX. Quando pensaram o fragmento literário
como forma de criação disjuntiva em relação aos modelos discursivos fechados, totalizantes e
teleológicos concebidos pela tradição cssica, os românticos alemães anunciaram a
originalidade como um valor a ser buscado e situaram a arte no contexto do tempo, afirmando
aquela que seria a grande tensão da modernidade: a criação como resultado de uma síntese
conflituosa entre a atemporalidade universalizante sempre desejada e a condição histórica da
qual resulta.
Essa tensão fica evidente na aproximação da poesia com o pensamento filosófico do
idealismo alemão ou, como vimos em outros momentos, da criação estética com o ideal
crítico kantiano. Assim, os românticos irão formular a idéia de que ―o mundo precisa ser
romantizadoe que isso é possível quando o artista dá ―ao comum um sentido elevado, ao
costumeiro um aspecto misterioso, ao conhecido a dignidade do desconhecido, ao finito um
brilho infinito‖ (NOVALIS, 2004, p. 142). Romantizar o mundo nada mais é do que criá-lo a
partir de uma arte que se desdobra em pensamento e que implica, como afirma Eloá Heise em
Novalis: o mundo romantizado, ―um gesto de reflexão, uma consciência mais elevada da obra
133
que, como conhecimento crítico, surge através do ato de refletir‖ e que se realiza dentro da
própria obra‖ (1994, p. 28)
40
. A modernidade romântica é esta em que a obra mina os modelos
estabelecidos de representação do mundo e do pensamento em nome de uma liberdade
criadora que o se permite condicionar por qualquer tipo de princípio ou normatividade
reguladora, e que se apresenta como um projeto em devir. O fragmento literário, por seu
inacabamento característico, significa a realização formal desse projeto já que ―esta forma de
conhecimento crítico que nasce da necessidade de questionar o contingente, pode transformar-
se em um processo sem fim, uma estrutura aberta, que permite a potenciação (Potenzierung)
da obra, introduzindo, assim, um elemento dinâmico na arte‖ (HEISE, 1994, p. 28).
A escritura fragmentária realiza esse ideal de arte dinâmica, de obra que se dá, a um só
tempo, como acontecimento, presentificação, mas que não se extingue em si mesma, porque
se pulveriza, se pluraliza, se desdobra em busca de uma totalidade que se impõe ao artista
como uma promessa irrealivel e, por isso mesmo, sempre buscada. O fragmento é a voz a
partir da qual fala a modernidade, que esta surge, igualmente, como projeto, promessa em
perspectiva, ativa, dinâmica, disjuntiva e sempre inacabada:
A fala do fragmento ignora a suficncia, ela é insuficiente, ela não se diz com vistas
a si própria, ela não tem o seu conteúdo por sentido. Mas tampouco compõe com os
outros fragmentos para formar um pensamento mais completo, um conhecimento de
conjunto. O fragmentário não precede o todo, mas se diz fora do todo e depois dele.
(Blanchot, 2007, p. 116)
41
O fragmento e, por extensão, a própria escritura fragmentária, significa uma forma de
resistência ao ideal de unidade e síntese que a tradição estética e filosófica sempre buscou.
Além disso, ele coloca em jogo a questão da originalidade e da adequação das formas de
expressão às transformações históricas promovidas pela modernidade. Assim
40
In: HEISE, Eloá (org.). Fundadores da Modernidade na Literatura Alemã. São Paulo: FFLCH-USP, 1994.
41
BLANCHOT, Maurice. A Conversa Infinita A Experiência Limite. (V. 2). São Paulo: Escuta, 2007.
134
os textos críticos do românticos representam verdadeiros manifestos contra os
preceitos normativos da Antiguidade, iniciando uma tradição que se estende até os
nossos dias: a conjugação entre teoria e prática, entre poesia e poética. (HEISE,
1994, p. 28)
A criação poética, para os românticos, deveria se dar, a despeito de seu caráter
simbólico, mágico, subjetivo e interiorizado, como uma tarefa do pensamento, como um
exercício do intelecto. Essa dimensão auto-reflexiva da arte, proposta pelos românticos, já
insere a criação na dimensão contraditória da modernidade porque
os românticos, empenhados na conquista de uma ―universalidade progressiva‖,
puseram a poesia em contato com a filosofia e a religião, além de buscarem a
conjunção entre poesia e prosa, inspiração e crítica, poesia de arte e poesia da
natureza, arte e vida, literatura e sociedade. À exigência do rigor intelectual aliaram
a sagrada espontaneidade da poesia, e à teoria da criatividade poética, os exercícios
transcendentais. (MACIEL, 1999, p. 19)
42
Novalis e Schlegel, ainda que não tenham falado necessariamente em termos de
modernidade, conceberam um modo de pensar e refletir sobre a arte que acena para as
contradições modernas. Na verdade, quando consideramos alguns elementos biográficos de
um poeta como Novalis, por exemplo, percebemos a dimensão dessas contradições. Novalis
morreu com 29 anos e, dada sua profícua atividade poética, acabou sofrendo uma forte
canonização por seus amigos de Jena, como Ludwig Tieck e Friedrich Schlegel. Ficou
conhecido como o poeta da Flor Azul‖, elemento simbólico de sua narrativa poética
intitulada Heinrich Von Ofterdingem, na qual o poeta-protagonista parte em busca de uma flor
divisada em sonhos e que trazia consigo, no seu interior, a imagem emblemática de um rosto
que aparecia e desaparecia de forma difusa. Trata-se, alegoricamente, da própria busca pela
poesia, do reconhecimento da arte como única realidade possível, do desejo de realizar-se
numa vida estética, ideal. Além da imagem do poeta da ―Flor Azul‖, Novalis também foi
descrito como o espírito melancólico e amoroso que deixa entrever em seus Hinos à Noite,
dedicados à noiva, Sophie von Kuhn, morta precocemente aos dezesseis anos. Ambas as
42
MACIEL, Maria Esther. Vôo Transverso. Poesia, Modernidade e Fim do Século XX. Rio de Janeiro: Sette
Letras, 1999.
135
descrições do poeta não deixam de ser verdadeiras, mas elas têm de conviver, ainda, com uma
terceira e contraditória imagem: a do homem comum, prático, geólogo e funcionário público,
que passou os últimos anos de sua vida trabalhando como engenheiro de minas e que
conciliou, durante seus poucos anos de vida, criação artística e interesse científico, poesia e
pesquisa, existência prática e estética, que o leva a representar
o drama típico dos poetas modernos, homens descrentes e cansados da civilização,
ansiando por um retorno atávico a fases anteriores à cultura, ao mesmo tempo em
que são importantes expoentes dessa mesma cultura. Portanto, temos aqui um
exemplo do destino do escritor modernista, um artista sob a tensão da modernização.
(HEISE, 1994, p. 29)
Desse modo, é justo afirmar que os românticos alemães, oscilando entre crítica e
criação, poesia e filosofia, desejo de unidade e dispersão fragmentária, busca pelo absoluto e
reconhecimento do contingente, do provisório, do efêmero que se dissemina de acordo com o
espírito do tempo e que não se pode evitar, antecipam o ideal de modernidade estética como a
relação direta do artista não apenas com o mundo, com o qual, aliás, gostaria de romper, nem
simplesmente com o tempo, que o pode elidir, mas sobretudo com a linguagem, tomada e
apreendida como manifestação do espírito. Falamos em antecipação da modernidade porque
é importante frisar que essa nova atitude poética frente à linguagem não se expandiu
ao longo do século XIX em ritmo de continuidade. Às conquistas dos primeiros
românticos alemães e ingleses se sobrepôs um outro romantismo, o chamado
―extrínseco‖, que, não obstante tenha tido um forte caráter de rebeldia frente à
sociedade e aos dogmas do pensamento clássico, foi bem diferente do primeiro, no
que concerne às questões do sujeito ptico e da representação. Esse romantismo,
assumindo um caráter marcadamente idealista e sentimental, foi o que se alastrou
com mais intensidade no Ocidente, predominando inclusive nos países da América
Latina. (MACIEL, 1999, p. 22)
Assim, os primeiros românticos alemães antecipam a modernidade por já repensarem a
arte e suas relações com o tempo, a história e a tradição, por solicitar novos modelos de
criação, por perceber que a originalidade estética estava justamente na capacidade do artista
de conceber uma obra aberta, transiria, inconclusa, auto-reflexiva, isto é, que toma
consciência de si enquanto se revela como exercício artístico consciente, num movimento de
136
descontinuidade e ruptura tão acentuado quanto moderno. O problema é que, nesse processo,
acabaram, eles mesmos, vítimas da força disjuntiva da modernidade no sentido de que suas
idéias não chegaram a constituir uma estética para além dos limites de suas obras, ou seja, o
caráter crítico-teórico que solicitavam à criação poética, o ideal de uma poiésis ativa, que se
manifestasse como reflexão consciente da obra dentro da própria obra, acabou por se diluir
diante de um modelo de romantismo que tomou a noção de subjetividade como expressão
ideal de um eu-poético profundo, substancialista, centrado e indevassável. Um tipo de
romantismo, este, que se voltou para uma espécie de idealismo primário, que Novalis e
Schlegel haviam rejeitado, criando a imagem de um eu transcendente, cuja essência se
preservaria íntegra, uma e indivisível. Assim, é apenas
a partir de Baudelaire que a conjunção poesia-crítica anunciada pelos primeiros
românticos alemães se consuma, evidenciando o surgimento efetivo da poesia
moderna e a crise dos valores metafísicos que marcaram a corrente idealista do
Romantismo. Ao culto da significação e das profundezas subjetivas, sobrepõem-se a
valorização dos aspectos materiais da palavra e o destronamento da ilusória
plenitude do ―eu‖ poético. (MACIEL, 1999, p. 22)
Sob este aspecto, é possível afirmar que partiu de Charles Baudelaire as últimas
injunções oraculares do século XIX sobre as quais a arte de vanguarda, na primeira metade do
século XX, se desenvolveria plena, drástica e contraditoriamente. Baudelaire foi um dos
poetas-críticos que surgiram a partir da noção de modernidade estética que ele mesmo
formulou em seus estudos e ensaios acerca da criação artística. Ele é um dos primeiros artistas
de sua época a encarar o seu tempo com olhos desconcertados de compreensão e
desconhecimento, tilos e desejosos do futuro. Baudelaire buscou, por meio de sua poesia e
de suas reflexões críticas, vislumbrar o caráter mais fundo e determinante da modernidade: o
conceito de que a beleza estética de seu tempo deveria se firmar através da relação extremada
entre a transitoriedade das coisas, das idéias, dos conceitos justamente a dimensão fugaz,
passageira, efêmera da beleza, porque profundamente calcada nos valores estabelecidos ao
137
longo de cada época e a atemporalidade que marca, ou deveria marcar, indelevelmente a
arte.
Desse modo, a arte moderna deveria ser aquela capaz de promover uma síntese entre
os valores histórico-sociais imediatos e o atemporal, sendo que este precisa ser entendido
como aquilo que se desloca do tempo, que fala o seu tempo, mas que também dialoga com o
eterno, com o supra-histórico, revelando-se como a dimensão da arte capaz de anunciar aquilo
que ainda é puro devir. O atemporal é, então, a fala do que ainda está interdito e pode ser
entrevisto, imaginado, intuído, mas nunca determinado. Baudelaire propõe-se a pensar sua
época a modernidade, os novos tempos de revoluções políticas, culturais, econômicas e
sociais que se abriram desde 1848 a partir de uma nova visada crítica sobre a arte, mais
especificamente sobre o belo, situando-o racional e historicamente: ―o belo inevitavelmente
sempre tem uma dupla dimensão, embora a impressão que produza seja uma, pois a
dificuldade em discernir os elementos variáveis do belo na unidade da impressão não diminui
em nada a necessidade da variedade em sua composição‖ (1996, p.10)
43
, ou seja, o poeta
francês principia um processo de extremada relativização da noção de beleza, valor supremo
da tradição clássica, que não pode ser entendida como uma realidade única, perfeita e
absoluta em si mesma, porque
o belo é constituído por um elemento eterno, invariável, cuja quantidade é
excessivamente difícil determinar, e de um elemento relativo, circunstancial,
que será, se quisermos, sucessiva ou combinadamente, a época, a moda, a
moral, a paixão. (BAUDELAIRE, 1996, p. 10)
Quando Baudelaire relativiza os parâmetros clássicos da alta tradição literária,
considerando que toda obra de arte é uma luta renhida entre o espírito de seu tempo e a
verdade em devir, ele acaba por compreender a própria urgência de auto-superação que a
modernidade se impõe, e aos indivíduos, aos artistas, às obras e à realidade mesma que ela
43
BAUDELAIRE, C. ―O Pintor da Vida Moderna‖. In: Sobre a Modernidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1996, p. 10.
138
engendra. A arte moderna, para o poeta francês, é aquela capaz de pensar-se e produzir-se em
termos de uma tensão insolúvel: o artista deve criar uma arte sólida, consistente, eterna, ainda
que o mundo e a realidade nos quais ele se inserido sejam veis, isto é, se transformam
antes mesmo de se fixarem, rompem com seus próprios valores, solicitam a técnica
racionalista e o ideal de progresso cienfico como a fonte de todo desenvolvimento e
justificativa de toda a transitoriedade. o é por acaso, então, que os princípios críticos-
teóricos formulados por Baudelaire extraiam seu tour de force da percepção de que, entre as
duas características essenciais da arte, o eterno e o transitório (ou circunstancial), a segunda é
quem traz consigo o caráter fundamental não da beleza estética, mas da possibilidade
mesma da manifestação artística na modernidade, isso porque
sem esse segundo elemento, que é como o inlucro aprazível, palpitante,
aperitivo do divino manjar, o primeiro elemento seria indigerível,
inapreciável, o adaptado e não apropriado à natureza humana. Desafio
qualquer pessoa a descobrir qualquer exemplo de beleza que não contenha
esses dois elementos. (1996, p. 11)
Como é possível que algo tão absoluto e pleno feito o ideal de beleza possa existir
pelo que carrega, em si, de mais instável, de mais fugaz, de mais condicionado, a saber, os
traços, as marcas, os sinais do tempo em que se concebeu? Essa é a mais revolucionária
contestação do belo que alguém poderia formular: ante o absoluto, o eterno, o modelar e
normativo da tradição clássica, afirma-se o infalivelmente contingencial, o resolutamente
transitório. Da aproximação consciente destes dois elementos surge a força verdadeiramente
expressiva da arte e da beleza na modernidade: a tensão constante e irrefreável entre a
consciência individual, a percepção de mundo e o tempo que oscila entre o efêmero e o
transcendente. Baudelaire põe a arte sob o jugo espectral das grandes dualidades:
a dualidade se evidencia igualmente na obra mais frívola de um artista
refinado pertencente a uma dessas épocas que qualificamos com excessiva
vaidade de civilizadas, a porção eterna de beleza estará ao mesmo tempo
velada e expressa, se não pelo modo, ao menos pelo temperamento particular
do autor. (1996, p. 10 11)
139
Baudelaire consegue, de certa forma, prefixar uma particularidade essencial do espírito
moderno, um traço significante da própria modernidade: o paradoxo como condição iniludível
do tempo, do artista e da obra. Mas as questões que se colocam imediatamente ao
pensamento, sobremaneira o pensamento estético, são justamente: em que consiste a grande
contradição crítica e artística da modernidade? Por que fazer dessa contradição a sua força
ordenadora, o seu caráter inalienável? Baudelaire percebeu que a arte deveria ser capaz de
revelar, por meio da linguagem, o espaço abissal que se interpõe entre a subjetividade e o
mundo, entre o indivíduo e a realidade, entre o poeta e a sociedade cada vez mais inautêntica,
insvel e alienada contra a qual ele deve se insurgir. Com Baudelaire, o ideal de auto-
reflexividade poética passa necessariamente pela problemática da linguagem, do significado,
da palavra como forma expressão e resistência poética. Criar é transgredir e subverter um
ideal de beleza abstrato, normalizado, regular e plenamente de acordo com o gosto burguês:
Não temos o direito de desprezar ou prescindir desse elemento transitório, fugidio,
cujas metamorfoses são tão freqüentes. Suprimindo-os, caímos forçosamente no
vazio de uma beleza abstrata e indefinível, como a da única mulher antes do
primeiro pecado. (1996, p. 26)
Indo além: incorpora-se a transitoriedade moderna como uma reação à própria
modernidade. Lançar mão dos elementos da moda, do vestuário, dos costumes e hábitos do
tempo como parte inalienável da criação faz com que esta evidencie não as transformações
do tempo, mas também a superficialidade do mundo, do homem, das coisas e dos valores
subjacentes a eles, que não duram, que o se fixam, que transigem diante da mudança em si
mesma, tornada valor absoluto. Baudelaire deixa claro que o que interessa, de fato, não é a
realidade, mas a condição do artista diante dessa realidade, o é o mundo, mas as tensões e
conflitos que advém do
140
duelo entre a vontade de tudo ver, de nada esquecer, e a faculdade da memória, que
adquiriu o hábito de absorver com vivacidade a cor geral e a silhueta, o arabesco do
contorno. Um artista que tem o sentimento perfeito da forma, mas acostumado a
exercitar sobretudo a memória e a imaginação, encontra-se então como que
assaltado por uma turba de detalhes, todos reclamando justiça com a mesmo fúria de
uma multidão ávida por igualdade absoluta. Toda justiça acha-se forçosamente
violada, toda harmonia destruída e sacrificada; muitas trivialidades assumem
importância, muitos detalhes sem importância tornam-se usurpadores. Quanto mais
o artista se curva com imparcialidade sobre o detalhe, mais aumenta a anarquia. Se
for míope ou presbita, toda hierarquia e toda subordinação desaparecem. (1996, p.
32-33)
A tensão e o conflito do artista moderno residem nessa incapacidade de definir, com
precisão, quais elementos ou quais circunstâncias desse universo de transitoriedades merecem
encontrar seu lugar no espaço da arte. A poiésis da modernidade é crítica de si mesma e da
própria modernidade na medida exata em que Baudelaire revela que não pode haver
postulados seguros para a arte, que criar é seguir os influxos do tempo, do mundo e da
sociedade e, com sorte, desarticulá-los, que é impossível vencê-los. Não se trata apenas de
romper os modelos abstratos do classicismo, mas principalmente expor a dinâmica alienante
da modernidade, na qual o artista é marginalizado porque a arte não é mais do que uma forma
de entretenimento burguês, de distração fácil, sem qualquer finalidade prática dentro da
ideologia da produção e da mercadoria que a sociedade capitalista vinha engendrando. Num
contexto como esse, com uma realidade dessas, desarticulada e fragmentada, reificada, sem
unidade ou essência definíveis, a arte passa a refletir-se incessantemente, ampliando o jogo
romântico da auto-reflexividade poética, que, agora, apartado do mundo, o artista pode
se realizar por meio da linguagem:
Em decorrência dessa auto-referencialidade, a linguagem geralmente assume, nessa
modalidade poética, a condição de sujeito, considerando-se que a subjetividade do
poeta se desloca para o poema, dando a impressão de que este se faz e se diz
simultaneamente. Ou, como explica Blanchot, ―a fala poética deixa de ser fala de
uma pessoa: nela, ninguém fala e o que fala não é ninguém, mas parece que somente
a fala se fala‖. O que significa que, ao escrever o poema, o poeta-crítico o faz
consciente de que sua voz silencia para que a linguagem possa dizer por e apesar
dele, por saber que, se é pela linguagem que o sujeito se constitui, é também nela
que este se perde enquanto pessoa: o próprio texto o despoja de sua pessoalidade.
(MACIEL, 1999, p. 23)
141
Volta-se, então, à problemática do idealismo crítico-filosófico dos românticos
alemães. Para Novalis e Schlegel a distância entre o artista e o mundo, entre o indivíduo e a
obra, entre a arte e natureza se resolveria por intermédio do pensamento crítico, a partir da
idéia de uma totalidade em devir: o fragmento literário dos românticos surge como a ruína
textual de um pensamento que rejeita toda sistematicidade, mas que ainda acredita numa
totalidade em devir. A questão central é que, para os românticos alemães, o conflito entre o
espírito e a letra, que a filosofia de Fichte formulara, se resolve necessariamente pelo espírito,
sendo que a fragmentação discursiva passa a ser a realização formal da soma de pensamentos
que se pensam e refletem a si mesmos, num processo infinito, no qual a linguagem é
potencializada pela ironia, pelo Witz, denominado como chiste, e pela alegoria, isto é, a
dimensão simbólica, cifrada da palavra. A ironia e o Witz seriam, de forma bastante simples,
o pensamento que se auto-ilumina, o insight, o desvelamento inesperado de uma idéia, uma
imagem, uma reflexão. Para Baudelaire, no entanto, a modernidade estética é aquela na qual a
linguagem se manifesta como o lugar de um conflito: ela deve revelar as próprias
contradições, impasses e vacilos em relação à representação do mundo moderno e a sua
resignificação por meio da imaginação. A auto-reflexividade crítica da poiésis na
modernidade revela que esta, segundo Octávio Paz,
é sinônimo de crítica e se identifica com a mudança; não é afirmação de um
princípio intemporal mas o desdobrar da razão que, sem cessar, se interroga, se
examina, se destrói para renascer novamente. Não somos regidos pelo princípio da
identidade nem por suas enormes e monótonas tautologias, mas pela alteridade e a
contradição, a crítica em suas vertiginosas manifestações. (...) a modernidade
pode realizar a operação de volta ao princípio original, pois a idade moderna pode
negar-se a si própria. (1984, p. 47)
44
Baudelaire, como os românticos, pensou a arte como produção ativa do pensamento,
mas com a diferença fundamental de que, neste momento, o pensamento não pode se resolver
44
PAZ, Octavio. Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
142
como pura idealidade, como afirmação absoluta do espírito, que ela passa a refletir a
perturbada consciência histórica de seu tempo:
Baudelaire vê em Guys a combinação ideal do instante e da totaldiade, do
movimento e da forma, da modernidade e da memória. ―O prazer que extraímos da
representação do presente‖, diz ele, ―se deve não somente à beleza do que ele pode
estar revestido, mas também à sua qualidade essencial de presente‖. [...] A
consciência histórica do século XIX reage diante da descoberta da serialidade
desperadora de todas as coisas, a existência sendo ordenada numa narrativa. Mas o
sentido do presente, diz Baudelaire, é constitutivo de toda experiência estética. O
paradoxo é, no entanto, patente na própria expressão ―representação do presente‖,
que estabelece, como notava Paul De Man, uma distância em relação ao presente, ao
mesmo tempo que afirma seu imediatismo. A representação do presente, a memória
do presente, é ainda o presente? (COMPAGNON, 1996, p. 25)
45
A questão levantada por Compagnon faz com que voltemos a atenção, novamente,
para a problemática da representação no interior da modernidade: o ideal estético de
Baudelaire faz com que ele veja nas gravuras e desenhos de Constantins Guys, o pintor da
vida moderna, a realidade de seu tempo, afirmando, desse modo, a necessidade da arte ser
capaz de perceber, captar e apreender essa realidade. Nesse sentido, a ―representação do
presente‖ precisa ser capaz de conter, no espaço da obra, os dilemas, conflitos, desagregações
e impasses que caracterizam os tempos modernos e sua manifestação racionalista, técnica,
progressista, ou, melhor dizendo, o artista moderno é aquele que faz com que a linguagem de
sua arte capte justamente o que há de inacabado, inconcluso, incerto e fragmentário no
mundo, rejeitando o ideal antigo de representação esteticamente ordenada e harmoniosa da
natureza e dos indivíduos.
A auto-reflexividade da poiésis, agora, ―não reconhece mais nenhuma exterioridade
em relação à sua arte, nenhum código nem assunto e que deve, pois, fazer ela mesma suas
regras, modelos e critérios‖ (Compagnon, 1996, p. 29) e o compromisso do artista é
empreender uma luta renhida contra a realidade aprofundando-se, cada vez mais, no interior
da criação:
45
COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996.
143
A obra moderna fornece seu próprio manual de instrução; sua maneira de ser é o
encaixamento ou a autocrítica e a auto-referencialidade, aquilo que Mallarmé
denominava a ―dobra da obra, à qual ele opunha o ―achatamento‖, próprio do
jornal. A partir de Baudelaire, a função poética e a função crítica se entrelaçam
necessariamente, numa self-consciouness que o artista deve ter de sua arte.
(COMPAGNON, 1996, p. 29-30)
Por esta perspectiva, a modernidade, assim como o primeiro romantismo alemão,
também buscou conceber o novo, o original, o diferente, o estranho, como uma forma de
reação aos modelos e ideologias vigentes. A diferença fundamental é que os românticos se
opunham à tradição clássica, que acreditava nos grandes sistemas de pensamento e escritura,
nos tratados estéticos e filosóficos, nos modelos artísticos exteriores ao espírito criador, com
suas regras e princípios, enquanto o artista da modernidade e os escritores do modernismo,
que radicalizaram as críticas à reificação e à percepção racionalista que a modernidade
concebeu, se opunham, sob muitos aspectos, à própria noção de modernidade, como aponta
Matei Calinescu em As 5 Faces da Modernidade:
Se aceitarmos que existem, como eu propus nos primeiros capítulos deste livro, duas
modernidades em conflito e interdependentes uma socialmente progressiva,
racionalista, competitiva, tecnológica; a outra culturalmente crítica e autocrítica,
inclinada a desmistificar os valores básicos da primeira estaremos melhor
preparados para compreender as ambivalências e os paradoxos muitas vezes
importunos ligados à linguagem da modernidade. Modernismo literário, para
tomarmos um exemplo pido, é assim tanto moderno como antimoderno: moderno
no seu empenhamento na inovação, na sua rejeição da autoridade da tradição, no seu
experimentalismo; antimoderno na sua rejeição do dogma do progresso, na sua
crítica da racionalidade, no seu sentido de que a civilização moderna produziu a
perda de algo precioso, a dissolução de um grande paradigma integrativo, a
fragmentação do que outrora foi uma unidade poderosa. Para ultrapassar as
dificuldades conceptuais demasiado óbvias levantadas pelo vocabulário da
modernidade, falei metaforicamente das ―faces‖ de uma constitutivamente dupla
dual, ambígua e duplicadora modernidade. (1999, p. 233)
46
O grande projeto da modernidade inaugurado pela crença iluminista nos postulados
da razão, do cientificismo, do progresso alcança seu momento mais contundente, mais
46
CALINESCU, Matei. As 5 Faces da Modernidade. Lisboa: Editora Veja, 1999.
144
revolucionário e, ao mesmo tempo, mais questionável a partir da revolta estética das
vanguardas européias, voláteis, desagregadoras, intransigentes, com suas faces estranhas,
alheias, divergentes e protéicas, como imagens em negativo de um mesmo movimento
hisrico. As vanguardas, interagindo criticamente com a tradição, acabaram, elas mesmas,
convertendo-se numa tradição, como afirma Compagnon na esteira do que já constatara
Octávio Paz, que revela ser este um dos grandes paradoxos da arte moderna, do projeto
estético da modernidade ao qual os s-modernos irão, sob muitos aspectos, reagir,
procurando revê-lo.
O fato é que a modernidade elegeu a escritura fragmentária e a auto-refencialidade do
discurso, da narrativa, como suporte de algumas de suas obras mais significativas justamente
para ensaiar uma resistência à própria modernidade técnica. Assim, quando a literatura da
modernidade rejeita os ideais de racionalismo, de domínio técnico, de progresso e de
competitividade, postulados de acordo com a ideologia capitalista, o faz em função de
algumas narrativas que ainda percebem no mito sua fonte de afirmação revolucionária, como
os românticos um dia sonharam. Nesse sentido, entre nossas discussões acerca do Primeiro
Romantismo Alemão e a Pós-Modernidade, buscaremos compreender como as noções de
escritura fragmentária e suas relações com o conceito de representação aparecem num
momento decisivo das literaturas de vanguarda: o desenvolvimento do Surrealismo. Assim,
por intermédio de André Breton e seu romance Nadja, tentaremos demonstrar como a
fragmentação, aqui, ainda aparece diretamente relacionada aos modelos de representação
calcados num discurso que faz do mito da fusão entre arte e vida uma forma de resistir à
cooptação e ao racionalismo técnico do capitalismo moderno.
145
3.2. Nadja e o Mito Modernista da Linguagem: Memória e Fragmentação
A Arte como Salvaguarda e Resistência: o Surrealismo.
A História da Arte confunde-se, inevitavelmente, com a história da humanidade, do
espírito humano como produtor, criador de coisas belas. A estética nada mais é do que o
desejo humano de informar, de conceber e dar forma ao mundo. A arte existe nos mais
diferentes tempos, sob as mais variadas circunstâncias. É, junto com o pensamento, uma das
poucas atividades do espírito humano que pode florescer em momentos áureos da história
de desenvolvimento e progresso, de equilíbrio e harmonia ou sob os auspícios da decadência
e da barbárie. Desse modo, sempre que a humanidade entra em crise a arte aponta caminhos,
levanta-se como uma contra-resposta, insurge-se contra o próprio homem na tentativa
paradoxal de salvá-lo. Em momentos em que o ideal de civilização parece ruir num absoluto
desespero, a arte passa a ser o espaço de uma redenção possível, uma salvaguarda, uma
garantia de que nem tudo está decididamente perdido.
O homem da Idade Média, cindido pela crise da fé e pela afirmação de um pensamento
humanista, em que os pilares da crença pareciam ruir dando lugar às dúvidas, aos temores, aos
conflitos e à guerra, encontra sua justificativa e resgata-se da queda por meio da Renascea,
da arte Renascentista. Séculos mais tarde, sob o impacto dos horrores e da barbárie em que se
degenerou o Antigo Regime, a França engendra a Revolução Francesa e o homem, o espírito
humano, concebe o Romantismo, com suas novas propostas, com sua radical visão de mundo,
que vai influenciar o pensamento e a arte humana para além de seus limites temporais,
resistindo e permanecendo, como tendência artística, estética e filosófica, de forma velada ou
explicita, até os nossos dias. O Romantismo abre caminho para a liberdade do espírito, para a
evasão e o sonho, para a criação como um gesto de resistência à realidade histórica que levou
a Europa da tirania dos velhos déspotas esclarecidos ao delírio de grandeza napoleônico.
146
Na primeira metade do século 20, sob a impressão aterradora, violenta e chocante da
Primeira Guerra Mundial, o homem vai se encontrar novamente perdido, agredido e violado,
vítima da opressão e das mais cruéis arbitrariedades, única experiência herdada do conflito, e
outra vez irá buscar salvão, consolo e justificativa na Arte: surge o surrealismo, o mais
revolucionário dos movimentos de vanguarda e a mais livre das tendências artístico-estéticas
(e de vida) do século 20, porque ensaiou libertar, absolutamente, o próprio espírito humano. É
a arte rejeitando, mais uma vez, os escombros da realidade, a barbárie de um mundo
dominado pela técnica, violento e impessoal, que só acredita na circulação irrestrita do capital
e na dominação plena do Outro.
Assim, o Renascimento, o Romantismo e, fundamentalmente, o Surrealismo
representam momentos da história da humanidade em que a arte ousou seu vôo mais alto:
libertar radicalmente os indivíduos, transformando-se, ela mesma, na essência primeira do
homem, na justificativa e no lugar ideal da existência. A liberdade, ou a idéia dela, ou a busca
desesperada e irrefletida por ela, é essencial a cada um desses movimentos, mas é no
surrealismo que ela ganha corpo e passa a representar, através da arte, a busca determinada do
artista, a única forma de transcender a barbárie e o crime, de rejeitar os apelos da técnica, do
capital e da dominação em favor de um pensamento que reconhece na arte o lugar não da
liberdade essencial, mas de uma nova existência, que se confunde incondicionalmente com a
própria criação estética, num desejo de reinventar o homem e o mundo.
Vale lembrar que, ainda no século 20, após a crise estabelecida com a Segunda Guerra
Mundial, o pensamento humano vai engendrar, novamente, sua contra-resposta, sua tentativa
de salvaguardar-se de si mesmo: o Existencialismo filosófico engendra uma reflexão profunda
da essência, da justificativa mesma da existência a partir de um contexto histórico marcado
pela intolerância, pela tirania e por uma nova forma de morticínio, quee em circulação todo
o aparato tecnológico-beligerante da época como mecanismo de controle e afirmação de uma
147
ideologia política francamente policialesca e segregacionista. É nesse contexto que os artistas
e filósofos existencialistas vão viver profundamente a sua filosofia assim como os surrealistas
viveram a aventura artística do surrealismo como uma reação aos horrores da Primeira
Guerra. Essa filosofia do pós-guerra pode ser compreendida e justificada pela afirmação
instigante e conhecida de Sartre segundo a qual o homem está condenado a ser livre. A
liberdade continua sendo a essência da insurreição, no pensamento e na arte.
O início do surrealismo não pode ser decididamente precisado, mas convencionou-se
determiná-lo a partir da publicação do Primeiro Manifesto, em 1924. A rigor, o movimento
surrealista surge como uma das facetas da arte moderna, como uma das vanguardas artísticas
juntamente com o Cubismo, o Dadaísmo, o Futurismo e o Expressionismo que propunha a
mudança radical dos paradigmas estéticos definidos e consolidados pela tradição Realista-
Naturalista de fins do século 19. E entre todas as tendências de vanguarda surgidas com a
modernidade, o surrealismo será a única a propor não só a transformação radical da expressão
artística, mas também da própria experiência humana, convertida no objetivo primeiro da arte,
procurando abolir todos os limites interpostos entre a criação estética e a vida mesma. O
surrealismo, então, fia-se na crença de que a salvaguarda humana depende de um duplo
movimento: a estetização da existência e a vivificação absoluta da arte, num jogo constante e
irrestrito capaz de superar nossa própria condição histórica.
Por isso, a idéia do surrealismo como a última das vanguardas do século 20 é refutada
por Cláudio Willer, no prefácio à tradução brasileira dos manifestos. Segundo o crítico e
poeta, o movimento idealizado e definido por André Breton em seus manifestos terá uma
presença marcante e decisiva ao longo de todo o século 20, o que demonstra, por um lado, sua
continuidade histórica, sua historicidade, e, por outro lado, seu projeto estético e filosófico de
transformação do pensamento, da arte e da própria existência, numa inquestionável
contemporaneidade:
148
A crítica apontando a historicidade das vanguardas é perfeitamente correta. No
entanto, ela o se aplica ao surrealismo. Inseri-lo na mesma rie cronológica das
demais vanguardas é comparar coisas completamente distintas: de um lado,
movimentos preocupados em revolucionar ou transformar a linguagem artística (o
que não impede, evidentemente, que tivessem desdobramentos filosóficos, políticos
e ideológicos em geral); de outro, algo muito mais amplo, abrangente e ambicioso,
uma expressão da busca da transformação do homem e da sociedade, na qual a
manifestação mais especificamente artística é um dos aspectos.
Ou seja, em um dos casos (o das ―vanguardas‖), um resultado artístico, uma
revolução ou renovação estética seriam um objetivo central; toda a sua rebelião se
voltaria para o campo das artes. No outro (o do surrealismo), temos uma ruptura
muito mais radical. (WILLER, s/d, p.15)
O que Cláudio Willer propõe é que, ao contrário do que alguns historiadores das
vanguardas afirmam, o surrealismo não foi mais uma escola, ou movimento estético, ou
tendência literária de vanguarda em que seus artistas se entregavam à alienação da
consciência imediata das coisas, da ideologia política, da condição social do homem em favor
da ruptura total com a modernidade, negando a própria arte, como com o dadaísmo, ou da
afirmação eufórica da tecnologia e do progresso, como se deu com o futurismo ou da
descrença total no homem e no mundo, que marcou o expressionismo. O surrealismo o se
firmou como a proposta definida de conceber uma anti-arte que negasse os valores da
civilização moderna, o império da máquina e da tecnologia, como os dadaístas propunham-se,
num conflito direto com a estética futurista. O surrealismo estava muito além da fuga ou do
escapismo, do culto absoluto e irrestrito da arte pela arte, da simples renovação da linguagem
artística e literária. Diferentemente do que possa parecer, os artistas do surrealismo
procuravam, através da plena liberdade artística, revolucionar a realidade, questionar
paradigmas sociais, apresentar alternativas a um mundo que deixava como perspectiva os
despojos da Primeira Guerra Mundial. Nesse sentido, os manifestos surrealistas permitem
entrever que a preocupação de Breton e seus companheiros sempre foi, muito mais que
inovar, de recuperar a tradição, reescrever a história, e olhar o passado sob uma outra
perspectiva.‖ (WILLER, s/d, p. 15)
149
O surrealismo ficou marcado como o movimento que deu vazão ao sonho, e o ideal de
liberdade da escola acabou associado a essa idéia definidora, mas que não diz respeito às
intenções mais francas e profundas do movimento. De um modo ou de outro, o Romantismo e
o Simbolismo também deram vazão ao sonho, também procuram libertar o que havia de
inconsciente e onírico no indivíduo, também rejeitaram, sob determinados aspectos, a
condição histórica da qual surgiram. O surrealismo não é simplesmente a escola moderna do
sonho, da liberdade, da manifestação das forças do inconsciente, da negação da história, do
mundo e da sociedade capitalista. A preocupação de seus representantes ia muito além da
dissonância em relação às ideologias políticas ou estéticas da época:
E aqui tocamos no que realmente seria o fundamento do surrealismo, ou sua razão
de ser: uma tentativa, não de revolucionar ou questionar a criação artística apenas (o
que foi levado ao limite pelo dadaísmo), mas sim de repensar e refazer o homem,
a sociedade e a relação entre o homem e a sociedade, passando pela revalorização do
sujeito, porém entendido dialeticamente, como relação com o que lhe é exterior e
com o inconsciente, o não-sujeito consciente, o outro, o duplo do romantismo (e é
neste ponto, que não pode haver confusão entre o surrealismo e qualquer
modalidade de idealismo) (WILLER, s/d, p. 15)
É essa, também, a posição de Walter Benjamin em seu ensaio O surrealismo. O último
instantâneo da inteligência européia. O ensaio de Benjamin data de 1929 e,
cronologicamente, estava absolutamente próximo do movimento surrealista que havia surgido
no início da mesma década. Essa proximidade não impediu o crítico alemão de perceber as
potencialidades e o caráter fortemente revolucionário, transformador, do movimento.
Benjamin, mesmo tão próximo dessa nova tendência artística, já havia notado, por exemplo, a
poética vital‖ do surrealismo: Numa formulação mais concisa e dialética: o domínio da
literatura foi explodido de dentro, na medida em que um grupo homogêneo de homens levou a
―vida literária‖ até os limites extremos do possível(BENJAMIN, 1994, p. 22). Trata-se de
compreender o caráter fortemente dialético do movimento, no sentido que privilegia uma
relação direta entre o artista e a sociedade, buscando encontrar na arte a ntese entre as
aspirações individuais e o desejo de transformação universal do mundo.
150
E o próprio Benjamin demonstra o que foi e quais eram os interesses do surrealismo
em seus primórdios, no instante em que principiou a se organizar, a elaborar um movimento
ordenado, a localizar seus precursores e criar seus seguidores:
Mas no início, quando irrompeu sobre criadores sob a forma de uma vaga
inspiradora de sonhos, ele parecia algo de integral, definitivo, absoluto. Tudo o que
tocava se integrava nele. A vida só parecia digna de ser vivida quando se dissolvia a
fronteira entre o sono e a vigília, permitindo a passagem em massa de figuras
ondulantes, e a linguagem só parecia autêntica quando o som e a imagem, a imagem
e o som, se interpenetravam, com exatidão automática, de forma tão feliz que não
sobrava a mínima fresta para inserir a pequena moeda a que chamamos ―sentido‖. A
imagem e a linguagem passam na frente. Saint-Pol-Roux afixa em sua porta um
aviso, quando se recolhe para dormir, pela manhã: ―Le poète travaille‖. Breton
anota: ―Silêncio, para que eu passe onde ninguém jamais passou, silêncio!... Eu te
seguirei, minha bela linguagem‖. A linguagem tem precedência. (BENJAMIN,
1994, p.23)
No momento em que surge e se consolida o surrealismo, a renovação da linguagem
ainda parece o destino primeiro dos artistas envolvidos pelo movimento. Recriar e renovar da
linguagem artística, essencial a esse primeiro instante surrealista, é importante porque permite
uma forma nova e potencializada de comunicação entre os homens, porque não prescinde
do sonho, do inconsciente, das profundezas do espírito. O surrealismo quer libertar a
imaginação, olhar o mundo com olhos virgens, de primeira vez, sentir tudo de todas as
maneiras, discutir, criar, sentir e imaginar para depois empreender a recriação do homem, a
transformação do mundo, dando-lhe uma aparência nova, original. Nesse sentido, além de ter
sido uma das últimas utopias estéticas do século 20, o surrealismo tem essa característica
peculiar: a observação rigorosa, a imposição do olhar atento de quem e registra a vida que
passa dentro e fora de si mesmo.
Essa é a posição de Breton, no Primeiro Manifesto, a respeito do homem no início
daqueles anos 20:
Procure ele mais tarde, daqui e dali, refazer-se por sentir que pouco a pouco lhe
faltam razões para viver, incapaz como ficou de enfrentar uma situação excepcional,
como seja o amor, ele muito dificilmente o conseguirá. É que ele doravante
pertence, de corpo e alma, a uma necessidade prática imperativa, que não permite
151
ser desconsiderada. Faltaamplidão a seus gostos, envergadura a suas idéias. De
tudo o que lhe acontece e pode lhe acontecer, ele só vai reter o que for ligação deste
evento com uma porção de eventos parecidos, nos quais o toma parte, eventos
perdidos. Que digo, ele fará sua avaliação em relação a um desses acontecimentos,
menos aflitivo que os outros, em suas conseqüências. Ele não descobrirá aí, sob
pretexto algum, sua salvação.
Imaginação querida, o que sobretudo amo em ti é não perdoares. (BRETON, s/d, p.
34)
Por isso uma certa unanimidade por parte da crítica em afirmar que o surrealismo
surge como uma busca pela revalorização da linguagem, mas que, naturalmente, vai deixando
de ser uma tendência estético-literária e passa a ser uma atitude filosófica e política, que move
o artista à ação socialmente renovadora, fundamentando-se no ideal de liberdade absoluta e de
reconstrução da realidade aparente. Ou seja, o surrealismo ganha seus contornos definitivos
de uma poética de insurreição, de levante, de revolução transformadora. Os surrealistas
deixam de interpretar o mundo, como boa parte dos movimentos artísticos lograram fazer,
para recriar o mundo. E o Verbo, como o poderia deixar de ser, ainda é o princípio, mas
deve estar além dos séculos de corrupção dos sentidos. A liberdade surrealista tem muito
pouco a ver com o idealismo romântico de última hora, por exemplo, que ainda estava ligado
ao surgimento do Estado Nação e dos ideais nacionalistas. O surrealismo prescinde da
liberdade sob o domínio do Estado e da lógica racionalista.
Daí Breton afirmar:
Ainda vivemos sob o império da lógica, eis aí, bem entendido, onde eu queria
chegar. Mas os procedimentos lógicos, em nossos dias, só se aplicam à resolução de
problemas secundários. O racionalismo absoluto que continua em moda não permite
considerar seo fatos dependendo estreitamente de nossa experiência. Os fins
lógicos, ao contrário, nos escapam. Inútil acrescentar que à própria experiência
foram impostos limites. Ela circula num gradeado de onde é cada vez mais difícil
fazê-la sair. Ela se apóia, também ela, na utilidade imediata, e é guardada pelo bom
senso. A pretexto de civilização e de progresso conseguiu-se banir do espírito tudo
que se pode tachar, com ou sem razão, de superstição, de quimera; a proscrever todo
modo de busca da verdade, não conforme ao uso comum. Ao que parece, foi um
puro acaso que recentemente trouxe à luz uma parte do mundo intelectual, a meu
ver, a mais importante, e da qual se afetava o querer saber. Agradeça-se isso às
descobertas de Freud. Com a nestas descobertas desenha-se afinal uma corrente
de opinião graças à qual o explorador humano poderá levar mais longe suas
investigações, pois que autorizado a não ter em conta as realidades sumárias.
Talvez esteja a imaginação a ponto de retomar seus direitos. (BRETON, s/d, p. 40)
152
No início, é preciso questionar profundamente o império e o domínio da lógica. Não
a lógica racionalista, mas também a capitalista, a lógica de mercado que ganha força e
determina os destinos do homem, condenado ao domínio da técnica e da especialização,
passando à condição de peça da engrenagem de mercado, produto da realidade industrial que
controla o pensamento, os gestos e as ações. O primeiro impulso de liberdade surrealista é
romper com a condição de homem industrializado‖, de filho do racionalismo e do
positivismo científico que determinam a vida e o pensamento em fins do século 19 e início do
século 20. Por isso os surrealistas elegem o sono e o sonho como os mecanismos para essa
primeira libertação. Nada mais livre e indeterminado pela lógica imediata do que o sonho,
lugar em que o homem pode ensaiar seu regresso ao mundo original, anterior à realidade
aparente, à própria linguagem definidora do racionalismo científico. É o que Octávio Paz
sugere em André Breton ou a Busca do Início:
Escrever sobre André Breton com uma linguagem que não seja a da paixão é
impossível. Além do mais, seria indigno. Para ele os poderes da palavra não eram
distintos dos da paixão e esta em sua forma mais alta e tensa, não era outra coisa que
a linguagem em estado de pureza selvagem: poesia. Breton: a linguagem da paixão,
a paixão da linguagem. Toda a sua busca, tanto ou mais que a exploração de
territórios psíquicos desconhecidos, foi a reconquista de um reino perdido: a palavra
do princípio, o homem anterior aos homens e às civilizações. O surrealismo foi sua
ordem de cavalaria e sua ação inteira foi uma Quête du Graal. (PAZ, 1996, p. 221)
Notemos que Paz fala em André Breton, e não especificamente em surrealismo. O
motivo é bastante simples: o surrealismo foi, em grande parte, a aventura espiritual de Breton.
Não haveria, a rigor e como o concebemos, o surrealismo se não fosse a participação ativa do
poeta francês. As contribuições teóricas, práticas e artísticas de Breton foram determinantes
para que o movimento surrealista ganhasse os contornos de poética vital, de atitude filosófica
que o justificavam. E Nadja é o exemplo mais categórico dessa afirmação. Todo o
surrealismo, em intenção, pensamento, estilo, linguagem e ação pode ser percebido no périplo
poético que o narrador do principal romance de Breton vai perfazer.
153
Agora, voltando a afirmação de Paz, podemos dizer que o ―homem anterior aos
homens e às civilizações‖, pode ser alcançado pela liberdade plena do corpo e do espírito.
Mas se chega a essa liberdade plena, ideal, no início, dando voz e forma ao sonho. A arte,
principalmente a literária, passa a ser um elogio do sonho, o rompimento das fronteiras que
cercam o homem e o obriga à realidade bruta. E a dimensão onírica só pode ser ouvida através
de uma linguagem igualmente livre, que encontre a forma mais ou menos perfeita de dar
vazão aos reclames do inconsciente, o não-lugar do homem. Nesse sentido, a escrita
automática, ou o automatismo pquico, que marcou em profundidade o estilo surrealista, é a
forma ideal de ouvir e registrar a paisagem onírica de que, em maior ou menor grau, somos
feitos, mas que, muitas vezes, nos escapa.
O fundamento da ―escrita automática‖ é a crença na identidade entre falar e pensar.
O homem o fala porque pensa, mas sim pensa porque fala; melhor dizendo, falar
não é distinto de pensar: falar é pensar.
As idéias de Breton sobre a linguagem eram de ordem gica. Não só nunca
distinguiu entre magia e poesia, como pensou sempre que esta última era
efetivamente uma força, uma substância ou energia capaz de mudar a realidade. Ao
mesmo tempo essas idéias possuíam uma precisão e uma penetração que me atrevo a
chamar de científicas. Por um lado via a linguagem como uma corrente autônoma e
dotada de poder próprio, uma espécie de magnetismo universal; por outro concebia
essa substância erótica como um sistema de signos regidos pela dupla lei da
afinidade e da oposição, da semelhança e da alteridade. (...)
A antiga não de analogia reaparece: a natureza é linguagem e esta, por sua vez, é
duplo daquela. Recuperar a linguagem natural é voltar à natureza, antes da queda e
da história: a poesia é o testemunho da inocência original. (PAZ, 1996, p. 223-24)
Assim, encontramos a afirmação de Breton no Primeiro Manifesto:
Se as profundezas de nosso espírito escondem estranhas forças capazes de aumentar
as da superfície, ou contra elas lutar vitoriosamente, todo interesse em captá-las,
captá-las primeiro, para submetê-las depois, se for o caso, ao controle de nossa
razão. Os próprios analistas têm a ganhar com isso. Mas é importante observar
que nenhum meio está a priori designado para conduzir este empreendimento, que
até segunda ordem pode ser também considerado como sendo da alçada dos poetas,
tanto como dos sábios, e o seu sucesso não depende das vias mais ou menos
caprichosas a serem seguidas. (BRETON, s/d, p. 40-1)
Há, então, por trás de todo o movimento surrealista uma espécie de poética essencial.
O discurso poético, para os surrealistas, funda o novo homem, concebe uma realidade nova
em que mergulha, vertiginosamente, o espírito. Isso porque a poiésis cria suas próprias
154
verdades, particulares e intransferíveis, comportando um universo próprio e singular de seres
e coisas. O mundo ganha forma através da auto-atividade do pensamento poético. Assim, a
poesia seria a manifestação de uma criação que nos humaniza, que nos desperta a hora mágica
em que realidade e imaginação se fundem no encontro eternamente sonhado com o Outro. O
surrealismo reinventa o poder da palavra, som e silêncio; a procura pelo que quer que seja nos
labirintos insondáveis da linguagem; o despertar da Musa; o ato de inventar-se e se dar a ver
poeticamente e, acima de tudo, nos ensina o exercício redivivo da transcendência estética. Se
o mundo modernos é este que se desagrega e se arruína, a linguagem criadora é o último lugar
possível em que o sujeito pode se reencontrar, resignificando-se e, conseqüentemente, ao
mundo que o cerca.
A Narrativa Poética
O surrealismo, visto por esta perspectiva, foi uma forma de resgatar o homem de uma
realidade destroçada, comprometida e desesperançada, em que se precipitara durante e após
os conflitos, as tensões e os horrores da Primeira Guerra Mundial. Uma forma de rever e
reaver a sensibilidade perdida, de transformar o espírito humano, de encontrar um caminho
restaurador, revolucionário, que pudesse ensaiar, mais uma vez, a utopia de fazer da arte
sobretudo da literatura o novo horizonte estético e existencial a ser alcançado. A poeticidade
engendra a liberdade e esta assume a sua condição de força transformadora, de atitude
filofica que molda e dá sentido às aventuras artísticas, estéticas e, por que não dizer,
políticas do surrealismo. Assim, é a partir de uma postura poética, filosófica e ideológica que
André Breton funda o movimento surrealista e lança seus manifestos definidores. Mas, acima
de tudo, é a partir da crença no poder transcendente da poesia que Breton concebe a mais
inspirada e inspiradora das obras surrealistas: Nadja, um romance que se abre para a poesia
como uma fonte de revelação, que se orienta para a superação do próprio nero narrativo,
155
concebendo uma obra cujo estofo central é, a um tempo, a vida, a arte, o pensamento e a
aventura de uma existência múltipla e vária. Nadja é um dos momentos singulares e originais
de uma forma de expressão que se convencionou chamar de narrativa poética.
A narrativa poética não e em questão apenas a problemática evidente da distinção
entre os gêneros literários, a superação de seus limites, a confluência entre o narrativo e o
poético como formas distintas e alheais de criação. Ela não pode ser entendida apenas como a
interiorização de elementos formais - sonoros, rítmicos, visuais e imagéticos próprios da
poesia pela prosa. A narrativa poética, na verdade, ganha contornos quando o artista
reconhece que o verso já não pode lutar sozinho, com suas velhas armas, contra a afasia de
uma realidade que prescinde terrivelmente da poesia e que acredita na linguagem saturada da
comunicação, com seus signos engessados numa referencialidade absurda, seus códigos
aceitos e automatizados, que acenam para as supostas verdades que criam, suas técnicas
propagandísticas, a vender felicidade, afeto, sentimento, sucesso, amor, paixão e etc. A
narrativa poética é a tentativa de superar as limitações e o desgaste dessa linguagem que se
põe em cena no jogo da comunicação, valendo-se da força criadora da poesia, marcada pela
noção de Darstellung, aquilo que se apresenta, que se presentifica, que se desvela, aliada ao
poder de representação do mundo que a narrativa traz em si.
O romance, a novela ou qualquer forma narrativa que pactue com o poético trabalha,
então, com uma dupla possibilidade artística e estética que a relação entre mímesis e poiésis
evidencia: a primeira dessas possibilidades diz respeito ao potencial, próprio da narrativa, de
configurar-se como um reflexo da realidade, como o lugar-espelho do mundo, que privilegia,
em sua interioridade, a assinalação das diferenças entre a narrativa mesma e o mundo ao qual
busca dar forma, recriando-o. A segunda possibilidade, por sua vez, está relacionada à poiésis
como a instância de um produzir, de um gerar original, que busca a concepção mesma das
coisas e do mundo, que procura se firmar como pura criação. A narrativa poética, desse modo,
156
é uma narrativa que se engendra como o reflexo do mundo, da realidade e do indivíduo, na
medida exata em que se concebe a partir da força instauradora da linguagem poética.
A narrativa poética põe em evidência essas duas formas de criação artística, de
circulação de sentidos, de orientação estética. Por isso, de acordo com Octávio Paz, no ensaio
Ambigüidade do Romance, a ―função mais imediata da poesia, o que poderia chamar-se sua
função histórica, consiste na consagração ou transmutação de um instante, pessoal ou
coletivo, em arquétipo. Neste sentido, a palavra poética funda os povos.‖ (PAZ, 1996, P.68).
É o caráter fundante da poiésis que altera radicalmente a idéia de representação tradicional
sobre a qual a narrativa realista se erguia. Não basta percorrer o mundo em sua extensão
empírica, referencial, imediatamente nada e reconfigurá-lo, recriá-lo, assinalar suas
singularidades, marcas suas diferenças: é preciso que a narrativa oscile, também, para o
espaço fundador e original da poesia, para sua essencialidade exemplar, sempre na divisa do
pensamento, sempre à espreita do próprio ser, do desvelamento e da revelação de uma
verdade primordial, que se cria e afirma pelos movimentos insuspeitados da poiésis. A
narrativa poética permite entrever o que Octávio Paz chama de ambigüidade do romance, que
pode ser entendida como a ambigüidade radical que promove o apagamento das fronteiras
definidas entre os gêneros literários:
Embora o seu ofício [do artista] seja o de relatar um acontecimento e neste sentido
parece-se ao historiador o lhe interessa contar o que se passou, mas reviver um
instante ou uma série de instantes, recriar um mundo. Por isso recorre aos poderes
rítmicos da linguagem e às virtudes transmutadoras da imagem. Sua obra inteira é
uma imagem. Assim, por um lado, imagina, poetiza; por outro, descreve lugares,
fatos, almas. Limita-se com a poesia e com a história, com a imagem e com a
geografia, com o mito e com a psicologia. Ritmo e sintaxe de consciência, crítica e
imagem, o romance é ambíguo. Sua essencial impureza brota de sua constante
oscilação entre a prosa e a poesia, o conceito e o mito. Ambigüidade e impureza que
lhe m do fato de ser o gênero épico de uma sociedade fundada na análise e na
razão, isto é, na prosa. (PAZ, 1996, p. 68-69)
A afirmação de Paz é esclarecedora no sentido em que nos revela uma outra dimensão
a respeito da questão do conflito aberto entre os gêneros, conflito este que acaba na superação
157
dos limites entre o narrativo e o poético: o romance significa, na verdade, uma forma tensa
pela qual prosa e poesia, razão e intuição, fantasia ou imaginação, relato e delírio comunicam-
se tacitamente. O romance viveria desse movimento pendular entre a tendência à história, à
objetividade e à descrição como forma de ordenar a narrativa, e o mito, característica
marcante da poesia, como forma de atingir a revelação essencial dos seres e das coisas, como
uma instância fundadora do mundo. O romance vive dessa tensão. A diferença é que alguns
romances procuram rejeitar sumariamente essa aproximação, furtando-se, o máximo possível,
à poesia. Outros, por sua vez, levam esse conflito às últimas conseqüências e são estes que
concebem a narrativa poética como uma nova forma de escritura:
Desde os princípios deste século o romance tende a ser poema de novo. Não é
necessário sublinhar o caráter poemático da obra de Proust, com o seu ritmo lento e
suas imagens provocadas por uma memória cujo funcionamento não deixa de
apresentar analogias com a criação poética. Tampouco é mister deter-se na
experiência de Joyce, que faz a palavra recuperar sua autonomia para que se rompa o
fio do pensamento discursivo. (PAZ, 1996, p. 73)
Mas é preciso compreender que a narrativa poética vive muito mais na dependência da
idéia de poiésis do que simplesmente dos caracteres estruturais que configuram o poema.
Ainda que lance mão do ritmo, da analogia, da associação de idéias, da concepção de
imagens, da sintaxe musical do verso, a narrativa poética é determinada, essencialmente, pelo
poder gerador da poiésis, que se avizinha do pensamento filosófico, que promove uma
investigação profunda das motivações do espírito e que se fia na crença particular e
intransferível de que é, ela mesma, uma forma de transformar drasticamente o real, de lhe
impor uma nova e inequívoca visada. Nesse sentido, Nadja deve ser entendido como um
romance do espírito, que e em cena o turbilhão de idéias, sentimentos e sensações de que
somos feitos, que se abre para a busca do instante gico da existência, que só pode se
158
revelar a partir da força criadora da poiésis, que se divisa com o poder encantado e instaurador
do mito, pois, como afirma Maurice Blanchot, em A Linguagem da Ficção
47
,
o mito presume, entre os seres da ficção e seu sentido, não as relações de signo e
significado, mas uma verdadeira presença. Quando nos engajamos na histórica
mítica, começamos a viver seu sentido, estamos impregnados dele, nós o
―pensamos‖ realmente e em sua pureza, pois sua pura verdade só pode ser entendida
nas coisas em que ela se realiza como ação e sentimento. (1997, p. 81)
Em Nadja, o poético faz com que a obra assuma a linguagem fundante da poesia e do
mito, rompendo com os limites da narrativa tradicional e alterando profundamente a relação
que o artista estabelece com a realidade que lhe serve de referência. Mas é preciso
compreender que o ponto de partida da narrativa poética já não é a realidade mesma, mas sim
os movimentos interiores do espírito, que transformam a percepção do mundo e das coisas,
que se fiam em suas múltiplas perspectivas, que dependem sempre das traições e das
armadilhas da memória:
O mito, por trás do sentido que ele mostra, reconstitui-se incessantemente; é como a
manifestação de um estado primitivo em que o homem ignoraria o poder de pensar
fora das coisas, refletiria encarnando nos objetos o próprio movimento de suas
reflexões e assim, longe de empobrecer o que ele pensa, penetraria no mais rico
pensamento, no mais importante e no mais digno de ser pensado. Daí a literatura
poder constituir uma experiência que, ilusória ou não, aparece como um meio de
descoberta e de um esforço, não para expressar o que sabemos, mas para sentir o que
não sabemos. (BLANCHOT, 1997, p. 81)
A realidade, na obra, ganha os contornos imprecisos de uma paisagem interiorizada,
de um mundo que se filtra não pelo olhar, mas pelos movimentos da linguagem no interior do
indivíduo. Trata-se de perceber a realidade a partir dos movimentos da memória. Ao invés da
descrição objetiva do mundo, a narrativa poética propõe a imaginação potencializada do
mundo: associação entre o relato de ordem realista, tributário das experiências do sujeito com
o mundo de seres e coisas que o rodeia, e a palavra gica, mística e tica, herança da
poiésis como fonte de instauração e revelação da verdade do mundo que se dá como verdade
47
BLANCHOT, Maurice. A Parte do Fogo. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1997.
159
do ser. É o próprio Breton, em “Antes do Mais (telegrama retido)”, espécie de prefácio à
reedição de Nadja, quem nos dá a medida de obra:
Talvez convenha de modo especial a Nadja, em razão de um dos dois principais
imperativos ―antiliterários‖ aos quais esta obra obedece: a par da abundante
ilustração fotográfica que objetiva eliminar qualquer descrição acusada de
inanição no Manifesto do surrealismo , o toma adotado para a narrativa, que se
calca no da observação médica, principalmente neuropsiquiátrica, em que a
tendência é registrar tudo quanto o exame e o interrogatório podem produzir, sem a
mínima preocupação com o estilo do relato. Observar-se-á, ao longo da leitura, que
esta resolução, buscando em nada alterar o documento ―tomado ao vivo‖, aplica-se
não apenas à pessoa de Nadja mas ainda a terceiras pessoas bem como a mim. O
despojamento voluntário de um escrito dessa natureza contribuiu sem dúvida para a
renovação de sua audiência ao recuar seu ponto de fuga para além dos limites
ordinários. (BRETON, 1999, p. 8)
O que Breton chama de ―despojamento voluntáriode seu escrito revela uma espécie
de modéstia literária que nunca foi a maior virtude do poeta francês, além de conter um
paradoxo essencial: a narrativa de Nadja, seu estilo, sua abertura de sentidos, sua organização
estrutural nada tem de despojada, ao contrário, é um rigoroso e voluntarioso e reside o
paradoxo da afirmação de Breton exercício de criação que prescinde, por exemplo, da
descrição em favor de um conjunto fotográfico que se impõe ao longo de toda a narrativa para
criar mais uma das ilues de representação que envolve todo o romance: a crença de que a
imagem fotográfica daria conta de conter em si a percepção do real que o poeta busca flagrar,
substituindo a descrição de ordem realista, que teria como principal desabonador o fato de
simular a verdade referencial, comprometendo as livres associações de idéias e sensações que
a narrativa busca impetrar. O caráter notadamente poético de Nadja é que faz com que o
romance, de uma forma geral, esteja muito além do simples despojamento, do relato natural,
livre da ―mínima preocupação com o estilo‖. Na verdade, tudo em Nadja revela domínio
técnico e apuro estilístico, e faz com que atentemos, durante toda a leitura, para a estrutura
mesma da obra, para a lógica de sua organização interna, para as dimenes simbólicas da
existência e do mundo que a linguagem articula. Aliás, essa é uma característica mesma da
narrativa poética, como afirma Tadié em Le récit poétique:
160
est la forme de récit qui emprunte au poème ses moyens d‘action et ses effects, si
bien que son analyse doit tenir compte à la fois des techniques de description du
roman et de celles du poème: lé récit poétique est un phénomène de transition entre
roman e poème. [...] le récit poétique conserve la ficction d‘un roman: des
personnages auxquels il arrive une histoire en un ou plusieurs lieux. Mais, en même
temps, des procédés de narration renvoient au poème: il y a un conflit constant
entre la fonction référentielle, avec ses tâches d‘évocation et de représentation, et la
fonction poétique, attire l‘attention sur la forme même du message. (TADIÉ, 1997,
7-8)
A afirmação de Tadié, principalmente no que concerne ao ―conflito constante entre a
função referencial, com suas tarefas de evocação e representação, e a função poética, que atrai
a atenção sobre a forma mesma da mensagem‖, acena para a posição assumida por Breton ao
afirmar o caráter voluntariosamente despojado de Nadja. O livro de Breton afirma a tensão
entre a função referencial própria do espectro narrativo, sobretudo aquele de caráter realista
e a função poética que solicita, constantemente, a atenção para a forma, a estrutura mesma
da mensagem. Se a narrativa poética tem como característica essencial esse conflito, Nadja o
leva às últimas conseqüências, promovendo a desarticulação absoluta das funções narrativas,
rejeitando a descrição das pessoas e dos espaços exteriores em favor de uma iconografia que,
simbolicamente, marca o delírio da forma, admitindo o movimento livre do pensamento, que
o se fixa em nada, que se deixa vagar assim como o próprio narrador perdido pelas
coisas, as pessoas, o mundo e as imagens que lhe vêm à mente.
Um Olha Sobre Nadja
Ao admitir o movimento livre do pensamento, ao revolucionar a estrutura narrativa e
dar vazão à linguagem originária, que busca a essência mesma dos impulsos da alma, do
espírito, André Breton faz de Nadja o que podemos chamar de um grito extremado de
liberdade. Romance onírico, automatismo psíquico, relato do inconsciente, várias formas
de designar o livro de Breton, todas mais ou menos acertadas, mas Nadja é fundamentalmente
o périplo artístico-existencial de seu autor, o lugar de nascimento, descoberta, encontro, amor
161
e, por que não dizer, morte de si mesmo. A morte do ser consciente, do homem racional, que
planeja, prevê e acredita no mais completo e absoluto domínio técnico e científico sobre seu
destino. Nada fomos ou somos senão o acaso de uns tantos acontecimentos desordenados, que
se perdem no labirinto de uma memória alheia a todo e qualquer fio de Ariadne. Não há guias,
mapas ou manuais para aquilo que podemos chamar de o ato mais simples e humano: existir.
Nadja procura ser a demonstração viva dessa idéia: um r-se a si mesmo em questão; uma
criação que principia como um gesto interrogante, numa tentativa exasperada de auto-
definição. Assim, não é estranho que a narrativa de Breton tenha início pondo o próprio ser
em questão:
Quem sou? Se excepcionalmente recorresse a um adágio, tudo poderia realmente
resumir-se em saber ―com quem ando‖? Devo confessar que essa expressão me
perturba um pouco, pois tende a estabelecer entre mim e certas pessoas relações
mais singulares, menos evitáveis, mais perturbadoras do que poderia imaginar. Diz
muito mais do que intenta dizer, faz-me desempenhar em vida o papel de um
fantasma, alude evidentemente ao que eu deveria deixar de ser, para ser quem na
verdade sou. Tomando-a de forma um tanto abusiva nesta acepção, dá-me a entender
que tudo quanto considero manifestações mais ou menos objetivas de minha
existência, manifestações mais ou menos deliberadas, não passa, nos limites desta
vida, de uma atividade cuja verdadeiro campo permanece para mim inteiramente
desconhecido. (BRETON, 1999, pág. 11)
Antes de tudo, a própria exisncia, como ato deliberado, como certeza inquestionável,
impossível quase de ser posta a prova, fé última do indivíduo, começa a ruir ainda no primeiro
parágrafo de Nadja. É preciso, ao contrário de toda a e de toda a crença particular e
intransferível acerca de nosso destino e de nossa exisncia , reconhecermos que não temos a
resposta imediata à primeira e mais terrível dúvida que o narrador-Breton nos coloca. Ao se
perguntar quem é, o narrador põe em dúvida a principal instância de toda e qualquer narrativa:
a persona que narra, o sujeito que conta, o eu envolvido com e pelo universo que conta, narra
ou descreve. Não se trata de um jogo retórico, como pode parecer à primeira vista. Mesmo a
ironia de o poder se resumir ao adágio popular, ao dize-me com quem andas que te direis
quem és‖, coloca a questão em todo seu desconcerto: a indefinição de si mesmo se dá em
relação ao próprio ser e ao Outro, com quem deveria se divisar. Essa problemática dará o tom
162
do romance, da relação estabelecida entre o narrador e Nadja, jovem linda e enigmática,
espírito livre e incondicionado que desperta no narrador mais do que o desejo erótico, mas
também a vontade criadora, a buscar por uma narrativa que seja capaz de evidenciar toda a
complexidade que envolve a percepção de si mesmo, da realidade e do Outro.
O problema central que a narrativa de Breton coloca, desde o início, são os meios
escolhidos pelo narrador para alcançar essa percepção: o sono, o sonho, o delírio, os impulsos
do inconsciente, o acaso objetivo‖, que consiste em flanar pelas ruas de Paris em busca de
um encontro revelador, de uma epifania, da manifestação de uma verdade do mundo que se
traduza, instantaneamente, numa verdade do espírito, colocando em jogo, para a consciência,
a supra-realidade, a dimensão transcendente do real feita sobretudo da e pela linguagem: o
ponto supremo, o lugar em que as oposições, as antinomias e os pontos cegos que se
interpõem entre sujeito e realidade, Eu e o Outro, verdade do mundo e verdade da obra se
anulam:
O símbolo do point suprème, enquanto região conciliadora das antinomias, abrange
a subjetividade da consciência e o universo exterior, restabelecendo uma relação
dialética entre idealismo e materialismo. [...] O hasar objectif é, para Michel
Carrouges, a reunião desses fenômenos que manifestam a invasão do maravilhoso,
do fantástico, na vida cotidiana e denotam a possibilidade de uma futura fusão do
homem e do universo para a conquista do point suprème. (OLIVIERI, 1984, p. 57)
48
Assim, para que essa fusão possa ocorrer é fundamental que o eu se coloque em
questão, se proponha, em primeiro lugar, a pensar o o mundo ou a realidade, mas sua
própria condição enquanto aquele que se lança em direção a esse pensamento: a pergunta
quem sou eu?‖, que se coloca como questão fundante do discurso remete a uma dupla
existência: a do que enquanto sujeito empírico e a do eu enquanto narrador, figura que se
textualiza e que se manifesta por intermédio da linguagem. Se considerarmos Nadja como um
périplo existencial do próprio Breton, a narrativa passa a ser a busca pelo significado mais
48
OLIVIERI, Rita. Surrealismo e marxismo na obra de André Breton. Revista Sitientibus, Feira de Santana,
2(4), jan./jun. 1984. P. 57-66.
163
fundo da existência como consciência de si mesma, e da obra como refleo sobre si mesma.
Trata-se de uma tentativa de encontrar-se através da arte, uma forma de compreender o
homem em sua multiplicidade de caracteres, em suas dimensões estéticas, filosóficas,
psíquicas e sociais, de liberar a palavra do jogo da representação para que ela construa um
mundo próprio:
que essa emancipação das palavras deve ter dois sentidos. De um lado, na escrita
automática, não é propriamente a palavra que se torna livre, mas a palavra e minha
liberdade que se tornam uma coisa só. Penetro na palavra, ela guarda minha marca e
é minha realidade impressa; adere à minha não-aderência. Mas de outro lado, essa
liberdade das palavras significa que as palavras se liberam por si mesmas: elas não
dependem mais exclusivamente das coisas que expressam, agem por conta própria,
brincam e, como diz Breton, ―fazem amor‖. Os surrealistas perceberam muito bem
e se serviram disto admiravelmente bem o caráter estranho das palavras: viram que
tinham uma espontaneidade própria. muito tempo a linguagem pretendia ter
um tipo especial de existência: ela recusava a simples transparência, não era apenas
um olhar, uma maneira de vazia de ver; ela existia, era uma coisa concreta e até
mesmo colorida. Além disso, os surrealistas achavam que ela não era algo inerte:
existe nela uma vida e uma força latente que nos escapam. (BLANCHOT, 1997, p.
91)
49
A idéia difundida e incondicionalmente aceita de que o surrealismo é apenas a
supremacia do inconsciente sobre as formas de pensamento racionalizadas, por meio do
automatismo pquico, da escrita automática, é um engano. Basta atentarmos para o rigor de
investigação e construção que Nadja revela. O pacto de Breton com a poesia nada mais
significa do que a tentativa de revelar que a condição humana, para além da superfície das
aparências, pode ser compreendida como uma construção, como um criar-se que se firma
sob os postulados da linguagem em constante processo de renovação. O gesto mais
revolucionário que o artista pode conceber, em favor de si mesmo e do Outro, é libertar, antes
de tudo, a própria linguagem. Nesse sentido, a escrita automática dos surrealistas vai deixando
de se grafar como o caos desordenado da palavra e se instaura como um a revolução orientada
da linguagem. Não se trata de escrever ou descrever o delírio, mas de fazer das palavras o
lugar em que o individuo se revela em sua dimensão mais funda.
49
BLANCHOT, Maurice. ―Reflexões sobre o Surrealismo. In: A Parte do Fogo. Idem, Ibidem.
164
O próprio Breton, justificando a reedição da obra, demonstra o quanto de
consciente nessa busca surrealista pela liberação da linguagem e do inconsciente, pelo conflito
declaro entre a objetividade do real e subjetividade da consciência, que o apreende nos
interstícios da linguagem:
Subjetividade e objetividade travam, durante o curso de uma vida humana, uma série
de combates, donde no mais das vezes a primeira se sai inteiramente mal. Ao cabo
de trinta e cinco anos (a pátina não é brincadeira), os leves cuidados com que
resolvo cercar a segunda testemunham apenas certa preocupação quanto à forma de
dizer, que só a esta dizem respeito, porquanto o maior valor da outra que continua
a me importar muito mais reside precisamente na carta de amor pontilhada de
erros e nos ―Livros eróticos sem ortografia. (BRETON, 1999, p. 9)
Marcel Raymond, em De Baudelaire ao Surrealismo (1997), traz uma contribuição
decisiva para a compreensão da idéia de que o surrealismo não significa unicamente
automatismo psíquico, escrita automática, linguagem do inconsciente e da vazão ao sonho,
mas que ele comporta fundamentalmente uma atitude filosófica, política e artística, como
outrora o foi o dandismo de Baudelaire, vagando pelas ruas de Paris, povoadas de belezas,
mistérios, paixões e desacertos. Marcel Raymond afirma que a supremacia da voz, do ditado
do pensamento, exige condições favoráveis para acontecer, como a abstração da realidade e o
fechamento dos sentidos para o mundo exterior, alcançando um estado de espírito vizinho ao
sonho, em que o artista prescinde da razão e escreve seguindo o movimento acelerado do
pensamento. E o próprio Raymond defende a idéia de que é impossível para o artista manter-
se completamente fiel a todas essas circunstâncias, que às vezes as obras atingem clareiras
conscientes, e que nem por isso o texto perde em força ou intencionalidade. Em Nadja, há
muito de um projeto consciente por trás de sua escritura: a iconografia, cujas imagens
substituem a descrição, a busca orientada pelo Outro, a proposta de abertura de sentidos por
meio de um discurso francamente poético, que rompe com os limites da objetividade realista e
concebe a verdade do espírito, interior, subjetiva, voltada para a revelação mito-poiética da
própria escritura.
165
O que Raymond quer dizer é que a escrita automática se transformou no carro chefe
do movimento surrealista, e que permitiu à crítica encontrar um porto seguro na hora de
buscar compreender, analisar ou discutir as obras dos principais artistas e teóricos do
movimento. O problema é que o automatismo psíquico acabou por se transformar na
característica redutora e reducionista de todo o movimento. Fala-se em Freud, nos métodos de
interpretação dos sonhos inaugurados pelo austríaco, na investigação do inconsciente de que a
psicanálise lança mão e associa-se a tudo isso a escrita automática surrealista. Assim,
seriam textos legitimamente surrealistas aqueles que admitissem apenas o ditado do
pensamento, que colocassem em questão a capacidade lógica do discurso em dizer qualquer
coisa fora do espaço da subjetividade. Ao contrário do que possa parecer, o grande texto
surrealista é justamente aquele que encontra uma forma de síntese entre a lógica racional do
discurso e os instantes de absoluto delírio criativo, como acontece ao longo de toda a narrativa
de Nadja.
Indo ainda mais longe, o grande texto surrealista é aquele que se transforma, do
princípio ao fim, numa experiência fundamental e revolucionariamente poética. Fundamental
porque se impõe como um modo de superar os limites entre as formas de representação
discursiva a arte, a filosofia, a política e a estética - e revolucionária porque procura
deslocar o indivíduo para o centro extremado da escritura, fazendo desta o lugar primordial do
ser e a fonte de irrupção de um mundo que se manifesta e singulariza o como reflexo de
uma realidade empírica, mas enquanto produção ativa da própria obra. E Breton, logo no
início do romance, aponta a medida exata de suas intenções:
Não tenho intenção de narrar, às margens do relato que vou empreender, seo os
episódios marcantes de minha vida tal como a posso conceber fora de seu plano
orgânico, ou seja, na própria medida em que ela está confiada ao acaso, do mais
ínfimo ao mais alto grau, e recalcitrando contra a idéia comum que dele faço,
introduzir-me no mundo como que proibido das aproximações repentinas, das
petrificantes coincidências, dos reflexos em que se sobressai outra manifestação
além da mental, de acordes placados como no piano, de clarões que fariam ver, mas
ver de fato, se não fossem mais rápidos ainda que os demais. Trata-se de fatos de
166
calor intrínseco sem dúvida pouco controlável, mas que, por seu caráter
absolutamente inesperado, violentamente incidental, e pelo gênero de associações de
idéias suspeitas que despertam, uma maneira de vos fazer passar do fio da Virgem à
teia de aranha, ou seja o que seria no mundo a coisa mais cintilante e mais graciosa,
não era no canto, ou nas paragens, a aranha; trata-se de fatos que, se fossem
passíveis de simples constatação, apresentariam de cada vez todas as aparências de
um sinal, sem que se possa dizer ao certo de que sinal, que fazem com que, em plena
solidão, eu descubra cumplicidades inverossímeis, que me convencem de minha
ilusão todas as vezes que me acredito só no leme do navio. (BRETON, 1999, pág.
18-19)
O surrealismo de Breton, e particularmente o de Nadja, o trata exclusivamente de
dar vazão ao sonho, ao universo onírico de que somos povoados, ao inconsciente pulsante e
feroz, como quer a crítica, o que o Romantismo, mais de um século antes, já havia
conquistado: a liberdade e o sonho como bases da construção estética e artística, como forma
de conhecimento do eu. O surrealismo vai tentar levar a arte aos limites do comportamento
humano, criando uma poética vital, que contamine o mundo a sua volta, que resgate o
indivíduo do abismo caótico em que o século 20 o precipitou. Assim, Nadjao é um
romance puro, como os que escreveram Flaubert, Zola ou Balzac, em fins do século 19. É
uma narrativa que busca a experiência poética absoluta: a poesia essencial do ser, dos seres,
das coisas e da própria arte. E apenas essa busca é que conta, ela importa porque só ela
pode vencer o caos histórico no qual o artista estava terrivelmente mergulhado.
Assim, é preciso entender que narrativas como Nadja, apesar de serem construídas a
partir de dados da vida do autor (lugares que ele freqüenta, pessoas que conhece, mulheres
que ama), ficam muito distantes das fronteiras do relato autobiográfico. O tom confessional,
os fatos e as circunstâncias particulares, os acidentes pessoais não contam. O que há é uma
subjetividade turbilhonada, que aflora ao nível da narrativa e que constitui as bases e o
fundamento do relato. É certo afirmar que o narrador de Nadja é o próprio Breton, mas não é
apenas o autor, o escritor ou o homem, é também sua persona poética, o discurso de que se
faz, a poesia original que o próprio movimento surrealista visa alcançar, a busca por si mesmo
sob aparência de confissão. A narrativa passa a ser uma forma de resgatar-se do limbo do
167
esquecimento ou da total ausência de poesia de que se faz a vida diária, distribuída entre as
coisas pérfidas ou nulas, um modo de ascender novamente depois da queda original.
O que é difícil imaginar ou aceitar é que esse resgate e essa ascensão não sejam um
movimento criativo livre e completamente desordenado, um caos verbal que se precipita na
forma de relato ou narrativa, mas que há não só um estilo como também um rigor de
construção ao nível do discurso que garante e atesta à obra a sua condição estética, artística.
Breton sabe que se a realidade é algo mais ou menos objetivo, dado, empírico, a memória não
o é, e aceita essa condição como fonte primeira do processo criativo, das associações de
idéias acontecerem livremente em Nadja, sem que possamos afirmar que tudo na obra de
Breton seja puro e simples ditado do pensamento, voz do sonho, delírio imaginativo ou
imagético:
Não se espere de mim a narrativa integral do que me foi dado experimentar nesse
domínio. Limitar-me-ei aqui a lembrar sem esforços de fatos que,
independentemente de qualquer instância de minha vontade, ocorreram comigo, e
que me dão, por vias insuspeitáveis, a medida da graça e da desgraça particulares de
que sou objeto; deles falarei sem ordem preestabelecida e conforme o capricho da
hora que os fizer vir a tona. (BRETON, 1999, pág. 21-22)
(Poderia acaso ser de outra forma, que queria escrever Nadja?) pouco importa
que, aqui ou ali, um erro ou omissão mínima, e mesmo certa confusão ou um
esquecimento sincero projetem uma sombra sobre a narrativa, sobre o que, em seu
conjunto, o seria possível de suspeita. Gostaria enfim que não se levassem tais
acidentes do pensamento à sua injusta proporção de fatos diversos e que se digo, por
exemplo, que em Paris a estátua de Étienne Dolet, na praça Maubert, sempre me
atraiu e ao mesmo tempo me causou o mais insuportável mal-estar, não se
deduzir daí imediatamente que eu seja, em tudo e por tudo passível de psicanálise,
método que aprecio embora pense que ela visa apenas a expulsar o homem de si
mesmo, e da qual espero um alcance superior às meras funções de meirinho.
(BRETON, 1999, pág. 22-25)
Assim, muito do que se convencionou chamar de escrita automática é, na obra de
Breton, o trânsito livre da memória que se dissipa antes mesmo de ganhar seus contornos mais
ou menos definitivos. Esse processo, longe de conceber uma narrativa totalizante do o ser, da
existência, acaba por se impor como a expressão fragmentária, fraturada, das relações entre a
memória e a percepção do real. A realidade, então, passa a ser tomada como a apreensão
168
memorialística de pedaços, estilhaços, fragmentos de um mundo que o narrador reconhece
como Paris com suas ruas, pessoas, rostos, cafés, teatros, o Senna, e etc. , mas que o
pode ser divisado, no interior da obra, senão como um espaço em permanente diluição, porque
as lembranças que os ordenam é a mesma que se sujeita às imprecisões da memória:
Nadja é um texto construído de fragmentos bem diversos não apenas quanto aos
gêneros de discurso, como também quanto ao tom utilizado pelo narrador. Ora
temos a sensação de estar perante explanações teóricas sobre conceitos basilares da
ética surrealista, como quando o narrador expõe suas convicções sobre o poder do(s)
encontro(s), nas primeiras páginas de Nadja, ou como, quando, nas últimas, se lança
naquela crítica iconoclasta das ptica psiquiátrica dominante, durante as quais a
fidelidade ao tal tom próprio da ―observation medicale‖ atinge o seu ponto mais alto,
embora, como quase sempre acontece na narrativa surrealista, os planos literal e
metafórica se fundam permanentemente. Ora julgamos estar no domínio do
romance cuja história é contada sob a forma de diário, como quando nos são
relatados o encontro e o conseqüente relacionamento com Nadja, constitutivo da
parte central da narrativa. Umas vezes, parece estarmos a ler testemunhos esparsos
de episódios autobiográficos, como quando Breton nos fala de vários encontros e de
várias experiências vivenciais, dos ―rapprochements soudains‖, das ―pétrifiantes
coïncidences‖ (p. 20), envolvendo, na maioria dos casos os seus amigos surrealistas.
Outras vezes, sentimo-nos mergulhados nas evocações líricas próprias da prosa
poética, como, evidentemente, no apelo das últimas páginas dirigido a essa
misteriosa imagem de mulher. (LIMA, 1990, p. 62)
50
A fragmentação discursiva, em Nadja, advém da busca por um modelo discursivo que
remeta, mais do que a simples representação do mundo, a idéia mesma de Darstellung, isto é,
uma forma de exposição anti-discursiva, no sentido de que não se propõe refletir a realidade,
mas sim apreen-la em seus movimentos dinâmicos, que se acentuam graças a perspectiva
de flaneur adotada pelo narrador. Assim, o mundo da obra é múltiplo e vário porque nunca é
percebido de um ponto de vista estático. Vagar pelas ruas, buscar os ―acasos objetivos‖, os
encontros fantásticos, os absurdos das situações cotidianas termina por impor à narrativa a
apresentação de uma realidade que é entrevista sempre de passagem, ocasionalmente, de
forma casual, sem que seja possível proceder a sua recomposição como totalidade objetiva. E
o mesmo se dá com o próprio sujeito da obra: a percepção de si mesmo, as fluências e
50
LIMA, Isabel Pires. A impossível colagem do eu ou o jogo fragmentário em Nadja‖. Revista Intercambio.
Porto: Universidade do Porto, 1990, p.59-86. Disponível, também, em
http://repositorio.up.pt/aberto/handle/10216/9236
169
confluências da memória nunca permitem que ele se perceba como uma unidade
indevassável:
O surrealismo é uma dessas tentativas pelas quais o homem pretende se descobrir
como totalidade: totalidade inacabada e, no entanto, capaz, em um momento
privilegiado (ou pelo simples fato de ser ver inacabada), de se tomar como
totalidade. Como é ao mesmo tempo movimento inspirado e movimento crítico, ele
mexe com todos os pontos de vista, todos os postulados, todas as pesquisas
conscientes e confusas, mas a principal intenção é clara: o surrealismo está a procura
de um tipo de existência que não seja o do ―dado‖, do feito (ele não sabe bem se
essa existência ―outra‖ pode ser alcançada pela análise, por experncias
investigadoras, como as do inconsciente, do sonho, dos estados anormais, por um
apelo a um saber secreto enterrado na história, ou se deve ser realizada por um
esforço coletivo para mudar a vida e o curso dos acontecimentos). E ao mesmo
tempo está a procura de um fato absoluto, em que o homem se manifeste em todas
as suas possibilidades, isto é, como o conjunto que as supera. (BLANCHOT, 1997,
p. 95)
Nesse sentido, Breton faz questão de lançar determinadas luzes sobre a obra que
acabam por desmentir a crença pueril de que se pode conceber um livro, um relato, uma
narrativa a partir dos dados empíricos da realidade sem que estes se submetam aos arranjos e
desarranjos da memória, bem como não é possível criar um mundo unicamente a partir dos
dados brutos do inconsciente, de sua massa disforme de pensamentos, idéias, imagens ou
afetos. Nadja representa, em muitos aspectos, a idéia de Albert Camus segundo a qual criar é
dar forma ao próprio destino. Breton concebe a si mesmo em sua obra, na tentativa de revelar-
se, antes de qualquer coisa, a seus próprios olhos, mas num movimento descontínuo,
fragmentário, que desarticula o eu e suas relações com o real. Entretanto, o que faz de Nadja
uma obra universal está diretamente ligado ao fato de que as experiências vividas por um
único homem podem, no tempo, acabar por pertencer a todos. E que as experiências coletivas
o são nada senão o reflexo de anseios, vontades e desejos individuais, que se disseminam e
ganham formas através do único instrumento verdadeiramente coletivo de conhecimento: a
linguagem.
A linguagem, em Nadja, não fala ou comunica porque prescindiu de sua condição
comunicativa. Quer alcançar o estado onírico em que rompe as fronteiras da lógica e passa a
170
ser um universo poético, um discurso arrebatado pelo fogo irrefletido da paixão. É possível
que Flaubert, Zola ou Balzac rejeitassem decididamente Nadja pelo simples fato de que o
romance, em suas características fundamentais, delira nas mãos de Breton. Não enredo,
linearidade, tempo ou espaço verdadeiramente definidos. Personagens reais, como o pintor De
Chirico ou o poeta Paul Éluard, coabitam as ruas de Paris ao lado de toda a sorte de criações e
invenções promovidas pela imaginação fulgurante do narrador-Breton, que sequer pode ser
entendido como o sujeito empírico denominado André Breton. O autor mesmo funde-se e
confunde-se com aquele que narra. A prosa, enquanto instância comunicativa, deixa-se
permear por uma poesia recalcitrante, que, desde o início, determina e justifica a própria
narrativa. Tudo se distende aos limites inconfundíveis de uma existência e de um discurso
francamente poéticos.
A poiésis criadora é uma forma de auto-conhecimento, a linguagem do desvelamento,
da revelação mais funda do ser. Por isso Fulvia M. L. Moretto, em seu ensaio Os Arcanos da
Poesia Surrealista, afirma:
O Surrealismo, que foi em primeiro lugar uma filosofia, uma procura, para
transformar-se em seguida numa poética. (...) Isto significa considerar a poesia como
uma metafísica, uma forma de conhecimento. (...)
Desde as ―sessões de sono‖, com os célebres sonhos de Desnos e sua extraordinária
capacidade de adormecer, o Surrealismo afastara-se do dadaísmo, com o qual tivera
no início alguns pontos comuns.ao contrário deste último, que insistia na destruição
da forma, o Surrealismo queria também construir através da escritura e da fala,
queria colher as revelações trazidas pelas palavras. E a linguagem será então uma
conquista poética e pessoal que irá atingir o eu profundo. Liberto da sintaxe e dos
elos lógicos, o conhecimento surge agora em forma de poética. Eu e referente,
unidos, desabrocham na mensagem-poesia. (MORETTO, 1994, pág. 88-89)
Não apenas a poesia das formas, dos ritmos, dos versos, mas também, e
principalmente, a poesia como forma essencial de expressão, como discurso original, que se
lançou no tempo, que ganhou contornos e lugar nos manuais de arte poética, mas que continua
sendo a linguagem por excelência, o lugar do homem e o modo deste encontrar seu lugar no
mundo. Narrativas poéticas, como Nadja, são instrumentos de investigação, conhecimento,
171
definição e desvelamento do ser, do mundo e da própria obra, que se oferece como criação
auto-reflexiva, que se pensa a si mesma, mas que se impõe ao pensamento a partir do mito da
linguagem de fundação, ou seja, aquela que não representa o real, mas que lhe dá origem. Por
isso não é exagero afirmar que as narrativas poéticas, assim como a poesia mesma, concebem,
sob o signo da arte, uma verdadeira ontologia, um mergulho nos labirintos insondáveis da
alma humana. Nesse sentido, em nada ficam a dever a qualquer tratado filosófico, a qualquer
grande ensaio ontológico que defina as bases essenciais da existência. Desse modo, pode-se
dizer que as narrativas poéticas partem sempre da experiência individual e fazem do ser, do
ente, da memória e do esquecimento a causa e o fim último de sua existência.
Uma Escritura da Libertação.
Walter Benjamin, em O surrealismo. O último instantâneo da realidade européia,
acredita que o surrealismo foi o movimento artístico que mais perto chegou da revolução
social proposta pelo marxismo. Isso porque:
Em todos os seus livros e iniciativas, a proposta surrealista tende ao mesmo fim:
mobilizar para a revolução as energias da embriaguez. Podemos dizer que é essa a
sua tarefa mais autêntica. Sabemos que um elemento de embriaguez está vivo em
cada ato revoluciorio, mas isso não basta. Esse elemento é de caráter anárquico.
Privilegiá-lo exclusivamente seria sacrificar a preparação metódica e disciplinada da
revolução a uma práxis que oscila entre o exercício e a véspera da festa. A isso se
acrescenta uma concepção estreita e não-dialética da essência da embriaguez. A
estética do pintor, do poeta en état de surprise, da arte como reação do indivíduo
―surpreendido‖, são noções excessivamente próximas de certos fatais preconceitos
românticos. Toda a investigação séria dos dons e fenômenos ocultos, surrealistas e
fantasmagóricos, precisa ter um pressuposto dialético que o espírito romântico não
pode aceitar. (BENJAMIN, 1994, pág. 32-33)
Mas um certo engano que o pensamento marxista do próprio Benjamin não entrevê
em seu argumento: o surrealismo o é uma estética programática, ou seja, além dos
manifestos, que têm um fundo muito mais artístico, cultural, poético e existencial do que
propriamente político, o movimento surrealista não criou uma arte que possa ser chamada
francamente de panfletária, que teorizasse a respeito dos males sociais do capitalismo
selvagem, ou da sociedade industrial. Ao contrário, muitos dos surrealistas flertaram com o
172
estado de coisas da sociedade européia da época. Antes de tudo, a preocupação central do
surrealismo é operar a transformação essencial do indivíduo, o que, por si , é uma forma
de manter afastado, ou em segundo plano ao menos, qualquer ideal coletivista:
Em nome dos seus amigos escritores, Naville lança um ultimátum, diante do qual
esse otimismo inconsciente de diletantes não pode deixar de revelar suas verdadeiras
cores: onde estão os pressupostos da revolução? Na transformação das opiniões ou
na transformação das relações externas? É essa a questão capital, que determina a
relação entre a moral e a política e que não admite qualquer camuflagem. Os
surrealistas se aproximam cada vez mais de uma resposta comunista a essa pergunta.
O que significa: pessimismo integral. Sem exceção. Desconfiança acerca do destino
da literatura, desconfiança acerca do destino da liberdade, desconfiança acerca do
destino da humanidade européia, e principalmente desconfiança, desconfiança e
desconfiança com relação a qualquer forma de entendimento mútuo: entre as classes,
entre os povos, entre os indivíduos. (BENJAMIN, 1994, pág. 33-34)
O que, de certa forma, Walter Benjamin omite neste pensamento é o fato de que
determinados movimentos estético-artísticos são mais revolucionários do que outros, isto é,
pressupõem, em essência, um rompimento mais ou menos drásticos com os padrões do gosto
estabelecido: ou porque em em vida os valores sociais determinados ou porque rejeitam
qualquer tipo de visão judicativa sobre a arte e sobre o próprio indivíduo. O Romantismo, por
exemplo, seguindo na esteira do pensamento iluminista e dos ideais propagados pela
Revolução Francesa, configurou-se, no início, como o mais revolucionário de todos os
movimentos artísticos da história da humanidade, superando mesmo o humanismo
renascentista que logrou jogar alguma luz sobre as trevas da Idade Média. Com o tempo, os
valores revolucionários se esgarçaram e o movimento romântico derivou para um
nacionalismo o raro reacionário. O surrealismo, como não poderia deixar de ser, também é
um movimento de caráter profundamente revolucionário e contestador da ordem social,
política e estética vigente, o que não quer dizer que caminhasse, necessariamente, ao encontro
dos ideais marxistas ou comunistas.
Em Nadja, por exemplo, é patente que o desejo de transformação da realidade é um
processo que principia com o indivíduo e, sob muitos aspectos, se esgota nele. Assim, todo o
movimento estético-artístico é revolucionário porque depende sempre, em última análise, da
173
utopia transformadora que o guia e o justifica. O que é uma transformação estética, a
princípio, ganha formas, agiganta-se, aproxima-se da fratura, da quebra, da ruptura não só dos
padrões e modelos estabelecidos pela história da arte, mas também das tradições, modelos e
padrões sociais de conduta e comportamento sócio-históricos. O surrealismo nada mais é do
que uma tentativa radical de transformar o comportamento humano, de rever a condição
humana através de um mergulho quase irresponsável nos interiores do espírito, o que equivale
a dizer que sua revolução é mais subjetiva, pessoal e singularizada do que necessariamente
social. A proposta era reformar, em primeiro lugar, a própria subjetividade, a própria maneira
de sentir do artista, para só, então, transformar a sociedade. Assim, é muito mais uma atitude
filofica do que uma práxis política, sendo que esta última representava a característica seria
essencial para que se concretizassem as esperanças revolucionárias de Benjamin.
E o pessimismo não chega a ser a determinante do movimento surrealista. Ao
contrário do que pode transparecer num primeiro momento, o surrealismo acredita
fundamentalmente no poder encantatório da palavra, no verbo encarnado, na possibilidade,
ainda que remota, de fundar um mundo, uma realidade, um lugar do homem e para o homem
em que tudo seja e esteja permeado por uma poética essencial, fundamento mesmo de uma
nova vida. não se pode confundir essa crença quase stica no poder transformador da
poesia com o ideal de uma práxis política ordenada, uma contribuição ao pensamento
politicamente engajado ou orientado. As atitudes filosóficas, principalmente as que se centram
na investigação ontológica do homem, nem sempre significam um modo de ação, um sonho
socialista-marxista de transformação da realidade imediata. A aproximação dos surrealistas
com o comunismo foi, na verdade, a última dimensão utópica de uma estética que se
propunha rever as relações do indivíduo com sua própria subjetividade e com o real que lhe
era subjacente. O surrealismo é e deve ser percebido como a revolta do indivíduo e apenas
nesse sentido ele representa uma utopia transformadora.
174
Por isso Marcel Raymond afirma:
Itinerário bastante desconcertante, pelo menos à primeira vista, Breton e seus
amigos aprovam a frase célebre do Manifeste Communiste onde Marx afirma que é
tempo de tentar transformar um mundo que durante muito tempo, e em vão, se
tentou explicar; mas eles não entendem que a vontade de transformar este mundo
prejudica a de o conhecer. Esforçam-se para se manter na crista que separa essas
duas atividades, e podemos acreditar que esperam dessa forma trabalhar e aumentar
os poderes e as chances desse Espírito para cuja vinda alguns deles, por volta de
1925, queriam tudo sacrificar. Além disso, um quadro do surrealismo exigiria que
fossem levados em conta heresias e hereges; no campo da Revolução, poética ou
outra, os não-conformistas não são sempre os menos interessantes. (RAYMOND,
1997, pág. 246)
E o principal grito de liberdade em Nadja pode ser confundido com todo o tipo de
liberdade à qual um homem pode aspirar, inclusive a liberdade política:
A maioria dos passageiros são pessoas que estão saindo do trabalho. Senta-se em
meio deles, procura descobrir-lhes na fisionomia o motivo de suas preocupações.
Pensam seguramente nas tarefas de que estão livres a amanhã, somente até
amanhã, e também no que os espera à noite, algo que os alegra ou os deixa ainda
mais preocupados. (BRETON, 1999, p. 64)
Breton continua, em seu diálogo com Nadja:
―Há pessoas admiráveis.‖ Mais emocionado que gostaria de parecer, desta vez me
zango: ―Coisa nenhuma. Para começo, não se trata disto. Tais pessoas não podem
ser admiveis, que suportam o trabalho juntamente ou o com todas as outras
misérias. Como isto poderia elevá-las, se a revolta nelas não é mais forte do que o
resto? Naquele momento, você mesma, aliás, pode observar, nem sequer aem. De
minha parte, odeio com todas as forças essa escravidão que me querem impingir por
meritória. Lamento que o homem esteja condenado, que o possa em geral subtrair-
se a ela, mas não será a dureza da sua pena que me dispo em seu favor: é e será
apenas a veemência do seu protesto‖. (BRETON, 1999, p. 64-65)
O desabafo crítico do autor é a única passagem de todo o livro que nos permite
entrever um certo posicionamento político, que pode também ser fruto de uma indignação,
aquela indignação de quem se coloca diante de toda e qualquer injustiça pronto a denunciar a
miséria do mundo:
Sei que na fornalha da usina, ou diante de uma dessas máquinas inexoráveis que
impõem o dia inteiro, com alguns segundos de intervalo, a repetição do mesmo
gesto, ou em qualquer parte sob ordens menos aceitáveis, ou na cela, ou diante de
um pelotão de fuzilamento, o homem pode mesmo sentir-se livre, mas o é o
martírio que sofre o que cria essa liberdade. A liberdade, como aspiro, é um
permanente quebrar de grilhões: contudo, para que tal quebrar seja possível,
175
constantemente possível, é necessário que as cadeias não nos esmaguem, como
fazem com muitos daqueles de quem você fala. Mas a liberdade é tamm, e talvez
humanamente mais ainda, a seqüência de passos mais ou menos longa, porém
maravilhosa que é permitido ao homem dar fora dos grilhões. (BRETON, 1999, p.
65)
O elogio das pessoas admiráveis vai se transformando numa aula de ceticismo e
dúvida na qual essas mesmas pessoas passam a ser percebidas como aquelas que se
conformaram e que aceitaram o próprio destino, algo contrário aos ideais e às motivações do
artista, que aspira à liberdade essencial do indivíduo que, das mais variadas maneiras, resiste e
o se entrega:
Você acha que seriam capazes de dar esses passos? Terão sequer tempo para dá-los?
Terão coragem suficiente? Pessoas admiveis, diz você, está certo, admiráveis
como aqueles que se deixaram matar na guerra, não é mesmo? Ora essa, os heróis:
um punhado de infelizes, um bando de imbecis. De minha parte, posso afirmar,
esses passos são tudo. Para onde vão, eis a verdadeira questão. Acabarão afinal por
traçar uma nova rota e sobre ela quem sabe não aparecerá o meio de libertar ou de
ajudar a libertar os que o puderam seguir? então será conveniente retardar um
pouco, sem contudo voltar atrás. (BRETON, 1999, pág. 65-66)
Não chega a ser um libelo da revolução comunista. Na verdade, o interesse principal
de Breton é libertar o indivíduo. O surrealismo é o mecanismo e o processo para essa
libertação quando busca desafiar os padrões do gosto, romper os limites estéticos da arte bem-
comportada, dar vazão às vidas, aos temores e às angústias interiores do espírito,
procurando revelar-se, transformando o mundo numa constante epifania, numa interminável
iluminação poética. Nadja é o exercício da transcenncia por meio da solidão absoluta do
escritor, do homem, do indivíduo. É a libertação de uma subjetividade latente que fora minada
por dentro pelo racionalismo técnico-científico, uma tentativa de aar o vôo mais alto que se
pode conceber: conhecer-se a si mesmo através de um escrutínio contundente não da alma,
mas dos mecanismos e processo narrativos que permitem conceber o mundo da obra como
uma realidade em si mesma, que, sob muitos aspectos, isola o sujeito do mundo empírico,
real. E a solidão do homem que caminha pelas ruas de Paris, entre rostos desconhecidos,
176
cinemas, teatros, livrarias e monumentos, é o reflexo da solidão primordial, exigência
primeira a qualquer tentativa de auto-conhecimento.
Nadja, como já dissemos, é o périplo existencial, artístico e filosófico de André
Breton. Breton é o personagem de si mesmo ao longo de toda a narrativa. Vagando pelas ruas
de Paris, recorda todos os grandes artistas de que priva da amizade, do respeito ou do afeto.
Conhece Nadja, uma mulher misteriosa, que desperta nele, am de um amor profundo e
inexplicável, uma necessidade urgente de entender, de descobrir, de encontrar-se a si sob os
gestos amorosos, indefinidos e vagos dessa mulher alheia a toda a realidade. Nadja é tão
etérea quanto o sonho surrealista, é tão volátil quanto a memória e tão livre quanto a palavra.
Nadja é o verbo encarnado. Mas isso tudo o impede de percebermos a inalienável solidão
do escritor, solidão que permeia cada instantâneo da Verdade que o escritor logra encontrar. E
Nadja é uma história de amor também: pela arte, pela literatura, pelo ato de escrever, de dar
forma ao mundo através das palavras, uma história de amor por si mesmo e pelo outro, esse
desconhecido de nós.
Breton conhece muito bem o destino do escritor. Destino francamente contraditório:
ser sempre um em seu ato de criação, a despeito de todas as paixões, ódios ou amores que
pode despertar. Escrever é a forma mais gratuita de solidão, abandono e renúncia, porque todo
o escritor é um proscrito em seu próprio lugar, entre os seus. sempre um exílio indistinto,
incompreensível, que o cerca e o invade, que o obriga aos desesperos, revoltas, frustrações ou
alegrias mais amargas. Escrever é uma auto-violação porque significa, em maior ou menor
grau, o mergulho sempre arriscado em si mesmo, o naufrágio de todas as idéias e de todas as
crenças numa realidade mais ou menos ordenada. Escrever é reinventar essa realidade, o
mundo, as relações humanas que se podem estabelecer ao longo do tempo. Nadja é o
resultado, em perspectiva, do escritor condenado ao ostracismo. É um livro que ensaia o livro.
E uma história de renúncia e solidão.
177
Assim, reconhecemos em Nadja, a miséria que assola o escritor. O escritor é um
miserável não no sentido social, político ou ideológico do termo, o de indigência ou pobreza
material absolutas, falta de recursos, desvalimento financeiro. A miséria do escritor é de
fundo moral. A miséria no sentido etimológico latino: tudo o que é digno de compaixão, que
inspira compaixão, patético, triste, deplorável. E não nada mais digno de pena do que o
escritor, alguém que passa a vida toda lutando contra a essência de sua própria condição. Cria
para deixar de ser só, para ratificar sua solidão, e oferecê-la, plena e desconfortante, ao outro.
Se não fosse assim, nada justificaria, em Nadja, o périplo poético de seu narrador, a busca
pelo encontro, que nunca se concretiza, que está condenado, como o próprio indivíduo, como
a própria obra, a permanecer irrealizado, inconcluso, aberto como possibilidade infinita.
Sendo assim, podemos entender Nadja, essa mulher difusa e vaga, que o narrador busca de
forma exasperada ao longo de toda a narrativa como o símbolo fundamental da escritura:
traço, marca, assinalação de uma ausência.
Escrever é uma forma de incomodar o outro com a mesma matéria de que se faz o
outro: somos todos mais ou menos sós, vivemos todos uma solidão mais funda e
transcendente a toda e qualquer aspiração coletivista, socialista, democrática, liberal.
Confundimo-nos com o Homem na Multidão, o personagem de Edgar Alan Poe, que se
descobre abandonado em meio ao universo de seres e coisas que o cerca, incapaz de viver
plenamente consigo mesmo, e que, seguindo um velho decrépito, reconhece seu próprio
crime: a solidão inviolável da qual acabamos por nos vitimar. O drama da disjunção, da
incompreensão, da ausência outra metáfora do ato de criação. Em Nadja, as andanças de
Breton por Paris, seus encontros e desencontros, simbolizam profundamente o destino
daquele que escreve e que pensa a linguagem como a essência transcendente do home, que
pode conduzi-lo à superação de si mesmo, ao entendimento de si mesmo.
178
O escritor é uma criatura miserável, sim, compondo e recompondo o mundo através de
fragmentos, lembranças, memória, esquecimento, idéias e sensações, que se destinam à
criaturas tão miseráveis quanto ele. E o nos referimos apenas à miséria de caráter
simplesmente, a degradação ou o vício, falamos da miséria de se saber e reconhecer sozinho
entre os seus, algo entre difuso e vago, irreconhecível, sempre e inevitavelmente irrefletido,
numa solidão impenetrável, porque a essência mesma de todas as suas motivações artísticas.
Breton se reconhece verdadeiramente em Nadja, seu duplo, o outro, seu lugar no mundo
porque produto da linguagem, porque tão diferente e estranha em relação a qualquer mulher
possível ou real.
O paradoxo em que se insere o escritor é justamente esse: escrever é um ato de
vontade, de deliberada vontade, um desejo urgente e incontrolável, que beira a ânsia ou a
angústia, o desespero ou a melancolia e que, ao mesmo tempo, por conta de tantos abismos,
projeta sobre ele a sombra claustrofóbica da solidão. Apesar de possível, a solidão aqui o é
apenas aquela que sofremos com a ausência do outro, real, concreto e palpável, e sim um
estado de espírito, uma maneira de ver e perceber o mundo como quem reconhece o abandono
de cada coisa ou pessoa, o anonimato e a distância.
Em Nadja, encontramos o destino primeiro do poeta: não o de viver em solidão,
simplesmente, mas o de transformar a solidão, seguindo sempre numa eterna luta contra a cal
abrupta dos dias, inventando amores, mulheres, musas, amigas e companheiras, para ir
fazendo da vida algo cada vez mais cheio de tudo, algo que valha a pena e a dor de ser
vivida, como diria Manuel Bandeira. Assim, como afirma Blanchot,
A característica de Breton é ter sempre mantido solidamente ligadas tendências
inconciliáveis. Nada de literatura e, no entanto, um esforço de pesquisa literária, um
cuidado de alquimia figurada, uma atenção constante para os processos e as
imagens, a crítica e a técnica. O que conta não é escrever (―Penso que a poesia...
emana mais da vida dos homens, escritores ou não, que do que eles escreveram ou
do que pensamos que poderiam ter escrito.‖ E nos lembramos da célebre pesquisa de
Literatura: Por que escrevemos?, e as únicas respostas recebidas com certa
consideração são as de Valéry: ―Escrevo pro fraqueza‖, e a de Knut Hamsum:
179
―Escrevo para a adiar o tempo). E, contudo, escrever é importante; escrever é um
meio de experiência autentica, um esforço mais do que válido para dar ao homem a
consciência do sentido de sua condição. (1997, p. 93-94)
Patético é ter de se reconhecer um e escrever como quem implora por uma atenção
minguada, pouca, displicente. Patético é ser alvo do próprio abandono, das verdades que cria.
É como se Breton quisesse dizer que se tivéssemos de nos compadecer de alguém, que o seja
do escritor, que merece nossa piedade pelo sentimento de renúncia, entrega e solidão que essa
criatura carrega consigo, por tudo o quanto acredita e que não o consola jamais, em momento
algum. Porque o consolo algum em escrever a não ser a idéia mais ou menos grata e
incerta de que se é lido, admirado ou respeitado; de que se é, possivelmente, amado.
Mas Nadja também é o exercício da transcendência, porque é um mundo poético que
se basta a si mesmo. A poesia cria suas próprias verdades, particulares e intransferíveis, é um
universo de seres e coisas. O mundo ganha forma através da auto-atividade poética. Trata-se
da crença de que a poesia é a única forma possível de nos humanizarmos, porque é ela quem
nos desperta a hora mágica em que realidade e imaginação se fundem no encontro
eternamente sonhado com o Outro, com nós mesmos. Breton sabe disso: cada vez que seu
personagem, cada vez que ele mesmo, transfigurado em persona literária, se entrega às
andanças e aos périplos pelas ruas de Paris, ele sabe que está em busca do Outro, entrevisto na
figura maravilhada de Nadja, ele sabe que está em busca de si mesmo, de respostas, de um
conhecimento que o justifique, de uma atitude filosófica transformadora, nada contemplativa
ou estóica, mas que só se legitima pela arte, nos interstícios da escritura.
Nadja é a busca pela essência poética do homem e do mundo. E nada no mundo vale a
feliz descoberta de um grande poeta, aquela sensação misteriosa e vaga de que algo que não
conhecíamos, que em momento algum vislumbráramos, mas era parte indissociável de nós
desde os tempos imemoriais, irrompe em nossa alma. E essa sensação, tão distinta e ria, que
só os grandes poetas sabem despertar é o que, convencionalmente, chamamos vida. Breton é o
180
poeta de Nadja, o homem-só, o flaneur, que ensaia seus passos, que ensaiam um livro, que
criam e dão forma ao mito da procura e do encontro.
Há muito dos ideais românticos na obra de Breton: a busca pelo impreciso, pelo
misterioso e indefinível, pelas formas fragmentárias, pelos temas universais como os espaços
inescrutáveis da alma, a circularidade do tempo, a descoberta e o encontro com a linguagem, a
transmutação da matéria, a resisncia das palavras, os conflitos que movem o poeta em sua
ígnea paixão: a poesia, essa antiga e delirante maneira de dar forma a um mundo imaginado e
rio que, raras vezes, se dá a ver com tanta precisão como em Nadja, uma narrativa cujo
cerne é a busca por uma essência que, de certo modo, o narrador já reconhece perdida. Ao ler
Breton, ao penetrar o universo gico e insondável de Nadja, é preciso se acostumar a ver a
vida pela luz de olhos alheios, principalmente quando eles a em para além de toda a nossa
compreensão. Nesse sentido, é bom saber que a poesia, aquela que guarda a medida exata do
que somos e fomos, de tudo o que podemos vir a ser, está a salvo na obra deste autor para
quem foi confiada a missão de nos revelar o Mistério de tudo o quanto não se explica, mas
sentimos indelevelmente. É este o exercício da transcendência que Nadja põe em cena no jogo
abismado da escritura. Mas é, também, esta crença em uma criação, em uma auto-
reflexividade poética que desnaturaliza e desreferencializa o real, que o desarticula, por meio
da percepção subjetiva, para rearranjá-lo, de forma fragmentária, inconclusa e inacabada, no
interior da obra; mas é, sobretudo, esta afirmação da narrativa como o lugar possível na qual o
escritor reavê o mundo e o homem para re-apresentá-los por meio do mito de uma existência
feita linguagem e de uma estética vital, que a narrativa pós-moderna irá problematizar de
forma decisiva.
181
4. PÓS-MODERNISMO: UMA LITERATURA AOS PEDAÇOS
4.1. Uma Tentativa de (In)Definição
Pensar, falar ou escrever sobre o s-modernismo ou sobre a s-modernidade, suas
linhas de força, suas teorias que o muitas e nem sempre amigáveis ou harmoniosas -, seus
conceitos, suas formas de articulação, é algo complexo e desafiador, que nos faz,
inevitavelmente, corrermos o risco de, na tentativa apressada de definição, espécie de palavra
de ordem para a crítica, indefinirmos ainda mais o objeto e o fenômeno do s-modernismo.
Isso porque, em linhas gerais e com exceção feita ao Romantismo, nunca um modo de
pensamento - político, filofico, cultural ou sociológico -, um momento histórico, uma
tendência estética ou uma forma de perceber a própria contemporaneidade, foi, ao mesmo
tempo, tão vindicado e combatido quanto à pós-modernidade.
Críticos como Fredric Jameson e Terry Eagleton, de formação estritamente marxista,
para quem a arte significa a expressão viva, a representação pulsante, sob o signo estético, das
relações de força estabelecidas dentro do complexo orgânico que é a sociedade, viram na pós-
modernidade um momento de ruptura, disjunção esquizofrênica, negação dos grandes
discursos, das grandes formas de pensamento, das grandes ideologias políticas, culturais ou
estéticas que o racionalismo crítico e o materialismo hisrico do século XIX haviam legado
ao escopo filosófico ocidental. Assim, críticos como Fredric Jameson, Terry Eagleton e,
talvez, o próprio Jean Baudrillard, considerado um teórico de primeira ordem da sociedade
contemporânea, pensam o fenômeno do s-moderno como uma forma radical e esterilizante
de niilismo; um movimento ressentido, que opera pelos princípios da negação e do desespero,
mas tão absolutos que chegam aos limites do que se poderia chamar de um anti-humanismo. É
assim, por exemplo, que em As Ilusões do Pós-Modernismo, de Terry Eagleton, nós
encontramos as mais duras críticas ao fenômeno s-moderno enquanto um momento da
182
hisria do pensamento que teria renunciado à ação, à práxis política, à discussão dos grandes
temas humanos, em nome de um relativismo tout court que nada mais significa do que a
transformação da ―história passada em matéria-prima para consumo contemporâneo‖ ou uma
tendência que, às vezes, ao tentar definir-se historicamente, ao tentar conceber uma aventura
historicista, epistemológica, crítica, se veria ―tentado a contar uma fábula do assim chamado
―sujeito unificadoque soa extremamente não-histórica que, na verdade, se parece demais
com as grandes narrativas que ele repudia‖ (1998, p. 42-42).
Desse modo, as críticas aos-modernismo manifestam-se a partir de uma perspectiva
social, política e cultural que trata de pensar a contemporaneidade e suas manifestações
tecnológicas, consumistas, mercadológicas, globalizadas e profundamente reificadas como
reflexo de um tipo de pensamento, e de discurso, que não se conforma com os modelos
substancialistas e os grandes relatos crítico-teóricos do passado, como o marxismo ou a
psicanálise, por exemplo, e que propõe uma visão de mundo e sociedade supostamente
relativista, fragmentada, que transforma a percepção do real e seus conflitos e desigualdades
em mera construção discursiva na qual os valores político-ideológicos se pulverizam num
pluriperspectivismo descentralizador, que não reconhece na história ou nos conflitos de
classe uma manifestação mais profunda, concreta ou imediata do real, transformado em pura
textualidade, disseminado por meio de jogos de linguagem que rejeitam as verdades
estabelecidas das narrativas mestras do passado:
Não existe, portanto, a possibilidade de uma escolha simplória entre a história como
formato de história e a história como um grande caos, do tipo que alguns pós-
modernistas nos impingiram. Se as narrativas são o que vivemos e relatamos, não há
então como ver a história material como um texto de todo insolúvel, à espera dos
arranjos artificiosos do relato selecionado ao acaso por algum teórico. Essa é a visão
privilegiada daqueles sortudos o bastante para desconhecer que os projetos
históricos às vezes têm metas muitíssimo determinadas segundo a perspectiva de
suas vítimas. O fato de que não existe nenhum ―vale-tudo‖ para essas vítimas
costuma ser um caso para lamentar. Negar que a história é ―racional‖ no sentido
otimista e hegeliano da palavra não significa necessariamente negar que ela chega a
nós em uma forma inflexivelmente específica. Com efeito, Marx via a história ao
mesmo tempo determinada e irracional, e o socialismo pretende torná-la bem menos
as duas coisas. (EAGLETON, 1998, p. 104)
183
Essa forma de perceber a história como um relato ordenado, cujo sentido pode ser
apreendido e que se precipita, desde o passado, num fluxo contínuo que se legitima pelas
mudanças e pelos progressos que traz consigo é uma visão que resulta, em boa parte, do ideal
Iluminista de modernidade enquanto projeto de afirmação racional, técnica e progressista do
homem e da sociedade num desenvolvimento constante, organizado e controlado. Trata-se,
evidentemente, de uma forma de pensar a história que a livraria de toda crença, de todo
misticismo, de todo o peso da tradição religiosa judaico-cristã, por exemplo, que concebeu
uma visão de história na qual o homem caminha em linha reta na direção de seu próprio fim,
que é também o lugar de sua ressurreição. A história racionalista e determinada dos
iluministas, bem como a história materalista, de Marx, fazem do pensamento, do indivíduo ou
das classes os sujeitos transformadores da sociedade e, por conseqüência, da própria história:
A indeterminação histórica, no sentido de uma sociedade mais à vontade e
desimpedida, menos submissa a categorias abstratas ou a forças que perturbam como
uma catástrofe natural, representa para o socialismo um objetivo ainda por atingir, e
que equivaleria a sair de baixa da determinação sombria do passado. Uma história
mais sujeita ao controle racional nos assomaria bem menos como algum destino
implacável, motivo pelo qual, com o perdão dos pós-modernistas, a racionalidade e
a liberdade caminham juntas. Para o pós-modernismo, essas coisas costumam se
encontrar enfileiradas em lados opostos das barricadas teóricas, enquanto uma Razão
imperiosa ameaça repelir nossos desejos transgressores. Nesse sentido, como vimos,
o conceito pós-moderno de liberdade tem dificuldade de avançar para além do
conceito liberal negativo ou ultrapassado, e às vezes até foge dele. (EAGLETON,
1998, p. 104)
Eagleton estabelece uma visão excessivamente reducionista do pós-modernismo e suas
relações com a história, por exemplo. Ao instabilizar os metarrelatos, as grandes narrativas
totalizantes e teleológicas sobre a história e o desenvolvimento das sociedades capitalistas
avançadas, as narrativas s-modernas não rejeitam a própria noção de histórica,
desenvolvimento, progresso, tensões ou conflitos de ordem material, mas sim problematizam
o modo de compor esses relatos, a idéia de que a história pode ser representada como um
conjunto de fatos que se dispõem e organizam harmonicamente no interior dos relatos, que se
184
articulam de forma lógica, precisa, direta e objetiva. Seria um engano pensar que um romance
como O Livro de Daniel, de E.L. Doctorow, não se fundamente, sob muitos aspectos, na
crença de uma história progressista, racional e teleológica, ao contrário, se o fosse essa
crença não haveria motivos para que ele se voltasse para um dos temas mais desconfortáveis
da história contemporânea norte-americana: o julgamento, a condenação e a execução dos
dois únicos cidadãos americanos julgados por espionagem e alta-traição durante o período
macarthista nos Estados Unidos.
O que interessa a Doctorow é justamente reconstruir o passado a partir do ponto de
vista das vítimas, mais especificamente, dos filhos delas, dos quais um deles é o próprio
narrador do romance. Esse modelo de narrativa histórica tem como principal objetivo revelar
que, diferentemente das narrativas tradicionais, de caráter realista, causal, monumentalizante e
imparcial, ao assumir a perspectiva individual, singular e pessoal do indivíduo, da vítima
hisrica, a percepção dos fatos e acontecimentos vacila, derrapa, engana-se e confunde-se,
que é vedado a esse tipo de narrador, implicado nos grandes eventos históricos, se dissociar
daquilo que conta. O mesmo se dá com um romance como W ou a memória da infância, de
Georges Perec, em que o relato autobiográfico de uma experiência extrema no caso a
relação com a guerra, os campos de extermínio, a barbárie e o horror do holocausto se
revela como a manifestação fragmentária de uma escritura que se sistematicamente alijada
de qualquer certeza relacionada ao passado, à infância e à história pessoal do narrador que
perdeu o pai na guerra e a mãe em um campo de extermínio.
O problema central da pós-modernidade, então, e que merece atenção e análise
cuidadosa, é que ela não deixa rastros na superfície, não oferece caracteres particulares ou
características singulares que possibilitem sua compreensão ou definição imediata, como
estamos habituados a entrever quando se trata das grandes formas de representação do
pensamento clássico, por exemplo, que se dá imediatamente ao entendimento porque se fiam
185
nas próprias e indiscutíveis verdades que concebem. Ao contrário do Romantismo, do
Simbolismo, do Realismo ou de algumas tendências modernas de vanguarda, como o
Surrealismo, o s-modernismo não significa uma atitude, um gesto, uma postura assumida
pelo intelectual, filósofo ou artista diante da vida, da existência diária, das coisas e do mundo.
O dandismo estranho e contestatório de fins do século XIX, por exemplo, que fazia com que
Baudelaire saísse pelas ruas de Paris com os cabelos pintados de verde, puxando uma
tartaruga pela coleira, recitando os versos demoníacos de As Flores do Mal, é um gesto
impenvel dentro dos limites da pós-modernidade.
As atitudes, os gestos, a postura assumida por Baudelaire diante da arte e da vida
tinham como objetivos questionar os valores éticos, morais, artísticos e culturais que regiam
as relações aceitas e admitidas, muitas vezes cinicamente, pelos indivíduos da época, e
estabeleciam as convenções sociais a serem seguidas, convenções que artistas como
Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé e, mais tarde, Marinetti, Apollinaire, André Breton, Fernando
Pessoa, ou pensadores como Prudhom, Nietzsche, Marx, Heidegger, entre outros, julgavam
superados e, por isso mesmo, questionáveis. A idéia era chocar o pensamento burguês,
derrubar suas crenças, firmar uma sociedade nova, fundada em princípios livres, menos
cínicos ou hipócritas, em valores radicalmente distintos dos que o capitalismo burguês
pregava algum tempo. Na tentativa de romper com o pensamento burguês, com as grandes
formas de representação, com os grandes discursos da época, esses mesmos artistas, filósofos
e pensadores, criaram suas narrativas a partir da tradição do pensamento humanista liberal,
isto é, criaram novas formas discursivas, com novas verdades, procurando superar o que
julgavam passado, obsoleto, esgotado e falacioso no pensamento clássico-realista. Daí a
diferença e a impossibilidade do artista s-moderno em repetir os gestos, as posturas e as
atitudes de intelectuais como Baudelaire ou André Breton, por exemplo: a pós-modernidade
o acredita ou concebe verdades absolutas. Ela, na verdade, propõe questionar a noção de
186
verdade revelando que todo o discurso é resultado de um pensamento que se manifesta como
linguagem e que esta resulta sempre num jogo que concebe, de forma auto-referencial, suas
próprias regras de construção e disseminação de sentidos, tornando problemática sua própria
legitimação. Assim, como aponta David Harvey, em Condição Pós-Moderna:
na medida em que não tenta legitimar-se pela referência ao passado, o s-
modernismo tipicamente remonta à ala de pensamento, a Nietzsche em particular,
que enfatiza o profundo caos da vida moderna e a impossibilidade de lidar com ele
com o pensamento racional. Isso, contudo, não implica que o pós-modernismo não
passe de uma versão do modernismo; verdadeiras revoluções da sensibilidade
podem ocorrer quando idéias latentes e dominadas de um período se tornam
explícitas e dominantes em outros. Não obstante, a continuidade da condição de
fragmentação, efemeridade, descontinuidade e mudança caótica no pensamento
modernista pós-moderno é importante. (2006, p. 49)
51
O pensador, o intelectual ou o artista pós-moderno não fundamenta suas posturas, seus
gestos, suas atitudes diante da vida a partir das idéias e ideais que defendem em suas obras ou
através de seu pensamento. Não a tentativa de romper limites e contaminar a própria vida
com o ideário artístico, estético, político ou filofico do qual compartilham. Isso porque a
pós-modernidade, sob muitos aspectos, não é um movimento ou uma tendência de caráter
contestatório, rebelde ou revolucionário, procurando simplesmente romper com o passado,
com a história, com a tradição, como querem alguns críticos; não opera sob as bases da
dicotomia clássica tradição-ruptura; não se propõe a condição de uma nova vanguarda cujo
objetivo seja a implosão, de dentro, da arte, da filosofia, da política ou mesmo da sociedade
contemporânea. O artista pós-moderno não está interessado em fazer de sua obra um
instrumento de transformação social, política ou histórica, nem está fundamentado no ideal
clássico de valor, de verdade, de síntese e fechamento que norteiam os grandes discursos, as
grandes narrativas do pensamento humanista, do humanismo liberal. Trata-se, para o escritor
pós-moderno, de perceber o mundo em hora estranha, de revelar que o indivíduo não é
capaz de construir certezas mais ou menos duradouras sobre o espaço, o tempo a sociedade na
51
HARVEY, David. Condiçãos-Moderna. 15ª edição. São Paulo: Edições Loyola, 2006.
187
qual se insere porque as mudanças técnico-racionalistas do período das vanguardas se
potencializaram de forma descontrolada, tornando a realidade um lugar de permanente e
insolúvel mobilidade:
O mesmo se dá, por fim, com o que podemos chamar de ideologia. E isso no sentido
estrito do termo, ou seja, do conjunto de representações por meio das quais uma
época narra sua história a si mesma. Assim, ao contrário das mitologias, contos e
lendas da pré-modernidade, que eram estruturalmente plurais, assistimos a uma
homogeneização crescente. Estamos lembrados do que Jean-François Lyotard
chamou de ―grandes relatos de referência‖. Eles são muito numerosos. E, afora
algumas variações de pouca importância, os sistemas de explicação do mundo
elaborados na segunda metade do século XIX, como o marxismo, freudismo ou o
funcionalismo, repousam todos numa visão positivista, acabada e material da
evolução humana. São sistemas monistas, igualmente, por se apoiarem num
causalismo exclusivo e excludente. Sistemas exclusivos, porque a causa identificada
é determinante, ―sobredeterminante‖, hegemônica, unificada. Sistemas excludentes,
porque não há salvação fora do modelo explicativo que tal causa supostamente
fornece. Tudo isso gera um fideísmo rigoroso, com seu cortejo de fanatismos e
dogmatismos de toda sorte, sem esquecer, é claro, as intolerâncias, exclusões e
outras excomunhões que isso não deixa de gerar. (MAFFESOLI, 2004, p. 16)
52
Na verdade, a s-modernidade pode ser entendida como a última e mais original
forma de manifestação dialética do pensamento surgida no ocidente. Nesse sentido, as obras
literárias, críticas e teóricas produzidas por alguns dos escritores mais representativos do s-
moderno são altamente reflexivas, mas empreendem uma reflexão completamente nova,
distinta, contraditória e perturbadora, porque levam ao limite a própria reflexão, criando uma
espécie de ―nó teórico‖ do qual a característica determinante é a tensão criada pelo próprio
pensamento crítico, a fratura que provoca em relação às certezas estabelecidas, que os
metarrelatos acabaram produzindo. A dialética da s-modernidade privilegia, por mais
paradoxal que possa parecer, a vida como princípio elementar do pensamento e a incerteza
como constante decisiva na condução e construção do discurso teórico, crítico, artístico ou
científico. Não se trata, evidentemente, de falar em uma diatica em sentido forte, como
aquela sobre as quais Hegel e Marx construíram seus sistemas de representação do
pensamento, a saber, a dialética idealista e o materialismo-histórico, mas sim de conceber
52
MAFFESOLI, Michel. Notas sobre a pós-modernidade: o lugar faz o elo. Rio de Janeiro: Atlântica Editora,
2004.
188
uma narrativa auto-consciente e auto-reflexiva, que se manifeste como uma forma de
representação do mundo, da sociedade, do sujeito que rejeita, renega e repensa os modelos de
representação realistas ou, melhor dizendo, usam as estratégias do discurso realista para, de
forma auto-crítica, colocarem sob suspeita a própria criação e sua capacidade de dizer
qualquer realidade exterior a si mesma.
Pode ser que, neste ponto, seja mais útil, também, pensar a pós-modernidade em
função do conceito de ―pensamento fraco‖, desenvolvido pelo filósofo italiano Gianni
Vattimo, e que se refere a um tipo de pensamento contemporâneo, que a partir da herança
legada por Nietsche e Heidegger, enfraqueceu as bases da grande tradição metafísica,
postulando a problemática do ser, da história, do sujeito, da obra e de sua própria crítica não
mais em função de uma dimensão transcendente, metafísica, essencialista, mas sim em
relação ao modo como este se articula, define e explica por intermédio da linguagem e suas
formas de representação:
O pensamento fraco indica um percurso, um movimento, um senso de direção; é
uma estrada que se bifurca com relação à razão-domínio, de qualquer forma
retraduzida e disfarçada, da qual, todavia, é impossível afastar-se definitivamente e
cuja ―transformação‖ que pode dar-se dentro dela mesma, acontecer no seu
próprio âmbito é uma indicação (a racionalidade deve retroceder, perder potência,
recuar, não temer enfrentar a penumbra, não se paralisar ante o aniquilamento do
fundamento luminoso, da referência estável, única, forte, cartesiana). (PECORARO,
2005, p. 38)
53
Dúvida e incerteza, então, significam formas altamente radicais de conceber um
discurso, um pensamento, um complexo teórico em que o conceito corrente e tradicional de
verdade como conclusão racional, empírica ou absoluta de um determinado pensamento acabe
relativizado ao extremo, a ponto de a própria idéia de verdade entrar no jogo das grandes
formas de representação filosóficas, políticas, culturais, estéticas ou ideológicas que
caracterizam e determinam boa parte dos questionamentos engendrados pelo pensamento pós-
53
PECORARO, Rossano. Niilismo e (pós)modernidade. Introdução ao ―pensamento fraco‖ de Gianni Vattimo.
Rio de Janeiro: Ed. Puc-Rio, São Paulo: Edições Loyola, 2005.
189
moderno e que este procura denunciar, expor, colocar à prova. A relativização do conceito de
verdade não é algo absolutamente novo. Principia com Nietzsche, ainda em fins do século
XIX, mas ganha contornos decisivos a partir dos pensadores da s-modernidade, que irão
situar a verdade dentro dos limites da indecisão, da indeterminação, da vida e da incerteza.
O grande traço distintivo da pós-modernidade passa a ser, dessa forma, a indecibilidade de um
pensamento que busca demonstrar em que medida a verdade é um produto de construção
idêntico ao discurso ou a narrativa que a engendra. A verdade passa a ser percebida, analisada
e discutida, mas não pode ser definida porque, enquanto forma de representação, está
sujeita às ambigüidades, às rupturas, aos deslocamentos e à multiplicidade de perspectivas
que constituem os discursos e as narrativas da pós-modernidade.
Assim, a verdade é descontínua, anti-causalista, passível de ser manipulada ou
construída de acordo com os interesses das forças que operam o discurso. A verdade, no
pensamento pós-moderno, ao contrário do pensamento clássico, legado platônico, já não
instaura ou concebe qualquer teleologia. A pós-modernidade está preocupa-se em demonstrar
o caráter essencialmente transitório do conceito corrente de verdade. À s-modernidade
interessa justamente revelar esse estado de coisas que cerca o pensamento contemporâneo e
que faz da verdade, dos discursos, das teorias e das grandes narrativas produtos de construção,
formas de representação, simulacros e simulações que, ao invés de determinar, explicar ou
justificar o real, subvertem-no, transformam-no, ou o manipulam de acordo com interesses
mais ou menos definíveis. Com isso a s-modernidade procura por em evidência o caráter
suspeitável dos grandes discursos, das narrativas-mestras que dominaram a produção
intelectual até meados do s-guerra. Assim, a dialética pós-moderna põe a própria dialética
em crise e fundamenta-se como um conjunto de aporias que ocupam o espaço da narrativa e
se colocam como a dimensão ativa e auto-consciente da construção discursiva.
190
Por isso, segundo Linda Hutcheon em sua Poética do Pós-Modernismo, a cultura
pós-moderna tem um relacionamento contraditório com aquilo que costumamos classificar
como nossa cultura dominante, o humanismo liberal‖ (1991, p. 23). É preciso ressaltar que foi
justamente a tradição do humanismo liberal que criou os sistemas de pensamento absolutos,
casualistas e teleológicos; a idéia de verdade total, plena, inquestionável; a crença no
racionalismo de base técnica-científica, com suas explicações contundentes e suas definições
precisas; as divisões político-econômicas entre esquerda e direita, capitalismo de mercado e
economia planifica socialista, a dos países do antigo bloco comunista, e etc. A s-
modernidade, então, passa a ser um modo de articulação do pensamento que procura
demonstrar, em profundidade, os enganos e as contradões engendradas a partir e no interior
dos grandes discursos da tradição legada pelo humanismo liberal. Nesse sentido, a pós-
modernidade passa a ser uma denúncia das ―grandes ilusões‖ que o prescinde nunca, em
seu movimento aporético, das contradições e dos paradoxos que revela:
Modernistas como Eliot e Joyce costumavam ser considerados como profundamente
humanistas (e.g. Stern 1971, 26) em seu desejo paradoxal de atingir valores estéticos
e morais estáveis, mesmo em vista da percepção que tinham sobre a inevitável
ausência desses valores universais. O pós-modernismo se distingue disso, não em
suas contradições humanistas, mas no caráter provisório de sua reação a elas: ele se
recusa a propor qualquer estrutura ou, como a denomina Lyotard (1984a), qualquer
narrativa-mestra tal como a arte ou o mito que serviria de consolo para esses
modernistas. Ele afirma que tais sistemas são de fato atraentes, talvez até
necessários; mas isso não os torna nem um pouco menos ilusórios. Para Lyotard, o
pós-modernismo se caracteriza exatamente por esse tipo de incredulidade em relação
às narrativas-mestras ou metanarrativas: aqueles que se queixam da ―perda de
sentido‖ no mundo ou na arte estão realmente lamentando o fato de que o
conhecimento já o é esse tipo de conhecimento basicamente narrativo (1984a, 26).
Isso não quer dizer que, de alguma forma, o conhecimento desaparece. Não se trata
de um paradigma radicalmente novo, mesmo que haja mudança. (HUTCHEON,
1991, p. 23)
não se trata de acreditar ou não na linguagem, nos discursos, nas narrativas-mestras
como entidades detentoras dos ―grandes sentidos‖ ou dos ―sentidos eternos‖ que se
confundem, muitas vezes, com os valores eternos do homem , fechados, imutáveis, mas sim
em compreender, a fundo, como esses mesmos sentidos são produzidos, transmitidos e
191
assimilados no interior do pensamento e, por conseência, da sociedade contemporânea. É
preciso entender os sentidos como resultados de um processo de construção do discurso, da
narrativa, que nada mais significam a não ser formas de representação geridas por suas
próprias e inalienáveis verdades, verdades estas que se perdem, omitem ou se diluem no jogo
mesmo da representação.
Duvidando dos ―grandes sentidos‖, da conciliação do homem com o mundo, a
realidade social, política e econômica através das metanarrativas históricas, artísticas,
filoficas ou míticas , a pós-modernidade encerra consigo a força característica do
pensamento humanista liberal: a utopia das mudanças abruptas, das grandes rupturas, das
transformações revolucionárias. Ela denúncia a falência dos sistemas totalizantes de
pensamento como uma forma de compreender e transformar a realidade imediata. E é
justamente da contundência dessa denúncia que transparece, para uma parte da crítica, o
caráter niilista da pós-modernidade.
De fato, os críticos do pós-modernismo irão acusá-lo de um niilismo radical, de
promover uma negação de todos os valores éticos, morais, artísticos ou estéticos
concebidos pela tradição humanista ou pelo racionalismo científico surgido na esteira da
filosofia iluminista e que serviu ao pensamento hegeliano, marxista e positivista que se
impuseram como grandes formas de pensamento. Na verdade, o s-modernismo não deve
ser entendido como uma espécie de discurso da negação radical, ao contrário, ele enseja
demonstrar que as metanarrativas históricas, filosóficas, políticas, econômicas, culturais,
artísticas ou estéticas são contraditórias e falíveis justamente pelo fato de que, essencialmente,
o passam de formas de representação do real, simulacros ou simulações que não podem
prever, nunca, a extrema e absoluta complexidade das regras e da lógica interior que rege esse
mesmo real. A pós-modernidade rejeita a tendência do pensamento ocidental em produzir
verdades inquestionáveis que, no fim das contas, não se demonstram ou verificam. Verdades
192
que se tomam umas as outras, que se condenam e contradizem e que se descartam como quem
troca de assunto.
Jean Baudrillard, sociólogo e pensador francês, pode parecer um crítico extremista ou
um ambíguo defensor da pós-modernidade, característica marcante da expressão crítico-
teórica s-moderna, vale dizer, mas poucos teóricos compreenderam, como ele, o estado de
coisas em que o fenômeno pós-moderno surge e se desenvolve. Em A Transparência do Mal.
Ensaios Sobre os Fenômenos Extremos, Baudrillard produz uma série de ensaios cujo ponto
central é a idéia de que a sociedade contemporânea vive sob a lógica dos ―fenômenos
extremos‖, um vácuo criado a partir da ruína dos ideais revolucionários surgidos no rastro da
modernidade. Vácuo atormentado, sistema de erros, a sociedade contemporânea não pode se
livrar dos modelos de representação criados pela modernidade e que se esgotaram sem que a
enorme maioria dos indivíduos pudesse perceber ou se dar conta, o que os condenou a viver,
ad nauseam, as simulações e os simulacros em que esses modelos acabaram por se
transformar:
podemos agora simular a orgia e a liberação, fingir que prosseguimos acelerando,
mas na realidade aceleramos no vácuo, porque todas as finalidades da liberação
ficaram para trás, e o que nos preocupa, o que nos atormenta é essa antecipação de
todos os resultados, a disponibilidade de todos os signos, de todas as formas, de
todos os desejos. Que fazer então? Isso é o estado de simulação, aquele em que
podemos repetir todas as cenas porque elas já aconteceram real ou virtualmente. É
o estado da utopia realizada, de todas as utopias realizadas, em que é preciso
paradoxalmente continuar a viver como se elas não o estivessem. Mas, já que o eso
e que não podemos ter a esperança de realizá-las, nos resta hiper-realizá-las
numa simulação indefinida. Vivemos na reprodução indefinida de ideais, de
fantasmas, de imagens, de sonhos que doravante ficaram para trás e que, no entanto,
devemos reproduzir numa espécie de indiferença fatal. (BAUDRILLARD, 2000, p.
10)
Para Baudrillard, esse estado de coisas que cerca a sociedade contemporânea se
desenvolve numa velocidade assustadora, por metástase, uma espécie de ―proliferação
cancerosa‖ de modelos de representação surgidos com a modernidade e que a própria
modernidade se encarregou de esgotar. Esvaziados de sentidos, esgotadas as possibilidades de
fixação da verdade, ou de uma ou outra verdade, os modelos de representação passam a
193
operar por si mesmos, de forma mecânica, independente e automatizada. Os gestos, as ações,
as atitudes revolucionarias ou contestatórias da modernidade como Baudelaire flanando
pelos bulevares parisienses com os cabelos verdes e puxando uma tartaruga pela coleira, por
exemplo transformam-se, na sociedade contemporânea, em performances. Não é a atitude
contestatória que conta, mas sim os expedientes, os recursos, os mecanismos de perfeição,
excelência e utilidade que ela pode gerar. O que equivale a dizer: a essência da contestação,
seus motivos ou determinações, suas verdades singulares, desaparecem, restando apenas o
simulacro, a aparência, a imagem falseada da atitude, da revolução, do gesto contestatório.
Assim, as narrativas s-modernas parecem se encarregar de estabelecer um discurso que ao
se referir a si mesmo, ao desvelar as regras de sua produção e articulação, ao minar as bases
da referencialidade por meio de sua auto-consciência, desagregam as formas tradicionais de
representação ou, como afirma Steven Connor, em Cultura Pós-Moderna, num mundo em
que a performance e o espetáculo dominam, é necessário suspeitar das próprias estruturas de
representação, para começar a recusar o mito da presença que domina este teatro do mundo‖
(1993, p. 119)
54
.
O que interessa à pós-modernidade, então, seja ao pensamento filosófico, político,
econômico, cultural ou estético, é denunciar o esvaziamento dos modelos de representação da
modernidade e o modo como eles foram convertidos em formas hegemônicas de poder e de
controle dentro dessa sociedade midtica, imagética e massificada em que vivemos. Mas a
pós-modernidade pode empreender essa denúncia radical de dentro dos pressupostos que
denuncia, combate e critica. Daí que, para muitos teóricos, a s-modernidade signifique um
tipo de pensamento sinuoso, dúbio, ambíguo e ardiloso porque, de certo modo, penetra
profundamente nos discursos que busca desautorizar, lança mão dos expedientes que os
constituem, se deixa confundir com as contradições inerentes aos objetos, idéias e formas de
54
CONNOR, Steven. Cultura Pós-Moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1993.
194
estruturação do pensamento que condena e critica. Por isso, Terry Eagleton, em A Ideologia
da Estética, faz o seguinte comentário, no ensaio Da Polis ao Pós-modernismo, acerca da
condição primeira do fenômeno pós-moderno: suas contradões internas:
O pós-modernismo representa a última emergência iconoclasta da vanguarda, com
sua demótica subversão da hierarquia, sua subversão auto-reflexiva do fechamento
ideológico, seu ataque populista ao intelectualismo e ao elitismo. Se isso soa um
pouco eufórico demais, pode-se passar a palavra ao procurador, que chamará nossa
atenção para o seu anti-historicismo consumista, hedonista e filisteu; seu completo
abandono da crítica e do engajamento; sua anulação cínica da verdade, do
significado e da subjetividade; seu tecnologismo vazio e reificado. (EAGLETON,
1998, p. 269)
Não se pode negar que Eagleton tenha certa razão em afirmar que a s-modernidade
transita, com um certo conforto, entre discursos, narrativas, idéias e verdades estranhas ou
alheias entre si. O que não quer dizer que o s-modernismo seja mesmo um fenômeno anti-
historicista, ao contrário, procura estabelecer um diálogo franco, direto e aberto com a
tradão, revendo-se seus postulados e desarticulando suas formas de representação; nem que
ele seja anti-crítico, consumista ou reificado, já que, diferentemente, ele penetra drasticamente
no corpo da sociedade contemporânea, com sua lógica de mercado, seus modelos de
representação, seus mecanismos de controle tomados à propaganda, confunde-se com os
discursos institucionalizados e aceitos passivamente por essa mesma sociedade para
demonstrar as fraturas, as diferenças e as ilusões que ela concebe. Como dissemos, a s-
modernidade é uma forma de pensamento de certo modo dialética, estando, sob este aspecto,
perfeitamente de acordo com uma parte substancial da herança filosófica moderna, que vem
de Nietzsche à Foucault ou Derrida, por exemplo. A diferença é que a dialética pós-moderna
o admite a síntese, tão cara aos grandes sistemas de pensamento que conhecemos,
privilegiando a exposição das aporias que caracterizam o mundo contemporâneo:
Pode-se argumentar que a primeira descrição é verdadeira quanto a certas correntes
do pós-modernismo e a segunda quanto a outras. O processo caminha bem ao
momento, mas está um pouco chato. O mais interessante seria mostrar que em
muitas, senão todas as manifestações pós-modernistas, ambas as descrições se
195
aplicam simultaneamente. A maior parte da cultura pós-moderna é ao mesmo tempo
radical e conservadora, iconoclasta e cooptada. Isso acontece em função de uma
contradição entre as formas culturais e econômicas da sociedade capitalista tardia,
ou, mais simplesmente, entre a economia capitalista e a cultura burguesa. A cultura
burguesa de tipo tradicional humanista tende a valorizar a hierarquia, a distinção, a
identidade singular; e o que a ameaça constantemente não é tanto a esquerda como
os malabarismos da mercadoria. (EAGLETON, 1998, p. 270).
A síntese significa o fechamento do sentido, seu engessamento, sua paralisia
claustrofóbica em conclusões que acabam por se tornar verdades absolutas, inquestionáveis,
totalizantes. Ao contrário do que afirma Eagleton, a s-modernidade não está interessada em
anular cinicamente a verdade, o significado ou a subjetividade, mas sim em revelar como
pode ser perigoso, imprudente e muito pouco interessante, do ponto de vista crítico ou teórico,
admitir formas de pensamento em que os sentidos se revertem em verdades e as verdades
acabam por permitir o surgimento de modelos de representação monolíticos, compactos,
fechados, que interessam apenas e na medida exata em que podem ser convertidos em formas
de controle ou exercício deliberado de poder.
Fredric Jameson, em um dos ensaios que compõem o livro A Virada Cultural, afirma
que ―o problema do s-modernismo como as suas características fundamentais devem ser
descritas, ou ainda, se ele sequer existe, se o próprio conceito tem alguma utilidade ou se, ao
contrário, é apenas uma mistificação é um problema ao mesmo tempo estético e político
(2006, p. 47)
55
. E vale acrescentar: um problema estético o só pelas discussões acirradas
acerca do fenômeno artístico-discursivo e suas formas de apreender os objetos, a realidade, o
homem e o mundo, mas principalmente porque aos pensadores contemporâneos considero,
aqui, sobretudo a figura mais do que simbólica de Jacques Derrida, por exemplo descrever,
situar e inscrever o pensamento no interior do discurso é, antes de tudo, conhecer e subverter
as regras desse mesmo jogo discursivo, promovendo a disseminação dos sentidos e das idéias
a partir de opções narrativas francamente tomadas ao universo artístico-estético que, muitas
55
JAMESON, Fredric. A Virada Cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
196
vezes, esses pensadores se põem a analisar, discutir ou criticar. Quanto à problemática política
envolvendo o s-modernismo, esta se dá a partir da fratura incontornável que ele promoveu
no interior da episteme moderna. A crítica política ao pós-modernismo passa,
necessariamente, pelo argumento de que os artistas, filósofos e teóricos do fenômeno s-
moderno teriam barateado as idéias e o pensamento, a arte e a ideologia, para atender as
necessidades do novo modelo sócio-hisrico surgido com o que Jameson chama de
capitalismo tardio‖, que Adorno denominou de ―indústria cultural‖ e que outros designam
como sociedade de consumo‖.
Vale lembrar que o pós-modernismo não deve ser entendido como um movimento,
uma geração, uma tendência ou uma escola já que nunca se propôs a isso nem muito menos se
difundiu a partir de um conteúdo programático postulado, definido e mais ou menos aceito e
disseminado por um grupo homogêneo de escritores, poetas, artistas, intelectuais ou
pensadores da cultura e da sociedade. Segundo Jameson, em O Debate dos-Modernismo
56
,
o termo designa não apenas um estilo específico, isto é, um tro, uma marca, um rastro, uma
singularidade que se compõem de um determinado conjunto de caracteres que o explicariam e
o definiriam em seus multívocos aspectos, mas, sobretudo, o pós-modernismo seria
[...] um conceito periodizante, cuja função é correlacionar a emergência de novos
aspectos formais da cultura com a emergência de um novo tipo de vida social e com
uma nova ordem econômica aquilo que muitas vezes se chama, eufemisticamente,
de modernização, sociedade pós-industrial ou de consumo, sociedade da dia ou
dos espetáculos, ou capitalismo multinacional. (1993, p. 27)
Assim, o pós-modernismo não seria mais do que um momento historicamente definido
e situado no interior de uma nova ordem estabelecida, calcada no poder consolidado, de um
lado, pelo capitalismo multinacional e, de outro, pela circulação irrefreável da informação,
que passa a dominar e a planificar as consciências, as idéias e até mesmo suas formas de
representação, e que alterou profundamente a percepção que os indivíduos têm de si mesmos,
56
In: O Mal-Estar no Pós-Modernismo. Org. E. Ann Kaplan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1993.
197
da realidade na qual estão inseridos, do mundo e das diferentes formas de apreendê-lo. Sob
este perspectiva, o é raro a crítica contemporânea acusar o s-modernismo de uma atitude
política e estética ideologicamente esvaziada, que este flertaria de forma quase que
indecorosa com os meios de comunicação de massa e a subcultura pop, rasteira e
esquizofrênica que a indústria da informação, dominada pela lógica do capital multi e
transnacional, engendra. Trata-se de uma crítica de viés francamente marxista como aquela
que se percebe em teóricos como o próprio Fredric Jameson ou Terry Eagleton baseada na
crença incondicional de que a arte deve ser, sempre e incontestavelmente, um repositório de
sentidos mais ou menos orientados ou historicamente estabelecidos que reconduza o homem
aos caminhos do conhecimento, da participação e da práxis política e social. O que esses
críticos parecem questionar, no interior dos discursos estéticos acerca da s-modernidade, é
que a arte não é um instrumento revolucionário, uma forma de contestação, uma atitude
crítica em relação ao estado de coisas da qual essa nova realidade contemporânea emerge.
A visão é apocalíptica e talvez se aplique a determinados autores s-modernos, mas
o é a regra e está longe de representar uma verdade fundamental e inquestionável. O que de
certa forma incomoda os críticos da pós-modernidade é o fato de que ela promove um
deslocamento sensível de determinados eixos fixos da herança racionalista ocidental com os
quais as grandes disciplinas das ciências humanas, como a sociologia, a filosofia, a
psicanálise, a teoria da literatura, entre outras, lidavam como valores absolutos, estáveis,
concretos, passíveis de serem tomados e domesticados no interior do pensamento, nas
fronteiras controladas do discurso. A ciência moderna, sob muitos aspectos, construiu-se
sobre a crença ou o paradigma de que o ser, o sujeito, o homem, a sociedade, a história, o
saber, o conhecimento, a política, a ideologia, o Outro, o autor etc., são construções
simbólicas complexas, mas estáveis, que poderiam ser abordadas a partir de formas, estruturas
e modos de representação discursivos mais ou menos estáveis também. Ao deslocar esses
198
eixos fixos, ao questionar os modelos de representação do pensamento científico, político,
hisrico, literário ou cultural da modernidade, assim como ao fraturar o discurso e colocar a
capacidade representacional da linguagem sob suspeição, os principais autores s-modernos
acabam por instabilizar os valores, as certezas e os sentidos prefixados ao longo da
modernidade aquela que vai do projeto Iluminista de afirmação da razão como instrumental
para o domínio técnico do mundo e das coisas até a primeira metade do século XX, com o alto
modernismo e suas últimas utopias mítico-salvacionistas , propondo novos olhares e novas
formas de perceber a relação do indivíduo com as palavras, a realidade e os elementos
simbólicos que constituem, sob muitos aspectos, sua subjetividade e seu modo de apreender o
mundo.
4.2. A Pós-Modernidade Literária
Perry Andersen, em As Origens da Pós-Modernidade
57
, afirma que Harry Levin deu à
idéia de formas pós-modernas um contorno mais agudo, pensando numa
literatura derivada que havia renunciado aos rígidos padrões intelectuais do
modernismo, em prol de uma relaxada meia síntese sinal de uma nova
cumplicidade entre o artista e o burguês numa suspeita encruzilhada de
cultura e comércio. (1999, p. 19)
O grande problema acerca das discussões sobre o fenômeno literário na s-
modernidade diz respeito ao fato de que, para os críticos do pós-moderno, tudo pode ser
compreendido a partir de uma visada sociológica não raro superficial e francamente
questionável. Entender a literatura s-moderna como uma simples deriva suspeita ou um
abrandamento intelectual dos padrões modernistas, pondo sob suspeita o artista como
cúmplice do pensamento burguês, é ignorar que essa relação arte e burguesia está
cristalizada num período estético como o romântico, por exemplo, louvado pela historiografia
57
ANDERSEN, Perry. As Origens da s-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.
199
literária como um momento revolucionário, de choque e ruptura, embora, sob uma perspectiva
sociológica, a literatura romântica tenha atendido, também, às necessidades do gosto médio
burguês. É preciso lembrar que o romance romântico surge, sobretudo, como forma de
entretenimento e lazer descompromissado para uma burguesia rica, ociosa e entediada que,
sem o lastro cultural da antiga aristocracia, pensava e entendia a arte como artigo de
toucador.
58
Mesmo no alto período modernista as primeiras décadas do século XX -, quando do
início da ascensão das vanguardas, as relações entre artistas e burgueses o se modificaram
substancialmente: a arte continua sendo um artigo para consumo de uma classe média, que,
neste momento, já não se reconhece na afronta estética que a modernidade lhe impõe, embora
se entretenha com a caricatura de si mesma que a arte moderna concebe. O paradoxo, aqui,
engendra-se a partir das tensas relações entre o espírito inquisidor, irônico e muitas vezes
agressivo dos modernos, motivados pelas vanguardas artísticas, em relação ao público que
lhes garantia a própria existência, o que revela a principal força da arte no espaço sempre
ambivalente da modernidade. A literatura moderna existe em função das contradições que
enseja. O que o quer dizer que ela não preserve as ambíguas relações sócio-culturais
condenadas aos chamados s-modernos. De acordo com Perry Anderson, comentando as
idéias de Charles Jenck acerca da arquitetura s-moderna, algumas características estéticas
da pós-modernidade poderiam ser definidas nos seguintes termos: variedade abrangente,
compreensão popular, simpatia ambiente, criando uma espécie de ecletismo artístico
duplamente codificado, ―um híbrido da sintaxe moderna e da historicista, com apelo tanto
para o gosto educado quanto para a sensibilidade popular‖, sendo que era essa mistura
liberadora do novo e do velho, do elevado e do vulgar que definia o pós-modernismo como
um movimento e lhe assegurava o futuro‖ (1999, p. 30).
58
Para essa visada crítica, ver Ian Watt e seu As Origens do Romance.
200
A questão fundamental, então, talvez seja pensar as formas literárias na pós-
modernidade por uma ótica francamente estética, interessada em repensar os modelos
estabelecidos de representação sem, no entanto, reduzir o fenômeno artístico ao reflexo do
debate sociológico acerca das relações abertas entre criação artística e estrutura social,
predominante desde o alto realismo do século XIX, considerando, por exemplo, que a relação
entre ―gosto educado‖ e ―sensibilidade popular‖ pode ser francamente entrevisto em obras
como O Livro de Daniel, de E. L. Doctorow e A Ópera Flutuante, de John Barth, três nomes
singulares da literatura s-moderna em língua inglesa. Tratam-se de romances publicados e
vendidos como best-sellers, como literatura de consumo, produzida em escala industrial‖, e
que são acusados de por em jogo narrativas com enredos supostamente simples, diretos, sem
grande densidade ou dimensionamento psicológico das personagens isto se comparados
com a alta tradição literária de fins do século XIX e início do XX, que concebeu enredos e
personagens declaradamente densos como em Crime e Castigo, de Dostoievski ou em A
Metamorfose e O Processo, de Franz Kafka, para citar dois autores que mergulharam o
indivíduo num abismo claustrofóbico de horror, medo e absurdo, ou personagens precipitados
nos interstícios do inconsciente e sua manifestação como linguagem em obras como Ulisses,
de James Joyce ou Nadja, de André Breton.
A literatura de Doctorow e Barth agrada ao gosto popular porque faz do vulgar, no
sentido daquilo que pode ser facilmente apreendido pelo público médio, sua pedra de toque.
Ao contrário das grandes propostas artísticas de alguns autores consagrados pelo modernismo,
que elegeram o experimentalismo radical como forma de libertação da consciência estética,
cultural e política do homem, e que fizeram da ironia e do deboche uma arma crítica, virulenta
e feroz, contra o embotamento intelectual da classe média, os escritores s-modernos
escolheram um caminho mais sutil que, muitas vezes, acaba por lhes imprimir a marca da
alienação político-ideológica ou da facilitação estético-cultural. A verdade é que suas
201
narrativas dissonantes e fragmentadas, metadiscursivas e reflexivas, propõem uma discussão
mais profunda quanto aos limites, às possibilidades e ao poder de significar da obra de arte
literária, seu alcance e sua capacidade de representar o que quer que seja para aquém e além
de si mesma, questões muito mais pontuais e decisivas que a lógica aparentemente precisa e
linear de seus enredos nos permite notar ou perceber. A suposta adesão dos s-modernos ao
fácil, ao vulgar, ao kitsch, à ideologia de consumo do capitalismo tardio impõe, então, uma
armadilha à interpretação.
Assim, se a literatura moderna e as próprias vanguardas se levantaram, irônica e
demolidoramente, contra a instituição burguesa; a literatura pós-moderna propôs, de certo
modo, educar‖ o gosto burguês sem deixar de lado a invenção, a originalidade e o
experimentalismo formal. Trata-se, evidentemente, de um outro tipo de experiência poiética,
formal e estética. A experimentação radical modernista, que flertou, inclusive, com a
destruição da própria arte, como aconteceu ao dadaísmo, por exemplo, cedeu lugar, na pós-
modernidade, à afirmação da literatura como o lugar ideal a partir do qual revelar as
disjunções, rupturas e fraturas que cercam a percepção e a representação de uma realidade ex-
cêntrica, desarticulada, polivalente e fragmentária que caracteriza o mundo contemporâneo.
Trata-se, então, de uma experimentação formal que levou ao limite as possibilidades do dizer
narrativo, a noção de representação discursiva, a concepção de um relato que pudesse ordenar
uma realidade arbitrária, vel, instável, feita de cisões que nem sempre podem ser
diretamente compreendidas.
Nesse momento, é preciso ressaltar, nosso interesse está voltado para as questões da
pós-modernidade em sua relação específica com a literatura, que não prescinde da maioria das
características até aqui abordadas, ou seja, a s-modernidade, na literatura, apesar das
singularidades do discurso literário, também se fia no ideal de que o discurso é um modelo de
representação que cria e e em jogo suas próprias verdades. E a literatura pós-moderna,
202
como veremos, é de um alto poder iconoclasta, porque se vale dos modelos realistas de
representação, calcados no antigo ideal de mimeses, de imitação verossímil do real, para criar
uma literatura que questiona seus próprios limites, a validade dos antigos pressupostos
críticos, literários e estéticos que norteiam a criação. O pós-modernismo faz com que o
discurso literário perca a força da representação clássica e se volte sobre si mesmo, pondo em
dúvida a própria narrativa que concebe.
O discurso literário, apesar das grandes revoluções pelas quais as artes passaram ao
longo dos séculos, nunca deixou de ser, essencialmente, aristotélico, isto é, nunca rompeu
radicalmente com o ideal de representação do real, de expressão verossímil do mundo, de
verdade mimética dos seres e das coisas. A literatura s-moderna, ao revelar o caráter
notadamente manipulador dos grandes discursos, cria uma fratura em relação às concepções
clássicas ou conservadoras de construção discursiva. Os escritores s-modernos criam uma
literatura anti-retórica e anti-alegórica, em que os mecanismos de representação são
manipulados ao extremo, de modo que a própria manipulação acabe por se revelar. Por isso,
parte da crítica situa essa literatura como uma espécie de produção menor, esvaziada de
conteúdos, feita para ser consumida como qualquer best-seller.
A despeito do fato de que muitas dessas obras sejam mesmo comercializadas como
grandes best-sellers, não se pode afirmar que sejam obras esvaziadas de conteúdos, sentidos
ou significados. Esse tipo de juízo de valor é construído a partir de uma determinada visão da
literatura, da obra literária, como algo moralizador, didático, pedagógico ou elevado,
transformador, reformista, cujo objetivo último seja contribuir para a formação do estofo
ético-moral e político-social do indivíduo. Uma visão conservadora da literatura, que só
contribui para a formação de novos enganos, de outras formas de manipulação,
principalmente política e ideológica. Quando os escritores s-modernos colocam em jogo o
próprio jogo da representação, esse tipo de visão maniqueísta da literatura cai por terra,
203
permitindo que as obras deixem entrever o caráter arbitrário da linguagem criadora. A
verdade e o sentidoo produtos de construção, como a própria narrativa que os enfeixa.
A literatura s-moderna promove o apagamento sistemático entre cultura erudita e
cultura de massas, entre arte acadêmica e arte pop. Assim, a pós-modernidade literária cria
narrativas esquizofrênicas, híbridas, que já não se fundamentam, plenamente, nos critérios
miméticos de expressão do real. um tipo de caos interior que rege os domínios da história
e do discurso: a linearidade das narrativas clássicas, baseadas nos princípios realistas de
representação, fragmenta-se e alcaa, muitas vezes, uma quase que imobilidade expressiva,
uma paralisia discursiva caracterizada pela impossibilidade de contar, de narrar, de engendrar
uma narrativa linear, cronológica, precisa. Desse modo, se toda a experiência humana é
percebida de forma fragmentária, se a memória, fonte primeira de toda a representação,
percebe o mundo a partir de flashes, estilhaços, cesuras, partições ou pedaços, nada mais
natural que a narrativa pós-moderna também se construa a partir de uma experiência
fragmentada:
Acolher a fragmentação e a efemeridade de maneira afirmativa tem grande número
de conseqüências que se relacionam diretamente com as oposições de Hassan. Para
começar, encontramos autores como Foucault e Lyotard atacando explicitamente
qualquer noção de que possa haver uma metalinguagem, uma metanarrativa ou uma
metateoria mediante as quais todas as coisas possam ser conectadas ou
representadas. As verdades eternas e universais, se é que existem, o podem ser
especificadas. Condenando as metanarrativas (amplos esquemas interpretativos
como os produzidos por Marx ou Freud) como ―totalizantes‖, eles insistem na
pluralidade de formações de ―poder-discurso‖ (Foucault) ou de ―jogos de
linguagem (Lyotard). Lyotard, com efeito, define o s-moderno simplesmente
como ―incredulidade diante das metanarrativas‖. (HARVEY, 2006, p. 49-50)
A essência fragmentária dessa literatura é resultado de uma mudança drástica de
perspectiva ensaiada pelas narrativas s-modernas: o narrador deixa de ser uma criatura
plenipotenciária, um demiurgo de consciência exasperada, dono absoluto das verdades que faz
circular, voz inquestionável que mobiliza todas as experiências humanas e as ordena de
acordo com a sua ética inviolável, arranjando os fatos e os acontecimentos de acordo com
204
uma cronologia e uma continuidade totalmente alheias e estranhas aos caminhos teleológicos
e causalistas. Ao contrário, tais narradores preferem seguir os cursos e intercursos da
memória, diluindo as articulações lógicas e criando quebra-cabeças literários que se auto-
referenciam e que solicitam do leitor um atento e consciente processo de montagem. O
narrador pós-moderno compreende profundamente o caráter fragmentário e descontínuo das
experiências humanas, da vida e da hisria, e constrói um discurso coerente com o
reconhecimento dos limites que a memória nos impõem. Assim, o narrador plenipotente dos
antigos modelos de representação perde sua força graças à percepção cada vez mais acentuada
de que todo o discurso produz suas próprias verdades plurais, multifacetadas, contraditórias
e que não é possível a expressão fiel ou realista do mundo, dos seres e das coisas porque, ao
contrário do que se imagina, não uma ordem natural, lógica e imutável que possa ser
reduzida a qualquer forma de representação.
Desse modo, por exemplo, temos, em A Ópera Flutuante, de John Barth, vários
elementos caracterizadores da literatura pós-moderna, entre eles: um narrador em primeira
pessoa, que desde o início da narrativa, manipula sua hisria e a desenvolve lentamente,
como se simulasse as grandes narrativas do realismo do século XIX. Temos ainda, o fato de
que esse mesmo narrador, já no início da narrativa, apresenta sua obra a partir de uma
perspectiva metadiscursiva, ou seja, fazendo do relato o seu próprio espaço de crítica e
comentário estético:
Por exemplo, comecei este livro agora, e, embora ainda estejamos a uma boa
distância da história, ao menos estamos rumando em direção a ela, e eu
aprendi a me contentar com isso. Talvez, quando eu tenha terminado de
descrever aquele dia especial que mencionei acima acredito que foi cerca
de 21 de junho de 1937 -, talvez quando eu cheguei à hora de me deitar
daquele dia, se o fizer, então volte atrás e destrua essas páginas de afinação
do piano. Ou talvez não: pretendo me apresentar diretamente; preveni-lo a
respeito de possíveis interpretações do meu nome; explicar o significado do
título deste livro; fazer-lhe rias outras gentilezas, exatamente como um
anfitrião que se preocupa com o seu hóspede; deixá-lo tão à vontade quanto
possível e mergulhá-lo gentilmente na corrente serpeante da minha história
atividades úteis, melhor preservadas do que desprezadas. (1987, p. 10)
205
A dimensão metaliterária da obra soma-se à própria dimensão fragmentária do relato:
o que se trate de uma fragmentação ao nível da sintaxe discursiva, ou seja, parágrafos que
se desarticulam ou frases inacabadas ou mesmo capítulos em que não se pode precisar um
início ou um fim. A escrita fragmentária de Barth atinge, como já dissemos, a própria
constituição do relato, no qual a questão central os motivos que fizeram o narrador abrir
mão da decisão de suicidar-se vai sendo progressivamente adiada à partir de um conjunto de
digressões e desconversas que desarticulam a narrativa e fazem com que o leitor vacile diante
das verdades e simulações do enredo. Ao longo de todo o primeiro capítulo, intitulado
Afinando o Piano, o narrador torna esse processo evidente ao definir sua história como uma
corrente serpeante‖, o que, de certo modo, revela a intenção deliberadamente labiríntica que
caracteriza seu processo escritural. Trata-se de criar uma narrativa que anuncia seus motivos
ao mesmo tempo em que os adia indefinidamente, pois, como afirma Linda Hutcheon, nesses
modelos narrativos
o que é inserido e depois subvertido é a noção de obra de arte como um objeto
fechado, auto-suficiente e autônomo que obtém sua unidade a partir das inter-
relações formais de suas partes. Em sua típica tentativa de preservar a autonomia
estética enquanto devolve o texto ao ―mundo‖, o s-modernismo afirma e depois
ataca essa visão. Mas não se trata de um retorno ao mundo da ―realidade ordinária‖,
como afirmaram alguns (Kern 1979, 216); o ―mundo‖ em que esses textos se situam
é o ―mundo‖ do discurso, o ―mundo‖ dos textos e dos intertextos. Esse ―mundo‖ tem
um vínculo direto com o mundo da realidade empírica, mas não é, em si, essa
realidade empírica. É um truísmo crítico contemporâneo dizer que o realismo é um
conjunto de convenções, que a representação do real não é idêntica ao próprio real.
(1991, p. 164)
O narrador Todd Andrews é um advogado de 54 anos que mora em um quarto de hotel
pagando a conta diariamente e vivendo uma relação obsessiva com a morte, o que faz com
que reduza a sua existência a uma espécie de presente absoluto, vivendo cada dia como se
fosse o último. Às vezes nico, noutras terno, às vezes desesperançado, noutras irônico, o
narrador chama revela que sua verdadeira obra é aquela que ele chama de Inquérito, um longo
trabalho de notas, análises e informações que tomadas por ele no sentido de compreender as
206
causas que levaram seu pai ao suicídio. Assim, os episódios narrados em A Ópera Flutuante
o significam mais do que ―um aspecto do estudo preliminar de um capítulo‖ (1987, p. 14)
do Inquérito. Narrativa dentro da narrativa, texto dentro do texto, o narrador cria uma obra
aberta, múltipla, fragmentária porque se propõe parte de um projeto que está condenado,
desde o início, a permanecer inconcluso. O próprio título, Inquérito, deixa entrever uma
crítica irônica ao ideal narrativo de representação da experiência existencial, da vida real,
empírica, que como percebemos ao longo da narrativa, a vida do narrador resume-se a um
cotidiano comezinho, e insignificante, sem grandes acontecimentos, dilemas ou realizações.
Assim, é como se seu verdadeiro crime fosse trazer à luz uma história sem relevo ou
importância, na qual predomina a instabilidade, os influxos, as idéias e os pensamentos do
narrador sobre sua própria obra, como se essa auto-referencialidade que adia os limites da
vida real fosse o único elemento verdadeiramente significativo nessa existência. A
fragmentação do discurso faz com que a narrativa flutue aleatoriamente, afirmando os lapsos
o da memória, mas da própria imaginação na medida exata em que o narrador reconhece
suas limitações fabulares.
Desse modo, Todd Andrews faz todo o possível para dar alguma dimensão de
dignidade ao seu relato, inclusive ironizando determinados modelos narrativos consagrados:
―Levemos o conceito de ―corrente serpeante‖ um pouco mais além, se é que é
possível: sempre me pareceu, nos romances que li, de quando em quando,
que os autores estão pedindo aos seus leitores que iniciem suas histórias
furiosamente, no meio das coisas, de preferência a retroceder nelas ou
bordejá-las vagarosamente. Este tipo de mergulho na vida e no mundo de
outro alguém, assim como um mergulho no rio Choptank, nos meados de
março, traz consigo, me parece, muito pouco prazer. Não! Venha comigo,
leitor, e não tema pelo seu coração fraco: eu mesmo tenho um assim e sei o
valor de, antes, pôr um dedo do pé, então um pé, a seguir uma perna, muito
lentamente os quadris e o estômago, e, finalmente, todo o seu ser em minha
história e gastar um bom tempo para fazer isso. Este é, afinal de contas, um
mergulho de prazer a que o estou convidando, e não um batismo‖. (1987, p.
10)
É impossível o pensar que, neste caso, a ironia pós-moderna recaia justamente sobre
aqueles modelos narrativos de natureza realista, ou mesmo, no caso de Barth, do alto
207
modernismo, que se afirmam por sua força, por sua crença na linguagem como o local em que
o sujeito mergulha para recriar e resignificar dramaticamente o homem e o mundo. O curioso
é que ao mesmo tempo em que o narrador ironiza determinados modelos narrativos, acaba ele
mesmo revelando suas limitações criadoras:
―Onde estávamos nós? Eu ia comentar a respeito do exemplo. Eu usei antes:
ia mesmo? Ou explicar a metáfora da ―afinação do piano‖? Ou meu coração
fraco? Santo Deus! Como é que se escreve um romance! Quero dizer, como
alguém pode atrelar-se à história se é tão sensível ao significado das coisas?
Quanto a mim, já vejo que contar história não é o meu forte: cada frase nova
que escrevo está cheia de figuras e de implicações que eu gostaria
imensamente de perseguir com você aàs suas tocas, mas esta perseguição
iria envolver novas figuras e novas perseguições, de tal modo, tenho certeza,
que a história nunca seria realmente iniciada, muito menos terminada, se eu
deixasse sem freio as minhas inclinações. Não que eu me importe com isso
um livro é tão bom como qualquer outro para mim -, mas eu realmente quero
explicar aquele dia (21 ou 22) de junho de 1937, em que mudei minha
decisão pela última vez. Teremos, então, de nos conservar no canal, vo e
eu, embora a embarcação em que estamos velejando seja de pequeno calado,
e deixar que passem as angras e as enseadas, sejam elas tão belas quanto
forem. (Esta metáfora o é gratuita mas deixemos passar.) (1987, p. 10-
11)
Nesse processo de escritura, além da narrativa adiar-se incessantemente, ela é
construída de modo a revelar seus próprios fundamentos, como quando, por exemplo, ao
explicar a natureza de seu nome, o narrador acaba por alertar o leitor da carga simbólica que a
palavra Todd traz consigo, que ele, ao prevenir o leitor de que seu nome se escreve com
dois d, intui imediatamente a réplica do leitor, que neste inquérito toma o lugar do
interrogador, que o alertaria: Todd é morte em alemão: talvez o nome seja simbólico(1987,
p. 11). Assim, o narrador desarticula a própria noção de narrativa simbólica, o que, por si ,
acaba por atentar contra o caráter representacional da literatura: se as próprias construções
simbólicas são demolidas, não resta ao leitor nada além de acompanhar atentamente não a
derrocada de uma existência, mas a própria desagregação de um modelo narrativo. A rejeição
ao relato realista puro e simples, bem como aos modelos modernistas de natureza simbólica,
fica ainda mais evidente quando o narrador, no capítulo intitulado Uma Observação
Instrutiva, Embora Sofisticada, descreve-se caminhando pelas ruas e, diante de uma casa
208
funerária, com o carro fúnebre aberto, se depara com um cachorro e uma cadela transando
diante do carro e sendo enxotados pelos homens que carregavam o caixão. A cena dá ensejo
para que o narrador conceba a seguinte observação:
A natureza, a coincidência, pode ser um simbolizador de mão cheia. Ela parece, às
vezes, dar cacetadas na cabeça do indivíduo com significados tais como este
desgracioso cenário de vida-em-face-da-morte‖, tão óbvio que foi embaraçador. O
indivíduo está constantemente sendo confrontado com um sol que irrompe detrás
das nuvens exatamente quando o time da casa apanha a bola; rebôos pressagos de
trovão, quando alguém está se remoendo descontrolado em casa; magficas auroras,
nos dias em que alguém resolve emendar-se; furacões, que derruem a casa de um
homem ruim de deixam indene a do vizinho, ou vice-versa; vias rápidas assinaladas
com DEVAGAR; avenidas de cemitérios assinaladas com MÃO ÚNICA. O homem
cujas percepções não são tão rudimentares, cujo paladar esafinado para pratos
mais sutis, pode apenas sorrir incomodado e ir embora, lembrando a si mesmo que o
bom gosto é uma invenção humana.
[...]
Assim, leitor, se algum dia vose achar escrevendo sobre o mundo, tome cuidado
para não dar uma mordiscada nos muitos símbolos tentadores que ele coloca
inequivocamente em seu caminho, ou você será apanhado dizendo coisas que você
realmente não pretendia dizer, e ofendendo as pessoas que você queria entreter.
Desenvolva, se puder, a técnica dos carregadores de ataúde e de mim mesmo: sorria,
com toda certeza pois cachorros trepando são verdadeiramente engraçados , mas
siga em frente e não diga nada, como se você não tivesse notado. (1987, p. 121-122)
Num movimento de inversão irônica, o narrador percebe, no real, um conjunto de
símbolos que devem ser rejeitados, proscritos, negados em suas manifestações tentadoras,
gratuitas, porque teriam a função de desnaturar a representação simbólica do mundo,
característica das narrativas do modernismo. A ironia, então, evidencia-se pelas contradições
que o narrador o faz questão de escamotear: ele constrói uma cena tipicamente modernista
para, logo em seguida, questionar os motivos e movimentos da escritura, que deve rejeitar os
símbolos fáceis que cercam o mundo e, por extensão, o próprio mundo, bastando-se a si
mesma, justificando-se por seus movimentos internos, por suas boutades, por seus exercícios
de auto-crítica. Todd Andrews vive uma existência esvaziada: não tem família, filhos, religião
ou filosofia nos quais se reconheça. Tem poucos, raros amigos, com exceção de dois
hóspedes, Capitão Osborn e o senhor Haecker, últimos membros, junto com o narrador, do
Clube dos Exploradores de Dorchester. É amante de Jane Mack, esposa de seu melhor amigo,
Harrison Mack, desde os tempos de faculdade. Harrison Mack, herdeiro de uma fortuna ligada
209
à fabricação de picles, além de dividir a esposa com Todd Andrews ainda se verá as voltas
com o problema de paternidade da filha Jeannine. Durante anos ele e a esposa esperaram por
um filho que acabou sendo concebida durante os anos em que Jane e Todd foram amantes.
Nem sua existência nem a existência dos que o cercam justificariam o relato se o
compreendêssemos como uma tentativa de resgate simbólico da vida tornada linguagem, do
mito modernista da fusão entre arte e vida, de uma transcendência existencial que pode se
dar a partir do mergulho em profundidade no inconsciente e sua expressão cifrada, estética e
poética, problematizando de forma decisiva a questão da subjetividade. Assim, como afirma
Steven Connor:
Por ironia, esse subjetivismo tem de ser acomodado a toda uma série de anúncios do
fim da subjetividade individual, da famosa defesa da impessoalidade em ―Tradition
and the Individual Talent‖, de Eliot, à promoção, feita por Joyce (através de Stephen
Dedalus), de uma estética do desapego autoral em que o autor de uma obra literária
se dissocia, como um Deus, desta. Contudo, é possível discernir também um
princípio que subjaz a esses dois opostos e os une. Seja concebido como uma fria,
seca e impessoal ia ou como um tecido de subjetividade ricamente saturado, o
princípio da obra de arte modernista é a autocompletude. Tanto a objetividade como
a subjetividade conduzem à integridade formal desse gênero, uma dando à obra
literária a pétrea auto-suficiência da ―urna bem trabalhada‖ de Cleanth Brooks e a
outra, a ―composição intrincadamente trabalhada‖, como o diz I. A. Richards, de
uma rede de subjetividade. Esse princípio, por sua vez, parece envolver ou garantir
uma estética do talento artístico levado ao extremo. Sob o modernismo, a obra de
criação literária já não pode ser representada como a humilde subjugação da vontade
à tarefa de retratar o mundo nem como conformidade a um corpo de preceitos
estéticos; o compromisso de produzir uma obra de arte que só conheça suas próprias
regras e transforme a vulgar contingência das relações mundanas em termos
estéticos purificados requer uma vigilância, um conhecimento e um domínio
extremos por parte do artista, que se tornou agora, de modesto artesão, artífice
divino. (1993, p. 91)
Em A Ópera Flutuante, não encontramos nem a autocompletude modernista nem a
transformação das relações mundanas em uma construção estético-simbólica que projeta uma
existência potencial, em estado de linguagem, que se deixa iluminar a partir de sua intricada
rede de pensamentos, emoções, afetos, delírios e manifestações inconscientes, que se afirmam
como a dimensão mais profunda e original da existência. O que existe é uma abertura infinita,
uma obra que se revela como processo, produção em devir, exercício estilístico que se
fundamente em sua própria auto-referencialidade, que se articula como expressão de si
210
mesma, que rejeita qualquer simbologia, qualquer re-significação simbólica do mundo ou do
indivíduo. Assim, ao continuar explicando a origem de seu nome, o narrador afirma usar dois
ds para evitar essa simbologia nebre, embora acabe reconhecendo que Todd com d
dobrado é simbólico também, e extremamente simbólico. Tod é morte, e este livro não tem
muito a ver com morte; Todd é quase Tod isto é, quase morte e este livro, se for escrito,
tem muito a ver com quase morte.‖ (1987, p. 11) Note que o narrador sequer tem certeza se
este livro será, de fato, escrito, o que provoca um efeito mais do que irônico já que tenta situar
a leitura num momento anterior, ou, no mínimo, simultâneo ao do próprio relato, o que acaba
rompendo com os limites da verossimilhança e, conseqüentemente do modelo de
representação realista que a obra, muitas vezes, simula. Esse jogo com o modelo de
representação realista fica ainda mais evidente na passagem que segue:
Uma última observação. Você ficou mortificado com histórias que
pareciam prometer alguma revelação e, então, burlaram-no, tomando novos
rumos? percorri mais vezes do que escolhi histórias a respeito de
alguma invenção maravilhosa uma máquina que desafia a gravidade, ou um
telescópio suficientemente potente para se ver homens em Saturno, ou uma
arma secreta capaz de deslocar o sistema solar -, mas a mecânica do
dispositivo antigravitacional nunca foi explicada; a questão sobre Saturno ser
habitado nunca foi respondida; não nos disseram como construir deslocadores
do nosso sistema solar. Bem, não este livro. Se eu lhe disser que empreguei
algumas coisas figuradas, direi o que estas coisas são e as explicarei tão
claramente quanto me for possível. (1987, p. 11)
Mas, como não poderia deixar de ser, esse jogo representacional desarticula os
modelos verdadeiramente realistas que o excesso de detalhes e descrições, no romance de
Barth, atendem ao propósito de saturar a narrativa com as indicações de pontos de vista e de
perspectivas retóricas referentes à própria articulação do relato. Ainda no primeiro capítulo,
ao se apresentar, o narrador faz um esboço de sua vida e formação salientando um problema
no coração que pode matá-lo a qualquer momento. O que interessa nesta apresentação é que,
em vários momentos, o narrador apresenta novas informações ao relato de forma
antecipatória, que ele mesmo reconhece estar ligado à sua inaptidão narrativa, problema este
211
que ele espera ver resolvido ao longo do exercício escritural: Não vida de que, quando
pegar o jeito de contar hisria, depois de um capítulo ou dois, andarei mais depressa e com
menos digressões.‖ (1987, p. 13)
O narrador, então, passa a referir o longo processo que o levou à compreensão de sua
obra. A citação que segue é longa, mas essencial para a compreensão da natureza
problemática da representação na literatura pós-moderna:
Agora, então, o título, e, a seguir, veremos se podemos começar a história.
Quando, há dezesseis anos, decidi escrever a respeito de como mudei a minha
decisão em uma noite de junho de 1937, não tinha, então, nenhum título em
mente. De fato, uma hora atrás mais ou menos, quando comecei a
escrever, é que percebi que a história teria pelo menos a extensão de um
romance, e assim resolvi lhe dar um título de romance. Em 1938, quando me
determinei a escrever a história, ela era para ser apenas um aspecto do estudo
preliminar de um capítulo do meu Inquérito, sendo que as notas e dados para
tal enchem quase todo o meu quarto. Estou completo. A primeira tarefa,
depois que jurei escrever sobre aquele dia de junho, foi relembrar tão
totalmente quanto possível todos os meus pensamentos e ações daquele dia,
para estar certo de que nada seria omitido. Este pequeno empreendimento me
tomou nove anos não me esforcei muito e as notas encheram sete cestos
que foram colocados junto à janela. Então tive de ler um bocado: alguns
romances, para aprender o sentimento próprio da atividade de narrar coisas, e
alguns livros sobre medicina, indústria náutica, filosofia, arte dos menestréis,
biologia marinha, jurisprudência, farmacologia, história de Maryland,
química dos gases, e uma ou duas outras coisas, para construir a base, e para
ter a certeza de que eu entendia razoavelmente bem tudo o que tinha
acontecido. Isto levou três anos bem desagradáveis, pois eu tinha de
abandonar meu sistema usual de escolher livros, para me dedicar àquela
leitura comparativamente especializada. Os últimos dois anos, passei-os
organizando as recordações daquele dia, reduzindo os cestos de sete para um,
escrevendo material interpretativo e comentários sobre eles, até que tivesse
outra vez sete cestos cheios, e finalmente organizando os comentários e os
reduzindo de sete para dois cestos, sendo que era minha intenção retirar daí
comentários ao acaso, a cada meia hora se tanto -, enquanto estivesse
escrevendo. (1987, p. 13-14)
Como podemos ver, o narrador faz questão de revelar que o seu relato não passa de
um estudo preliminar de um capítulo do meu inquérito‖, ou seja, é parte de uma obra maior
que, na verdade, não existe. Além disso, ele empenha quatorze anos de sua vida elaborando
notas que deram origem ao romance, cuja história se deu a partir de uma decisão tomada em
uma noite de 1937. Assim, é inevitável o pensarmos na natureza paródica do romance
afinal, esse processo de elaboração narrativa sugere o modelo monumental e totalizante que é
212
o Ulisses, de Joyce, sendo que diferentemente da obra do irlandês, o narrador, aqui, reconhece
que tudo é significativo, e nada é importante, afinal‖ (1987, p. 14), pois, como ele mesmo
afirma:
Ah, eu. Tudo, temo-o, é significativo, e nada é importante, afinal. Estou bem
certo agora de que os dezesseis anos de preparação não serão assim tão úteis,
ou, pelo menos, não do mesmo modo como pensara: entendo os eventos
daquele dia satisfatoriamente bem, mas quanto aos comentários penso o
que o que vou fazer é tentar não comentar de maneira nenhuma, mas ater-me
simplesmente aos fatos. Sei que, deste modo, ainda farei um bocado de
digressões a tentação é grande sempre e se torna irresistível quando sei que
o fim é irrelevante mas, pelo menos, tenho alguma esperança de chegar ao
fim, e, quando a graça me abandone, serei capaz a qualquer preço de me
congratular por minhas intenções. (1987, p. 14-15)
Tais digressões são freqüentes e acabam por tornar a representação instável, já que nos
impede de construir uma imagem perfeita, acabada e total da narrativa que se apresenta de
forma caleidoscópica. O próprio narrador não faz questão de esconder sua intenção de fraturar
a representação: ao explicar o título da obra, A Ópera Flutuante, ele alega que este era ―parte
do nome de um barco-teatro que costumava viajar pelas áreas litorâneas da Virgínia e de
Maryland‖ (1987, p. 15), sendo que os motivos para escolha do título estão ligados ao fato de
que parte da hisria se deu a bordo da embarcação. A verdade é que a escolha do título
aponta para a própria desarticulação ou fragmentação do relato:
Sempre me pareceu uma boa idéia construir um barco-teatro com apenas um
convés aberto e chato, e manter ali um drama sendo continuamente
representado. O barco jamais ancoraria, mas navegaria à deriva, rio acima e
rio abaixo, ao sabor da maré, e os espectadores ficariam sentados ao longo de
ambas as margens. Eles poderiam apanhar uma parte qualquer do enredo que,
porventura, estivesse sendo encenada enquanto o barco flutuasse, de
passagem por ali, e então eles teriam de esperar até que a maré voltasse para
apanhar um outro pedacinho do drama, se é que ainda estivessem sentados
ali. Para preencher as lacunas, eles teriam de usar a imaginação, ou perguntar
a vizinhos mais atentos, ou ouvir a palavra que viesse lá da parte alta ou lá da
parte baixa do rio. A maior parte das vezes eles não conseguiriam entender de
maneira nenhuma o que estivesse se passando, ou pensariam que estivessem
conseguindo, quando realmente não estariam. Uma porção de vezes, seriam
capazes de ver os atores, mas não de ouvi-los. Não preciso explicar que é
assim como grande parte da vida funciona: nossos amigos flutuam de
passagem por nós; nós nos envolvemos com eles; eles flutuam para longe, e
nós temos de confiar em boatos, ou, então, perder completamente o contato
com eles; e flutuam de volta outra vez, e nós renovamos a amizade
reformulando-a -, ou achamos que não mais nos compreendemos. E, estou
213
certo, é assim que este livro funcionará. Ele é uma ópera flutuante, amigo,
carregada de curiosidades, melodrama, espetáculo, instrução e
entretenimento, mas flutua, quer queira, quer não, ao sabor da maré da minha
prosa errante: voo conseguirá ver, irá perdê-lo, espio-lo ainda uma vez;
e isso poderá exigir os melhores esforços de sua atenção e imaginação a par
com muita paciência, se você for um leitor mediano para se manter na pista
do enredo, enquanto ele veleja para dentro e para fora do campo visual.
(1987, p. 15-16)
Primeiro romance de John Barth, publicado originalmente em 1956, ele pode ser
entendido como uma obra na qual os caracteres fundamentais da narrativa pós-moderna
aparecem de forma embrionária: fragmentação, descontinuidade e ruptura do pacto ficcional
caracterizam um romance baseado numa teno deliberada: o narrador oscila entre as
convenções representativas da literatura realista, com seu rigor detalhista, com a preocupação
com construir personagens mais ou menos consistentes, com as passagens e capítulos que
situam e referem determinada realidade extra-literária e o exercício criador pós-moderno, que
se fundamenta na auto-referencialidade discursiva da obra, no fato de que a narrativa cria suas
próprias regras, explicações e pressupostos crítico-teóricos de modo a criar um romance que
anuncia determinados problemas que serão potencializados em suas obras posteriores,
como The Sot-weed Factor (1960), Giles Goat-Boy (1966), Lost in the Funhouse (1968) e,
sobretudo, em seu sexto romance, Quimera (1972). Segundo Sérgio Luis Prado Bellei, no
artigo John Barth no Brasil
59
, é nestes dois últimos romances de Barth que a fragmentação
descontínua negadora de fim e começo e insistente em um meio em expansão se manifesta
com mais intensidade‖ (1993, p.61).
As digressões de A Ópera Flutuante conduzem a um processo de lenta desarticulação,
que os capítulos acabam por se apresentar como promessas narrativas, isto é, afirmam um
acontecimento o suicídio abortado do narrador que se adia em nome dos comentários
críticos, das análises da própria obra, do diálogo irônico com o leitor, solicitado como
elemento articulador da narrativa, pois cabe a ele a paciência de esperar pelos fatos bem como
59
BELLEI, Sérgio Luis Prado. (1993). John Barth no Brasil. Revista Fragmentos. UFSC. Vol 04, Nº 01,
1993. Disponível em http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/fragmentos/issue/view/990
214
o trabalho de organizá-los a partir de suas dispersões ao longo da obra. Barth, que também foi
um dos pensadores do s-modernismo na literatura, acabou praticando, em seu primeiro
romance, outra característica importante da tendência culturalista de alguns estudos pós-
modernos, invertendo suas fontes de influência:
Quando escrevi A Ópera Flutuante ... , sofri a influência de um romancista
brasileiro, Machado de Assis, que ... por sua vez tinha sido influenciado pelo
Tristram Shandy; a mesma técnica de jogar livremente com as idéias e uma visão de
mundo semelhante. No final de contas, Sterne acabou chegando a mim vindo do
Brasil. (BARTH Apud BELLEI, 1993, p. 63)
Barth desloca sua influência narrativa dos centros culturais norte-americanos e
europeus, hegemônicos em relação ao pensamento crítico, teórico e estético da literatura
ocidental, bem como da produção literária, para o que podemos chamar de periferia. As
relações entre os elementos caracterizadores do romance machadiano, como a digressão, a
ironia, a metalinguagem, a fragmentação, que se por intermédio dos capítulos curtos,
incisivos, muitas vezes elípticos em seus tons e motivações, estão presentes de forma explícita
ao longo de toda a narrativa de Barth. A própria história do advogado Todd Andrews se divisa
em muito com o romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, que, como aponta David
Morrell:
Os narradores dos dois romances são advogados e participam ambos em um
triângulo amoroso do qual surge uma criança de pai incerto. Ambos consideram a
possibilidade do suicídio, descrevem o dia fatal e a noite em que foram ao teatro e
decidem finalmente não se suicidar quando olham para a criança que poderia -las
como pais. Chegam mesmo a imaginar a vida como sendo uma ópera, mas nesse
caso a diferença entre os dois romances é significativa: enquanto D. Casmurro
metaforiza de forma elaborada uma ópera musical em estilo clássico, a ópera de
Todd Andrews é encenada em um barco e apresentada descontraidamente. (Apud
BELLEI, 1993, p. 63)
Desse modo, as promessas anunciadas pelo advogado não se cumprem: o narrador não
se suicida, as premissas que formula para o seu Inquérito, a verdadeira obra que vinha
escrevendo diligentemente mais de uma década acabam por se transformar em outra obra,
menos certa, menos precisa, menos definidora do que o estudo que serviria como mecanismo
215
de compreensão acerca do suicídio do próprio pai. Além disso, vale ressaltar que, em Dom
Casmurro, a história traçada por Bentinho também está ligada a um projeto maior e mais
ambicioso, sua História dos Subúrbios, e que também não se realiza. É nesse sentido que
podemos pensar a literatura pós-moderna, como um tipo de produção que passa a criar
discursos que se voltam sobre si mesmos, que perseguem suas formas e estruturas, que se
buscam definir. A escritura dobra-se sobre si mesma, quebra os limites da representação
realista e instaura um discurso de ordem metaficcional que vai muito além da simples ironia,
da afirmação ou do elogio da tradição, que aos s-modernos não interessa romper com o
passado ou com a tradição simplesmente, mas sim reencontrar o momento áureo da
modernidade, quando suas formas de expressão ainda significam o questionamento mais
fundo da ordem estabelecida e não uma mera proliferação reificada de discursos cujo único
objetivo é o controle e a manipulação do pensamento, das idéias e dos modelos de
representação em favor dos paradigmas mais ou menos definíveis da ideologia de mercado. A
escritura vai muito além da intertextualidade, do jogo paródico, das expressões alegóricas da
modernidade. À pós-modernidade importa, também, reconhecer a possibilidade
representacional da obra e abrir-se para um discurso que busca uma espécie de
reconhecimento profundo das estruturas, argumentos, articulações e limites que se impõem à
escritura.
Desse modo, o foi por acaso que os escritores e teóricos da pós-modernidade
chegaram a seus postulados, suas formulações e seus paradigmas referentes não ao
desmascaramento do jogo da representação, mas também da manipulação dos sentidos e da
construção da verdade nos grandes modelos textuais, nas grandes metanarrativas; como não
foi por acaso que se voltaram sobre a própria escritura, na tentativa de defini-la, explicitá-la,
encontrar sua raiz fenomenológica. Na esteira dessa nova perspectiva, desse novo olhar, dessa
nova maneira de perceber e apreender as grandes narrativas, e de criar uma nova literatura, os
216
autores da s-modernidade encontram lastro nas obras teóricas de filósofos como Michel
Foucault e Jacques Derrida, por exemplo, para quem a escritura, além de um produto de
construto, também possui uma dimensão ex-cêntrica, disjuntiva e polissêmica, que resiste à
qualquer explicação essencialista ou metafísica, que pode ser pensada a partir dos
caracteres tipológicos da análise do discurso, da hermenêutica, da crítica literária ou da teoria
da literatura. A excentricidade da escritura e seu caráter notadamente filosófico podem ser
entrevistos a partir de um olhar acurado sobre a própria natureza da linguagem e suas relações
representacionais. É o que faz Derrida em obras como A Escritura e a Diferença, A
Gramatologia ou Margens da Filosofia, influências decisivas sobre as formas de pensar da
pós-modernidade.
Enquanto Derrida busca encontrar as raízes fenomenológicas e diferenciais da
escritura, o modo como os signos circulam no interior dos discursos, a abertura e o
fechamento da escritura, a linguagem como a ambigüidade, a duplicidade essencial dos
sentidos, Foucault foi o responsável por rever, histórica e analiticamente, a formação do saber
e de alguns dos grandes modelos de pensamento e de discurso desde a Idade Média até as
construções contemporâneas, como é caso de obras como As Palavras e as Coisas Uma
Arqueologia das Ciências Humanas e Arqueologia do Saber. Os teóricos da pós-modernidade
souberam valer-se da contribuição mais do que necessária oferecida por esse novo
pensamento filosófico no que diz respeito às vidas profundas e ao ceticismo interrogativo
em relação aos sentidos e as verdades fundamentadas pelos antigos sistemas de pensamento.
Esse questionamento radical e a influência de pensadores como Derrida e Foucault sobre as
teorias do pós-moderno são muito bem definidos por Linda Hutcheon quando esta afirma que
existe uma longa história referente a muitos desses ataques céticos contra o positivismo e o
humanismo, e os atuais paladinos da teoria Foucault, Derrida, Habermas, Vattimo,
Baudrillard seguem as pegadas de Nietsche, Heidegger, Marx e Freud para citar apenas
217
alguns em suas tentativas no sentido de desafiar os pressupostos empiricistas, racionalistas e
humanistas de nossos sistemas culturais, inclusive os da ciência‖ (1991, p. 23).
Há alguns exemplos determinantes da importância desses pensadores e de suas novas
perspectivas filosóficas para o desenvolvimento dos paradigmas mais caros à pós-
modernidade como a questão da escritura e da representação se pensarmos em obras como
As Palavras e as Coisas, de 1966, em que Foucault dedica um dos capítulos à idéia de
representação nos discursos concebidos pelas ciências a partir da Idade Média e em como
essas idéias se alteram radicalmente no século XVII, abrindo um novo limiar para a
compreensão do signo e de seu funcionamento no jogo da representação. Preocupado em
definir o lugar do pensamento em sua relação com a cultura, os estatutos de descontinuidade
que movem a história em geral e o pensamento em particular, as similitudes e diferenças que
marcam a constituição primeira dos signos postos em circulação no discurso, Foucault faz
uma verdadeira exegese do conceito de representação em suas singularidades históricas e
discursivas. Para Foucault, é preciso compreender não só o signo, mas todo o sistema que põe
os signos em circulação, que os faz assumir suas funções no interior do pensamento e do
discurso, que se revelam numa quase que transparência absoluta dos conteúdos que trazem em
si. Por isso, afirma que o significante tem por conteúdo total, por função total e por
determinação total somente aquilo que ele representa: ele lhe é inteiramente ordenado e
transparente; mas esse conteúdo é indicado numa representação que se dá como tal, e o
significado se aloja sem resíduo e sem opacidade no interior da representação do signo‖
(FOUCAULT, 1999, p. 89)
À s-modernidade é indispensável pôr em evidência justamente esse caráter mais
íntimo do signo, seu jogo, a forma como se faz circular, como se transforma em fundamento,
base ou alicerce de todo o discurso e em como o discurso é uma motivação que se constrói a
partir de uma determinada carga de intenções que, de modo algum, podem se dar
218
inequivocamente. Os autores da s-modernidade questionam o valor das grandes verdades e
dos sentidos totais, inequívocos, partindo da premissa de que as intenções do autor se dão de
forma motivada, surgindo no centro de sua própria subjetividade, e se multifacetando
conforme o discurso é tecido, ou seja, no interior de qualquer narrativa, os signos e, por
conseqüência, os sentidos, são sempre um universo que se e em circulação e
funcionamento, que se abre a outros signos e outros sentidos que, por sua vez, tem como
insncia última o leitor, que os atualiza e os faz circular de acordo com suas experiências
particulares e com o seu modo de ler a infinidade de textos que, de algum modo, se
relacionam. Assim, os signos em em jogo os sentidos, que motivam a representação, que é
sempre dual porque depende da participação direta de duas experiências: a do autor, que
concebe a narrativa; e a do leitor, que a confirma, expande e potencializa.
A partir das perspectivas de Foucault e Derrida, compreendemos, nos discursos da
pós-modernidade, que o conceito de representação não se dá ocasionalmente ou não se realiza
apenas na circulação dos signos e dos sentidos dentro as grandes narrativas, mas que a
representação acontece, antes de tudo, a partir do sujeito, como objeto deste, como produto de
construção que surge ainda no espírito e que se afirma por ele. O indivíduo, real, corpóreo,
concreto, tem sua existência condicionada, sob muitos aspectos, pela linguagem. Todo o
sujeito é um sujeito lingüístico, da e para a linguagem. A representação que se enuncia, que se
narrativiza, que se transforma em discurso, também, em muitos pontos, é o sujeito em estado
de enunciação. O que quer dizer: o sujeito envereda-se pelos caminhos da escritura, confunde-
se com ela, passa a ser parte do mundo que escreve e no qual se inscreve, enquanto é escrito e
inscrito por ele, num duplo movimento, na marca de um presente contínuo, eterno, que se dá
pela escritura. Esse é o jogo da representação: a presentidade completa, total, do sujeito que se
afirma ao mesmo tempo em que promove o seu próprio apagamento no interior da escritura.
219
Na literatura pós-moderna, conceitos como os de metanarrativa, fragmentação,
ruptura, modernidade e tradição, sujeito, representação e escritura manifestam-se, muitas
vezes, de forma incisiva em várias obras. A grande preocupação dos autores pós-modernos é
justamente evidenciar o caráter arbitrário de toda a narrativa, ou demonstrar que os princípios
da ficcionalidade operam nas mais distintas frentes dos mais diferentes discursos. Mesmo a
historiografia clássica, das grandes narrativas históricas, que se queria um tipo de narração
neutra, objetiva, clara e direta dos fatos e dos acontecimentos que norteiam a evolução, no
tempo, do homem e suas conquistas, passa a ser revista pelos historiadores, filósofos e
pensadores da s-modernidade. Segundo esses novos autores, a história não é,
absolutamente, o universo das continuidades cronológicas, passíveis de serem relacionadas,
organizadas, sistematizadas dentro de discursos mestres. Mesmo as narrativas históricas estão
sujeitas às falhas ou imprecisões memorialísticas, documentais ou de registro. Essas falhas ou
imprecisões na descrição de fatos ou acontecimentos históricos podem ser rearranjadas
graças ao trabalho do autor, que oferece sua contribuição pessoal no caso, a imaginação
criadora para preencher as lacunas e as descontinuidades geradas pelas grandes rupturas
próprias da história. A ficcionalidade, nos discursos historiográficos da pós-modernidade, tem
o papel decisivo de intervir na própria escritura da hisria.
Desse modo, a s-modernidade questiona, inclusive, a idéia de neutralidade própria
de uma série de discursos que, no fundo, não passam de uma série de arranjos ideológicos que
se alinham, politicamente, numa relação direta com as formas de manifestação de poder. o
neutralidade que não se revele minimamente falseada ou manipulada pelos mecanismos da
elaboração discursiva. A literatura s-moderna nos interessa na medida exata em que se
mostra como um dos discursos mais abertos à revelação contundente das articulações e das
manipulações que as grandes narrativas concebem a partir de si mesmas. Os autores da pós-
modernidade, ao criarem suas obras, colocam em jogo justamente as formas e modelos da
220
representação, deixando claro que é sempre uma impostura afirmar que se pode criar uma
narrativa neutra, total, absoluta, segundo os padrões de criação realista, ou uma narrativa que
rompa drasticamente com esses mesmos padrões, como queriam os escritores da
modernidade. O interesse, então, passa a ser a possibilidade de transitar livremente dentro da
própria escritura, confundindo-se com ela, manipulando-a, velando e desvelando sua tessitura
mais íntima.
Muitos dos romances contemporâneos podem ser enfeixados entre as obras mais
significativas da pós-modernidade, o que não quer dizer, necessariamente, que toda obra
contemporânea seja, também, pós-moderna. As obras precisam permitir que as principais
singularidades e características do discurso pós-moderno, as quais nos referimos até aqui,
venham à tona, se revelem e se permitam apreender. Assim, neste momento, nossa tentativa
será a de demonstrar como os caracteres essenciais da pós-modernidade se alinham no interior
de uma obra, como um romance pode enfeixar, ao mesmo tempo, uma crítica e uma
afirmação do discurso ficcional, criando uma relão em larga medida paradoxal com a
linguagem, a escritura e o universo literário que engendra. Entre várias obras possíveis,
escolhemos, para essa análise mais detida e rigorosa dos caracteres pós-modernos de
construção discursiva, Vício (2001), um dos mais recentes romances de Paulo José Miranda,
filósofo, poeta e escritor português que se voltou para o século XIX e criou uma obra
altamente singular, misto de romance, ensaio e ficção histórica que busca encontrar a essência
determinante da escritura, da hisria e da criação.
4.3. A Escritura Fragmentária e a Deriva da Representação
4.3.1. Paulo José Miranda: A Invenção do Outro
Paulo José Miranda nasceu em Portugal, em 1965, licenciou-se em Filosofia e acabou
se transformando em um dos principais escritores portugueses publicados a partir da segunda
221
metade da década de 90 do século passado. Poeta, dramaturgo e romancista, Paulo Jo
Miranda publicou, em 1997, seu primeiro livro, o volume de poesias A Voz Que Nos Trai,
pelo qual foi contemplado com o 1º Prêmio de Poesia Teixeira de Pascoaes, e passa a ser visto
como um dos novíssimos nomes da poesia contemporânea portuguesa. Em 1998, faz sua
primeira aventura ficcional e publica Um Prego No Coração, romance de fundo histórico e
ensaístico que gira em torno da vida e da obra poética de Cesário Verde, um dos mais
importantes autores da poesia realista portuguesa de fins do século XIX. Um Prego no
Coração seria o primeiro romance de uma trilogia concebida pelo autor e que se remete,
sempre, a uma figura determinante da história artística e cultural portuguesa. Na concepção de
sua trilogia, surgem, então, Natureza Morta, um romance sobre a obra e a figura do
compositor português Domingos Bomtempo, o mais importante compositor erudito da
hisria de Portugal, que rendeu a Paulo JoMiranda o segundo prêmio literário em menos
de um ano o Prêmio José Saramago-, e Vício, um diário contendo as supostas anotações dos
três últimos meses de vida do poeta Antero de Quental. Paulo JoMiranda publicou, ainda,
um outro livro de poemas, A Arma do Rosto, e uma peça de teatro, O Corpo de Helena.
Ao receber o prêmio por Natureza Morta, pelas mãos do próprio José Saramago, este
afirmou ser o romance de Paulo JoMiranda um livro muito bem escrito, que revela um
mundo ficcional muito próprio. Realmente, o mundo ficcional de Paulo JoMiranda é uma
das coisas mais complexas, próprias e singulares que se viu nas últimas décadas. Um
desafio, um confronto, uma tensão constante e irrefreável que e a criação em primeiro
plano e que revela as angústias mais fundas de que se constitui a vida de todo artista. Todos
os personagens de Paulo José Miranda circulam pelo mundo conturbado das idéias, da
criação, da arte como uma justificativa e, ao mesmo tempo, um simulacro da existência. Os
romances do escritor português possuem uma unidade poética indevassável, que é o centro da
própria vida, da obra, da criação e se revela a partir da escritura. Escrever, para Paulo José
222
Miranda, não é só uma forma de analisar ou compreender o mundo particularíssimo de
personagens como Cesário Verde, Domingos Bomtempo ou Antero de Quental. Escrever é
redimensionar esse mesmo mundo, buscando sua origem escritural, a força transformadora da
linguagem, a relação desses autores com suas obras e, a um tempo, o modo como nós
mesmos voltamos o olhar e nos interrogamos sobre essa realidade que se impõe pela arte e se
afirma com ela.
Num jogo complexo entre literatura, história, ficcionalidade, autoria e identidade, o
escritor português cria, com essa trilogia, uma obra instigante e desafiadora, cujas motivações
o poderiam ser menos s-modernas: a criação levada a primeiro plano, a escritura que se
exe e revela, a des-centralização do sujeito, que agora passa a se constituir de uma
identidade indefinível, que dizer, ex-cêntrica, deslocada de seu ponto fixo, que se confunde
com o outro, que se faz o outro, toma seu lugar e estabelece a impostura de uma representação
que promove, gradualmente, o apagamento e a revelação de si mesmo. O sujeito já não é uma
criatura definível, clara, una ou translúcida. Ele é um camaleão, uma figura protéica, que
assume as formas e os lugares do outro no mundo, que se constrói a partir e juntamente dessa
experiência metamórfica, estranha, alheia não a si mesmo, mas a sua condição de entidade
empírica inviolável. O eu não é mais um observador simplesmente, alguém que contempla,
assiste e descreve vivências que lhes são estranhas. Agora, cumprindo a sentença quase
profética de Rimbaud, o eu quer ser o outro. É que Paulo JoMiranda busca demonstrar a
partir de sua obra: narrativas em primeira pessoa, cujos personagens, paradoxalmente,
possuem uma dimensão histórica real, isto é, não são, ao menos a primeira vista,
ficcionalidades puras.
Cesário Verde, Domingos Bomtempo, Antero de Quental, personagens de Um Prego
no Coração, Natureza Morta e Vício, tiveram uma exisncia concreta, que se inscreve na
hisria, deixando uma marca visível no tempo, ou seja, uma exisncia recuperada pela
223
hisria geral, e da cultura em particular, que determina a importância de suas figuras e de
suas obras dentro de um contexto artístico definido. Quando Paulo José Miranda cria suas
narrativas tomando como ponto de partida essas mesmas existências concretas, recria, sob o
impacto de uma nova perspectiva, um mundo de referências, sentidos, valores e idéias que
o é necessariamente o seu mundo particular e indivisível , mas que também não chega a
ser o mundo das personagens que descreve. Há um hiato, um abismo, uma cisão incontornável
entre essas duas realidades: a do escritor que cria e a do escritor que se transforma em
personagem, que se amalgama ao tecido da escritura. E Paulo José Miranda coloca-se,
justamente, no centro vazio desse hiato, desse abismo, dessa espécie de não-lugar que é
ausência de sentidos, de referências, de perspectivas determindas.
O escritor português não busca o outro. Ele quer ser o outro por força de um jogo
escritural em que promove o seu próprio, mas nunca absoluto e total, apagamento. Isso
porque, em se tratando de Vício, os mais desavisados podem, quem sabe, acreditar que quem
se manifesta seja mesmo o poeta Antero de Quental em uma tentativa desesperada de
justificar-se diante das artes, das letras, da literatura e do pensamento filosófico. Mas basta
voltar-se um minuto que seja sobre a história do poeta para descobrir que em momento algum
ele tenha legado, entre suas várias obras, um diário sobre seus últimos meses de vida. A partir
desse instante, dessa descoberta ou dessa revelação, a primeira urgência que se impõe é a
tentativa de definir, então, sob que dobras se esconde o escritor, onde, como e de que maneira
ele se dise e se revela por trás do jogo da representação. Não se trata, unicamente, da
impostura de se passar pelo outro. De todos, esse seria o ideal mais simples de se levar a
efeito. Trata-se, principalmente, de compreender que não se pode pensar em limites
transparentes, claros, nítidos e precisos entre o sujeito e o outro, entre o eu e sua imagem
idealizada, seu reflexo imperfeito.
224
Paulo José Miranda promove o apagamento radical de si mesmo e do outro. Desse
modo, pode-se pensar, com Baudrillard, que, em Vício, ―já não negação determinada do
sujeito, há uma indeterminação da posição de sujeito e da posição do outro. Na
indeterminação, o sujeito não é mais nem um nem outro, é só o Mesmo. A divisão desaparece
diante da demultiplicação. Ora, se o Outro sempre pode esconder um outro, o Mesmo só pode
esconder a si mesmo(2000, p. 129-130)
60
. Ao assimilar, atras da cópia, do pastiche, da
paródia e do jogo intertextual, o estilo poético de Antero de Quental, o escritor português cria
um discurso ambíguo e sinuoso, que se insinua e seduz pelos enganos que promove. No
interior da escritura, é impossível definir quem verdadeiramente fala: ―O outro não é feito
para ser exterminado, odiado, rejeitado, seduzido; ele é feito para ser compreendido, liberado,
mimado, reconhecido‖ (BAUDRILLARD, 2000, p. 132). Na verdade, Paulo JoMiranda
o está interessado na recusa radical da tradição aberta pelo realismo poético de Antero de
Quental, antes, o escritor procura justamente reconhecer determinados valores intrínsecos a
essa tradição. Trata-se, quem sabe, de reconhecer o outro, compreender o outro, para
reconhecer e compreender a si mesmo. É o sujeito que se afirma ao se confundir com o outro.
Vício é um romance que busca fixar as identidades e as diferenças que movem a
escritura de Paulo José Miranda inserido em sua própria realidade. Não é um romance das
similitudes ou das influências que se impõem por intermédio da figura Antero de Quental.
Não se trata de compreender a escritura de Antero, mas sim de afirmar a escritura que se
liberta, que se fragmenta, que se constitui das mais variadas experiências: desde as
particulares e características, vividas em si mesmo, até aquelas que se firmam pelo
conhecimento e pela observação, pela relação que o escritor estabelece com o saber
hisrico, sociológico, filosófico e literário. Paulo José Miranda busca fixar as identidades e as
60
BAUDRILLARD, Jean. A Transparência do Mal. Ensaios Sobre os Fenômenos Extremos. edição.
Campinas, SP: Papirus, 2000.
225
diferenças de si para si, da escritura que se volta para dentro de si mesma, da representação
como desarticulação dos discursos tradicionais, e não em relação a Antero de Quental ou de
seu legado poético simplesmente. Escrever, desse modo, é romper com os limites da
representação, fixar diferenças, trilhar os caminhos impensáveis da escritura, causar surpresas,
estranhamentos, desconfortos. Escrever é inventar-se a si e ao outro, perder-se no jogo
arriscado que é escrever, no qual o próprio sujeito acaba por se confundir, a um tempo,
com o outro e com o objeto da criação.
O romance de Paulo JoMiranda inscreve-se dentro da mais importante e da mais
profícua experiência pós-moderna: aquela que busca compreender, na esteira do pensamento
filofico aberto por Jacques Derrida ou por Michel Foucault, por exemplo, os caracteres
essenciais da escritura, suas motivações, seus desejos prementes, sua força original. E no
encalço da escritura, o romancista português acaba por criar uma obra marcada por um
poderoso revisionismo crítico, em que a história da sociedade, do pensamento e da cultura
portuguesa do século XIX transparece em todas as suas nuances. Desse modo, Paulo José
Miranda tece um discurso crítico que põe em xeque, com uma sutileza poética invejável, a
validade dos antigos ideais de representação firmados a partir das grandes obras do realismo
literário. Ao se confundir com o próprio Antero de Quental, ao criar um diário ficcional em
que o estilo do poeta português é refletido detalhadamente, Paulo José Miranda ensaia a
primeira grande crítica aos modelos de representação realistas e, principalmente, à idéia de
sujeito constituída no interior das grandes narrativas engendradas pelo pensamento científico,
técnico e racionalista, e pelo positivismo causalista do humanismo liberal.
4.3.2. O Século XIX, o Realismo e o Sujeito Ex-cêntrico em Vício
A primeira metade do século XIX foi marcada pelas profundas transformações sociais,
políticas, filosóficas, artísticas e estruturais advindas com a Revolução Francesa ainda em
226
1789. No universo da cultura, os ideais libertários da Revolução contribuíram para que as
artes passassem, também, por uma renovação radical, que alterou profundamente o espírito
humano e o modo como os artistas percebiam a realidade que os cercava: tratava-se, com
efeito, do Romantismo, um movimento artístico, estético e filosófico que lançou as bases para
uma nova percepção da individualidade, construída a partir do pensamento filosófico de
Rousseau, Voltaire e, principalmente, Kant, que irá rever o modo de se aproximar do mundo,
dos objetos e das coisas, afirmando que a intuição sensível, que a sensibilidade estética, que a
própria subjetividade do sujeito cognoscente, do indivíduo de conhecimento, tem uma
importância indescritível na compreensão do real e na criação de seus modos de
representação. O movimento romântico dá a primeira guinada em direção à descoberta e à
compreensão mais funda da subjetividade como forma determinante para o entendimento
possível da própria existência, do mundo e da realidade exterior. Os artistas e pensadores do
Romantismo deram o primeiro passo na busca por uma identidade que refletisse as
transformações sócio-culturais pelas quais a sociedade da época vinha passando.
De acordo com Stuart Hall, em A Identidade Cultural na Pós-Modernidade (2003)
61
,
três concepções distintas de identidade que devem ser consideradas caso queiramos
compreender a passagem da modernidade à s-modernidade: o sujeito do Iluminismo; o
sujeito sociológico; e o sujeito s-moderno. Num primeiro momento, o que nos interessa
aqui, essencialmente, é a noção de sujeito do Iluminismo, pelo modo como, em larga medida,
esse sujeito atravessa todo o Romantismo e define as linhas gerais do movimento que irá gerar
seu antípoda decisivo: o realismo. A noção de sujeito do Iluminismo nos permite entender de
que forma o pensamento romântico revoluciona o conceito ou a idéia de identidade ao
empreender um mergulho interior, em direção aos limites do inconsciente, da subjetividade,
61
HALL, Stuart. A Identidade Cultura na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
227
do eu em conflito, sob tensão, ensaiando seu próprio renascimento. Desse modo, o sujeito do
Iluminismo é, em grande medida, o sujeito romântico porque
O sujeito do Iluminismo estava baseado numa concepção da pessoa humana como
um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de
consciência e de ação, cujo ―centro‖ consistia num núcleo interior, que emergia pela
primeira vez quando o sujeito nascia e com ele se desenvolvia, ainda que
permanecendo essencialmente o mesmo contínuo ou ―idênticoa ele – ao longo da
existência do indivíduo. O centro essencial do eu era a identidade de uma pessoa.
(HALL, 2003, p. 10-11)
Pode-se afirmar que o sujeito romântico não era tão radical, consciente ou atuante
quanto o sujeito descrito por Hall. Na verdade, o Romantismo criou uma sensibilidade
conflituosa e, por vezes, irracionalista, excessiva, perturbada. Agora, o culto ególatra do eu, a
individualidade exacerbada ao extremo, a subjetividade afirmativa são heranças
inquestionáveis do sujeito do Iluminismo, indivíduo totalmente centrado, unificado‖, em que
seu centro, seu núcleo de irradiação se encontra na sua própria interioridade, ainda que esta,
inevitavelmente, viva sob tensão e conflito. O sujeito romântico só existe graças a essa crença
Iluminista na força interior, do espírito, no poder inquestionável da individualidade, da
subjetividade como forma de compreensão e relação com o mundo. É o que Benedito Nunes,
em A Visão Romântica, procura evidenciar quando afirma que
Precursor da hegemonia da subjetividade no romantismo da dominância da
experiência individual subjetiva -, esse avultamento do sujeito, em que a direção
epistemológica do pensamento da época clássica se inverte, demitiu o
individualismo racionalista da Ilustração, substituindo-o por um individualismo
egocêntrico, que vinculou o lastro idealista e metafísico da visão romântica à
capacidade expansiva e à força irradiante do Eu. Ponto ntrico da realidade e
passagem para o universo (―das Ich als zuzang zum dem Universum‖, disse-o
Novalis), o Eu, assim configurado, assegurou um primado ontológico à
interioridade, à vida interior, que foi sinônimo de profundeza, espiritualidade,
elevação e liberdade, no vocabulário do Romantismo, quando não significou
também o ―solo sagrado‖ da verdadeira vida, o recesso do ideal, de onde o
sentimento religioso brota, onde a perfeição moral se abriga e a arte coma.
(NUNES, 1978, p. 58)
Essa é a natureza do sujeito romântico, essa a sua marca, o traço característico de sua
individualidade mais funda: o egocentrismo, o narcisismo complexo, o modo de ver,
228
apreender e perceber o mundo a partir da ótica singular de sua própria subjetividade. Como
veremos, esse tipo de culto ao Eu, à individualidade, ao egocentrismo, superam mesmo o
movimento romântico, chegando, em maior ou menor grau, à modernidade e ainda
determinando, sob muitos aspectos, a identidade do indivíduo, com a diferença marcante de
que a identidade do sujeito moderno não é, como nunca foi ou apenas aparentemente o foi
entre os românticos, centrada, uma e racional, mas sim fragmentária, dispersa, estilhaçada.
Desse modo, o interesse pelo Romantismo justifica-se pela forma como ele absorve e
transforma, profundamente, o caráter primeiro da identidade Iluminista. Criando sua própria
identidade, reconhecendo-se em si mesmo, na sua subjetividade singular, o sujeito romântico
resiste ao tempo e alcança a modernidade, na qual ainda podemos reconhecer alguns de seus
traços essenciais.
Agora, antes de tudo, é preciso compreender que entre o individualismo egocêntrico
do sujeito romântico e a identidade fragmentária, dispersa e estilhaçada da modernidade, nós
temos um sujeito em transição, que surge graças aos ideais de ruptura e contestação dos
primeiros artistas do Realismo, em fins do século XIX. Dito isto, é preciso compreender,
também, que o interesse por estes movimentos em conflito, com identidades em conflito, está
diretamente relacionado ao fato de que nosso objetivo principal é demonstrar e caracterizar
em que medida uma obra como Vício, de Paulo José Miranda, é representativa da pós-
modernidade na dimensão e na forma como trata as questões mais particulares do fenômeno
pós-moderno: a herança histórica, a tradição, o pensamento filofico, a estrutura narrativa de
base metaliterária, o sujeito, a identidade, a escritura e a autoria, principalmente.
Se pensarmos que a personagem principal de Vício é, teoricamente, o poeta português
Antero de Quental, fica mais do que evidente a necessidade de compreendermos a evolução
do pensamento, da arte e da cultura desde o Romantismo, passando pelo movimento realista, a
modernidade da primeira metade do século XX até à contemporaneidade e, mais
229
especificamente, o fenômeno s-moderno. Ao resgatar a figura de Antero de Quental, Paulo
José Miranda estabelece um diálogo, característico da pós-modernidade, com o idealismo
romântico, o racionalismo cienfico do realismo e a idéia da arte que questiona os limites, as
fronteiras e a validade do próprio discurso artístico, outra singularidade tipicamente pós-
moderna. Assim é preciso dizer que o romance de Paulo José Miranda põe em jogo o jogo da
representação, uma forma de denunciar o esvaziamento de sentidos e de valores da sociedade
contemporânea, esvaziamento este que se reflete no interior do discurso, da estrutura
narrativa, da proposta literária em criar um diário, sob assinatura do próprio Antero de
Quental, em que o poeta registra, de uma forma cética, niilista e quase desesperada, os três
últimos meses de sua vida, o estranhamento e o desconforto que a literatura, agora, próximo à
descrença suicida, lhe causa e a recusa violenta às letras e à arte.
Antero de Quental, poeta, prosador, crítico e filósofo, é um dos principais
representantes do movimento realista português. Ficou conhecido por dois importantes
motivos, que definem e caracterizam sua figura e sua obra: na juventude, foi o mais
combativo dos defensores da nova tendência realista, envolvendo-se numa grande polêmica
com os últimos representantes do Romantismo, principalmente Antonio Feliciano de Castilho,
acabando por se transformar numa das peças chaves da Questão Coimb e num dos
principais e mais ativos debatedores das Conferências do Cassino Lisbonense, deixando uma
série de ensaios e manifestos que permitem entrever o crítico aguerrido da juventude; na
maturidade, elevou o nível da poesia portuguesa por sua extrema inquietação existencial, que
fez com que aproximasse a criação poética da expressão do pensamento, criando uma poesia
de traço marcadamente filosófico, em que a preocupação ontológica se permite entrever em
toda a sua força, e a validade dos limites da Arte e da Idéia, como entidades perfeitas, são
postas em conflito pela perspectiva paradoxal da vida e do ceticismo, da e da descrença.
230
Assim, Paulo José Miranda não poderia ter escolhido um autor com maior abertura possível
às concepções e características da pós-modernidade.
O realismo é o momento máximo de consolidação dos ideais do racionalismo
científico, surgido com os primeiros iluministas, do humanismo liberal e do positivismo
causalista. Nesse contexto, nada mais natural que o pensamento enveredasse pelos caminhos
das grandes e indefectíveis verdades. Literariamente, o realismo significa a expressão artística
do ideal racionalista-positivista da análise científica, da representação totalizante do mundo,
da revelação da verdade última, calcada ainda numa certa e conservadora moralidade
condenatória não é por acaso, então, que o adultério tenha sido o pretexto, o mote e o clichê
literário de tantas e significativas obras do realismo. A verdade continua sendo aquela
afirmação finalista, absoluta, dos grandes modelos de representação, ou seja, continua sendo a
verdade transcendente, utópica, dos velhos ideais que perpassam e determinam o sentido,
gerando massas discursivas permeadas não pela verdade pretendida e pregada, mas pela
ideologia dominante, que nada tem a ver, no início e ao cabo, com a própria verdade.
Assim, a partir do realismo, a verdade passa a ser um ideal produzido a partir das
relações estabelecidas pelo sujeito em seus movimentos interiores, e o mundo exterior, o
complexo social em que vive:
A não de sujeito sociológico refletia a crescente complexidade do mundo
moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autônomo e
auto-suficiente, mas era formado na relação com ―outras pessoas importantes para
ele‖, que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e mbolos a cultura dos
mundos que ele/ela habitava. (...) De acordo com essa visão, que se tornou a
concepção sociológica clássica da questão, a identidade é formada na ―interação
entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o
―eu real‖, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos
culturais ―exteriores‖ e as identidades que esses mundos oferecem. (HALL, 2003,
p.11)
A literatura realista permite que se perceba essa nova noção de sujeito, que se forma a
partir do pensamento marxista e positivista de fins do século XIX: um sujeito que, agora, é
constituído a partir das relações que estabelece com o mundo exterior, com a realidade direta,
231
alheia à subjetividade, com o complexo social e os conflitos de força que o caracterizam, ou
seja, a identidade individual está diretamente relacionada com o espectro social em que se
encontra. Surge a idéia de esfera pública, de coletividade, de classes sociais mais ou menos
definíveis burguesia e proletariado , com suas particularidades, tensões, choques e
enfrentamentos. A literatura realista concebe um discurso em que o imperativo primeiro é a
busca constante pelo ideal de representação objetiva, causal e totalizante da realidade. As
obras não são mais uma forma de criar, esteticamente, determinadas características ou
singularidades do real, elas querem ser, sob muitos aspectos, o real em estado de pura
consubstanciação. O narrador, o eu-lírico ou a entidade discursiva passa a ser uma aspiração
ideal de abstenção e neutralidade, uma voz pela qual o complexo social é representado em
seus múltiplos aspectos, concebendo uma espécie de configuração plena e absoluta do mundo,
agora narrativizado.
A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o ―interior‖ e o
―exterior‖ entre o mundo pessoal e o mundo público. O fato de que projetamos a
―nós próprios‖ nessas identidades culturais, ao mesmo tempo em que internalizamos
seus significados e valores, tornando-os ―parte de nós‖, contribui para alinhar nossos
sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e
cultural. A identidade, então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, ―sutura‖)
o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles
habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis. (HALL,
2003, p. 11-12)
Essa concepção de sujeito sociológico, surgida ainda nas últimas décadas do século
XIX, vai resistir durante algum tempo, atravessando a modernidade, instante em que começa
a ruir graças a um estilhaçamento e a uma fragmentação cada vez mais acentuada da
subjetividade, tro essencial à idéia tradicional de individualidade, a ponto de, na segunda
metade do século XX, ser revista pelos teóricos da pós-modernidade, que questionam a
fixidez, a essencialidade ou a constância, a permanência, como diria Stuart Hall, da
identidade. Sendo assim, um romance como Vício, de Paulo José Miranda, passa a ser
justamente uma forma de questionar, a um tempo, a crença nas grandes narrativas, na
232
representação total do mundo e na concepção de sujeito calcada na idéia de centramento,
equilíbrio e relação interacional com a sociedade como mecanismo de afirmação e fixação da
identidade individual.
Se o romance é um diário em que Antero de Quental registra, atormentadamente, os
três últimos meses de sua vida, até que ponto, então, podemos afirmar que se trate mesmo de
duas identidades definíveis a do poeta Antero e a do romancista Paulo José se, no jogo da
representação, o escritor promove seu próprio apagamento, para que o poeta, identidade
ficcionalizada, ganhe voz novamente? Até que ponto podemos afirmar, com certeza, que,
essencialmente, o diário, a voz, a escritura atormentada do poeta o existem de fato, no
interior do tecido escritural de Vício? Antero de Quental fez de sua poesia filosófica uma
busca incessante, metafísica, da compreensão ontológica do indivíduo, do desvelamento
essencial do Ser, da descoberta da verdade que se pudesse traduzir em ação. O paradoxo, aqui,
diz respeito ao fato de que a busca incessante pela justificativa existencial fez com que o
poeta acabasse por se perder de si mesmo, dramaticamente, chegando a uma imobilidade e a
uma prostraçãoo violenta que o último gesto possível, a última verdade inviolável
poderia revelar-se pelo suicídio.
Por isso, de acordo com Massaud Moisés, em Presença da Literatura Portuguesa III,
O fulcro do drama anteriano reside nesse querer sem poder, visto querer o
impossível, o exageradamente perfeito como idéia para ser verdade como ação. Sua
obra literária, a prosa e a poesia, atesta nitidamente esse permanente e angustioso
embate de um espírito que se procura, se autodisseca e, ao mesmo tempo, se vai
destruindo tragicamente. A evolução de suas preocupações estéticas e filosóficas
testemunha de modo convincente o enfraquecimento inexorável até a sobrevinda da
morte, enfraquecimento fruto de um denso pessimismo de profundas raízes e que
cresce em progressão geométrica. (MOISÉS, 1967, p. 151-152)
Nada mais natural que a personagem de Vício se permita expor sua própria
imobilidade. Um poeta cansado, um homem desesperado, perdido entre as idéias e as ações,
incapaz de reconhecer, nas artes, nas letras e na poesia a justificativa primeira para sua própria
existência. O pessimismo de Antero de Quental, ele mesmo, poeta, crítico e filósofo, inserido
233
no contexto da história da literatura portuguesa, transforma-se no niilismo paralisante e
exasperado do Antero de Quental s-moderna que se constrói, de forma deliberada, em
Vício. Paulo José Miranda reinventa, então, um Antero de Quental de que não se pode
afirmar, sem chances de erro, talvez nunca ter existido. No entanto, o interesse real do
romancista português é criar um inegável jogo de espelhos, perder-se e confundir-se na
imagem distorcida da personagem que cria. Apagamento e renúncia que nunca se realizam
plenamente, pois fica sempre a mesma vida pesando o entendimento: quem é quem nesse
mundo da alteridade radical, da despersonalização, do sujeito ex-cêntrico, deslocado de seu
núcleo interior, confundido com a matéria, com o objeto poético de que se faz?
Nos limites da escritura, Paulo José Miranda e Antero de Quental tem suas identidades
perdidas: o primeiro, pela renúncia de si mesmo; o segundo, por sua inexistência velada, por
seu Ser simulado no tecido ardiloso e poético da escritura. Ao contrário do sujeito do
Iluminismo racional, humanista, crente em um núcleo definido, centrado em si, no próprio
eu, unificado, consciente e ativo ; ou do sujeito sociológico formado a partir de uma
relação interacional entre o eu, como realidade interior, e o mundo, como realidade exterior,
relação mediada pela cultura, pelos dados culturais, entretecendo o eu interior à estrutura
social na qual age e com a qual interage , a idéia de sujeito exposta em Vício não é nem uma
herança Iluminista nem o resultado direto de uma funda e complexa percepção sócio-cultural.
Antes de tudo, a noção de sujeito não pode ser compreendida tendo em perspectiva o
romancista Paulo JoMiranda ou o poeta Antero de Quental. O que quer dizer: não se pode,
nessa deriva da representação, nesse jogo de sentidos, tomar um pelo outro simplesmente.
Ambos são o Mesmo. Um é necessariamente o outro.
24 de junho de 1891
por medo de não conseguir suportar o vício posso entender o meu interesse pela
Baronesa Seillière, nos idos finais de 70. Porque assusta compreender que estamos
entregues a nós mesmos para sempre. Pelo menos, enquanto o para sempre dura. E,
em rigor, é realmente para sempre. Toda e qualquer existência é, ao seu próprio
234
olhar, imperecível. É sempre demais para um homem só. Deve ter sido isto, ainda
que não soubesse, que fez com que desejasse unir o meu destino àquela mulher. E,
hoje, ao recordar esse meu interesse pela Baronesa vejo claramente que ainda não
havia compreendido a natureza do vício. Ele é a substância que nos mantém vivos,
que nos impele a continuar a vida que nos foi concedida. (MIRANDA, 2001, p. 47)
Fica evidente que determinados detalhes da vida de Antero de Quental vão emergindo
à superfície da narrativa. Inevitável. É preciso, em primeiro lugar, não perder as pontas do
antigo fio de Ariadne da verossimilhança. Deve-se fazer crer na narrativa engendrada. Agora,
o jogo da representação começa aí: não se trata de um relato biográfico, documental, factual.
Trata-se de uma espécie de memorialismo poético que seleciona, analisa, escolhe e distribui,
no interior do discurso, apenas os traços essenciais que possam transmitir uma sutil e sempre
contraditória idéia de verdade: a amizade com Eça de Queis, as leituras da época, os ensaios
que escrevia, o relacionamento amoroso com a Baronesa de Seillière, a presença ostensiva e
estranha da irmã Ana, uma série de elementos que se ajuntam para dar vida e credibilidade a
uma narrativa que se importa consigo mesma, com a escritura que lega e da qual se
constitui, porque a escritura tem sempre esse duplo movimento de gênese e legado , com o
conjunto dissonante de vozes, signos, sentidos que essa mesma escritura faz circular.
O sujeito, em Vício, é uma construção deliberada, resultado de uma
contemporaneidade em que, segundo Stuart Hall, ―o próprio processo de identificação, através
do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e
problemático‖ (2003, p. 12). Não se pode mais, simplesmente, crer ou afirmar uma identidade
sólida, concreta, autocentrada. A s-modernidade é o momento de descoberta e vivência de
uma nova idéia de sujeito. Não é por acaso que a trilogia criada por Paulo José Miranda tenha
como personagens centrais figuras reconhecidas da hisria da cultura portuguesa. Rever a
própria história pela perspectiva de um novo sujeito, aquele que se confunde não com o
tecido da escritura, mas que se revela e se oculta a partir do jogo da representação. Assim,
confundir-se com o outro, tomar seu lugar, reinventá-lo, significa, também, demonstrar a crise
das velhas concepções de sujeito, identidade e reconhecimento, ao mesmo tempo em que
235
problematiza a ex-centricidade do sujeito s-moderno, espécie de imagem que o se
reflete a partir de nenhum centro fixo.
Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma
identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma ―celebração
móvel‖: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais
somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (Hall,
1987). É definida historicamente, e o biologicamente. O sujeito assume
identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas
ao redor de um ―eu‖ coerente. Dentro de nós identidades contraditórias,
empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão
sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada
desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma moda estória
sobre nós mesmos ou uma confortadora ―narrativa do eu‖ (veja Hall, 1990). A
identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia.
(HALL, 2003, p. 12-13)
Paulo José Miranda compreende e admite esse jogo das identidades cambiantes, que se
alternam, que se modificam, que se transformam de acordo com o mundo, com a realidade,
com o universo cultural em que se encontram inseridas. As referências afloram à superfície da
narrativa e servem justamente para amplificar ou potencializar esse processo, cada vez mais
radical, de fragmentação e estilhaçamento do ―eu‖. O reflexo definido e certo do ―eu‖ perde-
se no jogo algo caótico das inúmeras referencialidades.
O Basílio, por exemplo, há-de viver para sempre. Eu mesmo estive próximo de me
pôr fim, quando o projecto de união com a Baronesa ruiu, não fosse meu querido
Joaquim Pedro a tirar-me o revólver da mão. Por momentos, senti ser capaz de
abdicar de tudo. sentia vergonha aos olhos de mim mesmo. Vergonha de me ter
iludido tanto. é uma vergonha de filósofo, bem se vê, mas que em determinadas
condições pode acabar com o homem. No fundo, o vício é um abismo de afecto.
Iseridos nele, na ilusão dele, o conseguimos ver nada além do medo de
abdicarmos dele, como Leopoldina. E eu tenho medo de abdicar de uma vez por
todas de Deus, desse Absoluto afecto que não tenho. É esse o modo expressivo do
vício em mim. E vejo, dia-a-dia, uma maior proximidade entre a viciosa Leopoldina
e eu. Faltam-me ainda forças para ser Luísa. (MIRANDA, 2001, p. 50-51)
O Antero de Quental de Vício é um sujeito atormentado pelo desejo de uma renúncia
absoluta, completa, plena, não do mundo, assim como o entendemos, mas de si mesmo, do
que é ou, melhor dizendo, de tudo o quanto não é, não pôde ser nessa vida. Renunciar às letras
e às artes é, sob muitos aspectos, renunciar a si mesmo, porque, com o tempo, foi fazendo do
universo escritural uma justificativa e uma saída para de própria existência. Paulo José
236
Miranda cria um Antero perturbado pelas mesmas dúvidas que levam o escritor em direção à
literatura, que promovem o encontro do artista com a arte em que busca, vertiginosamente, se
encontrar e reconhecer. O sujeito s-moderno, desenraizado, ex-cêntrico, perdido de seu
eu‖ unificado e autocentrado, transparece, sobremaneira, no romance de Paulo José Miranda.
O ―eu‖ verdadeiro, que poderia ser confundido, como muitas vezes o é, com o próprio autor,
aliena-se nesse jogo. Mesmo que o autor só fale sobre si mesmo, sobre suas dúvidas e
incertezas, suas angústias ou frustrações, a voz pertence sempre ao poeta, a essa alteridade
sempre pela metade porque permite a percepção do próprio jogo ficcional, o simulacro que
gera a partir do discurso.
A realidade revelada pelo romance de Paulo José Miranda não é a sua realidade e,
estranhamente, não poderia ser, em momento algum, a realidade de Antero de Quental. A
única realidade existente, o único tempo, o único espaço, a única história e o único sujeito
translúcido em todo esse jogo está indissociavelmente ligado à escritura. A realidade
instaurada pela escritura, o tempo e o espaço da escritura, a história e o sujeito que se
constroem a partir da enunciação. Vício promove uma espécie de estetização daquela que
seria a realidade cotidiana dos últimos meses da vida de Antero de Quental. Uma realidade
que se quer simples, comezinha, reclusa, que renúncia ao mundo, à literatura e à poesia, mas
que se permite escrever através da própria literatura, da poesia que interpenetra o discurso
romanesco, que se entretece à escritura. Renunciar às letras e às artes o passa de uma forma
de dissimular o fato de que, essencialmente, não mais saídas: é impossível escapar à
sedução da escritura:
Porque, escrever um livro, é desejar que um morto nos leia, não um vivo. Queremos
que seja o passado a ler-nos, não o futuro. Se os mortos não nos lerem, escrever não
adiante nada. escrever, pensar não contempla qualquer respeito pelos vivos, porque
não se sabe o que eles irão um dia ser no passado. Assim, nenhuma moda merece,
por pouca que seja, a nossa atenção. Os vampiros que se alimentam do seu tempo
estão condenados a perecer perante os primeiros raios de luz. Não obstante, um dia
serão eles os únicos fazedores de arte de todos os presentes. Fazedores de arte de um
237
mundo de igualdade. E o será o Realismo o princípio da compreensão, ou,
então, o reflexo desse princípio da igualdade? (MIRANDA, 2001, p. 21-22)
A sedução da escritura ensaia, em si mesma, uma crítica não à escritura, mas
também ao estado de coisas que cerca e e limites ao universo literário. Bem ao estilo da
literatura pós-moderna, Paulo José Miranda deixa claro que escrever é morrer, enquanto
sujeito, indivíduo, ser ou figura dotada de uma história particular, própria, característica, no
interior da escritura. uma crítica contundente que vai se descortinando ao longo de todo o
romance: escrever não pode ser, simplesmente, a entrega ou a aceitação de qualquer
modismo. Escrever é compreender, profundamente, que não se escreve para frente, para os
vivos, para tudo o quanto ainda de vir. Escrever não é contemplar o devir, o vir a ser:
escreve-se tendo em mira o instante da escritura, que se problematiza com revisão cita da
tradão e a negação perturbada dela. Escreve-se no momento presente da escritura. o
tempo da escritura. E a crítica pós-moderna por excelência é justamente aquela que rejeita a
escritura que olha, unicamente, para o passado ou que se anuncia, simplesmente, como
promessa futura, que aceita o jogo da representação e continua, indefinidamente, manipulando
os discursos de acordo com as normas, os preceitos, as regras e as formas que compartilham
os liames do poder instituído: político, cultural, artístico ou literário, não importa. Não se trata
de romper com a tradição, mas sim de estabelecer um diálogo profícuo, intenso, concreto com
ela.
E Paulo José Miranda continua:
Em nome de uma justiça humana perder-seaquilo que mais importa à existência.
Mas o devemos esquecer que o Direito e as Vias Romanas, essas aproximações à
igualdade, trazem o sangue coagulado dos Gregos. Quando se atingir uma pura
igualdade, seja o que isto for e se for possível, talvez não haja nada senão um
simulacro de passado. Não podemos esquecer que a arte é pura desigualdade. E, por
isso mesmo, alicerce da injustiça. (2001, p. 22)
Vício o tem o tom algo humorado, de um humor displicente, nico, enganador de
algumas obras pós-modernas, como A Ópera Flutuante, de John Barth, na qual, como
238
vimos, o narrador relata o modo como decidiu, de repente, dar cabo da própria vida de modo
que nada em seu dia seja diferente de aquilo que vive cotidianamente. Ao contrário, o niilismo
em Vício é algo quase aterrador, negação absoluta de tudo, inclusive de si mesmo, tentativa de
se fazer o outro, de se confundir com ele. Assim, o romance de Eça de Queirós aflora ao nível
da narrativa como um outro tipo de espelho idealizado e como outro alvo para uma crítica
descrente, que nega o valor da obra de arte enquanto afirma, ironicamente, a importância de
uma obra como O Primo Basílio. Ao se confundir com as personagens, o sujeito mergulha em
profundidade num mundo de reflexos e imagens em que acaba, decididamente, se perdendo.
O romance de Eça, então, é mais uma forma de diálogo encontrada pelo autor para revelar
como o processo de construção da identidade e do sujeito, fundamentalmente esse sujeito pós-
moderno que se insinua do interior da escritura, determina-se, sobretudo, pelo universo
cultural em que surge e no qual se dispersa e fragmenta.
4.3.3. Vício: Um Romance da Recusa
A literatura pós-moderna tem como característica essencial, como já dissemos, o abalo
sistemático na crença depositada sobre os grandes modelos de representação, sobre as
narrativas mestras, que se fiavam na idéia de uma verdade e de um sentido diretivos,
causalistas e totalizantes. A verdade e o sentido, no pós-modernismo, passam a ser produzidos
a partir das relações que se estabelecem entre a escritura e a leitura, o autor, o leitor e o texto
que se ergue de permeio, como intermediário entre a verdade do autor e aquela construída
pelo leitor durante a leitura. Dessa forma, não se pode mesmo afirmar ou fazer em uma
verdade definitiva, se esta é justamente parte indissociável e desagregadora do jogo da
representação.
Em Vício, esse jogo fica evidente: um autor que se vale do estilo, das idéias, das
angústias existenciais, artísticas e literárias de outro autor para forjar-lhe um diário íntimo,
239
pessoal, em que a própria arte além da vida e dos limites da subjetividade é posta em
questão, buscando definir e esquadrinhar as fronteiras entre a arte e a existência como formas
de simulação do vivido, criando um exasperado jogo de espelhos em que não se pode precisar,
do interior da própria escritura, o que é real e o que não passa de simulação, aparência de
verdade. Vício é um romance da recusa: das verdades definitivas, da realidade concreta, da
arte como expressão ou confissão sincera da vida.
na primeira página, encontramos o tom angustiado da recusa que se queda sobre o
personagem, da renúncia prestes a ser experimentada no que ela pode ter de mais radical:
8 de junho de 1891
Cheguei hoje a Ponta Delgada, após três dias de viagem. Sempre soube ainda que
não tenha dito a quem quer que seja, ou sequer admitido para mim mesmo que este
regresso a São Miguel era acima de tudo a total recusa da literatura, da filosofia e da
poesia. A recusa das Letras e das Artes. Porque um homem não pode escrever para
sempre. Os seus últimos anos de vida deveo estar ausentes de qualquer criação do
espírito, do mesmo modo que estiveram os primeiros. Estou hoje certo de que, a
partir de um dado momento, escrever assume as proporções de um vício e não
uma verdadeira necessidade espiritual. (MIRANDA, 2001, p. 9)
A recusa, o vício, a proliferação das palavras que fogem ao controle, que se repetem
automaticamente, que não refletem uma necessidade interior, própria, singular, mas sim,
fixam-se como gestos esvaziados de sentido com os quais, por algum mistério insondável,
se acostumou. Trata-se da recusa a uma literatura que, por não ser capaz de conceber a
verdade definitiva, cria verdades que se repetem à exaustão, sem nunca encontrar sua
justificativa primeira. A recusa é uma forma de compreender que já não há sentidos ou
verdades que, como a própria vida, não possam também se arruinar:
Nunca as Letras me conduziram àquilo que deve reger o sentido de uma vida: a
felicidade ou o seu merecimento. Se pelo menos pudesse auxiliar alguém a alcançar
esse mesmo sentido, alguém que se não queimasse nas Letras mas usufruísse de
algum bem que eu o consigo, então valeria seguramente a pena o meu sofrimento.
Mas estou convicto de que as Letras podem levar alguém a perder-se, a perder a
sua própria vida. é um vício tão medonho quanto o jogo. Ler é perder-se. O
único apaziguamento que ainda consigo desta minha vida é saber que qualquer coisa
que seja, qualquer outra vida que tivesse levaria ao mesmo: perfeitamente a nada.
saber isto dá-me algum descanso. Descansa saber que Deus, aqui, foi justo, e que
240
nenhuma injustiça humana o pode contrariar. Desejei criar. Fui ainda aquele que
criou, aquele que viu o seu corpo, a sua alma e o seu espírito arderem de mistério.
Agora sou o méis próximo dos desígnios insondáveis de Deus, sou aquele que
desiste de qualquer ambição, de qualquer sentido que não seja a vida ínfima e
necessária no vasto Universo, e em conformidade à vontade de Deus. Sou
finalmente um homem. (MIRANDA, 2001, p. 10-11)
As letras levam à perdição. A literatura é um simulacro, um lugar esvaziado dos
grandes sentidos morais, éticos, filosóficos ou estéticos que poderiam ajustar o indivíduo
em relação à vida. Paulo José Miranda radicaliza os procedimentos ficcionais a ponto de
conceber e revelar uma realidade ficcionalizada, que não pode ser posta à prova,
dimensionalizada. O Antero de Quental de Vício existe enquanto instância discursiva,
enquanto aparência simulada de uma individualidade real, biográfica, enquanto extensão
ficcional do autor, que promove e apagamento próprio, a dissolução de seus traços distintivos,
de sua subjetividade singularizada na medida exata em que relativiza a idéia de verdade, de
sentido, de sujeito e de real. Trata-se de um complexo processo de fragmentação que se
estende da obra, da narrativa mesma, no caso o diário, que se dá como escrita inacabada,
aberta, a qual a morte não pode por fim, até as personagens que circulam dentro dela e que se
confundem: Paulo José Miranda que se projeta em Antero de Quental, que se quer como uma
das personagens de Eça. Ficção dentro da ficção, auto-reflexividade da escritura, mundos que
se constroem em profundidade e que não encontram, nunca, um fundo certo, uma imagem
estável de si.
No que diz respeito ao romance de Paulo José Miranda, não é a vida de Antero de
Quental posta novamente em circulação, mas sim a denúncia de que todo o real, no interior da
escritura, se converte em pura ficcionalidade, perdendo seu valor referencial para r em
evidência o jogo da representação em que os signos nos remetem sempre para outros signos,
que a obra faz de si mesma sua única realidade, na qual a escritura se precipita para dentro da
própria escritura. Assim, a obra existe graças ao arbítrio poderoso da imaginação. Por isso,
em Simulacros e Simulações, Baudrillard afirma, a propósito de uma fábula de Borges, que
241
o se trata de imitação, nem de dobragem, nem mesmo de paródia. Trata-se de
uma substituição no real dos signos do real, isto é, de uma operação de dissuasão de
todo o processo real pelo seu duplo operatório, máquina sinalética metaestável,
programática, impecável, que oferece toso os signos do real e lhes curto-circuita
todas as peripécias. O real nunca mais teoportunidade de se produzir tal é a
função vital do modelo num sistema de morte, ou antes de ressurreição antecipada
que não deixa qualquer hipótese ao próprio acontecimento da morte. Hiper-real,
doravante ao abrigo do imaginário, não deixando lugar senão à recorrência orbital
dos modelos e à geração simulada das diferenças. (BAUDRILLARD, 1981, p. 9)
62
O que equivale a dizer: o drio de Antero de Quental não seria uma descrição real e
fiel de si mesmo ainda que o próprio poeta o tivess concebido, ou seja, ainda assim seria um
produto de construção, uma forma de representação determinada por suas próprias escolhas,
por seus movimentos e armadilhas de simulação. O que dizer, então, de um diário íntimo que
voz ao poeta a partir de outro indivíduo que, no ato da escritura, se isenta ou tenta se
isentar completamente? Trata-se da recusa da onisciência, da impessoalidade, da opção pela
narrativa realista em favor de uma despersonalização ainda mais radical: ao invés de narrar
sobre Antero de Quental, Paulo José Miranda narra como o próprio Antero de Quental,
confundindo-se com a própria persona do discurso. Trata-se de uma ficcionalização tão
radical que a figura do autor, do narrador e do objeto da escritura não podem ser tomadas
separadamente, como sujeitos definidos, como individualidades certas, precisas,
determinadas.
Em Vício, tudo acena para essa ficcionalidade levada ao extremo, tensionada a ponto
de partir-se, de fazer com que reste o reflexo no espelho, apagando o outro, diluindo e
dissolvendo o outro, o lugar de referência, aquele que se mira e reconhece na imagem
refletida. Até mesmo a linguagem do romance é um espelho desafiador: recusa as letras, a
filosofia, a poesia e a literatura através da escritura, das letras, da filosofia e da poesia que o
discurso engendra e no qual se fia. Paulo JoMiranda cria uma literatura que se nega a si
mesma na exata medida em que se busca e se descobre. Notável, então, que a recusa às Letras
62
BAUDRILLHARD, Jean. Simulacros e Simulações. Lisboa: Relógio d‘Água, 1981.
242
só possa acontecer por uma total e absoluta adesão à literatura, por uma entrega incondicional
è escritura. Dessa forma, a pós-modernidade, mais uma vez, põe em jogo suas preocupões e
suas opões estéticas, críticas e teóricas. Entre elas, essa ambigüidade discursiva exacerbada,
que o permite entrever nenhuma verdade definitiva, concreta, teleológica.
Sob esta perspectiva, podemos afirmar que nem o Antero de Quental dos poemas, dos
ensaios críticos, das obras filosóficas, nem este que se ocupa em narrativizar os últimos dias
de sua vida, existiram. Parece mais apropriado dizer que o que existe, na verdade, são
discursos engendrando outros discursos, criaturas em estado de linguagem, uma literatura que
se nega ao mesmo tempo em que procura se legitimar. Tudo, em suma, é pura ficcionalidade,
que se dá como uma fragmentação total, uma dispersão plena dos sentidos que não apontam
para um centro fixo, para uma definição consistente da própria obra ou da subjetividade que
se simula nela. Assim, podemos concluir, a partir da perspectiva de Maria cia Outeiro
Fernandes, no ensaio O tempo do clichê e a estética do olhar na ficção contemporânea, que
Os textos pós-modernos freqüentemente revelam experiências esquizofrênica da
linguagem: as frases são materialidades significantes pairando livremente, como se
os significados tivessem evaporado. Toda realidade, uma vez descrita é logo
descartada. Esse jogo verbal coloca a materialidade da linguagem em primeiro
plano, gerando implacáveis superfícies descontínuas. Mais do que o excesso de
temas, ou o supevit de interrupções, ou a bifurcação multiplicadora de unidades
composicionais, esse jogo textual de significantes permite ver a linguagem como a
arena do poder.
A resposta dos escritores pós-modernos à percepção de que o ―real‖ não é
significante por si mesmo, é uma estética de auto-reflexividade, uma forma de ficção
que investiga o próprio processo de significação ou produção de sentido. Parodiando
as convenções literárias como enredo, uso de metáfora, onisciência do narrador, os
ficcionistas enfatizam o papel desses procedimentos na fabricação do sentido. A
narração, seja literária, histórica ou filosófica, é mostrada como atividade
eminentemente ficcional, assim como todas as atividades humanas para dar
significado às suas experncias. (FERNANDES, 2001, p. 120-121)
Assim, Vício é um romance histórico e biográfico que rompe com os limites da
historiografia cssica e da escrita biográfica porque, em primeiro lugar, prescinde do caráter
documental que cerca estes tipos de discurso, depois, porque transforma as referências
externas (supostamente reais, concretas, empíricas, demonstráveis), o contexto sócio-histórico
243
e biográfico em caracteres ficcionais. Desse modo, contra a crítica que acusa a literatura pós-
moderna de promover a ruptura com os modelos de representação da realidade de natureza
realista, estáveis o ordenados, criando obras literárias esquizofrênicas ou inverossímeis, pode-
se argumentar que o real nunca foi tão explorado em sua dimensão estética quanto com a pós-
modernidade. O que verdadeiramente incomoda a uma parte conservadora da crítica literária é
o fato de que, nas narrativas s-modernas, as referências ao real sejam históricas, sociais
ou culturais aparecem ideologicamente desenraizadas, não livres de suas características
políticas, ideológicas ou participativas, mas desvinculadas de certos maniqueísmos
superficiais a partir dos quais a noção de verdade, participação, ideologia e sentido se
manifestariam numa lógica opositiva dura: bem e mal, certo e errado, moral e imoral,
reificação e resistência, burguesia e proletariado, racionalismo e irracionalismo. Como a pós-
modernidade procura revelar o jogo do poder que informa e determina os discursos, nada mais
justo que suas obras tenham esse caráter excêntrico, ambíguo e ferino.
Sendo assim, além da recusa às letras e às artes como formas de expressão cultural
geradoras de sentidos mais ou menos uniformes e unilaterais, contribuindo para o velho jogo
de poder que caracteriza os grandes discursos, Vício é, também, uma recusa da história, de
uma determinada concepção de história como receptáculo dos acontecimentos, dos fatos e das
ocorrências singulares que, de um modo ou de outro, contribuem na formação das
experiências humanas. Em Vício, assim com em boa parte das obras representativas da pós-
modernidade, uma inversão dessa escala de valores: são as experiências humanas que
conformam a hisria, um discurso que para ser narrativizado depende, antes de tudo, das
escolhas e da perspectiva de quem , pensa e concebe o próprio discurso. É o que acontece,
por exemplo, em O Livro de Daniel, de E. L. Doctorow, no qual o jovem Daniel Lewin tenta
reconstruir a história de sua família e da execução de seus pais, acusados de alta traição, na
mesma proporção em que se dilui, desagrega e se oprime diante da história política norte-
244
americana do século XX. Por isso muda de perspectiva, transita entre a primeira e a terceira
pessoa, numa tentativa desesperada de tentar se despersonalizar diante da histórica, de
encontrar o distanciamento necessário para entender os acontecimentos que levaram ao
arruinamento de sua família e ao período de perseguições e opressões que fraturaram a
democracia na América.
Sendo assim, a verdade e o sentido, objetos últimos das grandes narrativas históricas,
dependem do filtro implacável do pensamento. E Paulo José Miranda denuncia:
Mas quantas vezes não penso que tudo o que penso é doença; é amaldiçoar o
homem, se o há, e amaldiçoar Deus, se nos fez. Pensar faz com que tudo possa ser
verdade. (MIRANDA, 2001, p. 12)
O pensamento instaura uma verdade que o pode ou ao menos não poderia ser
verdade para além de si mesmo. Mas, é preciso dizer, isso não significa necessariamente que a
verdade não exista, que tenha desaparecido, que está morta ou não possa mais ser posta em
circulação, ao contrário, é preciso compreender que a verdade existe em relação ao
pensamento, a outras verdades e outros discursos que se interpõem à narrativa criando um
intertexto fragmentário, superposto, disjuntivo, porque rompe com a linearidade fazendo com
que o discurso se organize de forma paratática: cada fragmento, cada entrecho, cada citação
concentram um sentido próprio, que se desloca ou se parte em relação a outros fragmentos
que compõem a narrativa. Por isso, ―pensar faz com que tudo possa ser verdade‖. Do mesmo
modo que o Antero de Quental de Paulo José Miranda não pode ser considerado,
simplesmente, como a representação falseada de um Antero real, situado no tempo, resgatado
de dentro da história. O Antero de Vício, condenado a uma imobilidade vital e criativa
assustadora, recusando as letras e as artes, a história e a filosofia, a ética, a moral e a estética
de seu tempo, representa, na verdade, uma denúncia irônica, sarcástica, sob sua aparência
trágica, e quase que niilista ao estado de coisas que rege a vida na sociedade contemporânea,
o lugar de onde fala o autor, e não o seu duplo, a sua manifestação escritural.
245
Se pensarmos, de acordo com Baudrillard, que a sociedade contemporânea não foi
capaz de transcender o próprio estado de esgotamento, imobilidade e reprodução excessiva de
imagens vazias, alheias a qualquer significação mais ou menos certa, definida, que ela mesma
criou; se a sociedade contemporânea não pode vencer o jogo da representação, que
transformou a linguagem na arena do poder‖ e a arte num simulacro imperfeito da vida,
então, Vício é uma reação contundente a essa realidade de aparências e simulações, a uma arte
esgotada pelo apelo formal e estetizante que engendra.
Também a arte não conseguiu, de acordo coma utopia estética dos tempos
modernos, transcender-se como forma ideal de vida (antes ela não tinha de
ultrapassar-se para uma totalidade, pois esta estava lá e era religiosa). Ela aboliu-
se não numa idealidade transcendente mas numa estetização geral da vida cotidiana;
desapareceu em proveito de uma circulação pura das imagens, numa transestética da
banalidade. A arte até precede o capital nessa peripécia. Se o episódio político
decisivo foi a crise estratégica de 1929, pela qual o capital chega à era transpolítica
das massas, o episódio crucial na arte foi sem dúvida Dada e Duchamp, no qual a
arte, ao renegar sua própria regra do jogo estético, chega à era transestética da
banalidade das imagens. (BAUDRILLARD, 2000, p. 17)
É justamente a banalidade transestética das imagens na sociedade contemporânea que
faz com que Vício ensaie uma reação: contra a estetização geral da vida cotidiana, o Antero de
Paulo José Miranda, ao empreender uma recusa radical às letras e às artes, concebe um
discurso transcendente que, ao contrário de estabelecer uma verdade inequívoca, se abre na
busca por uma justificativa metafísica para a própria existência, para a arte e para a história.
Vício, então, é um romance filosófico que, pondo em cena os princípios singulares da s-
modernidade, faz, paradoxalmente, da recusa uma aceitação, uma crítica e uma celebração. A
sedução da escritura, a celebração da escritura, ainda que sob uma atmosfera desesperada,
quase trágica, mas também irônica e paródica, que rejeita a obra, a idéia e o pensamento,
criando uma obra, fazendo circular idéias, articulando e desarticulando o pensamento, que
busca compreender o homem e a própria escritura como produtos de uma infindável
construção.
246
4.3.4. Metaficcionalidade e Hibridismo: Em Busca da Escritura
Obras como O Livro de Daniel, de E.L. Doctorow, A Ópera Flutuante, de John Barth,
Bem-Aventurada Infelicidade e A Tarde de Um Escritor, de Peter Handke, O Museu Darbot,
de Victor Giudice, Exame da Obra de Herbert Quaim e Pierre Menard, autor de Quixote, de
Jorge Luis Borges, A Mulher do Tenente Francês, de John Fowles, O nome da rosa, O
pêndulo de Foucault e Baudolino, de Umberto Eco a lista seria enorme revelam um traço
característico e marcante de uma determinada tendência da literatura s-moderna: a
incapacidade de contar, de narrar, de engendrar uma história que se prenda aos mais restritos
limites da representação realista que busca, pela mímesis e pela verossimilhança absoluta,
informar o mundo esteticamente, reduzindo o real, em uma pretensa totalidade, às cercanias
da obra. Autores como Doctorow, Barth ou Fowles concebem uma narrativa que, por vezes,
se imobiliza diante dos próprios mecanismos da criação: além da história que se conta, o
discurso ficcional se permite revelar um outro tipo de discurso, tomado à crítica e à teoria, que
exe, através de um constante apelo metalingüístico, as fragilidades de toda narrativa que se
permite tomar como um suporte do real.
Nesse sentido, o comentário de Linda Hutcheon acerca de O Livro de Daniel é, além
de preciso, bastante esclarecedor:
E.L. Doctorow afirmou ter precisado desistir da tentativa de escrever O Livro de
Daniel com a habitual preocupação da narrativa realista em relação à transição,
preocupação característica do romance (e da fião popular) doculo XIX (in
Trenner 1983, 40), embora, de maneira autoconsciente, faça com que seu
personagem narrador explore e ataque, ao mesmo tempo, essa mesma preocupação
estutural pela continuidade. (1991, p. 69)
Doctorow, em O Livro de Daniel, traz à tona o caso Rosemberg, em que, nos anos de
chumbo do macarthismo norte-americano, um casal é acusado de espionagem e comunismo,
preso e condenado à pena capital. O narrador do livro é o filho do casal, um jovem que tenta,
desesperadamente, resgatar do esquecimento a história de seus pais, de seu país e, antes de
247
tudo, busca lançar as bases de sua própria história, na tentativa de compreender um passado
obscuro, perturbador, fragmentário e recorrente, sujeito aos caminhos e descaminhos da
memória que já não pode fixá-lo. O narrador, então, passa a questionar o próprio discurso que,
de forma vacilante e entrecortada, vai concebendo. Cria-se o jogo da escritura: a possibilidade
de evidenciar, testar, por à prova os mecanismos e os limites da escrita é tão tentadora que o
narrador se deixa seduzir pelos encantos da escritura, por suas regras implícitas, por suas
formas de representação, pelo caráter a um só tempo concreto (retórico, argumentativo,
estruturalizante) e fragmentário (abstrato, disjuntivo, descontínuo) da linguagem a ponto de
levar a história, os fatos, os acontecimentos narrados aos extremos da imobilidade e da
paralisia.
Em A Ópera Flutuante, de John Barth, temos o mesmo jogo metaficcional de
Doctorow: a imobilidade perturbadora daquilo que se narra pela sedução irônica e paródica da
própria escritura. Irônica porque revela o jogo da representação, que se quer fiel, realista,
verossímil; paródica porque se permite encantar por tudo aquilo que se encontra além do
próprio fenômeno discursivo, quer dizer, dos caracteres que compõem e sustentam a
construção narrativa. A escritura só existe pela sedução que provoca. Escrever é aceitar o jogo
misterioso da linguagem, confundir-se nela até desaparecer, até estacar e perceber que tudo é
linguagem que se escreve e inscreve, no tempo e fora dele. Para os autores do s-
modernismo, olhar para a escritura seria o primeiro passo para a compreensão de si mesmo
que o homem, o indivíduo é, em grande parte, uma criatura lingüística , e para a
descoberta das regras do jogo, das normas, arbítrios e convenções que prefixam a
representação.
Vício, de Paulo José Miranda é um romance que se volta sobre a própria escritura,
num movimento francamente metaficcional cujo interesse é conhecer, em profundidade, as
formas pelas quais a escritura se manifesta, se expressa e representa. Com uma narrativa
248
altamente poética, Paulo Jo Miranda afirma a escritura a partir de uma negatividade
absoluta, quase assustadora. Negatividade e negação. A descrença na verdade que não se
pode manifestar a partir de qualquer discurso. O vício, então, significa a entrega e, ao mesmo
tempo, a negação radical das mentiras e dos falseamentos que constituem o mundo da
escritura. Assim, o escritor português, ao conceber o diário de Antero de Quental, cria uma
escritura que caminha para a morte: não aquela morte prefigurada pelo fechamento do
livro, pelo encerrar da escritura, mas a morte definitiva, a morte do corpo, a ruína do espírito,
que se justifica e encontra seu fim nos fins e nos deslimites da escritura.
No romance de Paulo José Miranda, temos o complexo movimento da escritura, o jogo
da representação pós-moderna: a escritura que se busca e é condenada pela própria escritura; a
representação posta em cheque, como uma forma duvidosa de revelar ou trazer à tona a
verdade essencial dos seres, do mundo e das coisas; a leitura, que é tão viciosa e perigosa
quanto a escritura, porque seu duplo, sua contrapartida e seu reflexo desarticulador. Vício é
um romance híbrido porque mistura ao fictional drive, que o guia e determina, uma intensa
performance poética, em nível da narrativa, que caracteriza a marca distintiva da obra de
Antero de Quental o poeta das Idéias, do pensamento filofico , os caminhos da leitura e o
ensaísmo que se revela a partir de O Primo Basílio, romance de Eça de Queirós que o
narrador toma como referência em sua tentativa de compreender o vício enquanto fonte de
perdição moral e necessidade imanente do próprio gesto escritural:
17 de Junho de 1891
Passei os dois últimos dias a reler O Primo Basílio do meu querido Eça de Queirós,
tentando, assim, suportar as contrariedades desta terra, que teima em não se
reconciliar comigo. E acabei por descobrir a grandiosidade deste livro, que bem
poderia ter o título de Vício. (...) É que este seu livro poderia muito bem, ao
contrário, ser entendido pelos Gregos enquanto Tragédia. Uma tragédia negra, sem
dúvida, porque sem herói, mas uma tragédia. Nunca uma comédia. Porque, no
fundo, um herói esconso em forma de acto de consciência: a vergonha, que luta
contra a omnipotência do vívio. (MIRANDA, 2001, p 25-26)
249
A partir desse momento, o ensaísmo passa a concorrer com a narrativa, que vinha
desde o início numa luta renhida com a essência primeira da poesia. A escritura entra em um
conflito definitivo, em que as formas, os processos e os mecanismos da representação passam
a ser revelados e sistematicamente questionados graças a esse poderoso jogo de espelhos
concebido pelo autor. O ensaísmo funde-se ao romance e denuncia as artimanhas da narrativa.
Ao afirmar que o romance de Eça de Queirós está além de um mero registro crítico da
sociedade lisboeta, prefigurado pelo adultério, o narrador de Vício cria uma espiral vertiginosa
em que os ideais estéticos que envolvem os modelos de representação passam a ser sutilmente
atacados, pondo em vida a validade dos antigos pressupostos artísticos sobre os quais os
romances modernos, criados a partir de fins do século XIX, se fundamentaram:
Ler o livro por estes primas é reduzi-lo a continncias. Reduzir quer dizer: ficar-se
por aí. O que vejo é a supressão de si mesmo por parte de cada uma das personagens
centrais (Luísa e Juliana, a criada) através de um jogo de poder que começa logo nas
primeiras páginas: Estou a tomar ódio a esta criatura, Jorge!”; a distinção entre
prazer e bem na economia da existência humana: “Não te podem fazer feliz?”
[pergunta de Luísa a Leopoldina, acerca dos amantes desta] “Está claro que não!
exclamou a outra Mas... (...) Divertem-me”; e o confronto entre a arte e a sua
imitação, através do confronto entre a própria narrativa e a peça de teatro de Ernesto
Ledesma: “Ah! esquecia-me dizer-lhe, sabe que lhe perdoei?” [Ernesto para Luísa,
num encontro casual ao Largo de Santa rbara, quando esta ia ao encontro do
amante, e aquele referindo-se à peça que escrevia: um triângulo amoroso em que não
se decidira ainda se o marido matava ou não o amante da mulher] (...) Sim, o
marido perdoa-lhe, obtém uma embaixada, e vão viver no estrangeiro. É mais
natural”. Este ―mais natural‖ é ao contrário da arte. (MIRANDA, 2001, p. 27-28)
Paulo José Miranda, ardilosamente, promove em Vício o mesmo confronto entre ―a
arte e a sua imitação‖ ao construir o romance sobre as bases de um confronto insolúvel entre a
própria narrativa romanesca e a diluição das fronteiras entre romance, poesia e ensaísmo,
criando uma vida constante, que não se resolve a partir do confronto em si mesmo, mas
que, ao contrário, o problematiza ainda mais quando o precipita para o centro da escritura.
Quando a saída mais natural encontrada por Ernesto Ledesma, o dramaturgo de O Primo
Basílio, é referida pelo narrador de Vício como algo contrário à arte, estranho ou alheio aos
princípios artísticos, ele e em dúvida a própria validade dos meios de representação
250
realistas. A arte, e neste caso a escritura em particular, está além de todos os modelos, de
todas as imitações, de toda a suposta reordenação lógica, linear e causal do mundo no espaço
da obra:
vejo existência humana, e que é ela mesma transcendência: a vontade de se
afirmar acima de si mesmo, de se suprimir para se elevar, matar aquilo que em nós
nos maça, nos mata mesmo; o confronto na alma entre o desejo e o prazer, entre o
vício e o bem estar, e entre prazer e bem ou bem estar e felicidade; a necessidade da
arte enquanto fundamento da vida, contrapondo-se à arte enquanto mimese da vida,
em suma, o confronto entre o próprio Eça de Queirós e esta nossa arte
contemporânea, contrariamente ao que eu sempre pensara. (MIRANDA, 2001, p.
28-29)
A arte está além da pura representação, e este ―estar além‖ não deve ser tomado num
sentido estrita e particularmente metafísico, como poderíamos supor. Dar forma ao mundo
o é, necessariamente, reproduzi-lo em suas mais singulares características, não é represen-
lo, não é imitar, em essência, o real. O sentido da arte, e fundamentalmente da escritura, é
superar o próprio jogo da representação. Estabelecer um conjunto de sentidos esteticamente
disseminados, reaver o domínio sobre a escritura e fazer com que as regras do jogo
transpareçam de forma que não a arte, mas o indivíduo, num processo de descoberta e
reconhecimento, se justifique. A escritura que se e em dúvida, que renuncia a si mesma,
que se constrói a partir de gêneros absolutamente alheios entre si. A escritura que se
contradiz, do início ao fim. Por isso Linda Hutcheon afirma que
Em suas contradições, a ficção pós-modernista tenta oferecer aquilo que Stanley
Fish (1972, xiii) chamou de apresentação literária ―dialética‖, uma apresentação
que perturba os leitores, forçando-os a examinar seus próprios valores e crenças, em
vez de satisfazê-los ou mostrar-lhes complacência. Porém, como nos lembra
Umberto Eco, a ficção pós-moderna pode parecer mais aberta em termos de forma,
mas a representação é sempre necessária para que se sinta a liberdade (in Rosso
1983, 6). Esse tipo de romance utiliza de maneira autoconsciente os acessórios
daquilo que Fish chama de apresentação literária ―retórica‖ (narradores oniscientes,
caracterização coerente, trama fechada) com o objetivo de chamar a atenção para o
caráter de elaboração humana desses acessórios sua arbitrariedade e sua
convencionalidade. É a isso que me refiro quando falo sobre a exploração e a
subversão pós-modernas, tipicamente contraditórias, dos elementos básicos
habituais das ficções realista e modernista. (1991, p. 69)
251
Paulo José Miranda subverte os gêneros, a narrativa e a própria noção de escritura
como forma de estetização do mundo quando renuncia à crença incondicional nesses mesmos
conceitos. Vício é um romance que e em dúvida, também, a própria noção de leitura: sua
validade, sua recepção, o modo como ela interfere em nossas vidas, os mecanismos através
dos quais nos reconhecemos, pela leitura, no corpo da escritura:
Mas o vício, a miséria que habita cada alma e cada dia, não é pertença exclusiva de
nenhuma classe social, é o mais absoluto e irrefutável que a razão, na sua clareza,
pode encontrar. Se a arte é pura igualdade, o vício é o seu contrário, pura
desigualdade. Enquanto a arte faz de todos nós estrangeiros, o vício faz de todos nós
irmãos. Ele é tão claro, tão certo e absoluto, que o próprio romance de Eça de
Queirós, escrito na década de 70, acaba por acusar o nosso próprio vício enquanto
leitores, passados mais de 20 anos. Porque é o nosso próprio vício que arrastamos
dia a dia, que se esbate nessa leitura. (MIRANDA, 2001, p. 31)
Vício traz em si esse duplo movimento: a escritura que se volta sobre si mesma e,
nesse dobrar-se constante sobre si, rompe com os limites impostos pelos gêneros, fundindo
narrativa, ensaísmo e poesia numa crítica transgressora aos pressupostos teóricos,
epistemológicos e críticos sobre os quais se constituem os discursos. Sob o signo da vida,
nem mesmo o velho ideal constituído com o surgimento do romance burguês romântico
sobrevive: a leitura nada tem a ver com fruição, deleite, prazer ou entretenimento. Ao
contrário, ela mesma poder ser uma armadilha em que o leitor se precipita quando aceita, de
forma incondicional, o jogo da representação, do reconhecimento, dos reflexos que se perdem
nos fragmentos desse espelho partido que é a escritura lugar em que todos os sentidos se
afirmam:
O único esforço de interpretação sem exagero de perdas terá de reconhecer ao
romance a categoria de acusador para com o leitor, que terá de ser reconhecer ao
lado de todos os grandes perdedores do romance: Luísa, Leopoldina e Juliana. Mas,
nos podemos encontrar ao lado destas personagens, se nos aceitarmos ver
enquanto Basílio ou enquanto visconde Reinaldo, embora esta personagem não
possua um desenvolvimento extenso -, enquanto ingênuo do poder, que não passa de
um hedonista. (...) A leitura terá, por conseguinte, de possibilitar não esquecer a
generalidade do vício em que todos nós estamos postos, de antemão: uma
incapacidade de alcançar prazer, de nos satisfazermos; um contínuo estado de
sofreguidão. Não só por não nos determos neste ou naquele romance, a seguir a uma
vem outro e outro, mas porque não nos detemos nunca. Aquele que não se detém,
252
que está vivo, vai morrendo numa aparência, de prazer. (MIRANDA, 2001, p. 31-
32)
A leitura já o pode ser associada à idéia de fruão descomprometida, livre,
contemplativa, que busca apenas a extração de um prazer estético, refinado, que a escritura
cultivaria em si. A leitura deve promover um embate entre o vício alardeado pela escritura
que nunca se sabe, com certeza, se é moral, ético, social ou artístico, porque conceito que se
desenvolve sobre uma profunda e insolúvel polissemia e os nossos próprios vícios. É
preciso o se deixar tomar, inocentemente, por aquilo que se lê. A leitura deve impor o
sofrimento da dúvida e não o apaziguamento do prazer. Os sentidos em choque, que
engendram a escritura, devem, antes de tudo, afastar o indivíduo de qualquer tipo de
satisfação que a contemplação desinteressada da arte possa trazer. O mundo, esteticamente
ordenado, deve ser tão questionado quanto a realidade aparente, porque ambos se permitem
manipular pelos mecanismos da representação.
Reconhecer-se, no interior da narrativa, ao lado dos perdedores, é manter a integridade
necessária para o naufragar. O vício, no romance de Paulo JoMiranda, o se confunde
com o conceito de vício marcado pelo lo da negatividade, como acontece no interior dos
discursos filosóficos desde o pensamento instituído na antiguidade clássica: o vício contrário
à virtude, que se impõe como fonte de perdição na busca pelo equilíbrio, pela verdade e pela
beleza, de acordo com o ideal platônico que, de certo modo, atravessou os grandes modelos
narrativos do pensamento ocidental ao longo dos séculos. O vício, no romance do escritor
português, transparece como uma crítica contumaz não só aos modelos de representação ou às
grandes narrativas históricas, mas também à crença nas verdades que estes modelos e estas
narrativas engendram e perpetuam. Assim, não é por acaso que a narrativa híbrida de Vício,
constituída a partir do pendor francamente poético e filosófico que marcou a obra de Antero
de Quental, do enssmo, e do romance histórico, elege com um dos temas subjacentes aquele
que foi o pilar do romance realista português: O Primo Basílio, de Eça de Queirós.
253
A intertextualidade, no romance, é uma fonte de revelação pela qual a escritura, a
leitura, a história e o próprio modelo narrativo é posto em questão constantemente, exposto,
desmascarado em seu jogo mais íntimo. Por isso Linda Hutcheon, falando sobre a
intertextualidade, afirma que
a sua utilidade como uma estrutura teórica que é ao mesmo tempo hermenêutica e
formalista é óbvia ao se lidar com a metaficção historiográfica, que exige do leitor
não apenas o reconhecimento de vestígios textualizados do passado literário e
histórico, mas também a percepção daquilo que foi feito por intermédio da ironia
a esses vestígios. (1991, p. 167).
Paulo José Miranda faz circular pelo universo da escritura não um personagem que
tem seu lastro devidamente marcado na historiografia literária portuguesa, como é o caso de
Antero de Quental, mas também um determinado estilo poético, filofico, temático e
estilístico que marcou a obra do poeta português, além do momento histórico, das relações
pessoais vividas por ele, as amizades, o pensamento estético, outros escritores e outras leituras
que contribuíram para a formação de seu pensamento, o que acontece quando a narrativa se
volta para a figura e a obra emblemática de Eça de Queirós.
Esse jogo intertextual faz com que o leitor, de acordo com Linda Hutcheon, seja
obrigado a reconhecer não apenas a inevitável textualidade de nosso conhecimento
sobre o passado, mas também o valor e a limitação da forma inevitavelmente
discursiva desse conhecimento. O Marco Polo de Calvino em Invisible Cities
(Cidades Invisíveis) é e o é, ao mesmo tempo, o Marco Polo histórico. Como
podemos, atualmente, ‗conhecer‘ o explorador italiano? Só podemos conhecê-lo por
meio de textos inclusive o que ele mesmo escreveu (Il Milione O Milhão), do
qual Calvino aproveita parodicamente sua estória-moldura, sua trama de viagem e
sua caracterização (Musarra 1986, 141)‖ (1991, p. 167).
Paulo José Miranda usa o mesmo artifício, envereda-se pela mesma estrutura, concebe
uma narrativa em que a intertextualidade é a base para que a escritura siga revelando os
mecanismos mais íntimos da representação. O passado, em Vício, transparece como vestígio
de um certo ideal de construção narrativa, calcado na verdade e no sentido final, absoluto,
teleológico, que já não pode sobreviver, plenamente, em um mundo em que os discursos se
254
proliferam numa velocidade assustadora e em que os modelos narrativos escondem, muitas
vezes, o jogo manipulador, fragmentário e fratura sobre os qual se firmam.
O Antero de Quental de Paulo JoMiranda é e o é o Antero de Quental que se
fixou na história, que concebeu uma obra poética singular, cujo tema primordial é justamente
o valor e o tormento que as idéias podem provocar na busca empreendida pelo indivíduo ao
tentar conhecer-se, revelar-se, descobrir sua constituição mais íntima. Assim como o Eça de
Queirós analisado, discutido, referido e estudado ao longo de toda a narrativa, também é e não
é o Eça de Queirós prefixado na história, autor de uma obra e de um pensamento
profundamente marcado pela tentativa de reproduzir, esteticamente, o mundo em todas as
suas contingências, estranhezas, misérias e imperfeições. Nesse jogo, o que resiste é a
intertextualidade plena, total, que toma a escritura em todas as suas dimenes, que se impõe
à escritura. Intertextualidade que fragmenta a escritura, que torna possível a coexistência de
gêneros tão estranhos entre si como a narrativa romanesca e o ensaismo crítico, como a prosa
rascante e niilista de Vício e a poeticidade que atravessa todo o romance.
É bastante evidente que o adultério é um pretexto, trama através da qual pretende
mostrar a alma humana na sua dificuldade em existir. (...) O meu querido amigo
trata a existência, a sua miséria. A não de miséria humana é fundamental. Miséria
humana é a dor, que trazemos ao mundo logo que nascemos, testemunhada pelos
gritos de uma mãe. a miria da vida de Luísa não é a fuga, a canalhice de Basílio,
mas o estar nas mãos da criada, o ter-se tornado sua escrava. Assim com a nossa é
estarmos aqui e sabermos disso. E que sabemos? Quase nada. o suficiente para
continuarmos e arranjarmos razões para isso. Se me perguntar porque continuo,
posso responder ―por tudo ou ―por nada‖. Não haver resposta se torna
insustentável para quem julga importante uma pergunta. (MIRANDA, 2001, p. 34-
35)
Desse modo, Vício é um romance que se entretece a partir do intertexto de que lança
mão e do qual se perfaz. Um texto sobre um texto sobre um texto. Uma escritura que se
dimensiona em profundidade, que cria um perturbador jogo de espelhos: reflexo sobre
reflexo. Em Vício, temos a intertextualidade como ―a própria condição da textualidade‖, nos
dizeres de Linda Hutcheon. Se tudo foi dito, pensado, escrito; se a história é sempre um
255
conjunto de histórias, que se contam e recontam, num movimento infinito; se Roland Barthes
está mesmo certo, isto é, se o ―intertexto é a impossibilidade de viver fora do texto infinito‖,
então, a narrativa híbrida de Vício significa mesmo uma tomada de posição diante das escritas
do s-modernismo, uma crítica ao esvaziamento dos discursos, por um lado, e à deriva da
representação, por outro. O romance de Paulo José Miranda, ao se voltar para o ensaísmo e
promover um recorte histórico definido as últimas décadas do século XIX , revê a própria
hisriacio-literária portuguesa e faz de sua narrativa uma metaficção historiográfica,
percebendo e descrevendo o passado sem a inocência ou a pretensiosa totalidade que os
discursos da história manifestam:
Esse é o discurso parodicamente duplicado da intertextualidade pós-modernista.
Entretanto, isso não é apenas uma forma duplamente introvertida de esteticismo:
conforme vimos, as implicações teóricas desse tipo de metaficção historiogfica
coincidem com a recente teoria historiográfica no que se refere à natureza da
redação da história como narrativização do passado e à natureza do arquivo como
sendo os restos textualizados da história. (HUTCHEON, 1991, p. 167-168)
Todo o romance de Paulo JoMiranda parece ser a afirmação dessa impossibilidade
de recuperar o passado para além da expressão narrativizada dele. A história em si mesma não
deixa de ser a narrativa pela qual se apresenta. O escritor português sabe disso e faz da
hisria um pano de fundo que se avulta, a cada página, sobre a consciência do leitor. E é a
intertextualidade de Vício que faz a história falar, ganhar corpo, transparecer ao longo de toda
a narrativa. Assim, além da escritura que se busca, que se interroga, que procura entender e
fixar seus limites, justificar-se em si e para si, temos a história revelada, uma espécie de
revisionismo crítico, de fundo historiográfico, que ensaia uma compreensão possível do
passado enquanto demonstra, pela intertextualidade, não sem evitar uma certa ironia amarga,
niilista mesmo, que a disncia em relação a ele o torna absolutamente irrecuperável.
O passado, sob a perspectiva teleológica, que busca sentidos e verdades definitivas a
partir do discurso historiográfico, é sempre irrecuperável, a não ser, evidentemente, como
256
entidade ou objeto do discurso que o resgata. As narrativas históricas, principalmente as que
surgem com a pós-modernidade, acabam por colocar o passado sob uma constante e insolúvel
suspeição. Assim como as narrativas pós-modernas estabelecem o questionamento e a dúvida
com relação aos ideais de verdade estabelecidos pelos grandes modelos de pensamento,
demonstrando a falibilidade de tantos conceitos, referências e formas de representação, o
discurso historiográfico como fonte de revelação do passado também é, de certo modo,
invalidado pelas suspeitas que desperta. O passado transforma-se em parte do jogo narrativo
quando o romance acaba por se valer dos recursos formais e estilísticos da historiografia
tradicional como uma espécie de dlogo intertextual.
Paulo JoMiranda, ao transformar Antero de Quental em personagem de si mesmo,
forjando um diário íntimo que deixa transparecer a derrocada de todas as crenças que
moveram o poeta em vida, está construindo um jogo metaficcional em que o passado,
justamente por o poder ser recuperado, se revela como mais uma forma imperfeita nesse
mundo de aparências e ilusões. Vício, muito mais do que um diálogo com a obra, as idéias e o
estilo de Antero de Quental, é todo um intertexto que se precipita sobre a escritura e a
determina; não se trata de um romance sobre o passado, mas de uma certa forma de resgatar o
passado, textualizá-lo, revelar seus enganos e o modo como o escritor concebe suas
articulações intencionais, sua elipses, suas escolhas e seleções deliberadas, demonstrando até
que ponto o discurso pode ser capaz de manipular as supostas verdades que a história
demanda. O passado, enquanto discurso historicamente ordenado, é um simulacro, centro
vazio a partir do qual se organizam os dados, as fontes e ―os restos textualizados da história‖.
Assim, o que interessa não é o passado em si mesmo, mas o modo como ele pode ser
narrativizado, as formas através das quais o escritor manipula as fontes objetivas e concretas
da história:
257
Não fui sequer capaz de aprender a verdadeira natureza do homem social. Sim,
porque me não bastou a desilusão que tive com ―As Conferências do Casino
Lisbonense, tive ainda, vinte anos passados, de aceitar a presidência da Liga
Patriótica, e outra desilusão. Quando tinha idade e experiência para saber no que
aquilo ia dar. Porque, no fundo, e este é que é o grande mal, sempre fui um homem
de esperança. E, assim, também fica explicada a minha excessiva amargura para
com o mundo. Mas se foi um grande mal, não foi uma grande vergonha. Grande
vergonha como a sinto enorme agora! foi o ter auxiliado um amigo, que
sempre esteve do meu lado, quando ele mais precisava de mim. Quando o Joaquim
Pedro aceitou aquele ministério precisava tanto que eu estivesse junto dele que
chegou a pedir-me que o fizesse. (...) E, eu, que fiz? Uma vez mais pensei em mim,
nas forças que não tinha e recusei. O homem não pedia que eu trabalhasse, que eu
me preocupasse, que mergulhasse naquelas águas salobras da política, apenas que
estivesse lá, com ele, que o ouvisse e tivesse de quando em quando uma palavra de
conforto no meio de toda aquela aridez intelectual e moral. (MIRANDA, 2001, p.
52-53)
A renúncia, o não comprometimento, a paralisia que o impede de tomar parte, de
militar, de se envolver ideologicamente em um projeto que poderia ser maior do que ele. A
angústia pelo próprio fracasso político leva-o, juntamente com a angústia de fundo poético-
filofico, ao desespero e à extremada negação do mundo, da vida, do passado e da arte. O
Antero de Paulo José Miranda é um personagem que, lentamente, vai revelando sua total
inadequação diante da vida, do mundo, da realidade e do compromisso consigo mesmo e com
o outro. A grande ironia do romance reside no fato de que o poeta da Idéias, das Formas
Filosóficas, do Pensamento Translúcido, Ideal, vai se perdendo em meio a uma vida interior
feita apenas de vidas, misérias, sobressaltos e de uma assolada ausência de respostas. O
poeta dos grandes questionamentos ontológicos, dos filosofemas líricos propostos por sua
poesia, é esse que ora se reconhece em meio ao nada, personagem de si mesmo, do qual já não
pode fugir.
A história a qual se deu é uma história de profundas amarguras, de desencontros, de
vacilos e errâncias que não lhe permitiram viver, efetivamente, para além de sua própria obra,
ao menos não como gostaria de ter vivido. O passado é um bloco monolítico que não pode
ser recuperado, compreendido ou superado. E a literatura, de certa forma, é o lugar de tantos e
incontáveis desacontecimentos.
258
É este o real sentido da literatura. Todas as personagens históricas não são senão
personagens. Ao lê-lo, Kant é uma personagem tão fictícia como Luísa, assim como
Nuno Álvares Pereira para o Oliveira Martins. Mas é assim para todos os que lêem.
E Platão foi quem primeiro o compreendeu, ao transformar Sócrates em personagem
dos seus próprios livros. A literatura e o pensamento são mundos à parte de outros
mundos, e entrar neles é, necessariamente, sair dos outros. A literatura vive apenas
dentro da literatura. Mais: ela transforma tudo aquilo que toca em literatura, isto é,
em algo que não é o Mundo. Pensar ou querer fazer o contrário é não compreendê-
la. Para ser literatura há que ter o poder e a coragem de aceitar estar de fora. De fora
de tudo o que não é ela mesma. Fora de tudo o que não seja esse mundo encerrado
em si mesmo, que revela o Mundo, e assim o pode revelar, por contraste. O
contraste entre Mundo e Literatura é a verdade. E é porque no Mundo não
verdade que podemos reconhecer a literatura. (MIRANDA, 2001, p. 56-57)
Paulo JoMiranda cria, acima, uma passagem decisiva para a compreensão singular
de Vício: a literatura e suas narrativas, a escritura, o discurso literário não existem para além
de si mesmo, do próprio gesto escritural. A literatura como o jogo da representação reduz o
mundo e à realidade ao livro, mas não pode nunca ser tomada como o mundo ou como a
realidade que supostamente representa. A literatura precisa assumir o risco de revelar, em seus
interditos, que é, antes de tudo, um produto de construção, um ―estar de fora‖ de tudo o que
o seja, necessariamente, literatura. Em Vício podemos entrever algumas das características
essenciais dos discursos da s-modernidade, sobretudo no que diz respeito a certas
afirmações de Linda Hutcheon, segundo as quais, ―a ficção s-moderna manifesta certa
introversão, um deslocamento autoconsciente na direção da forma do próprio ato de escrever‖
(1991, p. 168). E é justamente esse deslocamento do ato de escrever sobre a própria escritura,
para dentro de si mesma, que faz com que o romance de Paulo JoMiranda não se furte a
integrar o universo ficcional pós-moderno. Isso porque ao deslocar seu interesse para a
própria escritura não o faz sem uma certa ironia amarga, cortante e exasperada, que se
aproxima do trágico e do deliberadamente patético.
Mas como toda a ficção pós-moderna, Vício não se resume unicamente às inquietações
de ordem escritural, isto é, o tem como horizonte a escritura e suas formas de manifestação.
Ele é mais do que esse mergulho autoconsciente nos abismos da representação. Como sugere
Linda Hutcheon, a ficção pós-moderna
259
não chega ao ponto de ‗estabelecer uma relação explícita com esse mundo real que
está além dela‘, conforme afirmaram alguns (Kiremidjian 1969, 238). Sua relação
com o ―mundano‖ ainda se situa no vel do discurso, mas afirmar isso já é afirmar
muito. Afinal, podemos ―conhecer (em oposição a ―vivenciar‖) o mundo por
meio de nossas narrativas (passadas e presentes) a seu respeito, ou é isso que afirma
o pós-modernismo. Assim como o passado, o presente é irremediavelmente sempre
textualizado para nós (Belsey 1980, 46), e a intertextualidade declarada da
metaficção historiográfica funciona como um dos sinais textuais dessa compreensão
pós-moderna. (1991, p. 168).
Paulo José Miranda reconhece e admite o jogo: Vício é o passado textualizado, que
ascende ao nível do discurso, mas que não é e nem pode ser o passado para além do tecido da
escritura. As experiências humanas estão calcadas, sempre, ou na vivência direta das coisas
do mundo, ou no conhecimento, no entendimento, na percepção que se pode ter desse mesmo
mundo. Percebemos, em Vício, um certo passado, estranho e alheio, para sempre perdido no
interior da história, irrecuperável a não ser enquanto a narrativa de que se faz. Narrar o
passado é revelar um determinado modo de conhecê-lo, simplesmente, de materiali-lo
enquanto discurso, de representá-lo, mas nunca vivenciá-lo de forma efetiva, porque só se dá
à percepção, como conhecimento adquirido. Paulo JoMiranda concebe um diálogo entre o
conhecer e o vivenciar, sugerindo que, ao resgatar Antero de Quental do limbo da história,
vivencia novamente o passado. A sugestão, inútil dizer, nada mais significa do que um novo
falseamento, uma nova manipulação, um novo jogo representativo aberto no interior do
discurso. Por isso sua personagem vive uma quase que absoluta imobilidade, uma paralisia
claustrofóbica, que faz com que seu pensamento oscile entre a afirmação da escritura, a busca
pela verdade, a rejeição do vício, e a denúncia de que a literatura, em última instância,
também o é o lugar primordial da verdade.
260
4.3.5. A Ficcionalidade da Memória
A crítica mais conservadora, que ataca diretamente o s-modernismo e o acusa de
uma atitude ideologicamente vazia ou orientada no sentido de afirmar os valores da indústria
cultural, da sociedade de consumo, do universo pop esquizofrênico, do capitalismo
transnacional, afirma que a pós-modernidade banaliza a obra de a arte ou a integra aos
discursos de dominação, controle e embotamento das consciências que seriam as marcas da
contemporaneidade. Linda Hutcheon, em Poética do Pós-Modernismo
63
, cita a afirmação de
Charles Newman, importante crítico do s-modernismo, segundo o qual este refletiria
menos uma incerteza radical do que uma irrefletida suspensão de julgamento‖. Esse tipo de
perspectiva crítica nada mais faz do que evitar o confrontamento direto com as teorias e
práticas do s-moderno, julgando-o em função de uma suposta e intrínseca anomia, que
tornaria os discursos da pós-modernidade uma manifestação sem regras, juízos, valores ou
princípios mais ou menos definíveis. Na verdade,
não se trata de incerteza nem de suspensão do julgamento: ele [pós-modernismo]
questiona as próprias bases de qualquer certeza (história, subjetividade, referência) e
de quaisquer padrões de julgamento. Quem os estabelece? Quando? Onde? Por quê?
O pós-modernismo assinala menos uma ―desintegração‖ ou uma ―decadência‖
negativa da ordem e da coerência (Kahler 1968) do que um desafio ao próprio
conceito em que nos baseamos para julgar a ordem e a coerência. (1991, p. 84)
Para compreendermos mais detidamente essa noção de desafio ao conceito‖, de que
fala Linda Hutcheon e que a pós-modernidade colocaria em circulação através de seus
discursos, basta considerarmos, ainda que brevemente, algumas instâncias essenciais da
ordem narrativa como o sujeito, a memória e a alteridade e a maneira como elas se
manifestam no romance Vício. o romance de Paulo JoMiranda, fundamenta-se na seleção
de fatos, acontecimentos, gestos e pensamentos ensaiados ao longo dos dias, no trabalho com
a memória, no resgate do passado, no registro cotidiano de uma existência que caminha,
63
HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1991. p. 84.
261
melancólica e inelutavelmente, para o fim, na escritura da vida a partir do desejo ilusionado
de se fixar por meio das palavras, de se dar algum sentido, de acenar para si mesmo num
momento agônico e extremado de renúncia e solidão. Mas o grande problema que a narrativa
instaura, desde o início, está diretamente relacionado à impostura mais essencial que ela traz
consigo: como é possível escrever o Outro? Como inscrever-se, no tempo e no espaço
narrativo, tal qual o Outro, colocando-se no lugar do Outro, assumindo sua voz, sua história,
suas idéias, pensamentos, conceitos e, indo mais longe, suas próprias inquietações?
Numa atitude bastante pós-moderna, o Antero de Quental de Paulo José Miranda passa
seus três últimos meses de vida atormentado pelas palavras, enquanto vivencia,
paradoxalmente, o absoluto desejo de renunciar completamente a elas:
10 de Junho de 1891
O nosso medo vai ainda mais longe. Vai até a dor que infligimos aos outros. E estou
hoje tão certo de que a maior dor que inflijo aos que me estão mais próximos
àqueles que mais amo é escrever aquilo que escrevo. Magôo-os duas vezes:
primeiro, porque lhes revelo uma fragilidade adormecida; depois, porque também
lhes lembro que não foram eles escreveram o que escrevi, e sei que bem o gostariam
de ter feito. E gostaria de tê-lo feito porque olham o que se escreve com uma espécie
de ternura que aquilo que se escreve o tem. Por outro lado, também porque
aprenderam a admirar o que lhes é desconhecido. São este existente desconhecido e
esta ternura inexistente que alimentam o vício. Estou tão longe daquele que escreveu
o soneto ―Aspiração‖ e pedia a Deus, não apenas a certeza acerca da Sua existência,
mas uma certeza acerca da minha verdadeira natureza, acerca da minha Arte, e com
a tristeza se não importava de pagá-la. Mas não podia pedir outra coisa. Temos de
aspirar sempre à verdade, ainda que nos magoe e aos outros. Não precisamos é de
aspirar a que sejamos nós mesmos a fazer ver essa verdade. (MIRANDA, 2001,
p.16-17)
Em Vício, temos a narrativa de um sujeito que aspira à morte, pelo suicídio, assim
como em A Ópera Flutuante, de John Barth, outro escritor representativo da s-
modernidade. A diferença é que, nesta última, temos um discurso irônico e farsesco em que
um narrador revela, a partir de uma série de investidas contra a estrutura e o gênero narrativo,
como resolveu abrir mão da severa decisão de se matar. O romance de Paulo José Miranda é
ainda mais contundente porque não revela ou questiona, de forma aberta e translúcida, os seus
mecanismos de composição. Ao invés da ironia, do humor, do nonsense e da sátira aos
262
formalismos e estruturalismos narrativos, como em A Ópera Flutuante, o escritor português
escolhe um outro vs marcadamente importante para adentrar no espaço da crise da
representação s-moderna e do questionamento das noções de verdade referencial,
identidade e subjetividade: as problemáticas relações que se estabelecem entre Eu e Outro,
egotismo e alteridade, memória e acontecimento, e, indo mais longe, ficção e realidade. Todo
o romance é uma tessitura que vai deixando suas marcas, pistas, rastros que nos levam ao
reconhecimento dessa problemática, porque a todo o instante esse Antero que se recusa a arte,
a poesia e o pensamento, não faz outra coisa que não pensar e escrever sua cisão fundamental,
seu desconcerto, sua crise exasperada:
E, assim, aqui encerrado na exposição da miséria humana sou dois homens
antagônicos. Um que sofre e, como conseqüência, amaldiçoa o mundo; outro que se
esforça por encontrar a verdade e, também como conseqüência, introduz esperança
no mundo. Porque pensar faz com que tudo possa ser verdade. (MIRANDA, 2001,
p.14-15)
É como se a sistemática repetição dessa cisão nos obrigasse a pensar e refletir sobre a
natureza de uma outra e incontornável situação: a alteridade é legítima quando podemos
pensá-la no interior da própria alteridade. Saber, definir, reconhecer o outro, quem ou o que,
de fato, é o outro, impõe a necessidade de tomarmos seu lugar, ainda que isso o seja mesmo
possível, ainda que jamais consigamos falar no lugar do outro, pelo outro. A forma do diário,
que o romance assume, passa a ser, desse modo, decisiva, já que ela permite o total e absoluto
falseamento de si, o pleno deslocamento da individualidade para o espaço de uma alteridade
radical que parece nos interrogar de forma incessante: quem é mais verdadeiro, mais
consistente, mais próximo do real: o Antero filósofo, poeta e professor, produto do discurso
hisrico e, sendo assim, um construto histórico que só existe a partir da narrativa que o
resgata do passado e o precipita nas páginas dos manuais escolares e das obras de história
literária, ou o Antero desse diário fraudado, simulado, concebido a partir da proposta de levar
263
às últimas conseqüências as dúvidas, interrogações e questionamentos que o gesto artístico-
criativo e que a própria escritura nos ime?
Toda essa problemática esconde ou escamoteia outra dimensão das teorias do pós-
moderno: na modernidade, o que interessa é reconhecer-se a si mesmo através do outro, do
discurso, da linguagem; na s-modernidade o que importa mesmo é o gesto intransigente de
afirmar que tanto o Eu quanto o Outro são manifestações discursivas que só podem se
legitimar enquanto tal. Temos, então, mais um dos grandes deslocamentos da s-
modernidade, deslocamento que é, também, uma questão de forma: não se trata de
interrogar-se acerca de como dizer, mas sim de por que dizer, qual a legitimidade da escritura,
da palavra, da voz que insiste em falar por si mesmo e pelo Outro.
Paulo José Miranda não apenas reinventa Antero de Quental, mas também, ao fazê-lo
falar por meio de seu discurso, ao dar-lhe sua voz, ao emprestar-lhe as palavras como se estas
nunca tivessem pertencido ao poeta, instabiliza a relação entre eu e outro e acaba por tornar
evidente a idéia de Linda Hutcheon segundo a qual ―o conceito modernista de uma o-
identidade única e alienada é desafiado pelo questionamento pós-moderno dos binários que
ocultam hierarquias (eu/outro)‖ (1991, p.89). O que torna ainda mais problemático esse
ocultamento, em se tratando de Vício, é que em nenhum momento o suposto autor desse
diário coloca em dúvida a legitimidade de sua voz, como acontece, geralmente, em outros
romances s-modernos que giram em torno da memória e da construção ficcional de
determinados sujeitos históricos:
14 de Junho de 1891
O que é que verdadeiramente importa nesta vida? Pensar? Criar uma obra poética,
ou outra? Dedicar-se à ciência ou à matemática? Ser negociante e amontoar dinheiro
e bens? Fechar-se com Deus num convento? E se o que importar não for aquilo que
se faz com a vida, mas a própria vida? Que fazer, então, das outras coisas? E o que é
isso de própria vida? O que é isso de própria vida à luz da sua mentira?
(MIRANDA, 2001, p. 24)
264
A negação da vida, aqui, vai muito além da crítica pura e simples à tendência de
pensar e definir o sujeito a partir daquilo que ele faz, de suas ações, de sua práxis, como era
comum, aliás, em fins do século XIX, principalmente no que diz respeito à constituição do
sujeito sociológico. O que Paulo José Miranda evidencia é que se a vida é mais do que o que
fazemos dela ou com ela, se a vida é um acontecimento em si mesmo, simplesmente, e se
revela como uma construção verbal que busca, de forma constante e irrefreável, definir-se e
justificar-se incessantemente, então o que faz com que essa vida ficcional não seja tão
verdadeira, possível e real quanto qualquer outra vida? Afinal, se um dos fundamentos da vida
é a memória, a capacidade de reaver, pela lembrança, pelo pensamento e pelas palavras, o
passado, então esse personagem-simulado, essa voz-impostora, redigindo o diário de sua
própria ruína, de sua inevitável extinção, é tão concreta e verdadeira quanto qualquer um de
nós.
Na modernidade, a memória é sempre a memória do eu, do personagem, da figura que
representa o homem, o indivíduo, o sujeito, alienado ou não, pouco importa. O Marcel, de Em
Busca do Tempo Perdido, de Proust, não é, evidentemente, o próprio Marcel Proust, mas sim
o personagem que se assinala a partir de uma íntima e nem sempre estável relação entre autor,
personagem e narrador. Ainda que não seja simples ou fácil separar esses elementos tão
radicalmente confundidos no centro da narrativa, uma coisa é certa: a construção da memória
na obra proustiana ainda se dá a partir da relação hierárquica que se estabelece entre o eu e o
outro, a identidade e a diferença. Num romance como Vício, de Paulo José Miranda, situado
no domínio das narrativas descentralizadoras da pós-modernidade, é justamente essa relação,
bastante moderna sem dúvida, que será implodida.
O romance proustiano ainda deixa entrever os primeiros esforços modernos no sentido
de rever a memória, sua constituição e seu modo de organização à luz das teorias freudianas
acerca do inconsciente. Em Proust, o que aparece sob o signo do emaranhamento, da
265
confusão, da mise-en-scène narrativa, é a relação entre a voz que narra, descreve e reconstitui
as experiências passadas a voz do narrador Marcel e a voz autoral, singular, pessoal,
sempre mais difícil de ser definida e prefixada porque oscila entre o trabalho de ocultamento e
revelação da própria subjetividade que o jogo ficcional instaura. Mas, na modernidade, a
memória ainda é a fonte de irrupção da experiência humana, de sua relação com o passado, de
sua ação sobre o presente e de sua esperança de futuro; e ela ainda pode ser perfeitamente
representada pelos movimentos e oscilações da escritura, já que ao autor caberia, unicamente,
manter sob controle a seleção, o recorte, os fragmentos e cenários memorialísticos que
constituem a nossa exisncia, reconhecendo, de acordo com Bachelard, em A Poética do
Devaneio
64
, que
o passado não é estável; ele não acode à memória nem com os mesmos traços, nem
com a mesma luz. Apenas se apanhado numa rede de valores humanos, nos
valores da intimidade de um ser que não esquece, o passado aparece na dupla
potência do espírito que se lembra e da alma que se alimenta de sua fidelidade.
(1988, p. 99)
É justamente essa fidelidade à memória que as narrativas pós-modernas irão,
sistematicamente, trair. Não é casual que boa parte dos romances contemporâneos tragam
consigo personagens historicamente assinaladas e sempre às voltas com seu passado, suas
lembranças e recordações, numa luta renhida para evidenciar a essência ficcional da memória,
seu estofo imaginário, seu caráter ilusionado. É o caso do diário fraudado, inquietante,
desesperançado, através do qual Paulo José Miranda restitui a palavra ao seu Antero de
Quental. Assim, no rastro de um certo pensamentos-moderno, Vício acaba por desmontar a
idéia segundo a qual é de fato possível ao homem conhecer-se a si mesmo e ao outro apenas
pela posse memorialística do passado, afinal, o lema parece ser aquele que traz em seu pórtico
a triste constatação de que um homem que se tenta conhecer a si próprio é ingênuo, mas um
64
BACHELARD, Gaston. A Poética do Devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
266
homem preso em pensamentos a tentar conhecer-se é digno de piedade. Digno de piedade
porque se trata de um doente, de um doente aflitivo‖ (MIRANDA, 2001, p. 68).
Norberto Bobbio, o sociólogo italiano, afirma, em Tempo da Memória
65
, que
na rememoração reencontramos a nós mesmos e a nossa identidade, não obstante os
muitos anos transcorridos, os mil fatos vividos‖ e que, ao recordarmos,
―encontramos os anos que se perderam no tempo, as brincadeiras de rapaz, os vultos,
as vozes, os gestos dos companheiros de escola, os lugares, sobretudo aqueles da
infância, os mais distantes no tempo e, no entanto, os mais nítidos na memória.
(1997, p. 31)
Mas a atitude s-moderna acerca do ideal de construção e representação simbólica
das relações estabelecidas entre o eu e o outro, a identidade e a diferença, bem como da
afirmação do caráter e da subjetividade, passa, necessariamente, pelos caminhos da
transpessoalidade e acaba por minar todo e qualquer sentido que se possa atribuir ao sujeito
como entidade empírica definível, certa, determinada. Paulo José Miranda leva às últimas
conseqüências o jogos ficcional da memória, concebendo um sujeito perturbado e
radicalmente fraturado, ex-cêntrico, porque fora de seu tempo, de seu lugar, de sua própria
pessoalidade. E a esse sujeito resta a atitude extremada que encontramos assinalada no dia
14 de Julho de 1891: ―Tenho de acabar comigo‖ (2001, p. 69). O vício ao qual o romance
constantemente se refere pode ser entendido como essa crença absoluta em si, no que se é, no
que se faz, que move os homens em direção ao conhecimento, sempre insuficiente, sempre
rio, sempre instável de si mesmo. Acabar consigo é, antes do suicídio simplesmente, a
metáfora essencial de nossa condição primeira: somos, a um só tempo, nossa própria memória
e a memória daqueles sob os quais nos perdemos e nos encontramos, nos concebemos e nos
arruinamos. Somos, sobretudo, a vida fundamental em relação a nossa identidade singular,
partes de um discurso, de uma escritura, de um jogo de palavras que se pela linguagem e
que nunca conseguirá, de fato, nos definir.
65
BOBBIO, Norberto. O Tempo da Memória: De senectude e outros escritos autobiográficos. Rio de Janeiro:
Campus, 1997.
267
Esse jogo da memória, da escritura, da representação marca-se sempre como a
inconclusão da obra, como a indecidibilidade radical de estabelecer um sentido definido,
objetivo, a partir de sua própria realização enquanto criação estética marcada pelos
movimentos e simulações da narrativa. Como vimos, a despeito das críticas que se faz ao
discurso pós-moderno como uma instância necessariamente a-histórica ou politicamente
alienada ou o resultado da cooptação do artista pela sociedade de consumo, de massas, do
espetáculo fácil, como querem alguns críticos do fenômeno pós-moderno, ele se insere
justamente nos limites auto-críticos de uma obra que, ao se pensar, ao refletir sobre si mesma,
acaba se voltando criticamente sobre a própria realidade e seus discursos representacionais.
Assim, para finalizar e estender um pouco essas questões, para situar essa relação entre
realidade empírica e poiésis auto-reflexiva, entre história, fato, acontecimento, memória e
suas articulações ficcionais, basta pensarmos que algumas obras lançam mão desses
elementos pós-modernos como uma forma de repensar os caminhos históricos e políticos do
homem. Isso acontece em Vício, de forma mais sutil, e se dá, abertamente, num romance
como W ou a memória da infância, de Georges Perec.
Perec nasceu em Paris, em 1936, poucos anos antes da deflagração da Segunda Guerra
Mundial. Filho de pais judeus de origem polonesa, o escritor francês fica órfão muito cedo,
que o pai morre no front, em 1940, e sua mãe em 1943, num campo de concentração nazista.
Dessa forma, Perec situa-se nos limites da assim chamada segunda geração de sobreviventes,
ou seja, aquela que não vivenciou diretamente os horrores dos campos de extermínio, mas que
também viveu a experiência das perdas e dos traumas que eles impuseram àqueles, como
despojos de guerra, sobreviveram ao horror. A literatura de Perec está profundamente
marcada por sua adesão ao grupo OULIPO Ouvroir de Littérature Potentiel (Escritório de
Literatura Potencial) , formado por escritores e matemáticos que propunham a renovação, a
transformação e a libertação da literatura por meio de um expediente que, num primeiro
268
momento, soa como um grande paradoxo: constranger a escritura a partir de um conjunto
arbitrário de regras, princípios, normas ou imposições que limitem, de algum modo, o livre
exercício estético. Entre os principais representantes do OULIPO encontram-se nomes como
os de Raymond Queneau, Ítalo Calvino e o próprio Perec.
Aos membros do grupo OUILPO, o que interessava era a capacidade de vencer os
obstáculos, as barreiras e as limitações previamente impostas ao exercício escritural, ou seja,
eles concebiam previamente as imposições criativas que deveriam cercear a criação literária,
concebendo um discurso que deveria ser o resultado rigoroso, equilibrado e bem constituído
de uma imposição formal muitas vezes castradora. Foi assim que surgiram, por exemplo, os
abecedários, textos lógicos em que cada palavra é iniciada por uma letra diferente, mas
seqüencial, do alfabeto; os lipogramas, obras em que uma letra do alfabeto é suprimida ao
longo de todas as palavras como podemos perceber no romance La Disparition, de Perec,
em que a letra ―e‖, vogal mais freqüente no vocabulário francês, está ausente; ou os jogos
matemáticos, como o S+7, em que s substantivos do texto devem ser substituídos, numa
espécie de permuta matemática, pelo sétimo que aparece logo depois dele no dicionário.
Todos esses jogos formais acabam por constranger a criação, impondo fronteiras p-
estabelecidas ao texto e limitando a liberdade criadora do escritor, que deve ser capaz de lidar
com os impasses que esse tipo de escritura traz consigo.
Autor de uma longa obra em que se destacam romances como As Coisas, A Vida -
Modo de Usar e W ou a memória da infância, Perec pode ser entendido como um mestre
contemporâneo do jogo escritural que a literatura s-moderna s em cena de forma
emblemática a partir do início dos anos 70. O mais interessante na obra de Perec, no entanto,
o são os jogos formais, os constrangimentos, as limitações criativas, os labirintos estruturais
que o autor se impõe, mas sua profunda capacidade de aliar à invenção e às limitações do
discurso literário metaficcional na maior parte do tempo, bem ao gosto da pós-modernidade
269
uma reflexão profunda sobre a condição humana em situações extremadas ou de profundo
desamparo. É o caso de W ou a memória da infância, em que o jogo escritural, em que a idéia
de uma narrativa dentro da narrativa, que ainda se desdobra em uma outra narrativa paralela,
feita das notas de fim de página de determinados capítulos, alia-se a um conteúdo mais
desalentador, mais espantoso e mais terrificante: as memórias de um menino judeu que, após
perder os pais na guerra, e se sentido absolutamente sozinho, concebe, como recurso extremo
de embotamento da memória, a história de W, um país imaginário que seria a Terra do
Esporte.
Em W ou a memória da infância, podemos encontrar os principais caracteres da s-
modernidade postos em circulação no interior da narrativa. Tem-se, no romance de Perec, ao
menos duas histórias que seguem em paralelo: uma fábula, de índole Kafkiana, em que nos
vemos mergulhados em W, um país imaginário no qual predomina um ideal olímpico, uma
espécie de assepsia ideológica que se constrói sobre a fantasia incomoda e assustadora de um
mundo absolutamente administrado, controlado; outra de caráter memorialístico, em que o
narrador busca resgatar suas lembranças relacionada a alguns fatos marcadamente traumáticos
de sua vida como as recordações da guerra, dos campos de concentração e da perda dos pais
judeus, como ―despojos‖ de uma ideologia bárbara e cruel, empenhada na afirmação da
violência, do horror, do arruinamento do corpo, da cultura, do pensamento judaico pelo
extermínio, em suma. Perec, desse modo, concebe sua narrativa como um jogo de armar em
que a memória assume dupla importância: por um lado, ela permitiria a restituição, no
espaço da lembrança, de um evento traumático que lhe marcou a infância e que, agora, precisa
ser reelaborado; mas essa reelaboração do trauma se dá, por outro lado, pelo resgate que o
autor empreende de uma narrativa infantil a história de W que ficara perdida durante anos
e que assoma à memória como a única forma encontrada pela criança de re-significar um
270
evento que não pode jamais ser esquecido e que es condenado a nunca ser total e
plenamente compreendido.
W trabalha, então, com um duplo trauma: a orfandade, que representa tanto a perda da
imagem referencial paterna quanto a ausência da figura simbólica materna; e a catástrofe de
se saber portador de uma história construída a partir de uma perda brutal, injustificável,
dolorosa e que nada tem de casual ou fatalista, no sentido de um destino trágico e
incompreensível que se abate sobre os indivíduos, como nas tragédias gregas, por exemplo,
mas sim uma perda cuja motivão central tem suas raízes na ideologia de um regime político
totalitário, que intervém sobre os destinos dos indivíduos, das minorias, daqueles que seriam,
supostamente, os párias de uma sociedade nova, em construção, que fez da força, do controle
e do extermínio programados uma forma de se auto-afirmar pela negação e pelo
aniquilamento do Outro.
W ou a memória da infância não trata de outro assunto que não o trauma advindo da
experiência da catástrofe. A diferença é que, com Perec, o relato memorialístico se desdobra
numa narrativa infantil mas igualmente memorialística de caráter fabular, mas uma
―fábula‖ que também toca os limites do horror e do absurdo kafkiano, deixando-nos numa
situação profundamente desconfortável porque somos obrigados a nos questionar a respeito da
verdade possível de ambos os relatos, isso no momento exato em que nos damos conta de que
o jogo narrativo criado por Perec apaga, lentamente, as fronteiras e os limites entre verdade e
ficção, realidade e imaginação, memória e fantasia, evento e invenção. Tais fronteiras e
limites criam um ponto cego que, é forçoso reconhecer não pode ser de todo iluminado: a
literatura, sob muitos aspectos, cumpre a sua tarefa de potencializar e expor o que há de mais
daninho ou encantador na natureza humana, mas cabe à crítica a, muitas vezes inglória, tarefa
de repensar a vacilante relação entre homem, mundo, acontecimento e representação. E isso
271
pode ser ainda mais difícil quando a memória é a fonte do discurso e o trauma passa a ser o
acontecimento carente de representação.
O que Perec coloca em questão no jogo memorialístico-ficcional de W é justamente a
possibilidade da linguagem de dar conta de um evento que, por sua natureza traumática,
parece estar sempre aquém ou além dos limites da representação, exigindo que o discurso se
dobre ou desdobre em múltiplas instâncias narrativas que, por sua vez, chegam a ameaçar a
lógica profunda do sentido (como explicação ao evento) buscado, tornando a significação uma
força instável que se nega a explicar ou dar ao entendimento a dimensão mais dolorosa,
bárbara ou cruel do evento traumático. Como representar a barbárie quando esta, de o
absurda, atinge as raias do mais incerto pesadelo? E o que podemos entrever no comentário de
Márcio Seligmann-Silva em seu ensaio A História como Trauma, em Catástrofe e
Representação:
O testemunho é, via de regra, fruto de uma contemplação: a testemunha é sempre
testemunha ocular. Testemunha-se sempre um evento. A palavra alemã para evento é
justamente Ereignis (que vem de ir-ougen, sendo que ouga quer dizer olho) que,
etimologicamente, significa ―pôr diante dos olhos, mostrar‖. O testemunho de um
agora conecta-se, para Lyotard, ao registro do sublime porque gera um prazer
eminentemente negativo: como vimos, o sublime produz uma suspensão, um
desativamento da consciência. Além disso, na tipologia desse conceito estabelecida
por Edmund Burke (em A Philosophical Enquiry into the Origins of our Ideas of the
Sublime and Beautiful, 1757), o sublime é tratado como pertencente ao campo do
medo: medo da perda total do eu, da morte, do inconcebível. O testemunho do evento
―sublime‖, que tanto Lyotard quanto Friedlander propõem, implica uma tarefa ao
mesmo tempo necessária e impossível. Portanto, a questão volta a ser posta: Como dar
testemunho do irrepresentável? Como dar forma ao que transborda a nossa capacidade
de pensar? (2000, p. 82-83)
No caso de W, a dimensão testemunhal da narrativa esbarra sempre nas interrogações
que a escritura se faz (e nos faz também, porque essa interrogação é sempre de mão-dupla,
parte sempre do escritor para o texto e deste para nós, reféns das armadilhas da escritura)
acerca das possibilidades de representar aquilo que se nega a ganhar voz porque entrevê, nas
palavras, nas frases, no discurso, uma espécie de impotência primordial, que se a priori,
antes mesmo de se engendrar a narrativa, e que tendo ao silêncio, porque dizer a dor esbarra,
272
sempre, no caráter insofismável da dor. O que Perec faz, então, é pensar os limites da
linguagem e a extensão da representação criando um conjunto de narrativas desdobráveis,
todas em primeira pessoa, que colocam, desde o título, a problemática da indecidibilidade
radical dos sentidos, que é uma das características da literatura s-moderna. Desse modo,
Perec força-nos a questionar qual dos relatos é mais fiel ao testemunho, à memória, às
lembranças do menino judeu que concebe uma narrativa fabular como forma de reconstruir o
passado e, talvez, iluminar o presente, buscando compreender de que forma a escritura pode
refletir a memória em seu movimento descontínuo, fragmentário, incerto e traumático.
Em W, a memória e o esquecimento confundem-se e a escritura fragmenta-se diante da
impossibilidade de representar o passado em toda a sua extensão, por isso, o narrador afirma
o saber o momento em que os fios que o ligam à infância se partiram. (1995, p. 20)
Escrever, então, passa a ser a tentativa de iluminar um passado, um episódio da infância
quando o pai morre em combate e a mãe em um campo de concentração que se afirma
diante da memória como um ponto cego, resultado do trauma e do horror diante de uma
hisria que começa a partir de um episódio extremo: a barbárie e a violência, os dois únicos
legados da guerra. Ainda que a experiência do passado se revele traumática o narrador
reconhece que:
... a infância não é nostalgia, nem terror, nem paraíso perdido, nem Tosão de
Ouro, mas talvez horizonte, ponto de partida, coordenadas a partir das quais
os eixos de minha vida poderão encontrar seu sentido. Mesmo contando
apenas, para escorar minhas lembranças improváveis, com o apoio de fotos
amareladas, de testemunhos raros e documentos insignificantes, não tenho
outra escolha senão evocar o que por muito tempo insisti em chamar o
irrevogável: o que foi, o que se deteve, o que ficou enclausurado: o que foi,
sem dúvida, para hoje o ser mais, mas o que foi, tamm, para que eu seja
ainda. (PEREC, 1995, p. 20)
O problema instaurado pela narrativa de Perec está diretamente relacionado ao
paradoxo pós-moderno de que o há literatura fora da representação ao mesmo tempo em
que esta se revela a partir de uma de suas limitações, fraturas e dissimulações. Assim, se a
273
memória é impossível, a representação pode se dar como constructo que, ao se revelar,
desvela as manipulações do discurso:
Minhas duas primeiras lembranças não são de todo inverossímeis, mesmo se
é evidente que as numerosas variantes e pseudoprecisões que introduzi mais
tarde nos relatos falados ou escritos que fiz delas as alteraram
profundamente, quando não as desnaturaram por completo. (1995, p. 21)
Não certezas definidas quanto às lembranças o que faz com que o narrador a todo
instante estabeleça como princípio narrativo as imprecisões e desarticulações do próprio
relato:
A primeira lembrança teria por cenário o fundo da loja de minha avó. Tenho
três anos. Estou sentado no centro da peça, no meio de jornais iídiches
espalhados. O rculo da família me rodeia completamente: essa sensação de
cerco o se acompanha para mim de nenhum sentimento de esmagamento
ou ameaça; ao contrário, é proteção calorosa, amor: toda a família, a
totalidade, a integralidade da família está ali, reunida em torno da criança que
acaba de nascer (mas eu não disse pouco que tinha três anos?), como uma
muralha intransponível.
Todos se extasiam diante do fato de eu ter desenhado uma letra hebraica,
identificando-a: o signo teria a forma de um quadrado aberto em ângulo
inferior esquerdo, (...) e seu nome teria sido gammeth, ou gammel. A cena
inteira, por seu tema, sua doçura, sua luz, assemelha-se para mim a um
quadro, talvez de Rembrandt ou talvez inventado, que se chamaria Jesus
diante dos doutores. (1995, p. 21-22)
A família diante da criança, aos três anos de idade e a sensação de proteção
confundem a memória a ponto do narrador se descrever como um recém-nascido. O equívoco
se resolve quando percebemos que, na verdade, ele aprendera a escrever sua primeira letra
em hebraico, demonstrando simbolicamente o que nós podemos entender como uma dupla
gênese: a do escritor e a da escritura. No entanto, o trecho transcrito nos remete a uma nota de
rodapé explicativa acerca da suposta letra traçada pela criança:
1. É esse acréscimo de precisão que basta para estragar a lembrança ou, em
todo caso, sobrecarrega-a com uma letra que ela não tinha. Com efeito, existe
uma letra chamada Gimmel que gosto de acreditar que poderia ser a inicial de
meu nome; ela não se assemelha em absoluto ao signo que tracei e que
poderia, a rigor, passar por um men, ou M. Esther, minha tia, contou-me
recentemente que em 1939 eu então tinha três anos minha tia Fanny, irmã
mais moça de minha mãe, às vezes me levava de Belleville até sua casa. Na
274
época Esther morava na rua des Eaux, pertinho da avenida de Versailles.
Íamos brincar à beira do Sena, junto dos grandes montes de areia; uma de
minhas brincadeiras consistia em decifrar, com Fanny, letras em jornais, não
iídiches, mas franceses. (1995, p. 22-23)
O uso das notas é um recurso freqüentemente usado ao longo do romance e é o melhor
indício de que a fragmentação discursiva acena para a indecibilidade do sentido: uma
representação totalizante do passado, num discurso de ordem realista, solicitaria que as
descrições se sucedessem de forma a criar uma rede gica, ordenada e precisa de sentidos,
relacionando diretamente os fatos e acontecimentos às experiências das personagens; na
narrativa de Perec, entretanto, a fragmentação produzida pelas notas tem como principal
função a representação estável, que denunciam o apenas os limites da memória, mas
também as simulações da escritura. Os vacilos e imprecisões da memória dão o tom dessa voz
cuja a fala se esgarça até o limite de romper com a verossimilhança desarticulando o próprio
ato ficcional:
A segunda lembrança é mais breve; assemelha-se antes a um sonho; parece
ainda mais evidentemente fabulada que a primeira; existem muitas variantes
dela que, ao se sobreporem, tendem a torná-la cada vez mais ilusória. Seu
enunciado mais simples seria: meu pai retorna de seu trabalho; ele me dá uma
chave. Numa variante, a chave é de ouro; noutra, não é uma chave de ouro,
mas uma moeda de ouro; numa terceira ainda, estou sentado no penico
quando meu pai volta de seu trabalho; numa outra, enfim, meu pai me dá uma
moeda, eu engulo a moeda, um nico geral, no dia seguinte a encontram
em minhas fezes. (1995, p. 22)
Como vimos, em W duas narrativas que correm paralelamente: a primeira de
caráter fabular conta a história de Gaspard Winckler, soldado desertor que, fugindo da guerra,
é ajudado por uma organização pacifista que lhe fornece seu nome e seus documentos. Órfão,
criado por vizinhos num pequeno vilarejo, saiu de casa aos dezesseis anos e acabou se
alistando. Assim, o garoto órfão, sem lar, transforma-se no soldado desertor Gaspard
Winckler, sendo que ambos carecem de identidade. Gaspard recebeu seu nome e documentos,
numa situação de emergência, de um jovem garoto, filho de uma grande cantora, muito
doente, raquítico e surdo-mudo. Esse garoto desaparece em um naufrágio no qual sua mãe
275
morre, cabendo ao soldado desertor localizá-lo. É assim que ele chegaem W., um país
controlado, totalmente administrado, eficiente, conhecido como a Terra do Esporte.
Na segunda narrativa temos o suposto relato autobiográfico que procura dar conta da
infância do autor durante a guerra e de sua relação com as lembranças do passado, sobretudo
dos pais, extintos com a guerra. Em ambas as histórias predomina a idéia da necessidade de
relatar a experiência do homem diante do horror e da barbárie, sendo que ambas acabam
colocando em evidência a impossibilidade de representar o horror em todas as suas
implicações. Por isso, a narrativa de Perec se dá como um processo hipermnemônico em que
os narradores tentam fixar um conjunto de lembranças que se sobrepõem umas às outras numa
tentativa vertiginosa de compreender a experiência traumática da perda: dos pais, da
identidade, da infância que paradoxalmente não pode ser reconstruída, dada as imprecisões e
dissoluções da própria memória.
A narrativa de Gaspard Winckler apresenta-se como uma alegoria do indivíduo sob o
julgo de um estado totalitário e arbitrário. O relato supostamente autobiográfico de Perec, ao
contrário, tenta resgatar as lembranças de uma infância que, por não ter deixado traços,
pode ser entrevista nos limites da criação. Em ambos os casos, trata-se de conceber relatos
fragmentários que se dão como um jogo de armar. As notas, como já dissemos, proliferam-se
ao longo dos capítulos numa disseminação incessante, criando uma espécie de abertura ao
infinito, característica da escritura fragmentária e que se impõe como um obstáculo, um travo
à leitura. No oitavo capítulo da primeira parte Sobre mais uma das recordações da infância
o narrador afirma:
O projeto de escrever minha história formou-se quase ao mesmo tempo que
meu projeto de escrever. Os dois textos que seguem datam de mais de quinze
anos. Copio-os sem nenhuma alteração, indicando em notas as retificações e
os comentários que hoje julgo dever acrescentar. (1995, p. 37-38)
276
Neste fragmento temos exatamente vinte e seis notas que supostamente corrigem as
imprecisões dos relatos escritos há mais de quinze anos. Supostamente porque as notas
acrescentam à narrativa um conjunto de informações que, por estarem condicionadas à
memória do narrador, tendem à imprecisão, mantendo o discurso sob a tensão constante entre
o certo e o incerto, o fato e a simulação, a verdade e o lapso, o equívoco, o engodo. Assim,
por exemplo, temos:
Em meu pai, gosto muito de sua despreocupação. Vejo um homem que
assobia baixinho. Ele tinha um nome simpático: André. Mas fiquei muito
decepcionado no dia em que soube que na verdade digamos, nos registros
oficiais ele se chamava Icek Judko, o que para mim não significava grande
coisa. (1995, p. 39)
8. Icek é evidentemente Isaac, e Judko sem dúvida um diminutivo de Jehudi.
De fato é possível que pudessem chamar meu pai André, assim como, de
forma quase igualmente arbitrária, chamavam seu irmão mais velho (o que
foi fazer fortuna na Palestina) Léon, quando seu nome no registro civil era
Eliezer. Na verdade, todo mundo chamava meu pai Isie (ou Izy). Sou o único
a ter acreditado, durante muitíssimos anos, que se chamava André. Tive um
dia de conversa com minha tia sobre o assunto. Ela acha que talvez fosse um
apelido que ele tivesse usado em suas relações de trabalho ou de café. De
minha parte, tendo a pensar que entre 1940 e 1945, quando a mais elementar
prudência exigia que chamassem alguém Bienfait ou Beauchamp em vez de
Bienenfeld, Chevron em vez de Chevranski, ou Normand em vez de
Nordmann, poderiam ter-me dito que meu pai se chamava André, minha mãe
Cecília, e que éramos bretões.
O nome de minha família é Peretz. Ele se encontra na Bíblia. Em hebraico
quer dizer ―buraco‖, em russo ―pimenta‖ em ngaro (em Budapeste, mais
precisamente) é assim que se designa o que chamamos Bretzel (Bretzel, aliás,
não é senão um diminutivo Beretzele de Beretz, e Beretz, assim como
Baruk ou Barek, é forjado a partir da mesma raiz que Peretz - em árabe,
quando não em hebraico, B e P são uma única e mesma letra).
Os Peretz de bom grado fazem remontar sua origem a judeus espanhóis
expulsos pela Inquisição (os Perez seriam marranos) e dos quais se pode
traçar a migração na Provença (Peiresc), depois dos Estados do papa, e
finalmente na Europa central, principalmente na Polônia, mas também na
Romênia e na Bulgária. Uma das figuras centrais da família é o escritor
iídiche polonês Isak Leibuch Peretz, a quem todo Peretz que se preze trata de
ligar-se por intermédio de pesquisas genealógicas às vezes acrobáticas.
Quanto a mim, seria sobrinho-bisneto de Isak Leibuch Peretz. Ele teria sido o
tio de meu avô.
Meu avô chamava-se David Peretz e viva em Lubartow. Teve três filhos: a
mais velha chama-se Esther Chaja Perec; o do meio, Eliezer Peretz, e o mais
moço, Icek Judko Perec. No intervalo que separa os três nascimentos, ou seja,
entre 1896 e 1909, Lubartow teria sido sucessivamente russa, depois
polonesa, depois russa de novo. Segundo me explicaram, um funcionário de
cartório que ouve em russo e escreve em polonês ouvirá Peretz e escreverá
Perec. Não é impossível que fosse o contrário: segundo minha tia, os russos é
que teriam escrito ―tz‖ e os poloneses ―c‖. essa explicação aponta, mais do
que esgota, toda a elaboração fantasmática ligada à dissimulação patronímica
de minha origem judaica que fiz em torno de meu nome e que marca, além
disso, a minúscula diferença existente entre a ortografia do nome e sua
277
pronúncia: deveria ser rec ou Perrec (e é sempre assim, um acento agudo
ou dois RR, que o escrevem espontaneamente); é Perec, sem no entanto se
pronunciar Peurec. (1995, p. 46 48)
A genealogia no nome de família é tão fantástica, confusa e desarticulada quanto à
própria fragmentariedade do relato. Trata-se de afirmar o nome para rejei-lo, de dissimular o
nome e, com isso, a origem judaica, para não ser vitimado pelo contexto-histórico que se
desenhava, mas, sobretudo, trata-se de dizer o medo Peurec‖ é um trocadilho com a
palavra ―peur‖ (medo) que esta origem comporta e arrasta consigo. Desse modo, as
reminiscências do passado desagregam-se sob o domínio do medo e do horror que nunca se
diz de forma transparente, que não se deixa reduzir às fronteiras e aos limites da representação
porque se dão como experiência da catástrofe e esta não permite que a linguagem a toque e
percorra em toda a sua profundidade:
A palavra ―catástrofe‖ vem do grego e significa, literalmente, ―virada para
baixo (kata + strophé). Outra tradução possível é ―desabamento‖, ou
―desastre‖; ou mesmo o hebraico Shoah, especialmente apto no contexto. A
catástrofe é, por definição, um evento que provoca um trauma, outra palavra
grega, que quer dizer ferimento‖. ―Trauma‖ deriva de uma raiz indo-
européia com dois sentidos: ―friccionar, triturar, perfurar‖; mas também
―suplantar‖, ―passar através‖. Nesta contradição uma coisa que tritura,
perfura, mas que, ao mesmo tempo, é o que nos faz suplantá-la, se revela,
mais uma vez, o paradoxo da experiência catastrófica, que por isso mesmo
não se deixa apanhar por formas simples de narrativa. (NESTROVSKI,
SELIGMANN-SILVA, 2000, p. 8)
Daí Perec construir sua narrativa de forma dispersiva, criando um estado de
permanente tensão que se desenvolve como um labirinto de infinitos caminhos, sendo
nenhum deles parece conduzir a um destino certo, preciso ou, para dizer o mínimo, confiável:
Catástrofe, trauma e memória traduzem-se uns aos outros nessas histórias que
não se deixam capturar pelo pensamento, nem pelo discurso. Para o leitor, ou
intérprete, o dilema é não desistir do conhecimento, sem trair a natureza do
vivido. Não contar perpetua a tirania do que passou; e sua distorção gradual,
à distância do tempo, acaba pondo em xeque as certezas da memória,
precárias como são. Mas como sustentar esse tipo de conhecimento, que não
pode ser falsificado pela reflexão, nem tornado consciente de todo sem
distorções? Como fazer do leitor uma testemunha do evento? E para quem
narra: como se tornar, narrando, uma testemunha autêntica do acontecido e
uma testemunha autêntica de si? (NESTROVSKI, SELIGMANN-SILVA,
2000, p. 9)
278
Perec, então, usa os recursos fundamentais da narrativa pós-moderna a fragmentação
discursiva, a disseminação de sentidos, a deriva representacional, a simulação de certezas e a
dissimulação de incertezas, a rejeição da referencialidade factual para criar um romance
auto-referencial, que coloca em jogo a possibilidade de se dar como testemunho fiel da
barbárie. E como se, ao tentar ajustar-se com sua própria história, o narrador se visse
compelido a preencher os vazios, corrigir os equívocos, suplantar os lapsos e dissociações da
memória. O problema é que, nesse processo, a escritura se parte e desarticula, chegando aos
limites da alteridade: o Perec empírico, que se transforma em Perec-narrador, que se projeta
em Gaspard Winckler e sua viagem alegórica por um Estado-Máquina, Olímpico, perfeito,
eugênico.
279
CONCLUSÃO
Aproximar-se criticamente da literatura contemporânea, sobretudo aquela que a teoria
literária de matiz norte-americano denominou de pós-moderna, é enveredar por um caminho
no mínimo adverso, já que, de um lado, o objeto da crítica não configura, ainda, uma
realidade acabada, pronta, fechada, teleológica, para usar uma expressão muito cara a alguns
estudiosos do discurso ficcional pós-moderno, que nos permitiria o certo e devido
distanciamento histórico que o estudo analítico de um período, movimento ou tendência
estética solicita. Por outro lado, no entanto, uma parte substancial das teorias do s-moderno
põe em questão justamente a idéia ou a noção causalista de historiografia que se fundou sobre
as bases do pensamento positivista de fins do século XIX e que um filósofo da envergadura de
Nietzsche, por exemplo, criticava por transformar a história numa espécie de
monumentalidade absoluta, certa, estanque e compartimentada, ignorando o fato de que os
discursos historiográficos se organizam a partir das escolhas e manipulações do historiador,
que ordena os acontecimentos e acaba por criar a ilusão de que os grandes eventos hisricos
se sucedem numa cronologia determinada, sem grandes rupturas, cisões ou descontinuidades.
Nesse sentido, é preciso assumir os riscos que um diálogo crítico tão próximo de seu
objeto pode suscitar. Afinal, interrogar-se sobre a natureza ficcional do discurso pós-moderno
exige um olhar analítico que seja capaz, a um tempo, de se orientar pelos múltiplos
caminhos que a difusão de teorias, comentários, leituras e discussões acerca da pós-
modernidade e suas várias faces faz circular, e a própria constituão dos discursos pós-
modernos, que se firmam a partir de recursos estilísticos e estéticos que se fundam nas
dissimulações e impasses dos jogos de linguagem, nas experimentações formais, que se
reapropriam de uma série de elementos tomados de empréstimo das mais diferentes tradições
literárias, como a sátira, a digressão e a ironia do romance oitocentista inglês ou a colagem, o
pluriperspectivismo, a fragmentação discursiva e a paródia dos primeiros modernistas do
280
início do século XX, por exemplo, na disseminação de sentidos e no modo como problematiza
questões centrais à teoria dos gêneros e da criação literária, como a noção de autoria, de
verdade ficcional, de sujeito discursivo, de referencialidade ou de representação estética.
Entre todos os caracteres que compõem, organizam, estruturam e determinam a
natureza ficcional do discurso s-moderno, a idéia de representação é a que se coloca de
forma mais contundente e problemática. Sob muitos aspectos, a relação nada amistosa ou
natural entre a linguagem e o mundo, entre as palavras e as coisas, entre o pensamento e o
objeto, mas, sobretudo, entre aquilo que se quer dizer e o que, de fato, se diz avulta como a
dimensão central da literatura pós-moderna. É como se, de repente, o grande projeto literário
pós-moderno fosse o de solapar uma determinada idéia de representação que circulou, com
força e precedência inegável, entre os melhores representantes da literatura realista de fins do
século XIX, por exemplo, que acreditavam seriamente na capacidade da linguagem em tocar a
superfície concreta do mundo, da realidade, das coisas, do próprio pensamento, e reduzi-los às
fronteiras do discurso, afirmando-os sem equívocos, rearticulando-os de forma objetiva e
transparente por meio da palavra e do conceito, crentes de que a narrativa era de fato capaz de
presentificar a imagem, a idéia, a referência conceitual de um objeto, um indivíduo ou uma
determinada realidade social e histórica exterior à consciência e à própria linguagem:
―Deus‖, disse Barth, o era mau romancista; pena que tenha sido um realista‖.
John Barth talvez seja hoje o mais vigoroso e influente ficcionista americano. Sua
boutade, com os verbos no passado, sublinha os expoentes da parte bendita
risonhamente negada pelo pós-modernismo em literatura. Antes de mais nada, Deus,
ou qualquer outro grande referente tipo História, Natureza, Conhecimento são
liquidados como abonadores da ordem ou de um sentido para o universo e a vida; e
em seguida é anulado o realismo, a mais cara das convenções literárias, com sua
de sapateiro numa realidade objetiva que seria singelamente captada na linguagem
por um sujeito-narrador atento e forte, em franca afinidade com as coisas.
(SANTOS, 1995, p. 59)
66
66
SANTOS, Jair Ferreira dos. Barth, Pynchon e outras absurdetes‖. In: Oliveira, Roberto Cardoso de (et al.).
s-Modernidade, Campinas-SP: Editora da UNICAMP, 1995.
281
A narrativa pós-moderna pressupõe, então, um jogo com as formas e os princípios
estéticos da tradição literária com o objetivo de deslegitimar as convenções que cercam os
grandes modelos narrativos do passado e apresentar uma nova percepção não só do fenômeno
literário em si mesmo, mas da própria episteme a partir da qual eles, de certa forma, derivam.
Sim, porque não podemos pensar nos modelos e pressupostos narrativos realistas sem levar
em conta o fato de que eles se articularam, nas obras de alguns dos mais significativos
escritores do final do século XIX, como Flaubert, Zola ou Eça de Queirós, por exemplo, em
função de uma epistemologia que se formara calcada, sobretudo, nos ideais cientificistas que a
lógica materialista-positivista do período fizera circular. Assim, a literatura de fins do século
XIX partilhou declaradamente dos saberes científicos que serviam, sob muitos aspectos, como
paradigma de conhecimento e racionalidade do período. Desse modo, a narrativa realista se
fundamentava, de um lado, naquele ideal teleológico, causalista, francamente tomado à
ciência e à filosofia da época, e, de outro, na crença de que era possível conceber uma obra
totalizante, em que a realidade, o espaço social, o homem, seu comportamento, sua psicologia,
suas relações interpessoais, bem como as determinações entre sujeito e sociedade, fossem
reduzidos aos limites do discurso.
De certa forma, não parece um contra-senso afirmar que a epistemologia cientificista
de fins do culo XIX foi o grade mito ordenador do romance realista assim como o
entendemos hoje e esse mito está diretamente ligado à certeza de que esse mesmo discurso
teleológico e causalista, monumental e totalizante, era capaz de criar um sentido final
igualmente grandioso, racionalizado, pleno, em que a suposta verdade do mundo
transpareceria perfeitamente adequada à verdade da obra, que a narrativa engendraria por
meio de sua adesão incondicional à crença no valor referencial da linguagem. Nesse sentido, a
crença realista na representação emanava da idéia de que a lógica causal dos acontecimentos,
bem como seu rigoroso encadeamento no interior do discurso, era a única forma de refletir
282
uma realidade em que os eventos sociais, históricos, políticos, comportamentais e etc. se
davam de forma igualmente gica e causal. As grandes narrativas dos principais
modernismos, europeus e americanos, que afloraram nas décadas iniciais do século XX,
foram as primeiras a ensaiar um rompimento drástico e violento com a ideologia estética
realista.
Romances como Ulisses, de James Joyce, o Homem sem Qualidades, de Robert Musil,
O Som e a Fúria, de Willian Faulkner, Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, ou
mesmo Nadja, de André Breton, sobre o qual nos debruçamos com atenção, encontram seu
grande mérito no fato de terem abalado os modelos narrativos dos séculos que os precederam,
propondo uma percepção do mundo, da realidade e da própria linguagem a partir dos signos
da modernização técnica, da racionalidade instrumental, da fragmentação discursiva, da
representação estilhaçada do sujeito e do espaço sócio-político em que este circulava,
rompendo com as noções enraizadas de causalismo, totalidade, referencial ou unidade do
mundo e do indivíduo, que tomaram conta do pensamento até fins do século XIX. Já não se
trata, então, de representar o mundo, as coisas ou o homem em sua totalidade ilusionada ou
ilusória, mas de apresentá-los por meio de uma forma narrativa que seja tão instável quanto à
realidade em que ela está inserida e que motiva sua resistência. A problemática central do
modernismo está ligada ao fato de que, ao romper com a ideologia representacional do
realismo, ele trocou a utopia discursiva de uma totalidade causal, de uma sociedade ordenada
e de uma realidade referencial absoluta, na qual o ser se encontra e a partir da qual se afirma,
pela utopia do ser feito linguagem, da vida feita arte, da experiência humana tornada
experiência estética, como sonharam os surrealistas, por exemplo.
De acordo com essa nova utopia, os modernismos, de forma geral, fizeram dos
movimentos de vanguarda sua pedra fundamental, seu lugar-tenente, reconhecendo que estas
tiveram um papel decisivo na destruição de uma ditadura da representação realista, segundo
283
os cânones autoritários das ―belas artes‖‖ (SEVCENKO, 1995, p. 52)
67
. Isso quer dizer que o
projeto estético modernista foi arquitetado, no espaço da própria manifestação artística, a
partir de uma posição de denúncia das artificialidades, insuficiências e limitações dos modelos
narrativos realistas, que eles julgavam incapazes de refletir e representar um novo mundo,
uma nova realidade, sempre em profunda transformação, em constante ebulição, pronta a
explodir numa nova carga de originalidade, estranheza, novidade, em que os valores
humanos, as conquistas sociais e políticas, as revoluções culturais e estéticas se firmavam sob
o signo da auto-superação. Contra o primado da representação realista e a sua adesão a um
discurso teleológico, totalizante e causalista, engendrada a partir dos modelos narrativos
tomados de empréstimo aos discursos da filosofia e das ciências naturais, os modernistas
encontram nas vanguardas um ―caminho para o questionamento da suposta autonomia da arte,
expuseram e tematizaram os artifícios da composição e exigiram a liberdade radical da
imaginação criadora‖ (SEVCENKO, 1995, p. 52), sendo que tal liberdade instaura o ideal de
que é possível criar um novo homem mais justo, mais coerente, mais livre, enfim, mais de
acordo com os valores da modernidade a partir de uma arte nova, modelada sobre o conceito
de transitoriedade que assinala as experiências modernas.
O problema, então, é considerar que as revoluções, os ataques e as convulsões
transformadoras anunciadas pelas vanguardas fiavam-se, sobretudo, na tese (instaurada pelo
Iluminismo francês) de um projeto de modernidade calcada na racionalidade, no domínio
67
SEVCENKO, Nicolau. O Enigma Pós-Moderno. In: Oliveira, Roberto Cardoso de (et al.). s-
Modernidade, Campinas-SP: Editora da UNICAMP, 1995. O artigo de Sevcenko desenvolve, com a fineza e a
argúcia críticas que lhes são características, uma análise concisa, e não por isso superficial, das relações entre a
modernidade, os movimentos de vanguarda e o fenômeno pós-moderno. Partindo das Teses Sobre a Filosofia da
História, de Walter Benjamin, e de uma exegese rigorosa do texto benjaminiano e do quadro Angelus Novus, de
Paul Klee, que serve como fio condutor da leitura da história feita por Benjamin, Sevcenko irá discutir o papel da
história o como fonte ordenadora e precisa dos grandes eventos humanos, sociais, políticos e estéticos, mas
eminentemente como o espaço de uma catástrofe sempre e eternamente anunciada, que, o mais desesperador e
aflitivo, acaba mesmo por se realizar. Essa linha de raciocínio proposta por Benjamin e demonstrada por
Sevcenko está perfeitamente integrada às desilusões do primeiro em relação à crença na racionalidade que o
projeto vanguardista levou a efeito, que ele vira como a grande salvaguarda da modernidade em relação à
barbárie, sobretudo em seu ensaio O Surrealismo como o último instantâneo da inteligência européia. Nesse
sentido, Sevcenko percebe o fenômeno pós-moderno, e sua reação às vanguardas, como uma forma de
questionar as ilusões da racionalidade técnica, instrumental, planejada que, em última análise, conduziu a
humanidade aos impasses, às catástrofes às grandes tragédias de que o século XX foi o palco.
284
técnico, na instrumentalização do saber e do conhecimento como o único caminho possível
para a concepção de uma sociedade verdadeiramente livre, justa e civilizada. Nesse sentido,
elas teriam apenas substituído, como aponta Sevcenko, a tirania do bom gosto‖ burguês,
pela da ―utopia compulsória‖ da razão planejada e do maquinismo‖ (p. 52), o que fez com que
os artistas do modernismo trocassem o mito de uma narrativa calcada na episteme
cientificista, ordenadora, teleológica, em busca de um sentido final, pleno, fechado, causal,
dos realistas, pelo mito do progresso, da evolução, da transformação, da novidade, que se
manifesta ao sujeito como uma epifania, como uma grande revelação, como fonte mesma da
existência, a partir de um discurso tão fragmentado e estilhaçado quanto a própria realidade
vivida e experimenta pelo sujeito moderno, realidade esta que não pode ser reduzida às
fronteiras do discurso e que este se nega a incorporar senão pela perspectiva da cisão, da
ruptura e da descontinuidade que se interpõem entre o conhecimento do mundo, de um lado, e
da linguagem, de outro, como duas instâncias decisivas do processo de representação, embora
fadadas a nunca se tocar.
Em uma outra oportunidade
68
, chamamos esse impasse, esse distanciamento entre
conhecimento do mundo e representação do mundo, de condição de Tântalos, numa referência
ao rei lídio que, para pôr à prova a onisciência divina, serviu seus próprios filhos aos deuses
em um grande banquete. Ao ser descoberto, foi punido com o castigo de, no Hades, sofrer
uma eternidade inteira de fome e sede mesmo estando cercado de frutos, que somem com o
vento, e imerso até o colo em água, que desaparece sob a terra, sempre que os ameaça tocar:
Essa condição de Tântalos revela, secretamente, essa relação da linguagem com o
mundo: relação de proximidade e afastamento, dispersão e transfiguração. [...] A
linguagem coloca-nos o mesmo impasse do qual o rei ntalos o pode escapar:
sabemos que o mundo está ali, ao contato das mãos, ao alcance do olhar, passível de
ser revertido em sons, palavras, signos e sentidos, mas que sua representação, pela
linguagem, o é e nem pode ser esse mesmo mundo, por isso seus contornos
68
SCHEEL, Márcio. O Fragmento Literário como Crítica: a Poiésis em Novalis. Dissertação de Mestrado
apresentada ao programa de pós-graduação em Estudos Literários da UNESP, campus da Faculdade de Ciências
e Letras de Araraquara, 2005.
285
fluídos nos fogem, como a água e os frutos do rei dio, no próprio processo de
representação. Querer que a linguagem seja o mundo é um ato de perdida
desatenção, de desastrosa perdição. Intermédio, a linguagem é o meio-caminho entre
o pensamento e o mundo; fio de Ariadne que nos liga ao tecido do mundo ao mesmo
tempo em que nos enreda - e a essa realidade de seres e coisas - no novelo de
sentimentos e sensações de que somos feitos, de que são feitas todas as criaturas, de
que se constrói o próprio pensamento. (SCHEEL, 2005, p. 93)
Com os escritores modernistas, a linguagem passa a ser não a matéria-prima da
obra literária, mas principalmente um veículo de contestação da velha ordem representacional
aberta pelos discursos de fins do século XIX. Tal contestação busca ressaltar um aspecto da
discursividade, notadamente da discursividade narrativa, ficcional, decisivamente ignorado
pela maioria dos autores cuja herança literária advém dos modelos realistas de representação:
o fato de que a linguagem não é e nem poderia ser neutra, tocando o mundo, as coisas e as
idéias de forma objetiva, direta, imparcial, estabelecendo um conjunto sistemático de sentidos
que representariam a expressão de uma verdade exterior à própria linguagem. Ao contrário da
na verdade referencial realista, os modernistas irão propor a compreensão da linguagem
como o lugar do jogo significante, como o espaço da selão, da escolha, da montagem, do
desenho, em suma, da construção de uma verdade discursiva que é verificável quando nos
precipitamos nos interstícios da palavra, nas descontinuidades e disjunções que as formas
literárias estabelecem em relação a qualquer ordem referencial estabelecida a priori. Não se
trata, evidentemente, de romper com a verdade do mundo, das coisas ou da linguagem, mas de
entender que o discurso modernista solicita uma lógica de outra natureza que não mais aquela
relacional dos modelos realistas. A diferença, então, é que o modernismo põe em xeque o
suposto nexo causal entre os acontecimentos que orientariam a experiência narrativa, fazendo
da ruptura com a tradição, com o passado, com os modelos teleológicos de representação
estética, sua pedra de toque.
A tradão clássica do século XVIII e de boa parte do século XIX, tradição que
imperou nos domínios estéticos, científicos, filosóficos e epistemológicos, fundava-se sobre a
busca por uma construção discursiva em que predominava uma visão sistêmica, fechada e
286
totalizante do pensamento. Tanto a filosofia quanto a epistemologia clássica constituíram-se
na esteira de uma herança notadamente hegeliana, que exigia uma dialética forte, expositiva,
rigorosa, na qual realidade e pensamento formavam uma unidade absoluta na consciência do
sujeito, sendo que a idéia ocupava, aí, uma posição determinante:
A idéia é a unidade do conceito e da realidade; o conceito é a alma, e a realidade é o
envoltório corporal. O conceito realizado constitui a idéia. É esta a definição
abstrata. Mas enganar-se-ia quem imaginasse que o conceito e a realidade unidos na
idéia se neutralizam mutuamente como dois corpos químicos que, ao combinarem-
se, perdem as qualidades próprias de cada um deles. Não, o conceito é que decide
tudo. Na idéia, é ele que representa a unidade e desempenha, por isso, o papel
dominante. Ao unir-se-lhe na idéia, o conceito não faz qualquer concessão à
realidade porque já é, por si próprio e por força da sua natureza, uma unidade; de si
próprio engendra a realidade pela qual e na qual prossegue a o seu desenvolvimento,
sem deixar de permanecer idêntico a si próprio, sem nada ceder da sua essência.
(HEGEL, 2000, p. 128)
69
Hegel é um dos principais representantes do Idealismo Absoluto alemão e foi ele
quem s em circulação a noção metafísica de que são as idéias que, em última instância,
fundam a realidade. Para tanto, desenvolveu uma dialética totalizante e teleológica, que
privilegiava a criação de um sistema fechado de pensamento, capaz de promover, de forma
rigorosa, essa síntese desejada e proposta. Foi justamente por esse ideal de sistema, essa busca
por uma forma totalizante e integradora do pensamento e da idéia que fundam a realidade que
Hegel se tornou um dos maiores combatentes da aventura poética e filosófica aberta pelos
primeiros românticos alemães e sua busca pela conciliação entre poesia e filosofia por meio
do fragmento literário, que desarticula ou torna impossível qualquer forma sistemática e
teleológica de representação do pensamento. Hegel propõe o inverso dos românticos, faz um
caminho contrário ao propor o resgate do classicismo greco-latino como um modelo
sistêmico, a monumentalidade greco-latina, a transcentalidade da arte greco-latina. Hegel
rejeita o niilismo romântico, que se afirma como abertura para um processo de negação,
rejeição, ruptura e descontinuidade em relação aos modelos e paradigmas formais
estabelecidos pelo pensamento clássico.
69
HEGEL. Estética A Idéia e o Ideal. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2000.
287
Assim, contrariando Hegel, é preciso lembrar que a floração de um conjunto
extremamente importante de estudos acerca da natureza da escritura fragmentária, nas últimas
décadas do século XX, mais especificamente dos anos 70 até hoje, não é algo ocasional ou
gratuito, mas, ao contrário, parte de um interesse teórico e crítico legítimo: é justamente a
partir dos nos 70 que se desenvolveram as análises mais acuradas e atentas a respeito do
fenômeno s-moderno como uma nova forma de pensar o mundo, a realidade, a cultura, o
indivíduo, a sociedade e a arte contemporânea em seus ltiplos e mais diversos aspectos.
Nesse sentido, o que muitos teóricos da literatura ou filósofos da linguagem constataram é que
a fragmentação discursiva parece ser uma condição inerente a esse momento da história do
pensamento ocidental em que as certezas se volatilizam e a aporia emerge como parte do
processo de compreensão e entendimento de uma realidade que já o pode ser reduzida à
estruturas teóricas mais ou menos definidas ou definitivas, inquestionáveis ou absolutamente
assertivas, porque a própria experiência humana acabou por se partir sob o peso de uma série
de revisionismos filosóficos, estéticos, sociológicos, hisricos e ideológicos que passaram a
questionar não apenas a legitimidade dos discursos e do pensamento totalizante, teleológico,
que caracterizou, por exemplo, a explicação materialista-dialética da sociedade a partir da
herança marxista, mas também a grande tradição filosófica, que fez da metafísica a única via
de acesso ao ser, e que foi desarticulada, sobretudo, por Gianni Vattimo e Jacques Derrida a
partir das leituras que ambos fizeram de Heidegger e Nietzsche.
O que esses estudos trazem de mais decisivo é o fato de que, ao buscarem localizar as
origens da experiência fragmentária da escritura contemporânea, fazem dos primeiros
românticos alemães o centro irradiador de um tipo de escrita, de um gênero original, de uma
forma de reflexão crítica, teórica, estética e filosófica o fragmento literário , que se
transformará na grande herança romântica à modernidade e que será retomado, de forma
ainda mais contundente, pelos autores do pós-modernismo. Tanto Schlegel quanto Novalis, os
288
alemães que se dedicaram o a teorizar sobre o processo de criação fragmentária, sobre o
fragmento literário, mas também conceber suas obras a partir desse mesmo processo,
aparecem nos estudos contemporâneos como a fonte inicial dessa escritura que significará,
para a modernidade, o rompimento com os velhos valores clássicos, com a noção de uma arte
sistemática, totalizante, herança do racionalismo Iluminista e sua crença no progresso, no
cientificismo, na instrumentalização do saber, ou seja, na técnica; e, para a s-modernidade,
uma forma de contestar, desde a estrutura formal do discurso, a capacidade da linguagem em
dizer, afirmar, representar um mundo, um sujeito e uma realidade prometéica, em constante e
irrefreável transformação.
Schlegel e Novalis buscavam uma nova forma de dar vazão às reflexões, pensamentos
e teorias acerca do fenômeno estético, literário e filosófico de seu tempo. Eles foram os
primeiros artistas e pensadores românticos a intuir a necessidade de encontrar uma forma de
expressão verdadeiramente nova, original, que fosse capaz de refletir seus impulsos
revolucionários e transformadores, fundamentados na idéia de cisão e ruptura com o passado
estético-filosófico a fim de produzir uma arte e um pensamento modernos, coerentes com a
nova filosofia e a nova percepção de mundo e de criação que o pensamento de Kant e Fichte
havia aberto. Nesse sentido, Schlegel e Novalis passam a reconhecer nas ruínas textuais
herdadas da cultura helenística antiga o caminho para conceber uma reflexão crítica e teórica,
artística e estética, cuja forma represente aquele ideal fichteano de um pensamento
incondicionado, livre, que se resolve a partir da afirmação do Eu-Absolto, da subjetividade
como princípio analítico, como fonte de percepção do fenômeno estético e ponto de partida
para o julgamento crítico.
É importante frisar que, para os primeiros românticos alemães, o fragmento literário é,
sobretudo, uma forma de expressar as novas concepções teóricas e críticas que vinham
desenvolvendo de acordo com as leituras que fizeram da obra de Kant, principalmente A
289
Estética Transcendental, primeira parte da Crítica da Razão Pura, e da Doutrina da Ciência,
de Fichte. Na esteira da filosofia fichtiana, que pregava a ntese do conhecimento do mundo,
da natureza e do real a partir da individualidade, da subjetividade, do Eu-Absoluto, Schlegel e
Novalis vão desenvolver um ideal de literatura que afirma a individualidade extremada da
obra literária, sua rigorosa unicidade, seu caráter sempre novo e original, afirmando que a
obra concebe sua própria natureza, como um reflexo fragmentado e parcial do mundo, e o,
como queriam os clássicos, é a representação totalizante da natureza. Desse modo, como
constatamos em nossa dissertação de mestrado:
É assim que os primeiros românticos vão conceber seu ideal de teoria da literatura: a
partir de pressupostos filosóficos que afirmam a individualidade, o pensar-se a si
mesmo fichteano que conduz à compreensão da obra de arte como uma realidade
que não pode ser tomada segundo modelos ou padrões determinados a priori,
porque a própria obra é uma realidade individual, única, unitária, que se desliga da
totalidade do mundo e que procura, a partir de sua própria singularidade, alcançar
uma totalidade em devir, que ainda não existe, que pode se configurar,
historicamente, em progresso, numa evolução incessante. Schlegel, por exemplo, irá
desenvolver a teoria de que a poesia romântica é uma ―poesia progressiva universal‖
pensando nas questões propostas por Fichte, transformando o pensar-se a si mesmo
numa reflexão filosófica incessante, reflexão que deve criar suas próprias formas,
condizentes com a proposta de infinitude que o gesto reflexionante demanda. O
fragmento literário, então, é uma dessas formas de expressão, um nero criado de
acordo com a afirmação de uma nova crítica, de uma nova teoria, de uma nova
forma de perceber a obra de arte. (SCHEEL, 2005, p. 21)
Outro fator importante em relação à influência dos românticos alemães sobre a
modernidade e a pós-modernidade está relacionado ao fato de que eles foram os primeiros a
conceber, de forma consistente, a idéia de que o discurso artístico deve ser capaz de pôr em
jogo suas próprias teorias e fazer sua autocrítica mais contundente. Sendo assim, eles
produziram o embrião das metanarrativas ou dos metadiscursos s-modernos, que se
fundamentam justamente no ideal de levar a literatura e a linguagem literária ao limite,
tensionando o discurso a ponto de romper com noções como as de representação,
verossimilhança, objetividade ou neutralidade, que caracterizam as grandes narrativas
surgidas no encalço do velho realismo, cuja ideologia dominante consistia na crença de que é
mesmo possível reduzir, de forma objetiva, lógica e relaciona, o mundo, a realidade, o espaço
290
social e o próprio indivíduo, às fronteiras da narrativa. O discurso s-moderno, ao revelar
sua condição de construto, de experiência estética e retórica, permite ao interlocutor
estabelecer um diálogo da ordem da intervenção crítica, da dúvida, do questionamento,
reconhecendo o impasse ao qual está condenado: continuar a leitura, seguir adiante, página
por página, certo de que o solo da ilusão referencial já não existe, de que a obra trata, antes de
tudo, de si mesma, de que sua verdade é o produto de uma entre tantas formas de
representação. Para Schlegel e Novalis, a totalidade existe em devir, enquanto projeto,
resultado de um universo de idéias que se aproximam, fragmentariamente, como promessa
futura. Deles, a pós-modernidade herdará a escritura fragmentária não como promessa de uma
verdade total, plena, absoluta, de um sistema ou uma totalidade em devir, como o idealismo
dos românticos afirmava, mas sim como uma forma de contestar, de dentro da escritura, as
certezas incontornáveis que as grandes narrativas como denominou Lyotard fizeram
circular.
Em L’écriture fragmentaire Definitions et enjeux, Françoise Susini-Anastopoulos
realiza um estudo teórico acerca da escritura fragmentária, do fenômeno da fragmentação,
desde o fim do século XVIII até a contemporaneidade. A abordagem da autora passa pelo que
ela chama da consciência de alguns autores em relação aos hiatos entre a intenção da obra e a
possibilidade de sua realização
70
(1997, p. 7). Do fragmento como ―não-obra‖ às questões
psicológicas e formais da fragmentação, passando pelas relações estabelecidas entre o
fragmento e o sistema, a descontinuidade formal e a sistematização do pensamento, a
professora francesa traça um painel genético, teórico, crítico e estético da escritura
fragmentária enquanto opção e manifestação consciente dos limites da palavra, do discurso, e
da busca promovida pelos autores para superar esses mesmos limites, para forçar a escritura a
romper as fronteiras pré-determinadas dos neros e das formas textuais consagradas. Assim,
70
“... l’hiatus entre l’intention de l’oeuvre et la possibilite de as réalisation”.
291
a autora aproxima a abordagem conceitual acerca do fragmento da noção mesma de obra em
construção, cuja abordagem teórica oscila entre a contestação e a apologia do gesto
fragmentário. Essa visão da escritura fragmentária lembra muito a das teorias de Schlegel e de
Novalis acerca do fragmento literário como uma obra em devir, incessante, incondicionada,
livre como o próprio gesto reflexionante, e não deixa, também, de se aproximar das definições
de Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy, em L’ Absolu Littéraire, segundo a qual o
fragmento é o tipo de obra que aponta sempre para seu próprio inacabamento.
Na modernidade e no alto modernismo, entretanto, mesmo que o mundo e o indivíduo
fossem concebidos como realidades fragmentadas, partidas, dispersas, ainda havia a crença
segundo a qual as diferentes manifestações artísticas e os diferentes discursos produzidos pelo
homem preservavam um núcleo de saber indevassável, capaz de captar, definir e justificar a
condição humana; um centro fixo de conhecimentos e certezas sobre os quais os grandes
mitos modernos como o da identidade, do sujeito, do Outro, explorados à exaustão pelos
escritores modernistas, assim como o da fusão entre atitude estética e existencial que geraria
uma arte orgânica, viva, pulsante, defendida pelos surrealistas, por exemplo erigiam seus
significados simbólicos pelos quais a crítica e a teoria podiam transitar de forma mais ou
menos confortável (não sem conflitos, é certo) que os artistas modernos fraturavam as
formas narrativas, mas ainda lutavam para manter intactas as noções de sentido e imanência
da arte. Tais noções são preservadas porque as narrativas modernas sustentam e afirmam, sob
muitos aspectos, a lógica em um discurso que, ainda que fragmentado, busca uma verdade
teleológica, causal, totalizante. Na pós-modernidade, a fragmentação discursiva rompe
definitivamente com a idéia de um sentido final, certo e determinado, de uma verdade lógico-
simbólica que se pode extrair do conjunto estrutural das grandes narrativas monumentais e
como negar, por exemplo, que Ulisses, de James Joyce, O Homem Sem Qualidades, de Robert
Musil ou o Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, não representem esse ideal
292
artístico moderno? porque prescinde da noção de um sentido final em nome do caráter
polissêmico, incerto, radicalmente indecidível que a escritura põe em cena e faz circular a
partir de sua própria fragmentação.
Trata-se, então, de pensar que as narrativas pós-modernas deslocam seu olhar do
monumental e totalizante para o singular e excêntrico, como afirma Matei Calinescu em
Introductory Remarks: Postmodernism, the Mimetic and Theatrical Fallacies
71
:
A modernidade, afirma Lyotard, legitima o conhecimento recorrendo aos grandes
cenários narrativos ou ―grandes narrativas(a grande história de esclarecimento e
emancipação da Revolução Francesa, a dialética hegeliana de auto-realização do
Espírito, as narrativas político-econômicas clássicas da riqueza das nações, a visão
marxista do proletariado criando uma sociedade ―transparente‖ ou sem classes). Em
nosso tempo, ninguém acredita mais nessas ―grandes narrativas‖ filosóficas e a pós-
modernidade legitimidade ao conhecimento apenas por meio das pequenas,
locais, paradoxais e paralógicas ―narrativas‖. (1990, p. 5. Tradução nossa)
72
A pós-modernidade assume uma atitude tão questionadora quanto boa parte do
pensamento, da arte e da literatura produzida pela melhor tradição modernista. A diferença é
que ela já não crê nas velhas certezas instituídas pelo humanismo liberal e, ao invés de
simplesmente buscar novas formas de expressão, como a modernidade o fez, para dizer a crise
do pensamento contemporâneo, ela busca, também, desarticular a idéia de representação
totalizante do mundo, do sujeito, da sociedade e do real. Já o se trata mais de buscar a
verdade simbólica que possa dar forma ao mundo e justificar a condição humana, revelada a
partir das grandes (e muitas vezes irônicas) epifanias modernas pensemos, por exemplo, no
yes orgasmático de Molly Bloom, signo ao mesmo tempo da liberdade e da culpa, nas últimas
linhas da epopéia sem heis, virtudes ou ethos mais ou menos definidos de James Joyce ou
da força dos grandes mitos inabaláveis como a história, a política, a economia e o progresso,
71
In: Exploring Postmodernism. Org: Matei Calinescu and Douwe Fokkema. Amsterdam/Philadelphia: John
Benjamins Publishing Company, 1990.
72
Calinescu, 1990, p. 5: ―Modernity, Lyotard claims, legitimated knowledge by resorting to great narrative
scenarios or ―grands récits‖ (the French Revolution‘s grand story of enlightenment and emancipation, the
Hegelian dialectic of the self-realization of Geist, the classical political economy‘s narrative of the wealth of
nations, the Marxist vision of the proletariat bringing about a classless or ―transparent‖ society). In our time no
one believes in such philosophical ―grands récits‖ and postmodernity gives legitimacy to knowledge only by
means of small, local, paradoxical, paralogical ―récits‖.‖
293
que Musil transforma nos verdadeiros personagens de O Homem Sem Qualidades que o
modernismo procurou afirmar. O que está em jogo, na pós-modernidade, é justamente a
noção de que essas formas simbólicas nada mais são do que construtos históricos nascidos da
filosofia, das ciências, do pensamento e da cultura, e que cada época os vivencia como parte
de uma verdade epistemológica que não se deixa apreender de todo:
Na verdade, a oposição de Lyotard entre modernidade e pós-modernidade, vista
dentro do corpus de seu trabalho filosófico, é apenas um outro modo de personificar
o eterno conflito entre Ahriman (a dominação, a capital, o ímpeto aquisitivo, o
desejo de infinito, o domínio, o controle, a riqueza) e Ormazd (o desejo de
op'acidade, a paralogia, a não-comunicação, a autonomia, a busca figural‖ e
―desconstrutiva‖ das ―incomensurabilidades‖). Modernidade seria então um
sinônimo para a estranha noção de capitalismo intemporal de Lyotard, enquanto o
pós-modernismo seria a personificação igualmente intemporal de um desejo de
liberdade e justiça. Seja o que for, muitos críticos literários entendem ou
felizmente não entendem o pós-modernismo de Lyotard como um construto
essencialmente histórico, ignorando as recônditas, tortuosas e essencialmente
absurdas escoras tico-filosóficas. Isto foi possível porque os insights diretamente
históricos permitidos pelo conceito de Lyotard pareceram interessantes e agradáveis
quando tomados independentemente de sua complexa e finalmente confusa estrutura
maniqueísta. (1995, p. 5-6. Tradução nossa)
Desse modo, os grandes discursos ou as grandes narrativas modernas são concebidos a
partir de um conjunto de estratégias discursivas que lançam mão dessas formas simbólicas de
expressão, que o são mais do que categorias hisricas definidas e estanques as quais os
homens recorrem para representar a si mesmos e ao mundo no qual estão inseridos, para
tornar legítimas suas perspectivas ideológicas, políticas, estéticas ou culturais. O que a s-
modernidade faz, então, é colocar em xeque a noção de verdade simbólica, assim como a
própria noção de representação. A linguagem já não seria capaz de abarcar o mundo, o
homem, as coisas, o ser, a sociedade e, em última instância, o real, em seus aspectos mais
contraditórios, estranhos e excêntricos. E, dada essa incapacidade, nada mais coerente que
revelar, expor, ironizar, cindir e fragmentar cada vez mais esse brinquedo de armar em que o
discurso, na s-modernidade, acaba por se transformar. A diferença essencial entre o
discurso modernista e o s-modernista é que este último evidencia seu caráter francamente
tangível, manipulável, flexível, revelando sua constituição mais íntima e colocando sob
294
suspeita sua capacidade de dizer, afirmar, representar ou sequer descrever o mundo, os seres e
as coisas, o que dizer, então, do Eu, do Outro, da subjetividade, da memória, da história e de
tantos outros referenciais teóricos igualmente complexos e incontornavelmente contraditórios
e incertos. Na pós-modernidade, as grandes formas simbólicas de representação não
constituem, necessariamente, uma verdade universal, teleológica e inquestionável, mas, ao
contrário, são tão sujeitas à crítica, à análise, ao questionamento e à suspeição quanto
qualquer referência instituída.
295
Referências Bibliográficas
ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999.
BACHELARD, Gaston. A Poética do Devaneio. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
BARTH, John. A Ópera Flutuante. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
BARTHES, R. O Rumor da Língua. o Paulo: Martins Fontes, 2004.
BAUDELAIRE, C. O Pintor da Vida Moderna. In: Sobre a Modernidade. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1996, p. 10.
BAUDRILLARD, Jean. A Transparência do Mal. Ensaios Sobre os Fenômenos
Extremos. 9ª edição Campinas, SP: Papirus, 2006.
______. Simulacros e Simulações. Lisboa: Relógio d‘Água, 1981.
BENJAMIN, Walter. O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão. Trad. Apr. e
Notas de Márcio Seligmann-Silva. 2ª edição. São Paulo: Editora Iluminuras, 1999.
______. Obras Escolhidas Volume I. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
______. Obras Escolhidas Volume III. Charles Baudelaire: Um Lírico no Auge do
Capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1991.
BERMAN, Antoine. A Prova do Estrangeiro. Bauru, SP: EDUSC, 2002.
BLANCHOT, Maurice. A Conversa Infinita A Experiência Limite. (V. 2). São Paulo:
Escuta, 2007.
______. A Conversa Infinita: A Palavra Plural. (V. 1). São Paulo: Escuta, 2001.
296
BOBBIO, Norberto. O Tempo da Memória: De senectude e outros escritos
autobiográficos. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
BORGES, Jorge Luis. Obras Completas III. São Paulo: Globo, 1999, p. 89
BRETON, André. Primeiro Manifesto (Trad. Cudio Willer). In: Willer, Cláudio.
Manifestos do Surrealismo. São Paulo: Editora Brasiliense, s/d.
______. Nadja. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1999.
CALINESCU, Matei. As 5 Faces da Modernidade. Lisboa: Editora Veja, 1999.
CAMPBELL, Joseph (org.) Mitos, Sonhos e Religião. Rio de Janeiro: Ediouro.
COMPAGNON, A. O Demônio da Teoria. Literatura e Senso Comum. Belo Horizonte:
Editora da UFMG, 2003.
______. Os Cinco Paradoxos da Modernidade. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999.
COSTA LIMA, Luiz. Limites da Voz. Montaigne, Schlegel, Kafka. 2ª edição. Rio de
Janeiro: Topbooks, 2005.
______. Mímesis e Modernidade: Formas das Sombras. 2° edição. São Paulo: Paz e Terra,
2003
______. Mímesis: Desafio ao Pensamento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
DE MAN, P. Alegorias da Leitura. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
DOCTOROW, E. L. O Livro de Daniel. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1971.
DOLEZEL, Lubomir. Mímesis y Mundo Posibles. In: Teorias de la Ficción Literatira. (Org.
Intr. E Bibl.) Domínguez, Antonio Garrido. Madri: Arco/Libros, 1997.
EAGLETON, Terry. As Ilusões do Pós-Modernismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1998.
297
______. A Ideologia da Estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.
ELIAS, Camelia. The Fragment. Towards a History and Poetics of a Performative
Genre. Berna: Peter Lang AG Publishers, 2004.
FERNANDES, Maria Lúcia Outeiro. O tempo do clichê e a estética do olhar na ficção
contemporânea. In: Ipotesi. Revista de estudos literários, 2001, V. 5. N.1. Juiz de Fora.
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas: Uma Arqueologia das Ciências Humanas.
8° edão. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
GUINSBURG, J.; BARBOSA Ana Mãe (Org.). O Pós-modernismo. o Paulo: Perspectiva,
2005.
______. (org.) O Romantismo. São Paulo: Perspectiva, 1978.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
HEGEL. Estética. O Belo Artístico ou o Ideal. In: Os Pensadores. São Paulo: Nova
Cultural, 2000.
HEISE, Eloá (org.). Fundadores da Modernidade na Literatura Alemã. o Paulo:
FFLCH-USP, 1994.
HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991.
JAGUARIBE, B. O Choque do Real: Estética, Mídia e Cultura. Rio de Janeiro: Editora
Rocco, 2007.
JAMESON, Fredric. A Virada Cultural: Reflexões sobre o Pós-Modernismo. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
______. Espaço e Imagem: Teorias do Pós-Modernismo e Outros Ensaios. Organização e
Tradução de Ana Lúcia de Almeida Gazzola. 3° edição. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004.
______. Pós-Modernismo. A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. edição. São
Paulo: Editora Ática, 2007.
298
KAPLAN, E. Ann (Org.) O Mal-Estar no Pós-Modernismo. Teorias e Práticas. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.
KESTLER, Izabela Maria Furtado. Friedrich Schiller X Friedrich Schlegel: Confrontos E
Convergências Em Torno Da Fundamentação Da Modernidade. Anais do Encontro
Regional da ABRALIC Literatura, Artes, Saberes. USP, São Paulo, 2007. Disponível em
<http://www.abralic.org.br/enc2007/anais/53/94.pdf>. Acesso em 06 de abril de 2009.
LACOUE-LABARTHE, P. e NANCY, J-L. A Exigência Fragmentária. Revista Terceira
Margem. Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura. Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Centro de Letras e Artes, Faculdade de Letras, Pós-Graduação,
Ano IX, nº 10, 2004, p. 66-94.
LYON, David. s-Modernidade. São Paulo: Paulus, 1998.
LYOTARD, Jean-François. O Inumano: Considerações sobre o Tempo. 2° edão. Lisboa:
Editorial Estampa, 1997.
______. O Pós-Moderno. Rio de Janeiro : José Olympio, 1990.
______. O Pós-Moderno Explicado às Crianças. Lisboa : Publicações Dom Quixote, 1987.
MACIEL, Maria Esther. Vôo Transverso. Poesia, Modernidade e Fim do Século XX. Rio
de Janeiro: Sette Letras, 1999.
MAFFESOLI, Michel. Notas sobre a Pós-Modernidade: O Lugar Faz o Elo. Rio de
Janeiro: Editora Atlântica, 2004.
MICHELI, Mario de. As Vanguardas Artísticas. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
MIRANDA, Paulo José. Vício. Lisboa: Edições Cotovia, 2001.
MOISÉS, Massaud. Presença da Literatura Portuguesa III. São Paulo: Difusão Européia
do Livro, 1967.
299
MORETTO, Fulvia M. L. Os Arcanos da Poesia Surrealista. In: Letras Francesas. Estudos
de Literatura. São Paulo: Editora Unesp, 1994.
NESTROVISKI, Arthur e SELIGMANN-SILVA, Márcio. Catástrofe e Representação. São
Paulo : Escuta, 2000.
NOVALIS. Pólen. o Paulo: Editora Iluminuras, 2001, 2ª edição.
______. Hinos à Noite. Tradução, selão, introdução e notas de Nilton N. Okamoto e Paulo
Allegrini. Mairiporã, SP: Esfinge, 1987, p. 14.
NUNES, Benedito. A Visão Romântica. In: GUINSBURG, J. (Org.). O Romantismo. São
Paulo: Editora Perspectiva, 1978.
PAZ, Octávio. André Breton ou A Busca do Início. In: Signos em Rotação. São Paulo:
Perspectiva, 1996.
______. Ambigüidade do Romance. In: Signos em Rotação. São Paulo: Perspectiva, 1996.
______. Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1984.
PECORARO, Rossano. Niilismo e (Pós) Modernidade: Introdução ao “Pensamento
Fraco” de Gianni Vattimo. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio: São Paulo: Editora Loyola,
2005.
PEREC, Georges. W ou a memória da infância. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
PLATÃO. A República. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2000.
RAYMOND, Marcel. De Baudelaire ao Surrealismo. São Paulo: Edusp, 1997.
REVISTA DE LITERATURA Forma Breve. O Fragmento. Universidade de Aveiro, 4,
2006.
ROBERT, Marthe. Romance das Origens, Origens do Romance. São Paulo: Cosac Naify,
2007.
300
ROSENFELD, A. e Guinsburg, J. Romantismo e Classicismo. In: O Romantismo.
Organização de Guinsburg, J. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978.
SCHEEL, Márcio. O Fragmento Literário como Crítica: a Poiésis em Novalis. Dissertação
de Mestrado apresentada ao programa de s-graduação em Estudos Literários da UNESP,
campus da Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, 2005.
SCHILLER, F. Poesia Ingênua e Sentimental. Trad. Apr. e Notas de Márcio Suzuki. São
Paulo: Editora Iluminuras, 1991.
SCHLEGEL, Friedrich. O Dialeto dos Fragmentos. Tradução, apresentação e notas de
Marcio Suzuki. São Paulo: Editora Iluminuras, 1997.
______. Conversa sobre a Poesia e Outros Fragmentos. o Paulo: Iluminuras, 1994
SELIGMANN-SILVA, Márcio. (org). Leituras de Walter Benjamin. 2° edição. São Paulo:
FAPESP: Annablume, 2007.
______. Palavra e Imagem: Memória e Escritura. Chapecó: Argos, 2006.
______. O Local da Diferença: Ensaios sobre Memória, Arte, Literatura e Tradução.
São Paulo: Editora 34, 2005.
______. (org) História, Memória, Literatura O Testemunho na Era das Catástrofes.
Campinas: Editora UNICAMP, 2003.
______. Ler o Livro do Mundo. Walter Benjamin: Romantismo e Crítica Poética. São
Paulo: Fapesp/ Iluminuras, 1999.
STIRNIMANN, Victor-Pierre (trad.). Conversa Sobre a Poesia. o Paulo: Editora
Iluminuras, 1994, p. 103
SUSINI-ANASTOPOULOS, Françoise. L’écriture fragmentaire. Définitions et enjeux.
Paris: PUF, 1997.
SUZUKI, Márcio. O Gênio Romântico: Crítica e História em Friedrich Schlegel. São
Paulo: Editora Iluminuras, 1998.
301
TADIÉ, Jean-Yves. Le récit poétique. Paris: Gallimard, 1997.
VATTIMO, Gianni. O Fim da Modernidade; Niilismo e Hermenêutica na Cultura Pós-
Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
VILLAÇA, N. Paradoxos do Pós-Moderno. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996.
WILLER, Cláudio. Manifestos do Surrealismo. São Paulo: Editora Brasiliense, s/d.
302
Bibliografia Complementar
BAUDRILLARD, Jean. O Sistema dos Objetos. Debates Semiologia. São Paulo:
Perspectiva, 2004.
BAUMAN, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1998.
BÜRGER, Peter. Teoria da Vanguarda. Lisboa: Vega, s/d.
CASSIRER, Ernst. Linguagem e Mito. Debates Filosofia. São Paulo: Perspectiva, 2006.
CHALUB, Samira (Org.). s-Moderno & Artes Plásticas, Cultura, Literatura,
Psicanálise, Semiótica. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1994.
CUADRADO, Perfecto E. You Are Welcome To Elsinore. Santiago de Compostela
Galiza: Edições Laiovento, 1996.
DERRIDA, Jacques. La Desconstrucción en las Fronteras de la Filosofía. Barcelona:
Paídos, 1996.
______. A Escritura e a Diferença. São Paulo: Editora Perspectiva, 1971.
EAGLETON, Terry. A Idéia de Cultura. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
______. Depois da Teoria: Um Olhar sobre os Estudos Culturais e o Pós-Modernismo.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. Coleção Debates Filosofia. 6° edão. São Paulo:
Editora Perspectiva, 2006.
______. Imagens e Símbolos: Ensaio sobre o Simbolismo Mágico-Religioso. o Paulo:
Martins Fontes, 2002.
303
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. São Paulo: Livraria Duas Cidades,
1991.
GUMBRETCH, Hans Ulrich. Modernização dos Sentidos. Tradução de Lawrence Flores
Pereira. São Paulo: Editora 34, 1998.
LACOUE-LABARTHE, Philippe, (Org.) FIGUEIREDO, Virginia de Araujo; PENNA, João
Camilo. A Imitação dos Modernos: Ensaios sobre Arte e Filosofia. São Paulo: Paz e
Terra, 2000.
LACOUE-LABARTHE, Philippe et NANCY, Jean-Luc. L’Absolu Littéraire. Théorie De
La Littérature Du Romantisme Allemand. Paris: Éditions Du Seuil, 1978.
LIMA, Rogério. O Dado e o Óbvio: O Sentido do Romance na Pós-Modernidade.
Brasília: Editora Universa, 1998.
NOVALIS. Werke, Tagebücher, Briefe. H-J Mähl e R. Samuel (org.) . München: Karl
Hansen Verlag, 1978.
PEIXOTO, Nelson Brissac. A Sedução da Barbárie: O Marxismo na Modernidade. São
Paulo: Editora Brasiliense, 1982.
PERLOFF, M. O Momento Futurista; avant-grade, avant-guerre, e a linguagem da
ruptura. São Paulo, Edusp, 1993 (Col. Texto & Arte, 4).
READINGS, Bill. Introducing Lyotard: Art and Politics. London and New York:
Routledge, 1991.
SUBIRATS, Eduardo. Da Vanguarda ao Pós-Moderno. 3° edão. São Paulo: Nobel, 1987.
TOURAINE, Alan. Crítica da Modernidade. Petrópolis: Editora Vozes, 1994.
WHITE, Hayden. Trópicos do Discurso: Ensaios sobre a Crítica da Cultura. 2° edão.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.
ZAHARIA, Constantin. La parole mélancolique: une archéologie du discours
fragmentaire. Bucareste: e-book. <Disponível em
http://www.unibuc.ro/eBooks/filologie/melancolie/1.htm>.Último acesso em 23/06/2007.
304
APÊNDICE
305
DIÁRIO DAS HORAS VAZIAS
306
ADVERTÊNCIA:
Esta é uma obra de ficção.
Como pode muito bem não ser.
Talvez!
Quem sabe?
307
A escritura a seguir transcorre entre a defesa de mestrado e o início do doutorado. Trata-se,
evidentemente, de um não-tempo, um não-lugar, uma não-época. Nada existe antes e após a
escritura, que se abre a esse presente eterno que nos enreda enquanto se entretece. Somos
reféns das palavras: sibilinas, dissimuladas, traiçoeiras, como essas ciganas de olhos oblíquos
que andam por aí e que são a causa toda de nossas mais inexplicáveis inquietações.
308
25.11.04
As horas continuam intermináveis. Depois de muito tempo, pareço reviver uma velha e
conhecida sensação: a de que todo gesto é um gesto para nada. Daí, essa imobilidade, essa
incerteza, essa angústia que, em silêncio, exasperadamente me causo. Tem dias que o basta
esquecer, sorrir sem queixas, conjugar simpatias e desfazimentos com os mais de mil
holocaustos que vão tomando a alma até que tudo se pareça com um lamenvel engano.
02.12.04
Hoje, sem me dar por isso, acabei pensando o que fez com que, de repente, eu me sentisse
absolutamente sozinho, alheio a toda crença, indevassável, uma espécie de pobre de deus.
Inútil. Nunca pude precisar, com certeza, o instante exato em que esse mundo inefável, de
santos persignados e atos de fé, deixou de fazer sentido. Um dia, sem que nos demos conta, as
coisas deixam de acontecer. O conhecimento é o primeiro passo para esse abandono sem rosto
e sem voz. Talvez seja isso mesmo: o conhecimento abre algumas portas e fecha outras, para
sempre. Definitivamente. Borges tinha razão: todos os paraísos são paraísos perdidos. Crer é
renunciar à verdade. E a verdade não passa de mais uma entre tantas formas de se iludir.
05.12.2004
Por que escrever? Por que transformar em palavras o que nasce, antes, como tormento,
desespero, imobilidade ou angústia, todas as feridas abertas da alma humana? Por que pactuar
com os demônios que atravessam as horas desabitadas da criação para se tornarem, depois,
parte inalienável da escritura? Escrever é desabitar-se de si mesmo. Uma forma de me situar
no mundo, de compreender, exasperadamente, os instantes atormentados do pensamento, ou
naufragar, completo, na ausência cintilante de todos os sentidos. Escrever é vislumbrar, por
309
um instante fugidio e irreal, o outro entrevisto em sonhos. Um demorar-se no texto. Uma dor
e um exorcismo.Toda escritura é uma confissão desesperada. Apenas os diários, as biografias,
as autobiografias, as memórias, os relatos pessoais, as anotações dispersas, para sempre
perdidas, são verdadeiras ficções, verdadeiros enganos nossas grandes e irremediáveis
ilusões. Por sua vez, todas as outras formas de conceber a literatura uma fábula, uma
cadência, um poema, um conto, um romance trazem em si a verdade eternamente buscada
de nós.
06.12.2004
Passados quase cinco anos, dei por terminada Pode ser a vida naufragando fora. Uma
peça de teatro. Chega um momento em que precisamos abandonar definitivamente um texto.
É sempre um momento de crise quando percebemos, desiludidos, que o podemos fazer
mais nada por aquele mundo, aqueles personagens, aquelas situações e aquelas vidas que
passamos tanto tempo a falsear. Agora, escrevo, num ritmo quase frenético, Deixe o quarto
como está. História sem história: um incesto que o se confirma, uma família etérea, à beira
do ódio e do abismo, um desejo de comunicação e entendimento que se frustra em cada cena.
Outra peça que nunca se encenada. Outro drama sobre a impossibilidade gritante de
representar-se. Deixe o quarto como está é a confirmação de minhas idéias-fixas, de minhas
obsessões sem nome. Se algum dia um sujeito qualquer se dispusesse a ler essas peças, é
possível que se perguntasse os motivos que levam alguém a escrever no limite do
desconforto, da infelicidade, da angústia. Não sei. A literatura é, a um só tempo, simulacro e
afirmação do mundo. O desconforto, a infelicidade, a angústia e todos os pequenos traumas
que, porventura, definem um personagem, nos definem também. No fundo, nos resta essa
tensão que nunca se dissipa. O teatro é o único confrontamento possível entre as inúmeras e
contraditórias vozes que falam em nós, com as quais convivemos e que nos condenam ao
310
silêncio atroz da escritura. O teatro é o único momento em que essas mesmas vozes ganham
vida para além dos contornos imprecisos da memória e desafiam o outro espectador,
expectante a um terrível diálogo. Reconhecer-se no texto o é catarse: é uma abjeção
eterna. Só há dramas.
08.12.2004
Ao longo de todo o dia, um calor horrível, sufocante, desses que parecem assolar o mundo e
derreter as coisas. A noite, inevitavelmente, acabou dando em chuvosa. Uma pilha de provas e
trabalhos para corrigir. Uma dissertação de mestrado para terminar. Uma prova de francês
bastante próxima - proficiência em língua estrangeira. Uma entrevista de doutorado em
poucos dias. Uma vida fora do prazo. Faltam algumas certezas nessas dúvidas. Sobram
incontáveis vidas nas minhas eternas e inabaláveis certezas. Fica a chuva oblíqua contra a
luz-mercúrio dos calçamentos amarelecidos das ruas. A imagem de uma jovem, ensopada e
alheia, confiscada pelas retinas. O desejo de acreditar que, no fundo, ainda é possível ser livre;
que as coisas todas fazem sentido; que os sentimentos, por alguns segundos, estão todos no
lugar.
13.12.2004
Pela manhã, prova de francês proficiência em língua estrangeira. Um dos pré-requisitos para
ingressar no doutorado. Preciso provar que domino, ainda que mal e porcamente, uma língua
qualquer. Escolhi o francês, que me é familiar pelas inúmeras tentativas que fiz de aprender a
língua para além do simples autodidatismo. No fim das contas, a prova só me fez pensar que o
meu francês ainda não é dos melhores, e que devo adiar por algum tempo meus planos de
traduzir Paul Éluard, o mais subestimado dos poetas modernos franceses. Almocei sozinho.
Um restaurante enorme. Pessoas indo e vindo. Apressadas. Vivendo seus inalienáveis
311
horários, sucumbindo a uma lógica existencial que lhes escapa, mas que nunca, em hipótese
nenhuma, questionam ou discutem. A vida contemporânea é pródiga nesse sentimento que o
crítico espanhol Ortega Y Gasset chamou de fenômeno da amplitude: onde quer que
estejamos, estamos cercados de pessoas bares, restaurantes, passeios públicos, cafés, praças,
teatros, museus, cinemas. Parece haver uma repulsa absoluta à privacidade, ao isolamento, à
contemplação solitária das coisas do mundo. O que escapou à Ortega Y Gasset é justamente o
paradoxo que esse fenômeno engendra: por mais que estejamos cercados por uma multidão de
irreconhecíveis convivas, estamos e estaremos sempre completamente sozinhos. A multidão
anula-se de forma completa, é desfigurada, disforme, sem rosto e sem nome. O outro
dissolve-se na multidão. Torna-se uma criatura indistinta, vaga, carente de traços, contornos,
sentidos. A multidão condena terrivelmente nossa percepção do outro. Nos fragmentamos
junto com ele. Vivemos o risco de nos abolirmos a nós mesmos, enquanto indivíduos, porque
dependemos do outro. existimos em função dele. Ser é ser para o outro, sempre, a todo
instante. É na solidão mais enorme deste mundo que podemos entrever o outro como parte
indissociável de nós mesmos. Para mim, a solidão continua sendo a mais adorada das
companhias.
16.12.2004
Entre inúmeras obrigações que me tomam, preparo uma breve apresentação sobre mim
mesmo, para a publicação de alguns poemas meus pela revista Coyote, de Curitiba. Editada
por Ademir Assunção, Rodrigo Garcia Lopes e Marcos Losnak, com o desenvolvimento
gráfico de Joca Reiners Terron. Tipo de solicitação ingrata. Escrever sobre o outro,
apresentar, resenhar, criticar, não são algumas das coisas mais agradáveis de se fazer. Crítica,
sobretudo, o é reader friendly. Fica sempre a sensação de que alguém, a despeito de tudo,
irá se ferir irremediavelmente nos interditos das palavras. Escrever sobre o outro é correr o
312
risco, inevitável, de perder-se para sempre do outro. Agora, escrever sobre si mesmo é o
desafio de renunciar, na medida do possível, a si mesmo. Como descrever-se sem cair na
armadilha da falsa modéstia uma impostura que cometemos com conhecimento de causa
ou da auto-indulgência, que não é nada. E o pior: como, ao apresentar-se ao outro, evitar o
sentimento desconcertante de que se está, na verdade, é fraudando-se ao outro. Mais uma
ilusão que se conta do que um retrato que se fixa, pródigo em sinceridade. Quem sou, o que
sou, como sou em relação ao que escrevo, sinto ou penso? O que é ser diante das coisas, do
mundo, do outro, entrevistos em relevo no mármore translúcido da memória? Como dizer que
minha história não me pertence, que não posso contar-me para além da superfície diáfana das
palavras? Que sou apenas, simplesmente, aquém e além de toda definição. Minha história
pertence ao outro; é ele quem há de contá-la; de revê-la, de reavê-la, a despeito de mim
mesmo. Por que escrevo? Talvez, quem sabe, para deixar rastros que, de outra maneira,
desapareceriam para sempre; para vencer o tempo enquanto se é vencido por ele; para
compreender que não se é nada fora do domínio abissal da linguagem; para não desesperar-se
de uma vez; para continuar, indefinidamente, o entendendo; para que as coisas, por mais
tristes que sejam, o pareçam tão tristes contra o fingimento aberto e deliberado de todas as
palavras. Tantas coisas a dizer. Tantas outras possibilidades de verdade, e pude me definir
nos limites da própria e secreta poesia:
Por que escrevo?
A poesia foi a primeira grande descoberta de minha vida. Meu primeiro contato
consciente com a linguagem. A revelação de um mundo interior, secreto,
inviolável, que se a ver, realmente, no diálogo íntimo e cifrado que o poeta
busca, angustiadamente, estabelecer. Foi com Eliot, há mais de dez anos atrás, nos
versos estilhaçados de A Terra Devastada, que vislumbrei o poder calcinante da
poesia. Depois vieram Rilke, Mallarmé, Rimbaud, Baudelaire, Pound, Pessoa,
Drummond, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Leminski, Bukowski, Ginsberg,
Corso, uma constelação de poetas que, cada um a seu modo, me revelaram o
mundo. Daí a viver a urgência desesperada da poesia foi um salto. Escrevo porque
é inevitável, porque não saberia uma vida alheia a toda poesia, porque, de certa
forma, acredito que também haja em mim o desejo agônico de comunicação que
313
descobri em cada um desses poetas. Escrevo porque acredito em Rodrigo Garcia
Lopes, quando afirma que estamos em estado permanente de linguagem. Fiz da
poesia um exercício extremado de reconhecimento: de mim mesmo, do mundo,
da vida, principalmente, essa armadilha aberta; uma tentativa cruel de reivindicar
minha própria voz; uma forma, a última talvez, de redenção possível. Escrevo
porque a poesia é a divisa com o sonho, o mito, o tempo para sempre abolido. A
poesia foi a maneira que encontrei de não naufragar.
17.12.2004
Entrevista para o doutorado. Projeto. Sala fechada. Banca examinadora. A manhã arrastando-
se no olhar angustiado dos candidatos. Parafraseando Pound, trocaria tudo por uma conversa
entre homens inteligentes. São todos projetos, teorias, crenças e certezas inabaláveis em
verdades que eles mesmos desconhecem. A Alegoria do Verme em Baudelaire e Augusto dos
Anjos; O Romance Barroco de José Saramago; A Tensão Poética: Sensualidade e Erotismo
na Poesia de Adélia Prado; A Figura do Narratário nos Contos de Guimarães Rosa; Capitu
como Enigma; A Literatura Aos Pedaços: A Fragmentação Discursiva E A Problemática Da
Representação Do Primeiro Romantismo Alemão À Modernidade E Ao Pós-Modernismo.
Nada de novo debaixo do sol. Somos todos semióticos, estruturalistas, formalistas, novos
críticos, novos historicistas, substancialistas, idealistas, intelectuais, inocentes. E Grahan
Greene tinha razão: ―A inocência é uma forma de insanidade‖.
19.12.2004
Há teorias, grandes teorias, que alteram radicalmente o pensamento e a práxis de um
determinado tempo, de um certo momento histórico. Teorias que se transformam nos grandes
sistemas de representação: do homem, da esfera pública, do conhecimento e das artes. Teorias
que prescindem completamente dos críticos, essas figuras que, muitas vezes, elidem sujeito e
objeto, diluem o referencial teórico e comentem os verdadeiros enganos conceituais. As
314
péssimas teorias são aquelas que, por sua vez, precisam dos críticos para que possam ser
definidas.
26.12.2004
O Natal, felizmente, passou. Algumas épocas do ano são mais terríveis que as outras. O
Natal é uma delas. Os velhos ritos de passagem que se repetem com a monotonia pica de
toda crença que, um dia, irremediavelmente se esgota. Nunca me senti perfeitamente
confortável diante dessas pessoas que nos avistam nas ruas e se aproxima, com um sorriso
simpático no rosto, para dizer ―Há quanto tempo?‖ ou ―Você parece ótimo!‖ ou Pareipara
te desejar um feliz Natal e um ano de grandes realizações‖. Nunca me senti muito confortável
em ser a vítima perfeita dessas manifestações repentinas de duvidosa afetividade. As lojas
permanecem abertas, as pessoas, de folga, ganham as ruas, tomam todos os espaços, enchem
os Cafés, compram e vendem uma ternura tão artificial quanto seus gestos, seus sorrisos, a
felicidade em terem dinheiro e gastá-lo bem. Prefiro estar sozinho, que a solidão ainda é um
consolo nesse mundo de aparências grandes e felicidades poucas. Não quero cruzar com o
ilustre desconhecido na rua; o quero parecer educado, parecer que me importo, parecer que
estou sempre disposto a minha cota diária de simpatia, atenção, afetos ou cuidados nem
sempre estou; nem sempre sou mais do que um silêncio resignado, que se espalha pelas coisas
e que, para alguns, pode até soar como uma ponta de ressentimento ou mágoa quando, na
verdade, não passa de uma forma que encontrei de estar em paz ao menos comigo mesmo.
27.12.2004
Ser levado pelo mundo, pelas coisas, pelo peso insustenvel das circunsncias. Por mais que
tente tomar o controle de minha vida,resta, no final, a sensação de que sigo arrastado pelas
315
coisas, de rodada, mansamente. Por mais que queira crer, nem todo destino me pertence como
decisão e escolha. Vai sempre haver uma dimensão de acaso, inalienável, por trás de minhas
certezas, de meus projetos, de minhas procuras arruinadas para qualquer encontro. Vai sempre
haver esse estado de deixar-se-ir a me tomar os gestos, a me domar os gestos, a se interpor
entre mim e minhas escolhas, a confundir-me os planos, a negar-me as certezas de que não
sou completamente um ator que se põe em cena, representante de si mesmo, de um texto
incerto, que vacila a cada passo, a cada rubrica, a cada indicação interdita de como seguir
nesse eterno ensaio-aberto a partir do qual me anuncio - ator único, que se nega a voz, a fala,
o gesto desenhado e perdido no ar. Ser levado, simplesmente. E o mais angustiante, certas
vezes, é essa consciência translúcida de que se está mesmo sendo levado, de que o próprio
destino é um jogo de enganar, uma ficção que criamos no espaço difuso da memória. Ser
levado. Deixar-se-ir como quem vivencia pleno de incertezas todas as horas estranhas do
mundo.
29.12.2004
Toda escritura é um gesto desesperado de vaidade contra o apagamento absoluto do corpo.
Inscrevo-me? Escrevo-me? O que é escrever-se, dia-a-dia, contra a superfície pétrea das
coisas? Contra as fronteiras dissolutas da página? Forma de assinalar-se no tempo, de
transcender os limites do corpo, de ceder às tentações do espírito. A tentação, por exemplo, de
o ser mais que sombra depois. Esquecimento completo de tudo.
Borges dizia que o esquecimento é a única vingança e o único perdão.
316
Mas o esquecimento também é uma renúncia: o apagamento de todos os símbolos, de todas as
grafias, de todos os arabescos, de todos os traços essenciais que o corpo jamais poderia
sustentar.
A escritura é um assinalamento resistência e nostalgia antecipada de uma incontornável
extinção.
Inscrevo-me.
A escritura é sempre o mesmo e repetido gesto de inscrição. Desenho, grafismo, arabesco -
tessitura de palavras que anunciam o eterno adiamento, o tardar impossível (tal Penélope
rediviva), a mortalha que há de abrigar uma morte sem nome, sem morte.
A escritura que esgarça o tempo, que o condena a perecer em si mesmo, a contentar-se com o
corpo que se gasta como qualquer objeto, enquanto abriga, quem sabe?!, a memória-souvenir
abissal e angustiada do espírito.
Eterna imobilidade escritura.
Ruptura total com todas as certezas.
O lugar do impasse.
Mesmo impasse que, outrora, motivou Handke em seu A Tarde de um Escritor:
―Mas será que esse medo da paralisia, do não poder seguir em
frente e até mesmo da ruptura definitiva, não estivera presente
toda a vida, não apenas no que dizia respeito ao ato de escrever,
mas também em todas as outras ações: o amor, o aprendizado, a
participação tudo, em absoluto, que exigisse o ater-se à coisa ela
mesma?‖
317
Impasse diante do mundo, das coisas, dos outros seres, do esquecimento, da memória, da
linguagem e suas impossíveis reais-significações. Impasse diante da percepção inexata de um
terrível paradoxo: a experiência pessoal, íntima, subjetiva, que se reduz à escritura versus a
escritura que não pode, essencialmente, ser a representação plena e absoluta de si-mesma, da
multiplicidade e da variabilidade sufocada de incontáveis experiências:
―Será que o problema de sua profissão não lhe oferecia a metáfora
do problema de sua existência e lhe mostrava, com exemplos
evidentes, como tudo estava disposto?‖
Toda escritura é biográfica na exata medida em que não podemos prescindir da vida, do
corpo, do mundo e das coisas como um conjunto de vivências que se nos impõe a partir do
caos essencial que é a memória. A escritura é experiência que se grafa: ontologia sutil que se
dissemina pelos interditos das palavras, secretamente, e instaura o jogo dos sentidos.
―Quer dizer, não ―o eu enquanto escritor‖, mas sim ―o escritor
enquanto eu‖? e será que ele não se levava a sério como escritor
desde aquela época em que pensara ter cruzado, sem possibilidade
de retorno, a fronteira da ngua, com o risco do conseqüente
recomeço dia após dia logo ele que usava a expressão ―escritor‖
no máximo de maneira irônica ou constrangida, apesar de haver
passado mais da metade da vida com o pensamento posto no ato
de escrever?‖
A ―escritura enquanto eu‖.
De que forma inscrevo-me? De que maneira a escritura é resistência a minha inevitável
temporalidade? Em que medida reduzo minhas experiências aos limites intransponíveis da
linguagem e me torno, drasticamente, ser-em-linguagem? A grafia desesperada de mim
mesmo?
318
01.01.2005
Ser as Histórias Que Não me Pertencem.
Ser a soma de umas tantas aspirações que, por não serem mais que aspirações mesmo, estão
condenadas a todos os desacontecimentos dessa vida. Escrever, quem sabe, não é só mais uma
aspiração a que se condena a priori. Minha história não me pertence narrativa ulterior que
se anuncia como pathos, sonho ou delírio por entre as sombras incertas, os contornos
indefiníveis da imaginão.
São minhas apenas as ruínas de meu passado.
O presente não passa de uma ilusão entorpecida. Ilusão de nada, que urgências e solicitações
alheias o tomam para além dessa percepção cansada, a se gasta inutilmente pelas coisas.
A história do Outro também não me pertence. A história de minha mãe, por exemplo: suas
aspirações passadas, seus desejos, seus anseios quais sonhos minha mãe sonhou antes de ser
minha mãe? Quantos sonhos deixou de saber quando, de certa forma, perdeu para sempre seu
destino sonhado?
Meu pai: que caminhos seguiu entre si mesmo e as estranhas fronteiras que o ligaram à
presença indevassável de três filhos, uma esposa e dois cães? Em que medida, eu mesmo, não
sigo, inconsciente, a lembrança desfigurada de seus passos; a hisria abortada de seus
destinos?
A angústia da repetição.
A aspiração exasperada da diferença.
319
Meus avós, meus primos, que o muitos, mas dos quais penso com vagar em dois, apenas
dois, que me seguiram, e a meu irmão, ao longo de uma juventude que, agora, já vai
encontrando seu lugar entre os estilhaços desafortunados da lembrança, esse lugar para os
sentimentos abandonados.
A mulher que passa e sufoca irremediavelmente o dia.
(Sempre achei a beleza um paroxismo, uma hipérbole, um excesso que perde para sempre o
olhar. Sempre acreditei na beleza como falência do olhar. E o sentimento de desamparo que
me toma diante da beleza nada mais é do que a urgência do desejo que se frustra no abandono
e na ausência do objeto adorado. O incorrigível engano da percepção.)
A mulher que passa e deixa, unicamente, a memória do ter passado: o rastro de sua ausência
em mim assimilada.
Mas a mulher que passa não existe. Porque só existimos em função da hisria que nos
atravessa, e ao Outro, como a linguagem de um ter-sido e de um vir-a-ser que se diluí em
sombras.
Hisria:
sentir o peso da história, o fardo do devir e esse abatimento sob o
qual se dobra a consciência quando considera o conjunto e a
inanidade dos acontecimentos passados ou possíveis.....A nostalgia,
em vão, invoca um impulso ignorante das lições que se
depreendem de tudo o que foi; há um cansaço, para o qual o
próprio futuro é um cemitério, um cemitério virtual como tudo o
que espera chegar a ser. (E. M. Cioran - Breviário da
Decomposição)
320
Hisrias que só podem me pertencer na media em que as criar, independentemente de toda
crença no Outro; do respeito que devo ao Outro como coisa real por fora; a despeito dos
signos, dos sinais, dos traços invioláveis que o distinguem, que o inscrevem e situam no
tempo o corpo, sua marca no mundo. Como produzir o Outro? Como reproduzir o Outro?
Como representar o Outro quando falha minha percepção do Outro? Quando, sei, minha
própria hisria está condenada a ser refém do Outro?
Musset: ―Para escrever-se a história da própria vida, é preciso que se tenha vivido. Não é, pois, a
minha a que escrevo‖.
03.01.2005
Há dias chove sem parar.
Céu cinza, fechado, nublando todo horizonte, perdendo todos os contornos, confiscando a
vida. No centro deserto da cidade, cessa o movimento. Alguns carros apenas. Algumas
pessoas desoladas, surpreendidas, apressadas ou distraídas, caminham pelos caamentos
molhados, negando a chuva, rejeitando a chuva, sentindo a chuva.
É como se só houvesse a chuva.
E a melancolia indistinta, relutante, de um ou outro guarda-chuva.
Somente quando chove eu me lembro de quanto é emergencial comprar um guarda-chuva.
Em dias de sol, inútil dizer a evidente inutilidade do guarda-chuva. Estranhas as coisas:
apenas quando elas transparecem numa absoluta ausência é que perecemos de sua diáfana e
irremediável existência.
321
Desde mal em minha infância, a chuva é sempre triste, porque comunica a experiência de uma
nostalgia que não posso nunca precisar ou definir. É como se, de repente, chovesse em minha
vida inteira. Em minha história. É como se chovesse, ao mesmo tempo, todas as lembranças,
todos os pensamentos, toda essa matéria liquida, fluída, de que se faz a memória. É como se
parte dessa mesma vida escorresse com a chuva.
Além da experiência de uma nostalgia intransponível
margens de angustiante travessia
a chuva
me-cerca,
me-toma,
me-ilha.
Obriga-me o íntimo e secreto convívio comigo mesmo. E a experiência da nostalgia acaba se
transformando na inexorável consciência da solidão: entrevista da varanda, da janela, da porta
esquecida de fechar. Ou no ruído da água se estilhaçando lá fora contra o telhado, a vidraça,
o abandono e o esquecimento.
Ainda que contra a resistência das águas, saio, ganho a rua em busca de outros desencontros.
Sair não deixa de ser uma fuga, uma forma de faltar de adiar, na verdade ao indelével
compromisso comigo mesmo essa solidão repleta de voz, a me exigir atenção, cuidados, um
pouco da minha terrificante companhia.
Essa solidão de absolutas palavras.
322
Encharcado até os ossos, encontro um Café onde pessoas se amontoam tentando se esconder
da chuva. Espero por um lugar em que possa me sentar. Peço um café e um maço de cigarros.
Fumo sozinho, numa mesa esquecida a um canto. A solidão, agora, de certa forma, é
diferente: uma solidão cheia de gentes, de vozes, olhares, gestos, queixas, sobressaltos,
impaciências e sentidos.
Uma solidão que se preenche momentânea dos estilhaços do Outro.
Caleidoscópio.
Adio o projeto de escrever porque escrever, a despeito de todas as ilusões que ainda possa ter,
é me dobrar sobre aquilo tudo que sou, de que me faço e de que não posso prescindir.
Escrever é trazer novamente à tona esse diálogo de mim comigo, interrompido por outras
formas de solidão.
Escrever é ensaiar o reencontro.
Vivo, em silêncio, esse mundo que, por ora, me nega a mim mesmo.
Em breve, estarei de volta.
Só há duas certezas:
o inevitável reencontro
e a existência do guarda-chuva.
323
04.01.2005
Por conta de um livro sobre as vanguardas européias e algumas informações a respeito da
modernidade, revejo G. Minha biblioteca é pródiga em promover encontros que bem
poderiam ficar para sempre suspensos, alheios a qualquer destino. Dois anos já, desde o fim
da faculdade, das viagens diárias, dos encontros pelos corredores do campus, das conversas,
da minha capacidade de ser patético e apaixonado diante de toda beleza que me fale os
sentidos.
G. foi um desses amores que encontramos pelo caminho e que nunca, nunca terminam
condenados que estão à fantasia da repetição. Durante esses últimos dois anos, mal nos vimos.
Foram raros os encontros, mas todos atravessados por aquele silêncio constrangedor de quem
vislumbra, em cada gesto, o peso insustentável de tantas sensações, de tantos sentimentos, de
tantas palavras gastas contra a aspereza da distância, do tempo, da ausência a que nos demos.
De tantas palavras ditas, das que se calaram por força, das que jamais disseram os exasperos
mais fundos do amor.
Ela me perguntou o que tenho feito da vida. Tive vontade de responder que, sinceramente,
o faz mais a menor diferença. Nem para ela, nem para mim. Que duas pessoas que
estiveram tão próximas dessa catástrofe que é o amor podem, sem qualquer vacilo, dispensar
certas formalidades.
(o que quer que eu faça da vida, esse fazer virá sempre acompanhado de uma
infalível certeza de incompletude, de vazio, de engano e despedida. Talvez seja
isso mesmo, talvez estejamos sempre nos despedindo. Um aceno em branco-e-
preto numa estação de trem deserta e derrotada, com um blues de jukebox
324
tocando baixinho na cabeça, feito uma trilha sonora que nos confunde o
caminho enquanto voltamos sozinhos para lugar nenhum.)
Tive vontade de dizer que Sam Shepard tem razão: ―Que a vida é o que está acontecendo
enquanto a gente está planejando outra coisa‖.
Ela não se importaria também.
Hoje, na verdade, ela já não se parece tanto com o anjo barroco que me perturbava os dias, me
confundia o trabalho, tomava para si minha linguagem, meu imaginário, minha ânsia de
morrer em versos.
Parece envelhecida.
Mudada.
O olhar indeciso sobre as coisas.
Uma carência de palavras e de gestos.
Ela, que sempre teve o hábito de tomar o mundo em cada gesto ou palavra, parece sofrer em
silêncio o monumento arruinado de lembranças e linguagem em que nos transformamos.
Mesmo seu corpo envelheceu. Seu corpo traço inscrito na memória dria de meu desejo
igualmente envelhecido. E o desejo, hoje como ontem, agora e sempre, nada mais é do que a
primeira crueldade da paixão. Anuncia-se por entre os móveis, as coisas, outros corpos que
o são, não poderiam ser você; o desejo que se grafa nas arestas desse denso vazio deixado
por uma hisria condenada a sua própria inconclusão.
O desejo também é uma tautologia.
325
Não quis saber o que ela tem feito da vida. Acho que, para mim, também não faria diferença.
Falamos sobre o tempo, a chuva incessante, o trabalho, a ilusão de que nossas vidas
continuam independente da distância que nos cinde ao meio e que já não nos é dada a
percorrer.
Tive vontade de perguntar se ela ainda canta. Pensava nas inúmeras vezes em que saíamos
juntos uma grade turma e bebíamos a noite, às vezes sufocada de estrelas, e ela cantava as
mesmas canções dos Beatles eu sempre gostei de Yesterday , os mesmos velhos blues, e
me dizia, no fim-deserto-da-madrugada, com a voz rouca e abandonada de quem acredita na
redenção em versos e barbiturícos, quando a deixava em casa, que o amor, talvez, seria a
maior traição que poderíamos cometer contra o outro. E me dava um beijo antes de sumir,
vacilante, pela porta indecisa do sonho. Eu ia para casa sozinho, ouvindo Yesterday no toca-
fitas do carro, fumando devagar e olhando pela janela a noite que começava a morrer.
Tive vontade de dizer que sempre estive enganado, que não a amei mais do que a minha
antiga coleção de LPs, mais que um verso sinceramente cometido, às vezes confundido com
paixão se paixão, mais uma vez, é a paixão da linguagem, o desejo que turva
irremediavelmente a linguagem - que meus livros adiados na estante ou qualquer outra paixão
em desuso. Mas estaria mentindo. E a única coisa de que não precisamos é de mais uma
mentira para se lembrar.
Entreguei o livro e ela foi embora. Eu fiquei ali, no Café de esquina, olhando as poucas
pessoas que desafiavam a chuva, atravessavam as ruas, cruzavam a praça, entravam nas lojas,
nos bancos, na antiga Igreja da cidade, nesses lugares todos que recortam o horizonte e
limitam a paisagem fora. Pedi um café para fumar depois. A dona do Café trouxe a xícara,
326
o açucareiro, um maço de cigarros e o sorriso delicado de quem compreende que a nostalgia é
uma sedão silenciosa, e em que vivemos naufragados. Pensei em um poema, um verso que
fosse, mas seria inútil. Ela foi embora, sob uma chuva incessante e resignada, tão distante
quanto a imagem que fiz delas nesses últimos anos.
(com o tempo, o amor mesmo desaparece, deixa de ser desejo, urgência, pathos
anunciado, e passa a uma região intangível de nós. Um lugar onde esquecemos
ou fingimos esquecer tudo aquilo que nunca houve. Os sentimentos
abandonados. resta a ilusão mais ou menos indefinível do ter-amado, que se
liga à imagem caricatural de nosso ter-sido para sempre irrecuperável.
tantas coisas perdidas em nós que, às vezes, podemos mesmo nos perguntar
como é possível viver uma vida inteira arquivando sensações, sentimentos,
palavras, gestos, confissões, desejos, histórias que, por um motivo qualquer
indiferente a nossa vontade, nunca vivemos.)
Depois que ela saiu, cantei baixinho, quase que em silêncio, aquele trecho de Yesterday
Why she had to go I don't know
She woldn't say
I said something wrong
Now I long for yesterday
Yesterday, love was such an easy game to play
Now I need a place to hide away
Oh, I believe in yesterday
No fim das contas, nunca vamos saber por que temos de ir embora.
327
05.01.2005
Roland Barthes:
Como termina um amor? O quê? Termina? Em suma, ninguém
exceto os outros nunca sabe disso: uma espécie de inocência
mascara o fim dessa coisa concebida, afirmada, vivida como se
fosse eterna. O que quer que se torne objeto amado, quer ele
desapareça ou passe à região da Amizade, de qualquer maneira, eu
não o vejo nem mesmo se dissipar: o amor que termina se afasta
para um outro mundo como uma nave espacial que deixa de
piscar: o ser amado ressoava como um clamor, de repente ei-lo
sem brilho (o outro nunca desaparece quando e como se esperava).
Esse fenômeno resulta de uma imposição do discurso amoroso:
sou o poeta (o recitante) apenas do começo; o final dessa história,
assim como a minha própria morte, pertence aos outros; eles que
escrevam o romance, narrativa exterior, mítica. (Fragmentos de
um Discurso Amoroso)
Há mais mundos por trás de um livro do que se pode perceber ou divisar. Cada palavra
esconde o mistério de uma realidade indevassável, que se afirma por si mesma, e que se
extingue como um sonho que o dia aborta. Cada palavra alude ao indizível que é sua matéria
essencial. O indizível que a devassa nos interditos da significação; nos deslimites da escritura.
Hisrias alheias a qualquer história.
Segredos, mentiras, enganos e ilusões que vão sendo concebidas sob a sombra falseada de
uma verdade que existe de si para si. A tessitura impossível. Todo texto é uma urdidura -
tecido no qual nos emaranhamos, canto ausente de voz, que se enreda nos labirintos da
significação. Todo texto é espelho de um mundo, uma realidade, um ser adverso este que
somos no espaço preciso do irreconhecimento.
Toda escritura é um gesto exasperado de amor.
328
Uma solidão que se cria para fugir à própria solidão.
A solidão é o vácuo abissal em que se precipita a grafia irresoluta dos dias.
A solidão é a razão de ser da escritura.
Duplo movimento paradoxo da Linguagem: escreve-se para deixar de ser-estar sozinho; mas
isola-se do mundo, furta-se ao mundo, priva-se do mundo, numa rútila e secreta solidão, para
sofreviver a escritura. Tudo não passa de uma iludida solidão. Do pacto que firmamos com o
demônio da escritura: é ele mesmo quem nos revela seus inconfundíveis enganos. Despertos,
firmamos esse pacto com conhecimento de causa somos o pactuário que cede a própria alma
para resistir à solidão.
20.01.2005
O Querer-Dizer na Obra.
De uma forma geral, a Teoria da Literatura e a Crítica Literária colocam a
problemática da expressão artística e estética do autor, a problemática dos significados
imanentes da obra nos termos sempre difusos de um querer-dizer. Parece um equívoco, senão
epistemológico, ao menos conceitual. Uma grave ilusão, ao menos. Não um querer-dizer
que não seja, a priori, uma construção transcendente, que não extravase, decisivamente, o
dizer que perpassa a obra. A problemática dos significados não se dá apenas ao vel da
leitura. A própria escritura faz circular, desde a sua origem, os deslimites dos sentidos. As
intencionalidades do autor, que se grafam sob a deliberada aparência de casualidade que as
leituras mais inocentes demandam, são as primeiras manifestações não de um querer-dizer,
que se coloca sempre como um quase-alheamento da escritura, mas de um dizer desde o início
orientado.
329
A escritura deixa-se atravessar por esse dizer polissêmico, que acena para a abertura
dos sentidos, para a impossibilidade de fixar todos os significados possíveis de uma obra. É a
leitura crítica que fala em termos de um querer-dizer, que solicita um sentido entre vários, que
faz suas escolhas singulares, características que podem ser políticas, ideológicas, culturais,
estéticas, psicanalíticas, psicológicas, filosóficas, mas que não deixam de ser uma escolha
entre tantas, uma decisão que se toma em função de um querer-dizer, que é uma construção
deliberadamente transcendente, prefixada muito mais por sua leitura, e que representa uma
tentativa de ultrapassar a problemática desse dizer polissêmico que a obra lhe impõe.
25.01.2005
Eu quero escrever a dissolução.
31.01.2005
Eu continuo sem saber o que fazer ou esperar de minha vida. É como se toda decisão e toda
escolha se dessem de forma indiferente aos meus próprios desígnios, inadvertidamente. É
como se parte de mim mesmo se mantivesse alheia, assistindo à distância cada um de meus
desacontecimentos. Mesmo nos piores momentos, vivo essa sensação estranha de que parte de
mim está ausente, vagamente distribuída pelas coisas fora de lugar. Talvez tenha a ver com
uma certa experiência inalienável da solidão que me impus ao longo de uma vida inteira de
desconversas e interditos. Uma certa barreira sentimental, que não se deixa atravessar, que se
fixa diante das coisas, do mundo, das pessoas como uma forma de me salvaguardar. Mas de
quê? De quem? Por quê? Depois de tanto tempo, já não é possível encontrar as respostas.
330
18.02.2005
Finalmente recebi alguns exemplares da Revista Coyote, de Londrina, Paraná. Ademir
Assunção, um amigo querido e inestimável havia me pedido um breve currículo, uma ou outra
fotografia e a autorização para publicar uns poucos poemas meus na revista. Acedi
prontamente. Não pela glória, sempre pseudo, de saber que meus versos circulavam por um
meio muito mais amplo que o do círculo de amigos que me lêem em cartas, recados, avisos.
Mas porque desde os quatorze anos de idade é que venho escrevendo poesia e alimentando a
ilusão uma das poucas que me resta de que nem tudo está perdido, de que algo em
meus versos que, talvez, possam vencer o tempo, inscrever o tempo, grafar-se sutilmente no
tempo. Tenho vinte e seis anos e é a primeira vez que vejo poemas meus publicados. A grafia
inabalável dos tipos, os poemas e os versos espalhados ao longo de duas páginas, encerrando
o volume, meu nome em destaque, o título escolhido para a seleta: ―Arqueologia da Solidão‖.
Tudo me agradou plenamente. Os poemas fazem parte de um livro inédito, que escrevo e
reescrevo com a mesma e invencível obstinação Objetos Perecíveis buscando a poesia
secreta que me abriga todos os dias e que se perde de mim quando ultrapassa os limites das
sensações, as fronteiras do pensamento e ganha seus contornos mais ou menos certos,
vacilantes e definitivos no interior da linguagem. quase vinte anos busco a minha
linguagem. Inútil. Vendo os versos impressos contra o fundo branco e negro da página da
revista percebo que minha linguagem é a linguagem de todos os homens, distribuída e dada,
que se compartilha na disseminação dos sentidos, na magia secreta das formas, no
palimpsesto da grafia. Minha voz é a voz de todos os escritores que me habitam desde a mais
remota leitura. Não nos livramos nunca de uma certa tradição que nos precede. Com sorte,
inventamos o jogo insondável de nossos precursores, como queria Borges. (In)Definição;
Bilhete Encontrado no Bolso do Casaco; Depois do Último Atentado; Como Dizer e Carta a
Sam Shepard Antes que Seja Tarde Demais. Eis os cinco poemas escolhidos com precisão e
331
acuidade pelo querido Pinduca. De uma seleção com mais de trinta poemas, ele foi capaz de
escolher, sem me consultar, aqueles que, de certo modo, me o mais caros, mais
emblemáticos de tudo o quanto tenho buscado, vivido e experienciado graças ao Mistério
Impenetrável da Poesia. Entre eles, gosto particularmente de
Depois do Último Atentado.
qualquer dia, de repente,
a gente acaba se encontrando,
numa dessas esquinas perturbadas
de um poema angustiado.
(como aquele do Iessiênin
a um Maiakovski desesperado)
e só então você vai ver,
que ainda arrebento o silêncio
(feito essas janelas estilhaçadas
depois do último atentado)
e ao invés de cortar os pulsos
e estragar as paredes do motel,
te mando um cartão-postal
de um lugar qualquer,
só pra dizer que, por aqui,
as coisas continuam indo mal.
Talvez porque veja nele, em escorço, minha idéia fixa, minha forma de me definir em relação
ao mundo e as coisas, meu jeito de me sentir, de viver, de ganhar dinheiro. Eu sou, sob muitos
aspectos, essa angústia transcendente que meus poemas trazem em si. Essa angústia que
escorre sob os signos da renúncia, do abandono, do esquecimento, da sensação de que não
lugares que me caibam nessa existência pendular, oscilante, que se deixa marcar por suas
próprias sem-razões, por seus medos obtusos, por seus sonhos naturalmente abortados.
332
22.02.2005
É o mesmo sentimento de desajuste e um princípio de angústia correndo a alma até os
ossos, deixando um vazio concreto no lugar daquilo que deveria ser o peito, um vazio
derrotado e desiludido. Às vezes fica difícil respirar. É inacreditável como pouquíssimas
coisas que vivemos ao longo de uma vida inteira têm a ver com felicidade ou satisfação
completa. Na verdade, a vida deveria ter como lema um desses anúncios de canais de
televenda: ―satisfação garantida ou seu dinheiro de volta‖. Não basta à vida já vir com o prazo
de validade vencido, ela ainda apresenta uma série de defeitos, falhas, erros operacionais,
problemas técnicos, urgências, enganos, incertezas. Não manuais para a vida. Por isso
escrevo: não para dar vazão às inquietações do espírito, simplesmente, o que não seria nada;
mas para repensar a vida, o mundo e as coisas para além dos enganos e das ilusões com as
quais essa mesma vida, esse mesmo mundo, e essas mesmas e inalienáveis coisas, nos
cercam.
Escrita:
O espírito não conta e não canta, mas tampouco ele se cala: ele
quer e há de ser, necessariamente, escrita.
Escrevo para mim? Escrevo para os outros? É de fácil solução esse
dilema, na verdade, pois o momento de largada e de ímpeto não
deixa de ser, sempre, uma vivência comunitária (―eu‖ também sou
―todos os outros‖) (Peter Handke. Fantasias da Repetição)
73
Escrever é uma forma de estar-no-mundo, de encontrar um lugar que nos sirva, ainda que
desconfortavelmente, ao longo de uma vida inteira. Porque escrever é tessitura que, muitas
vezes, sobra numa perna, apertar no peito, sufoca como um desiludido na garganta. A
73
A tradução dos excertos de Fantasias da Repetição são do amigo, poeta, professor e tradutor José Pedro
Antunes, a quem devo boa parte de meu interesse pelo alemão e de minha paixão pela literatura contemporânea
de uma forma geral. Foram publicados no jornal Tribuna Impressa de Araraquara, no caderno de cultura, em 16
de fevereiro de 2005.
333
grande pergunta é por que continuamos? O que nos motiva à confissão dolorosa e dissimulada
de nós mesmos?
10.03.2005
Hoje pela manhã resolvi os últimos problemas com o aluguel de minha nova casa. A idéia do
casamento não me assusta ou incomoda algum tempo. Quase que não restam dúvidas
também, embora quase tudo que envolva o gesto exasperado de existir sejam incertezas,
angústias, vagos e inapreensíveis temores. Talvez seja um problema de representação, de se
interrogar sobre quem se é, no momento em que se é e as coisas, a vida e o mundo se nos
impõem como uma espécie insondável e desconhecida de mistério, que se nos negam ou
rejeitam, barbaramente, em sua face mais nítida e cruel.
Talvez seja só a hora de viver uma nova representação de mim mesmo.
Merleau-Ponty: O movimento das idéias consegue descobrir
verdades respondendo a alguma pulsação da vida interindividual, e
toda mudança no conhecimento do homem tem relação com uma
nova maneira, pessoal dele, de exercer sua existência. Se o homem
é o ser que não se contenta em coincidir consigo, como uma coisa,
mas que se representa a si mesmo, se vê, se imagina, oferece a si
mesmo símbolos, rigorosos ou fantásticos, fica bem claro que em
contrapartida qualquer mudança na representação do homem
traduz uma mudança do próprio homem. (“O Homem e a
Adversidade”. In: Signos. Pág. 254)
O casamento, o doutorado, as aulas como um, quem sabe, incipiente professor de latim e
teoria literária, os projetos, os planos, as estranhas e indistintas perspectivas não constituem só
uma mudança radical de vida, mas também uma nova forma de me encarar ao espelho, de me
perguntar quem sou?, o que sou?, o que represento agora?
Essas questões nunca, nunca se respondem!
334
A consciência de que criamos nossas próprias representações não garante o conhecimento
pleno e irrestrito de nossos papéis. Somos, ao mesmo tempo, a representação concebida e o
improviso eterno de nós mesmos, o que nos obriga esse constante devir, esse iniludível vir-a-
ser, sempre a nos solicitar novos papéis, outras falas alheias palavras -, diferentes palcos de
nós mesmos. E não espaço para os grandes dramas, principalmente quando tudo parece
se confundir com uma ópera bufa ou uma comédia de costumes. Mas nos representamos
sempre como quem leva a efeito seu último e desesperado auto-de-fé, sua tragédia clássica,
seu drama barroco.
Como dizer ―Eu soupara além dos limites dessa semi-cegueira, dessa incorrigível miopia
que me permite divisar a superfície acidentada de mim mesmo? Talvez eu não passe de
uma ponte entre o espaço abissal de meu próprio ser indefinível por sua própria natureza e
o que represento, diariamente, e que só pode ser tomado como uma experiência real e
concreta pelo Outro que, alheio a sua própria representação, me distingue e percebe não como
uma coisa entre coisas o que seria uma falha grave de percepção -, mas como alguém que,
feito a si mesmo, reivindica o eterno estatuto de ser. Assim como sou percebido pelo outro, eu
também o percebo e, no jogo dissimulado da representação, acredito que ele seja, acredito que
diviso sua essência, que sou capaz de re-conhecer sua existência livre de retoques ou rubricas
indicativas.
25.04.05
Um sobrado amarelo, pintado de novo, mas cuja pintura vai deixando transparecer um ar
cansado, renitente, desiludido. As casas, com suas cores e falsas simpatias, também se cansam
e se desiludem. Uma vida em comum, que mal começamos a construir e que acena para
tantas e inconfundíveis incertezas. Nada se fia ou se constrói de acordo com nossos alheios
335
projetos. O que de vir talvez seja sempre a sombra mal projetada do que adveio e não
ficou. A sombra dissoluta desse presente eterno, diáfano, que vai gastando o mundo a sua
volta. De certa forma, continuo a viver a mesma solidão que me cerca e persegue desde mal
em minha infância, desde que me entendo como uma criatura mais ou menos consciente de
suas próprias limitações, de sua incontornável solidão, de seu hábito de mentir, dissimular e
enganar a si mesma, para que a vida seja minimamente leve em seu lento esgarçar. Joseph
Brodski tem razão ao afirmar que a verdadeira história da consciência começa com a primeira
mentira de cada pessoa. Inútil resistir à lógica implacável dessa idéia. Minha consciência de
fato existe quando se dá conta e percebe cada uma das mentiras infundadas e implausíveis
que me conto como uma forma de, quem sabe, aplacar a inquietação essencial de minha
própria consciência. No fim, saber que se engana a si mesmo, sem remorsos ou desassossegos
grandes, é idêntico a acabar curvado sobre si próprio como quem leva um inapelável soco na
boca do estômago. Essa é, entre todas, a pior forma de violência. Conhecê-la talvez aplaque
um pouco a angústia de não ser de todo capaz de evitá-la. A consciência de uma casa que se
desilude, de uma vida em rascunho, sempre e sempre projetada, uma vida de interiores,
translúcida em seus mistérios e suas dúvidas, um ou mais sonhos disfarçados em ideais,
procuras, opiniões, frágeis certezas, é isso que sou, visto da perspectiva de quem se habituou à
solidão de si mesmo, uma solidão enorme, viscosa, que me acompanha pelos caminhos
desiguais dos calçamentos diuturnos que me conduzem de volta ao mesmo sobrado amarelo, à
idêntica vida receosa de ser o que desde sua origem deveria de fato ter sido vida. Melhor
estar enganado, seguir enganando-se. Melhor a consciência da mentira individual, particular e
intransferível marca, digital, DNA delirado e inconseqüente que se amalgama a outras
mentiras, igualmente pessoais e intransferíveis, que vão desenhando essa arte pictórica,
rupestre, primitiva, que ainda chamamos de História.
336
10.05.2005
O que dói, na verdade, é a consciência clara e translúcida do mundo.
21.06.2005
Eu sempre penso maior as coisas que não podem ser!
25.06.2005
Parece certa a viagem de M. R. P. para a França. Um ano como bolsista, matriculado numa
universidade francesa. Márcio é um intelectual, dos melhores que já conheci. Capaz de pensar
para além de sua própria formação, dos limites que um pensar nos trópicos, como diria Luiz
Costa Lima, pode nos impor. A França é um destino inteiro. Ainda sonhamos a França. A
França de Barthes, Derrida, Deleuze, Baudrillard, Foucault, grandes pensadores da cultura
contemporânea, a França de Diderot, de Rousseau, de Voltaire, grandes pensadores da alta
tradão da modernidade, mas também a França de Racine, de Bertrand, de Hugo, de
Rimbaud, de Mallarmé, de Valéry, de Gide, de Ponge, a França que nos toma de assalto,
como um velho delírio de conhecimento. Nos conhecemos pouco mais de dois anos e
travamos uma amizade sincera, franca e decisivamente intelectual. Toda amizade é uma
forma de hospitalidade, de receber incondicionalmente o Outro, de reconhecê-lo, no mínimo,
nosso par, já que é impossível reconhecer o Outro como nosso igual. Não iguais. E apagar
as diferenças é uma ilusão a qual não nos podemos dar. Discutimos os rumos do pensamento,
da criação, da estética. Falamos sobre a necessidade de restaurar, de algum modo que seja, o
poder transcendente da palavra, a arte como salvaguarda diante de um mundo que parece
transigir diante da barbárie e alijar de si mesmo os vestígios da civilização. É nossa formação
literária e nosso interesse comum pela filosofia que nos aproxima de um pensamento cada vez
337
mais vertiginoso, que busca talvez ilusoriamente um ethos que seja capaz de romper com
os limites insondáveis de uma época que faz da verdade um produto de troca relativo, um
fetiche, que se perde dos valores e dos costumes e os condena ao exílio da ingenuidade ou da
utopia impossível. Não se trata, é claro, de afirmar os valores vigentes, os velhos e obsoletos
valores, os valores reacionários, do tipo Ideal, Pátria e Família. Ao contrário, trata-se de
reconhecer que, em algum momento de transição entre a modernidade e o estágio
contemporâneo do capitalismo e da cultura, a experiência humana da verdade e dos valores, o
re-conhecimento de um ethos que nos guie e oriente por entre a selva escura do capital
transnacional ou da fruição transestética, em que tudo é permitido, aceito, comercializado e
vendido, ficou perdido, esgarçou-se. Talvez Gianni ttimo tenha alguma razão ao afirmar
que a experiência s-moderna da verdade é uma experiência estética e retórica‖, mas não
pode ser apenas isso. Quando a verdade já não puder ser re-conhecida por entre os desníveis e
os interditos da linguagem, não é só o homem que perde, mas é toda sua história, sua
consciência, a civilização que à custo busca construir, reaver, transformar. A verdade deveria
manter, de algum modo, uma dimensão essencial, que não pudesse ser posta à prova, que não
se confundisse com seus próprios procedimentos retóricos de construção. Parece um
idealismo vago e obtuso, um olhar místico ou mítico para a verdade. Mas não é. Antes, é uma
urncia do Ser, uma imposição, uma necessidade de perceber, entre os escombros da lógica
cultural do capitalismo, uma saída que não seja a crença insofismável nessa mesma lógica.
Nosso eterno conflito, que Nietzsche já descrevera tão bem em A Gaia Ciência:
O pensador: este é agora o ser em que o impulso à verdade e
aqueles erros conservadores da vida combatem seu primeiro
combate, depois que o impulso à verdade se demonstrou como
uma potência conservadora da vida.
338
E é possível que o próprio Nietzsche, como o pensador moderno por excelência, tenha aberto
o caminho perigoso, é preciso reconhecer para essa percepção retórica da verdade:
O que é a verdade, portanto? Um batalhão vel de metáforas,
metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações
humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente,
transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo
sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais
se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem
força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora entram
em consideração como metal, não mais como moedas. (Sobre
Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral)
A questão, desse modo, é nunca perder de vista o fato de que Nietzsche sempre foi um criador
muito mais que simples filósofo ou pensador de uma época, de um momento hisrico, de
uma realidade , no sentido grego do termo. Engendrou uma filosofia poética, cujos conceitos
e idéias se fundem num ritmo particular, altamente singularizado, que busca fazer da
linguagem filofica uma manifestação que se divise com a própria arte. Concebeu, assim,
suas verdades inalienáveis. Criou seus mitos. Forçou a insurreição da linguagem. O próprio
Übermensch é o grande mito nietzscheano o supra-homem, além do bem e do mal, extra-
moral, que o dependeria de valores ou conceitos, de verdades ou moralidades expressas
pela civilização mesma. O Übermensch não precisaria de quaisquer determinações morais
para existir sua singularidade, sua superioridade, seu des-ligamento absoluto do mundo
circundante garantiriam, por si só, o domínio sobre si mesmo, seus impulsos e instintos mais
primitivos. A única verdade, para o filósofo alemão, é a de que ―o homem é um ente que deve
ser ultrapassado‖. E é no contexto dessa utopia que Nietzsche desautoriza os ideais pré-
concebidos de verdade. O homem é um animal que busca a verdade ainda que o saiba de
onde ela deriva:
339
Continuamos ainda sem saber de onde provém o impulso à
verdade: pois até agora ouvimos falar da obrigação que a
sociedade, para existir, estabelece: de dizer a verdade, isto é, de
usar as metáforas usuais, portanto, expresso moralmente: da
obrigação de mentir segundo uma convenção lida, mentir em
rebanho, em um estilo obrigatório para todos. Ora, o homem
esquece sem dúvida que é assim que se passa com ele: mente, pois,
da maneira designada, inconsciente e segundo hábitos seculares e
justamente por essa inconsciência, justamente por esse esquecimento,
chega ao sentimento de verdade. (Sobre Verdade e Mentira no Sentido
Extra-Moral)
Para Nietzsche, toda a verdade depende dessa urgência do homem-social em manter a
linguagem sobre o controle das ―metáforas usuais‖, dos velhos e inabaláveis conceitos. A vida
social é um complexo de mentiras, e assim se afirma a verdade como um dos grandes valores
sociais. Não é esse universo de absolutas certezas que deve ser afirmado como valor supremo
da existência e, talvez, também não sejam essas as verdades que buscamos incansavelmente.
não podemos divisar que tudo seja ou esteja na dependência da linguagem, nas
possibilidades retóricas de manipulação ou controle. Nesse sentido, a criação estética, a arte, a
literatura, pode ser o lugar de uma reconciliação do homem consigo mesmo e com a verdade
latente das coisas, do mundo e dos seres. Um espaço de re-conhecimento do Outro, das
diferenças que nos perfazem em relação ao Outro, da percepção desse Ser que não somos, que
vive na dependência do possível, o velho eikós grego, a velha ética que reside nas fronteiras
do signo, no interior da estética. Esses e tantos outros dilemas acompanham a mim e ao
Márcio nessa amizade que busca hospedar em si todas as distinções, todos os desencontros,
todos os conflitos e opiniões que se rejeitam mutuamente, sem que a própria amizade se
rompa. Agora, com a viagem para a França fica um diálogo interrompido. A amizade também
é esse interromper-se momentâneo, difuso, oblíquo, que se reata depois, quando o somos
os mesmos, porque todo o passar do tempo é a fluência incessante de nossos pensamentos,
nossas idéias, nossas certezas. Um diálogo adiado: projetos de artigos, ensaios, livros a
aproximação entre filosofia e literatura, a concepção de uma filosofia da literatura. Tudo
340
adiado em favor da viagem que se ensaia. Não importa: a amizade permanece porque, como
diria Cícero,
O que nos agrada não é a utilidade oferecida pelo nosso amigo,
mas sim o carinho desse amigo; e tudo o que nos for oferecido por
ele, nos será agradável, contanto que transpareça a dedicação. Tão
longe está que seja a indigência que cultiva as amizades que
justamente aqueles que, pelas suas riquezas, pelo seu crédito e
sobretudo pelas suas virtudes, a mais segura das garantias, têm
menos necessidade dos outros, são os mais generosos e
benfeitores. Não sei se será bom que os nossos amigos não
necessitem des. Como poderia mostrar meu zelo por Cipião, se
ele não procurasse meus conselhos e meus serviços, seja na paz, ou
na guerra? Nossa amizade não nasceu pois, da utilidade, mas a
utilidade a seguiu. (Diálogo Sobre a Amizade)
A amizade é uma forma de se descobrir no Outro, de se desvelar, ainda que sejamos e não
passemos, sempre, de representações mais ou menos definidas de nós mesmos. Nem todas as
amizades são felizes, certas ou duradouras. Amigos os concebemos em nossa geração. É
preciso que se compartilhe de um certo número de idéias, conceitos, dúvidas, vivências,
práticas, conhecimentos e incertezas que se inscrevem a partir de um determinado tempo, um
tempo compartilhado, dividido, partilhado, que forma um universo de sensações, de absolutas
experiências.
20.07.2005
Entreguei, finalmente, a versão definitiva de minha dissertação de mestrado.
21.07.2005
Meu tio Morrendo.
Um telefonema. Descubro meu tio morrendo. Os médicos deram poucas horas de vida. Desde
ontem, todos esperando a morte de meu tio morrendo. Um câncer essa palavra que muitos
341
ainda relutam em nominalizar. Um ncer corroendo sua garganta como um rato, um inseto,
como qualquer animal desprezível, que se pisa e cospe em cima. Um câncer levando embora
meu tio morrendo. É o início de um sentimento irrevogável de perda. A consciência de que o
processo é irreversível e que, de qualquer modo, não pode ser compreendido, explicado ou
definido a não ser pelo sentido de ausência que vai tomando o lugar dessa presença cada vez
mais diáfana. Meu tio morrendo. E uma difusa infância resgatada a golpes de um sentimento
nostálgico que anuncia o luto. Todo luto é uma nostalgia pelo que, invariavelmente, há de se
perder no tempo. Eu, meu irmão Oto, meus primos Aldo e José Henrique. A casa de minha
família ficava bem em frente ao cemitério. Meus primos viviam em Araraquara. Esperávamos
as férias para nos encontrarmos. Duas vezes por anos eles passavam ao menos três meses
conosco, na casa de minha aou de um de meus tios. Meu avô ainda era vivo. Um alemão
educado por uma mãe que nascera nos despojos do tempo do velho Otto von Bismark, que
unificara a Alemanha e abrira caminho para a República de Weimar. Meu bisamorrera
numa descarga de infantaria, durante a Primeira Guerra Mundial. Respeitávamos meu avô
porque, de certo modo, sonhávamos com a guerra. Ninguém mais, ali, estivera tão perto da
barbárie. Não sabíamos, é certo, o que era a barbárie. Mas víamos Platoon e imaginávamos
que se precisa ser mesmo quase que um herói de gibi para vivenciar a guerra. Meu avô morto.
Foi nossa primeira experiência consciente de perda. Nesse tempo, não éramos crianças.
Agora, meu tio morrendo. Quando crianças, fazíamos do cemitério um tipo estranho de
playground. Éramos quatro bestas-feras soltas numa infância que parecia interminável e,
depois, numa juventude que parecia invencível. Meu tio morrendo foi a vítima mais constante
de nossas injustificáveis brincadeiras. Fora dono de bar a vida toda. Andava com dificuldade
porque fora ferido seriamente pelo coice de um jumento. Um desses jumentos que se pintam
como uma zebra, ajaezados à andaluza, para que as crianças tirassem fotos sobre ele. Até hoje
temos essas fotos perdidas em alguma velha gaveta. Sabíamos que não era uma zebra, mas
342
nunca quebramos o pacto ficcional, a urgência da verossimilhança. Enganávamos,
ludibriávamos, distraíamos meu tio morrendo e saíamos com os bolsos cheios de doces,
refrigerantes, satisfação. Roubávamos os doces que ele, invariavelmente, nos daria a pretexto
de cuidarmos do bar enquanto fosse ao banheiro ou de não contarmos a nossa tia as doses que
ele bebia ao longo de todo um dia de trabalho. Roubávamos. Venamos o adulto. Vencíamos,
inconscientemente, o domínio paterno. Ainda não sabia disso, mas queríamos mesmo
vivenciar uma infância de transgressões. Era cruel ser comum. Ser como todos os garotos da
rua uma rua de subúrbio que vivam trancados em seus quintais e iam para a escola com os
uniformes impecáveis, as camisas por dentro das calças, proibidos de estarem conosco.
Éramos todos filhos de classe-média baixa, tínhamos quase tudo o que queríamos, mas
transgredir era uma forma de estar vivo, de não se confundir com o mundo que nos cercava,
um mundo ordenado, adulto, paterno, rígido e compreensivo ao mesmo tempo, um mundo
que rejeitávamos porque só podíamos acreditar numa liberdade irrestrita, do corpo e do
espírito. Às vezes, no fundo da casa de minha avó caminho para que meu tio morrendo
chegasse ao seu bar , cavávamos um buraco no chão, enchíamos com água e barro,
cobríamos com um pouco de grama seca e restos de terra e ficávamos escondidos, esperando
que ele saísse para o trabalho, passasse pelo caminho de sempre e caísse no buraco. Ríamos.
Talvez, idiotas que éramos. Schadenfreud, uma palavra intraduzível, mas é assim que os
alemães chamam esse riso, essa satisfação, essa sensação de prazer que a desgraça alheia é
capaz de causar. As pequenas desgraças, é claro. Eles que foram especialistas nas maiores
delas. Penso que meu tio morrendo pactuava de nossas brincadeiras, porque nunca se furtou a
seguir o caminho de sempre, a evitar a armadilha, o tombo, o rolar pelo chão sujo de barro e
poeira. Éramos crianças a cavar buracos e escondê-los nos mesmos caminhos de sempre. Um
telefonema. Depois, sento no degrau que para a varanda e choro. Pelo meu tio morrendo,
pelo fim definitivo da infância, que se encerra com meu tio morrendo um símbolo dela.
343
Choro pela sensação de que o lugares nesse mundo em que possamos estar
absolutamente livres de nós mesmos. Sartre costumava dizer que a gente se livra de umas
neuroses, mas não se cura de si mesmo. Jacques Derrida diz que para vivenciar o luto é
preciso ontologizar os restos, dar sentido a eles. Recolher os despojos. É isso que estou
fazendo. Acendendo a pira para meu tio morrendo. Sempre achei que é digno chorar a
morte antes da morte. Depois, é a liberdade. Choro porque reconheço que já não há os
caminhos de sempre.
22.07.2005
Meu tio morreu. Flores, velas, café, pessoas. Minha tia sofrendo. Meus primos sofrendo
meos idênticos, iguais em quase tudo na vida. Distintos no sofrimento, talvez. O sofrimento
é uma das formas de vivenciar uma alteridade radical, o princípio da diferença. Como diria
Tolstoi, em Ana Kariênina, ―as famílias felizes o sempre iguais. As infelizes, são infelizes
cada uma a sua maneira‖. O mesmo se dá com as pessoas. Talvez o que haja de mais estranho
ou desagradável na felicidade é a sua uniformidade bovina, a sua manifestação quase patética,
que encontra o riso fácil como forma natural de expressão. Schopenhauer acreditava que a
felicidade é um momento de supressão da dor. De minha parte, acredito, ela nunca se
pareceu tanto com uma ilusão vendida à prestações pelas Casas Bahia e congêneres, pelas
propagandas de televisão, pelos programas de auditório, pelas revistas femininas e suas
sessões de conselhos sentimentais. Uma ilusão que muitas pessoas encontram no divã dos
analistas ou na bula dos fármacos em geral. O sofrimento não é uma condição inerente ao
caráter trágico do homem. É um distúrbio na recaptação de serotonina, uma falha na conexão
sináptica. Os indivíduos seguem a contrapelo da existência. Iludem-se. E a ilusão não é e nem
nunca poderá ser o melhor dos antídotos para a própria vida. A ilusão, de certo modo, é uma
forma de livrar-se de si, ainda que momentaneamente, ainda que sob o risco de um retorno
344
cruel e sempre mais frustrado ao incompreensível de si mesmo. O ideal seria não nos
enganarmos nunca, em hipótese alguma, escolher a ilusão ao olhar severo e implavel
sobre o próprio Ser. O gesto mais nobre que podemos cometer em nosso favor é não pensar na
felicidade como o bom, o objetivo ou o princípio geral de uma exisncia inteira. Talvez o
interdito maior da felicidade é não pensar nela e nunca tentar encontrar sua definição mais
simples sob pena de um eterno e infindável desencontro. A felicidade ou a idéia que fazem
dela, ou a idéia dela vendida diariamente nas gôndolas dessa realidade midiática, cada vez
mais virtual está sempre distante da verdade. Parece pessimista, mas o é. Perceber o real
como um espetáculo concebido à base de troca, entender que a felicidade jamais poderia
consistir numa vida de eletrodomésticos ou automóveis de uma última geração, é constatar
que nos resta o conhecimento, e que ele também não pode conduzir ninguém à felicidade
enganosa sonhada todos os dias a custo de privações e desejos cada vez mais urgentes e
quanto mais urgentes, mais desnecessários. Só o sofrimento parece verdadeiramente real. Meu
tio morto. Minha tia sofrendo. Meus primos sofrendo. É o princípio do luto num mundo que
se acostuma, numa velocidade cada vez mais espantosa, a velar seus mortos. A esquecer seus
mortos. A fingir que já não há barbárie. Inmodo saber que, apesar de tudo, de nossa
condição de animais lingüísticos, racionais, pensantes, a morte permanece para sempre alheia
aos limites da linguagem. Na verdade, a crença contemporânea de que tudo se restringe à
linguagem desgasta nossa capacidade mais íntima de sentir. Talvez Cioran tenha razão:
Se, por acaso ou por milagre, as palavras se volatilizassem,
mergulharíamos em uma angústia e em um embotamento
intoleráveis. Tal mutismo nos exporia ao mais cruel suplício. É o
uso do conceito que nos torna donos de nossos temores. Dizemos:
a Morte, e esta abstração nos exime de experimentar sua infinitude
e seu horror.
345
Dizer, afirmar, definir ou nominalizar é uma forma de fugir ao medo ancestral que os
sentimentos, inclusive o da morte, pode nos despertar. Abstraímos tudo o quanto nos
atemoriza sentir, viver ou experienciar:
Batizando as coisas e os acontecimentos eludimos o Inexplicável: a
atividade do espírito é uma trapaça salutar, um exercício de
escamoteação; permite-nos circular por uma realidade suavizada,
confortável e inexata. Aprender a manejar os conceitos -
desaprender a olhar as coisas.....
O conhecimento, a reflexão, o pensamento nem sempre representam uma iluminação ou um
desvelamento. Nem sempre podem significar a compreensão plena e absoluta de tudo o
quanto se nos impõe como uma vida, uma incerteza, um temor. Escrever também. Essa
busca incessante por respostas que nunca, nunca vêm. Escrever, na verdade, é elidir os
objetos, as sensações, os sentimentos e o desarranjo que as coisas do mundo nos provocam.
Escrever é acreditar que as palavras podem tomar o lugar das coisas, minimizar o horror, ferir
a superfície de tantas iias que, realmente vivenciadas, nos feririam profundamente. Escrever
é fugir, rejeitar, perder-se antes de tudo da sensão angustiante da morte, de cujo
entendimento permanecemos sempre no limiar:
A reflexão nasceu em um dia de fuga; dela resultou a pompa
verbal. Mas quando se volta a si mesmo e se es sem a
companhia das palavras -, redescobre-se o universo inqualificado, o
objeto puro, o acontecimento nu: de onde extrais a audácia para
enfrentá-los? não se especula sobre a morte, se é a morte; em
vez de adornar a vida e atribuir-lhes fins, arrancamos seus
ornamentos e reduzimo-la a sua justa significação: um eufemismo
para o Mal.
Impossível vencer o Mal de que fala Cioran. Estamos e estaremos sempre condenados a não
atravessar os limites mais fundos das idéias, dos conceitos, das teorias, das reflexões que nos
conduzem à enganosa embora agradável, é preciso reconhecer superstão de que
vencemos o Mal, a Vida, a Náusea, o Tédio, a Morte, o Destino uma constelação de
símbolos pelo domínio inalienável da linguagem:
346
As grandes palavras: destino, infortúnio, desgraça, despojam-se de
seu brilho; e é então que se percebe a criatura brigando com
órgãos enfraquecidos, vencida por uma matéria prostrada e atônita.
Retire do homem a mentira da Desgraça, -lhe o poder de olhar
por debaixo desse vocábulo: não poderá suportar um instante
sua desgraça. É a abstração, as sonoridades sem conteúdo,
dilapidadas e empoladas, que o impediram de desaparecer, e não as
religiões e os instintos. (Breviário da Decomposição)
“Palavras... Palavras... Palavras..., é assim que Hamlet, o príncipe da Dinamarca, o homem
cindido entre o poder político e o impulso poético, procura compreender o apenas o mundo,
o que não seria nada, mas o sentido de Ser diante do mundo e de sua própria escolha, uma
escolha que pode conscientemente arrastá-lo para o fim.
28.07.2005
Eu não consigo escrever sobre fatos, toda vez que penso um poema, um conto, um romance,
uma peça de teatro; toda vez que me debruço sobre o mundo a procura de fatos, acabo
relegado à crea de que por trás dos fatos mesmo um complexo de amenidades, cujo
interesse jamais pode perdurar para além dos limites do tempo que o engendra. Talvez eu
queira escrever o intemporal, o que o se marca nunca, o que se transforma com o Zeitgeist,
com o próprio espírito do tempo. Talvez os fatos não sejam mesmo tão importantes assim. As
impressões da vida, desse estar vivo que a custo se compreende ou se elucida quando
julgamos que mesmo de forma remota descobrimos algumas respostas sob o u de
estranheza que nos toma, é isso que busco escrever. Divisar na escritura o que de mais
danoso ou maravilhado na vida e suas manifestações diárias, equívocas, espantosas. Desvelar
uma angústia diária, um medo que não se justifica, um horror diante das coisas pérfidas ou
nulas, diante de si mesmo, sob aparência de remorso. estranhezas. Toda história é um
universo de estranhezas, renúncias, abandonos e solies. A escritura, antes de tudo, tem de
revelar a solidão inviolável das coisas e do mundo, do indivíduo que, cada vez mais assolado
por um mundo de multidões, já não é capaz de conviver consigo mesmo. Talvez eu esteja em
347
busca daquilo que a escritora francesa Nathalie Sarraute, definia como ―os movimentos sutis,
quase imperceptíveis, fugitivos, contradirios, evanescentes, frágeis tremores, esboços de
apelos tímidos e de recuos, sombras leves que deslizam, e cujo jogo incessante constitui a
trama invisível de todas as relações humanas e a própria substância de nossa vida‖. Não
nada ou muito pouco apenas por trás dos fatos. A não ser uma terrível solidão que se
anuncia com horror e para a qual como a Medusa mitológica não estamos preparados para
encarar em toda a sua plenitude devastadora, terrível, imobilizante. Eu quero escrever essa
solidão humana que nos atravessa feito um dardo, que nos precipita ao que Fitzgerald
chamava de ―a noite escura da alma‖; essa solidão humana que os homens rejeitam se
aglomerando diariamente em bares, cafés, restaurantes, cinemas, teatros. Não é a proximidade
com o Outro ou a procura pelo entendimento do Outro que interessa ao homem
contemporâneo. É a fuga desabalada e inútil de sua incontornável solidão. Os fatos não são
importantes diante do peso insustentável da condição humana. E é possível que eu nunca
consiga escrever, definir ou entender essa mesma condição. Não importa. A arte é o exercício
dessa eterna tentativa. Os movimentos dissimulados. Poucos, nenhuns gestos. Nada. a
consciência exacerbada de uma busca incessante que nunca, nunca se revela, que, caso se
revelasse, deixaria de ser esse jogo ao qual nos entregamos, em que apostamos cegamente,
que alimentamos e vivenciamos as custas de nós mesmos, de nossos próprios
desentendimentos, de nossas vagas mas sempre presentes incertezas. A escritura deve manter
a lógica implacável de todas as incompreensões humanas. Pobres dos que pensam a escritura
como a revelação das verdades mais remotas do homem. Ela jamais poderia responder a
perguntas que nós mesmos não somos capazes de formular. Assim, escrevo como quem se
constrange diante do espetáculo incrédulo e delirante de si, do mundo, das coisas e de tantos
sentimentos fora do lugar. Escrevo como quem vive, desde a mais remota infância, o fascínio
dos livros, não os que se condenam à estante ou que nos obrigamos a conhecer todo
348
conhecimento é uma ilusão , mas os livros que, de certo modo, me desprendem de mim
mesmo e me conduzem aos mais distintos espaços de uma consciência que eu mesmo jamais
pudera conceber. Talvez seja a velha afirmação de Pessoa: ―A literatura, como toda arte, é
uma confissão de que a vida não basta‖. É a partir dessa consciência que vivo a urgência
irrevovel da escritura uma condenação cuja pena é sempre maior do que o crime de se
grafar a palavra sobre a superfície cansada dos dias. A escritura, para mim, é uma forma de
saber que seremos sempre os humilhados e os ofendidos, os que se desligam do mundo, os
incompreendidos de olhos rútilos, tristes, melancólicos. Nostálgico de toda a vida essa é a
condição primordial do escritor. Manter a distância, ignorar os fatos, afundar na viscosidade
da condição humana, da incompreensão do mundo, do Outro e de si mesmo, até que possamos
acreditar que, depois de tanto tempo, podemos dizer o que calamos e se reflete em nós, no
fundo sem fundo da alma essa eterna desconsolada. Isso porque a escritura nunca é um
consolo, nunca poderá servir como uma revelação plena. Ela é um caminho que percorremos
estranhadamente, como um céu caindo.
14.11.2005
Faz tempo, sim, que não escrevo. O que quer que possa parecer ou aspirar a mais remota
novidade, envelheceu irremediavelmente. Um diário pode ser uma forma de não existir
também, de ir lentamente perdendo sua vaga e indistinta crença em qualquer realidade. Um
diário das horas vazias deve ser isto apenas: o cuo atormentado de tantas e inevitáveis
palavras, memórias, lembranças que o suscitando pensamentos, imagens, iias que o
podem ser contidas porque se revelam uma urgência sem remédio ou justificativas, que
dilacera primeiro a alma essa antiga. Toda lembrança é um fato estético. E pode ser
sentida como tal. O fato é que reencontro A., loura, olhos azuis. Incrivelmente azuis, como
essas manhãs que despertam numa vontade confusa e dolorosa de gostar de si mesmo, uma
forma de acordar transido de lirismo, sem desassossegos grandes, essas manhãs que convidam
349
os olhos a se perder na contemplação desinteressada e inútil da própria exisncia. Uma
fotografia e re-encontro A. Sempre, sempre linda. E eu sei que a beleza é triste e solitária, que
a beleza é um sonho delirado que lentamente se desfaz, caminhando sozinha e desamparada
por esse mundo enorme de tantos e irrevogáveis enganos. Triste, a beleza, feito esses dias de
vento renitente, de chuva incessante e de um calor claustrofóbico, que nos deixa rendidos e
entregues. Esses dias em que penso que não deveria haver tanta beleza, meu deus!!, espalhada
pelas coisas, pelo mundo, pela lembrança de uma mulher que nos marca tal qual como uma
indelével fragrância da qual o corpo, minha forma no mundo, nunca se livra. Uma fotografia e
revivo A., linda e fugidia, vestida de bailarina clássica. Talvez, um dia, eu a re-descubra,
depois de ignorar novamente seus destinos, como bailadora do Municipal. De qualquer forma,
como o ter amado seus enormes olhos azuis? Como não ter aceito o destino torpe e estranho
de pensar que estes enormes olhos azuis amavam, sim, outras mulheres, outros homens e
outros sonhos que não os meu. Atriz. Escrevi para o teatro, escrevi teatro para estar próximo
dela. Nunca fomos adiante, nunca realizamos uma cena, um ensaio que fosse. Tudo era
pretexto para uma proximidade dolorosa, que grafada sob o signo da admiração que sentia,
nunca permitiu que fosse além de uma relação puramente idealizada entre o futuro
promissor escritor, e a futura promissora atriz. Mas como não ter amado aqueles enormes
olhos azuis? Impossível. Depois, foi aceitar a distância, que às vezes traz de volta lembranças
e pensamentos, memórias e flagrantes que já não podem ser tocados, mas que também,
passado algum tempo, já o nos aflige ou constrange.
26.12.2005
Acabo de sair de casa, de um casamento fracassado que, reconheço, deve parte considerável
de seu naufrágio única e exclusivamente a mim mesmo. Deveria ter dito, há quase nove meses
atrás, que eu jamais caberia perfeitamente nos sonhos domésticos e inofensivos de uma
mulher, apaixonada ou não. Deveria ter dito que tudo não seria mais do que um engano,
350
porque eu nunca seria nada além de mim-mesmo, do que, consciente ou de forma inadvertida,
contemplo ao divisar o pórtico partido de minha ppria existência: um indivíduo condenado
ao silêncio, à introspecção, aos motivos do espírito, aos pensamentos sempre caóticos,
desordenados, estranhos, buscando o impensável, o inaudito, o que ainda o foi divisado
pelos limites das artes, das ciências, da literatura, da poesia, buscando a mais funda
compreensão do ser, do estar-sendo, do ter-sido, do vir-a-ser, como uma verdade, uma
realidade. Somos a injunção miraculosa do tempo. O ser é aquilo que sucumbe ao tempo e
que busca vencê-lo, tudo de uma vez, tudo irrefreavelmente, como quando Eliot afirma em
seu Four Quartets: And all is always now. Tudo sempre agora. É assim que vivo. O
instante mágico e fugidio de um sempre e irrevogável agora. Planos? Perspectivas? Desejos?
Sonhos? Esperanças? O que são esses sentimentos ao longo da vida de um homem senão o
precipício em que nos atiramos sem refletir ou conhecer ao certo o horror vertiginoso da
queda. É preciso reconhecer a queda, amar a queda, prostra-se e entregar-se diante da queda.
Como é possível rever as teorias de Heidegger sobre o ser como o que se desvela e oculta, do
fim da filosofia no donio da técnica, da linguagem como a morada do ser e a poesia como
sua fonte suprema de expressão, de apresentação levando uma vida conjugal, gremial, ordeira
e mentida, fingindo amor, paixão e comprometimentos, deixando minhas notas, os livros,
tudo que escrevi, tudo o que morre lentamente, sem publicação, tudo o que tem sido minha
vida desde que me aventurei, pela primeira vez, pelos descaminhos sediciosos do pensar, do
refletir, pelos desvãos urgentes da escritura? Busco o que está além de mim mesmo, que sou
eu, visto de fora, que é parte da humanidade inteira que consegue olhar a ilusão fraudada
da realidade. Mas é essa busca que me cala e silencia, que me afasta do mundo, que me faz
perceber a realidade como o sonho enganado de cada dia o sonho que não houve. Eu não
poderia caber na vida doméstica de uma mulher que deseja a felicidade como uma aspiração
consoladora ou como um lugar para o qual voltar depois de um dia inteiro desiludido ou
351
cansado. Eu não poderia caber nos limites de uma vida que me nega o que de mais
essencial ao pensamento: o silêncio e a reflexão. Não deveria ter aceitado a segurança de um
casamento no qual, ambos sabíamos, as diferenças sempre forma intransponíveis. É triste
deixar. Sempre é triste. Sempre preferi o abandono, porque ele não nos motiva a estranha
sensação de que mentimos ou enganamos o Outro, porque ele dói mais fácil quando é em nós,
quando estamos mais ou menos habituados a sermos esquecidos. E eu me apaixonei também,
como nunca pensei ser possível, como nunca imaginei que me apaixonaria: morena, linda,
olhos negros sempre frenéticos, cabelos igualmente negros. Uma mulher que me aceitou
como eu sempre fui e sempre revelei desde a primeira vista: um sujeito triste, olhando o
mundo com desconfiança e buscando respostas para a existência no círculo de fogo do
conhecimento, da renúncia, da entrega. Uma mulher que me ensinou os caminhos para um
desejo que se perde em si próprio, com quem posso partilhar um mundo de idéias que
transitam livremente em mim. Alguém que não me acha estranho, esquisito, louco ou delirado
apenas porque, um dia, resolvi amar perdidamente as palavras que escorrem feito os relógios
de Dali ou ruas alagadas depois da última tempestade. Eu me apaixonei pelo que ela tem de
mais verdadeiro: as palavras, nas quais também sempre acreditou. Vivemos o desejo, nos
entregamos ao desejo. E queremos reaver nossos caminhos, redescobrir a vida que nos foi
vedada um dia, ocasionalmente, quando ela resolveu nascer anos antes de mim e não me
esperar, quando eu resolvi entregar os pontos e me casar porque sempre me aterrorizou a idéia
de uma solidão plena, para além dos limites indevassáveis do pensamento. Porque ela estava
perdia em algum lugar antes de nos encontrarmos, porque ela me habitou desde o primeiro dia
em que entrei na sala de aula para falar sobre a literatura, a psicanálise, a filosofia, o
pensamento. Eu sou seu professor. Eu ensino na faculdade em que ela estuda. Ela fala,
interroga, sugere, questiona. Ela percebe o mistério das palavras, os enigmas que se escondem
por trás dessa única ilusão possível, verdadeira e nunca dolorosa: a literatura. o nos
352
enganamos ao nos descobrirmos. Ela me levou a acreditar em minha própria literatura, no
valor sempre questionado e dissonante de tudo o quanto escrevo. Não sei. Como dizer um
sentimento único, experimentado e vivido pela primeira vez? Como dizer algo tão novo, tão
diferente, tão forte e incontornável que se transforma num certo modo de existirmos?
Estranho ter sido sempre um homem-das-palavras, um sujeito-do-verbo, e o ser capaz de
fazer com que elas ilustrem plenamente uma paixão que não tem voz, que não cede, que não
se rende, mas que precisa do desejo, da urgência perturbadora do desejo, e que precisa da
concórdia, das dores, das vidas, do amor, do afeto que nos faz tão certos, tão resolutos, tão
seguros de nós mesmos. Como dizer o amor quando ele se nega à qualquer palavra, mesmo a
mais perfeita, a mais nova, a mais intocada ou violada das palavras? Experimento a suavidade
amando essa mulher, vivendo esse amor, descobrindo-a, aprendendo a suavidade de um afeto
que havia encerrado em um lugar desconhecido de mim e que muito não me perturbava
com a força e com as marcas que ela produziu em mim, desde minha cabeça perdida entre
versos, livros, iias e conceitos, passando pelo meu espírito insatisfeito e sempre em busca
de repostas, até minha pele, minha boca, meu corpo de 1,78 e 100 kg símbolo do que sou e
represento no mundo , meu corpo sempre e indefinidamente desajeitado, que caminha de um
lado a outro como se pudesse vencer o peso de sua ausência. Não i abandonar uma incerta
segurança para re-encontrar o motivo de minhas buscas. Sempre estive à sua procura. Sempre
fui você antes mesmo de nos sabermos. Por isso é parte de mim, arrancada de mim, de volta,
lenta e dignamente, para mim. Nãoi desfazer equívocos em nome de outras maiores e mais
absolutas certezas. Não dói arrancar da vida certas páginas enganadas, notas, rabiscos,
arabescos e rascunhos que jamais passaria à limpo, em nome desse amor minha edição
definitiva.
353
27.12.2005
Um sistema de erros a vida. Estar lançado no mundo, viver sua vã iluminação, seu momento
etéreo, sua transitoriedade que reside em nós sim, porque mesmo o mundo é tão transitório
quanto nós mesmos. Basta pensar em Schopenhauer e em O Mundo Como Vontade e
Representação. Quando morremos, quando nossa vida encontra seu termo, de transitória e
fugidia que é, o próprio mundo morre conosco, o próprio mundo se extingue, porque cessa
uma das representações que dele se faz. É o mundo quem nos perde a cada vez que se nos
impõe ou nos solicita sua dolorosa realidade. Realidade dolorosa porque vem do mundo e
porque a devolvemos ao mundo, em forma pensamentos, gestos, palavras. Mas não se pode
furtar ao mundo e à vida. Qualquer sujeito mais ou menos digno, decente, civilizado, sabe que
o se pode escolher a alienação diante desse sistema de erros que constituem o conjunto ou a
soma de nossas escolhas mais íntimas, pessoais e intransferíveis, esse conjunto de erros que
ainda chamamos vida. Não é possível, tal qual um Odisseu redivivo amarrar-se ao mastro da
nau do mundo, da vida, do ser em si mesmo, para ouvir o canto sedutor das escolhas, dos
erros, dos equívocos e dos enganos engendrados pelas sereias encantadoras do jugo, da
resignação, do conformismo diante do que, preferirmos pensar, não pode ser mudado. Não se
pode ouvir o canto tentador da vida e se manter alheio, distante, completamente esquecido. É
preciso entregar-se à própria atrocidade, à dor, ao horror das faces escuras e sombrias das
sereias.
01.01.2006
―O pai e a mãe andavam horas entretidos num jogo de cartas
com dois casais amigos. Marisa estava no banheiro no andar de
cima e, mesmo com a porta fechada, conseguia ouvir Chet Baker
na vitrola do quarto, onde seu girassol pendia na janela. É possível
que ela tenha rido, avaliado a possibilidade de serem aqueles os
últimos acordes que iria ouvir. O cabelo preto e crespo estava
354
comprido de novo ela o havia cortado pela última vez há exatos
seis meses e oito dias, conforme seu diário. Os pulsos ela tinha
acabado de cortar. E, bem ao seu jeito, deve ter pensado: ―Puta
merda, não imaginei que sangrasse isso tudo‖‖. (Marçal Aquino
―A Família no Espelho da Sala‖, em As Fomes de Setembro)
Às vezes, a vida é assim mesmo: a gente nunca tem idéia do quanto ela é capaz de sangrar.
Viver, existir, ser, não importa o nome que se dê, é sempre doer fora do lugar. A angústia que
me causa, entendo, é minha marca no mundo, minha forma de re-conhecimento. Uma
aparição, como diria Juliano Garcia Pessanha. Mas i, fere, queima desde o fundo da alma,
de si mesmo, sob aparência de remorso. Há sempre uma pergunta inevitável: se não sangrasse
tanto, a coragem não seria maior? Chet Baker tocando Stella by Starligth e um corte seco na
garganta, nos pulso, na memória a qual estamos atados. Saí de casa, tenho certeza de que o
amor que um dia eu senti terminou, mas não sou capaz de definir ou explicar esse sentimento
estranho e desconcertante de que feri alguém, de que a magoei ao trazê-la para dentro de
minha vida que tem a oferecer solidão, silêncio e a irrevogável sensação de exílio. Mas
como dizer? Como fazê-la entender que a felicidade sonhada por ela não existe. Em mim, no
Outro, no Amor, na Vida em Comum, distribuída e dada? Como dizer que felicidade é a mais
fraudada das esperanças que uma pessoa pode carregar ao longo de uma vida toda? A
felicidade sempre foi uma aspiração consoladora para quem não é capaz de perceber que o
espetáculo do mundo é o horror, a angústia, as dúvidas e incertezas que nos formam e nos
situam, que nos lançam de cabeça na existência, sem salvaguardas ou redes de segurança.
Somo os velhos trapezistas que desapareceram junto com o circo, os espetáculos, a história
perdida das coisas. Não se pode trazer alguém para nossas vidas quando tudo em que
acreditamos é na distância, no alheamento, na solidão, na ausência da palavra-consolo, da
palavra-ternura, da palavra-amizade, da palavra-amor. o se pode ter as mãos espalmadas e
o coração deserto. Não se pode oferecer ao Outro a descrença e o cinismo nosso de cada dia!
Um corte seco. A sedução de estar longe. Fica um sentimento canalha de enganos. Assim
355
como acontece aos santos, é preciso ser vocacionado para aceitar a condição do canalha
abjeto. Por que não me perguntei antes sobre os caminhos e os desvios do amor? Talvez,
porque, depois de tanta solidão e abandono, um dia a gente acaba vivendo a ilusão de um
amor minério, extraído diariamente da mina-convivênvia, que vai lentamente se arruinando
nas frágeis fundações, até que desmorone mesmo, e sobre partes de nós mesmos perdidas
sob os escombros. Hoje, por exemplo, é um dia em que todos se cumprimentam
hipocritamente, com seus mesmos falsos sorrisos, seus gestos e paraísos artificiais de
compreensão e entendimento, estendendo as mãos ou os braços, beijando-se, qual Judas
redivivo, confraternizando-se universalmente. Apenas hoje. No resto do ano, voltam a se
odiar, esquecer, ignorar e desconhecer normalmente. No resto do ano, as coisas voltam aos
seus devidos lugares. Talvez seja por isso que eu esteja bêbado.
13.01.2006
O ruim do amor, estou certo disso, é que é um sentimento biodegradável. Gasta-se com a
vida, perde-se com a vida, consome-se com o corpo, o sexo, o desejo vespertino ou noctívago,
distraída e vertiginosamente num prazer que dilacera os músculos, as forças, os membros e
arrebenta o corpo que não é capaz de saciar a alma solitária, que olha sempre para o outro
lado da vida. O amor é curto, como uma garrafa de uísque, um maço de cigarros, uma
conversa agradável e ocasional, que quase já não se pode encontrar. Estou cansado. Acho que
cansado demais para o amor como entrega, renúncia, presença plena e indistinta do Outro.
Penso que mesmo um demônio plácido e germânico dentro de mim, ensinando, hora após
hora, a difícil arte de trocar de assunto, de evitar os olhos, de não baixar a guarda. E o amor
exige o delírio louco, pungente, rouco e extremado do Outro. O delírio mesmo do amor.
Talvez eu seja mesmo o mais alemão dos brasileiros, o mais inglês dos alemães, o mais
francês dos abortados e perdidos galegos. São muitos povos habitando o mesmo corpo, a
356
mesma cabeça, os mesmos pensamentos. Não posso me livrar de uma educação britânica, que
vem com um senso de humo refinado e cortante; de uma postura alemã diante dos
sentimentos e dos afetos, uma postura atávica, que nasceu em mim, que herdei de meu pai,
que herdou de meu avô, que aprendeu com sua mãe, uma maquinista ferroviária depois da
Primeira Guerra Mundial, quando a população masculina fora reduzida à adolescentes
impúberes e aterrorizados. Não posso me livrar de um certo modo entediado de olhar a vida,
que herdei da leitura sistemática dos franceses. Um olhar blasé, uma crença profunda na
liberdade intelectual de Montaigne, Montesqueiu, Rousseau, Voltaire, Diderot, Sade, Gide,
Camus, Sartre, tantos nomes, meu deus, tantas obras, tanta memória! Na verdade, quanto mais
me aproximo da filosofia, menos compreendo ou sei exatamente quem sou. Tudo parece
irremediavelmente reduzido ao velho rio heraclitiano e suas parábolas enigmáticas. Estou só.
Sou só. Talvez isso não mude nunca. Talvez alguns nasçam com a marca indivisível de
uma solidão essencial, que jamais será compreendida. É como se, de repente, restasse
mesmo as palavras, e elas também não fossem capazes de alcançar o caos, a amargura, a
angústia que nos antecipam ao nosso próprio nascimento. Nietzsche, em O Anti-Cristo, afirma
que ―alguns homens nascem postumamente‖. Agora entendo o profeta sem morada. O
Zaratustra enlouquecido. O homem desejoso da vontade irrestrita de potência. Já não sei
amar. E provavelmente nunca, em momento algum, aprenderei, como os tolos de cara alegre,
esse sentimento que exige demais de nós: um espírito completamente desarmado. O amor é
um sentimento biodegradável, que já nasce condenado, porque nunca aprenderemos a amar de
verdade o Outro, porque só saberemos o que, inconscientemente, sempre soubemos: desejar o
desejo, enquanto esquecemos amargamente o objeto desejado.
18.01.2006
Hoje ela me ligou. faz mais de um mês que s da casa, entreguei as chaves, paguei os
últimos aluguéis, voltei para casa de meus pais e estou tentando recuperar, lentamente, minha
357
solidão e meu exílio, sem os quais não sou capaz de escrever, pensar, criar ou esquecer. Ainda
que, em geral, eu nunca esqueça. Conversamos como dois estranhos, porque é o que a
maioria dos casais se torna depois de toda separação. Estranhos, embora íntimos. Não vou
falar no fim do amor, se é que um dia houve, se é que um dia amei mesmo, se é que ainda sou
capaz de vivenciar esse sentimento comum, alheio, consolador e nostálgico ao qual as pessoas
se agarram como portos seguros, no qual as pessoas se atracam como um velho cais
abandonado depois de tantas ou poucas, indiferentes desilusões.
Você já pagou os aluguéis e devolveu as chaves?
Já.
Eu liguei para dizer que você é um imbecil!
Eu sei.
E que eu não merecia o que você fez?
A-hã!
Você não liga mesmo... nunca ligou.
A-hã!
E fica jogando toda a culpa em mim.
(...)
Por que você fez isso? É mais fácil, né? Ao invés de encarar os problemas de frente...
(...)
...não... é mais fácil ir embora... sair... terminar tudo, né? É mais fácil do que
conversar, do que procurar resolver as coisas, contornar os problemas...
358
Não sei.
Como assim: não sabe?
Não sei... é a primeira vez que saio de casa, esqueceu? Que termino um casamento,
que arrebento com a minha vida e, o que é pior, com a sua!
Então por que saiu?
Porque eu sempre seria o sujeito incompreendido, trancado numa biblioteca, em
silêncio, esquecido, sem voz ou palavras, sem a atenção, o afeto, a paixão que uma pessoa
real, de verdade, merece. Porque eu sempre vou ser esse cara triste, olhando a vida pela
janela, escrevendo coisas que se parecem com poemas, romances, peças de teatro, ensaios,
críticas, e etc... mas que o são nada disso... mas que representam minha forma particular de
sobreviver ao mundo, à realidade, ao que sou e sangra em mim diariamente... por que haveria
de compartilhar essa dor e esse alheamento que crescem diariamente, como um câncer,
roendo minhas certezas, minha forma de estar-no-mundo, minha existência desiludida?
Você é um desgraçado mesmo!
Eu sei... eu sei...
Desligou. E eu fiquei vagando pela casa durante um bom tempo, olhando as coisas, abrindo
livros Uivo, do Guinsberg, Atire no Pianista, de Goodis, Matadouro 5, de Vonnegut, Fazer
Amor, de Jean-Philippe Toussaint, e me detenho neste: leio pausadamente a história de um
casal que, depois de sete anos, fazem amor pela última vez, tendo Tóquio e a incompreensão
absoluta de todos os sentimentos como pano de fundo. Pego um café, feito pela manhã (já é
hora do almoço e tem um cheiro de carne assada pela casa), mas ainda quente, tomo de um só
gole e acendo um cigarro. Tenho fumado demais, bebido demais, caído e levantado demais
359
nos últimos tempos. Tenho sido acertado demais, também. Acho que perdi o senso de
orientação, acho que o ringue vai ficando cada vez mais estreito, que os punhos do adversário
o ficando cada vez mais próximos. Todo nocaute é inevivel. Sempre acabamos beijando a
lona, meio de quatro, meio deitado, tentando se levantar outra vez, reunir as últimas forças
para não acabar completamente derrotado, humilhado e ofendido. Mas é impossível. Fica o
supercílio aberto, sangrando sem parar, os olhos inchados, que vêem em dobro, que se
apagam de quando em quando, um braço doendo demais, que mal consegue evitar de todo a
queda. É inútil. Eu sempre acreditei que minha dignidade, que minha força, que minha
extremada e nem sempre bem-vista sinceridade me impediriam de, um dia qualquer, ser um
desgraçado. Tolice. Ao longo de uma vida inteira, é inevivel o pensarmos que, de tudo o
que temos feito e fizemos, não terminamos mesmo por ferir alguém, por magoar alguém, por
fazer com que o Outro beije a lona junto com nossa própria derrota. Eu tenho a impressão de
que eu nunca serei um sujeito que tem muito mais do que o do aluguel. Sem ambições, sem
grandes desejos sem nenhuns desejos, na verdade , sem sonhos ou expectativas. Não
poderia ser o marido que ela esperava, o pai que ela sonhava, o homem dividido e
compartilhado que ela sempre exigia. Sou feito de distância e silêncio, como um mar noturno,
como um mar de filme, como uma pedra de rmore, esquecida de qualquer escultura. Não é
fácil. Nunca será fácil. Mas todos pensam que sim, porque eu acendo um cigarro, encontro
um canto qualquer do bar, bebo mais do que deveria e sei usar um repertório excêntrico, às
vezes, compreensivo ou engraçado noutras, mas isso raramente, apenas quando estou
verdadeiramente sozinho, doendo fora de mim mesmo.
Pressenti então que a terra começaria a tremer mais uma vez,
como aconteceu quando tínhamos entrado no hotel algumas horas
antes, e eu achava que o abalo que tínhamos sentido havia tão
pouco tempo, como todos os abalos telúricos perceptíveis por
meio dos sentidos, pudesse ser interpretado legitimamente como o
sinal precursor de um abalo maior, ele mesmo anunciando um
grande terremoto, e por que não um muito grande, o maior de
360
todos, o famoso big one que está previsto para Tóquio por todos os
especialistas, comparável àquele de 1923, ou de 1995 no Kansai, e
talvez até com intensidade superior, com um grau de destruição
desconhecido até hoje, inimaginável levando-se em conta o grau de
urbanização atual de Tóquio, além de qualquer previsão
catastrófica. E, no proveito daquele ponto de vista arrebatador
sobre a cidade, eu comecei então a invo-lo do fundo dos meus
desejos, aquele grande terremoto o temido, desejando em uma
espécie de ímpeto grandioso que ele se desenrolasse naquele
instante à minha frente, naquele mesmo segundo, e fizesse com
que tudo desaparecesse sob meus olhos, reduzindo Tóquio a
cinzas, a ruínas e a desolação, abolindo a cidade e o meu cansaço,
o tempo e os meus amores mortos. (Jean-Philippe Tousaint
Fazer Amor)
Um abalo sísmico.
Um terremoto.
Uma devastação.
Por que você fez isso comigo, com a minha vida?
(...)
Fica uma incerta culpa, talvez herança de uma formação crisque perdi antes da primeira
comunhão, mas que deixa rastros, restos, estilhaços de dúvida em mim. Não é fácil, simples,
limpo ou humano ser um desgraçado, descobrir, pela primeira vez, que se pode arrebentar
com os sonhos alheios quando o trazemos para dentro de nossas vidas. Não consigo pensar,
o consigo ser o velho egoísta de sempre, de nunca, o canalha ofendido, o pulha, o falsário, o
cínico falhado. Gostaria de poder escrever que não dói, gostaria que não sangrasse isso tudo,
que as palavras não reverberassem em mim como os ecos dolorosos de um atropelado, de
361
alguém que tenta se levantar depois de ter a alma arrebentada como uma fratura exposta. Mas
as palavras vertem numa hemorragia incontinente. E volto a aprender sobre minha dor, eu que
sempre mantive a altivez indecente de minha ascendência germânica, que encerra os afetos,
que os trancafia num baú de guardados que fica esquecido na memória, que ri do amor do
amor, do desejo do desejo, que acredita no pensamento, no racionalismo, na causalidade
pragmática do mundo. Talvez seja hora de aprender, também, que, por maior que seja a
retidão com a qual encaramos a vida e procuramos vi-la, estamos e sempre estaremos
sujeitos a sermos os desgraçados das próximas cenas, dos últimos capítulos. É vão dizer que
o queria que fosse assim. E isso não muda nada. Nem a forma como me sinto, nem o modo
como sei que atingi tantas pessoas nesses vinte e sete anos, mais de dez escrevendo,
discutindo, pensando e destruindo as certezas definitivas de tanta gente.
25.01.2006
Eternos Naufrágios
Tenho bebido demais, como se meu gado fosse blindado, feito esses velhos tanques de
guerra em exposições do dia da Independência ou da Proclamação da República. Acordo
sempre com uma máquina de pinball dentro da cabeça aquela bolinha se arrebentando
contra os marcadores, enroscada, e um sujeito batendo contra o vidro da máquina tentando
evitar o tilt. Tenho corrido demais, afundado madrugada adentro. Tenho evitado olhar as
pessoas nos olhos. Tenho dito uma série de inconveniências em lugares blicos meu
repertório exntrico no lugar do caráter, da alma que nunca se desarma completamente.
Tenho andado sozinho demais, sorrindo os mesmos sorrisos cínicos que aprendi desde antes
da puberdade. Às vezes, a gente finge que é feliz, enganamos os tolos de cara alegre, mas não
conseguimos mentir tão bem a ponto de iludirmos a nós mesmos. É o pro que se paga. Ou a
parte que nos cabe desse enorme latifúndio chamado existência: depois de um certo tempo, de
362
uma determinada maneira de encarar a realidade que nos cerca, não nos resta a esperança de
qualquer ilusão. Tenho evitado pensar na absoluta falta de sentido em quase tudo o que faço,
desejo ou digo. Afinal de contas, não posso evitar essa já antiga e amarga companheira que se
veste num vestido negro e que é sempre a intica sensação de naufrágio.
A imincia do afundamento ou o vazio da coisa em si.
Tenho tentado amar um amor menos frio, menos racional, menos desacreditado, menos vira-
lata que os amores que posso e venho oferecendo a quem, ilusionadamente, se aproxima de
mim. Mas todo esforço é inútil. Penso que esse amor esvaziado e triste é a única coisa que
posso partilhar.
03.02.2006
O grande problema do sexo casual é que a maioria das mulheres mais interessantes não está
interessada.
10.02.2006
2h15 da Madrugada Ou O Que Fitzgerald Chamava de A Noite Escura da Alma
Outra madrugada bêbada.
Mais uma noite de desacertos e a crença na salvaguarda possível através de uma garrafa de
uísque. Tenho vivido e esperado pouca coisa de real e concreto. Meus olhos já não chamam
por nada e sei que algo em mim se perdeu para sempre, irremediavelmente. Talvez a
capacidade mesma de amar o amor do amor, quem sabe, o desejo, a urgência, a entrega
tumultuosa e apaixonada ao Outro. Na verdade, de tudo o que, um dia, sonhara ser, só
restaram bêbadas lembranças. Sou um modesto professor de Literatura, um poeta sem voz
e um escritor eternamente exilado nas palavras, nos interstícios do silêncio, renunciado e
363
esquecido numa solidão incontornável que eu mesmo concebi secretamente ao longo de tantos
anos.
Já não sonho.
Todas as aspirações foram dando o fora, uma a uma, lentamente.
It’s all over now, Baby Blue.
O Negro Amor.
As últimas grandes ilusões deixaram-me de vez, de forma estranhada e definitiva. Nada dura.
Nada parece real. Uma felicidade amesquinhada, pouca, vagabunda como eu mesmo me sinto,
percebo e vivencio ao encarar esse eterno estranho no espelho. Às vezes, penso, já não
grandes sonhos a buscar, grandes glórias, impossíveis caminhos a percorrer. Amanhã, o dia
de amanhecer igual uma ressaca para curar, a caba feita uma máquina de pinball e a
mesma ausência a suportar. Ando mais bêbado do que gostaria. A barba por fazer e o mesmo
vazio derrotado como o brilho fóssil de incontáveis estrelas. Viver é doer sempre fora do
lugar a mesma dor desajustada que não me serve ou consola, mas que também nunca me
abandona.
O cigarro queimando solitário no cinzeiro.
O desejo maior que o desejo.
Minhas palavras vazias de qualquer poesia que possa dar sentido a esse amontoado de
escombros de que me faço e do qual jamais poderei ser resgatado.
Tenho sentido o tempo passar. Tenho vivido o peso do tempo, o nome de tantos enganos e
tenho sofrido e calado, e estado em silêncio que quando tenho dito nada mais sou, lembro ou
364
pareço do que um pobre-diabo esmolando a atenção, o amor, o desejo, a paixão da primeira
mulher desavisada, descrente e, quem sabe, igualmente perdida.
Amanhã é conjugar o tédio, o vazio e a ressaca de amanhã.
12.02.2006
Somos macacos pensando que somos deuses.
19.02.2006
A Maldição das Palavras
Para D. F., depois de uma conversa agradável, me
deu o argumento para este artigo.
O Escritor é a mais solitária das criaturas. Órfão nesse mundo de ilusões e desentendimentos
grandes. Escrever é vivenciar a dolorosa experiência da renúncia, do abandono e do
esquecimento. A solidão... aquela solidão essencial de quem de se desliga completamente de
tudo que o cerca, de quem jamais seria capaz de compreender ou se contentar com o
espetáculo do mundo‖. O Escritor ensaia sempre uma vingança pelo quanto sua condição lhe
obriga os sentimentos mais desajustados, a condição mais dolorosa: naufrágio e danação.
Estar sempre e irremediavelmente sozinho a exigência da escritura, do pensamento, da vida
estranhadamente ensimesmada, sua usura, sua única e verdadeira certidão. Quanto mais
próximos estamos das palavras, mais acabamos por viver essa dor de estarmos perdidos de
todo e qualquer sentido. Escrever é um gesto de irrevogável perdição: trazemos a solidão das
palavras para dentro de nossas próprias vidas, e nos confundimos com elas, e nos perdemos
em seus caminhos sem volta, recusa ou compreensão. Escrever ultrapassa todo o
entendimento, toda a aceitação, para ser apenas uma forma de resistir enquanto nos
365
entregamos ao desconhecido do mundo, das coisas, dos seres e de nós-mesmos, sob o manto
diáfano de uma verdade sempre, sempre incerta.
O Escritor é um indivíduo tentado a dizer, dar voz, definir ou sugerir os contornos
indevassáveis dos mais estranhos e desconfortáveis assuntos. Mas se disser tudo o que pensa,
acaba ainda mais relegado à condição de pária essencial. Quem pode garantir que, depois de
tantas e irrecuperáveis palavras, eu o tenha, de algum modo, ferido alguém, magoado
alguém, violado, agredido, atacado o Outro, tão perdido e desolado quanto eu mesmo? Quem
pode garantir que escrever salva um afogado? Que a escritura é o lugar de uma revelação e
uma descoberta, ambas dolorosamente angustiadas? Escrever sugere todas as inconfundíveis
possibilidades de re-criar o mundo não assim como o percebemos, mas como acreditamos,
sinceramente, que poderia ter sido. A vida é um espelho trincado, partido. Escrever, quem
sabe, não seja uma forma de aprender a juntar os pedaços, certos de que sempre fica faltando
algo uma parte... uma metade... um capítulo... um verso... e a gente resiste a se sentir
derrotado por essa falta... e vai re-conhecendo que o nome disso, quem sabe, talvez ainda seja
vida.
A arte é uma maneira de nunca estar completamente derrotado. Os gênios estão por toda a
parte. Como disse Da Vinci: "Tudo que é belo morre no homem, mas não a arte". Mas a vida
é sempre outra coisa, está sempre em outro lugar, fora de nós, distante, intocável, feita de
enganos e promessas que nunca se cumprem. Como definir a vida quando estamos sempre
sozinhos? Eu poderia responder, com Juliano Garcia Pessanha, que "a vida de um homem é o
instante em que o mundo, em vão, se ilumina". Mas é possível que ela seja mais do que isso.
É possível que a vida seja um encontro constante, consigo mesmo e com o Outro, uma
descoberta que não termina, nunca, exceto com o nosso fim, cuja história não nos pertence e
sempre será contada por outras vozes - as dos que virão depois de nós, quando vierem e nós
366
tivermos ido, numa última e incontornável viagem. A vida é a revelação de enganos, acertos,
desilues, sonhos, tristezas e felicidades que vão se transformando, com o tempo, num
universo de lembranças. Cabe ao escritor dar a esta memória derrotada da vida a beleza de
uma cadência, de uma fábula, de uma história. Escrever é subjugar a própria vida em nome de
um sentimento puramente estético, que nos perde e não destina.
A Maldição Das Palavras.
Elas nos tomam para si e nunca mais nos devolvem ao mundo que nos cerca e do qual,
aprendemos, jamais seremos parte absoluta, real e verdadeira. Nunca existiremos fora de nós
mesmos como algo concreto porque as palavras nos condenam ao exílio e ao abandono
que pulsa assustadora e ilusionadamente em nós. O que fazemos é isso que nos define. Ou
o? Ou nunca chegaremos a compreender plenamente o que nos define, nossa medida exata
no mundo, na vida, na realidade da qual jamais conseguimos fazer parte. Às vezes, escrevo
poemas que ninguém lê... Mas valem, sempre valem, porque sei que, sob muitos aspectos e
por pior que sejam, acabam me definindo em relação ao que sou e esqueço em mim. Tem
gente que espera a novela das oito... tem gente que espera aquela ―música linda que nunca
toca no rádio‖... tem gente que estuda o Guimarães Rosa, o Romantismo Alemão e que o
sabe ao certo qual a sua mais perfeita tradução... Escrever. Ser refém da maldição
incontornável das palavras. Às vezes a gente se descobre um pouco no que faz, mas nos
traduzirmos mesmo, isso é impossível: vai sempre prevalecer aquela estranha sensação de que
falta parte da explicação... algo do tipo: mas afinal, qual é a pergunta? Acho que nunca nos
definimos ou nos desvelamos completamente.
E não é cil descobrir, viver, conversar com alguém que olhe para gente e entenda de
verdade o que estamos dizendo. Em geral, fico com cara de cachorro sem dono, porque
sempre me olham como se eu fosse um Dodô extinto, um pássaro de cinco asas, um cachorro
367
falante. Talvez seja essa a maldição das palavras. Mas, também, talvez seja apenas nossa
maneira singular de olhar o mundo, as coisas, o Outro, nós mesmos... acho que eu não existira
sem as palavras... apesar de tudo, apesar de nada, apesar delas... Rodrigo Garcia Lopes tem
um verso que gosto muito pelo que trás de definidor e secretamente doloroso: "Estamos em
estado permanente de linguagem". Estamos condenados a nossa falta mesma de sentidos. Nós
sempre acabamos exilados em meio a uma multidão de gentes porque sempre falta a palavra
certa e a hora certa de dizer... mas nós somos assim... apenas porque conhecemos a maldição
e a urgência das palavras... por isso essa necessidade de entender e de aprender o convívio
quase impossível com quem jamais nos entenderia. Pedir compreensão, entendimento, o afeto
amoroso, incondicional, para alguém que não viva e o sinta a urgência extremada das
palavras, o exaspero e a solidão que elas nos solicitam, é um erro, acredito. Nós é que
devemos aceitar esse desafio de Sísifo que é compreender quem não nos compreende. Embora
nunca seja fácil, simples e certo. Embora sempre acabemos por trazer para dentro de nossas
vidas todos aqueles que jamais entenderiam que cada palavra é uma dor e uma solidão que
nunca cicatrizam.
Porque a maldição das palavras também não nos poupa os mais tristes enganos...
25.02.2006
A Urgência Amorosa
O maior engano que podemos cometer é ceder à tentação de buscar entender o sentimento
amoroso.
a tua voz rouca do outro lado da linha. Uma voz que conheço a cada nova conversa. Tua
imagem, em relevo, de outros tempos, quando jamais poderia imaginar tua presença em mim.
Quanto tempo mesmo? Eu era um garoto que chegava à universidade em busca de uma paixão
368
que, aos dezoito anos, me perdia irremediavelmente para o mundo: a literatura, a poesia, o
desejo abissal de escrever. Tudo tinha a ver com o ideal ilusório de que a escritura poderia
servir de consolo para uma solidão que ela mesma, secretamente, destilava em meu ser.
Sempre houve duas solidões em mim: nasci sob o signo de um olhar desconcertado e
melancólico para as coisas, um olhar que me priva do sonho inocente de uma felicidade
vendida à prestações em jornais, revistas, programas de rádio ou TV; de uma felicidade
artificial e esvaziada de qualquer sentido o simulacro da realização pessoal, da conquista, da
vida segura, certa, consumidora e terapeutizada. Essa é a primeira das minhas solidões: esse
desarranjo em relação à vida, ao mundo e à realidade que me cerca e solicita uma integração
ruminada diariamente, conformada e submissa. A outra, aprendi nos interstícios da palavra e
do silêncio, em páginas e páginas lidas, vividas, imaginadas e sentidas bem mais intensamente
do que qualquer outra experiência real e concreta.
Nunca conseguirei vencer essa solidão essencial abatida sobre mim.
Por isso um casamento naufragado antes mesmo de ter sido de fato.
Por isso meu desejo de renúncia e esquecimento, minha incapacidade de me partilhar
plenamente com o Outro.
Vivo essa vontade de estar desabrigado de tudo. Mas quem poderia compreender? Como
solicitar àqueles que amamos o entendimento de uma absoluta solidão, de uma terrível
estranheza que é nossa marca no mundo, nossa forma de estarmos vivos?
Na primeira vez em que te vi, alguns anos atrás, pude pensar que minha distância, meu
desacerto, minha inconfundível solidão, jamais me permitiriam a proximidade desarmada que
a paixão amorosa solicita. Mas depois de tanto tempo, agora formado, ensinando, discutindo,
369
falando para duas ou três salas desatentas ou indiferentes sobre a paixão dos livros que me
consome, acabo por te reencontrar. Ambos, de algum modo, certos de que nossas vidas
naufragaram numa tormenta sentimental que nos ensinou a claustrofobia, o sufoco, a angústia
de toda entrega: teus amores também não foram os mais felizes, gratificantes ou translúcidos
que poderia esperar. Talvez nenhum amor seja o Ideal se nos dizem, se os ouvimos, se nos
tentam infligir. De repente, numa noite deserta de sonhos ou comprometimentos, nos
encontramos em uma festa e, ainda que nunca nos tenhamos falado (apesar de ensinarmos
numa mesma instituição, de nos encontrarmos uma vez ao ano para reuniões intermináveis, de
nos cumprimentarmos com um único e educado gesto, repetido na despedida), passamos uma
madrugada inteira partilhados, divididos, distribuídos e dados.
Agora, os dias angustiados, numa espera que imprime na memória e no corpo o
estranhamento de se descobrir e sem palavras diante de tantas e insondáveis sensações. Os
dias desiludidos, esperando a madrugada em que verdadeiramente desperto sob a rouquidão
da tua voz, sob teus sorrisos ao telefone, que imagino calado, sem nunca te dizer que te
adivinho na cidade onde está, em teu quarto, deitada entre travesseiros, me contando o teu dia,
me ensinando algo da tua vida. E eu, com a guarda baixa, oscilando entre o medo maior que o
medo: o o de que se apaixone por mim e, depois, eu o saiba o que fazer de teu amor e da
minha solidão, mas de que eu-mesmo descubra em teus olhos a urgência amorosa a qual
nunca me entreguei sem reservas ou o cinismo de gauche que sempre me permitiram uma
vida segura e sentimentalmente medíocre. Então, tento inutilmente entender o que sinto desde
o teu primeiro telefonema, desde essa noite confundido em ti, na vigília de teu sono livre e
despreocupado, rendido em meus braços.
Sei que ambos esperamos algo do que temos descoberto em nós, do que temos vivenciados
por que não dizer? juntos.
370
E sei que irá embora.
E sei, também, que estaremos distantes até nosso próximo encontro.
E que não há respostas para o que sentimos.
Apenas sentidos.
Mas tua distância já fala em mim a ausência, o desejo, a espera.
―Estou apaixonado? Sim, pois espero.‖ O outro não espera
nunca. Às vezes quero representar aquele que não espera; tento
me ocupar em outro lugar, chegar atrasado; mas nesse jogo
perco sempre: o que quer que eu faça, acabo sempre sem ter o
que fazer, pontual, até mesmo adiantado. A identidade fatal do
enamorado não é outra senão: sou aquele que espera. (Roland
Barthes
Fragmentos de um Discurso Amoroso
)
A espera é a única certeza e o único caminho que o sujeito amoroso, perdido, sem sonhos ou
respostas, pode percorrer. A espera arde em algum lugar de nós, como uma tarde sufocada e
quente de verão; como um dia sem brisa, deserto e silencioso. Toda a urgência amorosa, toda
a entrega ao desejo, toda a espera pelo que sequer podemos definir ou afirmar mesmo como
amor, solicita a ânsia sobressaltada da espera. Um gesto, um sorriso, um telefonema, uma
simples palavra, um olhar-enigma, não importa qual seja o nimo sinal signo quase que
desesperadamente esperado pelo sujeito enamorado -, tudo se transforma quando nos
deixamos marcar a pele, o corpo, a memória, com os traços inconfundíveis da espera. O Outro
nos toma inapelavelmente quando se nos obriga sua ausência apaixonada, sua presença difusa
entre as coisas, os móveis, a lembraa e os descaminhos mesmos de nós.
De um modo ou de outro, te espero, como um navio à deriva espera o último e inconfundível
facho de luz de um farol igualmente abandonado.
371
21.03.2006
John Donne, poeta e sermonista barroco inglês, foi o primeiro a afirmar a iia de que
―nenhum homem é uma ilha‖. Tento tocar de leve que seja, como numa carícia tênue essa
verdade emanada dos espaços insondáveis da poesia. Tento vivenciar, ainda que apenas a
superfície, esse platô tico-profético, essa celebração do Outro como realidade
multifacetada, despedaçada, disseminada em cada rosto, em cada indivíduo, em cada
singularidade que nos cerca e que jamais permite nossa solidão sem-causa. Sim, porque ainda
que Donne não tenha pensando, necessariamente, na imagem difusa e vaga do Outro, esse
homem alheio a todo isolamento, nunca à deriva, privado de toda ausência é o símbolo
máximo do homem moderno, que já o pode fugir a um mundo que busca a plenitude a
partir de um convívio cada vez mais doloroso e impossível com os estilhaços humanos que
nos cercam, nos perseguem e se afirmam em esquinas, cruzamentos, avenidas, bares, cafés ou
livrarias. O mundo anda repleto o que assusta e consterna porque, apesar da presença-
absoluta ser a única realidade possível, nunca, como nos dias de hoje, os homens estiveram
tão desesperadamente perdidos, sozinhos, relegados à sua própria e sempre duvidosa
subjetividade. Como ser sujeito num mundo de anulações mercadológicas e de alienações
afetivas, sentimentais, éticas ou morais, que tudo pode ser substituído pela urgência das
trocas impossíveis?
Quem foi que disse que todo homem não é mesmo uma ilha?
23.04.2006
Houve uma certa maneira de olhar para a vida, para as coisas, para o mundo que pensávamos
criar. E havia muito de uma ternura deliberada, franca, suave muitas vezes. Houve desejo e
paixão ambos foram verdadeiros em cada gesto e olhar, em cada procura mais ou menos
silenciosa, em cada desejo tácito, em cada pedido urgente. Desejo e paixão... Havia o seu
372
corpo que desafiava os limites do meu próprio corpo e que ardia em certas noites desiludidas
de terça-feira, depois de um dia inteiro de trabalho, leituras, anotações e pesquisas. Sua roupa
de dormir. Sua blusinha leve, florida, combinando com o short, a ausência dos sutiãs... os
beijos forjados no escuro de um quarto que mal aprendíamos a compartilhar, sobre uma cama
que nos abrigava nos horários mais estranhos e distintos. Eu sempre trabalhei até tarde da
noite. Vo sempre dormiu cedo. Às vezes, eu ficava a madrugada toda no sofá porque
achava uma injustiça te acordar depois de ter preparado o jantar, dobrado a roupa, acertando
um ou outro detalhe de uma casa que estava, quase sempre, na mais perfeita e inquestionável
ordem. Achava uma injusta acender as luzes do quarto e ver você acordar assustada, os
olhos apertados de sono, sorrindo e me perguntando se, dessa vez, eu havia resolvido mesmo
deixar os trabalhos madrugada adentro e ser a companhia que você sempre sonhara. Quanto
tempo já, desde que fui embora e, não se engane, reconheço, fui eu quem s tudo a perder
porque, em uma vida inteira, a única coisa de mais humana que soube fazer foi pôr as coisas
todas que amei, desejei, busquei e vivi como as últimas e mais desesperadas coisas, a perder
e aprendi a conviver com o sentimento ambíguo e derrotado de que, apesar de nosso íntimo
desencontro, parte de mim tão marcadamente guardada e presa em ti, que jamais de
voltar. Se eu soubesse, se eu pudesse, pediria perdão ou desculpas, essas duas palavras que
nunca existiram. Mas eu não sei. conheço algo de mim que grita inevitavelmente a mesma
solidão. E sei que seria a maior injustiça do mundo compartilhar contigo justamente o lado
mais pesado e doloroso da minha forma de estar-no-mundo. Além do que, você sabe, talvez
me conheça melhor do que eu-mesmo: jamais aprendi a pedir perdão. Jamais fui capaz de
vencer um afeto nostalgicamente encerrado em mim e que o me permite baixar de todo a
guarda e viver a extrema e arriscada aventura amorosa. Tudo o que sinto ou penso é um
segredo insuportável que tenho de carregar comigo porque, depois de tanto tempo, cansei de
revelar parte dele, e perceber nos olhares confusos das pessoas que elas nunca, nunca
373
compreenderiam. i. Vai sempre doer a sensação de que você tem mesmo razão: sou um
sujeito com a cabeça cheia de livros, pensamentos, idéias, mas com coração terrivelmente
esvaziado, frágil, impotente diante dos grandes sentimentos que poderia experimentar caso
o sofresse uma solidão que, desde de todo o tempo em mim, me persegue como uma
sombra e me aparta do mundo como o último sujeito que caminha para lugar nenhum. Vazio.
Como gostaria de encarar o espelho, me barbear de novo, pensar que poderia ser diferente, se
o fosse a covardia escrota que durante tantos anos me manteve diante do mundo, das coisas,
dos seres e do Outro, que me privou do amor esse mesmo sentimento que ironizo, cuspo e
mijo em cima de forma mordaz e virulenta, só porque, no fim das contas, nunca soube mesmo
como vivê-lo em sua total, plena e absoluta gratuidade. Mentiria se dissesse que não sinto a
sua falta. Mentiria mais ainda se afirmasse que essa falta é o amor que, depois de nos
desencontramos e nos perdermos, descobri em ti. Sinto falta do que poderíamos ter sido caso
eu fosse o sujeito que se deita a hora de deitar, que diz bom-dia a hora de dizer bom-dia, que
toma banho, almoça e janta com cada hora em seu lugar. Houve uma vontade de protegê-la de
um mundo estúpido e idiota. E acabei trazendo-a para dentro da minha própria estupidez, da
minha imperdoável idiotia. Houve os seus raros sorriso que me encantavam, enquanto os
admirava da varanda, fumando em silêncio e pensando que você merecia mais do que a
angústia que carrego comigo da hora em que acordo até as altas madrugadas insones, vagando
pela casa, debruçado na janela, trocando com violência e desprezo os canais da TV.,
abandonando o livro sobre a mesa de centro da sala porque não consigo sequer distinguir as
palavras que vão morrendo de uma linha à outra. Houve uma história abortada, que nem sei se
poderia ser feliz ou infeliz. Talvez, na contabilidade geral dos afetos, descobriríamos, um dia,
um débito impossível de ser saldado de você para mim, de mim para a mulher que você
sempre foi a despeito do garoto triste, melancólico e desajustado que não pude deixar de ser.
Em quatro meses, quase, não dia em que tudo o que fomos, vivemos e sonhamos não doa
374
em mim uma dor que, como todas as outras, i sempre fora do eixo, num lugar
desconhecido de quem sou e naufraga como os mesmos personagens que passei a vida a
conceber. Mas você é real e foi esse o maior erro que eu poderia cometer. Em nenhum
momento viveríamos as histórias que traçávamos para nós mesmos, cada um em sua própria e
ilusionada imaginação. Houve o prazer de estar em teus braços, conhecer tua língua, teu
corpo, tua alma prática, certa, quase nunca volátil, mas que deixava em teus olhos um ar de
certeza que por nunca ter vivenciado plenamente às vezes me encantava. Houve, em raras
oportunidades, minha angústia serenada em ti, na tua companhia, quando julgava o andar
só pelos caminhos. Mas é sempre triste imaginar que em momento algum poderia ser parte do
teu sonho incessantemente sonhado. Pensei que, ao teu lado, eu poderia vencer uma solidão
amargurada que me acompanhou diariamente desde um fim-de-tarde de outono, numa quarta-
feira fria de chuva fina, quando me abriguei numa velha biblioteca no centro da cidade e
descobri a secreta e dolorosa paixão dos livros num poema que falava em partidas,
esquecimentos, abandonos e desencontros. Não pude. Pensei que pudesse vencer, ao teu lado,
a maldição das palavras e a angústia inconsolável do silêncio. Inútil ainda sou o mesmo
sujeito atormentado pelos fantasmas do porão. Desajustado e em pânico, sofrendo o medo-
pavor da morte, da doença ou da loucura, banido em mim-mesmo, exilado e esquecido um
pária nesse mundo de falsas, mentidas ilusões, nessa vida de inquietações e desassossegos
grandes, que jamais se justificam, que nunca se dão a ver, mas em que até os sonhos murcham
alheios a qualquer florescência. Falo dos lilases, dos velhos lilases gerados sobre a minha
própria e particular terra desolada. Faz sempre inverno em mim. Vou ter de conviver com as
vidraças quebradas, com os desvãos da minha alma, com meus desacontecimentos latentes,
que bem poderiam ser o vento frio que se anuncia pelas frestas que o tempo abriu nos
deslimites de mim.
375
24.04.2006
Excertos Retirados ao Artigo O POEMA EM PROSA E O RESGATE DO
SIMBÓLICO: A TRADIÇÃO REINVENTADA”
74
A poesia que dialoga com o mito nada mais é do que a tentativa de trazer à tona, fazendo da
linguagem seu artifício supremo, os mistérios insondáveis e esquecidos da história, da vida,
do espírito humano.
*****
Resgatar o mito é abrir os sentidos de uma linguagem que procura instaurar o mundo, numa
luta renhida com os próprios limites da representação, com o próprio re-conhecimento de que
a linguagem é um jogo ao qual o poeta não pode se submeter sem antes desvirtuar ou
subverter as regras desse mesmo jogo: ―Riscos de adagas na pele da face. Palavras são
minas‖ (ASSUNÇÃO, 2002, p. 15).
*****
74
Artigo a ser publicado no livro Extremas Estrelas, organizado pela Professora Doutora Maria Lúcia
Fernandes, da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP Araraquara. Trata-se de uma iniciativa louvável por
parte da universidade um dos raros livros concebidos e publicados com o interesse de divulgar, a partir do
meio acadêmico, a produção poética contemporânea no que ela tem de mais singular, caractestica e incisiva. O
artigo estabelece uma relação entre o livro Cinemitologias, de Ademir Assunção e Dicionário Mínimo, de
Fernando Fábio Fiorese Furtado. Ambos têm o mérito de conceber uma poesia absoluta e plenamente consciente
de que a arte poética contemporânea tem se afastado de forma triste e condenável da palavra como o suporte para
a expressão aberta e francamente simbólica das coisas, do mundo e dos seres. Cinemitologias aventura-se pelos
deslimites do verbo, flertando com imagens desconcertantes e aceitando sua filiação decisivamente surrealista,
híbrida, desconcertante, que vai da arte primitiva aos urros inconformados de uma época que fez da crença no
progresso técnico sua única e condenável salvaguarda. Ademir Assunção luta contra esse estado de coisas
fazendo com que seus poemas em prosa desagreguem a linguagem burocratizada dessa realidade tecnológica e
re-encontre sua comunhão secreta com os mitos primitivos, retrabalhados a partir de uma ótica nova,
intransigente, instigante e desafiadora, que faz das situações mais inusitadas, dos sentimentos mais ex-cêntricos e
da visão ora desconsolada ora terna da paisagem urbana sua força de resistência e contestação ao esvaziamento
da linguagem-propaganda, da linguagem-de-balcão, da linguagem-dos-departamentos-de-letras-ou-dos-jornais-
diários. Fernando Fábio Fiorese Furtado, por sua vez, faz com que seu livro ensaie essa mesma resistência, mas
pelo jogo ardiloso do racionalismo cínico, das falsas saídas eruditas, das citações sem fonte e referência,
parodísticas dessa mesma linguagem engajadamente departamental, fake, artificial e igualmente vazia.
376
O poema em prosa, então, é a forma perfeita para provocar, em plena contemporaneidade, o
estranhamento, o choque e a ruptura que a linguagem poética solicita.
*****
Nessa espécie de Idade de Ouro às avessas em que vivemos, a linguagem parece ter se
contaminado pela ideologia tecnocrata vigente, sujeitando-se aos princípios da tecnologia,
automatizando-se barbaramente. o que se pode chamar de triunfo da técnica, como, um
dia, no início do século XX, sonharam os futuristas, antes de despertarem para o pesadelo de
um progresso que arrastou a humanidade para os excessos de duas grandes guerras. O século
XXI principia sob a égide de um pensamento automatizado, sob uma nova ideologia das
máquinas: os computadores, com seus códigos binários, com sua linguagem simplificadora,
com sua infovia e seus registros programados o Html, o Java, o Linux impõe um
pensamento que se quer lógico e preciso, esvaziado de sentidos, denotativo e referencial ao
extremo, um pensamento que, em suma, abdique completamente da dimensão simbólica e
reveladora da linguagem.
*****
No século XIX, o movimento romântico foi o grande responsável por uma verdadeira
revolução no pensamento estético e filosófico. Na literatura, ele fez com que o romance se
firmasse como o gênero por excelência da classe burguesa, que consolidava um processo de
ascensão iniciado com a formação das grandes cidades, ainda durante a Idade Média. Dessa
forma, expressões como literatura burguesa e, sobretudo, romance burguês ganham um
377
sentido bastante peculiar: formas que servem, ao mesmo tempo, de entretenimento para uma
classe financeiramente abastada, que se entediava com a própria fortuna, e um meio de se
obter a cultura que faltava à burguesia e que era o único patrimônio que restara à nobreza
arruinada do Antigo Regime.
*****
Arlindo Machado, no ensaio Poesia e Tecnologia
75
, afirma que no mundo contemporâneo,
com o desenvolvimento constante e sempre mais acentuado de novos processos e
procedimentos tecnológicos, ―sucessivas gerações de poetas e analistas se tornam cada vez
mais convencidas de que o conceito de escritura está se redefinindo profundamente em nosso
século‖ (1998, 12). O crítico trata de uma forma de escritura a poética que tem suas
estruturas drasticamente marcadas por esses novos processos tecnológicos: a infopoesia, a
holografia, a videopoesia, e etc., seriam novas formas de escritura poética em que a palavra
sua matéria fundamental acabaria por se transformar radicalmente a partir das possibilidades
oferecidas por essas novas formas de mídia: o uso deliberado das cores; o movimento; a
projeção; a ocupação espacial; a dissolução seriam maneiras de re-significar a palavra,
abrindo-lhe novas possibilidades de sentido:
Assistimos hoje a uma transformação tão importante no modo de
produção textual quanto aquele que, em outros tempos, substituiu
instrumentos como o pincel, o caniço e a pena de ganso por caracteres
móveis uniformes, ou suportes como a pedra, o papiro, o pergaminho
e o velino por folhas de papel seqüenciais. Sausure costumava dizer
que o fato de uma palavra ser escrita com esta ou aquela cor, com
pena ou cinzel, em alto ou baixo relevo o tinha a menor
importância, quando o que estava em jogo era o seu processo
significativo. Mas no discurso poético, os recursos expressivos de que
lança mão o poeta são fundamentais para definir os significados
75
Machado, Arlindo. “Poesia e Tecnologia”. In: Revista da Biblioteca Mário de Andrade. São Paulo, V. 56,
janeiro/dezembro de 1998.
378
construídos pelo poema.
Quando a palavra é colocada numa tela de televisão ou restituída
tridimensionalmente através da luz coerente do laser (na holografia),
quando ela ganha a possibilidade de movimentar-se no espaço, de
evoluir no tempo, de transformar-se em outra coisa e de beneficiar-se
do dinamismo cromático, a sintaxe que a rege torna-se
necessariamente outra, as relações de sentido transformam-se e o
próprio ato de leitura redefine-se. (MACHADO, 1998, p. 12)
Não dúvidas de que os recursos expressivos tomados de empréstimo ao domínio das novas
formas de mídia transformam os sentidos da palavra poética e redefinem o próprio ato de
leitura, mas o que nos interessa, aqui, é perceber que o resgate do valor expressivo da palavra
sua dimensão simbólica, que abre o jogo dos sentidos não vive e não pode viver na
dependência restrita da técnica, não se apenas por meio de novos suportes ou diferentes
instrumentos de escritura, mas também no domínio da tradição aberta e sedimentada pelo
próprio livro. Assim, Arlindo Machado parece condicionar a mudança de rumos da escritura
contemporânea aos processos oferecidos pelas novas tecnologias, o que significa um
reducionismo gritante em relação à capacidade do poeta em redimensionar o valor e o pode
simbólico da palavra sem contar com determinados aparatos técnicos.
05.05.2006
A Separação
Hoje, depois de quatro meses vivendo uma ausência extremada, nós nos revimos. Um
reencontro estranho, alheio, sem palavras. uma distância de permeio, a impor limites a
tudo o quanto, um dia, significamos uma ao outro. Se é que, um dia, chegamos mesmo a
tanto significarmos, assinalarmos, marcarmos nos deslimites de nós aquele desenho
amoroso, que é o traço amantíssimo, o pathos de nossa assinatura. Acredito que nunca
tenhamos feito muito sentido. Talvez seja essa a mais dolorosa verdade. Mas quem disse que
a buscamos com os olhares entregues e translúcidos de quem deseja além do próprio desejo,
379
do amor do amor a verdade amargurada? Nos re-encontramos diante de um juiz de direito
para confirmarmos uma irremediável separação. Ela e a mãe, sentadas lado a lado, numa
proximidade que, acredito, nunca haviam sonhado antes. Usava um vestido azul desses de
novela entre o hippie e o casual; uma sandália leve; o rosto sem nenhuma maquiagem, como
ela sempre gostou. Estava bonita uma beleza serenada. Uma das mulheres mais lindas que já
passaram pela minha vida. Eu estava sozinho, como sempre estive nos momentos mais
decisivos, importantes, vazios ou infelizes pelos quais passei. Sozinho: a solidão, às vezes, é o
lugar onde nossos desenganos nos precipitam e do qual é impossível fugir. O claustro. Deixar.
Partir, decididamente. Abandonar. Perguntar-se, no mais secreto silêncio e viver a danação
de todas as sem-respostas se esta é mesmo a única, a certa, a inevitável escolha. Evito olhar
em seus olhos; evito encarar seus gestos, seu silêncio, seu desprezo alheio a qualquer
expressão. Sua mãe me encara com um ódio surdo, que turva o mundo a minha volta. Ela
desvia os olhos e ensaia a repulsa, o nojo, a raiva agora indiferente que a leva para longe de
mim, dela mesma, do pouco que fomos e duramos nessa noite enorme de nós. Nunca pude
imaginar que doeria tanto. Que me sentira tão perdido, desolado, rendido feito uma criança
surpreendida numa travessura sem nome, idiota, tola, perigosa. Esperamos demais do pouco
que fomos. E desejamos tão pouco, e nos percebemos tão distraidamente que nunca
entenderíamos nosso amor dissoluto, minguado, esquecido de si mesmo. Saímos dessa
história feridos, acuados, incertos de todo destino. Saímos de nossas vidas pela porta dos
fundos, em segredo, como quem procura permanecer para sempre anônimo. Nunca fomos
mais do que íntimos estranhos. agora entendo que cada um a seu modo, ainda que juntos,
viveu sua própria e inconfundível solidão. Tão linda! Ela sempre foi a mulher mais linda que
tive em mim, que me habitou, nesses dias de chuva incessante, fria, devastadora a chuva é
sempre triste ou nessas tardes em que o verão começa a transigir e morrer sob o signo
amarelecido de um outono desavisado e indiferente. Ah, essa ilusão que nos causamos: Viver,
380
Ser-Habitado, Ter. Nunca vivemos plenamente o Outro. sempre algo de inapreensível e
ex-tranho que dele nos escapa. Nunca somos habitados verdadeiramente pelo Outro, porque
tanto de nós em nós-mesmos que é quase impossível que alguém nos caiba de forma a nos
desabitar inteiramente do que somos. Ser-Habitado exigiria o esquecimento calculado do que
nos perde e angustia, do que se nos oferece, de mãos espalmadas, ao nosso olhar estarrecido e
abandonado diante do mundo e das coisas. Esse olhar, que é o único guia a nos conduzir por
entre essa ―selva escura‖ desesperançada dos velhos paraísos perdidos. Ter, então, é só mais
um desengano: nunca temos ninguém, nunca possuímos o amor como gostaríamos ou, em um
momento qualquer, desejáramos. Apenas nos iludimos, pensando que podemos, se quisermos,
fazer dos sentimentos todos nossos e alheios uma carta de propriedade, um título ao
portador, um pertencimento inalienável. Criamos nossas mentiras e contemplamos o
sentimento amoroso com nossos pobres olhos de vidro. Queremos o encantamento eterno,
etéreo, ritualístico, que nos salvaguarde de nós, que nos arranque do peito, da alma, do
espírito, quem sabe, a dor de ser-e-estar à merda vida, do tempo, dos espaços abissais de
uma espantosa solitude. Agora, ela está livre. Livre para se perder de mim, para me odiar,
para me devotar sua indiferença, sua raiva, sua mágoa contida. Livre para amar a outro, para
buscar a vida que não lhe dei. Livre para ser ela mesma, para encontrar seus sonhos, cumprir
suas sinas, confundir-se com os passos errantes sob os quais seguimos e que jamais nos
destina. Livre até para me esquecer.
06. 05. 2006
O Abandono
Entre abandonar e ser-abandonado, qual a escolha possível, a melhor escolha, a menos
amargurada delas? Entre deixar e lutar uma batalhada renhida em favor de um esquecimento
381
demorado, lento, infeliz e culpado e ser-deixado aprendendo o convívio surdo e secreto
com a mágoa, o rancor, a melancolia que escorre pelas coisas e pelo mundo arruinado junto
com o vazio-do-Outro –, qual o menos desajustado desses ―sem roteiros tristes périplos‖? Por
que abandonar, deixar, partir, não importa o nome que se dê a esse momento de ruptura que
nunca e a perder, definitiva e completamente, o Outro que perdura em nós, traz, em si, a
tristeza culpada, silenciosa e viciada de um drama que ensaiamos sem saber ao certo em que
cena nesse difícil jogo amoroso acabamos por perder a fala, os gestos, a linguagem que
nos mantinha presos ao extremo de nós-mesmos, à companhia imaginada como verdadeira,
real, inviolável e eterna com a qual aprendemos, um dia, a urncia do desejo? Impossível
saber, com indiscutível certeza, o que nos perde nesse universo de seres e coisas, de
sentimentos e desassossegos grandes, que chamamos amor e que se converte, com o tempo e,
muitas vezes inadvertidamente, em distância, abismo, ausência e esquecimento ainda que a
presença do Outro persevere em nós como um anjo caído, um demônio ancestral, um rito de
passagem: sofrimento, angústia, sedição. Não descoberta amorosa que não implique, ora
ou outra, no conhecimento dessa palavra-essencial, dessa palavra-dor, desse dizer esvaziado
de sentidos o abandono solicita. Renúncia e aceitação: toda descoberta, toda revelação
amorosa exige, desde o início, que renunciemos a parte do que somos, do que pensamos, do
que acreditamos e buscamos ao longo de toda uma vida, se quisermos sustentar a fundação
amorosa, ao mesmo tempo que nos impõe uma espécie de tratado de princípios, de carta-de-
aceite que estabelece suas regras e determina o que deve ser esquecido em favor do mesmo
amor reivindicado. Renúncia de algo de si, de estilhaços do Eu. Aceitação de algo do Outro,
que é a voz precipitada do Outro, o desejo ansiado do Outro, sua ostensiva e inquebrantável
vivência em nós.
382
10.06.2006
Arqueologia da Solidão
Escrevo, incessantemente, à sombra de mim mesmo e dos últimos escombros de que fiz
minha vida.
Depois de alguns anos de trabalho sistemático, organizo, a partir de notas, trechos, versos
esparsos, perdidos em eternas gavetas de guardados, meu primeiro livro de poesia:
Arqueologia da Solidão. Acredito que tenha lhe dado uma incerta feição mais ou menos
definitiva.
Nunca sabemos quando um livro ganhou, de fato, sua linguagem inalienável, seu rosto
singular, sua forma pronta, acabada, definitiva. Agrada pensar que nada, absolutamente nada
neste livro, é gratuito. Tentativa íntima de pensar, poieticamente, um dos temas que mais e
mais me persegue, de forma ostensiva, dolorosa até: a solidão em seus múltiplos aspectos: o
abandono amoroso, a renúncia artística, a beleza que e a perder os sentidos, a vida, o
mundo a nossa volta, a criação, que solicita nosso total desprendimento, nossa entrega sem
reservas, nossa precipitação candente no desespero atormentado das palavras.
Cada um dos poemas do livro permite entrever, em escorço, uma forma de estar só, de ser só,
de afundar, naufrago completo, nos espos atormentados do vazio, do esquecimento, do
desejo turvado pela incompreensão mais plena do mundo e seu chamado urgente que, com o
tempo, me vi forçado a recusar. Assim, cada poema é o relato de um exílio sem mapas ou
fronteiras, que me aparta da vida em sua forma mais gratuita o convívio desarmado com a
enorme realidade que nos cerca e da qual, a despeito de todos os enganos, não podemos nunca
prescindir de todo.
383
Anos buscando a expressão perfeita de um sentimento o único, na verdade com o qual
aprendi, quase que serenamente, a conviver: o ostracismo, a distância, o choque, o
rompimento com as coisas ordinárias de que se faz o mundo e que nos exige barbaramente.
Como em tudo o que escrevo, este livro nada mais é do que o caleidoscópio enlouquecido a
partir do qual diviso a existência: o não-pertencimento, a sensação de que sou estrangeiro em
qualquer parte, inclusive nos desvãos obscuros da alma essa cansada.
Do Minifesto, que abre o livro, ao posfácio em prosa-poética que o encerra, e quase que
justifica minha maneira peculiar de compreender a poesia antes de tudo como o dlogo com
uma tradição da qual nunca nos livramos de todo, uma sensação de naufrágio e abandono
que o caracteriza intimamente.
Um livro cujo combustível é minha própria desilusão, meu ceticismo, meu desejo agônico de
encontrar minha voz entre os gritos surdos que me chegam do mundo, das coisas, das gentes
tão perdidas e desesperançadas quanto eu, mas que mentem, fingem, disfarçam e enganam sua
condição mais exasperada. As pessoas ganham as ruas, freqüentam cafés, bares, boates,
praças, toda a sorte de lugares, mas nunca foram tão solitárias, nunca ruminaram com tanta
intensidade e tão alheadamente sua insignificância, seus desentendimentos, seu horror à
obrigação maior e mais fremente da vida: estar consigo mesmo, encarar-se em sua mais
secreta e terrível versão: a dos espelhos que refletem de dentro nossa imagem em negativo,
coisa da qual jamais me furtei. Ainda o aprendi o secreto e pacificado convívio com o que
sou, embora saiba que a solidão é a única companhia que nos habita enquanto fazemos de nós
parte de uma travessia sem margens que ensejamos desde nosso inconsolável nascimento. Por
isso escrevi este livro, por isso prefixei a dor, o cinismo, a angústia, a ironia, a raiva cega e
384
desolada que a solidão traz em si como os escombros de uma civilização que se arruinou
irremediavelmente.
Escrever sobre a solidão é colocar-se sob nossos ineviveis escombros.
Nascemos para contemplar nosso próprio arruinamento.
Escrever sobre a solidão é escavar nossa condição-abismo, é mergulhar, feito um louco
escafandrista, na cidade fantasma e submersa de nossos desesperos mais espantosos, de nossa
estupefação diante do que somos e nos escapa, diante de nossa incompreensível falta de
respostas. Daí esta Arqueologia ensaiada às custas de mim-mesmo, de minha tristeza
indevassável, desse medo da solidão, maior que o medo da morte, da perda, das distâncias
intransponíveis que se abrem entre o Outro e Eu, ambos igualmente desiludidos, exilados de
tudo, confundidos com a insignificância cintilante do mundo e das coisas, dos sentimentos
mais desajustados.
Confundo minha experiência pessoal com a obra, faço dela meu lugar-seguro-incerto, meu
turning point, minha forma de abrir uma clareira em que minha existência inteira possa
encontrar sua voz fragmentada e dispersa, confundida com as vozes de tudo o quanto penso e
sinto, porque pensar e sentir são um único e mesmo gesto do qual a obra será sempre refém.
Sou, a um tempo, uma verdade empírica e o sujeito-lírico, perdido nas dobras da escritura,
amalgamado à obra e perdido dela, esquecido em seu interior, naufragado nos interstícios
marítimos das palavras vagas que nos arremessam de encontro à arrebentação de uma busca
infindável pela ilusão mais funda da velha lição estampada ao pórtico do templo de Apolo:
conhece-te a ti mesmo.
385
Sou meu próprio livro, na medida em que me re-conheço, que me alieno da obra, pois, como
queria Maurice Blanchot, ―a obra não remete a alguém que a teria feito, um sujeito autoral do
qual deveríamos conhecer a vida para entendê-la. Ela é antes esse lugar vazio, onde nenhuma
voz pode ser determinada ou conhecida. Onde eu não é mais eu, é ele, é outro é ―Neutro‖.
Sou pela obra, ainda que me ausente dela, ainda que me desfigure nela, ainda que faça do
livro o lugar-tenente de minha exisncia inteira certo de que a solidão essencial da escritura
é a única forma de não morrer completamente da solidão assustadora e perturbada do mundo.
Solidão traço inexorável, marca, ranhura, signo, assinalação.
Sou porque em mim o projeto de uma obra que desconheço, do qual esta Arqueologia é
apenas o ponto de partida, o lugar de onde, inicialmente, falo, sempre aos pedaços, sempre
inacabado sou
a obra a obra de arte, a obra literária não é acabada nem
inacabada: ela é. O que ela nos diz é exclusivamente isso: que é
e nada mais. Fora disso, não é nada. Quem quer fa-la exprimir
algo mais, nada encontra, descobre que ela nada exprime. Aquele
que vive na dependência da obra, seja para escrevê-la, seja para lê-
la, pertence à solidão do que a palavra
ser
exprime: palavra que
a linguagem abriga dissimulando-a ou faz aparecer quando se
oculta no vazio silencioso da obra. (Maurice Blanchot O Espaço
Literário).
Dedico o livro à Ademir Assunção, poeta, jornalista, escritor e letrista, amigo inconfundível,
que aceita, incondicionalmente, escrever o prefácio. Ademir Assunção poeta que também
conhece os interditos da solidão, autor de um de uma obra poética seminal, nova,
intransigente, capaz de poemas que exploram temas dolorosos como o amor, a renúncia, a
loucura e a morte, como em
386
5 Dias Para morrer
para Hector Babenco
morreremos loucos,
Ana
os sapatos
novos
em cima da mala
mala notte
o dia, a pior
foto: olhos úmidos
no vídeo
flashbacks:
a virilha imunda
do marinheiro
os eletrodos frios
nas têmporas
as pílulas coloridas
peixes
num aquário
cujo vidro
quase se quebra
toda vez
que o tocamos
sim, Ana
morreremos loucos
mas
esta noite
dormiremos
juntos
387
Dedico o livro, não a obra, porque sobre esta não tenho qualquer controle, porque ela me
solicita a voz quando menos espero, porque a construo diariamente, de forma lenta e
exasperada último exorcismo possível dos fantasmas que habitam esse casarão em ruínas
que é minha alma entregue e rendida.
Não se trata, obviamente, de um livro conceitual: deus, o acaso, a sorte, o fado e o destino nos
livrem sempre de livros conceituais, com suas teses filosóficas-sociológicas-espiritualistas.
De repente, ao conceber o livro, escolhendo os poemas, separando as notas, revendo versos,
estrofes, imagens, percebi que havia um tema que se precipitava em uníssono contra as
paredes inefáveis da Poesia que vinha escrevendo silenciosamente há anos: a Solidão
Essencial, a Solidão Fundamental, esse sentimento de desconcerto e desabrigo diante do
mundo, das coisas, diante de outros indivíduos e da própria criação.
A Solidão que atravessa a madrugada enorme de s-mesmos, que, relutantemente, divisamos
nos limites e fronteiras do que somos, nossa companhia ilustrada quando despertamos para a
realidade fraudada da vida e seus adornos mentidos, nosso punti luminosi que cegamos pelo
medo e pelo horror de estarmos entregues a nós, simplesmente, pobres e nus, náufragos de
toda presença, alheios e desiludidos, buscando de forma desesperada vencer o sentimento da
ausência-de-tudo concebendo uma obra que, desde a sua gênese, nos condena à solitude de si-
mesma, a sua voz que fala em lugares remotos do espírito, que deixa rastros e vestígios na
superfície desolada dos dias, mas que jamais pode nos salvar de nosso isolamento primordial.
Só a Solidão é uma certeza.
E seus olhos rútilos brilham na noite de que somos feitos.
388
A cintilância das palavras.
A errância dos sentidos.
O abandono extremado, certo, incontornável.
Ensaiar a obra é precipitar-se no caos rituastico de uma existência que a tudo rejeita em
nome da ilusão de ser-em-si, plena e absoluta, livre e abandonada em sua gratuita presença.
Morreremos loucos, Ana.
E sozinhos.
O amor ainda é, de todos, o mais aterrador dos sentimentos.
Morreremos loucos de uma loucura solitária, vermelha, encarnada.
Os eletrodos frios nas têmporas e a certeza de que não sendas por onde voltar, caminhos,
sulcos, veredas abertas que possam nos conduzir de nós ao Outro, que possa reconstruir nossa
proximidade arruinada, nossa ligação inquebrantável. Loucos: assim morreremos.
Assim, sofreremos incertos a loucura de uma obra que o nos pertence, que jamais
conheceremos de todo, que será contada, alhures, por aquele que não nós é, que nunca poderia
nos ser, porque nossa voz jamais pode alcançar, plenamente, os abismos insondáveis de
nossas mais secretas motivações. É como se tudo fosse a mesma
Paisagem Noturna
& vou pelas ruas desertas
de noites igualmente vazias
389
em que medram filhos & gerânios
no silêncio de coxas vadias
a abrigar um desejo cruel & infeliz
a angústia da carne roendo os ossos a alma a medula
o sangue em breve diluído
num copo de vodca e barbiturícos
como o trapezista que ensaia o seu último mergulho
& vive o êxtase vertiginoso da queda
antes de pôr a perder o espetáculo
& vou pelas ruas eternamente desabitadas
pensando nesse mundo destroçado
em paisagens lunares & francos desatinos
em secretas & violadas palavras
que já não sabem os alheios destinos
as horas mortas divisadas no relógio central
os anjos barrocos sorrindo emoldurados
a este demônio ancestral
que já não ousa abrir asas em noites assim
quando sigo escrevendo
meu livro negro do desassossego
como se a vida fosse não sei talvez
uma longa citação em grego
um sistema de erros um hino atormentado
que se pega à pele & à memória do corpo
- espo etéreo embalagem descartável
sem retorno
A indizível Solidão.
O corpo entregue a esse jogo sem nome, incapaz de compreender a dissonância amorosa entre
o espírito sangrando a solidão e o grito urgente da carne rasgando a pele.
390
Nunca encontraremos a porta dos fundos, a saída perfeita, o equilíbrio delicado.
Corpo e consciência. As secretas e violadas palavras. Os desentendimentos grandes demais.
A perdição das palavras.
A sedição dos sentidos.
Nossa danação eterna.
Esse desejo de sublevação contra nossa própria e naufraga condição.
É preciso Arqueologizar a Solidão, Ontologizar os Restos, como diria Derrida, buscar algum
entendimento, salvar-se de si próprio numa luta sempre arraigada ainda que condenados a
derrota surda, cheia de dentes contra o que somos e contra o que, tacitamente, desejamos.
22.07.2006
Desconsolo
Acabo de chegar de um enterro. o é a melhor época de minha vida, reconheço. Menos
ainda para enterros. Eu, que venho tentando sepultar lembranças que insistem em voltar, tal
qual Lázaro redivivo, para assombrar as noites insones de que me faço. Ela tinha trinta e
quatro anos. Morreu de um câncer generalizado, contra o qual lutava diariamente um bom
tempo. A mãe foi minha professora no colégio, trabalhou comigo na Faculdade em que ensino
e foi uma das pessoas que me incentivou a escrever, a despeito de tudo: das dificuldades, da
falta de apoio, do horror em se manter inédito, desse país de analfabetos crônicos,
391
abandonados à própria sorte, a despeito, inclusive, da maldição dissonante das palavras. Ela
chorava em silêncio, diante do caixão. Me aproximei devagar, me ajoelhei diante dela e
pude dizer, sufocado: ―Perdoa! Por mais perto que eu esteja das palavras, elas sempre, sempre
me faltam, como sempre me faltaram‖. Ela me encara demoradamente, como quem conhece o
vazio e o desterro em que habito. O fato é que o o que dizer. Toda fala é inútil porque
jamais pode alcançar os limites insondáveis da dor. Como dar voz ao sofrimento? Como dizer
o que i e sangra e fere e avilta e desespera? Há sempre de faltar as palavras quando nos
precipitamos no espaço impenetrável de uma tristeza condenada a permanecer eternamente
sem cura. Toda perda é remorso pelo que se fez e pelos gestos suspensos no ar, pelo que se
disse e calou, pelo que amamos e abandonamos com a mesma incerteza de quem tateia, no
escuro, bêbado e perdido, os caminhos que não destinam. Toda perda é definitiva. As pessoas
choram. E eu fico pensando que para todas elas ainda resta o paliativo da uma crença sem
nome em um mundo possível, para além das fronteiras desse pequeno circo de horrores que é
nossa existência diária, comezinha. Deus, os anjos, os santos, os velhos paraísos perdidos o
consolo diante de nossa fragilidade monstruosa, diante da consciência translúcida de que
nada, absolutamente nada faz sentido em face do temor latente do fim. E eu, que muito
o posso conceber um mundo para além deste mundo, uma vida para adiante das fronteiras
da vida, um lugar em que tudo não seja o mesmo e inconsolável exílio em que me quedo
todos os dias? E a mim, que já restam consolos. Apenas a idéia da morte exposta nas
prateleiras desbotadas do pensamento, diariamente. Ela me circunda, ela se avizinha, sempre
próxima como uma amante envelhecida, de quem nos habituamos aos gestos, ao silêncio, à
voz soprando lentamente em nossos ouvidos. Por ela pelo horror drio que ela me desperta
perdi tanto de que amava, de que amo, de que desejo e espero. Por ela, vivo a estase de
todas as sensações fora do lugar. A imobilidade. A paralisia afetiva, sentimental, amorosa. As
pessoas se fiam na última transcendência, se agarram à idéia de um mundo em devir, que em
392
nada se confunde com essa realidade cotidiana, aberrante, desesperada. Um mundo livre da
angústia irreprimível de ser-para-a-morte, refém do tempo, das agruras do tempo e sua
passagem incontinente. Um mundo eterno, duradouro, interminável. E a mim, que
desacreditei das coisas e que não penso em Deus como a salvaguarda possível para esse
breve espaço entre luz e sombras que é estar vivo, e encarar o próprio rosto cansado e
desiludido, no espelho, todas as manhãs, e mentir que ainda vale a pena, que ainda saídas?
E a mim, que já não tenho a fé de que nos fala Heine para suportar o sofrimento? A descrença
me arrasta como uma vaga imprecisa pelos sem-lugares, pela memória do desterro. Se a vida
for isso, simplesmente, é quase nada. Ou muito pouco. Tanto faz. A mesma impostura, o
mesmo gosto acre de saber que o tempo nos consome como uma velha ruína de abandono e
esquecimento. A angústia é tudo o que nos resta, a parte que nos cabe nesse teatro sem texto
ou marcações que seguimos, até quando?, vivendo. A mesma angústia que me torna diferente
de todas as coisas, que me garante a distinção, que me serve como marca, grafia, signo de
signo, imagem desfocada, incompleta, sempre em devir, porque Anne Hébert tem razão: ―a
única coisa que me separa da árvore ou de um monte de terra, é a angústia‖. Isso, ou quase
nada. O que nos resta, além dessa estranheza diante da solidão extremada da vida, da morte,
de si-mesmo, aniquilado contra a superfície desgastada dos dias?
19.06.2006
Da Liberdade
Liberdade é poder olhar os outros e a si-mesmo nos olhos, sem remorsos, sem a sombra
devastadora de tantos e infundados ressentimentos.
Ser livre é encarar, todos os dias, o espelho e, num vislumbre patético, absurdo, demasiado
humano, reconhecer, a um só tempo, o rosto espantado do réu e do carrasco.
393
Ou, por outra, com Camus: ―a liberdade é isso mesmo: estar privado da liberdade‖.
18.06.2007
A Escritura e a Esperança
Escrever é lançar mão de uma paisagem desolada e, lentamente, num processo de longa e
voluptuosa agonia, ir tornando-a habitada. Escrever é povoar a desolação: de personagens,
medos, monstros, traumas, delírios, fantasias, solidões, desamparos, tragédias e esperanças.
Esperanças, sobretudo. Mesmo as histórias mais trágicas permitem entrever, do centro de sua
absoluta desilusão, uma bobeira de esperança. Uma esperança trágica, é certo, mas uma
esperança.
02.07.2007
Toda literatura é uma forma de transcendência espaço de uma crença, lugar em que o cético
ensaio uma ascensão menor, em que o indivíduo-incerteza, o sujeito-dúvida, o homem-
interrogação encontra o templo indevassável de uma fé vazia de deuses.
07.08.2007
Enfim, começo a tese.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo