Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
A METODOLOGIA DO SENSO COMUM
Um estudo da metodologia científica de Pierre Duhem
FÁBIO RODRIGO LEITE
Orientador: Prof. Dr. OSVALDO FROTA PESSOA JR.
São Paulo
2006
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
FÁBIO RODRIGO LEITE
A METODOLOGIA DO SENSO COMUM
Um estudo da metodologia científica de Pierre Duhem
Dissertação apresentada ao Departamento de
Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, como parte dos requisitos para a
obtenção do título de Mestre em Filosofia.
São Paulo
2006
ads:
3
Membros da banca avaliadora:
Titulares:
Pablo R. MARICONDA (DF-USP) - ___________________________
Oswaldo M. SOUZA FILHO (DE-AFA) - ___________________________
Osvaldo F. PESSOA JR. (Presidente) (DF-USP) - ___________________________
Suplentes:
Paulo C. ABRANTES (DF-UnB)
José R. CHIAPPIN (DF-USP)
Caetano E. PLASTINO (DF-USP)
4
Aos meus pais, Fátima e José, pelo
amor, compreensão e paciência
libertadores.
5
AGRADECIMENTOS
Os agradecimentos que desejo tecer em página única não se restringem às ajudas recebidas
apenas no período em que eu compunha esta Dissertação. Vão bem além. Desde a
graduação contei com o apoio indireto de todos os professores do Departamento de
Filosofia, os quais, em suas aulas, dedicavam-se a fazer-nos aprender a ler e a pensar
melhor. De uma forma ou de outra, eles todos tocavam minhas mãos quando se tratava de
corrigir a caligrafia de meus pensamentos;
Quero fazer, ademais, alguns agradecimentos especiais...
Ao meu professor e amigo Osvaldo F. Pessoa Jr., pela inigualável solicitude, pelas
conversas travadas durante a orientação e redação desta Dissertação e pela correção
minuciosa da mesma (eximo-o de todos os erros destas páginas iletradas);
Ao prof. Pablo R. Mariconda, meu orientador durante a Iniciação Científica, pela
disponibilização do acervo da “xeroteca”, pelas proveitosíssimas e incentivantes discussões
e, finalmente, por aceitar participar da Banca de Defesa;
Ao prof. Osvaldo M. Souza Filho, pela cortesia com que me recebeu em sua casa, pela
ajuda bibliográfica, pelos bate-papos afins e afinados, pela calabreza com cerveja e por
participar da Banca de Defesa;
Ao prof. José R. Chiappin, pela ajuda bibliográfica, por fazer parte da Banca de
Qualificação, pela ajuda burocrática quando de minha entrada no Programa de Mestrado e
pelas conversas sempre entusiasmadas;
Ao prof. Michel H. Paty, pela disponibilidade e prontidão com que aceitou fazer parte da
Banca de Qualificação e pelas sugestões quando de sua realização;
Ao prof. Caetano E. Plastino, pelo acolhimento em minha Iniciação Científica, pela ajuda
com minhas primeiras dúvidas e pela introdução ao pensamento de Duhem (mal sabe ele
da influência “determinante” que exerceu sobre mim...);
Aos queridos amigos, Marilene e Massao, pela boa vontade com a qual sempre me
receberam em São Paulo, pelo incentivo e amizade;
Às meninas da Secretaria do Departamento de Filosofia, que sempre estiveram dispostas a
me ajudar a resolver os trâmites burocráticos com notável disposição e bom humor;
Enfim, à FAPESP, que financiou e tornou possível a realização deste trabalho.
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
PARTE 1
BOM SENSO, SENSO COMUM E SIMPLES BOM SENSO . . . . . . . . . . . . . . . . . 22
1.1. Uma nova análise da experimentação em física . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26
1.2. Leis teóricas e leis do senso comum . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42
1.3. Do senso comum em La théorie physique . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
1.3.1. Senso comum e experiência ordinária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57
1.3.2. O outro senso comum . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69
1.4. Bom senso e senso comum em La science allemande . . . . . . . . . . . . . . . . . . 80
1.4.1. A racionalidade mediata do bom senso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83
1.4.2. O outro bom senso (e o outro senso comum) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92
1.5. Considerações gerais sobre o senso comum . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115
PARTE 2
EXPLICAÇÃO METAFÍSICA E CLASSIFICAÇÃO NATURAL . . . . . . . . . . . . 121
2.1. A crítica ao dogmatismo e o resvalo no instrumentalismo . . . . . . . . . . . . . . . 124
2.2. A classificação natural em “A escola inglesa e as teorias físicas” . . . . . . . . . 135
2.3. A história da ciência, o método histórico e a historiografia da ciência . . . . . 153
2.4. A classificação natural na Théorie physique . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173
2.5. Considerações gerais sobre a classificação natural . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 212
CONCLUSÕES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 221
ANEXOS
1. Carta de Pierre Duhem endereçada ao padre R. Garrigou-Lagrange . . . . . . . . 241
2. Algumas distinções entre realismos e convencionalismos . . . . . . . . . . . . . . . . 247
BIBLIOGRAFIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 250
7
Lista das abreviaturas das obras de Duhem [somente para as notas]
1
ATPC Applications de la thermodynamique aux phénomènes capillaires. [1885]
ARTF Algumas reflexões sobre as teorias físicas. [1892]
NAHA Notation atomique et hypothèses atomistiques. [1892]
CPT Commentaires aux principes de la thermodynamique. [1892-4]
NTMI Une nouvelle théorie du monde inorganique. [1893]
FM Física e metafísica. [1893]
EITF A escola inglesa e as teorias físicas. [1893]
ARFE Algumas reflexões acerca da física experimental. [1894]
TO Les théories de l’optique. [1894]
TC Les théories de la chaleur. [1895]
ETP L’évolution des théories physiques du XVIIe siécle jusqu’à nos jours. [1896]
TPr Théorie et pratique. [1900]
MCC Le mixte et la combinaison chimique. Essai sur l’évolution d’une idée. [1902]
TEM Les théories électriques de J. Clerk Maxwell. [1902]
EM L’évolution de la mécanique. [1903]
AOEM Analyse de l’ouvrage de Ernst Mach: La mécanique. [1903]
OS Les origines de la statique. [1905-6]
PP Le principe de Pascal: Essai historique. [1905]
TP La théorie physique: Son objet et sa structure. [1906]
ELV Études sur Léonard de Vinci: Ceux qu’il a lus et ceux qui l’ont lu. [1906-13]
JWG Josiah-Willard Gibbs. [1907]
MAMR Le mouvement absolut et le mouvement relatif. [1907-9]
SF Salvar os fenômenos. Ensaio sobre a noção de teoria física de Platão a Galileu. [1908]
ME La mécanique expérimentale. [1910]
HP History of physics. [1910]
TE Traité d´énergetique ou de thermodinamique générale. [1911]
IBP Introduction à L’oeuvre scientifique de Blaise Pascal. [1912]
SM Le système du monde. Histoire des doctrines cosmologiques de Platon a Copernic. [1913-59]
QRSA Quelques réflexions sur la science allemande. [1915]
SA La science allemande. [1915]
GS German science. [Tradução de SA]
SAVA Science allemande et vertus allemandes. [1916]
CSF La chimie est-elle une science française? [1916]
NTTS Notices sur les titres et travaux scientifiques de Pierre Duhem. [1917]
1
Em ordem cronológica de publicação do primeiro volume.
8
Lista das abreviaturas das obras de Duhem [somente para as notas]
2
AOEM Analyse de l’ouvrage de Ernst Mach: La mécanique. [1903]
ARFE Algumas reflexões acerca da física experimental. [1894]
ARTF Algumas reflexões sobre as teorias físicas. [1892]
ATPC Applications de la thermodynamique aux phénomènes capillaires. [1885]
CPT Commentaires aux principes de la thermodynamique. [1892-4]
CSF La chimie est-elle une science française? [1916]
EITF A escola inglesa e as teorias físicas. [1893]
ELV Études sur Léonard de Vinci: Ceux qu’il a lus et ceux qui l’ont lu. [1906-13]
EM L’évolution de la mécanique. [1903]
ETP L’évolution des théories physiques du XVIIe siécle jusqu’à nos jours. [1896]
FM Física e metafísica. [1893]
GS German science. [Tradução de SA]
HP History of physics. [1910]
IBP Introduction à L’oeuvre scientifique de Blaise Pascal. [1912]
JWG Josiah-Willard Gibbs. [1907]
MAMR Le mouvement absolut et le mouvement relatif. [1907-9]
MCC Le mixte et la combinaison chimique. Essai sur l’évolution d’une idée. [1902]
ME La mécanique expérimentale. [1910]
NAHA Notation atomique et hypothèses atomistiques. [1892]
NTMI Une nouvelle théorie du monde inorganique. [1893]
NTTS Notices sur les titres et travaux scientifiques de Pierre Duhem. [1917]
OS Les origines de la statique. [1905-6]
PP Le principe de Pascal: Essai historique. [1905]
QRSA Quelques réflexions sur la science allemande. [1915]
SA La science allemande. [1915]
SAVA Science allemande et vertus allemandes. [1916]
SF Salvar os fenômenos. Ensaio sobre a noção de teoria física de Platão a Galileu. [1908]
SM Le système du monde. Histoire des doctrines cosmologiques de Platon a Copernic. [1913-59]
TC Les théories de la chaleur. [1895]
TE Traité d´énergetique ou de thermodinamique générale. [1911]
TEM Les théories électriques de J. Clerk Maxwell. [1902]
TO Les théories de l’optique. [1894]
TP La théorie physique: Son objet et sa structure. [1906]
TPr Théorie et pratique. [1900]
2
Em ordem alfabética. Para DESTACAR.
9
RESUMO
A presente Dissertação visa a elucidar os principais aspectos da metodologia científica de Pierre
Duhem (1861-1916), sobretudo aqueles atinentes à sua sustentação. Assim, argumentaremos que
sua metodologia tem como fundamento noções e princípios advindos do senso comum, e que a
própria noção de senso comum, tal qual entendida pelo filósofo, acarreta inerentemente uma visão
realista do objeto das teorias físicas. De início, procederemos de modo a distinguir os significados
que o conceito de senso comum comporta em sua obra, para, em seguida, derivarmos dele duas
noções que comporiam, segundo nossa interpretação, a matriz de sua metodologia: o princípio de
unidade lógica e o princípio de classificação natural.
Ao analisarmos os dois princípios em questão, recorreremos ao conjunto da obra escrita por
Duhem, sem restringirmos o escopo de suas publicações, mas, igualmente, sempre preocupados em
delimitar com precisão a origem e desenvolvimento daqueles princípios. Ademais, vincularemos
nossas pesquisas a um grupo extenso de comentários acerca da metodologia duhemiana com a
finalidade de avaliar o que disseram os especialistas acerca do tema de nossa pesquisa. Do
resultado dessa avaliação extrairemos nossa conclusão, na qual esperamos fornecer um início de
resposta à tão grande dificuldade que os comentadores encontram quando tentam classificar o
pensamento duhemiano. Acreditamos que esses obstáculos advenham de uma intenção tácita e
deliberada de nosso autor em salientar o paradoxo da atividade e do realismo científicos, e nisto ele
antecipa com grande intuição os debates atuais.
Palavras-chave:
Bom senso, Classificação natural, Convencionalismo, Explicação metafísica, Metodologia
científica, Realismo, Senso comum, Teorias físicas.
10
ABSTRACT
The present Thesis aims at elucidating the main aspects of the scientific methodology of Pierre
Duhem (1861-1916), especially those relating to its support. Thus, we argue that his methodology
is founded on notions and principles derived from common sense, and that the notion of common
sense itself, as understood by the French philosopher, implies a realist view of the object of
scientific theories. We start by distinguishing the meanings taken by the concept of common sense
in the work of Duhem, and from which we derive two notions which compose, according to our
interpretation, the basis of his methodology: the principle of logical unity and the principle of
natural classification.
In order to analyze these two principles, we will consider the whole body of written work of
Duhem, without restricting the scope of his publications, and will be concerned with locating
precisely the origin and development of those principles. Furthermore, we explore a large set of
commentaries on the Duhemian methodology, aiming at evaluating what the specialists have
written about the topic of our research. From this assessment we extract our conclusion, which we
hope will furnish an initial answer to the widespread difficulty that the commentators encounter
when trying to classify Duhem’s philosophy. We believe that these obstacles arise from a tacit and
deliberate intention of the French author of stressing the paradox of scientific activity and scientific
realism, an intention that anticipates with sharp intuition the presentday debates.
Keywords:
Common sense, Conventionalism, Good sense, Metaphysical explanation, Natural
classification, Physical theories, Realism, Scientific methodology.
11
INTRODUÇÃO
On n’a pas le droit de parler d’une
chose obscure, si ce n’est pour
l’éclaircir.
i
Quando se enfrenta a tarefa de entender o pensamento de um autor, conscientes ou não,
escolhemos uma abordagem de enfrentamento textual. Se isso não ocorre de maneira
metódica durante o processo interpretativo, frequentemente caótico, ela é inevitável no
momento de expor (e recompor) os resultados. O tempo (o tempo cronológico) e a prática
da leitura encarregam-se de revelar qual é a melhor perspectiva de exposição a ser adotada,
qual delas realiza com mais ajustamento o estilo de escrita do filósofo, as disposições do
dissertador e as exigências dos leitores.
Ler Duhem (1861-1916), com sua imensa produção bibliográfica, não tem sido tarefa
fácil. Basta que notemos a diversidade de interpretações encontradas em artigos e livros
que compõem a ainda escassa bibliografia sobre o filósofo. Vê-se com freqüência disputas
cheias de citações, as quais têm por fito dar prova cabal de que Duhem disse isto e não
aquilo. São passagens que atestam uma gama de posições que fazem dele ora um
instrumentalista radical, ora um instrumentalista mitigado, ora um realista brando, ora...
Enfim, se encontramos na literatura especializada as mais variadas matizações, a
atualidade encarrega-se em colocar ordem no caos. O pêndulo, cansado de oscilar entre
extremos, deixa aos poucos de resistir à força gravitacional e tende a apontar ao centro de
gravidade. Ao continuar assim, logo chegará a hora em que só duas forças atuarão sobre a
enorme massa de seu pensamento: a gravidade e a normal.
i
DUHEM, P.: SA/GS, pp. 95-6/73.
12
Sem dúvida, uma metáfora que está longe de adaptar-se à realidade! Não temos a
pretensão de propor, nesta Dissertação, uma interpretação definitiva. Comecemos pelo
sentido inverso, perguntando-nos inicialmente: “por que toda essa discrepância entre os
comentadores?” Insensatos seríamos se rejeitássemos sem consulta as interpretações
anteriores. Uma rápida passada de olhos permite-nos entrever uma característica que já de
início serve de apoio para discriminar entre os pólos interpretativos: a grande maioria dos
escritos sobre Duhem que vêem nele um adepto do instrumentalismo encontra-se ou sob a
forma de rápidas e curtas menções, em livros que não têm a sua filosofia como assunto
principal, ou sob a forma de artigos que tratam por alto de sua obra. Acontece, é claro, de
curtos ensaios apresentarem análise detalhada e compreensão profunda de uma idéia
particular, mas quando isso se dá, o ensaio é assinado por um especialista. Com os livros e
teses verificamos uma mudança no viés interpretativo. Mais cautelosas e analíticas, as
grandes produções tendem a balancear as afirmações que dão azo a vinculações
instrumentalistas com aquelas outras que apontam em sentido oposto. Fala-se agora na
tentativa duhemiana de encontrar um meio termo entre o realismo ortodoxo e o
instrumentalismo cético ou, sem meias palavras, num Duhem adepto do realismo
convergente, e, como a publicação de livros sobre a obra duhemiana tem crescido (apenas)
nas últimas três décadas, vemos despontar um Duhem marcadamente realista.
No entanto, acreditamos que qualquer análise que se resuma a listar teses a favor de
uma ou outra interpretação particulares, mesmo que tenha por propósito conjugá-las para
daí tirar conclusões mais apuradas, apesar de não ser algo fácil e pouco trabalhoso, não
explica o propósito impulsor submerso na superficialidade das próprias teses. Se existe
alguma suspeita viável a favor da existência de uma intenção mais profunda, tal suposição
deve ser encontrada; o sentido tem de ser desvelado.
Duhem produziu cerca de 20 mil páginas impressas sobre física (campo de sua
formação acadêmica), filosofia da ciência (especificamente da física) e historia (da
ciência). Excetuamos aí sua correspondência pessoal (mais de 500 correspondentes), suas
aquarelas... O amplo escopo e produção de suas especialidades profissionais causam
perplexidade ao comum dos mortais. O valor das contribuições de um autor, no entanto,
não se mede pelo número de páginas escritas (muito menos as publicadas), mas pelas
idéias nelas contidas. Duhem era cioso de suas idéias, embora insistisse em aparentar a
modéstia esperada de um católico conservador. Num dos primeiros momentos em que
expôs suas idéias com o ímpeto jovial, aos 23 anos, teve-as ignoradas por motivos
13
obscuros e, em função de sua renitência em defendê-las, passou a ser sistematicamente
“esquecido” no meio acadêmico
3
.
E Duhem era obstinado, na vida e na obra. Obstinado em seu projeto de unificação
axiomática da física e da química sob a égide da termodinâmica, o qual lhe custou décadas
de sua vida, sem obter, entre os físicos, sucesso proporcional aos seus esforços. Obstinado
a ponto de defender seu projeto científico em artigos epistemológicos originais de enorme
cunho crítico. A severidade e a intransigência de seu caráter passavam-lhe pelos punhos e,
com a tinta da pena, delineavam letras e números ordenadamente de modo a constituir uma
obra cujo rigor lógico e a máxima abstração formal eram a marca exata: “Demasiado físico
para os matemáticos, demasiado matemático para os físicos e químicos.”
4
Cabia, pois, aos
“espíritos fortes e estreitos”
5
a leitura árdua das milhares de “páginas formuladas”. Mas,
ainda, obstinado em defender historicamente seu projeto e metodologia científicos. Há
quem mencione que Duhem escrevia ininterruptamente páginas e páginas sobre a ciência
3
Duhem apresentou uma tese de física-matemática sobre Le potenciel thermodynamique em 20 de outubro
de 1884, quando ainda era aluno do terceiro ano da École Normale, perante um júri composto por Gabriel
Lippmann, Charles Hermite e Émile Picard. A tese foi recusada por motivos que permanecem “obscuros”,
mas tudo indica que a recusa tenha-se dado por influência externa do eminente químico francês Marcelin
Berthelot (O relatório da comissão julgadora no qual a tese é recusada encontra-se reproduzido em:
BROUZENG, P.: 1981, II, pp. 187-90). Naquela ocasião, pela primeira vez Berthelot veria um dos princípios
fundamentais de sua termoquímica, o princípio de trabalho máximo, ser contestado publicamente
(BROUZENG, P.: 1987, p. 37). Muito se comenta que o ostracismo acadêmico ao qual Duhem fora
posteriormente submetido (ele nunca conseguiu lecionar em Paris, principal centro científico francês) tenha
como origem a sua disputa com Berthelot. Certa feita, este teria supostamente vaticinado: “Este jovem nunca
ensinará em Paris” (PAUL, H.: 1972, p. 211).
4
PICARD, É.: 1921, p. cxxxv. Enquanto vivo, o trabalho de Duhem fora, na França, mais apreciado pelos
matemáticos que pelos físicos e químicos (PATY, M.: 1986, p. 15, n. 10); entre os conterrâneos que mais
apreciaram o trabalho de Duhem podemos citar Jacques Hadamard, Paul Painlevé e Joseph Boussinesq. No
entanto, é fora de seu país natal que a obra científica do autor recebeu acolhida realmente estimulante
(BROUZENG, P.: 1981, I, pp. 147-52). A ênfase duhemiana no uso da análise matemática já podia ser
detectada na nova tese de doutorado preparada por Duhem sobre L’aimantation par influence, defendida em
1888, que teve como comissão julgadora três matemáticos; Gaston Darboux, Henri Poincaré e Edmond
Bouty. O ensino ministrado pelo autor durante sua curta estadia na Universidade de Rennes (1893-4) também
atesta o rigor analítico seguido pelo físico, quando o Reitor desta Universidade, ciente de que as aulas de
Duhem somente eram proveitosas aos alunos que dispunham de profundo conhecimento matemático, dispôs-
se a ajudá-lo a obter, sem sucesso, uma cadeira de “ciência pura” no Collège de France, onde Duhem
encontraria, com maior facilidade, audiência digna de sua inteligência (PAUL, H.: 1972, p. 204). O tempo
não mudou a caracterização da física duhemiana oferecida por Picard. Ainda persistem menções críticas ao
estilo excessivamente abstrato adotado por Duhem: “[...] infelizmente, este trabalho [TE] aparece ao leitor
como puramente formal e distante de quaisquer considerações experimentais e, portanto, muito geral e
inadequado para qualquer uso prático” (GLANDSDORFF, P.: 1987, citado em SOUZA FILHO, O.: 1998, p.
119).
5
Na TP, Duhem faz questão de dizer que o modelo teórico defendido por ele é reservado aos “espíritos
fortes, mas estreitos”: “A teoria física, tal como definida por nós, será aceita imediatamente como a
verdadeira forma sob a qual a natureza deve ser representada apenas pelos espíritos abstratos” (DUHEM, P.:
TP, p. 80). A definição de teoria física duhemiana harmoniza-se com o espírito que Pascal chamou de
geométrico. Pascal é referência constante em suas obras. Veremos isso no decorrer da Dissertação.
14
medieval que eram entregues sem rasuras à impressão
6
. Duhem não fez uma história da
ciência desinteressada: em seu sistema, as reflexões históricas adquirem papéis múltiplos,
que vão da autêntica historiografia, passando pela defesa da viabilidade de sua filosofia
científica até chegar à defesa patriótica da virtuosidade dos ancestrais franceses e à
apologia religiosa, com a introdução da idéia de uma potência divina inteligente que
governa o rumo da história.
Picard chamou a atenção, para o fato de que “é difícil, por vezes, distinguir nele o
cientista do historiador e do filósofo”
7
, e Redondi e Brenner, a par disso, falam em
“epistemologia histórica”
8
, ressaltando a unidade nada fortuita entre o projeto científico, a
metodologia e a orientação histórica da obra duhemiana. Evidentemente, semelhante
entrelaçamento torna difícil e, ao mesmo tempo, instigante, qualquer pesquisa que tenha
por objetivo “desenredar” a metodologia de nosso autor, de modo a compor de uma vez
por todas um maço das regras que a constituísse. Seguir os livros e ensaios aparentemente
metodológicos pode requerer conhecimento de sua visão histórica do desenvolvimento da
ciência, o qual será encontrado somente alhures. Mais que em um labirinto, ao entrarmos
de cabeça nas páginas escritas do filósofo, vemo-nos jogados numa sala de espelhos. No
entanto, para início de conversa, divisões são fundamentais.
Deixando, arbitrariamente, decerto, suas obras “mais” historiográficas de lado,
destacaremos duas, entre as epistemológicas, como as principais para a realização de nosso
intento: La théorie physique, conhecida de muitos, sempre citada quando se trata de
referências a Duhem, e La science allemande, ainda pouco conhecida do público em geral,
não apenas porque foi publicada pouco antes da morte do autor, mas pelas circunstâncias
(e teses) controversas de seu aparecimento (Duhem era convicto nacionalista e a obra fora
publicada em 1915, com título denunciador...). Vislumbramos obras de caráter histórico
que mesclam em suas páginas teses epistemológicas e metodológicas (Le mixte et la
combinaison chimique [1902], L’évolution de la mécanique [1903], Salvar os fenômenos
[1907], Le mouvement absolut et le mouvement relatif [1909]), bem como obras físicas de
caráter bastante técnico (Commentaires aux principes de la thermodynamique [1892-4]),
Les théories électriques de J. Clerk Maxwell [1902], Traité d´énergétique ou de
thermodinamique générale [1911]) que possuem o mesmo cunho, e, portanto, merecem
6
PICARD, É.: 1921, p. cxli.
7
PICARD, É.: 1921, p. cv.
8
REDONDI, P.: 1978, p. 26; BRENNER, A.: 1990, p. 19.
15
atenção quando do estudo da metodologia duhemiana, embora, ainda assim, La théorie
physique e La science allemande permaneçam sendo as mais importantes a esse respeito.
Mas nosso procedimento será diferente do da maioria. A maior parte das
publicações longas (teses e livros) sobre Duhem intenciona relacionar estreitamente as
teses metodológicas com as análises históricas duhemianas, algo totalmente justificado,
como já vimos: seus ensaios epistemológicos são recheados de exemplos históricos que
tem em vista ratificar sua visão metodológica. Brenner
9
, Martin
10
, Maiocchi
11
, Chiappin
12
e
Souza Filho
13
seguem o modelo de entrosamento das pesquisas históricas com a
epistemologia. Os três últimos ressaltam a função da história da física como apoio factual
ao realismo duhemiano, sobretudo a tese da continuidade histórica do desenvolvimento da
física, enquanto o primeiro, se não negligencia a tese continuísta, usa a história com o fito
de elucidar a metodologia duhemiana, sem se preocupar com questões acerca do realismo.
Abrantes, por exemplo, afirma que “desde muito cedo Duhem voltou-se para a
história da física com o objetivo de fundamentar ‘essas razões do coração’”
14
– a princípio,
um dito irretorquível. Neste caso, as duas “razões do coração” às quais Duhem refere-se
são o princípio de unidade lógica e o ideal de classificação natural. Pois bem, valendo a
interpretação do comentador, estaríamos comprometidos, ao tratarmos dos dois princípios,
a fazer referências extensas à história da ciência? Esperamos mostrar que não. A razão para
isso, como veremos, é que a história da ciência serve, sim, de fundamentação para as
razões do coração, ela é responsável por fortalecer a crença, a suspeita de que a teoria
física aproxima-se da classificação natural, de que o objeto da teoria física não seja tomado
como utópico. Todavia, essa fundamentação não apenas não pode ter um sentido lógico
demonstrativo, como a possibilidade mesma deste tipo de fundamentação contrariaria a
essência original dos princípios em questão. Como procuraremos mostrar, os princípios
metodológicos de unidade lógica e o de classificação natural são intuições irredutíveis e
irresistíveis os quais o físico não pode evitar em sua atividade. Em sua pesquisa, todo
físico, afirma Duhem, sente a aspiração metafísica por uma teoria que salvasse ao mesmo
tempo todos os fenômenos do universo inanimado. Eles são isto: princípios e, como tais,
não demandam demonstração de sua validade. Como Mainville, amigo íntimo de nosso
9
BRENNER, A.: 1990.
10
MARTIN, R.: 1976; 1991.
11
MAIOCCHI, R.: 1985.
12
CHIAPPIN, J.: 1989.
13
SOUZA FILHO, O.: 1996.
14
ABRANTES, P.: 1989, p. 39. A mesma linha é seguida por Souza Filho (SOUZA FILHO, O.: 1996, p. 97).
16
autor, disse certa vez, Duhem “jamais teve o pensamento de fazer história das ciências com
o fim de encontrar provas suscetíveis de vir em apoio às suas idéias.”
15
O fato, porém, é
que Duhem usa a história frequentemente, desde seu primeiro ensaio epistemológico
16
,
com o propósito de angariar respaldo metodológico na autoridade do passado. Ilustrar,
talvez, seja a verdadeira intenção por trás do uso da história da ciência, e não provar.
A história da ciência, quando vinculada à metodologia (falo da história internalista,
propriamente dita, e não das pesquisas historiografias) tem a função de operacionalizar o
ideal de classificação natural, de tornar evidente a existência de uma verdadeira evolução
contínua em direção àquele ideal. Sua função, portanto, é a de garantir uma espécie de
comensurabilidade entre os estágios sucessivos da evolução científica e fundamentar
dinamicamente o realismo duhemiano. Esta fundamentação, entretanto, é externa às
aspirações íntimas (e realistas!) do coração – deste ponto de vista, o realismo é motivado,
na exata medida em que é fundamentado historicamente.
Não é nossa intenção investigar as relações entre os três ramos nos quais Duhem
especializou-se. Nossas análises, menos ricas, serão internas, mas nem por isso, cremos,
menos corretas. Recorreremos, diante da força das coisas, à história da ciência, mas,
mesmo assim, ou para ilustrar rapidamente alguma tese protegida por Duhem, ou para
problematizar, de modo bastante direto, as noções objeto desta Dissertação. Defendemos a
existência de uma via igualmente capaz de salvaguardar o realismo metodológico
duhemiano, a via das intuições irresistíveis do senso comum – deste ponto de vista, o
realismo é motivacional”, para empregar uma expressão feliz usada por Darling.
17
Caso nos restrinjamos apenas aos aspectos da filosofia duhemiana (deixando de lado
seu trabalho como físico e como historiador propriamente dito), pensamos que existam três
possibilidades nas quais podemos insistir para extrair nossas conclusões: (1) a análise
lógico-crítica da ciência; (2) as interações entre a metodologia e a história da física; e (3) as
intuições inanalisáveis do senso comum. Afirmo que a classificação do pensamento
15
MANVILLE, O.: 1928, p. 32, n. 1.
16
DUHEM, P.: ARTF. Não convém especificar em quais ensaios o mesmo procedimento ocorre, suposto que
o encontraremos em quase todos. É preciso mencionar, entretanto, que apenas após a publicação de OS, ao
contrário do que afirma Manville (MANVILLE, O.: 1928, p. 32, n. 1), Duhem passa a produzir uma obra
essencialmente historiográfica, revelando-se um historiador no sentido pleno da palavra, pois que sua história
da ciência, alavancada pela descoberta revolucionária da ciência medieval (MARTIN, R.: 1976; 1990;
MARICONDA, P.: 1994), adquire autonomia crescente e antecedência lógica diante da filosofia
(BRENNER, A.: 1990, pp. 131-68).
17
DARLING, M.: (2002). “Realismo motivacional”, expressão criada por Arthur Fine para classificar o
realismo de Einstein que é empregada por Darling com sucesso quando se trata de classificar o realismo
duhemiano. Trataremos disso na Conclusão da Dissertação.
17
duhemiano, tendo como escopo a oposição entre realismo e instrumentalismo, será dada
conforme a predominância de um ou outro desses aspectos nos comentários sobre Duhem.
Aquele que privilegiar o primeiro deles, verá em Duhem um instrumentalista repleto de
argumentos quase que irredarguíveis, um analista frio do objeto e da estrutura da teoria
física; um segundo comentador, que combinar em suas análises a crítica lógica da ciência
com ao menos um dos demais aspectos, terá de matizar o instrumentalismo duhemiano,
chegando mesmo a vê-lo como realista. Se se conjuga o primeiro com o segundo, Duhem
bem pode surgir como um realista convergente; caso o primeiro seja conjugado
principalmente com o terceiro, poder-se-á falar em realismo do senso comum ou realismo
motivacional. Alguns adágios à intenção duhemiana de evitar tanto o realismo e o
instrumentalismo são freqüentes e bastantes próximos entre si: fala-se em “middle road”
18
,
“middle ground”
19
, “middle way”
20
. Todos os comentadores citados, no entanto, atribuem
um certo realismo a Duhem, e isso é possível porque os verdadeiros extremos em questão
são o dogmatismo e o ceticismo científicos, o tudo e o nada (digamos desde já que fora de
suas análises teóricas, nosso autor nunca abre espaço para o ceticismo). Um realismo
convergente, nesta perspectiva, seria perfeitamente cabível: aproximamo-nos da verdade
(contrariamente ao que deseja o ceticismo), apesar de ela ser um ideal do qual jamais
teremos plena posse (para desagrado do dogmático).
O que acabamos de ver no parágrafo anterior não significa que não exista uma lógica
interna que ligue os três aspectos entre si. Creio ser factível atribuir a eles uma ordenação
não arbitrária que nos permita chegar a uma conclusão preferível às demais. Para isso,
temos de fazer algumas considerações iniciais acerca deles e, em seguida, acerca de sua
aplicação concreta à obra duhemiana.
Para Duhem, a análise lógica é demonstrativa, e suas conclusões são necessárias. A
lógica aplicada à estrutura das teorias diz respeito ao que elas são e, se derivarmos daí o
que elas devem ser, não chegaremos muito longe, não exigiremos delas mais do que
praticidade empírica. Contra as conclusões da lógica, só a argumentação lógica é cabível.
Fechando-se em si mesma, a lógica diz muito pouco sobre o mundo, mantendo-se em sua
imobilidade essencial. A análise historiográfica, por seu lado, não possui as mesmas
garantias fornecidas pela crítica lógica. Essencialmente dinâmica, a história propicia um
aprendizado ímpar sobre a evolução das teorias, desde que se olhe atentamente para o
18
JAKI, S.: (1984) 1987, p. 368.
19
CHIAPPIN, J.: 1989.
20
McMULLIN, E.: 1990.
18
passado a fim de guiar as escolhas no presente. Se da evolução das teorias não podemos
tirar conclusões logicamente válidas, é porque estas são, por seu turno, bem menos amplas
do que as sugeridas pela análise histórica da física, as quais, se não tratam de
demonstrações propriamente ditas, ligam-se de modo a deixar suspeitar qual será o futuro
das teorias; elas instigam a adivinhação de que a teoria possui um valor objetivo sobre o
qual a crítica lógica silencia. Já as intuições do senso comum constituem para Duhem um
fundo de noções inatas e naturais, que são, por assim, dizer, estranhas à lógica. Aqui,
nenhuma demonstração, nem mesmo qualquer argumento inválido: apenas sentimento.
Mas um sentimento que, se é indemonstrável, é igualmente imune à crítica lógica. Se não é
discursivo, é, em princípio, partilhado de todos. Não é demonstrável, na justa medida em
que é fundamento da demonstração. Possui uma dinâmica interna, quase a-histórica: a
dinâmica de uma faculdade que revela tendências inatas, e acaba por eclodir em atitudes,
dentre as quais, uma atitude instintiva de revolta contra as conclusões da lógica.
Perguntemos então: qual a relação entre os três aspectos entre si? Qual a melhor
ordem em que eles podem ser classificados no conjunto geral do pensamento duhemiano?
As análises lógicas não podem ser dispensadas, até mesmo porque algumas das conclusões
obtidas por meio delas podem ser, e são, consideradas verdadeiramente originais (as
críticas ao indutivismo e ao experimento crucial, a formulação da tese holista etc.).
Ademais, nosso autor sempre atribui a elas uma importância central. Sobram outras duas
opções: as análises históricas e os princípios do senso comum. Optaremos, no decorrer de
nossa Dissertação, por privilegiar a segunda opção. Essa adoção tem seus motivos. Não
estou afirmando, com isso, que as teses históricas (a historiografia está de fora) não tenham
relevância para a metodológica duhemianas; pelo contrário, acredito que elas fornecem,
por assim dizer, um ancoradouro seguro para ela, e isso eu não desprezarei. O que eu
defendo é que a sustentação da metodologia duhemiana pode, em princípio, carecer das
análises históricas; as exigências metodológicas podem ser “justificadas” historicamente,
mas em se tratando dos dois princípios básicos da metodologia de Duhem, o princípio de
unidade lógica e o princípio de classificação natural, ambos considerados como a fonte de
seu realismo, não há necessidade de nenhuma justificação que não seja o próprio
sentimento íntimo (no caso da noção de classificação natural isso pode ser relativizado).
Outra maneira de extrair os aspectos intrínsecos da metodologia duhemiana seria
esquadrinhar suas produção científica, ler suas obras sobre física e tentar daí extrair a
essência de sua metodologia. Mais uma vez, esse é um objetivo ao qual não nos
19
propusemos por motivos práticos, atinentes à nossa formação acadêmica, e teóricos; de
onde poderíamos derivar, partindo da sua produção científica, o ideal de classificação
natural ou a sua ênfase na defesa do senso comum quando ele critica os alemães? De sua
obra científica só poderíamos concluir algo acerca dela mesma, do método ali utilizado,
mas nada, por exemplo, acerca da crítica filosófica feita à teoria da Relatividade.
A melhor maneira que se me apresentou para extrair o supra-sumo da metodologia
duhemiana foi derivá-la de suas críticas às escolas inglesa e alemã. Não é por acaso que
faço essa escolha: a introdução, ou, ao menos, a ênfase no papel dos dois princípios
metodológicos aos quais me referi logo atrás é feita exatamente quando Duhem critica a
maneira inglesa de fazer física. Ora, na Théorie physique eles são remetidos ao conceito,
ainda pouquíssimo analisado na literatura duhemiana, de senso comum. Se quisermos
entender o seu verdadeiro valor, então faz-se imprescindível uma análise do senso comum
em Duhem – não apenas em uma obra determinada, mas em todas elas. Pois bem, tomada
essa decisão, em qual publicação duhemiana encontramos a maior fonte de informações
sobre a noção de senso comum? Justamente naquela em que se trata de criticar a escola
alemã – La science allemande.
21
Ingleses e alemães acabam por desprezar, em sua atividade teórica, a natureza
humana. Os primeiros, por não seguirem corretamente o método para a construção da
teoria unitária, a qual, ainda assim, desejam, terminam por construir uma física pluralista e
incoerente, baseada em modelos figurativos, passando então a tratar as teorias como
instrumentos; os segundos, apesar de respeitarem à risca o rigor lógico e a coerência
teórica, são criticados por não construírem suas teorias fundamentadas nos princípios que a
natureza torna evidente, de sorte que acabam por construir uma obra inteiramente artificial,
desligada da realidade. A unidade lógica e a classificação natural encontram-se
ameaçadas... Se as teorias, afirma Duhem, trazem as marcas da geografia e época em que
foram elaboradas, as peculiaridades das teorias inglesas e alemãs refletem fielmente o quão
21
A primeira Parte de nossa Dissertação basear-se-á em grande medida na análise desta obra. Cremos ser
imprescindível uma estreita vinculação entre a SA e as demais publicações duhemianas para o completo
entendimento da metodologia do autor. Assim, nossa postura distancia-se daquela assumida por Lowinger
(LOWINGER, A.: 1941) ao reduzir seus estudos apenas à TP, mas também não segue de perto a leitura de
Maiocchi, o qual, apesar de reconhecer a fragilidade da interpretação proposta por aquele, relega o exame da
SA a um plano inferior (veremos isso com maior detalhe na seção 1.4), afirmando que o núcleo da
epistemologia duhemiana nasce entre 1892-1894 (MAIOCCHI, R.: 1985, p. 114). Ao destacar a importância
da SA na composição da metodologia duhemiana, distanciamo-nos igualmente de Cardwell (CARDWELL,
C.: 1972), Mariconda (MARICONDA, P.: 1986), Brenner (BRENNER, A.: 1990) e Souza Filho (SOUZA
FILHO, O.: 1996).
20
distante estão elas da “verdade impessoal”
22
, do “tipo perfeito”
23
de ciência.
Decididamente, não é pelos seus êxitos que a ciência torna-se nacional. A concepção
duhemiana da “forma perfeita” da teoria física pode ser derivada de sua reação às ciências
saxônicas.
Isto posto, delineia-se a trajetória desta Dissertação:
Na primeira Parte, analisaremos o conceito de senso comum no conjunto da obra
duhemiana, distinguindo vários sentidos e funções para ele. Na verdade, defenderemos a
existência de vários tipos de senso comum, com funções diversas, relacionando-os, como
pede a terminologia duhemiana, ao conceito um tanto próximo de bom senso. Dentre os
vários tipos de senso comum, analisaremos um em especial, que é, como tentaremos
mostrar, o fundamento e sustento da metodologia duhemiana. Dos dois princípios que
teriam sua justificação no senso comum, o princípio de unidade lógica e o de classificação
natural, trataremos do primeiro já na primeira Parte, reservando o segundo para a Parte
seguinte. Nesta, analisaremos a relação entre a noção de classificação natural e explicação
metafísica, pondo em relevo a tensão existente entre elas quando da definição mesma da
teoria física oferecida por Duhem. Para isso, faremos algumas distinções conceituais bem
determinadas com o intuito de esclarecer alguns termos (como os de natureza, explicação,
verdade e analogia) que Duhem muitas vezes usa sem grande precisão. Uma vez analisados
os conceitos adjacentes à noção de classificação natural, faremos uma síntese dos
significados essencialmente intrincados àquela noção e concluiremos que, a despeito do
grande número de comentários sobre Duhem, a finalidade de sua física é a explicação dos
fenômenos.
Filosoficamente, Duhem já foi de tudo: peripatético
24
, tomista
25
, ockhamista
26
,
newtoniano
27
, kantiano
28
, pascaliano
29
, machiano
30
, materialista dialético
31
, simbolista
32
,
22
DUHEM, P.: EITF, p. 83.
23
DUHEM, P.: QRSA/GS, p. 105/80.
24
BOUDOT, M.: 1967, p. 432; POIRER, R.: 1967, p. 404.
25
FRANK, P.: (1941) 1961, pp. 25-8; PARODI, D., 1920, p. 242; BENRUBI, J.: 1933, I, p. 381, n. 1. As
inclusões de Duhem entre os neo-tomistas são predominantes e abundantes, de modo que seria desnecessário
e inútil citá-las aqui.
26
ORAVAS, G.: 1980, p. xvi.
27
LALANDE, A.: (1921-2) 1944, pp. 150-1.
28
DOMET DE VORGES, C.: citado em PAUL, H.: 1979, p.168 e PICARD, É.: 1921, p. cxxxvi-ii.
29
PICARD, É.: 1921, p. cxxxvii.
30
LÊNIN, V.: (1909) 1967, p. 248.
31
LÊNIN, V.: (1909) 1967, p. 247. Lênin oscila muito em sua concepção sobre o pensamento de Duhem,
inserindo-o ora entre os idealistas kantianos, ora, até mesmo (!), entre os materialistas dialéticos. Veremos na
segunda Parte que o marxista tem lá os seus motivos para tanta indecisão.
21
nominalista
33
, instrumentalista
34
, instrumentalista moderado
35
, convencionalista
36
,
positivista, realista... (as duas últimas designações não merecem referência especial porque
são tão comuns quanto matizadas). Tendo essas classificações sido tão conflituosas e
disparatadas, pretenderemos, em nossa Conclusão, oferecer uma resposta à seguinte
questão: há alguma finalidade deliberada na atitude duhemiana de expor e jogar com teses
por vezes tão contrárias entre si? Não há uma intenção tácita responsável pela sinuosidade
entre o seu discurso convencionalista e o seu apelo realista?
32
VICAIRE, É.: 1893, p. 472.
33
REY, A.: 1904, p. 742.
34
POPPER, K.: (1963) 1972, pp. 125-46.
35
GIEDYMIN, J.: 1975, p. 281.
36
LAKATOS, I.: (1970) 1979, p. 128; DOLBY, R.: 1984, p. 388. Duhem advogaria, segundo Dolby, uma
versão de positivismo convencionalista.
22
PARTE 1
BOM SENSO, SENSO COMUM E SIMPLES BOM SENSO
La nature soutient la raison
impuissante et l’empêche
d’extravaguer jusqu’à ce point.
i
Como dissemos na Introdução, enquanto a crítica duhemiana aos ingleses ampara-se na
noção de classificação natural, a ênfase dos ataques à ciência alemã dirige-se à ausência,
nesta, de senso comum ou bom senso. A análise detalhada do ideal de classificação natural
será reservada à Segunda Parte de nossa Dissertação. Nosso intento, por hora, é esmiuçar
as naturezas conceitual e funcional da noção de senso comum, a qual perpassa toda a obra
de Duhem, de modo a que possamos compreender melhor a medida da crítica aos alemães
e, por conseguinte, a própria concepção metodológica esposada por nosso autor.
Podemos resumir nossa argumentação sobre esse assunto da seguinte maneira.
Existem ao menos duas noções bem distintas de senso comum no pensamento de Duhem.
A primeira é constituída de noções primitivas (extensão, tempo, corpo etc.), princípios (os
quais são responsáveis por fundamentar o método experimental), axiomas (no caso das
ciências do raciocínio) e meta-princípios (quando se referem especificamente à física)
i
PASCAL, B., citado em DUHEM, P.: TP, p. 154.
23
certos e claros, passíveis de serem apreendidos imediata e intuitivamente devido à sua
obviedade e simplicidade (embora isso não signifique que todos os apreendam ou que
conheçamos a sua natureza íntima). Neste sentido, o senso comum forma a base de todo
conhecimento, seja ele físico, metafísico, religioso, matemático ou simplesmente vulgar. A
negação dos princípios evidentes deste senso comum acarreta o absurdo e mina o edifício
do conhecimento erigido sobre eles. Por outro lado, a outra noção de senso comum
constitui-se de dois subtipos bastante interligados. O primeiro subtipo, ao qual Duhem liga
as chamadas leis do senso comum, compartilha em grau semelhante da certeza da primeira
noção, mas restringe-se à pura evidência empírica, isto é, à observação imediata. Suas leis
são verdadeiras, com a condição de serem gerais e pouco analisadas. Já o segundo subtipo
corresponde ao conhecimento ordinário, equivalente a opinião, passível de mudanças no
tempo e no espaço, podendo pode ser esclarecido pela divulgação científica. Esta segunda
noção de senso comum (e de seus dois subtipos) não serve de base a partir da qual a teoria
física poderia ser deduzida diretamente, e suas verdades (algumas delas, ao menos) podem
ser desmentidas ou enriquecidas pelo desenvolvimento da física. A ligação que há entre a
teoria física e este senso comum só pode ser posta em claro com o recurso à história da
ciência; uma análise puramente lógica e estática, porém, revelaria uma distinção de
natureza entre eles. É amparado no primeiro sentido de senso comum que Duhem opõe-se
às físicas alemã e inglesa.
Mostraremos igualmente que a noção de bom senso também possui dois sentidos.
Um deles, de presença mais rara, é equivalente àquela primeira noção de senso comum,
vale repetir, caracterizada como conhecimento óbvio e natural (por vezes nosso filósofo
refere-se a ele como simples bom senso). O outro sentido de bom senso relaciona-se com a
perspicácia, a finesse adquirida pelo cientista através da prática de seu ofício, sendo
claramente desigual entre os homens e entre os próprios físicos entre si. Entre bom senso e
senso comum só há oposição quando se trata deste último bom senso e do segundo tipo
(com seus respectivos subtipos) de senso comum. Mas também existe analogia entre os
dois: ambos são responsáveis pelo discernimento do verdadeiro e do falso, mas em esferas
diferentes: o primeiro, quando se trata principalmente das relações entre teoria e
experimento, enquanto o segundo atém-se ao domínio da prática cotidiana. Já o senso
comum (como idêntico a bom senso), ou seja, aquele que representa um fundo de noções
evidentes e primitivas, naturais aos homens, é mantido intacto por Duhem (embora nunca
lhe seja conferida a imutabilidade), e seu valor é tal que seus ensinamentos entram tanto no
24
domínio do vulgo (senso comum ordinário) como no domínio científico em geral (das
ciências do raciocínio, da ciência puramente experimental e da física matemática).
Ademais, vincularemos nossas análises, mesmo que de modo acessório, a questões
bastante debatidas na primeira metade do século XX, dentre as quais estariam estas: é o
senso comum extrínseco ou intrínseco à ciência? Pode o conhecimento científico derivar
por elaboração continua do senso comum ou deve aquele, para o seu progresso, desatar o
nó que o amarra ao conhecimento vulgar, espontâneo e repleto de preconceitos estéreis não
analisados? As respostas a essas indagações ligar-se-ão eminentemente a Duhem, embora,
por motivos de clareza, recorreremos, quando nos parecer oportuno, ao que disseram
outros autores acerca do assunto.
* * *
A noção de senso comum não é algo que pode ser apreciada de uma vez por todas já
no começo dos escritos de Duhem. Ela toma corpo e revela sua verdadeira face apenas a
partir da Théorie physique, chegando à sua completa elaboração na Science allemande.
Todavia, encontramos passagens que nos indicam o germe daquele que viria a ser, segundo
nossa interpretação, o coração da metodologia duhemiana, desde os seus ensaios
publicados na Revue des Questions Scientifiques, nos anos de 1892 a 1894. Três exemplos
merecem menção. O principal, que será tratado na seção 1.2 desta Parte, pode ser
encontrado em “Algumas reflexões acerca da física experimental”. Neste ensaio, Duhem
opera uma distinção valiosa entre leis do senso comum e leis da física, mostrando a
complexidade constituinte destas e a dificuldade em sua verificação. É preciso salientar
que a noção de senso comum, neste ensaio, é exposta na forma de leis e não na de
princípios metodológicos que servem de guia à escolha das hipóteses científicas. O papel
atribuído ao senso comum não possui neste ensaio qualquer relevância metodológica para a
física, transitando, antes, na esfera da opinião vulgar. O mesmo não ocorre em “A escola
inglesa e as teorias físicas” e em “Física e metafísica”, nossos dois outros exemplos,
analisados na seção 1.3. No primeiro, o autor deixa claro o caráter decisivo de certos
“princípios que guiam nossa razão para desarmar o ceticismo”
25
37
, os quais seriam intuitivamente evidentes a todos os físicos e os impulsionariam à
construção da teoria perfeita em detrimento das teorias incoerentes e incompatíveis.
Embora Duhem não designe explicitamente de onde brotam esses princípios, na Théorie
physique a mesma função será arrogada ao senso comum. Já em “Física e metafísica”, o
físico francês almeja fundamentar o método experimental sobre certas noções como
“espaço”, “tempo”, “corpo”, cuja clareza seria suficientemente segura para evitar a
necessidade de pesquisas metafísicas anteriores à física que a justificassem. Passaremos
então à Théorie physique, obra metodológica mais fundamental, onde elucidaremos quais
são as funções adquiridas pelo senso comum para, em seguida (seção 1.4), amparados
também em cartas que compõem sua correspondência pessoal, compará-las com seu
penúltimo livro publicado em vida, La science allemande, por ocasião da eclosão da
Primeira Grande Guerra. Por fim, em nossas considerações finais a essa parte (seção 1.5),
discutiremos de modo geral a posição de Duhem acerca do senso comum, relacionando-a a
um número pequeno de autores que também trataram do assunto, elucidando diferenças e
convergências. O argumento geral desta parte será, de um lado, que a noção de senso
comum comporta uma duplicidade de sentidos que devem ser distinguidos
cuidadosamente, a risco de imputar incoerência ao pensamento do filósofo e, de outro, que
o senso comum torna-se um critério metodológico de primeira ordem na metodologia
duhemiana. Isso nos permitirá concluir que, apesar das aparências em contrário, se La
science allemande pode ser classificada como obra oportunista, nem por isso há
contradição entre a metodologia usada para criticar os alemães e aquela que pode ser
encontrada nos textos anteriormente discutidos.
1.1. Uma nova análise do experimento em física
Percorrendo as notas de rodapé da Théorie physique, podemos perceber uma certa
preocupação por parte de Duhem no que se refere à datação da tese hoje genericamente
conhecida como “impregnação teórica da observação”. Numa delas, lemos: “[...] pedimos
ao leitor a permissão de fixar algumas datas. Pensamos ter sido os primeiros a formular
esta análise em um artigo intitulado: ‘Algumas reflexões acerca da física experimental’
[...]”. Após a citação de alguns artigos nos quais sua análise sobre a experiência em física
37
DUHEM, P.: EITF, p. 78.
26
havia sido retomada (sobretudo por G. Milhaud, É. Le Roy e É. Wilbois), Duhem dá-nos
um esclarecimento que revela o quanto sua tese parece ter sido transposta para um universo
que originalmente não era o seu, como, aliás, faz-se atualmente: “Desta análise do método
experimental empregado em física, os diversos autores que nós acabamos de citar tiram por
vezes conclusões que excedem os limites da física; não os seguiremos até aí e nos
manteremos constantemente nos limites da ciência física.”
38
Ciente da importância
adquirida pela tese em questão
39
nos ambientes científico, filosófico e religioso da França
e, cioso de sua originalidade, Duhem limita as conclusões de suas reflexões sobre a
experimentação unicamente à física
40
. Assim, o âmbito das críticas duhemianas à noção de
objetividade fundada sobre o experimento científico, tal como o idealizado de Francis
Bacon a Claude Bernard (e Comte
41
), deve ser entendido de modo bastante circunscrito.
Duhem não pretende, por exemplo, criticar o Bernard fisiólogo, mas tão somente a validez
do método bernardiano em física. Que significa essa restrição? Pura prudência? Receio em
prolongar as próprias reflexões a outra disciplina que não a sua, evitando, com isso,
polêmicas indesejáveis? Sabemos que desde o tempo de sua graduação em física nosso
autor não se comportava verdadeiramente como um anti-polemista, atitude que se
prolongará por toda a sua vida acadêmica. Veremos que o que está em jogo é bem mais
que a fruição de alguma espécie de tranqüilidade. Comecemos então por uma análise
textual bastante aproximada da primeira aparição da tese da impregnação teórica da
experimentação.
38
DUHEM, P.: TP, p. 217, n. 1; p. 227, n. 1. As notas de Duhem foram muito provavelmente motivadas pela
negligência de Poincaré, o qual, em “Sur la valeur objective des théories physiques” (POINCARÉ, H.: 1902),
ao criticar a tese de Le Roy, segundo a qual o cientista cria o fato científico, não cita nosso autor. Quanto à
ausência do nome de Duhem em “Un positivisme nouveau” (LE ROY, E.: 1901, p. 140, n. 1), na qual o
discípulo de Bergson remetia as considerações acerca da importância da teoria no relato de uma experiência
em física a Milhaud e Wilbois, sem mencionar Duhem, trata-se mais da perspicácia de Le Roy ao diferenciar
suas concepções das de Duhem do que de mero descaso.
39
A denominação corrente da tese da impregnação teórica, se faz justiça a autores atuais, pode certamente
causar problemas interpretativos quando remetida a Duhem, pois não podemos perder de vista que as
reflexões de onde ela se originou restringem-se à física experimental, donde a generalidade autêntica
concedida à tese da impregnação ser coextensiva ao experimento em física ou, no máximo, aos experimentos
que utilizem instrumentos da física para a sua realização. Não se trata, vê-se, de uma observação qualquer,
mas daquela minuciosamente controlada e esperada. O correto seria chamá-la, então, impregnação teórica da
“experimentação”, como faremos a partir de agora.
40
A tese da impregnação foi de grande valia para os modernistas, que concentravam sua atenção em
relativizar o poder demonstrativo da ciência, guarnecendo a religião e a fé das alçadas do cientificismo
positivista e do racionalismo neo-tomista.
41
A crítica de Duhem bem se aplica a Comte, embora, por motivos que intrigam a qualquer um, o positivista
francês jamais aparece citado na obra do compatriota católico.
27
Em “Algumas reflexões acerca da física experimental”, provavelmente um dos
ensaios mais importantes e influentes na comunidade científica francesa de sua época, a
questão encontrada logo no primeiro parágrafo é a seguinte: “O que é uma experiência
física? Eis uma questão que surpreenderá, sem dúvida, mais de um leitor da Revue des
Questions Scientifiques. É necessário formular essa questão? A resposta não é evidente?”
42
Atrelada à crítica da experimentação, Duhem proporá uma nova visão da constituição das
teorias, das leis científicas e de seu confronto com a experiência. As conseqüências
epistemológicas e metodológicas dessa análise serão numerosas e de extrema pertinência,
embora, como nosso objeto é tecer considerações sobre as relações entre senso comum e
conhecimento científico, em nossas análises evocaremos apenas os aspectos que
importarem à compreensão do tema proposto.
De Bacon a Bernard
43
, afirma Duhem, as reflexões sobre os experimentos físicos
foram
concebidas sem muitas dificuldades e de maneira bem clara. O distanciamento bernardiano
do puro empirismo baconiano, tal qual o encontrado em sua Introduction à l’étude de la
médicine experimentale, pode ser expresso na seguinte tese: a função do método
42
DUHEM, P.: ARFE, p. 87.
43
Bacon e Bernard são dois autores a respeito dos quais Duhem guarda posturas bastante diferentes. Sempre
que citado, Bernard aparece como exímio experimentador e expositor do modelo metodológico a ser tomado
como referência para as ciências pré-analíticas. Já com relação a Bacon as coisas não se passam da mesma
maneira. O filósofo inglês é invariavelmente criticado por Duhem. Em ARFE, as reflexões baconianas não
merecem sequer uma linha de atenção. Em ETP, Duhem afirma: “O século XVIII, e o nosso em seguida,
quiseram ver no Novum Organum o que Bacon tinha desejado aplicar: o programa da física dos tempos
modernos. De fato, este livro não exerceu nenhuma influência sobre o desenvolvimento da ciência
experimental; no momento em que Bacon o escrevia, a nova física encontrava em Galileu seu verdadeiro
instaurador” (DUHEM, P.: ETP, p. 470). Na TP, o Novum Organum é desqualificado como obra composta
sem ordenação, cujas divisões internas seriam de infantil simplicidade e cujo objeto estaria longe de ser a
clareza e a ordem características da exposição cartesiana, limitando-se à prática e à indústria: “Abramos
agora o Novum Organum. Não procuremos nele o método de Bacon; ele não o tem” (DUHEM, P.: TP, p. 94).
Ainda assim, se perguntarmos não pelo método de exposição de sua obra, mas pela metodologia científica
propriamente dita, Duhem manterá a severidade: “A experiência será feita sem idéia pré-concebida, a
observação será colhida ao acaso; os resultados serão registrados em sua brutalidade, à medida que eles se
apresentarem [...]” (DUHEM, P.: TP, p. 94). Os preceitos para a organização dos dados observacionais
oferecidos por Bacon, por sua vez, basear-se-ão em categorias de “fatos privilegiados”, mas estas categorias,
insiste Duhem, ele não as classifica, apenas enumera-as sem análise posterior. Ulteriormente, após as
descobertas historiográficas relativas à Idade Média e o prolongamento das análises históricas à Antigüidade,
se o julgamento duhemiano sobre Galileu não é mais o mesmo, acerca de Bacon nada de novo é dito: “A
atribuição do título de criador do método das ciências físicas deu lugar a muitas querelas; uns quiseram dá-lo
a Galileu, outros, a Descartes, e outros ainda a Francis Bacon, que morreu sem nunca ter compreendido esse
método. Na verdade, o método das ciências físicas foi definido por Platão e pelos pitagóricos de seu tempo
com uma nitidez e precisão que não foram ultrapassadas; ele foi aplicado pela primeira vez por Eudoxo
quando este tentou, combinando rotações de esferas e homocêntricos, salvar os movimentos aparentes dos
astros” (DUHEM, P.: SM, I, p. 129).
28
experimental é a de testar uma idéia experimental (uma hipótese) resultante do sentimento
(a habilidade pessoal e desregrada do cientista em formular relações). Não que a
observação, geneticamente anterior ao sentimento, fosse desnecessária; pelo contrário, a
observação é a ocasião para a produção de idéias, mas ela não é todo o conhecimento. As
relações estabelecidas entre os fatos não vêm simplesmente deles, podendo ser formuladas
também pelo sentimento, que antecipa as observações. Somente em seguida é que a
experimentação, já guiada pela hipótese diretriz, buscará testar as relações hipotéticas entre
as coisas. É isso o que permite a Bernard definir: “[...] a observação é a investigação de um
fenômeno natural, e a experiência é um fenômeno modificado pelo investigador.”
44
A
ciência experimental da qual fala o fisiólogo constitui-se de dois procedimentos bastante
caros; a variação e a modificação, que são, por assim dizer, os critérios definidores da
ciência experimental. Assim, quando é possível exercer controle das teorias sobre uma
classe de fenômenos, quando é possível fazer com que a natureza apresente modificações
não circunstanciais, isto é, modificações artificialmente instituídas com vistas à variação
experimental exploratória, quando é possível, numa palavra, agir livremente no intuito de
importunar a natureza em seu desdobramento, uma ciência desses fenômenos será dita
experimental. Ao contrário, a astronomia, por permanecer no campo da pura constatação,
cujos resultados são sempre aqueles que a natureza apresenta, enquadrar-se-á no campo
das ciências de observação; ela será uma ciência passiva.
45
Mas se perguntarmos como Bernard concebe uma experiência particular, qual será a
sua resposta? Novamente com ele:
Aqueles que condenaram o emprego de hipóteses e de idéias preconcebidas no método
experimental enganaram-se ao confundir a invenção da experiência com a constatação
de seus resultados. É verdadeiro dizer que é preciso constatar os resultados da
experiência com um espírito despojado de hipóteses e de idéias preconcebidas. Mas
seria preciso abster-se de proscrever o uso das hipóteses e das idéias quando se trata
de instituir a experiência ou de imaginar meios de observação.
46
Sem uma hipótese prévia, nenhuma experiência seria concebível. A visão
bernardiana é tal que, necessárias à instauração de um experimento, as hipóteses devem ser
proibidas quando da constatação dos resultados do mesmo. Enquanto durar a experiência, a
teoria deve permanecer “à porta do laboratório”, e o experimentador tem de resguardar a
44
BERNARD, C.: 1865, p. 29.
45
BERNARD, C.: 1865, pp. 33-4.
46
BERNARD, C.: 1865, p. 43.
29
inteira liberdade de seu espírito, fugindo das idéias fixas que ameaçam a imparcialidade do
experimento. Desse modo, o físico colocar-se-á frente a frente com os fatos, sejam eles
probatórios ou infirmativos, e nada desviará seu relato indicando uma preferência implícita
por uma teoria determinada. Sua atenção estará voltada para um único objetivo: não
desfigurar a observação, ou seja, não ocultar fatores que possam pôr em risco uma teoria
aceita.
47
No limite, afirma Duhem a respeito da posição de Bernard, se o físico não quiser
ser acusado de má fé científica, ele deve “estabelecer uma separação absoluta, uma divisão
estanque, entre as conseqüências de suas deduções teóricas e a constatação dos fatos que
lhe revelam suas experiências”.
48
A resignação aos resultados da experiência e a ausência
de animosidade para com a sua teoria e as teorias dos outros são características notáveis
dos bons experimentadores.
Como é sabido, tal qual Bernard em fisiologia, Duhem foi um dos principais
defensores da importância das hipóteses em física, e seu problema consistiu antes em
regrar o uso de hipóteses na construção das teorias do que em angariar-lhes um lugar ao
sol: “Que a teoria sugira as experiências a serem realizadas, nada melhor. Uma vez feita a
experiência e constatados nitidamente os resultados, que a teoria se apodere deles para
generalizá-los, coordená-los, extraindo deles novos temas para a experiência, nada de
melhor ainda.”
49
Quanto a isso, Duhem nada tem a objetar. O puro empirismo é, de fato,
impraticável
50
, e a teoria, se nosso autor não reconhece nela ainda um poder heurístico de
47
L. H. A. Dutra traça algumas analogias entre o pensamento de Bernard e Popper a respeito da atitude
crítica da experimentação em favor da imparcialidade (DUTRA, L. H.: 1992, seção 5). É interessante notar
que as mesmas passagens usadas pelo comentador para aproximar o pensamento dos dois autores são usadas
por Duhem em sua defesa da imparcialidade (DUHEM, P.: TP, pp. 274-6). Convém não esquecer que Duhem
mantém-se fielmente ligado à norma da imparcialidade, embora reconheça que a tese da impregnação teórica
venha a oferecer enormes obstáculos à sua completa realização em física.
48
DUHEM, P.: TP, p. 276. Uma análise da distinção bernardiana entre fato e interpretação pode ser
encontrada em DUTRA, L. H.: 1996, seção 1; 2001, seção 4.1.
49
DUHEM, P.: ARFE, p. 89.
50
A crítica duhemiana ao método indutivo presente em ARTFo se reveste do caráter lógico encontrado em
TP (II Parte, capítulo VI, seções IV à VI). Apenas em 1906 Duhem utiliza categorias lógicas em sua análise
quando afirma, por exemplo, que o indutivismo acarreta indissoluvelmente um círculo vicioso ao supor uma
experiência fictícia (uma experiência por fazer) como já feita na justificação do próprio princípio assumido
para derivar a previsão (DUHEM, P.: TP, p. 306-7), ou, ainda, que o princípio da gravitação universal
contradiz formalmente as leis de Kepler, não podendo ser induzido delas diretamente (DUHEM, P.: TP, p.
293). A despeito da característica lógica de tais análises, nosso autor continua a qualificar o método indutivo
de “impraticável” (DUHEM, P.: TP, p. 306; NTTS, p. 152). É preciso salientar que em 1892, apesar da crítica
desferida ao método indutivo, este permanece sendo, com a finalidade de preservar uma alternativa às
hipóteses mecanicistas, um ideal pelo qual a formulação das hipóteses deve se pautar. Para maiores
elucidações das diferenças encontradas entre ARTF e as obras iniciais e a TP acerca do indutivismo, ver
BRENNER, A.: 1990, pp. 29-53, pp. 210-8.
30
previsão de novas leis ou fenômenos como o fará na Théorie physique
51
e em Le mixte et la
combinaison chimique,
52
é indispensável à ciência. A análise duhemiana mostra que a
teoria tem papel decisivo não apenas no momento da invenção, mas indissoluvelmente, na
instauração mesma da interpretação. Enquanto Bernard confere plena legitimidade às
idéias preconcebidas que guiarão o experimentador à realização do experimento, o mesmo
não se passa, como vimos, no relato propriamente dito dos resultados. Ora, é possível que
as reflexões sobre a medicina experimental do fisiólogo sejam transportadas para a física?
É possível uma separação absoluta entre as conseqüências deduzidas de sua teoria e o
relato dos resultados de sua experiência? Afinal, a quais ciências convêm o método
descrito por Bernard?
Os preceitos metodológicos bernardianos têm decerto uma validade, e não é a
intenção de Duhem criticar seu compatriota na área em que este era perito. Também não
estamos diante de uma crítica à certeza do método experimental, o qual possui, desde suas
reflexões acerca da física e da metafísica, fundamentos e princípios evidentes em si
mesmos.
53
O que vemos ser questionado é o valor universal do método experimental tal
como exposto acima:
Esse método convém às ciências ainda próximas de sua origem, como a fisiologia, ou
certos ramos da química, às ciências em que o pesquisador observa diretamente os
fatos, onde ele raciocina imediatamente sobre os fatos observados. Ele não é aplicável
às ciências mais avançadas, à física, por exemplo, às ciências que chegaram ao estágio
de desenvolvimento em que o instrumento matemático representa um papel essencial,
a essa fase que os teóricos do começo do século caracterizaram, muito
impropriamente, aliás, pelos epítetos de analítica ou racional.
54
Enquanto a distinção de Bernard entre observação e experimentação tinha como
critério a intervenção ativa na ordem da natureza, o que, em princípio, permitia conjugar na
mesma esfera a fisiologia e a física, embora não a astronomia, o critério utilizado por
Duhem na distinção metodológica entre ciência puramente empírica (de observação) e
ciência analítica ou racional (à qual se vincula o sentido de experiência salientado em
“Algumas reflexões acerca da física experimental”) é o uso do instrumental matemático.
51
Compare-se DUHEM, P.: ARTF, seção dez, com DUHEM, P.: TP, Parte I, capítulo II; Parte II, “Physique
de croyant”, seção 7; Parte II, “La valeur de la théorie physique”.
52
Nesta obra, a fecundidade (entendida como promoção de descobertas inovadoras tanto teóricas como
práticas) aparece em vários momentos como critério fundamental em favor da notação química defendida por
Duhem (DUHEM, P.: MCC, p. 94, p. 120, p. 132, p. 138, p. 144, p. 146).
53
DUHEM, P.: FM, p. 45. Trataremos disso adiante.
54
DUHEM, P.: ARFE, p. 90.
31
Como conseqüência, temos o isolamento da fisiologia com relação à física e à astronomia
matematizadas, doravante juntas. Isso talvez possa nos levar a acreditar erroneamente que
esse afastamento seja absoluto ou que uma dada ciência será sempre, a despeito de seu
progresso, tão somente de observação. Não é verdade:
[...] o físico não é o único que faz apelo às teorias para enunciar o resultado de suas
experiências. O químico, o fisiologista, quando fazem uso de instrumentos da física,
do termômetro, manômetro calorímetro, galvanômetro, admitem implicitamente a
exatidão das teorias que justificam o emprego desses aparelhos, das teorias que
conferem um sentido às noções abstratas de pressão, temperatura, quantidade de calor,
intensidade de corrente, pelas quais se substituem as indicações concretas desses
instrumentos.
55
Um novo passo é dado. Se um experimento físico pressupõe um conjunto de
conhecimentos matemáticos para sua devida interpretação, todo e qualquer experimento
que pressupuser, para sua realização, um instrumento construído por meio de noções
simbólicas da física, tais quais as de temperatura, eixo ótico, intensidade de corrente etc.,
herdará uma complicação crescente em sua verificação. A dependência dos instrumentos
tirados da física implica uma dependência posterior na exatidão dos mesmos. Quando uma
ciência se afasta do conhecimento grosseiro da realidade imediata, mais determinadas e
detalhadas vão tornando-se as suas leis. Para que esse refinamento seja atingido é
necessário o recurso a instrumentos que garantirão ao experimento a precisão exigida.
Então, se a fisiologia não é uma ciência que possui estrutura matemática, se ela não é uma
ciência racional em si mesma, disso não devemos concluir por sua independência total das
teorias da física. Logo:
Quando uma ciência começa, quando não é de certa forma mais que o senso comum
tornado mais atento, a relação que ela constata entre os fatos da experiência é um
decalque exato da realidade observada. A fisiologia, em várias de suas partes, oferece-
nos a imagem de uma ciência nesse estágio; depois, à medida que ela progride, a
espessura das considerações teóricas que separa o fato concreto, realmente constatado
pelo observador, e a tradução abstrata, simbólica, que ela fornece, torna-se mais
considerável.
56
55
DUHEM, P.: ARFE, p. 91.
56
DUHEM, P.: ARFE, p. 91. Essa citação, presente em 1894, não se encontra em TP. Pelo rearranjo desta
obra, deveríamos situá-la na página 278 da terceira edição. Sua omissão, todavia, em nada altera o conjunto
das considerações duhemianas sobre a fisiologia, apenas dificulta a interpretação sobre o estatuto desta
ciência. Mesmo que em suas reflexões sobre a física experimental Duhem não especifique claramente quais
são as “partes da fisiologia”, uma coisa é clara: algumas delas dependem da instrumentação física, enquanto
outras não, ou melhor, ainda não.
32
O caráter intrinsecamente interpretativo decorrente do uso de instrumentos de
medida acurados, bem como das teorias que eles pressupõem, como que diminui o grau de
certeza da constatação dos resultados. A minúcia na análise acarreta a incerteza dos
resultados. Essa é a relação fundamental que é preciso ter em mente para podermos
entender a tese da impregnação teórica. Fazendo intervir o progresso, Duhem insere sua
tese numa visão dinâmica. O que não é observado atualmente porque escapa da esfera de
nossa percepção pode sê-lo no futuro através do desenvolvimento de instrumentos
adequados. Quanto ao que é observado atualmente, sem o uso de aparelhos específicos da
física, continuará a sê-lo no futuro, mas, com a intervenção do progresso científico, uma
tendência comum a todas as disciplinas científicas passa a ser a crescente dependência da
base teórica. Mais e mais a física presta ajuda às disciplinas experimentais, sem, contudo,
exceto no caso da química e de certos ramos da própria física,
57
suprimir-lhes a autonomia.
Mas o que significa dizer que um instrumento é constituído por noções simbólicas
emprestadas às teorias físicas? Em primeiro lugar, devemos lembrar que a correspondência
estabelecida entre a qualidade sensível incomunicável e a grandeza física
intersubjetivamente mensurável não é uma relação de natureza, mas algo totalmente
arbitrário. Logo, a uma mesma noção física podem corresponder várias definições e
procedimentos de medida. A esse processo Duhem chamou tradução, a qual, por sua vez, é
determinada por um conjunto de regras de correspondência. Para saber utilizar
adequadamente um instrumento físico é preciso conhecer as regras de correspondência das
noções que estão em jogo: pressão, temperatura, densidade, coeficiente de dilatação são,
todos eles, símbolos de certas noções físicas, cuja graduação implica o uso de teorias
físicas e só adquirem um sentido por meio destas.
Utilizemos o exemplo preferido de nosso autor para melhor ilustrar a formação de
um símbolo teórico, a temperatura.
58
A definição dos termos simbólicos (a elaboração do
“vocabulário”) é a primeira etapa da construção de uma teoria física, responsável por ligar
o domínio dos fatos ao da teoria. Reconstruindo as etapas da argumentação duhemiana,
podemos dividir a composição de um símbolo nas quatro seguintes etapas: num primeiro
57
O tratamento fenomenológico dos processos químicos associado à amplitude da base termodinâmica
permite a Duhem enunciar: “A Mecânica nova não se contenta em ser uma Mecânica física, ela é ainda uma
Mecânica química” (DUHEM, P.: EM, p. 219). Donde o fisicalismo duhemiano, que jamais pretendeu a
redução das ciências da vida aos princípios da física.
58
A definição teórica da temperatura é exemplificada em várias oportunidades: já em ARTF, seção 2; nos
CPT, Parte I, capítulo 1, seção 6; em EM, Parte II, capítulo 1; na TP, Parte II, capítulo 1; e no TE, Tomo I,
capítulo 1, seção 11.
33
momento, temos uma sensação fisiológica que é signo de uma certa propriedade dos
corpos (o calor). Em seguida, a linguagem ordinária representa essa propriedade por meio
de uma noção física e abstrata (o “quente”). Aqui, já é possível fazer comparações entre a
quentura de dois ou mais corpos, ainda que a medida seja grosseira, pois que dada pelos
sentidos (o que vem a restringir enormemente a exatidão e a objetividade do julgamento).
Além disso, existe neste nível uma outra dificuldade: a noção física (qualitativa) de quente
não é suscetível de adição. Não se pode somar a quentura de dois corpos ou mesmo
verificar sua igualdade em determinadas ocasiões.
59
As propriedades essenciais à noção de
quente não permitem medir o objeto dessa noção (o calor). Num terceiro momento,
altamente arbitrário, é feita a correspondência entre as propriedades mais imediatas da
noção física que se quer representar e as propriedades mais simples de uma grandeza
matemática (algébrica ou geométrica) passível de adição.
60
É a representação matemática
criada pelo físico, a temperatura, que permite representar os diversos graus de calor, uma
vez que ela pode ser somada a outra temperatura, dividida ou multiplicada por um
número.
61
Uma vez criada a grandeza algébrica, resta determinar o seu valor através da
medida: “a passagem da grandeza ao número que a representa constitui propriamente a
medida”.
62
Mas a medida não é feita ao acaso. Eis o quarto momento, da maior
importância, que permite fixar o valor da temperatura:
Assim como uma grandeza não é definida simplesmente por um número abstrato, mas
por um número ligado ao conhecimento concreto de um padrão, do mesmo modo uma
intensidade não é inteiramente representada por um símbolo numérico: a esse símbolo
deve ser ligado um procedimento concreto próprio para obter a escala dessas
intensidades. Somente o conhecimento dessa escala permite dar um sentido físico às
proposições algébricas que nós enunciaremos a respeito dos números que representam
as diversas intensidades da qualidade estudada.
63
59
As dificuldades de comparação do grau de calor de dois corpos pelos sentidos são ressaltadas por Duhem
em CPT, I, pp. 284-5. A avaliação torna-se dificultosa quando os dois corpos são ou extremamente quentes
ou frios (a ponto de danificar os órgãos sensíveis) ou quando a intensidade de calor dos corpos é muito
próxima (sem esquecer-nos de que um mesmo corpo pode ter alguma de suas partes mais quente que outra).
60
No caso da temperatura, a grandeza representativa será escalar, e não vetorial, pois “a noção de quente não
implica qualquer noção de direção” (DUHEM, P.: ARTF, p. 15).
61
Para que uma grandeza seja tomada como temperatura, basta que ela apresente as seguintes características:
(1) ter mesmo valor para dois corpos igualmente quentes; (2) ter um valor maior para o corpo A que para o
corpo B se o corpo A for mais quente que o corpo B (DUHEM, P.: ARTF, p. 16).
62
DUHEM, P.: EM, p. 199.
63
DUHEM, P.: TP, p. 174.
34
Caso a temperatura não seja ligada a um padrão de medida, ela permanece sendo um
conceito não determinado. É aqui que entra o aparato instrumental, o qual funciona como
um mediador entre a noção física de calor e a noção simbólica de temperatura.
64
Assim,
para que o valor numérico de uma temperatura tenha algum sentido, ele deve sempre ser
reportado a um termômetro particular livremente escolhido
65
:
Pela definição e pelo emprego de um instrumento, a teoria adquire um sentido físico;
ela se torna verificável e utilizável.
66
Duhem oferece uma definição operacional da noção de temperatura. A ligação entre
a noção física e qualitativa e o conceito simbólico e quantitativo é realizada pelo
instrumento, responsável por conferir sentido físico às proposições teóricas e por torná-las
verificáveis.
67
A maneira duhemiana de definir a temperatura guarda uma preocupação
especial: a tentativa de evitar definições substanciais, isto é, aquelas definições que
pretendem dizer o que é o calor em si, ultrapassando o domínio dos meios ordinários de
observação. Desse modo, a teoria não procura ser uma expressão direta do real, e o real
não se reduz ao que informa a teoria. Assim, não há nenhum vínculo natural entre a
64
DUHEM, P.: EM, p. 201.
65
DUHEM, P.: CPT, I, p. 289; EM, p. 201. O termômetro de mercúrio é apenas uma das possibilidades às
quais a temperatura pode ser reportada. A definição de temperatura pode ainda ser complementada de modo
arbitrário, através de “relações entre volume, pressão, forças eletromotrizes etc.” (DUHEM, P.: ARTF, p. 16).
66
DUHEM, P.: EM, p. 202.
67
Tendo em vista a definição operacional do conceito de temperatura, não devemos, apenas por isso, incluir
Duhem no séqüito operacionalista. Para evitarmos essa injustiça, lembremos da definição que nosso físico dá
da quantidade de calor em NTTS: “A quantidade de calor é definida pela nova Energética de tal maneira que
a lei da equivalência entre o calor e o trabalho seja uma conseqüência imediata desta definição” (DUHEM,
P.: NTTS, p. 81). O próprio Duhem afirma que essa definição é uma das “principais inovações” de sua
doutrina (DUHEM, P.: NTTS, p. 78), uma vez que a quantidade de calor não é definida em função da medida
de um calorímetro, mas em vista de deduzir, a partir dessa quantidade, o princípio de equivalência – e isso
basta. Estamos diante, portanto, de uma definição teórica. Quase duas décadas antes, em TC, a concepção
duhemiana já distanciava-se do operacionalismo estrito: “A quantidade de calor não é jamais para eles [os
físicos atuais] uma noção abstrata definida pela teoria, medida aproximadamente, em cada caso particular,
por um calorímetro que a mesma teoria explica e justifica o emprego. O que eles introduzem em seus
raciocínios e em suas fórmulas sob o nome de quantidade de calor não é outra coisa senão a medida fornecida
pelo calorímetro; ela não se define de outro modo” (DUHEM, P.: TC, I, pp. 866-7. Itálicos meus.).
Entretanto, ao supor que a quantidade de calor desprendida em uma modificação seja proporcional ao peso
do gelo fundido na mesma modificação, não seria necessário fazer uma outra suposição, a saber, de que “todo
o calor despendido pela modificação seja empregado para fundir o gelo?” (DUHEM, P.: TC, I, p. 867). A
admissão implícita desta suposição explica porque os físicos muitas vezes não tomam o resultado bruto
(medido pelo calorímetro) sem aplicar-lhe correções variadas. Essas correções não seriam justificadas se os
físicos não raciocinassem “sobre uma certa quantidade de calor abstrata, ideal, cuja noção existe mais ou
menos nítida, mais ou menos consciente, em seu espírito” (DUHEM, P.: TC, I, p. 867).
35
representação e a realidade, e o símbolo, tal como entende nosso autor, é a maior expressão
da convencionalidade da vinculação.
Como podemos ver através do procedimento de formação de uma grandeza
simbólica, diferentes definições levarão a procedimentos de medida divergentes, de modo
que, dois físicos que adotarem teorias cujas regras de correspondência não sejam as
mesmas farão medidas diferentes. Os obstáculos à comunicação não atingem apenas os
físicos de formação, mas vão além, evidenciando a disparidade interpretativa. O homem
comum, desprovido de conhecimentos técnicos especializados em física, sequer será capaz
de realizar uma experiência adequada. Ao entrar num laboratório o leigo poderá ser capaz
de observar até mesmo com detalhes o que se passa, não será, contudo, competente o
suficiente para medir, interpretar e tirar conclusões. Daí Duhem afirmar:
Uma experiência da física é a observação precisa de um grupo de fenômenos
acompanhada da INTERPRETAÇÃO desses femenos. Essa interpretação substitui
os dados concretos realmente recolhidos pela observação por representações abstratas
e simbólicas que lhes correspondem em virtude das teorias físicas admitidas pelo
observador.
68
A interpretação, em decorrência, não pode ficar à porta do laboratório, pois ela é
condição para o sucesso do experimento, tornando-se parte integrante deste e
transformando a constatação dos fatos. A existência mesma dos fatos não é posta em
questão em nenhum momento por Duhem. O que está sendo dito é que os fatos enquanto
tais são insuficientes para serem incluídos no domínio da física, pois atenção prévia e olhos
aguçados geram apenas observações... cotidianas, afinal, que alguém veja num termômetro
o mercúrio nivelar a um certo grau é um fato, mas que diga que a temperatura atingiu certo
grau fixo é algo que demanda interpretação. Temperatura não é um fato, mas um construto
teórico, e construtos teóricos são necessários a todo físico experimental, mesmo àqueles do
porte de Regnault.
69
68
DUHEM, P.: ARFE, p. 89. A tese da inseparabilidade entre a observação e a teoria também é conhecida na
literatura especializada, desde Philip Quinn, como “tese da separabilidade” (sem dúvida um termo mal
escolhido...) (ARIEW, R.: 1984, p. 320).
69
É mister salientar o comum acordo sobre o declínio da física teórica na França durante a segunda metade
do século XIX. Nas reflexões duhemianas sobre a física experimental, o exemplo dado recorre a Regnault
não por acaso, uma vez que os dois maiores físicos franceses da geração anterior a Duhem, Fizeau e
Regnault, alinhavam-se eminentemente à corrente experimental (JAKI, S.: 1984, p. 264. Jaki não menciona
Foucault). Hadamard, companheiro de Duhem na École Normale Supérieure, relembrando o passado no qual
fora educado, afirma: “O gosto pela física [matemática] era raro nessa época, na qual, é preciso dizer,
sentíamos ao nosso redor, no que concerne a esta ciência, um pouco de estagnação” (HADAMARD, J.: 1928,
36
Para exemplificar melhor o alcance analítico da prioridade epistemológica da teoria
sobre a experiência, divisemos três etapas da imbricação teoria/observação: (1) a teoria
como logicamente anterior à observação, apenas solicitando a feitura de novas
observações; (2) a observação propriamente dita, pura e simples, desacompanhada de
teoria; (3) a interpretação dos dados da observação provenientes de (2). Afirmar que (2)
implica um único (3) é ser partidário do passivismo, tal como definido por Lakatos.
70
Negar essa implicação é afirmar a tese da sub-determinação das teorias pelos dados, em
detrimento do indutivismo genético. Optar pela inerência entre os momentos (2) e (3)
quando da verificação empírica da teoria é atestar a tese da impregnação teórica. Assim, o
puro empirismo de Bacon, por exemplo, nega a etapa (1), sugerindo que a experiência será
feita sem idéia preconcebida, que a observação será recolhida ao acaso.
71
A crítica
bernardiana põe em relevo a importância de (1) no experimento, mantendo a divisão
p. 467). Também Humbert é enfático a respeito da necessidade de inserir o pensamento de Duhem em seu
tempo para balizar a originalidade de sua física e metodologia. Descrevendo a situação das últimas décadas
de 1800, diz ele: “A física é então uma ciência antes de tudo experimental. Desde o extraordinário Regnault,
que, resolutamente hostil a tudo o que fosse matemático ou filosófico, contribuiu, através de sua maravilhosa
habilidade de experimentador, para teoria do calor com um passo imenso, os físicos franceses são mais
homens de laboratório que de escritório. O que lhes interessa é a experiência, é o fato concreto, que,
devidamente constatado ou provocado, lhes permitirá enunciar, confirmar ou infirmar uma lei. [...] Todos os
grandes nomes da física, a esta época, são nomes de experimentadores, quer se trate de Pasteur ou d’Amagat,
de Lippmann ou de [Pierre] Curie” (HUMBERT, P.: 1932, p. 33; pp. 34-5). Quando Bernard e Comte
recusam o puro empirismo enfatizando a necessidade de uma hipótese ou teoria prévia à observação, a risco
da impossibilidade mesma desta, nem por isso a ciência de ambos perdia sua base sólida e objetiva quando da
verificação experimental. A principal originalidade de Duhem decorre de sua ênfase no caráter abstrato da
teoria física e na problematização da experiência em física, doravante indissociável da teoria. Daí a
impossibilidade da observação bruta e o surgimento de controvérsia a respeito dos resultados experimentais.
Uma das razões para as reservas com relação ao uso de hipóteses deve-se, muito apropriadamente, ao
movimento positivista francês. Tomemos o seu maior expoente. Se Comte é capaz de escrever palavras como
estas: “Pois, se de um lado toda teoria positiva deve necessariamente fundar-se sobre observações, é
igualmente perceptível, de outro, que, para entregar-se à observação, nosso espírito precisa duma teoria
qualquer. Se, contemplando os fenômenos, não os vinculássemos de imediato a algum princípio, não apenas
nos seria impossível combinar essas observações isoladas e, por conseguinte, tirar daí algum fruto, mas
seríamos inteiramente incapazes de retê-los; no mais das vezes, os fatos passariam despercebidos aos nossos
olhos” (COMTE, A.: [1830] 1983, p. 5), não é menos verdade que sua definição de positivo opõe o real ao
quimérico, o útil ao ocioso, a certeza à indecisão, o preciso ao vago, o relativo ao absoluto (COMTE, A.:
[1844] 1983, pp. 61-63); que uma hipótese não é senão uma antecipação da observação futura, uma
“suposição provisória” (a expressão de Comte é citada em BRENNER, A.: 1990, p. 114), “artifício”
destinado a suprir nossa incapacidade atual de observação que deverá ser abandonado tão logo a teoria tiver
sido completamente elaborada. Duhem não ficou imune ao positivismo no que tange ao uso de hipóteses,
como veremos na próxima Parte, nem ao papel da matemática: por um lado, a matemática permanece sendo
um instrumento indispensável, é bem verdade, mas jamais um fim em si mesmo (DUHEM, P.: ARTF, seção
9), enquanto as hipóteses legítimas em ciência consistirão na representação de leis, não na pesquisa de suas
causas. Para uma caracterização mais detalhada do período positivista na França, acompanhada de ricas
indicações bibliográficas a seu respeito, ver: MAIOCCHI, R.: 1985, pp. 52-60.
70
Veremos isso mais à frente, na seção 1.4.1.
71
Ver nota 41.
37
tripartite como momentos logicamente independentes (o mesmo pode ser dito a respeito de
Comte
72
). Bem mais ousado que seus antecessores, Duhem aceita a existência e
precedência lógica de (1), mas recusa-se a aceitar a separação entre (2) e (3). Por
conseguinte, uma experiência em física será sempre um misto de observação e
interpretação, de concretude abstraída e de abstração concretizada. O conhecimento e
aceitação das regras de tradução arbitrariamente escolhidas, bem como do domínio do
instrumental matemático, são condições prévias para o discernimento das conclusões
derivadas das hipóteses fundamentais da teoria que deverão ser confrontadas com os fatos.
72
Já há alguns anos, A. Oliva publicou importante ensaio no qual critica a interpretação corrente segundo a
qual Comte seria um adepto do fatualismo estrito. Nele, Oliva argumenta, com riqueza de detalhes e enorme
apoio textual retirado da obra comteana, que, nesta, a teoria possui um papel diretivo essencial na construção
do saber científico, e que os fatos não teriam valor epistemológico em si, mas apenas quando vinculados a
uma teoria. Tal como Duhem e outros depois dele, Comte já rejeitaria terminantemente o “indutivismo
genético” (OLIVA, A.: 1996, p. 215), ressaltando a criatividade do cientista na elaboração das hipóteses que
seriam subseqüentemente “checadas” pela experiência. Assim, o filósofo francês atribuiria três funções às
teorias: (a) identificação dos fatos; (b) estabelecimento de conexões entre as observações; (c) dedução das
conseqüências dessas observações (OLIVA, A.: 1996, p. 207). Mais do que isso, Comte argumentaria que os
fenômenos que se tornam objetos de ciência passariam por uma elaboração construtiva: “Podemos dizer, sem
exagero, que os fenômenos, por mais reais que sejam, são, na maioria dos casos, essencialmente construídos
por nossa inteligência; até porque, não saberíamos ver imediatamente a figura da Terra nem a curva descrita
por um planeta, e nem mesmo o movimento corriqueiro do céu” (Citado em OLIVA, A.: 1996, p. 208). (Essa
construtividade será retomada por Duhem sob a forma dos esquemas idealizados concebidos pela abstração
do teórico). Tudo nos leva a crer, a partir disso, que Comte defenderia tese análoga à da impregnação teórica
da experimentação, visto que a construtividade acarretaria carga teórica considerável no momento do teste
experimental. Contudo, esse não parece ser o caminho trilhado nas reflexões comteanas. Além da passagem
reproduzida acima, nenhuma das demais citadas por Oliva deixa subentender que Comte pudesse defender
tese parecida (essa é uma preocupação nossa, não de Oliva, justiça seja feita), de sorte que não nos
permitimos advogar que o politécnico consideraria os estágios (2) e (3) descritos anteriormente como
logicamente inseparáveis no momento do teste empírico. Comte parece mesmo pressupor a existência de uma
separabilidade entre os momentos (1), (2) e (3) quando escreve: “Em qualquer ordem de fenômenos que
possa existir, mesmo as mais simples, nenhuma verdadeira observação é possível sem que seja
primitivamente dirigida e finalmente interpretada por uma teoria qualquer. [...] toda observação isolada,
inteiramente empírica, é essencialmente ociosa, e até radicalmente incerta. A ciência só faz uso daquelas que
se vinculam, ao menos hipoteticamente, a uma lei qualquer; é essa vinculação que constitui a principal
diferença característica entre as observações dos cientistas e as do vulgo” (Citado em OLIVA, A.: 1996, p.
201. Itálicos meus.). Para Comte, a diferença entre o cientista e o vulgo advém de que o primeiro liga sempre
o observado a uma teoria e tira daí conclusões que o vulgo não tiraria, mas ele não insiste na afirmação de
que a teoria transforma os fatos observados, de que as teorias admitidas pelo físico como que influenciam
enormemente o que é visto por este. Desse modo, a teoria dirige “primitivamente” a observação, esta é
realizada em toda a sua brutalidade para, em seguida, ser “finalmente” remetida a uma interpretação teórica.
O segundo momento, creio, permanece incólume e livre de teorias. Se Comte vislumbrou as conseqüências
de suas afirmações sobre a atividade construtiva do conhecimento científico, nem por isso deu a atenção
devida à relatividade que a tese da impregnação conduz na verificação de uma teoria. Além disso, a postura
comteana, no que tange estritamente a esse assunto, privilegia os aspectos gerais da imbricação entre a teoria
e a observação, e não o ato do teste empírico em si, ao qual se restringe a tese duhemiana. Resta determinar o
tipo de modificação que, para Comte, o espírito impõe às impressões externas; isto é, se, restringindo nossa
questão à física, o objeto do conhecimento pode ser descrito empiricamente sem o apoio de teorias ou se, ao
contrário, o objeto dilui-se na mistura com a interpretação e é, ao menos em parte, determinado por esta.
38
Em seguida, no ato mesmo da realização do experimento de prova da teoria, o recurso feito
aos aparelhos de medição responsáveis pelo teste torna-se indispensável. As teorias que
serviram na construção de tais aparelhos e que determinam o seu uso são aceitas
implicitamente como exatas na realização do teste. Se se rejeita um instrumento qualquer
usado numa experiência, desta nada se poderá concluir sobre a teoria testada. Quando
submetida ao controle da experiência, as hipóteses que se quer testar adquirem coesão e
unidade orgânica tais que elas entram, “umas mais, outras menos, mas todas em algum
grau”
73
no escopo da falseação empírica.
74
Jamais uma hipótese pode ser submetida ao
controle dos fatos isoladamente, pois destacada da conjunção que lhe dá suporte teórico,
ela não representaria mais nada – o sentido das hipóteses é contextual. A hipótese sempre
tem suas implicações condicionadas pelo arcabouço teórico que a sustenta, de modo que a
“mesma” hipótese pode conduzir a verificações experimentais distintas se inserida em
teorias distintas, e, ainda mais importante, isolada, ela perde toda a sua referência e
significado. Porém, uma vez aceita a exatidão dos aparelhos que serviram de base ao teste
de uma teoria particular, o que acontece se o resultado de um teste não é o esperado? Como
identificar a hipótese causadora do insucesso?
Se o fenômeno previsto não se reproduz, não é a proposição litigiosa isoladamente que
é considerada imperfeita, é toda a armação teórica de que o físico fez uso. A única
coisa que a experiência nos informa, é que entre todas as proposições que serviram
para prever esse fenômeno e para constatar que ele não se produziu, há pelo menos um
erro. Mas onde reside esse erro é o que ela não nos diz.
75
73
DUHEM, P.: ARFE, p. 95.
74
A afirmação da tese de que nenhuma hipótese pode ser submetida isoladamente ao teste experimental pode
levar-nos naturalmente a cometer o seguinte engano: hipóteses não são falseáveis, apenas as teorias o são.
Em primeiro lugar, lembremos que, para Duhem, a lógica deixa em aberto o problema da escolha das
hipóteses a serem alteradas em caso de refutação teórica. A mesma lógica que não especifica as hipóteses
seria, em um nível superior, aquela que obrigaria a refutar a teoria. Assim, as teorias seriam logicamente
falseáveis. Esse raciocínio não procede. A refutação ou falseamento de uma teoria jamais é lógica para
Duhem. Antes de a lógica entrar em questão, deve existir uma instância decisória metodológica de refutação.
Como veremos na seção 1.4.1, nosso autor fala repetidamente que a avaliação de um resultado experimental
é extremamente complicada; saber se uma teoria foi desmentida pelos fatos não é algo que se possa apreciar
sem dificuldades. Além disso, o “falseamento” duhemiano não permite que se diga que a teoria é lógica e
necessariamente falsa. De um ponto de vista lógico, é perfeitamente possível o uso do estratagema
convencionalista e manter não somente uma hipótese intacta, fazendo a causa de o erro incidir sobre outras
hipóteses, mas também toda a teoria, desde que o erro seja atribuído a causas adjuntas, como as dos
instrumentos utilizados no experimento. Em última instância, apenas a física como disciplina do
conhecimento seria refutada. Mas ainda assim os problemas persistem. O que se poderia entender por
falseamento ou refutação? Que a teoria torna-se “falsa”? Mas como isso seria possível se uma lei da física
não é nem verdadeira nem falsa, mas aproximada? (veremos isso com mais atenção na seção 1.2).
75
DUHEM, P.: ARFE, p. 93.
39
A conclusão de um experimento, por mais detalhada que ela possa ser se comparada
com uma lei derivada da experiência vulgar, torna-se mais difícil de estabelecer. No caso
mais simples de uma corroboração, o assentimento geral (o aspecto intersubjetivo que
declara a corroboração teórica) depende do comum conhecimento das regras de tradução
pelos especialistas para que a avaliação possa ser realizada. Ademais, como Duhem dirá na
Théorie physique, se um “fato prático” pode ser traduzido em infinitos “fatos teóricos”
incompatíveis, a inversa é igualmente válida: a um fato teórico pode-se fazer corresponder
uma infinidade de fatos práticos distintos.
76
Pergunta: estamos vendo Duhem defender uma
cisão absoluta entre fato e teoria? Trata-se de uma revogação da união entre os momentos
(2) e (3) da relação entre observação e interpretação? Por mais que as aparências levem-
nos a conclusões semelhantes, temos de lembrar que a admissão de uma teoria é sempre
vinculada a um sujeito, ou a um grupo de cientistas, que detém o vocabulário das teorias, e
é este mesmo sujeito o encarregado de estreitar os limites e determinar qual fato prático
deverá corresponder ao fato teórico concluído por meio de suas deduções. O abismo que a
análise lógica revela existir nunca é tal que impossibilita a comparação experimental: se há
uma teoria, há interpretação e, se esta é o caso, então há regras de tradução que
determinam o sentido dos resultados teóricos. Todavia, o problema está posto, e a
discussão sobre a corroboração não se restringe a uma questão meramente aproximativa
dos resultados, de onde já a possibilidade de discordância acerca dos resultados, mas,
ainda, à própria interpretação das teorias, antes mesmo de submetê-las ao teste de prova.
E no caso em que for flagrante o desacordo experimental entre a teoria e a
observação, o que fazer? Porque “a física não é uma máquina que se deixa desmontar”
77
,
as correções dependerão da perspicácia do teórico em sua decisão. Como o que está em
litígio não é uma hipótese isolada, mas um corpo teórico orgânico submetido em sua
totalidade ao teste, a conclusão sobre qual hipótese a ser abandonada não é algorítmica.
Se o físico decide imputar a causa do erro a uma hipótese determinada, ele não o faz em
nome da lógica, mas baseado apenas em sua confiança. Ora, como a conclusão depende de
um ato de fé, entrevê-se facilmente que um único experimento pode comportar vários
resultados, que se conformarão, em última instância, às teorias empregadas na avaliação
pelos contendores, possibilitando o surgimento de controvérsias, as quais, doravante, a
experiência não se encarregará de eximir incontestavelmente. O valor demonstrativo do
76
DUHEM, P.: TP, pp. 228-30.
77
DUHEM, P.: ARFE, p. 95.
40
método experimental não é absoluto. Vejamos isso mais de perto através de uma
reconstrução argumentativa da crítica duhemiana ao experimento crucial.
Conforme o experimento crucial,
78
entre duas alternativas opostas (as instâncias
cruciais de Bacon), a condenação de uma leva à demonstração da outra. Baseado nesse
pressuposto, Galileu, de posse do conhecimento das restrições da teoria astronômica
ptolomaica, poderia imediatamente assentir à sua concorrente, a teoria copernicana, um
valor de verdade. Respeitando a argumentação duhemiana teríamos:
TP (Hap hp) e
TC (Hac hc) ¬e
¬e
______________
¬TP
¬(Hap hp)
¬Hap ¬hp
Se jamais uma hipótese é submetida ao controle dos fatos isoladamente, a teoria
ptolomaica (TP), encerra não apenas a hipótese a ser testada empiricamente (hp), mas
também um conjunto de hipóteses auxiliares (Hap), necessárias para a realização da
experiência; o mesmo se passa com a teoria concorrente, a copernicana (TC). Suponhamos
que da dedução a partir de TP seja possível concluir pela ocorrência de um determinado
evento (e) observável, e que, por um procedimento análogo, a partir de TC concluiríamos
pela não ocorrência desse evento (¬e). Feitas as observações, temos que o evento previsto
por TP não ocorreu (¬e). Como as hipóteses a serem testadas, os modelos geostático e
heliostático, de Ptolomeu e Copérnico, respectivamente, eram opostas, dirá alguém que
defenda o experimento crucial: “das duas, uma”. Ilesa ao teste, a teoria de Copérnico é
mantida por salvar os fenômenos mais adequadamente que a concorrente, enquanto esta é
declarada falsa. Mas, o que aconteceria se Galileu afirmasse ter verificado TC, ou, em
outras palavras, dissesse que a verdade de TC está demonstrada? É aqui que incide a crítica
duhemiana. Pode-se, consoante Duhem, afirmar (erroneamente) a verdade de TC de duas
maneiras: a primeira, de modo direto; da verdade das conseqüências decorre a verdade das
premissas. No entanto, redargüirá o crítico, da constatação dos efeitos não se segue
78
Para exemplificar a crítica ao experimento crucial, tomamos um exemplo parcialmente modificado de 1908
(DUHEM, P.: SF, pp. 96-100), todavia, ela já havia sido desenvolvida, por meio de um exemplo tirado da
óptica, desde 1894 (DUHEM, P.: ARFE, pp. 95-8; TO, pp. 112-3). A exposição mais detalhada de suas
concepções sobre o assunto encontra-se em: DUHEM, P.: TP, pp. 273-332.
41
necessariamente a verdade da causa – TC pode um dia tornar-se inadequada na
representação dos fenômenos. Supondo válido o experimento crucial, pode-se conceber
uma maneira indireta de provar a verdade de TC; dado o falseamento de TP e, sendo ela
oposta a TC, a falsidade daquela implica a verdade da última. Mais uma vez, insistirá
Duhem, deve ser levado em conta que a lei do terceiro excluído não vale para a física como
na geometria. Para que essa conclusão fosse válida seria necessário esta premissa
complementar: uma teoria é equivalente à negação da outra (TP↔¬TC) – ou, de modo
mais intuitivo, TPwTC (afirmação de que das duas, ao menos uma e apenas uma é
verificada). Todavia, uma vez que ambas as teorias não devem ser reduzidas às hipóteses
testadas (hp e hc), visto estarem elas em conjunção com as inumeráveis hipóteses
auxiliares (Hap e Hac), o físico não está autorizado pela lógica a ver senão uma
incompatibilidade entre as teorias rivais. Como o inventário exaustivo de todos os
princípios e hipóteses requeridos no teste é uma tarefa irrealizável, decorre que uma
experiência em física condena todo o conjunto de hipóteses da teoria ou, segundo a
expressão usada por Duhem, condena as hipóteses em “bloco”.
Vemos que, ao tentar refutar o realismo ingênuo, Duhem não apenas diminui o poder
do método teórico ao considerar as teorias como convenções não derivadas direta e
inexoravelmente dos fatos, mas, igualmente, restringe o alcance do método experimental,
pois que nem a experiência nem a lógica revelam, na teoria contraditada, qual a hipótese a
ser descartada. Dizer que a realização de um experimento em física é feito à luz de teorias
admitidas pelo experimentador significa que a admissão, implícita ou declarada, da
exatidão de um conjunto de teorias que servirá de base ao teste, possui ainda um fator
heurístico – ela atua como delimitadora do escopo das hipóteses a serem abandonadas. A
confiança do físico é o único guia que lhe permitirá avançar a decisão. Contudo, de um
ponto de vista lógico, continuamos a falar numa determinação subjetiva, na medida em
que, como veremos adiante, para Duhem, até mesmo os princípios da teoria caem sob o
peso da contradição experimental. “O problema de Duhem”
79
, como ficou conhecida na
literatura especializada a tese da ausência de um procedimento rigoroso e conclusivo de
79
Uma representação simbólica mais sintética e bastante fiel do problema de Duhem, proposta por Wedeking
(WEDEKING, G.: [1969] 1976, p. 177) em resposta negativa à tentativa de Grünbaum de solucionar a
problemática instaurada pela análise duhemiana, é a seguinte: (((H . A) O) . ~O) (~H v (p) (pA .
~p)), onde O é o resultado experimental de um teste; A, o conjunto das hipóteses auxiliares; H, a hipótese a
ser refutada; e p, uma proposição pertencente a A. Como vemos, quanto menor for a determinação da
proposição responsável pelo insucesso da teoria, maior será a extensão do “bloco” das proposições a serem
revisadas.
42
especificação da hipótese causadora de erro, não encontra em “Algumas reflexões acerca
da física experimental” qualquer resposta à vista. A ameaça à imparcialidade científica
imiscuída naquele “ato de fé”, mesmo que condenada em uma instância exterior à ciência –
a moral – permanece um obstáculo. Saber qual a propriedade necessária para a manutenção
da imparcialidade diante de um desmentido da teoria é algo ao qual Duhem também não se
detém em suas reflexões acerca da física experimental. Por hora, guardemos esta questão:
se nem a indução nem a dedução são recursos suficientes para solucionar racionalmente o
problema de Duhem, onde então reside satisfatoriamente a saída dele? Precisamos esperar
a publicação da Théorie physique para termos uma solução.
1.2. Leis teóricas e leis do senso comum
Acabamos de ver como e por que a experiência em física não comporta o mesmo grau de
evidência que a percepção desprovida da aparelhagem teórica. Pretendemos mostrar agora
as razões pelas quais Duhem é levado a considerar as leis do senso comum como certas e
óbvias. Se ousarmos estabelecer essa analogia: a experimentação estaria para a teoria física
como a percepção para o conhecimento comum, teremos de apreciá-la com uma boa dose
de cautela, no intuito de não conferir o mesmo grau de certeza às leis teóricas que aquele
atribuído às do senso comum.
Iniciemos esta seção por uma breve análise da gênese de uma lei qualquer do senso
comum. Em seu primeiro ensaio epistemológico, “Algumas reflexões sobre as teorias
físicas”, podemos ler: “O espírito humano, posto na presença do mundo exterior para
conhecê-lo, encontra primeiramente o domínio dos fatos.” E mais adiante: “O
conhecimento de um grande número de fatos forma um aglomerado confuso que constitui
propriamente o empirismo”.
80
E assim, a cada nova observação cresce o número de fatos
acumulados. Para um puro observador só uma nova experiência pode fazer surgir novos
conhecimentos, ainda que desligados entre si e imersos na confusão. Mas esse, afirma
Duhem, é apenas o primeiro grau de conhecimento do mundo externo. Há, ainda, um
segundo:
80
DUHEM, P.: ARTF, p. 13. “Aglomerado confuso”; Duhem deixa entrever nesta passagem uma crítica
velada ao empirismo.
43
Pela indução, o espírito, transformando os fatos cujo conhecimento lhe é dado, chega
ao conhecimento das leis experimentais. Assim, os fatos que acabamos de citar e os
outros fatos análogos que o espírito pode observar, conduzem-no por indução a essa
lei: todos os corpos, convenientemente friccionados, tornam-se aptos a atrair uma
bolinha de sabugueiro suspensa por um fio de seda. Criando uma palavra nova para
exprimir a propriedade geral que essa lei afirma, ele diz: por meio de um
friccionamento conveniente, todos os corpos se eletrizam.
81
Anteriormente isolados, os fatos passam a ser ligados por indução, formando as leis
experimentais. Uma ciência que conhecesse apenas tais leis poderia bem ser chamada de
ciência puramente experimental. Este tipo de ciência, é preciso dizer, ainda não atinge o
terceiro grau do conhecimento do mundo externo, reservado à ciência teórica, ou, mais
apropriadamente, à física matemática.
82
Veremos como se dá essa passagem mais à frente.
Por enquanto, atenhamo-nos à análise da citação acima.
81
DUHEM, P.: ARTF, p. 13. Itálicos meus. É um erro acreditar que o objetivo principal das reflexões
duhemianas sobre as teorias físicas seja o de criticar o indutivismo por si só. Interessa-lhe no fundo, criticar a
determinação da teoria pelos dados para, a seguir, instaurar a necessidade do uso das hipóteses em física. Sua
crítica primordial é, pois, contra a aversão positivista às hipóteses: “Para alguns a física deve ser estudada
exclusivamente pelo método experimental [...]. Eles pretendem banir o emprego da matemática do estudo da
física. [...] Só o fato, o fato bruto e isolado deve ser constatado, ensinado e reproduzido. Toda idéia,
exatamente por ser idéia, é falsa e condenável” (DUHEM, P.: ARTF, p. 34). Uma vez legitimado o uso das
hipóteses, o problema que surge é o da sua escolha (algo que perpassará quase toda a sua obra), pois, se esta
se dá livremente, como evitar a arbitrariedade das hipóteses mecanicistas? Nosso autor não titubeia diante de
tal ameaça: que faz ele com o indutivismo? Descarta-o de uma vez por todas? De modo algum. O
indutivismo atua como um ideal regulador: “Assim, quanto mais as hipóteses nas quais está baseada uma
teoria se aproximarem dessa forma ideal que é a simples tradução simbólica de uma lei experimental, mais
difícil será modificá-las; e, por conseqüência, a teoria terá a oportunidade de durar tanto quanto as leis
experimentais que representa; de modificar-se somente por via da extensão e do crescimento, sem ser
alterada nem destruída. E, de modo contrário, quanto mais as hipóteses se distanciarem das leis experimentais
que as tornaram possíveis, mais o físico terá colocado de si próprio na enunciação da hipótese e mais a teoria
será oscilante e sujeita à demolição. De maneira que, de agora em diante, as considerações puramente lógicas
que acabamos de desenvolver indicam em que direção o teórico deve dirigir seus esforços, se quiser conceber
uma obra viável” (DUHEM, P.: ARTF, p. 22). A seguir, ainda em ARTF, o filósofo apressar-se-á, nas seções
5 a 9, em criticar o mecanicismo do ponto de vista da adequação empírica recorrendo, como sempre o fará, à
história da ciência.
82
Na EM Duhem opera uma divisão parecida, mas não idêntica. Três são os domínios divisados: 1- o dos
fatos da experiência; 2- o do domínio das teorias e; 3- o do domínio dos instrumentos. É indispensável
precisar, no entanto, que a nova classificação não implica mudanças conceituais profundas. Duhem subsume
o primeiro e segundo graus de nosso conhecimento do mundo exterior no domínio dos fatos da experiência:
“esses fatos, produzidos no mundo exterior, são constatados pelos sentidos do físico; sua faculdade de
generalizar e de induzir reconhece neles as leis” (DUHEM, P.: EM, p. 209). Assim, a indução como
inferência formadora das leis experimentais permanece salva. A novidade fica por conta do terceiro domínio,
a saber, o dos instrumentos. Seria, no entanto, enganador situar as duas classificações num mesmo patamar e
supor que o conhecimento dos instrumentos seria algo como um quarto grau de nosso conhecimento do
mundo exterior. Na EM não interessa a Duhem a gênese do conhecimento (Duhem não fala em “graus”, algo
que levaria à idéia de sucessão), mas unicamente a divisão lógica entre os conhecimentos experimental e
teórico, cuja comunicação seria estabelecida através do domínio dos instrumentos. Sem o terceiro domínio,
os dois primeiros permaneceriam desligados entre si, pois é “preciso que uma chave faça corresponder o
44
O que Duhem quer dizer com “transformando os fatos” pode ser objeto de
controvérsia, embora essa transformação possa, em certo sentido, assemelhar-se à variação
bernardiana. Importante é notar que a transformação não é suficiente para que Duhem
negue que o físico seja “conduzido” por indução à formulação da lei. Mas o que ele quer
dizer com “eletrizam”? Não estaria empregando um símbolo criado arbitrariamente? Não
seria ele um termo teórico? Não. Talvez o seu uso seja pouco ortodoxo, mas, se
lembrarmos que o que define um símbolo é o fato de ele ser a tradução de uma noção física
em uma grandeza algébrica ou geométrica passível de ser medida, então temos de concluir
que “eletrizar” é apenas uma palavra da linguagem ordinária criada para se referir a uma
propriedade geral, a “aptidão à atração”. É científica, mas não simbólica. Acontece o
mesmo quando Bernard trabalha com noções abstratas tais como as de “fígado” e
“cérebro”. Os resultados de suas experiências são juízos gerais, uma vez que se referem à
idéia abstrata de fígado e não a uma idéia de fígado particular. Mas noções simplesmente
abstratas não são noções simbólicas. Por conseguinte, temos uma primeira distinção: a
indução permanece válida no domínio da ciência puramente experimental.
Assim, quando Alain Boyer diz: “Antes de Popper, e sem se referir à crítica
humeana, Duhem mostra que é logicamente impossível e, pois, historicamente improvável
que a teoria newtoniana tenha sido tranqüilamente induzida a partir das leis de Kepler, já
que, strictu sensu, ela as contradiz [...]”,
83
ele parece ter dado atenção total à ruptura que
gera a indeterminação do terceiro grau do conhecimento (a ciência teórica) e negligenciado
a certeza das leis puramente experimentais presente no segundo. Por que Duhem não citou
Hume? Teria ele se servido indevidamente de um argumento que não era seu? Longe disso.
Em primeiro lugar, Hume é uma ausência constante na obra duhemiana, e não é provável
que suas idéias tenham influenciado Duhem. Em segundo, e mais importante, o filósofo
francês não critica a indução no mesmo nível que Hume, se é que este alguma vez a
criticou como freqüentemente se diz
84
– é possível mesmo falar em oposição entre eles.
Duhem continua a falar em indução nas ciências de observação, como podemos ler:
símbolo à realidade, o signo à coisa significada; é preciso que se possa traduzir as fórmulas teóricas em fatos
da experiência” (DUHEM, P.: EM, p. 210). Apenas desse modo a linguagem teórica não seria reduzida a um
puro jogo de linguagem destituída de sentido físico. A testabilidade das teorias depende em enorme grau dos
instrumentos de medida responsáveis pelo controle experimental.
83
BOYER, A.: 1992, p. 313.
84
Remeto a colocação dessa dúvida a um livro recente de João P. Monteiro, em que ele escreve: “No entanto,
já por várias vezes foi assinalado que o uso do termo indução é extremamente escasso em toda a obra de
Hume. Mais relevante do que isso, entretanto, é que sua teoria é uma tentativa de oferecer uma explicação
apenas e estritamente das inferências causais, e não uma tentativa de dar conta das inferências indutivas em
45
Uma ciência pode progredir seguindo o método newtoniano enquanto seus meios de
conhecer são ainda aqueles do senso comum. A indução não pode mais ser praticada
desse modo quando a ciência não observa mais diretamente os fatos, mas os substitui
pelas medidas de grandezas dadas por instrumentos que apenas a teoria matemática
definiu.
85
Que o fogo produza calor e que o sol nascerá amanhã, para usar exemplificações
humeanas, não são preocupações com as quais Duhem se ocupa. Que “todo homem é
mortal”
86
, que “em Paris o sol nasce cada dia no oriente, eleva-se ao céu, depois desce e
esconde-se no ocidente. Eis uma lei verdadeira, sem condição, sem restrição.”
87
Os
exemplos citados por Duhem não envolvem expectativa futura alguma, nem sequer ele os
entende por leis causais. Como Domet de Vorges soube certa vez salientar em crítica a
Duhem
88
, este parece “não ter distinguido apropriadamente” os sentidos do termo "causa".
Pode-se muito bem, argumenta o crítico, falar em uma causa metafísica (tal como se diz
que uma substância, por meio de uma propriedade essencial, confere o ser seja a um
fenômeno ou a outra substância) e em uma causa genuinamente física, logo, digna de
estudo teórico (tal qual o encontrado na afirmação de que o calor “causa” a expansão do
mercúrio no termômetro ou, num sentido mais profundo, quando não há evidência
empírica imediata, em que uma causa é associada à anomalia na órbita de um planeta).
Demasiado atento em garantir a autonomia da física com relação à metafísica, persiste o
crítico, Duhem parece não compreender que a busca das causas no segundo sentido é um
objeto digno da teoria física. De fato, quando o professor de Bordeaux distingue a física da
metafísica, ele deixa entender que a escada que vai da física à metafísica é composta de
apenas dois degraus, quais sejam; o estudo dos fenômenos e das leis que os regem e, em
seguida (e a partir deles), a indução metafísica das propriedades das substâncias que os
causam, tarefa exclusiva da ciência metafísica.
89
O estudo dos fenômenos (o primeiro
degrau) é logicamente desvinculado do estudo das causas (o segundo degrau): "O estudo
dos fenômenos e das leis deve, portanto, preceder a procura das causas."
90
Concordamos
geral. Muitos dos exemplos de inferências indutivas que aparecem em obras dedicadas a esse tema, do tipo
‘todos os corvos são pretos’, não são de caráter causal [...], e Hume não se ocupa desse tipo de indução”
(MONTEIRO, J. P.: 2003, p. 102).
85
DUHEM, P.: NTTS, pp. 152-3.
86
DUHEM, P.: ARFE, pp. 108-9.
87
DUHEM, P.: ARFE, p. 110.
88
Citado em PAUL, H. W.: 1979, p. 166.
89
DUHEM, P.: FM, p. 42.
90
DUHEM, P.: FM, p. 43.
46
com a afirmação de Domet de Vorges segundo a qual nosso autor concebe o sentido da
expressão "causa" como eminentemente metafísico, donde a sua exclusão do objeto da
física, e acrescentamos que mesmo a noção de causa próxima (entendida como causa
física imediata) tão comum no período positivista, não aparece em seus textos. A metáfora
da escada exclui implicitamente o que, em princípio, suporíamos constitutivo de uma
escada: uma sucessão de vários degraus (uma cadeia causal) que nos levasse passo a passo
da física (o degrau mais baixo e anterior na ordem de subida) à metafísica (o último degrau
e o mais alto na ordem dos conhecimentos). Não que Duhem recusasse a precedência
lógica do estudo da física com relação à metafísica, mas apenas que ele dá mostra de ver
entre essas duas ciências uma distinção mais profunda: numa escada de dois degraus a
distinção não é de grau, mas de natureza. Se o objeto da física não é a busca imediata da
causa dos fenômenos por indução metafísica, também não é o de remontar gradualmente
de “causa em causa até os elementos metafisicamente simples e irredutíveis das coisas
materiais”.
91
A causalidade duhemiana não se expressa horizontalmente, sob a forma de
uma sucessão temporal de ocorrências, mas vertical e metafísicamente
92
; causa é sempre
causa do que aparece e, como tal, não se situa no plano da percepção sensível, de sorte que
não temos acesso epistêmico direto a ela.
93
Na medida em que o problema de Hume pode
ser entendido, de modo mais preciso, como o “problema da causação”
94
, e que por
causalidade no sentido humeano pode-se entender estritamente a relação causa-efeito ao
nível dos fenômenos, está dada mais uma importante diferença conceitual de primeira
ordem entre Duhem e Hume.
Em “Algumas reflexões sobre as teorias físicas”, Duhem refere-se dessa maneira à
indução: “Compete aos filósofos analisar o mecanismo do procedimento indutivo que
permite passar dos fatos às leis; discutir a generalidade e a certeza das leis assim
estabelecidas.”
95
Coerentemente, naquele ensaio ele não se atreveu a especular sobre o
grau de certeza das leis puramente experimentais, limitando-se à afirmação de que, quanto
mais próximas das leis experimentais forem as traduções simbólicas em leis teóricas, mais
91
DUHEM, P.: ETP, p. 496. Essa é uma das raras vezes (e, que eu conheça, a única claramente enunciada)
em que Duhem critica a procura das causas em física homogeneizando as causas física e metafísica num
mesmo elo causal.
92
Veja-se também: MARICONDA, P.: 1986, p. 16; SOUZA FILHO, O.: 1996, p. 66.
93
A concepção duhemiana de causalidade restringe-se basicamente à causalidade eficiente, na distinção,
traçada por Stuart Mill, em seu Sistema de lógica (Livro III, capítulo V, seção 2), entre as causalidades física
(quando se diz que um fenômeno é causa de outro) e eficiente.
94
MONTEIRO, J. P.: 2003, p. 104.
95
DUHEM, P.: ARTF, p. 13.
47
seguras estas serão, e suas mudanças condicionar-se-iam às mudanças daquelas.
96
Entretanto, pouco tempo depois, em suas reflexões sobre a física experimental, o autor não
evita certos rompantes filosóficos:
O caráter essencial de uma lei é sua fixidez. Uma proposição só é uma lei porque,
verdadeira hoje, ela ainda será verdadeira amanhã. Dizer de uma lei que ela é
provisória, não é enunciar uma contradição? Sim, se se entende por leis aquelas que o
senso comum nos revela, aquelas das quais se pode dizer, no sentido próprio da
palavra, que são verdadeiras. Essa lei não pode ser verdadeira hoje e falsa amanhã.
Não, se se entende por leis as leis que a física enuncia em forma matemática.
97
Pois bem, onde Hume fala em crença e hábito, Duhem fala em leis verdadeiras e
fixas – e não há qualquer intenção em questionar a experiência cotidiana, de onde brota o
conhecimento vulgar. A teoria não tem nenhum poder sobre os dois primeiros graus do
conhecimento no sentido de torná-los incertos. A observação ordinária não é carregada de
teoria. Vejamos que quando Duhem refere-se à tese da impregnação, ele não a generaliza
de modo a fazer-nos crer que até a observação mais comum tornar-se-ia incerta. Pelo
contrário, as leis obtidas por indução, justamente por serem apenas leis generalizadas,
permanecem indubitáveis.
O que interessa ao nosso autor é evitar um círculo vicioso na relação entre
experiência e teoria. Em suas análises sobre a fisica experimental, o ponto de vista de
Duhem dirige-se do terceiro grau do conhecimento ao segundo e, por conseguinte, quando
se trata da experimentação, é à experiência de prova de uma teoria a que ele se refere.
Aqui, a experiência é carregada de teoria. Desse modo, justifica-se a precedência lógica da
teoria com relação à experiência em “Algumas reflexões acerca da física experimental”. O
mesmo não acontece em “Algumas reflexões sobre as teorias físicas”. Neste ensaio, o
conhecimento teórico só vem a intervir no terceiro nível, uma vez que aqui Duhem
preocupa-se em traçar a gênese do conhecimento, e, geneticamente, a ordem é inversa à
exposta nas reflexões sobre a física experimental: a teoria vem a seguir. Como o
96
DUHEM, P.: ARTF, p. 22.
97
DUHEM, P.: ARFE, p. 113. “Leis que a física enuncia em forma matemática”. Em alguns momentos
Duhem usa um vocabulário um tanto laxo para designar os princípios e hipóteses teóricos. Aqui, podemos
ver, a expressão para designá-los é “lei”; em outra oportunidade, ele se refere ao princípio de inércia como
“axioma”. Mas isso não significa que ele atribua o mesmo sentido a leis, postulados e axiomas. Envio o leitor
ao Anexo 1 de nossa Dissertação para ter uma idéia mais clara sobre isso. Na pequena carta que traduzimos,
Duhem faz uma distinção preciosa entre leis da natureza (verdades obtidas por indução), postulados
matemáticos (princípios livremente escolhidos) e axiomas (verdades evidentes em si).
48
conhecimento das leis experimentais pode prescindir do conhecimento teórico, está
garantida uma plataforma de verdades comuns a todos, físicos ou não.
Para nosso autor, a observação do senso comum está sempre ligada ao imediatismo
do olho nu. Neste enunciado: “em Paris o sol nasce cada dia no oriente, eleva-se ao céu,
depois desce e esconde-se no ocidente”, não há nenhuma referência a um movimento
absoluto (conceito teórico por excelência), nenhuma inferência a partir de um sistema
prévio de conhecimentos (excetuado, evidentemente, o uso adequado da linguagem na qual
a lei é expressa). Por um lado, essa lei é relativa a uma localidade determinada, mas, por
outro, ela é absoluta
98
, já que ela é válida para todos os que estiverem em Paris (sua
verificação será bastante simples, algumas horas de estadia em Paris seriam o suficiente
para verificá-la). Observe-se, além disso, que dela não é possível derivar qualquer
comprometimento das leis do senso comum com o sistema heliocêntrico ou geocêntrico.
Pelo contrário, como Duhem diz em Le mouvement absolut et le mouvement relatif, a
decisão a respeito da verdade de um dos sistemas é de ordem metafísica, uma vez que só
observamos movimentos relativos, e a resposta dependeria de coordenadas espaciais (um
triedro de referência) absolutas que servissem de parâmetro à avaliação.
99
Eis, portanto,
uma amostra do que Duhem entende por leis do senso comum: se as observamos
diretamente, serão certas, justamente porque pouco detalhadas; se teorizamos sobre elas,
nossos conhecimentos tornam-se incertos e podem resvalar na metafísica.
Tomemos outro exemplo para deixar isso mais claro. Seja a lei do senso comum:
todo homem é mortal. “Homem” e “mortal” são termos abstratos que, quando ligados
98
Na TP, Duhem acrescenta ainda um outro predicado à lei do senso comum: ela é “absoluta”, não podendo
ser verdadeira para uns e falsa para outros (DUHEM, P.: TP, p. 260).
99
Para Duhem, apenas a noção de movimento relativo é experimental, apenas ela tem sentido empírico:
“Para aquele que não quer formular nenhuma proposição da qual o sentido não se tira da observação, para
aquele que não quer examinar nenhum problema se a experiência não pode sancionar a sua solução, esta
questão: 'É a Terra que se move?, é o Céu que gira?', é apenas uma reunião de palavras, destituída de toda
significação” (DUHEM, P.: MAMR, p. 6). Reconhecendo a insuficiência da noção de movimento relativo
para seus intentos teóricos (DUHEM, P.: CPT, I, pp. 270-1), o físico francês recorre à idealização racional e
postula convencionalmente um triedro absolutamente fixo (“um puro conceito geométrico”. DUHEM, P.:
MAMR, p. 197) traçado em alguma parte do espaço, ao qual todos os demais corpos (triedros particulares)
relacionar-se-ão, donde a possibilidade de se falar (hipoteticamente) em movimento absoluto. Isso nos dá
uma idéia de que a própria física duhemiana não exclui a formulação de hipóteses sem sentido empírico,
constatando, de modo cabal, a necessidade e a fecundidade de conceitos racionais na empresa científica.
Veremos, ainda, na seção 1.4.2, que Duhem não assume que termos e proposições metafísicos são
desprovidos de todo tipo de significado. Nosso autor jamais afirma que as proposições metafísicas são
carentes de significado em si; muitas delas são carentes de significado empírico, visto que a razão
acrescentou algo a elas que não derivou da simples experiência dos sentidos (DUHEM, P.: MAMR, p. 7), mas
não de todo e qualquer sentido.
49
convenientemente, levam à composição de uma lei geral, pois que não subentendem
qualquer forma particular de morte ou qualquer homem específico. Assim, a condição de
uma lei geral é a de ligar termos abstratos entre si. Que são estes? São o resultado da
extração “[d]aquilo que há de geral nas realidades concretas”
100
submetidas aos nossos
sentidos. Portanto, sempre encontraremos, no que tange às idéias abstratas, um objeto
concreto que as satisfaça.
101
A aplicação da lei à qual nos referimos não comportará
nenhuma dificuldade; basta que ela seja enunciada e existirão particularidades que a
verificarão. O trânsito do concreto ao abstrato e do abstrato ao concreto não encontra
obstáculos significativos. Pelo contrário, ele se dá espontaneamente:
[...] a passagem do concreto ao abstrato se faz por uma operação tão necessária e
espontânea que permanece inconsciente. [...] Esta operação repentina, irrefletida,
fornece as idéias gerais não analisadas, as abstrações tomadas, por assim dizer, em
bloco.
102
A imediatez e a espontaneidade fazem brotar em nós naturalmente as abstrações em
conjunto, embora disso não devamos aferir que o isolamento de um termo abstrato esvazie
o seu sentido. “Homem” e “morte” são, decerto, noções abstratas que podem ser apartadas
na ocasião de sua análise. O metafísico, por exemplo, pode tomá-las em separado para
apreender o seu sentido em profundidade, sendo-lhe facultado, em seguida, a exposição
das razões de ser das leis do senso comum que empregarem as noções examinadas.
103
Mas
carece o homem comum de um entendimento tão íntimo? Na verdade, essa carência não
afeta a ninguém, porque seu sentido é óbvio, dirá Duhem, para filósofos ou camponeses.
Dois filósofos que se predispuseram a analisar o sentido de uma lei do senso comum,
mesmo partindo de definições divergentes e atingindo conclusões contrárias, concordarão
quanto à clareza e à verdade da lei que afirma serem mortais todos os homens.
100
DUHEM, P.: ARFE, p. 108. Difícil determinar exatamente o que Duhem quer dizer com “aquilo que há de
geral nas realidades concretas”. Dessa passagem, ele não nos dá maiores explicações e, que eu saiba, sequer
fará uso dela novamente em sua obra. Mesmo assim, não podemos deixar passar em branco o aspecto realista
de suas palavras. O vocabulário duhemiano, em seus primeiros ensaios, sobretudo em FM, é marcadamente
aristotélico-tomista, apesar de Duhem distanciar-se da concepção de que o objeto da física seja o
conhecimento das causas dos fenômenos, e insistir na definição da física como física-matemática.
101
Essa parece ser a principal diferença entre termos abstratos e simbólicos: enquanto os primeiros são
gerais e sempre encontram na realidade um objeto correspondente, os termos simbólicos são puros conceitos
que não encontram referencial real, e necessitam, por isso, de instrumentos e convenções adequados para
ligar-se à realidade.
102
DUHEM, P.: ARFE, p. 109.
103
DUHEM, P.: ARFE, p. 109.
50
Não ocorre o mesmo com as leis físicas. Aqui, nada do concerto quanto ao valor de
verdade presente nas leis do senso comum. Os termos que ligam as leis físicas são noções
simbólicas, criações arbitrárias com o propósito de servir à introdução do raciocínio
matemático; são precisas e bem definidas:
Os termos simbólicos que ligam uma lei física não são mais essas abstrações que
brotam espontaneamente da realidade concreta; são abstrações produzidas por um
trabalho de análise lento, complicado, consciente, o trabalho secular que elaborou as
teorias físicas. É impossível compreender a lei, impossível aplicá-la, se não se fizer
esse trabalho, se não se conhecer as teorias físicas. Segundo a adoção de uma ou outra
teoria, a lei muda de sentido, de sorte que ela pode ser aceita por um físico que admite
tal teoria e rejeitada por um outro físico que admite outra teoria.
104
A arbitrariedade nas definições simbólicas e o lapso temporal existente entre duas
interpretações distintas podem levar à completa falta de comunicação entre os adeptos de
teorias rivais ou minimamente diferentes. Caso não existam regras de tradução adequadas e
exeqüíveis entre seus respectivos símbolos, a incomensurabilidade, para fazer uso de uma
expressão que ganhou relevo após Kuhn e Feyerabend, está instaurada.
105
As leis físicas,
portanto, não guardam mais a mesma universalidade das leis do senso comum, e seu valor
passa a ser relativo aos sistemas teóricos adotados. Na Théorie physique Duhem chega ao
extremo de prolongar a relatividade das leis teóricas aos trabalhos de um mesmo físico:
“[...] pode-se ver uma mesma lei física simultaneamente adotada e rejeitada pelo mesmo
físico no curso do mesmo trabalho.”
106
Conjugando entre si símbolos arbitrariamente escolhidos que corresponderão a cada
fato, toda lei da física, por extensão, passa a ser simbólica. De modo análogo ao que
acontece com os símbolos, a um mesmo conjunto de leis experimentais, pode-se fazer
corresponder uma infinidade de equações incompatíveis entre si que o representem. Nada
constrange o teórico a adotar um único juízo simbólico determinado em sua tentativa de
salvar os fenômenos; ele é livre para fazê-lo como bem entender.
107
O grau de
aproximação da experiência será tanto maior quanto menor for a indeterminação das
fórmulas em questão. Quanto maior a exigência na precisão da representação, menor será o
104
DUHEM, P.: ARFE, p. 109.
105
Veja-se, por exemplo: “Quantas observações, acumuladas pelos físicos de antigamente, caíram assim no
esquecimento! Seus autores negligenciaram o esclarecimento sobre os métodos de que se serviram para
interpretar os fatos; é-nos impossível transpor suas interpretações para nossas teorias. Eles encerraram suas
idéias em sinais dos quais nós não temos a chave” (DUHEM, P.: ARFE, p. 106).
106
DUHEM, P.: TP, p. 262. Essa passagem não se encontra em ARFE.
107
DUHEM, P.: ARFE, p. 110; TP, p. 255.
51
número de equações que a satisfarão e mais determinadas serão as equações. Ao contrário
das leis do senso comum, a satisfação proporcionada pela lei teórica não é imediata, nem
mesmo duradoura; satisfatório hoje, o grau de determinação pode ser insuficiente amanhã.
Eis, portanto, mais uma diferença entre nossas leis: uma lei do senso comum é verdadeira
ou falsa no sentido literal, enquanto que “uma lei da física não é, propriamente falando,
nem verdadeira, nem falsa, mas aproximada”.
108
O caráter simbólico das leis teóricas subtrai-lhes qualquer pretensão à exatidão
representativa do fato concreto, e este não pode ser a realização do símbolo abstrato. Daí
que jamais se poderá falar em inteira paridade entre eles, embora seja patente a existência
de uma concordância aproximativa, a qual, por sua vez, será diretamente proporcional aos
instrumentos empregados nas experiências físicas. Mas isso não é tudo. Algo que havia
sido pouco explorado nas publicações duhemianas até então é o fato de que a aproximação
pode de igual modo depender da interpretação teórica da experiência
109
, isto é, das
correções das causas de erro.
Sempre aproximada, toda lei teórica será essencialmente provisória. Se ela é
abandonada, isso não se deve ao acaso, mas simplesmente porque novas exigências
emergem, por ocasião da construção de novos meios que permitem avaliar a aproximação,
ou porque, mais rígido que seu adversário, um físico não se contenta com os resultados
alcançados e interfere ativamente na correção dos mesmos. O abandono das leis teóricas, e
mesmo a recusa das leis do senso comum, têm uma única finalidade – a maior precisão nos
resultados. Compreende-se que uma lei da física comportará uma aproximação muito
maior do que aquelas do senso comum; ela será muito mais detalhada. Todavia, insiste
Duhem, a que custo a precisão é atingida?
Essa precisão crescente obtém-se, é verdade, por uma complicação crescente, pela
obrigação de observar, ao mesmo tempo em que o fato principal, uma série de fatos
acessórios, pela necessidade de submeter as constatações brutas da experiência a
manipulações e transformações cada vez mais numerosas e delicadas.
110
Duas considerações de suma importância devem ser feitas tomando por premissa a
citação acima: (1) Primeiramente, quanto menor for o número de fatos acessórios
negligenciados, mais complicada será a teoria física a representá-los, mais precisa a sua
108
DUHEM, P.: ARFE, p. 110; TP, p. 254. Itálicos meus.
109
DUHEM, P.: ARFE, pp. 100-2.
110
DUHEM, P.: ARFE, p. 102.
52
descrição e mais ela se distanciará da simples constatação da experiência vulgar. Por outro
lado, menos certa a teoria será, pois, se as leis do senso comum possuem a certeza que lhes
cabe, isso acontece devido à sua superficialidade:
O testemunho ordinário, aquele que relata um fato constatado pelos procedimentos do
senso comum e não pelos métodos científicos, só pode ser certo sob a condição de não
ser detalhado, de tomar o fato bruto naquilo que ele tem de mais aparente. [...] o
testemunho vulgar tem tanto mais certeza quanto menos preciso ele é, pois ele analisa
menos, atendo-se às considerações mais grosseiras e mais óbvias.
111
Por conseguinte, podemos estabelecer a seguinte relação: quanto maior a precisão de
uma lei, menor a sua certeza. Por serem precisas, as leis da física serão menos certas que os
juízos do senso comum. Mas uma indagação nos vem à mente: como é possível que
estejamos falando numa continuidade intercalar no grau de certeza se, como vimos atrás,
Duhem fixou uma nítida distinção entre uma lei puramente experimental – verdadeira,
portanto – e uma lei simbólica, que, por pressupor o conhecimento de símbolos
matemáticos fixados pelas teorias, é sempre convencional e teórica? A resposta a essa
questão é de nevrálgica importância; desmerecê-la pode levar-nos a pensar até mesmo na
existência de contradição interna ao pensamento de nosso autor. Um sucinto
esclarecimento sobre isso.
Vimos que o primeiro grau de nosso conhecimento é o dos fatos particulares
isolados. O segundo corresponderia à articulação desses fatos em leis puramente
experimentais obtidas por indução. O método indutivo encontra o seu limite quando tem
início a tradução simbólica em linguagem matemática. Essa tradução, por sua vez, pode ser
tão pouco artificial, tão imediata, que, mesmo pressupondo termos simbólicos, ela poderia
ter seu grau de certeza comparado ao adquirido pelo método indutivo: “Esse raciocínio
tomaria como princípio as leis experimentais que as hipóteses simbolizaram e teria por
conclusões as leis experimentais que as conseqüências da teoria simbolizam.”
112
Poderíamos então falar em uma horizontalidade quanto ao valor de certeza das relações
constituídas por meio de tal procedimento. O espírito seria livre para simbolizar as leis
experimentais como bem entendesse e, nesse caso, simbolizaria tão de perto as leis
experimentais que a indeterminação seria praticamente excluída. Em tal processo, a criação
científica seria reduzida ao mínimo e, no limite, restaria tão somente a criação da
111
DUHEM, P.: ARFE, p. 107.
112
DUHEM, P.: ARTF, p. 18.
53
linguagem própria para representar as leis experimentais. Poder-se-ia transcrever as leis
"teóricas" assim construídas em linguagem ordinária sem prejuízo de sua forma. É certo,
porém, que a viabilidade prática desse método é historicamente questionada por Duhem
113
;
não existe uma teoria que o satisfaça plenamente e, mesmo que o houvesse, a generalidade
representativa e a economia de pensamento decorrentes de sua aplicação seriam
mínimas.
114
Pode-se, pois, falar em uma continuidade intercalar decrescente no grau de
certeza a partir das leis do senso comum (indutivamente obtidas) na direção das leis físicas,
ao mesmo tempo em que se sustenta um rompimento entre o conhecimento vulgar, alheio
às teorias físicas, e o conhecimento do teórico que as domina. Passemos à segunda
consideração.
(2) É certo que o conhecimento de um número maior de fatos acessórios ajuda a
eliminar as causas de erro. Entretanto, os limites de nossos sentidos obrigam-nos ao uso de
aparelhos teóricos, também limitados. Resta que sempre existirão causas de erro, vale
dizer, sempre existirão fatos secundários não considerados. A realização de qualquer
pesquisa pressupõe a abstração desses fatos. Mesmo a observação com um dos
instrumentos considerado dos mais simples, a lupa, não escapa a essa afetação, afinal, se a
espontaneidade ingênua leva-nos a crer que a lupa apenas aumenta a imagem, nada criando
ou deformando no fenômeno observado, como explicar que os objetos vistos com o seu
auxílio pareçam cercados pelas cores do arco-íris? Não foram estas criadas pelo
instrumento? E o físico não tem de fazer sua abstração quando da descrição do objeto
observado?
115
Em suas considerações teóricas e experimentais, o físico é obrigado a
113
A crítica duhemiana à indução teórica é apresentada em ARTF (seção 3), tomando como exemplo a teoria
da gravitação universal de Newton. Na TP, Duhem desenvolve sua crítica ao indutivismo usando novamente
o exemplo anterior (Parte II, capítulo VI, seção 4) e acrescenta mais um, atinente à eletrodinâmica de Ampère
(Parte II, capítulo VI, seção 5).
114
Na TP, Duhem dirá o seguinte acerca da generalidade relativa das leis de Kepler: “Sem dúvida as leis de
Kepler aplicam-se [portent] muito diretamente sobre os objetos da observação; elas são tão pouco simbólicas
quanto o possível. Mas, sob essa forma puramente experimental, elas permanecem impróprias para sugerir o
princípio da gravidade universal” (DUHEM, P.: TP, p. 295). Sua fecundidade representativa é notavelmente
estreita se comparada à teoria de Newton.
115
DUHEM, P.: TP, pp. 231-2. O argumento da lupa é estratégico: uma vez válida para um instrumento tão
simples e grosseiro, por que não generalizar a tese da impregnação teórica aos microscópios? Mais: num
segundo momento, Duhem reúne a lupa e o microscópio no conjunto dos instrumentos destinados à
descrição puramente qualitativa – uma etapa anterior e ainda distante dos instrumentos dos quais o físico faz
uso mais fecundo, a saber, aqueles (a bússola de tangentes, o manômetro etc.) que são responsáveis pela
avaliação numérica de determinados símbolos criados pelas teorias. Esse exemplo é acrescentado na TP e
associa-se à crítica duhemiana da espontaneidade irrefletida do senso comum. Fácil ver que uma observação
com o uso da lupa pode prescindir do conhecimento das teorias da dióptrica. Mas e quando se trata de
interpretar a “aberração” decorrente? A manutenção da tese de que a lupa nada cria leva ao extremo da
suposição de que as cores observadas existem nos próprios objetos. Aqui, somente o conhecimento das
54
trabalhar tendo como ponto de apoio instrumentos esquemáticos bastante simplificados.
116
Dessa maneira, os princípios introduzidos pelas teorias não se aplicam diretamente ao
mundo concreto, mas a um mundo ideal e simplificado. Da conjunção desta tese e daquela
que afirma não serem as leis da física teórica nem verdadeiras nem falsas, Duhem está em
condições de expor mais uma diferença entre as leis do senso comum e as proposições
teóricas:
Nem a fórmula da conservação de energia, nem as fórmulas que lhe associamos
podem ser propriamente ditas verdadeiras ou falsas, pois não são juízos que tratam da
realidade.
117
Sem procurar derivar o princípio de conservação da energia da pura indução
experimental ou de alguma explicação metafísica da verdadeira natureza dos fenômenos,
Duhem alerta para o fato de que o primeiro princípio da termodinâmica e os demais
princípios da teoria física não se referem à realidade objetiva como o fazem os juízos do
senso comum e os princípios metafísicos. As leis da experiência vulgar, mesmo que pouco
detalhadas, têm por objeto a enunciação de relações entre coisas realmente existentes,
concretas, e podem, por isso, ser “falseadas” no sentido lógico da expressão. O mesmo vale
para as proposições metafísicas, que pretendem ser verdadeiras – e isso as leis do senso
comum compartilham com as proposições metafísicas
118
:
O que é uma proposição metafísica; o que é um dogma religioso? É um juízo que trata
de uma realidade objetiva, que afirma ou nega que tal ser real possui ou não um tal
atributo. Esses juízos: o homem é livre, a alma é imortal, o papa é infalível em matéria
de fé, são proposições da metafísica ou dogmas religiosos [...].
Os fatos da experiência – no sentido corrente das palavras, e não no sentido
complicado que essas mesmas palavras tomam em física –, as leis experimentais –
entendo as leis da experiência vulgar que o senso comum formulou sem nenhum
recurso às teorias científicas – são tantas outras afirmações que tratam de realidades
objetivas. Pode-se, pois, sem desvairar, falar de acordo ou desacordo entre um fato da
experiência ou uma lei da experiência, de uma parte, e de uma proposição metafísica
ou teológica, de outra parte.
119
teorias pressupostas na observação poderia dissipar a ingenuidade do senso comum e revelar o que do
observado é devido à introdução da lupa.
116
DUHEM, P.: ARFE, p. 103.
117
DUHEM, P.: TP, p. 433. Itálicos meus.
118
Duhem não fala em “leis metafísicas”.
119
DUHEM, P.: TP, pp. 429-30.
55
O pressuposto implícito na passagem acima é que a possibilidade de falar em
contradição entre certos tipos de proposições (metafísicas, experimentais ou teóricas)
depende da comunidade de duas propriedades: a posse de termos de mesma natureza e o
mesmo objeto; marcas que, em última análise, resumir-se-iam em sua assertividade. Ao
contrário do que é dito acerca das leis do senso comum, Duhem não afirma que a
proposição “a alma é imortal” é verdadeira porque pouco analisada ou muito geral. Esta
proposição é, antes, um dogma – e pode ser falsificada por isso. Como as leis teóricas são
simbólicas, nem verdadeiras nem falsas, temos de concluir que é impossível opô-las
sensatamente a uma proposição metafísica qualquer. Ao mesmo tempo, o abandono de
uma hipótese diante da constatação flagrante de desacordo experimental dependerá do grau
de aproximação exigido por um físico particular. Não se pode logicamente criticar um
físico porque ele escolheu manter uma teoria cuja aproximação não ultrapassa os limites de
observação atuais. O falseamento de uma proposição teórica é metodológico. Eis que
terminaremos esta seção com uma conclusão talvez surpreendente; ao contrário de Popper,
para Duhem é possível falar em falseamento de proposições metafísicas e na
impossibilidade de falseamento das proposições da física.
1.3. Do senso comum em La théorie physique
É sabido de todos que a Théorie physique sintetiza as principais teses metodológicas,
epistemológicas, axiológicas e mesmo algumas de caráter historiográfico, esboçadas em
Les origines de la statique e subseqüentemente desenvolvidas em obras futuras. Nela são
parcialmente reproduzidos alguns ensaios anteriores (“Física e metafísica”, “L’évolution
des théories physiques”), outros são desenvolvidos (sobretudo “A escola inglesa e as
teorias físicas”) ou, ainda, retomados quase que inteiramente (“Algumas reflexões acerca
da física experimental”). Um leitor desavisado, que não tiver em mente as publicações
anteriores de Duhem, ao deparar-se com La théorie physique, sentir-se-á muito
provavelmente tentado a enquadrar nosso autor na corrente convencionalista (seja por teses
que manifestam de fato um teor convencionalista ou pela proximidade temática das
discussões que envolviam também Le Roy, Milhaud e Poincaré). Entretanto, como
Maiocchi já expôs com proeza
120
, a Théorie physique pode (e deve) ser lida como um livro
120
MAIOCCHI, R.: 1985; 1990.
56
contra o convencionalismo. Qual o motivo dessa insurgência interpretativa? Antes de mais
nada, ele pode ser encontrado na leitura da própria obra. Mas há na defesa da interpretação
anti-convencionalista algo mais: se confrontarmos os ensaios escritos por Duhem anos
antes com La théorie physique, veremos que as partes verdadeiramente originais marcam
uma intensificação em favor de teses anti-convencionalistas. O segundo capítulo da
primeira parte insiste no poder preditivo das teorias físicas, o qual persuade o físico a ver
nas teorias uma classificação natural da hierarquia real dos seres concretos
121
; as seções
oito a dez do capítulo VI discutem a possibilidade de refutação empírica dos princípios
físicos mais gerais (Duhem coloca-se claramente contra Le Roy e Poincaré); o capítulo VII
examina de um ponto de vista histórico a escolha das hipóteses. Também contra o
convencionalismo Duhem afirma que o físico não escolhe as hipóteses sobre as quais será
desenvolvida a teoria, que ele não passa de um receptor, por assim dizer, escolhido por
elas. Estas e outras passagens originais evidenciam um desvio no rumo das obras
anteriores, cujo caráter geral era ainda de forte pendor instrumentalista. Seriam essas
passagens as únicas realmente dignas de nota?
Se levarmos nosso método de comparação textual adiante, notaremos que novas e
sugestivas incorporações estão presentes na Théorie physique. Vimos atrás que as
apreciações iniciais do senso comum eram apresentadas sob a forma de leis experimentais,
e não de princípios físicos. A importância da noção do senso comum residia toda ela na
manutenção de uma base certa do conhecimento científico em geral e a ênfase consistia na
diferenciação entre suas leis grosseiras, embora certas, e as hipóteses detalhadas que
compõem as teorias físicas.
A distinção é mantida na Théorie physique; na seção cinco do capítulo VII da
segunda parte, nosso autor reafirma que o conhecimento teórico não pode ser deduzido dos
conhecimentos advindos do senso comum e que os princípios físicos só fazem sentido ao
físico enquanto tal, mas acrescenta que o senso comum não é um tesouro enterrado no solo
ao qual nenhuma outra verdade vem a acrescentar-se. O patrimônio do senso comum pode
ser enriquecido pelas descobertas da física que eventualmente o contrariam, denunciando
equívocos seus. A noção de senso comum não aparece mais como intacta e livre de erros
(embora a possibilidade do erro já se encontrasse presente anteriormente), o que põe em
relevo sua mutabilidade temporal, mesmo quando restrita a enunciados de cunho bastante
geral. Mas o que observamos de mais importante é o seguinte; na seção dez do capítulo IV,
121
Assunto da próxima Parte.
57
ao final da primeira parte, o conceito de senso comum assume a nova função de guia
metodológico na construção da ciência. Se a unidade da ciência não advém de imposições
da lógica (e assim os lógicos agiriam como Poincaré; tratariam as teorias como
instrumentos), nem por isso esse fundo de noções não analisadas, que é o senso comum,
cala-se. Duhem faz a justificação da unidade da ciência tirar sua origem do senso comum.
Nosso propósito nesta seção é analisar essas duas passagens, argumentando em favor da
existência de duas noções de senso comum na obra duhemiana: a primeira estaria
associada à experiência vulgar do qual não se pode deduzir o conhecimento teórico
diretamente e nem por simples aumento de precisão, enquanto a segunda forneceria um
fundo de noções, princípios e meta-princípios tanto para o conhecimento vulgar como para
as teorias físicas – e por isso pode atuar construtivamente na condução destas.
1.3.1. Senso comum e experiência ordinária
O último capítulo da Théorie physique responde à questão: quais são as condições que se
impõem à escolha das hipóteses? Não devemos esperar de Duhem uma lista de critérios
que possa ser aplicada mecanicamente com sucesso no momento da construção teórica. A
intenção subjacente nesse capítulo é reduzir ao máximo as imposições lógicas à escolha
das hipóteses ao mesmo tempo em que restringe historicamente a liberdade quase absoluta
do teórico ao fundamentar sua teoria, solucionando um problema que permanecera em
aberto desde a crítica da base empírica em “Algumas reflexões sobre as teorias físicas”,
vale dizer, o problema da ausência de direção no ato da escolha das hipóteses, entrevisto
por Vicaire.
122
A indução, portanto, poderá sugerir a via que conduz à formulação de
algumas hipóteses, não poderá, decerto, bastar em sua justificação.
123
De maneira mais
específica, no início da seção V, Duhem classifica de “perigosa” a afirmação de que uma
proposição teórica possa ser justificada por axiomas tirados do senso comum. Pode, sim,
existir analogia entre as proposições teóricas e as do senso comum ordinário. Mais: a
analogia pode estender-se até aquelas proposições do senso comum tornadas mais claras e
122
Vicaire foi o primeiro a notar que, se o objetivo das teorias fosse unicamente o de simbolizar os
fenômenos, e não o de conhecer suas causas, haveria uma completa ausência de direção na escolha tanto nas
definições quanto nas hipóteses, e a arbitrariedade, em conseqüência, acabaria por paralisar o físico que
quisesse construir sua teoria. Não haveria motivos para preferir uma hipótese a outra caso apenas o sucesso
preditivo servisse de guia (VICAIRE, E.: 1893, seções X e XI). Com efeito, veremos na próxima Parte que
essas críticas fizeram-se sentir no pensamento duhemiano.
123
DUHEM, P.: TP, p. 394.
58
mais precisas pela análise.
124
Mas, por mais natural que ela possa ser, a analogia não será
senão superficial, nada tendo de profundo. Para deixar isso mais claro, tomemos um
exemplo de analogia superficial dado pelo autor.
125
O que o senso comum entende pela palavra “energia”? Em princípio, essa noção
parece ter algo de intuitivo e claro, a ponto de os livros de vulgarização científica servirem-
se dela sem maiores preocupações. Mas ela guarda o mesmo sentido de sua origem
teórica? De modo algum, adverte Duhem, seu sentido é alterado quando passa a ser usado
nos meios não científicos. Da definição abstrata que lhe confere a termodinâmica, ela passa
a tomar um sentido aparentemente correlato no vocabulário vulgar que vem a dissimular as
diferenças entre os conhecimentos científico e vulgar. O mesmo acontece com o princípio
de aumento de entropia. Bastante questionado no início de sua aplicação por conta do alto
grau de abstração exigido na sua compreensão, com o tempo, a divulgação científica
encarregou-se de difundi-lo na linguagem vulgar, tornando-o conhecido como princípio da
degradação ou dissipação de energia.
126
Daí a analogia entre certas proposições da física e
do senso comum ser apenas de nome: se se substituir o definido pela definição veremos
sem dificuldades o contraste existente entre elas.
127
Os termos que inicialmente só possuem
um significado simbólico, que só têm sentido na linguagem do físico, adquirem, por
extensão, na linguagem do senso comum, um sentido real. Dizer que a energia necessária
para atravessar o continente africano é muito maior que aquela gasta na travessia de uma
pequena cidade é uma proposição do senso comum cuja verdade é patente. Mas o
significado da palavra energia neste exemplo não é o mesmo que lhe atribui o físico, e as
proposições nas quais ela entra são de natureza distinta.
Mais importante ainda, para a argumentação duhemiana que se seguirá, é o sentido
da transição das noções de energia e entropia. Não se trata de tirar do fundo do senso
comum certos princípios que constituirão as teorias físicas – é o inverso que se dá:
O fundo do senso comum não é um tesouro enterrado no solo, ao qual nenhuma peça
vem a acrescentar-se; é o capital de uma sociedade imensa e prodigiosamente ativa,
formada pela união de inteligências humanas. De século em século esse capital se
124
DUHEM, P.: TP, p. 395.
125
Analisaremos mais a fundo o conceito de analogia em Duhem na segunda Parte da Dissertação.
126
DUHEM, P.: TP, p. 396; MCC, p. 168.
127
DUHEM, P.: TP, p. 395. A substituição do definido pela definição é uma das regras que compõem as
normas para as demonstrações em geometria presentes em A arte de persuadir de Pascal (PASCAL, B.:
2000, p. 44).
59
transforma e se acresce; a essas transformações, a esse acréscimo de riqueza, a ciência
teórica contribui em grande parte.
128
Desse modo, aqueles que se sentirem tentados a justificar uma proposição científica
por meio das verdades do senso comum (tal seria o caso de Euler) podem ser vítimas de
um “grave erro”, ao pressupor como fundamental o que não é senão derivado: seriam
vítimas de um círculo vicioso. Para justificar suas proposições teóricas, eles estariam, na
verdade, retomando do fundo do senso comum algo que a própria ciência ali depositou.
Sigamos Duhem, mais uma vez, em sua exemplificação analítica da definição de potência
dada por Euler. De acordo com este, a potência é “a força que tira um corpo do repouso
para colocá-lo em movimento ou que altera seu movimento.”
129
A gravidade mesma seria
uma força desse gênero. Pois bem, segundo Duhem, Euler apodera-se do sentido
comumente dado ao termo potência na pretensão de balizar a evidência experimental de
sua definição. Por conseguinte, sua definição não será de nome (definição arbitrariamente
estipulada), mas de natureza (a definição que procura marcar o caráter essencial do
definido). Cabe então a questão: seria evidente ao senso comum (do qual Euler pretende
derivar, baseado na definição de potência, a verdade das leis da mecânica) que um corpo,
quando subtraído à ação de toda potência, mover-se-á em linha reta eternamente e com
velocidade constante?, ou, que um corpo submetido a uma gravidade constante sofre uma
aceleração constante em sua queda?
130
A resposta de Duhem é a que se segue: “Tais
128
DUHEM, P.: TP, p. 397.
129
DUHEM, P.: TP, p. 399.
130
Duhem fornece, alhures, outro exemplo malfadado de tentativa de provar experimentalmente o princípio
de inércia, que resumimos a seguir. Partindo do pressuposto de que o movimento de rotação pode ser
constatado experimentalmente, já que independe da comparação com outro corpo exterior supostamente fixo,
Streintz supôs a existência experimental de um corpo isento de qualquer movimento de rotação (chamado de
corpo fundamental) para, em seguida, através de um eixo de coordenadas ligadas a esse corpo (ou eixos de
coordenadas fundamentais), estabelecer experimentalmente a lei de inércia: “Por relação a um sistema de
eixos de coordenadas fundamentais, um ponto material, subtraído a toda ação exterior descreve um
movimento retilíneo e uniforme” (DUHEM, P.: MAMR, p. 297). O sucesso dessa prova seria indicação
suficiente de que até mesmo os princípios da mecânica poderiam ser leis generalizadas por indução a partir
da experiência ordinária. Todavia, insiste Duhem, qual experiência é capaz de fornecer um corpo isolado
isento de todo movimento de rotação? Não, certamente, a experiência imediata, na qual apenas observamos
movimentos relativos. A própria existência de um corpo isento de qualquer movimento depende de um termo
ao qual ele possa ser relacionado; em caso contrário, qualquer decisão permanece impossível. Apenas com o
uso da mecânica racional seria possível decidir se o corpo se move, calculando quais os efeitos experimentais
esperados deveriam ser produzidos em seu seio durante a rotação. Neste caso, a experiência teria algum valor
decisório, mas como podemos ver sem muita dificuldade, não estamos mais a falar da experiência imediata,
desprovida de teoria, mas do experimento físico controlado: “Para reconhecer, pois, que um certo corpo é um
corpo fundamental próprio ao estabelecimento da lei da inércia, é preciso conhecer já a mecânica racional;
ora, como se poderia desenvolver a mecânica racional sem formular inicialmente a lei da inércia?” (DUHEM,
60
opiniões estão prodigiosamente longe do conhecimento vulgar; para dar-lhes a luz foram
necessários os esforços acumulados de todos os gênios que, durante dois mil anos, trataram
da dinâmica.”
131
As hipóteses às quais Euler atribui evidência imediata jamais teriam sido
formuladas pelo senso comum deixado a si só. O que este afirma é que um corpo
permanece imóvel quando não é submetido a nenhuma potência; que ele se move com
velocidade constante quando é submetido a uma potência constante; e que quando é
aumentada a potência que age sobre um corpo sua velocidade também é aumentada. Mas
essas afirmações, insiste Duhem, são aquelas que constituem a dinâmica de Aristóteles! À
força da evidência experimental, Euler deveria tomar partido pela mecânica do estagirita.
A dinâmica aristotélica, escreve ele no Système du monde, parece adaptar-se tão bem às
observações correntes que ela não pôde deixar de se impor aos primeiros estudiosos das
forças e dos movimentos.
132
Coube a um sem número de argutos pesquisadores, no
intervalo de muitos séculos, a demonstração de que a dinâmica aristotélica apoiava-se
sobre “falsas evidências”
133
de que a queda de um corpo grave não é o movimento mais
simples que o mecânico pode considerar
134
:
É, pois, inteiramente ilusório querer tomar os ensinamentos do senso comum como
fundamento das hipóteses sobre as quais assentará a física teórica. Seguindo-se tal
marcha, não é a dinâmica de Descartes e de Newton que se atinge, mas a dinâmica de
Aristóteles.
[...] É um grave engano tomar as leis que reúnem idéias tão complexas, tão ricas
de conteúdo, tão pouco analisadas, e querer traduzi-las imediatamente por meio de
fórmulas simbólicas, produtos de uma simplificação e de uma análise levadas ao
extremo, que compõem a linguagem matemática.
135
Uma das várias maneiras (não das melhores) de entender essa passagem é defender
uma postura altamente crítica de Duhem com relação ao senso comum. Esse ponto de vista
levar-nos-ia a cometer uma grande injustiça para com o filósofo francês. Apesar do
reconhecimento das falsas evidências do senso comum, se o filósofo retira dele os
fundamentos da física teórica no momento da escolha das hipóteses, em si mesmos os
ensinamentos do senso comum não deixam de ser certos, com a condição de serem pouco
P.: MAMR, p. 207). Como no caso de Euler, ao tentar provar experimentalmente um princípio da mecânica,
Streintz vale-se inadvertidamente desse mesmo princípio, incorrendo, ele também, num círculo vicioso.
131
DUHEM, P.: TP, p. 400.
132
DUHEM, P.: SM, p. 194.
133
DUHEM, P.: TP, p. 402.
134
DUHEM, P.: SM, p. 195.
135
DUHEM, P.: TP, pp. 402-3.
61
analisados – mas isto basta na vida prática. Duhem não está pondo em dúvida as
evidências que a experiência ordinária revela-nos; pelo contrário, ao nível do senso comum
nosso autor recomenda uma espécie de realismo metódico. É o que lemos em outras
páginas:
Quando uma testemunha sincera, sã de espírito para não tomar os jogos de sua
imaginação por percepções, conhecendo muito bem a língua da qual se serve para
exprimir claramente o seu pensamento, afirma ter constatado um fato, o fato é certo.
Se eu declaro que tal dia, a tal hora, em tal rua da cidade, vi um cavalo branco, a
menos que existam razões para me considerar como um mentiroso ou como um
alucinado, deve-se crer que nesse dia, a essa hora, nessa rua, havia um cavalo
branco.
136
Deve-se crer na existência do cavalo branco. Não há indícios nesta passagem de
nenhuma dúvida cética ou metódica, nenhum imaterialismo ou idealismo; tal é a
imponência da pura constatação dos fatos. A existência do cavalo branco como entidade
não é dada por uma inferência, mas aceita sem questionamentos filosóficos. Importa
observar que, apesar de Duhem notar a “extrema diferença de natureza”
137
existente entre
as leis do senso comum e as proposições teóricas, sua atitude em relação ao senso comum
não é de negação, mas de precisão. Sua afirmação consiste apenas nisto: para que a
ciência progrida é necessário não um rompimento com as observações do senso comum,
mas a sua constante elaboração, em extensão e precisão. Para que a precisão seja factível, o
instrumental matemático e as definições arbitrárias são necessárias. O sentido de tais
definições é fixado pela teoria, de sorte que o leigo não compreenderá sua verdadeira
significação se não dominar as técnicas de tradução. Mas o detalhamento das pesquisas
teóricas, nas várias direções em que a liberdade de espírito permite-lhe seguir, pode vir a
ocasionar embates entre as leis físicas e aquelas do senso comum. Isso significaria que
teríamos de adotar um método de constante negação dos dados imediatos da experiência?
Jamais. Em suas pesquisas o físico não deve partir das leis do senso comum; em sua vida,
o camponês e o físico não podem contestá-las a não ser que a própria experiência venha a
desmenti-las. O conhecimento teórico contribui para instruir o leigo, mas não para
aumentar ou diminuir a certeza das leis derivadas dos ensinamentos da observação. Os
136
DUHEM, P.: ARFE, p. 104. Itálicos meus. Jaki foi o primeiro a chamar a atenção para o aspecto realista
aristotélico desta passagem (JAKI, S.: [1984] 1987, p. 322). Assim, nota o comentador, Duhem não fala de
cavalo branco como uma sensação nem mesmo do “fenômeno do cavalo”, mas “vê o conhecimento humano
como o meio através do qual o homem está imediatamente conectado com a realidade” (JAKI, S.: [1984]
1987, p. 322).
137
DUHEM, P.: TP, p. 403.
62
ensinamentos do senso comum permanecem sendo verdadeiros e certos, com a condição de
serem pouco detalhados.
138
Comentando a história das teorias do calor, Duhem tece estas palavras a respeito da
descoberta do calor latente por Black e outros:
Esses fenômenos são-nos atualmente tão familiares que nós desconhecemos a
importância da revolução produzida por sua descoberta nas idéias dos físicos.
[A descoberta do calor latente] rompia toda ligação entre o sentido que a
palavra calor tem na língua vulgar e o sentido que ele toma na linguagem dos físicos;
um corpo pode ganhar calor sem se tornar mais quente, ele pode perder calor sem se
tornar mais frio.
139
Referindo-se a essa passagem, Brenner fala, lembrando Bachelard, em uma “ruptura
epistemológica.”
140
Já Maurice Boudot arrisca: “[...] antes de Bachelard, nosso autor soube
ver que o conhecimento científico, longe de prolongar o conhecimento vulgar, o contradiz,
que o enunciado do princípio de inércia contradiz a experiência comum e que, se se
permanecesse no nível do cotidiano, jamais se ultrapassaria a dinâmica do estagirita. Os
princípios das teorias físicas não são, pois, nem generalizações experimentais nem axiomas
evidentes”.
141
Todavia, uma aproximação muito estreita entre Duhem e Bachelard pode
induzir a problemas; se o primeiro insiste em que a ciência analítica não se identifica ao
simples senso comum tornado mais atento, nem por isso ele adota uma postura crítica com
relação ao senso comum como faz o segundo. Duhem não tem uma “filosofia do não”.
Há algo mais que precisa ser dito. As revoluções descritas por Duhem são quase
sempre limitadas a aspectos epistemológicos e semânticos, versando sobre a tradução e
alteração de sentido que a teoria introduz se comparada às proposições derivadas do
conhecimento empírico vulgar. Não estamos, pois, de acordo com Souza Filho quando ele
justifica a ausência de contradição no pensamento de Duhem através de um uso
supostamente retórico do termo “revolução” na passagem acima citada.
142
A obra de nosso
autor concilia sem problemas um continuísmo ao nível histórico com a existência de
138
DUHEM, P.: TP, p. 403.
139
DUHEM, P.: TC, pp. 883-4.
140
BRENNER, A.: 1990, p. 63.
141
BOUDOT, M.: 1967, p. 426.
142
SOUZA FILHO, O. M.: 1996, p. 123. Necessário salientar que Duhem não faz uso do vocábulo
“revolução” apenas uma ou duas vezes. Ele continua a falar, por toda a sua obra, numa revolução química
instaurada por Lavoisier (DUHEM, P.: TC, p. 887; MCC, p. 23, Parte II, capítulos 1 e 2; HP, seção XXIX;
CSF, p. 4, p. 185) e numa revolução copernicana em relação ao sistema geocêntrico, ao nível epistemológico,
e à tradição instrumentalista, ao nível metodológico (DUHEM, P.: TP, p. 342; SF, p. 52, p. 55, p. 81, p. 84,
pp. 91-2, p. 98; MAMR, pp. 109-10, pp. 121-2; HP, seção XII; SM, I, p. 210, p. 241, p. 467).
63
revoluções conceituais na física. Nada o impede de defender a existência de “rupturas
epistemológicas” em concomitância com a continuidade de uma tradição, desde que se
reconheça que essa revolução foi longamente prepara por uma série de predecessores que
contribuíram substancialmente para o “epifenômeno” revolucionário: “[...] por mais rápido
e condensado que seja a evolução de uma teoria física, é sempre possível constatar que
uma longa preparação precedeu sua aparição.”
143
O que Duhem repudia é que possam
existir gênios isolados, desligados da tradição e responsáveis por um tipo de criação ex
nihilo, aos quais bastaria visualizar a queda de uma maçã para deduzir daí a teoria da
gravitação universal.
144
As pesquisas calorimétricas revolucionárias de Black seriam o coroamento de um
processo que teria se iniciado com o nascimento da física experimental, quando os
acadêmicos de Florença provaram que ao aquecer o gelo era possível fundi-lo sem
esquentá-lo. Desde então, a noção de temperatura, tradução em linguagem teórica das
noções empíricas de quente e frio, teve de ser distinguida daquela de quantidade de
calor.
145
Mas acontece, afirma Duhem, que os experimentos dos florentinos foram
executados sem interpretação, deixando seus resultados então sem explicação. É Black,
juntamente com Crawford, Lavoisier e Laplace, que vem a interpretá-los
adequadamente.
146
De um ponto de vista histórico, as pesquisas de Black representariam o
aprofundamento da separação iniciada anteriormente entre as linguagens da física e do
vulgo. De um ponto de vista semântico, Black e seus colegas resguardariam um papel
revolucionário, na medida em que foram eles (sobretudo Black) os responsáveis pela
criação de novos métodos de mensuração calorimétrica, estabelecendo as bases da noção
não mecanicista da quantidade de calor e contribuindo substancialmente para o surgimento
da termodinâmica.
Desse modo, que o senso comum seja renovado pelas noções teóricas ao menos em
seu vocabulário não resta dúvidas; que Duhem não recomenda uma negação constante dos
dados imediatos para que o progresso científico seja possível, não cabe qualquer
insegurança; mas que as leis do senso comum possam ser revogadas por um desacordo
143
DUHEM, P.: TP, p. 386.
144
Como sempre, o pensamento duhemiano é muito mais complexo do que freqüentemente se pensa. Boa
parte dessa incompreensão, repito, deve-se ao estilo anacrônico das leituras realizadas, que tende a opor
continuísmo e revolucionarismo sem mais. A questão do continuísmo duhemiano será muito provavelmente
elaborada por nós no futuro vindouro.
145
DUHEM, P.: EM, p. 234.
146
DUHEM, P.: TC, p. 882.
64
com uma proposição física – isso é duvidoso. Afinal, como um princípio reconhecido
como convenção pode substituir algo tão imediato e constantemente verificado como a
dinâmica aristotélica? O papel da teoria no enriquecimento do senso comum consiste,
então, principalmente em demandar à observação a submissão de uma hipótese à
verificação, mas quem decidirá a respeito do observado será sempre o senso comum, isto é,
a observação imediata:
No domínio das leis de observação o senso comum reina; apenas ele, por nossos meios
naturais de conhecer e de julgar nossas percepções, decide sobre o verdadeiro e o
falso. No domínio da representação esquemática, a dedução matemática é mestra
soberana; tudo deve ordenar-se às regras que ela impõe.
147
A tentativa duhemiana de manter a autonomia da física e da metafísica já é bastante
conhecida. Nesta passagem ele parece ir mais longe e quase instaurar uma barreira entre
senso comum e física. Mas não é bem isso o que acontece. Duhem reconhece a existência
de uma troca contínua e proveitosa à física, seja quando a teoria é corroborada ou mesmo
contradita pela observação. Não podemos esquecer que as leis experimentais são, em sua
gênese, independentes da impregnação teórica e, em certo sentido, o senso comum
permanece sendo o anteparo a todo conhecimento científico.
148
É através das leis
experimentais que a teoria, em última instância, é julgada. Assim, o conhecimento
científico pode modificar, através da crítica, um grande número de proposições do senso
comum (ou melhor, das opiniões admitidas), apesar de não poder dispensá-lo (entendido
como observação imediata) por completo. Não é pela base que as observações do senso
comum justificam as proposições teóricas, mas pela verificação experimental, e “por mais
numerosas e precisas que sejam as confirmações recebidas da experiência por uma teoria,
jamais as hipóteses que sustentam essa teoria adquirem as certezas das verdades do senso
comum.”
149
Ponha-se então a seguinte questão: qual a vantagem que a física promove em favor
do senso comum no caso específico da dinâmica aristotélica? Seria esta falsa? Se em
metafísica Duhem mostra o parentesco analógico entre a termodinâmica e a física
aristotélica, no campo restrito da física ele não se dispõe a salvar a dinâmica do estagirita
147
DUHEM, P.: TP, p. 405-6.
148
Em certo sentido porque, no caso da predição de fenômenos ainda não observados, em escalas que
excedam as possibilidades de verificação a olho nu, qualquer experiência de teste só poderá ser feita com o
uso de instrumentos, ultrapassando, pois, os recursos do senso comum.
149
DUHEM, P.: SF, p. 34.
65
da crítica moderna. Ela seria, aos seus olhos, uma dinâmica viciada por uma “contradição
interna”
150
, um exemplo reprovável de confiança excessiva na observação concreta,
sobretudo da parte dos aristotélicos, da qual “não restará pedra sobre pedra”
151
. Mas ela
não poderia ter sido falsificada pelo senso comum deixado a si mesmo, nem simplesmente
pela teoria, e sim, após uma indicação teórica de que um tal fenômeno deveria dar-se de tal
modo, uma nova observação que o próprio senso comum é capaz de verificar, revelou que
um corpo em queda livre sofre uma aceleração constante. Por conseguinte, a física
contribui de fato para revelar as “falsas evidências do senso comum”
152
:
Essa potência motriz, essa energia cinética que o motor, no início de seu movimento,
comunicou ao projétil, o senso comum reconhece-a do mesmo modo que ele conhece
todas as coisas; ele tem dela uma noção vaga, puramente qualitativa, complexa,
inanalisada; o vago e a complexidade desta idéia permitem-lhe compará-la a outras
idéias igualmente indecisas e complicadas, enquanto que um conhecimento mais
preciso e detalhado condenaria essas reaproximações.
153
Durante séculos, a mecânica operaria uma triagem que tornaria mais claro e distinto
o que o senso comum entendia por “potência motriz” (tudo o que determina o movimento),
mostrando que ela não se compara em nada a uma “força”. Com o advento da mecânica, as
múltiplas propriedades que o senso comum atribuía à potência motriz serão analisadas e
divididas em quantidade de movimento, força viva ou energia cinética..., conceitos
quantitativos de natureza distinta. É assim que, aos poucos, começa-se a “substituir uma
dinâmica sensata à dinâmica de Aristóteles.”
154
Mas a negação de uma lei do senso comum
não implica qualquer absurdo. É essa a única interpretação consistente para o justo
entendimento da expressão “continuidade intercalar”, usada por Le Roy e parafraseada por
Duhem, entre o senso comum e a dedução matemática:
[...] a ciência física resultou de duas fontes: uma, de certeza, que é o senso comum; a
outra, de clareza, que é a dedução matemática; e a ciência física é de uma só vez
certeza e clareza porque os fluxos que nascem dessas duas fontes concorrem e
misturam intimamente suas águas.
155
150
DUHEM, P.: SM, I, p. 193.
151
DUHEM, P.: SM, I, p. 240.
152
DUHEM, P.: TP, p. 402. O próprio Duhem, em outra passagem (DUHEM, P.: TP, pp. 319-20), parece
concordar que a queda livre, mesmo assumindo uma significação real e absoluta (e não meramente simbólica
e aproximativa), é uma daquelas verdades do “novo” senso comum.
153
DUHEM, P.: SM, I, p. 384.
154
DUHEM, P.: SM, I, p. 384.
155
DUHEM, P.: TP, p. 407.
66
A relação contínua existente entre física e senso comum reduz-se estritamente à troca
contínua de sugestões e verificações, de observações e sistematizações. A observação
empírica privada de teoria restringiria a física a uma matéria informe, enquanto a dedução
matemática desligada da observação reduzi-la-ia a uma forma sem matéria. A física
caracteriza-se, desse modo, pela existência dessa zona intermediária. É imprescindível, no
entanto, não exagerar a influência de Le Roy no pensamento de Duhem. Se o professor de
Bordeaux cita o colega da Sorbonne, não devemos supor que ambos advogassem as
mesmas teses atinentes à relação entre senso comum e teoria, pois, como vimos no início
da seção 1.1, um dos alvos de Duhem com as notas inseridas na Théorie Physique era
justamente o seu compatriota. Vejamos brevemente em que consistem algumas das
principais diferenças entre eles.
Distanciando-se do positivismo anterior, “muito simplista, utilitarista, e saturado de
princípios a priori
156
, Le Roy almeja instaurar um “novo positivismo”, enfatizando a
atividade criadora do espírito e uma postura mais crítica em relação ao senso comum.
157
156
LE ROY, E.: 1901, p. 140.
157
Encontramos em Comte poucas passagens nas quais são discutidas as relações entre ciência e senso
comum. Para ele, a espontaneidade elementar que caracteriza o positivismo nos primeiros exercícios práticos
da razão humana tem sua origem fundamental no “bom senso universal” (o equivalente comteano para o
senso comum). O germe da positividade deriva da conduta ativa da vida cotidiana que, preocupada com o
real e o útil, suscita, por intermédio de sua ação, esboços de leis naturais e de suas previsões correspondentes,
principiando o conhecimento das mais diversas ordens de fenômenos. Assim, “o verdadeiro espírito
filosófico consiste sobretudo na extensão sistemática do simples bom senso a todas as especulações
verdadeiramente acessíveis. Seus domínios são radicalmente idênticos, já que as maiores questões da sã
filosofia sempre se reportam aos fenômenos mais vulgares” (COMTE, A.: [1844] 1983, p. 63). A filosofia
positiva comunga com o simples bom senso o mesmo ponto de partida (a experiência) e a mesma intenção
final (a utilidade), e, em princípio, a única diferença existente entre eles é que o bom senso opera no nível da
especialidade sempre ligada ao concreto, enquanto a sã filosofia alça-se à generalização sistemática e à
ligação.
Sob o aspecto dogmático, a conexão fundamental entre bom senso e ciência pode ser vista, consoante
Comte, como uma relação mútua verdadeiramente favorável a ambos. A ciência não passa de um
prolongamento da sabedoria universal que toma emprestado desta suas noções iniciais, as quais serão por ela
elaboradas sistemática e permanentemente, de sorte a garantir-lhes a consistência e a generalidade que sua
origem espontânea não lhes dotara. Mas sua relação não para aí: se a ciência se ocupa das generalidades, a
sabedoria vulgar, por sua vez, atua como reguladora, sempre no sentido de evitar que a extrapolação do
exercício de elaboração conduza a aberrações metafísicas destituídas de um conteúdo determinado resultante
de especulações lógicas puramente abstratas. A solidariedade entre a verdadeira filosofia e o bom senso
universal representaria, por conseguinte, uma reação da razão prática contra a razão teórica, característica
do estado positivo. Não estranha, pois, que qualquer investigação acerca dos “primeiros princípios” deve
levar em conta que estes, “devendo sempre surgir da sabedoria vulgar, nunca pertencem ao verdadeiro
domínio da ciência, de que constituem, ao contrário, os fundamentos espontâneos e, por conseguinte,
indiscutíveis” (COMTE, A.: [1844] 1983, p. 64). Se a afirmação do caráter fundante e incontestável dos
primeiros princípios revela a pretensão comteana em evitar contendas ociosas de cunho metafísico a respeito
67
Paralelamente às doutrinas conhecidas como filosofias da liberdade, o francês argumenta
em favor do primado da atividade sobre o primado da razão discursiva: “a realidade
absoluta é transcendente ao discurso, inacessível ao pensamento abstrato”.
158
A
inteligência é impotente em todas as suas formas para atingir a natureza profunda das
coisas, tarefa reservada a formas superiores de conhecimento, como o coração, o
sentimento e a fé religiosa. Disciplina racional exemplar, a ciência passa a ser tomada
como criação artificial, cuja função é primordialmente prática e não cognoscitiva.
Enquanto o positivismo comteano “aceita sem exame a atitude do senso comum, como se
ela fosse em nós simples submissão ao fato, abertura ingênua e fiel ao dado imediato, [...]
os últimos progressos da crítica filosófica concorrem manifestamente para mostrar que as
doutrinas instintivas do senso comum não são incólumes a toda hipótese e a todo
artifício.”
159
Aceitar o dado sem questioná-lo é aceitar implicitamente uma filosofia
ignorada e grosseira. Por intermédio de uma análise psicológica, Le Roy mostra que a
consciência constitui as coisas, mais do que as constata, formando-as de acordo com a
necessidade prática imediata e, gradualmente, ascendendo ao conhecimento mais
elaborado: “o pensamento é um poder de adaptação modificando-se a si próprio e
modificando o dado até torná-lo comensurável com os esquemas do discurso.
160
Assim, o
conhecimento é relativo à estrutura atual do sujeito. Pode-se então dizer que os conceitos
mesmos do senso comum já representam distorções das coisas promovidas pela atividade
da consciência. Daí pra frente, as conclusões seguem-se: quanto mais consciente e
analisado, mais deformados serão os conceitos científicos, mas sua natureza não muda,
apenas sofre um acréscimo gradual em termos de esquematização. Como observa
Maiocchi; “Inevitavelmente, como em Mach, o tratamento psicológico não permite
compreender uma diferença substancial entre conhecimento vulgar e conhecimento
científico.”
161
Daí o fato de Le Roy estabelecer uma continuidade entre conhecimento
vulgar e conhecimento científico.
de sua evidência, isso se dá com um preço, a saber, o de considerar os primeiros princípios, oriundos da razão
comum, como não científicos. Contudo, apesar de extrínseco à ciência, nem por isso o bom senso deixa de
ser necessário a ela, funcionando como base e regra da atividade racional. Pouco estudada, a posição de
Comte a esse respeito demanda análises ulteriores.
158
LE ROY, E.: 1901, p. 138.
159
LE ROY, E.: 1901, p. 141.
160
LE ROY, E.: 1901, p. 143.
161
MAIOCCHI, R.: 1985, p. 314. Algo que a oposição utilizada por Maiocchi entre senso comum e
“conhecimento científico” tende a ocultar é que, para Duhem, senso comum opõe-se estritamente a
68
Contrariamente, o que leva Duhem à distinção entre os conceitos teóricos e os
conceitos do senso comum é precisamente a análise epistemológica da ciência já
constituída, e não da atividade de invenção. Não nos é difícil perceber que uma posição tão
extremada como a de Le Roy possa ser alvo de críticas daqueles que defendem o valor
objetivo das teorias físicas. O problema que permanece é o da ausência total de um
parâmetro fixo de julgamento do conhecimento teórico – pois essa é a conseqüência da
generalização desmedida da tese da impregnação teórica da experimentação. Com Le Roy,
a tese da impregnação teórica é, merecidamente, da observação como um todo. Uma das
principais preocupações duhemianas na Théorie physique é circunscrever o domínio da
tese da impregnação – Duhem não fala, como Le Roy e Poincaré, em “fato científico”.
Precisando sua análise sobre a experimentação em física na Théorie physique, e já
advertido sobre do rumo seguido pelas discussões atinentes à relação entre a observação e
a criação científica na virada do século, Duhem toma o partido de Le Roy contra Poincaré
em favor da atividade do espírito criador
162
quando da teorização de um fato
163
, mas evita
conhecimento simbólico. Como vimos, a possibilidade da existência de ciências que não passam do senso
comum tornado mais atento não é extinta.
162
DUHEM, P.: TP, pp. 225-30.
163
A posição de Poincaré a respeito da criação científica (excluída a criação matemática) emerge de sua
crítica à filosofia de Le Roy. De acordo com a interpretação tendenciosa que Poincaré faz de Le Roy
(BRENNER, A.: 2003, p. 75), a ciência seria pura obra do cientista e toda a sua certeza decorreria justamente
desse fato. As leis não passariam de convenções com as quais se pretenderia, antes de tudo, uma mobilidade
prática (uma regra de ação), e, por isso, elas nada nos ensinariam sobre a verdade. Assim, o cientista criaria
os "fatos científicos" com os quais trabalha, e o discurso organizado, cuja fonte direta é a inteligência,
passaria a ser o ápice da deformação imposta às coisas pela razão. A verdadeira realidade esconder-se-ia por
trás de tudo isso; nos instintos momentâneos e evanescentes. Daí Poincaré classificar, em O valor da ciência,
a filosofia de Le Roy de nominalista e antiintelectualista. Nesta obra, o ilustre matemático critica vários
pontos importantes do pensamento de seu compatriota. O primeiro deles incide sobre o seu
antiintelectualismo. “É que a filosofia antiintelectualista, recusando a análise e o “discurso”, condena-se por
isso mesmo a ser intransmissível: é uma filosofia essencialmente interna, ou ao menos o que se pode dela
transmitir são apenas as negações” (POINCARÉ, H.: [1905] 1995, p. 138). A filosofia de Le Roy associa-se a
uma espécie de niilismo, próxima até mesmo do ceticismo, pois que mina a objetividade do discurso
científico, restringe a intersubjetividade e revela-se totalmente negativa, estéril. No trabalho científico,
continua Poincaré, por mais guiado que o cientista seja por seu “coração”, jamais vê por meio dele, mas, sim,
com os olhos da razão, seu instrumento indispensável. Para conhecer é preciso agir sobre objeto de estudo e,
de certa forma, alterá-lo, mas, mesmo assim, esse é o nosso único meio de conhecer. O segundo ponto
discutido versa sobre o valor da ciência. De acordo com a vertente nominalista, se a ciência for totalmente
artificial, ela nada nos dirá sobre a verdade e poderia ser reduzida a simples regra de ação. Ora, diz nosso
filósofo, a ciência serve, obviamente, como regra de ação, mas isso não significa que suas regras sejam
totalmente arbitrárias. Existe uma diferença entre as regras de um jogo e as regras práticas da ciência, qual
seja, ao contrário daquela, “a ciência é uma regra que funciona, pelo menos de maneira geral – ao passo que a
regra contrária não teria funcionado” (POINCARÉ, H.: [1905] 1995, p. 140). Desse modo, a construção da
realidade encontra-se limitada. Nossa regra de ação tem algum valor de saber; as regras que fixamos são de
algum modo o reflexo da Natureza, de suas leis, que independem da espontaneidade de nossa vontade, tendo,
portanto, um valor de saber. O valor da ciência baseia-se em seus acertos preditivos, mas, para isso, é preciso
69
generalizar o poder “criativo” a ponto de resvalar no nominalismo científico. Enquanto em
“Algumas reflexões acerca da física experimental” a oposição terminológica dava-se entre
o “decalque bruto dos fatos” e os juízos “teórico”, “simbólico” e, às vezes, “abstrato”
164
,
vemos em 1906 a discussão desenrolar-se em termos tais como fatos “concreto” ou
“prático”, por um lado, e fato “teórico”, por outro.
165
Se Duhem adere à disputa, recusa os
termos e insiste na precisão.
1.3.2. O outro senso comum
Os leitores de Duhem que se atreverem a encontrar alguma linearidade nos escritos
do filósofo estão, desde o início, partindo em busca de um objetivo remoto, cujo caminho
eles terão de encontrar aos poucos, após uma série de desencontros e tentativas mal
sucedidas. Duhem recebeu poucas críticas relevantes à sua filosofia quando era vivo, mas
penso que as mais relevantes para as publicações que se seguiram vieram logo no início,
após a impressão de seus primeiros dois ensaios epistemológicos, “Algumas reflexões
que ela tenha também um valor prévio de conhecimento. O terceiro ponto é mais importante para
classificarmos a posição de Poincaré atinente à criação científica, e aspira a restringir a tese nominalista de
que o cientista cria o fato. A crítica do matemático subdivide-se em duas: a primeira delas mantém a divisão
estabelecida por Le Roy entre os fatos bruto e científico mas rejeita a delimitação exata entre seus domínios,
enquanto a segunda tem em foco a afirmação, pressuposta na filosofia de Le Roy, de que o fato bruto, por
oposição ao científico, encontra-se fora da ciência. Poincaré defenderá, retomando e precisando um exemplo
utilizado pelo colega universitário, a não existência de uma fronteira exata entre os fatos bruto e científico,
mostrando que o relato de uma experiência astronômica pode ser dividido em uma série de enunciados
elementares que se afastariam do relato bruto dos acontecimentos atingindo sucessivamente graus mais
científicos que os anteriores. Em última instância, o desdobramento das proposições científicas e a sua
análise revelam que a única coisa que o cientista cria é a linguagem na qual ele enuncia o fato bruto, e, uma
vez aceitas de comum acordo as convenções de linguagem, será possível determinar o valor de verdade da
proposição em questão. Sua conclusão geral é que: “O fato científico é apenas o fato bruto traduzido para
uma linguagem mais cômoda” (POINCARÉ, H.: [1905] 1995, p. 147). A partir da solução para a primeira
questão, a resposta à segunda torna-se clara: não faz sentido investigar se o fato bruto está fora da ciência,
dado que a ciência compõe-se de fatos científicos e estes, de fatos brutos; o cientista não cria o fato, ele
apenas o acomoda numa linguagem convencional: “E então, temos o direito de dizer que o cientista cria o
fato científico? Antes de tudo, ele não o cria ex nihilo, já que o faz com o fato bruto. Por conseguinte não o
faz livremente, e como quer. Por mais hábil que seja o trabalhador, sua liberdade é sempre limitada pelas
propriedades da matéria-prima sobre a qual ele opera” (POINCARÉ, H.: [1905] 1995, p. 147). Ora, é
justamente essa limitação que inclui o fato bruto na ciência, provando que a ciência não é uma livre criação
do espírito. É o fato bruto o responsável pela objetividade científica. Pode-se discordar sobre a aceitação de
um enunciado da física, mas não do que permanece naturalmente invariável. Tomados em suas relações, os
fatos brutos são o que Poincaré chama de invariante universal, isto é, aquilo que permanece irredutível à
deformação imposta às coisas pelo espírito, deixando em aberto a possibilidade de comunicação: “As leis
invariantes são as relações entre os fatos brutos, enquanto as relações entre os ‘fatos científicos’ permanecem
sempre dependentes de certas convenções” (POINCARÉ, H.: [1905] 1995, p. 156).
164
DUHEM, P.: ARFE, respectivamente, p. 90 e pp. 100-2.
165
DUHEM, P.: TP, pp. 199-200.
70
sobre as teorias físicas” e “Notation atomique et hipothèses atomistiques”, da pena do neo-
tomista Vicaire. Interessam-nos particularmente nesta seção duas de suas críticas, sendo
que outras ficarão reservadas à segunda Parte de nossa Dissertação.
166
A primeira refere-se à distinção duhemiana entre hipóteses representativas e
explicativas. É bem verdade que, se Duhem pretendera mostrar a necessidade das hipóteses
em física, nem por isso ele deixou de fixar um limite ao seu uso. Em grandes linhas, seriam
legítimas em física as hipóteses que traduzissem o mais imediatamente possível uma lei
experimental dada. Somente simbolizando de perto as leis experimentais a audácia
mecanicista em querer explicar o processo oculto da máquina do mundo, por intermédio de
hipóteses aventurosas e sem nenhuma segurança, encontrar-se-ia afastada. Assim, as
hipóteses podiam ser de natureza representativa (e física) ou explicativa (e metafísica). É
neste ponto que incide a crítica de Vicaire.
Vicaire argumenta que entre ambos os tipos de hipóteses “não há, em todo caso,
entre umas e outras, nenhuma diferença essencial de natureza; ambas visam a traduzir uma
realidade.”
167
Certamente, as hipóteses explicativas
168
são mais sujeitas a erros do que as
hipóteses menos profundas, e por isso demandam maior cuidado e mais verificações, mas
não são elas as mais fecundas e de conseqüências mais amplas? Além disso, não estão os
dois tipos de hipóteses sempre ligados intimamente entre si? Onde reside exatamente o
limite entre eles? De um ponto de vista lógico, o questionamento dessa distinção faculta a
Vicaire a redefinição duhemiana entre as diversas classes de ciências. Como vimos,
Duhem insiste em seus primeiros ensaios na distinção de três gêneros de ciências, a saber,
o pré-analítico (partes da fisiologia e da química), o da física matemática e o metafísico (a
cosmologia), cujas naturezas e objetivos divergiriam entre si. A função das ciências do
primeiro nível, as ciências puramente experimentais, é eminentemente prática e de
aplicação. O objetivo da física é o de aliviar a memória ao representar esquematicamente
os fenômenos por meio do instrumental matemático. Já a busca das causas dos fenômenos
é relegada à metafísica. Não espanta, portanto, que ao criticar a distinção entre
representação e explicação, Vicaire estivesse reformulando o objetivo da física e
166
Ver seções 2.2 e 2.3.
167
VICAIRE, É.: 1893, pp. 504-5.
168
Vicaire usa “grandes hipóteses” e “hipóteses secundárias” onde Duhem fala, respectivamente, em
hipóteses explicativas e representativas.
71
igualando-o, para Duhem, ao da metafísica.
169
A comunidade entre física e metafísica dar-
se-ia, no novo cenário, por meio de sua finalidade: a busca das causas. Na classificação de
Vicaire, só há duas classes de ciências possíveis; aquelas de aplicação, referentes ao
primeiro nível na distinção duhemiana, e as de explicação, na qual se encontra a física
teórica.
170
A crítica que talvez mais tenha contribuído para a evolução do pensamento
duhemiano decorre da que acabamos de expor. Ao atribuir à ciência física a finalidade de
economia de pensamento, de auxílio à memória, Duhem estaria fornecendo pesada
munição ao ceticismo. Não é verdade, insurge-se o crítico, que o objetivo das teorias
físicas seja o da pura representação dos fenômenos, alheia à procura de suas causas.
Teriam Galileu, Newton e Ampère tencionado tão somente a representação dos
fenômenos?
171
O simbolismo (esse é o termo usado por Vicaire para classificar as posições
de Kirchhoff, Poincaré e Duhem
172
) extirpa a curiosidade científica e mata a ciência ao
eliminar a noção de causa do seu âmbito. Ao considerarmos as teorias físicas como uma
linguagem cômoda cuja utilidade principal seria a aplicação prática, seríamos
logicamente conduzidos à incoerência. A única maneira de evitar a proliferação de teorias
incoerentes seria assumir que o objetivo da ciência é a construção de uma teoria que seja a
imagem real da natureza. Nesse sentido, teorias não deveriam ser apenas "boas" ou
subjetivamente satisfatórias, mas teriam de se pautar pela verdade, objetivando a
representação exata e fiel da realidade. Pois bem, argumenta Vicaire, como é a mesma
matéria a sede de todos os fenômenos, mesmo as teorias que representassem diferentes
classes de fenômenos deveriam concordar entre si. Isto posto, a incoerência seria afastada
tanto do interior de uma mesma teoria como do domínio das diversas teorias existentes.
169
É essa crítica de Vicaire que motivou, no mesmo ano, a publicação de FM, no qual se traça a famigerada
distinção duhemiana entre física e metafísica.
170
Para o neo-tomista, as teorias de aplicação caracterizam-se pela finalidade prática, seu ponto de partida (a
observação) é incontestável, de sorte que elas não contêm hipóteses (baseiam-se em leis supostamente
demonstradas) e, caso contivessem, seriam chamadas convenientemente de hipóteses aparentes, uma vez que
elas deveriam ser tomadas como simples formas de coordenação de outras leis, não passando de um
vocabulário cômodo. Suas leis podem ser formuladas sem o auxílio da matemática e conduzem
invariavelmente a resultados experimentais cuja verificação é, na maioria das vezes, fácil de se realizar. Por
outro lado, as teorias de explicação não têm as leis experimentais como ponto de partida, mas como termo,
sua natureza é matemática, seu fim é eminentemente teórico e a coordenação das leis é um dos seus objetivos,
dentre os quais o principal é a descoberta das causas dessas mesmas leis (VICAIRE, É.: 1893, pp. 453-7).
171
VICAIRE, É.: 1893, p. 452.
172
VICAIRE, É.: 1893, p. 472. Vicaire não usa a expressão simbolismo como sinônimo de positivismo, visto
que ele mesmo reconhece que Duhem não desdenha a metafísica (VICAIRE, É.: 1893, p. 482, n. 1).
72
Pois bem, sabemos que Duhem mantém o objetivo das teorias no âmbito da representação
dos fenômenos, mas como ele se comporta diante da incoerência inter-teórica?
Sabemos que Comte negava peremptoriamente ao espírito metafísico toda influência
na ciência em seu estado positivo, afirmando que: “A razão humana está agora
suficientemente madura para que empreendamos laboriosas investigações científicas, sem
ter em vista algum fim estranho, capaz de agir fortemente sobre a imaginação.”
173
Defendendo a necessidade do estímulo metafísico no início do desenvolvimento intelectual
da humanidade, mas proscrevendo todo o seu papel no progresso futuro do conhecimento
positivo, ele não faz senão limitar o estímulo da atividade intelectual à esperança da
descoberta de leis dos fenômenos. Também Poincaré demonstrava anseio pelo fim das
questões inacessíveis ao entendimento humano quando escrevia: “Possivelmente chegará
um dia no qual os físicos se desinteressarão dessas questões inacessíveis aos métodos
positivos e os abandonarão aos metafísicos. Esse dia ainda não chegou: o homem não se
resigna tão facilmente a ignorar eternamente o fundo das coisas.”
174
Como Vicaire soube
ver em sua análise, Duhem reconhece a existência enraizada do instinto que guia o
cientista em suas pesquisas, levando-o a procurar nas teorias uma explicação dos
fenômenos:
Uma tendência irresistível leva-nos a pesquisar a natureza das coisas materiais que nos
cercam e a razão de ser das leis que regem os fenômenos que observamos. Esta
tendência move todo homem, desde o selvagem mais supersticioso até o filósofo mais
curioso [...].
O físico, portanto, é levado por si mesmo, assim como pelo meio que o cerca, a
procurar na teoria não uma coordenação sistemática das leis, mas uma explicação
dessas leis.
175
Infelizmente, replica Vicaire, se Duhem reconhece à metafísica um lugar ao sol, ao
mesmo tempo ele lhe nega, como Comte e Poincaré, a influência positiva sobre a ciência,
almejando abafar esse instinto.
176
Pois é justamente essa tendência que forçaria Duhem à
“inconseqüência”: se as reflexões duhemianas parecem imputar às teorias o direito à
173
COMTE, A.: (1830) 1983, p. 6. Comte reconhece, no entanto, a existência de uma “tendência involuntária
que, até mesmo hoje, nos conduz a todos, de modo evidente, às explicações essencialmente teológicas”
(COMTE, A.: [1844] 1983, p. 45).
174
POINCARÉ, H.: (1901) 1990, p. ix.
175
DUHEM, P.: ARTF, pp. 25-6.
176
As aspirações íntimas, tão alardeadas por Vicaire (VICAIRE, É.: 1893), principalmente seções VII-IX que
levam o físico à procura de uma teoria unitária que seja uma classificação natural, adquirirão preponderância
na TP e em outros dois ensaios, “Physique de croyant” (1905) e “La valeur de la théorie physique” (1908),
acrescentados sob a forma de apêndice à TP quando de sua segunda edição.
73
incoerência, por qual motivo então nosso autor escreve uma seção em seu ensaio intitulada
“nem todas as teorias de uma mesma classe de fenômenos são equivalentes”? Por que
elencar critérios para forçar a decisão entre teorias rivais?
177
Não seriam esses os indícios
suficientes de uma preocupação implícita com o relativismo cognitivo? É isso o que
permite a Vicaire concluir: trata-se de uma feliz inconseqüência que representa a vitória do
bom senso e do instinto natural contra o espírito de sistema.
178
Não tarda a publicação do ensaio de Duhem sobre “A escola inglesa e as teorias
físicas” no qual vemos serem desferidos numerosos ataques ao estilo inglês de formular
teorias. Fiando-se nas análises de Poincaré, Vicaire já havia mencionado Maxwell a
propósito do valor supremo por este conferido ao poder heurístico das teorias, que acabava
por levá-lo a minimizar os prejuízos das contradições internas às teorias. Duhem retoma a
análise de Poincaré, estendendo seu escopo a outro escocês, W. Thomson, mas recusa-se a
aceitar o pluralismo teórico do matemático. A questão colocada é a seguinte: “na física
teórica, é legítima a incoerência lógica?
179
E a resposta segue-se imediatamente:
SE NOS RESTRINGIRMOS A INVOCAR APENAS RAZÕES DA LÓGICA PURA,
não se pode impedir um físico de representar por várias teorias irreconciliáveis seja
conjuntos diversos de leis, seja até mesmo um grupo único de leis; não se pode
condenar a incoerência no desenvolvimento da teoria física.
180
A importância dessa passagem é nevrálgica se quisermos entender a fonte do
realismo duhemiano. Nas páginas que se seguem, observamos Duhem reduzir
drasticamente as imposições da lógica, resultando em apenas uma: a de não confundir os
diversos procedimentos de classificação. Desde que não se misture duas teorias
contraditórias, a lógica permite o eriçamento de teorias compostas com métodos e
princípios distintos. Assim, é perfeitamente legítimo usar a hipótese atrativa para explicar
os fenômenos capilares e manter paralelamente a hipótese atomista quando se trata de dar
conta dos efeitos do calor.
181
Estaríamos então condenados ao relativismo? De modo
algum:
177
DUHEM, P.: ARTF, p. 32. A preocupação em afastar o relativismo existe de fato. Trataremos dessas
questões na seção 2.1 da próxima Parte
178
O resultado desta crítica, ao qual nos voltaremos a seguir, marcará indelevelmente a concepção
metodológica duhemiana.
179
DUHEM, P.: EITF, p. 76.
180
DUHEM, P.: EITF, p. 77.
181
DUHEM, P.: EITF, p. 77.
74
Mas as razões de ordem puramente lógica não são as únicas que dirigem
razoavelmente nossos juízos: o princípio de contradição não é o único a que nos é
permitido recorrer. Para que rejeitemos legitimamente um método, não é necessário
que ele seja absurdo; é suficiente que nosso objetivo, ao rejeitá-lo, seja o de preferir a
ele um método mais perfeito; é em virtude desse princípio que podemos resolver a
dificuldade que examinamos e assentar legitimamente a seguinte regra: devemos, na
física teórica, fugir da incoerência lógica, PORQUE ELA PREJUDICA A
PERFEIÇÃO DA CIÊNCIA.
182
Podemos destacar ao menos dois sentidos bem distintos do termo “lógica” nos textos
de Duhem. Um deles, portador de um sentido determinado, refere-se à análise formal de
teorias e merece devidamente ser designado “análise lógica.” É também o que nosso autor
entende como “lógica pura”, isto é, a análise que revela o que é a teoria física. A análise
formal é descritiva e permissiva: para que uma teoria seja logicamente aceita é suficiente
que ela não seja auto-contraditória e produza resultados verificáveis e aproximados (o
próprio grau de aproximação da experiência não é logicamente determinado). Já o outro
sentido, bem menos preciso, embora não menos importante, é o que Duhem denomina
“lógica superior”
183
, ao qual corresponderá o “método mais perfeito.”
184
Esta lógica, ao
contrário daquela, pertence às “razões que a própria razão desconhece”, e é constituída
sobretudo de “pressentimentos não analisáveis”
185
que dirigem a escolha do teórico na
escolha de suas hipóteses. Ela é diretiva e restritiva, pois se impõe ao espírito quando se
trata de saber o que a teoria deve ser (embora seu peso não seja comparável ao do princípio
de não-contradição). Entre esses pressentimentos encontramos o da unidade lógica:
É melhor, e mais perfeito, coordenar um conjunto de leis experimentais por meio de
uma teoria única, da qual todas as partes, logicamente encadeadas, decorrem numa
ordem irrepreensível de um certo número de hipóteses fundamentais estabelecidas de
uma vez por todas, do que invocar, para classificar essas mesmas leis, um grande
número de teorias irreconciliáveis fundadas umas sobre certas hipóteses, outras sobre
outras hipóteses que contradizem as precedentes.
186
Se a análise lógica denuncia a inelutabilidade da tese da subdeterminação das teorias
pelos dados, a lógica superior rebela-se contra a instauração do instrumentalismo. Mesmo
os ingleses, é o que nos diz Duhem, admitem a verdade da citação acima, e se eles parecem
virar-lhe as costas, a causa de sua negligência é psicológica; o grande potencial
182
DUHEM, P.: EITF, p. 77.
183
DUHEM, P.: TP, p. 498; SAVA, p. 150.
184
DUHEM, P.: EITF, p. 77.
185
DUHEM, P.: TP, p. 459.
186
DUHEM, P.: EITF, p. 78.
75
imaginativo, a dificuldade em abstrair e a prodigiosa memória dos ingleses explicam o uso
de modelos mecânicos incompatíveis e o descuido pelo rigor lógico. Por assimilar sem
dificuldades diversas construções teóricas disparatadas e reportá-las sempre a modelos
figurativos, o inglês pode dispensar o fio lógico que ligaria as hipóteses num conjunto
harmonioso e econômico. E por que os ingleses continuam a proliferar teorias
contraditórias se “todo físico” faz constantemente uso dessa “verdade que todos admitem
sem que seja necessário comentá-la”? Pouco precisa é a resposta de Duhem: é que eles são
incapazes de perceber os meios de construção da teoria unitária.
Como vemos, é a adoção do “método mais perfeito” que permite a Duhem dar cabo
do instrumentalismo. Apenas a pretensão unificadora da ciência permite-lhe discordar
“razoavelmente” dos ingleses e daqueles que os defendem com argumentos puramente
lógicos (Poincaré, em especial
187
). Mas estaríamos enganados se pensássemos que a função
do meta-princípio de unidade lógica
188
restringe-se a isso. Duhem atribui ainda a ele o
estatuto de certeza. Não decerto uma certeza concluída por meio da análise lógica ou de
alguma dedução, mas uma certeza “intuitiva.” Vejamos o que isso significa.
Em “A escola inglesa e as teorias físicas” Duhem não nos dá indícios suficientes para
avaliar o grau de certeza que o referido princípio possui. No entanto, ele nos indica que o
princípio de coerência não é o único entre os que guiam nossa razão. É em “Física e
metafísica” que podemos encontrar mais amostras de outros princípios e noções portadores
da mesma evidência. Lá era afirmado o seguinte:
Esse método [experimental] emprega certo número de noções, por exemplo, as noções
de fenômeno físico, de extensão, de tempo, de movimento; ele assenta em certos
princípios, tais como os axiomas da geometria e da cinemática, tais como a existência
de leis determinando o encadeamento dos fenômenos fixos.
Para usar essas noções, para fazer uso desses princípios, não é necessário saber
metafísica; em si mesmos esses princípios, essas noções, aparecem à nossa
187
É preciso relativizar o escopo das críticas duhemianas a Poincaré. Nosso autor reconhece uma mudança no
pensamento de Poincaré na direção do realismo, proveniente de um "sentimento de revolta", somente
justificado pela "lógica superior". A unidade que Rey via no pensamento do matemático francês (REY, A.:
[1907] 1930, pp. 155-96), por conseguinte, não seria natural: "Rey se esforçou, com muito talento, em
introduzir uma perfeita unidade nas afirmações que Poincaré formulou, em diversas épocas, acerca do valor
da teoria física. Receamos que essa unidade seja mais artificial que real. Parece-nos que, se bem entendidas,
as opiniões do ilustre matemático formam dois grupos separados por um abismo" (DUHEM, P.: TP, p. 498).
188
Usaremos daqui por diante as expressões “princípio de unidade lógica”, “princípio de coerência”, “meta-
princípio de unidade lógica” como sinônimos. Princípio porque constituinte da metodologia duhemiana;
meta-princípio pois não se trata de um princípio físico propriamente dito, sendo usado tão somente para falar
da física.
76
inteligência como suficientemente certos e distintos, para que possamos, sem receio de
confusão nem de erro, colocá-los em uso através do método experimental [...].
189
A defesa do método experimental em “Física e metafísica” visa a um objetivo bem
determinado: garantir um fundamento composto de noções e princípios indubitáveis para
fazer frente às especulações metafísicas, guarnecendo, por conseguinte, a autonomia da
física. Essas mesmas noções, por outro lado, são tão certas que sua certeza não pode ser
revogada; também o ceticismo torna-se impotente diante delas. Desse modo, para o físico
enquanto físico, o método experimental pode prescindir de uma análise filosófica sobre os
seus fundamentos – e é a partir dele que a física deve ser erigida. O uso desses princípios
pelo físico, assegura Duhem, não requer conhecimentos metafísicos sobre a sua verdadeira
natureza, dado que aparecem à inteligência do sábio e do camponês como suficientemente
“certos e distintos.”
190
Isso não significa, entretanto, que a noção de corpo, por exemplo,
seja-nos conhecida completa e adequadamente, mas tão somente que a conhecemos de
modo suficiente para que dela possamos fazer uso sem incorrer em erro e tomar outra coisa
por corpo que não o fosse; donde ser possível, e mesmo útil, a ocupação das pesquisas
metafísicas ulteriores na busca pelo conhecimento penetrante e íntimo, que revelaria a
essência e a razão de ser dessa noção. É desse modo que podemos caracterizar, com
Duhem, essas noções e princípios como universais, certos, claros, evidentes e intuitivos.
As conclusões mais importantes que nos tocam podem ser reduzidas a duas. A
primeira assere que o método experimental assenta sobre princípios evidentes e
independentes de toda metafísica; e a segunda, que até mesmo as análises metafísicas, em
seu estudo sobre os fundamentos do método experimental, partem dessas noções, de sorte
que sua função consiste na elucidação e acúmulo de aprendizados, mas não no aumento da
certeza delas.
191
Contudo, se a exigência levasse-nos a indagar ao texto da proveniência de
tais princípios, precisaríamos ser pacientes. Seja em “Física e metafísica”, seja em “A
escola inglesa e as teorias físicas”, Duhem não nos dá uma resposta satisfatória. Disso não
podemos concluir por sua inexistência. Comparando a temática estudada, podemos
encontrar a passagem correspondente na Théorie physique, por volta da seção X do quarto
capítulo da primeira parte.
189
DUHEM, P.: FM, p. 45.
190
A própria noção de lei é considerada por Duhem como uma dessas noções claras: “Independentemente de
toda pesquisa metafísica, sabemos que todos os fenômenos que têm sua origem na matéria estão submetidos
a leis fixas e a certeza desse princípio é tal que podemos, sem hesitação, consagrar nossa vida à descoberta
dessas leis” (DUHEM, P.: FM, pp. 45-6).
191
DUHEM, P.: FM, p. 46.
77
Mostramos logo atrás que a pura lógica não é suficiente para justificar o princípio de
unidade lógica. Outra saída, de teor convencionalista, seria resolver o problema ancorando
a decisão no critério de economia de pensamento. Duhem recusa prontamente essa opção:
se uma teoria única cujas conseqüências são deduzidas através de longas cadeias dedutivas
a partir de um número reduzido de hipóteses altamente abstratas pode seduzir o francês, ela
repugnará ao inglês, cuja memória e imaginação amplas e o desgosto pelos raciocínios
complicados, encontrará na teoria fastidioso trabalho, preferindo o trato com fragmentos
isolados de teoria.
192
A verdadeira origem do princípio que afirma deverem ser as teorias
logicamente coordenadas é um sentimento inato.
193
É suficiente, afirma o autor, ler o
prefácio do Treatise de Maxwell ou as conferências de W. Thomson para perceber que as
contradições ali presentes não foram benquistas nem procuradas, que a construção dos
modelos mecânicos tem a única finalidade de servir de abrigos provisórios destinados a
desaparecer. “Todo físico aspira naturalmente à unidade da ciência.
194
A naturalidade da
aspiração atua legitimamente na prática da ciência e torna legítima a crítica de Duhem ao
uso de modelos mecânicos incoerentes.
Pelo fato de não ser com argumentos puramente racionais que os ingleses são
atacados não decorre daí a irracionalidade da crítica. Sabemos que a racionalidade
duhemiana transcende o rigor da pura lógica ao justificar o princípio de unidade lógica
através de um sentimento dotado de força invencível. Por sentimento o autor entende uma
espécie de intuição natural e segura, uma adivinhação instintiva de certos princípios ou
noções; um verdadeiro conhecimento, dado de maneira imediata, que gera convicção
intensa (embora geralmente confusa) à qual é concedida a ausência de provas ou
justificações que não provenham de si mesma.
195
Por conta desse ofuscamento, Duhem
defende que o reconhecimento do poder que o princípio de unidade lógica tem sobre os
192
DUHEM, P.: TP, p. 150.
193
DUHEM, P.: TP, p. 151.
194
DUHEM, P.: TP, p. 151. Itálicos meus.
195
Uma ressalva quanto ao sentido de intuição tem de ser feita. Na maioria das vezes, intuição denota a idéia
de clareza intelectual, de evidência, mesmo que, em alguns espíritos, ela permaneça embotada. Este sentido
remonta a Descartes e é encontrado também em Pascal, a quem Duhem refere-se em várias oportunidades.
Mais raro, porém existente, é o uso do conceito de intuição tal qual derivado da filosofia kantiana, como o
que subjaz à seguinte citação: “Nada é mais oposto ao pensamento alemão do que o pensamento inglês. [...]
Longe de ser excessivamente dedutiva, a ciência inglesa é toda intuição” (DUHEM, P.: SA/GS, p. 91/69).
Neste caso, intuição serve para designar a “visão concreta” das coisas, uma re-apresentação concreta que se
opõe à abstração, manifesta na escola inglesa sob a forma de modelos figurativos. É àquela intuição em que
nosso autor pensa quando critica o desdém dos ingleses pela unidade lógica.
78
espíritos exige uma tomada de consciência, um exame reflexivo para expor os princípios
que guiam a sua razão:
Nesta circunstância, como em todas, a ciência seria impotente em estabelecer a
legitimidade dos princípios mesmos que traçam seus métodos e dirigem suas
pesquisas, se ela não recorresse ao senso comum. No fundo de nossas doutrinas as
mais claramente enunciadas, as mais rigorosamente deduzidas, nós reencontramos
sempre esse conjunto confuso de tendências, aspirações e intuições; nenhuma análise é
assaz penetrante para separá-las umas das outras, para decompô-las em elementos
mais simples; nenhuma linguagem é suficientemente precisa e flexível para defini-las
e formular; e, entretanto, as verdades que o senso comum nos revela são tão claras e
tão certas que nós não podemos nem desprezá-las nem colocá-las em dúvida; melhor;
toda claridade e toda certeza científicas são um reflexo de sua claridade e um
prolongamento de sua certeza.
196
Instantaneamente, somos levados a questionar se Duhem não estaria incorrendo em
contradição, afinal, se ele havia negado ao senso comum o poder de influir diretamente nas
teorias físicas, como ele pode afirmar que a legitimidade dos princípios metodológicos
destas advém do senso comum ou, igualmente, que as verdades deste não podem ser
colocadas em dúvida? A despeito das aparências, Duhem não se contradiz. O nível
emprestado ao senso comum nesta passagem difere daquele visto no começo desta seção,
quando estávamos diante do tipo de conhecimento derivado da simples experiência vulgar.
Aqui, senso comum assume a função de meta-princípio, um princípio usado para falar da
ciência sem ser ele mesmo científico; seu papel é mais regulador que positivo (desde que
entendamos por positivo o fornecimento de princípios verdadeiramente científicos que
representem os fenômenos experimentais). O senso comum funciona, neste caso, como
guia metodológico e se opõe, como o bom senso de Vicaire, ao espírito de sistema, sem,
contudo, exigir que as teorias tenham por objetivo a explicação dos fenômenos.
Para termos uma idéia da importância dessa noção de senso comum na Théorie
physique, atentemos para o seguinte. A estrutura do livro é composta de duas partes; a
primeira é reservada ao objeto da teoria física, enquanto a segunda, à sua estrutura. Ora,
através da análise estrutural das teorias, Duhem estipula quatro operações em sua
196
DUHEM, P.: TP, p. 153. Duhem identifica duas intuições desse tipo. A primeira é a de que a teoria física
deve ser logicamente coordenada, assunto desta seção. A segunda, inseparável da primeira, é a de que a
teoria tende a ser uma classificação natural: “Essa primeira aspiração na direção de uma teoria da qual todas
as partes se ajustam logicamente umas com as outras é, alhures, a inseparável companheira desta outra
aspiração [...] na direção de uma teoria que seja uma classificação natural das leis físicas” (DUHEM, P.: TP,
p. 153). Duhem já havia tratado da noção de classificação natural na seção quatro do segundo capítulo da
primeira parte. Esta segunda intuição será o assunto de toda a segunda Parte de nossa Dissertação.
79
constituição: (1) definição e medida das grandezas físicas; (2) escolha das hipóteses; (3)
dedução matemática das hipóteses; e (4) comparação da teoria com a experiência.
197
Embora esta seja a ordem lógica de construção das teorias, não é a apresentada na estrutura
da obra: o capítulo referente à escolha das hipóteses é deixado por último, com a
justificativa de que pareceria pouco natural escolher a matéria com a qual será construído
um edifício sem conhecer previamente como será o próprio edifício.
198
A dissecação
estrutural da teoria, então, pode levar o leitor à suposição de que as condições impostas à
escolha das hipóteses seriam demasiadamente restritivas e subordinadas em tudo à análise
lógica. Duhem procederia de modo estritamente lógico, e lógicas seriam suas conclusões,
de sorte que a estrutura interna da teoria física determinaria o alcance legítimo do
conhecimento que ela poderia atingir, isto é, o seu autêntico objeto. Duplo engano. Mais à
frente, no momento em que se trata de elencar as condições que concorrem para a escolha
das hipóteses, lemos o seguinte: As “condições que se impõem logicamente à escolha das
hipóteses sobre as quais deve repousar a teoria física”
199
são apenas três: (2.1) uma
hipótese não pode ser auto-contraditória; (2.2) “as diversas hipóteses que constituirão a
Física não se contradirão entre si”; (2.3) as hipóteses serão escolhidas de tal modo que a
concordância resultante com a experiência seja considerada suficiente. Engano porque a
lógica deixa uma liberdade quase absoluta ao físico na construção das teorias. Mas também
engano porque, em última análise, a única condição estritamente lógica seria a primeira. A
terceira, como podemos perceber, implica um elemento subjetivo ou, no máximo,
intersubjetivo (a satisfação). A segunda condição, por sua vez, pressupõe algo externo à
lógica pura, a saber, o princípio de unidade lógica. Notemos ainda a grafia de “Física”.
Duhem não fala de qualquer teoria física, como notou Abel Rey antes mesmo da Théorie
physique ser escrita, mas de la Physique.
200
A precedência da parte atinente ao Objeto da
teoria com relação à da Estrutura é indicativa do valor concedido a este conceito de senso
comum. O objeto da teoria física intervém ativamente no momento de estabelecer os
197
DUHEM, P.: TP, p. 26.
198
DUHEM, P.: TP, p. 197.
199
DUHEM, P.: TP, p. 334-5. Itálicos meus.
200
REY, A.: 1904, p. 729, p. 742; (1907) 1930, p. 133. É de se observar o tom ambicioso que caracteriza o
título da TP por contraposição ao título de seu primeiro artigo metodológico, “Quelques réflexions au sujet
des théories physiques”. Não se trata mais de tentar algumas reflexões sobre as teorias, e sim de algo bem
mais pretensioso; Duhem fala de La théorie, do seu objet e da sua structure. Tudo nos leva a crer que o
modelo seguido na TP seja a termodinâmica generalizada, em cujo empreendimento nosso autor ainda
promovia alguns retoques. O ponto culminante de seu projeto unificador é exposto em seu Traité
d’Énergétique (1911). Nesta obra, Duhem afirma que a TP pode ser vista como uma “introdução lógica” ao
TE (DUHEM, P.: TE, pp. 3-4, n.1).
80
critérios da escolha das hipóteses. A lógica que impõe as condições à escolha é a lógica
sustentada pela natureza.
201
É essa a feição que o fragmento pascaliano assume na Théorie
physique: “A natureza sustenta a razão impotente e a impede de extravagar até esse ponto”,
com o qual Duhem fecha a primeira parte da Théorie physique. A justificação da segunda
condição à escolha das hipóteses é estranha à análise lógica:
[...] pois uma intuição a qual nós somos impotentes em justificar, mas à qual nos é
impossível fechar os olhos [d’aveugler], nos mostra que apenas com essa condição a
teoria tenderá para a sua forma ideal, para a forma de classificação natural.
202
Começa a ser delineado uma espécie de senso comum que não se identifica mais com
a constatação de leis puramente experimentais, cuja verdade estaria garantida conquanto
fossem pouco detalhadas, ou com a opinião correntemente admitida num tempo e num
espaço. O princípio de unidade lógica decorre da natureza humana, e sua evidência é
interna e injustificável tanto lógica como empiricamente. Ao fundar o método experimental
sobre noções indefiníveis (tempo, espaço, movimento); ao fixar a classificação natural
como o objeto da teoria física, Duhem dá mostras na Théorie physique da precedência do
coração sobre a geometria.
1.4. Bom senso e senso comum em La science allemande
Um dos principais comentadores da obra duhemiana, Roberto Maiocchi, e também um dos
responsáveis pelo reavivamento dos estudos sobre o pensamento duhemiano
203
, escreve o
201
DUHEM, P.: TP, p. 154.
202
DUHEM, P.: TP, p. 335, mas também; TP, “Physique de croyant”, seção VII.
203
É verdade que antes da publicação do trabalho de Maiocchi (MAIOCCHI, R.: 1985) outros livros já
haviam sido dedicados a Duhem; o melhor exemplo é a biografia de Jaki, impressa um ano antes [JAKI, S.:
(1984) 1987]. No entanto, são raras as publicações de apenas um autor que expõem com exclusividade o
pensamento do filósofo nas décadas anteriores, podendo ser esgotadas em uma linha [PICARD, É.: (1921);
HUMBERT, P.: (1932); DUHEM, H.: (1936)]. Até então, os comentários à obra duhemiana restringiam-se,
em sua maior parte, a artigos publicados, sobretudo nas décadas de 1960 a 1980, em periódicos de língua
inglesa, cujos temas quase sempre se limitavam à célebre tese Duhem-Quine e ao suposto convencionalismo
de Duhem. Foram poucas também as teses acadêmicas escritas: a primeira tese em inglês pode ser descrita
como uma paráfrase de La théorie physique (LOWINGER, A.: 1941), enquanto a primeira em língua
francesa, de caráter bastante técnico, vem a aparecer apenas em 1981 (BROUZENG, P.: 1981), 65 anos após
a morte de Duhem! É preciso citar ainda algumas revistas ou volumes especiais em homenagem ao filósofo
[Archeion: (1937; 19, 1-2); Les Etudes Philosophiques: (1967; 4); L’Oeuvre Scientifique de Pierre Duhem:
(1928)]. Mas é a partir dos idos de 1980 que a ampla temática duhemiana passa a receber os cuidados que lhe
são devidos e a ganhar boas páginas de análise. Aqui, dois livros merecem destaque especial [BRENNER,
81
seguinte acerca da relação entre conhecimento teórico e senso comum: “O continuísmo
histórico garante às teorias mais refinadas um sólido ancoradouro a ritroso no senso
comum. Neste sentido, mas somente neste sentido, Duhem se oporá a grande parte da
ciência tedesca, enquanto privada de ligações com o senso comum.”
204
O argumento do
intérprete italiano é, resumidamente, o que se segue. Duhem distingue nitidamente
conhecimento vulgar do conhecimento teórico; enquanto o primeiro possui uma base
inamovível, o segundo é altamente hipotético. Como pode então Duhem criticar os alemães
afirmando que a ciência de seus vizinhos geográficos é desprovida de senso comum? Não
estaria o filósofo defendendo a ingerência do conhecimento vulgar no conhecimento
altamente especializado característico das teorias? De acordo com Maiocchi, a tese
continuísta fornece o fio condutor para a solução: apesar da distância entre os dois tipos de
conhecimento, a continuidade do desenvolvimento científico é responsável pela ligação
entre eles, garantindo um firme sustento à rede teórica, donde Duhem estar em condições
de criticar o exagero abstracionista alemão. Apenas a tese histórica evidenciaria essa
ligação longínqua, enquanto a análise lógica mostraria um verdadeiro rompimento entre
senso comum e teoria física. Uma página à frente o comentador avança mais um passo:
É um grave erro historiográfico sustentar que para Duhem a escolha das teorias
depende do senso comum, e é tanto mais surpreendente se se considera que na Théorie
[TP] Duhem dedica à refutação desta tese um amplo parágrafo de título claríssimo:
‘As hipóteses não podem ser deduzidas de axiomas fornecidos pelo senso comum’.
205
Por conseguinte, o cientista não tem outro recurso senão recorrer ao bom senso, que
seria o verdadeiro juiz na escolha das teorias. O bom senso, esta categoria desenvolvida
com o aprendizado da ciência, diferiria profundamente da noção de senso comum, reduzida
em sua interpretação ao simples conhecimento vulgar. A sustentação de semelhante
posição seria uma divisão operada por Duhem na Théorie physique entre “bom senso” e
“senso comum”; bom senso seria uma característica desenvolvida pelos cientistas, e apenas
por eles, através da prática contínua das ciências, enquanto senso comum seria o
A.: (1990); MARTIN, R. N. D.: (1991)], bem como dois volumes substanciais de revistas internacionais
[Synthese, (1990; 83, 2-3); Revue Internationale de Philosophie: (1992; 44, 182)] Quando vivo, apesar de
muito conhecido, Duhem recebeu pouquíssimos comentários desinteressados (entre eles REY, A.: 1907), e,
se excetuarmos as resenhas, poucos também foram os caracteristicamente críticos e ao mesmo tempo
relevantes [VICAIRE, É.: (1893); REY, A.: (1904)].
204
MAIOCCHI, R.: 1985, p. 229, p. 300.
205
MAIOCCHI, R.: 1985, p. 230.
82
depositário distante dos conhecimentos científicos, permanecendo alheio à esfera das
decisões científicas.
Os problemas da interpretação de Maiocchi surgem no momento mesmo em que a
confrontamos com La science allemande. A leitura de algumas páginas deste livro basta
para encontrarmos um “deslizamento terminológico” que identifica bom senso e senso
comum na crítica aos alemães. Aqui, Duhemo afirma apenas que os alemães carecem de
bom senso na escolha dos princípios que sustentam suas teorias, mas, igualmente, de senso
comum. Entretanto, como vimos, o comentador afirma que, por coerência, Duhem teria de
criticar a ciência alemã tão somente em nome do bom senso. As conseqüências que
Maiocchi tira desse deslizamento são deveras prejudiciais à sua interpretação. Citemos
algumas delas:
A fonte da confusão freqüentemente operada entre ‘bom senso’ e ‘senso comum’ é um
escrito de Duhem, o seu escrito mais infeliz, La science allemande. [...] este livrinho
ressente-se de modo pesadíssimo do clima bélico, das exigências da retórica e de um
evidenciado patriotismo.
206
[...] Não podemos tomar as considerações de Duhem sobre o senso comum de
La science allemande juntamente com a epistemologia da Théorie, porque a
epistemologia da primeira é radicalmente diversa daquela da segunda. La science
allemande estava provavelmente destinada a ser um infeliz parêntese no percurso
duhemiano.
207
Maiocchi chega mesmo a falar em contradição interna ao pensamento duhemiano,
motivada por questões externas – a eclosão da Primeira Grande Guerra. Não há dúvidas de
que a escritura das lições que compõem La science allemande foi ocasionada pelo
patriotismo assumido (devemos lembrar que as quatro lições constituintes da Science
allemande foram proferidas junto ao grupo de estudantes católicos da Universidade de
Bordeaux que se preparavam para ir ao front de batalha). É indiscutível o estilo retórico e
clamoroso do texto, bem como o sarcasmo presente em algumas passagens para com os
alemães; mas seriam essas constatações suficientes para menoscabar o rigor e a coerência
duhemianas? Teriam os motivos externos repercutido de maneira contundente em desfavor
da consistência da obra?
206
MAIOCCHI, R.: 1985, p. 232.
207
MAIOCCHI, R.: 1985, p. 234. Recentemente Maiocchi reiterou sua interpretação sobre SA, afirmando que
SA “é o mais medíocre de todos os escritos de Duhem; [...] que esse escrito é de um nível bem inferior às
precedentes produções duhemianas; [...] que esse texto está em contradição com o que Duhem havia escrito
anteriormente” (MAIOCCHI, R.: 2004, p. 511).
83
Procuraremos dar provas nesta seção das justas palavras de Jordan: “[...] esse livro
[Science allemande], nascido da guerra, não se ressente dela.”
208
Acreditamos poder
fornecer evidências da inexistência de tais contradições, e de que, se o deslizamento
terminológico ocorre, ele se dá de maneira bem específica e determinada. Para isso,
faremos uma análise do conceito de bom senso na Théorie physique para, em seguida,
compará-lo com o encontrado na Science allemande, mostrando que, igualmente com o
que ocorre com a noção de senso comum, podemos divisar dois sentidos para o termo. O
primeiro será aquele descrito por Maiocchi logo acima; já o segundo identificar-se-á ao
senso comum da seção 1.3.2. Com isso, conseguiremos manter a distinção entre bom senso
e senso comum apreciado na Théorie physique ao mesmo tempo em que explicaremos sem
riscos sua conjunção tão propalada na Science allemande. Principiemos pela análise das
funções atribuídas ao bom senso na Théorie physique.
1.4.1. A racionalidade mediata do bom senso
Em sua já clássica obra O falseamento e a metodologia dos programas de pesquisa
científica, Lakatos opera uma demarcação entre duas teorias do conhecimento, as quais ele
rotula, convenientemente, de passivistas (ou justificacionistas) e ativistas (ou
convencionalistas). Os passivistas afirmariam que o conhecimento deriva da imposição
externa pela natureza; o papel do teórico seria o de simples receptor e acumulador de
dados. Já os ativistas (entre os quais se situaria Duhem) sustentariam a necessidade da
interpretação ativa da natureza na produção do conhecimento; a função do teórico seria a
de criador do conhecimento. É certo que Duhem fala da justificação histórica dos
princípios da termodinâmica, mas essa justificação não é tal que o físico deixe de exercer
qualquer papel na construção da ciência – também não é lógica nem a priori.
209
É
igualmente certo que na Théorie physique, nosso autor restringe enormemente a liberdade
de escolha da qual o físico dispõe, deslocando o encargo da escolha para a história e
limitando a atividade do físico ao desenvolvimento formal das conseqüências das hipóteses
208
“[…] ce livre, né de la guerre, ne se ressent de la guerre” (JORDAN, É.: 1917, p. 36).
209
Quando de sua maturidade filosófica, nosso autor argumentará que os princípios físicos da termodinâmica
possuem uma justificação histórica (DUHEM, P.: TP, p. 410; TE, p. 5). A justificação histórica, no entanto,
não é dada a priori e não possui caráter lógico e inabalável. Duhem não se estende muito sobre o que seria
esse tipo de justificação, embora, creio eu, ela possa ser caracterizada como uma solidificação gradual dos
princípios da ciência.
84
aceitas.
210
Estas teses, por si só, já criariam sérios problemas à interpretação lakatosiana
mas, como o intérprete parece ignorar a influência das teses históricas na metodologia
científica duhemiana, concedamos a ele a possibilidade de Duhem ser ainda um
convencionalista ao nível metodológico. Voltemos à classificação proposta por Lakatos; os
convencionalistas poderiam ser divididos, por sua vez, entre os conservadores e os
revolucionários. Entre os conservadores achar-se-iam Le Roy e Poincaré, defensores da
tese de que, com o êxito de uma teoria através das décadas, os cientistas podem adotar a
decisão metodológica de não permitir que ela seja refutada. O custo da manutenção da
teoria diante das anomalias crescentes é a aceitação contínua de hipóteses auxiliares. Desse
modo; “à proporção que a ciência cresce, a força da evidência empírica diminui.”
211
Crítico
dessa posição, Duhem (assim como Popper, mais tarde) faria parte da vertente
revolucionária.
212
Diferentemente de Popper, o critério que levaria Duhem a tomar essa
posição seria a simplicidade teórica. Desse modo, uma teoria, após sofrer reparos
sucessivos, adquiriria uma complexidade tamanha que a urgência em superar as
dificuldades impostas pela experiência aos cálculos faria do critério de simplicidade a
pedra de toque responsável pelo abandono da teoria “remendada”. Mas, como a
simplicidade é um critério subjetivo, assevera Lakatos, o falseamento é entregue, na
melhor das hipóteses, à “moda científica”.
De fato, contra Le Roy e Poincaré, Duhem lança mão da tese holista e afirma que
uma teoria falseada é condenada em bloco, daí que mesmo os seus princípios mais seguros
sentem logicamente o golpe da contradição experimental. Apesar de diretamente
inverificáveis, os princípios que não têm nenhum sentido experimental são julgados através
da combinação lógica com as demais hipóteses que compõem a teoria.
213
No entanto,
nosso autor concorda com seus compatriotas quanto à saída a ser tomada: entre reformular
a teoria a partir de seus princípios ou tentar eliminar as causas de erro por meio de
correções convenientes, devemos optar pela última opção. Afinal, se uma teoria teve êxito
em um grande número de casos, podemos contar com um novo sucesso – embora isso não
signifique que seus princípios adquiram a certeza das definições geométricas.
214
Mas
210
Trataremos disso na seção 2.3 da próxima Parte.
211
LAKATOS, I.: (1970) 1979, p. 127.
212
LAKATOS, I.: (1970) 1979, p. 128.
213
DUHEM, P.: TP, pp. 327-9.
214
A esse respeito Duhem propõe um exemplo imaginário, que consistiria em supor um desacordo entre a lei
da queda livre e a constatação experimental: a aceleração observada não seria uniformemente acelerada
(DUHEM, P.: TP, pp. 318-9). O que fazer? Reformular a partir de suas bases a mecânica racional, ou
85
então, qual é o critério decisivo no qual os físicos podem apoiar-se quando se pensa em
abandonar uma teoria? A simplicidade? De modo algum. Lakatos tacha o
convencionalismo duhemiano de “revolucionário”, justamente por pressupor a
simplicidade teórica como um guia de primeira ordem na metodologia duhemiana. Mas é
surpreendente que no capítulo da Théorie physique dedicado à escolha das hipóteses, em
momento algum nosso autor menciona a simplicidade como critério cognitivo. Não apenas
discordamos da primazia do critério de simplicidade como também julgamos inadequada a
passagem da qual se serviu o filósofo húngaro para satisfazer seus propósitos de sustentar o
revolucionarismo duhemiano.
215
Nela, Duhem não opta, como observa Lakatos, pela
substituição de teorias clássicas e “remendadas” em favor de teorias mais simples e firmes,
mas apela para o “bom senso”, fonte da racionalidade científica, que um dia se espalhará,
encarregando-se de fazer aparecer uma escolha adequada de uma das teorias rivais. Mas o
que isso quer dizer?
Lembremos inicialmente que, ainda de acordo com a tese holista, quando uma
teoria científica é rejeitada, suas hipóteses são condenadas em bloco. Limitada, a lógica
nada diz acerca de qual a hipótese causadora do erro. Mas a partir do momento no qual a
lógica encontra o seu limite, o bom senso adquire a sua força. É ele, representado pelas
qualidades da perspicácia e maturidade do cientista, o responsável pela escolha da hipótese
a ser abandonada. Na Science allemande Duhem elegerá Pasteur o personagem em que
eliminar, por meio de correções convenientes, as causas de erro? Diz ele: “O Sr. Le Roy afirma que nós
tomaremos o segundo partido e não o primeiro; no que ele tem seguramente razão. As causas que nos ditaram
essa determinação são fáceis de se perceber. Tomando o primeiro partido, seríamos obrigados a destruir
completamente um vasto sistema teórico, que representa de maneira muito satisfatória um conjunto extenso e
complexo de leis experimentais. O segundo partido, ao contrário, nada faz perder do terreno já conquistado
pela teoria física. Ademais, ele [o sistema teórico] teve êxito em um número tão grande de casos que nós
estamos justificados em contar com um novo sucesso. Mas nessa confiança concedida à lei da queda dos
graves, não vemos nada de análogo à certeza que a definição geométrica extrai de sua própria essência [...]”
(DUHEM, P.: TP, pp. 320-1). Quase uma década depois, Duhem ver-se-ia às voltas com um exemplo muito
real, no qual, mais uma vez, podemos observar a posição conservadora de suas críticas. A vítima da vez é a
teoria dos elétrons (mais uma passagem que vale a pena ser citada): “[...] a mecânica racional, digamos, viu-
se abalada em seus fundamentos pela nova teoria. Em nome da física dos elétrons, propôs-se renunciar ao
princípio de inércia, a transformar inteiramente a noção de massa – isso era necessário para que a nova
doutrina não fosse contraditada pelos fatos. Em nenhum instante questionou-se se essa contradição, em vez
de exigir a subversão da mecânica, não assinalava a inexatidão das hipóteses sobre as quais repousa a teoria
eletrônica, não indicava a necessidade de substituí-las ou modificá-las. [...] Guiado, entretanto, pela
experiência do passado, instruído pela história dos grandes progressos científicos, o espírito de finura, nessa
marcha devastadora, presume uma indicação imperfeita da verdade” (DUHEM, P.: QRSA/GS, p. 133/103-4).
215
A passagem citada por Lakatos refere-se a DUHEM, P.: TP, pp. 331-2.
86
essa qualidade seria notável.
216
Ao entrar em seu laboratório com uma “idéia pré-
concebida”, Pasteur tratava imediatamente de submetê-la à verificação experimental. Os
insucessos sucediam-se uns após os outros. Apenas depois de ter avaliado
conscienciosamente as possíveis causas de erro é que o biólogo finalmente tomava a
decisão meditada. Sua sagacidade era tão grande, continua Duhem, que nenhuma das
contradições experimentais observadas ocorreu em vão; elas contribuíram decisivamente
para a concepção de uma nova idéia. Quando bem exercitado, o bom senso permite
aprender com os erros. Dizer que a escolha das hipóteses é deixada à sagacidade do físico
significa consentir que um físico não pode acusar o outro de ilogismo. Entretanto, essa
coloração subjetiva atribuída ao bom senso não implica a impossibilidade de preferência
racional entre as alternativas apresentadas:
[...] a pura lógica não é jamais a única regra de nossos julgamentos; certas opiniões,
que não caem jamais sob o golpe do princípio de contradição, são, todavia,
perfeitamente insensatas; esses motivos que não decorrem da lógica e que, entretanto,
dirigem nossa escolha, essas razões que a razão não conhece, que falam ao espírito de
finura e não ao espírito de geometria, constituem o que se chama propriamente o bom
senso.
217
216
A exemplificação elogiosa usada por Duhem em 1915 não é gratuita. A 30 de outubro de 1914, pouco
antes do início da Guerra, 93 cientistas alemães de renome (incluindo Ostwald e Haeckel) declararam seu
“Apelo às nações civilizadas” em favor da superioridade e predestinação da ciência alemã. A resposta
francesa oficial, divulgada pela Academia de Ciências, vem a 3 de novembro do mesmo ano. Um dos pontos
mais controversos em disputa concernia ao balanço do papel da França e da Alemanha nas descobertas
científicas (sejam elas nas ciências matemáticas, físicas ou naturais). Cada país reclama para si o direito de
nação que mais contribuíra para a invenção e aperfeiçoamento científicos. Os protestos dos cientistas
franceses ganharam as páginas dos jornais e, em 1916, dá-se a publicação de Les allemands et la science,
contendo 28 artigos que zelam pela defesa da ciência nacional. Émile Boutroux, Émile Picard, F. Le Dantec,
P. Duhem e até mesmo Sir William Ramsay estavam entre seus signatários. O ponto que nos interessa
ressaltar aqui é este: uma das maiores revoltas entre os franceses é causada pela negligência da historiografia
alemã em reconhecer a originalidade e os trabalhos de Lavoisier e Pasteur. Ostwald, por exemplo, quando
escreve L’évolution d’une science – la chimie (1909), em duas das poucas vezes em que cita Lavoisier, numa
a teoria da combustão do francês é reduzida ao avesso da teoria flogística de Stahl e, noutra, Lavoisier é
acusado de ter plagiado a descoberta do oxigênio de Priestley. Estas teses depreciadoras do grande químico
francês levarão Duhem a publicar em 1916 seu livro La chimie est-elle une science française?, em que
procura restabelecer a glória de seu compatriota como o verdadeiro fundador da química moderna. Também
Pasteur é alvo de querela entre os cientistas. Teria sido ele o verdadeiro iniciador da microbiologia? Não é o
que pode ser encontrado nos livros pedagógicos alemães... Nestes, o verdadeiro descobridor do mundo dos
micróbios teria sido R. Koch, o qual não teria continuado, mas “corrigido” Pasteur. Não estranha, pois, a
presença marcante de Pasteur nas páginas de SA e as acusações de má-fé imputadas a Haeckel, quando este,
ao escrever um artigo de 29 páginas sobre geração espontânea, sequer cita o nome de Pasteur ou, ainda,
quando o alemão usa de artimanhas tais como a invenção de figuras embriológicas para dar sustento à sua
teoria (esse episódio é aludido em DUHEM, P.: SA/GS, pp. 39-40).
217
DUHEM, P.: TP, p. 330.
87
O fato de o bom senso ser uma categoria extra-lógica não lhe retira a racionalidade.
Em última instância, é o contrário que se dá: ao assemelhar o bom senso a uma espécie de
intuição característica do espírito de finura e oposta à pura dedução, Duhem está
implicitamente afirmando que a razão deixada a si mesma não produz escolha alguma. A
função da pura lógica ou da dedução é extrair conseqüências... de algo que está nas
premissas tomadas como ponto de partida – mas a lógica é impotente para indicar quais
são as premissas que merecem aceitação. Podemos entender agora o motivo pelo qual a
lógica impõe pouquíssimas restrições à escolha das hipóteses.
Ora, se “as razões do bom senso não se impõem com o mesmo implacável rigor das
prescrições da lógica”, podemos concluir a partir disso “a possibilidade de longas querelas
entre partidários de um antigo sistema e os partidários de uma doutrina nova.”
218
Mas o
bom senso pode operar também no nível intersubjetivo, ou seja, ao nível da “comunidade
científica.”
219
Aqui, o bom senso deve “florescer” quando se trata de rejeitar teorias (e não
apenas hipóteses). Nesta acepção, bom senso é sinônimo de julgamento maduro.
É o caso da disputa entre as doutrinas emissionista e ondulatória na óptica no século
XIX. Tendo em vista o abalo da teoria ondulatória de Fresnel, o emissionista Poisson
deduziu da teoria de seu adversário, que vinha conquistando numerosas confirmações,
conseqüências contrárias ao senso comum (o “ponto de Poisson”) para forçar a rejeição da
teoria rival. A experiência feita por Arago, como meio de testar as deduções de Poisson, no
entanto, acabaria por confirmar mais uma vez, e de forma triunfante, as conseqüências da
teoria de Fresnel, fazendo
[...] vencer as convicções as mais fortes ou as prevenções as mais obstinadas em
oposição à teoria das ondulações. E, de fato, muitos renderam-se, persuadidos pela
fecundidade das idéias de Fresnel que, a cada dia, faziam descobrir alguma lei
admirável ou algum fenômeno surpreendente.
220
Mas o gênio de Biot não se cansa, e ele invoca seguidamente hipóteses acessórias
para manter o sistema emissionista. Enquanto isso, Fresnel empenha-se incessantemente
em coletar experiências favoráveis à teoria ondulatória.
221
Arago, então, idealiza mais um
experimento para por à prova as teorias concorrentes, o qual é realizado por Foucault. Os
resultados são favoráveis à hipótese ondulatória, e após a sua comunicação, a tenacidade
218
DUHEM, P.: TP, pp. 330-1.
219
A expressão é conveniente, mas não é de Duhem.
220
DUHEM, P.: TO, p. 107.
221
Nesse debate em especial, Biot teria faltado ao bom senso (DUHEM, P.: TP, p. 331).
88
de Biot fora enfim suplantada. Demasiadamente apegado ao senso comum (o consenso
comum e as “prevenções” de então), Biot faltara com o bom senso quando da opção
insistente entre as duas alternativas teóricas.
222
Temos aqui um exemplo de como a obstinação desmedida em defender uma teoria
pode ser perniciosa para o progresso da ciência, ou, por outras palavras, de como o senso
comum (entendido como opinião geralmente admitida) pode conflitar com o bom senso.
223
Todavia, esse estado de indecisão não dura muito tempo. Chega um dia no qual o bom
senso declara-se tão claramente em favor de um dos dois partidos que o outro renuncia
à luta.
224
A saída encontrada para agilizar a decisão não poderia ser outra senão o cultivo do
bom senso. O estudo da história da ciência, o conhecimento de seus principais debates e a
imparcialidade quando do julgamento, evitando a intromissão de paixões e interesses
próprios, são os conselhos para uma decisão sadia. Valhamo-nos de outra citação:
Nada, pois, retardará a decisão que deve, em uma teoria física, determinar uma feliz
reforma, como a vaidade que torna o físico muito indulgente a seu próprio sistema e
mais severo ao sistema de outro. Nós somos assim conduzidos a esta conclusão, tão
claramente formulada por Claude Bernard: a sã crítica experimental de uma hipótese é
subordinada a certas condições morais; para apreciar exatamente o acordo de uma
teoria com os fatos, não basta ser bom geômetra e experimentador hábil, é preciso
ainda ser um juiz imparcial e leal.
225
Ironicamente, se Duhem abria a possibilidade de juízos experimentais parciais em
suas reflexões sobre a física experimental ao criticar a tese bernardiana de que os
resultados da experiência em física devem ser apreciados sem idéias preconcebidas, agora
ele fecha a seção intitulada “La théorie physique et la expérience”
226
com uma citação do
fisiólogo em favor da imparcialidade. Mas voltemo-nos para mais um aspecto importante
dos preconceitos da leitura lakatosiana.
O tom presente no artigo de Lakatos faz-nos pensar que Duhem tinha às mãos uma
tábua de critérios que devessem ser mecanicamente aplicados – sendo a simplicidade o
primeiro deles. Apesar de em alguns textos (sobretudo em seus primeiros ensaios) Duhem
222
DUHEM, P.: TP, p. 331.
223
Uma vez dada a vitória à teoria ondulatória, esta passa, por sua vez, a compor um “novo senso comum”,
recebendo, doravante, razões suas (DUHEM, P.: TO, p. 107).
224
DUHEM, P.: TP, p. 331.
225
DUHEM, P.: TP, p. 332.
226
DUHEM, P.: TP, Parte II, capítulo 6, seção 10.
89
estipular critérios determinados para forçar a decisão entre teoria concorrentes, em sua
obra de maturidade, já esclarecida pelos estudos históricos, não podemos dizer que a rígida
hierarquia continue a ser mantida. Que eu saiba, posteriormente não será fornecida
nenhuma lista algorítmica sistemática. Classificar o convencionalismo duhemiano de
revolucionário (ou mesmo de conservador) implica menosprezo pelo papel do bom senso,
o qual transcende adjetivos como “conservadorismo” ou “revolucionarismo”. Longe de a
simplicidade ser um critério primordial na escolha das hipóteses, ela é muito relativa.
Aliás, no malsucedido exemplo citado por Lakatos, ela nada mais é do que uma
possibilidade. O próprio Duhem reconhece em outro lugar a relatividade do critério de
economia intelectual quando afirma o seguinte sobre os ingleses:
[...] uma imaginação assaz ampla para perceber de um único golpe de vista um
conjunto complicado de coisas disparatadas, para não experimentar a necessidade de
que um tal conjunto seja posto em ordem, acompanha em geral uma razão muito fraca
que receia a abstração, a generalização e a dedução. Os espíritos aos quais são
associados estas duas disposições [a imaginação ampla e a razão fraca] acharão que o
labor lógico considerável, que coordena em um sistema único diversos fragmentos de
teoria, causa-lhes mais trabalho que a visão desses fragmentos desunidos; eles não
julgarão de modo algum que a passagem da incoerência à unidade seja uma operação
intelectual econômica.
227
Não se passa o mesmo com os franceses. Habituados a longos raciocínios e
deduções, mas de frágil memória, eles certamente preferirão uma teoria única e
logicamente coordenada. Coerência lógica, ausência de hipóteses explicativas e/ou
figurativas, extensão e precisão das teorias e a consistência com teorias já admitidas são
critérios muitas vezes dotados de maior relevo que a simplicidade. Não cabem dúvidas de
que Duhem, além de aceitar o viés normativo da tese da imparcialidade científica, suscita a
possibilidade de uma condenação moral àquele que tentar dissimular as causas de erro
frente às quais uma teoria foi contradita pela experiência, mas daí concluir pelo
revolucionarismo é algo que simplifica demasiadamente o seu pensamento.
Na Théorie physique pouco mais que isso é dito acerca do bom senso. Apenas na
segunda lição da Science allemande sobre as ciências experimentais podemos encontrar
uma análise mais detalhada de suas funções. Intimamente associado ao espírito de finura, o
bom senso reveste-se de uma propriedade fundamental: a aptidão para discernir o
verdadeiro do falso. Se no domínio da observação reina o senso comum, o domínio das
227
DUHEM, P.: TP, p. 150.
90
teorias é dividido pela dedução lógica e pelo bom senso. O bom senso não seria uma
capacidade natural inata, mas adquirida pelo cientista por meio do cultivo e da minuciosa
reflexão sobre as teorias, e agiria numa esfera de modo algum pautada pela obviedade.
Desde La théorie physique, Duhem insistia que “os físicos podem acelerar o julgamento e
aumentar a rapidez do progresso científico esforçando-se em tornar neles mesmos o bom
senso mais lúcido e mais vigilante.”
228
Pelo fato de não ser dado de uma vez por todas,
permanece em aberto a possibilidade de sua desigualdade nos diversos espíritos.
Assinalemos as principais funções do bom senso encontradas na segunda lição da Science
allemande:
(1) Estabelecer um vínculo de correspondência entre a teoria e a realidade: “A
ligação entre a física teórica e a física experimental é sentida, não inferida.”
229
A relação
entre a teoria e a experiência é composta de dois momentos ou “duas traduções em sentido
inverso”
230
. A primeira é a tradução das qualidades sensíveis em símbolos matemáticos;
após os cálculos matemáticos é feita uma nova tradução que indica, em linguagem
experimental e observável, as conseqüências teóricas. A fixação das regras de tradução e a
escolha das qualidades primeiras é uma questão de perspicácia.
(2) Auxiliar a própria dedução no interior da teoria a tirar com retidão as conclusões
das hipóteses inicialmente admitidas. Operando com noções delicadas e longas cadeias
dedutivas, o raciocínio corre o risco de se extraviar, fazendo com que as conseqüências a
serem testadas não decorram das premissas iniciais, o que tornaria o controle experimental
ilusório: “Esse raciocínio, entretanto, não poderá em geral ser conduzido more geométrico,
sob a forma de uma série de teoremas.”
231
Daí a afirmação de que o senso de justeza é uma
das formas de bom senso.
232
(3) Avaliar se a correspondência com a realidade confirma ou infirma a teoria: “[...] o
bom senso intervirá no momento de apreciar se as conseqüências da idéia pré-concebida
são contraditadas ou confirmadas pelo experimento. Com efeito, esta apreciação está longe
de ser inteiramente simples; a confirmação ou contradição não é sempre formal e brutal
como um simples ‘sim’ ou ‘não’.”
233
Duhem chama com freqüência a atenção para a
insuficiência das leis do raciocínio dedutivo quando se trata de comparar os resultados de
228
DUHEM, P.: TP, p. 331.
229
DUHEM, P.: SA/GS, p. 131/101.
230
DUHEM, P.: TP, p. 199.
231
DUHEM, P.: SA/GS, p. 27/23.
232
DUHEM, P.: SA/GS, p. 28/23.
233
DUHEM, P.: SA/GS, p. 28/23.
91
uma teoria com a experiência. Existe sempre um certo grau de arbitrariedade na
aproximação exigida que torna a operação de medida delicada.
234
Apenas após ter pesado
maduramente os prós e os contras é que o bom senso poderá declarar a sua decisão.
(4) Caso a decisão seja pelo desmentido da teoria pela experiência, é o bom senso a
qualidade que permite escolher apropriadamente a hipótese a ser alterada: “Que tarefa
delicada, na qual nenhuma regra precisa guia o espírito, e que é essencialmente uma
questão de penetração e engenhosidade.”
235
Nesta função, bom senso é exigido em sua
perfeição – é preciso que ele transcenda a si mesmo e torne-se o que Pascal designava
espírito de finesse.
236
(5) É do bom senso, como vimos atrás, que brota a decisão conscienciosamente
refletida de saber se uma teoria, após sofrer sucessivos reparos, deve ou não ser
abandonada.
237
1.4.2. O outro bom senso (e o outro senso comum)
Pondo em pauta a complexidade inerente da relação teoria/experiência, todas as funções
outorgadas ao bom senso nos parágrafos anteriores concordam sem problemas entre si.
Todas elas parecem pertencer a um mesmo gênero e, no interior deste, mantêm algum tipo
de ligação entre suas funções, que poderia ser encontrada na mediação da teoria com a
realidade. Apesar disso, encontraremos na Science allemande um caso à parte. Logo na
primeira lição que compõe a Science allemande, “Les sciences de raisonnement”, bom
senso é definido como a “percepção intuitiva da obviedade dos axiomas.
238
E quê? Não
acabamos de ver que as decisões mais justas tomadas com base no bom senso são frutos de
234
DUHEM, P.: ARTF, p. 31. Essa afirmação perpassa toda a obra duhemiana, de 1892 até 1915 podemos
constatá-la em seus textos.
235
DUHEM, P.: SA/GS, p. 29/24.
236
DUHEM, P.: SA/GS, p. 29/24-5.
237
É possível distinguir mais uma função do bom senso, ausente em SA, a qual seria responsável pela
distinção, no interior da teoria, da parte que é signo de um fato da experiência objetiva, por um lado, daquela
que provém de convenções arbitrárias e tem apenas valor representativo, por outro. É essa a qualidade
exigida do cosmólogo que pretendesse usar a seu favor as teorias físicas (DUHEM, P.: TP, “Physique de
croyant”, seção VI). Citemos uma passagem, na qual Duhem exige que o metafísico estude as teorias da
física se quiser fazer dela uso apologético legítimo: “Ora, o espírito de finura, aqui como em toda parte,
aguça-se por uma longa prática; é por um estudo profundo e minucioso da teoria que se obterá esta espécie
de perspicácia [flair], graças à qual, em uma experiência da física, se discernirá o que é símbolo teórico,
graças à qual se poderá separar desta forma, sem valor filosófico, o verdadeiro ensinamento da experiência,
aquele que o filósofo deve ter em conta” (DUHEM, P.: TP, p. 444. Itálicos meus).
238
DUHEM, P.: SA/GS, p. 6/8.
92
um amadurecimento propiciado pela reflexão e prática científicas e que, em conseqüência,
não são isentas de discussão? Naturalmente, mantemos uma postura de suspeita em relação
a essa citação: como pode Duhem falar emobviedade dos axiomas” se, até aqui, vimos
que o bom senso atua justamente onde a obviedade é excluída e a perspicácia é requerida?
Que quer dizer ele com “axiomas”? Não seria melhor, em vez disso, a substituição sua por
“postulados”? A confusão, no entanto, pode ser engendrada simplesmente por nossas
expectativas: não haverá problema algum se atentarmos para o fato de que o autor refere-se
apenas às ciências do raciocínio quando confere ao bom senso semelhante estatuto. É ele
que permite intuir a verdade dos axiomasnas ciências do raciocínio. Já na segunda
lição, “Les sciences expérimentales”, bom senso é definido, de modo bastante sintético,
como a capacidade, adquirida com o cultivo, de “intuir mediatamente” os princípios – nas
ciências experimentais
239
, em conformidade com o que vimos ao final da seção anterior.
Como não bastasse, o que causa espécie é que bom senso passa a ser sinônimo de
senso comum!:
Para marcar o caráter imediato que a evidência dos axiomas apresenta, compara-se de
bom grado sua evidência a uma percepção; nós vemos, diz-se, que tal proposição é
verdadeira; sua certeza é palpável; a faculdade pela qual nós conhecemos os axiomas
recebe o nome de sentido [sens]; é o senso comum, o bom senso.
240
Senso comum, bom senso e conhecimento comum
241
são identificados agora ao
conhecimento intuitivo, oposto ao conhecimento discursivo, e representam a faculdade
através da qual o conhecimento dos axiomas torna-se pronta e imediatamente acessível a
todos os homens sãos de espírito antes mesmo de estudar a ciência das quais eles são os
fundamentos.
242
Eles são, por assim dizer, o sentimento do verdadeiro, inclusive do belo e
do bem.
243
Trata-se de uma retomada da noção do “coração” pascaliano ou, de certo modo,
como observou Picard, do bom senso cartesiano do Discurso do método.
244
São essas
certezas intuitivas os fundamentos de todo discurso e de toda dedução.
239
Evidentemente, os princípios aos quais Duhem faz referência não têm sua verdade garantida, mesmo que
mediatamente. São princípios, ou melhor, hipóteses, dos quais somente a experiência poderá comprovar a
adequação empírica.
240
DUHEM, P.: SA/GS, p. 6/7.
241
Duhem identifica connaissance commune a connaissance intuitive em várias oportunidades na primeira
lição (DUHEM, P.: SA/GS, p. 5/6, p. 12/12, p. 15/14, p. 17/16).
242
DUHEM, P.: SA/GS, p. 5/6.
243
DUHEM, P.: SA/GS, p. 6/7. Veremos mais à frente que essa caracterização será fundamental para
provarmos nossa tese.
244
PICARD, É.: 1921, p. cxxxix.
93
Mas até que ponto Duhem mantém a identificação entre bom senso e senso comum?
Talvez Maiocchi se surpreendesse caso notasse que, tal como ocorreu anteriormente no
tocante ao bom senso como faculdade da percepção intuitiva da obviedade dos axiomas,
apenas na primeira lição nosso autor identifica bom senso a senso comum, isto é, apenas
quando se trata de axiomas de extrema simplicidade:
Em álgebra, em geometria, e também na metafísica quando ela é solidamente
construída, os axiomas são de uma extrema simplicidade. Uma vez fixada nossa
atenção por um momento sobre algum dentre eles, imediatamente o seu sentido é
perfeitamente evidente e a certeza, plenamente assegurada.
245
A identificação vale para os axiomas da álgebra, da geometria, da metafísica e, como
veremos mais à frente, da moral, mas, como a percepção dos axiomas é anterior a toda
ciência, vale também para o “homem da rua”. Por conseguinte, o homem comum pode
possuir bom senso em seus julgamentos, desde que entendamos por bom senso – este bom
senso (não científico e idêntico a senso comum). O físico, por sua vez, não pode ignorar:
(a) este senso comum (idêntico a bom senso), a risco de “puxar o tapete” do que há de mais
seguro e natural ao conhecimento, (b) aquele senso comum (das observações ordinárias),
sem o qual todo parâmetro comparativo para a sua teoria desmorona, e deve cultivar (c)
aquele bom senso (comparável à perspicácia) para fazer progredir a ciência racional.
Se nossa afirmação for correta, então não podemos encontrar nas lições restantes que
compõem a Science allemande nenhuma outra identificação entre bom senso e senso
comum, a menos que elas voltem a tratar das ciências do raciocínio.
246
No entanto, elas
existem, e podem ser encontradas na segunda e terceira lições.
247
Das duas ocorrências,
notemos que a última não representa maiores problemas, uma vez que Duhem começa,
poucos parágrafos antes, a usar um exemplo retirado da geometria
248
na intenção de
245
DUHEM, P.: SA/GS, p. 25/21.
246
As terceira e quarta lições têm como título e tema, respectivamente, “Les sciences historiques” e “Ordre et
clarté – Conclusion”.
247
DUHEM, P.: SA/GS, p. 47/39, p. 71/55. Na página 35/29, quando se trata das ciências experimentais, a
noção de senso comum aparece como o juiz da verdade dos axiomas da álgebra e da geometria, embora não
como identificado a bom senso. Duhem está apenas transpondo um exemplo da primeira lição para a
segunda.
248
Duhem chega mesmo a usar, como na primeira lição, a sanidade como condição para a percepção dos
axiomas: “todo homem são [sain] de espírito” (SA/GS, p. 5/6); “para toda razão sadiamente [sainement]
constituída” (SA/GS, p. 71/55). Anos antes, na TP, Duhem já defendia que o desejo natural de coerência
lógica respondia a uma “necessidade de um espírito sadiamente constituído” (DUHEM, P.: TP, p. 147), da
qual o autor derivava a legitimidade do meta-princípio. A sanidade, como vemos, é um predicado que
94
mostrar que o intelecto alemão, excessivamente geométrico e desprovido de bom senso (=
senso comum), acaba por confundir a verdade com o rigor, diluindo os axiomas da
geometria em simples postulados dos quais a certeza imediata pouco importaria, desde que
o sistema seja logicamente ordenado. A ocorrência restante é mais instrutiva. Nela, o alvo
de crítica é Haeckel. Como se porta o darwinista Haeckel diante das observações
contundentes do francês Henri Fabre contra a seleção natural?
249
Rejeita a teoria e propõe-
se a construir outra mais abrangente? Nada. No domínio das ciências naturais, afirma
Haeckel, é-se “rigorosamente obrigado” a aceitar e conservar uma teoria, mesmo que
debilmente fundamentada, enquanto outra melhor não se apresentar. Esse imperativo deve
impor-se a todo zoólogo ou botânico, pois não depende deles a opção entre a aceitação ou
rejeição. A recusa da manutenção de ao menos uma teoria representa a recusa da
explicação científica dos fenômenos como um todo. É da complacência do alemão que se
origina a seguinte crítica duhemiana:
O único título que uma hipótese possa ter à nossa confiança era, pensávamos, o acordo
de suas conseqüências com todos os fatos bem observados. De modo algum! Por mais
“debilmente fundada” que ela seja, ela nos “obriga rigorosamente” a recebê-la, desde
que nós não estejamos em posse de uma hipótese mais satisfatória. Isso, você dirá, não
está de acordo com o senso comum. Não lhes tinha dito que, na razão de muitos
alemães, o bom senso produz freqüentemente vícios.
250
O descaso de Haeckel para com a evidência experimental oculta algo ainda mais
pernicioso ao progresso da ciência: na máxima do alemão o meta-princípio de unidade
lógica é menosprezado. Notemos que Duhem refere-se à concordância com “todos os
fatos”. Trata-se de uma retomada do conceito de senso comum tal como encontrado ao
final da primeira parte de La théorie physique. Desprovido de senso comum, não causa
assombro que os princípios defendidos por Haeckel nada contenham daquela natureza que
guia a razão (ao menos a razão em perfeito estado de sanidade). A identificação entre bom
senso e senso comum nesta passagem sugere algo mais: assim como nosso autor usa ambos
os conceitos como sinônimos quando se trata da apreensão da evidência dos axiomas da
geometria, o mesmo se dá no tocante ao meta-princípio de unidade lógica. Duhem remete
fornece indícios da ligação entre o meta-princípio orientador da pesquisa científica e as noções indefiníveis e
evidentes fornecidas pelo senso comum.
249
As observações de Fabre que “contradisseram formalmente” a teoria da seleção natural talvez tenham
recebido importância demasiada de Duhem, o qual chega mesmo a julgar que “da hipótese darwiniana, esta
obra [de Fabre] não deixou subsistir quase nada senão escombros” (DUHEM, P.: SA/GS, p. 46/38).
250
DUHEM, P.: SA/GS, p. 47/39. Itálicos meus.
95
ambos ao sentimento, à natureza e à intuição. Por conseguinte, o senso comum (= bom
senso) representaria um fundo de noções e princípios pré-científicos necessários à boa
condução da ciência (e, como notaremos mais à frente, da moral e da metafísica). Como
essa é a constatação que temos realizado até agora dos textos duhemianos, podemos
concluir a respeito disso que o deslizamento terminológico tem limites!, o qual não implica
contradição alguma.
251
Nosso objetivo passa a ser, a partir de agora, o de dar mostras de como o senso
comum (= bom senso) pode interferir ativamente na rejeição de teorias físicas sem,
contudo, fornecer princípios ou hipóteses genuinamente físicos. Para dar conta desta tarefa,
tomemos dois exemplos; um será tirado da primeira lição da Science allemande, o outro, já
famoso, do ensaio “Quelques réflexions sur la science allemande”, publicado no mesmo
ano na Revue des Deux Mondes, no qual Duhem esforça-se por mostrar os absurdos sobre
os quais repousa a teoria da relatividade. Ao primeiro, portanto.
A primeira crítica sobre a qual nos debruçaremos tem por alvo o filósofo Kant, e seu
objetivo é fazer ver que o caráter excessivamente geométrico do espírito alemão leva-os a
semear o ceticismo em qualquer ciência que caia em suas mãos. Excessivamente dotado
em matéria de raciocínio, os alemães intentam elaborar todas as demais ciências como se
fossem unicamente assunto de rigor lógico, desdenhando as certezas imediatas que se
apresentam ao espírito. Desse modo, seguindo Pascal, Duhem questiona a confiança
excessiva no intelecto que a tudo almeja definir e demonstrar. De acordo com o filósofo
francês, a visão da impossibilidade de a razão pura constituir conhecimento unicamente
por si, é, sem dúvida, um mérito de Kant. Perguntemos então com Duhem: o que é a
Crítica da razão pura?, e a resposta será a seguinte: “É o comentário mais longo, o mais
obscuro, o mais confuso e o mais pedante a estas palavras de Pascal ‘Temos uma
incapacidade de provar, que nenhum dogmatismo pode vencer.’”
252
O que Kant fez foi
mostrar, com as antinomias da razão, que espíritos exclusivamente dedutivos, ao
251
A esse respeito, a tradução inglesa de SA, German Science, é infeliz em alguns momentos. A tradução de
sens commun é sempre common sense, o que não gera problemas interpretativos; o mesmo não pode ser dito
de bon sens, ora traduzido por good sense, ora por common sense (DUHEM, P.: SA/GS, p. 33-4/28, p. 43/35,
p. 60/47, p. 71/55, p. 88/67). O tradutor parece, na maioria dos casos, ter adotado a seguinte tática quando da
tradução: em aparecendo bon sens isoladamente, sem qualquer referência próxima a sens commun, sua
tradução é common sense, do contrário, permanece como good sense. Gostaria de agradecer ao Prof. Dr.
Hugh Lacey pela advertência de que em língua inglesa, bon sens é freqüentemente traduzido por common
sense, o que contribuiu para aumentar minha atenção durante a leitura de German science (naquele momento
eu só contava com a tradução em inglês de SA).
252
DUHEM, P.: SA/GS, p. 17-8/17.
96
acreditarem que a razão poderia estabelecer os primeiros princípios da metafísica e da
moral para além de toda dúvida, nada concluíram de legítimo senão, como mostra Kant,
que a dúvida é a única conclusão verdadeiramente legítima. De novo com Duhem:
“Seguramente, o ceticismo absoluto não é a última palavra do filósofo de Königsberg. Da
fórmula de Pascal ele quer igualmente justificar a segunda parte, mostrar que ‘temos uma
idéia da verdade, que nenhum pirronismo pode suplantar’. Este é o objeto da Crítica da
razão prática.”
253
Mas esta prova, insiste o francês, é insuficiente para garantir a totalidade
do nosso conhecimento, pois que restringe o seu escopo à medida necessária para servir de
base à moral, vale dizer, à afirmação para nós do caráter imperativo da obrigação, donde a
crítica que se segue: “A certeza que ele [o imperativo] goza é de uma outra ordem, e, por
assim dizer, de qualidade inferior. Ele é capaz de dirigir nossos atos, mas não de satisfazer
nossa razão. Ela é apenas uma certeza prática.”
254
Logo, a existência de Deus encontra-se
comprometida diante da razão pura e mal estabelecida diante da razão prática e,
conseqüentemente, até mesmo vários dos princípios morais perderiam seu fundamento
certo.
Procurando evitar tanto o ceticismo quanto o dogmatismo, Kant pecou não na
intenção, autêntica, aliás, mas no espírito: generalizou desmedidamente a crítica e a tudo
quis provar. Não conseguindo provar a existência de Deus, reduziu-a a um postulado. O
resultado só poderia ser este: uma certeza inferior, prova cabal da insuficiência de seu
projeto. Extremamente afeito ao modelo geométrico, Kant teria sido tão geômetra que não
compreendera o valor intrínseco das intuições do senso comum. Apenas estas seriam a
fonte de certeza suficiente para arrebatar todos os argumentos céticos – não com
argumentos, decerto, mas com o sentimento. Podemos entender melhor qual a posição de
Duhem acerca das noções de liberdade e Deus citando a seguinte passagem, extraída de
uma carta endereçada a um amigo de infância:
Creditei meu dever como cientista, bem como cristão, em fazer-me sem cessar o
apóstolo do senso comum, o qual é a única base de todo conhecimento científico,
filosófico e religioso. Meu livro sobre a teoria física não tinha outro objeto senão
mostrar a verdade científica desta tese.
255
E ainda:
253
DUHEM, P.: SA/GS, p. 18/17.
254
DUHEM, P.: SA/GS, p. 18/17.
255
Citado em PICARD, É.: 1921, p. cxxxviii. Itálicos meus.
97
[...] percebi que nós poderíamos dizer o mesmo sobre todas as ciências, incluindo
aquelas consideradas como as mais rigorosas – a física, a mecânica e mesmo a
geometria. As fundações de cada um desses edifícios são formadas de noções que se
tem a pretensão de compreender, apesar de não podermos defini-las, de princípios que
se tem por assegurados, apesar de não termos nenhuma demonstração deles. Essas
noções e esses princípios são formados pelo bom senso. Sem esta base de bom senso,
que de modo algum é científica, nenhuma ciência poderia existir como tal; toda a
solidez da ciência vem desta base. [*] O que há de surpreendente, então, se ocorre o
mesmo com as noções primárias e com os primeiros princípios da filosofia e da fé? Se
eu não posso definir essas noções que me parecem, entretanto, claras: corpo, alma,
Deus, morte, vida, bem, mal, liberdade, dever...? Se eu não posso demonstrar esses
julgamentos, que me parecem, entretanto, assegurados: o corpo não pode pensar; o
mundo não tem em si mesmo uma razão de sua existência; devo fazer o bem e evitar o
mal, mereço eu ser recompensado no primeiro caso e punido no segundo? Nossas
ciências mais certas não repousam sobre fundamentos de outra natureza que não
aqueles.
256
O trecho citado é de vital importância para compreender a estruturação geral da obra
duhemiana, de sorte que várias considerações têm de ser feitas. (1) Comprovar que o
objetivo da Théorie physique seja o de provar a verdade científica de que todo
conhecimento advém do senso comum pode escandalizar à primeira vista. Já que
divisamos dois sentidos para o senso comum, a pergunta sobre a qual deles Duhem refere-
se é perfeitamente sensata. Minha afirmação é de que se trata daquele sentido próximo ao
“coração” pascaliano.
257
A própria carta tende a fazer prevalecer que o segundo sentido,
idêntico a bom senso, seja o caso (como o é em La science allemande). Evidências para
isso não faltam.
256
Tive acesso parcial à carta mencionada, e não disponho de maiores informações sobre ela. O destinatário é
um amigo de infância não definido, e a data de envio, ao que tudo leva a crer, é posterior a 1906, ano de
publicação da TP. Cotejei, para a tradução, duas obras: PICARD, É.: 1921, p. cxxxvii-iii e JORDAN, É.:
1917, pp. 31-2. Fui obrigado à comparação pois ambas as reproduções estão mutiladas. O sinal “[*]” indica o
fim da parte transcrita por Picard e o início do trecho traduzido a partir de Jordan.
257
Claro que se pode pensar numa defesa do senso comum como observação vulgar, de onde as leis do senso
comum seriam extraídas. Há motivos para essa interpretação. O principal deles seria a tentativa duhemiana
em manter a tese da impregnação teórica longe do senso comum, daí que a verdade de suas leis permaneceria
garantida, desde que pouco detalhadas (em termos mais atuais, apesar da tese da impregnação teórica da
experimentação, a distinção entre linguagem observacional e linguagem teórica permaneceria válida).
Contudo, essa interpretação esbarra em algumas dificuldades. Apenas em notas de rodapé (ver seção 1.1)
Duhem defende-se contra os assaltos do nominalismo extremado de Le Roy, o qual imputava até mesmo ao
senso comum um papel deformador da realidade. Notamos também que as passagens genuinamente
inovadoras tendem a defender o senso comum como um fundo natural de noções e princípios indubitáveis
(ver início da seção 1.3), ao passo que em uma delas Duhem insiste que o senso comum (no sentido de
conhecimento vulgar) não pode ser a origem direta dos princípios da física (ver seção 1.3.1).
98
Falando das novas teorias surgidas no período intermediário que corresponde à
publicação das duas primeiras edições da Théorie physique, diz Duhem diz no prefácio à
segunda edição desta obra (1914):
[...] mas esse curso desenfreado e desordenado na perseguição da idéia nova
transtornou todo o domínio das teorias físicas; e fez delas um verdadeiro caos, no qual
a Lógica não encontra mais a sua via e de onde o bom senso foi espantado
[épouvanté].
Não nos pareceu inútil lembrar as regras da Lógica e reivindicar os direitos do
bom senso.
258
A grafia de “Lógica” indica, penso eu, que não se trata da pura análise lógica, mas
daquela lógica superior a respeito da qual falamos na seção 1.3.2, vale dizer, a lógica
sustentada pela natureza (não nos esqueçamos de que a regra puramente lógica para a
escolha das hipóteses é apenas a que exclui as hipóteses auto-contraditórias), que fixa o
objetivo da teoria física como sendo a classificação natural. Se La théorie physique é um
livro contra o convencionalismo, então tem de se tratar do senso comum como natureza e
sentimento. Além disso, nas duas passagens citadas da carta, Duhem identifica senso
comum a bom senso e, ao mencionar que a Théorie physique tinha como objetivo provar a
verdade científica da relevância do senso comum, bem podemos concluir que também se
tratava da relevância do bom senso (como traz o prefácio). Por último, é preciso saber a
quais teorias nosso autor endereça suas críticas para, a partir daí, induzir o significado de
bom senso. Não é necessário pensar muito para ver que a referência é às teorias construídas
pelos alemães. Assim, compreendendo a crítica ao espírito alemão, sobretudo à teoria da
relatividade (como veremos daqui a algumas páginas), compreenderemos se de fato é o
bom senso como sinônimo de senso comum.
(2) No segundo trecho da carta citado Duhem não afirma que a natureza das idéias
seja plenamente conhecida, mas apenas que temos delas um conhecimento não discursivo
de tal modo que sua segurança não possa ser colocada em dúvida pela razão discursiva.
Lembremos que o mesmo acontecia quando das noções de extensão, tempo, movimento,
lei física etc., presentes em “Física e metafísica.”
259
O caráter indefinível e indemonstrável
de tais noções e princípios não acarreta qualquer incerteza. Mais de uma vez em La science
allemande, Duhem cita a conhecida frase de Pascal: “Os princípios se sentem, as
258
DUHEM, P.: TP, p. xiii. Itálicos meus.
259
Ver seção 1.3.2.
99
proposições se concluem; e tudo com certeza, embora por vias diferentes”.
260
Na ordem do
sentimento, bem como naquela da razão, uma não deve contrapor-se à outra. Não se deve
exigir provas ao coração de seus primeiros princípios e não se deve exigir sentimento das
demonstrações da razão para aceitá-las.
261
Como Pascal, nosso autor parece concordar que
a qualidade que torna tais idéias indefiníveis é mesma a que lhes confere maior evidência,
“de sorte que a falta de definição é mais uma perfeição que um defeito”
262
, pois se a sua
certeza não advém do raciocínio discursivo, isso significa que ela é independente de outras
premissas sobre as quais a dedução operaria para tirar suas conclusões. Por isso nosso
autor arremata:
Falando mais precisamente, deve-se dizer que existe uma única fonte de onde resulta
toda certeza, e é ela que fornece certeza aos princípios. Pois a dedução jamais cria
certeza nova; tudo o que ela pode fazer, quando seguiu sem nenhuma falha, é
transportar às conseqüências a certeza que as premissas já possuíam, sem perdê-la.
263
Enquanto Pascal fazia da geometria o paradigma da arte de persuadir, Duhem faz das
reflexões pascalianas sobre a geometria o paradigma da defesa nacional. A ciência dos
franceses, mais intuitiva que a dos alemães, aproxima-se mais da verdade por respeitar os
ditames do coração.
(3) Como Mentré já havia apontado, na carta acima citada bom senso e senso comum
são sinônimos (o que vem a atestar nossa interpretação). Todavia, também Mentré parece
não ter dado atenção ao tipo de identificação em questão. O colega de Duhem menciona
que, apesar da identificação semântica, isso não é sempre o que ocorre. De fato, vimos que
na Théorie physique as verdades do senso comum podem ser acrescidas e que seus
julgamentos comportam por vezes falsas evidências, e, por outro lado, o bom senso, a
faculdade de distinguir o verdadeiro do falso nas ciências experimentais, apesar de
desigual nos homens, nada tem de grosseiro das constatações imediatas, mas é algo,
digamos, esculpido continuamente. Como então pode Mentré afirmar que “Ao contrário
[do senso comum], o bom senso ou faculdade de apoderar-se do real, posto que
260
PASCAL, B.: 1979, frag. 282, p. 108. Citado em DUHEM, P.: SA/GS, p. 6/8, p. 70-1/55; QRSA, p. 105.
261
PASCAL, B.: 1979, frag. 282, p. 108.
262
PASCAL, B.: 2000, p. 24. A semelhança entre Duhem e Pascal nesse aspecto é digna de nota. Onde
Duhem fala em geometria, física e mecânica, Pascal fala em aritmética, geometria e mecânica, cujas noções
correlatas e indefiníveis seriam, respectivamente, o número, o espaço e o movimento. Uma diferença que
pode ser levantada é que as noções e proposições indefiníveis listadas por Duhem ultrapassam o estudo físico
do mundo para atingir a moral, a metafísica e a religião.
263
DUHEM, P.: SA/GS, p. 15/14-5.
100
desigualmente repartido, é imutável em cada um de nós”?
264
Em nenhuma passagem da
Théorie physique ou de La science allemande Duhem afirma a imutabilidade do bom
senso. O único bom senso presente explicitamente na Théorie physique é o bom senso dos
especialistas e, se assim o for, de nenhuma forma seria imutável. Mesmo em La science
allemande, onde encontramos as duas noções de bom senso, a nenhuma delas cabe a
imutabilidade como predicado.
(4) Importa observar que o segundo trecho da carta resolve um problema interno na
obra duhemiana. Citamos uma longa passagem da Théorie physique, ao final da seção 1.2,
na qual Duhem dava alguns exemplos de proposições metafísicas. Dentre elas duas se
destacavam: “a alma é imortal” e o “homem é livre”. Uma objeção possível de ser feita
naquele momento seria a seguinte: sabemos que para Duhem certos postulados da teoria
física, como o princípio de conservação de energia, não possuem sentido físico algum
(embora essa constatação não retire a legitimidade de seu uso nas teorias físicas), donde
não poderem ser verificados diretamente (não existe um “sistema isolado” na natureza)
265
.
Como ele pode então argumentar que as proposições metafísicas contendo termos tais
quais “alma”, “livre”, “imortal”, poderiam ser confrontadas direta e isoladamente com as
leis experimentais? Talvez a objeção mais comum feita à metafísica e à religião diga
respeito à carência de sentido de suas proposições, as quais conteriam invariavelmente
termos não derivados da experiência fenomênica. A carta ajuda-nos a esclarecer a
concepção da metafísica duhemiana. De uma só vez, nosso autor evita a concessão de
espaço à certeza inferior kantiana, no tocante às existências de Deus e da liberdade, e
responde aos partidários do positivismo anti-metafísico, argumentando que o sentido
daqueles termos é formado pelo bom senso, o qual, ao que tudo indica, não é redutível ao
sentido empírico.
Passemos então ao segundo exemplo crítico. Consoante Duhem, os defensores da
“nova física” (relativística) não estavam satisfeitos em combater teorias tradicionais
admitidas; combatiam o próprio senso comum.
266
Instado pelos resultados teóricos da
“física dos elétrons”, Michelson realizou seu famoso experimento com grande destreza.
Desde que bem interpretado, afirma o francês, as conclusões que se podem tirar dele é que
nenhuma teoria da óptica proposta até então seria irreprochável e que, no mínimo, as
264
A citação de Mentré encontra-se em PAUL, H. W.: 1979, p. 158, n. 51. Paul parece assumir sem
contestação a interpretação de Mentré.
265
DUHEM, P.: EM, p. 227.
266
DUHEM, P.: QRSA/GS, p. 134/104.
101
teorias vigentes teriam de sofrer alterações.
267
Que fazem os alemães diante da contradição
experimental? Modificam a teoria com a finesse necessária? Sem mais, eles encontram um
meio de preservar o acordo da teoria com a realidade nem que seja preciso arruinar as
noções de espaço e tempo fornecidas pelo senso comum. Não se pense que neste caso
senso comum seja entendido como opinião vulgar, mesmo em suas certezas experimentais.
É à intuição das noções primitivas e imediatamente evidentes às quais o autor refere-se:
As noções de espaço e tempo aparecem a todos os homens como independentes uma
da outra. A nova física associa-as por um vínculo indissolúvel. Nossa razão não
estabelece qualquer conexão necessária entre a extensão da estrada atravessada por um
corpo em movimento e o tempo que sua travessia dura. Contudo, por mais longa que a
estrada possa ser, nós podemos imaginar que ela poderia ser atravessada em um tempo
tão breve quanto nós desejarmos. Contudo, por maior que a velocidade possa ser, nós
podemos sempre conceber uma velocidade maior.
268
A condenação duhemiana da teoria da relatividade tem suas bases lançadas nestas
linhas. Assim como as noções de espaço e tempo são comuns a todos os homens, também
as concepções imaginárias podem ser elaboradas por eles. Não é uma experiência
particular que condena a Relatividade, mas uma experiência íntima; um sentimento. É
claro, afirma Duhem, que essa “velocidade maior” pode não ser realizável atualmente, que
existe um limite prático imposto pela engenharia e pelo estado de nossos conhecimentos,
mas isso não implica nenhum absurdo, não fere as regras da lógica. Trata-se apenas de uma
impossibilidade prática. Não é o caso da teoria da relatividade. Com esta, estamos a falar
numa impossibilidade lógica claramente em contradição com o senso comum: “Para um
defensor do princípio da relatividade, falar de uma velocidade maior que a velocidade da
luz é pronunciar palavras desprovidas de sentido.”
269
Com a Relatividade, a velocidade
deixa de ser um infinito potencial, à qual operações intermináveis poderiam fazer o seu
valor exceder um valor dado. O aspecto intuitivo das noções do senso comum é obliterado
pelo espírito excessivamente geométrico dos alemães. Desejoso de rigor absoluto,
procurando definir matematicamente todas as noções primitivas, os alemães tornam-se
incapazes de perceber a obviedade e a clareza de certas idéias. “Espaço, tempo e
267
DUHEM, P.: QRSA/GS, p. 134/104.
268
DUHEM, P.: QRSA/GS, p. 135/105. A influência pascaliana desse argumento é marcante. Duhem não
menciona Pascal a esse propósito, como não o menciona em vários outros, mas podemos ler em O espírito da
geometria as seguintes palavras: “[...] por mais rápido que seja um movimento, poderemos sempre conceber
outro que o seja ainda mais; e, desta maneira, sempre até o infinito, sem nunca chegar a um que seja de tal
modo rápido que não possa haver outro ainda mais rápido” (PASCAL, B.: 2000, p. 25).
269
DUHEM, P.: QRSA/GS, p. 135/105.
102
movimento” são idéias simples e irredutíveis, incapazes de definição algébrica, é bem
verdade, mas sobre as quais todo o discurso será erigido, numa palavra; são idéias
fundamentais a respeito das quais não pode cair a dúvida. O que a intuição nos revela é que
“uma das primeiras verdades, anteriores a toda geometria, que nós podemos formular
acerca do espaço, é que ele tem três dimensões.”
270
Mas para julgar a verdade desse
axioma é necessário possuir uma capacidade intuitiva que os alemães em geral não
possuem. Nosso autor arroga a autoridade de Pascal:
Conhecemos a verdade não só pela razão mas também pelo coração; é desta última
maneira que conhecemos os princípios, e é em vão que o raciocínio, que deles não
participa, tenta combatê-los. [...] Pois o conhecimento dos princípios, como o da
existência de espaço, tempo, movimento, números, é tão firme como nenhum dos que
proporcionam os nossos raciocínios. E sobre esses conhecimentos do coração e do
instinto é que a razão deve apoiar-se e basear todo o seu discurso.
271
Os postulados da nova física evidenciariam não apenas um desdém pelo senso
comum, mas um desrespeito histórico por tudo o que a observação paciente e os
experimentos realizados foram capazes de construir durante séculos.
272
Os alemães
fabricam o seu próprio espaço, tempo e movimento submetendo-os a equações cuja
arbitrariedade é flagrante.
273
Os fundamentos básicos da física passam então por uma
reconstrução completa. As únicas certezas que os alemães aceitam sem demonstração são
as dos axiomas da álgebra,
274
do qual ser melhor designar o seu espírito não como
geométrico, mas como espírito algébrico.
275
Sequer os axiomas da geometria são aceitos
como verdadeiros.
Tenha-se em mente, por exemplo, o surgimento das geometrias não
euclidianas:
A doutrina de Riemann é uma álgebra rigorosa, pois todos os teoremas que ela
formula são completa e exatamente deduzidos dos postulados que ela enuncia. Por
270
DUHEM, P.: QRSA/SA, p. 114-5/88-9.
271
PASCAL, B.: 1979, frag. 282, pp. 107-8. Citado separadamente em DUHEM, P.: SA/GS, p. 6/8, p. 15/15,
mas também pp. 70-1/55, p. 105/81. As constantes citações duhemianas de Pascal, sobretudo esta que
acabamos de expor, atestam com boa força a dificuldade da interpretação de Jaki, para quem a influência
pascaliana na obra duhemiana seria reduzida. De acordo com o intérprete húngaro; “[...] Duhem nunca foi um
intuicionista a ponto de repetir a afirmação de Pascal que ‘todo o nosso raciocínio reduz-se a ceder ao
sentimento’” (JAKI, S.: [1984] 1987, p. 323. A citação de Pascal acha-se em PASCAL, B.: 1979, frag. 274,
p. 107). Em todo caso, esse é um assunto que demanda reflexões ulteriores.
272
DUHEM, P.: QRSA/GS, p. 136/106.
273
DUHEM, P.: QRSA/GS, p. 138/107.
274
DUHEM, P.: QRSA/GS, p. 138/107.
275
DUHEM, P.: QRSA/GS, p. 109/84.
103
isso ela satisfaz o espírito geométrico. Ela não é uma geometria verdadeira, visto que,
ao pôr seus postulados, ela não se preocupou com que seus corolários concordassem
em cada ponto com os julgamentos extraídos da experiência que compõe nosso
conhecimento intuitivo do espaço. Desse modo ela escandaliza o senso comum.
276
Nas ciências do raciocínio, para que sejam atingidas conclusões verdadeiras é
preciso que a dedução parta de verdadeiros axiomas. É a verdade da geometria que
interessa a Duhem, e, para tanto, a mútua independência dos axiomas e o impecável rigor
dedutivo são condições necessárias, mas insuficientes; a concordância dos axiomas e dos
corolários com os ensinamentos do senso comum é um requerimento imprescindível. A
artificialidade da geometria riemanniana subtrai-lhe toda parcela de verdade, reduzindo-a a
um “exercício mental”.
277
O gosto germânico pelos jogos matemáticos determina também
o método científico. O método ideal dos alemães é o método puramente dedutivo, tal qual
definido por Pascal, que consistiria em “definir todos os termos e provar todas as
proposições.”
278
Certamente os alemães não crêem que estão de posse de tal método, mas
eles agem como se ele fosse um ideal a ser perseguido indefinidamente.
279
Ao localizar o
princípio de certeza no raciocínio discursivo em detrimento do conhecimento intuitivo que
deriva do senso comum (= bom senso), os alemães não perceberiam o perigo da regressão
ao infinito ao qual submetem a ciência.
Bem vemos que a crítica duhemiana a Einstein diverge daquela dirigida a Maxwell;
Duhem não critica o físico alemão amparado na coerência lógica da teoria. O que é
condenado é o contra-senso fundamental em seus princípios. De igual modo ao que
aconteceu com Kant, nas reservas a Einstein a noção de senso comum surge como um
fundo de verdades que servem de base a todo discurso. Não são necessariamente verdades
de experiência, e sim verdades que decorrem da própria natureza humana. Se a metafísica
ou a física são criticadas, não é em nome de um princípio derivado da experiência
cotidiana, ou de uma lei do senso comum, mas em função dessas noções e verdades
axiomáticas.
Na geometria, na moral e na metafísica, esses princípios são de mais fácil acesso, e a
física, ciência empírica por definição, faz deles uso freqüente. É o suficiente para Duhem
criticar os alemães em nome do senso comum. Portanto, o ataque duhemiano dirigido ao
criador da teoria da relatividade especial distingue-se, como notou Paul Brouzeng, da
276
DUHEM, P.: QRSA/GS, p. 118/91.
277
DUHEM, P.: QRSA/GS, p. 123/95.
278
PASCAL, B.: 2000, p. 17. Citado em DUHEM, P.: SA/GS, p. 16/15; TP, p. 306.
279
DUHEM, P.: SA/GS, p. 16/16.
104
crítica panfletária promovida por estudantes universitários europeus anos depois
280
;
também carece de sustento a tese de que o ataque teria sido motivado por um anti-
semitismo enrustido. Todavia, a censura levada a cabo por Duhem aproxima-se o
suficiente da caracterização dada por Michel Paty aos censores da relatividade especial (e
geral), para que possamos, por alto, reconhecê-la nestas linhas:
[...] Os que se opunham à teoria evocavam o senso comum ou o bom senso, entendidos
como a simples razão natural, para levantar-se contra as noções abstratas, teóricas,
puramente matemáticas como a de espaço-tempo da relatividade restrita, ou a de
curvatura do espaço da relatividade geral. Os partidários da teoria de Einstein
replicavam evocando um outro senso comum, que se apóia em uma análise mais
crítica dos fenômenos para justificar as novas noções e, sobretudo, para torná-las
compreensíveis.
281
A existência de duas noções de senso comum na obra duhemiana é algo sui generis.
Sabemos que Duhem descarta a noção de senso comum ordinário como fundamento das
hipóteses em física, mostrando que se as proposições da física teórica fossem deduzidas do
senso comum, a dinâmica atual seria aquela de Aristóteles. Há, portanto, uma “extrema
diferença de natureza”
282
entre as suas proposições. A relação que se dá é contrária: há uma
difusão do conhecimento teórico, por conta da conversação, do ensino, dos livros e jornais
que contribuem para o enriquecimento dos conhecimentos comuns a todos os homens.
Esse senso comum, continuamente renovado e esclarecido, é aquele que os partidários da
teoria da relatividade reclamavam para si. Como vimos, o senso comum que nosso autor
opõe à relatividade é outro.
283
Mas por que, mesmo reconhecendo que o progresso da ciência advém da atividade
crítica do senso comum e que este pode ser renovado, Duhem mantém sua recusa à
Relatividade? Não vejo outra resposta senão o privilégio epistemológico concedido à
natureza. É este privilégio que isenta Duhem de uma de suas atividades favoritas como
historiador, vale dizer, a busca de predecessores, neste caso, da Relatividade. É claro que
280
BROUZENG, P.: 1987, pp. 111-2.
281
PATY, M.: 2003, p. 13. A morte prematura de Duhem, em setembro de 1916, privou-o do conhecimento
da relatividade generalizada e das verificações experimentais de maio de 1919 que confirmaram os cálculos
de Einstein. Entretanto, a crítica da geometria riemanniana já forneceria um indício plausível para a igual
rejeição da relatividade geral.
282
DUHEM, P.: TP, p. 403.
283
A hipótese de Maiocchi, segundo a qual é somente ancorado na tese historiográfica da continuidade do
desenvolvimento da ciência que Duhem pode criticar os alemães, é totalmente desnecessária. O erro do
comentador consistiu em pressupor que a versão de senso comum utilizada por Duhem contra a ciência alemã
identificava-se ao conhecimento ordinário. Em SA a tese continuísta sequer aparece de modo explícito.
105
quando nosso autor fala do refundamento da física tradicional, uma concepção prévia da
história da física é subentendida. Mas a questão principal que fica é: por que não tentar
enquadrar a “nova física” no esquema conceitual antigo, estendendo a mais um evento a
tese continuísta? Sabemos que o próprio Einstein não considerava a relatividade restrita um
exemplo de revolução científica, mas o “desenvolvimento natural de linhas que vêm sendo
seguidas a séculos”
284
, e reconhecia em Lorentz, Maxwell, Newton e Galileu seus
predecessores distantes.
285
Ora, o leitor acostumado aos textos duhemianos poderia muito
bem suspeitar que a ausência da história na crítica à Relatividade denotaria certo
imediatismo. Por mais que uma interpretação nesse sentido pareça relevante, a história
parece ser, de antemão, desnecessária, ou, no mínimo, secundária. Caso a crítica
duhemiana fosse ao outro senso comum, entendido como experiência vulgar, aí sim,
Duhem “teria” de se dar o trabalho de elucidar os momentos cruciais da evolução da teoria
relativística, como várias vezes o fez em outros casos. Ao contrário, a contradição de seus
postulados e corolários com a natureza é suficiente para poder prescindir de auxílio
externo como ponto de apoio crítico. Resolvendo nossa questão, apóstolo do senso comum
porque o non sens tem de ser metodologicamente evitado, porque as evidências conhecidas
naturalmente e que servem de base ao conhecimento geométrico, metafísico e físico não
podem ser revogadas.
É de suma importância notar que, ao repudiar a definição das noções de tempo e
espaço (e, por conseguinte, a de movimento), a postura de Duhem é radical ao extremo. O
professor de Bordeaux insiste, no Système du monde, que são justamente essas tentativas
de definição da natureza mesma do tempo e do espaço as responsáveis pela ausência de
consenso observada na história da ciência entre as diversas escolas de pensamento.
Segundo Duhem, a formulação e resolução lagrangeanas deste problema servem como
modelo de sua própria posição: “Você sabe o que é o tempo?”, teria perguntado Lagrange a
seu interlocutor; “Se sim, falemos dele, se não, não falemos dele.”
286
Sabemos o que é o
tempo porque falamos dele e nos entendemos sem necessitarmos de maiores explicações (o
mesmo pode ser dito acerca do espaço). Deriva disso que sabemos qual a sua verdadeira
natureza? Do fato de usarmos espontaneamente o termo “tempo” sem divergências quanto
284
Citado em JAMMER, M.: 2000, pp. 30-1.
285
JAMMER, M.: 2000, p. 31. É certo, porém, que Einstein reconhecia, a respeito da relatividade geral, que
“o que há de novo na teoria é a ligação inextricável entre a matéria, o espaço e o tempo.” Citado em:
JAMMER, M.: 2000, p. 31.
286
DUHEM, P.: SM, I: p. 33.
106
ao que ele designa, não podemos legitimamente concluir disso nada a respeito de sua
essência. Duhem, assim como Pascal, afirma que apenas o que sabemos é o que designam
as palavras “tempo”, “espaço”, “movimento”, mas nunca conhecemos a verdadeira
natureza do designado.
287
A única definição que cabe a esses termos é a definição
convencional de nome, jamais de natureza. Mais: os físicos e matemáticos enquanto tais
podem prescindir deste último tipo de definição. É assim, argumenta Duhem, que, dos
homens que estudaram um pouco de geometria até os geômetras mais expertos, desde que
não procurem definir o que é o espaço, eles se entenderão perfeitamente bem sobre ele.
Todos sabem naturalmente o que pode ser afirmado ou negado do espaço. Todo o
problema começa quando se ousa oferecer definição de sua natureza. No Système du
monde, uma passagem capital oferece-nos uma idéia da radicalidade duhemiana. Duhem
opera uma clivagem esclarecedora entre aqueles que discorriam sobre o espaço e o tempo
sem procurar defini-los e, do outro lado, aqueles que ensaiavam as respectivas definições.
É no interior dessa segunda classe que se originam as discordâncias sem fim acerca das
noções de tempo e espaço: “O desacordo sobrevém, e que desacordo!, quando os homens
287
N’O espírito da geometria, opúsculo paradigmático na elaboração do pensamento duhemiano,
principalmente o encontrado em SA, Pascal, falando do método geométrico, revela-nos que a geometria é
incapaz de definir tudo e provar tudo. Por outro lado, esta fraqueza é suplantada pelo auxílio advindo da luz
natural, a qual provê o discurso geométrico da certeza dos termos primitivos e das proposições que servirão
de base para as deduções geométricas. O verdadeiro procedimento a ser adotado na construção do
conhecimento é saber manter-se nesse meio termo, de nunca definir as coisas claras entendidas por todos os
homens e nunca provar aquelas que são conhecidas naturalmente por eles, definindo e provando todas as
demais. Tempo, espaço, movimento, número, são termos que “designam tão naturalmente” as coisas
significadas, que qualquer pretensão de defini-las projetará mais escuridão que instrução sobre elas
(PASCAL, B.: 2000, p. 20). Assim, o limite da geometria é circunscrito “localmente” (PONDÉ, L. F.: 2004,
capítulo 3), ou seja, onde há espaço para a équivocité do sentido na linguagem, e de modo algum estende-se
aos termos ou proposições que são objetos do “sentimento natural”. Demonstração e certeza, insiste Pascal,
não são coextensivas – há certezas que são obtidas pelo coração, sem demonstração. Conhecimento certo, por
sua vez, não significa conhecimento logrado por definição – pois há termos incapazes de serem definidos,
mas dos quais todos os homens possuem uma “idéia semelhante”. Por fim, ter a idéia de uma coisa não é
possuir o conhecimento da essência da coisa mesma: “Não é pelo fato de todos os homens terem a mesma
idéia da essência das coisas que digo que é impossível e inútil definir. Porque, por exemplo, o tempo está
neste caso. Quem poderá defini-lo? E por que motivo tentá-lo, se todos os homens concebem o que se quer
dizer quando se fala do tempo, mesmo que não se explique mais? Entretanto, há opiniões muito diferentes
acerca da essência do tempo. Uns dizem que é o movimento de uma coisa criada; outros, a medida do
movimento etc. Mas também não é a natureza destas coisas que digo que seja conhecida – mas somente a
relação entre o nome e a coisa – de modo que nesta expressão, tempo, todos dirigem o pensamento para o
mesmo objeto; ora, isso basta para fazer com que esse termo não precise ser definido, embora, depois, ao
examinarmos o que é o tempo, venhamos a ter sentimentos diferentes, por termos pensado nisso; é que não se
fazem definições a não ser para designar as coisas que se nomeiam e não para mostrar a sua natureza”
(PASCAL, B.: 2000, p. 21). A influência das reflexões pascalianas nos textos duhemianos podem ser
apreciadas desde o seu FM, onde se trata de fundar o método experimental sobre noções que não requerem
especulações metafísicas prévias (daí a autonomia da física diante da metafísica), até a SA, obra em que as
referências a Pascal ganham corpo em virtude do caráter geométrico do espírito alemão.
107
querem filosofar sobre essas coisas, enquanto eles pretendem dizer qual é a sua natureza e
qual a sua realidade.”
288
Iniciada a querela, os filósofos dividem-se em duas grandes correntes: (1) aqueles
que afirmam que o tempo e o movimento existem apenas em nossa razão, (1.1) sejam
como idéias abstratas formuladas pela razão a partir da percepção, (1.2) sejam como
formas pré-existentes em nossa razão, responsáveis por impor uma ordem às percepções;
(2) e aqueles que sustentam que nossas idéias de tempo e de espaço reproduzem fielmente
realidades existentes fora de nós. Desta vertente são erigidos o espaço, o tempo e o
movimento absolutos. Duhem deixa claro que qualquer tentativa de definir tais noções
implica uma postura filosófica
289
e, apesar da brevidade de sua exposição, podemos
derivar, mesmo que sem fornecer detalhes pontuais de suas críticas, seu afastamento das
posições tomadas por Poincaré, Kant e Newton, os quais teriam adotado, ao especular
sobre a natureza das noções mencionadas, verdadeiras tarefas filosóficas. Ao contrário
deles, nosso autor passa a rumar noutra direção no exato momento em que se associa ao
pensamento pascaliano, evitando que a definição de natureza caia sobre o espaço e o
tempo.
290
Bem vemos que não é somente a Einstein que o físico francês opõe-se no que tange
aos conceitos de espaço e tempo. A questão que se segue imediatamente é a seguinte: não é
suspeito que Duhem jamais acuse Poincaré e Newton de falta com relação ao senso
comum? Não seria esperado que tal acusação fosse feita a todos os que tentassem definir
tempo e espaço, de Aristóteles até nós? Mas se assim o fosse, os metafísicos todos seriam
desprovidos de senso comum, e isso Duhem está longe de defender. É preciso, portanto,
deixar claro: Duhem não se opõe a Einstein apenas porque este tentou definir o tempo e o
espaço (assim como não critica Kant na Science allemande por conta de sua definição do
288
DUHEM, P.: SM, I: p. 33.
289
Em FM (DUHEM, P.: FM, p. 46), nosso autor deixa este tipo de especulação ao metafísico, restringindo-
se ao papel de físico. No SM (DUHEM, P.: SM, p. 34), Duhem reconhece-se como historiador e evita
novamente tratar dessas questões, reservando-as aos filósofos. O mesmo não acontece na conclusão de
MAMR, em que Duhem mostra-se persuadido, por meio do desenvolvimento histórico e fecundo da ciência,
de que a teoria física aproxima-se de uma classificação natural, a qual favoreceria a concepção de um espaço
absoluto como entidade real. Retiraremos, dessa passagem e de outras, argumentos que nos permitirão
ponderar, ao final da próxima Parte, a concepção, particularmente defendida por Chiappin (CHIAPPIN, J. R.:
1989, pp. 198-210), de que o realismo duhemiano deva ser classificado como estrutural, em oposição ao
realismo de entidades.
290
Por mais que até aqui nossa leitura possa aproximar Duhem de Kant, é importante dizer que se o
sentimento de que as teorias devem ser logicamente coordenadas é inato, o mesmo não é dito acerca das
noções de tempo ou espaço.
108
espaço e do tempo como formas a priori da percepção!), mas porque o alemão chegou, por
assim dizer, a conclusões que ferem as proposições reveladas pelo senso comum. Einstein
simplesmente contradisse o senso comum (pois é sempre possível imaginar uma
velocidade potencialmente superior a uma velocidade dada, e porque espaço e tempo são
noções que aparecem a todos como independentes uma da outra). O alemão não partiu da
noção natural de tempo para esmiuçá-la, assumindo a função de metafísico, e tirar daí suas
conclusões. Já de início, ignorou a natureza ao postular o princípio de invariância da
velocidade da luz e atingiu conclusões, mesmo inicialmente insuspeitadas, sobre a relação
entre o espaço e o tempo que o levou a redefini-los mutuamente. Carece de senso comum
não aquele que procura definir noções cuja clareza é suficiente, mas, sobretudo, aqueles
que não enxergam o solo seguro das noções intuitivas e, em decorrência disso, infringem a
natureza.
Resta-nos ainda amenizar, senão evitar, a acusação de que o acirramento nacionalista
promovido pela Guerra fosse decisivo na concessão do privilégio epistemológico ao senso
comum em seu sentido forte. Contra os ingleses, especificamente Maxwell, nosso autor
emprega uma crítica de cunho eminentemente metodológico, no anseio de afastar da física
as incoerências suscitadas pelos modelos figurativos. À imaginação potente dos ingleses o
filósofo opõe o poder de abstração dos franceses e alemães. Enganar-nos-íamos em pensar
que a crítica aos alemães estaria presente apenas em La science allemande, com a desculpa
do contexto político. A noção de senso comum como critério avaliador de teorias resiste à
interpretação segundo a qual Duhem teria forjado intencionalmente critérios de última hora
para criticar aqueles que, até então, eram colocados por ele próprio ao seu lado contra os
ingleses.
291
Nosso próximo exemplo será retirado de L’évolution de la mécanique.
291
Como observa Jaki (JAKI, S.: 1991a, p. xvii), nos anos que precederam a primeira Grande Guerra, a visão
comum francesa em relação ao espírito alemão era de acolhimento, a despeito da derrota de 1870 (um dos
motivos citados por Jaki foi a efervescência científica na Alemanha de Bismark, fonte de admiração no meio
acadêmico europeu). Quanto à posição de Duhem, se ela era simpática ao espírito alemão, nunca deixou de
exibir boa dose de prudência. Muito distante era a posição, por exemplo, de ninguém menos que É. Boutroux,
o qual, em 1914, elogiava a unidade dos espíritos francês e alemão, para, ironicamente, no mesmo ano,
criticar os procedimentos extremamente mecânicos característicos da ciência e do modo de vida alemães,
dois campos nos quais um não auxiliava ou esclarecia o outro (ver citação de Boutroux em DUHEM, P.:
QRSA, p. 125). O alheamento alemão do bom senso e da vida cotidiana também são alvos de Boutroux em
1916, em ensaio escrito como contribuição ao volume coletivo Les allemands et la science (ver PETIT, G. &
M. LEUDET: 1916, pp. 47-54). Para maiores detalhes sobre a situação nacionalista entre os cientistas na
França do período pré-Guerra, ver MAIOCCHI, R.: 1895, pp. 162-4.
109
É em “La déroute de l’atomisme contemporain”
292
que Ostwald fornece-nos uma
visão mais clara das conseqüências radicais da adoção de seu energetismo. Ostwald, que
também promovera tentativas anteriores de fundar a química sobre a mecânica,
reconhecendo a inviabilidade de seu projeto, alia-se em seguida aos energetistas, criticando
as interpretações mecanicistas da termodinâmica iniciadas por Clausius, W. Thomson e
Helmholtz. Rejeitando a formulação de hipóteses sobre a estrutura íntima da matéria em
favor do representacionismo, o químico alemão defende, então, a interpretação segundo a
qual a matéria não passaria de uma “invenção” formulada para associar as diversas
manifestações heterogêneas do único e verdadeiro princípio do mundo exterior: a energia.
Em sendo todos os fenômenos subordinados ao conceito de energia, a matéria, por
conseguinte, seria inteiramente eliminada.
293
Ao materialismo filosófico, Ostwald opõe, no
mesmo plano, o seu energetismo. Científica, a nova energética não deixa de se basear em
pressupostos essencialmente filosóficos. Enquanto Poincaré é capaz de manter uma visão
analítica, apesar da surpresa anunciada, acerca do desaparecimento da matéria
294
, seu
colega alemão não se furta a considerações metafísicas tangenciais. Eliminada a categoria
filosófica de matéria e o conceito físico de massa dela derivado, a energia de Ostwald
acaba por identificar a categoria e o conceito na noção de energia. A noção de matéria,
doravante excluída do estudo da física, cederia seu estatuto substancial anteriormente
inquestionado a uma concepção da energia generalizada. Trocando em miúdos, falando em
energia estaríamos a falar do elemento constituinte da realidade última.
Decerto que a posição de Ostwald libera a física de um compromisso com o
desvelamento do mecanismo da natureza – a máquina do mundo não precisaria mais ser
construída, e o mecanicismo figurativista encontrar-se-ia afastado em favor da imensa
abstração teórica. Entretanto, quem não vê que uma tal posição, se não pressupõe uma
explicação mecânica da natureza, nem por isso abdica de uma explicação metafísica que
parte de uma suposição ontológica sobre a verdadeira causa dos fenômenos? Afinal, como
292
O ensaio de Ostwald apareceu pela primeira vez na Revue Générale de Sciences Pures et Appliquées (15
de novembro de 1895, número 21), e tinha originalmente como título: “Le dépassement du matérialisme
scientifique”. Utilizamos aqui uma reprodução mais recente anexada em: LECOURT, D.: 1973, pp. 113-24.
293
Eis os termos desse esvaziamento ontológico da noção de matéria: “O que encontramos, com efeito, na
idéia de matéria? Em primeiro lugar, a massa, isto é, a capacidade para a energia cinética, em seguida, a
impenetrabilidade ou energia de volume, o peso ou energia de posição sob a forma particular que se
apresenta na gravitação universal, enfim, as propriedades químicas ou energia química. Por toda parte, a
única questão é a energia e, se nós separamos essas diferentes formas de energia da matéria, esta se dissipa”
(OSTWALD, W.: [1895], 1973, p. 122).
294
POINCARÉ, H.: (1902) 1984, Capítulo XIV, intitulado “O fim da matéria”.
110
notou Meyerson, apesar de a teoria de Ostwald em si mesma possuir uma “essência
verdadeiramente científica”
295
, ela destoa enormemente do modelo representacionista
proposto em seus escritos anteriores
296
, acabando por resvalar numa espécie de monismo
metafísico:
[...] a energia do cientista de Leipzig é um verdadeiro ser ontológico, uma coisa em si.
Ela existe absolutamente, independentemente de toda outra coisa, abrangendo a
substância e o acidente, o espaço e a causa, sendo ela mesma sua própria causa, causa
sui, e causando o mundo fenomênico inteiramente.
297
Se a prioridade do projeto da energética é constantemente atribuída a Rankine por
Duhem
298
, o energetismo de Ostwald passa quase em branco em seus escritos, o suficiente
para termos uma idéia da austeridade com relação e ele. O que explica essa atitude? Em
princípio, somos levados a supor uma atitude crítica endereçada ao aspecto explicativista
da nova teoria, uma vez que o químico alemão pensa ter desvelado a natureza última da
realidade. Como não bastasse, seguindo esse caminho, estaríamos novamente diante do que
seria para Duhem uma subordinação da física à metafísica. Pior: a noção de matéria é tão
fundamental à distinção duhemiana entre física e cosmologia (o sentido mais comum de
metafísica em sua obra) que sem ela a própria demarcação ruiria.
299
Poderíamos, ainda,
esperar uma crítica de caráter mais técnico, natural, aliás, por parte do físico francês, já que
Ostwald, assim como os atomistas antes dele, não conseguira derivar razoavelmente das
conseqüências de sua teoria qualquer concordância com o princípio de Carnot.
300
Que diz
nosso autor, afinal?
No momento de deixar a terra firme da mecânica tradicional para nos lançarmos, sobre
as asas da imaginação, à perseguição dessa física que localiza os fenômenos numa
extensão vazia de matéria, nós nos sentimos tomados pela vertigem; então, com todas
as nossas forças, nós nos agarramos [cramponnons] ao solo firme do senso comum;
pois nossos conhecimentos científicos mais sublimes não têm, em última análise, outro
295
MEYERSON, É.: (1908) 1951, p. 396. Cremos que a afirmação de Meyerson não conflita com a
interpretação filosófica que sugerimos. A teoria de Ostwald pode ser descrita como essencialmente científica,
apesar de o mesmo não se aplicar ao seu energetismo, uma postura muito mais geral, que serve como
justificação de seu projeto científico.
296
MEYERSON, É.: (1908) 1951, p. 400.
297
MEYERSON, É.: (1908) 1951, pp. 400-1.
298
DUHEM, P.: ETP, p. 498; TMQ, p. vi-vii; EM, p. 235; TP, pp. 73-4; TE, p. 3; NTTS, p. 76.
299
“A física é o estudo dos fenômenos, cuja fonte é a matéria bruta, e das leis que os regem. A cosmologia
procura conhecer a natureza da matéria bruta, considerada como causa dos fenômenos e como razão de ser
das leis físicas” (DUHEM, P.: FM, p. 42).
300
MEYERSON, É.: (1908) 1951, p. 401.
111
fundamento senão os dados do senso comum; se se revoga todas as certezas do senso
comum, o edifício inteiro das verdades científicas vacila sobre suas fundações e
desmorona.
Nós persistiremos, pois a admitir que todo movimento supõe um móvel, que
toda força viva é a força viva de uma matéria. ‘Você recebe um golpe de bastão, diz-
nos Ostwald; o que você sente, o bastão ou a energia?’ Nós admitimos sentir a energia
do bastão, mas continuamos a concluir disso que existe um bastão portador dessa
energia. [...] Nós permaneceremos aquém das doutrinas através das quais a existência
substancial de matérias diversas e maciças tornam-se uma ilusão [...].
301
Mantidas as expectativas daqueles que se atêm aos preceitos metodológicos
encontrados nos textos duhemianos até 1903 – veremos as posturas de Abel Rey e
Meyerson a seguir –, Duhem parece retroceder em seu abstracionismo e conferir função
primordial ao senso comum. Mais uma vez, essa não seria uma boa interpretação.
Contra Ostwald na Évolution de la mécanique, bem como contra Einstein em La
science allemande, a crítica versará sobre a negligência de ambos ao senso comum – mas
não a qualquer senso comum, e sim àquele cuja supressão acarreta o completo contra-senso
e subtrai os fundamentos mais firmes da ciência. Implícito nessa passagem encontra-se a
noção de senso comum tal como evidência imediata ao intelecto: é inconcebível o
movimento sem algo que se mova. Aqui, não se trata pura e simplesmente de uma lei de
observação pouco refinada (nenhuma experiência concreta é evocada), cuja influência na
ciência racional seria negada por Duhem – é a concepção mesma de tal possibilidade que é
rejeitada. As certezas do senso comum que não podem ser revogadas transitam na ordem
da evidência imediata e são, por assim dizer, pré-científicas.
É a passagem acima, citada e usada em favor próprio por Meyerson, que talvez mais
tenha “contribuído” para sua incompreensão do papel do senso comum em Duhem:
Nossa concepção se reaproxima bem mais daquela de Duhem, de quem, sobretudo no
começo dessa exposição, fizemos amplos empréstimos. Entretanto, não estamos bem
301
DUHEM, P.: EM, p. 179. Mais uma vez a inspiração duhemiana em sua recusa da teoria da migração de
energia vem de Pascal, apesar de Duhem não o citar explicitamente, e processa-se de modo semelhante à
recusa do princípio da invariância da velocidade da luz, vale dizer, por uma experiência imaginária. Podemos
recolher esta citação de seu O espírito da geometria: “Porque não se pode imaginar movimento sem alguma
coisa que se mova” (PASCAL, B.: 2000, p. 25). Essa “coisa” muito provavelmente poderia ser identificada
com a matéria. O motivo para a identificação que proponho encontra sua razão na segunda edição dos
Pensées de Pascal, a qual, diferentemente das edições de há mais de um século, traz o conceito de matéria
incluído entre os primeiros princípios: “Pois o conhecimento dos primeiros princípios, como, por exemplo,
que há o espaço, o tempo, movimento, número, matéria, é tão firme que nenhum dos nossos raciocínios
podem nos proporcionar” (PASCAL, B.: 1670, XXI, p. 159). Itálicos meus. A ausência da noção de matéria
nas edições atuais deve-se provavelmente a um “efeito dominó” que se seguiu a partir de um erro tipográfico.
112
seguros de ter compreendido a diferença que este cientista estabelece entre o senso
comum e as teorias físicas.
302
É ela também a responsável pela exclamação de Abel Rey, quando disserta sobre a
física duhemiana:
Essa crítica é bem curiosa sob a pena de Duhem. [...] ele se esforça para construir uma
física teórica puramente matemática, logo, sem matéria, e faz repousar esta física
sobre os princípios relativos à energia.
303
A nós, já avisados pelas publicações duhemianas que se seguiram, ela não espanta.
Mas é perfeitamente compreensível a hesitação de Rey àquela época. Duhem não havia
insistido na importância do senso comum como critério ou meta-princípio para a condução
de teorias. O único conceito de senso comum usado por nosso autor até então era aquele
que se opunha à física simbólica, daí a estupefação de Rey (análoga à sentida por Maiocchi
quando da crítica duhemiana à relatividade especial) diante da citação; tratar-se-ia de uma
reserva do abstracionismo de sua física, que era até então puramente matemática.
304
No
momento em que Duhem introduz o novo conceito de senso comum, ainda parcamente
especificado, Meyerson apressa-se em utilizá-lo a seu favor, mas esbarra no rompimento
do outro senso comum (ao qual Rey dera toda a atenção) com a teoria física.
305
Somente
302
MEYERSON, É.: (1908) 1951, pp. 435-6.
303
REY, A.: (1907) 1930, p. 91, n. 1.
304
Comprometido com sua interpretação, e, baseado em sua concepção estreita da noção de senso comum em
nosso autor, Maiocchi vê na defesa duhemiana do senso comum um sério perigo à abstração. Ao criticar os
alemães Duhem estaria recuando em seu abstracionismo em nome do fenomenismo, donde o caráter
problemático da SA. A interpretação restritiva da noção de senso comum leva Maiocchi a reduzir a
importância, em seu livro, de aspectos do senso comum tão caros a Duhem, tal como o vislumbrado ao final
da primeira parte da TP, ou a crítica a Ostwald na EM. Mas é preciso notar que, em sua crítica aos alemães,
em nenhum momento Duhem critica o excesso de abstração de seus vizinhos geográficos. O que é criticado é
a incapacidade germânica em perceber as certezas intuitivas (não necessariamente experimentais), admitindo
em suas teorias ou sistemas metafísicos proposições auto-contraditórias (Hegel, Nicolau de Cusa) ou
intuitivamente falsas (Einstein, Riemann). De um modo mais geral, a ambição de querer provar todas as
proposições e definir todos os princípios é igualmente censurada, pois que mina as mais seguras certezas
morais (Kant).
305
Se Meyerson aceita, com Duhem, que a principal diferença entre as abstrações do senso comum e as da
teoria física é que enquanto as do primeiro tipo são espontâneas e irrefletidas, e as do segundo seriam lentas,
complicadas e conscientes, nem por isso ele conclui que sua certeza é de ordem diversa: “[...] em
conseqüência de sua espontaneidade e do consentimento geral do qual eles [os decretos do senso comum] se
beneficiam, parecem adquirir uma certeza superior. Mas, na realidade, eles são de mesma natureza,
engendrados pelo mesmo procedimento que aqueles da ciência” (MEYERSON, É.: [1908] 1951, pp. 436-7).
O ponto de apoio de Meyerson, para afirmar que o senso comum faz parte da ciência é o procedimento de
formação dos conceitos, que seria análogo a ambos. O entendimento humano, diz ele, segue as mesmas
regras na formação dos conceitos tanto no domínio do senso comum, como no da ciência. Que “regras” são
113
após as críticas de Vicaire (1893) em nome do bom senso é que nosso autor passará a fazer
uso das noções que compõem o senso comum (como equivalente a bom senso). Mesmo
assim, se fomos capazes de identificar a noção de senso comum já nas primeiras obras, isso
só foi possível partindo das publicações posteriores. Explico: tanto em “Física e
metafísica” como em “A escola inglesa e as teorias físicas”, nos quais aparecem,
respectivamente, as noções e princípios fundamentais e o meta-princípio de unidade lógica,
Duhem não os atribui ao senso comum ou ao bom senso. Até ali, só havia aparecido, que
eu saiba, a noção de senso comum como conhecimento empírico pouco analisado,
encontrada em “Algumas reflexões acerca da física experimental”, e provavelmente o
primeiro uso metodológico do senso comum seja este encontrado na Évolution de la
mécanique.
Mas a inquietação manifesta nas palavras de Rey quando de seu comentário à crítica
duhemiana a Ostwald pode ser focalizada de um ângulo mais metafísico que metodológico.
Desse ponto de vista, o comentador não mais oporía o senso comum (no sentido que lhe dá
Rey, vale lembrar, como correlato a experiência ordinária) à “física teórica puramente
matemática”, mas deslocaria a questão para o antagonismo encontrado entre o energetismo
de Ostwald e o “materialismo implícito” de Duhem, se assim ousarmos caracterizá-lo.
Neste caso, o motor da perplexidade de Rey seria o aparente materialismo de Duhem. Não
podemos perder de vista, entretanto, que esta última oposição teria de ser esmiuçada
convenientemente, caso contrário, ela careceria de base, porquanto a física duhemiana
permanece de fato sem referências à estrutura íntima da matéria, e nisso Rey está certo.
Permanecendo “sem matéria”, sua física legitimaria tacitamente a inexistência da matéria
na teoria de Ostwald e, desse modo, o físico francês não poderia criticar o colega alemão
do mesmo plano. Logo, como a crítica é um fato, ela não pode ser compreendida como
puramente científica, tendo, antes, de partir de outro lugar. Mas esse outro lugar não pode
ser uma proposição derivada da experiência ordinária, a não ser que exista flagrante
contradição entre a teoria e uma lei experimental – e Duhem não alude a qualquer
contradição desse tipo. Sua base para a crítica, portanto, é nada menos que o materialismo
derivado do senso comum: não pode haver um movimento sem algo que se mova, sem um
estas? Antes de tudo, é preciso separar o que os positivistas estritos conhecem por princípio da legalidade (o
único que eles admitem), que afirma a regularidade empírica de sucessão entre os fenômenos, e o princípio
de causalidade, o verdadeiro princípio que rege as mais profundas aspirações do espírito humano; este não se
contenta em constatar, ele quer explicar, unificar e identificar o complexo ao simples, o novo ao antigo. É por
aí que se pode afirmar que a ciência não é senão um prolongamento do senso comum, e que este faz parte
integrante daquela (MEYERSON, É.: [1908] 1951, p. 402).
114
substrato. Para Duhem, a própria “existência substancial de matérias diversas” é
inquestionável do ponto de vista do senso comum.
306
Em outras palavras, contra as
conseqüências metafísicas da teoria de Ostwald, Duhem assumiria uma postura “pré-
metafísica” decorrente das noções evidentes do senso comum. O próprio materialismo
metafísico, em sentido depurado de qualquer filosofia sistemática, seria um corolário das
evidências do senso comum. Assim entendido, nosso autor não estaria criticando apenas a
física de Ostwald, mas a sua metafísica – com uma postura bastante próxima da
metafísica
307
. Natural que Duhem, apesar de defender uma física “sem matéria”, critique o
energetismo de Ostwald, afinal, tendo como pressuposto a distinção duhemiana entre física
e metafísica, é a física de Duhem que não faz referência à estrutura da matéria, o mesmo
não podendo ser dito de sua “ontologia”. Dado o estatuto existencial privilegiado da noção
de matéria sobre o conceito (artificial) de energia, o físico francês consegue escapar à
objeção já prevista por Ostwald em seu ensaio, segundo a qual a própria noção de matéria
não teria mais realidade que aquela de energia.
308
Em princípio, Ostwald bem objetar a
Duhem: “por que o senhor não define a física como o estudo dos fenômenos, cuja fonte é a
energia, e das leis que os regem, enquanto a cosmologia procuraria conhecer a natureza da
energia, considerada como causa e razão de ser das leis físicas?” A resposta provável de
Duhem seria simplesmente esta: porque a noção de energia, construto teórico e simbólico,
não possui o mesmo estatuto ontológico que a idéia de matéria, suficiente para solidificar a
distinção entre física e metafísica.
309
306
Voltaremos a esse assunto na segunda Parte da Dissertação (seção 2.4), quando tratarmos da postura
interpretativa de Lênin em relação a Duhem.
307
Uma postura pré-metafísica, reiteramos, talvez seja a melhor designação, uma vez que, como vimos em
“Física e metafísica”, tanto a física quanto a metafísica trabalham sobre as noções fornecidas pelo senso
comum. Como qualquer metafísica que negasse a existência da matéria estaria em contradição com o senso
comum, cremos que o materialismo metafísico (sem a exclusão de outras formas não materiais de existência)
seria a conclusão natural da posição duhemiana.
308
Na realidade, para Ostwald a verdadeira relação é a inversa: “A matéria é uma invenção, além de tudo tão
imperfeita, que nós forjamos para representar o que há de permanente em todas as vicissitudes. A realidade
efetiva, isto é, aquela que exerce seu efeito sobre nós, é a energia [...]”. (OSTWALD, W.: [1895] 1873, p.
121)
309
Não apenas a noção de matéria é responsável pela diferenciação da cosmologia, que “trata da matéria não
viva” (DUHEM, P.: FC, p. 42), no interior da metafísica (que não faz distinção entre as diversas matérias),
como na própria física duhemiana a matéria entra como noção indefinível. Assim, para citar apenas dois
exemplos da assunção espontânea da realidade matéria, na física duhemiana a noção experimental de
movimento relativo depende da constatação do deslocamento relativo de duas partes da matéria (DUHEM,
P.: CPT, I, p. 270); um corpo será um espaço linearmente conexo ocupado por uma parte da matéria
(DUHEM, P.: CPT, I, p. 271). Vale repetir, no entanto, que o modo real de ocupação do espaço pela matéria,
se contínuo ou descontínuo, permanece uma questão metafísica.
115
1.5. Considerações gerais sobre o senso comum
Através da crítica duhemiana à ciência alemã, pensamos ter dado provas da
importância assumida pelo senso comum na metodologia de Duhem. Das quatro etapas de
construção da teoria física expostas no final da seção 1.3.2, o respeito às intuições
imediatas do senso comum, que excluiria o absurdo das proposições da física, poderia
muito bem ser descrito como etapa zero, e serviria não apenas para a física, mas para a
geometria e a metafísica.
310
Cremos tratar-se de uma metodologia geral cujo guia seriam
teses de cunho epistemológico. Indicamos em notas de rodapé a inspiração pascaliana de
várias dessas teses, cuja fonte eram os Pensamentos e O espírito da geometria, das quais
nosso autor apropria-se para defender seu ponto de vista. A crítica à ciência alemã só pode
ser compreendida com a condição de que a noção de senso comum também o seja; e a
compreensão desta não pode prescindir do recurso a Pascal.
311
Jaki, o primeiro a chamar a atenção para a importância da noção de senso comum na
sustentação do realismo duhemiano, reconhece a “drástica incompletude” da filosofia
duhemiana quando se trata de definir o significado de senso comum em sua obra. Diz ele:
O toque realista que ele [Duhem] deu ao ‘common sense’ é tão mais significante
porquanto ele não poderia tê-lo obtido dos Pensamentos de Pascal, onde sens commun
denota concepções errôneas amplamente compartilhadas. Lá, a expressão bon sens
significa boa fé, enquanto que com Duhem ela representa aquela fonte de
310
Riemann, já vimos, é criticado em matéria de geometria. Hegel e Nicolau de Cusa são censurados pelas
proposições absurdas, denunciadas como “contradições formais” pelo senso comum, mas ainda assim aceitas
como princípios na construção de seus sistemas metafísicos (DUHEM, P.: ELV, II, p. 107). As proposições
criticadas que feririam o senso comum seriam: “Em toda ordem de coisas o máximo é idêntico ao mínimo”
(Cusa); “Em toda ordem de coisas, as contradições são idênticas, pois a tese e a antítese não compõem senão
uma entidade na síntese, que é a verdade” (Hegel) (DUHEM, P.: SA/GS, p. 21/19, p. 22/20, respectivamente).
Antes mesmo da composição de SA, Duhem já havia criticado Nicolau de Cusa a propósito de seu princípio,
afirmando que “o postulado sobre o qual ela [a doutrina filosófica de Cusa] repousa é ele mesmo uma
antinomia, a mais formal que se possa conceber, a identidade do mínimo e do máximo, da unidade e do que
ultrapassa todo número” (DUHEM, P.: ELV, II, p. 127).
311
Na verdade, Martin já defendeu essa via, ressaltando duas grandes analogias entre Duhem e Pascal: o
papel dos primeiros princípios como saída da regressão ao infinito; e a distinção pascaliana das ordens do
pensamento e do coração, correlatas em Duhem à distinção entre física e metafísica (MARTIN, R.: 1991). De
igual modo, foi Martin o único até agora a analisar com atenção a SA, distinguindo várias formas de senso
comum no pensamento duhemiano. Apesar disso, ele não chega aos mesmos resultados a que chegamos (às
distinções que efetuamos), limitando-se, sem aprofundar-se muito, a distinguir e elencar tipos de senso
comum sem fornecer um liame que os conecte. Por nosso lado, tentamos reduzir ao máximo as distinções
conceituais.
116
discernimento entre os princípios ou pontos de vistas básicos para os quais Pascal usa
a expressão sens droit.
312
De fato, Duhem não dá indicações muito precisas do que ele entende por senso
comum, e mesmo por bom senso, além das quais nós elencamos. Em nenhum lugar nosso
autor define-as adequadamente. Décadas atrás Agassi já considerava difícil entender a
crítica duhemiana a Einstein, baseada na noção de senso comum, justamente porque se
todas as teorias físicas, exceto a aristotélica, seriam abstratas e contrárias ao senso comum,
então o sentido da crítica de Duhem ao alemão teria de ser exatamente o inverso, visando
como alvo alguma suposta conexão entre a nova teoria e o senso comum.
313
Mais
recentemente Brouzeng mencionou a pouca atenção que nosso autor confere à definição da
noção de senso comum no domínio científico, mormente quando critica a teoria da
Relatividade.
314
Em livro recém lançado, Brenner contenta-se com constatar a proximidade
da noção de bom senso de uma forma de intuição “supra-lógica”
315
, mesmo que para isso
tenha ele de se aproveitar de uma citação encontrada na primeira lição de La science
allemande, na qual bom senso e senso comum aparecem identificados, desprezando tanto a
problemática conceitual em torno da noção de senso comum que tentamos salientar até
aqui como a distinção traçada entre bom senso e senso comum na Théorie physique.
De nossa parte, acreditamos ter contribuído para o esclarecimento dos significados
de ambas as expressões. Todavia, não nos deixando levar por analogias superficiais, às
quais Jaki parece ater-se na citação acima, quando disserta sobre a incompletude da
filosofia duhemiana, continuamos a defender uma interpretação de viés pascaliano para a
compreensão, semântica e funcional, do verdadeiro sentido de senso comum. Quando este
é sinônimo de bom senso ambos designam em Pascal, mais precisamente em O espírito da
geometria, o que o jansenista nomeia luz natural ou, nos Pensamentos, o coração. Afinal,
não é o próprio Duhem que afirma, após citar trechos do primeiro parágrafo do fragmento
282 dos Pensamentos, o seguinte: “O bom senso, que Pascal nomeia aqui o coração, para
perceber intuitivamente a evidência dos axiomas [...]”
316
? Desse modo, para Pascal, bem
como para Duhem, a luz natural (ou coração) e o senso comum (ou bom senso) designam
312
JAKI, S.: (1984) 1987, pp. 322-3.
313
AGASSI, J.: 1957, p. 243. Fácil ver que a dificuldade pressentida por Agassi decorre da indistinção das
noções de senso comum.
314
BROUZENG, P.: 1987, p. 110.
315
BRENNER, A.: 2003, p. 169.
316
DUHEM, P.: SA/GS, p. 6/8. Como se vê, quando Jaki faz a comparação conceitual entre Duhem e Pascal,
ele leva em consideração a sua própria leitura, e não a leitura duhemiana de Pascal.
117
um modo de conhecimento não intelectual e não discursivo de idéias ou palavras
primitivas, no vocabulário pascaliano, ou de noções e princípios, termos usados por
Duhem. Todas essas noções e princípios teriam algo em comum: seriam indefiníveis,
indemonstráveis e, nada obstante, conservariam plenamente a sua certeza. Como Descartes
e Pascal, nosso autor inspira-se no modelo geométrico de certeza para fixar os parâmetros
metódicos que integram La science allemande (não é à toa que a primeira lição da Science
allemande tem como tema as “ciências do raciocínio”).
317
Distanciando-se de Descartes,
contudo, Duhem recusa-se a aceitar a distribuição natural igualitária do bom senso a todos
os homens: “Não, não é verdade que a aptidão de discernir intuitivamente o verdadeiro do
falso, isto é, o bom senso, tenha, em todos os homens, um igual desenvolvimento”.
318
Ademais, o bom senso duhemiano não é um bom senso estritamente científico, pois que
serve também a moral com a mesma força que serve a geometria. Por este motivo, Duhem
opõe-se igualmente a Kant, fundamentando os princípios morais (ao menos alguns deles)
não através de um postulado da razão prática, e sim por meio de evidências pretensamente
verdadeiras.
O senso comum, como temos visto, designa o conjunto das certezas que precedem
toda reflexão crítica e que constitui o nascedouro necessário da ciência. É a existência do
senso comum como fonte orgânica de noções e princípios certos sobre o mundo, a alma e
Deus, que funda a possibilidade mesma da metafísica e da religião. É daí também que a
ciência teórica tira o seu alimento, apesar de a reflexão lógica tratar em seguida de
diferenciar os caminhos, de início ainda confusos, que essas disciplinas deverão percorrer.
Entendida como conhecimento rigoroso das leis que regem o mundo material, a ciência
deve apoiar-se sobre um fundamento seguro, cuja evidência não se pode demonstrar. A
evidência dos princípios do senso comum, no entanto, pode ser mostrada (e é isso o que
Duhem faz quando afirma, insistindo no exemplo do meta-princípio de unidade lógica, que
uma das acusações mais usadas entre contendores contra a argumentação oponente é a que
imputa ao adversário a pecha de ilogismo). Qualquer tentativa de demonstrar os primeiros
317
Por “modelo geométrico” não devemos entender “espírito geométrico”. O paradigma do modelo
geométrico, além da ordem rigorosa de dedução inclui também a certeza e evidência dos axiomas como
passo inicial da dedução, enquanto que por espírito geométrico Duhem significa a supressão da evidência
primeva dos axiomas em favor do puro rigor lógico, tal como se a verdade consistisse tão somente no puro
rigor.
318
DUHEM, P.: SA/GS, p. 11/12. É bem verdade que, se para Descartes o bom senso é a coisa mais bem
distribuída do mundo, não basta simplesmente possuí-lo: é preciso saber usá-lo corretamente, e é por isso que
o método torna-se necessário. O erro decorre, portanto, não da essência do próprio entendimento, mas da
ausência de método.
118
princípios do senso comum está fadada ao fracasso e à regressão ao infinito. Evidente é o
que é visto com imediatez; demonstrado, o que é colocado em evidência pelo discurso da
razão.
319
Se a demonstração é um raciocínio que parte de axiomas iniciais, qualquer
evidência a que ela chegue é já produto de uma evidência primeva, a qual não careceria de
demonstração alguma.
Voltemos às considerações do comentador húngaro. Quando instado a prefaciar a
tradução inglesa de La science allemande, a influência notória do autor dos Pensamentos
naquela obra foi novamente relegada a segundo plano por Jaki. Após afirmar que a
principal função do espírito de finesse é garantir um fundamento seguro para as noções
primordiais sobre as quais o raciocínio deverá erigir-se, o comentador faz a seguinte
comparação: “O esprit de finesse e o bon sens, frequentemente celebrado de Descartes em
diante pelos autores franceses (sobretudo por Pascal) são uma e a mesma coisa para
Duhem”.
320
Posta dessa maneira, a identificação pura e simples entre bom senso e espírito
de finesse aventada por Jaki não se justifica textualmente. Existem indicativos de que as
duas noções de bom senso recebem designações distintas em La science allemande. Em
várias oportunidades Duhem usa a expressão “simples bom senso” como algo distinto do
espírito de finesse. Nos casos em que isso ocorre, o espírito de finesse identifica-se à
perfeição do bom senso”, enquanto que o simples bom senso seria o verdadeiro correlato
de senso comum, tal como temos examinado até aqui. Citemos algumas passagens, sem a
preocupação de contextualizá-las, das quais podemos inferir a referida distinção:
1. Assim, privado da luz do senso comum e do espírito de finesse, a ciência alemã [...].
321
2. A falta de bom senso e de espírito de finesse é muito comum nos alemães.
322
3. [...] é preciso que o bom senso transcenda-se [se surpasse lui-mème], que ele
desenvolva [pousse] sua força e sua flexibilidade até seus extremos limites, que ele se
torne o que Pascal nomeava o espírito de finesse.
323
4. Essas são, com efeito, as características de uma razão na qual o espírito de geometria,
por causa seu desenvolvimento excessivo, comprimiu o bom senso e não lhe permitiu
expandir-se em espírito de finesse.
324
319
DUHEM, P.: SA/GS, pp. 6-7/7.
320
JAKI, S.: 1991a, p. xix.
321
DUHEM, P.: SA/GS, p. 76/58.
322
DUHEM, P.: SA/GS, p. 89/68.
323
DUHEM, P.: SA/GS, p. 29/24-5.
324
DUHEM, P.: SA/GS, p. 43/35.
119
5. No desenvolvimento excessivo do espírito de geometria, no aborto do espírito de
finesse e mesmo do simples bom senso, nós descobrimos vícios profundos.
325
6. [...] esta perfeição do bom senso que é o espírito de finesse.
326
7. Eu saudaria nele [Pasteur] a perfeição do bom senso francês, um exemplo completo do
espírito de finesse.
327
8. Sem dúvida, o incessante uso do raciocínio matemático não mudou o caráter
experimental dessas ciências [a estática, a dinâmica...]; suas hipóteses não são
princípios dos quais o simples bom senso nos dá certeza plena.
328
9. Os axiomas [da geometria] condensam neles tudo o que o senso comum, aguçado em
espírito de finesse, pode descobrir de verdadeiro.
329
Conjugando as passagens acima, podemos ver que as citações 1 e 2 não estabelecem
qualquer relação causal entre bom senso e senso comum (e nem com um terceiro termo),
embora sejam suficientes para diferenciarem-nos do espírito de finesse. As citações 3 e 4
estabelecem a seguinte relação entre o bom senso e o espírito de finesse: este seria o
desenvolvimento extremo daquele, enquanto a citação 9 diz o mesmo da relação entre o
senso comum e o espírito de finesse. Nas citações 6 e 7 ocorre a identificação entre a
perfeição do bom senso e o espírito de finesse. A perfeição do bom senso, então, difere do
senso comum e do bom senso, mas a citação 5 estabelece igualmente uma distinção entre o
simples bom senso e o espírito de finesse, subjugados pelo desenvolvimento excessivo do
espírito de geometria. Assim, simples bom senso, bom senso e senso comum são, todos,
distintos do espírito de finesse. Ora, a citação 8 atribui ao simples bom senso o poder de
conferir certeza aos princípios das ciências não experimentais, enquanto a 9 reserva o
mesmo poder ao senso comum (ambos são indiretamente relacionados às ciências do
raciocínio). Ao menos no que diz respeito à função de garantia de certeza nas ciências do
raciocínio, simples bom senso e senso comum identificam-se e, como vimos, ambos
também são passíveis de se aguçarem em espírito de finesse.
Temos, pois, uma distinção esclarecedora: o bom senso da Théorie physique equivale
à perfeição do bom senso (o espírito de finesse) na Science allemande, mais
especificamente, de sua segunda lição, acerca das ciências experimentais. Duhem não
identifica na Science allemande, como quer Jaki, bom senso e espírito de finesse, mas
325
DUHEM, P.: SA/GS, p. 88/67.
326
DUHEM, P.: SA/GS, p. 31/26.
327
DUHEM, P.: SA/GS, p. 98/75.
328
DUHEM, P.: SA/GS, p. 34/28.
329
DUHEM, P.: SA/GS, p. 71/55.
120
afirma que este é uma das formas de perfeição do bom senso. Nas ciências do raciocínio, a
percepção imediata da obviedade dos axiomas é apanágio do simples bom senso, enquanto
nas ciências experimentais, quando nenhuma regra rígida guia o espírito, a engenhosidade
do espírito de finesse torna-se indispensável.
Elevemo-nos a um nível superior de generalidade e para resumirmos as distinções
conceituais gerais entre senso comum e bom senso encontradas na obra duhemiana. Em
primeiro lugar, existe o senso comum como observação imediata, fonte de verdades
empíricas expressas em proposições (leis) pouco analisadas. Em segundo lugar, existe
aquele senso comum que é consabido, renovável, cujo significado aproxima-se muito do
conhecimento (científico) vulgarizado. Em terceiro lugar, há o senso comum como
idêntico ao “simples” bom senso, algo que seria como que a estrutura da mente humana,
responsável por formar os princípios metafísicos, morais, geométricos etc., sem os quais
não seria possível pensar ou evitar o ceticismo. Em último lugar, haveria o bom senso dos
cientistas, decorrente do aprendizado contínuo, equivalente ao espírito de finesse (a
perfeição do bom senso).
Por fim, não restam dúvidas de que La science allemande foi motivada pelo
patriotismo duhemiano diante da guerra que acabara de eclodir. Esse aspecto tende a
suscitar dúvidas acerca da coerência integral do pensamento duhemiano, as quais recaem
precisamente sobre as publicações que mais deixam transparecer as preocupações de sua
época. As leituras podem, evidentemente, ser matizadas; em vez de se falar em
“contradição”
330
, uma posição talvez excessiva, por atribuir a aspectos externos uma
importância determinante no curso da obra, pode-se optar por uma qualificação tal qual
“inconstância”
331
, bem mais branda diante da estranheza exposta, ou, ainda, evitar o
partido da contradição em função daquele que defende uma “mudança de perspectiva.”
332
Nesta Parte, e em nossa Dissertação como um todo, acreditamos poder evidenciar, no que
tange especificamente à noção de senso comum, apenas uma ênfase outorgada a um de
seus sentidos, já pronto quando da Théorie physique. Quanto à existência de inconstâncias
no pensamento de Duhem, nada temos a objetar. Pensamos que elas de fato existem, mas é
preciso ter isso em mente: a falta de constância pode ser constatada não apenas em um
período particular das publicações duhemianas, mas em boa parte delas
333
.
330
MAIOCCHI, R.: 1985, p. 232.
331
BRENNER, A.: 1990, p. 124. As referências de Brenner à SA esgotam-se na página indicada.
332
MARTIN, R. N. D.: 1991, p. 80.
333
Fornerecemos alguns exemplos específicos de tais inconstâncias ao longo da próxima Parte.
121
PARTE 2
EXPLICAÇÃO METAFÍSICA E CLASSIFICAÇÃO
NATURAL
Nous avons une impuissance de
prouver invincible à tout le
Dogmatisme; nous avons une idée de
la vérité invincible à tout le
Pyrrhonisme.
i
Na Primeira Parte de nossa Dissertação, examinamos as noções de senso comum e bom
senso em Duhem, distinguindo sentidos diversos para elas. Falamos em um senso comum
como sinônimo a opinião recebida, em um senso comum como observação imediata e
incontestável e outro como constituído de um fundo de noções, princípios e o meta-
princípio de unidade lógica, que servem de base a todo tipo de conhecimento humano.
Além disso, falamos de dois tipos distintos de bom senso, sendo o primeiro deles idêntico a
este último tipo de senso comum e outro, que pode ser definido como a perspicácia
adquirida pelo teórico com a prática cotidiana da ciência. Nesta Parte, faremos constantes
menções ao terceiro tipo de senso comum elencado acima, na medida em que dele deriva,
i
PASCAL, B., citado em DUHEM, P.: TP, p. 36, p. 509.
122
assim como o meta-princípio de unidade lógica, o meta-princípio de classificação natural,
nosso assunto a partir de agora.
Nas análises que se seguirão, não pudemos evitar o estilo adotado até agora, que
consistiu em distinguir sentidos diversos aos termos estudados. Isso se justifica, cremos
nós, por mais de um motivo. Em primeiro lugar, tais distinções conferem clareza superior e
rigor argumentativo; em segundo, Duhem não pode de modo algum ser considerado um
filósofo analítico, e a precisão relativa de seu discurso muitas vezes tende a comprometer o
entendimento do leitor, tornando-o, por vezes, confuso a ponto de gerar controvérsias
infindáveis entre os comentadores, até mesmo sobre questões gerais; em terceiro lugar, os
termos que estudaremos não podem passar batidos, pois, além de fundamentais,
correlacionam-se na formação de seu pensamento. Apesar de tornar o texto maçante e
cansativo, daremos prosseguimento à nossa bateria de distinções, sempre que o momento
apresentar-se como o mais oportuno. As principais noções avaliadas e subdivididas
conforme o seu sentido serão as seguintes: natureza, explicação, verdade, realidade e
analogia. Procederemos, em seguida, na direção contrária, ligando e articulando entre si os
sentidos que nos interessam, compondo nossa interpretação.
Dentre as conclusões que esperamos obter nesta Parte, a principal delas, e, sem
dúvida, à primeira vista a mais aberrante, é a seguinte: o objeto último da teoria física para
Duhem é a explicação das leis experimentais responsáveis por ligar entre si os fenômenos.
Evidente que isso não pode ser dito sem boa justificação, afinal, já se cansou de dizer que,
para nosso autor, a física teórica é uma física representativa e que restringe seu objeto a sê-
lo tal e qual. Além disso, não é a explicação uma prerrogativa da metafísica? Duhem não
havia distinguido nitidamente a física da metafísica com o objetivo de manter a autonomia
da física diante das especulações metafísicas? Mas se o objetivo da física é a explicação,
ele não se vê enredado na mira certeira das críticas que veriam nisso nada menos que a
própria subordinação da física? Mais: se o objeto da física é a explicação dos fenômenos,
então onde reside a verdade das teorias, na adequação empírica (fenomênica) ou na
correspondência com uma realidade transcendente (ontológica)? Qual o estatuto dos
fenômenos? São eles destituídos de valor ontológico, reduzindo-se à mera aparência de
uma realidade desconhecida? Mas não acabamos de ver que as leis derivadas da
observação imediata são imutáveis, absolutas e verdadeiras? Então como pode a verdade
das leis do senso comum ser derivada daquilo que não passa de aparência receptadora da
verdadeira realidade? Seriam menos verdadeiras as leis do senso comum?
123
* * *
A ligação entre o princípio de unidade lógica e o ideal de classificação natural não
pode ser obnubilada: ambas as diretrizes constituintes da metodologia duhemiana
justificam-se por meio do senso comum, ambas são também aquelas de maior cunho
realista. Tanto em “A escola inglesa e as teorias físicas” quanto em La théorie physique
elas são intimamente ligadas. À tendência sentida pelo físico à unidade lógica da teoria, de
que tratamos na Parte anterior, vem a ser acrescentada mais uma, a da classificação natural,
duas aspirações impossíveis de serem sufocadas:
Essa primeira aspiração na direção de uma teoria da qual todas as partes se ajustam
logicamente umas com as outras é, aliás, a inseparável companheira desta outra
aspiração, da qual nós já constatamos a irresistível potência
334
, na direção de uma
teoria que seja uma classificação natural das leis físicas.
335
Assim como a noção de senso comum não é dada de uma maneira imediata, o
mesmo, cremos, acontece com a noção de classificação natural. Na seção 2.1, nosso intuito
será mostrar a cogência da introdução da noção em questão em “A escola inglesa e as
teorias físicas”. Partiremos de uma breve análise de seu primeiro artigo epistemológico,
“Algumas reflexões sobre as teorias”, no qual Duhem combate a visão dogmática do
conhecimento teórico (representada pelo indutivismo e pelo mecanicismo), mostrando que,
ao tentar diminuir o valor ontológico das teorias físicas, Duhem acaba por resvalar no
convencionalismo científico. Daí seguiremos (seção 2.2) para as críticas de Vicaire àquele
artigo e a resposta duhemiana e elas encontrada tanto em “Física e metafísica” como no
ensaio acerca da escola inglesa. Neste, nosso autor abre sem rodeios a via para uma
concepção não convencional do objetivo das teorias físicas, com a introdução da noção de
classificação natural, definida como “a explicação metafísica total e adequada da natureza
das coisas materiais.”
336
Após examinarmos o significado do ideal de classificação natural,
faremos, na seção 2.3, algumas observações sobre a concepção duhemiana da história da
ciência, salientando a importância do que ele chama de o método histórico, bem como os
resultados advindos da sua aplicação à da história da física. Aqui, uma idéia será
334
A essa altura, Duhem já havia tratado da noção de classificação natural na seção quatro do segundo
capítulo da Parte I da TP.
335
DUHEM, P.: TP, pp. 153-4.
336
DUHEM, P.: EITF, p. 78.
124
fundamental: segundo nosso autor a história da ciência segue leis que o historiador pode
conhecer através da análise apurada da evolução das teorias. Entre essas leis, a que mais
nos interessará será a que afirma o desenvolvimento contínuo e gradual das teorias físicas
em direção à teoria ideal (a classificação natural). Desse modo, a história da ciência serve
como apoio objetivo para fortalecer a crença de que a teoria perfeita pode efetivamente ser
obtida, mas ao mesmo tempo, em sua especificidade, a tese continuísta parece criar um
problema para a obtenção da classificação natural tal qual definida anteriormente: Duhem
defende que não é toda a teoria em sua totalidade que evolui ininterruptamente, mas é
apenas a parte representativa das teorias que recebe seguidos acréscimos; a parte
explicativa sofre sucessivas revoluções sem qualquer garantia de sucesso duradouro.
Assim, o problema esta posto: como conciliar a definição de classificação natural como
explicação metafísica se a história mostra que aquela deveria ser, em sua forma limite, uma
representação total e adequada. Na seção 2.4, nossa maior preocupação será em deslindar
o mecanismo por trás de afirmações à primeira vista tão contrárias. Quando tratarmos da
noção de classificação natural na Théorie physique, mostraremos que Duhem insiste numa
distinção, anteriormente deixada de lado, entre explicação certa e explicação hipotética.
Afirmaremos que o objetivo de Duhem, com a noção de classificação natural, é a
explicação das leis experimentais, fornecendo mais uma evidência do realismo
metodológico duhemiano. Tentaremos mostrar que, apesar de nossa interpretação parecer
trair o pensamento do autor, à medida que ela comprometeria a autonomia da física,
argumentaremos a favor da existência de uma subordinação da física à metafísica que não
seria apenas legítima, mas profícua e essencial à prática científica. Finalmente, na seção
2.5 teceremos algumas considerações gerais sobre a avaliação de alguns comentadores
acerca da importância da noção de classificação natural em sua filosofia, mostrando que é
possível falar na existência, para além da classificação dos seres, de uma classificação
natural dos saberes.
2.1. A crítica ao dogmatismo e o resvalo no instrumentalismo
São conhecidas as numerosas menções de filósofos eminentes ao “instrumentalismo”
duhemiano. Houve quem disse, certa vez, que um bom filósofo geralmente é um péssimo
comentador. O quão bom filósofo e comentador Popper foi no exemplo que nos toca não é
125
questão primordial a ser considerada aqui; determinar o que vem a ser com maior precisão
o instrumentalismo já é algo de maior importância.
Se há um texto de Popper que provocou celeuma e reações por vezes indignadas é o
seu “Três pontos de vista sobre o conhecimento humano.”
337
Um dos motivos de tantas
réplicas é a classificação de Duhem, ali exposta, entre os filósofos instrumentalistas.
Existem vários ensaios na literatura especializada que já se empenharam em desfazer o
engano popperiano, e não é nossa intenção analisar a propriedade destes.
338
Citaremos
Popper não com o intuito de combatê-lo (o que não implica qualquer concordância nossa
com o falseacionista
339
), mas porque a divisão que ele traça entre as três concepções sobre
o conhecimento humano e o modelo dos três mundos ser-nos-á bastante útil quando
tratarmos do realismo duhemiano. A classificação tripartite das concepções científicas
pode ser mais bem entendida através do seguinte esquema
340
:
Passemos às divisões dos pontos de vista: (1) ponto de vista “essencialista”; seus
partidários acreditariam que a demonstração definitiva da verdade de uma teoria não só é
possível, como também que as melhores teorias disponíveis atingem as essências, as
realidades últimas por trás das aparências. O essencialista não apenas crê nessa
possibilidade explicativa dos fenômenos, como tem-na por objetivo final de suas
pesquisas. No modelo exposto acima, concebido para se encaixar no paradigma
337
POPPER, K.: [1963] 1972, pp. 125-46.
338
GIEDYMIN, J.: 1975; JOY, G.: (1975). Instrumentalism: A duhemian reply to Popper. The Modern
Schoolman 52 (2), 194-9; GIEDYMIN, J.: (1976). Instrumentalism and its critique: A reappraisal. Essays in
Memory of Imre Lakatos. COHEN, R. (ed.). Dordrecht: D. Reidel; WORRAL, J.: 1982; MARICONDA, P.:
1986; ABRANTES, P.: 1989; SOUZA FILHO, O.: 1996.
339
Não travaremos contato com a concepção popperiana, o “terceiro ponto de vista”, pois ao fazê-lo
distanciar-nos-íamos de nosso objetivo.
340
POPPER, K.: (1963) 1972, p. 135.
126
essencialista, “a” e “b” são fenômenos; “A” e “B” são as realidades correspondentes; “α” e
β”, as representações dessas realidades; “E” são as propriedades essenciais de “A” e “B”,
e “ε” é a teoria que descreve “E”. Assim, a partir de “ε” e “α” poder-se-ia deduzir “β”, ou,
em outras palavras, seria possível explicar por que “a” leva a “b”; (2) ponto de vista
“instrumentalista”; os instrumentalistas negariam de início a existência do mundo “1”, de
sorte que “α” descreveria diretamente “a” e “β”, diretamente “b”. Por sua vez, “ε” não
descreverá mais nada; ao deixar de descrever “E”, “ε” reduz-se a um simples instrumento
de cálculo (um conjunto de regras) para a dedução de “β” a partir de “α”. Como se vê, o
instrumentalista é levado a afirmar que a explicação metafísica (definitiva) dos fenômenos
não é um objetivo porque a ciência é incapaz de atingir a essência oculta das coisas.
341
Para
o instrumentalista, como os termos teóricos não descrevem nada (não se referem a
entidades reais), não possuem sentido físico. Excluída a referência de “ε”, ou seja, “E”, a
teoria física perde seu valor de conhecimento ontológico
342
, e têm seu valor reduzido ao
conhecimento aplicado; a distinção entre “ciência pura” e “ciência aplicada” dissolve-se e
toda ciência torna-se aplicada, ou, ainda, toda ciência torna-se um conjunto de regras
práticas
343
, sem valor de verdade. Definidas como instrumentos, as teorias físicas seriam
concebidas com o propósito de funcionar numa área restrita e previamente delimitada, e só
deveriam ser julgadas por sua aplicabilidade nesta mesma área, de sorte que os “testes” a
que elas seriam submetidas invariavelmente teriam como resultado a confirmação das
mesmas. No caso de uma teoria ser refutada, a saída instrumentalista resume-se a restringir
os limites de sua aplicabilidade, sem abandoná-la de todo – ela continuaria sendo
(pragmaticamente) correta onde seus conceitos pudessem ser aplicados. E mais; ao
acentuar a aplicação da teoria, o instrumentalista, afirma Popper, não apenas deixaria de se
importar com o rigor dos “testes” como também deixaria o espaço aberto para a livre
prática do “estratagema convencionalista”
344
, isto é, o uso de hipóteses ad hoc para salvar
uma teoria da contradição.
Eis uma exposição bastante sintética do intrumentalismo, conforme definido pelo
falseacionista. Diante dela, vários acadêmicos conhecedores da obra duhemiana
341
No esquema popperiano, os instrumentalistas seriam, como Giedymin atentou, igualmente fenomenalistas,
por excluirem a existência do mundo “1” (GIEDYMIN, J.: 1975, p. 278).
342
Desde já, preferimos usar a expressão “ontológico” em vez de “descritivo”, usada até aqui por Popper,
uma vez que um termo descritivo, na linguagem popperiana, seria equivalente a “explicativo” no vocabulário
duhemiano, e possuiria um significado metafísico forte, vale dizer, a referência ao mundo “1”.
343
POPPER, K.: (1963) 1972, pp. 138-9.
344
POPPER, K.: (1935) 1980, p. 46.
127
experimentaram certa insatisfação por verem o filósofo francês enquadrado no segundo
ponto de vista sem maiores considerações, e alguns deles empenharam-se em mostrar a
inadequação do esquema popperiano. Cito rapidamente três críticas feitas: Giedymin
ressaltou que Duhem não defende a total redução das teorias a hipóteses sem valor de
verdade. Haveria pelo menos algumas sentenças teóricas que seriam empíricas e poderiam
funcionar como premissas em explicações do tipo dedutivo-nomológico, enquanto outras,
que também serviriam de premissas para a dedução de conseqüências experimentais, não
seriam nem verdadeiras nem falsas. Assim sendo, se as sentenças não possuem um valor de
verdade determinado num dado momento, isso não significa que elas não possam ter o seu
valor de verdade determinado no momento do teste experimental.
345
A essa visão,
Giedymin chamou de “instrumentalismo moderado.”
346
Mariconda
347
, por sua vez, também
tomou partido contra a interpretação puramente instrumentalista que Popper faz de Duhem,
amparando-se na noção duhemiana de classificação natural. Além de Duhem não negar a
existência do mundo “1” popperiano, ele acreditaria que com o progresso da teoria física,
345
Já chamamos a atenção sobre esse ponto na seção 1.4.1. quando diferenciamos a posição de Duhem da de
Le Roy.
346
GIEDYMIN, G.: 1975, p. 280.
347
MARICONDA, P.: 1986, Conclusão. Mariconda, mesmo reconhecendo que o instrumentalismo imputado
a Duhem por Karl Popper tem de ser formulado em novos termos, visto que o instrumentalismo duhemiano
corresponde não a uma recusa do valor ontológico das teorias físicas (MARICONDA, P.: 1986, p. 126), mas
a uma “tática metodológica”, continua a insistir na bipolaridade entre realismo/intrumentalismo, a qual,
segundo tentaremos mostrar à frente, acaba por criar dificuldades quando da classificação do pensamento
duhemiano. Algo ao qual o comentador parece não ter atentado é que o realismo mereceria qualificações,
uma vez que o realismo criticado por Duhem é o realismo dogmático (ou essencialismo, na terminologia de
Popper) – o realismo que parte da presunção de que a verdade, a constituição última do real, pode ser obtida
diretamente pela teoria. O realismo dogmático, incomum hoje em dia, é o autêntico responsável pela
subordinação da física à metafísica, na exata medida em que ele eleva a teoria física ao estatuto de sistema
metafísico, fornecendo àquela os seus próprios princípios (supostamente verdadeiros). Da perspectiva
dogmática, as teses de caráter metafísico passam a determinar as hipóteses e leis experimentais da física,
explicando-as. Na medida em que Mariconda, seguindo Toulmin, define o realismo na afirmação de que “o
fim a que se propõe a ciência é a descoberta da realidade”, e que para o instrumentalismo “o fim da ciência é
a enunciação de predições corretas” (TOULMIN, S., citado em MARICONDA, P.: 1986, p. 121), o
comentador fecha as portas para uma avaliação positiva do pensamento duhemiano, pois, ao deixar de ser um
instrumentalista no sentido acima descrito, realista Duhem também não poderá sê-lo, já que, páginas atrás,
Mariconda havia definido a tradição realista (rótulo não usado por Duhem, diga-se de passagem) como a
procura da “explicação de um conjunto de leis experimentais estabelecidas” (MARICONDA, P.: 1986, p.
118). Se Duhem não é instrumentalista, ele não pode ser realista, dada a sua recusa da teoria física como
explicação metafísica dos fenômenos. A classificação mesma de seu pensamento, mantida a oposição entre
realismo e instrumentalismo, encontra-se destituída de sentido. Daí nossa preferência em aceitar a definição
proposta por Toulmin do realismo científico em concomitância com a recusa da identificação entre este
realismo e o dogmatismo (ou explicativismo). Cremos que uma oposição mais condizente seria caracterizada
pelo par dogmatismo/ceticismo, sempre tendo em mente as correntes adversárias que o próprio Duhem
criticava (CHIAPPIN, J.: 1989). Neste caso, a caracterização de Duhem como realista (não dogmático)
readquire espaço, e a verdade volta a ser digna do objeto das teorias físicas.
128
esta passaria a estabelecer um acordo analógico com o mundo das essências. Outro
estudioso que tentou lançar alguma sombra nas reverberantes sentenças popperianas foi
John Worral. Worral, apesar de permanecer rotulando a filosofia duhemiana de
instrumentalista
348
, atenta para várias teses de pendor realista defendidas por Duhem.
Aquela que mais nos interessa não é, na verdade, uma tese propriamente dita, mas uma
exigência da metodologia duhemiana, já estudada por nós, que concerne ao princípio de
unidade lógica:
O fim da física matemática, para ambos os filósofos [Duhem e Poincaré] não é prover
apenas uma codificação das leis empíricas, mas, ao contrário, uma codificação que
seja maximamente unificada e simples. Para Duhem, a simplicidade era uma exigência
primitiva [prime] desde o início. [...] Ele era, por outro lado, menos preciso acerca do
princípio de máxima unidade. Por razões que eu nunca entendi completamente, ele
finalmente colocou este princípio (bem ao contrário do princípio de simplicidade) fora
da lógica da própria ciência. Não se trata de um princípio que é imposto ao cientista,
mas de um princípio que guiará as ações do cientista com “finesse.” Mas, desde que a
finesse” é tão importante para Duhem, o estímulo para a unidade deveria, penso, ser
incluído juntamente com o ímpeto pela simplicidade como parte de sua metodologia
global.
349
Worral está certo em relevar a “finesse” e ao incluir o princípio de unidade lógica na
metodologia “global” duhemiana. A “codificação” não se reduz à simples representação
das leis empíricas, mas tem de obedecer, além disso, a exigências outras. De fato, como
afirma o comentador, a simplicidade seria uma exigência primitiva da teoria física, na
medida em que Duhem define a finalidade da teoria física em 1892 como se segue:
A ciência teórica tem por fim aliviar a memória e ajudá-la a reter mais facilmente o
aglomerado de leis experimentais. Quando uma teoria é constituída, o físico, ao invés
de reter isoladamente um aglomerado de leis, não necessita reter senão a definição de
um pequeno número de proposições enunciadas na linguagem das matemáticas
350
.
Não há nenhuma menção aqui sobre a unidade da teoria física. A simplicidade
teórica, “desde o início”, como diz o comentador
351
, relaciona-se intimamente com a
própria definição de teoria científica. Ora, Worral não erra ao afirmar que a origem do
348
WORRAL, J.: 1982, p. 203.
349
WORRAL, J.: 1982, p. 207.
350
DUHEM, P.: ARTF, p. 14.
351
“Desde o início”, para Worral, talvez signifique “desde o início da TP”, pois sua análise restringe-se a ela;
provavelmente um acerto indireto, pois que a simplicidade aparece relacionada à teoria física desde o início
dos textos duhemianos. Já discutimos o valor da simplicidade teórica atrás, quando fizemos nossa crítica a
Lakatos.
129
princípio de unidade máxima era menos precisa que a origem da simplicidade, mas isso
não significa que a unidade inter-teórica deixasse de ser um valor pressuposto no início das
publicações duhemianas. Como já vimos, seu surgimento dá-se de modo explícito apenas
em “A escola inglesa e as teorias físicas”, mas, como Vicaire já notou
352
, ela pode ser
entrevista já em seu primeiro ensaio epistemológico.
Mas Worral afirma ainda não entender por que o princípio de unidade lógica está
fora da lógica da ciência duhemiana (embora faça parte de sua metodologia).
Basicamente, segundo ele, Duhem permanece sendo um instrumentalista que não visa à
verdade no sentido metafísico do conhecimento. Como vimos anteriormente, a lógica da
ciência, para nosso autor, é a lógica instrumentalista, que define as teorias e fixa para elas
um objetivo totalmente prático; mas a metodologia, na qual o princípio de máxima
coerência é subsumido, pressupõe uma cesta de compromissos ontológicos incompatíveis
com o instrumentalismo e, portanto, incompatível com a pura análise lógica. Como Worral
desconhece o compromisso ontológico por detrás da metodologia duhemiana, a unidade da
ciência aparece como um estímulo acessório. Vejamos isso melhor, recorrendo ao ensaio
duhemiano “Algumas reflexões sobre as teorias físicas”, um dos exemplos mais acabados
da aplicação da análise lógica às teorias.
O objetivo de seu primeiro ensaio epistemológico pode ser definido desta maneira:
trata-se de evitar toda forma de dogmatismo, instaurando o caráter essencialmente
hipotético das teorias físicas. Ao mesmo tempo, com o devido afastamento do caráter
metafísico destas, percebemos uma tentativa de afastar o relativismo teórico, provável e
temível horizonte de suas análises. Coerentemente, Duhem reduz de modo drástico as
pretensões legítimas do uso das teorias físicas, como a própria definição do objeto da
teoria, exposta acima, dá-nos a entender. Assim, o indutivismo genético é criticado logo no
início do artigo e a tese da subdeterminação é concluída ao fim da seção 4, justificando a
necessidade de hipóteses. Ora, como as teorias não são deduzidas diretamente da
experiência, segue-se que elas sempre apresentarão um caráter hipotético, incerto, e sempre
estarão abertas a mudanças e sujeitas ao desmentido experimental. Mais: a afirmação da
liberdade na criação das teorias não está isenta de dificuldades, pois o problema que surge
agora é o da escolha das hipóteses. Se não há um método algorítmico para a sua
elaboração, como construir as teorias? Em função de quê as hipóteses devem ser
escolhidas? Uma primeira resposta é dada: o novo critério é a adequação empírica. O valor
352
Ver seção 1.3.2.
130
das teorias, portanto, deve ser julgado através do seu sucesso experimental, e Duhem
elenca dois critérios valorativos a serem utilizados para julgar teorias rivais:
O valor de uma teoria não depende somente do conjunto de leis que se pretende
resumir com essa teoria. Depende ainda do grau de precisão dos métodos
experimentais que servem para estabelecer ou para aplicar essas leis.
353
Quanto maiores forem a extensão representativa e a precisão descritiva, maior o
valor da teoria, o qual permanece, por sua vez, sempre relativo a um determinado conjunto
finito de leis experimentais. Todavia, ainda assim, o valor em questão permaneceria sendo
um valor instrumental de aplicação. Como duas teorias devem ser julgadas sempre
levando em conta um domínio restrito de leis experimentais, isso em nada impediria o
eriçamento de teorias incompatíveis entre si para representar domínios distintos de leis
experimentais. A unidade das teorias depende simplesmente de critérios pragmáticos. O
físico pode legitimamente construir teorias como bem entender, desde que elas
representem um extenso número de leis experimentais com adequação satisfatória. Essas
considerações guardam, ainda, um problema adicional: a possibilidade legítima do uso de
hipóteses explicativas não é excluída. Esta é a conseqüência da eleição dos critérios de
valor acima expostos. Daí que Duhem insista, ainda outra vez, em restringir por meio de
regras a escolha entre teorias rivais, a começar por suas hipóteses. Dentre os critérios
listados estão: (1°) a compatibilidade mútua das hipóteses; (2°) a independência recíproca
delas; (3°) a utilidade de cada uma.
354
Ao final de seu artigo Duhem arrola os seguintes
critérios para viabilizar a escolha entre teorias: (1°) a extensão da classe representativa das
teorias; (2°) o número de hipóteses de uma teoria; (3°) a natureza dessas hipóteses. É
importante notar que Duhem nada diz com o segundo critério sobre a simplicidade. O
número de hipóteses não é o mesmo que a simplicidade: uma teoria pode ter um número
extremamente reduzido de hipóteses e termos iniciais embora isso não seja garantia
suficiente de sua simplicidade, pois, por conta de uma base tão estreita, os cálculos podem
se tornar extremamente complicados para salvar os fenômenos
355
:
O primeiro inconveniente de semelhante método [das teorias mecânicas] é que,
restringindo o número de elementos por meio dos quais deve ser construído o símbolo
353
DUHEM, P.: ARTF, p. 21.
354
DUHEM, P.: ARTF, p. 30.
355
É de se notar ainda que “o número de hipóteses” não será mais incluído na obra duhemiana entre as
instâncias de escolha entre teorias, embora a simplicidade o seja.
131
de um conjunto de leis, não se deixa outro recurso ao físico, para responder a todas as
exigências da experiência, senão o de complicar as combinações que ele forma com
esses elementos.
356
O germe que mata as teorias mecânicas, obrigando-as a transformarem-se
gradualmente em teorias físicas é precisamente a exigência de uma forma tão estreita. Mas
os cálculos também dependem de outro fator, vale dizer, da natureza das hipóteses. Por
“natureza das hipóteses” Duhem entende o grau de artificialidade das mesmas; quanto
menos artificiais, quanto menos tenderem elas para a explicação dos fenômenos, melhor
serão. Assim, a física cartesiana, apoiando-se não apenas num reduzido número de
hipóteses, mas sobretudo em hipóteses de natureza mecânica (pouco naturais) levaria
ulteriormente, diante do desmentido empírico, à introdução de novas hipóteses igualmente
arbitrárias, caso os seus defensores insistissem em sua manutenção. Critério à primeira
vista sedutor, a simplicidade pode revelar-se perniciosa e entravar o progresso do
conhecimento. Se quisermos aceitá-la como critério metodológico, de modo mais apurado
e seguro, temos de entendê-la como a conjunção do número de hipóteses e dos cálculos
necessários para representar os fenômenos, de sorte que sua realização dependeria da
realização integrada dos critérios 2 e 3.
357
Algo mais precisa ser dito. Se a principal crítica duhemiana dirigida ao
mecanicismo diz respeito à sua tênue adequação empírica, logo sobrepujada pelo
conhecimento de novos fatos que as teorias mecânicas não conseguem salvar
adequadamente, não podemos concluir que a adequação empírica seja um critério
suficiente se tomado em separado. O motivo é simples: uma teoria anteriormente
contradita pelos fatos pode ser alterada para entrar novamente em acordo com eles,
decorrendo disso a reemergência de sua viabilidade teórica. O único argumento razoável
que o físico teria para rejeitá-la seria uma teoria com, no mínimo, igual adequação
empírica (excetuado, é claro, uma contradição lógica interna da mesma) e pelo menos
outra virtude acessória. Assim, a adequação empírica não é necessariamente um critério
autônomo que impeliria a opção entre duas ou mais teorias. Se uma teoria reaparece
reformulada após sucessivos insucessos experimentais, isto é, se a sua adequação empírica
é mantida ao custo de retoques seqüenciais, isso já é razão suficiente para severa
356
DUHEM, P.: ARTF, p. 24.
357
Devemos ainda distinguir entre o princípio de economia de pensamento, que será literalmente encontrado
na TP, e o critério de simplicidade. Eles não são a mesma coisa. Enquanto o primeiro refere-se ao caráter
intrínseco das teorias, à sua definição mesma (um esquema ideal simplificado do mundo concreto), o
segundo não passa de um critério que permite escolher entre pelo menos duas teorias rivais.
132
desconfiança sobre o seu futuro. Quando ela é consecutivamente complicada, em si, essas
complicações acabam por fazer ver a sua “esquisitice”, a sua arbitrariedade. O sentimento
do “natural”, característica do bom senso, será determinante na recusa do “novo
cartesianismo.”
358
Entrementes, no primeiro ensaio, o bom senso não é sequer mencionado
como instância decisória.
A relatividade do julgamento das teorias físicas pode ser entendida de outro modo
que não apenas aquele que a liga a um domínio restrito de aplicação. Pode-se,
evidentemente preferir uma teoria a outra de maior valor, mais completa – mas essa
preferência, nos ensaios anteriores ao seu “A escola inglesa e as teorias físicas”, permanece
relativa também no sentido de que a comparação entre duas teorias empiricamente
equivalentes dá-se diretamente entre elas; não existe ainda terceiro termo fixo através do
qual ambas possam ser julgadas. Em sua cruzada contra as explicações mecânicas, a
relatividade instaurada pelo filósofo evita que as teorias sejam remetidas à verdadeira
explicação dos fenômenos.
Como em “Algumas reflexões sobre as teorias físicas” a física teórica é distinguida
da física experimental (a principal responsável pela descoberta de novas leis) e da física
aplicada (à qual é reservada a criação de instrumentos úteis à prática), a preditividade de
novas leis não aparece como objeto da física teórica, logo, ela não pesa criteriosa sobre a
teoria física naquele ensaio: “A teoria está destinada a coordenar as leis descobertas pela
experiência: ela não está destinada a fazer descobrir novas leis.”
359
O papel da
preditividade é deixado em segundo plano em função da concepção da teoria como função
psicológica de alívio à memória. A predição, cujos efeitos positivos não são de modo
algum rejeitados, é a marca da fecundidade das teorias, mas uma fecundidade que em
momento algum eleva-se ao grau de exigência. Até aqui, a descoberta de novos fenômenos
é um objetivo ausente na metodologia duhemiana. Já na Théorie physique, como veremos
na seção 2.4, a predição de novas leis aparece como o principal motivo de persuasão que
leva o físico a crer que a teoria não é meramente um instrumento cômodo, mas responsável
por agregar conhecimentos novos, possuindo um valor de saber. Posteriormente, o sucesso
empírico das teorias acaba, no Traité d’énergetique, por tornar-se o principal problema a
ser tratado pelos analistas da teoria física:
358
DUHEM, P.: ETP, p. 493. Retornaremos a esse ponto ao final na próxima seção.
359
DUHEM, P.: ARTF, p. 36.
133
De leis físicas dadas, tirar novas leis físicas; seja que ela se proponha mostrar que
estas últimas leis, já conhecidas diretamente, são apenas conseqüências das primeiras;
seja que ela se proponha anunciar leis que o experimentador ainda não constatou.
360
Uma possibilidade interpretativa sobre a ausência da preditividade como “critério
cognitivo” pode estar alicerçada no fato de que Duhem reconhece em várias oportunidades
em seus primeiros ensaios a enorme fecundidade das teorias cinética e mecânica; um
empecilho seria criado à termodinâmica, tal qual preconizada por ele, caso a fecundidade
preditiva viesse a torna-se um objetivo, pois que ela seria provavelmente suplantada pelas
concorrentes. As explicações fornecidas por ele em “Algumas reflexões sobre as teorias
físicas” para a fecundidade das teorias mecânicas é a seguinte:
A fecundidade das teorias mecânicas, no século passado e no início deste século, não
é, pois, uma conseqüência lógica da natureza dessas teorias. Há simplesmente uma
coincidência entre sua forma mecânica, de um lado, e a multiplicidade e importância
das descobertas que elas produzem, de outro. Esta coincidência não é, aliás, de modo
algum fortuita, mas decorre das leis que presidem o desenvolvimento da ciência. É
desse modo que, na infância, a ingenuidade coincide com a aquisição de uma massa
enorme de conhecimentos sem que uma dessas características possa ser vista como
conseqüência da outra; uma e outra simplesmente coincidem e isso porque ambas
derivam das leis de desenvolvimento da inteligência humana. É no início de seu
desenvolvimento intelectual que a criança aprende mais. É também nesse início que
ela percebe com menos exatidão o valor desses conhecimentos.
361
360
DUHEM, P.: TE, p. 1. Note-se ainda que em ARTF, ao falar sobre as conseqüências experimentais
desenvolvidas das teorias, Duhem opera uma divisão entre as conseqüências que são experimentalmente
verificáveis e aquelas que não o são. Dentre as primeiras, as realmente importantes, somente duas classes
aparecem: “aquelas que se traduzem por uma lei experimental exata e as conseqüências cuja tradução está em
contradição com uma lei experimental” (DUHEM, P.: ARTF, p. 17). Duhem sequer menciona a possibilidade
de a teoria antecipar a experiência, de sorte que a teoria será julgada tanto melhor quanto maior a sua
extensão representativa e menor o esforço intelectual despendido na retenção de suas hipóteses. Ao contrário
do que encontraremos no TE, a previsão de novas leis não aparece em ARTF como problemática, porquanto
“Tudo isso é muito fácil de compreender” (DUHEM, P.: ARTF, p. 17). Na TP, Duhem não volta mais os
olhos às conseqüências que traduzem uma lei experimental verificada anteriormente, mas àquelas que, entre
as conseqüências ilimitadas deduzidas da teoria, representam leis experimentais possíveis de serem
verificadas (DUHEM, P.: TP, p. 37). O interesse, bem vemos, dirige-se ao novo, e uma nova instância
valorativa é acrescentada.
361
DUHEM, P.: ARTF, p. 28. Uma observação à parte precisa ser feita. A metáfora da criança usada por
Duhem pode fazer-nos lembrar a lei comteana dos três estados e sua comparação com o desenvolvimento
humano: “Ora, cada um de nós, contemplando a sua própria história, não se lembra de que foi
sucessivamente, no que concerne às noções mais importantes, teólogo em sua infância, metafísico em sua
juventude e físico em sua virilidade?” (COMTE, A.: [1830] 1983, p. 5). É bem verdade que o vocabulário
duhemiano, se em algumas ocasiões aproxima-se do escolástico (DUHEM, P.: FM; ETF; TP, sobretudo
“Physique de croyant”), contém igualmente numerosos indícios de contaminação positivista; “marcha das
coisas”, “lei histórica”, “classificação natural”, são algumas das expressões comuns a ambos, mas daí tirar a
conclusão de que tais conceitos guardam o mesmo sentido é expor-se ao erro. Discordando indiretamente de
Comte, nosso autor nega implicitamente a lei dos três estados: “Não acreditem naqueles que repetem:
‘raciocinamos completamente diferente e melhor que nossos antepassados’. Em toda época encontrou-se
134
Uma resposta, sem dúvida, que deixa a desejar, mas que aponta para algo que será
objeto de análises nas seções seguintes: a existência de leis que presidem o
desenvolvimento histórico das teorias. Dessas leis, uma em especial ratificará a
fecundidade decrescente das teorias mecânicas e a prosperidade das teorias puramente
físicas.
Faremos, neste parágrafo, como o fizemos na seção 1.1 da primeira Parte da
Dissertação, ao tratar da crítica duhemiana do experimento crucial, uma reconstrução
racional concisa das afirmações derivadas da análise lógica da ciência: a lógica diz que as
hipóteses científicas não são nem produto justificado pela simples indução (crítica ao
indutivismo genético com a instauração da tese da subdeterminação empírica) e nem
conseqüências deduzidas da verdadeira natureza das coisas (crítica ao apriorismo
metafísico), de sorte que não são nem verdadeiras nem falsas, mas apenas aproximadas
(tese convencionalista sobre a natureza das hipóteses). A teoria, por sua vez, é a
responsável por conjugar essas hipóteses entre si, classificando-as ordenadamente com o
fito de extrair conclusões que serão comparadas em seguida com a experiência. Ora, uma
classificação criada arbitrariamente pelo teórico não pode ser verdadeira ou falsa, mas
apenas um meio cômodo e útil (tese convencionalista sobre a natureza das teorias) de
previsão de regularidades fenomênicas. Como o sentido das hipóteses não é determinado
diretamente pela experiência ou por um sistema metafísico, em sistemas classificatórios
diferentes, uma mesma hipótese pode assumir sentidos diferentes, consoante sejam as
demais hipóteses com as quais ela se combinará para extrair as conclusões desejadas
(holismo semântico). Todavia, essas mesmas hipóteses não mudam de natureza, não
adquirem um valor ontológico quando combinadas em uma teoria, e suas conclusões
continuam a ser aproximadas; não, decerto, de uma realidade metafísica subjacente, mas
simplesmente das experiências evidentes aos sentidos. Em outras palavras, a verdade que
lhes pode ser atribuída permanece reduzida à adequação empírica (verdade no sentido
pragmático). Para complicar ainda mais as interpretações realistas, a realização dos testes
pessoas presunçosas para afirmar que antes delas o intelecto humano estava em sua infância, e que apenas
com eles ele deixou sua completa dependência. Doutrina cômoda aos preguiçosos, que os dispensa do estudo
das obras do passado [...]. De Platão aos nossos tempos, as faculdades que o espírito humano tinha à sua
disposição para pesquisar a verdade permaneceram as mesmas” (DUHEM, P.: SA/GS, p. 93/71). Consoante
Duhem, a ciência mudou com o tempo, mas não a boa maneira de fazer ciência; o método empregado na
construção do verdadeiro conhecimento da natureza permanece o mesmo desde o surgimento da própria
ciência.
135
experimentais e a avaliação da concordância da teoria com os experimentos pressupõem
uma carga teórica que dificulta até mesmo o acordo sobre os resultados atingidos (tese da
impregnação teórica da experimentação). Como não bastasse, uma vez atingido o
consenso sobre os resultados do teste empírico, no caso da confirmação da teoria, isso não
significa que ela seja verdadeira (falácia da afirmação do conseqüente) e, no caso de sua
refutação, a lógica é insuficiente para determinar a hipótese que é a causa de erro (holismo
metodológico), podendo esta ser atribuída a alguma hipótese auxiliar da teoria, o que
possibilitaria a manutenção da mesma (legitimidade lógica do uso do “estratagema
convencionalista”). A lógica também desautoriza o uso da falsidade de uma teoria como
prova conclusiva da verdade da teoria oposta, uma vez que é humanamente impossível
falar em estrita oposição entre elas, por conta da inumerabilidade das hipóteses que as
constituem (crítica ao experimento crucial). Resta um caso particular, em que uma única
teoria salvasse ao mesmo tempo todos os fenômenos do universo inanimado. Poderia ela
ser verdadeira? De modo algum. Mesmo aqui é logicamente possível imaginar outra teoria,
inconsistente com a primeira, que salvasse de igual modo todas as aparências que a
primeira salvava (tese da subdeterminação metafísica). Uma teoria pode, num caso
imaginário, ser suficiente para salvar ao mesmo tempo todos os fenômenos físicos, mas
isso não implica nenhuma necessidade. Mas geralmente nenhuma teoria é suficiente para
salvar ao mesmo tempo todos os fenômenos do universo imaterial: seu domínio de
validade é essencialmente restrito a um campo fenomênico bem delimitado, e é somente
por meio deste que ela deve ser julgada (relativismo teórico). De tudo isso se pode concluir
que a teoria é instrumento que visa essencialmente à aplicação e que a verdade não é um
objetivo digno dela.
2.2. A classificação natural em “A escola inglesa e as teorias físicas”
Já expusemos algumas das críticas de Vicaire ao ensaio duhemiano sobre as teorias físicas
na seção 1.3.2. Faremos menção, a partir de agora, a outras duas. A primeira delas está
ancorada na ausência de direção que caracteriza a escolha das hipóteses.
362
Consoante
Vicaire, uma vez que a pretensão explicativa é deixada de lado, o físico goza de uma
liberdade ilimitada na edificação de sua teoria; as hipóteses seriam escolhidas ao acaso
362
VICAIRE, É.: 1893, seção XI.
136
pois a lógica duhemiana é demasiado parca, e mesmo os critérios elencados por Duhem
seriam insuficientes para dirigir a escolha sem a idéia de causa.
363
A segunda crítica
evidencia a essência do artigo de Vicaire: a idéia de causa é o único fim digno da teoria
física. É errado reduzir as pretensões da teoria a um meio de aliviar a memória ou à
simples coordenação de leis experimentais:
O verdadeiro fim é o conhecimento da natureza, a explicação das leis por suas causas.
Nós devemos perseguir esse fim porque nós podemos. [...] Nós podemos porque tal é o
interesse capital da ciência. O conhecimento da natureza é o único objetivo capaz de
sustentar a curiosidade científica; a conformidade com a natureza, tomada por fim, é
um guia na construção das hipóteses; realizada, ela é a condição da fecundidade das
teorias.
364
A verdade da teoria é condição de sua fecundidade, mas para que aquela seja atingida
é preciso evitar toda contradição, seja entre duas teorias ou entre duas partes de uma
mesma teoria. Em última análise, mesmo isenta de todas as contradições uma teoria jamais
deverá ser considerada como definitiva.
365
Isso não nos impediria, prossegue o crítico, de
fixar um “estado ideal no qual todos os fenômenos da natureza inanimada se tirariam por
via de simples dedução de uma hipótese sobre a constituição e sobre o estado inicial da
matéria.”
366
É verdade que, como observou Poincaré, nenhum fenômeno isolado pode
ensinar-nos tudo sobre a natureza das coisas, pois a indeterminação reina absoluta
367
, mas
o que dizer do ensinamento proporcionado pelo conhecimento de todos os fenômenos?
368
Vicaire reduz a impossibilidade lógica da crítica de Poincaré à impossibilidade prática de o
homem adquirir conhecimento de todos os fenômenos; o conhecimento da causa volta a ser
uma meta real, à qual podemos nos dirigir indefinidamente.
A resposta duhemiana ao artigo de Vicaire demora poucos meses e pode ser
entrevista em dois artigos publicados ainda em 1893; “Física e metafísica” e “A escola
363
A solução a esta questão será dada por Duhem no nível da história da ciência, e por isso será assunto da
próxima seção.
364
VICAIRE, É.: 1893, pp. 509-10. Itálicos meus. Páginas antes Vicaire já se perguntava: “Podemos, ao
contrário, não penetrar todos os segredos da natureza, mas penetrar alguns deles; podemos adquirir dela um
conhecimento, não completo e adequado, mas real, formando uma representação que fosse verdadeiramente a
imagem do que existe? É evidente que se nós o podemos, nós devemos; que esse fim é o único digno de
nossos esforços e que as teorias que o atingissem deveriam levar infinita vantagem sobre as outras em beleza
e fecundidade” (VICAIRE, É.: 1893, p. 464).
365
VICAIRE, É.: 1893, p. 510.
366
VICAIRE, É.: 1893, p. 472. Itálicos meus.
367
As referências críticas a Poincaré encontram-se em: VICAIRE, É.: 1893, seção VI.
368
VICAIRE, É.: 1893, p. 471.
137
inglesa e as teorias físicas.” Não é o caso aqui de refazer a argumentação duhemiana acerca
da distinção entre física e metafísica. Já vimos que a física assenta-se sobre um método
independente (o método experimental) de todas as especulações metafísicas, e que o
tratamento que ela dá das leis experimentais consiste em sistematizá-las com o fim de
fornecer um quadro sinóptico resumido das mesmas através da sua representação e
classificação (e nisto consiste o método teórico). O método teórico distingue-se, portanto,
do método metafísico, já que não possui nenhuma pretensão imediata de descobrir as
causas das leis experimentais. Ao classificar as leis experimentais, a teoria não confere
sentido metafísico àquelas, de sorte que elas mantêm o mesmo estatuto de quando
separadas.
369
Em contrapartida, nenhum sistema metafísico é capaz, na prática, de fornecer
369
Não podemos deixar de mencionar aqui um erro interpretativo comum sobre uma passagem que, se lida
com um pouco mais de atenção, poderia ser evitado. Cito-a: “Entre um conjunto de leis experimentais
tomadas tais com a experiência as fez descobrir e o mesmo conjunto de leis ligadas por uma teoria existe a
mesma diferença que entre um punhado de documentos amontoados em desordem e os mesmos documentos
cuidadosamente classificados em uma coleção metódica. São os mesmos documentos; eles dizem exatamente
a mesma coisa e da mesma maneira; porém, no primeiro caso, sua desordem os torna inúteis, pois nunca se
está seguro de encontrar o documento de que se tem necessidade no momento em que dele se precisa,
enquanto que, no segundo caso, esses documentos se tornam fecundos através de um agrupamento metódico
que coloca o documento desejado nas mãos do pesquisador de um modo seguro e sem trabalho. As leis
físicas guardam exatamente o mesmo sentido quando uma teoria as conecta ou quando essas leis estão
espalhadas e isoladas. Elas não nos ensinam nada a mais no primeiro caso do que no segundo, apenas no
primeiro caso elas são mais fáceis de serem manipuladas, mais aptas a serem empregadas do que no segundo.
A ciência física não muda portanto de caráter e de importância tornando-se teórica” (DUHEM, P.: FM, p.
47). Analisando a passagem em questão, Maiocchi e Brenner acabam, de certo modo, descontextualizando-a
e vendo nela um obstáculo à tese holista ou, pelo menos, um indício de que a tese holista ainda não havia
sido formulada, já que “As leis físicas guardam exatamente o mesmo sentido quando uma teoria as conecta
ou quando essas leis estão espalhadas e isoladas.” Assim, Brenner (BRENNER, A.: 1990, p. 35) vê nela um
ponto de apoio à sua tese de que Duhem estaria ainda próximo do indutivismo, o qual seria abandonado no
espaço de um ano, com a publicação de ARFE. Maiocchi (MAIOCCHI, R.: 1985, pp. 208-9) também faz dela
interpretação muito parecida, na qual defende que na TP Duhem não estaria, em função do holismo
epistemológico, mais disposto a subescrever a referida passagem. Acreditamos, ao contrário dos
comentadores, que o que importa ao nosso autor em seu ensaio sobre a física e a metafísica é marcar
principalmente que “A ciência física não muda portanto de caráter e de importância tornando-se teórica.”
Quando Duhem afirma que as leis físicas guardam o mesmo sentido quando isoladas ou classificadas
teoricamente, o que está em questão é o valor de conhecimento supostamente acrescentado a elas. Mas
Duhem reconhece que elas não mudam de natureza, mantendo a mesma importância. Por mais que a
passagem preste-se àquela interpretação, ela é parte constituinte de um argumento mais extenso que consiste
em mostrar que uma proposição da física teórica não pode entrar em contradição com uma proposição
metafísica, qualquer que seja a teoria da qual a proposição faça parte. Esta mantém o mesmo sentido na
medida em que continua sendo uma proposição física. A generalidade e propósito do argumento duhemiano
torna a distinção dos sentidos adquiridos por uma lei isolada em teorias diversas algo desnecessário, logo,
não aceitamos a tese da incompatibilidade entre o trecho citado e a obra posterior. Podemos citar trecho
análogo em ARFE, ensaio em que a tese holista é amplamente defendida: “[...] as teorias físicas são apenas
um meio de classificar e de ligar entre si as leis aproximadas a que as experiências estão submetidas. As
teorias não podem, pois, modificar a natureza de uma dessas leis e lhe conferir a verdade absoluta”
(DUHEM, P.: ARFE, p. 112. A passagem é reproduzida em DUHEM, P.: TP, p. 259). As leis físicas, sempre
aproximadas, não se tornam verdadeiras em função da teoria. Em TEM, podemos identificar ocorrência
138
indicações positivas para a dedução de fenômenos que se devem produzir ou das leis às
quais eles obedeceriam.
370
Mesmo no caso em que uma dedução metafísica fornecesse a
indicação precisa de uma proposição da física, é sempre a física a responsável por julgar se
a proposição é exata.
371
Em resposta a Vicaire, Duhem insiste que a procura das causas é
um problema que não compete à física, mas à metafísica: a física restringe-se à
coordenação das leis descobertas pelo método experimental.
372
Haveria um caso,
entretanto, em que a física poderia ser deduzida da metafísica:
parecida: “[...] mas o conhecimento que ela [a física teórica] nos dá do mundo exterior não é nem mais
penetrante nem de outra natureza que o conhecimento fornecido pela experiência” (DUHEM, P.: TEM, pp.
13-4). Usamos a extensa passagem no início desta nota com o intúito modesto de mostrar que ela não é
incompatível com a tese holista (embora não consintamos que a tese holista já tivesse sido formulada à
época), e não nos opomos à seqüência dos pertinentes comentários feitos a ela por Maiocchi.
370
DUHEM, P.: FM, pp. 43-4.
371
DUHEM, P.: FM, p. 45.
372
Se não há uma diferença substancial nas idéias duhemianas acerca da distinção entre física e metafísica
encontradas em “Física e metafísica” e “Physique de croyant”, há, no mínimo, uma mudança parcial de
perspectiva. A distinção entre as duas disciplinas encontrada no primeiro ensaio é marcada por um critério
fenomenológico. Ele fixa um limite – a observabilidade – como critério essencial de delimitação entre o
objeto da física e da metafísica: a física estudaria os fenômenos enquanto a metafísica iria em busca de suas
causas inobserváveis (DUHEM, P.: FM, p. 42). Já em “Physique de croyant” as considerações duhemianas
tornam-se mais detalhadas. Permanece a distinção em função do objeto (bem como dos meios), mas com a
insistência em um acréscimo inovador: Duhem aprofunda sua análise sobre a estrutura das teorias físicas
distinguindo nelas os princípios teóricos, que não teriam nenhuma conseqüência experimental, e as leis
experimentais, as quais se ligariam à realidade objetiva. Por conseguinte, o verdadeiro objeto dos princípios
físicos não seria a realidade material, mas um mundo esquemático, um mundo ideal extremamente
simplificado. Já as proposições da metafísica teriam a realidade objetiva como referência. Assim, a física, por
meio de representações ideais, procura salvar os fenômenos enquanto a metafísica, através de proposições
objetivas, almeja explicá-los. O que mudou de lá pra cá? Isto: a distinção encontrada em “Physique de
croyant” permite a Duhem acrescentar um terceiro elemento: as proposições do senso comum, ao mesmo
tempo em que física e metafísica permanecem distintas. Agora Duhem tem o direito de afirmar que as
proposições da metafísica podem contradizer uma lei do senso comum, enquanto os princípios físicos não
comportariam nenhuma comensurabilidade com aqueles (Isso não significa, entretanto, que as teorias físicas
não possam opor-se às constatações imediatas da realidade. Duhem criticará Maxwell na SA justamente
porque as conseqüências de sua teoria não permitem a existência de ímãs [fato observado pelo senso
comum]. Mas quando critica o físico escocês ele afirma que é a teoria de Maxwell que contradiz o senso
comum, e não um princípio físico; é a teoria como um que se opõe ao senso comum. A tese holista vem a
ligar o domínio da teoria com o domínio fenomênico). Há, portanto, duas versões da distinção entre física e
metafísica. A primeira estipula como objeto da metafísica o além (para em seguida, explicar os fenômenos), a
segunda, o isto. Num lugar, Duhem adota um ponto de vista dualista, noutro, fenomenalista. Isso nos coloca
diante de uma divisão tríplice de níveis possíveis de discurso. Existiria, em primeiro lugar, o discurso da
física teórica, o qual atingiria um nível de idealização tal que sua ligação com o mundo dos fenômenos só é
feita em conjunto com um corpo teórico de interpretação e instrumentos adequados. Em segundo, existiria o
discurso do senso comum, ligado diretamente às aparências sensíveis, à experiência ordinária. Seus juízos
seriam objetivos, verdadeiros e pouco detalhados. Por último, estaria o discurso metafísico, composto de
sistemas intrincados de proposições ou proposições isoladas sobre a realidade objetiva, seja esta entendida
como a realidade sensível ou como a realidade sobreeminente. Seus juízos, apesar de objetivos e mais
detalhados que os do senso comum, não poderiam contradizê-los, pois que se apóiam sobre eles.
139
Imaginemos que tenhamos chegado a um conhecimento metafísico aprofundado,
detalhado da essência das coisas materiais. As leis físicas, que decorrem dessa
essência, nos apareceriam em uma ordem, uma subordinação, que resultariam de sua
própria natureza. É certo que essa ordem nos proporcionaria a mais perfeita
classificação dessas leis. É certo que uma explicação metafísica completa da natureza
das coisas materiais nos forneceria, ipso facto, a mais perfeita das teorias físicas
[...].
373
Do mesmo modo que Vicaire reconheceu o “estado ideal” do conhecimento humano
como inatingível, a hipótese de que tal teoria venha a ser conseguida é reconhecida logo
acima como puramente ideal. Ideal porque nossos conhecimentos metafísicos são pouco
determinantes e seu caráter é sempre altamente negativo para que daí pudéssemos deduzir
uma teoria qualquer. Contudo, Duhem reluta em seguir Vicaire; onde o crítico afirmou
incisivamente que “se podemos, devemos”, nosso autor contenta-se, apesar de reconhecer a
“lei” que manda escolher em qualquer ordem de coisas a mais excelente, com dizer: a
posse mesma da teoria perfeita não nos obrigaria logicamente a adotá-la em detrimento de
outra classificação das leis. Mas isso apenas até o próximo ensaio.
Na seção 1 de seu ensaio “Quelques réflexions sur la science allemande” Duhem
retoma a afirmação encontrada em “A escola inglesa e as teorias físicas” de que a ciência
feita diverge da ciência perfeita, humanamente inalcançável. A distinção guarda sua
oportunidade justamente porque introduzida no momento de operar a distinção entre as
ciências nacionais, mormente as ciências francesa, inglesa e alemã. Em 1893, o filósofo
afirmava:
Está fora de contestação que a lógica é uma só
374
; que seus princípios se impõem, com
o mesmo inelutável rigor a um francês, a um francês e a um alemão. [...] a verdade,
impessoal, não traz a marca das circunstâncias nas quais foi descoberta; o erro, obra
do homem, resulta de seus hábitos, de seus preconceitos, de idéias que o circundam,
de ignorâncias no meio das quais ele vive. [...] a escolha das hipóteses sobre as quais
assenta cada teoria, escapam em vários sentidos às presas dessas leis [da lógica];
naqueles lugares onde a lógica não traça para o físico um caminho do qual ele não
possa se afastar, o porte especial de seu espírito, suas faculdades dominantes, as
doutrinas difundidas em seu ambiente, a tradição de seus predecessores, os hábitos que
ele assimilou, a educação que ele recebeu vão servir-lhe de guia, e todas essas
influências vão aparecer na forma tomada pela teoria que ele conceberá.
375
Compreende-se, portanto, sem esforço, que uma teoria científica possa trazer a marca
do tempo e do lugar em que nasceu.
376
373
DUHEM, P.: FM, p. 48. Itálicos meus.
374
Duhem não se refere aqui a uma lógica particular, mas à lógica transcendental, fundamento mesmo do
real, e de modo algum produto humano.
375
Uma ótima passagem para a defesa interpretativa a favor da existência de tradições de pesquisa.
376
DUHEM, P.: EITF, pp. 83-4.
140
A justificação do espanto de um leitor francês ao ler a obra de Maxwell, de que
falava Poincaré na introdução de seu Électricité et optique, é encontrada no caráter peculiar
assumido pela obra. Uma teoria perfeita jamais comportaria qualquer desvio em relação à
verdade. O erro não está nas coisas, mas no produto do homem. A ciência, temporal e
geograficamente localizada, distancia-se, por sua própria definição, da perfeição e da
verdade. As teorias físicas nacionalizam-se através do vício constante, marca de sua
origem, de modo que podem ser identificadas consoante seus defeitos típicos. Daí que as
obras dos grandes gênios destaquem-se das influências contingentes, ultrapassando as
barreiras raciais e mundanas. A obra do grande gênio será a obra universal, a dos erráticos,
francesa, inglesa...
Em sua essência, uma teoria formalmente perfeita deveria ser considerada como obra
impessoal ou, se quisermos, natural (não artificial) – uma obra sem pátria definida
377
, uma
obra que, apesar de composta da concorrência de distintos métodos, não se reduz a nenhum
deles em especial. Assim, inexiste o método perfeito. Disso, porém, não devemos concluir
pela indiferenciação relativa dos métodos particulares. Há, com certeza, métodos
superiores a outros.
Em L’évolution de la mécanique Duhem opõe dois métodos de construção da teoria
física usados para explicar mecanicamente os fenômenos: o método sintético e o método
analítico. Segundo o método sintético:
[...] começa-se por construir um mecanismo com todas as suas peças; diz-se quais
corpos o compõem, quais são as suas figuras, grandezas, massas, quais forças o
solicitam. Desses dados, tira-se as leis conforme as quais se move o mecanismo;
comparando então essas leis às leis experimentais que se quer explicar, julga-se se há
entre elas uma concordância suficiente.
378
Já o método analítico procede de modo inverso:
Ele [o método analítico] reduz primeiramente em formas gerais as leis dos fenômenos
físicos; depois, sem fazer nenhuma hipótese sobre a natureza dos movimentos pelos
quais esses fenômenos poderiam se explicar, ele dá a essas fórmulas um aspecto que
faça manifestar aos olhos sua analogia com as equações de certos movimentos.
379
377
DUHEM, P.: QRSA/GS, p. 104/79.
378
DUHEM, P.: EM, p. 180.
379
DUHEM, P.: EM, pp. 181-2.
141
O primeiro método, afirma Duhem, foi o único a ser usado durante muito tempo,
mas, em função do caráter “aventuroso” de suas hipóteses, da arbitrariedade das
explicações construídas com o seu uso, muitos físicos fizeram frente a ele. É contra a
audácia em querer explicar as leis experimentais por meio de mecanismos ocultos sob as
aparências sensíveis que Newton lançara o seu famoso Hypoteses non fingo. Um século e
meio depois, Maxwell, após adotar o método sintético em On physical lines of force, opta
pelo método analítico no Treatise.
380
Todavia, não devemos concluir que o abandono do
método sintético equivalha ao abandono do mecanicismo, pois não existe
incompatibilidade entre o método analítico e o mecanicismo; a verdadeira diferença é que
a adoção do primeiro não implica a do segundo. Mesmo usando o método analítico pode-se
reduzir suas fórmulas às equações da dinâmica lagrangeana ou, em caso contrário, será
sempre possível invocar massas e movimentos ocultos que satisfaçam a redução.
Sigamos Duhem em sua breve caracterização do método analítico.
381
Conforme ele
nos diz, o método analítico possui três características fundamentais: (1) se o método em
questão não é incompatível com a explicação mecânica, ele jamais nos coloca frente a
frente com os detalhes dessa explicação, ele não nos ensina como “compor a máquina”; (2)
como afirmou Poincaré, se se pode compor uma máquina, pode-se compor infinitas outras
capazes de explicar um conjunto dado de leis físicas de forma semelhante; (3) por último,
as explicações mecânicas, para serem completas, deveriam recorrer a uma numerosa série
de movimentos e massas ocultas, de modo que até mesmo aqueles que declarassem sua
preferência por ele, sentir-se-iam fatigados com as enormes complicações posteriores. Não
é à toa que em vários momentos Duhem chama a atenção para o caráter de extrema
indeterminação do mecanicismo.
382
Afinal, como as massas e movimentos ocultos
comporão a máquina?
A explicação mecânica das leis da física parece escapar às garras de toda contradição
lógica; não resulta disso que ela seja plenamente satisfatória e isenta de lacunas. [...]
Quando a observação revela certos desvios entre a dinâmica de Lagrange e os
fenômenos naturais, ela pode, enfrentando toda contradição, afirmar que esses desvios
são devidos a movimentos ocultos, mas, se das leis experimentais dadas desses
desvios, quiser-se remontar às leis dos movimentos ocultos que as produzem, não se
encontra em seus ensinos nenhum método regular e certo para efetuar tal passagem; é-
se obrigado a adivinhá-la.
383
380
DUHEM, P.: EM, p. 181, pp. 128-30.
381
DUHEM, P.: EM, pp. 190-1.
382
DUHEM, P.: EM, pp. 154-5, pp. 167-8, pp. 183-4.
383
DUHEM, P.: EM, p. 148.
142
A falta de um método regular que permita a obtenção precisa da engrenagem é a
causa da inteira arbitrariedade à qual o físico encontra-se exposto. Na falta de um
procedimento determinado, o uso de hipóteses ad hoc revela-se praticamente necessário
para a manutenção da teoria diante dos fatos experimentais, donde se vê sem muita
dificuldade que jamais se conseguirá convencer o partidário de uma teoria mecânica do
erro de sua teoria sem ouvir alguma contrapartida alegando certas complicações sutis que
não foram levadas em conta. A conclusão fatal é que as teorias explicativas acabam
perdendo a possibilidade de serem testadas com rigor experimental:
[...] a impossibilidade de encurralar em uma contradição, formal e insolúvel, com os
resultados da observação é uma conseqüência lógica da indeterminação absoluta que
se deixa às massas invisíveis e aos movimentos ocultos.
384
O primeiro critério que a lógica impõe ao teste experimental é que não haja
desacordo flagrante entre as previsões teóricas e a experiência. Assim, qualquer que seja a
natureza das teorias, desde que bem sucedidas empiricamente, insiste Duhem, a decisão
entre elas terá de ser suspensa. As razões para julgá-las serão, então, extra-lógicas; e
Duhem lista dois critério para desfazer a indecisão: o primeiro seriam considerações tiradas
da metafísica; o segundo, da comodidade.
385
Descartes, e de certo modo quase todos os
físicos continentais, procederá por argumentos metafísicos, operando uma redução
supostamente necessária de todos os fenômenos a razões da mecânica. Todavia, se o
método físico não pode responder se todos os fenômenos são, em última análise, redutíveis
a movimentos locais, nem mesmo o método metafísico poderá, uma vez que, como visto
no início desta seção, essa resposta acaba sendo invariavelmente respondida pelo controle
experimental. Como as razões metafísicas encontram-se afastadas, a questão perde seu
caráter absoluto para deixar o caminho livre para as razões de comodidade.
386
Ora, não é
patente que a comodidade comporta um elemento subjetivo, essencialmente ligado à
apreciação pessoal? Uma análise das atitudes dos espíritos diante das teorias físicas revela
384
DUHEM, P.: EM, p. 184.
385
DUHEM, P.: EM, pp. 184-6.
386
DUHEM, P.: EM, pp. 186.
143
o realce de dois gêneros principais: os espíritos abstratos e os espíritos imaginativos.
Passemos à sua caracterização.
387
O espírito abstrato, caracteristicamente continental, é o espírito metódico, de fraca
memória sensível, dedutivo, estreito e forte. As teorias físicas construídas por eles prezam
a clareza, a simplicidade, a ordem e o rigor. O espírito abstrato é lógico; exato, não se
contenta com o meio termo; evita a qualquer custo o equívoco; procede lentamente através
de etapas sucessivas, justificando cada passo dado através dos passos anteriores.
Entretanto, é pouco intuitivo; tem baixa capacidade de imaginação e mantém pouca ligação
com o concreto. Já o espírito imaginativo, característico dos ingleses, é dotado de grande
memória sensível, capaz de reter com facilidade imagens palpáveis e concretas; é amplo,
porém superficial, e possui pouco poder de abstração. As teorias construídas pelos
espíritos imaginativos pautam-se mais pela imaginação do que pela razão, o que os leva
frequentemente a conceber teorias permeadas de contradições; mas isso não lhes importa,
pois o valor prático das teorias tem para eles papel decisivo. O espírito inglês é o espírito
intuitivo, capaz de avançar, de uma só vez, vários passos à frente e, por isso mesmo,
altamente criativo, mas é pouco capaz de justificar suas criações.
388
Para o físico inglês, compreender um fenômeno é idêntico a imaginá-lo
389
, isto é,
compor um modelo que imita esse fenômeno
390
; explicar um fenômeno é o mesmo que
figurá-lo
391
:
O físico imaginativo não se dará por satisfeito enquanto ele não tiver substituído as
qualidades diversas dos corpos, acessíveis somente à concepção abstrata e à
representação numérica, por combinações de figuras acessíveis à intuição geométrica
e suscetíveis de serem desenhadas.
392
387
Faremos aqui um combinado de passagens relevantes sobre o assunto encontradas em EITF, TEM, EM e
na TP.
388
Na TP, Duhem identifica em alguns momentos o espírito imaginativo dos ingleses ao espírito de finesse
pascaliano (DUHEM, P.: TP, p. 86). Todavia, embora tudo nos leve a supor o contrário, o espírito abstrato
não é identificado explicitamente ao espírito geométrico, embora o seja ao “espírito clássico” (DUHEM, P.:
TP, p. 88, p. 98). Em todo caso, nunca podemos esquecer que Duhem não afirma em nenhum momento que
sua classificação não comportaria exceções: “[...] os julgamentos que se aplicam sobre a forma intelectual de
um povo poderão ser frequentemente verificados; eles não serão jamais universais” (DUHEM, P.: QRSA/GS,
p. 104/ 80).
389
DUHEM, P.: EM, p. 194.
390
DUHEM, P.: EITF, p. 67.
391
DUHEM, P.: TEM, p. 9.
392
DUHEM, P.: EM, p. 189.
144
A extrema capacidade da memória sensível dos ingleses e a baixa aptidão para
compreender relações abstratas é a explicação genética dos modelos utilizados pela escola
inglesa. Os modelos podem ser de dois tipos: mecânicos ou algébricos. Os modelos
mecânicos são constituídos de imagens concretas que seriam destinadas a representar o
mecanismo de produção de um conjunto de fenômenos. As exposições que seguem estes
modelos fazem com freqüência recurso a elementos tangíveis no mundo cotidiano quando
da descrição de elementos que não o são. Assim, falar-se-á em “cordas que se movem por
polias, que se enrolam em tambores, que atravessam pérolas, que sustentam pesos; tubos
que bombeiam água, outros que se inflam e contraem; rodam dentadas que se engrenam
entre si, que produzem cremalheiras.”
393
Já o modelo algébrico é entendido como a extração mecânica de resultados a partir
de um conjunto de fórmulas. Duhem chama isso de “calcular”, por oposição a “deduzir.”
394
As noções abstratas, com as quais os espíritos amplos também são capazes de lidar, não
são por eles analisadas em si mesmas; não são encadeadas silogisticamente, deduzidas
umas das outras – mas medidas. A partir da extração de medidas, os resultados são
calculados, sempre segundo as regras fixas da álgebra
395
:
[...] do mesmo modo, quando [o inglês] compõe uma teoria matemática, pouco lhe
importa saber a que elementos reais correspondem as grandezas algébricas que ele faz
entrar em suas equações: se essas equações imitam bem o funcionamento dos
fenômenos, pouco lhe importa a via pela qual elas foram obtidas.
396
Quem segue um modelo algébrico utiliza-se de fórmulas sem questioná-las, sem
justificá-las dedutivamente por meio de noções e hipóteses primitivas ou, mesmo, sem
submeter suas conseqüências ao controle dos fatos. É o caso de Hertz, que constrói uma
393
DUHEM, P.: EITF, p. 66.
394
DUHEM, P.: TP, p. 90.
395
Esse procedimento lembra o ensino de física (e das ciências exatas em geral) que encontramos em nosso
secundário: as equações são “jogadas” sem explicação de sua origem; o exercício é enunciado, trazendo
consigo os dados iniciais que são, em seguida, inseridos num conjunto de fórmulas para a extração dos
resultados. Tudo isso sem contato prático com os instrumentos do laboratório. No limite, o único trabalho
realizado pelo aluno, além de decorar as equações (que não lhe fazem sentido algum!), é transformá-las umas
nas outras (o que exige conhecimento elementar de matemática e interpretação mínima). Mas essa não parece
ser uma especificidade nossa; Duhem atribui ao ensino da mecânica nas universidades francesas um método
semelhante. Ali, escreve ele, os alunos são condenados a “aprender apenas fórmulas puramente literais, sem
que eles possam decifrar como as diversas grandezas que figuram naquelas concretizam-se em números em
cada um dos casos particulares” em que essas fórmulas são aplicadas (DUHEM, P.: ME, p. 463). Assim, a
mecânica torna-se um exercício artificial, reduzida a uma coleção de receitas vazias de todo conteúdo real.
396
DUHEM, P.: EITF, p. 70. Crítica semelhante aos modelos algébricos, apesar de implícita, havia sido feita
já na seção 9 de ARTF.
145
teoria eletrodinâmica baseado na importação das equações de Maxwell, mesmo sabendo
que estas são desmentidas experimentalmente pela simples existência de um pedaço de aço
imantado
397
. Tratar a física como um modelo algébrico é reduzi-la a um jogo simbólico,
destituído de ligação precisa com a realidade, uma vez que as definições são
negligenciadas – é agir como um algebrista.
398
Mas a teoria física, afirma Duhem, não se
reduz a uma justaposição de equações: “A teoria de Maxwell é o sistema das equações de
Maxwell”; eis o resumo da concepção de Hertz que é preciso combater
399
:
Mas um físico não é um algebrista. Para ele, uma equação não se sustenta
simplesmente sobre letras; essas letras simbolizam grandezas físicas que devem ou ser
medidas experimentalmente, ou formadas de outras grandezas mensuráveis. Se se
contenta em dar a um físico uma equação, não se lhe ensina nada; é preciso
acrescentar a essa equação a indicação das regras pelas quais se fará corresponder as
397
DUHEM, P.: TP, pp. 131-3; TEM, pp. 221-3; NTTS, pp. 148-50.
398
É interessante notar que o pressuposto mesmo da crítica duhemiana aos usuários dos modelos algébricos,
a saber, o trato mecânico de símbolos privados de ligação com os fenômenos, foi razão de censura recebida
pelo próprio Duhem vinda de Lapparent em 1905. Este encontrou na qualidade excessivamente abstrata da
teoria física daquele a falta de vínculo representativo entre os símbolos algébricos da teoria e a realidade
física (ver a esse respeito: PAUL, H.: 1979, p. 116).
399
A posição de Duhem em relação a Hertz é ambígua e, mesmo, em vários momentos, contrastante. Num
primeiro momento, em EITF, Duhem apóia-se na célebre resposta de Hertz à questão de definir o que é a
teoria de Maxwell. Ora, a teoria de Maxwell, dirá Hertz, é o sistema das equações de Maxwell; permeada de
contradições internas advindas dos modelos mecânicos que serviram de base para a construção das equações,
nada mais resta da teoria do escocês a não ser essas mesmas equações. A melhor saída seria, então, ficar com
a parte realmente útil e esquecer os andaimes (DUHEM, P.: EITF, p. 71). Todavia, em TEM, Hertz é
criticado justamente pela secura de sua resposta. Uma teoria jamais pode ser reduzida a um conjunto de
equações: o físico alemão esqueceu-se que as teorias mantêm estreita ligação com a realidade concreta e,
conforme mudam as regras de tradução que ligam as variáveis às grandezas mensuráveis, muda também o
sentido das equações conservadas (DUHEM, P.: TEM, pp. 222-2). Não bastasse isso, na TP Hertz é
associado, de acordo com a tipologia duhamianao, ao estilo inglês de fazer física, caracterizado pela
amplitude e fraqueza de espírito. Quando, a partir das equações de Maxwell, Hertz visa construir uma nova
teoria sem questionar a validade das mesmas, assumindo-as como dogmas, ele estaria construindo um modelo
algébrico (DUHEM, P.: TP, pp. 131-3). Mas as mudanças não param: com a publicação de QRSA, eis um
Hertz repatriado, exemplo de espírito caracteristicamente dedutivo. Psicologicamente, ele passa a ser
definido como um espírito forte e estreito, caracteristicamente alemão (DUHEM, P.: QRSA/GS, pp. 129-
30/100-1). Contudo, dificilmente as diversas apreciações duhemianas de Hertz poderiam ser classificadas
como contraditórias, o que não exclui a atribuição a elas de uma boa dose de astúcia. Em EITF duas são as
possibilidades da ausência de críticas ao alemão. A primeira decorrente do teor do ensaio, cuja crítica devida
era à escola inglesa; assim Duhem faz uso da definição hertziana para criticar os ingleses sem desviar-se de
seu objetivo primordial, donde a superfluidade em estender-se sobre a concepção de Hertz. A segunda, de
cunho teórico, referir-se-ia à ausência, naquela época, da tese holista, formulada no ano seguinte em ARFE.
Isso explicaria as reservas a Hertz encontradas no TEM, baseadas no holismo semântico. Na TP, o físico
alemão é criticado por tratar a física como algebrista, enquanto em QRSA a mesma caracterização é feita, mas
Duhem transpõe o tratamento da física como um ramo da álgebra para o estilo germânico, excessivamente
dedutivo e desligado do senso comum (pois que as equações de Maxwell contrariam as evidências
experimentais mais simples como a existência de ímãs). Nosso autor mantém a crítica feita em 1902, mantém
a afirmação da ausência de exame crítico que teria caracterizado a aceitação hertziana das equações de
Maxwell em 1906, mas, ao contrário da TP, Hertz não se encaixa mais no modelo inglês de fazer física.
146
letras sobre as quais se sustenta a equação às grandezas físicas que ela representa. Ora,
o que faz conhecer essas regras é o conjunto das hipóteses e dos raciocínios pelos
quais se chegou às equações em questão; é a teoria que essas equações resumem sob a
forma simbólica: em física, uma equação, destacada da teoria que conduziu a ela, não
tem nenhum sentido.
400
Há que se levar em conta a estrutura geral da teoria (seus conceitos, definições,
postulados), responsável por fixar um sentido às suas equações e delimitar a sua aplicação
empírica. Desse modo, duas teorias que levam ao mesmo conjunto de equações ou que
cobrem o mesmo campo representativo não podem ser consideradas equivalentes, pois os
procedimentos que ligam as letras que compõem as equações resultantes e as propriedades
sensíveis teriam de ser os mesmos. Destacada de uma teoria uma equação não representa
mais nada; o mesmo se pode dizer de um pequeno conjunto de equações sem os subsídios
adicionais que o complexo teórico lhe propiciaria.
Em sua crítica ferrenha à escola inglesa, Duhem não se mostra disposto em nenhum
momento a fazer concessões aos espíritos imaginativos. A teoria física, tal como definida
por ele, é a teoria que serve aos espíritos abstratos, aos europeus do continente
401
, que
possuem uma memória sensível bastante fraca para reter as leis experimentais tais como a
experiência apresenta-lhes. A teoria, considerada como economia intelectual, fornece-lhes,
neste sentido, um apoio insubstituível. O caráter abstrato de suas hipóteses, o rigor lógico
de suas deduções, a ausência de hipóteses sobre a natureza da matéria e a adequação
empírica são a marca da teoria física defendida por Duhem em seu ataque ao
mecanicismo.
402
Mas o mecanicismo não é o traço distintivo das teorias inglesas: “o que
distingue a escola inglesa, não é ter tentado a redução da matéria a um mecanismo, é a
forma particular de suas tentativas de atingir esse fim.”
403
A redução à inglesa não leva em
conta a unidade lógica das teorias: o físico inglês é capaz de compor diversas teorias entre
as quais nenhuma consistência seria encontrada; a independência entre elas é tal que elas
400
DUHEM, P.: TEM, pp. 222-3.
401
DUHEM, P.: TP, p. 80. Se até a TP nosso autor não fazia distinção entre alemães e franceses, ambos
incluídos na mesma classificação, na SA, como vimos na primeira Parte, ele procura distanciá-los.
402
De acordo com o Maiocchi, a relação que definiria com maior justeza as diferenças entre a física dos
ingleses e a física duhemiana não seria uma oposição do tipo fenomenismo/ontologismo. Isso porque, no
ambiente positivista, Duhem teria sido o principal expoente da cogência da abstração teórica – e nisto
consistiria a sua grande originalidade –, enquanto os ingleses, longe de quererem explicar os fenômenos,
admitiam um valor puramente instrumental às suas teorias. A marca da física inglesa seria, então, o uso de
modelos mecânicos. Assim, a verdadeira oposição dar-se-ia entre abstracionismo/figurativismo
(MAIOCCHI, R.: 1985, p. 310).
403
DUHEM, P.: EITF, p. 67.
147
chegam ao ponto de cobrir um mesmo campo fenomênico.
404
Pior ainda, uma mesma
teoria pode, não raro, conter incoerências entre suas próprias partes.
405
Os ingleses situam-
se no extremo oposto do mecanicismo cartesiano: as razões usadas por eles serão
eminentemente práticas:
Os geômetras franceses que compuseram as primeiras teorias da física matemática
tiveram uma tendência constante a considerá-las como verdadeiras explicações, no
sentido metafísico da palavra; a admitir que elas apreendem a própria realidade das
coisas e as verdadeiras causas dos fenômenos.
Essa tendência em ver na teoria matemática uma explicação metafísica do
universo contrasta singularmente com a tendência dos físicos ingleses que jamais
vêem nela mais que um modelo [...].
406
Ao procurar compor uma obra racional, pautada pelo desejo da simplicidade e
unidade, o físico francês jamais tolerará o mínimo indício de incoerência lógica.
Construída para a satisfação da razão, mais que para o “prazer da imaginação”
407
, a teoria
permanece dentro dos rígidos limites da lógica. Daí que, se Duhem concorda com Poincaré
que as teorias têm seu caráter marcado indelevelmente pela geografia de sua origem, ele
discorda do matemático francês quanto à atitude a ser adotada no que se refere à
fecundidade da divergência de métodos. Enquanto Poincaré exalta a existência de vias
divergentes, tomando partido pela contradição, Duhem opõe-se energicamente à
proliferação de teorias incompatíveis, subordinando a heurística à lógica. A favor das
teorias continentais, Duhem elenca a unidade teórica e o rigor abstrato, mas critica a
ambição metafísica desmedida; a favor das teorias inglesas, o autor elogia a despretensão
em ver nas teorias uma explicação metafísica, mas critica o figurativismo em função da
incoerência teórica. O mecanicismo, por sua vez, é censurado em ambos.
404
DUHEM, P.: EITF, p. 73.
405
DUHEM, P.: EITF, p. 74.
406
DUHEM, P.: EITF, p. 72. Falando sobre o ideal de teoria física duhemiana, Redondi afirma; “Trata-se da
renúncia da teoria física, segundo Duhem, a procurar a explicação dos fenômenos através hipóteses sobre a
estrutura, isto é, modelos mecânicos e hipóteses figurativas, que remetem a um dogmatismo ontológico de
tipo materialista e determinista. Para Duhem, de fato, os modelos figurativos conduzem a ciência a um
realismo materialista incompatível com a especificidade da ciência” (REDONDI, P.: 1978, p. 27). Vê-se
através da citação acima que Redondi erra ao não discriminar o mecanicismo em sua forma continental da
inglesa. O mesmo erro é cometido por Poirer, ao situar a crítica duhemiana a Maxwell nos seguintes termos:
“[...] Duhem é hostil às hipóteses figurativas não somente porque ele as julga praticamente inúteis, mas
sobretudo porque elas pretendem espontaneamente atingir a realidade física [...]” (POIRER, R.: 1967, pp.
402-3). E mais à frente: “[...] Duhem parece efetivamente convencido de que os modelos figurativos nos
inclinam mais fortemente que as teorias gerais a um realismo materialista, incompatível com as exigências da
razão e da liberdade” (POIRER, R.: 1967, p. 406).
407
DUHEM, P.: EITF, p. 73.
148
É bem verdade que na Théorie physique nosso autor falará em liberalismo
intelectual, defendendo que o melhor meio para o desenvolvimento da ciência é a
realização do tipo particular de cada forma intelectual
408
, mas este princípio garante apenas
o direito de cidadania de modos divergentes de construção teórica, e em nada muda o
quadro valorativo elaborado de antemão. O uso de modelos continua a ser criticado por
Duhem em função da incoerência que geram. Mas se as teorias físicas não têm valor
metafísico, em que basear a sua crítica? Duhem parece sentir que o princípio de unidade
lógica não é um critério suficiente:
Devemos evidentemente julgar o grau de perfeição de uma teoria física em termos da
maior ou menor conformidade que oferece essa teoria com a teoria ideal e perfeita;
ora, essa teoria ideal e perfeita, nós a definimos em outro lugar
409
: seria a explicação
metafísica total e adequada da natureza das coisas materiais; essa teoria, com efeito,
classificaria as leis físicas numa ordem que seria a própria expressão das relações
metafísicas que possuem entre si as essências das quais emanam essas leis; ela nos
daria, no sentido próprio da palavra, a classificação natural dessas leis.
410
Após definir o que viria a ser a classificação natural, o filósofo apressa-se em
localizá-la num distante horizonte, infinito ao alcance humano, mas, nem por isso, indigna
de nossos esforços. Podemos nos aproximar de modo superficial do conhecimento exato
das relações metafísicas, estabelecer analogias entre elas, mas a sua obtenção,
propriamente dita, é impossível. Em palavras nas quais a memória nos trás Vicaire à
lembrança, Duhem afirma:
Contudo, por mais imperfeitas que sejam nossas teorias físicas, elas podem e devem
tender para a perfeição; sem dúvida, elas nunca serão mais que uma classificação, que
constata analogias entre as leis, mas que não apreende as relações entre as essências;
apesar disso, podemos e devemos procurar estabelecê-las de maneira que haja alguma
probabilidade de que as analogias trazidas por ela à luz não sejam aproximações
acidentais, mas relações verdadeiras, que manifestam as relações que existem
realmente entre as essências; podemos e devemos, numa palavra, procurar tornar
essas classificações tão pouco artificiais, tão naturais quanto possível.
411
O termo “natural” é polissêmico por sua própria natureza..., e seu uso por Duhem
não escapa às ambigüidades. Pode ele ser compreendido de uma orientação ontológica (“a
natureza da matéria é a extensão”), biológica (“a natureza humana leva os homens a
408
DUHEM, P.: TP, p. 146; QRSA/GS, pp. 104-5/80.
409
DUHEM, P.: FM, p. 48.
410
DUHEM, P.: EITF, p. 78. Itálicos meus.
411
DUHEM, P.: EITF, p. 79. Itálicos meus.
149
agruparem-se”), psicológica (“aquela espontaneidade toda não era o seu natural”) ou
sociológica (“comer carne humana é natural para os aborígines daquela região”), lógica
(“é natural que disso siga-se aquilo”) etc. Não é nossa intenção elencar todas as suas
dimensões semânticas. Bastam-nos aquelas que podem auxiliar-nos na compreensão da
noção de classificação natural.
Quando Duhem critica a física dos ingleses, ele o faz porque ela seria
demasiadamente artificial. Já vimos que, para o nosso autor, o erro provém da
nacionalização da ciência, ou melhor, das particularidades que caracterizam a ciência
humana em cada época e região. O erro não provém da realidade, mas do homem. Assim,
artificial é o que é criado pelo homem, e a natureza é entendida como aquilo em que não há
intervenção humana. Mas Duhem não critica a ciência inglesa por ela ser simplesmente
uma criação, e sim, por ela ter sido criada de um modo específico. As teorias criadas pelos
ingleses representam uma vitória da imaginação sobre a capacidade de abstração, elas
fazem uso contínuo de exemplos figurativos sem ligação lógica entre si. A maneira à
inglesa de fazer física decorre da satisfação psicológica mesma dos ingleses: para eles é
mais fácil criar suas teorias deste jeito e não daquele outro. Natural então seria o que é
mais de acordo com uma tendência adquirida ou inata.
412
Caso a crítica duhemiana aos
ingleses parasse por aí, ela permaneceria demasiado fraca, possibilitando a crítica na
direção inversa: poder-se-ia assumir a defesa da metodologia inglesa contra a francesa sem
prejuízo da naturalidade da classificação: uma classificação natural poderia ser natural a
um inglês e não a um francês, independente de seu conteúdo informativo.
O relativismo cultural é evitado por Duhem se entendermos, como ele o faz, natureza
como sinônimo de inanimado, de algo regido por leis que segue uma direção única, uma
ordem regular, movido ou não por um fim externo previamente marcado, numa palavra,
como sinônimo de real. Assim, uma classificação natural não seria uma classificação
produzida pela natureza (neste sentido, ela permaneceria sempre artificial), mas uma
classificação condicionada por ela, guiada pelos testes experimentais da teoria. Semelhante
classificação seria regulada das últimas conseqüências até seus primeiros princípios pela
realidade inanimada. Tudo depende agora do significado de realidade. Se toda a realidade
estiver contida no que aparece, no âmbito fenomênico, então a classificação será
412
Uma tendência adquirida pode ser dita natural na medida em que ela passa a fazer parte das características
de quem a adquiriu. Mas ela pode também ser inata, como uma disposição individual inata à música, por
exemplo, ou uma disposição humana para a agressividade. Neste caso, é possível falar em uma natureza
humana.
150
fenomênica. Se se postular uma realidade metafísica por detrás das aparências, uma ordem
imutável, então a classificação natural, ao reproduzir a ordem hierárquica das relações
metafísicas, mereceria ser chamada, apropriadamente, de classificação sobrenatural.
Sabemos pelo que acabamos de ler que este último é o caso, que a classificação ideal do
físico corresponderá a uma ordem sobreeminente.
Como se vê, é possível falar numa ordem natural que seria como que a ordem real.
Neste caso, falamos em natural como “constitutivo” de alguma coisa. Um exemplo:
Duhem afirma que a distinção entre física e metafísica não decorre da natureza das coisas,
mas de nossa própria natureza
413
, ou seja, a distinção decorre da nossa constituição, de
nosso modo de ser e de conhecer. Assim, podemos conceber mais dois sentidos para o
natural: um de matriz psicológica ao qual nos restringiremos, e outro, como sinônimo de
“essência” ou “definição.”
414
No primeiro grupo, podemos incluir os preceitos da natureza,
aos quais fizemos constante uso na primeira Parte e seguiremos fazendo nesta. A natureza
seria um fundo de sentimentos, adivinhações e suspeições, em oposição àquilo que pode
ser demonstrado friamente pela lógica. É este sentido psicológico de natureza, semelhante
à finesse, ao bom senso, que leva Duhem a recusar o uso desmedido de hipóteses ad hoc
para salvar uma teoria contrariada pelos fatos:
Como o cartesianismo primitivo, esse cartesianismo novo, seduzido pela simplicidade
e pela amplitude de suas teses primeiras, mas como aquele, ele não tarda a repugnar o
espírito pela complicação, pela esquisitice [bizarrerie], pelo porte arbitrário e pouco
natural, pela inverossimilhança das combinações que lhe servem para “construir a
máquina do mundo”. Um sentimento invencível adverte-nos de que a matéria não
poderia ser constituída como imagina W. Thomson ou Maxwell.
415
413
DUHEM, P.: FM, p. 43.
414
Dessa maneira, pode-se especular sobre a natureza conceitual de algo que já é ele mesmo conceitual,
como uma teoria física, por exemplo, ou de algo incriado (pelo homem), tal qual a matéria inanimada. No
primeiro caso, “definir” a teoria física é dissecá-la analiticamente expondo sua estrutura. Este sentido de
natureza, quando aplicado às teorias físicas leva o nome de análise lógica, e pode ser encontrado
eminentemente na TP, mas também já em ARTF: “aquilo que nos propomos estudar é a natureza dessa
ciência” (DUHEM, P.: ARTF, p. 13). No segundo caso, pode-se especular sobre a “natureza” do éter
(DUHEM, P.: ARTF, p. 33), mas definir o éter e seu mecanismo de interação é tarefa da cosmologia.
415
DUHEM, P.: ETP, p. 493. Itálicos meus. Um sentido de natural que poderia distanciar-nos do verdadeiro
significado da classificação natural é encontrado em algumas passagens dos textos duhemianos. Nestas,
natural seria aquilo que traduziria mais imediatamente os dados da experiência. Uma hipótese seria natural
quando, ainda que generalizada, seu sentido fosse claro, e seu contrário, aquilo cujo sentido físico nos
escaparia (DUHEM, P.: ARTF, p. 33), ou aquilo em que se nota a atividade exacerbada da “mão” do físico
(DUHEM, P.: ARTF, p. 22).
151
Em função de exigências extremamente rígidas, os mecanicistas de todos os tempos,
aceitam apenas em suas teorias hipóteses as mais simples. Com o passar dos tempos, a
experiência revela que aquelas exigências eram, na verdade, tão restritivas que a adequação
empírica das teorias torna-se extremamente frágil. Para salvar sua teoria da contradição
experimental, os cartesianos são levados a complicá-la excessivamente por meio de
mecanismos altamente arbitrários. As complicações demasiadas, bizarras e pouco naturais
fortalecem o sentimento de que as coisas não se passam assim na realidade. Natureza, aqui,
assemelha-se a um tipo de sentimento do “certo”, do real, e o natural não mais se opõe a
artificial, mas a arbitrário. Duhem insistirá em La science allemande que o espírito de
finesse é o único capaz de atingir a ordem natural; tudo nos leva a supor a existência de um
laço íntimo entre o psicológico e o real.
416
Qual a finalidade por detrás da introdução da noção de classificação natural em “A
escola inglesa e as teorias física”? A crítica ao pluralismo teórico dos ingleses? Dose
excessiva para doença pouca, pois, parágrafos antes Duhem já havia afirmado que a
unidade teórica é um princípio naturalmente sentido por todos, que direciona a apreciação
de todos à unidade teórica. Por que não parar aí? Bastava essa constatação, seguida de um
apelo, e a defesa da unidade lógica estaria feita. Por que então o ideal de classificação
natural? Uma saída possível poderia ser esta: como os ingleses não enxergam o melhor
modo de construir uma teoria unitária, Duhem forneceria a eles uma maneira, mesmo que
superficial, de aproximar-se dela. Daí a insistência na classificação natural: devemos tornar
nossas teorias tão naturais quanto o possível, evitando as contradições. Em “A escola
inglesa e as teorias físicas”, contudo, Duhem não afirma que a teoria tende à classificação
natural, mas que ela deve tender.
417
Não há, aqui, elementos históricos ou estéticos
contributivos para o valor de saber da teoria física – o “podemos” é assumido sem mais.
Salta (ou foge...) aos olhos a ausência de recomendações mais detalhadas: o autor
simplesmente não diz como devemos tornar nossas teorias mais naturais e menos
artificiais, exceto que devemos evitar as contradições – mas não era essa justamente a
função da unidade teórica? A pergunta ainda não foi totalmente respondida, de modo que o
leitor insiste: talvez exista um método implícito para dirigir os esforços teóricos na direção
da teoria ideal no texto em questão. Este método, no entanto, está por ser encontrado.
416
Ver seção 2.5.
417
A esse respeito, Maiocchi (MAIOCCHI, R.: 1992, p. 379) parece cometer um pequeno deslize.
152
Com a introdução do princípio de classificação natural, Duhem assina, por assim
dizer, um contrato ontológico realista. Em primeiro lugar, a classificação natural é
proposta como o fim ideal ao qual a teoria física deve tender, na tentativa de condicionar
diretivamente os esforços teóricos; em segundo, como a teoria física ideal seria uma
explicação metafísica da realidade material, correspondendo com a ordem ontológica, sua
proposta não faz sentido se não se pressupuser concomitantemente que as próprias relações
estabelecidas entre as substâncias não sejam “nem indeterminadas, nem contraditórias”.
Pressuposições sobre as quais Duhem não lança a menor suspeita:
Ora, se sabemos poucas coisas sobre as relações que possuem entre si as substâncias
materiais, isso se deve a pelo menos duas verdades das quais estamos seguros, a saber,
que essas relações não são nem indeterminadas, nem contraditórias.
418
Usar apenas o princípio de unidade lógica para atacar a física inglesa seria uma
solução bem menos drástica. Usar a classificação natural, além do peso metafísico, faz-nos
imediatamente pensar em vários problemas acessórios: se os esforços dos físicos devem
tender à procura de uma explicação metafísica, por que então criticar as teorias
metafísicas? Por que não partir imediatamente de uma metafísica para erigir uma física
“natural”? Duhem não estaria, com sua indicação, subordinando a física à metafísica? O
que há por trás de tudo isso?
Nosso problema interpretativo passa a ser: como garantir a unidade da ciência sem
procurar as causas dos fenômenos, isto é, sem explicá-los? Num primeiro momento,
Duhem faz recurso ao desejo de unidade que todo físico possuiria. Afirma, além disso, que
a classificação criada pelo físico deve ser natural (não arbitrária). Definida a classificação
natural como explicação metafísica o problema é novamente colocado: a unidade da
ciência volta a ser baseada na teoria física como uma tentativa de explicação dos
fenômenos. A única mudança seria que a explicação não seria dada a priori, mas ao final
de um processo indefinido de retoques e reajustes teóricos. A meta, todavia, é metafísica.
Mas se é assim, como evitar as tentativas licenciosas de explicação dos mecanicistas? Se o
418
DUHEM, P.: EITF, p. 79. A base ontológica que garante a possibilidade lógica de obtenção de uma teoria
unificada e viabiliza a metodologia duhemiana que servirá de base para atacar os ingleses pode ser
reconstruída da seguinte maneira: a realidade material é infinitamente complexa (DUHEM, P.: EM, p. 342),
mas, nem por isso os fenômenos que têm nela a sua origem deixam de seguir leis (DUHEM, P.: FM, p. 46)
fixas e absolutas (DUHEM, P.: TP, p. 260) –, de modo que as relações que as substâncias materiais possuem
entre si não são nem indeterminadas nem contraditórias (DUHEM, P.: EITF, p. 79), do que se segue que a
contradição não está na realidade, sempre de acordo consigo mesma DUHEM, P.: TP, p. 243).
153
objeto é a explicação, por que não explicar de antemão? Pois não é verdade que a natureza
que leva todo físico a atacar a incoerência na obra do adversário é a mesma que o leva a
tentar explicar os fenômenos físicos? Mas a primeira aspiração, se não é perniciosa à
perfeição da ciência, também não é a sua verdade; Duhem está longe de defender uma
concepção coerencial de verdade. Para atingir a verdade é preciso explicar os fenômenos,
mas para explicá-los é preciso sabê-lo fazer, pois esta sim é uma tarefa perigosa. Então,
como fazê-lo? Creio que a resposta seja esta: salvando os fenômenos. Isso mesmo: a
representação é o meio para atingir a explicação. Esta é a lição que cabe à história da
ciência à qual nos voltaremos agora.
2.3. A história da ciência, o método histórico e a historiografia da ciência
Faremos desde já uma distinção inicial entre a história da ciência, o método histórico e a
historiografia da ciência duhemianos. Chamaremos de história da ciência a concepção
duhemiana da natureza e desenvolvimento da história (uma espécie de metafísica geral da
história). Uma noção que se encaixaria neste gênero seria a de uma história governada por
leis. O método histórico será entendido como a aplicação daquela concepção de história da
ciência na defesa da metodologia duhemiana. À historiografia da ciência serão
relacionadas as teses eminentemente historiográficas, cujo conteúdo, apesar de servir
ulteriormente de instrumento para os mais diversos usos, é assunto de historiadores (entre
essas teses, poderíamos alocar a tese duhemiana acerca do nascimento da ciência
moderna).
Consoante a divisão tripartite que acabamos de fazer, esbocemos inicialmente
algumas características suas, começando com um breve sobrevôo pela historiografia da
ciência. De acordo com Manville
419
, aluno e discípulo de Duhem, nosso filósofo teria feito
historiografia da ciência durante toda a sua carreira acadêmica. Nada menos esperado, já
que em seus primeiros artigos filosóficos são constantes os capítulos relativos à evolução
das teorias físicas. Entrementes, os estudos iniciais revelam-se incipientes e mais como
tentativas de ilustrar suas idéias metodológicas do que como fonte heurística. Ao contrário
de Manville, Brenner defende
420
, na esteira de Bosmans, historiador contemporâneo de
419
MANVILLE, O.: 1928, p. 32.
420
BRENNER, A.: 1990, pp. 140-1.
154
Duhem, que nosso autor teria feito historiografia apenas após a publicação de L’évolution
de la mécanique (1903). Esta visão é corroborada pelo próprio Duhem, quando este lista
suas publicações historiográficas em ordem cronológica em suas Notices.
421
Buscando uma
saída, assumiremos que até a publicação de Les origines de la statique, Duhem tem uma
concepção da história da ciência e, a partir dela, uma verdadeira historiografia da
ciência
422
, ocasionada pela intensificação e expansão do âmbito histórico coberto pelas
obras duhemianas, em crescente produção, devido não apenas à ansiedade de Duhem em
fundamentar suas concepções filosóficas em fatos históricos e concretos, mas
principalmente à redescoberta ao acaso, já relatada alhures
423
, de textos medievais
esquecidos pela tradição, cuja surpresa incitou-o a estudar sistematicamente, a partir de
então, a estática medieval.
424
Os primeiros indícios que nos permitem avaliar as características da elaboração
historiográfica da tese continuísta aparecem em Les origines de le statique, publicada
durante os anos 1903-4. É durante a composição desta obra, segundo a interpretação de R.
Martin
425
, que Duhem “descobre” a importância da ciência medieval.
426
A descoberta da
421
DUHEM, P.: NTTS, p. 160.
422
Essa distinção que propomos não exclui a preservação, ou mesmo o aperfeiçoamento, da concepção
duhemiana da história da ciência.
423
BOSMANS, H.: (1921). Pierre Duhem: Notice sur ses travaux relatifs à l’histoire des sciences. Revue des
Questions Scientifiques, 30, 30-62, 427-77; MARTIN, R.: 1976; 1990; 1991, pp. 147-62; BRENNER, A.:
1990, pp. 144-6; MARICONDA, P.: 1994, pp. 123-7.
424
Segundo nossa interpretação, Chiappin está correto em sua crítica à afirmação de Giedymin de que a
filosofia da ciência duhemiana estaria baseada no estudo histórico das teorias de Platão a Copérnico, uma vez
que, como nota o professor brasileiro, os estudos de Duhem sobre a ciência medieval surgem de modo tardio,
quando sua concepção sobre a teoria física já havia sido quase toda elaborada. No entanto, a seguir, Chiappin
(CHIAPPIN, J.: 1989, p. 266) atribui a ampliação do âmbito das publicações historiográficas duhemianas ao
medievo como uma tentativa de justificar sua teoria da ciência, algo que não levaria em conta os aspectos
externos da descrição que nos é fornecida por Martin e outros.
425
MARTIN, R.: 1976; 1990. Na verdade, o principal mérito do primeiro artigo de Martin foi esmiuçar uma
afirmação que já se encontrava no prefácio de OS: “Antes de empreender o estudo da estática, nós tínhamos
lido os escritos, pouco numerosos, que tratavam da história desta ciência; tinha-nos sido fácil reconhecer
que eles eram, na maior parte do tempo, bem sumários e bem pouco detalhados; mas nós não tínhamos
nenhuma razão para supor que eles não fossem exatos, ao menos em suas grandes linhas. Ao retomarmos,
pois, o estudo dos textos que eles mencionavam, nós prevíamos que nos seria preciso acrescentar ou
modificar muitos detalhes, mas nada nos deixava suspeitar que o conjunto mesmo da história da estática
pudesse ser seria preciso desordenado por nossas pesquisas” (DUHEM, P.: OS, I, p. i). Se de início suas
pesquisas levaram-no a “algumas constatações imprevistas” (DUHEM, P.: OS, I, p. i), o desenrolar delas tê-
lo-iam “conduzido a uma conseqüência absolutamente imprevista” (DUHEM, P.: OS, I, p. ii). Já o segundo
artigo de Martin, bem mais instrutivo, empenha-se em destruir determinadas interpretações sobre os motivos
que levaram Duhem ao estudo da ciência medieval, dentre eles, o principal talvez seja o de atribuir uma
procedência religiosa à origem da historiografia duhemiana, provavelmente inculcada pelo Papa Leão XIII
em sua encíclica de 1879, Aeterni Patris, na qual se recomendava aos fiéis católicos um retorno ao tomismo:
tratar-se-ia de desqualificar a pretensão de ver na Idade Média a idade das trevas, vivificando seus frutos e
155
fecundidade científica da Idade Média leva Duhem a desconstruir, na mesma obra, a
interpretação clássica: a ciência moderna não poderia ser avaliada caso não fosse feito um
recuo para entender o seu “verdadeiro” nascimento, no século XIII. Há, portanto, para usar
uma expressão encontrada nos Études sur Léonard de Vinci, uma “filiação contínua”
427
entre as idades Medieval e Moderna conhecidas por nós. Leonardo da Vinci, principal
símbolo do Renascimento (com todas as conotações pejorativas que esse termo possa
conferir à Idade Média) não passaria, para nosso autor, de um intermediário, embora
privilegiado, lido pela posteridade e leitor de seus predecessores, sendo influenciado por
estes ao herdar imenso conhecimento da Escola, que, sob a égide da Igreja cristã, longe de
ter sido um empecilho, teria provocado o nascimento da ciência moderna. Assim, a
descontinuidade histórica é uma ilusão provocada por estudos superficiais, aos quais
Duhem opõe uma visão continuísta:
A ciência, em sua marcha progressiva, não conhece mudanças bruscas; ela cresce, mas
por degraus; ela avança, mas passo a passo. Nenhuma inteligência humana, qualquer
que fosse a sua potência e a sua originalidade, poderia produzir todas as peças de uma
doutrina absolutamente nova.
428
Ciente disso, o historiador deverá recuar em suas análises sobre a evolução da
estática para antes de Arquimedes, pois é claro que este teve precursores.
429
Uma das
principais marcas da historiografia duhemiana é a busca incessante de predecessores
430
; a
dispersando as névoas que pairavam sobre a Escola, supostamente sobrepujada pelo advento da Revolução
Moderna.
426
A concepção da esterilidade da ciência medieval não merece ser esmiuçada neste momento, mas vale
dizer que, se foram os historiadores iluministas do século XVIII os responsáveis pelo surgimento do
preconceito anti-escolástico, este foi prolongado por décadas, de Voltaire, Kant etc., até ser praticamente
consolidado pelo positivismo de Mach, Whewell etc., chegando mesmo a atingir Duhem, se bem que de
modo sutil, até o início da composição de OS.
427
DUHEM, P.: ELV, III, p. 56.
428
DUHEM, P.: OS, II, p. 279.
429
DUHEM, P.: OS, II, p. 280. Nesta obra Duhem afirma que aqueles que restringem suas análises sobre a
origem da estática antiga a Arquimedes são historiadores simplistas (DUHEM, P.: OS, II, p. 279). O autor
tem em mente a história lagrangeana da mecânica racional (Ver: DUHEM, P.: OS, I, p. 8, n. 2). É necessário
acrescentar que em seus ensaios iniciais, refiro-me especificamente a FM, Duhem ainda era vítima da
concepção simplista que ele denuncia em OS. Lá era dito, acerca da teoria arquimediana, que “a primeira
teoria da física matemática que foi escrita é, ao mesmo tempo o modelo das teorias tal como as entendemos”
(DUHEM, P.: FM, p. 53).
430
A analogia formal é o principal critério para estabelecer as relações genéticas de uma tradição de
pensamento. Seu ensaio “Le principe de Pascal: Essai historique” (DUHEM, P.: PP) é paradigmático a esse
respeito. A analogia formal é ali evocada diversas vezes quando da vinculação histórica das experiencias que
levaram à formulação do princípio de Pascal.
156
leitura do que foi lido por um determinado pensador e daqueles que o leram.
431
É
justamente a exigência de ler tudo acerca de tudo que leva Duhem a estender suas análises
históricas ao passado, reconhecendo que o início das pesquisas adotado em qualquer obra
comporta sempre um fator de arbitrariedade, pois que na gênese do conhecimento humano
não há começo absoluto.
432
Se a exposição de suas obras segue a ordem cronológica dos
acontecimentos, isto é, a ordem das invenções, a produção duhemiana é notavelmente
desordenada, em função da grandeza de seus projetos e da amplitude de suas leituras (sem
falar da velocidade de suas publicações), com recuos históricos constantes; algo que pode
ser detectado através de uma rápida olhada na estrutura e nos numerosos apêndices de suas
publicações mais extensas.
433
Na historiografia duhemiana os opositores a uma idéia não contribuem menos do que
seus defensores para o progresso da ciência, porque são eles que forçam os inventores a
elucidar, firmar e extrair de sua idéia original conseqüências até então insuspeitadas. O
historiador deve, deve modo, procurar por idéias diretrizes em vez de espíritos isolados:
Se uma invenção científica não é jamais o jorro espontâneo saído de um gênio isolado
e autônomo, se ela é obra coletiva e, por assim dizer, social, nós teremos de explorar
um domínio singularmente extenso, todas as vezes que quisermos traçar a história de
uma descoberta. Não bastará meditarmos sobre os escritos daquele ao qual a opinião
comum atribui essa descoberta. Ser-nos-á preciso pesquisar, ler, comparar os livros de
todos aqueles que, mais ou menos diretamente, foram os auxiliares desse homem: os
colaboradores, que secundaram o inventor; os contraditores, que o constrangeram a
precisar, esclarecer, consolidar seu pensamento; os sucessores, que colocaram em
evidência a fecundidade latente daquele pensamento. Ser-nos-á preciso passar em
revista aqueles de quem nosso autor falou, aqueles com quem ele falou, aqueles que
falaram dele [...].
434
Descoberta e justificação pertencem ao escopo contextual da historiografia
duhemiana. Esta é composta tanto por obras de caráter internalista e crítico (uso da história
das idéias para comprovar ou criticar uma idéia), quanto externalista (história das
influências externas às ciências).
435
Clavelin já chamou a atenção para a carência de análise
431
A exemplo do título de sua obra em três volumes sobre Leonardo da Vinci: Études sur Léonard de Vinci:
Ceux qu’il a lus et ceux qui l’ont lu (DUHEM, P.: [1906-13] 1984). Ver ainda: DARBON, A.: 1928, p. 511.
432
DUHEM, P.: SM, I, pp. 5-6.
433
DUHEM, P.: OS; ELV; MAMR. Apesar de não possuir muitas das “notas” que caracterizam as demais
obras citadas, a estrutura do SM é composta de vários recuos históricos.
434
DUHEM, P.: IBP, p. 248.
435
Não é de se estranhar que as obras de caráter internalista pertençam especialmente ao período que precede
a constituição da historiografia da idade Média. Tenhamos em mente os seus ensaios iniciais, nos quais o uso
da história da ciência assume a forma de exercícios didáticos e ilustrativos (a crítica ao indutivismo em
157
crítica conceitual da historiografia duhemiana, diante da atitude pouco rígida encontrada
nela com relação a algumas teorias, a qual geraria imprecisões.
436
Isso é devido, pensamos,
ao fato de que embora Duhem insista na imparcialidade de suas análises, não é custoso ver
que sua historiografia é crítica e interessada. Como decorrência da defesa da tese
historiográfica acerca do nascimento da ciência moderna, em concomitância com a crítica
da visão iluminista-positivista, vemos emergir pretensões abertamente apologéticas, tais
como a defesa patriótica da virtuosidade dos ancestrais franceses e a tentativa de recuperar
o valor da ciência produzida na cristandade medieval.
437
Errado seria, contudo, supor que a visão continuísta do desenvolvimento da história
da ciência surgisse apenas com Les origines de la statique. Ela é uma constante nas
produções epistemológicas duhemianas desde seus primórdios. Duhem tem uma concepção
do desenvolvimento da ciência que pode ser extraída bem antes de suas pesquisas
propriamente historiográficas, e que se acerca muito, como observa Maiocchi, da
concepção positivista: a história seguiria leis passíveis de serem descobertas através da
análise paciente, sendo a principal delas a lei da continuidade e da complexidade
crescentes.
438
Mas a história duhemiana afastar-se-ia da do positivismo com a introdução
da idéia de uma potência divina inteligente responsável por governar o rumo da história
439
;
esta seguiria uma finalidade, um curso teleológico, muitas vezes inconsciente aos físicos,
ARTF, por exemplo, não pode ser reduzida a uma crítica lógica, uma vez que ela se apóia num caso histórico
particular, a teoria newtoniana, sem alcançar o grau de generalidade como aquele da crítica popperiana ao
indutivismo). Dois de seus livros, MCC e EM, são os exemplos mais acabados deste gênero. Entretanto, é
exatamente este tipo de história da ciência que o autor criticará em Mach (DUHEM, P.: AOEM, pp. 449-52).
Para o professor vienense, afirma o francês, a história da ciência não é um fim em si mesmo, mas apenas um
meio de apreender o sentido real que constitui a ciência atual (DUHEM, P.: AOEM, pp. 449); os detalhes,
tateamentos e retoques parciais que conduziram a ciência em seu aperfeiçoamento são deixados de lado,
entrando em sua obra apenas o que é necessário para compreender o “plano definitivo.” A história machiana
seria, então, lacunar, pois que extremamente simplificada: “Tratada conforme o método que Mach reivindica,
a história da mecânica parecerá infinitamente interessante ao físico, àquele que procura no passado somente
as luzes próprias para esclarecer o presente. Se o historiador e o psicólogo esquecerem, com efeito, qual é o
fim que o autor quis atingir, sem dúvida, dirigirão a ele reprovações” (DUHEM, P.: AOEM, pp. 450). Assim
composta, a reconstrução racional machiana vê-se empobrecida à proporção que negligencia a ligação
histórica intrincada da mecânica e da física com a metafísica, a teologia e, mesmo, com as ciências ocultas.
436
CLAVELIN, M., citado em BRENNER, A.: 1990, p. 154.
437
O nacionalismo e o catolicismo duhemianos fazem-se sentir vividamente em seus escritos
historiográficos, a ponto de Duhem referir-se ao seu Système du monde como “minha grande obra católica”
(DUHEM, P.: Carta de 25 de março de 1913. Ver: JAKI, S.: 1994, p. 103).
438
MAIOCCHI, R.: 1985, p. 257.
439
Limito-me aqui a indicar algumas passagens em que o autor aventa a existência de uma “Providência” ou
“Idéia diretriz” responsável por reger o desenvolvimento histórico (DUHEM, P.: ETP, p. 499; EM, p. 345;
OS, II, p. 290). Maiocchi chega mesmo a falar no uso da história da ciência como uma “sexta via”,
lembrando Tomás de Aquino, de elevação à existência de Deus (MAIOCCHI, R.: 1985, p. 259). Ver ainda:
DARBON, A.: 1928, p. 507.
158
que poderia ser desvendado. É que Duhem advoga uma visão virtualista da história: as
obras posteriores estão contidas potencialmente nas anteriores
440
, as quais, por sua vez,
pré-existem num plano arquitetural que lhes serve de diretriz. O desenvolvimento da
história da ciência segue as leis da continuidade, da gradação, da complexidade e da
atualização; seu fim é a realização da teoria perfeita. Enquanto Abel Rey insiste na
existência de uma “filosofia científica”
441
duhemiana, Darbon ressalta sabiamente que
nosso autor não tem apenas uma história das ciências, mas uma “filosofia da história.”
442
As análises históricas levadas a cabo por Duhem não têm a satisfação de alguma
simples curiosidade ou a mera erudição como móvel. Em sua obra, a história da ciência
adquire um papel de primeira ordem na medida em que se trata de olhar para o passado
com o interesse voltado para o futuro:
Aquele que ama as coisas antigas porque elas são velhas poderá satisfazer sua
curiosidade pesquisando o que os egípcios ou os gregos pensavam do mercúrio ou do
ímã; mas o homem de ciência não encontrará, na marcha de suas doutrinas, evolução
contínua, encadeamento lógico. Ora, é essa evolução e encadeamento que nos
interessam na história da física; eles nos revelam, com efeito, as leis segundo as quais
se desenvolve nosso conhecimento do mundo exterior; eles estabelecem a gênese das
teorias comumente admitidas e, por isso, permitem-nos pesar o exato valor das teorias
que atualmente têm nossa confiança, calcular [supputer] as chances que elas têm de
durar.
443
A história fornece, por assim dizer, o material com o qual serão feitos os cálculos
para a extração dos resultados que indicarão o valor das teorias particulares do presente.
Mas esse cálculo não pode ser efetuado sem a suposição de que a história segue leis que
podem ser descobertas por intermédio de seu estudo. Somente com a admissão de uma
história marcada pela evolução, verdadeiro interesse do homem de ciência (e não do
historiador em si), e, mais precisamente, pelo encadeamento lógico e contínuo é que se
torna possível avaliar a probabilidade do sucesso das teorias individualmente. Desse modo,
duas visões da história da ciência surgem: uma delas seria positiva, e permitiria estipular a
prosperidade esperada das teorias e, por outro lado, a história da ciência revela sua faceta
negativa, a qual forneceria um ponto de amparo em sua crítica às teorias mecânicas. A
440
DUHEM, P.: OS, II, p. 288.
441
REY, A.: 1904.
442
DARBON, A.: 1928, p. 504.
443
DUHEM, P.: TO, p. 94.
159
sucessão genética das teorias é também a sua sucessão lógica, de sorte que, como será
afirmado nove anos depois em L’évolution de la mécanique:
O desenvolvimento da mecânica é propriamente uma evolução; cada um dos estágios
desta evolução é o corolário natural dos estágios que o precederam [...].
444
O entrosamento entre a evolução histórica e a análise lógica merece um pouco mais
de atenção. Seguindo a evolução da mecânica, Duhem identifica quatro escolas
cosmológicas principais, sendo duas as suas apresentações: em Évolution de la
mécanique
445
, a ordem cronológica é a seguinte: escola peripatética, cartesiana, atomista e
newtoniana. Já na Théorie physique
446
, a ordem lógica (segundo as propriedades físicas
admitidas) é a que se segue: escola cartesiana, atomista, newtoniana e peripatética. Ora,
pressuposto que “fazer a história de um princípio físico, é, ao mesmo tempo, fazer a sua
análise lógica
447
, o que podemos notar é que há uma ligação entre as duas ordens, qual
seja, o aumento, na ordem histórica, das propriedades irredutíveis na ordem lógica. Se na
ordem histórica a verdadeira revolução aconteceu com a escola cartesiana, responsável
pela inversão lógica do procedimento peripatético ao reduzir ao máximo as qualidades
primeiras, os ensinamentos da história propiciam a visão de uma ordem, de uma “marcha
das coisas”: após a revolução cartesiana, o que se verificou foi um aumento sucessivo no
número das qualidades primeiras. A simplicidade extremada do mecanicismo cartesiano
obrigou-o a ampliar sua base para que em seguida fosse a vez dos atomismas cederem
espaço aos newtonianos. O passo seguinte é lógico: o retorno ao peripatetismo!
448
Daí
Duhem pregar a “contra-revolução”:
A criação dessa mecânica fundada sobre a termodinâmica é, pois, uma reação contra
as idéias atomísticas e cartesianas, um retorno – imprevisto àqueles mesmos que mais
contribuíram para ele – aos princípios os mais profundos das doutrinas peripatéticas.
444
DUHEM, P.: EM, p. 346. Tanto em TO como na EM, Duhem ainda não prolonga a continuidade da
história da ciência para antes do século XVI (o que, aliás, é comum em todas as suas obras até OS, a qual, de
início, também é igualmente afetada em sua estrutura inicial [ver a esse respeito: MARTIN, R.: 1976]). A
história das teorias ópticas começa com Descartes em TO (DUHEM, P.: TO, p. 95), e em EM, apesar de o
capítulo 1 da primeira parte começar com a análise da mecânica peripatética, no capítulo 2 ela salta
diretamente para a mecânica cartesiana. Ver ainda: DUHEM, P.: NTMI; TC; ETP.
445
DUHEM, P.: EM, Parte I, capítulos 1-4.
446
DUHEM, P.: TP, Parte I, capítulo 1, seção 4.
447
DUHEM, P.: TP, p. 410. Itálicos meus.
448
Evidentemente, o peripatetismo seria a conclusão lógica caso não existisse nenhuma outra escola além das
quatro elencadas por Duhem.
160
Assim, por uma contra-revolução, oposta à revolução cartesiana, a nova
mecânica retoma as tradições da física da escola, por tanto tempo tão violentamente
depreciada.
449
Duhem pretende que a seqüência das escolas metafísicas esteja ancorada na ordem
mesma das coisas, ou seja, numa “marcha do Universo em um sentido determinado.”
450
A
marcha histórica descrita acima mostra que a as explicações mecânicas dos fenômenos são
sucessivamente abandonadas por conta da precária adequação empírica que apresentam.
Os mantenedores dessas explicações vêem-se obrigados, então, a complicar enormemente
suas teorias para adaptá-las à experiência, gerando arbitrariedades cujo acúmulo acaba por
torná-las bizarras. Mas dessa lição histórica referente a um tipo particular de explicação,
não devemos concluir pela ausência total de qualquer explicação: a exclusão de um tipo
particular de explicação (a explicação mecânica) não impossibilita os demais tipos. A
possibilidade de uma explicação final dos fenômenos jamais é negada por Duhem, pois que
tal exclusão seria ela mesma uma afirmação metafísica.
O procedimento lógico de tratar a história não seria nada mais que o resultado
psicológico e cultural da maneira francesa de tratar a história da física. Referindo-se à
história política e social, nosso autor afirma, na Théorie physique, o seguinte:
[...] o francês quer uma história clara e simples, que se desenrole com ordem e
método, onde todos os acontecimentos decorram rigorosamente dos princípios
políticos dos quais ele se vale, como corolários se deduzem de um teorema; e se a
realidade não lhe fornece essa história, tanto pior para a realidade; ele alterará,
suprimirá e inventará os fatos, preferindo um romance, mas claro e metódico, a uma
história verdadeira, porém confusa e complexa.
451
Embora tudo nos leve a conceber a história da ciência duhemiana como uma série de
teorias que sucedem dedutivamente por conta das numerosas passagens em que essa idéia é
aventada, em La science allemande Duhem afirma que a história não se desenvolve como
uma demonstração geométrica. Se a história segue leis, ela bem poderá ser considerada
uma ciência, mas ela será uma ciência empírica não demonstrativa, cujas hipóteses seriam
testadas tendo como material os documentos científicos. Algo surpreendente é a mudança
duhemiana de perspectiva sobre o modo legítimo de tratar a história:
449
DUHEM, P.: EM, pp. 344-5. Itálicos meus.
450
DUHEM, P.: EM, p. 153.
451
DUHEM, P.: TP, p. 97.
161
Ora, a história alemã quer ser uma história metódica, uma história dedutiva. De
princípios que ela põe como assegurados, ela pretende tirar com rigor conseqüências
que não podem deixar de ser verdadeiras, de serem conforme à realidade; e se os fatos
não concordam com os corolários do raciocínio, tanto pior para os fatos; são estes que
se enganam, não as conclusões do silogismo; são os fatos que se retocará e corrigirá,
não as previsões que o método forneceu.
452
A analogia entre as duas passagens em destaque é visível a olhos míopes. Nas
publicações anteriores o filósofo exaltava o espírito metódico dos franceses e alemães;
agora, o engajamento político leva-o a alterar sua visão em relação aos franceses,
insistindo na preciosidade da finesse, apanágio dos franceses, nos trabalhos históricos. Das
ciências do raciocínio às ciências históricas, passando pelas ciências experimentais, a
importância da finesse é crescente, ao passo que a da dedução lógica, diminuente.
Como ciência hipotética, toda pesquisa histórica parte inicialmente de uma “idéia
pré-concebida”
453
, cunhada de alguma “feliz descoberta”, que será posteriormente testada
tendo como parâmetro os monumentos. O teste raramente é fácil: verificação do autor e da
autenticidade, comparação de datas, conhecimento exato da língua original entre outras,
são dificuldades que exigem discernimento extremo, de modo que, nos testes
experimentais, observa Duhem, uma perfeita imparcialidade é requerida.
454
Bem vemos
agora os motivos da crítica duhemiana aos alemães: se os fatos forem alterados em função
dos “corolários do raciocínio” a verdade histórica, pacientemente desejada, transforma-se
em falsidade:
Uma vez que rejeitada nossa primeira suposição, é preciso compor outra, que tome
conta de todos os textos, de todos os monumentos já conhecidos; depois, é preciso, se
possível, submeter esta segunda suposição ao controle de novos documentos; assim,
por essa contínua comparação de nosso pensamento com os fatos, por essa incessante
impressão dos fatos sobre nosso pensamento, pouco a pouco uma verdade histórica se
desprenderá. Para verificar uma hipótese sobre as origens da monarquia carolíngia, um
historiador não age de modo diferente do qual agia Pasteur para verificar uma hipótese
sobre a causa da raiva.
455
452
DUHEM, P.: SA/GS, p. 60/47. Esse é mais um exemplo das inconstâncias duhemianas.
453
DUHEM, P.: SA/GS, p. 53/41. Chiappin (CHIAPPIN, J.: 1989, pp. 211-9) foi o único comentador até
agora, que eu saiba, a tratar da concepção duhemiana da natureza da história.
454
Duhem critica, na mesma lição de SA, a parcialidade, ou, em suas próprias palavras, “a arte de acomodar
os textos”, de determinados historiadores alemães, e arremata: “A ciência e, sobretudo, a história alemãs não
são senão arsenais dos quais o alemão se mune de princípios próprios para justificar seus atos. Graças ao
imenso labor de seus cientistas, filósofos e historiadores, o alemão tem sempre à mão, no momento de
cometer um crime, o axioma a partir do qual um raciocínio sólido demontrará a ele o bem de seu ato”
(DUHEM, P.: SA/GS, p. 72/56).
455
DUHEM, P.: SA/GS, p. 56/43-4.
162
A analogia entre a ciência experimental e a ciência histórica aqui encontrada não é
superficial, pois Duhem pretende deixar claro que “A verdade histórica é uma verdade de
experiência.”
456
As ciências históricas, definidas como ciências experimentais, não seguem
nem o método indutivo nem o método dedutivo. Não há regra segura que guie o historiador
em suas investigações; daí a urgência da finesse. Se para Duhem as conjeturas históricas
não procedem por generalização indutiva, não devemos concluir disso que o autor
transponha suas reflexões sobre a física teórica para a ciência histórica.
457
Ao contrário
daquela, o historiador não pode fazer, na extração de suas conclusões, uso do instrumental
matemático:
Não haverá jamais método histórico porquanto a história não procederá por dedução; e
a história não será jamais uma ciência dedutiva, porque o homem, do qual ela trata, é
muito complexo, inatingível a toda definição, porque ele se move em meio a
acontecimentos muito numerosos, muito pequenos e muito confusos.
458
Uma vez aceito que as análises históricas adequadas dependem de sua submissão ao
espírito de finesse, o método histórico é impossível na Science allemande. Mas
perguntemos: isso prejudicaria de fato nossas análises? De modo algum, pois, como
veremos a seguir, nas obras anteriores Duhem não entende por método histórico o mesmo
que aqui. Enquanto nesta obra o autor identifica método histórico e método dedutivo, na
Théorie physique ele era concebido como a via genética de apresentação das hipóteses ao
espírito do físico, o qual permitiria a este construir suas teorias de modo mais seguro. Já
em 1916, o que se passa é algo realmente dessemelhante. O “método” passa a ser
entendido como um procedimento dedutivo no qual as conclusões seguem-se
necessariamente de assunções iniciais; “o termo método é sinônimo de raciocínio
silogístico.”
459
Como a história não é uma ciência que procede more geometrico, extraindo
conclusões necessariamente de axiomas iniciais, suas conclusões não são necessárias.
Para entendermos melhor o verdadeiro papel do método histórico devemos recuar à
resposta duhemiana a uma das críticas de Vicaire ao primeiro ensaio duhemiano, que tinha
como mote a questão da ausência metodológica de direção quanto à escolha das
456
DUHEM, P.: SA/GS, p. 53/41.
457
Como a história não é uma ciência teórica (racional), ao que tudo indica, suas hipóteses poderiam ser
testadas isoladamente.
458
DUHEM, P.: SA/GS, p. 58/45.
459
DUHEM, P.: SA/GS, p. 58/45.
163
hipóteses.
460
Esta é, sem dúvida, uma das críticas que mais amolaram nosso autor, e não é
fortuito que a resposta a ela venha no mesmo ano, em “A escola inglesa e as teorias
físicas.” Se o objetivo da teoria não é a explicação dos fenômenos, então como discriminar
as hipóteses, como escolhê-las? Não estaria Duhem caindo no utilitarismo que ele mesmo
havia condenado?
461
A crítica de Vicaire é contundente: “É como eu dizia: o sucesso
justifica tudo. O que, aliás, é perfeitamente lógico. Mas o difícil é atingir esse sucesso sem
regra e sem guia.”
462
A existência absoluta de liberdade reservada por Duhem ao físico no
ato de escolha das hipóteses acabaria por paralisar o físico que quisesse construir sua
teoria. Ora, Duhem sabia muito bem disso, daí que fixou um método ideal e arrolou
algumas regras ao final de seu artigo inaugural sobre as teorias físicas, mas, continua o
crítico, trata-se, como ele próprio reconhece, de um método impossível de ser praticado; só
nos restaria tender a ele, segui-lo sem jamais conseguir realizá-lo.
463
Mas o absurdo que
Vicaire deseja mostrar é que, se o método duhemiano for seguido, toda ciência será
reduzida ao enunciado das constatações experimentais. A pura representação dos
fenômenos, como tentativa de evitar as hipóteses explicativas, não garante generalidade
nenhuma às hipóteses científicas. Seguir o método ideal de Duhem significa seguir na
contramão dos grandes progressos realizados na ciência.
464
Sem demora, Duhem encarrega-se de suprimir as brechas que a lógica deixava em
aberto:
[...] naqueles lugares onde a lógica não traça para o físico um caminho do qual ele não
possa se afastar, o porte especial de seu espírito, suas faculdades dominantes, as
doutrinas difundidas em seu ambiente, a tradição de seus predecessores, os hábitos que
ele assimilou, a educação que ele recebeu vão servir-lhe de guia, e todas essas
influências vão aparecer na forma tomada pela teoria que ele conceberá. Compreende-
se, portanto, sem esforço, que uma teoria científica possa trazer a marca do tempo e
do lugar em que nasceu.
465
A sociedade na qual as teorias nascem influenciaria enormemente a forma final da
teoria e orientaria a sua aplicação prática – eis a justificação do caráter nacional da ciência.
Daí ser possível, a contragosto de Joseph Bertrand
466
e de Grasset
467
, falar numa ciência
460
Ver seção 1.3.1 da primeira Parte.
461
DUHEM, P.: ARTF, p. 36.
462
VICAIRE, É.: 1893, pp. 483-4.
463
DUHEM, P.: ARTF, pp. 17-8.
464
VICAIRE, É.: 1893, p. 486.
465
DUHEM, P.: EITF, p. 84.
466
BERTRAND, J.: 1891, p. 743. Bertrand é criticado por Duhem em DUHEM, P.: EITF, p. 83.
164
francesa, inglesa ou alemã. Não há escolha absoluta, feita a partir do nada; toda escolha é
feita com um grau de condicionamento que acaba, no fim das contas, por revelar-se
profícuo.
Anos depois, em L’évolution de la mécanique, Duhem chega praticamente a adotar o
ponto de vista de Vicaire, ao relevar a importância das influências externas que guiam o
físico em suas escolhas: “[...] a excessiva liberdade deixada ao físico na escolha dessas
novas hipóteses não engendraria senão erro e confusão quando fosse o caso de tratar de
uma questão nova e complicada.”
468
Deixado a si mesmo o físico não produziria teoria
alguma. Se a análise lógica deixa em aberto a escolha das hipóteses, exigindo apenas a
coerência interna da teoria, resta uma liberdade quase absoluta ao físico
469
, a qual, como
Vicaire apontou, torna-se extremamente embaraçosa e paralisante aos olhos do teórico.
Todavia, o estudioso da história da ciência percebe que essa liberdade jamais é exercida
por completo:
A formação de toda teoria física procedeu sempre por uma seqüência de retoques que,
gradualmente, a partir de primeiros esboços informes, conduziram o sistema a estados
mais elaborados; e, em cada um desses retoques, a livre iniciativa do físico foi
aconselhada, sustentada, guiada, às vezes imperiosamente comandada pelas
circunstâncias mais diversas, pelas opiniões dos homens bem como pelo aprendizado
dos fatos. Uma teoria física não é jamais o produto repentino de uma criação; ela é o
resultado lento e progressivo de uma evolução.
470
A suposição de que bastou a queda de uma maçã para que a teoria da Gravitação
Universal se desse por completa seria, pois, produto de uma mente pueril e desinformada.
Segundo Duhem, a teoria newtoniana é o resultado de uma “evolução milenar”
471
,
preparada por séculos, e sequer teve seu início em Copérnico
472
, tendo sua gênese
vinculada ao período helênico.
467
PETIT, G. & M. LEUDET: 1916, pp. 199-203.
468
DUHEM, P.: EM, p. 254.
469
DUHEM, P.: TP, p. 335.
470
DUHEM, P.: TP, p. 337. Itálicos meus.
471
DUHEM, P.: TP, p. 338.
472
A interpretação que Duhem faz de Copérnico permite-nos avaliar a maturação gradual de seus estudos
históricos. Em FM (DUHEM, P.: FM, pp. 53-4), ao tratar do valor que Copérnico atribuía às suas hipóteses,
Duhem simplesmente abre aspas e cita um longo trecho extraído de um texto de Mansion onde o astrônomo
aparece decididamente como instrumentalista. Na TP (DUHEM, P.: TP, pp. 57-8) Duhem demonstra maior
circunspeção, reconhecendo que, em algumas passagens do seu Revolutionibus, Copérnico exibe uma opinião
“menos reservada” do que a doutrina escolástica de salvar os fenômenos. Com o aprofundamento das
investigações históricas, finalmente, em SF (DUHEM, P.: SF, pp. 57-61), Duhem encontra no astrônomo de
Thorn o realista conhecido pela maioria de nós.
165
Não contente com elucidar os fatores externos à construção das teorias, Duhem
apresenta, no último capítulo da primeira edição da Théorie physique, “Le choix des
hypothèses”, uma solução para o problema da escolha das hipóteses digna de estupefação:
[...] de fato, o físico não escolhe a hipótese sobre a qual ele fundará uma teoria, [...] do
mesmo modo, o físico limita-se a abrir seu pensamento, pela atenção e meditação, à
idéia que deve germinar nele, sem ele.
473
Tal qual uma flor que será fecundada, sua genialidade consiste apenas na aptidão de
receber idéias passadas e na disposição de frutificá-las. Desconcertante, o encargo da
escolha é desviado do teórico para a história, de maneira que a solução duhemiana beira o
determinismo. Drástica conclusão, somos levados a nos perguntar sobre o engano em
considerar um problema o que não passava de algo imaginário. Sequer haveria escolha! O
condicionamento no qual o físico promove e reformula teorias assume tal importância que,
se ele pensa ter consciência da própria liberdade em seu ato de escolha, está sendo vítima
de uma ilusão.
Apercebendo-se das conseqüências de semelhante tese, o filósofo opera uma divisão
entre receber as hipóteses e desenvolvê-las; tudo se passa como se a liberdade do físico se
exercesse enquanto possibilidade de não-assentimento às idéias nele germinadas, isto é, na
decisão de não fazê-las frutificar:
Não depende de ele conceber uma idéia nova, mas sim, em parte muito grande, de
desenvolver essa idéia e fazê-la frutificar.
474
E é justamente na indicação de quais são as idéias que merecem ser aperfeiçoadas
que o método histórico de investigação obtém seu mérito. O método histórico, portanto,
não consiste apenas na descrição dos motivos que levaram o físico à adoção de suas
hipóteses, mas em dar indicações, diante das circunstâncias históricas passadas e dos
elementos constantes que concorreram positivamente para a evolução da física, das
hipóteses que merecem atenção especial em função de sua fecundidade. Duhem deixa a
história falar por si mesma, sem estipular, como em “Algumas reflexões sobre as teorias
físicas”, critérios valorativos sem embasamento histórico. Ele age, desse modo, justamente
473
DUHEM, P. TP, p. 390.
474
DUHEM, P.: TP, p. 391.
166
como Vicaire agiu lá atrás: procurando antecedentes na história da ciência para criticar
uma visão puramente normativa.
O método histórico surge primordialmente como um método de exposição
pedagógica, um método de ensino para preparar os espíritos à recepção adequada das
hipóteses em física. Como aprender um e outro princípios físicos sem julgá-los
erroneamente, sem tomá-los como se apresentam nos manuais de física; como dados e
acabados?
475
A resposta não surpreende: vinculando-os à sua história, fornecendo sua
gênese ao revelar os tortuosos caminhos pelos quais passaram até serem aceitos e, ainda,
expondo os motivos pelos quais são aceitos, justificando-os. O método histórico torna-se,
assim, um recurso essencial àquele que deseja compreender a história de sua disciplina:
O método legítimo, seguro, fecundo para preparar um espírito à recepção de uma
hipótese física é o método histórico.
476
De posse do método histórico e, avisado sobre os malefícios causados pela
intromissão de hipóteses metafísicas no interior das teorias físicas, o historiador da ciência,
“evitando a penetração sub-reptícia de idéias falsas, procurará justificar cada hipótese
essencial pela sua história.”
477
Remetendo o presente ao passado, Duhem é levado à tese
segundo a qual a justificação de cada hipótese é dada pela sua história
478
(posição bem
diversa daquelas que Popper e os positivistas lógicos adotarão); pela lógica intrínseca que a
conduz nos seus aperfeiçoamentos sucessivos; por uma tradição de pesquisa indispensável
ao físico caso queira atribuir um sentido à sua ocupação. Ao conferir importância ao
475
O uso neste momento do termo “manual” é propositado. Apesar de Duhem usá-lo poucas vezes, o filósofo
refere-se explicitamente ao aprendizado da física por parte dos alunos. Sem uma referência às vicissitudes
através das quais os princípios passaram antes de entrar no campo da ciência, corre-se o risco de considerá-
los como certos e definitivos. A exposição histórica da física, portanto, fornece o contrapeso ao dogmatismo
inadvertido dos alunos, evitando uma apresentação crua da física, que desmerecesse a continuidade evolutiva
da mesma. O filósofo toma, antes mesmo de Kuhn, uma postura crítica no que concerne à forma pela qual a
física deve ser apresentada ao alunato (tanto nos manuais como nas salas de aula). Entretanto, divergem
quanto ao motivo de suas críticas. Para Kuhn, os manuais disfarçam a mudança de paradigmas ocasionada
pelas revoluções científicas ao retraduzirem para a linguagem do paradigma vigente as diferenças conceituais
em relação ao paradigma precedente, impedindo a sua distinção. Já para Duhem, os manuais ocultam o
aspecto falibilista da física e impedem o questionamento de seus princípios.
476
DUHEM, P.: TP, pp. 408-9.
477
DUHEM, P.: TP, p. 410.
478
Na introdução de seu TE, Duhem afirma que “Os princípios que nós enunciaremos não comportam, pois,
nenhuma demonstração lógica; mas comportariam uma justificação histórica” (DUHEM, P.: TE, I, p. 5). Não
podemos deixar de citar aqui o instrutivo ensaio de Boudot. Apesar da falta de desenvolvimento, a concisão
deste autor parece-nos deveras consistente: “Certamente a história não pode dar aos princípios uma
necessidade lógica que eles não têm, mas pelo menos ela pode conferir-lhes a legitimidade” (BOUDOT, M.:
1967, p. 428).
167
contexto de descoberta, aos erros e acertos que conduziram a uma invenção particular,
Duhem está apto a defender que o método histórico é o mais fecundo guia para a escolha
das hipóteses promissoras.
479
Todavia, se o método propicia enorme contribuição à
“psicologia da invenção” ao traçar a filiação das idéias
480
, não pensemos que estamos
diante de um método de invenção.
481
Inexiste, para o autor, semelhante método:
[...] um inventor genial nunca é e não pode ser um espírito submisso e disciplinado.
Toda invenção é uma revolta: revolta contra as regras que ela destrói porque o que
elas prescrevem é falso, contra os métodos dos quais ela escapa porque elas se
mostram impotentes ou enganosas; revolta contra os mestres, cujo ensino limitado ela
estende ou cuja falsa doutrina ela derruba.
482
Devidamente solicitado, mesmo não sendo capaz de produzir invenções teóricas, não
devemos subestimar a importância do método histórico. Por si só, a possibilidade de
discriminar entre os gêneros possíveis de hipóteses qual a espécie verdadeiramente digna
de ser desenvolvida é algo que merece ser considerado em alta conta. Viabilizando o
progresso ao evitar os erros e excessos do passado, “o estudo da história, ao lembrar à sua
memória os erros do passado, coloca-o [o físico] em guarda contra os embaraços
irracionais do tempo presente!”
483
De uma finita constatação histórica a uma audaciosa generalização, Duhem irá
prolongar indefinidamente a continuidade, que até L’évolution de la mécanique restringia-
se aos três últimos séculos, tanto para o passado quanto para o futuro. Para o passado, o
prolongamento não evita um círculo vicioso, pois, como vimos, a continuidade antecede a
escolha das hipóteses, mas aquela, sendo continuidade de algo, só é possível pressupondo-
se um termo originário, ou melhor, uma escolha anterior, que, por sua vez, pressupõe
novamente a continuidade, e assim sucessivamente.
484
Já para o futuro, o prolongamento
evolutivo aponta, em sua forma limite e terminal, a classificação natural, garantida pela
ordem e medida históricas, para usar de anacronismos bem conhecidos, que o método
479
DUHEM, P.: TE, p. 5; TP, p. 461.
480
DARBON, A.: 1928, p. 504.
481
Ao contrário do que acreditou Poirer (POIRER, R.: 1967, p. 405).
482
DUHEM, P.: SAVA/GS, p. 151/125-6. Desde a TP Duhem afirmava que “A invenção não é sujeita a
nenhuma regra fixa” (DUHEM, P.: TP, p. 144).
483
DUHEM, P.: TP, p. 461.
484
Talvez Duhem não se tivesse afetado por essa regressão ao infinito ou, ainda, resolveu simplesmente dar
de ombros diante de sua verificação. Certo é que a ciência, para ele, sempre existiu, como podemos ler na
epígrafe de seu monumental SM; “Nunquam in aliqua etate inventa fuit aliqua scientia, sed a principio Mundi
paulatim crevit sapientia, et adhuc non est completa in hac vita” (BACON, R., citado em Duhem, P.: SM, I,
epígrafe).
168
histórico encarrega-se de evidenciar e fornecer, por sua vez, mais uma diretriz à
metodologia duhemiana: “O respeito à tradição é uma condição essencial do progresso
científico.”
485
A subscrição da tese do desenvolvimento contínuo da física tem como preço
a ser pago o conservadorismo inerente ao método histórico, apontado por muitos
486
e
menosprezado por Lakatos. Afinal, qual o motivo por detrás das palavras de condenação a
Maxwell que se seguem senão o desrespeito do escocês pela tradição?
Surpreendente por suas conseqüências, a eletrodinâmica inaugurada por Maxwell era-
o mais ainda pela via insólita que seu autor tinha seguido para introduzi-la na ciência.
[...] No momento em que Maxwell introduziu na eletrodinâmica uma nova grandeza, o
fluxo de deslocamento, no momento em que ele assinala, como hipóteses essenciais, a
forma matemática das leis às quais esta grandeza deveria ser submetida, nenhum
fenômeno devidamente constatado exigia essa extensão da teoria das correntes; esta
bastava para representar, senão todos os fenômenos até então conhecidos, ao menos
todos aqueles aos quais o método experimental tinha atingido em um grau suficiente
de nitidez. Nenhuma necessidade lógica apressava Maxwell a imaginar uma
eletrodinâmica nova; por guias, ele não tinha senão analogias [...]. Com uma
imprudência extraordinária, Maxwell inverteu a ordem natural segundo a qual evolui
a física teórica: ele não viveu o suficiente para ver as descobertas de Hertz
transformar sua audácia temerária em profética adivinhação.
487
Em princípio, somos levados, diante da leitura do trecho acima, a ver que Duhem
segue alguns princípios metodológicos já bem conhecidos: a restrição ao emprego de
termos ou hipóteses supérfluas na representação de um conjunto de fenômenos empíricos e
a representação da totalidade dos fenômenos conhecidos. Se a teoria de Maxwell obtém
alguns êxitos não esperados, o sucesso empírico (as descobertas teóricas) e a unificação de
dois domínios distintos da física, como então entender a crítica ao escocês? Duhem não
estaria traindo o seu princípio de unidade lógica? A resposta é: não. Em primeiro lugar,
porque a teoria de Maxwell, argumenta nosso autor, não é, ela mesma, dotada de grande
consistência interna:
[...] os escritos de Maxwell não expõem apenas uma única eletrodinâmica, mas pelo
menos três eletrodinâmicas distintas. [...] As diversas teorias do físico escocês são
inconciliáveis com a doutrina tradicional; elas são inconciliáveis entre elas.”
488
485
DUHEM, P.: OS, I, p. iv.
486
BOUDOT, M.: 1967, p. 429; MAIOCCHI, R.: 1985, p. 259; RAMONI, M.: 1989, p. 55.
487
DUHEM, P.: TEM, pp. 6-8. Itálicos meus.
488
DUHEM, P.: TEM, pp. 9-11. Ver ainda: ABRANTES, P.: 1998, capítulos 6 e 7.
169
Em segundo lugar, Duhem faz sua crítica de um ponto de vista privilegiado: à sua
época já se apresentava uma teoria concorrente, a teoria de Helmholtz, que salvava todos
os fenômenos previstos pela teoria de Maxwell sem que suas conclusões excluíssem a
existência de ímãs. A teoria de Helmholtz é capaz de conciliar logicamente a eletrostática e
o magnetismo antigos com a doutrina maxwelliana, restabelecendo, pois, a “continuidade
da tradição.”
489
Ela é, por assim dizer, um “prolongamento natural” das teorias passadas.
Portanto, o princípio de unidade lógica não é deixado de lado.
490
Assim, Duhem não
contesta as previsões da teoria de Maxwell, mas os meios através dos quais o físico escocês
obteve seus resultados.
491
A heurística subordina-se à Lógica, mas tão logo a Lógica faça-
se presente, os resultados heurísticos têm de ser incorporados. Na crítica à teoria de
Maxwell, este “filho ingrato”
492
da tradição, a metodologia duhemiana incorpora
exigências tanto da Lógica como do método histórico. O físico simplesmente ignorou “as
leis que presidem o desenvolvimento racional das teorias físicas.”
493
Se as pretensões iniciais do método histórico são diminutas, tencionando preparar os
espíritos à recepção das hipóteses promissoras, ele se tornará a salvaguarda do realismo
epistemológico duhemiano. Este estaria pretensiosamente ancorado em uma cuidadosa
análise lógico-histórica da evolução da ciência. Em La théorie physique Duhem conjuga
claramente dois pontos de vista. Um deles é o estático, caracterizado pela análise lógica
das teorias, resultando em seu instrumentalismo, como já vimos e, o outro, o dinâmico, no
qual a evolução histórica instiga a asserção de um valor realista às teorias, levando à crença
de que nelas se encontraria um progresso real em direção à noção de classificação
natural.
494
Numa perspectiva dinâmica, muito ao contrário da estática, reina quase um
caráter anti-convencionalista no que tange ao problema da escolha das hipóteses. O físico
489
DUHEM, P.: TEM, p. 225; QRSA/GS, p. 128/99.
490
Pelo contrário, ele figura com todas as letras na página 14 da mesma obra.
491
De acordo com Paty, a rigidez da metodologia duhemiana impedi-lo-ia de aceitar o poder heurístico das
teorias e, em particular, levá-lo-ia a recusar as numerosas e pungentes predições da teoria de Maxwell devido
à sua arbitrariedade: “É o poder preditivo da matematização que Duhem ignora, ou melhor, recusa; basta
lembrar a virulência de sua crítica à teoria de Maxwell, à qual ele reprovava, em particular, por suas
numerosas e fortes predições, que eram, aos seus olhos, perfeitamente arbitrárias” (PATY, M.: 1986, p. 45).
Ora, como acabamos de ver, em nenhum momento Duhem recusa as descobertas da teoria de Maxwell.
Recusa ele, no entanto, a arbitrariedade na justificação teórica das descobertas; ou na introdução de noções,
como a de fluxo de deslocamento, sem qualquer definição teórica (DUHEM, P.: EITF, p. 71). Duhem
rejeitava uma das conseqüências da teoria de Maxwell: suas equações não permitiam a existência de ímãs
(DUHEM, P.: QRSA/GS, pp. 129-30/100-1). Discorreremos sobre o poder preditivo das teorias na próxima
seção.
492
DUHEM, P.: EM, p. 337.
493
DUHEM, P.: TEM, p. 12.
494
MAIOCCHI, R.: 1985, p. 10.
170
não escolheria as hipóteses, apenas as receberia à semelhança de um “sonâmbulo.”
495
Como podemos entrever, dessa tese resultam importantes conseqüências. Entre elas merece
destaque especial a impregnação histórica pela razão: a história duhemiana é uma história
racional que segue um sentido passível de ser descrito pelas análises históricas. Apesar de
Duhem ser extremamente cuidadoso a ponto de dizer que as conclusões tiradas da análise
histórica não são demonstrativas, elas não deixam de possuir um estatuto digno de
confiança. Uma das leis que presidem o desenvolvimento da ciência é aquela que aponta
para um fim que seria o coroamento das teorias atuais sob a guarda da classificação
natural. Quando se tratar de perquirir se a classificação natural é um ideal realizável,
Duhem reservará a resposta a essa questão à história:
Ora, é justo considerar esse ideal uma utopia? É à história da física que cabe a resposta
a essa questão.
496
Fundamentada inicialmente numa intuição do senso comum, a noção de classificação
natural granjeia na história o esteio necessário à presunção de sua consecução, pois que as
análises históricas levam o físico a afirmar a existência de uma "tendência que dirige todo
o desenvolvimento da física"
497
, responsável também pela inteligibilidade da história da
ciência. A história é a mediadora entre as aspirações do senso comum e a análise lógica: o
realismo metodológico, não autorizado pela lógica, converte-se em realismo
epistemológico.
É por intermédio do método histórico que se torna possível a aferição do valor das
teorias científicas, afastando o ceticismo (com a afirmação de que a física aproxima-se de
uma classificação natural) ao mesmo tempo em que se rejeita o dogmatismo (com a tese do
pessimismo indutivo). A história da ciência, a serviço do método histórico, autoriza a
conjunção de aspectos convencionalistas e realistas de uma só vez
498
, estabelecendo um
estado de perfeito equilíbrio entre o ceticismo em que mergulharia o instrumentalismo e o
dogmatismo dos partidários do realismo ingênuo.
499
Diante dos repetidos insucessos das
teorias aceitas em uma época como verdadeiras ou próximas da verdade, a história mostra
495
KOESTLER, A., expressão citada em BRENNER, A.: 1990, p. 210.
496
DUHEM, P.: TP, p. 447.
497
DUHEM, P.: TP, pp. 452-3.
498
BOUDOT, M.: 1967, p. 427.
499
DUHEM, P.: TP, pp. 410-1.
171
que o ceticismo não é a última palavra.
500
Consoante Duhem, o escrutínio inculcado pelo
método histórico leva-o a atestar que:
O movimento pelo qual a física evolui pode, com efeito, decompor-se em outros dois
movimentos que, sem cessar, sobrepõem-se um ao outro. Um dos movimentos é uma
série de alternativas perpétuas; uma teoria eleva-se, domina um instante a ciência,
depois ela desaba e uma outra teoria a substitui. O outro movimento é um progresso
contínuo; por esse progresso, vemos criar-se no curso dos tempos, uma representação
matemática sempre mais ampla e sempre mais precisa do mundo inanimado que a
experiência revelou-nos.
501
Esses dois movimentos, por sua vez, estão ligados a duas partes bem distintas que
constituem as teorias; a parte explicativa e a parte representativa, respectivamente. De sorte
que:
Quando os progressos da física experimental põem a teoria em xeque, quando eles
obrigam-na a modificar-se, a transformar-se, a parte puramente representativa entra
quase inteira na nova teoria, fornecendo-lhe a herança de tudo o que ela possuía de
mais precioso, enquanto a parte explicativa cede lugar a uma outra explicação.
502
Como se vê, os caracteres sob os quais se processa a continuidade podem ser
classificados como uma dinastia expansiva da parte representativa das teorias. Se o
relativismo é evitado, a incomensurabilidade, embora parcial, continua a existir: ainda que
na parte explicativa das teorias, Duhem reconhece a existência de revoluções na ciência.
503
Entretanto, ao falar na evolução contínua das teorias físicas Duhem não está pressupondo
um desenvolvimento igual de suas hipóteses metafísicas. É somente na parte representativa
das teorias que intervém a continuidade, isto é, naquela que apenas traduz os fatos
observados em uma linguagem devidamente matematizada. As partes metafísicas presentes
nas teorias, por lhes faltar base experimental, sofrem constantes revoluções, gerando, por
assim dizer, uma incomensurabilidade entre elas; daí a facilidade com que de tempos em
500
DUHEM, P.: TO, pp. 122-5. É nesse ensaio que a tese continuísta aparece pela primeira vez de modo
explícito.
501
DUHEM, P: TP, pp. 454-5.
502
DUHEM, P.: TP, p. 44.
503
Uma visão superficial pode levar à crença de que a posição duhemiana é exatamente contrária àquela de
Kuhn. Existem, de fato, muitas semelhanças entre os dois. A possibilidade da existência de revoluções, aliada
à ausência da distinção entre representação e explicação em Kuhn, basta para ser possível estabelecer certa
consonância entre os dois pensadores. A principal discordância, no entanto, é sabidamente de cunho
historiográfico, e se manifesta sobretudo acerca do nascimento da ciência moderna (do qual não pretendemos
tratar aqui).
172
tempos eles emergem à tona como que do nada para, no momento seguinte, imergir sem
mais.
Do que acabamos de ver, precisamos reter o seguinte: a tese da continuidade e de seu
modo procedural indica o que seria, no limite, a classificação natural: uma representação
total e adequada dos fenômenos.
504
É a essa acepção da classificação natural que o método
histórico dará aval. A crença na obtenção da teoria perfeita permanece metafísica; não,
porém, o objetivo das teorias físicas, o qual, guarnecido pelas análises históricas, seria o de
representar a realidade concreta (com a condição metafísica latente de que todos os
fenômenos sejam representados). É assim que podemos denunciar o que viria a ser, aos
nossos olhos, uma tensão interna entre o objeto da teoria física e o desenvolvimento
histórico das teorias. Afinal de contas, o que é a classificação natural? Uma explicação
metafísica, de acordo com a definição encontrada em “A escola inglesa e as teorias
físicas”, ou uma representação, por força da história da física? Na seção seguinte,
esperamos resolver esse impasse.
2.4. A classificação natural na Théorie physique
Vimos na seção 2.2 que a noção de classificação natural aparece de modo explícito pela
primeira vez em 1893, em circunstâncias bastante expressivas, já que se trata de afastar de
todo jeito a incoerência lógica gerada pelo uso de modelos mecânicos. Após ser
introduzida, ela some dos textos duhemianos por um período de 12 anos e, quando
reaparece, a idéia matriz da interpretação realista da obra duhemiana é desvinculada da
noção metafísica de explicação. Sem dúvida, algo que merece atenção. Que seu contexto
difira, nada mais justo, pois, como notou Souza Filho, na Théorie physique a classificação
natural adquire respaldo histórico, sustentada por exemplos tirados da história da ciência,
os quais vêm a fortificar a suspeita de que a teoria física atual aproxima-se
progressivamente de seu ideal. Souza Filho interpreta essa mudança como uma tentativa
de objetivação de uma noção que era, para ele, apenas axiológica, normativa. Contudo,
não concordamos inteiramente com o comentador por conta de um detalhe: não vemos,
504
O testemunho de Baigrie cai bem neste momento: “Duhem considera que as classificações naturais na
direção da qual a teoria física evolui não são explicações. Ele considera as teorias físicas como
representações ou condensações de leis e fenômenos. É na parte representativa de uma teoria que Duhem
situa o que aparece como uma classificação natural” (BAIGRIE, B.: 1992, p. 347).
173
como ele afirma, a existência de uma “mudança conceitual”
505
da noção de teoria perfeita.
A nosso ver, existem, sim, evidências de uma mudança contextual, embora, apesar de tudo
o que expusemos na seção anterior, acreditamos que uma análise mais detida revelará não
existir alteração conceitual alguma.
506
O que Souza Filho faz com muita propriedade é dar
mostras da existência de uma evolução no pensamento duhemiano, ocasionada por suas
incursões historiográficas e pelo crescente e contínuo recurso à história da física para
fundamentar suas concepções epistemológicas. Mas essa evolução responde pela
objetivação da noção de classificação natural, pela fundamentação histórica de sua
possibilidade, e de modo algum pela modificação conceitual da noção mesma de
classificação natural. Em 1893, como vimos, a noção de classificação natural era
impositiva; “se podemos, devemos”, pois não havia qualquer sustento histórico do
“podemos”, de sorte que este “podemos” apenas ocultava a rigidez abrupta do “devemos.”
Na Théorie physique, a história da física vem em apoio do “podemos”, fortalecendo o
“devemos” e conferindo a ele maior objetividade. Antes, a norma condicionava a atitude,
depois, a descrição histórica facultava a norma, naturalizando-a, por assim dizer.
Desejamos chamar a atenção dos leitores para um fato que acreditamos ser de grande
importância. Na primeira edição de La théorie physique, a classificação natural é
desvinculada de todo tipo de explicação metafísica e associada à representação e à
classificação dos fenômenos. O que pretende Duhem com essa desvinculação? A
classificação natural deixou de ser a “explicação metafísica dos fenômenos materiais”? Em
princípio, tudo nos leva a crer que sim, afinal, a própria estrutura da obra evidenciaria isso:
o primeiro capítulo tem por título “Théorie physique et explication métaphysique” e o
segundo, “Théorie physique et classification naturelle”; a disjunção estrutural encontrada
entre a explicação metafísica e a classificação natural é mais um indício de que elas nada
têm a ver uma com a outra. Por que reservar capítulos distintos a noções anteriormente tão
intimamente ligadas?
Um exemplo externo, baseado na interpretação de Abel Rey, pode ser acrescentado.
Ao deixar de ler “A escola inglesa e as teorias físicas”, a leitura que Rey faz da
classificação natural está praticamente condicionada. Na Théorie physique (estamos
505
SOUZA FILHO, O.: 1996, p. 73.
506
A própria definição de classificação natural, tal qual encontrada na TP, não é comparada por Souza Filho
àquela que encontramos em EITF (DUHEM, P.: EITF, p. 78), de sorte que a defesa de uma mudança
conceitual torna-se difícil. Souza Filho relega a definição da noção de classificação natural em EITF a uma
nota de rodapé (SOUZA FILHO, O.: 1996, p. 73)
174
sempre falando de sua primeira edição) Duhem evita ao máximo associar as especulações
metafísicas do objeto da teoria física. O próprio princípio de unidade lógica é remetido ao
senso comum, ou seja, à natureza humana, a qual em nada faz apelo a uma crença
metafísica. Tudo nos leva a crer, portanto, que Duhem tenha operado de fato uma mudança
conceitual na noção de classificação natural, esvaziando o seu conteúdo metafísico. Mas
será esse o caso? Não seria factível a elaboração de uma interpretação que preservasse ao
mesmo tempo a unidade lógica entre o antes e o depois? Cremos que sim, e, ademais,
cremos que podemos esmiuçar o mecanismo da passagem da representação dos fenômenos
a sua explicação metafísica. Para isso, não é apenas à primeira edição da Théorie physique
a que devemos nos voltar, mas à segunda edição.
A segunda edição de La théorie physique, sofre um acréscimo de dois ensaios,
“Physique de croyant” e “La valeur de la théorie physique.” Ambos os ensaios são
respostas a escritos de Rey: o primeiro, ao artigo de 1904, enquanto o segundo, ao livro de
1907. Ambos também são seus ensaios com o maior teor metafísico – e é aqui que reside a
chave de nossa interpretação. Por que acrescentar à sua grande obra dois ensaios
publicados em separado, sendo que o primeiro deles fora escrito antes mesmo da primeira
edição da Théorie physique? Perguntemos mais uma vez: em que consiste a classificação
natural? Numa explicação ou numa representação dos fenômenos? Se ela consistisse na
explicação destes, então por que não dizê-lo na primeira parte da Théorie physique, quando
se trata de definir o objeto da teoria física? Em caso contrário, como dar conta dos
parágrafos de “A escola inglesa e as teorias física”? Abel Rey poderia ajudar-nos?
A certeza da ciência não é aparente, ela é parcial: a ciência não nos dá todas as
certezas das quais nossa natureza é suscetível, mas ela nos dá certezas que são da
mesma ordem de quaisquer outras certezas. A classificação natural, à qual ela tende,
será uma classificação real de objetos reais, mas ela será apenas uma classificação, e
não uma explicação suficiente. O valor objetivo da ciência e da experiência é
salvaguardado nos mesmos termos em que ele é salvaguardado por Mach, Ostwald ou
Rankine. Duhem não é agnóstico em nenhum grau: ele crê na realidade objetiva da
experiência, mas ao lado dos elementos reais fornecidos pela experiência, ele crê na
existência de outras realidades.
507
Sem dúvida, uma passagem que merece ser comentada. Em seu início, Rey insiste
que a ciência, nos moldes duhemianos, atinge de fato alguma certeza – mas não toda a
certeza. A importância desta passagem reside na tentativa que o comentador faz,
507
REY, A.: (1907) 1930, p. 139.
175
acertadamente, de afastar Duhem do cientificismo. Das várias ordens de certezas passíveis
de serem conquistadas pelo conhecimento humano, a certeza científica, apenas uma dentre
elas, goza do mesmo estatuto. Desse modo, a certeza da ciência teórica consiste no seu
valor objetivo, e a classificação natural atinge esse valor. Mas o que Rey entende pela
noção de classificação natural? Segundo suas palavras, ela seria uma “classificação real de
objetos reais.” Resta saber qual o significado preciso de “real” no trecho citado. A
conclusão, um pouco difícil de ser extraída, é esta: real, para Rey, seria o que existe de
algum modo independente do sujeito cognoscente, seja ele criado ou não por este. Assim, o
real não remete necessariamente a algum conteúdo metafísico determinado, embora a
possibilidade da existência de outras realidades que não a realidade da experiência não
seja, afirma o comentador, negada por Duhem. Mas sobre as realidades supra-empíricas a
ciência não tem qualquer autoridade. Ora, a questão que permanece implícita na noção de
classificação natural (e isso Rey parece não ter visto) não é assegurar a objetividade ou
realidade da experiência; que o mundo externo exista independentemente de qualquer
sujeito é uma fato que jamais é posto em dúvida nos textos duhemianos. Causa espécie
pensar que tal questionamento tenha feito alguma vez parte do cabedal do filósofo francês.
A classificação natural, no entender de Rey, seria, por conseguinte, uma classificação
fenomenológica não artificial – ela nada teria de metafísico, pelo menos não no sentido
duhemiano. Daí a identificação efetuada pelo comentador entre Duhem, Mach, Ostwald e
Rankine, acerca do valor objetivo da ciência. De onde vem o equívoco de Rey? Uma
pequena parte provém de sua desatenção, de seu desconhecimento ou negligência de
alguns textos duhemianos. Mas, como o próprio comentador reconhece, as expressões de
Duhem são frequentemente permeadas de “ambigüidade.”
508
Vejamos se isso se justifica.
Em livro ainda pouco conhecido, La filosofía positivista, Kolakowski lista quatro
regras gerais que seriam como que a essência da corrente positivista em filosofia. A
primeira delas é a regra do fenomenalismo, enunciada como se segue: “não existe diferença
real entre ‘essência’ e ‘fenômeno.’”
509
Desse modo, a essência metafísica das coisas,
508
REY, A.: (1907) 1930, p. 139.
509
KOLAKOWSKI, L.: (1966) 1981, p. 15. As quatro regras descritas por Kolakowski que constituem o
denominador comum do positivismo são: (1) a regra do fenomenalismo: “não existe diferença real entre
‘essência’ e ‘fenômeno’”; (2) a regra do nominalismo: “O mundo que conhecemos é um conjunto de fatos
individuais observáveis. [...] todo saber abstrato é um modo de ordenação concisa e classificatória dos dados
experimentais e não possui nenhuma função cognoscitiva autônoma”; (3) “a regra que nega todo valor
cognoscitivo aos juízos de valor e aos enunciados normativos” (podemos enunciar juízos de valor sobre o
mundo, mas estes não dependem em hipótese alguma de razões científicas); (4) a regra da unidade
fundamental do método da ciência: “[...] os modos de aquisição de um saber válido são fundamentalmente os
176
irredutível ao conhecimento sensível e apenas indiretamente manifesta, perde sua nobreza.
O positivismo descaracterizaria a distinção fenômeno/realidade, reconhecida, doravante,
como arbitrária, mero verbalismo e constante indutora de erros. O objeto próprio das
ciências positivas (as únicas verdadeiramente científicas) é a fiança no conhecimento
experimental – e isso é tudo. Por extensão, argumenta Kolakowski, outra restrição
positivista, derivada da que acabamos de mencionar, teria como endereço o conceito de
causalidade, reduzido ao âmbito físico, assim como quando dizemos que um fenômeno
causa outro. Todo processo causal no qual se fizer intervir causas inacessíveis à
experiência possível será metafísico e destituído de sentido.
510
Isso acontece especialmente
com a noção de matéria, entendida como distinta da soma de suas qualidades físicas
observáveis; sua existência não permite uma explicação física melhor de nenhum
acontecimento observável. A matéria passa a ser um conceito supérfluo, pois, com ou sem
ele, nossa explicação das coisas do mundo permanece positivamente a mesma.
Amparados na regra fenomenalista descrita acima, voltemos nossa atenção para
Duhem. É verdade que nosso autor usa, vez ou outra, o termo “fenômeno” como idêntico a
“realidade” e, não raro, como distinto dela – uma de suas ambigüidades. Convém
perguntar, então, pela razão disso, afinal, fenômeno não é simplesmente “aquilo que parece
ser”? Ou, ainda, “aquilo que parece ser mas não é”? Sem dúvida, um uso muito largo do
conceito é feito por parte de nosso autor. Monista ou dualista? A resposta a essa questão é,
de fato, dúbia, pois que depende ela mesma de uma “tática” empregada por Duhem.
Quando a resposta deriva da análise lógica das aparências sensíveis, o autor opõe-se ao
dualismo, o qual, se não questiona a realidade daquilo que aparece a um sujeito, situa o ser
numa esfera não fenomênica, cuja verificação permanece problemática. Os dados da
observação contêm, insiste Duhem, algo de evidente ao conhecimento sensível, algo de
inquestionável, e são aceitos sem a necessidade de provas em seu apoio. Falar numa
realidade para além dos fenômenos é fazer metafísica, isto é, formular uma questão que
não pode ser respondida pelo método experimental.
511
As conclusões da análise lógica,
portanto, tendem a favorecer uma concepção fenomenalista (monista) da ciência.
mesmos em todos os campos da experiência”, regra exemplificada pela redução de todas as demais áreas do
saber a um método e a uma mesma ciência – as ciências físicas (KOLAKOWSKI, L.: [1966] 1981, pp. 15-
22).
510
Já vimos a posição de Duhem acerca da causalidade na seção 1.2 da Parte 1.
511
A análise lógica, ou seja, a análise crítica da estrutura e do objeto da teoria física, e o método
experimental, referência quando se trata de decidir questões empíricas, compõem a instância responsável por
177
Se Duhem está próximo de advogar um realismo ingênuo ao nível da pura
observação, sabemos que o mesmo não se passa em suas reflexões sobre a ciência física.
Essa dessemelhança de posições leva-nos a uma concepção bastante própria. Não é uma
constatação paradoxal que a teoria física, ao afastar-se do senso comum, tornando-se, em
conseqüência, menos objetiva, passe, com o aprimoramento e desenvolvimento histórico, a
readquirir a objetividade perdida, isto é, a corresponder com uma ordem metafísica
sobreeminente? Afinal, em qual dos pólos está a “verdadeira verdade”? Na
correspondência com as leis do senso comum, derivadas das aparências, ou na
correspondência com uma ordem metafísica? Se a certeza dos nossos conhecimentos tem,
em última instância, o senso comum como ancoradouro, a verdade da física deveria
consistir numa reaproximação sua das leis do senso comum e não em um distanciamento
delas em direção a uma ordem metafísica! O “aristotelismo” duhemiano presente na
aceitação imediata dos fatos contrasta com uma “postura platônica” (que o próprio Duhem
reconhece como metafísica), a qual divisa fenômeno e realidade, restringindo a verdade à
correspondência com esta última (apesar de a atitude duhemiana não ser de negação
contínua do dado). Leia-se agora a Théorie physique atentamente e facilmente perceber-se-
á que o termo “realidade” aparece em dois sentidos: (1
o
) como o que é imediatamente
observado; (2
o
) como o que está para além das aparências. Não que se trate de alguma
contradição, mas apenas de uma duplicidade intencional de pontos de vista. Logo no
começo da Théorie physique Duhem coloca duas questões cujas soluções são objeto da
metafísica: “Existe uma realidade material distinta das aparências sensíveis? De que
natureza é essa realidade?”
512
Do ponto de vista do método experimental, esta não é uma
questão decidível – daí a manutenção das certezas do senso comum, ignorante da
metafísica. Já de um ponto de vista metafísico, a crença em uma realidade transcendente –
e, por conseguinte, a fenomenalidade das aparências (mas não de sua irrealidade
513
) – é
irrepreensível e, arrisquemos sem hesitar, necessária como motor para a empresa científica.
Como vemos, a referência do termo realidade pode ser entendida como indicativo do nível
de discurso duhemiano: quando o real é identificado à experiência, o discurso segue os
delimitar o poder legítimo das teorias e da verificação experimental. Não é à toa que suas conclusões afastem
qualquer menção teórica às existências supra-empíricas.
512
DUHEM, P.: TP, p. 7.
513
A aceitação de uma metafísica, de uma ordem transcendente aos fenômenos, não implica a negação da
realidade destes mesmos fenômenos. Importa sublinhar, entretanto, que eles passam, no novo contexto, a
assumir um papel secundário e proveniente de uma realidade mais original.
178
parâmetros da análise lógica; quando o real indica algo além do sensível, é o metafísico
que fala.
Não nos é difícil ver que Duhem não repudia a metafísica. Ele adota em vários
momentos o ponto de vista metafísico. Vicaire havia notado isso já nos primeiros escritos
duhemianos: “[...] não somente Duhem não é um adversário da metafísica, como ele não
tem por ela nenhum desdenho.”
514
Assim, vincular a dependência genética de sua
metodologia a Mach, como o faz Redondi
515
, prejudica o entendimento de seu pensamento;
enquadrá-lo na concepção fenomenista do positivismo, feito realizado por Lênin, acaba por
reduzir a riqueza de sua estratégia. Antes de voltarmos nossa atenção à interpretação de
Rey, espacemos um pouco mais esta questão.
De modo bem geral, o principal interesse de Lênin em seu Materialismo e
empiriocriticismo é defender o realismo materialista contra o idealismo e o fenomenismo
dos seguidores de Mach e Avenarius. De acordo com Lênin, a doutrina idealista é fruto do
relativismo filosófico, o qual, por sua vez, representa uma reação ao antigo materialismo
metafísico. O materialismo metafísico teria como principais características a ignorância da
relatividade dos conhecimentos humanos (já que desconheceria a dialética); o exagero do
valor deferido ao ponto de vista mecanicista; e a ampla admissão de elementos imutáveis
com suas respectivas essências eternas. Assim, ao tomar conhecimento de que as “verdades
imutáveis” de antanho não passavam de “verdades relativas”, muitos concluíram pela
inexistência total de verdades objetivas independentes da humanidade. Este
reconhecimento representou o primeiro passo para o idealismo subjetivista; a partir daí, o
514
VICAIRE, É.: 1893, p. 482, n. 1.
515
REDONDI, P.: 1978, p. 32. É comum os comentadores de Duhem exagerarem o débito deste para com o
filósofo austríaco. Duhem realmente usa o conceito de machiano de “economia intelectual” na TP (DUHEM,
P.: TP, pp. 27-8, p. 54, 76) e, futuramente, voltará a referir-se a ele na SA (DUHEM, P.: SA/GS, p. 122/94),
no entanto, não há quaisquer indícios de que nosso autor tenha derivado da concepção de Mach a definição
da teoria como representação abstrata. Duhem provavelmente travou contato com a filosofia machiana pela
primeira vez por volta de 1903, quando leu os manuscritos que serviriam de base para a publicação da
tradução francesa de La mécanique de Mach. Dessa leitura surgiu uma longa resenha da obra do austríaco, na
qual, logo em seu início, Duhem afirma: “Desde a época em que Mach formulou sua doutrina sobre a
natureza da filosofia natural, pensamentos mais ou menos análogos aos seus desenvolveram-se na Inglaterra,
na Alemanha, na França, nos escritos de numerosos autores; entre estes, uns sofriam mais ou menos
diretamente a influência do professor de Viena; outros, sem sentir os felizes efeitos dessa influência,
reencontraram por seus próprios esforços as idéias já descobertas; naturalmente, eles não renderam às
pesquisas de seu predecessor desconhecido a justiça que elas mereciam” (DUHEM, P.: AOEM, seção 1). Em
nota ligada ao final desta citação, Duhem arremata: “Que nos seja permitido desculpar-nos pela ausência do
nome de Mach nas publicações em que, por vezes, emitimos pensamentos que tinham com os seus mais de
uma analogia” (DUHEM, P.: AOEM, seção 1, n.3). Assim, a influência inicial de Mach sobre Duhem tem de
ser minimizada.
179
conhecimento das sensações passou inevitavelmente a representar o único tipo possível de
conhecimento. As “coisas”, outrora entidades imutáveis fonte dos fenômenos, reduziram-
se a grupos de sensações, as quais passaram a existirem por si mesmas, sem a necessidade
de um substrato. A fórmula clássica do materialismo termina por ser invertida: as
sensações deixaram de ser consideradas reflexos das coisas para que as coisas se tornassem
construtos mentais para um complexo de sensações. A matéria e as leis que a regiam
simplesmente desapareceram, tornando-se simples convenções. Pois então, esta é
justamente a situação, afirma Lênin, da física de sua época:
Veja os físicos dessa escola [da nova física]: o alemão Mach, o francês Henri
Poincaré, o belga [sic] P. Duhem, o inglês K. Pearson. [...] o que lhes é comum é
“unicamente” o idealismo físico, ao qual todos, sem exceção, propendem de um modo
mais ou menos consciente, mais ou menos resolvido.
516
A leitura de Rey associa Duhem e Mach na defesa da objetividade da ciência e da
experiência; a de Lênin vincula-os ao idealismo... Mais uma citação por via de
esclarecimento:
A idéia fundamental da escola da nova física que analisamos é a negação da realidade
objetiva que nos é dada na sensação e que é refletida por nossas teorias, ou bem a
dúvida sobre a existência da dita realidade.
517
Por partes. Vimos que Duhem não nega em momento algum a realidade das
sensações e de seu substrato material. O homem está diretamente conectado à realidade e
com as coisas que o rodeiam. O objetivo da física duhemiana é salvar as aparências, não
as sensações. Por mais estranho que essa divisão que faço agora possa parecer abstrusa, em
Duhem, insisto, as aparências não se resumem às aparências de um sujeito particular.
Sendo assim, o estatuto das aparências eleva-se em grau de objetividade. O cavalo não é a
minha sensação do cavalo – é simplesmente o cavalo real. A questão metafísica por
excelência não seria se, por trás das sensações que tenho ao ver através do telescópio uma
disposição de pontos luminosos existem de fato planetas, mas se essa disposição obedece à
lei da atração universal que eu não posso observar. Para podermos visualizar melhor o que
quero dizer, basta que rememoremos o esquema popperiano dos três mundos. Se
supuséssemos que Duhem botasse as sensações em questão, é como se tivéssemos de
516
LÊNIN, V.: (1909) 1967, p. 241.
517
LÊNIN, V.: (1909) 1967, p. 241.
180
incluir um novo mundo representado pelas sensações do sujeito. Duhem não julga
necessário uma “análise das sensações.” Assim, é incorreto afirmar com Lênin que:
[...] para Poincaré as coisas são “grupos de sensações” e que Duhem emite opinião
análoga.
518
De um ponto de vista geral, a ontologia duhemiana não exclui a realidade de
substâncias ainda não observadas e nem mesmo as empiricamente inobserváveis. Já de um
ponto de vista mais restrito, vimos que a crítica de Duhem ao fundamento do energetismo
de Ostwald, baseada no senso comum, garantia a existência de substâncias materiais
diversas, de modo que a noção de matéria, entendida como substrato das qualidades
sensíveis, é preservada – revelador é o fato de que Lênin use o mesmo exemplo crítico de
Duhem.
519
Pois bem, o materialismo dialético, afirma Lênin, reconhece o relativismo do
conhecimento humano embora não se deixe reduzir a ele, isto é, não nega a verdade
objetiva, mas condiciona historicamente o conhecimento desta verdade. Toda tese
científica acerca da estrutura da matéria passa a ser reconhecida como aproximada. Se todo
conhecimento é aproximado, então a distinção absoluta entre a “coisa-em-si” e os
fenômenos perde todo sentido: a única diferença defensável seria entre o conhecido e
aquilo que ainda não o é. O que Duhem diz acerca disso? Lembremos que quando Vicaire
critica nosso autor afirmando que a posição duhemiana seria responsável por introduzir o
ceticismo na física, nosso autor redargüe, em “Física e metafísica”, que o ceticismo
deixado a si só é praticamente inofensivo em se seguindo o método adequado em física. É
que para Duhem o ceticismo advém de uma reação, e não guarda em si nenhuma
positividade:
Nada é mais apropriado para favorecer o ceticismo que confundir os domínios das
diversas ciências. Nada, pelo contrário, é mais eficaz contra essa tendência dissolvente
que a definição exata dos diversos métodos e a demarcação precisa do campo que cada
um deles deve explorar.
520
O ceticismo seria uma atitude oportunista que surgiria através dos interstícios do
dogmatismo intransigente. A suposição de que a física detém o conhecimento absoluto dos
518
LÊNIN, V.: (1909) 1967, p. 37.
519
LÊNIN, V.: (1909) 1967, capítulo 5, seção 2: “É o movimento concebível sem a matéria?”
520
DUHEM, P.: FM, p. 50.
181
fenômenos ver-se-á contrariada a partir do primeiro indício de sua incerteza, donde o abalo
geral da estrutura científica e a invasão do ceticismo. A ruína da física está em supor que
ela possui um método que é igualmente bom em metafísica. Neste ponto, a crítica
duhemiana ao dogmatismo aproxima-se perfeitamente da crítica de Lênin ao materialista
metafísico!
521
Mas não é só. Duhem afirma ainda que:
Sustentamos que esses métodos [das ciências positivas], eficazes na observação dos
fenômenos e na descoberta de leis, são incapazes de apreender as causas e atingir as
substâncias; mas isso não é ser positivista. Ser positivista é afirmar que não há outro
método lógico que o método das ciências positivas. É afirmar que aquilo que é
inabordável através desse método, que aquilo que é incognoscível para as ciências
positivas, é em si e absolutamente incognoscível.
522
Ao criticar o monopólio positivista do saber, o francês recomenda a distinção entre
os métodos científicos ao mesmo tempo em que pressupõe a relatividade dos mesmos. Mas
o que nos importa notar é que a possibilidade do conhecimento da “coisa-em-si” não é
suprimida, mas condicionada a métodos particulares. A bem da verdade, não há uma nítida
distinção entre o cognoscível e o incognoscível:
Com a ajuda de métodos essencialmente positivos, nós nos esforçamos em distinguir
nitidamente o conhecido do desconhecido; nós jamais pretendemos traçar uma linha
de demarcação entre o cognoscível e o incognoscível.
523
Vemos que, assim como Lênin, Duhem não empreende uma distinção absoluta entre
fenômeno e “coisa-em-si”, e que a distinção entre o conhecido daquilo que não o é é a
única reservada à física. Lênin não utiliza as passagens que acabamos de citar, pois que
elas não se encontram na Théorie physique, única obra lida pelo materialista, mas isso não
o impede, ainda assim, de encontrar laivos materialistas em Duhem. Após classificar
Duhem como idealista, o filósofo russo mostra certa insegurança a esse respeito: “Em toda
uma série de passagens [Duhem] se aproxima muito do materialismo dialético.”
524
A luta
constante e infindável mencionada pelo professor de Bordeaux entre a natureza e a teoria
física é a causa do desvio interpretativo; ela indica que a natureza é independente da razão
521
Para Lênin, o insucesso do materialismo metafísico leva ao idealismo; para Duhem, o do dogmatismo, ao
positivismo.
522
DUHEM, P.: FM, p. 50.
523
DUHEM, P.: TP, p. 423. Itálicos meus.
524
LÊNIN, V.: (1909) 1967, p. 247.
182
humana e que as teorias, ao representá-la com maior aproximação, não seriam de modo
algum um sistema puramente arbitrário:
Teríamos aí uma exposição de irreprochável exatidão do materialismo dialético se o
autor se ativesse firmemente à existência dessa realidade objetiva, independente da
humanidade.
525
Mas acontece, entretanto, que a natureza da qual fala Duhem, prossegue Lênin, está
além dos domínios que o método experimental pode contemplar diretamente, donde a
recaída duhemiana no idealismo.
526
A origem do problema interpretativo de Lênin reside
nisto: o que está em causa para Duhem não é alguma “realidade objetiva independente da
humanidade”, mas uma realidade sobreeminente, à qual, esta sim, o método experimental
não tem acesso direto.
Um exemplo para deixar isso mais claro. Assim como acontece com Duhem, a
classificação natural de um positivista estrito bem poderia ser uma classificação verdadeira
dos fenômenos, mas, ao contrário do filósofo católico, o valor da verdade da suposta
classificação estaria condicionado pela regra fenomenalista vista atrás; como não há
distinção entre a essência e a aparência, todas as relações acessíveis ao conhecimento
humano reduzem-se a relações experimentais, logo, a classificação natural mereceria com
justa causa o adjetivo “natural.” O mesmo não se pode dizer de Duhem; já que este
reconhece filosoficamente (e não logicamente, bem lembrado) a distinção que o positivista
negaria, a classificação natural duhemiana resguarda o direito de possuir um valor
ontológico, uma vez que ela estabeleceria relações metafísicas entre as essências dos
fenômenos. A classificação natural duhemiana é natural apenas na medida em que não é
artificial, pois se bem quisermos defini-la, teremos de chamá-la com mais precisão de
classificação sobrenatural.
527
Se a lógica de Duhem aproxima-o do positivismo, ao
reconhecer como metafísica a distinção entre fenômeno e realidade, a filosofia duhemiana
tripudia sobre os estreitos limites do positivismo.
A realidade que Duhem tem em vista quando pensa no conceito de classificação
natural é, pois, uma realidade transcendente, cujo caráter permanece problemático e
dependente de uma postura metafísica. Não se trata da realidade das aparências. Logo, a
525
LÊNIN, V.: (1909) 1967, p. 248. Itálicos meus. “[…] se o autor se ativesse firmemente [...].” A leitura de
Lênin não é apenas condicionada por seus preconceitos interpretativos, mas também, em grande parte, pelas
“ambiguidades” duhemianas.
526
LÊNIN, V.: (1909) 1967, p. 248.
527
Já vimos isso na seção 2.2.
183
interpretação de Rey do estatuto da classificação natural reduz o seu caráter ontológico. É
verdade que Rey havia notado, em seu artigo de 1904, que Duhem visa à construção de
uma física unitária, mas por que, em seu livro de 1907, que teve como base aquele artigo, o
comentador não enfatiza o caráter ontológico da classificação natural? Sabemos que a
primeira aparição explícita da noção de classificação natural data de 1893, em A escola
inglesa e as teorias físicas, e lá ela é definida como a explicação metafísica dos
fenômenos; mas em nenhum momento no artigo de 1904 Rey fornece indícios de ter lido o
ensaio duhemiano. Além de o artigo de Duhem não ser citado, em nenhum momento de
seu ensaio Rey alude à crítica duhemiana à escola inglesa. Se bem que ele classifica a
física duhemiana como “formalista”
528
, como um “matematismo”
529
, e insere nosso autor
no movimento energetista, o qual seria caracterizado, segundo ele, pelo puro
“conceitualismo”
530
(devido à recusa das hipóteses figurativas), essa interpretação advém
provavelmente da especial atenção concedida por Rey às obras científicas duhemianas,
sobretudo aos Commentaires aux principes de la thermodynamique (1892-4), ao Traité
élémentaire de mécanique chimique fondée sur la thermodynamique (1897-9) e às
Théories électriques de J. Clerk Maxwell (1902). Somente após a resposta crítica de
Duhem ao artigo de Rey de 1904, encontrada em “Physique de croyant” (1905), é que este,
em seu livro de 1907, menciona a noção de classificação natural, e, ainda assim, em termos
que atestam a nossa tese de que ele não havia lido o ensaio duhemiano de 1893:
Esta classificação natural, fim da ciência, e da qual Poincaré deu antes de Duhem a
indicação, não é somente um instrumento de descrição exata mas, ainda, uma
explicação, no sentido humano da palavra explicação: ela permite predizer a partir de
certos fenômenos outros fenômenos; ela deduz os fenômenos uns dos outros, graças às
suas fórmulas de redução.
531
528
REY, A.: [1907] 1930, p. 135; 1904, p. 719. “‘Formalismo matemático’, eis a expressão que melhor
convém ao caracterizar a concepção de Duhem” (REY, A.: 1904, p. 721).
529
REY, A.: 1904, p. 720; (1907) 1930, p. 142. “Duhem quer construir uma física matemática, em toda força
do termo: ele faz da física teórica more geometrico, no sentido absoluto do termo” (REY, A.: [1907] 1930, p.
150).
530
REY, A.: (1907) 1930, pp. 23-4, 135; 1904, p. 742.
531
REY, A.: (1907) 1930, p. 194. A seqüência da citação é a seguinte: “Ela é a prova de que há necessidade
na natureza e de que as leis físicas não são contingentes. Esse determinismo físico nos leva diretamente à
objetividade da física”. É bem verdade que para Duhem a natureza consiste num processo determinado,
estando sempre de acordo consigo mesma. É verdade também que uma lei que fosse a simples tradução dos
fenômenos físicos seria tão segura quanto estas leis o fossem, mas Duhem jamais tentou provar o
determinismo da natureza através do sucesso preditivo da ciência. O procedimento assumido por nosso autor
é o inverso: são as características ontológicas que justificam logicamente a predição teórica e a
classificação natural como objeto da ciência.
184
Mais um indício de que Rey não havia lido o ensaio de Duhem sobre a escola inglesa
encontra-se no fato de que o comentador atribui anterioridade à autoria da noção de
classificação natural a Poincaré. Ora, em 1893, quando se trata de cunhar a referida noção,
Duhem insere no escopo de sua critica ninguém menos que o colega matemático, adepto
do estilo inglês de fazer física.
532
Além disso, segundo Duhem
533
e o próprio Poincaré
534
,
este teria apresentado uma faceta realista de seu pensamento não muito cedo em sua
obra.
535
O que Rey diz acerca do “sentido humano de explicação” pode ser dito do conceito
duhemiano de representação; eles se equivalem, e seguem à risca o modelo dedutivo-
nomológico de dedução de leis menos gerais a partir de leis mais gerais. As leis seriam
generalizações concebidas a posteriori a partir de sugestões experimentais e da
criatividade do teórico. Em seguida, seriam classificadas em grupos e subgrupos por ordem
de natureza e generalidade para serem deduzidas umas das outras através das regras do
cálculo. Segue-se daí a previsão de um grupo de fenômenos correspondente ao estudado
quando da formulação das hipóteses iniciais. Explicação, na citação de Rey, significa
apenas isto: dedução formalmente ordenada por uma classificação. Mas o que Duhem
entende exatamente por explicação? Que sentidos essa palavra assume em sua obra?
Se indagarmos acerca dos sentidos que o termo explicação comporta em seus
escritos, deparar-nos-emos com dois tipos bem gerais, os quais podem ser subdivididos,
conforme o caso:
(1) Em primeiro lugar, temos a explicação metafísica, a mais comum de ser
encontrada. Quanto à explicação metafísica, pode-se procurar ou apresentar uma. No
primeiro caso, os fenômenos são o meio condicionante, dos quais a explicação será
induzida; procura-se explicar os fenômenos porque eles ainda não receberam explicação
aceite; no segundo, já se está supostamente de posse de uma explicação dos fenômenos,
restando apenas deduzi-los dos princípios metafísicos. Neste caso, a subordinação
prejudicial da física à metafísica é palpável; naquele, apesar de existir uma espécie de
subordinação, pois a ambição explicativa extrapola os limites da lógica, a explicação não é
um objetivo necessariamente pernicioso (procurarei tornar isso mais claro à frente, quando
532
DUHEM, P.: EITF, p. 76.
533
DUHEM, P.: TP, p. 498.
534
POINCARÉ, H.: (1905) 1995, p. 8.
535
O período em que tais mudanças começam a se tornar visíveis em suas publicações data aproximadamente
de 1900.
185
trataremos da distinção feita por Duhem entre explicação hipotética e explicação certa).
Por ora, chamemos o primeiro tipo de explicação a posterioi e o segundo, de explicação a
priori.
536
Almejar a explicação dos fenômenos no sentido metafísico do termo é, de um modo
ou de outro, buscar a natureza essencial dos mesmos:
Explicar, explicare, é despojar a realidade das aparências que a envolvem como véus,
a fim de ver essa realidade nua e face a face.
537
Explicar, neste caso, não se trata, e isso é importante, de explicar os fenômenos por
meio de certas relações abstratas formuladas matematicamente com o intuito de salvar as
aparências, nem de explicar determinadas relações matemáticas por meio de outras
relações mais gerais e igualmente formalizadas (princípios, por exemplo). Trata-se, isso
sim, de transcender o conhecimento empírico ao qual o método experimental nos
condiciona e ver na teoria física não um instrumento cujo objeto seja o de resumir e
ordenar logicamente as leis experimentais, mas usá-la como meio de atingir as verdadeiras
realidades subjacentes.
Anos antes, na seção 6 de “Física e metafísica”, depois de fazer considerações
lógicas sobre a separação entre as duas disciplinas, Duhem passa a fazer um sobrevôo
histórico com a intenção de angariar testemunhos de outrora que lhe sirvam para defender
seu ponto de vista acerca da premência da distinção correta entre física e metafísica.
538
A
antípoda exata do método defendido por Duhem é nada menos que Descartes, “aquele que
536
A explicação a priori, bem como a posteriori, pretende que a verdade última já fora atingida; a primeira,
diretamente pelo raciocínio, a segunda, pela observação dos fatos. Convém notar, entretanto (e isso é
importante), que a explicação a posteriori, ao contrário da primeira, não pressupõe necessariamente a posse
da verdade em nenhum momento.
537
DUHEM, P.: TP, pp. 3-4.
538
FM deve ser lido como parte de uma contenda com Vicaire acerca do objetivo das teorias físicas. Como
vimos, logo após a publicação de ARTF, Vicaire contestou com veemência a metodologia duhemiana de
salvar as aparências. Em sua opinião, ela era contrastante com a metodologia usada de fato pelos grandes
cientistas, de sorte que carecia de apoio histórico. Em nota escrita provavelmente pouco antes da publicação
de seu texto (VICAIRE, É.: 1893, p. 482, n. 1), podemos observar que Vicaire veio a ler um novo ensaio
duhemiano, NTMI, e ali identificou com maior clareza não apenas que Duhem não era adversário da
metafísica, mas, ainda, que nas breves considerações traçadas por nosso autor sobre as relações entre a física
e a metafísica, havia certas inexatidões a serem corrigidas. Vicaire promete escrever sobre o assunto; Duhem
antecipa-o e escreve FM. É interessante notar que a atitude de utilizar-se de exemplos históricos a favor de
sua metodologia é um aspecto dominante dos traços intelectuais duhemianos. A seção 6 de FM, “A tese
anterior do ponto de vista da tradição”, representa o germe de um processo que irá prolongar-se até o seu
monumental SM, passando pela TP (DUHEM, P.: TP, Parte I, capítulo III, §2; “As opiniões dos físicos sobre
a natureza das teorias físicas”) e por SF (ver indicação do próprio Duhem na segunda edição da TP
[DUHEM, P.: TP, p. 54, n. 2]).
186
mais contribuiu para romper a barreira entre a física e a metafísica.”
539
Descartes,
precedido por Kepler e Galileu, além de subjugar as evidências do senso comum com sua
dúvida metódica
540
, teria invertido a saudável relação peripatética que condiciona o
conhecimento das essências ao conhecimento sensível. O conhecimento humano, dali por
diante, segundo o projeto cartesiano, atingiria primeiro a essência da matéria para em
seguida deduzir dela a explicação dos fenômenos. Essa fórmula revolucionária, por rejeitar
os conhecimentos do passado, reducionista, por não aceitar em física o que não puder ser
aceito na matemática, e audaciosa, pelo poder que confere à razão, é a base com a qual
Descartes construirá a sua “máquina do mundo”, sem receio de que algo lhe falte. Daí o
filósofo francês dizer em seus Princípios de filosofia: “que não há nenhum fenômeno na
natureza que não esteja compreendido no que foi explicado neste tratado.”
541
Descartes
sabe, todavia, que o conhecimento dos efeitos podem ser salvos de uma infinidade de
modos distintos e que podemos nos enganar ao assinalar a sua causa
542
mas, mesmo assim,
nos parágrafos seguintes essa prudência é deixada de lado:
Que entretanto se tem uma certeza moral de que todas as coisas deste mundo são tais
como aqui foi demonstrado que elas podem ser;
E mesmo que se tem delas uma certeza mais que moral.
543
Na terminologia cartesiana, a certeza moral é tal que “suficiente para regular nossos
costumes” e, no curso ordinário da vida cotidiana, apesar de sabermos que ela pode ser
falsa, jamais é colocada em dúvida. Já a certeza mais que moral é pensada como tendo tal
valor que seria impossível que ela fosse de outro modo que não daquele julgado por nós. A
certeza moral, portanto, apesar de suficiente, não seria necessária, enquanto a certeza
metafísica
544
, além de suficiente, por ser a única possível, seria igualmente necessária.
Voltemos agora às páginas iniciais da Théorie physique, nas quais Duhem trata da
teoria física considerada como explicação. A noção de explicação fornecida nos textos
539
DUHEM, P.: FM, p. 54.
540
DUHEM, P.: FM, pp. 54-5.
541
DESCARTES, R.: 1973, Parte IV, §199.
542
DESCARTES, R.: 1973, Parte IV, §204.
543
DESCARTES, R.: 1973, Parte IV, §205 e §206, respectivamente. Itálicos meus.
544
A certeza moral, afirma Chibeni, seria o que atualmente entende-se por certeza provável, enquanto a
certeza mais que moral seria a certeza metafísica ou absoluta (CHIBENI, S.: 1993, p. 52). A passagem da
certeza moral à certeza metafísica seria possível na metafísica cartesiana por intermédio da veracidade e
bondade divinas, as quais impediriam que tomássemos o falso por verossímil (DESCARTES, R.: 1973, Parte
III, §43; Parte IV, §206).
187
duhemianos anteriores à obra em questão era oposta basicamente às noções de
representação ou de classificação. Aqui, como pretenderei mostrar, não se passa mais o
mesmo em virtude de uma distinção feita pelo autor entre explicação hipotética e
explicação certa. Mas então, o que Duhem entende por elas?
Sigamos o autor, reproduzindo sucintamente um exemplo tirado da acústica.
545
Inicialmente, da observação dos fenômenos acústicos nada podemos concluir acerca da
realidade em si desses fenômenos. O que conhecemos imediatamente são apenas sons
particulares, aparências sensíveis. No entanto, de uma gama de fatos acústicos produzidos
por instrumentos determinados, podemos construir por intermédio de nossa inteligência
noções gerais e abstratas que comporão leis experimentais responsáveis pela enunciação de
relações fixas entre aqueles fatos. Eis então que surgem as teorias físicas (consideradas
como explicação), em função das quais podemos conhecer a realidade à qual nós não
temos acesso sensitivo. O som, sua intensidade e altura, aspectos exteriores ao som em si,
passam então a ser explicados por um movimento periódico minúsculo de alta freqüência.
A teoria atinge, então, a estrutura real das leis experimentais da acústica e como que nos
faz ver e tocar sua própria essência. Neste caso, a explicação atinge o grau de certeza;
estamos diante de uma explicação certa.
546
Todavia, as teorias explicativas nem sempre
atingem esse grau de certeza, obrigando os físicos a contentar-se com uma prova indireta
que consistiria em mostrar que todos os fenômenos produzem-se a partir daquela
explicação “como se” a realidade fosse como a teoria descreve; agora temos uma
explicação hipotética.
Devemos então perguntar: o que distingue os dois tipos de explicação? A distinção,
até o momento, pode parecer um pouco difícil de ser extraída, mas com a ajuda de uma
passagem, entre várias outras possíveis
547
, em que elas aparecem mesmo que de modo
545
DUHEM, P.: TP, p. 4.
546
DUHEM, P.: TP, p. 5. A esse respeito, Kremer-Marietti foi vítima de um erro interpretativo, facilmente
evitável, por descontextualizar a posição de Duhem acerca da “certeza das teorias acústicas” de sua origem,
afirmando que para nosso autor essas teorias alcançariam a certeza (KREMER-MARIETTI, A.: 1992, pp.
361-2). Sua falta de atenção consistiu em não perceber que nas páginas nas quais ela apoiou sua leitura
(seção 1 do primeiro capítulo da primeira parte da TP) Duhem assume o ponto de vista das teorias
consideradas como explicação para, na seção seguinte, criticá-lo.
547
Na própria TP encontramos, páginas à frente, trechos elucidativos. Ao lermos uma reprodução da Suma de
teologia de Tomás de Aquino feita por Duhem podemos entender melhor o que vem a ser uma explicação
certa: “Pode-se prestar razão de uma coisa de duas maneiras diferentes. A primeira consiste em provar de
uma maneira suficiente um certo princípio; é assim que em cosmologia (Scientia naturalis), dá-se uma razão
suficiente para provar que o movimento do céu é uniforme. Na segunda maneira não se dá uma razão que
prova de uma maneira suficiente o princípio; mas o princípio sendo posto de início, mostra-se em seguida
que suas conseqüências concordam com os fatos; assim, em astronomia, põe-se a hipótese dos epiciclos e dos
188
indireto, obtemos uma resposta mais nítida. A próxima citação é extraída de Salvar os
fenômenos:
Se as hipóteses de Copérnico conseguem salvar todas as aparências conhecidas, daí se
concluirá que essas hipóteses podem ser verdadeiras; não se concluirá que elas são
certamente verdadeiras; para legitimar essa conclusão, seria preciso provar, antes, que
não poderia ser imaginado nenhum outro conjunto de hipóteses que permitisse
igualmente bem salvar as aparências; e esta última demonstração jamais foi
fornecida.
548
Parafraseando Duhem; se as hipóteses de Copérnico conseguem salvar todas as
aparências conhecidas, eles formam uma explicação hipotética; se fossem as únicas, elas
seriam a explicação certa das aparências – a verdadeira explicação. É deste tipo de
explicação que as escolas cosmológicas pretendem se apropriar.
549
A conclusão fatal é que
a adequação empírica, qualquer que seja o seu grau, é impotente para provar a verdade de
uma teoria. A explicação certa é verdadeira; a hipotética, pode ser verdadeira. Uma
exposição verdadeira não admite hipóteses como se elas fossem reais, elas teriam de ser
literalmente verdadeiras. Desse modo, uma explicação hipotética é uma explicação
suficiente para salvar ao mesmo tempo todos os fenômenos, enquanto uma explicação
certa, além de suficiente, é necessária. Como vemos, os dois tipos de explicação presentes
na Théorie physique são análogos aos dois tipos de certeza cartesianas, as certezas moral e
metafísica. Por ora, isso é o suficiente. Voltaremos a esse ponto adiante.
(2) Em segundo lugar, encontramos um caso em que o termo explicação é usado em
sentido amplo e despretensioso, como sinônimo de representação. Tal é a tradução feita e
adotada por Duhem, a favor de seus argumentos, desta passagem da questão XXXI da
Óptica de Newton:
Explicar cada propriedade das coisas dotando-as de uma qualidade específica oculta
pela qual seriam engendrados e produzidos os efeitos que se nos manifestam é de fato
excêntricos porque por meio dela as aparências podem ser salvas; mas isso não é uma razão suficientemente
probante, pois elas poderiam possivelmente ser salvas por uma outra hipótese” (AQUINO, T.: Suma de
teologia, I, 32, 1-2, citado por Duhem em: DUHEM, P.: TP, p. 57; SF, p. 38). O primeiro modo de prestar
razão de alguma coisa é o que Duhem entende por explicação certa, a qual seria suficiente (por razão
suficiente devemos entender uma demonstração apodítica, uma verdade que é alcançada e sobre a qual não
pairam dúvidas). Já o segundo modo seria o equivalente da explicação hipotética; uma explicação possível
que, apesar de salvar todas as aparências disponíveis, não possui caráter demonstrativo.
548
DUHEM, P.: SF, p. 100. Existem numerosas passagens análogas a essa em SF. Duhem não cansa de expor
a opinião dos antigos e medievais acerca do caráter não demonstrativo da adequação empírica.
549
DUHEM, P.: TP, p. 15.
189
nada explicar. Mas tirar dos fenômenos dois ou três princípios gerais do movimento;
explicar em seguida todas as propriedades e as ações dos corpos através desses
princípios claros, é verdadeiramente, em filosofia [natural – ou física], um grande
progresso , mesmo que as causas desses princípios não fossem descobertas; é porque
eu não hesito em propor os princípios do movimento, deixando de lado a pesquisa das
causas.
550
O próprio Duhem parece trair, com sua tradução, não apenas o seu pensamento, mas
também o do físico inglês. Contudo, se no quadro terminológico duhemiano a tradução não
é muito feliz, um pouco de cuidado com a leitura já é suficiente para evitar maiores
enganos. A “explicação” dos fenômenos é aqui o mesmo que a “exposição matemática”
desses fenômenos
551
, que a “representação geométrica” dos mesmos
552
ou que a redução
de leis a um pequeno número de princípios gerais enunciados em linguagem
matemática.
553
Este tipo de explicação não tem o sentido de explicação metafísica de leis
teóricas, mas unicamente o de representação mais condensada das mesmas. Assim sendo,
o modelo que melhor se encaixa e este tipo de explicação é o modelo dedutivo-
nomológico, de dedutibilidade de leis menos gerais a partir de leis mais gerais.
Pois bem, colocada nesses termos, a teoria física tal como idealizada por Duhem,
segue inflexivelmente o modelo dedutivo-nomológico
554
: o fenômeno a ser explicado
(fenômeno explanandum) é descrito por uma proposição (proposição explanandum)
experimental. Esta proposição será dita representada (ou “salva” ou “explicada”), na
medida em que puder ser deduzida de um conjunto de proposições explanatórias
(proposições explanans) usadas na dedução, as quais podem conter tanto proposições
550
NEWTON, I., citado em DUHEM, P.: ETP, p. 483. Itálicos meus. A passagem no original é a que se
segue: “To tell us that every species of things is endowed with an occult specific quality by which it acts and
produces manifest effects, is to tell us nothing; but to derive two or three general principles, would be a very
great step in philosophy, though the causes of those principles were not yet discovered. And, therefore, I
scruple not to propose the principles of motion above mentioned, they being a very general extent, and leave
their causes to be found out” (Itálicos meus). Abel Rey, por exemplo, cita a passagem em questão mas
fornece tradução distinta, menos comprometedora e mais próxima do original: em vez de “expliquer”, na
primeira aparição, lemos “dire”, enquanto na segunda lemos “exprimer” (REY, A.: [1907] 1930, p. 218). Já a
tradução brasileira da Optics, preferível às demais, traz, respectivamente, “dizer” e “derivar” (NEWTON, I.:
[1996] 2002, p. 291). Essa citação de Newton já fora feita DUHEM, P.: NTMI, p. 121, p. 133 e será retomada
em DUHEM, P.: TP, pp. 67-8, sempre com a mesma tradução. Sem ressalvas, ela pode ser perniciosa ao
entendimento do texto, pois o verbo “explicar” tende a induzir os apenas iniciados na leitura do filósofo
francês a uma interpretação metafísica, tendo em vista a nítida e recorrente distinção duhemiana entre
representação (física) e explicação (metafísica).
551
DUHEM, P.: ETP, p. 483.
552
DUHEM, P.: TP, p. 68.
553
DUHEM, P.: NTMI, p. 122.
554
Uso a partir de agora um combinado terminológico inspirado em Duhem e Hempel (HEMPEL, C.: [1966]
1981).
190
enunciativas de leis gerais como de fatos particulares. Em decorrência disso, as conclusões
devem seguir logicamente do explanans, e podem ter como conseqüência acontecimentos
particulares, regularidades naturais ou uniformidades expressas como leis naturais (Hempel
usa a expressão “subsunção dedutiva” para assinalar o breve esquema que acabamos de
expor). Um exemplo fornecido por Hempel em seu livro e encontrado na Théorie physique
é o da explicação proposta por Le Verrier das irregularidades da órbita de Urano.
555
Se a noção de representação acomoda-se perfeitamente ao modelo dedutivo-
nomológico, o mesmo não acontece a de explicação metafísica. Falando sobre a explicação
metafísica a posteriori (excluída a explicação a priori, a qual ultrapassaria as
possibilidades da inteligência do homem), Duhem assevera:
Do conhecimento dos fenômenos podemos extrair um certo conhecimento das
próprias causas, porque elas são as causas eficientes desses fenômenos e porque o
conhecimento de um efeito nos fornece algumas informações sobre a substância que
causa esse efeito, sem nos dar, entretanto, um conhecimento pleno e adequado dessa
substância.
556
A cosmologia, ciência que procura conhecer a natureza da matéria inanimada, é a
verdadeira guardiã da explicação dos fenômenos. Sem dificuldades, observamos que o tipo
de explicação com a qual ela lida não remete mais ao modelo dedutivo-nomológico. O
nível de discurso oscila para o plano metafísico na medida em que Duhem introduz o
conceito de causalidade eficiente. A dedutibilidade cede lugar à relação causal metafísica,
pois o fio que une os efeitos a suas causas não é mais meramente lógico – mas ontológico.
Essa concepção, se não descaracteriza a falácia da afirmação do conseqüente, ao menos
fornece meios teóricos para o acesso epistemológico sobre natureza das propriedades da
causa. Assim, a possibilidade de remontar indutivamente dos efeitos às causas encontra-se
resguardada, pois que tanto aqueles quanto estas possuem em si a mesma natureza.
Com a passagem da representação total dos fenômenos à explicação metafísica, o
que teríamos seria uma “naturalização” de uma classificação dedutivo-nomológica, isto é,
a passagem de uma explicação no sentido fraco a uma explicação ontológico-causal. A
simples dedutibilidade ou derivação de leis menos gerais a partir de leis mais gerais
adquire um estatuto causal (metafísico). A ordem de dedutibilidade tornar-se-ia análoga à
ordem natural dos fenômenos. Haveria, por assim dizer, um emparelhamento da ordem
555
HEMPEL, C.: (1966) 1981, pp. 70-1; DUHEM, P.: TP, p. 296.
556
DUHEM, P.: FM, p. 42. Itálicos meus. O conhecimento “pleno e adequado” em questão seria a
classificação natural, considerada como explicação metafísica “completa e adequada.”
191
geométrica com a ordem real, isto é, entre a ordem axiomática expressa na divisão
hierárquica das proposições da teoria e as cisões do real.
Dado que a causalidade duhemiana satisfaz a distinção entre a causa metafísica e os
efeitos físicos observáveis, o acesso epistêmico destes àquela é possível. Como a escada
que leva da física à metafísica possui, segundo Duhem, apenas dois degraus (lembremos
que o critério é a observabilidade), não se trata de remontar o elo causal dos fenômenos e
suas causas próximas até atingir a realidade última: a passagem da física à metafísica faz-
se de uma vez por todas. Expliquemos isso melhor, seguindo uma pequena representação:
Esta relação causal poderia ser descrita de duas formas: conforme a ordem de
nobreza decrescente [1]; que teria como origem “C”, a causa primeira, da qual decorreria
“E”, seu efeito imediato, o qual seria, por sua vez, uma causa menos nobre “(c)”,
relativamente a “C”, de outro efeito “e”, e assim sucessivamente, até que essa cadeia atinja
os fenômenos observáveis. Na ordem epistemológica reservada aos humanos [2], a ordem
natural seria exatamente a inversa da anterior, e teria início em “e”, um fenômeno
observável, para elevar-se gradualmente à causa última “C”, ascendendo indefinidamente
de causa em causa. A ordem [1] representaria uma dedução que partiria da metafísica para
então explicar os fenômenos observáveis; já a ordem [2] representaria uma indução que
teria seu início nos fenômenos para atingir o conhecimento das essências metafísicas.
Mas não é esse o modelo que melhor explicita o objeto da teoria física segundo
Duhem, pois, como vimos, a busca direta das causas metafísicas é afastada. O melhor
modelo seria este:
192
Neste esquema, a ordem [2] indica a ordem humana de conhecimento, semelhante ao
diagrama anterior, embora pouco mais detalhado, pois através dele podemos ver que o
conhecimento dos efeitos, se informa algo sobre as causas, não determina completamente
estas – a inferência exata da causa de um efeito esbarra no fato de que um efeito pode ser
produzido por várias causas diferentes. A diferença deste diagrama com relação ao anterior
encontra-se na introdução da ordem [3]. Se o conhecimento do efeito não determina o
conhecimento da causa, o que se pode esperar concluir do conhecimento de todos os
efeitos?
[...] o conhecimento, mesmo inteiro e completo, de um conjunto de fenômenos não nos
poderia fornecer o conhecimento completo das substâncias nas quais se produzem.
Quando, portanto, partindo de certos conhecimentos físicos, tão perfeitos e tão
extensos quanto se quiser, ascendemos dos efeitos às causas para obter uma
metafísica, adquirimos da essência das coisas materiais um conhecimento altamente
incompleto, altamente imperfeito. Esse conhecimento procede antes por negações que
por afirmações. [...] É somente em alguns casos raros que, por exclusão de todas as
hipóteses possíveis exceto uma, chegamos a adquirir um conhecimento positivo sobre
a essência das coisas materiais.
557
A indução metafísica, por mais extenso que seja o seu domínio de cobertura e bem
fundamentada em fatos empíricos, não conduz apoditicamente ao conhecimento das
essências. A razão disso, recorrendo novamente ao esquema acima, é que um conjunto de
fenômenos “e
1, e2, e3, ..., en” pode ser salvo por mais de uma causa (ou teoria) “C1, C2, ...,
C
n”. Apenas por exclusão de todas as causas, exceto uma, um conhecimento metafísico
positivo seria possível.
Assim, se quisermos obter algum conhecimento metafísico, não devermos partir
diretamente à sua busca (induzi-los metafisicamente), mas permanecer, num primeiro
momento, no domínio dos efeitos, representá-los em sua totalidade para, num segundo
momento, indagarmos acerca do seu valor metafísico. Combinando os dois esquemas
expostos logo atrás, podemos dizer que a ordem [3] precede a ordem [2], que, por sua vez,
antecede a ordem [1]. Mas é preciso atentar para o seguinte: Duhem não afirma
simplesmente que temos de partir dos efeitos se quisermos conhecer as causas, mas que
temos de partir dos efeitos de um modo bastante peculiar: salvando todos eles ao mesmo
tempo por meio de uma teoria logicamente unificada – daí a cogência do meta-princípio de
unidade lógica. Salvo todos os fenômenos do universo inanimado, somente aí, podemos
557
DUHEM, P.: FM, p. 44. Itálicos meus. Note-se que Duhem não inclui a “adequação” ao conhecimento
“inteiro e completo”, a qual viria a determinar metafisicamente aquele conhecimento.
193
perguntar: nossa classificação é natural?, isto é, corresponde ela de fato (é ela adequada?)
com as relações essenciais que as várias substâncias materiais mantêm entre si? Se sim,
então teríamos uma explicação metafísica dos fenômenos (como definida em “A escola
inglesa e as teorias físicas”) ou uma explicação certa (como exposta na Théorie physique);
se não, temos “apenas” o que tínhamos antes: uma explicação hipotética. Podemos concluir
a partir disso que a física teórica não procura as causas dos fenômenos, mas por meio
deles, oferece-nos um meio de aproximarmo-nos daquelas. A explicação que se opõe à
representação é a explicação a priori. Uma explicação obtida a posteriori teria na
representação dos fenômenos seu maior veículo, desde que em nenhum momento se
suponha, como Galileu, que a verdade definitiva fora obtida.
Por falar em verdade... Creio ser indispensável a distinção, no interior da obra
duhemiana, de pelo menos dois conceitos ou critérios de verdade. O primeiro seria o de
correspondência com a realidade subjacente, enquanto o segundo seria tão somente de
adequação empírico-pragmática. Explicações metafísicas seriam verdadeiras ou falsas no
primeiro sentido, pois que pretendem explicar os fenômenos através da correspondência
com a realidade em si mesma, por outro lado, como não têm por objeto as explicações
verdadeiras naquele sentido, as teorias físicas são verdadeiras ou falsas apenas no segundo
sentido:
Assim, uma teoria verdadeira não é uma teoria que dá, das aparências físicas, uma
explicação conforme à realidade; mas uma teoria que representa um conjunto de leis
experimentais de uma maneira satisfatória; uma teoria falsa não é uma tentativa de
explicação fundada sobre suposições contrárias à realidade; mas um conjunto de
proposições que não concordam com as leis experimentais. O acordo com a
experiência é, para uma teoria física, o único critério de verdade
558
.
Uma vez que o acordo envolve satisfação, o seu julgamento ultrapassa os limites da
pura lógica: uma teoria não é falseada, ela é, isso sim, tornada falsa por razões externas à
lógica. Caso apliquemos o primeiro sentido de verdade às teorias físicas, todas elas serão
falsas. Quando Duhem fala em aproximação da teoria de uma ordem metafísica, ele não
supõe em momento algum uma passagem lógica do valor de verdade no segundo sentido
ao valor de verdade no primeiro. Por mais instrutivos que sejam os erros, e mais
elaboradas as novas teorias, a lógica não demonstra que o verdadeiro possa brotar de
falseamentos sucessivos. Agassi, em artigo datado, foi muito feliz ao perceber que em sua
558
DUHEM, P.: TP, p. 26; EM, p. 183.
194
recusa do dogmatismo científico, Duhem afirma tacitamente que “Nós não podemos atingir
a verdade por uma série de teorias falsas. A verdade permanece um ideal inatingível, uma
idéia reguladora.”
559
O comentador identifica em nosso autor uma “nova teoria da
verdade”: “Uma teoria é verdadeira, de acordo com Duhem, se ela concorda com todos os
fatos conhecidos, todos os fatos observados”, e arremata: “Não há graus de verdade no
sentido ordinário da palavra, mas há graus de ‘verdade’ pragmática – de utilidade.”
560
Como já vimos, uma teoria que salvasse ao mesmo tempo todos os fenômenos conhecidos
do universo inanimado seria uma teoria cujo grau de verdade pragmática estaria no limite –
ela seria uma explicação hipotética do universo material. Mas daí para a verdade como
correspondência metafísica (a explicação certa) falta muito.
561
Sempre que nosso autor fala
em aproximação da verdade no sentido clássico, fica subentendido que essa asserção não é
justificada logicamente, como podemos ver em várias oportunidades. Essa tarefa de
ligação é realizada pelo sentimento: Duhem fala sempre em persuasão, convicção, intuição
e em pressentimentos inanalisáveis
562
, que seriam os responsáveis pelo crédito realista das
teorias. O realismo duhemiano não é, pois implicado pela análise lógica (para a lógica, a
verdade de uma teoria física nunca é o caso); ele brota do coração.
Elaboremos isso um pouco melhor. A verdade das ciências de pura observação está
em sua concordância com os fatos observados, a da geometria, com o senso comum
563
, já a
559
AGASSI, J.: 1957, p. 245.
560
AGASSI, J.: 1957, p. 245.
561
De fato, uma teoria que concordasse com todos os fatos observados seria uma explicação hipotética dos
mesmos, e não uma explicação adequada; ela não poderia, portanto, ser considerada verdadeira no sentido
estrito. Agassi viu o caminho certo mas não o percorreu por inteiro.
562
DUHEM, P.: TP, Parte I, capítulo II, seção 4. Voltaremos a isso logo à frente.
563
Duhem endossa ainda uma concepção de verdade que não se restringe nem à definição correspondencial,
nem à pragmática. Trata-se de uma noção que tem como critério principal a evidência imediata, a irresistível
aceitação dos princípios do simples bom senso, especialmente aplicada aos axiomas da geometria.
Lembremos que Duhem não compartilha das crenças de Poincaré sobre o caráter convencional da geometria:
quando ele critica Riemann, como visto na seção 1.4.2, ele não o faz baseado na preferência pragmática por
outra geometria, mas sim por que “Ela não é uma geometria verdadeira” (DUHEM, P.: QRSA/GS, p.
118/91). Importa, para ele, a verdade da geometria. As evidências intuitivas a favor da geometria euclidiana
são tão forçosas que, para Duhem, a geometria euclidiana é a geometria; se existem outras, elas guardam um
estatuto epistemológico totalmente inferior à de Euclides, convertendo-se em jogos mentais. A verdade da
geometria, afirma Duhem, não consiste apenas na independência dos axiomas e no rigor dedutivo da
demonstração de seus teoremas, “ela consiste também, e sobretudo, no acordo das proposições que formam
essa cadeia lógica e os conhecimentos dados à nossa razão, no tocante ao espaço e às figuras que nele se pode
traçar” (DUHEM, P.: QRSA/GS, p. 114/88). Esses conhecimentos dados à nossa razão são anteriores a toda
geometria e acarretam o célebre postulado de Euclides (DUHEM, P.: QRSA/GS, p. 115/89). O acordo de que
se trata no julgamento das proposições da geometria dá-se, portanto, entre estas e os conhecimentos tirados
do senso comum, sem exigência de um parâmetro referencial no mundo externo (uma vez que Duhem não
postula a existência “extra-mental” de entidades matemáticas).
195
verdade da física teórica pode ser relacionada tanto com as leis experimentais (critério
pragmático) como com a ordem metafísica subjacente (critério correspondencial
metafísico), dependendo do ponto de vista adotado. Ora, as leis puramente empíricas são
leis induzidas dos fatos observados enquanto estes, por sua vez, são os efeitos diretamente
observáveis. Mas para atingir o conhecimento da causa a inteligência humana precisa partir
dos efeitos, o que nos leva a concluir que, apesar da distinção entre fenômeno/realidade
remeter a uma oposição, ela não existe realmente em Duhem. O fenômeno é, se ousarmos
dizer, uma espécie de índice do real. E é justamente por isso que a teoria física pode
caminhar na direção da metafísica, pois sabemos que o modo pelo qual a teoria se
aproxima da verdade é através de suas sucessivas reformulações e êxitos quando
confrontada com os fenômenos. É por isso também que as leis empíricas extraídas
prudentemente da experiência também são leis verdadeiras. A verdade da fisiologia (ou
melhor, de algumas de suas partes) e a da física guarda estatuto semelhante porquanto se
refiram a uma mesma ordem causal. Contudo, elas também diferem, porque a primeira
atém-se eminentemente aos fenômenos (é uma verdade fenomênica) enquanto a segunda, a
despeito de seu caráter convencional, torna-se “capaz” de atingir uma verdade metafísica.
De direito, a verdade da primeira é tão verdade quanto a verdade da segunda; de fato, a
verdade da primeira pode já ser, enquanto a verdade da segunda, mesmo que mais nobre,
nunca será.
Pois é justamente a distinção que fizemos entre os critérios de verdade que nos
permite explicar qual a razão que leva Duhem a aditar o princípio de classificação natural à
intuição da unidade lógica como igualmente derivada do senso comum?
564
Uma teoria
internamente coerente pode ser bela, de cálculo fácil e simples, mas pode não ser coerente
com teorias de outros ramos da física, mantendo certa incompatibilidade lógica com estas.
O meta-princípio de unidade lógica adquire sua importância no momento em que se trata
de evitar a incoerência (o pluralismo teórico) ao exigir a busca de uma teoria unitária que
represente ao mesmo tempo todos os fenômenos do universo inanimado. Mas acontece que
a verdade para Duhem não se reduz à coerência. A concepção coerentista de verdade é
insuficiente à medida que para nosso autor interessa outra verdade: uma teoria unitária
pode ser suficiente, embora não seja necessária. Para que uma teoria fosse verdadeira seria
preciso que ela correspondesse a algo. Mas a quê? O recurso ao exemplo popperiano dos
564
Lembremos que os dois princípios também apareciam ligados em EITF, embora não expressamente
ligados ao senso comum. Responderemos a partir de agora a questão que deixamos pendente na seção 2.2.
196
três mundos pode ser-nos útil. Se o arcabouço teórico pode ser representado pelo mundo
“3”, donde, para Duhem, a teoria aplicar-se diretamente a um mundo idealizado, a
classificação natural deveria corresponder com os fenômenos experimentais (o mundo “2”)
ou com um terceiro universo, tal como a realidade metafísica sobreeminente (o mundo
“1”)? A correspondência exata do mundo “3” com o mundo “2” equivaleria à concepção
pragmática de verdade, reduzida à adequação empírica, cuja aproximação teria de ser
superior aos limites atuais de observação (existe aqui uma correspondência, é verdade, mas
se trata tão somente de uma correspondência com o mundo das aparências). A concepção
coerentista apareceria quando todo o conjunto de leis experimentais, que perfazem o
mundo “2”, fosse representado satisfatoriamente por uma única teoria. Esta, então, seria
uma explicação hipotética, candidata à explicação última dos fenômenos, embora não
tenha direito de cidadania ao mundo “1”. No entanto, a concepção coerentista
565
seria
apenas mais um passo para o salto que seria dado a seguir: a explicação certa do universo
material. A coerência inter-teórica representa um passo necessário para a obtenção da
classificação natural, mas insuficiente; daí Duhem não se satisfazer com a simples
coerência e invocar a concepção clássica de verdade como correspondência (entre o mundo
“3” e o mundo “1”
566
). Respondendo à questão colocada por Cardwell de saber se seria
possível a existência de mais de uma classificação natural
567
: se a classificação natural
não carecesse do critério de correspondência, então poderiam existir indefinidas
classificações naturais, assim como podem existir indefinidas explicações hipotéticas. Ora,
Duhem fala sempre em classificação natural no singular, assim, como fala em uma única
explicação certa.
Se essa correspondência for entendida apenas como adequação empírica aproximada,
então a teoria não ultrapassará a qualidade de algo efêmero, estando alicerçada na
intersubjetividade, e a verdade reduzir-se-ia ao julgamento intersubjetivo de uma
comunidade especializada. Esta concepção de verdade é a única permitida pela crítica
lógica. Se a correspondência tiver o real como parâmetro e, se sabemos que o real não é
auto-contraditório, poderão existir várias histórias consistentes contadas sobre ele. Para que
565
Ressaltemos que essa concepção não é defendida por Duhem.
566
A correspondência entre o mundo “3” e o mundo “1” tem como intermediário necessário a
correspondência pragmática entre o mundo “3” e o mundo “2”, visto que, para Duhem, nós não dispomos de
um conhecimento direto das essências: “A inteligência do homem não possui o conhecimento direto, a visão
imediata da essência das coisas exteriores; o que conhecemos diretamente dessas coisas são os fenômenos
(dos quais elas são a fonte) e a sucessão desses fenômenos (DUHEM, P.: FM, p. 42).
567
CARDWELL, C.: 1971, p. 218.
197
uma teoria seja necessária é preciso, ainda, que ela ultrapasse a qualidade de classificação
artificial dos fenômenos para atingir as características de uma classificação natural. Daí a
premência do princípio de unidade lógica e, ao mesmo tempo, sua insuficiência; donde a
necessidade da introdução do ideal de classificação natural.
Duhem sabe que a comparação da aproximação entre dois termos só pode ser
estabelecida com precisão caso as propriedades de ambos sejam previamente conhecidas.
Na ausência do conhecimento total de um deles, a comparação torna-se inexata e suspeita.
Mas, como é sabido, não temos acesso epistêmico direto à realidade última das coisas,
donde devemos concluir que, como não conhecemos a ordem ontológica subjacente, não
conhecemos suas relações adequadamente, isto é, sua hierarquia natural. Sem o
conhecimento de um dos termos da comparação, falar em aproximação entre eles torna-se
algo sem sentido. Logo, ou a classificação natural seria destituída de valor ontológico, no
caso de ser possível uma comparação direta, ou ela refletiria as relações essenciais entre as
substancias. Já que tudo nos leva a optar pela última alternativa, a análise lógica
condenaria qualquer pretensão de estabelecer vínculos correspondências de nossas teorias
(em qualquer período de seu desenvolvimento) com a realidade substancial:
Assim, a teoria física não nos dá jamais a explicação das leis experimentais; jamais ela
descobre as realidades que se ocultam sob as aparências sensíveis; mas quanto mais
ela se aperfeiçoa, mais nós pressentimos que a ordem lógica na qual ela organiza as
leis experimentais é o reflexo de uma ordem ontológica; mais nós suspeitamos que as
relações que ela estabelece entre os dados da observação correspondem a relações
entre as coisas; mais nós adivinhamos que ela tende a ser uma classificação natural.
Dessa convicção, o físico não poderia prestar contas; o método de que ele
dispõe é limitado aos dados da observação e não poderia provar que a ordem
estabelecida entre as leis experimentais reflete uma ordem transcendente à
experiência; com mais razão tal método não poderia deixar suspeitar a natureza das
relações reais às quais correspondem as relações estabelecidas pela teoria.
568
A partir daí, o pensamento duhemiano passa a mostrar verdadeira profundidade e
articulação. Se de um ponto de vista lógico a aproximação da verdade não faz sentido, isso
não quer dizer, com o perdão do trocadilho, que ela não possa ser sentida. É desse
sentimento que brota constantemente a fagulha que incendeia e mantém acesa e operante a
noção de classificação natural. A aproximação não é demonstrada, e sequer poderia sê-lo.
Mas ela pode ser sentida, e isso a lógica é impotente em reprimir. Claro que a lógica pode
servir como antídoto para as pretensões exacerbadas dos realistas dogmáticos, mas
568
DUHEM, P.: TP, p. 35. Itálicos meus.
198
sozinha, ela é daninha ao progresso científico, por desestimular qualquer empreitada não
pragmática.
Em suma, “Nós temos uma idéia da verdade invencível por todo pirronismo.” Que
idéia da verdade é essa? Não, decerto, a verdade imaginada pelos coerentistas; não,
também, a verdade concebida pelos pragmatistas; mas a verdade metafísica – e esta
pressupõe, dada nossa ordem de conhecimento, as duas primeiras mais a assunção da
existência de uma ordem sobreeminente com a qual a classificação criada pelo físico possa
corresponder analogicamente. Verdade não é coerência interna, mas não pode passar sem o
princípio de unidade lógica; verdade não é o consenso sobre a adequação empírica de uma
teoria, mas não pode deixar de salvar ao mesmo tempo a totalidade dos fenômenos.
Coerência e adequação empíricas são necessárias, a despeito de serem insuficientes para
dar contas da “idéia da verdade.” Falta um acréscimo: a correspondência entre o esquema
teórico abstrato e a ordem encarnada na realidade subjacente. E esta verdade, não definida
logicamente, é irredutível a uma comparação imediata – ela é uma intuição, um sentimento
irresistível que acomete o físico em sua empreitada. O físico é impotente em demonstrá-la
porque ela ultrapassa todos os meios acessíveis de prova, situando-se como algo que está
sempre além.
São vários os fatores que concorrem para a afirmação metafísica de que a teoria, com
o passar do tempo, reflete com maior proximidade a realidade subjacente. Antes de tudo, a
teoria possui a função inicial de alívio à memória, de economia intelectual. A redução dos
fatos a leis experimentais representa a primeira etapa dessa economia intelectual
569
; os
detalhes acessórios e complexos dos fatos são esquecidos quando as leis experimentais são
constituídas. Em seguida, com a condensação das leis físicas em teorias físicas, uma
segunda etapa da economia intelectual é alcançada, à medida que não seria mais necessário
conhecer todas as leis experimentais, mas apenas um pequeno número de princípios.
570
Mas “A teoria não é somente uma representação econômica das leis experimentais; ela é
ainda uma classificação dessas leis.”
571
É a teoria que, ao receber as leis experimentais
todas no mesmo plano, classifica-as hierarquicamente conforme as afinidades que elas
supostamente mantêm entre si: leis que representam fenômenos aparentemente
semelhantes serão agrupadas, enquanto as que tratarem de fenômenos de natureza distinta
das primeiras serão delas distanciadas. Além da classificação, a teoria introduz uma ordem
569
DUHEM, P.: TP, p. 27.
570
DUHEM, P.: TP, p. 28.
571
DUHEM, P.: TP, pp. 30.
199
dedutiva que vai dos princípios, passando por suas combinações com as hipóteses da
mesma linhagem ramificatória, até atingir as leis experimentais. Metodicamente
classificadas, as leis experimentais adquirem utilidade prática crescente, além de permitir
ao teórico guiar-se com segurança diante do emaranhado desconexo de outrora.
572
Com
um rápido olhar, é possível prever lacunas na árvore genealógica esquemática e determinar
com maior eficiência a direção das investigações experimentais em busca do material
restante. Da ordem, a beleza; além de mais cômoda e útil, a teoria torna-se mais bela,
chegando mesmo a provocar o sentimento de que a teoria assemelha-se a uma obra de
arte.
573
Além desses caracteres que definem a teoria física em seu alto grau de
desenvolvimento, existe ainda um fator, o principal deles, que contribui para o
fortalecimento do realismo epistemológico duhemiano, para o salto da persuasão à
convicção
574
; são as antecipações teóricas da experiência:
A facilidade com a qual cada lei experimental encontra seu lugar na classificação
criada pelo físico, a clareza ofuscante que se difunde sobre esse conjunto tão
perfeitamente ordenado, nos persuadem de uma maneira invencível de que tal
classificação não é puramente artificial, de que tal ordem não resulta de um
agrupamento puramente arbitrário imposto às leis pelo engenhoso organizador. Sem
poder prestar contas de nossa convicção, mas também sem poder nos livrarmos dela,
nós vemos no ordenamento exato desse sistema a marca na qual se reconhece uma
classificação natural; sem pretender explicar a realidade que se oculta sob os
fenômenos dos quais nós agrupamos as leis, nós sentimos que os agrupamentos
estabelecidos por nossa teoria correspondem às afinidades reais entre as coisas
mesmas.
575
Uma ciência taxionômica deve, como fim próprio, buscar refletir objetivamente as
distribuições dos grupos encontrados na natureza. Por outro lado, é verdade também que as
classificações taxionômicas serão sempre artificiais, tendo sua naturalidade variada
gradualmente. Um dos modos de testar a naturalidade de uma teoria é procurar verificar se
sua extensão pode ser ampliada a um domínio de fatos maior do que o atualmente
reconhecido como sendo de sua competência. “Profetiza!”
576
, exigirá o físico que vê em
sua teoria indícios de uma classificação natural, confiando que as instâncias representativas
572
DUHEM, P.: TP, pp. 32.
573
DUHEM, P.: TP, pp. 31.
574
Duhem distingue os dois conceitos em itálicos, como podemos ver em seu exemplo sobre a moderna
notação química: “[...] para que essa persuasão se transforme em uma invencível certeza, é preciso que nós
vejamos a teoria química escrever de antemão as rmulas de uma multidão de corpos” (DUHEM, P.: TP, pp.
39).
575
DUHEM, P.: TP, pp. 33-4.
576
DUHEM, P.: TP, p. 37.
200
da teoria sejam ampliadas. Ao exigir desse modo a extensão representativa da teoria, o
físico já transgrediu os limites da lógica, a qual lhe negaria qualquer confiança acerca da
antecipação teórica de uma lei observável.
577
A defesa do realismo epistemológico depende
em grande parte da aceitação do argumento do milagre, isto é, da razoabilidade da aferição
de um valor de saber real (e não apenas instrumental) às teorias físicas. Se o argumento do
milagre surge como uma tentativa de dar conta do sucesso preditivo não esperado das
teorias, ele serve, doravante, como explicação não apenas daquele mesmo sucesso
preditivo, mas, ainda, como defesa filosófica do realismo epistemológico, fundamentando
a metodologia realista. O otimismo epistemológico presente na referência à aposta de
Pascal é marcante.
578
Impelido a acreditar no poder transcendental de sua teoria, o físico
aposta positivamente a favor das previsões teóricas:
Se, ao contrário, nós reconhecemos na teoria uma classificação natural, se nós
sentimos que seus princípios exprimem relações profundas e verdadeiras entre as
coisas, nós não nos espantaremos ao ver suas conseqüências anteciparem a experiência
e provocar a descoberta de novas leis; atrevidamente, nós apostaremos em seu
favor.
579
Eis a versão epistemológica da aposta de Pascal transmutada em um perfeito
exemplo do argumento do milagre. Ao acreditar que sua teoria possui os caracteres de uma
classificação natural, o teórico demonstra sua confiança ao voltar seus olhos aos céus e
concluir, da marcha de Urano, a existência e a posição de um novo planeta.
580
Não se trata
de desconfiar do que foi visto, mas de confiar no que ainda não o foi; nem de atribuir à
previsão, no caso de sua verificação, um valor de verdade. Duhem sabe que a preditividade
inesperada das teorias não demonstra a sua verdade, afinal, não existem vários exemplos
de teorias que ofereceram um grande número de descobertas e depois se revelaram
falsas?
581
Mesmo assim, a previsão antecipada da teoria continua a ser o principal indício
da classificação natural. Mas o que Duhem entende realmente por classificação natural?
Recorramos à analogia entre o procedimento do físico com o naturalista que nos é dado ler:
A classificação que ele [o naturalista] imaginou é um conjunto de operações
intelectuais; ela não se aplica aos indivíduos concretos, mas a abstrações, as espécies;
577
DUHEM, P.: TP, p. 451.
578
DUHEM, P.: TP, p. 31.
579
DUHEM, P.: TP, p. 38.
580
DUHEM, P.: TP, p. 296.
581
DUHEM, P.: TPr, p. 4.
201
a teoria organiza essas espécies em grupos dos quais os mais particulares se
subordinam aos mais gerais; para formar esses grupos, o naturalista considera os
diversos órgãos, coluna vertebral, crânio, coração, tubo digestivo, pulmão, bexiga
natatória, não sob a forma particular e concreta que eles assumem em cada indivíduo,
mas sob a forma abstrata, geral, esquemática, que convém a todas as espécies de um
mesmo grupo; entre esses órgãos assim transfigurados pela abstração, ele estabelece
comparações, ele nota analogias e diferenças; por exemplo, ele declara a bexiga
natatória dos peixes homóloga ao pulmão dos vertebrados; essas homologias são
aproximações puramente ideais, não se aplicando aos órgãos reais, mas a concepções
generalizadas e simplificadas que se formaram no espírito do naturalista; a
classificação é apenas um quadro sinóptico que resume todas essas aproximações.
Quando o zoólogo afirma que tal classificação é natural, ele entende que as
ligações ideais, estabelecidas por sua razão entre as concepções abstratas,
correspondem às relações reais entre os seres concretos nos quais essas abstrações
tomam corpo; ele entende, por exemplo, que as semelhanças mais ou menos
surpreendentes que ele notou entre as diversas espécies são o indício de um parentesco
propriamente dito, mais ou menos estreito, entre os indivíduos que compõem essas
espécies; que as uniões pelas quais ele traduz aos olhos a subordinação das classes,
ordens, famílias, gêneros, reproduzem as ramificações da árvore genealógica através
da qual os diversos vertebrados se originaram de um mesmo tronco.
582
As aproximações que o naturalista estabelece entre as espécies, afirma nosso autor,
são puramente ideais: são relações ideais sobre “entidades” ideais, sem aplicação direta aos
seres concretos. A organização das semelhanças segue uma ordem ascendente de
subordinação: os grupos de espécies mais particulares subordinam-se aos mais gerais, de
sorte que as propriedades essenciais dos mais gerais ocorrem igualmente nos seus
subgrupos, embora o inverso não seja verdadeiro. Entre dois ramos distantes de uma
ramificação geral mais extensa é possível estabelecer homologias graças ao método de
analogia, que permite arranjar as espécies entre si.
Podemos identificar três tipos diferentes de analogia no vocabulário duhemiano. A
primeira, a analogia superficial, seria artificial e verbal, dando-se antes entre palavras e
não entre idéias. Um exemplo desse tipo seria aquele relativo ao princípio da conservação
de energia ou de entropia, quando assimilados pelo senso comum; apesar de os nomes
serem mantidos, a referência permanece distinta.
583
A segunda analogia é profunda, e seria
natural, dando-se entre idéias. Um exemplo desse tipo de analogia pode ser encontrado na
seção VIII de “Physique de croyant”, ensaio incorporado à segunda edição da Théorie
physique. Aqui, Duhem aventa a relação analógica entre termodinâmica de seu tempo e a
metafísica aristotélica. Em grandes linhas, esse tipo de analogia afirmaria que quanto mais
natural for a ordenação dos princípios e hipóteses no interior da teoria, maior o sentimento
582
DUHEM, P.: TP, pp. 32-3.
583
DUHEM, P.: TP, p. 395.
202
de que existe uma relação de analogia entre a teoria física e a ordem metafísica hierárquica
dos seres. Certamente este tipo de analogia não estaria subsumido ao primeiro, cuja
comparação seria realizada entre as leis teóricas e as leis do senso comum. Há ainda um
outro tipo de analogia, restrita internamente à ciência, a qual não se daria entre ciência e o
senso comum ou entre ciência e a metafísica. É a esse terceiro tipo que nosso autor
reconhece a importância na invenção científica. Trata-se da analogia entre duas categorias
distintas de fenômenos que podem ser representados por equações algébricas idênticas,
revelando entre eles uma relação de homologia onde os fenômenos, superficialmente
considerados, seriam de natureza heterogênea. O método de analogia, continua Duhem, “é
o método mais seguro e mais fecundo”
584
, consistindo num verdadeiro “procedimento de
invenção.”
585
A ilustração mútua de duas teorias, afirma ele, pode ser reconhecida nos
trabalhos de Maxwell, e não se confunde com o uso que este fazia de modelos mecânicos
nem com os modelos algébricos de Hertz; daí a justificativa do valor heurístico da obra do
escocês:
Convém igualmente, se se quiser apreciar com exatidão a fecundidade que pode ter o
emprego de modelos, de jamais confundir o seu emprego com o uso da analogia.
586
É preciso deixar claro, contudo, que por analogia Duhem não entende algo do porte
de uma demonstração, mas apenas uma dessas noções que são sentidas e não concluídas
587
,
donde se depreende que dois físicos podem não estar de acordo sobre a existência de uma
analogia determinada. A analogia é essencialmente uma “intuição inanalisável; é uma
dessas noções indefiníveis que Pascal teria ligado ao espírito de finesse e não ao espírito
geométrico; à qual, entretanto, é preciso conferir um valor científico sob pena de recusar o
apanágio de ciência a ramos de estudos tal como a anatomia comparada”
588
, ou, ainda, à
própria química, que faz uso recorrente da noção de analogia química entre elementos.
589
584
DUHEM, P.: TP, p. 140; EM, p. 194.
585
DUHEM, P.: TP, p. 142.
586
DUHEM, P.: TP, p. 140. Tendo como pano de fundo a oposição freqüente no meio anglo-saxão entre
Duhem e Campbell, Maiocchi (MAIOCCHI, R.: 1985, pp. 365-6; 1992, pp. 388-9) intenta mostrar que existe
uma identidade entre o uso que Duhem faz do termo analogia e o uso que Campbell faz do termo modelo.
Desse modo, não haveria oposição real entre eles. No entanto, em suas considerações o intérprete italiano
gasta toda a sua tinta na distinção duhemiana entre analogia e modelos mecânico sem sequer referir-se aos
modelos algébricos no sentido de Duhem, de sorte que a possibilidade de identificação entre modelo
algébrico e analogia não é totalmente afastada.
587
DUHEM, P.: MCC, p. 89; NAHA, p. 406.
588
DUHEM, P.: MCC, p. 76.
589
DUHEM, P.: MCC, p. 89; NAHA, p. 405.
203
Apesar de não poder ser definida, a noção de analogia pode ser descrita. Uma de suas
marcas é o isomorfismo: “o isomorfismo é considerado por todos os químicos como uma
das marcas as mais seguras às quais se possa confiar para reconhecer a analogia
química.”
590
A analogia, portanto, é o meio, em química, para o estabelecimento de
“agrupamentos naturais, as famílias”, entre os elementos. Quanto maior o grau de
evidência da existência de uma analogia, maior o sentimento provocado de que as relações
estabelecidas por ela constituem relações naturais.
Ora, é exatamente esse “método de analogia” que forneceria o liame entre a teoria
física e a classificação natural. Sucessivas analogias, desde que apoiadas em relações
comuns de um grupo extenso de fenômenos, conduzem o físico à construção de teorias
mais compreensivas e, naturalmente, à suspeita de que a ordem estabelecida deve fundar-se
na natureza mesma das coisas.
Da hierarquia dos seres (as substâncias) decorre a hierarquia das relações (leis) que
eles mantêm entre si. Das relações mais nobres e metafísicas às menos nobres e
fenomênicas, o universo ordena-se de tal maneira que suas relações podem ser encadeadas
dedutivamente. A classificação natural seria uma ordenação lógica de leis e princípios em
uma teoria que nada teria de arbitrário em seus arranjos formais. Haveria entre a hierarquia
estipulada por ela e a hierarquia ontológica uma analogia total, de tal modo que não seria
errado dizer que a teoria acabou por se tornar natural; ela continuaria a ser artificial, pois
que ainda permaneceria como criação humana, mas deixaria de ser arbitrária. Por sua vez,
a analogia entre a classificação natural e a cosmologia acabada à qual Duhem faz
referência em “Physique de croyant”
591
poderia ser entendida como uma relação de
homologia entre a ordem criada pelo físico seguindo o método axiomático e a expressão
metafísica da ordem natural: tratar-se-ia de “duas imagens da mesma ordem ontológica,
distintas porque tomadas de um ponto de vista diferente, mas de maneira alguma
discordantes.”
592
O conceito de analogia assim considerado deve ser entendido
essencialmente como uma relação entre dois grupos ou imagens (a classificação natural e o
sistema metafísico) cujos termos ou relações internas corresponderiam com total
proporcionalidade. Tratar-se-ia de uma semelhança lógico-formal, de uma harmonia (uma
concordância) entre proporções que, apesar de não ter valor demonstrativo, inspiraria a
crença em uma similitude real.
590
DUHEM, P.: MCC, p. 83.
591
DUHEM, P.: TP, pp. 453-72.
592
DUHEM, P.: TP, p. 471.
204
Neste ponto, Duhem parece fazer uma concessão à teoria coerentista da verdade, ao
afirmar que a ordem dos enunciados deve ser comparada com instâncias da mesma ordem,
ou seja, com enunciados igualmente lingüísticos.
593
Mais: de fato, Duhem insiste que um
experimento físico é um embate entre todo o conjunto das proposições matemáticas obtidas
como conclusões da teoria com o conjunto dos fatos da experiência.
594
A verdade estaria
presente, doravante, na analogia estrutural entre dois universos formais; a teoria ideal e a
explicação cosmológica. A perfeição das teorias atuais não seria julgada diretamente pelo
mundo, mas pela cosmologia. Esse seria, no entanto, um erro que pode ser evitado sem
maiores dificuldades:
[...] entre essa classificação natural, que seria a teoria física no seu mais alto grau de
perfeição, e a ordem na qual uma cosmologia acabada organizaria as realidades do
mundo da matéria, haveria uma correspondência exata; portanto, quanto mais a teoria
física, de uma parte, e o sistema da cosmologia, de outra, se aproximam
respectivamente de sua forma perfeita, mais clara e detalhada deve ser a analogia entre
essas duas doutrinas.
595
Como se pode ver, nem mesmo a cosmologia escapa de uma comparação com o
mundo; sequer existe uma cosmologia acabada. Tanto a teoria física como a cosmologia
dependem do confronto com a realidade objetiva, de modo que o problema da avaliação da
correspondência entre a teoria e o mundo não é evitado. Um esquema que poderia resumir
o que foi dito nos últimos parágrafos seria este:
593
Uma objeção possível, com a finalidade de dissolver a concepção correspondencial, poderia consistir na
crítica seguinte: não faria sentido comparar elementos heterogêneos, ou seja, elementos lingüísticos
(enunciados) com elementos não lingüísticos (fatos). Os coerentistas, por exemplo, argumentam que seria
mais adequado comparar elementos lingüísticos entre si e, a seu favor, insistem que, em última análise, é
exatamente isso o que se dá: a comparação sempre se faz entre duas linguagens; a linguagem teórica e a
linguagem observacional, o que sugere que a verdade não passaria da coerência de nossos enunciados como
um todo. Assim, a comparação dar-se-ia de maneira holística, entre dois sistemas integrados de enunciados, e
a verdade seria reduzida à consistência de dois blocos de natureza semelhante: as linguagens teórica e
observacional.
594
DUHEM, P.: TP, p. 313.
595
DUHEM, P.: TP, pp. 456-7.
205
Assim, a teoria física não busca explicar diretamente os fenômenos, mas através de
sua representação e classificação a teoria torna-se mais e mais natural. Se a lei histórica
afirma que o desenvolvimento contínuo dá-se na parte representativa das teorias, isso não é
contradiz a definição de classificação natural como explicação metafísica, pois o que
Duhem recusa de pronto é a explicação metafísica a priori. Existe um mecanismo que
permite à teoria, por meio de representações mais compreensivas, atingir a explicação dos
fenômenos, como procuramos mostrar, de modo que, apesar de o filósofo não dizer
explicitamente na primeira edição de La théorie physique, a classificação natural segue
sendo uma explicação metafísica da natureza material, isto é, a explicação certa dos
mesmos. Insistamos um pouco mais sobre isso.
O argumento da inferência da melhor explicação pode ser enfocado de dois pontos de
vistas. De um lado, ele é um argumento inválido que não resiste à mínima severidade da
análise lógica; de outro, ele funciona como um adutor da crença de que a teoria física
aproxima-se da verdade. A razoabilidade da crença em favor da verdade da teoria é tanto
maior se distinguirmos com precisão a mera razoabilidade (razões para crer) da
demonstração da verdade da teoria. Os motivos para crer na verdade (aproximada) da
teoria aumentam quando um elemento da maior importância entra em jogo: a predição de
novas leis não observadas anteriormente. Com o advento (não miraculoso) das predições
inesperadas, o mérito da teoria da qual elas decorrem ultrapassa a simples adequação
empírica. Somos naturalmente levados a suspeitar, doravante, de um poder explicativo
206
transcendente das teorias. Sigamos um pequeno esquema que sintetiza o argumento da
inferência da melhor explicação:
(1) D é uma coleção de leis experimentais.
(2) T explicaria D, caso fosse verdadeira.
(3) Nenhuma outra hipótese pode (atualmente) explicar D como T o faz.
__________________
Logo, há razões para suspeitar que T seja verdadeira.
No esquema acima, a proposição (1) deve ser entendida como o amálgama de um
conjunto de evidências (fatos condensados em leis) empíricas; a proposição (2) é
constituída de uma suposição responsável por ligar tais evidências a uma explicação
qualquer; enquanto (3) garantiria em princípio a possibilidade de hipóteses explicativas
alternativas e, ao mesmo tempo, a supremacia atual de uma delas sobre as demais. A
conclusão relaciona o destacado poder explicativo de T a sua provável verdade.
O argumento é logicamente inválido (as premissas que conjuminam para formar a
conclusão não determinam apoditicamente a verdade de T), mas extremamente válido do
ponto de vista prático.
596
É de uso ambíguo: criticado como inferência falível pelos anti-
realistas, usado a seu favor pelos realistas. Os primeiros atestam a indemonstrabilidade da
conclusão que se segue de premissas insuficientes, enquanto os segundos, mesmo
reconhecendo a verdade daqueles, insistem na existência de “boas razões” para se acreditar
na verdade da conclusão. Ambos os usos encontram-se formulados na obra duhemiana. O
embasamento psicológico sentimental para as boas razões contrasta com a análise lógica
do argumento. A história da ciência, se pode servir para minar as pretensões realistas ao
mostrar que teorias supostamente aceitas como verdadeiras revelaram-se posteriormente
falsas
597
, pode funcionar no sentido inverso, ao indicar casos em que a teoria antecipou a
experiência. De um modo ou de outro, Duhem compromete-se positivamente com o uso da
inferência da melhor explicação:
596
Para que o argumento fosse válido seria preciso que em (1) a coleção de leis experimentais (D) exaurisse
todas as leis experimentais (até aqui nós teríamos uma explicação hipotética, e o argumento permaneceria
inválido), e que em (3) não houvesse concorrentes de T atual e potencialmente (assim seria dada a explicação
certa, com a validação do argumento). Traduzindo em termos que nos são mais comuns, a impossibilidade de
a classificação natural ser obtida advém de duas outras impossibilidades específicas: a impossibilidade
prática de conhecer a totalidade dos efeitos (a totalidade das leis experimentais) e a impossibilidade lógica de
afirmar que uma certa causa (uma teoria física) seja a única possível capaz de representar aquela totalidade.
597
DUHEM, P.: TPr, p. 4.
207
[...] o ramo da ciência que foi por muito tempo apresentado como a teoria mecânica do
calor transformou-se gradualmente, sob o nome de termodinâmica, em uma das mais
perfeitas teorias físicas.
598
[...] nela [a termodinâmica geral] acabaram convergindo todas as tendências legítimas
e fecundas das teorias anteriores; visivelmente, é desse termo que deve partir, na
época em que vivemos, a marcha que encaminhará a teoria na direção de seu fim
ideal.
599
As duas citações perfazem um intervalo de aproximadamente 13 anos. Na primeira
delas a termodinâmica aparece como uma das mais perfeitas teorias físicas disponíveis
para, na segunda, ser escolhida como a mais segura e fecunda das teorias – a mais próxima
do fim ideal, a classificação natural. Existe, por assim dizer, um lastro histórico a favor da
verdade da termodinâmica.
600
Verdade, é preciso dizer, que atua mais como regulador das
atividades do teórico do que algo que possa ser efetivamente alcançado:
Nós admitimos que a teoria física pode atingir um certo conhecimento da natureza das
coisas, mas esse conhecimento, puramente analógico, nos aparece como o termo do
progresso da teoria, como o limite do qual ela se aproxima sem cessar, sem jamais
atingi-lo.
601
Viemos tentando mostrar até o momento que apesar de Duhem defender um sem
número de teses de teor instrumentalista, de um ponto de vista geral, ele esposa igualmente
várias espécies de realismo: poderíamos qualificar o seu realismo como metafísico,
gnosiológico, metodológico e epistemológico.
602
Se a possibilidade do conhecimento da
598
DUHEM, P.: ARTF, p. 25.
599
DUHEM, P.: TP, p. 465. Complica-se a interpretação de Cartwright segundo a qual Duhem recusaria a
inferência da melhor explicação (CARTWRIGHT, N.: 1983, p. 88).
600
Ainda na segunda citação, como Chiappin observou, Duhem defende uma versão de realismo convergente
(CHIAPPIN, J.: 1989, seção 3.9). Embora de modo brevíssimo, Lugg oferece ponto de vista semelhante
(LUGG, A.: 1990, p. 416). Ver também: SOUZA FILHO, O.: 1996, p. 91.
601
DUHEM, P.: NTTS, p. 157.
602
Ver Anexo 2. É possível falar até mesmo que Duhem advoga uma espécie de realismo semântico,
dependendo da definição de realidade adotada (já vimos que o termo comporta mais de uma acepção em sua
obra). Se a adoção do realismo semântico depende da aceitação do sentido forte de realidade (caso contrário,
haveria um elemento subjetivo em jogo, e diretrizes acessórias teriam de ser adotadas, como, por exemplo, o
limite atual de observação), o resultado imediato do realismo semântico seria a queda instantânea no
ceticismo, uma vez que todas as teorias seriam julgadas falsas (é exatamente esta a base de sua crítica contra
os dogmáticos). Elenquemos outras teses que nos permitem vislumbrar a distância duhemiana do
instrumentalismo. Em primeiro lugar, Duhem não nega a existência do mundo “1” popperiano. Além disso,
ele mantém a distinção entre ciência pura e ciências aplicadas: “A ciência pura busca a verdade e, portanto,
foge ao erro” (DUHEM, P.: TPr, p. 4). A importância das experiências de prova (distintas das experiências
de aplicação) é enfatizada pelo autor (DUHEM, P.: ARFE, p. 92; TP, pp. 278-9), aliada à sua crítica ao
utilitarismo da física inglesa (DUHEM, P.: EITF; TPr; TP, pp. 136-7). A testabilidade das teorias é critério
de extrema importância na teoria da ciência de Duhem (distinguindo-os dos adeptos do estratagema
208
natureza das coisas não é excluída pelo autor, ser-nos-ia conveniente refletir por um
momento sobre a natureza desse conhecimento, prolongando-nos um pouco mais sobre a
questão atinente à caracterização do realismo duhemiano.
O realismo estrutural afirma não apenas a existência de um mundo independente da
mente, mas, de modo específico, que o que conhecemos desse mundo é apenas a sua
estrutura, representada na teoria pela totalidade de suas relações lógico-formais. Desse
modo, apenas as propriedades matemáticas do mundo seriam cognoscíveis, com a exclusão
conseqüente do conhecimento de quaisquer propriedades qualitativas ou de sua natureza
causal. Durante as mudanças científicas, a estrutura matemática das teorias, responsável
por “capturar”, sob a forma de equações, o comportamento dos fenômenos, seria
preservada, enquanto não haveria qualquer compromisso não instrumental para com as
entidades postuladas pela teoria. A distinção entre a estrutura e a ontologia teóricas permite
ao realista estrutural explicar ao mesmo tempo o sucesso da ciência e as grandes mudanças
científicas, na medida em que ele situa o sucesso representativo das teorias em sua
estrutura matemática, ao passo que não necessita assumir nenhum compromisso ontológico
com as entidades postuladas pela teoria. Em última instância, o realismo estrutural assere
que a teoria corresponde com a realidade através de uma espécie de isomorfismo
estrutural.
Como frequentemente o realismo de entidades é oposto ao realismo estrutural, a
suposição de que Duhem seria um realista estrutural poderia tirar sua força do propagado
anti-atomismo duhemiano (forma mais disseminada de realismo de entidades). Convicto
anti-atomista, nosso autor não se comprometeria com a existência de entidades não
observáveis postuladas pelas teorias atômicas. À primeira vista, esta suposição parece
natural. À primeira vista... A generalização contida nela, no entanto, não se sustenta. Saltar
do anti-atomismo para o anti-realismo de entidades, e, por conseguinte, para o realismo
estrutural não nos parece adequado. Em primeiro lugar, Duhem não critica o atomismo por
ele ser hipotético, pois todas as teorias o são. De igual modo, o atomismo também não é
criticado por postular entidades inobserváveis e abstratas, pois a própria energética
depende, por exemplo, da postulação de um relógio absoluto (tempo absoluto) e de um
triêdro fixo de referência (espaço absoluto) aos quais os corpos concretos farão
convencionalista). Como não bastasse, temos ainda o princípio de unidade inter-teórica e a noção de
classificação natural como fundamentos do realismo metodológico duhemiano; vale dizer que tais princípios
diferem, quanto ao seu fundamento, das regras metodológicas convencionais no sentido popperiano.
209
referência.
603
O principal critério usado por Duhem quando de sua crítica às teorias
atômicas (à época elas eram muitas, e não havia aceitação consensual de uma delas em
particular) é justamente a adequação empírica, o qual nem mesmo um atomista poderia
negar impunemente. O motivo primeiro de sua crítica ao atomismo tem amparo no
insucesso das teorias desse gênero em salvar adequadamente as aparências.
604
Nosso autor
volta sempre ao mesmo ponto ao compor seus ataques: invariavelmente as teorias atômicas
vêem às voltas com infindáveis contradições experimentais:
A teoria conforme a qual cada átomo possui atomicidades em número invariável, mas
capazes de se saturarem, está, pois, em desacordo flagrante com os fatos
605
.
Assim, a notação química moderna, fundada sobre a noção de valência, e tão
impropriamente nomeada notação atômica, mostra-se um admirável instrumento de
classificação e de descobertas quando se procura nela somente uma representação
figurada
606
, um esquema de idéias diversas empregadas na substituição química; mas
quando se procura nela uma imagem do agenciamento dos átomos e da estrutura das
moléculas, em todas as partes não se encontra nada além de obscuridade, incoerência e
contradição.
607
A incoerência lógica das teorias atômicas e a contradição experimental acabam por
reduzi-las a um instrumento estéril. Para evitar tais contradições, os químicos que insistem
603
DUHEM, P.: TE, I, pp. 6-13. Lembremos ainda das considerações duhemianas sobre a idealidade do
sistema isolado, abstração imprescindível aos princípios da termodinâmica (DUHEM, P.: TE, I, pp. 16-20).
604
Maiocchi relaciona estreitamente a recusa duhemiana do atomismo na física ao modelismo figurativo,
causa de incoerência teórica, que lhe era inerente ao final do século XIX e início do século passado. De fato,
em vários momentos nosso autor associa o atomismo à necessidade de visualizar, por meio da imaginação, o
agenciamento de figuras tangíveis. Já a oposição ao atomismo em química é vinculada ao papel instrumental
das teorias químicas, as quais deixariam passar por real o que não iria além de uma entidade fictícia. A
atitude de Duhem seria dúbia, argumenta o intérprete italiano: no primeiro caso nosso autor recusa o
atomismo em nome do realismo, no segundo, do instrumentalismo (MAIOCCHI, R.: 1992, pp. 386-7). Jaki,
por outro lado, nota que o fato de Duhem reafirmar sua posição metodológica após as famosas experiências
de Perrin (as quais teriam persuadido até mesmo Ostwald e Mach da existência dos átomos) significaria que
o repúdio de nosso autor ao atomismo de sua época era devido sobretudo ao seu caráter metafísico. O átomo
seria como que a explicação última da realidade e nisto, insiste o intérprete, Duhem estava certo, pois os
defensores do atomismo de então viam no átomo a substância última indivisível, e não imaginavam que ele
fosse constituído de partes, como atualmente conhecemo-lo (JAKI, S.: 1969, pp. xiv-xv). Brenner, por sua
vez, relaciona o combate duhemiano ao atomismo à sua opção metodológica, da qual se originaria “o erro de
Duhem” (BRENNER, A.: 1990, p. 109).
605
A essa altura, Duhem havia acabado de expor algumas das “contradições insolúveis” das teorias atomistas,
as quais, em sua maioria, invocavam a atomicidade, entendida como propriedade intrínseca do átomo e
função de sua forma, em detrimento da noção de valência (DUHEM, P.: MCC, p. 139-43).
606
A locução “representação figurada”, nesta passagem, tem o significado de representação simbólica, a qual
seria visualizável enquanto composta por letras responsáveis por simbolizar os elementos químicos,
permitindo, entre outras coisas, detectar analogias formais entre suas estruturas e reconhecer com clareza
superior, mediante ou disposições esquemáticas, as propriedades do mais variados compostos. Em nenhum
momento Duhem considera a referida figuração como reflexo da verdadeira estrutura atômica das moléculas.
607
DUHEM, P.: MCC, p. 144.
210
em resguardar suas teorias do desmentido experimental são obrigados a fazer uso de novas
hipóteses auxiliares, tornando-as sucessivamente mais arbitrárias e inverossímeis. Novos
insucessos surgem como que num círculo vicioso.
Mas Duhem pode ainda ser reputado realista estrutural de modo mais direto, como o
faz Chiappin. De acordo com o intérprete o realismo duhemiano buscaria na ordem, não
nas entidades, o conhecimento teórico:
Para Duhem o mundo não é um conjunto de entidades. O conceito de entidade não é
um conceito primário de sua ontologia. O conceito primário é a ordem e a estrutura.
608
É a ordem na qual a teoria arranja as leis experimentais que possui valor de saber; é
através dela, ainda, que a teoria reflete as relações entre as coisas.
609
Dificilmente seria
possível discordar da caracterização de Chiappin acerca do realismo duhemiano devido à
grande quantidade de passagens em que Duhem salienta a importância da ordem
classificatória das leis experimentais.
610
No entanto, há um caso encontrado em Le
mouvement absolu et le mouvement relatif que merece atenção.
611
Vejamo-lo mais de
perto.
Na conclusão dessa obra nosso autor reafirma o que havia sido dito desde o seu
início: os únicos movimentos que conhecemos através da experiência direta são os
movimentos relativos. Saber se é a Terra que gira ao redor do sol ou se aquela permanece
em repouso circundada pelo movimento solar é uma questão que do ponto de vista do
608
CHIAPPIN, J.: 1989, p. 202.
609
CHIAPPIN, J.: 1989, p. 207. Poderíamos perguntar desde já: o que são essas “coisas” senão entidades?
Afinal, Duhem não sustenta que existem, no universo inanimado, diversas substâncias materiais?
610
Uma clivagem conceitual que não podemos dispensar trata do tipo de referência da estrutura formal a ser
vinculada ao realismo duhemiano. De que estrutura falaria ele? Poderíamos conceber, em primeiro lugar,
uma estrutura fenomenológica ou, em outros termos, uma representação formal das leis experimentais. Desse
ponto de vista, as leis de Kepler, que para Duhem são leis experimentais, exprimiriam certas relações
matemáticas passíveis de conhecimento. Mas o realismo duhemiano ao nível da observação é indisputável, de
sorte aqui a distinção entre qualidade/forma seria desnecessária, e seu realismo seria de igual modo um
realismo de entidades, sem necessidade de análise ulterior. Logo, o realismo estrutural que está em disputa
situa-se um nível acima do campo fenomênico, tendo de ser situado no domínio metafísico das relações que
as essências manteriam entre si. É apenas neste ponto que a distinção entre os dois realismos em questão
adquire validade. Isto posto, poderíamos esperar que a atribuição a Duhem do realismo estrutural não apenas
impeça a caracterização de seu realismo como sendo de entidades como também condicionaria o realismo
estrutural duhemiano às relações teóricas de “primeira ordem”, isto é, aos princípios propriamente teóricos.
Entretanto, é possível falar numa estrutura de categoria superior, uma estrutura de “segunda ordem” (ou
meta-estrutura) a qual poderia ser definida pela relação das relações ou, ainda, pela ordem na qual as
diversas equações são dispostas. Creio que é sobretudo este o sentido que encontramos sob o abrigo da noção
de classificação natural.
611
Na extensa bibliografia arrolada por Chiappin a obra à qual acabamos de fazer referência não é citada.
211
método experimental não faz sentido.
612
A decisão pode, contudo, ser tomada quando se
opta convencionalmente por fixar um triêdro ideal de referência ao qual os movimentos
concretos serão reportados: “a escolha do triêdro de referência é uma das hipóteses sobre
as quais repousa a construção da teoria física.”
613
Mas esse triêdro, afirma Duhem, é um
“puro conceito” teórico, sem realidade alguma, cuja função principal deriva da
comodidade que ele tende a estabelecer quando dos cálculos. Sua aceitação depende antes
de considerações estéticas do que de raciocínios de ordem lógica, pois seria perfeitamente
cabível construir outra teoria que representasse igualmente bem as leis experimentais,
embora de modo menos simples. Logo, a determinação do triêdro, como a determinação de
todas as hipóteses, é sempre aproximada e provisória. Uma vez fixado o triêdro de
referência privilegiado, pode-se determinar os movimentos privilegiados dos corpos
teóricos relacionados àquele triêdro, de sorte que os movimentos relativos dos corpos
teóricos aparecem como conseqüência e resultado dos movimentos privilegiados desses
mesmos corpos teóricos.
614
Mas uma “irresistível tendência” leva o físico a fazer a seguinte
analogia:
Desde então, do mesmo modo que se é conduzido a considerar os movimentos
relativos dos diversos corpos teóricos como não sendo jamais, na teoria física, alguma
coisa primitiva e irredutível, mas como um reflexo secundário, um resultado do
movimento privilegiado de cada um desses corpos, é-se igualmente impelido a admitir
que os movimentos relativos dos corpos concretos não são, na realidade, alguma coisa
de primordial, que eles representam alguma coisa de derivado e que eles são a
conseqüência do movimento absoluto de cada um dos corpos concretos.
615
O movimento privilegiado do corpo teórico torna-se um índice do movimento
absoluto dos corpos concretos! Ao contrário do movimento relativo, o movimento
absoluto não poderia ser constatado por nenhuma experiência concreta, mas a questão de
sua existência não pode ser evitada: “A experiência e a teoria impelem-nos a afirmar a
existência de movimentos absolutos.”
616
Nesse momento, nota Duhem, já não se está mais
a fazer física, mas metafísica. A conclusão com a qual Duhem finaliza suas reflexões
metafísicas que nos interessa aqui é a seguinte: o triêdro de referência ideal de que trata a
612
DUHEM, P.: MAMR, p. 6.
613
DUHEM, P.: MAMR, p. 276.
614
DUHEM, P.: MAMR, p. 278.
615
DUHEM, P.: MAMR, p. 278.
616
DUHEM, P.: MAMR, p. 279.
212
teoria física é idêntico ao espaço absoluto de Kant.
617
Se a teoria física estimula o teórico à
afirmação metafísica da existência real de movimentos absolutos, ela impele-o, como
decorrência lógica, à aceitação real do espaço absoluto – uma entidade teórica.
618
Assim, a distinção entre os dois tipos de realismos em questão, aplicada a Duhem,
torna-se um tanto embaçada. Se o realismo duhemiano é estrutural, entendê-lo estritamente
como tal acarreta a inexplicabilidade do exemplo presente na Conclusão de Le mouvement
absolut et le mouvement relatif. Por outro lado, o realismo duhemiano só pode ser chamado
de entidades em função do realismo de teorias. A crença na verdade aproximada das
teorias traz consigo a crença na verdade delas como um todo, inclusive das entidades por
elas postuladas. Se Duhem não afirma que existe um espaço absoluto, isto é, se ele se
mantém nominalista acerca da existência atual de entidades teóricas, isso não deve afastar
a possibilidade de existência dessas entidades. O mesmo acontece acerca da verdade das
relações teóricas: nem mesmo a verdade destas é afirmada peremptoriamente.
619
Se não
existe demonstração cabal das entidades, o mesmo pode ser dito das relações. A aceitação
do realismo convergente duhemiano acarreta a aceitação da teoria que provê a melhor
explicação como um todo. Situar o realismo apenas na estrutura teórica seria algo
contraditório. Os dois realismos estariam, portanto, no mesmo pé. Isso explica nossa
preferência em não qualificar o realismo duhemiano nem com um ou outro rótulo.
2.5. Considerações gerais sobre a classificação natural
Para finalizar nossas considerações sobre a noção de classificação natural, façamos
algumas elucidações terminológicas sobre certos termos que vínhamos usando até o
617
O espaço absoluto seria para Kant o fundamento necessário da teoria do movimento: ele não se oferece à
percepção, pois que vazio de matéria, todavia, é um conceito necessário da razão: “O espaço absoluto é pois
necessário não como o conceito de um objeto real, mas como uma idéia que deve servir de regra para
considerar nele todo movimento como simplesmente relativo; assim, todo movimento e todo repouso devem
ser relacionados ao espaço absoluto, se se quiser transformar seus fenômenos em um conceito experimental
determinado (que une todos os movimentos)” (KANT, I.: citado em DUHEM, P.: MAMR, p. 205).
618
É importante notar que Duhem não faz nenhuma referência à teoria da relatividade especial em seu livro.
Na verdade, podemos entrever nele uma defesa do espaço absoluto, o que explicaria a omissão.
619
Uma objeção possível à minha argumentação é que Duhem segue afirmando que existe uma continuidade
na parte representativa das teorias, isto é, na parte das relações matemáticas das mesmas. Todavia, a
preservação das relações não pode ser entendida como um acréscimo puramente cumulativo, como se dá no
caso do desenvolvimento das matemáticas, de sorte que o continuísmo representativo não significa
precisamente a manutenção estrita das mesmas relações.
213
momento sem maiores preocupações. É preciso distinguir entre princípios físicos e meta-
princípios, metodologia e meta-metodologia. Quando afirmamos que a coerência lógica é
um meta-princípio, queremos dizer que ele é um princípio usado para falar da ciência sem
ser ele mesmo um princípio científico (como o são os princípios de inércia, de mínima
ação etc., referentes a um modelo esquemático de mundo). O meta-princípio atua como um
regulador da atividade científica, e nada diz acerca do mundo. Por outro lado, uma
metodologia é um conjunto de procedimentos diretivos e restritivos que devem ser
seguidos de modo a atingir um determinado objetivo cognitivo. Teses metodológicas
frequentemente articulam-se a teses de caráter axiológico e epistemológico. Assim, se se
quiser construir uma teoria segura e duradoura – valor pressuposto –, deve-se evitar
formular hipóteses sobre a estrutura íntima da matéria – regra metodológica –, inacessível
ao conhecimento direto – tese epistemológica. Já o escopo da meta-metodologia encontra-
se um nível acima das teses metodológicas, e seu discurso tem as mesmas como objeto.
Aqui, por exemplo, pode-se comparar ou distinguir metodologias através da linguagem
meta-metodológica. Isto posto, é mister não confundir o meta-princípio de unidade lógica
com a linguagem meta-metodológica, o que subtrairia em muito a sua importância no
pensamento de Duhem, pois ele faz parte da metodologia duhemiana, daí poder-se dizer
que ele é um princípio metodológico ou um meta-princípio científico.
Aceito isso, vejamos como se sai a interpretação de Brenner. O comentador francês
viu muito bem que Duhem não pode ser considerado um positivista sem qualificações
posteriores. Meta-metodologicamente, nosso autor abre espaço para uma metodologia
metafísica distinta daquela elaborada para a física. Assim, Brenner afirma que Duhem só
pode ser considerado um positivista do ponto de vista estritamente metodológico. Sua
metodologia, e apenas ela, seria positivista. Ora, como ficam então os princípios
metodológicos de unidade lógica e de classificação natural? Afirmamos que, se meta-
metodologicamente nosso autor não é positivista, nem mesmo metodologicamente ele o
seria, na medida em que o meta-princípio de unidade lógica (bem como o ideal de
classificação natural) é fundamental em sua metodologia. A metodologia duhemiana
encerra a análise lógica e os ditames do coração, por isso Duhem arroga a si o “método
mais perfeito”. Duhem deixa ver que o meta-princípio tira suas origens do coração, de um
sentimento invencível, ou de modo ainda mais inusitado, de considerações metafísicas
(embora nem por isso seja ilegítimo em física). Portanto a física repousa sobre noções e
“normas” que tiram sua razão da metafísica, donde concluirmos que sequer
214
metodologicamente Duhem pode ser considerado positivista.
620
Como Brenner deixa de
lado esse aspecto, ele é levado à seguinte afirmação:
A dificuldade do positivismo de Duhem, que privilegia a corrente aristotélica em
relação à corrente arquimediana, decorre, em nossa opinião, da idéia de classificação
natural em sua relação com a definição da teoria.
621
Uma postura prévia é assumida para, em seguida, ser dado o veredicto: a obtenção da
classificação natural não é uma virtude da metodologia duhemiana, mas uma “dificuldade”
de seu “positivismo”. Já de Broglie, em seu prefácio à primeira edição da tradução inglesa
da Théorie physique vê a cogência da introdução da noção de classificação natural na
filosofia duhemiana como uma tentativa de explicar racionalmente as antecipações
inesperadas da teoria frente à observação, as quais o puro convencionalismo seria incapaz
de justificar. Isso o leva à conclusão de que a noção de classificação natural vem a “mitigar
o rigor do seu positivismo científico.”
622
Ademais, algo parecido ocorre com Lakatos. Ao
classificar Duhem como convencionalista revolucionário, o filósofo húngaro enfrenta
sérias dificuldades para justificar o aparecimento do ideal de classificação natural.
Novamente, uma postura preconceituosa leva a um mau entendimento, e tem como
conseqüência uma crítica descabida: uma vez adotada a noção de classificação natural, o
convencionalismo de Duhem passaria a ser “incoerente”:
Duhem não era um convencionalista revolucionário coerente. De maneira muito
semelhante a Whewell, achava que as mudanças conceptuais são apenas preliminares
da ‘classificação natural’ final.
623
De um equívoco (classificar nosso autor como convencionalista revolucionário)
decorre outro (a incoerência duhemiana), e Lakatos preferiu manter sua “classificação
620
É bem verdade que nosso autor intitula duas seções de seu ensaio “Physique de croyant” como se seguem:
“Nosso sistema físico é positivo em suas origens” (seção 2), e; “Nosso sistema físico é positivo em suas
conclusões” (seção 3), mas a sua intenção, em ambas, é afastar qualquer comprometimento de sua concepção
de teoria física com a fé católica. Ela é positiva em suas origens pois que derivada da “prática cotidiana da
ciência e do ensino” (DUHEM, P.: TP, p. 416)., e em hipótese alguma deriva de suas preocupações
religiosas; é positiva em suas conclusões porque se o valor de conhecimento da teoria física não atinge o real
isso não se deve a uma intenção prévia de delimitar o seu alcance, mas decorre unicamente da análise lógica.
Daí que a teoria física não tem de aceitar nenhuma proposição metafísica entre seus princípios e nem pode
ser usada legitimamente para contrariar ou apoiar uma proposição metafísica.
621
BRENNER, A.: 1990, p. 174, n. 3. Nada mais que isso é dito sobre a classificação natural por Brenner em
seu livro, e muito menos sobre o princípio de unidade lógica.
622
DE BROGLIE, L.: 1954, p. x.
623
LAKATOS, I.: (1970) 1979, p. 128, n. 41.
215
artificial” ao invés de fazer justiça ao pensamento de duhemiano. Por descaso em relação à
noção de classificação natural, tanto Lakatos quanto Brenner acabaram vendo problemas
(incoerência/dificuldade) com o convencionalismo/positivismo de Duhem.
Ao contrário dos dois autores mencionados logo atrás, Souza Filho assume a
responsabilidade de analisar a noção de classificação natural no pensamento duhemiano,
inserindo-a num contexto assaz diferente, bem mais rico e positivo. Não estamos mais
diante de um Duhem positivista ou convencionalista. As novas vestes duhemianas são
agora realistas. A coroa está devidamente colocada sobre a cabeça do rei, o cetro, apontado
ao coração do convencionalista, faltou especificar em que dedo o anel devia ser colocado.
Souza Filho reconhece que o realismo duhemiano é convergente, que ele adquire com o
tempo forte amparo na história da física, mas quando se trata de especificar o estatuto do
realismo, ele o vincula à axiológia duhemiana, como que determinando a metodologia por
fora.
624
Além disso, afirma ele que:
A continuidade de uma tradição é, para Duhem, garantida pela noção ontológica de
classificação natural que estabelece, por sua vez, um fundamento metafísico à
concepção de evolução das teorias físicas.
625
A nosso ver, não é a classificação natural que garante a continuidade do progresso,
mas a continuidade histórica que sustenta o ideal de classificação natural (embora o mesmo
derive, em última instância, do senso comum).
626
Certamente, baseado em sua
interpretação ontológica da classificação natural, Souza Filho discordaria, assim como nós,
de Poirer, para quem:
Sua expressão [de Duhem] “classificação natural” equivale aproximadamente à de
“linguagem.” A ciência não é senão uma língua bem feita, própria para traduzir os
fatos da observação, fórmula tradicional desde Condillac e que o neo-positivismo
renovou, tomando o termo língua no sentido de “teoria codificada e formalizada.”
627
O conceito de classificação natural envolve ainda outro significado. Não se trata
agora, como visto na seção anterior, de saber se a teoria é uma representação ou uma
624
Voltaremos a essas considerações em nossas Conclusões.
625
SOUZA FILHO, O.: 1996, p. 89.
626
Essa afirmação é curiosa vinda de Souza Filho, pois, pelo que até então havíamos entendido em nossa
leitura de sua tese, ele se esforçara no sentido oposto, vale dizer, de assentar o ideal de classificação natural
na objetividade dos fatos e da história.
627
POIRER, R.: 1967, p. 403.
216
explicação dos fenômenos. Na Théorie physique Duhem afirma que a teoria não é apenas
uma representação econômica das leis experimentais, mas também uma classificação
dessas leis. As representações ligam-se por intermédio das regras de tradução às leis
experimentais, guardando, por assim dizer, um conteúdo informativo “horizontal”, na
medida em que são formados de relações matemáticas quaisquer que traduzem
simbolicamente leis experimentais (as leis observadas empiricamente). A classificação, por
sua vez, refere-se à disposição dessas leis no interior da teoria física. Ela estipula uma
hierarquia “vertical” das relações representativas, de sorte que a classificação mesma nada
representaria no mundo concreto. Uma classificação seria, por assim dizer, uma relação
formal de relações formais. Inserida na totalidade dos textos duhemianos, a noção em
questão passa a ser algo mais que a bandeira do realismo científico; ela exibiria as cores de
seu próprio projeto científico, da classificação que ele ajudara a formular. Uma espécie de
“materialização” da classificação natural pode ser vista no Commentaire aux principes de
la thermodynamique. Ao final desta obra, Duhem divisa duas posições assimétricas acerca
das relações entre a termodinâmica e a dinâmica. A primeira delas, representada por
Clausius, Boltzmann e Helmholtz, consistia em fazer da termodinâmica, por meio de
hipóteses sobre a natureza do calor, uma aplicação da dinâmica; a segunda, figurada por
Kirchhoff e Lippmann, em manter a independência mútua dos princípios das duas ciências.
Uma terceira via é apresentada: o programa duhemiano estipula a redução da dinâmica à
termodinâmica. A classificação proposta por Duhem estriba-se na extensão conceitual da
noção de movimento, que passaria a englobar, além do movimento local, os movimentos
de alteração (mudanças nas quais as diversas qualidades aumentam ou diminuem a sua
intensidade ou mudam de estado físico e propriedades) e de corrupção e geração
(mudanças em que um conjunto de substâncias químicas desaparece para fazer aparecer
outro conjunto de substâncias
628
). A ampla base da termodinâmica geral permite-lhe
concluir que:
628
Como é sabido, as referências duhemianas a Aristóteles são numerosas. Vale mencionar um caso especial
bastante significativo. No que tange à composição de um misto a partir de dois elementos simples, o anti-
atomismo de Duhem, levado às suas últimas conseqüências, leva-o a utilizar o vocabulário aristotélico na
descrição da composição resultante: enquanto os atomistas, apoiados na deficiência de nossos sentidos,
defendem que a homogeneidade do misto não é senão aparente, uma vez que os átomos justapostos – mas
ainda individuais – subsistem, nosso autor afirma que o misto é realmente distinto dos corpos que o
engendraram, que estes não existem senão em potência (DUHEM, P.: MCC, pp. 11-15).
217
[...] a ciência dos movimentos [locais] deixa de ser, na ordem lógica, a primeira das
ciências físicas, para se tornar somente um caso particular de uma ciência mais geral
que encerra em suas fórmulas todas as modificações dos corpos [...].
629
A “ordem lógica” encontrada aqui é propriamente a ordem axiomática que
corresponderia analogicamente à classificação natural. Pela força das coisas, tudo indica
que a dinâmica estaria ontologicamente subordinada à termodinâmica.
O projeto científico duhemiano poderia ser compreendido, por assim dizer, como a
tentativa de realização de uma “grande consiliência.” A distinção entre as classificações
naturais e artificiais pode já ser entrevista na obra de William Whewell. Este reconhecia
que um forte indício para julgar a naturalidade/artificialidade de uma classificação teórica
era a convergência e o agrupamento, por vezes inesperado, de características baseadas na
relação de similaridade entre tipos aparentemente diversos de fenômenos. Whewell cunhou
um termo especial para expressar essas relações conhecido como “consiliência das
induções” (consilience of inductions). A consiliência é a capacidade que uma teoria
apresenta ao unificar classes de fenômenos até então desconexas por meio da predição de
fatos de tipos diferentes, para os quais nenhuma hipótese fora anteriormente cunhada.
Assim, não se trata de uma capacidade prevista quando da construção da teoria, mas de
uma potencialidade não computada da mesma, a qual revela sua fecundidade ou seu
sucesso preditivo apenas a posteriori:
[...] quando a hipótese, de si própria e sem ajustes para propósito, dá-nos a regra e a
razão de uma classe de fatos não contemplados em sua construção, temos um critério
de sua realidade, que até agora nunca se apresentou a favor de falsidade.
630
E mais:
As instâncias nas quais isso ocorreu, na verdade, nos impressionam com uma
convicção de que a verdade de nossas hipóteses é certa. Nenhum acidente poderia dar
origem a tal coincidência extraordinária. Nenhuma suposição falsa poderia, depois de
ajustada a uma classe de fenômenos, representar exatamente uma classe diferente [de
fenômenos], na qual a concordância não foi prevista ou contemplada.
631
A satisfação do “critério” da consiliência é um forte índice da verdade da teoria, isto
é, de que a teoria, ao agenciar quase que por conta própria a distribuição dos fenômenos,
629
DUHEM, P.: CPT, III, p. 285. Itálicos meus.
630
WHEWELL, W.: (1968) 1989, p. 155.
631
WHEWELL, W.: (1968) 1989, p. 153.
218
não o faz ao acaso, mas por causa de uma consonância com a realidade. A própria história
da ciência, afirma Whewell, jamais fornece exemplos de que alguma hipótese responsável
por unificar classes distintas de fenômenos tenha sido descartada como falsa.
632
Consiliências de induções constantes, além de fornecerem evidências adicionais
independentes, tornam possível a redução de uma classe fenomênica a outra, resguardando
a simplicidade da teoria ao mesmo tempo em que aumenta a sua extensão representativa.
Harmonia, coerência e unidade crescentes são os resultados atingidos. Pois são estes os
mesmos indícios que levam Duhem, no capítulo 2 da primeira parte da Théorie physique, a
supor que as teorias transformam-se gradualmente numa classificação natural. Muito antes
da publicação de sua principal obra metodológica o autor afirmava:
As considerações que expusemos nesta memória mostram que, graças à
termodinâmica, é possível libertar a teoria dos fenômenos capilares da hipótese da
atração molecular [...]. A aplicação da termodinâmica aos fenômenos capilares
fornece, assim, uma nova prova da fecundidade desta ciência e do poder com o qual
ela estabelece estreitas relações entre certas partes da física que parecem, em uma
primeira abordagem, ocupar-se de fenômenos essencialmente diferentes. As
correlações que elas descobrem estão baseadas em hipóteses mais ou menos
plausíveis: elas são conseqüências rigorosas do princípio de equivalência e do
princípio de Carnot.
633
Por fim, devemos chamar a atenção do leitor para um aspecto ainda não notado pelos
intérpretes da obra duhemiana: além da classificação dos seres (ontológica) existe ainda
em Duhem uma abertura para a classificação dos saberes (gnosiológica). Nesse aspecto,
Duhem amplia, embora superficialmente, suas reflexões para um campo estudado por
muitos filósofos do século XIX, entre eles Comte, Ampère e Spencer. Na quarta lição de
La science allemande a noção de classificação natural adquire um novo estatuto de
coordenação e classificação das ciências. Sigamo-lo.
Assim como existem dois tipos de espíritos, o espírito de geometria e o espírito de
finesse, existem, afirma o autor, duas formas de ordens respectivamente relacionadas a
eles: a ordem geométrica e a ordem natural:
Seguir a ordem geométrica é não avançar jamais nenhuma proposição que não se
possa demonstrar com a ajuda das proposições precedentemente estabelecidas.
632
WHEWELL, W.: (1968) 1989, p. 154-5.
633
DUHEM, P.: ATPC, pp. 253-4. Itálicos meus.
219
Seguir a ordem natural é aproximar umas das outras as verdades que concernem
a coisas análogas por natureza e separar julgamentos que se aplicam a coisas
dessemelhantes.
634
A obtenção da ordem ou classificação natural liga-se intimamente, na Science
allemande, ao espírito de finesse, à perfeição do bom senso.
635
Se na Théorie physique
Duhem não insistiu na ligação que agora ele releva, não obstante tudo nos levasse a ela, é
provavelmente porque lá o principal alvo de suas críticas era a escola inglesa, e havia
estreito vínculo entre o espírito francês e o espírito geométrico. Aqui, de imediato, somos
levados a ver que toda a mobilidade e flexibilidade são depositadas no espírito finesse, o
único capaz de atingir a ordem natural. Ao espírito geométrico resta a petrificação; até
mesmo em geometria, continua ele, o espírito geométrico acaba por render-se
necessariamente à finesse, pois, como um conjunto de teoremas pode ser arranjado de
diferentes modos e a percepção da importância de cada um deles é da alçada da finesse
636
,
o estabelecimento de uma classificação natural de seus teoremas ultrapassa as forças do
espírito de geometria. As coisas vão de mal a pior: da matemática para a física a ordem
natural tem sua importância aumentada e, inversamente, a ordem geométrica diminui a sua.
Para ilustrar isso, Duhem propõe um exemplo histórico retirado da botânica.
637
Segundo o filósofo, a classificação de Lineu, baseada apenas na contagem dos estames de
diversas plantas, beira a simplicidade geométrica. As flores tomavam seus lugares
respectivos nos agrupamentos sem maiores dificuldades, quase que mecanicamente;
aquelas que possuíssem um único estame seriam inseridas na classe das monândria; as de
dois estames entrariam na classe das diândrias, e assim sucessivamente. Pois bem, nota o
autor, ao proceder assim, “Lineu havia colocado, no reino vegetal, uma ordem inteiramente
geométrica, de modo algum natural.”
638
O motivo é que a classificação lineana acaba por
separar plantas análogas por conta do número diferente de estames que elas possuem e
aproximar plantas dessemelhantes de mesmo número de estames. À ordem artificial de
Lineu, Jussieu opõe a primeira classificação natural dos vegetais. Mas para que isso fosse
possível, Jussieu precisou pesar e comparar a importância de todos os caracteres dos
vegetais, da função à dignidade de seus órgãos, estabelecendo um balanço geral de suas
afinidades. Na nova classificação proposta a atuação da finesse foi imprescindível, pois
634
DUHEM, P.: SA/GS, p. 76/58.
635
Ver seção 1.5.
636
DUHEM, P: SA/GS, p. 85/65.
637
DUHEM, P: SA/GS, pp. 82-4/62-4.
638
DUHEM, P.: SA/GS, p. 82/62.
220
apenas ela é capaz de distinguir o valor de cada relação, estipulando a melhor ordem dentre
as possíveis, ou seja, a ordem mais natural
639
:
Não se poderia dizer mais claramente que o estabelecimento de uma classificação
natural ultrapassa as forças de espírito de geometria e que apenas o espírito de finesse
poderia atingi-la.
640
Como não bastasse, a ordem natural prolonga-se do domínio de uma ciência para as
relações que as várias ciências mantêm entre si:
“[...] o espírito de geometria era incapaz, por suas próprias forças, de estabelecer uma
ordem natural seja no domínio de uma ciência, seja entre as diversas ciências.”
641
Duhem não dá muitas pistas de uma ordem real existente entre as ciências. No
entanto, uma dica inicial é dada: “Entre as diversas ciências, há uma ordem natural; em
virtude dessa ordem, a pesquisa matemática parte da realidade para atingir a realidade.”
642
A passagem, insuficiente se se tiver como propósito encontrar uma classificação
determinada das ciências, deixa entrever algo que já estava contido desde o seu primeiro
ensaio epistemológico: a crítica ao uso da matemática como um fim em si mesmo,
destacada de toda aplicação aos problemas da física. Sem podermos encontrar em La
science allemande uma classificação pormenorizada das ciências, adentremos no domínio
da especulação. Enquanto Comte adota a generalidade decrescente e a complexidade
crescente como princípios classificadores
643
, na estrutura que compõe a obra em questão
nosso autor parece admitir como critério classificatório o grau de finesse necessário ao
exercício das ciências a serem classificadas. No caso de Duhem, teríamos uma
classificação geral disposta na seguinte ordem: as ciências do raciocínio, as ciências
experimentais e as ciências históricas.
644
639
DUHEM, P.: SA/GS, p. 77/59.
640
DUHEM, P.: SA/GS, p. 84/64.
641
DUHEM, P.: SA/GS, p. 81/62.
642
DUHEM, P.: SA/GS, p. 81/61.
643
COMTE, A.: (1830) 1983, p. 30.
644
É preciso dizer que Duhem não oferece um critério rígido de distinção entre ciência e não-ciência. Para
ele, a física, a química, a biologia e a fisiologia são ciências; mas também o são a matemática, a metafísica e
a história.
221
CONCLUSÕES
S’il se vante, je l’abaisse; s’il
s’abaisse, je le vante.
i
“Contradigo-o sempre para mostrar que ele é um monstro incompreensível”. Esta é a
seqüência da citação pascaliana obliterada por Duhem na Théorie physique. Bem
poderíamos perguntar pela razão do corte brusco num fragmento tão pequeno. Intenta ele
ocultar algo? Se sim, o quê? Talvez alguma atitude contraditória constante que ele não
quisesse revelar; talvez a incompreensibilidade do próprio homem. Mas Duhem não fala de
qualquer homem, e, sim, do físico; mais precisamente, ele fala do e para o físico que
reflete sobre sua atividade – é ao físico teórico a quem ele se dirige. É dele que algo é
escondido. Mas o quê, exatamente?
Para responder a essa problemática, nosso primeiro passo será atacarmos pelas
bordas, sem imergirmos diretamente no fundo da questão. Perguntemos aos intérpretes
duhemianos qual é a questão que mais os confunde, qual é a questão inelutável. Não é
preciso esperar muito para nos lembrarmos dos numerosos ensaios lidos, todos em algum
momento avizinhando-se daquela dúvida que não se cala: realista “e/ou” instrumentalista?
Duhem parece ser um bom formulador de enigmas, saindo-se bem das presas das leituras
superficiais e apressadas – mas nosso primeiro passo foi dado. O segundo consiste em
saber se essa confusão, ao invés de ter como causa unicamente a razão mal (in)formada (!)
dos leitores – dos simples leitores e dos leitores especializados – não pode ser encontrada
no próprio autor. A polêmica entre os comentadores não se estribaria numa intenção
i
PASCAL, B., citado em DUHEM, P.: TP, p. 411.
222
deliberada de Duhem? Não encontraria sua raiz numa atitude controversa dele próprio? Se
a resposta a essa questão for afirmativa, então parte das querelas entre os comentadores
encontra-se explicada (o que não os exime da culpa de terem escrito suas páginas).
Minha afirmativa é que a razão principal da discordância dos leitores (agora refiro-
me apenas aos especialistas) encontra-se na atitude do próprio Duhem. Afirmo que as
discussões brotam de uma dualidade própria do pensamento duhemiano, de uma estratégia
deliberada que tem como finalidade pôr em relevo o paradoxal da atividade científica, a
complexidade dos sentimentos que acometem o físico teórico em seu trabalho. Já
distinguimos, seguindo ele, de um lado, a análise lógica da ciência, que demonstra
cabalmente o caráter convencional da teoria física e restringe seus objetivos à utilidade
prática e, de outro, um sentimento invencível – “irracionalmente racional” – de que a
verdade é o único fim digno das atividades e dos esforços do teórico. Esse recurso ambíguo
é, a valer, fecundo quando avaliados os seus resultados. O mais importante deles, já
explorado anteriormente
645
, é a possibilidade de evitar tanto o dogmatismo quanto o
ceticismo científicos. A lógica é a mãe prudente quando o filho se exalta, o pai, mais
impulsivo, incita-o a ousadia conforme os seus instintos. A curta citação que nos serviu de
epígrafe a esta Conclusão é de Pascal, mas representa profundamente bem a atitude nos
escritos duhemianos. É exatamente esta, em muitos momentos, a atitude duhemiana – a de
constante contradição. Não é à toa que vemos Agassi dar como certo que Duhem assume
uma “atitude cética”
646
ao passo que Darling opta por atribuir-lhe uma “atitude realista
647
,
encerradas, afirmo eu, numa atitude ambivalente mais geral.
Ambivalência que tem como posições antagônicas o “podemos” e o “não podemos”,
o “devemos” e o “não devemos”, as quais se alternam sem trégua como a melhor
conclusão... até o momento seguinte. Quase que uma “reviravolta do pró ao contra”, para
fazer surgir à mente um procedimento tipicamente pascaliano. E Duhem tenta, em raras
passagens, oferecer uma explicação para a indecisão monstruosa que acomete o físico; se
ela existe, e é o que mostra Rey em sua dissertação
648
, ao estudar as concepções científicas
de diversos cientistas (sobretudo a de Duhem), então ela tem de ser explicada:
645
REY, A.: (1907) 1930, pp. 107-45; JAKI, S.: (1984) 1987, pp. 319-73; CHIAPPIN, J. R.: 1989;
McMULLIN, E.: 1990.
646
AGASSI, J.: 1957, p. 247.
647
DARLING, K.: 2002, p. 17.
648
REY, A.: (1907) 1930, pp. 108.
223
esta oposição é um fato fundamental, essencialmente ligado à própria natureza da
teoria física, fato que precisamos lealmente constatar e, se possível, explicar.
649
Intencionamos, a partir de agora, elucidar a natureza dessa alternância, mostrando a
riqueza nela contida e a dualidade inerente ao pensamento duhemiano.
Certa vez Poincaré referiu-se a Le Roy nestes termos: “Nominalista de doutrina, mas
realista de coração.”
650
São insinuantes essas palavras se tivermos em mente nosso autor!
Nominalista pela razão, realista de coração... Não pretendemos, entretanto, afirmar que
Duhem recusa-se, com aquela atitude, a favorecer algum partido. Entre o método
“adventício e como que imposto de fora” pela crítica lógica e a espontaneidade do coração,
a posição duhemiana não deixa dúvidas – existe uma síntese possível e não neutra. Agora é
Duhem que fala das análises parciais e frias de A. Rey (mas poderia falar de Poincaré
também):
[...] isso não é senão a superfície de sua doutrina, muito clara e muito aparente, num
primeiro exame, mas sem ligação, parece-me, com o fundo mesmo de sua razão.
Trata-se de um pensamento adventício e como que imposto de fora. Sob este
pensamento há um outro, que brota espontaneamente das partes mais íntimas do
entendimento; e este pensamento subjacente suporta impacientemente o peso daquela
parte que o recobre. Ele protesta contra as afirmações que a crítica pretende impor-
lhe, e o tom formal e preciso dessas afirmações não consegue emudecer os
desmentidos que a natureza opõe-lhes.
651
Essa passagem nos conduz à conclusão de Salvar os fenômenos. Logo no início de
seu ensaio histórico sobre a noção de teoria, nosso autor propõe a seguinte questão: “Qual
é o valor da teoria física? Que relações ela possui com a explicação metafísica?”
652
O ano
de publicação e o tema são os mesmos de seu ensaio “La valeur de la théorie physique.”
Juntamente com “Physique de croyant”, eles formam a tríade das obras mais controversas
de Duhem. Várias e variadas são as interpretações de Salvar os fenômenos; a mais
freqüente vê nele uma defesa do instrumentalismo científico calcada na análise histórica
653
;
outras, apoiadas na anterior, e mantendo a atenção focada na posição de Duhem acerca da
condenação teológica de Galileu, acrescentam que a obra em questão possui uma
649
DUHEM, P.: TP, p. 507. Itálicos meus.
650
POINCARÉ, H.: (1905) 1995, p. 138.
651
DUHEM, P.: TP, p. 502. Itálicos meus.
652
DUHEM, P.: SF, p. 5.
653
BRENNER, A.: 1990, pp. 173-4; FICHANT, M.: (1969) 1977, pp. 90-1; MARICONDA, P.: 1994.
224
finalidade apologética cristã, que consistiria na reafirmação das razões da condenação
654
;
há ainda aquelas, das quais nos aproximamos, que visam uma interpretação de cunho
internalista, mais coerente com a produção textual duhemiana, relativizando a força da
“condenação implícita” de Galileu
655
e exaltando o unificacionismo
656
, prerrogativa do
realismo científico, encontrado ao final da obra.
657
É inconteste a afirmação duhemiana de que a lógica está do lado de Osiander,
Bellarmino e de Urbano VIII: o realismo galilaico não era apenas impenitente
658
, era
também ilógico.
659
Mas dizer que os padres da Igreja estavam do lado da lógica não
significa dizer: “é lógico que Galileu tinha de ser condenado”! Afirmar a ilogicidade do
realismo galilaico significa o mesmo que dizer, como Duhem tentou fazê-lo páginas atrás,
que o astrônomo enganou-se ao abonar, não sem exagero, o poder demonstrativo do
método experimental. Para o “realismo intransigente”
660
dos peripatéticos do Santo Ofício,
isso era o suficiente para alavancar o processo de condenação. A questão que nos interessa
aqui, e com a qual Duhem fecha seu pequeno livro, é: por que, mesmo sendo informado
das conseqüências de suas atitudes, Galileu não se sujeitou de imediato à autoridade
eclesiástica? Qual a “razão” da insistência?
Essa é uma estranha conduta que exige explicação! Talvez não seja possível explicá-la
senão pelo poder de atração de alguma grande verdade; verdade muito vagamente
percebida pelos copernicanos para que lhes fosse possível formulá-la em sua pureza,
libertá-la de afirmações errôneas sob as quais ela se dissimulava; mas verdade sentida
muito vivamente a ponto de que nem os preceitos da Lógica, nem os conselhos do
interesse pudessem atenuar a atração irresistível.
661
“Dois excessos: excluir a razão, só admitir a razão.”
662
Como resistir a esse
pensamento de Pascal diante das duas últimas citações em destaque? O pragmatista tenta a
todo instante sufocar a natureza com o peso da lógica, mas eis que a natureza irrompe em
demasiada profusão que acaba por converter-se no exato oposto: o desrespeito
654
FICHANT, M.: (1969) 1977, p. 84; MAIOCCHI, R.: 1985, pp. 268-74.
655
MARTIN, R.: 1987; 1991, pp. 163-80.
656
FINOCCHIARO, M.: 1992.
657
Há também as leituras críticas de Salvar os fenômenos, que vêem tanto nas citações históricas incluídas na
obra como nas considerações que Duhem faz delas uma descontextualização e interpretação tendenciosas.
Entre estas podemos citar: FINOCCHIARO, M.: 1992; MARICONDA, P.: 1994.
658
DUHEM, P.: SF, p. 102.
659
DUHEM, P.: SF, p. 103.
660
DUHEM, P.: SF, p. 102.
661
DUHEM, P.: SF, p. 103.
662
PASCAL, B.: 1979, frag. 253, p. 104.
225
“copernicanista” da razão. Galileu não se sujeitou à autoridade porque sentia vivamente
uma verdade que se ocultava por detrás da sedução imediatista da prova experimental. Seu
erro consistiu em dar dois passos de uma vez, o do pragmatista consiste em não dar
nenhum. O passo intermediário, entre não buscar explicar coisa alguma e buscar a
explicação certa e definitiva, seria continuar sempre em busca da explicação hipotética,
disfarçada ao final de Salvar os fenômenos:
Apesar de Kepler e Galileu, acreditamos hoje, com Osiander e Bellarmino, que as
hipóteses da Física não passam de artifícios matemáticos destinados a salvar os
fenômenos; mas, graças a Kepler e Galileu, nós lhes exigimos que salvem ao mesmo
tempo todos os fenômenos do Universo inanimado.
663
663
DUHEM, P.: SF, p. 105. Itálicos meus. A passagem acima é uma das mais citadas e comentadas na
literatura duhemiana. Uma interpretação crítica, porém falha, é dada por Pécheux e Fichant. Os autores
afirmam que a exigência duhemiana de salvar ao mesmo tempo todos os fenômenos do universo inanimado
através de um mesmo conjunto de hipóteses é auto-contraditória. O motivo? Uma vez aceita a versão
continuísta do desenvolvimento da história da física, para que todos os fenômenos sejam salvos ao mesmo
tempo, seria preciso exigir que uma mesma mecânica governasse os fenômenos planetares e sublunares, ou
seja, seria preciso uma mecânica que arruinasse o universo aristotélico-medieval hierarquizado. Assim,
“‘salvar ao mesmo tempo todos os fenômenos’, era, para a ciência clássica, rejeitar a hierarquia ontológica
dos níveis do Universo e, simultaneamente, a hierarquia das formas de conhecimento aí implicada. Embora
esta transformação tivesse durado mais de um século, de Copérnico a Newton, ela definiu uma revolução que
nenhum continuísmo pode dar conta” (FICHANT, M.: [1969] 1977, p. 97). Em princípio, a interpretação dos
autores só se sustenta se a passagem “graças a Kepler e Galileu...” puder ser entendida, com o consentimento
duhemiano, como “Kepler e Galileu exigiram”, tal como feito por Duhem. Assim, se Kepler e Galileu
exigiram uma refundação da mecânica celeste, mesmo que a elaboração dessa mecânica demorasse mais de
um século, ela não poderia deixar de ser caracterizada como revolucionária. Sendo Duhem um continuísta,
seguem eles, e, conhecendo a história da astronomia pré-copernicana, ele incorreria em contradição ao tentar
conciliar uma exigência que seria revolucionária à época com um estilo continuísta do desenvolvimento
histórico que ele mesmo defende. Ora, Duhem reconhece um nascimento revolucionário para a ciência
moderna, não por acaso, justamente relacionado com a derrocada da distinção hierárquica aristotélica, só que
quando Duhem descreve o nascimento da ciência moderna, ele o faz ou a partir de 1277, ano em que o bispo
Étienne Tempier condenou as teses aristotélicas consideradas pagãs pela cristandade, ou a partir de 1350,
com a formulação da teoria do impetus por Buridan (veja-se a esse respeito: BRENNER, A.: 1990, pp. 169-
201). É esclarecedora essa passagem extraída do SM: “Mas para Aristóteles, para os peripatéticos, para os
neo-platônicos, não havia mecânica celeste; as inteligências separadas da matéria e as almas incorporadas aos
céus davam a cada orbe o movimento de rotação uniforme que convinha à natureza dessa trindade constituída
pela inteligência, alma e orbe; essa natureza divina não era acessível às medidas humanas; o homem devia
limitar-se a observar o movimento de rotação que lhe era apropriado; seria loucura de sua parte pretender
submeter esse movimento às regras que o estudo dos movimentos daqui de baixo tinha lhe feito descobrir; as
leis das quais dependem as coisas perecíveis contidas no orbe da lua não poderiam ser, sem impiedade,
impostas às coisas celestes que são eternas e divinas. Ora Jean Buridan tem a incrível audácia de dizer: Os
movimentos dos céus são submetidos às mesmas leis que os movimentos das coisas aqui de baixo; a causa
que conserva as revoluções dos orbes celestes é também aquela que mantém a rotação da mola do ferreiro; há
uma mecânica única pela qual são regidas todas as coisas criadas, a orbe do sol como o pião que um jovem
faz girar. Jamais, possivelmente, no domínio da ciência física, houve revolução tão profunda, tão fecunda
quando esta. Um dia, na última página do livro dos Princípios, Newton escreverá: ‘Pela força da gravidade,
eu prestei contas dos fenômenos que os céus apresentam e daqueles que nosso mar apresenta’. E esse dia
anunciará o pleno desabrochamento de uma flor que Jean Buridan tinha semeado. O dia em que essa semente
226
A exigência de salvar ao mesmo tempo todos os fenômenos (subentende-se que seja
através de uma única teoria) representa a penetração, num ensaio que até então poderia
bem ser classificado como instrumentalista, de um daqueles princípios aos quais o físico
não pode fugir durante sua pesquisa. Assim como aconteceu ao final da primeira parte da
Théorie physique, quando o sentimento termina por sustentar a razão e motivar a busca da
unidade lógica e da classificação natural, depois de longas análises lógico-históricas acerca
do valor da teoria física, Salvar os fenômenos termina com uma defesa da unidade lógica
da teoria física. O espírito crítico, que perdura durante toda a obra cede espaço a poucas e
densas páginas de pendor realista. A conclusão da obra, especialmente em seu último
parágrafo, pode e deve ser entendida como uma vitória da natureza sobre a análise lógica.
No entanto, há ao menos uma diferença entre Salvar os fenômenos e La théorie
physique: Duhem não menciona a classificação natural como objeto da teoria, restringindo-
se apenas à unidade lógica. De acordo com o que vimos na segunda Parte, uma teoria física
que salvasse ao mesmo tempo todos os fenômenos do universo inanimado poderia ser
considerada uma explicação – hipotética – do mesmo. Para que ela pudesse ser tomada
como explicação certa, ela teria, além disso, de ser a única teoria possível, sem
concorrentes imagináveis. Ora, não há um texto em que nosso autor insista mais no fato de
que sempre é logicamente possível conceber uma teoria alternativa que represente
igualmente o mesmo conjunto fenomênico que Salvar os fenômenos. É de se esperar,
portanto, que a noção de classificação natural não apareça exposta como o objeto da teoria
física ao final desta obra. O que não podemos perder de vista, contudo, é que o objeto da
teoria física, segundo este ensaio, continua sendo uma forma de explicação. Em linhas
pouco lidas, mas de grande inteligência, Lalande vai mais longe e afirma que Duhem
revela-se, no parágrafo que fecha a obra em questão, um partidário da causa vera.
664
De
nossa parte, cremos que sua interpretação segue o rumo certo, apesar de parecer-nos, pelo
menos quando ancorada na passagem final do texto duhemiano, algo exagerada. É que
Lalande, páginas antes, argumenta que a causa vera requer dois êxitos: a suficiência na
foi plantada é, pode-se dizer, aquele em que nasceu a ciência moderna” (DUHEM, P.: SM, VIII, p. 340).
Itálicos meus. É verdade que a exigência de Buridan foi audaciosa, e que ela lançou a semente da revolução
que se completaria com Newton, mas cremos, como já dissemos na primeira Parte de nossa Dissertação, que
o continuísmo duhemiano comporta revoluções e que, uma saída para o entendimento adequado do que ele
viria a ser, tem de partir do requisito mínimo de que toda revolução é longamente preparada, de que não
existem criações súbitas sem um intervalo de tempo no qual muitas mentes contribuíram para o advento dela;
numa palavra: o gênio isolado corre perigo, e seus precursores, correm ao seu encalço.
664
LALANDE, A.: (1921-2) 1944, pp. 125-6.
227
explicação e a necessidade desta – e aqui, a necessidade da teoria ideal (e verdadeira) não
aparece explicitamente: das duas intuições ele nos põe a ler apenas a primeira.
Nial Martin
665
já chamou a atenção dos leitores para o fato de que a exigência de
salvar todos os fenômenos presente ao fim de Salvar os fenômenos advém de razões
externas à lógica: “a pura lógica não é jamais a única regra de nossos julgamentos.”
666
O
princípio de unidade lógica é uma daquelas razões que a razão desconhece e sua origem,
como é dito noutro lugar, deriva da metafísica:
Nenhum método científico carrega em si mesmo sua plena e inteira justificação. Ele
não poderia, apenas por seus princípios, dar conta de todos esses princípios. Não se
deve, pois, surpreender-se com que a física teórica repouse sobre postulados que não
podem ser autorizados senão por razões estranhas à física.
Deste tipo é o seguinte postulado:
A teoria física deve esforçar-se para representar todo o conjunto das leis
naturais através de um sistema único, do qual todas as partes sejam logicamente
compatíveis entre si.
667
Eis que a norma metodológica fundamental do senso comum, o princípio de unidade
lógica, requisito indispensável para a consecução da classificação natural, reaparece sob
novas vestes. É esse sentimento compartilhado, aliás, por todos os físicos, mesmo por
“aqueles que afirmam o direito da teoria à incoerência lógica”
668
, que agia
inconscientemente em Galileu, quando este exigia que o movimento dos astros, do fluxo e
refluxo do mar e dos projéteis fossem salvos através de um único conjunto de hipóteses.
Enquanto buscava a explicação definitiva do movimento dos corpos, algo da empreitada
galilaica permanecia como terreno ganho; das idas e vindas de suas tentativas, cada vez
mais a unidade da teoria que ele construía aos poucos ia se acrescendo.
Da primeira crítica minuciosa recebida por Duhem de Vicaire até a Théorie
physique (especialmente em sua segunda edição), vemos despontar nas publicações
duhemianas um apelo realista sobre o valor das teorias. Picard
669
já havia notado uma
evolução nas idéias de Duhem sobre a natureza da teoria física e Paul, a par disso, levanta
a hipótese de que essa evolução pode ter sido influenciada pelas críticas neo-tomistas
665
MARTIN, R.: 1987, p. 309.
666
DUHEM, P.: TP, p. 330.
667
DUHEM, P.: TP, p. 445.
668
DUHEM, P.: TP, p. 447.
669
PICARD, É.: 1921, cxix.
228
recebidas por Duhem.
670
Já mencionamos algumas das críticas mais importantes advindas
de religiosos católicos e a reação duhemiana a elas, mas não podemos concordar com Paul
sem ressalvas na medida em que a mudança de perspectiva, ou melhor, a ênfase no aspecto
realista das teorias fora provocada apenas pela reação aos neo-tomistas. Se o
“instrumentalismo” duhemiano foi criticado por estes no início de suas publicações, ele
não deixou de ser mencionado também por Rey (um positivista de envergadura maior que
qualquer um dos críticos neo-tomistas) em 1904: ao final de seu artigo sobre a filosofia
científica duhemiana, podemos destacar as seguintes palavras do comentador: “[...] por
suas repugnâncias, mais afirmadas que reais, em relação a um ceticismo integral [...].”
671
Esta pequena passagem indica dois pontos da interpretação de Rey: o reconhecimento de
que Duhem opunha-se superficialmente ao ceticismo científico; e a afirmação, mais
ousada, de que até alí Duhem estava bastante próximo do ceticismo. Explica-se, assim, o
teor realista dos ensaios duhemianos em resposta a Rey: trata-se não apenas de afirmar o
realismo, mas de embasá-lo por meio de idéias, de argumentar filosoficamente a seu favor.
O papel da metafísica nos ensaios de maturidade será fundamental: após ter
garantido o direito de existência à metafísica em geral, num segundo momento Duhem
afasta-se mais uma vez do positivismo e tira dela o alimento e a razão de ser das teorias
físicas:
Numa palavra, o físico é forçado a reconhecer que não seria razoável trabalhar para
o progresso da física, se essa teoria não fosse o reflexo, cada vez mais nítido e mais
preciso, de uma metafísica. A crença numa ordem transcendente à física é a única
razão de ser da teoria física.
672
É esse realismo, caracterizado de “motivacional” por Darling
673
, e de “convergente”
por Chiappin e outros, que torna compreensível o progresso científico. Como a afirmação
670
PAUL, H.: 1979, p. 172. As principais críticas foram as seguintes: VICAIRE, E.: (1893). De la valeur
objective des hypothèses physiques. Revue des Questions Scientifiques, 33, 451-510; LACÔME, P. B.:
(1893). Théories physiques à propos d’une discussion entre savants. Revue Thomiste, 1, 676-92;
LECHALAS, G.: (1893). Quelques réflexions sur les hypothèses scientifiques. Annales de Philosophie
Chrétienne, 126, 278-27; DOMET de VORGES, C.: (1893-4). Les hypothèses physiques sont-elles des
explications métaphysiques? Annales de Philosophie Chrétienne, 127, 137-51; LECHALAS, G.: (1893-4).
M. Duhem est’il positiviste? Annales de Philosophie Chrétienne, 127, 312-313; LACÔME, P. B.: (1894).
Théories physiques à propos d’une discussion entre savants. Revue Thomiste, 2, 92-105.
671
REY, A.: 1904, p. 744.
672
DUHEM, P.: TP, p. 509.
673
O termo “realismo motivacional” usado por Darling foi cunhado por Fine para classificar o pensamento de
Einstein. Conforme Fine, três seriam as características deste tipo de realismo: (1) a atitude realista
propriamente dita; (2) a motivação e o sentido que ela confere à prática científica; (3) a ausência de uma
229
de uma ordem transcendente (e da subseqüente aproximação reflexiva das teorias dessa
ordem) não é justificada pelo método experimental, o realismo duhemiano também poderia
ser classificado de “metafísico.” Entretanto, seguindo Chiappin em suas análises, vemo-lo
afirmar:
Naturalmente, isso requer uma análise do conceito de metafísica em Duhem, visto
que, à primeira vista, ele [o realismo metafísico] parece contradizer sua exigência de
autonomia da física frente a metafísica.
674
Chiappin viu muito bem que a metafísica guarda um papel axial na rejeição
duhemiana do ceticismo, entrementes, creio não haver qualquer contradição no
pensamento de Duhem no que diz respeito à relação entre metafísica e a física, uma vez
que nosso autor não se refere a uma metafísica determinada quando fala do papel positivo
da metafísica. Apenas no caso de a metafísica fornecer teses determinadas sobre a
constituição do mundo material, tal qual o fazem as escolas cartesiana, atomista,
newtoniana ou mesmo a aristotélica, em suas tentativas de explicar a máquina do mundo,
haveria subordinação. Assim, a física assenta-se sobre uma metafísica – mas não sobre
uma metafísica específica. A metafísica que sustenta a física é a metafísica da natureza,
muito próxima daquela metafísica informe, que fornece as noções gerais e os primeiros
princípios da razão humana, devidamente aceitos sem análise imediata; é aquela metafísica
que impulsiona à ordem e à verdade, que é antes um dom que uma conquista. Em poucas
palavras, a metafísica que sustenta a física é a metafísica do senso comum, entendida como
um conjunto instintivo de tendências que leva o físico a procurar, até mesmo onde a lógica
e a reflexão mostram que ele não deve, uma explicação dos fenômenos materiais; a fazê-lo
suspeitar que existe uma realidade não apreendida pelos sentidos, motivo último de suas
pesquisas. Não há, portanto, uma subordinação da física à metafísica no sentido encontrado
em “Física e metafísica” ou na primeira edição da Théorie physique, mas há, isso sim, uma
subordinação geral e salutar, no sentido encontrado em “Physique de croyant” e “La valeur
de la théorie physique”, de que a razão de ser da teoria física encontra sua justificativa na
metafísica, naquela idéia (metafísica) da verdade.
doutrina global ou de crenças específicas sobre a realidade (DARLING, K.: 2002, seção 3.5). É preciso ainda
fazer um acréscimo à caracterização do realismo duhemiano feito por Darling. É bem verdade que o realismo
esposado por Duhem pode ser caracterizado de motivacional, mas, como vimos já de relance em nossa
Introdução, seu realismo também possui uma vertente histórica externa, de maneira que ele também poderia
ser classificado como motivado.
674
CHIAPPIN, J. R.: 1989, p. 210.
230
Vimos que o final da primeira Parte da Théorie physique termina com a afirmação de
que a natureza sustenta a razão impotente. Com a inclusão dos ensaios à segunda edição
daquela obra, vemos que existe uma subordinação legítima da física à metafísica. Qual a
afirmação metafísica legítima sobre a qual a ciência ergue-se? Nada menos que o princípio
de unidade lógica – o mesmo princípio atribuído anteriormente ao senso comum. De que
metafísica estamos falando, então? A conclusão é forçosa: da metafísica natural do
espírito humano
675
, daquela tendência irresistível mencionada já no primeiro ensaio
675
É de se notar que essa “tendência natural ao espírito humano” (DUHEM, P.: SM, II, p. 17), aproxima-se
muito do que Bergson chamou de “metafísica natural da inteligência humana” (BERGSON, H., citado em
GARRIGOU-LAGRANGE, R.: 1909, pp. 7-8) quando de sua caracterização da philosophia perennis
esboçada por Platão e Aristóteles e levada à sua perfeição, acrescenta o padre, pelos doutores da Igreja. O
neotomista Garrigou-Lagrange, jovem amigo de Duhem em Bordeaux (JAKI, S.: 1991b, p. 117), publicou
em 1909 uma obra intitulada Le sens commun, la philosophie de l’être et les formules dogmatiques, na qual
sua principal intenção era fazer frente ao modernismo religioso crescente no ambiente europeu. Para Le Roy,
principal exponente da teologia modernista, as noções de substância, causa, relação, sujeito, não seriam senão
“reificações e símbolos” espontâneos da inteligência que visa apenas a ação. A substância não passaria de
uma entidade verbal com a qual a inteligência imobilizaria o fluxo universal dos fenômenos e suas
qualidades, ou, ainda, de um “resíduo empobrecido da experiência”, para usar a expressão de Garrigou-
Lagrange (GARRIGOU-LAGRANGE, R.: 1909, p. 139). A fórmula clássica, que explica a mobilidade pela
imobilidade é, em consequência, invertida; esta passaria, doravante, a ser encarada como realidade segunda,
derivada da mobilidade, realidade verdadeiramente fundamental. Deus, a realidade fundamental, passa a ser
definido como o puro devir, identificando-se à perpetuidade de sua evolução: “Deus é uma realidade que se
faz através daquela que se desfaz.” Neste contexto, a fórmula bergsoniana encontra sua plena justificação.
Um católico tradicionalista não poderia aceitar essa posição redutora do conceito de substância. Como
simples intrumento prático, o conceito seria incapaz de transmitir o real ao espírito, e o conhecimento estaria
arruinado, sem objeto estável através do qual pudesse pautar-se. Garrigou-Lagrange então inspira-se na
filosofia clássica de Aristóteles e de santo Tomás para resturar a “verdadeira teoria clássica do senso
comum”, afirmando que as fórmulas dogmáticas distinguem-se do senso comum tão somente porque são um
aperfeiçoamento seu, um prolongamento natural. À luz do ensino da Igreja, ele intenta defender o valor
objetivo e transcendente dos primeiros princípios que permitiriam restaurar as bases racionais da fé
(lembremos que a teologia modernista inspirava-se na separação absoluta entre os dogmas transmitidos pela
Revelação e as verdades passíveis de demonstração racional) e o valor objetivo e imutável dos dogmas.
Partindo da crítica aristotélica a Heráclito, passando por Hegel e Bergson, responsáveis por colocar a
contradição no seio da realidade, Garrigou-Lagrange afirma que o senso comum não se reconhece numa
filosofia do devir, nem em uma filosofia do fenômeno porque ela é a “filosofia rudimentar do ser
(GARRIGOU-LAGRANGE, R.: 1909, p. 49); não uma filosofia, mas a filosofia (GARRIGOU-
LAGRANGE, R.: 1909, p. 52), pois com ela a possibilidade do absurdo é rejeitada. Ao contrário do bom
senso, qualidade variável desenvolvida mais em uns que em outros, o senso comum seria uma qualidade
comum e invariável a todos os homens, a qual, entretanto, não se apresentaria como doutrina propriamente
dita, mas como dotada das soluções para os grandes problemas filosóficos. A adesão aos primeiros princípios
seria natural: “Igualmente verdadeiros para todos e conhecidos por todos, esses princípios são imutáveis em
si e em nós” (GARRIGOU-LAGRANGE, R.: 1909, p. 82). Sem se reduzir ao consentimento universal
(GARRIGOU-LAGRANGE, R.: 1909, p. 98), os primeiros princípios estão como que inscritos na razão
humana. Assim, o senso comum não os demonstra, mas, por seu instinto do ser, sente-os como uma intuição
vaga. Mais: esse sentimento não é cego ou puramente instintivo; o senso comum é marcado por um elemento
de imutabilidade e universalidade, sendo infalível quanto aos seus primeiros princípios (GARRIGOU-
LAGRANGE, R.: 1909, p. 105). A inteligência espontânea não pode enganar-se sobre eles (sejam de ordem
especulativa ou prática) pois as verdades que ela percebe estão imediatamente implicadas no ser
231
epistemológico de Duhem, que será taxada de “estranha aberração do espírito humano” por
Th. H. Martin
676
e da qual Duhem fará derivar o pitagorismo de seu tempo contido na
busca incessante da ordem e harmonia:
Assim, vemos o espírito pitagórico persistir em pleno vigor até nossos dias. Diante da
visão de um quadro de números que a observação e a medida de certos objetos
forneceram, o homem não pode consentir facilmente que a razão de ser desses
números lhe escape, que eles sejam para ele como que simples obra do acaso. Sempre
se encontrará pesquisadores dispostos a tentar, por combinações aritméticas, introduzir
nesse quadro uma ordem que eles percebem e uma harmonia que os satisfaça.
677
A ciência, pois, é sustentada pelo senso comum, pela natureza ou por uma metafísica
geral. O fecho está dado: tudo se passa como se a segunda edição da Théorie physique
viesse a atestar, após o percurso orientado inicialmente pela análise lógica; no fim das
contas, a ciência é sustentada por razões metafísicas. É como se Duhem estivesse disposto
a capitular, a reconhecer o que já estava subentendido há muito. Explico: o realismo
duhemiano encontrado na primeira edição da Théorie physique tem, ao final da primeira
parte, um ancoradouro no senso comum, e, ao final da segunda parte, na história da
ciência. Mas em nenhum momento ele é vinculado tão explicitamente à metafísica como
nos dois ensaios incluídos na segunda edição. Esta, com seus acréscimos, vem a
fundamentar a análise lógica da primeira, fornecendo uma nova base metafísica aos dois
princípios metodológicos do senso comum.
O recurso à história da ciência pode servir de justificação da metodologia duhemiana,
mas ela não comporia toda a justificação. É como se a justificação histórica não bastasse,
(GARRIGOU-LAGRANGE, R.: 1909, pp. 64-5). Dentre tais princípios encontram-se: os princípios de
identidade e de não-contradição, o prinpio de substância, de razão de ser, de causalidade, finalidade, e o
princípio primitivo da moral: “é preciso fazer o bem e evitar o mal” (GARRIGOU-LAGRANGE, R.: 1909, p.
71), e, com “pouco raciocínio”, a existência de Deus e as existências do livre arbítrio, da espiritualidade e
imortalidade da alma (as provas da imortalidade da alma, por exemplo, seriam um prolongamento da intuição
do senso comum [GARRIGOU-LAGRANGE, R.: 1909, p. 89]). Daí Garrigou-Lagrange rejeitar a moral
kantiana, a qual, mesmo reconhecendo a necessidade e universalidade dos primeiros princípios da razão,
vincula-os a uma necessidade subjetiva, que faz deles a lei do pensamento, não as leis do real. Ademais, o
senso comum admite a matéria e o espírito; admite que a alma e os corpos são substâncias; admite a
subordinação da vontade à inteligência; a liberdade; revolta-se contra o utilitarismo que nega o dever; admite
a existência de Deus; a distinção entre a matéria bruta e a matéria viva; nega o niilismo doutrinal e moral;
deseja a unidade porque sabe que o ser tem por propriedade transcendental a unidade (Garrigou-Lagrange
fala em “necessidade de unidade inata à inteligência humana”, lembrando Duhem [GARRIGOU-
LAGRANGE, R.: 1909, p. 65]).
676
MARTIN, Th., citado em DUHEM, P.: SM, II, p. 15.
677
DUHEM, P.: SM, II, p. 17. Kepler, Bode, Le Verrier, Mendeleiev; todos eles demonstrariam, em sua
atividade científica, tendências pitagóricas.
232
afinal, se a história da física provê o físico de argumentos razoáveis (não demonstrativos) a
favor da crença no valor de conhecimento progressivo da teoria, o inverso também é
válido; a mesma história pode funcionar como argumento contrário ao realismo,
evidenciando os insucessos do passado. Creio que a verdadeira justificação do realismo
metodológico duhemiano não advém da história da ciência, mas do senso comum. Contra o
senso comum não há argumentos possíveis, seria absurdo exigir provas de um sentimento.
Na “ordem das razões” internas do pensamento duhemiano, é o senso comum que justifica
o seu realismo, sem carecer ele de justificação. A história aparece como ilustração ou,
mesmo, como um tipo de justificação externa de sua metodologia, como um emaranhado
de observações que tem por objeto esmagar os adversários com o peso dos fatos. A história
não justifica a metodologia duhemiana, mas coloca-a nos trilhos, conduzindo-a como um
guia seguro. Ela fornece o fio, o meio de obter a teoria unitária que muitos, apesar de a
desejarem, não dispõem do conhecimento correto de como atingi-la.
Dizer que Duhem não é o instrumentalista que muitos fizeram dele não tem muito de
originalidade. Nossa intenção, porém, vai mais longe. Esta será apenas uma parte de nossa
argumentação. Aqueles que defenderam a interpretação realista da obra duhemiana
fizeram-no, em sua maioria, amparados nas teses históricas do autor acerca do
desenvolvimento contínuo das teorias físicas. Não nos opomos a tal recurso. Ao contrário,
endossamo-lo e até mesmo fizemos uso dele em nossa argumentação. Defendemos uma
tese em princípio mais ousada, a saber, de que o objeto último da teoria física preconizado
por nosso autor é a explicação dos fenômenos físicos, expressos nas leis experimentais.
Mostramos como essa defesa torna-se aceitável recorrendo às relações estabelecidas por
Duhem entre a física e a metafísica, analisando o conceito de explicação e sua relação com
a noção de representação.
A afirmação de que a metodologia sustentada por Duhem é positivista vem de longe.
Ao procurar distinguir a posição de Comte da de Duhem, Lowinger traça a seguinte
distinção: o positivismo comteano seria anti-metafísico, ao passo que o positivismo
duhemiano seria metodológico.
678
A justificação dessa diferenciação é simples: Duhem
adotaria uma atitude evasiva diante da possibilidade mesma de confronto direto entre a
ciência e a metafísica, daí manter a física dentro de seus estreitos limites: “A autonomia da
física não significa sua hegemonia.”
679
Talvez Lowinger tivesse feito melhor se insistisse,
678
LOWINGER, A.: 1941, pp. 18-9.
679
LOWINGER, A.: 1941, p. 20.
233
com Paty
680
, que a unidade exigida pelo positivismo é global: ela é, ao mesmo tempo, a
unidade da ciência e de seus métodos, enquanto que para nosso autor trata-se apenas de
uma unidade lógica interior à física, sem prejuízo do pluralismo metodológico.
Nós, ao contrário, argumentamos que a própria metodologia esposada por Duhem é
realista. A busca da classificação natural e da coerência lógica são regras metodológicas:
nenhuma das duas intuições em questão que motivam a prática científica são regras
metodológicas convencionais no sentido popperiano
681
; elas são “razões do coração” que
sustentam a metodologia duhemiana de seu interior. O ponto crítico do ceticismo é o ponto
sublevado pela tendenciosa natureza que guia ocultamente os procedimentos da razão.
Desse ponto de vista, não estamos completamente de acordo com Souza Filho, quando ele
afirma que a metodologia duhemiana é convencionalista, reservando para a axiologia o
papel realista. É bem verdade que o comentador parace, em alguns momentos, defender
uma interpretação realista da metodoloia duhemiana, mas, mesmo assim, isso não é o que
sempre acontece. Falando sobre “A escola inglesa e as teorias físicas”, diz ele:
Nesse ensaio, e especificamente no item 6, ele [Duhem] discute a natureza das teorias
físicas apresentando um ponto de vista que se afasta do convencionalismo que lhe é
normalmente atribuído. Esse afastamento, contudo, não se configura em uma negação
do convencionalismo, do ponto de vista metodológico, que vai ser reafirmado
incisivamente não só neste ensaio, como também na Théorie physique.
682
Se Souza Filho estiver afirmando apenas que existem algumas teses duhemianas
sobre a natureza convencional das teorias que compõem a sua metodologia, então nada
temos a objetar, pois já resumimos várias delas no final da seção 2.1. de nossa Dissertação.
No entanto, não parece ser esse o caso. Destaquemos outra citação encontrada mais à
frente:
Uma vez admitida a possibilidade da incoerência lógica na física teórica, Duhem
busca razões mais fundamentais e profundas do que as puramente metodológicas para
combater o método dos modelos e justificar a sua concepção de física teórica como
uma estrutura coerente de definições e princípios.
683
680
PATY, M.: 1986, p. 39.
681
POPPER, K.: (1935) 1980, pp. 24-6.
682
SOUZA FILHO, O.: 1996, p. 70.
683
SOUZA FILHO, O.: 1996, p. 71. Itálicos meus.
234
Qual é o princípio que Duhem busca para combater a incoerência teórica? Como
Souza Filho, reduz o domínio da metodologia duhemiana, ele é obrigado a ir buscar na
axiologia o princípio de unidade lógica. No entanto, é certo que a unidade teórica é uma
regra metodológica usada para combater as teorias inglesas, e o comentador sabe disso.
Desse modo, ele se vê obrigado a reconhecer:
Um princípio axiológico é um fundamento que contém noções de caráter normativo;
portanto, pode transformar-se eventualmente, em uma regra metodológica.
684
Dizer que Duhem é metodologicamente convencionalista implica diminuir o apreço
do que ele próprio chama de “método mais perfeito”, o método que corresponde à lógica
superior e sustenta a procura da classificação natural. Distinções talvez mais adequadas
para fazer jus à dualidade, por vezes expressa com tanta claridade nos textos duhemianos,
seria dada pelos seguintes pares: método/método mais perfeito; lógica/lógica superior;
razão/razão do coração; crítica lógica/natureza. Em um de seus sentidos específicos (de
intuição, sentimento inato), o senso comum pode também opor-se a razão, como vimos na
primeira Parte. O grande problema que encontramos ao analisar a obra filosófica de
Duhem, penso eu, não consiste em conciliar uma metodologia convencionalista a uma
axiologia realista (do meu ponto de vista, ambas são realistas), mas em explicitar como
Duhem pode objetivar uma explicação metafísica sem subordinar a física à metafísica, isto
é, qual o processo que leva Duhem a preconizar uma física que explica os fenômenos ao
modo de representá-los, ou, mais precisamente, qual a relação exata entre representação e
explicação teóricas.
No entanto, como notou Souza Filho, a interpretação de viés instrumentalista de
Popper, e de muitos outros, tem enorme apoio textual enorme, o que contribuiria para que
nos mantivéssemos no empasse original.
685
Uma alternativa frutífera para sair desse
impasse é a leitura levada a cabo por Chiappin
686
, que consiste em analisar a obra de um
autor de modo a extrair dela um número de teses essenciais que, conjugadas entre si,
contribuem na operacionalização do sistema filosófico. Essas teses são classificadas
adequadamente segundo sua antecedência lógica e agrupadas segundo sua natureza
epistemológica, metodológica, axiológica, ontológica, historiográfica entre outras. Tal
684
SOUZA FILHO, O.: 1996, p. 74. Entretanto, Souza Filho voltará a definir a metodologia duhemiana como
convencionalista (SOUZA FILHO, O.: 1998).
685
SOUZA FILHO, O.: 1996, p. 69.
686
CHIAPPIN, J.: 1989.
235
método, apesar de contribuir muitíssimo bem para o entendimento geral das obras de um
autor devido a sua concisão possui alguns problemas. Primeiramente, seu caráter
reducionista implica uma visão simplificada e como que arrematada das teses duhemianas,
terminando por excluir certos aspectos seus, tais como a motivação implícita presente nesta
ou naquela afirmação. Duhem, como sabemos, era extremamente religioso. Além da
educação tradicionalista que recebera de sua mãe desde o berço, quando estudante da École
Normale Superieur, ele se ligava especialmente aos colegas que compartilhavam das
mesmas crenças religiosas que as suas e, já professor, participava de congressos de
cientistas católicos, mantendo amizades com muitos padres
687
numa época em que o
neotomismo estava a pleno vapor.
688
Conhecemos também o caráter apologético de suas
teses historiográficas, as quais, se não foram motivadas previamente pela indicação papal
de evidenciar o papel positivo da Igreja católica no desenvolvimento do conhecimento
humano, ao menos chegaram a tais resultados. Alia-se a isso a distinção duhemiana entre
as metodologias nacionais, favorecendo quase sempre a ciência francesa como a mais
próxima do ideal, suficiente como denúncia de um nacionalismo subjacente, mesmo antes
das aulas sobre a ciência alemã. Ademais, um autor pode carregar esta ou aquela tese de
significados contextuais diferentes que podem levar a uma ambigüidade intencional.
Desmembrada em teses, uma obra tende a perder sua riqueza argumentativa e seu estilo
retórico, quando este existir. Seria preciso, então, complementar o conjunto de teses com
uma nova categoria, por exemplo, de teses teológicas, ideológicas, religiosas etc.
689
ainda outro problema neste tipo de procedimento: ele prejudica a detecção de evoluções e
influências externas sofridas na obra do autor objeto
690
, pois que esta acaba por ser tomada
como um todo; em um mesmo conjunto são agrupadas teses cujas elaborações deram-se
em espaços de tempo que podem alcançar decênios, de sorte que o contexto da formulação
de cada uma delas acaba por ser desmerecido.
691
687
Ver carta de Duhem enviada ao padre Garrigou-Lagrange no Anexo 1.
688
Martin (MARTIN, R.: 1976; 1982; 1987; 1990; 1991) é um dos principais comentadores que tratam da
posição duhemiana frente aos debates de seu tempo, sobretudo os religiosos.
689
Evidentemente, Chiappin não se propôs a estudar todas as expressões do pensamento duhemiano,
reduzindo suas análises à “teoria da ciência” de Duhem. A discussão sobre os pressupostos da teoria da
ciência duhemiana, entretanto, permanece em aberto.
690
A esse respeito, Maiocchi (MAIOCCHI, R.: 1985) realizou um trabalho digno de nota ao escrutinar o
ambiente intelectual francês, fornecendo um panorama muito instrutivo que nos permite apreciar a
originalidade da teoria da ciência de Duhem.
691
Claro que não se trata aqui de uma condenação em bloco desse estilo de leitura, pois várias saídas
poderiam ser encontradas na tentativa de incrementá-lo, como, por exemplo, a feitura de análises de obras
individuais para, em seguida, ser realizada a comparação e síntese destas quando possível (de início, qualquer
236
Nossa interpretação, como se vê, por mais analítica que tenha sido em alguns
momentos, é essencialmente sintética. Às ambigüidades duhemianas não pretendemos dar
uma solução definitiva, mas apenas mostrar a sua articulação e seus pressupostos. Não
seguiremos Ramoni em seu ensaio de remover as ambigüidades da filosofia de Duhem.
692
A expressão “meio termo”, já conhecida dos pascalianos, aparentemente muito simplista
para caracterizar o pensamento de um autor tão rico como o de Duhem, vem muito bem a
calhar, e não é de todo estouvada. “Meio termo” explica uma atitude implícita nas
reflexões duhemianas, um sentimento de latente de crítica permanente e ao mesmo tempo
de conservação constante do negado anteriormente. Em alguns casos, trata-se apenas de
simples diferenciação, tal como ocorre quando a oposição não gera tensão interna, servindo
antes para marcar uma posição precisa adotada por Duhem. Em outros, a relação não é
conclusiva, revelando certa antinomia, onde o negado nega o afirmado, que nega, por sua
vez, o inicialmente negado, produzindo uma tensão essencial no pensamento filosófico
duhemiano.
693
Alguns exemplo disso: (1) A análise lógica revela que as teorias são simples
instrumentos convencionais com a finalidade de fazer cálculos e tornar possíveis um
conjunto de previsões já esperadas quando da construção da teoria, mas a espontaneidade
instintiva e irrefletida do espírito revolta-se contra essa afirmação e atribui à teoria uma
capacidade verdadeiramente metafísica. Esse confronto, Duhem não o disfarça – é
infindável e invencível, pois invencíveis são os seus pólos
694
; (2) a história da ciência
mostra que as teorias físicas passadas amontoam-se umas sobre as outras num cemitério
que provavelmente será o destino das teorias vindouras, mas não devemos ignorar que a
própria história da ciência também mostra-nos que houve casos espantosos de uma teoria
incongruência poderia ser investigada como indício de uma provável evolução). Nessa linha, Souza Filho
(SOUZA FILHO, O.: 1996) conjugou uma leitura evolutiva do pensamento duhemiano, provavelmente com
alguma inspiração no estilo de Brenner, com a ossatura teórica propiciada por Chiappin.
692
RAMONI, M.: 1989. Ramoni intenta diluir a indecisão atual sobre o realismo/instrumentalismo de Duhem
fazendo recurso à obra científica de nosso autor, deixando de lado ao mesmo tempo a historia da ciência
(responsável pelo viés interpretativo realista) e a metodologia (caracteristicamente instrumentalista)
duhemianas. A tentativa de Ramoni é original, embora, creio, reduza em muito a complexidade do
pensamento de Duhem.
693
PATY, M.: 1986, p. 42.
694
O próprio Duhem, em SF, fornece um exemplo sonoramente patriótico da virtuosidade francesa diante do
debate sobre o valor das hipóteses astronômicas travado entre Pontano e Proclus, ao final do medievo. Devo
citá-la aqui, dada a sua cogência: “Eis os dois sentimentos, opostos ao extremo, entre os quais os filósofos [o
debate é metafísico] italianos não souberam manter o meio termo justo: confiança excessiva na realidade dos
objetos sobre os quais se baseiam as hipóteses astronômicas [de Pontano], e desconfiança exagerada em
relação ao valor dessas hipóteses. O ensino parisiense nos fará conhecer pensadores que souberam manter sua
opinião mais equilibrada.” (DUHEM, P.: SF, p. 52). Itálicos meus.
237
antecipou teoricamente a previsão de um fenômeno não observado anteriormente. O
pessimismo histórico contrasta com um otimismo epistemológico baseado de igual modo
na pesquisa histórica; (3) por um lado, a física não deve impor o seu jugo à metafísica e,
por outro, a garantia da autonomia da física diante da metafísica é uma das principais
preocupações duhemiana. No entanto, qualquer metafísico deve possuir um conhecimento
físico quando tiver de lidar com suas especulações, e qualquer empresa da física teórica
tira seu alimento das profundas convicções metafísicas do espírito humano; (4) uma física
figurativa, nos moldes ingleses, baseada principalmente na intuição sensível acaba por ser
prejudicial ao progresso da ciência, por força da incoerência resultante; mas uma física
rigorosa, puramente convencional, como é a física alemã, que não mantenha nenhuma
ligação com a realidade não pode ser a melhor saída. Onde houver espírito de geometria
em excesso, que haja a finesse necessária, e vice-versa; (5) física e metafísica têm objetos e
métodos distintos, mas elas não estão totalmente desligadas entre si, já que ambas partem
de noções fornecidas pelo senso comum: há, portanto alguma ligação inicial entre elas.
Mais: do ponto de vista de uma inteligência angélica, a própria distinção não faz sentido;
(6) é notório que Duhem critica o redutivismo mecanicista, mas isso não faz dele um
defensor do qualitativismo metafísico medieval (ele não advoga uma “metafísica das
qualidades”, como quis outrora Rey
695
e, mais recentemente, Paty
696
): uma qualidade será
irredutível a outra apenas por conta de impossibilidades práticas atuais, mas nunca que sua
indecomposição seja derivada de uma ontologia; (7) o fato bruto é criticado? Sim, mas em
695
REY, A.: 1904, p. 740.
696
“Subjacente a esta epistemologia das relações abstratas, poder-se-ia descobrir uma filosofia, mais
precisamente, uma metafísica das qualidades no sentido aristotélico. O termo, aliás, é freqüentemente
empregado e a referência a Aristóteles é explícita” (PATY, M.: 1986, p. 37). A interpretação de Paty parece
seguir a de Rey (1904), mas é preciso reconhecer que Rey, após a resposta de Duhem em “La physique de
croyant”, não mais sustentou em seu La théorie physique chez les physiciens contemporaines a tese de que
Duhem defenderia uma metafísica das qualidades à Aristóteles. Isso porque nosso autor fez ver que ele não
opõe ao mecanicismo ou ao atomismo uma metafísica das qualidades, mas limita-se a informar que: “para
quem se atém aos procedimentos do método experimental, é impossível declarar verdadeira esta proposição:
Todos os fenômenos físicos são explicados mecanicamente. É igualmente impossível declará-la falsa. Esta
proposição é transcendente ao método físico” (DUHEM, P.: TP, p. 425). O compromisso com a redução das
qualidades sensíveis àquelas que podem ser definidas matematicamente não é rompido; mas não é mantido
ao preço de complicações advindas de uma base tão estreita: “Cada vez que um efeito novo se apresentar, ela
[a nova mecânica] tentará de todas as maneiras reconduzirem-las às qualidades já definidas; é somente após
ter reconhecido a impossibilidade desta redução que ela se resignará a admitir em suas teorias uma qualidade
nova, à introduzir em suas equações uma nova espécie de variáveis” (DUHEM, P.: EM, p. 204) (Uma
propriedade quantitativa é aquela passível de adição, e seu valor em um sistema é a soma dos valores das
partes que o compõem. Exemplos comuns são a massa, o volume e a energia. Já uma propriedade qualitativa
não possui suscetibilidade à adição, uma vez que o valor de uma parte do sistema pode ser eventualmente
igual ao valor do sistema como um todo. Aqui podemos citar a temperatura, a pressão e o potencial
eletroquímico [DUHEM, P.: TP, pp. 159-79]).
238
nome do fato teórico, isto é, da experimentação física, exclusivo da ciência teórica, já que
no domínio da vida cotidiana a pura observação tem privilégio epistemológico e mantém
sua plenitude resguardada.
Duhem conjuga, algumas vezes simultaneamente, posições instrumentalistas (falando
em nome da lógica) com vertentes realistas (cedendo lugar à natureza). Tomadas em
separado, certas de suas obras possuirão um teor realista, outras, não. Isso não significa
falta de método na escrita, mas a expressão do modo pelo qual o filósofo opera seu ataque
dirigido ao dogmatismo e ao ceticismo científicos. A posição de Duhem é, sobretudo,
estratégica. Espírito e lógica; instinto e razão; sentimento e demonstração são as diferentes
designações para o mesmo par pertencente à concepção da ciência duhemiana.
Desmembrar os termos desse par para só então analisá-los comprometerá o entendimento
de seu pensamento, resultando em parcialidade. Sem deixar de estimar a importância da
concorrência simultânea entre lógica e espírito no interior de obra, temos em seguida de
nos perguntar se o próprio Duhem via nessas posições contradição ou complementaridade.
A atitude negativa expressa nos textos duhemianos pode ser expressa por duas
insuficiências: a primeira diz respeito à própria teoria: convencional, a teoria carece de
ligação ontológica com o mundo; desse modo, o convencionalismo paira no ar. Aqui, a
análise é estática e fria. Já a segunda insuficiência diz respeito à dificuldade dos
convencionalistas em explicar a previsão de novas leis: a fraqueza do convencionalismo
faz a força do realismo; e a visão é dinâmica e impulsiva. Pois bem, não parece que essas
duas formas de análise são simultaneamente excludentes? Como podem as teorias ser
convenções e, ao mesmo tempo, acrescentar novos conhecimentos que não decorrem de
convenção alguma? Habilmente, Duhem conjuga ambos os extremos na tentativa de
mostrar que, apesar das aparências, não há exclusão. Com a união da análise lógica e da
natureza na avaliação das teorias físicas, o filósofo transforma suas respectivas
insuficiências em uma poderosa estratégia que lhe permite atacar tanto o dogmatismo
quanto o ceticismo, sem, todavia, assumir nenhum deles. Dizer que o convencionalismo é
insuficiente não significa aderir ao essencialismo, e taxar o último de indemonstrável não
significa admitir o primeiro sem ressalvas. Entre o essencialismo e o instrumentalismo, ei-
la, a terceira via.
697
A análise lógica afasta os exageros dogmáticos que pretendem ver nas
teorias um poder ilimitado a ponto de determinar a priori nosso conhecimento do mundo.
Mas a ciência não é construída unicamente por razões intrínsecas à lógica. Há algo para
697
JAKI, S.: (1984), 1987, p. 368. Jaki reconhece a antecipação duhemiana da terceira via popperiana.
239
além da frieza utilitária que impulsiona o trabalho dos teóricos, impelindo-os à ciência e
que, ao fazê-lo, confere um sentido à sua pesquisa. Essa é a parte que cabe ao instinto, essa
idéia da verdade, intuição irredutível à análise lógica. Não se trata, veja bem, de uma
contradição, mas de uma complementaridade. Instinto e lógica são fontes de certeza de
ordens distintas, contudo, insuficientes se tomados em separado. Se se supõe, com o
dogmático, que o conhecimento certo é possível ou já foi teoricamente obtido, uma falha
desta certamente levará ao ceticismo. Pelo contrário, se se supõe, com o cético, que a
verdade é e será sempre inatingível, então a empresa científica pelo conhecimento do
mundo cede lugar ao utilitarismo pleno e a prática da ciência perde seu sentido.
Dogmatismo e ceticismo, por caminhos diferentes, matam a pesquisa científica. Mas é
preciso salvar a investigação. E para salvá-la é preciso compreender e aceitar a condição
humana frente ao conhecimento teórico. É preciso, para usar de uma metáfora, fazer com
que Aquiles corra na direção da tartaruga, mas que não pense em algum momento que já a
agarrou e não se desanime quando perceber que ela, há pouco próxima, distancia-se agora:
mas que permaneça correndo, a despeito da impossibilidade paradoxal em alcançá-la
definitivamente.
A análise histórica da ciência permite “racionalizar” o progresso da ciência, mas não
as duas intuições do senso comum de que tratamos nesta Dissertação, as quais seriam
aspirações vitais e inatas da natureza humana.
698
A principal justificação colhida da
história da ciência é aquela que ratifica a metodologia de salvar os fenômenos, que mostra
que as tentativas desesperadas de tentar explicá-los acabam sobrepondo-se umas às outras,
num fluxo e refluxo constante, mas que, apesar disso, ainda é possível entrever uma
continuidade sempre crescente na parte representativa das teorias. O que a história ensina é
que a escolha das hipóteses deve estar sempre pautada pela representação abstrata dos
fenômenos, e que, só assim, é possível visualizar, num horizonte inalcançável, uma
explicação dos mesmos. Numa palavra, a história ensina que, para explicar, é preciso,
primeiro, representar (e representar a partir dos moldes oferecidos pela termodinâmica
geral). Em suma, a história da ciência é, por assim dizer, a mediadora entre a análise
lógica e as aspirações inatas do senso comum. Dessa combinação nada acidental resulta
que as teorias aproximar-se-iam, lenta e continuamente, da teoria ideal sem, todavia,
698
Neste ponto, distanciamo-nos de Chiappin, principalmente quando ele defende que um dos aspectos
positivos da historiografia duhemiana é a justificação do princípio de unidade lógica (CHIAPPIN, J.: 1989,
pp. 240-2). Quanto ao ideal de classificação natural, acreditamos que Duhem procura dar mostras de que ele
não se resume a uma mera utopia (ver seção 2.3).
240
jamais atingi-la, de modo que o filósofo se dá o direito de afirmar a condição convencional
das teorias, em concomitância com o sentimento de sua aproximação da teoria perfeita. E
assim Duhem está liberado para sentenciar que, diante da evolução da ciência, todos
aqueles que investigarem a natureza das teorias físicas estarão “invariavelmente”
submetidos a duas atitudes opostas com relação à crença em seu progresso na direção de
uma ordem transcendente à física:
A atitude, alternativamente hostil ou favorável que todo físico assume em relação a
essa afirmação, resume-se nestas palavras de Pascal: ‘Nós temos uma impotência de
provar que resiste a todo dogmatismo; nós temos uma idéia da verdade que resiste a
todo pirronismo.’
699
O que importa para nosso autor não é necessariamente resolver de uma vez por todas
a questão do valor da teoria física, mas pôr em relevo a existência de algo mais profundo, a
saber, a oposição fundamental que acerca o físico em suas reflexões. A permanência nessa
condição é justamente o que caracteriza o filósofo da ciência.
700
Sabemos que Duhem
atribuiu a Kant o comentário do fragmento pascaliano citado acima; mas quem de fato
tomou-o como profissão filosófica foi ele mesmo. Provavelmente Duhem exigiria para si o
mérito de ser o comentador mais zeloso das palavras de Pascal...
A lição que podemos tirar dos escritos duhemianos cabe numa linha: é impossível ser
realista se não o formos de coração – mas somos todos coração!
699
DUHEM, P.: TP, p.509. Itálicos meus. A citação de Pascal encontra-se em PASCAL, B.: 1979, frag. 295.
700
Prenúncio dos debates intermináveis sobre a oposição subseqüente entre instrumentalismo e realismo?
241
ANEXO 1
Carta de P. Duhem endereçada ao padre R. Garrigou-Lagrange
1
A presente carta foi escrita a 11 de abril de 1913 e publicada pela primeira vez, com a
permissão de Duhem, em 1914, como apêndice à obra do padre Réginald Garrigou-
Lagrange (1877-1964), Dieu, son existence et sa nature.
* * *
Querido padre,
Devo-lhe algumas explicações sobre certos
termos ambíguos de minha carta precedente e, em
particular, sobre o nome de axioma ou pretenso
axioma que dei ao princípio de inércia.
Começo por precisar que eu tomei as
palavras matemática, física, metafísica no sentido
em que as entendem, em geral, nossos
contemporâneos, e não no sentido de Aristóteles e
dos escolásticos.
D
uhem reconhece o equ
í
voco de
sua carta anterior ao ter chamado
o princípio de inércia de axioma.
R
etomada da dis
t
inção semântica
encontrada em Física e metafísica:
a física contemporânea teria por
equivalente na antiguidade e no
medievo a astronomia aristotélica,
enquanto a física do estagirita
aproximar-se-ia da metafísica no
sentido moderno.
242
Nessas condições, a lei da inércia não existe
para o matemático; os princípios da ciência dos
números e da geometria são os únicos que ele teria
de admitir. O matemático não se ocupa dos
princípios da mecânica e da física e, se ele chega a
estudar os problemas que o mecânico e o físico lhe
colocam, é sem se preocupar com a via pela qual
estes foram conduzidos a formular tais problemas.
Considero, pois, o princípio de inércia
apenas tal como ele se dá para o físico.
Pode-se dizer dele então o que se pode dizer
de todos os princípios das teorias mecânicas e
físicas.
Esses princípios fundamentais ou hipóteses
(no sentido etimológico da palavra) não são
axiomas, isto é, verdades evidentes em si. Sequer
são leis, isto é, proposições gerais que a indução
tirou diretamente dos ensinamentos da experiência.
Pode ser que certas verossimilhanças
racionais ou certos fatos da experiência no-los
sugiram, mas esta sugestão não é jamais uma
demonstração que lhes conferisse, por si mesma,
alguma certeza. Do ponto de vista da pura lógica,
os princípios fundamentais das teorias mecânicas e
D
istinção cara entre postulados (os
p
rincípios hipotéticos da física)
axiomas (verdades evidentes da
álgebra e da geometria) e leis
(induções derivadas da
experiência).
A
sugestão dos princípios pela
experiência é uma possibilidade (e
D
uhem acredita que elas
efetivamente ocorrem), mas, dada
a tese da subdeterminação, a
certeza da demonstração encontra-
se afastada. O mesmo acontece
com as "verossimilhanças
racionais" (provavelmente as
analogias formais, sentidas e não
concluídas, às quais ele se refere
na Théorie physique).
A
natureza dos princípios
matemáticos e físicos são de ordens
distintas, pois que nenhuma delas
p
ode servir de fundamento à outra,
embora possam eventualmente
entrecruzar-se. Os princípios
f
ísicos não servem de fundamento
nem para a álgebra nem para a
g
eometria. Por outro lado, o uso do
instrumental matemático não
aumenta a certeza dos princípios
das teorias físicas (a matemática
p
ermanece sendo um instrumento
útil e necessário para a física).
R
estrição semântica das
considerações acerca do princípio
de inércia.
E
xtensão argumentativa que se dá
no interior da restrição anterior:
do caso particular do princípio de
inércia a todos os princípios da
f
ísica e da mecânica.
243
físicas não podem ser considerados senão como
postulados livremente postos pelo espírito.
Do conjunto desses postulados, o raciocínio
dedutivo tira um conjunto de conseqüências mais ou
menos distantes que concordam com os fenômenos
observados; esse acordo é tudo o que o físico espera
dos princípios que ele postulou.
Tal acordo confere aos princípios
fundamentais da teoria certa verossimilhança, mas
ele não pode jamais conferir-lhes a certeza, pois não
se pode jamais demonstrar que, de outros postulados
tomados como princípios, não se deduziriam
conseqüências que concordassem igualmente bem
com os fatos.
Além do mais, jamais se pode afirmar que
não se descobrirão, um dia, fatos novos que não
concordarão mais com as conseqüências dos
postulados inicialmente postos como fundamento da
teoria: fatos novos que obrigarão a deduzir, de
novos postulados, uma nova teoria.
Essa mudança de postulados produziu-se
muitas vezes no curso do desenvolvimento da
ciência.
De tais observações, seguem-se duas
conseqüências:
A
pós as definições simbólicas e a
escolha dos postulados, a dedução
matemática e a comparação
experimental constituem a terceira
e quarta etapas na construção da
teoria.
Se a demonstração não se dá a
priori, a mesma não será atingida
a posteriori. Corroborações
sucessivas tornam os princípios
apenas mais verossímeis. A
verdade dos princípios dependeria
de que fossem eles os únicos dos
quais pudessem ser extraídas as
conseqüências experimentais
adequadas.
A
afirmação do falibilismo
científico tem respaldo histórico, o
qual vem a fortalecer suas críticas
lógicas ao dogmatismo na física.
I
ntrodução da temporalidade ao
lado da análise lógica.
244
(1) De nenhum dos princípios das teorias
mecânica e física tem-se ou ter-se-á o direito de
afirmar categoricamente que ele é VERDADEIRO.
(2) De nenhum dos princípios sobre os quais
repousam as teorias mecânica e física é permitido
afirmar que ele é FALSO, enquanto não se
descobriu fenômenos em desacordo com as
conseqüências da dedução da qual o princípio é
uma das premissas.
O que eu acabei de dizer aplica-se, em
particular, ao princípio de inércia. O físico não tem
o direito de dizer que ele é certamente verdadeiro,
mas tem menos ainda o direito de dizer que ele é
falso, porque nenhum fenômeno até agora nos
constrangeu (se se fizer abstração das circunstâncias
nas quais intervém o livre-arbítrio do homem) a
construir uma teoria física da qual esse princípio
fosse excluído.
Tudo isso é dito sem sair do domínio do
físico, para quem os princípios não são afirmações
de propriedades reais dos corpos, mas premissas de
deduções das quais as conseqüências devem
concordar com os fenômenos todas as vezes que
uma vontade livre não intervier para desarranjar o
determinismo destes.
A
ssimetria entre "verificação"
(afirmação da verdade de uma
teoria após sucesso em teste
experimental) e "falseamento".
D
istinção entre uma concepção
f
orte de verdade (a afirmação
categórica da verdade de um
p
rincípio) e a concepção e a
concepção pragmática de verdade
(como adequação empírica
satisfatória), a única válida em
f
ísica.
Convencionalismo mitigado: (a) a
experiência permanece como
critério (único) de adequação; (b)
mesmo os princípios mais gerais
das teorias são passíveis de
desmentido empírico.
O determinismo dos fenômenos
não implica a determinação da
escolha das hipóteses.
D
uhem restringe o determinismo à
natureza inanimada, de sorte que o
livre-arbítrio não é posto em
questão. A precedência lógica da
liberdade criadora diante dos fatos
observados instaura a tese da
subdeterminação das teorias pelos
dados, com o conseqüente
abandono do indutivismo genético.
Os fenômenos não determinam as
teorias físicas. A vontade livre do
homem pode alterar a ordem dos
f
enômenos, apesar de não poder
determiná-los.
L
embremos que Duhem fala com
um padre, daí que não usa
linguagem técnica e insiste no
"livre-arbítrio" (expressão rara
em seus textos).
245
A esses princípios da física, pode-se e deve-
se fazer corresponderem certas proposições que
afirmariam certas propriedades reais dos corpos? –
À lei da inércia, por exemplo, deve-se fazer
corresponder a afirmação de que existe, em todo
corpo em movimento, uma certa realidade, o
impetus, dotado de tais ou tais características? –
Essas proposições estendem-se ou não aos seres
dotados de vontade livre? Estes são problemas que o
método do físico é inapto a tratar e que ele deixa à
livre discussão dos metafísicos.
O físico não seria levado a se opor à
liberdade do metafísico senão em um único caso:
aquele em que o metafísico formulasse uma
proposição que contradissesse diretamente os
fenômenos, ou em que, introduzida a título de
princípio na teoria física, uma proposição
conduzisse a conseqüências em contradição com os
fenômenos. Neste caso ele estaria legitimamente
justificado para negar ao metafísico o direito de
formular tal proposição.
Eis, querido padre, o resumo do que eu diria
se eu escrevesse, acerca do princípio de inércia, o
artigo que você teve a bondade de me pedir.
A
física é impotente para tratar
da realidade dos seus postulados.
I
sso não impede que se reflita
sobre o alcance ontológico de
seus princípios, mas essas
questões pertencem à metafísica.
P
rimazia da experiência: a
observação é critério para julgar
tanto as proposições da física
teórica quanto as da metafísica.
P
or objetivarem a realidade
(coisa que a física teórica não
f
az), as p
r
oposições da metafísica,
ao contrário das da física, podem
ser falseadas experimentalmente.
N
ota: o físico em questão é o
experimental.
A
fastamento do cientificismo em
concomitância com a vigilância da
metafísica: garantia, em princípio,
de conhecimento legítimo não
científico, desde que
empiricamente adequado.
246
Traduzido do original em francês por Fábio R. Leite
1
Publicado pela primeira vez em GARRIGOU-LAGRANGE, R.: (1914). Dieu, son existence et sa nature.
Paris: Beauchesne, pp. 761-3. Reproduzida em JAKI, S.: (1991). Pierre Duhem: Homme de foi et de science.
Paris: Beauchesne, pp. 246-8. Traduzida para o inglês em GARRIGOU-LAGRANGE, R.: (1936). God: His
existence and his nature. Saint Louis: Herder, pp. 449-51. Tradução reproduzida em JAKI, S.: (1991).
Scientist and catholic: An essay on Pierre Duhem. Christendom Press, pp. 250-3.
247
ANEXO 2
Algumas distinções entre realismos e convencionalismos
701
Podemos dividir os grandes problemas de que trata a epistemologia em dois grupos:
(1) Quais são as fontes (e processos) do conhecimento?;
(2) Qual é a extensão do conhecimento?, o que pode ser conhecido?
Em (1) a oposição dá-se, grosso modo, entre: (1.1) empirismo: os sentidos (externos
e/ou interno) são a fonte do conhecimento, e; (1.2) racionalismo: a razão é a fonte do
conhecimento (não trataremos deles aqui);
Em (2) a oposição se dá entre: (2.1) realismo(s) científico(s) e; (2.2) uma
multifacetada gama de anti-realismos. Importa-nos aqui distinguir as principais teses
realistas e as principais afirmações de uma versão particular de anti-realismo, o
convencionalismo. Vamos a elas:
(2.1) REALISMO CIENTÍFICO. Em sentido geral, trata-se de uma posição filosófica
acerca de classes de objetos ou proposições sobre esses objetos:
(2.1.1) Realismo metafísico. Há um mundo externo que existe independentemente da
mente humana e de qualquer cognição (exprime o modo de ser do real);
(2.1.2) Realismo gnosiológico. O conhecimento é possível sem que a consciência
imponha à realidade seus conceitos e categorias a priori (exprime um modo de
conhecer o real). Em outros termos, o mundo externo é definido e estruturado
por relações e a inteligência pode apreender tais propriedades;
701
Segui, neste apanhado de teses sobre o realismo científico, os seguintes autores: CHIBENI, S.: 1993;
PLASTINO, C.: 1995; SANKEY, H.: 2001. A divisão e definição das teses sobre o convencionalismo
científico são de minha autoria, e tiveram em sua elaboração as teses sobre o realismo como parâmetro.
248
(2.1.3) Realismo semântico. As proposições científicas possuem um valor de verdade
(objetivo) verdadeiro ou falso determinado pela realidade (cognoscível ou
não) independente de nós (tese oposta ao relativismo);
(2.1.4) Realismo metodológico. A ciência tem em vista apresentar teorias verdadeiras
que representem o mundo. Associado a certas especificidades de 2.1.2 (por
exemplo, a unidade lógica das relações do mundo), esta forma de realismo
opõe-se ao pluralismo teórico;
(2.1.5) Realismo epistemológico. As teorias científicas maduras e preditivamente
bem sucedidas são descrições verdadeiras ou aproximadamente verdadeiras da
natureza do mundo. Como a ciência é capaz de acesso epistêmico à
constituição da natureza, este realismo opõe-se a várias formas de ceticismo.
(2.2) O CONVENCIONALISMO CIENTÍFICO, por sua vez, possui uma variedade que eu
gostaria de salientar:
(2.2.1) Convencionalismo gnosiológico (ou idealismo gnosiológico). Apesar de não
implicar a rejeição do realismo metafísico, restringe o conhecimento da
realidade externa à estrutura do sujeito cognoscitivo, aos seus conceitos e
categorias prévios, responsáveis por tornar a natureza inteligível;
(2.2.2) Convencionalismo anti-fundacionista. Expressa a liberdade e a atividade
humanas na construção do conhecimento, fazendo frente tanto ao indutivismo
genético quanto ao apriorismo (e também a qualquer tipo de prova indireta das
teorias). O conhecimento científico torna-se hipotético e falível, mesmo
quando bem sucedido (opõe-se a qualquer forma de dogmatismo);
(2.2.3) Convencionalismo semântico. As hipóteses (ou princípios) científicas não são
nem verdadeiras nem falsas, mas pseudo-proposições sem valor de verdade
objetivo;
(2.2.4) Convencionalismo metodológico: o uso do estratagema convencionalista
(hipóteses ad hoc) não apenas é reconhecido, mas tem seu exercício justificado
249
do ponto de vista da utilidade. As teorias científicas aceitas expressam o
consenso de uma comunidade local e o compromisso desta com relação a uma
série de métodos, práticas, aplicações etc.;
(2.2.5) Convencionalismo epistemológico. Afirma que a ciência como um todo não
passa de um conjunto de regras arbitrárias cunhadas com objetivo puramente
prático, e sua “verdade” decorre tão somente do fato de suas regras serem
instituídas, após sucesso empírico inicial, como definições arbitrárias, por
decisão da comunidade científica.
250
BIBLIOGRAFIA
Obras de P. Duhem
DUHEM, P.: (1885). Applications de la thermodynamique aux phénomènes capillaires.
Annales Scientifiques de l’École Normale Supérieure, 3 (2), 207-54.
DUHEM, P.: ([1892] 1989). Algumas reflexões sobre as teorias físicas. Ciência e
Filosofia, 4, 13-37. São Paulo: FFLCH-USP. Traduzido do original em francês
por Marta da Rocha e Silva & Mônica Fuchs.
DUHEM, P.: (1892). Notation atomique et hypothèses atomistiques. Revue des Questions
Scientifiques, 31, 391-454.
DUHEM, P.: (1892-4). Commentaires aux principes de la thermodynamique. Journal de
Mathématiques Pures et Appliquées, (I: 1892) Le principe de la conservation
de l’énergie, 8, 269-330; (II: 1893) Le principe de Sadi Carnot et de R.
Clausius, 9, 293-359; (III: 1894) Les équations générales de la
thermodinamique, 10, 207-85.
DUHEM, P.: (1893). Une nouvelle théorie du monde inorganique. Revue des Questions
Scientifiques, 33, 99-133.
DUHEM, P.: ([1893] 1989). Física e metafísica. Ciência e Filosofia, 4, 41-59. São Paulo:
FFLCH-USP. Traduzido do original em francês por Antônio M. de A. Levy.
DUHEM, P.: ([1893] 1989). A escola inglesa e as teorias físicas. Ciência e Filosofia, 4,
63-84. São Paulo: FFLCH-USP. Traduzido do original em francês por Pablo R.
Mariconda.
DUHEM, P.: ([1894] 1989). Algumas reflexões acerca da física experimental. Ciência e
Filosofia, 4, 87-118. São Paulo: FFLCH-USP. Traduzido do original em
francês por Nivaldo de Carvalho.
DUHEM, P.: (1894). Les théories de l’optique. Revue des Deux Mondes, 123, 94-125.
251
DUHEM, P.: (1895). Les théories de la chaleur. Revue des Deux Mondes, (I) Les
précurseurs de la thermodinamique, 129, 869-901; (II) Les créateurs de la
thermodinamique, 130, 380-415; (III) Chaleur et mouvement, 130, 851-68.
DUHEM, P.: (1896). L’évolution des théories physiques du XVIIé siécle jusqu’à nos jours.
Revue des Questions Scientifiques, 40, 463-99.
DUHEM, P.: (1900). Théorie et pratique. Revue Philomathique de Bordeaux et du Sud-
Ouest, 3 (6), 250-62.
DUHEM, P.: ([1902] 1985). Le mixte et la combinaison chimique: Essai sur l’évolution
d’une idée. Paris: Fayard.
DUHEM, P.: (1902). Les théories électriques de J. Clerk Maxwell. Paris: Hermann.
DUHEM, P.: (1903). L’evolution de la mécanique. Paris: A. Joanin.
DUHEM, P.: (1903). Analyse de l’ouvrage de Ernst Mach: La mécanique. Bulletin des
Sciences Mathématiques, 27, 261-83.
DUHEM, P.: (1905-6). Les origines de la statique, 2 vols. Paris: Hermann.
DUHEM, P.: (1905). Le principe de Pascal: Essai historique. Revue Générale des Sciences
Pures et Appliquées, 16, 599-610.
DUHEM, P.: ([1906] 1981). La théorie physique: Son objet et sa structure. 3
a
edição.
Paris: J. Vrin.
DUHEM, P.: ([1906] 1954). The aim and structure of physical theory. Princenton:
Princenton University Press. Traduzido da 2ª edição do original em francês por
Philip Wiener.
DUHEM, P.: ([1906-13] 1984). Études sur Léonard de Vinci: Ceux qu’il a lus et ceux qui
l’ont lu, 3 vols. Paris: Éditions des Archives Contemporaines.
DUHEM, P.: (1907). Josiah-Willard Gibbs, à propos de la publication de ses Mémoires
scientifiques. Bulletin des Sciences Mathématiques, 31, 181-211.
DUHEM, P.: ([1908] 1984). Salvar os fenômenos. Ensaio sobre a noção de teoria física de
Platão a Galileu. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, suplemento 3.
Campinas: Unicamp. Traduzido do original em francês por Roberto de A.
Martins.
DUHEM, P.: (1907-9). Le mouvement absolut et le mouvement relatif. Montligeon:
Librairie de Montligeon.
DUHEM, P.: (1910). La mécanique expérimentale. Revue Générale des Sciences Pures et
Appliquées, 21, 461-5.
252
DUHEM, P.: (1910). History of physics. Catholic Encyclopaedia. Endereço eletrônico:
http://www.newadvent.org/cathen/12047a.htm. Acesso em 03/08/2005.
DUHEM, P.: (1911). Traité d´énergetique ou de thermodinamique générale, 2 vols. Paris:
Gauthier-Villars.
DUHEM, P.: (1912). Introdução a MAIRE, A.: (1912). L’oeuvre scientifique de Blaise
Pascal: Bibliographie critique et analyse de tous les travaux qui s’y
rapportent, i-ix. Paris: Hermann. Reproduzido em JAKI, S.: (1991), 241-9.
Traduzido do original em francês por Stanley Jaki.
DUHEM, P.: ([1913] 1954). Le système du monde: Histoire des doctrines cosmologiques
de Platon a Copernic, 10 vols. Paris: Hermann.
DUHEM, P.: (1915). Quelques réflexions sur la science allemande. La science allemande,
101-43. DUHEM, P.: (1915).
DUHEM, P.: (1915). La science allemande. Paris: Hermann.
DUHEM, P.: ([1915] 1991). German science. La Salle: Open Court. Traduzido do original
em francês por John Lyon.
DUHEM, P.: (1916). La chimie est-elle une science française? Paris: Hermann.
DUHEM, P.: (1916). Science allemande et vertus allemandes. Les allemands et la science,
137-52. PETIT, G. & M. LEUDET (eds.): (1916).
DUHEM, P.: (1917). Notices sur les titres et travaux scientifiques de Pierre Duhem. Paris:
Gauthier-Villars.
Obras sobre P. Duhem
702
ABRANTES, P.: (1989). Ciência, epistemologia e história em Pierre Duhem.
Leopoldianvm, 16 (46), 33-46.
ABRANTES, P.: (1998). Imagens de natureza, imagens de ciência. Campinas: Papirus.
AGASSI, J.: (1957). Duhem versus Galileo. The British Journal for the Philosophy of
Science, 8, 237-48.
ARIEW, R.: (1984). The Duhem thesis. The British Journal for the Philosophy of Science,
35, 313-25.
ARTIGAS, M.: (1991). E. Mach y P. Duhem: El significado filosófico de la historia de la
ciencia. Física y Religión en Perspectiva, 99-119.
702
Obras ou inteiramente dedicadas a algum aspecto do pensamento duhemiano ou que trazem ao menos
algum capítulo/seção especial sobre Duhem.
253
BAIGRIE, B.: (1992). A reappraisal of Duhem’s conception of scientific progress. Revue
Internationale de Philosophie, 46 (182), 344-60.
BENRUBI, J.: (1933). Les sources et les courants de la philosophie contemporaine en
France, 2 vols. Paris: Félix Alcan.
BLAY, M.: (1981). Pierre Duhem et la théorie physique. La Recherche, 12 (118), 88-90.
BOUDOT, M.: (1967). Le rôle de l’histoire des sciences selon Duhem. Les Etudes
Philosophiques, 4, 421-32.
BOUDOT, M.: (1990). Prefácio a BRENNER, A.: (1990), 7-17.
BOUTROUX, P.: (1907). La théorie physique de M. Duhem et les mathématiques. Revue
de Métaphysique et de Morale, 15, 363-76.
BOYER, A.: (1992). Physique de croyant? Duhem et l’autonomie de la science. Revue
Internationale de Philosophie, 46 (182), 311-22.
BRENNER, A.: (1990). Duhem: science, réalité et apparence. Paris: Vrin.
BRENNER, A.: (1992). Duhem face au post-positivisme. Revue Internationale de
Philosophie, 46 (182), 390-404.
BRENNER, A.: (1998-9). Les voies du positivisme en France et en Autriche: Poincaré,
Duhem et Mach. Philosophia Scientiae, 3 (2), 31-42. Actes du colloque
France-Autriche. Paris et Nancy, mai-juin 1995.
BRENNER, A.: (2003). Les origines françaises de la philosophie des sciences. Paris: PUF.
BROUZENG, P.: (1981). L’Oeuvre scientifique de Pierre Duhem et sa contribution au
développement de la thermodynamique des phénomènes irréversibles, 2vols,
tese de doutorado inédita. Bordeaux: Université de Bordeaux I.
BROUZENG, P.: (1987). Duhem: Science et providence. Paris: Belin.
CARDWELL, C.: (1972). Representation and uncertainty: An essay on Pierre Duhem’s
philosophy of science, tese de doutorado inédita. Rochester: University of
Rochester.
CARRIER, M.: (1991). What is wrong with the miracle argument? Studies in the History
and Philosophy of Science, 22 (1), 23-36.
CARTWRIGHT, N.: (1983). How the laws of physics lie. Oxford: Clarendon Press.
CHIAPPIN, J. R.: (1989). Duhem’s theory of science: An interplay between philosophy
and history of science, tese de doutorado inédita. Pittsbugh: University of
Pittsburgh.
CROWE, M.: (1990). Duhem and history and philosophy of mathematics. Synthese, 83 (3),
431-47.
254
DARBON, A.: (1928). L’histoire des sciences dans l’oeuvre de P. Duhem. L’oeuvre
scientifique de Pierre Duhem, 499-548. Paris: Feret et Fils.
DARLING, K.: (2002). Motivational realism: The natural classification for Pierre Duhem,
1-25. Endereço eletrônico: http://philsci-
rchive.pitt.edu/archive/00001061/00/Darling.doc. Acesso em 16/11/2005.
DE BROGLIE, L.: (1954). Prefácio à tradução inglesa de DUHEM, P.: ([1906] 1954), v-
xiii.
FICHANT, M.: ([1969] 1977). A idéia de uma história das ciências. Sobre a história das
ciências, 59-107. FICHANT, M & PÉCHEUX, M. (eds). Lisboa: Edições
Mandacaru.
FINOCCHIARO, M.: (1992). To save the phenomena: Duhem on Galileo. Revue
Internationale de Philosophie, 46 (182), 291-310.
GIEDYMIN, J.: (1975). Antipositivism in contemporary philosophy and social science and
humanities. The British Journal for the Philosophy of Science, 26 (4), 275-301.
HADAMARD, J.: (1928). L’oeuvre de Pierre Duhem dans son aspect mathématique.
L’oeuvre scientifique de Pierre Duhem, 467-95. Paris: Feret et Fils.
HUMBERT, P.: Pierre Duhem. Paris: Bloud et Gay.
JAKI, S.: ([1984] 1987). Uneasy genius: The life and work of Pierre Duhem. 2
a
edição.
Dordrecht/Boston/Lancaster: Martinus Nijhoff.
JAKI, S.: (1969). Introdução a DUHEM, P.: ([1908] 1969). To save the phenomena: An
essay on the idea of physical theory from Plato to Galileo, ix-xxvi. Chicago:
The University of Chicago Press. Traduzido do original em francês por
Edmund Doland e Chaninah Maschler.
JAKI, S.: (1991a). Introdução a DUHEM, P.: ([1915] 1991), xiii-xxv.
JAKI, S.: (1991b). Scientist and catholic: An essay on Pierre Duhem. United States:
Christendom Press.
JAKI, S. (ed.): (1994). Lèttres de Pierre Duhem à sa fille Hélène. Paris: Beauchesne.
JORDAN, E.: (1917). Pierre Duhem. Mémoires de la Société des Sciences Physiques et
Naturelles de Bordeaux, 7 (1), 9-39.
JOUGUET, E.: (1917). L´Oeuvre scientifique de Pierre Duhem. Revue Générale des
Sciences Pures et Appliquées, 28, 40-9.
KREMER-MARIETTI, A.: (1992). Measurement and principles: The structure of physical
theories. Revue Internationale de Philosophie, 46 (182), 361-75.
255
LOWINGER, A.: (1941). The methodology of Pierre Duhem. New York: Columbia
University Press.
LUGG, A.: (1990). Pierre Duhem’s conception of natural classification. Synthese, 83 (3),
409-20.
MAIOCCHI, R.: (1985). Chimica e filosofia: Scienza, epistemologia, storia e religione
nell’opera di Pierre Duhem. Firenze: La Nuova Italia.
MAIOCCHI, R.: (1990). Pierre Duhem’s ‘The aim and structure of physical theory’: A
book against conventionalism”. Synthese, 83 (3), 385-400.
MAIOCCHI, R.: (1992). Duhem et l’atomisme. Revue Internationale de Philosophie, 46
(182), 376-89.
MAIOCCHI, R.: (2004). De l’importance du phénoménalisme de Pierre Duhem: A propos
d’un livre récent. Revue Philosophique de Louvain, 102 (3), 505-12.
MANVILLE, O.: (1928). La physique de Pierre Duhem. L’oeuvre scientifique de Pierre
Duhem, 7-51. Paris: Feret et Fils.
MARICONDA, P.: (1986). A teoria da ciência em Pierre Duhem, tese de doutorado
inédita. São Paulo: Universidade de São Paulo.
MARICONDA, P.: (1994). Duhem e Galileu: Uma reavaliação da leitura duhemiana de
Galileu. ÉVORA, F. (ed.): Ciência no Século XIX, 123-60. Campinas: CLE.
MARTIN, R.: (1976). The genesis of a mediaeval historian: Pierre Duhem and the origin
of statics. Annals of Science, 33, 119-29.
MARTIN, R.: (1982). Darwin and Duhem. History of Science, 20, 64-74.
MARTIN, R.: (1987). Saving Duhem and Galileo. History of Science, 25, 301-19.
MARTIN, R.: (1990). Duhem and the origins of statics: Ramifications of the crisis of
1903-4. Synthese, 83 (3), 337-55.
MARTIN, R.: (1991). Pierre Duhem: Philosophy and history in the work of a believing
physicist. La Salle: Open Court.
McMULLIN, E.: (1990). Comment: Duhem’s middle way. Synthese, 83 (3), 421-30.
METZGER, H.: (1937). Pierre Duhem, la théorie physique et l´histoire des sciences.
Archeion, 19, 135-9.
MILLER, D.: (1966). Pierre Duhem: Ignored intellect. Physics Today, dezembro, 47-53.
MILLER, D.: (1970-80). Duhem, Pierre-Maurice-Marie. Dictionnary of Scientific
Biography, 4, 225-33. New York: Charles Scbiner’Sons.
256
NYE, M.: (1976). The moral freedom of man and the determinism of nature: The catholic
synthesis of science and history in the “Revue des Questions Scientifiques”.
British Journal for the History of Science, 9 (3), 274-92.
ORAVAS, G.: (1980). Introdução a DUHEM, P.: ([1903] 1980). The evolution of
mechanics ix-xxxiii. The Netherlands: Sijthoff & Noordhoff. Traduzido do
original em francês por Michael Cole.
PARODI, D.: (1920). La philosophie contemporaine en France: Essai de classification des
doctrines. Paris: Félix Alcan.
PATY, M.: (1986). Mach et Duhem: L’épistémologie de ‘savants-philosophes’.
Manuscrito, 9 (1), 11-49.
PATY, M.: (1988). Pierre Duhem. Encyclopaedia Universalis: Dictionnaire des
Philosophes, 479-84. Albin Michel.
PAUL, H.: (1972). The crucifix and the crucible: Catholic scientists in the Third Republic.
Catholic Historical Review, 58, 195-219.
PAUL, H.: (1979). The edge of contingency: French Catholic reaction to scientific change
from Darwin to Duhem. Gainesville: University Presses of Florida.
PICARD, É.: (1921). La vie et l´oeuvre de Pierre Duhem. Séance Publique Annuelle du 12
décembre. Endereço eletrônico: http://www.academie-sciences.fr/membres/in_
memoriam/Picard/Picard_pdf/ Picard_Duhem.pdf. Acesso em 19/12/2005.
POIRER, R.: (1967). L’épistemologie de Pierre Duhem et sa valeur actuelle. Etudes
Philosophiques, 4, 399-419.
RAMONI, M.: (1989). Fisica e storia della scienza nell'opera di Pierre Duhem.
Epistemologia, 12, 33-64.
REDONDI, P.: (1978). Epistemologia e storia della scienza: Le svolte teoriche da Duhem
a Bachelard. Milano: Feltrinelli.
REY, A.: ([1907] 1930). La théorie de la physique chez les phisiciens contemporains. 3
a
edição revista e ampliada. Paris: F. Alcan.
REY, A.: (1904). La philosophie scientifique de M. Duhem. Revue de Métaphysique et de
Morale, 12, 699-744.
REY, A.: (1907). Resenha de “La théorie physique”. Revue Philosophique de la France et
de l’Étranger, 61, 324-7.
SEBESTIK, J.: (1998-9). Mach et Duhem: épistemologie et histoire des sciences.
Philosophia Scientiae, 3 (2), 121-40. Actes du colloque France-Autriche. Paris
et Nancy, mai-juin 1995.
257
SOUZA FILHO, O.: (1996). Os princípios da termodinâmica e a teoria da ciência em
Pierre Duhem, tese de doutorado inédita. São Paulo: Universidade de São
Paulo.
SOUZA FILHO, O.: (1998). Energética ou termodinâmica geral, um projeto de unificação
da física teória segundo Pierre Duhem. Cadernos de História e Filosofia da
Ciência, 8 (1), 79-140. Campinas: CLE/Unicamp.
UEBEL, T.: (1998-9). Fact, hypothesis and convention in Poincaré and Duhem.
Philosophia Scientiae, 3 (2), 75-95. Actes du colloque France-Autriche. Paris
et Nancy, mai-juin 1995.
VICAIRE, E.: (1893). De la valeur objective des hypothèses physiques. Revue des
Questions Scientifiques, 33, 451-510.
WEDEKING, G.: ([1969] 1976). Duhem, Quine and Grünbaum on falsification. Can
Theories Be Refuted? Essays on the Duhem-Quine Thesis, 176-83. HARDING,
S. (ed.). D. Reidel: Dordrecht.
WORRAL, J.: (1982). Scientific realism and scientific change. Philosophical Quarterly,
32, 201-31.
Obras de caráter geral
AMPÈRE, A.-M.: (1834). Essai sur la philosophie dês sciences ou exposition analytique
d´une classification naturelle de toutes les connaissances humaines. Paris:
Bachelier.
BERNARD, C.: (1865). Introduction à l’étude de la médicine experimentale. Paris: J.
Baillière.
BERTRAND, J.: (1891). Resenha de Cours de physique mathématique e Eléctricité et
optique de Poincaré. Journal des Savants, dezembro, 742-8.
CHIBENI, S.: (1993). Descartes e o realismo científico. Reflexão, 57, 35-53.
CHIBENI, S.: (1996). A inferência abdutiva e o realismo científico. Cadernos de História
e Filosofia da Ciência, 6 (1), 45-73. Campinas: CLE/Unicamp.
COMTE, A.: ([1830] 1983). Curso de filosofia positiva, 1-39. 2
a
edição. São Paulo: Abril
Cultural. Coleção Os Pensadores. Traduzido do original em francês por José
Arthur Giannotti.
COMTE, A.: ([1844] 1983). Discurso sobre o espírito positivo, 41-99. 2ª edição. São
Paulo: Abril Cultural. Coleção Os Pensadores. Traduzido do original em
francês por José Arthur Giannotti.
258
DESCARTES, R.: (1973). Les principes de la philosophie. Oeuvres Philosophiques, tomo
III. Paris: Garnier Frères. Traduzido do original em latim por Picot.
DOLBY, R.: (1984). Thermochemistry versus thermodynamics: The nineteenth century
controversy. History of Science, 22, 375-400.
DUTRA, L. H.: (1992). A metodologia de Claude Bernard como antecipação da
metodologia popperiana. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, 6 (1),
29-44. Campinas: CLE/Unicamp.
DUTRA, L. H.: (1996). A epistemologia de Claude Bernard. Coleção CLE, vol. 33.
Campinas: CLE/Unicamp.
DUTRA, L. H.: (1996). O realismo científico de Claude Bernard. Século XIX: O
nascimento da ciência contemporânea, 247-60. ÉVORA, F. R. (ed.).
Campinas: CLE/Unicamp.
FRANK, P.: ([1941] 1961). Modern science and its philosophy. New York: Collier Books.
GARRIGOU-LAGRANGE, R.: (1909). Le sens commun, la philosophie de l’être et les
formules dogmatiques. Paris: Beauchesne.
HEMPEL, C.: ([1966] 1981). Filosofia da ciência natural. 3ª edição. Rio de Janeiro:
Zahar. Traduzido do original em inglês por Plínio Sussekind Rocha.
JAMMER, M.: (2000). Einstein e a religião: física e teologia. Rio de Janeiro:
Contraponto. Traduzido do original em inglês por Vera Ribeiro.
KOLAKOWSKI, L.: ([1966] 1981). La filosofía positivista: Ciencia y filosofía. 2ª edição.
Traduzido do original em alemão por Genoveva Ruiz-Ramón. Madrid:
Ediciones Cátedra.
LAKATOS, I.: ([1970] 1979). O falseamento e a metodologia dos programas de pesquisa
científica. A crítica e o desenvolvimento do conhecimento, 109-243.
LAKATOS, I. & MUSGRAVE, A. (orgs). São Paulo: Cultrix. Traduzido do
original em inglês por Octávio Mendes Cajado.
LALANDE, A.: ([1921-2] 1944). Las teorías de la inducción y de la experimentación.
Buenos Aires: Editorial Losada. Traduzido do original em francês por José
Ferrater Mora.
LE ROY, É.: (1901). Un positivisme nouveau. Revue de Métaphysique et de Morale, 9,
143-54.
LECOURT, D.: (1973). Une crise et son enjeu: Essai sur la position de Lénine en
philosophie. Paris: Maspero.
259
LÊNIN, V.: ([1909] 1967). Materialismo y empiriocriticismo: Notas críticas sobre una
filosofía reaccionaria. México: Editorial Grijaldo. Sem indicação do tradutor
do original em russo.
MEYERSON, É.: ([1908] 1951). Identité et réalité. 5
a
edição. Paris: J. Vrin.
MONTEIRO, J. P.: (2003). Novos estudos humeanos. São Paulo: Discurso Editorial.
NEWTON, I.: ([1996] 2002). Óptica. 1ª reimpressão. São Paulo: Edusp. Traduzido do
original em inglês por André Koch Torres Assis.
OLIVA, A.: (1996). É a filosofia de Comte positivista? Século XIX: O nascimento da
ciência contemporânea, 195-220. ÉVORA, F. R. (ed.). Campinas:
CLE/Unicamp.
OSTWALD, W.: ([1895] 1973). La déroute de l’atomisme contemporain. Une crise et son
enjeu: Essai sur la position de Lénine en philosophie, 113-24. LECOURT, D.:
(1973).
PASCAL, B.: (1670). Pensées de M. Pascal sur la religion et sur quelques autres sujets. 2ª
edição. Paris: Guillaume Desprez.
PASCAL, B.: (1979). Pensamentos. Coleção Os Pensadores. 2
a
edição. São Paulo: Abril
Cultural. Traduzido do original em francês por Sérgio Milliet.
PASCAL, B.: (2000). O espírito da geometria & Da arte de persuadir. Lisboa: Didáctica
Editora. Traduzido do original em francês por Antônio Maia da Rocha.
PATY, M.: (2003). A ciência e as idas e voltas do senso comum. Scientiae Studia, 1 (1), 9-
26.
PETIT, G. & M. LEUDET (eds.): (1916). Les allemands et la science. Paris: F. Alcan.
PLASTINO, C.: (1995). Realismo e anti-realismo acerca da ciência: Considerações
filosóficas sobre o valor cognitivo da ciência, tese de doutorado inédita. São
Paulo: Universidade de São Paulo.
POINCARÉ, H.: ([1902] 1984). A ciência e a hipótese. 2
a
edição. Brasília: Editora da
Universidade de Brasília. Traduzido do original em francês por Maria
Auxiliadora Kneipp.
POINCARÉ, H.: ([1905] 1995). O valor da ciência. Rio de Janeiro: Contraponto.
Traduzido do original em francês por Maria Helena Franco Martins.
POINCARÉ, H.: (1902). Sur la valeur objective des théories physiques. Revue de
Métaphysique et de Morale, 10, 263-93.
POMBO, O.: (1998). Da classificação dos seres à classificação dos saberes. Endereço
eletrônico: http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/investigacao/opombo-
classificacao.pdf. Acesso em 22/02/2006.
260
PONDÉ, L.: (2004). Conhecimento na desgraça: Ensaio de epistemologia pascaliana. São
Paulo: Edusp.
POPPER, K.: ([1935] 1980). A lógica da investigação científica, 1-124. 2
a
edição. São
Paulo: Abril Cultural. Coleção Os Pensadores. Traduzido do original em
alemão por Pablo Rubén Mariconda.
POPPER, K.: ([1963] 1972). Conjecturas e refutações: O progresso do conhecimento
científico. Brasília: Editora da Universidade de Brasília. Traduzido do original
em inglês por Sérgio Bath.
POPPER, K.: ([1972] 1975). Conhecimento objetivo: Uma abordagem evolucionária.
Traduzido do original em inglês por Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia.
REY, A.: (1908). La philosophie moderne. Paris: Flammarion.
SANKEY, H.: (2001). Scientific realism: An elaboration and a defence. Theoria, 98, 35-
54.
WHEWELL, W.: ([1968] 1989). Theory of scientific method. BUTTS, R. (ed.).
Indianapolis/Cambridge: Hackett Publishing Company.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo