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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA UEFS
Departamento de Letras e Artes
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E
DIVERSIDADE CULTURAL PPGDLDC
TEMPO DE CEGAR E DE OLHAR: A METÁFORA DA ALIENAÇÃO EM O
ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA DE JOSÉ SARAMAGO
Joanice Antonia Santos
Feira de Santana, 28 de agosto de 2009.
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA UEFS
Departamento de Letras e Artes
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E
DIVERSIDADE CULTURAL PPGDLDC
TEMPO DE CEGAR E DE OLHAR: A METÁFORA DA ALIENAÇÃO EM O
ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA DE JOSÉ SARAMAGO
Joanice Antonia Santos
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
PósGraduação em Literatura e Diversidade Cultural da
UEFS, tendo como Orientador o Professor Doutor
Francisco Ferreira de Lima, como requisito parcial para
obtenção do grau de mestre em Literatura.
Feira de Santana, 28 de agosto de 2009.
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA - UEFS
Departamento de Letras e Artes
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E
DIVERSIDADE CULTURAL - PPGLDC
TEMPO DE CEGAR E DE OLHAR: A METÁFORA DA ALIENAÇÃO EM O
ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA DE JOSÉ SARAMAGO
Joanice Antonia Santos
Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural,
avaliada e aprovada por:
Professor Doutor Francisco de Ferreira Lima (UEFS)
(Orientador)
Professora Doutora Elvya Shirley Ribeiro Pereira (UEFS)
Professor Doutor Luciano Rodrigues Lima (UFBA)
Feira de Santana, 28 de agosto de 2009.
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DEDICATÓRIA
A minha querida mãe, CREUZA ANTONIA SANTOS, não está mais neste mundo, mas
continuará para sempre dentro de mim. A ela, que me iniciou na palavra escrita, incentivando-
me, inclusive, nos caminhos da leitura literária. Para ela dedico este texto como forma de
gratidão e o Meu Eterno Amor.
Em memória de meu sobrinho VINÍCIUS LOPES dos SANTOS criança que eu vi nascer e
sair deste mundo.
Àqueles que vêem, mas suas luzes são irmanadas do coração e da sensibilidade.
E, aos que, ainda, privados de luz possam, diante de sua cruel cegueira, vencer a caverna de
seus tormentos.
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AGRADECIMENTOS
A Deus, por ter me concedido a Vida, triunfo maior de todas as conquistas.
A Oxalá, a quem devo todas as honras e agradecimentos, patrono do I Axé Ijexá, em
Itabuna- BA.
Ao meu Pai Oxóssi, por ter me mostrado o caminho que devo seguir.
A minha família de Santo:
Ao Meu Pai Katulembá, pela paciência e por ter cuidado e continuar cuidando das minhas
sensações e das estranhezas que nem eu mesma sabia que podia ter.
A todos do Ilê Axé Ijexá, por ter me recebido e acalentado nos meus mais delicados
momentos de fraqueza. Se colocasse nesta página todos os nomes certamente não caberiam,
mas se ajustam perfeitamente no meu reconhecimento e gratidão. Okolofé, minhas mães e
meus irmãos.
A minha família:
Minha Mãe, Dona Creuza, senhora de grande sabedoria, mulher ―aparentemente‖ frágil,
porém, ativa e guerreira, que me ensina a olhar o mundo pelo viés de sua larga experiência.
Desencarnou em 11 de março de 2009, porém acompanhou ativamente o processo deste
trabalho.
A Vinícius in memorian, meu querido sobrinho que covardemente foi tirado desta realidade,
mas que me ensinou que através da dor e do desespero, podemos encontrar a luz.
Aos meus irmãos, Cláudio Carvalho, Cleudes Carvalho, Genivalda Antonia e Geneildes
Antonia, irmãos de sangue e de lutas constantes. Deles extraio o carinho e a certeza de
conviver com as diferenças.
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A Rita Lopes dos Reis, cunhada e mãe, cujo grito de dor ecoou em meus ouvidos...
Ao Professor Orientador Francisco Ferreira de Lima, pela trilha apontada, pelos ensinamentos
claros e objetivos e pela dimensão humana vista neste projeto de pesquisa intercalada por
dores pessoais, minha gratidão pela sua compreensão e generosidade.
Aos amigos, que afetuosamente acompanharam essa trajetória, Sílvia Smith Lima, pelo
companheirismo, Arlete Vieira, pela tenacidade e ombro amigo, Catherine Santana, pelas
trocas de leituras e pela amizade sempre disponível, ao Dr. Elson Marques, psiquiatra que me
concedeu entrevistas durante a pesquisa, cujos resultados foram valiosos.
Aos professores de Língua Portuguesa Prof. Ruy do Carmo Póvoas, Marialda Jovita Silveira e
a professora Eliuse Sousa Silva.
A todos os meus amigos que estiveram comigo durante o período deste mestrado e que
acompanharam duas grandes perdas na Minha Vida, a morte de meu sobrinho e a da Minha
Mãe, recentemente desencarnada.
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Contemplai-os, ó minha alma; eles são pavorosos!
Iguais aos manequins, grotescos, singulares,
Sonâmbulos talvez, terríveis se os olhares,
Lançando não sei onde os globos tenebrosos.
Suas pupilas, onde ardeu a luz divina,
Como se olhassem à distância, estão fincadas
No céu; e não se vê jamais sobre as calçadas
Se um deles a sonhar sua cabeça inclina.
Cruzam assim o eterno escuro que os invade,
Esse irmão do silêncio infinito. Ó cidade!
Enquanto em torno cantas, ris e uivas ao léu,
Nos braços de um prazer que tangencia o espasmo,
Olha! também me arrasto! e, mais do que eles pasmo,
Digo: que buscam estes cegos ver no Céu?
(OS CEGOS- CHARLES BAUDELAIRE)
Eu não quero mais mentir /Usar espinhos que trazem dor/ Eu não enxergo mais o inferno
que me atraiu/ dos cegos do castelo me despeço e vou/ A até encontrar/ Um caminho/ um
lugar/ Pro Que Eu sou/ Eu não quero mais dormir/ De olhos abertos/ Me esquenta o sol/ Eu
não espero/ que um revólver venha explodir/ Na minha testa se anunciou [...] E se você puder
me olhar/ E se você quiser me achar/ Se você trouxer o seu lar/ Eu vou cuidar/ Eu cuidarei
bem dele/ Eu vou cuidar/ Do seu jardim/ Eu vou cuidar/ Eu cuidarei bem dele/ Eu vou cuidar/
Eu cuidarei de seu jantar/ Do céu e do mar/ E de você e de mim.
(CEGOS DO CASTELO NANDO REIS)
O mundo não se faz para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofias: tenho sentidos...
Se falo na natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...
(O GUARDADOR DE REBANHOS ALBERTO CAEIRO) divina,
Como se olhassem à distância, estão fincadas
s
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RESUMO
O presente trabalho tem como finalidade realizar uma análise crítica do Ensaio sobre a
cegueira (1995), de José Saramago, a partir de várias considerações a respeito do Olhar.
Toma-se esse olhar como ponto de partida e provavelmente de chegada para as elucubrações
feitas a partir do universo literário. Acreditamos, assim, que, através do texto saramagueano,
podem-se perceber múltiplas noções acerca do que é o olhar. Mas o que é ser cego? Nesse
sentido, tomamos como norte deste trabalho, a cegueira branca para postular uma metáfora da
alienação na sociedade dos Séculos XX e XXI. Decerto, num mundo cada vez mais
audiovisual, o ser humano perde-se nessa parafernália, e seus olhos, acostumados a ver, se
desencontram de outro tipo de visão, o olhar interior. Assim é que, na obra em foco,
pretendemos esboçar, através dos personagens cegos e das imagens da cegueira, uma
discussão, tendo como aporte a fenomenologia, a partir da noção de que ter olhos é muito
mais que ver, é perceber, é cuidar, é olhar os outros com olhos mais humanos. Tal tarefa
apresenta-se muitas vezes difícil, como ocorre nas passagens do texto de José Saramago, em
que o autor propicia aos leitores contemporâneos imagens que representam situações de
calamidade, fatos aos quais já chegaram os homens por não verem mais. Essa metáfora
empregada por Saramago encontra nuanças em outros textos da literatura universal, desde Les
Aveugles, de Maurice Maeterlinck, Em Terra de cegos, de G. H. Wells, A Peste, de Albert
Camus e A metamorfose de Franz Kafka. Aqui, a metáfora é lida teoricamente através dos
estudos de Maurice Merleau-Ponty, de Jean-Paul Sartre, de Michel Foucault, dentre outros
teóricos da contemporaneidade.
Palavras-chave: Olhar, cegueira, alienação, manicômio, visível, invisível.
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ABSTRACT
The purpose of this paper is to make a critical analysis of Ensaio sobre a cegueira (1995), by
Jose Saramago, taking into account several considerations about "the look". This look is taken
as the starting point and probably also as the arrival point for the lucubration made from the
literary universe. Thus, we believe, that through Saramago's text it is possible to percieve
multiple notions of what "the look" is about. But, what is it to be blind? In this sense, we take
as guidelines for this paper, the white blindness to postulate a metaphor of the alienation in
the society of the XX and XXI centuries. Undoubtedly, in a increasingly audiovisual world,
human beings get lost in this paraphernalia, and their eyes, accustomed to see, fail to see one
another with a different type of vision - the inner look. This is the reason why in this paper we
intend to outline a discussion, through the blind characters and the images of blindness,
having as its basis the phenomenology, from the notion that to have eyes is much more than
just to see; it is to percieve, to care, to look at others with more human eyes. This task is
sometimes very difficult, as it occurs in the passeges of Jose Saramago's text, when the author
presents the contemporary readers images that represent situations of calamity, facts in which
men have arrived because they could not see anymore. This metaphor used by Saramago finds
some nuances in other texts of universal literature, Les Aveugles, by Maurice Maeterlinck in
Terra de Cegos, by G. H. Wells, A Peste, by Albert Camus, and A Metamorfose, by Franz
Kafka. In it, the metaphor is theoretically read through studies of Maurice Merleau-Ponty, by
Jean-Paul Sartre, de Michel Foucault, among other contemporaneous theorists.
Key words: look, blindness, alienation, lunatic asylum, visible, invisible.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10
1. DO OLHAR À CEGUEIRA ........................................................................................... 16
1.1 TEMPO DE CEGUEIRA ............................................................................................... 24
1.2 O DISCURSO DO PODER ............................................................................................ 38
1.3 DISCURSOS AUTÓRITÁRIOS: MANICÔMIOS, ASILOS E PRISÕES. .................. 43
2. OS CEGOS COMO METÁFORA DO CAOS ............................................................. 55
2.1 ORDEM E DESORDEM EM ―TERRA DE CEGOS‖ .................................................. 64
2.2 A MULHER DO MÉDICO: UM OLHAR FEMININO - ―EM TERRA DE CEGO
QUEM TEM OLHO É RAINHA‖ ....................................................................................... 70
2.3 OLHARES FEMININOS: A MULHER DO MÉDICO/ BLIMUNDA E ÚRSULA ..... 79
3. OLHAR, VER E REPARAR ......................................................................................... 84
3.1 DA CEGUEIRA A UM NOVO OLHAR .................................................................. 96
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 100
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 103
ANEXOS ............................................................................................................................... 109
10
INTRODUÇÃO
O não saber olhar da sociedade contemporânea a torna desestruturada, cada dia mais
fragmentada e corroída pelas catástrofes por que está passando. Em vista disso, este estudo
quer fomentar a reflexão sobre um dos vários conceitos sobre o olhar, que o homem é o
principal agente dessas visibilidades sobre as coisas e sobre o mundo. Para tanto, lançamos
um olhar sobre a obra Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago (1995), numa possibilidade
de ler a cegueira como uma metáfora da alienação, reconhecendo no texto literário as
expressões que conduzem à discussão dos conceitos atinentes a olhar, ver e reparar na
sociedade contemporânea.
A cegueira no romance é a alegoria empregada para narrar uma epidemia que toma
conta da população de uma fictícia cidade. Descreve-se com precisão de detalhes como os
personagens perdem a visão e são transformados em cegos, numa terra em que a lei se
transforma num império de abusos e dores humanas. Considerado pela crítica o livro mais
pessimista do autor, o Ensaio é um romance muito estudado pelos meios acadêmicos e
conhecido também pelo público leitor.
Essa obra junto com os outros escritos de José Saramago fazem-no alcançar o maior
prêmio concedido a um escritor de Língua Portuguesa, o prêmio Nobel de Literatura da
academia sueca em 1998, antes em 1995 ganhou o Prêmio Camões. Fora a notoriedade que
esse e outros romances do escritor têm recebido, o autor é amplamente conhecido pelo leitor e
pela crítica. Saramago, ao longo do seu exercício literário, traz a memória dos tempos em que
foi criado pelas suas avós numa pequena aldeia em Azinhaga, no Ribatejo em 1922, advindo
de uma família humilde e campesina. Atualmente é um dos escritores mais importantes no
panorama das letras portuguesas como um dos ícones de sua terra, a exemplo, de Fernando
Pessoa, Camilo Castelo Branco, a de Queirós e Padre Antonio Viera, dentre outros nomes
da consagrada literatura portuguesa. O que nos interessa aqui é principiar a leitura do texto
literário de José Saramago, quanto à revelação que a escrita apresenta sobre o estado de
cegueira dos homens no fim do milênio e começo de outra era, o do século XXI. Antes disso,
porém, apresenta-se uma rápida visão de conjunto de sua obra.
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Sua estréia na literatura foi com a romance Terra do pecado, em 1947. Depois em
1977, publicou a novela Manual de pintura e caligrafia, mas, foi sobre os ―sem terra‖ do
Alentejo que o escritor se consagrou, com o livro Levantado do chão, em 1980. Segundo o
autor, foi com este romance que começou ―a olhar para dentro‖. As outras publicações foram
Memoriais do Convento, em 1982, O ano da Morte de Ricardo Reis, em 1984, A jangada de
pedra, em 1986, História do cerco de Lisboa, em 1989, O evangelho segundo Jesus Cristo,
em 1991, Ensaio sobre a cegueira, em 1995, Todos os nomes, em 1997, A caverna, em 2000,
O homem duplicado, em 2002, Ensaio sobre a lucidez, em 2004, As intermitências da morte,
em 2005, As pequenas memórias, em 2006, A viagem do Elefante, em 2008. Também
escreveu contos como Objeto quase, em 1978, O conto da ilha desconhecida, em 1997; e
crônicas, Desde mundo e do outro, em 1971, A bagagem do viajante, em 1973, Os
apontamentos, em 1976. Também publicou ensaios, crônicas, folhas políticas, literatura
infantil, teatro e poesia. Mas a gestação de Saramago como escritor se deu na imprensa, onde
exerceu a função de jornalista, no qual foi demitido, em 1975, do cargo de diretor adjunto do
Diário de Notícias de Lisboa.
Não podemos deixar de registrar que sua carreira literária se inicia tardiamente e com
passos lentos, a partir da década de 40, ainda imersa na ditadura de António de Oliveira
Salazar numa época de censura e de constrições políticas e sociais. Esse período é marcado
pelo ápice da ditadura, tempo de repressão, autoritarismo e rígido policiamento.
O escritor ganhou vários prêmios importantes, dentro e fora de Portugal, assim,
através de seus romances, incita o público e a crítica, com seu estilo e renovação discursiva,
elaboração de linguagem contundente e barroca. Sua construção literária está de certa forma
implicada com os seus anseios políticos, pois sua trajetória foi marcada pelo engajamento no
Partido Comunista Português. É militante de esquerda e têm idéias revolucionárias dissolvidas
pelo mundo afora.
José Saramago articula uma intrínseca relação entre a maioria de seus romances e a
percepção da história, os fatos da história e a dessacralização dessa história oficial, narrada
pelo viés do discurso ficcional. A História para este autor ganha sentidos metafóricos e
principalmente alegóricos. Para o autor: ―Um romancista não deve fazer pesquisas muito
longas, pois a informação excessiva só agiria contra os interesses da narrativa‖ (CASTELLO:
1999, 227).
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A idéia do mal é um tema que gira em torno da ficção de Saramago, segundo sua
própria afirmação: ―Não creio que eu chegue a ter uma obsessão pelo mal. Mas, realmente, a
existência do mal é algo que eu não compreendo, algo que me ultrapassa. É uma coisa de fato
chocante chegar à conclusão de que o único ser realmente cruel é o ser humano‖ (Idem, 227).
Em torno dessas questões sobre o comportamento humano é que gira o Ensaio sobre
a cegueira. Por que seres tão dotados de razão se comportam tão irracionalmente, chegando
ao limite máximo da crueldade e da brutalidade entre eles mesmos? A cegueira será o nó para
uma nova percepção? Isto é, esta tarefa, a de olhar, não é tão fácil num mundo corroído de
fugacidades e violências. Porém, o texto literário em voga poderá conduzir os leitores para a
compreensão a que estamos expostos, e quiçá acordá-los, para poder ver e reparar com olhos
mais apurados e desejosos de mudanças individuais e coletivas.
Um dos livros também mais polêmicos do escritor luso, O Evangelho segundo Jesus
Cristo (1991), provocou debates na ala mais conservadora da Igreja Católica. A história foi
amplamente divulgada e o escritor teve problemas com vários segmentos da sociedade
portuguesa, motivo pelo qual o autor se auto-exilou em Las Tias, um pequeno povoado em
Lazanrote, nas Ilhas Canárias na Espanha. Foi nesta desolada ilha que José Saramago
escreveu o seu Ensaio sobre a cegueira.
Esse último romance, como foi afirmado, é o objeto de nossa análise que se distribui
em três capítulos que se subdividem. No primeiro capítulo, apresentamos uma trajetória que
segue a concepção do olhar à cegueira. Para tal, refletimos sobre os aspectos que conduzem a
relação do olhar à cegueira, tendo, como aporte teórico, pensadores como Maurice Merleau-
Ponty, e Jean-Paul Sartre, com estudos sobre o olhar. Ainda em 1.1, levantamos pontos
referentes à cegueira desde a antiguidade grega até casos de cegos bíblicos. Não deixamos de
registrar que outros textos sobre a cegueira são citados durante o processo da escrita, como
Les Aveugles, do escritor belga Maurice Maeterlink, e Em terra de cegos, do inglês G. H.
Wells.
No tópico 1.2, apresentamos alguns aspectos sobre o discurso do poder. Em 1.3,
resgatamos determinados conceitos de espaços dentro do romance que se fazem necessários
para aprofundarmos o estudo, como as noções de manicômios, asilos e prisões na sociedade
contemporânea. Para tanto, empregamos as análises de Michel Foucault. Como a cegueira
13
enquanto estado de alienação é o ponto nodal desse estudo, buscamos questões relativas a
isso, vistas sob a perspectiva filosófica.
Tentamos, nesse ínterim, fazer diálogos com outras vertentes literárias, no intuito de
interagir com a temática desenvolvida por Saramago, assim nomes como Albert Camus, Franz
Kafka, Machado de Assis e Carlos Drummond de Andrade e suas escritas literárias aparecem
ao longo do texto como expressões que revelam questões sugeridas pela narrativa estudada,
como o olhar, a cegueira, a loucura e o medo.
Desse modo no segundo capítulo, a análise se refere aos aspectos mais textuais da
obra literária, estudamos as imagens e personagens que se aproximam da temática abordada
da pesquisa. Os personagens cegos servem como alegoria da alienação social. Em 2.1,
percebemos como a ordem X a desordem no manicômio representa uma dicotomia dos
desequilíbrios da sociedade vigente. Essa alienação é percebida neste trabalho pela ótica de
Wanderlei Codo, de Marilena Chauí, além desses, de Cornelius Castoriadis e os textos de
Michel Foucault.
No momento seguinte 2.2, focamos, como alvo da análise, a mulher do médico, por
considerá-la uma personagem significativa no conjunto do enredo dada sua maneira de olhar.
As imagens expressadas por ela são fontes para podermos elucidar as possíveis conjecturas
acerca da discussão sobre o olhar no romance, também essas imagens nos permitem
intertextualizar no 2.3, com outras personagens femininas da literatura, como Blimunda,
personagem de Memorial do Convento, e Úrsula, de Cem anos de solidão. Acreditamos haver
entre as três personagens semelhanças quanto ao sentido do olhar, porém diferem no que diz
respeito às formas de olhar e como elas olham o mundo.
O terceiro capítulo tenta revelar como os três sentidos olhar, ver e reparar são cruciais
em torno da narrativa. Eles se relacionam de formas diferentes, são aparatos na escrita
literária e postulam concepções diversas do mundo. Para sinalizarmos as diferenças entre
essas três noções, esboçamos um breve panorama numa perspectiva filosófica. Decerto
tentamos estabelecer relações convergentes e, principalmente, divergentes dessa tríade.
No 3.1, ao estudar no Ensaio, os motivos da falta de visão, partimos para outras
possibilidades de olhares. Discutimos como os motivos que desencadearam a cegueira no
texto nos permite uma nova percepção de leitura do texto literário. Ao finalizar o seu Ensaio,
o narrador promove uma abertura de sentido, quando os personagens que outrora ficaram
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cegos, recuperam lentamente a visão depois dos acontecimentos mais absurdos, vivenciados
dentro e fora do manicômio. Esse tópico se intitula da cegueira a um novo olhar.
Argumentamos que, se os personagens chegaram às situações que chegaram, será necessário
acordar, despertar e olhar de maneira diferente do que viam antes. Ou, caso contrário,
naufragarão na própria existência. O olhar, então, passa por outro viés, o da compreensão e o
da generosidade entre as pessoas, vistas agora mais como seres humanos, num mundo
individualizado, em que se acaba perdendo as particularidades. É preciso voltar os olhos para
o interior, ou seja, é preciso ver mais com os olhos da alma. Olhos que nós possuímos, mas
que na contemporaneidade estão embaçados ou completamente cegos. E como nos lembra
Rubem Alves (2009: 02), ao enfatizar que os olhos são como reflexos para o mundo, cuja
miragem está dentro de nós mesmos:
Ver é muito complicado. Isso é estranho porque os olhos, de todos os órgãos
dos sentidos, são os de mais fácil compreensão científica. A sua física é
idêntica à física óptica de uma máquina fotográfica: o objeto do lado de fora
aparece refletido do lado de dentro. Mas existe algo na visão que não
pertence à física. [...] muitas pessoas de visão perfeita que nada vêem.
Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores.
O romance pode ser lido de diversas maneiras, como salienta Umberto Eco (1987). A
obra de arte é aberta, possui várias teias de relações inter-significativas. A escolha de se fazer
uma leitura pelo viés filosófico partiu principalmente das leituras de O visível e o invisível de
Merleau-Ponty, e também O olhar, capítulo de O ser e o nada de Jean-Paul Sartre. A partir
dessas postulações, verificamos a necessidade de contextualizar no texto literário,
pressupostos que dessem conta do viés filosófico e político que o texto suscita, quando o
narrador lembra-nos da responsabilidade de ter olhos.
Esses capítulos vão tentar expressar uma maneira de percepção sobre o tempo de
cegueira e o tempo de olhar, partimos então, para uma leitura que promove a abertura de
sentidos e sua recepção. Escolhemos uma maneira de se referir ao romance após cada citação,
assim, a cada referência do Ensaio se lerá a sigla (ESC). Após os demais capítulos fizemos
considerações finais acerca da temática escolhida e o objetivo de olhar na sociedade atual;
tivemos também o ensejo de esboçar nos anexos algumas imagens das artes plásticas desde a
antiguidade até pinturas contemporâneas, somente com o objetivo de realçar como a cegueira
ou o olhar são vistos pela imagem pictórica.
15
A tarefa de olhar num mundo cada vez mais individualizado e capitalista é uma das
possibilidades encontradas na narrativa. Desta forma, a metáfora de olhar o outro será um
princípio no romance, ao debater a questão da cegueira. Saramago, assim como Platão, no
livro a República, emprega uma alegoria, O mito da caverna. No Ensaio questionam-se os
valores contemporâneos, em que o excesso do ver acaba por obstruir as lentes da
aproximação, da generosidade e fraternidade entre os homens.
O narrador constrói um texto que faz com que o leitor pense e repense sobre o fato de
viver num mundo fragilizado, em que as pessoas se encontram e desencontram com muita
facilidade em que os sentimentos são banalizados. A sociedade vive em estado de cegueira e
de tal forma que as pessoas vivem aprisionadas num manicômio. O narrador quiçá alerte para
o fato de aprimorar o sentido da visão, uma visão cujo sentido é o do entendimento que
extrapola os olhos físicos: O cargo de ter olhos quando os outros não os têm. Essa máxima
empregada pelo autor nos suscita a compreensão que poderemos obter do livro, inclusive na
sua abertura, quando o autor usa a epígrafe do Livro dos Conselhos: ―Se podes olhar, vê. Se
podes ver, repara‖ (ESC, 1999: 10).
Parodiamos Carlos Drummond de Andrade (2004), ao inferir que ―Os olhos
suportam o mundo‖ e esses, têm a tarefa de percebê-lo. Cabem a esses olhos perscrutar,
observar, assim como o caçador ao olhar a sua caça, espreita, volta, e no momento preciso
capta todos os segredos com a sua apurada observação.
Então, após a leitura do livro, convidamos a uma viagem, nessa imensa engrenagem
composta por José Saramago, lembrando das palavras de Clarice Lispector: Se eu olhar a
escuridão com uma lente, verei mais que a escuridão? A lente não devassa a escuridão, apenas
a revela mais, com um choque verei apenas a claridade maior‖ (LISPECTOR, 1988: 21).
Os capítulos aqui esboçados vão tentar expressar uma maneira das percepções do
tempo de cegueira e do tempo de olhar, partirmos então, para uma leitura que promove a
abertura de sentidos e sua conexão com a contemporaneidade, em que ter olhos significa
muito mais do que olhar, mas, sobretudo, incita uma provocação no leitor, e esse tem a tarefa
de apurar esse sentido.
16
1. DO OLHAR À CEGUEIRA
Olhais para o alto, quando aspirais por elevação. E
eu olho para baixo, porque estou elevado. Quem de
Vós pode ao mesmo tempo rir e está elevado?
(Friedrich Nietzsche)
1
.
O Ensaio sobre a cegueira de José Saramago, de 1995, é um texto literário que pode
ser lido à luz de alguns conceitos, um deles é a questão do Olhar, ver e reparar na conjuntura
da sociedade contemporânea, em que os homens vivem em completo estado de barbárie. Os
1
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Obras incompletas. Trad. de Rubens Rodrigues Torres Filho.
São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 199.
17
olhos, neste romance, são vislumbrados como as lentes de percepção do mundo de que o ser
humano faz parte, ser humano cuja insensatez e insensibilidade provocam agressões, angústia,
vicissitudes e alienação, mas também, amizade, generosidade e fraternidade.
O olhar é uma das perspectivas da narrativa. No Ensaio ocorre uma epidemia,
denominada de ―cegueira branca‖, ela se desenvolve numa cidade sem nome, cujos
personagens também não possuem nomes próprios e que, repentinamente, ficam cegos,
aparentemente sem causas fisiológicas.
Dessa maneira, algumas indagações serão recorrentes a partir da leitura do romance: O
que é o olhar? O que é a cegueira? Estamos irremediavelmente todos cegos? Essas questões
são salientadas por Saramago (2002), no documentário Janela da alma, do cineasta João
Jardim. Assim, o escritor português reverbera sobre o insight que teve, quando surgiu a idéia
de escrever a narrativa:
Estava em um restaurante em Lisboa. Sozinho até, e de repente pensei: E se
fossemos todos nós cegos? E depois praticamente num segundo seguinte:
respondi a mim mesmo a pergunta que acabava de fazer: Mas nós estamos
todos nós cegos: cegos da razão, cegos da sensibilidade, cegos enfim daquilo
que fazem de nós, um ser razoavelmente funcional no sentido da relação
humana, mas do contrário, um ser agressivo, um ser egoísta, um ser violento,
isso é o que somos. E o espetáculo que o mundo nos oferece é precisamente
esse, um mundo de desigualdade, um mundo de sofrimento sem justificação,
explicamos o que se passa, mas não tem justificação.
Essa explicação é plausível para entender, no universo literário, os aparentes interesses
que teve o romancista para compor uma trama intrigante, cuja linguagem conota os sentidos
entre o olhar e a cegueira, entre os olhos e os cegos.
Para melhor adentrarmos nessa discussão, convém tomarmos os verbetes olhar e
cegueira, no Novo dicionário da língua portuguesa (2005), OLHAR, um verbo transitivo
direto que tem por significado: fitar os olhos ou a vista em; mirar, atentar ou reparar em;
tomar conta de; zelar por; olhar; exercer ou aplicar o sentido da vista; ver-se, encarar-se;
ver-se mutuamente; ação ou modo de olhar. Por sua vez, CEGUEIRA é definida assim:
estado de cego, afeição extrema, exagerado, privação da vista, alucinação. Muitas, no
entanto, serão as acepções atribuídas sobre o fato de ver ou não na contemporaneidade. Não
se apontará, nesse estudo, a condição neurológica da perda da visão, no sentido físico-
científico do termo, pois o que o trabalho tenta demonstrar é uma extrapolação dos sentidos
18
do olhar e suas significações até os seus desdobramentos, como, inclusive, a cegueira diga-
se de passagem, ratificando uma forma de cegueira, que corresponderá a uma peculiaridade de
alienação na sociedade. Assim, o estudo pretende analisar o fato de que existe uma cegueira
generalizada, como quer o autor português.
Existem várias formas de cegueiras na sociedade do século XXI. Uma delas será
percebida no texto literário, a cegueira promovida pelas formas da alienação. Cabe lembrar
aqui como Saramago (1999: 310) finaliza o seu texto literário de maneira contundente e
provocante: Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão,
Queres que diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos
que vêem, Cegos que, vendo, não vêem‖.
Faz-se indispensável, contudo, desenvolvermos alguns esclarecimentos sobre o que é
olhar, ver e reparar, epígrafe retirada do ―Livro dos conselhos‖, que o narrador emprega para
iniciar o seu Ensaio, ao estabelecer, uma intrínseca relação sobre esse sentido, tão peculiar aos
seres humanos e conectando-o com o estágio de cegueira, que, na narrativa, acontece de
forma invertida: precisa-se ficar cego para poder olhar, ver e reparar. Com isso, Saramago
promove uma reflexão que ter olhos não é simplesmente olhar, ou melhor, utilizar-se
fisicamente dos dois olhos que dispomos, mas sim, olhar e reparar a si e ao outro.
Merleau-Ponty, (1992) postula o problema sobre a questão do ver. Segundo esse
autor: ―é verdade que o mundo é o que vemos e que, contudo, precisamos aprender a vê-lo
(1992: 17). Assim, olhar é pertencer ao mundo e à sua contínua aprendizagem. Desse modo, o
sentido do olhar tem referências simbólicas, pois do que se e ao que se chega com esse
olhar, implica muitas interpretações. A partir disso é que se pode denominá-lo como um ato
metafísico. Olhar não é ver o ângulo, mas o todo. No mesmo texto, Ponty (1992: 20)
afirma:
Pois se é certo que vejo minha mesa, que minha visão termina nela, que ela
fixa e detém meu olhar com sua densidade insuperável, como também é
certo que eu, sentado diante de minha mesa, ao pensar na ponte da
Concórdia, não estou mais em meus pensamentos, mais na ponte da
Concórdia; e que, no horizonte de todas essas visões ou quase-visões está o
próprio mundo que habito. [...] Que aconteceria se eu contasse, não somente
com minhas visões de mim mesmo, mas também com as que outrem teria de
si e de mim? Entre mim e elas, há, doravante, poderes ocultos, toda essa
vegetação de fantasmas possíveis que ele consegue dominar no ato frágil
do olhar.
19
No texto, de antemão, a premissa que se instaura é a indagação do visível e do
invisível, ou seja, é possível perceber a coisa, os objetos e os seres sem o alcance dos olhos?
Essa interrogação perpassa o trajeto da Fenomenologia esboçada por Ponty (1992:29), coisa
invisível, que se acha em alguma parte, por detrás de certos corpos vivos, e a respeito da qual
se supõe que basta encontrar o ponto justo de observação. O autor possibilita a interpretação
dos fatos e das coisas pela lente do olhar. Sinaliza-o como o meio capaz de apreensão do
mundo, sem ele, sem a visão interior, não conseguiríamos nos inserir no mundo de forma
completa.
Em o Ensaio sobre a cegueira, o ponto de partida será exclusivamente este, ou seja,
perder a visão, no sentido físico para esboçar outro tipo de visão, a da alma. O narrador
questiona, nesse romance, com a alegoria da ―cegueira branca‖, o que é elucidado sobre os
olhos do espírito. Tal perspectiva é enfocada por Michel Foucault (2005: 288), quando afirma
que os olhos do espírito não são um corpo objetivo que se oferece ao olhar pálido de uma
opção generalizada‖. E esse autor ainda relaciona a tensão existente entre a cegueira e o
espírito do louco:
Assim são as loucuras todos os defeitos de nosso espírito, todas as ilusões do
amor-próprio e todas nossas paixões quando levadas até a cegueira, pois a
cegueira é a característica distintiva da loucura. [...] A loucura encontra-se
exatamente no ponto de contato entre o onírico e o erro. [...] Unindo visão e
a cegueira, a imagem e o juízo, o fantasma e a linguagem, o sono e a vigília,
o dia e a noite, a loucura no fundo não é nada, pois neles liga o que têm de
negativo (Ibidem: 242-243).
Nessa citação, percebe-se que o louco é aquele cuja cegueira tomou conta de seu
estado de ânimo, de seu espírito; a cegueira, para Foucault, é um trânsito para o estado da
loucura, quando define o louco como um cego, cuja individualidade se perde nos meandros da
irracionalidade. Dessa forma, aparecem os excessos da alma perturbada e da cegueira do
alienado. O filósofo reforça a idéia da loucura e da cegueira, pois segundo Foucault (Idem,
294):
Mas quando o espírito se torna cego para os próprios excessos de sua
sensibilidade aparece a loucura. [...] Vê-se esboçar o grande tema de
uma crise que seria confronto do insensato com o seu próprio sentido, da
razão com o desatino, da artimanha lúcida com a cegueira do alienado.
20
O olhar, segundo Ponty (1992), não determina sempre uma continuidade da presença
física, um corpo eminentemente material. Nossa visão ultrapassa linhas suscetíveis de
captação. Entre o olhar e as zonas que se estabelecem nessa faculdade, possíveis
mecanismos cognoscentes, que disseminam uma maneira de interpretar o mundo, conforme o
que se vê e mesmo aquilo que não está ao alcance dos olhos. Nas palavras do filósofo:
Vejo, sinto e é certo que para me dar conta do que seja ver e sentir no visível
e no sensível onde se lançam, circunscrevendo, aquém deles mesmos, um
domínio que não ocupam e a partir do qual se tornam compreensíveis
segundo seu sentido e sua essência. Compreendê-los é surpreendê-los, pois a
visão ingênua me ocupa inteiramente, pois a atenção na visão, que se
acrescenta a ela, retira alguma coisa desse dom total, sobretudo, porque
compreender é traduzir em significações disponíveis um sentido inicialmente
cativo na coisa e no mundo (Idem, 44).
Os olhos são órgãos da visão. Juntamente com ela temos outros sentidos: a audição, o
tato, o olfato e o paladar. A visão, por sua vez, é considerada como um dos mais apurados
sentidos dos homens, senão o mais apurado, conforme análise de Gaiarsa (2000: 15), ao
afirmar que:
Os olhos são os maiores espiões do mundo. São dois, mas funcionam como
se fossem um só. [...] Para compreender a visão, as relações pessoais e a
forma da consciência é a diferença entre visão central, ou macular, e visão
periférica da retina. [...] Os globos oculares são, certamente, as partes mais
móveis do corpo humano, são movidos por seis músculos notavelmente
poderosos.
A referência mostra que os olhos são os maiores investigadores. Eles espiam as
pessoas, os objetos e o mundo ao seu redor. Proporcionam ao homem o que nenhum outro
animal possui, ou seja, a capacidade cerebral de interpretação do mundo. A acuidade visual é
muito grande, por exemplo, no falcão, mas esse animal não pode ir mais além do que os seus
olhos vêem. Essa tarefa é exclusivamente uma faculdade cognitiva, racional e interpretativa
do ser humano.
É muito difícil pensar um mundo sem visão, feito exclusivamente por cheiros e cores.
Conforme Ponty (1922: 86), ―não há dúvida de que nosso mundo é principal e essencialmente
visual, não faríamos um mundo com perfumes e cores. Olhar o mundo desperta uma
intrínseca ligação entre o ser e o outro, que é impossível não olhar, no sentido mais amplo,
pois essa é uma atitude ontológica.
21
Ainda, de acordo com Ponty (1992: 65), ―o olhar dos outros homens sobre as coisas é
o ser que reclama o que lhe é devido e que me incita a admitir que minha relação com ele
passa por ele. Esse olhar que Ponty ressalta é a interrogação sobre as coisas e sobre o
mundo. Os acontecimentos deixam transparecer poderes muito gerais, tais como o olhar ou a
palavra‖ (ibidem: 101).
A relação do ver e do mundo dizem respeito à imanência que eles possuem entre si,
que um está inextricavelmente implicado no outro, pois, conforme Ponty (1992: 80),
compreende-se que a visão seja presença imediata, não se vê, porém, como o nada que sou
poderia, ao mesmo tempo, separar-me do ser. As coisas, as pessoas e o mundo terão
significados a partir do momento das observações, extraindo delas uma percepção irrefutável,
assim, o homem ganha contorno ao redor da existência. É como se pelo olhar perscrutássemos
as beiras da formação das coisas, tornando-nos familiares. Como declara Ponty (1992:103),
No início é o olhar que interroga as coisas‖.
Nesse sentido, a Filosofia percebe o olhar numa concepção metafísica, uma vez que
olhar não se restringe, especificamente, a um ângulo da coisa ou do mundo. Com um olho
vemos o ângulo da largura e comprimento. Com os dois olhos podemos observar as imagens
em estado tridimensional. Os olhos são formados por nervos e músculos, diretamente ligados
ao cérebro, mas é com a interpretação que podemos olhar para as coisas de forma mais ampla.
Mas o que dizer sobre àquelas pessoas que não enxergam no sentido fisiológico? A
resposta para essa questão postula-se no sentido de que olhar, ver e reparar sugerem mais
interpretações simbólicas diante dos fatos e do mundo. A esse respeito, no Ensaio sobre a
cegueira (ESC, 1999: 70), três dos personagens, o primeiro cego, o ajudante de farmácia e o
médico oftalmologista, ao questionarem a repentina cegueira branca, mostram-nos a relação
entre os olhos e a mente:
Aposto que o que sucedeu foi terem-se entupido os canais que vão dos olhos
até os miolos, Forte besta, resmungou o ajudante de farmácia, Quem sabe, o
médico sorriu sem querer, na verdade os olhos não são mais do que umas
lentes, umas objectivas, o cérebro é o que realmente vê, tal como na película
a imagem aparece, e se os canais se entupirem, como disse aquele Senhor, É
o mesmo que um carburador, se a gasolina não conseguir chegar lá, o
motorista não trabalha e o carro não anda.
22
Olhar é a sugestão de imagens propiciadas mentalmente. Através de outros olhares
podemos perceber as essências das coisas e do mundo. Essa explicação é aceitável quando se
considera os olhos do espírito, mas o que significa exatamente essa expressão? A resposta
seria possível, uma vez que estamos considerando aqui os olhos da alma, do psiquismo, como
os agentes de outra visão, intercalada por uma que nós já conhecemos, essa outra visão
ultrapassa os olhos do corpo. Como argumenta Ponty (1992: 107-108):
Quando se reporta do mundo àquilo que o faz mundo, dos seres àquilo que
os faz ser, o puro olhar, que não subentende nada, que não tem atrás de si,
como o de nossos olhos, as trevas de um corpo e de um passado: àquilo que
faz com que o mundo seja mundo, a uma gramática imperiosa do ser, a
núcleos de sentido indecomponíveis, redes de propriedades inseparáveis. As
essências são este sentido intrínseco, estas necessidades de princípio, seja
qual for a realidade em que se misturam e se confundem (sem que, aliás,
suas implicações deixem de fazer-se valer. [...] alguma coisa espiritual, ou
alguma coisa viva.
O filósofo admite nesse trecho a inquestionável invisibilidade. O mundo não é
aquilo que vemos com os nossos dois olhos. A demonstração desse fato são os cegos que
vêem de uma maneira muito peculiar, aquela imanada do espírito. Como se observa ainda
nessa afirmação de Ponty (1992: 110): É, portanto, à experiência que pertence o poder
ontológico último, e as essências, a necessidade de essência, a possibilidade interna ou lógica,
não obstante a solidez e a incontestabilidade que possuem os olhos do espírito‖.
Daí, podemos nos certificar de que o mundo é eminentemente um mundo visual, em
que os olhos têm um poder sobremaneira na vida das pessoas e no cotidiano. Ver é uma
sensação cuja percepção realça vários sentimentos, sejam eles de ordem material ou espiritual.
Olhar é uma maneira de apreender o mundo, de captá-lo segundo normas e valores pré-
concebidos ou não. A partir da visão espiritual entendemos ou não os mistérios e os segredos
da vida.
Pelos olhos o ser humano registra o seu primeiro contato com o mundo externo, ou
seja, fora do útero materno. Ao nascer a criança abre os seus olhos para o espetáculo que o
mundo oferece, mesmo não sabendo, ela enxerga a luz. Começa aí, o seu estar no mundo e o
seu devir. Quanto a isso, Ponty (1992: 146) pondera que:
Com a primeira visão, o primeiro contato, o primeiro prazer, iniciação,
isto é, não posição de um conteúdo, mas abertura de uma dimensão que não
poderá mais vir a ser fechada, estabelecimento de um nível que será ponto de
23
referência para todas as experiências daqui em diante. A idéia é esta
dimensão, um invisível de fato, como objeto escondido atrás de outro, não é
um invisível absoluto, que nada teria a ver com o visível, mas o invisível
deste mundo, aquele que o habita, o sustenta e torna visível, sua
possibilidade interior e própria, o Ser desse ente.
Por intermédio da visão inauguramos a presença no mundo até a sua finitude, isto é,
com a morte fechamos os olhos. Com a visão, experimentamos uma troca que se estabelece
entre o eu e o outro, entre o ser humano e a imaginação, entre o homem e o objeto. A visão dá
aos homens a experiência do inefável, possibilita-lhes a entrada num mundo inusitado, cujas
esferas são as ações simbólicas, cuja imanência é ao mesmo tempo, inovadora e descoberta
por este sentido.
O olhar é um dos sentidos mais expressivos e simbólicos que o homem possui, é
ainda Ponty (1992: 130) quem afirma: O olhar, como dizíamos, envolve, apalpa, esposa as
coisas visíveis. Essa visão ultrapassa os meros olhos físicos, ela é revelada por outras
subjetividades, ainda de acordo com Ponty (1992: 137):
Entre os meus dois olhos, uma relação muito especial que as transforma num
único órgão de experiência, do mesmo modo que meus dois olhos
constituem os canais de uma única visão ciclópica. Reação difícil de ser
pensada, que o olho, a mão o capazes de visão, de tato, de modo que o
que falta compreender é que essas visões, esses tatos, essas pequenas
subjetividades, essas consciências de... Possam reunir-se como flores num
buquê, quando uma sendo consciência de... sendo para si, reduz as outras a
objetos. sairemos desse impasse admitindo que o meu corpo sinérgico
não é objeto, que reúne um feixe de consciências, aderentes a minhas mãos,
a meus olhos.
Já Jean-Paul Sartre, em O ser e o nada (consulta-se aqui a edição de 1997), enfatiza o
olhar enquanto consciência do ser, realçando que o homem consciente adquire forma a
partir do ―ver-o-outro‖, maneira pela qual o ser adquire consciência e liberdade. Sartre ainda
afirma ―que a relação originária entre eu e outro não é somente uma verdade ausente que viso
através da presença concreta de um objeto em meu universo. [...] a cada instante o outro me
olha‖ (1997: 332). Isso nos possibilita compreender que nós só olhamos porque temos o outro
diante de nosso alvo, sem a presença do outro, o mundo seria um vácuo sem sentido. O visível
para Sartre é uma troca entre um eu e um outro, ligados permanentemente pela tarefa do ver o
outro, ver o objeto. A visibilidade possui, nos postulados sartreanos, um significado de
24
extrema importância para entendermos a relação do eu X o outro, visto que, para ele, o
homem só adquire a consciência da liberdade, quando enxerga a si mesmo e ao outro, como o
seu duplo.
O olhar na fenomenologia sartreana adquire um valor afirmado pela análise de
Maurice Merleau-Ponty. Também para Sartre, os olhos não só captam sensações e percepções
de ordem física perante o homem e o mundo, mas irremediavelmente o os alicerces da
construção simbólica das coisas e do mundo. A esse respeito, Sartre (1997: 332) reafirma o
significado do olhar:
Durante um assalto, os homens que rastejam atrás de uma moita captam
como olhar e evitar, não dois olhos, mas toda uma casa de fazenda branca
que se recorta contra o céu no alto da colina. É óbvio que o objeto assim
constituído manifesta o olhar, por enquanto, com o caráter de provável.
[...] O que importa, antes de tudo, é definir o olhar em si mesmo. O matagal,
a casa de fazenda, não são o olhar: representam somente o olho, pois o olho
não é captado primeiramente como órgão sensível de visão, mas como
suporte para o olhar.
O objeto é captado por meio do olhar, sem este, como inquiri-lo? Assim a visão tem
um significado filosófico diante do mundo. O homem se destaca por meio da visibilidade, isto
é, ao ser notado pelo outro, o homem se faz presente no contexto em que vive.
1.1 TEMPO DE CEGUEIRA
Da passagem do olhar à cegueira um fio tênue. Na antiga Grécia, é conhecida a
história do famoso profeta Tirésias, o qual foi imortalizado por Sófocles na peça Édipo Rei.
Nessa peça, ele prevê e adverte Édipo do seu fim trágico, juntamente com os destinos
reservados para Laio e Jocasta. Laio, rei de Tebas é advertido pelo oráculo que seu próprio
filho o mataria e seria a ruína de sua família.
Esse dom da profecia está, na lenda, diretamente ligado aos olhos e ao seu poder de
adivinhação. De acordo com Souza e Melo (1953: 46):
25
[Avultam, na tragédia de Sófocles, figuras de magistral importância.] O
adivinho Tirésias, velho e cego, ousando, na sua pobreza, afrontar o rei que o
ameaçava, e denunciá-lo claramente, é bem sabido o mbolo da sabedoria
humana, que pensa, estuda, sabe e prevê, mas que não convence os
poderosos quando com eles entra em conflito. ―Se tu possuis o régio poder,
Ó Édipo! eu posso falar-te de igual para igual‖ declara o destemeroso
sacerdote, cônscio de contra ele nada podia a prepotência do tirano.
Ele foi um dos mais célebres adivinhos na mitologia grega. Segundo a lenda, o seu
destino se reservaria pela cegueira, como uma punição dos deuses. Mesmo assim, Tirésias se
transformaria na lendária cidade pela sua cegueira. De acordo com uma das versões, Tirésias
ficou cego, porque se atreveu a olhar a deusa Athena ou Minerva nua, enquanto ela se
banhava. Ele possuía o que os gregos denominavam de mántis, isto é, o poder de previsão
2
.
Também existem várias versões sobre a figura de Homero, autor da Ilíada e da
Odisséia. Algumas lendas o configuram como sendo cego, porém, estas histórias são
suscetíveis de controvérsias. Se existiu um Homero cego, ou dois Homeros, ou até mesmo
muitos poetas chamados Homeros, não se sabe ao certo.
Fora da mitologia grega, também na modernidade, alguns casos de cegueira são
bastante acentuados, como o do escritor Jorge Luís Borges e de James Joyce. Cada um, a sua
maneira, foi perdendo a capacidade de enxergar o mundo visível, seus olhares se espaçaram
em nuvens cada vez mais realçadas, demonstrando, porém, como as suas obras ultrapassaram
os limites físicos do corpo. Sobre a cegueira do escritor argentino Jorge Luís Borges,
esclarece Lopes, (1999: 102): Borges perde o mundo visível, o mundo da aparência, mas ao
contrário de buscar o mundo das essências, vive a outra aparência: o livro‖. o escritor
inglês James Joyce teve surtos constantes de cegueira até morrer cego de um dos olhos.
Ainda, na literatura, ao investigarmos a temática da cegueira foi possível perceber que
outros textos literários tinham sido escritos, a exemplo da obra do autor português. Um
desses textos é o do escritor, ensaísta e dramaturgo belga Maurice Maeterlinck (1862-1946),
simbolista que escreveu a peça Les Aveugles, que em português, significa Os cegos. A peça
foi escrita no final do século XIX, em 1890, ainda sem tradução para o português. Outro texto
cujo tema se refere aos olhos e à cegueira é o conto Em terra de cegos, do inglês Hebert
2
Outra história na mitologia é a da cegueira de Dáfnis. Ele era filho de Mercúrio, e conta a lenda que ficou cego
por um deslize de uma feiticeira. Esqueceu por completo o rosto de sua amada Lice e foi privado da luz
eternamente, ficou vagando cego pelos bosques e montanhas (FRANCIGINI & SEGANFREDO CARMEN,
2003. p. 268).
26
George Wells (1866-1946), escrito em 1904. No universo da poesia temos um conhecido
poema de Charles Baudelaire, Les Aveugles, Os cegos, do livro, As flores do mal (1985).
A peça Les Aveugles é um texto dramático do teatro estático simbolista. Nela Maurice
Maeterlink emprega uma antiga tradição dos coros gregos: em cena, coloca um grupo de doze
cegos no coro, seis homens cegos e seis mulheres cegas, à espera do seu guia morto. O espaço
onde acontece a tragédia é em um lugar hostil, uma ilha perdida, nos confins do mundo, perto
de um hospício, no entardecer da noite. Este é o contexto da peça: o guia vai buscar água, mas
não volta, e eles o esperam sem obter resultado, que o guia está morto. O texto utiliza o
recurso da palavra entre os cegos, sendo que os diálogos são do universo da cegueira.
Totalmente passada no escuro, a peça demonstra também para o espectador/leitor as idéias de
estaticidade e tragédia, pois o espectador também está cego. Ela é reproduzida em total
escuridão. Possivelmente, Maurice Maeterlinck, ao escrevê-la nos finais do Século XIX,
período do simbolismo e decadentismo francês nas artes e na literatura, questionava o mundo
da cegueira; a partir do exterior, questiona a cegueira simbólica, a visão interior.
O texto nos faz lembrar o Ensaio, cuja semelhança é indiscutível, mesmo porque os
personagens de Les Aveugles, de Maeterlinck, também estão próximos de um hospital
psiquiátrico. Apesar de tantas semelhanças, dada a natureza deste trabalho, apenas
sinalizando-o como uma possível fonte de intertextualidades.
Em terra de cegos, do inglês H.G. Wells escrito em 1904, e publicado em livro, em
1911, é um conto que fala de um vale enterrado no meio dos Andes, em que os personagens
expatriados se abrigaram no século XVI. Nesse vale, uma pequena população humana vive
tranquilamente, com um único mistério, todas as crianças nascem e se desenvolvem cegas.
Por causa da explosão de um vulcão, o vale acaba se tornando isolado do mundo exterior, isto
é, das pessoas que enxergam, e, durante três séculos, neste lugar, nascem pessoas cegas.
Após esses três séculos, no século XIX, Nunez, um personagem do conto, guia de
alpinismo, se perde e é atraído por uma avalanche para dentro do vale. Certo de que, pelo fato
de possuir visão, será cortejado e invejado pelo povo cego, em alusão ao ditado popular: ―Em
terra de cego, quem tem um olho é rei‖, o guia se decepciona, não será bem assim, visto que,
depois de catorze gerações só de cegos, os habitantes do vale esqueceram tudo sobre o mundo
exterior.
27
No decorrer dos séculos, surgiram entre eles, alguns personagens curiosos e de
questionamentos filosóficos, cujas memórias dos ancestrais se tornaram logo em crendices.
Questionavam: ―Por que temos que crer em coisas que nenhum de nós nunca viu?
(ALEGRE, 2008: 14). Assim os outros personagens logo esqueciam as indagações sobre o
universo da visão.
Externamente, o mundo para eles não existia. O único mundo possível era aquele
vale. E não é só, palavras como olhar, ver, dia, noite, luz ou trevas não faziam parte de seu
vocabulário. Isso é ressaltado no fragmento: ―Não existe a palavra VER‖, disse o cego, após
uma pausa. ―Pare com essa loucura e siga os meus pés‖ (ALEGRE, 2008: 12). Muito menos,
palavras como, cego ou cegueira, que desconheciam que estavam cegos. A visão para
aqueles personagens não fazia sentido. As histórias de Nunez a respeito do mundo da visão
soavam para eles como delírios. Acreditavam que Nunez era um lunático, ou coisa parecida,
pois tudo o que se referia à palavra ―ver‖, era para eles um absurdo.
O conto provavelmente é uma alegoria sagaz da falta de conhecimento e do mundo da
ignorância. Esse tópico serve para ilustramos um possível diálogo entre o conto e o Ensaio.
Vale a pena vermos um fragmento da narrativa, identificando nuanças como a falta de visão
presente no nosso objeto de estudo:
Venha cá, disse o terceiro cego, seguindo o movimento de Nunez e
agarrando-o. [...] Saí do Mundo. Por montanhas e glaciares; logo ali acima, a
meio caminho do Sol. Saí do grande, do enorme mundo que desce, em doze
dias de jornada, rumo ao mar. Então eles gritaram, e Pedro foi na frente e
tomou Nunez pela mão, para levá-lo às casas. Nunez afastou a mão. Posso
ver disse. ―Ver‖, disse Correa. ―Ver‖, disse Nunez, voltando-se para ele, e
tropeçou no balde de Pedro. "Os sentidos dele ainda são imperfeitos", disse o
terceiro cego. "Tropeça e fala palavras sem sentido. Levem-no pela mão."
―Como vocês quiserem‖, disse Nunez, e foi conduzido pela mão, rindo.
Parecia que eles não sabiam de nada sobre a visão (ALEGRE, 2008: 08).
Trazendo a discussão para a Idade Média, constatamos que os olhos e o seu poder de
percepção fizeram com que certas personagens fossem atacadas, por causa de suas visões e
por estas romperem a uma ordem estabelecida. Alguns desses personagens da História foram
martirizados pela cultura judaico-cristã. Nomes que se rebelaram contra uma ordem vigente e
pragmática, foram apontados pela Inquisição da Igreja Católica como hereges, como foi o
caso de Joana D’Arc, cujas visões aterrorizaram a hegemonia da Igreja Católica que
preconizava um poder canonizado.
28
Também As Escrituras Sagradas estão repletas de passagens em que são recorrentes
os temas do olhar e da cegueira. No tocante a esse assunto, vários profetas bíblicos como
Isaías, Jeremias, Zacarias, Daniel, Amós, Obadias e Ezequiel tinham visões reveladas em
nome de uma e de um Deus. Eram homens de um único Senhor, que profetizavam em
nome da e do Deus a quem serviam. Nos textos destes profetas destacamos algumas
passagens contidas em Isaías, Jeremias e Ezequiel, só para salientar alguns desses homens que
tinham certas revelações, ou seja, tinham um tipo especial de visão.
Em Isaías (2: 1-2) encontramos a passagem em que o profeta tem revelações sobre
Judá e Jerusalém: ―Visão que teve Isaías, filho de Amoz, a respeito de Judá e de Jerusalém. E
acontecerá nos últimos dias que se firmará o monte da casa do Senhor no cume dos montes e
se exalçará por cima dos outeiros‖.
o profeta Jeremias é escolhido antes do seu nascimento para as visões que revelarão
o seu dom:
Palavras de Jeremias, filho de Hilquias, dos sacerdotes que estavam em
Anatote, na terra de Benjamim. [...] Antes que te formasse no ventre te
conheci, e antes que saísse da madre te santifiquei: às nações te dei como
profeta. [...] Ainda veio a mim a palavra do Senhor, dizendo: Que é que vês,
Jeremias? E eu disse: Vejo uma vara de amendoeira. [...] E veio a mim a
palavra do Senhor segunda vez, dizendo: Que é que, vês? E eu disse: vejo
uma panela a ferver, cuja face está para a banda do norte (JEREMIAS 1: 1,
11).
O profeta Ezequiel, por sua vez, também tem visões de anjos como expressa a
passagem abaixo:
Olhei e eis que um vento tempestuoso vinha do norte, e uma grande nuvem,
com um fogo a revolver-se; e um resplendor ao redor dela, e no meio uma
cousa como a cor de âmbar, que saia dentre o fogo. E do meio dela saía a
semelhança de quatro animais; e esta era a sua aparência: tinha a semelhança
de um homem. E cada um tinha quatro rostos, como também cada um deles
quatro asas (EZEQUIEL, 1: 4, 6).
Saindo do velho para o novo testamento, encontramos a narrativa em que Jesus Cristo,
mais de dois mil anos, disseminou milagres sobre a terra. Vários desses milagres são em
relação à cura de cegos que voltaram a enxergar, sendo que a cegueira era um dos males
29
curados pelo novo Messias. A Bíblia registra diversas imagens sobre os cegos e a cegueira,
dentre elas, destacamos algumas. A primeira descreve Jesus curando o cego de Jericó:
E aconteceu que, chegando ele perto de Jericó, estava um cego assentado
junto do caminho, mendigando. E ouvindo passar a multidão, perguntou o
que era aquilo. E disseram que Jesus Nazareno passava. Então clamou,
dizendo: Jesus, Filho de Davi, tem misericórdia de mim. [...] Dizendo: que
queres que eu faça? E ele disse: Senhor, que eu veja. E Jesus lhe disse: Vê: a
tua te salvou. E logo viu, e seguia-o glorificando a Deus (LUCAS 18: 35,
43).
A segunda passagem registra Jesus curando um cego de nascença:
E passando Jesus, viu um homem cego de nascença. [...] Enquanto estou no
mundo, sou a luz do mundo. Tendo dito isto, cuspiu na terra, e com a saliva
fez lodo, e untou com lodo os olhos do cego. E disse-lhe: Vai, lava-te no
tanque de Siloé. Foi pois, lavou-se e voltou vendo (JOÃO 9: 1, 3).
Outra imagem bastante recorrente é a do cego em Betsaída:
E chegou a Betsaida; trouxeram-lhe um cego, e rogaram-lhe que lhe tocasse.
E, tomando o cego pela mão, levou-o para fora da aldeia; e, cuspindo-lhe nos
olhos, e impondo-lhes as mãos, perguntou-lhe se via alguma coisa. E,
levantando ele os olhos, disse: Vejo os homens; pois como árvores que
andam. Depois tornou a pôr-lhe as mãos nos olhos, e ele, olhando
firmemente ficou restabelecido (MARCOS 8: 22, 26).
Em Mateus (20: 29, 34), Jesus cura dois cegos e define a cegueira espiritual:
Ao saírem de Jericó, uma grande multidão seguiu Jesus. Dois cegos estavam
sentados à beira do caminho e, quando ouviram falar que Jesus estava
passando, puseram-se a gritar: ―Senhor, filho de Davi, tem misericórdia de
nós!‖ A multidão os repreendeu para que ficassem quietos, mas eles
gritavam ainda mais: ―Senhor, filho de Davi, tem misericórdia de nós!‖
Jesus, parando, chamou-os e perguntou-lhes: ―O que vocês querem que eu
faça? Responderam eles: ―Senhor, queremos que se abram os nossos olhos‖.
Jesus teve compaixão deles e tocou nos olhos deles. Imediatamente eles
recuperam a visão e o seguiram. [...] A cegueira Espiritual Jesus ouviu que
o haviam expulsado, e, ao encontrá-lo, disse: Você crê no filho do homem? -
Quem é ele? Vocêo tem visto. Eu vim a este mundo para julgamento, a
fim de que os cegos vejam e os que vêem fiquem cegos. Acaso nós também
somos cegos?
30
Outra passagem bíblica que merece destaque concerne à cegueira de Saulo. Conforme
as escrituras sagradas, ele perseguia os seguidores de Jesus e ficou cego, voltando a enxergar
quando se converteu ao cristianismo: ―E Saulo levantou-se da terra, e abrindo os olhos não via
a ninguém. [...] O Senhor Jesus, que te apareceu no caminho por onde vinhas, me enviou para
que tornes a ver e sejas cheio do Espírito Santo‖ (ATOS, 9: 8, 15).
Essa temática do olhar e da cegueira vai estar, respectivamente, de formas diferentes
em dois romances de José Saramago. Num, ele enfoca o olhar, enquanto transmutação,
revelação ou dom. no Ensaio, o olhar é transformado numa possibilidade de cegueiras
individuais e coletivas. O narrador utiliza, para isso, a metáfora de uma ―cegueira branca‖: um
mar de leite invade, repentinamente, a população de uma cidade qualquer do culo XX.
Todos, sem nomes, ficam cegos e, posteriormente, prisioneiros em um manicômio. A cegueira
se instala tal, como os ratos invadiram a cidade de Oran em A Peste, romance de Albert
Camus, de 1947.
Saramago pode ser, assim, considerado pelo Ensaio, como um espécie de visionário
do caos em tempos de contemporaneidade, em que a individualidade, o egoísmo e a razão em
supremacia são formas de cegueiras. Já num romance anterior ao Ensaio, Memorial do
Convento, de 1982, o escritor conta a construção do convento de Mafra, no período da corte
de D. João V e de D. Maria Ana Josefa, esta, obrigada a dar um herdeiro para o trono
português. Paralelo à edificação do convento, outros personagens darão corpo ao texto. Dentre
eles, estão os personagens intitulados Blimunda, Baltasar Sete-Sóis e o Frei Bartolomeu
Lourenço que fazem parte de outro núcleo da história do Memorial do Convento.
Na narrativa, a personagem Blimunda é filha de Sebastiana Maria de Jesus, esta,
condenada pela igreja por heresia e feitiçaria. Blimunda possui um dom, o da profecia,
herdada desde quando se encontrava na barriga de sua mãe. Assim, a personagem consegue
vê por dentro das pessoas e das coisas: Se o vieres a saber um dia será por ela, não por mim.
Mas sabe a razão, Sei, E não me diz, te direi que se trata de um grande mistério, voar é
simples coisa comparada com Blimunda‖ (ESC, 1990: 47).
Nesse romance, José Saramago inicia um tema que anos depois será o pano de fundo
do seu Ensaio, ou seja, a possibilidade de olhar de um modo específico, o olhar, ver e
reparar, desenvolvido no Ensaio sobre a cegueira. Blimunda é a mulher que vê, que enxerga
31
sob um prisma diferente de todos os outros personagens do Memorial. Como se pode observar
na passagem abaixo:
Baltasar não teve tempo de responder, ainda procurava o sentido das
palavras, outras se ouviam no quarto, incríveis, Eu posso olhar por dentro
das pessoas. Sete-Sóis soergueu-se na enxerga, incrédulo, e também
inquieto, Estás a mangar comigo, ninguém pode olhar por dentro das
pessoas, Eu posso. [...] Meu Dom não é heresia, nem feitiçaria, os meus
olhos são naturais, eu vejo o que está no mundo, não vejo fora dele, céu
ou inferno, não digo rezas, não faço passes de mãos, só vejo. [...] Vejo o que
está por dentro dos corpos, e às vezes o que está no interior da terra, vejo o
que está por baixo da pele, e às vezes mesmo por debaixo das roupas, mas só
vejo quando estou em jejum, perco o dom quando muda o quarto da lua
(ESC, 1990: 75-76).
Cegar para poder ver, para poder olhar e reparar o outro e, possivelmente, a si mesmo,
vai ser a estratégia narrativa empregada pelo autor do Ensaio sobre a cegueira, que poderia
muito bem ser lido como uma metáfora de como olhar de modo diferente o mundo.
Ao tecer um texto literário envolto de calamidades e catástrofes humanas, Saramago,
na esteira de clássicos da literatura, como Franz Kafka, com O processo, de 1912, ou Albert
Camus, com A Peste, de 1947, retrata uma atmosfera movida pela desordem humana, em que
os jogos do poder imperam sobre a lei dos mais fracos, vistos como peças da alienação. O
narrador adverte, nesse romance, a cegueira dos homens:
Mas esta cegueira é tão anormal, tão fora do que a ciência conhece, que não
poderá durar para sempre, E se fôssemos ficar assim para o resto da vida,
Nós toda a gente, Seria horrível, um mundo todo de cegos, Não quero nem
imaginar (ESC, 1999: 59-60).
A mulher do médico consegue ter visão, pois, ao contrário dos demais, ela e possui
a tarefa de olhar os personagens dentro do manicômio. Ela, ao mesmo tempo, os e os vela
diante daquela situação, atravessa a superfície das coisas, como nos remete o trecho em
abaixo:
[...] A mulher do médico voltou para o seu catre, mas não se deitou.
Olhava o marido que murmurava sonhando, os vultos dos outros debaixo dos
cobertores cinzentos, as paredes sujas, as camas vazias à espera, e
serenamente desejou estar cega também, a atravessar a pele invisível das
coisas e passar para o lado de dentro delas, para a sua fulgurante e
irremediável cegueira (ESC, 1999: 64).
32
Assim a cegueira, para o autor, tem um tom de alegoria, ao alertar os homens do final
do século XX para o estado de alienação em que estes se encontram. Seria uma espécie de
―teoria implícita que se ilustra pela narração, uma parábola cruel da cegueira da humanidade
(SILVA, 2001: 691).
após ficarem cegos, os personagens atentarão para o estado de dormência, ou,
mesmo, da completa cegueira em que se encontravam antes de cegarem fisicamente. O
narrador, assim, adverte para outras formas de cegueira na atualidade: a cegueira da alienação,
a da violência, a da intolerância e dos absurdos, dos que vivem no estado de uma consciência
precária e que, desumanamente, perdem o fio da História. Essa mesma história registra fatos
das crueldades, como os milhões de judeus que foram mortos pelo nazismo, as bombas
jogadas em Nagazaki e Hirochima, a guerra do Vietnã, as duas Grandes Guerras Mundiais, a
violência e o analfabetismo no Brasil, o crime organizado em países como a Colômbia, ou as
atrocidades acometidas pelos países mais ricos do mundo, como os EUA, ou tantas outras
situações de tragédias nos países mais periféricos do planeta.
Os cegos do romance de Saramago representam uma simbólica imagem daquilo a que
a humanidade está chegando, ou melhor, chegou. Mergulhados num processo ―do mar de
leite‖ em que se vêem, isto é, não vêem, os cegos acabam por encontrar forças, aonde
pensavam que elas não mais existiriam: na irmandade, na coragem entre os homens, na fome
pela liberdade e por generosidade, que o espírito humano seria capaz de reelaborar e
externar.
O estado de cegueira é relacionado à loucura, por Foucault, em a História da loucura,
(2005). O qual desenvolve um singular olhar, ao traçar o perfil do louco. O filósofo delineia a
história clássica da loucura, do século XVII até a modernidade. Com esse estudo, o autor
perfaz um caminho que estabelece contatos entre os estágios da loucura e da cegueira, no
sentido da alienação. Os campos teóricos analisados pelo filósofo trouxeram subsídios para
entender o perfil das principais doenças mentais, distinguindo-as, inclusive, das imagens
configuradas pela medicina, anteriores aos postulados de Michel Foucault. Para ele (2005:
183), o corpo não está desassociado da alma, e a loucura expressa essa concepção:
O louco o é manifesto em seu ser: mas se ele é indubitável, é porque
é outro. Ora essa alteridade, na época em que nos colocamos, não é sentida
de imediato como diferença experimentada a partir de uma certa certeza de
33
si mesma. Diante desses insanos que imaginam ser ―bilhas ou ter corpos de
vidros. [...] Chama-se de loucura essa doença dos órgãos do cérebro que
impede necessariamente um homem de pensar e agir em relação aos outros.
O louco é outro em relação aos outros: o outro no sentido da exceção
entre os outros no sentido universal. [...] Chamamos de loucura essa doença
dos órgãos do cérebro. Os problemas da loucura giram ao redor da
materialidade da alma.
Para o autor, a loucura é uma forma de cegueira; a cegueira é assim definida no
referido livro, em que o filósofo pensa as doenças do espírito como uma condução da loucura
e das manifestações das insanidades do espírito. Nesse sentido, loucura e cegueira se
aproximam nas palavras de Foucault (2005: 242-243):
Cegueira: palavra das que mais se aproximam da essência da loucura clássica.
Ela fala dessa noite de um quase-sono que envolve as imagens da loucura,
atribuindo-lhes, em seu isolamento, uma invisível soberania; mas fala também
de crenças mal fundamentadas, juízos que se enganam, de todo esse pano de
fundo de erros inseparável da loucura. O discurso fundamental do delírio, em
seus poderes constituintes, revela assim aquilo pelo que, apesar das analogias da
forma, apesar do rigor de seu sentido, ele não mais é discurso da razão. Ele
falava, mas na noite da cegueira; era mais que o texto frouxo e desordenado de
um sonho, uma vez que se enganava; contudo, era mais do que uma proposição
errônea, uma vez que estava mergulhado nessa obscuridade global que é a do
sono. [...] Unindo a visão e a cegueira, a imagem e o juízo, o fantasma e a
linguagem, o sono e a vigília, o dia e a noite, a loucura no fundo não é nada,
pois liga neles o que têm de negativo.
A cegueira, sob esse prisma, é um fato obscuro em que se encontra o indivíduo.
Privado de luz, ele se envolto em sombras ou encoberto de trevas. O ofuscamento do
louco, que abrindo os olhos, apenas a noite e, nada vendo, acredita ver quando na verdade
imagina. Na uniforme claridade de seus sentidos fechados(FOUCAULT 2005: 244). Com
esse pensamento, o filósofo compara o louco com o cego e sinaliza que esse tipo de cegueira é
a perda dos sentidos mais simbólicos da espécie humana.
Por esse viés, a alienação, seja de que ordem for, participa de um movimento
desencadeado pela cegueira, visto que as ações dos homens, desatinados e desumanizados,
provocam o que se pode denominar de cegueira da alma. Ela extravasa de uma
irracionalidade desmedida, em que os sujeitos, privados de seus nomes, no caso do Ensaio
sobre a cegueira, perdem suas idiossincrasias, como no inferno, simbolizado pelo manicômio,
para onde são levados os loucos. Na narrativa, os alienados, os cegos, sem saber como se
conduzirem se vêem acuados e, irremediavelmente, materializados em bichos:
34
Do que se tratava era por de quarentena todas aquelas pessoas, segundo
antiga prática, herdada dos tempos da cólera e da febre-amarela, quando os
barcos contaminados ou suspeitos de infecção tinham de permanecer ao
largo durante quarenta dias, até ver. [...] Queria dizer que tanto poderão ser
quarenta dias como quarenta semanas, ou quarenta meses, ou quarenta anos,
o que é preciso é que não saiam de lá. [...] Neste caso, resta o manicômio,
Sim Senhor Ministro, o manicômio, Pois então que seja o manicómio, Aliás,
a todas as luzes, é o que apresenta melhores condições, Com certeza não crês
que vamos ser os únicos, Isso é uma loucura, Deve ser estamos num
manicómio. [...] A mulher do médico, sentada na cama do marido, disse em
voz baixa, Tinha de ser, o inferno prometido vai principiar. Ele apertou-lhe a
mão e murmurou, Não te afastes, daqui em diante nada poderás fazer. Os
gritos tinham diminuído, agora ouviam-se ruídos confusos nos átrios, eram
os cegos, trazidos em rebanho (ESC, 1999: 45-46).
A cegueira, no romance de José Saramago, será um binômio entre o ver e a
incapacidade de enxergar a nós próprios e ao outro. O olhar é uma perspectiva de encontro
com o que de mais humano possuímos. Nesse sentido, o texto de Saramago pode ser visto
como um alerta de que não podemos perder essa essência, mas que corroídos pela aparência, o
homem vive num mundo de sombras, assim como na Caverna de Platão.
Esse entendimento sinaliza que o olhar e a cegueira são representações simbólicas, que
no romance, aparecem como o fio condutor para uma nova percepção sobre a realidade.
Assim o médico oftalmologista indaga quando da sua súbita cegueira, em contraste
com o seu ofício, que era o de cuidar da visão das pessoas. O médico é também contagiado
pelo ―mar de leite‖ que se manifesta em todos os personagens da trama, com exceção da sua
mulher, que não cega na narrativa:
Sucedeu um minuto depois, quando juntava os livros para os arrumar na
estante. Primeiro sucedeu que tinha deixado de ver as mãos, depois soube
que estava cedo. [...] Na verdade um oftalmologista cego não poderia servir
para muito, mas competia-lhe a ele informar as autoridades sanitárias. [...]
Olhos que tinham deixado de ver, olhos que estavam totalmente cegos. [...]
Fingiu que dormia quando a mulher se levantou. Sentiu o beijo que ela lhe
deu na testa, muito suave, como se não quisesse acordá-lo do que julgava ser
um sono profundo, talvez tivesse pensado, Coitado, deitou-se tarde, a estudar
aquele extraordinário caso do homenzinho cego. [...] O médico deixou-se
sair um gemido breve, consentiu que duas lágrimas, Serão brancas, pensou,
lhe inundasse os olhos e derramassem pelas fontes (ESC, 1999: 36, 38).
Assim como Blimunda, do Memorial do Convento, a mulher do médico é aquela que
vê, porém, no Ensaio sobre a cegueira, ao contrário de Blimunda, ela não por dentro das
35
pessoas, como a personagem do Memorial, mas sim, fora destinada a ver os horrores da
cegueira, a presenciar o caos em que se transformou um mundo comandado por cegos, a
exemplo da Terra desolada, como afirma o inglês T. S. Eliot, no poema de 1922: Cidade
Irreal, sob a neblina castanha de uma aurora de inverno, [...] jamais pensei que a morte a
tantos destruíra‖ (ELIOT, 2004: 141).
A cegueira narrada por Saramago lembra-nos o que foi discutido por Foucault (2005),
quando o filósofo analisa a loucura sob o prisma da cegueira e da visibilidade, em que dia e
noite são formas indistintas no mundo dos cegos. Conforme Foucault (2005: 243-244):
O ofuscamento é a noite em pleno dia, a obscuridade que reina no próprio
centro do que existe de excessivo no brilho da luz. A razão ofuscada abre os
olhos para o sol e nada vê, isto é, não vê. No ofuscamento, o recuo geral dos
objetos em direção da profundidade da noite tem por correlato imediato a
supressão da própria visão; no momento em que os objetos desaparecem na
noite secreta da luz, a vista se no instante de seu desaparecimento. [...] O
que significa que, vendo a noite e o nada da noite, ele não vê nada.
Então, olhar será a tarefa da mulher do médico, olhar, ver e reparar, a si própria e aos
outros, uma vez que ela não fica cega. A ela serão destinados os íngremes caminhos do
inferno. Presa em um manicômio, ela fica horrorizada pela desordem humana, num mundo
em que os princípios mais básicos vão perdendo os seus sentidos, como alimentação e
higiene. Esta personagem manifesta uma acentuada visão, a da solidariedade, revelando, a
dimensão do amor, congratulando-o com as formas mais díspares da sobrevivência, conforme
significa o fragmento abaixo:
Tenho de abrir os olhos, pensou a mulher do médico, Através das pálpebras
fechadas, quando por várias vezes acordou durante a noite, percebera a
mortiça claridade das lâmpadas que mal iluminavam a camarata [...] Não
estou cega, murmurou, e logo alarmada se soergueu na cama, podia -la
ouvido a rapariga dos óculos escuros, [...] Fez como eu, deu-lhe o lugar mais
protegido, bem fracas muralhas seríamos, uma pedra no caminho, sem
outra esperança que a de tropeçar nela o inimigo. [...] Da cama do ladrão
veio um gemido, Se a ferida infectou, pensou a mulher do médico, não
temos nada para tratar, nenhum recurso, o mais pequeno acidente, nestas
condições, pode dar em tragédia, é disso mesmo que eles estão à espera, que
acabamos aqui uns atrás dos outros, morrendo o bicho acaba-se a peçonha
(ESC, 1999: 63).
A mulher do médico se percebe e entende o outro, de forma que o seu olhar perscruta
o que está acontecendo e, desvelando-se, adquire a consciência de outro olhar perante o
36
mundo, perante as coisas e à cegueira dos demais. Vê-se como a única capaz de fazer com que
os outros se enxerguem ante as suas próprias cegueiras, a partir das sujeiras do animal que é o
homem, como podemos perceber no trecho em destaque: muitas maneiras de tornar-se
animal, pensou, esta é a primeira delas. Porém, não se podia queixar muito, ainda tinha
quem não importasse de o limpar‖ (ESC, 1999: 97).
Além disso, a cegueira, no romance, desperta outros tipos de olhares que, no decorrer
da narrativa, vão sendo revelados para um mundo novo, um mundo que não será o mesmo de
antes, em que a hipocrisia e a demagogia dos tempos modernos serão desmascaradas. A
mulher do médico será a única que se alimenta de uma profunda vontade de sobrevivência.
Ela serve como se fosse uma trilha para o seu marido e para os outros cegos, como Moisés
3
,
quando guiou o povo de Israel a atravessar o Mar Vermelho. Com essa postura, redimensiona
o curso da história e do seu olhar, promovendo aos outros a descoberta de outras formas de
percepção da realidade. Essas outras formas de percepção vão ser observadas no trecho a
seguir:
Poderia ser o mar de leite a afogar-lhe os olhos, [...] O que queria era não
ter de abrir os olhos. [...] Eu ainda vejo, mas até quando. [...] Também a
minha vez chegará, pensou, quando, talvez nesse mesmo instante, sem me
dar tempo de a acabar o que estou a dizer-me, em qualquer momento como
eles, ou talvez acorde cega. [...] Ainda soluçando, a mulher do médico saiu
da cama, abraçou-se à rapariga, Não é nada, foi uma tristeza que me entrou
de repente, disse, Se a senhora, que é tão forte, está a desanimar, então é
porque não temos mesmo salvação, queixou-se a rapariga. [...] Todos temos
os nossos momentos de fraqueza, ainda o que nos vale é sermos capazes de
chorar (ESC, 1999: 100-101).
Ao mesmo tempo, a mulher do médico precisa olhar a si mesma e aos cegos que foram
trancafiados no manicômio. A ela cabe a incumbência de viver e transformar o mundo dos
cegos, em um mundo, possivelmente, de luta pela vida, sendo esse um dos principais focos da
narrativa. Provavelmente, num mundo de cegos as coisas serão o que verdadeiramente
são, disse o médico (ESC, Idem: 128).
O medo também é outra maneira dos cegos se expressarem perante o caos em que se
encontravam. O medo faz com que as pessoas fiquem cegas. Elas se atrofiam diante do
3
Segundo a versão do Velho Testamento, em Exôdo: 14, versículos, 15-26, Moisés conduz o povo de Israel para
fora do Egito, atravessando o Mar Vermelho (BÍBLIA SAGRADA, 2000).
37
desespero, preferindo se alienar em suas próprias cavernas. Ele é uma alusão ao estado de
cegueira em que os indivíduos se depararam antes mesmo de ficarem cegas, ou seja, da vida
alienada, da massificação do cotidiano: ―Mas quem não nos diz a nós que esta cegueira branca
não será precisamente um mal de espírito‖ (ESC, 1999: 90).
De tal forma, o medo é também uma forma de cegueira. Quanto a isso, Carlos
Drummond de Andrade, (2004: 118), no poema Congresso Internacional do Medo, assim
versa:
Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.
Como enfatiza o poeta mineiro, o medo é inerente à nossa vida e assim ele se perpetua
até a morte. O poema acima traz a idéia de que o medo permeia a vida dos homens, nas mais
diversas situações. Também o medo foi condição básica no Ensaio sobre a cegueira, e é
freqüente na relação entre os indivíduos, como se observa nas imagens da narrativa:
O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas,
éramos cegos no momento em que cegámos, o medo nos cegou, o medo nos
fará continuar cegos, Quem está a falar, perguntou o médico, Um cego,
respondeu a voz, um cego, é o que temos aqui. Então perguntou o velho
da venda preta, Quantos cegos serão precisos para fazer uma cegueira.
Ninguém lhe soube responder (ESC, 1999: 131).
A cegueira, tal como o olhar, o ver e o reparar são percebidos nesse estudo, como
estados da alma do sujeito. Em meio a uma realidade hostil, os cegos do Ensaio sobre a
cegueira batalham pela sobrevivência. Perante o caos, abarcam, com seus instintos, a luta pela
vida. Os versos de Manuel Bandeira (1995: 34), a seguir, demonstram como essa realidade é
transformada, em que os homens se revelam bichos: Ontem eu vi um bicho, o bicho meu
Deus era um homem‖. Essas imagens percebidas nos versos também podem ser vislumbradas
nas várias imagens trazidas pelo romance de José Saramago, em que o homem atual se
38
encontra também lutando como um bicho e com o seu semelhante. Na passagem abaixo,
encontramos a relação de sujidade, condição em que estavam os cegos no manicômio:
Mas ali o que verdadeiramente se necessitava era um poderoso jorro de
mangueira que levasse à frente toda a merda, depois uma brigada de
canalizadores que viessem reparar os autoclismos, pô-los a funcionar, depois
água, água em quantidade, para levar aos canos de esgoto o que ao esgoto
deveria ir, depois por favor, olhos, uns simples olhos, uma mão capaz de nos
conduzir e guiar, uma voz que me diga, Por aqui. Estes cegos se não lhes
acudirmos, não tardarão a transformar-se em animais, pior ainda, em animais
cegos (ESC, 1999: 134).
Se observarmos atentamente, veremos que o fragmento exposto desponta para o
caminho hostil em que se transformara o manicômio. Como podemos sinalizar, a
predominância é a modificação dos valores humanos em momentos animalescos.
Por certo, a alegoria de não ver na narrativa de Saramago, possibilita, aos leitores
contemporâneos, enxergar a si mesmos e, também, entender esse tema como promoção de
sentidos da alienação. Os detentores dos sistemas totalitários têm ações ideológicas, que estão
nos mais diversos espaços da esfera social. As instituições, a exemplo dos manicômios, dos
asilos e das prisões nas sociedades modernas, desempenham bem essas noções dos sistemas
ideológicos, configurados, assim, como sistemas opressores.
1.2 O DISCURSO DO PODER
O livro Ensaio sobre a cegueira como foi ressaltado, é uma alegoria dos tempos
modernos, cuja epidemia, a da cegueira branca, demonstra um tempo em que se vive em
completa instauração do caos. O narrador apresenta aos leitores um mundo de nuvens e
sombras, realçando com a metáfora do ―mar de leite‖, a alienação da contemporaneidade. Os
39
personagens cegos do Ensaio serão todos trancafiados em uma instituição judicial, O
Aparelho Ideológico do Estado
4
, num manicômio, como forma de controle da epidemia.
Os personagens representam imagens caóticas, são ações de coerção e repressão do
Estado como fora salientado. Essa postura é típica das autoridades locais, em que as medidas
de segurança têm ações ideológicas para tentar manter a ordem.
Uma epidemia também acontece no romance A Peste, (1947), de Albert Camus, em
que a cidade de Oran se encontra contaminada pela invasão de ratos, infestação pela peste
bubônica, ocasionando a morte de vários cidadãos. Tal como o romance de Camus, outras
―pestes‖ não invadiriam o homem? A esse respeito, observamos pertinência entre a epígrafe
que abre o livro de Albert Camus, exposta a seguir, e o Ensaio, quando se observa nesse
último um tipo de encarceramento, dado pelo fato de as pessoas ficarem cegas: ―É tão válido
representar um modo de aprisionamento por outro, quanto representar qualquer coisa que de
fato existe por alguma coisa que não existe‖ (CAMUS, 1988: 05).
Também, no Ensaio, ao tentar sanar o mal na cidade, o da cegueira, as autoridades se
manifestam com uma forte presença do discurso do poder. O mapeamento de tais discursos
demonstra, de maneira bem salutar, como as autoridades alicerçam uma maneira de coerção e
de repressão sobre as classes dominadas, principalmente quando se olha o discurso como
forma de produção de sentidos.
A análise desses discursos nos permite perceber como as circunstâncias da prisão e da
disciplina, no contexto do manicômio, revelam, no tecido ficcional, uma manifestação do
poder. Daí, abrimos espaço aqui para discutir essa noção. Para tal, buscamos nas obras de
Michel Foucault, em A ordem do discurso (1999), a apreciação dos modelos de discursos que
operam nas sociedades modernas, como também a instauração dos modelos de manicômios,
asilos e prisões na sociedade, em a História da loucura (2005) e, ainda, as formas
disciplinares, utilizadas como medidas de repressão, vislumbradas à luz do texto Vigiar e
punir (2007), que enfoca o nascimento da prisão como maneira disciplinar e coercitiva, e
também algumas reflexões extraídas da Microfísica do poder (1999), sobre as estruturas que
4
Louis Althusser define como Aparelhos Ideológicos do Estado certo número de realidades que apresentam ao
observador sob a forma de instituições distintas e especializadas. O ―Direito‖ pertence ao mesmo tempo ao
Aparelho Repressivo do Estado e ao Aparelho Ideológico do Estado (ALTHUSSER, 1983, p. 68).
40
alicerçam, organizam e mantém o poder, e A instituição imaginária da sociedade (1982), de
Cornelius Castoriadis.
Para Michel Foucault (1999), o poder se instaura através dos discursos operados nas
instâncias, instituições, como: a política, a igreja, a família, a justiça e a escola, ou seja, nos
espaços que, efetivamente, determinam os seus discursos e operam segundo leis. Conforme o
autor: ―Existem, evidentemente, muitos outros procedimentos de controle e de delimitação do
discurso. Aqueles de que não falei até agora se exercem de certo modo do exterior; funcionam
como sistemas de exclusão‖ (FOUCAULT, 1999: 21). Ainda segundo o autor (1999: 49):
O discurso existe, o que pode ser, então em sua legitimidade, senão uma
discreta leitura? [...] O discurso nada mais é do que a reverberação de uma
verdade nascendo de seus próprios olhos; e, quando tudo pode, enfim, tomar
a forma de discurso, quando tudo pode ser dito e o discurso pode ser dito a
propósito de tudo, isso se porque todas as coisas, tendo manifestado e
intercambiado seu sentido, podem voltar à interioridade silenciosa da
consciência de si.
No Ensaio, podemos afirmar que um discurso do poder estabelecido pela
legitimação, pois, maneiras de agir e de comportar-se que denotam discursos oficiais. Essa
voz de comando é assumida pretensamente como a forma mais eficaz de controlar e sanar o
mal acometido na sociedade da cegueira. Forma, quiçá, empregada pelo narrador para criticar
as ações realizadas por uma hegemonia política. Tal forma é encontrada, quando os
personagens cegos são todos recolhidos, conduzidos e trancafiados em um manicômio,
atestando daí, a ação mais repressiva da sociedade, a prisão:
Neste instante ouviu-se uma voz forte e seca, de alguém, pelo tom, habituado
a dar ordens. Vinha de um altifalante fixado por cima da porta por onde
tinham entrado. A palavra Atenção foi pronunciada três vezes, depois a voz
começou, O Governo lamenta ter sido forçado a exercer energicamente o
que considera ser seu direito e seu dever (ESC, 1999: 49).
Por sua vez, Cornelius Castoriadis (1982), analisa a sociedade contemporânea,
ancorada em várias formas de poder. Ela é definida como uma rede institucional, em que os
discursos são produzidos simbolicamente. Assim, a sociedade é composta por instituições,
família, igreja, escola e grupos políticos, cujas ações são realizadas materialmente e
simbolicamente. A cegueira nesse sentido é um viés de uma sociedade alienada. Segundo o
41
autor, as instituições, ―não se reduzem ao simbólico, mas elas podem existir no simbólico,
são impossíveis fora de um simbólico‖ (CASTORADIS, 1982: 142).
São as instituições que produzem maneiras diversas de poder, de forma que apontar,
numa sociedade como a nossa, uma maneira de poder é ingênuo, pois vários são os papéis
sociais desempenhados pelos indivíduos. Isso demonstra como a sociedade é movediça. Ela
não é homonea, apesar da a ideologia dominante incita e tenta promover essa imagem. A
sociedade é constituída pela diferença, pelo princípio da heterogeneidade, já que os indivíduos
são diferentes entre si e têm maneiras simbólicas de exercer o poder. Um pai numa fábrica
não tem o mesmo poder que tem dentro de sua família com o seu filho, por exemplo.
A reflexão sobre o discurso do poder em o Ensaio sobre a cegueira é pertinente,
quando compreendemos a maneira como Foucault (1999), encara esse discurso, ou esses
micro-poderes como foram referidos. A propósito, Roberto Machado argumenta na
introdução de Microfísica do poder (1999), sobre a relação do poder para Michel Foucault.
Nessa introdução, o autor analisa o poder de maneira que:
Não existe em Foucault uma teoria geral do poder. O que significa dizer que
suas análises não consideram o poder como uma realidade que possua uma
natureza, uma essência que ele procuraria definir por suas características
universais. Não existe algo unitário e global chamado poder, mas
unicamente formas díspares, heterogêneas, em constante transformação. O
poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal
constituído historicamente (FOUCAULT, 1999: 10).
Sob esse prisma, o poder é simbolicamente construído, a partir das produções
discursivas, nas mais diferentes representações, como no interior de uma fábrica, ou como nos
anseios de uma classe dominante, cujas articulações são os jogos de interesses socialmente
bem definidos, a exemplo da repressão e dos mecanismos de manipulação da ideologia.
Assim, o poder não é unilateral, mas contínuo, porque não se sabe quem o detém
efetivamente, mas se sabe quem não o possui. Para Foucault (1999: 76):
Não é porque ninguém ainda tinha tido consciência disto, mas porque falar a
esse respeito forçar a rede de informação institucional, nomear, dizer quem
o fez, o que fez, designar o alvo é uma primeira inversão do poder. Se
discursos como, por exemplo, os detentos ou dos médicos de prisões são
lutas, é porque confiscam, ao menos por um momento, o poder de falar da
prisão, atualmente monopolizado pela administração e seus compadres
reformadores.
42
Essa visão desnuda as estratégias do poder. Mas, ainda assim, ela é insuficiente para
entender o fenômeno que corresponde ao conceito de poder. No fragmento abaixo podemos
perceber tal assertiva: ―Marx e Freud talvez ainda não sejam suficientes para nos ajudar a
compreender esta coisa tão enigmática, ao mesmo tempo tão visível e invisível, presente e
oculta, investida em toda parte, que se chama poder‖ (FOUCAULT, 1999: 75). A afirmação
mostra como o poder está embutido nas mais diferentes maneiras, isto é, não na formas
contundentes em que ele se apresenta, mas sim, de modo sutil e mascarado. Na literatura, os
discursos podem se apresentar de múltiplas maneiras
5
.
A partir dessas considerações sobre o poder, as referências ao texto literário estudado
visarão seus vários discursos, tanto aqueles produzidos pelos detentores do sistema oficial,
como os dos cegos, reclusos em um antigo hospital psiquiátrico. Sabemos que no plano
ficcional, um texto é uma reinvenção de uma realidade, em que o narrador reelabora o
discurso tido como oficial e o reconstrói a partir de seu ponto de vista, ou de suas intenções.
Concordamos com as palavras de Hegel (1997: 47), ao afirmar: ―a obra de arte é uma
produção sensível dirigida para o sentido humano‖.
O que se mostrará, entretanto, nesse momento, são as elucidações das principais
formas de poder, ideologicamente constituídas nos espaços institucionais como os
manicômios, os asilos e as prisões, para que, em outro instante da análise se perceba como
nessas instituições, diretamente no manicômio, estão embutidas outras formas de
representações do discurso, atribuindo, aos personagens cegos, essas outras representações e
suas características fundamentais.
O romance Ensaio sobre a cegueira é um texto literário que possibilita ao leitor tal
empreendimento, uma vez que a abordagem de cunho sócio-histórico pode ser feita, de forma
que se percebam as várias vozes do discurso nas entrelinhas do texto estético, vislumbrado
pela sua leitura e recepção.
O Ensaio permite, assim, uma leitura da metáfora da alienação, uma vez que, em nossa
sociedade, várias maneiras de se alienar, isto é, de ser cegos em um sistema político-
5
Corroboramos com Antonio Cândido, em Literatura e Sociedade (1999), quando afirma que a posição do
artista na obra literária é uma posição ideológica e social, portanto a literatura faz parte das estruturas sociais. Ela
pertence a uma ideologia, a do artista. Portanto, o literário emprega uma linguagem simbólica, uma linguagem
estética.
43
econômico, cada vez mais desestruturado; cujas pessoas, em sua grande maioria, se
encontram alijadas das principais necessidades da sobrevivência humana como: alimentação,
saúde, educação, moradia, acesso aos bens culturais e ao patrimônio público.
1.3 DISCURSOS AUTORITÁRIOS: MANICÔMIOS, ASILOS E PRISÕES.
Pedimos a atenção de todos para as instruções que
se seguem, primeiro, as luzes manter-se-ão sempre
acesas, será inútil qualquer tentativa de manipular
os interruptores, não funcionam, segundo,
abandonar o edifício sem autorização significará
morte imediata (José Saramago)
6
.
Num dos diálogos entre o médico oftalmologista e sua mulher, muitas referências
ao estado de internamento em que os cegos se encontram, inclusive porque, nesse espaço, o
manicômio, se desenvolve quase toda a trama do Ensaio. O manicômio é um espaço
reservado à loucura, instituição que originalmente surgiu no século XVII e teve outras
dimensões ao longo dos séculos. Assim, a barbárie toma conta dos personagens, os quais,
porém, não estão loucos, mas são destinados para o único espaço disponível, conforme as
orientações das autoridades da fictícia cidade de Saramago: ―A mulher do médico voltou para
dentro. És capaz de imaginar aonde nos trouxeram, Não, ela ia acrescentar A um manicómio.
[...] Isto é uma loucura, Deve ser, estamos num manicómio‖ (ESC, 1999: 47-48).
O manicômio na narrativa é um lugar concreto, representando um espaço de reclusão e
controle da epidemia. Assim também ocorre no conto O alienista (1882), de Machado de
Assis, em que várias pessoas são recolhidas na Casa verde, pelo Dr. Simão Bacamarte,
supostamente tidas por ele como ―loucas‖. Na ficção machadiana do século XIX, o Dr. Simão
Bacamarte famoso médico de Itaguaí almeja a realização profissional pelos seus estudos da
alma humana. Assim mostra o conto: ―Foi então que um dos recantos desta lhe chamou
6
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 50.
44
especialmente a atenção, - o recanto psíquico, o exame da patologia cerebral. [...] A saúde
da alma, bradou ele, é a ocupação mais digna do médico‖ (MACHADO, 1996: 18).
O personagem de O alienista promove uma verdadeira revolução na vila de Itaguaí,
por colocar reclusas todas as pessoas que ele, como médico, apontaria como insanas. No texto
do escritor, esse conto é aludido por nosso objeto de estudo, por considerar como espaço
legitimador do psiquiatra a Casa verde. O personagem Simão Bacamarte, a exemplo das
autoridades políticas do Ensaio de José Saramago, se reveste de um discurso que tenta
promover a ordem. Vejamos essa imagem no conto referido:
Bacamarte lançou o terror à alma da população. Ninguém queria acabar de
crer, que, sem motivo, sem inimizade, o alienista trancasse na Casa Verde
uma senhora perfeitamente ajuizada [...] A Casa Verde é um cárcere
privado, disse um médico sem clínica. [...] Nunca uma opinião pegou e
grassou tão rapidamente. Cárcere privado: eis o que se repetia de norte a sul
e de leste a oeste de Itaguaí, a medo é verdade, porque durante a semana
que se seguiu à capturação do pobre Mateus, vinte e tantas pessoas, duas
ou três de consideração, foram recolhidas à Casa Verde. O alienista dizia
que só eram admitidos os casos patológicos, mas pouca gente lhe dava
crédito (MACHADO, 1996: 31).
Feitas essas possíveis e breves comparações entre o manicômio do Ensaio sobre a
cegueira e a Casa verde, de O alienista, o que se pretende, de agora em diante, é esboçar
argumentos que denotem como esses espaços de reclusão, notadamente, o manicômio, no
Ensaio, é uma instituição que comprova uma forma acentuada do poder. Esse estudo visa
analisar aquilo que antes nos referimos como discursos autoritários, para, num outro
momento, discutir como esses discursos, que procuram controlar e sanar a desordem da
cegueira, estão irreversivelmente implicados com outros, aqueles que dão espaços às vozes
excluídas, como as dos cegos que se rebelaram dentro do contexto do romance.
Em História da loucura (2005: 48), Foucault ressalta a criação das casas de
internamentos, ou hospitais psiquiátricos, onde eram internadas as pessoas acometidas de
algum mal do espírito, isto por volta do século XVII, na cidade de Paris. Essas casas eram
destinadas às espécies de portadores de diversas doenças da alma. Assim, os doentes eram
internados e privados de liberdade. Ressalte-se, também, aí, o contingente de pessoas que
eram encaminhadas ao internamento e qual era o seu propósito:
É sabido que o século XVII criou vastas casas de internamento; não é muito
sabido que mais de um habitante em cada cem da cidade de Paris viu-se
45
fechado em uma delas, por alguns meses. É bem sabido que o poder absoluto
fez uso de cartas régias e de medidas de prisão arbitrárias; é menos sabido
qual a consciência jurídica que poderia animar essas práticas. A partir de
Pinel, Tuke, Wagnitz, sabe-se que os loucos, durante um século e meio,
foram postos sob o regime do internamento, e que um dia serão descobertos
nas salas do Hospital Geral, nas celas das ―casas de força‖. [...] A partir da
metade do século XVII, a loucura esteve ligada a essa terra de
internamentos, e ao gesto que lhe designava essa terra como seu local natural
(Ibidem: 48).
Com essa prática de aprisionamento, a liberdade fica comprometida e a ordem social
vigente se beneficia de um modelo sócio-histórico, voltado para as ações do Estado e da
Igreja, estabelecendo, dessa maneira, ações coercitivas ao denotar, segundo suas leis, o
equilíbrio e o bem-estar das cidades que se encontrassem ameaçadas pela desordem da
insanidade, do desatino, ou de qualquer outro fator que desestabilizasse os dogmas proferidos
por essas instituições. Assim, segundo Foucault (2005: 110), essas instituições teriam o pleno
poder de:
Internar os devassos, os pais dissipadores, os filhos pródigos, os
blasfemadores, os homens que procuram se desfazer, os libertinos. [...] A
décima parte aproximadamente das prisões feitas em Paris, com destino ao
Hospital Geral, diz respeito aos insanos, homens em demência, pessoas de
espírito alienado, pessoas que se tornaram inteiramente loucas.
O manicômio é instaurado na Europa, no período oitocentista, como uma maneira de
coibir todo tipo de comportamento considerado anormal, com o objetivo de veicular a verdade
da justiça e legitimar uma razão em oposição à loucura. Em outros lugares da Europa, foram
criadas casas de internação, anteriores ao Hospital Geral de Paris, como na Alemanha, em
1620; na Inglaterra, em 1575 e, nos séculos posteriores, vários desses estabelecimentos foram
criados na Holanda, Itália e Espanha, a fim de espalhar por esses lugares uma ordem para
sanar o mal, assim: ―esses lugares, hospitais, prisões, casas de detenção, tinham o objetivo de
recolher, alojar, alimentar aqueles que se apresentem de espontânea vontade, ou aqueles que
para lá são encaminhados pela autoridade real ou judiciária‖ (FOUCAULT, 2005: 49).
A internação nos hospitais psiquiátricos, em sua efervescência, denotava uma maneira
objetiva que o Estado absolutista e a Igreja católica tinham de controlar a população que
sofria de algum mal do espírito e ajudar essa gente segundo os parâmetros dessas instituições.
Sobre isso, afirma Foucault (2005:53) ―os grandes hospitais, as casas de internamento, obras
46
de religião e de ordem pública, de auxílio e punição, caridade e previdência governamental
são um fato da era clássica‖.
Essa prática de internação, por sua vez, ao lado do fator religioso, era uma reação
contra a miséria, pois aqueles que não tinham para onde ir se estabeleciam, muitas vezes,
nessas casas de internamento. Vejamos: ―Esses hospícios destinam-se a socorrer os pobres,
mas comportam quase todas as células de detenção e casernas nas quais se encerram
pensionários‖ (FOUCAULT, 2005: 52).
Ligada aos fatos sócio-econômicos, a grande internação, descrita por Michel Foucault,
definia que o desvario e a loucura seriam motes para a prisão das pessoas com insanidades
mentais. Assim, os loucos estariam juntos aos pobres e os vagabundos do século XVII,
formando uma massa de pessoas que precisariam ser recolhidas, conforme os dogmas do
Estado e da Igreja, postas à punição e ao recolhimento espiritual. De acordo com Foucault
(2005: 77):
Para a Igreja Católica, bem como para os países protestantes, a internação
representa, sob a forma de um modelo autoritário, o mito da felicidade
social: uma polícia cuja ordem seria inteiramente transparente aos princípios
da religião, e uma religião cujas exigências seriam satisfeitas, sem restrições,
nas regras da polícia e nas coações com que se pode armar. Nessas
instituições há uma tentativa de demonstrar que a ordem pode ser adequada à
virtude.
Os pobres, os mendigos de várias ordens, os lunáticos e os fracos da razão, segundo a
análise foucaultiana, eram todos destinados à convivência em um mesmo lugar. Geralmente,
eram encarcerados em hospitais cujo modelo sócio-econômico priorizava a recuperação das
pessoas consideradas inválidas socialmente. O autor ainda analisa que, no decorrer dos
séculos, essas casas de internamento transformaram-se num verdadeiro fracasso: ―Como
centros de recepção de indigentes e prisão da miséria, sancionará seu fracasso final, remédio
transitório e ineficaz, preocupação social muito mal formulada‖ (FOUCAULT, 2005: 70).
Vistas assim, as casas de internamento eram comparadas ao modelo institucional da
prisão da Idade Média, com suas maneiras peculiares de punição e com seus valores sócio-
econômicos. Elas representam uma sensação de novidade. No tocante, porém, à loucura, elas
são vistas numa perspectiva de manutenção da miséria e como um fator a social, em que os
loucos eram tidos como uma iminente preocupação da ordem e da verdade racional. O
47
internamento sancionaria ainda mais a miséria, conforme a argumentação de Foucault (2005:
54, 56):
mais: desempenhando um papel ao mesmo tempo de assistência e
repressão, esses hospícios destinam-se a socorrer os pobres, [...] A prática do
internamento designa uma nova reação à miséria, um novo patético de
modo mais amplo, um outro relacionamento do homem com aquilo que pode
haver de inumano em sua existência. O pobre, o miserável, o homem que
não pode responder por sua própria existência, assumiu no decorrer do
século XVI uma figura que a Idade Média não teria reconhecido.
Os manicômios preconizavam nessa época verdades objetivas irrefutáveis, embasadas
por uma medicina ortodoxa, que pré-estabelecia modelos religiosos, econômicos e sociais. O
desatino, os males da alma recebem, conforme Foucault, tratamentos psiquiátricos baseados
em verdades cartesianas. A loucura, então, passou a ser motivo de reclusão, um perigo à
cidade, logo um problema a ser resolvido, senão amenizado, de forma que, para Foucault
(2005: 78):
Com isso a loucura é arrancada a essa liberdade imaginária que fazia
florescer ainda nos céus da Renascença. Não muito tempo, ela se debatia
em plena luz do dia: é o Rei Lear, era Dom Quixote. Mas em menos de meio
século ela se viu reclusa e, na fortaleza do internamento, ligada à Razão, às
regras da moral e as suas noites monótonas.
Anthony Giddens, em Modernidade e identidade (2002), argumenta sobre os
processos das influências institucionais no controle e na reprodução social. A identidade do
homem se vê prejudicada, existindo mazelas no campo da experiência moral para o indivíduo.
Ao estudar as influências do período moderno, ele considera quais são as perturbações mais
dependentes na esfera do eu X o social, atribuindo ao poder administrativo as mazelas sociais,
e, conseqüentemente, à deterioração do indivíduo pelo processo de vigilância. O poder é tido
a partir dos métodos de controle nos hospitais ou nas prisões. Como vimos, essas instituições
estão ligadas aos Aparelhos Ideológicos e aos Aparelhos Repressivos do Estado: ―A expansão
das capacidades de vigilância é o principal meio de controle da atividade social por meios
sociais. [...] Faz surgir particulares assimetrias do poder, consolida graus variados de
dominação de certos grupos ou classes sobre outros‖ (GIDDENS, 2002: 139).
O autor elucida o desenvolvimento da história do manicômio, no sentido de repensar
esse modelo. A loucura e a criminalidade eram consideradas, em épocas remotas, como uma
48
atividade que resultava da vontade divina. Os loucos eram os que precisavam receber a cura
de um Deus. ―Na verdade, a imagem de Prometeu libertado, que tanto inspirava Marx, é um
retrato das algemas da tradição e que reaparecerá a partir do Iluminismo em diante‖
(GIDDENS, 2002: 148).
Na maioria dos manicômios, existia a determinação de que a doença mental não era
um fator físico e sim incorporado pelos meios sociais, e que essa enfermidade e a
criminalidade podiam disseminar-se pela população. De acordo com a assertiva, essa
população não podia mais se integrar no seio social, ficando então, exclusa, fora de um
ambiente considerado normal pela ordem vigente.
O propósito inicial dos manicômios era a cura pela própria circunstância do ambiente,
não pela administração de remédios, fármacos, ou outras medidas tradicionais, mas sim
pelo ―ambiente agradável‖, que serviria para corrigir a deficiência do comportamento social.
Esse autor recusa de maneira contundente essa noção, que, para ele, o poder instituído no
manicômio era similar ao da prisão. De acordo com Giddens (2002: 149):
Como a prisão, a maximização da vigilância, em conjunto com o
estabelecimento de rotinas regulares, eram os meios para atingir esses fins. A
insanidade, como a loucura, era ativamente definida em termos de
incapacidade social incapacidade, ou falta de vontade, de viver o tipo de
vida no mundo exterior. O manicômio em comum com a prisão é tudo o que
compartilha com os ambientes sociais mais amplos da modernidade. [...] As
prisões e os manicômios perdem a qualidade exótica que desde cedo faziam
delas espetáculos para o mundo exterior. Em vez disso, tornam-se ambientes
de correção técnica, orientados para as relações transformadoras da
modernidade.
O asilo, outra forma de reclusão, pode ser percebido em uma narrativa do escritor
Albert Camus, que começa o seu romance O estrangeiro (1957) descrevendo a morte de sua
mãe que se encontrava num asilo para velhos. Meursault, personagem-narrador do romance
de Camus, narra em tom seco e indiferente o falecimento de sua velha mãe. Dessa passagem,
o que nos interessa é o isolamento e a forma como a velhice era encaminhada para esse
destino:
Hoje mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem. Recebi um telegrama do
asilo; ―Sua mãe faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames.‖ Isso não
esclarece nada. Talvez tenha sido ontem. O asilo de velhos fica em Marengo,
a oitenta quilômetros de Argel. Vou tomar o ônibus às duas horas e chego
ainda à tarde. [...] O asilo fica a dois quilômetros da aldeia. Fiz o percurso a
49
pé. Quis ver mamãe imediatamente. [...] A Sra. Meursault entrou aqui
três anos. Não tem de justificar-se, meu filho. Estive lendo o dossiê da sua
mãe. O senhor era o seu único apoio. O senhor o podia prover o seu
sustento. Ela precisava de uma enfermeira. O seu ordenado é modesto. E,
afinal, era mais, ela era mais feliz aqui. Sim, Sr. Diretor concordei. O
senhor sabe acrescentou ele, aqui ela tinha amigos, gente da mesma idade.
Podia partilhar com eles interesses de outros tempos. O senhor é jovem e ela
certamente se entediava na sua companhia (CAMUS, 1999: 7-8).
O asilo aparece nesse trecho como meio de proteção, assim como o isolamento é algo
também visto, uma vez que, a própria localização geográfica propunha um afastamento do
convívio social.
O nascimento do asilo, no entanto, é descrito por nas formas conhecidas, assim
como o papel dos manicômios, utiliza a noção de proteção e de abrigo por meios caridosos
daqueles que se encontravam necessitados de bens financeiros e sociais. Tal sorte não é vista
na maioria dos casos. Assim, esta instituição nasce sob a égide do retiro e se propala como
benefício a uma população carente, necessitada de bens materiais e sem auxílio dos
familiares. Dessa forma, o asilo para Foucault (2005: 460, 487), serviria como aquilo:
Que insere o doente numa dialética simples da natureza; ao mesmo tempo
que edifica um grupo social, ele foi fundado através de subscrições, como
um sistema de seguros, pretende ser uma comunidade fraternal dos doentes e
vigilantes, sob as autoridades dos diretores e da administração. Família
rigorosa, sem fraquezas nem complacência, porém justa, conforme a grande
imagem da família bíblica. O asilo também comporta o trabalho, que será
despojado de todo valor de produção, a regra moral pura. O asilo,
domínio religioso sem religião, domínio da moral pura. Tudo o que se pode
conservar das velhas diferenças acaba por sumir. O asilo deve configurar
agora a grande continuidade da moral social.
Antonny Giddens se refere a esses espaços organizacionais, dessa vez sobre os asilos.
Segundo ele, estes se distinguem da maioria dos hospitais psiquiátricos pelo ―impacto da
pobreza‖, sendo que os hospitais foram os antecessores dos manicômios e das prisões e
também das organizações médicas modernas. Eram destinados às pessoas que precisam de
tratamento médico e, conforme Giddens, utilizavam os mesmos mecanismos de outros
sistemas carcerários. O asilo encontra na velhice e nas doenças dos anciãos seus principais
objetivos, com atividades de recolhimento e proteção dos idosos, deixados pela família ou
não.
50
Isso pode ser observado na passagem abaixo, do romance de Camus, permitindo-nos
compreender tal sentido, quando o diretor do asilo se direciona ao protagonista, referindo-se
ao estado da sua mãe, desde quando estava só, mesmo com a companhia do filho, até a sua
internação no asilo:
Era verdade. Quando estava em casa, mamãe passava todo o tempo a me
seguir em silêncio com os olhos. Nos primeiros dias de asilo chorava muitas
vezes. Mas era por causa do hábito. Ao fim de alguns meses teria chorado se
a tirassem de lá, tudo devido ao hábito (CAMUS, 1999: 09).
O asilo, na perspectiva de Giddens, merece atenção como um modelo similar aos dos
manicômios e das prisões, destacando-se do primeiro espaço, enquanto rotatividade da doença
e da morte. Conforme suas palavras: ―O hospital, o asilo, é também o lugar para onde iam
aqueles que foram desqualificados da participação nas atividades sociais, e de outras
experiências cruciais como a doença e a morte‖ (GIDDENS, 2002: 150).
Agora, passemos ao aparecimento da prisão, como forma de punição à criminalidade.
Sua forma mais conhecida é a da vigilância, disciplina e punição nas sociedades modernas.
Nesse sentido, a análise de Foucault se volta para as entrelinhas do discurso, percebemos um
modelo altamente aristocrático e desenvolvido pelos meios mais coercitivos de que se tem
notícia na história da humanidade.
A obra Vigiar e punir (2007), de Foucault, aborda, sistematicamente, a evolução da
legislação penal, os métodos coercitivos e punitivos adotados pelo poder público no controle
da delinqüência. Trata das formas correcionais de lidar com um problema que atingiu, por
longo tempo, a história das sociedades modernas: a criminalidade. No mundo contemporâneo,
porém, ainda é um problema a ser resolvido.
Michel Foucault, em seu texto, discute o direito penal, ao assegurar uma tarefa que
não mais pune crimes e, sim, readaptam delinqüentes, estabelecendo, assim, compreensões de
como os rios modelos correcionais assumem, na atualidade, imagens que parecem mais
dignas e justas, diante da culpabilidade humana. Esse problema se dissemina cada vez mais,
nas cidades e nos grandes centros urbanos.
Diferente dos modos das ações dos manicômios e asilos, as prisões assumem ao longo
de sua história, os castigos e os suplícios, ao sancionar leis protetoras à sociedade e castigos
aos criminosos. No decorrer dos séculos, foram desaparecendo os suplícios, constituídos de
51
verdadeiros martírios públicos, em que os sentenciados pagavam com suas próprias vidas, o
castigo que era determinado pela justiça. Os espetáculos eram assistidos, na maioria dos
casos, em praças públicas, em que um contingente da população se fazia presente,
constituindo, assim, uma encenação a céu aberto.
Exemplo disso, segundo descreve Foucault, é o esquartejamento de um condenado em
plena praça pública, demonstrando, as atrocidades que os culpados deveriam sofrer. Esse
acontecimento foi por volta de 1757. A ilustração abaixo nos mostra como o suplício do
condenado era, na verdade, um acontecimento importante para o resto da população que, de
certa maneira, se sentia justiçada com tal fato:
Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757, a pedir perdão diante da
porta principal da igreja de Paris, aonde devia ser levado e acompanhado
numa carroça nu, de camisola, carregando uma tocha de cera acesa de duas
libras, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio,
queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se
aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre
derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado
por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos em fogo, reduzidos a
cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento (FOUCAULT, 2007: 09).
Dessa forma, o corpo físico foi alvo do espetáculo público e desaparece por volta do
final do século XVIII e começo do século XIX. O corpo dos condenados era esquartejado,
amputado, marcado simbolicamente com ferros, exposto vivo ou morto. Essas formas de
punição serão substituídas por outras formas correcionais. Outros exemplos ilustrariam como
o corpo foi o objeto do castigo, tais como as fogueiras da Inquisição, o enforcamento e a
guilhotina.
Por certo, para a prisão moderna, o corpo passa pelos mesmos meios da tortura das
épocas anteriores, de maneira mascarada. Na prisão, se pune o corpo, que o homem preso
não mais se encontra livre, não espaço de liberdade: um isolamento social. Prova disso
são as revoltas em diversas instituições que reivindicam melhores condições físicas para os
detentos. Quanto a isso Michel Foucault (2007: 29) argumenta:
Contra o frio, contra a sufocação e o excesso de população, contra as paredes
velhas, contra a fome, contra os golpes. Mas eram também revoltas contra as
prisões-modelos, contra tranqüilizantes, contra o isolamento, contra o
serviço médico ou educativo. Revoltas contraditórias contra a decadência, e
ao mesmo tempo contra os psiquiatras? Tratava realmente dos corpos e de
coisas materiais, contra o próprio corpo da prisão.
52
A prisão é um modelo institucional austero, afirma Foucault (2007). Ela desempenha,
na sociedade contemporânea, a substituição das antigas formas de detenção, uma vez que seu
papel principal é a coerção do corpo e a privação da liberdade. O corpo ainda é uma peça
importante na função da punição. A prisão, como nós a conhecemos hoje, surge nos primeiros
anos do século XIX, como um modelo de ressignificação da lei penal e das formas
elementares do castigo, substituindo os antigos suplícios e suas principais ostentações.
Considerando as outras instituições aqui analisadas, ela é um aparelho disciplinar que
emprega modelos de repressão e de castigo. Vários sentidos são atribuídos a ela, como: poder
disciplinar, privação da liberdade, isolamento, punição e o trabalho corretivo. A partir do
século XIX, a prisão atua de forma mais incisiva e com métodos mais disciplinares, cujo
objetivo principal é o enquadramento da norma e da correção visadas pelo Estado e pelas
medidas elaboradas pela Justiça. De acordo com Foucault (2007: 212):
A prisão, esta região mais sombria do aparelho de justiça, é o local onde o
poder de punir, que o ousa mais se exercer com o rosto descoberto,
organiza silenciosamente um campo de objetividade que o castigo poderá
funcionar em plena luz, a sentença entre os discursos do saber, da justiça.
[...] A prisão é sem exterior nem lacuna; não se interrompe, a não ser depois
de terminada totalmente a sua tarefa. A sua ação sobre o indivíduo deve ser
ininterrupta: disciplina incessante.
A prisão para esse autor é a maneira mais coercitiva e que demanda um maior poder
de força nas sociedades contemporâneas. De forma que o Estado assume, com um discurso
legitimador, que é preciso sanar um mal, reparar um mal, atribuindo à ação da prisão uma
atividade legal diante dos indivíduos. em Microfísica do poder (1999), o autor estabelece
como essa noção da autoridade do Estado tem um sentido de reparação e, portanto, de
legitimação no controle e na punição dos erros cometidos pelos homens. Assim Foucault
(1999: 72-73) analisa o sistema penal:
O sistema penal é a forma em que o poder como poder se mostra de maneira
mais manifesta? Prender alguém, mantê-lo na prisão, privá-lo de
alimentação, de aquecimento, de impedi-lo de sair, de fazer amor, etc..., é a
manifestação de poder mais delirante que se pode imaginar. [...] O que é
fascinante nas prisões é que nelas o poder não se esconde, não se mascara
cinicamente. [...] A prisão é o único lugar onde o poder pode se manifestar
em estado puro em suas dimensões mais excessivas e se justificar como
poder moral. ―Tenho razão em punir pois vocês sabem que é desonesto
roubar, matar.‖ Nas prisões a tirania é levada aos mais ínfimos detalhes, e,
53
ao mesmo tempo, é puro, é inteiramente ―justificado‖, do Bem sobre o Mal,
da ordem sobre a desordem.
São essas manifestações legitimadas pelo Estado que vão aparecer em o Ensaio sobre
a cegueira, quando as autoridades recolhem vários cegos em um antigo manicômio, com o
discurso de manter a saúde pública, impedindo que a ―cegueira branca‖ se espalhe. Outras
narrativas do século XX apresentam, de maneira similar, a ação do Estado e da Justiça com
formas nada sutis perante o homem. Assim, encontramos em outros textos literários
demonstrações dos tipos de totalitarismo e alienação em que se encontra o homem
contemporâneo.
Em O processo, de Franz Kafka, o personagem Josef K. sofre com uma calúnia.
Negado o direito de saber do que está sendo acusado, esse personagem é acusado de um crime
que ele mesmo não conhece. O romance mostra a ação da justiça e os abusos do direito penal
na condenação de um indivíduo, mergulhado em uma trama em que os fios da história se
configuram na metáfora da alienação do homem do século XX: ―Alguém certamente havia
caluniado Josef K, pois numa manhã ele foi detido sem ter feito mal algum‖ (KAFKA, 1997:
09).
Meursault, o personagem de O estrangeiro, de Albert Camus (1999), sabe o porquê
de sua punição. Ele matou um árabe e disso não se arrepende. Sua defesa simplesmente se
baseia no fato de que tinha cometido o crime porque o sol ardia em sua cabeça e fazia muito
calor na tarde em que liquidou o árabe com quatro tiros. O crime é cometido por um motivo
banal, o personagem reage indiferente à sua acusação.
O personagem em questão nos uma imagem bastante seca e objetiva de como seria
sua vida na prisão e de como esse castigo lhe foi imposto. O leitor do texto de Albert Camus
se diante das securas e das indiferenças humanas. As atitudes do personagem se tornam
mecânicas perante a sua detenção; suas ações são de um niilismo que chega a tocar o absurdo
da existência. Na passagem do texto, a seguir, o personagem-narrador descreve como foram
os seus dias na prisão, desde a angústia, até indiferença e inércia diante de sua situação:
Uma náusea permanente acompanhava-me durante o dia inteiro. Não
entendia porque me privavam de algo que não fazia mal a ninguém. Mas
tarde, compreendi que isto também fazia parte do castigo. [...] A não ser por
esses aborrecimentos, não me sentia muito infeliz. Todo o problema, estava
em matar o tempo. [...] Compreendi, então, que um homem que houvesse
54
vivido um único dia, poderia sem dificuldade passar cem anos numa prisão.
[...] Quando, um dia o guarda me disse que eu estava cinco meses o
acreditei. [...] Para mim era sempre o mesmo dia que se desenrola na minha
cela. O dia acabava e era a hora de que eu não quero falar, a hora sem nome,
em que os ruídos da noite subiam de todos os andares da prisão num cortejo
de silêncio. [...] Lembrei-me, então do que dizia a enfermeira no enterro de
mamãe. Não, não havia saída, e ninguém podia imaginar o que são as noites
nas prisões (CAMUS, 1999: 82, 84).
O manicômio, o asilo e a prisão são formas basilares do poder. Essas instituições agem
como núcleos do poder e disseminam uma verdade, muitas vezes irrefutável, na história
desses espaços. Na contemporaneidade, podemos observar como esses núcleos possuem
objetivos relacionados com os jogos que simbolizam formas de coerção, proibição, disciplina,
vigilância e castigo.
Assim, o manicômio e a prisão serão as formas do poder mais incisivas que serão
estudadas no Ensaio. Ambos os espaços se configuram de maneira prática. No manicômio, os
cegos ficam presos e, isentos de sua liberdade, se vêem acuados socialmente. Os personagens
do Ensaio simbolizam um mundo caótico e sem esperança, em que as leis imperam
abusivamente, essas denotam, ainda mais, o niilismo vivido por uma época em que ter olhos
se torna uma tarefa especial num mundo comandado pela desordem e pela cegueira humana.
O poder é uma representação. Tal representação é interpelada pelo discurso, e uma
estrutura que faz com que o poder funcione ou se alimente daquilo que o põe para funcionar:
―não existe de um lado os que detêm o poder e de outro aqueles que se encontram dele
alijados. Rigorosamente o poder não existe; existem práticas ou relações de poder, [...] o
poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona‖ (FOUCAULT, 1999: 15).
Nesse sentido, veremos como se processa o poder, ou melhor, as relações de poder nos
espaços sociais do Ensaio, observados pelas perspectivas aqui analisadas, o hospital
psiquiátrico e a forma de agir da prisão. Assim, poderemos entender como os personagens
cegos contrariam certas normas no período de reclusão, pelo modo como agem internamente,
isto é, como se rebelaram perante o caos estabelecido no ambiente da cegueira, até encontrar
suas próprias luzes, isto é, forças dentro do contexto no manicômio.
55
2. OS CEGOS COMO METÁFORA DO CAOS
Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada. Ai de nós!
Nossas vozes dissecadas,
Quando juntos sussurramos.
[...] Os olhos que temo encontrar em sonhos
56
No reino de sonho da morte
Estes não aparecem. (T. S. Eliot)
7
.
Os personagens do Ensaio sobre a cegueira representam a decadência da sociedade
do século XX
8
. O narrador situa-os exatamente em meio ao tumulto da cidade. No trânsito, de
um dia qualquer, um motorista, de repente, se encontra cego, a gritar para os transeuntes a sua
súbita cegueira. Assim começa o Ensaio. A ―cegueira branca‖ se instala sem motivos
aparentes, no meio da rua. O primeiro cego dá ênfase, ao que mais adiante, seria uma
calamidade pública.
O narrador adverte que, em qualquer lugar, ou cidade, os personagens todos sem
nomes ficam cegos. Enfatiza, alegoricamente, que qualquer um de nós pode estar cego:
―Estou cego. Ninguém o diria. Apreciados como neste momento é possível, apenas de relance,
os olhos do homem parecem sãos. [...] Estou cego, estou cego, repetia com desespero
enquanto o ajudavam a sair do carro, e as lágrimas, rompendo‖ (ESC, 1999: 12).
Com isso, a narrativa apresenta-nos uma cegueira que não é semelhante à cegueira
física. Mas sim, um ―mar de leite‖ que contamina muitos personagens; ao contrário da treva
que acomete os cegos, essa cegueira não é ―como uma luz que se apaga, mais como uma luz
que se acende‖ (ESC, 1999: 22). Como realça o primeiro cego: ―É como se tivesse caído um
mar de leite, Mas a cegueira não é assim, disse o outro, a cegueira dizem que é negra, Pois eu
vejo tudo branco‖ (ESC, 1999: 13).
Interessa-nos, no entanto, abordar como esses personagens, dentro do tecido ficcional,
representam um quadro da alienação da sociedade contemporânea. Os personagens não
possuirão nomes, como o primeiro cego no trânsito. Daí em diante, vários serão os
personagens contaminados. Após o primeiro cego, será a vez do ladrão que o conduziu até a
sua casa e roubou o seu carro. O terceiro a ficar cego será um médico, um oftalmologista que,
espantado pelo que aconteceu não conseguia obter respostas plausíveis para o fato da
cegueira. Em seguida, uma prostituta que estava se curando de uma conjuntivite. São essas as
7
ELIOT, T. S. Poesia. Trad. Ivan Junqueira. São Paulo: Arx, 2004, p. 177.
8
Essa afirmação se respalda em Milton Santos, quando analisa que nos últimos anos do Séc. XX houve uma
transformação na Terra: ―O mundo torna-se unificado em virtude das novas condições técnicas, bases sólidas
para uma ação humana mundializada [...], esta, entretanto, impõe-se à maior parte da humanidade como uma
globalização perversa‖ (SANTOS, 2008: 37).
57
quatro primeiras personagens a ficarem cegas, e o leitor os acompanha de maneira repentina,
sem explicações.
Após esses fatos, o médico oftalmologista, resolve primeiro avisar as autoridades
locais e os superiores do hospital, depois, o ministério, para que, assim, resolvessem cuidar da
epidemia que se alastrava: ―Mas uma epidemia de cegueira foi coisa que nunca se viu, alegou
a mulher. [...] Também nunca se viu um cego sem motivos aparentes para o ser‖ (ESC, 1999:
39).
O médico tenta avisar as autoridades públicas que a epidemia da cegueira se alastra
como um mal, sem cura. Inicialmente, é desrespeitado por um funcionário do hospital, pois
este queria saber do que se tratava, mas o médico disse que era assunto confidencial. A
insolência atinge o médico que desabafa com sua mulher: ―É desta massa que somos feitos,
metade de indiferença e metade de ruindade‖ (ESC, 1999: 40).
O ministério preocupa-se em saber a identidade dos primeiros cegos, isso, no entanto,
não tem importância, dado ao estado de calamidade em que os cidadãos se encontravam. A
situação será um número cada vez maior de personagens cegos. Perambulando pelas ruas, ou
em suas casas. O governo resolve imediatamente trancafiá-los em algum lugar. Lugar esse
que inicialmente livraria a população do terrível ―mal-branco‖. O espaço escolhido para tal
empreendimento é um manicômio, assim, tal como os doentes mentais e os loucos, os cegos
são conduzidos para o manicômio.
Mas o que designam os cegos no conjunto do Ensaio sobre a cegueira? Quais sentidos
se revelados, quando os cegos da cidade são presos no antigo manicômio judicial?
Para responder a essas e outras questões, faremos uma breve abordagem sobre o
conceito de alienação, sobretudo, no que diz respeito, ao conceito sociológico do termo,
utilizado desde os tempos de Karl Marx. Portanto, aqui, utiliza-se o termo ―ideologia‖, no
conceito marxista
9
, para empreender a definição de alienação social. Marilena Chauí em
Convite à filosofia (1998: 170), assim define o termo:
É o fenômeno pelo qual os homens criam ou produzem alguma coisa, dão
independência a essa criatura como se ela existisse por si mesma e em si
mesma, deixam-se governar por ela como se ela tivesse poder em si e por si
9
Definição que designa o pensamento de Karl Marx e de Friedrich Engels, entendendo-se em mútiplas direções,
filosofia, economia, a ciência política e história (JAPIASSÚ, Hilton & MARCONDES, Danilo. Dicionário
básico de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006).
58
mesma, não se reconhecem na obra que criaram, fazendo-a um ser outro,
separado dos homens, superior a eles e com poder sobre eles.
A palavra alienação, por sua vez, é definida no Novo dicionário da língua portuguesa
(2005), como aquela que vem do latim alienare, alienus, isto é: (que pertence a um outro) e
também alius, alienar, tornar alheio, transferência ao outro do que é seu, alienatione,
alienação: ato ou efeito de alienar-se, falta de consciência dos problemas políticos e sociais,
psiquismo, afastamento da sociedade, sensação de marginalidade.
Conforme a teoria marxista, a alienação faz parte de um todo, cuja raiz está no
sistema capitalista, isto é, no conjunto de fatores materialistas que dominam a sociedade, cuja
base está no processo do capitalismo. Assim, para o marxismo, os modos de produção dos
capitalistas alienam os indivíduos, coisifiando-os em mercadorias. Por sua extensão, a
alienação resulta em outro processo, que é a falta de consciência política e social dos
problemas da realidade. Desse modo, o homem acaba por se afastar dos reais problemas
sociais e cada vez mais ele se aliena, ou seja, o capitalismo faz dele não um ser totalmente
livre, mas moldado segundo suas normas e valores.
Sobre isso, concordamos com Castoriadis (1982: 131), quando enfatiza que a
alienação se manifesta além do indivíduo, servindo como ―massa de condições de privação e
de opressão, como estrutura solidificada global de economia, de poder e de ideologia, como
indução, mistificação, manipulação e violência‖.
para a psiquiatria, alienação é uma transferência de algo por outro. Um alheamento
de si mesmo. Uma perturbação mental que desorienta o homem na convivência social,
segundo normas e leis pré-estabelecidas. Falta de consciência da realidade política, daí se
entende que, desde o momento que o homem transfere a sua realidade para o outro, ele está
alheio da realidade.
Importante salientar que os primeiros estudos desse tema foram dos filósofos Georg
W. Friedrich Hegel (1770 1831) e Ludwig Feuerbach (1804 1872). Este último reforça
que a alienação tem um formato mais concreto e existencial. A alienação para Feurbach,
citado por Schwartzman (1961:45), se dá de forma que:
Ao invés de um ato de criação e retomada do mundo, [...] é a perda do
homem de si mesmo, a perda da essência humana que, projetada no deus,
torna o homem estranho a si mesmo. Só o amor entre os homens seria capaz
59
de devolver-lhes a essência, trazendo para o seio dos homens a perfeição que
fora alienada no deus.
Criticando essa tendência racionalista, Marx analisa mais de perto a práxis histórica,
diferente de Feurbach. O materialismo histórico visto por Marx percebe a alienação não como
um processo abstrato, mas sim concreto e material, o que significa dizer quer ele se interessou
pelas causas que conduzem o homem à alienação social, os modos de produção capitalistas e
as condições materiais da vida social.
Wanderley Codo, em O que é alienação (2004), a partir de uma releitura dos
postulados de Marx, refere-se à alienação como resultado da ideologia do sistema capitalista.
O homem, conforme essa análise, perde as suas participações criativas; se aliena, pois não tem
alternativa ante a exploração a que está sujeito. Essa observação pode ser lembrada no filme
Tempos Modernos, de Charles Chaplin, em que se promove uma crítica à exploração do
proletariado, além de mostrar no novo contexto do capitalismo, a máquina, a demanda da
produção fordista, como forma de fragmentação do sujeito na era da tecnocracia. Conforme
Codo, a alienação, nesse prisma, acontece quando [...] um divórcio entre o produto e o
produtor, o trabalhador produz o que não consome, consome o que não produz‖ (CODO,
2004: 57).
Com base nessas considerações acerca de alienação, podemos afirmar que os
personagens cegos do Ensaio se configuram numa metáfora da alienação social; dimensão
presente, sobretudo, no século XX, considerado a era dos extremos
10
, e início do século XXI,
quando o capitalismo atinge o seu mais alto nível de violência, o da cegueira individual e
coletiva.
O livro A miséria do mundo (1998), organizado pelo sociólogo Pierre Bourdieu,
também aborda detalhes da violência que imperou no século XX, com histórias narradas
através de pequenas novelas, crônicas e entrevistas a vários sociólogos. São depoimentos de
pessoas que vivem no limite da condição humana, como os aglomerados habitacionais, cujas
moradias são miseráveis. Tal consideração permite-nos afirmar que essas pessoas vivem
alienadas.
10
Termo empregado por Eric Hobsbawm em Era dos extremos para caracterizar o breve século XX, edificado
sob as incertezas, catástrofes e crises mundiais, durante o período de 1914 até 1991 (HOBSBAWM, 1995).
60
Milton Santos, em Por uma globalização do pensamento único à consciência
universal (2008), analisa as mudanças ocorridas nos últimos anos do século XX, e afirma que
o mundo tornou-se ―unificado‖ por ações perversas. O autor considera que a mundialização é
uma conseqüência de um binômio da tirania do dinheiro e da informação. Ele argumenta
sobre as relações afetivas e sociais dos indivíduos:
A competitividade, sugerida pela produção e pelo consumo, é a fonte de
novos totalitarismos, mas facilmente aceitos graças à confusão dos espíritos
que se instala. [...] As pessoas sentem-se desamparadas, o que constitui uma
incitação a que adotem, em seus comportamentos ordinários. um
verdadeiro retrocesso quanto à noção de bem público e de solidariedade
(SANTOS, 2008: 38).
Nos tempos atuais, os personagens do Ensaio metaforizam a violência, a alienação e o
caos em que se transformou a humanidade. Eles vivenciam assim uma cegueira que não é
física, mas subjetiva. Uma cegueira originada pelos moldes do sistema capitalista, que resulta
em alienação.
Saramago enfatiza exatamente essa possibilidade, ao se referir que nós não vivemos
numa ditadura política, mas sim econômica. Quem manda, segundo ele, em entrevista
concedida em Janela da alma (2002), não são os políticos, mas sim a Coca-Cola, a General
Motors e outras transnacionais. As grandes empresas detêm o poderio econômico e dominam
os países periféricos, promovendo, assim, uma ditadura social e econômica. Este fato acarreta
o que Milton Santos, (2008) designa como as três definições de pobreza no mundo
contemporâneo
11
.
Vistas essas perspectivas críticas sobre a contemporaneidade e seus contratempos,
Saramago, como um humanista que é, narra no Ensaio um sistema imerso em completo
abandono dos valores humanos. Como escritor engajado, revela as angústias e vicissitudes
dos homens, descreve uma sociedade cega. Os personagens apresentam, em sua essência, a
atmosfera da calamidade, da violência e da descrença dos sentimentos. Os cegos são resultado
de uma sociedade em via de deterioração. O homem já não se encontra em meio às mudanças,
mas em volta de um ceticismo marcado pela dor e barbárie.
11
É o que o autor define como pobreza incluída, a outra seria a doença da civilização, a marginalidade, e, por
fim, a pobreza estrutural (SANTOS, 2008).
61
A alienação desses personagens é mostrada a partir da perda dos olhos, ou seja, da
visão. E esta, deve ser compreendida, por sua vez, como uma visão de entendimento e
compreensão sobre os homens e o mundo. Assim são constituídos os personagens de José
Saramago. No mundo da cegueira vão tentar andar sob uma realidade que eles não
conheciam, ou pelo menos, não estavam acordados para tal. Nesse sentido, literatura X
realidade se inter-relacionam. Como lembra o personagem Antoine Roquentín, de A náusea,
de Sartre, ao se referir à narração de histórias: ―Um homem é sempre um narrador de
histórias, vive rodeado por suas histórias e pelas histórias de outrem, tudo o que lhe
acontece através delas; e procura viver sua vida como se narrasse‖ (SARTRE, 1991: 66).
A sociedade da cegueira pode ser entendida também pelo crivo dos sistemas
totalitários, resultado de duas grandes guerras que assolaram a humanidade, da guerra fria, das
guerras santas, dos despovoamentos dos antigos impérios e, sobretudo, da crueldade que o
sistema capitalista impõe aos países periféricos e subdesenvolvidos.
Os cegos são conduzidos e trancafiados em um manicômio. Assim, reificados, em
condição de objetos, não enxergam o lado das coisas da realidade; despossuídos de liberdade
são intimados a viver nas fronteiras do absurdo da condição humana:
Os primeiros a serem transportados para o manicômio
desocupado foram o médico e a mulher. Havia soldados de
guarda. O portão foi aberto à justa para eles passarem, e logo
fechado. Servido de corrimão, uma corda grossa ia do portão à
porta principal do edifício, Andem um pouco para o lado
direito, uma corda, ponham-lhe a mão e sigam em frente,
sempre em frente, até aos degraus (ESC, 1999: 47).
Os personagens de ficção se impõem como agentes participativos de um mundo
internamente estruturado, ou seja, a verossimilhança do texto literário. Essa concepção tem
ainda mais realce na teoria de Mikhail Bakhtin (1995), quando desenvolve a polifonia do
discurso prosaico. Os personagens são construídos a partir de vários discursos, de vozes que
se mesclam e configuram na verdade interna do texto. Como afirma Dostoiévski, citado por
Bakhtin (1995:147), a respeito do que os seus romances ensejam: ―descobrir o homem no
homem‖.
O narrador do Ensaio sobre a cegueira constrói planos metafóricos que correspondem
à ideologia de uma sociedade deteriorada. Elabora personagens que sinalizam a cegueira da
62
alienação. A literatura conta desse tipo de fato, porque possui suas próprias leis,
correspondente às suas verdades, digamos, ―intrínsecas‖ no texto literário. O fragmento
revela essa estrutura interna do texto literário:
Mas esta cegueira é tão anormal, tão fora do que a ciência conhece, que não
poderá durar sempre, E se fôssemos ficar assim para o resto da vida, Nós,
Toda a gente, Seria horrível, um mundo todo de cegos, não quero nem
imaginar (ESC, 1999: 59,60).
Estado de sítio (1979), peça teatral de Albert Camus, aborda, assim como o romance
A peste (1988), uma epidemia numa cidade. A cidade sitiada narrada por Camus lembra-nos a
cidade infestada pela cegueira escrita por José Saramago. Nesta peça, a peste é uma metáfora
da alienação política, em que se critica a ditadura. Ataca-se um mal, que não é mais a invasão
dos ratos como no romance A peste; em Estado de Sítio, o que vai ser apontado é qualquer
peste, pode ser um governo ditador e totalitário. Eis, então, a fala do mal, narrado por Albert
Camus:
Eu reino. É um fato. E, portanto, um direito. Mas um direito que não se
discute, ao qual deveis adaptar-vos. Aliás, o vos iludais: se reino, é à
minha maneira e até seria mais certo dizer que funciono. [...] É a maneira
pela qual encontrei para vos atormentar, pois é bom que sejais atormentados:
tendes tudo por aprender. Vosso rei tem as unhas negras e o uniforme sóbrio.
Não está sentado num trono: está sitiando. Seu palácio uma caserna; seu
pavilhão de caça, um tribunal. O estado de sítio está proclamado (CAMUS,
1979: 59).
Também o narrador de o Ensaio situa os cegos como personagens sem autonomia e
liberdade. Esta versão seria uma crítica da alienação? O estado de isolamento em que se
encontraram pode ser a demonstração da prepotência dos sistemas que governam e
disseminam uma ideologia simbolicamente construída pelos ditames do poder. E, ele tem
várias máscaras, inclusive o da proteção para os indivíduos, como revela este fragmento:
O Governo está perfeitamente consciente de suas responsabilidades e espera
que aqueles a quem esta mensagem se dirige assumam também, como
cumpridores cidadãos que devem de ser, [...] que o isolamento em que agora
se encontram representará, acima de quaisquer outras considerações
pessoais, um acto de solidariedade para com o resto da comunidade nacional
(ESC, 1999: 50).
63
Nesse espaço, os personagens são amontoados num completo abandono. O antigo
hospital psiquiátrico, assim, serve como um modelo de repressão, de isolamento e de controle
dos cegos que se encontram em estado de caos. Representa o alheamento que as pessoas têm
das posições políticas e das circunstâncias da realidade sócio-cultural na e da História. Esse
alheamento, ou seja, essa cegueira é um fato epidêmico no romance, o qual desestrutura a
ordem, nascendo, dessa forma, aquilo que podemos denominar como cegueira dos
acontecimentos. Nesse quadro de cegueira, as pessoas estavam tão cegas como se estivessem
diante de luzes intensas que as impediam de ver com nitidez.
A metáfora da cegueira nos faz lembrar também o romance A metamorfose de Franz
Kafka, (1988), cujo personagem Gregor Samsa se transforma repentinamente em um inseto.
Esse fato mudou totalmente a vida do personagem, as pessoas, desse momento em diante,
deixam de suportá-lo, o desprezam, pela súbita transformação ocorrida no corpo do
personagem. A vida de Gregor era uma rotina massacrada pelo dia-a-dia do trabalho de
caixeiro-viajante; porém, num dia qualquer, se envolto em uma profunda transformação
que o impede de equilibrar-se como homem. Kafka também empregue sua crítica aos modelos
capitalistas e à dominação de alguns homens perante outros.
O autor do Ensaio, em Janela da alma (2002), nos faz pensar sobre a
contemporaneidade, vivida, sobretudo, sem sentido, cuja essência está sendo cada vez mais
perdida, abandonada nos dias atuais. Suas palavras enfatizam um mundo sem esperanças no
homem e na existência. O exposto abaixo não deixa de revelar o quanto as palavras marcam
certo ceticismo diante a vida:
Vivemos num mundo [...] onde há cada vez mais sentidos perdidos, perdidos
em primeiro lugar de nós próprios, e em segundo lugar perdidos na relação
com o mundo. Acabamos por circular por aí sem saber muito bem nem o que
somos nem para quê servimos nem que sentido tem a existência.
A cegueira ou alienação vista sob o pano de fundo no texto literário representa uma
falta de direção, um desnorteamento em que os homens não mais se encontram em si mesmos
e nem nos outros, somente através de outros olhares poderão, quiçá, recuperar a vista, ou o
olhar interior que precisamos para ver melhor, principalmente, a nós próprios e o outro.
64
Assim, o olhar é o que mais precisa ser recuperado para poder externar sentimentos,
solidariedades e percepções sobre as coisas. Tal como afirma Alberto Caeiro, em O
guardador de rebanhos sobre o olhar:
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos. [...]
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver, [...]
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol (PESSOA, 19997: 20).
Em 2008, Ensaio sobre a cegueira foi levado às telas do cinema pelo diretor Fernando
Meireles, assim a obra foi traduzida pela arte cinematográfica, levando ao público uma
adaptação do livro, tornando visuais os impactos que a trama traz pelo viés da cegueira.
Resta-nos salientar, que um texto com a envergadura do Ensaio, nas telas cinematográficas, a
depender da adaptação, tem formas e linguagens diferenciadas. O que provoca no
telespectador pelo menos a curiosidade, senão de ler o texto literário, pelos impactos que as
imagens na tela provocaram.
2.1 ORDEM E DESORDEM EM ―TERRA DE CEGOS‖
Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço que me perdoeis (Carlos
Drummond de Andrade)
12
.
A instauração da cegueira narrada por José Saramago possibilita aos leitores dessa
obra uma intrínseca compreensão sobre os sentidos da sociedade em que vivemos e a
12
DRUMMOND, Carlos de Andrade. Antologia poética. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 115.
65
desconstrução dessa mesma sociedade, no que diz respeito aos modelos vigentes, vividos na
contemporaneidade. Essa crítica aos modelos sociais é narrada ao construir-se uma cidade
sem nome, personagens sem nomes civis e que, dia-a-dia, vão perdendo a capacidade de ver.
A desordem verificada no texto literário é uma situação de apreensão, no espaço
aonde os cegos se encontram; pode-se perceber a desestruturação da ordem. A cegueira é o
símbolo da desordem da sociedade, a cegueira se manifesta nos personagens, sinalizando um
alerta acerca do que chegou a humanidade.
A sociedade, composta por um conjunto de indivíduos cegos, chega ao extremo da
condição humana. Os personagens, representando a alienação, seguem o que afirma
Castoriadis (1982: 131) ―Em uma sociedade de alienação, mesmo para os poucos indivíduos
para quem a autonomia possui um sentido, ela só pode permanecer truncada, porque encontra
obstáculos constantemente renovados‖. Tal assertiva permite-nos elucidar que mesmo os que
se aventuram pela autonomia, encontram a todo instante na atual sociedade processos de
alienação que acabam por desestruturar o sujeito.
O estado de horror no Ensaio se através de situações limites, que demonstram
como a sociedade está desordenada. As palavras proferidas dentro do manicômio situam o
leitor como os cegos deveriam se comportam no espaço de reclusão. Esse espaço requer, por
sua vez, regras rígidas, que devem ser acatadas de forma passível dentro da reclusão. São
cegos que se estruturam de formas disciplinares.
Entretanto, o que se pode entrever das imagens do Ensaio são cenas que enfatizam
como as ações vão ser desarticuladas e desestruturadas. Após serem reclusos, os personagens
se darão conta, aos poucos, do inferno em que estão. O rapazinho estrábico, por exemplo, ao
ouvir todas as ordens no manicômio, clama por sua mãe e chora, mas, sem ninguém que lhe
acuda naquele momento, sua mãe não está. Ouve, porém a resposta indiferente do médico
oftalmologista: ―As ordens que acabamos de ouvir, não deixam dúvidas, estamos isolados,
mais isolados do que provavelmente alguém esteve, e sem esperança de que possamos sair
daqui antes que se descubra o remédio para a doença‖ (ESC, 1999: 51).
O reconhecimento dos cegos, na ala do manicômio onde se encontravam, se dá, no
caso de alguns, pela identificação de suas vozes. Isso, porém gera um desconforto inicial, ao
estabelecer uma discussão prévia. Essa situação faz o médico se referir novamente ao estado
em que estão:
66
Estão a comportar-se estupidamente, ralhou o médico, se a vossa idéia é
fazer disto um inferno, continuem que vão por bom caminho, mas lembre-se
de que estamos entregues a nós próprios, socorros de fora, nenhuns, ouviram
o que foi dito, Ele roubou-me o carro, lamuriou o primeiro cego, mas
combalido de golpes que o outro, Deixe lá, agora tanto lhe faz, disse a
mulher do médico (ESC, 1999: 54).
Os romances de José Saramago apresentam uma estrutura que não seguem capítulos
lineares, nem personagens rigidamente ordenados, ao contrário, mostram personagens que se
coadunam com situações de fragmentação da realidade, indeterminação de espaço e tempo. A
elaboração dos parágrafos não possui uma pontuação formal, isto é, o autor português infringe
muito das leis gramaticais da língua portuguesa, formando assim, um estilo muito peculiar na
sua criação estética.
Em Ensaio sobre a cegueira, por exemplo, essas rupturas de pontuação,
organização frasal e dos parágrafos. Eles são ordenados com a intervenção das falas dos
personagens, não existindo o sinal de travessão como marca do discurso direto nem o ponto
como finalização da frase. Narrado em terceira pessoa, o Ensaio pretende ser um texto em que
se esboce a tarefa de alertar para o emblema da chamada pós-modernidade. O homem viciado
por imagens descartáveis está perdendo a capacidade de enxergar.
Assim, uma fala do cineasta Wim Wenders, no já referido Janela da alma (2002), nos
faz refletir sobre o excesso de imagens propagadas, tanto pela mídia televisiva, como pelos
meios tecnológicos. Ou seja, o excesso das imagens obstrui outras possíveis visões essenciais
ao ser humano, como a da visão da alma, um olhar mais singular perante a vida. O cineasta
alemão, assim se refere ao problema da imagem e do tempo:
Temos muitas coisas em excesso nos dias de hoje. A única coisa que não
temos suficiente é o tempo, [...] e ter tudo em excesso significa que nada
temos. A atual superabundância de imagens significa, basicamente, que
somos incapazes de prestar atenção. Somos incapazes de nos emocionarmos
com as imagens. Atualmente, as histórias têm de ser extraordinárias para nos
comoverem, porque as histórias simples... não conseguimos mais vê-las.
Como ressalta Wim Wenders, em meio ao turbilhão de excesso, a sociedade acaba se
configurando ao mesmo tempo, que se tem muito, acaba-se tendo pouco. Este capítulo, que
enfatiza a desordem no mundo dos cegos, pode ser lido e ilustrado como a passagem dos
tempos atuais, contemporâneos e desiguais, em que os homens estão todos brutalizados. O
67
próprio escritor José Saramago, no mesmo documentário, endossa o fato de que milhões de
pessoas estão morrendo todos os dias, devido à fome á desigualdade e por condições ínfimas
de vida. Essa desordem da vida contemporânea é revelada pelas passagens que expressam a
desorganização do mundo da cegueira.
Dentro do manicômio, possivelmente se dará uma organização através da única
personagem que não foi contaminada pela cegueira branca, a esposa do médico
oftalmologista. Ela conduzirá a situação dentro do hospital psiquiátrico. Lá, os cegos estarão à
mercê das ordens impostas pelo sistema. São como uma massa, sem sentidos, sem direção
certa. Porém, contrariando as ordens vigentes, eles seguem outros passos, o caminho e o olhar
da mulher do médico, pois esta tem condições de os guiarem. Ela tem olhos bons, sem
nenhum mal físico. O fragmento a seguir melhor esclarece: ―A fila lá ficou ordenada, atrás da
mulher do médico ia a rapariga dos óculos escuros, com o rapazinho estrábico pela mão,
depois o ladrão, [...] a seguir o médico, e no fim, [...] o primeiro cego (ESC, 1999: 56).
Ensaio sobre a cegueira nos conduz a uma leitura em que os indivíduos se angustiam
em situações muito difíceis, comprovando o que narrador adverte sobre o medo dos cegos:
―Via-os crispados, tensos, de pescoços estendidos como se farejassem algo, mas, [...] as
expressões eram semelhantes, um misto de ameaça e de medo, porém o medo de um não era o
mesmo que o medo do outro, como também não eram as ameaças‖ (ESC, 1999: 49).
O sistema ao qual se destina os personagens cegos denota a certeza de um cenário
calcado pela ordem e pelo acatamento dela, representa uma sociedade arraigada pelos valores
autocráticos e cartesianos, pois as ordens deviam ser seguidas, sem contestação. Os
personagens, no primeiro momento da trama, não possuem vozes ativas, demonstrando
fragilidade em relação ao sistema carcerário.
Com o passar dos dias, a rotina transcorre de maneira que os sujeitos atrelam-se às
mais diversas situações, entre a ordem e a desordem. O dia-a-dia dos cegos, pouco a pouco,
vai se transformando num verdadeiro caos, onde as mínimas tarefas de sobrevivência vão
desencadeando situações constrangedoras, como o caso do rapazinho estrábico que queria
fazer suas necessidades de higiene:
Quero fazer chichi, pediu o garoto. Ouvindo-o, todos sentiram uma súbita e
urgente vontade de urinar, pensaram, por estas ou outras palavras, E agora
isto como se resolve, o primeiro cego apalpou debaixo da cama, a ver se
haveria ali um bacio, mas ao mesmo tempo desejando que não houvesse
68
porque lhe daria vergonha urinar na presença doutras pessoas (ESC, 1999:
55).
Ou quando o médico oftalmologista faz as suas necessidades e percebe a ruína em que
se transformou o internato, ao caminhar ante os excrementos e pisar no mau cheiro que outros
ali deixaram. A imagem a seguir mostra claramente a autocomiseração do médico que se
encontra sozinho, abandonado e cego, demonstrando que os limites da condição humana
estavam por um fio: ―Sentiu-se infeliz, desgraçado a mais não poder, ali com as pernas
arqueadas, amparando as calças que roçavam no chão nojento, cego, cego, cego e sem poder
dominar-se, começou a chorar silenciosamente‖ (ESC, 1999: 97).
A questão da desordem no romance pode ser percebida pelo fato de todos se
encontrarem sem meios para solucionar os mínimos problemas do cotidiano, como tomar
banho, fazer suas refeições, manter suas necessidades de higiene, ou ainda, se locomoverem
sem o uso da visão: ―Desta forma a organização se faz necessária: Por fim, a fila ficou
ordenada [...] Ao princípio a água veio suja, foi preciso esperar que aclarasse. Estava morna,
choca, como se tivesse a apodrecer no interior dos canos (ESC, 1999: 57-58).
Aos poucos, como seria muito fácil de imaginar num mundo de cegos, a incerteza e a
desordem vão se estabelecendo, uma vez que ―sem rei, nem lei‖, os cegos se encontravam em
meio a uma estrutura de fácil dominação, dos mais fortes em relação aos mais fracos. Assim,
em meio a uma atmosfera em que só os outros sentidos terão utilidade, os cegos serão
enfraquecidos, martirizados pela barbárie que adiante se instalará. A epidemia como era de
esperar, cresce e outros personagens chegam ao espaço do manicômio:
A meio da tarde entraram mais três cegos, expulsos da outra ala. [...]
Subitamente, ouviu-se, vindo da rua, uma confusão de gritos, ordens dadas
aos berros, uma vozearia revolta. [...] A mulher do médico, sentada na cama,
ao lado do marido, disse em voz baixa, Tinha de ser, o inferno prometido
principiar. [...] A maioria aos tropeções, agarrados em cachos ou disparados
um a um, agitando-se aflitivamente as mãos em jeito de quem está a afogar-
se, entraram na camarata em turbilhão, como se viesse a ser empurrados de
fora por uma máquina arroladora. Uns quantos caíram, foram pisados (ESC,
1999: 72-73).
Com isso, a desordem logo se faz presente. A partir daí, os cegos vivem em estado
de calamidade e as ações são desenvolvidas por meio de protestos, reclamações e
intranqüilidade pelas circunstâncias vividas por eles: ―Não direito, onde estão os médicos
69
que nos tinham prometido, isto era novidade, as autoridades tinham prometido médicos. [...]
talvez, mesmo a cura completa (ESC, 1999: 74).
Diante desse caos, logo se dão as relações de poder. A desordem instaurada pela
cegueira será permeada pelas relações dos cegos da primeira camarata, da segunda ala de
cegos e a dos cegos malvados. Daí em diante se verificará todo um horror presenciado pela
única personagem que vê a tudo e a todos, a mulher do médico: ―Só a mulher do médico sabia
o estado em que se encontrava o morto, a cara e o crânio rebentados pela descarga, três
buracos de balas no pescoço e na região do esterno‖ (ESC, 1999: 83).
Os conflitos se dão instantaneamente, porque é difícil controlar uma comunidade cega,
assim os detentores do sistema judicial, logo perdem sua autoridade, desencadeando uma
guerra entre os cegos, o que provoca uma rebelião no manicômio e uma contingência de
mortos:
Estão mortos, não podem fazer nada, disse alguém, a intenção era
tranqüilizar-se a si mesmo e aos outros, mas foi pior havê-lo dito, era
verdade que os cegos estavam mortos, que não podiam mover-se, reparem,
não se mexem nem respiram, mas quem nos diz a nós que esta cegueira
branca não será precisamente um mal do espírito, e se o é, ponhamos por
hipótese, nunca os espíritos daqueles cegos estiveram tão soltos como agora
estão, fora dos corpos, e portanto mais livres de fazerem o que quiserem
(ESC, 1999: 90).
O conflito se efetiva por meio das armas, mutilando e matando muitos dos que ali
estavam. Essa ação foi realizada por motivos de extrema dificuldade de convivência, que
numa ―terra de cegos‖, os sentimentos vão perdendo os seus valores. Assim, os personagens
trancafiados no manicômio vivem em torno desse horror. A voz do comando diz asperamente:
Isto o melhor era deixá-los morrer à fome, morrendo o bicho acabava-se a
peçonha. [...] O exército lamenta ter sido obrigado a reprimir pelas armas um
movimento sedicioso responsável pela criação duma situação de risco
iminente. [...] E avisa que a partir de hoje os internados passarão a recolher a
comida fora do edifício, ficando desde prevenidos de que sofrerão as
conseqüências no caso de se manifestar qualquer tentativa de alteração da
ordem, como aconteceu agora e a noite passada tinha acontecido. [...] Não
tivemos culpa, não tivemos culpa (ESC, 1999: 89).
70
Assim, o sistema que controlava o manicômio perde sua autonomia e seu poder de
repressão vai ser substituído por outras vozes de comando, a exemplo dos personagens cegos
que se aproveitam da situação, ao recriar no espaço do confinamento as hierarquias
(perversas) do mundo exterior.
2.2 A MULHER DO MÉDICO: UM OLHAR FEMININO - EM TERRA DE CEGO QUEM
TEM OLHO É RAINHA
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher.
[...] Mulher é desdobrável. Eu sou (Adélia
Prado)
13
.
A mulher do médico é a única personagem que olha, e repara. Ela possui na
narrativa um significado acentuado, considerando que ela é a mulher do oftalmologista, isto é,
aquele que, cientificamente, estaria disposto a cuidar da visão dos outros. No texto literário
será, justamente, essa mulher que cuidará dos cegos. O autor inverte os papéis, ao estabelecer
importância à mulher do médico. Ela elege ―seus cegos‖.
Como os outros personagens do romance, ela não possui nome, descentralizando, o
que poderíamos conceituar como os nomes civis ou mesmo sua classe social. Vai com o seu
marido para o manicômio e chegando, as apresentações não são feitas por meio dos nomes,
mas sim, como a cegueira atravessou-lhes a vida. Descobre lentamente a árdua tarefa de viver
em um mundo de cegos, em que leis de selvageria imperam quando se percebe que o
egoísmo, o individualismo e o ceticismo tomaram conta da situação, devido ao surto
epidêmico de cegueira.
13
PRADO, Adélia. Poesia reunida. São Paulo: 1991. p. 11.
71
A mulher do médico possui, então, um olhar, o qual, ao longo da narrativa, vai ser
diferenciado. Esmiuçado pelo narrador, no caos e mantém certa lucidez frente ao
embrutecimento dos homens por causa da ―cegueira branca‖. A personagem, no
desenvolvimento da narrativa, é interpelada por vários sentimentos, desde os mais
contraditórios, como matar, até o fardo de ser a única que vê num mundo de cegos.
Não é a primeira vez que o autor do Ensaio destaca a presença feminina nos seus
romances. Outras narrativas têm a representação feminina, a exemplo do Evangelho segundo
Jesus Cristo (1991), quando o autor destaca a imagem de Maria Madalena como cônjuge do
filho de Deus, vivenciando uma história de amor com Jesus. Com isso, o escritor
problematiza uma vertente da história oficial da Igreja Católica e coloca em xeque os valores
morais e éticos da religião, ao destacar o amor X a fé.
Outra personagem salientada por José Saramago é Blimunda, de Memorial do
Convento. Com essa e a mulher do médico podemos estabelecer um diálogo, por se tratar de
uma personagem que percebe a alma dos outros através do sentido da visão. Blimunda
consegue perceber a áurea dos outros personagens de forma simbólica, a partir do seu olhar,
herdado de sua mãe que foi martirizada pela fogueira da Inquisição por práticas de feitiçaria.
A partir desse contraponto, podemos considerar a inversão do papel masculino nos
romances de Saramago, quando este dá destaque à mulher no conjunto de suas tramas.
Podemos mesmo ressaltar os significados de herói, já que estes são atribuídos à mulher. Esses
heróis, nas sagas do autor português, seriam heroínas em tempos de modernidade; construindo
na mulher um significado peculiar em suas narrativas.
É o que acontece na obra, ao priorizar o olhar da mulher do médico, que não é
contaminada pela súbita cegueira. O narrador postula, assim, uma possível interpretação aos
seus leitores, qual seja: ―Em terra de cego, quem tem olho é rainha”. Numa paráfrase ao dito
popular, que enuncia: ―Em terra de cego quem tem olho é rei‖. Dessa forma, contribui, quiçá,
para os estudos do feminismo, ao construir uma personagem forte, que no conjunto do enredo
é impar para o fio ficcional e o desenlace da história. Interessante, aqui, fazermos uma breve
consideração acerca da dedicatória do romance, a qual está dirigida a duas mulheres,
primeiro, à sua esposa e jornalista, Pilar del Rio e à sua filha, Violante.
Voltando o olhar à obra em estudo, a mulher do médico tem, desde o primeiro
momento da epidemia da cegueira, a conduta de ficar próxima do marido, quando nota que ele
72
foi contaminado pelo mal branco. Até a desculpa de ter ficado cega para acompanhá-lo,
quando este é impelido pelas autoridades locais para o manicômio. Mesmo não sabendo para
onde os dois vão ser levados, ela o acompanha com determinação.
através dela é possível uma ordem no antigo sanatório, pois busca uma linha
divisória entre o mundo da cegueira e o daqueles que ainda podem andar conforme sua visão:
―A mulher do médico tinha também de proceder como se estivesse cega. [...] sabia que
deveria virar uma vez à direita e uma vez à esquerda, depois seguir por um corredor comprido
que fazia um ângulo recto, a cozinha era ao fundo‖ (ESC, 1999: 57).
A personagem possui, então, a liderança perante os cegos. Ela possui uma visão
diferenciada. Através dela, dia-a-dia, vai se perceber o horror, indistintamente, comandado
por homens, como numa guerra, onde vão coexistir abuso de autoridades, estupros,
decadência humana e animalização dos sentimentos. Sua presença na narrativa é singular,
pois seus olhos são como chamas que não se apagam tão facilmente em meio à alienação que
a cegueira trouxe, ou mesmo, que existia antes deles cegarem. Ela representa uma luz no
fim do túnel. Mas antes de perdurar a chama de luminosidade, ela enfrentará a cegueira dos
demais.
Assim, como salientamos em outro momento do texto, ela será como um guia, a
exemplo de Moisés no antigo testamento, quando conduziu o povo de Israel para fora do
Egito. A mulher do médico se sobressai na narrativa de Saramago como um guia que se
defende e dos seus poucos eleitos enfrenta ―o mar de leite‖, assim como Moisés atravessou o
Egito através do Mar Vermelho. Ela será os olhos daqueles que já os perderam, porém muitas
são as dificuldades que enfrentará essa personagem.
Tenho de abrir os olhos, pensou a mulher do médico. [...] poderia ser o
mar de leite a afogar-lhe os olhos. [...] Disse a si mesma que ia contar até dez
e que no fim da contagem descerraria as pálpebras. [...] O que não queria era
abrir os olhos. [...] Não estou cega (ESC, 1999: 63).
No romance em estudo, abrir os olhos nesse momento simboliza enxergar um mundo
em que os horrores poderiam acontecer, e que os homens deixaram os seus sentimentos mais
nobres. A mulher do médico foi a escolhida pelo narrador para ver essa barbárie e dele
participar até poder encontrar maneiras de subsistência num espaço de conflitos e de
desordem. Num dado momento do texto, ela também gostaria de ficar cega: ―E serenamente
73
desejou estar cega também, atravessar a pele invisível das coisas e passar para o lado de
dentro delas, para a sua fulgurante e irremediável cegueira‖ (ESC, 1999: 65).
Mas a ela coube como uma mãe que tem que proteger os seus filhos, ante a fome e os
reveses dos acontecimentos. Luta frente os obstáculos que irão surgir como a personagem
Pélagué, de A mãe (1980), romance do russo Máximo Gorki, cuja coragem é ressaltada pelo
escritor, como a mãe que se transforma, de uma pacata dona de casa, em uma revolucionária.
Assim também sucede com a mulher do médico. Logo ela sabe que não cegaria, pois é
a destinada para ver o pior. Sua solidariedade vai ser dividida com os outros personagens que
sem poder se defender, encontra na mulher do médico uma representação, uma voz que os
legitima para o embate e para as possíveis mudanças que ocorrerão. Ela inverte o que a
narrativa elucida sobre a sua falta de cegueira. ―Não tenho direito de olhar se os outros não
podem me olhar a mim, pensou‖ (ESC, 1999: 71). Ao contrário, ela tanto vai poder olhar para
os outros, como para si mesma nessa terra de cegos.
É ela que ajuda o marido a se limpar dos excrementos, dá-lhe banho e atua como uma
enfermeira em as ―naus dos loucos‖, além disso, assiste tudo até o calar da noite, quando as
personagens se recolhem em seus sonos de cegueira:
Agora havia um silêncio dorido, de hospital, quando os doentes dormem, e
sofrem dormindo. Sentada lúcida, a mulher do médico olhava as camas, os
vultos sombrios, a palidez fixa de um rosto, um braço que se moveu a
sonhar. Perguntava-se se alguma vez chegaria a cegar como eles, que razões
inexplicáveis a teriam preservado até agora (ESC, 1999: 97).
Esta mulher vê tudo inicialmente como uma espectadora, percebe com um olhar
nítido, mas que serenamente o estado em que todos se encontram: ―Vamos todos cheirar
mal‖ (ESC, 1999: 97).
A mulher do médico, ao ser a única que vê, é a que mais percebe o lastimável
momento em que todos se encontram. Em um dado momento do romance, duas mulheres tão
diferentes entre si, uma casada, outra, prostituta, se aproximam, fazendo com que a distância
do meio social não exista dentro do manicômio. Revela essa aproximação a passagem em que
a mulher do médico se esquece de dar corda no relógio e num instante de fragilidade, chora
copiosamente, daí a rapariga dos óculos escuros se aproxima:
74
Esaflita, precisa de alguma coisa, ia perguntando à medida que avançava,
e tocou com as duas mãos. [...] Ainda soluçando, a mulher do médico saiu da
cama, abraçou-se a rapariga, Não é nada, foi uma tristeza que me entrou de
repente, disse, Se a senhora, que é tão forte, está a desanimar, então é porque
não temos salvação, queixou-se a rapariga. [...] Todos temos os nossos
momentos de fraqueza, ainda o que nos vale é sermos capazes de chorar, o
choro é muitas vezes uma salvação, ocasiões em que morreríamos se não
chorássemos (ESC, 1999: 101).
Essa citação nos mostra como a aproximação dessas duas mulheres, aparentemente
diferentes, vai se estreitar na narrativa, elucidando que, em tempos de calamidade, a posição
social não importa frente aos itinerários que elas seguirão. Outra passagem que revela a
solidez dessa mulher que não cegou é o trecho em que ela encontra o seu próprio marido
tendo relações sexuais com a rapariga de óculos escuros:
Cale-te, disse suavemente a mulher do médico, calemo-nos todos,
ocasiões em que as palavras não servem de nada, quem me dera a mim poder
também chorar, dizer tudo com lágrimas, não ter de falar para ser entendida.
Sentou-se na borda da cama, estendeu o braço por cima dos dois corpos, e,
inclinando-se toda para cingi-los no mesmo amplexo, e, inclinando-se toda
para a rapariga dos óculos escuros, murmurou-lhe baixinho ao ouvido, Eu
vejo (ESC, 1999: 172).
Após a chegada de inúmeras personagens infectadas, a divisão de alas nas
camaratas. O narrador emprega a expressão ―cegos malvados‖ para aqueles que
arbitrariamente usam de vários meios para conseguir vantagens pessoais, em relação aos
demais cegos no manicômio. Assim, esses cegos detêm a alimentação e os produtos de
higiene, fazendo inclusive, a velha troca da mercadoria, pão por dinheiro, e na falta desse, por
produtos valiosos, peças importantes. O certo é que quem quisesse comer teria que pagar por
isto, de tal maneira, que, na narrativa, fica estabelecida, a seguinte premissa: cegos bons X
cegos maus, como vamos perceber no decorrer da trama.
A alimentação seria realizada pela troca por mulheres, conforme anunciaram os
cegos malvados, que queriam em troca da comida, mulheres e sexo. Essa atitude causou, de
forma unânime a indignação das demais alas, pois os cegos não iriam sujeitar as suas
companheiras por comida. Essa opinião gerou polêmica nas demais alas, alguns protestavam
que não iam vender o corpo de suas mulheres por um prato de comida, outras, as sozinhas,
reclamavam que não iam vender os seus corpos por homens de outras. Assim a polêmica se
estabeleceu e a divisão ficou nítida.
75
Mais uma vez, é a mulher do médico que lidera as outras mulheres, em relação, a essa
imposição por parte dos demais cegos, eles abusariam dos corpos das mulheres para poder dar
em troca a alimentação. Ela age com coragem e, se as outras ainda temem algo,
desafiadoramente, com olhos de quem vê, guia as outras mulheres para o que poderíamos
denominar de calvário, como pode ser visto no trecho a seguir:
Então a mulher do médico disse, Eu vou à frente. [...] A mulher dos óculos
escuros foi pôr-se atrás da mulher do médico, depois, sucessivamente, a
criada do hotel, a empregada do consultório, a mulher do primeiro cego,
aquela que não se sabe quem seja, e enfim a cega das insónias, uma fila de
grotesca de fêmeas malcheirosas, com as roupas imundas e andrajosas,
parece impossível que a força animal do sexo assim tão poderosa, ao ponto
de cegar o olfacto, que é o mais delicado dos sentidos (ESC, 1999: 174).
A personagem é quem conduz as outras mulheres para os estupros que ocorrerão.
Somente ela presenciará com sua visão o horror de que também será vítima. Suas palavras
fazem crer que, naquele momento de selvageria, a morte poderia ou não estar presente:
―Vamos, só quem tiver de morrer morrerá, a morte escolhe sem avisar‖ (ESC, 1999: 175). São
palavras de coragem de quem possui a força de uma rainha que não teme os destroços que
uma guerra pode ocasionar.
Assim, os estupros acontecem. Os gritos das mulheres cegas ecoam do medo que
sentem, do pavor que as habitam. São violentadas por homens cuja cegueira fez com que
perdessem a sensibilidade e o prazer pela conquista, o prazer que emana da sedução e dos
sentimentos entre um homem e uma mulher, daquela ternura que invade os corações dos
enamorados.
Ao contrário, essas mulheres foram vitimadas e espoliadas pelo prazer através do sexo,
esse, essencialmente animal. A mulher do médico é uma mártir em meio ao holocausto que se
presente. Num dado momento da narrativa, recua frente aos obstáculos que surgem diante
de tanta brutalidade para com o seu corpo, nem tanto com o seu corpo, mas com a sua
dignidade de mulher. Isso é revelado no trecho em que um dos cegos malvados insiste na
atrocidade que lhe é imposta:
O cego da pistola tinha-se sentado na cama, o sexo flácido estava pousado na
beira do colchão, as calças enroladas aos pés. Ajoelha-te aqui, entre as
minhas pernas, disse. A mulher do médico ajoelhou-se. Chupa, disse ele,
Não, disse ela, Ou chupas, ou bato-te e não levas comida. [...] Estou a
reconhecer a tua voz, E eu a tua cara, És cega, não podes ver, Não te posso
76
ver, Então por que dizes que reconheces a minha cara, Porque essa voz
pode ter essa cara, Chupa, e deixa-te de conversa fina. [...] Não o posso
matar agora, pensou. Avançou a cabeça, abriu a boca, fechou-a, fechou os
olhos para não ver, começou a chupar (ESC, 1999: 177).
Como é ressaltado no final do fragmento citado, a personagem se recusa a ver com os
seus próprios olhos o que faria, ela se indigna por ter cometido tal ato. As outras mulheres ao
sofrerem as humilhações, perdem suas referências, perdem o controle e até a morte se faz
presente frente aos atos a que elas são submetidas. Em meio às humilhações sofridas, uma
morte, entre os gritos de pavor e de sofrimento. A cega da insônia deixaria por fim de sofrer
do mal de não dormir, pois dormiria para sempre o sono da morte:
Finalmente, ficámos, a saber, por que não podia esta cega dormir, agora
dormirá não a acordemos. Está morta, disse a mulher do médico, e sua voz
assim, tão morta como a palavra que dissera, ter saído de uma boca viva.
Levantou em braços o corpo subitamente desconjuntado, as pernas
ensangüentadas, o ventre espancado, os pobres seios descobertos, marcados
com fúria (ESC, 1999: 178).
A passagem em que essas mulheres são violentadas são as amostras de como a
dignidade delas serão usurpadas. A morte dessa cega representa, no conjunto da obra, como
elas se unem perante o sofrimento de uma que é comum a todas. Vejamos o fragmento em
que a cega das insônias morre e a mulher do médico, como uma irmã, ajuda o corpo que jaz
morto, mas, o corpo que agora não respira também se parece com o seu:
Este é o retrato do meu corpo, pensou o retrato do corpo de quantas aqui
vamos, entre estes insultos e as nossas dores não há mais do que uma
diferença, nós por enquanto, ainda estamos vivas. Para onde a levamos,
perguntou a rapariga dos óculos escuros, Agora para a camarata, mais tarde a
enterraremos, disse a mulher do médico (ESC, 1999: 178-179).
A mulher do médico age como uma irmã que protege os seus seguidores, ela possui
uma visão que escapa aos outros, e, nesse caso específico, ao seu gênero, o feminino. Ao
retornar para a camarata, pede aos homens para buscar o alimento pago pelos seus corpos. Ela
procura na água, símbolo de limpeza e purificação
14
, lavar a si e as outras, tão sujas daquele
14
―As significações da água podem reduzir-se a três temas dominantes: fonte de vida, meio de purificação,
centro de regenerescência.‖ (CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos, 2006. p. 15).
77
pegajoso líquido que os homens lhes deixaram, das marcas que nem o tempo tão cedo
apagaria.
Com a água, a mulher do médico se lava e também as suas outras companheiras de
infortúnio, para limpar um pouco daquela sujidade que elas sabiam o preço que tinham
pago, tão caro tinham saído o pão que os seus homens tinham ido recolher. Em suas almas
ficou o gosto da morte, cicatriz cujos olhos não poderiam tão cedo curar. Porém, com essa
mesma fonte, a água, elas, mulheres cegas e outra mulher tentam se purificar. Nessa fonte de
água não tão límpida, elas se banham para provar que ainda existia uma chama de esperança:
Queria um balde ou alguma coisa que lhe fizesse às vezes, queria enchê-lo
de água, ainda que fétida, ainda que apodrecida, queria lavar a cega das
insônias, limpá-la do sangue próprio e do ranho alheio, entregá-la purificada
a terra. [...] Quando o médico e o velho da venda preta entraram na camarata
com a comida, não viram, não podiam ver, sete mulheres nuas, a cega das
insônias estendida na cama, limpa como nunca estivera em toda a sua vida,
enquanto outra mulher lavava, uma por uma, as suas companheiras, e depois
a si própria (ESC, 1999: 180-181).
É fácil perceber no fragmento exposto, um quadro supra-real da mulher do médico. É
ela a única capaz de se mover naquele ―mar de leite‖ em que são lançadas essas mulheres tão
espoliadas pelos cegos malvados. Simbolicamente, ela as lava como um meio de purificar o
seu próprio corpo e o de suas companheiras pelo ato de selvageria a que foram expostas.
O texto esboça a maneira como essa mulher tão ultrajada pelas humilhações sofridas,
mata sem piedade, fazendo inclusive, justiça com as próprias mãos, como ressalta o trecho
abaixo:
A tesoura enterrou-se com toda a força na garganta do cego, girando sobre si
mesma lutou contra as cartilagens e os tecidos membranosos, depois
furiosamente continuou até ser detida pelas vértebras cervicais. O grito
ouviu, podia ser um ronco animal de quem estivesse a ejacular, como a
outros já estavam sucedendo (ESC, 1999: 186).
Esse acontecimento gera um verdadeiro furor entre os cegos malvados e a mulher do
médico. Ainda, frente à balburdia que se tinha estabelecido, grita para os outros cegos que não
tinham mais como reagir: ―Lembre-se do que eu no outro dia disse, que não me esqueceria da
cara dele, e daqui em diante pensem no que vos digo agora, que também não me esquecerei
das vossas‖ (ESC, 1999: 187).
78
A mulher do médico o mediu esforços para matar, e mataria novamente se caso
fosse necessário. Com esse fato, ela, de súbito, pensa que seria dessa vez que cegaria, mas o
choro lhe adverte que só eram as lágrimas que caiam como uma chuva que lava o corpo.
Ela se velha e assassina, mas novamente reflete que se fosse preciso, assim o faria,
para ter a liberdade e a dignidade que ainda lhe restava. Sua reflexão pondera ante a pergunta:
quando é preciso matar? No que ela mesma responde: ―Quando está morto o que ainda é
vivo‖ (ESC, 1999: 189). Diz ao marido que lhe perguntara sobre haver um homem morto e se
tornaria a matar, a que reponde: ―Se tiver de ser, dessa cegueira não me livrarei‖ (ESC,
1999: 189).
Após esse acontecimento, outros conflitos se darão. Como o caso do racionamento da
comida, que cria, perante os cegos bons, uma revolta que vai ser desenvolvida até culminar
numa rebelião em que os cegos se lançarão à luta por causa da comida que não mais vinha.
Nesse momento, as luzes do manicômio também se apagam.
O ápice do caos no espaço do confinamento se efetiva quando os cegos desesperados
se lançam uns contra os outros, gerando no manicômio uma gritaria, na qual os cegos como
loucos se atacam e se defendem. A mulher do médico também ali se encontra, juntamente
com os seus companheiros de ala. Jamais viu tanto sangue em sua vida, diante de tantos
corpos feridos e caídos. Como conseqüência do fato, sintetiza: a cegueira era também aquilo,
ou seja, não ter mais esperanças.
De repente, uma mulher lembra-se de um isqueiro e ateia fogo na ala dos cegos
malvados, os quais são queimados. Desesperados, alguns cegos tentam fugir e lembram que a
mulher do médico é a única capaz de orientá-los. Um grande fogaréu toma conta do espaço,
fazendo daquela atmosfera uma massa de loucos a correr para se salvar do incêndio que
mataria tantas pessoas. Tendo a oportunidade de fugirem, é a mulher do médico que, por sua
vez, profere a sentença de que os cegos, enfim estão livres do manicômio. O portão está
aberto para que eles saíssem e ela grita por liberdade; saem, então, desesperados como uma
massa a proliferar nas ruas.
Os cegos, agora, não mais estão no manicômio, mas sim, em toda a cidade, livres,
porém cegos, novamente a se espalhar aleatoriamente pelas ruas e avenidas. A cidade é, para
eles, um labirinto. Sem olhos para ver, não conseguem usufruir da liberdade que possuem.
Estão livres, mas é como se estivessem num manicômio a céu aberto, numa cidade hostil,
79
perdidos perante os muros desse lugar. A cegueira proporciona essa sensação, a de perda da
individualidade, da identidade e da capacidade de perceber o outro, de ajudar o outro com
fraternidade.
a mulher do médico ainda possui essa lucidez, conduzida pelos olhos da
irmandade, que tanto a faz ver pelos outros e pela situação em que se encontravam. A ela cabe
conduzir como um guia os seis cegos que a acompanham e cujo destino encontra-se sem
muito sentido.
Em se tratando de lucidez, esta personagem aparecerá em outra narrativa de José
Saramago, desta vez no Ensaio sobre a lucidez, publicado em 2004, em que o escritor retoma
alguns personagens do Ensaio sobre a cegueira. O tempo ficcional é de quatro anos, e nesse
quase oitenta por cento da população vota em branco; a personagem, então, é tida, como
suspeita de tal conspiração e, é morta pelas autoridades. Essa personagem aparece neste novo
Ensaio, escrito pelo viés da denúncia dos poderes democráticos, quando a maioria da
população decide votar em branco, talvez numa crítica nada sutil às formas éticas e políticas
do terceiro milênio.
A personagem em questão, no Ensaio sobre a cegueira adquire o que foi ressaltado
aqui, o olhar singular, de reparar os outros no caminho percorrido.
2.3 OLHARES FEMININOS: A MULHER DO MÉDICO/ BLIMUNDA E ÚRSULA
Nunca vi rosas tão bonitas, pensou com
curiosidade. [...] Olhou-as com atenção. [...] Como
são lindas, pensou Laura surpreendida (Clarice
Lispector)
15
.
15
LISPECTOR, Clarice. Imitação da rosa. IN: Laços de família. Rocco, 1998, p. 43.
80
O olhar é muito presente nas artes de uma forma geral, na fotografia, no palco do
teatro, da dança e no cinema. Também o olhar é revelado em narrativas literárias, de forma
que, para o espectador ou leitor, o olhar é uma interpretação simbólica através da arte.
Debruçando-nos sobre essa simbologia, pretendemos agora esboçar um tipo de olhar que se
torna muito singular nas narrativas abordadas, o da mulher. Será representado, aqui, por três
personagens da literatura, duas personagens do escritor português estudado nesta pesquisa e
outra conhecida personagem do escritor colombiano Gabriel García Marquez.
Assim, em Memorial do Convento de José Saramago, e em Cem anos de solidão de
Gabriel García Marquez, podemos perceber os olhares singulares respectivamente, das
personagens Blimunda e Úrsula, que possuem distintas visões das pessoas e do mundo. Ao
contrário da personagem do Ensaio sobre a cegueira, - a mulher do médico Úrsula não
num mundo de cegos, mas onde a cegueira é a própria circunstância para se ver melhor; já
Blimunda, através do seu olhar, percebe o outro por dentro. Essas personagens nos permitem
afirmar que seus olhares são tão ímpares, quanto femininos, diante de um mundo ainda
comandado por homens.
Arriscamos a comparação, ainda que brevemente, com essas diferentes personagens,
pois são seus olhares que demarcam as suas presenças nas narrativas aludidas. Blimunda,
conforme a narração do Memorial do Convento, possui estranhos poderes, herdados por sua
mãe, que fora condenada pela Igreja Católica por heresia e práticas de feitiçarias e açoitada
em praça pública, pela Inquisição. Esses poderes de Blimunda lhe são atribuídos pelo fato de
ela enxergar por dentro das pessoas. Em decorrência, seu olhar atrai Baltasar, que a segue,
conforme a passagem do romance:
Se não quiserem ficar, vai-te embora, não te posso obrigar, Não tenho forças
que me levem daqui, deitaste-me um encanto, Não deitei tal, não disse uma
palavra, não te toquei, Olhaste-me por dentro, Juro que nunca te olharei por
dentro. [...] Quando, de manhã, Baltasar acordou, viu Blimunda deitada ao
seu lado, a comer pão, de olhos fechados. Só os abriu, cinzentos àquela hora,
depois de ter acabado de comer, e disse, Nunca te olharei por dentro (ESC,
2008: 54-55).
81
O olhar de Blimunda é um olhar que por dentro. Ela os detalhes das coisas, as
minúcias das pessoas, daí a razão que a faz comer todos os dias o seu pão pela manhã de
olhos devidamente fechados. Para não ver por dentro das pessoas, ou seja, as cicatrizes da
alma, as agonias do espírito humano.
A personagem desta narrativa possui o mistério do olhar, adquirido na barriga de sua
mãe, pois segundo Blimunda: ―Estive de olhos abertos na barriga de minha mãe, de via
tudo‖ (ESC, 2008: 322).
Através do seu olhar, ela percebe a vontade das pessoas, por isso ajuda também o
sonho do padre Bartolomeu Dias, de fazer a passarola voar. A partir das intenções do homem,
a personagem consegue perscrutar a essência dos humanos, isto é, o que eles têm por dentro, o
mistério que por detrás de seus olhos cinzentos, como podemos observar na passagem
abaixo:
Dorme Baltasar no lado direito da enxerga, desde a primeira noite dorme,
porque é desse lado o seu braço inteiro, e ao voltar-se para Blimunda pode,
com ele cingi-la contra si [...] Meses inteiros se passaram desde então [...]
mas Baltasar sempre que acorda à mesma hora fica alerta a ver-se retirar-se
devagar a escuridão de cima das coisas e das pessoas, [...] até que um leve
rumor acorda Blimunda e outro som começa é Blimunda a comer o seu pão,
e depois que o comeu abre os olhos (ESC, 2008: 73-74).
A personagem, ao olhar por dentro das pessoas, consegue enxergar mais além do que o
corpo, assim talvez pudesse ver a alma, o que de mais profundo possuem, angústias, dores,
tormentos, a vida ou a morte:
Blimunda quieta, de olhos fechados, alargando o tempo do jejum para se lhe
aguçarem as lancetas dos olhos, estiletes finíssimos quando enfim saírem
para a luz do sol, por que este é o dia de ver, não o de olhar, que esse pouco
é o que fazem os que, olhos tendo, são outra qualidade de cegos. [...] E isto
lhe diz, Aquela mulher que está sentada no degrau daquela porta tem na
barriga um filho varão, mas o menino leva duas voltas de cordão enroladas
no pescoço, tanto pode viver como morrer, a sabê-lo não chego (ESC, 2008:
77).
Úrsula, perde a visão física, no entanto, é-lhe assegurado o poder da visão. A
matriarca dos Buendías atravessa quatro gerações, ela é a esposa de José Arcadio Buendía e
mãe do coronel Aureliano Buendía e José Arcadio. O narrador a descreve como uma mulher
que participa de todos os eventos da família, desde a fundação de Macondo até outros
82
empreendimentos do marido, a alquimia, a chegada de noras, nascimentos de vários netos e
descendentes dos Buendías. O realismo fantástico de Gabriel García Marquez ressalta a
coragem e a firmeza de Úrsula no romance:
A diligência de Úrsula andava de braços com a de seu marido. Ativa, miúda,
severa, aquela mulher de nervos inquebrantáveis, a quem em nenhum
momento da vida se ouviu cantar, parecia estar em todas as partes desde o
amanhecer até a noite já bem avançada, sempre perseguida pelo suave
sussurro das suas anáguas de cambraia (MARQUEZ, 1980: 14).
Empreendida por uma força descomunal, a matriarca passa por várias situações em sua
família, desde a loucura de seu marido José Arcadio Buendía, à insensatez do seu filho, o
coronel Aureliano José e várias intempéries vividas pelos personagens de sua extensa família.
A personagem do escritor colombiano possui, assim, uma determinação e força que se
destacam ao longo de toda a narrativa:
Com uma vitalidade que parecia impossível na sua idade, Úrsula voltou a
rejuvenescer a casa. ―Agora vão ver quem sou eu‖ disse quando soube que o
filho viveria. ―Não haverá uma casa melhor, nem mais aberta a todo mundo,
que esta casa de loucos‖ (MÁRQUEZ, 1980: 163).
Úrsula se encontra centenária quando, por causa da catarata, perde a visão, a partir dos
problemas que o tempo traz à saúde do corpo. No entanto, possui um dinamismo que impera
por toda a família dos Buendías. ―Já quase cega, foi a única que teve serenidade para
identificar a natureza daquele vento irremediável e deixou os lençóis à mercê da luz‖
(MÁRQUEZ, 1980: 212). Aqui, se destaca a lucidez da mulher que perdeu a visão, mas
possuía a tranqüilidade de uma matriarca que ainda comandava uma família.
Sua capacidade de ver é ressaltada diversas vezes durante o romance. O narrador
ressalta o seu papel na trama, uma vez que a sua cegueira não atrapalha a sua posição diante
dos acontecimentos na cidade e na centenária família. Dessa forma, podemos considerar
Úrsula uma personagem que tem uma visão antecipada das coisas e das pessoas e que mantém
uma integridade que as heroínas possuem. Uma maneira, inclusive, de escapar da própria
decrepitude que o tempo traz:
A verdade era que Úrsula resistia ao envelhecimento mesmo quando tinha
perdido a conta de sua idade e atrapalhava em todos os lugares e tentava
meter em tudo e aborrecia os forasteiros com a perguntação de se não tinham
deixado ali em casa, no tempo da guerra um São José de gesso. [...] Ninguém
83
soube com certeza quando começou a perder a vista. Mesmo nos seus
últimos anos, quando já não podia se levantar da cama, parecia simplesmente
que estava vencida pela decrepitude, mas ninguém descobriu que estava cega
(MÁRQUEZ, 1980: 220).
O fato de ter ficado cega não trouxe a Úrsula a desistência da vida, ao contrário, fez
com que ela aprendesse, com a falta da visão física, a experiência de ter que conviver
satisfatoriamente com os seus outros quatro sentidos. Úrsula aprendeu, na rotina de sua velha
casa, a perceber as coisas pela memória, daí não deixar que ninguém soubesse de sua
cegueira: ―Na impenetrável solidão da velhice, dispunha de tal clarividência para examinar
mesmo os mais insignificantes acontecimentos da família‖ (MARQUEZ, 1980: 222).
Essas três personagens sinalizadas por causa do olhar merecem atenção especial,
sobretudo porque são personagens femininas, cujos olhares são singulares em circunstâncias
especificas. Cada uma, ao seu modo, desenvolve uma maneira peculiar de olhar. Dotadas por
tal sentido, elas não olham, mas vêem além das aparências e com isso são capacitadas por
uma maneira também de reparar, de perceber o que está além, dessa forma, são visionárias de
um tempo marcado por dissabores e agonias, cujas tarefas, quiçá, serão as de atenuar o
desespero de uma época marcada pela morte e pela dor.
Assim, a mulher que no Ensaio sobre a cegueira, distintamente do que
Blimunda em Memorial do Convento, que, por sua vez, se distancia da visão centenária de
Úrsula, em Cem anos de solidão. Mas cada uma, especificamente com os seus olhos de
mulher, seja esposa, feiticeira ou senil, consegue perceber o humano de maneira mais tenaz.
Decerto representam o significado de feminino, tal como é definido por...
16
.
São os seus diferentes olhares que se destacam nos papéis de mulheres frente aos
obstáculos que ora surgem nos três romances apontados. Úrsula consegue através de seu olhar
atravessar um tempo em que a solidão arrasta quatro gerações. Ela mantém a integridade e a
força dos Buendías, perfilando a sabedoria enveredada pelo narrador de Cem anos de solidão.
Blimunda, com o seu olhar que vê por dentro das pessoas, tem nos olhos algo que a
difere dos outros, o olhar da ancestralidade e da magia, cujo mistério jamais será resolvido, a
16
Segundo o Dicionário de símbolos, o feminino tem uma energia eminentemente apta a aperfeiçoar-se, matizes
cada vez mais espiritualizados. O feminino autêntico é mbolo de coragem, de ideal, de bondade. Simboliza
também a face atraente e unitiva dos seres (CHEVALIER, 2006, 421).
84
ponto de ela sair pelo mundo à procura de Baltasar Sete-Sóis, que desapareceu nos escombros
da construção do convento.
E a personagem do Ensaio sobre a cegueira possui aquilo que falta a todos no
momento de tal epidemia, a possibilidade de olhar, de ver e de reparar. Ela discursa para os
seus ouvintes: ―É que vocês não sabem, não podem saber, o que é ter olhos num mundo de
cegos, não sou rainha, sou simplesmente a que nasceu para ver o horror‖ (ESC, 1999:262).
Sobre essa capacidade que lhe é facultada no romance, trataremos no próximo capítulo. Para
poder olhar, será preciso ver e além do mais, reparar.
3. OLHAR, VER E REPARAR
O meu olhar é nítido como o girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para direita e para a esquerda,
85
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto. (Alberto
Caeiro)
17
.
Vimos que uma das principais temáticas do Ensaio sobre a cegueira é justamente a
falta de visão. A epidemia do ―mar de leite‖ descrito pelos cegos como a sensação do branco é
diferente da cegueira negra, descrita pela medicina. Nessa cegueira, o indivíduo perde a
capacidade neurológica funcional. Visto que o aparelho visual compõe-se de quatro partes:
retina, vias ópticas, centro visual cortical e centro psíquico, o processo da cegueira pode ser
desenvolvido em qualquer uma delas.
Os olhos remetem sempre a uma conexão cerebral, dessa forma, a ação do olhar
estabelece uma direção mental, chamada de ―ato de intencionalidade‖ (BOSI, apud NOVAES,
2006: 65).
Os processos que acarretam a falta de visão física são diferentes do que aqui se
esboçou sobre a cegueira branca, a primeira pode acontecer em uma destas formas: a anulação
funcional da retina acarreta a falta de recepção sensorial do estímulo luminoso; a interrupção
das vias ópticas implica a falta de transmissão de recepção retiniana dos centros corticais; a
destruição ou anulação do centro cortical da visão tem como conseqüência a falta de recepção
cerebral e, por último, a anulação das conexões da esfera visual com os centros psíquicos
impede a identificação psíquica do ato de visual.
A peculiaridade do enredo do Ensaio sobre a cegueira é tocar num assunto como o
olhar numa perspectiva ficcional. O narrador propicia aos leitores a forma mais problemática
que impede o ser humano de olhar, ou seja, a alienação, o olhar alienante, que se perpetua
através de uma cegueira institucionalizada, a cegueira da razão, a cegueira dos
acontecimentos e da fragmentação que a mídia promove; e a cegueira ideológica, isto é, a
cegueira moral, a cegueira ética.
No documentário Janela da alma (2002), o escritor e neurologista Oliver Sacks assim
define o olhar: ―O ato de ver e de olhar... Não se limita a olhar para fora. Não se limita a olhar
o visível, mas também, o invisível. De certa forma, é o que chamamos de imaginação.‖ Ponty
17
PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007. p. 202.
86
assinala esse binômio, visível e invisível quando se refere que o que não vemos é a parte
integrante daquilo que chamamos de invisível.
O que o neurologista aponta é, justamente, a possibilidade que os homens têm de ver
através dos olhos da mente, da imaginação e da percepção. Em outras palavras, no mesmo
documentário, o fotógrafo cego Eugen Bavcar depõe acerca do que seria o olhar interior,
enfatizando sobre o olhar da alma: ―As pessoas não sabem mais ver, pois não têm mais o
olhar interior. Vive-se num tipo de cegueira generalizada. O olhar é aquele que se constrói,
que se realiza nas trevas... Isto é, no mundo das corujas, no mundo da sabedoria‖.
Estas citações convergem para uma direção, a de que se pode olhar de formas
diferenciadas. De um lado, a fala do neurologista, ao afirmar que olhar é captar o invisível,
não apenas o que se mostra externamente. Do outro, a concepção do artista que fotografa nas
trevas, segundo a qual olhar é a fonte de iluminação, pois ele realiza suas fotografias
mentalmente.
O mito da Caverna, de Platão, pode ser abordado ao aludirmos à leitura do mundo das
trevas e do mundo da iluminação. Em A República
18
, livro VII, o mito narrado se constrói a
partir do universo aprisionado, onde aqueles que se encontram na morada subterrânea
encontram sombras e, por isso, vivem e pensam que são realidades, isto é, no mundo das
aparências elas são vistas como reais. E os homens vivem conforme essas sombras e
acreditam que elas são reais. São prisioneiros de si mesmos e, se vêem algo, o tomam como
verdades absolutas. O mito serve para corroborar e elucidar o mundo das trevas, o mundo das
sensações. A prisão destes homens entra em conflito com aquilo que Platão sugere como: ―A
luz do fogo que ilumina com a força do Sol‖ (PLATÃO, 1999: 228).
Nesse sentido, a idéia que o filósofo postula com o mito é de que os olhos podem estar
tão acostumados com a escuridão, que, ao passar para o lado de fora da caverna, ficam
ofuscados com o brilho da luz. Essa passagem das trevas à luz, conforme uma fala de Sócrates
para Glauco, no diálogo platônico, se efetiva conforme a conversão da alma, que, por sua
vez, recebe a virtude do Bem que é o conhecimento.
Neste trabalho percebemos os sentidos que o dicionário traz para olhar e cegueira.
Cabe, então, aprofundarmos a seqüência do olhar, com o ver e o reparar. No novo dicionário
Aurélio (2005), os significados para ver são muitos, dos quais escolhemos alguns: do latim
18
Consulta aqui, a edição de 1999, traduzida por Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural.
87
videre, conhecer ou perceber pela visão, encontrar-se, percorrer, viajar, visitar, observar,
perceber, reconhecer, observar, notar, deduzir, imaginar, fantasiar, examinar, investigar,
reputar, considerar, julgar, divisar, avistar.
para o verbete reparar, temos as seguintes expressões: do latim reparare, fazer
reparo ou conserto, restaurar, melhorar, aperfeiçoar, aprimorar, fixar a vista em, atentar, dar
atenção, tomar cautela, tomar tento, dirigir a vista; olhar com cuidado, proteger-se.
Pelo dicionário, podemos sinalizar que olhar, ver e reparar são semelhantes, porém se
distinguem por suas contextualizações, eles possuem significados conforme o seu uso.
Apreciaremos, assim, porque e como cada forma se faz pertinente em o Ensaio sobre a
cegueira. Na narrativa, olhar não é o mesmo que ver, pois esse vai muito além do que se
possa imaginar. No texto, ―a cegueira branca‖ marca uma concepção de que, se podemos
olhar, poderemos ir mais adiante, podemos ver e, assim, prosseguir com o reparar: ou seja,
aprimorar a visão, aperfeiçoando-a; tomar cautela com aquilo que se vê. Desse modo, reparar
é olhar com cuidado, com a sensibilidade que ainda se pode reconhecer entre os homens.
O olhar, ver e reparar são essenciais no conjunto do romane. Corrobora essa assertiva
o fato de, em meio às agonias vivenciadas pelo inferno do manicômio, alguém se lembrar de
que uma única pessoa ainda é capaz de ver: ―Num momento alguém ainda se recorda de que a
mulher do médico ainda tem uns olhos que vêem, onde está ela, pergunta-se, ela que nos diga
o que se passa, por onde deveremos ir‖ (ESC, 1999: 208).
A personagem citada indica confiança depositada naquela que cuida deles, pois a
lembrança tecida sobre a mulher do médico não é pelo fato de ela não ter perdido a visão,
mas sim, o de seu cuidado e amparo com os demais no internato.
Uma imagem que aproxima o Ensaio sobre a cegueira do Mito da caverna é quando
os cegos são libertados na confusão instalada no manicômio. Os cegos, sem saberem para
onde devem ir, saem como loucos, como se tivessem sido libertados da grande caverna que se
instalou sobre suas vidas.
Essa imagem no texto é recorrente, porque na narrativa eles não sabem que direção
tomar. Mesmo fora do manicômio, eles ainda se encontram assustados, ainda desesperançados
pela prisão que os acometia. Assim, a luminosidade do dia é como a imagem lembrada por
Platão, quando se refere à força que o Sol possui. A imagem no Ensaio faz parte do momento
88
em que um dos cegos, sem ter para onde ir, reflete: ―Que fazemos, Eu fico aqui até ser dia, E
como saberás tu que é dia, Pelo sol, pelo calor do sol‖ (ESC, 1999: 212).
Na rua, eles estão ainda mais desolados do que estavam no manicômio. Os cegos
peregrinam numa cidade, labirinto de contradições, em que outros problemas irão surgir, tal
como saber para onde ir. Cansados, não sabem para onde prosseguir. A cegueira fez deles
nômades, personagens que se cruzam num labirinto, a cidade sem nome. São os homens sem
nome, cuja igualdade naquela circunstância é a falta de visão.
Uns ainda exauridos pela cegueira se deixam cair como se estivessem ainda em suas
prisões. Outros, seis apenas, os guiados pela única pessoa que poderia conduzi-los, esperam
até a noite para poder tatear no escuro, em direção ao caminho que deveriam seguir. Esse
grupo forma um número de sete, seis sendo cegos, sete vidas
19
. Todos eles ficam juntos, como
se formasse ali uma vida, uma respiração, até o momento em que adormecem e são
despertados pela chuva fina que cai. Entretanto, confirmando a teoria da prisão do mito
platônico aqui descrito, vários dos cegos ainda estão desesperados, por serem cegos de
compreensão: ―Alguns destes cegos não o são apenas dos olhos, também o são do
entendimento‖ (ESC, 1999: 213).
Quanto a isso, buscamos em Jean-Paul Sartre (1997), detalhamento sobre as
percepções do olhar com seus vários atributos. Conforme o filósofo, olhar: ―é ser visto pelo
outro‖ (SARTRE, 1997: 331). A compreensão dessa relação se estabelece quando uma
troca entre um ser e outro, ou seja, quando se é visto pelo outro. Isso confere um sentido de
consciência de si e do outro, pois, para ele, a cada instante o outro me espreita, me olha. Para
ele, eu me vejo, porque alguém me olha.
Adentremos um pouco mais nesse universo do olhar, tomando as palavras de Sartre:
Em todo olhar, aparição de um outro - objeto com presença concreta e
provável em meu campo perceptivo, e por ocasião de certas atitudes deste
outro. [...] Cada olhar nos faz experimentar concretamente e na certeza
indubitável do cogito que existimos para todos os homens vivos, ou seja,
que há consciência (s) para quem existo (SARTRE, 1997: 360).
19
Tomamos a acepção do número sete com o que designa o Dicionário de símbolos. Em suas várias definições o
sete encerra uma ansiedade pelo fato que sinaliza a passagem do conhecido para o desconhecido. Um ciclo
concluído. Qual será o próximo? Também, o sete simboliza a conclusão do mundo e a plenitude dos tempos. O
próprio homem é convidado pelo número sete, que indica descanso (CHEVALIER, 2006: 828).
89
Com essa maneira de perceber o olhar, determinamos uma noção de sujeito do
conhecimento que apreende, conhece e é sujeito através da existência. Essa noção é
desenvolvida ainda quando o sujeito se percebe a partir do outro, noção essa, definida como a
―objetivação do outro(SARTRE, 1997: 366). Nesse entendimento, olhar é uma apreensão
objetiva e consciente da presença do eu e do outro.
O ensaio, Saramago, ao levantar tais questões sobre a maneira de olhar, conduz-nos
com seus personagens, à promoção de como olhar e reparar o outro, de forma mais
consciente. Essa noção se estabelece pelo cuidado que tem a mulher do médico em olhar e
aprimorar sua visão no romance. Dentre todos da chamada ―cegueira branca‖, ela é uma
exceção, capaz de restaurar o mínimo de dignidade ainda encontrada naqueles personagens.
Portanto, conforme postula Sartre, o olhar serve sempre para o outro, de forma que:
A prova de minha condição de homem, objeto para todos os outros homens
vivos, lançado na arena debaixo de milhões de olhares e escapando-me a
mim mesmo milhões de vezes, eu a realizo concretamente por ocasião do
surgimento de um objeto, no consciente. É o conjunto do fenômeno que
denominamos Olhar. [...] Assim o olhar colocou-nos no encalço de nosso
ser-Para-outro e nos revelou a existência indubitável deste outro para o qual
somos (SARTRE, 1997: 360).
Olhar, ver e reparar no ensaio serão tarefas realizadas pela mulher do oftalmologista.
A imagem dela ao olhar os seus protegidos expressa o cuidado e o afeto que nutre por eles:
―Olhou-os com olhos rasos de lágrimas, ali estavam, dependiam dela como as crianças
pequenas dependem da mãe (ESC, 1999: 218).
O cuidado que ela teve no manicômio agora se estende nas ruas: caminha pelas ruas, à
procura de alimento, tentando encontrar algo que ainda sustente os corpos dos cegos; procura
o alimento pelas calçadas e lojas da cidade como os outros cegos que andavam à procura de
alimentação. A única diferença são os alvos que a mulher ainda consegue vislumbrar com o
seu olhar. ―Meu Deus a luz existe e eu tenho olhos para a ver, louvada seja a luz‖ (ESC, 1999:
223).
A proteção que a mulher do médico dá aos seus peregrinos, como já dito nesse texto, é
uma forma de olhar e amparar os outros. Falta-lhe, no entanto, o cuidado com ela mesma,
que está fragilizada por os todos os acontecimentos no manicômio e na cidade. Os outros não
têm olhos para perceber uma mulher seminua sustentando sacolas de alimentos e andando por
90
lugares alagados entre excrementos e lixos, coberta de uma coragem que a guia, mas que ao
mesmo tempo a faz chorar desesperadamente:
Os cães a rodearam-na, farejam os sacos, mas sem convicção, como se
lhes tivesse passado a hora de comer, um deles lambe-lhe a cara, talvez
desde pequeno tenha sido habituado a enxugar prantos. A mulher toca-lhe a
cabeça, passa-lhe a mão pelo lombo encharcado, e o resto das lágrimas
chora-as abraçada a ele (ESC, 1999: 226).
Essa percepção do olhar pode ter uma conotação racional, entendendo-se que a
experiência do ver estabelece um juízo das coisas (CHAUÍ, In: NOVAES, 2006). A autora
define assim que olhar é uma maneira consciente da existência. O homem que possui essa
clareza tem menos possibilidades de se perder no mundo de hoje, que olhar não é uma
tarefa fácil nesse mundo fragmentado da vida moderna.
Desse modo, quem vê melhor é aquele que consegue ver com mais perspicácia, aquele
que tem a visão interior: ―Essa crença reafirma nossa convicção de que é possível ver o
invisível, que o visível está povoado de invisíveis a ver e que, vidente, é aquele que enxerga
no visível sinais invisíveis aos nossos olhos profanos‖ (CHAUÍ, 2006: 32).
O médico atenta para essa visão interior quando, num debate entre os cegos, em
sua casa, diz: ―Se eu voltar a ter olhos, olharei verdadeiramente os olhos dos outros, como se
estivesse a ver-lhes a alma‖ (ESC, 1999: 262), ao que o velho da venda preta considera: ―A
alma, perguntou o velho da venda preta, Ou o espírito, O nome pouco importa‖ (Ibidem).
Mais peculiar é a observação da rapariga dos óculos escuros, que profere: ―Dentro de nós
uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos‖ (ESC, 1999: 262).
Nessa passagem do romance, percebemos como os três personagens definem a
concepção do olhar numa perspectiva diferente, demonstrando, dessa forma, como serão
aguçados os seus olhares se voltarem a enxergar. É precisamente neste trecho que os três
abordam, de maneira concisa e aguçada, a percepção do olhar, olhar que se traduz por
intermédio de um terceiro olho.
A cegueira moral que por tanto tempo fez com que eles vivessem no mesmo inferno,
agora se transformaria em solidariedade, ou até mesmo em encontro amoroso, como foi o
caso da mulher de óculos escuros e do velho da venda preta, que, sem nunca terem se visto,
passam a se amar.
91
São os olhos do entendimento que prevalecem no mundo dos cegos, pois, antes
mesmo, enxergando uns aos outros, não sabiam conviver com harmonia, vai além da
harmonia, o estado de cegueira branca foi que potencializou a desarmonia latente na
sociedade. Agora, tem que aprender, dia-a-dia, com a vergonha, a hipocrisia, a sujeira, a
indignidade, enfim com o que de mais impuro poderia existir entre os humanos, pois só assim
podem conviver com a cegueira que os habita:
Estas realidades sujas da vida também têm de ser consideradas em qualquer
relato, com a tripa em sossego qualquer um tem ideias. [...] mas quando a
aflição aperta, quando o corpo se nos demanda de dor e angústia, então é o
que se vê o animalzinho que somos (ESC, 1999: 243).
Os sete personagens, ao chegarem à casa da mulher do médico, se despem uns frente
aos outros, porém não se vêem, porém, nem por isso deixam de manter o pudor que antes
carregavam quando suas visões eram boas. A mulher do médico cuida deles, trazendo-lhes
roupas limpas, traz-lhes tudo que encontra para aqueles farrapos de homens que ali se
encontram. Outra imagem que demonstra o olhar acurado que ela tem é o fato de dar-lhes
água, como se fosse uma verdadeira dádiva da vida. Beber um copo de água naquelas
circunstâncias, para eles, era como se fosse um tipo de renascimento, então, em vista disso, a
mulher do médico prepara um verdadeiro banquete, servindo-lhes a bebida
20
:
Colocou-o sobre a mesa, foi buscar os copos, os melhores que tinham, de
cristal finíssimo, depois lentamente, como se estivesse a oficiar um rito,
encheu-os. No fim, disse, Bebamos. As mãos cegas procuraram e
encontraram os copos, levantaram-nos tremendo. Bebamos, repetiu a mulher
do médico. No centro da mesa, a candeia era como um sol rodeado de astros
brilhantes. Quando os copos foram pousados, a rapariga dos óculos escuros e
o velho da venda preta estavam a chorar (ESC, 1999: 264).
A água, fonte de renovação, serve para esses maltrapilhos da vida como uma nascente,
como outra forma de vida. É assim quando começa a chover torrencialmente. A chuva
desperta na mulher do médico sentimentos ainda mais fraternos. Pela chuva, ela se renova de
esperanças no povir: ―Que esta chuva não pare, murmurava enquanto buscava na cozinha os
sabões, os detergentes, [...] tudo o que pudesse servir para limpar um pouco, ao menos um
pouco, esta sujidade da alma (ESC, 1999: 365).
20
Não podemos deixar de assinalar novamente a simbologia que tem o elemento água nessas passagens, pois ela
tem sentidos, como renovação, origem da vida e ser elemento da regeneração corporal e espiritual (Dicionário de
Símbolos, 2006, p. 15).
92
A mulher do médico se despe e toma banho na chuva, como a se purificar de tantos
infortúnios que teve; ao mesmo tempo, que lavava os velhos trapos de roupa, lavava o corpo
cansado das agonias passadas. A ela se juntava a rapariga dos óculos escuros e a mulher do
primeiro cego. Estranhas são as sensações da intuição feminina, como elas chegaram lá, o
se sabe, que elas estavam privadas dos olhos do corpo. Três mulheres nuas, despidas numa
varada de um apartamento, expostas somente ao céu e à chuva que teimosamente caia sobre
elas. A mulher do primeiro cego, diz repentinamente: ―Só Deus nos vê,‖ ao que a mulher do
médico revida: ―Nem mesmo ele, o céu está tapado, eu posso ver-vos‖ (ESC, 1999: 266-
267).
O narrador tece uma união entre essas três mulheres, de classes sociais tão diferentes,
mas seladas por uma causa dúplice: a cegueira e olhar. E por causa de ambos são como irmãs
a se revelarem nos seus sonhos e segredos de mulher. As falas das três personagens exaltam
sinceridade intercalada pela emoção feminina:
Estou feia, perguntou a rapariga de óculos escuros, Estás magra e suja, feia
nunca o serás, E eu perguntou a mulher do primeiro cego, Suja e magra
como ela, não tão bonita, mas mais do que eu, Tu és bonita, disse a rapariga
dos óculos escuros, Como podes sabê-lo, se nunca me viste, Sonhei duas
vezes contigo (ESC, 1999: 267).
A passagem traz à tona os sentimentos que ficaram amortecidos pelo tempo da
cegueira. A mulher do médico chora e também as outras duas, confirmando assim, que os
sentimentos mais nobres podem existir em meio ao caos, tempos de prepotência e arrogância
no mundo. Elas nesse trecho sintetizam a existência. Nas palavras do narrador, são como:
―três garças nuas sob a chuva que cai‖ (ESC, 1999: 267).
O velho da venda preta também toma um banho dado por alguém que lhe esfrega as
partes sujas que por muito tempo não tinham sido asseadas. O personagem quer perguntar:
―Quem és, mas a língua travou-se-lhe, não foi capaz, agora o corpo arrepiava-se, não de frio.
[...] a razão dizia-lhe que poderia ser a mulher do médico, ela é a que vê, ela é a que nos
tem protegido, cuidado e alimentado (ESC, 1999: 270). Mas não foi esta a personagem que
lhe higienizou, mas sim a rapariga de óculos escuros. Teve essa comprovação ao chegar na
sala e a mulher do médico dizer: ―Já temos um homem limpo e barbeado‖ (ESC, 1999: 271).
Como foi referido antes, também a mulher do médico vai ter o cuidado com os
cegos. Em sua casa, os cegos lhes são dependentes, dependem dos seus dois olhos. Assim,
93
muito mais que ver, ela repara e cuida dos outros, porque tem atenção com aquela família
desamparada, que agora faz parte da sua. Eles, os cegos, são como crianças que dependem
exclusivamente de seus pais.
Quando o primeiro cego decide procurar a sua casa, tem uma surpresa ao encontrar lá
um escritor, um escritor cego que agora habita o seu lar, e, para surpresa dos demais, este lhes
fala que não precisa de nome, pois ninguém mais os seus livros. Nessa imagem, o narrador
acentua a tarefa da escrita num mundo de cego, criando a indagação ao leitor: de que servirá
um escritor quando não se pode ver? Desse embate, estabelece-se um diálogo entre a mulher
do médico e o escritor:
O Senhor é escritor, tem como disse pouco, obrigação de conhecer as
palavras. [...] Gostaria que me falassem de como viveram na quarentena,
Porquê, Sou escritor. Era preciso ter estado, Um escritor é como outra
pessoa qualquer, [...] A esferográfica é um bom instrumento de trabalho para
escritores cegos (ESC, 1999: 277).
Olhar, ver e reparar assumem formas distintas de percepção. A experiência da falta
de visão trouxe particularidades nas maneiras dos personagens de encontrar alicerces para
viver no universo da cegueira. A cegueira, encarada por esse núcleo de personagens não terá a
mesma noção que antes.
Por certo, a tarefa de agora em diante, para eles, é se organizar, pois só assim, de certa
forma, terão olhos novamente, todavia não os olhos físicos. Esse outro tipo de cegueira ataca
a moral, ataca a sensibilidade, pois ela se desenvolve e corrói o que de mais humano se pode
ter, a compreensão de que vivemos num mundo de desigualdades, de crueldade e,
principalmente, de uma violência sobre o olhar.
Os cegos da história de José Saramago compreenderam esse outro tipo de cegueira, a
do entendimento, a que ofusca os sentimentos e faz com que não enxerguemos a nós próprios,
muito menos aos outros. Para eles, essa cegueira foi única e como experiência, marcou um
tempo e uma forma também de encarar os fatos, como ressalta uma personagem, ao falar
sobre como se morrerá a partir dos tempos atuais, sinalizando que a pior morte será essa
cegueira que está alastrando a humanidade: ―Mas o que verdadeiramente agora está a nos
matar é a cegueira‖ (ESC, 1999: 282).
94
O reparar, no Ensaio, mostra-nos como a convivência diária será uma ação também
coletiva, imprimindo noções de afetividade e solidariedade entre os homens. A experiência da
epidemia trouxe para os personagens outro tipo de visão, a da humildade e a da paciência,
como enfatiza a rapariga dos óculos escuros: ―A paciência é boa para a vista‖ (ESC, 1999:
283).
A vida teria que ser, de agora em diante, melhorada, essa reflexão podemos observar
na passagem a seguir: ―amparar a fragilidade da vida um dia após outro dia‖ (ESC, 1999:
283), pois muitos problemas ainda aconteciam por causa da cegueira no dia-a-dia da cidade
como a podridão, as doenças, a escassez da água, a falta de comida e todos os males que a
epidemia trouxe. Ainda declara a mulher do médico: ―Abramos os olhos, não podemos,
estamos cegos, disse o médico, É uma grande verdade a que diz que o pior cego foi aquele
que não quis ver‖ (Ibidem).
No ditado popular, a referência de que a pior cegueira é aquela cuja verdade está tão
sombreada, que a pessoa, ou não que ver, ou finge, para não enxergar o que não quer. Por
certo, lembremos dos prisioneiros da Caverna de Platão, ao continuarem presos em suas
sombras, pensando que são realidades.
Ver e reparar são diferentes na forma de enfrentamento do mundo, por essa razão, o
que não está diante de nossos olhos merece um cuidado especial. Enxergar merece um
cuidado especial sobre as coisas e o homem, como na questão dos mortos, reflexão feita pela
mulher do médico, sobre o costume de passar pelos mortos e não os verem, ou seja, o
invisível para as pessoas não é importante, como se ali estivessem os seus corpos e nada
mais a acrescentar na memória dos que ficaram.
De certa maneira aqueles cegos tinham aprendido uma lição, a cegueira tinha ensinado
a compreender mais as pessoas que estivessem perto delas. A convivência difícil que tiveram
dentro do manicômio, e agora nas ruas povoadas por cegos, e dentro da casa da mulher do
médico, afirmava isso, que a tarefa mais difícil não é nem ―viver com as pessoas, o difícil é
compreendê-las, disse o médico‖ (ESC, 1999: 286). Pois de agora em diante, essa seria uma
missão que eles tinham que realizar, que a cegueira os ensinou a compreender melhor as
diferenças das pessoas.
Uma das personagens que podemos destacar quanto a essa nova postura é a rapariga
dos óculos escuros, ao se envolver numa trama em que os seus sentimentos vão aflorar de
95
forma bastante compreensível. Ela, acostumada a se deitar com vários homens, tem que
conviver com outra diferença. Percebe, enfim, que a cegueira lhe trouxe uma compreensão,
um novo modo de olhar para as pessoas. Uma comprovação disso é a estreita ligação que
passa a ter com o homem da venda preta. Nunca se viram, mas a compreensão fez com que
ambos ultrapassassem os olhos do corpo e os elos dos sentimentos fossem mais intensos entre
os dois.
Muda a percepção da realidade para esses personagens no romance de Saramago. O
olhar já é outro, não enxergam ainda, mas poderíamos afirmar que vêem além das aparências.
não são os mesmos antes de cegarem, são personagens cujas cegueiras fizeram com que
encontrassem o absurdo e a sujeira que a vida muitas vezes proporciona.
A rapariga dos óculos escuros se transforma e olha, agora, de maneira peculiar,
diferente, ela não é a mesma que entrou no consultório do oftalmologista para se curar de
uma conjuntivite. Ela não fisicamente o velho da venda preta, mas o encontro entre eles
pôde acontecer. A rapariga de óculos escuros reflete: ―A mulher que eu então era não o diria,
reconheço, quem o disse foi a mulher que sou hoje‖ (ESC, 1999: 292).
O narrador coloca-os à prova, porque, para olhar e perceber de maneira mais nítida, foi
necessário passar pelo que eles passaram, a fim de que não pudessem olhar da maneira como
antes. Olhar por esse prisma é voltar-se para si mesmo e apurar o olhar interior de que tanto se
falou neste trabalho. Na crônica A complicada arte de ver, Rubem Alves (2009: 02) faz alusão
a esse pensamento, ao citar o poeta William Blake:
A árvore que o sábio não é a mesma árvore que o tolo vê‖. Sei disso por
experiência própria. Quando vejo os ipês floridos, sinto-me como Moisés
diante da sarça ardente: ali está uma epifania do sagrado. Mas uma mulher
que vivia perto da minha casa decretou a morte de um ipê que florescia à
frente de sua casa porque ele sujava o chão, dava muito trabalho para a sua
vassoura. Seus olhos não viam a beleza. Só viam o lixo.
Os poetas, artistas, enfim, os que lidam com a estética, vêem de forma mais sensível
o mundo. Muito se tem afirmado que alguns possuem a visão perfeita e que conseguem ver
além do que os seus dois olhos alcançam. Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa,
afirma que: ―O essencial é saber ver/ saber ver sem estar a pensar/ saber ver quando se
(PESSOA, 2007: 217).
96
3.1 DA CEGUEIRA A UM NOVO OLHAR
O olhar colocou-nos no encalço de nosso ser-Para-
outro e nos revelou a existência indubitável deste
outro para o qual somos (Jean Paul Sartre)
21
.
Ora, se o romance de José Saramago relata as agonias provocadas pela alienação do
homem desses turbulentos séculos XX e XXI, e se seu Ensaio provoca nos leitores
contemporâneos uma espécie de ceticismo e niilismo diante do mundo, isso demonstra que o
escritor tem promovido reflexões quanto às atitudes vivenciadas nesses períodos. O autor, em
entrevista concedida a Castello (1999: 228), lembra que ―nenhum animal, mesmos os que
chamamos de ferozes, se comporta com crueldade. As feras querem apenas se alimentar, [...]
Os animais não se torturam uns aos outros, mas os seres humanos sim.‖
O ensaio, dessa maneira, poderia ser considerado uma forma plenamente estética do
posicionamento ideológico e crítico do autor, numa concepção também humanista que lhe é
inerente. A cegueira branca narrada com extrema precisão vocabular, cujos personagens se
enlaçam no enredo de forma vivaz, como enfatiza Cândido (1995), requer do autor da obra
literária uma consciência política e social dos principais dilemas da humanidade, no contexto
sócio-político de que o escritor faz parte, Daí ele reinventa, reinscreve a história através do
estético.
O autor se refere a uma epidemia, a ―cegueira branca‖, para, com este fato alegórico,
denunciar as cegueiras as quais estamos propícios a passar. Entretanto, será, no emaranhado
do texto literário, que o leitor descortinará as palavras para apreender o novo, e assim ter a
possibilidade de atribuir sentidos e relações interpretativas. Como lembra Eco (1987), em a
21
Olhar para Sartre é uma relação essencial entre um Eu e o Outro (SATRE, 1997).
97
Obra aberta, a obra de arte é plurissignificativa, a tendência da arte moderna, ao contrário dos
clássicos, é a dessacralização, por isso a obra literária é aberta, por extensão ambígua e plena
de sentidos promovidos pelos olhares dos leitores.
Por esta razão, acreditamos que o autor questiona como olhamos para a sociedade,
pois andamos cegos sem direção. Todavia, esses questionamentos podem interferir na leitura
que se faz do mundo e do homem. Desta maneira, o texto expressa a aprendizagem do olhar.
Esse aspecto na narrativa se percebe quando os cegos estão aprendendo a olhar em vários
contextos e, daí, tiram uma lição para as suas vidas. Aconteceu de formas diferentes com os
sete personagens, que reaprenderam o significado de olhar
22
. E o leitor acompanha essa
trajetória. Nossos olhares também se revelarão diante o texto e de sua leitura.
Os personagens suscitam, no final do Ensaio, essas imagens. Estando na casa da
mulher do médico, eles se arrumam como podem, não estão mais nas ruas, mas continuam a
ser guiados por uma personagem que tem o privilégio de ver naquele mundo da cegueira:
―Graças aos teus olhos, é que estamos vivos, [...] disse a rapariga dos óculos escuros, Também
estaríamos se eu fosse cega, o mundo está cheio de cegos vivos‖ (ESC, 1999: 282).
Olhar, então, é cuidar de quem se ama, é proteger o flagelado das agonias e de suas
tragédias, sejam elas individuais ou coletivas. Olhar é reparar o outro de forma tenaz, ainda
que para isso, sejamos percebidos como meio patéticos, como diz o próprio autor do ensaio.
O olhar, nesse sentido, tem uma dimensão humana e filosófica de entender a si próprio
como indivíduo, como sujeito da história, mas não massacrado por ela, e também tem a
dimensão de compreender o outro, na medida da diferença. Esse outro tipo de olhar nos
caracteriza como humanos, como pessoas mais próximas umas das outras, acreditando que
ainda é possível o encontro entre os seres humanos. Ilustramos esse aspecto quando a mulher
do médico lê para os cegos, sabendo que eles só ouviriam sua voz e compreenderiam a estória
através da imaginação:
Os outros sentaram-se a ouvir ler o livro, ao menos o espírito não poderá
protestar contra a falta de nutrimento, o mau é que a debilidade do corpo
levava algumas vezes a distrair-se a atenção da mente, e não era por falta de
22
―As metamorfoses do olhar não revelam somente quem olha; revela também quem é olhado, tanto a si mesmo
como ao observador. [...] O olhar aparece como o símbolo e instrumento de uma revelação. O olhar de outrem é
um espelho que reflete duas almas. [...] O olhar é como o mar, mutante e brilhante, reflexo ao mesmo tempo das
profundezas submarinas e do céu (CHEVALIER, 2006: 653).
98
interesse intelectual, não, o que acontecia era deslizar o cérebro para uma
meia modorra, como um animal que se dispôs a hibernar, adeus mundo, por
isso não era raro cerrarem estes ouvintes mansamente as pálpebras, punham
a seguir com os olhos da alma as peripécias do enredo (ESC, 1999: 305).
A cegueira trouxe para os personagens outras possibilidades de percepção. De repente,
o primeiro cego volta a enxergar, ele ―do nada‖ recupera a visão na casa do médico.
Surpreso, grita para os demais: ―Vejo [...] O primeiro grito foi de incredulidade, [...] Vejo,
abraçou-se à mulher como louco, depois correu para a mulher do médico e abraçou-se
também, era a primeira vez que a via, mas sabia quem ela era‖ (ESC, 1999: 306).
Nessa passagem do texto, conseguimos vislumbrar esse outro olhar, quando ele se
refere à mulher do médico, pois, mesmo sem nunca -la visto, sabe quem é ela. Não poderia
haver dúvida, visto que o olhar agora tinha se emancipado, passava do olhar meramente
físico para o da percepção do outro. A alegria é tanta que ele profere que estava vendo melhor
do que antes, será uma ironia pela cegueira que antes o contaminava e aos demais? Agora ele
veria com mais nitidez? ―Até me parece que vejo ainda melhor do que via, e olhe que não é
dizer pouco, nunca usei óculos. [...] Então o médico disse o que todos estavam a pensar, É
possível que esta cegueira tenha chegado ao fim (ESC, 1999: 367).
A mulher do médico, então, começou a chorar, numa reação de contentamento e
contradição por tudo que ela tinha visto e vivido. Parecia que suas forças tinham se esgotado:
Meu Deus, se é tão fácil de compreender, chorava porque se lhe tinha
esgotado de golpe toda a resistência mental, era como uma criancinha que
tivesse acabado de nascer e este choro fosse o seu primeiro e ainda
inconsciente vagido (SARAMAGO, 1999: 367).
Daí em diante, é lenta a espera até que todos aqueles recuperem suas visões, como
sucedeu com a rapariga dos óculos escuros. Interessante a passagem dessa personagem,
porque ela se encontrava de olhos abertos, como se: ―por eles é que a visão tivesse de entrar, e
não outras renascer de dentro, [...] não cegueiras, mas cegos, quando a experiência dos
tempos, [...] que dizer-nos que não há cegos, mas cegueiras‖ (SARAMAGO, 1999: 308).
Para concluir, enfim, a trajetória da rapariga dos óculos escuros, ela o velho da
venda preta e, então, endossa o que os olhos da imaginação já tinham decidido:
99
Olha-me bem, sou eu a pessoa com quem disseste que irias viver, e ela
respondeu, Conheço-te, és a pessoa com quem estou a viver, afinal
palavras que ainda valem mais do que tinham querido parecer, e este abraço
tanto como elas (SARAMAGO, 1999:309).
O desenlace do Ensaio sobre a cegueira traz à tona o olhar como centro das
preocupações. O olhar é retomado como num círculo, pois, para olhar, foi preciso cegar, e
olhar agora, para os personagens, é singular, é um olhar do interior para o exterior. Como
lembra Chauí (2006: 33), ―porque cremos que a visão se faz em nós pelo fora e,
simultaneamente, sair de si e trazer o mundo para dentro de si, expondo nosso interior ao
exterior, falamos em janelas da alma‖.
É um olhar filosófico, questionador, que sai das trevas do mundo platônico,
confirmado pela teoria do mito da caverna, para um mundo de possibilidades, em que a
indagação se faz pertinente na convivência com o conhecimento. Talvez com esse olhar, ou
com outros olhares, conforme a leitura do texto de Saramago, nós mesmos possamos,
enquanto leitores dessa obra, investigar o nosso próprio olhar perante o mundo e o homem.
Concordamos com as palavras de Rubem Alves (2009), quando sintetiza a beleza de
olhar por um viés poético, também esse olhar, como diz o poeta e crítico mexicano Otávio
Paz, é o olhar da poesia. Assim o olhar da poesia é singular diante da cegueira:
Místicos e poetas sabem que o Paraíso está espalhado pelo mundo mas não
conseguimos vê-lo com os olhos que temos. Para isso seria necessário que a
nossa cegueira fosse curada. O zen-budismo fala da necessidade de se ―abrir
o terceiro olho‖. De repente a gente o que o via! Não se trata de ver
coisas extraordinárias, anjos, aparições, espíritos, seres de um outro mundo.
Trata-se de ver esse nosso mundo sob uma nova luz. Foi isso que aconteceu
com o operário do poema do Vinícius. Perdido no seu trabalho, construindo
casas e apartamentos, ele via tudo mas não via nada. Até que um dia, uma
coisa extraordinária aconteceu: ―De forma que, certo dia/à mesa, ao cortar do
pão/o operário foi tomado de uma súbita emoção/ao constatar,
assombrado/que tudo naquela mesa/ garrafa, prato, facão /era ele quem
fazia/ele, um humilde operário,/um operário em construção. […] Naquela
casa vazia/que ele mesmo levantara/um mundo novo nascia/de que nem
sequer suspeitava./O operário emocionado/olhou sua própria mão/sua rude
mão de operário/e olhando bem para ela/teve um segundo a impressão/de
que não havia no mundo/coisa que fosse mais bela./E o operário adquiriu
então uma nova dimensão:/a dimensão da poesia (ALVES, 2009: 03).
100
O certo é que a obra literária, com suas metáforas e suas imagens, pôde, diante do
inusitado, da cegueira como processo da alienação a que os homens estão sujeitos, recuperar o
olhar interior, ou pelo menos advertir para um ―mal‖ que poderá ou não ser combatido
através dos olhos da alma, janela da alma, olhar interior ou olhar do espírito. Todas essas
denominações ficam claras na medida em que lemos o romance e dele extraímos significados.
Que possamos, assim, dada à natureza da arte, melhorar o que chamamos de humano.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O que pretendemos, nesse estudo, foi analisar e discutir uma das questões mais
importantes, em nosso entendimento, do Ensaio sobre a cegueira, do escritor português José
Saramago: a cegueira como fator de alienação social e o despertar para um novo olhar, o da
compreensão. A intenção, no entanto, possuía muitos desafios e caminhos a percorrer, quais
sejam, entender o texto literário como fonte de possibilidades de intertextualidade entre a
cegueira, a loucura e a alienação, com o objetivo de refletir o aspecto repressivo do
manicômio e sua efetiva atuação no mundo da cegueira.
Essa obra foi bastante lida e discutida nos meios acadêmicos, assim como outras
obras do escritor, cuja trajetória vem sendo cada dia mais fecunda na literatura portuguesa.
Evidente que reconhecemos que muito se debateu sobre o romance, mas como a obra
101
literária é inesgotável em seus desafios, a leitura do texto nos permitiu enfrentar esses
percalços e trabalhar numa perspectiva histórica, do ponto de vista social e também filosófico.
No ensejo de tal empreendimento, foi possível considerar o Ensaio como de suma
importância dentro do panorama da literatura portuguesa. Por certo, a trilha por esse caminho
nos conduziu a uma percepção filosófica da obra. O estudo do Ensaio sobre a cegueira fez-
nos compreender que esta obra é múltipla em significados e que uma das suas principais
indagações no nosso ponto de vista é um tempo de cegueira e um tempo de olhar.
Assim, no que diz respeito à questão da cegueira, o que encontramos para
embasamento foram os estudos de Michel Foucault sobre a alienação, dentre outros críticos
da contemporaneidade. E, conforme as trilhas se abriam, trabalhamos o romance na ótica da
fenomenologia, buscamos alicerces teóricos em Maurice Merleau-Ponty e Jean-Paul Sartre;
no primeiro, a possibilidade de entender o conceito do visível e invisível, no segundo, a
questão que perpassa o olhar e o outro. Entendemos, assim, que olhar é um dos motes do
Ensaio, mas, outras maneiras de se realizar o estudo seriam viáveis, porque muito se tem
discutido sobre o olhar. Alegoricamente, Saramago aponta no texto uma cegueira
generalizada. E, entretanto, requer outras motivações, que a literatura em suas
especificidades promove muitas indagações sobre o sujeito e sua existência.
Destarte, acreditamos que esse itinerário, por enquanto, mesmo que não aprofunde a
temática escolhida, foi um bom exercício de entrada no universo da literatura
saramagueana. E o recorte sobre o olhar tem, neste romance, tamanha precisão de detalhes,
que vimos muitas conexões com outros textos literários, desde a literatura da antiguidade até
textos modernos, passando, inclusive, por outras linguagens artísticas aqui abordadas. Por
isso, escolhemos algumas imagens que retratam a temática do olhar e da cegueira para
ilustramos como ela é retratada pelas artes plásticas e fotografia, essas estão no anexo desse
estudo.
Concordamos que, como primeiro contato, o trabalho promoveu em nós uma reflexão
sobre os principais dilemas da sociedade, mascarada por uma alegoria empregada por José
Saramago, que, de forma irônica e convincente, atenta para uma cegueira generalizada.
Reconhecemos, sobretudo, que nossas leituras, por serem básicas no campo da pesquisa,
deixaram aspectos sem a devida discussão, o que provocará, em estudos futuros,
problematizações de cunho mais original e auspicioso. Cremos também que os motivos dos
102
estudos na área abordada são um ponto de partida para outras indagações a respeito do texto
literário e sua abordagem científica.
As obras literárias lidas durante o percurso escolhido foram relevantes para o
desenvolvimento da dissertação. De muitas maneiras, essas leituras contribuíram para a nossa
reflexão e pesquisa. Exemplo disso são os textos que foram citados ao longo do trabalho,
como A peste ou o Estrangeiro, de Camus. Ressaltamos também desde o conto O alienista,
de Machado de Assis, um clássico da literatura brasileira, até outros nomes da poesia, como
Carlos Drummond de Andrade e T. S. Eliot. o deixamos de registrar a relação entre as
personagens femininas de José Saramago sobre a questão do olhar, com a personagem Úrsula,
de Cem anos de solidão, de Gabriel García Marquez.
Essa pesquisa percorreu um caminho que procurou outros textos sobre a cegueira e
sobre o olhar, como foram os exemplos de Les aveugles, de Maeterlinck, ou mesmo, Em terra
de cegos, de G. H. Wells. Os quais foram importantes para o amadurecimento do texto.
A rota escolhida, o viés filosófico, é uma das possibilidades de leitura sobre o olhar.
Destacamos, porém, que outros pensadores sobre o olhar não foram abordados, como Santo
Agostinho, ou mesmo Aristóteles, porque escolhemos o caminho da fenomenologia, ainda
que incipiente.
Decerto, essa foi a trajetória que seguimos para discutir o olhar e o problema da
cegueira no romance. Outras vertentes de estudo podem ser promovidas, outras indagações
serão feitas a fim de se estudar o Ensaio sob outro prisma. O que analisamos é somente um
dos vários tipos de olhares que podemos vislumbrar em o Ensaio sobre a cegueira.
Isso demonstra que, após a realização desta dissertação, o olhar no romance ainda
pode e deve ser lido de diferentes maneiras. Assim, podemos refazer e reinventar o nosso
estar no mundo. E, olhar para os homens e o mundo, certos de que a nossa passagem na Terra
pode obter algum sentido nesta existência.
103
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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109
ANEXOS
Figura 1- Der Blind Fuhter die Blinden (Walter Heckmann, 1991)
110
Figura 2- A parábola dos cegos (Pieter Bruegel, 1568)
Figura 3- Caravana dos Ciegos (Manuel Veja Lopez, 1919)
111
Figura 4- The Blind Beggar (Stephanie Carter)
Figura 5- Santa Luzia (Convento de Arouca)
112
Figura 6- The Blind Fiddler (Peter Graham, 1947)
113
Figura 7- The Blind Leading The Blind (Sebastian Vrancx)
Figura 7-
Figura 8- Busto de Homero II Séc. a. C.
114
Figura 09 Blind Justice
115
Figura 10- Blind Woman Mourning (Fotografia de Sebastião Salgado, Mali, 1985)
116
Figura 11 Mendiga Cega (New York, Paul Strand, 1916)
Figura 12 L’ Aveugle (Victor Vasarely, 1946)
117
Figura 13 O Falso Cego (Cerâmica Raku Teresa Ponte, 2006)
118
Figura 14 Le Faux Miroir (René Magritte, 1928)
Figura 15 The Blind Girl (Jonh Everett Millais, 1856)
119
Figura 16 Oedipus and Antigone (Stanislaw Brodowski)
120
Figura 17 Blind Child (Robert Dowling)
Figura 18 - I lock my door upon myseff (Fernand Khopff, 1891)
121
Figura 19 The Blind Tirésias and boy (Jonh Flaxman, c. 18th)
Figura 20 - The Blind Beggar (Jacob Kramer, 1918)
122
Figura 21 - Anjos de Olhos Vendados
Figura 22 Virgen, Niño Y dos Angeles Ciegos
123
Figura 23 Le Repas de L’Aveugle (Picasso, 1903)
Figura 24 Nothing Could See Could bring me joy
Carrie Mackinnon - 2008
124
Figura 25 - Sansão cego pelos filisteus
Figura 26 Blind guitarist Goya - 1778
125
Figura 27 Aveugle Robert Laporte 2005
126
Figura 28 - Blind Man Touching the Sun George Mendoza
127
Figura 29 Blind Singer William Henry Jonson 1940
Figura 30 Blind Leading the Blind Seamus Mckinlay
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