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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
CENTRO DE ARTES E LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
AS RESSONÂNCIAS DA LITERATURA POPULAR DO
NORDESTE NO ROMANCE D’A PEDRA DO REINO E
O PRÍNCIPE DO SANGUE DO VAI-E-VOLTA
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
Geice Peres Nunes
Santa Maria, RS, Brasil
2010
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AS RESSONÂNCIAS DA LITERATURA POPULAR DO NORDESTE
NO ROMANCE D’A PEDRA DO REINO E O PRÍNCIPE DO SANGUE
DO VAI-E-VOLTA
por
Geice Peres Nunes
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-
Graduação em Letras, Área de Concentração Estudos Literários, da
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), como requisito
parcial para obtenção do grau de
Mestre em Letras
Orientador: Prof. Dr. Lawrence Flores Pereira
Santa Maria, RS, Brasil
2010
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AGRADECIMENTOS
Agradeço
À Universidade Federal de Santa Maria. Chegar à UFSM, pisar no chão de
folhas secas, andar sob as árvores e sentir o ar me faz um imenso bem.
Ao Programa de Pós-Graduação em Letras, à coordenação e aos
funcionários Jandir e Irene pelo cuidado constante.
Ao meu querido orientador, professor Lawrence Flores Pereira, que “ensina
deleitando”, que imprime nos alunos o gosto gratuito pela literatura.
Ao professor Pedro Brum Santos e ao professor Homero Vizeu Araújo, os
argüidores desse trabalho.
Aos meus amigos, próximos e distantes geograficamente, e aos colegas que
me acompanharam nesse período, em especial ao companheirismo de Ana Paula
Cantarelli e de Enéias Tavares.
Ao meu amado e paciente Fabiano e a minha família, pelo apoio permanente.
Agradeço a generosidade de Ariano Suassuna em me receber e,
principalmente, por me tratar com tamanho afeto.
Desse modo, fica registrado o meu reconhecimento. Eu, que, semelhante a
Riobaldo, “quase que nada não sei, mas desconfio de muita coisa”, sinto-me grata
pelos momentos aprazíveis na companhia dessas pessoas reais, bem como do ser
de papel Quaderna, que faz da literatura vida, lazer e aprendizado.
5
A Sentença já foi proferida. Saia de casa e cruze o Tabuleiro pedregoso. Só lhe
pertence o que por você for decifrado
(Ariano Suassuna)
Outra coisa não posso oferecer,
Ao ver as aflições que nos consomem,
Antes risos que prantos descrever,
Sendo que rir é próprio do homem.
(François Rabelais)
6
RESUMO
Dissertação de Mestrado
Programa de Pós-Graduação em Letras
Universidade Federal de Santa Maria
AS RESSONÂNCIAS DA LITERATURA POPULAR DO NORDESTE
NO ROMANCE D’A PEDRA DO REINO E O PRÍNCIPE DO SANGUE
DO VAI-E-VOLTA
AUTORA: GEICE PERES NUNES
ORIENTADOR: LAWRENCE FLORES PEREIRA
Data e Local da Defesa: Santa Maria, 25 de janeiro de 2010.
A presente dissertação de mestrado intitulada “As ressonâncias da literatura popular
do nordeste no Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta
foi elaborada por Geice Peres Nunes sob a orientação do Prof. Dr. Lawrence Flores
Pereira, da Universidade Federal de Santa Maria. Nesse estudo, debruçamo-nos na
influência da Literatura popular do nordeste e da poesia oral no Romance d’A Pedra
do Reino e o Príncipe do sangue do vai-e-volta, de Ariano Suassuna. Para tanto,
lançamos o de proposições bakhtinianas acerca do gênero romanesco; de
teorizações de Umberto Eco sobre a abertura” da obra literária, a fim de relacioná-
las ao processo construtivo de tal narrativa. Tais teorias contribuem no entendimento
da habilidade de Suassuna em incorporar no seu romance diversos matizes da
poesia e da cultura oral, lado a lado com a ocidental, mais precisamente a poesia e
a cultura ibérica. Um dos pontos mais interessantes do trabalho de Ariano Suassuna
reside em capturar temas populares e transfigurá-los no romance, um sonho
romântico de fundir temas, posturas sociais e históricas coloridas pela dignidade
aural da poesia popular.
Palavras-chave: literatura popular; ressoncia; Romance d’A Pedra do Reino.
7
ABSTRACT
Dissertação de Mestrado
Programa de Pós-Graduação em Letras
Universidade Federal de Santa Maria
THE RESONANCES OF THE NORTHEAST POPULAR LITERATURE
IN THE ROMANCE D’A PEDRA DO REINO E O PRÍNCIPE DO
SANGUE DO VAI-E-VOLTA
AUTHOR: GEICE PERES NUNES
ADVISER: LAWRENCE FLORES PEREIRA
Place and date of defense: Santa Maria, january 25, 2010.
This dissertation studies the influence of Northeastern Brazilian Cordel and oral
poetry on Ariano Suassuna’s novel Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do
Sangue do vai-e-volta. One of our theoretical starting points are Bakhtin's
propositions on the novel as a literary gender and Umberto Eco’s concept of
“openness” common to some literary works: these theoretical assumptions have
been specially useful to understand Suassuna’s ability to incorporate into his novel
the manifold strata of popular and oral culture, alongside with Western and
particularly Iberian culture and poetry. One of our main interest was to seize
Suassuna’s special handling of Brazilian popular topics and themes, shaping a novel
that accomplishes the romantic dream of melting together social and historical data
colored by the aural dignity of oral poetry.
Keywords: popular literature; resonances; Romance d’A Pedra do Reino.
8
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 Escudo do Manto do Rapaz-do-Cavalo-Branco................... 113
FIGURA 2 Folheto de João Melchíades.................................................. 119
FIGURA 3 O Cavaleiro Diabólico............................................................ 126
FIGURA 4 Iluminogravura: A Morte - A Moça Caetana......................... 127
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...............................................................................................
10
1 O NACIONALISMO BRASILEIRO, A LITERATURA POPULAR E O
MOVIMENTO ARMORIAL............................................................................
16
1.1 O percurso do nacionalismo brasileiro............................................... 16
1.2 O resgate da cultura popular................................................................
20
1.3 Notas sobre a literatura popular do nordeste..................................... 24
1.3.1 A literatura popular do nordeste como objeto de estudo...................... 25
1.3.2 A posição suassuniana.........................................................................
30
1.3.3 Características da poesia popular do nordeste.................................... 33
1.3.4 Os cantadores e suas composições poéticas...................................... 35
1.4 O Movimento Armorial.......................................................................... 38
1.4.1 O olhar da crítica ................................................................................. 42
2 “DE LA MISMA MANERA QUE YO LO CUENTO SE CUENTAN EN MI
TIERRA”........................................................................................................
47
2.1 O narrador enredado nas teias do processo narrativo .....................
47
2.2 A nobiliarquia dos Quaderna ...............................................................
52
2.3 Quando o Quaderna aprisionado dá voz ao Quaderna bufão ..........
63
2.4 A “abertura” do castelo imaginoso .....................................................
79
3 NA ARTE A GENTE TEM QUE AJEITAR UM POUCO A
REALIDADE” ...............................................................................................
84
3.1 A elasticidade do romance .................................................................. 86
3.2 A performance de cantador no narrador romanesco ........................
89
3.3 Quaderna e seus precursores ............................................................. 93
3.3.1 Romances tradicionais......................................................................... 100
3.3.2 Literatura Erudita ................................................................................. 105
3.3.3 Poética Popular ................................................................................... 111
CONSIDERAÇÔES FINAIS ......................................................................... 138
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................. 141
10
INTRODUÇÃO
Este trabalho apresenta a revisão da literatura, bem como algumas
constatações acerca do tema que se propõe a investigar: as ressonâncias da
literatura popular do nordeste no Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do
Sangue do vai-e-volta, de Ariano Suassuna.
O referido autor nasceu em Nossa Senhora das Neves, a atual João Pessoa,
capital da Paraíba, em 16 de junho de 1927. Filho de João Suassuna e de Rita de
Cássia Dantas Villar Suassuna é o oitavo dos nove filhos do casal. Seu pai era
governador do Estado na ocasião do seu nascimento, afastando-se do governo em
1928, quando a família saiu da capital e foi viver na Fazenda Acahuan, em Souza,
no sertão paraibano. Em 1930, na função de deputado federal, João Suassuna
envolveu-se em lutas políticas que culminaram na Revolução de 30, paralela a
grandes conflitos políticos como o fim da República Velha e a Revolução de 30 no
sul do Brasil
1
.
Em fevereiro de 1930, explodiu uma luta armada dos coronéis de uma região
paraibana denominada Território Livre da Princesa, subordinado ao governo federal
e adversário do governo estadual. A guerra é marcada pelo assassinato de figuras
importantes como o governador João Pessoa, por João Dantas, primo da esposa de
João Suassuna. Devido a esses laços parentais que ligavam o ex-governador
Suassuna a Dantas, o político foi acusado de mandante na morte do governador,
sofrendo perseguições por esse fato. Assim, João Suassuna viajou para a cidade do
Rio de Janeiro, na época a capital brasileira, com o intuito de se defender da
suspeita que sofria e lá foi assassinado por um pistoleiro no dia 9 de outubro de
1930 (TAVARES, 2007, p.211).
A relevância de trazer à luz esses eventos reside no fato de que visualizamos
em grande parte das obras de Ariano Suassuna - como romancista, dramaturgo ou
poeta - um forte apego à figura paterna, João Suassuna, metaforizado nos romances
ou referido com clareza pelo sujeito lírico da sua poesia. Essa presença marcante
evidencia um filho que usufruiu muito pouco da presença do pai, mas que, na sua
1
As infâncias (e juventudes e maturidades) de Quaderna. In: Cadernos de Literatura Brasileira
nº10. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2000, p.8-13
11
maturidade, resgata essa figura e lhe concede a grandeza dos heróis e dos mártires.
De tal modo, percebemos ainda um traço da biografia de Suassuna por trás das
suas criações que se revela nas personagens, no espaço, no tempo que ambienta
os romances, trazendo personagens que expressam as influências recebidas na sua
vivência no sertão.
Ariano Suassuna passou alguns anos de sua vida no sertão da Paraíba, na
cidade de Taperoá e em Natal, no Rio Grande do Norte. Em 1942, a dificuldade
econômica da mãe, bem como o receio de uma represália da morte do marido por
parte de algum filho, conformando uma prática comum nos clãs nordestinos, levou a
família a se radicar em Recife. Lá, paralelamente à atividade de escritor, Ariano
estudou Direito e Filosofia e desempenhou a atividade de professor de Estética na
Universidade Federal de Pernambuco. Na qualidade de estudante, teve contato com
jovens que futuramente seriam reconhecidos pela intelectualidade: Hermilo Borba
Filho, José Laurênio de Melo, Capiba, Francisco Brennand, entre outros.
O autor conquistou reconhecimento do blico e da crítica com a publicação
de Auto da Compadecida, em 1955, consagrando-se entre os grandes dramaturgos
do país. Suassuna se lançou à prática romanesca em 1958, com o Romance d’A
Pedra do Reino quando percebeu que o gênero teatral não comportava a
diversidade de temas que pretendia incluir na sua obra. Finalizou seu romance doze
anos depois e publicou-o em 1971. Esses longos anos de trabalho foram ocupados
pela escrita e reescrita, pelo labor cuidadoso, pela ornamentação retórica inspirada
na arte barroca e na literatura popular do Romanceiro Nordestino; gostos adquiridos
nas leituras dos livros da biblioteca de seu pai ou pela influência dos tios Manoel e
Joaquim Dantas
2
.
A partir da clara presença de conteúdos biográficos na literatura do autor,
podemos lançar mão das palavras de Dominique Maingueneau (2001, p. 47), que
discute a “bio/grafia” de autores modernos: “o grande escritor é menos aquele que
em quaisquer circunstâncias sabe tirar uma obra prima de seu foro interior do que
aquele que organizou uma exisncia tal, que nelas possam ocorrer obras”. Assim,
poderemos entender a construção das obras suassunianas como um diálogo
constante entre fatos, influências e gostos que fazem parte do sujeito ficcional,
personificado nos protagonistas, bem como do real, o próprio autor.
2
As inncias (e juventudes e maturidades) de Quaderna. In: Cadernos de Literatura Brasileira
nº10. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2000, p.9
12
Ao historiarmos o Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do
vai-e-volta, percebemos que sua publicação coincide com o período de lançamento
do Movimento Armorial, na cidade de Recife. Dessa maneira, estabelecemos uma
conexão entre a obra e seu “manifesto”, que se ajustam como as regras e o
protótipo, no melhor sentido do termo. A Pedra do Reino concentra todos os cririos
estabelecidos pelos mentores do Movimento. Na categorização arstica apontamos
a musicalidade, proveniente da oralidade da cantoria sertaneja, da alusão aos
instrumentos típicos como a rabeca, a viola e o pífano; da arte pictórica, os
desenhos à semelhança de xilogravuras que ilustram passagens relevantes na
trama, associadas à viva descrição das cores sertanejas, ocre e amarelada,
assemelhando ao fruto do cajueiro; o teatro, também é um traço que provém da
oralidade, da apresentação do narrador e da encenação da própria história por parte
de Quaderna; a dança armorial, tamm pode ser compreendida pela atuação dos
personagens no espetáculo ambientado em Taperoá; a arquitetura armorial é
ilustrada pelas pedras sertanejas, que atestam ao longo da obra importantes
significados para os sujeitos de tal geografia; e finalmente, a literatura armorial,
ponto no qual nos centramos com maior ênfase, imagética, concreta, sonora, que
adquire forma de escudo heráldico ao compilarmos tais elementos, assim como a
designação propõe. Como influência estética, apontamos os barroquismos de uma
linguagem elaborada, retórica, que mostra diversas camadas estilísticas, de acordo
com o propósito do protagonista. Além disso, a influência popular, à qual nos
dedicamos, por comportar os diversos ciclos dessa expressão literária, bem como
aspectos formais como a métrica específica, que torna mais evidente essa
proximidade.
O livro, no seu percurso na literatura contemporânea, despertou interesse de
intelectuais estrangeiros como Idelette Muzart Fonseca dos Santos, que traduziu,
em 1998, uma versão reduzida da obra, com um título repleto de ironia: La Pierre du
Royaume: version pour européens et brésiliens de bom sens, em português
Romance d'A Pedra do Reino: versão para europeus e brasileiros de bom senso.
Atraído pela figura do caro espanhol, sobretudo Lazarillo de Tormes,
Suassuna apresenta na narrativa, uma versão ampliada dessa personagem tipo:
Quaderna, um sertanejo “culto”, que une o saber popular dos folhetos à erudição de
uma tradição literária, que discute ao mesmo tempo em que forma a um
“romance completo”. Assim, relevo à literatura popular do nordeste em uma obra
13
dirigida ao público letrado, motivo pelo qual passa a ser alvejado pela crítica, como
será evidenciado.
No esforço de compreender a articulação entre a literatura de Ariano
Suassuna e a literatura popular do nordeste, foi necessário revisar as obras de Luis
da Câmara Cascudo, cujas publicações acerca de tal temática são vastas. Além
disso, as publicações intituladas Literatura Popular em Verso, da Fundação Casa de
Rui Barbosa em parceria com algumas instituições de ensino, oferecem um
panorama da literatura de cordel, no que concerne à forma de expressão e à poética
dos cantadores populares. Ainda foi importante travar contato com o conjunto da
obra de Suassuna, como o romance, as peças teatrais, os poemas e os
“entremezes”; todos eles calcados em histórias do romanceiro popular nordestino,
mescladas a obras canônicas e expressas de uma maneira particular, unindo prosa,
poesia e elementos das artes plásticas, como a xilogravura. Do autor, ainda
observamos atentamente o artigo balizador do Movimento Armorial, publicado na
década de 70 e os ensaios críticos, também elaborados e publicados em jornais
nessa década, porém reeditados em uma publicação recente intitulada Almanaque
Armorial. Ainda nos orientamos nos postulados de Idelette Muzart Fonseca dos
Santos expressos na obra Em demanda da poética popular,
Nosso trabalho está organizado em três capítulos: o primeiro intitula-se “O
nacionalismo brasileiro, a literatura popular do nordeste e o Movimento Armorial”; o
segundo, “De la misma manera que yo lo cuento se cuentan en mi tierra”; e
finalmente, o terceiro, “Na arte a gente tem que ajeitar um pouco a realidade...”. No
primeiro capítulo da dissertação, propomos uma reconstrução do sentimento de
nacionalismo no Brasil. Para tanto, traçamos um breve panorama da postura de
valorização dos costumes, da natureza, da cor local, presentes no Romantismo.
Evidenciando como essa estética se refletiu na consolidação de outros movimentos,
como o Modernismo. Nesse último, além do nacionalismo, novas formas de
concepção literária passaram a fazer parte do panorama literário brasileiro,
permitindo experimentações ligadas à forma e ao conteúdo das obras. Com base em
tais colocações, percorremos o caminho do nacionalismo como postura e chegamos
ao Movimento Armorial, como um sintoma de tal inclinação: um olhar curioso para a
arte do povo e o retorno do popular para o seio da literatura erudita.
Debruçamo-nos sobre os aspectos característicos da literatura popular do
nordeste, como consolidação dessa expressão arstica no Brasil, o lugar onde se
14
desenvolveu, as formas poéticas usadas pelos cantadores populares, os principais
expoentes dessa literatura, dentre outros traços. Os referidos elementos transitam
no Romance d’A Pedra do Reino, consolidando-se como uma das mais importantes
influências do autor Ariano Suassuna e tamm do protagonista Quaderna.
No segundo capítulo da pesquisa, nos concentramos na análise da obra. Isso
toma forma em quatro movimentos: o primeiro focaliza o narrador Quaderna, explica
o seu comportamento quando está situado em um tempo presente e o seu
envolvimento no processo investigativo que é um dos temas da obra. Em seguida,
nos debruçamos sobre a linhagem da família Quaderna e as reivindicações de uma
possível nobreza dessa estirpe sertaneja. Nesse item, expomos a questão do
sebastianismo, no cenário nordestino das décadas de 20 e 30, que aparece como
pano de fundo na obra. Questões essas que são apresentadas no Romance d’A
Pedra do Reino por um modo “cordelesco” de narrar: amalgamando histórias de reis
e de princesas, de pícaros modernos, de líderes messiânicos com propósitos
obscuros, de desaparecimentos de figuras importantes, de emboscadas, entre
outros temas bastante recorrentes na literatura popular. Ainda observamos o
protagonista do romance, que no passado revela acontecimentos de sua vida
lançando mão de um estilo fantasioso e transfigurador da realidade. No entanto, tais
hisrias, voltam o olhar para o passado e nele permanecem. É nesse jogo que o
mito do Sebastianismo ressurge no sertão e nas histórias de Quaderna. É no
impulso de solucionar essa questão que esse sujeito opta por ser o rei de um
Castelo Poético, em vez de usar a força para ser um líder no perigoso sertão”.
Nessa transfiguração, o pai de Ariano Suassuna ressurge, alegorizado na figura de
Dom Sebastião Garcia-Barretto.
É importante mencionar “A ‘abertura’ do castelo sertanejo”, por trazer à luz
teorias de Umberto Eco sobre a obra aberta, noção muito pertinente na literatura
suassuniana, devido ao caráter de compêndio, pelo traço de inacabamento, visto
que a história não se conclui na narrativa em si. Além disso, pela improvisação
presente na obra, que une uma história à outra, fazendo de cada passagem uma
volta do fio “noveloso” do romance.
No terceiro capítulo, observamos as escolhas literárias de Quaderna para
elaborar uma composição de primeira grandeza. Para tanto, o protagonista persegue
um gênero literário capaz de dar suporte a todas as incorporações que pretende
fazer. A partir da escolha do gênero e das alusões aos demais sub-gêneros,
15
colocamos em evidência como a literatura popular se faz presente na narrativa e
coletamos passagens ilustrativas do referido matiz literário, no que se refere aos
elementos estruturais como o título, a divisão da obra em folhetos, as ilustrações
semelhantes às xilogravuras, bem como os textuais: o conteúdo da narrativa, o
aproveitamento da literatura popular tanto na narrativa em construção no romance,
quanto no Romance propriamente dito.
não constitui novidade a obra suassuniana estar fortemente ligada à
poesia popular do nordeste. No entanto, o modo como essa conexão está articulada
permite que o protagonista se comporte como o narrador benjaminiano, o contador
de histórias, sem ter percorrido espaços diferentes do seu. Pela imaginação
criadora, pela memória dos versos e pela versatilidade para unir uma história à
outra, Quaderna narra, funde e (re)cria o existente, evidenciando assim uma
protagonizão performática.
Enfim, apresentamos a leitura dos aspectos levantados anteriormente na
expectativa de que contemplem de maneira satisfatória os objetivos previamente
estabelecidos, mostrar na presente análise aquilo que Maximiano Campos atestou:
Um bom romancista tem muito de poeta, de encenador, de músico, de
profeta, de arquiteto, da paciência de um confessor, do improviso do
repentista. E, nesse romance, vemos Ariano Suassuna em todas essas
condições, construindo, com o auxílio do sonho e a força de seu poder
criador, o seu castelo rude e poético, sertanejo e barroco, áspero e
iluminado como as terras do seu Sertão (CAMPOS, 2007, p.754).
16
1 O NACIONALISMO BRASILEIRO, A LITERATURA POPULAR DO
NORDESTE E O MOVIMENTO ARMORIAL
1.1 O percurso do nacionalismo brasileiro
O sentimento de nacionalismo, definido como a proximidade e identificação
com uma nação, teve impulso no Período Romântico brasileiro. A partir dali, os
escritos que primavam pela valorização da cor local, das paisagens, dos habitantes
do Brasil confluíram para um momento ufanista das letras que teve expressão por
muito tempo.
Antônio Candido (1981, p.9) coloca que, inicialmente, o movimento árcade
imprimiu no Brasil uma prática intelectual baseada nos modelos tradicionais
europeus, uma forma de expressão forjada segundo a literatura ocidental. Assim, ao
mesmo tempo, consolidou-se “como uma atividade desinteressada e como
instrumento”, usado como um meio de valorização nacional. Isso podia se efetuar
seguindo o padrão europeu, mostrando a consonância com o modelo da metrópole,
ou exprimindo o contexto social brasileiro daquela época.
Esse modelo foi mantido sem grandes alterações, até que dois fatores
importantes consolidaram a mudança de postura dos intelectuais brasileiros: a
Independência política e o Romantismo. Tais fatores fraturaram o modelo arcádico e
possibilitaram o surgimento de novos gêneros, novas concepções formais; e, no
tocante aos temas, a disposição para exprimir outros aspectos da realidade, tanto
individual quanto social e natural” (CANDIDO, 1981, p.9). É nesse sentido que
Candido coloca que as formas e temas utilizados, o universalismo e o equilíbrio
clássico o davam vazão à expressão romântica, pois inibiam a manifestação do
espírito novo na pátria nova”. Então, foi gras ao Romantismo que a literatura
nacional se adequou ao presente e ao contexto brasileiro:
Assim como a Ilustração favoreceu a aplicação social da poesia, voltando-a
para uma visão construtiva do país, a independência desenvolveu nela, no
romance e no teatro, o intuito patriótico, ligando-se deste modo os dois
períodos, por sobre a fratura expressional, na mesma disposição profunda
de dotar o Brasil de uma literatura equivalente às européias, que exprimisse
17
de maneira adequada a sua realidade própria, ou, como então se dizia, uma
“literatura nacional” (CANDIDO, 1981, p.9-10).
O Romantismo expôs a idéia do poeta como vate, adjetivo que os
denominava “portadores de verdades ou sentimentos superiores aos dos outros
homens”, o que contribuiu para a propagação da inspiração divina, do transe, do
caráter visionário do poeta. De tal modo, a atividade de poeta seria a “representação
de um destino superior”, sendo esse sujeito definido como “o bardo, o profeta, o
guia” (CANDIDO, 1981, p. 27).
Reconstituindo rapidamente esse período, encontramos como característica o
forte nacionalismo expresso em obras de Gonçalves de Magalhães, de Gonçalves
Dias, de José de Alencar, de Fagundes Varela, entre outros. Ainda sabemos que o
período primava pela liberdade de gênero, postura que Antônio Candido esclarece:
a fluidez do espírito romântico, a sua profunda vocação lírica, o repúdio aos
gêneros estanques, propiciaram esse gênero misto, onde, num momento
em que já havia encontrado no romance o seu veículo moderno, a ficção se
funde na poesia; aliança que permite maior liberdade à fantasia e, ao
mesmo tempo, imprime à narrativa disciplina mais regular que a dos
gêneros de prosa (CANDIDO, 1981, p. 35-36).
Outro aspecto importante que deve ser ressaltado diz respeito ao estilo
retórico empregado no Romantismo. Assim, a musicalidade da estética romântica
deve ser aliada à escrita, intermediária entre a prosa e a poesia, por isso a
imposição do ritmo do discurso como padrão da composição literária (CANDIDO,
1981, p.42). Esta afirmação do teórico, com certo cuidado, pode ser estendida até a
posição do cantador popular do século XX: Ainda hoje m cunho romântico a
poesia musicada e semierudita e o discurso, convencional e comemorativo” (1981,
p. 43). Nesse sentido, quando analisamos as obras de cantadores populares,
encontramos esse cuidado intuitivo do poeta com a dimensão dos versos, pois estes
obedecem a esquemas rimários específicos, a fim de provocar determinados efeitos
na performance do cantador.
A retórica romântica deu ânimo à valorização da pátria, das belezas
nativistas, da magnitude e do futuro das terras brasileiras, por meio de um estilo
palavroso, conforme definiu Candido (1981, p.43). De acordo com o pesquisador, o
nacionalismo possibilitou as condições imediatas para o uso de um estilo retórico.
18
Isso demandou uma representação entusiasmada dos literatos em relação à pátria
que se firmou, inclusive, na consciência popular.
De tal modo, o patriotismo exaltado pelos românticos, teve consonância em
outros movimentos literários. Passados o Realismo, o Simbolismo e o
Parnasianismo, novas visões do nacionalismo balizaram o movimento Modernista,
iniciado na década de 20. Mário da Silva Brito, em A revolão Modernista (1986),
apresenta esse panorama e fixa o período como um desejo de definição e de
valorização das letras nacionais. O referido fator, que o implicava na renegação
do sentimento brasileiro, propunha a aplicação de novos processos artísticos às
aspirações autóctones, conforme o objetivo de Oswald de Andrade (BRITO, 1986, p.
4-5), autor de dois manifestos e um dos mentores intelectuais do movimento.
Durante a consolidação do Modernismo como movimento, houve um vasto
número de manifestos, de revistas voltadas para as propostas modernistas. Assim,
primeiramente, surgiu a revista Klaxon, em 1922; logo depois, o Manifesto Pau-
Brasil (1924), no qual Oswald propunha uma literatura retratadora da realidade
brasileira, evidenciando um movimento de redescoberta do Brasil; o Verde-
amarelismo (1926), de Menotti del Picchia, contrário a Oswald de Andrade; o
Manifesto Regionalista de 1926; e a revista Antropofagia (1928), de Oswald, que
marcou a transformação do Pau-Brasil, colocando em prática a antropofagia, a
deglutição das vanguardas européias, resultando em uma recriação do nacional
(NUNES, 1975, p. 39-53). Tais publicações, impulsionadas pelo gosto de escrever
manifestos, reivindicavam o resgate da cultura brasileira; a busca de uma
modernidade e originalidade; a volta às origens, valorizando o índio e a língua
indígena; a utilização de uma linguagem coloquial como forma de expressão; a
paródia às grandes obras a partir das quais pretendiam criar uma literatura brasileira
com base em temas brasileiros. Os referidos traços se mostraram de maneira efetiva
em Macunaíma, de Mário de Andrade, uma rapsódia, conforme a classificação dada
pela crítica, por fazer uma bricolagem e mesclar o estilo de lenda, épico-lírico,
solene; um estilo de cnica, cômico, despachado, solto; e um estilo de paródia.
Para Bosi (2006, p. 353), Mário de Andrade combinou com habilidade níveis de
consciência e de comunicação diversos. Portanto, o “herói da nossa gente”, porém
sem nenhum caráter, sintetiza o modo de ser do brasileiro, definido por Paulo Prado
como luxurioso, ávido, preguiçoso e sonhador”, conforme Bosi. Além disso,
19
estruturalmente, Macunaíma apresenta a fusão da epopéia com a novela picaresca,
apresenta um estilo diferenciado da “fala brasileira em nível culto”, que traz
estruturas lingüísticas orientadas pela gramática da língua portuguesa em
concordância com a linguagem corrente, repleta de palavras indígenas e africanas, e
influenciada pelas expressões trazidas pelos imigrantes europeus.
Acerca do Manifesto Regionalista, Mário da Silva Brito (1986, p.32) coloca
que este adquiriu importância no ano de 1926, por meio de um acontecimento
cultural em Recife, o Congresso Brasileiro de Regionalismo, primeiro do gênero em
vel americano. Tal movimento orientou-se nas afirmações de Gilberto Freyre e
suas pesquisas enraizadas na região e tradição do nordeste brasileiro. O sociólogo
sugeria uma conscientizão de que o caráter grandioso do Brasil não residia
apenas no progresso material e técnico, mas tamm no “amor à província, à região,
ao município, à cidade ou à aldeia nativa, condição sica para obras honestas,
autênticas, genuinamente criadoras e o um fim em si mesmo” (FREYRE apud
BRITO, 1986, p.32).
O apreço de Freyre por tais estruturas revelou-se na obra Casa-Grande &
Senzala (1933), mostrando-se como um sintoma desse impulso de retorno, com um
propósito ambíguo, primeiramente, de consolidar uma pesquisa científica, um estudo
sociogico e etnográfico do nordeste da zona da mata e do sertão; e, ao mesmo
tempo, de revelar nostalgicamente um espaço ao qual se sentia ligado por laços
afetivos, o lugar da infância. Assim, nesse mesmo caminho seguiu Câmara
Cascudo, cujas obras parecem conter um incio de romantismo, pois revelam a
visão do nordestino que deixa o seu lugar de origem e retorna, na sua maturidade,
para recontar a infância naquele espaço, cujas tradições permanecem inalteradas.
Nesse sentido, o que confirma a relevância do Movimento Modernista na
pesquisa que toma forma, é a conexão com o propósito da literatura “regionalista”,
pois ao apresentar um interesse em comum pelo país, pelo povo, pelas
particularidades, pela paisagem e pelos problemas (BRITO, 1986, p.32), conflui nas
tendências expressas no Romance d’A Pedra do Reino, bem como no Movimento
Armorial.
20
1.2 O resgate da cultura popular
Para entender o espírito da sociedade na qual se desenvolveu o Movimento
Armorial é importante reconstruirmos o panorama nacional brasileiro das décadas de
50 e 60. Quando investigamos o espaço da cultura dentro da sociedade brasileira
observamos que na década de 50, no governo de Juscelino Kubitschek, foram
organizadas algumas campanhas em defesa do folclore nacional, com a supervisão
do Ministério da Educação e da Cultura (MEC). Após os anos 50, alguns eventos
tiveram a finalidade de recensear a cultura “popular” como congressos, cursos
intensivos de folclore, publicações de revistas especializadas ou de cadernos de
folclore (CAVIGNAC, 2001, p.66). Com base em tais dados, inferimos que a cultura
foi tratada como uma área importante da sociedade brasileira e que tal resgate, bem
como a suposta valorização, coexistiu com os estudos concernentes às formas de
literatura popular do nordeste. Estes se concentraram no estudo da literatura de
cordel, forma escrita dos versos populares, e, além disso, na compilação de versos
orais dos cantadores populares nordestinos.
Quando observamos as décadas de 60 e 70 no Brasil, percebemos que estas
abrangeram momentos marcados por uma forte conturbação de caráter político e
ideológico, iniciada no período ditatorial em 1964, com o golpe militar. Dessa
maneira, o novo regime configurou-se como um momento de repressão aos
oposicionistas do governo, na figura de políticos, de intelectuais, de jornalistas, de
artistas, que vivenciaram o auge da ditadura bastante rigorosa, Por outro lado, pela
valorização da cultura nacional, um jogo político dos governantes, o denominado
“milagre econômico”, consolidado pelo surgimento de uma classe média brasileira e
pela tentativa de elevação da moral da população, por meio de campanhas
ufanistas.
Nesse sentido, os escritos de Mark Curran (2001) confirmam a atenção dada
pelos intelectuais à “tradição literária folclórico-popular”, que constituía, além de uma
forma de fruição, também um retrato “folclórico-popular da história e da política
brasileiras” (CURRAN, 2001, p.13). Devido a tais aspectos, encontramos versos
populares que trazem como heróis personagens históricos ou folclóricos vivenciando
21
situações típicas do interior do Brasil. Por isso, Curran aponta este aspecto como um
dos focos do seu interesse:
Interessavam-me as histórias baseadas pelo menos em parte na realidade
histórica. Carlos Magno e os Doze Pares versus os malditos mouros, o
fanatismo religioso e os movimentos messiânicos no velho sertão, o
cangaço no Nordeste, o vaqueiro heróico e o sertanejo valente que se
converteram em mitos; o humor e a sátira do nordestino voltados para o
estrangeiro no Brasil, os pequenos eventos locais (como o matuto na feira
da vila do interior) ou ainda aqueles envolvendo políticos da região, do país
ou até do exterior; a luta de vida e morte para sobreviver no Nordeste, com
a subseqüente migração para o Amazonas, Rio de Janeiro, São Paulo ou
Brasília (CURRAN, 2001, p.13).
Quando contextualizamos o olhar dirigido à literatura popular nas referidas
décadas, percebemos que ele parece ser impulsionado por um objetivo político.
Essa maneira de ver o popular serviu à necessidade de uma política de integração
nacional e de valorização da cultura nacional, que preconizava um desenvolvimento
tanto infra-estrutural, por meio da construção de rodovias, quanto intelectual,
centrado na preservação das manifestações culturais brasileiras. Tal postura leva
Maria Teresa Didier (2000, p.27) a afirmar que, impactados pelo Ato institucional
5, os primeiros anos da década de 70 se caracterizaram por um discurso
governamental que defendia uma “representação autoritária e unificadora da
Nação”. Assim, campanhas nacionalistas como Brasil: ame-o ou deixe-otiveram
reflexo na sociedade brasileira, que vivia um período de crescimento econômico, de
entusiasmo nesse campo, fato que culminava na expectativa de um futuro grandioso
para o Brasil.
Desse modo, sob influência das campanhas políticas, de valorização do
esporte e do sentimento de brasilidade, entre outros aspectos, o brasileiro usufruía
um poder aquisitivo que o possuía anteriormente, consolidando, por meio desse
sentimento de progresso, um forte nacionalismo. Paulatinamente, as mudanças
estruturais assentavam-se na construção de estradas com o objetivo de interligar o
país, unindo os estados mais desenvolvidos às regiões estagnadas
economicamente, a fim de desenvolver o Brasil como um todo. O propósito era
utilizar a mão de obra existente nas regiões norte e nordeste do país, permitindo que
a classe menos favorecida pudesse migrar e estabelecer-se economicamente. Para
tanto, conforme ressalta Didier (2000, p.28), em setembro de 1971, o governo Médici
formalizou perante o Congresso Nacional o seu primeiro Plano Nacional de
22
Desenvolvimento, no qual delineava as bases da integração nacional, que incluía a
conexão à Amazônia, por meio de rodovias, bem como o desenvolvimento do
nordeste. Tais planos se fundamentavam no propósito de “valer-se
convenientemente dos recursos humanos e da dimensão continental e traçar as
linhas para a integração social”. Dadas essas razões, atento a tais finalidades, o
governo pretendia utilizar a mão-de-obra nordestina para desenvolver os projetos de
construção da rodovia Transamazônica.
Ao mesmo tempo em que se ampliava uma política atenta ao progresso do
Brasil, o setor cultural sofria certos abalos. A crítica ao governo se tornava mais
severa devido à crise do petróleo, à inflação, ao déficit econômico e à insatisfação
da igreja com a política de amparo à classe baixa, bem como à perseguição aos
indivíduos atuantes em grupos de esquerda. Sendo assim, firmou-se um movimento
subversivo e antigovernamental organizado pelos estudantes, geralmente ligados à
intelectualidade e à cultura e, por conta disso, o setor cultural passou a ser
considerado um fomentador de subversores. Didier (2000, p.32-33) esclarece que o
governo pretendia neutralizar as críticas sofridas por meio de órgãos repressores
como a Divisão de Segurança e Informões do Ministério da Educação e Cultura,
que elaborou o documento Como eles agem. Com o propósito denunciatório, o
documento alertava que o setor cultural era utilizado para fazer propaganda contra o
sistema. Isso se revelava na figura do cineasta Glauber Rocha, mentor do Cinema
Novo e seguidor do cinema engajado que Godard deu início na França. Portanto,
isso representava perigo à administração vigente, na medida em que as produções
de Godard constituíram o estandarte do movimento de Maio de 68, na França, cuja
repercussão teve ressonância mundial. Da mesma forma, o cineasta brasileiro e
seus seguidores representavam um risco para a política de propagar o sentimento
nacionalista, que julgou o Cinema Novo um subversor. Essa nova expressão da
cinematografia nacional tematizava problemas sociais como a seca, o messianismo,
o cangaço, a política, os meios de comunicação de massa; revelavam um Brasil
primitivo, que destoava da imagem que as propagandas sociais difundiam nas
campanhas.
Alfredo Bosi (2006, p. 312-313), em Dialética da Colonização, delineia o final
da década de 60 e início de 70 como um período de viragens, devido às diversas
transformações nas áreas da cultura nacional e da educação. Na educação se deu
a mudança de paradigma, do modelo estruturalista para o formalista, mas as
23
mudanças mais radicais se deram no nível das ciências sociais e humanas. Assim,
disciplinas fundamentais na formação crítica dos sujeitos foram retiradas dos
currículos, como uma tentativa de neutralizar qualquer possibilidade de oposição ao
regime ditatorial. Desse modo, a neutralização das dissidências representava uma
prática comum no processo de modernização, ou seja, um recurso necessário às
sociedades neocapitalistas, a fim de intimidar qualquer tentativa de tomada de
consciência dos indivíduos acerca das contradições daquele contexto (BOSI, 2006,
p.317).
No período em questão, o nordeste e seus problemas estruturais pareciam
destoar da imagem de um país de futuro grandioso” (DIDIER, 2000, p.28) devido ao
atraso tecnológico e ao baixo desenvolvimento. Nesse viés, como uma região não
atingida pela política de expansão, passa a ser considerada pelo governo um
espaço de dicotomias: um lugar atrasado em relão às demais regiões brasileiras
e, ao mesmo tempo, abundante em tradições culturais. Sob tal visão, o nordeste foi
avaliado de maneira contraditória por diferentes grupos sociais como sendo um local
de “resisncia contra as influências externas e industrializantes e enfatizado por
outros como o espelho do subdesenvolvimento” (DIDIER, 2000, p.35). Essa
consideração revela certo equívoco quando confunde resistência com o grau de
dificuldade enfrentado pelo povo do interior de travar contato com a cultura dos
grandes centros. Nesse sentido, apresentando a imagem do nordeste no contexto
brasileiro, Didier coloca que
[...] Nessa aura de tradição preservada, essa região é considerada como
contedora dos princípios identitários da Nação. Assim é construída a
imagem ambivalente da região nordeste, relacionada ao passado
cristalizado, rico de cultura popular como expressão da tradição ou como
fonte de resistência à desagregação capitalista/moderna. Primordialmente
vinculada ao passado, à “pureza” e à identidade nacional, a cultura popular,
nessa concepção, é possuidora de essência e linearidade (DIDIER, 2000,
p.35).
Ao fazer um paralelo entre cultura erudita e popular, Bosi (2006, p.309)
enfatiza que, como contraponto da primeira, existia uma cultura iletrada que ainda
não fora contaminada pelo academicismo das universidades. Esta cultura
correspondia à materialidade e aos simbolismos “do homem rústico, sertanejo ou
interiorano”, mas tamm “do homem pobre e suburbano” que ainda o assimilara
as “estruturas simbólicas da cidade moderna”.
24
Com efeito, quando refletimos a estética popular, percebemos um senso
crítico pouco apurado, certo reducionismo ao tratar questões de teor político-
econômico-social. Notamos esse traço no uso que os cantadores fazem das notícias
lidas ou ouvidas e na filtragem dos dados mais superficiais para versificá-los. Mesmo
diante desse fato, os folhetos de cordel, quando observados em conjunto, revelam o
panorama político nacional de maneira bastante clara, ainda que a manifestem de
forma acrítica. Nesse viés, os folhetos são valorizados também pelo seu teor
jornalístico, já que têm a visão clara e direta do fato, ainda que simplificada, sendo
denominados como “a crônica do povo”, conforme Mark Curran (2001) evidencia em
seus estudos baseados nos folhetos populares. Curran (2001, p.18) ressalta que a
cosmovisão essencial do cordel mostra quase total identificação com as crenças e
os valores do nordestino pobre e humilde”, estando este radicado no seu lugar de
origem, no centro-sul do país ou na capital.
Manuel Diégues Júnior (1986, p. 41) aponta as transformações sociais
ocorridas no nordeste a partir da popularização do rádio e da televisão. Em
decorrência disso, o folheto de cordel passou a perder espaço. No entanto não
desapareceu totalmente, continuou a ser apreciado por pessoas humildes que
decoravam as histórias e tamm por grupos específicos de estudiosos que
reconheciam a importância dessa expressão artística. Esse enfraquecimento vem de
longa data, pois desde a década de vinte e início de trinta, o rádio se configurou
como o veículo que aproximava a família, devido ao hábito desta se reunir para ouvir
as notícias, as músicas, as propagandas, afastando-se da prática da leitura coletiva.
Assim, a literatura popular dos folhetos se conservou como um elemento
residual
3
dos antigos bitos perdendo espaço para novas tecnologias, outras
formas de divertimento e de expressão. Seu terreno passou a ser o campo das
pesquisas e da cultura, foco de interesse de acadêmicos e de curiosos.
1.3 Notas sobre a literatura popular do nordeste
3
Tal aproveitamento, considerado segundo a ótica de Raymond Williams (1980, p. 144), trata de
instâncias culturais formadas, efetivamente, no passado, que ainda se encontram em atividade dentro
do processo cultural, o somente como um elemento do passado, mas também como um efetivo
elemento do presente.
25
A Literatura Popular do Nordeste tomou forma a partir das incontáveis
influências culturais dos povos que chegaram ao Brasil no período colonial. A vinda
de portugueses, espanhóis, franceses, africanos e holandeses trouxe novos modos
de vida, que foram incorporados na sociedade que se formava e que resultou na
cultura híbrida consolidada no espaço geográfico nordestino.
Quando investigamos as circunstâncias de formão da literatura popular do
nordeste, elaborada por uma classe analfabeta ou semi-analfabeta, chegamos a
textos procedentes de uma tradição letrada européia firmada no século dos
descobrimentos. De tal maneira, o objetivo neste capítulo será o de reconstituir os
estágios de consolidação da referida literatura, não somente como manifestação
artística, mas também como objeto de estudo. Para tanto, tomamos como base as
pesquisas de Luis da Câmara Cascudo, pelo fato deste folclorista deixar uma grande
quantidade de obras relacionadas à cultura popular, à literatura popular e ao folclore
brasileiro. Também nos apoiamos nos estudos de Cavalcanti Proença, Manuel
Diégues Júnior, Thiers Martins Moreira, entre outros pesquisadores dessa expressão
literária.
1.3.1 A literatura popular do nordeste como objeto de estudo
De acordo com Thiers Martins Moreira (1964, p.vii), os estudos concernentes
à literatura popular do nordeste adquiriram relevo no Brasil, no final do século XIX, a
partir das pesquisas de folcloristas como Silvio Romero (1851-1914), Rodrigues de
Carvalho (1867-1935) e Gustavo Barroso (1888-1959). José de Alencar (1829-
1877), como jornalista e escritor, também se lançou à coleta de materiais de origem
popular, publicando em O Nosso Cancioneiro (1874) alguns versos relacionados à
gesta dos vaqueiros e à gesta do boi. Alguns anos depois, as obras Cantos
Populares do Brasil (1883) e Contos Populares do Brasil (1885), ambas de Silvio
Romero, publicadas em Lisboa, constituíram os primeiros documentários da
literatura oral brasileira (CASCUDO, 1985, p.17). As compilações e pesquisas não
o contemporâneas, apresentam proximidade temática, visto que há uma diferença
metodológica que separa Alencar e Romero, pois, enquanto José de Alencar
preencheu algumas lacunas das composições conservadas pelo povo com versos
26
reconstruídos por ele próprio, mantendo o mesmo tema, bem como a seqüência dos
fatos, porém recriando certos versos, Silvio Romero anos depois coletou apenas os
versos mantidos na memória do povo, sem interferir na sua extensão ou no seu
conteúdo (CASCUDO, 1985, p. 18).
Cascudo (1953, p.14), em sua reconstrução do leitor brasileiro, afirma que
não pode precisar o que eles liam nos séculos XVI e XVII. Acredita, no entanto, que
se tratava de sermões, hagiolários e livros de exemplos. Assim, como forma de
divertir o serão noturno, o folclorista supõe que o português devia contar e ouvir
hisrias, que o livro como objeto era um artigo de luxo, sobretudo, na exótica
colônia. Nesse período, a Inquisição do Santo Ofício fiscalizava as leituras dos
habitantes do lugar, para isso existiam as Denunciações, ou seja, relatórios que
inventariavam os livros encontrados nas casas dos moradores da colônia.
Observando documentos das Denunciações da Bahia, de Pernambuco e do
Rio de Janeiro, sobressai-se dentre as obras européias que circulavam no Brasil no
período colonial Diana, Jorge de Montemor, que marcou o início da novela pastoril
na Espanha, obra presente nos Índices Expurgatórios da Santa Inquisição. Também
a Metamorfose, de Ovídio; as Novelas Exemplares, de Cervantes; Os Lusíadas, de
Camões; a Celestina, de Fernando de Rojas, entre outros. Contudo, o existem
referências às novelas tradicionais e de grande adoração do povo como A donzela
Teodora ou Roberto do Diabo. Isso se torna contraditório quando Cascudo (1953, p.
16) observa que uma grande quantidade desses pliegos sueltos chegava à América.
Em 1606, mil e quinhentos exemplares de Don Quijote, uma obra de maior porte,
mais densa e cara, passaram a circular pela América, evidenciando que os
pequenos folhetos deviam circular com muita facilidade, mas podem ter sido
omitidos das Denunciações.
Outra leitura comum, de acordo com os escritos de Cascudo (1953, p.22),
tratava-se de textos sobre a vida dos santos. Nesse sentido, chama atenção a
descrição de uma espécie de almanaque de grande circulação, o Lunário Perpétuo,
que constituía uma leitura deleitosa. Este era uma variação do Lunario Perpetuo
espanhol, que foi o primeiro deles, sendo adaptado em 1703 para o português, em
Lisboa, e, conseqüentemente, trazido para o Brasil no período colonial. Conforme o
relato do pesquisador, circulavam opiniões de que uma casa de criação sem rosário
e sem o Lunário Perpétuo era impossível.
27
A partir de tais dados, os estudos de Câmara Cascudo contribuem no sentido
de esclarecer como se formou o público apreciador da literatura no país e os tipos
de obras com as quais o povo travou contato. A população vinda da camada mais
humilde da sociedade (que dispunha de poucos recursos e era analfabeta ou semi-
analfabeta), inconscientemente, encontrou nos folhetos uma forma de conhecer as
hisrias que circulavam na Europa no período em que o Brasil foi descoberto e
colonizado pelos portugueses. Assim, no cenário nacional as hisrias provenientes
de uma tradição letrada, ainda que bastante popular, foram recriadas e seus
personagens mitificados pela visão quixotesca do povo brasileiro, uma espécie de
ilusão do real, de mascaramento da realidade pela crença inabalável em um futuro
de igualdade.
Para um delineamento da Literatura Popular do Nordeste é importante revisar
as pesquisas realizadas por Câmara Cascudo a respeito de Literatura Oral, Popular
e Tradicional. Nessa empreitada, os amplos estudos do folclorista, em Cinco Livros
do Povo, delimitam cada um desses termos, empregados como sinônimos por
alguns apreciadores, mas de grande diferença em suas essências. Nos estudos de
Câmara Cascudo observamos que a poesia oral brasileira não se trata de uma
poesia oral primitiva e sim uma modalidade poética oriunda de uma sociedade que
dissemina a escritura.
Luis da Câmara Cascudo (1953, p. 10-11) esclarece que a Literatura Oral
apresenta traços de transmissão verbal, compondo-se de contos de fadas, facécias,
anedotas, adivinhas, casos, autos cantados e declamados, desafios, entre outras
manifestações. Ela é anônima, pois sua existência é bastante antiga, pertence à
multidão e provém de fontes variadas. Desse modo, pelo fato de ser oral, ela sofre
modificações constantes, fator que justifica as diferentes versões que as
composições podem apresentar dependendo da localidade onde são cultivadas, das
adaptações feitas pelos indivíduos, que estes podem associá-la a fatores sócio-
culturais que orientam a comunidade em que vivem. Cascudo ainda chama a
atenção para o amálgama que se entre a literatura oral corrente com as
novidades trazidas pelos viajantes; com as notícias vagas e as informações lidas
que se mantém na memória do povo, vivificando essa literatura.
Manuel Cavalcanti Proença (1964, p.1) estabelece um diálogo com Cascudo
quando afirma que a literatura oral está dividida em duas linhas: a primeira,
folclórica, transmitida oralmente, que não se sujeita à moda, que se tornou anônima
28
pelo esquecimento dos autores, passada a patrimônio coletivo; a segunda, popular,
é transmitida por meios técnicos, como as impressões, e está sujeita à moda, o é
anônima, no entanto possui uma forte ligação com a poesia folclórica. Quando essas
duas formas de literatura oral se imbricam, torna-se difícil distinguir o limiar entre
uma e outra, pois elas passam a ser “limitantes e superpostas”, impossibilitando a
classificação.
Acerca da Literatura Popular, Câmara Cascudo (1953, p.11) esclarece que
ela é típica e impressa, tendo autor conhecido ou o. Como exemplo dessa
categoria literária, o estudioso cita os folhetos de cordel, cujos assuntos são
diversos, visto que qualquer tema pode ser versificado em quadras, abecês,
sextilhas, décimas, etc. Nesse formato podem aparecer temas sociais, grandes
caçadas, enchentes, incêndios, lutas, festas, milagres, crimes, entre outros
assuntos. Assim, entre as produções mais conhecidas e reimpressas estão Alonso e
Marina, Zezinho e Mariquinha, Capitão de Navio, Cancão de Fogo, Iracema, Os
Doze Pares de França, etc. Esses o folhetos que se estabelecem como modelos
de histórias amorosas ou heróicas, exemplificando aos compositores a estrutura da
narrativa, que pode ser reelaborada com personagens e espaços diferentes, e que,
no entanto, conservam desfechos idênticos: o herói ou a heroína que sofre
tribulações, tem a honra colocada em xeque, supera os entraves e conquista a
felicidade, assemelhando-se à estrutura das narrativas tradicionais.
Cascudo (1953, p. 12) cita como principais expoentes da literatura dos
folhetos os poetas Leandro Gomes de Barros (1868-1918), Francisco das Chagas
Batista (1885-1929), João Martins de Ataíde (1880-1959), devido à extensa
produção desses cantadores, à variedade temática e à grande apreciação do povo.
Cascudo (1953, p. 13), de forma apaixonada, afirma que tais versos são “um reflexo
poderoso da mentalidade coletiva em cujo meio nasce e vive”, por isso, tal produção
se converte em “um retrato do temperamento, predileções, antipatias, fixando o
processo de compreensão, do raciocínio e do julgamento dos criadores. Dessa
forma, as composições de tais artistas convertem-se em fontes de pesquisa para
entender a visão da sociedade em questão.
Por Literatura Tradicional, Cascudo (1953, p. 13) compreende os textos
impressos recebidos séculos, como as novelas Donzela Teodora, Imperatriz
Porcina, Roberto do Diabo, Princesa Magalona, João de Calais e História do
Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França. Tais novelas tiveram origem
29
erudita, carregam consigo o reconhecimento de um público especializado, pois
foram estudadas na novelística francesa, espanhola, italiana e portuguesa e, com a
chegada ao Brasil, passaram a divertir o povo e a despertar o interesse de
estudiosos.
A respeito da postura do brasileiro diante de tais leituras, e da consagração
de determinadas histórias, bem como de suas personagens como é o caso dos
Doze Pares de França -, Câmara Cascudo enfatiza que, na época em que
desenvolveu suas pesquisas,
Estarreceria um psicólogo social afirmar-se que o povo essas novelas
porque é o mesmo do século XV, XVI, XVII, XVIII... Seria tornar marginais
todas as demais atividades literárias. Mas não apenas lê, como lemos os
nossos romancistas, poetas, ensaístas, filósofos e antropólogos. Obriga a
continuidade do gênero, isolado e limitado a poucos tipos, séculos e
séculos, geração a geração. Nenhum fenômeno cultural mereceria tanto o
exame da técnica psicológica como a existência dessas novelas humildes,
enroladas em capas de policromia popularesca, trazendo assuntos inatuais
e pretéritos [...]. Nada se pode comparar na antiguidade dessa simpatia
anônima e popular. Nenhum nome tem vivido tanto nas obras pela leitura no
tempo (CASCUDO, 1953, p. 27-28).
O trecho transparece o sentimento de Cascudo em relação a essa literatura.
Sentimentalismo que dominou grande parte dos folcloristas, em sua maioria
nordestinos, que pesquisaram esses temas, como tamm a personagem do
romance suassuniano. A partir de tal idéia, a literatura popular do nordeste reforça a
impressão de ser uma arte presa a um passado, aspecto que é visto na obra
suassuniana: “Eu me recordava perfeitamente do velho Fidalgo, Dom Manuel
Pereira, Senhor da Carnaúba. Como membro do Estado-Maior do Rei Dom José
Pereira, tinha sido um dos Doze Pares e um dos Grandes do Reino de Princesa”
(RPR, 2007, p.118)
4
. No fragmento, as personagens dos folhetos fazem parte da
vida das pessoas de carne e osso, tais personagens transformam-se em
qualificativos, a hierarquia social é composta por figuras de um “reino” medieval de
reis, cavaleiros e fidalgos dentro do nordeste interiorano em pleno século XX. Desse
modo, Suassuna consegue mostrar na sua narrativa pessoas que convivem
diariamente com os seres mitificados pelas histórias medievais e freqüentemente
presentes na literatura de cordel.
4
Todas as citações seguidas da sigla RPR remetem ao Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe
do Sangue do vai-e-volta, Rio de Janeiro: José Olympio, 2007.
30
1.3.2 A posição suassuniana
Com base nas idéias anteriores, percebemos que as formulações de Câmara
Cascudo antecipam o texto suassuniano. A presença da literatura nordestina tanto
em sua forma popular quanto tradicional se faz evidente no Romance d’A Pedra do
Reino. Quaderna é, antes de tudo, um teórico dessa literatura. As novelas, os
romances, bem como algumas personagens apontadas por Cascudo, são alicerces
que dão base à construção do Castelo Poético” da personagem Pedro Dinis
Quaderna, sendo citados em diversas passagens como exemplos de conduta, como
influência temática e como modelo teórico refletido e conceituado pelo protagonista
da obra.
A construção do romance suassuniano, bem como a elaboração do projeto
literário de Quaderna, contribui de forma teórica, para definir o que é a literatura
popular no contexto brasileiro e no contexto local onde é produzida; busca
incessantemente a valorização dessa manifestação; presta homenagem aos
cantadores citados ao longo da obra e, da mesma forma que a “literatura do povo”,
insere no local o universal. Na empreitada de Suassuna, há uma tentativa de romper
o círculo vicioso relatado por Cascudo:
Os leitores que conservam esses folhetos em vida ininterrupta, renovada e
atual, são justamente os mais desprotegidos de elementos para sua defesa
e para legitimar financeiramente essa persistência. Decorrentemente os
folhetos devem ter baixo preço e circular nas artérias de um organismo
primitivo e simples em sua disposição intelectual. Poucas são as exincias
para os enredos, a linguagem é suficiente, os quadros bastam à curiosidade
e a moral promanada do assunto sedutor é clara e agilmente sentida como
a mais própria e natural (CASCUDO, 1953, p.29).
Tal tentativa é visível nas passagens em que Quaderna faz alguns
comentários acerca da elaboração do seu romance. No fragmento abaixo
percebemos que o protagonista, devido à censura que recebia dos intelectuais
Samuel e Clemente, sentia-se constrangido por admirar a arte dos cantadores
nordestinos. Assim, foi preciso conhecer a opinião de um acadêmico validando a
referida literatura para se sentir liberto de qualquer preconceito, perdendo a
vergonha por admirar os cantadores de chapéu de couro, conforme o trecho ilustra:
Explico a Vossas Excelências que, sendo já, como sou, um Acadêmico,
tive, na infância, muito contacto com os Cantadores sertanejos, tendo
31
mesmo, sob as ordens de meu velho primo João Melchíades Ferreira da
Silva, praticado um pouco da arte da cantoria. Depois, porém, por influência
do Doutor Samuel e do Professor Clemente, passei a desprezar os
Cantadores. Até que, lá um dia, li um artigo de escritor consagrado e
Acadêmico, o paraibano Carlos Dias Fernandes, artigo no qual, depois de
chamar os Cantadores de Trovadores de chapéu de couro”, ele os
elogiava, dizendo que “o espírito épico da nossa Raça”, andava certamente
esparso por aí, nos cantos rudes daqueles “Aedos sertanejos”. Depois daí,
senti-me autorizado a externar meu velho e secreto gosto, minha velha e
secreta admiração (RPR, 2007, p.44).
Essa mentalidade evidencia parte do processo de amadurecimento teórico de
Quaderna, que passa a utilizar os versos dos cantadores como principal fonte
influência. Em uma instância mais profunda, o reconhecimento do acadêmico em
relação aos cantadores e seus folhetos mexem com a estrutura psicológica de
sujeito, levando-o a auto afirmar-se e a perceber o seu lugar na literatura. É o
primeiro passo para que o protagonista megalomaníaco parta, munido de um
conhecimento enciclopédico, em busca da concretização do seuCastelo Poético”, a
grande “Obra Lapidar” que podesagrá-lo “Gênio da Raça Brasileira”.
Vale lembrar que nos jargões da poesia popular “marcos”, fortes”, lagoas” e
“castelos” representam as obras que são erguidas com palavras. Assim, nos
desafios, cada cantador constrói seu castelo, e seu adversário tem a missão de
derru-lo com versos que colocam em xeque os anteriores. Isso ainda recorda a
idéia do cantador de erguer uma fortaleza em estilo feudal, atestando a memória
inconsciente herdada das velhas hisrias dos ancestrais (CASCUDO, s.d., 158).
Parece ser baseado em tal idéia que Quaderna discorre acerca de seu fazer literário.
Dessa forma, revela que é o uso hábil da palavra e não o uso da força que o ajudará
a construir sua obra:
Assim, aos poucos, ia se formando no meu sangue o projeto de eu mesmo
erguer, de novo, poeticamente, meu Castelo pedregoso e amuralhado.
Tirando daqui e dali, juntando o que acontecera com o que eu ia sonhando,
terminaria com um Castelo afortalezado, de pedra, com as duas torres
centradas no coração do meu Império (RPR, 2007, p. 115)
Ainda teorizando esse fazer poético, Quaderna põe em relevo as vantagens
de ser um cantador, um construtor de castelos. A edificação desse reino comprova a
afinidade com a literatura dos folhetos, por aludir a enredos que tangenciam
variantes do ciclo temático do cordel como o cenário empoeirado das caatingas,
espaço percorrido por vaqueiros e cangaceiros, por cavaleiros sertanejos, vestidos
32
com roupas de couro, lugar que é cenário de lutas, de emboscadas, de amores,
vividos sob o sol sertanejo:
Ali eu reergueria, sem perigo de vida, as Torres do lajedo do meu Castelo,
para que ele me servisse de trono, de pedra-de-ara, de ninho de gaviões,
onde eu pudesse respirar os ares das grandes alturas. Seria um Reino
Literário, pedregoso e sertanejo, um Marco, uma Obra cheia de estradas
empoeiradas, caatingas e tabuleiros espinhosos, serras e serrotes
pedreguentos, cruzada por Vaqueiros e Cangaceiros, que disputavam belas
mulheres, montados a cavalo e vestidos de armaduras de couro. Um reino
varrido a cada instante pelo sopro sangrento do infortúnio, dos amores
desventurados, poéticos e sensuais, e, ao mesmo tempo, pelo riso violento
e desembandeirado, pelo pipocar dos rifles estralando guerras, vinditas e
emboscadas, ao tropel dos cascos de cavalo, tudo isso batido pelas duas
ventanias guerreiras do Sertão: o cariri, vento frio e áspero das noites de
serra, e o espinhara, o vento queimoso e abrasador das tardes incendiadas.
Nas serras, nas caatingas e nas estradas, apareciam as partes cangaceiras
e bandeirosas da história, guardando-se as partes de galhofa e estradeirice
para os pátios, cozinhas e veredas, e as partes de amor e safadeza para os
quartos e camarinhas do Castelo, que era o Marco central do Reino inteiro
(RPR, 2007, p.115-116).
A importância dessa expressão artística está em evidência não apenas no
Romance, mas também nos ensaios publicados pelo autor. Suassuna enfatiza que a
literatura popular existe e que pode ser admirada no “maior e mais variado
Romanceiro vivo do mundo”, os folhetos de cordel (SUASSUNA, 2008, p.152). Seu
engajamento é tão profundo que, na tentativa de esclarecer os diferentes níveis do
Romanceiro Popular do Nordeste, Suassuna criou uma classificação que define o
lugar ocupado por cada modalidade artística, compreendida pelo modo como se
expressa. Ainda busca uma caracterização geral de cada área, quando propõe a
divisão. Assim, estabelece que no campo do Romanceiro Popular prevalecem duas
divisões principais: de um lado, a poesia improvisada, da qual fazem parte
composições em sextilhas, décimas e estrofes que derivam desses modelos; de
outro lado, as poesias oriundas de uma tradição oral decorada e da literatura de
cordel. Tal subdivisão compreende os abecês, as pelejas, as cantigas e os
romances, que, por sua vez, podem ser classificados por ciclos temáticos, divididos
em: Ciclo Heróico; Ciclo do Maravilhoso; Ciclo Religioso e de Moralidades; Ciclo
Cômico, Satírico e Picaresco; Ciclo Histórico e Circunstancial; Ciclo de Amor e de
Fidelidade (SUASSUNA, 2007, p.256). A partir de tal fixação, temos uma
possibilidade de classificação que é usada por muitos pesquisadores ainda hoje na
compilação de textos da literatura popular.
33
1.3.3 Características da poesia popular do nordeste
Conforme o estudioso Thiers Martins Moreira (1964, p. vii), em Literatura
popular em verso, a Literatura de cordel - denominada dessa forma pela exposição
dos folhetos pendurados em barbantes nas feiras - desenvolveu-se mais
rapidamente desde 1900, manifestando-se, principalmente, do estado da Bahia ao
Pará. Essa era conhecida dentro de grupos sociais menos favorecidos, sendo
elaborada, apreciada e mantida dentro desse círculo.
Na atividade de folclorista, Câmara Cascudo, nos idos de 1900, recolheu
vários textos fundadores da literatura de cordel, explicando a origem dos mesmos na
tradição literária medieval das novelas de cavalaria. Assim, tais estudos, bem como
as criações literárias do período, contribuíram no sentido de romper com a distância
que separava o popular do erudito, que estes evidenciavam a influência de uma
literatura culta na elaboração dos folhetos. Com isso, de acordo com Proença (1964,
p. vii), os estudiosos partiam do terreno popular até atingir o campo da observação
crítica e teórica, que evidenciava a preocupação documental e erudita por parte
desses cticos. Isso aconteceu por temerem a perda dos registros dessa criação,
muitas vezes anônima, impulsionando a compilação das obras mais difundidas.
A catalogação de tais histórias deu origem ao Romanceiro. Nele é possível
encontrar composições versificadas que expõem as concepções dos autores que
elaboram as narrativas, que as contam ou concedem-nas a outros trovadores, como
eles se autodenominam. De acordo com Moreira, a importância de tal Romanceiro
se firma pelo sentido sociológico, como um reflexo da sociedade que o elabora; pelo
olhar lingüístico que podemos lançar sobre os versos, portadores do valor poético e
social de quem cria as obras. Além disso, pela consciência artística explicitada em
nos poemas, que evidencia um conhecimento das normas, muitas vezes intuitivo,
que balizam essas composições. Sobretudo, pelo discernimento do lugar social que
ocupam, sentimento de pertença a um grupo de trovadores, de cantadores, de
impressores, de xilógrafos, de vendedores de folhetos, ou seja, de um círculo que
necessita de cada um desses elos na sua cadeia. O pesquisador descreve o modo
como tais elementos se articulam:
34
Os nomes circulam entre eles como circulam na sociedade do sertão. Os
pontos altos das pelejas, reais ou especialmente elaboradas como matéria
de um folheto, difundem-se nas estrofes que a memória popular guarda, e
são contados como feitos do trovador, como índice de sua agudeza e de
sua maestria nas artes do verso, que denominam pés, segundo o gosto
antigo. Quanto às técnicas poéticas, o virtuosismo atinge a minúcias
impressionantes que nos lembram sutilezas formais da lírica provençal ou
galego-portuguesa, e nenhum bom cantador deve ignorá-las. A arte, em sua
plenitude, exige de seus cultores domínio firme, e uma espécie de sanção
coletiva cairá sobre aquele que, usando-a, nela fracassar (MOREIRA, 1964,
p.viii).
Moreira (1964, p. xix) reitera as colocações de Câmara Cascudo quando
exe a temática de tais composições. Assim, acontecimentos importantes do país,
de países distantes, as histórias tradicionais, os elementos folclóricos, as
personagens reais ou de ficção, as lendas, “todo um mundo de temas, de traços de
vidaque possam ser fonte de sentimentos ou de ões, tornam-se matéria para as
trovas. Para isso, o trovador “dá-lhe o tratamento poético e narrativo”, escreve o
folheto e lança-o pelas feiras, praças e ruas. Desse modo, faz a palavra renascer na
paisagem brasileira com um sabor medieval, sem burgos e sem castelos, mas na
áspera rudeza das caatingas, ou nos núcleos urbanos que polarizam os homens do
Norte e do Nordeste(MOREIRA, 1964, p.viii). Essa atmosfera é freqüentemente
visualizada no Romance d’A Pedra do Reino:
Outro dia, eu li um desses horríveis “folhetos que vo e seus irmãos
imprimem na tipografia da Gazeta e vendem nas feiras. Para lhe ser franco,
foi uma das coisas mais alienadas que já vi. Começava o Cantador dizendo
que “no Reino do Pajeú”, em Pernambuco, morava “um honesto
Fazendeiro”. Chamar o fazendeiro de honesto era ruim! Mas, além disso,
o “honesto fazendeiro” era, ainda, “pai de uma Princesa, que era alva como
os lírios e honesta como a pureza”. Alva é dado como elogio! E, como se
não bastasse, o desgraçado do Cantador aceita os padrões morais da
classe dominante, e elogia a filha do opressor! Mas a coisa vai além! Sendo
o tal “honesto fazendeiro” o “Rei do lugar(imagine!), morava ali perto um
Negro cangaceiro, cujo costume era “deflorar donzelas”. Um dia, vendo a tal
“Princesa”, filha do “Rei fazendeiro”, o Negro resolve “desfolhar a folha
dela”. Pois bem: com esse enredo armado, o peste do Cantador toma o
partido do fazendeiro e da moça, e volta toda sua antipatia contra o
Cangaceiro Negro, ao lado do qual ele deveria estar, por solidariedade
racial e por coerência na luta de classes! Agora pergunto: o que é que a
Esquerda pode com Cantadores como esse e com Cangaceiros aliados aos
poderosos, Quaderna? (RPR, 2007, 277-278).
No fragmento, Clemente, um dos mentores intelectuais de Quaderna, expõe a
temática de um folheto de cordel, no qual a realeza” de tal cenário, governado por
um Rei, habitado por uma Princesa, localiza-se em pleno Pajeú, sertão
pernambucano. Clemente faz uma crítica à postura ideológica do cantador e ao
35
caráter inverossímil de seus versos, pois não é cabível um sertão nordestino
habitado por uma nobreza medieval, cujos traços físicos também sugerem uma
descendência européia. Aliado a isso, Clemente critica o caráter maniqueísta do
Cantador, pois este se posiciona do lado do “Rei Fazendeiro”, demonizando o
“Negro Cangaceiro”, que, por pertencer a uma classe à margem da sociedade,
poderia estar mais próximo do cantador, também marginalizado. Nesse fragmento
ainda é possível perceber nas palavras de Clemente a observação de que falta às
classes dominadas” politicamente o senso crítico necessário para relativizar as
atitudes da classe dominante. Talvez essa postura confirme a fácil
institucionalizão do sistema de clãs no nordeste ou, como Oliveira Vianna (1955)
explica, um variado complexo no qual orbitavam diversas camadas sociais com um
pacto cito de proteção mútua, de apoio incondicional. Dessa forma se organizavam
as famílias poderosas, com proteção de cangaceiros, com o apoio de gente humilde
que delas dependiam ao mesmo tempo em que consolidavam a importância política
do senhor.
1.3.4 Os cantadores e suas composições poéticas
Em Vaqueiros e Cantadores (s.d), Câmara Cascudo faz uma descrição
apaixonada da figura do cantador popular e associa essa figura aos poetas de
diversas tradições. Com isso, imprime no cantador nordestino o mesmo dom e
talento para ilustrar as façanhas de seus iguais, as suas origens. Esse cantador,
embora se assemelhe aos aedos, rapsodos ou bardos tem características
particulares como a rudeza e o desafino do seu cantar:
Que é o Cantador? É o descendente do Aedo da Grécia, do rapsodo
ambulante dos Helenos, do Glee-man anglo-saxão, dos Moganís e metrís
árabes, da velálica da Índia, das runoias da Finlândia, dos bardos
armoricanos, dos scaldos da Escandinávia, dos menestréis, dos trovadores,
mestres-cantadores da Idade-Média. Canta ele, como séculos, a história
da região e a gesta rude do Homem. É a epea grega, obarditus germano, a
gesta franca, a estória portuguesa, a cara recordadora. É o registro a
memória viva, o Olám dos etruscos, a voz da multidão silenciosa, a
presença do Passado, o vestígio das emoções anteriores, a História sonora
e humilde dos que não têm história. É o testemunho, o depoimento. Ele,
analfabeto e bronco, arranhando a viola primitiva, pobre de melodia e de
efeito musical, repete, através das idades, a orgulhosa afirmativa do “velho”
36
no poema de Gonçalves Dias: - Meninos, eu vi...(CASCUDO, s.d, p.93-
94).
Quando investigamos, na literatura popular do nordeste, os elaboradores de
tais formas poéticas, chegamos a diversas denominações, mas dentre as mais
freqüentes es a de “Cantador”, que tem sua tradição em Portugal (PROENÇA,
1964, p.2). Nos meados de 1960, a denominação em voga era a de “trovador”,
qualificação que os próprios autores de poemas se davam. Isso mostra a
elasticidade do termo que compreende autores de toadas ou trovas, como também
o denominadas essas composições.
Acerca desses poetas populares, Cavalcanti Proença (1964, p.8) afirma que
eles se situam na mesma linha dos antigos cantadores. Por isso, vendo-se
impossibilitados de viver somente da sua arte, o cantador necessitava trabalhar nas
mais diversas atividades, mas sua dedicação maior era aos versos que elaborava.
Dedicação reconhecida pelo público, que tratava o cantador com carinho, que
comprava os folhetos nas feiras para si mesmo ou para um círculo familiar ou de
amizade.
Um traço interessante dessa expressão arstica assentava-se na questão da
originalidade. Cavalcanti Proença (1964, p.4) coloca que diferentemente do poeta
culto, o poeta popular, quanto menos original se mostrava, quanto menos rebelde
às formas tradicionais”, mais apreciado era por seu público. Para o poeta popular
“erudição” seria reunir várias referências aos folhetos mais difundidos, às técnicas
utilizadas, demonstrando seu amplo conhecimento da literatura dos folhetos.
Essas referências, reutilizações constantes, contribuíram para vulgarizar as
narrativas. Entretanto, tal termo não deve ser compreendido de forma pejorativa,
mas com o sentido de tornar conhecidos os versos em questão, de divulgá-los para
um público maior. Com isso, os autores das narrativas tornavam-se obscurecidos
pela superioridade da obra, o que, de acordo com as palavras de Proença, ”significa
[...] que a obra desses poetas contém tantos elementos autênticos da arte poética
popular, que o povo se assenhoreou dela” (PROENÇA, 1964, p.5).
Por meio de tais colocações, entendemos que o “artista folclórico”, conforme
Jean Pizoán (apud PROENÇA, 1964, p.5), tratava-se de um “continuador”, pois ele
não representava o individual, mas todo o complexo poético em que sua obra estava
inserida. Justificando seu pensamento, Pizoán afirma que “pela aceitação coletiva só
se coloca aquilo que o povo aceita e torna seu. As mãos são do artista, mas a arte é
37
do povo”. Sendo assim, o artista, detentor da liberdade para criar seus versos, não
deveria ser exigido no critério de originalidade, nem mesmo fazer dos versos sua
marca registrada, porque tal poesia tem a propriedade de existir para cair no
domínio popular e, com isso, obedecer ao velho ciclo de se tornar matéria poética de
composições posteriores. Em algumas passagens, o Romance d’A Pedra do Reino é
bastante ilustrativo desse reaproveitamento de versos, conforme percebemos no
trecho em que Lino Pedra-Verde relata a Quaderna o “nascimento” da sua poesia:
Contava-me ele, depois, à medida que se acalmava, “o fogo da Poesia
começava a incendiar seu juízo”, e o fato esquisito que lhe acontecera
começava a tomar forma poética, dentro dele.
- De qualquer jeito dizia-me ele depois – eu ia decorando todos os versos
que me vinham à cabeça, para depois passar tudo para o papel. Ao mesmo
tempo, eu desconfiava de já conhecer aqueles versos! De quem serão
eles? Me ajude, Dinis, pra ver se eu me lembro! Serão meus, mesmo?
Serão de José Pacheco? De João Ferreira de Lima? De JosGomes da
Silva? (RPR, 2007, p.210).
Com base nesses dados, percebemos o motivo pelo qual ocorrem tantas
repetições temáticas e de estilo nos versos populares. Os cantadores não buscam a
originalidade, mas uma forma de expressar um tema, calcados naquilo que a
literatura folclórica consolidou e que naquele momento eles priorizam como mote,
acrescentando ou subtraindo elementos, mas dando vida nova com seus versos, por
meio da recriação.
O protagonista do Romance d‘A Pedra do Reino, dentre as várias atividades,
ressalta o seu talento de Poeta ou Cantador. Na sua fala, mostra sua auto-estima
exacerbada e o seu conhecimento das particularidades do cordel. Denominando-se
um poeta versátil:
Eu [...] puxei a meu Pai! Foi dele, aliás, que puxei também as minhas
qualidades poéticas, se bem que, modéstia à parte e não faltando com o
respeito filial, como Poeta eu seja mais completo do que ele foi. Como o
senhor deve saber, existem seis qualidades de Poeta e a maioria deles
pertence a uma qualidade ou a outra. Os melhores, pertencem a duas
categorias ao mesmo tempo. Mas somente os maiores de todos, os
grandes, os raros do Povo”, pertencem, ao mesmo tempo, às seis
categorias! Meu Pai, que Deus guarde, era Poeta de sangue e de ciência.
Mas eu, modéstia à parte, sou dos poucos, dos raros, dos grandes, porque
sou, ao mesmo tempo, Poeta de cavalgação e reinaço, Poeta de sangue
Poeta de ciência, Poeta de pacto, de estradas e encruzilhadas, Poeta de
memória e Poeta de planeta! Mesmo porém tendo sido mais completo do
que ele, grande foi a influência que recebi das qualidades de Poeta,
historiador, Astrólogo e genealogista Sertanejo de meu Pai! (RPR, 2007,
p.368).
38
Quaderna, mesmo ressaltando a sua grandeza de poeta, pois se julga o mais
completo deles, reconhece as qualidades do pai, que o introduziu nas artes da
cantoria. Assim, as categorias de poesia mencionadas pelo protagonista, fazem
alusão às temáticas das Cavalgadas, de Reis, de Ciência, lançando mão de um
saber metafísico, de narrativas de Estradas, etc.
Manuel Cavalcanti Proença (1964, p.3), em seus estudos sobre a literatura de
cordel, delineia o que faz parte da composição poética dessa literatura. Para o autor
existe um traço primordial que irmana os diversos compositores: o ato de contar uma
hisria, seja de príncipes, de reinos, de escravos ou de senhores de engenho.
Proença afirma que não é a primeira vez que as atividades culturais são adaptadas
ao nosso modo de ser. Essa adaptação, quando se dá, contribui para que tais
práticas não se percam com o passar dos anos.
O ponto de partida são várias histórias tradicionais, invenções do autor ou
mesmo referências a leituras do poeta. Tais histórias têm uma fórmula a ser seguida:
estabilidade, sofrimento, martírio, fidelidade e um fim compensatório, em que todas
as qualidades do protagonista são reconhecidas pelos demais, garantindo um
caráter de herói ou de heroína. Devido a esse desfecho, Proença coloca que “daí
decorre que se possa incluir como perfeitamente populares as narrativas de
escritores cultos, postas em versos de poetas populares” (1964, p.4). O teórico
afirma que tal solução corresponde a mesma de obras canônicas, justificando
porque muitas delas o versadas por cantadores.
1.4 O Movimento Armorial – sintoma nordestino do nacionalismo
É nesse contexto que surge o Movimento Armorial, fundado por Ariano
Suassuna e alguns intelectuais do nordeste brasileiro vindos do ramo das artes ou
das ciências sociais e humanas. Dentre eles esMiguel dos Santos, Aluízio Braga,
Lourdes Magalhães, Geber Accioly, Gilvan Samico, Fernando Lopes da Paz, Zélia
Suassuna, Maria da Conceição Brennand Guerra, Guerra-Peixe, Cussy de Almeida,
Jarbas Maciel, José Tavares de Amorim, Rogério Pessoa, José Xavier, Marcos
Accioly, Janice Japiassu, entre outros. Em paralelo com esses artistas, es
Francisco Brennand, artista plástico pernambucano que influencia
39
consideravelmente o Armorial. Entretanto, representa um caso particular entre os
pintores nacionais de formação européia; sua obra vanguardista, caracterizada pela
inovação, impede que seja incorporado ao movimento, ainda que apresente a fusão
entre a raiz barroca e a popular. No ponto de vista suassuniano (apud Santos, 2009,
p. 53) “o mundo de Brennand não é, nem devia ser popular; mas revela uma
identificação natural entre o sangue do artista e a linhagem cultural brasileira”.
Observando a biografia desses integrantes, notamos que fazem parte de um
grupo elitizado, indivíduos que nutrem pelas expressões populares apreço e
sentimentalismo. Com nomes que remontam à nobiliarquia nordestina, tais artistas
o sujeitos que, aliado ao conhecimento da arte popular, trazem ainda um saber
acadêmico e posicionamentos estéticos bem articulados.
O intuito do movimento orientava-se pelo desejo de criar uma arte erudita com
uma raiz popular, sobretudo na cultura do povo do nordeste considerada um dos
ramos da cultura brasileira -, que recuperasse as origens dessa tradição e que a
exprimisse em suas manifestações artísticas. Conforme Ariano Suassuna aponta:
A Arte Armorial Brasileira é aquela que tem como traço comum principal a
ligação com o espírito mágico dos “folhetos” do Romanceiro Popular do
Nordeste (Literatura de Cordel), com a Música de viola, rabeca ou pífano
que acompanha seus “cantares” e com a Xilogravura que ilustra suas
capas, assim como com o espírito e a forma das Artes e espetáculos
populares com esse mesmo Romanceiro relacionados (SUASSUNA, 1977,
p.39).
De acordo com o pensamento suassuniano, a arte Armorial representa o que
de intrínseco no sertanejo: a cantoria das pelejas, o heroísmo dos folhetos de
cordel, o mundo mítico presente em tal literatura, carregando ainda a xilogravura
como expressão pictórica de todo o pensamento armorial. Por isso, Suassuna define
como base dessa arte os folhetos de cordel, que concentram formas poéticas pouco
elaboradas, mas que expressam a essência de uma cultura popular do Brasil.
Assim, afirma que o folheto pode servir de “bandeira”, pois concentra três caminhos
diferentes: um para a literatura, o cinema e o teatro, com base na arte da
representação; outro, para as artes plásticas, por meio das xilogravuras; e o terceiro,
para a música, manifesto pelo acompanhamento musical voltado aos versos
(SUASSUNA, 1977, p.39).
O Armorial, mesmo adotando como modelo a arte popular nordestina, tem a
consciência de que oferece outro meio para seus artistas, pois todos eles pertencem
40
a um grupo diferenciado, a uma realidade distinta do artista popular propriamente
dito. Essa arte pretende valorizar o que há de essencial no universo popular do
nordestino, desde suas ingnias, elementos simlicos, animais típicos deste
espaço geográfico, daí a forte relação com a heráldica:
[...] O Movimento Armorial pretende realizar uma Arte brasileira erudita a
partir das raízes populares da nossa Cultura. Por isso, algumas pessoas
estranham, às vezes, que tenhamos adotado o nome de armorial” para
denominá-lo. Acontece que, sendo “armorial” o conjunto de insígnias,
brasões, estandartes e bandeiras de um Povo, no Brasil a Heráldica é uma
Arte muito mais popular do que qualquer outra coisa. Assim, o nome que
adotamos significa, muito bem, que nós desejávamos ligar-nos a essas
heráldicas raízes da Cultura popular brasileira (SUASSUNA, 1977, p.40).
Na definição de Armorial, Suassuna enfatizou que o termo em sua etimologia
tinha um valor de substantivo, mas, devido à beleza, a sonoridade e à ligação com a
heráldica - que ilustra imagens de animais fabulosos, vegetais, astros - o autor
passou a empregá-lo como adjetivo. Assim, o caráter pictórico e ilustrativo de
determinadas obras levava-o “meio brincando” a defini-la como Armorial. Pom, um
outro aspecto impulsionou-o a lançar mão do termo Armorial, a sua descoberta de
que tal denominação cabia também aos cantares do Romanceiro Popular do
Nordeste. Suassuna afirma que os “toques ásperos” dos instrumentos nordestinos
rabeca e fano recordavam os sons do clavicórdio e da viola-de-arco da música
barroca do século XVIII (SUASSUNA, 1977, p.40). Essa aproximão transparece o
liame entre a arte popular e sua matriz erudita.
Conforme Idelette Muzart Fonseca dos Santos (2009, p.21), o Movimento
Armorial foi fundado em Recife, no dia 18 de outubro de 1970. O espetáculo de
estréia, Três Séculos de Música Nordestina: do Barroco ao Armorial, foi realizado
pela Orquestra Armorial de Câmara e dividiu as atenções com uma exposição de
gravuras, pinturas e esculturas. O espaço que ambientou o evento foi a Igreja de
São Pedro dos Clérigos, em Recife, de estilo barroco. Essa proximidade com a
estética barroca permite que os artistas vivam nos seus cotidianos essa influência.
Ainda cabe ressaltar que o evento foi promovido pelo Departamento de Extensão
Cultural (DEC) da Universidade Federal de Pernambuco, cujo diretor na época era
Ariano Suassuna.
A pesquisadora Maria Teresa Didier (2000, p.36) esclarece o intento dos
artistas armoriais e ressalta a ligação destes com a visão romântica da identidade
41
nacional, resgatando nas formas populares de arte a essência da cultura brasileira.
Com esse olhar, a pesquisadora destaca que a expressão literária em questão
contém a fuo de três etnias: indígena ou vermelha, negra e européia. Essa fusão
permite que o nordeste seja visto como um espaço de inter-relação das três etnias,
mantendo características específicas de cada uma delas. Com tal ponto de vista, a
autora tangencia questões colocadas por Gilberto Freyre em Casa Grande &
Senzala, que, apesar de contestadas e tratadas na atualidade mais como literatura
do que como documento sociológico, por muitos anos gozou de prestígio por trazer
uma reflexão bastante abrangente sobre o país.
Na leitura de Didier (2000, p. 36) sobre o Armorial, o espaço nordestino abriga
a aura de mundo mágico”, redescoberto artisticamente pelos idealizadores do
movimento. Essa tendência tem expressão na música, na literatura, nas artes
plásticas, na dança, denotando o aprofundamento dos artistas nas “fontes da
‘cosmologia’ nordestina”.
É interessante perceber como o Movimento dialoga em alguns aspectos com
obras fundamentais para o entendimento da sociedade brasileira, desde sua origem
até a contemporaneidade. É o caso das colocações de Gilberto Freyre, em Casa-
Grande & Senzala, em que expõe como se construiu a sociedade colonial, o
comportamento dos colonizadores, a miscigenação originada nesse processo, entre
outros aspectos. Conhecedor de tais questões, Ariano Suassuna, como o fundador
mais engajado, apresenta essas idéias como pano de fundo de sua amadurecida
concepção de arte e de sociedade, que preconiza a fusão de contrários, não
somente como traço herdado do Barroco, mas tamm como fruto da miscigenação
que origem à “raça castanha”. Sobre esse aspecto, Didier ressalta que a
identidade nacional compreendida pelo Armorial baseava-se na mistura racial entre
brancos, negros e índios; nessa mestiçagem, a influência da cultura ibérica também
tinha destaque, mas o que se sobressaiu foram os discursos “raciológicos” de Silvio
Romero e de Gilberto Freyre, presentes na formão intelectual de Ariano
Suassuna. A importância de tais sociólogos reside na reinterpretação do mestiço
brasileiro, transformando-o em “positividade”. Assim, seguindo os passos de Romero
e Freyre, o Armorial também considera o “pluralismo sincrético racial e cultural,
como a marca emblemática da cultura nacional” (DIDIER, 2000, p.47).
Nesse viés, estendendo a noção de hibridismo étnico para o impulso de fundir
elementos dicotômicos, a síntese assentou-se como um preceito armorial. Então, foi
42
possível perceber a conexão do Armorial com o Barroco, além das idéias freyreanas
de miscigenação. Desse modo, Didier (2000, p.100) ressalta que Suassuna definiu o
Armorial reiteradas vezes como um movimento inspirado tanto na arte popular
nordestina, quanto no Barroco de origem ibérica, considerado um dos pilares da
cultura nacional e da expressão artística ilustradora da união de contrários. Em
consonância com tais aspectos, as insígnias armoriais contribuiriam no sentido de
evidenciar a união ambivalente entre o popular e o erudito.
1.4.1 O olhar da crítica
Contrariando os esforços do movimento de incentivar a valorização da arte
nordestina, o Armorial foi entendido pela crítica como uma arte elaborada para
intelectuais desfrutarem. Esse posicionamento, conforme Didier (2000, p.46), partiu
do sociólogo Renato Ortiz ao declarar do povo eles querem só a seiva. [...] Mas o
resultado somente serve para as elites. Daí talvez não se negarem a receber
influências estrangeiras, mas abominarem algo realmente pop/popular”. Tal crítica
foi rebatida por Suassuna que declarou: Eu não escrevo para consumo de classe
nenhuma. Parto das formas de arte e literatura populares do nordeste, porque gosto
delas e, assim, expresso meu universo ficcional”. O autor Ariano Suassuna repetidas
vezes menciona o seu gosto pela cultura popular e ressalta que desde a infância
teve contato com a literatura dos folhetos, com cantadores, bem como com
estudiosos afeiçoados ao universo popular: “a influência decisiva, mesmo, em mim,
é a do próprio Romanceiro Popular do Nordeste, com o qual tive estreito contacto
desde a minha infância de menino criado no Sertão do Cariri da Paraíba
(SUASSUNA, 2008, p.179).
Ressaltando a polêmica que o movimento gerou, Didier (2000, p.47) ainda
exe que a crítica do escritor Jomar Muniz de Britto ao movimento se deu pelo
caráter fechado que era imposto à cultura popular. Tendo origem num passado, ela
deveria se contrapor a tudo o que vinha de novo, limitando-se e, conseqüentemente,
empobrecendo a cultura brasileira.
A pesquisadora aponta que o Armorial ainda foi tachado como um escapismo,
por comportar “uma maneira mágica de mostrar a realidade” (DIDIER, 2000, p.58).
43
Nesse sentido, estendendo a afirmação de Jomar a algumas produções literárias
latino-americanas, infere-se que o crítico parece desconsiderar a tendência
contemporânea de transpor a realidade de modo mágico, visto em obras como
Pedro Páramo, de Juan Rulfo, de 1955, Cien años de soledad, de Gabriel García
Márquez, publicada em 1967, que constituem exemplos desse traço. De forma
equivocada, a obra literária de Ariano Suassuna costuma ser rotulada pela crítica
como neo-regionalista, ou seja, uma continuação do movimento que se consolidou
com Simões Lopes Neto, autor de Lendas do Sul (1913) e Contos Gauchescos
(1912); Graciliano Ramos, autor de Vidas Secas (1938); entre outros. Nessas obras,
o panorama regional era observado por um olhar realista, que relacionava o
pitoresco de determinada localidade com a construção do sujeito em relação ao
espaço por ele habitado. Sendo assim, a forma realista e cruel de retratar os
contextos escolhidos, assemelhava-se ao naturalismo. No nordeste, a temática da
seca foi o grande mote de autores como Graciliano e Raquel de Queiroz. José Lins
do Rego, por sua vez, retratou um nordeste decadente com a derrocada dos
engenhos de açúcar situados na Zona da Mata.
O Nordeste como cenário perdurou ainda por vários anos na literatura
modernista, teve expressividade na poesia concisa de João Cabral de Melo Neto,
pertencente à Geração de 45, com Morte e Vida Severina (1956), com as poesias
dirigidas ao rio Capibaribe ou aos reflexos da literatura popular na vida do povo da
região.
Suassuna, situado na literatura contemporânea, parece desviar-se dessa
periodização tanto cronológica quanto tematicamente, por isso o autor discorda da
referida classificação. Com uma produção poético-literária iniciada no final da
década de 40, sua obra sempre primou por retratar o espaço sertanejo. No entanto,
tal utilizão se diferenciou das produções regionalistas anteriores, pois não se
restringia ao pitoresco e nem objetivava fazer uma análise sociológica dos indivíduos
da sociedade em questão. Em vez disso, lançava mão de um estilo fantasioso,
inspirado nos folhetos de cordel, nos “romances” apresentados pelos cantadores,
entre outras formas de cultura popular.
Segundo Santos (2009, p. 35), a realidade da região e da vida cotidiana
nunca se ausentou da arte e da literatura armorial. No entanto, o apelo regionalista
foi recusado pelo autor, devido ao fato de ter sido uma espécie de neonaturalismo,
privilegiando uma interpretação sociológica do nordeste. Por tal motivo, Ariano
44
Suassuna ancora sua produção em uma região específica, no entanto - e aí reside a
chave de compreensão da sua obra “partindo da realidade nordestina, procura
uma recriação poética nos moldes do romanceiro”.
Ao discorrer acerca do estilo, Suassuna teoriza dois tipos de Regionalismo,
um de posição e outro de caráter histórico:
O primeiro é uma posição fundamental, que inclui, de certo modo, uma
atitude de vida, e que tem, como decorrência, entre outras coisas, uma
posição artística. Os do segundo tipo são esta posição enquanto assumida
por indivíduos ou por grupos num movimento, como o que Gilberto Freyre
desencadeou por aqui, por volta de 1926 (SUASSUNA, 2008, p.44).
No mesmo ensaio, Suassuna (2008, p.46) coloca o Regionalismo como alvo
de críticas devido à caractestica de se reduzir ao pitoresco. O autor justifica seu
posicionamento com o fato de os regionalistas ambientarem suas narrativas na
região em que vivem, pintando pescadores, esculpindo cambiteiros, escrevendo
sobre ambos, sobre cangaceiros”. Quando observa as afirmações de autores
regionalistas acerca do movimento, Suassuna evidencia sua discordância, pois se
nega a participar de uma estética que fica nas aparências do social. Para o autor, os
regionalistas distanciam-se da noção de que “a arte tem de se enriquecer da luz do
real pelo sensível, pelos homens, pela vida, pelas coisas que nos cercam, sendo,
portanto, algo mais profundo”. A partir de tal posição, Suassuna revela sua opinião
de crítico e observa que o efeito da obra no sujeito deve ser apreendido e não
apresentado por meio de uma visão pronta da sociedade, carregada de
determinismo. Por isso, liga sua produção literária ao cssico e ao barroco, por
serem artes que exigem do leitor uma efetiva aproximação para ser atingido por
elas. Além disso, a referida sensibilização pela arte se dá no contato com a literatura
popular do nordeste, conforme ressalta:
Para mim, o romance nordestino tinha uma importância toda especial. A
revelação que tive dele, também na infância, deu-me um caráter de
maravilhoso ao cotidiano [...] Um romance passado naquele lugar
mergulhava de repente tudo aquilo que eu conhecia no universo fascinante
da arte, cujo papel “solenizava a vida” aqui se tornava efetivo, diante de
meus olhos (SUASSUNA, 2008, p.53).
Desse modo, por se desviar de uma arte sociológica, atrelada às mazelas
sertanejas como alguns regionalistas consolidaram, Ariano Suassuna é considerado
um escapista que se refugia no fantasioso, apesar de assegurar sua “ligação com o
45
Romanceiro, buscando uma visão mais ‘poética’ dessa realidade” (SUASSUNA,
2008, p.89). Seu discurso como crítico parece fazer eco nos posicionamentos
teóricos de Quaderna, evidenciando que, na “poética” empreendida pelo narrador-
protagonista, esse argumento suassuniano é a base de sustentação das posições
adotadas por ele: a idéia de fazer da arte popular a coluna de sustentação de seu
romance, artifício que permite transfigurar uma “realidade rasa e cruel”.
A pesquisadora e tradutora da obra suassuniana Idelette Muzart Fonseca dos
Santos (2000, p.103), afirma que o Armorial teve duas fases: a primeira que foi
anteriormente definida e a segunda que teve início em 1975 e marca a mirada do
intelectual para a criação de instituições culturais. Dentre elas estão a Orquestra
Sinfônica do Recife, o Coral Guararapes, a Orquestra Popular, o Balé Popular do
Recife e a Orquestra Municipal. Além disso, Suassuna atuando como secretário de
Educação e Cultura do Município cria a Orquestra Romançal.
Na atualidade, o mais como parte de um movimento, as aulas-espetáculo
apresentadas por Ariano Suassuna fazem uma breve ilustração das modalidades
desenvolvidas no Armorial. Primando pela discussão de questões relacionadas à
cultura popular brasileira e apresentando músicos, cantores, bailarinos, cantadores e
violeiros que orientam suas manifestações artísticas em alguns preceitos armoriais,
Suassuna mostra a continuidade de suas concepções.
A partir das informões levantadas, podemos compreender o Movimento
Armorial como uma estética firmada no momento em que seu modelo principal entra
em declínio. No entanto, o popular, expresso pelo Romanceiro Nordestino, se firma
como a espinha dorsal das criações armoriais. Por outro lado, como os precursores
eruditos, podemos encontrar o sentimento romântico de nacionalismo, característico
de poetas e de prosadores brasileiros; a busca modernista de uma arte nacional,
híbrida e antropofágica; além dos estudos sociológicos do início do século XX, no
Brasil. Com efeito, o Armorial é uma mescla de influências que atingiu seu maior
relevo com a publicação do Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do
vai-e-volta (1971), a concretização de grande parte das idéias que a estética
preconizava. Suassuna calcou a obra na literatura de cordel, uniu a esse traço a
xilogravura, fez uso dos versos de cantadores, definindo os precursores de sua
literatura: uma arte barroca, romântica, cara, épica, elaborando o que é definido
nas palavras do narrador-protagonista Quaderna como: “Romance heróico-
brasileiro, ibero-aventuresco, criminológico-dialético e tapuio-enigmático de galhofa
46
e safadeza, de amor legendário e de cavalaria épico-sertanejo” (RPR, 2007, p.420),
um grande amálgama lírico-narrativo do popular e do erudito.
Nesse sentido, o Romance d’A Pedra do Reino, sob os olhos do pesquisador,
parece firmar-se como uma transfiguração literária de grande parte das influências
de seu autor, que permitem a recriação de um sertão plenamente idealizado,
fantasiado e sem os limites impostos pelo assentamento no real.
47
2 “DE LA MISMA MANERA QUE YO LO CUENTO SE CUENTAN EN
MI TIERRA…”
5
2.1 O narrador enredado nas teias do processo narrativo
O Romance d’A Pedra do Reino está estruturado sobre três eixos temáticos: a
literatura, que se divide em popular e canônica, além de sociológica; o contexto
nordestino da década de 30, no sertão de Pernambuco e da Paraíba e as
ressonâncias da potica nacional nesse cenário; e a nobiliarquia sertaneja da família
Quaderna na Vila de Taperoá, linhagem que, de acordo com o narrador em primeira
pessoa, confunde-se com a família real portuguesa, tanto nos nomes quanto na
índole e na tradição. Organizada sobre esses temas, a narrativa agrega a cada livro
(divisão interna da obra), bem como nos folhetos (que fazem as vezes de capítulos),
novos argumentos, selecionados, arranjados e expostos segundo a ótica de Dom
Pedro Dinis Quaderna.
Como narrador, semelhante ao Dom Casmurro de Machado de Assis, situado
em um tempo presente, Quaderna escolhe os fatos que devem ser relatados e
exe o seu ângulo de visão a respeito das situações ocorridas no curso da
narrativa. Do mesmo modo, protagonizando os eventos de um passado não muito
distante, Quaderna posiciona-se também como o Bentinho machadiano,
convertendo-se em personagem de um fragmento de sua própria vida. Assim, torna-
se o mediador do discurso das demais personagens que a fala das mesmas
passa pela escolha do que deve ser relatado ou omitido, visto o receio de “arriscar o
pescoço” (RPR, 2007, p.736) no depoimento que coloca em prática.
A Pedra do Reino é um romance que apresenta dois momentos: um presente,
no qual Dom Pedro Dinis Quaderna, o protagonista, rememora o passado e o colore
com os matizes de uma atmosfera medieval, de reis, de damas, de cavalarias, a fim
de explicar os motivos de sua prisão na cadeia de Taperóa. Essa rememoração está
5
CERVANTES, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. São Paulo: Alfaguara, 2004, p. 179.
.
48
marcada pelos diversos assuntos que ele “costura”, unindo uma narrativa à outra,
criando, tal qual Sherazade, uma história sem fim.
O narrador do Romance dA Pedra do Reino assume uma postura lúdica que,
à medida que informa seu interlocutor, revela um traço cômico e ressalta o seu
caráter de saltimbanco: apresenta habilidade para contar histórias; diz facécias; é
histriônico; mostra com versatilidade as suas opiniões e, com isso, cria um estilo
original, por unir em um único ser, várias formas de expressão narrativa. Por isso, ao
compararmos os narradores sertanejos, Riobaldo, de Grande Sertão: Veredas e
Quaderna, do Romance d’A Pedra do Reino, vamos nos deparar com dois
indivíduos distintos em diversos aspectos, ainda que ambos rememorem um
passado.
Quando nos centramos na linguagem, vemos Quaderna como um sujeito
verborrágico e exagerado, de falar fácil, com um dom para fundir histórias e que põe
em prática um narrar ininterrupto. Riobaldo é um homem de questões profundas,
tanto que estas parecem presas a ele, dificultando uma nominação: “sou só um
sertanejo, nessas altas idéias navego mal” (ROSA, 2008, p.14). Enquanto o primeiro
recria, como um bom contador de histórias, um sertão mítico, de prosperidade,
inventado de acordo com espaço idealizado pelos cantadores populares,
semelhante ao São Saruê; o segundo revela um sertão onde “viver é muito
perigoso...” (ROSA, 2008, p.25), um sertão que é o mundo, logo é perigoso. Um
silogismo reiteradamente mencionado em Grande Sero.
Riobaldo, por sua vez, expõe com seriedade o seu dilema de pactário, causa
angústia com a sua vida, com uma figura maligna sempre a sua espreita, capaz
de determinar suas atitudes diante do acaso. Quaderna provoca o riso com suas
hisrias de criaturas fantásticas, de anti-heróis, de seres que fundem o mal e a
sensualidade instigando a atração do homem por tal ser. Esse traço provém da sua
inspiração na literatura de cordel, uma forma de expressão que agrega diversas
influências e temas que povoam o seu imaginário, cuja verossimilhança não é um
pré-requisito e que é calcada na reelaboração constante das histórias. Assim, o
folheto A visagem da Besta Bruzacã, ilustra essa postura do protagonista, que
introduz no seu depoimento a fantasia da ficção:
- Uma pergunta, Dom Pedro Dinis Quaderna: o senhor acredita no Diabo? -
Como é que posso não acreditar, Senhor Corregedor? Ainda agora, quando
eu vinha para cá, ele apareceu ao irmão do Comendador Basílio Monteiro,
49
ali, no monturo da areia do rio, perto do Chafariz! Eugênio Monteiro estava
me lembrando quantas vezes, aqui no Sertão, a gente encontra, nessas
chapadas nuas e pedregosas, seres alados e perigosos, cruéis e sujos,
bicando os olhos dos borregos e cabritos! Quem são eles? Gaviões?
Urubus? Dragões? Acho que tudo isso ao mesmo tempo, porque todos eles
são encarnações do Bicho Bruzacã, a Ipupriapa macha-e-fêmea, a Bicha
que resume tudo o que existe de perigoso e demoníaco no mundo! (RPR,
2007, p. 402).
A pesquisadora Kathrin Rosenfield (1993, p. 49) afirma que Grande Sertão:
Veredas “força a sintaxe e o xico a fim de tirar efeitos oximoréticos, dos
neologismos, paradoxos e paralogias, perspectivas significantes que recortam
obliquamente os conceitos e as noções convencionais”. Ao compararmos tal
afirmão ao Romance d’A Pedra do Reino, percebemos que o léxico e a temática
o contrastados para em seguida se dar a fusão. Desse modo, as significações dos
conceitos e das noções convencionais tocadas por Quaderna também percorrem um
caminho sinuoso, mas, por meio desse embate e das brincadeiras propostas pelo
narrador-protagonista, as diferenças se fundem. Portanto, afasta-se da postura
riobaldiana de fixar um tom rio às especulações e às buscas de respostas
empreendidas ao longo da obra, na qual o bem e o mal se chocam, o sagrado e o
profano se embatem, Deus e Diabo têm naturezas opostas e intercambiáveis.
Na sua essência, Quaderna é um homem simples do sertão da Paraíba, que
atua como bibliotecário, escrivão, dentre outras funções. Assim, a capacidade de
escrita e de leitura fazem desse sujeito, em uma sociedade quase iletrada embora
ele não mencione esse aspecto -, um indivíduo destacado, um rapsodo da vida
sertaneja. Esse sujeito reiteradas vezes mostra ser forjado pelo saber acadêmico e
popular. Compreendemos isso quando observamos a capacidade de leitura, aliada
ao gosto pelos versos populares, que proporcionam o contato com a literatura
reconhecida pelo cânone e também pelo romanceiro popular. Esses saberes e
culturas distantes são mesclados e adaptados a sua idéia de Literatura.
Ao vermos o desenrolar das ões de Quaderna, percebemos que a
personagem encena a sua ficção. Como narrador em primeira pessoa, ele seleciona
o que deve revelar ao seu interlocutor. Depois de selecionados os fatos, esse sujeito
torna-se o herói de suas aventuras e, devido à vivacidade de tais passagens,
percebemos um sertão com ornamentos de palco teatral, um palco rude de
saltimbanco, que se agiganta com as descrições fantasiosas e prolixas de
Quaderna. No entanto, a prolixidade não é maçante devido aos vários tons que
50
conseguimos captar com a leitura: um tom retórico de convencimento; um matiz
jocoso presentificado pelos versos populares; uma plasticidade captada na rica
descrição.
Quando refletimos sobre Quaderna, pensamos em um sujeito fantasiador, que
transfigura as circunstâncias que vivencia diariamente no sertão de Taperoá. Assim,
vemos que, semelhante aos pícaros, essa postura lhe defende de uma realidade
fosca, disfarça a cor parda e sem brilho com tecidos rudes ornados de vidrilhos e
pedaços de lata.
Quaderna fala demais em alguns momentos. Dessa maneira, suas
contradições parecem dispostas intencionalmente pelo autor do Romance no sentido
de mostrar os deslizes do protagonista. Isso corrobora a impressão de mentiroso
folclórico, tão apreciado por Ariano Suassuna. Além disso, reivindica a desconfiança
que devemos ter em relação às histórias que ele conta. Esses deslizes são
percebidos ao longo do depoimento e captados pelo Corregedor que lhe indaga; tal
percepção destaca ironicamente o narrador, induzindo o leitor à suspeita dos fatos
vivenciados pela personagem principal.
No interrogatório, percebemos uma espécie de duelo entre Quaderna e o
Corregedor, semelhante às pelejas nordestinas: dois sujeitos que dominam a
palavra, duas vozes que controlam a narrativa. O protagonista relatando, ilustrando,
e fazendo a cenografia de um sertão fantástico; a autoridade, indagando, colocando
em xeque as afirmões retorcidas de Quaderna, investigando a fundo o seu lugar
dentro da sociedade taperoense e a sua postura subversiva. Desse duelo, nenhum
deles sai vitorioso, visto que a obra termina sem que a investigação seja concluída,
mas o propósito maior do protagonista, dar concretude à “Obra Máxima da
Humanidade”, coma a ser atingido, totalidade que se confirma pela presença de
tantos intertextos no seu interior.
Quaderna, na posição de homem maduro encarcerado, porta-se como um
narrador intradiegético, pois no momento presente, recluso na cadeia, revela a
angústia sentida de ser o suspeito de um crime. Portanto, para esclarecer os
motivos que o colocaram em tal situação, relembra os três últimos anos, tendo como
ponto de partida um século atrás, cujos acontecimentos importantes são contados.
51
Nesse retorno ao passado, Quaderna transforma-se em protagonista de sua vida,
relatando, como um narrador homodiegético, os acontecimentos que presenciou
6
.
O canal de informação desse narrador é a sua memória acerca dos eventos
que o levaram à posição de acusado do assassinato de seu tio, bem como a sua
prisão. De tal maneira, mergulhado em uma situação opressora, o Quaderna
encarcerado se pronuncia, dirigindo-se ao mesmo tempo ao povo brasileiro e às
autoridades capazes de absolvê-lo:
Agora, preso aqui na Cadeia, rememoro tudo quanto passei, e toda a minha
vida parece-me um sonho, cheio de acontecimentos ao mesmo tempo
grotescos e gloriosos. Sou um grande apreciador do jogo do Baralho.
Talvez por isso, o mundo me pareça uma mesa e a vida um jogo, onde se
cruzam reis e fidalgos, Reis-de-Ouro com castanhas Damas-de-Espada,
onde passam Ases, Peninchas e Curingas, governados pelas regras
desconhecidas de uma velha Canastra esquecida. É por isso também, que
do fundo do cárcere onde estou trancafiado neste nosso ano de 1938
faminto, esfarrapado, sujo, prematuramente envelhecido pelos sofrimentos
aos 41 anos de idade dirijo-me a todos os Brasileiros, sem exceção; mas
especialmente, através do Supremo Tribunal, aos magistrados e soldados
toda essa raça ilustre que tem o poder de julgar e prender os outros. Dirijo-
me, outrossim, aos escritores brasileiros, principalmente aos que sejam
Poetas-escrivães e Acadêmicos-fidalgos, como eu e Pero Vaz de Caminha,
o que faço aqui, expressamente, por intermédio da Academia Brasileira,
esse Supremo Tribunal das Letras (RPR, 2007, p.34).
Nessa explanação, podemos investigar a qualidade do narrar de um
Quaderna encarcerado, que vive um momento opressor e incômodo, que vê no
presente o real “nu e cru”, mas que, por meio da fantasia, consegue convertê-lo num
jogo onde as Damas e Reis são perfeitamente verossímeis, onde a razão de estado
já perdeu sua relevância e as hierarquias caíram por terra. Contrapondo-se ao
universo de nobreza, é possível perceber um Quaderna castigado pela fome, pela
precariedade do ambiente prisional, situações que colaboram para que ele se
encontre num estado emocional de inferioridade. Ali, naquele momento, o sujeito
aprisionado está em situação de igualdade com tantos “nordestinos severinos” que
sofrem com a miséria. No entanto, o narrador possui um trunfo, sua fantasia, e por
meio da memória transfigura todo o cenário opressor em um lugar semelhante ao
país São Saruê, versado por Manuel Camilo dos Santos (1905-1987). Em tal lugar,
semelhante ao Eldorado e ao País da Cocanha, não existe pobreza, o povo é
“alegre e forte”, goza de felicidade, há fartura e fertilidade na terra, por isso a
intervenção do homem é desnecessária, pois o alimento nasce pronto para o
6
GENETTE, Gerard. Discurso da Narrativa. Lisboa: Vega, 1995.
52
consumo. Além disso, é um lugar de vida eterna, de doçura, sem gente esfarrapada,
onde o cantador tem uma posição social de prestígio. Esse espaço reforça a crença
no milenarismo
7
quando versa “o Jardim da Divina Natureza/ imita muito bem pela
grandeza/ para onde Moisés e Aarão/ conduzia o povo de Israel [...] (SANTOS,
1964, p. 543-559). Por tal motivo, para o cantador, feliz é quem visita este país”
(SANTOS, 1964, p. 558). Nesse sentido, a comparação do aprisionado Quaderna
com Pero Vaz de Caminha não é gratuita, pois o português, em sua chegada,
descreveu o Brasil idealizando-o como um paraíso terrestre, e assim inspira o
sertanejo na sua descrição do sertão.
Com base nisso, em um movimento semelhante ao do cantador, o
entristecido narrador se volta para o passado e narra as peripécias do protagonista
Dom Pedro Dinis Quaderna. É por meio dessa memória que as palavras, os
pensamentos, a visão do mundo, bem como os sentimentos desse sujeito, tecem a
rede de situações expostas ao leitor.
A tessitura da narrativa configura-se como um misto de processo “político e
literário” (RPR, 2007, p. 35), no qual o Quaderna cativo busca na lembrança todos
os eventos ocorridos em duas datas principais: 1 de junho de 1935 e 13 de abril de
1938, na véspera de Pentecostes, período que tamm marca o centenário do
Século do Reino. O sujeito se pronuncia como narrador de suas aventuras e
desventuras, de tal modo, ao mesmo tempo em que se defende, narra a saga
familiar e concretiza parte de sua obra literária, que resultará dos autos do processo.
2.2 A nobiliarquia dos Quaderna
O primeiro livro, A Pedra do Reino
8
, versa sobre os anos 30, as guerras e as
implicações delas na vida do “anti-herói sertanejo, além de tratar do mito
7
Milenarismo conforme Delumeau (1995) firma-se na crença de um reino semelhante ao paraíso
existente antes do pecado original. Assim, a expectativa de um retorno divino após um grande
período de turbulência. Esse período de mil anos de harmonia terrestre é uma vitória de Deus que
garante a paz e a felicidade a todas as nações. Tal crença tem muitos matizes no cristianismo, no
entanto, não pertence somente à doutrina cristã, mas a muitas manifestações religiosas. Um derivado
dessa crença é encontrado no messianismo, no qual, geralmente, homens do povo se
autodenominam enviados de Deus e pregam um tempo de justiça e de igualdade entre a
humanidade.
8
Aqui nos referimos à primeira das cinco divisões da obra.
53
sebastianista, que se estenderá por toda a narrativa. Esse livro evidencia um
Quaderna prisioneiro, que nos guia, por meio da sua narração, a o sertão
empoeirado, lugar que ambientou revoluções como a de 1930, com rixas políticas,
emboscadas e mortes de pessoas importantes; de um messianismo latente, cujos
episódios que ilustram esse fato ainda estão vivos na memória, bem como nos
versos da literatura popular.
O protagonista relata a exisncia de uma linhagem nobre no sertão de
Taperoá. Por isso, no seu impulso de evidenciar a sua descendência, faz uma
escie de nobiliarquia, quando liga seus parentes de rias gerações, à estirpe
Bragança, dos reis de Portugal. No entanto, no seu delírio de grandeza, afirma que
os homens de tal linhagem não passam de impostores, sendo, a família Quaderna a
real herdeira do trono do Brasil. Na tentativa de parecer fiel aos acontecimentos
hisricos, revela:
Para narrar essa história, valer-me-ei o mais que possa, das palavras de
geniais escritores brasileiros, como o Comendador Francisco Benício das
Chagas
9
, o Doutor Pereira da Costa
10
e o Doutor Antônio Áttico de Souza
Leite
11
, todos eles acadêmicos ou consagrados e, portanto, indiscutíveis:
assim, ninguém poderá dizer que estou mentindo por mania de grandeza e
querendo sentar de novo um Ferreira-Quaderna, eu, no trono do Brasil,
pretendido também mas sem fundamento pelos impostores da Casa de
Bragança. Faço isso também porque assim, nas palavras dos outros, fica
mais provado que a história da minha família é uma verdadeira Epopéia,
escrita segundo a receita do Retórico e gramático de Dom Pedro II, o
Doutor Amorim Carvalho: uma história épica, com Cavaleiros armados e
montados a cavalo, com degolações e combates sangrentos, cercos
ilustres, quedas de tronos, coroas e outras monarquias o que sempre me
entusiasmou por motivos políticos e literários que logo esclarecerei (RPR,
2007, p. 63).
O fragmento ilustra a intenção de Quaderna no que tange a veracidade dos
fatos: vale-se de pesquisadores reconhecidos no panorama nacional no século XIX,
usa-os como argumento de autoridade para comprovar o que diz. Sendo assim, seu
discurso, por vezes, adquire um matiz de pesquisa e se desvia, em certos
9
Francisco Benício das Chagas, homem de prestígio em Bonito (PE), publicou em 1890, um artigo
que versava sobre os acontecimentos da Pedra Bonita, mostra-se original ao trazer um líder
messiânico “alfabetizado, resoluto e perspicaz”, ressalta o caráter político do movimento sebastianista
(CABRAL, 2004, p. 29-30).
10
O Doutor Pereira da Costa tem seu nome associado às pesquisas relacionadas à mineralogia,
constituindo, assim, um importante referencial sobre a composição do rochedo ao qual Quaderna
atribui um significado ritualístico.
11
Autor do primeiro livro que explicou o movimento messiânico da Pedra do Reino
(http://pt.wikipedia.org/wiki/Solid%C3%B3nio_Leite).
54
momentos, do caráter ficcional. O protagonista justifica sua postura exagerada e se
ampara nas considerações dos eruditos a respeito da sua linhagem. Nesse sentido,
seu impulso de recuperar o trono perdido não se dá indevidamente, não constitui
uma megalomania, mas um senso de justiça. Assim, a citação torna-se um artifício
largamente empregado, seja com palavras de homens cultos reais ou fictícios, como
do saber popular e da erudição” dos folhetos. Essas são as bases teóricas, bem
como o método de Quaderna. Tendo em mente tais conhecimentos e articulando-os
conforme sua inclinação agregadora, encontra neles a fidalguia e o heroísmo
atribuído às grandes linhagens, confirmando, com o saber alheio, aquilo que ele
próprio idealiza. Idelette Muzart dos Santos discute esse traço da obra e confirma
que o Romance é construído a partir de uma acumulação de citações populares e
letradas. Entretanto, diferente de Pierre Ménard, que reescreve Dom Quixote, na
ficção de Borges, Quaderna organiza um compêndio de obras-primas por
acumulação de textos (SANTOS, 2009, p. 141).
Conforme o narrador, a trajetória de nobreza da sua genealogia pode ser vista
na fala: “Como se vê, por essa simples amostra, os acontecimentos da Pedra do
Reino foram suficientemente astrosos e fatídicos para marcar para sempre meu
sangue de realeza” (RPR, 2007, p. 68). Os folhetos relacionados aos impérios põem
em relevo os antepassados “ilustres” da família. No primeiro - ambientado na Serra
do Rodeador, localizada no município de Bonito, em Pernambuco -, Quaderna
discorre sobre Dom João Ferreira-Quaderna, o Execrável, que herda o assento real
conquistado por Dom Silvestre I, um trono que era uma pedra sertaneja, Catedral,
Fortaleza e Castelo” (RPR, 2007, p. 69), que aguardava a ressurreição de um Rei
antigo, Dom Sebastião, o Desejado.
Dom Silvestre I pregava a Revolução, com a degola dos poderosos e a
instauração de um novo Reino, com o Povo no poder” (RPR, 2007, p. 69). Esse
saber de Quaderna é adquirido pela leitura de crônicas que circulavam na região a
respeito dos acontecimentos da Serra do Rodeador e da Pedra do Reino, onde dois
movimentos sebastianistas ocorreram: o primeiro em meados de 1819 e 1820, e o
segundo entre 1836 e 1838 (GASPAR, 2009). Quaderna, localizando a sua
enunciação entre 1935 e 1938, ressurge cem anos após a matança, no “Século do
Reino” como afirma em diversos momentos.
A leitura de textos relacionados ao mito sebastianista contribui na ampliação
de um léxico que adquire caráter sagrado para o protagonista, que passa a fazer
55
parte da sua linguagem cotidiana. A seqüência das palavras sagradas apresenta,
resumidamente, o desfecho do primeiro império, que se extingue com a degolação
de Dom Silvestre I. Seus parentes são obrigados a fugir do local e se refugiam no
sertão do Pajeú, “na fronteira das duas províncias mais sagradas do Império do
Brasil, a Paraíba e Pernambuco(RPR, 2007, p. 71). O encadeamento dos fatos
leva Quaderna a concluir: “era assim que, aos poucos, o Trono da minha família ia
empeçonhando e glorificando meu sangue, até que eu chegasse a ser o ‘prodígio e
encantamento’ que sou hoje” (RPR, 2007, p.69). Aí, encontramos uma
demonstração do juízo que ele faz de si mesmo: um ser, ao mesmo tempo, digno de
realeza e estigmatizado pelos feitos de seus antepassados.
Em O Segundo Império”, Quaderna narra a chegada dos parentes de Dom
Silvestre à Serra do Reino. Para tanto, lança mão de um tom rebuscado ao narrar
uma cena sem aparente beleza: chegaram, pois, aqueles Príncipes, errantes,
retirantes, mal-andantes, pelas estradas e caminhos do Sertão”. Com isso, ressalta
um desnível entre a descrição com substantivos de sentido enobrecedor
determinados por adjetivos que diminuem tal nobreza, indicando uma
desconformidade. A sonoridade da frase, com palavras que ecoam em outras,
associada à plasticidade da cena, sugere uma voz pronunciando essas palavras,
como se as estivéssemos ouvindo e visualizando-as, portanto, carregadas de um
performismo.
O narrador se detém na figura de Dom João I, o Precursor. Para definir o
caráter e as façanhas desse sujeito, lança mão das palavras de Antônio Áttico de
Souza Leite, que emite juízos e historia os eventos relacionados aum mameluco de
nome João Antônio dos Santosno ano de 1836, sujeito obcecado por um folheto
cujos versos continham “um desses contos ou lendas, que andavam muito em voga,
acerca do misterioso desaparecimento de El-Rei Dom Sebastião, na Batalha de
Alcácer-Quibir em África, e de sua esperada e quase infalível ressurreição” (RPR,
2007, p.72). Os versos afirmavam que “quando João casasse com Maria, aquele
Reino se desencantaria”. Assim, João
conseguiu, graças à ignorância da população e à bem conhecida tendência
que o espírito humano tem para abraçar o maravilhoso e o fantástico, não
realizar o casamento com uma interessante rapariga de nome Maria [...]
como obter, por empréstimo de muitos Fazendeiros do lugar, bois, cavalos
e dinheiro, em porção não pequena, com a onerosa condição de restituir
56
tudo em muitos dobros, logo que se operasse o pretenso desencantamento
do misterioso Reino (RPR, 2007, p.73).
No fragmento, carregado de ironia, o narrador frisa pequenas passagens,
demonstrando dúvida em relação aos propósitos de seu ancestral. Além disso,
coloca-se em uma posição elevada em relação ao povo simples que seguia o
fanático. Assim, mostra que a ignorância está dissociada de uma capacidade crítica,
fator que impede de ver a real intenção de aproveitadores e facilita o impulso às
questões inexplicáveis, como uma forma de, por meio de um milagre, obter as
esperanças mais secretas. O acontecimento, como um fato histórico, foi pesquisado
por cia Gaspar que relata:
Um grupo de fanáticos sebastianistas, liderado por João Antônio dos
Santos, fundou uma espécie de reino, com leis e costumes próprios e
diferentes dos do resto do país. Seu líder era chamado de rei e usava até
coroa feita de cipó. Nas suas pregações ele dizia que o rei Dom Sebastião
lhe havia aparecido e lhe mostrara um tesouro escondido; e que o rei
estaria prestes a retornar e iria transformar todos os seus seguidores em
pessoas ricas, jovens, bonitas e saudáveis. O grande mero de pessoas
pouco esclarecidas que seguiu os fanáticos de Pedra Bonita preocupou o
governo, os fazendeiros e a Igreja Católica. Foi enviado o padre Francisco
José Correia de Albuquerque para tentar fazer as pessoas voltarem ao seu
lugar. O padre conseguiu convencer João Antônio a parar com a pregação,
mas este deixou em seu lugar o cunhado João Ferreira, que se tornou o
mais fanático e cruel rei da Pedra Bonita. Ele pregava que Dom Sebastião
voltaria se a Pedra Bonita fosse banhada com sangue de pessoas e
animais, comandando um grande massacre de pessoas inocentes em maio
de 1838. Entre os dias 14 e 18 morreram 87 pessoas. No dia 18 de maio o
arraial da Pedra Bonita foi destruído pelas forças comandadas pelo major
Manoel Pereira da Silva (GASPAR, 2009).
Desse modo, “O Terceiro Império” evidencia certa desaprovação de
Quaderna em relação à interferência do religioso, que também é mencionado no
romance, no movimento sebastianista, levando-o a afirmar que “o Catolicismo
puramente romano, ortodoxo e oficial, é funesto para a sagrada Coroa do Sertão”
(RPR, 2007, p. 73). Nesse ponto de vista encontramos a visão de mundo
quadernesca: se um catolicismo oficial, há também uma pagã, sintetizada no
Catolicismo Sertanejo. Além disso, existe a crença em uma dinastia sertaneja, a
Coroa do Sertão, da qual é descendente. Por isso, julga-se digno do título Dom que
agrega ao seu nome.
Quaderna define Dom João, o Execrável como um homem vil, de qualidades
baixas, pois o revela como um sujeito “meio tarado” e sanguinário ao extremo,
57
evidenciando conformidade com os relatos oficiais supracitados. Essa impressão se
confirma à medida que as ações do sujeito são descritas:
quando já tinha sido coroado Rei, instituiu, na Pedra do Reino, um ritual
Católico-sertanejo, segundo o qual ele, Rei, era quem primeiro possuía as
noivas, no dia do casamento, o que fazia, segundo explicava, “para inoculá-
las com o Espírito Santo”. Parece que ele só conseguia ser macho
praticando, ao mesmo tempo, um sacrilégio e uma crueldade - mas, então,
depois de assim despertada pelo sangue e pela maldade, não havia quem
contivesse mais sua potência (RPR, 2007, p.74)
Dom João seduz duas irmãs, a princesa Isabel e a princesa Josefa, e vive em
poligamia com as duas. Entre 1836 e 1838, lidera uma seita messiânica na Pedra do
Reino e faz do lugar um espaço de pregação; promete a seus seguidores um futuro
de igualdade entre os homens, mas reivindica o sacrifício de todos, para lavar as
duas pedras com o sangue das pessoas a fim de que a profecia se cumpra.
Conforme os relatos do narrador, em maio de 1838 se o “instante de fulminação”
do Império da Pedra do Reino:
Naquele mês, meu bisavô teve a gloriosa coragem de iniciar o grande
banho-de-sangue, que deveria depois se estender numa verdadeira guerra
sertaneja, a “Guerra do Reino”, com a degola geral dos proprietários [...]
Como a justiça, para ser boa, começa de casa, era porém entre os próprios
súditos do Reino que deveria se iniciar a matança. Os que se
apresentassem voluntariamente à degola, ressucitariam daí a três dias,
como “Grandes do Império”, belos, poderosos, eternamente jovens e
imortais (RPR, 2007, p. 76).
As lucubrações de Quaderna com relação ao episódio da Pedra do Reino são
muitas. Sobre o terceiro império, lançando mão dos escritos de Áttico de Souza
Leite, ele relata como o líder messiânico colocou em prática os sacrifícios. O fanático
mandou assassinar as duas esposas, Dona Josefa e a Rainha Isabel, grávida de
nove meses, que é degolada para ser poupada de duas dores: a do parto e a do
“encantamento”. Quando a mulher é assassinada, seu filho nasce e rola pelas
pedras até o chão, sobrevivendo ao massacre. Dom João é um dos últimos a
morrer, o último que faltava para se operar o “desencantamento”. Sua morte se
em razão de um artifício de Pedro Antonio, cunhado do Rei, que revela ter sonhado
com Dom Sebastião que exigia o sacrifício do líder, a fim de que a profecia se
cumprisse. Tendo a morte se concretizado, Pedro Antonio proclama-se rei com o
58
nome de Dom Pedro I. Assim, tal qual os Braganças, os Quadernas também m
João e Pedro na família, configurando-se como uma importante estirpe do sertão.
A partir desse episódio tem início “O quarto império”, folheto que concentra
traços de epopéia, no entanto, ilustra o reinado de apenas um dia de Dom Pedro I,
que, apesar da curta duração, “teve a vantagem de revelar ao Brasil quem foi seu
verdadeiro e real Dom Pedro I, o nosso, e não aquele Português debochado da
Casa de Bragança” (RPR, 2007, p. 81). Desse modo, percebemos a comicidade do
fato, bem como a ironia de Quaderna.
Ainda na Serra do Reino, os fanáticos seguiram Dom Pedro Antonio aos
gritos: não os tememos! Acudam-nos as tropas do nosso Reino! Viva El-Rei Dom
Sebastião!”. Nesse clima, as forças policiais e as messiânicas se confrontaram e o
rei foi morto, consolidando o fim trágico do quarto império.
“O quinto império” mostra o orgulho de Quaderna por ter origem em duas
linhagens que se fundiram. Para isso, ele concentra uma história dentro de outra
hisria, recurso que é largamente empregado na narrativa, uma vez que a obra
versa sobre a elaboração de um romance, ressaltando o efeito de narrativas
encaixadas, de mise em abyme
12
. Retomando o episódio do assassinato da Rainha
Isabel, bem como da morte dela, Quaderna recria uma cena repleta de exagero, de
plasticidade e de paralelismos ao descrever o modo com foi encontrado o corpo da
mulher:
No chão, estava um corpo jovem, desnudo e moreno de uma mulher
degolada. Enroladas em suas coxas, havia duas Cobras-Corais, enormes,
de um tamanho como nunca se viu nessa espécie. Lambendo e farejando o
corpo, estavam duas Onças-Pintadas, que correram assim que o intruso
apareceu. De cada lado do corpo, havia uma cabeça de mulher, ambas
cortadas pelo pescoço. As cabeças eram parecidíssimas, com a mesma
beleza e os mesmos cabelos negros e compridos. E como não consta, pelo
menos em Crônica de historiador fidedigno, que minha bisavó tivesse duas
cabeças, provavelmente uma delas era de sua irmã, a Rainha Josefa, cujo
corpo nunca foi encontrado (RPR, 2007, p. 83).
12
Conceito de Andre Gide, a mise en abyme define o efeito de reflexividade literária, de duplicação
especular. De tal modo, a auto-representação pode ser total ou parcial, ou ainda clara ou simbólica,
indireta. A mise en abyme favorece, um fenômeno de encaixe ente narrativas, ou seja, de inscrição
de uma micro-narrativa noutra englobante, a qual, normalmente, arrasta consigo o confronto entre
níveis narrativos. Nesse processo, vem à tona uma dimensão reflexiva do discurso, uma consciência
estética ativa ponderando a ficção, em geral, ou um aspecto dela, em particular, e evidenciando-a
através de uma redundância textual que reforça a coerência e, com ela, a previsibilidade ficcionais
(http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/M/mise_en_abime.htm).
59
A descrição fantasiosa da Rainha morta, pela disposição da imagem, sugere
uma carta de baralho, cuja simetria é bastante evidente e se reflete em outras
passagens, nas quais a vida é definida como um jogo. Nessa exposição, Quaderna
ainda relata que a criança sobreviveu, mas que não há uma explicação racional para
esse prodígio. Assim, contesta: Eu, como membro ilustre do nosso ‘Instituto
Genealógico e Histórico do Cariri’, não avanço hipóteses, só digo o que posso
provar” (RPR, 2007, p.83). Então, percebemos que a modéstia do protagonista é
apenas um jogo de cena, um fingimento para surtir o efeito esperado por ele: ao
parecer humilde, granjear a admiração de seus interlocutores. Desse modo, supõe:
“mas vá ver que são realmente corretas as versões correntes [...] de que uma
daquelas Onças era fêmea e teria amamentado o inocente naquele primeiro dia de
vida, no que, aliás, teria somente seguido outros exemplos ilustres da História”.
Desse modo, Quaderna expõe sua “erudição” quando faz uma releitura do mito de
Rômulo e Remo que foram alimentados por uma loba e fundaram Roma. Também
sugere com a analogia, os feitos futuros do menino.
A criança foi doada pelos vaqueiros que o encontraram ao padre Wanderley.
Este, sabendo se tratar do filho de Dom João Ferreira-Quaderna, escondeu essa
descendência e batizou-o apenas como Pedro Alexandre Quaderna, o Dom Pedro II,
de acordo com o narrador. Quando atingiu a maturidade, o jovem Pedro se casou
com uma filha natural do padre, Bruna Wanderley e teve três filhos. Um desses
filhos foi Dom Pedro Justino Quaderna, que se casou com Maria Sulpícia Garcia-
Barretto e teve Dom Pedro Dinis Quaderna como filho, o narrador. Maria Sulpícia era
filha bastarda do Barão do Cariri e irmã do tio e padrinho do protagonista, Dom
Pedro Sebastião Garcia-Barretto, “degolado daquela maneira cruel e enigmática a
que me referi, no dia 24 de Agosto de 1930, dia em que o Diabo andou solto”
(RPR, 2007, p. 84).
Na detalhada narração empreendida por Quaderna, a ênfase recai sobre a
questão da sua linhagem nobre. Para demonstrar a importância, o protagonista
percorre o lugar que foi cenário das aventuras dos seus antepassados, a Serra do
Reino. Com isso, ouve as histórias conhecidas através das crônicas, entretanto,
provenientes da voz simples dos habitantes da serra; parte em busca de caçadas
aventurosas, que, na verdade, consistem em uma desculpa para percorrer aquele
lugar “sagrado”, e, como um bom augúrio, encontra em uma das inúmeras aventuras
60
parte da suposta coroa utilizada por Dom João no massacre e acha que os astros
estão favoráveis a ele, por conseguir tal façanha:
Todas essas grandezas e monarquias iam, assim, tocando fogo em meu
sangue, com o desejo de me sentar no Trono de meus antepassados e de
me assenhorear de novo do Castelo de pedra que eles tinham levantado no
Pajeú. Quando, porém, meu sonho atingia o auge de fogo, lá vinha a
lembrança estarrecedora: todos os Reis da minha família tinham terminado
de garganta cortada, de morte violenta tinha acabado Jesuíno Brilhante, o
Rei do Sertão! Então, envergonhado, eu baixava a cabeça, corria de
enfrentar a morte cruel para realizar minha realeza, e confessava para mim
que preferia ser um covarde vivo a ser um Rei degolado (RPR, 2007,
p.103).
Quaderna conhece a Pedra do Reino, e descobre algo precioso além das
pedras, a Literatura. Essa arte que fazia parte de seu cotidiano por meio do gosto
pelos versos populares; das histórias míticas; das narrativas românticas, de Jo de
Alencar; ou ainda do romance-reportagem de Euclides da Cunha, Os Sertões.
Portanto, é por meio da literatura que Quaderna pretende resgatar um trono que
supõe ser seu de direito, trono que se transfigura em posição social, no
reconhecimento da arte da cantoria e de sua possível mescla com os textos
eruditos:
Sem saber da Missa nem a metade, ele usara expressão de “Reino
Encantado da Literatura”. Era com o nome de “Reino Encantado” que todos
aqueles Acadêmicos do século passado tinham se referido ao nosso
Império. Vi nisso um novo sinal da Providência Divina e dos planetas,
acorrentados em meu auxílio quando eu, como Rei, cantador, poeta e
guerreiro das Cavalhadas sertanejas, tinha obrigação de restaurar o Reino,
o Castelo, o Marco, a Catedral, a Fortaleza, da minha Raça! Seria a
Literatura dos folhetos e romances que iria restaurar de novo, pelo fogo da
Poesia, a gloriosa imagem anterior, que aquelas pedras tortas e manchadas
de mijo-de-moaleivosamente queriam diminuir e macular! (RPR, 2007, p.
149).
Na adjetivação “Reino Encantado’ da Literatura”, Dinis percebe a relação
existente entre o reinado de seus antepassados e a arte literária, pois a última pode
coroar os autores mais destacados, consagrando-os no cenário das belas letras. Por
isso, o fragmento evidencia o orgulho que Quaderna sente por carregar um
sobrenome associado a tantas histórias.
Em um momento de iluminação, ele se conta que sua consagração é
possível por meio da arte. Assim sendo, herdeiro do um reino sanguinário,
transfigura-o em um cenário capaz de concentrar temas tão cruéis, desfechos de
61
violência tamanha, capazes de ser transportados para a literatura sem que uma gota
de sangue seja derramada. Por isso, a sua história familiar passa a ser idealizada
como a Demanda Novelosa da Pedra do Reino” (RPR, 2007, p. 43), constituindo
um tema perfeito para a sua obra literária. Ao redor da demanda novelosa, orbitam
outros temas importantes como o fazer literário, a história de Sinésio, entre outros
que serão tratados ao longo da pesquisa.
O fragmento manifesta o juízo de Quaderna em relação a si mesmo. O
protagonista, que em certos momentos se rebaixa, agora exalta a sua nobreza, bem
como a sua função dentro do vilarejo vendo-se como um sujeito ímpar: um Rei,
cantador, poeta e guerreiro, capaz de restituir seu Reino. Portanto, atuar na
atividade de cantador, equivale à mesma combatividade guerreira dos heróis do
mundo medieval. Além disso, a escolha da literatura como meio de erguer o seu
castelo, permite ornamentá-lo de acordo com a sua vontade pessoal, omitindo aquilo
que lhe desagrada ou que ponha em dúvida a sua beleza ou existência. Assim, o
leitor ouvinte/espectador assina o pacto ficcional com esse narrador, de crer no
real e no absurdo que lança mão em determinados momentos.
Sendo Quaderna um sujeito irônico, jocoso e conversador, chama atenção de
seu interlocutor quando, ao concluir a enumeração de suas aventuras, profere: “Mas
estou chegando ao fim da narrativa da minha expedição aventurosa à Pedra do
Reino, e devo ser breve, porque “a brevidade é a cortesia dos clássicos” (RPR,
2007, p. 149). Na verdade, isso confirma o jogo de ironias que o protagonista
executa ao longo de seu performático depoimento, pois até chegar a esse momento,
não é nada econômico no seu narrar. Assim, seu leitor sabe que a brevidade, a
concisão, não é um dom de Quaderna. Na verdade, o seu prazer como narrador é
expor cada fato com minúcia, detendo-se nos pequenos detalhes, tal qual Homero
ao descrever a cicatriz de Ulisses
13
, proporcionando a um episódio aparentemente
sem importância, uma historicidade dentro do curso de uma vida. Ao mesmo tempo,
essa ferramenta permite que Quaderna alinhave uma narrativa na outra,
entretecendo acontecimentos históricos e gloriosos a outros menos importantes e
grotescos.
A chegada nas pedras, que Quaderna conhecia apenas pelo trabalho artístico
de outras pessoas, revela que os traços idealizados por ele inexistem.
13
Auerbach em A cicatriz de Ulisses revela que Homero narra o episódio do reconhecimento da
cicatriz do herói vagarosa, pormenorizada e fluentemente (2004, p. 2).
62
Primeiramente, as duas torres do Castelo, como ele costuma denominar, não
possuem a proporção imaginada, na verdade, uma é maior do que a outra; além
disso, a superfície da pedra, descrita como brilhante devido a sua composição
mineral, não condiz com a aparência real e sem brilho; seus adornos são algumas
manchas de liquens secos, denominadas “mijo-de-mocó” que se prenderam às
pedras, portanto, carentes de beleza. No fragmento destacado, o rochedo é
comparado a elementos carregados de mistério como a Besta Bruzacã, ser
fantástico descrito e ilustrado por Quaderna; A Vaca do Burel, um folheto antigo
pertencente a gesta do gado, que, conforme Lawrence Flores Pereira, está incluído
no “corpo folclórico” do Ciclo do Boi, e abrange textos “de caráter ingênuo sobre as
aventuras de bois insubmissos que circulavam no terreno nordestino em um período
anterior aos registros da poesia popular escrita em folhetos” (1995, p. 26). O cavalo
misterioso também é uma obra pertencente à literatura de cordel; O Dragão do
reino do vai-e-volta, aproxima-se do título da obra:
Aquelas pedras desiguais, brutas, gigantescas apesar de tudo, tinham, na
sua desordem, o fascínio de um enigma ligado à Besta Bruzacã, à Vaca do
Burel, ao Cavalo Misterioso, ao Dragão do Reino do Vai-e-Volta, à
Ipupriapa, enfim, todas aquelas aparições que a Onça-Malhada do Divino
assumia em suas aparições, fosse no Sertão, fosse no Mar, fosse nas
desaventuras narradas nos ‘folhetos (RPR, 2007, p.150).
O narrador, após discorrer sobre a história da família, sente-se cada vez mais
engrandecido pela realeza do nome “Quaderna”, essa nobreza enche seu espírito de
orgulho. Assim, de Dom Pedro Dinis Quaderna, que tem ares de fidalguia com o
título Dom”, pretensiosamente se denomina Dom Pedro IV, nada menos que “o
Decifrador, Rei e Profeta do Quinto Império”. Ainda notamos a reduzida geografia do
protagonista: no sertão do Cariri, cuja sensação de isolamento já foi mencionada, ele
instala seu trono na Pedra do Reino do Brasil, local em que os acontecimentos do
século XIX determinaram seu destino de soberano. De tal modo, inferimos um
posicionamento suassuniano determinando o pensamento do protagonista, quando
exe o apreço ao espaço nordestino e a ancoragem nessa geografia.
As enunciações de Quaderna, mais do que os seus atos, evidenciam o
embuste da sua falsa modéstia, pois, na verdade, ele se sente um ser ímpar. De tal
maneira, é por meio dos jogos de Quaderna, ao brincar e tentar ludibriar seu
interlocutor se rebaixando, elevar-se e tentar incutir no leitor a idéia de crescimento,
63
que vemos com clareza a megalomania quadernesca. Quando colocamos em
contraste o baixo e o alto, recordamos Dom Quixote, cujo protagonista que título
à obra, juntamente com seu escudeiro exemplificam o contraste entre os dois níveis,
posições cambiantes em determinados momentos. No entanto, o anti-herói d’A
Pedra do Reino funde as características das duas personagens a um só tempo e o
contraste se nas suas próprias atitudes que expõe traços nobres ou grotescos
aleatoriamente:
Pronto! Agora, a fuga não era mais possível. Por mais mesquinho que eu
me mostrasse dpor diante em relação à Coroa do Divino, o impulso para
o alto fora definitivo. Eu não era mais Dom Pedro Dinis Quaderna, fidalgo
arruinado e pobre, Escrivão e astrólogo do Cariri: era Dom Pedro IV, o
Decifrador, Rei e Profeta do Quinto Império e da Pedra do Reino do Brasil
(RPR, 2007, p. 151)
Portanto, por meio dos elementos levantados na seção, visualizamos o
enredo do romance de Quaderna, emaranhado à história de um homem cruel com
ímpetos messiânicos, com uma dinastia sertaneja”, que justificaria o seu desejo por
ocupar uma posão de destaque no seu espaço geográfico e no território nacional
brasileiro. Isso, de certa forma, romperia com o emparedamento que o narrador
menciona, e, inclusive, com a injusta noção de dívida que o nordeste tem em relação
ao Brasil, devido ao seu subdesenvolvimento. Nesse sentido, tendo cncia do que a
região representou no período colonial: uma abundante fonte de riqueza material na
forma de metais preciosos, de matérias-primas, de especiarias como o açúcar;
percebemos a vileza dos governantes em rotular esse espaço com o adjetivo
atrasado. Assim, Quaderna mostra que, mesmo que impere a censurável idéia de
atraso nordestino, essa região tem história e faz parte da construção do país. Talvez
por isso Quaderna reivindique um trono, um trono metafórico que é também um
reconhecimento social.
2.3 Quando o Quaderna aprisionado dá voz ao bufão Quaderna
O assassinato de Sebastião Garcia-Barretto e o seqüestro de Sinésio Garcia-
Barretto, O Alumiado, firmam-se como episódios importantes e desencadeadores de
uma investigação na Vila de Taperoá, que tem Quaderna como suspeito. Portanto,
na tentativa de esclarecer os fatos, a fim de conquistar a sua liberdade, o
64
protagonista procura rememorar os acontecimentos e detectar as pistas, a fim de
ex-las ao Corregedor com o intuito de elucidar o verdadeiro assassino ou
mandante do crime que vitimou Dom Sebastião.
Sabemos que, em um recuo temporal, Quaderna expõe os acontecimentos
passados, relatando os eventos que o levaram à prisão, bem como o transcurso de
sua existência até se deparar com o momento atual. O protagonista apresenta-se
como um bufão moderno. Essa afirmação se confirma à medida que somos
informados dos motivos que o colocaram como suspeito do assassinato. Quaderna,
ao mesmo tempo em que presta depoimento, lança mão de um estilo ora rebuscado
o estilo régio –, ora debochado, fazendo seu testemunho oficial tomar ares
micos.
No depoimento de Quaderna, quando é o herói da sua própria vida, ele
mergulha em uma atmosfera medievalizada, embora tudo se passe no sertão da
Paraíba, na cidade de Taperoá, no final da cada de 30. É nesse terreno que
Quaderna se enraíza, transforma a pequena vila no palco de suas aventuras,
povoada de ciganos, de figuras misteriosas, como o Rapaz-do-Cavalo-Branco e se
proclama Rei. Assim, revisando a idéia bakhtiniana do bufão como “o rei do mundo
às avessas(BAKHTIN, 2008, p.325), percebemos que, em certo sentido, aproxima-
se da postura do protagonista, pois o uso dessa máscara concede
o direito de não compreender, de confundir, de arremedar, de hiperbolizar a
vida; o direito de falar parodiando, de o ser literal, de o ser o próprio
indivíduo; o direito de conduzir a vida pelo cronotopo intermediário dos
palcos teatrais, de representar a vida como uma comédia e as pessoas
como atores; o direito de arrancar as máscaras dos outros, finalmente, o
direito de tornar pública a vida com todos os seus segredos mais íntimos
(BAKHTIN, 1993, p.278).
Como exemplos dessa postura, podemos destacar o riso ambíguo provocado
pelo padecimento do corpo apresentado na forma de cegueira e de epilepsia. Na
obra A cultura popular na idade Média e no Renascimento, Bakhtin postula que o
riso não era um tema freqüente na literatura medieval, sendo parte integrante das
festas populares pagãs como o carnaval, que era comemorado nos últimos dias que
precediam a grande quaresma. No carnaval, toda a ordem era invertida, uma vez
que todos os participantes brincavam e, ao mesmo tempo, se tornavam alvo de
brincadeiras. o existia palco, tudo acontecia na rua e o ato jocoso era a prática
comum dos participantes, mais do que isso, as pessoas viviam o carnaval, portanto,
65
mascarados, bobos, bufões, reis coroados tinham a mesma importância que as
pessoas comuns reunidas naquele espetáculo.
Conforme Bakhtin, a postura popular contrastava com a sisudez das festas
oficiais, “o mundo infinito das formas e manifestações do riso opunha-se à cultura
oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época(BAKHTIN, 2008, p.3). Isso porque
as comemorações oficiais institucionalizadas pela Igreja tinham a missão de afirmar,
de consolidar o regime em vigor, justificando, assim, tal seriedade.
Na literatura, a seriedade temática começou a ser minada com as publicações
de Gargantua e Pantagruel, de Rabelais, e com as obras de Cervantes, de
Shakespeare, entre outros autores. Na literatura de tais autores, a carnavalizão se
insurge como uma forma de subverter os valores institdos por determinada
estrutura social, dessacralizando o sublime por meio das imagens grotescas e tendo
o riso como um fim - um riso paródico que ao mesmo tempo em que negava,
ressuscitava e renovava (BAKHTIN, 2008, p.10).
Quaderna padece fisicamente e sofre com a ironia de seus companheiros que
debocham de seu sonho de ser o “Gênio Máximo da Humanidade”. Assim, quando o
protagonista cumpre os rituais da igreja Católico-sertaneja no lajedo que serve de
altar para os rituais, bebe o Vinho Tinto da Malhada e cumpre a liturgia sob o sol do
meio dia, entra em transe e sonha que seus olhos foram arrancados por gaviões,
logo, é acometido por uma cegueira psicológica, que diferentemente do modo
dramático que reage, é ironizada por parte de seus amigos:
- Ai, ai de mim! agora me recordo! Não adianta nem eu sonhar com o
circo e com a viagem aventurosa e desaventurosa que vocês estão
planejando! Como poderei ir, se estou cego?
- Ora, Quaderna, isso não é nada! disse Samuel, com a maior
naturalidade.
- Isso é nada, para um homem como você! Seja forte, seja homem, homem!
Como eu estava dizendo pouco, esse fato de estar cego, que a primeira
vista, parece uma desgraça, no seu caso pode até vir a ser um bem para
você, uma vez que seu sonho é se tornar um Poeta épico! (RPR, 2007,
p.608)
Desse modo, percebemos que a maneira como Samuel se expressa é irônica,
porque ao longo da narrativa ele debocha de Quaderna pelo fato do protagonista
nutrir o sonho de consagrar-se “Gênio ximo da Humanidade”. Sendo assim, pelo
66
hisrico da cegueira na literatura (que acomete tanto autores como personagens),
Samuel trata com ironia o estado do amigo. O fidalgo tem conhecimento de que
Camões, Édipo, Tirésias donos de uma cegueira parcial ou total são sábios
consagrados. Portanto, como um sujeito que busca essa glória, o fato de não
enxergar, de forma alguma pode ser considerado uma dificuldade.
De tal maneira, notamos, nos trechos das referidas obras, que o humor é
provocado tanto pela situação que as personagens enfrentam, quanto pela ironia
presente nos dois discursos. Sancho é jogado para o ar como fazem nas
comemorações carnavalescas medievais, Quaderna é tratado de modo pejorativo
pelo sonho que acalenta de tornar-se um grande literato. Assim, a situações
expostas apresentam a ambigüidade do riso que elas provocam, podendo ser um
riso sensibilizado, comovido, ou um riso prazeroso gerado pela situação ridícula
vivenciada pelas personagens.
Em consonância com o episódio cômico anterior, Quaderna, na “segunda
vida”, comporta-se bufonamente, é paródico em vários momentos, reproduzindo
comportamentos de autores consagrados, como a epilepsia. Com isso, pretende
surtir vários efeitos: primeiramente, justificar o fato de o ter visto a chegada da
“estranha cavalgada”; tamm para assemelhar-se a Machado de Assis e a outros
epiléticos de talento literário comprovado. Conseqüentemente, encenando os
sintomas de tais enfermidades, Quaderna escapa de situações que o
comprometeriam. Assim, vemos que ele interpreta, como em um palco, aquilo que
pretende tornar blico, mas que, devido ao seu falar solto demais, compromete-se
quando as palavras mais secretas saem indevidamente, por isso precisa se valer
desses artifícios:
Eu deveria, de fato, ter vergonha desses ataques, mas li, a respeito deles,
umas palavras de Baptista Pereira - aquele distinto escritor brasileiro que,
por ser genro do Conselheiro Ruy Barbosa, contraiu a genialidade do sogro.
Segundo essas palavras, a epilepsia é a "grande aura", o "mal sagrado" que
acomete os verdadeiros gênios. Assim, nem percam tempo tentando
disfarçar de mim o que viram porque, para ser sincero, eu me sinto a
orgulhoso de ser epilético! É mais uma prova de que sou predestinado, pela
Providência Divina e pelos Astros, a ser o "Gênio da Raça Brasileira"!
- E o senhor é epilético? - perguntou, frio, o Corregedor (RPR, 2007, p.
456).
O narrar de Quaderna, devido ao traço cômico, desperta constantemente uma
desconfiança em relação às suas afirmões, provocada pelo exagero, pela
67
ornamentação das frases, bem como pelo arremedo que sugerem. Assim, imaginar
um Quaderna proferindo tais palavras, aliado à musicalidade e à cenografia
anteriormente citadas, só fazem comprovar uma representação permanente.
A sua ambição literária não tem limites e é relatada inclusive ao Corregedor.
O protagonista tem certeza de ser predestinado para a glória, tanto familiar, quanto
profissionalmente, por isso, sente certa inveja de Homero, que é citado como gênio
por todo o estudioso de renome:
Não quero, nem devo esconder a Vossa Excelência que, depois de
conseguir da Academia Brasileira de Letras o título de "Gênio da Raça
Brasileira", pretendo disputar, no vasto Império da Literatura Universal, o
cargo, também ainda vago, de "nio ximo da Humanidade"! Ora, assim
como fiquei com uma certa "cisma" com o Conselheiro Ruy Barbosa em
relação ao primeiro título, tive também, a princípio, uns certos sobressaltos
com Homero, para o segundo: foi quando li nas Postilas de Retórica e
Gramática, publicadas em 1879 pelo Doutor Amorim Carvalho, que, de
todos os Poetas, "o primeiro, no tempo e na glória, é Homero". Esse Doutor
foi "retórico" do Imperador Dom Pedro II. Mesmo sendo Pedro II um
impostor e usurpador, essas coisas de monarquia são muito sérias, de
modo que o cargo de "Retórico Imperial" é venerável e a palavra do Doutor
Amorim de Carvalho não é brincadeira! Por isso, quando li isso, fiquei meio
cego de terror, com medo de que aquele peste de grego tivesse se
antecipado e me tomado o cargo (RPR, 2007, p. 447).
O mal-estar entre Quaderna e os mestres universais da literatura é
apaziguado por Samuel e Clemente, que não possuem a predestinação do discípulo,
nem o talento literário que Quaderna se auto-atribui, portanto não oferecem risco de
ofuscar o seu brilho, nem de conquistar um lugar que ele julga seu. Os sujeitos,
lançando mão de especulações a respeito da existência do poeta, atribuem certa
incompletude à sua literatura: “Mas Clemente e Samuel me tranqüilizaram um dia,
provando-me, primeiro que Homero não existiu opinião de Clemente e, depois
que tinha mau gosto e era incompleto opinião de Samuel” (RPR, 2007, 447).
Descaracterizando Homero como grande, ele se eleva a ponto de crer que a única
pessoa capaz de conquistar o reconhecimento como “Gênio Máximo da
Humanidade” é ele próprio. Isso se alia à ambão enciclopédica de sua obra, que
“uma Obra, para ser clássica, precisa ser completa, sem o que nem é modelar nem
de primeira classe!” (RPR, 2007, p. 447).
Devido a tais aspectos, é impossível compreender as posições do
protagonista sem carre-las de comicidade. Em princípio, pela condensação de
temas, também pelas ironias e pelas constantes provocações aos autores
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consagrados. Apesar disso, esse sujeito o cai no ressentimento, mas tenta se
auto-afirmar diminuindo os seus precursores, que, de qualquer maneira, terão
inspirado o seu fazer poético híbrido e com feições de mosaico, aspectos que
colaboram na concretude da sua “obra total”.
Portanto, a comédia da vida de Quaderna, que começa com a sua prisão, tem
apenas o passado encenado, e fica devendo ao leitor o desfecho da situação
presente. Enquanto isso, ele permanece em uma espécie de limbo, nem no passado
infernal de sua linhagem, nem mesmo no futuro celestial dos consagrados pela
literatura.
Ao definir o processo de criação da personagem Quaderna, cujo nome foi
herdado de uma obra de João Cabral de Melo Neto, na qual o poeta se debruça
sobre o nordeste e a Espanha, Suassuna coloca que ele “surgiu sozinho”. Isso
porque o autor desejava que Sinésio fosse o herói do romance, e, assim, Quaderna
ficaria em segundo plano. No entanto, “ele insistiu, [...]. Acabou por ser o mais
importante, ele que é um intelectual de segunda ordem, um nobre da linha
nordestina, mestiço, megalomaníaco e bufão” (SUASSUNA apud TAVARES, 2007,
p.154).
Quaderna adota, em certos momentos, um estilo enigmático, que, no entanto,
apresenta uma descrição bastante plástica da cor local e um sentimentalismo
aflorado em relação às pessoas, ao espaço e à tradição sertaneja. Percebemos,
desse modo, que o discurso colocado em prática tem o objetivo de evidenciar a
visão do narrador em relação a si mesmo, além de ressaltar o caráter absurdo da
acusação que sofre. Entendemos com tal articulação, que o tempo presente que se
instaura na introdução do romance, marcado pelo clima de insatisfação, de desgraça
e de infelicidade, justifica a retomada de um passado no qual o referido sertanejo é o
protagonista. Assim, diferenciam-se dois momentos específicos: o tempo do narrado
– fantasiado e imaginativo – e o tempo do narrador – o agora, aprisionado.
No tempo presente, encarcerado, em uma espécie de reflexão, Quaderna
encarna um “contador de histórias”, encadeando os fatos e expondo-os aos
interlocutores. Estes são os leitores da obra, que assumem um papel ambíguo entre
leitor e espectador pelo modo como o narrador se dirige a eles:
Escutem, pois, nobres Senhores e belas Damas de peitos brandos, minha
terrível história de amor e de culpa: de sangue e de justiça; de sensualidade
e violência; de enigma, de morte e disparate; de lutas nas estradas e
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combates nas Caatingas, história que foi a suma de tudo o que passei e
que terminou com os meus costados aqui, nesta Cadeia Velha da Vila Real
da Ribeira do Taperoá, Sertão dos Cariris Velhos da Capitania e Província
da Paraíba no Norte (RPR, 2007, p. 35).
Nesse sentido, a expressão “escutem” assegura certa dúvida no que se refere
à atuação de Quaderna: trata-se de um mestre de cerimônias anunciando o
espetáculo? de uma performance teatral? de um monólogo cujas ações se realizam
enquanto memória? A certeza obtida a respeito desse narrador é a de que somos
envolvidos pelo seu narrar e conduzidos por ele no universo sertanejo reproduzido
na obra, uma atmosfera solar que concentra o pitoresco do sertão nordestino,
altamente valorizado e tratado de modo extremamente fantasioso. Quaderna “pinta”
um sertão iluminado pelos tons ocres e amarelados, de ambiente tragicômico, onde
a mais dura realidade provoca o riso, um lugar onde a fome e a sede jamais são
mencionadas, onde a trilha sonora é composta pela cantoria acompanhada pela
viola, pelo pífano e pela rabeca, lugar das Cavalhadas, de encenações, de tradições
seculares cultivadas com vigor. Essa eloqüência do protagonista se aproxima do
discurso retórico proposto por Aristóteles, visto que tem o claro objetivo de persuadir
ou de convencer o seu interlocutor com os seus argumentos e, para tanto,
ornamenta sua linguagem e organiza sua fala com esse fim. De tal maneira, a
narração de Quaderna, provida desse objetivo persuasivo, aproxima-se tamm dos
cantadores de cordel, que, por sua vez, valem-se de alguns modelos épicos, têm um
propósito que se aproxima dos fins retóricos ligados ao fim agradável e útil.
Alberti (2002, p. 53) atribui à retórica uma propriedade risível, em alguns
momentos, tal arte concentraria em si as abordagens agradável e útil. Nesse
sentido, as coisas agradáveis teriam um papel a cumprir, que, na concepção
aristotélica seria tudo o que produz prazer, sendo esse prazer definido como um
movimento da alma de uma espécie determinada e um retorno total e sensível ao
estado natural”, conseqüentemente, o agradável define-se como o “habitual e o
natural”. A pesquisadora ainda enfatiza certas propriedades do riso quando
considera os sentimentos que o orador pode provocar no ouvinte ou no juiz. Nesse
viés, “o riso e o risível como circunstâncias propícias à calma e à amizade, próximas
do jogo e da festa, em que haveria, enfim, ausência de sofrimento”. Aliado a esse
posicionamento, Aristóteles não objetivava descrever as paixões, mas os
argumentos que o orador lançava mão para “suscitar as paixões na alma de seus
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ouvintes”. Portanto, uma descrição retórica das paixões estaria concentrada “com o
provável e o persuasivo, indicando o caráter contingente do discurso oratório”.
Alberti (2002, p. 55) aborda tamm o Tractatus Coislinianus, de Coislin. Esta
teorização divide o cômico em dois tipos: lexis e pragmata. O primeiro se refere às
expreses da língua e o segundo aos eventos e as coisas. Assim, temos outra
visão do discurso retórico e sua relação com o cômico. A pesquisadora ressalta que
se acha nessa fonte a idéia de que a comédia representa os homens piores do que
eles o, asseveração que se tornou parte do senso comum que gravita sobre a
literatura, seus neros e subgêneros. Além disso, evidencia que no Tractatus o
efeito cômico é produzido pela linguagem, visto que o orador lança mão de
procedimentos lingüísticos que ampliam esse efeito como: a homonímia, a
sinonímia, a repetição de palavras, a paronímia, o uso dos diminutivos, a
modificação de palavras por gesto ou por voz e os erros de gramática. O Tractatus
relaciona nove aspectos quanto aos eventos e as coisas: a assimilação, a rubrica, os
disfarces e as trocas de papéis, os artifícios usados pelo personagem para atingir
seu objetivo, o inesperado e a surpresa, a dança grosseira do coro, a escolha do
pior, quando se tem a possibilidade de obter o melhor, entre outras. O Tractatus
revela uma semelhança com as teorias aristotélicas, principalmente nas referências
ao caráter cômico e na exemplificação de seus três tipos: o ironista, o fanfarrão e o
fazedor de chistes. Assim, um tro importante é o fato de ressaltar a distinção entre
o ironista e o bufão, presentes em um dos extratos da retórica (ALBERTI, 2002, p.
54).
Alguns aspectos citados podem ser relacionados ao protagonista Quaderna,
sujeito que se considera um orador nato, no entanto, chama atenção para as
camadas do seu narrar, que se complexificam quando observamos os fins da sua
pronunciação. Quaderna chama o público para ouvi-lo, faz um breve resumo de tudo
o que irá contar, desperta a curiosidade e teatraliza as ações. Portanto, em conexão
com a vertente popular, sua expressão se converte numa história desversada”,
evidenciando a transfiguração do modelo poético popular que adota. Assim, as
palavras desse sujeito atestam o impulso de condensar em uma única sentença
aquilo que tem a dizer, isso permite que, de maneira rápida e precisa, ele introduza
o leitor no seu narrar que, mais adiante, é dominado pela prolixidade. Aliado ao
resumo dos fatos, Quaderna ainda tenta convencer os seus interlocutores: os
“nobres Senhores” e as “belas Damas de peitos brandos”.
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Quando observamos a narração, percebemos uma prosa ritmada, cujas
frases contêm aproximões com o compasso dos versos populares. O modo como
as ações são enumeradas ganha ritmo: minha terrível história”/ de amor e de
culpa:”/ “de sangue e de justiça;”/ “de sensualidade e violência;”/ “de enigma, de
morte”/ “e disparate;”/ “de lutas nas estradas”/ “e combates nas Caatingas”. Nesse
sentido, a forma característica da literatura popular em verso é descartada, mas a
sua musicalidade permanece e ressalta a oralidade da prosa suassuniana.
Ao encarnar o contador de histórias, Quaderna se volta para o tempo
passado, recupera o tom oral e narra situações vistas ou ouvidas, talvez não
exatamente como foram, mas como ele transfigura na imaginação. Com essa
conduta, assemelha-se ao narrador descrito por Walter Benjamin, aquele que relata
experiências adquiridas nas viagens ou ouvidas de outros membros da sua própria
comunidade:
A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte que recorrem todos
os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que
menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros
narradores anônimos. Entre estes existem dois grupos, que se
interpenetram de múltiplas maneiras. A figura do narrador só se torna
plenamente tangível se temos presentes esses dois grupos. Quem viaja
tem muito que contar”, diz o povo, e com isso imagina o narrador como
alguém que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o homem
que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece
suas histórias e tradições (BENJAMIN, 1994, p.198).
Embora Quaderna não se configure como o viajante imortalizado na figura de
Ulisses, desbravador de mar e de terra, a sua odisséia se dá no próprio sertão, nas
“viagens” a cavalo pela árida caatinga, que de tão seca impõe tamanhas dificuldades
aos homens que percorrem sua vastidão. O espaço sertanejo é habitado por
indivíduos cujo talento de narrar lhes parece intrínseco, devido à presença das
lendas, da literatura dos folhetos mantidas na memória, entre outras formas. Talvez
por isso o protagonista produza um tom semelhante ao da viagem geográfica de um
herói mítico, mesmo quando percorre o seu próprio lugar.
Em um primeiro momento, Quaderna se pronuncia ao público no instante em
que “avista da janela gradeada da Cadeia” onde espreso, o sertão de Taperoá.
Tal cenário, reiteradamente descrito como pedregoso, espinhento e agreste conota
um espaço já habitado por cangaceiros, beatos e profetas, explicitando a violência e
o messianismo latentes. Isso, de certa forma, insere o leitor na atmosfera que paira
72
na narrativa, ainda que, no desenrolar da trama, tais presenças sejam sublimadas
ou amenizadas sob a ótica do narrador.
A paisagem sertaneja é vista por Quaderna à maneira dantesca, um cenário
de três faces: Paraíso, Purgatório e Sertão. Assim, a posição geográfica, a presença
de vastos espaços de vegetação rasteira e de solo arenoso, mantém os habitantes
do lugar afastados ou “emparedadosem uma espécie de inferno terrestre. Isso leva
o narrador cativo a revelar a seguinte impressão:
[...] talvez por causa da situação em que me encontro, preso na Cadeia, o
Sertão, sob o Sol fagulhante do meio-dia, me aparece, ele todo, como uma
enorme Cadeia, dentro da qual, entre muralhas de serras pedregosas,
estivéssemos todos nós, aprisionados e acusados, aguardando as decisões
da Justiça; sendo que, a qualquer momento, a Onça-Malhada do Divino
pode se precipitar sobre nós, para nos sangrar, ungir e consagrar (RPR,
2007, p.32).
Após a descrição do cenário, Quaderna situa seu interlocutor no espaço e no
tempo; além de fazer menção a alguns acontecimentos, aparentemente sem
relevância, mas supostamente relacionados com a morte do tio. Um desses casos é
a presença do Cabo Luis Riscão, encarregado de vigiá-lo na cadeia a o seu
depoimento. Quaderna relata num tom bastante ingênuo que o pai do cabo, também
chamado de Luis Riscão, foi assassinado naquele lugar, na “Guerra dos Doze”. Tal
assassínio decorreu de um tiroteio entre a polícia local e as tropas de sertanejas”,
comandadas por Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto, que atacaram e saquearam
a vila, revelando uma prática semelhante ao cangaço, predominante no sertão
nordestino durante as décadas iniciais do século XX. Assim, quando fazemos esta
afirmão, consideramos a natureza combativa de Sebastião Garcia-Barretto, fato
que pode atrair inimizades e o risco de emboscadas no espaço habitado por ele.
O recorte temporal balizado por Quaderna, de 1935 até 1938, é definido por
ele como o “Século do Reino”. Um período marcado pela crença de que o rei
português Dom Sebastião, desaparecido no século XVII, na batalha de Alcácer-
Quibir, ressuscitaria, recuperaria seu trono, concedendo a seu povo um milênio de
vida digna e de igualdade entre os homens (CASCUDO, 1988, p.700). Esse
messianismo forte perpassa toda a narrativa, que associa suas principais
personagens às figuras de tal profecia. Na visão do cronista-fidalgo esse período
remete a um conjunto de fatos, não o messianismo define esse período como
73
também “a época política da luta dos senhores feudais, no século XX” (SANTOS,
2009, p. 83).
Ao fazer seu relato Quaderna revela-se detentor das técnicas do bom narrar,
dono de um estilo tragicômico, apropria-se de um ar picaresco, que depreendemos
ao observar seu discurso:
Aproveitei, então, o fato de ter terminado logo a tarefa e deitei-me no chão
de tábuas perto da parede, pensando, procurando um modo hábil de iniciar
este meu Memorial, de modo a comover o mais possível com a narração
dos meus infortúnios os corações generosos e compassivos que agora me
ouvem. Pensei: - Este, como as Memórias de um Sargento de Milícias, é
um “romance” escrito por “um Brasileiro” (RPR, 2007, p.33).
Assim, a escolha deum modo hábil” ressalta a agudeza desse narrador, que
quer não apenas convencer, mas “comover” seu interlocutor que, ao ouvir seus
“infornios”, pode se compadecer de Quaderna e livrá-lo das acusações. Ao
assumir essa postura, o caráter pícaro do protagonista Quaderna aflora, pois ele
imprime em seu discurso alguns elementos definidores do estilo picaresco como o
seu ângulo de visão – de pessoa -, a tentativa de demonstrar certa ingenuidade -
depois forjada em esperteza -, além disso, adota um tom tragicômico na sua
rememoração. Esses traços, associados às colocações de Quaderna, revelam que
ele tem uma meta definida, ruindo com a suposta ingenuidade. ainda um
elemento que proporciona um vínculo entre narrador e leitor, trata-se do tom
confessional como Quaderna expõe os fatos, relembra o pícaro Lázaro, o famoso
anti-herói da novela picaresca espanhola Lazarillo de Tormes, pois também se dirige
a alguém com poder para conduzi-lo a um “buen puerto”. Na empreitada de comover
o leitor, Quaderna adota um estilo elevado, humilha-se e eleva seu interlocutor,
adquirindo pouco a pouco a sua simpatia e cumplicidade, assim notamos que é
impossível não se afeiçoar à personagem. Isso é conseguido por meio do artifício
de dialogar com esse leitor, de dirigir sua fala a ele.
Quaderna possui a ciência dos elementos estruturais da narrativa, como o
espaço, o tempo e o enredo. E, aliado a tal não, mostra-se ardiloso ao dar início a
sua história, envolvendo o leitor, aguçando a sua curiosidade, deleitando-o com seu
estilo. Dessa maneira, o interlocutor de Quaderna, que em certos momentos se
confunde entre o Corregedor e o próprio leitor, é quem pode absol-lo de tais
acusações. As demais confabulações apresentam uma função testemunhal,
74
confirmando sua conduta, a sua índole diante das instâncias que podem condená-lo
ou absolvê-lo, mas devemos considerar que tudo é organizado segundo o seu ponto
de vista.
O anti-herói Quaderna, no movimento oscilatório entre narrador e protagonista
que a obra perfaz, tenta se firmar como um homem ilustrado, respeivel e admirado
pela sociedade de Taperoá. Ele é o bibliotecário da cidade e exerce tamm a
função de escrivão, além de organizador dos eventos culturais como as Cavalhadas
Sertanejas, designando-se um Cronista-Fidalgo, Rapsodo-Acadêmico e Poeta-
Escrivão” (RPR, 2007, p.35). Tal denominação remete ao relato, à prática de contar/
narrar, que funde tanto o estilo jornalístico do cronista, quanto o tom laudatório do
cantador de rapsódias e do poeta. Ainda condensa a suposta erudição do fidalgo,
com o saber acadêmico e o caráter oficial do discurso do escrivão. Com efeito, o
exagerado Quaderna concentra em si várias possibilidades de discursos, de estilos,
de nuanças, ferramentas que acentuam a sedução do seu narrar.
É interessante perceber o modo como as diferentes influências são
mescladas na narrativa. Assim, a dialética - no sentido de lógica desenvolvida por
tese, antítese e ntese - apresenta-se como o principal recurso retórico empregado
no romance. Isso se evidencia a partir do momento em que o narrador confessa ao
seu interlocutor o desejo de elaborar uma obra literária. Quaderna adota como
modelo autores canônicos como Gonçalves Dias, José de Alencar, Euclides da
Cunha, entre outros. No entanto, ressalta também a influência de cantadores
populares como João Melchíades, Leandro Gomes de Barros, Jerônimo do
Junqueiro, amplamente conhecidos no sertão nordestino. Ainda nos deparamos com
a alusão a folcloristas, como Silvio Romero, historiadores como Varnhagen, entre
outras personalidades do universo letrado. De tal modo, a influência que os referidos
autores e estudiosos imprimem em Quaderna justifica o modelo estético adotado por
ele. Modelo que sintetiza os contrários, fundindo o popular com o erudito e
misturando gêneros, épocas, histórias e estilos. Assim, inferimos que, apesar do
desejo de tornar-se o máximo expoente da literatura, o protagonista persegue tal
grandeza sem desconsiderar suas origens.
A idéia de síntese mostra um de seus matizes também na questão étnica que
a obra aborda. O cenário nordestino caracterizou-se desde a colonização como uma
região povoada por diferentes etnias, bem como por indivíduos de nacionalidades
diversas como holandeses, franceses, portugueses e espanhóis, os pioneiros na
75
colonização da América do Sul; africanos, que chegavam para serem usados como
mão de obra nas fazendas do interior; entre outros. Assim, com tanta diversidade o
Brasil caracterizou-se pela miscigenação ocorrida em suas terras, fato que deu
origem a um povo mestiço, fruto do amálgama entre brancos, negros e índios. Um
espaço de embate cultural, no qual Quaderna se aproveita da influência erudita, mas
não abandona o aspecto regional fruto da mescla de etnias e de culturas.
Cientes das críticas dirigidas às idéias raciológicas de Gilberto Freyre, em
Casa-Grande & Senzala (1933), lançamos mão de tal tese a fim de evidenciar a
idéia de miscigenação de Freyre repercutindo de modo jocoso em Suassuna. Na
atualidade, embora a tese freyreana não consista em uma verdade histórica, mas na
leitura de um sociólogo ligado sentimentalmente ao local que descreve – a rego do
nordeste -, ela redime o problema da miscigenação no Brasil, apontando que se deu
se forma “harmoniosa”. Freyre visualiza essa questão positivamente, como uma
inclinação natural dos colonizadores, que, ao chegarem ao Brasil, já haviam
percorrido um longo período de invasões mouras, passado pela união ibérica,
episódios que levaram o portugs a enxergar a mistura de “raças” como algo
natural. Desse modo, devido às circunstâncias da colônia grande quantidade de
índias, incentivo da igreja à união conjugal entre portugueses e indígenas,
permanência das mulheres lusitanas em Portugal – a miscigenação se deu de
maneira consensual:
Híbrida desde o início, a sociedade brasileira é de todas as Américas a que
se constituiu mais harmoniosamente quanto às relações de raça: dentro de
um ambiente de quase reciprocidade cultural que resultou no ximo de
aproveitamento dos valores e experiências dos povos atrasados pelo
adiantado; no ximo de contemporizão da cultura adventícia com a
nativa, da do conquistador com a do conquistado (FREYRE, 1978, p.91).
Nesse sentido, certas noções sociológicas, parecem ser transpostas para o
Romance d’A Pedra do Reino, sobretudo na voz de Quaderna que se julga um
“castanho”, fruto da mistura das diversas etnias e que revela essa concepção ao
fundir os elementos antagônicos, fazendo com que tudo resulte num elemento
híbrido. A obra explicita a miscigenação quando ressalta três figuras principais: a
primeira, Clemente Hará de Ravasco Anvérsio, “um filósofo, um historiador, um
luminar, uma sumidade”, um negrinho bonito de cabelo bom, advogado,
influenciado por “Sylvio Romero, Clóvis Bevilaqua, Franklin Távora, Martins Junior e
76
Artur Orlando” (RPR, 2007, p.164); a segunda, Samuel Wandernes, “o gentil-homem
dos engenhos pernambucanos”, de ascendência européia, fidalgo, promotor, um
poeta de sonho e pesquisador de Legenda” (RPR, 2007, p.166); e, como o terceiro
vértice desse triângulo, Quaderna, o típico brasileiro, fruto da miscigenação, de pele
parda, conforme expõe em sua própria descrição:
Sendo eu “moreno carregado”, os dois me chamam nos dias comuns, de
Quaderna, o Mameluco, promovendo-me a Quaderna, O Mouro, nos dias
bons, e rebaixando-me, nos momentos de raiva, a Quaderna, O Cabra, ou
Quaderna, O Castanho (RPR, 2007, p.172).
Assim, percebemos Quaderna como um híbrido das referidas etnias: é o
mameluco, realçando a raiz indígena da sua origem; é o castanho, originado da
mistura de negros e brancos; com essa mistura de difícil identificação, apresenta o
aspecto geral do genuíno brasileiro. De tal maneira, ainda que Samuel e Clemente
carreguem o adjetivo castanho de um tom pejorativo, Quaderna impõe ao termo uma
superioridade, exaltando-o, pois é fruto da união de raças, podendo herdar o que
cada uma delas tem de melhor. Nesse impulso, também converte em positividade
essa mistura, dialogando com Freyre. É importante ressaltar que o hibridismo étnico
é transposto para um hibridismo estilístico que estrutura a obra, como se a mesma
tendência amalgamadora de contrários, pudesse ser seguida pela arte. reside a
importância da tese freyreana no Romance d’A Pedra do Reino, não como um
determinante de raças e de comportamentos sociais, mas no seu aspecto agregador
e sintetizante que se estende para as artes. Desse modo, Suassuna expõe seu
ponto de vista da seguinte forma:
Cada região em que diversificar o clima e a mestiçagem, a raça e o meio,
poderá criar uma forma divergente de conceber, de poetar, de fazer
literatura, tendo, aliás, sempre um fundo comum por onde todas se hão de
assemelhar; porque certos elementos constitutivos do povo, em toda a
extensão do país, são os mesmos (SUASSUNA, 2008, p. 89).
Nosso intuito é esclarecer que a leitura de Freyre associada a Suassuna não
se direciona às concepções raciais, mas à mistura de aspectos díspares, de modo a
surgir um último elemento que contenha traços de todos eles, pois parece ser assim
que a obra toma forma. No Romance d’A Pedra do Reino um aspecto que
evidencia a postura sintetizadora de Quaderna com destaque. O narrador, a partir da
situação em que se encontra, decide se valer dos acontecimentos para dar vida a
77
sua obra literária, obra esta que oscila entre as denominações de Memorial, de
Epopéia, de Castelo Poético, entre outras designações. O fato relevante
apresentado é que o protagonista, desde o início, finge não possuir criatividade
suficiente para elaborar uma obra nova, por isso precisa se basear em modelos
poético-literios consagrados, em fatos que vivenciou, que viu acontecer, para
“adaptá-los às métricas da poesia” e incorporá-los à obra. Assim, o primeiro
passo para a concretização da “obra lapidar” enumerando neros literários e
percebendo qual deles proporciona um melhor efeito e a forma mais completa de
expressar seu estro poético, evidenciando que a sua falsa modéstia era apenas um
fingimento. Portanto, o contar de Quaderna precisa ser efetuado de maneira
eficiente, pois representa mais do que uma reprodução poético-romancesca dos
fatos, mas a sua liberdade, permitindo que se infira que o seu contar determina seu
próprio destino. Esse processo de fusão de histórias alheias, de gêneros ou de
conceitos, resultará na obra do protagonista, que não se concretiza dentro do
Romance, mas que vai, aos poucos, ganhando vida nas páginas do auto processual
que a narrativa tematiza.
Na empreitada de Quaderna, os antagônicos Samuel e Clemente, como foi
ressaltado, são os intelectuais que lhe proporcionam o contato com autores eruditos.
Esses homens cultos, apreciadores das artes consagradas pelo tempo e pelo
none, apresentam ao protagonista a “alta literatura”, fato que não impede o
conciliador Quaderna de mesclá-las a sua idéia de arte. Dessa maneira, o que
percebemos ao ler o Romance d’A Pedra do Reino é que a obra se configura como
uma “descoberta da literatura”, pois o seu percurso evidencia um processo de
amadurecimento teórico acerca do texto literário, chegando à escolha do gênero
ideal, o “romance que concilia tudo”.
O leitmotiv da obra é o fazer literário. Todas as discussões orbitam ao redor
desse tema e as ações ocorridas no passado são os elementos que compõem o
conjunto do Romance. Quando rememoradas por Quaderna e relatadas no seu
depoimento, tomam a concretude da palavra escrita e passam a fazer parte dos
folhetos, divisões do imenso romance suassuniano.
Bráulio Tavares (2007, p.153-154) afirma que o Romance d’A Pedra do Reino
parece ser o resultado de um sonho adolescente de Suassuna, que aspirou um dia
elaborar uma obra que fosse “a soma de toda a literatura brasileira e universal”. No
entanto, no processo de elaboração do romance, se deu conta da sua insensatez,
78
mas devido à tamanha afeição sentida pela obra, prosseguiu nela, à custa de um
artifício metalingüístico: em vez de escrever ele próprio um livro delirante, escreveu
um romance cujas páginas contavam “a história de um indivíduo que está
escrevendo um livro delirante”.
Outro aspecto relevante e revelador do caráter teorizante da obra são as
discussões travadas entre Samuel, Clemente e Quaderna. Assemelhando-se aos
diálogos platônicos, nos quais Platão discute com seus discípulos política, filosofia,
estética, dentre uma vasta gama de temas, o Romance d’A Pedra do Reino
alegoriza esse método filosófico para que os “três emparedados do sertão” discutam
também temas dessa ordem. Clemente, radical de esquerda; Samuel, radical de
direita; e Quaderna, a “Diana Indecisa”
14
, que em vez de desprezar, agrega todas as
influências sintetizando-as na sua idéia de arte. Os três põem em prática as
“sessões a cavalo”, nas quais discorrem sobre temas associados à literatura, à
genialidade de determinados autores, à supremacia de determinado gênero, entre
outros assuntos ligados à arte.
A partir de tais constatações, podemos afirmar que esta obra se caracteriza
como um tratado sobre estética, cujo teor é validar a arte popular do nordeste como
uma arte bela. De tal maneira, seja pelo seu caráter rude, pela permanência desde a
colonização brasileira até os dias de hoje, pela riqueza de influências que nela pode
ser apontada, ou por ser fruto do talento poético de um povo esquecido na região
mais necessitada do país, entre outros fatores, essa literatura deve ser
compreendida e valorizada. Assim, quando a literatura popular do nordeste é posta
na berlinda pelos eruditos representados por Samuel e Clemente, terá suas
qualidades ressaltadas por Quaderna, que vê nela uma forma de transfigurar a
realidade simplória na qual se considera emparedado.
A constatação de que a literatura popular do nordeste se firma como a
espinha dorsal do romance de Quaderna, bem como do Romance d’A Pedra do
Reino, é o ponto de partida para explicar como a obra se organiza. Desse modo,
colocamos em relevo as xilogravuras típicas dos folhetos, o título carregado de
sentidos ocultos, conforme o gosto dos poetas do povo, os temas da ordem do
maravilhoso que perpassam a obra, bem como a presença dos versos populares e
eruditos, traços que corroboram a forte presença do popular no livro.
14
Personagem folclórica que se caracteriza pelo fato de não tomar partido. Sendo assim, não assume
uma posição entre o Cordão Vermelho e o Azul das Cavalhadas, julga-se pertencente aos dois.
79
Pesquisadores tentaram uma classificação dos romances e folhetos citados
por Suassuna no Romance d’A Pedra do Reino em função das categorias definidas
pelo mestre João Melchíades. No entanto, esse tipo de classificação, conforme
Idelette, não ajuda a compreender o papel e a função da citação popular, nem
tampouco resolve o problema da classificação. Assim, a pesquisadora propõe uma
observação menos voltada para a origem e mais relacionada às conexões com a
estética armorial (SANTOS, 2007, p. 141).
Vemos que esse exercício de reelaboração dos versos permanece vivo na
obra, como uma prática intrínseca à literatura dos cantadores. Por outro lado, se
formos ao extra-literário para avaliar esse uso, chegamos a Ariano Suassuna, cujas
obras, releituras de outras pré-existentes, estão ou estiveram em constante trabalho
de reescrita.
2.4 A “abertura” do castelo imaginoso
A Pedra do Reino possui uma estrutura que desafia o seu leitor. Conforme
foi mencionado, possui um aspecto de compêndio, pois desde as bases do
Movimento Armorial até as convicções de Quaderna, narrador e protagonista do
romance, vemos a tessitura de uma colcha de retalhos, em que cada pedaço que a
come tem uma origem específica: a vertente popular, a herança culta, além de
algumas teses sociológicas, que são costuradas pelo fio narrativo de um sujeito
ficcional apaixonado pela literatura, capaz de sintetizá-las, fundindo aspectos
dicotômicos e teorias distintas. Assim, à medida que a narrativa vai tomando forma
dentro da ficção, uma obra concreta se consolida como a versão real da composição
imaginária do narrador. A primeira é o romance de Quaderna e a segunda o
Romance d’A Pedra do Reino, de Ariano Suassuna.
Maximiano Campos, no Posfácio d’A Pedra do Reino, mostra que a
organizão mental do romance trata-se de uma preparação para concretizá-lo.
Assim, a composição, repleta de outras artes, evidencia os paralelismos, os
entrecruzamentos e as teorizações das diferentes influências:
80
[...] de tanto conversar de literatura com Samuel e Clemente, de ler folhetos,
de ouvir as aventuras dos seus ancestrais cantadas pelos poetas populares
e narradas por esses seus dois amigos, resolveu escrever uma epopéia,
uma Brasileida. E tenta empreender, na literatura aventuras tão fortes e
insanas quanto as do Quixote nos campos da Espanha. Mas, de tanto se
preparar para tais aventuras e empreendimentos literários, fornece-nos
peripécias e façanhas tais que fazem com que, ao lado da estória principal,
existam outras, correndo paralelas. Isto faz desse livro de Suassuna um
romance dentro do qual existem outros romances, formando um mural onde
estivessem retratados o sertão e o mundo em cores fortes e reais, apesar
de todos os sonhos e loucuras de que está repleto (CAMPOS, 2007, p.751).
Devido aos imbricamentos referidos acima, a compreensão da obra desafia o
leitor ou “fruidor” - termo usado por Umberto Eco em A obra aberta (1969) - a olhar
atentamente, identificando cada elemento que é agregado, a fim de buscar um
sentido para esse processo composicional, que caminha rumo à criação da Obra
Completa” de Quaderna. Mais do que uma simples leitura, a obra reivindica um olhar
atento para desvelar cada história que atravessa a narrativa.
Para Eco, cada fruidor, ou leitor, tem a sua leitura da obra, que deve validar
sua coerência dentro de um campo de possibilidades. Nesse viés, a interpretação
não consiste em uma mensagem “acabada e definida”, em uma “forma
univocamente organizada”, mas na prática de várias organizações permitidas ao
intérprete, mostrando-se, portanto, “não como obras acabadas, que pedem para ser
revividas e compreendidas numa direção estrutural dada, mas como obras ‘abertas’,
que serão finalizadas pelo intérprete no momento em que viver sua função estética”
(ECO, 1969, p. 39). Portanto, temos o esclarecimento de que cada fruidor contém
em si “uma situação existencial concreta, uma sensibilidade particularmente
condicionada, uma determinada cultura, gostos, tendências, preconceitos pessoais”
que poderão afetar a sua compreensão, individualizando-a de acordo com a sua
perspectiva (ECO, 1969, p. 40). A partir disso, entendemos que a estruturação do
Romance indícios de uma abertura intencional, além de estrutural. Conforme
Santos (2009, p. 48), a trilogia A maravilhosa desaventura de Quaderna, O
Decifrador e a demanda novelesca do Reino do Sertão, composta pelo Romance d’A
Pedra do Reino e o príncipe do Sangue do vai-e-volta (1971); A História d’O Rei
Degolado nas Caatingas do Sertão (1977); e a parte final da trilogia, que está em
processo de elaboração desde o final dos anos 70, intitulada Romance de Sinésio, O
Alumioso, príncipe da bandeira do Divino do Sertão, que ainda não foi concluída. A
primeira foi instituída pela crítica, bem como pelos leitores, como um modelo de
romance armorial, por conter as bases do movimento fundado pelo autor. A segunda
81
obra, não obteve de Ariano a mesma simpatia que o Romance, sendo assim, foi
editada uma única vez, tornando-se um livro raro nas bibliotecas e peça digna de
colecionador. Em uma entrevista com o autor, obtivemos acesso à última parte
dessa trilogia, ainda não publicada: os manuscritos de O jumento sedutor, primeira
parte da subdivisão em três volumes, de modo que o livro não fique muito pesado no
sentido literal do termo, que seu autor graciosamente afirma que gosta de ler
deitado e o grande volume de certas obras costuma atrapalhar esse hábito
15
.
Conforme os relatos de Ariano, O Jumento Sedutor traz um novo protagonista: Paulo
Antero Savedra, marcando uma proximidade com Miguel de Cervantes Saavedra.
Nessa nova obra, P. Antero, por corruptela “Pantero”, toma a frente das ações e
Quaderna figura, então, como antagonista. O autor, corroborando o traço de se auto-
sugerir nas obras, apresenta-se dividido em quatro instâncias: o ensaísta, o poeta, o
dramaturgo e o romancista. Antero Savedra dá relevo à abertura perturbosa,
plagiada, falsificada e reversa”, cujo nome antecipa o plágio” de várias narrativas,
das quais os autores, conforme Ariano revela na entrevista, são todos considerados
parentes por Pantero.
Além do caráter estrutural que concede abertura ao Romance d’A Pedra do
Reino, percebemos ainda uma abertura que se efetiva na reelaboração e reescrita
das mesmas obras. Observando a bibliografia de Ariano Suassuna, percebemos que
grande parte de sua produção nasce como farsa ou entremez, sofrendo
modificações ao longo dos anos devido ao processo de reescritura, até dar forma a
uma obra de maior volume e condensadora das principais influências de Ariano.
Essa capacidade é o que permite cultivar a idéia de romance completo, teorizada
por Quaderna. Sabemos que Ariano, como o erudito que é, mostra prudência diante
de afirmações tão enfáticas, mas permite que seu protagonista exponha
verborragicamente suas posições sobre a cultura e as letras do país. Nesse sentido,
a “obra completa” na ficção, dialoga com a arte totalizadora que o romancista
Suassuna persegue. Isso é evidenciado pela fusão de elementos diferentes, tais
quais os gêneros literários e artísticos, as etnias, os estilos, entre outros fatores que
podem ser resumidos na afirmação de Maria Thereza Didier:
A estética armorial revelou de maneira enfática aspectos do universo
artístico popular nordestino e as influências ibéricas medievais. A literatura
15
Entrevista nos foi concedida em 04 de setembro de 2009, na casa do autor, cidade de Recife – PE.
82
de cordel, a música de viola, rabeca, pífano e as xilogravuras são fontes de
inspiração para a arte armorial. Na construção dessa arte, que denominou
de brasileira, Suassuna resgatou e recriou, junto com outros artistas
(músicos, gravuristas, ceramistas), parte da oralidade e iconografia do
sertão nordestino. O escritor, explorando as vinculações entre as culturas
popular, ibérica, moura, negra e índia, defendia a iia de um “ser
castanho”, que seria a mistura desses vários elementos representando o
verdadeiro “ser brasileiro”. (DIDIER, 2000, p.17)
Quando observamos esse aspecto, percebemos também a dificuldade que
representa “ler” essa obra, com a diversidade de temas que exe. Assim, observar
o matiz e a particularidade de cada intertexto é um árduo trabalho, porém deleitoso
devido à comicidade que caracteriza o romance e que aflora na leitura. Portanto, ao
classificarmos os temas: as referências autobiográficas, a importância das figuras
parentais na construção do indivíduo, o messianismo, as práticas sertanejas, a
literatura, dentre tantos outros aspectos, percebemos que a abertura do romance se
dá sempre que direcionamos nossa atenção para um aspecto mais profundamente:
[...] obra de arte, forma acabada e fechada em sua perfeição de organismo
perfeitamente calibrado, é também aberta, isto é, passível de mil
interpretações diferentes, sem que isso redunde em alteração de sua
irreproduzível singularidade. Cada fruição é, assim, uma interpretação e
uma execução, pois em cada fruição a obra revive numa perspectiva
original (ECO, 1969, p. 40).
Portanto, analogamente a A obra aberta, o Romance proporciona ao seu leitor
“uma liberdade consciente, no momento em que este se coloca no centro ativo de
uma rede de relações” para recolher elementos que configurarão a sua leitura
particular. Eco coloca que, nas obras abertas, o leitor é convidado a fazer” a obra
juntamente com o autor, pois algumas apresentam uma “germinação contínua de
relações internas que o fruidor deve descobrir e escolher no ato da percepção da
totalidade dos estímulos”. Além disso, todas as expressões artísticas apresentam
abertura a uma série de leituras possíveis, o que permite que a obra reviva” novos
sentidos de acordo com a profundidade da leitura (ECO, 1969, p. 64).
De tal modo, no Romance d’A Pedra do Reino as afirmões de Eco, atestam
a sua pertinência, por depositarem no leitor o papel ativo na construção de um
sentido para ela:
O leitor se “excita”, portanto, frente á liberdade da obra, sua infinita
proliferabilidade, frente à riqueza de suas adjunções internas, das projeções
inconscientes que a acompanham, ao convite que o quadro lhe faz a não
83
deixar determinar por nexos causais e pelas tentações do unívoco,
engajando-se numa transação rica em descobertas cada vez mais
imprevisíveis (ECO, 1969, p. 160).
Portanto, a partir dessa concepção de obra aberta, nos centramos na
literatura popular do nordeste, a fim de verificar como essa arte é introduzida, o seu
sentido dentro da obra, assim como a relevância de utilizá-la como estrutura e como
tema alternadamente.
84
3 “NA ARTE, A GENTE TEM QUE AJEITAR UM POUCO A
REALIDADE...”
foi mencionado que as produções de Ariano Suassuna unem os elementos
de uma literatura tipicamente nordestina, com influências ibéricas e diversas teorias
estético-filosófico-literárias com as quais o autor travou contato durante a sua
formação. Com tal percepção, compreendemos que a referida incorporação, ainda
que traga muitos elementos de natureza popular, passa pelo filtro e pelo processo
criador de um erudito. Conseqüentemente, constatamos que a forma apresenta
muitas semelhanças com as criações popularescas, no entanto, o conteúdo de cada
composição é refletido, elaborado e finalizado de maneira distinta: com um xico
mais variado, com a presença de figuras de linguagem, com recursos gráficos
diferenciados – como as letras maiúsculas que dão ênfase a determinados termos -,
com o rigor da construção poética expresso pelas rimas cuidadosamente elaboradas
dentro da métrica escolhida.
Do cantador popular é herdada a idéia de que “na Arte, a gente tem que
ajeitar um pouco a realidade que, de outra forma, não caberia bem nas métricas da
Poesia” (RPR, 2007, p.54), posicionamento que revela os meios utilizados por
Quaderna para transcender a existência “rasa e cruel do mundo” e criar, por meio da
arte, o universo que ele julga digno de ser mostrado, um palco de aventuras, de
intrigas e de comédias, mais gratificantes do que a atmosfera tensa e violenta que
paira no espaço da narrativa, a Vila de Taperoá. Um segundo traço importante, na
construção da “epopéia” de Quaderna, trata-se do estilo performático adotado pelo
narrador da Pedra do Reino, semelhante ao do cantador. Isso se evidencia no
momento em que protagoniza os acontecimentos no seu palco sertanejo.
Ao discorrer sobre a obra Auto da Compadecida (1955), Suassuna expõe
uma característica de sua produção literária, que pode ser estendida para as demais
obras, pois todas elas adotam como matriz um modelo da literatura nordestina:
[...] o que fiz foi tomar um romance popular do Sertão e tratá-lo
dramaticamente, nos termos da minha Poesia ela, também filha do
Romanceiro nordestino e neta do ibérico... Procurei conservar, na minha
peça, o que de eterno, de universal e de poético no nosso riquíssimo
Romanceiro, onde há obras-primas de Poesia épica [...] (SUASSUNA, 2008,
p.173).
85
Sendo assim, percebemos que a utilização se faz, primeiramente, na
temática, quando Suassuna toma como mote algumas composições popularizadas
ao longo do tempo no espaço regional do nordeste. Tamm a forma, por meio da
utilização de versos e de métricas próprias da literatura de cordel. Então, tendo
conhecimento desse traço como o esqueleto da obra suassuniana, podemos
encontrar nas suas composições outros elementos que corroboram tal constatação.
Destacam-se entre eles a forte referência à cultura nordestina, evidente nas cantigas
difundidas desde a época da colonização portuguesa, nas festas populares
mencionadas como o Auto de Guerreiros
16
, as Cavalhadas
17
, o Mamulengo
18
, as
Cheganças
19
, dentre outras manifestações folclóricas popularizadas no nordeste.
De tal modo, a escolha de um gênero literário que dê suporte às diversas
influências que Quaderna deseja incorporar a obra é de grande relevância. A partir
de tal escolha, ele terá a possibilidade de mesclar a fonte popular com o saber
erudito, exibindo seu conhecimento a cada nova incorporação. Isso se mostra na
organizão da obra, na recuperação de temas típicos da literatura do povo, no uso
de diferentes estilos, bem como de expressões artísticas fundidas em busca de uma
arte completa e de um título ainda sem dono: “Gênio da Raça Brasileira”.
16
Auto dos Guerreiros é um folguedo do estado brasileiro de Alagoas. Dançado principalmente no
Natal, onde homens dançam trajados com roupas vermelhas e azuis e pesados chapéus enfeitados
com fitas coloridas e pequenos espelhos, em comemoração aos eventos do Natal. Originado na
década de 20 e 30 pela junção do Reisado e do Caboclinho, com influências da Chegança, Pastoril e
Bumba-meu-boi. As canções e os recitais são acompanhados por acordeões, fanos, tambores e
pandeiros. As vestimentas dos participantes imitam igrejas, palácios e catedrais, nos diademas e
coroas, guarda-peitos, calções e mantos. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Guerreiro_(folguedo)).
17
As Cavalhadas tiveram origem nos torneios medievais, dos quais tem, entre outras reminiscências,
o uso de fitas como prêmio, que são oferecidas pelo ganhador a uma mulher ou outra pessoa que
deseje homenagear. Em Portugal teve feição cívico-religiosa, envolvendo temas do período da
Reconquista. Sua difusão no Brasil, registrada desde o século XVII, partiu do Nordeste e espalhou-se
pelo resto do país. Em 1641, quando da aclamação de D. João IV, foram promovidas várias
cavalhadas como parte dos festejos oficiais. É ainda um folguedo vivo em vários pontos do Brasil,
como Alagoas, Minas Gerais e Goiás. Em Pirenópolis (GO) a cavalhada é realizada durante a festa
do Divino e representa o auto de cristãos e mouros
(http://www.terrabrasileira.net/folclore/regioes/6ritos/cavalhada.html).
18
Mamulengo é um tipo de fantoche típico do nordeste brasileiro, especialmente no estado de
Pernambuco. A origem do nome é controversa, mas acredita-se que ela se originou de mão molenga
- mão mole, ideal para dar movimentos vivos ao fantoche (http://pt.wikipedia.org/wiki/Mamulengo).
19
A Chegança dos Mouros é uma manifestação cultural brasileira presente no recôncavo baiano [...]
que conta as lutas entre os mouros e os portugueses no período da invasão dos muçulmanos na
península ibérica (http://www.google.com.br/search?hl=pt-
BR&q=chegan%C3%A7a+wikip%C3%A9dia&meta=&aq=f&oq=).
86
3.1 A elasticidade do romance
Como sabemos, o romance de Suassuna discorre, além de outros temas,
sobre a criação literária, configurando um processo metaliterário. O autor de tal
façanha é Dom Pedro Dinis Quaderna, que enumera tudo o que deseja incluir na
sua obra, por isso busca um gênero apropriado no qual consiga contemplar todas as
influências recebidas dos mestres cantadores, dos eruditos que o inspiram, bem
como da musicalidade sertaneja, da arte picrica da xilogravura, além do traço
pouco discutido, mas evidente na obra, o caráter teatral das ações do performático
protagonista.
Temos ciência de que essa tendência de unir neros díspares não constitui
uma novidade, pois parece ter sido herdada do primeiro romance “ao mesmo tempo
barroco e moderno” (HATZFELD, 1988, p. 308), Dom Quixote, de Miguel de
Cervantes, que apresenta a prosa literária entrecortada pelos gêneros poéticos. É
com base em tal perspectiva que podemos associar a concepção popularesca de
Quaderna aos postulados canônicos de Mikhail Bakhtin. Bakhtin (1993, p.74), em
Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance, assevera que as
diferentes unidades estilísticas que penetram no romance podem se unir num
sistema literário harmonioso, submetendo-se a uma unidade superior do conjunto.
Nesse sentido, as diferentes unidades concedem a possibilidade de várias vozes
perpassarem a narrativa. Isso se concretiza no discurso de Quaderna, mediador das
visões antagônicas expostas nas falas das personagens. Ele as sintetiza, ao mesmo
tempo em que expressa a sua visão idealizada do espaço sertanejo. Assim, a
presença das diferentes formas encontra eco na proposta Armorial, quando
recordamos que esse movimento volta-se para uma mescla de gêneros, de
expreses artísticas, de maneira que elas confluam em uma arte completa e
harmônica. Na teorização de Bakhtin, temos a definição de um gênero que mantém
a propriedade agregadora que Quaderna persegue, pois
O romance admite introduzir na sua composição diferentes gêneros, tanto
literários (novelas intercaladas, peças ricas, poemas, sainetes dramáticos,
etc.), como extraliterários (de costumes, retóricos, científicos, religiosos e
outros). Em princípio, qualquer gênero pode ser introduzido na estrutura do
romance, e de fato é muito difícil encontrar um gênero que não tenha sido
alguma vez incluído num romance por algum autor. Os gêneros introduzidos
87
no romance conservam habitualmente a sua elasticidade estrutural, a sua
autonomia e a sua originalidade lingüística e estilística (BAKHTIN, 1993,
p.124).
A flexibilidade do termo romance admite diversas definições, variando de
acordo com o contexto em que o empregamos. Como sabemos, na prosa literária
ele designa uma narração que prima pelo tom prosaico a fim de reproduzir com
riqueza e exatidão episódios específicos, numa definição bastante difundida. No
entanto, quando partimos para a compreensão do termo dentro do universo da
literatura popular, temos uma ampla definição do gênero nas obras de Luis da
Câmara Cascudo (1988, p.680-681), que localiza o conceito dentro de diferentes
momentos da poesia universal. Parafraseando o autor, denominamos romance os
poemas em versos de sete sílabas reelaborados nos séculos XV e XVI, obedecendo
a uma organizão específica das rimas: assonantes nos versos pares e livres nos
ímpares. Tal modelo teve origem nas canções de gesta do século X, XI, XII e
registravam as façanhas guerreiras de povos da Espanha e da França. Os poemas
eram elaborados para serem recitados em eventos da corte e nos saraus
aristocráticos, distanciando-se do contato com as camadas populares. No entanto,
no século XVI deram-se algumas mudanças no gênero:
A recriação foi um processo de acomodação ao nio popular e muitos
motivos surgiram, dentro dos metros e modelos passados, versificados ao
sabor do gosto popular, mas fiéis aos tipos antigos. Passaram as
assonâncias e tonância às rimas simples, e neste caráter o romance teve
voga extraordinária, cantadas e trazidas para o Brasil, como para toda a
América espanhola, pela memória do colonizador. [...] Passou ao plano
popular, número e heterogêneo, buscando os efeitos da emoção do lirismo,
do amor, temas sempre sensíveis e poderosos no espírito popular, alheio
aos motivos fidalgos de luta e de conquista (CASCUDO, 1988, p.680).
O conceito de romance, no universo da literatura popular, costuma ser
apreendido como o gênero literário que “descreve mundos maravilhosos onde os
heróis vivem mil e uma aventuras, sofrem, amam, vingam-se, são traídos e são
sempre recompensados no fim” (CAVIGNAC, 2001, p.78). Assim, essa definição
contribui para entendermos o estatuto do Romance d’A Pedra do Reino, terreno no
qual a fantasia é um recurso necessário para, além de aproximar realidades
distintas, transfigu-las com o verbo e a imaginação. Portanto, o romance, em uma
concepção moderna, permite a incorporação de outros sub-gêneros na sua
estrutura. No folheto XXXI, “O Romance do Castelo”, encontramos as considerações
88
de Quaderna sobre o gênero literário ideal para a sua obra, que dialogam com os
pressupostos bakhtinianos, de reunir com equilíbrio rias formas, e reforçam o
próprio impulso do protagonista de sintetizar contrários:
Meu coração deu um pulo no peito, pois aquilo era uma revelação tão
importante quanto a morte da Onça que eu cometera, na Pedra do Reino!
Tudo ia, aos poucos, se configurando. Eu tinha lido um dia, no Almanaque,
um artigo onde se dizia que uma Obra, para ser clássica, tem que
condensar, em si, toda uma Literatura, e ser completa, modelar e de
primeira classe”.Isso me garantia que nem Samuel nem Clemente, um do
Cordão Azul, e outro, do Encarnado, podia ser completo, pois cada um era
radical por um lado só. [...] Precisava, porém, descobrir com segurança, a
que gênero me dedicar. Lembrei-me, então, das aulas de Retórica, dadas
por Monsenhor Pedro Anísio Dantas, no “Seminário”, e passei a examinar
gênero por gênero, com ajuda do Dicionário. Quando cheguei à palavras
“romance”, tive um sobressalto: era o único gênero que me permitia unir,
num livro só, um “enredo, ou urdidura fantástica do espírito”, uma “narração
baseada no aventuroso e no quimérico” e um “poema em verso, de assunto
heróico” (RPR, 2007, p.197-198).
A presença das formas distintas relaciona-se com a proposta Armorial,
quando recordamos que esse movimento volta-se para uma mescla de gêneros e de
expreses artísticas. Com uma posição semelhante a de Julie Cavignac, outra
estudiosa, Idelette Muzart Fonseca dos Santos (2009, p.140) afirma que a escrita
armorial pode ser explicada como um jogo elaborado de citações, que instala o texto
no centro de uma rede transtextual complexa. Por isso, a variedade de citações
alicerça a criação da obra, que é, “a um só tempo, resumo, antologia e recriação de
toda a memória cultural, tornando-se o pedestal do novo texto”.
A descoberta da elasticidade do gênero romanesco permite que o
protagonista module a sua visão de arte. Quaderna impressiona-se com o fato de o
romance conciliar tudo, pois esse é o requisito para concretizar a obra total. Assim, a
admiração adquire uma dimensão ainda maior quando ele enfatiza: “desde os
romances de João Melcades aos de José de Alencar e do Visconde de Montalvão,
esse era meu gênero predileto” (RPR, 2007, p.198). Essa manifestação
entusiasmada de Quaderna revela, além de sua descoberta literária, o referido
impulso de reunir formas dicotômicas como o popular e o erudito, o ficcional e o
hisrico, a prosa e a poesia, dentre outros aspectos - sintetizando-os, organizando-
os tal qual um compêndio, receita que é exposta ao longo do folheto:
Para tornar a coisa ainda mais segura, resolvi entremear, na minha
narrativa em prosa, versos meus e de Poetas brasileiros consagrados:
89
assim, além de condensar, no meu livro, toda a Literatura brasileira, faria do
meu Castelo sertanejo, a única Obra ao mesmo tempo em prosa e em
verso, uma Obra completa, modelar e de primeira classe! (RPR, 2007,
p.198).
Segundo Braulio Tavares (2007, p.152), Quaderna em seu delirante projeto
literário requer uma antropofagia de todos os gêneros”, para resultar na sua “Obra
da Raça”. Isso porque ele reúne histórias reais e fictícias, poemas eruditos, versos
populares, romances ibéricos, documentos históricos, textos proféticos, visões
sobrenaturais, epigramas e histórias obscenas. Por isso, parte do efeito cômico da
obra, reside na “vocação camaleônicade Quaderna de incorporar ingredientes de
sua receita literária, além de qualidades (ou defeitos) de escritores que admira. A
concretização consente que o protagonista transforme a realidade parda numa
atmosfera iluminada:
Cada vez se enraizava mais, em mim, a decisão de tornar embandeiradas e
cheias de chuviscos prateados as pardas, miseráveis e sangrentas
aventuras da Pedra do Reino, tornando-me Rei sem degolar os outros e
sem arriscar minha garganta, o que somente a feitura do meu romance, do
meu Castelo perigoso e literário, possibilitaria (RPR, 2007, p.198).
Por permitir todas as agregações possíveis é que o romance se firma como o
gênero ideal, além de sempre admitir, devido à ambigüidade do termo, a
aproximão com oromance sertanejo”, aquele dos folhetos, apreciados pelo povo.
Entretanto, tal importância consolida também a visão do mundo quadernesca, de
que a literatura é o terreno que permite a recriação de uma história sem oferecer os
riscos presentes na realidade.
3.2 A performance de cantador no narrador romanesco
Observamos na obra uma evidente dramaticidade oriunda da oralidade nela
contida. Travando contato com os estudos de Paul Zumthor acerca da voz e da
escrita na literatura medieval, ainda que o corpus do teórico esteja distante
cronologicamente, percebemos características semelhantes quando enfocamos a
oralidade da narrativa e suas implicações, devido às aproximações que a obra de
Suassuna estabelece em relação à literatura medieval. Zumthor destaca três tipos
90
de oralidade que correspondem às situações distintas de cultura: a primária e
imediata, que se encontra em sociedades desprovidas de escrita, de simbolização
gráfica, ou ainda em grupos sociais isolados e analfabetos. Quando o olhar é
lançado para a poesia medieval, predominam dois tipos, cujo traço comum é
coexistirem com a escritura no cerne de alguma sociedade: a oralidade mista, de
influência externa, parcial e atrasada; e a oralidade segunda, cujas bases são
recompostas e alicerçadas no meio em que essa “tende a esgotar os valores da voz
no uso e no imaginário” (ZUMTHOR, 1993, p.18). Sintetizando a referida idéia, o
estudioso define a mista como procedente de uma cultura “escritae a segunda
como fruto de uma cultura “letrada”.
Zumthor (1993, p. 19), concentrando-se nos efeitos da oralidade, chega ao
termo performance. Sob a sua ótica, a situação performática se quando a
comunicação e a recepção coincidem no tempo, ou seja, quando o poeta ou seu
intérprete cantam de memória e a voz se configura como o objeto que atesta a
performance; do contrário, quando a comunicação se por meio da leitura de um
texto, o escrito representa a autoridade e, nesse sentido, a escritura é que se liga à
performance. Tal idéia é expressa nos seguintes termos:
Tecnicamente a performance aparece como uma ação oral-auditiva
complexa, pela qual uma mensagem poética é simultaneamente transmitida
e percebida, aqui e agora. Locutor, destinatário(s), circunstâncias acham-se
fisicamente confrontados, indiscutíveis. Na performance, recortam-se os
dois eixos de toda comunicação social: o que reúne o locutor ao autor; e
aquele sobre o qual se unem situação e tradição. Nesse vel,
desempenha-se plenamente a função da linguagem que Malinowski
denominou “fática”: jogo de aproximação e de apelo, de provocação do
Outro, de pergunta, em si indiferente à produção de um sentido. Por isso,
qualquer que seja o processo que a preceda, acompanhe ou siga, é em sua
qualidade de ação vocal que a performance poética reclama logo a atenção
do crítico. Seus outros componentes, por indissocveis que sejam, tiram
dela seu valor. A transmissão de boca a ouvido opera o texto, mas é o todo
da performance que constitui o locus emocional em que o texto vocalizado
se torna arte e donde procede e se mantém a totalidade das energias que
constituem a obra viva. Esse é, em parte, um locus qualitativo, zona
operatória da “função fantastica”, segundo a expressão de Gilbert
Durant. Mas é também um lugar concreto, topograficamente definível, em
que a palavra desabrochante capta seu tempo fugaz e faz dele o objeto de
um conhecimento (ZUMTHOR, 1993, p.222).
Compreendemos que a qualidade cênica contida na obra é algo latente.
Nesse viés, a postura quadernesca de criar um cenário mental, armar situações e
encená-las aos “nobres senhores e belas damas”, atesta o estilo performático do
protagonista, concedendo cenicidade à obra. Essa teatralidade ligada a Quaderna
91
orienta-se em três níveis: primeiramente, estabelece o sertão nordestino como o
cenário de sua ação; em segundo lugar, evidencia suas circunstâncias no momento
em que profere seu discurso; finalmente, esclarece o resultado que deseja obter
com suas palavras, ou seja, convencer os seus “ouvintes” (ou leitores) de sua
inocência. Para tanto, apresenta vários nuances em seu discurso: ora um tom
pomposo, ora polido em demasia, hiperbólico em diversos momentos, além de
irônico e jocoso, quando deseja rebaixar a si mesmo ou a qualquer outra
personagem.
Sabemos que o texto dramático é estruturado por marcações que orientam o
ato cênico, bem como o modo como ele deve ser conduzido na atuação. De tal
modo, lançando mão da oralidade contida no mamulengo, na cantoria, nos folhetos,
dentre outras manifestações, Suassuna consegue expressar por meio dele o só o
conteúdo do texto, mas também imprimir nas personagens uma espécie de atuação.
Ainda devemos observar o caráter memorialista da narração de Quaderna, aliado ao
seu objetivo de se defender da acusação de assassinato. Nesse ato, oculta-se as
escolhas arbitrárias de Quaderna, como a configuração do cenário da ação, o
figurino das personagens, bem como a seleção do que deve ser relatado.
Para diferenciar os gêneros em questão, drama e romance, cio de Almeida
Prado (2007, p.83), observando-os, afirma que existem semelhanças óbvias, que
ambos narram uma história, contam algo que aconteceu em determinado lugar, em
um tempo específico, para certo público. Essa proximidade facilita a adaptação da
obra literária para o palco. Prado (2007, p.84) esclarece que, na busca de um ponto
de diferenciação entre romance e teatro, a personagem é o elemento que permite
distinguir um do outro, que no romance ela é uma instância entre rias, ainda
que seja a principal. No entanto, no teatro, as personagens compõem quase que a
totalidade da obra, pois o que é mostrado está mediado por elas. Em alguns casos,
como nas peças shakesperianas, o próprio cenário é apresentado por intermédio da
personagem, onde a evocação dos lugares é sugerida nos diálogos. Conforme o
estudioso, ambos os gêneros falam do homem, no entanto, no dramático, isso é feito
pelo próprio homem presentificado no ator.
Apreendemos o narrador-personagem dA Pedra do Reino como uma coluna
de sustentação da narrativa, por isso, faz-se necessário evidenciar o percurso de
Quaderna ao longo desse romance. É graças ao protagonista que as ões se
desenrolam de modo bem particular: na sua imaginação transfiguradora. Logo, esse
92
componente da prosa aproxima-se do ser teatral; o Quaderna protagonista se
mostra à semelhança da personagem que se expõe no palco e, como se estivesse
orientado pelos postulados de Prado, dirige-se diretamente ao público, dispensa a
mediação de um narrador; mostra a sua história como se fosse a realidade de fato.
Esse comportamento proporciona “a vantagem específica do teatro, tornando-o
particularmente persuasivo às pessoas sem imaginação suficiente para transformar,
idealmente, a narração em ação” (PRADO, 2007, p.85).
Nessa perspectiva, a narrativa em questão exige de seu leitor (orientado pela
imaginação de Quaderna) a criação mental de um palco, no qual toda a ação se
desenrola. Esse traço é salientado pelo cater sinestésico da obra, pois ao
“mergulharmos no texto, percebemos a musicalidade que provém o só das
palavras, mas dos instrumentos sertanejos como o pífano e a rabeca que
acompanham as cantorias; a atmosfera sertaneja, da qual emana um calor,
provocado pela alusão às cores amareladas e ocres, ao cenário pedregoso, à
vegetação rasteira e ao sol escaldante; e à visualização da cena, amparada pelas
referidas sensações. Tais elementos aguçam os sentidos, permitindo ao leitor recriar
esse cenário mentalmente. Assim, o reino reluzente é o sero no qual todas as
aventuras são ambientadas, um lugar calcinante, mas querido por Quaderna, que,
embora se denomine um emparedado, não deseja transpor as fronteiras daquela
geografia. Nesse sentido, percebemos a semelhança com o fogo de Gaston
Bachelard, um fogo ambíguo, que conforta, mas fere, um fogo que deve ser
respeitado como uma entidade, assim como expõe o filósofo:
Ele brilha no paraíso, abrasa no Inferno. É doçura e tortura. Cozinha e
apocalipse. É prazer para a criança sentada ajuizadamente junto à lareira;
castiga, no entanto, toda desobediência quando se quer brincar demasiado
de perto com suas chamas. O fogo é bem-estar e respeito. É um Deus
tutelar, bom e mau. Pode contradizer-se, por isso é um dos princípios de
explicação universal (BACHELAR, 1999, p.11-12).
Quaderna constrói com palavras o seu castelo nesse sertão esbraseado.
Assim, seleciona episódios, concilia o que é diferente, cria um espaço sem limites
entre o real e o imaginário. Metaforicamente, o sol calcinante pode representar a
exposição na própria arte, o reconhecimento ou o fracasso do sujeito, que, de forma
desmedida, lança-se nessa tarefa e pode obter como recompensa a posição
privilegiada sob o refletor de um sol sertanejo que lhe põe no primeiro plano do
espetáculo ou o desprezo.
93
Ao investigar a dramaticidade do Romance é importante considerar a posição
de Idelette Muzart Fonseca dos Santos (2009, P. 260) acerca das peças de
Suassuna. Para a autora, dentre os aspectos intrínsecos do teatro suassuniano,
destacam-se: a dedicatória, que pode ser musical, cantada e dançada por todas as
personagens; a explicação, retomada no início de cada ato pelo curinga, que
expressa o objetivo do texto; o episódio, que corresponde ao ato; a cena, revestida
de diversas formas, de diálogos ou mímicas ou monólogos, sempre estruturados de
acordo com a perspectiva global do ato; o comentário, geralmente em forma de
canção; a entrevista; e a exortação ou finalização do ato, retomada no final da peça
pelo curinga. Nesse sentido, o curinga mencionado, quando transposto para a
narrativa, aproxima-se da figura de Quaderna, que se desdobra em narrador e em
protagonista. Além disso, a estrutura da obra lembra a montagem teatral quando
observamos que se inicia por uma apresentação, que é uma espécie de resumo de
todas as ações da peça. Cada folheto parece equivaler a uma cena, pois cada uma
dessas divisões concentra um tema específico; o comentário equivale ao aparte,
ou seja, o discurso proferido por Quaderna é direcionado ao seu interlocutor, um
misto de leitor/espectador. Assim, ainda que alguns elementos não se evidenciem
tão claramente, grande parte deles está presente na narrativa e permitem a
aproximão entre ambos os gêneros.
3.3 Quaderna e seus precursores
Calcados na teoria proposta por Dominique Maingueneau ao afirmar que
qualquer escritor se situa numa tribo escolhida, a dos escritores passados ou
contemporâneos, conhecidos pessoalmente ou não, que coloca em seu panteão
pessoal e cujo modo de vida e obras lhe permitem legitimar sua própria enunciação
(MAINGUENEAU, 2001, p. 31), procuramos evidenciar nesse tópico a articulação
presente entre o texto de Suassuna e as suas fontes de influência.
O primeiro contato travado com o Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe
do sangue do vai-e-volta é marcado pelo estranhamento, que se estabelece ao
observarmos o título bastante extenso, bem como sua capa, cuja ilustração remete à
técnica da xilogravura. Tal nome adquire importância por se denominar “romance”,
94
conceito que comporta ambigüidades significando diferentes formas literárias, de
acordo com o contexto considerado. Somando-se a isso, a “Pedra do Reino”
determina um local preciso, cuja relevância dentro da obra vai se firmando no
decorrer da narração performática de Quaderna. Ressaltamos ainda a expressão
“príncipe do sangue do vai-e-volta”, curiosa pelo fato de fazer menção a uma
nobreza localizada no espaço sertanejo das imediações da Pedra do Reino
20
.
Após a primeira impressão, quando realmente adentramos no romance e
percebemos a sua conexão com a literatura popular do nordeste, notamos que o
nome escolhido tem uma razão específica, pois se assemelha aos títulos dos
folhetos de cordel. Esses títulos fazem menção a seres mitológicos, a animais
fabulosos, a lugares desconhecidos dos sertanejos, que são utilizados para
ambientar as narrativas, como se também fizessem parte daquela região geográfica.
Leda mega Ribeiro (1986, p. 74) esclarece alguns aspectos ligados à
denominação das obras e afirma que Geneviève Bollème, na apresentação da
Bibliotèque Bleue, expõe elementos indiscutíveis para atestar que os títulos longos e
os resumos de capa estabelecem a herança da litterature de colportage, cujos livros
eram muito apreciados pelos admiradores da literatura de cordel. Portanto, que o
Romance tem como um dos modelos essa literatura, o vínculo é notado no primeiro
contato com a obra, seja por meio do título, pela divisão em folhetos, pelas
explicações semelhantes à literatura popular ou à profusão de temas próprios dessa
expreso.
A respeito do título, ainda podemos afirmar, com base nos postulados de
Ribeiro (1986, p.74), que ele sugere uma paródia das produções de cordel, O
príncipe do Barro Branco e a princesa do vai-não-torna, de Severino Milanês da
Silva, ou ainda, da História do Príncipe João Corajoso e a Princesa do Reino do
Não-vai-ninguém, de Joaquim Batista Sena. Outros títulos que apresentam grande
significação e efeito estético tratam-se de Alonso e Marina ou a força do amor e A
morte de Alonso e a vingança de Marina, citados como modelo pelo próprio
Quaderna, que lança mão desse recurso para dotar sua obra de beleza: “eu achava
maravilhosos esses títulos duplos, isto ou aquilo’”(RPR, 2007, p. 101). Com essa
20
A Pedra do Reino é constituída por uma formação rochosa localizada na cidade de São José do
Belmonte (PA), situada na divisa entre os estados da Paraíba e de Pernambuco. Tais pedras são
utilizadas longa data por autores como Euclides da Cunha, em Os sertões, e José Lins do Rêgo,
em Pedra Bonita, outra denominação das rochas. Ainda é importante ressaltar que as rochas
adquiriram importância dentro do espaço sertanejo por constituírem o local onde se fundou o mito do
Sebastianismo no sertão nordestino.
95
explanação se nota a importância da literatura popular na formão do cronista-
fidalgo como literato, que leva o sujeito a organizar uma obra destinada a um público
universal, mas orientada por traços da poesia feita por homens simples.
Um leitor ambientado na literatura dos folhetos vê no título subsídios que
antecipam motes a serem desenvolvidos na narrativa. Esse resumo alude aos
elementos citados no nome, possui uma inflexão oral, como se fosse a apresentação
de um espetáculo que se inicia com o abrir das cortinas de um palco.
Sendo assim, o ato de abrir o livro transporta o leitor para um universo
iluminado, fantasioso, repleto de enigmas; assemelhando-se ainda aos teatros
mambembes pelo tom empregado. Ao termos claro esse detalhe, atentamos para o
estilo adotado pelo narrador suassuniano, que se apropria do referido tom para
apresentar o romance. Ainda que o fragmento não tenha a forma dos versos
populares, seu desenvolvimento lógico é comparável àquele encontrado nos
folhetos, pois está carregado de rmulas nas quais o ritmo dos versos, a rápida
sucessão de acontecimentos e de intrigas aflora, conforme notamos no trecho:
Romance-enigmático de crime e sangue, no qual aparece o misterioso
Rapaz-do-Cavalo-Branco. A emboscada do Lajedo sertanejo. Notícia da
Pedra do Reino, com seu Castelo enigmático, cheio de sentidos ocultos!
Primeiras indicações sobre os três irmãos sertanejos, Arésio, Silvestre e
Sinésio! Como seu pai foi morto por cruéis e desconhecidos assassinos que
degolaram o velho rei e raptaram o mais moço dos jovens Príncipes,
sepultando-o numa Masmorra onde ele penou durante dois anos! Caçadas
e expedições heróicas nas serras do Sertão! Aparições assombratícias e
proféticas! Intrigas, presepadas, combates e aventuras nas Caatingas!
Enigma, ódio, calúnia, amor, batalhas, sensualidade e morte! (RPR, 2007,
p. 27).
No fragmento, entendemos a sucessão de sangue referida no título: a
informação de que “um velho rei” foi morto, fato que exige a substituição por um
descendente direto. No entanto, após o assassinato, um dos descendentes é
raptado e mantido cativo por dois anos, trata-se de Sinésio, o denominado Rapaz-
do-Cavalo-Branco, que retorna na Estranha Cavalgada”. Assim, tais fatos se
resumem como os principais temas de um romance de vários enredos.
Essa importância fica evidente quando Quaderna relata que algumas vezes “o
folheto trazia na primeira página, por baixo do título, uma espécie de explicação,
destinada a causar água na boca’ dos que iam comprá-lo” (RPR, 2007, p.101). Isso
se reflete no fragmento de um folheto que reproduz na sua narrativa, incorporando-o
ao processo:
96
O PRÍNCIPE JOÃO SEM MEDO E A PRINCESA DA ILHA DOS
DIAMANTES
ROMANCE DE PÁGINAS MISTERIOSAS, ONDE SE UM JOVEM
PRÍNCIPE VIAJANTE E ERRANTE PELAS MAIS TEMEROSAS
ESTRADAS, EM BUSCA DE INTRINCADOS LABIRINTOS QUE LHE
CAUSASSEM MEDO, AMOR, SACRIFÍCIO E TRIUNFO! (RPR, 2007, p.
101).
Tal qual o exemplo citado, atribuído ao cantador João Melchíades, na Pedra
do Reino uma voz enumera os acontecimentos que serão narrados ao longo da
obra. Com esse recurso, desperta a curiosidade e corrobora a ligação com os
cantadores populares que também utilizam o artifício de “chamar” o
leitor/espectador, aproximando-o da sua performance. O narrador ainda não se
evidencia, pois tais antecipações são dadas com neutralidade, ocultando o
enunciador. Ao contrastarmos com as demais produções suassunianas, notamos
que é conferida uma inflexão de voz solene à apresentação inicial em grande parte
das obras, como ocorre por meio das palavras do Palhaço em Auto da Compadecida
(1955): “Auto da Compadecida! O julgamento de alguns canalhas, entre os quais um
sacristão, um padre e um bispo, para exercício da moralidade”, que após um toque
de clarim, reforçando o tom pomposo, recita: A intervenção de Nossa Senhora no
momento propício, para triunfo da misericórdia. Auto da Compadecida!”
(SUASSUNA, 2005, p.15). Ariano Suassuna, no ensaio A Compadecida e o
romanceiro nordestino, se refere a esse recurso como uma propaganda
moralizadora” da peça, feita da mesma forma que os cantadores e poetas
nordestinos fazem em seus folhetos (SUASSUNA, 2008, p.185). Esse recurso
também é utilizado no entremez Torturas de um coração (1951), em que a
personagem Manoel Flores faz uma breve ntese do que ocorrerá na peça:
“Respeitável público! A história que em breve / irão assistir, ou melhor, observar,/
passa-se, como sempre, na terra de Taperoá!” (SUASSUNA, 2007, p. 59). Após
proferir tais palavras e apresentar as demais personagens, Manoel Flores retira-se
para que se inicie o espetáculo. Em outra obra, Farsa da Boa Preguiça, pode-se
notar semelhante expediente na apresentação de Manuel Carpinteiro:
O cavalheiro pode ver aqui
- inteligente e culto como é
o Fogo escuro, o enigma deste Mundo
e o rebanho dos Homens em seu centro!
Que palco! Quantos planos! Que combates!
Embaixo, o turvo, as Cobras e o Morcego.
97
No meio, o que esta terra tem de cego e esquisito.
Em cima, a Luz Angélica – esta Luz mensageira
Com seu vento de Fogo puro e limpo!
Embaixo, três demônios que aqui passam (SUASSUNA, 2002, p.44).
De tal modo, as primeiras palavras proferidas na obra têm um emprego
expletivo que apresentam, de forma concisa, lances, informações, feitos de
relevância dentro da narrativa. Quando buscamos uma justificativa para esse uso,
encontramos argumento nas palavras de Ligia Vassalo (1993, p.35) que explica a
presença da personagem apresentadora da obra como um tipo formal que exerce a
função expletiva, ou seja, apresenta o espetáculo. Assim, ela interfere no prólogo e
no epílogo da peça, mas é marginal à trama, atuando apenas na introdução das
peças ou dos folhetos. O romance se vale desse recurso, ainda que não seja próprio
do gênero, cumpre então entender o porq de tal utilização. Além disso, ao
investigar esse uso, vemos que o romance como gênero, devido à sua elasticidade,
comporta outros sub-gêneros.
Quando analisamos as setilhas heptassílábicas - métrica característica da
poesia de cordel - que sucedem a prosa inicial do Romance d’A Pedra do Reino,
percebemos o tom épico de tais versos. Do mesmo modo como ocorre nas
epopéias, a saudação inicial à determinada divindade aqui tamm está presente:
Ave Musa incandescente
do deserto do Sertão!
Forje, no Sol do meu Sangue,
o Trono do meu clarão:
cante as pedras encantadas
e a Catedral Soterrada,
Castelo deste meu Chão!
Nobres Damas e Senhores
Ouçam meu Canto espantoso:
A doida Desaventura
De Sinésio, O Alumioso,
o Cetro e sua centelha
na bandeira aurivermelha
do meu Sonho perigoso! (RPR, 2007, p. 27)
Acerca dessa utilizão, Ribeiro (1986, p. 75) afirma que o narrador invoca as
musas seguindo a tradição de Homero, mas também, fazendo uma invocação
semelhante a muitos folhetos de cordel pertencentes ao grupo dos denominados
“temas tradicionais”. O verso inicial mostra a invocação típica da poesia clássica,
pois na primeira estrofe, notamos uma espécie de pedido à musa para que os
98
eventos “cantados” mostrem com talento a beleza das pedras que constituirão o
castelo poético do cantador. Ao fazer referência à pedra, o cantador introduz uma
palavra de grande importância dentro da obra e põe em evidência essa metáfora
largamente utilizada. Pedra adquire uma significação simbólica, que abrange tanto o
sentido convencional de mineral, quanto cada palavra que compõe um texto. Nesse
sentido, cada pedra representa um bloco que se encaixa para solidificar a estrutura
do castelo, também tratado simbolicamente.
A linguagem figurada evidencia a suposta humildade do poeta, que necessita
da ajuda de uma entidade mística para incorporar o “cantador”, por isso suplica:
Forje, no Sol do meu sangue”. Com a escolha de tal verbo, o poeta deixa
transparecer a dubiedade de sentido, visto que forjar pode significar tanto produzir
como falsificar. Nesse ponto, o termo forjar, com um sentido pejorativo, imprimiria no
cantador a evidência de uma falta de talento.
Outro verso que corrobora o tom rogativo da estrofe é cante as pedras
encantadas”, no qual o cantador pede à musa que ela cante. Desse modo, os versos
proferidos terão origem nas palavras da musa, ela o terá inspirado e, qualquer verso
impróprio que o poeta venha a recitar não será de sua responsabilidade, mas da
musa inspiradora.
Na estrofe seguinte, os versos passam a se dirigir a outros interlocutores, não
constituindo mais um chamamento à musa, mas ao blico ouvinte: “Nobres damas
e senhores ouçam meu canto espantoso”. Entende-se com isso, que o poeta foi
absorvido pelo dom da cantoria, por isso pede ao público que lhe ouça no que ele
tem a dizer. As rimas empregadas obedecem ao esquema dos versos de sete pés
21
,
ABCBDDB, largamente utilizados pela poesia popular, encontrados, por exemplo, no
romance Chegada de Lampião ao Inferno, cantado por Antonio Augusto Ribeiro,
entre tantos outros (LAMAS, 1986, p.279).
Nesses versos imagéticos que compõe a abertura do Romance, notamos a
presença de palavras grafadas com letras maiúsculas, como “Musa”, “Sertão”, “Sol,
“Trono”, “Catedral”, Castelo”, “Chão”. Tais substantivos concretos são
engrandecidos e dotados de uma textura simbólica, as “palavras sagradas cujas
imagens são mentalmente visualizadas pelo leitor/espectador. Acerca dessa
propriedade da obra suassuniana, Silviano Santiago afirma que
21
Na terminologia da poesia popular, pé equivale a verso, enquanto verso é equivalente a estrofe, ou
seja, dois versos designam duas estrofes.
99
[...] esse processo já consagrado pela retórica tradicional, é de uso mais
geral no poemário de Suassuna, nos levando a crer que o poeta deseja
criar uma espécie de configuração geral por meio dos elementos simbólicos
do poema, como se eles fossem as representações, as figuras de um
escudo heráldico (SANTIAGO, 2007, p. 168).
Cabe dizer que muitas das xilogravuras evidenciadas ao longo da obra
confirmam essa propriedade de criação de imagens heráldicas, pois os elementos
destacados pelas letras maiúsculas muitas vezes fazem parte dos braes, das
bandeiras, de cenas ilustradas nas figuras, na forma de emblemas, de escudos ou
brasões.
Por meio dos elementos levantados, percebemos que essa apresentação
inicial se configura como síntese do romance. De modo metonímico, cada tema
aludido constitui uma pedra que alicerça o Castelo Poético almejado por Quaderna.
Isso se dá pelo fato de que cada tema – a morte do tio, o desaparecimento do primo,
o “sonho perigoso” de reerguer o castelo origem a subtramas. Além disso, como
vimos, elementos próprios da literatura popular farão parte do procedimento de
construção do romance, na forma de estrutura, de concepção literária, de valores do
protagonista, da visão do mundo que permeia o discurso do qual Quaderna é o
mediador.
A obra analisada divide-se em cinco livros intitulados A Pedra do Reino, Os
Emparedados, Os três Irmãos Sertanejos, Os Doidos e A Demanda do Sangral.
Cada um desses livros é subdivido em folhetos, que perfazem um total de oitenta e
cinco partes. A organização em folhetos corrobora a proximidade com a literatura
popular, cuja prática é denominar “romance” ou “folheto” as produções dos
cantadores. Os diversos enredos concentrados na narrativa evidenciam, a aludida
gama temática que compõe o conjunto da obra. O primeiro deles, “Pequeno cantar
acadêmico a modo de introdução” (RPR, 2007, p.31), discorre, no tempo presente,
sobre o estado inicial da personagem Dom Pedro Dinis Quaderna.
Outro folheto de grande importância na tessitura da narrativa é “O caso da
estranha cavalgada” (RPR, 2007, p.35), nele é esclarecido um dos pontos principais
da trama contido no breve resumo da abertura da composição. Desse modo,
elementos presentes no jogo poético expresso nas sextilhas que resumem a obra
comam a ampliar-se dentro dela. Para isso, Quaderna, o narrador encarcerado,
100
recorre as suas lembranças para relatar os fatos estranhos que ocorreram na dita
Cavalgada:
três anos passados, na spera de Pentecostes, dia 1º de julho de
1935, pela estrada que nos liga à Vila de Estaca-Zero, vinha se
aproximando de Taperoá uma cavalgada que iria mudar o destino de muitas
das pessoas mais poderosas do lugar, incluindo-se entre estas o modesto
Cronista-Fidalgo, Rapsodo-Acadêmico e Poeta-Escrivão que lhes fala neste
momento (RPR, 2007, p.35).
No fragmento, percebemos que a data da Cavalgada, véspera de
Pentecostes, é carregada de simbolismos cristãos, cujo principal nesse período do
calendário religioso, é a passagem do Espírito Santo pela terra. Por tal motivo, o
tropel adquire importância e certo ar messiânico, que com a passagem poderia ser
um presságio de um novo tempo. Os cavaleiros passam pela “Vila de Estaca-Zero”,
representando o ponto de partida de tais indivíduos para a “mítica” Taperoá, além
disso, a possibilidade de transformação de todo o vilarejo com a chegada do tropel
também é algo fortemente sugerido. Assim, a chegada de Sinésio, aliada a outros
vaticínios do narrador, constituiriam a possibilidade de viver os anos de felicidade
restaurada, em uma espécie de milenarismo moderno.
Quaderna utiliza a literatura popular em verso como um veículo para as suas
fantasias. Esse traço do protagonista pode ser percebido na crítica que o corregedor
faz a respeito de suas histórias, pois Quaderna une uma à outra, não as conclui e
mantém seu interlocutor sempre preso ao seu narrar. Com base nisso, notamos que
algumas histórias são incluídas na trama como uma mise en abyme. Dentre as
narrativas encaixadas encontramos algumas cantigas populares como Guai Valença
e o Romance da Nau Catarineta, que evidenciam o contato inconsciente do povo
com as composições da gesta espanhola, bem como do romanceiro português, que
se apropriam, cantam e preservam como sendo seus.
3.3.1 Romances Tradicionais
A retomada das cantigas tradicionais dá-se na adolescência de Quaderna, na
companhia de tia Filipa, de Maria Galdina e do cantador João Melchíades. Nesse
101
período, delineiam-se os elos do protagonista com o universo das cantigas e da
literatura popular, que tem como “duas terveis influências” a tia e o cantador:
Aí, à medida que eu ia crescendo, essas idéias iam cada vez mais se
enraizando no meu sangue. Eu ouvia, decorava e cantava inúmeros
folhetos e romances que me eram ensinados por Tia Filipa, por meu
Padrinho-de-crisma João Melchiades Ferreira e pela velha Maria Galdina,
uma velha meio despilotada do juízo, que nos freqüentava (RPR, 2007, p.
89).
A tia, uma mulher brava, tem uma postura que difere das demais mulheres,
possui uma voz que transmite liderança, mesmo entre homens poderosos. Após a
morte de Maria Sulpícia, mãe de Quaderna, Filipa representa a figura materna do
sobrinho e acende nele o gosto pelas tradições sertanejas.
Tia Filipa, João Melchíades e Maria Galdina são personagens que fazem de
simples cantigas, algo fundamental na vida do protagonista; despertam a
curiosidade, teorizam intuitivamente, sem as certezas do saber acadêmico, a
literatura popular e proporcionam a esse sujeito o saber enciclopédico que idéia
de lugares, de personalidades, de grandes feitos heróicos, ainda que nem sempre
originados de uma fonte confiável. Portanto, do mesmo modo que Clemente e
Samuel são os mentores intelectuais, as três personagens do seio familiar de
Quaderna, são seus mentores populares, como fica evidente no fragmento:
[...] quando Maria Galdina ia em casa, sentava-se no chão, perto da
almofada onde Tia Filipa fazia renda e começava a cantar, uma ajudando a
outra, uns romances esquisitos, ao mesmo tempo diferentes e parecidos
com os do velho João Melchíades. Mas sabiam também romances e
cantigas de Cangaceiros, tendo grande estima pelo Abecê de Jesuíno
Brilhante. Ambas admiravam muito esse Cangaceiro, a quem consideravam
“o mais corajoso e cavaleiro do Sertão, um Cangaceiro muito diferente
desses Cangaceiros safados de hoje em dia, que não respeitam as
famílias”, como dizia a Velha do Badalo, com plena concordância de Tia
Filipa. O que me impressionava nisso, eram os nomes dos lugares e o fato
de, na lista, os Doze Pares de França serem vinte. Um dia, perguntei a tia
Filipa onde eram todos aqueles lugares maravilhosos, chamados Lorena,
Alemanha, Baviera, Gênova Bruxelas. Ela respondeu:
- Não sei não, Dinis, mas deve ser longe como o diabo, ai por perto da
Turquia, já quase na beira do mundo! (RPR, 2007, p. 90-93).
Aliada à arte de versejar, a erudição” chega naturalmente, um saber do qual
Quaderna se orgulha, ainda que seja vago ou inexistente, como o exemplo
geográfico de Tia Filipa. Além disso, faz vir à tona a satisfação de viver no sertão,
cenário de lutas sangrentas, como a de seus antepassados, de cangaceiros
102
endeusados, de heróis imortalizados pela memória. Assim, dentre as narrativas
tradicionais e heróicas surge Guai Valença. Tal cantiga comprova sua relevância na
fantasia de Quaderna por mostrar o conflito entre mouros e cristãos, cujos atos
foram narrados e ainda ressoam no sertão nordestino, na forma de atração festiva
dos cordões azul e encarnado; nas cavalhadas, entre outras manifestações:
“Ai Valença! Guai Valença!
De fogo sejas queimada!
Antes fosses pelos Mouros
Que pelos Cristãos tomada!
Ai Valença! Guai Valença!
Como estás bem assentada!
Antes que sejam três dias,
De Mouros serás cercada!” (RPR, 2007, p. 95).
Idelette dos Santos afirma se tratar de um texto folclórico re-atualizado na
narrativa. Trata-se de um fragmento do antigo romance épico El poema de Mio Cid,
e expõe uma transcrição das lamentações do rei mouro. Esse cantar, pertencente à
tradição dos juglares, entretinha o público medieval com a recitação de versos em
memória dos heróis e de suas façanhas, dos relatos de lendas pertencentes ao
imaginário local, dos argumentos católicos, entre outros temas. O público nobre dos
juglares era composto pelas cortes de reis, pelo clero, mas se popularizava com as
romarias e peregrinações (ESTRADA, 1987, p. 304). A utilização desses versos -
se como um atestado de erudição, pois no mesmo movimento de narrativa
encaixada, a citação de Guai Valença “se mantém na periferia do texto suassuniano
e não se integra à narrativa: visa o somente ilustrar e confirmar, pelo exemplo às
variedades das formas populares (SANTOS, 2009, p. 148). Chama atenção,
portanto, para dois traços importantes: um deles, a seleção proposital do tema por
Ariano Suassuna, para atestar que o povo – metonimizado em Tia Filipa tem
contato com a literatura culta, ainda que de forma inconsciente; o outro, a lembrança
da cantiga por Quaderna confirma a importância dos versos na vida dos sertanejos,
pois se mantiveram na memória através dos tempos.
Na mesma linha de Guai Valença, encontramos a cantiga La Condessa, de
versão portuguesa e espanhola, também denominada por títulos que remetem ao
tema como Condessinha de Aragão ou Senhora Condessa e Hilito de Oro:
Esse fiozinho de ouro explica a significação real da fórmula, julgada mágica
pelo narrador Quaderna: “nem por ouro, nem por prata, nem por sangue de
Aragão”, que em outras versões se transforma em nem por ouro, nem por
103
prata, nem por fio de algodão”, alusão aos fios de ouro, prata, seda ou
algodão que os mascates vindos da França vendiam às damas espanholas,
origem provável, segundo Theo Brandão, desse romance. A lição de
Suassuna está muito próxima das variantes recolhidas na Paraíba, onde La
Condessa constitui a verdadeira pedra de toque da presença da poesia oral
tradicional na memória popular (SANTOS, 2009, p. 158).
A cantiga popular, inúmeras vezes mencionada na narrativa, ao mesmo
tempo em que representa uma forma de diversão, chama atenção pela nobreza que
versa e por mostrar o despertar do desejo amoroso-sensual do adolescente
Quaderna, algo que ele tenta disfarçar na rememoração como adulto:
Uma noite, Tia Filipa ensinou às meninas uma cantiga de roda [...] que
precisava de um menino-homem para tomar parte no diálogo cantado. [...] É
que eu andava de olho, muitos dias, na filha de um Vaqueiro, Rosa,
menina morena, de cabelos lisos, moça e interessada demais no que eu
ainda não sabia. Tia Filipa consentiu que eu entrasse na roda. Explicou que
eu ia fazer o papel de Cavaleiro. Elisa, uma menina, filha de Comadre
Teresa, o de La Condessa.[...]
“- La Condessa, La Condessa!
- Que queres com La Condessa?
- Quero umas dessas Moças
para com ela casar!
- Eu não tiro as minhas filhas
do Mosteiro em que elas ‘tão,
nem por Ouro, nem por Prata,
nem por sangue de Aragão!
- Tão contente que eu vinha!
Tão triste que vou voltando!
- Volta, volta, Cavaleiro!
Vem e escolhe a que quiseres!
- Esta fede e esta cheira!
Esta é a que eu queria
Pra ser minha Companheira!” (RPR, 2007, p.87).
O valor da cantiga reside na vibração que algumas palavras o capazes de
acender em Quaderna. Assim, a brincadeira em uma noite enluarada, com a menina
que ele gosta, as palavras mágicas soando em cada verso provocam um êxtase que
perdura aa sua maturidade, por isso são lembrados. Portanto, não é o desenrolar
da ão da cantiga que importa, mas a presença de um léxico sagrado para o
protagonista, que, quando ouvido tempos depois, aciona a recordação dos versos
“obscuros e estranhos”, que adquiriam um sentido sagrado para ele (SANTOS,
2009, p. 158).
Relatando a relevância da cantiga, Idelette Muzart Fonseca dos Santos (2009,
p. 157) enfatiza a importância do jogo infantil, quando propõe a influência da
composição espanhola no universo semântico do Romance d’A Pedra do Reino. Tal
104
uso colabora com a construção de um imaginário para o qual é o modelo, assim,
Quaderna, “no choque entre o real observado e um imaginário nutrido pelas
‘palavras sagradas’ das narrativas, longe de levá-lo a questionar a veracidade dos
romances reforça sua esperança e sua fé no ‘Reino Encantado da Literatura’
(SANTOS, 2009, p.158).
Em meio às conversas dos emparedados”, outra obra tradicional é
introduzida como uma mise en abyme, Romance da Nau Catarineta, encaixado no
Folheto XXXIV, “Marítima Odisséia de um Fidalgo Brasileiro”. Ao relatar a “odisia”
- bastante presente na memória nordestina, pois faz parte, inclusive, de festas
populares -, Quaderna relata a aventura de Jorge de Albuquerque Coelho, ocorrida
em Pernambuco, em 1566, quando o navio que comandava foi atacado por
corsários franceses e por longo tempo ficou à deriva e sem alimentos. De acordo
com Santos (2009, p. 145-146), a seqüência exposta por Quaderna é fiel aos fatos
hisricos e se apresenta como uma reescrita da obra de Almeida Garret (1851):
Samuel, essa parte da história eu já conhecia, se bem que não soubesse
como tudo tinha começado. É a história da Nau Catarineta, que a gente
canta, aqui no Sertão, no Fandango, quando vai representar o Auto das
Cheganças, a Marujada! Nesse auto, tem um romance que diz assim:
“Ouçam meus Senhores todos,
uma história de espantar!
Lá vem a Nau Catarineta
que tem muito o que contar.
Há mais de um ano e um dia
que vagavam pelo Mar:
já não tinham o que comer,
já não tinham o que manjar!
Deitam sortes à ventura
Que se havia de matar:
Logo foi cair a sorte no
Capitão-General!” (RPR, 2007, p.220).
A afirmação de Quaderna evidencia uma imprecisão ao situar a encenação do
romance no sertão. Conforme Câmara Cascudo (s.d., p. 55), “o sertão nunca ouviu a
Nau Catarineta, mas todo o litoral conhece e sabe de cor estrofes e solfas das
‘jornadas’”. Assim, entendemos que, do mesmo modo que Guai Valença, trata-se de
uma narrativa que não costuma circular naquele espaço, no entanto é inserida no
romance de Quaderna como um atestado de erudição do protagonista.
Santos, por sua vez, ressalta que, no processo de recriação, deram-se
algumas mudanças significativas, como o traço característico da epopéia e da
105
literatura de cordel: o chamamento ao público em primeiro plano, concretizado na
expreso “ouçam”, que não na versão garretiana. Quando explica o motivo da
incorporação de tal narrativa no romance, Santos propõe que a citação popular
aparece como uma confirmão do relato histórico pela vox populi. A lenda
empresta a sua caução à narrativa (SANTOS, 2009, p. 146). Na seqüência do
romance, é possível perceber o tom queixoso de Quaderna ao ter sua performance
interrompida, encoberto pela comicidade do diálogo, no qual Samuel demonstra ter
apreço apenas pelas composições dos trovadores consagrados e desprezo pelos
versos simples dos cantadores populares:
Quando terminei de recitar esse maravilhoso romance-epopéico, marítimo e
bandeiroso, Samuel veio logo com achincalhes: - Quaderna, não venha
misturar suas barbaridades de sertanejos com a fidalguia dos Coelhos,
Albuquerques, Cavalcantis e Wan dErnes da Zona da Mata! [...] Isso que
você cantou aí, é uma barbaridade, quase tão esria e plebéia quanto os
tais “folhetosque você e Lino Pedra-Verde vivem espalhando pelas feiras,
para corromper ainda mais o gosto dos Sertanejos! (RPR, 2007, p. 222).
Então, compreendemos que o ato de citar versos alheios evidencia uma
tentativa de mostrar as raízes da poesia popular na poesia erudita. Portanto, não se
trata de uma simplificação, mas de uma releitura, na qual os elementos
desnecessários são excluídos.
Possesso da literatura, assim Quaderna se denomina, isso porque a vivência
em uma sociedade cuja arte, ainda que a popular, é largamente difundida, torna
esse sujeito familiarizado com o ritmo dos versos e com a melodia dos rudes
instrumentos. Isso justifica a sua admiração, equivalente a de Dom Quixote,
induzindo-o ao mergulho voluntário (jamais movido pela loucura) no mundo da
literatura e da existência orientada pela ficção romanesca.
3.3.2 Literatura erudita
Além das influências populares, o protagonista demonstra admiração por
poetas consagrados no panorama literário nacional. De tal forma, os artistas citados
também podem ser considerados precursores e modelos para a literatura de
Quaderna, que se apropria dos modelos canônicos, como referencial teórico e
106
estilístico para a obra em processo. Assim, deparamo-nos com um texto guarnecido
por argumentos de autoridade, posicionamentos de autores eruditos que corroboram
pontos de vista do narrador. Influenciado por Gonçalves Dias, Gregório de Mattos,
Fagundes Varela, Euclides da Cunha, Martins Fontes, dentre outros autores de igual
importância, Quaderna faz um empréstimo do estilo alto, de algumas temáticas, de
noções sociológicas, e até mesmo de patologias como desordens nervosas como a
epilepsia ou ainda a cegueira, com o fim de obter vantagens em determinadas
situações. A cena descrita por Quaderna, tem um tom histriônico e farsesco, no qual
quase visualizamos um sujeito fingindo o desmaio, espiando a reação das outras
pessoas dissimuladamente, apenas para fugir da situação comprometedora.
Quaderna cque seu romance terá todos os atributos das grandes obras,
por concentrar toda a literatura”, conforme foi mencionado. Assim, revolta-se com
críticas relacionadas aos referidos autores, principalmente pelo preconceito em
relação às obras escritas por brasileiros, julgadas superficiais e sem a admirável
obscuridade definidora dos artistas estrangeiros:
Lembro que o genial poeta Nicolau Fagundes Varela adverte todos nós,
Brasileiros, de que “os irônicos estrangeiros” vivem sempre vigilantes,
sempre à espreita do menor deslize nosso para então, “ridicularizar o pátrio
pensamento”:
“Fatal destino o dos brasílios Mestres!
Fatal destino o dos brasílios Vates!
Política nefanda, horrenda e negra,
Pestilento Bulcão abafa e mata
Quanto, aos olhos de irônico estrangeiro,
Podia honrar o pátrio pensamento!”
Ora, um dos argumentos que os “irônicos estrangeiros” mais invocam para
isso é dizer que nós, Brasileiros, somos incapazes de forjar uma verdadeira
trança, uma intrincada teia, um insolúvel enredo de “romance de crime e
sangue”. Dizem eles que não é necesrio nem um adulto dotado de
argúcia especial: qualquer adolescente estrangeiro é capaz de decifrar os
enigmas brasileiros, os quais, tecidos por um Povo superficial, à luz de um
Sol por demais luminoso, são pouco sombrios, poucos maldosos e
subterrâneos, transparentes ao primeiro exame, facilíssimos de desenredar
(RPR, 2007, p. 60).
Ao analisarmos o fragmento vemos, na declaração de Quaderna, uma
contestação à crítica recebida por Fagundes Varela. Tal postura se porque o
protagonista se desgosta com o julgamento recebido pelo poeta. Ao desejar dar
forma a um romance-enigmático, o pode ficar passivo diante da idéia de um
107
público que diminui o valor de obras formadoras da literatura nacional ao generalizar
como superficial a expressão de toda uma nação de escritores.
Regina Zilberman (2009), em uma análise à poesia romântica, enfatiza o
sentimento de rejeição conferido à literatura brasileira por parte dos leitores. Nesse
viés, a Elegia de Varela, que faz um retrospecto do cânone literário nacional vigente,
debate a falta de valorização do trabalho dos artistas e, a partir de tal julgamento,
revela o destino cruel das letras no país. O que está em jogo, conforme Zilberman, é
a ausência de reconhecimento do artista na sociedade, o que culmina com a falta de
dinheiro. Isso é fruto da baixa estima do público em relação à literatura mais
elaborada, fator que é confirmado por Antônio Candido na obra Literatura e
Sociedade. Quando o teórico expõe a literatura romântica e a gênese desse blico,
coloca que a pobreza cultural de uma elite brasileira não permitiu a formação de
uma literatura complexa, de qualidade rara, salvo algumas exceções. Assim, essa
elite se configurou o como uma classe dotada de bom gosto e agudeza para se
lançar a uma leitura complexa, mas como uma simples interessada na leitura
(CANDIDO, 1985, p. 86). Rechaçando tal julgamento, Quaderna tenta obter créditos
para o romance que pretende concretizar, a obra completa” que agrega diversas
influências, inclusive a “literatura sem profundidade” que recebeu a crítica. Por meio
dessa postura percebemos a defesa veemente de quem alimenta o desejo de
consagrar-se universalmente por meio de um “romance indecifrável”.
Nas referências à literatura culta, Quaderna parece desconhecer
periodizações, mas revela tacitamente seu apreço aos românticos. O protagonista
confere aos poetas o atributo de visionários, assim como ele próprio julga ser. Ao se
basear nos versos de Castro Alves, vê neles uma profecia da chegada enigmática
do Rapaz-do-Cavalo-Branco, na Vila de Taperoá:
E, sem eu querer, meu sangue repete aqueles versos do genial vate
Antônio de Castro Alves, quando cantou em sua Viola de prata, cravejada
de negro, um “João sem direção!, uma espécie de judeu-errante brasileiro e
sertanejo”, que não era senão o Donzel do cavalo, dizendo o Poeta em seu
cantar-baiano:
“Não sei quem sou. A mim, dentro do Peito,
um Sol-terrível bebe o Sangue e a vida!
Príncipe-errante que, no fim da Estrada,
Tem uma Esfinge, numa Cruz erguida!
Sou o Pau-dArco que, florando o Ouro,
A Morte e o Cetro na Coroa encerra:
Vivo – que vaga sobre o Chão da morte,
Morto - entre os vivos, a vagar na Terra!”(RPR, 2007, p. 412)
108
Diferentemente da citação de Varela, os versos atribuídos a Castro Alves são
uma reelaboração de Mocidade e Morte, visto que a semelhança se apenas nos
dois últimos versos do poema, sendo os seis primeiros uma recriação popular, que
mantém determinadas palavras. Observando esse processo, inferimos que o
protagonista usa o mesmo recurso dos cantadores ao fazerem releituras de outras
obras sem o receio de plágio; Quaderna apropria-se de versos canônicos com a
mesma liberdade que reescreve aqueles de domínio popular. No contraste de
ambas composições, notamos a interferência do protagonista, que substitui palavras
sem significado para ele, pelas ditas palavras sagradas, grafadas em maiúsculas:
E eu sei que vou morrer... dentro em meu peito
Um mal terrível me devora a vida:
Triste Ahasverus, que no fim da estrada,
Só tem Por braços uma cruz erguida.
Sou o cipreste, qu'inda mesmo florido,
Sombra de morte no ramal encerra!
Vivo — que vaga sobre o chão da morte,
Morto — entre os vivos a vagar na terra (CASTRO ALVES, 2009).
Um traço característico do Barroco, os oximoros, ecoam nas estrofes que
aludem aos versos calderonianos: “siendo un esqueleto vivo, siendo un animado
muerto” (CALDERÓN DE LA BARCA, 1992, p.140). Nesse viés, um fio
intertextual que liga a construção barroca à expressão poética de Castro Alves, que,
por sua vez, é reelaborada por Quaderna. Esse movimento confirma a leitura de
Maria Aparecida Nogueira de que “a arte interrompe a seta do tempo e permite
aproximão entre o barroco ibérico com o sertão pela recriação, expressa no
romanceiro popular do nordeste” (NOGUEIRA, 2002, p. 106). Nesse exemplo,
vemos a complexa formação dos versos enigmáticos de Quaderna, que seguem
modelos populares e são a perfeita ilustração desse caso.
A construção de Quaderna se assemelha, estilisticamente, à produção
poética de Ariano Suassuna, por isso tamm mostra consonância com o
Movimento Armorial e a arte da heráldica. Uma poesia imagética, de substantivos
concretos, cujas imagens simbólicas representam as constantes armoriais. Assim,
quando Carlos Newton Junior explica que a arte popular não é inferior ou posterior à
erudita, podemos estender essa definição à postura de Quaderna diante do universo
literário repleto de dicotomias. Para o estudioso, essas categorias diferentes m,
cada uma, o seu valor próprio. Nesse sentido, o se trata de o artista querer ser
popular ou erudito, mas de sua formação: “um artista que tenha formão erudita
109
não poderá, mesmo que queira, fazer arte popular. O que ele pode é ligar-se de uma
maneira ao popular, em busca de uma unidade nacional. Somente assim estará
fazendo uma arte erudita brasileira, calcada nas raízes populares da nossa cultura.
Para Suassuna, a arte universal é aquela que se universaliza pela boa qualidade, e
toda arte universal é, acima de tudo, nacional” (NEWTON JÚNIOR, 1999, p. 104,
grifo do autor). Portanto, cabe a Suassuna a arte erudita de matiz popular e a
Quaderna o inverso disso, mas sem que a presença maior de uma ou de outra seja
determinante de uma universalidade.
Outro exemplo da presença da literatura culta na obra de Quaderna dá-se na
forma de paródia. O protagonista afirma admirar o “genial poeta Martins Fontes” e
reelabora uma obra do autor, ilustrando o modo com se vê, vio ligada ao popular:
Bem vedes, não sou eu
o Pierrô bufo e belo,
filho de Cassandrino
22
ou do Polichinelo
23
!
Não! Eu sou o Mateus
de vermelho e de preto.
Sou o Diabo-Encourado,
O Sangue-do-Esqueleto
que procura espargir
pelo Mundo tristonho,
no sangue e ao pó da Morte
o Galope do Sonho,
na Onça-do-imprevisto
o guizo Burlesco,
no Mocho do Fantástico
o Tigre romanesco!” (RPR, 2007, p.252)
Como ao mirar-se em um espelho, Quaderna rejeita a fantasia de Pierrô, com
isso nega também a postura do ator triste da Commedia dell’Arte. O Pierrô, vestido
com roupa branca e preta, é um mbolo de ingenuidade e de tristeza, cuja lágrima
pintada abaixo do olho bem ilustra. Lunático, distante, inconsciente da realidade,
22
Cassandrino era um homem velho, admirador das mulheres jovens. Caracterizava-se pelas roupas
seculares, vestimenta que contrastava com seu hábito de vida mundano. Trata-se de uma
personagem cômica do teatro de bonecos italiano, que teve expressão durante o século XIX e
primeira metade do século XX, o Fiano (McCORMICK, 2009, p. 39).
23
Polichinelo é uma personagem com raízes na Roma antiga que foi retomada no teatro italiano da
Commedia dell’Arte. Caracterizada por um longo nariz, pela corcunda e pela barriga proeminente,
Polichinelo veste-se com roupas coloridas e usa um barrete sobre a cabeça. Sua voz também tem
uma caracterização própria: é esganada, anasalada e tremida. Sua personalidade varia de acordo
com o local onde é aproveitado. Na França, tem um caráter de anti-herói, fanfarrão; na Alemanha
assume o papel de bobo; na Inglaterra é esperto e malandro. Essa personagem demonstra uma
psicologia desenvolvida, na qual expressa a consciência consciente do jogo dos poderosos que
revela publicamente, enfrentando seus problemas com um sorriso
(http://pt.wikipedia.org/wiki/Polichinelo).
110
essas são as definições da personagem que o protagonista rechaça. Nega a
descendência de palhaços” estrangeiros e finge não perceber a influência de tais
personagens nas manifestações folclóricas nacionais. Para ele, é mais coerente
parecer-se com Mateus, por isso diz: Eu sou Mateus”, personagem de uma versão
brasileira da Commedia dell’Arte, o Cavalo-Marinho
24
. Assim, Quaderna afirma
veementemente, que seu modelo é essa personagem brasileira, um dentre os
inúmeros exemplos de caros” sertanejos. Mateus, dotado da alegria pura, da
esperteza, “procura espargir pelo Mundo tristonho/[...] o Galope do Sonho”, por isso
se conecta tão perfeitamente ao narrador da Pedra do Reino, cuja postura é
transfigurar a realidade cinzenta. A quadra final mostra o curso literário de Quaderna
guiado pelo burlesco, pelo fantástico e pelo “tigre” romanesco que desvenda e
teoriza na sua enunciação. Portanto, mais uma vez reforça a burla, a fantasia e o
romance, como alicerces de seu castelo poético.
Desse modo, com a observação da postura de Quaderna de agregar a
literatura culta na sua obra popular, percebemos que ele percorre o caminho inverso
de seu criador, exposto por Newton Júnior:
A simples intenção de fazer uso das formas populares, em um poeta que as
conhece pelo estudo, pela pesquisa, e quer, assim, resgatá-las e valorizá-
las no meio erudito, revela uma visão de mundo diferente da de qualquer
poeta popular, que aprendeu pela tradição. Por outro lado, do ponto de
vista da linguagem, das metáforas, das imagens apresentadas, enfim, tudo
aquilo alheio à forma (no sentido estrito da palavra), certamente a poesia de
Suassuna se reveste de um hermetismo que a torna inacessível a um poeta
popular (NEWTON JÚNIOR, 1999, p. 105, grifo do autor).
Com base em tais afirmações, vemos quão difícil é a empreitada a qual
Quaderna se lança. Situado em um lugar intermediário entre o popular e o erudito, o
protagonista se vale da ascia picaresca de um Mateus para driblar os preconceitos
e ter espaço em uma sociedade letrada.
24
As personagens do cavalo marinho são humanos e animais: Mateus, Bastião, o Capitão, Catirina,
seis galantes, duas damas, o Soldado, o Caboclo de Urubá, o Boi. O Capitão, atende pelo nome de
Marinho, e apresenta o espetáculo montado em seu cavalo. Os instrumentos nordestinos como a
rabeca, o reco-reco, o gane o pandeiro, musicalizam o espetáculo. As roupas e as abas dos
chapéus são enfeitadas com fitas e espelhos. A encenação conta com Mateus e Bastião, dois negros
amigos que dividem a mesma mulher, Catirina. Ambos procuram emprego e são contratados para
tomar conta da festa, um baile em homenagem aos Santos de Reis, por isso existe a participação dos
galantes e das damas. Cantam e dançam em louvação aos santos. No final, um boi é dividido entre
os participantes e assim encerra-se o espetáculo. (PONTES, Gilia Lira Araújo de. Cavalo Marinho.
Pesquisa Escolar On-Line, Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em:
<http://www.fundaj.gov.br>. Acesso em: 19 set. 2009).
111
3.3.3 Poética Popular
Diferentemente das cantigas tradicionais que, por vezes, cumprem a função
de ornamentar a narrativa, os versos populares têm uma importância estrutural,
temática e documental, que o protagonista se vale das composições na
elaboração da sua própria narrativa, cuja temática retoma muitas aventuras narradas
pelos cordéis. Aliado a isso, certos folhetos são considerados documentos históricos
de caráter incontestável para Quaderna.
Dentre os cantadores mais citados encontramos Jo Melchíades Ferreira
25
(1869-1933), cantador real que é o mestre e iniciador de Quaderna na arte da
cantoria. Outro poeta popular de grande importância dentro do romance é Lino
Pedra-Verde, nome que sugere a inspiração em Lino Pedra-Azul, o Sertanejo. Este
último, cantador real, nascido na Parba em 1907 e falecido em 1962, que o autor
Ariano Suassuna admira, tendo Iluminogravuras
26
inspiradas em versos do poeta.
Leandro Gomes de Barros tamm é citado com estima por Quaderna: “Para mim, o
cantador Dom Leandro Gomes de Barros é tão importante para o Reino do Sertão
quanto, segundo Samuel, o trovador e Rei Dom Dinis foi importante para o Reino de
Portugal – ambos os Reinos pertencentes ao Império do Brasil!” (RPR, 2007, p.278).
No trecho, ele atesta a grandeza e concede um tratamento fidalgo ao cantador
chamado de “Dom”, em que aflora um dos principais traços do protagonista,
partidário de uma monarquia de esquerda”: enobrecer a classe dos cantadores, na
qual se inclui devido ao seu talento e a sua linhagem.
A partir de tal constatação, encontramos várias referências aos cantadores,
cujos versos contribuem para ilustrar poeticamente elementos para os quais a prosa
25
João Melquíades Ferreira, “o cantador da Borborema”, nasceu em 1869 e faleceu em 1933. Teve
destaque entre os cantadores de cordel, sendo um dos principais cantadores. Sua carreira militar é
expressa por Quaderna no Romance d’A Pedra do Reino e os versos dedicados à campanha de
Canudos são vistos como um documento histórico pelo protagonista (DIÉGUES JUNIOR, 1986,
p.139).
26
Iluminogravura é um neologismo criado para designar a junção das técnicas da iluminura e da
gravura. A iluminura provém de uma matriz erudita, pois era realizada pelos monges na Idade Média,
que adornavam as páginas dos manuscritos com motivos florais e geométricos, emoldurando o texto.
A gravura, por sua vez, de uso popular, aproxima-se da técnica da xilogravura que ilustra as capas
dos folhetos de cordel, em que o desenho é transposto para o papel a partir de uma matriz de
madeira. Tal fusão se assenta na proposta Armorial, de relacionar diferentes expressões artísticas.
112
de Quaderna parece insuficiente. Podemos observar nas sextilhas heptaslabas, de
rimas assonantes nos versos pares, a descrição da bandeira da Cavalgada. Desse
modo, os versos de Lino Pedra-Verde adquirem o tom documental, ao relatarem os
feitos e descreverem o acontecimento:
Dividida por dois Campos
- um Direito e outro Esquerdo –
tinha três Onças vermelhas
em campo de Ouro – o Direito –
e Contra-arminhos de prata
semeando o Campo negro.” (RPR, 2007, p. 39)
O conteúdo dos versos por vezes é ilustrado na narrativa, na forma de
xilogravura, enfatizando a conexão com a literatura popular dos folhetos. Assim,
além do uso da forma e da aproximação temática, ainda encontramos uma
identidade visual. As figuras concentram traços apreciados pelo protagonista, como
uma semelhaa com a arte heráldica. Maximiano Campos, no posfácio da Pedra do
Reino afirmou que quando lemos o romance suassuniano, “temos a impressão de
estar diante de um grande mural, em que o pintor usasse as palavras como se
fossem as tintas vigorosas da sua imaginação. E essas cores vêm revestidas
também de som” (CAMPOS, 2007, p. 746). Ampliando essa visão, por vezes vemos
as imagens concretas da narrativa que o autor compõe e se dá um processo
sinestésico ímpar que poucas obras proporcionam com tanta vivacidade, a
possibilidade de “sentir” a narrativa:
113
Figura 1
É interessante observar que, vistos na sua totalidade, os versos incorporados
à obra retomam cada ciclo do cordel teorizado por Ariano Suassuna. Por tal motivo,
a inspiração nos desafios mantidos na memória do povo é evidente na narrativa.
Notamos isso nos versos do cantador Jerônimo do Junqueiro, que Quaderna recita
para descrever um indivíduo que admira:
Perdi o acanhamento acadêmico a que tinha me visto obrigado, de modo
que, agora, para descrever melhor o Doutor Pedro Gouveia, posso e devo
lançar mão dos versos do genial Cantador Jerônimo do Junqueiro, nos
seguintes termos:
“Era magro e espigado
metido um tanto a pimpão.
Trazia Cruz ao pescoço,
trancelim, Colar, cordão.
Todo vestido de preto
- sela, bride, estribo, arção –
com seu Chapéu, também negro,
com a luz do Sol na mão,
de botinas-borzeguim,
passa-pé, como um Barão,
sobre o Colete cinzento
ajeitava o correntão.
No dedo da mão direita,
Seu Anel de condição.
No dedo da mão esquerda,
Um outro Anel, com Brasão.
114
Era um dele, outro emprestado:
Mau costume do Sertão!” (RPR, 2007, p.44-45)
Em Vaqueiros e cantadores (s.d), Câmara Cascudo atribui a Jerônimo do
Junqueiro versos semelhantes aos mencionados por Quaderna, nos quais são
expostas com detalhes a descrição e a indumentária de determinado sujeito:
Nesse tempo eu era limpo,
Metido um tanto a pimpão
Vesti-me todo de preto,
Calcei um par de calção,
Botei o chapéu na cabeça
E um chapéu de sol na mão:
Calcei os meus bruziguim,
Ajeitei meu correntão,
Nos dedos da mão direita
Levava seis anelão
Três meus e três emprestados:
Ia nessa condição... (CASCUDO, s.d., 158)
Na comparação de tais versos, notamos que a raiz popular de fato se
apresenta na literatura de Suassuna, pois, embora os versoso sejam exatamente
iguais, isso pode ser justificado pelo hábito dos cantadores de modificarem algumas
“obras feitasimprovisando alguns versos conforme a necessidade. Como fruto de
uma literatura oral ou que sobrevive pela oralidade, pela memorização dos versos,
algumas expressões poéticas podem sofrer variação quando, na falta da palavra
exata, o recitador lança mão de outra sinônima e de mesma sonoridade.
Na tentativa de esclarecer esse processo de (re)criação, Julie Cavignac
(2001, p. 23) explica que para evitar lapsos de memória durante a recitação de um
folheto, o locutor recorre a seus próprios termos, criando assim um novo texto,
diferente daquele que ele de ler ou do que lhe contaram”. É dessa forma que
percebemos a versatilidade do cantador e a flexibilidade do seu talento poético.
No entanto, uma diferença estilística entre ambos os fragmentos. Ao
mesmo tempo em que o primeiro lança mão de um tema comum, Suassuna
emprega um vocabulário simples, mas bem articulado, mantendo a prosódia, a
correção ortográfica e lexical, como é o caso de “correntão”, que rima com um
anelão e “brasão”. Já no segundo fragmento, de mesma temática, os recursos
poéticos são mais rudimentares, as flexões de número raramente são empregadas,
pois reproduzem a oralidade do cantador e também funcionam como uma licença
poética, adequando o termo à métrica da poesia e ao seu esquema rimário. Assim,
115
“correntãorima com seis anelão” e com condição”. Como a rima que permanece
do início ao fim da peleja é a dos versos pares, torna-se imprescindível deixá-la bem
marcada.
Dentre as influências recebidas por Quaderna, a dos cantadores populares é
tão relevante quanto a dos autores canônicos. Nesse sentido, o protagonista,
exageradamente laudatório, além de mencioná-los, ressalta a grandiosidade do
trabalho de tais artistas. Para isso, não expõe apenas a sua impressão, mas o ponto
de vista de João Melchíades em relação aos poetas que tomando a palavra,
humildemente, sugere uma performance ao introduzir no seu discurso um tom de
ensinamento:
-Pois com a permiso de Vossas Excelências, vou dizer alguma coisa
sobre Dinis e a nossa Arte! O Mundo é um livro imenso, que Deus desdobra
aos olhos do Poeta! Pela criação visível, fala o Divino invisível sua
Linguagem simbólica. A Poesia, além de ser vocação, é a segunda das sete
Artes e é tão sublime quanto suas irmãs gêmeas, a Música e a Pintura!
Vem da Divindade a sua essência musical. Mas, meu Senhores, ninguém
queira tomar como Poesia qualquer estrofe, pois muitas Poesias sem
estrofes e muitíssimas estrofes sem Poesia... Ser Poeta, não é somente
escrever estrofes! Ser poeta, é ser “geníaco”, um “filho assinalado das
Musas”, um homem capaz de se alçar à umbela de ouro do Sol, de onde
vestem de concreto o trajo particular da Idéia! (RPR, 2007, p.239, grifo
nosso).
No fragmento, Melchíades ao mesmo tempo em que define o fazer poético,
teoriza questões inerentes a esse talento: a poesia está no mundo, portanto, no
cotidiano que inspira o artista, cuja capacidade de percepção é atribuída à
inspiração divina, por conseguinte, imprime nesse dom algo de inexplicável.
Prosificando a poesia, o cantador emite juízos e alude à metáfora do mundo com um
livro, tão agostiniana quanto moderna ao gosto de Mallarmé. Assim, cabe ao poeta,
dotado de visão aguçada, perceber a poesia do mundo.
Outro ponto interessante a ser ressaltado diz respeito à ligação entre as artes.
Essa posição do cantador sugere traços de armorialidade no seu pensamento,
evidenciado na união entre as expressões artísticas. Além disso, a condição de
visiorio ou geníaco”, cultuada pelos românticos, a inclinação para a arte. Nessa
empreitada, Melchíades faz jus ao ofício quando descreve belamente o processo de
concretização da idéia em poesia: vestem [...] o trajo”, representando a
ornamentação da idéia com palavras. Assim, vestir de “concreto significa
116
materializar, tornar “pedra” cada bloco da construção do castelo poético, ou seja, a
idéia, a palavra e a forma perfeitamente associadas.
Ao definir a poesia, Melchíades emprega um tom retórico, uma tentativa de
convencimento de seus interlocutores Samuel e Clemente, avessos à arte popular.
Assim, a pontuação da frase, indica as pausas, a ênfase dada pelo poeta a
determinados pontos; e o emprego de um xico elaborado reflete a eloqüência do
poeta, a sapiência e a crença no que diz, evidenciada pela organizão lingüística
apresentada.
Nas declarações do poeta popular vêm à tona pontos de vista que assinalam
Quaderna como um predestinado à arte poética. Fato que se confirma pelo talento e
pela astrologia:
[...] andei estudando as posições situacionais e zodiacais do nosso Dinis, aí,
e cheguei á conclusão de que ele é o único Poeta, aqui do Cariri, que reúne
as qualidades de Poeta de estro, de Pacto, de ciência, de memória, de
sangue e de planeta! Pedro Dinis Quaderna nasceu a 16 de Junho de 1897,
na terceira década do signo de Gêmeos, tempo no qual, segundo os livros
de Astrologia, “pode nascer um nio verdadeiro”, sendo as pessoas
nascidas afetuosas e inconstantes, mas assinaladas e terríveis”. O
Planeta desse signo, é Mercúrio, astro que, segundo o Lunário Perpétuo,
tem domínio “sobre os Poetas-escrivães, letrados, Pintores, ourives,
bordadores, tratantes, diligentes e mercadores, sendo de notar que, quando
predominância das influencias maléficas, parecem entre os de Gêmeos
“os charlatães, Palhaços, embusteiros, ladrões, estelionatários e
falsificadores”! (RPR, 2007, p.240).
O fragmento é relevante na análise empreendida por mostrar diversos
aspectos relacionados ao protagonista. Primeiramente, trata-se de um sujeito
nascido em um dia favorável àqueles que m impulsos para a genialidade.
Ironicamente, 16 de junho de 1927 é o dia do nascimento de Ariano Suassuna, trinta
anos as o nascimento de Quaderna, portanto três décadas mais novo. Isso sugere
que o dom de Quaderna pode ser estendido ao seu criador, evidenciando nesse
fato, uma coincidência entre ambos e uma brincadeira proposital do autor, que joga
constantemente com similaridades desse tipo. Além do gracejo que o fragmento
evidencia, surgem semelhanças mais concretas entre ambos: a sensibilidade para a
arte, o bom uso das palavras e o gosto pela ornamentação. No entanto, como uma
das influências maléficas do zodíaco sobre os nascidos na referida data, salta aos
olhos um traço definidor de Quaderna: a postura de palhaço e de embusteiro,
conforme foi mencionado. Nesse sentido, as palavras do poeta, baseadas no
117
Lunário Perpétuo, que faz as vezes de enciclopédia do povo, dão validade ao talento
do protagonista quando expostos por essa terceira voz, demonstrando que o recurso
de citar opiniões alheias se configura tanto na forma de um saber acadêmico, quanto
na forma de sabedoria popular.
No impulso de orientar os apreciadores da literatura dos folhetos, o discípulo
Quaderna teoriza utilizando as palavras do mestre:
Existe o Poeta de loas e folhetos, e existe o Cantador de repente. Existe o
Poeta de estro, cavalgação e reinaço, que é o capaz de escrever os
romances de amor e putaria. Existe o poeta de sangue, que escreve
romances cangaceiros e cavalarianos. Existe o Poeta de pacto e estrada,
que escreve romances de espertezas e quengadas. Existe o Poeta de
memória, que escreve os romances jornaleiros e passadistas. E, finalmente,
existe o Poeta de planeta, que escreve os romances de visagens, profecias
e assombrações (RPR, 2007, p. 239).
A partir dessa exposão, estabelecemos uma conexão com a síntese inicial
da obra, na qual as expressões poéticas supracitadas são condensadas. Nelas
percebemos o diálogo entre as divisões estabelecidas em cada área temática da
rude poética. A enumeração fornece subsídios para que o leitor identifique cada um
desses traços na composição de Quaderna, percebendo a consonância da divisão
de Melchíades e a classificação proposta por Ariano Suassuna. Ao observarmos a
exposição de Manuel Diégues Junior (1986, p.59), em Literatura Popular em Verso,
vemos que houve um encaixe entre as narrativas históricas que chegaram ao Brasil
e os contos populares, envolvendo também velhas narrativas tradicionais. Isso
confluiu na literatura de cordel, que reproduziu o que a memória do povo cultivou por
gerações. Tal afirmão reforça sua relevância quando percebemos nas palavras do
protagonista uma exemplificação prática da constatação do estudioso.
A alusão ao ciclo heróico se faz presente no folheto XII, “O Reino da Poesia”.
Nele, Quaderna recorda a sua iniciação na arte dos versos na escola de João
Melchíades, onde aprendeu “a Arte, a memória e o estro da Poesia”. O cantador
escolhia os meninos mais talentosos para ensinar e dentre eles percebeu que Lino e
Quaderna se sobressaiam, pois tinham vocação para a Arte”. Quaderna relata que
João Melchíades ensinou-lhes os dois tipos de “romances” que haviam: o ”versado e
rimado” e o “desversado e desrimado”, em poesia ou em prosa. Em tal prática, os
aprendizes eram obrigados a “pegar um romance desrimado qualquer e ‘versá-lo’,
contando em verso o que era contado em prosa” (RPR, 2007, p. 92).
118
A História de Carlos Magno e os Doze Pares de França, um “romance
desversado” que “encantava pelo heroísmo de suas cavalarias, aquelas histórias de
Coroas e batalhas” (RPR, 2007, p. 92), surge como um dos exercícios dos meninos.
Cascudo (1953, p. 441) expõe que o livro sobre as façanhas do imperador e de seus
pares foi o mais conhecido pelo povo interiorano que habitava as fazendas, os
engenhos, as residências fixadas no litoral, sendo, por vezes, o único livro impresso
existente na casa. No entanto, na cidade a sua popularidade era escassa. Dessa
convivência do povo com tal literatura, surgiram adjetivos utilizados até hoje, como
Valdevinos para designar um malandro; Galalão ou Galalau, denominando o homem
muito alto e magro; Ferrabrás, como símbolo do briguento; e Roldão, caracterizando
o homem valente.
De tal modo, por meio dos posicionamentos sociológicos e ficcionais,
percebemos o porquê da familiaridade com a figura de Carlos Magno, pois, mais do
que um herói, ele se tornou um símbolo de bravura. As características heróicas
foram imitadas em manifestações culturais, como as cavalhadas, citadas ao longo
da obra. Quaderna ainda ressalta que diversos cantadores versaram a história de
Carlos Magno, conhecimento que lhe foi passado pelo seu mestre João Melchíades
na sua versão da história:
“Depois que o rei Carlos Magno
venceu a grande Campanha.
Fez a Igreja de Sant’Iago,
padroeiro da Espanha,
e a de Nossa Senhora,
em Aquisgrã, na Alemanha.
Tomou dezesseis Cidades,
da Guerra saiu feliz!
Deu muitas graças a Deus
por conquistar um País:
Foi visitar Alemanha,
daí tornou a Paris (RPR, 2007, p. 90-93).
Somando-se a isso, um elemento que confirma a incontesvel presença de
Carlos Magno na literatura popular é o fato de grande parte dos estudos centrados
nessa literatura lançarem um olhar atento à figura mítica do herói. Câmara Cascudo
recorda que o original em francês intitula-se Conquêtes du Grand Charlemagne e
data de 1485. As reimpressões européias chegaram ao território nacional no período
colonial e “segue no Brasil seu curso ininterrupto(1988, p.197), sendo recriadas por
cada geração de cantadores.
119
Na visão de Idelette Muzart Fonseca dos Santos (2009, p. 108), os folhetos
de Carlos Magno constituem um exemplo de romance em prosa, adaptado para a
literatura em verso dos cantadores. Assim, fornece o fio narrativo, as personagens e
a história, que são versejados e, não raras vezes, são adaptados ao contexto
sertanejo, tendo neles introduzidos, elementos inventados pelo cantador em uma
“reelaboração livre do texto em prosa” (2009, p. 109). Entretanto, essa reinvenção é
uma prática legítima, já que as histórias pertencem a todos, rompendo com a idéia
de plágio.
Portanto, o uso dessa literatura evidencia que, mais que uma mera referência,
os versos populares estão conectados à estrutura da obra, na qual figuram
naturalmente, diferente das cantigas que são apenas citadas, com o intuito de
comprovar a erudição. A figura de Carlos Magno, sobretudo, tem ainda uma
ilustração, semelhante à xilogravura que ilustra a capa dos cordéis:
Figura 2
A presença da ilustração de Carlos Magno dentre tantas contidas na obra,
além de ser uma maneira de tornar o romance de Quaderna mais completo, reitera a
importância da literatura popular no corpo do romance-enigmático”, bem como d’A
120
Pedra do Reino. Acerca desse uso, Santos (2009, p.206) expõe que tais gravuras
o elaboradas com técnicas bastante semelhantes à xilogravura, e isso pode ser
notado na imagem plana, sem perspectiva, com uma delimitação entre os desenhos
pretos e brancos. E, o que resulta como um dos fatores mais interessantes dessa
prática é o fato de serem elaborados pelo próprio Ariano Suassuna, que desejava
que os desenhos fossem creditados a uma personagem da obra, Taparica Pajeú-
Quaderna. Assim, do ponto de vista técnico, conforme a autora, os desenhos e
xilogravuras não implicam em inovações na perspectiva do folheto. Já do ponto de
vista literário, esse uso demonstra a originalidade de Ariano Suassuna, bem como
sua prática armorial de unir as artes, por fazer uso de tais figuras integradas à
narrativa. Portanto, as imagens conquistam uma peculiaridade embletica, pois
o romances ou narrativas que ilustram como discurso intermediário, articuladas ao
discurso principal (VAN WOENSEL apud SANTOS, 2009, p. 206).
No ciclo heróico da literatura popular, a figura do cangaceiro conquista
expressividade. A presença da temática especificamente nesse ciclo atesta uma
contradição: como um bandido torna-se um herói? Ronald Daus (1982, p. 20) revela
em O ciclo épico dos cangaceiros na poesia popular do nordeste que esse é um
tema estritamente nordestino. A caracterização discursiva dos folhetos desse ciclo
mostra, diferenciando-se de todos os outros, que os versos sobre cangaceiros
empregam, geralmente, a primeira pessoa do singular, resguardando o poeta de
qualquer represália. Devido a isso, sendo sujeitos descritos com bravura, deu-se a
identificação dos leitores com os homens violentos convertidos em matéria poética.
Ao discorrer sobre a evolução histórica e sociológica do cangaço, Daus (1982,
p. 25) mostra que o cangaceiro foi uma evolução do sujeito agregado a uma família
patriarcal. Essa necessidade se fundou na época da sociedade açucareira com os
nobres que o obtiveram os resultados esperados na exploração do açúcar, e que
receberam terras no sertão como uma prática indenizatória. Os fazendeiros,
proprietários recém-nomeados pelo Rei de Portugal, “penetravam com suas próprias
tropas no interior do país e tomavam para si as fazendas que lhes tinham cabido na
partilha”. Com o passar do tempo, mesmo após o índio ter sido derrotado, o
fazendeiro não abdicou dessa força particular de defesa, que serviu de proteção em
conflitos posteriores com outras famílias, na luta de partidos políticos adversários,
que, geralmente era conduzida de maneira brutal. Nos conflitos políticos, quem tinha
a pocia e a justiça ao seu lado tinha proteção, entretanto, “se a oposição chegasse
121
ao poder na região, mudariam os conceitos. O antigo rebelde tornava-se
representante da ordem, podia dispor da polícia, da justiça e do direito”. Portanto,
em tal sociedade o vigoravam valores objetivos, conceitos morais eram
relativizados e serviam à política da situação. A justiça do sertão era uma justiça
parcial (DAUS, 1982, p. 26).
Em consonância com essa explicação, Oliveira Vianna define que dentro da
família senhorial, havia o clã parental como um de seus ramos. O autor coloca que
no grupo doméstico eram incluídos os chamados “criados do senhor”, no sentido do
direito feudal, ou seja, tais pessoas eram incorporadas às famílias dos senhores
como homens da sua criação ou como “protegidos”. Nessa classe, estavam os
afilhados, que eram educados pelo padrinho e que residiam com ele (VIANNA, 1955,
p. 255). O modelo, conforme o estudioso, o foi herdado de Portugal, mas se
formou no Brasil e se consolidou através dos séculos. Esse círculo parental era
motivo de orgulho para os integrantes e, na falta do líder da família, a substituição
pelo filho mais velho era a prática comum, pois o herdeiro recebia o que o pai tinha
de mais valioso: o cargo, as posses, as vestes, como, por exemplo, o gibão de
couro. A altivez de pertencer à família, não podia ser compreendida como
arrogância, mas como “uma satisfação quase ingênua de pertencer às linhagens
hisricas da região” (VIANNA, 1955, p. 257). É oportuno esclarecer que o c
parental, originado de uma família senhorial, atuava principalmente em defesas
contra inimigos, em lutas de famílias rivais, em eleições ou formões partidárias; e
embora existisse o orgulho de pertença, a coesão parece não ter se configurado.
Ainda teorizando a questão do clã, Vianna (1955, p. 261) atesta que,
organizadas essas famílias, surgiu também a necessidade de utilizar esses grupos
na defesa contra os senhores territoriais adjacentes. Dos clãs parentais definidos por
Vianna, os Albuquerques e os Cavalcantis, citados também por Gilberto Freyre
como duas nobiliarquias nordestinas, conectam-se não somente aos livros de
sociologia, mas à literatura suassuniana.
Associando as informões anteriores à teorizão de Daus a respeito do
cangaceiro, percebemos como se a formação desses sujeitos. Dentro de uma
sociedade provinciana, onde diferentes tipos de clãs organizam-se, um poder
ilegítimo é institucionalizado pelos clãs como uma estratégia de defesa, poder que
com o tempo, passa a atuar por conta própria, consolidando o cangaço.
122
A partir do diálogo proposto entre Oliveira Vianna e Ronald Daus, é possível
compreender a postura de Quaderna no Romance dA Pedra do Reino. O narrador e
protagonista da obra luta para resgatar a posição de destaque que julga ser sua,
tanto por direito de herança, quanto pelo seu talento de poeta, conforme foi
mostrado. Quaderna, inserido em uma espécie de família senhorial e de clã parental,
fala de lutas, de armas, de emboscadas, engrandecendo esses atos, mas se auto-
descreve como um sujeito sem disposição para as armas, sendo incapaz de acertar
um alvo e frisando ao seu interlocutor – o Corregedor e os “nobres Senhores e belas
Damas de peitos brandos” que quando uma boa caçada se dá, é em decorrência
de um golpe de sorte.
No romance em análise, muitos versos relembram os cangaceiros Antonio
Silvino, o ambíguo Jesuíno Brilhante, o lendário Lampião, e, assim, a tríade do
cangaço figura na obra como ilustres sertanejos. Jesuíno Brilhante é um sujeito
retratado ambiguamente pela literatura de cordel. A caracterização de Jesuíno na
obra confirma essa proposição, pois o que vemos é um cangaceiro humanizado por
suas práticas, que contrasta com os relatos históricos acerca de tais figuras de
crueldade ímpar. Assim, eles têm os sentimentos apaziguados, as ações
abrandadas ou justificadas por uma causa plausível, tornando-se modelos de
heroísmo. É na recordação das cantorias da Tia Filipa com Maria Galdina que
Quaderna relembra um abecê
27
cantado por elas e composto por João Melchíades:
Mas sabiam também romances e cantigas de Cangaceiros, tendo grande
estima pelo Abecê de Jesuíno Brilhante. Ambas admiravam muito esse
Cangaceiro, a quem consideravam “o mais corajoso e cavaleiro do Sertão,
um Cangaceiro muito diferente desses Cangaceiros safados de hoje em dia,
que não respeitam as famílias”, como dizia a Velha do Badalo, com plena
concordância de Tia Filipa. [...] Lembro-me bem que havia uma estrofe que
dizia:
Jesuíno já morreu!
Morreu o Rei do Sertão!
Morreu no campo da honra,
Não entregou-se à prisão,
Por causa de uma desfeita
Que fizeram a seu irmão!” (RPR, 2007, p.91).
Talvez por isso, na seqüência de fragmentos vemos ilustrado o percurso da
literatura popular: as duas mulheres representado o povo, cantam de memória os
27
Abecê é uma modalidade poética do cordel na qual cada verso (equivalente a estrofe na literatura
de cordel) inicia por uma letra do alfabeto.
123
versos de João Melchíades. Em um movimento ininterrupto, os versos são
incorporados ao imaginário de Quaderna, que, devido à estima ao cantador e a
importância atribuída aos versos, guarda-os na memória como uma “obra feita
28
para, posteriormente, reelaborá-la conforme o gosto popular:
“Dom João Quaderna morreu,
morreu o Rei do Sertão!
Morreu no Campo Encantado,
Sofrendo degolação!
Pedro Antônio assassinou-o,
Subiu ao Trono do irmão!” (RPR, 2007, p.91).
Percebemos a importância atribuída ao cantador, mas algo chama ateão,
pois embora tenha relevância tamanha para ser citado, Quaderna não revela seu
gosto próprio, mas a apreciação de Galdina e coloca entre aspas o
posicionamento particular da mulher, descomprometendo-se de qualquer juízo
duvidoso. Jesuíno é considerado Rei do Sertão”, um homem de brio, ainda que
tenha optado pela prática do cangaço.
Diégues Junior destaca que na literatura popular escontido o espírito da
sociedade. Por isso, muitas vezes, velhas narrativas transmitidas tradicionalmente
se enriquecem de comentários avaliativos, conforme o caráter das personagens.
Assim, define que como que uma incorporação da figura do herói ou bandido,
vítima ou criminoso aos próprios valores de julgamento do meio social” (DIÉGUES
JUNIOR, 1975, p. 21).
Ao compararmos a intensidade da figura do cangaceiro no Romance d’A
Pedra do Reino e em Pedra Bonita, de José Lins do Rego, por exemplo, deparamo-
nos com tratamentos desiguais. Na narrativa suassuniana, o cangaceiro é
sublimado, enquanto o fanático religioso é demonizado. em José Lins,
demarcando esse contraste, no contorno do cangaceiro vemos a constante revolta
contra a sociedade e a polícia, aliado ao desejo de vingança contra os poderosos:
-A vida no grupo é ruimcontinuava Aparício. –A gente come fogo. Tu não
sabe o que é passar quinze dias por aqui, comendo carne seca com farinha.
28
Obra feita são versos elaborados dos quais o cantador faz uso em emergências; geralmente
evocam conhecimentos eruditos, demonstrando a erudição que o cantador aprende lendo, quando é
alfabetizado, e ouvindo o que os outros lêem, quando não sabe ler. Essa “ciência” do povo é fruto do
contato com os romances tradicionais, alguns volumes sobre geografia ou história sagrada, e, não
menos importante, o Lunário Perpétuo, talvez a mais importante fonte dessa erudição (DIÉGUES
JÚNIOR, 1975, p. 19).
124
Se não fosse os imbus, eu nem sei como se vivia. Tive até vontade de ir me
entregar em Dores. Mas pensei. Eles me matavam. Pra morrer, eu morro no
cangaço. A vida é danada Domicio, mas a gente agüenta. Outro dia s
demo um fogo pra lá da Vila Bela. Morreu dois dos nossos. A tropa era
grande. Tivemo que correr cinco dias e cinco noites sem parar. Comendo e
bebendo sem parar um minuto. Nesta carreira viemo parar aqui [...]. O
sargento de Dores vem por esses dias na fazenda do coronel Gomes. O
chefe já sabe teve notícias dessa diligência. O coronel é amigo do chefe.
Vai ser uma carniça dos diabos. [...] E nos vamos nos entrincheirar nos
lajedos lá em cima. Tu vai saber da desgraça (REGO, 1973, p. 156).
O fragmento é um exemplo preciso da prática do bando. Na árida geografia,
as privações são maximizadas: ocorrem as constantes fugas, o embate ferrenho
contra as autoridades, a troca de favores com certos coronéis, citados por Aparício.
Nesse ponto, vemos a diferença marcante entre as duas narrativas e, mais uma vez,
temos um exemplo de transfiguração do cangaceiro na literatura suassuniana, que
dá lugar aos versos ficcionais, mais do que à “realidade rasa” do grupo de sertanejos
errantes, assim como a prosa regionalista se ocupou.
Outra exposição da poesia popular na narração de Quaderna se configura no
Ciclo do Maravilhoso, reconhecido pela temática baseada no sobrenatural.
Exemplos de versos dessa ordem evidenciam o espanto de Lino Pedra-Verde diante
de um encontro com o diabo. Em uma atmosfera misteriosa, sob um eclipse solar,
surge diante de Lino a visão de um Cavaleiro Diabólico, cujos olhos dissipavam
“uma Luz vermelha e outra verde que se ajuntavam ao fogo da Estrela para tamm
queimar o chão”. Quando o cavaleiro se aproxima, Lino que “seus lábios
arregaçados o conseguiam cobrir os enormes dentes de cachorro e de sua boca,
a modo de línguas, saiam sete Cobras-corais” (RPR, 2007, p.210). Tamanho foi o
seu espanto que Lino pensou “se não houvesse uma intervenção rápida do Céu,
estaria perdido”, por isso rogou: “- Valha-me Nossa Senhora, Mãe de Deus!”. Nesse
momento, Lino sentiu a presença de um ser que não teve coragem de encarar, que
disse ter chegado o tempo da penitência, o Juízo Final, mas que deu coragem
suficiente ao cantador para escapar daquela situação. Lino, à medida que se
acalmava, sentia que “o fogo da Poesia começava a incendiar seu juízo”, assim, deu
forma poética à cena:
“Lá no campo, eu vi um Anjo:
tinha Faces de carmim,
tinha Asas de navalha,
chegou pra perto de mim
e disse: - Faz penitência,
125
que o mundo já chega ao fim!
[...]
Aí eu baixei a vista,
o Mundo se escureceu!
O Sertão todo agitou-se,
O Mar, lá longe, gemeu,
O Céu ficou encarnado,
Embaixo a Terra tremeu!
Vi uma Estrela baixar,
Fiquei tremendo, assombrado.
O Povo todo do mundo
Correu, gritando, assustado.
Diziam: - Valha-me a Virgem,
A Mãe do Verbo Encarnado!” (RPR, 2007, p.211-212).
Nessa viva descrição, é interessante perceber que o poema de Lino
demonstra ambigüidade em relação aos seres misteriosos, pois o anjo tem algo de
diabólico em si: as asas de navalha e faces de carmim, evidenciando
desconformidade em relação ao modelo de anjo difundido pela arte renascentista e
barroca. Além disso, o ser místico surge como um prenúncio do final dos tempos
pronunciando: “faz penitência que o mundo chega ao fim”. Notamos na segunda
estrofe uma espécie de agitação total que se dá no universo, configurados no sertão,
no u, no mar, na terra, espaços que o sertanejo parece não dimensionar. Os
verbos confirmam o assombro de Lino, que transparece na sua falta de ação um
misto de inércia e pavor: “baixei a vista”, fiquei tremendo assombrado” frente ao ser
que não teve coragem de olhar. Assim, diante de tamanho pavor, a única solução é
a intercessão divina de Nossa Senhora, “a mãe do Verbo Encarnado”. Essa entidade
mística figura nas produções suassunianas como A rainha do meio do dia”, do
Velho Testamento, torna-se uma a protetora dos povos escuros, sujos e magros,
logo, também é a protetora de Lino.
A partir da descrição do cavaleiro diabólico, Taparica faz uma xilogravura, que
é anexada ao depoimento de Quaderna, pois é parte dos acontecimentos
misteriosos que marcam o dia da chegada do Rapaz-do-Cavalo-Branco. As sextilhas
heptassílabas elaboradas por Lino expressam a sua visão e apresentam os
acontecimentos em ordem direta, evidenciando o estilo típico dos versos populares:
uma narração dos fatos, sem profundidade psicológica, mas plasticamente
impecável.
126
Figura 3
Dentro dessa temática calcada no maravilhoso, encontramos na obra uma
prosa poética carregada de simbolismos que parece ter conexão com o ciclo
analisado, trata-se de uma transcrição de Quaderna, das palavras gravadas com
fogo por um ser fantástico feminino, personificação da morte, que ele visualiza horas
antes de prestar depoimento ao Corregedor. Contidas no Folheto XLIV, “A Visagem
da Moça Caetana”, tais palavras surgem em um sonho quase real do protagonista,
detalhadamente descrito como uma imagem viva que se confunde com a realidade:
[...] entrava na sala da Biblioteca uma moça esquisita vestida de vermelho.
O vestido, porém, era aberto nas costas, num amplo decote que mostrava o
dorso felino, de Onça, e descobria a falda exterior dos seios, por baixo dos
braços. Os pêlos de seus maravilhosos sovacos não ficavam neles: num
tufo estreito e reto, subiam a doce e branda falda dos peitos, dando-lhes
uma marca estranha e selvagem. Em cada um de seus ombros pousava um
gavião, um negro, outro vermelho e uma Cobra-coral servia-lhe de colar.
Ela me olhava com uma expressão fascinadora e cruel (RPR, 2007, p. 305).
Ao analisá-la, é importante mencionar que a descrição simétrica e plástica da
figura feminina assemelha-se às iluminogravuras de Ariano Suassuna, tanto na
temática, quanto na ilustração. Conforme Newton Junior é fácil perceber que as
Iluminogravuras estão ligadas ao universo popular, pois, para o estudioso, o trabalho
127
de Suassuna pintor e gravador seguem os princípios da pintura e da gravura
armoriais, inspirados na xilogravura nordestina. Assim, para o autor:
Afirmar o parentesco entre das ilustrações com nossa xilogravura popular, é
o mesmo que afirmar seu parentesco com todos os ciclos de arte pré-
clássicos e anti-clássicos de todo o mundo. Parentesco que reside na
ausência da perspectiva, na despreocupação em relação à anatomia, nos
desenhos chapados, nos traços toscos e fortes, na profundidade e relevos
apenas indicados, enfim, na intenção de se afastar da descrição mais
próxima do real, ou até de uma representação ideal do real, características
das formas de arte tradicionalmente ligadas ao Belo (NEWTON JÚNIOR,
1999, p. 134).
Desse modo, ainda que algumas posições do estudioso possam ser
relativizadas na comparação empreendida, ressaltamos o fato de uma criação
fantástica, evidentemente inspirada na expressão popular, tomar forma na narrativa:
Figura 4
29
Com relação à figura mítica da Onça Caetana, representação da morte,
descrita n’A Pedra do Reino e retratada plasticamente na Iluminogravura, inferimos
que existem algumas constantes que ligam as duas, além das semelhanças
29
SUASSUNA, Ariano. A morte A Moça Caetana. Disponível em: www.
poemia.wordpress.com/.../a-morte-a-moca-caetana/ Acessado em: 16 de jan. 2009.
128
aparentes como o nome. Ao lermos as palavras grafadas com fogo, percebemos
uma espécie de julgamento prévio, no sonho de Quaderna:
A Sentença já foi proferida. Saia de casa e cruze o Tabuleiro pedregoso. Só
lhe pertence o que por você for decifrado. Beba o Fogo na taça de pedra
dos Lajedos. Registre as malhas e o pêlo fulvo do Jaguar, o pêlo vermelho
da Suçuarana, o Cacto com seus frutos estrelados. Anote o Pássaro com
sua flecha aurinegra e a Tocha incendiada das Macambiras cor-de-sangue.
Salve o que vai perecer: O Efêmero sagrado, as energias desperdiçadas, a
luta sem grandeza, o Heróico assassinado em segredo, O que foi marcado
de estrelas - tudo aquilo que, depois de salvo e assinalado, será para
sempre e exclusivamente seu. Celebre a raça de Reis escusos, com a
Coroa pingando sangue; o Cavaleiro em sua Busca errante, a Dama com as
mãos ocultas, os Anjos com sua espada, e o Sol malhado do Divino com
seu Gavião de ouro. Entre o Sol e os cardos, entre a pedra e a Estrela, você
caminha no Inconcebível. Por isso, mesmo sem decifrá-lo, tem que cantar o
enigma da Fronteira, a estranha região onde o sangue queima aos olhos de
fogo da Onça-Malhada do Divino. Faça isso, sob pena de morte! Mas
sabendo, desde já, que é inútil. Quebre as cordas de prata da Viola: a
Prisão já foi decretada! Colocaram grossas barras e correntes ferrujosas na
Cadeia. Ergueram o Patíbulo com madeira nova e afiaram o gume do
Machado. O Estigma permanece. O silêncio queima o veneno das
Serpentes e, no Campo de sono ensangüentado, arde em brasa o Sonho
perdido, tentando em vão reedificar seus Dias, para sempre destroçados
(RPR, 2007, p. 306).
Visualmente, a distribuição simétrica dos versos, dispostos em forma
triangular esquerda, à direita e ao centro) equilibram-se perfeitamente às
ilustrações centralizadas no desenho e obedecem a ordem crescente. A prosa traz
elementos concretos representados na figura como as macambiras
ensangüentadas, os seios a mostra, a coroa e as asas. Circundando a ilustração
um contorno que sugere a pele de cobra, rubra e negra. Somando-se a isso, um
traço semelhante aparece no peito da figura feminina, talvez simbolizando o colar
descrito no sonho de Quaderna. perfeita harmonia entre o xico empregado no
poema e na prosa do Romance d’A Pedra do Reino, corroborando a conexão entre
ambas expressões artísticas. Ainda é importante mencionar a simetria dos versos
que se concretiza na sonoridade dos mesmos proporcionada pelas rimas, podendo
ser associada à figura que o ilustra e à prosa poética presente no romance.
Tal sentença apresenta-se como um resumo de toda a narrativa, pois,
metaforicamente, faz menção aos diversos temas desenvolvidos: o suposto
envolvimento de Quaderna na morte do tio, presente na frase “a Prisão foi
decretada”; mencionando tacitamente o sebastianismo da sua família, a Moça
129
Caetana lavra com palavras de fogo “o Estigma permanece”, definindo o
protagonista como um sujeito maculado por essa crença.
Ao abordarmos as referidas semelhanças, objetivamos mostrar mais uma
forma de agregação do popular no erudito, o somente no plano da poesia, mas,
sobretudo no imagético. Ressaltamos ainda que esse tema é uma das constantes na
poesia suassuniana, pois foi largamente empregado como mote de poemas,
ilustrações e de personagens que adquirem caracteres de símbolo.
Na literatura de cordel o Ciclo Religioso e de Moralidades pôs em evidência a
tentativa de edificar o homem. No Romance dA Pedra do Reino, a citação de alguns
versos de caráter popular denota a conexão com a literatura ibérica por meio dos
temas, da hierarquia entre o celestial e o terreno, entre Deus e o seu semelhante,
expressos em uma linguagem simples e fluente. Um exemplo dessa hierarquia es
nos versos de João Melchíades, mencionados por Quaderna para explicar a criação
humana. Neles, existe uma concepção trágica de que o homem erra” no mundo,
depois de uma distração divina:
Foi no começo da Tinha,
da Peste ao combate louco:
Deus foi, distraiu-se um pouco,
perdeu o fio da Linha!
O Homem, divino, vinha
na Estrada do Sol do Mundo.
Na luz do Sol moribundo
bateu-se com a Bicha Estranha,
e a feiticeira Castanha
o encantou, no Profundo!
Agora, encantado a fundo,
erra entre os pêlos da Sonsa
que é Fêmea, que é Parda, é Onça,
que ele não vê porque é baixo
e que, julgando que é Macho,
ungiu com o nome de Mundo!” (RPR, 2007, p.538).
O caráter trágico presente na poesia de Suassuna es vinculado geralmente
à figura paterna, ao tema da morte e da submissão do homem a uma força superior,
demonstrando a conexão com o Barroco, sobretudo o espanhol. Carlos Newton
nior (2000, p. 143) bem nota esse traço quando afirma que os sentimentos
trágicos que aparecem nos primeiros poemas do autor permanecem pulsando na
totalidade da sua poesia. Nesse sentido, “em alguns poemas, Suassuna pode até
apresentar uma visão otimista, sem no entanto deixar de lado a constatação coletiva
130
da tragédia humana”. Assim, dentre as influências da carga trágica presente nas
produções poéticas, está a morte do pai, pois, após essa perda, o sujeito lírico da
poesia suassuniana, mais alter-ego que Quaderna, menciona: “Nunca mais fui o
mesmo, pois a marca,/ ao sol cruel do Sono, me apontou./ Mas se fui para sempre
assinalado,/ achei o Veio, a chama do Tesouro,/ que a Morte é sonho, a Vida é fogo
e treino. (SUASSUNA apud NEWTON JÚNIOR, 2000, p. 143). Desse modo,
Newton Júnior conclui em sua leitura que não se pode fugir da morte, mas através
da Arte, pode-se ao menos combater o desespero de uma vida sem sentido”
(NEWTON JUNIOR, 2000, p. 143), por isso, a brevidade do ser humano pode ser
também uma fonte de inspiração para a poesia, sendo a vida transitória um treino”
para uma eternidade de sonho.
Nos versos contidos no romance, uma série de ações que alegorizam o
pecado original e as conseqüências disso: Deus se distrai e o homem puro segue
seu caminho, ao se deparar com a Bicha Estranha, a mulher, encanta-se por ela e
comete um erro, falha que o leva a vagar pelo mundo. Esse espaço, de acordo com
os versos e com as histórias contadas por Tia Filipa, é feminino, logo, é mais
perigoso e tentador:
Com os poderes de encantação fêmea que tinha, a Bicha envolveu o
Homem e encantou-o, diminuiu ele de tamanho, até transformá-lo num
homem, e então, quando ele estava do tamanho de um piolho em relação a
ela, soltou-o entre seus pêlos, para ele viver ali agarrado, como um
carrapato. É por isso que todos nós, agora, vivemos assim, agarrados,
chupando o sangue do mundo e errando por entre seus pêlos (RPR, 2007,
p. 537).
Ainda é relevante ressaltar que os fragmentos são adequados para
comprovar uma religiosidade que se traduz no senso de inferioridade a uma
instancia divina. Evidenciando e difundindo esse pensamento, o poeta cobra uma
postura tipicamente cristã de moderação e de prudência diante da vida. E mostra,
por meio de uma linguagem pouco rebuscada, um pensamento em acordo com uma
fé incontestável.
Na obra, encontramos alguns romances de exemplo que trazem personagens
inusitadas como, por exemplo, o folheto O Encontro de Antonio Silvino com o
Valente Nicácio, cuja autoria não é mencionada. O que chama atenção é o fato de
ser um romance com um protagonista cangaceiro, no entanto, concentrar em si uma
131
reflexão de caráter edificante, que tem como base a doutrina cristã. Por isso,
Melchíades define tal reflexão como “filosófica, filantrópica e litúrgica até o osso”:
Neste Planeta terrestre,
o Homem não se domina:
tem que viver sob o jugo
da Providência Divina.
Foi feito do Pó da terra,
No Pó da terra termina!
Assim, eu mostro a estrada
Do Passado e do Presente,
Estrada onde morrem Reis
Molhados de Sangue quente!
Hoje, tornados em Pó,
Resta a Memória, somente! (RPR, 2007, p.101).
Nos versos simples, reside o tema da efemeridade da vida, o homem que veio
do e que ao voltará, que perdura apenas na memória do povo, por isso a
necessidade de agir bem. Assim, vemos nesse ciclo, ecos de um pensamento
cristão difundido no interior do país, ainda que isolado, os sujeitos dessa geografia
vivem e pregam tal doutrina.
Para analisarmos mais um ciclo do cordel presente no romance, destacamos
um posicionamento do protagonista, bastante esclarecedor da sua psicologia e do
seu estar no mundo. Com um tom trágico, Quaderna declara que seu senso de
humor é uma arma para enfrentar as crueldades que percebe ao utilizar uma forma
realista de ver as coisas:
Pensam que eu rio por alegria, ou então, por escárnio e deboche. Mas
que alegria posso ter, sem ser Imperador do Brasil e sabendo que meu riso
provem de uma tentação? Meu riso também não era de desespero: é
apenas que eu vejo a Danada em todos os seus aspectos! Foi, felizmente,
nesse tempo, que me caiu nas mãos um livro do genial escritor paraibano
Humberto de Nóbrega a respeito de Augusto dos Anjos. Li, nesse livro, que
os Poetas que m “a preocupação de cantar a Dor universaltêm uma
espécie de face bifronte: por um lado o “facetos, êmulos de Gregório de
Mattos na arte de chasquear”; por outro, vêem na alegria e na tristeza a
sua única saúde”. Um Poeta desse tipo é, segundo Humberto da brega,
ao mesmo tempo “patético, trágico, burlesco e espirituoso”; é um “fescenino
e irreverente” e também um hipocondríaco que padece de melancolia (RPR,
2007, p.540).
Mesmo que reconheça a face trágica da existência, Quaderna concentra a
alegria pícara dos anti-heróis Pedro Malasarte, João Malasarte, João Grilo e Cancão
de Fogo. Transpondo a asserção dirigida à poesia de Suassuna para a postura do
ser ficcio Quaderna, percebemos que “a Arte aparece como uma saída temporária
132
para o tormento humano d a importância de sonhar e cantar” (NEWTON
JÚNIOR, 2000, p. 142). Essa atitude se concretiza na afeição da personagem pelos
folhetos e pela proximidade natural com o ciclo Cômico, Picaresco e Satírico que
“esses quengos-estradeiros, isto é, pessoas de bom quengo para enganar os outros”
(RPR, 2007, p.111) têm de sobra. Quaderna recita versos sobre João Malasarte,
muito difundidos no “coração do Brasil”, os estados da Paraíba, do Rio Grande do
Norte e de Pernambuco, conforme a sua geografia. Entre as mais engraçadas das
hisrias, a do encontro de João Malasarte com o português se destaca:
“Chegou no Seridó, liso:
Não tendo de que viver,
Arranjou umas pimentas
E foi pra feira vender.
Porém, no caminho fez
Um Português se morder.
João achou o Português
com um Jumento acuado,
carregado de panelas,
lá no caminho, parado,
com o Português dando nele,
porém o burro emperrado.
João lhe disse: - Camarada,
Eu tenho um remédio aqui!
Deu-lhe as pimentas, dizendo:
- Como este, eu nunca vi!
Esfregue no fundo dele
Que ele sai logo daí!” (RPR, 2007, p.113).
Na obra de Ariano Suassuna, o lugar do sujeito esperto está sempre ocupado
por homens do povo, humildes e ardilosos, capazes de enganar os outros como
Benedito e Tirateima, dos entremezes; João Grilo e Chicó, do Auto da
Compadecida; e Quaderna o mais ilustre e supostamente” fidalgo. Ariano afirma
simpatizar com tais sujeitos capazes de brincar com a própria desgraça, “os doidos e
mentirosos”, os “‘Aedos’, que confirmam uma antiga tradição de contar histórias. No
percurso das personagens, o fio narrativo transita entre a memória involunria e a
memória consciente (NOGUEIRA, 2002, p. 154), evidenciando a agudeza desses
sujeitos.
Um traço que enfatiza a importância dos pícaros na narrativa é a capacidade
de enganar, de teatralizar a vida, postura apreciada tanto pelo protagonista do
romance, expressa na frase “eu ria com essas astúcias, praticadas nos caminhos
empoeirados do Sertão” (RPR, 2007, p.103-115), quanto pelo autor do Romance d’A
133
Pedra do Reino, que parece visualizar a riqueza de temas ofuscada na poeira de um
terreno rotulado como pobre:
Ao considerar a versão do mentiroso mais bela, Ariano deixa transparecer
que sua intenção como artista é transfigurar o real em algo mais prazeroso
e sedutor. Algo em que as histórias ou prosas delineiem a invenção e
criação de um espaço onde o intercâmbio de experiências possibilite a
construção de um conhecimento apoiado nas ignorâncias e sabedorias dos
letrados e dos não-letrados (NOGUEIRA, 2002, p. 160).
Quaderna apesar de atestar a sua fidalguia, tem uma alma pícara, que se
revela na sua postura: nega ser definido como igual em relação aos seus
companheiros, ou seja, é sempre distanciado de uma classificação, independente da
posição que ocupa. Esse traço fica evidente num dado momento, quando ainda tem
vergonha de expor seu gosto popular e revela:
Acresce que, perante Malaquias e as pessoas de sua roda, eu era
respeitado exatamente por aquilo que, para mim, era uma fonte de
humilhação a charada, o folheto e tudo o mais se ligava à minha literatura
de homem Acadêmico. entre os outros literatos de Taperoá, gente
incapaz de disparar um tiro, minha reputação era de meio Cangaceiro,
caçador e Cavaleiro (RPR, 2007, p.123).
Quaderna parece estar sempre em vida com aqueles que o cercam. Diante
dos homens do povo, falta-lhe coragem e talento para as caçadas e aventuras;
perante os homens ilustrados, carece de refinamento literário, visto que a literatura
popular é aquela que ele domina. Da mesma forma que transfigura o sertão, ao
entrar em cena como protagonista, transforma em Dom Pedro Dinis Quaderna, um
herdeiro de reis, de família fidalga, com postura de pícaro e um talento inigualável
para contar hisrias. Assim, arma-se “cavaleiro-do-sertão, continua a inventar
associações, simbioses e retroações, tecendo um universo singelamente áspero,
onde o real e o imaginário se confundem(NOGUEIRA, 2002, p. 51).
Os chamados “romances jornaleiros” de João Melchíades, na classificação de
Ariano Suassuna, o encaixados no Ciclo histórico ou circunstancial. Estes, com a
linguagem poética do cordel, narram acontecimentos importantes no local. Na
sociedade sertaneja, os folhetos têm função de jornal, conforme foi dito,
entretanto, Santos (2009, p.114) destaca que, nos povoados do interior, as notícias
continuam circulando na forma de versos, por isso conquistam maior abrangência,
visto que continuam a circular enquanto o jornal e outros meios são assimilados
134
mais rapidamente. No romance em estudo, tais versos são pouco referidos, pois
Quaderna se vale da prosa para relatar as circunstâncias pelas quais a vila passa. A
obra, entremeada de versos e recursos pictóricos, ilustra aquele panorama, visto
que estabelece seu recorte temático em três anos. De tal modo, dentro de tal
temática, os relatos que se adéquam nessa classificação são os pontos que
norteiam a obra: a volta de Sinésio e o inquérito sobre o assassinato de Sebastião
Garcia-Barretto, além do clima messiânico que aflora com essa chegada. Assim os
temas da narrativa, expostos segundo a ótica do “cronistaQuaderna, cumprem o
papel de um romance jornaleiro.
Finalmente, o Ciclo de Amor e Fidelidade. Essa divisão estabelecida por João
Melchíades na ficção e por Suassuna como ensaísta da literatura popular, ainda tem
expressividade como um romance de aventura, por tratar do percurso de um herói
que deve superar diversos obstáculos até conquistar a sua amada. Ao observarmos
a ocorrência de tal ciclo temático na estrutura do Romance dA Pedra do Reino é
interessante analisar a postura de Quaderna em relação ao amor: tem lembranças
de um sentimento puro e platônico por Rosa, a menina da cantiga de La Condessa;
na idade adulta vive um relacionamento “mundano” com Maria Safira, a mulher de
abismo”, cujos olhos verdes o associados à possessão do demônio, sendo ainda
um relacionamento temperado pela culpa de ela ser casada com Pedro Beato, seu
amigo; e, no depoimento, transparece o seu interesse por Dona Margarida, a
escrevente do processo. Assim, o amor puro, cavaleiresco, um amor de Dom
Quixote por Dulcinéia, só pode ser atribuído a Sinésio e Heliana.
Inspirando-se nos diversos folhetos que cita, Quaderna constrói a sua versão
de romance amoroso. Essa criação, permeada por diversos enredos está carregada
de suspense, bem como de passagens obscuras e entraves para a efetiva
concretização do amor. Ao narrar a história do referido casal, Quaderna tem o
cuidado de enfatizar a pureza de sentimentos de ambos, dotando-os de certa
alienação da realidade, portanto, libertando-os de interesses vis. Arredia, calada, de
olhar parado para o infinito, assim é definida a doce, bela e sonhosa Heliana, a
moça dos olhos verdes e das mãos cobertas que foi como uma pedra-de-raio a
fulminar o destino de Sinésio” (RPR, 2007, p. 487). Sinésio, um jovem
desmemoriado, de ar principesco, sugere a grandeza de caráter e parece ser o
único filho digno de ocupar o lugar do pai.
135
Quaderna tem convicção de que nenhuma pessoa é capaz de contar a
hisria de Sinésio, pois “ninguém sabe qual foi, mesmo, a verdadeira direção, seu
verdadeiro destino, de modo que ninguém, exceto eu, pode contá-la”. O objetivo a
ser alcançado é a narração de uma história que concederá o almejado título:
“ninguém, portanto, exceto eu, pode vir a ser o verdadeiro Gênio da Raça do Brasil!”
(RPP, 2007, p. 421).
que precisa relatar os acontecimentos de de junho de 1935, empreende
no Folheto LXVII, “O emissário do azul e as juras de castidade”, uma narrativa
envolvente que além dos lances de amor, tem também enigmas e interesses em
jogo. Quaderna introduz na história outras personagens, explicando, por meio do
que soube pelos outros, o que as pessoas faziam no dia da estranha cavalgada.
Essa possibilidade de narrar munido do olhar do outro, permite revelar de maneira
simultânea, os acontecimentos desenrolados ao redor de todos os envolvidos com o
rapaz ou ligados de alguma maneira à Dom Sebasto Garcia-Barretto, além daquilo
que ele pprio sabe.
Quaderna lança mão de informões capazes de enriquecer a sua história:
amores impedidos, heranças, acordos entre amigos, suspenses, intrigas, e
promessas. Esses elementos são freqüentemente utilizados como mote em outras
produções do autor da Pedra do Reino, ficando a cargo de uma personagem pícara,
por meio de um artifício qualquer, a solução final. Exemplo disso pode ser visto em
O Santo e a Porca (1994), peça de Ariano Suassuna, que além do tema da avareza,
apresenta ainda três histórias de amor a serem resolvidas. Tais soluções são dadas
pela intervenção da personagem Caroba, que inventa histórias, arma situações, une
os casais e garante o final feliz à comédia.
Na performance de Quaderna, ele recupera passagens desse teor para dar
mais emoção à sua história, evidenciando o ar misterioso em todas as passagens:
“quando se trata das questões de sina, de destino, parece que uma espécie de
cegueira se abate, mesmo, sobre todos os implicados” (RPR, 2007, p. 486). Na
seqüência, completa seu pensamento dizendo: “sabia que Dom Pedro Sebastião era
sócio do Fidalgo dinamarqs-sertanejo. Mas, cego, nunca pensei que fossem dar
no terrível resultado em que deram os cruzamentos de sangue e de destino’”. Esse
cruzamento que envolve tanto mistério se refere ao compromisso existente entre
Clara Swendson, a filha mais velha do Fidalgo dinamarquês-sertanejoe o filho
mais novo de Dom Sebastião, o jovem Sinésio. Um típico casamento arranjado, que
136
é mote para tantos folhetos de amor e que margem a desconfianças e intrigas
tramadas pelos membros da família Garcia-Barretto. No entanto, o acaso leva
Sinésio a se apaixonar por Heliana Swendson, configurando o conflito proporcionado
por esse amor. Heliana é a Sonhosa, mencionada nas primeiras ginas da
narrativa como a moça que ilustra a bandeira conduzida pelo Rapaz-do-Cavalo-
Branco na cavalgada (Figura 1). Sendo assim, um traço típico dos folhetos
amorosos figura na história de Sinésio e Heliana, trata-se justamente da
transposição dos obstáculos de várias naturezas para viver efetivamente o amor.
Idelette Muzart Fonseca dos Santos (2009, p. 112) afirma que as histórias de
amor m sempre um final feliz depois de diversas tentativas de separar os amantes,
pois “os oponentes sempre o vencidos, ou convencidos quando se trata dos pais
da moça, e o amor triunfa. Existem, contudo, os casos de amores infelizes, tais
como O assassinato da honra ou a louca do jardim” que é citado na narrativa. No
caso de amor de Sinésio e Heliana, o leitor do Romance fica à espera de um
desfecho final, visto que os acontecimentos não se concluem na obra. O que temos,
desde as primeiras referências ao casal, é o conhecimento de que um amor
correspondido entre os dois, que está enovelado por questões políticas e sociais.
Na totalidade das histórias que compõe esse ciclo, notamos o predomínio de
um estilo elevado de linguagem. Quaderna exemplos de seu “estilo régio” repleto
de belas palavras, de histórias encaixadas, de comparações elaboradas, de
construções sintáticas cuidadosamente articuladas, compatíveis com o vocabulário
das pessoas que nele introduz, os fidalgos da sociedade taperoense. Esse modo de
expreso atesta a “erudição” do protagonista adquirida por meio de suas leituras e
da recorrência de um campo semântico que se expande por toda a obra a partir da
descoberta de algumas palavras sagradas que ele coleciona.
Os acontecimentos que aludem ao ciclo amoroso ainda têm relevo na parte
final da narrativa, quando Quaderna encerra o seu depoimento e parece condensar
todos os acontecimentos narrados em uma Epopéia imaginária, que começou a ser
concretizada no processo judicial:
Imperceptivelmente, sem que eu quisesse ou notasse isso, o aspecto real e
político de todos aqueles acontecimentos foi ficando de lado e cedendo
passo ao outro aspecto poético-literário, muito mais real e embandeirado do
que o outro. Coisas grandiosas, guerreiras e cavalarianas, misturavam-se,
insensivelmente, com amores - poéticos, solares e legendários [...]. Na
137
minha cabeça e no meu sangue, amalgamava-se tudo aquilo, de modo
cada vez mais confuso, belo e glorioso (RPR, 2007, p. 739).
Com tal explanação, percebemos que a obra como um conjunto de folhetos
que versam sobre tantos temas relacionados à literatura popular, fantasiosamente
toma forma e se encerra no belo cenário da caatinga nordestina. O simbolismo dos
elementos citados sugere, além de simples objetos de um jogo, que
metaforicamente é a vida, também a nobreza tão reivindicada por Quaderna:
Tudo o que eu vinha pensando na minha doce embriaguez se juntou, então,
num sonho só. Eu terminara minha Epopéia, minha Obra de pedra e cal,
edificando, no centro do Reino, o Castelo e Marco sertanejo que tinha sido
o sonho de toda a minha vida. O Reino do Sertão se estendia, agora sob
um Sol acobreado de crepúsculo, esbraseado, cercado de nuvens cor de
chumbo e orladas de fogo, um Sol que dourava as pedras e muralhas do
Chapadão pedregoso, áspero e solitário, formigante de Peões, bispos,
Rainhas, Reis, torres, Cavalos, cavaleiros rudes cavaleiros vestidos com
armadura de couro medalhadas, gibões, guarda-peitos e chapéus de couro
estrelados, e acompanhados pelas belas Damas de copas e espadas que
os amavam. No meio do Reino, fincada sob uma serra pedregosa e situada
entre os dois rochedos iguais que lhe serviam de torres, a Catedral e
castelo da minha Raça reluzia sob muros afortalezados, a que o Sol dava
também reflexos acobreados, batendo nas pedras esquadrejadas, unidas
com a argamassa do meu sangue (RPR, 2007, p. 740).
Portanto, no final da obra, a atmosfera solar que predomina em toda a
narrativa cede lugar a um céu crepuscular, que marca o fim do espetáculo. Sob a
abóbada celeste, os homens assemelham-se às peças de xadrez dispostas no
“tabuleiro pedregoso” do sertão.
138
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Analisar o Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta
é ter contato com uma rede de intertextos de origens variadas, fator que apresenta
dificuldades ao estudioso que nele se lança. O veio enciclopédico presente na obra,
ao mesmo tempo em que deleita o leitor, faz com que ele se perca em um labirinto
textual de matriz erudita e popular nela presente. Tal propriedade pode ser
percebida ao longo da dissertação, bem como nas considerações finais aqui
expostas.
Quando observamos A Pedra do Reino, vemos que nela orbita um forte
sentimento de nacionalismo, encontrado no amor do sertanejo pelo seu lugar, sua
tradição e seus costumes. Assim, o percurso do nacionalismo brasileiro traz à luz
elementos que, com certo cuidado, podem ser associados à obra estudada. Desse
modo, ressaltamos a idéia do artista como visionário, a valorização do que é local, o
uso de uma retórica própria que deu vazão ao sentimentalismo em relação à pátria,
bem como à musicalidade da poesia romântica.
Essa postura consolidada pelos românticos obteve outra feição no
Modernismo brasileiro, sem deixar de valorizar o nacional. O grupo modernista
liderado por Oswald de Andrade pregava a antropofagia, um aproveitamento que se
configurava no consumo das vanguardas européias que ofereciam recursos para
recriar o nacional. O emprego de uma linguagem coloquial marcou esse período,
bem como as paródias que permitiram a reelaboração de grandes obras adaptadas
aos temas brasileiros. Nesse contexto moderno, aflora também uma literatura
regionalista, com o interesse voltado para o povo, para o regional e seus problemas.
Ao enfatizarmos aspectos da literatura canônica e, paralelamente, expor a
forma de expressão da literatura popular, pretendíamos oferecer os subsídios
necessários para o entendimento do Movimento Armorial. Esse movimento estético,
idealizado por Ariano Suassuna, propôs o diálogo constante entre dois níveis
dicotômicos de cultura e parece ter sido mentalizado simultaneamente com o
processo de elaboração do primeiro romance do autor. Nesse sentido, parte das
concepções amadurecidas de Suassuna enquanto professor de estética a respeito
139
da arte literária e as demais expressões artísticas, são amalgamadas aos traços de
uma poética pouco sofisticada, porém muito expressiva.
Tendo ciência de tais aspectos, observamos n’A Pedra do Reino as
ressonâncias da literatura popular no romance erudito. Com isso, percebemos que
a literatura dos folhetos proporciona um modelo formal, temático e estilístico. A
forma se faz presente na gama de versos populares que são aproveitados no
romance, atribuídos a cantadores reais ou fictícios, marcando essa forte presença.
Quando observamos a temática, vemos esse aspecto mesclado de várias maneiras:
como modelo de prosa para Quaderna, como mote de versos populares, aludidos
nos diversos ciclos do cordel que a obra apresenta. Quanto ao aspecto estilístico,
percebemos uma variação de acordo com o tipo de verso utilizado e com a temática
exposta. Desse modo, o narrador circula com destreza dentre os modos de
expreso lingüística: usa um estilo baixo ou alto, para atingir determinado efeito.
Além disso, vale-se do saber erudito ou do popular também como um artifício para
atingir determinado fim.
Na nossa análise foi possível detectar outra conexão entre a literatura popular
e o romance em estudo: as evidentes reelaborações. Assim, além de uma
organizão que alude à abertura da obra, dialogando com os postulados de
Umberto Eco, o romance apresenta uma estrutura que desafia constantemente o
seu intérprete, pois apresenta o mesmo caráter das cantigas sem dono cultivadas
pelos cantadores populares, que são guardadas em fragmentos na memória do
poeta que um dia as reutiliza.
A partir do momento que detectamos o uso e investigamos o motivo da
incorporação da literatura popular no romance, inferimos que como um sujeito
afastado do sertão, Suassuna se dedica a vivificá-lo e para isso resgata as
lembranças de menino, o contato com os cantadores, o gosto pela cantoria e se
disfarça de Quaderna para enfatizar a grandeza da cultura sertaneja. Assim, sua
literatura se firma como uma forma de validar a expreso popular do nordeste como
Arte, desvinculando-a do folclorismo como alguns eruditos fizeram. Nessa
empreitada vem ao conhecimento do público uma biblioteca imaginária que contém
todas as obras, fazendo valer a proposição de Dominique Maingueneau: “Existe, de
fato, uma esfera” onde estão contidas todas as obras cujo vestígio foi conservado,
uma biblioteca imaginária da qual uma pequena parte é acessível a partir de um
momento e de um lugar determinados” (MAINGUENEAU, 2001, p. 68).
140
A partir da pesquisa realizada, entendemos que o Romance d’A Pedra do
Reino pode ser considerado uma obra sintetizadora de diversas influências, que se
consolida no momento em que o protagonista torna pública a sua “descoberta da
literatura”. A postura que esse sujeito adota, representa um desvelamento da arte
poético-romanesca, evidenciando o fazer artístico e os prositos ocultos nessa
prática. Portanto, ressaltando certos traços de maneira cômica ou mesmo
tragicômica, Suassuna, na voz da personagem Quaderna, consegue fazer uma
escie de poética, que, ao mesmo tempo em que ensina, deleita o leitor, bem ao
gosto da literatura espanhola renascentista e barroca que inspira o autor.
141
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