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Rodolfo Alves Amaro
Subjetividade, individualidade e autenticidade:
entre Charles Taylor e Michel Foucault
Rio de Janeiro
2007
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Rodolfo Alves Amaro
Subjetividade, individualidade e autenticidade:
entre Charles Taylor e Michel Foucault
Dissertação apresentada ao Instituto Universitário
de Pesquisas do Rio de Janeiro como requisito
parcial para a obtenção do grau de Mestre em
Sociologia.
Orientador: Prof. Dr. Frédéric Vandenberghe
Rio de Janeiro
2007
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Rodolfo Alves Amaro
Subjetividade, individualidade e autenticidade:
entre Charles Taylor e Michel Foucault
Dissertação apresentada ao Instituto Universitário
de Pesquisas do Rio de Janeiro como requisito
parcial para a obtenção do grau de Mestre em
Sociologia.
Banca Examinadora:
_______________________________________________
Prof. Dr. Frédéric Vandenberghe (Orientador)
_______________________________________________
Prof. Dr. Luiz Antonio Machado
_______________________________________________
Prof. Dra. Letícia Veloso
Rio de Janeiro
13/12/2007
Agradecimentos
Em primeiro lugar, agradeço a Frédéric Vandenberghe, quem orientou e tornou
possível meu empreendimento teórico; pela confiança, liberdade, atenção, pela capacidade de
esclarecer sem impor e pela habilidade e erudição com que lidou e apontou as questões,
fazendo-me situar devidamente nos intricados campos da teoria social e da filosofia que me
apareceram no decorrer da pesquisa. Aos professores Ricardo Benzaquen de Araújo, Luiz
Antonio Machado e Letícia Veloso, pela qualidade e domínio das questões tratadas em aula.
A meu irmão Lucas, cujas direções intelectuais se apresentam sempre como uma referência
importante. Ao IUPERJ, pelo mestrado, pelo ambiente e pelas condições de pesquisa. À
CAPES, pelo apoio financeiro durante esses quase dois anos. A Jessé Souza, pela atenção e
pelos ensinamentos e convicções que ainda me marcam. Aos meus pais, Vicente e Teresinha,
por todo apoio e carinho. A minha irmã Caroline, também pelo carinho. Aos amigos que se
fizeram presentes durante essa jornada. E, especialmente, a minha namorada Vivian, com
quem pude dividir meus anseios e incertezas, pelo constante apoio, amor, carinho, paciência e
compreensão, em todos esses últimos anos.
“Somos então vítimas de uma ilusão que nos faz crer que
elaboramos, nós mesmos, o que se impôs a nós de fora.”
Émile Durkheim
RESUMO
Situada na mais problemática encruzilhada entre filosofia, pressupostos metodológicos
e o diagnóstico de época da modernidade, a idéia de uma “subjetividade individual” se
apresenta ainda hoje como um impasse entre diversas vertentes de pensamento. O presente
estudo deve ser entendido como uma tentativa de, mediante o acesso às contribuições de
Charles Taylor e de Michel Foucault, discutir a subjetividade moderna em relação a
categorias como de individualidade, autonomia ou autenticidade, tendo como um dos pontos
de partida a contestação de concepções atomistas e des-situadas de subjetividade. Assim,
pretendo utilizar a obra desses dois grandes nomes da teoria social do século XX para situar a
questão da individualidade moderna dentro de um quadro mais amplo, pelo qual procuro
evidenciar os limites que se fazem presentes por detrás dessa noção, em torno da sua imersão
no problema da ética, da vida moral ou de jogos de poder, que lhe dão sustentação e que são
condições de inteligibilidade para a mesma.
Índice
Introdução.........................................................................................................................08
CAPÍTULO I. Charles Taylor: para uma reconstrução dos princípios
subjacentes ao self moderno
.......................................................................................28
1. Os fundamentos filosóficos e metodológicos do pensamento tayloriano..............32
1.1. As dívidas com a filosofia hegeliana..............................................................33
1.2. Transformações na teoria da linguagem: “formas de vida” e imersão
no mundo........................................................................................................40
1.3. Em busca de uma definição do humano.........................................................46
1.4. A opção pela hermenêutica como modelo de ciência.....................................54
2. O resgate genealógico da identidade moderna .......................................................57
2.1. As hierarquizações entre bens ........................................................................63
2.2. As possibilidades de articulação: sobre o status da hermenêutica
como tradução discursiva ...............................................................................66
2.3. As idéias e as práticas: “uma digressão sobre a explicação histórica”...........67
2.4. A singularidade moral do mundo moderno....................................................71
2.4.1. As raízes valorativas do desenvolvimento ocidental: da
guinada rumo ao interior até o ideal de desprendimento...................72
2.4.2. Práticas remodeladas: a afirmação da vida cotidiana........................78
2.4.3. A exploração da natureza interior e os novos horizontes do
expressivismo....................................................................................81
2.5. Um conflito configurado: entre os ideais de dignidade e de
autenticidade..................................................................................................83
2.6. A exaltação das particularidades: autenticidade e reconhecimento................89
CAPÍTULO II. A historicização da subjetividade: verdade, poder e
práticas de si no pensamento foucaultiano
............................................................97
1. Sobre alguns pressupostos das análises foucaultianas...........................................99
2. Por uma análise historicamente situada dos eventos humanos.............................109
3. O poder disciplinar: contra uma auto-concepção ilusória da modernidade........114
4. A sexualidade e o saber: a construção de uma verdade sobre si.........................125
5. Uma mudança de projeto: o estudo das práticas de si e das relações
entre sujeito, verdade e sexualidade ......................................................................133
Considerações finais....................................................................................................145
A subjetividade autêntica: entre um presente semi-realizado e um passado
longínquo.......................................................................................................................146
Bibliografia.....................................................................................................................166
8
Introdução
Ainda que muitas vezes mitigada e transfigurada, a imagem de uma noção específica
de subjetividade humana, des-situada e universalizável historicamente, comparece ainda hoje
nos mais variados territórios de nossa ciência. A modernidade se erigiu a partir de um
conjunto de elementos – dentre os quais idéias como de liberdade e autonomia foram cruciais
– que engendraram um tipo determinado de auto-interpretação sobre nós mesmos, muito
marcada por um sentido de individualidade: o sujeito cartesiano, auto-transparente e capaz de
se colocar uma dúvida radical seria uma das primeiras e mais claras versões filosóficas desse
tipo de imagem a que me refiro.
Importantes correntes de pensamento se opuseram a tal
concepção, sobretudo a partir do século XIX, desde que um movimento de idéias, cuja força
propulsora é comumente associada ao romantismo alemão, distinto e incompatível com uma
concepção de sujeito a-histórica, ganhou força.
Mas o presente trabalho não pretende tomar como referência apenas o plano de uma
“história das idéias”, ou seja, de verificar a existência de concepções ou formulações
filosóficas, científicas, etc. Na verdade, o que pretendo é refletir sobre o sentido, sobre os
limites e sobre a realidade de uma “subjetividade individual” como um traço peculiar da
modernidade, enquanto uma forma específica de vida que se construiu nos últimos séculos e
que chega a nós hoje, mais do que nunca, com toda sua força. Minha preocupação decorre de
que a história do desenvolvimento ocidental tem freqüentemente sido narrada em termos de
uma progressiva emancipação das personalidades individuais dos contextos gerais nos quais
se inserem. E isso ocorre já há algum tempo. Representações dessa natureza sobre nosso
mundo se sucedem não apenas em vertentes do pensamento político, correntes filosóficas,
9
doutrinas morais e teorias científicas (incluindo a sociologia), mas manifestam-se de forma
efetiva também no senso comum. Muitas teorias e muitos conceitos foram cunhados no
pensamento científico e filosófico para tentar exprimir e designar o processo visto em tais
narrativas, tais como “individualismo”, “individualização” ou “individuação”.
Não obstante os inúmeros esforços e discursos criados a partir de certas idéias que se
colocam em oposição a tais noções de sujeito “regido por conta própria” e à idéia de
individualidade como atomização, algumas características e dinâmicas de funcionamento bem
típicas de nossa época continuam reforçar uma certa impressão de des-aprisionamento e
liberação das “entidades humanas singulares” no mundo. A modernidade seria o lugar por
excelência da construção de uma identidade livre ou liberta, da emancipação desses entes,
cujo sentido chega facilmente a nós pelo simples termo “indivíduo”, corriqueiramente
empregado, tanto no senso comum quanto em versões teóricas.
Uma reelaboração da teoria do sujeito fora realizada em diversos âmbitos, não só no
pensamento filosófico em sentido estrito, mas de uma forma acentuada nas nascentes
disciplinas científicas, sobretudo na psicanálise, na sociologia e na antropologia. Essas
reavaliaram de variadas maneiras a prioridade um tanto sagrada conferida à noção de sujeito
que se consolidara no pensamento ocidental desde Descartes.
Dentro das próprias origens do pensamento sociológico – entendendo aqui o que
usualmente se reconhece como os primórdios dessa disciplina enquanto esfera científica –
formavam-se direções de rejeição a tal concepção de uma subjetividade ou identidade com
inclinações solipsistas ou atomistas. É provável que a própria posição “transmundana” da
subjetividade transcendental, geral e atemporal, tenha colidido com algumas das reflexões das
novas ciências do espírito, já que estas encontravam, em seus respectivos domínios, certas
formações pré-estruturadas simbolicamente, bastante variáveis nos aspectos mais elementares,
que até então eram tomados como universais humanos.
10
Isso significou, para muitos dos que se puseram a pensar sobre isso, um deslocamento
do problema da seguinte forma: no lugar de procurar uma subjetividade livre e desvinculada
do mundo, de uma concepção de sujeito formal e universal, de sujeitos auto-transparentes a si
mesmos e capazes de instrumentalizar o mundo a sua volta, passou-se então à tentativa de
teorizar a especificidade da condição do sujeito na própria modernidade. Daí que, de certa
maneira, surgem variadas constatações de que seus vínculos e sua natureza na modernidade
são quase sempre vistos como qualitativamente distintos em relação a outros tipos de
sociedades humanas. Ou seja, se é que há um certo padrão, um certo tipo específico
(individual, autônomo ou independente) de ser humano característico das formações sociais
que se desenvolveram inicialmente no continente europeu, tipo este ao mesmo tempo
engendrado e valorizado por elas, ele deveria ser buscado a partir de um exame comparativo
com outras sociedades, de um contraste com outros períodos históricos. Acredito que essas
tentativas e esses esforços tenham contribuído decisivamente para a própria especificidade da
sociologia enquanto ciência.
A questão da individualidade ocupa um lugar crucial nas reflexões sobre a
subjetividade moderna. O sentido do desenvolvimento dessa “individualidade” foi algo que
sempre me intrigou – e provavelmente também a todos os grandes pensadores da sociologia.
Em que sentido podemos pensar que as entidades humanas vão se individualizando, que as
pessoas vão ficando cada vez mais “individuais”. O que significa esse individualizar?
Diferenciação? Há sérias controvérsias sobre o real status de diferenciação individual nas
sociedades modernas, apontando mesmo fenômenos inversos, como de massificação ou de
uniformização. O individualismo, em vertentes marxistas seria uma expressão ideológica
tipicamente relacionada à ascensão da burguesia enquanto classe dominante, um fenômeno
superestrutural compatível com o livre mercado e a propriedade privada, que esconderia uma
realidade mais profunda e efetiva, a estruturação das classes sociais. Isso decorre de que o
11
próprio método dialético não autoriza olharmos para os fatos fracionados ou atomizados, mas
sim pela vinculação com uma totalidade. Creio que essa é uma convicção filosófica
importante carregada pelo marxismo, cujas raízes remontam ao pensamento hegeliano. A
categoria da totalidade, nesse sentido, não suprime os aspectos ou elementos individuais, mas
tende a subtraí-los de seu isolamento, onde não faz sentido pensarmos em átomos vagando no
processo histórico, independentes, autônomos e estáticos. Eles fazem parte de uma totalidade,
de um processo em andamento. Ou seja, muitas correntes de pensamento apostariam que a
individualização seria um fenômeno apenas de superfície e aparência, escondendo outros mais
fundamentais para a constituição da vida social.
Outros tantos pensadores e vertentes de pensamento procuravam atribuir diferentes
tipos de significação à questão. Alguns, por exemplo, passaram a enfatizar o próprio contexto
normativo pelo qual a individualização seria possível. Mas todo um conjunto de dificuldades
se colocava em como pensar a individualidade nesses termos. Talvez uma das principais fosse
que, em análises sobre a natureza e as condições do indivíduo no mundo moderno, um
obscurecimento adicional estaria presente, às vezes não tão óbvio: refiro-me ao fato do
próprio termo “indivíduo” geralmente ser utilizado para designar dois elementos da realidade
distintos que devem ser analiticamente separados. De um lado temos o “indivíduo” como o
corpo físico e delimitável espacialmente e temporalmente, ou seja, a amostra individual da
espécie humana que serve de substrato para todas as formações sociais; e de outro, o
“indivíduo” como uma categoria moral, a qual no ocidente moderno carrega valores relativos
a um ser moral independente, autônomo e livre. Nesse sentido, o contraste com outras culturas
pode ser esclarecedor: análises comparativas demonstram que a concepção de indivíduo que
impregna nossas auto-compreensões não é algo existente em outras sociedades, mas uma
noção historicamente situada. A noção de indivíduo, tal qual a concebemos é uma
12
peculiaridade importante da modernidade. A idéia de indivíduo passa então a ser vista como
uma categoria moral tipicamente ocidental.
Convém nos atermos um pouco a algumas reflexões clássicas sobre a problemática.
No meio sociológico, Durkheim foi um dos clássicos que colocou a questão no centro de suas
reflexões: a meu ver, algumas das principais inquietações de Durkheim ainda permanecem
vivas, irresolutas. Sob forte influência da biologia o autor defendeu uma metodologia anti-
atomista da análise social. Concebera o conceito de “consciência coletiva” como um conjunto
de crenças, idéias, sentimentos e valores amplamente disseminados entre os membros da
sociedade, que deve ser pensado como um sistema determinado que tem vida própria, ou
seja, como um ente independente das particularidades dos seres humanos tomados
individualmente, que embora tivesse como substrato as consciências individuais, não poderia
ser redutível à soma destas. Percebe-se facilmente o porquê de sua hostilidade quanto ao
individualismo metodológico em toda sua obra, empenhando-se em demonstrar a primazia
dos fatos sociais em relação à natureza e ao desenvolvimento dos tipos individuais.
1
É por
isso que, em sua análise da condição da moderna individualidade, Durkheim não deixava de
entendê-la como tendo um substrato coletivo. A própria formulação do problema básico de
“Da divisão do trabalho social” ficou bastante conhecida no meio sociológico, sendo
expresso da seguinte maneira: “como se dá que, ao mesmo passo que se torna mais autônomo,
o indivíduo depende mais ainda da sociedade? Como pode ser, ao mesmo tempo, mais pessoal
e mais solidário?” (DURKHEIM, 1999b, p. L). Durkheim teria a percepção nítida de que a
1
Na verdade, o fato de ele ser geralmente tomado como um anti-individualista reflete, antes de qualquer coisa,
uma compreensão equivocada acerca do pensamento do autor, pela sua rejeição veemente ao que mais tarde
chamou de “individualismo metodológico”. Durkheim, de fato, apresenta-se muito hostil a esse modo de
abordagem metodológica em toda sua obra, como pode ser observado pelo seu fervoroso combate às teorias
utilitaristas em numerosas oportunidades. Segundo seu esquema de pensamento, o modelo de indivíduo que o
utilitarismo tomou como base de seu esquema analítico seria nada mais que o resultado de um longo processo de
desenvolvimento social: para o autor era de fundamental importância salientar que haveria uma primazia dos
fatos sociais em relação à natureza e ao desenvolvimento dos tipos individuais. Contudo, sua rejeição ao
individualismo metodológico não implica a mesma desaprovação ao que ele denomina de “individualismo
moral”, cujo significado repousa num processo social crônico das sociedades modernas examinadas pelo autor,
sem o qual a organização social seria impensável.
13
solidariedade orgânica implicava na presença de uma sustentação moral de modo semelhante
à solidariedade mecânica, demonstrando que o individualismo seria em si um fenômeno
moral, não podendo portanto ser confundido com o egoísmo. Uma de suas mais significativas
conclusões foi a de que a solidariedade orgânica pressupunha a continuidade de um
componente moral, ou seja, que seria inadequado interpretar o contraste como sendo, de um
lado, no que concerne à solidariedade mecânica, uma comunidade de crenças e valores; e do
outro – na solidariedade orgânica – apenas uma espécie de interdependência econômica entre
especialistas, de base cooperativa. Enquanto o processo de individuação era inescapável à
edificação da divisão do trabalho, ele não implicava a completa erradicação da consciência
coletiva, mas sim sua transmutação na forma de elaboração dos novos ideais morais, ou seja,
o “culto do indivíduo” – única parcela restante da consciência comum – que proporciona uma
validação moral à divisão do trabalho especializada.
Mas em Durkheim a individualização (ou individuação) é também entendida deforma
substantiva: a necessidade da “continuidade” de uma força moral reguladora comum caminha
lado a lado à progressiva liberação das subjetividades individuais, cada vez mais
diferenciadas e entendidas a partir do desenvolvimento de uma dimensão do agente humano
que tem sua fonte em determinados atributos não-sociais presentes em cada membro, ou seja,
no organismo biológico individual. O próprio tratamento da questão da anomia ilustra essa
posição. Quando não suficientemente submetidos à força de uma autoridade moral, os
indivíduos apresentam inclinações a partir de desejos ilimitados, de origem não social.
2
Max Weber, outro gigante do pensamento sociológico, procurou demonstrar como as
concepções religiosas do protestantismo ascético inauguraram uma ênfase peculiar na
2
“Se a divisão do trabalho não produz a solidariedade, é porque as relações entre os órgãos não são
regulamentadas, é porque estão num estado de anomia” (DURKHEIM, 1999b, p. 385). É como se a progressiva
regressão da consciência coletiva tivesse se excedido, deixando um vácuo de direcionamento moral a certos
aspectos da vida, caracterizando uma carência de forças coletivas ditando normas às práticas sociais. Assim,
Durkheim via nas associações profissionais - ou corporações, como ele prefere – uma das únicas possibilidades
para conter o avanço da anomia e restaurar a ordem normal ao sistema.
14
experiência individual que teria sido decisiva para o desenvolvimento ocidental. A doutrina
calvinista da predestinação, ao criar um abismo intransponível entre Deus e os homens e ao
eliminar toda mediação mágica ou sacramental na relação entre eles, traria como
conseqüência uma “inaudita solidão interior do indivíduo”, em que o ser humano se via
relegado a traçar sozinho sua própria estrada (WEBER, 2004, p. 95). Daí a constituição de
uma representação de si a partir de uma auto-determinação como único caminho capaz de
demonstrar a possibilidade de salvação, para a qual o desempenho diferencial vinculado à
noção de vocação, como um “sinal” da salvação, seria crucial.
Mas Weber também refletiu
sobre os mecanismos pelos quais a própria determinação religiosa do processo de
racionalização tenderia a desaparecer, ou seja, como certos mecanismos do desenvolvimento
ocidental passaram a uma espécie de reificação das ações encadeadas por concepções
religiosas de mundo que teriam lhe dado suporte. É assim que ele pôde analisar as próprias
formas objetivadas de racionalidade no mercado capitalista e na burocracia estatal como
conflitantes com as novas noções de racionalidade e liberdade subjetivas. Traçando um
diagnóstico sombrio da modernidade, ele viu a constituição da individualidade refletir-se
como “perda da liberdade” do homem moderno, sujeito cada vez mais à limitação de suas
potencialidades, na medida em que uma nova racionalidade, especificamente ocidental
(pensada como uma reificação e uma atitude instrumental em relação a si, aos outros e à
natureza), passava a permear as mais variadas esferas de atividade humana (quadro que mais
tarde serviria de inspiração para os teóricos da Escola de Frankfurt).
Já na sociologia de Georg Simmel, outra referência clássica de peso, o
desenvolvimento da modernidade acarretaria o alargamento dos círculos sociais e uma maior
complexidade de interação entre eles, dando lugar ao desenvolvimento de dois tipos de
individualismo. Analisados na obra simmeliana, cada um desses dois tipos aparece conexo a
um dado momento histórico. Primeiramente, desenha-se um “individualismo quantitativo”,
15
que se consolida no século XVIII, pautando-se em uma concepção de um homem genérico,
elaborando-se em torno de princípios pretensamente universais, expressos em idéias tais como
da igualdade formal. E, posteriormente (já no século XIX), nasce um outro tipo, ligado
fundamentalmente ao romantismo alemão: o “individualismo qualitativo”. Este teria como
características fundamentais a exaltação da particularidade, da diferença, da singularidade de
um indivíduo autêntico
3
(VANDENBERGHE, 2005, p. 189). Como assinala Donald Levine, a
individualidade tornava-se possível por uma espécie de relaxamento transformativo de várias
coerções jurídicas e dos costumes em direção à autodeterminação e à responsabilidade
individual. Liberdade pessoal e individualidade seriam princípios ligados ao desenvolvimento
de uma economia monetarizada: o uso do dinheiro aumentaria as possibilidades da pessoa em
expressar sua individualidade ímpar. Esse é seu posicionamento expresso em “Sobre a
diferenciação social”. Mas em trabalho posterior (“A filosofia do dinheiro”), Simmel
examinará papel do dinheiro como abastecendo um processo inverso ao anteriormente
descrito, ou seja, o de impor barreiras à emancipação da individualidade genuína, por meio da
natureza opressiva do que chamou de “cultura objetiva” (LEVINE, 1997, pp. 187-188). Ou
seja, trata-se de uma concepção que conserva certa ambivalência sobre a individualidade
moderna, considerando, de um lado, a individualização e a liberação do indivíduo, mas, de
outro, a reificação e a alienação (VANDENBERGHE, 2005, p. 21).
Algumas décadas depois, Norbert Elias trazia uma reflexão na qual a individualidade
moderna implicava não somente em especialização, mas em uma conformação em termos de
desenvolvimento de formas de autocontrole. Os problemas que surgem para os membros das
sociedades modernas seriam de natureza peculiar: desde a infância, as pessoas seriam
treinadas para desenvolver um grau bastante elevado de autocontrole e independência pessoal,
a desenvolver modos de competição com as outras. Haveria um aprendizado no sentido de
3
Ver sobre isso a interessante e esclarecedora publicação “As sociologias de Georg Simmel”, de Frédéric
Vandenberghe (sobre essa questão específica, ver as discussões sobretudo dos capítulos 5 e 6 do livro).
16
tornar desejável distinguir-se dos outros pelas suas qualidades, esforços e realizações próprias,
e também de aprender a encontrar satisfação nesse tipo de sucesso. Contudo, Elias também
observa que ao mesmo tempo, em todas essas sociedades, há rígidos limites estabelecidos
quanto à maneira como o sujeito pode distinguir-se e os campos em que pode fazê-lo. Fora
desses limites, ele é conformado, não sendo valorável que se destaque dos outros.
O autocontrole do indivíduo, por conseguinte, é dirigido para ele não sair da linha, ser como
todos os demais, conformar-se. Muitas vezes não é menos difícil conformar-se num aspecto do
que distinguir-se em outros. Sem dúvida, nunca é tarefa simples chegar ao equilíbrio exato
entre ser como os demais, em alguns aspectos, e ser singular e diferente deles em outros
(ELIAS, 1994, p. 120).
Na verdade, se tomarmos o próprio estudo etimológico do termo indivíduo – ou da
família de conceitos agrupados em torno dele - veremos como o sentido atribuído a ele hoje
data de uma época relativamente recente. O termo vem do latim “individuus”, ou seja, não-
divisível ou indivisível, uma tradução do vocábulo grego “atomon”.
4
Seu uso significou, do
ponto de vista lógico, um objeto do qual se pode asseverar algo e, do ponto vista ontológico, o
caso singular numa espécie de coisas, um determinado ente singular (HABERMAS, 1990, pp.
187-188). “Indivíduo” passou a significar um ente com determinações qualitativas que o
diferenciam de todas as outras coisas. Mas a transição do sentido do termo para designar seres
humanos foi possivelmente uma obra apenas do século XVII, em que se tornou mais
específico esse conceito que, anteriormente, no campo da lógica e da gramática, tinha sido
usado como conceito universal. Em relação ao uso do conceito no sentido de algo distinto e
singular, Elias lembra que
os filósofos da Igreja haviam constatado que tudo o que existe neste mundo é, em certos
aspectos, um indivíduo, ou seja, único. A andorinha que está fazendo seu ninho sob os beirais
de minha casa é única, é um indivíduo. Nenhuma outra está fazendo isso, aqui e agora. Cada
pinheiro da montanha agitado pelo vento tem uma forma única. A mosca que está zumbindo
pela janela aqui e agora é um indivíduo; não há nenhuma outra que o esteja fazendo (ELIAS,
1994, p. 134).
4
É provável que o emprego da palavra individuus como símbolo de unidade indivisível se tenha ligado, na
comunicação entre os eruditos da Igreja medieval, a uma outra ocorrência que provavelmente estabeleceu a
ponte para o desenvolvimento do conceito mais recente de "indivíduo".
17
Quais seriam as razões para o termo indivíduo ter ganhado a conotação que possui
hoje? Em outras palavras, como foi que, da designação da singularidade qualquer ente, de
qualquer espécie, o seu uso veio a se estreitar até o conceito referir-se apenas à singularidade
dos seres humanos? Segundo Elias, isso teria acontecido ao longo do desenvolvimento social
ocidental, em que as pessoas, talvez a princípio restritas a algumas camadas sociais
específicas, sentiram uma necessidade mais intensa de se comunicar umas com as outras a
respeito de sua singularidade, em termos mais gerais, a respeito da singularidade de cada
pessoa, da qualidade especial de sua existência, comparada à de todas as demais. Também
houve a possibilidade e a necessidade de oposição a antigas tradições que, aparentemente,
eram mais rígidas e uniformes quanto às “livres aptidões individuais”. A partir do período do
Renascimento as pessoas puderam, mais do que antes, ascender de suas comunidades
tradicionais e sentir como abertas certas oportunidades sociais de progresso individual
(ELIAS, 1994, pp. 133-135).
Dadas todas as dificuldades de pensar a questão, que se colocam tanto no plano
filosófico quanto metodológico de cada pensador (por exemplo, o modo como se situa diante
das opções analíticas dicotômicas como indivíduo e sociedade, ação e estrutura, etc.), a
individualização foi pensada, no decorrer das reflexões sociológicas, filosóficas ou políticas,
de distintas maneiras: como diferenciação, ou seja, por uma multiplicidade de combinações
possíveis e biografias cada vez mais diversas uma das outras; pelo grau de independência
individual frente ao grupo; como um centramento em torno de instâncias de autocontrole,
auto-responsabilidade, autodisciplina; como uma valorização da vida privada em relação às
atividades “públicas”; como estruturação interna da subjetividade em termos de um centro e
uma periferia; como a proliferação de uma espécie de autonomização, ou seja, do
desenvolvimento de um centro de auto-comando individual; pela intensidade das relações de
si para consigo mesmo; como uma valorização moral específica em torno de princípios como
18
liberdade e autonomia individuais; como uma transparência e reflexividade para consigo
mesmo, etc. Na verdade, essas características aparecem freqüentemente conjugadas em cada
teoria. Algumas enfatizam a identidade no sentido de uma “ipseidade” (como diz Ricoeur), no
sentido do caráter particular, peculiar e único do ente, que o distingue de todos os outros;
outras a identidade “idem”, no sentido de uma “mesmidade”, ou seja, podem ser pensadas,
por exemplo, em termos de certas configurações que dão algum tipo de centramento ao
indivíduo, remetendo a algo como auto-responsabilidade, autocontrole, etc. Numa mesma
teoria é freqüente termos a fusão de vários desses aspectos.
Nas últimas décadas, com o aprofundamento da modernidade nos países nos quais ela
teve origem – ou seja, uma radicalização de seu projeto – e com a instauração de certas
dinâmicas tipicamente modernas a outras tantas área do globo, uma boa parte da agenda das
ciências sociais se inclinou a novas formulações sobre o problema, até mesmo pela crescente
pluralização, diferenciação de grupos e de padrões de sociabilidade que se apresentam em
nossa época. Uma corrente de destaque passou a pensar a individualização a partir do conceito
de reflexividade, envolvendo nomes como Anthony Giddens, Ulrich Beck ou Scott Lash – a
teoria da modernização reflexiva.
Em Giddens, por exemplo, a individualização se torna possível pelo que chama de
mecanismos de desencaixe, que promovem o contexto em que a individualização se amplia,
ao passo que o modelo de self se configura como um projeto reflexivo. Não obstante a idéia
de reflexividade ser respaldada numa âncora institucional – envolvendo o funcionamento dos
sistemas peritos e da dupla hermenêutica – ela parece se curvar (sobretudo nos últimos
escritos do autor) ao legado racionalista, enfatizando sobretudo a dimensão individual, na qual
se dá o estabelecimento crônico do princípio da dúvida radical como o mote central da
construção do self reflexivo. Temos com isso uma “modernização reflexiva”, no seio da qual
os próprios termos da modernização são negociados pelos atores sociais, na medida em que as
19
identidades antes mais rígidas como de classe, família, gênero vão sendo abaladas, forçando
os indivíduos a reconstruir suas identidades concretas de modo crescentemente reflexivo
cognitivos, estéticos e morais (GIDDENS, 1991a, 1991b, 2001).
Também Beck, de forma análoga a Giddens, vê um crescente processo de
individualização que mantém um nexo muito forte com a idéia de reflexividade: Beck
descreve uma ampliação do processo de individualização, responsável por fornecer maior
poder às subjetividades individuais no que tange à construção de suas próprias identidades e
biografias. Procura dirigir seu foco sobretudo à dimensão subjetiva de tal fenômeno,
esforçando-se para ressaltar a complexa conexão entre o modelamento das identidades e da
consciência e os novos contextos de organização social e possibilidades abertas de
reconstrução das biografias pessoais. Como o próprio título do livro sugere, o autor alemão
acredita que a sociedade que se desenha – que recebe o nome de “segunda modernidade” –
deve muito de suas novas características à categoria “risco”, que tem relevância acima de tudo
pelas formas de percepção em torno de possíveis ameaças objetivas, que são produzidas pelos
discursos dos sistemas especializados de conhecimento científico e alcançam as “pessoas
comuns” das mais variadas maneiras. Com isso, modos de identificação, interpretação e
prevenção de riscos são difundidos forjando uma “sociedade do risco”, na qual se aprofundam
e se liberam mecanismos de crítica social, abrindo-se a novas possibilidades de reinvenção e
de contestação de “certezas” e instituições pelas quais a modernidade se erigiu (BECK, 1992,
p.128-132).
5
Assim a individualização consiste, em primeiro lugar, numa “desincorporação, e,
[em] segundo, a reincorporação dos modos de vida da sociedade industrial por outros modos
novos, em que os indivíduos devem produzir, representar e acomodar suas próprias
5
A interpretação de riscos abriria as portas para um exame reflexivo que se situa num mundo onde há uma
experimentação de novos estilos de vida, tornados possíveis pelo fato da sociedade ter se destradicionalizado.
Nasceria daí um potencial emancipatório que se contrabalançaria com interpretações sobre riscos mediante a
reflexividade (conceito este que não recebe um tratamento mais sistemático na obra do autor, a despeito de sua
centralidade para a análise), permitindo a reformulação das identidades e das biografias individuais, ou seja,
novas trajetórias são abertas em um mundo onde os atores optam por planos de vida mais contingentes.
20
biografias” (BECK, 1997, p. 24). A individualização significa então uma transição de uma
“biografia padronizada” por uma “biografia escolhida” – uma biografia reflexiva.
O presente trabalho, contudo, procurará se distanciar dessas correntes, na medida em
que tentarei evidenciar e privilegiar justamente aspectos não-reflexivos da construção da
subjetividade moderna. Ao longo do texto, creio que ficarão claros os argumentos e os
raciocínios que me levam a isso.
Mais tarde, será a concepção de autenticidade que passará a designar o
aprofundamento das singularidades individuais na modernidade. Autores como Alessandro
Ferrara supõem que a noção de subjetividade autêntica representa para a modernidade
contemporânea o mesmo tipo de princípio central de organização que a noção de
subjetividade autônoma teria representado numa primeira fase da modernidade. Uma nova
etapa da modernidade significaria uma ênfase crescente na autenticidade como um princípio
normativo, capaz de ensejar as particularidades de uma forma nunca antes vista. Veremos
como o princípio da autenticidade também consiste no ponto de chegada da análise de Charles
Taylor quanto ao problema. Contudo, já posso adiantar que o mesmo não se dará em
Foucault, que ao contrário, vê certos tipos de “cuidados consigo mesmo” como algo distante
da realidade moderna.
Na verdade, praticamente todos os grandes pensadores da teoria sociológica, da teoria
social, ou mesmo da filosofia tem algo a dizer sobre essa questão. Daí também a
impossibilidade de desenvolver um trabalho envolvendo mesmo as principais visões sobre o
tema, pois muitas tendências tentaram lidar com o problema, de formas muito díspares. Em
decorrência disso, tive de realizar uma opção: a de me dirigir a análises que atingiram meu
interesse por razões que veremos ao longo do texto. O texto contemplará os pensamentos de
Charles Taylor e de Michel Foucault. Essa opção foi ao mesmo tempo “unilateral” e
razoavelmente consciente, por dois autores que, apesar das inúmeras discrepâncias entre eles,
21
tem em comum algumas coisas importantes. A crítica a uma concepção de sujeito solto no
mundo, descontextualizado talvez seja uma das mais evidentes. Pode-se dizer que ambos
participam do projeto de uma situalização da subjetividade, de uma tentativa de situar
historicamente o fenômeno. Mas tanto seus caminhos, suas opções filosóficas e
metodológicas quanto a visão final que os dois terão a respeito das condições específicas do
sujeito moderno são bem distintas.
Assim, a escolha desses dois autores deveu-se, em primeiro lugar, à possibilidade de
encontrar, mesmo em vertentes de pensamento que evitam por completo qualquer noção de
sujeito transcendental ou desprendido do mundo, uma reflexão sobre o significado da
individualidade para a subjetividade moderna. Ou seja, ainda que eles neguem qualquer
individualidade solipsista ou atomista, eles tendem a visualizar, no mundo moderno ou fora
dele, um padrão de individualização, tenha esse termo certos sentidos específicos para cada
um deles; talvez possamos dizer que para Taylor e para Foucault, ao fim e ao cabo, uma certa
idéia de liberdade (no sentido de uma maior mobilidade quanto ao desenho dos selves
individuais) ainda aparece no fim do túnel.
Mas, na verdade, a opção por Charles Taylor e Michel Foucault foi feita, acima de
tudo, pelo fato de que as duas formas de pensar se enveredam, de distintas maneiras, ao
campo da ética como condição de inteligibilidade da noção de indivíduo moderno. Ou seja,
uma posição – da qual compartilho – de que é partir dos valores, das normas, das prescrições
e da moralidade que é viável situar corretamente uma noção de subjetividade individual na
modernidade. Claro, pode-se dizer com razão, que eles não foram os primeiros nem os
últimos a deslocar o problema nessa direção. Mas certamente eles estão entre os que
realizaram as mais interessantes formulações sobre essa problemática que atraiu minha
preocupação. Além disso, será através de duas interpretações distintas do legado ético ou
22
moral do ocidente, vale dizer, fundamentalmente construído sobre a herança do cristianismo,
que Taylor e Foucault terão duas visões do “indivíduo” na modernidade.
Taylor deve ser visto como um dos mais influentes pensadores da atualidade por
reivindicar, com um embasamento teórico muito consistente, a extrema importância da
moralidade, dos valores ou da linguagem para a explicação dos fenômenos humanos. A
fundamentação de sua antropologia filosófica é praticamente toda formulada para demonstrar
como os homens são seres auto-interpretativos e como essa característica acaba sendo de uma
ou de outra forma menosprezada nas explicações das ciências humanas. Veremos o quão
longos são os caminhos que Taylor percorre a fim de fundamentar essas convicções. Taylor
adota, em virtude de tais convicções, uma opção hermenêutica de ciência, justamente porque
é ela que permite elucidar essas auto-interpretações. O objetivo de Taylor em um de seus
principais livros – “As fontes do self” – será o de capturar as fontes morais que levaram o
mundo moderno a ser o que é. Esse certamente é um ponto que o aproxima de Weber, cuja
análise desvendou a importância da contribuição especificamente religiosa do protestantismo
ascético na construção do racionalismo e das principais instituições ocidentais. Taylor segue a
tese weberiana de que as concepções religiosas do mundo foram as grandes responsáveis
pelos desenvolvimentos que levaram à singularidade do ocidente moderno, para diversas
práticas econômicas, políticas, etc. Contudo, Taylor não quer simplesmente demonstrar a
importância dos valores religiosos como um impulso inicial para formação do mundo
moderno, mas deseja evidenciar o pano de fundo moral inarticulado que continua a ser o
fundamento do mundo contemporâneo.
Para Taylor, o mundo moderno foi montado em torno de duas configurações morais
que têm origem numa mesma concepção religiosa – a interioridade –, cada uma das duas
guardando um sentido de individualidade peculiar. No fundo, Taylor vê a modernidade como
o lugar onde se desenvolveram éticas universais, formas de individualismo e uma ênfase nos
23
princípios de liberdade, autonomia, dignidade e autenticidade. A intenção da análise histórica
de Taylor é tornar claros os “bens” (goods) que fundamentam a modernidade e, ao mesmo
tempo, o sentido da individualidade moderna; bens estes que estariam enterrados bem fundos
e esquecidos. Esse “esquecimento” das fontes morais é o que traria as dificuldades do seres
humanos em interpretar suas identidades em relação à estrutura moral pré-existente.
Aliás, já que falei em análise histórica, convém lembrar que ambos – Foucault e
Taylor – intitulam seus procedimentos de investigação histórica de genealogia, embora, como
terei a oportunidade de demonstrar, o mesmo rótulo não signifique a mesma compreensão
sobre quais são os atributos básicos desse procedimento.
Foucault traz uma crítica da modernidade. Seu modo de pensar foi inovador no sentido
de denunciar, como ninguém havia feito, a atuação de mecanismos de poder não
simplesmente tomado a partir centros políticos, do Estado, etc., mas em micro-instâncias da
realidade cotidiana. Sua análise das formações discursivas traduzia a íntima relação entre
poder e saber. A partir de sua “fase genealógica” ele evidenciou ainda mais o projeto de uma
genealogia do self moderno (ou da “alma” moderna), com uma influente análise sobre a
centralidade dos dispositivos disciplinares como matriz das subjetividades modernas. Mas ele
foi além disso quando seu projeto delineou-se, em sua última fase, para as formas de
“subjetivação”, para as relações entre subjetividade e verdade e para a identificação das
“práticas de si”. Nessa sua última fase, ganha relevo a preocupação com a ética para a
constituição do self. Enfim, por essas vias se dão suas contribuições para o diagnóstico do
caráter do indivíduo na modernidade, como veremos em detalhe.
Os dois projetos teóricos podem ser vistos como uma busca pelo diagnóstico de nossa
situação no presente, e permitem formas de afastar essas ingênuas percepções cotidianas a que
me referi. Para Taylor, significará tentar desmistificar essas percepções a partir da
demonstração do pano de fundo moral que subjaz à construção da identidade moderna. E,
24
para Foucault, uma forma de desmistificá-las em torno da demonstração de como a
subjetividade moderna está inserida em mecanismos específicos e historicamente situados de
poder.
Veremos que uma opinião compartilhada pelos dois é a de que a proximidade com o
presente prejudica nossa autocompreensão da realidade, nos dois autores por uma impressão
de liberdade que invade nossa percepção de nós mesmos. Em Taylor esse fenômeno vincula-
se ao influente e errôneo modo de pensar que chama de “naturalismo” e, em Foucault, à
impressão de autonomia engendrada pelos mecanismos de disciplina, ou por outros
dispositivos que se apresentam a nós na forma de uma liberação.
Até mesmo pelas escolhas dos autores, notar-se-á como, no presente texto, não tenho a
intenção de desenvolver formas de explicação causal, no sentido de procurar estabelecer
relações entre os variados fatores que teriam “gerado” o self moderno, ou de tentar indicar
como se deram as formas de dinâmica entre distintas dimensões da vida social, ou seja, as
múltiplas relações possíveis entre esfera econômica, política, cultural que levaram ao seu
desenvolvimento. Não é esse meu objetivo. Mas o de discutir uma espécie de ontologia da
subjetividade enquanto individualidade na modernidade. Consiste na tentativa de lidar com a
questão da individualidade levando em consideração as análises desses dois pensadores da
segunda metade do século XX.
Assim, o primeiro capítulo consistirá numa tentativa de trazer à tona as contribuições
do canadense Charles Taylor: a modernidade é pensada fundamentalmente a partir de um
ponto de vista holista-hermenêutico, pelo nascimento de certas configurações culturais ou
morais específicas, onde formas de distorção presentes cotidianamente impediriam-nos de ver
o vínculo de nós mesmos com o mundo; vínculos estes pensados em termos de grandes
conjuntos de valores que permeiam as mais cotidianas ações e que, exaltando a liberdade ou a
singularidade individual, contribuem para uma dinâmica específica das identidades
25
individuais dentro da modernidade ocidental. Fundamentalmente, o que procurarei é
evidenciar o nexo entre questões como individualidade, identidade, moralidade e
reconhecimento.
No segundo capítulo, pretendo fornecer uma visão geral do pensamento de Michel
Foucault, sobretudo a partir de seus empreendimentos genealógicos. Muitas de suas
contribuições podem ser agrupadas em torno da demonstração do poder como condição de
inteligibilidade das próprias formas em que são pautadas as noções de indivíduo moderno; a
análise se adentra no exame das correlações entre os saberes, as verdades, as subjetividades e
uma “microfísica do poder”.
Nesse estudo não pretendo afirmar que as análises realizadas por Foucault ou Taylor
podem ser estendidas em todo o seu alcance para qualquer das sociedades que viermos a
considerar como modernas. Na verdade, trata-se de um estudo teórico calcado na análise de
dois pensadores de peso que analisaram, com olhos nas sociedades européias e norte-
americanas, processos gerais que marcariam a especificidade dessas sociedades em relação a
outras sociedades precedentes. Por outro lado, penso que entender o pensamento deles seja
profícuo para analisarmos outras “modernidades”, por dois motivos básicos: em primeiro
lugar, porque muitas de considerações se situam no terreno que já algum tempo vem sendo
chamado de “teoria social”, enquanto conjunto de questões que se situam na fronteira entre a
filosofia e as ciências sociais, que se ocupam dos fundamentos não restritos a uma ou outra
disciplina, mas às ciências sociais de uma forma geral. É por meio de questões desse tipo que
podemos articular categorias de pré-compreensão da realidade, imprescindíveis a análises
preocupadas com seus alicerces. Ora, por mais despreocupada teoricamente que uma análise
se pretenda, ela jamais estará livre de teorias ou categorias implícitas, e o pior, é que estas
serão usadas de maneira impensada, não tematizada ou inquestionada. Nesse sentido, coloco-
me em defesa de uma fundamentação filosófica da sociologia como única forma de adotarmos
26
um olhar reflexivo sobre nós mesmos no mundo e sobre nossas possibilidades de
compreensão do mesmo, até mesmo porque ela não deve abdicar de suas pretensões críticas.
Em segundo lugar, porque facilmente vemos como a modernidade desses países afetou
profundamente as mais variadas formações sociais do planeta, que embora recebendo sua
“herança” de acordo com seus próprios arranjos internos, com uma dinâmica que somente em
cada caso possa ser explicada, disseminou instituições, valores, formas de poder, de saber,
com um formato no mínimo semelhante, em alguns aspectos, ao das sociedades originárias.
Pensemos, por exemplo, nas duas mais fundamentais instituições do mundo moderno: estado
racional burocratizado e mercado capitalista e na vastíssima extensão que conseguiram
alcançar.
Seguramente, no momento atual de minhas pesquisas seria algo imprudente de minha
parte tentar emitir um juízo sobre a “aplicabilidade” desses estudos que realizo em outras
modernidades que aparecem em outras partes do mundo, como a modernidade brasileira.
Trata-se mesmo de um estudo comparativo, entre Taylor e Foucault a respeito das feições
modernas da individualidade – cujos parâmetros de análise para esses autores é a
modernidade da forma como foi desenvolvida primeiramente na Europa e na América do
Norte – e de seus respectivos arsenais teóricos e conceituais para dar conta do problema.
Ao longo de minha pesquisa (aliás, espremida por um calendário apertado e por
obrigações de outros cursos) fui me dando conta, sobretudo à medida que conseguia adentrar
no pensamento de Michel Foucault, da quantidade de outras questões que essa temática iria
me colocar. Ao ver que um pensador da grandeza de Foucault, após a publicação do seu
primeiro volume da “História da sexualidade”, passaria anos sem publicar sua continuidade
justamente em virtude de ter percebido tamanha complexidade de tal problemática, e o que o
faria deslocar o ponto de enfoque de seu projeto inicial, fui tendo uma dimensão mais exata
do quão isso exige de um pesquisador. Muitos dos problemas que se colocaram a mim no
27
decorrer da pesquisa, em virtude do tempo que tinha pra refletir sobre cada um deles, não
puderam ser explorados, aprofundados, pensados; isso representou, de um lado um esforço
instigante, mas também uma frustração em saber o que podia estar sendo deixado de lado.
Mas enfim, toda pesquisa envolve certos tipos de limitações, de delimitações, de escolhas.
Não creio que isso seja de todo ruim. Mesmo porque me permitiu um envolvimento centrado
em certas questões que sabia não poder ir além delas. Aliás, devo dizer que o próprio sentido
de meu empreendimento foi ficando mais claro a mim com o decorrer do tempo. Mas creio
que uma boa pesquisa talvez seja exatamente aquela em que não se sabe de antemão onde se
vai terminar ou se vai chegar, pois há uma dimensão crucial da experiência científica que só
pode se fazer onde há dúvidas e descobertas.
28
CAPÍTULO I. Charles Taylor: para uma reconstrução dos princípios
subjacentes ao self moderno
Ainda relativamente pouco conhecida no campo das ciências sociais, a obra do
filósofo canadense Charles Taylor tem progressivamente se mostrado fonte de
desenvolvimentos significativos para a teoria social e mesmo para análises de diversas áreas
da sociologia e da ciência política. O leque de sua produção intelectual abrange contribuições
para a filosofia das ciências humanas, teoria social, filosofia política, história moral do
ocidente, entre outros. Considerado um dos mais influentes filósofos dentre países de língua
inglesa da atualidade, às vezes classificado como comunitarista
6
, embora ele mesmo não se
identifique com tal rótulo, às vezes como filósofo pós-analítico, Taylor parece permanecer, no
decorrer de sua produção intelectual nas últimas décadas, com a mesma convicção sobre
algumas das principais questões que norteiam e caracterizam sua obra.
O interesse crescente por suas reflexões e a conseqüente assimilação de algumas de
suas idéias às ciências sociais, ao que me parece, está especialmente relacionado ao
progressivo avanço das teorizações sobre a questão do reconhecimento e paralelamente do
multiculturalismo, no cenário das sociedades modernas contemporâneas. Ao lado de Axel
Honneth e de Nancy Fraser, Taylor é considerado um dos principais expoentes quando o
assunto é teoria do reconhecimento. A grande preocupação se dá fundamentalmente sobre o
reconhecimento político de grupos minoritários, “subalternos” ou da questão feminista, o que
obrigatoriamente remete à questão da própria consolidação das identidades desses grupos.
Mas não é exatamente esse o aspecto de meu interesse no presente estudo. Na verdade, a
6
Em linha gerais, diz-se comunitaristas daqueles pensadores que têm procurado enfatizar a importância dos
arranjos e instituições sociais e coletivos – ou seja, da inserção numa comunidade – para o desenvolvimento da
identidade e dos sentidos individuais. Na verdade, as tendências comunitaristas de Taylor aparecem mais em
termos de um comunitarismo como “ontologia” – como pressupostos de análise da realidade. Talvez por isso
mesmo sua rejeição ao rótulo.
29
problemática do reconhecimento de grupos é para Taylor uma das duas faces de um
movimento de crescente valorização de um “ser autêntico” no mundo contemporâneo.
Voltaremos a essa questão nas últimas seções desse capítulo.
Na verdade, minha atenção no presente capítulo estará voltada para o modo como
Charles Taylor responde a uma série de indagações acerca do caráter e do status da “condição
individual” na modernidade. Afinal, qual significado da “individualidade” como um traço
peculiar do desenvolvimento ocidental? Qual o status ontológico de um indivíduo e de sua
relação com mundo social? Existe um padrão de subjetividade “individual” no mundo
moderno que não há em sociedades pré-modernas? No que ele consiste? A meu ver, Taylor
construiu um aparato teórico potencialmente profícuo e original que o possibilitou um modo
sensível de tratar essa temática. Seu esforço para refutar as correntes intelectualistas,
subjetivistas e atomistas, sua rejeição à idéia de uma consciência monológica, sua peculiar
defesa da tradição hermenêutica e sua assimilação das obras de Hegel, Herder, Wittgenstein,
Heidegger, Merleau-Ponty, entre outros, fazem de seu modo de pensar uma referência ímpar
na teoria social contemporânea. A partir dessas influências ele desenvolvera sua própria
filosofia da ação e também uma antropologia filosófica original. No intuito de alcançar meus
objetivos, minha intenção será também de apreender o seu diagnóstico substantivo do
desenvolvimento moderno e da tematização dos núcleos morais que para ele constituem os
pilares da modernidade ocidental. Apenas depois de acompanhar esse diagnóstico é que estará
aberta a possibilidade de entendermos as duas concepções de individualidade que convivem
na modernidade e de que forma elas são pensadas. Para tanto, terei que percorrer um caminho
relativamente longo, o que reclama certa paciência do leitor para os problemas
“incontornáveis” pelos quais terei que passar ao longo das páginas do texto.
Talvez seja o modo mais conveniente e sensato de se dar início a um texto sobre
Charles Taylor apontando, desde logo, o seu repúdio a uma dada forma de reflexão e de
30
concepção de ciência, estas que seriam responsáveis diretas por uma esterilização, deturpação,
implausibilidade de como pensar o homem, de como caracterizar e como fazer as ciências
humanas. O imaginário moderno – ou ao menos uma parcela demasiado expressiva e bastante
influente deste – teria solidificado e cristalizado formas de compreensão incompletas dos
fenômenos humanos, formas restritivas de pensar a linguagem, modos impróprios de conceber
a inserção dos agentes no mundo. Dito isto, devo dizer que, a meu ver, muitas das
contribuições mais relevantes de Charles Taylor são praticamente configuradas em torno de
demonstrar: i) o “como” e os “porquês” de tamanha força de persuasão de tais modos
“ingênuos” de reflexão; ii) e de fornecer longos e incansáveis estudos empenhados em afastar
tais pressupostos e ao mesmo tempo apontar o que acredita serem os caminhos possíveis para
uma compreensão mais adequada do universo humano.
Por isso, uma parcela considerável dos escritos do autor pode ser vista como um
esforço para demonstrar a inadequação e a implausibilidade de todo um conjunto de teorias
sobre o homem. Os reducionismos que Taylor privilegia em seus ataques estão
consubstanciados na família de teorias e de modos de entender o ser humano que ele colocou
sob rótulo de “naturalismo” (TAYTOR, 1985a, pp. 1-4). Em uma definição provisória, uma
visão naturalista implica
não apenas a visão em que o homem pode ser visto como parte da natureza – o que em um
sentido ou em outro seguramente seria aceito por todo mundo – mas que a natureza da qual ele
faz parte é compreensível de acordo com os cânones que emergiram na revolução das ciências
naturais do século XVII (TAYLOR, 1985b, p. 2 – minha tradução).
Como veremos, seu ponto de vista anti-naturalista está intimamente ligado à sua
inclinação comunitarista, em termos de pressupostos anti-atomistas da realidade social. Será a
partir de tal crítica ao naturalismo que o filósofo irá fornecer um exame peculiar do
individualismo na modernidade, longe de ser tomado em termos de uma atomização ou da
perda de nexo entre os “agentes individuais”. Sua postura permitirá exatamente demonstrar
31
como o próprio individualismo deve ser entendido a partir de uma hermenêutica que leva em
conta pressupostos holistas de análise. Ademais, Taylor é um crítico das teorias da
modernidade que se pautam em um viés “acultural”, ou seja, teorias que descrevem as
transformações responsáveis pela modernidade em termos de operações culturalmente
neutras, que distorcem e empobrecem nosso auto-entendimento. Por isso, seu objetivo é
captar exatamente os aspectos morais, culturais ou valorativos que tornam possível a
modernidade e sem os quais ela não pode ser explicada (TAYLOR, 2001).
Analiticamente, dois grandes conjuntos de problemas serão aqui tratados: i) os temas
por assim dizer “metodológicos” e ao mesmo tempo “filosóficos”, por meio dos quais o
filósofo procura se dirigir rumo à construção de uma teoria da ação, de uma “antropologia
filosófica” e de uma teorização acerca da especificidade das ciências humanas; ii) e, por outro
lado, o autor lança-se no empreendimento, bastante ambicioso aliás, de prover um diagnóstico
peculiar e bem amplo das propriedades mais básicas e fundamentais da identidade do homem
na modernidade. Obviamente, os dois tipos de questões estão quase sempre entrelaçados,
sobretudo na medida em que, segundo nos diz o autor, as próprias concepções fundamentais
da modernidade nos impelem a um modo específico e inadequado de opções metodológicas
sobre o estudo do ser humano.
Antes de continuarmos, uma palavra sobre a forma como procurei montar o texto que
se segue. Busquei organizar o capítulo em duas seções básicas: (1) a primeira seção representa
um esforço para permitir a compreensão do conjunto de pressupostos filosóficos e
metodológicos do autor. Essa seção está divida em quatro subseções. Em linhas gerais, inicio
(1.1) com a apresentação de algumas questões essenciais de seus estudos sobre Hegel (1975-
1979); a seguir, passo à análise de seus “Philosophical Papers” (1985) e de alguns textos
mais recentes como “Argumentos Filosóficos” (1995) – pelos quais examino: em primeiro
lugar, (1.2) sua assimilação dos avanços na filosofia da linguagem; (1.3) sua fundamentação
32
de uma antropologia filosófica e teorização acerca da especificidade das ciências do homem;
(1.4) sua postura quanto à necessidade de uma direção hermenêutica nas ciências humanas. A
partir daí, (2) passo para a segunda seção (subdividida em outras seis subseções), com o
diagnóstico tayloriano da modernidade presente em “As fontes do Self” (1989), elencando de
forma breve alguns conceitos analíticos adicionais e sua tentativa de resgate genealógico e de
tematização da “ontologia moral” sobre a qual teria se erigido o ocidente; ainda nessa parte
pretendo alcançar seu entendimento sobre a constituição dos principais traços da subjetividade
no mundo moderno, abordando assim suas discussões em torno da questão dos ideais de
autonomia, de dignidade e autenticidade. E, por fim, encerro com uma discussão específica
sobre o tema da autenticidade e seu vínculo com a categoria do reconhecimento; nessa parte,
os principais trabalhos utilizados são “The Ethics of Authenticity” (1991) e “A política do
reconhecimento” (1992) – que aparecem como extensão do projeto de “As fontes do self”
mas ao mesmo tempo trazem reflexões sobre alguns pontos não desenvolvidos naquele livro.
Enfim, no intuito de permitir a compreensão de suas idéias pretendi percorrer alguns
delineamentos básicos de sua obra, esta que se torna significativa a partir dos anos 70 e chega
até o presente momento mantendo certa coerência com suas etapas anteriores. As seções do
capítulo também correspondem, no geral, às fases cronológicas da produção do autor, ainda
que, em virtude da própria natureza de inter-relação entre os vários temas tratados que surgem
e ressurgem em variadas fases e em várias obras, isso não tenha sido feito de forma rígida.
1. Os fundamentos filosóficos e metodológicos do pensamento tayloriano
Na medida em que as concepções correntes de ciência social são fortemente
enraizadas em uma doxa que Taylor acredita ser intrinsecamente prejudicial à nossa auto-
compreensão, ou em outras palavras, em um conjunto de juízos característicos de nosso
33
momento histórico que impõem certas noções como verdades auto-evidentes e naturais,
incompatíveis com uma mais adequada compreensão da vida social e de suas sutilezas,
impõe-se a necessidade de rediscutir todas as bases sobre as quais se pautam. Para ele, noções
reduzidas do discurso, da linguagem, da natureza do agente humano e de suas relações com o
mundo, penetram e solidificam-se nos principais pressupostos da filosofia ou das ciências
humanas.
Necessita-se, portanto, de uma grande reformulação dos pressupostos para a
compreensão do mundo humano: um dos grandes desafios do empreendimento tayloriano e
que se coloca como uma das questões de primordial interesse no presente trabalho é,
indubitavelmente, o de fornecer uma arquitetura filosófica e um método capazes de acessar
com maior acuidade as inúmeras práticas e contextos humanos. O procedimento investigativo
pressupõe uma ampla e árdua busca em torno do que permite a validade das investigações da
sociologia e das ciências humanas em geral, ou seja, se as ciências sociais se pretendem
minimamente reflexivas, deve-se procurar fundamentar de maneira exaustiva a natureza da
possibilidade de compreensão da realidade, deve-se estar continuamente atento sobre os
limites e dificuldades de um procedimento que busca oferecer um “algo a mais” do que as
inarticuladas, fragmentárias e não-transparentes impressões da realidade que chegam aos
agentes cotidianamente. Talvez seja uma luta contra uma impressão de facilidade no acesso
imediato aos fatos humanos um dos traços mais marcantes da produção do autor.
1.1. As dívidas com a filosofia hegeliana
Assim como em todos os clássicos da teoria sociológica e também os grandes
expoentes mais recentes da disciplina, até mesmo os temas mais propriamente “sociológicos”
e substantivos são fundamentados e orientados por fortes premissas filosóficas, sem as quais
34
aqueles carecem de sentido. O acesso ao pensamento de um autor requer um exercício, nem
sempre fácil e bem sucedido, de compreensão das condições estruturantes que subjazem a
toda elaboração sistemática de idéias, a todo movimento teórico mais pretensioso.
Obviamente, isso impõe-nos a obrigação de realizar um estudo sistemático de algumas das
influências do autor, ou ao menos das mais significativas. No caso de Taylor, cabe em
primeiro lugar nos debruçarmos rapidamente sobre seus estudos sobre Hegel, dentre os quais
se destacam dois livros de sua autoria publicados ainda na década de 1970, “Hegel” e “Hegel
and the Modern Society” e ainda um texto presente em seus Philosophical Papers: “Hegel’s
Philosophy of Mind”.
É justamente em seus instigantes trabalhos sobre a obra desse gigante da filosofia
ocidental que, acredito eu, encontram-se os atalhos mais seguros para o início de uma fiel
reconstrução do edifício tayloriano. Porém, levando-se minimamente em conta o
reconhecimento de tamanha complexidade da obra de Hegel, não se faz possível nem cabível,
no presente texto, um exame sobre a validade ou fidelidade das interpretações que Taylor faz
do filósofo alemão. Interessa-nos aqui mais o entendimento e os temas que se fizeram
importantes para Taylor, sobretudo os que o autor incorporou à sua própria forma de pensar.
Foi com Hegel – cuja produção remete ao início do século XIX – que Taylor
encontrou uma forma original e brilhante de pensar uma questão que, para o autor canadense
(e, segundo este, também para Hegel) era definitivamente central: como conciliar a idéia de
liberdade a uma determinada situação “cultural” específica? De que modo é possível conceber
uma noção de subjetividade ao mesmo tempo livre e “situacionada” em uma comunidade de
valores?
De acordo com Taylor, a concepção predominante de subjetividade na modernidade
teria se desenvolvido a partir de um viés extremamente marcado por uma idéia de liberdade,
que seria um dos valores mais invocados e cultuados da época moderna e que impõe uma
35
imagem dos seres humanos vistos como desvencilhando-se de impedimentos, amarras ou
obstáculos externos: “ser livre é, de certa forma, ser desimpedido, é depender apenas de si
mesmo; [...] a nova identidade como sujeito definidor seria conquistada libertando-se da
matriz mais ampla de uma ordem cósmica” (TAYLOR, 2005, p. 193).
Por certo, as reflexões de Hegel estavam animadas pela certeza de que a compreensão
da sociedade moderna exigia a superação de uma concepção atomista que permeava as formas
dominantes de práticas filosóficas. Dito de outra forma, Hegel se pautava numa intuição
original da necessidade de um contexto normativo prévio, de um ethos preexistente como
dado básico de toda prática social e de toda formação de identidades. Assim, segundo a leitura
de Taylor, um dos maiores desafios da filosofia de Hegel foi o de tentar conciliar a liberdade
do indivíduo que se conhece como racionalidade universal com uma vida em comunidade,
com um ethos localizado. A teoria hegeliana do sujeito se mostra como uma teoria da auto-
realização, radicalmente oposta ao dualismo da filosofia pós-cartesiana (incluindo o
empirismo) e ao dualismo de ambos os lados em sua ascendência. Tal dualismo era
caracterizado por uma concepção de sujeito como um centro da consciência, percebendo o
mundo exterior e a si mesmo, centro que era imaterial e, por isso, heterogêneo do mundo do
corpo, incluindo o próprio corpo do sujeito. As funções “espirituais”, como o pensamento, a
percepção e o entendimento, são atribuídas a esse ser não-material. E essa “mente” é às vezes
considerada perfeitamente autotransparente, ou seja, capaz de ver claramente seus próprios
conteúdos ou suas “idéias” – para Taylor, tal teria sido a concepção de Descartes (TAYLOR,
2005, p. 29).
Ora, se minha interpretação está correta, a força e o brilhantismo do argumento
hegeliano residiu exatamente na constatação de que não fazia mais sentido procurar uma
maneira a-histórica e des-situada de definir o sujeito em termos formais. Hegel buscou ir além
dos conceitos de subjetividade correntes, sugerindo uma rígida refutação aos conceitos de
36
sujeito que marcavam as filosofias de Kant a Fichte, baseados em um formalismo de caráter
a-histórico e universal. Mas por que faria sentido para Hegel pensar um espírito que é maior
que um indivíduo? Qual o significado da suposição de que um indivíduo é parte de uma vida
mais ampla e ao mesmo tempo é inerente a ela? Taylor responde dizendo que essas idéias
parecem misteriosas justamente em virtude de uma
forte influência que temos dos preconceitos atomistas, que foram muito importantes na cultura
e no pensamento político modernos. Só poderemos pensar que o indivíduo é o que é em
abstração em relação a sua comunidade se pensarmos nele qua organismo. Contudo, quando
pensamos num ser humano, não concebemos simplesmente um organismo vivo, mas um ser
que pode pensar, sentir, decidir, emocionar-se, reagir, estabelecer relações com os outros, e
isto tudo implica uma linguagem, um conjunto correlato de maneiras de experimentar o
mundo, de interpretar os sentimentos, de compreender as relações com os outros, com o
passado, com o futuro, com o absoluto, e assim por diante. É a maneira particular como o
indivíduo situa a si mesmo neste mundo cultural que chamamos de identidade (TAYLOR,
2005, p. 112 – grifos meus).
Através dos conceitos de “Espírito” e “Idéia” Hegel procurava demonstrar a
indissociabilidade entre sujeito e objeto, pois a subjetividade não era possível de ser pensada
fora de uma determinada contextualização histórica, fora de uma situação, de uma totalidade
contextual.
7
Portanto, algumas das dicotomias que Hegel almejou superar foram entre
subjetividade e objetividade, ou entre pensamento e coisa; o pensamento não é distinto das
coisas, mas está inserido nelas e assim torna-se também responsável por sua natureza e
desenvolvimento.
Na filosofia hegeliana a subjetividade está desde sempre envolvida por uma “vida
ética”, por uma “Sittlichkeit”.
8
Deve-se ter em mente que a Sittlichkeit para Hegel, diz Taylor,
7
Creio ser importante aqui esclarecer que o conceito de Idéia em Hegel vai muito além do sentido de uma mera
representação subjetiva de uma realidade; ela não contrasta com a realidade. Afastando-se da filosofia platônica,
Hegel rejeita qualquer visão de dois mundos, aproximando-se mais da noção aristotélica de que as idéias estão
em coisas (ver, por exemplo, INWOOD, 1997, pp. 168-171).
8
Optei, tal como Taylor, pela não tradução do termo Sittlichkeit, usualmente traduzido como “eticidade”,
“moralidade” ou “vida ética”. A palavra vem de Sitte, que designa algo como “costume”, “hábito”, ou seja,
algo como um modo de conduta habitualmente praticado dentro de um grupo social (nação, uma classe, família,
etc.), mas que se afasta de conotações que tenham inclinação pejorativa, pois é geralmente associado com uma
norma de comportamento “decente”. Ou seja, Sitte não pode significar um costume individual deliberadamente
37
refere-se à dimensão de nossas obrigações éticas relativas a uma vida mais ampla à qual
temos de dar suporte e seguimento. A dimensão “sittlich” é importante na vida ética dos
homens, na qual há uma profunda identificação entre a sociedade e suas instituições. Onde
isto não ocorre, onde o que é de importância central para os homens está em outro lugar,
temos o que Hegel caracteriza como alienação. Hegel não acredita, dessa maneira, que uma
sociedade livre possa ser mantida e sustentada sem esse tipo de identificação que sustenta
uma Sittlichkeit vital (TAYLOR, 2005, pp. 157-158). Nesse sentido, podemos pensar nas
instituições e práticas de uma sociedade como um tipo de “linguagem” na qual suas idéias
fundamentais se expressam, mas o que é “dito” nesta linguagem não são idéias que poderiam
estar nas mentes de apenas alguns indivíduos, mas, antes, elas são comuns a uma sociedade
por estarem imbuídas em sua vida coletiva, nas práticas e instituições que pertencem à
sociedade inseparavelmente. Nestas, o espírito da sociedade é, em certo sentido, objetivado.
Elas correspondem, no vocabulário hegeliano ao “Espírito objetivo”.
O modo de viver é tanto uma maneira de cumprir as funções necessárias da vida –
nutrição, reprodução e assim por diante – como uma expressão cultural que revela e determina
o que somos, nossa identidade. O que Hegel chama de Espírito (Geist) engloba a mente
humana, suas funções intelectuais e seus produtos. E o Espírito objetivo é o espírito comum
de um grupo social, consubstanciado em seus costumes, leis e instituições e impregnando o
caráter e a consciência dos indivíduos de uma dada sociedade. De certa maneira, ele é algo
como a objetivação do Espírito subjetivo. Esta idéia de um Espírito objetivo iria então
influenciar fortemente Taylor, que entenderia as instituições e práticas de uma época como
reflexo dos conjuntos básicos de valores que se fazem presentes como uma ontologia moral.
Enfim, foi com a apropriação de tais temas hegelianos que Taylor teve a esperança de
prover uma crítica definitiva a saberes que teriam produzido uma forma caricatural de
escolhido. Dessa maneira, Sittlichkeit pode ser entendida como normas éticas consubstanciadas nos costumes e
instituições da sociedade a que se pertence (INWOOD, 1997, pp. 322-324).
38
postulados acerca da compreensão humana, uma auto-distorção que significaria perder de
vista a unidade entre a consciência individual e uma Sittlichkeit (TAYLOR, 2005, pp. 11-12).
Além disso, Taylor consegue depreender do pensamento de Hegel algumas bases para
sua teoria da ação. Em seu “Hegel’s philosophy of mind” (In: TAYLOR, 1985a), observa-se
como a construção de sua teoria da ação deve muito a uma idéia presente no sistema
hegeliano que Taylor chamou de princípio de “corporificação” (embodiment). De acordo
com esse princípio, o que tenderíamos a focar como fenômenos “mentais” pode somente ser
entendido como processos em que formas de pensamento são corporificadas, ou seja, são
concretizadas e impregnadas no “corpo”, de inúmeras maneiras. É assim que linguagem e
corpo são unidos enquanto meios de manifestações expressivas, ou seja, é a categoria da
corporificação que garante às “linguagens” serem o que são, enquanto manifestações no
mundo em termos de “expressão”. Linguagens são entendidas como veículos, concretizando-
se a partir de um meio e como um meio expressivo; a vida espiritual envolve uma dimensão
expressiva (TAYLOR, 1985a, pp. 87-88). Por isso, para Taylor, a expressão está vinculada à
própria espontaneidade não reflexiva que se corporifica nos gestos, nos modos de se portar,
falar, andar, etc. Ela que pode ser trazida como uma “consciência de si” mediante formas de
reflexão, que é então uma possibilidade para o próprio autoconhecimento e também a melhor
possibilidade de expressão.
Decerto, a idéia da expressividade da ação será um elemento chave para a
compreensão das inclinações teóricas do filósofo canadense; sua ênfase quanto à natureza
expressiva da existência humana é uma de suas grandes dívidas para com o pensamento
hegeliano. A dimensão expressiva da existência humana é o que possibilita Hegel pensar em
uma comunhão entre consciência de si e a natureza, entre a finita subjetividade e a infinita
vida que brota na natureza, entre liberdade e a vida numa comunidade. O homem é um ser
39
expressivo, ou seja, um ser cujo pensamento sempre e necessariamente se expressa num certo
meio.
Por conseguinte, na visão de Taylor, ao agir o indivíduo está se expressando, está
articulando formas em que seus valores podem ser expressos. A própria noção de linguagem
que descendeu de Herder – e sobre a qual falarei logo adiante – era tomada como um meio de
expressão, onde o pensamento é inseparável da linguagem, que é muito mais do que um meio
para designar objetos no mundo.
Até agora vimos como a questão de uma subjetividade des-situada tornava-se
notoriamente implausível de acordo com o desenvolvimento de idéias que acompanhamos.
Mas esse não é o ponto de chegada: o cerne da questão passava a ser o de desvendar o
movimento responsável pela constituição, pela gênese e pelo desenvolvimento histórico da
própria subjetividade. O homem passa a ser pensado como uma nova totalidade em relação à
natureza, o que supõe princípios de entendimento radicalmente diferentes. É assim que, na
filosofia hegeliana, podemos falar de uma hierarquia de níveis do ser, onde os “superiores”
podem ser vistos como realizando, num nível mais elevado, o que os inferiores representam
de modo imperfeito. Hegel adota essa hierarquia do ser, que tem seu ápice na subjetividade
consciente. Os tipos inferiores de vida exibiriam protoformas, por assim dizer, da
subjetividade, exibindo em gradações ascendentes propósito e auto-preservação como formas
de vida, conhecimento daquilo que os cerca. Essas formas de vida assemelham-se cada vez
mais a agentes, e os animais superiores carecem somente da capacidade de expressão para
alcançar essa subjetividade. “Nos fenômenos inanimados, podemos ver uma hierarquia que
aponta para o mais elevado estágio da vida, assim como os animais apontam para a
subjetividade humana” (TAYLOR, 2005, p. 33). A subjetividade se desenvolve através da
história por movimentos intrínsecos às próprias contradições inerentes à inserção dos eventos
40
humanos no mundo, a partir de um movimento dialético.
9
É por isso que a racionalidade não
seria algo simplesmente dado para o homem; haveria, na verdade, o desenvolvimento
histórico do próprio pensamento: haveria uma hierarquia dos modos de pensamento, que
expressariam diferentes níveis de consciência de si ao longo do tempo. A linguagem, a arte, a
religião e sua filosofia seriam os veículos da compreensão do Espírito, mas possuiriam
diferentes graduações, porque o pensamento não pode alterar-se sem uma transformação de
seu meio de expressão. Desse modo, tem de haver uma hierarquia de modos de expressão na
qual o modo superior possibilite um pensamento mais exato, mais lúcido e mais coerente que
o inferior (TAYLOR, 2005, p. 34).
Com esse breve exame, espero ter permitido o entendimento subseqüente de algumas
das posturas cruciais do pensamento de Taylor, não só as relativas à elaboração de sua
problemática metodológica e de sua antropologia filosófica, mas também o conjunto de
problemas “substantivos” (seu diagnóstico acerca do caráter e do status do homem na
modernidade) e até mesmo os problemas relacionados à ordem política contemporânea.
10
1.2. Transformações na teoria da linguagem: “formas de vida” e imersão no mundo
Após esboçar alguns tópicos da filosofia hegeliana que marcaram o pensamento de
Taylor, creio que seja mais fácil avançar com a questão da linguagem e das transformações
9
Isso porque a subjetividade “possui certas condições de existência, as do corpo, mas, ao mesmo tempo, é
caracterizada teleologicamente, como tendendo a uma determinada perfeição, a perfeição da razão e da
liberdade, e isso está de acordo tanto com Aristóteles quanto com a teoria expressivista. E as exigências dessa
perfeição se opõem, ao menos de início, às condições de existência do sujeito” (TAYLOR, 2005, pp. 32-34).
10
Vale lembrar que a apropriação de reflexões hegelianas obviamente não é algo novo nas ciências sociais. O
filósofo foi e continua a ser fonte de inspiração para distintos pensadores extremamente fecundos e influentes no
âmbito das ciências sociais, representantes de diferentes tendências. Foi de onde Marx retirou suas principais
inspirações para a elaboração de suas sistematizações, especialmente de sua concepção dialética da história;
Dilthey, também um estudioso do pensamento de Hegel, teria feito uso da noção hegeliana de “espírito objetivo
em sua descrição de produtos culturais, compartilhando da crença hegeliana de que “somente através da história
o homem descobre o que é” (INWOOD, 1997, p. 35); Habermas, por sua vez, encontrou nos escritos de
juventude de Hegel, sobretudo nos escritos de Jena, uma das formulações embrionárias de uma das noções mais
importantes de sua obra: a de intersubjetividade (HABERMAS, 2001); Axel Honneth, também bebendo na fonte
do jovem Hegel, fundamenta aí alguns dos aspectos centrais de sua “luta pelo reconhecimento”; e não seria
difícil lembrar de vários outros exemplos.
41
que permitiram uma maneira completamente diferente no modo de concebê-la. Aliás, o autor
acredita que o desenvolvimento mais importante da filosofia do século XX provavelmente
tenha sido a focalização nas teorias do significado e na filosofia da linguagem, o que segundo
ele vincula-se, ao menos em parte, ao desejo de definir uma noção de subjetividade na
situação (TAYLOR, 2005, p. 201). A transição do “paradigma da filosofia da consciência”
para o “paradigma da filosofia da linguagem” constitui um corte profundo na agenda da
vanguarda das ciências sociais do século XX e, nesse ponto, Taylor não está sozinho.
11
Mas qual seria a relação da filosofia de Hegel com essa guinada contemporânea?
Como vimos, o princípio da corporificação é fundamental na teoria de Hegel. A subjetividade
está necessariamente situada na vida, na natureza, e num contexto de práticas sociais e
instituições. O pensamento ou a linguagem existem necessariamente concretizados no corpo,
corporificadas: assim, Hegel vê a linguagem e os símbolos como veículos da consciência e
entende que os diferentes veículos correspondem a diferentes níveis nos diversos estágios da
arte, da religião e da filosofia.
É com Herder que se efetua uma mudança radical em relação ao tipo de concepção de
linguagem que Taylor constantemente critica. Ele deixa de aceitar como dada a relação de
referência na qual determinados signos seriam associados a determinados objetos e passa a se
concentrar no próprio fato da existência dos signos. A partir de então a linguagem não é mais
vista um mero agrupamento de signos, mas o veículo de nossa consciência. A reação de
Herder a Condillac e à teoria então estabelecida da linguagem seria uma antecipação, em
alguns aspectos, das premissas do último Wittgenstein. Concebendo a linguagem como uma
11
Praticamente todos os nomes ligados aos avanços da teoria social da segunda metade do século XX, e que
obtiveram algum destaque, se esforçaram para assimilar, de algum modo, as modificações ocorridas nessa área
da filosofia. Poderíamos citar por exemplo Jürgen Habermas, Anthony Giddens, Pierre Bourdieu, entre tantos
outros. Habermas, por exemplo, inicia seu “Pensamento pós-metafísico” dizendo que “A partir desse momento
[de ruptura com o paradigma da filosofia da consciência e transição para o paradigma da filosofia da linguagem],
os sinais lingüísticos, que serviam apenas como instrumento e equipamento das representações, adquirem, como
reino intermediário dos significados lingüísticos, uma dignidade própria. As relações entre linguagem e mundo,
entre proposição e estados de coisas, substituem as relações sujeito-objeto. O trabalho de constituição do mundo
deixa de ser uma tarefa da subjetividade transcendental para se transformar em estruturas gramaticais”
(HABERMAS, 1990, p. 15).
42
atividade expressiva de uma determinada consciência, Herder a situa na forma de vida do
sujeito, e, por conseguinte, desenvolve a noção de diferentes linguagens como expressivas,
cada uma delas, de uma visão peculiar à comunidade que a fala.
12
Em seu texto “A importância de Herder”, Taylor (2000a) alega que Herder teria sido
uma figura revolucionária por ter criado um modo fundamentalmente diferente de pensar a
linguagem e o significado. Trata-se de um combate às teorias da linguagem e do significado
que ele rotula como designativas e que teriam se tornado potencialmente influentes no
pensamento ocidental:
A antiga perspectiva, que tem uma venerável tradição, é aquela que Wittgenstein ataca na
forma de uma afirmação influente de Agostinho. Podemos defini-la em termos de sua
abordagem “designativa” à questão do significado. As palavras adquirem sentido ao serem
usadas para designar objetos. Aquilo que designam é seu significado (TAYLOR, 2000a, p.
94).
Nesse sentido, a concepção herderiana de linguagem nasce como um contra-impulso a
tal movimento, em primeiro lugar porque chama a atenção para a necessidade de se levar em
consideração a idéia de um pano de fundo, que serviria como um elemento de sustentação
para todos nossos pensamentos, percepções, formas de compreensão, etc. E, em segundo
lugar, pela tentativa de situar nossos pensamentos em “formas de vida”, ou seja, em contextos
específicos de organização social (fossem eles pensados em termos de “nação”, “povo”,
“cultura”, “língua” ou “natureza”) (TAYLOR, 2000a, p. 106).
12
Talvez seja conveniente constar em nota um relato biográfico de Taylor a respeito do contexto que, segundo
sugere o autor, teria facilitado sua visualização de distintas concepções de linguagem: “Minha atração por
Herder estava há muito tempo preparada por minha situação em Quebec, onde duas línguas assim como também
duas filosofias da linguagem, estavam cara a cara. Enquanto os falantes de língua inglesa consideravam a
linguagem como um instrumento [...], para os falantes da língua francesa a linguagem constitui um modo de ser
no mundo. Tendo pertencido a uma família mista por várias gerações, sempre pareceu óbvio pra mim que a
linguagem é mais do que um instrumento, que cada linguagem carrega consigo seu próprio senso de humor,
concepção de mundo, etc. daí o meu interesse pela linguagem e pela filosofia romântica da linguagem, que
criticou a filosofia instrumentalista de Hobbes, Locke ou Condillac” (TAYLOR apud ABBEY, 2000, p. 7 –
minha tradução). Em se tratando de notas biográficas sobre Taylor, é conveniente salientar que muitas de suas
posições só se fazem plenamente inteligíveis levando-se em conta suas inclinações religiosas católicas e também
uma certa postura nacionalista, que transparecem sobretudo em suas discussões mais propriamente políticas e
sobre o contexto canadense.
43
Ora, a partir do momento em que uma “consciência explícita” não mais parece algo
que possamos dar como certo, temos uma modificação substancial no quadro de uma
concepção da linguagem; a linguagem assemelha-se mais a algo como um “veículo” e, por
conseguinte, torna-se um objeto de estudo relevante não apenas como uma junção ou um
conjunto de termos pelos quais designamos as coisas, mas sobretudo como aquilo que dá
sustentação, aquilo que serve de base para tais fenômenos. Em outros termos, o significado,
de acordo com tal perspectiva, não é simplesmente uma propriedade que pertence a cada
palavra individualmente, mas um fato sobre a atividade do discurso como um todo que é, em
certo sentido, anterior aos termos individuais (TAYLOR, 2005, pp. 201-202).
Sendo assim, a idéia fundamental que se coloca é que a linguagem impõe-nos modos
específicos de “estar no mundo” e portanto, é a imersão em uma dada “comunidade
lingüística” que institui os limites e as possibilidades de ação e expressão. Em outras
palavras, dizer que uma linguagem só pode ser sustentada por uma comunidade não significa
entender a linguagem apenas como um “meio de comunicação”, como um medium utilizável
para transmitir impressões entre experiências privadas de indivíduos. Ora, o que Taylor es
dizendo é que nossa própria maneira de experienciar o mundo é o que é pelo conjunto de
“termos lingüísticos” que estão disponíveis em uma dada situação “cultural”, em uma
determinada comunidade.
Essa concepção foi desenvolvida no período romântico, e não apenas por Herder, mas
por também outros pensadores vinculados à corrente de pensamento expressivista, tal como
von Humboldt. A teoria herderiana da linguagem marcará de maneira incisiva o pensamento
de Taylor, acima de tudo sobre o modo de ver as expressões humanas enquanto manifestação
significativa de suas identidades.
Mas embora as raízes dessa reconsideração do fenômeno lingüístico remontem ao
século XIX, foi apenas no século XX que essa reconsideração assumiu uma forma filosófica
44
mais sistematizada, culminando na tendência que acabaria conhecida como “guinada
lingüística” (linguistic turn). Foi sobretudo diante da ruptura que Ludwig Wittgenstein
apresentou como uma reformulação radical da própria postura de seu “Tractatus Logico-
Philosophicus” que a “filosofia restritiva da linguagem” sofrera seus mais sérios abalos. Em
“Investigaçoes Filosóficas”, uma nova articulação entre a linguagem, o significado, a ação,
a convenção e as práticas foi pensada. Ao pensar a maneira como a linguagem está embutida
nas práticas sociais, o filósofo desfaz todo o conjunto de distinções que caracterizavam as
concepções de linguagem que procura combater: linguagem e mundo aqui já não mais se
opõem, mente e mundo não são mais entidades desentrelaçadas. Linguagem e práxis são
indissociáveis. A articulação entre linguagem e práxis passa a ser entendida pela noção
wittgensteiniana de “jogos de linguagem”, que sugere as mais variadas formas de usos
contextuais, situados e com suas próprias “regras lingüísticas” internas, relativas a distintas
“formas de vida”.
Ora, disso resulta que devemos passar a entender a linguagem como uma atividade,
como usos em andamento guiados por regras onde os significados apenas são compreensíveis
dentro da imersão em uma “práxis vital”. Conseqüentemente, os termos da linguagem não
podem fazer sentido quando tomados separadamente, mas somente a partir da totalidade das
relações em que estão inseridos, ou seja, a partir dos jogos de linguagem que só existem em
práticas situadas. É por isso que as reflexões de Wittgenstein também devem ser pensadas
como uma “filosofia da ação”.
Enfim, creio que pude até aqui elucidar as bases cruciais para os pressupostos
filosóficos que Taylor carregará consigo na criação de todo o seu aparato conceitual e
analítico do qual se valerá para a consideração dos fenômenos de seu interesse. A
especificidade da filosofia de Taylor pode ser vista pela forma como o autor concilia, em
primeiro lugar, a imersão inevitável da subjetividade em uma Sittlichkeit; a teoria hegeliana
45
do Espírito, onde as “atitudes mentais”, as idéias – as quais Taylor entenderá a partir dos
conceitos sobre moralidade que veremos a seguir – estão expressas tanto num nível individual
quanto num nível “objetivo” (a existência concomitante de um espírito expresso nas
instituições e também no plano do self – Espírito subjetivo), sendo elementos centrais para
uma “fenomenologia moral”; ao mesmo tempo, far-se-á importante o expressivismo, cujas
origens remontam às concepções românticas, desde Herder e passando por Hegel, onde a ação
humana é entendida como expressão, ou seja, o espírito ou o pensamento sempre e
necessariamente se expressam a partir de um certo meio: sua existência corporificada; e, por
último, o legado do segundo Wittgenstein, sobretudo sustentando a idéia do vínculo entre
práxis e linguagem; entre a ação e as regras subjacentes às formas de vida. Taylor irá unir as
intuições hegelianas do princípio de corporificação e do expressivismo, à idéia
wittgensteiniana da linguagem enquanto prática situada.
A partir dessas heranças, Taylor acrescentará sua ênfase numa concepção
hermenêutica de ciência e numa refundamentação da moralidade – sobre a qual falarei adiante
– que reflete o seu repúdio às formas “naturalistas” de fazer ciências humanas. Sendo assim,
podemos pensar em Taylor como um filósofo analítico da ação, onde a ação não é vista como
um ato discreto, que se encerra em si mesma e transparente aos agentes. Toda ação é uma
ação moral, situada em “formas de vida”, nas quais e pelas quais encontra os meios (corpo e
linguagem) para sua existência expressiva. Portanto, toda práxis é uma práxis moral, ou seja,
sua existência é indissociável à de uma ontologia moral que lhe dá sustentação. É isso o que
irá permitir a Taylor vincular ação, identidade e moralidade. Mas esta conexão só estará
suficientemente explicitada quando, a seguir, adentrarmos na específica antropologia
filosófica do autor.
46
1.3. Em busca de uma definição do humano
Antes de procurarmos apreender as razões de sua opção por uma concepção
hermenêutica de ciência, cumpre averiguarmos os pressupostos elementares de sua
antropologia filosófica, pela qual o filósofo canadense explicita os seus principais
fundamentos, o núcleo de toda a sua teoria.
Como postulado básico da postura hermenêutica de Charles Taylor temos a idéia de
que os homens são animais que interpretam a si mesmos (TAYLOR, 1985a, p. 45). O próprio
autor considera tal assertiva como um elemento definidor para a própria singularidade
constitutiva das ciências do homem, o elemento que traz o traço distintivo destas para com as
ciências naturais.
Mas, para ele, a tese de que o homem é um ser que se auto-interpreta ainda
permanecia, nas reflexões examinadas pelo filósofo, sem uma demonstração mais detalhada.
De acordo com sua postura, tal tese não pode ser afirmada com superficialidade, não pode ser
tomada como um truísmo sem um argumento forte que dê respaldo a ela, mesmo porque levá-
la a fundo significa romper com alguns dos mais fundamentais preceitos do pensamento e
cultura modernos: significa “violar um paradigma de clareza e objetividade” (TAYLOR,
1985a, p. 45). Em “Self-interpreting animals”, o objetivo de Taylor é o de tentar apresentar
algumas respostas, ou seja, algumas justificativas elementares para demonstrar por qual linha
de raciocínio o homem deve ser tomado como um animal que se auto interpreta (self-
interpreting animal).
Insere-se nesse contexto sua discussão em torno do conceito de “import”, que designa
certas significações importantes, ou seja, modos em que algo pode ser relevante ou importante
para os desejos, propósitos, aspirações ou sentimentos – uma questão de não-indiferença
(TAYLOR, 1985a, p. 48). Ou seja, a noção de import, que a meu ver será central para o
47
desenvolvimento subseqüente da noção de “avaliação forte”, implica algo como uma
propriedade de atribuição de significações importantes a objetos do mundo (incluindo aqui os
próprios sentimentos, pensamentos, etc.). Nesse sentido, tentar identificar os imports em uma
dada situação equivale a empreender um esforço de desvendar o que, nesta situação, serve de
fundamento ou de base para os nossos sentimentos.
Em termos bastante sintéticos, as conclusões mais expressivas às quais chega Taylor
nessa parte de seu trabalho são de que: em primeiro lugar, uma parte substancial de nossas
emoções está permeada pela atribuição de significações importantes; em segundo lugar, de
que essas significações (imports) estão muito freqüentemente vinculadas ao entendimento do
que é (ou deve ser) um ser humano, ou seja, do papel que desempenhamos (ou devemos
desempenhar)
13
; e, finalmente, de que tais imports vinculam-se a sentimentos em contextos
específicos em função de certas articulações que são contingencialmente aceitas num dado
ambiente social. Tais articulações, que também podemos pensar como interpretações,
requerem linguagem. Aos olhos de Taylor, tais proposições oferecem um conjunto que, se
aceito, permite-nos pensar no homem (ou nos atributos essenciais de sua existência) como ser
auto-interpretativo (TAYLOR, 1985a, pp. 75-76).
Vimos anteriormente a centralidade da questão do expressivismo e do princípio de
corporificação para Taylor. A partir daqui vai então se tornando clara a articulação dessas
questões com o “realismo moral” de Taylor. Podemos acompanhar a cadeia de raciocínios: o
conceito de import já permite pensar em certas articulações que são significantes para nossas
interpretações e mesmo para a parcela mais potente de nossas emoções; emoções são
perpassadas por linguagens, na medida em que estas articulam aquelas; as linguagens existem
enquanto corporificadas nos agentes; interpretarmo-nos significa exatamente avaliar nossas
13
Um exemplo freqüentemente utilizado por Taylor – exatamente por ser de fácil visualização – é o de que
sentimentos ou emoções de vergonha, por exemplo, só existem por uma devida corporificação de linguagens que
distinguem entre que é vergonhoso e o que não é em cada contexto.
48
emoções no plano da linguagem; e, enfim, a expressão é entendida enquanto manifestação do
próprio ser moral, cujos veículos são a linguagem e o corpo.
Essa conexão ficará mais explícita a seguir, mediante a introdução do conceito de
“avaliação forte”, que permite passarmos da questão da auto-interpretação para a questão da
própria moralidade. Esse conceito será igualmente relevante para a compreensão da natureza
da condição humana como ser que se auto-interpreta, que será a chave para o entendimento
das formulações ulteriores do autor. Em “What is human agency”, ele nasce de uma
interlocução com as elaborações filosóficas de Harry Frankfurt em torno de como pode ser
formulado um conceito de pessoa e de quais são suas características fundamentais.
Para Frankfurt, uma diferença essencial entre pessoas e outras criaturas pode ser
encontrada na existência de um tipo específico de desejos para as primeiras. Os seres
humanos não estariam sozinhos na capacidade de ter desejos e motivos, ou mesmo de fazer
escolhas. Eles compartilham essas características, diz Frankfurt, com vários membros de
outras espécies, algumas das quais aparentemente apresentam formas de deliberar, de tomar
decisões baseadas em um pensamento prévio. Contudo, o autor aponta como uma
peculiaridade dos seres humanos a capacidade para formar aquilo que ele chama de “desejos
de segunda ordem” (“second-order desires”):
Além de querer, escolher e de ser movido para fazer isso ou aquilo, os homens podem também
querer ter (ou não ter) determinados desejos e motivos. Eles são capazes de querer ser
diferentes, em suas preferências e propósitos, do que eles são. Muitos animais parecem ter a
capacidade do que eu gostaria de chamar de ‘desejos de primeira ordem’, que consistem
simplesmente em desejar fazer ou não fazer uma coisa ou outra
(FRANKFURT, 1971, p.6 –
minha tradução).
Colocando em outras palavras, enquanto “animais” têm desejo de fazer X, pessoas
podem ter um desejo reflexivo para com o próprio desejo de fazer X. O filósofo parte da idéia
de que nenhum animal além do homem parece ter a capacidade de uma auto-interpretação
49
reflexiva tal como é manifestada na formação desses “desejos de segunda ordem”.
14
Taylor
irá assimilar tais idéias e reafirmar tal concepção de homem como plano básico de sua
antropologia filosófica. A definição do humano é, mais uma vez, feita a partir de um contraste
qualitativo e drástico em relação a todos os outros animais, o que, aliás, creio que seja um
tanto desnecessário. Ora, é como se, no intuito de definir com acuidade os atributos dos
fenômenos humanos e sociais, houvesse a necessidade de um afastamento extremamente
marcado e delineado da espécie humana para todas as demais existentes – necessidade, aliás,
que consistira em um dos principais eixos dos desenvolvimentos de idéias religiosas em nossa
história, a exemplo de nosso exclusivo porte de alma e livre-arbítrio.
Inspirando-se na distinção entre os tipos de desejo de Harry Frankfurt, Taylor elabora
a distinção entre dois tipos de avaliação – uma num sentido “fraco” (“weak evaluation”) e
outra num sentido “forte (“strong evaluation”). A idéia de avaliação forte é retirada,
portanto, de um paralelo com a noção de desejos de segunda ordem que vimos acima. Mas
para Taylor, tal noção envolve algumas sutilezas adicionais: a introdução da noção de
avaliação forte aparece como forma de fundamentar a idéia crucial de que as relações do
homem com o mundo, consigo mesmo e com os outros são carregadas de valor.
Avaliações fortes envolvem “caracterizações contrastivas” imersas na linguagem:
desejos são discriminados em termos de “contrastes”, que podem assumir formas
infinitamente variáveis em cada contexto humano, exprimindo das mais diversas formas
14
Na verdade, as idéias expressas por Harry Frankfurt em seu “Freedom of the will and the conception of a
person” representam uma resposta e uma crítica à influente análise de Peter Strawson (formulada em seu livro
“Individuals: an Essay in Descriptive Metaphysics”). Pautada na defesa de um conceito de pessoa a partir do
que chama de “particulares de base”, definindo-a assim como um tipo de entidade na qual ambos os predicados –
os que designam estados de consciência e os que designam características corpóreas – são igualmente
aplicáveis a um único indivíduo daquele único tipo. A tese de Strawson envolve uma concepção crítica tanto ao
dualismo cartesiano, quanto a uma concepção fisicalista (o fisicalismo de refere a uma concepção que se baseia
na tese segundo de que os termos descritivos da linguagem científica são redutíveis a termos que se referem a
coisas ou eventos espaço-temporais ou a suas propriedades, supondo, dessa maneira, que todos os aspectos da
realidade, até mesmo os considerados “estados mentais” e “espirituais”, somente adquirem plena
compreensibilidade e concretude se analisados como realidades físicas). A crítica de Frankfurt a Strawson – e à
qual Charles Taylor irá aderir – se monta no sentido de que muitas outras entidades, assim como pessoas,
possuem ambos os “particulares de base” pelos quais Strawson define pessoa – os físicos e os mentais. Pretende
o autor, desse modo, oferecer uma reflexão alternativa acerca dos princípios norteadores de um conceito de
pessoa (ver FRANKFURT, 1971, p. 5 e STRAWSON, 1971).
50
“discriminações acerca do certo e do errado, melhor ou pior, mais elevado ou menos elevado”
(TAYLOR, 1997, p. 16-17). Elas implicam avaliações reflexivas acerca de ações e modos de
vida em termos de mais ou menos valorosos.
Desse modo, não haveríamos de estranhar que esta noção se consolida como um dos
pilares da antropologia filosófica tayloriana. O “argumento transcendental” de Taylor se
monta no sentido de que avaliações fortes são vistas como inescapáveis para nossas vidas
como humanos ou como pessoas, em oposição aos “meros animais” que não o homem. Se
estou certo, o ponto mais forte da argumentação de Taylor reside na suposição de que a
carência de uma estrutura de avaliações fortes provocaria uma profunda, terrível e impensável
crise de identidade e de medo.
Mas algumas ambigüidades importantes ainda pairavam em torno desse conceito
crucial para o edifício tayloriano. Como bem observam Abbey e Laitinen
15
, nos primeiros e
originais artigos nos quais Taylor reflete sobre essa questão, a noção de avaliação forte dava
margem a distintas interpretações, sobretudo no que concerne ao caráter desta atividade
reflexiva, ou seja, da relação entre avaliação e reflexão (disso resultou que ela pôde ser
convenientemente tomada e “aproveitada” por distintas correntes de pensamento, tais como
comunitarista, subjetivista, racionalista ou objetivista).
Contudo, em coerência com suas opiniões diante dos estudos que fizera de Hegel,
Taylor demonstra em publicações posteriores (em “As fontes do Self”, por exemplo) o sentido
mais preciso dessas distinções qualitativas ligadas a valores: ao tentar tornar mais claras suas
opiniões, o autor enfatiza o caráter inarticulado e tácito da incorporação da moralidade. E
nesse ponto creio que será esclarecedor quando, adiante, delinear as linhas mestras de
raciocínio que são expressas em um texto bastante instrutivo: “Seguir uma regra” (In:
15
Para uma discussão mais pormenorizada de algumas questões sobre o conceito de avaliação forte, ver por
exemplo o livro de Ruth Abbey (ABBEY, 2000, pp. 17-25) e também o trabalho de Laitinen (2003).
51
TAYLOR, 2000a), no qual o autor aproxima as contribuições de Pierre Bourdieu e do
segundo Wittgenstein.
Assim, se lembramos do hegelianismo incrustado no raciocínio de Taylor, logo
concluímos que essas “avaliações reflexivas” não podem de modo algum significar uma
transparência do agente para consigo mesmo. Ora, o que parece tornar, extremamente
relevante e sedutora a noção de avaliação forte é justamente que ela pressupõe os valores
como entidades objetivas, anteriores aos desejos e escolhas dos agentes tomados
individualmente, existindo independentemente destes e oferecendo padrões pelos quais são
julgados (TAYLOR, 1997, p. 17). Por conseguinte, situam-se acima de nossas inclinações e,
portanto, são insuscetíveis de instrumentalização. Por isso, o que está em jogo com o
problema da ação para Taylor é justamente a idéia sobre o expressivismo do self pelo modo
como se situa em questões morais, que expressam e constituem sua identidade.
Compreendemos assim porque Taylor se inspira em Hegel para desenvolver sua teoria.
Mas Taylor deseja dizer ainda mais, ele procura argumentar que as avaliações fortes
estão intimamente e indissociavelmente ligadas à identidade das pessoas: é através da
“descrição” (seja ela mais “explícita” ou seja ela tácita e opaca) e qualificação dos desejos
expressas por essas avaliações que o agente guia sua vida conforme articulações
significativas, construindo posturas e comportamentos determinados.
Dessa maneira, completamos aqui o quadro imprescindível para a reconstrução da
filosofia analítica da ação tayloriana: unindo as contribuições de Hegel, Herder e Wittgenstein
à idéia de avaliação forte, temos que o agir é uma espécie de movimento que expressa aquilo
que o agente procura dentro de um quadro de “distinções significativas”. Isso porque a ação
está sempre imbuída de alguma forma de conhecimento que serve de orientação para a
articulação das expressões do agente. É a própria identidade que está em jogo nas
52
expressões manifestadas pelo agente. Caso não houvesse alguma forma de distinção
significativa, não se poderia falar sobre direção da ação.
Creio que a postura quanto ao caráter não transparente das avaliações fortes possa ser
melhor visualizada a partir das discussões presentes em seu texto “Seguir uma regra”: aqui,
um dos objetivos mais evidentes passa a ser – utilizando-se dos pensamentos de figuras de
extremo relevo nos campos filosófico e sociológico – examinar a presença de sentidos
inarticulados como uma dimensão privilegiada da vida e da ação social. Mais uma vez, o que
está em jogo é a condenação ao que ele chamou de “intelectualismo” e dos cânones da
“filosofia da consciência”.
16
Taylor recorre então ao último Wittgenstein e à sociologia
bourdieusiana, a fim de demonstrar que a “dimensão compreensiva” que fornece o sentido da
agência humana vai muito além de formulações explícitas e transparentes para nós.
Em suas “Investigações Filosóficas”, Wittgenstein fornecera os ingredientes para um
outro patamar de reflexão sobre uma faceta primordial de o quê significa “compreender uma
regra”:
essa faceta tem a ver com o que significa compreender uma regra. Compreender parece
implicar conhecimento ou consciência, mas Wittgenstein demonstra que o sujeito não só não
tem como não pode ter consciência de toda uma gama de questões que, não obstante, têm
influência direta sobre a correta aplicação de uma regra (TAYLOR, 2000a, p. 181).
Ele demonstra como as condições de sentido e de inteligibilidade de quaisquer
fenômenos, por mais elementares e evidentes que nos pareçam, são inextricavelmente
atreladas à existência de um “pano de fundo”, ou seja, de um conjunto contextual engendrado
por formas de apreensão prática não formulada do mundo. Oportunamente, Taylor cita
algumas célebres passagens das “Investigações”: “se esgotei minhas justificativas, alcancei o
16
Nesse sentido, é conveniente lembrar que a crítica engloba tanto o antigo utilitarismo, quanto as velhas e
novas versões do “individualismo metodológico” – importante corrente metodológica nas ciências sociais – e
outros como as teorias da escolha racional que polarizaram e continuam a polarizar a agenda de boa parte das
discussões, acentuadamente em certas versões de ciência política.
53
leito de pedras e minha pá entorta. Então sou inclinado a dizer: ‘Isso é simplesmente o que
faço’” (WITTGENSTEIN apud TAYLOR, 2000a, p. 183).
Isso leva-nos a pensar que “sujeitos” seguem regras de acordo com um pano de fundo
de compreensões como dado, no qual simplesmente se apóiam e do qual não possuem uma
formulação consciente: significados só se constituem com referência à armação contextual na
qual estão inseridos. Portanto, o pano de fundo para Wittgenstein – o seu “leito de pedras” –
seria o lócus das compreensões inarticuladas, imprescindíveis à existência de nossas práticas,
interpretações e condutas. De acordo com a interpretação que o filósofo canadense faz de
Wittgenstein, o pano de fundo pode também, muitas vezes, ser formulado de alguma maneira,
embora nunca exaustiva: isso sobretudo quando o agente é “forçado” ou incitado a esclarecer
as interpretações errôneas de uma regra que advém de uma diferença em relação ao pano de
fundo.
17
Certamente, Wittgenstein não está sozinho em seu posicionamento no que se refere
esse leque de questões; como bem salienta Taylor, outros pensadores como Heidegger ou
Merleau-Ponty também teriam apontado a necessidade de situar o locus primário de
compreensão dos agentes nas “práticas”. Sendo assim, Taylor almeja advertir-nos para o fato
17
Em se tratando da tentativa de assimilar as contribuições de Wittgenstein à esfera sociológica, podemos citar
também o esforço de Anthony Giddens para com a sua “Teoria da Estruturação”. Lutando ao mesmo tempo
contra a filosofia da consciência e contra o estruturalismo e o pós-estruturalismo, a autor propõe pensarmos a
estrutura como regras e recursos, nascendo daí a idéia de “dualidade da estrutura”, enquanto meio e resultado da
conduta que ela recursivamente organiza. Contudo, sua condenação dos pressupostos ele considerava um
“consenso ortodoxo” bem como a influência marcante de Jean-Paul Sartre empurrou-o no sentido de enfatizar a
capacidade de ação e reflexão dos sujeitos individuais: para Giddens é de fundamental importância para a teoria
social a noção de “cognoscitividade”, ou seja, tudo o que os atores sabem (ou crêem) acerca das circunstâncias
em que vivem, incluindo-se aí tanto o conhecimento tácito quanto o discursivamente organizado. Outros
conceitos são apresentados com vista a dar conta da teorização do autor, como o de “consciência prática”
(conceito para o qual a interlocução com Wittgenstein se faz presente), que se refere à cognoscitividade não
disponível discursivamente; de “consciência discursiva”, a qual representa tudo que os atores são capazes de
dizer ou expressar verbalmente acercas das condições do mundo e de sua própria ação; e de “monitoramento
reflexivo da ação”, que expressa o fato dos seres humanos rotineiramente se manterem em contato com as bases
do que fazem, deliberadamente e intencionalmente, consistindo antes num fluxo contínuo de atividades do que
numa série de atos discretos. Note-se que o sentido do termo “reflexivo” utilizado aqui é diverso do que constará
posteriormente no desenvolvimento da teoria giddensiana da modernidade. Enquanto que nesse momento a idéia
de reflexividade parece ser profundamente influenciada pela fenomenologia e pelo segundo Wittgenstein, nesta
última irá assumir traços acentuadamente racionalistas. Sobre isso, ver por exemplo Giddens (1989; 1991) ou a
discussão de Domingues (2002, p. 60).
54
de que nossa compreensão reside sobretudo em nossas práticas e, em conseqüência, impõe-se
a atribuição de um papel incontornável ao pano de fundo (TAYLOR, 2000a, p.186).
Mas como adquirimos essa espécie de compreensão inarticulada do pano de fundo?
Como isso é possível? Uma das mais brilhantes explicações para isso pode ser encontrada na
sociologia de Pierre Bourdieu: qualquer leitor um pouco familiarizado com a obra de
Bourdieu reconhece a centralidade para a mesma do seu conceito de habitus. Acredito que a
formulação de tal conceito representa um dos esforços mais relevantes e potencialmente
produtivas para o saber sociológico até então criados: entendido como sistema de disposições
duráveis, ele designa maneiras de ser que se originam de experiências significativas que se
tornam duráveis “no corpo”, ou seja, que são incorporadas, ou melhor, corporificadas.
Diante disto, a noção de habitus deve ser entendida como esquemas de percepção, julgamento
e ação, ou seja, estruturas perceptivas e cognitivas responsáveis pelos “gostos”,
“motivações” e “escolhas” dos agentes.
18
Unindo Wittgenstein e Bourdieu, o que se espera é obter uma demonstração de que as
“compreensões” do pano de fundo, o qual está na base de nossa capacidade de apreender
instruções e seguir regras, são em grande medida corporificadas e tornam-se, portanto,
compartilhadas pelos agentes através de signos sociais não articulados.
1.4. A opção pela hermenêutica como modelo de ciência
Diante de todo esse conjunto de estudos preocupados em refundamentar as reflexões
sobre as ciências humanas e em fornecer categorias que auxiliem a elucidação dos fenômenos
humanos, Taylor visivelmente faz sua opção por uma hermenêutica como método potencial
18
Com esse conceito, Bourdieu espera estar deslocando o problema tanto da dimensão da “intenção” – que pauta
de forma significativa as teorias subjetivistas – como de modelos de “determinação mecânica pela estrutura”,
característicos de visões objetivistas. A idéia de habitus está ligada ao princípio de encadeamento das “ações”
que são objetivamente organizadas pelas possibilidades e impossibilidades inerentes a uma condição econômica,
cultural e social específica.
55
primário de alcance da realidade social. A posição hermenêutica tayloriana é dependente das
seguintes constatações: se somos nós ao menos parcialmente constituídos por auto-
interpretações e essas podem ser muito diferentes de acordo com cada contexto humano, de
acordo com as várias linguagens que fazem concretizar em nós um pano de fundo de
distinções valorativas (a linguagem não apenas representa nossos selves e o mundo, mas
também é uma parte importante da constituição de nossas próprias vidas), por conseguinte,
cabe ao cientista social lançar-se no empreendimento de tentar acessar quais dessas
linguagens se fazem significativas para determinados contextos; em outros termos, devemos
nos esforçar para, nos limites das possibilidades, trazer à tona, tornar claros e articular os
sentidos presentes em um dado objeto de estudo.
É exatamente por isso que Taylor se pensa, em certo sentido, como herdeiro da
tradição de pensamento alemão que, a partir das discussões propostas em história e sociologia
por Wilhelm Dilthey e Max Weber – inaugurando o que se chamou de “sociologia
compreensiva” – colocou como central a questão da “compreensão” e do desenvolvimento de
um “método compreensivo”, dedicando a ela uma intensa e pormenorizada discussão
envolvendo aspectos tanto para um embasamento metodológico para pesquisas de história e
das ciências humanas, quanto para um problema com status tipicamente filosófico.
Obviamente, não é novidade – e Taylor sabe disso – a preocupação em delimitar as
dificuldades específicas de abordagem dos fenômenos humanos, apontando a natureza distinta
destes em relação aos fenômenos abordados pelas ciências naturais. Entre o final do século
XIX e início do XX, o filósofo alemão Dilthey insistentemente tentou garantir a autonomia
daquilo a que ele chamou de "ciências do espírito": as ciências humanas deveriam elaborar
métodos específicos, adaptados à especificidade de seu objeto, rejeitando portanto uma
simples transposição da postura explicativa praticada pelas ciências da natureza. A intuição de
Dilthey se guiava por um “idealismo objetivo”, aproximando-se mais de uma visão holista, e
56
na crença de que os fatos relativos à esfera das ciências sociais teriam como característica
principal serem significantes e, justamente daí, surge uma ênfase e preocupação crescentes
com a noção de “Verstehen” (BOUDON, 1990, pp. 75-76).
Alguns anos depois, o impacto das idéias de Dilthey incidiria decisivamente no
pensamento de um dos maiores ícones das ciências sociais: devidamente considerado um dos
grandes marcos fundacionais da sociologia (e a meu ver uma das maiores mentes que
marcaram a história dessa disciplina), Max Weber lançou-se à tarefa de refletir sobre os
recursos metodológicos referentes à interpretação e à compreensão da ação humana. Embora a
amplitude de suas discussões ultrapassem em muito suas próprias considerações
metodológicas (a exemplo de suas notórias contribuições no campo de sua sociologia da
religião), Weber escolheu – diferentemente de Dilthey – como elementos principais de sua
abordagem o “sentido subjetivo”, ou “significado subjetivo”, tornando a figura do
“indivíduo”, ou seja, do ator singular tomado em sua dimensão da ação, a unidade
fundamental de suas divagações teórico-metodológicas. Disso decorre o enquadramento da
sociologia weberiana sob a categoria de “compreensiva”, visto que visava alcançar o
entendimento de tais significados definidores da ação humana. O centramento nos sentido
individuais resulta na opção teórica que se tornou conhecida por “individualismo
metodológico”. Com isso, de acordo com as bases metodológicas que Weber defende, até
mesmo os fenômenos sociais mais abrangentes, complexos, a exemplo de modos macro-
sociais de dominação apenas se tornam compreensíveis mediante a análise de sua produção de
sentido na dimensão individual da ação.
19
Portanto, o problema que a hermenêutica e a tentativa de compreensão se colocam é o
de como apreender a significação das ações humanas, remetendo-nos à própria controvérsia
sobre a especificidade das ciências do espírito frente às ciências da natureza.
19
Daí a extrema relevância que irá cumprir em sua obra a caracterização dos tipos de ação social.
57
Há, contudo, uma peculiaridade crucial a que devemos dar relevo na postura
hermenêutica de Taylor: para ele, adotar uma atitude hermenêutica de ciência não significa
cair no subjetivismo, mas ao contrário, tentar afastar-se dele e, então, partir para a tentativa
de elucidaçao dos “panos de fundo” (o que o aproxima de Dilthey e o afasta de Weber). De
acordo com os ensinamentos do segundo Wittgenstein, uma análise consistente não deve
prescindir do compromisso holístico de se pensar na totalidade de relações onde os eventos
estão inseridos. Através da análise hermenêutica, o pensador canadense considera que abrem-
se as portas para que o investigador desvende e compreenda o sentido de certas condutas, de
certos arranjos, de certos grupos, de certo período histórico, de uma forma mais profunda e
reflexiva do que os próprios agentes envolvidos em tais processos. Não podemos dizer o que
alguma coisa significa partindo simplesmente da própria coisa: temos de examinar também o
contexto no qual ela foi produzida e o contexto no qual estamos nesse momento tentando
extrair sentido da mesma; devemos nos atentar para os panos de fundo que subjazem às
compreensões que intentamos compreender. Portanto, a hermenêutica deve ser entendida
enquanto possibilidade de se conhecer, decifrar e descrever as linguagens ou as regras que
governam uma forma de vida.
2. O resgate genealógico da identidade moderna
No que diz respeito à tentativa de “colocar em prática” suas formulações teórico-
metodológicas, no sentido de tentar realizar um diagnóstico de época, uma análise de um
contexto específico (embora muito geral e abrangente), o maior esforço de Taylor consistiu
em seu livro – talvez o mais conhecido deles – “As fontes do self ” (1997). Nele, o que se
busca, vale dizer, não é nada despretensioso – ao contrário, trata-se de um projeto bastante
ambicioso (e também por isso sujeito a críticas oriundas de muitas direções possíveis). O que
58
se pretende é uma busca genealógica dos principais e mais determinantes elementos morais
que trouxeram a especificidade do mundo moderno. A idéia original de uma genealogia é
nietzschiana, reapropriada por Foucault a partir de um determinado momento de sua obra.
Deve-se ter em mente que sua utilização por Taylor escapa às intuições originais desses dois
filósofos. Quando Nietzsche tinha em mente realizar uma genealogia ele pretendia denunciar
as origens arbitrárias da moral, ou seja, como os valores são criações do homem, com origem
em relações históricas de poder, de submissão, etc. Quando Foucault partia para suas análises
genealógicas, pretendia-se acima de tudo demonstrar, nas origens de um fenômeno, sua
submersão em termos de peças de relações de poder. Taylor, diferentemente, procura apenas
uma hermenêutica dos sentidos originários que levaram às configurações morais que procura
elucidar; a dimensão do poder é esquecida, ou ao menos deixada de lado.
Para Taylor, trata-se da tentativa de articular os panos de fundo das formações sociais
que lograram se desenvolver e se alastrar de forma sem precedentes na história. Nesse
aspecto, a postura de Taylor se aproxima da de Weber, no sentido de verificar o valor de
certas concepções de mundo para a própria origem da modernidade.
Nos capítulos iniciais de “As fontes do self”, Taylor visa oferecer algumas
formulações complementares às que estivemos estudando até o momento e que irão embasar
os procedimentos de pesquisa e de exposição que adotou ao longo desse extenso livro.
As reflexões que Taylor tanto critica teriam como um de seus maiores déficits o
entendimento incompleto do que constitui a moralidade, ou seja, a não tematização de
parcelas fundamentais dos fenômenos morais e de seu papel para a realidade social. Boa
parte da filosofia moral contemporânea, particularmente mas não apenas no mundo de língua
inglesa, tem abordado a moralidade de maneira tão estreita, concentrando mais no que é certo
59
fazer do que no que é bom ser, antes na definição do conteúdo da obrigação do que na
natureza do bem viver (TAYLOR, 1997, pp. 15-16).
20
A concepção tayloriana de moralidade parece se definir em associação íntima com a
existência das avaliações fortes, e abrange algo que, segundo o autor, permaneceu
secundarizado por quase toda a reflexão moderna sobre a moralidade: o papel que ela
desempenha para a construção da vida, das formações históricas de uma forma geral,
sobretudo no que concerne ao sentido de “vida plena”. A meu ver, o que Taylor está
sugerindo é que jamais deve-se desvencilhar padrões históricos de elementos morais,
sobretudo no que tange ao sentido de viver uma “vida plena” e valorosa, permitindo assim
requerer a centralidade da idéia de moralidade para as ciências sociais.
Segundo nos diz o autor, a moralidade envolve três dimensões ou três eixos distintos
de avaliação: a primeira dimensão refere-se aos variados sentimentos de respeito pelos outros
e às nossas obrigações perante eles; a segunda remete-se a nossa compreensão do que
significa ter uma vida plena; e a terceira concerne à dignidade, ou seja, como pensamos nós
mesmos como merecedores ou não de respeito e de admiração por parte das pessoas que nos
cercam. O termo “respeito” no último eixo de avaliação moral citado, possui significação
distinta da que foi empregada no primeiro eixo. Trata-se do que Taylor denomina “respeito
atitudinal”:
Não me refiro agora ao respeito a direitos, no sentido na não-violação, que podemos
denominar respeito ‘ativo’, mas ao pensar bem de alguém, até mesmo de admirá-lo, que é o
que está implícito quando dizemos na linguagem comum que alguém tem nosso respeito
(TAYLOR, 1997, p. 29).
20
Os equívocos na abordagem das questões morais – equívocos sobre a natureza e alcance de tais questões
seriam compartilhados por distintas concepções filosóficas e científicas como o utilitarismo, as teorias da escolha
racional, novas formulações baseadas na filosofia kantiana, teorias sociobiológicas, perspectivas
neonietzschianas, a teoria habermasiana (principalmente devido a sua incorporação da noção parsoniana de
sistema), etc. As ênfases de suas críticas dirigem-se a pontos específicos distintos de acordo com a concepção
analisada. Cada uma delas, diz o autor, daria conta de descartar ou desconsiderar à sua maneira alguma dimensão
da moralidade.
60
O que Charles Taylor almeja definindo a moral através da inclusão dessas três
dimensões é precisamente alargar de modo significativo a abrangência do conceito de
moralidade, posto que esta tem sido compreendida de forma inadequadamente estreita.
21
No empreendimento levado a cabo em “As fontes do Self”, a pretensão central é a de
capturar o pano de fundo que subjaz às intuições morais e espirituais que dominam o mundo
moderno. Esse pano de fundo está compreendido naquilo que Taylor irá denominar de
“ontologia moral”. Em certo sentido isso faz de Taylor um herdeiro da tradição
durkheimiana, ou seja, no sentido de atribuir à moralidade uma dignidade própria,
imprescindível à análise dos fatos sociais. A busca pelos alicerces dessa ontologia moral
reclama a compreensão das “configurações” responsáveis em última instância por nossas
posturas e comportamentos morais. No vocabulário de Taylor, o conceito de configuração
refere-se a um “conjunto crucial de distinções qualitativas” pelo qual nossos sentimentos,
ações e posturas são classificados como mais ou menos valiosos do que outros:
Pensar, sentir, julgar no âmbito de tal configuração é funcionar com a sensação de que alguma
ação ou modo de vida ou modo de sentir é incomparavelmente superior aos outros que estão
mais imediatamente a nosso alcance (TAYLOR, 1997, p. 35).
Uma configuração compreende um elenco significativo de avaliações fortes, ou seja,
engloba um conjunto de classificações pelas quais se tem referência sobre o que merece nossa
reverência, respeito ou admiração – existindo independentemente de nossos desejos,
inclinações e escolhas. As configurações são portanto conjuntos edificados de distinções que
respondem pelos modos de orientação essenciais à nossa identidade. Devem ser pensadas
como orientações básicas que coordenam as ações das pessoas. Elas proporcionam o
fundamento, explícito ou implícito, de nossos juízos, intuições ou reações em qualquer das
três dimensões da moral acima mencionadas.
21
Um exemplo disso é a compreensão do caráter moral como sinônimo de obrigação, difundida em diversas
formas de pensamento.
61
Na busca por refutar as formulações teóricas emanadas do naturalismo, que excluem
liminarmente as configurações de qualquer consideração, o autor canadense procura rastrear
os vínculos existentes entre os direcionamentos do “bem” e a construção da identidade
humana.
22
Esse elenco de teorias naturalistas alimentaria a concepção de que toda avaliação é
uma mera projeção de nossas reações subjetivas sobre um mundo neutro.
23
Mas Taylor
pretende demonstrar como o self só pode ser definido e compreendido a partir de sua situação
em um “espaço moral” pré-existente. Na verdade, o que ele busca nessa parte de “As fontes
do self” pode ser visto como uma tentativa de exame das características inescapáveis de nossa
linguagem moral, de uma espécie de esforço de captura das “condições quase transcendentais
da existência moral” ou, como ele mesmo diz, de uma “fenomenologia moral”.
Uma das orientações fundamentais de nossa existência pode ser abordada pelo
pergunta “quem somos?”. A resposta formula-se nos termos do posicionamento em que nos
colocamos dentro de um espaço moral considerável para nós. A orientação que tomamos com
base nas configurações disponíveis define nossa identidade: “podemos ver que ela [a
identidade] só representa o papel de nos orientar, de nos proporcionar a estrutura na qual as
coisas têm sentido, em virtude das distinções qualitativas que incorpora” (TAYLOR, 1997, p.
47). Assim, orientamo-nos em um espaço que tem existência própria independentemente de
nosso sucesso ou fracasso na descoberta de nossas coordenadas, posto que só podemos adotar
as distinções que fazem sentido para nós a partir de uma orientação em que já nos situamos.
Taylor nos diz que, se fosse possível um sujeito completamente livre de configurações, este
22
Note que a palavra “bem” é e será empregada aqui com um sentido bastante abrangente, designando quaisquer
princípios considerados valiosos, dignos, admiráveis, de qualquer tipo ou categoria.
23
Um dos fatores que dão plausibilidade as teses de que as configurações são “opcionais” é o processo chamado
de “desencantamento” que progride na cultura moderna, que minou os alicerces de muitas configurações
tradicionais, gerando a situação em que antigos horizontes de ação foram varridos do mapa e todas as
configurações podem apresentar-se problemáticas. Em tal situação coloca-se o problema em termos de perda de
sentido ou perda de horizontes (TAYLOR, 1997, p. 43). De certa maneira, também a tensão entre distintas
configurações existentes no universo contemporâneo pode criar uma impressão de carência de sentido.
Voltaremos a esse ponto mais tarde, quando tratarmos da especificidade moral do mundo moderno.
62
estaria fora de nosso espaço de interlocução e julgaríamos isso completamente anormal e
patológico.
A constituição da identidade é perpassada por inúmeros “imports” que caracterizam
qualitativamente nossas emoções dentro do espaço moral. Os sentimentos de vergonha ou de
humilhação, por exemplo, só ganham significação valorativa se estiverem coadunados com o
self do sujeito, ou seja, em virtude do modo como ele vê a si mesmo num espaço de questões
morais.
24
Nota-se que o que Taylor almeja é mostrar o estreito entrelaçamento existente entre o
nosso sentido do bem e nosso sentido do self. Ser um self para Taylor significa ser dotado de
uma auto-compreensão, de auto-interpretação, de um conjunto de significações em que
reconhecemos orientações para o bem. Sob esse prisma, o self não existe fora de um espaço
de indagações, fora de uma linguagem. Além disso, “uma linguagem só existe e é mantida no
âmbito de uma comunidade lingüística. E isso indica outra característica crucial de um self.
Só se é um self no meio de outros. Um self nunca pode ser descrito sem referência aos que o
cercam” (TAYLOR, 1997, p. 53). Ou em outras palavras, tanto o sentido de bem como nosso
self estão inseridos em determinadas redes de interlocução: é somente na e pela linguagem
entendida não como meio designativo e instrumentalizável pelo pensamento, mas como uma
construção anterior às “mentes individuais” – que a identidade do agente se elabora e se
expressa.
A forma como num indivíduo se articula uma visão do bem o leva a ter distinções
qualitativas quanto às suas escolhas, inclinações e intuições éticas. Ou seja, o que está em
jogo é o posicionamento do self a partir de pressuposições básicas de valores. A identidade do
24
Em contraposição a experiências marcadas pela presença de “imports”, Taylor cita algumas reações que não
envolveriam nenhum julgamento ou atribuição significativa importante. Alguns exemplos de reações desse tipo
utilizados pelo autor: “alguém que arranha as unhas sobre o quadro negro e eu me retraio e me arrepio”; “minha
reação de náusea diante de um ‘objeto’ qualquer”; “ou mesmo o pulo que dou quando, no dentista, ele toca de
repente o nervo do meu dente” (TAYLOR, 1985a, p. 51).
63
indivíduo, para Taylor, é construída sempre em relação a esses bens significativos, seja por
adesão ou afastamento em relação a eles.
25
Mas o sentido de bem tem de ser incorporado à auto-compreensão da vida como uma
história em andamento. O self baseia-se não só na percepção de “onde estamos” como
também de “para onde vamos”. E enquanto a primeira (“onde estamos”) pode ser elaborada
como uma questão de “mais ou menos”, a segunda (“para onde vamos”) é uma questão de
“em direção a” ou “em afastamento de”, ou seja, uma questão de “sim” ou “não”. Em outras
palavras, a identidade é definida em relação a pontos valoráveis em que nos encontramos e
em que direção estamos rumando em relação a ele. Conseqüentemente, a auto-compreensão
de um self ocorre inescapavelmente em termos de alguma forma de construção narrativa da
vida, pois o movimento em direção ou numa direção que se afaste de fins valorosos são os
tópicos de nossa biografia. Em uma interessante análise comparativa entre a concepção de
narrativa em Taylor e Ricoeur, Laitinen afirma que para Ricoeur, as narrativas também
envolvem formas centrais de auto-interpretação. Poderíamos dizer que para ambos os
filósofos os aspectos éticos e narrativos são aspectos necessários no processo de criação e
sustentação de nossas identidades (LAITINEN, 2002).
2.1. As hierarquizações entre bens
Mas seria demasiado grosseiro ou simplista supor que apenas uma noção de bem
isolada rege o direcionamento da vida de uma ou outra pessoa. Há na realidade –
especialmente no mundo moderno – a convivência de múltiplos bens simultâneos. Contudo,
25
A orientação para o bem não é um elemento extra-opcional, algo que podemos aceitar ou não, mas um
requisito de nossa condição de self com uma identidade. Ou seja, ao longo de sua argumentação, Taylor procura
de várias formas comprovar a anterioridade das avaliações fortes frente à identidade e às respostas morais. As
avaliações fortes não constituem elementos que podem ser escolhidos pelos agentes, mas sim bens aos quais eles
não podem se esquivar, ou seja, elas são “inevitáveis”. A identidade humana não pode nunca se furtar de noções
de bem.
64
embora múltiplas configurações estejam presentes na orientação dos indivíduos, existem
formas de hierarquização entre elas de modo que uma pode elevar-se como a mais
importante ou a mais “séria” – um bem pode ser dotado de “suprema importância
relativamente aos outros” (TAYLOR, 1997, p. 89). Sugere-se assim que determinados bens
em questão ocupam um lugar incomparável, situando-se acima de todos os outros e
proporcionando os marcos para direcionar a vida das pessoas “compromissadas” com eles.
É a orientação na direção desse bem que mais se aproxima da definição da identidade da
pessoa e, portanto, o direcionamento para esse bem tem para ela importância ímpar [...]
Precisamente porque minha orientação para ele é essencial à minha identidade, o
reconhecimento de que minha vida se afasta ou de que nunca pode aproximar-se dele seria
devastador e insuportável. Simetricamente, a garantia de que estou rumando para esse bem me
dá um sentido de integralidade, de plenitude de ser uma pessoa ou self, que nada mais pode me
proporcionar (TAYLOR, 1997, pp. 89-90).
Tais tipos de bem dotados de tal força orientadora são denominados por Taylor de
hiperbens (Hypergoods). Além de serem demasiado superiores aos outros, estes também
proporcionam uma perspectiva a partir da qual esses outros devem ser pesados, julgados e
decididos. Funcionam como um sentido orientador do que é importante, valioso ou imperioso,
que emerge em nossas intuições sobre a maneira como devemos agir, sentir, reagir em
distintas ocasiões e aos quais recorremos quando deliberamos sobre questões éticas. Através
da demonstração da importância dos hiperbens para a explicação da realidade social, o autor
concentra sua argumentação no combate às teorias modernas da moral.
26
Avançando as páginas de sua discussão, temos a noção de “bens constitutivos
(constitutive goods), que se refere a certas idéias-guia que em determinado contexto cultural
logram desenvolverem-se como matriz motivacional da ação, sendo elas os fins últimos de
referência, as chaves para toda uma ordem moral. Essas idéias-guia são os bens constitutivos,
26
Segundo Taylor, as teorias da moral dominantes envolveriam uma preocupação com os fins universais das
ações, esquecendo-se das questões que dizem respeito ao que significa uma vida melhor ou mais satisfatória, ou
seja, deixam de lado a questão da hierarquização de bens em prol de uma concepção “neutra” da moral (Ver por
exemplo “As fontes de Self”, págs. 90-92).
65
são as fontes morais, ou seja, assumem a posição de matriz para direcionamentos morais
eficazes, capazes de determinar nossos sentimentos e modos de vida: eles são as origens
últimas que fazem dos bens da vida dignos de serem buscados e desejados. A partir dessa
noção, percebe-se como o entendimento discursivo no domínio das diferentes configurações
exige a busca dos diferentes bens constitutivos que as forjaram. O acesso a tais bens resulta,
na ótica de Taylor, em uma melhor compreensão acerca de quem realmente somos.
Procurei expressar no quadro abaixo o meu entendimento sobre os principais conceitos
taylorianos aludidos e a relação entre eles:
Tabela 1. Conceitos elementares da análise hermenêutica de Charles Taylor
Import
O termo se refere à atribuição de alguma forma de significação (em termos de não-
indiferença, ou seja, algo que carrega algum tipo de valor ou importância, sutil ou
evidente) a qualquer tipo de fenômeno que se encontra no universo simbólico de
uma dada pessoa ou grupo. Nossos próprios sentimentos e emoções estariam sujeitos
a atribuições dessa natureza.
Avaliações
Fortes
São caracterizações contrastivas imersas na linguagem (distinções qualitativas),
pelas quais são discriminadas orientações sobre o certo e o errado, melhor ou pior,
mais ou menos elevado ou digno de respeito, etc. Elas são “fortes” no sentido de que
situam os próprios desejos, não sendo algo instrumentalizável, ou seja, que podemos
lidar como escolhas, mas elas mesmas situam e moldam nossas inclinações mais
elementares. Isso porque elas são “corporificadas” e manifestam assim como
expressão de certas linguagens que fazem concretizar em nós essas distinções
valorativas. Avaliações fortes implicam, dessa maneira, em imports que sejam
expressos em termos de contrastes.
Configuração
Uma configuração supõe um conjunto de avaliações altamente significativas que, em
um determinado lugar e momento histórico, logram serem influentes a tal ponto de
serem cruciais para os alicerces da organização social, de sua reprodução
institucional e do modelamento do self. Em termos mais sintéticos, corresponde a
um conjunto fundamental de avaliações fortes para uma dada sociedade, ou seja,
orientações básicas que coordenam as ações das pessoas.
Bens
constitutivos
São as verdadeiras fontes morais, ou seja, núcleos morais originários a partir dos
quais se desenvolvem um ou mais hiperbens. Em outras palavras, são as matrizes de
sentido mais básicas de onde se desenvolvem direcionamentos motivacionais para a
ação em larga escala.
Hiperbem
É um bem (princípio valorável, digno ou admirável) dotado de tal força orientadora
que, além de ser demasiado superior a outros presentes na situação, proporcionam a
própria perspectiva a partir da qual esses outros devem ser pesados, julgados e
decididos. As configurações se erigem em torno de bens desse tipo.
Horizontes
A idéia de horizonte procura expressar o pano de fundo de inteligibilidade da própria
identidade, os limites impostos, os espaços abertos, os termos em que pode ser
construído o centro de nossos selves. Representa o espaço moral aberto pelas
configurações existentes num dado contexto.
66
2.2. As possibilidades de articulação: sobre o status da hermenêutica como tradução
discursiva
Quando me referi ao entendimento discursivo das configurações, o que estava
implícito é que, para Taylor, os “bens” só podem existir por meio de alguma forma de
articulação, ou seja, por meio de distintas linguagens desenvolvidas – lembrando-se que o
termo linguagem aqui é usado num sentido amplo e abrangente (TAYLOR, 1997, p. 125).
Portanto, mesmo que determinados bens ou valores não se encontrem acessíveis a um agente
de modo “transparente”, ainda assim precisam de alguma forma de articulação para que
possam se impor a ele. Uma forma de articulação desse tipo só é compreensível mediante o
entendimento da linguagem como englobando todo o leque de sistemas de signos, tais como
gestos, imagens, elementos rituais, sons, etc.
Mas o termo “articulação” também passa a designar no texto de Taylor o acesso
discursivo aos nossos sentimentos morais que estão inconscientes e irrefletidos, ou em outras
palavras, a possível compreensão e reflexão sobre nossa própria estrutura interna, sobre os
bens que guiam nossa vida, permitindo um maior controle de nossos próprios sentimentos.
Articular uma configuração é, nesse sentido, explicar o que dá sentido a nossas respostas
morais, ou seja, significa em última instância perseguir os bens constitutivos que deram
origem a elas e tentar compreendê-los através das possibilidades que a linguagem nos oferece:
“A articulação explica de maneira mais plena e rica o significado de dada ação para nós, em
que consistem exatamente seu caráter bom ou mau, obrigatório ou proibido” (TAYLOR,
1997, p. 111). Contudo, a articulação jamais pode ser exaustiva (nessa questão, Taylor
lembra mais uma vez de Wittgenstein: “traduzimos uma linguagem com outra”).
A partir de tais formulações, acredito que o raciocínio de Taylor se constrói da
seguinte maneira: se por um lado os níveis mais explícitos (mais articulados) parecem ser
67
dependentes de um nível implícito, mais profundo e menos articulado, por outro lado está
aberta a possibilidade de níveis implícitos serem reforçados ou mesmo alterados por
formulações explícitas.
27
Mas a tarefa de articular o pano de fundo moral que compõe o mundo humano torna-
se ainda mais árdua quando as grandes tendências da epistemologia moderna empenham-se
em ocultá-lo: Taylor considera que uma vasta inclinação da filosofia moral moderna tenta
excluir de consideração as distinções qualitativas que subjazem às nossas intuições morais. O
autor vê esse “movimento de ocultação” dos hiperbens que regulam nossos direcionamentos
morais como uma espécie de “ética da inarticulação”. O movimento desenvolve-se em
conseqüência de certos hiperbens presentes na cultura moderna, que implicam uma elevada
aspiração à liberdade e ao universalismo, ou seja, tais ideais acabam impelindo os teóricos à
negação de todos os bens.
28
2.3. As idéias e as práticas: “uma digressão sobre a explicação histórica”
Críticas freqüentes são desferidas ao modelo de enfoque realizado por Charles Taylor
no sentido de classificá-lo como uma mera “história das idéias” ou como uma abordagem de
caráter “idealista”. No entanto, seu interesse primordial – diz o autor – é pela eficácia das
idéias e das visões de mundo, ou seja, pela capacidade destas ganharem a mente das pessoas,
pela maneira como isso ocorre. É entender o porquê de certas idéias e não outras tornarem-se
atuantes em certos grupos, em classes, ou e mesmo em sociedades inteiras.
27
É com base nisso que, como veremos adiante, tornar-se-á compreensível toda a discussão (aliás bastante
polêmica) em torno de sua predileção por analisar os desenvolvimentos morais através da análise de formulações
e sistematizações filosóficas, religiosas e literárias (discutirei esse problema de uma forma um pouco mais
detalhada nas páginas posteriores do presente texto).
28
Ele resulta também, em alguns casos, de uma extensão inadequada de pressupostos formulados pelas ciências
naturais. No fundo, o que está em jogo por detrás das idéias “naturalistas” são intuições morais tão profundas,
potentes e universais, que tendemos a pensar nelas como estando arraigadas no instinto, em contraste com outras
reações morais que temos consciência advirem da educação e da criação (TAYLOR, 1997, p. 17).
68
De fato, é um tanto notório que sua abordagem dispensa pouquíssima atenção aos
modos pelos quais mudanças sociais se articulam com transformações de outras ordens que
escapam ao desenvolvimento dos escritos filosóficos e religiosos. Seu apego a idéias
filosóficas como se estas fossem as fontes do desenvolvimento moral parece-me sobremodo
acentuado. Os fenômenos sociais envolvem uma multiplicidade de dimensões e variados tipos
de “determinantes”, de relações e interações, situadas em termos espaciais, materiais,
econômicos, etc. Acredito que ninguém, em sã consciência, defenderia uma posição de que
análises sociológicas ou de qualquer outra ciência social deve se resumir ao tipo de
abordagem desenvolvida por Taylor. O próprio Taylor reconhece, em certos trechos, as
limitações intrínsecas à sua abordagem, que segundo ele não tem a pretensão de envolver uma
“explicação total” dos fenômenos gerais por ele analisador.
As análises históricas de Foucault, como veremos, também recorrem às “idéias” ou os
“saberes” como elementos cruciais, mas a partir de um ponto de vista bastante distinto. Os
saberes, para Foucault, são sempre visualizados seja a partir regras de formação discursiva,
seja em termos de inserção em jogos de poder, de peças de relações de poder. Se ele procura
explicar os saberes em suas origens, isso se faz no sentido de procurar as condições de
possibilidade dos mesmos, em meio às práticas e relações de poder que se estabeleceram ao
longo dos seus desenvolvimentos.
Mas Taylor tenta se esquivar das críticas mediante o argumento de que seu interesse
pelas doutrinas filosóficas e religiosas somente ganha sentido na medida em que estas se
articulam com as “práticas”. Além disso, Taylor esclarece que embora ele se utilize dos
escritos de filósofos e moralistas na sua reconstrução das fontes morais, isso não implica que
ele considere que as idéias emanaram daqueles, ou seja, que eles de alguma forma fizeram-
nas brotar a partir de suas próprias mentes. Aliás, isso seria até mesmo contraditório à sua
perspectiva. Os filósofos, acredita o autor, articulam e sistematizam algo que já está de algum
69
modo em andamento, muitas vezes de modo bastante inarticulado e incipiente. Mas suas
formulações também podem tornar-se influentes em certos meios e lograrem influir nas
“representações” e atitudes das pessoas em vários níveis de suas práticas: desse modo, não
haveria como estabelecer uma prioridade histórica muito definida, no sentido de estabelecer
uma relação de causalidade histórica entre as formulações filosóficas e a “cultura moral”.
O próprio autor de certa forma interrompe sua tentativa de reconstrução genealógica
do self moderno com o capítulo “Uma digressão sobre a explicação histórica”, a fim de
tentar combater as críticas sobre seu trabalho. Nesse capítulo, o que autor almeja demonstrar é
como sua intenção não é a de realizar uma explicação histórica sobre a construção do mundo
moderno, prescindindo dos determinantes institucionais e estruturais atuantes no seu
desenvolvimento.
29
Mas a captura das idéias e dos valores é extremamente relevante para
essa “explicação” de um fenômeno histórico – postura da qual também compartilho. Não é
possível pensar na existência de instituições (sejam econômicas, políticas ou outras quaisquer)
sem que existam formas de compreensão sobre elas, ou seja, maneiras mais ou menos sutis
pelas quais dotamos algum sentido às práticas institucionalizadas.
Nesse sentido, Taylor concorda com Weber, por exemplo, sobre as concepções
religiosas do mundo terem sido imprescindíveis às formas práticas de organização econômica
e política que consolidaram a singularidade do mundo ocidental. O interesse pela eficácia das
idéias, e não somente por seus possíveis nexos e conteúdos intrínsecos, é o que torna a obra
Taylor digna de interesse por parte das ciências sociais – especialmente a sociologia:
“Entender no que consiste a força de certas idéias é saber algo relevante a respeito de como
chegaram a ser essenciais para uma sociedade histórica” (TAYLOR, 1997, p. 265). Por essa
razão, o autor considera como injustas muitas das classificações de sua abordagem como
29
O autor chega a dizer que “a questão realmente ambiciosa diz respeito à relação de toda essa cultura moral
com sua ‘base’ econômica e social. Gostaria de dizer algo inteligente e válido sobre esse assunto, mas isso está
além de minha capacidade e muito além do âmbito desta obra. Parece claro que o surgimento dessa cultura
relacionou-se de maneira complexa com as mudanças das práticas econômicas, das estruturas e métodos
administrativos e das disciplinas [...]” (TAYLOR, 1997, p. 396).
70
simples história das idéias. Ora, é bem verdade que muitas de suas análises possuem fortes
paralelos com os diagnósticos de sociólogos amplamente reconhecidos, tais como Max
Weber, Norbert Elias, Georg Simmel ou Émile Durkheim, entre tantos outros que poderia
citar, o que realmente parece demonstrar a plausibilidade sociológica de muitas de suas
análises.
A relação básica existente entre as “idéias” e as “práticas” é que aquelas articulam
estas últimas como padrões de obrigações e proibições. Para Taylor o termo “prática” refere-
se a algo extremamente abrangente e genérico:
praticamente qualquer configuração estável de atividade compartilhada, cuja forma seja
definida por certo padrão de obrigações e proibições, pode ser uma ‘prática’ para meus
objetivos. [...] E existem práticas em todos os níveis da vida social humana: família, cidade,
política nacional, rituais de comunidades religiosas (TAYLOR, 1997, p. 266).
Em outras palavras, condutas econômicas, políticas e administrativas existem como
“práticas” apenas por meio de algum modo de compreensão delas. Mas as idéias podem
entrelaçar-se com as práticas das maneiras mais variadas: pode, por exemplo, haver relação de
reforço mútuo entre as duas:
Por exemplo, uma relação importante liga a noção lockeana de ‘individualismo possessivo’ e
as práticas econômicas da sociedade capitalista de mercado. Mas essa relação não deve ser
confundida com uma interação causal unidirecional. É tão importante observar o modo pelo
qual essa autocompreensão preparou terreno para uma expansão das relações de mercado
quanto assinalar a maneira como a maior penetração dos mercados tornou natural para as
pessoas verem-se dessa forma. A seta causal voa nas duas direções (TAYLOR, 1997, p. 268).
Ou seja, as idéias pelas quais Taylor se diz atraído, em sua ampla maioria, são aquelas
que estão ou que tornaram-se presentes em nossa vida por meio de práticas: as que se
relacionam ao nosso modo de auto-interpretação e que servem de guia para nossas ações
corriqueiras, que como vimos anteriormente, possuem a forma de distinções qualitativas
71
acerca do que é considerado certo e errado, superior e inferior, mais digno e menos digno, e
assim por diante.
2.4. A singularidade moral do mundo moderno
Como vimos, Taylor se vê como nadando contra a correnteza, ou seja, como tentando
vencer as diversas dificuldades geradas pelo que chamou de “ética da inarticulação” e
desvendar a ontologia moral, o pano de fundo que rege nossas ações: a ambição de “As fontes
do self” é, pois, a de articular os bens constitutivos presentes no seio da modernidade. Estes
são, na visão de Taylor, os responsáveis pela singularidade ocidental. Para analisar e
interpretar a força de valores como autonomia ou liberdade no ocidente não basta apenas
perceber sua extrema importância, mas devemos perguntar por que se tornaram tão
fundamentais em nossas vidas. Cumpre acompanharmos a trajetória que os fez tornarem-se
tão importantes em nossas orientações de respeito cotidianas.
O filósofo acredita que tal objetivo é apenas alcançável por um método genealógico de
investigação: deve-se vasculhar as origens históricas das concepções de bem que se tornaram
efetivas em nosso mundo, bem como a forma como tais idéias desenvolveram-se e lograram
povoar a mente das pessoas. Conseqüentemente, o que Taylor almeja traçar com base em sua
concepção hermenêutica é uma “topografia moral” do mundo moderno. Sua visão inicial é
de que o mundo moral dos modernos é significativamente distinto do que caracteriza as
civilizações precedentes. A progressiva extensão de nosso sentimento de respeito pode ser
tomada como uma forte evidência disso (entende-se por respeito aqui o tipo de reação
incluída na primeira dimensão da moral descrita anteriormente, ou seja, o respeito “ativo” à
vida e à integridade alheia), dado que este aparece cada vez mais como um valor
universalizado, direcionado a todos seres humanos. Entre outras civilizações evidentemente
72
existiam sentimentos desse tipo, mas era sempre restrito a algum grupo ou classe determinada.
Essa “ética universal” teria substituído éticas anteriores “mais restritas”, por meio de vários
estágios e de lutas renhidas. Tal noção de respeito envolve a inclinação e a preocupação
crescentes em nossa cultura de se evitar o sofrimento. Uma peculiaridade do ocidente
moderno é de sua formulação predileta desse princípio de respeito ter sido feita em termos de
direitos. As normas morais universais de respeito teriam passado, ao longo do
desenvolvimento ocidental, a ser tomadas como “direitos subjetivos”, ou seja, como uma
quase-posse do agente a quem é atribuído (TAYLOR, 1997, p. 25).
A natureza das modernas noções de respeito à vida e à integralidade remete ao
moderno sentido de dignidade, assim como às noções de autonomia, de liberdade, e ao
princípio da “afirmação da vida cotidiana”, os quais tomarei como objetos de discussão a
seguir. Outro traço marcadamente moderno é uma série de interrogações que giram em torno
do sentido da vida, que seriam ininteligíveis em outras sociedades – “os modernos podem
duvidar ansiosamente que a vida tenha sentido, ou ficar divagando sobre qual seria esse
sentido” (TAYLOR, 1997, p. 31). Isso se deve, segundo o autor, ao fato de que as
configurações tornaram-se problemáticas: algumas configurações tradicionais sucumbiram,
outras perderam quase toda a força e nenhuma das que predominam consegue ser partilhada
por todos; nenhuma detém o monopólio.
2.4.1. As raízes valorativas do desenvolvimento ocidental: da guinada rumo ao interior
até o ideal de desprendimento
Irei agora adentrar no resgate substantivo dos bens constitutivos que, segundo a
perspectiva tayloriana, teriam fundado o desenvolvimento da identidade moderna. Trata-se de
rastrear as origens e a forma como se transformaram as noções de bem, os sentidos de self, os
73
tipos de narrativa que posicionam os agentes frente ao mundo, traçando assim um mapa moral
de nossa época.
Taylor está convencido de que nosso sentido de self encontra-se intimamente
entrelaçado a um sentido de interioridade. Esse sentido está ligado ao fato de que nosso auto-
entendimento se baseia numa oposição radical “dentro-fora”, ou seja, somos permeados por
uma linguagem que nos faz pensar que nossos pensamentos, idéias e emoções se situam
“dentro” de nós, enquanto os demais objetos do mundo situam-se “fora”. Somos criaturas
com profundezas internas, onde se encontram nossas potencialidades e capacidades e mesmo
nosso inconsciente.
O autor quer a todo custo demonstrar que tal entendimento não é um universal humano
– embora hesitemos em aceitar tal proposição. Esse sentido de interioridade decorre de uma
forma historicamente situada de compreensão que se tornou predominante no mundo
ocidental.
30
Com o propósito de fazer o leitor reconhecer que a oposição interior-exterior é
algo sem precedentes em outras culturas e épocas, Taylor esclarece que essa análise nem
mesmo é original: “grande número de historiadores, antropólogos e outros consideram-na
quase um truísmo” (TAYLOR, 1997, p. 150).
Taylor se lança numa longa jornada de busca da gênese das principais concepções de
mundo que lograram se disseminar no ocidente. Ela leva-o à Grécia antiga. É interessante já
ressaltar que também Foucault recorre, em sua última fase, exatamente quando procura
conduzir uma genealogia da subjetividade e das formas de subjetivação modernas, à
Antiguidade grega, não só como um contraponto mas como uma tentativa de captura da
descendência das mesmas. Nesse sentido, Foucault vai mais longe que Taylor: ele conduz
30
Taylor reconhece a existência de algumas distinções possíveis entre “dentro” e “fora” que poderíamos
comparar com a idéia de interioridade. Contudo, elas não estão coadunadas com o self, com o indivíduo ou com
a distinção corpo-alma que nos é habitual. Assim, a idéia de profundidade interna que se elaborou no ocidental
seria algo bastante peculiar.
74
análises extensas sobre os modos de elaboração do self, da sexualidade, da subjetividade, das
formas de relação consigo no mundo grego.
Não poderei aqui, até mesmo por questão de tempo e espaço, acompanhar
detalhadamente o que para Taylor se esboça como uma reconstrução do desenvolvimento do
mundo moderno. Tentarei apenas apontar alguns pontos-chave dessa reconstrução.
Na filosofia platônica estaria expressa uma das primeiras elaborações dessa idéia de
interioridade. A doutrina moral platônica fundamenta-se na exigência de um tipo de
autodomínio que consiste no governo da razão sobre os desejos.
31
Caminhamos para o bem
quando a razão governa nossos instintos e para o mal quando deixamo-nos dominar por
nossos impulsos.
32
O controle pela razão implica a capacidade de centrar-se, de uma unidade
consigo mesmo, de calma e posse serena de si próprio. Estabelece-se assim uma concepção de
bem que irá exercer profunda influência sobre teorias morais posteriores, conforme
veremos.
33
A procura pela gênese da idéia de interioridade leva Taylor a Agostinho. A oposição
entre razão e desejo formulada por Platão ganha contornos mais sofisticados na dicotomia
entre “interior” e “exterior” desenvolvida por ele. Ou seja, a mesma oposição entre
espírito/matéria, superior/inferior, eterno/temporal, imutável/cambiante passa a ser descrita
31
Platão inaugura o desenvolvimento de grandes correntes morais que se baseiam na idéia da hegemonia
racional sobre os impulsos. O impacto de tais concepções é vastíssimo, mas encontrou, nos últimos séculos,
sérios opositores no plano da elaboração teórica, como algumas vertentes do romantismo, Nietzsche e a Escola
de Frankfurt.
32
O caminho para o bem é o caminho do autocontrole, pelo qual o homem torna-se “senhor de si mesmo”. A
porção superior da alma deve exercer controle sobre a inferior: “As almas boas gostam de ordem (kósmos),
concórdia (xumphonía) e harmonia (harmonía), enquanto as más são arrastadas em todas as direções por seus
desejos e estão em conflito perpétuo.” (TAYLOR, 1997, p. 156).
33
Mas na fundamentação sistemática que Platão constrói, a razão ainda não pode ser entendida em termos
procedimentais, ela não é construída no interior da mente. A razão é formulada sobre uma idéia de uma ordem
cósmica pré-existente, ou seja, a racionalidade é definida em termos substantivos: ela não é concebida como uma
faculdade presente no interior de nossa subjetividade. Ser racional é de certa forma se ajustar a uma ordem maior
ou do Bem, por meio de visão da mesma. Conseqüentemente a noção de interioridade da maneira como foi
descrita acima não pode ser atribuída à teoria platônica: a oposição dentro-fora não se encaixa nos termos do
platonismo. A racionalidade não “acontece” em nós, mas é fruto de um vínculo com a realidade cósmica
existente.
75
em Agostinho em termos de interioridade/exterioridade.
34
O interior é a alma e a interioridade
é a estrada em direção a Deus, que é o alicerce básico e o princípio subjacente de nossa
atividade cognitiva (TAYLOR, 1997, pp. 171-172). Por meio da introspecção, da exploração
reflexiva chega-se ao bem.
35
Através da valorização do exame de nossa própria interioridade
num procedimento reflexivo, constrói-se toda uma hierarquia valorativa que vai ser
fundamental na constituição do imaginário ocidental.
Além disso, o caminho do bem passa a exigir na doutrina cristã agostiniana a “boa
vontade”, ou seja, uma adesão pessoal ao bem, determinada pela capacidade de escolha dos
sujeitos. Isso implica a aceitação da idéia de que o próprio sujeito é em si mesmo responsável
por sua posição frente ao bem. Dessa forma, veremos adiante como a incorporação desses
princípios nos fundamentos religiosos da salvação fez esta hierarquia valorativa tornar-se
sobremodo eficaz no mundo ocidental (eficácia que se acentua pela idéia de que os homem
que têm consciência de que vivem, ou seja, que se aprofundam em seu exame interior, passam
a ser vistos como qualitativamente superiores aos que apenas vivem, carentes de reflexão
sobre si mesmos). A idéia de reflexividade interior presente nas idéias de Agostinho irá fundar
a concepção de reflexividade radical, que ganha força sobretudo a partir da obra de
Descartes.
36
Nos escritos de John Locke, Taylor vê um aprofundamento ainda maior da idéia
34
O platonismo teria sido assimilado por Agostinho sobretudo através da doutrina de Plotino.
35
O caráter distintivo dos seres humanos, por oposição aos seres viventes desprovidos de interioridade e aos
seres não viventes, é dado pela poder de transformar sua própria experiência existencial em objeto de reflexão:
“Algo que existe e vive é mais elevado que algo que apenas vive, e algo que também tem inteligência é mais
elevado ainda” (TAYLOR, 1997, p. 176).
36
Tanto Platão quanto Agostinho entendem que o lócus de nossas fontes morais está num plano exterior às
nossas mentes. Mas as idéias elaboradas por Descartes alteraram isso decisivamente. As fontes morais passam a
ser entendidas como habitando o interior dos indivíduos, rejeitando-se assim toda a possibilidade de bem exterior
à própria mente. Conseqüentemente, o ordenamento significativo das coisas “lá fora” deixa de ser algo que
descobrimos e passa a ser algo que construímos. A racionalidade, que em Platão era substantiva (vinculada a
uma ordem cósmica racional e que também é fonte de moralidade), no sistema cartesiano passa a ter caráter
procedimental. Inicia-se portanto uma ética do domínio racional com base no controle instrumental do mundo,
este último entendido como um conjunto de mecanismos passível de apreensão pelas nossas mentes. Uma
compreensão adequada sobre o mundo passa a exigir desprendimento com relação a valores e concepções pré-
existentes acerca dele e isso permite exercermos sobre ele formas de controle e de intervenção racional. Racional
refere-se à racionalidade procedimental, significando agir e pensar rumo a fins que se elaboram a partir de uma
ordem intramental, ou seja, a partir de determinados pametros que nós mesmos definimos (sob está ótica não
só o mundo exterior como também o próprio corpo torna-se passível de instrumentalização): “Agora, a
76
do “self instrumental”: em seu esquema de pensamento até mesmo a própria mente mostra-se
passível de controle racional.
Na verdade, o que está em jogo é o surgimento de uma concepção essencialmente
atomista e subjetivista do self. A autodisciplina, o autocontrole e o desprendimento são
percebidos na narrativa cartesiana como os princípios do bem viver, pelos quais a auto-estima
individual passa a estar entrelaçada com a “dignidade” do ser racional.
Chegamos assim ao que Taylor denomina “self pontual”, ou seja, uma maneira de
conceber o agente humano como inteiramente desprendido das configurações morais e capaz
de uma reflexividade radical (TAYLOR, 1997, p. 215). Isso culmina numa idéia da mente
como uma “tábula rasa”, remodelável a partir de si mesma e vinculada a uma moralidade de
auto-responsabilidade e de autocontrole.
37
Esse novo conjunto de distinções tem como núcleo
as noções de independência e de auto-responsabilidade: o self pontual é algo visto como livre
dos costumes e dos diversos tipo de autoridades “tradicionais” locais. Nasceria, a partir dessa
época, um sentido de dignidade e de auto-estima largamente diverso das noções tradicionais
de honra.
Segundo nos diz Taylor, é no século XVII que certas práticas disciplinalizadoras
como as militares, econômicas e políticas, expressando uma forte compatibilidade com a
noção que o autor chama de self pontual – embasadas pela concepção de interioridade já
“incorporada” à identidade de forma secularizada – reclamam pelo exercício das formas de
autocontrole e da autodisciplina em um número cada vez maior de pessoas:
A tremenda força do self pontual [...] decorre também de seu lugar central da postura
desprendida e disciplinadora em relação ao self em nossa cultura. Mencionei antes o
racionalidade é uma propriedade interna do pensamento subjetivo” (TAYLOR, 1997, p. 206). Temos então a
visão de um sujeito desprendido e reflexivo, capaz de se auto-instrumentalizar em função de fins perseguidos
conscientemente, pensado como “neutro” com relação significados prévios ou exteriores a ele. Os significados
estabelecem-se através das representações que têm origem “dentro” das mentes individuais.
37
A expressão “tábua rasa” (ou “tábula rasa”) refere-se, entre os empiristas radicais, à idéia de uma mente vazia,
anterior a toda experiência.
77
surgimento das práticas disciplinadoras em amplo grau nesse período nas forças armadas,
hospitais e escolas, assim como das práticas afins de controle e organização metódicos e
burocráticos (TAYLOR, 1997, p. 226).
Ora, aqui surge mais um ponto nítido de contato com a análise que examinaremos no
segundo capítulo. Em uma das raras oportunidades em que Taylor “desce” ao nível das
práticas para melhor explicar o desenvolvimento de certos componentes morais, o autor
canadense se aproxima das constatações de Michel Foucault presentes em Vigiar e Punir.
Disciplina, hospitais, escolas... na verdade até as palavras soam foucautianas. Mas enfim, o
que posso adiantar é que também para Foucault esses mecanismos disciplinares são
extremamente importantes, de maneira a modelarem o selves a partir de uma nova
configuração de poder.
Essa linha de pensamento que estivemos acompanhando através de sistematizações
religiosas e filosóficas compreende, segundo Taylor, a reconstituição de uma das grandes
facetas da identidade moderna. É uma corrente de internalização que definiu uma nova
compreensão do que constitui (e deve constituir) um agente humano. Esse elenco de fontes
morais – cujo produto Taylor denominou self pontual – seria um dos grandes responsáveis
pela singularidade do desenvolvimento do ocidente moderno.
Pautando-se pelas idéias de auto-responsabilidade, liberdade e razão procedimental,
o self pontual vê-se desprendido do mundo, livre da influência de fontes morais e quaisquer
elementos normativos exteriores a ele. Essa visão, de tão profundamente arraigada, teria se
tornado naturalizada, e através dela o agente não seria capaz de perceber o quão situado e
moldado ele é a partir “de fora”. Por isso, o self pontual mostra-se reificante, adequando-se
aos ideais de independência e de auto-responsabilidade. Esse modelo de self torna-se suporte
de outras concepções sobre o bem e o self, as quais mais tarde seriam fundamentais à auto-
compreensão das “pessoas comuns” por meio da revolução protestante e posteriormente das
78
“práticas disciplinalizadoras”. Nesse sentido, temos de acompanhar outro princípio
indispensável ao entendimento do self moderno: o da “afirmação da vida cotidiana”.
2.4.2. Práticas remodeladas: a afirmação da vida cotidiana
Estivemos examinando a construção de uma configuração moral baseada na noção de
self pontual, que percebe o ser humano como desprendido de contextos particulares e como
remodelável por ações disciplinadas e metódicas. A partir dela, novas noções de virtude são
engendradas. No entanto, tal conjunto de idéias – que permaneciam restritas a alguns meios –
tornaram-se efetivamente presentes nas práticas de um grande público a partir da reforma
protestante. A partir de um dado momento histórico uma transformação de enormes
proporções se realiza: é vista por Taylor como uma ruptura moral que servirá de fundamento à
modernidade ocidental. É o que ele chama de “afirmação da vida cotidiana”, ou seja, a
valorização suprema da dimensão da produção e reprodução corriqueiras, na qual se inclui
o mundo do trabalho, da família e do casamento.
Mas uma vez, Taylor nos lembra que tal valorização nem sempre foi como é: embora
tais esferas da produção e reprodução “infra-estruturais” estejam de um modo ou de outro
presentes nas várias sociedades precedentes (algo indispensável a toda vida social), elas
seriam, em formações culturais pré-modernas, reputadas como imensamente menos
dignificantes do que certos valores de honra aristocráticos, da realização dos grandes feitos ou
da virtude pública. Ou seja, as concepções pré-modernas de vida plena ancoradas na
superioridade da vida contemplativa, da guerra ou de outras formas aristocráticas, seriam
substituídas no processo de transição para a vida moderna, por uma que coloca a própria “vida
cotidiana” no centro do bem viver.
79
As hierarquias começariam a ser redefinidas a partir desse novo ideário, que
engendraria um efeito potencialmente nivelador e não aristocrático, pelo fato de que qualquer
pessoa capaz de integrar-se à dinâmica do mundo do trabalho e da família, poderia então obter
sua auto-estima e sua dignidade
38
. Erige-se assim um novo ideal de vida em que se atribui
lugar central à produção sóbria e disciplinada – aliás, bastante semelhante às análises
consagradas da sociologia weberiana:
Essa ética ‘burguesa’ tem óbvias conseqüências niveladoras, e ninguém pode fechar os olhos
ao papel tremendamente importante que teve na constituição da sociedade liberal moderna,
por meio das revoluções fundamentais do século XVIII e posteriores, com seus ideais de
igualdade, seu senso de direito universal, sua ética do trabalho e sua exaltação do amor sexual
e da família. O que estou chamando de afirmação da vida cotidiana é outra característica
básica da identidade moderna e não apenas em sua forma ‘burguesa’: as principais correntes
do pensamento revolucionário também exaltaram o homem como produtor, um ser que
encontra sua mais elevada dignidade no trabalho e na transformação da natureza a serviço da
vida. A teoria marxista é a mais bem conhecida, mas não a única (TAYLOR, 1997, p. 278).
As raízes dessa “ética da vida cotidiana” encontram-se em concepções teológicas e
religiosas, que em última análise remetem à concepção judaico-cristã de espiritualidade e ao
remodelamento da mesma através da reforma protestante (TAYLOR, 1997, p. 279). Por meio
desta última, recusou-se veementemente a necessidade de qualquer mediação da Igreja para a
“salvação”: a salvação passa a ser concebida unicamente pela relação de fé entre a pessoa e
Deus, ou seja, dependente de determinações individuais e não pelo intermédio das hierarquias
religiosas sacralizadas. De acordo com Taylor, aqui já podemos notar os traços embrionários
da quebra de hierarquias e o conseqüente nivelamento social, dado que todos os fiéis
passaram a encontrar-se em pé de igualdade perante Deus. Posteriormente, a doutrina da
salvação como competência restrita a Deus e a idéia puritana de “vocação” irão radicalizar
ainda mais a “afirmação da vida cotidiana”: os imperativos se consolidam cada vez mais em
38
Nesse sentido, a concepção de ciência baconiana é bastante ilustrativa, para a qual “o que antes era
estigmatizado como inferior é agora exaltado como modelo, e o anteriormente superior é acusado de presunção e
vaidade [...] O humilde artesão e artífice acaba contribuindo mais para o avanço da ciência que o filósofo ocioso”
(TAYLOR, 1997, p. 277).
80
torno do comprometimento pessoal, da auto-responsabilidade, do casamento, da “vocação”,
que passam a ser percebidos como intimamente relacionados à salvação.
O que era necessário antes de tudo era disciplina pessoal, indivíduos capazes de controlar a si
mesmos e de assumir responsabilidade pela própria vida [...] Isso dá mais uma razão para o
trabalho contínuo numa vocação ser considerado essencial. [...] Cada vez mais, o contrato
livremente assumido é visto como o único vínculo adequado entre tais pessoas (TAYLOR,
1997, p. 295).
Taylor procura demonstrar como essa ética da vida cotidiana converge de diversas
formas com a filosofia da liberdade e da racionalidade que descrevemos anteriormente. Uma
forte afinidade existe entre esses dois desenvolvimentos de idéias: de forma paralela, ambos
se contrapunham aos elementos hierárquicos da ordem precedentes ao mesmo tempo
convergindo na defesa (e no entendimento) de uma postura instrumental em relação ao self e
ao mundo. A própria inspiração das idéias puritanas teria enfatiza questão da atividade
produtiva humana: a implementação da ação instrumental na atividade produtiva de maneira
ordenada responsabilizar-se-ia tanto pela satisfação das necessidades do próprio agente
quanto para os demais indivíduos.
Teríamos tido, portanto, uma revolução que modificou drasticamente os “hiperbens”
que guiavam a concepção de self do ocidente. Profundas modificações ocorrem nas
sociedades envolvidas: os suportes sociais dessa nova visão de mundo inicialmente teriam
sido as classes burguesas da Inglaterra, Estados Unidos e França, e em seguida ela
progressivamente atingiria os “estratos inferiores”, alcançando também outras sociedades
nacionais (embora a transposição a outras nações e culturas ocorra de maneira peculiar em
cada caso, alguns núcleos comuns seriam mantidos).
Assim, a configuração do self desprendido, que abre caminho para a ética da vida
cotidiana, torna-se fundamental para a constituição da peculiaridade do ocidente moderno. De
fato, esse cenário traz profundas modificações na vida social tais como a valorização da
81
atividade comercial e mais adiante surgem novas formas de se conceber o amor, o casamento
e a família. A afirmação da vida cotidiana além de abranger a configuração que examinamos
acima – do self pontual – também engloba no decorrer do tempo traços de uma configuração
bem distinta do ideário do self pontual: ela está em contato íntimo com as duas configurações
morais centrais do mundo ocidental. A primeira delas, que vimos anteriormente, compreende
o mundo da razão instrumental, o mundo da economia e do trabalho. E a segunda delas, tem
sua objetificação privilegiada na esfera do casamento baseado em sentimentos conforme
examinaremos a seguir.
2.4.3. A exploração da natureza interior e os novos horizontes do expressivismo
Uma nova configuração moral alternativa, designada por Taylor pelo termo
“expressivismo”, se edifica como um conjunto de avaliações significativamente diverso ao
ideário ancorado na “razão desprendida”. Essa nova configuração compartilharia com o self-
pontual uma mesma fonte de idéias: a noção de interioridade. A partir dessa nova corrente de
idéias, o “interior” ganha nova compreensão, vinculando-se à concepção de “uma voz interior
da natureza”. O expressivismo surge como uma forma de contraposição ao mal-estar gerado
pelos ideais do naturalismo, da razão instrumental e do atomismo, propugnando a imagem do
homem pela imaginação criativa, pela singularidade do eu e pela autodescoberta interior.
Citando nomes como Montainge, Herder, Shaftesbury, Hutcherson ou Rousseau,
Taylor procura visualizar o desenvolvimento de formulações nas quais se procura dar relevo à
noção de originalidade de cada pessoa e de cada povo, em reação à lógica generalizável do
self desprendido. A lógica passa a ser, então, dar atenção à natureza profunda não
generalizável de cada sujeito, ao reconhecimento das particularidades internas.
39
39
Há uma transformação na noção de profundidade do self: este deixa de ser visto como instrumental e
transparente a nós mesmo e passa a constituir um mistério relativo a nossas profundezas interiores.
82
Ora, o desenvolvimento de tal formação moral parece ter consistido numa reação ao
mal-estar gerado pela impressão de carência de sentido e de vazio moral engendrados pelo
individualismo do self pontual. Noções como de “profundeza da natureza” e de “sentimento
próprio” passam a compor esse novo ideário: os sentimentos morais estariam inseridos numa
ordem natural inclinada para o bem. Em Rousseau, por exemplo, vemos uma concepção de
bem como algo decorrente de uma “voz interior” da natureza (TAYLOR, 1997, p. 527).
No entanto, foi com o romantismo (especialmente o alemão) e com os movimentos
artísticos dos séculos XVIII e XIX que o expressivismo ganhou maior elaboração e conseguiu
eficácia social, através de uma formulação que reuniu de modo consistente a noção de “voz da
natureza” como fonte de moralidade e as capacidades expressivas inerentes ao homem. Ou
seja, pela articulação entre as idéias da existência de “poderes relativos aos próprios agentes”
e de “profundezas da natureza”. Uma valorização dos “sentimentos internos” passa a se tornar
vigente, contestando a inferiorização das “paixões” que foi sendo imperativa desde Platão.
Em meio a esse movimento de idéias, Herder mostra-se marcante em fins do século XVIII. A
“natureza” como “vida” e como “criação” passa a ser vista como fonte moral, repercutindo-se
em nós através de nossos sentimentos, de nossos impulsos internos.
A articulação dessa natureza requer necessariamente uma intensa auto-exploração de
nossa interioridade, o que significa que a realização de cada um só é possível mediante formas
de “expressão”. A expressividade ganha um valor moral em si mesma, ditando até mesmo as
regras necessárias pra viver harmonicamente uns com os outros. Cada indivíduo tem de ser
valorizado pela sua originalidade e diferença, surgindo assim o ideal normativo que vê cada
indivíduo e cada comunidade como únicos em suas realizações expressivas. Isso implica no
dever e na obrigação de viver-se de acordo com essa originalidade.
O expressivismo valoriza a singularidade do “eu”, mas também pressupõe a relação do
“eu” com os outros a partir de um médium comum, por meio do qual ocorre o auto-
83
conhecimento e a expressão. A busca pelo interior da natureza criativa também nos direciona
à própria comunidade que engendrou este médium e tornou a expressão possível.
40
Esse movimento de idéias atinge a via rotineira de grandes grupos sobretudo pela
influência do romantismo e de uma série de movimentos artísticos nos séculos XIX e XX. Ou
seja, a valorização dos “sentimentos” característica desse modelo não é apenas um ideal
filosófico, mas torna-se um hiperbem que passa efetivamente a servir como orientação na vida
das pessoas. De acordo com Taylor, os efeitos em larga escala de toda essa família de
opiniões intrínsecas ao expressivismo podem ser percebidos, por exemplo, pela exaltação
crescente do amor conjugal e filial, que progressivamente vai se tornando um forte imperativo
rumo a uma vida significativa e plena. A própria dimensão da vida íntima e sentimental,
característica de relações familiares burguesas, torna-se como vimos, um dos elementos
centrais da “afirmação da vida cotidiana”.
2.5. Um conflito configurado: entre os ideais de dignidade e de autenticidade
A topografia moral traçada por Taylor, como vimos, compreende uma dupla básica e
fundamental de configurações, no sentido de conjuntos crucias de distinções qualitativas pelos
quais a identidade moderna se erigiu. É claro que uma infinidade de outras noções de bem
coexistem com estas duas configurações, sendo particularmente importantes em determinados
contextos. Contudo a força e a extensão dos ideários self pontual e expressivista permite-nos,
se estamos de acordo com as reflexões taylorianas, relacioná-los à própria singularidade moral
do ocidente.
40
Essa concepção romântica de originalidade mais tarde servirá de embasamento para o nacionalismo do século
XIX, por meio da idéia de que a língua e a cultura de um povo representa a expressão máxima de sua
singularidade e potencialidade.
84
Contudo, devemos lembrar que Taylor entende as transformações que levaram à
modernidade em termos do nascimento de um novo padrão cultural – a singularidade do
ocidente moderno, como vimos, decorre de suas específicas configurações morais ou
culturais. Assim, Taylor se contrapõe a tipos de teorias da modernidade que a definem a partir
de operações culturalmente neutras, entre as quais teríamos à visão de que a modernidade
conduz a uma dissipação de religiões e “metafísicas” por processos não culturais. Ora, o que
ele procura criticar é justamente a visão de que os caminhos das diversas modernidades
tendem a convergir. Uma das mais importantes tarefas das ciências sociais para ele é tentar
entender os mais variados padrões de modernidade que se formam ao redor do globo. Países
como Índia, China ou Brasil não teriam necessariamente – e nem provavelmente – que
convergir para o tipo de modernidade analisado nas sociedades européias e norte-americanas.
Os elementos culturais podem se configurar de forma distinta. Muitas modernidades são
possíveis e devem ser analisadas quanto aos seus específicos bens e configurações
constitutivos.
41
Em trabalhos posteriores da obra de Taylor, o primeiro dos dois conjuntos de ideais –
o que dá ênfase na capacidade de controle racional desprendido – será identificado pelo
princípio da “dignidade”, ao passo que o segundo – o da capacidade de auto-articulação
expressiva – será rotulado de princípio da “autenticidade”.
42
Cada um deles corresponde a
duas formas de reconhecimento: uma universalizante e outra particularizante,
respectivamente. Dignidade e autenticidade constituem, desse modo, princípios distintos que
“lutam por legitimidade política enquanto faces opostas da mesma moeda daquele lento
processo secular que fez da busca pela interioridade o fundamento da própria singularidade do
41
Sobre a tentativa de abarcar as contribuições de Charles Taylor em análises da modernidade periférica ver os
interessantes trabalhos de Jessé Souza, sobretudo “A modernização seletiva” (2000) e “A construção social da
subcidadania” (2003), nos quais teoriza sobre a assimilação dos padrões valorativos das modernidades centrais à
modernidade brasileira, feita principalmente em certas camadas e que serviria como indicativo de critérios
distintivos de classes.
42
A discussão tayloriana acerca das potencialidades e conflitos desses dois ideais, no contexto político da
modernidade tardia, tem se tornado bastante influente em círculos de teoria política através do tema do
reconhecimento. Contudo, não me aprofundarei nessas questões devido aos fins aqui almejados.
85
Ocidente” (SOUZA, 2000, p. 110). O conflito latente entre esses dois ideários está
relacionado com o fato de terem origem na mesma fonte de moralidade: a noção de
interioridade.
Dignidade e autenticidade representam duas fontes antinômicas e especificamente
modernas de reconhecimento, cuja característica marcante é uma oposição às hierarquias
típicas das sociedades pré-modernas, pautadas em códigos de honra aristocráticos – o
princípio da dignidade opõe-se diametralmente a tal noção de honra, carregando consigo um
movimento de defesa do universalismo e igualitarismo
43
. Mas o conflito entre esses dois
ideários é algo constitutivo da própria natureza da modernidade, o que quer dizer que a
sobrevivência de um princípio não necessita do desaparecimento do outro. No entanto, “uma
pessoa que reconheça ambas essas capacidades está constitucionalmente em conflito”
(TAYLOR, 1997, p. 500).
43
Taylor chega a dizer que tal princípio da dignidade seria o único compatível com sociedades democráticas
(TAYLOR, 2000a, pp. 242-243).
86
Diagrama 1: Interpretando o esquema básico da reconstrução da identidade moderna
apresentado em “As fontes do self”.
Ao buscar recuperar a gênese e o desenvolvimento moral do ocidente, o que o autor
também está realizando é uma investigação do fio condutor que gerou as modernas noções de
indivíduo e de individualidade. Segundo ele nos diz, os dois princípios acima mencionados
constituem os alicerces das duas facetas primordiais do individualismo moderno, o da
independência auto-responsável, de um lado, e, de outro, o da particularidade reconhecida.
É interessante observar que temos aqui uma semelhança significativa com as reflexões
de um clássico do pensamento sociológico. Como vimos, a sociologia de Simmel aponta
exatamente para desenvolvimento de dois tipos de individualismo, um “individualismo
87
quantitativo” (do homem generalizável, dos princípios universais e de uma igualdade formal),
consolidado no século XVIII; e, posteriormente de modo semelhante ao que Taylor assinala,
nasce o “individualismo qualitativo” (o da particularidade, da diferença e da singularidade),
no século XIX. Em uma exemplar interpretação sobre Simmel, Frédéric Vandenberghe
demonstra a centralidade da questão da liberdade individual para o pensamento de Simmel:
“ser um indivíduo incomparável, autônomo e autêntico, diferente e distinto dos outros,
seguindo sua própria lei individual, eis a visão do homem ideal que encontramos em Simmel”
(VANDENBERGHE, 2005, p. 189). Contudo, os caminhos e as inclinações filosóficas dos
dois pensadores são bastante diversos; o próprio repúdio de Simmel a formulações ao modo
do imperativo categórico kantiano (que tenderia a obscurecer o caráter autêntico de uma vida
singular) teria contado com uma forte inspiração nietzschiana, o que já demonstra notável
diferença para com a perspectiva tayloriana, cujas tendências comunitaristas e universalistas o
afastam consideravelmente de Nietzsche.
A idéia de individualismo para Taylor denota certos princípios morais – e não uma
organização social atomista e egoísta – pelos quais se valoriza a autonomia, atribui-se um
papel importante à auto-exploração, e em que a visão do bem viver em geral implica
envolvimento pessoal. Conseqüentemente, em sua linguagem política, o individualismo se
traduz em termos de direitos subjetivos (TAYLOR, 1997, p. 396). Autenticidade e dignidade
seriam duas facetas do individualismo moderno, com uma ênfase comum na liberdade
individual.
Aliás, creio que seja oportuno aqui ressaltar, de passagem, uma outra intuição
tayloriana fundamental em alguns de seus últimos livros. Em “Modern Social Imaginaries”, o
filósofo traz à tona a idéia de “imaginário social”, como conjunto de concepções morais (com
distintos graus de articulação) que podem se manifestar de inúmeras maneiras, seja pela forma
de imagens, lendas, ditos populares, etc. Por meio do papel desse imaginário, o autor
88
procurará revelar a eficácia de certas concepções específicas de ordem moral para as formas
de reprodução institucional, estipulando obrigações e direitos, que se estendem até a ordem
política – ele é, assim, tanto factual quanto normativo. Daí que, por exemplo, os direitos se
configuram na modernidade sobretudo em termos de direitos subjetivos.
No livro “The ethics of authenticity” Taylor apresenta os elementos de mal-estar
gerados na modernidade. Um dos três elementos de “mal-estar” na contemporaneidade seria
justamente o individualismo na forma em que faz desaparecer aos agentes o nexo de sua
relação com os outros. Em decorrência desse mal-estar individualista é que o autor mostra-se
acima de tudo preocupado com o fato de os “bens constitutivos” que compõem a identidade
moderna terem sido ocultados pelas formas predominantes de compreensão do self.
44
Ora, a
preocupação fundamental da obra de Taylor é de como desfazer o aprisionamento do
potencial expressivo que o ocidente conduziu; por isso sua aposta no resgate genealógico das
fontes morais e na própria corrente de valores expressivista.
O pano de fundo comum e definidor do individualismo é a própria valorização da
interioridade. No momento em que o próprio sujeito passa a entender a moralidade como
proveniente de si mesmo, desenvolve-se a forma de respeito atitudinal, ou seja, como eu me
vejo em relação aos outros, qual o auto-valor que atribuo a mim mesmo. Por isso os próprios
direitos subjetivos de que falamos não podem ser desvinculados da noção de autonomia.
45
44
A possibilidade histórica de superação dos antigos bens e das antigas tradições hierárquicas foi um dos
principais fatores que contribuíram para essa visão sobre liberdade e independência, característica da natureza da
cultura do individualismo da razão desprendida. Contudo, como vimos, a tese tayloriana é de que aqueles antigos
só puderam ser transpostos pela existência de novos bens (TAYLOR, 2000b, p. 2). Mas isso inclui não somente
as compreensões ancoradas no “self pontual, inclui também as do expressivismo – que teria sido também
“infectado” pelo esquecimento das fontes morais: o expressivismo romântico original via a realização expressiva
como algo compatível com moralidade; mas alguns desdobramentos subseqüentes passam a questionar essa
relação; o próprio movimento modernista foi um exemplo pelos qual a expressividade romântica despojou-se de
seu vínculo moral. De tal modo, tanto o individualismo da auto-responsabilidade como o da auto-expressão,
passam a ser alheios às definições substantivas de moralidade. Segundo Taylor, “é como se a dimensão de
interlocução moral só tivesse significação para a gênese da individualidade, tal como o andador na creche, e
devesse ser deixada de lado sem desempenhar nenhum papel na pessoa acabada” (TAYLOR, 1997, p. 56).
45
Autonomia é um elemento central tanto no “individualismo do controle racional” como no “individualismo
expressivista”: “Autonomia agora é central a isso. Assim, a trindade lockiana dos direitos naturais inclui o direito
à liberdade. Com o desenvolvimento da noção pós-romântica de diferença individual isso se amplia até a
89
Esta implica em pensarmos as pessoas como colaboradores ativos no estabelecimento e
garantia de respeito que devemos a elas. O respeito à personalidade está decisivamente
relacionado ao respeito à autonomia moral da pessoa.
Isso implica uma espécie de subjetivação que traz consigo novas formas de produção
da auto-estima, que funda o que Taylor entende por individualismo, ou seja, um ditame moral
que se pauta pela virada em direção à nossa própria interioridade, provocando uma
radicalização do subjetivismo por meio dos dois caminhos desenhados pelas configurações
predominantes em nosso mundo. A modernidade seria então marcada pelo aumento da
importância relativa desse tipo de dimensão moral do respeito atitudinal, capaz de
hierarquizar os indivíduos com base em sua auto-estima, seja pela auto-responsabilidade ou
da auto-exploração.
2.6. A exaltação das particularidades: autenticidade e reconhecimento
Ainda que Taylor dê uma enorme importância ao ideal de dignidade para a própria
especificidade da modernidade, sua ênfase se dirige ao ideal de autenticidade, em virtude das
próprias tendências hegelianas e herderianas que estivemos examinando nas primeiras seções
desse capítulo.
46
É sobretudo a partir das discussões presentes em dois textos do autor que
exigência de darmos às pessoas a liberdade de desenvolver sua personalidade à sua própria maneira [...]”
(TAYLOR, 1997, p. 26).
46
O fato de a questão central para Taylor se referir antes de tudo ao ideal de autenticidade e apenas
secundariamente ao ideal da dignidade, provavelmente está vinculado também ao pressuposto de que as
sociedades ocidentais mais “desenvolvidas” (incluindo uma boa parte da Europa e a da América do Norte)
teriam solucionado as desigualdades sociais mais extremas e garantido, a partir da implementação do “welfare
State”, um nível de igualdade real entre os diversos grupos sociais. Nesse sentido, é extremamente relevante a
observação de Souza (2003), de que o tratamento tayloriano do tema do reconhecimento “secundariza a
dimensão do potencial legitimador das distinções sociais implícitas na temática do reconhecimento. Isso não
significa obviamente dizer que Taylor não perceba o potencial discriminador dessas distinções, o que fica
sobejamente claro na sua análise do multiculturalismo. Mas precisamente sua ênfase no tema da autenticidade,
significa também sua aceitação, pelo menos tendencial, da ideologia “da igualdade de oportunidades” que
comanda o outro pólo do tema do reconhecimento, que é o conjunto de questões que têm a ver com a dignidade.
Nesse campo, precisamente talvez o mais significativo para a análise da naturalização da desigualdade que
assola a maioria dos países periféricos, sua análise, ainda que fundamental como ponto de partida, precisa ser
90
podemos ter um acesso privilegiado às suas formulações sobre a autenticidade: “The Ethics of
Authenticity” e “A política do reconhecimento”.
O ideal da autenticidade é visto como mais radicalmente moderno do que o da
dignidade, não apenas por ter nascido posteriormente, mas pela capacidade de rompimento
com as próprias determinações externas de papéis estabelecidos. Esse ideal, tal como o da
dignidade, mostra-se dotado de um forte potencial destruidor de hierarquias sociais. Nas
sociedades “anteriores” (quer dizer, não-modernas), aquilo que hoje chamamos de identidade
era fixado em larga medida pela “posição social” de cada um. O pano de fundo que explicava
o que as pessoas reconheciam como importantes para si mesmas era em larga medida
determinado por seu lugar na sociedade e pelos papéis ou atividades vinculados a essa
posição. Por isso, a questão de uma busca pelo sentido ou problematização sobre a identidade
não era algo “colocável” (TAYLOR, 2000a, pp. 245-246).
O ideal de autenticidade nasce, como vimos, a partir da nova significação conferida ao
que Taylor chamou de “expressivismo” em sua análise em “As fontes do Self”. Nasce como
uma reação a um self instrumental e autocontrolável, ou seja, é como se a idéia de que
compreender o certo e o errado não se resumisse agora a um cálculo frio, mas sim à
valorização de nossos próprios sentimentos. Sendo assim, a noção de autenticidade se
desenvolve a partir de um deslocamento da ênfase moral nessa idéia. O que Taylor chama de
deslocamento da ênfase moral “advém quando estar em contato com os próprios sentimentos
assume uma significação moral crucial e independente. Isso passa a ser algo que temos de
realizar para ser seres humanos verdadeiros e plenos” (TAYLOR, 2000a, p. 243).
Esse ideal valoriza uma percepção de “ser fiel a si mesmo”, à “minha própria
originalidade”, que é algo que somente a própria pessoa pode articular e descobrir. Ao
articular essa originalidade, o sujeito também está definindo a si mesmo, realizando uma
complementada por outras perspectivas mais sensíveis à força mistificadora de princípios aparentemente
universais” (SOUZA, 2003, p. 39).
91
potencialidade própria. Essa é precisamente a forma geral da compreensão de pano de fundo
induzida no ideal da autenticidade. Por conseguinte, a definição da identidade a partir do
ideal da autenticidade implica justamente uma reação tanto em relação à pressão por
conformidade social quanto em relação a uma atitude instrumental em relação a si mesmo.
47
Estaríamos então diante de um potente ideal moral, capaz de atribuir importância
moral a modos de contato comigo mesmo, com minha própria natureza interior. Ainda que ele
tenha ganhado força, Taylor o vê como estando em perigo de se perder, acima de tudo em
virtude de pressões para o “conformismo exterior” e pelo movimento que impulsiona-nos a
assumir consigo mesmo uma atitude instrumental: o risco é o de se massacrar a
peculiaridade que “cada voz tem a dizer” (TAYLOR, 2000a, p. 245).
O movimento “naturalista”, também presente no senso comum cotidiano, obscurece o
possível reconhecimento dos atores sobre si mesmos, impedindo-os de formularem os termos
para uma melhor expressão de seu ser. Isso porque, o sentido da individualidade moderna, ou
seja, os bens que lhe dão sustentação estariam enterrados bem fundo. Os agentes não
conseguem se formular reflexivamente. Esse é um dos riscos a que está submetida a
autenticidade na contemporaneidade. Nesse sentido, recuperar os bens que subjazem ao
individualismo moderno corresponde a uma tentativa de oferecer os termos corretos para a
busca da autenticidade.
Já enfatizei várias vezes que, na perspectiva de Taylor, os agentes podem definir sua
identidade apenas a partir de um pano de fundo de coisas importantes. O pano de fundo de
inteligibilidade dessa identidade é o que o autor chama de horizonte. Horizontes são dados.
48
É assim que, em contraposição à concepção de “liberdade negativa” (como a de tipo liberal),
47
É preciso frisar que o conceito de originalidade que sugere esse ideal existe em dois níveis: não só no que se
refere à pessoa individual entre outras pessoas como também no que se refere a um povo (ou tradição cultural de
um grupo) dotado de sua cultura entre outros povos, de forma semelhante à postura de Herder. Como já salientei
no início do texto, meu interesse no presente trabalho está voltado acima de tudo aos aspectos inerentes ao
primeiro nível citado.
48
Auto-escolha como um ideal faz sentido somente porque algumas questões são mais significantes que outras
(TAYLOR, 2000b, p. 39).
92
podemos pensar em uma espécie de “liberdade positiva”, pela qual se entende a realização
seletiva de bens culturais no interior de um horizonte ético pré-existente.
49
Isso porque o autor canadense procura reafirmar que a autenticidade não pode ser
defendida em termos de colapso de horizontes de significância. Até mesmo quando o sentido
de minha vida passa por eu pensá-la como um conjunto de escolhas feitas por mim – numa
liberdade autodeterminada –, isso depende, na verdade, de um entendimento de que,
independente de meu destino, há algo nobre, corajoso e conseqüentemente significante, dando
forma a minha própria vida (TAYLOR, 2000b, pp. 38-39).
Mas o sentido da questão da autenticidade (e também da dignidade) passa
inevitavelmente por outro conceito extremamente importante: o de reconhecimento. Ainda
que Taylor seja um dos maiores teóricos do reconhecimento na atualidade, acredito que a
concepção de Axel Honneth, outro filósofo que elegeu a filosofia hegeliana com um dos
pilares para sua obra, ajude-nos a elucidar o sentido da categoria do reconhecimento.
Assim como Habermas (2001), Honneth vê nos “escritos de Jena” do jovem Hegel as
bases para uma teoria da intersubjetividade humana. Hegel teria demonstrado como a
aquisição intersubjetiva da autoconsciência necessita de respectivas lutas por reconhecimento.
O florescimento da subjetividade consciente é dependente de uma progressão ética que
envolve três dimensões de relações de reconhecimento: uma dimensão de relações afetivas,
em particular relações de amor; de relações “jurídicas”, reguladas pela lei e pelo direito; e, por
última, uma propriamente ética que corresponde à Sittlichkeit. Esse florescimento só pode ser
estabelecido ao longo de um processo conflituoso de desenvolvimento nessas três dimensões,
especificamente mediante lutas por reconhecimento. Através de Hegel, Honneth procura
enfatizar não a luta por auto-preservação, mas a luta para o estabelecimento de relações de
49
De certa forma, Taylor se diante da mesma dificuldade – aparentemente paradoxal - à qual Durkheim foi
confrontado: como pensar uma liberação de individualidades ao mesmo tempo que regras morais gerais. Como é
possível pensar numa maior liberdade e autonomia individuais ao mesmo tempo em que são coisas “exigidas”,
são mesmo imposições morais?
93
reconhecimento mútuo como uma pré-condição para a auto-realização. Da mesma forma, só
pode ser adquirida alguma noção de liberdade por uma subjetividade mediante o próprio
estímulo de uma reciprocidade na relação com os outros (HONNETH, 1996, pp. 3-31).
Visando maior elaboração da categoria do reconhecimento, Taylor e posteriormente
Honneth respaldam suas concepções de reconhecimento nos trabalhos de George Herbert
Mead, onde encontraram uma formulação conceitual sistemática sobre a gênese intersubjetiva
do self. A idéia é de que a característica fundamental da vida humana é seu caráter
fundamentalmente dialógico. Segundo essa perspectiva, as pessoas não adquirem as
linguagens de que precisam para se autodefinirem por si mesmas, mas são apresentadas a
essas linguagens por meio da interação com outras pessoas que têm importância para nós – o
que Mead denominava “outros significativos”. Assim, a própria formação da identidade é
derivada de um reconhecimento coletivo, ou em outros termos, a consciência do self é o
produto do fato de o sujeito só se perceber como ator a partir da representação simbólica da
perspectiva do outro. Em Mead, há mesmo uma categoria que ele utiliza para representar a
percepção do sujeito da perspectiva do outro – o “Me”. Foram exatamente reflexões dessa
natureza que levaram Taylor a pensar a identidade como uma espécie de compreensão de
quem somos, moldada em parte pelo reconhecimento ou por sua ausência.
A gênese do espírito humano seria, por assim dizer, não monológica, ou seja, não é
algo que cada pessoa possa realizar por si mesma. É assim que o próprio autoconhecimento é
adquirido, desde as primeiras experiências da criança, através das impressões que temos sobre
ponto de vista dos “outros significativos”. Mesmo o conhecimento que cada um tem sobre si
mesmo é adquirido através de categorias semânticas publicamente acessíveis. Assim, a
formação do self ocorre num contínuo diálogo e luta com outros significativos.
Conseqüentemente, também é impossível pensar em fins individuais sem relação a um pano
de fundo normativo.
94
Além do mais, tal raciocínio não deve ser simplesmente tomado no sentido de uma
importância apenas para a gênese da pessoa e que, assim, possa ser ignorado mais tarde.
Não é que simplesmente aprendamos as linguagens no diálogo e passemos depois a usá-las
para nossos próprios propósitos. Claro que se espera que desenvolvamos nossas próprias
opiniões, perspectivas, atitudes com relação às coisas e, em considerável medida, pela reflexão
solitária. Mas não é assim que as coisas funcionam no caso de questões importantes como na
definição de nossa identidade (TAYLOR, 2000a, p. 246).
Por conseguinte, a idéia fundamental é de que definimos nossa identidade sempre em
diálogo com o que nossos outros significativos desejam ou esperam ver em nós – e por vezes
em luta contra essas coisas. E isso mesmo depois que ultrapassamos alguns desses outros –
nossos pais, por exemplo – e de eles desaparecerem de nossa vida, a conversação com eles
continua dentro de nós enquanto vivermos (para Taylor esse dialogismo interior teria sido um
tema fortemente explorado por Mikhail Bakhtin e por muitos que se apoiaram em seus
trabalhos) (Taylor, 2000a, pp. 246-247). Como bem enfatiza Ferrara (1997), colocar a
autenticidade sob uma perspectiva intersubjetiva significa supor que as identidades
autênticas necessariamente pressupõem um momento de reconhecimento por parte de outro
ser humano
50
.
Para Taylor, a luta por reconhecimento, na forma como se configura no ocidente, é um
fato relativamente recente na história. Ainda que se pudesse pensar em identidade e mesmo
em modos de reconhecimento em sociedades pré-modernas, tais fenômenos não eram
problemáticos, no sentido de que o reconhecimento geral estava embutido na identidade
socialmente derivada das próprias categorias que já eram tidas como certas:
50
Em seu artigo bastante instrutivo sobre o tema da autenticidade, Alessandro Ferrara procura demonstrar como
a questão do reconhecimento traz embutida em si um problema de certo modo paradoxal: a necessidade de algo
já ter estar presente nos “outros significativos” entraria em conflito com a própria natureza de um elemento
radicalmente autêntico. Criando uma série de tipologias e categorias em relação aos tipos de concepção de
autenticidade desenvolvidos na filosofia e na sociologia, o autor fornece um quadro interpretativo bem amplo
para o uso sistemático e fecundo de tal conceito em nossa ciência. Voltaremos a suas sistematizações na última
parte do trabalho.
95
Em épocas pré-modernas as pessoas não falam de ‘identidade’ nem de ‘reconhecimento’ – não
porque não tivessem o que chamamos de identidades ou porque estas não dependessem de
reconhecimento, mas porque estas eram então demasiado sem problemas para ser tematizadas
em si (TAYLOR, 2000a, p. 248).
Desse modo, dignidade e autenticidade se apresentam como as duas formas de
reconhecimento que estruturam a modernidade, a primeira baseando-se em atributos
universalizáveis, capazes de ser disponíveis para todos e a segunda em reconhecimento das
particularidades, da originalidade que não pode se resumir a categorias sociais já dadas.
Ora, o ponto é que as modernas noções de individualidade apenas se tornaram
possíveis porque há bases valorativas pelas quais se permite o reconhecimento das mesmas,
seja de forma universal, no caso da dignidade, seja exaltando a própria originalidade de um
não enquadramento em papéis estabelecidos, no caso da autenticidade.
Diante disto, temos que a exaltação da particularidade individual, da originalidade e da
diferenciação profunda é vista por Taylor como acentuadamente conecta ao ideário da
autenticidade. Logicamente, a autenticidade não se constrói a partir de um desejo ou traço
subjetivo do indivíduo, ela não se constrói a partir do “puro eu atomizado”. Para poder
elaborar a sua identidade, o agente precisa necessariamente interpretar seus sentimentos
dentro de uma rede significativa de valores na qual ele está inserido. É interpretando os
conjuntos de valores que o envolvem que o indivíduo tem sua identidade construída de uma
forma profunda. A descoberta da identidade, portanto, não pode ser produzida em
“isolamento”, mas é negociada nas relações dialógicas com os outros.
Assim, Taylor sugere a relevância de se pensar nas diferenças da dinâmica da
identidade individual/configuração moral entre as sociedades ocidentais e outras sociedades.
Ainda que seja uma espécie de exigência, de uma conformação numa identidade que se vê
como independente ou autônoma, pode-se dizer que a dinâmica estabelece-se de outra forma.
Porque o que cada um está elaborando é uma identidade que se pretenda própria, no sentido
especial de poder ser sustentada mesmo diante de uma certa oposição (no sentido de se opor
96
mas ainda assim aceitar) de alguns outros significativos. Essa identidade é elaborada em
conversações (mesmo que interiores) com esses outros, mas a natureza dessa conversação é
definida por uma noção específica do que é uma identidade, ou seja, no caso da autenticidade,
possibilita um reconhecimento de singularidades de forma impensável em outras formas de
sociedade.
Todo o elenco de bens que se inserem em determinada biografia individual, podem ser
conjugados de inúmeras maneiras, de modo a constituir particularidades individuais que se
reforçam através da exigência de uma identidade autêntica no plano valorativo comum. É
assim que os diversos “vocabulários” podem se intercruzar ao mesmo tempo em que há uma
articulação significativa dos sentimentos dentro da estrutura dos bens significativos.
Enfim, pode-se dizer que, na perspectiva tayloriana, a autenticidade envolve duas
dimensões aparentemente paradoxais: i) de criação e construção também como descoberta,
originalidade e freqüentemente oposição às regras da sociedade e até mesmo potencialmente
ao que nós reconhecemos como moralidade. E, por outro lado, (ii) supõe uma abertura para
horizontes de significação (o pano de fundo que torna possível sua existência) e uma
autodefinição no diálogo. Taylor compreende que parece existir mesmo uma tensão entre
essas duas exigências, mas o que não é admissível é privilégio simples de uma sobre outra
(TAYLOR, 2000b, p. 66). E é justamente a figura do reconhecimento – e apenas ela – que se
mostra capaz de amarrar esses dois eixos do ser autêntico.
97
CAPÍTULO II. A historicização da subjetividade: verdade, poder e práticas
de si no pensamento foucaultiano
Neste capítulo, a estratégia de apresentação será um pouco diversa da utilizada no
capítulo precedente. Esforçar-me-ei para, assim como fiz com Charles Taylor, situar as
questões de meu interesse num conjunto de idéias e de desenvolvimentos que lhe dão
sustentação e lhe são essenciais. Mas a natureza distinta e peculiar da obra de Michel Foucault
requer uma abordagem também especial. Em Foucault não encontramos uma sistematização
pautada em uma série de conceitos analíticos capazes de dar conta de qualquer contexto
humano. O arsenal conceitual geral de Foucault é reduzido quando o comparamos com a
maior parte dos outros grandes pensadores que se vinculam à teoria social do século XX. E
isso, veremos, tem suas razões. Ao dizer que a estratégia de apresentação será um pouco
distinta, refiro-me ao fato de que não haverá tantos caminhos e conceitos metodológicos a
percorrer para entrar nas questões substantivas. Será apenas diante das próprias pesquisas
“substantivas” que encontraremos as fundamentações para aquilo que Foucault quer dizer
sobre o homem na modernidade.
Já adiantando uma parte do argumento, podemos dizer que, em virtude da própria
pesquisa de Foucault envolver as relações que se dão no campo do saber, ele busca sempre
criar um certo distanciamento em relação ao conjunto de concepções científicas que analisa.
Ora, Foucault não quer ser enquadrado dentro do discurso cujo nascimento é analisado por ele
próprio em “As Palavras e as Coisas”: o discurso das ciências humanas. Mas sua recusa não
se restringe às ciências humanas. Ele também não aceitava ser classificado como historiador,
nem mesmo como filósofo, esta última figura porque ele dizia ter se convertido, em sua
época, em meros reprodutores das “histórias da filosofia”. A contestação do humanismo das
ciências do homem e das filosofias modernas é, como veremos, perpassada por uma forte
98
inclinação nietzschiana, possível de ser visualizada também por seu estilo de escrita que, em
certas passagens, adquire um estilo que se assemelha à literatura, por vezes mesmo
metafórico.
Sua originalidade permitiu-o realizar um exame crítico da auto-compreensão moderna
em torno de princípios como de autonomia, de liberdade e de auto-realização individuais. São
as reflexões em torno dessas questões que buscarei encontrar em Foucault no presente
capítulo. De certa maneira, a discussão em torno de um “sujeito moderno” foi sempre uma
preocupação na obra de Foucault. O caráter inovador de seu pensamento se deveu, como
veremos, ao fato de que, o que Foucault procura, é precisamente criar uma distância do
mundo moderno, mostrando um outro, um não-familiar em seus traços mais sutis, a fim de
revelar os nossos próprios “pisos”, o nosso próprio ser.
Mas, em virtude das limitações impostas pelas condições da presente pesquisa,
deparei-me com a total impossibilidade de dar conta da obra como um todo.
Houve a
necessidade de um recorte: um recorte que se concentrou em algumas discussões que se dão
sobretudo a partir da fase que ficou conhecida por genealogia e ainda, da última guinada que
teria caracterizado a expressão do “último Foucault” (marcada pela publicação dos volumes II
e III de sua “História da sexualidade” além de alguns cursos do Collège de France,
“Subjetividade e verdade” – ainda não publicado – e “A hermenêutica do sujeito”). Nesse
recorte, acredito eu, estão presentes as principais contribuições do autor à temática do
presente estudo, embora muita coisa possa ser encontrada na sua produção anterior. Mas tal
delimitação não faria sentido sem a identificação de alguns dos pressupostos básicos que ele
utilizava já em sua fase da arqueologia, dos quais muitos irão sobreviver às transições que
ocorreram em seu pensamento.
Feitas as devidas ressalvas, vejamos como o presente capítulo está organizado: na
primeira seção (1), parto para uma breve tentativa de captar os principais pressupostos
99
filosóficos e metodológicos que Foucault carrega, mesmo que o autor poucas vezes tenha
demonstrado deliberadamente e explicitamente em que essas influências afetam suas análises;
ao mesmo tempo tento exprimir uma idéia de seu empreendimento arqueológico, que será
fundamental para o entendimento das questões subseqüentes; a seguir, (2) inicio a discussão
específica em torno da crítica radical de Foucault a concepções de sujeitos transcendentais,
atemporais e a-históricos; e também uma introdução à sua noção de poder e ao
empreendimento genealógico; na seção 3, procuro esboçar algumas idéias elementares a
respeito de uma forma de poder tipicamente moderna, o poder disciplinar, expressas no seu
provavelmente mais conhecido livro, “Vigiar e punir” e adiante, ainda nessa seção, faço uma
breve discussão de um outro tipo de poder significativo na civilização ocidental: o
“biopoder”; a partir daí, passo a abordar os livros de sua “História da sexualidade”, a partir
de (4) “A vontade de saber” e, por fim, (5) o conjunto de obras que expressaram a última fase
do pensamento foucautiano, onde far-se-ão presentes noções como “práticas de si”, “cuidado
de si”, “estética da existência”, etc.
1. Sobre alguns pressupostos das análises foucaultianas
A originalidade e o brilhantismo das análises de Foucault, obviamente, não são frutos
do acaso. Uma série de pressupostos filosóficos e metodológicos são elementos fundamentais
para entendermos os porquês dos caminhos trilhados em suas pesquisas e seus trabalhos.
Ainda que esse capítulo se prenda mais às análises do autor a partir de sua “fase
genealógica”, convém situarmos essas questões a partir de algumas idéias centrais de seus
livros anteriores, onde ele ainda se encontra em seus procedimentos “arqueológicos”. Ou seja,
acredito que antes de indicar as descontinuidades presentes nestas fases, não podemos perder
de vista a grande e profunda continuidade metodológica que perpassa a obra como um todo.
100
Vejamos então alguns dos principais direcionamentos que foram cruciais para o pensamento
foucaultiano.
Algumas referências imprescindíveis devem ser citadas se quisermos entender os
porquês da arqueologia como um método de investigação. Comecemos, por exemplo, pela
historiografia da chamada “Escola dos Annales” francesa: reunindo nomes ilustres como
Fernand Braudel, Lucien Febvre e Marc Bloch, essa escola revolucionou a historiografia;
marcou um rompimento com a história tradicional e tentou integrar métodos que até então
eram praticamente um monopólio de outras ciências sociais, sobretudo a sociologia e a
antropologia. Contando com uma evidente inclinação durkheimiana e com a presença
substancial de um certo estruturalismo (diga-se, também desenvolvido a partir do legado de
Durkheim), esses pensadores utilizaram-se de novos procedimentos para a análise histórica
que passavam a ter como núcleo o desvendamento de estruturas relativamente estáveis e que
perdurariam por longos períodos de tempo. Lembremos da contestação de Braudel à história
pautada na “courte durée” (curta duração) ou na “histoire événementielle” (esta última
referindo-se à história dos acontecimentos e eventos, ou seja, a história dos grandes homens e
grandes heróis). É exatamente contra essas tendências que essa abordagem irá se opor: há uma
ênfase na compreensão da história a partir de grandes e estáveis conjuntos estruturais;
conjuntos estes subjacentes e não-tematizados pelo senso comum, relativos a longos períodos
– a história de longa duração (“longue durée”) (BAERT, 1998, p. 119). A influência desse
tipo de abordagem faz-se sentir quando na arqueologia ou na genealogia, a análise se pauta
em séries de eventos que são modelares em períodos bastante longos, tais como a
Antiguidade, o período clássico ou a modernidade; ou mesmo quando Foucault supõe certas
regras de formação que pressupõem as condições de possibilidade de certos discursos que
perduram durante até mesmo séculos, os saberes que dominam uma dada região e época
duradouramente.
101
Talvez mais decisivamente ainda tenham atuado, no pensamento de Michel Foucault,
os desenvolvimentos dos chamados epistemólogos franceses (ou historiadores da ciência)
Bachelard, Cavaillès, Koyré e Canguilhem. A epistemologia aqui é entendida como uma
reflexão acerca da produção de conhecimentos científicos e o traço peculiar da epistemologia
desses pensadores foi pensar a ciência em sua historicidade. Seu objeto consistiu na forma
como teria se dado um progressivo desenvolvimento da racionalidade nos campos científicos,
exatamente por acreditarem serem estes os campos privilegiados em que haveria uma
superação crescente dos obstáculos à razão, dos preconceitos e mitos. Uma das melhores
maneiras de compreendemos a configuração própria da arqueologia é sua posição quanto à
história epistemológica, tal como foi desenvolvida na França a partir de Bachelard, que
permitira exatamente a visão da importância de se trabalhar as grandes descontinuidades
históricas, as grandes rupturas (MACHADO, 2006, pp. 7-9).
Evidentemente Foucault realizou alguns deslocamentos importantes em relação a esta
que talvez tenha sido uma de suas principais inspirações metodológicas. Em primeiro lugar,
pela mudança nos temas tratados, que demandavam um caráter peculiar: enquanto a história
epistemológica se interessou pelas regiões de cientificidade da natureza e da vida, em
ciências como a matemática, biologia, química, física, anatomia, fisiologia, a arqueologia
iria privilegiar o homem, os saberes do homem ou sobre o homem como um novo patamar de
estudos (MACHADO, 2005, p. 9). Dessa maneira, a arqueologia é uma análise histórico-
filosófica do nascimento das ciências do homem.
Ao deslocar-se em relação aos próprios conteúdos temáticos, os princípios
orientadores das análises também tiveram de ser deslocados. O distanciamento que Foucault
criou em relação às teses epistemológicas e que, conseqüentemente, tornaram imaginável um
novo tipo de história, foi possível sobretudo pela influência de Nietzsche, provavelmente a
influência mais incisiva no pensamento de Foucault. É notável que a influência nietzschiana
102
tenha se acentuado a partir do momento em que o autor se propôs a fazer o que chamou de
genealogia (termo que aliás retirou do filósofo alemão). Não obstante, mesmo na sua
arqueologia, certamente o peso da filosofia de Nietzsche já se fazia sentir sobre as reflexões
foucaultianas. Roberto Machado acredita que mesmo os deslocamentos metodológicos
produzidos por Foucault em relação à epistemologia para criar sua arqueologia se devem, em
grande parte, ao interesse por Nietzsche e sua problemática filosófica, sobretudo a respeito da
relação entre a ciência e a verdade, entre a razão e a modernidade. A análise dos saberes
modernos seria inspirada na crítica nietzschiana do niilismo da modernidade.
Na verdade, a influência nietzschiana teria chegado a Foucault primeiramente através
de Bataille, Klossowski e Blanchot, autores que teriam inserido na França um estilo
nietzschiano de pensamento. Com o tempo, Nietzsche se tornara crucial em sua filosofia:
Nietzsche foi uma revelação para mim. Tive a impressão de descobrir um autor muito
diferente daquele que me havia sido ensinado. Eu o li apaixonadamente e rompi com minha
vida: abandonei meu emprego no hospital psiquiátrico e deixei a França; tinha a sensação de
ter sido laçado. Por meio de Nietzsche, tinha me tornado estranho a todas essas coisas
(FOUCAULT, 2006b, pp. 297-298).
Da mesma forma que Nietzsche, Foucault pretendeu apresentar uma crítica à própria
idéia de racionalidade, idéia que pautava as discussões da epistemologia. Seu pensamento
constitui uma crítica aos próprios saberes e edifícios morais que se tornaram predominantes
no desenvolvimento do ocidente. Enquanto a história epistemológica se guiaria pela tentativa
de examinar a produção de verdade na ciência, a arqueologia realiza uma história dos saberes
onde desaparece qualquer crença em um suposto progresso da razão na história.
Outros movimentos de idéias certamente foram importantes para Foucault, ainda que o
filósofo não costumasse ficar situando seu pensamento em torno de suas dívidas intelectuais.
Sabemos que o estruturalismo e a fenomenologia, por exemplo, foram importantes para a
103
constituição de seu pensar. Husserl, Merleau-Ponty e principalmente Heidegger estariam
dentro dos filósofos que Foucault se inspirou mas quase nunca citou:
Certamente Heidegger sempre foi pra mim um filósofo essencial. Comecei a ler Hegel, depois
Marx, e me pus a ler Heidegger em 1951 ou 1952; e em 1953 ou 1952 – não me lembro mais –
li Nietzsche. [...] Todo meu futuro filosófico foi determinado por minha leitura de Heidegger.
Entretanto reconheço que Nietzsche predominou [...] mas não resta dúvida de que estas são as
duas experiências fundamentais que fiz. É provável que se eu não tivesse lido Heidegger, não
teria lido Nietzsche. Tentei ler Nietzsche nos anos 50, mas Nietzsche sozinho não me dizia
nada. Já Nietzsche com Heidegger foi um abalo filosófico (FOUCAULT, 2006b, p. 259).
Contudo, deixemos um pouco de lado os pensadores que moldaram suas reflexões
para nos atermos à sua própria produção.
É usual separarmos a obra de autores pelas fases de sua produção. E, de fato, isso
quase sempre faz sentido, considerando as mudanças que todo pensamento pode sofrer ao
longo de décadas. No caso de Foucault, a divisão convencional, ou seja, uma descontinuidade
tradicionalmente aceita para sua obra seria aquela entre uma primeira fase que ficou
conhecida como “arqueologia” e, em seguida, a “genealogia”; além, é claro, de divisões
adicionais, acentuando por exemplo uma guinada nos últimos anos e últimas publicações do
autor – o último Foucault – onde realmente temos um deslocamento teórico e uma alteração
de projeto. Acredito que, de fato, tenha havido uma mudança substancial a partir do momento
em que o intelectual se envolveu com a genealogia, quando temos uma presença ainda mais
acentuada de Nietzsche, uma ênfase ainda maior sobre a questão do poder. Contudo, como já
disse, a despeito das inegáveis modificações, a transição dos modos de investigação
arqueológicos para os propriamente genealógicos, Foucault não abdica de certos postulados
fundamentais por ele adotados. Por isso, algumas linhas sobre as suas “arqueologias” e seus
pressupostos são aqui necessárias. Mas deixarei para comentar mais adiante as principais
mudanças que ocorrem na genealogia.
104
Do que se trata isso que Foucault entende por arqueologia? Em primeiro lugar, ela
refere-se à análise histórica dos saberes. Mais especificamente, os estudos arqueológicos de
Michel Foucault se concentraram em análises histórico-filosóficas do nascimento das
ciências do homem. Assim como Kant procurava descrever as estruturas a priori
(independentes da experiência) do conhecimento científico e da ação moral ou política,
Foucault procura é rastrear a historicidade, o a priori histórico do saber e do poder
(BILLOUET, 2003, p. 16). Sendo assim, podemos pensar na arqueologia como a história do
que faz necessária uma certa forma de pensamento.
Boa parte do acesso que temos aos pressupostos metodológicos da arqueologia
foucaultiana podem ser encontrados em sua “Arqueologia do saber”, livro dedicado ao
esclarecimento das opções metodológicas inerentes à arqueologia. De certa forma, ele
representa uma forma de esclarecimento a respeito de algumas questões metodológicas que
estavam embutidas nos livros que Foucault escrevera até então, mas também representa um
aperfeiçoamento da forma como Foucault havia trabalhado.
No procedimento arqueológico, deve-se procurar o domínio de uma prática discursiva
que se individualiza procurando vasculhar os jogos de sentido presentes na mesma e, no caso
dos saberes científicos, vasculhar dentro do jogo de enunciados os possíveis critérios formais
em que se baseiam as proposições. Em “A história da loucura”, por exemplo, mostra-se como
uma prática discursiva sobre a loucura se apresentava em uso na medicina, em
regulamentações administrativas, nos textos literários, nos projetos políticos. Ou seja, trata-se
de rastrear as positividades presentes nos domínios de saber historicamente situados através
de sua presença nos domínios do discurso. Uma formação discursiva supõe uma certa
regularidade (uma ordem, correlações, posições, funcionamentos ou transformações) entre
objetos ou enunciados envolvidos em um sistema de conhecimento. Ao buscar os processos
de individualização de um determinado discurso, a arqueologia visa elucidar as próprias
105
regras de formação das formações discursivas, ou seja, descrever a formação discursiva
segundo suas direções, suas dimensões, suas características próprias. Deve-se tentar
determinar os possíveis pontos de decifração do discurso, tentando definir a que tipo de
relações ele se curva em sua constituição, ou em outros termos, os princípios de determinação
que permitem excluir ou valorizar os enunciados no interior da formação discursiva
(BILLOUET, 2003, pp. 107-109).
As instâncias relativas aos processos de formação dos discursos não remetem a
sujeitos, mas a práticas discursivas em termos de relações. A análise enunciativa ocorre sem
referência a “subjetividades fundadoras”, presentes nas filosofias da história ou em vertentes
das ciências sociais que Foucault procura afastar. Portanto, ao invés de procurar as regras do
porquê da existência de uma dada forma de saber pela atividade de quaisquer formas de
sujeitos (seja de sujeitos individuais, coletivos, de um logos, de uma teleologia da razão), ela
as procura num conjunto prévio de regras, dentro das relações que se apresentam no conjunto
contextual pesquisado. Os sistemas de regras aparecem de maneira descontínua, em regimes
que não possuem outro critério de inteligibilidade senão o das relações contextuais e
localizadas. Ou seja, os regimes de saber possuem uma “dignidade” própria que faz com que,
em cada análise, em cada procedimento arqueológico, o pesquisador tenha que lidar de uma
maneira específica. A arqueologia procura apreender sua dispersão anônima através de textos,
livros ou obras.
Conseqüentemente, a cada objeto de saber pesquisado deve ser mobilizada uma
inserção intensa nos próprios saberes: a arqueologia deve fazer suas perguntas no nível do
próprio discurso. É por isso que a complexidade da obra foucaultiana está na própria riqueza
dos conteúdos e relações analisados, mediante pesquisas extremamente ricas da formação dos
saberes e do modo como são concatenados nas análises. Talvez seja por isso que o
rompimento com pressupostos não tematizados em suas análises, o potencial de ruptura
106
radical que ela apresenta com as análises tradicionais, não costumam ser tão bem
compreendidos em seu caráter crítico e inovador.
É por isso também que Foucault tem um leque relativamente curto de conceitos
analíticos, de instrumentos para entrar nos diversos âmbitos dos saberes. É como se cada um
deles exigisse “ferramentas” específicas para abordá-los. É assim que seu pensamento procura
ir além dos limites estabelecidos por qualquer forma de separação arbitrária do saber. Daí
resulta sua recusa em ser enquadrado em quaisquer disciplinas estabelecidas, em qualquer
área do conhecimento. Foucault pretende utilizar-se dessa própria liberdade no trânsito entre
os diversos saberes para fornecer um pensamento ímpar sobre nosso presente e nossa
condição no mundo. Com isso, novos caminhos se abrem para a análise do presente. Mediante
uma análise dos saberes, que se propõe explicá-los como peças de relações de poder, a
filosofia foucaultiana pôde nos oferecer um pensamento inovador sobre as condições
existenciais do homem moderno.
Mas porque essa obstinação em relação aos campos do saber como objetos
privilegiados para entendermos a nós mesmos? Os saberes, as formas de pensar são para ele
indissociáveis das práticas:
Meu domínio é o da história do pensamento. O homem é um ser pensante. A maneira como
ele pensa tem relação com a sociedade, com a política, com a economia e com a história;
também se relaciona com categorias muito gerais, até universais, e com estruturas formais.
Porém o pensamento e as relações sociais são duas coisas bem diferentes. As categorias
universais da lógica não estão aptas a dar conta adequadamente da maneira como as pessoas
realmente pensam. Entre a história social e as análises formais do pensamento há uma via,
uma pista – bem estreita, talvez – que é o caminho do historiador do pensamento
(FOUCAULT, 2006b, p. 295-295).
E ainda:
Somos todos seres que vivem e pensam. Aquilo contra o qual reajo é a ruptura que existe entre
a história social e a história das idéias. Supõe-se que os historiadores das sociedades
descrevem a maneira como as pessoas agem sem pensar, e os historiadores das idéias, a
maneira como as pessoas pensam sem agir. Todo mundo pensa e age ao mesmo tempo. A
maneira como as pessoas agem e reagem está ligada a uma maneira de pensar, e esta maneira
de pensar está, naturalmente, ligada à tradição (FOUCAULT, 2006b, pp. 298-299).
107
Ver o vínculo indissociável entre as práticas e a constituição de saberes é com certeza
algo que aproxima Taylor a Foucault, ou seja, no interesse pelo que em outras correntes seria
visto como apenas “idéias”, mas que para eles são de crucial importância para a composição
da realidade humana. Contudo, creio que as análises de Foucault estão muito mais atentas aos
jogos de poder, às dinâmicas institucionais, à inserção dos saberes em dispositivos que dão
sentido às próprias relações em que estão inseridos.
Já vimos a importância das descontinuidades, herdadas sobretudo da epistemologia
francesa, para os princípios metodológicos de Foucault. Em toda a pesquisa arqueológica, mas
também na genealógica, Foucault tende a pensar o moderno sempre em relação a uma série de
eventos distante, na maior parte das obras essa série refere-se ao “clássico”. Desde sua fase
“arqueológica”, isso constitui um procedimento padrão. É isso o que faz o autor encontrar as
descontinuidades, as rupturas, as compatibilidades e incompatibilidades entre o seu presente
e, por exemplo, o classicismo. Vejamos através de um exemplo: em “História da Loucura”,
Foucault percebe uma ruptura brusca tanto nas teorias a respeito da loucura e nas práticas que
giram em torno do louco. Ele percebe como até um período relativamente recente da história,
a categoria da doença mental era algo inexistente. O seu interesse consistirá no surgimento de
um saber, de olhar para a loucura como algo situado do outro lado da razão, e seus vínculos a
concepções políticas, jurídicas e econômicas. A idéia fundamental é de que houve uma
crescente subordinação da loucura a um saber que então se constituía, um saber psiquiátrico,
uma psicologização da loucura. Ao mesmo tempo, traz a preocupação em negar a existência
de uma verdade psicológica da loucura, mostrar como a história da loucura não é o itinerário
progressivo da inteligência para a verdade. Semelhantemente a Nietzsche, Foucault guarda
uma grande desconfiança em relação aos saberes modernos, aos saberes científicos que se
consolidaram como sendo a razão, pelos quais os fenômenos, como a loucura, teriam uma
verdade essencial que teria sido progressivamente desvendada e integrada à ordem da razão.
108
Ora, Foucault considera que o papel da filosofia é justamente o de fazer aparecer
aquilo que nos está tão próximo, tão imediato, tão intimamente ligado a nós mesmos, tão
arraigado em nossos próprios sentidos ordinários e que, por isso mesmo, não somos capazes
de perceber, de tematizar, de colocar em questão. Aliás, também pudemos observar essa
preocupação nas reflexões taylorianas do capítulo anterior, onde os valores inerentes à
modernidade impulsionariam formas muito fortes de desconhecimento sobre nossos próprios
selves. Perguntado sobre de onde teria advindo a escolha dos temas com que procurou
trabalhar, Foucault responde insinuando exatamente a sua crença num olhar crítico para coisas
estabelecidas e que, para nós, cotidianamente, tornam-se naturalizadas, banais, racionais e
inquestionadas:
Cada um dos meus livros representa uma parte de minha história. Por uma razão ou por outra,
foi-me concedido experimentar ou viver essas coisas. Tomando um exemplo simples, trabalhei
em um hospital psiquiátrico durante os anos cinqüenta. Depois de ter estudado filosofia, quis
ver o que era a loucura: estive suficientemente louco para estudar a razão e era suficientemente
sensato para estudar a loucura. Nesse hospital, eu estava livre para mover-me entre os
pacientes e os médicos, pois não tinha uma função precisa. Era a época do florescimento da
neurocirurgia, o início da psicofarmacologia, o reino da instituição tradicional. Em um
primeiro momento, aceitei aquelas coisas como necessárias, mas depois de três meses (tenho
um pensamento lento!), comecei a me perguntar: “Mas em que essas coisas são necessárias?”.
Ao fim de três anos, havia abandonado o trabalho e fui para a Suécia com um sentimento de
grande mal-estar pessoal; lá, comecei a escrever a história dessas práticas (FOUCAULT,
2006b, p. 296).
Através do estudo da loucura, da psiquiatria, do crime e das formas de punição,
Foucault teria mostrado como nós nos constituímos indiretamente pela exclusão de alguns
outros: criminosos, loucos, etc. Na verdade, somente um modo extremamente rico de análise,
de um olhar atento, de um contraste sistemático e sensível com outras peculiaridades
históricas cujos próprios parâmetros comparativos e dimensões mais elementares são de
difícil acesso, é que se torna exeqüível o que Foucault pretende realizar. Uma visão crítica e
atenta de nosso ser no presente.
109
Para ele, uma questão que teria se tornado um dos principais pólos da filosofia
moderna seria: “O que somos nesse tempo que é o nosso? [Ou também] O que somos hoje?
Este é, a meu ver, o campo da reflexão histórica sobre nós mesmos. Kant, Fichte, Hegel,
Nietzsche, Max Weber, Husserl, Heidegger e a Escola de Frankfurt tentaram responder a essa
questão” (FOUCAULT, 2006b, p. 301). Inscrevendo-se nessa tradição, Foucault diz que seu
objetivo é o de trazer respostas a essa questão através da história do pensamento ou, mais
precisamente, através da análise histórica das relações entre as reflexões e nossas práticas na
sociedade ocidental.
No fundo, esta é uma questão que marcou a própria especificidade da sociologia: o
que somos na modernidade, quais as peculiaridades dela em relação às sociedades pré-
modernas? Talvez seja esta a questão mais geral e sedutora das investigações sociológicas.
Muitos outros teóricos da sociologia poderiam ser facilmente incluídos no grupo citado por
Foucault. Charles Taylor seguramente está entre eles. Por esse ângulo, Taylor e Foucault
compartilham desse mesmo projeto, o de desvendar os atributos mais básicos e crucias do
presente, que não são facilmente acessíveis, de tão arraigados e de tão próximos que estão.
Contudo, veremos que, a despeito de o projeto ser praticamente o mesmo, ele é pensado por
vias completamente distintas pelos dois autores.
2. Por uma análise historicamente situada dos eventos humanos
Na seção precedente, já pude apresentar algumas posições de Foucault quanto à
intenção de afastar sujeitos transcendentais em seu procedimento arqueológico. Uma das
intuições mais fortes que aparecem ao filósofo francês é que os eventos humanos ou suas
relações – sejam eles noções como de poder, sujeito, etc. – jamais podem ser tomados como
entes anteriores e originários em qualquer análise da realidade. Eles são algo que é constituído
110
e moldado, algo que se constitui historicamente dentro de um conjunto de termos espacial-
temporalmente presentes em determinados contextos. Desse modo, temos então a
possibilidade de constituição dos tipos mais variados, específicos e contingentes de relações
de poder, de formas de sujeição, de modelos de subjetividade, de constituição de saberes, de
relações entre saberes e outras instâncias do mundo, etc.
Em outras palavras, o interessante da crítica foucaultiana é que ela representa um
esforço para oferecer um exame dos objetos que escape a termos universais e transcendentais,
posto que ela se pretende totalmente historicizada. Assim como para Taylor, a elucidação de
qualquer noção de subjetividade tem como condição de possibilidade, no pensamento do
filósofo francês, sua completa elucidação em termos de sua forma historicamente,
culturalmente e socialmente produzida. Há a necessidade, por conseguinte, de uma
reelaboração da teoria do sujeito:
[...] parece-me que a teoria do sujeito permaneceu ainda muito filosófica, muito cartesiana e
kantiana, pois ao nível de generalidade em que me situo, não faço, por enquanto, diferença
entre as concepções cartesiana e kantiana. Seria interessante tentar ver como se dá, através da
história, a constituição de um sujeito que não é dado definitivamente, que não é aquilo a partir
do que a verdade se dá na história, mas de um sujeito que se constitui no interior mesmo da
história, e que é a cada instante fundado e refundado pela história. É na direção desta crítica
radical do sujeito humano pela história que devemos nos dirigir. A constituição histórica de
um sujeito de conhecimento através de um discurso tomado como um conjunto de estratégias
que fazem parte das práticas sociais (FOUCAULT, 2001, p. 8).
Ora, um dos maiores equívocos para o autor reside seguramente na suposição de que o
sujeito humano, o sujeito de conhecimento ou mesmo as próprias formas do conhecimento
são de certo modo dados prévia e definitivamente. Trata-se então de tentar mostrar como o
próprio sujeito de conhecimento possui uma história, como a própria verdade tem uma
história. Trata-se de “descer” ao estudo das práticas concretas pelas quais o sujeito é
constituído na imanência de um campo de conhecimento.
111
A partir desse conjunto de convicções, Foucault se lança em seus empreendimentos
investigativos, em suas pesquisas históricas, em trabalhos envolvendo diversos âmbitos do
saber: o que ele busca, no fundo, é arqueologia ou, mais tarde, uma genealogia do sujeito
moderno. O autor insinua que o par subjetividade/verdade teria sido desde sempre um
problema crucial em suas pesquisas, embora ele houvesse formulado o plano dessa reflexão
de maneiras diferentes. Seja pela divisão entre o louco e o são, entre o sadio e doente, entre o
criminoso e não-criminoso, seja pelo reconhecimento de ser portador de uma sexualidade, o
autor procurou saber como os sujeitos humanos entravam nos jogos de verdade, tivessem
estes a forma de um conhecimento científico ou fossem eles encontrados nas instituições ou
nas práticas de controle. Ou seja, a questão já se apresentava ao autor desde sua fase
arqueológica, onde Foucault teria rejeitado qualquer noção de sujeito como um dado
preexistente, como uma essência perene e portadora de sentido, presente indefinidamente na
história.
Ao que me parece, as obras genealógicas dirigem-se com uma ênfase ainda maior à
problemática do presente estudo. Em livros como Vigiar e punir e em seus três volumes sobre
a história da sexualidade, acredito que possamos acompanhar os principais desenvolvimentos
do pensamento foucaultiano acerca da formação do tipo peculiar e específico de subjetividade
que passou a compor a modernidade. Como complemento importante, temos alguns de seus
cursos do Collège de France (como “Em defesa da sociedade” e a “A Hermenêutica do
sujeito”) e, também, todo o conjunto de artigos, entrevistas e conferências reunidos na
coleção “Ditos e Escritos”, que nos ajudam a adentrar nos difíceis e originais caminhos
trilhados pelo autor.
Mas o que muda no projeto de Foucault a partir da transição para a genealogia? Em
primeiro lugar, a idéia de genealogia claramente é recolhida de Nietzsche. Na verdade, a
genealogia também implica uma análise histórica. Ela é uma análise histórica das condições
112
políticas de possibilidade dos discursos. É a tentativa de explicar os saberes em suas origens,
a partir de suas condições de possibilidade: os saberes são tomados como peças de relações
de poder. Por conseguinte, na análise genealógica, os “sujeitos” já aparecem sobre um campo
de batalha e inseridos nele desempenham seu papel. Freqüentemente Foucault descreve os
processos de como os agentes são sujeitados, conformados, submetidos aos jogos de verdade.
A ênfase na noção de poder como critério primário de intelecção da realidade é o
principal traço distintivo que aparece nessa transição. É com essa nova ferramenta de análise
que Foucault poderá pensar melhor na articulação dos saberes com as práticas, sobretudo pela
introdução de um outro conceito que veremos a seguir: o de “dispositivo”. Em outras
palavras: na genealogia devemos sempre considerar a origem dos saberes levando-se em
conta sua imersão inescapável em conjuntos complexos de relação de poder, contingentes e
historicamente contextualizadas. Por isso, quando Foucault diz que procurava fazer uma
genealogia da moral, dos costumes e das instituições modernas, tais como a escola, a prisão, o
hospital, a fábrica ou o casamento, ele procurava vasculhar as condições de origem, do
nascimento e do desenvolvimento dos mesmos, em termos de sua constituição em relações de
poder.
Se os próprios saberes passam a ser tomados como peças de relações de poder, a
questão central das novas pesquisas passa a ser o poder e sua importância para a constituição
dos saberes, o poder como instrumento de análise capaz de explicar a constituição dos
saberes. Daí advém toda a preocupação foucaultiana em fundamentar uma noção de poder.
O poder em si não existe – é uma relação. Nesse sentido, a visão de Foucault significa
uma desontologização da noção de poder. Daí sua recusa em tentar definir quaisquer
condições gerais ou universais sobre a noção de poder, sem que ela se refira a algum contexto
específico. É exatamente por isso que não há a elaboração de uma teoria geral do poder: o
máximo que Foucault chega a formular são algumas poucas “precauções de método”
113
(FOUCAULT, 2005a, pp. 32-40). Com elas procura salientar que o poder não deve ser
procurado a partir de um centro; não deve-se analisá-lo no nível da intenção ou decisão; não
se deve tomar o poder como um fenômeno de dominação maciça de uns pelos outros ou de
um grupo sobre outros.
Para Foucault, as relações de poder não se encontram em posição de exterioridade com
respeito a outros tipos de relações (processos econômicos, relações de conhecimento, relações
sexuais), mas lhe são imanentes. Além disso, as relações de poder são ao mesmo tempo
intencionais e não subjetivas. Se, de fato, são inteligíveis, não é porque sejam efeito, em
termos de causalidade, de uma outra instância que as explique, mas porque atravessadas de
fora a fora por um cálculo: não há poder que se exerça sem uma série de miras e objetivos.
Mas isso não quer dizer que resulte da escolha ou da decisão de um sujeito, individualmente
(FOUCAULT, 2006c, pp. 102-105).
A idéia de uma microfísica do poder procura traduzir um poder que intervém
materialmente, atuando na realidade mais concreta dos indivíduos – o seu corpo – e
penetrando nos mínimos detalhes da vida cotidiana. Os poderes são exercidos em níveis
variados e em pontos distintos da rede social, não estão localizados em um ponto único e
específico da estrutura social, mas sim funcionam como uma rede de dispositivos complexa;
sendo assim, o poder é algo que funciona, disseminando-se pelas relações. A meu ver, isso
significa dar relevo à noção de “corporeidade” como uma categoria crucial para a intelecção
das articulações possíveis entre poder e saber.
Acompanhando essa linha de raciocínio, podemos entender como, no pensamento
foucaultiano, o “indivíduo” não deve ser concebido como uma espécie de núcleo elementar,
de átomo primitivo contra a qual viria a colidir o poder: “Na realidade, o que faz com que um
corpo, gestos, discursos ou desejos sejam identificados e constituídos como indivíduos, é
precisamente isso um dos efeitos primeiros do poder”. O indivíduo é um efeito do poder e, ao
114
mesmo tempo, seu intermediário: “o poder transita pelo indivíduo que ele constituiu”
(FOUCAULT, 2005a, p. 35).
Temos então uma pergunta central para as análises foucautianas: “Quais são os
diferentes dispositivos de poder que se exercem, em diferentes níveis da sociedade, em
campos e extensões variadas?” (FOUCAULT, 2005a, p.19). Vale dizer que a noção de
“dispositivo” é uma outra inovação importante na transição para a genealogia, que permite a
Foucault fazer exatamente uma conexão entre diversas dimensões de “práticas” e a
organização dos saberes em termos de poder. Através do conceito de “dispositivo” o autor
tenta demarcar um conjunto heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações
arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos,
proposições filosóficas, morais e filantrópicas. Com ele Foucault almeja descrever sua
percepção de grandes engrenagens, entre práticas e discursos, que dispõem a organização
humana numa direção específica. Ou seja, fazem parte dele o dito e o não dito: “o dispositivo
é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos” (FOUCAULT, 2006c, p. 244). A
busca pela singularidade do presente leva-o a outras formações históricas para buscar diante
delas, além de um contraste, as próprias rupturas e condições de poder que permitiram a
constituição do presente, tal como ele se apresenta.
3. O poder disciplinar: contra uma auto-concepção ilusória da modernidade
Será com o auxílio de tal concepção significativamente peculiar da noção de poder
que Foucault poderá lidar, de forma crítica e inovadora, com a tentativa de desvendar as
regras de composição mais fundamentais da subjetividade moderna. A primeira grande
empresa de suas genealogias, e provavelmente o seu livro mais conhecido, consistiu em
“Vigiar e Punir”. O livro tem início com a descrição de um suplício, de uma forma de
115
punição relativamente comum empregada na França no século XVIII, descrição que procura
evidenciar os detalhes das reações do suplicado, dos sofrimentos que lhe são impostos: uma
forma de punição que teve seu lugar e seu tempo e que não corresponde aos procedimentos
punitivos que passaram a reinar ao longo do desenvolvimento posterior nas sociedades
ocidentais.
O objetivo do livro de acordo com o próprio autor:
uma história correlativa da alma moderna e de um novo poder de julgar; uma genealogia do
atual complexo científico-judiciário em que o poder de punir se apóia, recebe suas
justificações e suas regras, entende seus efeito e mascara sua exorbitante singularidade
(FOUCAULT, 2007, p. 23).
A história desta “microfísica do poder punitivo” tematizada em Vigiar e punir seria
então uma genealogia da alma moderna ou uma peça para a genealogia da alma moderna. É
perfeitamente perceptível aqui a semelhança de projeto com o que Taylor buscou a partir de
seu “As fontes do self”. O que se busca é a “alma”, a identidade, o self ou a subjetividade
inerente à configuração histórica que os últimos séculos forjaram. E, como já foi dito, os dois
autores optam pela percepção desses por meio de uma genealogia, de uma pesquisa que visa
resgatar as fontes históricas como material explicativo para o presente. Taylor encontrara a
interioridade como a matriz das concepções de mundo que engendraram o desenvolvimento
ocidental. Foucault, talvez percebendo a dimensão, a complexidade e a multidimensionalidade
dessa alma moderna, sugeria que sua pesquisa poderia apontar para “uma das peças” para o
entendimento dela. E, de fato, mais tarde ele realmente perceberia outras dimensões da
constituição da subjetividade moderna que ele não antevira em “Vigiar e Punir”.
Foucault percebe nesse livro uma mudança de enormes dimensões no que diz respeito
às formas de punição e da relação com o criminoso: do suplício na era clássica, que implicava
em sofrimento e demonstração pública, passa-se à prisão, modelo que representaria uma nova
configuração nas relações de poder. A prisão faz falar, não faz gritar; observa e vigia o corpo
116
fazendo-o aparecer. Assim, a obra é permeada pelo contraste destes dois “tipos ideais” de
exercício de poder, contraste que possibilita a inteligibilidade de cada um deles em sua
singularidade.
Do mesmo modo como em a “História da Loucura”, onde em seus estudos não se
tratava de apontar a construção de uma “verdade psicológica” sobre a loucura, também a
história do poder de punir não deve ser vista como uma evolução quanto a uma forma mais
“racional” de punir, no sentido de humanização da pena. Em outras palavras, não se trata de
qualquer tipo de elogio para com uma hipotética humanização no desenvolvimento do sistema
penal moderno. Quando Foucault se refere a uma “humanização” da pena, ele insinua uma
conexão – veremos – do desenvolvimento do sistema penal com a emergência do “homem”
enquanto categoria tipicamente moderna, e não um abrandamento das penas, não uma
humanização no sentido de diminuição dos “excessos do poder”. Não se trata de formas mais
“humanas” de punir. O que ela narra é exatamente uma descontinuidade entre formas distintas
de poder punitivo. Duas ordens incomensuráveis, onde a narração privilegia o nascimento de
um novo conjunto de poder e de estratégias que se vinculam a um simultâneo
desenvolvimento de um campo de saber.
As novas formas de exercício de poder teriam por base mecanismos novos de punição,
ou seja, novas técnicas, uma nova tecnologia aplicável cotidianamente. É precisamente aqui,
quanto ao papel dessa tecnologia, que vemos o ponto em que essa história dos modos de
punição se conectam às possibilidades de compreensão de algo mais amplo, ou seja, permite-
nos falar de uma genealogia da alma moderna: ora, o que essa tecnologia tem de tão especial
aos olhos de Foucault? Essa nova tecnologia, imposta a partir de fora e que marca a
substituição do suplício, é essencial para a compreensão da modernidade no sentido de que ela
será modelar, ou seja, nela estão embutidos os moldes de formas de exercício de poder que
estarão presentes em diversos âmbitos, em variadas instituições, nas instituições mais
117
elementares da organização cotidiana da vida moderna. É exatamente por isso que Foucault
toma como propósito geral do livro uma história correlativa da alma moderna com um novo
poder de julgar.
O modelo de prisão extravasa para outras tantas esferas de sociabilidade, tais como
fábricas, escolas, escritórios, guarnições, empresas, hospitais, assim como em muitas outras.
Desse modo, podemos pensar também que o próprio funcionamento do mercado (incluindo
desde fábricas, empresas, comércio) assim como do aparato burocratizado da administração
estatal, passa a depender dessa nova tecnologia (ora, são os mecanismos e instituições mais
fundamentais da vida moderna que estão permeados pelo poder disciplinar). Em outras
palavras, o modelo e o significado da prisão não se resumem ao encarcerado, mas extrapolam
para as mais diversas e mais significativas experiências e instituições cotidianas. Mediante sua
presença em todo um conjunto basal de instituições, essa genealogia é a chave para
entendermos a própria conformação do self moderno. É o modo por excelência de sujeição
que caracteriza a modernidade.
A tese de Foucault é de que, com o aparecimento das técnicas disciplinares, os
mecanismos de poder se integram à eficácia da produção dos aparelhos. Nesse sentido há uma
aproximação entre as demandas e processos de acumulação de capital típicos do capitalismo e
o desenvolvimento dessas tecnologias que permitem uma eficácia extraordinária dentro do
aparelho produtivo:
As mutações tecnológicas do aparelho de produção, a divisão do trabalho e a elaboração das
maneiras de proceder disciplinares mantiveram um conjunto de relações muito próximas. Cada
uma das duas tornou possível a outra, e necessária; cada uma das duas serviu de modelo para a
outra (FOUCAULT, 2007, p. 182).
É claro que, em se tratando do pensamento foucaultiano, não podemos pensar numa
simples relação de causalidade, de uma determinação pela infra-estrutura econômica da série
de fenômenos que se vincula à origem dessa tecnologia disciplinar. Seguramente, não é esse o
118
seu argumento. Se quisermos, podemos lembrar que, justamente a fim de evitar qualquer
leitura marxista de sua tese, Foucault procura evitar o uso do termo ideologia.
51
Mas muitas
passagens do livro levam o argumento numa direção de um certo tipo de funcionalismo, em
que postula-se uma espécie de adequação funcional das tecnologias disciplinares à eficácia
produtiva dos aparelhos, ou seja, uma funcionalidade das técnicas disciplinares para com as
expectativas e demandas de acumulação que o sistema capitalista então demandava.
As técnicas disciplinares expressam variadas tecnologias que possibilitam um controle
minucioso do corpo, das atividades e práticas corriqueiras, do tempo e do espaço. Justamente
pela natureza destas minúcias, o alvo é a “alma”, ou seja, as disposições é que se alteram. A
alma – as disposições do pensamento, o self – constitui o alvo privilegiado dessa nova
tecnologia disciplinar.
As tecnologias disciplinares estimulam e delimitam a constituição de um tipo humano
específico, ou seja, elas não necessitam subjugar ou impor, mas se exercem instigando a ação
dos próprios agentes, incitando modos específicos de atitudes. Sendo assim, elas não
estabelecem uma dominação constante a partir de uma vontade singular, não visam uma
renúncia por obediência, não visam uma intimidação. Elas funcionam com um jogo de
gratificações e recompensas e, de outro lado, de sanções normalizadoras. Estas últimas,
entendidas como conjuntos de procedimentos punitivos que se fazem por uma infinidade de
pequenas atitudes e comportamentos, repreensões sutis (pensemos por exemplo em
comportamentos como atrasos, desatenções, “indecências”, negligências, e os mais variados
gestos não-condizentes com as expectativas disciplinares). Todo esse processo acaba
moldando um tipo humano específico, característico do ocidente moderno.
51
Em outras oportunidades, Foucault explicitou seu cuidado para com a idéia de ideologia. A noção de ideologia
é evitada por três razões básicas: i) queira ou não, ela está sempre em oposição virtual a alguma coisa que seria a
verdade: o problema não é o de examinar num discurso o que é científico ou verdadeiro, mas sim de ver
historicamente como se produzem os efeitos de verdade no interior de discursos, que não são em si verdadeiros
ou falsos; ii) refere-se necessariamente a alguma coisa como o sujeito; iii) a ideologia está em posição secundária
com relação a alguma coisa que deve funcionar para ela como infra-estrutura ou determinação econômica,
material, etc. Assim, Foucault pensa que o termo não deve ser usado sem as devidas precauções com essas
implicações que seu uso sugere (FOUCAULT, 2004b, p. 7).
119
A forma de poder que caracteriza a disciplina tem seu traço diferencial no sentido de
que ela se exerce sob a pretensa preservação de uma certa autonomia. Ela é marcada por um
conjunto de coerções e incitações bastante sutis – se comparadas a outras formas de exercício
do poder – e detalhadas, aplicadas ao corpo, gestos e comportamentos, temporal e
espacialmente. Estas seriam garantidas não só pelo que o autor chamou de sanções
normalizadoras, que consistiriam em formas sutis de procedimentos punitivos, possibilitando
agir sobre os mínimos desvios de condutas, mas também por uma boa qualificação dos
comportamentos “positivos”. Daí a conhecida idéia da fabricação de “corpos dóceis”,
submissos, exercitáveis e disciplinados, mas nos quais uma impressão de autonomia é crucial
na vinculação às engrenagens em funcionamento nos diversos âmbitos institucionais. O poder
disciplinar, mesmo quando não explicitamente manifesto ou quando atuando com a convicção
dos próprios agentes, faz-se presente.
A disciplina pressupõe um tipo de organização do espaço e também um controle das
atividades temporalmente. Ela está intimamente associada a formas de vigilância, que teria
uma de suas formulações ideais no modelo do “panóptico” (figura arquitetural que objetiva
maximizar e materializar a funcionalidade das estratégias disciplinares), onde a distribuição
espacial dos corpos e o controle das atividades no tempo são extremamente relevantes. Assim,
desenvolve-se no ocidente, simultaneamente ao avanço do capitalismo,
toda uma série de técnicas para vigiar, controlar, se encarregar do comportamento dos
indivíduos, dos seus atos, de sua maneira de fazer, de sua localização, de sua residência, de
suas aptidões, mas esses mecanismos não tinham como função essencial proibir
(FOUCAULT, 2006b, p.74).
Tal afirmação deve ser entendida no sentido de que o poder disciplinar seria muito
mais produtor de que inibidor. Ora, o poder possui uma eficácia produtiva, uma riqueza
estratégica, uma positividade. Conseqüentemente, o principal efeito desse novo tipo de poder
é a produção de um tipo específico de indivíduo, o modelo de individualidade característico
120
da modernidade, produto de uma tecnologia, constituído enquanto objeto de um saber e
resultado de relações de poder. O indivíduo seria, nesse sentido, uma produção dessa forma
específica de poder e saber. Isso porque as análises genealógicas constataram que a própria
noção de indivíduo não é um elemento de continuidade nos vários momentos históricos, ou
seja, não é uma matéria inerte anterior e exterior às relações de poder. O isolamento celular,
a impressão de autonomia, a disciplinarização individualizada em hospícios, centros médicos,
militares, políticos, pedagógicos, etc., seriam todos parte de um jogo de onde o resultado é
uma dimensão individual de exercício do poder. O poder tem sua manifestação apropriada na
“alma” de cada um, individualmente.
De acordo com o pensamento foucaultiano, a existência dessa forma de poder que se
exerce anonimamente, mas que culmina numa regulação individual seria uma das principais
diferenças entre as sociedades modernas e os outros tipos de organização social. As
disciplinas têm por conseqüência uma “individualização descendente”, nas palavras do autor.
Isso no sentido de que, na medida em que o poder se torna mais anônimo e funcional, aqueles
sobre os quais se exercem tendem a ser mais individualizados, por observações e fiscalizações
que têm a norma como padrão comparativo (FOUCAULT, 2007, p. 160).
52
Foucault não é
claro, nesse momento, quanto a esse ponto. Mas nitidamente ele quer dizer que a
individualização à qual ele se refere não implica em uma força rumo à singularização, no
sentido de dar maior abertura às peculiaridades individuais, mas ao contrário, a
individualização aqui significa uma colocação do indivíduo em processos e normas
universais, ou seja, a fabricação de indivíduos-padrão e normais; a individualidade é dada por
sua posição, seu espaço, seu tipo e seu grau de disciplinamento, de docilidade – o homem
calculável, sujeito de autonomia ilusória: “o indivíduo é sem dúvida o átomo fictício de uma
52
A interpretação tayloriana, ao contrário, dirige-se a um “individualismo” ascendente, quando ele analisa
sobretudo os efeitos do ideário do expressivismo sobre as subjetividades individuais.
121
representação ‘ideológica’ da sociedade; mas é também uma realidade fabricada por essa
tecnologia específica de poder que se chama disciplina” (FOUCAULT, 2007, p. 161).
Talvez seja uma boa hora pra trazer as reflexões de Charles Taylor à discussão. Nesse
momento de “Vigiar e Punir”, a visão de Foucault da individualização com base em normas
universais e que valorizam a autonomia, o autocontrole e a auto-responsabilidade, fica muito
próxima do individualismo do self-pontual tayloriano, associado ao princípio da dignidade. O
que temos é o homem calculável, disciplinado, com individualidade em termos de uma
suposta margem de autonomia conjugada com uma inserção num modelo de normas
“secretas”, praticamente “invisíveis”. Mas as similaridades são limitadas: por exemplo, Taylor
tende a ver um saldo positivo na instauração desse modelo disciplinar e de punição, em
termos de uma humanização, de um crescente e generalizado respeito à vida. Além disso, o
processo para um é analisado em termos da objetivação de instâncias de poder, enquanto para
o outro a partir de um de novos valores que se centram na autonomia individual. Enfim, temos
aqui certamente um ponto ao qual retornarei na última parte desse trabalho.
Assim, nas partes finais de “Vigiar e Punir” o modelo do indivíduo moderno vai
sendo delineado como um produto dessas técnicas disciplinares: a partir dessa linha
argumentativa, o sentido da individualização, gerada por esses mecanismos tendencialmente
anônimos e funcionais, não é de um tipo que permite distinguir um indivíduo dos demais, mas
exatamente o inverso, de “células dóceis” individuais constituídas por meio de observações,
fiscalizações, medidas comparativas e normalização de desvios, diversos tipos de exclusão
dos anormais
53
. Seus efeitos: uma individualidade que corresponda às expectativas de
acumulação, ou seja, uma gestão útil dos homens, um indivíduo útil, dócil e produtivo.
Foucault chama de individualidade celular, por estar associada a localizações específicas e
individuais (como uma célula, embora idêntica às demais, ocupa um lugar que lhe é próprio –
53
Ver a terceira parte de Vigiar e Punir (FOUCAULT, 2007, pp. 117-142).
122
sua máquina na indústria, sua mesa de trabalho, sua cela na prisão: não pensemos nas
penitenciárias brasileiras!). Ela não é um fim acabado em si mesmo, mas um meio para a
realização de uma finalidade. Produzem-se indivíduos particularizados em termos espaciais,
com uma “autonomia dócil, útil e produtiva”.
É extremamente importante ressaltar que todo esse desenvolvimento está vinculado ao
aparecimento de um novo tipo de saber sobre o homem, saber esse que se forma com o
aparecimento das ciências humanas e que se torna fundamental para a constituição de todo o
aparato tecnológico disciplinar. O aparecimento histórico da própria categoria do “homem” –
tema discutido em detalhe em “As palavras e as coisas” – foi o que fundamentou toda essa
gigante transformação:
Uma coisa em todo o caso é certa: é que o homem não é o mais velho problema nem o mais
constante que se tenha colocado ao saber humano. Tomando uma cronologia relativamente
curta e um recorte geográfico restrito – a cultura européia desde o século XVI – pode-se estar
seguro de que o homem é aí uma invenção recente. Não foi em torno dele e de seus segredos
que, por muito tempo, o saber rondou. [...] foi o efeito de uma mudança nas disposições
fundamentais do saber. O homem é uma invenção cuja recente data a arqueologia de nosso
pensamento mostra facilmente. E talvez o fim próximo (FOUCAULT, 2000, p. 536).
Sua tese é de que foi na modernidade que se construiu essa figura do “homem”: toda
uma nova configuração epistemológica pautada nessa figura marca a especificidade do saber
das ciências humanas, que modela os discursos da disciplina, controle e vigilância. Haveria
uma matriz comum entre a história do direito penal e a história das ciências humanas, entre as
novas formas de penalidade e os novos saberes sobre o “homem”. O que está em jogo é o
nascimento de um certo saber do homem, da individualidade, do indivíduo normal ou
anormal, dentro ou fora da regra. De certa maneira, esse saber fez nascer um tipo
absolutamente novo de sujeito de conhecimento:
O discurso da disciplina é alheio ao da lei; ele é o discurso da norma. “Elas [as disciplinas]
definirão um código que será aquele, não da lei, mas da normalização, e elas se referirão
123
necessariamente a um horizonte teórico que não será o edifício do direito, mas do campo das
ciências humanas. E sua jurisprudência, para essas disciplinas, será a de um saber clínico
(FOUCAULT, 2005a, p. 46).
Mas Foucault parece ter encontrado novos rumos para seus trabalhos genealógicos,
sobretudo quando encontrou uma forma de poder diversa daquela que caracterizava o poder
disciplinar. Em seu curso “Em defesa da sociedade”
54
o filósofo francês introduz a categoria
de “biopoder” ou “biopolítica” para designar um outro tipo de poder cuja gênese é um dos
objetos privilegiados desse curso.
A biopolítica é entendida como a maneira pela qual se tentou racionalizar os
problemas propostos à prática governamental, pelos fenômenos próprios a um conjunto de
seres vivos constituídos em população: saúde, higiene, natalidade, raças, etc. Diferentemente
do poder disciplinar, ela não tem como objeto o domínio dos corpos de forma individual e
disciplinada, mas à categoria do homem como espécie, ou seja, um poder que se dirige à
categoria da população e da espécie humana, envolvendo uma série de temas como os do
nascimento, da mortalidade, da doença:
Ao que essa nova técnica de poder não disciplinar se aplica é – diferentemente da disciplina,
que se dirige ao corpo – a vida dos homens, ou ainda, se vocês preferirem, ela se dirige não ao
homem-corpo, mas ao homem vivo, ao homem ser vivo; ao limite, se vocês quiserem, ao
homem-espécie. Mais precisamente, eu diria isto: a disciplina tenta reger a multiplicidade dos
homens na medida em que essa multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais
que devem ser vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos. E, depois, a nova
tecnologia que se instala se dirige à multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se
resumem em corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrário, uma massa global,
afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, que são processos como o
nascimento, a morte, a produção, a doença, etc. (FOUCAULT, 2005a, p. 289).
Assim, de forma diversa do modo de poder sobre o corpo que implicava em uma
individualização, Foucault percebe essa outra não-individualizante, massificante, que atua não
em direção do homem-corpo, mas do homem-espécie. Portanto, de um lado um conjunto
54
Curso apresentado no Collège de France em 1975-1976 sob o título de original “Il fault défendre la société
(“É preciso defender a sociedade”).
124
orgânico-institucional – a organo-disciplina da instituição; e de outro a bioregulamentação,
efetuada sobretudo pelo Estado.
O tema da biopolítica segue paralelamente com uma preocupação crescente de
Foucault sobre os procedimentos e meios para assegurar o “governo dos homens”. Ele passa a
se interessar pela formação de uma “governamentalidade” política, entendida como a maneira
pela qual a conduta de certos conjuntos de indivíduos esteve implicada, de forma cada vez
mais marcada, no exercício do poder soberano. O autor se lança no estudo da evolução
histórica das “artes de governar”, cuja racionalidade tem seus princípios e seu domínio de
aplicação específico no Estado – surge uma espécie de “razão de Estado” (FOUCAULT,
1997, pp. 81-83).
Novos e interessantes trabalhos de pesquisa têm sido realizados no sentido de levar a
cabo o projeto foucaultiano de estudo da governamentalidade. Nikolas Rose e Peter Miller,
por exemplo, realizam discussões e análises sobre muitas e variadas alianças entre autoridades
políticas ou outros tipos de autoridades que buscam governar atividades econômicas, a vida
social e a conduta individual (ROSE e MILLER, 1992, p. 173). As racionalidades políticas
modernas e as tecnologias de governo implicam em formas de governar à distância, por meio
de lugares, entidades, instituições e pessoas especialistas (o governo de indivíduos e
populações, como mostram Miller e Rose, necessita de especialistas ou experts, conhecedores
de “verdades” especializadas e poderes extraordinários) capazes de governar as condutas. O
desenvolvimento da modernidade é acompanhado pela emergência de racionalidades políticas
ou de mentalidades de governo, que chegam nos diversos âmbitos institucionais por experts
autorizados a dizer-nos como devemos ser, fazer e proceder; em suma, seriam veículos de
certas verdades capazes de controlar, de maneira eficaz, as condutas.
Mas enfim, o fato é que Foucault descobriu a disciplina e o biopoder como duas
formas gerais de poder tipicamente modernas. Segundo ele, a norma é o que pode tanto se
125
aplicar a um corpo e disciplinas quanto a uma população que se quer regulamentar. É o que
ele chama de sociedade da normalização: a sociedade que convive ao mesmo tempo com
normas da disciplina e normas da regulamentação, que invadem as mais diversas e micro
esferas de relações.
Em seu primeiro volume sobre a história da sexualidade – “A vontade de saber”
Foucault iria perceber a sexualidade como um campo de poder no qual incidem os dois tipos
de poder por ele apreendidos, o disciplinar e biopoder: na junção entre o “corpo” e a
“população”, o sexo tornou-se um alvo central de um poder que se organiza em torno da
gestão da vida (FOUCAULT, 2006c, p. 160). Passemos então à análise desse conjunto de
livros sobre a sexualidade que, para os meus propósitos serão talvez os mais fundamentais.
4. A sexualidade e o saber: a construção de uma verdade sobre si
Em 1976 é publicado o primeiro volume da história da sexualidade; título do livro: “A
vontade de saber”. O livro se inicia com uma descrição, uma espécie de lugar comum dentre
os saberes modernos, uma tese cuja validade Foucault irá questionar e cujos pressupostos irá
situar:
Parece que, por muito tempo, teríamos suportado um regime vitoriano e a ele nos
sujeitaríamos ainda hoje. [...] Um rápido crepúsculo se teria seguido à luz meridiana, até as
noites monótonas da burguesia vitoriana. A sexualidade é, então, cuidadosamente encerrada.
Muda-se para dentro da casa. A família conjugal a confisca. E absorve-a, inteiramente, na
seriedade da função de reproduzir. Em torno do sexo, se cala. O casal, legítimo e procriador,
dita a lei. Impõe-se como modelo, faz reinar a norma, detém a verdade, guarda o direito de
falar, reservando-se o princípio do segredo (FOUCAULT, 2006c, p. 9).
Inaugurar-se-ia, com esse regime vitoriano, uma intensa repressão da sexualidade,
uma condenação e negação do sexo. E, ainda em “nosso tempo”, a repressão seria o modo
fundamental de relação entre poder, saber e sexualidade. Há uma obstinação em falar da
126
situação da sexualidade no mundo moderno em termos de repressão. Seria imperativo então
uma liberação da sexualidade das amarras que a burguesia vitoriana teria imposto a ela.
Mas Foucault não se dá por satisfeito com esses lugares comuns. O caráter inovador
desta obra passa pela contestação do que ele chamou de “hipótese repressiva”: ora, essa
contestação foi resultado de uma convicção que ele já carregava há algum tempo, de que o
poder não é simplesmente algo que nega, que proíbe, que se opõe a certos entes no mundo; o
poder possui uma positividade. Assim, a idéia de uma suposta repressão da sexualidade, que
teria se instaurado sobretudo a partir do século XVII e que coincidiria com o advento do
capitalismo e da burguesia vitoriana, não convenceu plenamente o filósofo francês. A
contestação da hipótese passa pela não aceitação da categoria “sexualidade” como um dado
prévio, um atributo humano invariável: ora, a sexualidade não é algo existente em si, ela é
construída dentro de campos de conhecimento situáveis historicamente. Isso se encaixa com a
idéia foucaultiana de que não existem objetos “naturais” no domínio das pesquisas que
desenvolve. Por isso, a sexualidade não constituiria uma invariante, ela não é algo dado que
adviria de uma natureza interior inerente ao homem, mas se inscreve numa história, que
também não deve ser entendida como o desdobramento de uma substância.
Assim, o que ele nota, na verdade, é uma hipertrofia dos discursos quanto à
sexualidade, uma incitação sem precedentes no que tange a essa esfera da vida social. O que
houve foi uma fermentação discursiva que teria se acelerado a partir do século XVIII:
Mas o essencial é a multiplicação de discursos sobre o sexo no próprio campo do exercício do
poder: incitação institucional a falar do sexo e falar cada vez mais: obstinação das instâncias
de poder a ouvir falar e a fazê-lo falar ele próprio sob a forma da articulação explícita e do
detalhe infinitamente acumulado (FOUCAULT, 2006c, p. 24).
Evidentemente, não se trata de afirmar que a sexualidade moderna é liberada, de que
há uma tolerância generalizada para com o sexo. O objetivo de Foucault é, dessa forma, mais
o de situar essa “hipótese repressiva” numa economia geral dos discursos sobre o sexo, do que
127
propriamente de negá-la. A hipótese repressiva, com a qual Foucault almeja romper, é
associada a nomes como Wilhelm Reich, psicólogo austríaco, mas também com a psicanálise
de uma forma geral.
A proliferação dos discursos sobre a sexualidade, esse hipertrofiamento dessa esfera
não deve ser entendido como um fenômeno simplesmente quantitativo, mas pelas diferenças
“qualitativas” do que é “dito” e “não dito” dentro dele. A noção de dispositivo aqui é crucial:
a multiplicação de discursos é, notavelmente, parte de um dispositivo de sexualidade que se
desenvolveu no ocidente, como uma série de práticas que funcionam e prescrevem na direção
do que entendemos por “sexualidade”.
Além disso, Foucault procura afastar a hipótese de que esse dispositivo de sexualidade
teria se constituído em termos de sua simples função reprodutiva, ou seja, economicamente
útil e politicamente conservadora, mostrando como esse se desenvolveu em direções que não
implicavam num vínculo com uma produtividade. Refutando a idéia de que as sociedades
industriais modernas teriam inaugurado um período de repressão mais intensa do sexo, o
filósofo demonstra como nunca tantos centros de poder, tantos focos estimularam o
surgimento de sexualidades heréticas, de uma multiplicação de sexualidades disparatadas.
Foucault define como um dos elementos privilegiados da gênese do dispositivo de
sexualidade o que chamou de “poder pastoral”, forma de poder de origem religiosa, que não
fazia parte da vida cotidiana dos gregos ou romanos. Essa forma de poder teria sido
introduzida em Roma pelo cristianismo primitivo, desenvolvendo-se na Idade Média e
principalmente no século XVI, com a reforma e a contra-reforma. Ela se caracteriza pelo
projeto de dirigir os homens, nos detalhes mais íntimos de sua vida, do nascimento até a
morte, para obrigá-los a um comportamento capaz de levá-los à salvação. Foi com o
cristianismo que nasceu a idéia de considerar os homens em geral como um rebanho
obediente e alguns homens em particular como pastores, isto é, com a missão de velar pela
128
salvação de todos, encarregando-se da totalidade de suas vidas de maneira contínua e
permanente, exigindo obediência incondicional. Trata-se, portanto, de um poder que não se
exerce sobre um território, mas sobre uma multiplicidade de indivíduos, velando por cada um
deles em particular. O argumento se pauta na crença de que a partir do momento em que, no
cristianismo, através da organização do pastorado, desenvolveu-se um mecanismo de poder
muito importante para toda a história do ocidente. Na verdade, o fato de haver um pastor
implica que, para todo indivíduo, existe a obrigação de obter a sua salvação.
55
Foucault se dedica a mostrar como esse poder se exerce sobre o indivíduo com o
objetivo de conhecimento exaustivo de sua interioridade, da produção de sua verdade
subjetiva, através das técnicas de confissão, do exame de consciência, da direção espiritual:
“esse conhecimento da interioridade dos indivíduos é absolutamente exigido para o exercício
do pastorado cristão” (FOUCAULT, 2006b, p. 69). Lembremos que também Taylor vê a
especificidade do desenvolvimento ocidental passar pela constituição de uma noção de
interioridade, que desemboca nas duas configurações morais por excelência da modernidade.
É claro que o dispositivo de sexualidade não fazia parte desses desenvolvimentos
cristãos. Mas esses fizeram possível aquele. No cristianismo, tratava-se de um tipo de poder
que controlava os indivíduos através do controle de sua sexualidade, entendida como alguma
coisa de que era sempre preciso desconfiar, algo que produzia possibilidades de tentação e
queda individuais e de que era preciso um afastamento. Impõe-se aos indivíduos pensar uma
verdade sobre seus próprios desejos.
Porém, não se tratava absolutamente de recusar tudo o que pudesse vir do corpo como
nocivo, como sendo o mal. Era preciso fazer funcionar o corpo, os prazeres, essa sexualidade,
55
Na verdade, o surgimento do que Foucault chamou de governamentalidade tem íntima relação com o
desenvolvimento, no ocidente, dessa forma de poder pastoral. Os séculos XV e XVI teriam assistido a uma crise
do sistema de pastorado, não no sentido de acabar com este, mas no de procurar outras modalidades de direção
espiritual e de novos tipos de relação entre pastor e rebanho, incluindo novas formas de governar as crianças, as
famílias ou mesmo um território. O nascimento dessas novas modalidades acompanha novas relações
econômicas, sociais e políticas, onde o surgimento de uma governamentalidade é um de seus pontos mais altos, e
as estratégias ligadas à uma biopolítica seriam suas principais diretrizes.
129
no interior de uma sociedade que tinha as suas necessidades de reprodução, sua organização
familiar. Esse era o domínio da carne e que foi e continua sendo crucial dentro do
cristianismo. Da carne deve-se duvidar, controlar. Mas ela também não devia ser tomada
como um mal absoluto e, ao mesmo tempo, era a própria fonte de uma subjetividade, que se
reconhecia mediante às tentações que a moral cristã se esforçava para conter:
É pela constituição de uma subjetividade, de uma consciência de si perpetuamente alertada
sobre suas próprias fraquezas, suas próprias tentações, sua própria carne, é pela constituição
dessa subjetividade que o cristianismo conseguiu fazer funcionar essa moral (FOUCAULT,
2006b, p. 71).
Podemos lembrar que toda aquela configuração narrada por Taylor, que vai da
filosofia platônica, passa por toda a tradição cristã, até culminar no self-pontual, modela-se
também por ver na “carne”, no desejo ou no corpo, uma fonte do pecado, do mal, em
contraposição aos atributos da alma, da razão. Mas também devemos lembrar que a
configuração rival, “expressivista”, contrapõe-se completamente a esses moldes morais,
vendo na natureza profunda a verdadeira fonte do bem.
Foucault condensa sua tese dizendo que a técnica de interiorização, a técnica de
tomada de consciência, a técnica do despertar sobre si mesmo em relação às suas fraquezas,
ao seu corpo, à sua sexualidade, à sua carne, foi a contribuição essencial do cristianismo a
história da sexualidade.
Mas o âmbito dessa forma de “exame de consciência” não se restringe à experiência
religiosa; com o passar dos séculos ela se expande aos vários outros domínios; penetra na
pedagogia, nas prisões, nas intervenções médicas e psicológicas. O método confessional
extrapola para a relação entre pais e filhos, pedagogos e alunos, médicos e doentes, peritos e
delinqüentes. Toda uma scientia sexualis é desenvolvida no sentido de produção de uma nova
verdade, de um novo saber científico.
130
Desde a Idade Média, pelo menos, as sociedades ocidentais colocaram a confissão
entre os rituais mais importantes, de que se espera a produção de verdade. Obviamente,
Foucault demonstra como teria havido um grande desenvolvimento das próprias técnicas de
confissão.
56
Isso significava uma incitação à produção de “verdades”. A partir de sua
experiência originária inicialmente religiosa, ela passou – com o desenvolvimento moderno –
a atingir as mais variadas esferas da vida social, a justiça, a medicina, a pedagogia, as relações
familiares, as relações amorosas, as esferas cotidianas quanto os ritos solenes:
confessam-se os crimes, os pecados, os pensamentos e os desejos, confessam-se passado e
sonhos, confessa-se a infância; confessa-se as próprias doenças e misérias; emprega-se a maior
exatidão para dizer o mais difícil de ser dito; confessa-se em público, em particular, aos pais,
aos educadores, ao médico, àqueles a quem se ama” (FOUCAULT, 2006c, pp. 68-69).
Todo esse movimento, de uma progressiva força da construção de uma verdade sobre
a sexualidade deságua em um tipo específico de saber que ele chamou de “scientia sexualis”.
No ocidente não teríamos a ars erotica (encontrada por exemplo na China, Índia, em regiões
árabes-muçulmanas ou na Roma antiga), na qual o prazer seria considerado um fim em si
mesmo, ou seja, ele não estaria submetido à força de construção de uma verdade criteriosa.
Diferentemente desta, a civilização moderna foi a única a elaborar uma “ciência sexual”. O
discurso sobre a sexualidade assumiu rapidamente uma forma de conhecimento científico.
Nele, não se trata de ensinar a obter o prazer, a dar prazer aos outros, de intensificar seu
próprio prazer pelo prazer dos outros. Não há um discurso ou iniciação outra à ars erotica
senão clandestinos e puramente inter-individuais. Trata-se de discutir e formular qual a
verdade dessa coisa que, no indivíduo, é seu sexo ou sua sexualidade:
56
Sobre isso, Foucault cita: o recuo na justiça criminal, dos processos acusatórios; o desaparecimento das
provações de culpa (juramentos, duelos, julgamentos de Deus); e o desenvolvimento dos métodos de
interrogatório e de inquérito; a importância cada vez maior ganha pela administração real na inculpação das
infrações – e isso às expensas dos processos de transação privada – a instauração dos tribunais de Inquisição,
tudo isso contribui para dar à confissão um papel central na ordem dos poderes civis e religiosos (FOUCAULT,
2006c, pp. 66-67).
131
Consideremos os grandes marcos históricos: em ruptura com as tradições da ars erotica, nossa
sociedade constituiu uma scientia sexualis. Mais precisamente, atribuiu-se a tarefa de produzir
discursos verdadeiros sobre o sexo, e isto tentando ajustar, não sem dificuldade, o antigo
procedimento da confissão às regras do discurso científico. A scientia sexualis, desenvolvida a
partir do século XIX, paradoxalmente, guarda como núcleo o singular rito da confissão
obrigatória e exaustiva, que constituiu, no ocidente cristão, a primeira técnica para produzir a
verdade do sexo (FOUCAULT, 2006c, p. 77).
Portanto, em A vontade de saber demonstra-se como as pessoas, a partir do
desenvolvimento histórico do ocidente, foram levadas a pensar a si mesmas como sujeitos de
uma sexualidade, sujeitos de desejos; uma força que levaria cada um a uma auto-exigência de
construção e formulação de uma verdade sobre si mesmo, sobre sua subjetividade.
Recapitulando a tese geral de Foucault: contestando a hipótese repressiva, Foucault diz
que a sociedade desenvolvida sobretudo a partir do século XVIII – chame-se, burguesa,
capitalista ou industrial – não reagiu ao sexo em termos de uma recusa em reconhecê-lo, mas,
ao contrário, implantou todo um aparelho para produzir discursos verdadeiros sobre ele – a
scientia sexualis. Nessa sociedade, não apenas se falou e forçou todo mundo a falar ou pensar
sobre ele, como foi criteriosa quanto à formulação de sua verdade regulada: “Como se
suspeitasse nele um segredo capital. Como se tivesse necessidade dessa produção de verdade.
Como se lhe fosse essencial que o sexo se inscrevesse não somente numa economia do prazer
mas, também, num regime ordenado do saber” (FOUCAULT, 2006c, p. 79).
Um complexo dispositivo foi instaurado para produzir discursos verdadeiros sobre o
sexo: um dispositivo que abarca amplamente a história, pois vincula a velha injunção da
confissão aos métodos da escuta clínica. E, através desse dispositivo, pôde aparecer algo
como a “sexualidade” enquanto verdade do sexo e de seus prazeres.
Mas é claro, a construção dos indivíduos como “sujeitos” de uma sexualidade não se
deu num campo livre e neutro. É aí que entrará a articulação com formas de poder definindo
os próprios critérios de normalidade da constituição das subjetividades quanto à sexualidade:
a scientia sexualis promoveu a consideração do sexo enquanto centro de uma codificação de
132
patologias e os respectivos procedimentos de medicalização, em vários âmbitos de regulação,
desde clínicos, psiquiátricos, psicanalíticos, até a esfera familiar.
A ciência sexual impõe uma verdade científica sobre o sexo que atinge a própria
construção subjetiva, não procurando ampliar e intensificar os prazeres sexuais, mas sim
submeter uma análise criteriosa os desejos, pensamentos e atos relacionados a esses prazeres.
A sexualidade, como uma produção histórica do ocidente moderno, seria uma das dimensões
da vida que mais teriam se ajustado aos exercícios de uma microfísica do poder. É por isso
que, como disse, a sexualidade está na junção dos poderes disciplinares e do biopoder, como
uma instância de “interesse” tanto na questão individual/disciplinar quanto em questões
relativas à população/espécie.
A sexualidade foi definida como sendo, “por natureza”, um domínio penetrável por
processos patológicos, solicitando, portanto, intervenções terapêuticas ou de normalização.
Foucault chega a enumerar quatro domínios estratégicos centrais em que o poder
característico do dispositivo de sexualidade se exerce: histerização do corpo da mulher;
pedagogização do sexo da criança; socialização das condutas de procriação; e psiquiatrização
do saber perverso. A mulher histérica, a criança masturbadora, o casal malthusiano e o adulto
perverso são figuras privilegiadas geradas pelas estratégias do poder disciplinar e do biopoder.
Em cada uma dessas instâncias, fazem-se sentir as pressões de cada um desses dois grandes
tipos de poder tipicamente modernos. A constituição da subjetividade, o “ver a si mesmo” a
partir da sexualidade é perpassado por essas grandes estratégias de poder e saber.
Em outras sociedades, as relações de sexo sempre são moldadas por sistemas de
matrimônio, de parentesco, de transmissão de bens, etc., aos quais Foucault chama
genericamente de “dispositivo de aliança”, que com o desenvolvimento da sociedade
moderna perdeu força (FOUCAULT, 2006c, pp. 117-118) . O dispositivo de sexualidade se
superpôs a ele – sem contudo deixá-lo de lado – gerando articulações significativamente
133
diferentes: enquanto o dispositivo de aliança se ordenaria em torno de uma simples
reprodução, o dispositivo de sexualidade teria como característica penetrar nos corpos de
forma cada vez mais detalhada e controlar a população por vias de regras anexadas à própria
formação do self como sujeito de uma sexualidade.
É importante enfatizar que o dispositivo da sexualidade não significa o velho modelo
da carne, tipicamente cristão, mas sim um novo modelo em que nós pensamos estarmos
ganhando uma maior liberdade, liberando nossa sexualidade, quando na verdade o próprio
modelo de sexualidade já é dado, ou seja , construído e formado por certos moldes específicos
que Foucault teria captado em seu exame genealógico. A liberação é pensada em termos de
escapar do antigo modelo, quando na verdade se está a viver sob um poder de um novo tipo.
5. Uma mudança de projeto: o estudo das práticas de si e das relações entre sujeito,
verdade e sexualidade
Após alguns anos sem publicar, justamente em virtude da amplitude e complexidade
do problema em que o autor se viu envolvido, são redigidos dois outros volumes que dariam
continuidade à história da sexualidade e que seriam a expressão mais clara da última fase do
pensamento foucaultiano. Depois de “A vontade de saber”, uma importante inflexão na
análise levará Foucault a deslocar o centro da análise. Nesse último livro, o entrar em cena de
certa dimensão de constituição do saber, que até então não havia sido devidamente examinada
por Foucault, provavelmente balançou os direcionamentos que sua pesquisa vinha tomando;
essa dimensão é justamente a que surge a partir da problematização da mudança no modo
como os indivíduos são levados a dar sentido e valor à sua conduta, seus deveres, prazeres,
sentimentos, sensação e sonhos, ou seja, da constituição de uma experiência em que os
134
indivíduos são levados a se reconhecer como sujeitos de uma sexualidade – mas a qual
também se articula em sistemas de regras e de coerções.
É possível, mais uma vez, uma leitura tayloriana do fenômeno que Foucault visualiza:
o self é visto como possuindo uma voz interior, fruto de uma natureza profunda e o
reconhecimento das peculiaridades internas se faz como uma autodescoberta: descobrir e
interpretar a própria sexualidade pode ser um caminho para entender a si mesmo. Os
caminhos trilhados por essa configuração moral são a chave para o desenvolvimento da
“individualidade ascendente” na visão de Taylor, ou seja, para uma maior possibilidade das
singularidades individuais serem reconhecidas no plano moral. Ora, veremos nas páginas a
seguir os motivos que levam Foucault a duvidar desse tipo de leitura quanto à individualidade
moderna. As divergências de Taylor e Foucault sobre a dimensão crucial da subjetividade
individual passam exatamente pelas suas leituras distintas dessa autodescoberta, desse
pensar a si mesmo. Deter-me-ei um pouco mais nessa questão na última parte desse trabalho.
Na introdução de “O uso dos prazeres”, já muito mais ciente dos problemas que antes
apenas lhe tinham surgido, Foucault expõe sua crença de que a experiência histórica singular
sobre a sexualidade exigiria uma análise envolvendo três eixos que a constituem: i) a
formação dos saberes que a ela se referem; ii) os sistemas de poder que regulam suas
práticas; iii) as formas pelas quais os indivíduos podem se reconhecer como sujeitos de uma
sexualidade. Foucault acredita ter um material sólido e consistente, baseado em anos de suas
pesquisas anteriores, para fornecer os ingredientes aos dois primeiros tópicos citados. Seus
estudos arqueo-genealógicos sobre a constituição dos saberes na modernidade, sobre a
medicina, a psiquiatria, o poder punitivo, as práticas disciplinares, as ciências humanas,
teriam lhe dado os instrumentos e as respostas para elas. Contudo, diz o autor, “o estudo dos
modos pelos quais os indivíduos são levados a se reconhecerem como sujeitos sexuais me
colocava dificuldades bem maiores (FOUCAULT, 2006d, p. 10)”. Diante disso, o sujeito
135
emerge efetivamente na “História da sexualidade” como lugar de uma problematização,
objeto de uma preocupação, o eixo em torno do qual vai se concentrar toda uma reflexão
relativa à relação consigo mesmo e com os outros, reflexão constitutiva da conduta de vida.
Foucault se viu em dificuldade de pensar o desejo ou o sujeito desejante; ele
desconfiou dessas noções, exatamente porque esses eram temas geralmente aceitos dentro do
próprio discurso engendrado pelo dispositivo de sexualidade. Mas o pior, Foucault percebia
essas noções presentes há muito tempo, vindos de uma longa tradição cristã. Então, parecia-
lhe difícil analisar a formação e o desenvolvimento da experiência da sexualidade sem
realizar, sobre o desejo e o sujeito desejante, uma reflexão histórica e crítica.
O problema exigia uma superação. Demandava reflexão. A solução encontrada pelo
filósofo: impunha-se uma genealogia a períodos ainda mais remotos. A análise dos modos de
subjetivação o leva a recuar ainda mais no tempo, para examinar a natureza do tema da
sexualidade para modernidade, por meio da comparação, num primeiro momento, entre a
importância do tema da carne pro cristianismo e os aphrodisia para os gregos. A partir do
momento que Foucault passou a se deter mais diretamente nos processos de subjetivação, ele
passou a se interessar mais por uma genealogia do sujeito e sua hermenêutica. Ou seja,
Foucault percebera com o decorrer de sua pesquisa que a genealogia do homem de desejo só
poderia ser efetivamente realizada em contraponto com o cristianismo primitivo, o estoicismo
tardio e o pensamento grego clássico.
57
Em decorrência disso, “A vontade de saber” é considerado por muitos como um livro
que marca uma transição importante em seu pensamento. Foucault modifica o plano de seu
projeto, reelabora a problemática, muda o centro da discussão e altera seu estilo. O projeto
inicial de “A história da sexualidade” visava seis volumes. O primeiro livro seria
acompanhado por cinco estudos: sobre a “carne”; as crianças; as mulheres; os perversos; e,
57
Enquanto a genealogia de Taylor procurou demonstrar sobretudo uma linha de continuidade que vinha da
Grécia até nossos dias, Foucault quis visualizar uma grande ruptura entre lá e o presente.
136
por fim, a população e as raças. O projeto inicial é modificado e em 1984 Foucault anuncia os
três livros que iriam dar continuidade ao primeiro volume: “O uso dos prazeres”, “O cuidado
de si” e “As confissões da carne” – esse último não publicado devido à sua não revisão em
virtude da morte precoce do autor (BILLOUET, 2003, p. 168).
Assim, dentro do mesmo projeto geral, o autor pretende nesse momento estudar a
constituição do sujeito como objeto para ele próprio. O que importa é a formação dos
procedimentos pelos quais o sujeito é levado a se observar, se analisar, se decifrar e se
reconhecer como campo de saber possível. Colocando de outro modo, trata-se da história da
‘subjetividade’, se entendermos essa palavra como a maneira pela qual o sujeito faz a
experiência de si mesmo em um jogo de verdade, no qual ele se relaciona consigo mesmo
(FOUCAULT, 2006b, 236). A questão do sexo e da sexualidade apareceu para Michel
Foucault como o caso mais privilegiado para captar a formação dessa subjetividade moderna:
teria sido efetivamente a esse respeito que, através de todo o cristianismo e talvez mais além,
os indivíduos foram chamados a se reconhecerem como sujeitos de prazer, de desejo, de
concupiscência, de tentação e, por diversos meios (exame de si, reconhecimento de culpa,
confissão). Ou seja, teriam sido eles solicitados a desenvolver a respeito deles mesmos e do
que constitui suas partes mais íntimas e secretas – a porção mais individual de sua
subjetividade – uma verdade, um jogo do verdadeiro e do falso.
Por conseguinte, a História da sexualidade passa a considerar as formas de relação
consigo próprio tais como foram definidas, modificadas, reelaboradas e diversificadas no
curso da história do ocidente. Essa história da ética ou da conduta da vida sexual se apresenta
como uma história das problematizações da própria subjetividade, a saber, como reconstrução
das formas das condutas de vida, consideradas, a partir da inflexão efetuada, do ponto de vista
do ‘governo de si’.
137
O empreendimento levado a cabo em “O uso dos prazeres” e “O cuidado de si”
pretende confrontar a experiência moderna com as experiências do mundo grego do século
IV a.C. e do mundo greco-romano do século II de nossa era, a fim de melhor visualizar as
especificidades próprias da subjetividade moderna. Assim, o problema das relações entre o
sujeito e os jogos de verdade, que até então havia sido examinado por Foucault a partir de
práticas coercitivas e de jogos teóricos ou científicos, passaram a ser estudados sob o ponto de
vista do que o autor chamou de “práticas de si”, práticas estas que teriam se tornado um
fenômeno bastante importante em nossas sociedades desde a era grego-romana. A tese
principal de Foucault: essas práticas de si teriam, nas civilizações grega e romana, uma
importância e, sobretudo, uma autonomia muito maiores do que tiveram a seguir, quando
foram até certo ponto investidas pelas instituições religiosas, pedagógicas, médicas,
psiquiátricas, etc.
“O uso dos prazeres” constitui uma tentativa de captar como, na Antiguidade grega,
as relações sexuais se compunham em relação às práticas de si. O comportamento sexual é
constituído como domínio de prática moral, no pensamento grego, sob a forma de aphrodisia,
ou seja, de atos, gestos ou contatos que proporcionam formas de prazer. Nesse tipo de
experiência, o sexo não seria um mal em si mesmo. Não seria em torno dos atos, dos prazeres
considerados em si mesmos que se estabelecia uma reflexão moral, mas em torno da dinâmica
em que estavam envolvidos.
Três grandes artes de se conduzir, ou seja, três grandes técnicas de si teriam se
desenvolvido no pensamento grego: a Dietética (domínio em que é estilizada a relação do
indivíduo com o próprio corpo, em termos de regimes); a Econômica (gestão doméstica, ou
seja, conjunto de atividades em torno da casa, das terras e dos bens do indivíduo livre); e a
Erótica (domínio da estilização da vida do adulto livre que está se formando) (FOUCAULT,
2006d, pp.137-138). Mas isso não significou que os gregos em geral apenas se interessavam
138
pelos prazeres sexuais a partir desses três pontos de vista. Existiriam outros temas e outras
preocupações, mas esses três núcleos de problematização apareceriam como sendo, de longe,
os mais importantes. Em torno deles os gregos teriam desenvolvido artes de viver, de se
conduzir e de “usar os prazeres” segundo princípios exigentes e austeros.
A tese de Foucault é de que, em meio à elaboração das exigências de austeridade por
essas técnicas, não somente os gregos não buscaram definir um código de condutas
obrigatórias para todos, como também não organizaram o comportamento sexual como um
campo referente em todos os seus aspectos a um único e mesmo conjunto de princípios
(FOUCAULT, 2006d, p. 219). Assim, a pesquisa foi conduzida no sentido de demonstrar, no
mundo grego, essas “artes da existência”, essas “estilizações da vida”, que seriam práticas
refletidas e voluntárias através das quais os homens não estariam somente fixados sob regras
de conduta, como também procurariam transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer
de sua vida uma obra que seja portadora de certos critérios de estilo.
58
Foucault termina o livro dizendo que a exigência de austeridade implicada pela
constituição desses sujeitos senhores de si mesmo não se apresenta sob a forma de uma lei
universal, ou seja, à qual cada um e todos deveriam se submeter. Ela se apresentaria, antes de
tudo, como um princípio de estilização da conduta para aqueles que querem dar à sua
existência a forma mais bela e realizada possível (FOUCAULT, 2006d, p. 218).
Foucault desenvolve a idéia de que, com o avanço do cristianismo, veio a se instaurar
lentamente e progressivamente uma transformação em relação às morais antigas que teriam
sido, essencialmente, uma prática, um estilo de liberdade. Naturalmente, como disse, também
existiam nesse mundo antigo que analisa, certas normas de comportamento que regulavam a
conduta de cada um. Porém, a vontade de ser um sujeito moral e a procura de uma ética da
existência teria sido principalmente, na Antiguidade, um esforço para afirmar a própria
58
Creio que poderíamos fazer um paralelo dessa estilização individual da vida de que Foucault fala com as
reflexões de Simmel sobre a “lei individual”, que pensa a liberdade individual a partir de uma visão crítica a
universalismos, a exemplo do imperativo categórico kantiano.
139
liberdade e dar a sua própria vida uma certa forma na qual podia se reconhecer e ser
reconhecido por outros e onde a posteridade mesma poderia encontrar como exemplo. Assim,
o autor enfatiza a idéia de um certo tipo de exercício de si sobre si mesmo, por meio do qual
se procura elaborar, se transformar e atingir um certo modo de ser. Esta elaboração da própria
vida como uma obra de arte pessoal, ainda que obedecendo certos cânones coletivos, estaria
ao centro da experiência moral, da vontade moral na Antigüidade.
Portanto, da Antigüidade ao cristianismo, diz Foucault, passou-se de uma moral que
era essencialmente uma busca de uma ética pessoal a uma moral como obediência a um
sistema de regras. Teria havido
com o desenvolvimento do cristianismo, uma unificação doutrinal – da qual Santo Agostinho
foi um dos operadores – e que permitiu pensar, no mesmo conjunto teórico, o jogo da morte e
da imortalidade, a instituição do casamento e as condições de acesso à verdade. Mas houve
também uma unificação que se pode dizer “prática”, e que é aquela que recentrou as diferentes
artes da existência em torno da decifração de si, dos procedimentos de purificação e dos
combates contra a concupiscência. Com isso, o que veio a se encontrar situado no cerne da
problematização da conduta não foi mais o prazer, com a estética do seu uso, mas o desejo,
com sua hermenêutica purificadora (FOUCAULT, 2006d, p. 221).
Essa descrição de Foucault é visivelmente a herança da noção agostiniana de
interioridade, a qual Charles Taylor vê como a grande matriz moral da modernidade e da qual
brotaram tanto o individualismo da dignidade quanto o da autenticidade. Esse mesmo
fenômeno, que Taylor vê como uma fonte de padrões de uma ética universal e de novas
formas de respeito e identidade, é o que Foucault coloca como a fonte de uma barreira
crescente para o cuidado de si mesmo.
Essa ligação consigo que marcava as práticas de si na Antiguidade, provavelmente
pensada pela influência do pensamento heideggeriano, supõe cuidado com o seu tempo
(BILLOUET, 2003, p. 190). Que o homem tenha “cuidado de si”, entendido como futuridade
singular sem referência a uma lei, era uma questão heideggeriana e que, não por acaso, se
apresenta como título do livro seguinte. “O cuidado de si”, terceiro volume da série, trata do
140
mundo romano: os dois primeiros séculos do período imperial seriam uma era de ouro de uma
“cultura de si”, entendida a anexação de um princípio de “cuidado consigo mesmo” às artes
da existência que estivemos analisando.
Algumas dessas idéias foram fortemente influenciadas pelos estudos do filósofo Pierre
Hadot, estudos estes que precederam e influenciaram a idéia de “cultura de si” presente nessas
últimas publicações de Foucault. Em algumas passagens Foucault o cita como autor de
referência para o embasamento dessa idéia. Hadot assinala a diferença de atitude que marcava
as filosofias antigas em relações aos desenvolvimentos posteriores à Idade Média no ocidente.
Sua ênfase restringe-se sobretudo à esfera das práticas filosóficas: havia, segundo ele, nas
filosofias greco-romanas um comprometimento com a transformação do si mesmo, com as
práticas de si. Nesse ponto a noção fundamental que ele utiliza é a de “exercícios espirituais”,
que designa certas práticas, que podem ser de ordem física, como o regime alimentar;
discursiva, como o diálogo e a meditação; ou intuitiva, como a contemplação, mas que são
destinadas a operar uma modificação e uma transformação no sujeito que as pratica. Por eles,
o sujeito pode progredir espiritualmente e transformar-se interiormente. Isso marca um tipo
de envolvimento com o self, uma experiência distinta da qual houve posteriormente no
desenvolvimento do ocidente.
Hadot procura reencontrar as características das diferentes filosofias da Antiguidade
consideradas em seu aspecto de modo de vida, procurando estudar os traços comuns que as
unem, em torno desses exercícios espirituais. De forma semelhante à análise de Foucault, ele
tenta expor por qual razão e em que medida a filosofia, a partir da Idade Média, teria perdido
a conexão com esses exercícios espirituais e com a noção de cuidado de si, tornando-se uma
atividade puramente teórica (HADOT, 1999, p. 23). A filosofia, no mundo grego e greco-
romano, era entendida como uma prática antes que um saber puramente teórico, uma prática
voluntária destinada a uma transformação do eu. Segundo ele, a própria filosofia socrática
141
alimentava uma noção de “cuidado de si” que era indissoluvelmente cuidado da cidade e
cuidado dos outros.
59
Portanto, do interesse pelas práticas de si quanto à esfera sexual nasce o interesse de
Foucault pelo tema que, segundo ele, teria dominado a reflexão moral, desde Sócrates, desde
o Alcebíades de Platão, até se transformar em uma verdadeira cultura de si com Sêneca,
Plutarco, Epíteto, Marco Aurélio: a prática, o cuidado, o domínio, a elaboração e o governo de
si.
No curso do Collège de France “A hermenêutica do sujeito” Foucault diz que, ao
estudar as relações entre subjetividade e verdade, foi levado a privilegiar a questão do regime
de comportamentos e prazeres sexuais na Antiguidade:
A questão que apreciaria abordar esse ano é a seguinte: em que forma de história foram
tramadas, no Ocidente, as relações que, não estão suscitadas pela prática ou pela análise
histórica habitual, entre estes dois elementos, o “sujeito” e a “verdade” (FOUCAULT, 2004a,
p. 4).
Pela expressão “cuidado de si mesmo” (souci de soi-même), Foucault tenta traduzir
uma noção bastante complexa e rica que teria existido na cultura grega: a de epiméleia
heautoû”, que é o cuidado de si mesmo, o fato de ocupar-se consigo, de preocupar-se
consigo. A historiografia e a filosofia até o momento que Foucault escreve não haviam
concedido importância a essa noção.
Em “A hermenêutica do sujeito” Foucault explicita porque escolhera essa noção de
epiméleia heautoû ao invés da mais conhecida fórmula grega do “Conhece-te a ti mesmo
(gnôthi seauton). Essa última, diz ele, não tinha na origem, o valor que hoje lhe conferimos:
“O que estava prescrito nessa fórmula não era o conhecimento de si, nem como fundamento
da moral, nem como princípio de uma relação com os deuses” (FOUCAULT, 2004a, pp. 4-6).
59
Contudo, Hadot (2002) também procurou apresentar algumas divergências em relação Foucault, questionando
sobretudo a leitura foucaultiana sobre o que chamou de “estética da existência” no mundo antigo (a própria
palavra estética evocaria um sentido para nós modernos que não era compatível com aquele mundo).
142
A epiméleia heautoû foi sendo abandonada no ocidente na medida em que se engendravam
mecanismos impulsionando a construção de uma verdade sobre a subjetividade.
Essa noção do cuidado de si seria uma espécie de aguilhão que deve ser implantado na
carne dos homens, cravado na sua existência, e constitui um princípio de agitação, um
princípio de movimento, um princípio de permanente inquietude no curso da existência:
“Parece-me que a epiméleia heautoû (o cuidado de si e a regra que lhe era associada) não
cessou de constituir um princípio fundamental para caracterizar a atitude filosófica ao longo
de quase toda a cultura grega, helenística e romana” (FOUCAULT, 2004a, p. 12). A
epiméleia heautoû é, em primeiro lugar: i) uma atitude – para consigo, para com os outros,
para com o mundo; ii) é também uma certa forma de atenção, de olhar. Cuidar de si mesmo
implica que se converta o olhar, do exterior, do mundo, dos outros, etc. para si mesmo. O
cuidado de si implica uma certa maneira de estar atento ao que se pensa e ao que se passa no
pensamento. Um exercício, uma meditação; iii) a noção de epiméleia também designa
algumas ações, ações que são exercidas de si para consigo, ações pelas quais nos
modificamos, nos purificamos, nos transformamos e nos transfiguramos. Daí uma série de
práticas que são, na sua maioria, exercícios, cujo destino (na história da cultura, da filosofia,
da moral, da espiritualidade ocidental) será bem longo. São, por exemplo, as técnicas de
meditação; as de memorização do passado; as de exame de consciência; as de verificação das
representações na medida que elas se apresentam ao espírito, etc.
Essa noção de um cuidado de si, que representa uma maneira de ser, uma atitude,
formas de reflexão e de práticas, constitui, no olhar de Foucault, uma espécie de fenômeno
extremamente importante, não somente na história das representações, nem somente na
história das noções ou das teorias, mas na própria história da subjetividade, ou, se
quisermos, na história das práticas da subjetividade. Na Antiguidade ela constituiu um modo
extremamente rico em termos de uma “estética da existência”, embora ela se restringisse às
143
camadas da elite. É a partir dessa noção também que pode-se tomar toda essa evolução
milenar (século V a.C. – século V d.C.) que conduziu das formas primeiras da atitude
filosófica tal como se a vê surgir entre os gregos, até as formas primeiras do ascetismo cristão.
Ela seria um de seus mais importantes fios condutores.
Assim, nos dois últimos livros publicados da história da sexualidade, a hipótese central
foi de que, entre o quarto século antes de Cristo até o segundo século de nossa era, os gregos e
depois os romanos formularam uma “estética da existência”, uma arte de viver entendida
como “cuidado de si”, ou seja, de uma constante elaboração da própria vida à semelhança de
uma obra de arte, da imposição de um governo da própria vida que tinha por objetivo lhe dar
a forma mais bela possível.
Mas esse cuidado de si e essa estética da existência o cristianismo modificou em
direção a uma hermenêutica de si e à decifração de si próprio como sujeito de desejo. E a esse
respeito, lembremos de suas idéias nas quais a incitação de uma verdade sobre o desejo teria
contribuído com todo um processo que primeiramente levava o indivíduo a analisar seu desejo
sexual inseridos num contexto de moral da carne cristã, de que a confissão representou um
importante papel nas instituições penais, religiosas, e naquilo a que concernem todos os
pecados, não somente àqueles da carne. As principais técnicas de si inauguradas pelo
cristianismo, ao se constituírem como um jogo de verdade, fazem perder os espaços de
estilização da vida nos moldes como Foucault via no mundo antigo. O cristianismo veio a
substituir essa arte pessoal por uma moral de regras expressas em jogos de verdade impostos
aos sujeitos como certas práticas de si.
O interesse de Foucault pelo contraste entre Antiguidade e cristianismo faz-se então
evidente: a própria imagem do “homem” seria resultado do desenvolvimento do cristianismo,
e suas expressões no campo institucional teriam sido evidenciadas nas análises de livros como
“História da Loucura”, “Vigiar e Punir”, etc. Mas parece que Foucault esperava por outras
144
possibilidades a partir do seu desaparecimento, anunciado como possível nas últimas palavras
de “As palavras e as coisas”. O próprio filósofo dizia que todas as suas análises iam contra a
idéia de necessidades universais na existência humana: elas “mostram o caráter arbitrário das
instituições e nos mostram qual é o espaço da liberdade que ainda dispomos e que mudanças
podemos ainda efetuar” (FOUCAULT, 2006b, p. 296).
145
Considerações finais
Mais do que um simples desfecho, esta parte objetiva esclarecer as principais
contribuições e tentar articular de forma mais clara os principais contornos comparativos entre
os dois modos de pensar que estive apresentando nos capítulos anteriores. Nela, gostaria de
não só oferecer um possível diálogo entre eles, uma análise das compatibilidades e
incompatibilidades e uma breve avaliação do que considero os “saldos” positivos e negativos
de suas contribuições, mas também oferecer algumas chaves analíticas no interior da
discussão que nos auxiliem na tentativa de um esboço comparativo entre Charles Taylor e de
Michel Foucault. Ao dizer que vou introduzir algumas chaves analíticas, quero dizer que
posso me utilizar de questões que são exteriores às análises dos dois autores, misturando suas
próprias questões “interiores” com outras idéias que pensei serem relevantes para a discussão.
Ora, acredito que isso me possibilita ir além dos termos presentes no interior de cada obra e
trazer, assim, maior sistematicidade aos termos da comparação.
Infelizmente (e prudentemente), não se trata de tentar esgotar os inúmeros paralelos e
divergências que ocorrem entre esses dois grandes pensadores. Duas grandes obras sempre
podem ser articuladas de inúmeras maneiras, em distintos pontos específicos, mas isso nos
levaria a outras infinitas questões, indefinidamente. Portanto, ao adentrar no terreno
propriamente comparativo entre os dois, tentarei ir direto às questões que se fizerem
importantes para meus objetivos. Ainda assim, vale a advertência: seguramente, os problemas
suscitados e os desafios comparativos atentos às especificidades e semelhanças dos dois
autores demandariam esforços que em muito superam aqueles contidos neste texto. As
conclusões às quais chego nessa parte são nada mais que resultados incipientes de uma
pesquisa.
146
Meus apontamentos comparativos ao longo do texto (com certeza completamente
inter-relacionados) compreenderão tanto um nível “metodológico”, envolvendo os próprios
conjuntos de pressupostos nos quais o pensamento de cada um faz sentido, como também um
segundo nível que se refere ao exame substantivo da condição da “subjetividade individual”
na própria modernidade; além disso, tento tornar transparentes as posições normativas dos
dois autores quanto ao problemática. Em suma, trata-se de uma breve discussão acerca dos
pontos que considerei relevantes para pensar a subjetividade moderna.
A subjetividade autêntica: entre um presente semi-realizado e um passado
longínquo
As ciências sociais contemporâneas têm oferecido algumas categorias interessantes
para lidar com o problema. Convém nos atermos a algumas delas já de início. Ao tentar dar
conta dos tipos de visões e concepções de uma “subjetividade autêntica” presentes na filosofia
e nas ciências sociais, Alessandro Ferrara expõe algumas divisões interessantes para
começarmos a análise; para ele, os tipos de visão sobre o self podem ser divididos em algumas
categorias. Comecemos pela entre substancialistas e intersubjetivas: ele coloca filósofos
como Karl Jasper e Jean-Paul Sartre como representantes do primeiro tipo, por verem o self
como possuindo uma espécie de núcleo essencial que tende a se afirmar na interação com os
outros (FERRARA, 1997, p. 80). No segundo tipo, poderíamos citar autores como Habermas,
para o qual a intersubjetividade constitui a própria base do que chama de “mundo da vida”.
Por ser o autor que, talvez mais do que todos, logrou popularizar a noção de intersubjetividade
nas ciências sociais, considero pertinente inserir aqui um comentário sobre uma interessante
formulação do processo de individualização elaborado por ele e que nos ajudará adiante no
próprio procedimento comparativo: Habermas buscou na filosofia do jovem Hegel uma
147
primeira idéia do conceito de intersubjetividade, expressa na teorização do processo de
formação do espírito, segundo a qual o conhecimento da identidade do “Eu” só é imaginável
através da identidade do outro que me reconhece, que por sua vez também é dependente do
meu reconhecimento. Para Habermas é de fundamental importância desvincular a noção de
diferenciação da idéia de individualização, já que, desde Kant, o conceito de individualidade
significava mais do que a singularidade, estando atado com o “Eu” – a fonte espontânea do
conhecer e do agir, “capaz de criar mundos e agir autonomamente” (HABERMAS, 1990,
p.192). Ou seja, o indivíduo moderno não é para Habermas apenas uma entidade diferenciada
de todas as demais, mas está associado aos moldes de um sujeito que cria e age
autonomamente. Procurando enfatizar a dimensão intersubjetiva do processo, Habermas
ressalta que a individuação não é efetuada como uma auto-realização de um sujeito auto-ativo
na liberdade e na solidão, mas sim como um fenômeno que é lingüisticamente mediado e nem
por isso deixa de ter uma dimensão consciente do indivíduo envolvido.
Em um texto bastante esclarecedor (“Individuação através de socialização: sobre a
teoria da subjetividade de George Herbert Mead”; In: HABERMAS, 1990) o filósofo alemão
acredita que a única tentativa promissora de apreender conceitualmente o conteúdo pleno do
significado da individualização teria sido realizada por Mead, que se esquiva de um modelo
de reflexão baseado na autoconsciência de acordo com a qual o sujeito cognoscente refere-se
a si mesmo como um objeto, avançando no sentido de uma análise da interação e elaborando,
assim, um modelo intersubjetivo do “Eu” produzido socialmente. Para Mead, a aquisição de
uma maior autonomia relaciona-se ao fato de indivíduos serem socializados em situações cada
vez mais distintas. De acordo com essa posição, haveria uma internalização de instâncias
controladoras do comportamento, imigrando de fora para dentro, ou seja, através de certos
contextos de relações intersubjetivas específicas. Nesse ponto, é importante lembrarmos que a
subjetividade em Mead é entendida como englobando o “Eu” (I), que corresponde à fonte de
148
realizações espontâneas e criativas; e o “mim” (Me), que corresponde ao condicionamento
social assumido pelo sujeito. A identidade do Eu só pode se constituir através da exercitação
em papéis sociais, isto é, na complementaridade de expectativas de comportamento com base
no conhecimento recíproco. Desse modo, a diferenciação da estrutura de papéis só pode ser
devidamente compreendida quando conectada com o processo de formação da consciência e
com a obtenção de autonomia de indivíduos que, cada vez mais, são socializados em situações
distintas. Em outros termos, o que ocorre é o fortalecimento de uma espécie de centro interior
de auto-comando do comportamento (relativo a um indivíduo) que se faz por meio de um
processo de socialização peculiar. Esse processo de socialização peculiar – que se
desenvolveria progressivamente na modernidade – seria dotado de mecanismos pelos quais o
indivíduo incorpora o que as pessoas de referência esperam dele, resultando numa integração
e generalização de expectativas múltiplas, através de um processo de abstração. Dessa
maneira, a individuação implica num crescimento em quantidade e em profundidade de ações
autônomas, devendo ser pensada como a possibilidade de uma auto-realização do indivíduo.
Exige-se dos indivíduos, cultural e institucionalmente, mais autonomia e também uma
conduta consciente de vida, baseadas nas expectativas de autodeterminação e auto-realização.
Se introduzo Habermas e Mead aqui, é porque creio que poderão também me auxiliar
quanto a uma questão extremamente importante à qual voltarei adiante: a de um
desenvolvimento que, visto pelo paradigma intersubjetivo, supõe um desenvolvimento no
ocidente de formas de universalismo moral. Embora sejam, em muitos pontos, diversas da
perspectiva habermasiana, as reflexões taylorianas estão, seguramente, no segundo tipo de
abordagem descrito por Ferrara (Taylor também oferece uma série de críticas à teoria de
Habermas, como por exemplo, sua assimilação da noção de sistema oriunda de Talcott
Parsons): em inúmeras oportunidades, o filósofo canadense tem afirmado sua posição quanto
à gênese intersubjetiva do self, onde a característica crucial da vida humana é seu caráter
149
dialógico, ou seja, as pessoas não podem se autodefinirem por si mesmas, mas apenas por
linguagens constituídas por meio da interação com outros significativos.
Por outro lado, Michel Foucault (definitivamente, muito mais inconciliável com a
perspectiva habermasiana) dificilmente pode ser enquadrado em qualquer um desses dois
tipos de visão sobre o self. Em seus trabalhos arqueológicos, o self é visto como uma
manifestação, como uma espécie de “função” dos discursos. Depois, como uma manifestação
de uma “microfísica do poder” capaz de modelar o self nos seus traços mais elementares e nos
próprios parâmetros do “pensar a si mesmo”. Nesse sentido, ele não pode ser pensado em
termos “substancialistas” e nem como uma construção propriamente intersubjetiva, pois a
relação entre as “subjetividades” é antes vista como um poder que transita pelos corpos. O
enquadramento e a postura de Taylor e de Foucault diante dessa problemática tem profunda
relevância para seu diagnóstico do indivíduo na modernidade. Voltarei nas páginas abaixo a
esse ponto.
Outra divisão apresentada nas sistematizações de Ferrara contrasta uma visão centrada
da subjetividade autêntica com uma visão descentrada da mesma (FERRARA, 1997, pp. 82-
83). Na primeira, é possível se pensar a identidade, a personalidade, em termos de um centro e
uma periferia. É o caso da concepção de Taylor, para o qual certos bens são mais centrais para
a organização da identidade do que outros, ou seja, pela idéia de hiperbens, que são princípios
valoráveis, dignos ou admiráveis dotados de uma força orientadora que se configura como um
centro para o self, sendo superior e proporcionando a própria perspectiva a partir da qual
outros bens são pesados e julgados. Já em relação à idéia de uma subjetividade descentrada,
como uma oposição às tentativas de se atribuir uma hierarquia entre um centro e uma periferia
para o self, Ferrara inclui pensadores como Nietzsche e coloca Foucault como descendendo
desse tipo de pensamento, exatamente por ver seus pensamentos como uma crítica sobre
certos “centros” como formas de poder presentes na subjetividade moderna. Deve-se ter em
150
vista que essa inclinação “descentrada” é muito mais visível no deslocamento do último
Foucault.
E uma última divisão de Ferrara interessante para meus propósitos é aquela entre, de
um lado, a ênfase no caráter antagônico da subjetividade autêntica e, de outro, no caráter
integrativo da mesma; estas consistem em duas formas distintas de compreendê-la. Na
primeira, trata-se de uma espécie de rompimento por completo com constrangimentos sociais
ou culturais; em outros termos: supõe que uma subjetividade individual e original exige uma
oposição às demandas culturais ou normativas. Na segunda, a inteligibilidade da subjetividade
autêntica passa necessariamente pela sua constituição através de um “material” anterior, vindo
da cultura. Essa é uma questão extremamente complicada tanto em Taylor quanto em
Foucault. Talvez aqui resida o cerne do problema da subjetividade moderna em suas análises.
Tentarei esclarecê-la no decorrer do texto.
A fim de melhor visualizarmos os contrastes e as similitudes entre Foucault e Taylor,
de forma um pouco mais pormenorizada, cumpre agora tentarmos recapitular
esquematicamente as principais questões que dão sentido à idéia de uma individualidade
moderna para cada uma das duas perspectivas. Apresentei o modo como Taylor adota uma
postura hermenêutica que deriva da constatação de que os seres humanos seriam ao menos
parcialmente constituídos por auto-interpretações, de acordo com as várias linguagens
corporificadas, ou seja, concretizadas como um pano de fundo de distinções valorativas.
Assim, a ação humana é entendida como expressão, a partir de seus veículos que consistem na
linguagem e no corpo. É exatamente por isso que Taylor se afasta do subjetivismo e privilegia
a tentativa de tematização dos “panos de fundo”. Pelos conceitos de import e de avaliação
forte ele pôde pensar em distinções presentes na linguagem que são significantes para nossas
interpretações e emoções. Por isso, seu objetivo foi captar exatamente os aspectos morais,
culturais ou valorativos que tornam possível a modernidade e sem os quais ela não pode ser
151
explicada. Assim, a modernidade deve ser entendida fundamentalmente a partir de novas
configurações morais, e sua postura permitirá exatamente demonstrar como o próprio
individualismo deve ser entendido a partir de uma hermenêutica que leva em conta
pressupostos holistas de análise, e que remete, de acordo com a sua busca genealógica, à
noção de interioridade e seus dois caminhos de desenvolvimento: o do self-pontual e o do
expressivismo. Dignidade e autenticidade são os dois princípios vinculados a essas
configurações, respectivamente.
O individualismo moderno não significa atomização ou perda de nexo entre os
“agentes individuais”. Os dois tipos de individualismo são anti-hierárquicos, mas o da
autenticidade é mais radicalmente moderno no sentido de que possibilita um rompimento com
os próprios papéis estabelecidos e um reconhecimento das peculiaridades individuais, pelo
descobrimento de suas próprias naturezas internas (natureza aqui entendida como os
elementos corporificados de forma singular no agente). Um dos grandes elementos de mal-
estar na modernidade seria a omissão dos bens que dão suporte às identidades, justamente
porque isso impede o entendimento de sua própria natureza e assim de sua correta expressão.
O self possui um núcleo intersubjetivo e o processo de individuação ocorre através de redes de
significados, de reconhecimento e da linguagem. As individualidades autênticas só não são
mais desenvolvidas pelos efeitos em larga escala do que ele chama de naturalismo.
Já em relação às contribuições foucaultianas, a parte de sua obra que mais nos
interessa é caracterizada pela importância do poder como categoria central de análise, um
poder que intervém materialmente na realidade mais concreta e nos mínimos detalhes da
existência cotidiana. Seus estudos são feitos a partir de um procedimento genealógico, que
busca no passado as condições políticas de possibilidade dos saberes, tomados como peças de
relações de poder. Vimos como, na análise genealógica, os “sujeitos” já aparecem situados em
campos de forças e, somente a partir desses é que podemos pensar numa individualidade:
152
freqüentemente Foucault descreve os processos como os agentes são assujeitados,
conformados, submetidos aos jogos de verdade.
Por isso, o indivíduo não deve ser concebido como uma espécie de núcleo elementar,
de átomo primitivo contra o qual viria a colidir o poder: ele é, antes, um efeito de poderes
específicos e, ao mesmo tempo, seu intermediário, ou seja, ele transita pelo indivíduo que ele
próprio constituiu. A individualidade moderna seria fruto das tecnologias de poder disciplinar,
marcada por coerções e incitações bastante sutis aplicadas ao corpo, gestos e comportamentos
e se exercendo sob a pretensa preservação de uma certa autonomia individual. Adiante, ele
nota como a construção dos indivíduos como “sujeitos” de uma sexualidade não se deu num
campo livre e neutro, mas a partir de critérios de normalidade presentes na constituição das
subjetividades quanto à sexualidade. O que ele chama de scientia sexualis teria colocado o
sexo no centro de uma codificação de patologias em vários âmbitos de regulação que vão de
procedimentos psicanalíticos até a esfera familiar. E em sua última fase tentou demonstrar
como, no mundo greco-romano, certas experiências seriam práticas muito mais abertas a uma
transformação e a uma modificação do ser humano singular (no sentido de fazer da vida uma
obra portadora de certos critérios de estilo) do que na modernidade.
Procurarei demonstrar, nas partes seguintes, que o cerne da questão passa pelo sentido
atribuído pelos dois autores ao desenvolvimento moral cujas origens remontam ao avanço do
cristianismo. Dele, irão manifestar-se duas interpretações, duas posturas completamente
distintas sobre o status individual, autônomo ou autêntico da subjetividade moderna.
Em primeiro lugar, é preciso lembrar que, num certo sentido, ambos manifestam certo
tipo de crítica a um movimento que traria ao self a razão instrumental, gerando um homem
calculável e disciplinado, uma sociedade burocrática e “fria”. Mas é possível notar um
sensível dissenso entre os dois autores quanto ao papel dos mecanismos disciplinares para a
construção da subjetividade moderna. Pela via desse tema fica evidente a disparidade de suas
153
análises e de seus posicionamentos quanto à mesma série de eventos que se erigiu na
modernidade. A instauração de certas práticas disciplinadoras tem para Taylor uma conexão
íntima com o que ele chamou de “self-pontual” e que dá início, em sua perspectiva, a uma
nova forma de democratização, relacionada a um novo sentido de dignidade e a sua extensão
praticamente universal através do que chamou de afirmação da vida cotidiana, na qual novas
formas de respeito à vida foram engendradas. A progressiva extensão de nosso sentimento de
um respeito “ativo” à vida e à integridade alheia aparece cada vez mais como um valor
universalizado, direcionado a todos seres humanos. Ou seja, uma ética universal (ou pelo
menos universalizável) teria substituído éticas mais restritas, que como vimos, pautariam-se
por noções de honra. A noção de dignidade teria estendido a possibilidade do reconhecimento
a um nível muito mais universalista.
Por outro lado, em Foucault elas significam novas tecnologias de poder, que atingem o
corpo de uma maneira extremamente eficiente e ao mesmo tempo sutil, impondo-se no nível
da individualidade de cada um. Ora, temos dois olhares bem díspares quanto ao “humanismo”
presente nesse movimento das disciplinas; a argumentação de Taylor é exatamente aquela que
Foucault procurou evitar, ou seja, tratar o desenvolvimento do sistema penal como uma
humanização da pena: em Taylor, essa nova noção de respeito relacionada ao princípio da
dignidade imprime uma inclinação e uma preocupação crescentes em nossa cultura em evitar
o sofrimento. Em Foucault essa humanização não significa pensar em punições mais
“brandas”, mais suaves; aliás os parâmetros comparativos nesses termos não fazem sentido se
pensamos que são dois regimes incomensuráveis de poder. É como se o novo saber de punir
se inspirasse não em um humanismo (no sentido de uma humanização, de uma forma mais
amena), mas numa forma distinta de controlar, viabilizada pelo aparecimento de um novo
conjunto de saberes fundamentados na figura do “homem”, à qual Foucault se refere com
freqüência em seus livros.
154
Portanto, para Taylor, a análise do humanismo feita por Foucault em sua genealogia é
parcial e tendenciosa, posto que esta seria entendida apenas como novas tecnologias de
controle e esquecendo uma outra face, a de uma nova ética da vida, mais igualitária, que
engendra novas formas de participação universalizáveis – instituições de participação livre
exigiriam um molde comum e universal de disciplinas e para garantirem sua existência
(TAYLOR, 1984, p. 164).
Enquanto Taylor almeja explicar o nascimento dessa “tecnologia disciplinar” em
termos de uma nova identidade moderna – de um novo padrão moral que se organiza em
termos da noção de homem como indivíduo – Foucault quer explicar a moderna noção de
individualidade como um de seus produtos. A individualidade da qual Foucault fala em
“Vigiar e Punir” – fruto do processo que Foucault chamou de “individualização descendente”
– consiste num ser modelável na medida em que é examinado, medido, categorizado e feito
alvo de procedimentos de normalização, que é o que nós viemos a definir como o indivíduo
moderno.
Mas, como vimos, tanto para um autor quanto para o outro, as dimensões do self
moderno não se esgotam nesse tipo de modelamento. Para Taylor, a individualidade, no
sentido da possibilidade de validação moral de subjetividades singulares, só se torna possível
com o ideal da autenticidade, que emerge posteriormente, por volta do século XIX. As idéias
de Foucault que se aproximam do que Taylor entende por autenticidade – no sentido de
pensar os entes individuais que não constituem uma cópia ou imitação de padrões
preestabelecidos – não são formuladas nesse período de seu trabalho. Elas começam a
despontar a partir de alguns insights presentes no primeiro volume de seu “História da
sexualidade”, mas só ganham uma formulação mais consistente nos últimos anos de sua vida.
Pode-se dizer que a obra de Taylor procura ressaltar a modernidade a partir do
desenvolvimento de dois modelos de universalismo. O primeiro, como vimos, refere-se à
155
dignidade, que corresponde à extensão de elementos que podem estar presentes em todos os
indivíduos, um princípio igualitário. E o segundo, à autenticidade, que confere um pano de
fundo que torna possível o reconhecimento das singularidades constitutivas de cada um. Uma
identidade individual pode ser colocada em “tese”, no sentido de tentar apresentar suas
“peculiaridades profundas” à espera do reconhecimento da mesma. Essa possibilidade de
formas de subjetividade autênticas, ou seja, da ipseidade (ou hecceidade, para usar um termo
presente em Heidegger) de um self particular, é o que diferencia a “identidade autêntica” de
outros tipos de identidade individual. Para Taylor, o caráter único do indivíduo no sentido de
ele não ter que seguir padrões pré-estabelecidos depende acima de tudo de um momento de
reconhecimento, ou seja, um momento de exigência pensada a partir de categorias
intersubjetivas. Em outras palavras, a autenticidade significa tentar expressar sua
singularidade “interna” constitutiva na tentativa de se fazer reconhecer.
O estabelecimento de uma ética da autenticidade é para Taylor um novo passo, um
novo tipo de universalismo, muito mais promissor, no sentido de que exige igualdade de
oportunidades para as diferenças de identidade, o que pressupõe o reconhecimento universal
da diferença. Como foi salientado, Habermas converge com Taylor quanto ao
desenvolvimento ocidental ter engendrado formas de universalismo ético e de formas de
participação e de respeito mais igualitárias e democráticas. Para o filósofo alemão, foi a partir
do conceito de “ação comunicativa” que se tornou possível abordar a dimensão
“intersubjetiva” da produção e reprodução de um certo tipo de racionalidade. Em sua
perspectiva evolucionista influenciada por Piaget, Habermas percebe a “racionalização das
estruturas intersubjetivas” do mundo da vida, supondo que a modernidade teria avançado em
direção a um “aprendizado reflexivo", que caracterizaria um estágio de universalismo moral.
Sobre a reflexividade e o universalismo é que se assentaria a lógica evolutiva imanente tanto
ao “desenvolvimento do eu” quanto ao “desenvolvimento das visões de mundo”, que culmina
156
no exercício de uma consciência moral pós-convencional. É por isso que ele vê as idéias de
Mead como as mais adequadas para dar conta da individuação processada
intersubjetivamente: o “I” seria um elemento espontâneo e autêntico, ao mesmo tempo tendo
incorporado referências a um “outro generalizado”. Por isso ele pensa a individualização
através de socialização e enfatiza a integridade e a autonomia do indivíduo (HABERMAS,
2002). Contudo, para Taylor, a “política da dignidade” (que se baseia na atribuição de valor
igual a todos) entra em conflito com uma política da diferença (baseada no reconhecimento de
particularidades). Assim, a um individualismo relativista de estilo habermasiano Taylor
contrapõe uma autenticidade universalizável (enquanto potencial humano à originalidade).
Mas não nos convém aqui entrar nos detalhes aqui das discussões e críticas que se
travaram entre Taylor e Habermas. O que importa é demonstrar a defesa do desenvolvimento
ocidental enquanto o lugar de novas éticas universais ou de um universalismo moral, a partir
de um entendimento intersubjetivo do self. Esta questão está na base da defesa de Taylor do
legado de toda a tradição cristã da interioridade. Quanto a isso, penso que Foucault, de fato,
é reticente em conferir qualquer valor aos princípios mais humanitários, que ganham
existência a partir de uma nova moralidade, além de serem expressos em termos de direitos.
Formas de respeito mais igualitárias me parecem realmente um dado incontestável, pelo
menos nas sociedades “centrais”, que passaram por processos de abrandamento das
desigualdades de classes, como o welfare state. Acredito que essa omissão de Foucault se
deve, em primeiro lugar, ao fato de que, nitidamente, não é esse seu enfoque. Sem dúvida, ele
se preocupava acima de tudo em denunciar formas de poder que até então não eram vistas
como tal, ou eram desprezadas. E, depois, porque ele se recusa a aceitar com facilidade o que
pode ser uma visão falsa do presente. Contudo, o ponto é que Foucault duvidava, com razão,
do caráter autônomo ou autêntico do sujeito que serve de fundamento para esse universalismo
157
fundamentado intersubjetivamente de Taylor ou de Habermas. Aliás Foucault se coloca contra
a própria fundamentação de ambos os projetos teóricos.
Mas voltemos agora à questão da “subjetividade autêntica”: como vimos, os projetos
de vida não são algo “descentrado” na perspectiva tayloriana. Pelo conceito de “hiperbem”,
Taylor pretendeu mostrar como a construção da identidade se dá a partir de certos centros, de
projetos de vida, de uma construção narrativa da vida em torno de certas avaliações fortes
corporificadas no agente. A subjetividade é “centrada”, ou seja, ela possui centros específicos
em torno dos quais gravitam as ações. Por isso, também não se pode pensar que o argumento
é de que exista uma configuração de indivíduos mais soltos no mundo. Definitivamente essa
não é a idéia de Taylor. A subjetividade autêntica se constrói a partir de um pano de fundo
valorativo, de um material simbólico anterior que é dado, que é resultado de um longo
desenvolvimento histórico.
Ora, esse “material simbólico” historicamente dado, para Foucault, é algo que já traz
em si formas de poder no sentido de que é moldado por estas, ou seja, traz em si uma grande
limitação da subjetividade a certos padrões específicos e uniformes de auto-avaliação. Por
isso, a individualidade moderna é pensada em Foucault não como uma crescente
singularização (ou seja, não como ipseidade), mas como uma maneira eficaz de constituição
do poder que funciona em cada um, como uma autodisciplina que é “enxergada” como
autonomia. Conseqüentemente, Foucault nega, de forma enfática, o caráter livre ou autêntico
da expressão do indivíduo moderno.
A eleição da sexualidade como núcleo de um grande projeto de pesquisas que
marcaria a parte final de sua produção não foi algo fortuito: ele percebeu um desenvolvimento
que levou a sexualidade a ser o locus de um envolvimento crucial para nós mesmo enquanto
seres humanos. Ele narra o nascimento de um modelo em que nós pensamos estar ganhando
uma maior liberdade, ou seja, liberando nossa sexualidade, quando na verdade os próprios
158
moldes que envolvem a concepção de sexualidade não são “neutros”. Ora, para ele a força do
poder na modernidade é subestimada justamente pelo fato de não ser visto como poder, mas
como ciência ou como liberação. Assim, uma maior liberdade é pensada como se esquivando
de um antigo modelo repressivo, sob um poder que é ainda mais invisível.
O que a modernidade traz são padrões uniformes de auto-avaliação, ou seja, a
individualização na modernidade não constitui um impulso à singularização do indivíduo:
Foucault narra forças não-individualizantes, apresentando formas de subjetivação a partir da
construção de um saber sobre si mesmo, de se ver como um sujeito de desejos, tudo isso
consubstanciado pelo que chamou de dispositivo de sexualidade.
Dessa maneira, enquanto os pressupostos taylorianos apontam para a
intersubjetividade, para uma hermenêutica-holista, para o self a partir do reconhecimento e
para novas formas de respeito universalizáveis, Foucault se dirige para novas formas de
exercício de poder, de “assujeitamento”, de processos pelos quais a verdade subjetiva é
construída. Como vimos, isso também é um reflexo das influências filosóficas que foram
significativas na construção de suas obras. Na visão de Taylor, as análises históricas de
Foucault são permeadas por um certo sentido de bem, por uma certa noção de bem não
realizada ou reprimida ao longo do desenvolvimento moderno. Taylor quer justamente
denunciar um certo componente normativo na obra de Foucault, uma noção de bem que o
filósofo não assume: ele apontaria certos “maus”, cuja própria negação pode significar uma
visão de bem (TAYLOR, 1984, p. 152). Em seu texto “Foucault on Freedom and Truth”,
Taylor procura criticar Foucault, que não teria nada a dizer sobre o que fazer com a visão
romântica que se erige como uma revolta ao self disciplinado, à racionalidade instrumental e à
opressão da natureza (TAYLOR, 1984, p.160). Essa reação, que culmina no que Taylor
entende por expressivismo, traria um movimento rival à configuração do self-disciplinado e
desprendido, e na qual o autor canadense depositará suas esperanças justamente porque traz
159
valores a favor da busca da própria “natureza” que dá sustentação às identidades, o que
permite a estas últimas uma melhor expressão. Portanto, é compreensível como, do ponto de
vista de Taylor, essa descoberta da sexualidade, essa tematização do seu ser interior e dos
fundamentos dos desejos não seria algo ruim, mas seria a própria descoberta da identidade,
cujo movimento histórico propulsor é reconhecido no romantismo. Desvendar a “natureza
interior” de cada um, enquanto os bens responsáveis pela identidade, é o próprio projeto geral
de Charles Taylor.
Essas posições refletem modos distintos de conceber, filosófica e metodologicamente,
a subjetividade como completamente situada: vimos como ambos apresentam um extremo
repúdio à idéia de um self solto no mundo. Afinal há uma ênfase na categoria do “corpo”
pelos dois autores, um movimento de situar a subjetividade como ser-no-mundo, de modo a
desfazer o dualismo cartesiano entre corpo e alma. O ser humano é sempre imerso no mundo,
ponto em que Foucault e Taylor compartilham do legado de filósofos como Heiddeger ou
Merleau-Ponty. Em Taylor, suas inclinações destacam essa imersão a partir da corporificação
de significações, valores e moralidade enquanto atributos indispensáveis às identidades. Em
Foucault é o poder que atinge as mínimas instâncias do ser corpóreo, de modo a “sujeitar” as
pessoas.
Em suma, aos olhos de Taylor, alcançar nossas fontes morais por uma busca
hermenêutica traz a possibilidade de melhor nos expressarmos, de exteriorizarmos nossa
identidade constitutiva de uma forma mais plena e chegar à realização embutida no ideal da
autenticidade. Foucault diria, ao contrário que as próprias noções que já temos de nós mesmos
na modernidade, sobre a sexualidade, sobre a nossa subjetividade é perpassada por uma
verdade, uma forma de visão sobre nós mesmos, uma construção do self a partir de critérios
de poder pré-estabelecidos. Em Foucault temos um problema com a própria “substância”
intrínseca aos moldes como se desenvolveu o self moderno (cujas raízes remontam ao próprio
160
desenvolvimento do cristianismo). Em Taylor, o problema não é com a substância, mas com
elementos “externos” que impedem sua correta identificação e expressão. Já Foucault, quer
negar toda essa tradição como uma possibilidade efetiva de “individuação ascendente”, pois
ela teria se desenvolvido envolta a mecanismos disciplinares que geram corpos dóceis e
submissos, ou sob uma verdade em torno do desejo, permeada por formas de poder.
Daí a questão que Taylor coloca a Foucault sobre sua visão extremamente crítica da
modernidade: ele se pergunta se poderíamos nós realmente dar um passo pra fora da
identidade que nós desenvolvemos na civilização ocidental, de forma a repudiar tudo aquilo
que veio a nós do entendimento cristão da vontade; ou ainda: “podemos deixar de lado toda a
tradição agostiniana da interioridade?” (TAYLOR, 1984, p. 181 – minha tradução). Essa é
uma questão realmente difícil de responder: creio que desfazer-nos de um legado histórico é
algo tanto impossível quanto improvável, mas isso não significa que, por isso, tenhamos que
procurar por isso um meio de justificá-lo. Ou seja, torna-se patente a defesa de Taylor de que
devemos nos aproveitar do legado cristão, das oportunidades vinculadas à interioridade,
sobretudo ao expressivismo enquanto uma busca de nosso ser autêntico pautada não só nos
valores que nos deram origem, mas também na correta interpretação deles. Mesmo que em
outras oportunidades Taylor tenha demonstrado o interesse por outros possíveis
desenvolvimentos culturais ou outras modernidades, ele seguramente vê a tradição que veio
do cristianismo como algo promissor para o desenvolvimento da humanidade.
Taylor escreve esse texto antes da publicação do segundo e do terceiro volume da
história da sexualidade pelo filósofo francês. Por isso, ele não tinha uma visão cristalina do
tipo de “bem” ao qual Foucault se inclinaria. Além de contestar o que considera serem
percepções ilusórias da modernidade, Foucault busca, na última fase de sua obra um “outro”,
uma distinta forma de sociabilidade que daria uma maior margem a uma singularização
individual ou a modos de trabalhar sobre si mesmo.
161
Em “O cuidado de si”, Foucault tece um esclarecedor comentário sobre a questão do
individualismo. A categoria “individualismo” seria utilizada com freqüência para explicar, em
distintos períodos históricos, realidades substancialmente diferentes: para ele, cumpre
distinguirmos três tipos de fenômenos: i) em primeiro lugar, a atitude que ele chama
propriamente de individualista, que se refere ao valor absoluto que se atribui à singularidade
individual e ao grau de independência que lhe é atribuído em relação ao grupo ou às
instituições nos quais está situada; ii) outro tipo de utilização do termo é quanto à valorização
da vida privada, como a importância relativa a certas relações familiares, patrimoniais, etc.;
iii) e, por último, a intensidade das relações consigo, como formas e atitudes de trabalhar em
si próprio a fim de transformar-se, corrigir-se ou purificar-se (FOUCAULT, 2005c, pp. 47-
48):
É claro que essas atitudes podem estar ligadas entre si; assim, pode ocorrer de o
individualismo exigir a intensificação dos valores da vida privada; ou ainda, que a importância
atribuída às relações consigo seja associada à exaltação da singularidade individual. Mas esses
vínculos não são constantes nem necessários. Encontrar-se-ão sociedades ou grupos sociais –
tais como, sem dúvida, as aristocracias militares – nos quais o indivíduo é chamado a se
afirmar em seu próprio valor, através das ações que o singularizam e que lhe permitem
prevalecer sobre os outros sem que se tenha que atribuir uma grande importância à sua vida
privada ou às relações de si para consigo. Há também sociedades nas quais a vida privada é
dotada de grande valor, onde é cuidadosamente protegida e organizada, onde constitui o centro
de referência das condutas e um dos princípios de sua valorização – é, ao que parece, o caso
das classes burguesas nos países ocidentais no século XIX; mas, por isso mesmo, nelas o
individualismo é fraco e as relações de si para consigo não são desenvolvidas. Finalmente, há
sociedades ou grupos nos quais a relação consigo é intensificada e desenvolvida sem que por
isso, e de modo necessário, os valores do individualismo e da vida privada encontrem-se
reforçados; o movimento ascético cristão dos primeiros séculos apresentou-se como uma
acentuação extremamente forte das relações de si para consigo, mas sob a forma de uma
desqualificação dos valores da vida privada; e, ao tomar a forma do cenobitismo, manifestou
uma recusa explícita daquilo que podia haver de individualismo na prática da anacorese
(FOUCAULT, 2005c, p. 48).
Como vimos, Foucault percebeu que demonstrar o caráter situado e arbitrário da
moralidade moderna significaria realizar uma genealogia à Antiguidade e alcançar, a partir
desta, um contraponto com o presente. Daí surge a ênfase na “cultura de si”, fenômeno que
descobrira no mundo greco-romano antigo. Na verdade, os dois autores têm como evidente
162
que a modernidade só pode ser compreendida se levamos em conta seu desenvolvimento
histórico, ela deve ser compreendida a partir de um procedimento genealógico. Mas enquanto
Taylor procura a Grécia apontando uma certa linha continuidade que vai desde o platonismo
até o mundo moderno, Foucault quer precisamente fazer um contraponto, ou seja, demonstrar
a descontinuidade de certos traços culturais que teriam desaparecido e se transformado em
algo substancialmente diferente no decorrer do desenvolvimento do ocidente.
Aos olhos de Foucault, na Antiguidade havia certas práticas de domínio de si pelas
quais o indivíduo buscava transformação de si mesmo, onde foram intensificadas e
valorizadas as relações de si para consigo. O “cuidado de si” teria sido um movimento amplo
na cultura grega, uma “cultura de si”, mas que a filosofia posterior – o desenvolvimento do
pensamento cristão – teria feito desaparecer. Era uma questão de saber governar a própria
vida para dar a ela a forma mais bela possível (nos olhos de outros, de si mesmo e das
gerações futuras). Foucault traça a imagem de um self como “obra de arte” que não significa
um sujeito autônomo e lúcido, nem um locus de auto-análise profunda. Também não
significava o fechamento individual em esferas privadas, tal como o modelo para o qual teria
contribuído o desenvolvimento moderno, nem mesmo uma retirada em um mundo subjetivo
privado. É claro que Foucault não imaginava um sujeito fechado em si mesmo, capaz de
inventar estilos singulares. Ora, a arte é em si mesma uma disposição historicamente situada,
trabalhada dentro de uma tradição. O indivíduo, nesse sentido, era muito menos sujeitado,
muito menos moldado como uma subjetividade construída como uma verdade sobre si
mesmo.
O resultado desse cuidado de si era trabalhar sobre si mesmo para produzir a vida
como uma obra de arte, e não para encontrar uma verdade interior profunda. Para Taylor a
autenticidade tem exatamente de ser buscada como a tematização da natureza interior, do
pano de fundo e das intuições morais que dão a natureza de um self específico. Isso se
163
assemelha à busca de uma verdade sobre si mesmo, nos termos que Foucault quer contestar
tanto como uma possibilidade de singularização quanto de um cuidado de si. No fundo, o que
temos é uma defesa do legado do cristianismo por Taylor – o que não seria de se estranhar,
considerando que se trata de um filósofo adepto do catolicismo – e um repúdio desse legado
por Foucault, que uniu a crítica de Nietzsche da modernidade com as idéias que Hadot havia
encontrado sobre a “cultura de si” do mundo antigo.
Mas vejamos a objeção de Taylor a essa concepção sobre a singularidade foucaultiana:
tivemos a oportunidade de examinar que a autenticidade, para Taylor, envolve não apenas
uma valorização da originalidade, mas também horizontes de significado que lhe dão
sustentação, e que privilegiar uma em detrimento de outra é o que ele pretende evitar. Assim,
sua crítica à concepção foucaultiana de uma subjetividade autêntica (ou como prefere
Foucault, uma individualidade pautada numa estilização da existência) seria justamente no
sentido de que ela peca em não reconhecer a importância desse segundo item para a
constituição da subjetividade. Nesse ponto, concordo com Taylor em sua convicção de que
um pano de fundo ético universal (os horizontes de significado) é essencial para pensarmos o
tipo de subjetividade ao qual Foucault se inclina. Uma estética da existência generalizada não
pode existir sem um pano de fundo que lhe dê sustentação, ou seja, fora de uma Sittlichkeit.
Devo dizer que sou um entusiasta da perspectiva hermenêutica como método para
alcance da realidade social. Contudo, o procedimento hermenêutico deve estar atento para
formas de poder, de relações assimétricas, de formas de domínio simbólico (ou como diria
Bourdieu, de violência simbólica). Acho realmente brilhante o esforço tayloriano em
demonstrar a imprescindibilidade da questão dos significados, dos valores, da moralidade e do
modo como reivindica essas questões como centrais para as ciências sociais. Considero que
conceitos como de avaliação forte ou de configurações, ou a idéia de pensarmos a nós
164
mesmos como seres auto-interpretativos, podem ser extremamente produtivos para a
sociologia e seus desenvolvimentos nos mais variados âmbitos de pesquisa.
Contudo, acredito que a “alma moderna” pode não ser tão facilmente desenhável como
Taylor o quis fazer a partir de suas configurações. É provável que se Foucault tivesse a
possibilidade de dar continuidade à sua obra, ele teria encontrado outras dimensões da
constituição dessa “alma”. É sempre bom lembrar que um olhar como o apresentado nesse
trabalho, sobre a “modernidade”, se baseia num nível muito alto de generalização, procurando
acentuar certas dinâmicas e transformações de grandes proporções. No presente trabalho,
procurei evidenciar como, mesmo em se tratando de uma grande generalização sobre a
dinâmica trazida pelo que chamamos de modernidade, acredito que essas formações sociais
ainda conservam em si componentes de poder, não reflexivos, valorativos, acríticos e não
conscientes, o que impossibilitam definitivamente pensarmos nela como o lugar de
subjetividades individuais autônomas ou independentes, livres ou reflexivas em termos de
uma transparência para consigo mesmo. Assim, se estiver ao menos em parte correto, as
subjetividades continuam a ser desenvolvidas a partir de uma série de elementos que as
modelam (e porque não, constrangem) e que fundam sua própria estrutura. Ela está desde
sempre jogada no mundo, submetida a forças, a limites inerentes à sua própria origem
constitutiva, a formas de poder. Por isso, em minha visão, a crítica foucautiana sobre a
singularização ou a autenticidade do self moderno é algo que se sustenta. Ele demonstrara
como ninguém a forma como a subjetividade moderna está perpassada em sua própria
constituição por formas de poder que nos são imperceptíveis.
Inevitavelmente, é de fato impossível para mim, no momento, tentar verificar a
validade dos argumentos de Foucault sobre a cultura antiga e a especificidade do “cuidado de
si” na mesma. De qualquer forma, o próprio potencial de questionamento sobre nós mesmos
165
contido na análise já é, no mínimo, suficiente para levantar dúvidas sobre visões amplamente
aceitas acerca da própria especificidade moderna.
Há um forte repúdio de Foucault à aceitação do desenvolvimento histórico ocidental
em termos de um evolucionismo moral, sobretudo na forma de um universalismo centrado no
valor do indivíduo. Iniciei este trabalho apontando a centralidade de teses sobre o
desenvolvimento da individualidade na auto-compreensão da modernidade, inclusive em
grande parte das abordagens – mais ou menos teóricas – presentes nas ciências sociais.
Particularmente, creio que temos de ter cuidado antes de aceitarmos as armadilhas que nosso
legado histórico nos impõe. Charles Taylor certamente sempre foi atento a esse tipo de
problema. Mas a meu ver Foucault o fez de uma forma mais radical. Antes de aceitarmos
qualquer noção de indivíduo, de individualidade como um dado pronto a ser trabalhado, ou
como núcleo de intelecção de um tempo, ou como algum tipo de centro a partir do qual a
ordem social deva ser embasada, é bom estarmos cientes de seus riscos.
O fato de nossa civilização (aliás, perdoem-me todos os usos do pronome “nosso[a]”
quando me refiro ao desenvolvimento ocidental – feitos às vezes de forma impensada –, pelo
costume tão caro a certos países modernos, como o nosso, em se incluírem dentro do que é
chamado de “ocidente”) ter avançado em milhares de anos, de ter havido um progresso
tecnológico gigantesco, desenvolvimentos científicos sem precedentes, uma transformação
política que chega a nós como a tão sonhada democracia mas ao mesmo tempo tão
problemática, não convenceu Foucault de qualquer superioridade racional, de um acesso
progressivo à verdade humana ou de uma moral mais aberta. Ora, o indivíduo, símbolo mais
elementar e fundamental da liberdade moderna, em suas aparências, pode não estar tão livre
assim.
166
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