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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUÃO EM FILOSOFIA
Iluminação trinitária em santo Agostinho
Cristiane Negreiros Abbud
Tese a ser apresentada ao Programa de Pós-
Graduação do Departamento de Filosofia da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de o Paulo, para obtenção do
tulo de Doutor em Filosofia.
Orientação: Prof. Dr. Moacyr Ayres Novaes Filho.
SÃO PAULO
2007
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Para Issam.
2
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Agradecimentos
Agradeço todos aqueles diretamente comprometidos com minha
formação e doadores de toda sorte de recursos: obrigada.
Agradeço ao Prof. Dr. Moacyr Ayres Novaes Filho, orientador desta tese,
por ter acompanhado e posto em cheque cada etapa do percurso aqui resumido.
Reconheço o mérito do cuidado que dispensou à minha pesquisa e a
generosidade ímpar em disponibilizar sua biblioteca.
Ao Prof. Dr. e caro amigo José Carlos Estevão, que me apresentou a
filosofia de santo Agostinho e me orientou no ingresso à academia. Seus
apontamentos eruditos enriqueceram as diversas fases deste trabalho,
sobretudo em seminários e no exame de qualificação.
No exame de qualificação, beneficiei-me com a argüição rigorosa e vívida
do Prof. Dr. João Vergílio G. Cuter.
À Eliete Eça Negreiros por discussões e sugestões. Sua prontidão em ler e
reler esse trabalho foi definitiva; sua erudição convocou, como sempre, meu
amor pelo trabalho de pesquisadora de História da Filosofia.
À colega Zsuzsanna Spiry, cuja leitura lapidar enriqueceu meu trabalho.
Ao amigo Prof. Dr. Carlos Eduardo de Oliveira, ao colega Renivaldo
Rufino e a todos os companheiros do CEPAME, com quem muito aprendi. Ao
3
Prof. Antônio da Silveira Mendonça, cujas aulas valiosíssimas foram âncora e ar
em períodos críticos.
Aos funcionários do Departamento de Filosofia da USP, por anos de
apoio.
Aos dois anos de financiamento do CNPQ.
Aos parentes e amigos que me ofereceram grande suporte e
encorajamento: William, Vera, Paula e Elisabete (in memoriam).
Sinto-me profundamente agradecida ao meu marido Issam, cujo apoio
incondicional é proporcional a nosso amor.
Por fim, fui privilegiada pelo equilíbrio, inspiração e força de Gurumayi,
Sw. Muktananda e Sw. Nityananda.
4
“esta luz não é aquela luz que é Deus; com efeito, esta é
criatura, aquela é o Criador; esta é feita, aquela quem fez;
enfim, esta é mutável porque quer o que não queria, e sabe
o que não sabia, e relembra o que havia esquecido, mas
aquela persiste imutável vontade, verdade e eternidade e,
então, para nós é o início do existir, a razão do conhecer, a
lei do amar; então, para todos os seres animados e
irracionais, é a natureza pela qual vivem, é o vigor pelo
qual sentem, é o movimento pelo qual vão à busca. Então,
também para todos os corpos é a medida para que
subsistam, o número para que sejam embelezados, o peso
para que sejam ordenados. Portanto, aquela luz é a
Trindade inseparável, é o Deus Uno”
Agostinho, Contra o maniqueu Fausto, XX, 7.
1
1
“hoc lumen non est lumen illud, quod est Deus; hoc enim creatura est, Creator est ille; hoc
factum, ille qui fecit; hoc denique mutabile dum uult quod uolebat; et scit, quod nesciebat et
reminiscitur, quod obtlitum erat illud autem incommutabili uoluntate, ueritate, aeternitate
persistit; et inde nobis est initium existendi, ratio cognoscendi, lex amandi, inde omnibus et
inrationalibus animantibus natura, qua uiuunt, uigor, quo sentiuunt, motus, quo adpetunt; inde
etiam omnibus corporibus mensura, ut subsistant, numerus, ut ornentur, pondus, ut
ordinentur. Itaque lumen illud Trinitas inseparabilis, unus Deus est”.
5
RESUMO
Segundo Agostinho, a iluminação é uma ação unilateral de Deus nas criaturas.
O agente iluminador, por sua vez, é pensado a partir da definição de Deus
como Trindade Pai, Filho e Espírito Santo , e a ão de cada uma dessas
pessoas pode corresponder a um sentido específico de iluminação. A Luz
divina faz as criaturas e estabelece nelas uma estrutura trina e semelhante à
Trindade, qual seja, o ser, a forma e o peso. Este trabalho investiga como a
iluminação incide sobre as criaturas e, especialmente, sobre o homem.
ABSTRACT
According to Augustine, enlightenment is a unilateral act from God upon
creatures. The enlightening agent is thought of from the definition of God as
Trinity—Father, Son, and Holy Spirit—and the action of each of these Persons
may correspond to a particular sense of enlightenment. Divine Light gives
origin to creatures and establishes in them a trine structure—namely, being,
shape, and weight—akin to Trinity itself. This study examines how
enlightenment bears upon creatures, and particularly upon man.
PALAVRAS-CHAVE – KEY WORDS (5)
Iluminação Illumination
Criação Creation
Ser Being
Forma Form
Moral Moral
6
Abreviações e traduções de títulos
As abreviaturas adotadas em citações e menções a textos bíblicos seguem
as fornecidas pela Bíblia de Jerusalém
2
.
Antigo Testamento:
Gênesis Gn
Salmos Sl
Eclesiastes (Coélet) Ecl
Sabedoria Sb
Eclesiástico (Sirácida) Eclo
Novo Testamento:
Evangelho segundo são Lucas Lc
Evangelho segundo são João Jo
Ato dos Apóstolos At
Romanos Rm
Efésios Ef
Colossenses Cl
Epístola de são Tiago Tg
Epístolas de são Pedro 1Pd, 2Pd
Epístolas de são João 1Jo, 2Jo, 3Jo
As abreviações referentes às obras de Agostinho partem dos títulos
latinos. Via de regra, reproduzimos as que fornece Cornelius Mayer em sua
2
Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1989.
7
“Lista das obras de Agostinho”
3
; exceto quando indicado. As traduções dos
títulos latinos para o português recebem notas com menção ao tradutor.
Detalhes sobre as edições mencionadas encontram-se nas referências
bibliográficas.
acad. De Academicis libri tres
Contra os Acadêmicos
4
an. et or. De anima et eius origine libri quattuor
Sobre a alma e sua origem
5
an. quant. De animae quantitate liber unus
Sobre a potencialidade da alma
6
beata u. De beata uita liber unus
Sobre a vida feliz
7
c. ep. Man. Contra epistulam Manichaei quam uocant fundamenti liber unus
Contra a epístola de Mani chamada “do fundamento”
8
c. Faust. Contra Faustum Manicheum libri triginta tres
Contra o maniqueu Fausto
9
3
MAYER, C. P. (ORG.), Augustinus-Lexikon. Basel e Stuttgart: Schwabe Verlag, 1986 e ss., pp.
XXVI-XL.
4
Tradução de Vieira de Almeida.
5
Tradução nossa.
6
Tradução de Aloysio Jansen de Faria.
7
Tradução nossa.
8
Para traduzir esse título, partimos da tradução francesa Contre L´Épitre de Mani dite ‘Du
fondement’.
9
Tradução nossa.
8
ciu. Dei
10
De ciuitate dei libri uiginti duo
Sobre a Cidade de Deus
11
conf. Confessionum libri tredecim
Confissões
12
diu. qu. De diuersis quaestionibus octoginta tribus liber unus
Oitenta e três questões diversas
13
en. Ps. Enarrationes in Psalmos
Comentário aos Salmos
14
ep. Epistulae
Cartas
15
Gn. litt. De Genesi ad litteram libri duodecim
Comentário literal ao Gênesis
16
Gn. litt. imp. De Genesi ad litteram liber unus imperfectus
Comentário literal ao Gênesis, inacabado
17
Gn. c. Man. De Genesi contra Manicheos libri duo
18
10
Alteramos a abreviação sugerida por Mayer, acrescentando “Dei”.
11
A tradução do título é de nossa responsabilidade. Citamos trechos da obra conforme a
tradução de Oscar Paes Leme (cf. A Cidade de Deus contra os Pagãos. Petrópolis: Vozes; São Paulo:
Federação Agostiniana Brasileira, vol. II, 1990, 2ª ed.).
12
Conforme as traduções brasileiras de J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina (Petrópolis:
Vozes, 1992, 11ª ed.) e de Maria Luiza Jardim Amarante (São Paulo: Paulus, 1995, 6
a
ed.).
13
Tradução nossa.
14
Tradução das monjas beneditinas do Mosteiro de Maria Mãe de Cristo Caxambu (MG). São
Paulo: Paulus, 1997 (Coleção “Patrística”, 9/1, 9/2 e 9/3).
15
Tradução nossa.
16
Tradução de frei Agustinho Belmonte.
17
Novamente, valemo-nos da tradução brasileira feita por frei Agustinho Belmonte, OAR, São
Paulo: Paulus, 2005 (Coleção “Patrística”, 21).
9
Sobre o Gênesis, contra os Maniqueus
19
Io. eu. tr. In Iohanis evangelium tractatus
Evangelho de S. João – Comentado por Santo Agostinho
20
lib. arb. De libero arbitrio libri tres
Sobre o livre-arbítrio
21
mag. De magistro liber unus
Sobre o mestre
22
mus. De musica libri sex
Sobre a música
23
nat. b. De natura boni liber unus
A natureza do Bem
24
ord. De ordine libri duo
Diálogo sobre a ordem
25
orig. an. De origine animae
Sobre a origem da Alma
26
retr. Retractationum libri duo
18
Nesse caso, não adotamos o mesmo título que Mayer, De Genesi aduersus Manichaeos,
simplesmente porque o original latino disponibilizado pela Patrologia Latina é adotado pela
edição italiana da Città Nuova e pela francesa do Institut d’Études Augustiniennes. A
abreviação segue a alteração correspondente ao título.
19
Adotamos a tradução brasileira feita pelo frei Agustinho Belmonte, OAR, São Paulo: Paulus,
2005. (Coleção “Patrística”, 21).
20
Tradução de Pe. José Augusto Rodrigues Amado, cf. referências bibliográficas.
21
Tradução nossa.
22
Tradução nossa, embora haja outras traduções ao português (cf. referências bibliográficas).
23
Tradução nossa.
24
Conforme a tradução brasileira de Carlos Ancêde Nougué (cf. referências bibliográficas).
25
Tradução de Paula Oliveira e Silva, revisão da tradução de Paulo Farmhouse Alberto. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2000.
26
Tradução nossa.
10
Retratações
27
s. Sermones [185]
Sermões
28
sol. Soliloquiorum libri duo
Solilóquios
29
trin. De trinitate libri quindecim
Sobre a Trindade
30
uera rel. De uera religione liber unus
A verdadeira religião
31
***
As traduções dos textos de Agostinho e de comentadores são de nossa
responsabilidade, exceto quando indicado.
27
Tradução nossa.
28
Tradução nossa.
29
Tradução de Ir. Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulinas, 1993.
30
Tradução nossa.
31
Conforme tradução de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulinas, 1987, 2ª ed.
11
SUMÁRIO
I. Introdução p. 15
II. Sobre o Gênesis, contra os Maniqueus p. 26
- O homem
p. 40
III. Comentário literal ao Gênesis, inacabado p. 54
- O homem
p. 68
IV. Confissões p. 79
V. Comentário literal ao Gênesis p. 114
- A criação e a Trindade p. 117
- A formação e a Trindade p. 125
- O homem p. 135
- Iluminação e moral p. 153
- O repouso final p. 178
- Medida, número e peso p. 180
12
VI. Conclusão p. 196
VII. Referências bibliográficas p. 200
VIII. Apêndices
APÊNDICE A – Cronologia das obras de Agostinho p. 222
APÊNDICE B – Tabelas das semelhanças e imagens trinitárias p. 232
APÊNDICE C – Tabela II p. 235
13
I. Introdução
Pesquisar o significado da iluminação divina nos textos de santo
Agostinho é desafiador: o tema foi amplamente estudado, e se agregaram a ele
diversas interpretações, às vezes divergentes.
Intencionamos restituir a importância de se pensar a iluminação para
além da tradicional ênfase epistemológica, ponderando como ontologia, lógica e
ética correspondem respectivamente à ação luminosa de Deus, que é Pai, Filho e
Espírito Santo. Com o intuito de apresentar o tema em sua envergadura,
convém recapitular sucintamente o histórico das pesquisas desenvolvidas sobre
ele e mostrar que o aspecto da iluminação divina relacionado ao conhecimento
humano foi privilegiado ao longo do século XX
32
. Ao final do mesmo período,
notam-se esforços em favor de se pensar a doutrina da iluminação com outros
escopos teóricos (ontologia e moral), com base em textos de Agostinho. Assim,
dado o engrandecimento do objeto de pesquisa, cumpriu ampliarmos nossa
visão como pesquisadores e admitirmos a veracidade de leituras variadas,
desde que rigorosas. Nesta tese, defendemos a hipótese de que a iluminação é
uma ação do Deus Trindade e estabelece uma tríade nas criaturas o que se
pode indicar em certos textos de Agostinho, examinados mediante certos
critérios. Retratemos o histórico da questão.
32
Conforme as fontes de que dispomos, mencionadas nas refererências bibliográficas,
especialmente aquelas que serão mencionadas nesta introdução.
14
Um ambiente rigorosamente desenhado por renomados comentadores
estabelece a “doutrina agostiniana da iluminação”. Para eles, a iluminação
concerne ao conhecimento humano das verdades divinas, sejam idéias eternas
(como o Imutável, a Verdade, a Felicidade), sejam regras divinas (por exemplo:
o imutável é preferível ao mutável, o verdadeiro ao duvidoso, o eterno ao
temporal). A iluminação da razão humana, em forma de conhecimento,
manifesta a ação do Deus Eterno, Bom e Sábio na criatura racional, temporal,
mutável e pecaminosa.
Teses e polêmicas em torno dessa linha de interpretação marcam grande
parte das pesquisas transcorridas até 1962. De acordo com o levantamento
estabelecido em 1947 por Fulbert Cayré, contar-se-iam naquele momento nove
comentários distintos sobre a relação entre conhecimento e iluminação, dos
quais cinco estariam ultrapassados por incompatibilidade com o texto matriz e
os quatro restantes, dois medievais e dois contemporâneos, seriam retidos por
sua fidelidade ao mesmo. O nono seria elaborado pelo próprio Cayré
33
.
Passados sete anos, em 1954, ocorre o “Congresso Internacional
Agostiniano”, do qual resultou uma publicação que se tornaria referência
indispensável ao pesquisador da filosofia de Agostinho, qual seja, Augustinus
Magister. Naquela ocasião, V. Warnach
34
ofereceu outra leitura sobre a temática
33
CAYRÉ, F., Initiation à la philosophie de saint Augustin, pp. 209-243.
34
WARNACH, V., “Erleuchtung und Einsprechung bei Augustinus”, pp. 429-449.
15
da iluminação, importante segundo Aimé Solignac e Dominique Doucet
35
,
embora sua repercussão não lhe tenha feito justiça.
Aproximadamente oito anos depois, a revista francesa Recherches
Augustiniennes consagra quatro de dezenove artigos à mesma temática
36
; e
Thonnard apresenta uma classificação de dez graus da luz, além de formular
uma definição geral de iluminação:
“A teoria que se propõe explicar todo conhecimento pela
noção de luz. [...] A teoria filosófica que explica pela luz da
Verdade subsistente, ou seja, pela ação da Inteligência
divina, a presença em nossos espíritos de verdades eternas
conhecidas pela sabedoria.” (grifos nossos)
37
A partir de 1962, os estudos sobre a doutrina da iluminação parecem
sofrer uma interrupção. Raros foram os trabalhos sobre essa questão, “como se
a querela relativa à importância da abstração e da elaboração de conceitos
houvesse extenuado a curiosidade dos pesquisadores”
38
, diagnostica
35
SOLIGNAC, A., “Augustinus magister” apud DOUCET, D., “La problématique de la lumière
chez Augustin”. In: Bulletin de Litterature Ecclesiastique, p. 36.
36
KORNER, F. “Abstraktion oder Illumination? Das ontologisghe Problem des ausgustinischen
Sinneserkenntnis”. In: Recherches Augustiniennes, pp. 81-109. SAGE, A. “La dialectique de
l’illumination”. Ibidem, pp. 111-123. THONNARD, F.-J. “La notion de lumière en philosophie
augustinienne”. Ibidem, pp. 125-175. SCHÜTZINGER, C.-E. “Die augustinische Erkentnislehre
im Lichte neuer Forschung”. Ibidem, pp. 177-203.
37
THONNARD, F.-J., “La notion de lumière en philosophie augustinienne”. In: Recherches
Augustiniennes, p. 174-175.
38
DOUCET, D., “La problématique de la lumière chez Augustin”. In: Bulletin de Litterature
Ecclesiastique, p. 31.
16
Dominique Doucet. Dada a qualidade dos trabalhos desenvolvidos, o tema
parecia saturado.
Em contrapartida, os textos de Agostinho e de seus comentadores
também sugeriam outras possibilidades para o estudo da iluminação. Em 1999,
Dominique Doucet defende a tese O tema da luz nos diálogos filosóficos e nas
Confissões de santo Agostinho
39
, buscando desvencilhar-se da tradição
interpretativa via “um estudo lexical a fim de desatar a pesquisa de toda
tentação de concordismo com uma teoria filosófica dominante”
40
. Pelo que
pudemos observar, sua abordagem tem dois aspectos: traça o histórico das
interpretações e desenvolve uma interpretação própria da temática da luz. Com
base nos textos a que tivemos acesso, a tese parece ter repercutido mais como
um alerta sobre o histórico e o rumo da questão do que como uma interpretação
filosoficamente importante, visto ter permanecido inibida pelas anteriores.
Cada vez estava mais claro: embora alguns pesquisadores mencionassem
que a iluminação diz respeito à física, à lógica e à moral, concentraram-se na
lógica, ou seja, na relação entre iluminação divina e conhecimento humano.
Ponderando sobre esse quadro, notamos que essas diversas
interpretações enfocam o aspecto epistemológico da iluminação divina no
homem e constituem um panorama de pesquisa de extrema complexidade e
39
Le thème de la lumière dans les dialogues philosophiques et les Confessions de saint Augustin”. Cf.
DOUCET, D., “La problématique de la lumière chez Augustin”.
40
DOUCET, D., “La problématique de la lumière chez Augustin”, p. 37.
17
dificuldade, quando não um legado algo confuso ao pesquisador do
pensamento de Agostinho. Diante disso, parecia fundamental e inviável
tratar cada um dos comentadores e fazê-los dialogar. Nesse sentido, o projeto
nasceria fracassado, porque o tempo disponível para a nossa pesquisa seria
insuficiente diante do que demandaria a ponderação do que cada uma dessas
leituras privilegiava, bem como do que deixava de tratar.
Esse impasse foi diluído ao percebermos outro critério de pesquisa
sugerido pela metodologia agostiniana. Com efeito, o comentário de Agostinho
aos versículos iniciais do Gênesis tem como seu alicerce um critério amplo de
verdade: as interpretações verdadeiras estão coerentes com o texto, e a mais
verdadeira tem a virtude de acolher todas aquelas trata-se da hermenêutica
agostiniana.
Nosso trabalho integra a nova etapa de pesquisa trilhada por Bourke (em
1992, acerca da iluminação moral)
41
e Vannier (em 1997, ao pesquisar a
iluminação ontológica). Acolhemos sugestões e apoio daqueles que não a
empreenderam totalmente, mas a indicaram, como Étienne Gilson (cujo
enfoque principal recai sobre a iluminação lógica). Em especial, a
fundamentação e o encorajamento necessários à nossa hipótese de leitura foram
encontrados no livro A inteligência da na Trindade segundo Santo Agostinho:
41
BOURKE, V. J., “Moral Illumination”. In: Wisdom from St. Augustine, p. 106.
18
gênese de sua teologia trinitária até 391
42
, escrita por Olivier Du Roy em 1966. Com
efeito, embora os pesquisadores anteriores, à exceção de Du Roy, considerassem
que a iluminação diz respeito à física, à lógica e à moral, ressaltaram e
elaboraram mais o aspecto lógico, ou seja, a relação entre iluminação divina e
conhecimento humano. Ademais, a polêmica desenvolvida parece ter obliquado
o estudo sobre a concepção agostiniana de iluminação, e, de certo modo,
reduziu-se seu valor ontológico e ético a serviço da “grande temática”.
Por outro lado, alguns trabalhos restituem a grandeza da questão, e
nossa apresentação finca-se nesse empenho. Dedicamos esta tese à discussão do
aspecto trinitário da iluminação divina das criaturas em geral e, enfim, do
homem, buscando esclarecer em que sentido, para Agostinho, toda criatura, em
seu respectivo gênero, é “feita e iluminada” por Deus (Gn. litt., I, iii, 7)
43
.
A partir desse pressuposto, o pólo divino amplia-se pela definição de
Deus como Pai, Filho e Espírito Santo e a cada uma dessas pessoas corresponde
uma compreensão peculiar de iluminação. O outro pólo responde aos três
modos de iluminação por uma estrutura tripartite de todas as criaturas:
medida, número e peso
44
, que são o cunho divino nas criaturas corporais e
espirituais.
42
Traduzimos o título, cujo original é L'intelligence de la foi en la Trinité selon Saint Augustin:
genése de sa théologie trinitaire jusqu'en 391.
43
“facta atque illuminata”
44
“Dispuseste tudo com medida, número e peso” (“Omnia in mensura et numero et pondere
disposuisti.” Sb 11,21).
19
A ação paterna confere medida ao ser das criaturas; o Filho imprime os
números (equivalentes às formas, idéias ou razões); e o Espírito atribui o peso.
Contudo, esses três traços, que definem toda e qualquer criatura, não são iguais
e, por essa razão, há gêneros diferentes de seres: corporais (sem vida), animados
(com corpo e sem razão) e racionais (homens e anjos). Ademais, apenas a alma
intelectual do homem foi feita à imagem e semelhança da Trindade
45
.
Examinaremos a exegese de Agostinho ao relato bíblico da criação,
buscando fundamentos para pensar a iluminação divina como atribuição de ser,
especificidade e ordem às criaturas. Em outros termos, estudaremos como a
relação radical de dependência das coisas com Deus é traduzida em termos de
iluminação divina.
Este estudo funda-se, portanto, no comentário agostiniano da palavra de
Deus, expressa nas Escrituras; especialmente nos três capítulos iniciais do livro
do Gênesis, consagrados à criação do mundo, do homem e ao primeiro pecado
humano. Para tanto, analisaremos Sobre o Gênesis, contra os Maniqueus,
Comentário literal ao nesis, inacabado, os livros X, XI e XII das Confissões e
Comentário literal ao Gênesis. Teremos o auxílio de passagens de outros escritos
de Agostinho cuja data de redação não seja muito distante e na medida em que
o permitirem os temas tratados.
45
A alma intelectual não se limita à atividade cognitiva. Para Agostinho, ela é imagem da
Trindade e compreende a memória de Deus, o conhecimento de Deus e o amor para com Deus.
20
Proporcionalmente engrandecida em clareza e complexidade, a
investigação aqui empreendida encontra seu desenvolvimento mais completo
no estudo do homem. A iluminação divina causa no homem um processo
dinâmico, cuja realização se na formação dessa criatura feita ad imaginem
Dei
46
. Trata-se de uma adesão (ad-esse; em direção de ser; para ser), um
movimento para a constituição do ser solidário a um desenvolvimento
anagógico a partir da estrutura triádica das criaturas, e que percorre os diversos
estágios da formação/iluminação tríplice do homem.
Entendemos a criação e a formação trinitárias como modos de
iluminação. Parece-nos mais legítimo esse ponto de partida do que começar por
identificar a iluminação ao conhecimento das verdades imutáveis. Pensamos
que isso contribui para um entendimento da teoria da iluminação mais
teocêntrico e harmônico com o pensamento de Agostinho.
A fim de buscar a semelhança divina nas criaturas como confirmação do
alcance físico, lógico e ético da iluminação, investigamos a iluminação nos
corpos e nos homens. A iluminação do ser incide sobre todas essas criaturas e é
a única relativa aos corpos, de modo que por eles poderemos compreendê-la
melhor. A iluminação do conhecimento e da vontade diz respeito aos homens,
que, portanto, serão estudados
47
.
46
Cf. Gn 1,26.
47
Somente com o propósito de precisar e aprofundar essa compreensão, convirá investigarmos
os seres corporais irracionais (brutos, vegetais e animais) e os espirituais inteligentes (anjos).
21
Não pretendemos estudar exaustivamente a iluminação do homem como
imagem da Trindade tema do Sobre a Trindade. O enfoque que adotamos busca
uma rede de semelhança universal entre as dimensões da criatura e as três
pessoas da Trindade.
Essa formulação da teoria da iluminação resulta do desenvolvimento do
pensamento de Agostinho, como alerta Olivier Du Roy:
“As obras posteriores nos provam que ele completou-a [a
visão metafísica da criação] progressivamente por uma
economia trinitária da criação. [...] iluminação e ontologia
trinitárias continuarão a rivalizar para buscar, enfim, uma
conciliação na analogia trinitária do criado”
48
.
As obras com que escolhemos trabalhar, observando-se a ordem em que
foram produzidas, testemunham as formulações iniciais e o desenvolvimento
do pensamento agostiniano no tocante à atividade de cada pessoa da Trindade
na criação e na formação das criaturas
49
.
48
DU ROY, O., L'intelligence de la foi en la Trinité selon Saint Augustin: genése de sa théologie
trinitaire jusqu'en 391, p. 419.
49
Para Du Roy, “todo estudo sobre o pensamento de Agostinho deveria respeitar estritamente a
cronologia de suas obras.” (DU ROY, O., L'intelligence de la foi en la Trinité selon Saint Augustin:
genése de sa théologie trinitaire jusqu'en 391, p. 15). Ele cita outros estudiosos em seu apoio: “Vide
O. ROTTMANNER, ‘Saint Augustin sur l’auteur de l’epître aux Hébreux’. In: Rev. Bén., 18, 1901,
p. 257: ‘Quando do VIII congresso internacional dos sábios católicos em Munique (25 de
setembro de 1900), proferi algumas palavras sobre a ‘necessidade absoluta de tratar e de utilizar
os escritos de santo Agostinho em ordem histórica e cronológica’. Esse princípio foi
recentemente lembrado por A.-M. BONNARDIÈRE, ‘L’Épitre aux Hébreux dans l’oeuvre de
saint Augustin’. In: Revue des Études Augustiniennes, 3, 1957, p. 137. Ver também P. ALFARIC,
L’évolution intellectuelle de saint Augustin, Paris, 1918: ‘[…] antes de tudo importa ler seus escritos
na ordem que foram redigidos, tendo em conta suas menores nuanças’.” (DU ROY, O.,
22
Agostinho adota uma postura peculiar como comentador do Gênesis:
trata-se de um exercício perseverante de purificação e de humildade, cuja
intenção é afastar interpretações errôneas e oferecer a melhor compreensão que
lhe foi possível. Ele afirma e defende o que lhe parece certo; confessa e expõe
hesitações acerca das incertezas; acolhe e discute diversas posições, explorando
o tema, e pode até mesmo abster-se de privilegiar uma, desde que a verdade da
Escritura seja salvaguardada.
Aqui, as dúvidas são cuidadosamente examinadas e valorizadas como
oportunidades de meditação sobre as verdades divinas transmitidas mediante
as Escrituras. Elas partem da verdade revelada, e a obscuridade do texto é um
apelo à reflexão
50
. Diante das incertezas, nosso autor é cauteloso ao não
prescrever o que deveríamos pensar e ao instruir-nos a fim de que evitemos
interpretações inadequadas
51
.
Por fim, talvez a maior dificuldade na elaboração deste trabalho tenha
sido rendermo-nos a uma perspectiva que, a nosso ver, enriquece e amplia o
campo de trabalho do pesquisador de história da Filosofia. Tal alargamento
implicou constantes reavaliações temáticas para, enfim, alcançarmos uma
L'intelligence de la foi en la Trinité selon Saint Augustin: genése de sa théologie trinitaire jusqu'en 391,
nota 1, p. 15). Em outra nota, Olivier du Roy cita H.-I. MARROU, Saint Augustin et la fin de la
culture antique, p. 246: “[…] nada é mais perigoso do que interpretar um termo agostiniano a
partir de um texto tomado de uma obra diferente daquela em que ele é lido, sobretudo se essa
obra é de uma data distante ou de caráter diferente.” (DU ROY, O., L'intelligence de la foi en la
Trinité selon Saint Augustin: genése de sa théologie trinitaire jusqu'en 391, nota 5, p. 17).
50
Cf. Gn. litt., I, xx, 40.
51
Sobre esse posicionamento, conferir Gn. litt., XII, i, 1.
23
abordagem factível, rigorosamente justificada pelas obras de Agostinho que
escolhemos examinar.
24
Capítulo I
O primeiro comentário de Agostinho ao Gênesis: Sobre o Gênesis,
contra os Maniqueus
52
No ano 388, santo Agostinho escreve seu primeiro comentário ao Gênesis,
em oposição às críticas maniqueístas ao Antigo Testamento. A estrutura de
Sobre o Gênesis, contra os Maniqueus
53
consiste em citar a narração bíblica,
apresentar a explicação equivocada dos maniqueus e, finalmente, propor uma
interpretação mais correta. O autor dispõe os temas sem encadeamento
52
Redigido por Agostinho em 388-389, quando retornou de Roma à África. Cf. retr., I, x, 1; Gn.
litt., VIII, ii, 5.
53
A aceitação da autoridade dos textos do Antigo Testamento, que inclui o Gênesis, resulta de
um percurso intelectual de Agostinho. Seus primeiros contatos com o Gênesis foram
decepcionantes (Cf. conf., III, v, 9.). Desde criança, tinha conhecimento de traços do Novo
Testamento, especialmente referentes a Jesus Cristo, por intermédio de sua mãe, que era cristã
(Cf. conf., III, iv, 8); e o contato com o Antigo ocorreu por volta dos dezenove anos de idade,
depois da leitura do Hortensius de Cícero. Nessa época, Agostinho havia abandonado o
maniqueísmo; contudo, seguia imbuído das objeções maniqueístas ao Gênesis. Segundo Aimé
Solignac, as principais críticas versavam “sobre a natureza de Deus e sua imagem no homem,
sobre a origem do mal e sobre os costumes dos patriarcas” (SOLIGNAC, A., “Exégèse et
Métaphysique Genèse 1,1-3 chez saint Augustin”, p. 153). Ademais, Agostinho certamente
conhecia o dualismo maniqueu acerca do conflito entre as duas forças opostas do bem (Luz) e
do mal (trevas), o que, segundo Solignac, “explicaria seu interesse ulterior pelos três primeiros
versículos” (SOLIGNAC, A., “Exégèse et Métaphysique Genèse 1,1-3 chez saint Augustin”, p.
153). O abandono do maniqueísmo por Agostinho não resultou de uma melhor compreensão da
Bíblia, e sim da insatisfação com as respostas oferecidas a questões como a causa da existência
do mal. O olhar de Agostinho ao Antigo Testamento somente se transforma depois que ele ouve
os sermões de Ambrósio, provavelmente em 362, cuja interpretação espiritual da Bíblia
modificava a compreensão a respeito dos seis dias da criação (cf. COURCELLE, Pierre,
Recherches sur les Confessions de saint Agustin, pp. 97-100, 123-124). “Entretanto”, observa
Solignac, “a pregação de Ambrósio não foi decisiva na sua conversão intelectual; a leitura
dos escritos neoplatônicos lhe forneceu uma metafísica capaz de mediar os dados da Escritura e
permite a ele compreender e aceitar o ensinamento de Ambrósio” (SOLIGNAC, A., “Exégèse et
Métaphysique – Genèse 1,1-3 chez saint Augustin”, p. 154).
25
argumentativo, mas seguindo à letra o texto bíblico; não obstante, pincela o
horizonte de uma exegese sobre a criação sabidamente polêmica
54
.
Esse comentário, composto de dois livros, consagra-se principalmente a
interpretar o relato bíblico sobre a criação divina. No livro primeiro,
indispensável à nossa pesquisa, Agostinho debruça-se sobre os seis dias da
criação e o descanso sabático de Deus (Gn 1,1 a 2,3); o segundo prossegue
comentando outra narrativa atinente à mesma temática (Gn 2,4 a 3,24). Naquele,
entrevemos que a especulação sobre o relato da criação nasce vinculada à clara
insinuação da ação criadora da Trindade.
Analisaremos a exegese agostiniana de “No princípio Deus fez o céu e a
terra” (Gn 1,1)
55
em dois momentos. Primeiramente, Agostinho identifica
“princípio”, o Verbo e o Filho; em seguida, volta-se para o mínimo grau de ser
possível a uma criatura ao comentar “céu e terra”. Finalmente, examinaremos
“Deus disse: ‘faça-se a luz’” (Gn 1,3)
56
e a classificação agostiniana dos diversos
tipos de luz.
54
No século IV, as exegeses bíblicas que definem a creatio apresentam dois fundamentos
herdados direta ou indiretamente por Agostinho: a criação é totalmente realizada por Deus,
assim como a liberdade e a gratuidade da criação. De acordo com essa tradição, a criação divina
do mundo estabelece a dependência ontológica de toda criatura em relação a Deus; ser equivale
a ser criado por Deus, ou seja, Deus é o autor absoluto da criação, que depende dele para ser. A
creatio divina, nesse contexto, é também a livre doação de existência aos seres, de tal sorte que
sejam diferentes e posteriores a Deus. uma separação peculiar entre criador e criaturas, não
uma cisão. Com efeito, eis o que ocasiona a criação: Deus, por sua palavra, manifestou
livremente sua vontade de criar todo o universo; Deus, por um ato gratuito, confere existência
aos seres enquanto criaturas (cf. VANNIER, M.-A., “Creatio”, “conversio”, “formatio” chez s.
Augustin, p. 2-11).
55
“In principio fecit Deus coelum et terram”.
56
“Et dixit Deus: fiat lux”.
26
Cabe advertir que é legítimo buscarmos as relações entre criação e
Trindade em Agostinho, desde que preservemos a lacunosidade original do
texto. Por exemplo, no Sobre o Gênesis, contra os Maniqueus, o autor explica o
papel do Filho e do Espírito Santo na criação e manutenção das criaturas, mas
não se pronuncia acerca do Pai; em contrapartida, na definição dos três modos
de causalidade nas criaturas, o segundo é relacionado ao Filho e o terceiro, ao
Espírito isso induz o leitor a supor que a primeira causalidade seja atinente ao
Pai, embora Agostinho omita tal correspondência no texto. Ao que parece, isso
revela a cautela de santo Agostinho em introduzir novos conceitos em uma
tradição exegética. Portanto, atenhamos-nos ao texto, admitindo a proposital
lacuna da exposição.
Partimos da crítica feita pelos maniqueus à forma como se apresenta a
criação divina no Antigo Testamento, “No princípio Deus fez o céu e a terra”
(Gn 1,1)
57
. Eles contestam que se Deus tivesse feito o céu e a terra no princípio
(do tempo), seriam possíveis perguntas como: se esse princípio é temporal,
então, o que Deus fazia antes de criar o céu e a terra? Por que ele teria decidido
fazer algo que jamais fizera durante a eternidade?
O contra-argumento de Agostinho apóia-se na aproximação de duas
passagens bíblicas
58
: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus”
57
“In principio fecit Deus coelum et terram”.
58
Aproximação feita por Ambrósio, a qual Agostinho certamente ouviu. Cf. AMBRÓSIO,
Hexameron, I, ii, 5.
27
(Jo 1,1)
59
, referência imediata ao verseto em questão, e (respondendo Jesus aos
judeus) “Sou o princípio, eu que vos falo” (Jo 8,25)
60
. Os versetos selecionados
permitem afirmar que a expressão “no princípio” não significa “no começo do
tempo”
61
, mas se refere ao Cristo-Verbo, acerca do qual se afirma: “junto ao Pai,
estava o Verbo pelo qual e através do qual tudo foi feito” (Gn. c. Man., I, ii, 3)
62
.
O Filho define-se duplamente. Primeiramente, é “por quem foram feitas”
todas as coisas (Gn. c. Man., I, ii, 4)
63
; não é quem as criou, mas tudo foi feito por
seu intermédio.
Em segundo lugar, a identificação do Filho, segunda pessoa da Trindade,
com o Verbo é um elemento novo nos textos de Agostinho. No que diz respeito
ao Verbo, retomam-se os temas da encarnação e da economia da salvação que já
compareciam no Contra os Acadêmicos, agora elaborados em termos de “Verbo”.
O Verbo-Filho, que está junto ao Pai, renuncia aparecer em toda sua grandeza
com o intuito de fazer-se mais perceptível àqueles cujo coração se encontra
maculado pelo pecado; “aparecendo aos homens em um homem, quando o
Verbo se fez carne e habitou entre nós (Jo 1,14)” (Gn. c. Man., II, xxiv, 37)
64
. Ele vem
59
“In principium erat Verbum, et Verbum erat apud Deum”.
60
“Principium, quod et loquor uobis”.
61
Para Agostinho, o tempo e o mundo foram criados simultaneamente. Ambos são criaturas
mutáveis e, portanto, não coeternas com Deus. Cf. Gn. litt. imp., III, vi, 1-viii, 4 e ciu. Dei, XII, 16.
62
“Verbum esset apud Patrem, per quod facta et in quo facta sunt omnia.”
63
“per quem facta sunt”
64
“[…] apparendo hominibus in homine, cum uerbum caro factum est et habitauit in nobis (Jo
1,14).”
28
ao mundo como Jesus Cristo
65
, como o redentor dos pecados humanos e
mediador, para mostrar a via para os homens encontrarem a verdadeira
felicidade, retornando para Deus. Entretanto, o Verbo não se afastou localmente
do Pai, pois Deus não es contido em um lugar; tampouco abandonou
moralmente seu estatuto; sequer mudou de natureza, como se adquirisse a do
homem, embora tenha se submetido ao peso da inferioridade humana
66
. Logo, o
Verbo permanece imutável.
Tanto como Princípio quanto como Cristo, o Filho orienta-se para as
criaturas, como auxílio necessário à feitura e à salvação.
As referências textuais ao Pai, no Sobre o Gênesis, contra os Maniqueus, são
pouquíssimas. Apenas mencionam que é onipresente e que o Filho se afastou
dele ao assumir uma natureza humana não houve afastamento espacial, pois
o Pai está em todos os lugares
67
. Não se atribui expressamente a criação ao Pai,
mas tampouco se nega a ele essa atribuição. Deus “fez tudo do nada” (Gn. c.
Man., I, ii, 4)
68
, de modo que as criaturas não foram feitas a partir da substância
divina e, portanto, não são iguais a Deus.
65
“Eu saí do Pai e vim a este mundo” (“Ego a Patre exiui et ueni in hunc mundum.” Jo 16,28)
apud Gn. c. Man., II, xxiv, 37.
66
Acerca da imutabilidade do Verbo, ver: DU ROY, O., L'intelligence de la foi en la Trinité selon
Saint Augustin: genése de sa théologie trinitaire jusqu'en 391, p. 343, nota 6; p. 186, notas 2 e 3.
67
Gn. c. Man., II, xxiv, 37. Pensamos que a resumida e cautelosa afirmação sobre o Pai é
extremamente reveladora do desenvolvimento do pensamento agostiniano acerca da Trindade.
No Sobre o Gênesis, contra os Maniqueus, Agostinho sequer afirma o Pai como criador.
68
“ea [omnia] fecit de nihilo”.
29
Quanto ao Espírito, entende-o Agostinho como a vontade divina criadora
do mundo. Esse é o significado da passagem subseqüente do nesis: “e o
espírito de Deus pairava (superferebatur) sobre a água” (Gn 1,2)
69
. O Espírito é a
vontade de Deus que estava por sobre as obras a serem criadas, não
espacialmente (como o Sol em relação à Terra), mas como uma potência divina
invisivelmente superior
70
ou, buscando uma explicação humana e cotidiana,
como a vontade de um artesão em relação àquilo que irá fabricar. Portanto, a
vontade divina que cria o mundo é o Espírito.
Ela é a causa absoluta de tudo que é e nenhum motivo anterior, coeterno
ou superior a move senão a própria vontade de Deus. Por que Deus criou o
mundo? A resposta é “porque ele quis”. Portanto, não é possível conhecer a
causa da vontade de Deus, mas seu efeito e, conseqüentemente, sua
superioridade em relação ao que produziu: Deus criou o céu e a terra e lhes é
superior
71
.
69
“Et spiritum Dei superferebatur super aquam.”
70
“Com efeito, aquele Espírito não estava sobre as águas por espaços locais, mas pela potência
da sua sublimidade invisível” (“Non enim per spatia locorum superferebatur aquae ille spiritus,
sed per potentiam inuisibilis sublimitatis suae” Gn. c. Man., I, v, 8).
71
Para Agostinho, algo anterior à vontade divina deveria ser-lhe também superior porque “toda
causa é eficiente. Ora, tudo que é eficiente é maior do que o que é feito. Por outro lado, nada é
maior do que a vontade de Deus” (“omnis causa efficiens est. Omne autem maius est quam id
quod efficitur. Nihil autem maius est uoluntate Dei.” div. qu., xxviii). A fim de conhecer a
vontade divina, é preciso tornar-se seu amigo, pois seria risível buscar conhecer a vontade de
um inimigo. Nesse sentido, são indispensáveis costumes muito puros e o “fim do preceito”,
acerca do qual é dito: “O fim do preceito é a caridade vinda de um coração puro, a boa
consciência e a não dissimulada” (“Finis autem praecepti est caritas de corde puro et
conscientia bona et fide non ficta” apud Gn. c. Man., I, ii, 4 Tm 1,5). O conhecimento depende
diretamente da purificação do espírito. Enquanto permanece ímpio, o homem é incapaz de
compreender a vontade de Deus.
30
Ao se voltar para o exame da criatura em seu grau mais ínfimo,
Agostinho encontra o ambiente para buscar compreender a relação das três
pessoas da Trindade com as criaturas
72
.
“No princípio Deus fez o céu e a terra” (Gn 1,1)
73
. “Céu e terra” designam
o conjunto da criação e não o céu e a terra que conhecemos pelos sentidos da
percepção; seu significado se revela no verseto consecutivo: “mas a terra era
invisível e desorganizada” (Gn 1,1)
74
. Para os maniqueus, precisamente esse
versículo era a antítese do primeiro; pois se antes se afirmou que tudo teria sido
criado, “mas” indicaria a eternidade da terra invisível e desorganizada, ou seja,
a eternidade da matéria. Em réplica, Agostinho defende, pela primeira vez em
sua obra, a criação da matéria informe. Na perspectiva agostiniana, a matéria
foi feita informe e confusa, e, a partir dela, todas as coisas foram formadas,
72
Esse traço do pensamento agostiniano é coerente com a inefabilidade divina.
73
“In principio fecit Deus coelum et terram.”
74
“terra autem erat inuisibilis et incomposita”
31
diferenciadas e dispostas em ordem (“distincta atque formata”)
75
. Eis sua
resposta:
no princípio Deus fez o céu e a terra (Gn 1,1), mas a terra,
que Deus fez, era invisível e desorganizada antes que
Deus dispusesse as formas de todas as coisas em seus
lugares e sedes, mediante uma distinção ordenada.” (Gn.
c. Man., I, iii, 5 – grifo nosso)
76
Trata-se de uma oposição contundente a um dos pilares do pensamento
maniqueu, qual seja, a eternidade da matéria. Para nosso autor, a matéria foi
criada a partir do nada e, a partir dela, as demais criaturas
77
. Ademais, o
75
Olivier du Roy ressalta a singularidade do conceito agostiniano de matéria informe.
“Constatamos, inicialmente, que Agostinho, falando pela primeira vez dessa matéria informe,
não a chama nem de hyle nem de silua”, mas de materia” (palavra que ainda não havíamos
encontrado nele). Ele não faz qualquer alusão a uma doutrina neoplatônica da matéria ou da
criação da matéria, mas remete aos poetas gregos e a um verseto do livro da Sabedoria. A alusão
ao caos poderia vir de Lactâncio. Quanto à citação de Sb 11,18, ele encontrou-a por si mesmo,
tendo lido esse livro muito atentamente, como observamos a propósito do De moribus. Não a
encontramos, em caso algum, sequer no Hexameron de Ambrósio nem no de Basílio, tampouco
na introdução de Eustate” (DU ROY, O., L'intelligence de la foi en la Trinité selon Saint Augustin:
genése de sa théologie trinitaire jusqu'en 391, p. 273). Para Du Roy, Agostinho teria evitado o uso
da palavra “matéria” esquivando-se da difícil tarefa de defini-la e de sucumbir ao grosseiro
dualismo materialista do pensamento maniqueu. Até o Sobre o Gênesis, contra os Maniqueus, ele
empregava palavras como corpus, moles, quantitas, sensibilia, extrema e ima (Cf. DU ROY, O., idem,
p. 273-276). Quanto às fontes teóricas principais no tocante ao tema da matéria informe no Sobre
o Gênesis, contra os Maniqueus, M. Dulay afirma que “parecem ser Lactâncio e o Ambrosiaster,
talvez também Calcídio, muito mais do que Plotino” (DULAEY, M., nota 2, p. 512. In:
AUGUSTIN, Sur la Genèse contre les Manichéens, Sur La Genèse au Sens Littéral, livre inachevé,
“Bibliothèque Augustinienne” 50).
76
in principio fecit Deus caelum et terram, terra autem ipsa quam fecit Deus inuisibilis erat et
incomposita, antequam Deus omnium rerum formas locis et sedibus suis ordinata distinctione
disponeret”
77
Agostinho herda essa posição de Ambrósio, que reafirma o rompimento definitivo de Basílio
com relação às principais concepções de matéria, segundo as quais ela seria eterna. Para Basílio,
conforme a interpretação dos versetos genesíacos atinentes à criação, a matéria é uma criatura
de Deus. (Cf. DI CESAREA, B., Sulla Genesi
Omelie sull’Esamerone, 1). Seu confesso admirador,
32
conceito de matéria informe envolve a afirmação de dois momentos da criação:
primeiro, a criação da matéria a partir do nada (de nihilo)
78
; depois, sua
formação (recepção das formas segundo a sabedoria divina) e ordenação
(posição na ordem geral da criação conforme a vontade de Deus) em criaturas
específicas e singulares. A anterioridade da matéria informe em relação aos
seres formados e ordenados se afirma em sentido lógico; cronologicamente,
matéria, forma e ordem são criadas simultaneamente. Ora, isso é possível
porque o Deus de Agostinho não tem a necessidade de se servir de algo para
realizar sua vontade de criar; Deus é todo-poderoso e não cria como um artesão
cujo trabalho se aplica a uma matéria-prima existente da qual ele mesmo não é
o criador
79
.
Agostinho forjou o conceito de matéria informe, e nos importa,
sobretudo, mostrar de que maneira ele atribui a essa criatura, ao menos por
antecipação, as três dimensões do ser. Com efeito, apóia-se em três
denominações da matéria informe na narração do nesis, cada qual
designando uma particularidade: “céu e terra”
80
, “terra invisível e
Ambrósio de Milão defende a mesma posição e, pela primeira vez na história da filosofia
ocidental, acresce que a matéria foi feita por Deus de nihilo (a partir do nada). Cf. TORCHIA, N.
Joseph, Creatio ex nihilo and the Theology of st. Augustine – the Anti-Manichean Polemic and Beyond,
pp. 17-21.
78
Agostinho “diz de nihilo e não ex nihilo, como os outros Pais, pois ele retoma a versão da Vetus
Latina de que dispunha” (VANNIER, M.-A., “Creatio et formatio dans les Confessions”, p. 74).
79
Cf. Gn. c. Man., I, vi, 10. O Demiurgo de Platão é um Deus artesão, que cria a partir de uma
matéria-prima caótica e eterna. Cf. PLATÃO, Timeu, 30a - 30c.
80
Cf. Gn. c. Man., I, vii, 11.
33
desorganizada” e “água”
81
. Quanto ao primeiro nome, lemos “No princípio
Deus fez o céu e a terra” (Gn 1,1)
82
, o que não pode significar que céu e terra
preexistissem, pois se afirma em seguida que o céu foi criado; entretanto, é
coerente interpretar que poderiam existir. Trata-se de uma prolepse, figura de
estilo constante nas Escrituras e na linguagem corrente
83
. Eis sua definição:
“quando esperamos isso que certamente está para
acontecer, dizemos: ‘considera ocorrido’.” (Gn. c. Man.,
I, vii, 11)
84
Considerando a semente de uma árvore, podemos afirmar que nela a
virtualidade de tudo o que uma árvore pode ter e daquilo que fará dela uma
árvore: raízes, tronco, galhos, frutos, folhas. Essas coisas são na semente, não
porque existam plenamente no presente, mas porque se realizarão no futuro.
Nesse sentido, afirma-se “No princípio Deus fez o céu e a terra” (Gn 1,1)
85
, o que
significa tanto haver “no princípio” como que o germe do “céu” e da “terra”,
quanto a certeza de que serão feitos dessa matéria na etapa seguinte, embora
81
Cf. Gn. c. Man., I, vii, 12.
82
“In principio fecit Deus coelum et terram”.
83
Pierre Monat lembra-nos tratar-se “aqui da figura de prolepse ou antecipação” (Sur la Genèse
contre les Manichéens, “Bibliothèque Agustinienne” 50, p. 183, nota 57), identificada por
Agostinho em Jo 15,15; 16,12, bem como em inúmeras passagens bíblicas. Nota-se a referência à
presciência divina, referida ao mesmo verseto por Ambrósio, Hexameron, 2, 5, 21, CSEL 32, 1, p.
58, 17-21 (ibidem, p. 184, nota 59).
84
“cum id quod certissime futurum speramus, dicimus: ‘iam factum puta’.”
85
“In principio fecit Deus coelum et terram”.
34
ainda não fossem
86
. Portanto, o que viria a ser era na matéria informe a
semente do que seria, embora ainda não tivesse atualizadas todas as
características do que se tornaria no futuro
87
.
Em segundo lugar, o Antigo Testamento refere-se à matéria informe
mediante duas expressões, das quais Agostinho explicou a primeira: “terra
invisível e desorganizada” e “abismo com trevas”, “porque entre todos os
elementos do mundo, a terra parece menos bonita (speciosa) do que os demais.”
(Gn. c. Man., I, vii, 12)
88
“porque era informe e sem espécie alguma que se
pudesse ver ou tocar, ainda que houvesse um homem que visse e tocasse.” (Gn.
c. Man., I, vii, 12)
89
.
É desorganizada (incomposita) por ser uma massa informe sem ordem
nem unidades.
86
Conforme observa M. Dulaey em nota ao Sobre o Gênesis, contra os Maniqueus, talvez
Agostinho tivesse tomado conhecimento da noção de razões seminais nos neoplatônicos, em
especial em Plotino (Plotin, Enn. 2, 3, 13 e 17); “poderia igualmente ter lido no Ambrosiaster
(Quaest. 106, 10, CSEL 50, p. 240, 7-11) que as substantiae criadas em primeiro, que seriam como
os materiais do mundo, podiam ser chamadas de mundo porque elas teriam servido à sua
criação” (DULAEY, M., nota 56, p. 182. In: AUGUSTIN, Sur la Genèse contre les Manichéens, Sur
La Genèse au Sens Littéral, livre inachevé, “Bibliothèque Augustinienne” 50).
87
A prolepse marca um traço importante na filosofia agostiniana. Aquilo que é e ainda não foi
constituído como uma criatura determinada é uma criatura (indeterminada). Adiante, no
estudo sobre a correspondência entre a iluminação e os três aspectos constitutivos de toda
criatura, o ser e a vida não são iluminados efetivamente, mas o são por antecipação, na medida
em que correspondem à capacidade de serem iluminados, sem a qual a iluminação divina não
tem seu correlato, ou seja, não pode ser concebida logicamente.
88
“quia inter omnia elementa mundi terra uidetur minus speciosa quam cetera”.
89
“quia informis erat et nulla specie cerni aut tractari poterat, etiamsi esset homo qui uideret
atque tractaret.” Agostinho refere-se à forma como aquilo que torna as coisas perceptíveis aos
sentidos; ademais, por ter mencionado homens e não animais, é possível identificar a forma ao
menos como compatível com a natureza da intelecção, ou ainda insinuá-la como unidade de
intelecção.
35
Por fim, a terceira menção à matéria é “água”, e o texto bíblico
acrescenta, “sobre a qual pairava o Espírito de Deus” (Gn. c. Man., I, vii, 12)
90
.
Vimos que as Escrituras associam o Espírito de Deus à vontade divina, superior
ao mundo criado. Assim se diz do Espírito em relação à “água”. A “água”
exprime a matéria dúctil, maleável, moldável, que não impõe dificuldades para
ser trabalhada ou obtida, favorável ao artesão. Consiste numa disposição de
corresponder fácil e prontamente à vontade divina, em branda submissão ao
Espírito: “é dita água, pois, fácil de ser trabalhada e dúctil, submetia-se àquele
que trabalhava, para que dela tudo fosse formado.” (Gn. c. Man., I, vii, 12)
91
.
Ademais, a matéria informe é dita “água” por se referir ao exórdio da
vida: “porque tudo o que nasce na terra, sejam animais, sejam árvores ou ervas
e outras coisas semelhantes, começa a se formar e a se nutrir do líquido” (Gn. c.
Man., I, vii, 12)
92
.
A relação entre o terceiro aspecto da matéria informe (criatura) e a
terceira pessoa da Trindade (criadora) parece sugerir uma correlação do Pai e
do Filho-Verbo com os dois outros aspectos da mesma criatura: o Pai
representaria a criação da semente das criaturas, que serão feitas no futuro com
a matéria, e o Filho relaciona-se à capacidade de serem formadas. A partir
disso, em consonância com o estatuto do pensamento agostiniano desse
90
“super quam ferebatur spiritus Dei”
91
“dicta est aqua, quia facilis et ductilis subiacebat operanti ut de illa omnia formarentur.”
92
“quia omnia quae in terra nascuntur, siue animalia, siue arbores uel herbae et si qua similia,
ab humore incipiunt formare atque nutriri.”
36
período, poderíamos desenvolver as implicações das correspondências entre
criatura e Trindade. Contudo, o texto não traz esse desenvolvimento: ele expõe
uma única correlação, e isto convida o leitor a encalçar os indícios das demais.
No Sobre o Gênesis, contra os Maniqueus, Agostinho associa a feitura das
criaturas à iluminação divina. O ato criativo de Deus, no aspecto formador das
criaturas, é assinalado mediante o seguinte verseto: “Deus disse: ’Faça-se a luz’”
(Gn 1,3)
93
. Antes dessa passagem, a narração bíblica tematizava a matéria
informe desordenada e invisível e as trevas. A partir do fiat lux a
indeterminação anterior à criação das coisas é rompida pela iluminação divina,
que, nesse contexto, significa que Deus dispôs “mediante uma distinção
ordenada as formas de todas as coisas em seus lugares e sedes”
(Gn. c. Man., I,
iii, 5)
94
. Iluminar é, portanto, conceder formas, ordem, posições e distinções.
Notamos que se transpõe a correlação entre trevas e luz para a sucessão da
matéria informe e desordenada pelas coisas com formas, que as situam na
ordem divina e lhes conferem singularidade e distinção. Em ambos, o fiat lux
produz essa mudança. Se “Deus disse: fiat lux’”, então fiat lux equivale ao
Verbo divino, ou seja, ao Filho que, como vimos, é por quem Deus faz criaturas
ordenadas e distintas. O Verbo dito não é a luz criada, mas ilumina-a para que
seja feita.
93
“Et dixit Deus, Fiat lux” apud Gn. c. Man., I, iv, 7.
94
Citamos apenas a parte grifada e adaptamos o tempo do verbo da oração latina “id est: In
principio fecit Deus coelum et terram; terra autem ipsa quam fecit Deus, inuisibilis erat et
incomposita, antequam Deus omnium rerum formas locis et sedibus suis ordinata distinctione
disponeret: antequam diceret: ‘Fiat lux’, et: ‘Fiat firmamentum’” (grifo nosso).
37
Também no contexto da salvação se reafirma a associação da luz com o
Filho. Há três sentidos para luz: a luz sensível, a luz na qual Deus habita e a luz
que provém desta. “Luz” significa a luz que vemos mediante os olhos
corporais, porém outra luz “na qual Deus estava antes de fazer aquela luz”
(Gn. c. Man., I, iii, 6)
95
. Dessa luz, “na qual Deus habita” (idem)
96
, provém uma
outra, não sensível, acerca da qual o Evangelho afirma: “Era a luz verdadeira,
pois ilumina todos os homens que vêm a este mundo” (Jo 1,9)
97
. Com efeito, a
luz solar não ilumina todo o homem, mas apenas seus olhos e seu corpo;
ademais, as águias superam-no na habilidade de vê-la. Por outro lado, a luz que
ilumina todo o homem não nutre os sentidos corporais comuns a ele e aos
animais, porque estes são privados de razão; ela ilumina a razão e nutre os
corações puros dos homens que acreditam em Deus e são convertidos,
afastando-se do amor pelas coisas corporais e temporais para cumprirem
preceitos divinos. Ora, o Verbo se fez carne e converteu os homens que se
deformavam afastando-se de Deus ao amarem os seres corporais; a partir da
intervenção do Filho, fazendo-se carne, os homens podem se converter para
formar-se perfeitamente de acordo com as prescrições divinas. Por agora, não
empreenderemos o estudo da formação dinâmica do homem feito à imagem de
Deus; contudo, é justificável afirmarmos a intervenção divina na criação do
homem e, em particular, do Filho em sua formação.
95
“[lucem] in qua Deus erat antequam faceret istam lucem”
96
“in qua Deus habitat”
97
“Erat lumen uerum, quod illuminat omnem hominem uenientem in hunc mundum”
38
O texto que estamos discutindo não fomenta paralelismos entre a
iluminação e o Pai, a primeira pessoa da Trindade. Parece-nos ser intento de
Agostinho, no Sobre o Gênesis, contra os Maniqueus, colocar algumas questões
fundamentais acerca da criação e, por isso, propor-lhes respostas parciais a fim
de sinalizar um possível encaminhamento ou mesmo a inesgotabilidade do
tema.
O homem
Motivo da mais forte e maior ironia dos maniqueus contra os cristãos
98
, a
acepção de homem como criatura feita à imagem de Deus era interpretada por
eles como uma semelhança entre corpos humanos e Deus
99
, ou seja, como
antropomorfismo divino. Isso ocasionava perguntas inadequadas, por exemplo,
se ele tem “narinas, dentes, barba, órgãos internos” (Gn. c. Man., I, xvii, 27)
100
.
Para Agostinho, crer na corporeidade divina é “ridículo, ou melhor, ímpio”
(Gn. c. Man., I, xvii, 27)
101
, pois Deus é espiritual e não se delimita por um
formato corpóreo. Se as escrituras por vezes mencionam seus membros
102
,
98
Cf. conf., III, vii, 12.
99
Quando ainda era adepto do maniqueísmo, Agostinho criticou o cristianismo ao interpretar
que o Deus cristão teria um corpo semelhante ao do homem. Somente através das homilias de
Ambrósio, livrou-se dessa incompreensão, passando a entender que o homem teria sido feito à
imagem divina no aspecto da razão, e não corporalmente (cf. conf.,VI, iii, 4).
100
“nares et dentes et barbam et membra etiam interiora”
101
“ridiculum est, immo impium credere”
102
Cf. Gn. c. Man., I, xvii, 27.
39
motiva-o o propósito pedagógico de falar a interlocutores de pouca
envergadura; na verdade, o sentido dessas passagens é espiritual: designam as
potências espirituais divinas
103
. A semelhança do homem com Deus não está no
corpo humano.
Entretanto, algo em nosso corpo alude a Deus. À diferença dos animais
(aquáticos, terrestres ou aéreos) inclinados para a terra e não para o alto, os
homens se posicionam verticalmente, em direção ao alto. Claramente isso não
explica a definição de homem, mas revela que a alma racional deve direcionar
sua atenção para o que lhe é superior, às aeterna spiritalia
104
.
Eliminados os equívocos referentes ao corpo, Agostinho defende a
perspectiva que conhecera nas homilias de Ambrósio de Milão, pela qual se
libertou definitivamente da absurdidade de um Deus antropomórfico
105
. Pela
103
Os maniqueus recusavam o Antigo Testamento, adotando apenas o Novo. Contudo,
redargúi Agostinho, se julgavam absurdas as menções corporais a Deus, seria necessário
repudiarem, pelo mesmo motivo, o Novo Testamento a exemplo de Mt 5,34-35 (Cf. Gn. c. Man.,
I, xvii, 27; uer. rel., L, 99). Os elementos da argumentação agostiniana pertencem à tradição
exegética que ele conhecia. Cf. DULAEY, M., “Les antropomorphismes bibliques et les
manichéens (Gn. c. Man., I, xvii, 27)”. In: AUGUSTIN, Sur la Genèse contre les Manichéens; Sur la
Genèse au sens littéral, livre inachevé, “Bibliothèque Augustinienne” 50, p. 516-517.
104
“Agostinho retoma um lugar comum do pensamento antigo, que remonta a Anaxágoras e ao
Timeu de Platão; aos estóicos, Aristóteles e os herdeiros de Platão (AUGUSTIN, Sur la Genèse
contre les Manichéens; Sur la Genèse au sens littéral, livre inachevé, “Bibliothèque Augustinienne”
50, p. 518).
105
Agostinho foi batizado ao final das homilias da Semana Santa do ano 387, proferidas pelo
Bispo de Milão, ou seja, muito provavelmente esteve presente nos nove sermões acerca dos seis
dias da criação narrados no Gênesis e que formam o Hexameron de Ambrósio. Joseph Torcha
confirma essa datação com base em F. D. Dudden (The Life and Time of St. Ambrose II. Oxford:
Oxford U. P., 1953). Contudo, adverte que outra datação, 389 d. C., foi defendida por O.
Bardenhewer (Geschichte der altkirchlichen Literatur III, ed., Freiburg B, 1923, p. 498-510). (N.
Joseph Torcha, Creatio ex nihilo and the Theology of St. Augustine, n. 87, p. 50). Referindo-se a
Ambrósio, Peter Brown afirma que “É possivel que Agostinho tenha ouvido seus sermões
iniciais sobre o livro do Gênesis (BROWN, P., Santo Agostinho
uma biografia, p. 99). Cf.
40
razão, inteligência ou animus
106
, o homem foi feito à imagem divina e, por isso,
supera e domina todos os animais (irracionais)
107
. Na medida em que a
dominação sobre o inferior é um princípio de semelhança e hierarquia, a
posição humana na ordem das criaturas complementa sua definição.
Sua superioridade sobre a vida irracional é sugerida como cumulativa,
ou seja, ser à imagem divina é estar mais próximo de Deus do que as criaturas
irracionais, bem como ser-lhe semelhante como elas são: “maximamente pela
alma (animum), [...] o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus” (Gn. c.
Man., I, xvii, 28)
108
.
Ora, como responder à não rara superioridade dos animais em relação
aos homens, seja em força, seja em astúcia, quando escapam de armadilhas
109
?
Para Agostinho, trata-se de uma situação que não concerne à perfeição edênica,
na qual o homem era imortal. Após o pecado original, o corpo destituiu-se de
sua perfeição, tornando-se “corruptível, frágil e destinado à morte” (Gn. c. Man.,
II, vi, 8)
110
. Todavia, apesar de a imagem divina no homem ter se degradado
AMBROSE, Hexameron, VI, vii, 40 - viii, 45; a passagem é citada em DU ROY, O., L'intelligence de
la foi en la Trinité selon Saint Augustin: genése de sa théologie trinitaire jusqu'en 391, p. 45-46.
106
No Sobre o Gênesis, contra os Maniqueus (I, xvii, 28), Agostinho vale-se dos termos ratio,
intellectus e animus como sinônimos.
107
Cf. AUGUSTIN, Sur la Genèse contre les Manichéens; Sur la Genèse au sens littéral, livre inachevé,
“Bibliothèque Augustinienne” 50, nota complementar 10, pp. 523-524.
108
“per animum maxima, [...] homo factus ad imaginem et similitudinem Dei”
109
Oposição maniqueísta à narração do poderio humano sobre os animais.
110
“Dicimus enim tabidum et fragile et morti destinatum corpus humanum post peccatum esse
coepisse.” (Gn. c. Man., II, vi, 8)
41
pelo pecado, ela não foi anulada; tal como confirma a admirável força racional,
pois, mesmo decaído, o homem continua suficientemente forte para domesticar
vários animais; conquanto a fragilidade do corpo mortal exponha-o a ser
abatido por inumeráveis feras, elas jamais o domesticarão.
Sobretudo é necessário entender o sentido espiritual da domabilidade
animal pela inteligência. A alma humana deve governar-se pela temperança e
pela moderação, resultantes da primazia racional que abaliza nossas ões a
partir da fonte interior de Verdade. Governar o quê? Para Agostinho,
movimentos na alma que, se desgovernados, assemelham-na aos animais. São
as três concupiscências fundamentais: a concupiscência carnal, simbolizada
pelas feras; a curiosidade, pelas serpentes
111
; o orgulho, pelos pássaros. Se ao
homem foi conferido o poder de dominá-las, certamente não se trata de mera
possibilidade e sim de um imperativo cuja negligência inverte as posições dos
termos da ordem natural de ascendência: as concupiscências se sobrepõem à
razão e acarretam uma vida extremamente infeliz. Ao contrário, se domadas
pela razão, cuja ação se inspira e se orienta pela Verdade, então o homem
conhece a vida feliz e tranqüila, isto é, a alegria dos amores santos, castos e
bons
112
.
111
M. Dulaey oferece um brevíssimo e útil panorama do conceito de curiosidade: em Platão,
Aristóteles e Cícero, significava a busca desinteressada e era considerada positiva; mas, a partir
de Apuleio, torna-se equivalente à curiosidade e ao gosto pelo exoterismo. Cf. AUGUSTIN,
Sur la Genèse contre les Manichéens; Sur la Genèse au sens littéral, livre inachevé, “Bibliothèque
Augustinienne” 50, nota 344, p. 336.
112
Cf. Gn. c. Man., I, xx, 31.
42
Desse modo, temos a exegese do neófito Agostinho à definição bíblica de
homem, apresentada no primeiro capítulo do Gênesis. Antes de avançarmos à
análise dos textos posteriores, recapitulemos os pontos essenciais expostos. O
homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, quanto à alma racional e não
quanto ao corpo. Seria impossível pensar uma imagem divina corporal a partir
de Deus, um modelo incorpóreo. Ademais, a razão se traduz como a
capacidade humana de dominar todos os animais, revelando e tendo a
responsabilidade de zelar pela posição humana na hierarquia dos seres: acima
dos animais irracionais e abaixo de Deus. Em sentido espiritual, isso significa
que a inteligência (figurada pelo homem) consiste na capacidade de consultar a
Verdade e, com moderação e temperança, governar os movimentos irracionais
da alma (figurados pelos animais); nesse sentido, seu domínio da alma propicia
uma conformidade com a fonte interior de Verdade e Felicidade,
proporcionando tranqüilidade, felicidade e amor. Essa consonância perfeita
equivale à perfeição original do homem. Por outro lado, após o pecado, a alma
tende a se satisfazer com o que lhe é agradável e exterior, voltando-se para o
corpo, que se tornou mortal pelo pecado. Contraposta a sua ordem divina
exterior, a alma racional se curva ao perecível e busca satisfazer-se tal qual um
animal, que ela não é. Interiormente desgovernada, a alma se orienta pela busca
da satisfação das três concupiscências fundamentais (concupiscência carnal,
curiosidade e orgulho).
43
Novamente, com o intuito de diferenciar a função racional da sensação
comum aos animais, Agostinho debruça-se sobre o segundo relato bíblico
atinente à criação do homem, o qual corresponde a “um relato mais diligente do
que antes foi insinuado de modo mais sucinto” (Gn. c. Man., II, vii, 9)
113
:
(4)
Esse é o livro da criação do céu e da terra, quando foi
feito o dia em que Deus fez o céu e a terra,
(5)
e toda a
vegetação dos campos, antes que estivesse sobre a terra, e
todo os alimentos que nos campos, antes que
germinassem. Com efeito, Deus ainda não tinha feito
chover sobre a terra, nem havia homem que nela
trabalhasse.
(6)
Mas uma fonte jorrava da terra e irrigava
toda face da terra.
(7)
Então Deus modelou o homem da
argila da terra e insuflou um espírito de vida em sua face,
e o homem tornou-se uma alma vivente.
(8)
Depois Deus plantou o paraíso no Éden ao
oriente, e posicionou o homem que modelara.
(9)
E,
demais, Deus produziu da terra todo tipo de árvore
formoso de olhar e bom de comer, e plantou a árvore da
vida no meio do paraíso, e a árvore da ciência do bem e do
mal.
(10)
Um rio corria do Éden e irrigava o paraíso; de lá,
113
“sed superius breuiter insinuati diligentior retractatio”
44
dividia-se em quatro braços.
(11)
O nome de um é Fison: este
é o que circunda toda a terra de Hélvia, onde ouro.
(12)
Ora, ótimo é o ouro dessa terra, e carbúnculo e
esmeraldas.
(13)
O nome do segundo rio é Geon: este
circunda toda a Etiópia.
(14)
O terceiro rio é o Tigre: este é o
que se dirige aos assírios. O quarto rio é chamado
Eufrates.
(15)
E o Senhor Deus tomou o homem que fizera e
o colocou no paraíso, para que trabalhasse e o
custodiasse.
(16)
E o Senhor Deus comandou Adão dizendo:
‘de toda árvore que está no paraíso come para te nutrires,
(17)
mas da árvore da ciência do bem e do mal, não come
dela: pois, no dia em que dela tiverdes comido, morreis de
morte.’
(18)
E o Senhor Deus disse: ‘Não é bom que o homem
esteja só: façamos para ele uma ajuda símile a ele.’
(19)
E
tudo que Deus fizera todo gênero de animais, todo
gênero de feras selvagens, e todo gênero de aves que
voam sob o céu —, conduziu a Adão, para que este visse
como chamá-los; e Adão chamou todos eles de ‘alma
viva’, e este é o nome deles.
(20)
Depois disso, Adão chamou
por nomes todos os animais, todas as aves do céu, e todas
45
as feras selvagens; e segundo o que Adão chamou-os, tal é
o nome deles até os dias de hoje. Mas, para Adão, ainda
não havia uma auxiliar símile a ele.
(21)
Então, Deus
infundiu um sopro em Adão e este dormiu
profundamente. Deus tomou-lhe uma das costelas, e
preencheu seu lugar com carne.
(22)
Então, Deus formou a
mulher da costela que pegou de Adão e a conduziu a
Adão para que visse como chamá-la.
(23)
E Adão disse: ‘Eis agora o osso de meus ossos e a
carne de minha carne! Chamá-la-emos mulher’, porque
foi tirada de seu marido, e ela será uma auxiliar para
mim’.” (Gn 2,4 – 2,23 apud Gn. c. Man., II, i, 1)
114
114
4
Hic est liber creaturae caeli et terrae, cum factus esset dies quo fecit Deus coelum et
terram,
5
et omnia uiridia agri, antequam essent super terram, et omne pabulum agri, antequam
germinaret. Nondum enim pluerat Deus super terram nec erat homo qui operaretur in ea.
6
Fons autem ascendebat de terra et irrigabat omnem faciem terrae.
7
Et tunc finxit Deus
hominem de limo terrae et insufflauit in faciem eius flatum uitae, et factus est homo in animam
uiuentem.
8
Et tunc plantauit Deus paradisum in Eden ad orientem, et posuit ibi hominem
quem finxerat.
9
Et produxit adhuc Deus de terra omne lignum formosum ad aspectum et
bonum ad escam: et lignum uitae plantauit in medio paradisi et lignum scientiae boni et mali.
10
Flumen autem prodibat ex Eden et irrigabat paradisum: inde diuiditur in quatuor partes.
11
Nomen uni Phison: hoc est quod circuit totam terram Euilath: ibi est aurum.
12
Aurum autem
terrae illius optimum, et ibi est carbunculus et lapis prasinus.
13
Et nomen secundi fluminis
Geon: hoc circuit totam terram Aethiopiae.
14
Et flumen tertium Tigris: hoc est quod uadit contra
Assyrios. Et flumen quartum dicitur Euphrates.
15
Et sumpsit Dominus Deus hominem quem
fecerat, et posuit illum in paradiso, ut operaretur ibi et custodiret eum.
16
Et praecepit Dominus
Deus Adae dicens: Ex omni ligno quod est in paradiso edes ad escam,
17
de ligno autem
scientiae boni et mali non edetis ab eo: qua die enim ederitis ab illo, morte moriemini.
18
Et dixit
Dominus Deus: Non est bonum esse hominem solum: faciamus ei adiutorium simile sibi.
19
Et
quaecumque finxerat Deus ex omni genere pecorum et ex omni genere bestiarum agri et ex
omni genere uolatilium uolantium sub caelo, perduxit ea ad Adam, ut uideret quid ea uocaret:
et uocauit ea omnia Adam animam uiuam, hoc est nomen eius.
20
Et post haec uocauit Adam
nomina omnium pecorum et omnium auium caeli et omnium bestiarum agri: et secundum
quod uocauit ea Adam, hoc est nomen eorum usque in hodiernum diem. Ipsi autem Adae
46
O homem não é ad imaginem Dei em razão de qualidades comuns aos
animais. Primeiramente, ser ad imaginem Dei não se refere a ele dispor de um
corpo e de uma alma o que as Escrituras afirmam ao mencionar que o homem
foi moldado pelo Pai a partir da argila, material composto de água (alusão à
alma) e de terra (ao corpo). Em segundo lugar, tampouco se define a imagem
em função de a alma vivificar o respectivo corpo, formando com ele uma
unidade humana harmônica e evitando sua dissolução; analogamente, a terra se
transforma em barro ao ser conglutinada pela água
115
. Finalmente, a alma
humana é dotada de sentidos, o que as Escrituras narram através do sopro
divino na face humana e do nome dado por Adão ao conjunto dos animais:
“alma viva”. Novamente, sequer a vida referente aos sentidos diz respeito à
alma como imagem de Deus.
A imagem divina é um traço de superioridade na natureza humana em
relação à vida dos animais e define o estado original do homem, antes do
pecado. Sua residência, conforme a narração bíblica, era o “paraíso”, cuja
interpretação envolve dois elementos fundamentais na filosofia de Agostinho:
vivia no bosque do repouso e na sede da felicidade humana
116
. O Éden é repleto
nondum fuit adiutorium simile illi.
21
Et immisit Deus soporem in Adam, et obdormiuit: et
sumpsit Deus unam de costis eius, et impleuit locum eius carne,
22
et formauit Deus costam
quam accepit ab Adam in mulierem. Et adduxit illam ad Adam ut uideret quid eam uocaret.
23
Et dixit Adam: Hoc nunc os ex ossibus meis et caro de carne mea: haec uocabitur mulier,
quoniam de uiro suo sumpta est: et haec erit mihi adiutorium.” O texto adotado é citado por
Agostinho no início da segunda parte do Sobre o Gênesis, contra os Maniqueus (I, i, 1). Entretanto,
a paragrafação e a pontuação adotadas na tradução inspiram-se na Bíblia de Jerusalém.
115
Cf. Gn. c. Man., II, vii, 9.
116
Cf. Gn. c. Man., II, ix, 12. Cf. pp. 105-06.
47
de belas árvores nutritivas, prontas a saciar seu morador; a luz da sabedoria
incide sobre o homem e ele contempla a verdade, desfrutando de abundantes
delícias, prazeres e festins imortais e inteligíveis, que, incorruptíveis e racionais,
alimentam verdadeiramente sua alma. As regras da vida são puras e brilhantes
como o ouro; o brilho da verdade não se opacifica por erros, assim como
carbúnculos não cessam de brilhar à noite; a vida eterna é inesgotável; goza-se
de força vivaz e infatigável; a força da temperança é tal que resistiria mesmo à
coação da sensualidade vindoura após o pecado
117
; alegrias espirituais elevam
seu espírito; as partes da alma estão em ordem e equilíbrio. No estado
primordial, ocorre o contato direto entre a razão do homem e Verdade interior:
“Antes do pecado, [...] [Deus] irrigava-a [a criatura
invisível] por uma fonte interior, falante em seu intelecto,
de modo que não recebia palavras do exterior, como
chuva das nuvens supraditas
118
, mas era satisfeito por sua
fonte, isto é, pela verdade que mana de seu íntimo.” (Gn.
c. Man., II, iii, 5)
119
117
Agostinho utiliza-se claramente de uma prolepse a fim de indicar, para seus interlocutores, a
magnitude da temperança. Não havia a concupiscência da sensualidade no Paraíso.
118
Referência às palavras dos profetas e apóstolos como alimento para a alma após o pecado
original: a verdade “chove” mediante as palavras das Escrituras, ou seja, exteriormente e por
alegorias que dificultam sua compreensão.
119
“Ante peccatum [...], [Deus] irrigabat eam [inuisibilem creaturam] fonte interiore loquens in
intellectum eius, ut non extrinsecus uerba exciperet tamquam ex supradictis nubibus pluuiam,
sed fonte suo, hoc est de intimis suis manante ueritate, satiaretur.”
48
Originalmente, a felicidade equivale ao preenchimento imediato e íntimo
humano de verdade produzido por Deus. O intelecto do homem nutre-se
natural e abundantemente por uma contemplação orientada para o interior,
acessando imediatamente a fonte da verdade, cuja ação (jorro e irrigação
superabundantes) e cujo conteúdo (verdades) não são humanos, mas divinos. A
razão recebe as verdades divinas e comanda as percepções sensoriais
120
. Outras
passagens bíblicas serão interpretadas como idôneas para a insinuação da
mesma ordem: o casal Adão e Eva
121
e a nomeação por Adão dos animais
irracionais, trazidos por Deus
122
. Concluímos que ad imaginem Dei, no Sobre o
Gênesis, contra os Maniqueus, significa a posição natural do homem,
120
Cf. Gn. c. Man., II, ix, 12. A imagem, além de conferir ao homem essa posição intermediária,
faz dele o reflexo da ordem do universo: o homem é um microcosmo, pois revela a ordem da
criação.
121
A atividade anímica sensorial é representada por Eva, cujo dever é auxiliar a razão no
domínio do corpo. Seu cônjuge, Adão, representa a razão, que deve ser a atividade
preponderante na alma, ou seja, deve impor uma medida e uma lei que governe os movimentos
instintivos da alma, os quais incidem nos membros e órgãos corporais. Para Agostinho, as
escrituras referem-se ao feminino e ao masculino como realidades separadas a fim de enfatizar
duas atividades distintas da mesma alma (cf. Gn c. Man., II, xi, 15-16). A mesma interpretação de
Adão e Eva será mantida em obras posteriores, a exemplo do Sobre a Trindade, em que a defesa
da igualdade entre a alma do homem e a da mulher torna mais claro que as Escrituras tomam a
distinção de seus corpos como figura da diversidade de funções atuantes em uma única alma.
122
“pela razão o homem é melhor que os animais, pois, apenas a razão, que os julga, pode
distinguir e discerni-los por nomeação. Ora, mas essa consideração (ratio) é fácil, pois o homem
rapidamente compreende que ele é melhor que os animais. Consideração (ratio) difícil é esta:
pela qual entende que em si mesmo há algo racional, pois rege, e algo animal, pois é regido”.
(“Ex hoc enim apparet ipsa ratione hominem meliorem esse quam pecora, quod distinguere et
nominatim ea discernere, nonnisi ratio potest, quae de ipsis iudicat. Sed haec facilis ratio est:
cito enim homo intellegit se meliorem esse pecoribus; illa est difficilis, qua intellegit in seipso
aliud esse rationale quod regit, aliud animale quod regitur.” Gn. c. Man., II, xi, 16). A
dificuldade de compreender a hierarquia anímica entre razão e sensação funda-se em ser
conhecida “por uma sabedoria secreta” (secretiore sapientia). Trata-se de uma visão da qual os
olhos carnais são incapazes e que advém de descartarmos as coisas visíveis e nos recolhermos à
interioridade da inteligência (in interiora intelligentia secesserit), o que aparentemente se
assemelha ao torpor adâmico provocado por Deus. A contemplação íntima da certeza de haver
em nós a razão dominante e a sensação dominada promove uma espécie de união conjugal, na
qual a concupiscência carnal não se opõe à razão.
49
caracterizada por repouso, conhecimento da verdade e gozo da felicidade. Ser,
conhecer e amar são plenamente aderentes entre si na vida eterna, regrada pela
razão, intimamente inspirada pela radiância direta da Verdade eterna e na qual
a contemplação da verdade se torna o deleite com prazeres imortais.
equilíbrio perfeito e ordem entre razão e sensação: a razão está abaixo de Deus,
por ser receptora das verdades divinas, e comanda as percepções sensoriais,
sendo-lhes superior.
A Verdade divina impõe-se como ordenadora, e a razão, como ordenada.
Assim, o homem recebe o comando divino segundo o qual poderá comer de
todas as árvores exceto da árvore do conhecimento do bem e do mal, plantada
no centro do Paraíso
123
; caso contrário, sofrerá a morte. Esse imperativo é
solidário do princípio de hierarquia ao qual o homem deve se submeter, pois é
constitutivo de sua própria natureza. Portanto, acatar o comando divino é
aceitar a própria perfeição consumada pelo Verbo divino. Em contraposição,
quando Adão comeu o fruto, transgrediu o comando divino ou seja, sua
ordem interior e inverteu artificialmente sua atenção para a exterioridade. O
pecado é, por isso, um movimento que exila a alma de sua própria
intimidade
124
. “Com efeito”, Agostinho explica, “o início da soberba do homem
123
A árvore da vida e a árvore do conhecimento do bem e do mal foram colocadas por Deus no
centro do Paraíso; ambas remetem à posição intermediária do homem, abaixo de Deus e acima
das voluptuosidades corporais.
124
Cf. Gn c. Man, II, v, 6. O verbo empregado por Agostinho para esse movimento anímico é
proiecto”, cujos significados são: lançar para diante, expor ao perigo, alongar, estender, arredar,
expulsar.
50
é afastar-se (apostatare) de Deus” (Ecl. 10,14 apud Gn. c. Man., II, v, 6)
125
.
Apostatare, como observa M. Dulay, “significa ao mesmo tempo distanciamento,
rejeição e rebelião”
126
em relação a Deus, que se manifesta interiormente. Ou
seja, o orgulho projeta a alma para a exterioridade, para fora do santuário da
consciência.
A nostalgia da felicidade original causa uma inquietude íntima
desorientada, uma vez que busca repouso em fontes exteriores. Somente então,
o homem vem a conhecer a razão do nome da “árvore do conhecimento do bem
e do mal”: apenas depois de pecar, sua alma terá aprendido a diferença entre o
bem que ela abandonou e o mal que ela passou a conhecer.
O pecado é um estatuto de perda da capacidade de voltar-se para o
interior e abrir-se para a fonte de verdade que jorra da intimidade.
Assim, tal qual a planta irrigada pela chuva, a alma necessitará das
palavras dos profetas e apóstolos, obscurecidas por alegorias (nuvens). Por essa
razão, Deus assumiu o peso de nossa carne, como Jesus Cristo (homem sem
pecados), despejando abundantemente a Verdade pelo Evangelho; e prometeu
que se um homem beber dessa água, voltará a beber intimamente da fonte
referida na narração do Paraíso, sendo sua alma restabelecida e feliz por toda
eternidade.
125
“Initium enim superbiae hominis apostatare a Deo”
126
DULAEY, M., nota 210, p. 280. In: AUGUSTIN, Sur la Genèse contre les Manichéens; Sur la
Genèse au sens littéral, livre inachevé, “Bibliothèque Augustinienne” 50.
51
Embora a relação entre realização, imagem e Trindade não esteja
desenvolvida explicitamente no Sobre o Gênesis, contra os Maniqueus,
apresentam-se elementos axiais para o amadurecimento do pensamento de
Agostinho.
52
II. Comentário literal ao Gênesis, inacabado
Neste capítulo, nos ocuparemos do texto Comentário literal ao Gênesis,
inacabado, redigido no ano 393 (aproximadamente quatro após o término do
Sobre o Gênesis, contra os Maniqueus). A obra que será examinada é uma tentativa
de explicar literalmente
127
os primeiros capítulos do Gênesis. Para Agostinho, o
Gênesis é um livro histórico, cujos detalhes relatam acontecimentos reais, e no
qual tudo tem valor de res gesta
128
conceito chave para compreendermos como
Agostinho chama de literal um comentário que tenderíamos a caracterizar como
alegórico. De fato, a criação é a res gesta por excelência e em sentido primordial,
porque o mundo começou quando foi feito por Deus a partir do nada e porque,
a partir desse acontecimento primordial, todas as criaturas são o que são
129
. A
criação é um acontecimento único que decorre exclusivamente da vontade
divina, sem precedentes, e pelo qual o mundo foi constituído. Nada é real como
o ato criador, pois ele não é comparável a qualquer ato das criaturas. Assim,
embora o homem busque se remeter a tal ato, as palavras e os conceitos
tomados da experiência humana não são adequadamente aplicados a Deus.
Não obstante, nas Escrituras, as palavras referidas a Deus são tomadas da
experiência humana e invocam no leitor conceitos e imagens que não podem ser
127
No Comentário literal ao Gênesis, Agostinho tem como objetivo interpretar literalmente o recito
bíblico acerca da criação divina e do primeiro pecado (Gn 1-3).
128
Cf. AGAESSE, P., “Bibliothèque Augustinienne” 48, p. 38.
129
Cf. AGAESSE, P., “Bibliothèque Augustinienne” 48, p. 39.
53
aplicados ao Criador (cf. Gn. c. Man., I, xiv, 20). um certo desconforto ao
lermos que Deus fala, ouve, repousa, molda, distingue os dias etc. Com efeito, a
fala divina não pode ser compreendida do mesmo modo que uma fala humana,
mas é real na medida em que a criação começa a partir dela. Para apreender o
significado literal das Escrituras, será necessário ultrapassar o que de
antropomórfico na linguagem e não admiti-las compreendidas ingenuamente
logo nas primeiras leituras. Trata-se de um esforço de buscar entender algo
através das palavras e, ao mesmo tempo, de preservar o mistério e a magnitude
divina, sem reduzi-los às ações humanas. Nesse sentido, para Agostinho, a
palavra divina não é temporal e se refere ao Verbo, por quem tudo foi feito (cf.
Gn. litt., I, ii, 6). Portanto, busca-se compreender o verdadeiro sentido literal do
texto e, para Agostinho, a solução interpretativa que ele propõe, embora
apoiada em um esforço legítimo, pode ser contestada e deve ser revisada. O
sentido literal opõe-se ao sentido alegórico, que admite uma realidade sensível
como significado de algo vindouro; por exemplo, a pedra é um ser material,
mas significa alegoricamente, devido às propriedades de solidez e de
estabilidade, o Cristo.
Contudo, a tarefa de estabelecer uma leitura literal mostra-se mais
penosa do que parecia e, reconhecendo a insuficiência de seu esforço
principalmente para esclarecer algumas passagens
130
, Agostinho suspende o
130
Uma das dificuldades principais concerne à afirmação de que “o Espírito de Deus pairava
sobre a água” (“Spiritus Dei superferebatur super aquam” — Gn 1,2).
54
trabalho (inacabado), sem publicá-lo. Trinta e três anos se passam e, ao escrever
suas Retratações (426-427), o autor se depara com o comentário inacabado e
cogita destruí-lo. Entretanto, depois de revisá-lo decide publicá-lo a título de
testemunho das primeiras tentativas de interpretar os versículos iniciais acerca
da criação
131
o que receberá um comentário incomparavelmente superior nos
doze livros do Comentário literal ao Gênesis (401-416)
132
.
A busca por comparações mais elucidativas e explicações mais acessíveis,
motiva Agostinho a escrever o Comentário literal ao Gênesis, inacabado; por outro
lado, é um exercício infindável e rigorosamente coerente com o que é
examinado: “Quando bendisserdes a Deus, exaltai-o tanto quanto o pudéreis, e
(ele) superará para além disso” (Eclo 43,30 apud Gn. litt. imp., IV, xvi, 4).
133
Conforme indica Olivier Du Roy
134
, em comparação com o Sobre o
Gênesis, contra os Maniqueus, traços um pouco mais precisos se apresentam no
Comentário literal ao Gênesis, inacabado, escrito em 393. Certamente, esta obra não
oferece uma elaboração madura da criação trinitária como uma iluminação que
determina a estrutura triádica de toda criatura; também não localizamos uma
explanação sobre a correspondência entre as três pessoas da Trindade e as três
características das criaturas; em contrapartida, Agostinho recupera e avança a
131
Cf. retr., I, 18.
132
O Comentário literal ao Gênesis será examinado no quarto capítulo desta tese.
133
“Benedicentes dominum exaltate illum quantumcumque potueritis, superabit et adhuc”
134
DU ROY, O., L'intelligence da la foi en la Trinité selon Saint Augustin: genése de sa théologie
trinitaire jusqu'en 391, p. 278.
55
análise da matéria informe, agora definitivamente referida ao Pai, ao Filho e ao
Espírito Santo.
Ressalta-se deliberadamente a importância de considerarmos o Deus-
Trindade para compreendermos a relação entre criador e criaturas; isso é dado
como pressuposto necessário. O início do texto marca a defesa da católica a
favor da relação entre Trindade criadora e criaturas:
“Deus, Pai onipotente, que fez e constituiu o conjunto das
criaturas por seu Filho Unigênito, isto é, por sua sabedoria
e por seu poder (uirtutem), consubstanciais e coeternos a
si, na unidade do Espírito Santo, a este também
consubstancial e coeterno. Logo, a doutrina católica
ordena crer nesta Trindade, que é dita um único Deus, e
que ele fez e criou tudo que é, no tanto que é; embora toda
criatura, seja intelectual ou corporal ou, o que pode ser
dito mais sucintamente segundo as palavras das
Escrituras, invisível ou visível —, não é nascida de Deus,
mas feita por Deus do nada; e nada nela [na criatura]
que concirna à Trindade, senão que a Trindade criou, e
aquela foi criada. Por conseguinte, não é permitido dizer
56
ou crer que o conjunto das criaturas seja consubstancial e
coeterno com Deus.” (Gn. litt. imp., I, ii, 1-3 - grifo nosso)
135
A Trindade é Deus e forma-se por três pessoas consubstanciais e
coeternas. Ela faz os seres, não a partir de si mesma, mas do nada, de modo que
os seres não são coeternos nem tampouco consubstanciais a ela.
Cada pessoa da Trindade constitui um aspecto divino envolvido na
criação: o Pai fez e constitui todas as criaturas, o Filho é a Sabedoria e o poder
pelos quais o Pai faz e, finalmente, o Espírito confere a unidade entre o Pai e o
Filho. Cabe, então, buscar entender o que cada pessoa divina determina nas
criaturas. As escrituras conduzem nossa reflexão.
Voltamos ao início do Gênesis: “No princípio Deus fez o céu e a terra”
(Gn 1,1)
136
. Agostinho mantém a associação vigente no tratado anterior de “céu
e terra” com a matéria informe do universo e, agora, justifica-a no Livro da
Sabedoria, “Fizeste o mundo de matéria informe” (Sb 11,18)
137
. Um dos temas
privilegiados no Comentário literal ao Gênesis, inacabado, a matéria informe se
135
“Deum, omnipotentem Patrem, uniuersam creaturam fecisse atque constituisse per Filium
suum unigenitum, id est sapientiam et uirtutem suam, consubstantialem sibi et coaeternam, in
unitate Spiritus sancti et ipsius consubstantialis et coaeterni. 2. Hanc ergo Trinitatem dici unum
Deum eumque fecisse et creasse omnia quae sunt, in quantum sunt, disciplina catholica credi
iubet, ita ut creatura omnis siue intellectualis siue corporalis, uel quod breuius dici potest
secundum uerba scripturarum diuinarum, siue inuisibilis siue uisibilis, non de Deo nata, sed a
Deo sit facta de nihilo: nihilque in ea esse quod ad Trinitatem pertineat, nisi quod Trinitas
condidit, ista condita est. 3. Quapropter creaturam uniuersam neque consubstantialem Deo
neque coaeternam fas est dicere aut credere.”
136
“In principio fecit Deus caelum et terram.”
137
“fecisti mundum de informi materia”
57
define sucintamente como uma criatura feita por Deus e a partir da qual ele fez
o mundo. Primeiramente, trata-se de uma criatura divina, pois tudo que é e não
é Deus foi feito necessariamente por Deus; além disso, pela mesma razão, tudo
que é, salvo Deus, não existe antes da criação, tampouco a matéria. Em segundo
lugar, ela se define por ser confusa, misturada e idônea para aceitar as formas
que lhe serão outorgadas por um Deus artesão. Ao recebê-las, conforme a
inefável vontade divina
138
, a matéria é dividida e ordenada em coisas singulares
que compõem o mundo.
Tal como no tratado anterior, a matéria informe guarda correspondência
com as três pessoas da Trindade
139
, afinal, embora desprovida de forma, é uma
criatura. Pode-se notá-lo a partir das três referências a ela no Gênesis: “céu e
terra” (Gn 1,1), “invisível e desorganizada” (Gn 1,2) e também “água” (Gn 1,2)
140
. Nesse tratado, Agostinho adiciona outra associação a partir da Epístola aos
Romanos: “tudo é a partir dele, por ele e para ele” (Rm 11,36)
141
, insinuando as
seguintes relações: “céu e terra” com “a partir dele”, “invisível e
desorganizada” com “por ele” e “água” com “para ele”.
138
Cf. Gn. litt. imp., III, x, 1-3.
139
Para Du Roy a Trindade criadora estava sugerida sutilmente no Sobre o Gênesis, contra os
Maniqueus: “tendo em vista os três nomes de que essa matéria informe é sucessivamente
chamada nos dois primeiros versículos do Gênesis, ele sugere a relação desses três nomes com as
três pessoas da Trindade. A sugestão é, de fato, muito discreta. Ela aparece somente se
comparamos nosso texto com aquele do De Genesi ad litteram imperfectus (escrito em 393), no
qual essa relação é evidente.” (DU ROY, O., L'intelligence de la foi en la Trinité selon Saint
Augustin: genése de sa théologie trinitaire jusqu'en 391, p. 273).
140
São as mesmas associações presentes no Sobre o Gênesis, contra os Maniqueus.
141
“ex quo omnia, per quem omnia, in quo omnia”. Cf. Gn. litt. imp., IV, xiii, 1.
58
As palavras “Céu e terra” não indicam o céu e a terra que podem ser
vistos com os olhos corporais, porém aquilo que Deus fez no princípio e a
“matéria que pode receber (capere)
142
a forma do céu e da terra” (Gn. litt. imp.,
IV, xiv, 4)
143
, ou seja, as formas de todas as criaturas (intelectuais, animais e
corporais). Essa matéria (“céu e terra”) se caracteriza por: (1) ter-se feito do
nada; (2) ser a materia mundi
144
(matéria do mundo), que servirá para a feitura
das criaturas. Diz respeito à ação do Deus-Pai, todo-poderoso, capaz de fazer
ser, a partir do nada, uma criatura de natureza distinta da divina. Ademais, o
Pai fez e constituiu
145
a matéria do mundo, designação esta que a retrata como
uma criatura definida por aquilo que se tornará, isto é, as criaturas formadas
146
.
Em seguida, as Escrituras enfatizam a “informidade sem luz” (Gn. litt.
imp., IV, xv, 1)
147
da matéria, cujo segundo nome é “matéria informe”, materia
informis (Gn. litt. imp., IV, xv, 2)
148
. Referências escriturais a ela são identificadas
em “terra invisível e desordenada (incomposita)” e “abismo” (Gn 1,2). Sua
142
Lembremos que a mesma raiz está em capere e em capax, indicando “capacidade de”. Nesse
sentido, a matéria informe é capaz de receber formas.
143
“materiam quae caeli et terrae formam capere posset”
144
Cf. Gn. litt. imp., IV, xv, 1-2.
145
Constituo: colocar na posição, ereger; colocar, dispor, produzir, fazer, formar, constituir. No
Oxford Latin Dictionary não há menção de “constituo” indicar direcionamento.
146
“significatione prius insinuatus est finis eius, id est propter quid facta sit” (Gn. litt. imp., IV,
xv, 1).
147
“‘terra invisível e desordenada’ e ‘trevas sobre o abismo’, isto é a própria informidade sem
luz – daí se segue também ser dita ‘terra invisível’” (“terra inuisibilis et incomposita et tenebrae
super abyssum, id est ipsa informitas sine lumine -- unde etiam terra inuisibilis dicta est” - Gn.
litt. imp., IV, xv, 1).
148
Gn. litt. imp., IV, xv, 2.
59
informidade se traduz em “terra”, o mais informe de todos os elementos
naturais, que, por ser também o menos brilhante
149
, seria “invisível” –
caracterização proveniente do Livro da Sabedoria, em que lemos que Deus fez o
mundo “de uma matéria invisível” (Sb 11,18 apud Gn. c. Man., I, v, 9). A terra
seria ainda incomposita
150
, ou seja, uma massa extremamente desordenada, o
estado mais confuso da matéria
151
.
As Escrituras afirmam que “as trevas estavam sobre o abismo” (Gn 1,2)
152
, e isso significa tão somente que não havia nada além do abismo. Como, então,
as trevas estariam sobre ele? As trevas não são o mesmo que nada, pois o nada
não é; elas se definem como “ausência de luz” (Gn. litt. imp., IV, xii, 1)
153
. Não
havia luz acima do abismo, pois que ainda não havia luz; logo, concebe-se que
apenas a matéria existia. Por “abismo” define-se a informidade da matéria
como uma vastíssima “profundidade carente de luz” (Gn. litt. imp., IV, xiv, 4)
154
,
149
“pelo nome de ‘terra desordenada’ e de ‘abismo’ é insinuada a informidade, pois, entre todos
os elementos, a terra é mais informe e menos luminoso que os demais” (“terrae incompositae
atque abyssi nomine insinuaretur informitas, quia inter omnia elementa terra est informior, et
minus praelucens quam cetera” - Gn. litt. imp., IV, xiii, 3). Nota-se a relação direta entre a
presença de luz e de formas: o que é mais informal é menos brilhante.
150
Infelizmente não há equivalente na língua portuguesa para o termo latino “incompositus”.
151
Agostinho identifica o estado confuso da matéria (abismo) com o que os gregos chamavam
de caos, isto é: “uma certa matéria informe e sem specie, sem qualidade, sem medida, sem
número e peso, sem ordem e distinção, um não sei o que confuso, e totalmente desprovido de
toda qualidade” (“informem quamdam materiam sine specie, sine qualitate, sine mesura, sine
numero et pondere, sine ordine ac distinctione, confusum nescio quid, atque omnino expers
omni qualitate” - c. ep. Man., xxix, 32). Cf. Gn. c. Man., I, v, 9; Gn. litt. imp., IV, xii, 1-3. Em nota à
edição do Genesi contra os Maniqueus, Martine Dulaey (“Bibliothèque Augustinienne” 50, nota
53) remete-nos às Metamorfoses de Ovídio, I, 7.
152
“Et tenebrae erat super abyssum.”
153
“absentiam lucis”
154
“profunditas carens luce” (Gn. litt. imp., IV, xii, 2)
60
insondável pela inteligência. A razão entende o que tem forma, assim como
vemos apenas o que tem luz; a luz inteligível confere inteligibilidade ao que
conhecemos, pois se associa às formas. Portanto, a matéria informe é um
mistério imponderável para a razão, “pois a inteligência de ninguém pode
penetrá-la em razão de sua informidade” (Gn. litt. imp., IV, xi, 4)
155
. Em resumo,
suas características de informidade, “obscuridade, confusão
156
, profundidade e
trevas” (Gn. litt. imp., IV, xv, 2)
157
são paradoxais pois designam uma carência
de forma, de ordem e de luz. Precisamente a esse aspecto corresponde à ação da
segunda pessoa da Trindade.
O Filho é a Sabedoria e o poder de Deus, pelos quais o Pai criou o mundo
agindo sobre a matéria informe. É a Sabedoria e o poder de atribuir formas,
ordem e luz à matéria informe. A peculiaridade filial é atrelada ao verseto
genesíaco que concatena criação e iluminação: “E Deus disse: ‘faça-se a luz’; e a
luz foi feita”
158
. “Faça-se a luz” é o Verbo divino ou, como Agostinho definia
desde o Sobre o Gênesis, contra os Maniqueus, o Filho. Não se trata de uma fala
divina carnal, produzida pelo pulmão (corpóreo) e com ajuda da língua ou dos
dentes; do mesmo modo, o Filho não é produzido por um corpo, nem com
auxílio de um corpo. O Filho-Verbo é pronunciado pelo Pai inefavelmente
(segundo a compreensão dos homens) e não pode ser comparado com uma
155
“quia nullius intellegentia propter ipsam informitatem penetrari potest.”.
156
“confusão informe” (“informi confusione” - Gn. litt. imp., IV, xviii, 2)
157
“obscuritas, confusio, profunditas, tenebrae”
158
“Et dixit Deus, Fiat lux; et facta est lux.”
61
elocução humana. Eis sua definição: “Ora, o Verbo de Deus, pelo qual tudo foi
feito, nem começa a ser, nem termina; mas, nascido sem incoação, é coeterno ao
Pai” (Gn. litt. imp., IV, xiv, 2)
159
.
O Filho é o Verbo de Deus pronunciado inefavelmente e através do qual
todas as coisas foram feitas. Ademais, trata-se de um Verbo eterno, sem começo
nem fim, incriado, que o Filho nasce sem começar e é coeterno ao Pai. Ele é
denominado “luz”, embora não signifique a “luz” do “faça-se a luz”. Esta
certamente é uma luz feita e não a luz da Sabedoria de Deus, que nasceu e não
foi feita. Agostinho afirma: “Uma é a luz nascida de Deus, e outra, a luz que
Deus fez: a luz nata de Deus é a própria Sabedoria de Deus; a luz feita é uma luz
mutável, incorporal ou corporal” (Gn. litt. imp., V, xx, 3)
160
A luz nascida de Deus é a Sabedoria, o Filho coeterno pelo qual as coisas
recebem formas; é o Verbo divino e o que Deus disse; logo, o fiat lux. Deus
“disse”, afirmam as escrituras reportando-se a um dizer inefável, o Verbo cuja
eternidade e incorporalidade distinguem-no da voz humana. Eterno por nascer
do Pai, o Verbo não começa nem termina, pois não foi criado. Ele é o Filho
unigênito de Deus e também o “fiat lux” pelo qual tudo é feito.
De outro modo, a luz feita, lux e não fiat lux”, é uma criatura e, por
isso, mutável, seja incorporal ou corporal. A luz divina produz três tipos de luz
159
“Verbum autem Dei, per quod facta sunt omnia, nec coepit esse, nec desinet; sed sine
inchoatione natum, Patri coaeternum est.”
160
“Alia est lux de Deo nata, et alia lux quam fecit Deus: nata de Deo lux, est ipsa Dei Sapientia;
facta uero lux, est quaelibet mutabilis siue corporea siue incorporea”.
62
criada, que pertencem à forma das criaturas em que se apresentam. Primeiro, a
luz corporal visível aos olhos carnais, por exemplo, a luz solar e a lunar.
Segundo, a luz dos sentidos, comum a homens e animais, que pode discernir as
coisas apresentadas à alma mediante o corpo. Ela produz o discernimento de
dados sensoriais e nos leva a buscar ou evitar algo que tenha causado uma
determinada percepção; devido a ela, diferenciamos branco e preto, doce e
amargo, quente e frio etc. Terceiro, a luz racional, presentes em homens e anjos,
e pela qual raciocinam. As três são feitas pelo Pai através do Filho, que as forma
em suas respectivas peculiaridades.
Finalmente, o último aspecto da matéria informe é designado nas
escrituras pelo termo “água” (Gn 1,2), dado que esta é mais móbil do que a
terra, e pode ser facilmente trabalhada e movida; assim, tal como a água se
sujeita ao artífice e serve a sua ação, também a matéria à ação divina de fazer o
mundo
161
. Suas propriedades conferem-lhe o nome específico de “matéria
fabricável”, materia fabricabilis (Gn. litt. imp., IV, xv, 2).
O ar parece ser mais móbil do que a água, e o éter, do que o ar. Não
obstante, é inapropriado referir-se à matéria fabricável como ar ou éter, pois se
acredita terem uma força de fazer (uim faciendi) são ativos, ao passo que tanto
a água como a terra têm uma força de padecer (uim paciendi), sendo passivos.
161
“aqua enim mobilior est quam terra; et ideo propter operandi facilitatem et motum
faciliorem, subiecta materies artifici, aqua magis uocanda erat quam terra.”(Gn. litt. imp., IV, xii,
3).
63
Logo, entre os elementos sujeitáveis à ação divina, a “água” é mais adequada.
“Ser movido é ser passivo, mover é fazer.” (Gn. litt. imp., IV, xiv, 2)
162
.
Devido à mobilidade da matéria, é mais acertado indicá-la como “água”
do que como “ar”. De fato, o vento, que é o ar em movimento, move a terra e
não o oposto; a água é movida pelo ar. Mas a terra também é passiva e móbil.
Por que o privilégio à “água”? Pensemos na terra irrigada, na qual nascem
coisas. Ora, o que se produz ali e depois se aperfeiçoa depende da irrigação da
água para nascer, ou seja, tudo indica que é a própria água que se transforma
(conuerti) nas coisas. Portanto, também nesse sentido a matéria informe é mais
adequadamente chamada de “água”.
Por fim, os significados de “água” relacionam-se à seguinte passagem: “o
Espírito de Deus pairava sobre a água”
163
(Gn 1,2). Segundo Agostinho, essa é
uma clara afirmação de que a terceira pessoa da Trindade, o Espírito de Deus,
opera nesse aspecto passivo. De que modo? Qual o significado de “pairava
sobre” (superferebatur)? Assim como no texto analisado no capítulo anterior, não
se trata de uma superioridade espacial a exemplo do óleo que paira acima da
água, ou da água sobre a terra. Há, no Comentário literal ao Gênesis, inacabado um
exemplo mais elucidativo, embora limitado ao visível e espacial: a luz solar ou
lunar. Pairando sobre os corpos, ilumina-os sem se misturar com eles e
permanece como luz no céu. De maneira análoga, o Espírito age sobre a matéria
162
“Moueri autem pati est, mouere facere.”
163
“Spiritus Dei superferebatur super aquam”.
64
sem perder a própria pureza e identidade
164
. Dito de outro modo, a terceira
pessoa da Trindade paira sobre a matéria e assemelha-se à vontade do artífice
exercida sobre o material trabalhado ou mesmo sobre seus próprios membros,
ao serem movidos para trabalhar. Fica clara a distinção entre a natureza da
165
.
“Água”, portanto, refere-se ao aspecto de fácil sujeição da matéria
fabricável do conjunto das criaturas (intelectual, animal e corporal) ao qual se
dirige a vontade do criador; indica que o Espírito de Deus une a onipotência do
Pai à Sabedoria e ao poder do Filho para criar, formar e ordenar o mundo
166
.
Ademais, a Vontade pairava sobre a matéria fabricável tal como a vontade de
um artífice paira sobre o material para operar a formação das criaturas
167
,
permanecendo impermista, imutável e santa:
“Ora, se se acredita que a matéria de todas as criaturas
isto é, intelectual, animal e corporal foi enunciada pelo
vocábulo ‘água’, de modo algum se pode entender por
‘Espírito de Deus’, nesta passagem, senão aquele imutável
e santo, que pairava sobre a matéria de todas as coisas, as
quais Deus fez e constituiu.” (Gn. litt. imp., IV, xvii, 3)
168
164
É possível afirmar que a ação do espírito age como a luz lunar ou solar, iluminando as
criaturas sem deslocar-se ou misturar-se.
165
Cf. Gn. litt. imp., IV, xvi.
166
Cf. Gn. litt. imp., I, ii.
167
Cf. Gn. litt. imp., IV, xv.
168
“Si autem uniuersae creaturae, id est et intellectualis et animalis et corporalis, materia
creditur illo aquae uocabulo enuntiata, nullo modo hoc loco Spiritus Dei potest nisi ille
65
Em resumo, as três designações da matéria afirmam relações entre três
aspectos de uma única criatura e as três pessoas da Trindade, que são um Deus
único que fez todas as criaturas. O Pai confere ser à matéria, criando-a a partir
do nada, e faz todas as criaturas a partir dessa matéria por intermédio de seu
Filho; salvaguarda a distinção substancial entre criador e criatura; refere-se à
matéria do mundo que tem a possibilidade de se tornar todas as criaturas. O
Filho é a Sabedoria e o poder do Pai, consubstancial e coeterno ao Pai; ele é
quem atribui as formas à matéria, criando o mundo, e age na matéria informe e
incomposita. Finalmente, o Espírito é a vontade do Criador que irá modelar a
matéria fabricabilis, móbil e submissa à vontade criativa de Deus. Logo, tudo na
matéria depende de ela ter sido criada pela Trindade a partir do nada.
A exegese do Gênesis é simplesmente interrompida após Agostinho
retomar o exame do fiat lux, e repetir o que havia sido explanado. Será
retomada oito anos mais tarde.
No posterior Comentário literal ao Gênesis (I, vi, 12 e I, i, 1 I, vii, 13) e nas
Confissões (XIII, v, 6; XIII, ii, 2 iv, 5), escritos no mesmo período (em 401),
Agostinho relaciona as três pessoas da Trindade com os versículos bíblicos
consagrados aos seis dias da criação. Se esse livro elabora um comentário
alegórico e aquele é um comentário literal, ambos acordam que a Trindade cria
incommutabilis et sanctus intellegi, qui ferebatur super materiam omnium rerum, quas fecit et
condidit Deus.”
66
e ilumina. Ambos os textos são de grande valor para nossa pesquisa, que
confirmam a tese de uma iluminação criadora trinitária.
O homem
No Comentário literal ao Gênesis, inacabado, Agostinho aproxima-se mais à
temática da imagem e lhe consagra os últimos parágrafos, que se dividem em
dois grupos de acordo com a época de redação e o enfoque. Da primeira fase de
redação do livro (em 393-394) datam os parágrafos 55 a 60, nos quais o autor
retoma parcialmente o que fora apresentado no Sobre o Gênesis, contra os
Maniqueus (§§ 55, 56 e 60), além de elaborar a diferença entre imagem e
semelhança (§§ 57 a 59). Depois de mais de três décadas (entre os anos 426 e
427) foram escritos e incorporados os dois parágrafos finais (§§ 61 e 62), por
ocasião da redação das Retratações
169
, promovendo um ajuste na concepção do
homem como imagem de Deus, sem elaborá-la. Façamos, pois, uma análise
breve a fim de complementar o estudo anterior.
Agostinho enuncia uma regra: toda imagem é engendrada por um
modelo ao qual é semelhante, logo, toda imagem é semelhante; entretanto, nem
tudo que é semelhante é necessariamente imagem. A primeira distinção entre
imagem e semelhança consiste em esta versar sobre qualidades comuns como,
169
Cf. DULAEY, M., “À son image et ressemblance (Gn. c. Man., I, xvii, 28; Gn. litt. imp., XVI, lvi-
lxii)”. In: AUGUSTIN, Sur la Genèse contre les Manichéens; Sur la Genèse au sens littéral, livre
inachevé, “Bibliothèque Augustinienne” 50, p. 518-523.
67
por exemplo, uma conformidade externa, ao passo que a imagem requer
necessariamente uma relação de filiação, isto é, uma semelhança mais íntima
simultânea a uma dependência causal. Assim, duas pessoas são semelhantes
por serem pessoas; entretanto, para que uma delas seja imagem da outra,
também haverá de ser filha. Logo, toda imagem é semelhante.
Mas por que as Escrituras afirmam que o homem foi feito “à nossa
imagem e semelhança” (“ad imaginem et similitudinem nostram”)? Não bastaria
dizer “à nossa imagem” (ad imaginem nostram)? Trata-se da ênfase em o homem
não ser a Semelhança, e sim ser à semelhança, isto é, semelhante.
Ser semelhante difere de ser a Semelhança em si, pois somente é possível
ser semelhante em razão da Semelhança. Segue-se, como afirma Isabelle Koch,
que “adicionar ad similitudinem não duplica o emprego de ad imaginem, mas
designa o princípio constitutivo da semelhança do criado àquilo de que ele é
uma imagem”
170
.
O princípio de semelhança situa-se em Deus; em outras palavras, a
Semelhança não está contida no ser semelhante, mas é um princípio que produz
a semelhança no ser semelhante. Com efeito, a semelhança é comparada à
castidade. Devido à Castidade homens castos porque a castidade humana é
uma participação da Castidade em Deus, casta em sentido primordial e não por
participação. A mesma regra se aplica à semelhança:
170
KOCH, I., Image et dissemblance Etude sur la notion d’image chez Plotin et saint Augustin, p.
211.
68
“a Semelhança de Deus, pela qual tudo foi feito, é
propriamente dita Semelhança; pois não é semelhante por
participação em qualquer semelhança, mas ela é a
Semelhança primordial, por cuja participação é
semelhante tudo que Deus fez através dela.” (Gn. litt. imp.,
XVI, LVII, 4)
171
O modo da participação humana do Deus-Semelhança é pormenorizado
quando Agostinho define, pela primeira vez em sua obra e à diferença da
tradição exegética que conhecia, o homem como imagem
172
e feito à Imagem de
Deus. Cumpre esclarecermos os termos dessa definição a fim de
compreendermos a interdependência deles, bem como a peculiaridade do
estatuto humano.
Agostinho articula dois conceitos de imagem, que diferenciaremos
grafando Imagem e imagem. Em sentido primordial, “Imagem” designa a
171
“similitudo Dei, per quam facta sunt omnia, proprie dicitur similitudo, quia non
participatione alicuius similitudinis similis est, sed ipsa est prima similitudo, cuius
participatione similia sunt quaecumque per illam fecit Deus.”
172
“La réflexion sur l’image fait l’objet d’une élaboration très longue et difficile, qui court tout
au long de l’œuvre augustinienne, de la lecture anthromorphique de l’image de Dieu, dans
laquelle l’a d’abord enfermée l’hérésie manichéenne, jusqu’à la figure augustinienne la plus
connue, la plus retenue par la tradition: l’élaboration des relations d’image entre l’âme et Dieu à
travers les analogies psychologiques du De trinitate. Cette lutte contre une incompréhension
première, propre à Augustin, se double aussi d’un travail pour s’affranchir de la tradition
patristique qui [...] réserve largement le nom d’image au Fils, et refuse de dire que l’homme
est aussi, bien que de façon différente, image de son Créateur: il serait seulement créé à l’image
de Dieu. Sans cet affanchissement, qui étend à l’antropologie la question de l’image, là encore, il
n’y aurait pas eu de doctrine des analogies trinitaires possible. Bref, pour Augustin, le thème de
l’image est tout autant une conquête qu’un donné.” KOCH, I., Image et dissemblance Etude sur
la notion d’image chez Plotin et saint Augustin, p. 8.
69
Imagem perfeita de Deus. Trata-se do Filho unigênito de Deus, o Verbo,
segunda pessoa da Trindade. Sua semelhança ao Pai é máxima, a ponto de ser
plena e perfeitissimamente preenchida pela natureza paterna ou seja, nesse
sentido, o Filho é imagem igual ao Pai
173
, mas não é o Pai.
A concepção agostiniana de imagem-igual envolve três conceitos
distintos. Lemos na Questão 74: “Imagem, igualdade e semelhança devem ser
distinguidos” (diu. qu., 74)
174
. Cada um desses vocábulos é elaborado e
relacionado com os demais em termos de inclusão ou exclusão:
“onde imagem, conseqüentemente semelhança, mas
não conseqüentemente igualdade; onde igualdade,
conseqüentemente semelhança, mas não
conseqüentemente imagem; onde semelhança, não
conseqüentemente imagem, e não conseqüentemente
igualdade.” (diu. qu., 74)
175
173
Isabelle Koch elabora essa noção de imagem-igual tomando como base o texto da Questão 74,
de Agostinho (Cf. AGOSTINHO, diu. qu., 74 e Koch, I., Image et dissemblance – Etude sur la notion
d’image chez Plotin et saint Augustin, p. 169-76 e 202-03).
174
“Imago et aequalitatis et similitudo distinguenda sunt”. O título dessa questão esclarece que
ela versa sobre o filho como imagem de Deus: “Sobre o texto da Epístola de Paulo aos
Colossenses: ‘nele [no Filho] temos a redenção e a remissão dos pecados; nele que é a imagem
do Deus invisível’.” (Cl 1,14-15). (“De eo quod scriptum est in Epistola Pauli ad Colossenses: ‘In
quo habemus redemptionem et reminissionem peccatorum, qui est imago Dei inuisibilis’.”)
175
“quia ubi imago, continuo similitudo, non continuo aequalitas: ubi aequalitas, continuo
similitudo, non continuo imago: ubi similitudo, non continuo imago, non continuo aequalitas.”
70
de se interpretar cautelosamente o trecho citado, pois Agostinho
entende a expressão “não há conseqüentemente” (“non continuo”) como
suposição de uma possibilidade e não como uma restrição.
Quanto à imagem, toda imagem é uma semelhança, mas não é necessário
que seja uma igualdade, embora possa sê-lo. Com efeito, a imagem de um
homem no espelho é semelhante a ele, mas não igual, pois falta-lhe muito do
que pertencia ao homem, por exemplo, a carne. a imagem igual refere-se ao
Deus-Filho em relação ao Pai, o que será explicado adiante.
A igualdade, tal como a imagem, envolve semelhança; assim, tudo que é
igual é certamente semelhante. Entretanto, a igualdade não equivale à imagem,
pois é possível haver imagens desiguais. Por exemplo, dados dois ovos
perfeitamente iguais e, portanto, maximamente semelhantes; nenhum deles é
imagem do outro, pois não são filho e pai, ou seja, não entre eles a relação
que define uma imagem: a semelhança filial gerada por um pai. Nota-se que,
uma vez mais, Agostinho não exclui a possibilidade de existir uma imagem
igual.
Enfim, a semelhança está presente tanto na imagem como na igualdade.
No entanto, nem tudo que é semelhante é necessariamente igual (como no
exemplo da imagem humana no espelho), tampouco imagem (tal como os ovos
iguais). Por exemplo, um ovo de perdiz e um ovo de galinha são semelhantes,
71
mas nenhum deles é imagem do outro, pois não nasce do outro; sequer uma
relação de igualdade entre ovos de tamanho desigual.
Nos três termos examinados, a semelhança faz-se presente: toda imagem
é semelhante e toda igualdade pressupõe a semelhança; entretanto, o que é
semelhante pode ser ou não ser imagem ou igual. uma gradação na
semelhança, cujo grau máximo seria a igualdade
176
. Ademais, a semelhança não
implica uma relação de imagem, mas não a exclui: é possível haver uma
semelhança que também seja imagem, porque a imagem comporta a noção de
semelhança filial.
Quanto à imagem e à igualdade, Agostinho relaciona-as diretamente:
“Logo, pode haver alguma imagem na qual haja também igualdade” (diu. qu.,
74)
177
. Por exemplo: um pai e um filho perfeitamente semelhantes. Entretanto,
essa solução apresenta dificuldades.
Ora, a noção de imagem igual deve comportar a geração paterna de uma
semelhança filial, para que seja imagem, e uma semelhança máxima, de modo
que seja igual. Segundo Agostinho, não se pode conceber a imagem igual senão
ao abstrair a temporalidade, pois o tempo é o critério de distinção entre pai e
filho. No tempo, é necessário que duas coisas, tendo uma nascido da outra,
sejam sempre desiguais.
176
Cf. KOCH, I., Image et dissemblance – Etude sur la notion d’image chez Plotin et saint Augustin, p.
170.
177
“Potest ergo esse aliqua imago in qua sit etiam aequalitas.”
72
Com efeito, do procriador deriva a semelhança do filho, de modo que
este seja denominado imagem daquele
178
. Logo, se houver uma semelhança
máxima entre pai e filho, haverá também uma imagem rigorosamente igual.
Todavia, os pais e filhos que conhecemos no mundo pressupõem que o Pai seja
temporalmente anterior ao Filho e, portanto, mais velho, impossibilitando uma
semelhança máxima. Contudo, se não houvesse esse intervalo temporal, a
igualdade poderia, além de se referir à semelhança, concernir à imagem.
Portanto, para pensarmos a imagem igual, será necessário abstrairmos o tempo
e mantermos a relação de filiação de um modelo com a imagem semelhante
gerada por ele. Segue-se, como sumariza Isabelle Koch, que:
“Apenas tal abstração do tempo [...] permite compreender
que ‘algumas vezes’, aliquando, a igualdade possa envolver
a relação de imagem. [...] a imago aequalis aparece então
como uma noção sem referente verdadeiro na realidade,
que não pode ser enunciada senão sob a condição de um
nisi ou de umaliquando’, sabendo que essas reservas não
se remetem a uma realização eventual, mas simplesmente
a uma maneira possível e não rigorosa de falar”
179
.
178
“Le rapport parent / enfant permet en effect de parler d’image, puisque d’une part c’est un
rapport de géniteur è rejeton, et qu’en outre cette filiation produit une ressemblance du fils au
père” (KOCH, I., Image et dissemblance – Etude sur la notion d’image chez Plotin et saint Augustin, p.
171).
179
KOCH, I., Image et dissemblance Etude sur la notion d’image chez Plotin et saint Augustin, p.
172.
73
Falar em uma imagem igual é, por isso, mencionar uma “noção limite”
180
,
sem correspondentes concretos.
Ademais, se tomarmos duas coisas iguais, nenhuma delas será imagem
da outra, pois, se o for, será posterior e desigual. Logo, é impossível buscar na
realidade algo que seja simultaneamente imagem e igual àquele por quem foi
gerado. No exemplo dos dois ovos idênticos: semelhança e igualdade, sem
que haja uma imagem.
Será necessário considerar um ser não sujeito à temporalidade. Em Deus
temos o exemplo perfeito de imagem igual, pois o Pai não pode ter gerado o
Filho no tempo, uma vez que o tempo foi criado pelo Pai através do Filho.
Portanto, Agostinho conclui sobre Deus com respeito ao Filho:
“é conseqüente não que [o Filho] seja sua imagem
porque nasce de [Deus] e semelhança porque imagem
(Cl. 1,15) –; mas também a igualdade é tanta que nem um
intervalo de tempo é impedimento”. (diu. qu., 74)
181
Assim, o Filho é a imagem igual do Pai: semelhante a seu modelo, gerado
por ele e igual (consubstancial). Ele é o paradigma de todas as imagens e de
todas as semelhanças por ser a Imagem-Semelhança perfeita
182
; eis seu estatuto:
180
Idem, ibidem.
181
“consequens est ut non solum sit imago ejus, quia de illo est, similitudo, qua imago (Cl 1,15);
sed etiam aequalitas tanta, nec temporis quidem intervalum impedimento sit.”
182
Cf. Gn. litt. imp., XVI, lx.
74
“nada, de modo algum, pode-se dizer, pensar ou ser mais semelhante que a
própria semelhança.” (Gn. litt. imp., XVI, lviii, 3)
183
O homem também é imagem; contudo, é imagem e semelhança em
sentido derivado e, por isso, encontra-se mais próximo de Deus em comparação
às criaturas apenas semelhantes ao criador. De fato, ser uma criatura é condição
suficiente para participar da Semelhança, pois tudo que no universo, seja
corporal ou espiritual, tem uma forma específica recebida inefavelmente da
Semelhança, tal como uma efígie da Semelhança
184
. No entanto, é privilégio
exclusivo da substância racional ter sido feita ad similitudinem-imaginem
185
. Com
efeito, Agostinho interpreta ad” como adesão, e explica que o fato da
substância racional ser ad similitudinem dei significa que nada se interpõe entre a
mente (o que de mais interior e principal no homem) e a Verdade
(Semelhança e Imagem do Pai); embora a mente humana conheça isso sendo
extremamente pura e feliz
186
. A imagem marca uma relação de adesão da mente
humana ao Verbo-Filho.
183
“nihil similius ipsa similitudine dici aut cogitari aut esse omnino potest.”
184
Percebemos isso em diversos níveis: pela semelhança podemos classificar diversos seres
como os elementos da natureza (a água é composta por partículas de água semelhantes entre si
e o mesmo é válido para os demais elementos), as pedras, as árvores, o corpo, as almas
irracionais, as almas racionais, os anjos e, em nível mais amplo, as criaturas.
185
“tudo foi feito por ela [pela semelhança], mas nem tudo foi feito à semelhança.” (“omnia per
ipsam [similitudinem], sed ad ipsam non omnia [facta sint].” - Gn. litt. imp., XVI, lix, 5).
186
Tomar o homem todo por sua mente é legítimo, pois, para Agostinho, devemos estimar o
homem todo por o que ele tem de principal e que o distingue dos animais, a saber. Assim, a ela
se refere o preceito bíblico “Façamos o homem à nossa imagem e à nossa semelhança”.
75
Em resumo, Agostinho não se pronuncia sobre qualquer atuação
iluminadora da Trindade no homem feito à imagem e sim pormenoriza o
significado de imagem, bem como concebe o homem como feito à imagem e
semelhança de Deus. A Questão 51 resume e marca o estatuto da questão:
“E não se distingue inadvertidamente que uma coisa é a
Imagem e a Semelhança de Deus, que também é chamada
de Filho; e outra à imagem e à semelhança de Deus, tal
como admitimos que o homem foi feito.” (diu. qu., 51)
187
Entretanto, ao revisar o Comentário literal ao Gênesis, inacabado, após mais
de trinta anos, Agostinho muda o tratamento da questão deixando claro seu
posicionamento definitivo: o homem é imagem de Deus, segundo a verdade
revelada: “Com efeito, o homem certamente não deve cobrir a cabeça, pois é a
imagem e glória de Deus.” (1 Cor 11,7 apud Gn. litt. imp., XVI, lxi, 2)
188
Imagem feita, portanto, não coeterna a Deus, e à imagem de Deus,
dinâmica: imagem mutável. Em segundo lugar, “à nossa imagem e
semelhança” (Gn 1,27) passa a significar que o homem foi feito não apenas à
imagem do Filho, mas da Trindade, isto é, do Pai, do Filho e do Espírito Santo
189
pluralidade não referente a três deuses, mas ao Deus único ao qual as
187
“Neque inscite distinguitur, quod aliud sit imago et similitudo Dei, qui etiam Filius dicitur;
aliud ad imaginem et similitudinem Dei, sicut hominem factum accipimus.”
188
“Vir quidem non debet uelare caput, cum sit imago et gloria Dei.”
189
Concepção de imagem que será desenvolvida no Sobre a Trindade.
76
Escrituras se referem adiante: “E Deus fez o homem à imagem de Deus” (Gn
1,27 apud Gn. litt. imp., XVI, lxi, 4)
190
.
Sem explorar essas correções importantes, Agostinho finaliza o livro. De
todo modo, miramos o horizonte conceitual a ser alcançado. Busquemos suas
pistas nas Confissões.
190
“Et fecit Deus hominem ad imaginem Dei.”
77
IV. Confissões
Nas Confissões, Agostinho explicará o entendimento anunciado no
Comentário literal ao Gênesis, inacabado acerca de o homem ter sido feito ad
imaginem Dei”, ou seja, da alma humana como imagem da Imagem e à imagem
da Trindade. Seu comentário ao relato bíblico da criação dirige-se, agora,
principalmente ao homem
191
.
As Confissões foram redigidas em dois blocos: os nove livros iniciais
datam dos anos 397 e 398 e os três últimos escritos em 400 ou 401. Seu término
coincide com a época em que Agostinho escrevia os primeiros livros do
Comentário Literal ao Gênesis
192
: ambos oferecem exegeses diferentes e
complementares sobre a narração bíblica da criação, aquele interpreta
alegoricamente e este de modo literal. Portanto, embora haja cooperação e
contemporaneidade dos textos, analisaremos antes as Confissões devido à
utilização necessária de textos do primeiro bloco
193
.
191
Quanto às criaturas irracionais, na primeira parte do nosso trabalho, não examinamos
detidamente a exegese do Gênesis, dado que as considerações levantadas por Agostinho são
expostas no Comentário literal ao Gênesis.
192
“Les Confessions sont de toute manière achevées au moment Augustin rédige le second
livre du De Genesi ad litteram puisqu’il renvoie les lectures de cet ouvrage à l’exégèse allégorique
exposée au livre XIII (cf. Gn. litt., III, ix, 22).” (SOLIGNAC, A., “Introduction: date de
rédaction”. In: AUGUSTIN, Confessions, “Bibliothèque Augustinienne” 13, p. 53). Não iremos
nos deter à polêmica sobre a unidade das Confissões. Solignac oferece sua posição bem como um
rico inventário em “Plan et Unité des Confessions (Confessions, “Bibliothèque Augustinienne”
13, pp. 19-26). Lembramos que os dez livros iniciais das Confissões são posteriores ao Comentário
literal ao Gênesis, inacabado, escrito entre 393 e 394.
78
Ademais, notamos conceitos comuns nas duas exegeses. Agostinho
apresenta a feitura das criaturas em três momentos: primeiramente a criação,
em seguida a conversão e finalmente a formação. Cada qual pode ser elaborado
em termos de iluminação divina trinitária, a partir do modo como incide e pelo
que causa. Olivier du Roy nota:
“um estreito paralelismo entre os três momentos da
criação dos corpos e os três momentos da iluminação dos
espíritos. Assim se realiza uma nova síntese entre a
anagogia e a ontologia trinitárias”
194
.
No décimo terceiro livro, Agostinho reflete acerca da imagem humana
das três pessoas da Trindade, o que fundamentará nossa defesa de uma
iluminação trinitária de Deus sobre o homem: o Pai ilumina o homem
concedendo-lhe um ser inicialmente iluminável, cuja constituição será perfeita
quando a iluminação for plena; o Filho-Verbo ilumina a razão com o
conhecimento necessário para que a imagem se dirija à Semelhança de Deus e
alcance sua formação; e o Espírito Santo ilumina e move a vontade do homem
com a mesma finalidade.
Manifesta-se na Bíblia uma relação entre o Deus-Trindade e as criaturas:
193
Ao que nos parece, se tomássemos a análise do livro XIII das Confissões como auto-suficiente,
então o papel iluminador da Trindade ficaria restrito ao Filho e ao Espírito.
194
DU ROY, O., L’intelligence de la foi en la Trinité selon Saint Augustin, p. 425.
79
“Porque tu, Pai, fizeste o céu e a terra ‘no princípio’ da
nossa sabedoria, que é a tua Sabedoria, nascida de ti, igual
e coeterna a ti, isto é, no teu Filho. [...] E assim, eu
admitia que pelo nome de Deus se entende o Pai, que as
fez; e pelo nome de Princípio, o Filho, no qual as fez. E,
crendo que o meu Deus é Trindade, tal como eu cria, eu
procurava-o em suas santas palavras e via que o ‘teu
espírito pairava sobre as águas’[...] Eis o meu Deus-
Trindade! Pai, Filho e Espírito Santo Criador de todas
as criaturas.” (conf., XIII, v, 6)
195
Em linhas gerais, o Pai faz as criaturas (“céu e terra”); o Filho é o
“princípio” ou a Sabedoria na qual Deus fez as criaturas; e o Espírito Santo
“paira sobre as águas”. Busquemos a interpretação agostiniana a respeito do
papel da Trindade no homem, a partir de uma passagem sobre o homem
manchado pelo pecado e cuja natureza permanece à imagem de Deus
196
:
195
“quoniam tu, Pater, in principio sapientiae nostrae, quod est tua Sapientia de te nata, aequalis
tibi et coaeterna, id est in Filio tuo, fecisti caelum et terram. [...] Et tenebam iam Patrem in Dei
nomine, qui fecit haec, et filium in principii nomine, in quo fecit haec, et Trinitatem credens
Deum meum, sicut credebam, quaerebam in eloquiis sanctis eius, et ecce spiritus tuus
superferebatur super aquas. Ecce Trinitas Deus meus, Pater et Filius et Spiritus Sanctus, Creator
uniuersae creaturae.” A parte que omitimos do texto, não nos interessa nesse momento da
exposição; de todo modo, Agostinho afirma que a informidade espiritual deverá converter-se ao
Pai para qua seja mais do que uma vida qualquer e, pela iluminação, torne-se uma vida speciosa,
como o céu dos céus (anjos que conhecem contemplam Deus imediatamente).
196
Cf. conf, XIII, v, 6.
80
“Quem compreenderá a Trindade onipotente? [...] Quisera
que os homens pensassem nesses três aspectos dentro de
si mesmos. Os três são muito distintos daquela Trindade;
mas digo para que se exerçam e provem e sintam quão
longe estão. Ora, destes três aspectos falo: ser, conhecer e
querer. Com efeito, sou, conheço e quero. Sou cognoscente
e querente, conheço que sou e que quero e quero ser e
conhecer. Logo, veja quem pode até que ponto nesses
três aspectos uma única vida inseparável e também uma
única vida, uma única mente e uma única essência; até
que ponto, enfim, uma distinção inseparável e, no
entanto, uma distinção. Certamente es diante de si;
atente dentro de si, veja e diga-me. Mas quando tiver
encontrado algo neles e disser, não pense já ter encontrado
aquilo que é imutável e que está acima deles, pois isto
imutavelmente é, imutavelmente conhece e
imutavelmente quer. É em razão destes três que há aí uma
trindade? Ou estes três estão em cada um, de modo que os
três sejam de cada um? Ou ambas as alternativas
197
, de
modo admirável, por simplicidade e multiplicidade, em
197
Pierre Hadot resume a terceira hipótese, inserindo, no local onde inntroduzimos esta nota de
rodapé, “isto é, de uma parte, o Pai seria o ser, o Filho, o saber, o Espírito Santo, o querer, por
outro lado, cada um seria os três ao mesmo tempo” (HADOT, P., “La notion d’infini chez saint
Augustin”, p. 65, conforme tradução de Ângelo Zanoni Ramos e Alexsandro Calheiros).
81
razão de um fim infinito em si mesmo
198
, (fim) segundo o
qual ele mesmo é imutavelmente, é conhecido por si
mesmo e é suficiente a si mesmo em razão de uma copiosa
magnitude da unidade? Quem pensaria facilmente? Quem
diria de algum modo?” (conf., XIII, xi, 12)
199
De acordo com a primeira hipótese, é possível apontar uma
autodeterminação da Trindade, referida como imutável e una (id ipsum). Cada
uma das três pessoas divinas age de modo distinto e complementar,
determinando a plenitude desse ser único. O Pai equivale ao ser, o Filho ao
saber e o Espírito Santo ao querer. Em síntese, Pierre Hadot esclarece, “há uma
trindade porque esses três atos absolutamente necessários para o
acabamento da vida divina”
200
. Contudo, essa determinação é paradoxal porque
198
Hadot traduz “par une détermination (fine) qui en soi serait infinie (infinito)”.
199
“Trinitatem omnipotentem quis intelleget? [...] Vellem, ut haec tria cogitarent homines in se
ipsis. Longe aliud sunt ista tria quam illa Trinitas, sed dico, ubi se exerceant et probent et
sentiant, quam longe sunt. Dico autem haec tria: esse, nosse, uelle. Sum enim et scio et uolo:
sum sciens et uolens et scio esse me et uelle et uolo esse et scire. In his igitur tribus quam sit
inseparabilis uita et una uita et una mens et una essentia, quam denique inseparabilis distinctio
et tamen distinctio, uideat qui potest. Certe coram se est; adtendat in se et uideat et dicat mihi.
Sed cum inuenerit in his aliquid et dixerit, non iam se putet inuenisse illud, quod supra ista est
incommutabile, quod est incommutabiliter et scit incommutabiliter et uult incommutabiliter: et
utrum propter tria haec et ibi trinitas, an in singulis haec tria, ut terna singulorum sint, an
utrumque miris modis simpliciter et multipliciter infinito in se sibi fine, quo est et sibi notum est
et sibi sufficit incommutabiliter id ipsum copiosa unitatis magnitudine, quis facile cogitauerit?
Quis ullo modo dixerit?” (grifo nosso). Segundo Michel W. Libambu, Agostinho afirma a
equivalência entre Deus, Trindade e Criador, resultando na unidade e da especificidade da ação
criadora das três pessoas da Trindade. Conquanto o pesquisador cite Marie-Anne Vannier, ele
não esclarece se entende a criação em sentido lato ou como o momento inicial da feitura da
matéria informe, esquivando-se de uma discussão inevitável. (LIBAMBU, M. W., “Trinità
creatice nelle Confessioni XIII, 5, 6. Teologia, fonti e linguagio”, p. 457-485).
200
HADOT, P., “La notion d’infini chez saint Augustin”, p. 66, conforme tradução de Ângelo
Zanoni Ramos e Alexsandro Calheiros.
82
é infinita, ou seja, em cada um desses aspectos está presente e inerente a
integralidade dos três aspectos; trata-se de “um infinito que é fim para si
mesmo” (infinito in se sibi fine
conf., XIII, xi, 12). Moacyr Novaes explica que:
“O infinito (para nós) é um fim para si mesmo. Isto é,
ainda que para nós seja infinito, indeterminado e inefável;
por si mesmo, em si mesmo, para si mesmo, ele é finito,
determinado, perfeito.”
201
Cogitar sobre o Deus infinito é abdicar, certamente, de pensá-lo a partir
de paradigmas insuficientes: será preciso transcender toda noção espacial a fim
de compreender que a Trindade está totalmente íntegra em toda parte
202
.
Agostinho não avança a lucubração acerca da dinâmica interna das
pessoas divinas porquanto isso excede o alcance da inteligência humana,
embora todo homem deseje compreender a Trindade onipotente. A primeira
conclusão consiste em Deus ser onipotente e o homem, impotente para conhecê-
lo. Logo, é a partir da distância para com Deus, signo da distinção, que o
homem poderá vislumbrar a Trindade através do exame de si mesmo, o qual se
impõe como percurso para alcançar o conhecimento desejado.
Por essa inspeção, atinge-se a união inseparável dos três aspectos
determinantes da alma racional ser, conhecer e querer; tríade que,
201
Reunião de orientação realizada a 22 de dezembro de 2006.
202
Cf. HADOT, P., “La notion d’infini chez saint Augustin”, p. 65, conforme tradução de
Ângelo Zanoni Ramos e Alexsandro Calheiros.
83
simultaneamente, remete ao que de imortal na natureza humana e revela o
que lhe está distante. Com efeito, primeiramente, saber o que é ser, conhecer e
querer não é o mesmo que conhecê-los imutavelmente; em segundo lugar, ter
clareza de que os três são distintos e inseparáveis tampouco explica a Trindade.
Por outro lado, uma relação de imagem do homem com Deus e, nesse
sentido, um vislumbre longínquo e íntimo da Trindade
203
. O vínculo entre
homem e Deus se inscreve nas relações de semelhança traçadas por Pai (Ser),
Filho (Conhecer) e Espírito (Querer).
O Pai caracteriza-se pela gratuidade absoluta da criação, ou seja, pela
livre doação de ser às criaturas corporais e espirituais. Movido unicamente por
sua própria vontade, que é extremamente boa, sua ação não decorre de
qualquer utilidade ou mérito das criaturas
204
, tampouco aumenta a suma
bondade divina, pois nada lhe excede. A generosidade paternal para com o
homem ganha nitidez se pensada no contexto exordial dessa criatura, que, para
Agostinho, deve ser estimada pelo que tem de melhor, a saber, a alma racional.
203
Paradoxalmente, o modelo distante é o que de verdadeiramente mais próximo à
identidade humana.
204
“Pois, a partir da plenitude da tua bondade, tua criatura permanece; de tal modo que um
bem, que em nada te fosse útil, nem nascido de ti, não fosse igual a ti; entretanto não deixasse
de ser, pois poderia ser feito por ti.” (“Ex plenitudine quippe bonitatis tuae creatura tua
substitit, ut bonum, quod tibi nihil prodesset nec de te aequale tibi esset, tamen quia ex te fieri
potuit, non deesset.” - conf., XIII, ii, 2). O verbo substito significa “permanecer” e também
“reter o escoamento”, o que é particularmente verdadeiro para a matéria que escoa para o nada
sem receber formas de Deus, pelas quais recebem sua determinação e permanência.
84
No livro XI das Confissões, Agostinho declara querer ouvir e conhecer
como “No princípio fizeste o céu e a terra” (Gn 1,1)
205
e compreende que ele
mesmo, como homem, está contemplado na criação de todas as criaturas. Todas
elas são porque foram feitas por Deus e não poderiam ter feito a si mesmas
antes de serem
206
, incluso o homem.
Dizer que foram feitas por Deus não equivale a afirmar que foram tiradas
do ser divino: a criatura não é feita a partir da natureza do criador e sim do
nada
207
, o que firma uma diferença ontológica intransponível. No homem, isso
se traduz na mutabilidade ou não-eternidade de sua alma
208
, bem como no
pertencimento à ordem hierárquica estabelecida por Deus:
“Há uma natureza mutável no espaço e no tempo, é o
corpo. E há uma natureza de nenhum modo mutável no
espaço, mas somente mutável no tempo, é a alma. Há uma
natureza que nem no espaço nem no tempo pode mudar,
esta é Deus. O que aqui mostrei mutável de algum modo,
é chamado ‘criatura’; o que é imutável, ‘Criador’.” (ep.
XVIII, 2)
209
205
Cf. conf., XI, iii, 5.
206
Cf. conf., XI, x, 12.
207
Cf. conf., XII, vii, 7.
208
A alma racional não é mortal, contudo é temporal por ter sido criada. Somente Deus é eterno,
porque somente ele sempre existiu e é imortal.
209
“Est natura per locos et tempora mutabilis, ut corpus. Et est natura per locos nullo modo, sed
tantum per tempora etiam ipsa mutabilis, ut anima. Et est natura quae nec per locos, nec per
85
Deus é imutável e, para Agostinho, isso equivale a afirmá-lo como o Ser
por excelência
210
. Por outro lado, tudo que é mutável, mas não pode mudar de
corpo, deixa de ser o que era e começa a ser o que não era; logo, ser mutável não
é verdadeiramente ser. Desse modo, a criatura irracional e os homens devem
ser pensados inicialmente como matéria informe corporal e espiritual,
respectivamente.
Com efeito, embora seja difícil pensar a informidade, o conceito de
matéria informe é logicamente anterior à determinação das criaturas em suas
especificidades, uma vez que estabelece a dessemelhança
211
entre criador e
criatura ao definir-se como uma mutabilidade (dependente do ser em sentido
absoluto), “um quase nada” (conf. XII, viii, 8)
212
feito por Deus a partir do nada e
capaz de receber formas
213
.
tempora mutari potest; hoc Deus est. Quod hic insinuaui quoquo modo mutabile, creatura
dicitur: quod immutabile, Creator.” Epístola destinada a Celestino, em 389 ou 390.
210
Cf. GILSON, E., Introduction à l’étude de saint Augustin, p. 27-28. Referido em GILSON, E.,
Saint Augustin, Philosophie et incarnation, p.14.
211
Segundo Aimé Solignac, em nota ao livro VII das Confissões, a matéria informe pode ser
nomeada “a própria dessemelhança”: “Essa matéria pode ser denominada “a própria
dessemelhança” (AUGUSTIN, Les Confessions, “Bibliothèque Augustinienne” 12, p. 692).
212
“paene nihilo”. “Por ventura tu, ó Senhor, não ensinaste a esta alma que a ti confessa? Acaso
tu não me ensinaste (Sl 70,17), ó Senhor, que antes de formares e de distinguires aquela matéria
informe, nada existia, nem cor, nem figura, nem corpo, nem espírito? Porém não era
completamente nada. Era uma certa informidade sem qualquer specie.” (conf. XII, iii, 3) “Nonne
tu, Domine, docuisti hanc animam, quae tibi confitetur? Nonne tu, Domine, docuisti me (Sl
70,17), quod, priusquam istam informem materiam formares atque distingueres, non erat
aliquid, non color, non figura, non corpus, non spiritus? Non tamen omnino nihil: erat quaedam
informitas sine ulla specie”.
213
“formari potest”(conf., XII, viii, 8); “capax formarum omnium” (conf., XII, vi, 6).
86
À distinção da matéria informe dos corpos, a alma racional humana em
estado inicial consiste em uma vida capaz de viver, de conhecer e de querer
mutável e formável nesses três âmbitos. Criado mas ainda não aperfeiçoado, o
homem é inicialmente um esse ad Deum, o que equivale a ser para ser feliz e
sábio voltando-se para Deus
214
.
Comparativamente, a criatura espiritual informe tem mais valor do que a
corporal (seja informe ou mesmo formada), a qual vale mais do que o nada. O
porquê de sua alta avaliação reside em ter sido feita para tornar-se uma vida
feliz, ao se converter e aderir a Deus. Ela porta em si a capacidade positiva de
vir a ser perfeita, iluminada e sábia. Nos termos de Agostinho, sua grandeza
está em ser feita: “para viver mais e mais perto da fonte da vida, para ver em
sua luz a luz e para ser perfeita, iluminada e beatificada” (conf., XIII, iv, 5)
215
.
Portanto, não se trata de uma indeterminação qualquer, e sim de uma
incompletude marcada pela necessidade e pela capacidade de ter sua essência
realizada. Nesse sentido, a vida inicial do homem é mais “um programa a
cumprir do que uma estrutura dada”
216
; se o projeto não se efetiva, a alma tende
à desordem e à dessemelhança
217
. Nem sábia, nem mísera, a vida somente
conhecerá a sabedoria ao converter-se e aderir à luz; ademais, em estado inicial,
214
O inquietum cor, definido no livro I das Confissões, exprime a vida informe do homem como
mandamento interior de realização na adesão a Deus. Cf. VANNIER, M.-A., Creatio et formatio
dans les Confessions”.
215
“magis magisque uiuere apud fontem uitae et in lumine eius uidere lumen, et perfici et
illustrari et beari.”
216
SOLIGNAC, A., “Conversion et formation”. In: AUGUSTIN, Confessions, “Bibliothèque
Augustinienne” 14, nota 27, p. 616.
87
o homem tampouco conhece a infelicidade, que adquire consistência apenas em
contraposição à experiência da felicidade e decorre do afastamento da luz cuja
iluminação já foi contemplada.
Tal estatuto se aplica ao homem feito à imagem divina, ou seja, seu ser
deverá alcançar a perfeição, e então ele verá o Ser divino, que é ser em sentido
pleno
218
.
Enfim, o Pai existência àquilo que lhe é distinto. A separação entre
criador e criatura implica um limite à compreensão humana, ou, em termos
217
A anterioridade da matéria quanto à forma é comparada à anterioridade do som em relação
ao canto: “o som precede ao canto, porque o canto não é outra coisa senão um som que recebeu
a sua forma. Ora, pode muito bem existir alguma coisa que ainda não tenha forma, mas esta
nunca pode ser infundida naquilo que não existe. A matéria é assim anterior àquilo que nela se
formou. É anterior, não porque fosse sua causa eficiente, pois ela também é antecipadamente
criada. Nem a sua prioridade é de intervalo de tempo. Com efeito, não entoamos em primeiro
lugar sons informes, independentemente do canto, para em seguida os ligarmos e dispormos
em forma de melodia, como manufaturamos a madeira de que se faz a arca ou a prata de que é
fabricado o vaso. [...] Mas é anterior na origem, porque o canto não é formado para que haja
som, mas o som é formado para que haja canto.” (conf., XII, xxix, 40; trad. de J. Oliveira Santos e
A. Ambrósio de Pina com correções, p. 324-325.) – (“quomodo sit prior sonus quam cantus, ideo
quia cantus est formatus sonus et esse utique aliquid non formatum potest, formari autem quod
non est non potest? Sic est prior materies quam id, quod ex ea fit, non ideo prior, quia ipsa
efficit, cum potius fiat, nec prior interuallo temporis. Neque enim priore tempore sonos edimus
informes sine cantu et eos posteriore tempore in formam cantici coaptamus aut fingimus, sicut
ligna, quibus arca, uel argentum, quo uasculum fabricatur [...]. Sed prior est origine, quia non
cantus formatur, ut sonus sit, sed sonus formatur, ut cantus sit.”)
218
“E quando primeiro te conheci, tu me elevaste, para que [eu] visse que havia [essem] o que eu
veria; e que eu ainda não era [esse] aquilo que veria. [...] E Tu gritaste de longe: ‘na verdade eu
sou aquele que é’ (Rm 1,20).” (“Et cum te primum cognoui, tu assumpsisti me, ut uiderem esse,
quod uiderem, et nondum me esse, qui uiderem. [...] Et clamasti de longinquo: immo uero ego
sum qui sum.” conf., VII, x, 16). De certo, como adverte Aimé Solignac, em nota a essa
passagem, “duas interpretações são possíveis: a primeira consiste em ver uma oposição entre o
Objeto a ser contemplado e a incapacidade do sujeito que deve contemplar; nesse caso, o ‘qui’ tem
um sentido consecutivo, e o ‘nondum’ indica que essa incapacidade refere-se ao tempo presente;
a segunda, coloca a oposição entre o ser divino, que é o ser em sentido pleno, e o ser do homem,
que ainda não é um ser que alcançou sua perfeição. A segunda interpretação coloca em relevo o
esse” (Augustin (saint), Les Confessions, “Bibliothèque Augustinienne” 13, nota 1, p. 616.)
88
agostinianos, transcende o olhar interior da alma porque está acima da mens,
não espacialmente, mas porque a fez
219
.
Dando continuidade ao estudo da relação de cada pessoa da Trindade
com o homem, denomina-se “Filho” a segunda pessoa da Trindade, cujo nome
revela ter nascido do Pai. Se a semelhança filial define a imagem, a coeternidade
e a consubstancialidade autorizam afirmar o Filho como Imagem igual ao Pai
220
.
Agostinho define a ação do Filho nas criaturas afirmando que “por ele
tudo foi feito e sem ele nada foi feito” (conf., VII, xi, 13)
221
. Trata-se do Verbo
divino, que é também a Sabedoria de Deus, conforme a qual tudo foi criado.
Concernente ao homem, o Filho não causa o ser, pois não é o criador e
sim aquele por quem o Pai fez as criaturas. Ele instaura a idéia de homem na
matéria espiritual, conforme a sabedoria divina, o que promove não apenas a
semelhança entre Filho e criatura, mas a regalia de o homem ser uma natureza
pessoal feita “à imagem e à semelhança divina”.
Com efeito, a matéria informe da alma espiritual se define como uma
vida que depende da intervenção iluminadora do Filho para, a partir de uma
existência inacabada, orientar-se para Deus e tornar-se perfeita, sábia e feliz:
219
“mas superior, pois ela me fez, e eu, inferior, pois fui feito por ela” (“sed superior, quia ipsa
fecit me, et ego inferior, quia factus ab ea.” - conf., VII, x, 16).
220
Lembremos que a imagem é uma semelhança filial entre um ser feito e aquele que o faz. Ver
pp. 67-75. Ver também trin., VII, iii, 5.
221
“omnis per ipsum [Verbum] facta sunt, et sine ipso factum est nihil.”
89
“de modo que [a criatura espiritual] não deve senão à tua
graça viver de qualquer modo e viver bem-
aventuradamente, convertida por uma mudança melhor
para isso que não pode mudar para melhor nem para pior.
Pois tu és, pois és o único de modo simples, para quem
viver não é uma coisa e viver felizmente outra, pois és tua
felicidade.” (grifo nosso - conf., XIII, iii, 4)
222
uma mudança produzida na alma humana pelo Verbo, mudança da
qual ela mesma não pode ser a causa: a conversão. O movimento anímico é
invertido: da informidade de uma vida qualquer, voltada para a mutabilidade,
direciona-se à vida feliz ao se reorientar para o bem imutável, o Filho.
Entretanto, Agostinho distingue duas situações de conversão: a informidade do
exórdio da criação do homem e a deformidade voluntária do homem
pecaminoso. No tocante à primeira conversão, o Filho-Verbo pelo qual o
Criador se dirige à matéria informe das criaturas dessemelhantes convoca-a à
unidade e forma-a boa
223
:
222
“ut et quod utcumque uiuit et quod beate uiuit, non deberet nisi gratiae tuae, conuersa per
conmutationem meliorem ad id, quod neque in melius neque in deterius mutari potest. Quod tu
solus es, quia solus simpliciter es, cui non est aliud uiuere, aliud beate uiuere, quia tua
beatitudo es.”
223
Aimé Solignac refere-se à formatio como o que traz plena consistência ao espírito. Cf.
SOLIGNAC, A., “Conversion et formation”. In: AUGUSTIN, Confessions, “Bibliothèque
Augustinienne” 14, nota 27, p. 616.
90
“e assim [os esboços dos seres espirituais e corporais]
continuariam pendentes e informes no teu Verbo, se não
fossem chamados novamente (reuocarentur) pelo mesmo
Verbo para a tua unidade, e se não fossem formadas nem
feitas todas sobremaneira boas pelo Uno, por ti que és o
sumo Bem.” (conf. XIII, ii, 2)
224
A atuação do Verbo, incondicionalmente boa e generosa, faz a alma ser
melhor, resgatando-a da desordem e dessemelhança e lhe atribuindo forma,
desde que ela consinta ao chamamento divino. Não cabe à alma convocar-se à
formação de si mesma, e sim entregar-se voluntariamente à ação divina e
engajar-se em manter-se direcionada a Deus, participando da perfeição,
sabedoria e felicidade divinas
225
.
O alinhamento da vontade humana em submissão à divina faz o homem
ocupar seu lugar próprio na hierarquia das coisas criadas, segundo a Sabedoria:
abaixo de Deus e acima dos seres irracionais. Trata-se de uma aproximação e
224
“atque ita penderent in tuo uerbo informia, nisi per idem uerbum reuocarentur ad unitatem
tuam et formarentur et essent ab uno te summo Bono uniuersa bona ualde.”
225
Zum Brunn nos auxilia no entendimento da dinâmica em que o homem é inserido desde que
passa a existir; Zum Brunn afirma: “[a criatura racional ratifica ou não] o desejo de uma
participação no Ser mais elevada que esta [resultante] do simples fato de sua existência. Se a
alma se volta em direção ao Ser, a alma ‘é mais’ (magis esse, magis magisque esse), [então] ela
‘possui o Ser mesmo’ (obtinere ipsum esse) no qual ela é ‘constituída’ (constitui), ‘edificada’
(extrui), ‘estabelecida’ (stare), ‘solidificada’ (solidificari), ou ainda ‘restaurada’ (refici), ‘reformada’
(reformari). Se, ao contrário, a alma se afasta do Ser, [então] ela sofre uma perda ontológica que a
faz ‘ser menos’ (minus esse), ‘ter menos de parte do Ser ele mesmo’ (idipsum esse minus habere),
‘decair, sofrer uma falta’ (defici), ‘tender ao nada’ (tendere ad nihilum), ‘se nadificar’ (inarescere).”
(BRUNN, E.Z. Le Dilémme de l’Être et du Néant chez Saint Augustin
Des premiers dialogues aux
Confessions, p. 9).
91
uma submissão de caráter moral, e não espacial, do Verbo de Deus, que lhe fala
intimamente. Quando a alma humana adere ao Verbo, adere também à Luz que
brilha no seu íntimo; então, a alma deixa-se iluminar, tal qual um luzeiro é
alimentado por uma fonte de luz. Convertido para a Luz interior, o homem vai
paulatinamente se interiorizando para que, enfim, viva sabiamente, e, tal como
Adão, nutra-se do alimento espiritual, o único que a sacia.
Agostinho adverte que, como os corpos devem manter-se de acordo com
seu modelo a fim de não se deformarem, a criatura espiritual deve viver
sabiamente, aderindo a seu modelo, pois a recusa da direção luminosa implica a
perversão, o que caracteriza uma vida de morte.
A segunda situação de conversão realizada pelo Filho recai sobre o
espírito dos herdeiros do pecado de Adão que, embora tendo aderido ao
criador, afastou-se e tornou-se adverso à luz, vivendo uma vida tenebrosa e
semelhante ao abismo, ou seja, tornando-se trevas. Todavia, seja qual for o
motivo ou o resultado do pecado, ele se limita à criatura e à ordem do mundo e,
conforme afirma Franklin Leopoldo e Silva, “Por mais que o homem se afaste
de Deus, não transformará sua natureza de criatura, isto é, não romperá o laço
ontológico expresso na divinização que se inscreve na obra da criação”
226
.
“E busquei o que era a iniqüidade e não cheguei a uma
substância, mas, desviada da suma substância, de ti, Deus,
226
LEOPOLDO E SILVA, F., “A Inquietude no livro I de Confissões”.
92
à perversidade de vontade que se volta para o que é
ínfimo, projetando o que lhe é íntimo e intumescendo
fora.” (grifo nosso - conf., VII, xvi, 22)
227
O pecado é uma dispersão voluntária de si no exterior
228
e em direção ao
inferior
229
. Ora, o homem tem seu vínculo de semelhança com Deus por uma via
totalmente oposta e deve buscar Deus na outra extremidade, a saber, no interior
ao íntimo e no superior ao sumo
230
. Nesse cenário de dessemelhança auto-
infligida, o Verbo, por misericórdia, reconvoca a criatura iniciando um processo
penoso de reformação e de iluminação
231
: se antes vivia uma vida de morte, a
partir da conversão poderá viver conforme a sabedoria, ou seja, parte de uiuere
utcumque para uiuere sapienter et beate. O processo trabalhoso de renovação exige
a participação ativa do homem, ainda que pleno de “restos da escuridão”, ou
seja, de apegos ao pecado. A realização do homem não consiste em uma
227
“Et quaesiui, quid esset iniquitas, et non inueni substantiam, sed a summa substantia, te deo,
detortae in infima uoluntatis peruersitatem proicientis intima sua (Ecl 10,10) et tumescentis
foras”.
228
A imaginação sensível que Agostinho sofreu por muito tempo é também uma dispersão
exterior.
229
O homem desloca-se da ordem divina por inverter interiormente as prioridades de sua vida.
Buscando-se em seu lado avesso, quer constituir sua felicidade voltando-se para dentro da
exterioridade, o que é uma visão invertida ou ilusão.
230
O modo da presença divina no homem é explicitado parcialmente na célebre passagem:
interior intimo meo, superior sumo meo(conf., III, vi, 11). Deus é mais interior que o superlativo
absoluto de interioridade humana; ele é superior ao sumo, superlativo absoluto de superior. Ao
ultrapassar o máximo de interioridade e de superioridade que o homem é capaz, a posição
divina afirma uma direção transcendente para o itinerário humano ao criador; em outras
palavras, por mais que o homem se aproxime de Deus, elevando-se e interiorizando-se ao
máximo, Deus sempre es mais interno e mais alto. Ora, ainda que dramática, a comparação
evidencia o caráter relacional entre o criador e o homem.
231
“tua misericórdia não abandonou nossa miséria e disseste: faça-se a luz (“non reliquit
miseriam nostram misericordia tua, et dixit: fiat lux” - conf., XIII, xii, 13).
93
aquisição de algo novo, mas em uma adesão máxima que pressupõe o
despojamento dos acúmulos anímicos a impedir uma perfeita reflexão da
Imagem de Deus, que é “nossa luz” (conf., XIII, ii, 3)
232
.
O Filho é o mediador entre homem e Deus, é o Verbo ao qual a escritura
se refere: “O Verbo se fez carne e habitou em nós”
233
. Após a formação de Adão
e sua escolha por não aderir a Deus, o gênero humano padece; e somente o
Filho pode redimi-lo ao assumir o peso do pecado original e suas respectivas
conseqüências para que os homens deformados possam reformar-se ao
encontrar a felicidade e a sabedoria plenas
234
.
No plano lógico, o Filho conjumina a formação da razão humana nos
sentidos ontológico, lógico e moral. Primeiramente, a razão é semelhante ao
Filho, pois contempla a luz que a ilumina. É pela iluminação da razão que a
alma se distingue dos animais, possuindo uma vida superior à sensitiva; ou
seja, pela razão iluminada, a alma pode deixar de perder-se na atividade
sensível para se voltar à contemplação das verdades eternas. Em relação à
lógica, o Filho faz com que o homem tenha “olhos” racionais, ou seja,
inteligência capaz de conhecer o que não provém da experiência sensível, direta
ou indiretamente. Nesse sentido, a conversão humana posiciona a alma na
232
“nostro lumine”
233
Verbum caro factum est et habitavit in nobis”
234
Deus define-se como “criador de tudo”, enquanto Pai, “e muito potente para formar nossa
deformidade”, como Filho. (“creator omnibus et multum potens formare nostra deformia” -
conf., IX, vi, 14).
94
direção devida, convocando sua capacidade de ascender dos sentidos para a
razão, desfazendo-se daquilo que não é e, portanto, conhecendo o que é de
ordem espiritual. É devido à razão que o homem pode se orientar
progressivamente para o que está cada vez mais próximo do Ser. Nessa
escalada, a alma se volta para si mesma, e percebe que sua busca pelo imutável
depende de certo conhecimento do que é ser imutável, ou seja, embora a alma
seja mutável, como esclarece Du Roy, “a inteligência descobre, ao compreender-
se, qual luz já estava operando para lhe fazer preferir o imutável e julgar por ela
o imutável”
235
. Para compreender a iluminação do Filho sobre a inteligência
humana, deveremos recuar ao livro VII das Confissões, em que lemos:
“de que luz era inundada [a potência racional], quando
sem alguma dúvida clamava ser necessário preferir o
imutável ao mutável, de onde conhecia o próprio
imutável; pois se não conhecesse de algum modo, de
nenhum modo preferi-lo-ia de maneira resoluta ao
mutável [...]?” (conf., VII, xvii, 23)
236
235
DU ROY, O. L'intelligence de la foi en la Trinité selon Saint Augustin: genése de sa théologie
trinitaire jusqu'en 391, p. 87.
236
“quo lumine aspergeretur, cum sine ulla dubitatione clamaret incommutabile praeferendum
esse mutabili, unde nosset ipsum incommutabile quod nisi aliquo modo nosset, nullo modo
illud mutabili certa praeponeret”
95
A razão se volta para si mesma e se percebe iluminada por uma luz, a
partir da qual julga e escolhe por “onde” seguir
237
; por essa iluminação a razão
mutável participa do Ser e da Verdade Eterna, e pauta suas escolhas e
julgamentos no conhecimento, que a inunda, das leis eternas de Deus. De que
modo se dá o conhecimento das leis eternas?
O Filho-Verbo fala aos homens de dois modos: exteriormente no
Evangelho, quando assumiu um corpo para que acreditassem nele e buscassem
a Pátria; ou dentro, onde o mesmo Verbo fala interiormente, para chegarem à
Verdade Eterna. No segundo caso, o interior é “onde o bom e único mestre
ensina todos os discípulos” (conf., XI, viii, 10)
238
. O Filho é, portanto, o Verbo, a
Verdade eterna, o Mestre interior que ilumina a razão humana. O conhecimento
das verdades, que ocorre na razão humana quando ela se volta para a
iluminação do Verbo em seu interior e é ensinada por ele, é o caminho
239
de
volta do erro: “quando regressamos de nosso erro, de certo, é conhecendo que
regressamos. Ora, para que conheçamos, ensina-nos” (conf., XI, viii, 10)
240
237
Na interpretação de Gilson, a luz imanente e transcendente não ilumina a razão com
conteúdos cognitivos senão com regras de julgamentos de valor. Cf. GILSON, É., Intoduction à
l’étude de saint Augustin, p. 113 e seguintes. Solignac concorda com essa interpretação, e se diz
solidário também de V. WARNACH, “Erleuchtung und Einsprechung bei Augustinus”. In:
Augustinus Magister, vol. I, pp. 429-450 (cf. AUGUSTIN, Confessions, “Bibliothèque
Augustinienne” 13, p. 628, nota 1).
238
“ubi omnes discipulos bonus et solus magister docet”.
239
As formas presentes em tudo são concedidas pelo Pai através do Filho, do mesmo modo que
a mente à alma racional.
240
“cum autem redimus ab errore, cognoscendo utique redimus; ut autem cognoscamus, docet
nos”.
96
A ação do Verbo consiste na iluminação da razão e resgata o homem,
levando-o a ascender na direção de Deus.
Por fim, a iluminação da razão pelas idéias divinas torna-se mais
evidente à medida que se ascende na direção do Ser
241
. Notadamente, a
iluminação requer um despojamento de fundo moral e é percebida de modo
mais pleno quando o espírito humano se torna sábio e puro. A culminação
desse processo equivale à visão face a face do Deus-Verdade, a qual,
paradoxalmente, será alcançada pela mente que conseguir elevar-se acima de si,
“através do que foi feito” (Rm 1,20 apud conf., VII, x, 16)
242
.
Contudo, ao se expor amplamente à luminosidade divina interior, a alma
humana não suporta enxergar sua própria tenebrosidade e treme de amor por
Deus e de horror com sua dessemelhança; o porq disso está na enfermidade
moral que enfraquece a razão humana, capaz por natureza de contemplar a
Verdade face a face
243
. Não obstante, o sofrimento se faz necessário ao pecador,
cada vez mais lúcido de sua situação.
241
Agostinho refere-se também à possibilidade de iluminação direta a exemplo de suas
experiências de êxtase. Cf. conf, VII, x, 16 – xi, 17 e VII, xvii, 23.
242
“per ea, quae facta sunt” (Rm 1,20).
243
“A mente [...] está impossibilitada, por causa de alguns vícios tenebrosos e inveterados, não
somente de juntar-se à luz incomutável, fruindo-a, mas também de suportá-la, até que renovada
e sarada de dia-a-dia, torne-se capaz de tamanha felicidade.” Tradução de Oscar Paes Leme
com algumas alterações (A Cidade de Deus contra os Pagãos, XI, 2, trad. de Oscar Paes Leme, vol.
II, p. 20 “mens [...] uitiis quibusdam tenebrosis et ueteribus inualida est, non solum ad
inhaerendum fruendo, uerum etiam ad perferendum incommutabile lumen, donec de die in
diem renouata atque sanata fiat tantae felicitatis capax”).
97
Assim, o Filho ilumina a razão, e ela, a partir da reviravolta causada pelo
chamado divino, passa a tomar conhecimento de sua situação de vida
malfadada, ou seja, do distanciamento cognitivo da Verdade e moral do Amor
característicos da “região da dessemelhança”. Essa distância equivale à
escuridão moral, à exteriorização de si pelo mergulho na paixão tenebrosa (in
affectu tenebroso)
244
, que é um amor falso que engaja o homem no amor do que
lhe é inferior, ou seja, uma dispersão no sensível por oposição à concentração
em si mesmo voltada para o conhecimento de Deus. Ela é uma “conseqüência
de erros que obscureceram o espírito e o coração do homem, impedindo-o de
perceber e de seguir a lei”
245
.
Ciente de sua situação, o homem cuja mente foi renovada no
conhecimento da Verdade deverá esperar pacientemente, agindo conforme sua
natureza requer, para seus pecados serem removidos por Deus, que julgar-se
capaz de fazê-lo seria soberbo.
Portanto, embora a ação do Filho se oriente no sentido de determinar a
capacidade e a atividade da nossa mente, também estabelece e dinamiza o
estatuto ontológico (a realização plena e pessoal de cada homem), lógico (o
conhecimento das verdades úteis à salvação) e moral do homem (conversão e
244
conf., I, xviii, 28.0
245
SOLIGNAC, A., “La conscience morale”. In: AUGUSTIN, Confessions, “Bibliothèque
Augustinienne” 13, nota 8, pp. 663-634: “O progresso na vida espiritual, sob domínio da graça,
consiste em superar a lei do pecado e em interiorizar a lei exterior [dos dez mandamentos] para
reencontrar, num plano superior, a lei interior. Assim, passando da heteronomia à autonomia, o
homem cessa de ser sub lege para se encontrar in lege”.
98
absorção da fatalidade proveniente da herança adâmica)
246
. A conversão
vincula-se intimamente com a Felicidade, pelo que foi dito. Ora, sua relação
com a Sabedoria afirma-se na correspondência do Filho com a formação da
alma racional. Ele ilumina a razão humana e possibilita conhecimentos úteis ao
alcance da “plenitude da felicidade ao participar de Sua sabedoria”
247
. A precisa
formulação de Isabelle Koch, “plenitude da felicidade”, indica o envolvimento
das ações trinitárias na realização do homem: o Filho vincula-se estritamente
com o Pai (Ser em sentido pleno) e o Espírito (amor supremo que move a alma
para a Felicidade).
Enfim, qual seria a relação entre o Espírito Santo e a alma racional
humana? Agostinho destaca o papel de união que o Espírito desempenha no
seio da Trindade: ele é o amor entre Pai e Filho. De modo semelhante, segundo
o livro XIII das Confissões, o Espírito Santo corresponde à força de caritas nos
homens, e equivale ao amor dinâmico inequívoco direcionado somente para
Deus
248
. A seguinte prece oferece esclarecimentos:
246
Gilson, entre suas máximas sobre a iluminação, escreve: “Assim, o sentido verdadeiro da
iluminação agostiniana é que a ão iluminadora de Deus é, antes de tudo, uma ação
vivificante: illuminatio nostra participatio Verbi est, illius scilicet Vitae quae lux est hominum (De
Trinitate, IV, 2, 4; t. 42, col. 889. Alusão à Jo 1,1-14).” (GILSON, E., Introduction à l’étude de saint
Augustin, p. 141).
247
KOCH, I., Image et dissemblance Etude sur la notion d’image chez Plotin et saint Augustin, p.
202. A autora elenca alguns aspectos herdados por Agostinho do Evangelho de são João sobre o
Filho, como Verbo e Imagem-igual do Pai.
248
Para Fulbert Cayré, o livro XIII das Confissões tem como tema principal a missão
santificadora do Espírito Santo: “Le thème dominat du livre XIII est, sans conteste, l’action
éminente du Saint-Esprit dans l’âme appelée à la vie divine. [...] le livre XIII constitue une
synthése remarquable sur le rôle du Saint-Esprit” (CAYRE, F., “Le livre XIII des Confessions”, p.
147).
99
“Em teu dom repousamos:
Aí onde fruímos de ti; nosso repouso é nosso lugar.
É para lá que o amor nos eleva e o teu bom espírito (At 2,38)
exalta nossa humildade para longe das portas da morte (Sl
142,10; 9,15).
Na boa vontade está a nossa paz (Luc 2,14).
Um corpo, em razão de seu peso, tende ao seu lugar.
O peso não ocorre apenas para baixo, mas para o seu
lugar.
O fogo tende para cima, a pedra para baixo.
Por seus pesos são impelidos, dirigem-se para seu lugar.
[...]
Se estão menos ordenados, ficam inquietos;
ao serem ordenados, então, aquietam-se.
Meu peso é meu amor;
Por ele sou levado para onde sou levado.
Teu dom nos inflama e nos leva ao alto;
Inflamo-nos e nos movemos.
Subimos os degraus no coração (Sl 83,6)
E cantamos o cântico dos degraus (Sl 119,1)
Teu fogo, teu fogo nos inflama e nos movemos,
pois movemo-nos para o alto para a paz de Jerusalém
100
pois recebi minha alegria naqueles que me disseram:
vamos à casa do Senhor (Sl 121,6 e 1) .
Aí nos colocará a boa vontade,
para que não queiramos nada
senão permanecer eternamente (Sl 60,8).” (conf., XIII,
ix,10)
249
O lugar do homem se define pela fruição de Deus. Tal como um corpo
tende a seu lugar natural, no qual repousa, o homem repousa ao se aproximar
de Deus e alcançar seu lugar natural: isso revela a ordem divina no universo
criado. E, se o movimento dos corpos é regido por seu peso, no homem isso
corresponde ao amor. Desse modo, tal como o fogo sempre é impelido para seu
lugar e naturalmente volta-se para o alto, o Espírito é um dom que reside no
coração humano e inequivocamente inflama-o, fazendo o homem mover-se
para aquele que lhe é superior, Deus. Portanto, peso e amor são semelhanças
das criaturas com a terceira pessoa da Trindade.
249
“In dono tuo requiescimus: ibi te fruimur. Requies nostra locus noster. Amor illuc attollit nos
et spiritus tuus bonus (At 2,38) exaltat humilitatem nostram de portis mortis (Sl 142,10; 9,15). In
bona voluntate pax nobis est (Luc 2,14). Corpus pondere suo nititur ad locum suum. Pondus
non ad ima tantum est, sed ad locum suum. Ignis sursum tendit, deorsum lapis. Ponderibus
suis aguntur, loca sua petunt. Minus ordinata inquieta sunt: ordinantur et quiescunt. Pondus
meum amor meus; eo feror, quocumque feror. Dono tuo accendimur et sursum ferimur;
inardescimus et imus. Ascendimus ascensiones in corde (Sl 83,6) et cantamus canticum graduum
(Sl 119,1). Igne tuo, igne tuo bono inardescimus et imus, quoniam sursum imus ad pacem
Hierusalem, quoniam iucundatus sum in his, qui dixerunt mihi: in domum Domini ibimus (Sl 121,6 e
1). Ibi nos collocabit voluntas bona, ut nihil velimus aliud quam permanere illic in aeternum (Sl
60,8).”
101
Quando o coração reside em seu lugar próprio, frui da paz; porém,
quando desobedece à ordem na qual foi criado por Deus, quando está fora de
seu lugar, a mesma vontade provoca um movimento que se traduz como uma
inquietude ou insatisfação íntima. Não se trata de mera dispersão, pois o
homem vive inquieto até que retorne ao Criador. Logo, a inquietude é um
modo da atuação do Espírito.
Ademais, o homem é movido pelo amor ardente, ou vontade, através de
uma gradual ascensão interior, os degraus do coração. Quanto mais amar a
Deus, mais subirá para junto dele. Ora, como o homem vai amar mais ou
menos, decidindo? Ocorre que, sob a opressão do pecado, age o pecado e não o
homem, que naturalmente anseia por Deus; logo, não é possível ao homem
aumentar caritas
250
. Certamente, a intensidade será um dom, tal qual os degraus
do coração, ou as ascensões interiores, são preparados pelo Senhor
251
. Subir no
coração exige amor porque, para Agostinho, o coração é o lugar do “vale de
lágrimas”
252
, ou seja, do reconhecimento do peso adquirido pelo pecado, onde
recebemos da graça divina virtudes para alcançarmos finalmente a
contemplação de Deus e habitarmos a paz eterna da casa do Senhor. “Vale de
lágrimas” significa também a humildade assumida por Jesus Cristo, que desceu
250
Cf. en. Ps., CLVIII, s. iii, 1.
251
Cf. en. Ps., LXXXIII, 10.
252
Cf. en. Ps., LXXXIII, 11.
102
aos homens e permaneceu junto de Deus, para que eles subissem o monte da
ascensão, que é também o Cristo, a fim de atingir certa altura espiritual
253
.
Então, a questão se impõe: quem ama quem? E, no âmbito do Espírito,
quem é que quer Deus: o homem ou o Espírito? A eternidade e a santidade
incorruptível de Deus parecem uma auto-satisfação, um ciclo amoroso explícito
na expressão amor Dei, amor de Deus. A um tempo, o amor Dei é o amor
divino pelo homem e o amor humano por Deus. Presença da caridade divina
difundida em nossos corações, o Espírito é um dom, não uma conquista:
“tua caridade foi difundida em nossos corações pelo Espírito
Santo, que nos foi dado, e ele nos ensinou sobre [as
realidades] espirituais, mostrando a via supereminente
(1Cor 12,1 e 31) do amor (caritas), dobrando para nós
nossos joelhos diante de ti, para que conheçamos a ciência
supereminente da caridade do Cristo (Ef 3,14 e 19)” (conf., XIII,
vii, 8)
254
Esse poder ativador da busca se opõe ao fardo das impurezas humanas,
despertando a vontade do homem para o amor seguro do que é superior à sua
mente, e movendo-a para o repouso em uma vida sábia e feliz. Cabe ao homem
253
Cf. en. Ps., CXXI, 1-4.
254
“caritas tua diffusa est in cordibus nostris per spiritum sanctum, qui datus est nobis, et de
spiritalibus docentem et demonstrantem supereminentem uiam caritatis et flectentem genua pro
nobis ad te, ut cognoscamus supereminentem scientiam caritatis Christi.”
103
entregar-se cada vez mais à força amorosa, e seu esforço residirá em não
atrapalhá-la, jamais em criá-la:
“Dá-te para mim, ó meu Deus, devolve-te para mim. Eis
que te amo, e se for pouco, que eu ame mais forte. Não
posso medir, de modo que eu saiba, quanto falta de amor
para mim para que isso seja o bastante, a fim de que
minha vida corra para os teus abraços e não seja adversa
até que esteja escondida no segredo da tua face (Sl 30,21)”
(conf., XIII, viii, 9)
255
Assim, a universal vontade humana de Felicidade ou, simplesmente, a
vontade humana , mesmo quando manchada pelo pecado e dispersa devido à
sua própria miséria, é uma vontade de Deus, por definição. A caridade ilumina
as trevas humanas, revelando-as como insatisfatórias
256
.
Em resumo, o Espírito é o amor divino humanizado. É a vontade boa
pela qual somos elevados a Deus, nosso verdadeiro repouso e vida. No homem,
o Espírito é também o amor de Deus, exatamente no sentido ambíguo da
255
“Da mihi te, Deus meus, redde mihi te; en amo et, si parum est, amem validius. Non possum
metiri, ut sciam, quantum desit mihi amoris ad id quod sat est, ut currat vita mea in amplexus
tuos nec avertatur, donec abscondatur in abscondito vultus tui (Sl 30,21)”
256
“mostras suficientementre quão grande fizestes a criatura racional, já que absolutamente
nada lhe basta para seu repouso bemaventurado, de tudo isso que é menor que tu, e, portanto,
tampouco ela a si mesma. Pois é tu, nosso Deus, que iluminarás nossas trevas.” (“satis ostendis,
quam magnam rationalem creaturam feceris, cui nullo modo sufficit ad beatam requiem,
quidquid te minus est, ac per hoc nec ipsa sibi. Tu enim, Deus noster, illuminabis tenebras
nostras” - conf., XIII, viii, 9).
104
expressão; é o amor do Deus-bondade que faz com que a vida da alma se
realize na Sabedoria e na Felicidade eternas, e é o amor por Deus, que o homem
sente como motor de sua realização pessoal. Sem o Amor divino, nossas almas
vivem, mas vivem morrendo; pois, abandonadas a si mesmas, perambulam em
sua própria obscuridade e deixam-se arrastar pelo desejo das coisas temporais.
Quando socorridas pelo amor divino, voltam-se para o Verbo e passam a trilhar
o caminho da vida, orientadas para Deus. Seu guia nessa jornada é interior e
supereminente: o Amor inequívoco de Deus no coração. Somente ao alcançar o
repouso supremo e o conhecimento da Verdade, a alma humana terá cumprido
seu processo de formação como imagem.
Retomando as três dimensões das criaturas, o Espírito causa o peso
específico da alma racional, o qual, rigorosamente, deve ser chamado de boa
vontade humana ou amor. Assim, Deus-Espírito ilumina nosso amor.
Portanto, parece que as ações do Filho e do Espírito ocorrem na alma
espiritual por ela ter sido feita pelo Pai, de modo a ser, em princípio, propícia a
receber do Filho uma forma, qual seja, a de viver feliz e sabiamente. O Espírito,
vínculo amoroso e dinâmico, move intimamente a alma para sua realização ou
formação, tornando-a feliz e sábia. Assim, uma coincidência entre a vida
sábia e a vida feliz, bem como uma correspondência entre a ação iluminadora
do Filho e a do Espírito, que a iluminação reforma a vida disforme. O Pai faz
a criatura espiritual para que seja iluminada; o Filho ilumina concedendo a
105
formação inicial, a reformação e o modelo perfeito de imagem; o Espírito é a
vontade amorosa de Deus que move a vontade humana para Cristo, bem como
é aquele que a inspira na busca da ciência de Cristo.
Certamente, o livro XIII das Confissões convida-nos a buscar maior
clareza quanto às relações da Trindade com a iluminação do homem; contudo,
nesse texto, encontramos indicações de que se trata de uma questão em vias de
amadurecimento
257
. Afirma-se haver um vínculo entre a vida feliz e a
iluminação:
“Ora, o que disseste nas primeiras obras Faça-se a luz, e
a luz foi feita (Gn 1,3) não entendo isso
incongruentemente criatura espiritual. Pois havia algo
como uma vida, a qual iluminarias.” (conf., XIII, iii, 4)
258
Ora, a vida que antecede a iluminação é criada para ser iluminada, ou
seja, a vida será iluminada quando a mutabilidade da alma voltar-se para Deus,
imutável no ser; quando seu conhecimento souber a altíssima ciência de Cristo e
257
Para Aimé Solignac, “A vrai dire, au stade des Confessions, la systématisation augustinienne
du rôle des trois Personnes divines dans la création n’a pas encore atteint une cohérence
parfaite: la fonction de l’Esprit en particulier n’est pas dévelopau même degré que celle du
Verbe;” (SOLIGNAC, A., nota complementar 5 “La création de le Saint-Espirit”. In:
AUGUSTIN, Les Confessions, “Bibliothèque Augustinienne” 14, p. 578-579). Segundo Marie-
Anne Vannier, remetendo-se às Confissões, a reflexão de Agostinho sobre a “dialética da criação
e da formatio [...] não está ainda completada nessa obra” (VANNIER, M.-A., Creatio et formatio
dans les Confessions”, p. 69-70).
258
“Quod autem in primis conditionibus dixisti: Fiat lux, et facta est lux, non incongruenter hoc
intellego in creatura spiritali, quia erat iam qualiscumque uita, quam illuminares.”
106
quando sua vida for iluminada e se tornar uma vida sábia e feliz. A iluminação
é, portanto, a especificação da criatura e também diz respeito à sua perfeição.
A iluminação é parte do processo de formação da alma humana
renovada (moralmente), cuja mente entende a Verdade divina. Enquanto o
amor do homem, mesmo o do mais justo, busca satisfações com o temporal, ele
vive mal e sua alma é morrente “morreremos vivendo mal”, diz Agostinho
(conf., XIII, xxi, 31)
259
; convertendo seu amor Àquele para quem o homem foi
feito, a alma passa a viver bem. A conversão é a formação do homem, embora
dependa da cooperação do Espírito. Aimé Solignac observa:
“[a] presença do Espírito nos corações cria um dinamismo
ascensional (subleuatio caritatis) que compensa, opondo-se
a ele, o dinamismo ‘descensional’ do desejo da carne
(pondus cupiditatis); assim o homem é atingido por duas
forças que lhe solicitam em sentido oposto [...]. O
dinamismo interior do amor versado em nós pelo Espírito
polariza nosso coração e o faz tender para o lugar de seu
repouso, para o lugar supereminente onde o Espírito se
encontra”
260
Contudo, Aimé Solignac defende que:
259
“moriebamur male uiuendo”
260
SOLIGNAC, A., nota complementar 5 “La création de le Saint-Espirit”. In : AUGUSTIN, Les
Confessions, “Bibliothèque Augustinienne” 14, p. 580.
107
“de acordo com as Confissões, o Espírito Santo não
intervém diretamente na formação e na iluminação: seu
papel não é de ordem noética, mas ética; tampouco
intervém na criação compreendida como dom de ser. Mas
ele intervém para tornar possível e perfeito o retorno da
criatura espiritual a Deus: sua função, se tomarmos os
esquemas dionisíacos, respeita ao reditus e não ao
exitus.”
261
.
Ora, parece-nos possível pensar o Espírito no âmbito da iluminação e da
criação. Concordamos com a posição de Olivier Du Roy:
“Para nós, o reditus faz parte do completamento da criação
e da iluminação. Os textos anteriores às Confissões (por
exemplo, A verdadeira religião, LV, 113 e o Comentário literal
ao Gênesis, inacabado, V, 22) mostram isso. E se, nas
Confissões (XIII), o papel do Espírito é sublinhado em
relação à criatura espiritual, contudo, ele já estava evocado
em relação ao conjunto das criaturas: ut ex te perficiantur
et tibi placerant
262
.”
263
261
SOLIGNAC, A, ibidem, p. 580 citado em DU ROY, O., L'intelligence de la foi en la Trinité selon
Saint Augustin: genése de sa théologie trinitaire jusqu'en 391, nota 4, p. 425.
262
conf., XIII, iv, 5.
263
DU ROY., L'intelligence de la foi en la Trinité selon Saint Augustin: genése de sa théologie trinitaire
jusqu'en 391, nota 4, p. 425.
108
Corrobora essa interpretação uma passagem do livro VII:
“Quem conhece a Verdade, conhece-a [a luz], e quem a
conhece, conhece a Eternidade. A Caridade a conhece. Ó
eterna Verdade, verdadeira Caridade e cara Eternidade,
‘tu és o meu Deus’! (Sl 42,2).” (conf., VII, x 16)
264
Deixando de lado a polêmica acerca da seqüência desses conhecimentos,
podemos certamente afirmar que a luz se identifica ao Deus-Trindade:
Eternidade (Pai), Verdade (Filho) e Caridade (Espírito Santo) inter-
relacionadas
265
. uma coincidência entre o conhecimento da verdade, da
eternidade e do amor (caritas). A luz parece ser usada como referência ao
conhecimento da Trindade.
264
“Qui nouit ueritatem, nouit eam, et qui nouit eam, nouit aeternitatem. Caritas nouit eam. O
aeterna ueritas et uera caritas et cara aeternitas! Tu es Deus meus.” No livro VII das Confissões
(VII, x, 16), Agostinho revela seu entusiasmo com os resultados de suas leituras dos livros dos
neoplatônicos, em particular quanto às possíveis analogias entre as três hipóstases
neoplatônicas e o dogma da Trindade. “Agostinho deve aos livros neoplatônicos, sobretudo,
uma doutrina e um método do conhecimento de si, uma iniciação à reflexão do espírito sobre si
mesmo, uma tomada de consciência da interioridade espiritual: é nessa interioridade que ele
descobre em seguida, pouco a pouco, [...] os elementos de uma metafísica válida na qual o
espírito que refete percebe o liame que o religa a Deus, a idéia de Deus e a relação das criaturas
com o criador.” (SOLIGNAC, A., “Introduction”. In: AUGUSTIN, Les Confessions, “Bibliothèque
Augustinienne” 13, p. 104).
265
“Com efeito, a essência de Deus, a qual é, nada tem de mutável, nem em eternidade, nem em
verdade, nem em vontade; pois nela a Verdade é eterna, a Caridade é eterna; nela, a Caridade é
verdadeira e verdadeira a Eternidade; e nela a Eternidade é cara e a Verdade cara” (“Omnino
enim Dei essentia, qua est, nihil mutabile habet, nec in aeternitate, nec in ueritate, nec in
uoluntate: quia aeterna ibi est ueritas, aeterna caritas; et uera ibi est caritas, uera aeternitas; et
cara ibi est aeternitas, cara ueritas.” - trin., IV, i, 1). “Com efeito, em sua substância em que são,
os três são um Pai, Filho e Espírito santo […] e simultaneamente um e o mesmo de
eternidade a eternidade, tal qual a Eternidade, que não é sem Verdade nem Caridade.” (“In sua
quippe substantia qua sunt tria unum sunt, Pater et Filius et Spiritus Sanctus, [...] et simul unum
atque idem ab aeternitate in aeternitatem tamquam ipsa aeternitas quae sine ueritate et caritate
non est” - trin., IV, xxi, 30).
109
A luz, a nosso ver, dirige-se à vida informe exordial e a converte para
que seja, por fim, consumada a sua formação. O Espírito é uma admonição
íntima e direcionada à elevação e interiorização, ou seja, ao “lugar” do Espírito
na alma; ele orienta o homem para tornar-se imagem do Filho, que é o norte da
definição do homem, qual seja: “Façamos o homem à nossa imagem e
semelhança.” (Gn 1,26).
O homem formado e renovado tem conhecimento de Deus. Tendo se
tornado espiritual, pode julgar espiritualmente todas as coisas que lhe são
inferiores a partir da Verdade embora jamais possa julgar Deus
266
, de
superioridade inultrapassável, tampouco julgar a Escritura divina: o homem
deve ser cumpridor e não juiz da Lei. O julgamento é a ação intelectual “pela
qual [o homem] percebe o que no Espírito de Deus” (conf., XIII, xxiii, 33)
267
,
acessando o dom de ver em seu coração a Verdade.
Por essa capacidade os homens conhecem três dimensões em si
mesmos
268
: o ser (esse), o conhecer (nosse) e o querer (uelle). Estando essas
dimensões presentes também na Trindade, a meditação sobre como ocorrem no
homem certamente irá conduzi-lo à compreensão da distância e da distinção
entre homem e Deus:
266
“mas ele [Deus] não é julgado por ninguém” (“ipse [Deus] autem a nemine iudicatur” - conf.,
XIII, xxii, 33).
267
“per quem percipit quae sunt spiritus dei.”
268
Emprestamos essa expressão de Olivier du Roy, que se refere a “ser, conhecer e querer”
como um cogito que coincide com “três dimensões ontológicas [...] ou três momentos da
iluminação” (DU ROY, O., L'intelligence de la foi en la Trinité selon Saint Augustin: genése de sa
théologie trinitaire jusqu'en 391, p. 432-433).
110
“Com efeito, sou, conheço e quero. Sou conhecedor e
querente; conheço que eu sou e que quero; e quero ser e
conhecer. Portanto, nestes três [aspectos], veja quem
puder, como a vida é inseparável, e que uma vida e
uma mente e uma essência; e, então, como uma
distinção inseparável e, contudo, há distinção.” (conf., XIII,
xi, 12)
269
Refletindo sobre si mesmos, os homens poderão refinar sua compreensão
da distinção e da interdependência entre ser, conhecer e querer. Saberão que
Deus é o verdadeiro ser ao qual suas almas devem se direcionar a fim de ser.
Conhecerão o que é justo, certo, verdadeiro mediante o intelecto; entretanto,
conceberão essas coisas sem possuí-las, mas intimamente inspirados pelo
Espírito, ou seja, saberão o que sabem pelo Espírito e não por si mesmos, pois é
Deus quem sabe verdadeiramente tudo que eles sabem. Por fim, seus corações
são movidos para o bem pela intervenção do Espírito, sem a qual suas vontades
se arrastavam para o mal. Portanto, os homens saberão que o homem se define
como um ser dinâmico que deve orientar sua alma por e para Deus. Nas
Confissões, Agostinho não identifica as três dimensões do homem como uma
269
“Sum enim et scio et uolo: sum sciens et uolens et scio esse me et uelle et uolo esse et scire. In
his igitur tribus quam sit inseparabilis uita et una uita et una mens et una essentia, quam
denique inseparabilis distinctio et tamen distinctio, uideat qui potest.”
111
imagem ou vestígios da Trindade, embora as indique como “três ‘coisas’” em
nós que nos ajudam a entender “três ‘coisas’ da Trindade”
270
.
Contudo, o conhecimento humano não compreende a dinâmica interior
àquele que lhe é superior: “que é imutavelmente, conhece imutavelmente e
quer imutavelmente” (conf., XIII, xi, 12)
271
. O homem jamais conhecerá a relação
entre essas três dimensões e a Trindade em geral, Deus ou cada uma das
pessoas da Trindade; o ser, o conhecer e o querer divinos permanecem acima de
nossa compreensão.
V. Comentário literal ao Gênesis
Santo Agostinho escreve o Comentário literal ao Gênesis em 14 anos, nos
qual houve uma grande interrupção. De acordo com a pesquisa de datação
elaborada por Agaëse e Solignac, os nove primeiros livros são redigidos até
410
272
; em seguida, ocupa-se Agostinho das controvérsias donatistas, das
respostas a cartas de Petiliano contra a Igreja e da conferência de Cartago (411).
Finalmente, em 414, a obra é concluída e rapidamente publicada
273
.
270
“Vellem, ut haec tria cogitarent homines in se ipsis. Longe aliud sunt ista tria quam illa
Trinitas, sed dico, ubi se exerceant et probent et sentiant, quam longe sunt. Dico autem haec
tria: esse, nosse, uelle” (conf., XIII, xi, 12).
271
“quod est incommutabiliter et scit incommutabiliter et uult incommutabiliter”
272
Os nove livros iniciais talvez tenham sido concluídos antes de 410, pois, entre 410 e 412,
Agostinho sofreu problemas de saúde, tendo ainda se dedicado à conferência de Cartago (cf.
SOLIGNAC, A., “Date de rédaction”. In: AUGUSTIN, La Genèse au sens littéral, “Bibliothèque
Augustinienne” 48, pp. 25-31.
273
Segundo M. Mellet e Th. Camelot, a atividade literária de Agostinho foi consideravelmente
diminuída em 406 e, depois, retomada em 412: “De 406 a 412, sua atividade literária não é tão
112
Esse período de escrita, de 401 a 414, es incluído no de redação do
Sobre a Trindade (399-414)
274
. Desse modo, é possível afirmar que, ao término do
Comentário literal ao Gênesis, Agostinho detinha uma reflexão madura acerca do
tema das similitudes ternárias das criaturas em relação ao Criador. As duas
obras trazem enfoques distintos; e, se Sobre a Trindade detalha a semelhança
especial que o homem guarda com Deus, o Comentário literal ao Gênesis versa
sobre o relato bíblico da criação.
A obra examinada neste capítulo é o mais elaborado dos três comentários
agostinianos ao Gênesis; e, no que tange ao nosso tema, Agostinho não hesita em
afirmar a atividade da Trindade divina na criação, conversão e perfeição de
todas as criaturas:
“Assim como (ut) no exórdio da criatura incoada, a qual é
mencionada pelos nomes céu e terra’ em razão do que
havia para ser feito (perficiendum) a partir dela, a Trindade
do Criador é insinuada. Com efeito, quando a Escritura
diz: ‘No princípio, Deus fez o céu e a terra’ (Gn 1,1)
entendemos o Pai com nome ‘Deus’ e o Filho no nome de
‘princípio’, o qual não é princípio do Pai, mas é princípio
grande, mas a luta contra o donatismo alcançou, então, seu ponto culminante, a luta contra o
pelagianismo começara e, no entremeio, a queda de Roma ocasionava seus problemas e suas
angústias; enfim, em 410 e 411, Agostinho deveu se ausentar de Hipona durante uma
considerável parte do ano, por diversas razões, entre as quais, uma vez por doença e outra por
convalescença.” MELLET, M. e CAMELOT, T., “Le date de composition du De Trinitate (nota
complementar 2) . In: AUGUSTIN, La Trinité – livres I-VII, “Bibliothèque Augustinienne” 15.
274
Cf. apêndice A.
113
primeira e principalmente da criatura espiritual criada por
ele e, conseqüentemente, da universalidade das criaturas.
Ora, quando a Escritura diz ‘e o Espírito de Deus pairava
sobre as águas’ (Gn 1,2), reconhecemos a menção completa
à Trindade. Do mesmo modo (ita), também na conversão e
na perfeição da criatura, quando são distribuídas as species
das coisas a mesma Trindade é insinuada, isto é, o Verbo
de Deus e o gerador do Verbo, quando diz ‘Deus disse’
(Gn 1,3) e a santa Bondade, na qual agrada a Deus tudo o
que é perfeito segundo a sua natureza a ele agrada,
quando é dito ‘Deus viu que era bom’ (Gn 1,31).” (Gn. litt.,
I, vi, 12)
275
Na tradução acima, os termos da comparação, de tão distantes, quase se
diluem; de todo modo, buscamos preservá-los com a indicação do original
latino (ut e ita). O fator comum reside na ação da Trindade nas criaturas:
primeiro, quanto à criação; em seguida, quanto à conversão e à perfeição.
275
“Ut, quemadmodum in ipso exordio inchoatae creaturae, quae coeli et terrae nomine propter
id, quod de illa perficiendum erat, commemorata est, Trinitas insinuatur Creatoris nam
dicente scriptura: in principio fecit Deus caelum et terram intellegimus patrem in Dei nomine et
filium in principii nomine, qui non patri, sed per seipsum creatae primitus ac potissimum
spiritali creaturae et consequenter etiam uniuersae creaturae principium est, dicente autem
scriptura: et spiritus dei ferebatur superaquam, completam commemorationem Trinitatis
agnoscimus ; ita et in conuersione atque perfectione creaturae, ut rerum species digerantur,
eadem Trinitas insinuetur, uerbum Dei scilicet, et uerbi generator, cum dicitur: dixit Deus, et
sancta bonitas, in qua Deo placet quidquid ei pro suae naturae modulo perfectum placet, cum
dicitur: uidit Deus quia bonum est .
114
Em sua reflexão sobre o Gênesis, Agostinho explora a ação da Trindade
divina em duas etapas lógicas, não cronológicas. A creatio (criação em sentido
estrito) equivale à ação divina de produzir o “céu e a terra” em virtude do que
se sucederá. Em seguida, Deus forma as criaturas – investe-as de species (razões)
; por sua vez, esta etapa comporta duas fases: a conversão (conuersio), definida
como o momento em que a criatura se volta para Deus e recebe as razões
divinas
276
; e a perfeição, ou formação em sentido estrito, conceituada como a
culminação do processo de completamento das criaturas
277
. Analisemo-las em
separado.
A criação e a Trindade
No Comentário literal ao Gênesis reencontramos considerações
apresentadas nas Confissões, no Comentário literal ao Gênesis, inacabado e mesmo
no Sobre Gênesis, contra os maniqueus mas com ajustes e, sobretudo, com
acréscimos. De fato, algumas vezes, Agostinho não retoma em detalhe
argumentações previamente elaboradas, mesmo se situadas em outras obras,
mencionando apenas suas conclusões. Por exemplo, o Comentário literal ao
Gênesis pressupõe entendida a identificação entre “princípio” e “Filho”.
276
Aimé Solignac não considera a conversão como um momento ontológico. SOLIGNAC, A.,
“La création et le Saint-Espirit”, nota complementar 17, p. 579. In: AUGUSTIN, Les Confessions,
“Bibliothèque Augustinienne” 14.
277
Esse comentário não desenvolve a reflexão sobre o homem como imagem divina.
Encontramos a elaboração detalhada da questão no Sobre a Trindade.
115
Mantendo a posição apresentada nas obras aqui analisadas, Agostinho
entende a criação como o momento inicial da relação entre Deus e algo diverso
de si mesmo, a saber, a feitura da criatura. Ora, se Deus é Trindade, cada uma
das três pessoas divinas se envolve na criação; e se a criatura resulta de uma
ação trina, então traz indícios da mesma Trindade.
Como Agostinho entende literalmente o envolvimento das pessoas
divinas conforme o relato do Gênesis? A Bíblia refere-se ao Pai e ao Filho
mediante o seguinte versículo: “No princípio Deus fez o céu e a terra” (Gn
1,1)
278
. “No princípio” comportaria três interpretações: ou Deus-Pai teria feito o
céu e a terra no começo do tempo (princípio temporal), como se o tempo
antecedesse a criação e ela ocorresse no tempo hipótese descartada pois que o
tempo é criatura
279
; ou o céu e a terra seriam as primeiras criaturas (princípio no
sentido de ordem), referindo-se àqueles vistos pelos olhos
280
alternativa
desconsiderada, embora consistente, por não indicar com precisão uma pessoa
da Trindade, esquivando-se da questão em pauta; ou se trata do Filho unigênito
de Deus-Pai opção autorizada pelo Evangelho de são João e adotada por
Agostinho
281
. O Filho é o princípio de todas as criaturas, mas não do Deus-Pai.
278
“In principio fecit Deus caelum et terram”
279
Cf. p. 29, nota 61.
280
Como observam P. Agaësse e A. Solignac, a distinção entre esses dois sentidos iniciais não se
faz clara nas Confissões. Cf. conf., XII, xvii, 26; xx, 29; xxviii, 39. No Sobre o Gênesis, contra os
Maniqueus e no Comentário literal ao Gênesis, inacabado, Agostinho não menciona a segunda
interpretação. (“Interprétations diverses de Gn. I, 1-3”. In: La Genèse au sens littéral, I-VII,
“Bibliothèque Agustinienne” 48, nota complementar 2, p. 581-582).
281
A última alternativa foi desenvolvida em outros tratados, de modo que Agostinho não
reconstrói a argumentação. Nota-se o enriquecimento teórico do Comentário literal ao Gênesis:
116
“Deus” é sinônimo de “Pai”, aspecto criador ou potência de fazer algo distinto
de si mesmo (criar). Enfim, as Escrituras afirmam que o Espírito “pairava sobre
as águas” (Gn 1,2)
282
, antes da narração da criação dos diversos seres. Com
efeito, “pairar sobre” remete à superioridade divina, cuja criação não se deve a
quaisquer necessidades. Ora, se um ser superior e completo cria, de livre
vontade, um ser inferior; então, certamente age movido por generosidade e
bondade. Assim, o Espírito é a vontade divina (generosa e bondosa) de fazer
criaturas. Em suma, eis uma síntese da interpretação agostiniana: o Pai fez “o
céu e a terra” pelo Filho-Princípio devido à generosidade do amor do Espírito
Santo.
Mas o que é “céu e terra”? As cinco interpretações elencadas por
Agostinho identificam unanimemente “céu e terra” à criatura feita por Deus: (1)
ou “céu e terra” designariam respectivamente a criatura espiritual e a criatura
corporal; (2) ou referir-se-iam ao conjunto das criaturas corporais (superior e
inferior) e, nesse caso, a Escritura se calaria quanto à criatura espiritual; (3) ou o
Livro aludiria à matéria informe de ambas as criaturas a serem formadas
(significação adotada por Agostinho no Comentário literal ao Gênesis), sendo o
Agostinho faz uso de um repertório riquíssimo de interpretações acerca de diversas passagens e
de temas decorrentes. “A terceira interpretação é inspirada em Orígenes, Hom. in Gn. I, 1, p. 1, 1
10, 2, 12 20 Baehrens [...]. Sobre as diversas interpretações possíveis de in principio, ver
também PHILON, De op. mundi, 26-29. ed. Arnaldez, Éd. du Cerf, Paris, 1961, p. 158-159;
HILÁRIO DE POITIERS, De Trinitate, II, 13-16, PL 10, 60-62; AMBRÓSIO, Hexameron, I, ii, 5; iv,
12-16; BASÍLIO DA CESARÉIA, In Hexamero, I, 6; e também ORÍGENES, In Ioann., I, 16, PG 14,
49 b ss”. (AGAËSSE, P. e SOLIGNAC, A., nota 3. In: AUGUSTIN, La Genèse au sens littéral en
douze livres (I-VII), “Bibliothèque Augustinienne” 48, p. 84-85.
282
“et spiritus dei ferebatur super aquam”
117
“céu” a vida espiritual antes de se converter ao criador, e a “terra”, uma vida
corporal desprovida de todas as determinações corporais; (4) ou “céu” indicaria
a criatura espiritual, feliz e perfeita e não informe desde sua criação, e
“terra” significaria a matéria informe corporal e não formada; (5) ou,
finalmente, “céu” seria a criatura espiritual em estado informe, cuja
informidade estaria mencionada em tenebrae super abyssum”, e “terra”, a
criatura corporal em estado informe, cuja informidade seria exprimida por
terra inuisibilis et incomposita”
283
.
No Comentário literal ao Gênesis, Agostinho opta pela terceira exegese:
“céu e terra” se referem ao exórdio das criaturas, espirituais e corporais, que,
importa sublinhar, são criaturas a serem formadas
284
. Com efeito, matéria
informe e criaturas singulares são pensadas em separado, ao passo que a
criação de ambas transcorre concomitantemente: “porque [Deus] criou a
matéria formada” (Gn. litt., I, xv, 29)
285
. Entenda-se a anterioridade da matéria
enquanto uma exigência de ordem lógica, não temporal, porque isso salienta a
diferença ontológica, necessária e intransponível, entre Deus e a criatura.
Apenas desse modo é possível afirmar a criação do ser pelo Pai, a capacidade
de “ser formada” da criatura suscetível à ação do Filho, e, enfim, a
generosidade amorosa do Espírito como motivo único da criação.
283
Cf. Gn. litt., I, i, 2-3.
284
Nas Confissões, escolhe-se a quarta exegese.
285
“formatam quippe creauit materiam”
118
Correspondendo à ação criadora do Deus Pai, Agostinho destaca o
aspecto de alteridade da criatura. Com efeito, ser uma criatura equivale a ser
algo feito pelo Pai, que é o sumo Ser. Somente Ele é originalmente seu próprio
ser, sem dependência de algo senão de si mesmo. Moacyr Novaes esclarece:
“essa simplicidade [...] é o modo particular de ser de Deus. Deus não é como
são as criaturas, ele é como sua fonte de ser: o ser de Deus é a essência do ser
das coisas”
286
. O Pai é o Ser em sentido primordial, verdadeiro e absoluto.
Sempre idêntico a si mesmo e isso é expresso na auto-referência “Eu sou o
quem-sou” (Ex 3,14)
287
, o Pai é “uma natureza imutável e eterna” (Gn. litt., V,
xv, 33)
288
.
Comparativamente, a criatura é em razão de ser feita pelo Pai e,
porquanto depende dele para ser, é menos do que ele é. Em contrapartida, a
matéria informe é também o começo de algo, ou seja, é incoada
289
.
A insuperabilidade e a alteridade entre o Ser divino imutável e o
“menos-ser” da criatura se traduzem em outros binômios: Pai imutável e
286
NOVAES FILHO, M. A., Eternidade e tempo no Livro XI das Confissões de Agostinho de Hipona, p.
21.
287
Expressão tipicamente utilizada por Agostinho ao reportar-se ao ser divino enquanto ser em
sentido absoluto. Em sua dissertação de mestrado, Moacyr Novaes indica esse versículo como
um dos dois “nomes” de Deus, a saber, o “nome de imutabilidade” (“nomen incommutabilitatis”,
s. VII, 7). Cf. NOVAES FILHO, M. A., Eternidade e tempo no Livro XI das Confissões de Agostinho de
Hipona, p. 20, nota 18.
288
“aeterna incommutabilisque natura”
289
“inchoata creatura” (Gn. litt., I, vi, 12)
119
criatura mutável; Pai eterno e criatura temporal
290
; Pai perfeito e criatura
imperfeita.
Em relação ao Filho, a matéria foi criada como um ser formável, capaz de
receber formas, ou seja, apta à formação e à perfeição. Inicialmente desprovida
de formas e dessemelhante ao criador, ela é capaz de receber uma permanência
específica quando for investida de formas pelo Filho, tornando-se semelhante a
este. Ademais, é preciso diferenciar a matéria informe das criaturas espirituais e
corporais:
“Ou a matéria informe de ambas [as criaturas] é chamada
de “céu e terra”? A saber, a vida espiritual tal como pode
ser em si [mesma], não convertida ao Criador – com efeito,
por tal conversão é formada e é perfeita, mas se não for
convertida, permanece informe; ou a corporal se é que
pode ser entendida através da privação de todas as
qualidades corporais, o que aparece na matéria formada
quando as espécies dos corpos são perceptíveis ou pela
vista ou por qualquer sentido do corpo?” (Gn. litt., I, i, 2)
291
290
“mas ele precede todas as coisas, que fez, não somente em excelência, pois ele é também o
causador das causas, mas também em eternidade.” (“ille autem omnia, quae fecit, non solum
excellentia, qua etiam causarum effector est, uerum etiam aeternitate praecedit.” Gn. litt., VI,
viii, 13)
291
“An utriusque informis materia dicta est caelum et terra, spiritalis uidelicet uita, sicut esse
potest in se, non conuersa ad creatorem tali enim conuersione formatur atque perficitur; si
autem non conuertatur, informis est corporalis autem, si possit intellegi per priuationem
omnis corporeae qualitatis, quae adparet in materia formata, cum iam sunt species corporum
120
A matéria informe espiritual consiste numa vida informe que será
formada e se tornará perfeita ao se converter ao criador. De outro modo, a
matéria informe corporal é um princípio de ser privado de todas as qualidades
perceptíveis pelos nossos sentidos.
Agostinho convoca-nos a meditar sobre uma matéria informada e
incorpórea. Como conceber a vida espiritual precedente à formação? Se é
espiritual, então é vida; de que modo viveria? Seria racional? Sobre esse
mistério, a única certeza consiste em ter a matéria informe da alma recebido
forma de Deus
292
. Por outro lado, Agostinho jamais mencionou que a matéria
espiritual de Adão lhe tenha preexistido.
Além da alteridade, a matéria informe explica a mutabilidade humana
293
,
bem como a de todas as criaturas. Por definição, a matéria é “informe e
formável” (Gn. litt., VIII, xx, 39)
294
, portanto, mutável. Com efeito, a criatura
espiritual muda no tempo, mas não no espaço; enquanto a criatura corporal
muda em ambos. Não há deslocamentos da alma humana de um ser para outro,
embora ela mude temporalmente ao se lembrar do que esquecera, ao aprender
o que ignorava e quererendo o que não queria. Ademais, se almas humanas se
deformam pelas trevas dos vícios e erros e se formam pela luz das virtudes e do
siue uisu siue alio quolibet sensu corporis perceptibiles?”
292
Cf. Gn. litt., VII, viii, 11.
293
Cf. Gn.litt., I, iv, 9.
294
“informem ac formabilem” cf. AUGUSTIN, La Genèse au sens littéral, livros VIII-XII,
“Bibliothèque Augustinienne” 49, nota complementar 41, 1, p. 511.
121
conhecimento da Verdade
295
, e, a despeito de suas alterações, permanecem
almas, comprova-se haver na alma um princípio de mutabilidade, identificado
por Agostinho como matéria espiritual.
“Mas tal como esta [a carne] [...] natureza na qual ela se
perfaz para ser pulcra, ou se desfaz para ser deforme
também tem uma matéria, isto é, terra da qual é feita para
que seja totalmente carne; paralelamente, a alma também
pode ter antes de ser feita em sua própria natureza,
denominada alma, cuja pulcritude é a virtude e cuja
deformidade é o vício uma matéria espiritual de um
gênero próprio, que ainda não seria alma. Assim, a terra,
da qual foi feita a carne, era algo, ainda que não fosse
carne.” (Gn. litt., VII, vi, 9)
296
A mutabilidade depende da ação do Pai ao estabelecer um certo nível
ontológico. Do mesmo modo, somente por ser a criatura um começo de ser é
que poderá se tornar plena. Com respeito à Trindade, a vocação da matéria para
295
Em uma carta a são Jerônimo, Agostinho compara os vícios às trevas e as virtudes à luz. Cf.
ep. 167, v, 13.
296
“Sed sicut haec [...], in qua natura uel proficit ut pulchra, uel deficit ut deformis sit, habuit
etiam materiem, id est terram, de qua fieret, ut omnino caro esset: sic fortasse potuit et anima,
antequam ea ipsa natura fieret, quae anima dicitur, cuius uel pulchritudo uirtus, uel deformitas
uitium est, habere aliquam materiam pro suo genere spiritalem, quae nondum esset anima;
sicut terra de qua caro facta est, iam erat aliquid, quamuis non erat caro.”
122
se formar, seja ela corporal ou espiritual, deve-se ao Filho. Portanto, o Pai fez a
matéria informe espiritual e corporal para serem formadas pelo Filho-Princípio.
Finalmente, o Espírito age na criação como o amor beneficente de Deus
pela criatura, sinônimo da “suma, santa e justa benignidade inerente a Deus”
(Gn. litt., I, v, 11)
297
. Bastando-se totalmente a si, sua natureza transborda
beneficência no ato criador. Na matéria, correspondem à ação do Espírito a
passibilidade e a suscetibilidade à impressão de formas.
A formação e a Trindade
Ao início deste capítulo, referimo-nos a uma passagem na qual
Agostinho identifica conversão e perfeição no momento em que as criaturas
recebem species próprias, mediante a ação da Trindade: “o Verbo de Deus”
(Filho), “o gerador do Verbo” (Pai) e a “santa Bondade” (Espírito)
298
.
Conversão e perfeição são pensadas sob a perspectiva da formação. Uma
vez que a criatura incoada é matéria informe e formável, a conversão atualiza
essa capacidade de receber as formas distribuídas por Deus (de acordo com a
297
“Inest enim Deo benignitas summa, et sancta et iusta; et quidem non ex indigentia, sed ex
beneficentia ueniens amor in opera sua.”
298
“também na conversão e na perfeição da criatura, quando são distribuídas as species das
coisas a mesma Trindade é insinuada, isto é, o Verbo de Deus e o gerador do Verbo, quando diz
‘Deus disse’ (Gn 1,3) e a santa Bondade, na qual agrada a Deus tudo o que é perfeito segundo a
sua natureza a ele agrada, quando é dito ‘Deus viu que era bom’ (Gn 1,31).” (Gn. litt., I, vi, 12)
“[…] et in conuersione atque perfectione creaturae, ut rerum species digerantur, eadem Trinitas
insinuetur, uerbum Dei scilicet, et uerbi generator, cum dicitur: dixit Deus, et sancta bonitas, in
qua Deo placet quidquid ei pro suae naturae modulo perfectum placet, cum dicitur: uidit Deus
quia bonum est.
123
sabedoria divina) e equivale ao movimento da matéria de se voltar para Deus e
dele recebe species. A iniciativa da conversão é divina porque a matéria informe
jamais poderá oferecer a si mesma a forma de que carece para poder ser
perfeita. a perfeição é a culminação da formação da criatura. Mas o que
significa species para Agostinho?
Sinônimo de idéia, número, forma, a razão recebe outros nomes em
línguas diversas; contudo, a realidade referida por essas palavras não pertence
a uma época ou nação ou costume. Não se limita a local ou tempo. “Formas”,
“idéias” e species possuem o significado mesmo de “razões” equiparação
que extrapola a tradução literal do grego para o latim. Com efeito, o termo
grego ιδέα é traduzido em latim por forma ou species; contudo, ratio corresponde
a λόγος, no grego, e não a ιδέα. No entanto, equiparar idéias a razões constrói
uma conceituação segundo a qual, como observa Étienne Gilson, ratio pode
designar as idéias enquanto princípios de conhecimento e de inteligibilidade
dos seres
299
. Portanto, idéias em todas as criaturas que conhecemos, e elas
conferem inteligibilidade àquilo que formam.
Ademais, idéias e razões são formas, que se definem como paradigmas
divinos segundo os quais os seres do mundo são formados; as formas são
“modelos segundo os quais tudo é feito”
300
. Agostinho justifica a paridade
dessas noções:
299
GILSON, E., Introduction à l'Étude de Saint Augustin, p. 260.
300
CAYRÉ, F., Initiation à la philosophie de Saint Augustin, p. 195.
124
“Pois as idéias primeiras (principales) são certas formas, ou
estáveis e imutáveis razões das coisas, razões que não são
elas mesmas formadas, e por isso são eternas e se mantêm
sempre do mesmo modo, contidas na inteligência divina.
E mesmo que elas não nasçam nem morram, ainda assim
dizemos que tudo o que pode nascer e morrer, bem como
tudo o que nasce e morre, é formado segundo elas.” (diu.
qu., XLVI, 2)
301
As idéias determinam gêneros próprios em todas as criaturas,
conferindo-lhes paradigmas inalienáveis, sem os quais deixariam de ser. Por
exemplo, pensemos em um cavalo. Ele tem matéria corporal e a forma de
cavalo, pela qual se define como cavalo. Enquanto criatura, não pode mudar a
forma que recebeu de Deus, e, se buscasse fazê-lo, morreria. De modo geral, as
criaturas são submetidas às idéias, e não o avesso.
O mesmo raciocínio se aplica ao homem, cujo ser se define pela razão de
homem e, criatura que é, jamais poderá mudar a idéia recebida de Deus;
portanto, rigorosamente, o homem não se transforma em cavalo pois que a
razão de seu ser se mantém inalienável. “Cada coisa, pois, é criada na sua
301
Tradução de Moacyr Novaes. In: Cadernos de Trabalho CEPAME, II (1) (1993), p. 9. “Sunt
namque ideae principales quaedam formae uel rationes rerum stabiles atque incommutabiles,
quae ipsae formatae non sunt ac per hoc aeternae ac semper eodem modo sese habentes, quae
diuina intellegentia continentur. Et cum ipsae neque oriantur neque intereant, secundum eas
tamen formari dicitur omne quod oriri et interire potest et omne quod oritur et interit”.
125
respectiva razão” (diu. qu., XLVI, 2)
302
. Ou seja, apesar de tudo ter sido criado
pela razão divina, as coisas recebem razões diversas simultaneamente presentes
na mente de Deus
303
.
Longe de ser evidente, o significado da expressão “mente de Deus”
ganha mais clareza através do entrecruzamento do Sobre as idéias com o
Comentário literal ao Gênesis. No primeiro texto, Agostinho argumenta:
“Onde, porém, se julga estarem estas razões, senão na
mente do criador? Com efeito, ele não viu algo posto fora
dele mesmo, para que, segundo isso, constituísse o que
constituiu; pois opinar assim é sacrilégio. Ora, se estas
razões de todas as coisas (a serem criadas e criadas)
estão contidas na mente divina, e se na mente divina nada
pode haver que não seja eterno e imutável, e se Platão
chama essas razões primeiras idéias, então, não apenas são
idéias, mas são as verdadeiras idéias, porque são eternas e
permanecem do mesmo modo. Mediante a participação
nelas, faz-se com que seja o que é, do modo como é.” (diu.
qu., XLVI, 2)
304
302
Tradução de Moacyr Novaes. In: Cadernos de Trabalho CEPAME, II (1) (1993), p. 9. “Singula
igitur propriis sunt creata rationibus.”
303
Cada razão de cada coisa está no intelecto divino, pois pensar que a criação de Deus tenha
partido de um modelo exterior ao criador é sacrilégio.
304
Tradução de Moacyr Novaes (com pequenas alterações). In: Cadernos de Trabalho CEPAME, II
(1) (1993), pp. 9-10. “Has autem rationes ubi esse arbitrandum est nisi in ipsa mente Creatoris?
126
De acordo com o Comentário literal ao Gênesis, a presença das idéias na
mente divina situa as razões imutáveis de todas as criaturas no Verbo de Deus.
Como o Verbo de Deus é a Sabedoria de Deus, o que se afirma acerca do Verbo
vale também para sua Sabedoria. Essa sinonímia é chave para afinarmos a
interpretação do início do Evangelho segundo são João: “No princípio era o Verbo
e o Verbo estava com (apud) Deus e o Verbo era Deus. No princípio ele estava
com Deus. Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito” (Jo 1,1-3)
305
.
Ora, se todas as criaturas foram feitas pelo Verbo, a mesma ação respeita à
Sabedoria divina.
Portanto, o ato criador pressupõe um conhecimento anterior à criatura;
sendo assim, é inconcebível supor a ignorância divina quanto ao que criou.
Logo, Deus conhecia as criaturas antes de as criar. Tal conhecimento não advém
de algo distinto de Deus, que Ele é o autor absoluto de toda alteridade e, por
conseguinte, antes da criação havia Deus. Logo, as razões eternas não lhe
eram exteriores. Donde se conclui que as idéias foram feitas originalmente na
Sabedoria divina, dedução confirmada por duas passagens bíblicas: “fizeste
Non enim extra se quidquam positum intuebatur, ut secundum id constitueret quod
constituebat; nam hoc opinari sacrilegum est. Quod si haec rerum omnium creandarum
creatarumue rationes diuina mente continentur, neque in diuina mente quidquam nisi
aeternum atque incommutabile potest esse, atque has rationes rerum principales appellat ideas
Plato, non solum sunt ideae, sed ipsae uerae sunt, quia aeternae sunt et eiusdem modi atque
incommutabiles manent. Quarum participatione fit ut sit quidquid est, quoquo modo est.”
305
Tradução oferecida pela Bíblia de Jerusalém, p. 1984. “In principio erat Verbum et Verbum erat
apud Deum et Deus erat Verbum. Hoc erat in principio apud Deum. Omnia per ispum facta
sunt, et sine ipso factum est nihil.”
127
tudo na Sabedoria” (Sl 103,24)
306
e “pois nele tudo foi feito, no céu e na terra, os
visíveis e invisíveis” (Col 1,16)
307
.
As razões das criaturas estão prioritariamente na Sabedoria ou no Verbo.
Tal conclusão se esclarece no Evangelho segundo são João: “assim como o Pai tem
a vida em si mesmo, também concedeu ao Filho ter a vida em si mesmo” (Jo
5,26)
308
. A exploração do significado dessa passagem impõe indagar de que vida
se trata. O Verbo é vida em sentido específico: não a das bestas (sobrevivência
sem conhecimento da Sabedoria) e sim a da vida que é a Luz iluminadora das
mentes humanas purificadas pela graça divina para alcançarem a contemplação
dessa luz. Nada supera a felicidade dessa visão
309
.
Agora, cabe investigar a vida paterna e a filial. sabemos: o Pai deu
nascimento ao Filho, e ambos têm a mesma substância
310
. Assim, se o Pai deu
vida ao Filho, não o viu fora de sua substância, mas viu o Filho, ou seja, a
Sabedoria na qual o Pai viu todas as coisas quando as fez. O Filho equivale à
mente iluminada de Deus, na qual estão enumeradas todas as criaturas.
Logo, todas as criaturas, antes de terem sido criadas, existiam no Filho, a
Sabedoria do Pai, a notitia do Pai. Se as razões das coisas eram tais, é possível
306
“omnia in Sapientia fecisti”
307
“quoniam in ipso condita sunt omnia in caelo et in terra, uisibilia et inuisibilia.”
308
“sicut habet pater uitam in semet ipso, sic dedit filio habere uitam in semet ipso” (a tradução
para o português foi extraída da Bíblia de Jerusalém, p. 1997).
309
Cf. Gn. litt., V, xiv, 31-32.
310
Cf. Gn. .litt., V, xv, 33.
128
afirmar que, desse modo, eram eternas, imutáveis, mais verdadeiras e melhores
do que na criatura. De certo, elas estavam próximas de Deus e eram conhecidas
pelo Pai e pelo Filho antes de as criaturas terem sido feitas
311
.
Dado estarem na inteligência divina, as razões das coisas criadas devem
ser compatíveis com a natureza divina: imutáveis, eternas e necessárias. Segue-
se que as idéias são superiores às coisas criadas, submetendo-as à formação. Daí
serem referidas como principales, princípios primeiros. Independem de algo
substancialmente distinto de si mesmas para existirem, pois são divinas;
tampouco obedecem a um arquétipo do qual estariam distantes, uma vez que
são os paradigmas originais a partir dos quais tudo foi feito. São eternas e
sempre idênticas a si mesmas
312
.
A relação entre as idéias na mente de Deus e as criaturas define a
concepção agostiniana de formação. Portanto, as formas das criaturas são
atribuídas pelo Deus Pai, conforme sua Sabedoria e através do Filho-Verbo
311
Em nota complementar à edição do Comentário literal ao Gênesis da coleção “Bibliothèque
Augustinienne” (volume 48), Agaësse relaciona, de modo sucinto e elucidativo, Agostinho com
Plotino, no que diz respeito à similaridade entre as relações de Pai e Filho (em Agostinho) e Uno
e noûs (em Plotino). Não será possível manter a mesma correlação ao pensarmos o Verbo
enquanto via, tampouco sua encarnação como Jesus Cristo. Estabelece-se, contudo, que o Filho
está para o Pai como o noûs para o Uno, atualizando a potência paterna, desdobrando e
expressando sua riqueza (cf. En. V, i, 6). Ademais, tal como o noûs, o Filho não pode produzir
outro Filho e o que ele produz lhe é exterior, sem que essa atividade contradiga a imutabilidade
e o repouso filial (cf. En. III, ii, 1); se o Filho é o conjunto das razões eternas, o noûs é também o
conjunto dos inteligíveis, que se tornam logói (razões) quando são comunicados pelo noûs à
Alma (cf. V, ix, 3, 30-36; V, ix, 5; II, iii, 8; III, ii, 2; III, iii, 3).
312
Cf. GILSON, E, Introduction à l'Étude de Saint Augustin, p. 110.
129
ação narrada nas Escrituras, mediante o versículo Deus disse: faça-se a luz (Gn
1,3)
313
.
Essa passagem bíblica refere-se à ação divina (Deus disse), realizada pelo
Verbo (disse), de atribuir formas (fazer a luz). Se conferir formas equivale a fazer
a luz, então o Verbo divino tanto é a ação formadora da matéria, como a ação
iluminadora. Ademais, a iluminação, no sentido de formação, traduz o elo
específico que o Filho estabelece com as criaturas ao lhes atribuir gêneros
diferentes e específicos.
Com efeito, o Filho-Verbo direciona-se para a matéria informe
iluminando-a e resgatando-a da imperfeição proemial para a perfeição
314
. Ao
atribuir forma à alteridade, o Verbo realiza um vínculo de semelhança na
matéria em relação a ele. Então, as criaturas passam a ser na medida em que se
assemelham ao Filho, cada uma tanto quanto permitem suas próprias formas
315
.
Gilson nos mostra de que modo a relação entre as criaturas e o Verbo tem como
modelo a relação entre o Filho e o Pai:
“Deus o ser a uma matéria, que tende ao nada por
informidade, ao passo que à medida em que ele diz (Dixit
Deus, fiat), ou seja, à medida em que ele cria como Verbo,
313
Dixit Deus: fiat lux
314
“reuocantis ad se imperfectionem creaturae” (Gn. litt., I, iv, 9)
315
Nesse sentido, as Escrituras referem-se à informidade das criaturas espirituais e corporais
mediante termos próprios à privação de luz: àquelas, afirmando que a terra era “invisível e
desordenada” (“inuisibilis et incomposita Gn 1,2); a estas, que “as trevas estavam sobre o
abismo” (“tenebrae erant super abyssum Gn 1,2).
130
Deus imprime na matéria um movimento de conversão a
ele [...]. Como o Verbo é a imagem perfeita do Pai em
virtude de sua perfeita adesão a ele, assim a matéria se
torna uma imagem imperfeita do Verbo e de suas idéias
graças à sua conversão a ele; criar é produzir
indivisivelmente o informe e chamá-lo para formá-lo.”
316
A semelhança das criaturas com o Criador é o fundamento da
participação. Ao participarem mais ou menos do ser divino mediante suas
formas distintas, as criaturas têm a mutabilidade material fixada em uma
determinada duração de tempo. Decerto, as idéias permanecem sempre do
mesmo modo na inteligência divina; todavia, como estão manifestas nas coisas,
são temporais. Ora, se toda criatura é mutável por definição, tudo o que contém
segue essa propriedade. Logo, poderíamos supor ou que as idéias mudam, ou
que não estão contidas nas coisas. No texto do Sobre as Idéias supracitado,
embora as idéias sejam razões das coisas, elas submetem as criaturas, e não o
inverso. Por isso, mesmo a morte de criaturas não desestabiliza a permanente
identidade das razões eternas. Para serem como são, as coisas submetem-se à
determinação recebida de Deus, e tudo o que elas façam tem limites
316
GILSON, E., Introduction à l'Étude de Saint Augustin, p. 268. Em nota, Gilson compara sua
interpretação com a de Gardeil e admite a equivalência entre formação e iluminação: “Estamos
inteiramente de acordo com P. Gardeil ao admitir que, como todos os textos mostram, santo
Agostinho distingue creare e formare: mas ao invés de dizer que formatio não é creatio no
agostinianismo, pensamos que formatio é creatio mais illuminatio. (GILSON, E., Introduction à
l'Étude de Saint Augustin, p. 268, nota 1).
131
predefinidos nas idéias divinas; como resultado, as criaturas não se sobrepõem
à definição de seu ser, nem agem de forma a mudá-la
317
.
De acordo com a gradação de participação das criaturas no Ser, cada
gênero de ser criado ocupa uma posição na ordem do universo, estabelecida
pelo Espírito Santo. Permanecendo em seu devido “lugar”, a criatura obedece a
regras divinas estabelecidas pelo Espírito Santo com a intenção de estabelecê-la
e conservá-la nessa posição, bem como regular suas mudanças.
Nas criaturas corporais, ao receberem forma, a mutabilidade se
transmuta em uma participação do ser divino, e Deus lhes confere não apenas
existência, mas também forma e permanência. De modo geral, as criaturas são
feitas a um só tempo e, então, convertem-se e se tornam perfeitas. Esse processo
ocorre instantaneamente nas criaturas que não têm vontade.
Contudo, o ser humano, criado à imagem de Deus, pode aceitar ou
recusar a formação que Deus nele operará, e isso equivale ao ato constante de
escolher realizar-se ou destruir-se. A escolha de aceitar o chamamento divino
(Verbo) a se manter nessa orientação define a conversão humana (conuertio)
como o início de um processo de formação, o que envolve a liberdade e se
completa quando o homem se realiza plenamente ao tornar-se imagem de
Deus.
317
O que estamos propondo é, em termos de língua latina, que rationes rerum é um genitivo
subjetivo, e não um genitivo objetivo, o que se perde nas traduções. Assim, as razões
determinam as coisas, e não são possuídas ou contidas. Nossa hipótese é confirmada no
esclarecimento oferecido pelo autor: as idéias estão contidas na inteligência divina; portanto,
não pertencem ao plano da temporalidade, mas ao da eternidade e estabilidade.
132
O homem
A conversão é operada pelo Filho, não mais como Princípio, e sim como
Verbo (Luz imutável da Sabedoria), doador de formas à matéria informe
espiritual
318
. Resultam daí homens e anjos, criaturas inteligentes feitas para
viver sábia e felizmente, aderindo ao Criador
319
.
Se a Luz é eterna e imutável, tal é sua iluminação. Ininterruptamente o
Verbo brilha como uma inspiração oculta e íntima a convocar as criaturas
espirituais a se manterem voltadas (convertidas) para Deus. Quanto ao homem,
seu caminho rumo à perfeição na vida eterna se define, a cada momento, como
um viver a se orientar interiormente para Deus, ou seja, um movimento
constante de adesão àquele que é o verdadeiro repouso
320
. Conhecidas as linhas
318
“ele [o Filho] é a vida luz dos homens” (“ipse uita est lux hominum” Gn. litt., II, vi, 12).
319
Comentadores como Aimé Solignac, Marie-Anne Vannier e Isabelle Koch destacam que
Agostinho postula duas funções do Filho: o Filho Princípio cria a matéria informe, o Filho
Verbo refere-se à conversão e à formação. Cf. KOCH, I., Image et dissemblance Étude sur la
notion d’image chez Plotin et saint Augustin, p. 228-29. Sobre o conhecimento angélico, tal como
entendido por Agostinho no Comentário literal ao Gênesis, ver o excelente artigo de SOLIGNAC,
A., “Exégèse et Métaphysique, Genèse 1,1-3 chez saint Augustin”.
320
Agostinho herda de Plotino tanto o aspecto constitutivo da conversão, quanto o significado
de retorno à interioridade. Plotino salienta a dimensão ontológica da conversão. A conversão é
um dos dois princípios de seu sistema e responde ao movimento primeiro denominado
“processão”. Pela “processão”, emanam do Uno duas hipóstases, o noûs (inteligência) e a psyché
(alma), que se caracterizam apenas por serem menos do que ele; de outro modo, passam a ter
uma real constituição ontológica ao se converterem para o Uno. Segundo Plotino, “antes dessa
conversão, a matéria ou alteridade é indefinida; ela não é boa, e ela é privada da claridade do
Bem” (PLOTIN, Deuxième Ennéade, II, 4(12), 5; p. 105). Contudo, a conversão “ontológica” é
apenas um aspecto da verdadeira conversão. A verdadeira épistrophè, para Plotino, é um retorno
a si mesmo através da interioridade.
133
mestras da formação humana, passemos ao esquadrinhamento dos pontos mais
relevantes à nossa pesquisa
321
.
O estado incoado da criatura espiritual humana coincide com a matéria
informe espiritual, indubitavelmente feita por Deus a partir do nada.
Desprovida de contornos teóricos, esquiva-se de caracterizações sobre como
seria antes de sua formação
322
. Seria infeliz? Ignorante? Convém, brevemente,
eliminar alguns equívocos sobre a questão
323
.
Protegendo os dogmas católicos, Agostinho firma duas certezas
principais: a matéria informe espiritual não resulta do aperfeiçoamento de uma
natureza corporal ou de uma alma irracional; nem tampouco viveu antes da
formação do primeiro homem
324
. Para além disso, a tentativa de precisar qual
seria o equivalente à matéria espiritual informe traduz-se nos limites próprios
321
Especialmente, o Comentário literal ao Gênesis oferece grande dificuldade ao leitor interessado
em esclarecimentos temáticos, e proporcional facilidade quanto a exegese e hermenêutica.
Sobretudo a questão da formação relacionada à iluminação solicitou um esforço adicional no
sentido de buscar fundamentos para além dos textos freqüentemente selecionados pelos
comentadores (geralmente tomados dos capítulos iniciais do primeiro livro).
322
Buscamos esclarecer o estado da matéria informe espiritual anterior à inserção das razões
seminais no mundo assunto desenvolvido adiante.
323
Agostinho descarta a possibilidade de preexistência da alma, bem como a metempsicose,
doutrina segundo a qual o corpo seria matéria da alma animal, e esta, da alma racional (cf. Gn.
litt., VII, viii, 11 xi, 17). A alma humana tampouco foi feita a partir dos anjos (criaturas
espirituais e inteligentes), cujo espírito não é Pai da alma humana (cf. Gn. litt., VII, chefe, 34).
Vide as seguintes notas de A. SOLIGNAC e P. AGAËSSE na coleção “Bibliothèque
Augustinienne”, vol. 48, nota 31, “Les problèmes de l’âme dans le De Genesi ad litteram (pp.
695-697); nota 32, “Nature et constitution de l’âme”, especialmente o tópico 2, “Peut-on
concevoir une ‘materies animae’?” (pp. 699-700); nota 33, “La métempsychose” (pp. 706-710); nota
35, “La préexistence des âmes” (pp. 714-717).
324
Cf. Gn. litt., VII, xxi, 30 e 31; xxii, 32. Nas Confissões, Agostinho não se pronuncia sobre a
incógnita referente à matéria espiritual informe do primeiro homem. O que se definiu então
como informidade equivale, no Comentário literal ao Gênesis, à deformidade de Adão após o
pecado.
134
de um mistério insondável. Portanto, desviamos a investigação para a formação
humana
325
.
A questão parece dúbia em nas narrativas bíblicas: o homem feito no
sexto dia da criação (Gn 1,26) e, adiante, o homem criado do barro (Gn 2,7).
Exemplarmente, ao invés de a interpretação questionar a Verdade das
Escrituras, esta é o critério de consistência para aquela, e será necessário
evidenciar a coerência entre as duas criações
326
. Nesse contexto, Agostinho
introduz as noções de ordem das causas e ordem do tempo, concernentes a dois
modos de Deus administrar a existência dos seres mutáveis.
A ordem das causas é referida na obra dos seis dias
327
, concluída por
Deus e da qual ele descansou
328
. Ela não ocorre numa sucessão temporal, mas
simultaneamente num icto
329
. Com efeito, a criação dos seis dias diz respeito a
todas as razões seminais, também designadas como ”razões primordiais” ou
“razões causais”. Pelo Verbo divino, elas foram inseridas no mundo, onde
permanecem em potência (potentialiter) e de modo invisível (inuisibiliter); o que
325
Segundo Marie-Anne Vannier, a formação (formatio) é a culminação do processo de
conversão. Solignac, Agaësse e Gilson mostram que Agostinho concebe a formatio como um
percurso e seu resultado, e a conversão como início e processo de perfeição. Adotamos a
segunda nomenclatura.
326
Agostinho pensa o livro do Gênesis como revelação exemplar da Verdade divina. Mediante
palavras, as Escrituras oferecem ocasião e motivação para os homens se voltarem para Deus,
percorrendo e se purificando no caminho íntimo cujo fim é a visão beatífica da Luz interior do
Verbo.
327
Cf. Gn 1,1 – 2,4.
328
“a quibus in die septimo requieuit” (Gn. litt., VI, v, 7).
329
“Deus criou tudo simultaneamente” (“Deus creauit omnia simul” – Gn. litt., VI, ii, 3-4).
135
significa que não estão somente na mente de Deus. Na ordem das causas, a
criação da razão seminal do homem preestabelece tudo que o definirá e tudo
que lhe sucederá durante a vida. Um exemplo de razão seminal é a criação de
Adão e Eva: eles não foram engendrados por pais humanos, embora tenham
sido criados com as razões causais (não atualizadas) de gerar descendentes
330
.
Na ordem temporal, a criação se inicia após o estabelecimento da ordem
causal. Trata-se de uma ordem desenrolada no tempo, em que as razões
seminais são atualizadas. A razão seminal do homem se realiza visivelmente
(uisibiliter)
331
entre uma sucessão de acontecimentos mencionados pelas
Escrituras: depois de Deus plantar o Paraíso, o homem é colocado
332
; então,
Deus faz Adão adormecer e, da costela do varão, forma Eva
333
. Para Agostinho,
esse é um relato histórico e temporal
334
. Adão foi criado instantaneamente no
Paraíso, adulto, sem ascendência humana
335
, pela manifestação do que
preexistia em semente, e conforme a vontade absoluta de Deus
336
. Solucionado
está o problema aparente das duas narrativas da criação. No tempo, isto é, na
330
Nessa doutrina se encontra o fundamento da providência divina, visto que Deus sabe tudo
desde o princípio, e conhece tudo o que transcorrerá na vida humana.
331
Cf. Gn. litt., VI, vi, 10.
332
Cf. Gn 2,8.
333
Gn 2,21-22.
334
Segundo Agostinho, a ação de Deus na história cria o primeiro homem no tempo. Cf. Gn.
litt., VI, v, 10.
335
Cf. Gn. litt., VI, xv, 26.
336
Cf. Gn. litt., VI, viii, 13.
136
sucessão das criaturas, Deus trabalha até o presente
337
, sem descanso;
administra e move todas as coisas, que foram simultaneamente terminadas
conforme a perfeição dos seis dias
338
.
Os dois modos de formação qualificam duplamente os homens. Tal como
na criação simultânea de todas as coisas, eles foram criados perfeitos e
consumados (consumatus)
339
. Todavia, a criação no tempo caracteriza o aspecto
incompleto dos homens, ou seja, como criaturas em desenvolvimento
340
. Logo, o
homem é perfeito em natureza e perfectível no tempo.
A razão seminal do homem compreende a possibilidade real de esse ser
histórico escolher se realizar, ou não, à imagem divina conquanto a
determinação do sucesso de tal opção, bem como o modo da formação humana,
residam na inefável presciência divina, conforme a insondável vontade do
Criador.
Com efeito, duas vertentes para se pensar a razão causal do homem.
Poderíamos supor que Deus tenha inserido nela a realização futura do homem,
337
“usque nunc operatur” (Gn. litt., VI, v, 8)
338
Cf. Gn. litt., V, iv, 11; xxiii, 46. Somente na ordem dos tempos, o homem conhece que o
significado de Deus ter concluído a criação dos seis dias versa sobre a criação das razões
primordiais de todas as criaturas.
339
“consumados porque nada em suas naturezas próprias, nas quais agem o curso de seus
tempos, que não tenha sido feito causalmente neles” (“consumata quidem quia nihil habent illa
in naturis propiis, quibus suorum temporum cursus agunt, quod non in istis causaliter factum
sunt” - Gn. litt., VI, x, 18).
340
Cf. Gn. litt., VI, xi, 19.
137
e que tenha pré-determinado o modo da formação particular do homem na
razão causal. Se fosse assim, o homem já estaria com sua formação garantida.
Mas Agostinho adota outra linha de pensamento, preservando o mistério
da vontade divina. Deus inseriu nas razões causais dos homens apenas a
possibilidade real de formação, cuja determinação se realiza duplamente pela
vontade humana e pela graça divina. Não aqui garantia ou necessidade de
bom sucesso, que, em última instância, o querer divino e sua presciência
transcendem a compreensão humana.
Os efeitos da razão causal do homem podem ocorrer progressivamente,
seguindo uma causalidade racional dentro de alguma previsibilidade, ou
instantaneamente, como nos milagres, que dependem apenas da vontade
divina, superior à causalidade natural. Quanto ao primeiro modo, uma
lógica racional na progressão dos efeitos, que assegura uma coerência entre
escolhas e efeitos. Já a instantaneidade, referente ao segundo modo, é o signo da
soberania divina sobre a causalidade natural.
A ordem (temporal e causal) resulta da benignidade do Espírito
341
em
duas ações principais: ele faz as criaturas serem e permanecerem
342
. Ele é o amor
superabundante e beneficente que une a forma à matéria para constituir os
341
As razões de todas as criaturas estão no Verbo, sem exceder os limites assinalados às suas
espécies pelo Verbo. Cf. Gn. litt., II, xv, 30.
342
Cf. Gn. litt., I, viii, 14. O Espírito não é doador de formas como o Filho, nem é o poder
criativo do Pai. “Pois a potência do criador e a virtude do onipotente e detentor de tudo é a
causa da subsistência de toda criatura” (“Creatoris namque potentia, et omnipotentis atque
omnitenentis uirtus, causa subsistendi est omni creaturae” - Gn. litt., IV, xii, 22).
138
seres. Ademais, dado que a materialidade caracteriza a mutabilidade e uma
tendência nadificante nos seres criados
343
, o amor de Deus dispõe as criaturas
em um movimento orientado pelo e para o Criador, Deus; em outros termos,
tomando emprestada a imagem sugerida por Madec, “imanta” as criaturas para
serem segundo o Verbo
344
. A permanência das criaturas é uma participação
delas na eternidade divina, pelo tempo que o Verbo determina. Assim,
Agostinho assevera:
“[todas as criaturas] permanecem: algumas, tendo
ultrapassado toda a volubilidade do tempo, na santidade
grandessíssima sob Deus; outras, segundo a medida
(modos) de seu tempo, enquanto a pulcritude dos séculos é
tecida pela diminuição e pela sucessão das coisas.” (Gn.
litt., I, viii, 14)
345
Sem a onipresença e a contínua intervenção do Espírito Santo, não
haveria ordem ou regímen (regimen)
346
nas criaturas, que perderiam
343
Por que Deus forma as criaturas? Agostinho responde enfaticamente que nossa razão é
incapaz de ponderar o que lhe é desproporcionalmente superior, a razão do Criador. Tudo o
que se pode responder é que Deus criou o mundo por bondade, e que esta é gratuita.
344
MADEC, G., “La conversion d’Augustin. Interiorité et communauté”. In: Lumen Vitae 2
(1987), p. 189 (apud VANNIER, M.-A., ‘Creatio’, ‘conuersio’, ‘formatio’ chez s. Augustin, p. 17).
345
“Manent [omnes creaturae] enim quaedam supergressa omnem temporalem uolubilitatem in
amplissima sanctitate sub Deo, quaedam uero secundum sui temporis modos, dum per
decessionem successionemque rerum saeculorum pulchritudo contexitur.”
346
A tradução de regimen reduz o significado do termo. Regimen designa uma ação que conduz,
guia, manobra, administra, atinente à governação; ou seja, elimina-se a associação a uma ordem
ou regimento estabelecido.
139
imediatamente a associação entre o ser e a forma. Por isso, é impróprio
comparar Deus a um arquiteto que, por exemplo, finalizada a construção de
uma casa, pode se ausentar, pois “seu trabalho permanece” (Gn. litt., IV, xii,
22)
347
.
Eliminada está a suposta incoerência entre a ação divina vigente e o
repouso divino
348
, na medida em que ambos se reportam a aspectos distintos da
ação de Deus. O sétimo dia é dedicado ao repouso divino por dois motivos:
Deus não cria mais novos gêneros de criaturas; e é absolutamente auto-
suficiente e potente, ou seja, necessita tão de si mesmo, seja para ser,
conhecer e realizar sua vontade, seja para criar, manter e governar o mundo
349
.
A razão (idéia) do homem distingue-se das demais em virtude de ser ele
feito à imagem e semelhança de Deus. A imagem divina concerne à mente,
razão ou intelecto (mens, ratio, intellectus)
350
olho interior capaz de conhecer os
347
“stat opus eius”
348
Posições afirmadas respectivamente em Jo 5,14 e Gn 2,2.
349
Inicialmente, Agostinho descarta a interpretação antropomórfica segundo a qual o repouso
divino decorreria de fadiga. Na seqüência, mediante uma interpretação indireta e figurada, o
repouso divino poderia ser compreendido como a inatividade que sucede o momento em que
as criaturas alcançam a perfeição explicação correta, mas insatisfatória para Agostinho, que
busca o significado literal do repouso de Deus em si mesmo. O Criador, à diferença das
criaturas, não carece de algo alheio para realizar-se, que ele é o Ser supremo; sequer sua
permanência se deve a qualquer criatura, visto ser eterno, imutável e perfeito; nem sua
felicidade é aumentada pelas criaturas, pois ele é o Sumo Bem. Em outros termos, em Deus, o
Espírito Santo está em perfeita união com o Pai e com o Filho, enquanto nas criaturas há apenas
graus de semelhança em relação à união das pessoas divinas.
350
Sobre a nomenclatura utilizada, Agostinho afirma: “Id autem est ipsa ratio, uel mens, uel
intelligentia, uel si quo alio uocabulo commodius appellatur” (Gn. litt., III, xx, 30).
140
inteligíveis, imperceptíveis aos sentidos corporais
351
. É na mente que a
iluminação divina atua.
Ora, importa ressaltar que a mente (mens) não equivale à atividade
cognitiva, mas comporta a atividade cognitiva. A mens é a alma espiritual e
abarca tanto a natureza dessa alma, como a razão e também a vontade; e isso é
uma conseqüência de ter sido feita à imagem do Pai, do Filho e do Espírito
Santo unidos na Trindade
352
. Portanto, se a alma intelectual é formada pelo
Deus-Trindade, nos moldes de uma determinada idéia, a iluminação divina
incidirá no homem nos moldes dessa idéia e, por conseguinte, na mens.
Sendo uma criatura de natureza espiritual e inteligível, a alma guarda
afinidade com Deus. Afinidade, ou intimidade, descrita nos seguintes termos:
“não pelos delineamentos do corpo, mas por certa forma inteligível da mente
iluminada” (Gn. litt., III, xx, 30)
353
. Esse estamento implica uma posição peculiar
na hierarquia das criaturas. Quer na ordem exterior, relativa às demais
criaturas, quer na ordem íntima das diversas atividades anímicas, o homem
(imagem divina) é superior aos “demais animais privados de razão” (Gn. litt.,
III, xx, 30)
354
e aos seres irracionais, e isso corresponde às afecções da alma e aos
351
Agostinho rejeita qualquer corporalidade divina, respondendo às críticas maniqueístas, e
situa a imagem de Deus no que distingue o homem das criaturas inferiores.
352
Cf. GARDEIL, A., La structure de l’âme et l’expérience mystique, p. 30, 37, 41, 80.
353
“non corporis liniamentis, sed forma quadam intelligilibi mentis illuminatae.” Essa tese
refuta qualquer corporalidade de Deus (objetando-se ao maniqueísmo) “Nec tamen hoc [ sic. ad
imaginem Dei creatus est] secundum corpus, sed secundum intelectum mentem.” (Gn. litt., VI,
xii, 22)
141
sentidos de percepção
355
. Ademais, submete-se a Deus
356
, de quem está mais
próximo do que as bestas. Essa superioridade se estabelece quanto à excelência
de natureza, e não segundo localização espacial
357
; daí ser a mente superior ao
mais sublime dos corpos, a saber, o céu onde brilham os astros.
354
“caeterorum animalum rationis expertium”. O olho interior, ou olho do espírito, é capaz de
ver, mediante a elevação do espírito, o que nenhum dos animais poderia ver, embora eles sejam
capazes de enxergar, como os homens, as criaturas corporais (cf. Gn. litt., IV, vii, 13).
355
O poder que Deus deu ao homem de dominar e domesticar todos os animais é interpretado
aqui como antes. A mente tem poder de dominar e domesticar os apetites e as dores humanas,
acalmando o comportamento desenfreado e selvagem, que se transforma, então, em costumes
humanos.
356
Agostinho se afasta da perspectiva grega. Marie-Anne Vannier cita um artigo de J. Pepin, ao
qual não tivemos acesso: “Em primeiro lugar, o apelo à transcendência interiorizada, que
caracteriza ambas as doutrinas, é para s. Agostinho uma conversão a uma pessoa, um recurso à
presença na alma do Deus tri-pessoal, especialmente, do Verbo. Ora, não nada disso em
Plotino. O Uno carece da determinação mínima indispensável a qualquer pessoa [...]. Em
segundo lugar, o apelo à transcendência aparece em Agostinho como uma conversão a uma
pessoa amante [...]. Nada disso no alexandrino, para quem o Uno não conhece o mundo
emanado dele por necessidade. Enfim, em Agostinho, a conversão a uma pessoa é também a
conversão de uma pessoa; a alma, em seu retorno unificante a Deus, Mestre interior, conserva
sua personalidade distinta; ela jamais esquece que ela (não) é parte da substância divina [...].
Para Plotino, ao contrário, o contato com o Uno volatiliza a personalidade, a ponto de o vidente
perder qualquer noção de si mesmo. A conversão, para Agostinho, não visa a reintegração do
homem ao princípio, mas se estabelece a partir da diferença intransponível entre criador e
criatura, alicerçando-se no diálogo e na relação com o criador” (PEPIN, J., “Le problème de la
communication des consciences chez Plotin et S. Augustin”. In: Revue de metaphysique et morale
55 (1950) 145-147, apud VANNIER, M.-A., ‘Creatio’, ‘conuersio’, ‘formatio’ chez s. Augustin., p. 136).
357
“Sed hoc excellit in homine, quia Deus ad imaginem suam hominem fecit, propter hoc quod
ei dedit mentem intellectualem, qua praestat pecoribus” (Gn. litt., VI, xii, 22). Gilson defende
que “a razão metafísica da união da alma com o corpo, em santo Agostinho, é a alma dever
servir de intermediária entre o corpo que ela anima e as Idéias de Deus que a animam. Como a
alma está em contato com as idéias divinas, eis um problema que ainda não está em tempo de
ser abordado. Digamos, ao menos, que ela está e, também, da maneira mais próxima possível. A
proximidade, que está aqui em questão, evidentemente não é uma proximidade de lugar, mas
de natureza. A alma, porque é espiritual, não está separada das idéias divinas por nada, as
quais são elas mesmas de natureza espiritual. O corpo, ao contrário, precisamente porque é
estendido no lugar, é incapaz de participar diretamente da natureza das idéias. Portanto, é
necessário um intermediário entre elas e ele, e tal intermediário é a alma. Com efeito, um corpo
é o que é somente por sua forma, a ordem de suas partes e as relações numéricas às quais ele
obedece; é a alma que as confere a ele e, por conseqüência, o faz ser o que ele é. Mas ela não as
confere para ele senão porque as têm a partir das idéias divinas. Logo, se o corpo não
participasse dessas idéias, ele não seria o que é; mas se participasse tão imediatamente quanto a
142
No Paraíso, Deus fala imediatamente por sua própria substância divina
com as criaturas espirituais, tanto no momento da criação (pelo Princípio) como
na permanência. A fala divina é comparável à iluminação divina, pois ambas
designam a ação direta e íntima de Deus na criatura capaz de uma audição ou
visão especial. Em que consiste tal peculiaridade?
358
Deixando de lado o exame da audição “espiritual”, analisemos o
seguinte trecho do Sobre as idéias, em que Agostinho indica os requisitos
indispensáveis à visão peculiar à alma humana.
"A alma, contudo, não pode intuí-las [as idéias], salvo a
alma racional, através daquela sua parte pela qual se
sobressai, isto é, a mente mesma ou razão, que é como um
rosto ou olho próprio, interior e inteligível. Mas, na
verdade, nem toda e qualquer alma racional é declarada
preparada para esta visão, mas aquela que for santa e
pura, isto é, aquela que mantiver são, sincero, sereno e
alma, ele seria a alma. Ora, ele não é a alma e, no entanto, participa da ordem, da forma e, ainda
mais evidentemente, da Vida suprema que é concomitantemente uma sabedoria e uma verdade
imutável. Assim, pela alma e somente por ela, o corpo poderia ser vivificado” (GILSON, E.,
Introduction à l'Étude de Saint Augustin, pp. 64-65).
358
Cf. Gn. litt., VIII, xxvi, 48. Mostra isso a postura ereta do corpo humano, indício de que a
alma humana não deve se orientar pelas coisas terrenas (tal como os animais inclinados e com o
ventre direcionado à terra), mas contemplar as coisas superiores do mundo para saborear estas,
não aquelas.
143
semelhante àquilo que pretende ver, aquele olho através
do qual se vêem essas coisas.” (diu. qu., XLVI, 2)
359
Somente a alma racional tem a capacidade de ver as idéias
360
, e não
qualquer alma. Com efeito, tal como precisamos de luz e do sentido da visão
para enxergarmos as realidades corporais exteriores, a Luz divina e a razão
(mens) se fazem necessárias para vermos as idéias. A visão das idéias requer a
presença da mens
“olho próprio” ou “rosto”
361
da alma , reconhecida como o
que de mais excelente no homem. Ela é interior e inteligível, mais próxima
ao Deus que é interior ao íntimo do homem
362
; é capaz de conhecer-se e,
portanto, interiorizar-se na direção de Deus.
Entretanto, para Agostinho, não basta ter olhos para ver, tampouco razão
(mens) para entender. A visão das idéias proporcionada pela iluminação divina
da razão humana requer uma adesão voluntária do homem à Luz. Somente
com a presença total (e moral) daquele que recebe a iluminação, a Luz é
359
Tradução corrigida de Moacyr Novaes com pequenas alterações. In: Cadernos de Trabalho
CEPAME, II (1) (1993), p. 9. “Anima uero negatur eas intueri posse nisi rationalis, ea sui parte
qua excellit, id est, ipsa mente atque ratione, quasi quadam facie uel oculo suo interiore atque
intellegibili. Et ea quidem ipsa rationalis anima non omnis et quaelibet, sed quae sancta et pura
fuerit, haec asseritur illi uisioni esse idonea, id est, quae illum ipsum oculum, quo uidentur ista,
sanum et sincerum et serenum et similem his rebus, quas uidere intendit, habuerit.”
360
A natureza da alma irracional, ao contrário, não comporta essa visão.
361
Talvez o termo “rosto” faça alusão à expressão “face a face” (1Cor 13,12), tão utilizada por
Agostinho nas menções à visão final pela qual são agraciadas algumas almas humanas
totalmente formadas por Deus.
362
Cf. p. 94, nota 230.
144
percebida. Destarte, quanto mais santa e pura a alma, tanto mais próxima para
ver e ser iluminada pela Luz divina
363
.
No Comentário literal ao Gênesis, como dissemos, a razão (mens) é
designada também como “olho”: trata-se de um “olho” interno, próprio à
mente e capaz de ver a Luz. Ele marca a superioridade humana quanto aos
seres irracionais, o que se faz esclarecer mediante uma tipologia das visões.
Segundo Agostinho, três são os níveis de visão
364
: corporal, espiritual e
intelectual. A visão corporal equivale à percepção sensorial de realidades
corporais exteriores a quem percebe, e inclui todos os sentidos, não apenas a
sensação ocular. O segundo tipo de visão se denomina “espiritual” porque se
dirige à imagem. Ao lembrarmos e cogitarmos coisas corporais, convocamos
pelo pensamento as imagens delas, que adquirimos por meio de uma sensação
passada. De modo que essas imagens, embora se assemelhem aos corpos
exteriores, estão na nossa memória e não nas coisas: isso significa que estão na
nossa alma e que não dependem da presença dos corpos. Quando as vemos,
não as estamos percebendo, mas lembrando e cogitando coisas corporais,
fisicamente ausentes. Por exemplo, ao fecharmos os olhos e pensarmos no céu,
na terra e nas criaturas mais diversas, aquilo que se apresenta ao nosso espírito
363
A visão é proporcionada pela iluminação divina em todos os sentidos: as idéias procedem de
Deus, o conhecimento delas é causado por ele na mente humana, o homem é feito por Deus e só
as idéias se escolher fazer-se presente, ao que é admoestado pelo Espírito. A purificação,
necessária para contemplar as idéias, é herdada da filosofia de Plotino. Cf. PLOTIN, Première
Ennéade, 2 (19), 4-5, p. 43-49.
364
Cf. Gn. litt., XII, vi, 15 – xi, 22; xxx, 58 - 31, 59.
145
são as imagens guardadas na nossa memória durante a percepção desses
corpos. Nessas circunstâncias, nada é visto com os olhos do corpo, mas sim
interiormente (na alma) por imagens corporais, sejam elas verdadeiras
(provenientes da experiência sensível de corpos que vimos e guardadas na
memória), sejam fictícias (fabricadas, aumentadas ou diminuídas pela
imaginação). Do primeiro modo, Agostinho pensava em Cartago, cidade onde
viveu; do outro, imaginava Alexandria, que jamais visitou. Portanto, a visão
proveniente da memória não depende mais da presença de corpos. E, para
Agostinho, se tudo que não é corpo é necessariamente espírito
365
, logo, a visão
de imagens é espiritual
366
. Por fim, as visões corporais e espirituais ocorrem a
partir de imagens provenientes de coisas exteriores e corpóreas presentes (visão
corporal) ou ausentes (visão espiritual).
O outro conhecimento se obtém pela visão intelectual. Atividade
superior da alma, a visão da mente é atinente às species, e não restrita a imagens;
por isso não se engana
367
. Nesse caso, a mente vê tanto quanto for idônea:
algumas vêem mais, outras menos
368
. Por exemplo, o amor em si mesmo não
pode ser visto por olhos do corpo, sequer pelo espírito através de imagens
365
Agostinho adota essa nomenclatura partindo da definição de que tudo que não é corpo,
merece ser chamado de espírito. As imagens das coisas corporais são semelhantes a elas, mas
não são corpóreas.
366
Spiritus designa uma potência da anima inferior à mens; spiritus é onde se apresentam as
similitudes das coisas corporais (cf. Gn. litt., x, 21).
367
Cf. Gn. litt., XII, xiv, 29.
368
Para Agostinho “intelectual” é sinônimo de “inteligível”, embora se tenha tentado afirmar a
desigualdade de significados: “inteligível” seria o que pode ser visto e “intelectual” seria o que
pode ver (cf. Gn. litt., XII, x, 21).
146
semelhantes aos corpos. De fato, se conhece o amor pela mente, ou
intelecto
369
; e, ao ver-se o amor, nenhuma imagem se parece com aquilo que se
e se compreende (o amor em si mesmo). Ademais, a visão do amor não
ocorre de um modo quando ele está presente (na forma em que ele existe) e de
outro quando não está (como se, ausente, se apresentasse por meio de uma
imagem semelhante). Por fim, a clareza da visão do amor é proporcional à
clareza da visão intelectual de alguém
370
.
A visão intelectual diz respeito ao que a alma vê em si mesma, isto é:
“que 1) tudo o que é (vale dizer, tudo o que está contido
no seu respectivo gênero segundo a natureza que lhe é
própria), para que seja, é procriado, sendo Deus o autor, e
que 2) é pelo mesmo autor que vive tudo quanto vive, e
que 3) a imutabilidade universal das coisas e a ordem
mesma pela qual as coisas mutáveis perfazem seus cursos
temporais segundo uma regra exata sejam contidas e
governadas pelas leis de Deus” (diu. qu., XLVI, 2)
371
369
Lembremos que mente, intelecto e razão referem-se à alma feita à imagem de Deus, não ao
raciocínio.
370
Cf. Gn. litt., XII, vi, 15.
371
Tradução de Moacyr Novaes. In: Cadernos de Trabalho CEPAME, II (1) (1993), pp. 9-10. “omnia
quae sunt, id est, quaecumque in suo genere propria quadam natura continentur ut sint, auctore
Deo esse procreata, eoque auctore omnia quae uiuunt uiuere, atque uniuersalem rerum
incolumitatem ordinemque ipsum, quo ea quae mutantur suos temporales cursus certo
moderamine celebrant, summi Dei legibus contineri et gubernari?”
147
Além das ações do Pai, do Filho e do Espírito, enunciadas acima, a visão
intelectual vê virtudes como “caridade, alegria, paz, longanimidade,
benignidade, bondade, fé, mansuetude, continência e outras do gênero”
(Gn.
litt., XII, xxiv, 50)
372
. Dentre elas, algumas são especialmente imprescindíveis
nesta vida peregrina (indispensável à vida eterna) e findas na futura: a pela
qual cremos no que ainda não vemos; a esperança com a qual aguardamos
pacientemente o futuro; enfim, a própria paciência que nos faz tolerar as
adversidades até chegarmos aonde queremos chegar. outra virtude, útil
desde já, que permanecerá com a alma na vida eterna: o amor.
Mas a alma também o lume (fonte luminosa) graças ao qual
compreende tudo que conhece verdadeiramente. Ela “vê acima de si isso [o
lume], por cuja ajuda tudo aquilo que também em si [mesma]
entendendo” (Gn. litt., XII, xxxi, 59)
373
.
Nessa visão, a alma contempla Deus e se depara com a diferença entre o
lume e a luz iluminada (alma); então, não suportando a visão de sua própria
fraqueza, sucumbe.
372
“caritas, gaudium, pax, longanimitas, benignitas, bonitas, fides, mansuetudo, continentia, et
caetera huiusmodi”. Cf. Gn. litt., XII, xxxi, 59.
373
“supra se uidet illud, quo adiuta uidet quidquid etiam in se intellegendo uidet.” Traduzimos
intellegendo por “entendendo”, embora com inevitável prejuízo à clareza da relação, evidente em
latim, entre o verbo e o substantivo “intelecto”.
148
“Ora, outra é o próprio lume
374
, pelo qual a alma é
iluminada que [ela] veja verdadeiramente em si mesma ou
naquele lume tudo que é compreendido; pois aquele é o
próprio Deus, e esta é criatura; a qual, ainda que racional e
intelectual, feita à imagem dele, quando [ela] se esforça
para contemplar aquele lume, ela pestaneja por
infirmidade, e tem menos força [do que o suficiente]!”
(Gn. litt., XII, xxxi, 59)
375
Essa visão se estabelecerá quando o homem for restaurado e salvo, no
juízo final. Ver o lume é contemplar o Verbo e refleti-lo perfeitamente; é ser
imagem perfeita da Imagem igual. Nesse estágio, o homem estará
perfeitamente formado, será conhecedor das idéias divinas (sábio), feliz e
totalmente purificado. Livre de toda impureza e ruga da imoralidade, será
renovado e totalmente iluminado.
“com efeito, Deus diz: Façamos o homem à nossa imagem e
semelhança, etc.’; e, depois, não é dito: E assim foi feito, mas
também é acrescentado: E Deus fez o homem à imagem de
Deus; pois também essa natureza, isto é, a intelectual, é tal
374
Agaësse e Solignac observam em nota à passagem: “Agostinho emprega a palavra lumen
fonte luminosa de luz’ e não lux
a luz difusa.
375
“Aliud autem est ipsum lumen, quo illustratur anima, ut omnia uel in se uel in illo ueraciter
intellecta conspiciat: nam illud iam ipse Deus est, haec autem creatura, quamuis rationalis et
intellectualis ad eius imaginem facta, quae cum conatur lumen illud intueri, palpitat infirmitate,
et minus ualet.”
149
como aquela luz; e, portanto, o que, para ela, é ser feita é
[também] reconhecer o Verbo de Deus pelo qual foi feita.”
(Gn. litt., III, xx, 31)
376
É possível o homem ver a luz divina de dois modos tão distintos que são
chamados de “dia” e de “noite”. O conhecimento matinal, em grau de
excelência, é uma participação na verdade imutável, que é vista como dia no
Verbo (a Luz verdadeira)
377
, e conhece as razões eternas diretamente no Verbo,
isto é, no princípio das criaturas, na Sabedoria por quem as coisas foram feitas.
Trata-se de uma aproximação imediata entre Deus e a razão, em que esta se
eleva para ver a luz do Verbo divino, no qual estão as razões eternas de tudo,
conhecendo-as diretamente e intimamente e não por intermédio das criaturas.
o conhecimento vespertino se refere a toda cognição pela qual a razão abaixa
sua visão para o que lhe é inferior, e conhece as criaturas em si mesmas. Ora,
porque a razão humana é iluminada pela verdade imutável, também é capaz de
acender progressivamente à Luz do Verbo. Desse modo, se está voltada para
aquilo que lhe é inferior, ela poderá referi-lo ao Verbo interior na proporção em
que se purifica de sua iniqüidade e se livra de seus próprios erros.
376
“hoc et in hominis conditione seruatur; dixit enim Deus: Faciamus hominem ad imaginem et
similitudinem nostram (Gn 1,26), et cetera. Ac deinde non dicitur: Et sic est factum, sed etiam
subinfertur: Et fecit Deus hominem ad imaginem Dei, quia et ipsa natura scilicet intellectualis est
sicut illa lux, et propterea hoc est ei fieri, quod est agnoscere Verbum Dei, per quod fit.” (Gn.
litt., III, xx, 31)
377
Cf. Gn. litt., V, xiii, 30.
150
Há uma relação entre o espírito (spiritus) e a mente intelectual; o spiritus é
afetado ao ver imagens, as quais servem como sinais cujo entendimento brilha
no intelecto iluminado por Deus
378
. Assim, as semelhanças das coisas (imagens)
necessitam do olhar da mente para serem compreendidas pelo olhar intelectual,
e a confluência dessas visões causa, por exemplo, o atravessamento sentido pelo
homem ao olhar com pureza a criação e ser remetido para a contemplação
íntima da louvável Beleza do Criador
379
.
Purgadas pela graça, as mentes racionais logram a dádiva de ver a fonte
de luz, à qual nada é superior, tampouco mais feliz. Ou seja, participam
maximamente da sabedoria de Deus, conforme é apropriado ao gênero
humano.
Iluminação e moral
A alma deverá se adequar moralmente às qualidades daquilo a que
intenta aderir. Sobre essa exigência, Agostinho enuncia:
“Mas a alma racional, dentre as coisas que foram criadas
por Deus, se sobressai a todas, e é a mais próxima dele
quando é pura; e, à medida que a ele adere por amor (por
ele iluminada e, por assim dizer, atravessada com uma luz
378
Cf. Gn. litt., XII, xi, 22.
379
Cf. conf., X, vi, 8.
151
inteligível), ela discerne não com olhos corporais, mas
com o olho primeiro que lhe é próprio, pelo qual se
sobressai, isto é, com sua própria inteligência essas
razões, em cuja visão obtém a felicidade suprema.” (diu.
qu., XLVI, 2)
380
A felicidade proveniente da compreensão das idéias, de entender a
ordem do mundo e da vida mediante um instrumento purificado pelo amor
onidirecional do Criador, está determinada na idéia de homem. Ele deverá se
purificar racional e moralmente para que o projeto divino alcance seu termo e,
finalmente, se realize com perfeição.
Quando a alma racional adere a Deus por amor, é iluminada pela Luz e
as idéias. Trata-se de uma visão peculiar à razão e ao coração, pois confere
um conhecimento e um amor superiores e místicos
381
. Para Agostinho, o apogeu
e a profundidade do conhecimento das formas puras advêm como e quando
Deus quiser, mas cabe aos homens seguir o preceito bíblico de purificar o
coração para ver a Verdade
382
.
380
Tradução de Moacyr Novaes. In: Cadernos de Trabalho CEPAME, II (1) (1993), p. 11. “Sed
anima rationalis inter eas res, quae sunt a Deo conditae, omnia superat et Deo proxima est,
quando pura est; eique in quantum caritate cohaeserit, in tantum ab eo lumine illo intellegibili
perfusa quodammodo et illustrata cernit non per corporeos oculos, sed per ipsius sui principale
quo excellit, id est, per intellegentiam suam, istas rationes, quarum uisione fit beatissima.”
381
Agostinho nega “que alguém possa se unir àquilo a que a todos os homens apetece, isto é, a
vida feliz, se não se unir (adhaeserit) pela pureza de um amor casto àquele que é único e ótimo,
que é o Deus imutável.” (A Cidade de Deus contra os Pagãos, X, i, 1; tradução elaborada por Oscar
Paes Leme: “ita illud, quod omnes homines appetunt, id est uitam beatam, [...] negant, qui non
illi uni optimo, quod est incommutabilis Deus, puritate casti amoris adhaeserit”).
382
Cf. Mt 5,8.
152
Quando a alma é perfeita, sábia e feliz, nada se interpõe entre ela e Deus;
nesse estado, ela recebe auxílio imediato (intrínseco e incorporal) da
Eternidade, da Verdade e da Caridade, às quais “nenhuma criatura está
interposta” (diu. qu., LI, 2)
383
:
“Logo a criatura espiritual e intelectual perfeita e feliz [...],
no que a concerne, para ser, ser sábia e feliz, não recebe
senão é ajudada interiormente pela Eternidade, pela
Verdade e pela Caridade do Criador.” (Gn. litt., VIII, xxv,
47)
384
O auxílio divino opera como a inspiração a iluminar o homem e, assim
como a luz física torna as coisas visíveis, a luz de Deus proporciona a visão da
Verdade imutável e o gozo da Sabedoria, a partir dos quais a alma julga. Ao se
referir ao estado ideal do homem, Agostinho adota como paradigmas Adão e
Eva antes do pecado, portanto imaculados:
383
“nulla interposita creatura”. As criaturas irracionais [participam] são semelhantes ao
Criador, pois são, permanecem e são boas em suas ordens. O homem lhe é semelhante no nível
corporal, mas Agostinho considera-o por aquilo que detém de superior, e isso se traduz de
modo correspondente, embora superior: o homem é, vive e sabe. Com efeito, o homem interior
é imagem de Deus no sentido de que “é formado sem a interposição de qualquer natureza,
portanto nada é mais próximo (coniunctius) de Deus. Com efeito, [o homem] sabe, e vive e é: a
essa criatura nada é melhor”. (“ut nulla creatura interposita formetur; et ideo nihil sit Deo
coniunctius. Et sapit, et uiuit, et est: qua creatura nihil est melius” - diu. qu., LI, 2.)
384
“Creatura ergo spiritalis et intellectualis perfecta et beata, [...] quantum attinet ad seipsam
quo sit, sapiensque ac beata sit, nonnisi intrinsecus adiuuatur aeternitate, ueritate, caritate
Creatoris.”
153
“Com efeito, provavelmente Deus falava com eles de
modo intrínseco ou de outros modos, dizíveis ou
indizíveis (uel effabilibus uel ineffabilibus), assim como fala
também com os anjos iluminando suas mentes com a
própria Verdade imutável, onde intelecto é conhecer
simultaneamente tudo que não ocorre simultaneamente
através do tempo”. (Gn. litt., XI, xxxiii, 43)
385
De modo dizível, Deus falava com os homens pela natureza e por sinais
percebidos pelos sentidos. Em contraposição, de modo inefável, o homem era
intimamente iluminado pela Sabedoria eterna do Filho (luz imutável do Verbo).
Inspiração oculta e incessante, a iluminação perfaz o homem (criatura
mutável)
386
, convocando-o a se manter direcionado àquele que é plenamente,
que é Sabedoria e Felicidade.
Deus falava com a mente de Adão e, de maneira “admirável e inefável”
(Gn. litt., VIII, xxvii, 50)
387
, movia-a no tempo sem se mover. Desse modo, Deus
comunicava a Adão qual pena lhe acometeria se transgredisse o preceito de não
comer da árvore do bem e do mal. Adão, voltado para Deus, via isso na
Verdade imutável, e não em si mesmo.
385
“Fortassis autem aliis intrinsecus uel effabilibus uel ineffabilibus modis Deus cum illis antea
loquebatur, sicut etiam cum angelis loquitur ipsa incommutabili ueritate illustrans mentes
eorum, ubi est intellectus nosse simul quaecumque etiam per tempora non fiunt simul.”
386
Cf. Gn. litt., III, xx, 31.
387
“miro et ineffabili modo”
154
Segundo Grabman
388
, Agostinho está estabelecendo uma relação entre as
idéias divinas e a parte mais elevada da alma espiritual humana: apenas pela
ratio e pela mens a alma racional pode vislumbrar as idéias, porque pode se
elevar acima do sensível e mutável, e, então, ver com os “olhos da alma” aquilo
que é permanente.
Essa é a natureza humana. Por isso as almas santas vêem todos os bons
preceitos na Sabedoria, tal como luz emitida pela Verdade. Entretanto, dada a
mutabilidade das almas
389
, vêem-nos em um tempo determinado.
Portanto, o homem em estado edênico recebe sua formação mediante a
introspecção
390
. Goulven Madec adverte que essa interiorização é acompanhada
de reconhecimento e aceitação da alteridade, traço constitutivo da experiência
religiosa: “eis constituído o sujeito da experiência religiosa: o eu humano e o
Teu divino”
391
.
Nesse itinerário por graus cada vez mais interiores e próximos a Deus, a
alma sabe mais sobre si mesma do que acerca do que conhece pelos sentidos
através das imagens nascidas de percepções sensoriais. Agostinho formula: “[a
388
Cf. GRABMAN, M., “A quaestio de ideis de Santo Agostinho: seu significado e sua
repercussão medieval”.
389
Cf. pp. 86-87.
390
M. Daraki considera equivalentes a introspecção e a conversão.
391
“Voilà constitue le sujet de l experience religieuse: le je humain et le Toi divin”. MADEC, G,
“In te supra me. Le sujet dans les Confessions de S. Augustin”. In: Revue de l Institut catholique 28
(1998) p. 48.
155
alma] conhece-se mais do que o céu e a terra, os quais conhece através dos seus
olhos corporais” (Gn. litt., VI, xxi, 28)
392
.
Poder-se-ia considerar a hipótese de ser a alma semelhante ao corpo. Ela
vivifica corpos humanos e animais, atividade intimamente ligada à produção
de imagens. Contudo, todo corpo é espacial por possuir três dimensões e, dado
ser circunscritível, também é divisível. A imagem independe da extensão do
corpo; logo, não é corporal
393
.
Ademais, se a alma sabe o que ela mesma é
394
, sabe também que não é
divisível no espaço. Ela se conhece a si e sempre se apresenta em sua totalidade:
“toda se conhece, logo se conhece toda” (Gn. litt., VII, xxi, 28)
395
. Se não é
divisível, então não é corpo.
Se a alma racional for pura, é a mais elevada das criaturas e a mais
próxima de Deus; o que está contemplado na definição do homem como à
392
“[anima] quae magis se nouit quam caelum et terram, quae per sui corporis oculos nouit.”
393
Madaleine Moureau comenta a duração que a memória atribui às coisas efêmeras da
exterioridade. Para a autora, a memória é admirável por transcender e espiritualizar o espaço,
conferindo uma existência incorporal aos corpos que conhece ou imagina; mas é ainda mais
admirável porque transcende e espiritualiza o tempo e faz as imagens participarem de sua
duração interna. Assim, citando Agostinho, o objeto da memória torna-se, principalmente, as
coisas que permanecem: “é necessário observar antes de tudo que não é sempre das coisas
passageiras que nos recordamos, mas ainda, e na maior parte do tempo, daquelas que
permanecem”. (“primum ergo uidendum est non nos semper rerum praeteritium meminisse,
sed plerunque manentium.” ep. 7.1). (MOUREAU, M., “Mémoire et Durée”. In: Revue des Études
Augustiniennes, I (1955) 239-50). Allers discorda da interpretação que identifica a imaterialidade
da imagem no pensamento de Agostinho, considerando que as “imagens são imagens de
objetos corporais e são, por esse fato, de natureza corporal [...] não se pode duvidar de que ele
[Agostinho] tenha compreendido como materiais as operações da memória sensorial ou,
segundo o uso moderno, da imaginação” (ALLERS, R., “Ilumination et vérités éternelles”, pp.
478-79).
394
Cf. pp. 176-77.
395
“tota se nouit, ergo totam se nouit”
156
imagem e semelhança de Deus. Entre a alma humana e o Criador, “nenhuma
criatura se interpõe” (uera rel., LV, 113)
396
. Devido à afinidade entre a natureza
humana e a divina, Deus é mais próximo do homem do que as criaturas
corporais, pois uma dessemelhança de gênero entre elas e a mente
humana
397
. Esta não é idônea para ver as criaturas pelos sentidos corporais, mas
sim para ver as razões mesmas conforme as quais as criaturas foram feitas.
Ademais, ver as coisas é mais trabalhoso à mente humana do que alcançar
aquele por quem foi feita, na medida em que as coisas são mutáveis, se afastam
e se interpõem uma às outras. Assim, para Agostinho, mais importa fruir de
Deus com uma mente pia, a partir de nós mesmos, do que compreender todo o
universo: “Pois os fundamentos da terra são desconhecidos aos nossos olhos,
mas quem fundou a terra se aproxima das nossas mentes” (Gn. litt., V, xvi, 34)
398
.
Adão conhecia as idéias “matutinamente”, mas ainda não era o homem
perfeito, pois seu corpo se tornaria espiritual como recompensa de sua conduta.
Em seu estado original, dispunha de alimentos para o corpo e para a alma, ou
seja, era-lhe fácil satisfazer-se e sentir-se pleno o que se afirma nas Escrituras
396
“nulla creatura interposita est”
397
Lembremos que, para Agostinho, cada criatura é considerada a partir da própria excelência.
O homem é, portanto, uma criatura racional, dotada de alma e de corpo, mas não é considerado
como uma criatura corporal, senão como espiritual.
398
“Ignota enim sunt fundamenta terrae nostra oculis nostris, et qui fundauit terram,
propinquat mentis nostris.”
157
quando se diz que Deus fez o Paraíso, a ser trabalhado e guardado pelo
homem
399
.
Lugar repleto de árvores belas e frondosas
400
, o Paraíso significa
“também tudo que é como uma região espiritual onde a alma está bem” (Gn.
litt., XI, xxxiii, 43)
401
; em outros termos, “a alegria de uma consciência boa é o
paraíso no próprio homem” (idem)
402
.
Havia, por entre diversas árvores, duas especiais: a árvore da vida e a
árvore do conhecimento do bem e do mal
403
. A árvore da vida é signo do
desígnio divino de que o homem vivesse no paraíso com o mistério das coisas
espirituais apresentadas pelas coisas corporais. Ela é a sabedoria, e prefigura
Jesus Cristo. Com efeito, assim como a árvore fornece alimento corporal,
consolidando uma saúde estável no corpo, a Sabedoria provê o nutrimento da
alma, estabelecendo sua saúde salvífica. O significado mais sublime da árvore
da vida é saciar a aspiração oculta de salubridade presente no homem, pois
399
O corpo do homem era imortal, ou seja, não era orientado por corrupções carnais, mas
“somente pelo afeto da piedosa caridade” (“solo piae caritas affectu“, Gn. litt., III, xxi, 33).
Nascendo e não morrendo, conforme sua criação, os homens preencheriam a terra instituindo o
povo santo e justo.
400
Cf. Gn 2,8.
401
“omnis etiam spiritalis quasi regio, ubi animae bene est”
402
“in ipso homine laetitia quaedam bonae conscientiae paradisus est”. A Igreja também é
chamada de paraíso pelos santos que vivem com temperança, justiça e piamente, fruindo a
afluência da graça e de delícias castas.
403
Cf. Gn 2,9. Para Agostinho, essas árvores existiram corporalmente e também significam
coisas diferentes de sua corporalidade.
158
oferece ao homem o poder de preservar o corpo das degradações causadas
pelas doenças, pela idade e pelo envelhecimento.
O trabalho paradisíaco, segundo Agostinho, é livre de aflições e uma
alegria da vontade (exilaratio uoluntais). Na harmonia da ordem divina, havia
cooperação entre os homens e as demais criaturas, o que tornava ambos mais
saudáveis. Como exemplo, Agostinho afirma que as colheitas eram mais viçosas
e abundantes. Através da razão e do corpo animal, o homem trabalhava tanto
quanto era suficiente, de acordo com sua disposição (que também era maior),
sem qualquer coação por necessidades do corpo mortal.
Trabalhar com as outras criaturas era mais fácil, pois a razão humana
falava com a natureza delas, entendendo a potência invisível e interior das
idéias das coisas e, a partir disso, avaliava o alcance dos cuidados que prestava
externamente a elas. Em última instância, o homem sabia que os seus cuidados
no cultivo de uma plantação decorrem de Deus, que “rege e ordena
invisivelmente” tudo (Gn. litt., VIII, viii, 16)
404
.
O trabalho no mundo mostrava ao homem que Deus era o verdadeiro
trabalhador da “grande árvore da criação”
405
. A providência instaura uma
ordem em todas as criaturas, mesmo no homem, e atua duplamente: pela
ordem natural (ou operação natural) e pela ordem voluntária (ou operação
voluntária). Trata-se de atuações próprias ao Espírito Santo. A operação natural
404
“regit atque ordinat inuisibiliter”
405
Gn. litt., VIII, ix, 17.
159
age secretamente nas coisas que não possuem vontade e fixa uma hierarquia
natural segundo a qual, por exemplo, as criaturas celestes ficam acima das
terrestres, os astros e luzeiros brilham, dias e noites se sucedem, a terra é
banhada pelas águas, o ar se espalha e os animais são concebidos, crescem e
morrem. Trata-se de uma ordem soberana que rege interna e naturalmente as
coisas
406
. De outro modo, a operação voluntária é atinente às criaturas dotadas
de vontade (homens e anjos) e envolve escolher agir
407
. Por exemplo, os homens
dão sinais, ensinam e se instruem, cultivam os campos, administram
sociedades, prestam-se às artes e obedecem sempre à ordem divina geral
mesmo se agirem por meios maus, favorecem os homens bons.
Eis a dupla atuação da providência divina no homem: no corpo, a
providência natural instaura o movimento pelo qual ele é criado, cresce e
morre, e a providência voluntária provê alimento, vestimenta e conservação; na
alma, a providência natural confere a vida e a atividade dos sentidos, enquanto
a voluntária age no aprender e no consentir. Então, aprendizado e
consentimento à ordem divina são operações voluntárias da providência.
Ora, o mandamento divino pelo qual o homem deve trabalhar e guardar
o Paraíso é solidário ao ter ele sido criado para permanecer homem e, nessa
atividade, Deus trabalha o homem para ser justo e não se separar de Deus por
406
Cf. Gn. litt., VIII, ix, 17.
407
Por serem ordenados e não ordenadores, os homens jamais prevalecem sobre a ordem e,
nesse sentido, sua vontade jamais se sobrepõe à ordem das coisas. Cf. Gn. litt., IX, viii, 32.
160
orgulho. O homem não é um ser que, uma vez criado, possa fazer qualquer
coisa de bom para si mesmo sem a ajuda do Criador. A razão disso é que Deus
é sempre o Bem imutável, e o homem, em sua mutabilidade própria, é bom
apenas se se converter ao Bem.
“Logo, Deus é o Bem imutável, mas o homem é uma coisa
mutável segundo a alma e segundo o corpo; se não
submete convertido ao bem imutável, que é Deus, não
pode ser formado para ser justo e feliz. Segue-se disso que
o mesmo Deus que cria o homem para que o homem
fosse, ele mesmo trabalha e guarda o homem para que
seja bom e feliz [...] para ser pio e sábio [...], pois o homem
que se compraz em sua própria potência, naquela que está
nele, mais do que na potência daquele que está acima dele
e que despreza a autoridade de Deus, não pode ser com
certeza.” (Gn. litt., VIII, x, 23)
408
Está claro que Adão vivia inicialmente próximo de Deus, sendo
plenamente; contudo, o fato de ser uma criatura confere-lhe mutabilidade;
conseqüentemente, mesmo justo, pio, sábio e feliz, o homem deve se manter
408
“Quia ergo Deus est incommutabile bonum, homo autem et secundum animam et
secundum corpus mutabilis res est; nisi ad incommutabile bonum, quod est Deus, conuersus
substiterit, formari ut iustus beatusque sit, non potest. Ac per hoc Deus idem qui creat
hominem, ut homo sit, ipse operatur hominem atque custodit, ut etiam bonus beatusque sit. [...]
ut pius sapiensque sit, eumque custodire, quod homo sua potestate in se, quam illius supra se
delectatus, dominationemque eius contemnens tutus esse non possit.”
161
voltado para Deus para permanecer nesse estado. Quando não se distancia de
Deus, o homem é em sentido pleno, sendo iluminado internamente
(inluminatur)
409
e beatificado pela presença divina
410
. Se o homem se mantiver
voltado para Deus, isso resulta em aprendizado e consentimento, que são
operados por Deus. Através da ação da Trindade, ocorre a realização humana
nos três níveis: ser, conhecer e querer. Então, Deus é quem produz essa
plenitude humana e cabe ao homem se dispor e colaborar plenamente à
providência divina. Portanto, o que cabe ao homem é manter-se naturalmente e
voluntariamente submisso e obediente ao domínio divino, cuja onipresença não
cessa de trabalhá-lo e guardá-lo.
O contato humano com Deus é incomparável ao do doente que se
submete ao médico para se curar: reconquistada a saúde, a presença deste não
mais é necessária. Dois aspectos invalidam a comparação: Deus não cuida do
homem tal qual um médico; e o relacionamento do doente com o médico difere
daquele entre o homem e Deus. Com efeito, embora Deus seja como um médico
a nos trazer saúde espiritual, se observarmos atentamente, notamos que o
médico age na exterioridade, proporcionando as circunstâncias para a saúde se
restabelecer internamente. Assim, a saúde não obedece ao médico, mas o
médico serve à saúde, agindo de maneira compatível com a regulação divina
409
Cf. Gn. litt., VII, xii, 25.
410
Cf. Gn. litt., VII, x, 23 – xii, 25.
162
em todos os regimes de saúde
411
. Nesse caso, Deus age como a saúde do corpo,
no sentido de que ela trabalha incessantemente para se restabelecer. Todavia, o
homem não deve supor que, uma vez adquirida a saúde ou uma vez que ele
tenha se voltado para Deus, então, seja possível se afastar de Deus e
permanecer sadio. A conversão humana não é como a aquisição de um bem,
pois requer um exercício incessante de voltar-se para o Criador, atividade que
define o cerne da relação humana com Deus. A boa ação humana consiste em
voltar-se (converter-se) para Deus e, sob a influência divina, tornar-se justo, pio,
sábio e feliz. Cumpre notar que o trabalho humano não traz a felicidade se
extrapolar os limites da aprendizagem e do consentimento.
Quanto à presença divina, ela jamais se afasta do homem. Com efeito,
Deus não cuida do homem e o guarda tal como um agricultor semeia e cultiva a
terra para torná-la produtiva e fértil. Uma vez que a plantação esteja cultivada,
o trabalhador pode se retirar e ela dará prosseguimento ao trabalho
empenhado
412
.
Deus age no homem como a luz no ar. O ar é um elemento sem
luminosidade própria e, como o homem, torna-se luminoso apenas na presença
da luz. Isso se comprova quando retiramos a fonte de luz: o ar perde a
411
Nesse sentido, Agostinho refere-se à presença divina no homem como uma “inspiração
oculta de salubridade” (“inspiratione salubritatis occulta” – Gn. litt., VIII, v, 11).
412
O exemplo é semelhante ao do médico.
163
luminosidade. Assim, o homem é luminoso se estiver na presença da luz; ao se
afastar dela, não se mantém iluminado senão soturno.
De que modo o homem se distancia da iluminação divina, se Deus é
interior e sempre presente? Diante da impossibilidade de um afastamento local,
afirma-se o distanciamento de cunho moral resultante da aversão da vontade
413
.
Novamente, fica claro que a iluminação no homem equivale a ser em
sentido pleno e bom, à sabedoria e à felicidade. Não que elas sejam um bem
que, uma vez possuído, possa ser perdido; mas elas decorrem da conversão
humana ao Criador. Se essa condição não for satisfeita e o homem não quiser se
voltar para Deus, então ele se demove moralmente da ação luminosa e bondosa
do Criador. Assim, passa a viver na privação do seu bem; privado de Deus,
conseqüentemente é privado do ser, da felicidade e da sabedoria. A vontade
humana provê a condição para a iluminação divina, pois torna o homem
presente à onipresença íntima e difusiva de Deus.
O processo de formação, pensado à luz da concepção agostiniana de
idéia, leva-nos a concluir a dependência ontológica do homem em relação a
Deus, dependência esta que inclui em seu plano que o ser do homem é
formado (ontologia) quando conhece as idéias e quando se torna puro e santo.
A ontologia é indissociavelmente comprometida com o desenvolvimento lógico
e moral do ser humano.
413
Cf. Gn. litt., VIII, xii, 26.
164
Ao que parece, Grabman e Gilson enfatizam apenas os aspectos
epistemológico e ontológico ao analisarem a questão das idéias.
Grabman se refere ao comentário desse texto feito por E. Gilson:
"E. Gilson, que também se ocupa com nosso texto, em
conexão com outras passagens agostinianas, assinala o
caráter metafórico do modo em que Agostinho se exprime
e conclui que estas fórmulas querem antes assinalar e
sublinhar apenas a completa dependência ontológica do
espírito humano em relação a Deus, cujo ser, atividade e
verdade ele possui: ‘[...] ces formules augustiniennes
n'expriment donc que la dépendence ontologique totale de
l'intelect humain, par rapport à Dieu, dont il tient l'être,
l'activité, et la vérité’.
414
Convertido o homem, a perfeição será o coroamento do processo de
formação, que consiste na adesão (ad-essere) voluntária do espírito ao Filho.
Trata-se do alcance da proximidade adequada à imagem, que se estabelece em
seu estatuto ontológico, ocupando seu lugar devido na ordem das criaturas, na
medida em que se volta para Deus
415
.
414
GRABMAN, M., “A quaestio de ideis de Santo Agostinho: seu significado e sua repercussão
medieval”, p. 34.
415
“Quoniam rei cuiusque perfectio non tam in uniuerso, cuius pars est, quam in eo, a quo est,
in quo et ipsum uniuersum est, pro sui generis modulo stabilitur, ut quiescat, id est, ut sui
momenti ordinem teneat. [...] Et ideo, dum ipse manet in se, quidquid ex illo est retorquet ad se,
ut omnis creatura in se habeat naturae suae terminum, quo non sit, quod ipse est, in illo autem
165
No homem, conuertio e formatio são peculiares por incluírem a vontade e,
com ela, as possibilidades de conversão e aversão
416
. A liberdade é essencial
para pensarmos a conuertio humana: é o homem que opta por aderir ou não à
conversão proposta por Deus.
Dado que a luz divina é eterna e imutável, jamais cessa de chamar os
homens, por inspiração oculta e íntima, a se converterem àquilo a partir do qual
são, conforme o desígnio divino. Portanto, a conversão humana é a escolha de
aceitar “receber seu ser do criador, de entrar progressivamente no desígnio
deste de que o ser humano se constitua”
417
. A escolha humana para se realizar é
crucial para seu acabamento.
A possibilidade de aceitar ou recusar manter-se voltado para Deus é a
escolha por se realizar ou se destruir. Entretanto, a perfeição humana não é
imediata, senão resultado do processo de imitar cada vez mais a Sabedoria
418
, e
cuja completude equivale à atualização progressiva total da imagem do Filho
419
.
Não obstante dever esse empenho perdurar toda a vida, através de uma vida
ordenada e orientada para Deus, a salvação humana depende da gratuidade da
quietis locum, quo seruet quod ipsa est.” (Gn. litt., IV, xviii, 34)
416
Afirmamos rigorosamente que o homem não participa ativamente de sua creatio
(determinada exclusivamente pelo Criador), mas tem um papel determinante na sua conversão
e formação.
417
VANNIER, M.-A., ‘Creatio’, ‘conuersio’, ‘formatio’ chez s. Augustin, p. 135-136. A célebre frase
do início das Confissões, “Feciste me ad te” (conf., I, i, 1), tem seu correlato no “conuertiste me ad
te” (conf., VIII, xii, 30).
418
Cf. Gn. litt., I, iv, 9.
419
Vannier interpreta a formação como a “divinização do homem, sua vida em diálogo com o
criador”. (VANNIER, M.-A., ‘Creatio’, ‘conuersio’, ‘formatio’ chez s. Augustin, p. 18.)
166
graça divina
420
. Agostinho declara que “é por ele que, sempre, devemos ser
feitos e que, sempre, devemos ser perfeitos, aderentes a ele e permanentes nessa
conversão, que é para ele” (Gn. litt., VIII, xii, 27)
421
.
Portanto, a conversão é um caminho, e a formação, um processo
desenrolado entre o exórdio da criação e o alcance da perfeição, em que o ser
humano vai progressivamente se constituindo plenamente como tal.
Ao contrário, se for adverso à Luz, o homem terá uma vida informe,
mísera e tola
422
. Assim, “se em tal posto de honra não usa de sua inteligência
para fazer o bem, então é comparado aos animais aos quais se antepõe por
natureza” (Gn. litt., VI, xii, 21)
423
.
O pecado é a escolha por não se manter convertido. Agostinho comenta
amplamente o alcance dessa escolha no livro XI do Comentário literal ao Gênesis,
e apresenta reflexões sobre a interdependência entre iluminação e moralidade.
Eis a descrição do pecado no Gênesis:
420
“D’autre part, la formatio de l’esprit human n’est pas donnée une foid pour toutes (cf. conf.,
XIII, x, 11; xii, 13 - xiv, 15); en réalité, elle doit se répéter à chaque moment de l’existence de l’esprit;
elle sous-tend de la sorte, au moins sur le plan de l’implicite, l’existence entière selon son
développement historique” (VANNIER, M.-A., ‘Creatio’, ‘conuersio’, ‘formatio’ chez s. Augustin, p.
616).
421
“semper ab illo fieri, semperque perfici debemus, inhaerentes ei, et in ea conuersione quae ad
illum est permanentes.”
422
“Com efeito, adversa à Sabedoria imutável, vive tolamente e miseramente” (“Auersa enim a
Sapientia incommutabili, stulte ac misere uiuit” - Gn. litt., I, v, 10).
423
“In quo honore positus, si non intellexerit, ut bene agat, eisdem ipsis pecoribus quibus
praelatus est comparabitur.”
167
“os dois estavam nus, o homem e sua mulher, e não se
envergonhavam. [...] Ela [a serpente] disse à mulher:
‘Então Deus disse: Vós não podeis comer de todas as
árvores do jardim?’ A mulher respondeu à serpente:
‘Podemos comer do fruto das árvores do jardim. Mas do
fruto da árvore que es no meio do jardim, Deus disse:
Dele não comereis, nele não tocareis, sob pena de morte.’
A serpente disse então à mulher: ‘Não, não morrereis! Mas
Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos
abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no
mal.’ A mulher viu que a árvore era boa ao apetite e
formosa à vista e que essa árvore era desejável para
adquirir discernimento. Tomou-lhe do fruto e comeu.
Deu-o também para seu marido, que com ela estava e ele
comeu. Então se abriram os olhos dos dois e perceberam
que estavam nus; entrelaçaram folhas de figueira e se
cingiram.” (Gn 2,25 – 3,7 apud Gn. litt., XI, I, 1)
424
424
“et erant nudi ambo Adam et mulier eius, et non pudebat illos. serpens autem erat
prudentissimus omnium bestiarum quae sunt super terram, quas fecit dominus deus. et dixit
serpens mulieri, quid, quia dicit deus, non edetis ab omni ligno paradisi? et dixit mulier
serpenti, a fructu ligni quod est in paradiso edemus, de fructu autem ligni quod est in medio
paradisi, dixit deus, non edetis ex eo, neque tangetis illud, ne moriamini. et dicit serpens
mulieri, non morte moriemini: sciebat enim deus, quoniam qua die manducaueritis de eo,
aperisntur uobis oculi, et eritis tanquam dii, scientes bonum et malum. et uidi mulier quia
bonum lignun ad escam, et quia placet oculis uidere, et decorum cognoscere. et sumens de
fructu eius edit, et dedit uiro suo secum, et ederunt. et aperti sunt oculi amborum, et
agnouerunt quia nudi erant, et consuerunt folia fici, et fecerunt sibi campestria.”
168
Para Agostinho, a proibição de comer o fruto da árvore do conhecimento
do bem e do mal designa tão somente o mandamento de obediência humana ao
domínio divino. Esse preceito é a ocasião de o homem reconhecer que tem um
senhor, uma vez que não precisa se alimentar com tal fruto no ambiente
edênico, repleto de frutos e propício a colheitas generosas.
Ao comer do fruto dessa árvore, malgrado a proibição divina, advém a
punição e, como advertia o nome da árvore, o homem sofre conseqüentemente
o castigo de passar a conhecer a diferença entre o bem da obediência e o mal da
desobediência
425
.
A opção pelo regime da exterioridade inflige a mortalidade ao corpo
humano
426
, e a alma passa a viver para manter vivo seu corpo (tal qual numa
besta), tentando se afirmar no contra-senso de buscar satisfação e estabilidade
íntimas no exterior e na mutabilidade.
Embora a imagem de Deus tenha sido impressa na alma de Adão e Eva
(in spiritu mentis) e seja um dom de proximidade
427
e de acesso à iluminação
425
O nome de “árvore do conhecimento (scientia) do bem e do mal” deve-se não ao fruto que dá,
senão às conseqüências da transgressão da proibição divina. Cf. Gn. litt. VII, xiii, 28 - xvi, 35.
426
Se o homem não tivesse pecado, mereceria que seu corpo animal fosse transformado em
corpo espiritual (cf. Gn. litt., VI, xxviii, 39). O corpo de Adão e o de Eva eram corpos animais
que poderiam tornar-se corpos espirituais (mais perfeitos e imortais) se o homem observasse o
mandamento da obediência a Deus e não comesse da árvore do conhecimento do bem e do mal.
Agostinho justifica essa afirmação nas Escrituras: “Semeia o corpo animal, surge o corpo
espiritual” (1Cor 15,44 Seminatur corpus animale, surget corpus spiritale). Isso não significa que o
corpo mudará de substância, transformando-se em uma natureza espiritual, mas que, ao ser
perfeitamente submetido ao espírito, não será mais corruptível e, portanto, não precisará mais
nutrir-se de alimentos corporais, tornando-se vivo unicamente pelo espírito. Cf. Gn. litt., XII, vii,
18.
427
“[imaginem] quam recipimus per gratiae justitiae” (idem).
169
interior, perdeu-se
428
; e eles “afastaram-se da luz da Verdade” (Gn. litt., XI,
xxxiii, 43)
429
. O distanciamento configura o aprisionamento no esquecimento da
Sabedoria inerente ao coração e, portanto, do verdadeiro propósito da vida
humana. Se, conforme dita sua natureza, o homem seria inevitavelmente
reconduzido ao Criador, a condição pecaminosa aumenta vertiginosamente
essa distância: o homem se distancia de Deus ao ser soberbo, não por se dirigir
a algo de mau, mas em virtude da renúncia ao movimento natural para o Sumo
Bem, Deus.
Ansioso por se tornar mais do que lhe convém, o homem padece de sua
diminuição moral. Tal sofrimento manifesta uma saudade, a qual consiste na
própria pista de Deus para o homem iniciar o retorno ao Criador. A nostalgia
humana é um modo da lembrança viva do estado original, bem como a ão
íntima da presença de Deus a possibilitar a inversão do distanciamento humano
causado pelo orgulho. Se, por um lado, a soberba afasta a criatura do Criador;
por outro, a reflexão e a experiência da miséria mantêm o elo essencial para o
movimento de reaproximação.
Agostinho descreve a situação humana como uma batalha entre duas
forças opostas, combatendo na vontade: a força de adesão a Deus, atinente à
finalidade transcendente constitutiva de sua natureza; e outra, de afastamento
428
“Hanc imaginem in spiritu mentis impressam perdidit Adam per peccatum […]” (Gn. litt.,
VI, xxvii, 38).
429
“defecerant a luce ueritatis”. Cf. Gn. litt., XI, xxxi, 41.
170
do Criador, manifesta como o esquecimento de sua natureza. Contudo, sem se
render à intervenção divina, a concupiscência ganha mais força, e o homem,
manchado pelo pecado original, afasta-se de seu Criador.
Ademais, lemos na narração bíblica a abertura dos olhos de Adão e Eva
como conseqüência do pecado. Inaugura-se então a visão dirigida pela
concupiscência resultante da morte da carne. Visão voltada para fora, visão da
vergonha, do desejo corporal, que faz o homem se sentir desapropriado ao
olhar divino e querer se esconder de quem é onipresente. Em suma, a visão da
cegueira.
Movido por essa “contra-vontade” que permeia e rege as sensações, sob
o jugo da lei dos membros que repugna a lei da mente
430
, exteriorizado e exilado
da íntima fonte de Sabedoria, cada homem será nocivo a si mesmo. Desse
modo, a vontade ímpia e perversa do homem corrompido não dispõe de
recursos próprios para se voltar para Deus. Apenas o socorro da graça divina
poderá ajudá-la e restaurá-la
431
.
“Logo, somos renovados no espírito da nossa mente (Ef
4,23) segundo a imagem dele que nos criou, a que perdeu
Adão pecando. Seremos renovados também na carne
quando este corpo corruptível se vestir de incorrupção,
430
Cf. Rm 7,23.
431
Cf. Gn. litt., IX, xviii, 33.
171
para ser corpo espiritual, no qual Adão ainda não havia
sido mudado, mas deveria ser se não merecesse, pecando,
também a morte do corpo animal.” (Gn. litt., VI, xxiv, 35)
432
Nesse processo, será necessário primeiro purificar a alma para que,
então, o corpo receba a purificação e finalmente se renove. A formação é, então,
uma reformação (reformatio) ou uma nova feitura (reficere) da alma
433
, à qual
sucederá, a critério de Deus, a espiritualização da carne, ou seja, a renovação
final:
“Ora, [a criatura] é formada se convertida para a luz
imutável da Sabedoria, o Verbo de Deus. Com efeito, ela
recebe existência dele para que seja e viva de um modo
qualquer; é convertida para ele para que viva sábia e
felizmente.” (Gn. litt., I, v, 10)
434
Os homens serão “renovados no conhecimento de Deus segundo a
imagem deste que os criou” (Gn. litt., VI, xxviii, 39)
435
.
432
“Renouamur ergo spiritu mentis nostrae secundum inaginem eius qui creauit nos, quam
peccando Adam perdidit. Renouabimur autem etiam carne, cum hoc corruptibile induetur
incorruptione, ut sit spirituale corpus; in quod nondum mutatus, sed mutandus erat Adam, nisi
mortem etiam corporis animalis peccando meruisset.”
433
Cf. Gn. litt., VI, xxviii, 39.
434
“Formatur autem conuersa ad incommutabile lumen Sapientiae, Verbum Dei. A quo enim
exstitit ut sit utcumque ac uiuat, ad illum conuertitur ut sapienter ac beate uiuat.”
435
“renouati scilicet in agnitionem Dei, secundum imaginem eius qui creauit eos”
172
Esse aspecto da trajetória humana redefine o modo da relação entre Deus
e o homem, como reconhecimento não apenas da transcendência e da
imanência de Deus, mas da necessidade de se conceder maior importância à
força contribuinte ao completamento do ideal da vida humana em detrimento
do peso mortal da soberba.
A postura de Agostinho diante dessa questão reflete, sobretudo, o
reconhecimento da desproporção entre a magnitude divina e o ser humano. Por
isso, a razão do homem não adentra, sequer é capaz de compreender, o motivo
divino para a doação das formas às coisas. Então, é descabido perscrutar o que
levou Deus a criar o mundo e a formá-lo. Mas, decerto, a suma bondade do
Criador é gratuita: incide sobre o homem cuja escolha o aprisionou ao fardo do
pecado, reorientando-o. Logo, Deus criou o mundo por bondade, e esta é
gratuita: o Pai cria e recria as criaturas pelo Verbo
436
.
Não obstante, por concernir à ação humana, o pecado submete-se à
ordem divina. Ele não interfere nas razões divinas das criaturas e, nesse sentido,
a alma do homem pecador jamais perde a vida, isto é, a imortalidade; muito
embora possa se tornar melhor ou pior. Ademais, é inamissível a lembrança que
a alma traz de si mesma, ainda que esteja encoberta pelo esquecimento e pelo
436
Em In Iohanis evangelium tractatus (Io. eu. tr., XXXVIII, 8), Agostinho expõe a dificuldade de se
estabelecer o significado de ego sum nesta fala de Cristo: “Si non credideritis quia ego sum,
moriemini in peccatis uestris (“Se não crerdes que eu sou, morrereis em vossos pecados”).
Nesse contexto, o filósofo propõe uma série de designações para ego sum”: Christus”, Dei
Filius”, “Verbum Patris”; “conditor mundi”; “hominis formator et reformator, creator et recreator, factor
et refactor” (idem).
173
sofrimento. A divisão entre o que a alma sabe e o que não conhece de si traduz-
se na diferença entre dois verbos latinos: nosse e cogitare. A notitia concerne ao
saber originário da alma um saber implícito, indestrutível, inamissível e
proveniente da visão da luz divina. A cogitatio é o conhecimento reflexivo
adquirido pela alma que, devido à concupiscência, busca a si mesma na
exterioridade, carregando-se de impressões daquilo que ela não é. Este tipo de
conhecimento pode ser falseado
437
. Assim, mesmo quando o homem busca
saber em que sentido é imagem divina, conquanto se apresentem cogitações
erradas, não obstante ele sabe que busca se conhecer, e isso é uma conseqüência
de saber que é: conhece que busca e quer conhecer.
A mente (alma racional) deveria se pensar a partir do que sabe
(nosse)
438
, e se voltar para si mesma, separando e recusando tudo que lhe for
estranho
439
. Para Agostinho, o conhecimento de si não é a aquisição de algo não
possuído, mas o processo de despojamento de tudo que encobre o saber de si
mesmo
440
.
437
Cf. Gn. litt., VII, xxi, 28.
438
“[a alma] não pode não se saber (nescire), mesmo quando ela se busca para conhecer-se
(cognoscat) (“se nescire non possit, etiam quando se, ut cognoscat, inquirit” Gn. litt., VII, xxi,
28 ).
439
O conhecimento de si é trinitário, tal como indicado no livro XIII das Confissões. No livro XIV
do Sobre a Trindade encontra-se o desenvolvimento do que já está presente nas Confissões.
440
No livro X do Sobre a Trindade, Agostinho conduz o leitor a buscar o verdadeiro
conhecimento humano de si como criatura à imagem de Deus. Através de um caminho de
esclarecimento, afirma-se que o homem deverá se despojar das informações confusas e
aprofundar-se ao máximo na interioridade. Nesse trajeto, o ponto de partida é a evidência de a
alma conhecer-se, pois, mesmo esquecida de si, ela se reconhece como ignorante. O
conhecimento inamissível consiste na memoria sui.
174
O repouso final
A realização máxima desse itinerário equipara-se ao repouso eterno dos
homens junto de Deus
441
. Alcançando enfim a plenitude de seu ser, o homem
torna-se sábio e feliz porque é maximamente iluminado pela Trindade e não
por alcançar uma identidade exclusivamente humana e independente: ele é o
reflexo perfeito do Ser (Pai), da Verdade (Filho) e do Bem (Espírito); seguindo o
modelo de Jesus.
O desejo de conhecer-se e de satisfazer-se deve ser orientado para o que
se coloca para além do próprio homem. Buscar-se como bem implica
insatisfação, pois que a alma é um bem mutável. Apenas um bem perfeitamente
imutável inteira o homem em todas as dimensões. Logo, se o ser imutável é
somente Deus, então, cumpre buscar permanência e repouso em Deus.
Na criação e na permanência de todas as criaturas, o Espírito age como o
amor do Pai e do Filho. De modo análogo, impulsiona o homem (imagem) a se
aproximar e aderir ao Filho (Imagem), proporcionando um “repouso seguro” e
uma “visão inefável da Verdade” (Gn. litt., XII, xxvi, 54)
442
. E, uma vez mais, a
noção de peso, de bem, de regimen e de ordem correspondem ao amor do
Espírito.
441
Cf. Gn. litt., IV, xvi, 27.
442
“secura quies”, “ineffabilis uisio ueritatis”
175
Na vida eterna, pela graça da justiça divina, todos os santos ressuscitados
terão corpos espirituais e imortais
443
. E, libertos do fardo impingido por corpos
mortais, os santo verão a Luz de Deus, “face a face”
444
, e não por enigma
445
.
dois sentidos para a libertação do corpo de morte: deixar o corpo ou ser tão
adverso e alienado dos sentidos carnais, a ponto de a razão não mais saber se
está ou não junto ao corpo, e, nesse estado, ser capturado e elevado à tal visão.
Quando a mente repousa em Deus, a Verdade é vista com evidência, sem
ser escondida por nuvens de opiniões falsas. Nessa contemplação, as virtudes
da alma não são penosas, nem se refreia a libido pela temperança, tampouco a
coragem e a força suportam adversidades, sequer a justiça pune as iniqüidades
e a prudência evita males. A única virtude é amar o que se vê, e a suma
felicidade é ter o que se ama. O homem novo bebe da fonte da vida feliz, de
cujas gotas vivia quando resistia ao peso das tentações com temperança,
paciência, coragem, eqüidade e prudência. Esse é o estado de presença à Luz,
ou seja, de iluminação humana.
O ser do homem (imagem) é completamente preenchido pela luz do
Verbo e torna-se Eterno (à imagem do Pai); o conhecimento é pleno de Verdade
e despojado de toda cogitação imagem do Filho); o amor se satisfaz
plenamente na mais perfeita visão do amado, fruindo da aproximação daquele
443
Adão não tinha um corpo espiritual, nem mortal. O corpo espiritual é a recompensa do
mérito que Adão perdeu.
444
Cf. 1Cor 13,12.
445
Cf. Gn. litt., XII, xxvii, 55.
176
por quem foi feito imagem do abraço inefável entre o Pai e o Filho, ou seja,
do Espírito).
Medida, número e peso
Todos os textos analisados por nós ganham clareza à luz do quarto livro
do Comentário literal ao Gênesis
446
. Dissemos que Pai, Filho e Espírito agem
criando, formando e mantendo todas as criaturas do universo. Aqui, Agostinho
confere mais precisão ao tema, oferecendo uma síntese que organiza seu
pensamento. Trata-se de estabelecer vínculos de semelhança entre todas as
criaturas e o Criador. E, nesse contexto, será possível pensar essas relações
como modos da iluminação divina: a iluminação feita pelo Pai, pelo Filho e pelo
Espírito.
Agostinho destaca uma rede universal de semelhanças a partir de três
noções apresentadas no Livro da Sabedoria: “Dispuseste tudo com medida,
número e peso” (Sb 11, 21)
447
. Cada um desses termos contém um significado
profundo e complexo, herdado de tradições cristãs e não-cristãs
448
. Então,
investigá-los-emos somente à luz da dependência para com o Pai, o Filho e o
446
Gn. litt., IV, iii, 7 - vii, 14.
447
“Omnia in mensura et numero et pondere disposuisti.”
448
Cf. AYRES, L., “Measure, Number and Weight”, p. 551, e PAIONI, V., “Order”, pp. 598-599.
177
Espírito (respectivamente); o que reafirma a abrangência da iluminação
trinitária
449
.
Quanto à nomenclatura, Agostinho a alterna entre os termos originais e
seus sinônimos: por vezes, “medida” é referida como “modo”; “número”, como
“forma”, “razão”, species” ou “idéia”; e “peso”, como “ordem”. De modo geral,
trata-se de três fundamentos presentes em todas as criaturas (espirituais e
corporais)
450
, definindo suas estruturas. Muito embora compareçam sempre,
fazem-no distintamente segundo o gênero daquilo que constituem: “[todas as
coisas] foram dispostas de modo que tivessem suas medidas próprias, números
próprios e peso próprio” (Gn. litt., IV, v, 12)
451
.
Essas dimensões apontam na direção de Deus, afixando os fundamentos
de todas as criaturas como uma participação de Deus, de sorte que mesmo a
separação inultrapassável entre Criador e criaturas não indica um
despojamento divino e sim um vínculo. Contudo, embora a substância divina
esteja presente em tudo (onipresença), permanece impermista e absolutamente
superior em modo, species e ordo. Tal superioridade consiste na potência
449
Não pretendemos afirmar a soberania de uma interpretação fundada nessas três noções,
como faz Olivier Du Roy; pois Agostinho permite diversas abordagens rigorosas à sua obra.
Intencionamos postular que a iluminação alcança também a estrutura triádica dos seres, pois
que afirmamos sua atuação quanto àquilo que é indicado por essa tríade.
450
Medida, número e peso não estão apenas nas pedras, no barro e em outras coisas moldáveis
ou em corpos terrestres ou celestes; essa tríade está também nas criaturas espirituais, homens e
anjos.
451
“[omnia] disposita, ut haberent proprias mensuras suas et proprios numeros et proprium
pondus”
178
inefável e singular de conceder todo modo, toda species e toda ordem. Trata-se
da onipotência divina de fazer o que somente Deus faz
452
.
Os elos dessa relação são traçados nos seguintes termos: Deus é a suma
Medida (summum modum), ou seja, Medida das medidas, porque controla e
confere a medida dos corpos, dos espíritos e das mentes, ou seja, atribui o ser
com certos limites às criaturas; por outro lado, ele é a Medida sem medida
(imensurável, que não se pode medir) e independe de outrem para ser a
Medida. Ele é o Número dos números, o princípio das formas concedidas às
criaturas e, nesse sentido, forma tudo; entretanto, não pode ser formado, daí ser
Número sem número (incalculável)
453
. Enfim, Deus é o Peso dos pesos, pois
confere peso a tudo que compõe o universo criado, atribuindo ordem a cada
coisa; é também o Peso sem peso, pois seu repouso e sua estabilidade não estão
em nada senão nele mesmo
454
. Como medida, número e peso estão presentes no
universo? Examinaremos brevemente cada um.
452
Em A natureza do Bem, Agostinho explica que tudo é “a partir de Deus, seja grande, seja
pequeno” (“a Deo seu magna seu parua” nat. b., 3), o que equivale a afirmar que o modo, a
species e a ordem de tudo são a partir de Deus.
453
Cf. Gn. litt., IV, iii, 7 e iv, 8.
454
Agostinho salvaguarda claramente a inefável superioridade divina ao designar Deus como
Medida sem medida, Número sem número, Peso sem Peso. Deus não pode receber atributos,
pois ele é a Medida, ele é o Número, ele é o Peso; do mesmo modo como é Eternidade, Verdade
e Caridade. Apenas se removermos dele os atributos, poderemos indicar o que ele é: sem
medida, sem número, sem peso. Enfim, esta não é uma questão gramatical: Deus é
primordialmente, verdadeiramente e singularmente a Medida, o Número e o Peso porquanto
“delimita tudo, forma tudo e ordena tudo” (“terminat omnia et format omnia et ordinat omnia”
Gn. litt., IV, iii, 7). Cf. Gn. litt., IV, iv, 8.
179
O ser divino estabelece toda medida ao atribuir limites às criaturas. A
medida demarca a cisão axial e intransponível entre o ser divino e os seres
criados. Com efeito, Deus é o Ser em sentido pleno e verdadeiro, dada sua
eternidade e imutabilidade
455
. Por outro lado, as criaturas são menos do que Ele:
tendo sido criadas, mudam, e, conseqüentemente, não são eternas. Assim, a
medida atribui alguma fixidez ao que seria transitoriedade total, e impõe
limites à mudança das criaturas: não podem mudar a ponto de deixarem de ser
criaturas. As criaturas se modificam dentro de determinados parâmetros de
crescimento e decréscimo, cuja ultrapassagem implica sua dissolução. Portanto,
a medida marca a distinção e a procedência delas em relação a Deus. Ademais,
em função de designar permanência nas criaturas, a medida consiste numa
semelhança com o Criador, uma referência ao doador de ser
456
.
Como precisar os limites específicos da medida, se a especificação é
atribuída à forma? Somente será possível encontrá-los na composição entre
ambas, pois a forma pressupõe a medida, o que explica a seqüência na qual a
Bíblia dispõe os trêsnculos de semelhança (medida, número e peso). Assim, a
medida é a origem, a referência e a base dos termos seqüentes.
Nos livros estudados mais detidamente em nossa pesquisa, todas as
indicações daquilo que se tornará patente no Sobre a Trindade. Nessa obra de
455
O ser divino tem duas características axiais: imutabilidade e eternidade (Gn. litt., IV, xviii,
34).
456
Ora, ao estudarmos a narrativa da criação, vimos que Agostinho estabelece a matéria
informe como um conceito essencial por marcar a alteridade do ser das criaturas quanto ao
Criador. Portanto, a matéria manifesta a medida.
180
maturidade do pensamento agostiniano, ressuma-se a correspondência entre a
Trindade divina e a tríade constitutiva de cada uma das criaturas, as quais, em
sua unidade triádica (mensura, numerus, pondus), indicam a Trindade (Pai, Filho
e Espírito, respectivamente). Os fundamentos dessa teoria, Agostinho encontra-
os na exegese de Hilário, que assevera: “Eternidade no Pai, species na Imagem,
uso no Dom” (apud trin., VI, x, 11)
457
.
Agostinho interpreta o Pai como “eternidade”, ou seja, a “suma origem
de todas as coisas” (trin., VI, x, 11)
458
. A primeira pessoa da Trindade não nasce
de outro pai, senão seria de Patre”, tal qual o Filho
459
; ou seja, é
primordialmente. Quanto às criaturas, as características que as remetem ao Pai
são o ser e a temporalidade da matéria. Ademais, tal como o Pai é a origem das
formas, a criatura é apta a receber forma
460
.
Quanto aos corpos, o Pai lhes confere a existência em limites de extensão.
Para as almas irracionais, é o princípio de vida segundo o qual elas vivem e não
457
“Aeternitas [...] in Patre, species in Imagine, usus in Munere” (trin., VI, x, 11).
458
“summa origo est rerum omnium”
459
De certo, o Filho é coeterno ao Pai, porque nasce do Pai e não criado por ele, mas não
Eternidade.
460
Lemos no estudo de W. J. Roche: “In the book De Fide et Symbolo, discussing the creation of
an original formless matter, Augustine says that whatever modus such an original matter had,
in virtue of which it was enabled somehow to exist and to receive forms of distinct beings, it
had from God. (De Fide et Symbolo, 2)” (ROCHE, W. J., “Measure, Number and Weight in Saint
Augustine”, p. 357). Em virtude da estreita relação entre o conceito de medida e a matéria
informe, Roche atribui as características desta àquele, afirmando-o como aptidão às formas.
Medida seria a qualidade de “limitação intrínseca em virtude da qual um ser é determinado por
uma forma” (idem, pp. 353, 356, 359, 373). Embora não haja qualquer afirmação clara acerca
dessa interpretação nos textos de Agostinho (cf., idem, p. 354), entendemos que seja plausível
somente se pensarmos que semelhança entre a matéria informe e o Criador, e desde que as
referências à matéria informe como dessemelhante sejam compreendidas no sentido de carência
de semelhança, tal qual as trevas são carência de luz.
181
perdem a vida. Em relação ao homem, o Pai é a fonte da existência da matéria
informe espiritual; não obstante, opera na conservação humana ao moderar as
ações cujo avanço não deve ser irrevocável
461
.
Assim, uma relação entre Pai e medida. Sinônimo de modo, a medida
está nas coisas que medimos e delimita o ser de cada criatura, segundo a
Sabedoria e a Suma Bondade do Deus-Pai, Criador. E se essa relação não está
explícita no Comentário literal ao Gênesis, inegavelmente as reflexões sobre o Pai e
sobre a medida preparam o desenvolvimento final de tal associação.
Pode-se pensar a iluminação paterna em dois momentos. Ao criar, o Pai
confere um valor ontológico à matéria informe, em função da formação ou
iluminação que ela receberá. Certamente, o ser de todas as criaturas, em seus
gêneros determinados, é passível de iluminação porque é..
O segundo termo da tríade examinada é “número”, que equivale a
“forma”, species”, “idéia” e “razão” noções cujo significado foi examinado
neste capítulo. Cabe agora recapitulá-lo no presente contexto e buscar sua
associação com o Filho.
Deus é referido como Número dos números
462
, ou “formosíssimo”
463
, por
atribuir formas aos seres criados de acordo com a Sabedoria. Hilário, em sua
461
Cf. Gn. litt., IV, iv, 8.
462
Cf. Gn. litt., IV, iii, 7 - vii, 14.
463
Cf. conf., I, vii, 12.
182
exegese, relaciona “número” a species na Imagem” (apud trin., VI, x, 11)
464
, ou
seja, “beleza perfeitíssima” (trin., VI, x, 12)
465
na Imagem. Segundo santo
Agostinho, Hilário se reporta à imagem em total perfeição, isto é, àquela
plenamente preenchida pelo modelo a ponto de tornar-se imagem igual
466
. Ora,
na Trindade, o Filho se define como imagem igual do Pai
467
, o que se traduz
numa vida plena de ser e de inteligência. Nas palavras de Agostinho:
“[a imagem perfeita] é como o Verbo perfeito, ao qual
nada falta, e uma certa arte do Deus onipotente e sábio,
plena de todas as razões imutáveis dos [seres] viventes; e
todas são uma nela, assim como ela é uma [nascendo] do
uno, com o qual é uma.” (trin., VI, x, 11)
468
Por silogismo, entendemos que a Imagem é também o Verbo, o
principium mencionado no Gênesis (1,1). O Filho-Verbo, sabemos, é o aspecto da
Trindade outorgador de formas à matéria informe para criar o mundo com
464
“species in Imagine”
465
"Perfectissima pulchritudo"
466
Isabelle Koch, em sua tese Image et dissemblance – Etude sur la notion d’image chez Plotin et saint
Augustin, faz do conceito de imago aequalis o coração da concepção agostiniana de imagem (cf.
referências bibliográficas).
467
Acerca da Imagem perfeita, Agostinho caracteriza-a como: “tanta congruentia, et prima
aequalitas, et prima similitudo, nulla in re dissidens, et nullo modo inaequalis, et nulla ex parte
dissimilis, sed as identidem respondes ei cuius imago est” (trin., VI, x, 11).
468
“[perfecta imago] tamquam Verbum perfectum, cui non desit aliquid, et ars quaedam
omnipotentis atque sapientis Dei, plena omnium rationum uiuentium incommutabilium; et
omnes unum in ea, sicut ipsa unum de uno, cum quo unum.”
183
sabedoria
469
, estabelecendo um vínculo de semelhança entre as idéias (que estão
na mente de Deus) e as criaturas (em si mesmas).
Nos corpos, o Filho investe a forma inamissível da corporalidade
470
e as
propriedades pelas quais cada entidade é o que é, enquanto distinguida de
todas as outras. Ademais, as formas determinam as possíveis mudanças de
aparência.
Em relação às almas irracionais, o Filho define o poder pelo qual têm
sensações, concepção, nascimento, crescimento, morte, segundo cada espécie e
nas mais variadas manifestações. A ação filial atribui formas específicas (ou
qualidades naturais) a cada classe de animais.
Quanto aos homens, além de o Filho determinar a definição de homem
como feito à imagem e semelhança de Deus, ele afixa, por assim dizer, quais são
as afecções e virtudes de que o ser humano pode dispor para superar a
deformidade da ignorância e alcançar a forma e a beleza da sabedoria
471
.
A coerência entre formação e sabedoria nos seres inteligentes comparece
nos escritos de juventude de Agostinho. No Sobre a vida feliz (escrito em 386)
472
,
Agostinho defendia que a sabedoria comporta uma medida, tanto no sentido de
469
É na imagem que Deus conhece tudo que fez através dela, pois não conhece as criaturas na
transição do tempo, uma vez que o conhecimento que tem não é causado pela existência delas,
senão sua causa.
470
Nenhum corpo pode perder a forma da corporeidade: no máximo, as coisas mudam de
aparência.
471
Cf. Gn. litt., IV, iv, 8.
472
Cf. beata u., IV, 32 - 34.
184
evitar o excesso e os acúmulos de coisas e vícios inúteis à realização verdadeira
do homem, como no de requerer a ultrapassagem de tudo que cause um
exercício diminuído de suas capacidades (a exemplo da concupiscência, do
orgulho e da avareza).
Ora, se a Sabedoria de Deus é o Filho de Deus, então, o Filho é o Número
em si. Assim, o Filho nasce do Pai e o Número (Sabedoria) nasce da suma
Medida. O Pai é perfeitamente idêntico a si mesmo e o doador de ser.
Agostinho refere-se ao Filho também como Verdade, e a relação do Pai-Medida
com o Filho-Verdade retoma a relação com o Filho-Sabedoria. Se o Filho é a
imagem perfeita do Pai e o homem é a imagem do Filho, este serve como
Mediador para o homem viver, conhecer e ser feliz em sua medida. Étienne
Gilson explica essa dinâmica:
“Portanto, do mesmo modo que a Verdade é engendrada
pela Medida, por isso também a Medida se faz conhecer
pela Verdade. Pois a Verdade nunca esteve sem a Medida
da qual procede, nem a Medida sem a Verdade que
engendra. Portanto, quem é o Filho de Deus? Nós o
dissemos: é a Verdade. E qual é essa Medida que nada
engendra senão o Pai?”
473
473
GILSON, É., Introduction à l'Étude de Saint Augustin, p. 5.
185
O terceiro termo correspondente, nas criaturas, à semelhança com o
Espírito é o peso (pondus). Cada criatura tem seu próprio peso, em decorrência
do qual se move para fins determinados e próprios. Na criatura, o peso é o
correlato da lei divina. A despeito da mutabilidade material, age como uma
força que entranha e arrasta todas as coisas para o repouso (ou estabilidade),
organizando-as no universo em lugares distintos, com tendências diversas de
acordo com as formas recebidas do Filho. Nessa dinâmica, todas as coisas estão
submetidas a seus pesos e compõem a ordem singular e universal
474
.
Peso e ordem são noções solidárias. Em correlação com o peso de cada
coisa, a ordem integral do universo engloba todos os seres em níveis
hierárquicos distintos
475
de acordo com o poder (potestas) que têm: as naturezas
superiores devem subordinar as inferiores. Portanto, o homem supera os
animais em virtude da razão; a alma é melhor do que o corpo por lhe conferir
formas
476
. Ademais, ao estudarmos a ordem hierárquica da criação, será
necessário termos clareza de que o universo de Agostinho é dinâmico. Nas
palavras de Roche:
474
“em última análise, definem a relação dinâmica do ser singular com o universo e com Deus”.
AGAÉSSE, P. e SOLIGNAC, A., “Mesure, nombre et poids”, nota complementar 18, 636. In: La
Genèse au sens littéral, livros I-VII. “Bibliothèque Augustinienne” 48. Cf. ord., I, x, 28 e PACIONI,
V., “Order”, p. 599.
475
A ordem concerne à criação hierarquizada e boa, composta de criaturas singulares que,
quando formadas e distinguidas, recebem também um lugar na hierarquia dos seres. Cf. Gn. c.
Man, II, xxix, 43; Gn. c. Man., I. iii, 5; Gn. litt. imp., III, x; conf., XII, xvii, 26.
476
Gn. c. Man., I, xxv, 43. A ordem guarda a beleza daquilo em que se apresenta e a ordem
universal é sobremaneira boa, ao passo que a ordem de cada ser singular é boa (cf. Gn. c. Man.,
I, xxi, 32).
186
“A hierarquia de Agostinho não é uma classificação
estática, mas um intercâmbio dinâmico de forças
conspirando para um fim único, no qual o maior inclui o
menor em uma forma mais elevada, e no qual o mais
elevado subordina o inferior, para alcançar, primeiro sua
própria perfeição, e segundo a perfeição do todo. O fim de
todas as criaturas é Deus que é manifesto na perfeição das
coisas”
477
.
Assim, pela ordem, todos os seres participam de Deus e o pensamento
pode se elevar a Deus, tal como ocorre quanto ao número
478
.
Agostinho refere-se à exegese de Hilário, segundo a qual o peso
equivaleria à terceira pessoa da Trindade e poderia ser dito uso no Dom”
(apud trin., VI, x, 11)
479
. Agostinho comenta que o usus ao qual Hilário se refere é
a fruição, o amor sublime, a alegria peculiar ao inefável abraço do Pai com a
Imagem. Este seria o modo mais conveniente possível encontrado por Hilário
para se referir ao que Agostinho denomina o prazer, a felicidade e a comunhão
indescritíveis. Escolheu-se então o termo usus, relacionando-o com o Espírito
Santo da Trindade divina.
477
ROCHE, W. J., “Measure, number and weight in s. Augustine”, p. 369.
478
Comentando seu Diálogo sobre a ordem, nas Retratações, Agostinho afirma que a ordo studiorum
é um modo de proceder a essa elevação (cf. retr., I, 3).
479
“usus in Munere” (trin., VI, x, 11)
187
O Espírito não é criado. Ele consiste na própria doçura do Pai e do Filho
na Trindade, e também no amor presente na natureza de todas as criaturas. É a
suauitas presente nelas, ou seja, o que e agrada sublimemente nossas mentes,
ou seja, a atração peculiar e magnetizadora de nossas mentes
480
. Esse “gozo
beatíssimo” (trin., VI, x, 12)
481
, superabundante, inunda por sua largitate
(largueza, prodigalidade, liberalidade, generosidade, doação universal,
redenção) e ubertate (abundância, fecundidade, fertilidade, plenitude) todas as
criaturas, aproximando-as de Deus na proporção e a favor da capacidade de
cada uma delas; mantendo a criação ordenada. O Espírito:
“não é gerado, mas é a suavitas do gerador e do gerado
482
,
inundando com grande amplidão e abundância todas as
criaturas, à proporção (pro) da capacidade delas.” (trin.,
VI, x, 11)
483
480
A suauitas qualifica o que é agradável aos sentidos e também atraente para a mente de modo
ausente de desagrado (cf. Oxford Latin Dictionary, p. 1833-34).
481
“beatissima delectatio”
482
Em introdução ao Sobre a Trindade, E. Hendrix explica as missões de cada pessoa da
Trindade: “A Escritura fala constantemente de missões das três Pessoas divinas. Essas missões
ocorrem no tempo. Toda missão comporta uma dependência daquele que é enviado em relação
àquele que envia. Nas Pessoas divinas, a missão indica suas origens: o Pai nunca é enviado, o
Filho é enviado unicamente pelo Pai; o Espírito Santo, tanto pelo Pai como pelo Filho. Assim, o
Pai é ingenitus; o Filho é unigenitus. O Espírito Santo é o Espírito do Pai e do Filho: Ele é enviado
pelos dois, aos dois deve sua origem” (HENDRIX, E. “Introduction”. In: La Trinité,
“Bibliothèque Augustinienne” 15, p. 52).
483
“non genitus, sed genitoris, genitique suauitas, ingenti largitate atque ubertate perfundens
omnes creaturas pro captu earum” (trin., VI, x, 11).
188
Aos corpos, o Espírito lhes confere o peso que os ordena para alcançarem
e repousarem em seus lugares naturais, conforme sua natureza. nas almas
irracionais, o peso é o movimento pelo qual são apetentes dele vem o apetite
mediante o qual as criaturas buscam seus fins.
Quanto aos homens, o peso manifesta-se como vontade e no amor, pois
ponderamos o que desejamos, evitamos, estimamos mais ou menos
484
. Assim, o
homem descansa na posse de seu bem maior, ou, se não o possui, busca-o pelo
amor. O bem maior reside na felicidade, alcançada pela adesão a Deus, e a
aspiração a esse fim é o peso humano. Nesse horizonte, o homem deve moldar
sua vontade conforme seu correlato seja bom ou mau para alcançar seu repouso
em Deus
485
.
O homem se e se conhece como parte do universo regido por Deus;
sabe-se convocado para se colocar em seu lugar numa ordem universal, à qual
tem o dever de se subordinar. Quando possui uma natureza inferior àquela que
lhe é própria, perde sua ordem própria ao abandonar o seu bem. Mas não
escapa, por isso, à ordem universal, tampouco a altera.
Há, portanto, uma semelhança das três dimensões presentes em todas as
criaturas como marcas das ações das três pessoas da Trindade. Toda criatura é
484
Cf. Gn. litt., IV, iv, 8.
485
Todas as criaturas pertencem ao universo regido por Deus, no qual ocupam um lugar
segundo o peso que receberam do Espírito. Desse modo, são boas e contribuem para a
permanência das coisas harmônicas segundo a duração determinada na especificação de cada
uma.
189
semelhante ao Pai, doador de ser. Ademais, recebendo especificações,
assemelha-se ao Filho por ser uma imagem das idéias que estão na Sabedoria. A
união entre o ser e as idéias é a semelhança que as criaturas conservam com o
Espírito Santo.
Os vestígios divinos são também vestígios de luz, porque Deus mantém
as criaturas iluminadas. As mais semelhantes à Trindade são de natureza
espiritual, isto é, inteligível, porque são capazes de ver a Sabedoria de Deus.
Portanto, podem conhecer Deus e, então, alcançar a maior felicidade; nesse
caso, são o mais semelhante que podem (perfeitas) e estão plenamente
presentes à iluminação divina.
Todavia, o bordão de toda a reflexão sobre o Deus iluminador e as
criaturas iluminadas estabelece, a cada passo, a superioridade incomensurável
de Deus. E a semelhança é também uma ponte estabelecida pelo todo-poderoso,
mas não suprime o abismo entre o Ser Eterno e as criaturas mutáveis. A
superioridade divina também se afirma quando Agostinho diz que a visão final
não é adquirida pelo homem, mas concedida por Deus, quando e como ele
quiser
486
.
Dentre as criaturas, o ser humano eleva-se das efígies divinas que
percebe nas coisas inferiores e exteriores, e adere à vereda pela qual se
486
Cf. retr., II, 41.
190
aproxima cada vez mais do que lhe é mais íntimo e superior, até alcançar,
enfim, o gozo da visão eterna de Deus.
Portanto, a alma racional volta-se às coisas medíveis, para ver ao fim a
Medida nas medidas, a Medida na medida das almas, na alma humana, e
chegar a contemplar a Medida das medidas, ela mesma sem medida. Processo
que se repete das coisas enumeráveis à visão do Número e das coisas
ponderáveis, para ver o Peso.
Esses vestígios divinos podem ser decifrados pelo homem através da
visão intelectual, tal como revela a recorrente citação, no contexto da busca
humana pelo conhecimento de Deus, da Epístola de Paulo aos Romanos (Rm 1,20):
“Portanto, como o Criador se faz visível ao intelecto pelas
coisas que foram feitas (Rm 1,20), é necessário entendermos a
Trindade, cujo vestígio aparece na criatura, como
convém.” (trin., VI, x, 12)
487
Isso se deve à capacidade racional e amorosa de realizar esse movimento
em si mesmo: ao ver as imagens das criaturas, a mente é iluminada por Deus e
interpreta a visão das coisas verdadeiramente, podendo, a partir da Luz que
brilha no íntimo, ascender por rastros luminosos de semelhanças para ver a
Semelhança em si (o Filho). Do início ao termo, tal marcha pressupõe a ação da
487
“Oportet igitur ut Creatorem, per ea quae facta sunt intellecta conspicientes (Rm 1,20), Trinitatem
intelligamus, cuius in creatura, quomodo dignum est, apparet uestigium.”
191
Trindade iluminando intimamente o homem (capaz, inteligente e amante de
Deus), e também corresponde ao processo de formação do homem em suas três
dimensões: a atualização da memória de Deus, a contemplação da Sabedoria e o
gozo da caridade.
Por ser imagem divina, o homem se forma ao mirar e refletir
plenamente seu modelo, quando ocorre, então, a união do homem criado com
aquilo que ele foi feito para ser. Em última análise, essa união é uma adesão ao
ser, pois a imagem não tem uma identidade própria.
192
VI. Conclusão
Na filosofia de santo Agostinho, entendemos que a iluminação divina se
refere à ação de Deus nas criaturas, conforme uma premissa principal: Deus é a
Luz e as criaturas são iluminadas. Portanto, em linhas gerais, trata-se de uma
ação unilateral em que o agente pode ser Deus, e ele tem como correlato o
universo criado. Ademais, será preciso adequar esse panorama à definição de
que Deus é Trindade; Deus é Luz; a Trindade é Luz.
Isso significa que Deus é Pai, Filho e Espírito, pessoas divinas,
consubstanciais, de natureza puramente espiritual e dotadas características
distintas, as quais podem ser conhecidas nas Escrituras e pelas semelhanças que
cada uma dessas pessoas imprime nas criaturas, iluminando-as.
As bases para pensarmos a iluminação encontram-se na afirmação de
que Deus criou algo diferente, mas semelhante pela iluminação. Desde o
primeiro comentário de Agostinho ao Gênesis, a criação da matéria informe
significa a feitura da alteridade e antecipa a capacidade das criaturas de receber
a efígie de cada pessoa da Trindade. Se a matéria significa a dessemelhança
daquilo que se define como “um outro feito por Deus” e assevera a
impossibilidade da igualdade entre Criador e criatura, a formação da matéria
consiste no elo de semelhança de cada criatura com o Deus Trindade.
193
Agostinho pensa ão divina em dois momentos lógicos sucessivos:
criação (ato de criar o ser das criaturas) e formação (ato de formar e ordenar as
criaturas em seus gêneros). O Pai é o Ser em sentido absoluto, pois não foi
criado ou engendrado por algo distinto de si mesmo. Não obstante, é
Eternidade, em virtude de ser sempre o mesmo e não passar a existir de modo
diferente. Na criação, define-se como a potência de criar a matéria informe
(corporal ou espiritual), dando existência a algo distinto do Ser. Na formação
das criaturas em gêneros específicos, o Pai corresponde à existência de cada
uma delas, possível dentro de certos limites (as medidas de todas as criaturas).
Por exemplo, os seres irracionais e brutos existem enquanto obedecem a
determinadas medidas de extensão; se as excedem ou ficam aquém delas,
deixam de ser aquilo que são. Quanto às almas irracionais, o Pai faz com que
vivam. Especificamente, quanto aos seres espirituais, o Pai confere a vida. É ele
quem faz a matéria informe espiritual, explicada, nas Confissões, como vida
indeterminada e, na maturidade intelectual de Agostinho, como um conceito
logicamente necessário embora inapreensível, por ser ausente de elementos de
cognoscibilidade (sem corpo e sem formas).
O Filho, no momento lógico da criação, causa a capacidade à forma do
ser da criatura, ainda indefinida. Na formação, confere as idéias (ou números) a
todas as criaturas, imprimindo-lhes características específicas e inalienáveis.
Quanto aos corpos, o Filho investe-os de proporção, fixa de quais elementos
194
naturais são formados, desenha contornos e propriedades intrínsecas. Em
relação às almas irracionais, o filho define suas vidas como capazes de
percepção sensorial. Faz o homem ser uma alma inteligível, isto é, capaz de
conhecer, e ilumina o conhecimento com a Verdade. O Filho é, por isso,
designado como “Verdade”. Também é o Salvador, o Verbo que resgata o
homem pecador ao assumir seus pecados.
O Espírito é o amor unificador entre a ação do Pai à do Filho. Age na criação
como a disposição favorável do ser criado a receber formas (o peso). Na
formação, o Espírito é a tendência intrínseca da criatura a permanecer em seu
lugar de repouso, conforme a hierarquia dos seres determinada por Deus. Nos
corpos, é o peso; nos animais, o movimento pelo qual buscam aquilo de que
precisam para subsistir; e, no homem, é a vontade que o impulsiona a tornar-se
pleno como imagem divina, amando o que deve ser amado.
Dado esse panorama, a Luz divina ilumina todas as criaturas (racionais
ou não, animadas ou brutas), atribuindo-lhes ser, forma e peso. Portanto,
ultrapassa o âmbito do conhecimento, pois ilumina seres irracionais e incide
sobre a vontade humana, como queríamos demonstrar.
Para finalizar esta tese, citamos um texto do Contra o Maniqueu Fausto, de
Agostinho, sobre a iluminação relacionada aos três aspectos constitutivos das
criaturas:
195
“esta luz não é aquela luz que é Deus; com efeito, esta é
criatura, aquela é o Criador; esta é feita, aquela quem fez;
enfim, esta é mutável porque quer o que não queria, e sabe
o que não sabia, e relembra
488
o que havia esquecido, mas
aquela persiste imutável vontade, verdade e eternidade e,
então, para nós é o início do existir, a razão do conhecer, a
lei do amar; então, para todos os seres animados e
irracionais, é a natureza pela qual vivem, é o vigor pelo
qual sentem, é o movimento pelo qual vão à busca. Então,
também para todos os corpos é a medida para que
subsistam, o número para que sejam embelezados, o peso
para que sejam ordenados. Portanto, aquela luz é a
Trindade inseparável, é o Deus Uno” (c. Faust., XX, 7,
grifos nossos)
489
488
A memória é o ser da alma racional: a “tanta força de vida”, a “vida verdadeira” (“Tanta
uitae uis”, “uera uita” – conf., X, xvii, 26).
489
“hoc lumen non est lumen illud, quod est Deus; hoc enim creatura est, Creator est ille; hoc
factum, ille qui fecit; hoc denique mutabile dum uult quod uolebat; et scit, quod nesciebat et
reminiscitur, quod obtlitum erat illud autem incommutabili uoluntate, ueritate, aeternitate
persistit; et inde nobis est initium existendi, ratio cognoscendi, lex amandi, inde omnibus et
inrationalibus animantibus natura, qua uiuunt, uigor, quo sentiuunt, motus, quo adpetunt; inde
etiam omnibus corporibus mensura, ut subsistant, numerus, ut ornentur, pondus, ut
ordinentur. Itaque lumen illud Trinitas inseparabilis, unus Deus est”. cf. Anexo III.
196
VII. Referências bibliográficas
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48)
495
.
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Corpus Scriptorum Ecclesiasticoru Latinorum, vol. 28, pp. 3-228, com algumas
494
Idem.
495
Idem.
202
correções. Tradução, introdução e notas de P. Agaésse e A. Solignac. Paris:
Brepols, 2001 (col. “Bibliothèthe Augustinienne”, vol. 49)
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15)
499
.
496
Idem.
497
Idem.
498
Idem.
499
Idem.
203
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notas de F.-J. Thonnard ( 1
o
maio 1974) com a colaboração de E. Bleuzen e
500
Idem.
501
Idem.
502
Idem.
204
A. de Veer. Introdução de A. de Veer. Paris: Desclée de Brower, 1975 (col.
“Bibliothèque Augustinienne”, vol. 22)
503
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504
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503
Idem.
504
Idem.
205
Tradução e notas de J.-A. Beckaert. Paris : Desclée de Brower, 1952 (col.
“Bibliothèque Augustinienne”, vol. 10)
505
.
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___________. Sur la Genèse contre les Manichéens; Sur la Genèse au sens littéral, livre
inachevé. Texto latino do De Genesi contra Manichaeos é dos Mauristas
(Patrologia Latina, 34, 173-220), revisado por Pierre Monat segundo os
505
Utilizamos o texto latino deste volume, salvo ao citarmos a Questão 46 – Sobre as Idéias.
506
Idem.
507
Idem.
206
trabalhos de Peter Abulecz, Michael Gorman e D. Weber (CSEL 91). Texto
latino do De Genesi ad literram imperfectus liber estabelecido por J. Zycha
(CSEL 28,1), revisado por Pierre Monat a partir de notas críticas de M.
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(American university studies: Se. 7, Theology and religion; vol. 205).
509
Algumas notas do autor se tornaram célebres e são mencionadas como artigos em
bibliografias de importantes estudos.
217
TRESMONTANT, Claude. La métaphysique du christianisme et la naissance de la
philosophie chrétienne problémes de la création et de l’antropologie des
Origines a saint Augustin. Paris: Editions du Seuil, 1961.
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Agostinho: 1600 anos depois; presença e atualidade. Lisboa: Universidade
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_________. Saint Augustin et le mystère trinitaire. Paris: Les éditions DU CERF,
1993.
VAN STEENBERGHEN, Frederick. “Introduction Générale”. In: Oeuvres de
Saint Augustin (vol. 1)
La morale chrétienne: De moribus Ecclesiae
Catholicae, De Agone Christiano, De Natura Boni. Paris: Desclée de Brouwer
et Cie, 1949.
ZUM BRUNN, Émile. “‘Être’ ou ‘ne pas être’ d’après saint Augustin”. In: Revue
des Études Augustiniennes. Paris, Études Augustiniennes, XIV (1968), pp.
91-98.
________. Le Dileme de l’Etre et du Néant chez Saint Augustin
Des premiers
dialogues aux Confessions. Amsterdam: Verlag B. R. Grüner, 1984.
218
VIII. APÊNDICE A – Cronologia das obras de Agostinho
Em nossa pesquisa, é de grande importância observar o desenvolvimento
do pensamento de Agostinho. Nesse sentido, pensamos que um quadro
cronológico pode prover de contextualização e clareza as datas apresentadas no
texto da tese.
Organizamos por ano os escritos do autor e alguns fatos relevantes ao
seu pensamento, tomando como base os dados fornecidos por Peter Brown em
Santo Agostinho
uma biografia (1935). Essa informação foi comparada com a que
oferece Serge Lancel, Saint Augustin (1999), e enriquecida conforme a
necessidade de nossa pesquisa. Portanto, ativemo-nos às datas dos livros
diretamente envolvidos nesta tese e, quanto aos demais, reproduzimos as
informações de Peter Brown. Inserimos notas quando as informações de Brown
divergem das de Lancel, bem como de outras fontes bibliográficas. De modo
geral, os documentos dos quais os pesquisadores se valem são, principalmente,
as Retratações (para os anos de início da redação das obras), algumas Cartas e
outros elementos presentes nos textos de Agostinho, por exemplo, nas
Confissões.
Faz-se necessário observar que algumas datações a seguir encontram-se
seguramente identificadas, enquanto outras geram polêmica entre estudiosos,
especialmente no caso de obras escritas no decorrer de muitos anos. Neste caso,
os pesquisadores buscam indicar quando elas foram interrompidas e
retomadas.
Todos os títulos aparecem em latim porque as traduções de alguns deles
variam nas edições em português. Há também obras ainda não traduzidas.
219
354 Agostinho nasce em Tagaste.
220
373 Lê o Hortensius de Cícero
510
.
380 Escreve:
- De pulchro et apto (livro perdido)
386 Em junho, lê os libri Platonicorum.
Ao final de agosto, ocorre sua conversão.
Escreve:
- Contra Academicos (novembro)
- De beata uita
- De ordine (dezembro)
- Soliloquia (inverno)
511
387 A 24 de abril, é batizado.
Escreve:
- De immortalitate animae
Começa a escrever:
- (até 389) De musica
512
388 Escreve:
- De quantitate animae
- De libero arbitrio (livro I)
Começa a escrever:
- (até 390) De moribus ecclesiae catholicae et de moribus Manicheorum
513
- (até 389) De Genesi contra Manichaeos
510
Obra perdida com trechos recuperados mediante as citações encontradas em escritos de
Agostinho.
511
Finalizado em 387, conforme datação de Serge Lancel (Saint Augustin, p. 740).
512
O ano de conclusão segue a cronologia estabelecida por Lancel (ibidem).
513
Cf. BROWN, P. Santo Agostinho
uma biografia, p. 90. Segundo Lancel, o livro foi finalizado
em 389.
221
- (até 390) De diuersis quaestionibus LXXXIII
514
389 Escreve:
- De magistro
Começa a escrever:
- (até 391) De uera religione
391 Primeira pregação do Sermo 216
Começa a escrever:
- (até 392) De utilitate credendi
- (até 392) De duabus animabus contra Manichaeos
- (até 395) De libero arbitrio (livros II e III)
- (até 395) De diuersis quaestionibus 83 , questões 51-65
515
392 Escreve:
- Acta contra Fortunatum Manichaeum
Começa a escrever:
- (até 420) Ennarationes in Psalmos (“os comentários aos 32 primeiros
salmos foram escritos em 392”
516
)
393 Escreve:
- De fide et symbolo
- De Genesi ad litteram imperfectus liber
394 Escreve:
- Psalmum contra patrem Donati
- De sermone Domini in monte
Começa a escrever:
- (até 395) Expositio 84 propositionum epistolae ad Romanos
514
Cf. Idem, ibidem. Serge Lancel, entretanto, indica o ano de 396 para a conclusão do livro.
515
Datadas grosso modo na introdução de Gustave Bardy à edição francesa (“Bibliothèque
Augustinienne” 10, 1952, p. 29).
516
BROWN, P., op. cit., p. 90.
222
- (até 395) Epistolae ad Romanos inchoata expositio
- (até 395) Expositio epistolae ad Galatas
- (até 395) De mendacio
396 Escreve:
- De diuersis quaestionibus ad Simplicianum
- Contra epistolam quam uocant fundamenti
- De agone christiano
517
- De diuersis quaestionibus 83, questões 51-65
518
Começa a escrever:
- (até 426) De doctrina christiana
519
397 Começa a escrever:
- (até 400) Quaestiones euangeliorum
- (até 398) Contra Faustum Manichaeum
- (até 398
520
ou 401
521
) Confessiones , I-IX
522
398 - Contra Felicem Manichaeum (dezembro)
523
Escreve:
- Confessiones, X-XIII
517
Cf. BROWN, P., op. cit., p. 226. Livro concluído em 397 de acordo com Lancel (op. cit., p. 742).
518
Datadas grosso modo na introdução de Gustave Bardy (op. cit., p. 29).
519
Serge Lancel indica dois períodos de redação: 396 a 397 e 426 a 427 (op. cit., p. 742).
520
Segundo M. Mellet e Th. Camelot, em estudo de datação do De Trinitate, os livros X-XIII de
Confessiones foram escritos em 389: “Nous croyons avec Zarb, sur le Témoignane de Confessions,
X, 3, 4, que la deuxième partir de cet ouvrage, livres X-XIII, a été composé, après que la
première partie eût circulé quelque temps au moins parmi les familiers et amis directs de
l’auteur. Qu’Augustin ait mede fornt ou non la rédaction de cette 2
e
partie avec les 33 livres
Contra Faustum, cela nous conduit à l’anée 398 pour l’ensemble et approximativement à la
deuxième moitié de la même année 398 pour le 13
e
livre des Confessions.” (AUGUSTIN, La
Trinité – livres I-VII. “Bibliothèque Augustinienne” 15).
521
Cf. BROWN, P., op. cit., p. 226. Terminadas em 401 segundo Lancel (op. cit., p. 742).
522
Há consenso quanto à datação dos dez primeiros livros das Confissões.
523
Para Serge Lancel, esse livro será acabado apenas em 404; Peter Brown apenas remete-o ao
ano 397.
223
399 Escreve:
- De natura boni
- Contra Secundium Manichaeum
- Adnotationes in Job
Começa a escrever:
- (até 400) De cathechizandis rudibus
- (até 419) De Trinitate
400 Escreve:
- Sermão: De fide rerum quae non uidentur
- De consensu euangelistarum
- Contra epistolam Parmeniani
- Ad inquisitiones Januarii (ep. 54-5)
- De opere monachorum
Começa a escrever:
- (até 401) De baptismo contra Donatistas
401 Escreve:
- De bono conjugali
- De sancta uirginitate
- (ou 398) Confessiones, X-XIII
524
Começa a escrever:
- (até 405) Contra litteras Petiliani
- (até 414) De Genesi ad litteram
405 Escreve:
- De unitate ecclesiae
Começa a escrever:
- (até 406) Contra Cresconium grammaticum
524
Conforme datação estabelecida por Peter Brown e Serge Lancel.
224
406 Começa a escrever:
- (até 411) De diuinatione daemonum
407 Começa a escrever:
- (até 408) Tractatus in Iohannis euangelium
525
- (até 416) Tractatus in epistulam Iohanis ad Parthos
526
408 Escreve:
- Epistola 93 (para Vicente, bispo donatista de Cartena)
Começa a escrever:
- (até 409) Quaestiones expositae contra paganos (Ep. 102)
- (até 412) De utilitate jejunii
409 Escreve:
- Ep. 101 (para Memor)
410 Escreve:
- Contra Adimantum
527
- Epistola CXVIII ad Dioscurum
- De unico baptismo contra Petilianum (ep. 120)
411 Começa a escrever:
- (até 412) Breuilucus conlationis contra Donatistas
528
- (até 412) De peccatorum meritis et remissione
529
412 Escreve:
- Ad Donatistas post conlationem
- De spiritu et littera
- De gratia noui testamenti (ep. 140)
- De Trinitate, II, III e IV
530
525
Serge Lancel indica o termo do tratado em 417 (op. cit., p. 743).
526
Cf. LANCEL, S., op. cit., p. 743.
527
Cf. idem, ibidem, p. 743.
528
Escrito em 412, segundo Serge Lancel (ibidem, p. 743).
529
Para Serge Lancel, o livro foi terminado em 412 (ibidem, p. 743).
225
413 Escreve:
- De uidendo Deo ad Paulinam (ep. 147)
- De fide et operibus
- De ciuitate Dei (I-III)
Começa a escrever:
- (até 415) De ciuitate Dei, IV-V
- (até 415) De natura et gratia
414 De Trinitate é publicado.
Escreve:
- De bono uiduitatis ad Julianam
Começa a escrever:
- (até 416-17) Tractatus in Joannis euangelium, XVII-LIV (talvez iniciado
em 497-408)
531
415 Escreve:
- Ad Orosium contra Priscillianistas et Origenistas
- De origine animae et de sententis Jacobi ad Hieronymum (ep. 166-7)
Começa a escrever:
- (até 416) De perfectione justitiae hominis
- (até 417) De ciuitate Dei, VI-X
Interrompe a redação do De Trinitate
532
.
416 Escreve:
530
“d’après A.-M. BONNARDIÈRE, Recherches de chronologie augustinienne, p. 172-173, et
“L’Epître aux Hébreux dans l’oeuvre de saint Augustin”. In: Revue des Études Augustiniennes, 3,
1957, p. 146, n. 17, les livres II, III et IV, du moins pour leur partir centrale, seraient à situer vers
412” (DU ROY, O. L'intelligence de la foi en la Trinité selon Saint Augustin: genése de sa théologie
trinitaire jusqu'en 391, nota 1, p. 432).
531
BROWN, P., op. cit., p. 352. Os tratados de 20 a 22 foram inseridos mais tarde.
532
Segundo Olivier du Roy (op. cit., p. 428, nota 1), a redação do De Trinitate é interrompida em
415 (conforme ep. CLXIX, 1, 1) e retomada em 420, de acordo com A.-M. Bonnardière, Recherches
de chronologie augustinienne, p. 69 (apud DU ROY, O., op. cit., p. 428, nota 1).
226
- Epistola 177 (ao Papa Inocêncio I)
417 Escreve:
- De gestis Pelagii
- De correctione Donatistarum (ep. 185)
- De praesentia Dei ad Dardanum (Ep. 187)
- De patientia
Começa a escrever:
- (até 418) De ciuitate Dei, XI-XIII
418 Escreve:
- De gratia Christi et de peccato originali
- Gesta cum Emerito Donatistarum episcopo
Começa a escrever:
- (até 419) Contra sermonem Arianorum
- (até 420) De ciuitate Dei, XIV-XVI
- (até 420) Epistola 194 (para Sisto)
419 Escreve:
- Locutiones in Heptateuchum
- Quaestiones in Heptateuchum
Começa a escrever:
- (até 421) De nuptiis et concupiscentia
- (até 421) De anima et eius origine
- (até 421) De coniugiis adulterinis
420 Escreve:
- Contra mendacium
Começa a escrever:
- (até 421) Contra aduersarium legis et prophetarum
- (até 421) Contra duas epistolas pelagianorum
227
- (até 421) De ciuitate Dei, XVII
421 Escreve:
- Contra Julianum
Começa a escrever:
- (até 422) Contra Gaundetium Donatistarum episcopum
533
- (até 423) Enchiridion ad Laurentium de fide spe et caritate
- (até 424) De cura pro mortuis gerenda ad Paulinum episcopum
534
422 - (até 425) De octo Dulcitii quaestionibus
425 Escreve:
- De ciuitate Dei, XVIII
Começa a escrever:
- (até 427) De ciuitate Dei, XIX-XXII
535
426 Começa a escrever:
- (até 427) De gratia et libero arbitrio
- (até 427) De correptione et gratia
- (até 427) Retractationes
427 Começa a escrever:
- (até 428) Collatio cum Maximio Arianorum episcopo
428 Escreve:
- Contra Maximinum Arianorum episcopum
- De haeresibus ad Quoduultdeum
Começa a escrever:
- (até 429) De praedestinatione sanctorum
- (até 429) De dono prerseuerantiae
533
Conforme a cronologia de Serge Lancel, o livro é escrito de 419 a 421 (op. cit., p. 744).
534
De acordo com Serge Lancel, finalizado em 421 (ibidem, p. 744).
535
Lancel data como ano de término da obra 426 (ibidem, p. 743).
228
429 Começa a escrever:
- (até 430) Tractatus aduersus Judaeos
- (até 430) Contra secundum Julianum opus imperfectum
430
Morte e enterro de Agostinho.
229
IX. APÊNDICE B – Tabelas das semelhanças e imagens trinitárias
Reportamos-nos principalmente à tabela apresentada na edição francesa
do De Trinitate, publicada na coleção “Bibliothèque Augustinienne”
536
. As
células alteradas ou acrescentadas serão seguidas de asterisco (*) ou de notas de
rodapé com as devidas referências
537
.
NOMES
Pai Filho Espírito Santo Fonte
Nomes de
Deus
538
- Pater
- Creator
- Mittens
- Filius
- Verbum,
revelação de
Deus em si
mesmo e fora;
- Imago
- Spiritus
540
- Sanctus
- Donum
- Pignum
- Amor
541
- Sanctitas
Introdução de
Hendrikx, p.
54
536
M. Mellet, O. P. e Th. Camelot, O. P., “Tableau des ‘similitudines et imagines’.”. In: De
Trinitate, nota complementar 11, “Bibliothèque Augustinienne” 15), p. 570-571.
537
As tabelas estão em conformidade com o levantamento de Etiènne Gilson: “Agostinho
propôs sucessivamente os vestígios mais diversos da Trindade, sem que nenhum excluísse os
outros: mesura, numerus, pondus, no De Trinitate, XI, 11, 8; vol. 42, col. 998. unitas, species, ordo,
no De uera religione, VII, 13; vol. 34, col. 129. – esse, forma, manentia, na Epist. II, 3; vol. 33, col. 76.
modus, species, ordo, no De natura boni contra manichaeos, III; vol. 42, col. 553. quo res constat,
quo discernitur, quop congruit, no De diu. quaest 83, XVIII, vol. 40, col 15. As três partes da
filosofia: physica, lógica, ethica ou naturalis, rationalis, moralis, a que ele se referem as três
excelências de Deus como causa subsistendi, ratio intelligendi e ordo vivendi, no De civ. Dei, XI, 25;
vol. 41, col. 338-339; no homem exterior, a trindade da cogitatio, que compreende memoria
sensibilis, interna visio, voluntas quae utrumque copulat, no De Trinitate, XI, 3, 6; vol. 42, col. 988;
essa trindade ressalta o homem exterior a causa do caráter sensível de seu dado inicial; sobre a
cogitatio assim entendida, ibid., 8, 13-15: col. 994-996. Encontrar-se-ão no livro de M. Schmaus
(op. cit., p. 190-194) analogias sensíveis ainda mais modestas, como fons, fluvius, potio e outras
análogas.” (GILSON, E., Introduction à l’étude de saint Augustin, p. 282, nota 2).
538
Nomes próprios para as Pessoas divinas constam nas Escrituras e na tradição exegética em
que Agostinho se insere. Eles destacam as características peculiares a cada uma delas, tanto
quanto às respectivas origens como no âmbito de suas manifestações exteriores (missões).
Segundo E. Hendrikx, elas difrerem pela origem: o Pai não é originado, o Filho nasce do Pai e o
Espírito Santo deve sua origem ao Pai e ao Filho. Cf. HENDRIKX, E., “Introduction: 3. c) noms
propes”. In: De Trinitate, “Bibliothèque Augustinienne” 15, p. 53.
230
- Sapientia
539
- Missus
- Mittens
- Nexus
- Missus
Quanto à
origem
Ingenitus Unigenitus Enviado pelo
pai e pelo
Filho
Introdução de
Hendrikx, p.
53
SIMILITUDINES
(no ser em geral)
Pai Filho Espírito Santo Ano Livro
esse species
(forma: ut
hoc uel
illud sit)
manentia (ut in
eo ipso, quod
est maneat)
389 ep. XI,3
ens quo
constat
quo
discernitur
quo congruit 390 diu. qu.., XVIII
ueritas utrum
sit
utrum hoc
an aliud sit
utrum
approbatum
improbandumu
e sit
390 idem
creatura esse speciem
suam
habere
(specie
propria
discernatu
r a
caeteris)
ordinatissime
administrari
(rerum
ordinem non
excedat)
391 uer. rel., VII, 13
modus Species ordo 399 nat. boni, III, 3
unitas Species ordo 400
(-415)
trin., VI, x, 12
mensur
a
numerus pondus 403
(-415)
trin., XI, xi, 18
539
“as três pessoas são sabedoria, mas a palavra convém especialmente ao Filho” (idem, ibidem,
p. 54).
541
“indicam a atividade santificadora do Espírito Santo no mundo e, por outro lado, seu lugar
pessoal na vida íntima de Deus (amor, vontade)” (idem, ibidem, p. 54).
540
“as três Pessoas são Espírito, mas a terceira é especialmente” (idem, ibidem, p. 54).
231
(no “conhecer” e no “poder”)
Ingentium doctrina usus 403
(-415)
trin., X,
xi, 17
Ingentium scientia fructus 417 idem
em
geral:
Natura doctrina usus 417 ciu. Dei,
XI, xxv
em
relação
a Deus:
quis fecerit per quid fecerit propter quid
fecerit
417 ciu. Dei,
XI, xxiv
Origo informatio beatitudo 417 idem
Conditio illuminatio fruitio 417 idem
naturae causa scientiae forma uitae summa 417 idem
em
relação
a nosso
conheci-
mento
de Deus
physica
(philosophia
naturalis)
logica
(philosophia
rationalis)
ethica
(philosophia
moralis)
417 ciu. Dei,
XI, xxv
IMAGINES
(no homem exterior)
res uisio intentio 403 (-415) trin., X, ii,
2-5
memoria interna uisio uoluntas 403 (-415) trin., X, iii,
6 – iv, 7
(no homem interior)
esse nosse uelle 398 e 417 conf., XII, xi, 12
ciu. Dei, XI, 26-28
mens notitia amor 402 (-415) trin., IX, ii, 2 - v, 8.
memori
a (sui)
intelligentia uolunta
s
403 (-415) trin., X, xi, 17 - xii,
19.
memori
a (de
Deo)
intelligentia
Dei
amor (in
Deum)
405 (-419) trin., XIV, viii, 11 -
xii, 16; cf. iv, 6.
232
X. APÊNDICE C – Tabela de similitudes II
Desenvolvemos uma tabela a partir da última citação da tese, a fim de
tornar mais evidentes as relações de semelhança aqui articuladas. Pensamos
que, no texto do Contra o Maniqueu Fausto, a iluminação é causa das criaturas
semelhantes à Trindade. Antes da tabela, retomamos a citação.
“esta luz não é aquela luz que é Deus; com efeito, esta é
criatura, aquela é o Criador; esta é feita, aquela quem fez;
enfim, esta é mutável porque quer o que não queria, e sabe
o que não sabia, e relembra o que havia esquecido, mas
aquela persiste imutável vontade, verdade e eternidade e,
então, para nós é o início do existir, a razão do conhecer, a
lei do amar; então, para todos os seres animados e
irracionais, é a natureza pela qual vivem, é o vigor pelo
qual sentem, é o movimento pelo qual vão à busca. Então,
também para todos os corpos é a medida para que
subsistam, o número para que sejam embelezados, o peso
para que sejam ordenados. Portanto, aquela luz é a
Trindade inseparável, é o Deus Uno” (c. Faust., XX, 7,
grifos nossos)
542
542
“hoc lumen non est lumen illud, quod est Deus; hoc enim creatura est, Creator est ille; hoc
factum, ille qui fecit; hoc denique mutabile dum uult quod uolebat; et scit, quod nesciebat et
reminiscitur, quod obtlitum erat illud autem incommutabili uoluntate, ueritate, aeternitate
233
Deus é Eternidade Verdade Vontade
Trindade é Pai Filho Espírito
Deus age no
homem como:
Início do existir Razão do conhecer Lei do amar
Homem Vive Sabe Quer
Deus age nos
seres animados
irracionais
como:
Natureza pela qual
vivem
Vigor pelo qual
sentem
Movimento, pelo
qual vão à busca
A Trindade
imprime nos
seres animados
irracionais:
Medida Número Peso
persistit; et inde nobis est initium existendi, ratio cognoscendi, lex amandi, inde omnibus et
inrationalibus animantibus natura, qua uiuunt, uigor, quo sentiuunt, motus, quo adpetunt; inde
etiam omnibus corporibus mensura, ut subsistant, numerus, ut ornentur, pondus, ut
ordinentur. Itaque lumen illud Trinitas inseparabilis, unus Deus est”.
234
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