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Vimos que o final da primeira Parte da Théorie physique termina com a afirmação de
que a natureza sustenta a razão impotente. Com a inclusão dos ensaios à segunda edição
daquela obra, vemos que existe uma subordinação legítima da física à metafísica. Qual a
afirmação metafísica legítima sobre a qual a ciência ergue-se? Nada menos que o princípio
de unidade lógica – o mesmo princípio atribuído anteriormente ao senso comum. De que
metafísica estamos falando, então? A conclusão é forçosa: da metafísica natural do
espírito humano
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, daquela tendência irresistível mencionada já no primeiro ensaio
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É de se notar que essa “tendência natural ao espírito humano” (DUHEM, P.: SM, II, p. 17), aproxima-se
muito do que Bergson chamou de “metafísica natural da inteligência humana” (BERGSON, H., citado em
GARRIGOU-LAGRANGE, R.: 1909, pp. 7-8) quando de sua caracterização da philosophia perennis
esboçada por Platão e Aristóteles e levada à sua perfeição, acrescenta o padre, pelos doutores da Igreja. O
neotomista Garrigou-Lagrange, jovem amigo de Duhem em Bordeaux (JAKI, S.: 1991b, p. 117), publicou
em 1909 uma obra intitulada Le sens commun, la philosophie de l’être et les formules dogmatiques, na qual
sua principal intenção era fazer frente ao modernismo religioso crescente no ambiente europeu. Para Le Roy,
principal exponente da teologia modernista, as noções de substância, causa, relação, sujeito, não seriam senão
“reificações e símbolos” espontâneos da inteligência que visa apenas a ação. A substância não passaria de
uma entidade verbal com a qual a inteligência imobilizaria o fluxo universal dos fenômenos e suas
qualidades, ou, ainda, de um “resíduo empobrecido da experiência”, para usar a expressão de Garrigou-
Lagrange (GARRIGOU-LAGRANGE, R.: 1909, p. 139). A fórmula clássica, que explica a mobilidade pela
imobilidade é, em consequência, invertida; esta passaria, doravante, a ser encarada como realidade segunda,
derivada da mobilidade, realidade verdadeiramente fundamental. Deus, a realidade fundamental, passa a ser
definido como o puro devir, identificando-se à perpetuidade de sua evolução: “Deus é uma realidade que se
faz através daquela que se desfaz.” Neste contexto, a fórmula bergsoniana encontra sua plena justificação.
Um católico tradicionalista não poderia aceitar essa posição redutora do conceito de substância. Como
simples intrumento prático, o conceito seria incapaz de transmitir o real ao espírito, e o conhecimento estaria
arruinado, sem objeto estável através do qual pudesse pautar-se. Garrigou-Lagrange então inspira-se na
filosofia clássica de Aristóteles e de santo Tomás para resturar a “verdadeira teoria clássica do senso
comum”, afirmando que as fórmulas dogmáticas distinguem-se do senso comum tão somente porque são um
aperfeiçoamento seu, um prolongamento natural. À luz do ensino da Igreja, ele intenta defender o valor
objetivo e transcendente dos primeiros princípios que permitiriam restaurar as bases racionais da fé
(lembremos que a teologia modernista inspirava-se na separação absoluta entre os dogmas transmitidos pela
Revelação e as verdades passíveis de demonstração racional) e o valor objetivo e imutável dos dogmas.
Partindo da crítica aristotélica a Heráclito, passando por Hegel e Bergson, responsáveis por colocar a
contradição no seio da realidade, Garrigou-Lagrange afirma que o senso comum não se reconhece numa
filosofia do devir, nem em uma filosofia do fenômeno porque ela é a “filosofia rudimentar do ser”
(GARRIGOU-LAGRANGE, R.: 1909, p. 49); não uma filosofia, mas a filosofia (GARRIGOU-
LAGRANGE, R.: 1909, p. 52), pois com ela a possibilidade do absurdo é rejeitada. Ao contrário do bom
senso, qualidade variável desenvolvida mais em uns que em outros, o senso comum seria uma qualidade
comum e invariável a todos os homens, a qual, entretanto, não se apresentaria como doutrina propriamente
dita, mas como dotada das soluções para os grandes problemas filosóficos. A adesão aos primeiros princípios
seria natural: “Igualmente verdadeiros para todos e conhecidos por todos, esses princípios são imutáveis em
si e em nós” (GARRIGOU-LAGRANGE, R.: 1909, p. 82). Sem se reduzir ao consentimento universal
(GARRIGOU-LAGRANGE, R.: 1909, p. 98), os primeiros princípios estão como que inscritos na razão
humana. Assim, o senso comum não os demonstra, mas, por seu instinto do ser, sente-os como uma intuição
vaga. Mais: esse sentimento não é cego ou puramente instintivo; o senso comum é marcado por um elemento
de imutabilidade e universalidade, sendo infalível quanto aos seus primeiros princípios (GARRIGOU-
LAGRANGE, R.: 1909, p. 105). A inteligência espontânea não pode enganar-se sobre eles (sejam de ordem
especulativa ou prática) pois as verdades que ela percebe estão imediatamente implicadas no ser