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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA
Departamento de Letras e Artes
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E DIVERSIDADE CULTURAL
A DEFESA DA POESIA OU A PAIXÃO DO POETA
(o caráter soteriológico da poesia na concepção hilstiana)
Nívia Maria Santos Silva
Feira de Santana
2009
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Nívia Maria Santos Silva
A DEFESA DA POESIA OU A PAIXÃO DO POETA
(o caráter soteriológico da poesia na concepção hilstiana)
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Literatura e Diversidade Cultural da UEFS,
sob orientação do Professor Doutor Francisco Ferreira
Lima, como requisito parcial para obtenção do grau de
mestre em Literatura.
Feira de Santana, 31 de julho de 2009.
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA
Departamento de Letras e Artes
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA E DIVERSIDADE CULTURAL
Nívia Maria Santos Silva
A DEFESA DA POESIA OU A PAIXÃO DO POETA
(o caráter soteriológico da poesia na concepção hilstiana)
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-
Graduação em Literatura e Diversidade Cultural da UEFS,
apresentada em 31/07/2009, avaliada e aprovada por
_________________________________________________________
Prof. Doutor Francisco Ferreira Lima - UEFS
(Orientador)
_________________________________________________________
Prof. Doutor Adeítalo Manoel Pinho - UEFS
(Membro da Banca Examinadora)
_________________________________________________________
Prof. Doutor Rodolfo Alberto Franconi - Dartmouth College - USA
(Membro da Banca Examinadora)
Feira de Santana
2009
Para meus pais, que me doam tempo e carinho.
AGRADECIMENTOS
Ao professor doutor Francisco Ferreira de Lima, por suas indispensáveis orientações.
A Ana Carolina Nery da Silva Borges de Barros, pelo incentivo e confiança.
A Lisiane Matos, pelo desprendimento e auxílio.
A Jessé de Almeida Primo, pelo apoio produtivo.
Ao escritor Mora Fuentes, pela receptividade e atenção.
Aos colegas e amigos do mestrado, em especial Joabson Figueiredo e Marcela Soares.
Ao professor doutor Aleilton Fonseca, professor sempre presente em minha vida acadêmica.
À professora doutora Rosana Ribeiro Patrício, pela ajuda nos meus primeiros passos.
Às secretárias do PPGLDC, pelos bons atendimentos prestados.
Aos funcionários do CEDAE/IEL da UNICAMP, em especial a Carmem Lucia Antonio.
RESUMO
Esta dissertação tem o objetivo de analisar a concepção da poeta Hilda Hilst sobre o fazer
poético e o de quem o executa dentro do contexto da contemporaneidade a partir de
composições literárias, entrevistas, depoimentos, anotações em geral, mostrando a coerência
que ela apresentou entre suas idéias, sua vida e sua obra. No corpus desta dissertação, são
analisados, principalmente, textos de sua obra poética bilo, Memória, Noviciado da Paixão,
mais especificamente sua parte intitulada Poemas aos homens de nosso tempo, não deixando
de existir também poemas e trechos em prosa de livros diversos. A partir deles, é trabalhado o
caráter soteriológico que Hilst atriba à literatura e a seus agentes. Para tanto, retoma-se a
idéia existente na Antiguidade Clássica do poeta como guardião da memória e detentor de
sabedoria. Além disso, através da análise de textos hilstianos, procura-se demonstrar como as
prioridades da sociedade contemporânea contrastam com as prioridades do fazer poético, o
que leva o poeta a ser visto como secundário e prescindível. Por meio dessa análise, trabalha-
se como Hilda Hilst reage a essa situação saindo em defesa do poeta e da poesia que,
independentemente do contexto político, econômico, social, a seu ver, sempre será
imprescindível por recuperar a alma, a beleza e a liberdade do homem.
PALARAS-CHAVE: Hilda Hilst, poesia, poeta, soteriologia, memória, contemporaneidade.
ABSTRACT
This dissertation has the objective of analyzing poet Hilda Hilst’s conception about the poetic
doing and about the one who performs it within the context of contemporaneity from literary
compositions, interviews, testimonies, general notes, showing the coherence that she
presented among her ideas, her life and her work. In the corpus of this dissertation, texts of
her poetic work are analyzed, specially Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão, more
specifically the part entitled Poems to men of our time, there are also poems and excerpts in
prose of several books. From them, it is worked that soteriological character that Hilst
attributed to literature and to its agents. For such thing, it is retaken the existing idea in the
Classical Antiquity of the poet as the guardian of the memory and holder of knowledge.
Besides, through the hilstian text analysis, it is attempted to demonstrate how the priorities of
the contemporary society contrast with the priorities of the poetic doing, which leads the poet
to be seen as secondary and dispensable. Through this analysis, it is worked how Hilda Hilst
reacts to this situation defending the poet and the poetry that, regardless the social economic
political context, in her view, it will always be indispensable to recuperate the soul, the beauty
and the freedom of the man.
KEYS WORDS: Hilda Hilst, poetry, poet, soteriology, memory, contemporaneity.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO --------------------------------------------------------------------------
1. MISTÉRIOS GOZOSOS: Antes de ser mulher, sou inteira poeta
1.1 Nascimento, vida e obra de Hilda Hilst ----------------------------------
1.2 A obra hilstiana no contexto da contemporaneidade -------------------
1.2.1 O contexto literário -----------------------------------------------
2. MISTÉRIOS LUMINOSOS: Os poetas na noite repensam a tarefa de pensar
o mundo
2.1 O caráter soteriológico da poesia -----------------------------------------
2.1.1 O poeta e a memória ---------------------------------------------
3. MISTÉRIOS DOLOROSOS: O ser poeta te sabe a ornamento
3.1 A negação do poeta ----------------------------------------------------------
3.1.1 A poesia como contra-ideologia --------------------------------
CONSIDERAÇÕES FINAIS -----------------------------------------------------------
REFERÊNCIAS ---------------------------------------------------------------------------
ANEXOS
09
14
29
34
48
59
71
81
96
101
Irmão do meu momento: quando eu morrer
Uma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo:
MORRE O AMOR DE UM POETA.
E isso é tanto, que o teu ouroo compra,
E tão raro, que o mínimo pedaço, de tão vasto
Não cabe no meu canto.
HILDA HILST
9
INTRODUÇÃO
A presente dissertação de mestrado A defesa da poesia ou A paixão do poeta: o
caráter soteriológico da poesia na concepção hilstiana se propõe a mostrar a partir de
entrevistas, depoimentos, anotações, cartas e, sobretudo, por intermédio de sua obra literária,
principalmente a poética, em especial o livro Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão,
destacando sua parte intitulada Poemas aos homens de nosso tempo – como há uma coerência
entre o projeto de vida e o projeto literário da poeta Hilda Hilst através dos quais ela
demonstrava seu entendimento acerca do fazer poético e de quem o executa dentro do
contexto da contemporaneidade.
Na delimitação do corpus, será trabalhado o caráter salvífico que Hilst atribuía à
literatura como um todo, em especial, à poesia a qual ela concebia como algo sagrado e ao
poeta que, em sua visão, era um ser escolhido, retomando a idéia da Antiguidade Clássica do
poeta como guardião de memória e de sabedoria a quem se imputava uma força mítica. Além
disso, através da análise de poemas hilstianos, procura-se demonstrar como as prioridades do
fazer poético contrastam com as prioridades da sociedade contemporânea que, para ela, não
mais reconhece a importância da poesia e a imprescindibilidade do poeta.
Esta situação de salvador incompreendido muito aproxima a imagem do poeta da
de Jesus Cristo. Há inclusive versos hilstianos em que essa comparação se dá de forma
notável: “Incendiada, coroada de espinhos, e apesar/Sempre viva” (2003, p. 40). Esta
dissertação, a partir dessa semelhança, apropriou-se dos Mistérios – que representam os
estágios pelos quais Cristo passou em seus momentos mais importantes como: sua
Anunciação, seu batismo, sua crucificação – para intitular seus três capítulos: Mistérios
Gozosos, Luminosos e Dolorosos.
Todos eles vinculados à situação do poeta e da poesia a partir da análise de
composições e declarações da poeta em questão. Os Mistérios Gloriosos, que completariam o
rosário, não constituíram um capítulo uma vez que, pela concepção hilstiana, os homens ainda
não restabeleceram ao poeta e à poesia o prestígio que lhes é devido.
O primeiro capítulo intitulado Mistérios Gozosos: antes de ser mulher sou inteira
poeta, em termos de extensão, é a parte mais longa da dissertação. Da mesma forma que
ocorre com o primeiro Mistério do Rosárioo qual se encarrega de falar da vida de Cristo da
sua anunciação até seu encontro com os doutores da lei, o que percorre muitos anos enquanto
10
que os restantes tratam apenas dos acontecimentos que marcam sua vida dos 30 aos 33 anos
de idade – esse capítulo traz o nascimento de Hilst, a sua anunciação enquanto poeta, feita por
ela mesma aos 18 anos de idade a Lygia Fagundes Teles, apresentando-se: “Sou Hilda Hilst,
poeta.” (apud TELLES, 1999, p. 15) e as circunstâncias históricas e literárias nas quais viveu.
Através disso, essa parte se encarrega de apresentar as bases para a formação de Hilst
enquanto poeta e analisa o seu projeto literário que se funde com o seu próprio projeto de
vida, realizando uma apresentação panorâmica da sua trajetória na vida e na literatura.
Um dos pontos mais importantes dessa parte é a referência a sua ida à Casa do
Sol. Tal atitude, declaradamente influenciada pelo livro Carta a Greco de Nikos Kazantzákis,
prova que essa leitura representou para ela um momento redentor. A partir daí, Hilst
abandona o grande centro urbano, as elites econômicas e intelectuais com as quais convivia,
renuncia a sua beleza (trocou vestidos glamourosos por batas, andava de cabelos presos), a
profissão na qual se formou e, sem nenhuma outra atividade que competisse com o seu fazer
literário, perfazendo a sua ascese, dedica-se a ser, exclusivamente, poeta.
Essa atitude comprova a importância que Hilda Hilst ofertava à literatura,
consagrando a ela a sua vida. Outro ponto importante é a comprovação da idéia que Hilst
tinha do poeta enquanto um escolhido, distinguindo-o em meios aos demais, via o seu fazer
poético como uma tarefa a ser cumprida, conferindo a esse exercício poético um quê de
sagrado.
estão, no primeiro capítulo, as bases para o próximo uma vez que esse
comportamento de renúncia, associado à idéia da existência de uma missão a ser realizada,
juntamente com a construção de um lugar especial para a execução de seu dever literário (a
Casa do Sol) formam as bases para se comprovar a concepção do poeta como um salvador e,
conseqüentemente, o caráter soteriológico da poesia.
É justamente sobre esse aspecto que o segundo capítulo se debruça de forma mais
específica. Esse capítulo, Mistérios Luminosos: os poetas na noite repensam a tarefa de
pensar o mundo, retoma, em seu sub-capítulo, o título da dissertação em questão: O caráter
soteriológico da poesia na concepção hilstiana. Isso não quer dizer que apenas esta parte trate
da soteriologia, em verdade, esse assunto se apresenta ao longo de toda a dissertação. Nomear
uma das partes com o título da obra é um expediente usado por muitas dissertações e livros.
Albert Camus, por exemplo, em O mito de Sísifo, nomeia seu quarto e último capítulo de
forma homônima ao tulo de seu ensaio filosófico, mas todos os capítulos conferem uma
unidade ao livro e uma progressão temática.
11
Nessa parte, a fim de situar em que sentido será aplicado o vocábulo soteriologia,
é mencionada a Teologia Sistemática, campo de estudo religioso do qual tal termo foi
retirado. É importante salientar, no entanto, que esse termo foi aplicado dentro de um contexto
literário, não teológico. Assim como a Soteriologia Objetiva trata da missão salvadora de
Cristo, a soteriologia no estudo em questão trata da missão salvadora da poesia.
Vale evidenciar que essa visão salvacionista da poesia não é uma invenção
hilstiana por isso é lançado mão de alguns poetas que teorizaram sobre esse assunto como
Alexei Bueno ao analisar Nikos Kazantzákis. É citado também outros poetas que, por meio de
seus textos teóricos, conferem a poesia um poder de libertação, de revelação, de renovação, de
perpetuidade como Percy Shelley, Octávio Paz, Bruno Tolentino, Carlos Felipe Moisés,
Fernando Pessoa e T. S. Eliot.
A grande diferença entre Hilda Hilst e esses poetas supracitados é que ela não
teorizou acerca do poeta e da poesia. As suas concepções aqui defendidas foram inferidas por
leituras atentas, constantes e comparativas de seus poemas, ficções e dramas, corroboradas
por seus depoimentos, cartas e entrevistas, material ao qual se teve acesso por meio de uma
pesquisa do acervo pessoal da poeta comprado pelo CEDAE (Centro de Documentação
Cultural Alexandre Eulálio), centro pertencente ao IEL (Instituto de Estudos da Linguagem)
da UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas).
Outro sub-capítulo denominado O poeta e a meria complementa o anterior,
explorando, ampliando mais a relação da poesia com o seu poder de salvação que na
Antiguidade a memória era concebida de forma sacralizada e divinizada e os poetas eram
vistos como seus detentores. As musas, de acordo com Hesíodo, eram filhas de Mnemósine
(memória) e inspiravam os poetas, fazendo-os lembrar. A eles era concedido o poder da
vidência, do vaticínio, daí chamarmos, por vezes, o poeta de vate. Principalmente naquela
época em que as tradições eram orais e havia o culto à memória, o poeta era imprescindível
para a sociedade uma vez que era o guardião do conhecimento, o guardião da verdade.
No contexto atual no qual o homem se encontra tão oprimido que tem a memória
manipulada em beneficio de alguns grupos políticos e sociais, a memória trazida pelo poeta
em seu canto pode ainda servir como meio de transmitir conhecimento e reconstruir a história.
Dessa forma, o segundo capítulo reforça e aprofunda a visão soteriológica da poesia que,
por meio dela, o homem pode tomar conscncia da manipulação que sofre. Não se pode
negar que a consciência que se tem da própria escravidão é o começo da liberdade.
Soteriologia é salvação, e salvar é libertar.
12
O terceiro e último capítulo, Mistérios dolorosos: O ser poeta te sabe a
ornamento, propõe-se a comprovar como Hilst reconhecia que as prioridades da sociedade
contemporânea contrastavam com as prioridades do exercício poético, e também como isso
tornava a poesia ainda mais necessária.
Na sua parte intitulada A negação do poeta, um cotejamento entre um poema
de Hilda Hilst com um de Álvares de Azevedo, o que visou comprovar que ela tinha uma
postura que muito a aproximou dos românticos e como, estruturalmente e tematicamente, o
livro hilstiano JMNP se assemelha ao azevediano Lira dos vinte anos. Ambos começam
bastante líricos cantando o amor, seguidos, em sua última seção, de reflexões sobre o fazer
poético em meio à modernidade.
Nessa parte, revela-se o conflito não do poeta, mas do artista como um todo
diante de um sistema econômico que apresenta uma Indústria cultural, uma Cultura de massa
que tornam equivalentes os produtos da arte aos produtos de qualquer indústria como a
automobilística que os faz em série e para atender um grande público uniformizado,
homogêneo, ou seja, tenta transformar a arte em uma mera mercadoria e seus agentes em
funcionários que são obrigados a produzir dentro de prazos, seguindo modelos determinados
e, principalmente, gerando lucro.
É justamente sobre a conjuntura moderna que a última parte do terceiro capítulo
trabalha. Intitulada A poesia como contra-ideologia, possui em seu nome a idéia da poesia
como reação. Esse sub-capítulo lança mão de alguns conceitos marxistas como reificação,
alienação, fetichismo por meio de uma análise que nega que a poesia seja uma superestrutura
que existe apenas para confirmar a infra-estrutura e rejeita que ela represente tão somente os
interesses de uma classe dominante.
A partir da junção desses capítulos se pretende não defender, através da obra
hilstiana, a idéia de que o poeta e a poesia podem auxiliar o homem a se libertar, mas
principalmente a idéia de que é preciso que o poeta e a poesia voltem a ter um lugar de
destaque, que eles sejam também salvos. Não para serem colocados numa posição idêntica à
da época mítica, o que seria um anacronismo, mas para que não sejam vistos como um mero
ornamento, banal e prescindível uma vez que a poesia, como toda arte, é necessária para a
sociedade humana.
As considerações finais encerram este estudo sem a pretensão de esgotar o assunto
nela abordado. Nesta parte, um apanhado geral do que foi trabalhado ao longo de toda a
dissertação, frisando o nexo entre as idéias, a vida e obra de Hilda Hilst. É destacada também
13
a ambição de seu projeto literário que é a de revalorização do exercício poético e daquele que
o concebe. Ambição essa que está presente mesmo quando seus textos se referem a outros
temas (Deus, morte, amor etc). Isso porque sua vida e sua obra foram dedicadas a uma
autêntica apologia à poesia e ao poeta.
14
1. MISTÉRIOS GOZOSOS:
Antes de ser mulher, sou inteira poeta
Muitas vezes, a existência da escritora Hilda Hilst se confunde com o seu fazer
literário. Por isso, um passeio panorâmico por sua vida, relacionando-a a suas composições e
ao processo de amadurecimento existencial e poético pelo qual passou é uma análise que não
pode ser dispensada. Mas essa análise não visa a exaltar a vida em detrimento de suas
produções (apegando-se a algumas de suas excentricidades que muito chamaram a atenção e
deixando suas realizações literárias à margem), e sim avaliar o quanto e como o contexto
histórico no qual viveu e suas escolhas pessoais implicaram transformações ao conjunto de
sua obra e fizeram do seu exercício poético não apenas uma prática, mas, sobretudo, uma
tarefa a ser cumprida. Visa também a analisar o contraponto disso: o quanto e como a
dedicação a essa tarefa acabou por determinar os rumos de sua vida.
1.1 Nascimento, vida e obra de Hilda Hilst
Enquanto, politicamente, o Brasil vivia o final da República Velha e o início da
Era Vargas, nascia, em 1930, Hilda Almeida Prado Hilst, paulista de Jaú, interior de São
Paulo, filha de Apolônio de Almeida Prado Hilst (fazendeiro, jornalista, poeta) e de Bedecilda
Vaz Cardoso. Cursou, por sugestão da mãe, Direito na Universidade de São Paulo (USP),
mas, antes mesmo de se formar, já se iniciava em uma outra carreira: a de poeta
1
. Em 1949,
consciente do que era, apresenta-se à escritora Lygia Fagundes Telles, que se tornaria sua
amiga por toda a vida, comunicando: “Sou Hilda Hilst, poeta.” (TELLES, 1999, p. 15). E
realmente o era. Ainda aos 18 anos, escreve: “Somos iguais à morte, ignorados e puros e bem
depois o cansaço brotando nas asas seremos pássaros brancos, à procura de Deus” (HILST,
1999, p. 27) e recebe, por tais palavras, um elogio de Cecília Meireles que lhe aconselha:
“Quem disse isso, precisa dizer mais” (CECÍLIA apud HILST, 1999, p. 27).
Hilst segue o conselho produzindo uma obra formada por mais de 40 títulos
publicados em aproximadamente meio século de fazer literário. Aponta seu pai, que também
1
Será utilizado o termo poeta no lugar de poetisa por assim Hilst preferir ser denominada
15
foi poeta, mas teve que parar sua carreira literária devido a sua esquizofrenia, como principal
responsável por essa sua inserção no campo da literatura:
Meu pai ficou louco, a obra dele acabou. E eu tentei fazer uma obra muito
boa para ele ter orgulho de mim [...] Eu fiz minha obra por causa de meu pai.
Eu queria agradar meu pai. Queria que um dia ele dissesse que eu era alguém
[...] Meu pai foi a razão de eu ter me tornado uma escritora (1999, p. 26-27).
Ela afirma que outro motivador de sua iniciação literária foi a procura pela
dissolução de suas vidas e angústias acerca do inalcançável, do incognoscível, a busca de
um sentido para a vida, de um Deus. Em entrevistas
2
, chegou a declarar que: “A poesia é uma
procura exaustiva de Deus”
3
. Mas, para Hilst:
Deus não é material. Deus eu não conheço. Não conheço este senhor. Eu
sempre dizia que Ele estava no escarro, no mijo, não que Ele fosse esse
escarro e esse mijo. uma coisa obscura e medonha nele, que me pavor
(in ZENI, 1998, p. 9).
Em outra entrevista, esclarece: “Posso blasfemar muito, mas o meu negócio é o
sagrado. É Deus mesmo, meu negócio é com Deus” (1999, p.30). A presença de Deus – como
destinatário de seus textos e como tema ou das divagações sobre a “idéia de Deus”,
realmente, podem ser encontradas no conjunto da sua obra narrativa, dramática e,
principalmente, lírica como nos livros: Trajetória poética do ser (1966), Sobre tua grande
face (1986), Exercícios para uma idéia (1987) e Amavisse (1989). Em Poemas malditos,
gozosos e devotos (1984), Hilst declara: “É de uma idéia de Deus que te falo(2005, p. 55).
Vale frisar, no entanto, o alerta feito por Alcir Pécora acerca desse último livro citado:
Se é verdade que grande parte da poesia de Hilda Hilst é largamente
construída em torno de uma idéia de Deus, também o é que ela jamais toma
a forma da fé, e especialmente jamais a forma do discurso do crente
satisfeito com o que conhece ou intui de seu Deus (in HILST, 2005, p. 10).
E não escreve sobre o sagrado, como acredita no próprio escrever como algo
sagrado que, para ela, escrever é uma vocação divina, não uma mera conseqüência de uma
escolha. Seguindo essa linha de pensamento, defendia a idéia do poeta como um escolhido e
2
As referências a entrevistas, depoimentos e textos em geral publicados em jornal ou em website serão
informadas em notas de rodapé
3
HILDA HILST DESABAVA: Transformaram angústia em glândulas endócrinas”. Jornal Última Hora, SP, 3
dez. 1958.
16
se incluía entre esses seres iluminados. Mora Fuentes, escritor e presidente do Instituto Hilda
Hilst, esclarece:
Ela achava que a poesia tinha muito a ver com o divino, ela não acreditava
na poesia sem inspiração. E a inspiração para Hilda vinha de algum lugar
que ela não sabia de onde era, mas ela não acreditava que era de dentro dela
que vinha a poesia. E era incvel porque ela era uma pessoa que de repente
estava tomando banho e vinha uma poesia pronta para ela, então ela saia
ensaboada, assim molhada, nua para o escritório e anotava para não esquecer
e a poesia vinha pronta para ela.
4
Sua estréia na literatura se dá, antes mesmo de receber seu diploma de advocacia,
por meio da publicação do livro Presságio, em 1950. Seguido, um ano depois, por outro
volume de poemas intitulado Balada de Alzira. Em 06 de Abril de 1953, ocorreu a sua
formatura em uma profissão que ela exerceu rapidamente no escritório de advocacia do Dr.
Abelardo de Souza, em São Paulo, profissão da qual, depois, abriu mão. Em vez de advogar,
passa a conciliar sua vida boêmia, facilitada pelas elites financeira e intelectual com as quais
ela convivia e pela sua sedutora beleza (o editor Massao Ohno em depoimento ao Caderno de
Literatura do Instituto Moreira Sales afirma que Hilst tinha a beleza de Ingrid Bergman mais a
sensualidade de Rita Hayworth), com a composição de mais livros de poemas: em 1955,
Balada do Festival; em 1959, Roteiro de silêncio e Trovas de muito amor para meu amado
senhor; em 1961, Ode fragmentária; em 1962, Sete cantos do poeta para o anjo, obra que
recebe o Prêmio Pen Clube de São Paulo.
Em 1966 ano em que Nelly Sachs, escritora judia, e Shamuel Yosef Agnon,
escritor israelense, ganham conjuntamente o prêmio Nobel de Literatura, momento no qual o
Brasil vive politicamente o início da Ditadura Militar e o mundo ainda convivia com a
chamada Guerra Fria , Hilst chegou à concluo de que não iria apenas escrever poesias,
mas dedicar a sua vida a seu trabalho poético. Chega a essa decisão principalmente por causa
da influência exercida sobre ela não pela leitura de Carta a Greco presente dado, em
1962, a ela pelo poeta português Carlos Maria de Araújo a quem ela dedica Pequenos funerais
cantantes –, mas inclusive pela vida de seu autor, Nikos Kazantzákis (1883-1957).
Autor de obras como Zorba, o Grego (1943) e A última tentação de Cristo (1948),
Kazantzákis chegou a ser excomungado, entretanto também recebeu, em 1956, o Prêmio
Internacional da Paz. Um acontecimento decisivo na vida dele que muito impressionou Hilst
4
Entrevista concedida à autora desta dissertação por Mora Fuentes no Instituto Casa do Sol. O texto completo
dessa entrevista está no ANEXO A
17
ocorreu quando ele tomou a decisão de se divertir em Paris antes de continuar a composição
de sua obra, mas, toda vez que se aproximava dessa cidade, nasciam pústulas em seu rosto. Os
médicos diagnosticaram uma reação psicossomática, e ele interpretou tal acontecimento como
uma mensagem de que deveria se dedicar mais a sua obra. Isso fez com que, em 1914, aos 31
anos, ele se recolhesse por 40 dias ao Monte Atos (A República de Monte Atos, também
transliterado como Monte Athos, em grego Άγιο Όρος, Montanha Santa), onde começa a
meditar sobre o destino e sobre a função da poesia.
Após suas reflexões, ele afirmou em Cartas a Grego: Toda a minha vida é um
grito e toda a minha obra é a expressão desse grito” (1961, p. 9), marcando a relação entre
vida e obra. Foi considerado por Otto Maria Carpeaux, em História da Literatura Ocidental
(1959), um dos maiores espíritos do culo 20. Pode-se completar o julgamento de Carpeaux
com o epifio de Kazantzákis: Não temo nada, não espero nada, sou livre!”. Ou ainda com
suas próprias palavras contidas no texto Em que creio:
Experimentei diversos caminhos para encontrar aquele da minha libertação:
o do amor, o da busca filosófica, o da curiosidade científica, ainda o da
regeneração social. Por fim me engajei naquele, árduo e solitário, da poesia.
5
Ele era considerado um grande espírito livre de sua época. E foi por essa busca
pela liberdade, ou por esse exercício dela, e pela busca do auto-conhecimento, a dedicação, o
engajamento existencial pelo fazer literário que Hilst se deixou influenciar e fez da sua casa,
na fazenda São José, pertencente a sua mãe, o seu Monte Atos. A explicação para essa atitude
de claustro de Hilst não se encontra apenas em Carta a Grego como também num livro
anterior, Ascese: os salvadores de Deus (1959).
Nele, uma justificativa para o desprendimento ao qual Hilst se submete e que a
faz, a partir de 24 de junho de 1966, passar a morar definitivamente na chamada Casa do Sol.
Isso porque Kazantzakis, nesse livro, defende um comportamento ligado ao ascetismo que é
uma “doutrina de pensamento ou de que considera a ascese, isto é, a disciplina e
autocontrole estritos do corpo e do espírito, um caminho imprescindível em direção a Deus, à
verdade ou à virtude” (HOUAISS, 2001, p. 262). Nas palavras de Kazantzakis: “A cada
instante devemos estar preparados para sacrificar a nossa vida a Ele [a Deus]. Porque a vida
não é um fim, mas um instrumento, como a morte, a beleza, a virtude, o conhecimento”
5
In BUENO, Alexei. As obsessões de Kazantzákis. Disponível em <http://rascunho.
rpc.com.br/index.php?ras=secao.php&modelo=2&secao=25&lista=0&subsecao=0&ordem=1670&semlimite=to
dos>. Acesso em 01 agosto 2008.
18
(1959, p. 101). O sacrifício da vida e do corpo consagrados ao fazer poético atribui à decisão
de Hilst um viés também sagrado.
A Casa do Sol
6
é um imóvel esboçado por ela mesma e construído pelo arquiteto
Kowarik, na área de uma fazenda a 11 km de Campinas onde passou a realizar terlias
intelectuais e a se dedicar com exclusividade à composição de sua obra. Ela se encarregou de
cada um dos detalhes
7
que a constituiu: do estilo colonial mineiro aos ornamentos para
embelezá-la, entre os quais muitas fotos de pensadores e escritores por ela admirados; do
portão com círculos que representam o sol aos arcos que dão um toque místico a casa, tudo foi
pensado por Hilst a fim de preparar um espaço que contribuísse com a sua devoção ao fazer
literário.
Compondo o acervo de Hilst comprado pelo CEDAE (Centro de Documentação
Cultural Alexandre Eulálio), centro pertencente ao IEL (Instituto de Estudos da Linguagem)
da UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas), existem várias cartas no acervo pessoal
da escritora, entre as quais, duas postadas por Alfredo (o sobrenome não foi identificado),
uma de 1960, outra de 1966, as quais vaticinavam a ida definitiva de Hilst para o campo.
Na primeira, ele declara:
Gosto de sua língua forte, viril, clara, correta, sua. Também me parece
menos exibicionista. Você era um pouco (ou muito...) confesse. [...]
Continue a amadurecer, Hilda, a fazer versos. A amar. [...] Então vou
ficando por aqui mesmo. Na fazenda, fazendo parte da paisagem. Como
você quer. [...] Acho que até deve ser “euforia”... ou êxtase (?) Igualzinho os
“românticos
8
. (grifo nosso)
E, na segunda missiva, faz menção a uma frase de Voltaire: “C'est la ville qu'il
faut fuir, c'est aux champs qu'il faut vivre”
9
, a qual também indicava a preferência de Hilst
pelo campo. Em outra carta postada em 02 de março de 1967, é a escritora Lygia Fagundes
Teles que se refere ao que, para Hilst, era uma escolha definitiva: “Você diz no seu cartão,
'pois é vocês preferem a cidade ' ... Minha querida Hilda, não se trata de preferir, entende?
6
A partir de 18 de dezembro de 2004, a Casa do Sol passa a ser sede do Instituto Hilda Hilst Centro de
Estudos Casa do Sol (CNPJ 07.495.325/0001-31), uma entidade sem fins lucrativos, que reúne entre seus sócios
o físico Nelson Parada (integrante da equipe fundadora da UNICAMP), a escritora Lygia Fagundes Telles, o
poeta Cláudio Willer, a crítica literária Nelly Novaes Coelho, as atrizes Iara Jamra e Beatriz Azevedo, o músico
José Antônio Almeida Prado, entre outras personalidades. Fonte: http://www.hildahilst.com.br/instituto.php,
acesso em 31/10/2008.
7
Fotos da Casa do Sol no ANEXO B
8
Acervo de HH no CEDAE, pasta 02, grupo Vida Pessoal 1.2
9
“É preciso sair da cidade, é necessário viver no campo”
19
[...] Temos nojo dessa cidade que está cada vez mais suja e barulhenta e desagradável”
10
(grifo
do autor). A menção a essas epístolas se faz necessária visto que a decisão de morar
definitivamente na Casa do Sol, com licença do físico Fritjof Capra e considerando suas
possíveis dimensões, foi em sua vida o ponto de mutação (1998).
A nomeação Casa do Sol, principalmente para uma leitora de filosofia, mitologia
e teologia como Hilst, não foi arbitrária. Primeiro remete a uma célebre definição
heideggeriana para a linguagem, casa do Ser:
O pensamento con-suma a referência do Ser à Essência do homem. Não a
produz nem a efetua. O pensamento apenas a restitui ao ser, como algo que
lhe foi entregue pelo próprio Ser. Essa restituição consiste em que, no
pensamento, o Ser se torna linguagem. A linguagem é a casa do Ser. Em sua
habitação mora o homem. Os pensadores e poetas lhe servem de vigias
(1967, p. 24). (grifo nosso)
Em entrevista cedida à revista Cult, a poeta declara: “Se bem que depois que li
Heidegger, e releio sempre, não consigo mais falar em ‘coisa’. Heidegger escreveu um livro
enorme para falar o que era uma coisa” (in ZENI, 1998, p. 10). Tal declaração comprova o
contato dela com a obra e o pensamento heideggeriano. Numa de suas crônicas, chega a
ironizar o leitor e a citar novamente o filósofo alemão: “Bom dia, leitor! contente?
Contente Filho do ente do Heidegger (informe-se) com Cohn-Bendit (informe-se)” (2007, p.
118).
Pode-se acrescentar que a palavra sol também é prenhe de significações
mitológicas e astrológicas que lhe atribuem uma importância vasta para a sociedade humana.
rias culturas representaram o sol através de um deus: Seil, para os nórdicos; Ra, para os
egípcios; Mitra, para os persas; Hélios e também Apolo, para os gregos; Sol, para os romanos.
Na astronomia, o sol é o centro do sistema solar, em torno do qual gravitam oito
planetas, além de muitos asteróides, satélites e cometas. No esoterismo, é o centro espiritual.
No mapa astral, o sol é a força espiritual que atribui vida aos homens. Representa,
metonimicamente: claridade, brilho, esplendor, luz. E, metaforicamente, tanto é “estado de
espírito positivo, alegria, felicidade, esperança como também “grande talento, gênio” ou
ainda “o que ilumina, dirige, lidera; farol, tocha, guia” (HOUAISS, 2001, p. 2599).
A escolha do nome, dessa forma, agrega o sagrado a seu lugar escolhido para o
exercício de sua vida quase monástica, dotando esse espaço de simbologia que comunica a
sua idéia de fazer dessa casa um local reservado para a busca e a construção do conhecimento,
10
Acervo de HH no CEDAE, pasta 02, grupo Vida Pessoal 1.2
20
um local de iluminação. Não se pode perder de vista que “a casa é o nosso canto no mundo.
Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos
(BACHELARD, 1996, p. 24). E esse cosmos seria para Hilst o lugar ideal para a elucidação
de suas dúvidas, e tudo lá convergiria para o aprimoramento de sua prática literária.
Conforme Mora Fuentes escritor e amigo de Hilst por décadas –, essa casa
representava para a poeta o que o crisol era para os alquimistas:
Essa coisa da casa para ela foi muito importante, a casa para Hilda tinha
mais ou menos a força quase do Crisol do alquimista. Era o lugar onde se
faziam as grandes transformações, onde se poderia conseguir transformar o
metal vulgar em ouro. Ela acreditava que a casa, e essa ela fez como queria,
tem dez arcos (sic), procurou fazer a casa com todos os significados
mágicos, com todas essas transcendências, para a casa ter essa força, ter esse
tipo de magnetismo mesmo
11
.
Dessa forma, a Casa do Sol tem importância incontestável para o projeto de vida
de Hilst. Por isso, a indispensabilidade em analisá-la, ou, ainda, conforme Bachelard, lê-la:
“há sentido em dizer que se ‘lê uma casa’, que se um quarto, que quarto e casa são
diagramas de psicologia que guiam os escritores e poetas na análise da intimidade” (Ibid, p.
55).
Assim como o citado filósofo francês comprova, em seu livro A poética do
espaço, a relação de rios poetas (Henri Bosco, Rilke, Baudelaire entre outros) com a casa
em seus poemas, encontra-se a casa evocada por Hilst em seus versos:
III
A minha Casa é guardiã do meu corpo
E protetora de todas minhas ardências.
E transmuta em palavra
Paixão e veemência
E minha boca se faz fonte de prata
Ainda que eu grite à Casa que só existo
Para sorver a água da tua boca.
A minha Casa, Dionísio, te lamenta
E manda que eu te pergunte assim de frente:
À uma mulher que canta ensolarada
E que é sonora, múltipla, argonauta
Por que recusas amor e permanência? (2003, p. 61)
11
Entrevista no ANEXO A
21
O poema acima, retirado do livro Júbilo, memória, noviciado da paixão, torna
presente a Casa do Sol e a personifica: “A minha Casa, Dionísio, te lamenta/E manda”.
Grafada com a letra inicial maiúscula, a ela é atribuído caráter de apreço e importância.
Guardiã do corpo, protetora das ardências, a Casa de Hilst colabora com o seu fazer poético.
Hilst a aponta como a responsável por transformar seus sentimentos (“paixão e veemência”)
em poesia (“palavra”). Como diria Bachelard: “A casa vivida o é uma caixa inerte. O
espaço habitado transcende o espaço geométrico” (1996, p. 62). Dessa forma, era um lugar de
transcendências.
VI
Três luas, Dionísio, não te vejo.
Três luas percorro a Casa, a minha,
E entre o pátio e a figueira
Converso e passeio com meus cães
E fingindo altivez digo à minha estrela
Essa que é inteira prata, dez mil sóis
Sirius pressaga
Que Ariana pode estar sozinha
Sem Dionísio, sem riqueza ou fama
Porque há dentro dela um sol maior:
Amor que se alimenta de uma chama
Movediça e lunada, mais luzente e alta
Quando tu, Dionísio, não estás (HILST, 2003, 64).
Nesse outro poema, a Casa, não só é novamente grafada com a inicial maiúscula,
como também recebe um aposto “minha casa”, o que frisa ainda mais a relação da poeta com
o espaço por ela habitado. No terceiro verso, uma rápida descrição de itens que a compõem:
“o pátio e a figueira”
12
que realmente constituem a Casa do Sol. Inclusive, fotos nas quais
Hilst ostenta sua figueira centenária a qual ela abraçava para fazer seus pedidos. no último
verso, há refencia a seus cães que realmente eram abrigados em sua Casa. Ela atribuía aos
cães função de psicopombos e deles cuidava:
Rodeando a construção, uma área ajardinada de quase 12.000m2, com
grande variedade de árvores, entre elas a figueira centenária que era a
preferida da escritora. Atrás da Casa existem canis que abrigam 40 cães
12
Fotos no ANEXO B
22
recolhidos em vida pela autora. Esses cães estão sendo mantidos tamm
através do instituto.
13
Vale salientar que a revista Cadernos de Literatura Brasileira do Instituto
Moreira Sales, em 1999, dedicou uma de suas edições a Hilda Hilst e trouxe nesse dossiê uma
parte intitulada Geografia Pessoal na qual um ensaio fotográfico que Eduardo Simões fez
da Casa do Sol. Inclusive, os livros reeditados pela editora Globo trazem na sua contra-capa
fotografias dela, de seus ornamentos, de suas imagens e daqueles que a habitavam. Toda essa
atenção conferida à morada escolhida por Hilst apenas corrobora a sua importância,
colocando-a também como parte das produções hilstianas.
Mais de 80% da obra hilstiana foi composta depois de ela recolher-se a seu
mosteiro. Lá, Hilst lança em 1967 o livro Poesia, pela editora Sal. Mesmo ano em que passa a
se dedicar a uma nova experiência artística: a sua produção dramática, a qual é constituída de
oito peças escritas entre 1967 a 1969: A possessa e O rato no muro (1967), O visitante e Auto
da barca de Camiri, O novo sistema, As aves da noite (1968), A Morte do Patriarca e O
Verdugo (1969), esta última chega a ser agraciada com o Prêmio Anchieta, da Secretaria de
Estado de Cultura de São Paulo.
É também após sua recolhida à Casa do Sol que Hilst inicia a sua obra em prosa,
publicando em 1970 seu primeiro livro de ficção, Fluxo-Floema, seguido de Qadós em 1973.
Esse período dedicado aos gêneros dramático e narrativo marca um intervalo de sete anos
(1967 a 1974) em sua produção de livros especificamente de poemas, a qual é retomada com
o laamento de Júbilo, memória, noviciado da paixão (1974). Tal obra não apenas marcará
seu retorno à produção lírica como também um momento de amadurecimento, uma vez que
sua escrita não saiu incólume da prática, de quase uma década, de outros gêneros.
Nely Novaes Coelho chama esse período de sete anos de silêncio poético, e
completa: “Entre esta e a primeira fase, há uma evidente distância: não propriamente de valor
poético, mas de intensidade. Todos os temas, então cantados, voltam aqui com uma nova
densidade” (1999, p. 73). Afirmação com a qual Alcir Pécora concorda e complementa: A
sua poesia acusa o impacto da novidade da prosa, incorpora a fião exercitada mais
recentemente” (2003, p. 12).
Convém enfatizar, todavia, que no cerne das suas composições das décadas de
1950 e 1960 se encontrava o germe da universalidade alcançada em sua obra pós-1970. A
13
Trecho retirado do texto “Breve histórico da autora e do instituto”, sem autoria informada. Disponível em
<http://www.hildahilst.com.br/instituto.php>. Acesso em 30 junho 2008
23
própria Hilst em diversas entrevistas chegou a ratificar o pensamento de Hegel de que “A
poesia é mais própria da velhice que da juventude”
14
. Claro que essa assertiva deve ser levada
em consideração, mas, até para essa afirmação, há ressalvas visto que a idade o implica, de
maneira totalizante, melhor qualidade da escrita. poetas que escrevem obras relevantes
antes de completar 40 anos, como Rimbaud, morto aos 37 anos. Outros antes mesmo de
chegar à maturidade, como Castro Alves, morto aos 24 anos ou ainda Álvares de Azevedo,
morto mais cedo, aos 21 anos de idade. Existem ainda os poetas com grande longevidade, mas
cuja obra considerada a melhor não necessariamente é a última, como ocorre com Ferreira
Gullar, por exemplo, que possui como ponto forte do conjunto de sua obra o livro Poema
Sujo, lançado em 1976, quando tinha 46 anos de idade, composição mais conhecida e
aclamada do que seu livro Muitas Vozes, publicado em 1999, quando já contava 69 anos.
Com Hilst, não meramente a idade, mas, sobretudo, as experiências que ela se
permitiu vivenciar na Casa do Sol não apenas de ordem literária, mas também existencial,
religiosa, juntamente com suas excessivas e polivalentes leituras promoveram seu
amadurecimento poético. Ela mesma reconhece as transformações pelas quais passou:
O negócio é todo mágico mesmo, e pensar que noviciado quer dizer: tempo
de aprendizagem, porra, aprendi mesmo, antes as minhas paixões eram
fulminantes e se faziam rápidas no tempo, e esta de agora nem foi
concretizada no plano mais imediato e por isso me fez sofrer da nossa falada
combustão espontânea.
15
Esse é um trecho de uma carta que a autora enviou a Anésia Pacheco, o ano da
epístola não foi identificado, pressupõe-se que seja o mesmo ano do livro ao qual ela se
refere, 1974. Nela, confissão de um crescimento pessoal e suas ressonâncias no seu fazer
poético. Revelações desse tipo realizadas pela poeta tornam a aparecer em diversas outras
missivas, assim como em depoimentos e entrevistas. Essa atitude corrobora a idéia de que ela
amalgama vida e obra como será comprovado no decorrer desta dissertação.
Apesar de retomar os lançamentos dos livros de poemas, continua sua produção
em prosa. Em 1977, chega a ganhar o prêmio da APCA (Associação Paulista de Críticos de
Arte) pelo seu livro Ficções, considerado Melhor Livro do Ano, a mesma associação a premia
quatro anos depois com o Grande Prêmio da crítica pelo conjunto da obra. Em 1980,
provando essa jornada dupla com poema e prosa, lança dois livros que correspondem aos dois
14
Acervo de HH no CEDAE, pasta 24, grupo escritora
15
Acervo de HH no CEDAE, pasta 24, subgrupo produto literário: poesia
24
tipos de composição: Da morte. Odes Mínimas e Tu não te moves de ti. Um ano depois, a
novela A obscena senhora D. A ela, sucedem-se outros títulos como: Cantares de perda e
predileção em 1983, que acumula dois prêmios: o prêmio Jabuti em 1984, mesmo ano em que
lança Poemas malditos, gozosos e devotos, e o Prêmio Cassiano Ricardo do Clube de Poesia
de São Paulo em 1985. A concomitância prosa-poema se repete em 1986 com Sobre tua
grande face (poemas) e Com os meus olhos de cão e outras novelas (ficção). Em 1989, lança
Amavisse, seguido, um ano depois, por Alcoólicas.
Apesar de muito premiada e reconhecida pela crítica, Hilst fazia questão de
demonstrar o seu descontentamento por o ser lida ou, a seu ver, não ser entendida pelo
grande público. Em uma entrevista
16
, chegou a recitar o verso de Edna Saint Vicent Nillay:
“Read me, do not let me die”
17
, um verdadeiro e veemente apelo que, junto ao título da
publicão jornalística no qual tal pedido foi publicado, O sofrido caminho da criação
artística, revalida o desespero de Hilst para tornar maior seu número de leitores.
A escolha pelo drama, na década de 60 do século XX, parte não de seu talento
para as letras, de sua capacidade de passear entre os gêneros, como pode ser considerada
também uma tentativa de aproximação com o outro. Mas esse desejo se intensifica e a faz
promover novas transformações em seu fazer literário e publicar a sua trilogia pornográfica: O
Caderno Rosa de Lori Lamby (1990), Contos de EscárnioTextos Grotescos (1990) e Cartas
de um Sedutor (1991). Numa entrevista concedida a Cecílio Elias Netto, do Correio Popular,
em fevereiro de 1993, a autora justifica a sua ida para o que ela chama de literatura menos
séria afirmando: “Quem sabe se lendo o que escrevo hoje, as pessoas não irão se interessar
por tudo o que escrevi antes.
Nessa fala, o justifica sua experiência dita pornográfica, como também
demonstra a sua insatisfação diante da recepção de sua obra. Essa sensação de frustração pode
ser encontrada nela na década de 1970, numa carta escrita em 21 de julho de 1974, na qual
Homero Silveira a orienta: “Tenho lido muita coisa a seu respeito. Você não pode se queixar.
Depois, que adianta isso? Você vale pelo que pensa e produz, não pelo que os outros pensam
de você”
18
. Vinte e seis anos antes de sua tentativa de cooptação do grande público, já existia
a sua preocupação com seus leitores. Nessa tentativa de se popularizar, Hilst passa, assim
como Bocage, a ser rotulada de autora pornográfica embora a sua trilogia represente pequena
parte de sua obra e ainda não consegue se desvencilhar do rótulo que lhe deram de hermética.
16
GONÇALVES, Delmiro. O sofrido caminho da criação artística, segundo Hilda Hilst. O Estado de o
Paulo, SP, 3 ago. 1975.
17
Leia-me, não me deixe morrer.
18
Acervo de HH no CEDAE, pasta 02, grupo vida pessoa 1.2: cartas 04
25
Faz-se mister que seja considerado, entretanto, que a decisão de Hilst em exercitar
outras formas de comunicação literária não pode ser explicada simplesmente pelo seu desejo
de ser lida. Até mesmo porque ela continua instigante e impactante com suas indagações
desconcertantes e seus temas sérios: Deus, amor, morte, sagrado e o próprio ato de escrever.
Em vários trechos dos seus livros pornográficos, chega mesmo a ironizar a falta de
conhecimento do leitor e a desafiá-lo:
IX
(Se você for PhD, leia até o fim. Seo, pule esta.) Faça um buq de
orelhas. É fácil. Peça apenas uma a cada um de seus dez amigos íntimos.
Diga-lhes que é para uma causa nobre. Se perguntarem qual causa (não
confundir com Cáucaso, é outra coisa), diga que você precisa mandar o
buquê para tua velha e querida preceptora inglesa (quando você tinha quinze
anos, lembra-se?), que arrancou as tuas duas porque você insistiu
inquebrantável durante doze horas seguidas que aquela primeira frase do
discurso de Marco Antonio para o povão, era na “tuatradução “Empresta-
me tuas orelhas”. Todos concordarão, acredite, com o teu pedido. Ainda
mais porque todo mundo sabe que “Lend me your ears” quer dizer isso
mesmo (HILST, 2002, p. 51).
Como se pode perceber neste trecho de Contos d’escárnio Textos grotescos,
Hilst tem uma atitude nem um pouco aconselhável a quem deseja apenas conquistar leitores, o
que prova que ela não fez concessões. Continuando a sua subversão, publica, em 1992, o livro
Bufólicas, no qual satiriza os contos de fadas.
Nesse mesmo ano, lança o livro de poemas Do Desejo e começa sua atividade de
cronista colaborando com o jornal Correio Popular de Campinas-SP. Apesar de continuar a
reclamar da falta do reconhecimento do público, a crítica continua a contemplá-la com mais
prêmios. Em 1993, leva para a sua coleção outro Jabuti, agora por um livro em prosa, Rútilo
Nada. Meia década depois, publica Cascos e Carícias que apresenta suas crônicas reunidas.
Encerra as suas publicões em 1999 com Do amor, uma antologia poética com poemas
escolhidos por ela própria. Após esse livro, have os relançamentos promovidos pela
editora Globo que reeditou sua obra completa a partir do ano de 2001, o que possibilitou a
difusão de seus livros por todo o país, antes apenas lançados por editoras menores e sem
muito poder de distribuição.
Além de todos esses gêneros por ela trabalhados, ainda houve composições suas
que inspiraram duas músicas de Adoniram Barbosa: Quando te achei e Quando tu passas por
mim (1960). Seu primo e compositor, Jo Antônio Rezende de Almeida Prado, também
26
inspirado em sua obra, Trovas de muito amor para um amado senhor, compõe A minha voz é
nobre (1964) e Zeca Baleiro lança, pelo seu selo Saravá Discos, o CD Ode Descontínua e
Remota para Flauta e Oboé de Ariana para Dionísio com dez poemas, retirados de uma
parte homônima do livro Júbilo, memória, noviciado da paixão, musicados por ele.
Existem documentários inspirados na vida e na obra de Hilst: Eu lambo, tu
lambes, Lori Lamby-Escritos Obscenos de Hilda Hilst, produzido por Caroline Almeida,
Celso Barbin e Márcio Razuk e Simplesmente Hilda de Ricardo Dias Picchi. Ainda há o curta
O Caderno Rosa Lori Lamby de Sung Sfai, uma adaptação cinematográfica do livro de ficção
homônimo de Hilst. Acrescente-se a isso que ela soma aos prêmios já ganhados, mais dois: o
Prêmio Moinho Santista pelo conjunto de sua obra poética e, novamente, o Grande Prêmio da
Crítica da APCA agora pela reedição de sua obra pela Editora Globo, ambos em 2002.
Ao todo, conquistou nove premiações ao longo de sua carreira literária e foi
sempre elogiada por críticos como, além dos citados Nely Novaes Coelho e Alcir Pécora,
Léo Gilson Ribeiro que escreveu muito sobre sua obra no jornal O Estado de São Paulo e
Jorge Coli que escreveu sobre ela no jornal Folha de São Paulo. Não se pode omitir Anatol
Rosenfeld que muito frisou a capacidade de Hilda Hilst em trabalhar todos os gêneros,
chegando a escrever que:
É raro encontrar no Brasil e no mundo escritores, ainda mais neste tempo de
especializações, que experimentam cultivar os três neros fundamentais de
literatura a poesia lírica, a dramaturgia e a prosa narrativa alcançando
resultados notáveis nos três campos. A este grupo pequeno pertence Hilda
Hilst.
19
Uma das comprovações dessa versatilidade é o fato de suas composições narrativa
e poética integrarem duas antologias organizadas por Italo Moriconi: Os cem melhores contos
do século XX (2000) e Os cem melhores poemas do século XX (2001) e de suas peças, além de
serem encenadas, terem sido publicadas no ano de 2000 pela editora Nankim Editorial, sob o
título Teatro Reunido.
Carlos Drummond de Andrade a homenageia, em 31 de dezembro de 1952, com
um poema no qual a chama de estrela de Aldebarã, que, também chamada de Alfa Tauri, é a
estrela mais brilhante da constelação Taurus:
19
ROSENFELD, Anatol. Hilda Hilst: Poeta, Narradora, Dramaturga. <disponível em
http://www.angelfire.com/ri/casadosol/criticaar.html> Acesso em 02 agosto 2008.
27
Abro a “Folha da Manhã”.
Por entre espécies grãfinas,
emerge de musselinas
Hilda, estrela Aldebarã.
Tanto vestido assinado
cobre e recobre de vez
sua preclara nudez!
Me sinto mui perturbado.
Hilda girando em boates,
Hilda fazendo chacrinha,
Hilda dos outros, não minha...
(Coração que tanto bates!)
Mas chega o Natal e chama
à ordem Hilda: não vês
que nesses teus giroflês
esqueces quem tanto te ama?
Então Hilda, que é sabi(l)da
usa sua arma secreta:
um beijo em Morse ao poeta.
Mas não me tapeias, Hilda.
Esclareçamos o assunto.
Nada de beijo postal.
No Distrito Federal
o beijo é na boca - e junto. (grifo nosso)
Assim muito homenageada, publicada, finalmente, por uma grande editora e
sendo objeto de dissertações e teses, Hilst, apesar de considerar seu reconhecimento tardio,
considerou sua tarefa cumprida. Nas palavras de Mora Fuentes:
Quando ela sentiu que já tinha escrito tudo, que não ia se apaixonar mais por
ninguém nem por nenhuma idéia, ela entrou em uma espécie de desespero.
Ela se sentia vazia, quando ela escrevia Estar sendo ter sido, ela me
telefonou e disse que não escreveria mais. E foi verdade. Eu escrevi tudo
o que eu tinha para escrever”, comou a dizer isso e realmente nunca mais
escreveu. “Não tenho mais nada para dizer”. Como tinha consciência da
tarefa que tinha que cumprir, ela percebeu quando tinha terminado a tarefa e
não escreveu mais.
20
A Estrela de Aldebarã, após 1997, passa a se dedicar apenas à leitura e se
dispensa da tarefa de escrever. Afirmava: “Dever cumprido. Fiz o que pude” (1999, p. 41) e
lia a fim de se preparar para outra dimensão, para o planeta Marduk
21
em que ela dizia
acreditar onde já estariam Einstein, Paracelso e Julio Verne e para onde ela também iria ao
morrer: “Eu às vezes penso que quando chegar a Marduk, um planeta que está encostado na
20
BUENO, Alexei, op. cit., p. 16
21
Marduk, mitologicamente, é o deus da agricultura para os babilônios que “personificava a ação fertilizante das
águas” (JULIEN, 2002, p. 242).
28
Terra em n dimensões, onde estão fazendo transcomunicação, não sei se vou encontrar com
papai e mamãe” (Id, Ibid, p. 41).
Essa maneira mais sutil e tranqüila de falar da morte era uma forma de ela atenuar
o seu medo da morte “Tenho medo de morrer” (Ibid, p. 41) que foi uma das temáticas
mais constantes em seu versejar:
XXXII
Porque me fiz poeta?
Porque tu, morte, minha irmã,
No instante, no centro
De tudo o que vejo.
No mais que perfeito
No veio, no gozo
Colada entre eu e o outro.
No fosso
No nó de um íntimo laço
No hausto
No fogo, na minha hora fria.
Me fiz poeta
Porque à minha volta
Na humana idéia de um deus que não conheço
A ti, morte, minha irmã,
Te vejo (2003b, p. 60).
Dizem que o poeta é autor da sua vida e de sua morte. Hilst fez da sua vida uma
de suas grandes obras e no dia 04 de fevereiro de 2004, aos 73 anos, ela realiza a sua
passagem, seu último ato. Pornográfica ou santa; maldita ou abençoada; louca ou iluminada,
não se pode reduzir a literatura de Hilst a nenhum desses tulos. Morre, completando meio
século dedicado à tarefa quase religiosa de seu fazer literário, o qual, para ela, é algo “que
vem desse conflito entre a ordem que você quer e a desordem que você tem”
22
. Ou ainda em
sua resposta quando é perguntada por Caio Fernando Abreu sobre o que é literatura:
É o centro, a procura do centro. Fiquei toda a minha vida procurando esse
centro ou uma espécie de tranqüilidade – não uma tranqüilidade idiota, mas
uma certa tolerância com tudo o que me rodeia, com a condão de mortal,
de apodrecimento. Com o mínimo de dor. Ao mesmo tempo, você não sabe
definir aquele vírus que te toma, esse passional que você tem dentro o
22
in MENEZES, Cynara. São Paulo vê obsessões da poeta Hilda Hilst. Folha de São Paulo, São Paulo, 5 dez.
2000.
29
tempo inteiro. Eu acho que um determinado tipo de escritor tem esse
vírus.
23
Hilda Hilst, tomada por esse vírus, fez de sua vida um exemplo de
desprendimento em favor da poesia e de sua obra uma exaltação do poeta.
1.2 A obra hilstiana no contexto da contemporaneidade
Não se pode falar da lírica hilstiana sem contextuali-la em meio aos grandes
eventos históricos do século XX. Eles promoveram transformações mais rápidas que em
outros tempos em todas as áreas da sociedade. Houve uma revolução científica e tecnológica
nunca antes vista, e novas relações internacionais se formaram. Tais mudanças acabaram por
configurar uma nova ordem mundial com a qual escritores e artistas tiveram que conviver.
Antes mesmo da metade do século XX, fatos mundialmente importantes se
acumulavam: a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a Revolução Russa (1917), o crack da
bolsa de Nova Iorque (1929), a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Como efeito da
Segunda Guerra, deu-se o Tratado de Potsdam (1945), assinado por Harry Truman, Josef
Stalin e Winston Churchill, que dividiu Berlim e a Coréia, deixou o Japão sob ocupação
estadunidense e o Leste Europeu dominado pela União Soviética, o que acabou por
desencadear a bipolarização do mundo s-45 entre os blocos socialista e capitalista. Não se
pode deixar de citar também nesse mesmo ano a autorização de Truman para que o
bombardeio a Hiroshima e Nagasaki fosse realizado. Depois de tais fatos, a segunda metade
do século XX conviveu com a corrida tecnológica e armamentista promovida pelas duas
superpotências mundiais: EUA e URSS. O século XX ainda assistiu à China crescer enquanto
potência comunista e o declínio do bloco soviético, marcando o fim da bipolarização mundial
que teve como grandes marcos a queda, em 1989, do muro de Berlim e, dois anos depois, o
fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, o que permitiu a supremacia do
capitalismo no mundo. A esses fatos podemos ainda acrescentar outros que ocorrerem no
Brasil que, ao longo do século XX, viveu a época da República Velha (1889-1930), o Golpe
23
ABREU, Caio Fernando. “Deus pode ser um flamejante sorvete de cereja”. Leia, o Paulo, jan. 1987.
Entrevista
30
de 1930, o Estado Novo (1937-1945), o Golpe Militar de 1964, Diretas Já (1984) e a
Constituição de 1988 que legitimou a implantação da democracia brasileira.
Todos esses acontecimentos hisricos que formaram o século passado
promoveram transformações políticas, econômicas e sociais, que, como bem observa Eric
Hobsbawm em seu livro Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991 (1997), deixaram
os seus reflexos na arte e na cultura.
Como Hilda Hilst nasce em 1930, ela pôde conviver com as conseqüências diretas
do fim da Belle Époque, com as rupturas nos valores familiares, religiosos e culturais, com as
mudanças de mentalidade com relação ao progresso, e o clima de incerteza acompanhado do
pessimismo que marcou a primeira metade do século XX. O marxismo proveniente do século
XIX muito influenciou a filosofia do século XX como aos filósofos e cientistas sociais da
Escola de Frankfurt, Theodor Adorno, Walter Benjamim, Max Horkheimer, entre outros. A
teoria da relatividade de Einstein que se contrapõe à concepção positivista, prevalecente na
segunda metade do século XIX, faz com que o racionalismo ceda espaço para o relativismo.
Ferdinand Suassure, com seu Curso de Lingüística Geral, flexibilizou as regras da gramática
tradicional, ao trabalhar a língua descritivamente. Na Antropologia, esse relativismo também
passa a ser encontrado a partir da idéia Franz Boas de que cada cultura possui uma história
particular, o que fez suscitar um relativismo cultural. Acrescentem-se a isso os impactos
gerados nas artes em geral e na literatura em particular pelas concepções da Psicanálise, com
o seu conceito de impulsos inconscientes interferindo no comportamento humano e,
sobretudo, seu estudo dos impulsos sexuais. Nas artes, o Surrealismo é uma de suas principais
conseqüências, nele o artista passa a explorar o inconsciente humano. Outras vanguardas
também emergem relativizando os cânones e mudando as concepções artísticas futuras. Ainda
houve a emancipação feminina suscitada pela menor influência da Igreja e pelo advento do
trabalho feminino. Ademais, o fenômeno do mass media com a propagação da cultura de
massa: o advento do rádio, do cinema, a intensificação da imprensa. Sem contar a
massificação da vida urbana com o surgimento de grandes centros urbanos e o estado de
anomia social neles vigente (termo cunhado por Émile Durkheim em seu livro O Suicídio,
1897).
As personalidades que muito foram mencionadas por Hilst como seus grandes
influenciadores se encontram justamente nessa época, incorporando tais transformações
socioeconômicas, artísticas e culturais que tanto alteraram os valores burgueses vigentes:
James Joyce, Ernest Becker, Jung, Jorge de Lima, Bertrand Russel, Rosa Luxemburgo,
31
Simone Weil, Gustav Mahler, Albert Camus, Wittgenstein, Heidegger. Muitos deles, não por
causa exclusiva de suas produções, mas sim, e principalmente, devido a sua biografia, foram
muito admirados e citados por Hilst. Pode-se acrescentar entre esses nomes o do escritor e
poeta grego referido, Nikos Kazantzakis, a quem Hilst dedica o livro Trajetória Poética do
ser, confessando sua influência por meio da seguinte declaração: “A Nikos Kazantzakis que
me fortaleceu em amor” (2002b, p. 39).
Assim como Kazantzakis, outros pensadores e escritores supracitados também
foram mencionados em livros de Hilst através de dedicatórias, como Ernest Becker a quem
dedica diversos livros entre os quais Cantares de Perda e Predileção (1980) e Da morte.
Odes mínimas (1980), ou por meio de epígrafes como a frase de Simone Weil citada no livro
Poemas malditos, gozosos e devotos (1984): “Pensar Deus é apenas uma certa forma de
pensar o mundo” (in HILST, 2005, p. 7).
Para Hilst, tais personalidades foram exemplos de pessoas que souberam oferecer
sua vida em função do outro. Em entrevista cedida para o jornalista e escritor Caio Fernando
Abreu, ela revela:
Eu penso, como é que nascem determinadas personalidades? Por que
mulheres e homens fantásticos ficaram fantásticos? Simone Weil, Rosa de
Luxemburgo, Guevara, Marx pessoas que fizeram um sacrifício absoluto
em prol da vida do outro – e Theresa D’ávila, Terezinha de Lisieux, os
santos também. Que vírus é esse? [...] Eu acho que como existem os vírus do
corpo, existem também os vírus do espírito.
24
Na mesma entrevista, a poeta deixa entender que também é uma dessas pessoas
fantásticas a quem tal vírus contaminou com o desprendimento em favor do outro: “Qual é o
meu negócio? Escrever. E escrever sobre o que eu acredito, eu estou absolutamente
preocupada com todo tipo de emoções dentro do homem. Com a alma (1987). Essa
abnegação, esse sacrifício voluntário pelo outro, ela atribui não a si, mas aos poetas como
um todo, à poesia e à arte em geral (esse aspecto altruístico do fazer poético será trabalhado
no próximo capítulo).
Ainda na entrevista Deus pode ser um flamejante sorvete de cereja concedida a
Fernando Abreu em 1987, Hilst comprova a relação entre o seu escrever e os acontecimentos
políticos e sociais com os quais conviveu e informa: “Então, a partir daquela convulsão social
24
ABREU, Caio Fernando, op. cit, p. 28
32
dos anos 67, 68 aqui no Brasil, comecei a sentir essa premência de me expressar para o
outro.
Ao dizer “convulsão social dos anos 67, 68”, Hilst se referiu a dois momentos
importantes do Regime Militar Brasileiro (1964-1985), na época sob o comando de Costa e
Silva. O primeiro, em 1967, quando foi publicada a nova Constituição do Brasil que
institucionalizou a ditadura e a primeira Lei de Segurança Nacional que impôs rigorosas
restrições às liberdades individuais. Depois, em 1968, outro momento importante: a primeira
greve enfrentada pelo governo militar como uma significativa reação ao regime e a prisão e
exílio de artistas, entre os quais Caetano Veloso e Gilberto Gil, por subversão. Isso em
decorrência da implantação do AI 5, Ato Institucional 05, o mais autoritário de todos os
Atos Institucionais que vigorou até 1978.
Alguns anos depois de tais acontecimentos políticos, ainda em tempos de ditadura
militar e de AI5, Hilst compõe:
V
de cima do palanque
de cima da alta poltrona estofada
de cima da rampa
olhar de cima
LÍDERES, o povo
o é paisagem
Nem mansa geografia
Para a voragem
Do vosso olho.
POVO, POLVO
UM DIA.
O povo não é o rio
De mínimas águas
Sempre iguais.
Mais fundo, mais além
E por onde navegais
Uma nova canção
De um novo mundo.
E sem sorrir
Vos digo:
O povo não é
Esse pretenso ovo
Que fingis alisar,
Essa superfície
Que jamais castiga
Vossos dedos furtivos.
POVO. POLVO.
33
LÚCIDA VIGÍLIA.
UM DIA (2003, p. 111-112).
Nesse poema, o eu-lírico coloca-se ao lado do povo contra os deres a quem se
dirige. Esses líderes, sempre em uma posição superior (palanque, alta poltrona, rampa, olhar
de cima), são os políticos que, agindo como ditadores, verdadeiros déspotas, submetem o
povo a seus mandos por subestimar a sua capacidade de reação. Hilst se apropria do tom de
discurso de palanque e, como se o poeta estivesse a esbravejar com uma eloqüência típica da
retórica de políticos em comícios, afiança que o povo é capaz de reagir à opressão daqueles
que devoram (“voragem de vossos olhos”), enganam (“finges alisar”) e furtam o próprio povo
(“vossos dedos furtivos”).
O vocábulo líderes aparece grafado com letras maiúsculas, o que intensifica a
força com a qual ele deve ser pronunciado, atribuindo ainda mais vigor ao estilo de oratória
que o poema apresenta. O mesmo recurso é utilizado em outros versos com os vocábulos povo
e polvo.
O Sermão de Santo Antonio, conhecido como Sermão aos peixes, de Pe. Antonio
Vieira traz também a figura do polvo. Nesse sermão alegórico, esse molusco tentacular
representa um vício dos colonos portugueses a ser censurado: a hipocrisia. Vieira chega a
afirmar que o polvo é o maior traidor do mar (1995). no poema de Hilst, polvo, além de
formar uma assonância com a palavra povo, é associado a uma idéia positiva uma vez que se
pode entender que o povo um dia será polvo (“POVO, POLVO/UM DIA”) e, assim, reagirá.
Assim como os polvos não se entregam a seus predadores, utilizando vários recursos para
manter a sua sobrevivência: camuflam-se, liberam tinta de suas glândulas e usam seus oito
tenculos, pode-se deduzir que o povo-polvo é aquele que deve desenvolver seus mecanismos
de defesa, ou seja, aquele que vai se desvelar e instituir um novo mundo, destituído desses
velhos deres.
Ao expressar o pensamento de que o povo não é uma simples massa de manobra
(“mansa geografia”), e que é possível sair do estado de letargia no qual se encontra para um
estado de vigília, Hilst apresenta um poema que refrata uma realidade vivenciada ou
observada e que pode ser também transcendida. Não se pode olvidar que a arte propõe um
conhecimento do mundo, uma nova maneira de vê-lo: “A poesia nos ensina a ver como se
víssemos pela primeira vez” (MOISÉS, 2007, p. 14). Assim, ela exorta uma reação ao
conformismo e à passividade através de sua literatura.
34
Hilst, no entanto, não faz de seus poemas uma obra panfletária, engajada em
causas partidárias ou que desfralda bandeiras libertárias, mas deixa revelar em seu texto os
conflitos pelos quais passa a sociedade, mostra a opressão do homem pelo homem e incita
uma resposta a esse estado de coisas. Hilst, dessa forma, prepara uma canção, como diria
Drummond no seu poema Canção Amiga, que faz “acordar os homens” (2005, p. 188).
Esse comportamento de inquietação diante da realidade demonstrado pelo sujeito
poético sustenta o que assegurou o crítico brasileiro Pedro Lyra:
O autor é, antes de mais nada, um indivíduo histórico concreto, nascido
numa determinada época, numa determinada sociedade, com uma estrutura
econômica, uma organização política, um sistema jurídico que condicionam
sua existência desde antes do seu nascimento e aos quais ele não pode fugir.
[...]. Noutras palavras: ele tem que agir sobre a sua sociedade com os
instrumentos fornecidos por essa própria sociedade, ou seja, por seu
momento histórico (1980, p. 27).
1.2.1 O contexto literário
Tendo situado historicamente Hilst e sua obra, cabe situá-las literariamente. Com
início de sua produção literária em 1950, é cronologicamente estabelecida entre as escritoras:
Marly Oliveira, Renata Pallottini, Lupe Cotrim. Como afirma Alfredo Bosi em seu conhecido
História Concisa da Literatura Brasileira sobre o livro Panorama da Nova Poesia brasileira
organizado por Fernando Ferreira de Loanda: “aos nomes do Panorama deve-se acrescentar
outros, também representativos de tendências formalistas e, lato sensu, neo-simbolistas,
difusas a partir de 45: Lupe Cotrim Garaude, Hilda Hilst, Renata Pallottini, Antonio Rangel
Bandeira [...]” (2001, p.465). Continuando sua análise acerca dos escritores que publicaram a
partir de 1950, Bosi completa:
Trabalhando uma linguagem em boa parte alheia aos programas
experimentalistas, têm escrito desde as décadas de 50 e 60 alguns poetas
diferentes entre si, mas aproximáveis pela sua concepção de lírica entre
moderna e tradicional. Neles convive o discurso metrificado e o imaginário
romântico ou surrealista com a presença hoje quase indefectível, de uma
forte autoconsciência literária. Muitos de seus textos acordam em nós ecos
musicais de Cecília Meireles, de Jorge de Lima, de Vinicius de Moraes,
cortados por uma ou outra nota mais ríspida de Drummond ou de João
Cabral. Vistos por um ângulo estreito da sobrevivência de certos hábitos
35
estilísticos, o seu ponto de referência poderia ser ainda a poética da geração
de 45. Mas prefiro ver neles o nosso veio existencialista em poesia (Ibid, p.
485).
Em 1966, o Canto terceiro, XI de Balada do Festival integra um livro
denominado Antologia Poética da Geração de 45 pela Editora Clube do Livro organizado por
Milton de Goddoy Campos. Apesar de integrar essa coletânea que a enquadra na Geração de
Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Geir Campos, Lêdo Ivo, entre outros, pode-se afirmar que
Hilda Hilst não se filia esteticamente a nenhum grupo e, se for necessário uma classificação
para fins didáticos, é mais oportuno situá-la entre o que se pode denominar Geração de 50
que o constituiu uma escola literária propriamente dita, mas que permite fixá-la, pelo
menos, cronologicamente entre os escritores e poetas nascidos na década de 30 que
começaram a publicar a partir da década de 50.
Hilst conviveu e foi amiga de alguns dos nomes que integram a Geração de 50
como Lupe Cotrim autora de O poeta e o mundo (1964). E foi de Renata Pallottini, também
uma das componentes dessa geração, que Hilst extraiu o mote para o livro Júbilo, memória,
noviciado da paixão. Poeta, dramaturga que estreou na literatura em 1952 com o livro
Acalanto, Pallottini compôs os seguintes versos que serviram de epígrafe geral para o livro
JMNP
25
:
Deliberei amar. Corto em pedaços
o músculo sangrento, alheio e triste
a quem por isso culpo. Irmão, um dia
aprenderemos a entender a entranha.
E nunca mais seremos diferentes (in HILST, 2003, p. 07).
Este pequeno trecho sintetiza quase que todos os elementos encontrados nas sete
partes de JMNP. Isso comprova a afirmação de Bosi transcrita anteriormente de que, apesar
das diferenças, há traços que unem os autores da década de 1950 e 1960. Neste caso
específico, a idéia do amor deliberado, do sacrifício pelo amor, o diálogo com o outro a quem
se chama de Irmão e a quem se refere com tom professoral e sábio de quem compreende
acima deste e por isso lhe indica caminhos e atitudes de salvação, a exaltação da entranha, ao
de dentro em detrimento ao exterior, a busca por uma sociedade mais harmônica, a procura
pela unidade perdida.
25
A partir desta página o livro Júbilo, memória, noviciado da paixão será mencionado através da sigla JMNP
36
Enquanto Pallottini anuncia “Irmão, um dia/ aprenderemos a entender a entranha”;
Hilst traz no poema XIII
26
de Poemas aos homens de nosso tempo (parte de JMNP) a
pergunta: “Enquanto tu caminhas pelas ruas. Te pergunto:/ E a entranha?” (Ibid, p.122) ou,
ainda nessa mesma parte, o poema XVI
27
no qual HH
28
se irmana aos homens de seu tempo e
os chama de “Irmãos do meu momento” (Ibid, p.125).
O diálogo do poeta com o outro que é o leitor, o amado, a sociedade, o coloca
como um Cristo: irmão de todos, mas, acima de tudo, o Salvador. Logo, superior e necessário
a todos a quem se direciona. A análise sobre o caráter soteriológico do fazer poético será
trabalhada de forma mais específica nos próximos capítulos desta dissertação.
A essa epígrafe se pode também acrescentar outra que introduz a primeira parte de
JMNP: “Love, Love, my season”
29
, verso retirado do poema The Couries do livro Ariel
30
da
poeta estadunidense Sylvia Plath autora do livro The Colossus (1960), também
contemporânea de HH. As citações epigráficas não apresentam apenas uma intertextualidade
acintosa como também revelam as leituras daqueles que as utilizam, o que vem respaldar a
idéia de que HH estava atenta aos autores de sua época.
Retomando Bosi e sua afirmação de que os autores das décadas de 50 e 60 do
século passado tinham uma concepção de lírica entre a moderna e a tradicional, pode-se
afirmar que, na lírica hilstiana, essa teoria se confirma, como bem examinou Pécora:
a interlocução que Hilda manm com a tradição poética está repassada,
mesmo que jamais tematizada, por uma questão que tinha assombrado a
geração de 45: as possibilidades de retomar uma dicção elevada para a
poesia brasileira, batida tanto pela informalidade do primeiro modernismo,
quanto pelo núcleo duro do segundo (in HILST, 2002, p. 7).
HH ora segue a linhagem de um lirismo enquanto revelação que a aproxima de
Jorge de Lima e de Rainer Maria Rilke, como em Sete cantos do poeta para o anjo (1962) ou
em Trajetória Poética do ser (1966), ora uma poesia que a aproxima da tradição ibérica das
cantigas trovadorescas como em Trovas de muito amor para meu amado senhor (1960).
Possui obras que também sugerem um amor petrarquista e camoniano como nos Sonetos que
não são que integram o livro Roteiro de Silêncio (1959), outras que fazem lembrar as odes
26
O poema mencionado será analisado integralmente no capítulo III
27
O poema mencionado será analisado integralmente no capítulo III
28
A partir desse ponto, Hilda Hilst será citada apenas pelas suas iniciais HH
29
“Amor, amor, minha estação”, poema na íntegra no ANEXO C
30
PLATH, Sylvia. Ariel. Tradução Rodrigo Garcia Lopes, Maria Cristina Lenz de Macedo. Campinas, SP: Verus
Editora, 2007
37
árcades. Por vezes, funde todas essas vertentes como em JMNP no qual ainda demonstra seu
conhecimento da tradição poética, remetendo o leitor às obras de Catulo e Safo. Mas sua
dicção poética não copia, e sim emula essas influências várias.
Com um texto lírico que bebe em tantas fontes literárias do passado e do presente,
a obra de HH ganhou uma peculiaridade que não permite ser encaixada nos movimentos que
existiram durante sua trajetória literária que se inicia em 1950 e se encerra em 1999: o
Concretismo (1956), o Neoconcretismo (1959), a Poesia Práxis (1962), o Poema Processo
(1967) ou externamente a Literatura Beat que tomou conta dos EUA nos anos 50. Não se
pode inscrevê-la em nenhum deles sem ser injusto e simplista ou, até mesmo, incoerente. Seu
lirismo o aderiu a modismos. Nem arcaizante nem modernista, ela traz em suas
composições o ressurgir do discurso poético desprezado pelos concretistas e uma poética
universal que a põe pxima de poetas irrotuláveis como João Cabral do Melo Neto.
O que intensifica a sua qualidade de não ser passível a tulos é a sua
versatilidade que lhe permitiu promover variações em um mesmo gênero e produzir em todos
os gêneros literários. À variedade de influências, somou-se uma pluralidade de gêneros. A
isso Alcir Pécora denominou anarquia de gêneros:
Um desses aspectos mais intrigantes diz respeito à anarquia dos gêneros
sistematicamente produzida nos textos de Hilda Hilst de qualquer gênero.
Em primeiro lugar, cabe considerar que os textos de Hilda se efetuam, em
larga medida, como exercícios de estilo, isto é, eles fazem o que lhes é
próprio com base no emprego de matrizes canônicas dos diferentes gêneros
da tradição, como, por exemplo, os cantares bíblicos, a cantiga galaico-
portuguesa, a canção petrarquista, a poesia mística espanhola, o idílio
árcade, a novela epistolar libertina etc. Em segundo lugar, é fácil perceber
que essa imitação à antiga jamais se pratica com purismo arqueológico, mas,
bem ao contrário, submetida à mediação de autores decisivos do culo XX:
a imagética sublime de Rilke; o fluxo de consciência de Joyce, a cena
minimalista de Beckett, o sensacionismo de Pessoa, apenas para referir à
quadra de escritores internacionais mais fácil de reconhecer em seus
escritos.
31
A obra hilstiana corrobora tal asseveração porque, além de Hilst ser polivalente ao
escrever poemas, contos, novelas, crônicas, peças e ainda inspirar sicas e ter textos
musicados (como foi observado no sub-capítulo anterior), mistura gêneros num mesmo livro.
No entanto, nesse caso, o termo “anarquia” (an = sem; arché = governo) não deve ser
interpretado no sentido pejorativo de desordem, de ausência de hierarquia. Vale repetir que
31
PÉCORA, Alcir. Hilda Hilst: call for papers. 2005. Disponível em <http://www.germina
literatura.com.br/enc_pecora_ago5.htm>. Acesso em 18 janeiro 2008.
38
Pécora escreve: “anarquia de gêneros sistematicamente produzida”. Sendo sistemática,
obedece a determinada ordem, a determinado método. Essa anarquia hilstiana o gera uma
confusão textual, e sim uma ruptura dos limites da classificação didática dos gêneros. A
anarquia hilstiana ocorre à revelia de definições, mas de forma deliberada.
No livro Cascos e Carícias, que foi formado a partir da compilação de suas
crônicas publicadas de 1992 a 1995 no Caderno C do Correio Popular de Campinas, HH, sem
a máscara de um narrador ou de um eu-lírico, explora essa relação de gêneros. A autora insere
trechos de seus poemas ou mesmo poemas na íntegra em suas crônicas e também textos de
suas ficções. Como em Paixões e scaras (2007, p. 177), crônica que apresenta na íntegra
em seu final o poema VI
32
de Poemas aos homens de nosso tempo.
Ainda há poemas apresentados no meio de crônicas, exigindo uma mudança
repentina da leitura mais leve da crônica para outra mais densa do poema, como em SOS para
todos nós! SOS para os animais (Ibid, p. 180) na qual o poema IX, novamente de Poemas aos
homens de nosso tempo, é colocado dentro da crônica. Na crônica Tamo numa boa, são
colocados trechos de sua prosa O Caderno Rosa de Lori Lamby (1990).
Pode-se dizer que as crônicas, então, exemplificam a anarquia de gêneros.
Todavia, mais que em Casco e Carícias, esse recurso se repete em diversos outros livros. No
mencionado O Caderno Rosa de Lori Lamby, essa profusão de gêneros se de forma menos
demarcada e, por isso, mais anárquica como atesta Pécora na apresentação desse mesmo
livro:
Como outros livros de Hilst, O Caderno Rosa de Lori Lamby se preocupa
com a imitação de gêneros da tradição, combinando-os todos de maneira
improvável ou inusitada na mesma narrativa. Assim, n’O caderno, cuja base
seria um diário de uma menina, juntam-se um conjunto de cartas, contos e
relatos interpostos [...], alguma discussão de livros (na qual os modelos de
Lawrence, Miller etc. são debatidos e recusados), poesia clássica, debates de
questões estilísticas e lexicológicas etc (in HILST, 2005b, p. 10).
Não se deve perder de vista, entretanto, que, por mais que HH tenha utilizado
formas diferentes, os assuntos por ela abordados são reincidentes, o que garante a sua obra
uma unidade temática. Toda reflexão sobre a morte, o sagrado, o amor, os homens em
sociedade e a própria poesia estão presentes de forma recidiva em seus textos, sejam eles
líricos, dramáticos ou narrativos.
32
O poema na íntegra no ANEXO C
39
O gênero que se sobrepõe em todo universo criativo hilstiano, todavia, é o lírico.
Não porque a maioria de seus livros é de poemas (19 ao todo contra 12 livros em prosa),
mas pela presença constante desse gênero até mesmo nos livros de ficção e no seu teatro.
Por ser mais subjetivo e utilizar uma linguagem predominantemente metafórica,
os textos líricos, supostamente, exigem mais atenção e dedicação do leitor. Para Italo
Moriconi: Em princípio, imagina-se que poetas, assim como os leitores de poesia, sejam
indivíduos singulares, atacados por uma espécie de mania, dizem hoje rara e inatual: mania de
ler literatura, mania de cultivar letras” (2002, p. 7).
A linguagem da poesia lança mão de diversos aspectos dos vocábulos: fonológico,
morfológico, sintático e semântico. O poema prioriza o sentido conotativo das palavras, mais
sugere que indica, incitando o leitor a realizar associações que escapam do sentido literal e
entram no campo das associações insinuadas pelo contexto. Aristóteles, em sua primordial
Poética, já estabelecia a relação entre a poesia e a metáfora: “Metáfora é a transferência do
nome de uma coisa para outra, ou do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou
de uma espécie para a outra, ou por analogia” (2000, p. 63-64). Mais à frente acrescenta:
“Retiram da linguagem o caráter vulgar, elevando-a acima do comum” (Ibid, p. 65). Assim, a
linguagem poética é essencialmente metafórica; e o poema, um enigma a ser decifrado. Tal
conclusão justificaria a idéia de que o leitor de poesia é, supostamente, mais exigido que os
demais leitores uma vez que ele se depara com uma linguagem subjetiva que exigidele
sensibilidade e intelectualidade mais acuradas.
As experiências de Hilst em outros gêneros, por conseguinte, devem-se não ao
seu próprio talento em desempenhá-los, mas também a uma tentativa de ser mais direta, logo,
mais compreendida, mais lida (como ocorre com sua experiência na literatura pornográfica
como visto no sub-capítulo anterior). Já que a poesia em si é um tipo de texto mais indireto e
as suas poesias em especial traziam agregados a si os adjetivos de hermética e de inacessível,
ela tentaria no drama e na ficção uma possibilidade instantânea de comunicação. No texto
Palavra, braço do abismo que toca a lucidez, publicado no jornal O Estado de São Paulo
(1984), deixa-se claro isso ao declarar sobre o drama hilstiano que “O teatro surge da
emergência de se comunicar, compulsiva e imediatamente com o outro”.
33
Com isso, pode-se deduzir que suas experiências em outros gêneros por mais
que tenham sido também resultado de sua polivalência – tiveram o intuito de retomar temas já
presentes em sua lírica, porém de forma diferente, mais direta e com graus de complexidade
33
Palavra, braço do abismo que toca a lucidez. O Estado de São Paulo, São Paulo, 7 out.1984.
40
distintos para atingir um público diversificado, isto é, uma maneira de ampliar seus
interlocutores, os quais, a seu ver, eram insuficientes. As crônicas novamente podem ser
mencionadas por comprovarem isso. Muitas vezes, elas o utilizadas para divulgar seus
outros trabalhos literários e, conseqüentemente, os temas que eles suscitam, como ela mesma
declarara para a revista Cult:
CULT: Como foi a experiência de escrever crônicas, falar do dia-a-dia, você
que é uma autora preocupada com a noção de Deus e a idéia da morte? Foi
muito diferente de escrever ficção e poesia?
HH: Foi muito diferente. Eu até aproveitei para divulgar o meu trabalho,
voltar aos meus textos. É uma necessidade que eu tenho. Quando eu estava
de saco bem cheio, não tinha nada para falar, eu punha trechos de meus
textos (in ZENI, 1998, p. 8).
Ao transportar textos de livros líricos, que transmitem mais seriedade e
distanciamento, e colocá-los em um jornal diário, veículo direcionado às massas que atinge o
leitor médio alfabetizado, mas não necessariamente um leitor de textos literários, muito
menos um leitor específico de Hilst, ela leva suas produções ao leitor, em vez de ficar
aguardando que ele vá ao encontro de seus livros.
Essa estratégia de, mesmo utilizando outros tipos de texto, referenciar sempre seu
fazer lírico e seus temas pode ser demonstrada em diversas outras crônicas e em outros livros
em prosa seus. A obscena senhora D (1982), livro em prosa de Hilst, inicia-se com o seguinte
poema:
Para poder morrer
Guardo insultos e agulhas
Entre as sedas do luto.
Para poder morrer
Desarmo as armadilhas
Me estendo entre as paredes
Derruídas
Para poder morrer
Visto as cambraias
E apascento os olhos
Para novas vidas.
Para poder morrer apetecida
Me cubro de promessas
Da memória
Porque assim é preciso
Para que tu vivas (2001, p. 7).
41
Esse poema foi colocado na íntegra como uma espécie de epígrafe do referido
livro, seu tema, a morte, é assunto recorrente no conjunto da obra hilstiana. Em 1968, HH
escreve a peça Aves da Noite na qual, novamente, reflexões sobre a morte são lançadas:
[...]
Estudante (Sorrindo) - A carne se dissolvera. (Pausa) A carne... se
dissolvera.
Carcereiro - Você está bem certo?
Estudante - Sim. Dentro dos tubos só ficava um fluido.
Maximilian (Com firmeza) - Mas “nós” temos alma
34
.
Além disso, ela dedica um livro integralmente para tratar desse tema, o citado
Da morte. Odes mínimas. o inúmeros poemas, ficções e dramas que contêm essa mesma
temática. Mas, não se deseja realizar neste estudo uma análise estreita de suas obras como
mera divulgação de seus poemas e de seus temas. HH pode tê-los utilizado, por vezes, com
esse fim, mas tanto às suas crônicas quanto ao seu teatro e à sua prosa foi atribuída a idéia de
complexidade formal, filofica e temática já conferida a suas composições poéticas por causa
de suas indagações acerca da vida, da morte, de Deus, do Sagrado, do homem, do poeta.
Como ela mesma constata:
As pessoas estão lá, vivendo sua vida bem arrumada, com filhos,
compromissos e de repente venho eu e começo a fazer várias perguntas
desconcertantes. Kierkegaard dizia “viver é sentir-se perdido”, por que eu
não posso dizer isso hoje? Eu acho que talvez o leitor não tenha a couraça
para enfrentar esse tipo de questionamento.
35
Essa dificuldade com os assuntos trabalhados por HH e os modos de eles serem
apresentados em seus textos, além de ser reconhecida parcialmente pela própria poeta, é,
inclusive, reafirmada, por alguns de seus críticos, a tal ponto que se transformou numa espécie
de lenda que cercou sua obra. Jornalista e admirador confesso de HH, Léo Gilson Ribeiro,
que muito a divulgou nos jornais paulistas, ao apresentar o livro Ficções (1997), afirma: “ela
escreveu, em português, o equivalente a um Finnegan's Wake de Joyce, ou seja: escreveu um
34
HILST, Hilda. Aves da noite. Disponível em <http://www.hildahilst.com.br/obras.php? categoria=6&id=27>
Acesso em 03 abril 2009
35
Abreu, op. Cit., p. 28
42
absurdo palimpsesto mesopotâmico.
36
James Joyce, conhecido como um autor intraduzível; o
palimpsesto, um pergaminho reescrito rias vezes, o que dificulta a sua compreensão.
Comparações como essa apenas intensificam a obscuridade imputada às
produções hilstianas; obscuridade essa que não deve ser encontrada por aquele predisposto a
uma segunda, a uma terceira leitura mais atenta. Isso a fez declarar: “Eu não entendo nada de
Crítica. Os críticos escrevem umas coisas tão dificílimas sobre o meu trabalho que, ao invés
de auxiliarem o outro a compreender, parece que obscurecem tudo” (in ZENI, 1998, p. 18).
Reconhecendo um pouco de sua complexidade, mas contestando a incomunicabilidade de
seus textos, em defesa de si mesma, declara:
Minha linguagem é inovadora sim, e essencialmente ptica. Não obedece a
convenções gramaticais, tem outro ritmo porque não pensamos nem
sentimos de forma simplizinha, organizada ou linear. Sei que não escrevo do
jeito que a grande maioria dos leitores está acostumado a ler. A forma é
inovadora, mas não incompreenvel, dizer que sou incompreensível é
bobagem. Eu escrevo em português. Tem um amigo meu, o Edson, que
recomenda que eu seja lida em voz alta. A linguagem, para mim, é o que
justifica você contar alguma coisa, porque as histórias, há milênios,o
sempre as mesmas. O homem não mudou, nossos questionamentos e pavores
são os mesmos, não modificamos nenhuma das nossas realidades essenciais,
nossas emoções, ainda nascemos e morremos como desde sempre, apesar da
luta dos cientistas e dos místicos para alterar isso.
37
Independentemente dos motivadores que a levaram a exercer todos os neros
inclusive a sua habilidade para desenvolvê-los o que se pode inferir é que HH, embora seja
contista, cronista, dramaturga, é, sobretudo, poeta, inclusive poeta lírica.
Os principais expoentes clássicos desse tipo de composição foram os poetas
gregos, Safo, Anacreonte, Alceu, ndaro e os latinos, Horácio, Catulo e Ovídio. Na
concepção clássica, o Gênero Lírico é aquele no qual o poeta canta suas emoções e
sentimentos íntimos dentro de determinado esquema métrico e rímico. Mas hoje a análise de
um gênero específico tornou-se mais complexa, uma vez que, apesar de essa divisão clássica
ser ainda referenciada e usada inclusive para fins didáticos, sua definição já passou por
diversas alterações e interpretações diferenciadas, rompendo a separação fixa e, por vezes,
reducionista que a visão cssica impunha. Com isso, o lirismo passou a não ser mais
36
RIBEIRO, Leo Gilson. Apresentação a Ficções de Hilda Hilst. Disponível em <http://hilda hilst.cjb.net/>
Acesso 02 julho 2008.
37
TIMM, Nádia. Furacão Hilda. Disponível em <http://www.screamyell.com.br/literatura/hi ldahilst.htm>.
Acesso em 10 julho 2008.
43
vinculado apenas ao fazer poético, e sim, genericamente, a qualquer produção artística,
literária ou não, que manifeste emoção e subjetividade.
A postura, por exemplo, de Horácio, poeta e filósofo latino, em sua Arte Poética é
a de que o poeta, caso não queira ser desqualificado, deve adotar as modalidades tanto
métricas quanto estilísticas em conformidade com os temas por ele tratados, circunscrevia,
dessa forma, os gêneros através de regras que os definiam e limitavam (1993).
Diversos filósofos passaram a se encarregar da tarefa de pensar os gêneros
literários e dedicaram especial atenção ao lírico que já não está mais preso a esquemas
métricos e rímicos da antiguidade e foi reinventado pelos românticos e pelos modernistas. No
seu famoso livro, Estética, no volume responsável por tratar da poesia, o filósofo idealista
alemão G. W. F. Hegel, no século XIX, esclarece:
No que se refere ao poema lírico, como obra de arte poética, é difícil
caracterizá-lo dada a grande variedade de modos de concepção e de formas,
assim como de conteúdos. Com efeito, embora este domínio se não possa
subtrair às leis gerais da beleza e da arte, não deixa de comportar, em virtude
do seu caráter subjetivo, possibilidades ilimitadas de realização e de
apresentação (1980, p. 245).
Os gêneros, apesar de sofrerem variações conceituais e até serem negados ou
relativizados por alguns como o italiano Benedetto Croce que acreditava na arte autônoma,
apoiada na intuição e na expressão, para ele a obra ptica é criação, não reflexão (1990) –,
continuam a ser encontrados e estudados em diversas obras da contemporaneidade.
Emil Staiger, no século XX, também se encarregou de refletir sobre essa
dificuldade em definir os gêneros, mais notadamente o Lírico. Em seu Conceitos
fundamentais da poética, que muito sofreu influência das concepções hegelianas, certifica
que:
Era lírica toda poesia que se assemelhasse em composição, extensão e
principalmente na métrica às criações dos autores líricos considerados
clássicos, Alcman, Estesícoro, Alceu, Safo, Íbico, Anacreonte, Simônides,
Baquilides e Píndaro. Os romanos podiam, assim, classificar Horácio como
lírico, mas o Catulo, que este escolhera outros pés métricos. Mas da
Antigüidade até hoje os modelos se multiplicaram indefinidamente. A
Poética encontrará, portanto, dificuldades quase insuperáveis, e, caso
solucionadas, de muito pouco proveito, se continuar procurando classificar
todos os exemplos isolados. A Poética teria para continuarmos dentro do
gênero lírico que comparar baladas, canções, odes, sonetos e epigramas
entre si, percorrer sua evolução durante um ou dois milênios consecutivos, e
descobrir o que de comum entre essas composições, chegando então,
finalmente, a um conceito global do que seria o gênero lírico. Mas um
conceito que tenha validez geral será, por outro lado, vazio de significão.
44
Além disso, no momento em que surgir um novo artista lírico com um
modelo inédito, o conceito perderá sua validade. Por estas razões, a
possibilidade de uma arte poética tem sido muitas vezes contestada. Fala-se
das vantagens de se poder seguir “sem preconceitos” as transformações
históricas, e despreza-se, assim, todo tipo de sistematização tornada dogma
(1975, p.15).
Soma-se a essas concepções de lírica a que Hugo Friedrich, também no século
passado, transmite em seu livro Estrutura da lírica moderna. Ao tecer suas interpretações
sobre a obra dos poetas que, para ele, constituem a base da lírica moderna (Baudelaire,
Rimbaud e Mallarmé) constata acerca da relação entre lírica moderna e o leitor que:
Sua obscuridade [da lírica moderna] o fascina [o leitor], na mesma medida
em que o desconcerta. A magia de sua palavra e seu sentido de mistério
agem profundamente, embora a compreensão permaneça desorientada. “A
poesia pode comunicar-se, ainda antes de ser compreendida”, observou T. S.
Elliot em seus ensaios. Esta junção de incompreensibilidade e de fascinação
pode ser chamada de dissonância, pois gera uma tensão que tende mais à
inquietude que à serenidade. A tensão dissonante é um objetivo das artes
modernas em geral (1978, p. 15).
Colaborando com as definições do que ainda venha a ser o gênero lírico, Anatol
Rosenfeld, crítico literário que muito enfatizou o domínio de HH nos diversos gêneros, afirma
que: Pertencerá à Lírica todo poema de extensão menor, na medida em que nele não se
cristalizarem personagens nítidos e em que, ao contrário, uma voz central quase sempre um
‘Eu’ – nele exprimir seu próprio estado de alma” (1986, p. 17).
Grande parte da obra hilstiana se encontra marcada por essas acepções de Lírica:
possui o caráter subjetivo de que fala Hegel, trabalha com todos os tipos de composições
citadas por Staiger (baladas, canções, odes, sonetos e epigramas), fascina e desconcerta como
afirma Friedrich e possui poesias dotadas de uma voz central que exprime o estado de alma da
qual fala Rosenfeld.
No livro JMNP, é possível constatar essas observações. Na parte intitulada Dez
chamamentos ao amigo, tem-se um modelo de seu lirismo:
I
Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo.
Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse
45
Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento (2003, p. 17).
Essa poesia é um verdadeiro apelo lírico ao ser amado o qual se apresenta
inacessível. A privação que se tem das coisas é o que faz com que haja uma supervalorização
delas; é a ausência do amado que faz a sua presença tão querida e importante. Esse amado
distante e esperado constitui um estado de obsessão amorosa que serve de leitmotiv no
decurso de quase todo o livro e se confunde com a própria obsessão de HH pelo leitor. Mais
que uma função fisiológica, o olhar é uma forma de comunicação e de percepção da realidade.
Quando HH clama que o seu amado-leitor torne a olhá-la (“Olha-me de novo”), quer, em
verdade, que ele a perceba de outra forma, que realize um outro julgamento uma vez que
olhar é uma forma de julgar.
Jean Paul Sartre, em seu livro O ser e o nada: ensaio ontológico de
fenomenologia, avalia o olhar como uma ão deveras importante para a constituição do ser
(1997). Conforme as idéias sartreanas, o olhar atribui juízos de valor os quais fazem com que
o homem constitua o outro através do olhar. HH pede, então, um outro olhar, menos
indiferente, mais atencioso, ao solicitar isso quer que o outro mude o que pensa dela, o que
pensa do poeta. Mas não só ela é objeto do pensamento do outro através do julgador olhar, ela
também olha, também julga: “Te olhei”.
Nessa alternância entre ser sujeito e ser objeto, ela se faz também
concomitantemente de sujeito-objeto numa auto-análise comunicada pelo quarto verso
“Olhei-me a mim”, mas, além de ser o agente e o paciente da ação, coloca-se no lugar do
outro “como se tu me olhasses” e, ao fazê-lo, percebe que é “mesmo, este objeto que o outrem
olha e julga” (SARTRE, 1997, p. 300). Mas que isso: julga erroneamente.
Nos dísticos finais, : “Olha-me de novo. Com menos altivez./E mais atento”, a
empáfia, o orgulho, a arrogância, a presunção do amado-leitor reduzida à palavra altivez é o
que HH combate nesse jogo de olhar, olhar-se e ser olhada. E não se pode olvidar que olhar
também tem como sinônimo o verbo cuidar, que é confirmado pela palavra do último verso
46
“atento”. Olhar algo ou alguém é também vigiá-lo, protegê-lo; e ser atento é ser cauteloso, ser
cuidadoso. Assim, o que HH quer é a atenção, o cuidado do seu amado-leitor para que eles,
que são tão opostos entre si (um é “terra”; o outro, “corpo de água”), possam, enfim,
encontrar-se, aproximar-se.
Sua obra utiliza a função poética sempre indissociável da função emotiva o que
confere a seus poemas forte subjetividade. Em suas poesias, como nessa, há, de forma
prevalecente, um diálogo no qual o uso da primeira e da segunda pessoa do singular é
constantemente aplicado: “Se te pareço noturna e imperfeita”, “como se tu me olhasses”. O
interlocutor de seus poemas é sempre um tu que é chamado de amigo, senhor, Ricardo, lio,
Dionísio. Um tu que é a morte, Deus, os homens de nosso tempo e irmãos de seu momento.
Nesse texto, a apelação rica em significação poética promovida pelo eu-lírico
revela a característica de autocontemplação conferida ao gênero lírico. O sujeito poético,
como foi visto, quer chamar a atenção do seu interlocutor, aparentemente indiferente, para si.
Na análise de Nely Novaes Coelho:
Através dos mbolos água (princípio masculino, fecundador) e terra
(elemento feminino a ser fecundado), denuncia-se nessa poesia a frustração
do processo vital, em sua necessária continuidade, porque o amado se recusa
à sua tarefa, “deslizando, apenas sem nem tocar a margem”. Entretanto a
mulher o espera, como terra que é, elemento humano/cósmico a ser
fecundado para cumprir sua tarefa de continuadora da humanidade (1999, p.
75).
À moda dos eróticos cantos sáficos, HH confere a essa poesia um toque de
erotismo, garantido não pelo chamado incisivo à comuno da água com a terra, mas
também pelos verbos aplicados de forma a criar uma atmosfera sensual: deslizar, tocar e
estender. A persona lírica se mostra, apresenta-se, dispõe-se para o outro em intensidade e
espera. Nela, “o eu se a si próprio em espetáculo, e se narra e se dramatiza; e esse espírito
lírico forma a poesia da epopéia e do drama, que, por isso mesmo, não se distinguem da
primeira senão em coisas extrínsecas” (CROCE, 1990, p.176).
Vale ratificar que esse eu é, não a amante em busca do cuidado de seu amado,
como também um poeta, noturno e imperfeito, com a suposta incompreensão que o
acompanha, empenhando-se por uma postura mais receptiva do outro diante de si. Nesse
ponto, pode se deduzir que a sua persona lírica não somente dá voz a um poeta, mas que esse
poeta, muitas vezes, confunde-se com a persona empírica de HH a qual, por sua vez, fez da
47
sua vida, em muitos de seus textos, uma alegoria particular para enviar uma mensagem
universal, o que não comprometeu a validade estética de suas composições.
Isso porque a voz que fala no poema, por mais que corresponda à do autor e
expresse muito de suas vivências afetivas e efetivas, é um recurso que redimensiona o sentido
do texto poético, pluralizando-o. Dessa forma, ela é personagem de sua própria literatura,
numa simbiose entre o eu-lírico e o poeta, o que a faz compor poemas como este:
II
Porque tu sabes que é de poesia
Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,
Que a teu lado te amando,
Antes de ser mulher sou inteira poeta.
E que o teu corpo existe porque o meu
Sempre existiu cantando. Meu corpo, Dionísio,
É que move o grande corpo teu
Ainda que tu me vejas extrema e suplicante
Quando amanhece e me dizes adeus (2003, p. 60). (grifo nosso)
Retomando a dicção elevada mencionada por Alcir Pécora (in HILST, 2002, p. 7),
HH, em sua práxis literária, ao recuperar a beleza do lirismo amoroso, exprime o conteúdo
“autêntico da alma humana” que é a primaz “missão da verdadeira poesia lírica”, assim como
de “toda verdadeira poesia” (HEGEL, 1980, p. 223).
48
2. MISTÉRIOS LUMINOSOS:
Os poetas na noite repensam a tarefa de pensar o mundo.
Não são poucos os que discorreram acerca da função da poesia, do poeta, da
arte em geral e sobre a sua importância (ou não) para a sociedade. Percy Shelley, T.S Eliot,
Fernando Pessoa, Carlos Felipe Moisés, Ferreira Gullar são alguns daqueles que se
debruçaram sobre tal assunto, criando teorias e críticas literárias que explicitavam as suas
especulações sobre essas temáticas. Ao contrário deles, HH o escreveu nenhum ensaio nem
realizou nenhum estudo teórico acerca da arte ou dos artistas. Mas suas posturas acerca do
fazer poético e daqueles que o executam podem ser encontradas ao longo de sua obra literária.
Por meio do meta-poema, da inter e intratextualidade, não a lírica hilstiana como também
suas crônicas, contos e dramas revelam uma verdadeira apologia ao poeta e uma incisiva
defesa da poesia a que ela atribui um poder soteriológico.
2.1 O caráter soteriológico da poesia na concepção hilstiana
Geralmente o vocábulo soteriologia (estudo da salvação) vem associado a estudos
religiosos, principalmente no campo da Teologia Sistemática
38
. Origina-se dos vocábulos
gregos: Σοτέριος [Soterios], que significa salvação e λογος [logos], palavra, estudo,
princípio.
Foi um termo criado no século XIX para se referir à teologia da salvação.
Portanto, passou a representar a parte da teologia que trata da salvação do
pecador, sua restauração, o favor divino na sua vida e a íntima comunhão
que passa a desfrutar com Deus.
39
Enquanto disciplina, integra o currículo teológico e aborda o propósito de Deus
para salvar; a pessoa e a obra do Redentor; a redenção por meio do Espírito Santo; a expiação
38
Teologia Sistemática: divisão da Teologia em sistemas que explicam suas várias áreas, Angeologia por
exemplo
39
CONCEIÇÃO, Eurípedes. Soteriologia: uma abordagem teológica sobre a obra da salvação. Dispovel em
<http://www.monergismo.com/textos/sotereologia/soteriologia_euripedes.pdf> acesso em 29 janeiro 2009
49
de Cristo; a graça divina; o destino dos homens. Isso numa concepção cristã do termo, mas
cada religião oferece um tipo diferente de salvação. Este trabalho utiliza tal palavra sem
destituí-la da relação com o sagrado que ela carrega, mas a retira do contexto teológico para
vinculá-la a um contexto literário.
São freqüentes as relações entre religião e literatura, em alguns casos chegaram
mesmo a confundir-se. A religião greco-romana, por exemplo, ainda sobrevive no
pensamento ocidental pelas mãos de Homero e de Virlio. E não seria exagero dizer que a
literatura recupera certas concepções religiosas e, até mesmo, as reafirma e divulga. Não
como negar o discurso religioso presente em obras como A Divina Comédia de Dante
Alighieri, na qual o autor realiza uma trajetória espiritual pelo inferno, o purgatório e o
paraíso cristão; ou ainda Paraíso Perdido de John Milton, uma epopéia inspirada no Genesis
bíblico.
Mas não é meta desta dissertação atrelar conceitos teológicos, doutrinários,
dogmáticos sejam cristãos, judaicos, islâmicos ou quaisquer outros à obra hilstiana nem
sequer realizar uma leitura teológica de seus textos (o que seria completamente possível). E
sim comprovar como HH por meio de seus textos literários propõe um novo plano de
salvação: a salvação pela poesia, pela arte. A poesia de HH não é daquelas que vem defender
verdades teológicas. Não se pode classificá-la como uma poesia religiosa propriamente dita.
Mesmo acerca de Poemas malditos, gozosos e devotos onde HH reuniu 21 poemas, “todos
eles compostos na forma de apóstrofes a Deus” (PECORA in HILST, 2005, p. 9), não se deve
dizer que seja cristão ou de qualquer outro seguimento religioso.
Para esclarecer melhor o que se pretende comunicar aqui, pode-se realizar uma
analogia com o livro Tempo e Eternidade. Composto a quatro mãos por Jorge de Lima e
Murilo Mendes, é um livro de poemas que possui não só uma temática religiosa como
também uma defesa específica do Cristianismo por meio da restauração da poesia em Cristo.
Pode-se dizer que os poemas de HH defendem a restauração da poesia, como se a poesia não
fosse um instrumento de expressar o sagrado, mas de sê-lo.
Não se pode olvidar que, ao se falar em salvação, pressupõe-se que alguém
necessita ser salvo e isso implica que alguém ou algo tem a capacidade de efetivar essa
salvação. O caráter soteriológico da poesia na concepção hilstiana consiste exatamente nisto:
o homem, um ser a ser salvo (salvo da opressão política, da reificação do seu ser etc.); a
poesia, o meio de salvá-lo (de vivificar sua linguagem, de suscitar sua sensibilidade etc.). Essa
concepção salvífica da poesia não é uma mera vaidade hilstiana. HH a recupera e a adapta a
50
sua maneira, entretanto não a inventa. Alexei Bueno ao falar sobre Kazantzakis (que muito
influenciou HH como foi visto no primeiro capítulo) afirma:
[...] seu feroz amor pelo homem, o sopro profético do seu verbo, a sua
violência de vidente não o de maneira alguma "modernas", assim como a
meta claramente soteriológica, salvífica, que domina toda a sua obra, a mais
distante de qualquer forma de diletantismo ou de arte pela arte que se possa
imaginar, antes uma pura, inesgotável e desesperada busca de sentido para o
absurdo. O grego Kazantkis está mais perto de seus ancestrais da
Antiguidade do que normalmente se imagina.
40
Outros poetas e pensadores compartilham essa mesma postura enaltecedora da
poesia e do poeta. Shelley em um de seus ensaios o qual possui um título bem sugestivo:
Uma defesa da poesiaafirma que “A poesia é, com efeito, algo divino” (2008, p. 114) e “Os
poetas são os legisladores desconhecidos do mundo” (Ibid, p. 122). Octávio Paz também sai
em defesa da poesia e a ela confere um poder libertador: “A experiência poética não é outra
coisa que a revelação da condição humana, isto é, desse transcender-se sem cessar no qual
reside precisamente sua liberdade essencial” (1982, p. 232).
Bruno Tolentino, no prefácio de seu livro A Balada do Cárcere, também deixa
explicita a sua postura com relação à força da poesia em meio aos homens: “[...] mantenho
que só a poesia, a linguagem profunda de uma raça, tem amplitude de meios capazes de dar a
complexidade da condição humana aquela dimensão de verticalidade correspondente às
grandes perplexidades da alma” (1996, p. 9). Ou ainda, na visão de Carlos Felipe Moisés: A
poesia serve para manter o homem em estado de permanente renovação (2007, p. 69).
Fernando Pessoa tem uma frase muito conhecida que amplia essa defesa ao se referir à arte
como um todo: “Só a Arte é útil. Crenças, exércitos, impérios, atitudes tudo isso passa. Só a
arte fica, por isso a arte vê-se, porque dura” (1982, p. 21). Seria muito extensa a lista de
citações acerca do suposto poder revelador, libertador, salvador da poesia.
Todos os citados acima são poetas, mas aqui foram mencionados dentro de suas
elucubrões teóricas. Como foi afirmado HH não chegou a publicar e nem se sabe se ela
chegou a escrever algum texto teórico sobre poesia ou sobre qualquer arte. O que se
argumenta neste texto é justamente o fato de ela ter realizado tal apologia por meio de sua
obra literária. Mário Quintana, no poema Aula Inaugural, sentencia: “Fora da poesia, não
40
BUENO, Alexei. As Obsessões de Kazantzákis. Disponível em
<http://rascunho.rpc.com.br/index.php?ras=secao.php&modelo=2&secao=25&lista=0&subsecao=0&
ordem=1670&semlimite=todos> Acesso em 30 outubro 2008.
51
salvação” (1975, p. 24-5) e é dessa forma, por meio da poesia, que HH ratifica tal afirmação e
retoma, assim, a visão do poeta próxima à da Antiguidade, o que remete não apenas à poesia
feita na Grécia e em Roma antigas como também a outras como a nórdica nas quais, dentro de
um plano mitológico, o poeta gozava de respeito e distinção. Esse era um momento no qual,
ao contrário dos tempos coevos, o poeta tinha incontestavelmente uma função social
reconhecida e a sociedade o tinha como necessário, como um ser que desempenhava uma
função litúrgica. Como se confirma através de Cahill: “Na Irlanda pré-cristã, por exemplo, o
poeta usufruía de condição social próxima ao rei, com a diferença que reis podiam ser mortos,
mas a morte de um poeta era considerada o pior dos sacrilégios” (1999, p. 103) e de Le Goff:
O poeta é pois um homem possuído pela memória, o aedo é um adivinho do
passado, como o adivinho o é do futuro (...) A poesia, identificada com a
memória, faz desta um saber e mesmo uma sageza, uma “Sophia”. O poeta
tem o seu lugar entre os “mestres da verdade” (LE GOFF, 1990, p.438).
Junte-se a essas culturas antigas, a rdica, com a sua lenda do hidromel. Odin, o
deus principal da mitologia escandinava, é considerado o deus da poesia por ter se apossado
do hidromel, também chamado de ambrosia dos deuses ou licor da imortalidade. Reza a lenda
que quem o bebesse tornar-se-ia sábio e poeta devido a suas propriedades proféticas.
Por esses relatos, percebe-se que o poeta era visto como um ser distinto entre os
demais, um escolhido a quem os deuses conferiram poder e importância. Considerando as
devidas proporções, HH ainda concorda com essa postura. Em uma de suas crônicas, ela
afirma: Os poetas são seres irreais, absurdos. Filhos da Quimera, da Ilusão. Não nada
mais esdrúxulo sobre a Terra do que o Poeta. o ornitorrinco(2007, p. 165). Pode-se
inferir de tal assertiva que HH difere o Poeta, vocábulo que apresenta com inicial maiúscula,
dos outros homens.
A analogia feita com o ornitorrinco (um mamífero australiano de características
bastante hibridas que o diferenciam de qualquer outra espécie), assim como os adjetivos
utilizados para qualificar o Poeta: irreal, absurdo, esdrúxulo, demonstram suas reflexões sobre
o poeta em sociedade e como HH via-o como um ser gauche, distinto ou, através de suas
próprias palavras, um poeta-ornitorrinco: mais extravagantes de todos os seres, os líricos-
devastados, os inoportunos, aleijões da praticidade e do cotidiano, os patéticos incosumíveis,
os loucos-outsiders (Ibid, p. 165). Enfim, um ser especial, mas que agora o mais goza dos
52
privilégios de outrora (acerca da postura negativa da sociedade diante do poeta, tratar-se-á no
próximo capítulo).
A concepção sobre o poeta contida nessa crônica, que foi escrita em 1993,
corrobora um pensamento hilstiano já perceptível em sua primeira publicação, Presságio, em
1950: “Estão terrivelmente sozinhos/os doidos, os tristes, os poetas” (2003d, p. 27).
Justamente por reconhecer esse novo posicionamento do poeta (desprovido do respaldo
mitológico ou teológico uma vez que sozinhos) que HH faz do poeta e da poesia, não
palavras, mas temas reincidentes em sua atividade literária. Um exemplo disso é Aves da
noite, drama no qual o poeta é uma de suas personagens e a poesia é vista como importante,
principalmente na situação em que as personagens se apresentavam: presos em Auschwitz à
espera da morte:
Estudante (Para o Poeta, pausado, débil) - Continua... Continua... É bonito.
Poeta - Já faz muito tempo que eu escrevi.
Estudante - Mas é bonito.
Joalheiro (Para o Poeta) - Continua... isso pode nos aliviar.
41
Em um momento de desespero e incapacidade, HH coloca a poesia como algo que
vai doar beleza e tranilidade para esses indivíduos inocentemente condenados à morte pelo
Nazismo.
Apesar de ser em Poemas aos homens de nosso tempo que essa temática se faz
mais atuante e a defesa de uma restauração do poder da poesia e de seu promotor seja mais
explícita, pode-se dizer que isso ocorre ao longo do conjunto de sua obra, o que comprova que
essa atitude não é ingênua ou inconsciente, e sim deliberada como um projeto literário que
imputa coerência e unidade a sua atividade literária.
Ao longo da sua obra em verso excluindo apenas Bufólicas encontrar-se 106
vezes a palavra poeta; 25 vezes, poesia; 37 vezes, poema; 56 vezes a palavra verso. Vários
dos títulos de seus livros ou de parte deles também fazem referências ao poeta: O poeta
inventa viagem, retorno e morre de saudade; Pequenos funerais cantantes ao poeta Carlos
Maria de Araújo; Iniciação do Poeta; Sete cantos do poeta para o anjo. O próprio título do
livro que é a base central desta dissertação, bilo, memória, noviciado da paixão passou por
diversas tentativas antes da escolha final:
41
HILST, Op. Cit., p. 41
53
01. Exercícios poéticos da paixão
02. Ciclo Morada – Degrau – Trigono – Liturgia: via passional e
persistente do poeta
03. Liturgia da paixão
04. Rigorosa vigília
05. O ouro da paixão
06. O roteiro veemente da idéia e da paixão
07. Os dúplices difíceis
08. Tempo da paixão
09. Como quem semeia, rigoroso, os cardos sobre a areia
10. Como quem morre
11. Agônica viagem através da paixão
12. A paixão do poeta
13. Paixão, ventura e desventura do poeta
14. Paixão, ventura e singularidade do poeta
15. Júbilo, paixão, ventura e desventura do poeta
42
São quinze ao todo até chegar ao nome definitivo que é uma menção implícita ao
homem a quem HH indiretamente dedica o livro: lio de Mesquita Neto. Ela mesma observa
a coincidência entre as letras iniciais de JMNP e a de seu amado impossível em uma carta a
Anésia Pacheco:
Eu imaginei uma coisa mais ou menos assim: um círculo (nossa mandala),
acima do círculo, isso é fora dele, as palavras JÚBILO, MEMÓRIA,
NOVICIADO e dentro do círculo DA PAIXÃO. E meu nome, se possível,
também dentro do círculo, fiquei abraseada e me queimei inteira. Você
não acha magnífico as primeiras letras serem J, M, N?
43
Outras menções a lio de Mesquita Neto se sucedem ao longo do livro JMNP.
Como se pode observar a seguir:
XI
Túlio, melhor é te ensinar a conhecer
Essa coisa do amor, porque entendi
Que amor não se fez no teu peito imaturo.
Se tens cinqüenta anos, eu quarenta e três,
Em mim há muitas dores, tantas
Quanto te espantas do meu bem-querer. Túlio.
Quando se ama, rubor e lividez, banalidade
E chama, se alternam, como em certas tardes
Tu vês a chuva, o chão de terra lavado,
E num segundo nem há sombra de águas
42
Acervo de HH no CEDAE, pasta 24, subgrupo produto literário: poesia
43
Acervo de HH no CEDAE, pasta 24, subgrupo produto literário: poesia
54
E vês o sol oblíquo, enviesado, uma luz
Quase ferida, para os teus olhos recentes
De umas águas. E há sentires plangentes,
Agonias, um não dizer inflamado, uma febre
Marejada de poesia.
E tudo o que eu te digo, tecido de palavras,
Porque te amo tanto, Túlio, disse nada (HILST, 2003, p. 41).
(grifo nosso)
Nesse poema, Júlio é lembrado por meio do nome lio, com a troca de apenas
uma letra há o referir-se e, ao mesmo tempo, o esconder o destinatário. Cria-se uma
personagem que é a representação do homem que lhe serve de inspiração. No quarto verso,
existe uma referência a idades, mais uma vez o texto literário e a vida da poeta se confundem:
“Se tens cinqüenta anos, eu quarenta e três”. O livro JMNP foi lançado em 1974 e possui
poemas compostos em 1973. Júlio de Mesquita Neto nasceu em 1922; HH, em 1930.
Realizando uma simples conta, pode-se perceber que HH faz uma menção às idades de cada
um respectivamente: ele com 51 e ela com 43 anos de idade. O óbvio é que essa alusão a
ambos no poema não é fruto de uma coincidência senão de algo proposital, pensado e
executado.
Nesse caso, não se pode negar a inter-ligação vida-obra. Até Marjorie Perloff, que
nas décadas de 50 e 60, havia sido uma formalista já chegou a afiançar que à medida que fui
ficando mais velha, descobri que não podia mais separar a vida de um escritor de seu
trabalho”
44
. E, na mesma entrevista, completa:
Na verdade, a vida de Rimbaud é muito relevante para a sua poesia assim
como a vida de Wittgenstein para a sua filosofia. Recentemente, tentei usar a
biografia, por exemplo, num texto que acabei de escrever sobre Samuel
Beckett e a fenomenologia da guerra (sobre o papel de Beckett na
resistência). Então eu me convenci de que a biografia É muito importante
para o ato crítico [...]. É preciso que se alcance um feliz meio-termo.
É através da simbiose entre a poeta e o eu-lírico que a obra hilstiana se constitui.
JMNP fala de amor inegavelmente, mas o apenas sobre amor de uma mulher por um
homem, mas sim o amor de um poeta; e não somente o amor por um indivíduo: Mesquita, e
sim pelos homens. Das quinze tentativas de título para esse livro, pelo menos, cinco trazem
em si o vocábulo poeta como em A paixão do poeta o colocando o somente como o
44
PERLOFF, Marjorie. A poesia pertence a seu tempo <http://www.unicamp.br/unicamp/ unicamp_
hoje/ju/abril2005/ju283pag06.html> Acesso em 01 fevereiro 2009.
55
compositor dos poemas, muitas vezes numa auto-referência, mas como tema deles. O pprio
poeta é personagem de suas composições como se pode conferir em rias passagens de
poemas seus. Em Ode descontínua e remota para flauta e oboé de Ariana para Dionísio:
VIII
Se Clódia desprezou Catulo
E teve Rufus, Quintius, Gelius
Inacius e Ravidus
Tu podes muito bem, Dionísio,
Ter mais cinco mulheres
E desprezar Ariana
Que é centelha e âncora
E refrescar tuas noites
Com teus amores breves.
Ariana e Catulo, luxuriantes
Pretendem eternidade, e a coisa breve
A alma dos poetas não inflama.
Nem é justo, Dionísio, pedires ao poeta
Que seja sempre terra o que é celeste
E que terrestre não seja o que é só terra (HILST, 2003, p. 66). (grifo nosso)
Em Moderato canbile:
V
E se parece a Mei, pequena estrela
Viva na constelação de Sagitário.
Vive dentro de ti, dupla grandeza
O existir de agora, o céu em mim
No meu viver de sempre, solitário.
E de viver a idéia, de mim mesma
Do rosto, dos cabelos, do meu corpo
Dos amigos também, ando esquecida.
Rodeiam-me sem rosto, me perguntam:
E a idéia? E se vão apreensivos
Pois dupla vida é o que vive o poeta:
Entendimento e amor, duplo perigo.
A idéia, Túlio,
(resguarda-te do susto, não te aflijas)
É na verdade tudo o que me resta (Ibid, p. 55). (grifo nosso)
56
E não em JMNP, livros anteriores a ele trazem também o poeta e a poesia
como tema como Cantares de Perda e Predileção, de 1983:
LVIII
O bisturi e o verso.
Dois instrumentos
Entre as minhas mãos.
Um deles rasga o Tempo
O outro eterniza
Aquele tempo-ouro sem medida.
Rompem-se sílabas e fonemas.
Estanco meus projetos.
E o que se vê
É umcomum-complexo
Coração aberto.
E nunca mais
Na dimensão da Terra
Hei de rever as moradas, os tetos
Os paraísos soberbos da paixão (2004, p. 95).
A visão do poeta como um ser ambivalente composto de entendimento (a
faculdade de compreender, de pensar ou de conhecer) e de amor (sentimento que predispõe
alguém a desejar o bem a outro) torna-o um ser completo, capaz de conciliar sabedoria e
sensibilidade. o como não remeter, mesmo que indiretamente, à concepção pré-
platônica na qual o bardo ainda era guardião da sabedoria, naquela época considerada divina.
Os próprios versos aludem diretamente à Antiguidade Clássica por meio de suas personagens:
uma Ariana, integrante da mitologia grega também chamada de Ariadne ou Ariadna,
abandonada por Teseu e salva por Baco; outra, Catulo, um poeta veronense que fez parte do
que Cícero denominou de poetae novi por valorizar a forma e as palavras raras, foi um grande
lírico cujo tema principal foi o amor.
Acrescente-se a isso que “Aquele tempo-ouro” acaba por remeter à Idade de Ouro
grega, a chamada Arcádia, momento no qual a função social da poesia era reconhecida e
evidente(ELIOT, 1972, p. 29). Ou ainda a expressão duplo perigo que alude ao apolíneo e o
dionisíaco: a razão e a emoção que dialeticamente integram o perfil do poeta. Voltando a
Shelley: Um grande poema é uma fonte, sempre a jorrar as águas da sabedoria e do prazer”
(2008, p. 109). Ou nas próprias palavras de HH em entrevista realizada por o Gilson
Ribeiro para o jornal O Estado de São Paulo:
57
Quando eu escrevo, é porque eu sinto uma vontade insuperável de dar ao
outro que vai me ler, espero, uma grande abertura de intensidade [...] É
mostrar ao outro que ele pode desvendar o seu eu” desconhecido; é
proporcionar ao outro o “auto-conhecimento”, uma compreensão definitiva
de si mesmo, com suas potencialidades, falhas – virtudes.
45
É pertinente citar também, como exemplo dessas concepções poéticas hilstianas, o
último verso do poema VII de Amavisse: “o poeta habita nas ardências” (HILST, 2004b, p.
48). Ardência é a sensação de queimadura na pele, é o que arde, o que causa ardor; por sua
vez, ardor pode ser interpretado como vivacidade, entusiasmo e, até mesmo, paixão
(Dicionário Aurélio). O poeta, ser especial, habita, então, a paixão: o fascínio, o desejo, o
sofrimento. Essas meões vão se sucedendo, sempre caracterizando o poeta e chamando
atenção do leitor para sua existência e importância.
Entre os poemas que compôs, os que mais efetivamente realizam isso eso
presentes em JMNP numa parte intitulada de Poemas aos homens de nosso tempo. Nela, o
uso de uma linguagem mais direta que, por vezes, apropria-se do tom e da retórica do discurso
político e apresenta, em certos pontos, até mesmo, alguns lugares-comuns. HH torna, assim,
mais evidente a visão salvífica que atribui à poesia e, conseqüentemente, a quem a produz.
Seu primeiro poema (que continuará a ser analisado no próximo sub-capítulo) é um exemplo
desse discurso híbrido:
I
homenagem a Alexander Solzhenitsyn
Senhoras e senhores, olhai-nos.
Repensemos a tarefa de pensar o mundo.
E quando a noite vem
Vem a contrafacção dos nossos rostos
Rosto perigoso, rosto-pensamento
Sobre os vossos atos.
A muitos os poetas lembrariam
Que o homem não é para ser engulido
Por vossas gargantas mentirosas.
E sempre um ou dois dos vossos engulidos
Deixarão suas heranças, suas memórias
A IDÉIA, meus senhores
45
RIBEIRO, Léo Gilson. Tu não te moves de ti, uma narrativa tripla de Hilda Hilst. O Estado de São Paulo, SP,
16 mar. 1980.
58
E essa é mais brilhosa
Do que o brilho fugaz de vossas botas.
Cantando amor, os poetas na noite
Repensam a tarefa de pensar o mundo.
E podeis crer que há muito mais vigor
No lirismo aparente
No amante Fazedor da palavra
Do que na mão que esmaga.
A IDÉIA é ambiciosa e santa.
E o amor dos poetas pelos homens
é mais vasto
Do que a voracidade que nos move.
E mais forte há de ser
Quanto mais parco
Aos vossos olhos possa parecer (HILST, 2003, p. 105).
“Cantando amor, os poetas na noite/Repensam a tarefa de pensar o mundo”.
Nesses versos, HH une, novamente, o duplo perigo, o entendimento e o amor. Une vocábulos
aparentemente paradoxais: amar e pensar. Ao cantar o amor, repensam o mundo: expressa o
comprometimento do poeta com a sociedade. O amor seria o individual; o mundo, o coletivo
e o poema o meio de combinar um com outro. Ao usar seu lirismo contra a o que
esmaga”: a repressão, a morte, esse poema marca muito bem seu posicionamento contra a
política opressora dos ditadores.
Essa luta pela liberdade do homem em detrimento do ser político absolutista,
autoritário e repressor, também foi, através da pena, empenhada por seu querido Júlio. Diretor
Geral do O Estado de São Paulo (1969 a 1996), ele entrou no embate político contra a
censura e o regime militar. Como reconhecimento por essa atitude, ele recebeu a Pena de
ouro da liberdade conferida pela Federação Internacional de Jornais (atual WAN, World
Association of Newspapers) em 1974 vale frisar que é o mesmo ano do lançamento do livro
em questão. Inclusive muitos dos poemas que integram PHNT
46
foram antes separadamente
publicados no jornal O Estado de São Paulo, inclusive em colunas nas quais havia artigos
censurados.
Num bilhete escrito por ela em 16 de março de 1973, declara: Querido lio: Os
5 primeiros versos são ‘especialmente’ para a censura. Os outros 14 o ‘especialmente’ para
46
A partir desta página a parte de JMNP denominada Poemas aos homens de nosso tempo será mencionada
através da sigla PHNT
59
você”
47
. Tal declaração mostra a consciência de HH sobre suas intenções que mesclavam
amor e política e amalgamavam sua vida com sua obra.
Vale destacar também outro trecho desse poema: “A muitos os poetas
lembrariam”. Para HH, o poeta continua sendo fonte de conhecimento e de memória. Em
entrevista concedida a autora desta dissertação, Mora Fuentes garante que:
Hilda via o poeta como um escolhido. Ela achava que a poesia, para ela pelo
menos, vinha de uma parte que ela ligava muito ao sagrado [...] A Hilda
achava que a vida era uma experiência sagrada, a poesia divina e o poeta um
ser especial, tinha uma antena ligada ao divino.
48
Dessa forma, ele faz lembrar a célebre frase poundiana: “os poetas são a antena da
raça” (2001, p. 77) e ratifica a visão passada pelos versos hilstianos que resgata a concepção
pré-platônica do poeta, algo que se aproxima das já aplicadas citações de Le Goff e de Cahill.
Um poeta e teórico que, devido a seu ensaio A função da poesia, o poderia
deixar de ser aqui referenciado é T.S. Eliot. Ele externa que: “É isso que entendo por função
social da poesia no seu mais amplo sentido: que, proporcionalmente à sua qualidade e ao seu
vigor, ela influencia a linguagem e a sensibilidade de toda a nação” (1972, p. 38). Todo esse
reconhecimento da importância do fazer poético se sintetiza em um período com o qual com
certeza HH concordaria: “Eu não posso ler poesia norueguesa, mas se me dissessem que não
se estava escrevendo poesia em norueguês eu sentiria uma preocupação que seria muito mais
do que simples comiseração” (Ibid, p. 41).
Como se pode notar, HH não está sozinha em sua postura. Considerando-se as
devidas dimensões, ela realiza algo que se assemelha ao que Platão faz em O Banquete. Ao
celebrar e louvar a Eros, em verdade, Platão fala acerca de suas posturas filosóficas. Ao falar
de amor, de Deus, da morte, HH sempre fala, concomitantemente, do poeta e da poesia.
2.1.1 O poeta e a memória
Na Antiguidade Clássica, a memória era divinizada através do mito de
Mnemósine (Memória), uma deusa, mãe das nove musas deusas do canto e da memória
47
Acervo de HH no CEDAE, pasta 24, subgrupo produto literário: poesia
48
Entrevista no ANEXO A
60
inspiradoras dos poetas (BULFINCH, 2000). Cabia, nesse tempo, ao poeta, abençoado pelas
musas, a função de preservar a memória uma vez que era conferido aos aedos poetas que
recitavam e cantavam composições religiosas e épicas o poder de livrar o homem do
esquecimento, o que lhes conferia uma força notadamente mítica. Alguns milênios depois,
ultrapassada a visão mitológica que cercou a memória, mas sendo influenciadas por ela, a
Psicologia, a Antropologia, a Neurologia e outras diversas ciências a têm como um dos seus
objetos de estudo.
A palavra memória seria, grosso modo, a faculdade de reter as idéias, impressões
e conhecimentos adquiridos anteriormente e se aproximaria semanticamente das palavras
lembranças, recordação, reminiscência. Qualquer dicionário confirmaria essa definição.
Porém, tal explanação denotativa e descontextualizada desconsidera as nuanças que cada área
em geral e cada pensador em particular atribuem a este vocábulo, principalmente no campo da
Filosofia, da Literatura e da História.
Ao se aprofundar acerca dos estudos sobre a memória, do século XIX à
atualidade, encontra-se Henri Bérgson, que, em 1896, ao lançar seu livro Matéria e Memória,
marca uma das concepções mais importantes da memória, que acabou por influenciar e
orientar outros estudiosos do assunto, os quais, mesmo ao dele discordar, utilizaram da sua
filosofia como ponto de partida para a formalização de novas idéias e conceitos. Na
concepção bergsoniana, a memória está ligada à subjetividade (o espírito), e ele a contrapõe à
percepção, que estaria ligada à exterioridade (a matéria). Para ele, a memória é, ao contrário
do que se possa pensar, o progresso do passado ao presente, e não o regresso do presente ao
passado (BERGSON, 1999).
De outro lado, há a concepção halbwachsiana da memória, que sai do campo
espiritual para o campo social. Apesar de ter estudado filosofia com Bérgson e ser por ele
influenciado, a teoria da memória de Maurice Halbwachs se diferencia da bergsoniana pelo
fato de também ter sido influenciado pela sociologia de Émile Durkheim. Ele cria, então, sua
teoria psicossocial e, com ela, o conceito de memória coletiva. Para ele, “cada memória
individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva (HALBWACHS, 1990, p. 51). Isso
porque todas as lembranças do indivíduo são constituídas a partir de sua convivência com o
grupo:
Seria o caso, eno, de distinguir duas memórias, que chamaríamos se o
quisermos a uma interior ou interna, a outra exterior; ou então a uma
memória pessoal, a outra memória histórica. A primeira se apoiaria na
61
segunda, pois toda história de nossa vida faz parte da história em geral. Mas
a segunda seria, naturalmente, bem mais ampla do que a primeira. Por outra
parte, ela não nos representaria o passado senão sob uma forma resumida e
esquemática, enquanto que a memória de nossa vida nos apresentaria um
quadro bem mais contínuo e mais denso (Ibid, p. 55).
Seguindo a influência dessa relação entre história e memória proposta por
Halbwachs, o historiador Pierre Nora, em 1989, lança Les Lieux de Mémoire. Mas, apesar de
dialogar com as idéias halbwachsianas, Nora apresenta a idéia de que existem empecilhos
para a demarcação específica das diferenças entre a memória histórica e a memória individual
já que, para ele, a memória tornou-se objeto da história:
Vimos, sem dúvida, a tremenda expansão de nosso próprio modo de
perceão da história, que, com auxílio da mídia, substitui a memória
vinculando na intimidade de uma herança coletiva a fugacidade de eventos
atuais (1984, p.18).
E é exatamente partindo dessa relação da memória com a sociologia e com a
história realizada por Maurice Halbwachs e por Pierre Nora que se procederá a análise de
PHNT.
Nessa parte de JMNP, os versos hilstianos repensam o lirismo coevo e tentam
mostrar para os homens contemporâneos que, diante da sociedade que aprisiona de forma sutil
seus integrantes por meio da supervalorização dos avanços tecnológicos e científicos e da
interferência direta e constante da mídia, o poeta é o ser livre capaz de trazer a humanização,
por ser capaz de revelar aquilo que, de tão ocultado e desvalorizado, foi negligenciado e
esquecido pelos homens: sua própria humanidade.
Para alcançar esse ideal de recuperar a importância do poeta e da poesia para a
sociedade e alertá-la dos riscos de sua fragmentação, os poemas se utilizam de refencias
históricas, homenagens, dedicarias, citações que acabam por relacionar a História à
Literatura e fazem suscitar idéias sobre o uso que HH fez da memória na elaboração do seu
eu-lírico. Sua alise tanto faz suscitar idéias sobre a memória individual e coletiva
halbwachsianas quanto sobre os lugares de memória, expressão forjada por Nora.
no primeiro poema de PHNT (analisada parcialmente no sub-capítulo anterior),
HH mescla a seu fazer poético um personagem real da História que, ao ser citado e
homenageado pela poesia, é relembrado e, com ele, todos os acontecimentos históricos que o
cercaram:
62
I
homenagem a Alexander Solzhenitsyn
Senhoras e senhores, olhai-nos.
Repensemos a tarefa de pensar o mundo.
E quando a noite vem
Vem a contrafacção dos nossos rostos
Rosto perigoso, rosto-pensamento
Sobre os vossos atos.
A muitos os poetas lembrariam
Que o homem o é para ser engulido
Por vossas gargantas mentirosas.
E sempre um ou dois dos vossos engulidos
Deixarão suas heranças, suas memórias
A IDÉIA, meus senhores
E essa é mais brilhosa
Do que o brilho fugaz de vossas botas.
Cantando amor, os poetas na noite
Repensam a tarefa de pensar o mundo.
E podeis crer que há muito mais vigor
No lirismo aparente
No amante Fazedor da palavra
Do que na mão que esmaga.
A IDÉIA é ambiciosa e santa.
E o amor dos poetas pelos homens
é mais vasto
Do que a voracidade que nos move.
E mais forte há de ser
Quanto mais parco
Aos vossos olhos possa parecer (HILST, 2001, p. 105).
Ao fazer de seu texto poético uma homenagem a Alexander Solzhenitsyn, HH
ressignifica o conteúdo do seu poema, conferindo-lhe uma dimensão política e social por
aludir, através dessa dedicatória, a fatos políticos que o nome desse escritor russo faz suscitar.
Em outro bilhete enviado para lio de Mesquita Neto, HH comunica: “Querido lio: te
mando 14 poemas, [...]. E também um poema em homenagem ao Solzhenitsyn. Afinal ele
merece. Não seria lindo você colocá-lo no dia em que os censores resolverem outra vez por as
patas sobre os teus editoriais [...]”
49
. Ela deixa, assim, explícita toda a sua intencionalidade
política através da referência a Soljenitzyn e dessa consciência de como tal atitude poderia
49
Acervo de HH no CEDAE, pasta 24, subgrupo produto literário: poesia
63
significar uma afronta a censura. Mais uma vez, Mora Fuentes, que tanto conviveu com ela e
acompanhou todo processo de elaboração de JMNP, opina:
Eu acho que ela se refere [em JMNP] à grande política, não a essa coisa
menor. Justamente nessa época de ditadura ela ter querido homenagear os
russos e fazer tudo isso, era uma coragem dela porque não era fácil nessa
época você fazer qualquer coisa assim. Ela tava vivendo uma história, Júlio
Mesquita colocava os poemas da HH nos artigos censurados (sic). tem
uma dupla ocorrência, tem a política e tem a paixão violenta e platônica que
ela sofreu por Júlio de Mesquita Neto.
50
O homenageado, Aleksandr Isayevich Solzhenitsyn, prêmio Nobel em 1970, é o
autor do livro Arquipélago Gulag, obra em que descreveu como funcionavam os campos de
trabalho forçado e de concentração na antiga União Soviética, nos tempos do ditador Josef
Stalin. Esse livro é uma narrativa memorialística, autobiográfica, uma vez que narra aquilo
que o autor vivenciou quando, por fazer críticas ao governo stalinista, foi condenado a ser
prisioneiro desses campos e ao exílio perpétuo. Como se observa nos trechos do livro
Arquipélago Gulag abaixo transcritos:
E, de repente, do meio dos oficiais imóveis e tensos, saltaram dois agentes
da contra-espionagem, atravessando o quarto em dois pulos, agarrando-me
com as quatro mãos, a estrela do boné, os galões, o cinturão da montanha, e
gritando em tom dramático: – você está preso! [...]
E nenhuma outra coisa você recordará pela vida afora com tanta
emoção.[...] Essas pessoas compartilham com você o chão e o ardente cubo
de pedra, nesses dias em que você revivia toda a sua vida sob uma luz nova.
E algum dia você se lembrará delas, como se fossem pessoas da família
(SOLZHENITSYN apud MACHADO, 2008).
na dedicatória do livro o autor russo deixa clara a sua intenção de relatar o
vivido e seu compromisso coletivo, social ao fazer isso com o máximo de sinceridade e
precisão possíveis: “Dedico este livro a quem a vida não bastou para relatar. Que eles me
perdoem não ter visto tudo, não ter recordado tudo, não ter percebido tudo” ([?], p. 09).
Assim, a memória individual apresentada por Solzhenitsyn nesta sua obra, como
diria Halbwachs: “é um ponto de vista sobre a memória coletiva” e “este ponto de vista muda
conforme o lugar que ali eu ocupo, [...] este lugar mesmo muda segundo as relações que
mantenho com outros meios” (1990, p. 51). Ou como Nora apresentou no seu texto Entre a
50
Entrevista no ANEXO A
64
memória e a história, citando Halbwachs: Há tantas memórias quanto grupos, a memória
é por natureza múltipla e no entanto específica; coletiva, plural, e no entanto individual”
(1984, p. 19).
Pode-se ainda relacionar o poema em questão a um conceito concebido por Pierre
Nora: os lugares de memória. Ao evocar a lembrança de Alexander Solzhenitsyn, por meio
deste poema-homenagem, HH cria uma espécie de lugar de memória uma vez que:
Os lugares da memória o criados por um jogo de memória e história, uma
interação de dois fatores que resulta em sua recíproca sobredeterminação.
[...] o maior propósito do lugar de memória é parar o tempo, bloquear o ato
de esquecer, estabelecer um estado de coisas, imortalizar a morte,
materializar o imaterial (Ibid, p. 28).
É exatamente isso que Hilst consegue ao homenagear Solzhenitsyn, retirá-lo do
esquecimento e também todo o contexto histórico no qual ele viveu pelo menos para aqueles
que compartilham com ela desse acervo de conhecimento. Na segunda estrofe, quando afirma:
A muitos os poetas lembrariam
Que o homem não é para ser engulido
Por vossas gargantas mentirosas.
E sempre um ou dois dos vossos engulidos
Deixarão suas heranças, suas memórias
HH quer retomar para o poeta a função de guardião da memória que a
Antiguidade Clássica a ele atribuía. No poema, o político aparece como aquele que possui
gargantas mentirosas as quais engolem os homens. Aquele que tem o poder é aquele que
também oprime e que interfere na vida dos indivíduos como Solzhenitsyn, que teve sua vida
totalmente deturpada pela arrogância de um governo totalitário que tentou usurpar o seu poder
de expressão e falsear a realidade. Ao tentar impedi-lo de continuar sua obra, o governo de
Stalin tentava também impedir a formação de toda uma memória coletiva que seus escritos
podiam gerar contra o seu domínio. Isso remete a uma afirmação do historiador Le Goff:
A memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças
sociais pelo poder. Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é
uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que
dominaram e dominam as sociedades históricas e os silêncios da história são
reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva (1996,
p. 76).
65
Dessa forma, governantes manipulam os acontecimentos, e, para HH, os poetas
guardam a verdade. Por protegerem a memória (visto que se encarregam da missão de
lembrar aos homens: “A muitos os poetas lembrariam”), os poetas são os que portam a
aletheia, ou seja, são aqueles que postulam tirar o homem do lethe (rio do esquecimento na
mitologia grega) que é a censura, que é o esquecimento e agem contra o estado de letargia, de
apatia à qual os sistemas políticos podem submeter os homens. No poema, está assegurada
parte da História e toda vez que alguém o ler será convocado à reação. Não é à toa que o
primeiro verso do poema traz um chamado, uma evocação “Senhoras e senhores, olhai-nos”.
A poeta se apropria do discurso político para pregar contra ele.
Com seus versos heterométricos que não parecem seguir nenhum esquema quanto
às sílabas fortes e nenhuma regularidade nas rimas, esse poema lança mão de vocativos
(“Senhoras e senhores”, “meus senhores”) que demarcam a existência de um discurso, de uma
pregação, como se o poeta subisse a um púlpito para proferi-lo a uma platéia, a um público.
Ademais, ele possui uma grande predisposição para ser declamado, é um tipo de poema
composto mais para ser lido em voz alta, de preferência em uma praça pública ou num
palanque, do que para ser lido na intimidade de um quarto. Com versos de impacto como
“Cantando amor, os poetas na noite/Repensam a tarefa de pensar o mundo”, ele faz lembrar a
eloqüência dos poemas negreiros castroalvianos e seu engajamento com as questões sociais,
poemas os quais, sem dúvida, tornam-se mais envolventes quando recitados e ouvidos do que
quando apenas lidos. A forma escolhida por HH, mais prosaica, é a ideal para intensificar seu
poder de comunicação e a utilização, na primeira estrofe, de verbos no imperativo olhai-nos,
repensemos, faz a poeta compartilhar com leitor a responsabilidade de pensar o mundo e torna
mais intenso seu poder de persuasão.
Merece ainda destaque: “o amor dos poetas pelos homens/é mais vastos/Do que a
voracidade que nos move”. Esses versos apresentam o poeta como com um ser que exerce sua
capacidade de desprendimento a favor da humanidade. Neles, o poeta, referência constante
nos textos hilstianos, é aquele que ama os homens e, por meio de seu exercício poético, por
meio do vigor de seu lirismo, ambiciona libertá-los, salvá-los daquilo que os corrói e os
consome. É interessante recordar que o vocábulo soteriologia também significa livramento de
um perigo. Tais versos, portanto, confirmam novamente o aspecto soteriológico o qual HH
outorga à poesia. Não obstante, vale lembrar que:
66
O texto ptico é o espaço de diálogo e sua tessitura revela tanto o homem
que a produz, como a sociedade que a acolhe ou a rejeita. Sua ação é
política, porque intervém sempre no real contra a autoridade do senso
comum e da palavra convencional e autoritária (ALVES, 1998, p. 1080).
Tais elementos acima descritos, assim como a relação entre a memória, a História
e a poesia contida no poema I são reincidentes em todos os 17 poemas que comem PHNT.
O poema IV, por exemplo:
IV
A Frederico García Lorca
Companheiro, morto desassombrado, rosácea ensolarada
Quem senão eu, te cantará primeiro. Quem senão eu
Pontilhada de chagas, eu que tanto te amei, eu
Que bebi na tua boca a fúria de umas águas
Eu, que mastiguei tuas conquistas e que depois chorei
Porque dizias: “amor de mis entrañas, viva muerte”.
Ah, se soubesses como ficou difícil a Poesia.
Triste garganta o nosso tempo, TRISTE TRISTE.
E mais um tempo, nem será lícito ao poeta ter memória
E cantar de repente: “os arados van e vên
dende a Santiago a Belén”.
Os cardos, companheiro, a aspereza, o luto
A tua morte outra vez, a nossa morte, assim o mundo:
Deglutindo a palavra cada vez e cada vez mais fundo.
Que dor de te saber tão morto. Alguns dirão:
Mas está vivo, não vês? Está vivo! Se todos o celebram
Se tu cantas! ESTÁS MORTO. Sabes por quê?
“El pasado se pone
su coraza de hierro
y tapa sus oídos
con algodón del viento.
Nunca podrá arrancársele
un secreto.”
E o futuro é de sangue, de aço, de vaidade. E vermelhos
Azuis, brancos e amarelos hão de gritar: morte aos poetas!
Morte a todos aqueles de lúcidas artérias, tatuados
De infância, o plexo aberto, exposto aos lobos. Irmão.
Companheiro. Que dor de te saber tão morto (2003, p. 109).
Pode-se atribuir a ele todos os comentários realizados acerca do poema
anteriormente analisado (poema I), inclusive sobre a dedicatória do poema a uma figura
histórica. É apropriado ressaltar o diálogo explícito e direto que faz com os poemas Canzon
67
de cuna pra Rosália Castro, Morta e El presentimiento,
51
ambos de Frederico García Lorca, o
qual, assim como Solzhenitsyn, foi vítima de um sistema político autoritário e opressor.
Além disso, como Jorge de Lima fez no seu grandioso A invenção de Orfeu,
transcrevendo trechos inteiros da Divina Comédia de Dante e de outros clássicos da literatura
universal como as epopéias de Homero, de Camões e de Virgílio ou como T.S. Eliot realizou
em The Waste Land ao incorporar textos de Dante, Baudelaire, e amesmo textos bíblicos e
cienficos, HH utiliza, nesse poema, uma linguagem notadamente dialógica, para utilizar uma
terminologia aplicada por Bakthin, ou intertextual, conforme Julia Kristeva.
Intertextualidade ou dialogismo é uma referência ou uma incorporação de
um elemento discursivo a outro, podendo-se reconhecê-lo quando um autor
constrói a sua obra com referências a textos, imagens ou a sons de outras
obras e autores e até por si mesmo, como uma forma de reverência, de
complemento e de elaboração do nexo e sentido deste texto/imagem.
52
Se para Maurice Halbwachs, a memória individual passa pela coletiva, para
Bakhtin, um discurso não se constrói sobre o mesmo, mas sim se elabora em vista do outro. O
outro percorre, penetra, regula o discurso do eu, o que promove um cruzamento de estilos,
épocas, temáticas e espaços diferentes, mas inter-relacionados, o que a teoria bakthiniana
denominou de polifonia, exatamente o que se nota no poema em questão.
HH (1930-2004) viveu numa época e num espaço geográfico diferentes dos de
Lorca (1898-1936), mas ao fazer colagem do texto lorquiano realiza uma abertura histórica e
une os dois momentos e lugares recorrendo novamente à memória coletiva que o tem como
um mártir da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e a qual se confunde com sua memória
individual e com o próprio eu-lírico. Ela não viveu o totalitarismo stalinista com o qual sofreu
Solzhenitsyn, tampouco o regime franquista que fuzilou o poeta espanhol, a memória que HH
tem deles, então, é, para usar uma expressão Pierre Nora, uma memória desenhada pela
história” (1984, p. 23) ainda de acordo com ele: “a busca pela memória é a busca por uma
história” (Ibid, p. 23). Portanto, HH se utiliza de uma memória indireta, social, coletiva,
histórica, mas ao fazer isso em seu poema, relaciona esses momentos de opressão da liberdade
individual com qualquer outro momento em que isso venha a acontecer e, até mesmo, ao
51
Poemas de Frederico García Lorca no ANEXO C
52
BARROS in ZANI, Ricardo. Intertextualidade: considerações em torno do dialogismo. 2008. Disponível em
< http://www.seer.ufrgs.br/index.php/EmQuestao/article/viewFile/65/25> Acesso em 04 maio 2008.
68
momento de repressão que ela mesma presenciou marcado pela Ditadura Militar brasileira a
qual teve início em 1964, só terminando em 1985.
O livro JMNP (1974) foi composto e lançado durante o governo de Emílio
Garrastazu Médici, considerado um dos mais repressivos, a ponto de ser denominado de anos
de chumbo (1969-1974): política de censura intensificada, luta armada, exílio, tortura, morte
de professores, políticos, músicos, artistas e escritores marcam esse período de conflito
interno agravado pelo DOI-Codi Destacamento de Operações e Informações e ao Centro de
Operões de Defesa Interna que era um centro de investigação e repressão desse Regime
Militar. Esse é um fato hisrico vivenciado por HH e por isso apreendido por sua memória
que se cruza com os seus conhecimentos sobre os regimes stalinista e franquista que possuem
pontos em comum com o Regime Militar brasileiro como: censuras, prisões, exílios e mortes.
O poema representa, em verdade, a opressão do homem pelo homem,
independente de seus agentes, o que o coloca como um denunciador da realidade. Ainda neste
último poema transcrito, ela novamente enfatiza a relação do poeta com a memória e a
dificuldade de sua conservação:
[...]
Ah, se soubesses como ficou difícil a Poesia.
Triste garganta o nosso tempo, TRISTE TRISTE.
E mais um tempo, nem será lícito ao poeta ter memória
E cantar de repente: “os arados van e vên
dende a Santiago a Belén” (2001, p. 109).
Neste tempo de sangue, de aço, de vaidade”, a Poesia (grafada novamente com a
letra inicial maiúscula, o que a universaliza) torna-se difícil, como fica cada vez mais difícil
para o poeta realizar a sua missão mitológica de conservar a memória (o próximo capítulo
trabalha essa questão). Ao colocar os versos “os arados van e vên dende a Santiago a
Belén”, HH incorpora a seu texto um fragmento do poema de Lorca chamado: Canzón de
cuna pra Rosalía Castro, morta (isso para não citar outros trechos de outros poemas do poeta
espanhol que ela agrega a seu texto poético) e, ao fazer isso, ela recupera não a lembrança
de Lorca como também de seu fazer poético com o qual o poema hilstiano se mistura.
Partindo de uma concepção bakthiniana, essas refencias diretas fazem desse poema um
texto dialógico. E esse diálogo com o poema lorquiano foi possível por meio de uma
memória histórica já que, quando Frederico García Lorca foi fuzilado, ela apenas tinha 6 anos.
Recorrendo novamente a Halbwachs:
69
a lembraa é em larga medida uma reconstrução do passado com a ajuda de
dados emprestados do presente, e além disso, preparada por outras
reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora
manifestou-se já bem alterada (1990, p. 71).
Sendo assim, o contato que teve com Lorca foi indireto por meio de seus livros e
do que a História conta acerca dele. Ao afirmar: “bebi na tua boca a fúria de umas águas/ Eu,
que mastiguei tuas conquistas e que depois chorei”, põe Lorca não só como a dedicatória, não
como obra referenciada, mas também como o seu interlocutor direto. Beber e mastigar são
ações que indicam amálgama, mistura, assim ela funde a literatura de Frederico García Lorca
e a História de Frederico García Lorca à sua e a daqueles que a lerem, garantindo, dessa
maneira, que a poesia exerça a sua função de preservar memórias e construir outras.
Finalizando o poema com a afirmação “Dor de te saber tão morto”, HH não se refere à sua
obra que ainda sobrevive, atravessou o século e ainda é lida e reverenciada por muitos, mas
aos ideais do homem Frederico García Lorca. Paradoxalmente, ao realizar tal assertiva, o
poema evoca tais ideais humanitários e os revivifica.
Todo artista, ao se expressar por meio de suas obras, está perpassado não só por
suas lembranças, mas também pelas lembraas da coletividade. Se memória histórica é
compreendida como a sucessão de acontecimentos marcantes na história de um país, de uma
sociedade (como assevera Halbwachs), os poemas de PHNT estão marcados por esta memória
histórica. Mas a dor apresentada nesse texto pela perda do seu Companheiro, não é apenas
coletiva, mas, sobretudo, pessoal. Na luta contra o esquecimento (Lethe), a poeta vai da
memória coletiva à individual, a fim de tentar a permanência não daquilo que a poesia
referencia em seu conteúdo, mas também do próprio fazer poético e do poeta. Ao recordar
momentos hisricos, também tenta recordar a própria função clássica e mítica do poeta, esses
seres “tatuados de infância”. A infância que se refere a um passado, a tatuagem que alude
tanto a dor quanto à permanência.
Quando homenageia Solzhenitsyn e faz uma apologia a Lorca, transforma seus
poemas em lugares de memória os quais para Pierre Nora “são simples e ambíguos, naturais e
artificiais, de uma só vez imediatamente disponíveis à experiência sensual e concreta e
suscetíveis à mais abstrata elaboração” (1984, p. 27). Seus poemas são materiais, simbólicos e
funcionais como todo lugar de memória deve ser.
70
A lembrança que HH mais quer evocar é a necessidade de humanização dos
homens, ao mesmo tempo em que aponta a revalorização do poeta e da poesia, assim como a
importância da memória para a manutenção da sociedade, como meio de salvá-los. Como
profere Carlos Felipe Moisés: “A poesia, enfim, pode nos tornar mais humanos” (2007, p.
112). Ou como garante HH:
Escrever é sofrer uma transformação essencial. Uma transformação ética que
leva ao político: a linguagem e a sintaxe passam a ser intrinsecamente atos
políticos de não-pactuação com o que nos circunda e que tenta nos enredar
com seu embuste, a sua mentira ardilosamente sedutora e bem armada. [...]
Eticamente algum escritor, alguma pessoa pode assumir a tremenda
responsabilidade de romper limites e revelar ao outro que ele pode ser muito
mais e pode ser ele mesmo com liberdade total de qualquer tipo de repressão
política, econômica, sexual, religiosa, psicológica [...]
53
E arremata sua fala assumindo, muitos diriam que pretensiosamente, essa
responsabilidade para si: “Quando eu escrevo, é porque eu sinto uma vontade insuperável de
dar ao outro que vai me ler, espero, uma grande abertura de intensidade”. Com declarações
como essa, HH ratifica os seus propósitos e a força que ela conferia ao fazer literário.
53
RIBEIRO, Léo Gilson. Tu não te moves de ti, uma narrativa tripla de Hilda Hilst. O Estado de São Paulo, SP,
16 mar. 1980.
71
3. MISTÉRIOS DOLOROSOS:
O ser poeta te sabe a ornamento
Apesar de ser perceptível a importância que HH atribui ao poeta e a seu fazer
literário, como se mostrou no capítulo anterior, é possível encontrar em sua obra também o
reconhecimento de que tal postura não é unânime em meio à sociedade. Muitos de seus
poemas demonstram uma preocupação com o fazer poético na conjuntura contemporânea,
marcada por uma supremacia tecno-científica. A relão dos escritores com o mercado, com
os leitores ou com a falta deles, a oposição entre as prioridades do poeta e da sociedade
capitalista estão presentes ao longo de sua obra. Por meio de seus textos literários e de
entrevistas concedidas por ela principalmente aos jornais Estado de São Paulo e Folha de São
Paulo, procura-se estudar suas reflexões sobre a contemporaneidade marcada pela sociedade
de consumo e pela reificação do homem, assim como a sua reação contra a negligência com a
qual, muitas vezes, a arte literária, em especial a poética, e seus promotores, dentro desse
contexto, a seu ver, é tratada.
3.1 A negação do poeta
Jorge de Lima em seu poema Adeus, poesia afirma: “Senhor Jesus, o século está
podre./Onde é que vou buscar poesia?” (1997, p. 347). Nesses versos, ele demonstra uma
preocupação acerca da situação da poesia que resvala em outra com o próprio homem do
século XX. uma postura semelhante na obra literária hilstiana. HH incita, em seus
pronunciamentos e em sua atividade literária, reflexões sobre o poeta e a poesia em meio à
sociedade capitalista, assunto que tanto a inquietou uma vez que sua visão soteriológica da
poesia passou a ser cada vez mais contrastante com a realidade circundante.
Assim como em vários de seus poemas, HH tenta difundir essa idéia de salvação
pela poesia, do poeta como o escolhido, ela também deixa perceptível seus posicionamentos
acerca da contemporaneidade que nega essa postura. Muitas críticas existem acerca da
possibilidade de que o poeta (ou qualquer artista) use sua composição como um meio de
transmitir mensagem a seus leitores. Muitos têm a arte como um valor estético, um valor em
72
si, primeiro porque a poesia (ou a arte como um todo) não se restringiria a uma mera
comunicação de idéias filosóficas, políticas, religiosas pré-concebidas e transponíveis; depois,
porque, mesmo que o poeta pretenda isso, nada garante o êxito dessa sua pretensão. Contudo,
HH mesmo sabendo que a poesia é uma forma especial de saber que revela o homem ao
homem, não um mero propagador de mensagens deixa perceptível, em suas declarações,
que pretendia, realmente, além de tudo o mais que se espera de um texto poético, transmitir
uma mensagem de revelação da poesia (da sua importância) aos homens, de sua redescoberta.
Alcir Pécora, responsável por apresentar os livros hilstianos publicados pela
editora Globo, afirma sobre o livro JMNP que sua “síntese é uma verdadeira apologia ou
encômio da poesia” (2003, p. 13). Ela mesma admite ter uma proposta deliberada, mas, ao
mesmo tempo, reconhece a capacidade do leitor de exceder aquilo que ela propunha em sua
obra: “[...] Cada leitor pode ir, naturalmente, além do que propus, sendo a campainha de
disparo da sua realidade. Quando isso acontece, o autor está momentaneamente realizado.
54
Essa afirmação de HH remete tanto a questões que lidam com a análise textual
como as que trabalham com a intenção do autor (intentio auctoris) e a intenção do intérprete
(intentio lectoris). Apesar de não ser um objetivo desta dissertação, cabe aqui uma referência,
mesmo que sucinta, à reflexão contemporânea sobre os limites da interpretação. Mesmo que
essa questão se mantenha aberta e, por isso, passível de ser recolocada, não se deve perder de
vista que o texto se constrói por meio da interpretação, dessa forma a sua intenção é
revelada no ato de leitura. HH parece concordar com isso quando afirma que o leitor pode ir
além do que ela propôs.
Assim, tanto a análise intencionalista, que enfatiza o autor, como a
desconstrutivista, também chamada de radical, por dar soberania ao leitor, são vistas como
superadas pois “entre a intenção inacessível do autor e a inteão discutível do leitor está a
intenção transparente do texto, que invalida uma interpretação insustenvel” (ECO, 2003, p.
93). Nessa perspectiva, é a intenção do texto (intentio operis) que deve ser prevalecente. No
entanto, o próprio Umberto Eco alerta:
A intenção do texto não é revelada pela superfície textual. Ou, se for
revelada, ela o é apenas no sentido da carta roubada. É preciso querer vê-la.
Assim, é possível falar na intenção do texto apenas em decorncia de uma
54
HILDA, Hilst. Hoje ela vai lançar um novo livro. Poesias de quem sente uma necessidade incontida de
reencontrar o amor. Folha de São Paulo, São Paulo, 23, abril, 1974. Jornal da Tarde.
73
leitura por parte do leitor. A iniciativa do leitor consiste basicamente em
fazer uma conjectura sobre a intenção do texto (Ibidem, p. 74).
Diante disso, nada pode assegurar ao autor que a sua intenção seja percebida, mas
não se pode negar que essa intenção exista ainda que seja às vezes inescrutável ou
irrelevante” (1997, p. 29) como julgou Eco. Talvez por isso mesmo HH tenha concedido
tantas entrevistas (como se comprova ao longo desta dissertação que lança mão de diversos
trechos de entrevistas concedidas por ela) nas quais sempre tentava elucidar suas idéias sobre
os temas reincidentes em seus textos literários. A essa prática Massaud Moisés classifica
como intenção direta, exterior a obra, como se observa no seu célebre Dicionário de termos
literários:
INTENÇÃO: Lat. Intentio, onis, ação de dirigir, de estender. Designa
conjunto de volições, desejos, veleidades, aspirações, que motivam o
escritores a criarem uma obra literária. De modo genérico, a intenção revela-
se por meio de prefácios, ensaios, memórias, diários, cartas, etc; neste caso
define-se como intenção direta, exterior a obra. Quando não, poder ser
vislumbrada no interior da obra, depreendida de seu próprio
desenvolvimento, da sua estrutura ou do seu modo de encarar os fatos
esteticamente delineados. (1992, p. 240) (grifo nosso)
Em várias entrevistas são encontrados depoimentos de HH que mantêm uma
relação direta com sua obra (já foram relatados alguns exemplos disso nos capítulos
anteriores). Em vários momentos, ela faz uma referência a idéias que possuem sua obra:
[...] o simples nome das coisas o diz nada das coisas. Para descobrir o
segredo delas é preciso juntar as palavras, o espírito desarmado, e ter o
desejo intenso de se comunicar, de dar de si. “Esse é um tempo e medo”
[supõe-se que essa referência seja ao poema Congresso Internacional do
medo de Carlos Drummond de Andrade] diz Drummond, e diz muito bem.
Passar através desse medo e falar é o único caminho para o homem. Tudo o
que escrevi está possuído por essa idéia.
55
E é por meio de tais declarações a jornais que a poeta deixou explicito que tinha
ciência do quão difícil era tarefa de tocar o leitor ou, amesmo, de -lo no contexto ao qual
pertenceu. Ela reconhecia que:
55
HILDA HILST. Hoje ela lança um novo livro. Poesias de quem sente uma necessidade incontida de
reencontrar o amor. Folha de São Paulo, SP, 23 de abr. 1974. Jornal da tarde.
74
Não porque a minha literatura ter prioridade, existem coisas mais
imediatas. Daqui a algum tempo, talvez, quando as pessoas tiverem tempo e
vontade de olhar o mundo, de refletir. Normalmente, elas não têm tempo
para fazer isso. Elas em um livro e pensam: “Ah, mais tarde eu leio isso”.
56
Vale destacar o trecho: “quando as pessoas tiverem tempo e vontade de olhar o
mundo, de refletir”. Com essa afirmação, HH, ao mesmo tempo em que deixa clara a sua idéia
de que os textos literários o um meio de desalienar as pessoas (fazê-las olhar: perceber e
refletir: pensar), reconhece que vive em um período desfavorável para a literatura.
Perseguindo essa constatação de que a literatura não é mais prioritária para os
homens de seu tempo, é que este capítulo se faz. Analisar a poesia e o poeta à luz das
configurações da modernidade se assemelha a relacionar algo aparentemente inconciliável.
Pois as transformações econômicas e sociais, que têm seu grande marco no século XVIII e
XIX, com o advento da Revolução Industrial e o desenvolvimento de novas tecnologias de
forma cada vez mais dinâmica, geraram impactos nas relações não de trabalho, mas,
sobretudo, nas relações do homem consigo mesmo, com a arte em geral e com a poesia de
forma particular.
Diante de uma sociedade pautada no que se chama de capitalismos-industrial, a
poesia é o imensurável diante de um mundo de coisas de produtos a ideologias
mensuráveis: “Na conjuntura moderna do mundo ocidental, onde as relações se organizam em
torno da produção e do mercado, regidas pela gica do lucro e dos interesses imediatos em
que tempo é dinheiro’, a poesia parece não ter mais lugar relevante” (FONSECA, 2000, p.
45).
Num poema de Álvares de Azevedo contemporâneo do poeta considerado o
fundador ou pelo menos o mais exponencial poeta do lirismo moderno: Charles Baudelaire –,
encontra-se, em tom irônico, uma constatação dessa difícil realidade do poeta em meio a um
mundo que o faz perder a sua auréola
57
e se em desgraça diante da obrigação que suas
necessidades pecuniárias lhe impõem:
Minha Desgraça
56
ABREU, Caio Fernando. Deus pode ser um flamejante sorvete de cereja. Leia, [SP] jan. 1987. Entrevista
57
Vale ressaltar que para Baudelaire a perda da auréola do poeta é vista de forma positiva uma vez que, para a
personagem de seu poema em prosa, a dignidade entedia e, sem a áurea que o identificava e destacava, ele pode
circular incógnito como um simples mortal (1980). Dessa forma, ironiza a idéia do poeta como um escolhido que
HH, um século depois, tanto valorizou e tentou difundir.
75
Minha desgraça não é ser poeta,
Nem na terra de amor não ter um eco,
E meu anjo de Deus, o meu planeta
Tratar-me como trata-se um boneco...
Não é andar de cotovelos rotos,
Ter duro como pedra o travesseiro...
Eu sei... O mundo é um lodaçal perdido
Cujo sol (quem mo dera!) é o dinheiro...
Minha desgraça, ó cândida donzela,
O que faz que o meu peito blasfema,
É ter para escrever todo um poema
E não ter um vintém para uma vela (1999, p. 294).
A insatisfação do poeta para com a sua situação, constatada nesses versos
azevedianos, ocorre no século XIX, momento no qual a Revolução Industrial ainda estava em
fase de expansão pelo mundo. O ser poeta, a não-correspondência amorosa, a falta de controle
sobre seu destino, a falta de conforto, tudo isso não é em si o problema do eu-lírico, mas sim o
fato de viver em uma sociedade norteada pelos interesses pecuniários. O que é realmente a
desgraça do poeta: “ter para escrever todo um poema/ E não ter um vintém para uma vela”
comprova a dificuldade financeira interferindo diretamente na produção poética. A falta de
poder aquisitivo para se adquirir uma vela, que, na época, era ainda importante fonte de
iluminação no Brasil juntamente com os lampiões de azeite (o lampião a gás apenas foi
implantado no RJ após 1951, a eletricidade havia sido descoberta poucas décadas por
Benjamin Franklin e a lâmpada incandescente foi inventada em 1879 por Thomas Edison),
impediria a composição do poeta numa noite de inspiração.
Minha desgraça é um poema que integra a segunda parte de Lira dos Vinte Anos,
principal obra de Álvares de Azevedo. Nela se encontra uma crítica à sociedade burguesa que
contrasta com o lirismo da primeira parte desse livro. Não nesse poema como em outros,
Um caver de Poeta, O Editor, Dinheiro, a constatação da indiferença dos que eso no
poder com relação à poesia exatamente o que ocorre no livro JMNP: as primeiras partes,
como Dez chamamentos ao amigo, mais subjetivas, líricas; a última, PHNT, mais
contestatória, crítica). São poemas nos quais o poeta tematiza a si próprio e a banalidade da
vida burguesa a que estava submetido. Não se pode deixar de arrolar entre esses também o
poema Glória Moribunda
58
que integra as suas Poesias Diversas – consoante a organização de
José Emílio Major Neto (1999). Nele, as reflexões sobre o poeta são projetadas:
58
Poema na íntegra no ANEXO C
76
I
[...]
Sorris? eu sou um louco. As utopias,
Os sonhos da ciência nada valem.
A vida é um escárnio sem sentido,
Comédia infame que ensangüenta o lodo.
Há talvez um segredo que ela esconde;
Mas esse a morte o sabe e o não revela.
Os túmulos são mudos como o vácuo.
Desde a primeira dor sobre um cadáver,
Quando a primeira mãe entre soluços
Do filho morto os membros apertava
Ao ofegante seio, o peito humano
Caiu tremendo interrogando o mulo...
E a terra sepulcral não respondia.
Levanta-me do chão essa caveira!
Vou cantar-te uma página da vida
De uma alma que penou, e já descansa (p. 380).
X
[...]
E o mundo? Não me entende. Para as turbas
Eu sou um doudo que se aponta ao dedo.
A glória é essa. P'ra viver um dia
Troquei o manto de cantor divino
Pelas roupas do insano. – Os sons profundos
Ninguém os aplaudia sobre a terra.
Para um pouco de pão ganhar da turba,
Como teu corpo no bordel profanas.
- Fiz mais ainda! prostituí meu gênio
[...] (1999, p. 389).
O poeta enquanto o louco, o incompreendido que é obrigado pelas circunstâncias
a vender seu gênio, desvirtuar-se, macular-se em troca da sobrevivência, do pão. No poema,
há a referência a turba que é sinônimo de multidão em desordem. Uma multidão que
negligencia o poeta e que, em vez de vê-lo como divino, o como insano, o que se constata
nos versos quatro e cinco da segunda estrofe: “Troquei o manto de cantor divino/Pelas roupas
do insano”. A angústia do poeta, a sua inadequação ao contexto que se lhe apresentava, dessa
forma, são temas azevedianos.
Imagine-se, então, um poeta do século XX e XXI, período em que as mudanças
tecnológicas se intensificaram mais e a Cultura de Massa suscitada nesse novo contexto (e
auxiliada pelo avanço dos meios de comunicação) junto a uma indústria cultural, termo
cunhado por Theodor Adorno e Max Horkheimer no livro A Dialética do Esclarecimento
(1991), tornam equivalentes os produtos da arte aos produtos de qualquer indústria como a
77
automobilística que os faz em série e para atender um grande público uniformizado,
homogêneo. A classificação de cultura nacional, folclórica, popular, clássica, erudita etc. é
reprimida pela massificação cultural que se apresenta subordinada ao poder econômico do
capital industrial e financeiro. O artista também passa a ser peça dessa engrenagem na qual
não é mais visto como um ser iluminado ou escolhido, sua importância não é mais alcançada
pela genialidade de sua obra, mas pelo valor financeiro a ela agregado e pela quantidade de
lucro que ele pode gerar.
É a época dos Best-sellers na qual ser citado na lista dos mais vendidos é mais
importante do que o valor estético, literário de qualquer obra. E o poeta e a poesia e os
escritores em geral como se encontram em meio a esse turbilhão de coisas?
A obra hilstiana está atenta a tal realidade e em meio à velocidade, ao imediatismo
e ao utilitarismo contemporâneos, seus poemas tecem uma série de indagações que, assim
como as supracitadas composições de Álvares de Azevedo, falam acerca da condição do poeta
em meio à sociedade moderna:
VII
Sorrio quando penso
Em que lugar da sala
Guardarás o meu verso.
Distanciado
Dos teus livros políticos?
Na primeira gaveta
Mais próxima à janela?
Tu sorris quando lês
Ou te cansas de ver
Tamanha perdição
Amorável centelha
No meu rosto maduro?
E te pareço bela
Ou apenas te pareço
Mais poeta talvez
E menos séria?
O que pensa o homem
Do poeta? Que não há verdade
Na minha embriaguez
E que me preferes
Amiga mais pacífica
E menos aventura?
Que é de todo impossível
Guardar na tua sala
Vesgio passional
Da minha linguagem?
Eu te pareço louca?
78
Eu te pareço pura?
Eu te pareço moça?
Ou é mesmo verdade
Que nunca me soubeste? (HILST, 2003, p. 22-23)
Como afirmara Gullar “Um mundo povoado de deuses ou iluminado pela teologia
é mais propício ao trabalho do poeta do que o nosso, onde pedra é pedra e pau é pau” (1989,
p. 15). Nesse mundo onde a capacidade de abstração é comprometida, nesse lodaçal perdido
de que falou o poema azevediano, tudo parece impingir o poeta a ser ou deslocado ou diluído
em meio aos aglomerados humanos que formam as cidades, em meio à multidão.
Nota-se, a partir de tal comparação, que HH tem uma postura que muito a
aproxima de um viés romântico. Assim como Álvares de Azevedo, em meio a seus poemas
altamente líricos e ultra-românticos que tinham o amor e a morte como temáticas
preponderantes, colocou reflexões sobre a modernidade e sobre o fazer poético, HH realizou o
mesmo e, através dessa postura, levantou a mesma indagação de Azevedo e demonstrou o
descontentamento do sujeito-empírico por meio do sujeito-lírico para com a realidade em que
está inserido.
Qual a posição do poeta? É justamente sobre essa indagação que o poema VI de
Dez chamamentos ao amigo se debruça. O poema é um chamado e um diálogo não só com o
amado, como também com o leitor. No poema de Azevedo, também se mantém um diálogo
entre sujeito-lírico e leitor. O primeiro verso se inicia com a pergunta direta ao leitor Sorris?.
Tal pergunta mostra o sarcasmo daquele que e ridiculariza o poeta em sociedade, esse
sorriso visa ao rebaixamento daquele que é o seu alvo: o poeta, objeto do desdém, do
desprezo daqueles que por ele passam. Esse comportamento de deboche do homem para com
o poeta, leva-o a uma conclusão (exagerada como se espera de um texto romântico) de que: “a
vida é um escárnio sem sentido”. No início do poema VI de HH, o sorriso também se faz
presente e também é um sorriso de escárnio, de ironia. que agora um sorrir de quem sabe
ou já cogita as respostas das perguntas que faz e prevê que não serão positivas.
-se, em ambos, o sorriso sem alegria sendo manifestado por diferentes
elementos da comunicação: em um, o sorrir produzido pelo interlocutor da mensagem (o
leitor); no outro, um sorrir emitido pelo locutor da mensagem (o poeta). Não é o sorriso
estridente, mas o entre dentes. É o sarcasmo de ambas as partes sob a forma do riso. Dizem
que o riso é um prazer com a miséria alheia, pode-se acrescentar que o riso é também um
prazer com a própria miséria. A idéia que Bergson defende em seu livro O risoensaio sobre
79
a significação da comicidade de que o escracho começa quando a capacidade de comoção se
encerra e a de que o riso pode ser também um instrumento de humilhação se manifesta no
sorrir de ambos os poemas (2001).
Zaratustra, famosa personagem nietzscheana, conhecido como o risonho não
defendeu a canonização do riso “Canonizei o riso; aprendei a rir, homens superiores” (2000,
p. 224) como também o estimulou como uma forma de zombar daqueles que se apresentam
como superiores, entre os quais, o poeta:
Eu ordenei-lhes que derribassem as suas antigas cátedras. E onde quer que
exista essa estranha presunção. Mandei-os rir dos seus grandes mestres da
virtude, dos seus santos, dos seus poetas e dos seus salvadores do mundo.
Mandei-os rir dos seus sábios austeros, [...] à semelhança dos pregadores de
quaresma e dos loucos, fulminei anátemas contra as suas grandezas e
pequenezes como é pequeno o melhor deles! E igualmente pequeno o pior!
Assim me ria (2000, 153-154).
Essa ordem zaratustriana vai de encontro às pretensões hilstianas de refazer o
poeta como mestre da verdade, mas vai ao encontro da postura que muitos têm acerca do
poeta contemporaneamente. Continuando suas reflexões sobre essa postura, o eu-lírico tece
uma série de perguntas ao amado/leitor. Ao indagar a seu amado-leitor em que lugar da
sala/guardarás meu verso?”, indaga, também, à sociedade contemporânea: qual o lugar do
poeta e de suas composições? O que pensa a sociedade sobre ele? Seria o poeta o menos
sério, o louco, a aventura, o desconhecido, o possuidor de qualidades que o mundo rechaça
por contradizer a objetividade do mercado cultural, consumidor, financeiro? Tais indagações
revelam todo o desajuste entre o sujeito-lírico e uma realidade que ele percebe incompatível
consigo. “A poesia há muitoo consegue integrar-se, feliz, nos discursos correntes da
sociedade. [...] descompasso crescente entre a praxe dominante e o sacerdote-poeta” (BOSI,
1993, p.143).
Neste tempo no qual as profissões tecno-cienficas são colocadas
hierarquicamente em uma posição de maior prestígio e as artes o vistas ora como mero
entretenimento ora como uma falta do que fazer, a ociosidade necessária para reflexão e para
criação é vista como vagabundagem. O homem que mais vale é o que mais detém os meios de
produção dos bens de consumo e o que mais os consome, as constatações de Álvares de
Azevedo ainda se fazem atuais; e as indagações de HH, muito pertinentes. Como denuncia
Barthes:
80
O mito do grande escritor francês, depositário sagrado de todos os valores
superiores, desgasta-se, extenua-se e morre pouco a pouco com cada um dos
últimos sobreviventes do peodo entre as duas Guerras [...] os valores
antigos não se transmitem mais, não circulam mais, não impressionam mais;
a literatura está dessacralizada, as instituições estão impotentes para protegê-
la e impô-la como modelo implícito do humano (2002, p. 41-42).
Para se provar tais constatações, podem ser apresentados não poemas, mas
excertos da prosa hilstiana. Nela, HH também faz emergir as relações entre a literatura e a
realidade que com ela contrasta, como a realidade do mercado editorial que atinge mais
diretamente ainda o escritor:
– Papai é um escritor – eu disse.
– É um grande escritor.
– Mas ninguém lê ele
– É, mas agora vão ler.
– Por quê?
– Porque ele vai contar a história do jeito que o Lalau [o editor] gosta
(HILST, 2005b, p. 29).
Esse trecho pertence ao livro O Caderno Rosa de Lori Lamby e mostra uma
menina de oito anos de idade filha de um escritor que não vende. Ela quer ajudar o pai a se
tornar um escritor vendável, um escritor que seja lido. Mas, para vender e vender muito, há de
se submeter às regras do editor e, assim, gerar lucro.
Em outra prosa, Fluxo, do livro Fluxo e Floema, fica claro como HH vê a
inadaptação do artista, incompreendido por indivíduos já impregnados por outros valores:
E VOCÊS DOIS QUEM SÃO? Responde corretinho, Ruiska. Sabem eu
escrevia, e esse aqui sou eu mesmo, mas do cone sombrio. PÁRA AÍ. Um
escritor, senhores, muito bem, o que escreves? Escrevia, sabem, sobre essa
angústia de dentro. PÁRA AÍ. Senhores, eis aqui, um nada, um merda neste
tempo de luta, enquanto nos despimos, enquanto caminhamos pelas ruas
carregando no peito um grito enorme enquanto nos matam, sim porque nos
matam a cada dia, um merda escreve sobre o que a angústia, e é por causa
desses merdas, desses subjetivos do baralho, desses que lutam pela própria
tripa, essa tripa de vidro delicada, que nós estamos aqui mas chega, chega,
morte à palavra desses anêmicos do século, desses enrolados que se dizem
com Deus [...] (2003c, p. 66).
Ainda nesse trecho, em sua defesa, o escritor responde: “não sou desses não,
quando falo de mim quero falar de ti, nós dois e todos, s todos somos um, entende?” (Ibid,
p. 66). No poema IV de PHNT, o sujeito-lírico reitera a idéia: “Não te enganas, homem, meu
irmão,/Quando dizes na noite, que a mim me vejo./Vendo-me a mim, a ti. E a esses que
81
passam”
59
(2003, p. 113). Os textos dialogam. Complementam-se. Neles, a intertextualidade
temática se apresenta e colabora com a sustentação da tese de que HH tinha uma proposta
deliberada.
Essa simbiose entre o poeta e o leitor (“vendo-me a mim, a ti”, “quando falo de
mim, falo de ti”) remete a Octávio Paz. Em seu livro A outra voz (1990), esclarece que o
poeta canta um eu que é um tu e um nós (1993). Embora pareça ser o poeta o egoísta, ele age
altruisticamente em prol do outro visto que, ao falar do aparentemente individual, o poeta fala
da coletividade. Deve ser acrescentado nesse ponto o conceito de alteridade. Contrária a
identidade, a alteridade se baseia na idéia de interdependência entre os indivíduos, a
existência de um é possível diante do contato com o outro, d ser chamada também de
outridade. O leitor existe a partir do olhar do poeta e vice-versa. A crise de um é a crise do
outro.
Seja atras da máscara de personagens e narradores ou por meio do sujeito-lírico,
HH deixa explicito todo o seu ressentimento para com a sociedade que, de acordo com ela,
não a e não a entende. Ao mesmo tempo, mostra preocupação com o estado de
fragmentação no qual se encontram os homens de seu tempo. Como constata Pécora: “Há em
Júbilo, memória, noviciado da paixão uma veemência política de defender as alturas da sua
condição contra a vulgaridade, a banalidade pessoal, social e também contra a banalidade
política (2003, p.13).
3.1.1 A poesia como contra-ideologia
Ao se observar textos de teoria literária, nota-se, por vezes, a utilização que eles
promovem de rios conceitos marxistas. Entre eles, estão as duas esferas em que Marx
divide a estrutura social: a infra-estrutura e a superestrutura. A primeira é a estrutura
econômica da sociedade que tem por base as forças e as relações de produção. Enquanto que a
outra compreende o as formas políticas e jurídicas como também a estética, a religião, a
ética que constituem a ideologia. Mas o vocábulo ideologia não deve ser considerado, nesta
dissertação, por meio da concepção coloquial desgastada pelo uso indiscriminado do termo,
que o tem vulgarmente como apenas um conjunto de idéias ou uma espécie de visão de
mundo, mas sim pela concepção marxista.
59
Poema na íntegra no ANEXO C
82
Forjado, primeiramente, em 1796, por Desttut de Tracy, filósofo frans, o termo
ideologia designava a ciência das idéias. Posteriormente, desabonado por Napoleão Bonaparte
uma vez que via em De Tracy, que defendia o pensamento republicano, uma oposição às
suas pretensas ações autocráticas esse termo não foi apenas contestado, mas também passou
a ser associado a uma acepção negativa como se seus seguidores (denominados por Bonaparte
de ideólogos) fossem meros deformadores da realidade. É com essa visão mais pejorativa do
termo ideologia que, Marx, em A ideologia alemã, com o seu Materialismo Histórico, refutou
o Idealismo de Hegel.
Mesmo tendo por influência a filosofia hegeliana, Marx não se apegou a noção de
espírito universal, optou por uma filosofia prática e criou obras que, segundo ele pprio,
tinham objetivos mais práticos e políticos como deixa claro em sua conhecida frase: “Os
filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é
transformá-lo
60
. Essa frase mais que uma afirmação é a última das 11 teses que integram as
Teses sobre Feuerbach escritas em 1845, nas quais ele define os preceitos de seu
materialismo através do qual defendia a idéia de que o que gera as mudanças em todos os
setores da sociedade e nos rumos da hisria são, principalmente, as forças econômicas.
Para ele, as condições materiais determinavam as espirituais, negando, assim, a
teoria hegeliana, e a ideologia era apenas uma falsa consciência
61
que dissimula a realidade
para atender aos ideais, às vontades da classe dominante (MARX, 1989).
Se as condições materiais sustentam os pensamentos e idéias dos homens como
transmite a teoria marxista, então, a superestrutura ou a ideologia são reflexos da infra-
estrutura e, condicionados pelos meios de produção, portanto, representam os interesses da
classe dominante e determinam o modo de pensar da sociedade. Considerando esses
conceitos, não literatura, mas a arte como um todo, é (juntamente com as instituões
políticas, as leis, a religião, a moral, a filosofia e a ciência) superestrutura, logo, conforme
essa teoria, a literatura é também um meio de corroborar, de representar o poder da classe
dominante. Para o marxismo, [...] compreender a literatura significa, pois, compreender a
totalidade do processo social de que ela faz parte” (EAGLETON, 1995, p. 18).
60
MARX, Karl. Teses sobre Feueebach < http://www.marxists.org/portugues/marx/ 1845/tesfeuer.htm> Acesso
em 02 outubro 2008.
61
Falsa consciência: a classe dominante faz com que os indivíduos acreditem que precisam apenas seus próprios
esforços para ascenderem, evitando conflito de classes. Dessa forma, cria-se a falsa consciência à qual a classe
dominada é submetida, o que a faz o se reconhecer como classe e, por isso, perder sua força de reação. A
classe dominada passa a ter uma consciência manipulada, não real, o que a mantém subordinada à classe
dominante.
83
Mas considerar as obras literárias apenas como reflexos da ideologia dominante
seria vê-las por um viés reducionista. Eagleton, em seu livro Marxismo e Crítica Literária,
comunica que: “A literatura pode fazer parte da superestrutura, mas não é um simples reflexo
passivo da base econômica” (Ibid, p. 21). Sem contar que existem as obras literárias que
desafiam a ideologia por se confrontarem com ela como bem atesta Ernest Fischer: “A
autêntica obra de arte transcende sempre os limites ideológicos da sua época, proporcionando-
nos a percepção das realidades que a ideologia esconde” (apud EAGLETON, 1995, p. 31).
É a partir desse pensamento que este sub-capítulo foi elaborado uma vez que parte
do pressuposto de que a arte se relaciona com a ideologia, mas não se reduz a ela e, por vezes,
até mesmo a ela se opõe. Para isso, dois poemas de HH retirados do livro JMNP da parte
privilegiada por esta dissertação: PHNT. Parte na qual demonstra mais explicitamente uma
preocupação social e se coloca como alguém atenta às características da contemporaneidade
e do sistema político e econômico que a compõem, a eles se opondo, o que leva sua obra não
a confirmar a ideologia, mas a contestá-la.
A conjuntura atual é hostil ao fazer poético, mas o fazer poético enfrenta essa
conjuntura. Como no poema:
XIII
Ávidos de ter, homens e mulheres
Caminham pelas ruas. As amigas sonâmbulas
Invadidas de um novo a mais querer
Se debruçam banais, sobre as vitrines curvas.
Uma pergunta brusca
Enquanto tu caminhas pelas ruas. Te pergunto:
E a entranha?
De ti mesma, de um poder que te foi dado
Alguma coisa mais clara se fez? Ou porque tudo se perdeu
É que procuras nas vitrines curvas, tu mesma,
Possuída de sonho, tu mesma infinita, maga,
Tua aventura de ser, tão esquecida?
Por que não tentas esse poço de dentro
O incomensurável, um passeio veemente pela vida?
Teu outro rosto. Único. Primeiro. E encantada
De ter teu rosto verdadeiro, desejarias nada (HILST, 2003, p. 122).
Nota-se, nos primeiros versos do poema XIII, uma referência contestatória do
processo de alienação ao qual o homem é submetido: “Ávidos de ter, homens e mulheres/
Caminham pelas ruas”. Este caminhar pelas ruas remete a O homem na multidão de Edgar
84
Allan Poe conto no qual apresenta uma personagem que observa e revela os indivíduos os
quais constituem as multidões que habitam o centro urbano:
Essa era uma das artérias principais da cidade e regurgitara de gente durante
o dia todo. Mas, ao aproximar-se o anoitecer, a multidão engrossou, e,
quando as lâmpadas se acenderam, duas densas e contínuas ondas de
passantes desfilavam pela porta. [...] Olhava a massa de transeuntes e os
encarava sob o aspecto de suas relações coletivas [...] Muitos dos passantes
tinham um aspecto prazerosamente comercial e pareciam pensar apenas em
abrir caminho através da turba. (1999, p. 164).
que, ao contrário da postura hilstiana de refutação a tal paisagem, no conto
poediano o narrador chega a afirmar que essa situação atribuiu-lhe: “uma emoção
demasiadamente nova” (ibid, p. 164), é o flâneur “observador do mercado” (1989, p. 199)
como afirmou Walter Benjamin. E não essa personagem anônima sentada em um café
londrino foi seduzida pelo movimento da cidade moderna, como também o poeta Baudelaire
que, de acordo com Benjamin, tornou-se um investigador do ambiente urbano. Inclusive
Baudelaire não apenas traduziu esse conto de Poe para frans, mas fez também a tradução da
obra em prosa poediana e escreveu ensaios sobre ele. Ainda obras teóricas baudelairianas
acerca da modernidade, como o livro Sobre a modernidade, que comprovam toda a sua
preocupação em divulgar seus pensamentos acerca dessa temática.
No entanto, apesar de constatar uma fascinação pela cidade na obra baudelaireana
e que no texto de Poe os “transeuntes se comportam, como se adaptados à automatização,
conseguissem se expressar de forma automática” (Ibid, p. 126), Benjamin afirma que (talvez)
Poe e Baudelaire ainda não tivessem a exata noção do processo de trabalho industrial (1989,
p. 126). Poe descreve Londres; Baudelaire, Paris, ambas do século XIX, e HH, São Paulo do
século XX, todas grandes centros urbanos. Mas não se pode afirmar que a urbanidade gere
fasnio em HH, e sim avero.
Essa massa de transeuntes, a qual o poema se refere, a caminhar pela rua em
hordas como que hipnotizadas indo e vindo dentro de um cotidiano alienado faz remeter
mesmo à crítica feita por Chaplin em seu famoso filme Modern Times (1936) que se inicia
com imagens de um rebanho de ovelhas logo substituídas pela de um grupo de operários que
saía da fábrica. Essa sucessão de imagens realiza a comparação que retrata perfeitamente a
homogeneização e a alienação do homem. Essas mesmas críticas estão contidas no poema
hilstiano, produzido em um contexto no qual um estágio ainda mais avançado de
85
industrialização do que os vividos por Poe e Baudelaire uma vez que HH, por mais que a
industrialização brasileira tenha sido tardia, viveu um momento que alguns nomeiam de
Terceira Revolução Industrial, uma revolução muito mais abrangente que as anteriores por
englobar mais países e maior avanço tecnológico.
A alienação como descrita no poema (“Invadidas de um novo a mais querer / Se
debruçam banais, sobre as vitrines curvas”) foi uma das preocupações centrais de Marx que a
destaca no livro Os manuscritos Econômicos - Filosóficos, conhecido também como Os
manuscritos de 1844. Na concepção marxista:
a alienação do trabalhador no seu produto significa não que o trabalho se
transforma em objeto, assume uma existência externa, mas que existe
independentemente, fora dele e a ele estranho, e se torna um poder aunomo
em oposição com ele (MARX, 1991, p. 160).
Ao criar a imagem das “amigas sonâmbulas”, o eu-lírico alerta o leitor para essa
realidade alienada da qual faz parte. A avidez pelo ter remete a outro termo utilizado por
Marx: o fetichismo. A palavra fetichismo se origina da palavra feitiço que significa tanto
postiço, artificial, falso como também encanto, fascinação, fasnio. É relacionada inclusive à
feitiçaria e, por isso, designa aquilo que exerce poder sobrenatural sobre alguém. Ao utilizar
tal termo, Marx o liga à mercadoria a qual passou, dentro do sistema capitalista, a exercer
controle sobre o seu comprador, um controle muitas vezes abstrato, invivel, que nem sempre
está no produto em si, mas no que a ele é atribuído (felicidade, satisfação, status etc.).
As relações sociais passaram a ser mediadas pela mercadoria e também os seres
humanos, tudo passa a contar como mercadoria, o que implica a reificação das relações
sociais e, consequentemente, do pprio homem. À medida que as coisas são humanizadas, o
homem é coisificado, o que desemboca numa fragmentação da sociedade e numa
desumanização do homem, efeitos diretos de todo o processo de: alienação, fetichismo,
reificação que formam a lógica do mercado capitalista. Para alertar ao homem dessa
desumanização, HH tenta incitar o leitor à reflexão, por meio de perguntas entre as quais: “E
a entranha?” ou ainda “Tua aventura de ser, tão esquecida?”.
Voltar-se para a entranha, é pensar-se. O poema, ao transmitir tal indagação, induz
o homem/leitor à meditação, à contemplação para que ele pondere sobre a realidade a qual
integra e tenha mais discernimento sobre si mesmo. A partir dessas perguntas, o incita
reflexões sobre a realidade, mas chega, até mesmo, a propor uma reação “Por que não tentas
86
esse poço de dentro”. Ao realizar esse alerta aos leitores, o poema não está servindo ao
sistema, e sim confrontando a ideologia das instituições político-econômicas que vigem e,
portanto, o confirma a superstrutura, tenta contestá-la.
Destaquem-se outros trechos do poema XIII como: “Invadidas de um novo a mais
querer/Se debruçam banais, sobre as vitrines curvas”. É nítida, nesses versos, a referência ao
consumo. Deparar-se com a imagem de pessoas debruçadas sobre vitrines, lembra o livro O
sistema dos objetos de Jean Baudrillard que a isso se refere afirmando que a vitrine é
embalagem, janela ou muro, nela o vidro encontra uma transparência sem transição na qual se
vê, mas não se pode tocar, o que a leva a ser encantadora e frustrante, mas é também
informação, que é a própria estratégia da publicidade (2002). Ainda conforme Baudrillard, é
através da personalização que as pessoas se definem em relação a seus objetos; estes
constituem uma gama de critérios distintivos, mais ou menos arbitrariamente catalogados em
uma gama de personalidades estereotipadas” (Ibid, p. 223). Os homensbanais por agirem de
forma homogênea, desindividualizada em meio a isso se convertem em tão somente cópias
das imagens que deslumbram nas vitrines. Quanto a essa sociedade de imagens consumidas
esteticamente como as apresentadas pelas vitrinas, alertou Guy Debord: “A espetacularização
das imagens no mundo se realiza no mundo da imagem autonomizada” (1997, p.13) ou ainda:
O mundo presente e ausente que o especulo faz ver é o mundo da
mercadoria dominando tudo o que é vivido. E o mundo da mercadoria é
assim mostrado como ele é, pois seu movimento é idêntico ao afastamento
dos homens entre si e em relação a tudo que produzem (Ibid, p. 28).
A imagem das vitrines é retomada no décimo verso e confirma essa afirmação do
Debord: “Ou porque tudo se perdeu/É que procuras nas vitrines curvas, tu mesma”. É
importante recorrer novamente a Baudrillard: “Ao copiarmos tautologias, também nos
tornamos tautologias: candidatos a ser o que somos [...] procuramos modelos e contemplamos
o nosso próprio reflexo” (1991, p. 209). As vitrines, ao mesmo tempo em que atraem e
distanciam, induzem o homem a novos quereres que o fazem gastar seu tempo no esforço para
possuir aquilo que se lhe mostra. Mais do que no consumo, a sociedade se pauta no
consumismo que pode ser definido como a ação de comprar serviços ou produtos
prescindíveis ao homem, e a vitrine é um de seus promotores. Sua principal característica é a
compulsividade; seu principal gerador, a propaganda que agrega valores psicológicos, sociais
87
e pecuniários aos produtos adquiridos por mais que em si muitos deles sejam supérfluos para
a exisncia humana.
Assim, esse poema, em especial os trechos destacados, novamente confirma a
posição de HH contrária à reificação, ao fetichismo e à alienação, e comprova que a literatura
pode sim confrontar o estabelecido e funcionar como uma espécie de contra-ideologia ao
mesmo tempo em que combate fatores que conduzem o homem a distanciar-se da poesia e da
arte.
Tais fatores, de acordo com o que foi analisado, são justamente oriundos do
processo de industrialização. Walter Benjamin novamente deve ser mencionado pois, em seu
ensaio A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução, ele discorreu sobre a perda
que a arte sofre de sua autenticidade no contexto da modernidade, o que a democratiza,
fazendo-a passar a atingir a massa (o que ele vê como algo parcialmente positivo uma vez
que a deselitiza), entretanto, por outro lado, fez com que as obras artísticas perdessem sua
aura
62
(1980).
O dístico final (“Teu outro rosto. Único. Primeiro. E encantada/De ter teu rosto
verdadeiro, desejarias nada”) muito tem a ver com outra declaração de HH a Léo Gilson
Ribeiro publicada no jornal O Estado de São Paulo quatro anos após o lançamento de JMNP:
“Será que alguém terá a coragem de tirar todas as máscaras e existir com o rosto [?]”
63
. Várias
de suas declarações publicadas em jornal, como essa, dialogam com seus textos literários isso
faz com que suas intenções sejam ratificadas, caso não fossem percebidas por meio dos textos
poéticos, que como “A simples transparência não é uma virtude em poesia”
64
, com certeza
seriam por meio de suas declarações a jornais e revistas.
Seguindo o contexto do poema VIII, o poema XVI dos PHNT se faz. Toda
supervalorização do consumir e da aparência em detrimento do conhecer-se tratada naquele
poema conduz o homem a uma posição de desvalorização de tudo o que se propõe a lidar com
o Ser, com as entranhas e, consequentemente, com a literatura que tem no Ser seu tema
basilar. Como alertou HH:
62
A aura no conceito bejaminiano é aquilo que garante autenticidade a uma obra de arte. A reprodução da arte
imposta pelo mercado deprecia o objeto artístico que passa a não ser mais único, assim a “perda da aura” seria,
principalmente, a perda da unicidade.
63
RIBEIRO, Léo Gilson. Tu não te moves de ti, uma narrativa tripla de Hilda Hilst. O Estado deo Paulo, SP,
16 mar. 1980.
64
PERLOFF, Marjorie. A poesia pertence a seu tempo Disponível em <http://www.unicamp.br/ unicamp/
unicamp_hoje/ju/abril2005/ju283pag06.html> Acessado em 01 fevereiro 2009.
88
O homem, num sentido genérico, precisa acordar. Não é real a imagem que
ele procura manter, não entrega jamais. Através da expressão literária
pode-se ajudar nisso. Transcender a palavra com a ajuda da palavra é um
caminho.
65
O poema XVI demonstra justamente que o poeta reconhece essa indiferença com
a qual é tratado e reage a esse estado de coisas por meio de uma crítica a um outro
componente da sociedade coeva que intensifica essa posição desprivilegiada da arte e
fragmentada do homem: o acúmulo de capital.
XVI
Enquanto faço o verso, tu decerto vives.
Trabalhas tua riqueza, e eu trabalho o sangue.
Dirás que sangue é o não teres teu ouro
E o poeta te diz: compra o teu tempo
Contempla o teu viver que corre, escuta
O teu ouro de dentro. É outro o amarelo que te falo.
Enquanto faço o verso, tu que não me lês
Sorris, se do meu verso ardente alguém te fala.
O ser poeta te sabe a ornamento, desconversas:
“Meu precioso tempo não pode ser perdido com os poetas”.
Iro do meu momento: quando eu morrer
Uma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo:
MORRE O AMOR DE UM POETA.
E isso é tanto, que o teu ouro não compra,
E tão raro, que o mínimo pedaço, de tão vasto
o cabe no meu canto (HILST, 2001, p. 125).
“Trabalhas a tua riqueza”. Riqueza é o acumulo de dinheiro, semovente e
propriedades móveis e imóveis. Na teoria marxista, são a terra e o trabalho os principais
geradores de riqueza material. “À primeira vista, a riqueza burguesa aparece como uma
enorme acumulação de mercadorias, e a mercadoria isolada como seu modo de ser elementar”
(MARX, 2000, p. 57). Jameson afirma que: “A ctica do consumo de mercadorias corre em
paralelo com a crítica do próprio dinheiro, onde o ouro é identificado como elemento
corrosivo supremo, atacando os vínculos sociais” (2001, p. 28). E é a essa corrosão
promovida pelo ouro a que o poema em questão remete: é em busca por esse ouro (riqueza)
que o viver corre (perde-se), a ele o viver limita-se. A imagem do ouro nas imagens do poema
65
HILDA HILST. Hoje ela lança um novo livro. Poesias de quem sente uma necessidade incontida de
reencontrar o amor. Folha de São Paulo, SP, 23 de abr. 1974. Jornal da tarde
89
é trabalhada em duas concepções contrárias: de um lado, o ouro do burguês; do outro, o ouro
do poeta.
O ouro, diacronicamente, foi empregado como padrão para várias moedas no
mundo, serviu, por diversas vezes, como reserva de valor. Ainda hoje o mercado do ouro
que faz parte dos mercados de risco como o mercado de ões. Suas cotações são
determinadas em concordância com a lei da oferta e da procura. Nesse contexto, o ouro faz
parte do acúmulo de riquezas do indivíduo por gerar renda. Enquanto que o outro ouro do
qual o poeta fala, “o ouro de dentro”, fala do “incomensurável”, do “poço de dentro
transmitidos na poesia anterior, destacando mais uma vez uma das mensagens passadas por
HH: a substituição de uma atitude automática de compra, de acúmulo de bens e capitais por
um “comprar teu tempo”, por um viver para si, um conhecer-se, um desalienar-se.
Para mim, a palavra escrita toca de maneira visceral o ser humano. Mais que
o cinema que pode arranhar os problemas mas não consegue chegar a seu
âmago. Olhar as coisas, o “de dentro” das coisas, é o que importa. E olhar é
perguntar constantemente. Isso exige tempo, é verdade. Camus diz que “o
dinheiro compra o tempo”.
66
Mais uma vez, suas declarações jornalísticas vêm ao encontro de seus versos.
Com a referência que faz a Camus, fica explicito que ela se apodera de sua leitura para
compor o quarto verso do poema em questão: “E o poeta diz: compra teu tempo”. Assim,
novamente uma imbricação entre sua declaração, a frase de Camus e esse verso. Parece
mesmo que ela estava fazendo um verdadeiro esclarecimento sobre esse poema uma vez que
até a expressão de dentro, contida em “escuta/teu ouro de dentro”, ela aludiu utilizando as
mesmas palavras.
Nessa entrevista, como em outras, ela parece parafrasear seu próprio poema,
elucidá-lo. Em outro trecho afirma:
Ninguém pode negar que o trabalho é uma expiação. Fora dele pode-se fruir
a vida de uma forma verdadeiramente nova. Pena que na vida tudo tenha seu
reverso e o dinheiro passa a se transformar, também, numa prisão.
Essa entrevista foi publicada no jornal Folha de São Paulo no dia 23 de abril de
1974, exatamente o dia em que ela lançou o livro JMNP em São Paulo. Para revista Intervien,
66
HILDA HILST. Hoje ela lança um novo livro. Poesias de quem sente uma necessidade incontida de
reencontrar o amor. Folha de São Paulo, SP, 23 de abr. 1974. Jornal da tarde
90
realiza afirmações semelhantes dez anos depois: “Os banqueiros devem detestar mesmo
poesia porque eles vivem do oposto da poesia o dinheiro. E só pensam nisso.
67
Relacionando seus versos com sua prosa, tem-se Tadeu (Da razão), presente no
livro Tu não te moves de ti. Nele, há uma personagem de nome também Tadeu, um executivo
“que o vê sentido em sua atividade e passa a sofrer anseios poético-metafísicos nela e
sua mulher Rute, cujo desejo se ajusta perfeitamente aos objetos compráveis do mundo dos
negócios” (PÉCORA, 2004c, p. 12). Nesse livro, evidencia-se como os anseios do mundo
capitalista se contrapõem aos da arte, no caso, aos anelos do poeta.
Adam Smith, considerado o mais importante teórico do liberalismo econômico,
defensor da livre-iniciativa e da não-interferência do Estado na economia, tentou explicar o
que conduz o homem a essa acumulação, esclarecendo que:
O rico se ufana de suas riquezas, por perceber que elas atraem para ele
naturalmente a atenção do mundo... A esse pensamento, o coração parece
inchar e dilatar-se dentro dele e, devido a isso, ele se apaixona ainda mais
por sua riqueza, do que por todas as outras vantagens que ela lhe
proporciona (SMITH apud HEILBRONER,1988, p. 31).
O acúmulo de capital é uma das bases do capitalismo que se caracteriza também
pela propriedade privada dos meios de produção, pela propriedade intelectual e pelo trabalho
livre assalariado. O seu mercado se faz por meio da iniciativa privada, da racionalização dos
meios de produção e da busca pelo lucro. Os indivíduos, dentro desse quadro, tendem a dirigir
seus esforços no intuito de acumular capital indispensável para adquirir produtos e serviços os
quais nem sempre são necessários, pelo contrário, na maioria das vezes, supérfluos e
efêmeros, criados tão somente para estimular o mercado consumidor, movimentar e gerar
mais acúmulo de capital.
Por meio da afirmação de Smith, nota-se também que a riqueza gerada por essa
acumulação é também um meio de alcançar status e poder. O sistema capitalista motiva e
existe dessa busca. Confirmando tal assertiva, Heilbroner certifica que:
O impulso para acumular riqueza é inseparável do poder, e é
incompreensível a não ser como forma de poder. A formação social do
capitalismo deve, pois, ser encarada, antes de mais nada, como um regime
comparável aos regimes de força militar, convicção religiosa, crenças
imperiais, e assim por diante (1988, p. 38).
67
CARDOSO, Beatriz. A obscena. Revista intervien. SP, out. 1994.
91
Percebe-se, com isso, que o fetichismo não atingiu apenas as mercadorias, mas
também o pprio capital, ao qual o homem passou a consagrar a sua vida. Dessa forma, o
capital passa a ser um gênero de mercadoria. Os poemas e a prosa hilstiana citada não se
opõem a esse tipo de atitude competitiva incitada pela busca constante da riqueza, como
também contrapõem o viver do poeta – um ser preocupado com o incomensurável, com o de
dentro ao viver capitalista que distancia o homem de si mesmo.
“Enquanto faço o verso, tu decerto vives./ Trabalhas tua riqueza, e eu trabalho o
sangue”. Nesse ponto, HH marca bem a relação distinta entre verso = sangue do poeta e o
viver capitalista = riqueza do homem. Através disso, ela demarca bem a sua objeção ao status
quo e tenta fazer mais uma vez da sua arte não uma mera legitimadora da superestrutura,
mas, sobretudo, um meio de interferir na realidade vigente.
Vale alertar, entretanto, que, ao contestar o estabelecido no mundo capitalista,
seus poemas e textos em prosa acabam por favorecer o estabelecido nas teorias marxistas.
Todavia, ainda assim, não é pertinente declarar que HH tenha sido marxista. Sua proposta era
a desfragmentação do homem. Ela é contrária a qualquer ismo, entre os quais o marxismo,
uma vez que, a seu ver: A linguagem se oe à política. Por isso, em todos os regimes
políticos, a palavra está sob o peso da Censura. Nenhum ‘ismo’ – capitalismo, nazismo,
fascismo, marxismo, comunismo tem valor real para o escritor.”
68
Essa entrevista concedida
por ela a Léo Gilson Ribeiro em 1985 corrobora outra, publicada em 1980, sobre o livro Tu
não te moves de ti:
Como eu vejo e sinto um ser político? Como é que as pessoas o levadas a
aderir a partidos, esquemões, todas essas estruturas rígidas e renescentes [...]
como o marxismo, o fascismo, o capitalismo, o fanatismo religioso? Quando
é que houve essa ruptura impressionante que perverteu todos os esquemas
que se pretendiam implantar para a felicidade, e que acabaram se chamando
Vietnã, Afeganistão, Etiópia, Hiroxima, Nagazaki, Auschwitiz, Guernica [...]
terror mútuo das superpotências, Gulag, o terrorismo contra inocentes,
prisões em Cuba [...]?
69
Dessa maneira, a poeta deixa bem cingida a sua postura política. Tais palavras
muito têm a ver com o que afirma Octávio Paz em O Arco e a Lira: “O poder político é estéril
porque sua essência consiste na dominação dos homens, qualquer que seja a ideologia que o
massacre” (1982, p. 351). Na mesma entrevista, HH completa:
68
RIBEIRO, Léo Gilson. HH. Revista Interview. [s.l.], 1985.
69
RIBEIRO, Léo Gilson. Tu não te moves de ti, uma narrativa tripla de Hilda Hilst. O Estado de São Paulo, SP,
16 mar. 1980.
92
Tudo isso: capitalismo, marxismo, fascismo, nazismo, cristianismo,
fanatismo, islamismo fanatizado, canetrismo [?] ou luta pelo poder,
consumismo, tudo deturpa o homem total e constitui um corpo de conceitos
longínquos para o escritor. A política rasteira, mentirosa, da realidade, a
‘Real politik’ fica sujeita a torpes deturpações semânticas diárias, rdidas,
viscosas de embuste, tudo fraccionado em partidos, sistemas, fórmulas
dogmáticas – nada disso tem significado para o escritor. [...] A totalidade do
ser humano seria o sentido de compreender o homem, o seu próximo e dar a
vida por ele.
É válido aludir, novamente, aos ideais românticos de liberdade e sua reação à
sociedade (como citado no cotejamento entre poemas azevedianos e hilstianos anteriormente).
Posição essa, inclusive, contestada pelo intelectual brasileiro José Guilherme Merquior em
seu livro O fantasma romântico e outros ensaios (1980), no qual critica a atitude da arte
romântica de oposição ao mundo e à sociedade, alegando que tal conduta é exacerbada e criou
como conseqüência um abismo entre a arte e a comunicação.
Carlos Felipe Moisés com ela concorda visto que, para ele, neste contexto de
consumo e fragmentação, o poeta o é mais expulso da República como pretendia Platão,
mas:
Em tempos aurorais, [...] o arquiteto da República relutou, mas acabou por
admitir seu temor ao poeta e por isso desterrou-o; os administradores
das cidades bem concebidas, responsáveis pelo “mundo real das
sociedades modernas”, por exemplo, [...] desdenham com arrogância
crescente não só o poeta e a poesia, como também toda modalidade de
idealização, a ponto de o tomarem sequer cuidado de enxotá-los de vez,
permitindo que poeta e filósofo, com seu ideal, continuem por aí,
sobrevivendo nos interstícios da Aldeia, largados no monturo geral dos mitos
inúteis e das excentricidades obsoletas (2007, p. 36). (grifo nosso)
Isso porquê: “A poesia enfim não representa, no mundo moderno, o perigo que
representa para Platão e passa a ser tratada como mero e inofensivo adorno (Ibid, p. 96).
Os poemas de PHNT trazem à tona a mesma preocupação e constatação feitas por
Moisés. O contexto s-Revolução Industrial, por meio da exploração comercial e da
massificação da cultura, transformou a arte ou pelo menos passou a tratá-la como mera
mercadoria dentro de uma denominada Indústria Cultural. Os produtos da arte passam a se
equivaler aos produtos de qualquer indústria como a automobilística que os faz em série e
para atender a um grande público uniformizado, homogêneo. A arte não é democratizada, mas
massificada.
93
Outra referência ao livro em prosa Fluxo-Floema se faz imprescindível. Nele, sua
autora expõe a mercantilização da literatura que se apresenta subjugada a interesses
pecuniários:
[...] eu sei escrever as coisas de dentro, e essas coisas de dentro são
complicadíssimas mas são... são as coisas de dentro. E vem o cornudo [o
editor] e diz: como é que é meu velho, anda logo, não comece a fantasiar,
não começa a escrever o de dentro das planícies que isso não interessa nada,
você agora vai ficar riquinho e obedecer, não invente problemas. [...]
capitão, por favor me deixa usar a murça de arminho com a capa carmesim,
me deixa usar a manteleta roxa com alamares, me deixa, me deixa, me deixa
escrever com dignidade. O quê? Ficou louco outra vez?[...] Toma, toma
quinhentos cruzeiros novos [...] (2003c, p. 20-21)
O sistema passa a ter a arte como um produto e seu autor como um funcionário
que tem que produzir dentro de prazos, seguindo modelos determinados e, principalmente,
gerando lucro. É contra isso que, principalmente, o poema XVI se apresenta. Um dos pontos
fortes desse poema é justamente o trecho no qual Hilst afirma:
Iro do meu momento: quando eu morrer
Uma coisa infinita também morre. É difícil dizê-lo:
MORRE O AMOR DE UM POETA.
E isso é tanto, que o teu ouro não compra
(HILST, 2001, p. 125)
Ao especificar “MORRE O AMOR DE UM POETA”, o poema em questão
diferencia o amor do poeta do dos demais, ou seja, enaltece o sentimento do poeta que o leva
à composição, tentando, dessa forma, recobrar o caráter especial do fazer literário,
distinguindo-o dos outros tipos de produção. Para o poema trazer esse alerta é porque, na
contemporaneidade, o poeta realmente perdeu sua áurea, sendo preciso que ele mesmo saia
em defesa de si e contra o estabelecido. Não recuperar exatamente a genialidade ou
misticismo que outrora foram atribuídos aos poetas e às suas composições, o que seria muito
anacrônico para o momento em que se vive, mas incitar uma revalorização do poeta. Para que
deixem de ser verdadeiras afirmações como esta de Octávio Paz:
[...] a poesia é uma atividade de rendimento nulo. Seus produtos o
escassamente vendáveis e pouco úteis [...]. Para a mente moderna, embora
ela mesma não reconheça isso, a poesia é energia, tempo e talento
convertidos em objetos supérfluos (1993, p.143).
94
A análise dos poemas XIII e XVI de PHNT explicita que a própria poesia pode
ser um instrumento contra esse estado de coisas estabelecido e representar uma resistência a
sua massificação e mercantilização. Eles se dirigem aos homens contemporâneos,
convidando-os à desaceleração da vida, à revalorização do próprio homem e da arte por ele
gerada. Em vez da correria da vida urbana e da velocidade da tecnologia e de seus produtos
tão funcionais quanto efêmeros, os poemas analisados propõem o “passeio veemente pela
vida”. Assim, a arte hilstiana não tem uma função ideológica e política para a reprodução do
sistema, ela não deriva de maneira simplista e direta da base econômica, não legitima a
ideologia e nem é apenas um produto dela.
Classificar a arte, mais notadamente a literária, como sendo sempre uma simples
confirmação do status quo ou tê-la como um ordinário objeto de comércio, um simples bem
econômico destinado tão somente à venda não passa de posturas reducionistas. A arte pode
não se contrapor, mas também pode ajudar a alterar a ordem estabelecida devido a sua
potência revolucionária:
A desconfiança do Estado e das Igrejas diante da poesia não nasce do natural
imperialismo desses poderes: a própria índole do dizer poético provoca
receio. Não é tanto aquilo que o poeta diz, mas o que vai implícito em seu
dizer, sua dualidade íntima e irredutível, que outorga às suas palavras um
gosto de libertação (PAZ, 1982, p. 231).
Como pôde ser notado, não só HH, mas vários outros poetas e críticos concordam
que a poesia, ao revelar, revoluciona, auxiliando o homem em sua desfragmentação, em sua
libertação. Para muitos deles, o poeta não deve ser entendido apenas como um ornamento, um
mero adorno, um banal enfeite secundário e prescindível:
Deve-se entender que, na sociedade da mercadoria, a arte também se
transforma em mercadoria. Mas essa não é a sua essência. Não se pode levar
a tese da arte como produção a ponto de perder-se de vista que ela é, antes de
qualquer coisa, uma necessidade humana (GULLAR, 1997, p. 111). (grifo
nosso)
Era exatamente assim que HH concebia a poesia: como, sobretudo, uma
necessidade humana, e, por meio de suas declarações e de sua obra literária, queria fazer com
que os homens percebessem isso e compartilhassem com ela dessa postura:
95
IX
[...]
Te cantarei infinitamente
À espera de que um dia te conheças
E convides o poeta e a todos esses
Amantes da palavra, e os outros,
Alquimistas, a se sentarem contigo
À tua mesa
[...]
(HILST, 2003, p. 116).
O poeta não desistirá dos homens, mas anseia que eles o reintegrem a seu
convívio. Desse modo, para HH, o poeta ainda espera que se façam os seus Mistérios
Gloriosos, ou seja, o ressuscitar da sua importância, a sua revalorização.
96
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desde o primeiro contato com HH foi observado que muito se falava sobre as suas
excentricidades. Foi percebido, inclusive, que sua biografia era, por vezes, mais analisada e
divulgada que sua obra. Por outro lado, muitos trabalhavam com HH ficcionista,
principalmente no que diz respeito a sua parte pornográfica. Ao se aprofundar nos estudos
acerca da obra hilstiana, foi possível encontrar trabalhos sobre sua obra lírica centrados nos
temas reincidentemente nela apresentados: o amor, o erotismo, a morte, Deus.
Tais estudos foram se tornando mais profusos principalmente depois do
relançamento de sua obra completa pela editora Globo a partir de 2001 e após a sua morte em
2004, o que impulsionou o aumento no número de leitores e pesquisadores dos textos
hilstianos.
Nas análises aqui realizadas, entretanto, o que mais interessou não foi a constância
desses temas em seus escritos, mas o fato de ela sempre referenciar neles o poeta e a poesia,
independentemente da temática que serviria de leitmotiv para o livro, fosse ele lírico,
dramático ou narrativo. Esta dissertação se fez com o intuito de, com base no conjunto de sua
obra, constatar e comprovar que isso não era apenas uma conjectura, mas uma prática
hilstiana contínua que se iniciou juntamente com a sua própria carreira literária.
Neste estudo que agora se finaliza, pôde ser observado que, além de ser
referenciado na maioria de seus livros, o poeta era também aquele que se apresentava por
meio do eu-lírico. Em qualquer livro hilstiano de poemas ao qual se recorresse, ainda que em
épocas diferentes, era possível encontrar essa referência ao poeta enquanto o próprio sujeito
poético.
Na década de 50, em Baladas do festival, HH anuncia: Não era mau poeta a
pequena Hilst” (2003d, p. 106). Na década de 60, em Trovas de muito amor para meu amado
senhor, constata: “Poeta e amante é o que eu sou” (2002b, 190). Na década de 70, em Júbilo,
memória, noviciado da paixão, declara: “Meu rosto noturno de poeta te suplica (2003, p. 47).
Na década de 80, em Cantares de perda e predileção, afirma: “Amorosa de ti/ VIDA é o meu
nome. E poeta/Sem morte no sobrenome (2004, p. 107). E na cada seguinte, em Amavisse:
“Porco-poeta que me sei, na cegueira, no charco”.
Para melhor sustentar tal assertiva, o livro ao qual mais se recorreu foi Júbilo,
memória, noviciado da paixão (1974). Nele, versos como “Antes de ser mulher, sou inteira
97
poeta” (2003, p. 60) muito chamaram a atenção por fazerem pensar que o eu presente em seus
poemas insiste em se anunciar poeta e a se confundir com a própria persona empírica que os
cria. Foi também nesse livro que se encontraram não alusões mais constantes ao poeta e ao
exercício poético, como também um verdadeiro discurso encomiástico em favor da poesia.
A fim de confirmar tal constatação, a presente dissertação realizou cotejamentos
entre seus poemas, sua ficção e seu drama, mostrando que existia uma coerência entre eles,
uma ligação deliberada a qual, realmente, denunciava uma proposta: restaurar a importância
da poesia em meio à sociedade contemporânea. Para dar mais suporte a essa afirmação, este
estudo não utilizou depoimentos, entrevistas e cartas, como também a própria vida da
poeta, o que foi imprescindível para chegar a conclusão de que HH não apenas era poeta, mas
fez do exercício poético um projeto de vida. Ela o exerceu nenhuma atividade que
concorresse com o seu fazer literário, a ele com exclusividade devotou quase meio século de
sua existência.
Em Os intelectuais, o escritor e jornalista Paul Johnson (1990) se preocupa em
desmistificar diversos pensadores entre os quais Marx, Shelley, Rosseau, Sartre, tentando
comprovar a oposição entre suas idéias e suas práticas cotidianas por meio de cartas,
documentos e a comparação de suas obras com sua vida. Se Johnson fosse realizar a mesma
empreitada com a poeta HH, a incoerência encontrada nos mais de dez escritores, poetas e
filósofos por ele analisados não se apresentaria.
Entre seus poemas, seus textos em prosa e suas declarações a jornais sempre havia
pontos em comum, criando uma grande teia de inter-relações que marcam a existência de um
ambicioso projeto literário: elevar a poesia, aproximando-a do antigo esplendor de que gozava
em tempos aurorais – como na antiguidade greco-romana, na Irlanda pré-cristã e na mitologia
nórdica para que, por sua vez, através da memória e da linguagem, a poesia pudesse salvar
o homem da opressão e da alienação às quais está submetido.
Italo Calvino, em Seis propostas para o próximo milênio, fala de Goethe como
“um escritor que certamente não punha limites à ambição de seus propósitos” (2003, p. 127) e
prova isso citando uma carta que o escritor alemão destina a sua amada Charlote Von Stein,
na qual confessa estar planejando um “romance sobre o universo (GOETHE apud
CALVINO, 2003, p. 127). HH também foi uma escritora que não pôs “limites a ambição de
seus propósitos”, mas isso não deve ser visto de forma contraproducente uma vez que:
A excessiva ambição de propósitos pode ser reprovada em muitos campos da
atividade humana, mas não na literatura. A literatura pode viver se se
propõe a objetivos desmesurados, até mesmo para além de suas
98
possibilidades de realização. Só se poetas e escritores se lançarem a
empresas que ninguém mais ousaria imaginar é que a literatura continuará a
ter função (CALVINO, 2003, p. 127).
Pôde-se ver que o “objetivo desmesurado” de HH era recobrar a importância da
poesia e do poeta, o seu poder salvífico, a sua importância enquanto expressão de
subjetividade, beleza e linguagem para o próprio bem do homem que, na concepção hilstiana,
necessita se desfragmentar, recuperar sua alma. Muitas vezes, essa postura de HH era
classificada como fruto de uma megalomania, o que tentava relativizar e enfraquecer a força
de suas palavras.
Isso, no entanto, prova o quanto a sociedade se encontra discordante de suas
idéias, o quanto a sua pretensão contrastava com as prioridades da contemporaneidade. Essa
dissonância é associada à existência de uma crise pela qual a sociedade e, consequentemente,
a literatura estariam passando.
Mário Ferreira dos Santos, criador da Filosofia Concreta, em seu livro Filosofia
da Crise
72
, afirma que “todo existir está em crisis(2008, p. 3). É também ele quem define:
“Esta velha palavra, de origem grega (crisis), significava separação, abismo e, também, juízo,
decisão, etc” (Ibid, p. 3). Ferreira dos Santos acredita que a sociedade humana passa por
momentos de maiores e menores abismos; a partir disso, ele conclui que: “a crisis é
inevitável” (Ibid, p. 5).
Para estas considerações finais, o mais importante entre o que ele comunica, é a
seguinte indagação: “Sem a crisis, como compreender um ‘saber de salvação’, como as
religiões e as filosofias, e até a ciência, que, também, soou como uma promessa?(Ibid, p.
5). Poderiam ser acrescentadas a essa lista as artes, a poesia. Dessa forma, quanto maior for a
crise, mais necessária se fará a existência de artistas e poetas: “A poesia é o antídoto da
técnica e do mercado” (PAZ, 1993, p. 127).
Carlos Felipe Moisés, em texto recente para O livro de Scardanelli, de Érico
Nogueira, lembra uma frase do poeta Friedrich Hoelderlin: “Para que poetas em tempo de
penúria?” (2008, p. 103), e, depois de tecer diversos comentários e análises, chega a uma
resposta que muito comunga com a idéia de que a poesia não sobrevive à crise, como se
torna ainda mais urgente: “em tempo de penúria, os poetas são extremamente necessários, e
imprescindíveis” (Ibid, p. 130).
72
SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da Crise. Obra dispovel para envio por e-mail no site:
<http://www.marioferreira.com.br/obras.html> Acesso em 10 julho 2008
99
Em seu drama Aves da noite, HH faz um alerta que deixa claro que ela
compartilha dessa mesma visão: Se os meus personagens parecerem demasiadamente
poéticos é porque acredito que em situações extremas é que a poesia pode eclodir VIVA,
EM VERDADE” (apud PALLOTTINI, 1999, p. 106) (grifos do autor). Por isso, é que essa
dissertação teve como título: A defesa da poesia ou a paixão do poeta.
Como pôde ser visto, desde o primeiro livro, Presságio de 1950, o poeta e a
poesia eram temas em sua obra. bilo, memória, noviciado da paixão de 1974 é uma de
suas obras onde essa postura é mais abordada. Por isso, esta dissertação recorreu diversas
vezes a ele, principalmente em sua parte intitulada Poemas aos homens de nosso tempo.
Ao longo dos capítulos, viu-se que não HH se dedicou a refletir sobre essa
questão. Como pôde ser notado, tal idéia já foi objeto de reflexão de muitos poetas e críticos
os quais, em sua maioria, defendem o juízo de que a poesia possui um poder de se revigorar
que a faz existir em meio aos homens seja qual for o contexto histórico, político, econômico,
filofico ou religioso preponderante.
Deve-se levar em consideração que a fortuna crítica sobre esse assunto é vasta e o
tema, inesgotável. Mas que a obra hilstiana, que tanto colocou o poeta e a poesia como
assunto e destaque, é uma ótima comprovação de que se pode mudar a relação dos homens
com a poesia, entretanto ela permanecerá.
Em seu livro A outra voz, Octávio Paz garante que: “Enquanto haja homens,
haverá poesia(1993, p. 148). HH inverte a frase e, corroborando o caráter soteriológico da
poesia que tanto esta presente dissertação analisou e defendeu, entrega a responsabilidade
sobre a sociedade humana nas mãos dos poetas:
VI
Tudo vive em mim. Tudo se entranha
Na minha tumultuada vida. E porisso
Não te enganas, homem, meu irmão,
Quando dizes na noite, que só a mim me vejo.
Vendo-me a mim, a ti. E a esses que passam
Nas manhãs, carregados de medo, de pobreza,
O olhar aguado, todos eles em mim,
Porque o poeta é irmão do escondido das gentes
Descobre além da aparência, é antes de tudo
LIVRE, e porisso conhece. Quando o poeta fala
Fala do seu quarto, não fala do palanque,
Não está no comício, não deseja riqueza
Não barganha, sabe que o ouro é sangue
100
Tem os olhos no espírito do homem
No possível infinito. Sabe de cada um
A própria fome. E porque é assim, eu te peço:
Escuta-me. Olha-me. Enquanto vive um poeta
O homem está vivo (2003, p. 113). (grifo nosso)
Realmente, para HH, seja em seu projeto literário, seja em seu projeto existencial,
a poesia era o caminho, a verdade e a vida.
101
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ANEXO A ENTREVISTA
TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA REALIZADA COM MORA FUENTES
LOCAL: CASA DO SOL - CAMPINAS - SP
DIA: 26/06/08
ENTREVISTADORA: Nívia Maria Santos Silva
ENTREVISTADO: Mora Fuentes
1. POSTURA POLÍTICA DE HILDA
Mora Fuentes: Eu acho que o artista tem sempre uma postura política, não como separar a
política de nada da vida do ser humano. Hilda era uma pessoa muito política também, a
atitude dela de inovadora, de destruir os dogmas, da sua coisa tradicional, mesmo sua atitude
de inovação com a linguagem de ficção a que ela se propôs desde o como, eu acho que tudo
isso tem a ver com um coisa política. Ela não era uma pessoa que acreditava muito nos
partidos, nas coisas, claro ela achava que todo mundo devia votar, devia escolher seu partido,
saber em quem votar. Ela acreditava principalmente em uma grande revolução interior do ser
humana, ela achava que antes de você fazer a revolução fora, você tinha que fazer a revolução
interior, você devia aprender a olhar o outro como realmente teu próximo, a mesma espécie. E
essa coisa de você ser generoso com tudo o que é vivo, é muito singular estar vivo, a gente
não entende o que é um homem vivo, muito menos o que é um cachorro, um mosquito e, no
entanto, tudo isso está vivo também. A política para ela era uma coisa muito maior. Vovê
que ela até fala aí nesse... tem um teatro dela que é o Verdugo, mas ela fala que política é dar
vida a todos . essa que é a grande conclusão dela. E é verdade, se você e se mete na política
você tem que se meter nisso para permitir que todos vivam, que todos tenham essa vida. A
política da Hilda era essa política que os gênios têm do mundo, é uma coisa maior. Num
plano menor, vamos dizer imediato da coisa, ela, por exemplo, gostava do Lula, achava que o
Lula trazia uma novidade, essa coisa do Lula vir do povo, não fazer parte das elites, ela
achava que isso era um bom componente. Mas, ela quando pensava em política pensava uma
coisa bem mais vasta que a coisa dos partidos e tudo, era uma atitude interior, era quase
como uma coisa religiosa, tinha a ver com religião.
2. INTERFERÊNCIA DA POSIÇÃO POLÍTICA
Mora Fuentes: Não dá para tirar a parte política do humano. Não tem como. Mas, ela foi
uma grande lírica. Foi uma poeta amorosa, maravilhosa e tal. Mas ela coloca o humano dentro
dessa circunstância que é política. Quando ela fala do amor claro que ela não vai fazer um
discurso político e tal, mas... não dá para desligar. E ela era uma grande autora, então faz parte
da visão assim...
3. JMN – POETA X POLÍTICA
Mora Fuentes: Eu acho que ela se refere aí a grande política, não a essa coisa menor.
Justamente nessa época de ditadura ela ter querido homenagear os russos e fazer tudo isso, era
uma coragem dela porque não era fácil nessa época você fazer qualquer coisa assim.
Ela tava vivendo uma hisria, lio Mesquita colocava os poemas da HH nos artigos
censurados pela censura. tem uma dupla ocorrência, tem a política e tem a paixão violenta
e platônica que ela sofreu por Júlio Mesquita Neto. Muito criativa com os títulos.
4. FUNÇÃO DA POESIA
Mora Fuentes: A poesia tem um grande poder de inovar o outro. Através da poesia, não
da poesia, ela tem um força mágica que é o poder dos versos. E ela conseguiu uma síntese dos
versos, como se cada verso fosse quase um haikai, a força de um haikai, como ela sobe juntar
a beleza da linguagem, a escolha do vocabulário maravilhoso com o significado que ela queria
dar naquela frase naquele verso. Então, acho que ela sempre acreditou que o trabalho literário,
pode ser poesia tudo, a grande importância dele é essa força de inovar o outro, de fazer o
outro se repensar, conseguir um progresso espiritual, um progresso mental tudo com esse
trabalho religioso, ela não achava que a coisa da literatura que era importante só o registro,
claro que o registro é importante, porque vai registrando a história, vai dando sempre um
depoimento do seu tempo quando você é um escritor, é um artista, mas ela achava que esse
depoimento tinha que ter a força do outro se inovar, reinová-lo, se recriar melhor, ter a
compreensão do outro ela acreditava que a arte, para ela a literatura principalmente que era a
ferramenta dela, ela achava que tinha esse poder mesmo.
5. O POETA COMO UM ESCOLHIDO
Mora Fuentes: Hilda via o poeta como um escolhido. Ela achava que a poesia, para ela pelo
menos, vinha de uma parte que ela ligava muito ao sagrado. Ela achava que a fião era um
esforço, fica trancada no escritório, ficar trabalhando, tentar escrever. Ela era muito
disciplinada demais.
Ela achava que a poesia tinha muito a ver com o divino, ela não acreditava na poesia sem
inspiração. E a inspiração para Hilda vinha de algum lugar que ela não sabia de onde era, mas
ela não acreditava que era de dentro dela que vinha a poesia. E era incrível porque ela era uma
pessoa que de repente estava tomando banho e vinha uma poesia pronta para ela, então ela
saia ensaboada, assim molhada, nua para o escritório e anotava para não esquecer e a poesia
vinha pronta para ela, se vofor a poesia dela, o rascunho vai ver que ela corrigia
muito pouco, a ficção ela corrigia mais. Ela era bem diferente, ficava no escritório para
escrever ficção, se propunha 700 palavras por dia, ficava trancada no escritório e quando não
conseguia as 700 palavras ela não saia e todos ficavam esperando por ela para almoçar, cada
um trabalhando nas suas coisas, ela suava para escrever ficção. E a poesia vinha mesmo para
ela como se fosse uma enxurrada e vinha praticamente pronta porque é uma poesia com
vocabulário muito elaborado, eu para fazer uma poesia como ela demoraria meses para fazer
uma, um verso. E ela, ela não, ela era capaz de fazer 20 versos, sei lá, um poema inteiro em
cinco minutos porque já vinha pronto.
6. SOBRE JÚBILO, MEMÓRIA, NOVICIADO DA PAIXÃO
Mora Fuentes: Júbilo é uma reunião de poemas belíssimos. Aliás eu acho que no Júbilo ela
deu um grande salto, ela já era uma excelente poeta antes disso, mas com o Júbilo ela se torna
universal, ela um grande salto depois disso. De repente, ela começou a escrever uma
poesia, que eu lia acompanhava as coisas dela, sabia que ela era genial, adorava o que ela
escrevia, mas de repente quando ela começou a fazer as coisas Júbilo, disse nossa, Deus
desceu, não é possível. A partir de Júbilo, ela se torna mesmo essa grande poeta. Foi uma
época de vários amadurecimentos na vida da Hilda . Foi depois de ela ter vindo para cá (Casa
do Sol) também, essa coisa da casa para ela foi muito importante, a casa para Hilda tinha mais
ou menos a força quase do Crisol do alquimista mais ou menos, era o lugar onde se fazia as
grandes transformações, onde você poderia conseguiria transformar o metal vulgar em ouro.
Ela acreditava que a casa, e essa ela fez como queria, tem dez arcos, procurou fazer a casa
com todos os significados mágicos, com todas essas as transcendências, para a casa ter essa
força, ter esse tipo de magnetismo mesmo. A Hilda achava que a vida era uma experiência
sagrada, a poesia divina e o poeta um ser especial, tinha uma antena ligada ao divino.
7. A CASA DO SOL
Mora Fuentes: Foi a leitura de Cartas a el Geco, ele comentou sobre essa dificuldade do
artista que ou ele vive ou ele faz seu trabalho, é difícil fazer bem as duas coisas. E ele
descreveu antes de ele fazer esse livro, um depoimento belíssimo, ele contou uma coisa
estranha que aconteceu com ele. Ela estava querendo ir para Paris, ele é jovem queria se
divertir, quando ele tava chegando perto de Paris começavam a aparecer postulas conforme
ele e distanciava de Paris as feridas iam embora, ai ele voltou a Paris e as feridas voltaram
ele entendeu. Ele tinha o plano de fazer o livro, mas antes queria se divertir, curtir a vida. Ele
estava nessa, escrevo ou vou me divertir , quando ele optava pela diversão não dava, alguma
coisa dentro dele não deixava, a obrigação dele era escrever. ele foi para o Monte Atos (A
República de Monte Atos (também transliterado como Monte Athos, em grego Άγιο Όρος,
"Montanha Santa") e teve uma experiência religiosa importantíssima. Nada a ver com as
igrejas, a religião do religare mesmo, o da... e escrveu essa maravilha. A Hilda quando
leu Cartas ao El Greco, ela entendeu que se ela não tomasse uma atitude a vida ia passar, o
tempo passa, e ela sempre soube que ela tinha uma tarefa importante para fazer na literatura,
eu nunca conheci ninguém que tivesse essa certeza, ela acordava de manhã pensando nisso e
quando não fizesse isso ela não sossegava, ela vivia para isso, ela sabia disso e sabia que tinha
que correr porque senão não ia dar tempo, e foi o que ela fez e veio para cá. A vida dela em
SP era muito divertida, uma vida na qual ela contatava com a elite não a elite intelectual
como a financeira, tinha uma vida ótima, festas, boates, ao mesmo tempo encontros com
pessoas inteligentíssimas, uma vida ótima, mas é aquilo, você reúne seus amigos e nessa noite
você não escreve, se você começa a ter muitas noitadas, começa a se apaixonar muito... cada
noite de amor é uma página a menos. Apesar de a paixão ser um excelente estimulo, quase
todos os livros que ela escreveu foi motivada pela paixão, mas quando ela começava a
escrever, a gente sabia que a paixão estava no fim. Enquanto apaixonada, ela não escrevia.
Quando ela começava a gente pensava: e essa história esta no fim. Ela realmente tomou uma
atitude para vim escrever aqui. Construiu essa casa para escrever e veio. Ai se dedicou,
dedicou a vida dela aqui na Casa do sol. Ela começou a beber mesmo no final da vida, quando
ela terminou de escrever, e viu que estava velha, que agora tinha terminado tudo, ela entrou
num desespero. Quando a pessoa é muito inteligente como a Hilda era, você não pode se
iludir com a velhice, a velhice é uma merda mesmo, e é o fim . Quando ela sentiu que já tinha
escrito tudo que não ia se apaixonar mais por ninguém nem por nenhuma idéia, ela entrou em
uma espécie de desespero. Ela se sentia vazia, quando ela escrevia “Estar sendo ter sido”, ela
me telefonou e disse que o escreveria mais. E foi verdade. Eu já escrevi tudo o que eu tinha
para escrever, começou a dizer isso e realmente nunca mais escreveu. Não tenho mais nada
para dizer. Como tinha consciência da tarefa que tinha que cumprir, ela percebeu quando
tinha terminado a tarefa e não escreveu mais. Tinha uma autocrítica muito grande, teve
isquemias. Eu escrevi do melhor jeito que eu podia fazer, acabou. Eu não vou comprometer
minha obra.
8. POSTURA ANTICAPITALISTA
Mora Fuentes: O artista é anticapitalista por natureza é difícil ter um artista que pensa na
finaa, na aplicação do dinheiro, no rendimento. Tem , Picasso teve uma sorte incvel
porque foi um gênio e conseguiu ficar rico, mas são exceções. A Hilda teve uma vida
completamente irregular financeiramente, ela teve altos e baixos, ela foi muito protegida
financeiramente e teve pessoas que a amaram muito e que a favoreceram bastante, porque
reconheciam que ela era uma pessoa excepcional e eles eram pessoas tão ricas que deram
mesmo dinheiro, ajudaram, fizeram gestos raríssimos de serem feitos, foram mecenas. Mas,
ela mesma teve uma vida completamente anticapitalista. Ela quando tinha algum dinheiro
pagavam médico para todas as mulheres que tinha aqui em volta quando aqui ainda era a
fazenda da mãe dela, tinha unas pessoas remanescentes da colônia da mãe e que não tinham se
adaptado às mudanças. Gastava o dinheiro com os amigos, ajudava aos amigos, pagava
médicos, escola, bolsas de estudo, quando tinha dinheiro durava pouco, comprava montes de
livros. Livros e coisas bonitas, saia para comprar coisas bonitas para casa, ela saia para
comprar objetos bonitos para casa, a experiência da beleza. Ela era muito generosa, não tinha
nada de capitalista.
Ela é de família quadrocentona, mas ela tirou o quadrocentão Almeida Prado. Ela foi um
artista, ela teve uma vida de artista. O artista é um pouco aristocrata, o artista tem fome de
beleza, tem um montão de necessidades e vai atrás disso, dá uma importância muito grande
para o amor. Acha mais importante de renpente passar uma tarde conversando com os amigos
que ela ama que trabalhando, trabalhando num banco, sei lá. As pessoas normais fazem a
opção pelo dinheiro, o artista não, faz opção pelo seu trabalho artístico, ou pela vida, o
problema dele é a vida ou o trabalho artístico. A Hilda eu acho que ela, apesar de ela ter
dedicado sua vida ao trabalho artístico, ela adorava os amigos, achava uma delícia escutar,
ouvir as pessoas, ela tinha uma qualidade rara, porque normalmente a gente gosta do outro
para a gente falar para agente desabafar, ela não, embora também falasse, ficasse
completamente à vontade e tudo, ela não tinha segredos, mas ela gostava de ouvir você falar,
quando chegava aqui ela falava, me conta, aí você chegava aqui e começava a falar de você.
Nos últimos anos, ela não queria mais ver pessoas apenas aquelas que ela conhecia bem
intimamente, ela se sentia mal de estar velha, envelheceu de um jeito assustador. Conseguia
envelhecer de um dia para o outro. Ela foi se apagando, quando ela terminou de escrever...
parece que o que segurava ela era essa coisa da escrita, quando ela acabou de escrever foi
rápido, uma coisa assustadora, ela falava e vem me visitar porque eu to ficando velha.
CADA NOITE DE AMOR É UMA PÁGINA A MENOS.
ANEXO B – FOTOS
FOTO 1: Os arcos da Casa do Sol, ao fundo Nívia Maria Santos Silva e Mora Fuentes
FOTO 2: Escritores, políticos, pensadores etc na parede da Casa do Sol
FOTO 3: Portão da Casa do sol
FOTO 4: Os cachorros do canil da Casa do Sol
FOTO 5: A figueira centenária da Casa do Sol (Mora Fuentes e Nívia Maria Santos Silva e a
presença constante dos cachorros da Casa do Sol)
FOTO 6: Nívia Maria Santos Silva realizando pesquisas no CEDAE (Centro de
Documentação Cultural Alexandre Eulálio), centro pertencente ao IEL (Instituto de Estudos
da Linguagem) da UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas)
ANEXO C – POEMAS
THE COURIERS
The word of a snail on the plate of a leaf?
It is not mine. Do not accept it.
Acetic acid in a sealed tin?
Do not accept it. It is not genuine.
A ring of god with the sun in it?
Lies. Lies and a grief.
Frost on a leaf, the immaculate
Cauldron, talking and cracking
All to itself on the top of each
Of nine black Alps.
A disturbance in mirrors,
The sea shattering its grey one
Love, love, my season.
Sylvia Plath
CANZON DE CUNA PRA ROSALIA CASTRO, MORTA
¡Érguete, miña amiga,
que xa cantan os galos do día!
¡Érguete, miña amada,
porque o vento muxe, coma unha vaca!
Os arados van e vén
dende Santiago a Belén.
Dende Belén a Santiago
un anxo ven en un barco.
Un barco de prata fina
que trai a door de Galicia.
Galicia deitada e queda
transida de tristes herbas.
Herbas que cobren teu leito
e a negra fonte dos teus cabelos.
Cabelos que van ao mar
onde as nubens teñen seu nidio pombal.
¡Érguete, miña amiga,
que xa cantan os galos do día!
¡Érguete, miña amada,
porque o vento muxe, coma unha vaca!
Frederico Garcia Lorca
El presentimiento
El presentimiento
es la sonda del alma
en el misterio.
Nariz del corazón,
que explora en la tiniebla
del tiempo.
Ayer es lo marchito.
El sentimiento
y el campo funeral
del recuerdo.
Anteayer
es lo muerto.
Madriguera de ideas moribundas
de pegasos sin freno.
Malezas de memorias
y desiertos
perdidos en la niebla
de los sueños.
Nada turba los siglos
pasados.
No podemos
arrancar un suspiro
de lo viejo.
El pasado se pone
su coraza de hierro
y tapa sus oídos
con algodón del viento.
Nunca pod arrancársele
un secreto.
Sus músculos de siglos
y su cerebro
de marchitas ideas
en feto
no darán el licor que necesita
el corazón sediento.
Pero el niño futuro
nos dirá algún secreto
cuando juegue en su cama
de luceros.
Y es fácil engañarle;
por eso,
démosle con dulzura
nuestro seno.
Que el topo silencioso
del presentimiento
nos traerá sus sonajas
cuando se esté durmiendo.
Frederico Garcia Lorca
GLÓRIA MORIBUNDA
Une fille de joie attendait sur la borne.
Théophile Gautier
I
É uma visão medonha uma caveira?
Não tremas de pavor, ergue-a do lodo.
Foi a cabeça ardente de um poeta,
Outr'ora à sombra dos cabelos loiros.
Quando o reflexo do viver fogoso
Ali dentro animava o pensamento,
Esta fronte era bela. Aqui nas faces
Formosa palidez cobria o rosto;
Nessas órbitas - ocas, denegridas! -
Como era puro seu olhar sombrio!
Agora tudo é cinza. Resta apenas
A caveira que a alma em si guardava,
Como a concha no mar encerra a pérola,
Como a caçoila a mirra incandescente.
Tu outr'ora talvez desses-lhe um beijo,
Por que repugnas levantá-lo agora?
Olha?o comigo! Que espaçosa fronte!
Quanta vida ali dentro fermentava,
Como a seiva nos ramos do arvoredo!
E a sede em fogo das idéias vivas
Onde está? onde foi? Essa alma errante
Que um dia no viver passou cantando,
Como canta na treva um vagabundo,
Perdeu-se acaso no sombrio vento,
Como noturna lâmpada apagou-se?
E a centelha da vida, o eletrismo
Que as fibras tremulantes agitava
Morreu para animar futuras vidas?
Sorris? eu sou um louco. As utopias,
Os sonhos da ciência nada valem.
A vida é um escárnio sem sentido,
Comédia infame que ensangüenta o lodo.
Há talvez um segredo que ela esconde;
Mas esse a morte o sabe e o não revela.
Os túmulos são mudos como o vácuo.
Desde a primeira dor sobre um cadáver,
Quando a primeira mãe entre soluços
Do filho morto os membros apertava
Ao ofegante seio, o peito humano
Caiu tremendo interrogando o túmulo...
E a terra sepulcral não respondia.
Levanta-me do chão essa caveira!
Vou cantar-te uma página da vida
De uma alma que penou, e já descansa.
II
- Por quem esperas trêmula a desoras,
Mulher da noite, na deserta rua?
A miséria venceu os teus orgulhos,
E vens na treva contratar teu leito?
Vem pois. És bela. Tens no rosto frio
A imagem das Madonas descoradas.
Vagabunda de amor, és bela e pálida.
Será doce em teu seio de morena
Um momento sentir os meus suspiros
Estuantes nos lábios doloridos.
Se inda podes amar, ergue-te ainda,
Une teu peito ao meu, pálida sombra!
III
Era uma fronte olímpica e sombria,
Nua ao vento da noite que agitava
As loiras ondas do cabelo solto;
Cabeça de poeta e libertino
Que fogo incerto de embriaguez corava.
Na fronte a palidez, no olhar aceso
O lume errante de uma febre insana.
IV
- Mancebo, quem és tu?
- Que importa o nome?
Um poeta de santas harmonias
Que a Musa obscena do bordel profana.
Na aparição balsâmica dos anjos
Porventura enlevei a mocidade.
Das virgens no cheiroso travesseiro
Porventura dormi... Meu Deus! que sonhos!
Em seios que a inocência adormecia
Repousei minha fronte embevecida.
Amei, mulher! amei!
Que sede intensa!
Secou-se-me a torrente do deserto
Que as folhas de frescura borrifava.
Tudo! tudo passou... Amei... Embora!
Quero agora dormir nos teus joelhos.
Nessa esponja da vida inda uma gota
Talvez reste a meus lábios anelantes
Que me dê um assomo de ventura
E um leito onde morrer amando ainda.
E que vida, mulher! que dor profunda,
Faminta como um verme aqui no peito!
Murcha desfaleceu a flor da vida
E cedo morrerá. . . E vós, meus anjos,
Ó Virgem Santa, que eu amei, na lira
A quem votei meu canto deliroso;
Amantes que eu sonhei, que eu amaria
Com todo o fogo juvenil que ainda
Me abrasa o coração, por que fugistes,
Brancas sombras, dou das esperanças?
Oh!amos da vida! tudo mente!
Os meus versos gotejam de ironias!
Esse mundo sem fé merece prantos?
À orgia! na saturnal entre a loucura
Derrama o vinho sono e esquecimento.
Vinde, belezas que a volúpia inflama!
Bebamos juntos... Cantarei de novo:
A minha alma nas asas do improviso,
Como as aves do céu, voe cantando. . .
Todos caíram ébrios?.. . só eu resto?
Embora! em minha mão a lira pulsa,
Meu peito bate, a inspiração agora
Cânticos imortais ao lábio inspira.
Voai ao céu - não morrereis, meus cantos!
V
A glória! a glória! meu amor foi ela,
Foi meu Deus, o meu sangue... até meu gênio. . .
E agora!... Além os sonhos desta vida!
Quando eu morrer, meus versos incendeiem!
Apague-se meu nome - e ao cadáver
Nem lágrima nem cruz o mundo vote.
Sou um ímpio (disseram?n'o)! pois deixem-me
Descansar no sepulcro!
Por que choras,
Descorada mulher? Sabes acaso
Quem é o triste, o malfadado obscuro
Que delira e desvaira aqui na treva
E tuas os aperta convulsivo?
Eu não te posso amar. Meu peito morto
É como a rocha que o oceano bate
E branqueia de escuma: ali não pode
Medrar a flor cheirosa dos enlevos...
Teu amor... Eu descri até dos sonhos...
Demais dentro em tua alma eu vejo trevas,
Uma estrela de Deus não a ilumina.
Quem pudera nas ondas do passado,
Ditoso pescador, erguer no lodo
O ramo de coral de teus amores?
VI
Amei! amei! no sonho, nas vigílias
Esse nome gemi que eu adorava!
Votei amor a tudo quanto é belo!
Escuta... A rua é queda. A noite escura
É negra como um túmulo. Durmamos
No leito dos amores do perdido.
Vês? nem lua no u... tudo é medonho!
Nem estrela de luz!... - Silêncio! Embora!
Escuta, anjo da noite! no meu peito
Não ouves palpitar o som da vida?
Deixa encostar meus lábios incendidos
No teu seio que bate. Vem, meu anjo!
A alma da formosura é sempre virgem!
Minha virgem - irmã - meu Deus! contigo
Oh! deixa-me viver! Eu sinto bela
A tua alma acordando refletir-te
Nesses olhos tão negros d'Espanhola.
Quero amar e viver - sonhar - em fogo
Meus frouxos dias exaurir n'um beijo,
Derramar a teus pés os meus amores,
Minhas santas canções a ti erguê-las,
A ti, e só a ti! -
VII
- Que tens? desmaias?
Que tens, mancebo?
- Nada. É cedo ainda.
Não é ela inda não. Chamei por ela...
Foi em vão... delirei...
- Por quem?
- A morte.
- Morrer! pobre de ti, ó meu poeta!
- Se a morte é sofrimento, eu sofro tanto,
Que a mudança do mal será consolo;
Se a morte é sono, meu cansado corpo
No descanso eternal deixai que durma.
- Eu também sofro. . . mas a morte assusta.
Eu mísera mulher nas amarguras
Descorei e perdi a formosura...
No amor impuro profanei minha'alma...
E nesta vida não amei contudo!
Não sou a virgem melindrosa e casta
Que nos sonhos da infância os anjos beijam
E entre as rosas da noite adormecera
Tão pura como a noite e como as flores;
Mas na minh'alma dorme amor ainda.
Levanta-me, poeta, dos abismos
Até ao puro sol do amor dos anjos!
Ó minha vida, minha vida pura,
Por que foram tão breves da inocência
Das crenças virginais os belos dias?
Chamei por Deus em vão. Sobre meu leito
Em vez do anjo do céu senti gelada
Sombra desconhecida vir sentar-se,
Em beijos frios roxear meus lábios,
Em abros de morte unir-me ao seio.
Douda! chamei por Deus! a meu reclamo
Veio o torvo Satã... Oh! não maldigas
A mísera que os seios inocentes
Entregou sem pudor a mãos impuras:
Eram taças de Deus... eu bem sabia!
Mas todo o pesadelo do passado
Foi uma horrenda sina... tudo aquilo
Escrevera Satã... -
VIII
- Fatalidade!
É pois a voz unânime dos mundos,
Das longas gerações que se agonizam,
Que sobe aos pés do Eterno como incenso?
Serás tu como os bonzos te fingiram?
Sublime Criador, por que enjeitaste
A pobre criação? Por que a fizeste
Da argila mais impura e negro lodo,
E a lançaste nas trevas errabunda
Co'a palidez na fronte como atema,
Qual laa a borboleta a raça d'oiro
No pântano e no sangue?
Tudo é sina:
O crime é um destino - o gênio, a glória
São palavras mentidas - a virtude
É a máscara vil que o vício cobre.
O egoísmo! eis a voz da humanidade.
Foste sublime, Criador dos mundos!
IX
Tudo morre, meu Deus! No mundo exausto
Bastardas gerações vagam descridas.
E a arte se vendeu, essa arte santa
Que orava de joelhos e vertia
O seu raio de luz e amor no povo,
E o gênio soluçando e moribundo
Olvidou-se da vida e do futuro
E blasfema lutando na agonia.
Agonia de morte! Só em torno
No leito do morrer as almas gemem.
E o fantasma da morte gela tudo.
Por que um ardente amor não mais suspira
Notas do coração pelo sincio
Da noite enamorada? A chama pura
Por que das almas se apagou nas cinzas?
E a lira do poeta, se murmura
As ilusões de um mundo visionário,
Por que estala tão cedo? Vagabundo
Adormeci das árvores na sombra
E nos campos em flor errei sonhando
Coroando-me dos lírios da alvorada.
Árvore prateada da esperança,
Sombra das ilusões, ó vida bela
E sempre bela, e no morrer ainda,
Por que pousei a fronte sobre a relva
À sombra vossa, delirante um dia?
Oh! Que morro também! na noite d'alma
Sinto? O no peito que um ardor consome,
No meu gênio que apaga-se nas orgias,
Que foge o mundo, e o sepulcro teme...
Exilei-me dos homens blasfemando...
Concentrei-me no fundo desespero,
E exausto de esperança e zombarias
Como um corpo no túmulo lancei-me,
Suicida da fé, no vício impuro.
X
E o mundo? não me entende. Para as turbas
Eu sou um doudo que se aponta ao dedo.
A glória é essa. P'ra viver um dia
Troquei o manto de cantor divino
Pelas roupas do insano. - Os sons profundos
Ninguém os aplaudia sobre a terra.
Para um pouco de pão ganhar da turba,
Como teu corpo no bordel profanas,
- Fiz mais ainda! - prostituí meu gênio!
Oh! ditoso Filinto! ele sim pôde
Na miséria guardar seu gênio puro;
Nunca infame beijou a mão dos grandes:
Morreu como Camões, morreu sem nódoa!
Mas eu! A voz do vício arrebatou-me,
Fascinou-me da inmia o revérbero...
Maldições sobre mim! Abre-te, ó campa!
Ali obscuro dormirei na treva...
XI
Ó santa inspiração! fada noturna,
Por que a fronte não beijas do poeta?
Por que não lhe descansas nos cabelos
A coroa dos sonhos, e rebentam-lhe
Entre as lívidas mãos uma por uma
As cordas do alaúde no vibrá-las?
Ó santa inspiração! por que nas sombras
Não escuta o poeta à meia-noite
Os sons perdidos da harmonia santa
Que o pobre coração de amor lhe enchiam?
Eu fui à noite da taverna à mesa
Bater meu copo à taça do bandido,
Na louca saturnal beber com ele,
Ouvir-lhe os cantos da sangrenta vida
E as lendas de punhal e morticínio.
De vinho e febre pálido deitei-me
Sobre o leito venal de uma perdida...
Comprimi-a no meu exausto peito,
Falei-lhe em meu amor, contei-lhe sonhos,
Do meu passado a flor, as glórias murchas
E os longos beijos da primeira amante...
Amor! amor! meu sonho de mancebo!
Minha sede! meu canto de saudade!
Amor! Meu coração, lábios e vida
A ti, sol do viver, erguem-se ainda,
E a ti, sol do viver, erguem-se embalde!
Ouvi, ouvi no leito da miséria
A pálida mulher junto a meu peito
Contar-me seus amores que passaram,
Falar-me de purezas, d'esperanças...
E soluçava a triste, e ardentes, longas.
As lágrimas em fio deslizando
Eu vi caindo sobre o seio dela...
Oh! suas emoções, úmidos beijos,
Dos seios o tremor, aqueles prantos,
E os ofegantes ais... eram mentira!...
XII
Ah! vem, alma sombria que pranteias.
Por quem choras? Por mim? Em vez de prantos
Deixa-me suspirar em teus joelhos.
Tu sim és pura. Os anjos da inocência
Poderiam amar sobre teu seio.
Aperta minha mão! Senta-te um pouco
Bem unida a minha alma em meus joelhos:
Assim parece que um abraço aperta
Nossas almas que sofrem. Revivamos!
O passado é um sonho - o mundo é largo,
Fugiremos à pátria. Iremos longe
Habitar n'um deserto. No meu peito
Eu tenho amores para encher de encantos
Uma alma de mulher... Por que sorriste?
Sou um louco. Maldita a folha negra
Em que Deus escreveu a minha sina...
Maldita minha mãe, que entre os joelhos
Não soubeste apertar, quando eu nascia,
O meu corpo infantil! Maldita!...
XIII
Escuta:
Sinto uma voz no peito que suspira...
É a alma do poeta que desperta
E canta como as aves acordando.
Oh! cantemos! até que a morte fria
Gele nos lábios meus o último canto!
Um ntico de amor, ó minha lira!
Anália! Armia! aparições formosas!
Eu amei sobre a terra as vossas sombras.
O ideal que vos anima e eu buscava,
Vive apenas no céu! vou entre os anjos,
Entre os braços da morte amar com eles! -
XIV
O poeta a tremer caiu no lodo.
A perdida tomou-lhe a fronte branca,
Pô-la ao colo - era lívida - inda o fogo
Lá dentro vacilava agonizando,
Como flutua a claridão da lâmpada
Apagando-se ao vento.
E quando a aurora
Nos céus de nácar acordava o dia,
E nas nuvens azuis o sol purpúreo
Se embalava no eflúvio de ventura
Das flores que se abriam, dos perfumes,
Da brisa morna que tremia as folhas,
Macilenta a mulher no chão da rua
Sentada, a fronte curva, sobre os seios
Embalava cantando aquele morto.
Na manta o encobriu. Medrosa a furto
A infeliz o beijou - o pobre amante
Que uma noite pernoitou com ela
Para aos pés lhe morrer - e sem ao menos
Nas faces dela estremecer um beijo.
Alguém que ali passou, vendo-a tão pálida
Sentada sobre a laje, e tão ardente,
Chegou ao pé - ergueu ao malfadado
A manta.
Como bito acordando
Disse a moça a tremer:
- Deixa-o agora.
Ele penou de febre toda a noite,
Deitou-se descansando sobre o leito...
Oh! deixa-m'o dormir.
- Mulher, no peito
Sabes quem tu dormiu?
- "Que importa o nome?"
Assim falava-me…
- Ai de ti, misérrima!
Um poeta morreu. Fronte divina,
Alma cheia de sol, fronte sublime
Que de um anjo devera no regaço
Amorosa viver. . . Morreu Bocage!
Álvares de Azevedo
POEMA AOS HOMENS DE NOSSO TEMPO
VI
Tudo vive em mim. Tudo se entranha
Na minha tumultuada vida. E porisso
Não te enganas, homem, meu iro,
Quando dizes na noite, que só a mim me vejo.
Vendo-me a mim, a ti. E a esses que passam
Nas manhãs, carregados de medo, de pobreza,
O olhar aguado, todos eles em mim,
Porque o poeta é irmão do escondido das gentes
Descobre além da aparência, é antes de tudo
LIVRE, e porisso conhece. Quando o poeta fala
Fala do seu quarto, não fala do palanque,
Não está no comício, não deseja riqueza
Não barganha, sabe que o ouro é sangue
Tem os olhos no espírito do homem
No possível infinito. Sabe de cada um
A própria fome. E porque é assim, eu te peço:
Escuta-me. Olha-me. Enquanto vive um poeta
O homem está vivo.
Hilda Hilst
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