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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
ADRIANI MILLI RODRIGUES
A CRÍTICA TEOLÓGICA DA RELIGO:
Um estudo comparativo da crítica da religião
nas teologias de Karl Barth e Dietrich Bonhoeffer
SÃO BERNARDO DO CAMPO, SP
2009
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ADRIANI MILLI RODRIGUES
A CRÍTICA TEOLÓGICA DA RELIGO:
Um estudo comparativo da crítica da religião
nas teologias de Karl Barth e Dietrich Bonhoeffer
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Religião, como parte das exigências para
obtenção do título de Mestre.
Orientação:
Prof. Dr. Claudio de Oliveira Ribeiro
Agência de fomento:
CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior
SÃO BERNARDO DO CAMPO, SP
2009
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BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________________
Presidente: Prof. Dr. Claudio de Oliveira Ribeiro (UMESP)
_________________________________________________________
Examinador: Prof. Dr. Etienne Alfred Higuet (UMESP)
_________________________________________________________
Examinador: Prof. Dr. Ronaldo Cavalcante (MACKENZIE)
A Ellen, com quem tenho compartilhado
a alegria de estudar
AGRADECIMENTOS
A Deus, por me dotar de saúde e perseverança para concluir esse trabalho;
Aos meus pais (Tony e Jô) que me ensinaram a valorizar os estudos;
À minha querida esposa (Ellen) pelo apoio incansável;
À família de minha esposa, que agora é minha família também, pelo carinho e
interesse (Pr. Paulo Nogueira, Nádia e vó Eunice);
Ao Dr. Amin Rodor por abrir as portas para meus sonhos acadêmicos;
Ao Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP) pelos auxílios
incontáveis;
Ao meu orientador (Dr. Claudio de Oliveira Ribeiro) pela amizade, interesse
e profissionalismo;
Aos professores que fizeram parte da banca examinadora (Dr. Etienne Higuet
e Dr. Ronaldo Cavalcante) pelas relevantes considerões;
À CAPES pelo apoio financeiro.
RODRIGUES, Adriani Milli. A Crítica Teológica da Religião: um estudo
comparativo da crítica da religião nas teologias de Karl Barth e Dietrich Bonhoeffer.
Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião. São
Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2009.
RESUMO
A crítica da religião é um tema recorrente no pensamento moderno e aparece até
mesmo na teologia desse período. Nesse contexto, o presente estudo procura
comparar a crítica da religião no pensamento de Karl Barth e Dietrich Bonhoeffer.
Para tanto, a dissertação está organizada em quatro partes principais. Inicialmente, é
feita uma contextualização da concepção ocidental de religião e sua crítica moderna,
inclusive no âmbito teológico. A seguir são descritas a concepção e a crítica da
religião no pensamento de Barth e Bonhoeffer. Finalmente, é realizada uma
comparação entre ambos, que procura delinear aproximões e distanciamentos da
crítica da religião desses dois teólogos. De maneira ampla, as duas críticas apontam
distorções do Cristianismo e indicam propostas de restauração. Como chave geral de
comparação está a percepção de que Barth critica a religião na perspectiva da
revelação enquanto Bonhoeffer faz sua crítica na perspectiva da vida.
Palavras-chave: Karl Barth, Dietrich Bonhoeffer, crítica da religião, cristianismo,
teologia contemporânea.
RODRIGUES, Adriani Milli. The Theological Critique of Religion: a comparative
study on the critique of religion in the theologies of Karl Barth and Dietrich
Bonhoeffer. Masters Dissertation, Post-Graduate Program in Religious Studies. São
Bernardo do Campo: Methodist University of Sao Paulo, 2009.
ABSTRACT
The critique of religion is a recurrent theme on modern thought and appears even in
the theology of this period. In this context, the present study focus on the comparison
of the critique on religion in Karl Barth and Dietrich Bonheffer’s thought. Therefore,
the dissertation is organized in four main parts. Initially, its done a contextualization
of the western conception on religion and its modern critique, including the
theological ambit. Next, its describe the conception and the critiques of religion on
Barth and Bonhoeffer`s thought. Finally, a comparison its made between both
authors, on which delineate approximations and dissimilitudes of the critiques on
religion of this two theologians. In a broad way, these two critiques indicate
distortions of Christianity and proposals of restorations. As a key to comparison is
the perception that Barth criticize religion on the perspectives of revelation, whereas
Bonhoeffer makes his criticism on the perspective of life.
Keywords: Karl Barth, Dietrich Bonhoeffer, Critiques of Religion, Christianity,
Contemporary Theology.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................. 01
CAPÍTULO 1
RELIGIÃO: CONCEITO E CRÍTICA ............................................................. 05
1.1. O conceito ocidental de religião e sua formulação moderna ............................ 05
1.2. Um panorama da crítica moderna da religião .................................................. 07
1.3. A crítica moderna da religião na teologia ....................................................... 12
1.3.1. Percurso bibliográfico e metodológico de Karl Barth .................................. 13
1.3.2. A crítica barthiana da religião na compreensão de seus comentaristas ......... 18
1.3.3. Percurso bibliográfico e metodológico de Dietrich Bonhoeffer .................... 23
1.3.4. A crítica bonhoefferiana da religião na compreensão de seus comentaristas 28
1.4. Resumo do capítulo ........................................................................................ 32
CAPÍTULO 2
A CRÍTICA DA RELIGIÃO EM KARL BARTH ............................................ 35
2.1. A crítica da religião em Carta aos Romanos .................................................. 35
2.1.1. A Religião e a Infinita diferença qualitativa entre Deus e o ser humano ....... 37
2.1.2. A Religião e a Circuncisão: a justificação de Abro ................................... 43
2.1.3. A Religião e a Lei ....................................................................................... 49
2.1.3.1. O Limite da Religião ................................................................................. 49
2.1.3.2. O Significado da Religião ......................................................................... 52
2.1.3.3. A Realidade da Religião ............................................................................ 54
2.1.4. A Religião e a Igreja .................................................................................... 55
2.1.4.1. A tribulação da Igreja ................................................................................ 56
2.1.4.2. A culpa da Igreja ....................................................................................... 58
2.1.4.3. A esperança da Igreja ................................................................................ 59
2.2. A crítica da religião em Church Dogmatics ..................................................... 61
2.2.1. O problema da Religião na Teologia ............................................................ 62
2.2.2. Religião como ausência de Fé ...................................................................... 69
2.2.3. A verdadeira Religião .................................................................................. 77
2.3. Resumo do capítulo......................................................................................... 85
CAPÍTULO 3
A CRÍTICA DA RELIGIÃO EM DIETRICH BONHOEFFER ....................... 87
3.1. Fundamentação Teológica: até 1931 ............................................................... 87
3.1.1. Escritos do período de estudante (1923-1926) .............................................. 88
3.1.2. Dissertação Doutoral: Sanctorum Communio (1927) ................................... 89
3.1.3. Escritos pastorais: Barcelona (1928)............................................................. 92
3.1.4. Dissertação de Pós-doutorado: Act and Being (1930) ................................... 95
3.1.5. Estudos em Nova York: Union Theological Seminary (1930-1931) .............. 98
3.2. Aplicação Teológica: de 1932 a 1939 ............................................................ 100
3.2.1. Sermões em Berlim (1931-1933) ................................................................ 101
3.2.2. Aula: A Essência da Igreja (1932).............................................................. 102
3.2.3. Aula: Venha a s o teu Reino (1932) ........................................................ 103
3.2.4. Aula: Criação e Queda (1932-1933) .......................................................... 104
3.2.5. Aula: Cristologia (1933) ............................................................................ 107
3.2.6. Aula: A igreja visível no Novo Testamento (1935-1936) ............................. 109
3.2.7. Discipulado (1937) .................................................................................... 111
3.2.8. Segunda visita aos Estados Unidos (1939).................................................. 114
3.3. Fragmentação Teológica: de 1940 a 1945...................................................... 115
3.3.1. Ética (1939-1943) ...................................................................................... 115
3.3.2. Cartas da prisão (1943-1945) ..................................................................... 122
3.4. Resumo do capítulo....................................................................................... 137
CAPÍTULO 4
COMPARANDO A CRÍTICA DA RELIGIÃO:
KARL BARTH E DIETRICH BONHOEFFER .............................................. 140
4.1. Uma tentativa de síntese da crítica da religião em Karl Barth ........................ 140
4.1.1. A concepção barthiana de religião .............................................................. 141
4.1.2. Características e implicações da crítica barthiana da religião ...................... 143
4.2. Uma tentativa de síntese da crítica da religião em Dietrich Bonhoeffer ......... 146
4.2.1. A concepção bonhoefferiana de religião ..................................................... 147
4.2.2. Características e implicações da crítica bonhoefferiana da religião ............. 149
4.3. Aproximões e Distanciamentos da crítica da religião: Barth e Bonhoeffer . 153
4.3.1. A crítica bonhoefferiana em relação à crítica barthiana: antes de 1944 ....... 153
4.3.2. A crítica bonhoefferiana em relação à crítica barthiana: 1944 ..................... 156
4.3.2.1. Comparação das idéias gerais .................................................................. 156
4.3.2.2. Comparação das referências mútuas ........................................................ 159
4.4. Resumo do capítulo....................................................................................... 168
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 170
BIBLIOGRAFIA ............................................................................................... 175
INTRODUÇÃO
A crítica da religião
1
é um tema recorrente em grande parte do pensamento
moderno. Normalmente, essa crítica tem sido associada ao trabalho filosófico,
sobretudo em sua herança iluminista. Todavia, a crítica da religião também pode ser
encontrada na teologia moderna, especialmente no pensamento de Karl Barth (1886-
1968) e Dietrich Bonhoeffer (1906-1945). Num primeiro olhar, esse fato parece um
tanto contraditório, pois usualmente a tarefa teológica se alinha à defesa da religião,
não à sua crítica. A partir dessa inquietação inicial, faz-se necessário entender o
conteúdo e o objetivo da crítica da religião realizada por esses teólogos.
Nesse contexto, o presente estudo objetiva comparar a crítica teológica da
religião no pensamento de Karl Barth e Dietrich Bonhoeffer. Para alcançar esse
propósito, é necessário cumprir os seguintes objetivos específicos: (1) situar a
concepção da religião e sua crítica moderna; (2) descrever o tema da religião e sua
crítica na teologia de Barth; (3) descrever o tema da religião e sua crítica na teologia
de Bonhoeffer; e (4) verificar aproximões e distanciamentos da crítica da religião
em Barth e Bonhoeffer. Para atender a cada um desses objetivos, este trabalho está
dividido em quatro partes principais.
Com o intuito de situar a concepção da religião e sua crítica moderna, o
primeiro capítulo discute a noção de religião, enquanto categoria ocidental, que recua
às primeiras ocorrências do termo religio até a sua concepção moderna. A seguir há
uma apresentação panorâmica da crítica da religião na modernidade e, finalmente,
uma visão geral da crítica da religião no contexto da teologia moderna, mais
especificamente em Barth e Bonhoeffer.
Por sua vez, o segundo capítulo pretende descrever o tema da religião e sua
crítica na teologia barthiana. Para tanto, há uma observação atenta das principais
referências à religião em Carta aos Romanos (a obra mais famosa de Barth em sua
fase dialético-existencialista), e uma visão detalhada do texto específico sobre a
1
A escolha pela expressão crítica da religo, em lugar de “crítica à religião, se justifica por dois
fatores: (1) esta é a expressão mais comumente usada pela literatura consultada; (2) o uso da
expressão “crítica à religo traria, de certo modo, um sentido de simplesmente falar contra a
religião, ao passo que na expressão “crítica da religião há uma noção mais séria e abrangente, que se
aproxima da idéia de análise e julgamento da religo.
2
religião em Church Dogmatics (a obra mais importante e volumosa de Barth, que se
situa em sua fase antitético-revelacional), a saber, o § 17, que é traduzido na versão
convencional como The Revelation of God as the Abolition of Religion.
A seguir, o terceiro capítulo procura descrever o tema da religião e sua crítica
na teologia bonhoefferiana. Diferente de Barth, que geralmente discute sobre a
religião em textos mais específicos de sua obra, Bonhoeffer menciona a religião de
forma fragmentária e não sistemática em seus diversos escritos, especialmente nos
textos anteriores às cartas da prisão. Por isso, esse capítulo apresenta um
levantamento das principais alusões de Bonhoeffer à religião em seus escritos de
maneira geral.
Finalmente, a partir da tentativa de síntese da crítica da religião em Barth e
Bonhoeffer, o quarto e último capítulo representa uma tentativa de articular os
principais conceitos discutidos nos capítulos anteriores (sobretudo no segundo e
terceiro) a fim de que seja possível delinear as principais aproximações e os
eventuais distanciamentos entre a crítica da religião barthiana e bonhoefferiana.
Considerando que, em termos metodológicos, esta pesquisa configura uma
empreitada teórico-bibliográfica, faz-se necessário indicar as principais obras que
serão utilizadas nesse trabalho. Para a discussão que se encontra no primeiro capítulo
acerca do conceito moderno de religião, cuja compreensão foi construída a partir do
Iluminismo, esse estudo conta principalmente com as idéias desenvolvidas por
Wilfred C. Smith.
Quanto aos textos barthianos explorados no segundo capítulo, são usados
basicamente a edição em português de Carta aos Romanos (que equivale à 5ª edição
alemã) e o texto em inglês do § 17 de Church Dogmatics. Esse texto é examinado em
duas versões: a tradução convencional coordenada por G. Bromiley e T. Torrance, e
a tradução recente desse texto específico feita por Garret Green, intitulada On
Religion: the revelation of God as the Sublimation of Religion. O uso dessa nova
tradução justifica-se pelo fato de que a tradução anterior utiliza a idéia de abolição
para o termo alemão Aufhebung, que no estilo hegeliano possui um sentido ambíguo,
podendo significar tanto abolição quanto elevão. Barth parece utilizar esses dois
sentidos em uma relação dialética,
2
que acaba sendo obliterada por essa tradução. Já
2
Veja a evidente relação dialética entre os dois últimos tópicos desse texto, mesmo na tradução
convencional: Religion as Unbelief (a religião como descrença) e “True Religion (a verdadeira
religião).
3
a nova tradução prefere traduzir Aufhebung como sublimação, a fim de captar a
ambigüidade do termo.
Por sua vez, os textos bonhoefferianos utilizados no capítulo três
compreendem uma grande quantidade de publicações, tendo em vista o fato de que
esse capítulo faz um levantamento geral do tema da religião nos seus escritos. Essas
diversas publicões são usadas nas traduções para o português, espanhol e inglês. A
publicação mais destacada, no que se refere ao tema da religião, são as cartas da
prisão, que seguem a tradução para o português de Resistência e Submissão (versão
de 2003). Portanto, é possível notar que a principal limitação metodológica desse
trabalho é a utilização das fontes primárias (textos de Barth e Bonhoeffer) a partir de
traduções, e não a partir dos textos na ngua original alemã.
No que diz respeito ao uso de intérpretes da teologia barthiana e
bonhoefferiana, a grande maioria se situa no primeiro capítulo, onde há uma
exposição abrangente do pensamento de Barth e Bonhoeffer, e uma apresentação dos
comentários gerais sobre a crítica da religião desses dois teólogos. Eventualmente,
alguns dos intérpretes são inseridos nos capítulos subseentes quando há
comentários específicos das idéias presentes nas fontes primárias.
No estudo do pensamento barthiano são explorados os intérpretes tradicionais
- Hans Urs von Balthasar, Geoffrey W. Bromiley e Thomas F. Torrance , que
enfatizam as mudanças metodológicas da teologia de Barth, bem como as tentativas
recentes de releitura do pensamento barthiano, tais como Gary Dorrien e Garret
Green - que representam um relevante contraponto às interpretações tradicionais,
principalmente na ênfase de que Barth, a despeito de suas mudanças metodológicas,
não perdeu o caráter dialético de sua argumentação ou retórica.
Quanto ao estudo do pensamento de Bonhoeffer, essa pesquisa entende a
idéia de arreligiosidade nas cartas da prisão como continuidade e ampliação de sua
teologia anterior. Segundo esse critério os intérpretes utilizados são: Eberhard Bethge
(grande amigo de Bonhoeffer que editou inúmeras de suas obras e biografia), John D.
Godsey, Cliford J. Green, André Dumas, Ralf K. Wüstenberg e Gustavo Gutiérrez.
No que diz respeito à análise da crítica de Bonhoeffer a Barth, nos termos do
positivismo da revelação, também são utilizadas as relevantes contribuições de
Regin Prenter e Andreas Pangritz.
Considerando a importância do tema da religião nos dias atuais, uma das
intuições desse trabalho é de que a crítica desses teólogos, de maneira geral,
4
representa a percepção de uma religião que se reduz a uma compreensão meramente
antropológica ou histórico-social que exclui sua referência ao transcendente, e que se
limita à consciência moral e vida piedosa que se projeta numa perspectiva individual
e abstrata. Se esta intuição estiver correta, então, a crítica da Barth e Bonhoeffer pode
oferecer indicações relevantes para eventuais distorções religiosas na atualidade,
especialmente no contexto do Cristianismo, que parece ter sido o alvo direto dessa
crítica.
CAPÍTULO I
RELIGIÃO: CONCEITO E CRÍTICA
O presente capítulo está organizado em três partes principais. O primeiro
deles aborda o conceito de religião, enquanto categoria ocidental, que recua às
primeiras ocorrências do termo religio até a sua concepção moderna. A seguir, é
apresentado um panorama geral da crítica da religião na modernidade, e os seus
contornos no contexto da teologia moderna, mais especificamente em Karl Barth e
Dietrich Bonhoeffer. Esta tarefa é concebida apenas como contextualização do tema
da religião no quadro geral do pensamento destes teólogos. Para isso, há um esboço
do percurso bibliográfico e metodológico, bem como uma visão geral da crítica da
religião de cada um deles, a partir da perspectiva de seus intérpretes.
1.1. O conceito ocidental de religião e sua formulação moderna
Nascida no berço ocidental, a palavra religião, oriunda do termo latino
religio, foi usada em uma variada gama de sentidos. Segundo o amplo estudo de W.
Smith, suas primeiras referências remontam ao século I a.C., em Roma. Neste
período podem ser destacadas as obras de Lucretius e Cícero.
3
Todavia, não é
possível obter uma noção definida de religio a partir da referência destes escritores,
pois seu uso é incidental e indireto.
4
A primeira vista, Lucretius parece aludir ao
fenômeno em suas práticas e observâncias em De Rerum Natura. Por sua vez, em De
Natura Deorum, Cícero aparentemente usa religio como algo genérico e interior na
vida humana, que se expressa na atitude ou prática de reverência e diligência dirigida
aos deuses.
5
3
Marcus Tullius Cícero (106-43 a.C.) foi um estadista e escritor romano, e Titus Lucretius Carus (96-
55 a.C.) foi um poeta e filósofo romano que promoveu as idéias epicuristas.
4
Cf. Wilfred C. Smith, The Meaning and End of Religion. Minneapolis: Fortress Press, 1991, p. 23.
5
Veja em português: Lucrecio, Da natureza. Rio de Janeiro: Globo, 1962; M. T. Cícero, Da Natureza
dos Deuses. Lisboa: Nova Vega, 2004.
6
Já no período conhecido como era cristã, o termo religio foi amplamente
usado pelos antigos pais da igreja. Mas, novamente, seu uso era incidental e
multifacetado, abrangendo uma ampla variação de significados. O primeiro escritor
cristão que se preocupou em explicar detidamente a noção de religio foi Agostinho.
O título de sua obra, De Vera Religione
6
, pode trair os palpites de um observador
moderno com relação ao seu conteúdo, ao possivelmente supor que o autor apontará
o cristianismo como verdadeira religião em contraste com as outras religiões
existentes. Em realidade, o que Agostinho pretende afirmar é a maneira adequada de
se relacionar pessoalmente com Deus. De acordo com essa ênfase, então, o título
poderia ser traduzido por Da piedade apropriada” ou Da adoração genuína”.
Portanto, em Agostinho religio não é um sistema de crenças ou observâncias, nem
uma tradição histórica, institucionalizada ou suscetível de observação externa. Antes
ela é uma confrontação vívida e pessoal com o esplendor e o amor de Deus”.
7
No período posterior a Agostinho o termo religio foi pouco usado. No
período da igreja medieval, a palavra mais usada era a fé”. Por isso, no contexto da
Reforma, Lutero ampliou a ênfase medieval ao afirmar com veemência a salvação
unicamente através da justificação pela fé. Nesse sentido, ele parecia não estar muito
preocupado com a o termo religio ou com a noção de religião.
8
Por outro lado,
Zwínglio e Calvino freentemente se referiram a este termo. Aliás, o próprio título
da obra magna de Calvino - Instituto Christianae Religionis
9
inclui a expressão
religião. Porém, assim como Instituto tem o sentido de instrução e não de
instituição, religio em Calvino não se refere a algum sistema abstrato ou fenômeno
institucional, mas um senso de piedade que leva o ser humano à adorão.
Desse modo, a expressão religio foi utilizada no período da Idade Média e
na época da Reforma para designar a verdadeira religiosidade, enquanto sinal de
uma fé clara, e não para denominar um sistema de fé que permitia distinguir um
sistema verdadeiro de um falso.”
10
Contudo, a partir do século XVII essa concepção
6
Veja em português: Santo Agostinho, A verdadeira religião. São Paulo: Paulinas, 1992.
7
W. Smith, The Meaning and End of Religion, op. cit., p. 29. Nessa dissertação, todas as traduções de
citações para o português seguem tradução livre.
8
Cf. Ibid., p. 31, 35.
9
Veja em português: João Calvino, As Institutas da Religião Cris. São Paulo: Cultura Cristã, 2006.
10
Hans Küng, Introdução: O debate sobre o conceito de religo, Concilium, 203, jan. 1986, p. 5.
Evidentemente, as indicações de que conceito de religo - no período anterior a modernidade - não se
identificava com a noção de um sistema de crenças não significam que o cristianismo desse período
não possuía suas crenças ou não prezasse pelo aspecto cognitivo e racional de sua fé. Tal conclusão
representaria uma aguda distorção histórica que desconsideraria o Escolasticismo Medieval, as
7
da religião foi alterada. A emergência do Iluminismo representou a submissão de
todas as realidades ao crivo racional. Na modernidade, portanto, a religião que antes
era entendida como parte da dinâmica da vida se transforma em uma sistematização
intelectualista de idéias. Nesse contexto é possível diferenciar as religiões,
simplesmente a partir de seus distintos sistemas de crenças.
11
Logo, há na
modernidade uma espécie de redução da religião aos seus aspectos mais objetivos,
sobretudo no âmbito intelectual, que permitem não apenas uma abstração conceitual
da religião, mas também sua crítica.
1.2. Um panorama da crítica moderna da religião
A modernidade não apenas cunhou o conceito atual de religião, mas também
foi o nascedouro de sua crítica. Aliás, o conceito e crítica da religião não apenas se
constituem como tais na modernidade, mas estão diretamente relacionados: a crítica
só pôde ser feita porque, através da formulação conceitual, a religião foi reificada.
Ou seja, ao ser objetivada ela se tornou passível de análise e crítica. Em realidade, há
nessa reificação dois tipos de objetivação, que estão interligados: (1) sistema
intelectual - conceitualização e abstração da religião; e (2) sistema institucional - a
religião vista como uma entidade sociológica na figura da igreja cristã.
O Iluminismo representou o início de um processo de emancipação destes
dois tipos de sistema religioso, que pode ser definido como secularização: (1) a
emancipação intelectual da tutela da autoridade e da tradição; e (2) a emancipação
econômica - transformação dos bens da igreja em bens civis. Nesse contexto a
religião foi submetida à razão crítica, pois a fé tornou-se objeto de suspeita como
ideologia de ordem ultrapassada”.
12
Em termos de emancipação econômica, os novos
núcleos de poder (banqueiros, manufatureiros e comerciantes) olhavam a religião
com desprezo e suspeita, especialmente devido aos laços que a igreja medieval
mantinha junto a antiga nobreza dominadora e aos velhos donos das terras
declarações doutrinárias dos Concílios da Igreja, e a própria noção de heresia tão presente nessa
época. A discussão presente neste capítulo enfatiza apenas que o conceito do termo religião, nessa
época, não estava, em primeira instância, associado à noção de um sistema de crenças.
11
Peter Harrison ressalta que a ênfase intelectualista do Iluminismo europeu produziu o conceito
moderno de religiões, que são compreendidas como diferentes “conjuntos de crenças propositadas
que poderiam ser imparcialmente comparadas e julgadas. (P. Harrison, Ciência e Religião”:
Construindo os Limites. Revista de Estudos da Religião, n. 1, 2007, p. 2).
12
Urbano Zilles, Filosofia da Religião. São Paulo: Paulinas, 1991, p 12.
8
européias”.
13
Aliada ao processo de emancipação econômica, ocorre a emancipação
intelectual, visto que a jovem burguesia em ascensão favorece - na imprensa e,
particularmente, nas universidades - a propagação de idéias anticlericais, anti-
religiosas, atéias, racionalistas, ticas, agnósticas, materialistas e cientificistas.”
14
Logo, a crítica da religião constitui uma das características da filosofia das luzes na
Europa Ocidental, pois crítica da religião, crítica das Igrejas e crítica da teologia são
elementos imprescindíveis da orientação moderna.”
15
Com efeito, antes da modernidade as eventuais críticas da religião não eram
dirigidas à religião em si, mas constituíam denúncias de deturpões e abusos que se
faziam com ela. Mas na época moderna, a crítica ataca diretamente a própria religião.
Levando em conta todo este quadro contextual, é possível compreender a crítica
moderna da religião como um longo processo que, em primeira instância, envolveu
filósofos e literatos, e posteriormente abarcou sociólogos, psicólogos, antropólogos e,
até mesmo, teólogos. Por isso, a crítica da religião pode ser divida em algumas fases.
A primeira delas corresponde à fase Iluminista - de Baruch Spinoza (1632-
1677) a Georg W. F. Hegel (1770-1831) -, que se caracteriza pela gradual redução da
plausibilidade racional da religião. Considerado o fundador da crítica moderna da
religião, a compreensão que Spinoza tinha de religião excluía qualquer tipo de
revelação sobrenatural. Ele entendia a religião como fé filosófica, isto é, religião
natural, e mantinha na religião natural apenas a lei, suprimindo o mito e o rito.
16
Nessa fase, talvez o maior crítico da religião tenha sido David Hume
17
(1711-1776).
Em seu pensamento, tanto Deus quanto a religião são obra do sentimento e da
imaginação e, por isso, são expressões irracionais e arbitrárias da consciência
humana”.
18
Desse modo, o filósofo escos adianta muitas das noções que foram
desenvolvidas na crítica da religião dos séculos XIX e XX.
13
Otto Maduro, Religião e luta de classes: quadro teórico para a análise de suas inter-relações na
América Latina. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 42.
14
Ibid.
15
Etienne A. Higuet, Teologia e Modernidade: introdução geral ao tema. Teologia e Modernidade.
São Paulo: Fonte Editorial, 2005, p. 13.
16
Cf. Battista Mondin, Quem é Deus: elementos de teologia filosófica. São Paulo: Paulus, 2005, p. 82.
17
Hume fala sobre Deus e a religo, principalmente, em duas obras. Em The Natural History of
Religion (1757) ele ressalta que a origem da religião está enraizada nos interesses vitais do ser
humano, tais como a ânsia pela obtenção da felicidade, o temor da miséria e o medo da morte. Já em
Dialogues concerning Natural Religion (1779) ele busca refutar as principais argumentações usadas
para provar a existência de Deus. Veja em português veja: História natural da religião. São Paulo:
UNESP, 2005; Diálogos sobre a religião natural. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
18
B. Mondin, Quem é Deus, op. cit., p. 84.
9
A segunda fase da crítica da religião pode ser chamada de Positivista.
Enquanto a primeira fase contou com uma matriz basicamente inglesa e francesa, de
caráter intelectual, a segunda fase teve uma matriz alemã - iniciando-se com Bruno
Bauer (1809-1882) e Ludwig Feuerbach
19
(1804-1872) -, e não se restringiu à ênfase
filosófica e intelectual, mas agregou também perspectivas antropológicas,
psicológicas, sócio-econômicas e outras.
20
Esta fase foi marcada por uma avaliação
totalmente negativa da religião: ela não possuía qualquer fundamento racional e
representava um prejuízo extremo ao progresso da humanidade. Se na primeira fase o
elemento sobrenatural da religião fora rechaçado pela crítica filosófica, restando
apenas a religião natural, nesta fase a religião natural também deveria ser anulada.
Uma grande quantidade de pensadores ateístas desse período podem ser enumerados,
mas três deles são geralmente conhecidos como os mestres da suspeita da
religião”
21
: Karl Marx (1818-1883), Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Sigmund
Freud (1856-1939). Estes apresentam uma estrita ligação com as idéias de
Feuerbach, mas também possuem uma diferença fundamental em relação a ele.
As maiores críticas da religião, depois de Feuerbach, são variões a partir
dele, pois elas têm como elemento comum a noção de que a religião é uma projeção
alienante de sentimentos ou desejos humanos.
22
Contudo, a diferença fundamental
reside no fato de que o objeto principal de análise em Marx, Nietzsche ou Freud não
era a religião em si. Suas preocupões cobriam motivos socioeconômicos,
psicológicos ou filosóficos, e como parte de seu respectivo percurso teórico eles
lidavam com a religião, à medida que esta se relacionava com aqueles objetivos. Em
19
Feuerbach surgiu meteoricamente no cenário europeu entre as décadas de 1840 e 1850. Sua obra, A
Essência do Cristianismo (1841), tornou-se, inicialmente, o livro texto de um grupo de pensadores
revolucionários tais como Karl Marx e Friedrich Engels. Essa obra foi organizada em duas partes
principais: a primeira afirma a antropologia como verdadeira essência da religo, ao passo que a
segunda denuncia a teologia como falsa essência da religo. Sua tese central é de que a religo é
simplesmente antropologia: o homem é o início da religião, o homem é o meio da religião, o homem
é o fim da religião (Cf. A essência do cristianismo. Campinas: Papirus, 1997, p. 223). Feuerbach
também escreveu outras obras que discutiam acerca da religião, como por exemplo A Essência da
Religião (1846). Mas estas não tiveram a popularidade e o impacto da obra anterior. Para uma
compreensão mais ampla da interpretação religiosa no pensamento de Feuerbach veja Van Austin
Harvey, Feuerbach and the interpretation of religion. New York: Cambridge University, 1997.
20
Cf. Hugo Assmann e Mate Reyes, Introducción. In: Sobre la religion I: Karl Max Friedrich Engels.
Salamanca: Sigueme, 1979, p. 12.
21
Cf. Paul Ricoeur, Freud and Philosophy: an essay on interpretation. New Haven: Yale University
Press, 1970, p. 32-33.
22
John Glasse, Barth on Feuerbach. The Harvard Theological Review, v. 57, n. 2, abr. 1964, p. 69.
10
Feuerbach, por sua vez, a religião ocupava o lugar central: nunca houve um
pensador em sua própria época tão preocupado e devotado à crítica da religião”.
23
As noções feuerbachianas de projeção e alienão foram fundamentais para
as reflexões de Marx. Enquanto Feuerbach trabalhou apenas com a dimensão
individual e antropológica, Marx colocou estas questões na dimensão política e
socioeconômica. Embora não esteja interessado em elaborar uma teoria sistemática
da religião Marx indica que a crítica da religião é a condição preliminar de toda a
crítica”.
24
Em sua visão a religião era (1) a teoria geral deste mundo (sua lógica sob
forma popular); (2) a sanção moral do mundo; e (3) sua consolação e justificação
universal. É através da religião que o ser humano se realiza na fantasia, quando este
não consegue se realizar concretamente no mundo, pois “a religião é o suspiro da
criatura oprimida, a alma de um mundo sem coração”.
25
Nesse sentido, a religião
precisa ser abolida para que a felicidade ilusória do povo dê lugar à felicidade real. A
crítica da religião é necessária para destruir as ilusões do homem para que ele pense,
aja, construa a sua realidade como homem sem ilusões chegado à idade da razão”.
26
Já em Freud, há uma constante ênfase de que a religião é uma neurose
universal da humanidade.
27
Seu argumento é de que a origem psíquica
28
da religião
se situa nas ilusões e desejos da humanidade. Frente à esmagadora e indiferente força
da natureza, seguindo um protótipo infantil, o ser humano procura atribuir a ela um
caráter paterno (aqui surge a noção de Deus). Logo, a religião apresenta uma missão
tríplice: (1) exorcizar os terrores da natureza”; (2) reconciliar os homens com a
crueldade do Destino, particularmente a que é demonstrada na morte”; e (3)
compensá-los pelos sofrimentos e privações”.
29
Entretanto, ao atingir o estágio de
maioridade o ser humano precisa abandonar a neurose infantil a religião, pois
quanto maior o número de homens a quem os tesouros do conhecimento se tornam
acessíveis, mais difundido é o afastamento da crença religiosa.”
30
23
V. Harvey, Feuerbach and the interpretation of religion. op. cit., p. 3.
24
Karl Marx, Contribuición a la crítica de la filosofía del derecho de Hegel. In: H. Assmann e M.
Reyes, Sobre la religion I: Karl Max Friedrich Engels. op. cit., p. 93-94.
25
Ibid.
26
Ibid.
27
Michael Palmer, Freud e Jung: sobre a religo. São Paulo: Loyola, 2001, p. 27.
28
Freud reconhece que o conteúdo de sua crítica da religião não é inédito: tudo o que fiz - e isso
constitui a única coisa nova em minha exposição - foi acrescentar uma base psicológica às críticas de
meus grandes predecessores (O futuro de uma ilusão. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 111).
29
Ibid., p. 97.
30
Ibid., p. 113.
11
Quanto à crítica da religião em Nietzsche, é difícil encaixá-lo plenamente na
lista dos críticos modernos ateus. Primeiramente, ele anuncia a pós-modernidade ao
criticar o mito [moderno] do progresso ligado ao conhecimento científico”.
31
Ademais, é difícil classifi-lo estritamente como ateu, haja vista sua admiração
pelas festas pagãs e suas divindades.
32
Nietzsche não nega necessariamente o divino,
mas rejeita que esta seja uma realidade separada do ser humano. Talvez, ele possa ser
definido como anticristão, ou anti-metafísico.
33
Em sua conhecida afirmação Deus
morreu!”
34
, Nietzsche constata a ausência do divino na cultura do seu tempo,
acusando [...] por essa ausência e morte, o pensamento metafísico”.
35
Para ele, o
cristianismo não passa de um platonismo popular que serviu de instrumento de
dominação da igreja e do estado. Retomando a temática da alienação da crítica
moderna da religião, ele assevera que os cristãos se concentram no mundo do além
o paraíso metafísico e se esquecem do mundo concreto em que vivem.
36
Pretendendo inverter essa situação, ele rotula a crença metafísica do Reino de Deus
como mero consolo e afirma a sacralidade da vida atual: O Reino dos Céus é um
estado do corão - não algo que vem para além da Terra ou após a morte”.
37
Sem desconsiderar a consistência e a relevância de muitos dos argumentos
destes e de outros críticos da religião no período moderno,
38
para uma grande parte
dos estudiosos da religião, a visão destes críticos tende a ser reducionista: para todos
os que dissecam o problema do sagrado com o bisturi da história, [da filosofia,] da
sociologia ou da psicologia, a ponto de contestar todo tipo de transcendentalidade,
à qual se refere o mundo religioso [...] o objeto da religião se torna imanente.”
39
Nesse sentido, para manter sua própria identidade, os fenômenos religiosos precisam
ser estudados também em escala religiosa, pois, embora as aproximações
psicológicas, sociológicas e históricas sejam importantes e necessárias, elas reduzem
31
Giorgio Penzo, Friedrich Nietzsche (1844-1900): O divino como problematicidade. In: Giorgio
Penzo e Rosino Gibellini (Orgs.), Deus na filosofia do século XX. São Paulo: Loyola, 2002, p. 30.
32
Cf. Mauro Araujo de Sousa, A morte de Deus em Nietzsche: fim da metafísica? In: Jaci Maraschin
e Frederico Pieper Pires (Orgs.), Teologia e Pós-Modernidade: novas perspectivas em teologia e
filosofia da religião. São Paulo: Fonte Editorial, 2008, p. 87.
33
Cf. G. Penzo, Friedrich Nietzsche (1844-1900): O divino como problematicidade. op. cit., p. 30, 32.
34
Cf. Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência. São Paulo: Hemus, 1981, p. 125.
35
G. Penzo, Friedrich Nietzsche (1844-1900): O divino como problematicidade. op. cit., p. 32.
36
Cf. M. Sousa, A morte de Deus em Nietzsche: fim da metafísica? op. cit., p. 70-72, 85.
37
Friedrich Nietzsche, The Anti-Christ. Radford, VA: Wilder Publications, 2008, p. 50.
38
Para uma relevante contextualização e avaliação das críticas da religião em Feuerbach, Marx, Freud
e Nietzsche veja Hans Küng, Does God Exist?: an answer for today. New York: Vintage Books, 1981.
39
Aldo Natale Terrin, Em defesa da autonomia do estudo da religo. O sagrado off limits. São Paulo:
Loyola, 1998, p. 18.
12
a religião aos aspectos mais objetivos e de possível descrição. Ao fazer sociologia da
religião, Otto Maduro parece entender essa situação, e reconhece que a definição
sociológica corta [...] boa parte do fenômeno religioso”
40
, visto que ela expressa
apenas um aspecto das religiões: o aspecto do fenômeno social presente
em todo fato religioso. Não queremos dizer com isto que, para a
sociologia, a religião seja única e exclusivamente um fenômeno social.
Embora alguns sociólogos pensem assim e algumas correntes de
sociologia também.
41
Essa questão parece remeter às diferenças de perspectiva entre os
observadores externos da religião, e aqueles que estão inseridos nela.
Céu e [parso], para um crente, é um lugar estupendo [...] Para um
observador, eles são itens da mente do crente. Para o crente, eles são
partes do universo; para o observador, eles são partes da religo.
42
Em face desta argumentação, seria possível deduzir que a crítica moderna da
religião seria decorrente dos métodos de análise adotados por observadores
externos, que tendem a reduzir e distorcer a religião. Contudo, a posição de Karl
Barth e Dietrich Bonhoeffer parece contradizer esse raciocínio. Certamente, para os
críticos modernos da religião em geral, Barth e Bonhoeffer seriam vistos como
indivíduos que estão imersos na religião, e para os que atacam o reducionismo
religioso daqueles críticos, as ferramentas metodológicas utilizadas por Barth e
Bonhoeffer seriam consideradas aproximações religiosas, visto que eles partem da
teologia. Portanto, à primeira vista, Barth e Bonhoeffer não poderiam ser rotulados
como observadores externos e nem acusados de utilizar métodos reducionistas.
Dessa forma, é preciso notar como se desdobrou a crítica moderna da religião no
campo da teologia.
1.3. A crítica moderna da religião na teologia
Este estudo privilegia as críticas da religião de Karl Barth e Dietrich
Bonhoeffer ao se referir à crítica moderna da religião na teologia. Com o intento de
contextualizar o tema dessa crítica no quadro geral do pensamento destes teólogos,
há um esboço do percurso bibliográfico e metodológico de ambos e uma noção
básica da crítica da religião feita por eles, a partir da perspectiva de seus intérpretes.
40
O. Maduro, Religião e luta de classes, op. cit., p. 32.
41
Ibid.
42
W. Smith, The Meaning and End of Religion, op. cit., p. 131.
13
1.3.1. Percurso bibliográfico e metodológico de Karl Barth
Biograficamente,
43
um importante ponto de partida para o estudo da teologia
barthiana se situa no período em que Barth, a partir de 1911, tornou-se pastor da
pequena cidade suíça de Safenwil. Os dez anos que passou ali serviram de maturação
para o seu pensamento, em face de uma série de crises que mudariam sua teologia.
Nessa experiência, ele detectou a inadequação do estudo histórico-crítico da teologia
liberal para responder às necessidades básicas da comunidade onde pregava.
Também ali, Barth acompanhou a primeira guerra mundial e ficou horrorizado com o
apoio de seus antigos professores liberais à política bélica alemã.
44
A desilusão e
ruptura de Barth com a teologia liberal marcam a primeira e mais radical mudança
em seu pensamento. Nessa fase de transição teológica, entre 1916 e 1919, Barth
escreveu o Römerbrief (que a partir de agora será chamada de Carta aos Romanos)
em sua primeira edição. Contudo, é a segunda edição dessa obra (1922) que marca
definitivamente o início da nova teologia de Barth, chamada de teologia da crise”, e
depois de teologia dialética”.
45
Enquanto a leitura de Romanos por Lutero
compreendia a sola fides como contraposição entre a fé e as obras, a releitura de
Barth apontava para a contradição entre a fé e razão, tão defendida pelo Iluminismo e
absorvida pelo liberalismo teológico. Assim, a idéia dominante da Carta aos
Romanos é a divindade de Deus, enquanto realidade que não se reduz a objeto do
conhecimento humano. Nesse sentido, a divindade de Deus se opõe a religião natural
humana.
46
Em 1921 Barth ingressou na carreira acadêmica na Alemanha e em 1927 ele
iniciou a publicação de Christliche Dogmatik (Dogmática Cristã) que, à semelhança
de Carta aos Romanos, está permeada de linguagem existencialista kierkegaardiana,
pois Barth considerava que esta era a linguagem mais adequada para traduzir a
43
Suíço, Karl Barth (1886-1968) iniciou seus estudos teológicos com 15 anos em Berna. A seguir, ele
estudou nas universidades ales de Berlim, Marburg e Tübingen. Na Alemanha ele teve contato com
os lebres teólogos do último liberalismo teológico (H. Gunkel, A. Harnack e W. Herrmann).
44
Cf. Eberhard Busch, Karl Barth: His life from letters and autobiographical texts. Grand Rapids, MI:
William B. Eerdmans, 1994, p. 60-125. O manifesto produzido por 93 intelectuais alemães, que
incluía os nomes de seus antigos professores, dava suporte à política beligerante de Kaiser Guilherme
II, que levou a Alemanha a entrar na guerra em 1914.
45
A expressão teologia da crise apontava para duas situações: (1) a crise sócio-econômica e
cultural, em tempos de guerra; (2) a Palavra de Deus como juízo divino sobre a tentativa humana de
alcançar o sucesso pelas próprias forças. Por sua vez, a expressão teologia dialética enfatizava a
descontinuidade entre Deus e a criação, o evangelho e a cultura, em contraposição à teologia liberal
que tentava harmonizar Deus e o ser humano, fé e cultura.
46
Paul Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX. São Paulo: ASTE, 1999,
p. 242-243.
14
mensagem cristã à sua geração. Contudo, nessa época Barth enfrentou uma crise
metodológica que fez com que ele abandonasse esse projeto de dogmática,
por ter-se convencido da impropriedade do método empregado até eno.
A experiência vivida com o seu comenrio de Romanos se repetia: uma
nova edição se fazia necessária, e ainda que Barth pudesse dizer
novamente aquilo que havia dito antes, já não podia fazê-lo da mesma
forma. [...] Barth concluiu, por fim, que teria de comar novamente,
libertando-se dos últimos restos de explicação e de justificação filosófico-
antropológicas para a investigação da doutrina cristã.
47
A nova mudança metodológica de Barth é marcada por seu estudo de
Anselmo em 1931. Além de indicar essa mudança em How my Mind has Changed
48
,
Barth explica no prefácio da 2ª edição de seu livro Fé em Busca de Compreensão a
importância desse novo paradigma metodológico para a compreensão da Church
Dogmatics, ressaltando que Balthasar
49
conseguiu captar essa mudança:
somente uns poucos comentaristas, como por exemplo Hans Urs von
Balthazar, perceberam que meu interesse por Anselmo nunca foi uma
queso de pouca imporncia para mim ou [...] perceberam o quanto ele
tem me influenciado [...] neste livro sobre Anselmo estou trabalhando
com uma chave vital, se não a chave, para um entendimento daquele
processo inteiro de pensamento que me impressionou mais e mais, na
minha Church Dogmatics, como a única adequada para a teologia.
50
Desse modo, Barth se distanciou da dialética-existencialista em favor da
analogia da fé. Nesta nova fase metodológica, de 1932 até o fim de sua vida, Barth se
ocupou com a Die Kirchliche Dogmatik (que a partir de agora será chamada de
Church Dogmatics), que se tornou um projeto maior que sua própria vida, ficando
portanto inacabada. Em seu projeto inicial essa dogmática abrangeria cinco volumes.
Contudo, apenas quatro volumes puderam ser feitos, levando em conta que o quarto
volume não conta com sua última parte. A dogmática pode ser esboçada, em
português, da seguinte forma:
51
Volume I - A Palavra de Deus (duas partes)
I/1: A Palavra de Deus como critério da Dogmática (1932)
I/2: A Revelação de Deus, a Sagrada Escritura, o Anúncio da Igreja (1938)
47
Ricardo Quadros Gouvêa, Prefácio à 1ª edição brasileira. In: Karl Barth, em busca de
compreensão: fides quaerens intellectum. São Paulo: Fonte Editorial, 2006, p. 11.
48
Cf. Karl Barth, How my Mind has Changed. In: Walter Altmann (Org.), Dádiva e Louvor: artigos
selecionados. São Leopoldo: Sinodal, 1996, p. 410.
49
Veja Hans Urs von Balthasar, The Theology of Karl Barth: exposition and interpretation. San
Francisco: Ignatius Press, 1992.
50
K. Barth, em busca de compreensão, op. cit., p. 19-20.
51
Há um esboço detalhado de toda a estrutura da Church Dogmatics em John D. Godsey, Karl Barth's
table talk. Scottish Journal of Theology Occasional Papers, n. 10, 1963. As datas aqui indicadas se
referem ao texto original em alemão. A tradução inglesa se deu entre 1936-1969.
15
Volume II - Deus (duas partes)
II/1: A Obra da Criação (1940)
II/2: A Eleição Gratuita de Deus - O Mandamento de Deus (1942)
Volume III - A Criação (quatro partes)
III/1: A Obra da Criação (1945)
III/2: A Criatura (1948)
III/3: O Criador e a sua Criatura (1950)
III/4: O Mandamento do Criador (1951)
Volume IV - A Reconciliação (quatro partes)
IV/1: O Objeto e os Problemas da Doutrina da Reconciliação. Jesus Cristo, o Senhor
como Servo (1953)
IV/2: Jesus Cristo, o Servo como Senhor (1955)
IV/3: Jesus Cristo, a Verdadeira Testemunha (1959)
IV/4: Trataria da ética da reconciliação, examinando detalhadamente a doutrina dos
sacramentos (inacabada)
O quinto e último volume, que não pôde ser escrito, falaria sobre a Redenção.
De forma específica, o capítulo número dois do primeiro volume trata da Revelação
de Deus. Este capítulo, por sua vez, subdivide-se em três sões: (1) O Deus
triúno, (2) A Encarnação da Palavra” e (3) O Derramamento do Espírito Santo.
Justamente no contexto desta terceira seção está o §17 que se intitula, na versão
inglesa, The Revelation of God as the Abolition of Religion. Portanto, na Church
Dogmatics, este é o texto mais importante acerca da temática da crítica da religião.
Nesta última fase de sua teologia, Barth não ficou absorto na produção
bibliográfica, muito embora essa tenha sido o período mais profícuo de seus escritos.
Seu engajamento junto à comunidade remonta ao seu pastorado em Safenwil. Além
de ser socialista ele também ajudou as operárias de algumas fábricas têxteis a se
organizarem para conseguirem melhores condições de trabalho. Agora, no contexto
preliminar à Segunda Guerra mundial, a postura de Barth não foi diferente. Sua
oposição ao nazismo foi traduzida em práticas que levaram ao estabelecimento da
Igreja Confessante e à Declaração Teológica de Barmen.
52
O resultado não poderia
ser diferente: em 1935 Barth foi expulso da Alemanha. Ele decidiu, então, se
52
Veja uma descrição detalhada da atuação política de Barth contra o nazismo em Daniel Cornu, Karl
Barth: teólogo da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1971.
16
estabelecer na Basiléia, sua cidade natal, onde prosseguiu sua atividade teológica, e
ampliou volumosamente a quantidade de seus escritos.
Tendo em vista o grande volume de produção bibliográfica
53
de Barth, suas
obras podem ser classificadas em quatro grupos principais:
· Obras exegéticas a mais importante foi Carta aos Romanos (2ª ed., 1922)
· Obras históricas a mais significativa do ponto de vista metodológico foi o
livro sobre Anselmo, Fé em busca de Compreensão (1931); mas a mais
extensa foi Die Protestantische Theologie im XIX Jahrhundert
54
(1947), que
pinta o quadro da teologia protestante no período Iluminista e retrata os
grandes teólogos do século XIX, de Schleiermacher a Ritschl.
· Obras dogmáticas a mais importante foi Church Dogmatics.
· Obras políticas vários escritos.
Considerando os objetivos do presente estudo, os textos de Carta aos
Romanos e o §17 (The Revelation of God as the Abolition of Religion) de Church
Dogmatics representam a maior concentração da crítica da religião. Entretanto, a
leitura deles não pode desconsiderar as mudanças metodológicas da teologia
barthiana expressa nos períodos pré-dialético, dialético e da analogia da fé. Ou em
termos mais específicos, nas fases liberal-socialista (1904-1914), dialético-
existencialista (1917-1927) e antitético-revelacional (a partir de 1931).
55
Nesse contexto das mudanças metodológicas de Barth, faz-se necessário
atentar para a conferência que ele apresentou em 1956, aos 70 anos de idade, na
Associação de Ministros Reformados. Nela ele expôs uma revisão crítica de todo o
seu pensamento. A partir do texto dessa conferência, A humanidade de Deus
56
, é
possível compreender as duas últimas fases da teologia de Barth como as duas
reviravoltas de sua teologia, com suas respectivas especificidades. A primeira delas
situa-se nos primórdios da teologia dialética. Ela foi uma ruptura radical, uma
guinada de 180 graus, pois tencionava recuperar a divindade de Deus diante da
teologia liberal. O texto mais representativo desta época foi Carta aos Romanos.
53
O levantamento bibliográfico completo de Karl Barth até dezembro de 1955 apontava 406 títulos.
(Cf. Battista Mondin, Os grandes teólogos do século vinte: os teólogos protestantes e ortodoxos. São
Paulo: Paulinas, 1987, p. 21)
54
Há uma tradução em inglês de onze capítulos desta obra, intitulada From Rousseau to Ritschl.
55
Cf. R. Gouvêa, Prefácio à 1ª edição brasileira, op. cit., p. 12
56
Cf. Karl Barth, A humanidade de Deus. In: Walter Altmann (Org.), op. cit., p. 389-405.
17
Nela, a divindade de Deus pode ser assim esboçada: a) Deus é Deus, e não é o
mundo; b) o mundo é mundo, e não é Deus: nenhuma via conduz o mundo a Deus; c)
o encontro de Deus com o mundo é krisis (juízo), e é um tocar o mundo de maneira
tangencial. Já a outra reviravolta, que é a 3ª fase de seu pensamento, foi em realidade
um movimento de retração em face à forte guinada da reviravolta anterior. Nela
Barth visava reconhecer a humanidade de Deus. Os textos que revelam essa retração
se encontram na Dogmática. Em comparação com o esboço anterior, esta reviravolta
é assim caracterizada: a) Deus é Deus, mas é Deus para o mundo: ao Deus que é o
totalmente Outro sucede a figura de Deus que se faz próximo do mundo; b) o mundo
é mundo, mas é um mundo amado por Deus: passa-se do conceito da infinita
diferença qualitativa aos conceitos de aliança, reconciliação, redenção; c) Deus
encontra o mundo em sua Palavra, em Jesus Cristo.
57
Em alguns textos anteriores ao A humanidade de Deus, Barth já demonstrava
insatisfação acerca da maneira como sua teologia era retratada por outros. Esse
descontentamento é evidente nos prefácios escritos pelo teólogo suíço nas edições
alemã e inglesa da obra de Otto Weber acerca de sua Dogmática.
58
No prefácio da
edição alemã (1950) ele indica não apenas que muitos não estavam entendendo
devidamente suas idéias, mas que estes tiravam conclusões de sua teologia sem ler
seus escritos.
59
No prefácio da edição inglesa (1952), ele expressa que a imagem que
muitos fazem dele não passa de caricaturas desenhadas de maneira apressada, e que
estas são rápida e precipitadamente aceitas, bem como reproduzidas
interminavelmente. Ele afirma que dificilmente se reconheceria nos rótulos de neo-
ortodoxia”, Deus como totalmente Outro, distinção infinitamente qualitativa de
Kierkegaard, condenação da cultura e da civilização. Em seu desabafo, Barth
apela que as pessoas leiam os seus textos com maior atenção e amplitude, para que as
conclusões não sejam precipitadas e distorcidas.
60
Tal compreensão e precaução metodológica são úteis na análise de Carta aos
Romanos (correspondente à 2ª fase) e na análise da Church Dogmatics
(correspondente à 3ª fase), a fim de encontrar similaridades e mudanças de conteúdo,
ênfase ou linguagem. Após um panorama geral do pensamento barthiano, seu método
57
Cf. Rosino Gibellini, A Teologia do Século XX. São Paulo: Loyola, 2002, p. 30.
58
Cf. Otto Webber, Karl Barth's Church Dogmatics. Philadelphia: The Westminster Press, 1953.
59
Cf. Ibid., p. 9-10.
60
Cf. Ibid., p. 7.
18
teológico e suas obras produzidas, é importante considerar a compreensão que
diversos estudiosos possuem da sua crítica da religião.
1.3.2. A crítica barthiana da religião na compreensão de seus comentaristas
Contemporâneo de Barth, Paul Tillich relata que, no seu retorno à Alemanha
em 1948, ele foi imediatamente atacado ao usar o termo religião em seus escritos e
conferências. Nesse contexto ele explica que:
depois dos escritos de Barth contra os cristãos nazistas, essa palavra
queria dizer arrogância humana expressa na tentativa de se chegar a Deus.
Aos poucos [...] as pessoas foram entendendo que a revelação só chega ao
homem quando este a recebe, e que qualquer recepção da revelação é
religião, seja em forma mais interiorizada ou mais secularizada, e que,
enquanto religo, sujeita-se constantemente à deformação.
61
Além de demonstrar o impacto da crítica barthiana da religião na Alemanha
daquela época, Tillich explica o conceito barthiano de religião, em contraposição à
revelação: todos os nossos esforços para chegar a Deus são qualificados de religião,
e é precisamente contra a religião que se levanta a revelação de Deus. Começa aí a
guerra contra o uso da palavra religião na teologia”.
62
A crítica da religião de Barth
estava em direta conexão com sua negação da teologia natural. Por conta de sua
ênfase na doutrina do pecado, a partir da leitura de Lutero e Paulo, Barth cria que a
imagem de Deus no ser humano havia sido totalmente destruída. Por isso ele
rejeitava a noção de a priori religioso de Troeltsch.
Alguns anos antes da publicação alemã do primeiro volume da Church
Dogmatics, W. Pauck escreveu um artigo que aborda a crítica barthiana da religião.
Certamente esse texto se referia à crítica contida em Carta aos Romanos. Após
discorrer sobre a posição dialética que identifica Deus como sendo o totalmente
outro, que não pode ser identificado com nada que seja humano, o autor critica a
posição de Barth como sendo próxima ao platonismo e neo-kantianismo que leva ao
agnosticismo e uma religiosidade puramente moral: um Deus distante que não tem
61
P. Tillich, Perspectivas da Teologia Protestante nos séculos XIX e XX. op. cit., p. 243.
62
Ibid. Tillich contesta o rótulo de teologia dialética” para o pensamento de Barth, especialmente na
sua relação entre revelação e religião: “Trata-se de um termo inadequado. Essa teologia, no seu início
profético, era paradoxal; depois se sobrenaturalizou. Mas nunca foi dialética. A dialética supõe um
progresso interno que vai de um estado a outro impulsionado por dinâmica própria. (Ibid.)
19
nada que ver com a realidade humana não tem relevância para os problemas e
desafios humanos, e também tira da religião seu aspecto experimental e stico.
63
Ao analisar o nascimento da teologia dialética, H. Zahrnt também comenta
sobre a crítica da religião: Barth decreta uma sentença de morte à história da religião
e à moralidade. Isso representa uma condenação do cristianismo. É neste ponto que a
eloente impaciência de Barth chega ao seu cmax e as comparões se tornam
mais agudas.
64
De maneira específica, ele afirma que embora a crítica de Barth à
religião seja dirigida a todo e qualquer tipo de religião, seu principal ataque é contra
o cristianismo, contra a igreja: O comentário fundamental de Barth sobre a religião,
que representa a culminação do pecado humano, é de alguma forma intensificado,
multiplicado quando ele chega à igreja.”
65
Zahrnat conclui que a Carta aos Romanos
pode ser considerada, em grande parte, um catálogo de defeitos eclesiais.
Por sua vez, J. Moltmann entende que, no contexto da crítica moderna da
religião, Barth indicou energicamente que não se pode identificar a fé com a religião.
A partir da compreensão dos profetas e os apóstolos, a fé bíblica tem adotado uma
atitude eminentemente crítica frente à religião, visto que o principal inimigo do ser
humano não é a incredulidade, mas a superstição, a idolatria e a auto-justificação.
Moltmann assevera que a crítica filosófico-moderna da religião era dirigida
fundamentalmente contra a religião da sociedade: o cristianismo burguês. Aliás,
Feuerbach, Marx, Freud e Nietzsche pouco sabiam das outras grandes religiões da
humanidade. Do mesmo modo, a crítica de Barth focalizava o cristianismo que havia
se tornado religioso, e não às outras religiões: a crítica barthiana não representa,
necessariamente, uma afronta ou intolerância às religiões não-cristãs.
66
Editor da Church Dogmatics para a língua inglesa, T. Torrance comenta a
crítica da religião presente em Carta aos Romanos, ressaltando a profunda
concepção que Barth tinha do pecado, em virtude de suas leituras de Lutero e
Paulo.
67
Nesse contexto, o pecado é visto como uma categoria essencialmente
religiosa, e é precisamente dentro da religião que o pecado toma a sua forma
63
Cf. Wilhelm Pauck, Barth's Religious Criticism of Religion. The Journal of Religion, v. 8, n. 3, jul.
1928, p. 453-477.
64
Cf. Heinz Zahrnt, The question of God: protestant theology in the twentieth century. New York:
Harvest Book, 1969, p. 34.
65
Ibid., p. 36.
66
Cf. Jürgen Moltmann. La Iglesia, fuerza del Espiritu: hacia una eclesiología mesiánica. Salamanca:
Ediciones Sigueme, 1978, p. 190-191.
67
Cf. Thomas F. Torrance, Karl Barth: an introduction to his early theology, 1910-1931. London:
SCM, 1962, p. 63.
20
suprema. Assim, na oposição entre religião e graça, dialeticamente a religião exprime
a relação negativa do ser humano com Deus, ao passo que a graça descreve a relação
positiva daqueles que se colocam ao lado de Deus.
68
O outro editor da Church Dogmatics para a língua inglesa é G. Bromiley. Sua
obra de introdução à teologia de Barth se limita a sumariar todas as doze partes da
Church Dogmatics.
69
Portanto, nessa obra Bromiley comenta o § 17 de Church
Dogmatics que se refere à relação entre revelão e religião. Antes de se deter no
texto em si, ele reconhece que Barth freentemente tratou da relação entre revelação
e religião, desde o período inicial de seu trabalho como ministro e teólogo. Quanto
ao título da versão inglesa do § 17 - The Revelation of God as the Abolition of
Religion - a palavra alemã traduzida por abolition é Aufhebung, que pode
significar, num estilo bem hegeliano, tanto abolição quanto elevação. Bromiley
enfatiza: sem dúvida Barth tinha esse duplo significado em mente”
70
. Quanto ao seu
conteúdo, o primeiro tópico do texto estabelece a problematização da religião: Ela se
iguala à revelação? Qual é sua relação com a revelação? Para abordar esses
questionamentos o segundo tópico apresenta o lado negativo da religião: a religião
como descrença. No testemunho bíblico contra ela se apresenta através da idolatria
no Antigo Testamento, ao passo que em Romanos e Atos essa contradição se
expressa pela contradição entre religião e revelação. A revelação como ato de
reconciliação de Deus se opõe à auto-justificação das obras do ser humano (religião),
e em contrapartida a religião se opõe à obra revelada de Deus. Finalmente, o último
tópico aborda acerca da verdadeira religião, o lado positivo da religião. Assim, a
religião pode ser elevada tanto quanto abolida (Aufhebung). No contexto de
Romanos, e de acordo com a declaração protestante desde Lutero, a justificação pela
fé entra em cena: a religião precisa ser justificada para ser verdadeira religião.
71
Hans Küng é outro teólogo que tem grande interesse na teologia de Barth.
Aliás, sua própria tese doutoral tratou sobre a doutrina da justificação em Karl Barth.
Ele explica que, para Barth, o Deus a quem a razão humana percebe em seu
conhecimento natural - seja através da filosofia, da teologia ou até mesmo nas
religiões do mundo não passa de uma projeção humana. Nesse ponto Barth afirma
68
Cf. Ibid., p. 65, 68.
69
Cf. Geoffrey W. Bromiley, An Introduction to the Theology of Karl Barth. Grand Rapids, MI:
William B. Eerdmans, 1979.
70
Ibid., p. 29.
71
Cf. Ibid., p. 29-30.
21
que Feuerbach está absolutamente correto: o Deus do conhecimento natural é a
criação de uma fantasia ideológica humana. O ser humano não pode conhecer a
Deus, a menos que o próprio Deus se faça conhecido. Não há nenhum conhecimento
de Deus da parte humana sem a revelação divina.
72
Contudo, Küng chama a atenção
para o pensamento de Barth em relação às outras religiões na última parte totalmente
concluída da Church Dogmatics (IV/3). Ali, ele ressalta a aceitação atormentada
de Barth, ao consentir que outras religiões também podem ser luz”, e pelo menos
indiretamente estarem relacionadas com a revelação e a graça de Deus, como
também, em sentido contrário, o cristianismo apresenta em suas várias facetas
humanas traços comuns com outras religiões.”
73
Refletindo novas linhas de interpretação da teologia barthiana, G. Dorrien
74
questiona o que ele chama de leitura dominante de Barth, que o coloca na ala
conservadora da neo-ortodoxia. Tal visão é reforçada pelo entendimento de que
Barth abandonou o método dialético em favor de um pensamento dogmático
conservador. Segundo Dorrien, o desenvolvimento teológico de Barth tem sido
tratado com alguns exageros, sobretudo na demasiada ênfase em suas dramáticas
conversões metodológicas: a ruptura com a teologia liberal e adoção da dialética, a
ruptura com a dialética e a incorporação da analogia dogmática. Para ele, o único
rompimento decisivo na teologia de Barth foi com o liberalismo teológico. Nesse
sentido, Dorrien lamenta que as influentes interpretações de Barth desenvolvidas por
Balthasar e Torrance, descrevam radicalmente a conversão do pensamento dialético
para o dogmático. Dorrien defende que Barth não descartou o pensamento dialético:
ele utilizava a argumentação analógica em seus escritos da teologia da crise, assim
como continuou a empregar argumentos dialéticos na Church Dogmatics.
A dialética da divindade velada e não velada permaneceu crucial no seu
pensamento. [...] Ele persistentemente rejeitou tratar a presença ou
ausência de Deus de maneira não-dialética. Ele evitou o falso objetivismo
que deriva de uma não-dialética ênfase na presença, mas também recusou
fossilizar o slogan de sua própria teologia da crise em termos do Deus
totalmente outro”.
75
Semelhantemente, Garrett Green ressalta a importância do pensamento
dialético barthiano, enquanto estrutura argumentativa, na abordagem da religião no §
72
Cf. H. Küng, Does God Exist?, op. cit., p. 516.
73
Cf. H. Küng, Introdução: O debate sobre o conceito de religião, op. cit., p. 8.
74
Cf. Gary Dorrien, The Barthian Revolt in Modern Theology: theology without weapons. Louisville,
KY: Westminster John Knox Press, 2000, p. 3-5.
75
Ibid., p. 3.
22
17 de Church Dogmatics. Por considerar que a tradução inglesa obliterou a estrutura
dialética da argumentação barthiana presente nesse texto, Green decidiu fazer uma
nova tradução do § 17.
76
No Prefácio do Tradutor, Green enumera algumas razões
para a revisão e nova tradução desse texto. A mais importante delas é equívoco que a
tradução fez ao traduzir o termo alemão Aufhebung por abolição em The
Revelation of God as the Abolition of Religion. Green reconhece que não se deve
julgar os tradutores da Church Dogmatics tão duramente, visto que este vobulo
confronta qualquer tradutor com um dilema: não existe uma palavra inglesa que
possa reproduzir a ambigüidade do termo alemão. Este mesmo termo é usado
dialeticamente nos textos de Hegel e, portanto, Barth também o utiliza de forma
ambígua e dialética, conforme pode se perceber na própria estrutura do texto. Assim,
a partir da experiência de tradução de Hegel para o inglês, Green sugere como
tradução mais adequada para Aufhebung, o termo sublimação. No seu ponto de
vista, a tradução convencional deixou aos leitores de ngua inglesa a falsa impressão
de que Barth substitui a religião pela revelação, ou de que Barth não pensa que o
Cristianismo seja uma religião. Green também acredita que essa distorção colabora
vigorosamente para que Barth seja evitado nos Estudos em Religião de fala inglesa.
Em seu artigo Challenging the Religious Studies Canon: Karl Barth's Theory
of Religion, Green também faz uma importante análise da religião em Barth, tanto
em Carta aos Romanos quanto no § 17 de Church Dogmatics. Em sua análise da
Carta aos Romanos, ele observa paralelos entre os tópicos do comentário do capítulo
7 da primeira (1919) e segunda (1922) edições:
77
Edição de 1919 Edição de 1922
Romanos 7:1-6 O Novo Ser O Limite da Religião
Romanos 7:7-13 A Lei e o Romantismo O Significado da Religião
Romanos 7:14-25 A Lei e o Pietismo A Realidade da Religião
De igual modo, na análise do § 17 de Church Dogmatics ele percebe uma
estrutura tripla que inclui uma argumentação dialética, já prefigurada pelo termo
alemão Aufhebung, que se evidencia nos tópicos no texto: 1) o problema da religião
na teologia; 2) religião como descrença (tese); 3) a verdadeira religião (antítese).
76
Cf. Karl Barth, On Religion: the revelation of God as the Sublimation of Religion. Translated and
Introduced by Garret Green. London/New York: T&T Clark, 2006.
77
Cf. Garret Green, Challenging the Religious Studies Canon: Karl Barth's Theory of Religion. The
Journal of Religion, v. 75, n. 4, out. 1995, p. 475.
23
Green conclui que o grande equívoco da interpretão da religião em Barth ocorre
quando é destruído o equilíbrio entre os vetores da tese e antítese. Portanto, tomar
suas declarões fora do contexto dessa estrutura pode levar às conclusões errôneas
de que Barth advoga a abolição da religião ou nega que o cristianismo seja uma
religião.
1.3.3. Percurso bibliográfico e metodológico de Dietrich Bonhoeffer
O estudo do pensamento de bonhoefferiano não pode estar separado do
contexto de sua vida. Em Bonhoeffer teologia e biografia se misturam e andam de
mãos dadas como nenhum outro teólogo do século XX.
78
Isso está evidente não
apenas em seu pensamento, mas também no caráter de suas obras. Em termos de
pensamento, um exemplo muito elucidativo dessa realidade é a sua própria crítica da
religião, que ficou inacabada por conta de sua morte prematura. Talvez, se ele
vivesse algum tempo mais, suas idéias acerca do cristianismo arreligioso poderiam
ser melhor delineadas. No que diz respeito às características de suas obras, deve-se
destacar o aspecto epistolar de sua teologia por razões de conveniência ou
necessidade , que demanda o reconhecimento do caráter fragmentário dos escritos
bonhoefferianos.
79
Bonhoeffer (1906-1945) nasceu em Breslau, cidade natal de Schleiermacher.
Curiosamente, enquanto Schleiermacher julgou ter encontrado na religião
(sentimento humano de absoluta dependência) o caminho verdadeiro do cristianismo
no período romântico, o conterrâneo Bonhoeffer, em sentido oposto, considerou ter
achado na não-religião uma oportunidade para a fé em sua época tecnológica”.
80
Sua
falia era da alta burguesia, sendo seu pai psiquiatra e neurologista. Em 1923, com
17 anos de idade, Bonhoeffer iniciou seus estudos teológicos em Tübingen e no
mesmo ano seguiu para Berlim. Seu precoce talento impressionou A. Harnack, que
78
Cf. R. Gibellini, A Teologia do Século XX, op. cit., p. 106.
79
Érico João Hammes, Cristologia e Seguimento em Dietrich Bonhoeffer. Teocomunicação, v. 21, n.
94, 1991, p. 507. Na introdução de uma compilação de cartas e diários de Bonhoeffer, Alemany
afirma que não é casual o fato de que o primeiro e mais forte impacto produzido pelo pensamento de
Dietrich Bonhoeffer ao ser conhecido além das fronteiras de seu ps e de sua igreja, foi exercido
precisamente por um punhado de cartas. (Dietrich Bonhoeffer, Redimidos para lo humano: cartas y
diarios [1924-1942]. In: José J. Alemany [Org.]. Salamanca: Sigueme, 1979, p. 11).
80
André Dumas, Dietrich Bonhoeffer: uma igreja para os não religiosos. In: André Dumas, Jean Bosc,
e Maurice Carrez (orgs.), Novas fronteiras da teologia: teólogos protestantes contemporâneos. São
Paulo: Duas Cidades, 1969, p. 101.
24
queria fazer de Bonhoeffer um historiador da igreja, mas o jovem estudante tinha
interesse em outra área. Em 1927, aos 21 anos, Bonhoeffer concluiu seu doutorado
em teologia sistemática, ao escrever Sanctorum Communio, publicada em 1930.
Nesta dissertação, sua análise eclesiológica da estrutura comunitária da igreja
procurou combinar as divergentes perspectivas do historicismo e a sociologia de um
lado, e a teologia da revelação de outro”.
81
Em outras palavras, Bonhoeffer buscava
conciliar suas duas maiores influências: a teologia liberal - aqui expressa pelo
historicismo de Ernest Troeltsch e a teologia dialética de Karl Barth. Se para o
ponto de vista sociológico de Troeltsch, a igreja era definida como uma comunidade
empírica de pessoas, e para a teologia de Barth a igreja representa uma comunidade
espiritual daqueles que recebem a Palavra de Deus; a síntese de Bonhoeffer em
Sanctorum Communio indicava que a igreja é um fenômeno espiritual, mas também
sociológico. Tal síntese eclesiológica se dá através da perspectiva cristológica: a
igreja é Cristo existindo como comunidade”.
Após um ano de atividade pastoral em Barcelona, Bonhoeffer retornou a
Berlim em 1929 para habilitar-se
82
ao magistério. Se na dissertação anterior o
assunto foi a realidade da igreja, agora o tema foi a concretude da revelação. A
primeira reuniu teologia e sociologia, a segunda reuniu teologia e epistemologia. Akt
und Sein (1930 - publicada em 1931 - chamada a partir de agora de Act and Being),
buscou reunir dois paradigmas filosóficos usados na teologia para a compreensão da
revelação: a filosofia transcendental do ato e a filosofia do ser (ontologia). Sua
educação em Berlim havia chamado sua atenção para a importância que o
transcendentalismo de Kant e a ontologia de Heidegger, para as questões teológicas.
Com efeito, ele suspeitava que Barth afirmava a majestade de Deus a partir do
transcendentalismo kantiano. Assim, parece que ele desejava superar a posição de
Barth, que entendia a revelação apenas como ato, mas também a ontologia da
ortodoxia católica e protestante, que considera que a revelação já ocorreu de uma vez
por todas, estando entificada na doutrina.
83
Ele procurava reunir irmãos hostis,
teólogos do ato e teólogos do ser - barthianos e luteranos.
84
Para Bonhoeffer,
a revelação já aconteceu e, ao mesmo tempo, é superveniente [...] ela não
é ou ato ou ser, e sim ato e ser: como ser, já aconteceu, e dessa forma
81
Eberhard Bethge, Dietrich Bonhoeffer: a biography. Minneapolis: Fortress Press, 2000, p. 82.
82
Na Alemanha, para que se tornar catedrático é preciso, normalmente, preencher dois pré-requisitos:
escrever outra tese após o doutorado (habilitação) e ser convidado pela Universidade.
83
R. Gibellini, A Teologia do Século XX. op. cit., p. 107.
84
Cf. E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 133.
25
garante-se a continuidade; como ato, é superveniente e acontece sempre
de novo, assegurando assim a existencialidade.
85
Vistos em conjunto, Act and Being e Sanctorum Communio contêm muitas
idéias incipientes que seriam desenvolvidas e aplicadas, quinze anos depois, na
interpretação arreligiosa” das cartas da prisão.
86
Além disso, nestas duas obras
bonhoefferianas, Barth sempre aparece como uma das principais referências.
Embora habilitado para o ensino, antes de assumir função de doncia em
teologia sistemática na Universidade de Berlim, Bonhoeffer passou um ano no Union
Theological Seminary em Nova York para estudos suplementares. De volta a Berlim
em 1931 ele se envolveu em atividades docentes, pastorais e ecumênicas. Se o
caminho seguido por Barth foi da atividade pastoral à teologia, o percurso de
Bonhoeffer foi exatamente o inverso: da tedra universitária à atividade pastoral,
na qual o teólogo acabará por se empenhar totalmente.”
87
Entre 1932 e 1933 ele
ministrou um curso na Universidade de Berlim sobre os três primeiros capítulos de
Gênesis. Ao tratar da Criação e Queda (Schöpfung und Fall, publicado em 1933 a
partir de agora será chamado de Creation and Fall), a obra se divide em três partes
que atendem a cada um dos três primeiros capítulos de Gênesis, e há menções ao
tema da religião principalmente na terceira parte.
No verão de 1933 Bonhoeffer ministrou o curso de Cristologia em Berlim.
Este foi o ponto alto da carreira acadêmica de Bonhoeffer”
88
. Embora os
manuscritos originais das aulas tenham se perdido, Bethge pôde reconstruí-las a
partir dos apontamentos de vários alunos.
89
Historicamente esse curso coincide com
o turbulento período de consolidação do nazismo no poder e da submissão da Igreja
evangélica à política racista do mesmo”
90
. O prólogo da obra reconstruída por Bethge
revela que as aulas tiveram direta ligação com os acontecimentos políticos, mesmo
que isso nunca fosse explicitamente mencionado. A nota tônica do estudo foi a
afirmação do senhorio do Cristo presente” como única autoridade a ser seguida.
Uma forte advertência para a igreja submissa ao estado nazista. Para ele, a questão
cristológica só pode estabelecer-se cientificamente no âmbito da Igreja”, pois é ali
onde se pressupõe que subsiste com pleno direito a pretensão de Cristo de ser o
85
Ibid., p. 107-108.
86
Cf. Ibid., p. 135.
87
R. Gibellini, A Teologia do Século XX. op. cit., p. 108.
88
E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer: a biography. op. cit., p. 219.
89
O material, em sua primeira edição, foi publicado na década de 1960.
90
E. Hammes, Cristologia e Seguimento em Dietrich Bonhoeffer. op. cit., p. 498.
26
Logos de Deus, ali onde se pergunta por Deus porque já se sabe quem é Deus”
91
.
Mas esta tarefa não estava sendo cumprida. A igreja não representava um lugar
privilegiado para se encontrar com Cristo. No contexto político alemão, ela se tornou
herética ao capitular ante a imposição discriminatória do nazismo, olvidando, o
senhorio exclusivo de Cristo.
92
A constatação do fracasso da igreja já estava presente em 1932. Quando
participou do International Youth Conference na Suíça, seu tema foi: A Igreja está
morta”. Seu argumento teve confirmação em 1933, quando Hitler assumiu o poder e
a Igreja evangélica oficial aceitou o parágrafo ariano que proibia a ordenação de
pastores de origem judaica. Com todos estes eventos, Bonhoeffer hesitou quanto ao
caminho que deveria escolher: Poderia permanecer na Universidade. Mas a ciência
universitária lhe parecia agora um tanto fora de tempo. Poderia exercer o pastorado,
mas a igreja alemã aceitara o parágrafo ariano”
93
. É bem verdade que nessa época
floresceu a Igreja Confessante, que pretendia ser uma versão cristã não-nazista, mas
Bonhoeffer duvidava que ela pudesse extrapolar a linha intra-eclesiástica.
94
Por isso,
na segunda metade de 1933 ele aceitou o cargo de pastor na igreja alemã de Londres,
com um duplo propósito: relacionar a Igreja Confessante alemã com o movimento
ecumênico e, ao mesmo tempo, obrigar o movimento ecumênico a viver em estado
de confissão e não apenas em estado de amizade inter-eclesiástica.”
95
Mas em 1935, a pedido da Igreja Confessante, Bonhoeffer retornou à
Alemanha para assumir um clandestino seminário para pastores desta igreja, em
Finkenwald. O seminário esteve em funcionamento até 1937, quando foi fechado
pelo nazismo e Bonhoeffer foi proibido de ensinar ou publicar livros. No período em
que dirigiu o seminário, Bonhoeffer escreveu dois livros: Nachfolge (publicado em
1937 - traduzido para português como Discipulado) e Gemeinsames Leben
(publicado em 1939 - traduzido em português como Vida em Comunhão). Com
Nachfolge, que literalmente significa seguimento, a cristologia acadêmica torna-
se cristologia prática”
96
. A tônica da obra é que o discipulado não se caracteriza pela
assimilação de um conteúdo doutrinário, mas pela obediência. Se no final do
91
Dietrich Bonhoeffer, Quien es y quien fue Jesucristo? Su historia y su misterio. Barcelona: Ariel,
1971, p. 17.
92
Cf. E. Hammes, Cristologia e Seguimento em Dietrich Bonhoeffer. op. cit., p. 499-500.
93
A. Dumas, Dietrich Bonhoeffer: uma igreja para os não religiosos. op. cit., p. 104.
94
Dumas explica que a igreja confessante nunca se constituiu em igreja autônoma. Sempre foi um
movimento de confissão dentro das igrejas evangélicas alemãs. (Ibid., p. 105)
95
Ibid.
96
R. Gibellini, A Teologia do Século XX. op. cit., p. 109.
27
primeiro período de sua vida, conforme retratavam Sanctorum Communio e Act and
Being, Bonhoeffer pressentia que a teologia não se fundamentava suficientemente na
igreja, no final da segunda etapa da vida, conforme retratava Discipulado, ele
achava que a confissão da igreja não se preocupava o bastante com o mundo”.
97
À medida que o contexto político alemão tornava-se cada vez mais
conturbado, e os mecanismos de corrão social apresentavam-se impotentes,
Bonhoeffer convencia-se de que o pacifismo era uma postura ilegítima. Era
necessário viver a fé cristã na co-responsabilidade social e política, usando, até
mesmo, o recurso extremo da conspiração contra a autoridade totalitária. Logo, em
1938 Bonhoeffer iniciou seus contatos com a resistência alemã e quando a guerra se
iniciou em 1939, ele resolveu entrar para o serviço de contra-espionagem. Tais ões
o levaram a refletir demoradamente nas questões éticas. Assim, no período de contra-
espionagem (1939 a 1943) Bonhoeffer se dedicou à produção de Ética
98
. Acusado de
alta traição, Bonhoeffer foi preso em 5 de abril de 1943. No rcere, ele manteve
intensa correspondência com a noiva, com os pais e com Bethge. A coletânea de
cartas da prisão, que abarca os anos de 1943 a 1945, apresenta idéias teológicas
fragmentárias e inacabadas, mas que constituem um importante legado da teologia
bonhoefferiana, apontando para o seu último estágio de amadurecimento teológico. É
nesse material que Bonhoeffer explicita as idéias do cristianismo arreligioso.
Estudada a partir do ponto de vista da continuidade, a teologia bonhoefferiana
deve ser entendida através do conjunto de suas obras. Uma leitura isolada de seus
textos pode levar a reduções ou distorções de suas idéias. Isso não representa, no
entanto, uma desconsideração das diversas etapas de evolução de seu pensamento.
Essa, talvez, seja uma forma equilibrada de reconhecer a continuidade e a novidade.
Em cada uma das etapas de seu pensamento um elemento novo é acrescentado aos
que já se encontram presentes anteriormente. O resultado é a ampliação do
significado de todos os elementos, antigos e novos.
99
Segundo J. Godsey a teologia
de Bonhoeffer pode ser dividida em três fases: Fundamentação teológica, Aplicação
teológica e Fragmentação teológica. A primeira fase (1906-1931) corresponde à
produção acadêmica de Sanctorum Communio e Act and Being, a segunda (1932-
97
A. Dumas, Dietrich Bonhoeffer: uma igreja para os não religiosos. op. cit., p. 106.
98
Por causa de sua prisão, Bonhoeffer não conseguiu terminar esta obra (que considerava a grande
obra de sua vida). Ela foi editada, a partir de seus manuscritos, por Bethge em 1948.
99
Cf. Prócoro Velasques Filho, Uma Ética para os nossos dias: origem e evolução do pensamento
ético de Dietrich Bonhoeffer. São Bernardo do Campo, SP: Editeo, 1977, p. 18.
28
1939) compreende as obras de interpretação das Escrituras, tais como Creation and
Fall, Discipulado, Tentação e Vida em Comunhão e, finalmente, a terceira fase
(1940-1945) corresponde à produção fragmentada de Ética e as cartas da prisão.
100
De forma geral, em termos metodológicos, a evolução de seu pensamento
compreende a relação entre cristologia e eclesiologia. Até 1931 a cristologia se
subordinava à eclesiologia. Contudo, a partir desta época a eclesiologia foi submetida
à cristologia, que assume a centralidade de sua teologia.
101
Após um panorama geral
do percurso bibliográfico e metodológico de Bonhoeffer é importante sublinhar a sua
crítica da religião, a partir da perspectiva de alguns de seus comentaristas.
1.3.4. A crítica bonhoefferiana da religião na compreensão de seus
comentaristas
Talvez, o intérprete de Bonhoeffer mais conhecido seja seu amigo, cunhado,
biógrafo, editor e comentarista Eberhard Bethge. Dentre seus escritos,
principalmente dois deles são fundamentais para esta dissertação. O primeiro é a
volumosa biografia de Bonhoeffer. O outro é o ensaio intitulado Bonhoeffers
Christology and His Religionless Christianity”. Na biografia, ele afirma que em
Tegel Bonhoeffer nunca intentou [...] escrever uma monografia histórica ou
sistemática do fenômeno da religião”
102
. Na maior parte de sua vida e teologia
Bonhoeffer seguiu a tradicional distinção barthiana entre fé e religião. Essa visão
tornou-se comum entre um grande número de teólogos na Igreja Confessante.
Contudo, nos escritos da prisão Bonhoeffer trata o termo religião de forma
diferente de Barth. Enquanto o teólogo suíço considerou a religião como uma
característica basicamente humana, para o teólogo alemão ela é historicamente
transitória. Bethge também levanta algumas características da concepção
bonhoefferiana da religião: metafísica, individualismo, parcialidade, privilégio, tutela
e dispensabilidade.
103
Em seu ensaio, Bethge coloca a interpretação arreligiosa do
cristianismo dentro de uma moldura cristológica. Isso demonstra que a visão
100
Cf. John D. Godsey, The theology of Dietrich Bonhoeffer. London: SCM, 1960. De forma
semelhante, A. Dumas também entende a vida e teologia de Bonhoeffer em 3 esgios que se
aproximam em muito da classificação de Godsey: o Bonhoeffer universirio, o Bonhoeffer
confessante e o Bonhoeffer questionador do futuro (Cf. A. Dumas, Dietrich Bonhoeffer: uma igreja
para os não religiosos. op. cit., p. 108).
101
Cf. P. Velasques Filho, Uma Ética para os nossos dias. op. cit., p. 17.
102
E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer: a biography. op. cit., p. 871.
103
Cf. Ibid., p. 872-879.
29
arreligiosa não representa uma ruptura em seu pensamento, mas está diretamente
relacionada com seu pensamento anterior. Nesse sentido, a compreensão cristológica
bonhoefferiana é a base para a construção de sua crítica da religião.
104
O teólogo britânico J. Godsey foi um dos precursores na interpretação do
pensamento de Bonhoeffer no mundo de fala inglesa. Ele também entende o
cristianismo arreligioso como uma espécie de cmax da cristologia bonhoefferiana.
Godsey ressalta que todas as vezes que Bonhoeffer explica o seu conceito de
religião, ele se refere a um pensamento metafísico, interior, subjetivo e
individualista. Logo, a interpretão religiosa do cristianismo seria uma espécie de
sistema de verdades abstratas.
105
Além disso, Godsey advoga que o problema da
interpretação arreligiosa não é meramente hermenêutico, mas envolve toda a
existência da própria igreja. Ela não é uma interpretação que se preocupa com a
religião, mas com a vida.”
106
Por isso, a interpretação dos conceitos bíblicos não
deveria ser feita numa linguagem metafísica ou psicológica, nem em termos de um
sistema de doutrinas abstratas, ou da experiência interna dos indivíduos, mas em
termos de um envolvimento responsável com a vida. Para Godsey, Bonhoeffer
focaliza a crítica da religião principalmente em termos da interpretação e linguagem
da psicologia ou psicoterapia e da filosofia existencialista.
No continente americano um dos principais intérpretes de Bonhoeffer é
Clifford J. Green. Para ele, Bonhoeffer separa completamente o cristianismo e a
religião.”
107
Além disso, ele percebe uma diferenciação notável entre a
compreensão de religião em Barth e em Bonhoeffer. Enquanto Barth utiliza
categorias teológicas como idolatria e “auto-justificação em sua crítica da
religião, Bonhoeffer aborda a religião de um modo mais antropológico, numa forma
específica da história. Desse modo, Bonhoeffer descreve maneiras particulares em
que pessoas religiosas se comportam na situação atual, ao invés de propor uma
teoria geral da religião. Logo, as razões para Bonhoeffer separar completamente o
cristianismo da religião apresentam diferenças em relação ao pensamento de Barth,
principalmente porque Bonhoeffer possui uma definição ou compreensão da religião
104
Cf. E. Bethge, Bonhoeffer's Christology and His Religionless Christianity. In: Peter Vornink II
(org.), Bonhoeffer in a World Come of Age, Philadelphia: Fortress Press, 1968, p. 46-72.
105
Cf. J. Godsey, The theology of Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 249. Curiosamente, esse trabalho foi
escrito inicialmente como uma dissertação orientada por Karl Barth em 1958 (cf. Clifford J. Green,
Bonhoeffer: a theology of sociality. Grand Rapids / Cambridge: William B. Eerdmans, 1999, p. 11).
106
J. Godsey, The theology of Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 264.
107
C. Green, Bonhoeffer, op. cit., p. 258.
30
que é distinta.
108
A percepção da crítica bonhoefferiana da religião a partir de uma
perspectiva antropológica permite que Green faça uma correlação entre a crítica
bonhoefferiana e a crítica não teológica da religião na modernidade, tais como a
crítica freudiana e a crítica marxista da religião.
Outro importante intérprete é o teólogo frans André Dumas, que denomina
Bonhoeffer como teólogo da realidade. Ele entende que Bonhoeffer representa uma
resposta do século XX a duas grandes vozes alemãs do século XIX: Feuerbach e
Nietzsche”
109
. Enquanto esses pensadores enfatizam que a figura de Deus se
sustentava a partir da fraqueza humana, Bonhoeffer afirmava exatamente o inverso:
é a fraqueza de Jesus Cristo crucificado que encontra o homem cheio de
poder. Se as religiões tendem a humilhar o homem diante da onipotência
divina, o cristianismo, nesse caso, não pode ser considerado religião. Não
procura como as religiões importunar os homens, que vivem o
abandonados, com as questões últimas, situadas nos confins do mundo,
tais como o mal, a morte e o além, mas quer, bem no centro da vida,
pregar e mostrar um Deus crucificado.
110
Ele comenta que, em Bonhoeffer, Jesus Cristo é único lugar onde se pode
ver Deus e o mundo como não separados. Por isso, o cristianismo não se pode
confundir com as religiões de mistério, que ensinam uma redenção bem longe da
terra. A igreja viverá, como Jesus Cristo, a responsabilidade do real até seu último
limite”
111
. Para Dumas, Bonhoeffer se preocupa mais do que Bultmann e Barth, com
os problemas que estão ligados à realidade, e não tanto com as questões relativas ao
conhecimento ou inteligibilidade, como aqueles. Desse modo, para fugir do risco do
limitado intelectualismo que ronda os que estão muito preocupados com as
categorias do saber, Bonhoeffer busca conceber uma eclesiologia a partir do mundo
não religioso. A confissão sem imitação acaba em puro verbalismo idealista.”
112
Por sua vez, H. Zahrnt percebe uma conexão entre a crítica da religião de
Barth e de Bonhoeffer. Para ele, Bonhoeffer assimilou a crítica barthiana que
distinguia de forma radical a religião humana da revelação divina. Contudo, o autor
entende que Bonhoeffer não ficou limitado a essa compreensão. Especialmente nas
cartas da prisão ele foi decisivamente além da crítica barthiana. Isso porque, na visão
de Zahrnt, Barth restringiu seu criticismo da religião ao campo da dogmática, mas
108
Cf. Ibid., p. 259.
109
André Dumas, Dietrich Bonhoeffer: uma igreja para os não religiosos. op. cit., p. 99.
110
Ibid., p. 99-100.
111
Ibid., p. 111.
112
Ibid., p. 114.
31
Bonhoeffer ampliou seus traços, delineando-a a partir de suas conclusões práticas, e
relacionando-a com a situação histórica concreta. Desse modo, Bonhoeffer chegou à
conclusão de que a religião era apenas uma expressão transitória do cristianismo, que
fora historicamente condicionada.
113
Quanto à hermenêutica utilizada para a
interpretação não-religiosa dos conceitos bíblicos, Zahrnt acredita que o fato de que
Bonhoeffer nunca tenha chegado a uma conclusão acerca desse assunto pode ser
explicado não apenas através da constatação das circunstâncias desfavoráveis da
prisão, mas sobretudo a partir do reconhecimento da complexidade desse tipo de
empreitada. Por conta das transformões e mudanças constantes na sociedade, a
interpretação não-religiosa da Bíblia não é algo que uma pessoa realiza ou deixa de
realizar, não é algo acabado, definitivo, mas continua a requerer esforços renovados.
Isso não significa que a interpretão não-religiosa proposta por Bonhoeffer não
possui nenhum fundamento. A chave para essa interpretação é, em realidade, uma
interpretação cristológica. Seu tema básico é a teologia crucis.
114
Outro importante intérprete alemão é Ralf K. Wüstenberg.. Ao considerar a
grande quantidade de estudos e conclusões acerca do pensamento bonhoefferiano, ele
afirma que o termo arreligioso se tornou um slogan degenerado que foi aplicado às
mais diversas tendências teológicas, onde cada um buscou interpretá-lo à sua
maneira. Mas ele adverte que todos aqueles que falham em perceber o fundamento
cristológico de Bonhoeffer, o interpretam de um modo profundamente incorreto,
especialmente no tópico da interpretão não-religiosa. Todavia, ele também entende
que embora muitos autores tenham colocado devidamente a noção cristológica como
base para o entendimento da interpretão não-religiosa, existem poucas indicações
acerca do que isso significa concretamente.
115
Assim, ele justifica a importância de
seu estudo, que aponta a teologia da vida como categoria central da teologia
bonhoefferiana da prisão.
No contexto latino americano, o teólogo Gustavo Gutiérrez escreveu um texto
sobre Bonhoeffer, apontando para os limites da teologia moderna.
116
Ele explica que
a primeira grande guerra (1914-1918) questionou o otimismo e a segurança fácil da
sociedade burguesa, e pôs fim à chamada la belle époque. Assim, a teologia liberal,
113
Cf. H. Zahrnt. The question of God. op. cit., p. 134.
114
Cf. Ibid., p. 157.
115
Cf. Ralf K. Wüstenberg, A theology of Life: Dietrich Bonhoeffer's religionless Christianity. Grand
Rapids, MI / Cambridge U.K.: William B. Eerdmans, 1998, p. xiv.
116
Cf. Gustavo Gutiérrez, Os limites da teologia moderna: um texto de Bonhoeffer. In: A força
histórica dos pobres. Petrópolis: Vozes, 1981, p. 314-328.
32
elaborada aos moldes da Ilustração e da burguesia, entrou em declínio. Com efeito,
os esforços de Barth, Bultmann e Tillich destacam-se pela busca de novos caminhos
teológicos que sejam mais promissores que o imediato passado teológico falido.
Entretanto, Bonhoeffer considera que nenhum deles consegue realmente pegar o
touro pelos chifres, pois nenhum responde realmente ao mundo maior, resultando em
um longo processo histórico que tem suas raízes na baixa Idade Média.”
117
Ao
retornar ao caminho trilhado por Schleiermacher, a ênfase na interpretação religiosa
do mundo de Tillich foi considerada inadequada. Por sua vez, Barth, embora tenha
sido elogiado como aquele que iniciou a crítica da religião, não conseguiu levar essa
crítica até as últimas conseências. Nesse contexto, Gutiérrez traça as principais
diferenças da crítica da religião em Barth e em Bonhoeffer. Enquanto que para Barth
a religião era vista como resultado do esforço humano, em Bonhoeffer a
interpretação religiosa do cristianismo era historicamente situada, um fenômeno
ocidental que fora superado pela maioridade da humanidade. Se para Barth a religião
era algo inerente ao ser humano, para Bonhoeffer ela pertencia a uma etapa histórica:
para Barth, a religião é de certo modo uma tentativa de apoderar-se de
Deus. Para Bonhoeffer, trata-se muito mais de um modo de entender Deus
como dominador da pessoa humana. No primeiro caso, poder do ser
humano sobre Deus; no segundo, poder de Deus sobre o ser humano.
118
1.4. Resumo do capítulo
Em relação à dissertação em geral, este capítulo assume um caráter contextual
dos principais conceitos e idéias abordados neste estudo. O primeiro conceito
discutido foi a noção de religião no ambiente ocidental, desde o uso do termo religio
no período antigo até a formulação moderna do termo religião. A ênfase principal
dessa discussão foi que na modernidade houve uma redução da compreensão da
religião aos seus aspectos mais objetivos, sobretudo no âmbito intelectual, que
permitiram não apenas a abstração conceitual da religião, mas também sua crítica. O
segundo conceito discutido foi a crítica da religião na modernidade. A partir de uma
visão panorâmica foi descrito um longo processo que envolveu filósofos, sociólogos,
psicólogos, antropólogos e outros. À semelhança do reducionismo do conceito de
religião na modernidade, a crítica da religião também representou uma empreitada
117
Ibid., p. 317.
118
Ibid., p. 323-324.
33
reducionista deste fenômeno, pois contemplou ferramentas metodológicas de corte
racionalista, que se fixavam apenas nos aspectos mais objetivos da religião.
A seguir, o capítulo considerou a crítica moderna da religião na teologia,
especificamente em Barth e Bonhoeffer. Em relação ao percurso bibliográfico e
metodológico de Karl Barth foram destacadas as duas produções mais importantes de
sua teologia, que marcam respectivamente as duas principais fases (normalmente
chamadas de dialética” e analogia da fé”) de seu pensamento: Carta aos Romanos
e Church Dogmatics. A partir da perspectiva de seus comentaristas, alguns traços da
crítica barthiana da religião foram salientados. Estes podem ser divididos em dois
blocos principais: (1) o conteúdo da crítica; (2) o objeto da crítica. Em termos de
conteúdo, a crítica de Barth compreende a religião como um tipo de arrogância
humana que pretende chegar a Deus. Por isso, ela se contrapõe à revelação de Deus,
à fé e à graça, e se identifica com a superstição, a idolatria e a auto-justificação.
Barth enfatiza que a revelação de Deus atua como a abolição e elevação (dialética
hegeliana de aufhebung) da religião. Esta é a noção básica da justificação pela fé
aplicada à religião: ela precisa ser justificada” para ser verdadeira religião. Com
respeito ao objeto da crítica, muitos comentaristas sublinham que o principal alvo do
ataque de Barth é a igreja, que havia se tornado religiosa”.
No percurso bibliográfico e metodológico de Bonhoeffer foi indicada a noção
de continuidade de sua teologia em relação às fases de seu pensamento. Suas obras
podem ser agrupadas em três fases principais: fundamentação, aplicação e
fragmentação teológica. No que se refere à crítica bonhoefferiana da religião, seus
comentaristas destacam principalmente (1) as características da noção de religião e a
base da interpretação arreligiosa; (2) a herança barthiana da crítica da religião e suas
diferenças em relação a Barth. As características da religião em Bonhoeffer parecem
estar ligadas a um tipo de pensamento metafísico e individualista. Desse modo,
enquanto a interpretão religiosa do cristianismo seria uma espécie de sistema de
verdades abstratas, sua interpretão não-religiosa possui uma moldura cristológica.
Com relação à herança barthiana, na maior parte de sua vida e teologia Bonhoeffer
seguiu a tradicional distinção de Barth entre fé e religião, mas nos escritos da prisão
existem variões entre eles. Ali, a religião não parece ser para Bonhoeffer uma
característica humana, mas algo historicamente transitório. Ademais, enquanto Barth
utiliza categorias teológicas para sua crítica, Bonhoeffer adota uma linguagem mais
antropológica. Logo, a crítica de Barth se restringiu ao campo da dogmática, ao
34
passo que Bonhoeffer ampliou seus tros, delineando-a através de conclusões
práticas e da situação histórica concreta.
Portanto, após essa visão contextual abrangente, cabe um estudo mais detido
da crítica da religião de Karl Barth e Dietrich Bonhoeffer a partir de seus próprios
textos, que será realizado nos próximos capítulos.
CAPÍTULO II
A CRÍTICA DA RELIGIÃO EM KARL BARTH
Para a compreensão da crítica da religião no pensamento de Karl Barth, faz-
se necessário examinar os dois principais textos onde ele trata sobre este tema. O
primeiro deles é Carta aos Romanos - obra que trouxe Barth para o cenário da
teologia do século XX e o § 17 de Church Dogmatics, que é intitulado em sua
tradução convencional como The Revelation of God as the Abolition of Religion.
2.1 A crítica da religião em Carta aos Romanos
De maneira geral, o texto de Carta aos Romanos é a mensagem da
justificação pela fé, conforme defendida pelos reformadores protestantes do século
XVI, com uma roupagem existencialista dos séculos XIX e XX. Além de incluir
várias citões de Lutero e Calvino nesta obra, no prefácio à 2ª edição (1921) Barth
afirma sua admiração pela exegese de Lutero e a interpretação sistemática de
Calvino.
119
Do mesmo modo, existem na obra inúmeras referências a Kierkegaard,
bem como uma ênfase existencial na interpretação de temas bíblicos.
120
Também no
prefácio à 2ª edição, Barth declara: se eu tenho um sistema [metodológico], este é
119
Para esse prefácio, utilizamos a versão em inglês (Karl Barth, The Epistle to the Romans. London:
Oxford University Press, 1965, p. 7), pois a versão brasileira de Carta aos Romanos inclui apenas os
prefácios à 1ª, 5ª e 6ª edições.
120
Barth entende que a chave de compreensão dos temas bíblicos centrais não é histórica, mas
existencial: a queda de Adão não representa um evento histórico, segundo o qual a humanidade
atualmente sofre suas conseências, mas é um pecado transcendental; semelhantemente, a
justificação que Cristo trouxe ao mundo não se refere a uma data histórica, mas é ubíqua, perene e
transcendental (cf. K. Barth, Carta aos Romanos. São Paulo: Novo Século, 2005, p. 265). Do mesmo
modo, para ele, a visão escatológica do Novo Testamento não trata de uma noção temporal, nem se
alinha à visão de um fim do mundo catastrófico (cf. Ibid., p. 766). A ressurreição futura alcança a
criatura que recebeu a graça, na totalidade de seu ser. [...] Este futuro não tem o sentido vulgar de
tempo, como se devêssemos esperar por datas, para a sua efetivação; esse futuro pode referir-se e de
fato envolve tanto o passado como o presente e o futuro. (Ibid., 343). Por isso, Barth considera que
os temas bíblicos devem ser considerados, na melhor das hipóteses como parábolas, visto que as
palavras humanas são mera analogia (cf. Ibid., p. 766-767), pois se situam na ambigüidade da
realidade humana (cf. Ibid., p. 344). Este é o reconhecimento da inadequação da fala humana para
expressar a verdade divina (Ibid., p. 520).
36
limitado ao reconhecimento do que Kierkegaard chamou de infinita diferença
qualitativa entre tempo e eternidade, e minha consideração de que há nisto um
significado tanto negativo quanto positivo: Deus está no u, e tu estás na terra.”
121
Portanto, a idéia central que permeia toda a Carta aos Romanos é o conceito
kierkegaardiano de infinita diferença qualitativa aplicado ao contexto da relação
entre Deus e o ser humano.
122
Por sua vez, a religião é um tema recorrente em Carta aos Romanos. Ele
praticamente aparece nas principais discussões presentes no conteúdo da obra, e está
diretamente ligado ao arcabouço do assunto da justificação pela fé e ao pressuposto
da infinita diferença qualitativa. No prefácio à 5ª edição (1926), Barth relata a
surpresa que teve quando percebeu o inesperado impacto de seu livro na teologia da
época.
123
Sua explicação para esse fato, então, resume-se na constatão de que esta
obra trouxe à luz algo que a teologia e a Igreja de nosso tempo precisassem
ouvir.”
124
O início do prefácio parece traduzir de forma sintética o que,
especificamente, precisava ser ouvido pela teologia e pela igreja: tudo o que escrevi
contra a presunção humana e por demais humana sobretudo sobre a vanglória
religiosa, sua causa, sua roupagem, seu efeito”.
125
Esta afirmação reúne os principais
elementos que se conectam ao conceito de religião presentes nesta obra - presunção
humana e vanglória , bem como suas características e implicações causa,
roupagem e efeito.
Como o tema da religião aparece em praticamente todos os assuntos
discutidos no livro, para fins didáticos, este trabalho buscou dividir a análise deste
tema a partir de alguns pontos centrais nos quais há uma grande concentração de
referências à religião que atravessam a apresentação de temas que se relacionam
diretamente com ela. Tal divisão não pressupõe que sejam encontradas diferentes
percepções em relação à religião. Muito pelo contrário, há uma constante repetição
dos mesmos conceitos. Mas em cada uma delas, algumas nuanças podem ser
121
Prefácio de K. Barth à 2ª edição, em inglês (The Epistle to the Romans. op. cit., p. 10).
122
Barth traça um paralelo direto entre este conceito kierkegaardiano, que promove a representação de
Deus em sua sua total obscuridade (K. Barth, Carta aos Romanos. op. cit., p. 148), e a ênfase dos
reformadores protestantes no Deus absconditus. Ele assevera que o cerne da Epístola aos Romanos
é que o Deus absconditus é o Deus revelatus em Jesus Cristo (cf. Ibid., p. 649). Embora não se possa
negar que Barth discute o Deus revelatus, é evidente na leitura de seu texto que há uma ênfase bem
maior no Deus absconditus, o Deus desconhecido”.
123
Cf. Ibid., p. 16.
124
Ibid.
125
Ibid., p. 15. Grifo nosso.
37
percebidas, permitindo uma visão mais abrangente e detalhada da religião e sua
crítica.
A primeira abordagem a ser privilegiada é a relação da religião com o
conceito central da infinita diferença qualitativa entre Deus e a realidade humana.
De fato, esta relação fornece a principal e mais ampla noção de religião que permeia
toda a obra. Por sua vez, as demais abordagens contribuem na indicação de
importantes detalhes e particularidades do entendimento da religião: a ligação entre
religião e circuncisão, conforme esboçada na experiência de Abro; a conexão da
religião e a lei; e a correspondência entre a religião e a igreja.
2.1.1 A Religião e a Infinita diferença qualitativa entre Deus e o ser humano
Logo no início de sua obra, Barth assevera que a mensagem transmitida por
Paulo na Carta aos Romanos é o evangelho de Deus. Esta não é uma mensagem
religiosa, ou notícia sobre a divinização humana, mas é a mensagem de um Deus
totalmente diferente do ser humano. Por isso, ninguém pode chegar a ter
conhecimento dele,
126
pois as fontes do conhecimento humano são incapazes de
percebê-lo ou alcançá-lo. O conhecimento de Deus vem unicamente a partir dele
(revelação),
127
e precisa ser recebido pelo ser humano através da fé.
Desse modo, não há choque nem concorrência entre o evangelho de Deus e as
teorias da ciência ou a sabedoria da cultura, pois a mensagem divina não é uma
verdade que está ao lado das outras, mas é a verdade que questiona as outras.
128
A
verdade de Deus é totalmente distinta das verdades do mundo. Semelhantemente, o
poder e a força divina não representam a força da natureza como uma espécie de
força suprema do mundo, a somatória de todas elas, ou a origem delas - nem da alma
humana, mas é algo totalmente diverso. O seu poder não é superior a elas, ele está
além delas.
129
O ponto onde Barth pretende chegar com todas essas constatações
acerca da infinita distinção divina em relação ao ser humano, é o de que Deus é o
Deus desconhecido”
130
.
126
Cf. Ibid., p. 28.
127
Para Barth, só é possível conhecer Deus a partir da revelação divina em Jesus Cristo (cf. Ibid., p.
30).
128
Cf. Ibid., p. 38.
129
Cf. Ibid., p. 39-40.
130
Cf. Ibid., p. 39.
38
O motivo pelo qual Deus é totalmente diferente e desconhecido se dá pelo
fato de que a unidade que o ser humano tinha com Deus foi profundamente destruída.
O ser humano está em cativeiro neste mundo. Não há luz adicional que possa ser
encontrada no aprofundamento do conhecimento humano. Assim, postular entender o
mundo em unidade com Deus, a partir de uma percepção que não venha unicamente
de Deus, representa uma condenável arrogância religiosa que, em realidade, produz
um afastamento ainda maior de Deus.
131
Nesse contexto, pode ser entendido um
conceito básico do pensamento barthiano em sua interpretação de Romanos: a fé.
Para Barth, a fé representa o respeito ante o incógnito divino, e o amor a Deus, com
plena consciência da diferença qualitativa entre Deus e os homens”
132
. Desse modo,
a fé pressupõe a aceitação sem conhecimento”
133
, ela é um salto no incerto, no
escuro, no espo vazio”
134
. Barth cita Lutero:
A fé orienta-se às coisas invisíveis; para dar a oportunidade à fé, é
necessário que tudo o que se há de crer esteja oculto, e esse ocultamente é
tanto mais profundo quanto o objeto da fé fica em franca oposição ao
sentido da vista, da sensação dos sentidos, do senso, e da experiência.
135
A pessoa que opta pela fé decide abrir mão de sua confiança na sabedoria, na
ciência, nas coisas certas e palpáveis do mundo e do conforto que este oferece, para
depender exclusivamente da graça de Deus”
136
. Logo, as expressões abrir mão e
dependência” indicam o que Barth tem em mente quando fala de fé. Para ele, a fé
genuína é vacuidade; é a verdadeira fé que se curva perante o que nunca haveremos
de ser, ou haveremos de ter ou poderemos fazer.”
137
Em outros termos, a fé é a fonte
que promove no homem a vontade de esvaziar-se; a fé é a comovida persistência na
negação.”
138
Novamente, Barth cita Lutero: Só o preso é liberto, só o fraco é
robustecido, só o humilde é exaltado; só o que está vazio se farta; apenas o nada se
torna algo”
139
.
A partir dessa percepção, a fé se apresenta como uma realidade que não é,
jamais, idêntica à religiosidade’”
140
. A contraposição barthiana entre fé e religião
131
Cf. Ibid., p. 41-42.
132
Cf. Ibid., p. 44.
133
Ibid., p. 127.
134
Ibid., p. 147.
135
Ibid., p. 43.
136
Ibid., p. 163.
137
Ibid., p. 132.
138
Ibid., p. 48.
139
Ibid., p. 50.
140
Ibid., p. 45.
39
implica que toda experiência religiosa que se apresentar como sendo mais do que
um vazio, que pretender ter conteúdo e traduzir a posse ou o gozo de Deus”
141
constitui uma traição a Deus. E o nascedouro do Não-Deus, o surgimento dos
ídolos [...] esquece-se o homem de que tudo o que é passageiro, embora seja em
semelhança, é apenas semelhança. A glória de Deus é trocada pela imagem de seres
perecíveis”
142
. Assim, Barth aponta que quando a religião pretende possuir um
conteúdo ou posse de Deus, há o nascimento do Não-Deus, isto é, o surgimento dos
ídolos. Tal abordagem indica uma noção paralela ao texto onde Barth distingue a
mensagem de Deus e a mensagem religiosa, que se caracteriza pela divinização do
ser humano. Este paralelo se torna mais nítido quando Barth destaca que
quando ignoramos [...] a separação que existe entre nós e Deus, é porque,
ou não temos compreensão de nosso estado por absoluta insensibilidade
espiritual e moral, ou é porque fazemos de Deus nosso igual, quer
trazendo-o ao nosso nível ou fazendo-os iguais a ele [...] Levanta-se a
meio caminho entre “cá e lá” entre nós e o totalmente outro, a neblina
[d]a opacidade religiosa na qual [...] se erigem acontecimentos humanos
animalescos em experiência divina.
143
Esta chamada neblina da opacidade religiosa” possui como elemento gerador
a loucura humana de que possa existir algum tipo de unidade ou possibilidade de
ligação entre Deus e os homens aquém da ressurreição,
144
em outros termos, a
negação da infinita diferença qualitativa. O resultado disso é o rebaixamento de Deus
ao nível humano ou a ascensão humana ao nível de Deus, a divinização do ser
humano. Nesse caso, ocorre a idolatria, o surgimento do Não-Deus.
Nesse caso, quando o ser humano supõe colocar Deus no trono do mundo, ele
está, em realidade, entronizando a si mesmo. Ao afirmar sua crença em Deus, ele se
preocupa apenas com sua própria justificação, buscando honrar si mesmo e tirar
proveito disso. Sua religiosidade consiste na solene confirmação que faz de si
mesmo.
145
Na perspectiva do autor, esta é a rebeldia humana que chama de Deus o
que, na realidade, representa o próprio ser humano. Servir a este deus significa viver
segundo os próprios desejos,
146
pois em realidade não se não se trata de Deus,
porém das nossas necessidades pelas quais queremos que Deus se oriente.”
147
Para
141
Ibid., p. 61.
142
Ibid., p. 62.
143
Ibid., p. 60-61.
144
Cf. Ibid., p. 61.
145
Cf. Ibid., p. 52.
146
Cf. Ibid., p. 53.
147
Ibid., p. 52.
40
Barth isto constitui a arrogância religiosa: falar em Deus pensando em si mesmo.
148
Nesse ponto o teólogo suíço se aproxima de Feuerbach ao afirmar que esse tipo de
divindade nada mais é que a projeção dos próprios desejos e anseios do ser
humano.
Na visão barthiana, nesse processo de elevação humana e menosprezo da
distância que o separa de Deus, há uma confusão entre eternidade e temporalidade,
149
substitui-se “a verdade divina pelo mundo material”
150
. A troca de Deus pelo mundo
explica o motivo pelo qual o mistério de Deus se opõe à arrogância religiosa”
151
. No
contexto da mensagem da justificação pela fé, a infinita diferença qualitativa entre
Deus e o ser humano se alinha à noção de disparidade entre a justiça humana e a
justiça divina (que figuram como os respectivos títulos dos capítulos dois e três da
obra). Dentro dessa moldura, a chamada arrogância religiosa parece estar em paralelo
com a busca de auto-justificação humana, ou seja, por suas próprias obras.
Em termos de justiça humana, a compreensão barthiana é bastante enfática:
os fatos e os feitos gerados pela atividade humana em sua existência, posição e
expansão, são sempre oriundos do ser humano, e como tais, estão eivados de
irreverência e insubmissão.”
152
No mundo dos humanos não existe qualquer distinção
entre santos e ímpios. Aliás, é justamente quando alguém pretende ser santo que
o deixa de ser.
153
Barth ressalta que o indivíduo religioso típico se caracteriza como
pessoa melhor que as demais”
154
. Mas sua pergunta retórica desvela a real situação
desse tipo de indivíduo: que vantagem terá alguém na hora do julgamento, por ter
morado à beira do leito do rio se o canal está seco?”
155
Mas não é apenas o autor que
percebe o canal seco. Na concepção barthiana, o próprio mundo não religioso
também percebe a verdade e não se deixa enganar, recusando-se a seguir o Deus dos
religiosos’”
156
. Nas palavras do teólogo suíço, Deus é apenas uma ideologia
quando os homens tomam emprestado os pontos de vista divinos, porém sem
Deus”
157
.
148
Cf. Ibid., p. 55.
149
Cf. Ibid., p. 52.
150
Ibid., p. 64.
151
Ibid., p. 66.
152
Ibid., p. 75-76.
153
Cf. Ibid., p. 78.
154
Ibid., p. 83.
155
Ibid., p. 100.
156
Ibid., p. 102.
157
Ibid.
41
Nesse sentido, o autor acrescenta que o critério aparentemente lógico e válido
de separação das pessoas por categorias - religiosas e irreligiosas, morais e imorais
se torna plenamente inapropriado.
158
Falar em humanidade significa, discorrer sobre
a humanidade perdida,
159
pois a justiça humana, em si mesma, é presunção”
160
.
Barth sublinha que esta perspectiva antropológica não designa algum tipo de
pessimismo, mas constitui uma feroz aversão às ilusões; decidida recusa a curvar-se
perante tabernáculos vazios’”
161
.
No entanto, o teólogo suíço ainda levanta outra questão: o que dizer das
pessoas que consideram possuir um entendimento de Deus, que presumem buscar a
Deus através das qualidades pessoais de seu caráter, especialmente quando essas
qualidades forem altamente dignas de consideração e respeito - uma conduta
autêntica, inteligente, nobre, amorável, singela e espiritual?
162
Ele responde que tais
características podem ser louvadas e apreciadas, mas apenas em termos de religião,
moral e cultura, ou seja, unicamente a partir de seu significado no mundo.
163
Esta é a
noção que não perde de vista a oposição entre a justiça humana e a justiça divina, isto
é, a perspectiva da infinita diferença qualitativa entre Deus e a humanidade: toda a
justiça humana está sob o Não de Deus, o julgamento divino.
Dessa forma, tudo o que não for mera vacuidade e carência permanece diante
do Não divino, e não passa de cinza ou pó perante Deus, como todas as coisas
deste mundo”
164
. Em suas palavras, os que têm fé segundo os critérios deste mundo,
Deus os considera incrédulos. Os que são definidos como justos pelo mundo, são
vistos como injustos na perspectiva divina.
165
Sobre essas pessoas religiosas Barth
escreve: acaso, com teu religioso mundanismo, terias menos a temer da ira de Deus
do que os outros? Não é essa [tua] religiosidade o aprisionamento da verdade, a
permuta do imperecível com a figura do perecível, ocorrendo no teu caso de maneira
idêntica à do outro”
166
. Mas diante do Não divino o teu fazer será o que ele é:
tua legalidade, um furto [...] tua pureza, um adultério [...] tua religiosidade, vã
158
Cf. Ibid., p. 95.
159
Cf. Ibid., p. 125.
160
Ibid., p. 105.
161
Ibid., p. 129.
162
Cf. Ibid., p. 125.
163
Cf. Ibid., p. 129.
164
Ibid., p. 166.
165
Cf. Ibid., p. 98.
166
Ibid., p. 100.
42
presunção”
167
. Portanto, o que do ponto de vista humano é chamado de religião e
moralidade, diante do juízo de Deus é nada mais que caos e anarquia.
168
Segundo
Barth, o julgamento de Deus é a negação do mundo, o protesto divino contra o seu
modo de ser.
169
Quando este juízo ocorrer os vales se erguem e as colinas se
abaixam. A guerra entre os bons e maus chega ao fim. Os homens deixam de estar
em campos opostos, para se colocarem todos na mesma linha”
170
. O juízo divino
torna-se fundamental para, nas palavras de Barth, desmascarar as mentiras da
religião:
Voltando o olhar a Deus, o Juiz, não ficam acaso, desmentidas todas as
referências, todas as comparações e todas as relações entre o aqui e o
além? [...] a materialização e a humanização do que é divino, em história
religiosa ou sagrada, não tem qualquer relação com Deus.
171
Todavia, o julgamento não é simplesmente destruição, mas restauração.
172
Pois o Sim de Deus está incluído no seu Não, o livramento contido no
julgamento. Deus fala de vida para o ser humano justamente em sua morte.
173
Mais
uma vez, Barth se reporta a um pensamento de Lutero: quando Deus, pois, vivifica
faz morrer; quando justifica, ele o faz culpando-nos; quando nos conduz ao u, fá-lo
conduzindo-nos ao inferno.”
174
O teólogo suíço entende que é exatamente quando o
homem [...] nada encontra em si mesmo senão a sua impureza ante a luz divina;
quando o homem já não pensa em outro sacrifício a oferecer senão o seu próprio
espírito atemorizado e o seu corão despedaçado, então Deus vem como vencedor
triunfal.”
175
De acordo com o autor, as mesmas trevas da indignação e ira divina que se
aproximam daqueles que pretendem deter a verdade em sua arrogância e justiça
própria, representam a luz de um novo dia para aqueles que perseveraram na fé,
176
isto é, na vacuidade. Aliás, o Não de Deus está diretamente associado com o
esvaziamento: há uma possibilidade para o homem salvar-se da ira de Deus: é
167
Ibid., p. 101.
168
Cf. Ibid., p. 166.
169
Cf. Ibid., p. 50.
170
Ibid., p. 113.
171
Ibid., p. 116.
172
Cf. Ibid.
173
Cf. Ibid., p. 138. Barth explica que na ira de Deus vemos a sua justiça; na crucificação vemos a
ressurreição; na morte, a vida; vemos o Sim” contido em Não [...] no julgamento vemos o dia da
salvação que se aproxima (Ibid., p. 245).
174
Ibid., p. 43.
175
Ibid., p. 119.
176
Cf. Ibid., p. 95.
43
quando toda pretensão humana é anulada, abatida por Deus; quando Deus dá o seu
Não, como resposta definitiva; quando a ira de Deus se torna inevitável; quando
Deus é reconhecido como Deus!”
177
Nesse sentido, Barth salienta que a vacuidade da
experiência da fé se diferencia da religião: os fiéis que perseveram em Deus,
perseveram no Reino de Deus somente se, e enquanto, perseverarem sem
preocupação da religiosidade”
178
. Em sua concepção a religião precisa ser suprimida:
quando reconhecerem que Deus e somente ele tem razão; quando a sua
religião suprimir esta mesma religião; quando a sua piedade revelar a
inexistência dessa mesma piedade; quando sua sobranceria psicológica e
intelectual descer ao nível a que são rebaixadas todas as preeminências
humanas; quando os homens que galgaram os mais altos píncaros [da
glória e reputação humanas] percebem que todos são culpados perante
Deus [...] Só eno Deus confirmará sua fidelidade ao homem que não se
deixou iludir pela infidelidade humana.
179
Barth sublinha a supressão da religião no contexto da própria supressão de
tudo o que é humano: nossa experiência é a que não é; nossa religião subsiste na sua
supressão; nossa lei consiste na anulação de toda experiência, posse, ação e
conhecimento humano”.
180
2.1.2 A Religião e a Circuncisão: a justificação de Abro
Para discutir a relação entre a religião e a circuncisão, Barth utiliza como
exemplo prático a justificação de Abro, cuja figura é diretamente relacionada com
a fé no ambiente judaico-cristão. Inicialmente, o autor reconhece a proclamada”
justiça de Abro: um homem de conduta invejável, cuja religiosidade e genialidade
sublinham a importância da orientação moral de sua vida. Todas as suas qualidades
realmente justificam a fama que ele adquiriu diante do fórum da história universal.
Com efeito, Barth reconhece que a justiça de Abro é, de fato, digna de glória
perante a humanidade, mas não diante de Deus.
181
À luz da infinita diferença qualitativa entre Deus e a humanidade, todos os
atributos e pretensas qualidades de Abro constituem, em essência, motivos para a
ira divina. Segundo Barth, com toda a sua justiça humana, ele é apenas um ímpio
perante Deus e, assim como o resto da humanidade, está sob o Não divino.
177
Ibid., p. 106.
178
Ibid., p. 136.
179
Ibid., p. 133.
180
Ibid., p. 166.
181
Cf. Ibid., p. 184.
44
Entretanto, através da fé Abro toma ciência de sua condição, reconhecendo estar
sob a crise que vem de Deus (julgamento), mas dentro desta crise Abro opta pelo
temor do Senhor e, dentro do Não passa a ver e a ouvir o Sim de Deus.”
182
Desse
modo, o motivo de sua justificação, o Sim de Deus, não se dá a partir de suas
obras, mas de sua fé. Ele é o que é como crente no poder daquilo que ele não é, pois
naquilo que ele é [o religioso esclarecido, o herói ético, espiritual] desponta
vigorosamente a revelação de sua fé e esta, sim, mostra o que ele não é”
183
. Seguindo
a noção de que o ser humano participa do divino através daquilo que ele não é”
184
,
Barth assevera que a Abro, o varão de obras, não é atribuída a recompensa de
suas obras, pois a justificação representa uma ação divina inteiramente livre,
totalmente desvinculada do homem, daquilo que o homem seja, faça ou possua”.
185
Na visão do teólogo suíço, a justificação de Abro, realizada unicamente
através da fé, provê uma perspectiva diferenciada da “contabilidade religiosa do
relacionamento entre Deus e a humanidade, que pressupõe uma correspondência
direta entre a ação humana e a ação divina: a prática humana de obras que sejam
agradáveis a Deus e a retribuição ou pagamento divino como resposta a essas obras.
Esta contabilidade suscita a possibilidade de o ser humano reivindicar, de algum
modo, a retribuição de Deus. Portanto, a possibilidade de o ser humano se gloriar
daquilo que ele é, possui ou faz, está latente em todas as religiões”
186
. No entanto,
na contabilidade da fé a situação é radicalmente diferente: não existem obras
humanas que possam gerar o beneplácito divino ou que possam desencadear a ação
de Deus”
187
. Toda a realidade humana está sujeita ao Não divino, mas também é
convidada à possibilidade Sim que se abre pela fé. Não são as obras humanas que
constituem o ponto de partida para a justificação divina, é na origem divina da fé
que encontramos a justificação que ela proporciona e a explicação de sua
peculiaridade: ser ela algo novo, diferente, que se contrapõe a toda realidade
religiosa”
188
.
Não obstante, embora os valores histórico e espiritual não constituam
qualificões que conquistem a justificação divina, eles merecem o reconhecimento
182
Ibid., p. 191.
183
Ibid., p. 187.
184
Ibid., p. 188.
185
Ibid.
186
Ibid., p. 167.
187
Ibid., p. 168.
188
Ibid., p. 197.
45
humano. Barth explica que, embora as obras de Abro não sejam contabilizadas no
Livro da Vida (da justificação divina), certamente elas são registradas com mérito
no Livro da História da Religião que relaciona a dignidade e a glória dos grandes
homens, das nobres personalidades. Ademais, é lícito e é útil que se proclame tudo
o que se puder dizer de verdadeiro, de bom, de glorioso, a respeito de Abro e de
vultos iguais a ele”
189
. Esta atitude condiz com a “contabilidade humana”: a honra e
a gratidão com que a humanidade homenageia Abro e seus pares, não é favor, mas
retribuição justa; é o pagamento de uma dívida que a humanidade contrai com um e
com outros, em diferentes graus, no correr da história”
190
. Mas Barth acrescenta:
porém, se nesta retribuição, Deus for inserido [...] não se trata do verdadeiro Deus,
mas do espírito deificado do próprio homem”
191
. Para ele, é preciso distinguir
adequadamente a contabilidade religiosa da contabilidade da fé, pois a fé apresenta
total distinção da religião:
descobrimos, na fé, a verdade de toda religo [...] todavia nenhures é ela
idêntica às realidades palpáveis, psicológicas e históricas das experiências
religiosas. A fé jamais se mescla, interfere, ou se confunde com o
desenvolvimento contínuo do ser humano, de suas possibilidades e suas
obras; nem se transforma em caminho, ou meio, no correr da vida
material, na vida eclesstica, na religião
192
Por intermédio de suas perguntas retóricas o teólogo suíço questiona a
reivindicação de que a religião, em sua realidade histórica, seja a condição essencial
para um relacionamento positivo entre Deus e o ser humano. Questiona também a
pretensão de que a religião represente a base da fundamentação divina do ser
humano, ou constitua o único lugar da revelação divina.
193
Tais questionamentos se
apóiam na evidência de que a justificação de Abraão não ocorreu quando ele era um
indivíduo circunciso, judeu ou conhecedor e participante da religião. Ao contrário,
ele foi justificado enquanto incircunciso, independente de sua religião, convicção
teocrática ou posição na história da igreja, mas na simplicidade de sua
humanidade.
194
Com efeito, a circuncisão não foi reconhecida por Deus como
meritória de qualquer atribuição de justificação”
195
. Ela era apenas um acessório
189
Ibid., p. 188.
190
Ibid.
191
Ibid., p. 189.
192
Ibid., p. 197.
193
Cf. Ibid., p. 198.
194
Cf. Ibid., p. 199.
195
Ibid.
46
visível, na aparência do mundo religioso”
196
. Para Barth, se houver qualquer noção
de justificação contida na circuncisão, esta será meramente uma justificação
religiosa, sem nenhuma ligação com a justificação imputada por Deus.
197
Nesse sentido, a conclusão barthiana é que o vocacionamento dos homens
por Deus, precede aos contrastes entre a circuncisão e a incircuncisão, a religiosidade
e a irreligiosidade, entre o pertencer e o não pertencer a uma Igreja”.
198
Barth
considera que do ponto de vista histórico-religioso Abro ainda não era um judeu,
mas um gentio - um ímpio digno de morte -, há aqui uma realidade distinta do
raciocínio tipicamente religioso:
A fé que encontramos em Abraão ainda não é religião nem o fenômeno
histórico-espiritual da crença. A fé é o fator inicial das manifestações; ela
é a origem comum de todos eles, porém não é nem religiosa e nem
irreligiosa; nem santa, nem profana, contudo, é sempre ambas essas
coisas, tem as duas posições, simultaneamente.
199
O autor indica que a linha da vida que demarca o relacionamento do homem
com Deus, precisa ser compreendido como sendo também a linha da morte da
religião”
200
. A obra divina da justificação não possui qualquer relação com a religião,
visto que esta, em sua realidade histórica, nem é premissa nem é condição essencial
para um relacionamento positivo entre Deus e os homens. Esse relacionamento parte
de Deus [... e] é a premissa da realidade histórica da religião”.
201
Assim, a religião
não é a premissa nem a caracterização do relacionamento positivo entre Deus e a
humanidade, antes é esse relacionamento (que se origina em Deus) que constitui a
premissa da existência da religião. Nesse contexto, embora a fé não se confunda com
a religião, ela representa o início de todo o conjunto religioso eclesiástico, seu
modo de fazer, ter e agir”
202
. Barth parece negar à religião qualquer pretensão de
origem ou conteúdo, mas sublinha sua existência enquanto resultado ou efeito.
203
196
Ibid. Barth parece enxergar o batismo cristão de forma paralela à circuncisão judaica, pois ele fala
do batismo como um fato do mundo aparente da religo (Ibid., p. 294), um sinal de insuficiência,
de vacuidade, de nulidade, de total desvalia (Ibid., p. 297).
197
Cf. Ibid., p. 199.
198
Ibid.
199
Ibid.
200
Ibid., p. 198.
201
Ibid., p. 200.
202
Ibid., p. 198.
203
Esta noção parece evidente na afirmação de que Abraão “exibe uma religiosidade mais consciente,
moral mais pura e o resultado valoroso de uma fé heróica. (Ibid., p. 183. Grifo nosso)
47
Aliás, Abro também participa deste mundo de aparências a circuncisão, a
religião, a igreja que retratam a revelação”
204
.
Na visão do teólogo suíço, a circuncisão, a religião e a igreja (utilizados por
Barth praticamente como sinônimos) assumem o caráter de lembrança física. A
circuncisão serve para lembrar Israel de sua divina eleição, como povo escolhido e
enviado. Ademais, a igreja é o incontornável conteúdo histórico da obra de Deus
para com os homens, sua condução, sua canalização”
205
. Por sua vez, a religião
representa o inevitável reflexo espiritual [...] do milagre da fé, que se realiza na
alma.”
206
No entanto, este sinal de lembrança não deve se confundir com a realidade
divina em si. Isso representaria olvidar a infinita diferença qualitativa entre a
realidade divina e a realidade humana. Embora seja a realidade divina que oferece o
sentido e a forma do conteúdo histórico-espiritual (circuncisão, religião e igreja), este
conteúdo sempre estará em correspondência com algo diferente que vem do
além”
207
e para ele aponta. Se isto for esquecido; se a Igreja e a religião não
conservarem as suas vistas voltadas humildemente para o paradigma do além, correm
o risco de projetarem-se às alturas sem atingirem o seu objetivo.”
208
Desse modo, igreja e religião são símbolos e sinetes inconfundíveis que
trazem à lembrança a fundamentação que o homem encontra em Deus”
209
, eles
apontam o pacto entre Deus e a humanidade que ainda não foi cumprido e pelo qual
se espera a efetivação. A religião - e também a igreja, que é usada nesse contexto
como sinônimo de religião - pode ser entendida como sinal, testemunho, imagem,
lembrança, indicação, [...] a manifestação histórica de toda impressão da revelação,
de toda referência a ela, que está sempre além de toda realidade da própria
história.”
210
Segundo Barth, foi Deus quem determinou a existência e a finalidade
204
Ibid., p. 201. Na discussão de Barth há um nítido paralelo entre a circuncisão de Abro e o
batismo cristão. Para ele, uma pessoa batizada - que tenha a mesma disposição de fé de Abro - não
deve ser considerada meramente como religiosa, mas alguém que recebeu a graça de Deus. É bem
verdade que ela terá experiências religiosas: provavelmente pertencerá a alguma igreja, terá suas
crenças, manterá uma vida oração, e nutrirá um elevado comportamento ético-religioso. Numa
perspectiva histórica concreta, essa pessoa terá seu lugar no ambiente da religiosidade humana, e seu
tipo característica será compatível com os que são estudados e catalogados pela história e a psicologia
das religiões. Entretanto, todas essas características funcionam como sinais e testemunhas da graça
divina, e não um produto do poder da obediência humana que caracteriza a religo (Cf. Ibid., p. 326-
327).
205
Ibid., p. 201.
206
Ibid.
207
Ibid.
208
Ibid.
209
Ibid.
210
Ibid., p. 200.
48
destes símbolos. Seu período de existência situa-se entre o Alfa e o Ômega, o
princípio e o fim. Neste intervalo de tempo eles devem ser unicamente sinal e
testemunho. Aliás, foi também neste sentido que Abro recebeu o sinal da
circuncisão; o sentido do passado e do futuro; e passou a participar do mundo
eclesiástico-religioso, visível.”
211
Tal comparação da religião com a circuncisão
fornece algumas características importantes da compreensão barthiana da religião:
A significação da circuncisão de Abro não es nas características ou
qualidades intrínsecas do ato, mas no relacionamento que ele indica; a
circuncisão não tem valor em si, se não o de testemunho, cujo sentido
eterno se destaca na linha da morte, onde também se revela a
transitoriedade do mundo religioso. Circuncisão, religião e igreja são
sinais visíveis e testemunhas, não por seu conteúdo positivo, porém pelo
seu teor negativo, isto é, na medida [em] que forem compreendidos e
confirmados na renúncia, no perecer incessante, na anulação do homem
perante Deus, que efetivamente simbolizam.
212
De acordo com esta compreensão, o significado da circuncisão, da religião e
do eclesiasticismo de Abro, é indireto e não convida à circuncisão, mas convida à
fé.”
213
A circuncisão não é o início de sua justificação, mas o testemunho desse
início. O foco não está na religiosidade de Abro, mas na justiça invisível que a ele
foi imputada. Nos termos barthianos, estes símbolos temporais e finitos necessitam
apontar para a eternidade que existe antes e depois de todas as coisas temporais
(inclusive deles mesmos).
214
Por isso, Barth ressalta a importância da delimitação
funcional desses símbolos:
Enquanto a circuncisão, a religião e a Igreja servirem a este fim e
guardarem no seu relacionamento com Deus a humildade que este fim
impõe, enquanto humildemente reconhecerem sua mundanalidade,
enquanto tiverem a consciência de que pertencem a este mundo, enquanto
nenhuma outra pretensão tiverem se não a de serem expressões de fé do
incircunciso, têm elas condições [de se candidatarem] à justificação
divina nessa instrumentalidade [...] Todavia, se a religo e a Igreja
pretenderem ser mais do que a simples fé do incircunciso”; se a
arrogância religiosa quiser elevar-se à categoria de um valor real [...]
serão inqualificáveis grandezas humanas dentro do próprio mundo que
desejam superar.
215
O teólogo suíço acrescenta que, nesse caso, quando a religião pretende ser
mais que uma testemunha ou indicação do além - considerando-se uma realidade em
211
Ibid., p. 202.
212
Ibid.
213
Ibid., p. 203.
214
Cf. Ibid.
215
Ibid., p. 203-204. Barth sublinha que toda religião, enquanto estiver do lado de cá, enquanto for
histórica, contemporânea, realidade palpável, es sujeita a essa regra, e dela não escapa a religião
legítima, sincera, profunda” (Ibid., p. 213).
49
si -, tal pretensão de grandeza absoluta que busca a semelhança com Deus se traduz
em impiedade e injustiça que suscita a ira de Deus.”
216
É no contexto dessa pretensão
religiosa que Barth destaca que nenhuma atitude humana é mais duvidosa, mais
arriscada, mais sujeita à crítica, do que a religiosa”
217
.
É justamente onde estiverem as mãos postas; onde houver a sensação viva
da presença de Deus; onde se falar das coisas divinas e onde estiver a
pregação; onde houver a construção de templos e onde as obras forem
motivadas por ideais e razões as mais dignas; onde houver missão e
mensagem da ordem mais elevada; é aí, que domina o pecado [...] quando
não estiver presente, também, a maravilha, o milagre do perdão, quando o
temor do Senhor não estabelece a disncia que medeia entre a criatura e o
Criador.
218
Para o autor, o único lugar onde a religião ganha real importância é no
contexto da graça divina: É pela graça que Abraão é Abro. É pela graça que a lei
tem significado; que a história tem sentido; e que a religião é uma verdade.”
219
Com
efeito, a indicação de que pela graça a religião se torna uma verdade parece se
aproximar da discussão sobre a verdadeira religião no § 17 de Church Dogmatics.
2.1.3 A Religião e a Lei
Assim como Barth estabelece uma relação entre a religião e a circuncisão ao
comentar o capítulo 4 de Romanos, que se refere à justificação de Abro, ele
também traça um paralelo entre a religião e a lei, tendo em vista que a lei constitui o
tema central do capítulo 7 de Romanos. De fato, a religião permeia todo o seu
comentário deste capítulo, cujos subtítulos são: o limite da religião, o significado da
religião e a realidade da religião.
2.1.3.1 O Limite da Religião
Ao abordar o tema do limite da religião, o autor parte do pressuposto de que a
religião é a última possibilidade humana. O teólogo suíço realça que neste mundo; é
na religião que a humanidade alcança [...] o seu cmax”
220
. Ademais, de positivo a
favor da religião, só se pode dizer que é nela que a humanidade tem a sua mais
216
Ibid., p. 213.
217
Ibid., p. 214.
218
Ibid.
219
Ibid., p. 218.
220
Ibid., p. 285.
50
profunda, mais pura e mais duradoura possibilidade”
221
Isso significa que dentre
todas as atividades humanas, a religião possui o sentido mais profundo, o mais puro;
entre todas as possibilidades humanas, é a religião que tem o maior poder vital e a
maior capacidade transformadora.”
222
Nesse sentido, Barth enfatiza que é necessário
reconhecer que o relacionamento com Deus tem também o seu lado humano,
subjetivo, histórico”
223
, ou seja, religioso. Aliás, é digno de apreciação o fato de que
existem homens religiosos; que o caráter formado pela religião, o pensamento
inspirado nela, e as obras que ela motiva, se expressam em milhares de formas, obras
e frutos que entram para a história.”
224
Em realidade, a religião também representa
uma das formas pelas quais Deus se vale para preparar o ser humano para que este se
converta e para acompanhá-lo depois dessa mudança de rumo; é pela religião que
Deus leva o homem consciente ou inconscientemente, a tomar uma posição.”
225
Embora seja possível criticar algumas manifestões religiosas, esta será
uma crítica relativa, e teremos que nos silenciar, embora também nossa aprovação
seja apenas relativa.”
226
Essa aprovação relativa se dá porque - apesar de seu relativo
direito de reconhecimento, confissão e defesa -, a religião ainda constitui uma
possibilidade humana, um aspecto histórico e real do homem, manifesto em seu
conteúdo psíquico, intelectual, moral e social e que é totalmente [inter-relacionada]
com o mundo e, portanto está também na penumbra do pecado e da morte.”
227
Barth
salienta que o respeito e a admiração que a religião merecer neste mundo não deve
obliterar a visão real de que qualquer absolutismo, transcendentalismo, e ligação
direta com Deus são ilusórios, fúteis, irreais”
228
. Assim, por ser humana, a religião é
considerada pelo autor uma possibilidade restrita, limitada, estreita e ineficaz.
229
O teólogo suíço destaca que o véu da religiosidade está sobre toda a
humanidade, seja de forma mais densa para uns ou mais tênue para outros.
230
Como
seres humanos que somos, vivendo neste mundo, não podemos estar indenes à
influência religiosa.”
231
Ele explica que a inevitável recordação humana de sua
221
Ibid., p. 284.
222
Ibid., p. 283.
223
Ibid., p. 282.
224
Ibid., p. 282-283.
225
Ibid., p. 283.
226
Ibid.
227
Ibid.
228
Cf. Ibid., p. 284.
229
Cf. Ibid., p. 355.
230
Cf. Ibid.
231
Ibid., p. 356.
51
ruptura com Deus cria experiências históricas e morais que impelem à religião.
Ademais, a própria gra divina acarreta tais experiências e, por isso, não está
dissociada da religião, da moral, do eclesiasticismo e da dogmática que se
cristalizaram em torno dessas experiências.”
232
Desse modo, a pretensa tentativa de
apresentar absoluta indiferença à religião, caracteriza uma empreitada imprudente e
pouco promissora, segundo o exemplo de Barth: embora possamos passar de um
compartimento para outro, não poderemos sair da casa.”
233
Todos os seres humanos
estão envolvidos nesta problemática da religião, nada se pode fazer para sair dessa
situação. Ainda assim, o autor aponta uma possível saída:
se estivermos mortos com Cristo, sepultados com ele, se, vistos desde a
cruz, não pertencemos a este mundo mas formos o que não somos,
isto é, se houvermos, realmente, sido arrancados do jugo da lei, então já
não estamos presos às possibilidades que a religião oferece, nem às suas
exigências; eno já estamos livres de toda e qualquer imposição
humana
234
Esta saída caracteriza a condição paradoxal tradicionalmente conhecida na
escatologia do Novo Testamento como o já” e o não ainda” - daqueles que, embora
ainda continuem envolvidos na trama dos acontecimentos religiosos. Pela graça da
reconciliação divina já se acham existencialmente na origem e no final da história.
235
Nesse contexto, seria possível, então, afirmar que o ser humano está libertado? O
autor explica que se o sentido expressão libertado indicar algum tipo de
característica ou qualidade visível, então estaremos novamente no campo da religião,
e a resposta será negativa.
236
Em realidade,
não sabemos o que dizemos e dizemos o que não sabemos quando
afirmamos que o lugar onde estamos, em que nos achamos, não é
território sujeito à lei, ou então, se dissermos que a religião é uma
possibilidade superada, ultrapassada, liquidada. Contudo, o afirmamos! O
afirmamos como o acontecimento do impossível’
237
Nas palavras de Barth, essa afirmação do impossível é movida pela verdade
que nos atinge como uma flecha lançada do outro lado do rio, uma verdade que vem
diretamente da parte de Deus.
238
Por isso, ele ressalta, a afirmamos como
232
Ibid., p. 355.
233
Ibid., p. 356.
234
Ibid., p. 360.
235
Cf. Ibid., p. 365.
236
Cf. Ibid.
237
Ibid.
238
Cf. Ibid., p. 366.
52
prisioneiros, todavia livres; como cegos, porém vendo”.
239
À luz dessa possibilidade
impossível há o vislumbre do limite da religião. Segundo o autor, sua fronteira
extrema está na linha da morte, que separa o campo das possibilidades humanas
daquilo que [só] é possível a Deus; é nessa linha que se faz a distinção entre a carne e
o espírito; entre a temporalidade e a eternidade”.
240
Ele acrescenta: Ainda bem que a
religião tem de morrer. É em Deus que nos libertamos dela.”
241
Barth explica que a
morte da religião ocorre no contexto da rendição e oferecimento de todas as
possibilidades humanas a Deus no Gólgota. A despeito de tudo o que a pessoa
religiosa seja, fa ou tenha, no Gólgota ela tributa somente a Deus a honra, o louvor
e a glória. Enquanto realidade histórico-espiritual que se projeta através da conduta
humana, a religião, vista a partir da cruz, é algo que precisa ser removido.
242
Portanto, é na linha limite de todas as possibilidades religiosas que terminam as
possibilidades humanas e começa a possibilidade de Deus”.
243
É ali na afirmação da
possibilidade impossível que seremos religiosos como se não o fôssemos”.
244
2.1.3.2 O Significado da Religião
Barth inicia sua discussão sobre o significado da religião asseverando que a
religião presume oferecer ao ser humano o mesmo tipo de relacionamento com Deus
que a graça oferece. É possível perceber aqui uma relação proporcionalmente
inversa: ao passo que a graça significa o relacionamento de Deus com o homem”,
245
a religião representa a destemida presunção do ser humano que se estende para
Deus”.
246
À luz dessa presunção a religião poderia facilmente ser identificada com a
noção de pecado”.
247
No entanto, o teólogo suíço advoga que igualar religião e
pecado representa uma confusão de conceitos. Quem pensa que a religião significa
pecado ainda não compreendeu o real sentido da religião. Barth explica que a
239
Ibid.
240
Ibid.
241
Ibid.
242
Cf. Ibid., p. 360.
243
Ibid., p. 368.
244
Ibid.
245
Ibid., p. 354.
246
Ibid., p. 372.
247
Barth define pecado da seguinte forma: Pecado é um assalto a Deus. Este assalto se perpetua
sempre na ousada transposição da linha da morte que foi traçada ante nós [...] no endeusamento do
ser humano. Este assalto a Deus se dá quando erigimos o Deus deste mundo, o Não-Deus para
nosso Deus, na rontica suposição de que poderemos ter acesso direto a Deus, sem passar como
ímpios e rebeldes que somos pela porta estreita da morte” (Ibid., p. 261)
53
religião é a atividade humana pela qual todas as suas demais possibilidades ficam,
notoriamente, expostas à luz de uma crise profunda, radical, que evidencia o pecado
e o torna real.”
248
Desse modo, quando desconsideramos a religião [...] então o
pecado já não tem destaque; a sua silhueta se perde por falta de pano de fundo”.
249
A
religião não é o pecado, mas é através da religião que o pecado se torna evidente.
Pois é especialmente na religião que a criatura manifesta a sua rebelião contra
Deus.
250
O teólogo suíço usa a queda humana para exemplificar esse princípio:
quando o ser humano estendeu sua mão à arvore do conhecimento para buscar aquilo
que não era (conhecedor do Bem e do Mal como Deus), ele encontrou sua própria
limitação, percebeu quem realmente era seus olhos se abriram para enxergar sua
distância e distinção de Deus. Assim, Barth considera que esta foi uma experiência
religiosa. A prédica da serpente pôs a afirmação divina em dúvida “certamente não
morrereis -, ao propor uma espécie de ligação direta do ser humano com Deus.
251
Através deste exemplo é possível perceber que o contraste existente entre
criatura e Criador, que é encoberto pelo pecado, somente se torna evidente na
religião.
252
Nesse sentido, Barth entende que quanto mais conseente for a nossa
religiosidade, quanto mais nos aprofundarmos nela, mais densa e mais profunda será,
sobre nós, a sombra da morte”.
253
Para ele, ao atender à cobiça que está acima de
todas as cobiças (a religião) - o desejo de voltar à ligação direta com Deus que foi
perdida e alcançar a semelhança de Deus -, o ser humano percebe que no final de sua
maior possibilidade, ele está de mãos vazias e ainda mais afastado de Deus.
254
Portanto, a religião representa o ponto onde todas as possibilidades humanas [...]
ficam expostas à luz divina”,
255
este é o seu significado.
É somente no homem religioso que vem à tona que o ser humano é carnal
e pecaminoso; que ele é um obsculo a Deus, que es sob a ira divina. É
na religião que se revela a total insuficiência do saber humano, a sua
instabilidade, a sua absoluta superficialidade; é na religo que se
patenteia a fraqueza da vontade humana
256
248
Ibid., p. 375.
249
Ibid.
250
Cf. Ibid., p. 380.
251
Cf. Ibid., p. 386-387.
252
Cf. Ibid., p. 388.
253
Ibid., p. 396.
254
Cf. Ibid., p. 397-398.
255
Ibid., p. 395.
256
Ibid., p. 285.
54
2.1.3.3 A Realidade da Religião
A caracterização da realidade da religião tem como ponto de partida a noção
de que a finalidade da religião é testificar o poder e o donio que o pecado exerce
sobre a criatura humana neste mundo: também a pessoa religiosa é pecadora e o é
justamente como religiosa.”
257
À luz dessa noção, o autor apresenta dois tipos de
religião que se contrapõem. A primeira é a religião do romantismo, que busca se
apresentar como meio de dignificar os conhecimentos humanos como obras de Deus
que acompanham todos os atos humanos qual música divina, conforme afirmou
Scheleiermacher.
A outra é chamada de a religião propriamente dita, conforme praticada por Jó,
Paulo, Lutero, Kierkegaard. Em seu caráter não-retórico ela reage tenazmente à
religiosidade inócua e insossa do romantismo, questionando toda a atividade humana
e os acontecimentos na história do mundo. Esta religião está longe de ser o lugar
agradável onde se encontra o bem estar do ser humano, mas é o ponto onde se revela
e se reconhece a enfermidade humana. Ela não pretende ser o coroamento do ser
humano ou a expressão de sua plena realização.”
258
Muito pelo contrário, esse tipo de
compreensão reconhece que a realidade da religião é luta e escândalo, pecado e
morte”.
259
Entende também que a religião não traz a solução nem a resposta à
pergunta vital da criatura neste mundo”,
260
antes ela é a infelicidade sob a qual,
provavelmente, terá de gemer secretamente, toda criatura que se chama humana”.
261
Em linguagem figurada, Barth assevera que o segredo que a religião
romântica busca encobrir não pode ser oculto em todo o tempo: a dinamite que ele
enterra entre flores - as flores tão enfatizadas e elogiadas pelo romantismo -
explodirá um dia,
262
pois a realidade da religião é a morte.
263
De fato, para Barth o
ser humano religioso que é o ser humano enquanto viver carrega em seu corpo a
lembrança constante de que pertence à morte. A realidade da religião é o espanto de
si mesmo que ela desperta no homem”.
264
De maneira geral, a relação entre a religião e a lei apresenta uma visão
profundamente negativa da religião. Ela representa o limite da possibilidade humana,
257
Ibid., p. 400.
258
Ibid., p. 401.
259
Ibid., p. 402.
260
Ibid.
261
Ibid.
262
Cf. Ibid., p. 414.
263
Cf. Ibid., p. 393.
264
Ibid., p. 415.
55
seu significado se expõe no poder que o pecado exerce sobre a humanidade, e sua
terrível realidade é a morte. Mas, no pensamento barthiano, é no contraste dessa
negatividade que se apresenta o Homem Novo, Jesus Cristo, aquele que está além
das possibilidades humanas, além do ser humano religioso.
265
Portanto, estar em
Cristo é a condição de liberdade, a solução do enigma da vida humana que se sente
esmagada pela peso insuportável da religião.
266
Pois estar em Cristo implica co-participação na supressão do velho
homem’.
267
Significa, dialeticamente, estar na interrogão de Cristo e, por isso,
também em sua resposta; estar em seu Não e, portanto em seu Sim; em seu
pecado e, por isso, em sua justificação; em sua morte e, por isso, em sua vida.”
268
Essa nova vida envolve a habitação do Espírito no ser humano, o que para Barth
representa a ressurreição:
269
O Espírito que recebemos ao sair da morte para a vida é
a supressão [da] duplicidade. A nova criatura, Cristo em nós, prevalece em sua
singularidade”.
270
Para o autor, se a religião se caracteriza pela duplicidade - o
dualismo entre o ser humano interior (se compraz na lei divina) e exterior (se opõe à
lei divina), o além e o aquém, o ideal e o material -
271
a nova criatura se caracteriza
pela singularidade. Esta é a realidade do ser humano que está em paz, adotado como
filho, redimido e liberto de todas as antinomias, uno em Deus.
272
2.1.4 A Religião e a Igreja
Como foi visto na discussão acerca da relação entre religião e circuncisão,
Barth utiliza os termos religião e igreja quase como sinônimos. Em seu comentário
sobre os capítulos de Romanos que se referem a Israel, Barth traça um paralelo direto
265
Cf. Ibid.
266
Cf. Ibid., p. 446.
267
Cf. Ibid., p. 428.
268
Ibid., p. 442.
269
Cf. Ibid., p. 456. A compreensão barthiana da ressurreição parece ser paradoxal. De um lado es a
declaração que denota a possibilidade da vida atual: a ressurreição “é um modo de ser, ter e de agir da
nova criatura que se relaciona com a maneira de ter, ser e agir da criatura velha (Ibid., p. 354). De
outro, eso as afirmações de uma possibilidade que es além da vida atual: Vemos o transcorrer da
nossa vida à sombra do Dia de Jesus Cristo, que ainda não raiou, mas es infinitamente próximo.
(Ibid., p. 473); o nosso tempo é o tempo do presente século e [...] a eternidade é o Dia de Jesus
Cristo, que não é ‘um dia mas o Dia de todos os dias e que existe desde antes, após e acima dos dias
de nossa vida (Ibid., p. 483). É provável que esse paradoxo se alinhe à noção escatológica do “já” e
não ainda, que também pode ser percebido na discussão acerca do “Limite da Religo.
270
Ibid., p. 464.
271
Cf. Ibid., p. 414.
272
Cf. Ibid., p. 505.
56
entre Israel, a igreja e o mundo religioso,
273
pois ele entende a igreja como religião
organizada.
274
Dessa forma, é possível perceber que quando Barth discute sobre a
igreja, ele está, de fato, falando sobre a religião. Aliás, esta relação de identificação
se torna ainda mais evidente através da comparação de duas afirmões: o mais
lindo pináculo das atividades humanas a Religião [...] produz a ira de Deus”
275
; e
no pináculo das possibilidades humanas, o ponto mais alto será sempre a torre da
Igreja”
276
. Assim como a abordagem barthiana da religião, em seu comentário sobre
a lei, está disposta em três partes - o limite, o significado e a realidade da religião -,
as considerões acerca da igreja estão organizadas em três etapas: a tribulação, a
culpa e a esperança da igreja.
2.1.4.1 A tribulação da Igreja
O autor salienta que, na igreja, o mundo do além se transforma em um
mundo metafísico que representa apenas uma simples extensão do mundo concreto.
Tal transformação permite que o mundo do além possa ser conhecido pelo ser
humano. Semelhantemente, na igreja, Deus se desvincula do Princípio e Fim que
o ser humano desconhece, e é levado para o centro do conhecimento humano. Assim,
a Igreja apresenta a fé, o amor e a esperança, a nossa filiação a Deus e o Reino de
Deus como se fossem coisas que se poderiam ter, ser, esperar ou obter pelo nosso
esforço.”
277
Em outros termos, “a Igreja é a tentativa mais ou menos geral e enérgica
de humanizar aquilo que é divino”,
278
pois procura transformar o caminho
incompreensível e inevitável, em vereda que pode ser entendida.”
279
De outro modo, Barth ressalta que se a igreja deseja ser fiel ao evangelho,
mais alto ela exclamará o Não divino, apontando para a cruz da renúncia, do
sofrimento, da vergonha, da dor e da aflição”,
280
ao proclamar “a absoluta
necessidade de o homem perder a sua vida para ganhá-la.”
281
Segundo o teólogo
suíço, só assim, a igreja não servirá de ópio para o povo, antes proporcionará seu
despertamento. Em uma perspectiva ideal, a igreja visível representa o corpo de
273
Cf. Ibid., p. 515.
274
Cf. Ibid., p. 528.
275
Ibid., p. 328.
276
Ibid., p. 526.
277
Ibid., p. 516.
278
Ibid.
279
Ibid.
280
Ibid., p. 517.
281
Ibid.
57
Cristo. Nesse sentido, o autor salienta que aqueles que dela participam não objetivam
simplesmente a entrada no u, mas almejam amar a Deus. A entrada” no u não é
pretendida em primeira instância, pois eles já não confiam em seus dotes, seus bens
materiais, seu saber, seu estofo moral, sua espiritualidade, sua fé; não buscam nem
pedem recompensa, porque sabem que nada merecem.”
282
Apenas vivem na
esperança, através da fé, crendo que somente Deus é poderoso para salvá-los.
Contudo, Barth reconhece que, de forma concreta, a igreja faz parte do
mundo humano e, por isso, é natural que ela caia repetidamente no pecado
fundamental, na origem específica da queda do homem: o desejo de tornar-se igual
a Deus”.
283
Aliás, quanto mais a criatura tratar de seu relacionamento com o Criador
mais será o seu anseio de aproximar-se dele diretamente, contornando a cruz.”
284
A
percepção dessa tendência natural permite, portanto, o reconhecimento de que a
Igreja, sendo constituída por membros ainda sujeitos ao corpo desta morte, está em
natural oposição ao próprio Evangelho”.
285
Nesse contexto, em linguagem figurada,
Barth indica que a tentativa de abandonar a igreja e entrar num bote salva-vidas para
fugir da catástrofe inevitável que lhe ameaça não faz qualquer sentido. Assim como
não há qualquer vantagem em se colocar como inimigo ou detrator dela. Para o
teólogo suíço, não é a troca ou o abandono da confissão religiosa que transforma o
ser humano, mas a graça dada por Deus.
286
toda e qualquer polêmica anti-religiosa só tem sentido se o seu objetivo
for a afirmação de que só a Deus pertence a honra e jamais o polemista
[...] ao alçar a sua voz para lembrar a si mesmo e à Igreja da eternidade, o
Profeta [Paulo] prefere estar em todo instante do tempo presente com a
Igreja [...] no inferno, a estar com os pietistas [...] em um u que não
existe. [...] Cristo está lá onde se reconhece inconsolavelmente que fomos
banidos de sua presença
287
Dessa forma, o autor sublinha a relativa importância do papel da igreja no
contexto da justificação divina, pois “é justamente na realidade da Igreja que se
contempla o invisível e é nesta conjuntura humana que os olhos se abrem para ver a
Deus.”
288
É depois que o ser humano chega ao extremo do beco sem saída do
humanismo eclesiástico, que se pode considerar o tema Deus de forma séria e
282
Ibid.
283
Ibid., p. 518.
284
Ibid.
285
Ibid., p. 523.
286
Cf. Ibid.
287
Ibid., p. 524.
288
Ibid., p. 525.
58
radical.”
289
Assim, a atividade Eclesiástico-Religiosa não pode ser evitada [... pois]
no presente século o relacionamento não-eclesiástico entre criatura e Deus é tão
impossível quanto a inoncia paradisíaca.”
290
Logo, Barth assevera: não podemos
contornar a Igreja e [...] fora dela não podemos prosseguir”.
291
Na visão barthiana, a tribulação da igreja ocorre precisamente na tensão
existente entre a sua perspectiva ideal, encontrada na sua vocação divina, e sua
realidade humana, natural e concreta. De acordo com sua realidade humana, a igreja
pretende alcançar o cumprimento da promessa [divina] deste lado da existência e,
como tudo o que é humano, quer viver para sempre e triunfar.”
292
Mas na perspectiva
de sua vocação divina, ela precisa viver da promessa e diminuir sempre para que
[Cristo] cresça.”
293
Contudo, embora essa tribulação seja a fonte de sua aflição, ela é
também a fonte da esperança da igreja.
2.1.4.2 A culpa da Igreja
Barth explora o tópico da culpa da igreja na perspectiva da tendência natural
de sua realidade humana, conforme abordado na questão da tribulação da igreja.
Nesse sentido, são esboçadas diversas críticas à igreja a partir de um eixo comum: a
falta do elemento da fé.
O autor utiliza o pensamento de Lutero ao afirmar que a igreja necessita ter a
ousadia de começar pela escuridão da fé”.
294
Mas ele considera que ao longo dos
séculos a igreja não apresentou esse tipo de coragem, preferindo orientar-se pela
visibilidade das obras. Para ela, a atitude de fé exibida em Hebreus 11 pareceu
acentuadamente perigosa e desumana. Ela não deseja ser estrangeira no mundo, nem
isolada na solidão do deserto. Por isso, nas palavras de Barth a igreja não se
conforma em permanecer no ponto inicial do Cristianismo a paixão do Cristo
abandonado , onde os ponteiros do relógio do tempo ainda não marcavam a
ressurreição. Ela tem muita pressa. Está faminta da alegria da festa nupcial.
295
Assim, ao contrário da proposta de vacuidade da fé, a igreja busca ser
popular, moderna, atualizada, triunfante, altiva. Mas desse modo, Barth indica que
289
Ibid.
290
Ibid., p. 521.
291
Ibid., p. 525.
292
Ibid., p. 536.
293
Ibid.
294
Ibid., p. 568.
295
Cf. Ibid.
59
ela nunca será a igreja de Deus, pois não conhece nem almeja o arrependimento.
296
Por outro lado, a proposta da fé aponta a necessidade de a igreja despertar e viver
[a] religião que seja [apenas] sinal e testemunho”.
297
Barth enfatiza essa vacuidade
afirmando que é preciso estar com as mãos vazias para agarrar aquilo que, na
realidade, somente mãos vazias podem segurar”.
298
Deve-se enfatizar, no entanto, que a abordagem barthiana da culpa da igreja
não pode ser entendida como uma crítica puramente anti-eclesiástica ou anti-
religiosa. O autor deixa claro que quando falamos da Igreja, falamos de nós
mesmos”,
299
porque fazemos parte desta Igreja culposa”.
300
Assim, ao tratar da
culpa da igreja, todos aqueles que levam o incontornável problema da Igreja a sério
tanto são acusados como acusadores.”
301
2.1.4.3 A esperança da Igreja
Ao ponderar sobre a esperança da igreja, o teólogo suíço expõe a chave de
entendimento da problemática da aparente rejeição de Israel aliada à salvação dos
gentios, conforme registrada nos capítulos 9 a 11 de Romanos, que é aplicada
diretamente ao contexto da igreja e da religião. A base inicial para a exposição de tal
chave é a reiteração da realidade ambígua da igreja, visto ser ela também o lugar
onde a inimizade do homem contra Deus vem a público”.
302
Barth entende que a
igreja gera e desenvolve uma criatura piedosa que através de todo o seu
conhecimento, suas obras e orões, se sente justificada diante de Deus,
303
pois
presume ter encontrado um caminho direto entre os homens e Deus”.
304
No entanto, o autor pondera que enquanto o indivíduo religioso segue por este
pretenso caminho direto, este percebe que outros, que não são da igreja, antes estão
fora dela, que estavam em um caminho indireto, receberam aquilo que ele buscava,
experimentaram o poder da ressurreição. Esta mensagem do caminho indireto, então,
testifica a inutilidade do caminho direto, a catástrofe da justiça ou retidão humana.
305
296
Cf. Ibid., p. 571.
297
Ibid., p. 578.
298
Ibid., p. 586.
299
Ibid., p. 572.
300
Ibid., p. 573.
301
Ibid., p. 572.
302
Ibid., p. 642.
303
Cf. Ibid.
304
Ibid., p. 643.
305
Cf. Ibid., p. 646.
60
Segundo a linguagem bíblica, os gentios que antes eram rejeitados, agora
foram eleitos.
306
Surge o que Barth chama de Igreja de Jacó”.
307
Ao passo que os
judeus e as pessoas de igreja, que antes eram eleitos, agora foram rejeitados. Estes
formam a Igreja de Esaú. O autor comenta que a revelação divina, primeiramente,
privilegiou a Israel (a igreja). Mas ao invés de buscar amar a Deus e ao próximo, este
se materializou como Esaú, procurando valer-se do seu direito nato de
primogenitura”,
308
e se ensoberbeceu como Faraó, ao confiar em seu poderio real e
seus bens materiais.
309
Portanto, os papéis então se invertem. O antigo depositário da
promessa divina, o ser humano religioso buscou para si a justificação meritória e se
opôs a Deus, despertou sua ira. Assim, sacrificado e abandonado dentro da igreja, o
ser humano religioso dá lugar à justificação forense dos não-religiosos.
310
Mas Barth enfatiza que através do endurecimento e rejeição dos que
pertencem à igreja e da eleição dos que dela não fazem parte. Deus fala a ambos:
rejeitados e eleitos. Em primeiro lugar, os atualmente eleitos perceberão que se Deus
não poupou aqueles que presumiam “adorá-lo na exteriorização do culto, muito
menos poupará a eles que nem isto fazem”.
311
Por sua vez, os religiosos rejeitados
entenderão que se Deus usou de misericórdia para com aqueles que não
306
Em sua interpretação existencial, Barth não aplica aos termos rejeição e “eleição uma noção
histórica que busque dissociar dois grupos de seres humanos, representados por gentios e judeus. Em
realidade, para Barth a eleição ou predestinação “é o segredo do ser humano e não desta ou daquela
pessoa” (Ibid., p. 538). Por isso, rejeição e eleição parecem funcionar de maneira dialética: Deus é o
princípio e, por isso também o último. Deus rejeita, por isso também elege; Deus condena e por isso,
também agracia. Deus leva ao inferno e por isso também conduz para fora dele. (Ibid., 606).
307
Cf. Ibid., p. 647. Em sua contraposição entre Igreja de Esaú e Igreja de Jacó, Barth enxerga na
primeira a igreja visível e conhecida, enquanto que a segunda se refere a uma igreja impossível (do
ponto de vista humano), invisível e desconhecida (cf. Ibid., p. 530). Mas conforme a nota anterior
explicita, Barth não procura categorizar historicamente dois tipos de igreja ou pessoas, mas vê aqui
uma relação dialética: Jacó é o Esaú invisível e Esaú o visível Jacó (Ibid., p. 538).
308
Ibid., p. 645.
309
Cf. Ibid.
310
Cf. Ibid., p. 645. Em sua discussão acerca da oposição entre igreja” (religiosos) e mundo
(gentios, não-religiosos), Barth não entende que essas categorias devam ser interpretadas como
grandezas históricas, mas sim dialéticas. Portanto, no raciocínio dialético Igreja” e Mundo são
mantidos unidos pela infinita diferença qualitativa entre Deus e o ser humano ali significa a
rejeição e aqui a eleição. Este vínculo torna [...] impossível dissociar a humanidade para formar os
dois respectivos grupos. (Ibid., p. 624). A partir desse esclarecimento, é possível perceber que as
contínuas contraposições que caracterizam as discussões de Barth não devem ser interpretadas como
grandezas históricas: nova criatura/ velha criatura; eleição/rejeição; judeus/gentios. (cf. Ibid., p. 639).
Nessa teologia dialética, a figura de Jesus Cristo exerce o papel fundamental de síntese: Enquanto a
temporalidade e a eternidade, retidão humana e Justiça divina, o aquém e o além, são definitiva e
indubitavelmente separados entre si, em Jesus, também nele são eles unidos e unificados, em Deus
(Ibid., p. 172).
311
Ibid., p. 645.
61
[confessavam...] ostensivamente o seu santo nome, tanto mais se compadecerá deles,
que o confessam e porfiam por servi-lo.”
312
Desse modo, Barth interpreta a atitude de Deus em rejeitar o ser humano
religioso, constitui também um ato de amor e misericórdia para com ele. Talvez, só
com o quadro vívido do perdão e da compaixão divina em favor dos não-religiosos
que nada possuíam para justificar esse perdão, ele possa cair em si, e buscar nada
mais que esvaziamento e carência da graça de Deus. Utilizando uma frase de
Nietzsche, Barth pondera:
Só onde existem túmulos, há ressurreições (Nietzsche), mas há
ressurreições onde sempre existem túmulos. Onde a Igreja estiver extinta
(não por força do desejo ou voto humano, mas pelo julgamento
divino!) ela tem o seu início; quando ela for destituída completamente
da razão (da justificação), coma sua razão. Onde e quando todas as
Igrejas estiverem liquidadas (por Deus!), aí e eno todas elas subsistem;
e então todas são indicação, soleira de entrada, flecha indicativa da
outra margem do rio; testemunhas da esperança, mensageiros da filiação
em Cristo, tabernáculos de Deus entre os homens.
313
Na perspectiva barthiana, a chave de compreensão de todo o livro de
Romanos se encontra neste terrível e inquietante axioma: Porque Deus a todos
encerrou na desobediência, para que tenha compaixão de todos.”
314
Esta afirmação
deixa nítida a implicação de que não há caminho direto para Deus. Na linguagem
barthiana, não é possível agarrá-lo ou amarrá-lo, nem entrar em relacionamento de
reciprocidade com ele. Portanto, a partir da perspectiva deste axioma, especialmente
em suas implicações, nas palavras de Barth, a falácia da religiosidade humana é
desmascarada e anulada.
2.2 A crítica da religião em Church Dogmatics
Como mencionado anteriormente, o tema da religião aparece na Church
Dogmatics, de forma específica e concentrada, no § 17, que é traduzida na versão
convencional como The Revelation of God as the Abolition of Religion. Neste
texto, a discussão de Barth acerca da relação entre revelação e religião está
estruturada em três partes principais: (1) o problema da religião na teologia; (2)
312
Ibid.
313
Ibid., p. 640.
314
Ibid., p. 648. Citação de Romanos 11:32. Há aqui uma direta conexão entre este axioma e o que
para Lutero representava o ponto central desta epístola e de toda a Escritura: Porque não há distinção,
pois todos pecaram e carentes eso da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente, por sua graça,
mediante a redenção que há em Cristo Jesus Romanos 3:22-24 (Ibid., p. 149).
62
religião como ausência de fé; e (3) a verdadeira religião. Este trabalho contemplará a
apresentação desse texto a partir de uma leitura comparada, em inglês, da tradução
convencional de Church Dogmatics e a nova tradução provida por Garrett Green em
On Religion.
2.2.1 O problema da Religião na Teologia
Barth inicia sua problematização da religião na teologia destacando que o
evento da revelação de Deus, tanto a realidade quanto a possibilidade do evento da
revelação se dá unicamente a partir da existência e da ação de Deus.
315
Tal percepção
impede qualquer tentativa de compreensão dual da revelação, isto é, a noção de que
sua realidade se encontra em Deus, mas sua possibilidade no ser humano; ou em
outros termos, a atribuição do evento da revelação a Deus, mas o seu ponto de
contato ao ser humano. Assim, para Barth este evento não se caracteriza pela
reciprocidade entre Deus e o ser humano, entre a graça e a natureza. Logo, na visão
do autor, não se pode considerar Deus como substância, e o ser humano como forma
da revelação.
316
Contudo, o teólogo suíço reconhece que a revelação é um evento que
encontra o ser humano, e por isso, em certo sentido, ela ganha a forma da existência,
experiência e atividade humana. É precisamente neste ponto que surge o problema da
religião.
317
Assim, se a revelação assume a forma de um fenômeno humano, ele pode
ser compreendido histórica e psicologicamente, e estudado em sua natureza,
estrutura, e valor assim como outros fenômenos humanos. Seguindo essa perspectiva,
o autor indica que esse entendimento da revelação parece ser, necessariamente,
apenas uma esfera particular no universo da religião. Desse modo, o Cristianismo ou
a religião cristã” seria apenas um predicado para um sujeito que pode ter outros
predicados, pois ao lado do Cristianismo há o Judaísmo, Islamismo, Budismo,
Xintoísmo e todos os tipos de animismo, totemismo e religiões asticas, sticas e
proféticas. Nesse caso, nos termos barthianos, o Cristianismo figura como uma face
ao lado de outras faces humanas.
318
315
Cf. Karl Barth, Church Dogmatics. I/2. Edinburgh: T&T Clark, 1956, p. 280.
316
Cf. Ibid.
317
Cf. Ibid.
318
Cf. Ibid.
63
Segundo esse ponto de vista, Barth assevera que o ser humano,
universalmente - portanto além dos limites do Cristianismo -, parece se sentir
confrontado por certas forças superiores que exercem influência sobre o mundo.
Parece que, em todas as épocas e lugares, a cultura humana em geral, e a existência
humana em particular, está relacionada com algo último e decisivo que caracteriza
um poderoso rival de sua própria vontade e poder. Nesse sentido, tanto a cultura
como a existência parece ser determinada, ou parcialmente determinada, pela
reverência a algo ostensivamente maior que o homem, por algum Outro ou
Totalmente Outro, por um Supremo Relativo ou mesmo Absoluto.”
319
Da mesma forma, em quase todas as épocas e lugares há a noção da realidade
e possibilidade de consagração ou santificação da vida humana com base em um
esforço individual ou social que se refere a um evento que vem do além, que
geralmente resulta na representação concentrada do objeto ou alvo do empenho, ou
da origem do evento, em imagens de deuses. Barth ressalta que é difícil encontrar um
tempo ou lugar onde o ser humano não afirme ouvir a voz da divindade, cuja
mensagem deve ser investigada e proclamada,
320
e não esteja consciente da
obrigação de oferecer adorão através das formas concretas de culto, tais como o
uso de imagens e símbolos dos deuses, sacrifícios, atos de expiação, orões,
costumes ou formação de congregões ou igrejas. Ele também identifica temas
comuns que permeam universalmente a mentalidade humana nas diversas religiões: o
início e fim do mundo, origem e natureza do ser humano, lei moral e religiosa,
pecado e redenção. Portanto, a própria prática da piedade representa uma postura
universal do ser humano nas várias religiões.
321
O que Barth procura salientar em todas essas observões é que o
Cristianismo não se difere das outras religiões. Em sua revelação Deus entra na
esfera onde sua própria realidade e possibilidade está cercada por inúmeros paralelos
e analogias de realidades e possibilidades humanas. Assim, a revelação representa a
presença e o ocultamento de Deus no mundo da religião humana. Pela revelação de si
mesmo, o particular de Deus está oculto na universalidade humana, o conteúdo
divino na forma humana. Na medida em que represente a revelação de Deus ao ser
humano, as realidades de Deus em si mesmo, o derramamento do Espírito Santo, e a
319
Ibid., p. 282.
320
Cf. Ibid. Barth cita alguns exemplos: os Vedas para os hindus, Avesta para os persas, Tripitaka
para os budistas, Corão para os islâmicos e a Bíblia para os crisos.
321
Cf. Ibid.
64
encarnação da Palavra, de certo modo podem ser percebidas a partir do fenômeno
humano religioso, pois estas realidades se encontram ocultas ao lado de outros
conteúdos desse fenômeno, que por outro lado inviabilizam a percepção direta do
conteúdo da particularidade divina.
322
Através dessas considerões, o teólogo suíço questiona a possibilidade de
isolar o Cristianismo do mundo da religião, sublinhando, em certa medida, a crítica
de Strauss
323
àqueles que defendem o caráter sobrenatural e revelacional do
Cristianismo. Desse modo, o autor propõe entender o Cristianismo também como
religião, isto é, também como realidade e possibilidade humana. Ao fazer tal
proposição, ele procura explicar o que significa exatamente o termo também nesse
contexto. Segundo Barth existem duas formas de explicá-lo.
324
Mas antes de
apresentar as duas possibilidades, é necessário clarificar a questão central: Barth não
discute aqui se a revelação divina deve ser considerada também como religião
humana, e então uma religião entre outras, pois negar essa asserção significaria
desconsiderar o aspecto humano da revelação e, por conseguinte, negar a revelação
como tal. Em realidade, o foco do pensamento de Barth está em como interpretar e
aplicar essa asserção. A primeira possibilidade dessa interpretação e aplicação se
caracteriza pelo uso da religião como parâmetro para explicar a revelação de Deus,
ao passo que, inversamente, a segunda possibilidade envolve a interpretação da
religião cristã e das outras religiões pelo que é chamado de revelação de Deus.
325
A partir dessas duas possibilidades, o teólogo suíço expõe uma série de
temas contendo duas perspectivas divergentes, cuja primeira perspectiva se alinha
respectivamente à primeira possibilidade (o parâmetro da religião), enquanto que a
segunda perspectiva se alinha à segunda possibilidade (o parâmetro da revelação):
(1) considerar a religião como o problema da teologia e (2) considerá-la apenas
como um problema na teologia; (1) considerar a igreja como uma sociedade
religiosa e (2) considerá-la como uma situação na qual mesmo a religião é
sublimada” no mais abrangente sentido da palavra; (1) considerar a fé como uma
forma da piedade humana e (2) considerá-la como uma forma do julgamento e da
322
Cf. Ibid., p. 282-283.
323
David Friedrich Strauss (1808–1874) foi o teólogo aleo que ficou conhecido como pioneiro da
investigação histórica de Jesus.
324
Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 283.
325
Cf. Ibid., p. 283-284.
65
graça de Deus, a qual é natural e concretamente conectada à piedade do ser humano
em todas as suas formas.
326
Em sua análise histórica, o autor identifica que o Protestantismo moderno dos
séculos XIX e XX, desenvolvido a partir de suas raízes dos séculos XVI e XVII,
optou pela primeira perspectiva, isto é, decidiu explicar a revelação do ponto de vista
da religião, e não a religião do ponto de vista da revelação. Nesse sentido, Barth cita
Paul de Lagarde
327
ao ressaltar que o termo religião é introduzido nesse contexto em
oposição à palavra fé, pressupondo o criticismo deísta do conceito cristão tradicional
da revelação.
328
Ao voltar seus olhos para a história da teologia, Barth enfatiza que,
no período medieval, Tomás de Aquino falava da religião no contexto da fé cristã.
Sua noção de religião não contemplava qualquer manifestação que estivesse fora do
Cristianismo. Portanto, a religião enquanto conceito genérico ao qual o Cristianismo
estaria subordinado, como um entre outros, é completamente estranho para Aquino.
Posteriormente, depois do surgimento do humanismo, Calvino falou da religião
cristã, inclusive no título de sua obra magna. Mas ele não tinha a intenção de fazer do
Cristianismo um predicado de algo neutro e universalmente humano. De fato, o que
ele descreve como religião pura e real nas Institutas é a fé aliada ao temor de Deus.
O seu conceito de religião deriva-se das Escrituras, na qual o universal é sublimado
no particular, a religião na revelação, e não vice-versa. A religião, para ele, recebe
seu conteúdo e sua forma da revelação, no contexto do Cristianismo.
329
Na compreensão barthiana, embora a problemática da religião em seu
relacionamento com a revelação apareça como assunto importante já desde o
surgimento da Renascença,
330
de maneira geral, não há uma discussão sistemática do
conceito de religião desde os antigos teólogos ortodoxos luteranos e reformados,
331
até a ortodoxia luterana e reformada da segunda metade do século XVII. Ali, o
326
Cf. Ibid., p. 284.
327
Paul Anton de Lagard (1827-1891) foi um teólogo aleo, geralmente considerado anti-semita e
anti-capitalista. Para uma discussão geral da oposição entre a fé a religo na teologia veja John
Thornhill, Is religion the enemy of faith? Theological Studies, v. 45, 1984, p. 254-274.
328
Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 284.
329
Cf. Ibid., p. 285.
330
Barth indica que o problema já havia sido colocado na Idade Média por Claudius de Turin, John
Scot Erigena e Abelardo. Mas ele se tornou importante apenas depois do despontar da Renascença.
(Cf. Ibid., p. 284).
331
Barth destaca aqui os nomes de J. Gerhard, L. Hutters na ala luterana e Bucan, H. Alting,
Gomaruse Voetius, J. Coccejus na ala reformada (Cf. Ibid., p. 285).
66
conceito de religião ainda é preenchido apenas pelas Escrituras. Portanto, não há
como apontar algum desvio da linha adotada por Calvino nesse período.
332
No entanto, a mudança começa a ocorrer com o florescimento do chamado
Neoprotestantismo, um movimento da ortodoxia racional do início do século XVIII.
O autor ressalta as idéias de dois teólogos desse período: Salomon van Til (1643-
1713) da ala reformada, e J. Franz Buddeus (1667-1729) do lado luterano.
Panoramicamente, van Til concebia a religião enquanto categoria universal, natural e
neutra, que servia de pressuposição e arcabouço para todas as religiões. Por sua vez,
Buddeus falava de uma religião natural no ser humano que servia como base para o
conhecimento do Ser supremo.
333
Em linhas gerais, ao discorrerem sobre a natureza e
o papel de uma religião natural, van Til e Buddeus utilizavam conceitos da Teologia
Natural, enfatizando consideravelmente o uso da razão e do intelecto humano.
Todavia, ambos reconheciam a necessidade de resguardar o espo e a primazia da
revelação. Van Til, por exemplo, apontava que o princípio da religião ou da razão
não deve ocupar o mesmo lugar do princípio da fé. Em sua diferenciação, ele
entendia que a religião é simplesmente um conhecimento inicial do ser humano
acerca de si mesmo e de Deus. Já Buddeus esclarecia que a religião natural não é
suficiente para alcançar a salvação, indicando a indispensável necessidade de
completar a limitação religião natural com a revelação.
334
Contudo, para Barth, as implicações de suas idéias elevaram a religião ao
posto de elemento central do pensamento teológico, que por sua vez passou a
representar a pressuposição, o critério, o arcabouço necessário para o entendimento
da revelação. Desse modo, o novo ponto de partida teológico que foi sugerido desde
a Renascença se tornou uma realidade. Enquanto a religião assumiu-se como
categoria humana neutra e universal, a revelação foi entendida meramente como a
confirmação histórica do que o ser humano pode conhecer sobre si e sobre Deus.
335
Com efeito, van Til e Buddeus não queriam obliterar a revelação. De certo modo,
eles e outros teólogos daquela geração sabiam salvaguardar os direitos da revelação.
Aliás, o principal objetivo deles era encontrar uma concordância entre o dogma
tradicional bíblico e os postulados da religião natural, permitindo a afirmação de uma
genuína religião da revelação. O resultado esperado era estabelecer a religião cristã
332
Cf. Ibid., p. 287.
333
Cf. Ibid., p. 288.
334
Cf. Ibid., p. 289.
335
Cf. Ibid.
67
como a mais adequada resposta do mundo religioso por ser a religião da revelação,
merecendo, por isso, prioridade sobre as outras religiões. De maneira geral, expressa
Barth, eles não fizeram nenhum desvio notável da linha ortodoxa do século XVII.
336
Mas o autor entende que, ao inverterem o ponto de partida da teologia, os
efeitos foram ganhando forma e força. A filosofia de Christian Wolff nivelou razão e
revelação. O racionalismo kantiano reduziu a religião natural à ética natural, e
praticamente anulou a revelação, que foi concebida como realização do poder moral
da razão. Inversamente, Schleiermacher tentou encontrar na religião (entendida como
sentimento) a essência da teologia, percebendo a revelação como uma impressão
particular que produz um sentimento particular, e então uma religião particular. Por
sua vez, na perspectiva de Hegel e Strauss a religião cristã e natural era apenas uma
forma preliminar, para ser sublimada dentro do conhecimento absoluto da filosofia.
Já em Feuerbach há espo para a religião natural apenas como expressão ilusória
dos desejos do corão humano. Na análise da religião natural, E. Troeltsch procurou
comparar de forma apreciativa as várias religiões do mundo no contexto do
fenômeno da história universal das religiões, e chegou à conclusão de que o
Cristianismo é ainda relativamente a melhor religião.
337
Para Barth, todos esses exemplos rápidos e gerais dão testemunho da invasão
da igreja e da teologia pela religião natural, algo que van Til e Buddeus nunca
poderiam ter sonhado. Mas, para o teólogo suíço, eles e a respectiva geração que os
acompanhou devem ser considerados como os pais da teologia Neoprotestante, um
caminho muito diferente daquele trilhado e indicado pela tradição da Reforma.
338
Portanto, na perspectiva barthiana da história da teologia, todos esses exemplos
traçados no parágrafo anterior são simples variações de um único tema introduzido
principalmente por van Til e Buddeus: não é a religião que deve ser entendida à luz
da revelação, mas a revelação entendida à luz da religião. Em realidade, para Barth,
todas as ênfases e tendências da teologia moderna podem ser reduzidas a esse
denominador comum. É por isso que ele chama o Neoprotestantismo de
religionismo”.
339
A partir de sua análise histórica, o teólogo suíço afirma que a teologia
protestante nunca teria praticado a inversão da relação entre revelação e religião se
336
Cf. Ibid., p. 289-290.
337
Cf. Ibid., p. 290.
338
Cf. Ibid.
339
Cf. Ibid., p. 291.
68
não tivesse hesitado exatamente no ponto em que os Reformadores mais
enfaticamente confessavam e defendiam: Jesus Cristo como Senhor do ser humano.
Nesse sentido, o ser humano pertence a Jesus Cristo e vive para servi-lo em seu
reino.
340
De fato, os séculos XVI a XVIII contribuíram para uma percepção bastante
diversa desse princípio. Esse foi o grande período em que o ser humano europeu
retomou uma aspiração que caracterizava a Antiidade greco-romana: a descoberta
das potencialidades humanas, na qual também se insere a redescoberta da religião e
sua ênfase. Especialmente nos século XVII e XVIII o ser humano se tornou o centro,
a medida e o fim de todas as coisas. Na linguagem de Barth, ao participar desse
paradigma antropontrico, a teologia moderna julgou que poderia levar o ser
humano a sério a partir de outro ponto de vista, que não fosse o reino e o senhorio de
Cristo, tornando-se um capítulo especial que precede a palavra de Deus falada ao ser
humano. O resultado inevitável dessa empreitada foi a negação ou omissão da real
substância da fé.
341
O autor indica que a grande catástrofe da teologia moderna protestante foi a
perda de seu objeto: a revelação em toda a sua singularidade. Nisso se perdeu
também a semente da fé que poderia remover montanhas, mesmo as montanhas da
cultura humanista moderna. Essa perda se evidencia pela troca da revelação pelo
paradigma da religião.
342
Nesse sentido, talvez a expressão barthiana que melhor
caracterize a postura dessa teologia é a falta de fé”. Através dessa exemplificação
histórica, Barth esclarece que a tentativa de classificação sistemática da revelação e
da religião, que busca estabelecer algum tipo de relação entre elas como se estas
estivessem em esferas comparáveis, representa um erro crucial. Em realidade, esse é
o ponto de vista da religião, a visão humana que tende a subordinar a revelação à
religião. Logo, quem procura comparar ou conciliar revelação e religião não
entendeu ainda o que é a revelação, que se define, no pensamento do teólogo suíço,
pela soberania de Deus lidando com o ser humano.
343
Para Barth, é o ponto de vista da analogia da fé que provê o parâmetro
adequado para entender a revelação e a religião. Mais especificamente, o paradigma
cristológico da encarnação da Palavra: em Jesus Cristo, Deus e ser humano formam a
unidade de um evento completo. Semelhantemente, a unidade da revelação divina e a
340
Cf. Ibid., p. 292.
341
Cf. Ibid., p. 293-294.
342
Cf. Ibid., p. 294.
343
Cf. Ibid., p. 294-295.
69
religião humana constitui um evento - que ainda deve ser completado. Em ambos
Deus é o sujeito do evento. Assim como no primeiro caso, o homem Jesus não existe
antecipadamente de forma abstrata, mas somente na unidade do evento cujo sujeito é
Deus, também no segundo caso o ser humano com sua religião deve ser visto
estritamente como o ser humano que segue a Deus, isto é, que é precedido por
Deus.
344
Resumidamente, o que Barth procura estabelecer em sua discussão do
problema da religião na teologia é que:
em Sua revelação Deus es presente no meio do mundo da religião
humana. Mas é importante ver o que significa dizer que Deus está
presente. Esta é basicamente uma tarefa de re-estabelecer a ordem dos
conceitos revelação e religo de tal modo que a relação entre eles torne-
se compreensível novamente como idêntica ao evento entre Deus e o
homem no qual Deus é Deus isto é, o Senhor do homem, que somente
ele julga, justifica e santifica mas também que o homem é homem de
Deus isto é, aceito e recebido por Deus através de sua severidade e
bondade. Lembrando a doutrina cristológica da encarnação, e aplicando-a
logicamente, nós falamos da revelação como a sublimação da religião.
345
2.2.2 Religião como ausência de Fé
Essa seção é introduzida pela asserção de que a avaliação teológica da
religião e das religiões precisa ser muito cautelosa em seus julgamentos.
346
Ao
entender a religião como uma expressão e atividade basicamente humana, o teólogo
suíço se opõe à noção de essência da religião”
347
(que procura encontrar sua
natureza única, singular) que constitui um critério para comparar e mensurar as
religiões, considerando algumas superiores e outras inferiores. Do ponto de vista da
revelação divina, afirma Barth, só é possível fazer um uso incidental de alguma
definição imanente da essência da religião. Portanto, o autor afirma a impossibilidade
344
Cf. Ibid., p. 297.
345
Karl Barth, On Religion, op. cit., p. 52. A única diferença substancial entre a tradução deste
parágrafo feita por Green e o texto inglês tradicional é que o primeiro traduz revelation as the
sublimation of religion, enquanto que o outro traduz revelation as the abolition of religion. (Cf.
Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 297). Essa opção de tradução da Dogmática é praticamente
constante no texto. Green, no entanto, compreende que o termo alemão Aufhebung deve ser
compreendido à luz do pensamento dialético de Barth, que contempla a abolição mas também a
elevação. Portanto, a opção de tradução por sublimação assume uma noção mais abrangente daquilo
que Barth quer realmente expressar.
346
Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 297.
347
Provavelmente essa seja uma alusão à queso da essência (Wesen) da religo do século XIX,
expressa principalmente por L. Feuerbach em A Essência do Cristianismo e nas aulas de Adolf von
Harnack em 1900 sobre A Essência do Cristianismo (veja essa aula em A. Harnack, What Is
Christianity. New York: Harper & Row, 1957). Cf. nota 43 do tradutor em K. Barth, On Religion, op.
cit., p. 131.
70
de distinção entre o Cristianismo e as outras religiões a partir do conceito de essência
da religião.
348
Desse modo, ao invés de seguir o raciocínio do conceito de essência da
religião, que define a religião pelo que ela necessariamente possui, Barth prefere
adotar uma perspectiva contrária. Ele enxerga a religião a partir do que ela
necessariamente não tem ou lhe falta: a religião é ausência de fé.
349
Isso significa que a religião é a grande preocupação do ser humano sem
Deus.
350
Seguindo essa compreensão, Barth cita Lutero: a piedade do homem é
absoluta blasfêmia contra Deus e o grande pecado que o homem comete. [...] os
caminhos nos quais o mundo estima como adoração a Deus e como piedade são
piores aos olhos de Deus do que qualquer outro pecado. Isto se aplica aos padres e
monges e ao que parece bom aos olhos do mundo, todavia, é sem fé.”
351
O teólogo alemão menciona que a proposição de que a piedade humana é uma
marca característica da ausência de fé da religião, aponta para o julgamento da divina
revelação sobre todas as religiões, especialmente a cristã. Entretanto, não é possível
traduzir especificamente, em termos humanos, o julgamento divino de que a religião
é ausência de fé, enquanto julgamento de tudo que é humano. De outro modo, o
entendimento da religião como ausência de fé pode ser vista unicamente a partir do
ponto de vista da revelação como atestada nas Escrituras Sagradas, sobretudo em
dois aspectos esclarecedores que nelas se encontram: (1) A revelação é o auto-
oferecimento e a auto-apresentação de Deus; (2) A revelação é o ato pelo qual Deus
reconcilia o ser humano consigo.
352
A percepção de que a revelação representa o auto-oferecimento e a auto-
apresentação de Deus indica que, ao encontrar o ser humano, a revelação confirma a
completa futilidade da tentativa de conhecer a Deus pela perspectiva humana. Em
outros termos, a revelação diz ao ser humano algo que ele nunca viria saber a partir
de outras fontes de conhecimento. Portanto, o conhecimento humano de Deus se
348
Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 298.
349
Cf. K. Barth, On Religion, op. cit., p. 55. Green explica que o termo alemão utilizado por Barth
como chave para toda a discussão dessa são é Unglaube. Este é o oposto do termo Glaube, que pode
ser traduzido como crença ou fé. A Church Dogmatics optou traduzi-lo como unbelief (incredulidade,
descrença). No entanto, o contexto do uso deste termo indica que Barth não es primariamente
pensando na religo em termos de falta de crenças, mas pela sua falta de fé (faithlessness). Cf. nota 3
do tradutor em Ibid., p. 134-135.
350
Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 300.
351
Ibid. Este é um trecho do sero de Lutero sobre I Pedro 1:18 de 1523. Cf. Luthers Works, vol.
30: The Catholic Epistles, ed. Jaroslav Pelikan. St. Louis: Concordia, 1967, p. 36-37.
352
Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 300-301.
71
torna possível apenas porque Deus se ofereceu e se apresentou ao ser humano,
deixando-se conhecer.
353
Contudo, Barth explicita que a revelação não alcança o ser humano em um
estado neutro. Antes, ela o alcança como pessoa religiosa, isto é, o alcança no meio
de sua própria tentativa de conhecer a Deus através de sua ótica e esforço. Em
realidade, em correspondência à revelação, a atitude humana mais adequada deveria
ser a fé - o reconhecimento do auto-oferecimento e a auto-apresentação de Deus, o
reconhecimento de que na ótica divina, as obras humanas são vãs. Logo, à luz de tal
reconhecimento o ser humano deveria privar-se de todas as tentativas de alcançar a
verdade, permitindo que ela fale por si mesma a ele, deixando-se ser alcançado por
ela.
354
Todavia, a atitude humana religiosa é contrária à atitude ideal da fé. Do ponto
de vista da revelação, a religião humana apresenta-se como resistente a ela. Isso
significa que a religião torna-se a iniciativa pela qual o ser humano se antecipa àquilo
que Deus faz em sua revelação. Assim, a ação divina é substituída pela obra humana.
Em lugar da realidade divina oferecida e apresentada pelo próprio Deus através da
revelação, a religião coloca uma imagem de Deus desenvolvida arbitrária e
deliberadamente pelo próprio ser humano. Nesse sentido, Barth cita o pensamento
esboçado por Calvino que considera a genialidade humana como uma fábrica de
ídolos: o homem é tentado a expressar externamente em obras o Deus que ele
concebeu internamente. Portanto, a mente concebe um ídolo, ao passo que a mão lhe
dá a luz.”
355
No conceito barthiano, a imagem de Deus é uma realidade vista ou
pensada segundo a qual o ser humano assume e afirma o Real, o Último, o Decisivo.
Do ponto de vista da revelação, a religião humana contradiz a revelação. Por isso,
Barth caracteriza o ser humano religioso da seguinte forma:
Se ele tivesse fé ele teria escutado, mas na religo ele fala. Se ele tivesse
fé ele permitiria que algo fosse dado a ele; mas na religião ele toma algo
por si mesmo. Se ele tivesse fé ele deixaria o próprio Deus ser Deus; mas
na religião ele ousa alcançar Deus. Por causa dessa ousadia, a religo é a
contradição da revelação, a expressão concentrada da falta de fé humana,
isto é, a atitude e atividade diretamente oposta à fé. [...] ao criar o próprio
objeto que ele só pode criar porque e se o próprio Deus criar para ele: o
conhecimento da verdade, o conhecimento de Deus.
356
353
Cf. Ibid., p. 301.
354
Cf. Ibid., p. 301-302.
355
Ibid., p. 302. Cf. J. Calvino, As Institutas da Religião Cris, op. cit., 1. 11. 8.
356
K. Barth, On Religion, op. cit., p. 58.
72
Dessa forma, na religião o ser humano resiste e se fecha para a revelação
criando um substituto para ela, antecipando algo que deveria ser dado em revelação
pelo próprio Deus. Novamente, Barth cita Calvino ao salientar que na religião os
homens não compreendem a Deus da maneira como ele se oferece, mas o imaginam
assim como o haviam criado com sua própria presunção.”
357
Nesse caso, o ser
humano cria para si uma ficção, um anti-Deus, que nada tem a ver com Deus. Mas
essa ficção só pode ser reconhecida como tal a partir da verdade que vem da
revelação, ressalta Barth.
358
Mas o teólogo suíço assevera que, assim como a religião
previamente contradisse a revelação, a revelação também contradiz a religião. A
revelação sublima a religião, do mesmo modo que a religião anteriormente sublimou
a revelação. Nos termos barthianos, da mesma forma que a fé não pode se prender a
uma falsa fé, mas deve contradi-la sublimá-la como falta de fé, como um ato de
contradição.
359
Quando a revelação entra em cena, seus raios de luz iluminam e
expõem a religião como oposição à revelação, como falsa religião que não tem fé.
360
Nesse ponto se insere o segundo aspecto da revelação: o auto-oferecimento e
a auto-apresentação é o ato pelo qual Deus reconcilia o ser humano consigo. O autor
salienta que este ensino radical sobre Deus (o primeiro aspecto), é ao mesmo tempo a
sua ajuda radical (o segundo aspecto) que vem à humanidade injusta, profana,
amaldiçoada e perdida. Tal percepção mantém como pressuposto fundamental o fato
de que o ser humano não pode se ajudar seja parcial ou totalmente.
361
A ligação entre os dois parágrafos anteriores se dá devido ao conceito
barthiano de que essa ajuda divina (isto é, sua revelação) ocorre enquanto
contradição. Em primeiro lugar, tendo em vista que na compreensão de Barth o único
meio de revelação divina é Jesus Cristo, o que a revelação em Jesus faz para ajudar o
357
K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 303. Cf. J. Calvino, As Institutas da Religião Cris,
op. cit., 1. 4. 1.
358
Cf. Ibid.
359
Cf. K. Barth, On Religion, op. cit., p. 59. Green ressalta que esta sentença relaciona duas das idéias
mais importantes e controversas de Barth. A primeira delas é a de que, ao negar implicitamente que a
revelação se prende à religião (knüpft ... an), ele es enfatizando novamente seu conhecido
argumento sobre o ponto de contato (Ankpfungspunkt) para a revelação, de seu famoso debate
com Emil Brunner (para entender melhor essa discussão veja Garrett Green, Imagining God. Grand
Rapids, MI: Eerdmans, 1998, p. 29-33). A outra queso é mais uma vez o conceito de sublimação
(Aufhebung). Especificamente neste contexto o aspecto negativo da sublimação - a suspensão ou
mesmo abolição - parece ser privilegiado, mas para Barth o conceito é sempre dialético.
Curiosamente, nesse parágrafo Barth não apenas repete sua tese central - de que a revelação sublima a
religião - mas também declara explicitamente que a religião sublima a revelação. Cf. nota 11 do
tradutor em K. Barth, On Religion, op. cit., p. 135.
360
Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 307.
361
Cf. Ibid.
73
ser humano não se caracteriza como ampliação ou aperfeiçoamento das tentativas de
compreender e apresentar Deus segundo os padrões humanos. Antes, tudo isso é
substituído pelo oferecimento e apresentação do próprio Deus. Aliás, considerando
que só em Cristo Deus reconcilia o mundo consigo, ele substitui todas as tentativas
humanas de reconciliação com Deus, todas as tentativas humanas de justificação,
santificação, conversão e salvação.
362
Por sua vez, a segunda maneira pela qual a revelação contradiz a religião é
melhor compreendida na análise de como a religião contradiz a revelação, e
finalmente como ela contradiz a si mesma. O teólogo suíço ressalta que as religiões
possuem como característica universal a tentativa de se antecipar a Deus, fazendo
dele sua própria imagem, que primeiramente é espiritual, depois intelectual, e
finalmente visual. Essa é a necessidade humana de objetivar a Deus, condicionando-
o pela própria existência humana.
363
A imagem desses deuses criados reflete a busca
pela garantia das necessidades e capacidades do ser humano, que em realidade está
sozinho e depende de si mesmo, de sua vontade e de seus feitos. Nesse sentido, na
visão barthiana, a fraqueza e a desobediência, o desamparo e a arrogância, a tolice e
a fantasia, estão próximos uns dos outros. O que o ser humano aspira nessa
empreitada é a justificação e santificação como suas próprias obras. Por isso, ele se
fecha para Deus, aliena-se dele e até mesmo se coloca em direção oposta a ele.
364
Com esse quadro em mente, Barth diferencia uma pessoa piedosa de um
cristão genuíno, conforme menciona Lutero. Em suas palavras, a pessoa piedosa
pode ser louvada por suas qualidades, mas ainda assim continua sendo um filho de
Adão, alguém que está sob a sina do pecado e da morte. Por outro lado, um cristão
verdadeiro é diferente. Ele não é chamado de filho de Adão, mas de filho de Deus.
Ele depende do seu Salvador, e por esse motivo acredita possuir a graça de Deus, a
vida e a redenção eterna. Em outras palavras, nada disso foi alcançado, tomado, ou
obtido por seu próprio trabalho, virtude ou piedade.
365
Tal caracterização do cristão
genuíno indica a atitude que provém da fé. O teólogo suíço compreende que alguém
pode entender a fé mais como confiança, ou mais como obediência, ou primeiro
como confiança e depois como obediência, ou de forma contrária, mas uma coisa é
certa: só é possível entendê-la do ponto de vista de seu objeto: Jesus Cristo.
362
Cf. Ibid., p. 308.
363
Cf. Ibid.
364
Cf. Ibid., p. 308-309.
365
Cf. Ibid., p. 310. Essas idéias eso no sermão de Lutero sobre S. João 16:5-15 de 1545.
74
Ademais, ele pondera que, no sentido do Novo Testamento, fé significa a sublimação
da autodeterminação humana. Por sua vez, o pecado sempre é ausência de fé, a essa
ausência de fé é sempre a fé do ser humano em si mesmo. Esta é, precisamente, a fé
que existe na religião.
366
Mas além de contradizer a revelação, o autor salienta que a religião contradiz
a si mesma. Esse é o problema imanente da religião. Por sua própria luta, o ser
humano religioso se torna confuso. Ele mesmo se contradiz em seu pensamento e
vontade, se tornando frustrado, mas também excedido ou ultrapassado por uma
forma supostamente superior e mais refinada de religião ou forma de pensar. Então,
não somente ele, mas todo o sistema religioso vigente é questionado, deslocado e
colocado em perigo é assim que ele chega a desistir de sua religião. Barth provê
dois exemplos extremos para expor o problema de contradição da religião: o
misticismo e o ateísmo. Ademais, estes exemplos também servem para corroborar a
noção barthiana de que todas as religiões são idolatria e obras de justiça, até mesmo
o pretenso estágio superior de religião que parece desejar combater a idolatria e as
obras de justiça pelos seus próprios poderes e métodos.
367
Antes de colocar seus exemplos, Barth esboça algumas considerões
contextuais que serão úteis para suas aplicões. Primeiro ele declara que as duas
características principais e primitivas que são comuns a todas as religiões são (1)
representação da divindade e (2) o cumprimento da lei. É através delas que o ser
humano normalmente busca a satisfação das necessidades religiosas. Ambas
representam a necessidade humana da verdade superior e da certeza dentro dele, as
quais o ser humano acha que pode conquistar por si mesmo.
368
Portanto, em sua busca corajosa de alcançar a verdade ele adapta a divindade
de acordo com a sua própria imagem, e ao buscar sua própria certeza ele procura
justificar-se e santificar-se de acordo com o que encontra na lei. No entanto, ao tentar
encontrar sua satisfação, ele já se encontra satisfeito. É por isso que a satisfação
religiosa é meramente provisória, pois ela representa uma expressão ou repetição de
algo que ele já possuía ou já estava vivendo. Aliás, a própria necessidade religiosa é
apenas uma realidade relativa. Pois, se necessário, o ser humano pode viver sem a
divindade que ele criou, sem o seu trabalho de justificação e santificação, visto que a
366
Cf. K. Barth, On Religion, op. cit., p. 71.
367
Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 314.
368
Cf. Ibid., p. 315.
75
religião funciona como a imagem no espelho, daquilo que o ser humano por si
mesmo é e tem. Logo, este quadro salienta a não necessidade e a fraqueza das
religiões.
369
Então, no cenário histórico surge uma nova religião, que obviamente
apresenta uma nova imagem de Deus e uma nova lei. Esta é proclamada, aprovada,
alcança escopo histórico e se forma em lugar da velha religião. A autocontradição e a
impossibilidade da religião até então vigente se torna visível, por conta de mudanças
na existência humana, e sua morte é necessária para o surgimento de uma nova
religião. Em sua fraqueza e não necessidade, aquela religião se tornou duvidosa e a
sua lei opressiva. Mas essa crise religiosa transforma-se, em realidade, na busca de
uma nova religião.
370
No entanto, essa nova rota religiosa, em certo ponto, se divide em duas
estradas chamadas misticismo e ateísmo. O misticismo caracteriza a libertação
humana da busca externa da satisfação das necessidades religiosas. Isso significa que
os sticos desejam internalizar e espiritualizar tudo o que foi ensinado e praticado
numa religião particular. Pois para eles, tudo o que for externo é mera imagem e
forma. Desse modo, o misticismo não ataca a religião aberta e diretamente. Ademais,
ele presume apresentar uma verdadeira amizade com Deus. Sua tarefa é fazer com
que a tradição religiosa testemunhe contra si mesma. Em conexão com esta tradição,
o misticismo irá afirmar aparentemente o oposto, clamando a liberdade somente para
esta interpretão da tradição, nunca a liberdade somente para abolir a tradição. Com
sua própria maneira, afirma Barth, o misticismo sinceramente ama a tradição, bem
como todo o seu sistema de religião externo. Assim, o autor questiona: o que seria o
misticismo sem sua contraparte do dogmatismo e da ética da tradição religiosa? O
que seria desmantelado, esvaziado, reduzido, negado, quando tal tradição religiosa
não mais existir? Para o Barth, o misticismo vive de sua contraparte.
371
Semelhantemente, o ateísmo representa um movimento de negação da
tradição religiosa. Contudo, o teólogo suíço interpreta que, enquanto o movimento de
negação do misticismo é indireto e sutil, a atitude do ateísmo é aberta e direta. Ele
está em conflito aberto com a religião: ele ama a iconoclastia, a negação do dogma, a
emancipação moral. Nega a existência de Deus e validade da lei divina. Ele vive por
369
Cf. Ibid., p. 315-316.
370
Cf. Ibid., p. 317.
371
Cf. Ibid., p. 319-320.
76
e pelo não; só sabe como demolir. Barth considera que a força de sua lógica é mais
pujante que a do misticismo. Mas, de certo modo, sua intensidade é mais modesta.
Embora esteja contente em negar a Deus e sua lei, ele negligencia o fato de que fora
da religião também existem diferentes dogmas da verdade que podem a qualquer
momento se tornar religiosos. Nesse sentido, o ateísmo afirma a realidade da
natureza, história, cultura e moralidade humana. Estas são as autoridades e poderes
às quais o ateísmo tem o hábito de se aliar na luta contra a religião. Assim, o ateísmo
contrapõe a existência e a validade dessas autoridades à pretensa existência e
validade de Deus e sua lei. Mas afirmar tais autoridades, pondera Barth, o ateísmo se
expõe ao perigo de que também a partir delas surjam novas religiões, disfarçadas ou
não, que utilizam, portanto, o mesmo suporte que foi dado por ele.
372
De forma geral, para o autor, a crítica contra a religião praticada
principalmente pelo misticismo e ateísmo expõe as fraquezas e a necessidade relativa
da religião. Contudo, elas levam ou à prática das antigas religiões ou à formação de
novas formas religiosas. No caso do misticismo há uma notável combinação de
negação e afirmação religiosa. Já no ateísmo, sua negação não pode impedir novas
formas de religião, se é que ele não as esteja preparando a partir da legitimação de
autoridades que podem se tornar religiosas. Portanto, a religião tem demonstrado
extrema habilidade inerente frente aos desafios e críticas. Historicamente, Barth
constata que a morte de uma religião é causada pela vitória ou surgimento de outra
religião, e não necessariamente devido aos ataques do misticismo ou ateísmo.
373
Contudo, na perspectiva do teólogo suíço a fraqueza e a necessidade relativa
da religião não são tão efetivamente fatais como parecem ser. Aliás, o misticismo e o
ateísmo não estão na posição de mostrar como e de que maneira poderia ser
diferente, porque sua existência está ligada à existência da religião. Sem religião não
há ateísmo nem misticismo. É ela que provê as fontes de subsistência dos
argumentos e esforços deles. Usando a ironia de Barth, eles se opõem à religião do
mesmo modo como a nascente de água se opõe à correnteza, ou a raiz à árvore, ou o
recém nascido do adulto crescido. Um suposto misticismo ou ateísmo puro não
representam a verdadeira crise da religião, porque eles mesmos se inserem no
círculo mágico religioso, expressa Barth. Nesse sentido, a crise real da religião só
pode vir de um lugar que esteja fora desse círculo mágico, ou seja, fora do ser
372
Cf. Ibid., p. 321.
373
Cf. Ibid., p. 323.
77
humano, apenas através da revelação de Deus. Unicamente nela o veredicto da
ausência de fé e idolatria poderia abalar o ser humano inteiro, de tal modo que ele
não possa mais fugir de um refúgio para o outro. Portanto, nas palavras do autor, a
sublimação da religião se dá em um donio diferente do âmbito do misticismo e do
ateísmo, que representam esforços inofensivos quando comparados à ação da
revelação divina, pois não conseguem aniquilar a fábrica humana de ídolos”.
374
2.2.3 A verdadeira Religião
A partir das considerões das duas discussões anteriores, Barth conclui que
só é possível falar em religião verdadeira” nos termos de um pecador justificado,
pois a religião nunca é uma verdade em si mesma. Para o teólogo suíço, o conceito
de uma religião verdadeira em si, implica um conceito de ser humano bom em si, o
que representa uma noção antropológica inconcebível no pensamento barthiano. Mas
embora nenhuma religião seja verdadeira ela pode tornar-se verdadeira, do mesmo
modo que o ser humano não é bom nem justo, mas pode tornar-se justificado.
375
Nesse sentido, a graça é o agente pelo qual a religião se torna verdadeira,
assim como através dela o ser humano é justificado. Em outros termos, a religião
verdadeira também é uma criatura da graça”, e na ótica de Barth essa graça nada
mais é do que a própria revelação de Deus. Diante dela nenhuma religião se
apresenta como verdadeira, do mesmo modo como nenhum ser humano é justo na
sua presença. Diante dela, ambos estão sujeitos ao julgamento de morte. Porém,
segundo a dialética barthiana, assim como esse juízo dá vida ao que está morto e
justiça ao que é injusto, uma religião verdadeira é criada aonde só existia uma
religião falsa. Para o autor, esta é a sublimão da religião pela revelação, que
significa não apenas sua negação (acusação de ausência de fé), mas também sua
elevação pela revelação (justificação e santificação).
376
De acordo com a analogia barthiana, existe uma religião verdadeira assim
como existem pecadores justificados. Apenas dentro dessa analogia o teólogo suíço
declara que a religião cristã é a verdadeira religião. Contudo, ele sublinha que em
nenhum momento de sua discussão ele procurou estabelecer uma distinção entre
374
Cf. Ibid., p. 324-325.
375
Cf. Ibid., p. 325.
376
Cf. K. Barth, On Religion, op. cit., p. 85.
78
Cristianismo e as outras religiões, nem mesmo na seção acerca da religião como
ausência de fé. Enquanto religião não há para o Cristianismo uma posição especial,
um lugar protegido do julgamento.
377
Em outras palavras, sua discussão não deve ser
entendida como polêmica contra as religiões não cristãs. Segundo Barth, a revelação
divina se dirige contra toda a sorte de religião.
378
Assim, o autor pondera que a verdade da religião cristã começa com o
reconhecimento de que ela também está sob o julgamento de que a religião é
ausência de fé, e que a absolvição dele não ocorre devido ao valor interno do
Cristianismo, mas unicamente pela graça divina, proclamada e efetivada em sua
revelação. Para Barth, este julgamento contempla toda a atividade cristã - sua
concepção de Deus, teologia, adoração, formas de comunidade e ordem, moralidade,
poesia e arte que está no mesmo nível da atividade humana de outras religiões.
Nesse sentido, o teólogo suíço enfatiza que a atividade cristã não é o que ela pretende
ser, ela não constitui um trabalho de fé, não representa obediência à revelação de
Deus. Por isso, o Cristianismo, assim como as outras religiões, nada mais é do que
ausência de fé do ser humano que está em oposição à revelação divina, onde a
idolatria e justificação própria imperam.
379
O autor, então, provê uma lista de exemplos bíblicos de ausência de fé do
povo que se dizia pertencer ao Deus verdadeiro. No Antigo Testamento, por
exemplo, Barth salienta a experiência vivida pelo povo de Israel ao pé do Monte
Sinai - que representava a efetivação de sua aliança com Deus -, quando Arão
proclamou o festival de Yahweh, mas o que realmente estava ocorrendo era uma
celebração idolátrica que incluía um bezerro de ouro.
380
Ademais, praticamente toda
a atividade profética vétero-testamentária denunciava a idolatria no meio do povo de
Israel.
381
Semelhantemente, no Novo Testamento o autor menciona vários exemplos
de falta de fé nas pessoas que professavam seguir a Deus. O mesmo Pedro que
ousadamente procurou defender a Jesus cortando a orelha direita de Malco,
382
377
Barth fala aos cristãos que é necessário aplicar esse julgamento primeiramente, e de forma mais
penetrante, a si mesmos. A aplicação do julgamento aos outros, aos não cristãos, deve ser feito
somente à medida que os cristãos possam se reconhecer neles (Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2.
op. cit., p. 327).
378
Cf. Ibid., p. 326.
379
Cf. Ibid., p. 327.
380
Cf. Êxodo 32:1-10. No verso 5 Arão fala da festa ao Senhor”.
381
Em especial, Barth destaca as figuras de Amós e Jeremias (Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2.
op. cit., p. 328-329).
382
Cf. S. João 18:10.
79
também negou a Jesus três vezes. De maneira geral, os discípulos discutiam a
recorrente questão acerca de quem seria o maior no reino dos us.
383
Os filhos de
Zebedeu, em especial, pediram a Jesus um elevado posto no reino.
384
Tais
demonstrações de autoconfiança e ambição são desmascaradas pelo desespero em
meio à tempestade, e pela subseqüente constatação de Jesus de que eles não tinham
fé.
385
Posteriormente, os discípulos são chamados por Jesus de geração
incrédula”
386
. Barth comenta que eles possuíam uma religião, mas nessa religião há
ausência de fé. É por isso que o apelo de Jesus a Tomé é que este deixe a carência de
fé e a incredulidade, e seja crente, fiel.
387
A própria igreja cristã apresenta evidências
de falta de fé: o caso de Ananias e Safira,
388
Simão o mágico
389
, e outros exemplos.
Para Barth, esses exemplos caracterizam o Cristianismo em sua fraqueza, não
em sua força, caracterizam uma religião contraditória, marcada pela mesma ausência
de fé, idolatria, e justiça própria que está presente em todo o mundo da religião.
Contudo, o teólogo suíço também destaca a importância do reconhecimento dessa
fraqueza. Nesse ponto, Barth cita a atitude de Paulo ao se gloriar de sua fraqueza” e
na declaração de que quando sou fraco, então é que sou forte”, pois o poder de Deus
se aperfeiçoa na fraqueza”.
390
Essas noções claramente se alinham ao conceito de
justificação pela fé, onde a graça de Deus atua na incapacidade humana. Por isso, o
autor indica que o poder do Cristianismo reside precisa e exclusivamente em sua
fraqueza. A glória do Cristianismo está em sua humilhação, não em sua exaltação.
391
Entretanto, em sua avaliação histórica, Barth ressalta que essa não tem sido a postura
do Cristianismo, principalmente no seu relacionamento com as outras religiões. Ele
enxerga tal realidade em três estágios históricos: a igreja antiga, medieval e moderna.
No período anterior a Constantino
392
, o Cristianismo era uma religião icita.
Essa época foi caracterizada pela fraqueza” apostólica: os cristãos não possuíam
qualquer crédito externo, em termos de status político, social ou cultural. Eles se
encontravam sozinhos com a sua fé lutando com uma força externa intensamente
383
Cf. S. Mateus 18:1.
384
Cf. S. Marcos 10:37.
385
Cf. S. Mateus 8:26.
386
Cf. S. Marcos 9:19.
387
Cf. S. João 20:27.
388
Cf. Atos 5:1-10.
389
Cf. Atos 8:13-23.
390
Cf. II Coríntios 12:9-10.
391
Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 333.
392
Imperador romano que reinou entre 306-337 d.C. Em 312 ele se tornou cristão.
80
superior. Em um primeiro olhar, eles lutavam por uma causa perdida, mas a graça foi
suficiente para resistirem à pressão da perseguição. Contudo, em meio à forte pressão
do mundo pagão da Antigüidade tardia, os cristãos - especialmente os Apologistas e
os antigos Pais da igreja - foram tentados a afirmar a vantagem do Cristianismo em
relação às outras religiões da época.
393
Uma espécie de competição das qualidades do
Cristianismo em relação às características das outras religiões: uma sabedoria mais
elevada, uma melhor moralidade, uma humanidade superior. Mas a despeito destas
falhas, Barth afirma que a gra de Jesus Cristo, que é a verdade do Cristianismo,
não esteve totalmente oculta nos ensinos e na proclamação da igreja desse período.
394
Depois de Constantino, a noção de corpus christianum expressa na unidade
entre igreja e império foi a proposta aparentemente mais promissora feita ao
Cristianismo. Mas, se no período da igreja primitiva houve a tentação de
superioridade intelectual e moral do Cristianismo, agora havia também a tentação de
superioridade política. Aliás, Barth indaga: onde estava a mensagem da graça, como
a verdade do Cristianismo, nos dias das Cruzadas? Poderiam os não cristãos,
especialmente os judeus e islâmicos, encontrar na igreja da Idade Média um poder
verdadeiramente diferente daquele em que o ser humano quer demonstrar sua
superioridade diante de outros? Eles puderam ver na igreja o poder do evangelho que
humilha e abençoa todos os homens? Em que medida os oponentes da igreja
puderam perceber que as ões e atitudes dessa igreja objetivavam a glória de Deus,
e não a glória da própria igreja? O teólogo suíço ressalta que, de maneira geral, o
corpus christianum foi desleal à graça de Cristo, e uma orgulhosa busca de exaltação
própria.
395
A chamada Modernidade, que se iniciou com as influências e tendências da
Renascença e da Idade Média tardia, se caracteriza pela dissolução da unidade entre
império e igreja. Barth salienta que, nesse novo período, o ser humano ocidental
pensa ter alcançado a maturidade, descobrindo-se capaz de seguir seu próprio
caminho. A política, as ciências, a sociedade e a arte estão aos seus pés. Ele não está
mais ligado à igreja, e nada mais parece sugerir que ele precisa ligar-se a ela
novamente. Em tais circunstâncias, o autor ressalta que, ao contrário das favoráveis
393
Barth salienta que na leitura dos apologistas do segundo e terceiro séculos há uma novel
impressão de justiça própria do Cristianismo frente às outras religiões, talvez como forma de
compensar espiritualmente a forte pressão externa que eles enfrentavam (Cf. K. Barth, Church
Dogmatics. I/2. op. cit., p. 333).
394
Cf. Ibid., p. 333-334.
395
Cf. Ibid., p. 334-335.
81
condições da Idade Média, a igreja cristã não podia mais impressionar a consciência
mundial, a não ser no contexto de uma sociedade religiosa. Assim, o Cristianismo
confinou-se à prestação de serviços para novo esplendor secular do ser humano
ocidental, provendo especificamente educação e ordem para essa nova sociedade. O
teólogo suíço sublinha que, ao fazer uma reconsideração de si mesmo e de suas
possibilidades nesta nova situação, o Cristianismo falhou em não se lembrar daquela
fraqueza na qual, mesmo sozinha, seria forte em todos os tempos. Ao invés disso, ele
reconheceu a auto-suficiência do ser humano moderno e se contentou em perguntar
como o Cristianismo poderia colaborar com ele.
396
Para Barth, é neste contexto de auto-suficiência do ser humano moderno e da
subordinação do Cristianismo a seu serviço, que surge o conceito genérico de
religião, que também foi aceito pelo mundo não-cristão. Com a busca da essência
do Cristianismo este passou a ser comparado com as outras religiões, e
normalmente considerado como a base mais adequada para uma visão de mundo
coerente, para a manutenção da moralidade, para satisfazer as últimas necessidades
do ser humano. De modo geral, ele foi considerado a plataforma ideal para a
realização dos elevados ideais do ser humano moderno. Nesse terceiro estágio
histórico, pretendendo alcançar relevância e espo, o Cristianismo entregou sua
verdadeira mensagem da graça às contínuas flutuações da cultura moderna. Nas
palavras de Barth, ela foi lançada de uma mão suja a outra, parecendo uma verdade
humana em dado momento absolutista e autoritária, então individual e romântica,
depois liberal, nacional e até mesmo racial mas nunca como a verdade divina que
julga e abençoa.
397
A partir desses exemplos ao longo das eras, o que se torna visível é a tentativa
do Cristianismo de validar sua religião como sagrada em si mesma.
398
Por isso, o
teólogo suíço questiona se essa seria realmente uma atitude condizente com as
características da verdadeira religião. Como resposta, ele se reporta à passagem
bíblica da luta de Jacó com Deus.
399
Na interpretão barthiana, Jacó era um inimigo
da graça. Em meio à luta, Deus deslocou sua coxa. Embora não fosse derrotado por
Deus ele se tornou permanentemente enfraquecido pela ação divina. Nessa luta, Jacó
não queria se desprender de Deus até que fosse abençoado. E, de fato, ele recebeu a
396
Cf. Ibid., p. 335-336.
397
Cf. Ibid.
398
Cf. Ibid., p. 337.
399
Cf. Gênesis 32:22-32.
82
benção do enfraquecimento. Ao lutar com Deus, ao vê-lo face a face, Jacó chamou
aquele lugar de Peniel, porque ainda assim sua vida foi preservada. Em realidade, o
teólogo suíço salienta que é também em Peniel que a verdadeira religião cristã é
conhecida, o lugar onde o ser humano permanece totalmente oposto a Deus. Isso
significa que a verdade da religião cristã não é uma questão de verdade imanente da
religião em particular, mas unicamente uma realidade provida pela graça. Por isso,
Barth entende que a face histórica de uma religião da graça não é muito diferente das
outras religiões, pois ela é justificada e transformada em uma religião verdadeira
somente pela graça, nunca por seus próprios esforços.
400
Desse modo, o autor destaca que entre as religiões somente uma coisa é
decisiva em relação à verdade ou falsidade: o nome de Jesus Cristo. É somente nesse
ponto que a igreja se torna forte. Essa é a verdade da religião cristã,
401
pois a graça de
Deus é a mesma coisa que o nome de Jesus Cristo. Nele ocorre a revelação de Deus
entre os homens, a reconciliação do ser humano com Deus. Portanto, os participantes
da verdadeira religião não se elevam a nenhum degrau significante da história
religiosa, nem escapam da acusação divina da idolatria e justiça própria. Eles não
presumem possuir a religião verdadeira por si mesmos. Antes, Barth ressalta, eles
vivem da graça de Deus, que é o real agente que os eleva acima do nível da história
das religiões.
402
Contudo, o teólogo suíço entende que a noção desse relacionamento entre o
nome de Jesus Cristo e a religião cristã necessita ser esclarecida através de quatro
perspectivas: criação, eleição, justificação e santificação. Em primeiro lugar, este
relacionamento tem que ver com um ato da criação divina. Isso significa que
unicamente este nome cria a religião cristã, não apenas do ponto de vista histórico,
mas também no sentido contemporâneo. Em outros termos, o autor tem em mente a
noção de creatio continua (criação contínua). Na visão barthiana, a religião cristã
nunca teria entrado na história sem o poder criativo do nome Jesus Cristo. De outro
modo, sem este nome, a igreja cristã perderia a substância e, portanto, sua capacidade
de viver. Com esse quadro em mente, Barth gosta de pensar na existência histórica
da igreja como um anexo da natureza humana de Jesus Cristo, segundo a analogia
400
Cf. Ibid., p. 338-339.
401
Cf. Ibid., p. 343.
402
Cf. Ibid., p. 345.
83
da igreja como corpo de Cristo, onde ele é a cabeça celestial que está ligada às
formas terrestres de seus membros.
403
Em segundo lugar, o relacionamento entre o nome de Jesus Cristo e a religião
cristã tem que ver com um ato de divina eleição. O Cristianismo não possui, nem
nunca possuirá uma realidade própria. Em si mesmo ele é apenas uma mera
possibilidade humana entre muitas outras. Isso significa que ela não possui
absolutamente nada que possa indicar sua dignidade a fim de que ela seja escolhida
pelo nome de Jesus Cristo como religião verdadeira. Em realidade, essa escolha se
baseia na livre eleição divina, em sua infinita misericórdia. O teólogo suíço
acrescenta que assim como existe a creatio continua, também existe uma continua
electio (eleição contínua). Através dessa eleição imerecida, a igreja não representa
apenas uma sociedade religiosa qualquer, antes é o próprio corpo de Cristo. Para
Barth, o fato de a eleição fazer da religião cristã uma religião verdadeira, previne
toda e qualquer tentativa de procurar provar a superioridade do Cristianismo a
partir de um ponto de vista histórico.
404
Em terceiro lugar, o relacionamento entre o nome de Jesus Cristo e a religião
cristã tem a ver com um ato de divina justificação, ou perdão dos pecados. No
contexto do julgamento feito pela revelação de Deus, todas as religiões são
declaradas idolatria e obras de justiça própria. Para entender melhor o que ocorre
com o Cristianismo nesse julgamento, Barth faz uso de uma analogia do sol e da
terra: quando o sol ilumina a terra, em uma parte da terra é dia e outra é noite. A terra
em si é a mesma em ambos os lugares. O dia nada tem a ver com a particularidade da
terra como tal, é fruto da atuão do sol. Do mesmo modo, quando a luz do
julgamento de Deus incide sobre o mundo da religião humana, para uma parte desse
mundo (a religião cristã) não é noite, mas dia; não é religião falsa, mas verdadeira.
Estimada em si mesma ela não passa de uma religião humana idolatria, justiça
própria, ausência de fé, pecado. Portanto, a justificação só ocorre no nome de Jesus
Cristo.
405
Em quarto lugar, o relacionamento entre o nome de Jesus Cristo e a religião
cristã tem que ver com o ato de santificação divina. Unicamente porque foi
justificada nesse nome a religião cristã se diferencia das outras religiões, pois
403
Cf. K. Barth, Church Dogmatics. I/2. op. cit., p. 346-348.
404
Cf. Ibid., p. 348-350.
405
Cf. Ibid., p. 352-355.
84
segundo Barth ela é formada e moldada por ele para trabalhar a seu serviço e torna-se
a manifestação histórica dos meios de sua revelação. Em linguagem figurada, o autor
enfatiza que embora a luz em si seja exclusivamente o nome de Jesus Cristo, ela
carrega o reflexo dessa luz. Nesse sentido, a religião cristã é diferenciada,
caracterizada de modo peculiar. Mesmo sendo uma religião como outras, à luz dessa
justificação, criação e eleição ela não pode ficar neutra, indiferente ou sem
significado. Por isso, Barth a considera um significante e eloente sinal ou
proclamação. Não pelas qualidades inerentes na religião humana, mas em virtude da
divina nomeação pela qual ela se torna um evento no meio do mundo da religião
humana. Assim, o teólogo suíço esclarece que ela toma parte na verdade somente na
medida em que aponta e proclama algo que não está em si mesma, mas no nome de
Jesus Cristo. Ela não possui nada de santo em si mesma. Mas ela se torna o espo
sacramental criado pelo Espírito Santo, no qual Deus, cuja Palavra se tornou carne,
continua a falar através do sinal de sua revelação. Portanto, na perspectiva de Barth,
a igreja, a religião cristã ao ser santificada, constitui um sinal visível da revelação
divina, assim como no Antigo Testamento a lei representava um sinal da graça e
eleição de Yahweh, uma testemunha da aliança,
406
e como no Novo Testamento, a
santificação da igreja é apresentada como o ministério da reconciliação divina, cujos
participantes refletem a glória de Deus.
407
Nesses termos, Barth assevera que
considerar a santificação significa levar a sério a fé e a obediência ao nome de Jesus
Cristo:
É perfeitamente verdadeiro que os crisos são pecadores e que a igreja é
uma igreja de pecadores. Mas se eles são pecadores justificados [...] eno
em virtude da mesma Palavra e Espírito que os justifica, eles também são
pecadores santificados. Ou seja, eles são colocados sob disciplina. São
colocados sob a ordem da revelação. Eles não são mais livres em toda a
sua pecaminosidade.
408
406
Barth salienta que a aliança feita por Deus, em sua graça e eleição, com o povo de Israel teve uma
evidência, um selo visível que podia ser percebido tanto por Israel quanto pelas nações ao redor: a lei.
Evidentemente a aliança não teve lugar com o estabelecimento da lei, pois ela tomou lugar antes da
lei. Mas a aceitação e observância da lei foram a garantia recorrente de que esse povo era o povo da
aliança. Assim, a lei significou a santificação do povo - em resposta à graça de Yahweh -, a
conseência necessária da revelação da graça, a forma histórica inevitável da qual não podia se
separar. Em outros termos, a santificação significou sua separação visível enquanto nação histórica,
sua diferenciação e caracterização como povo de Deus (Cf. Ibid., p. 359).
407
Cf. Ibid., p. 358-360.
408
Ibid., p. 360.
85
2.3. Resumo do capítulo
Em Carta aos Romanos, a abordagem barthiana da religião tem como pano de
fundo o conceito de infinita diferença qualitativa entre Deus e o ser humano.
Segundo essa perspectiva, Deus é o Deus desconhecido que não se identifica com
nenhuma realidade do mundo. Mas de forma arrogante, a religião pretende conhecer
o Deus desconhecido, e acaba por elevar o ser humano ao nível de Deus, criando
uma divindade que é, em realidade, a projeção dos desejos e atributos humanos.
Logo, os termos arrogância” e presunção humana parecem sintetizar a noção
barthiana da religião nesse contexto.
Por sua vez, a relação entre religião e circuncisão situa a religião no quadro
maior da doutrina da justificação pela fé. Nesse sentido, a justificação é obra divina e
não se confunde com a contabilidade” religiosa, expressa na pretensão de que as
obras humanas demandem a retribuição divina. Todavia, Barth reconhece a religião
como marco da fé. O relacionamento de fé que se origina em Deus, representa a
premissa e o início da religião, que não é a base ou o conteúdo desse relacionamento,
mas um símbolo ou sinal dele. O valor não está na religião em si, mas naquilo que
ela aponta ou simboliza.
No contexto da relação entre a religião e a lei, há uma visão extremamente
negativa da religião. A religião é uma característica intrinsecamente humana e como
tal constitui o clímax das possibilidades humanas. Mas como todas as possibilidades
humanas, a religião é limitada, restrita e ineficaz. Nela se manifesta a rebelião contra
Deus, cujo resultado é a morte. Mas é justamente essa morte e superação da religião,
provocada pelo Não divino, que constitui a libertação do ser humano. O limite
religioso e humano é o lugar onde começa a possibilidade de Deus, a possibilidade
impossível de o ser humano ser religioso como se não fosse.
Finalmente, a relação entre religião e igreja evidencia a crítica da religião no
sentido de crítica eclesiástica, que entende a igreja como religião organizada. A
igreja enfrenta a tensão de sua vocação divina (símbolo vazio e provisório) e sua
realidade humana e natural (desejo de triunfo e eternidade). Sua culpa consiste em
optar pelo desejo humano. Mas ao criticar a igreja Barth se reconhece como acusador
e acusado, que faz parte desta igreja culpada. Ademais, a essa igreja culpada Deus
rejeita em seu julgamento, que dialeticamente também representa a eleição divina da
igreja. Liquidada e justificada por Deus, a igreja/religião pode ser símbolo e
testemunha da esperança.
86
Por sua vez, em Church Dogmatics Barth discute sobre o problema da
religião na teologia, apresentando seu conceito de religião em oposição ao conceito
de religião do protestantismo moderno, cuja diferença básica reside no seu
relacionamento com o conceito de revelação: utilizar a revelação como paradigma
para interpretar a religião (Barth); ou utilizar a religião como paradigma para
interpretar a revelação (protestantismo moderno). Em realidade, para Barth, a escolha
desse paradigma constitui a diferença básica entre a teologia teontrica e a teologia
antropontrica. Desse modo, a crítica barthiana tem como alvo a noção de religião
do protestantismo moderno, que leva à teologia antropontrica e à oposição ao
conceito de justificação pela fé.
Além disso, ao falar sobre a religião como ausência de fé, ao invés de definir
a religião pelas suas características básicas (raciocínio do conceito de essência da
religião), o autor prefere defini-la partir do que lhe falta: a fé. Essa acusação constitui
o julgamento divino sobre todas as religiões, inclusive a cristã. Para Barth, do ponto
de vista da revelação, a religião é a iniciativa pela qual o ser humano se antecipa e
contradiz o que Deus faz em sua revelação. Em lugar da realidade apresentada pelo
próprio Deus, a religião coloca uma imagem de Deus desenvolvida pelo próprio ser
humano, o que reflete a sua busca de se justificar e se santificar pelos próprios
esforços humanos.
Finalmente, ao discutir sobre a verdadeira religião, Barth utiliza como
categoria central a noção de justificação pela fé: só é possível falar em religião
verdadeira nos termos de um pecador justificado. A religião nunca é verdadeira em si
mesma, mas ela pode se tornar verdadeira a partir da justificação divina. Esta é a
sublimação da religião pela revelação: sua negação (religião como ausência de fé) e
elevação (justificação e santificação). Dentro dessa compreensão, Barth declara o
Cristianismo como verdadeira religião. Em si mesma, a religião cristã não é distinta
das outras religiões. Ela também é ausência de fé do ser humano que está em
oposição à revelação divina, idolatria e justificação própria. Este é o Cristianismo em
sua fraqueza, não em sua força. Contudo, é exatamente na fraqueza que está a sua
força, visto que no conceito de justificação pela fé a graça de Deus atua na
incapacidade humana. Para Barth a única coisa decisiva para a verdade da religião é
a graça expressa no nome de Jesus Cristo, que cria, elege, justifica e santifica a
religião.
CAPÍTULO III
A CRÍTICA DA RELIGIÃO EM DIETRICH BONHOEFFER
O estudo do tema da religião em Bonhoeffer necessita ser realizado de forma
diferente do caminho adotado no capítulo anterior para a compreensão da religião em
Barth. Enquanto o teólogo suíço expressou suas principais considerões sobre a
religião em textos específicos de sua obra, o teólogo alemão menciona a religião de
forma fragmentária e não sistemática em seus diversos escritos. Portanto, este
capítulo procurará realizar um levantamento das alusões de Bonhoeffer à religião em
seus escritos de maneira geral, a partir de uma perspectiva histórica.
Para fins de organização dessa considerável quantidade de material que
oriunda de diversas situões, textos e períodos históricos, o presente capítulo fará
uso da classificação delineada por J. Godsey
409
da teologia de Bonhoeffer, que a
estrutura em três fases principais: (1) Fundamentação Teológica: até 1931; (2)
Aplicação Teológica: de 1932 a 1939; e (3) Fragmentação Teológica: de 1940 a
1945. As considerões do presente capítulo não serão derivadas da obra de Godsey,
apenas sua divisão dos períodos históricos da teologia de Bonhoeffer será utilizada
para a estruturão dos tópicos que se seguem.
3.1 Fundamentação Teológica: até 1931
Neste período chamado de Fundamentação Teológica são explorados os
seguintes escritos bonhoefferianos: os do período de estudante (1923-1926); a
dissertação doutoral, Sanctorum Communio (1927); os escritos pastorais em
Barcelona (1928); a dissertação de pós-doutorado, Act and Being (1930); e,
finalmente, os escritos produzidos no período de estudos em Nova York (1930-
1931).
409
Essa classificação já foi mencionada no primeiro capítulo dessa dissertação. Veja a estrutura do
comentário de J. Godsey da teologia de Bonhoeffer já no sumário de sua obra (especialmente os três
primeiros capítulos) em The theology of Dietrich Bonhoeffer, op. cit.
88
3.1.1 Escritos do período de estudante (1923-1926)
De maneira geral, em seu período de estudos Bonhoeffer parece manter uma
postura favorável em relação à religião. Em uma carta escrita aos seus pais numa
viagem à Itália em 1924, por exemplo, ele considera o Cristianismo uma religião
mundial, assim como o Budismo.
410
Por sua vez, no ano de 1925 ele enfatiza
positivamente a religiosidade de Lutero em um trabalho monográfico sobre
Sentimentos de Lutero acerca de sua Obra”: A despeito do mais enfático
pessimismo acerca do mundo, sua distintiva segurança religiosa interior permanece
intacta um fato que não podemos olvidar.”
411
Em outro trabalho acadêmico daquele mesmo ano acerca da Interpretão
Histórica e Pneumatológica das Escrituras, Bonhoeffer esboça uma relação entre a
religião cristã e a revelação divina: A religião cristã se sustenta ou sucumbe pela
crença em uma revelação divina histórica e perceptivelmente real, uma revelação
onde aqueles que têm olhos para ver podem ver e aqueles que têm ouvidos para ouvir
podem ouvir.”
412
Ademais, nesse mesmo estudo ele relaciona religião e igreja ao
afirmar a representação empírica da religião na forma de igreja e congregação”.
413
No entanto, nas suas notas acerca da aula de Lutero sobre a Carta aos
Romanos, Bonhoeffer assevera que a lógica teológica intenta se livrar do
psicologismo. Ela não fala do pecado e da revelação como elementos da consciência.
Antes, ela fala destes como realidades da revelação.”
414
Essa oposição ao conceito de
psicologismo parece representar um ataque à noção do a priori religioso
desenvolvido por Ernst Troeltsch (principalmente em suas obras Psychologie und
Erkenntnistheorie e Zur Frange dês religiösen Apriori), que em conexão com Kant
concebia psicologicamente a religião como uma lei a priori da consciência.
415
Portanto, é possível perceber aqui uma crítica incipiente e indireta da religião no
ataque de Bonhoeffer ao a priori religioso de Troeltsch.
416
410
Cf. Carta aos pais (Tripoli, 9 de Abril de 1924) em Dietrich Bonhoeffer, The Young Bonhoeffer:
1918-1927. Dietrich Bonhoeffer Works (DBW) v. 9, Minneapolis: Augsburg Fortress, 2003, p. 118.
Em nota os editores explicam que a data correta é 9 de Maio (veja p. 116).
411
Ibid., p. 280.
412
Ibid., p. 280.
413
Ibid., p. 298.
414
Ibid., p. 300.
415
Cf. a nota 2 (sobre psicologismo) dos editores em Ibid.
416
A crítica ao conceito de a priori religioso reaparece em Act and Being e nas cartas da prisão. Cf. D.
Bonhoeffer, Act and Being. New York: Harper & Brothers, 1961, p. 46-47; D. Bonhoeffer,
Resistência e Submissão: cartas e anotações escritas na prisão. São Leopoldo: Sinodal, 2003, p. 369-
370.
89
No ano de 1926, em comemoração aos 75 anos de Adolf von Harnack
completados em 7 de Maio, os estudantes que participavam de seu seminário
prepararam um trabalho monográfico sobre o conceito de alegria no Novo
Testamento. Este conceito era especialmente apreciado por Harnack.
417
Organizador
e editor desse estudo, Bonhoeffer menciona positivamente a religião em conexão
com a fé, no contexto do conceito de alegria no Evangelho de João:
Em João, euaggelion significa completa alegria na unidade com Cristo
aqui e agora, assim como a superação do mundo e do sofrimento do
mundo; aqui também, alegria não é primariamente uma expressão
emocional tal como uma alegre agitação, mas é essencialmente idêntica à
“certeza da fé. Ela é, também, uma inalienável, religiosa, e esvel
possessão, que é sempre criada ou nutrida ao refletir sobre a luz que veio
ao mundo. [...] Para o Evangelho de João a inteira alegria em Cristo
reside nessa percepção. [...] O criso não é, como no caso de Paulo,
ligado a terra pela expectativa da parousia, mas tem em cada momento a
vida eterna e a perfeita alegria.
418
Naquele mesmo ano, Bonhoeffer pregou um sermão sobre Salmo 127:1 (Se
o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam) no qual afirmou
que Deus edifica a casa dando-nos a sua graça. Quando Deus confirma a nós
mesmos e nossas ões, nosso trabalho [...], nosso empenho de melhorar nossa
economia, saúde, moralidade e religião.”
419
É nítida aqui a ligação que Bonhoeffer
estabelece entre religião e moralidade sob um prisma aparentemente positivo.
Desse modo, até o ano de 1926 praticamente não existe crítica da religião nos
escritos de Bonhoeffer. Em certo sentido, a religião é vista por ele de maneira
favorável, que se relaciona com uma disposição de fé interior e uma postura moral,
assim como assume uma forma empírica através da igreja. Contudo, Bonhoeffer
prefere entender a religião na perspectiva da revelação, não da noção psicológica de
um a priori religioso na consciência humana.
3.1.2 Dissertação Doutoral: Sanctorum Communio (1927)
Em sua tese doutoral de 1927, Bonhoeffer indica duas formas equivocadas de
se compreender a igreja: (1) historicizante, que confunde a igreja com uma
comunidade religiosa; (2) religiosa, que confunde a igreja com o reino de Deus.
417
Cf. nota 1 dos editores sobre Joy in Early Christianity: Commemorative Paper for Adolf von
Harnack, em D. Bonhoeffer, The Young Bonhoeffer, op. cit., p. 370.
418
Ibid., p. 381.
419
Ibid., p. 474.
90
a primeira negligencia o fato de que as novas relões básicas
estabelecidas por Deus são verdadeiramente reais, e aponta ao invés disso
aos motivos religiosos que de fato levam à comunidade empírica (o
impulso missionário, a necessidade de comunicar, etc.). [...] A segunda se
engana ao não levar a sério o fato de que os seres humanos eso ligados à
história.
420
De acordo com o pensamento bonhoefferiano, enquanto a primeira forma é
chamada de abordagem sociológica, a segunda se encontra na abordagem teológica
típica de círculos religiosos. Nenhuma delas, contudo, entende a realidade da igreja,
que é simultaneamente uma comunidade histórica e algo estabelecido por Deus.”
421
Embora o termo religiosa” seja empregado para definir a segunda postura, de
confundir o reino de Deus com a igreja e desprezar o fato de os seres humanos
participarem da história, de forma geral, em Sanctorum Communio Bonhoeffer
menciona a religião mais no contexto da postura historicizante, expressando a noção
de religião enquanto fenômeno histórico e sociológico.
Ao mencionar uma certa compreensão sociológica que considera a igreja uma
associação voluntária de pessoas com um interesse religioso, ao qual elas buscam
em encontros regulares, o autor compara esse tipo de compreensão de igreja com um
clube de música que regularmente reúne pessoas para os concertos. Sua conclusão é
a de que, nessa perspectiva, a igreja existe para o livre divertimento de cada
indivíduo.”
422
Nesse sentido, o teólogo alemão estabelece negativamente uma relação
entre interesse religioso e satisfação de necessidades ou desejos individuais. Aliás, a
percepção de individualismo se aproxima do que Bonhoeffer comenta acerca do
egoísmo do ser humano a partir da queda. Mas, nesse caso, ele fala do
desaparecimento da moralidade e da religião no seu sentido próprio (isto é, em seu
desenvolvimento proporcionado pelo amor) e uma presença meramente formal
destes, certamente marcados pelo egoísmo.
Enquanto a forma do espírito previamente cresceu do amor, a queda
substituiu o amor pelo egoísmo. Isso deu início ao rompimento da
comunhão imediata com Deus, e similarmente na comunhão humana.
Com essa mudança de dirão, a completa orientação da humanidade foi
alterada. Moralidade e religião em seu sentido próprio desapareceram da
natureza humana, e eso agora apenas formalmente visíveis nas
estruturas da ordem legal e na religião natural.
423
420
D. Bonhoeffer, Sanctorum Communio: a theological Study of the Sociology of the Church. DBW
1, Minneapolis: Augsburg Fortress, 2009, p. 125.
421
Ibid., p. 126.
422
Ibid., p. 253.
423
Ibid., 107.
91
Ao considerar as questões de individualismo e egoísmo, o autor se opõe à
visão de Schleiermacher da igreja como uma satisfação de necessidades religiosas,
que postula a necessidade dos indivíduos de se comunicarem como a razão básica
para a formação da comunidade religiosa. Nesse sentido, Bonhoeffer critica a noção
de igreja como satisfação de necessidades individuais, pois nesse caso a igreja seria
construída individualmente.
424
De forma geral, em Sanctorum Communio ele
combate o individualismo em favor da perspectiva de comunidade.
Em contraposição às formas equivocadas de entendimento da igreja, o autor
apresenta a noção que sintetiza a compreensão histórico-sociológica e a teológico-
revelacional: a igreja é Cristo existindo como igreja-comunidade”
425
. Assim, “a
igreja é a presença de Cristo do mesmo modo que Cristo é a presença de Deus. O
Novo Testamento conhece uma forma de revelação, Cristo existindo como igreja-
comunidade”.
426
Desse modo, Bonhoeffer traça um relacionamento direto entre
Cristo e a igreja. Mas essa relação não concebe Jesus Cristo como fundador da
comunidade religiosa cristã. Ele não foi o fundador de uma religião empírica, por
assim dizer. Para o autor, o crédito dessa fundão pertence aos apóstolos em um
período posterior.
427
Nesse sentido, ele ressalta que Jesus
trouxe, estabeleceu e proclamou a realidade da nova humanidade. [...] não
é uma nova religo recrutando seguidores essa é a figura de um tempo
posterior. Antes, Deus estabeleceu a realidade da igreja, da humanidade
perdoada em Jesus Cristo não religo, mas revelação, não comunidade
religiosa, mas igreja.
428
Portanto, Bonhoeffer alinha o conceito de religião à noção de comunidade
empírica histórico-sociológica, e o conceito de igreja à noção de revelação. Muito
embora fique explícita a distinção entre religião e revelação, comunidade religiosa e
igreja, o que Bonhoeffer deseja fazer aqui é precisamente evitar a perspectiva
reducionista e parcial do cristianismo ao campo exclusivamente sociológico. Tendo
em vista a tese central da obra em questão, que busca reunir a visão de comunidade
histórica e revelação divina, Bonhoeffer afirma que há uma conexão necessária
entre revelação e religião assim como entre comunidade religiosa e a igreja. Hoje em
dia isso é freentemente negligenciado.”
429
424
Cf. nota editorial 18 em Ibid., p. 159.
425
Cf. Ibid., p. 121, 198, 140-141.
426
Ibid., p. 140-141.
427
Ibid., p. 152.
428
Ibid., p. 153.
429
Ibid.
92
De maneira geral, em Sanctorum Communio, o teólogo alemão fala da
religião principalmente na perspectiva sociológica, uma comunidade religiosa
empírica. Nesse sentido, ele critica a noção de religião enquanto satisfação egoísta e
individual. Há também uma clara distinção entre religião e revelação, comunidade
religiosa e igreja, mesmo que Bonhoeffer reconheça uma relação entre esses pares.
3.1.3 Escritos pastorais: Barcelona (1928)
Logo após concluir seu programa doutoral, Bonhoeffer atuou como pastor
assistente em Barcelona no ano de 1928. Nessa atividade ele ocasionalmente
mencionou o tema da religião em aulas e sermões. Em um sermão sobre Romanos
11:6, em 11 de Março, Bonhoeffer falou da religião como a tentativa humana mais
grandiosa e mais nobre para atingir o eterno, em meio a ansiedade e inquietude do
corão.
430
Semelhantemente, no sermão sobre Lucas 12:49, em 24 de Junho, ele
definiu a religião e a moralidade como o tesouro mais precioso produzido pela
humanidade. Contudo, essa afirmação se situa no contexto onde, nos termos
bonhoefferianos, o fogo divino queima todas as produções humanas que possam
conferir a ele qualquer glória.
431
Por sua vez, no sermão sobre 2 Coríntios 12:9, de 9
de Setembro, Bonhoeffer discute o significado da religião no contexto do
cristianismo em contraste com as outras religiões. Em sua distinção da religião de
Deus e a religião do ser humano, ele destaca no primeiro caso o amor e a auto-
doação expressa na cruz, e no segundo a busca da felicidade a partir de um
paradigma antropontrico:
Por que existe a religião? Qual é o seu real significado e propósito? Se
nós colocarmos essa queso para as várias religiões ao redor do mundo,
nós obteremos uma resposta: para fazer o ser humano feliz, tanto externa
quanto internamente. A felicidade e a religo pertencem um ao outro
assim como o brilho e o ouro; a religião que não faz uma pessoa feliz não
é religião. Isso significa, no entanto, que a religo é concebida da
perspectiva do ser humano como centro do mundo. Mas o que a Bíblia
tem a dizer sobre isso? Ela aponta para um único evento, um único sinal
para nossa reflexão: a cruz de Jesus. Aqui, algo sem precedentes
aconteceu: a equação entre religo e felicidade é rompida de uma vez por
todas na cruz, onde Deus morre por amor ao ser humano. Ou alguém
talvez queira dizer acerca da felicidade interior, onde Jesus, o emissário
de Deus, morre clamando, Meu Deus, por que me desamparaste?
Religo e felicidade, tanto interna quanto externa, se rompem neste
momento, quando o céu foi rasgado e sobre a cruz apareceu a nova,
430
Cf. Dietrich Bonhoeffer, Barcelona, Berlin, New York: 1928-1931. DBW 10, Minneapolis:
Augsburg Fortress, 2008, p. 482.
431
Cf. Ibid., p. 497.
93
desconhecida, e incompreensível palavra: graça, amor, não como um
novo evento na terra, mas como uma nova palavra de Deus [...] Isso
claramente distingue o cristianismo de todas as outras religiões desde o
início. Aqui há graça, lá felicidade; aqui cruz, lá a coroa; aqui Deus, lá o
ser humano. [...] Você escolhe a religo de Deus ou a religião do ser
humano?
432
Em 13 de Novembro o teólogo alemão ministrou uma aula sobre A tragédia
do profético e seu significado permanente”. Nela, Bonhoeffer advertiu acerca do
perigo do abuso da religião. Ele caracteriza essa violação ou abuso através da
menção de pessoas que acreditam possuir a religião à semelhança da possessão de
algum bem pessoal ou nacional. Em suas palavras, violar a religião significa crer
que temos posse dela. Não somos nós que possuímos a Deus, antes Deus é quem nos
possui. Não são os seres humanos que têm Deus a seu dispor, mas Deus que tem os
seres humanos a seu dispor.”
433
Assim, valendo-se de uma afirmação paradoxal,
Bonhoeffer conclui: Ser religioso significa reconhecer que nunca se pode ser
religioso; ter Deus significa perceber que o ser humano nunca pode ter Deus.”
434
Essas considerões do teólogo alemão indicam de certo modo uma abordagem
positiva da religião, associando-a de forma geral com a noção de fé em Deus e
dependência dele.
Por outro lado, na aula de 11 de Dezembro sobre Jesus Cristo e a Essência
do Cristianismo, o teólogo alemão esboça uma postura diferente em relação à
religião. Nessa aula Bonhoeffer se pergunta acerca do lugar que Cristo ocupa nas
principais questões da vida das pessoas e da sociedade. Ele lamenta que Cristo não
esteja no centro dessas questões, antes esteja, nos termos bonhoefferianos, confinado
a um mero espo religioso localizado na restrita província espiritual da vida das
pessoas:
A queso que es diante de nós hoje é se em nossos dias Cristo ainda
permanece no lugar onde as decisões são feitas a respeito dos mais
profundos assuntos que nós estamos enfrentando, a saber, a respeito de
nossas próprias vidas e a vida de nosso povo. [...] Todos nós sabemos
que, em termos práticos, Cristo tem sido eliminado de nossas vidas.
Embora nós ainda construamos seu templo, nós vivemos em nossa própria
casa. Cristo, ao invés de estar no centro de nossas vidas, tem se tornado
uma coisa da igreja, ou da religiosidade de um grupo de pessoas. Para a
mente dos séculos dezenove e vinte, a religião toma parte da conhecida
sala de visitas, dentro do qual alguém pensa em ficar um pouco, e eno
imediatamente retorna para o lugar de trabalho. [...] Nós não o
entendemos [a Cristo] se fizermos um quarto para em uma mera província
432
Ibid., p. 497.
433
Ibid., p. 336.
434
Ibid., p. 522-523.
94
de nossa vida espiritual, mas apenas se nossa vida for orientada a partir
dele
435
Adicionalmente, ele também aborda nessa aula a impossibilidade do
conhecimento humano de Deus, com uma linguagem muito próxima da
argumentação de Barth. Nesse sentido, Bonhoeffer enfatiza que Deus é
completamente superior e diferente do mundo, totalmente diferente da natureza
humana e absolutamente inacessível à compreensão e a vontade do ser humano. Por
isso, Deus deseja apenas uma postura das pessoas: a completa pobreza interior, o
completo desconhecimento, ou seja, uma vacuidade que só ele pode preencher.
436
Nesse contexto, qualquer tentativa de conhecimento humano de Deus figura
precisamente como um conhecimento limitado, relativo e antropomórfico. Assim, o
desejo humano de crer constitui um desejo acompanhado de motivos e objetivos
humanos. Em outros termos, o caminho religioso do ser humano a Deus conduz à
construção de um ídolo no próprio coração humano, que o cria a sua própria imagem.
Portanto, Bonhoeffer conclui que nenhum conhecimento, moralidade ou religião
pode levar o ser humano a Deus. Em suas palavras, mesmo a religião é puramente
uma peça de nossa própria natureza corporal, como Lutero uma vez indicou não há
absolutamente qualquer caminho que leve o ser humano a Deus, pois tal caminho é
em última análise baseado nas capacidades humanas.”
437
O teólogo alemão
acrescenta que a religião e a moralidade contêm o germe do excesso de confiança, do
orgulho e da arrogância. Pois através dele as pessoas buscam se elevar ao nível
divino. Nesse sentido, religião e moralidade podem se tornar os inimigos mais
perigosos que atuam contra a vinda de Deus ao ser humano, os mais perigosos
inimigos da mensagem cristã das boas novas.”
438
Nesta aula, Bonhoeffer também compara o Cristianismo com as outras
religiões. Novamente, as semelhanças entre sua argumentação e o pensamento de
Barth são notáveis. Ele assevera que o Cristianismo, enquanto religião, não é de
Deus. Em linhas gerais, ele afirma que a religião cristã é simplesmente mais um
exemplo da itil tentativa humana de criar um caminho até Deus, à semelhança do
Budismo e outras religiões. Portanto, os cristãos não têm do que se orgulhar com o
seu cristianismo, pois ele é basicamente humano. O teólogo alemão ressalta que
435
Ibid., p. 342.
436
Cf. Ibid., p. 352.
437
Ibid., p. 353.
438
Ibid.
95
Cristo não trouxe uma nova religião, antes ele trouxe Deus. Por isso, os cristãos não
vivem da religião, mas da graça de Deus que vem a cada pessoa que esteja com o
corão aberto para recebê-la. Bonhoeffer conclui que o presente de Cristo não é a
religião cristã, mas a graça e o amor de Deus que culminou na cruz.”
439
Panoramicamente, em seu período pastoral em Barcelona, o teólogo alemão
discute sobre a religião enquanto qualidade humana, sobretudo ao lado da
moralidade. Ele também retrata a religião como busca da felicidade interior, o que se
aproxima de sua noção de satisfação dos desejos individuais. Tal percepção da
religião se contrasta com Deus e sua graça. Ademais, em suas aulas, Bonhoeffer em
certo momento menciona a religião numa perspectiva positiva, ao relacioná-la com a
fé e dependência de Deus, enquanto em outro momento afirma que a religião de
forma geral, inclusive o Cristianismo, é a pretensa e arrogante tentativa humana de
chegar a Deus.
3.1.4 Dissertação de Pós-doutorado: Act and Being (1930)
Em Act and Being, Bonhoeffer comenta sobre a religião especialmente no
contexto de sua crítica ao transcendentalismo e a ontologia, enquanto formas de
compreensão da revelação. Nesse contexto, ele salienta que no idealismo de maneira
geral há uma profunda identidade entre o Eu e Deus, isto é, a noção de essência
divina no ser humano. Quando o Eu olha profundamente para dentro de si mesmo ele
encontra a religião, que representa a revelação da mente divina. Nesse sentido, o
autor conclui, principalmente a partir de Hegel, que a revelação se constitui naquilo
que a razão humana pode aprender de si mesma.
440
Dessa forma, o teólogo alemão
aponta duas conseências dessa noção: (1) Deus está encarcerado na consciência
humana; e (2) a religião equivale à revelação, pois não há espo para a fé e a
Palavra de Deus, visto serem estas repugnantes à razão. Em sua crítica ao idealismo,
Bonhoeffer ressalta que tais proposições são teologicamente intoleráveis.
441
Portanto,
nesse trecho, o teólogo alemão claramente faz uma contraposição entre religião e
revelação. Enquanto a primeira é mencionada em relação a racionalidade e
consciência humana, a outra aparece ligada à fé e a Palavra de Deus.
439
Ibid., 358.
440
Cf. D. Bonhoeffer, Act and Being, op. cit., p. 41.
441
Cf. Ibid.
96
Além disso, à semelhança de suas notas acerca da aula de Lutero sobre a
Romanos em 1924, o autor tece duras críticas ao conceito de a priori religioso.
Embora esse conceito tenha sido cunhado basicamente por E. Troeltsch, Bonhoeffer
se refere especialmente à abordagem de Reinhold Seeberg, seu professor em Berlim.
Essencialmente, Seeberg fala do a priori religioso como uma disposição mental
formal que não tem conteúdo em si mesmo. Antes, o conteúdo positivo da fé é ditado
pela revelação, ao passo que o a priori representa única e simplesmente a capacidade
intrinsecamente humana de tomar consciência do ser e da atividade de Deus - que
está além do mundo habilitando, desse modo, o ser humano a receber dentro da
alma o conteúdo da revelação divina. Assim, Bonhoeffer explica que, segundo essa
teoria, o ser humano é capaz de receber a Deus dentro de si mesmo através da
experiência, dos sentimentos, ou da intuição.
442
Ademais, ele afirma que o a priori religioso é dito ser fundamentalmente
aberto à vontade divina, constituindo uma espécie de espaço no ser humano, através
do qual o conteúdo da revelação divina possa fluir. Em outras palavras, revelação
deve se tornar religião, e é essa a sua natureza. Revelação é religião.”
443
Parece
evidente que, nesse contexto, o descontentamento bonhoefferiano com o conceito de
a priori religioso se expressa na oposição à tentativa de identificação entre revelação
divina e religião humana. Do mesmo modo, em diversos momentos o teólogo alemão
procura distinguir a fé e a religião. Para ele, atos religiosos simplesmente não são
idênticos à fé”
444
, pois a fé é algo essencialmente diferente da religião.”
445
Em sua discussão acerca da doutrina do ser humano, no último capítulo dessa
obra, Bonhoeffer assevera que a Palavra de Deus demanda fé”
446
. O conhecimento
de que o ser humano é um ser pecaminoso em sua totalidade é acessível unicamente
por meio da fé na revelação divina. Como em Sanctorum Communio, o autor afirma
que através do conhecimento da revelação é possível saber que o ser humano se
apartou da comunhão com Deus e também da comunhão com o semelhante.
447
Desse
modo, estando agora sozinho e na condição da mentira (alheio à verdade da
revelação), o que o ser humano entende por mundo, em realidade, é o seu mundo,
o que ele entende por Deus representa, de fato, um objeto religioso. Nesse sentido, o
442
Cf. Ibid., p. 46.
443
Ibid.
444
Ibid., p. 132.
445
Ibid., p. 94.
446
Ibid., p. 156.
447
Cf. Ibid.
97
que ele chama de Deus é a sua propriedade, tendo em vista que o próprio ser humano
é seu criador e mestre.
448
Certamente, essa consideração de Bonhoeffer se aproxima
daquilo que Barth fala da religião, especialmente em sua ênfase na prática idolátrica
do ser humano que se colocar como criador de Deus. Entretanto, Bonhoeffer conduz
essa discussão na perspectiva do individualismo.
Ao procurar enfatizar a distinção entre revelação e religião assim como fé e
religião, o teólogo alemão sublinha a pertinência teológica com que Barth reprova a
confusão que Schleiermacher faz entre religião e graça.
449
Contudo, ele também
aponta o perigo da posição de Barth: procurar estabelecer no ato de crer, apenas, o
ponto em que se descobre a fé, apresentando assim o desejo da fé”, por parte do ser
humano, apenas como um reflexo do ato da fé. De outro modo, Bonhoeffer entende
que a fé e o desejo de fé” estão juntos no mesmo ato. O segundo não é um mero
reflexo do primeiro. A diferença, para Bonhoeffer, é de que a fé propriamente dita se
fundamenta na comunhão com Cristo.
450
A partir dessa premissa, o teólogo alemão
compreende o relacionamento entre fé e religião de maneira diferente da percepção
do teólogo suíço. A atividade religiosa humana, nos termos do desejo de fé”, se
relaciona com a fé dada por Deus a partir da comunhão com Cristo:
dentro da comunhão de Cristo a fé toma forma na religião, e eno a
religião é aqui chamada de fé, pois quando eu olho para Cristo, eu posso e
devo dizer para minha consolação Eu creio apenas para certamente
acrescentar, quando eu torno a olhar para mim mesmo, ajuda-me na
minha falta de fé. Toda oração, toda busca por Deus em sua Palavra,
toda adesão a sua promessa, toda súplica por sua graça, toda esperança na
cruz, todo esse reflexo é religião, desejo de fé”; mas em comunhão
com Cristo, embora ainda seja obra humana, ela é a fé dada por Deus, fé
da vontade de Deus, que pode ser realmente encontrada pela misericórdia
de Deus.
451
Portanto, embora Bonhoeffer rejeite a concepção do idealismo ontológico que
compreende a revelação essencialmente como religião identificação essa que se
expressa principalmente na noção de a priori religioso -, ele também se opõe à
proposta do transcendentalismo que, como em Barth, procura entender a fé como
algo totalmente alheio e diferente da religião. Na visão do teólogo alemão essas duas
posições apresentam um acento individualista bastante agudo.
452
Conforme a
448
Cf. Ibid.
449
Cf. Ibid., p. 176.
450
Cf. Ibid., p. 175.
451
Ibid., p. 176.
452
Cf. Kurt Appel e Nicoletta Capozza, Estar-aí-para-outros como participação da realidade de
Cristo: sobre a eclesiologia de Dietrich Bonhoeffer. Teocomunicação, v. 36, n. 153, 2006, p. 586.
98
indicação expcita do título da segunda parte da obra, em sua ênfase na importância
do relacionamento e da comunhão, Bonhoeffer aponta a igreja, enquanto
comunidade, como concretização e atualização da revelação divina.
3.1.5 Estudos em Nova York: Union Theological Seminary (1930-1931)
No período em que ficou estudando nos Estados Unidos entre Setembro de
1930 e Junho de 1931 -, Bonhoeffer continuou escrevendo acerca da relação entre
teologia e filosofia, empreitada que basicamente constituiu o seu trabalho em Act and
Being.
453
No ensaio intitulado Sobre a Idéia Cristã de Deus ele assevera: A
justificação é a pura auto-revelação, o puro caminho de Deus ao homem. Nenhuma
religião, nenhuma ética, nenhum conhecimento metafísico pode servir de
aproximação do homem a Deus. Todos estes estão sob o julgamento de Deus, são
obras do homem.”
454
Assim, nesse trecho o autor apresenta a obra de Deus em favor
da humanidade (a justificação, a auto-revelação) em contraposição à inutilidade das
obras humanas que buscam se aproximar de Deus por seus próprios esforços. Nesse
contexto, a religião aparece negativamente relacionada à ética e a metafísica.
De forma semelhante, em um trabalho monográfico intitulado A Teologia
da Crise e sua atitude em relação à Filosofia e a Ciência”, Bonhoeffer procura
separar a atividade teológica do trabalho filosófico, especialmente através do
conceito teológico de revelação: deve ficar claro o que tencionamos ser, teólogos
cristãos ou filósofos [...] a teologia cristã precisa conhecer a premissa própria e
constante de todo o seu pensamento, e que o filósofo não reconhece: a premissa da
revelação de Deus em Cristo ou, em termos objetivos, a fé em sua revelação.”
455
Nessas considerões, o autor coloca Barth na tradição dos teólogos cristãos e, por
contraste, situa a religião no âmbito da filosofia. Nas palavras de Bonhoeffer, Barth
se encontra na tradição de Paulo, Lutero, Kierkegaard, na tradição do genuíno
pensamento cristão. Cometemos injustiça contra Karl Barth se nós o consideramos
como um filósofo”.
456
Ele explica que “a categoria que Barth tenta introduzir na
teologia em seu stricto senso e que é tão recusado por parte de todo o pensamento em
453
Cf. R. Wüstenberg, A theology of Life, op. cit., p. 5.
454
D. Bonhoeffer, Barcelona, Berlin, New York, op. cit., p. 461.
455
Ibid. Em nota os editores explicam que Bonhoeffer considera que a revelação de Deus em Jesus
Cristo constitui o objeto de todo o pensamento de um teólogo cristão (cf. nota 10).
456
Ibid.
99
geral, e especialmente no pensamento religioso, é a categoria da palavra de Deus, da
revelação diretamente de cima, de fora do homem.”
457
Assim, ao citar Barth, o teólogo alemão enfatiza que segundo a lógica da
Bíblia, a vinda de Deus destrói todas as tentativas humanas [de ir até ele], que
condena toda moralidade e religião, por meio das quais o homem procura tornar a
revelação de Deus supérflua.”
458
Portanto, há uma grande antítese da palavra de
Deus e a palavra do homem, da graça e da religião, de uma categoria puramente
cristã e uma categoria religiosa geral”.
459
Dessa forma, Bonhoeffer indica que a
religião ou o pensamento religioso, assim como a filosofia, não reconhecem a
premissa central da teologia cristã, a saber, a revelação de Deus em Jesus Cristo.
Aliás, para Bonhoeffer, fora dessa revelação o pensamento humano de maneira geral
não é capaz de obter o conhecimento de Deus:
A tentativa da Cosmologia, isto é, de uma interpretação [...] do mundo
com base na ciência natural, nunca pode ir além dos limites do
pensamento humano. A Cosmologia pode chegar à hitese de um
fundamento último do mundo e chamá-lo de Deus, tudo o que nós
podemos dizer em nome da teologia cristã é que esse Deus não é o Deus
da revelação
460
Por sua vez, em seu relatório de um ano de estudos nos Estados Unidos
preparado para o escritório da federação da igreja alemã (órgão que subsidiou os seus
estudos no Union Theological Seminary), Bonhoeffer descreve sua percepção da
teologia e do estilo de vida da cultura norte-americana. Ele afirma que a chave para
essa compreensão foi o reconhecimento do conceito pragmático de verdade, que
permeia o pensamento norte-americano. Como conseência desse pragmatismo, há
naquele lugar um entendimento da vida puramente individualista que oferece a
felicidade para cada indivíduo, mas contém muito pouco além disso.”
461
O teólogo
alemão acrescenta que essa noção é corroborada pela história intelectual e política da
América retratada por Thomas C. Hall em The Religious Background of American
Culture.
462
Segundo Bonhoeffer, a tese de Hall é de que o protestantismo americano
457
Ibid., p. 467.
458
Ibid., p. 466.
459
Ibid., p. 468.
460
Ibid., p. 475.
461
Ibid., p. 312.
462
Cf. Ibid. Os editores explicam que embora Bonhoeffer cite esse título, ele de fato se referia a The
Religious Background of American Culture (cf. nota 24). Thomas Hall foi professor de história e
cultura norte-americana na Universidade de Göttingen na Alemanha. O livro foi publicado em 1930,
aproximadamente a época em que Bonhoeffer estava nos Estados Unidos. Cf. Thomas Cuming Hall,
The Religious Background of American Culture. Boston: Little, Brown, and Company, 1930.
100
é mais velho que o protestantismo da Reforma e, portanto, sustenta um caráter
definitivamente individualista de pessoas sem igreja, o que concorda muito bem com
a impressionante influência do pragmatismo.”
463
De fato, o teólogo alemão confessa que este livro foi muito importante para a
sua compreensão da situação da igreja norte-americana. Através dele, Bonhoeffer
pôde entender como era possível o fato de as igrejas nos Estados Unidos, de forma
geral, não possuírem um credo, um dogma ou um sistema dogmático: as diversas
denominões não diferem no credo, mas nos ritos ou, às vezes, somente em sua
posição social.”
464
A explicação bonhoefferiana dessa situação aponta como motivo
básico a premissa do individualismo religioso.
465
Nesse caso, ao contrário do que ele
indicava como situação ideal em Sanctorum Communio, a igreja não mais
representa o lugar onde a congregação ouve e prega a palavra de Deus”
466
. Ao invés
disso, a Palavra de Deus recebe importância secundária, pois esse tipo de igreja
representa essencialmente uma entidade social para esse ou aquele propósito.”
467
Como é possível perceber a partir dessas declarões, Bonhoeffer
repetidamente relaciona a religião e o individualismo no contexto da igreja norte-
americana. Aliás, o conceito de individualismo religioso é para Bonhoeffer um
conceito chave para o entendimento e a crítica da teologia americana.”
468
3.2 Aplicação Teológica: de 1932 a 1939
No período denominado Aplicação Teológica são explorados diferentes tipos
de escritos de Bonhoeffer: sermões Berlim (1931-1933); aulas ministradas entre
1932 e 1936 (A Essência da Igreja, Venha a nós o teu Reino, Criação e Queda,
Cristologia e A Igreja visível no Novo Testamento); a obra Discipulado (1937); e,
por último, uma carta escrita em sua segunda visita aos Estados Unidos (1939).
463
D. Bonhoeffer, Barcelona, Berlin, New York, op. cit., p. 312.
464
Ibid., p. 316.
465
Cf. Ibid.
466
Ibid., p. 317.
467
Ibid.
468
R. Wüstenberg, A theology of Life, op. cit., p. 165 (nota 25).
101
3.2.1 Sermões em Berlim (1931-1933)
Em 29 de Novembro de 1931, Bonhoeffer fez uma prédica sobre Lucas
12:35-40. Nela, o teólogo alemão discutiu sobre o ser humano do futuro. Para ele, os
acontecimentos daqueles tempos apontavam para um momento crucial na história do
mundo. Em suas palavras, a técnica e a ciência transformaram-se em poderes
independentes, que ameaçam destruir a humanidade. Elas se elevam às alturas e seus
demônios habitam o u dos deuses do nosso tempo”
469
. Logo, os enredamentos dos
povos arrastam os mesmos para a destruição, e parece que não existe alguém capaz
de frear esse destino”
470
. Nesse contexto, ele destaca que no reconhecimento da
derrota do ser humano diante dessa realidade nasce a esperança por um novo tipo de
gente, por um renascimento, por um ser humano do futuro.”
471
. Em seu ponto de
vista, o texto bíblico de Lucas, escolhido para essa prédica, fala justamente desse
processo de criação de um novo ser humano. Mas esse novo ser humano não se
refere ao ser humano político, nem do ético e muito menos do religioso, mas do ser
humano que espera atento, do ser humano esperançoso”
472
. Com efeito, ao falar da
necessidade da esperança, Bonhoeffer conclui: se em algum momento uma geração
teve que aprender a esperar, esta é a nossa geração. Esperar por uma situação política
melhor, por uma conjuntura melhor, por emprego, por trabalho, por uma nova moral,
por uma nova religião”
473
. Portanto, o teólogo alemão fala da religião de seus dias a
partir de uma perspectiva negativa, associada a fatores políticos e morais
desfavoráveis. Ademais, essa discussão possui como pano de fundo o avanço da
ciência que tem o poder de alterar a conjuntura mundial.
Já em 1933 Bonhoeffer fez um sermão sobre Êxodo 32. Ao comentar sobre o
momento em que os israelitas esperavam Moisés descer do Monte Sinai, e a
concomitante situação em que suas necessidades religiosas os levaram à confecção
de um bezerro de ouro, sob a liderança de Arão, Bonhoeffer exclama: Vamos
sacerdote Arão, cumpra com sua obrigação; veja algo para o culto. Deus nos deixou
aqui sozinhos, mas nós precisamos de deuses! Nós precisamos de religião! Se você
não pode prevalecer com o Deus vivo, então faça-nos deuses vo mesmo!”
474
Em
sua ênfase negativa da necessidade religiosa” do povo, ele acrescenta: mantenha a
469
Dietrich Bonhoeffer, Prédicas e alocuções. São Leopoldo: Sinodal, 2007, p. 8.
470
Ibid.
471
Ibid.
472
Ibid.
473
Ibid, p. 9.
474
Dietrich Bonhoeffer, Berlin: 1932-1933. DBW 12, Minneapolis: Augsburg Fortress, 2009, p. 474.
102
religião do povo viva, dê a eles condições de culto. Eles realmente querem
permanecer como uma igreja, com deuses, sacerdotes e religião, mas uma igreja de
Arão sem Deus.”
475
Assim, nesse sermão ele também retrata negativamente a
religião, que se encontra associada ao culto prestado aos deuses feitos por mãos
humanas. Além disso, ele fala de uma forma de igreja com religião, mas sem Deus.
3.2.2 Aula: A Essência da Igreja (1932)
No curso dado sobre A Essência da Igreja” no segundo semestre de 1932,
Bonhoeffer parece colocar a crítica da religião em uma linguagem eclesiológica. Ele
critica, por exemplo, (1) a noção de igreja que se situa em lugares privilegiados;
(2) a igreja que se coloca na periferia”, e não no centro do mundo; (3) e o conceito
de igreja que se relaciona com o individualismo religioso.
No primeiro caso ele salienta que a igreja não tem o poder de converter um
lugar histórico em um lugar de Deus, pois quem tem o poder para determinar isso
não é o ser humano, mas o próprio Deus. Em realidade, essa argumentação
bonhoefferiana serve como preparação para sua asserção central: este lugar [isto é, o
lugar de Deus], não é nem a igreja nacional nem a burguesia”
476
. Em outros termos, a
igreja de Deus se renuncia a instalar-se em lugares privilegiados.”
477
Além disso, ela não deve estar na periferia, mas no centro do mundo. Nesse
sentido, ele se pergunta acerca do motivo pelo qual muitas pessoas não nutrem uma
visão positiva da igreja. Sua resposta indica que essa perspectiva se baseia no fato de
que a igreja só aparece à distância, na periferia da vida”
478
. Assim, quando a vida
do indivíduo se encontra em pontos culminantes ou em momentos críticos
(nascimento, confirmação, matrimônio, morte), então se apresentam os pontos
culminantes da atividade eclesial. Aí se deve buscar preferencialmente a igreja.”
479
Em contraste com essa realidade prática, o teólogo alemão ressalta que quando
Deus fala com sua comunidade, ela é simplesmente o centro de todos os lugares
humanos.”
480
475
Ibid.
476
Dietrich Bonhoeffer, Creer y Vivir. Salamanca: Sigueme, 1974, p. 28.
477
Ibid.
478
Ibid., p. 29.
479
Ibid.
480
Ibid., p. 28.
103
Há também nesta aula uma crítica à noção de igreja no pensamento de
Schleiermacher. Bonhoeffer explica que, em Schleiermacher, a igreja representa uma
reunião voluntária de cristãos devotos. Esta não é em realidade uma igreja, mas a
piedade ou religiosidade particular dos indivíduos.
481
Igualmente, a crítica à
religiosidade individual aparece como fator preponderante na distinção que
Bonhoeffer traça entre igreja e comunidade religiosa. Em suas palavras,
O erro de tomar a igreja como uma comunidade religiosa é hoje quase
universal. A igreja é uma realidade da fé. Quando em lugar da realidade
da fé se coloca o ideal da experiência, já não temos que ver com a igreja,
mas com a comunidade religiosa. Nesta, a comunhão é sempre algo
secundário frente à religiosidade do indivíduo.
482
No pensamento eclesiológico bonhoefferiano, tanto a essência quanto a
necessidade da igreja não se relacionam ou derivam do conceito de religião.
483
Desse
modo, não é possível formar um conceito de comunidade eclesial a partir do conceito
de religião, pois este último permanece sempre em sua ênfase individualista e
atostica.”
484
Contudo, Bonhoeffer constata que em seus dias havia inúmeras
propostas para a renovação e desenvolvimento da vida comunitária da igreja,
especialmente no Movimento da Juventude e no Ecumenismo. Porém, na sua visão,
todas elas se baseavam na vida piedosa ou na religiosidade individual, ao invés da
noção de igreja da fé.
485
Sua conclusão é de que, em contraposição à humanidade
redimida em Cristo, com as vivências religiosas permanecemos na humanidade de
Adão. A pobreza da fé não pode ser compensada com ricas experiências.”
486
3.2.3 Aula: Venha a nós o teu Reino (1932)
Em 1932 Bonhoeffer fez uma conferência, intitulada Venha a nós o teu
Reino na fundação Hoffbauer em Potsdam-Hermannswerder, Alemanha. Nela o
teólogo alemão indica duas posturas dos cristãos de seu tempo, que representam
indiretamente uma crítica da religião: fugir do mundo ou se secularizar. Em
realidade, esses dois caminhos significam, no final das contas, a mesma coisa: já
481
Cf. Ibid., p. 32.
482
Ibid., p. 56.
483
Cf. Ibid., p. 58.
484
Ibid., p. 59.
485
Cf. Ibid.
486
Ibid., p. 60.
104
não cremos no reino de Deus”
487
. Bonhoeffer explica que no primeiro caso nós
fugimos do mundo a partir do momento em que descobrimos o estratagema de
sermos religiosos, e inclusive cristãos”.
488
No segundo, [sucumbimos] à
secularização, entendida como secularização piedosa, cristã. Não aludimos ao
ateísmo nem à cultura bolchevista, mas à deposição cristã de Deus como senhor da
terra.”
489
É possível notar na argumentação do teólogo alemão o perigo de dois
extremos do Cristianismo: distanciar-se do mundo ou acomodar-se ao mundo. Em
ambos os casos o cristão se esquece de que Deus é o senhor do mundo. Além disso, a
religião aparece ligada aos dois casos. No primeiro, o teólogo enfatiza a enganação
ou estratagema de sermos religiosos, enquanto que no segundo ele fala da
secularização, não em termos de ateísmo ou arreligiosidade, mas de piedade ou
religiosidade cristã. Além disso, este é mais um exemplo da abordagem
bonhoefferiana que procura evitar extremos. Em Sanctorum Communio ele deseja
escapar de duas compreensões da igreja que se contrapõem (comunidade
exclusivamente histórico-sociológica ou igreja como sinônimo de reino de Deus), e
em Act and Being ele quer evitar as noções extremas da revelação propostas pelo
transcendentalismo e pela ontologia. Aqui também ele aponta os extremos da fuga do
mundo e da acomodação ao mundo. De fato, em todas essas abordagens o tema da
religião se faz presente.
3.2.4 Aula: Criação e Queda (1932-1933)
As aulas sobre Criação e Queda”, no inverno de 1932-1933, consistiram em
uma interpretação teológica de Gênesis 1 a 3. De forma específica, o título do
comentário bonhoefferiano sobre Gênesis 3 (o capítulo bíblico que retrata a queda
humana) foi traduzido para o inglês como A questão religiosa”
490
ou A questão
487
Ibid., p. 101.
488
Ibid.
489
Ibid., p. 102.
490
Cf. Dietrich Bonhoeffer, Creation and Fall: a Theological Interpretation of Genesis 1-3. New
York: Macmillan, 1976, p. 64. Essa versão segue a tradução publicada pela SCM Press em 1959. As
citações feitas nessa dissertação seguem essa tradução, simplesmente pela opção do uso do termo
religo.
105
piedosa”
491
. Em realidade, o termo original alemão emme pode significar religiosa”,
piedosa”, devota”.
492
Nessa discussão, Bonhoeffer enfatiza principalmente a pergunta feita pela
serpente (É assim que Deus disse?”). Ele a considera a primeira conversa sobre
Deus, a primeira conversa religiosa e teológica”
493
. No ponto de vista do teólogo
alemão, nesse contexto, a serpente só é má enquanto serpente religiosa, a sua
maldade se expressa apenas em sua religiosidade. Aliás, para Bonhoeffer, a pergunta
feita por ela é profundamente religiosa.
494
Ele explica que, à primeira vista, essa
pergunta parece indicar uma boa intenção: a serpente declara conhecer mais sobre
Deus do que o homem, que depende apenas da Palavra de Deus. A serpente conhece
um Deus maior e mais nobre que não precisa de tais proibições.”
495
Entretanto, o teólogo alemão também indica o que realmente essa pergunta
representou: A questão da serpente foi totalmente religiosa. Mas com a primeira
pergunta religiosa no mundo, o mal entrou em cena. Onde o mal aparece em sua
impiedade [ou não-religiosidade] ele é ineficaz, ele é um demônio, não precisamos
temê-lo.”
496
Contudo, o perigo se encontra justamente quando o mal aparece de
forma religiosa: Nessa forma ele não focaliza o seu poder, mas nos distrai para
outro lugar onde ele realmente deseja avançar. E aqui ele está coberto com os trajes
da religiosidade. O lobo vestido de cordeiro, Satanás em forma de anjo de luz: essa é
a forma apropriada do mal. Deus disse?, esta é claramente a pergunta
impiedosa.”
497
Ademais, Bonhoeffer explica o real sentido da maldade contida nessa
pergunta:
Essa é a pergunta que parece inocente mas através dela o mal nos vence,
através dela nós nos tornamos desobedientes a Deus. Se nós
percebêssemos essa queso em sua real impiedade nós seríamos capazes
de resistir a ela. Mas esse não é o modo de atacar os crisos. A eles deve-
se trazer o próprio Deus, a eles deve ser mostrado um Deus melhor e mais
maravilhoso do que eles parecem conhecer, e eles vão cair. O que há de
realmente mal nessa pergunta? Absolutamente, não é o que es sendo
perguntado. Antes, é a falsa resposta contida dentro da pergunta, [...] que
ataca a atitude básica da criatura em relação ao Criador. Espera-se que o
491
Cf. Dietrich Bonhoeffer, Creation and Fall. DBW 3, Minneapolis: Augsburg Fortress, 2004, p. 103.
Essa versão segue a nova tradução publicada em 1997 pela Fortress Press para as Obras de
Bonhoeffer.
492
Cf. nota 1 em Ibid.
493
Dietrich Bonhoeffer, Creation and Fall. New York: Macmillan, 1976, p. 69.
494
Cf. Ibid., p. 67.
495
Ibid., p. 66.
496
Ibid., p. 67.
497
Ibid.
106
homem julgue a palavra de Deus ao invés de simplesmente ouvi-la e
obede-la.
498
O ponto central dessa pergunta é a sugestão de que o ser humano precisa
examinar a Palavra de Deus, interpretando-a por si mesmo.
499
A despeito de sua
forma de apresentação religiosa, essa pergunta é um ataque direto a Deus.
500
Embora
a serpente fale religiosamente sobre Deus, isto é, com um aparente conhecimento
profundo sobre os segredos dele, logo a seguir essa religiosidade é desmascarada
em um ataque aberto: Deus disse? Sim ele disse ... mas por que ele disse isso? [...]
A Palavra de Deus é mentirosa porque vo não irá morrer.”
501
A afirmação da
serpente de que o ser humano não morreria, de que a Palavra de Deus era mentirosa,
e que o ser humano se tornaria como Deus aguçou a curiosidade e o desejo humano.
Então, Bonhoeffer indica em que sentido o ser humano se tornou como Deus, ao
desobedecer a sua Palavra. No pensamento do teólogo alemão essa é uma
religiosidade diferente, que não se contenta com a Palavra dada por Deus, mas quer
ir além desta, buscando o conhecimento de Deus por si próprio. Nos termos
bonhoefferianos, é a desobediência humana em forma de obediência.
502
Em linhas gerais, há uma certa ambigüidade na forma como Bonhoeffer
emprega o conceito de religião nesse contexto. Num primeiro olhar, parece que ele
usa o termo religião de maneira negativa, ao dizer, por exemplo, que a pergunta da
serpente é uma pergunta religiosa, que sua maldade é uma maldade religiosa, de que
essa pergunta religiosa se opõe à Palavra de Deus, fazendo com que o ser humano a
desobeda e busque o seu próprio conhecimento de Deus. Contudo, deve-se levar
em conta que o teólogo alemão está enfatizando aqui a sutileza da maldade. Embora
ela tenha um conteúdo negativo, contra Deus, ela está revestida com uma roupagem
positiva, que está a favor de Deus, e por isso ela tem condições de persuadir e
enganar o ser humano. Assim, na argumentação de Bonhoeffer, problemático é o
conteúdo da pergunta, não necessariamente a sua forma. Nesse sentido, a religião
estaria sendo retratada de forma relativamente positiva. Porém, é preciso admitir que
esse sentido não é tão fixo e claro. Aliás, o teólogo alemão também fala de uma certa
498
Ibid.
499
Cf. Ibid., p. 66.
500
Cf. Ibid., p. 68.
501
Ibid., p. 69.
502
Ibid., p. 73.
107
forma de religiosidade, na qual o ser humano se torna como Deus, se opondo a sua
Palavra, e praticando a desobediência com a aparência de obediência.
3.2.5 Aula: Cristologia (1933)
As aulas de Cristologia, apresentadas no verão de 1933, tiveram como pano
de fundo o período turbulento de consolidação do nazismo que contava com a
submissão da igreja evangélica. De acordo com Otto Duzdus, em seu Prólogo da
obra reconstruída por Bethge, elas representaram em certo sentido uma orientação à
agitada questão acerca do que a teologia e a Igreja deveriam fazer diante da
revolução popular ocorrida na Alemanha”
503
. Em linhas gerais, a orientação
indicava Cristo como senhor da igreja, em lugar da política nazista. Em termos de
conteúdo, as aulas contaram com três partes principais: na introdução Bonhoeffer
discutiu os pressupostos metodológicos da cristologia, depois enfatizou o conceito de
Cristo presente” e, finalmente, abordou acerca do Cristo Histórico.
504
De fato, o
tema da religião aparece praticamente em todas essas partes, direta ou indiretamente.
Ao introduzir seus pressupostos metodológicos, o teólogo alemão explica
dois tipos de abordagem da cristologia, que podem ser sintetizados em duas
diferentes perguntas: como?” ou quem?”. A pergunta pelo como transforma a
pessoa em coisa”, algo que deve ser enquadrado nos esquemas mentais prévios de
quem questiona. Por outro lado, a pergunta pelo quem denota a aceitação da
singularidade e alteridade do outro.
505
Assim, enquanto a pergunta pelo como
indaga pela imanência, a pergunta pelo quem indaga pela transcendência. A
pergunta pela imanência esgota Cristo no âmbito da lógica humana, excluindo sua
transcendência. Por isso, a última pergunta reduz a razão humana aos seus limites
devidos, abrindo-a para o transcendente. Esta é a pergunta mais adequada para a
cristologia, pois Cristo é uma pessoa, um homem, não um objeto de
demonstração”
506
que só pode ser aceito pelo reconhecimento de sua alteridade. Com
efeito, Bonhoeffer chama a adequada pergunta pelo quem de a pergunta religiosa
503
D. Bonhoeffer, Quien es y quien fue Jesucristo?, op. cit., p. 9.
504
Betghe explica que estava prevista uma terceira parte da obra, O Cristo eterno. No entanto, não
existem apontamentos dela, pois havia terminado o semestre. Cf. nota 3 em Ibid., p. 88.
505
Cf. Ibid., p. 14.
506
Ibid.
108
por excelência”
507
. Portanto, a religião parece ser retratada positivamente nesse
contexto.
Na sua discussão sobre o Cristo Presente”, o teólogo alemão afirma que
Cristo só pode ser pensado na comunidade. Ele está presente como comunidade e na
comunidade”
508
. Por isso, a igreja é a forma de existência do Cristo presente no
espo e no tempo”
509
. À semelhança de sua argumentação no curso sobre A
Essência da Igreja, Bonhoeffer ressalta que a presença da pessoa de Cristo -
enquanto comunidade eclesial - necessita estar no centro, do ponto de vista temporal
e espacial, da existência humana, da história e da natureza.
510
Contudo, novamente
em conformidade com a ênfase daquela aula, ele destaca que ao invés de estar no
centro da vida humana, a igreja tem procurado se situar em lugares privilegiados, e
mais uma vez ele menciona nesse contexto a igreja nacional e a burguesia:
Parece como se, para o mundo do proletariado, Cristo estivesse já
encerrado junto a Igreja e a sociedade burguesa. Não existe, pois, nenhum
motivo para situar em um lugar privilegiado o encontro com Jesus. A
Igreja veio a ser uma organização embrutecida que sanciona o sistema
capitalista. Mas precisamente nesta circunstância jaz a possibilidade de
que o mundo proletário separe nitidamente o Jesus de sua Igreja, visto que
Jesus não é culpado do que a Igreja veio a ser. Jesus sim, Igreja não. [...]
O que significa que o proletariado, em seu mundo de desconfiança, diga:
Jesus foi um bom homem”? [...] O proletário não diz: Jesus é Deus.
Mas, ao afirmar que Jesus foi um bom homem, es dizendo mais do que
quando o burguês afirma: Jesus é Deus. Para o burguês Deus é algo que
pertence à Igreja. Mas nos galpões de uma fábrica, Jesus pode estar
presente como socialista, e nas tarefas políticas, como idealista, e na
existência proletária, como um bom homem. Jesus luta nas fileiras
proletárias contra o inimigo, contra o capitalismo.
511
Ao falar sobre o Cristo Histórico, Bonhoeffer destaca a inseparabilidade da
humanidade do Jesus histórico e o Cristo divino. À luz de sua introdução
metodológica, as tentativas de isolar, distinguir ou entender a união dessas naturezas
foram resultados da pergunta pelo como. Mas a tentativa de responder essa
pergunta, ou seja, a busca de explicar a encarnação, fracassa, pois nada pode se
saber nem de Deus nem do homem antes que Deus se haja feito homem em Jesus
Cristo”
512
. Se a ênfase unilateral na divindade de Jesus (expressa no docetismo)
destrói sua humanidade, a univocidade de sua humanidade (expressa no ebionismo)
507
Ibid., p. 16.
508
Ibid., p. 39.
509
Ibid., p. 40.
510
Cf. Ibid., p. 41-43.
511
Ibid., p. 20. Grifo nosso.
512
Ibid., p. 76.
109
anula sua divindade. Assim, Bonhoeffer identifica a teologia liberal com o
docetismo, visto que sua principal falha foi tentar separar Jesus e Cristo, na sua busca
pelo Jesus Histórico.
513
Nesse contexto ele parece criticar a noção de a priori
religioso, impcita na idéia de personalidade religiosa do homem:
Na teologia protestante mais recente surgiu novamente o docetismo com
uma força inusitada, embora sob uma forma distinta. Agora o interesse se
concentra no Jesus histórico. Mas no lugar do antigo pensamento
especulativo sobre Deus, aparece agora um conceito especulativo da
história. Agora é a história que é portadora de determinadas idéias e
valores religiosos. A história é a manifestação das idéias supra-históricas.
Um de seus valores é, por exemplo, a idéia da personalidade religiosa do
homem com a força persistente de sua consciência de Deus.’
514
3.2.6 Aula: A igreja visível no Novo Testamento (1935-1936)
Em sua aula no seminário em Finkenwalde sobre A igreja visível no Novo
Testamento, no semestre de inverno, entre 1935 e 1936, Bonhoeffer procurou
discutir sobre como a comunidade de Cristo vem a ser igreja. Em sua ênfase, que
ecoa as palavras de Sanctorum Communio, de que a igreja não é meramente uma
comunidade religiosa, mas uma comunidade sob a guia do Espírito Santo, o teólogo
alemão adverte acerca de dois perigos que ameaçam o verdadeiro caráter da igreja:
que ela se torne um conceito abstrato ou se secularize.
515
Tais perigos encontram
paralelo direto com as expressões fugir do mundo e secularização descritas na
aula Venha a nós o teu Reino, e foram diretamente aplicados à realidade da igreja
protestante no contexto do nazismo da época.
Nesse sentido, ao explorar o conceito de Nova Comunidade, realizada a partir
do Espírito em sua nova criação, Bonhoeffer salienta que esta é a comunidade que
participa da união com Cristo. Com efeito, ela é a segunda criação, depois da velha e
corrompida criação, que se expressa na nova condição do ser humano em
comunidade. Assim, uma parte do mundo é novamente criada à imagem de Deus.
Contudo, o teólogo esclarece que isso não representa o estabelecimento de uma nova
religião, mas o estabelecimento da igreja.
516
513
Cf. Ibid., p. 53-59.
514
Ibid., p. 57. Ao utilizar a expressão força persistente de sua consciência de Deus, Bonhoeffer está
citando Schleiermacher em A Cristã (“Der christliche Glaube), §94.
515
Cf. Dietrich Bonhoeffer, A Testament to Freedom: the Essential Writings of Dietrich Bonhoeffer.
In: Geffrey B. Kelley (Org.). San Francisco: HarperSanFrancisco, 1995, p. 153.
516
Cf. Ibid., p. 154.
110
No pensamento bonhoefferiano, a implicação básica dessa noção é de que na
nova criação há o envolvimento da vida em sua totalidade. Desse modo, Bonhoeffer
não está falando sobre colocar o religioso diante do profano, mas em colocar o ato
de Deus diante do religioso como também do profano”
517
. Em suas palavras, “aqui
está a diferença essencial entre a igreja e a comunidade religiosa. A comunidade
religiosa está preocupada em dividir a vida entre o religioso e o profano; ela está
preocupada com uma ordem de valor e status.”
518
Nesse caso, a comunidade religiosa
acaba por funcionar como um fim em si mesmo, ao colocar o religioso como o
valor mais elevado dado por Deus.
519
Por outro lado, a igreja como parte do mundo e da humanidade criados
novamente pelo Espírito de Deus, demanda obediência total ao Espírito que
novamente cria ambos, o religioso e o profano.”
520
Então, devido ao fato de que a
igreja está interessada em Deus, no Espírito Santo, e na Palavra de Deus, ela não está
[...] especificamente interessada na religião, mas na obediência à Palavra, à obra do
Pai, ou seja, na finalização da nova criação por meio do Espírito.”
521
Assim,
Bonhoeffer explica que a igreja não é composta de questão religiosa ou interesse
religioso”
522
, mas da obediência à Palavra da nova criação da graça”
523
.
Tais considerões indicam que “a igreja não é constituída por fórmulas
religiosas, por dogma, mas por meio da ação prática daquilo que é ordenado. O puro
ensino do evangelho não é um interesse religioso, mas um desejo de executar a
vontade de Deus para a nova criação.”
524
O teólogo alemão categoricamente conclui
que na igreja, o Espírito Santo e a obediência tomam o lugar do religioso.”
525
Algumas características do que Bonhoeffer entende por religião, nesse contexto,
aparecem de forma bastante evidente. Em primeiro lugar, ele explicita que a igreja
compreende a totalidade da vida, ao passo que a religião é vista como algo parcial.
Por contraste, a religião não está preocupada com Deus, nem com a nova criação do
mundo, e muito menos com a obediência às ordens divinas.
517
Ibid., p. 155.
518
Ibid.
519
Cf. Ibid.
520
Ibid.
521
Ibid.
522
Ibid.
523
Ibid.
524
Ibid.
525
Ibid.
111
3.2.7 Discipulado (1937)
Como diretor do seminário em Finkewalde, Bonhoeffer publicou em 1937 o
livro Discipulado, escrito a partir de estudos preparados para seus alunos acerca do
Sermão da Montanha de Mateus 5-7. Nessa obra, o quadro que melhor retrata sua
crítica da religião é a contraposição entre graça barata” e graça preciosa”. Nesse
sentido, a religião é associada à graça barata. Essa graça é referida como inimiga
mortal da igreja. Ela é a graça como doutrina, como princípio, como sistema;
significa perdão de pecados como verdade geral”
526
. Ou seja, uma graça que se
expressa apenas no plano das idéias, mas que não traz diferenciação na atitude e vida
prática. Considerando que o foco desse livro é o seguimento de Jesus, ou
discipulado, a graça barata se caracteriza como um cristianismo que não segue a
Jesus, que não pratica as obras de seu mestre. Por isso, Bonhoeffer questiona a
atuação eclesial (ou falta dela): examine-se, pois, a Igreja dos discípulos de Jesus
para ver se ela deu aos rejeitados e desonrados pelo mundo um sinal do amor de
Jesus, amor que quer conservar, sustentar, proteger a vida”
527
.
Com efeito, ele constata que a graça barata caracterizava os cristãos, pois
estes não se distinguiam do mundo: Viva, pois, o crente como vive o mundo,
coloque-se em tudo, em pé de igualdade com o mundo, e não se atreva sob pena de
ser acusado de heresia entusiasta! a ter, sob a graça, uma vida diferente da que
tinha sob o pecado”.
528
É possível notar nesse trecho uma aproximação com a noção
de secularização, vista como acomodação cristã ao mundo, que Bonhoeffer indicou
na aula Venha a s o teu Reino em 1932.
Em contraposição à graça barata, que é a graça sem o seguimento, está a
graça preciosa que chega ao crente por meio do chamado ao seguimento:
Ela é o tesouro oculto no campo, por amor do qual o ser humano sai e vende
com alegria tudo quanto tem; a pérola preciosa, para cuja aquisição o
comerciante se desfaz de todos os seus bens; o senhorio régio de Cristo, por
amor do qual o ser humano arranca o olho que o faz tropeçar; o chamado de
Jesus Cristo, pelo qual o discípulo larga as suas redes e o segue.
529
Nesse sentido, Bonhoeffer assinala que a vitória de Lutero na história da
Reforma foi precisamente o reconhecimento de que sua vida não se caracterizava
pela graça preciosa, mas pelo apurado instinto religioso do ser humano para
526
Dietrich Bonhoeffer, Discipulado. São Leopoldo: Sinodal, 2004, p. 9.
527
Ibid., p. 76.
528
Ibid., p. 9.
529
Ibid., p. 10.
112
descobrir onde é que a graça pode ser conseguida mais barata.”
530
Ele conseguiu
distinguir a diferença entre esses dois tipos de graça, ao notar que mesmo nos
caminhos e obras mais piedosos, o ser humano não poderia subsistir perante Deus
porque, no fundo, procura-se sempre a si próprio.”
531
Assim, a direta identificação entre a graça barata e a crítica da religião ocorre
justamente na descrição bonhoefferiana da vida de Lutero. Curiosamente, no trabalho
monográfico escrito em 1925 sobre os Sentimentos de Lutero acerca de sua Obra,
Bonhoeffer retratou positivamente a religiosidade de Lutero. Agora, no entanto,
também no contexto de Lutero, a religião parece ser negativamente considerada.
Aqui, a religião aparece em oposição ao discipulado.
532
Enquanto o discipulado é
definido como um comprometimento com Cristo, o conhecimento religioso geral da
graça ou do perdão - associado, por exemplo, a um conceito de Cristo ou a um
sistema doutrinário caracteriza-se como algo hostil ao discipulado.
533
Assim, o
conhecimento religioso é identificado com a abstração que se opõe à atitude prática.
Nessa obra, Bonhoeffer também ressalta a noção de rompimento da relação
imediata com o mundo, como característica crucial do discipulado. Essa noção deriva
da concepção de que o discípulo só se relaciona diretamente com Jesus Cristo, e por
intermédio de Jesus, o mediador, ele pode se relacionar indiretamente com o mundo.
No chamado de Jesus, encontra-se já realizado o rompimento com as
circunsncias naturais em que o ser humano vive. Não é o discípulo que
provoca esse rompimento, mas o próprio Cristo já o concretizou ao
pronunciar seu chamado. Cristo libertou o ser humano de sua relação
imediata com o mundo e o transportou para uma relação imediata consigo
mesmo.
534
Em outros termos, o autor ressalta que a pessoa que foi chamada por Jesus
aprende [...] que tem vivido iludida na sua relação com o mundo. Essa ilusão chama-
se relação imediata.”
535
Com efeito, o teólogo alemão provê um exemplo bíblico
desse princípio a experiência de Abro -, e é precisamente nesse exemplo que a
religião é inserida na discussão. Bonhoeffer enfatiza que Abro
aceita o chamado tal como foi pronunciado; não procura interpretá-lo ou
espiritualizá-lo; aceita a palavra de Deus e es pronto a obedecer. Contra
toda a relação imediata natural, contra toda relação imediata ética, contra
toda relação imediata religiosa, ele vai ser obediente à Palavra de Deus.
530
Ibid., p. 14.
531
Ibid.
532
Cf. R. Wüstenberg, A theology of Life, op. cit., p. 14-15.
533
Cf. D. Bonhoeffer, Discipulado, op. cit., p. 21.
534
Ibid., p. 51.
535
Ibid., p. 53.
113
Leva o filho para sacrificar; está disposto a concretizar de modo visível
esse rompimento oculto, por amor ao Mediador.
536
Portanto, nesse contexto, a religião está associada a questões éticas, à
interpretação e espiritualização que se opõem à Palavra de Deus, promovendo
desobediência a essa Palavra e rejeição do chamado ao discipulado.
Por sua vez, ao abordar o tema das bem-aventuranças, Bonhoeffer diferencia
aqueles que aceitaram o chamado de Jesus ao discipulado, dos deres da religião
(fariseus e autoridades judaicas), especificamente na bem-aventurança dos humildes
de espírito, dos pobres. Desse modo, o autor descreve os discípulos como quem nada
possui. Não possuem segurança, propriedades nem pátria. Também não podem
recorrer a nenhum poder, experiência ou conhecimento espiritual próprios. Por amor
do mestre, perderam tudo. Com efeito, seguindo-o, perderam-se a si mesmos e,
conseentemente, tudo o que os poderia enriquecer. Estão tão pobres, inexperientes
e néscios que nada mais lhes resta senão confiar naquele que os chamou.”
537
De
outro modo, os representantes e pregadores da religião do povo desfrutam de uma
situação cômoda: estes homens poderosos e admirados, alicerçados firmemente no
mundo, na cultura, no espírito da época, na religiosidade popular”
538
. Contudo, Jesus
não lhes considera bem-aventurados. O reino dos us se destina aos que se tornaram
pobres ao aceitarem o chamado ao discipulado.
539
Nessa distinção, a religião é
retratada em termos de comodidade (acomodação ao mundo e a cultura da época) em
oposição à carência e privões do discipulado.
Em outro ponto de seu texto, Bonhoeffer também distingue a prática concreta
do discipulado da abstração do conhecimento religioso à luz da encarnação do Filho
de Deus. Em suas palavras, uma verdade, uma doutrina, uma religião não exigem
espo próprio. Elas não têm corpo. São ouvidas, estudadas, compreendidas. Isso é
tudo.”
540
Todavia, o Filho de Deus feito ser humano precisa não somente de ouvidos
ou corões, mas seres humanos verdadeiros para o seguirem.”
541
Mais uma vez, o
conceito de religião está relacionado com o pensamento doutrinário abstrato que
carece de materialização e concretude.
536
Ibid., p. 55.
537
Ibid., p. 60.
538
Ibid.
539
Cf. Ibid.
540
Ibid., p. 158.
541
Ibid.
114
Finalmente, o teólogo discute sobre a restaurão da imagem de Deus no ser
humano. Nesse sentido, ele advoga que o alvo e o destino do ser humano não é que
ele aprenda novamente a conceituar Deus corretamente [...] mas que, como um todo,
como criatura viva, volte a ser imagem de Deus.”
542
Bonhoeffer deseja enfatizar a
noção de totalidade. Corpo, alma e espírito, toda a estrutura do ser humano deve
levar a imagem de Deus na terra.”
543
Portanto, a solução apontada para a restaurão
é a encarnação do Filho de Deus, visto que o alvo não poderia ser atingido por uma
nova idéia, por uma religião melhor.”
544
A implicação básica dessa argumentação é
de que, ao contrário da encarnação, a religião não é capaz de produzir a restauração
da humanidade na perspectiva de totalidade. Ela aparece restrita ao campo das idéias.
3.2.8 Segunda visita aos Estados Unidos (1939)
No rápido período em que esteve nos Estados Unidos em 1939 (junho e julho
aproximadamente) Bonhoeffer escreveu uma carta para Bethge no dia 18 de junho.
Nela existem declarões muito incisivas acerca de sua oposição a um “culto
religioso que participou na igreja de Riverside, qualificado como simplesmente
insuportável”
545
. O teólogo alemão resume todo o culto, em tom bastante negativo,
como uma celebração da religião [que se apresenta como] agradável, abundante e
satisfeita consigo mesma”
546
. Na sua visão, todo o culto representou uma idolatria do
religioso que, em suas palavras, desperta as aptidões da carne” (isto é, o que há de
mal no ser humano), que deveriam ser disciplinadas por força da Palavra Deus. O
teólogo expressa que uma pregação semelhante se faz a alguém egoísta, libertino,
indiferente. Será que as pessoas realmente não sabem que elas viveriam bem, ou
melhor, sem a religião [?]”
547
Além disso, ele afirma: talvez os anglo-saxões sejam
mais religiosos que nós, mas certamente não são mais cristãos, se aceitam de bom
grado esse tipo de sermão.”
548
De maneira geral, novamente Bonhoeffer contrapõe a
religião à palavra de Deus, e também a religião ao cristianismo. Além disso, a
religião aparece ligada às noções de satisfação própria, egoísmo e libertinagem.
542
Ibid., p. 199.
543
Ibid.
544
Ibid., p. 200.
545
D. Bonhoeffer, Redimidos para lo humano, op. cit., p. 138.
546
Ibid.
547
Ibid.
548
Ibid., p. 138-139.
115
3.3 Fragmentação Teológica: de 1940 a 1945
No período denominado Fragmentação Teológica são explorados os escritos
que, em geral, são fragmentários e inacabados, e correspondem aos últimos anos da
vida de Bonhoeffer: os manuscritos de Ética (1939-1943) e as cartas da prisão (1943-
1945). Por terem sido escritos na última fase do pensamento teológico
bonhoefferiano, de certo modo, eles constituem as mais importantes e expcitas
referências do teólogo alemão ao tema da religião e sua crítica.
3.3.1 Ética (1939-1943)
O período de redação dos manuscritos de Ética compreende a conspiração
contra o estado nazista (1939/1940) à sua prisão em abril de 1943. No prefácio de
1948 da primeira a quinta edição, Bethge explica que essa obra não corresponde ao
trabalho que Bonhoeffer tencionava publicar. Contudo, devido à sua prisão e morte,
tudo o que restou foram manuscritos fragmentários e inacabados que, por sua vez,
foram compilados e publicados postumamente em 1949.
549
No capítulo O amor de Deus e a decadência do mundo, escrito entre 1939 a
1940,
550
o autor menciona a religião como a tentativa humana de buscar o
restabelecimento de sua unidade com Deus:
Onde este desejo irrompe [isto é, o desejo de restabelecimento da unidade
perdida], como na união sexual, onde duas pessoas se tornam uma só
carne (Gn 2.24), e na religo, onde o ser humano procura a sua unidade
com Deus, onde, pois, se rasga o encobrimento, justamente ali o pudor
cria sua mais profunda ocultação.
551
Por sua vez, no capítulo Ética como formação, escrito em 1940, o teólogo
alemão discute sobre a relação entre Deus e o mundo, a partir da perspectiva
cristológica de totalidade, não de separação: quem olha para Jesus Cristo vê, de
fato, Deus e o mundo em um só; doravante não pode ver mais Deus sem o mundo,
nem o mundo sem Deus.”
552
Essa noção encontra paralelo com a declaração
bonhefferiana acerca do postulado de totalidade e exclusividade de Cristo expresso
no texto Igreja e Mundo (escrito entre 1939 e 1940), que ressalta que em Cristo se
reúnem elementos que poderiam ser chamados de religiosos e seculares, por assim
549
Cf. Dietrich Bonhoeffer, Ética. São Leopoldo: Sinodal, 2005, p. 9-10.
550
Para a datação dos textos de Ética veja Prefácio da sexta edição reorganizada em Ibid., p. 11-12.
551
Ibid., p. 17.
552
Ibid., p. 44.
116
dizer: Ele é o centro e a força da Bíblia, da Igreja, da teologia mas também da
humanidade, da razão, do direito, da cultura. A ele tudo deve retornar; só sob a sua
protão tudo pode prosperar.”
553
Seguindo essa perspectiva, ainda no texto Ética como formação,
Bonhoeffer insere a figura da igreja como a forma pela qual Cristo age e se relaciona
com o mundo. Precisamente no contexto da discussão da igreja como corpo de
Cristo, o teólogo alemão faz uma diferenciação entre igreja e comunidade religiosa:
Jesus Cristo adquire forma em sua Igreja. É a forma do próprio Jesus Cristo que
ganha forma aqui. [...] o Novo Testamento chama a Igreja de corpo de Cristo. O
corpo é a forma. A Igreja, portanto, não é uma comunidade religiosa de admiradores
de Cristo, mas o Cristo que tomou forma entre os seres humanos.”
554
Assim,
enquanto a comunidade religiosa é caracterizada pela passiva e abstrata postura de
admiração, a igreja é descrita de maneira ativa e concreta como forma de Cristo.
Além disso, Bonhoeffer concebe a igreja em relação a existência humana como um
todo, incluindo os seus mais variados relacionamentos que assume no mundo, ao
passo que a religião diz respeito apenas a algumas funções do ser humano, estando
associada, por exemplo, a alguns programas de formação ética:
A Igreja é o ser humano humanizado, julgado e ressuscitado para uma
nova vida em Cristo. Ele não trata, por isso, primeira e essencialmente das
assim chamadas funções religiosas do ser humano, e sim do ser humano
como um todo na sua existência no mundo e com todos os seus
relacionamentos. A causa da Igreja não é a religião, mas a forma de Cristo
e seu tomar forma num grupo de pessoas. Se cairmos no menor desvio
desta visão, estaremos, inevitavelmente, recaindo naqueles programas de
formação ética ou religiosa do mundo das quais partimos nesta análise.
555
Também em Ética como formação, o autor tra um panorama histórico do
cristianismo ocidental, especialmente na Europa, no tópico Herança e Decadência.
Além de este tópico incluir relevantes referências à religião, ele também fornece um
quadro geral da perspectiva bonhoefferiana da história ocidental. Ele inicia essa
discussão enfatizando que a herança ocidental da Antigüidade grego-romana
apresenta uma dupla relação com Cristo. Enquanto a herança romana constituiu uma
ligação entre Antigüidade e Cristianismo, a herança grega representou hostilidade,
oposição a Cristo. Desse modo, ao passo que o relacionamento da Europa ocidental
(sobretudo França, Holanda, Inglaterra e Itália) com a Antigüidade foi mediado pela
553
Ibid., p. 36.
554
Ibid., p. 51.
555
Ibid., p. 51-52.
117
herança romana, o dos alemães foi marcado pela herança helênica. Semelhantemente,
se a herança romana chegou ao século XX por meio da Igreja Católica Romana, o
acesso ao helenismo se dá pela Reforma, que fomentou o acesso às fontes gregas.
556
Bonhoeffer também indica a relativa importância da Antigüidade na cultura
ocidental, especialmente em termos de educação e política, a partir de uma
perspectiva cristã. Nesse sentido, os humanistas da Europa ocidental procuraram
conciliar Antigüidade e Cristianismo. Por outro lado, na Alemanha, a tensão, para
não dizer rompimento, entre Antiguidade e cristianismo foi muito sentida nesse amor
ao helenismo [...]. De Winkelmann a Nietzsche há aqui uma atualização
conscientemente anticristã da herança grega.”
557
No ponto de vista bonhoefferiano,
esses dois tipos de relacionamento com Antigüidade proporcionam diferentes
compreensões da relação entre mundo natural e a graça divina: na Reforma há a
oposição entre elas, enquanto na herança romana há conciliação.
558
A partir dessa contraposição, Bonhoeffer relata que a unidade cristã medieval
na Europa, sintetizado pelo termo corpus christianum, foi fragmentada pela Reforma.
Com efeito, essa não foi a intenção inicial de Lutero, mas por força das
circunstâncias este caminho tornou-se inevitável. Assim, o corpus christianum se
decompôs em seus dois principais componentes: o corpus Christi (a igreja) e o
mundo. Segundo a visão luterana estes são dois reinos distintos que não podem ser
confundidos, misturados nem separados. Aliás, Deus é senhor de ambos. Ele governa
o mundo através do ofício espiritual e da autoridade secular.
559
Por sua vez, a
fragmentação do corpus christianum no período moderno foi acompanhada pelo
rápido início do processo de secularização. Para Bonhoeffer, no lado protestante
houve uma interpretão equivocada da doutrina dos dois reinos:
Exalta-se a Reforma como a libertação do ser humano no que diz respeito
a sua consciência, rao, cultura, como a justificação do mundano em si.
A fé bíblico-reformatória em Deus desdivinizava o mundo radicalmente.
Com isso, preparou–se o campo para o florescimento das ciências
racionais e empíricas, e, enquanto os cientistas dos séculos XVII e XVIII
ainda eram crisos de fé, com o desaparecimento da fé em Deus só restou
um mundo racionalizado e mecanizado.
560
556
Cf. Ibid.
557
Ibid.
558
Cf. Ibid.
559
Cf. Ibid., p. 57.
560
Ibid., p. 58.
118
Já no lado católico, o processo de secularização se apresentou em rápidas
investidas revolucionárias, anti-eclesiásticas e anticristãs. Nesse sentido, a Revolução
Francesa tornou-se símbolo do ocidente moderno. Para o teólogo alemão essa
revolução é definida como “a revelação do ser humano liberto com seu poder enorme
e em sua mais terrível desfiguração”.
561
Segundo essa definição, são apresentados
dois lados de uma mesma moeda: a positiva noção de liberdade humana e sua
negativa desfiguração. Paradoxalmente, emergem o culto à razão, a divinização da
natureza, a fé no progresso e a crítica da cultura, a revolta da burguesia e a rebelião
da massa, nacionalismo e hostilidade à Igreja, direitos humanos e terror ditatorial
tudo isso irrompe caoticamente como algo novo na história do Ocidente.”
562
Positivamente, a razão libertada se projetou até uma magnitude
inimaginável. Sua livre aplicação criou uma atmosfera de veracidade, clareza e
lucidez.”
563
Fundamentalmente, a razão se tornou hitese de trabalhou. Sua maior
produção foi o incomparável desenvolvimento tecnológico. Historicamente falando,
a tecnologia do ocidente moderno exerce um papel inédito no mundo. Ela abandona
a função de servidora e assume o papel de senhorio. Nas palavras de Bonhoeffer,
das pirâmides egípcias aos templos da Grécia, das catedrais da Idade Média até o
século XVIII a tecnologia era questão de artesanato. Ela servia à religião, aos reis, à
arte e às necessidades cotidianas do ser humano.”
564
Contudo, nessa nova conjuntura
a tecnologia do Ocidente moderno libertou-se de qualquer relação de serviço. [...] a
tecnologia vira um fim em si mesma”.
565
Em realidade, há uma inversão da relação entre religião e tecnologia. Antes a
tecnologia incipiente estava a serviço da religião. No entanto, no contexto ocidental
moderno a desenvolvida tecnologia se sobrepõe à religião, representando até mesmo
uma ameaça para ela. Tal compreensão é sustentada a partir de duas afirmões
bonhoefferianas. Na primeira delas ele assevera que a arrogância humana [...]
procura criar um contramundo contra aquele criado por Deus e vê na tecnologia, que
supera limites de tempo e espo, uma iniciativa contrária a Deus.”
566
Adicionalmente, o autor descreve o uso da tecnologia fora do ambiente ocidental, no
mundo islâmico, ressaltando que naquele ambiente a tecnologia permanece
561
Ibid.
562
Ibid.
563
Ibid.
564
Ibid.
565
Ibid.
566
Ibid., p. 59.
119
totalmente a serviço da fé em Deus e da construção da história islâmica. Ibn Saud
teria dito numa entrevista: Mandei buscar máquinas da Europa, mas a irreligiosidade
eu não quero.”
567
Nessa relação entre religião e tecnologia, Bonhoeffer parece
retratar a religião sob um prisma favorável.
Negativamente, o desejo de liberdade absoluta defendido pela revolução
moderna conduziu o ser humano à mais intensa servidão, pois de senhor das
máquinas ele se tornou seu verdadeiro escravo. Nas palavras de Bonhoeffer,
a criatura volta-se contra o seu criador estranha repetição da queda do
ser humano. A libertação da massa desemboca no horroroso império da
guilhotina. O nacionalismo inevitavelmente conduz à guerra. A libertação
do ser humano, como ideal absoluto, leva à autodestruição humana.
568
Assim, o autor comenta sobre a realidade do mundo moderno, desde a
Revolução Francesa, a partir de um ponto de vista religioso:
A nova unidade que a Revolução Francesa trouxe para a Europa e a cuja
crise estamos assistindo hoje é [...] completamente diferente do ateísmo
de isolados pensadores gregos, indianos, chineses e ocidentais. Não é a
negação teórica da existência de um deus. Antes, ela própria constitui-se
em religião, religião por hostilidade a Deus. É precisamente nisso que é
ocidental. Não pode livrar-se de seu passado, tem que ser essencialmente
religiosa. [...] A impiedade ocidental estende-se desde a religião do
bolchevismo até o interior das Igrejas cristãs. [...] Sob todas as formas
possíveis de cristianismo, sejam nacionalistas, socialistas, racionalistas ou
sticas, ela se volta contra o Deus vivo da Bíblia, contra Cristo. Seu
Deus é o novo ser humano, não importando se a fábrica do novo ser
humano é bolchevista ou cristã. A diferença fundamental para com todo
o paganismo é que ali se adoram deuses sob a forma humana, ao passo
que aqui, sob a forma de Deus, de Jesus Cristo até, adora-se o ser
humano.
569
Portanto, aqui Bonhoeffer identifica a religião com o endeusamento do ser
humano praticado pelo mundo moderno, seja no ambiente eclesiástico ou anti-
eclesiástico. Teologicamente, ele explica que a grande descoberta de Lutero
referente à liberdade do cristão e a errônea doutrina católica da boa essência do ser
humano acabaram juntas no endeusamento do ser humano”
570
. De qualquer modo.
em sua crítica da religião, por assim dizer, Bonhoeffer se dirige aos círculos
eclesiásticos e anti-eclesiásticos. Ele afirma que ao lado da impiedade que se
expressa em linguagem anti-religiosa e anti-eclesiástica, está a impiedade de
aparência religiosa-cristã. Na sua visão, a primeira forma representa, em certo
567
Ibid.
568
Ibid., p. 61.
569
Ibid.
570
Ibid.
120
sentido, uma reação à segunda, um protesto contra a impiedade devota que corrompe
as igrejas.
571
Citando Lutero ele afirma que talvez Deus prefira ouvir as
imprecações dos ímpios do que o aleluia dos piedosos.”
572
Por isso, o autor declara em algumas páginas a confissão de culpa da igreja.
Aqui, a crítica da religião assume explicitamente a forma de crítica eclesiástica.
Todavia, ele entende a confissão como atitude fundamental para receber o perdão e a
justificação divina. Ademais, a justificação do Ocidente apartado de Cristo está
unicamente na justificação divina da Igreja”
573
. Assim, ele aponta a quebra dos dez
mandamentos por parte da igreja, sua apostasia de Cristo. Nos termos
bonhoefferianos a igreja: (1) não tem sido suficientemente clara na pregação de Jesus
Cristo; (2) cometeu desvios e fez perigosas concessões; (3) usou mal o nome de
Cristo e passivamente assistiu a injustiça e a violência sob o manto do seu nome; (4)
desprezou o dia santo e esvaziou os seus cultos; (5) não teve coragem de proclamar a
dignidade divina dos pais contra auto-endeusamento da juventude; (6) viu a violência
brutal e arbitrária, o sofrimento físico e psíquico de inocentes, a opressão, ódio e
assassinato, sem erguer a voz em seu favor, nem achar caminhos para socorrê-los; (7)
não se opôs vigorosamente à licenciosidade sexual e ao escárnio da castidade; (8)
silenciosamente assistiu a corrupção dos poderosos e a exploração dos pobres; (9)
abandonou o caluniado a sua própria sorte sem mostrar o erro do caluniador; (10)
aspirou honrarias, posses e segurança, estimulando assim a cobiça das pessoas.
574
Outro conceito importante presente nessa obra de Bonhoeffer, que se
relaciona indiretamente com a religião, é a ligação entre o que ele chama de As
últimas e as penúltimas coisas, escrito entre 1940-1941. Ao invés de utilizar pares
tradicionais tais como natural-sobrenatural, sagrado-profano, cristão-secular, o
teólogo alemão prefere usar as categorias último-penúltimo. Normalmente, os
pares tradicionais indicam uma concepção da realidade dividida em duas esferas,
provocando compreensões distorcidas da relação de Cristo e o mundo, enfatizando
ou a oposição excludente ou a autonomia de um em relação ao outro. No primeiro
caso, por exemplo, o mundo seria destruído por Cristo, enquanto que no outro ele
seria totalmente independente de Cristo, não afetado por ele.
575
Mas no par escolhido
571
Cf. Ibid., p. 62.
572
Ibid.
573
Ibid., p. 68.
574
Cf. Ibid., p. 67
575
Cf. Ibid., p. 74-75.
121
por Bonhoeffer há uma dependência, e não distanciamento ou exclusão mútua. O
autor explica que não há penúltimo em si mesmo. O penúltimo não possui existência
própria. Sua existência é condicionada pelo último. Assim, o penúltimo deve ser
preservado por causa do último.
576
De maneira concreta, um ser humano que está privado das condições que
fazem parte do ser gente, a justificação de tal vida por graça e fé, ainda que não
impossibilitada, é seriamente dificultada.”
577
Se, por exemplo, o escravo é privado
de disponibilidade de tempo a ponto de não poder mais ouvir a pregação da Palavra,
em todo caso não pode ser levado à fé justificadora por esta palavra de Deus.”
578
Desse modo, é necessário cuidar do penúltimo a fim de preparar o caminho para a
Palavra, o último. Bonhoeffer salienta:
o faminto precisa de pão, o desabrigado de moradia, o injustiçado de
direito, o isolado de comunhão, o indisciplinado de ordem, o escravo de
liberdade. Deixar o faminto com sua fome, alegando que na miséria o
irmão estaria mais perto de Deus, seria blasfemar a Deus e ao próximo.
Por causa do amor de Cristo, que tanto vale para o faminto quanto para
mim, repartimos o pão com ele, compartilhamos o teto. [...] Providenciar
pão para o faminto é preparação para a vinda da graça.
579
No entanto, o teólogo alemão esclarece que ele não está pensando
necessariamente em uma reforma nas condições do mundo - isso seria pensar no
penúltimo como existência própria - mas na vinda de Cristo, no último.
580
Em direta relação ao pensamento de totalidade da noção último-penúltimo,
Bonhoeffer escreveu o texto Cristo a realidade e o bem, entre 1940 e 1941. Nele,
há também a oposição à idéia de duas esferas, das quais uma é divina, santa,
sobrenatural, cristã, a outra, porém, mundana, profana, natural, não cristã. [... onde] o
todo da realidade se decompõe em duas partes”.
581
Segundo o autor, na concepção
bíblica - embora a igreja não seja idêntica ao mundo, o cristão ao mundano, o natural
ao sobrenatural, nem o revelacional ao racional - não existem duas realidades, mas
apenas uma: a realidade de Deus revelada em Cristo: como partícipes de Cristo
estamos simultaneamente na realidade de Deus e na do mundo.”
582
Embora
Bonhoeffer não confunda as categorias, ele também não as separa.
576
Cf. Ibid., p. 78.
577
Cf. Ibid.
578
Cf. Ibid.
579
Cf. Ibid., p. 80.
580
Cf. Ibid.
581
Ibid., p. 111.
582
Ibid.
122
a Igreja só pode defender seu espaço próprio lutando não por ele, mas
pela salvação do mundo. Do contrário a Igreja se transforma em
sociedade religiosa” que luta em causa própria e, com isso, deixou de ser
Igreja de Deus e do mundo. Assim, a primeira incumbência daqueles que
pertencem à Igreja de Deus não é ser algo para si mesmos, criar, por
exemplo, uma organização religiosa ou viver uma vida piedosa, mas ser
testemunhas de Jesus Cristo para o mundo.
583
De acordo com essa declaração, novamente ele diferencia a igreja de uma
sociedade religiosa. A igreja trabalha no sentido da totalidade, a salvação do mundo,
a preocupão com o outro; por outro lado, a sociedade religiosa busca defender sua
esfera, trabalha em causa própria. Se na igreja existem testemunhas de Cristo para o
mundo, na sociedade religiosa existem pessoas com vida piedosa, num foco
individual.
3.3.2 Cartas da prisão (1943-1945)
A coletânea de cartas da prisão abarca os anos de 1943 a 1945. A despeito de
apresentarem idéias teológicas fragmentárias e inacabadas, elas constituem um
importante legado da teologia bonhoefferiana, e apontam para o seu último estágio
de amadurecimento teológico. Na carta de 21.11.43, Bonhoeffer comenta
positivamente a instrução de Lutero de benzer-se com a cruz” na orão matutina e
noturna: nisso reside algo objetivo pelo qual se anseia de maneira bem especial
aqui.”
584
Com efeito, o autor menciona que isso pode soar estranho para Bethge, mas
ele conclui: Não te assustes! Certamente não sairei daqui como homo religiosus!
Muito pelo contrário, aqui a minha desconfiança e o meu medo da religiosidade
ficaram maiores do que nunca. O fato de os israelitas nunca pronunciarem o nome de
Deus constantemente me dá o que pensar e entendo isso cada vez melhor.”
585
Assim,
o teólogo afirma seu distanciamento da religiosidade, associando-o ao fato de os
israelitas não pronunciam o nome de Deus, e diferenciando sutilmente a religiosidade
da prática da oração, no benzer-se com a cruz”.
Por sua vez, a carta de 30.4.44 representa um dos textos mais importantes
sobre a crítica da religião bohoefferiana. Aqui ele fala pela primeira vez sobre a
583
Ibid., p. 114.
584
D. Bonhoeffer, Resistência e Submissão, op. cit., p. 184. Em nota editorial há a descrição da
bênção matutina de Lutero: Pela manhã, quando te levantares, podes benzer-te com o sinal da
sagrada cruz e dizer: Em nome do Pai, Filho e Espírito Santo! Amém. (Ibid.)
585
Ibid.
123
noção de arreligiosidade, expressa a partir da idéia básica que o ocupa de forma
incessante: o que é o cristianismo ou ainda quem é de fato Cristo para nós hoje.”
586
A partir dessa idéia central, ele passa a desenvolver sua perspectiva histórica da
religião:
Foi-se o tempo em se podia dizer isso para as pessoas por meio de
palavras sejam teológicas ou piedosas; passou igualmente o tempo da
interioridade e da consciência moral, ou seja, o tempo da religo de
maneira geral. Rumamos para uma época totalmente arreligiosa; as
pessoas, sendo como são, simplesmente não conseguem mais ser
religiosas. Também aquelas que sinceramente se dizem religiosas de
modo algum praticam o que dizem; portanto, é provável que com o termo
religioso estejam referindo-se a algo bem diferente.
587
Bonhoeffer afirma que a religião constitui uma característica de um
determinado período histórico que está terminando. Ele também associa a religião a
(1) palavras teológicas ou piedosas e a (2) interioridade e consciência moral. Como
evidência dessa realidade, o autor indica o fato de que as pessoas supostamente
religiosas não praticam o que dizem. Nesse sentido, o teólogo alemão lamenta que,
em geral, toda a pregação e teologia cristãs se basearam na noção de a priori
religioso. Através dessa noção o cristianismo sempre foi considerado uma forma,
talvez a verdadeira, da religião.
588
Mas, ele questiona: o que será do cristianismo se
essa sua acariciada noção fundamental for anulada? E se um dia evidenciar-se que
esse a priori nem existe, mas foi uma forma de expressão historicamente
condicionada e passageira do ser humano, se, portanto, as pessoas tornarem-se
radicalmente arreligiosas [...] ?”
589
Em realidade, Bonhoeffer entende que esse tempo
já chegou, e uma das maiores evidências disso é o fato de que, em sua perspectiva, a
Segunda Guerra mundial, diferente de todas as outras guerras, não provocou uma
reação religiosa”.
590
Essa evidência aliada à evidência do parágrafo anterior dão a
impressão de que a conclusão bonhoefferiana do mundo arreligioso se dá a partir de
sua observação da atitude e prática dos que se dizem religiosos, e não
necessariamente dos que se assumem como não-religiosos.
Portanto, Bonhoeffer traça duas possibilidades de atuação do Cristianismo
nessa nova conjuntura histórica e cultural. A primeira delas seria simplesmente
586
Ibid., p. 369. Em suas aulas de cristologia, em 1933, a pergunta pelo quem” era considerada uma
queso religiosa por excelência que pergunta pela transcendência.
587
Ibid.
588
Cf. Ibid.
589
Ibid., p. 369-370.
590
Cf. Ibid., p. 370.
124
ignorar a irreversível situação de arreligiosidade mundial e continuar utilizando uma
abordagem religiosa: assaltar um punhado de pessoas infelizes num momento de
fraqueza e [...] violentá-las religiosamente”
591
. Nesse contexto, a abordagem religiosa
trabalha basicamente a partir da infelicidade e fraqueza das pessoas. Mas Bonhoeffer
não está satisfeito com esse método, pois ele é incapaz de afirmar o senhorio de
Cristo no mundo arreligioso. Para ele, o caminho mais adequado seria aceitar o fato
de que a forma ocidental do cristianismo foi apenas um estágio preliminar de uma
arreligiosidade total”
592
. Essa opção, no entanto, exige uma revisão completa do
Cristianismo. Em suas palavras, o que seria a igreja nessa concepção do cristianismo
arreligioso? Qual seria o significado da liturgia, da prédica, do culto? Como seria a
vida cristã nesse contexto? O autor não possui as respostas para essas questões (nessa
carta há mais perguntas que respostas!), mas ele indica algumas intuições.
593
Primeiramente, Bonhoeffer sugere que a religião funcionou, até então, apenas
como uma roupagem do Cristianismo, com aspectos distintos nas diferentes épocas.
Em uma carta escrita para Bethge em 25 de junho de 1942, o autor confessa que no
contexto de sua atividade no setor mundano ele sente uma crescente resistência e
repugnância em relação a tudo o que é religioso. Em suas palavras, eu não sou de
natureza religiosa. [...] em Deus, em Cristo, tenho que pensar continuamente; a
autenticidade, a vida, a liberdade e a misericórdia me importam muito. As roupagens
religiosas que me trazem muito incômodo.”
594
Nesse sentido, ele diferencia as
roupagens religiosas dos temas como Deus, Cristo, autenticidade, vida, liberdade e
misericórdia. Portanto, esses temas permanecem no cristianismo arreligioso.
Em segundo lugar, Bonhoeffer enfatiza positivamente a crítica da religião
feita por Barth, pois ele foi o único que comou a pensar nessa direção”
595
.
Entretanto, sua crítica ao teólogo suíço é de que ele “acabou não aprofundando nem
concluindo esse pensamento, mas deteve-se num positivismo da revelação que, em
última análise, permaneceu essencialmente no nível de restauração. Para o
trabalhador arreligioso não houve nenhum avanço decisivo.”
596
Bonhoeffer elogia a
intuição inicial de Barth, mas entende que seu pensamento não foi adequadamente
concluído nem aprofundado devido ao seu positivismo da revelação.
591
Ibid.
592
Ibid.
593
Cf. Ibid., p. 370-371.
594
D. Bonhoeffer, Redimidos para lo humano, op. cit., p. 174.
595
D. Bonhoeffer, Resisncia e Submissão, op. cit., p. 370.
596
Ibid., p. 370-371.
125
Em terceiro lugar, o autor enfatiza que falar de Deus sem religião, ou de
maneira mundana”, implica na não utilização dos pressupostos temporalmente
restritos da metafísica, da interioridade”
597
. Semelhantemente, uma igreja sem
religião, embora deva manter o sentido neotestamentário de ekklesia (convocados
dentre outros), não pode conceber que seus membros sejam considerados “como
preferidos em sentido religioso, mas como, pelo contrário, totalmente pertencentes ao
mundo”
598
. Desse modo, nesse contexto, a religião é associada às noções de Deus em
termos de metafísica e interioridade, e às noções de igreja em termos de pessoas
privilegiadas. Nesse sentido ele afirma que Cristo não é mais, então, objeto da
religião, mas algo bem diferente, de fato Senhor do mundo.”
599
De fato, a religião
denota aqui a idéia de algo restrito.
Em quarto lugar, ele intui que dois elementos seriam importantes para pensar
o cristianismo arreligioso: (1) a disciplina arcana e (2) o seu conceito de último-
penúltimo”.
600
À semelhança do significado latino de arcanus (misterioso, oculto),
não é muito fácil saber o que exatamente Bonhoeffer quer dizer com a disciplina
arcana no cristianismo arreligioso. Esta foi uma prática da igreja primitiva que surgiu
com Orígenes que, devido ao que os cristãos chamavam de zombaria do mundo,
instituiu reuniões fechadas para os crentes receberem os sacramentos bem como a
confissão de fé e o Pai-Nosso.
601
De maneira geral, essas reuniões compreendiam a
segunda parte da liturgia, nas quais eram celebradas a Comunhão, e o Credo Niceno
era cantado. Normalmente, as pessoas não-batizadas não participavam delas.
602
Segundo Bethge, os estudantes de Finkenwald, dentre outros, ficaram surpresos
quando Bonhoeffer tentou reativar essa prática da igreja primitiva. Ademais, Bethge
entende que a menção à disciplina arcana evidencia que Bonhoeffer nunca pensou
em abandonar os costumes mais tradicionais da igreja cristã.
603
Em outros termos,
Bonhoeffer parece não querer anular a identidade histórica da igreja cristã. Do
mesmo modo, a presença do seu conceito de último-penúltimo parece impedir a
conclusão de que o seu foco esteja no mundo arreligioso em si, pois ele se ocupa com
o mundo (o penúltimo) com o foco no último.
597
Ibid., p. 371.
598
Ibid.
599
Ibid.
600
Cf. Ibid., p. 371-372.
601
Cf. nota editorial 18 em Ibid., p. 372.
602
Cf. E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 881.
603
Cf. Ibid.
126
Em quinto lugar, Bonhoeffer reflete sobre o papel da religião à luz da questão
paulina da circuncisão, que não mais pensa na circuncisão judaica como condição
essencial de salvação. Em suas palavras, a questão paulina a respeito de se a
perito [circuncisão] seria condição para a justificação significa hoje, a meu ver, se
a religião seria condição para a salvação. A liberdade em relação à peritomé é
igualmente a liberdade em relação à religião.”
604
Finalmente, o autor também rejeita a forma religiosa de se falar sobre Deus.
Ele confessa ser mais atraído pelas pessoas arreligiosas que as religiosas: na
presença de pessoas arreligiosas ocasionalmente consigo mencionar Deus com toda a
tranqüilidade e quase naturalidade.”
605
Por outro lado, para Bonhoeffer, falar de Deus
com pessoas religiosas parece soar de forma inautêntica. Ele afirma se sentir
desconfortável e sufocado quando as pessoas usam uma terminologia religiosa. Por
isso, ele evita mencionar o nome de Deus num círculo religioso. É possível ter uma
idéia do que o teólogo alemão quer dizer com terminologia religiosa sobre Deus:
As pessoas religiosas falam de Deus quando o conhecimento humano
acaba (às vezes já por preguiça para pensar) ou quando as forças humanas
falham trata-se, a rigor, sempre do deus ex machina mobilizado por elas
como solução aparente para problemas insolúveis ou como força para
cobrir a falha humana, portanto sempre aproveitando-se da fraqueza
humana ao topar com os limites humanos. Isso forçosamente só se
mantém assim até que as pessoas, por suas próprias forças, ampliem um
pouco mais os limites, tornando Deus como deus ex machina dispensável;
aliás falar de limites humanos me parece questionável (a morte, que as
pessoas quase não temem mais, e o pecado, que elas quase não
compreendem mais, ainda seriam limites genuínos?). Sempre tenho a
impressão de que, com isso, só estamos sempre ansiosamente tentando
salvaguardar espaço para Deus; - eu gostaria de falar de Deus não nos
limites, mas no centro, não nas fraquezas, mas na força, portanto não na
morte e na culpa, mas na vida e no bem das pessoas. Nos limites, parece-
me mais adequado calar e deixar que o insolúvel permana sem
solução.
606
Assim, a terminologia religiosa sobre Deus, para Bonhoeffer, significa falar
de Deus apenas nos limites do conhecimento e nas fraquezas e dificuldades do ser
humano. Esse é o deus ex machina,
607
uma espécie de Deus tapa-buracos que
explica o que o ser humano não pode explicar e faz o ser humano não consegue
fazer. Reiterando algumas idéias já presentes em seus escritos anteriores, o autor
604
D. Bonhoeffer, Resisncia e Submissão, op. cit., p. 372.
605
Ibid., p. 373.
606
Ibid.
607
Significa literalmente o Deus que sai da quina. No teatro da Antigüidade, tratava-se de uma
figura que aparecia ‘de repente com o auxílio de um dispositivo mecânico e resolvia problemas de
forma sobrenatural. (Ibid., p. 373, nota editorial 24).
127
prefere falar de Deus no centro, não nos limites; na vida e no bem das pessoas, ao
invés da morte e da culpa. Isso é uma intuição daquilo que a linguagem não-religiosa
deve abordar. Aliás, para Bonhoeffer essa é a visão do Antigo Testamento: Deus é
transcendente no centro de nossa vida. A igreja não está onde a capacidade humana
falha, nos limites, mas no centro da realidade. Isso está de acordo com o Antigo
Testamento, e neste sentido ainda lemos o NT muito pouco a partir do AT.”
608
Na carta de 5.5.44 o teólogo alemão inicia sua discussão sobre a
arreligiosidade com um comentário a respeito do ensaio de Bultmann,
Demitologização do Novo Testamento. Ele considera que os ali chamados
conceitos mitológicos (milagre, ascensão, etc.) não podem ser separados dos
conceitos de Deus, fé, etc., como pretende Bultmann. Assim, Bonhoeffer ressalta que
não se pode separar Deus e milagre [...] mas precisamos poder interpretar e
proclamar a ambos de forma não religiosa.”
609
Ademais, o autor explica que falar
de maneira religiosa significa falar por um lado de forma metafísica e, por outro, de
forma individualista. Ambas as formas não atinam nem com a mensagem bíblica
nem com o ser humano atual.”
610
Como exemplo, ele utiliza a pergunta individualista
pela salvação da alma. Segundo o teólogo alemão, essa pergunta praticamente
desapareceu do cenário do século XX, sendo substituída por perguntas mais
relevantes. Além disso, ele assevera que essa pergunta também não é bíblica. A
salvação da alma não ocorre no Antigo Testamento, que possui como centro a justiça
e o reino de Deus na terra. O que está em pauta no pensamento bíblico não é o além,
mas este mundo e como ele é criado, conservado, estruturado em leis, reconciliado e
renovado.”
611
Mas ele não diz isso no sentido antropontrico da teologia liberal,
mística, pietista e ética, mas no sentido bíblico da criação e da encarnação, da
crucificação e ressurreição de Jesus Cristo.”
612
Nesse contexto, Bonhoeffer novamente elogia a iniciativa de Barth, por ser o
primeiro teólogo a encetar a crítica da religião. Mas o autor lamenta que o teólogo
suíço tenha substituído a religião pela doutrina positivista da revelação. Para o
teólogo alemão, a abordagem barthiana trata dos conceitos e doutrinas cristãs
(nascimento virginal, trindade, etc.) como igualmente necessárias e significativas
608
Ibid., p. 374.
609
Ibid., p. 379.
610
Ibid., p. 380.
611
Ibid.
612
Ibid.
128
para o todo, o qual deve ser engolido por inteiro ou não é engolido de jeito nenhum.
Isso não é bíblico. Há níveis de conhecimento e níveis de importância; isto é, deve-se
restabelecer uma disciplina arcana por meio do qual os mistérios da fé cristã sejam
protegidos de profanação”
613
. Ao utilizar a disciplina arcana como uma espécie de
corretivo para o positivismo da revelação, estaria Bonhoeffer sugerindo que alguns
conceitos cristãos deveriam ficar restritos ao ambiente da igreja e outros serem mais
acessíveis para o mundo em geral? Com efeito, ele continua criticando o positivismo
barthiano da revelação ao enfatizar que, nesse pensamento, no lugar da religião está
agora a igreja o que em si é bíblico -, mas o mundo, de certa forma, é deixado por
sua própria conta e abandonado à sua própria sorte. Este é o erro.”
614
Portanto, ele
critica Barth por não se preocupar suficientemente com o mundo. O teólogo alemão
também confessa que toda essa argumentação funcionou mais como um meio de
organização e esclarecimento próprio das suas idéias incipientes, e menos como um
meio de informação para a Bethge a respeito delas. Ademais, ele afirma estar
trabalhando com a interpretão arreligiosa dos conceitos de fé, penitência,
justificação, santificação e renascimento, a partir da perspectiva véterotestamentária
e de S. João 1:14 (e a palavra se tornou carne”).
615
Isso indica uma tentativa de
tornar tais conceitos mais concretos para o mundo arreligioso.
Em maio de 1944 Bonhoeffer escreveu algumas reflexões para o batismo de
Dietrich W.R. Bethge, o filho de Bethge que recebeu o seu nome. Já no final das
reflexões, o autor expressa que o significado de conceitos tais como renascimento e
Espírito Santo, reconciliação e redenção, cruz e ressurreição, amor ao inimigo, vida
em Cristo e seguimento de Cristo, ficou tão distante e difícil que quase não ousamos
falar disso. Nas palavras e nos ritos tradicionais, intuímos algo bem novo e
revolucionário, sem poder ainda captá-lo ou expressá-lo”
616
. Portanto, o autor sugere
que a linguagem não-religiosa tem como ponto de partida as palavras e ritos
tradicionais da igreja. Quanto à constatão da distância e dificuldade de
compreensão dos conceitos cristãos, o teólogo alemão sublinha o fracasso da igreja,
que nestes anos lutou apenas pela sua própria preservação como fosse um fim em si
mesma, [e] é incapaz de ser portadora da palavra reconciliadora e redentora para os
613
Ibid.
614
Ibid., p. 380-381.
615
Cf. Ibid., p. 381.
616
Ibid., p. 397.
129
seres humanos e para o mundo.”
617
Essa descrição da igreja se encaixa naquilo que
Bonhoeffer chama em seus escritos anteriores de comunidade religiosa”. Mais uma
vez, a razão do fracasso da linguagem religiosa é identificada primariamente com o
fracasso da igreja, não com a mudança do mundo em si. O teólogo alemão conclui
suas considerões ao sonhar e intuir que, quando Dietrich Bethge estiver crescido, a
igreja terá mudado bastante. Nessa mudança, a linguagem não-religiosa é retratada
como uma forma de expressão da Palavra de Deus que tem poder para libertar e
transformar as pessoas no mundo:
Não é de nossa alçada prever o dia mas esse dia virá no qual pessoas
serão novamente vocacionadas para expressar a palavra de Deus de tal
maneira que o mundo seja transformado e renovado por ela. Será uma
nova linguagem, talvez totalmente arreligiosa, mas libertadora como a
linguagem de Jesus, diante da qual as pessoas se assustam e, ainda assim,
são dominadas pelo seu poder, a linguagem de uma nova justiça e
verdade, a linguagem que proclama a paz de Deus com as pessoas e a
aproximação do seu reino.
618
Na carta de 29.5.44 Bonhoeffer reforça a idéia de que o Cristianismo deve
trabalhar com a totalidade da vida. Ele menciona que a maioria das pessoas não
consegue pensar na vida em sua multidimensionalidade, elas passam ao largo da
plenitude da vida e da integralidade de sua existência própria; tudo [...] desfaz-se em
fragmentos”
619
. Em contrapartida, o Cristianismo nos coloca em diversas dimensões
da vida simultaneamente; abrigamos, por assim dizer, Deus e o mundo inteiro dentro
de nós”
620
. Assim, o autor vê a necessidade de arrancar as pessoas do pensamento
unilinear, pois “a vida não é reduzida a uma única dimensão, mas permanece sendo
multidimensional, polifônica”.
621
Além disso, Bonhoeffer menciona algumas
impressões da leitura de Cosmovisão da Física”
622
de Wizsäcker, que solidificaram
a noção de que Deus não deve ser usado como tapa-buracos dos limites do
conhecimento humano. Tendo em vista a gradual expansão do conhecimento
617
Ibid.
618
Ibid., p. 398.
619
Ibid.
620
Ibid.
621
Ibid., p. 414.
622
Em nota editorial há uma tradução de um trecho dessa obra alemã (Zum Weltbild der Physik, p.
112s): Para Kepler, as descobertas positivas da ciência apontam para deus, enquanto que para
Newton são justamente suas lacunas que deixam espaço para Deus. Mas essas lacunas costumam ser
preenchidas no desenvolvimento posterior [...] Deus e os conceitos desbotados e semi-religiosos que
recentemente têm sido muitas vezes empregados em seu lugar assinalam sempre [...] pontos
inconclusos da ciência e, por essa razão, encontram-se, em vista do avanço do conhecimento, numa
constante e pouco honrosa retirada. (Ibid., p. 415, nota 6). Nesse contexto, as idéias de Bonhoeffer
parecem se alinhar à posição de Kepler, em contraposição a Newton.
130
científico ao longo dos anos, cada vez mais Deus é deslocado para fora, encontrando-
se num movimento de constante retirada”. O teólogo alemão não está preocupado
com uma possível ameaça do conhecimento científico sobre o entendimento de Deus,
antes sua crítica se situa na abordagem adotada pela igreja ao falar sobre Deus.
Ademais, ele entende que tanto em meio às limitações do conhecimento científico
como nas questões da morte, sofrimento e culpa, as pessoas de todas as épocas
conseguiram resolver essas questões também sem Deus, e simplesmente não é
verdade que só o cristianismo tenha a solução para elas”
623
. Assim, o autor reafirma:
Deus tem que ser conhecido não apenas nos limites de nossas
possibilidades, mas no centro da vida; Deus quer ser conhecido na vida e
não apenas na morte, na saúde e na força e não apenas no sofrimento, na
ação e não apenas no pecado. [...] A partir do centro da vida certas
perguntas até mesmo caem por terra [... assim como suas] respostas
624
Outro texto de relevância para a compreensão do cristianismo arreligioso é a
carta de 8.6.44. Bonhoeffer confessa que suas idéias sobre esse assunto ainda são
rudimentares, e que está sendo guiado mais pelo instinto que pela clareza de
pensamento. Desse modo, o autor procura se situar a partir da história, sobretudo no
movimento moderno em direção à autonomia humana (na ciência, sociedade e
estado, arte, ética e religião). Segundo ele, esse movimento que se iniciou por volta
do século XIII, na Renascença, chegou a uma certa completeza na nossa época”
625
.
O ser humano atual foi aprendendo a dar conta de si mesmo sem apelar para Deus
como hipótese de trabalho, seja nas questões científicas, artísticas, éticas e também
religiosas. Como ele percebeu que sem Deus tudo funciona tão bem quanto antes,
Deus vai sendo constantemente afastado da vida (tanto no aspecto científico quanto
na esfera humana em geral) e o ser humano vai ficando cada vez mais seguro de si.
Bonhoeffer ressalta que os pensamentos católico e protestante entendem essa
realidade como uma grande apostasia mundial. Assim, como reação a esse crescente
sentimento de segurança da humanidade, a apologia cristã procura demonstrar ao
mundo que afirma ter atingido a maioridade, que em realidade ele não é capaz de
viver sem Deus, como seu tutor. Embora essa apologia não tenha condições de
623
Ibid.
624
Ibid., p. 415-416. Bonhoeffer es analogamente pensando nas questões inúteis levantadas pelos
amigos de Jó (Cf. Jó 27:12).
625
Ibid., p. 434. Em nota editorial há a indicação de que essas idéias derivam da leitura de
Weltanschauung und Analyse des Menschen seit Renaissance und Reformation (em português algo
como Cosmovisão e Análise do ser humano desde a Renascença até a Reforma) de Wilhelm Dilthey
(Cf. nota 10 em Ibid.)
131
argumentar a partir da maioria das questões da vida e do mundo, restam ainda as
chamadas questões últimas morte, culpa às quais apenas Deus pode dar uma
resposta e por causa das quais ainda se necessita de Deus, da igreja e do pastor. Mas
o que acontecerá se um dia elas não mais existirem como questões desse tipo, ou
seja, se também elas forem respondidas sem Deus?”
626
.
Além de reprovar tal abordagem da apologia cristã, o autor também critica o
que ele chama de rebentos secularizados da teologia cristã” filósofos
existencialistas e psicoterapeutas por procurarem convencer o ser humano seguro,
feliz e satisfeito consigo mesmo, de que em realidade ele se encontra numa situação
desesperadora da qual somente eles podem salvá-lo. Em suas palavras, onde há
saúde, força, segurança, simplicidade, eles farejam um fruto maduro para [...] pôr
seus ovos ruinosos.”
627
Todavia, no pensamento bonhoefferiano esse tipo de
iniciativa não atinge o ser humano comum, que no dia-a-dia está no trabalho e com a
sua família, pois este não tem tempo nem vontade de ocupar-se com o seu desespero
existencial e contemplar a sua talvez modesta felicidade sob o aspecto da aflição,
da preocupação, da desgraça.”
628
De maneira geral, Bonhoeffer expressa três
críticas a esse modelo de apologia cristã. Em primeiro lugar ele a considera sem
sentido, por tentar retroceder à puberdade um indivíduo que se tornou adulto,
buscando fazê-lo depender de coisas que ele não mais depende, e lançá-lo em
problemas que para ele não são mais problemas. Em segundo lugar, o autor julga que
esse modelo é deselegante”, por explorar a fraqueza de alguém que não concordou
livremente com isso. Finalmente, ele chama essa abordagem de não cristã”, pois
nela Cristo é confundido com um certo estágio de religiosidade do ser humano”
629
.
Ao reprovar essa abordagem, o teólogo alemão deseja pensar em um meio de
relacionar adequadamente Cristo e o mundo que atingiu a maioridade”. Em sua
breve análise de tentativas já realizadas nessa direção, Bonhoeffer enfatiza
principalmente os esforços da teologia liberal, de P. Tillich, de K. Barth, da Igreja
Confessante, e de Bultmann. Com efeito, o autor elogia a teologia liberal
(especialmente Troeltsch) por ter reconhecido a importância dessa questão e não
fazer girar a roda da história para trás”
630
. Por outro lado, o seu ponto fraco foi ter
626
Ibid., p. 435-436.
627
Ibid., p. 436.
628
Ibid.
629
Ibid.
630
Ibid., p. 437.
132
cedido ao mundo o direito de determinar qual é o lugar de Cristo dentro dele”
631
.
Quanto a Tillich, embora Bonhoeffer destaque a bravura de sua iniciativa, ele
considera que este quis entender o mundo melhor do que o mundo se
compreendia”
632
ao procurar compreendê-lo em termos religiosos. Por sua vez, o
autor afirma que Barth foi o primeiro a reconhecer o erro dessas outras tentativas,
que buscavam preservar um espo para a religião no mundo, e que seu grande
mérito foi a contraposição entre Deus e a religião,pneuma contra sarx (o espírito
contra a carne), na segunda edição de Carta aos Romanos, a despeito de todas as
cascas neokantianas!”
633
. Ademais, em sua dogmática, Barth capacitou a igreja a
implementar essa distinção. Contudo, Bonhoeffer destaca que a principal limitação
barthiana consiste na falta de orientação concreta da interpretão não-religiosa dos
conceitos teológicos. Por isso, o autor reafirma, a teologia da revelação de Barth se
torna positivista (positivismo da revelação). Além de Barth, Bonhoeffer também
critica a postura da Igreja Confessante, que se esqueceu da abordagem barthiana e
passou do positivismo para a restauração conservadora”
634
. Positivamente a Igreja
Confessante manteve os grandes conceitos da teologia cristã, nos quais estão
contidos os elementos do profetismo e culto autênticos. Porém, negativamente, as
duas coisas não são desdobradas, permanecem distantes, porque lhes falta a
interpretação”
635
. Por fim, o autor ressalta o fato de que Bultmann parece ter
percebido de alguma forma a limitação de Barth, mas a entende erroneamente nos
moldes [do reducionismo] da teologia liberal”.
636
Entretanto, em sua crítica a
Bultmann, Bonhoeffer salienta que os conceitos do Cristianismo devem ser mantidos
em seus “conteúdos integrais, inclusive os conceitos mitológicos o NT não é uma
roupagem mitológica de uma verdade geral! porém esses conceitos precisam ser
interpretados de uma forma que não pressuponha a religião como condição da fé (cf.
a perito em Paulo!).”
637
Nesses comentários panorâmicos, Bonhoeffer indica parte daquilo que ele
pensa em termos de cristianismo arreligioso. Embora ele compartilhe com a teologia
liberal e P. Tillich a intenção de relacionar o Cristianismo com um mundo que
631
Ibid., p. 436.
632
Ibid., p. 437.
633
Ibid., p. 438.
634
Ibid.
635
Ibid., p. 439.
636
Ibid.
637
Ibid.
133
atingiu a maioridade, ele discorda do caminho adotado por eles. Por sua vez, embora
ele compartilhe com Barth e a Igreja Confessante o caminho adotado por eles na
crítica da religião, ele discorda da ausência de interpretão não-religiosa dos
conceitos teológicos. E, então, embora ele concorde com Bultmann na necessidade
de interpretão dos conceitos do Cristianismo, ele discorda da forma como ele
procurou interpretá-los.
638
Na carta da 27.6.44, o teólogo alemão volta a tratar do tema da religião nos
termos do Antigo Testamento. À semelhança de sua ênfase na carta de 5.5.44 de que
a salvação individual da alma não é um assunto tratado no Antigo Testamento, aqui o
autor argumenta que a fé no AT não é uma religião de redenção. Porém, o
cristianismo sempre é caracterizado como uma religião de redenção.”
639
Ele também
afirma que o Antigo Testamento trata da libertação de Israel do Egito e também da
Babilônia em termos de redenções históricas, isto é, aquém do limite da morte [...]
Israel é libertado do Egito para que possa viver diante de Deus na terra como seu
povo.”
640
Por outro lado, as religiões que trabalham com a idéia de redenção,
inclusive o Cristianismo, enfatizam a superação do limite da morte através de uma
eternidade a-histórica. Nesse sentido são feitas interpretações metafísicas do Sheol e
do Hades. No entanto, a esperança cristã da ressurreição reforça a idéia de um ser
humano ligado à sua existência na terra, ao contrário da superação metafísica das
religiões da redenção. Assim, o cristão não tem sempre [...] à disposição uma última
escapatória das tarefas e dificuldades terrenas para dentro da eternidade, mas tem de
degustar plenamente a vida terrena, assim como Cristo”.
641
O teólogo alemão conclui
que essas noções de redenção têm sua origem nas experiências limítrofes do ser
humano. Cristo, porém, toca o ser humano no centro da vida.”
642
De fato, Bonhoeffer
evita a discussão cristã da vida após a morte, por se tratar de uma questão limite.
Ademais, ele associa essa discussão com o pensamento metafísico e faz um discurso
638
Com respeito a essa discussão teológica, Bethge enfatiza que, em Tegel, Bonhoeffer não contou
com qualquer biblioteca de teologia moderna. Isso significa que nesses escritos ele praticamente
dependeu apenas da memória. Logo, o estímulo para sua abordagem da teologia moderna não se
originou do desejo de combater os escritos desses teólogos, antes suas considerações emergiram
incidentalmente, à medida que ele ia avançando nas suas reflees. Bethge informa, por exemplo, que
tudo o que Bonhoeffer conheceu de Tillich foi que havia sido publicado antes do período nazista.
Semelhantemente, Bethge entende que Bonhoeffer também não deu a atenção devida ao pensamento
de Bultmann. (Cf. E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 857-858)
639
D. Bonhoeffer, Resisncia e Submissão, op. cit., p. 455.
640
Ibid.
641
Ibid.
642
Ibid.
1
34
muito semelhante às críticas da religião na filosofia moderna, que consideram a
crença na salvação individual da alma como alienação do mundo.
Por sua vez, na carta de 30.6.44 o teólogo alemão retoma a discussão de que,
no mundo que atingiu a maioridade, Deus é cada vez mais empurrado para fora.
Segundo ele, desde Kant só restou o espo além do mundo (isto é, metafísico) para
Deus, e a teologia se restringiu a tratar de um Deus ex machina que lida apenas com
as questões últimas, que lhe restaram. Em realidade, Bonhoeffer critica essa postura,
especialmente ao afirmar que quando não conseguem levar a pessoa a encarar e
caracterizar sua felicidade como sua desgraça, sua saúde como sua doença, sua força
vital como seu desespero, então o latim dos teólogos se esgota.”
643
De outro modo,
ele ressalta que quando Jesus transformava pecadores em bem-aventurados, tratava-
se de pecadores de fato; mas ele não fazia primeiro de cada ser humano um pecador.
Ele os chamava para longe do seu pecado e não para dentro [dele]”.
644
O autor
acrescenta que Jesus nunca questionou a saúde, a força, a felicidade de um ser
humano como tais e as considerou uma fruta podre [...] Jesus reclama para si e para o
reino de Deus toda a vida humana em todas as suas manifestões. [... Ele] reivindica
para si o mundo que atingiu a maioridade.”
645
Na carta de 8.7.44 Bonhoeffer ressalta que “a expulsão de Deus para fora do
mundo, da dimensão pública da existência humana, levou à tentativa de mantê-lo
ainda pelo menos na esfera pessoal, interior, privada.”
646
Entretanto, a Bíblia
não conhece a nossa distinção entre exterior e interior. [...] Ela visa sempre o [...] ser
humano inteiro.”
647
Para o autor, a descoberta da chamada interioridade só ocorre
na Renascença (provavelmente com Petrarca). O corão, no sentido bíblico, não é
o interior, mas o ser humano inteiro como ele é diante de Deus.”
648
Algumas
conclusões do cristianismo arreligioso são, de certo modo, delineadas
incipientemente na carta de 16.7.44. Ao tratar desse assunto, Bonhoeffer inicialmente
menciona o processo de autonomia do mundo (o empurrar Deus para fora) em
diversas frentes - teologia, filosofia, moral, política, física.
649
Assim, sua constatão
643
Ibid., p. 459.
644
Ibid.
645
Ibid.
646
Ibid., p. 464.
647
Ibid.
648
Ibid., p. 466.
649
Na teologia, Herbert von Cherbury afirmou a suficiência da razão para o conhecimento religioso.
Na moral, Montaigne e Bodin estabeleceram regras de vida em lugar dos mandamentos. Na política,
Maquiavel separou a política da moral. Na filosofia, o deísmo de Descartes concebeu o mundo como
135
da superação de Deus como hipótese de trabalho em praticamente todas as áreas,
leva-o a indagar: ainda há espo para Deus? Sua resposta: em nossa maioridade, o
próprio Deus nos faz reconhecer que não. Deus nos faz saber que temos de viver
como pessoas que dão conta da vida sem Deus.”
650
Com efeito, o ponto central da
argumentação bonhoefferiana é a cruz: Deus deixa-se empurrar para fora do mundo
até a cruz; Deus é impotente e fraco no mundo e exatamente assim, somente assim
ele está conosco e nos ajuda.”
651
Para ele, isso constitui o ponto de partida da
interpretação mundana’”
652
, isto é, não-religiosa:
Cristo não ajuda em virtude da sua onipotência, mas da sua fraqueza, do
seu sofrimento! [...] A religiosidade do ser humano o remete, na sua
necessidade ou aflição, ao poder de Deus no mundo, Deus é o deus ex
machina. A Bíblia remete o ser humano à impotência e ao sofrimento de
Deus; somente o Deus sofredor pode ajudar.
653
O teólogo alemão entende que esse tipo de raciocínio “é a inversão de tudo o
que o ser humano religioso espera de Deus.”
654
Através dele o autor também delineia
as implicões para a vida cristã no contexto arreligioso, no qual ser cristão não
significa ser religioso de uma determinada maneira, tornar-se alguém [...] com base
em alguma metodologia, mas significa ser pessoa; Cristo não cria em nós um tipo de
ser humano, mas o próprio ser humano. Não é o ato religioso que produz o cristão,
mas a participação no sofrimento de Deus na vida mundana.”
655
Nessa contraposição
entre religião e Cristianismo ele acrescenta: nada de metodologia religiosa; o ato
religioso sempre é algo parcial, a fé é algo inteiro, um ato da vida. Jesus não
conclama para uma nova religião, mas para a vida”
656
. Bonhoeffer reconhece que
ainda não está clara a maneira como se apresenta a participação na impotência de
Deus no mundo. Aliás, ele enfatiza que suas idéias ainda estão muito desajeitadas e
carecem de melhor expressão.
657
Sua expectativa era de que futuramente ele pudesse
articular melhor essas noções, mas a história de sua vida evidentemente indica que
isso não foi possível. De qualquer modo, ele conclui a carta afirmando que o mundo
um mecanismo que funciona por si mesmo se a intervenção de Deus. Na física moderna, o caráter
infinito do mundo foi colocado em vida. Cf. Ibid., p. 484-486. Em nota os editores indicam que essa
perspectiva bonhoefferiana é fruto da influência de suas leituras de W. Dilthey.
650
Ibid., p. 488.
651
Ibid.
652
Ibid.
653
Ibid.
654
Ibid., p. 489.
655
Ibid.
656
Ibid., p. 491.
657
Cf. Ibid.
136
que chegou à maioridade é mais sem-Deus e, por isto mesmo, talvez esteja mais
próximo de Deus do que o mundo menor de idade”
658
.
Finalmente, em 3.8.44 (data segundo Bethge) Bonhoeffer escreveu o esboço
de uma obra que provavelmente exploraria em detalhes sua noção de cristianismo
arreligioso. A obra se dividiria em três blocos principais. O primeiro, intitulado
Balanço do cristianismo, discutiria: (1A) a maioridade do ser humano; (1B) a
arreligiosidade do ser humano que chegou à maioridade; (1C) igreja evangélica
(pietismo como última tentativa de preservar o cristianismo evangélico como
religião); ortodoxia luterana (tentativa de manter a igreja como agência de salvação);
igreja confessante (teologia da revelação; empenho pela causa” da igreja, mas pouca
fé pessoal em Cristo; nenhum risco em favor dos outros); (1D) moral do povo. Na
seência, o segundo bloco O que é a fé cristã de fato, incluiria: (2A)
mundanalidade e Deus; (2B) quem é Deus? (a experiência de Jesus em favor dos
outros como transcendência; fé como participão neste ser de Jesus; relação com
Deus não como relação religiosa com um ser mais elevado, mas uma nova vida na
existência para os outros); (2C) interpretação dos conceitos bíblicos (criação, queda,
reconciliação, fé, nova vida, coisas últimas) a partir de 2B; (2D) Culto (seria descrito
posteriormente); (2E) e (2F) O que cremos de fato? (o problema do credo
apostólico). Já o último bloco, Decorrências, trabalharia com as implicações
eclesiológicas: igreja é “estar aí para os outros; ela deve presentear todo o seu
patrimônio aos necessitados; os pastores devem viver exclusivamente de doões da
comunidade (podendo eventualmente exercer uma profissão secular); a igreja deve
reconhecer a importância do exemplo humano, e do seu exemplo.
659
Embora esse esboço apresente as idéias de maneira pontual, Bonhoeffer
acrescenta e esclarece algumas questões relevantes em sua visão do cristianismo
arreligioso. Em primeiro lugar está sua crítica eclesiástica em 1C. Nenhuma das
igrejas mencionadas (evangélica, luterana, confessante) se encaixa em seu conceito
de igreja, todas elas se aproximam do seu conceito de religião. Em segundo lugar
está seu conceito de Deus e cristão em 2B. Ele define transcendência como Jesus
vivendo em função dos outros, e a fé e a relação com Deus como existir para os
outros, ao passo que a religião entende Deus como um ser mais elevado, distante.
Em terceiro lugar destaca-se sua compreensão de como funciona a igreja no
658
Ibid.
659
Cf. Ibid., p. 509-513.
137
cristianismo arreligioso. A definição de igreja, à semelhança da transcendência, da fé
e do relacionamento com Deus, se resume em existir para os outros. Por isso, ela não
possui patrimônio financeiro (tudo é dado aos pobres), e os pastores não possuem
uma fonte de renda (dependência de doões ou outro trabalho). Bonhoeffer também
coloca uma grande ênfase na importância do exemplo da igreja e das pessoas.
3.4 Resumo do capítulo
Inicialmente foram apresentadas as referências de Bonhoeffer à religião até
1931: período de estudos e primeiras experiências pastorais. No período de estudante
(1923-1926), a religião é vista favoravelmente como disposição de fé interior e
postura moral, assumindo uma forma empírica através da igreja. Mas ele prefere
entendê-la a partir da revelação, e não da noção de a priori religioso. Em Sanctorum
Communio (1927), a religião é retratada principalmente no sentido sociológico,
empírico. Nesse contexto, ele a critica como satisfação egoísta e individual, e
estabelece uma distinção entre religião e revelação, comunidade religiosa e igreja.
Atuando como pastor em Barcelona (1928), ele retrata a religião como busca da
felicidade interior, em contraste com a graça divina. Embora a considere
positivamente em certo momento (em termos de fé e dependência de Deus), ele
também chama a religião de arrogante tentativa de chegar a Deus. Por sua vez, em
Act and Being (1930) Bonhoeffer rejeita a identificação entre revelação e religião,
presente na noção de a priori religioso, e também se opõe ao transcendentalismo que
encerra a fé como algo totalmente diferente da religião. Ambas as posições são
individualistas, e desprezam a comunidade eclesial. Em seus estudos nos Estados
Unidos (1930-1931) ele critica a religião individualista da igreja norte-americana.
Em seguida foram apresentadas as referências que Bonhoeffer fez à religião
entre 1932 e 1939: um período de maior maturidade teológica. Nos sermões em
Berlim (1931-1933) ele refere-se negativamente à religião, num contexto
considerado por ele como decadência política e moral. Bonhoeffer critica a religião
como forma de culto aos deuses feitos por mãos humanas. Na sua aula sobre A
Essência da Igreja (1932) ele critica eclesiologicamente a religião: a igreja se situa
em lugares privilegiados (igreja nacional e burguesia), não se encontra no centro
das questões do mundo, e se concentra nas necessidades individuais. Na aula Venha
a s o teu Reino (1932) Bonhoeffer critica a religião ao apontar dois extremos: a
138
fuga do mundo e a acomodação ao mundo. Em ambos os casos o cristão se esquece
de Deus como senhor do mundo. Já em Criação e Queda (1932-1933), embora em
alguns momentos ele trate a religião positivamente, o autor se refere a ela em termos
do ser humano que se opõe à Palavra Deus, praticando a desobediência com a
aparência de obediência. Em Cristologia (1933) ele parece retratar positivamente a
religião ao definir como religioso a adequada pergunta cristológica pelo quem.
Bonhoeffer também critica a igreja por se situar em lugares de privilégios. Na aula A
igreja visível no Novo Testamento (1935-1936), a comunidade religiosa, diferente da
igreja, funciona como um fim em si mesmo e trata a vida de forma parcial. Em
Discipulado (1937) a religião é associada à graça barata, se expressa de forma
abstrata e está em oposição ao discipulado de Cristo. Em sua segunda visita aos
Estados Unidos (1939) o teólogo contrapõe a religião à palavra de Deus e ao
cristianismo, ligando-a às noções de satisfação própria, egoísmo e libertinagem.
Finalmente, a apresentação das últimas referências bonhoefferianas à religião
se refere ao período de 1940 a 1945. Em Ética (1939-1943), a comunidade religiosa
se caracteriza como passiva e abstrata, enquanto a igreja assume uma forma ativa e
concreta que se relaciona com a existência humana como um todo (busca salvar o
mundo). A religião procura defender sua própria esfera, trabalhando em causa
própria. Por isso, ela promove a vida piedosa das pessoas, num foco individual,
olvidando o testemunho de Cristo para o mundo. Ao tratar da relação entre religião e
tecnologia, inicialmente Bonhoeffer parece retratar favoravelmente a religião, mas
em seguida a considera o endeusamento do ser humano no mundo moderno, tanto no
espo anti-eclesiástico como eclesiástico. Nesse último caso, ele fala da impiedade
de aparência religiosa-cristã e faz uma declarão de confissão de culpa da igreja.
Nas cartas da prisão (1943-1945), o autor critica a religião a partir de sua questão
central: que é o cristianismo ou quem é Cristo para nós hoje?”. Ele considera a
religião como um período histórico que está chegando ao fim. Ademais, Bonhoeffer
relaciona negativamente a religião com a piedade, interioridade, individualismo,
consciência meramente moral, pessoas privilegiadas, pensamento metafísico, e com
o conceito de a priori religioso. Em suas indicões de um cristianismo arreligioso,
ele enfatiza a importância da disciplina arcana” e do conceito de último-
penúltimo, e critica a forma religiosa de falar de Deus apenas nos limites do
conhecimento e nas fraquezas e dificuldades do ser humano. Para Bonhoeffer, Deus
deve estar no centro, não nos limites da vida. Nesse sentido, ele afirma a necessidade
139
de tornar os conceitos cristãos mais concretos para o mundo arreligioso,
principalmente à luz da encarnação de Cristo e do Antigo Testamento. Além disso,
ao se perguntar sobre o espaço de Deus em um mundo que cada vez mais o empurra
para fora, Bonhoeffer constata que essa também é uma perspectiva teológica: Deus
deixa-se empurrar para fora do mundo até a cruz, ele é impotente e fraco e somente
assim ele está conosco e nos ajuda. Assim, enquanto na religião o ser humano busca
o poder de Deus, o cristão busca a participão nos sofrimentos de Deus neste
mundo. O cristianismo real se caracteriza pelo existir para os outros. Por isso, uma
igreja arreligiosa não possui patrimônio financeiro, pois oferece tudo aos pobres.
CAPÍTULO IV
COMPARANDO A CRÍTICA DA RELIGIÃO:
KARL BARTH E DIETRICH BONHOEFFER
O presente capítulo representa basicamente uma tentativa de articular as
principais idéias e conceitos apresentados, sobretudo nos dois capítulos anteriores, a
fim de comparar a crítica da religião em Barth e Bonhoeffer. Para tanto, o capítulo se
divide em três partes principais. As duas primeiras procuram sintetizar a crítica da
religião de cada teólogo, enquanto a última busca delinear as possíveis aproximões
e os eventuais distanciamentos entre a crítica barthiana e bonhoefferiana da religião.
Considerando que o tema da religião em Barth se encontra praticamente
sistematizado, a tentativa de síntese de sua crítica baseia-se nas considerões do
segundo capítulo. Por outro lado, devido à fragmentariedade do pensamento
bonhoefferiano em relação à religião, a tentativa de síntese dessa crítica toma como
base as considerões do terceiro capítulo e também as contribuições de comentários
específicos de R. Wüstenberg, E. Bethge e C. Green.
Com respeito às aproximações e distanciamentos da crítica barthiana e
bonhoefferiana da religião, este trabalho se baseia principalmente nas fontes
primárias desses autores (especialmente as idéias apresentadas nos dois capítulos
anteriores e nas sínteses deste capítulo), mas conta também com a colaboração de A.
Pangritz e Regin Prenter sobretudo para discussão da expressão positivismo da
revelação -, e dos comentaristas utilizados para a síntese da crítica bonhoefferiana.
4.1. Uma tentativa de síntese da crítica da religião em Karl Barth
A tarefa de reunir idéias a respeito de um mesmo tema, mas que oriundam de
textos que pertencem a períodos distintos do pensamento de um autor, parece
constituir uma atividade que desconsidera as diferenças metodológicas da evolução e
alterões de sua teologia em nome da coerência e unidade de suas idéias. Como
141
visto na seção metodológica sobre Barth no primeiro capítulo desta dissertação,
Carta aos Romanos e Church Dogmatics são obras que pertencem a diferentes fases
metodológicas do pensamento barthiano. Contudo, a despeito dessas mudanças é
possível perceber em Barth a continuidade do pensamento dialético na fase da
analogia da fé de Church Dogmatics, não necessariamente como paradigma
metodológico, mas como estrutura de raciocínio.
660
Essa compreensão de
continuidade não funciona apenas como pressuposição teórica mas também pode ser
evidenciada na semelhança da abordagem dialética da religião em Carta aos
Romanos e Church Dogmatics. Assim, embora a tentativa de síntese das noções de
Barth, concernentes à crítica da religião que aparecem nessas obras, não seja uma
tarefa fácil, existem semelhanças notáveis entre os conceitos a despeito da nítida
diferença de linguagem. Ademais, a leitura conjunta de ambos os textos parece
fornecer um quadro teórico que oferece melhor compreensão dos detalhes que são
apresentados nos textos específicos. De fato, a linguagem filosófica existencial que
marca a obra anterior não aparece de maneira tão incisiva na Dogmática, contudo,
panoramicamente, os conceitos se repetem em uma linguagem cristológica.
4.1.1 A concepção barthiana de religião
Em Church Dogmatics Barth indica o ponto de partida metodológico para a
sua compreensão da religião: a revelação divina, conforme o entendimento da
tradição da Reforma. Portanto, alguns conceitos fundamentais que permeiam suas
considerões são: a revelação de Deus em Jesus Cristo, a doutrina cristológica (com
precedência da divindade de Cristo em relação à sua humanidade), e a compreensão
protestante da justificação pela fé. Outro eixo fundamental do seu pensamento, que
aparece com mais evidência em Carta aos Romanos, e que em conexão com os
conceitos anteriores exerce aguda influência sobre sua compreensão da religião, é o
660
Além dos autores que foram citados no primeiro capítulo - Garry Dorrien, The Barthian Revolt in
Modern Theology, op. cit. e Garret Green, Challenging the Religious Studies Canon: Karl Barth's
Theory of Religion, op. cit. - existem outros estudos que identificam a continuidade da estrutura do
pensamento dialético em Barth: Cf. Bruce L. McCormack, Karl Barth’s Critically Realistic
Dialectical Theology: Its Genesis and Development, 1909-1936. New York: Oxford University Press,
1997, p. 312; George Hunsinger, How to Read Karl Barth: The Shape of His Theology. New York:
Oxford University Press, 1993, p. 69; Graham Ward, Barth, Derrida and the Language of Theology.
Cambridge: Cambridge University Press, 2008, p. 94; William Stacy Johnson, The Mystery of God:
Karl Barth and the Postmodern Foundations of Theology. Louisville, KY: Westminster John Knox,
1997, p. 31.
142
pressuposto calvinista finitum non est capax infiniti (o finito não é capaz de conter o
infinito).
661
A partir desse pressuposto, Barth entende que Deus não pode ser
identificado com qualquer realidade no mundo e também não pode ser entendido
pela racionalidade humana, o que reforça a total dependência humana da revelação
divina e ressalta a distância entre Deus e o ser humano.
Nessa perspectiva, o teólogo suíço utiliza a doutrina cristológica da
encarnação como analogia para explicar como a revelação de Deus está presente no
mundo da religião, e indicar como se dá a relação entre revelação e religião. O que
ele deseja mostrar, com isso, é que a junção da revelação e da religião representa
uma unidade entre Deus e o ser humano, do mesmo modo que a encarnação de Jesus
Cristo, que no seu entendimento, é a unidade entre Deus e o ser humano. Ademais,
ele intenta indicar que, nessa unidade, o divino tem precedência sobre o humano.
Essa ênfase é importante no contexto da doutrina da justificação pela fé, pois desse
modo Deus se apresenta como senhor do ser humano, que julga, justifica e santifica,
ao passo que o ser humano é aceito e recebido por Deus. Contudo, outra implicação
desse pensamento é que a religião, enquanto realidade humana, só adquire real
sentido por meio da presença ou intervenção da revelação divina.
Portanto, no quadro maior da justificação pela fé, a religião em si representa
as obras e esforços humanos. De fato, Barth considera que na perspectiva humana a
religião representa o limite máximo da atividade humana, isto é, o clímax das suas
mais elevadas possibilidades, a atividade mais pura e poderosa para a transformação
humana. Além disso, ela representa o aspecto subjetivo e histórico do relacionamento
do ser humano com Deus. Todavia, a partir da ótica da revelação divina, a religião é
limitada e sujeita à morte, assim como todos os outros esforços humanos. Embora
Barth entenda que a religião em si não seja igual ao pecado, é através dela que o
pecado humano se torna evidente, visto que de maneira geral ela representa o esforço
humano de justificar a si mesmo. No contexto da justificação pela fé, a tentativa
humana de justificar-se pelas próprias obras caracteriza uma atitude de presunção e
rebelião contra Deus, que não reconhece a incapacidade humana.
Desse modo, se o conceito barthiano de religião se alinha panoramicamente à
noção de justificação pelas obras, é evidente que ela esteja em oposição à justificação
661
Veja como Barth defende o princípio calvinista finitum non est capax infiniti em contraposição à
noção luterana de communicatio idiomatum, em Karl Barth, An Introductory Essay. In: Ludwig
Feuerbach, The Essence of christianity. New York: Harper TorchBooks, 1957, p. xxiii-xxiv.
143
pela fé: a oposição do humano contra o divino, a oposição da piedade humana contra
a graça divina. Assim, a religião tende a se contrapor à revelação e à fé. Entretanto,
com todas essas características, Barth não entende que o ser humano deve abandonar
a religião. Aliás, na visão barthiana essa seria uma possibilidade impossível.
Enquanto o ser humano viver nesse mundo ele estará acompanhado de todas as
limitões que lhe são inerentes, e portanto sempre terá a religião. Nesse ponto, é
importante salientar a relação que Barth estabelece entre a igreja e a religião: a igreja
nada mais é do que a religião organizada. A despeito de o teológico suíço incluir
todas as religiões do mundo em seu conceito de religião, ele coloca uma ênfase maior
no cristianismo. É por isso que ele praticamente identifica a religião com a igreja.
Assim como Barth ressalta o caráter provisório da igreja, ele também afirma a
existência provisória da religião.
662
Para ele, Deus determinou sua existência entre o
Alfa e o Ômega, o princípio e o fim. Considerando essa determinação divina, é
possível perceber que a religião, assim como a igreja, pode e deve assumir um papel
na relação entre Deus e o ser humano. Nesse sentido, a religião deve funcionar como
um marco da fé do relacionamento que Deus iniciou com o ser humano, figurando
meramente como um símbolo ou sinal, e não como base ou substância desse
relacionamento. Para Barth a religião precisa ser apenas um símbolo vazio e
provisório. Mas para chegar a esse ideal, no quadro da justificação pela fé, a religião
necessita ser justificada”. Para entender essa questão é preciso ter uma compreensão
mais abrangente da crítica barthiana da religião.
4.1.2 Características e implicações da crítica barthiana da religião
A partir das considerões acerca do conceito barthiano de religião, é possível
notar que sua crítica se insere principalmente na compreensão da religião como
tentativa humana de justificação pelas obras, que se opõe à graça divina. Outro
aspecto que pode ser percebido é o da identificação entre a crítica da religião e a
crítica da igreja. Nesse sentido, é importante destacar que à luz de sua compreensão
dialética da religião a crítica barthiana toma forma na negação da religião,
662
Para uma compreensão mais ampla do conceito barthiano de provisoriedade da igreja veja Claudio
de Oliveira Ribeiro, A provisoriedade da igreja: uma contribuição da eclesiologia de Karl Barth ao
protestantismo brasileiro. Rio de Janeiro, 1994. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro; Cudio de Oliveira Ribeiro, A provisoriedade da Igreja: uma contribuição
teológica de Karl Barth. Fragmentos de Cultura, IFITEG, v. 8, p. 443-470, 1998.
144
compreendida como crise ou juízo divino sobre tudo o que é humano, mas essa
crítica possui como contraponto a afirmação da religião, entendida como justificação
divina ou sublimação da religião.
Além de formular essa crítica baseado em seu próprio conceito de religião,
Barth também investe outra crítica ao conceito de religião mantido principalmente
pelo protestantismo moderno. Assim, o teólogo suíço critica o ponto de partida dessa
teologia, a saber, o uso da religião como paradigma para interpretar a revelação, que
acaba por considerar a revelação uma mera particularidade no universo da religião.
Na visão barthiana essa noção representa o abandono do reconhecimento do senhorio
de Cristo. Para ele, essa teologia se alinha ao paradigma antropontrico do mundo
moderno que procura enxergar o ser humano em sua autonomia e capacidade, em
detrimento da subordinação ao reino e senhorio de Cristo. De fato, essa noção de
religião representa para Barth uma evidência da negação da fé.
Com efeito, é no ponto da fé que há uma convergência entre a crítica
barthiana da religião feita a partir do conceito de religião do protestantismo moderno
e a partir do seu próprio conceito de religião: em ambos a religião se apresenta como
falta de fé. No primeiro caso, o protestantismo moderno procurou estabelecer um
conceito de essência da religião, buscando encontrar os traços e características
básicas do conceito genérico de religião, a fim de utilizá-lo como paradigma para
classificar as religiões específicas, à medida que elas apresentam tais características.
Contudo, Barth discorda de tal noção. Ele considera que todas as manifestões
religiosas em si estão no mesmo patamar. Todas elas se igualam por aquilo que não
possuem: a fé.
Barth percebe a ausência de fé da religião principalmente na sua contradição
à revelação de Deus. Isso significa que enquanto Deus se oferece e se apresenta ao
ser humano religioso, este procura se antecipar à revelação de Deus e conhecê-lo a
partir de sua própria perspectiva ou esforço. Como na visão de Barth essa
possibilidade de conhecimento divino inexiste, o que realmente o ser humano faz é
projetar um deus humano que esteja de acordo com os seus desejos. Isso representa
idolatria, pois o ser humano coloca no lugar de Deus um deus feito à sua própria
imagem e semelhança, isto é, coloca a si mesmo. Essa é uma tentativa de substituir a
ação divina pela obra humana, ou seja, uma tentativa de salvação pelas obras, não
pela fé na graça e na revelação de Deus em Jesus Cristo.
145
Nesse contexto, Barth utiliza a crítica da religião como crítica eclesiástica.
Ele enfatiza que a igreja não deseja ser estrangeira no mundo, isolada no deserto,
nem quer estar como o Cristo abandonado na cruz. Antes, ela deseja a altivez e a
popularidade. Ela é culpada de materialização e ensoberbecimento. Assim, a religião
é vista como presunção humana que se orgulha de suas próprias capacidades ou
possessões espirituais, expressos na noção de alta moralidade e piedade. Entretanto,
nesse ponto Barth esclarece que ele não deseja promover o abandono da igreja ou da
religião. Esta não é uma polêmica anti-religiosa ou anti-eclesiástica, pois ele também
está incluído nessa igreja culpada. Em sua crítica ele se considera acusador e
culpado, crítico e criticado.
De qualquer modo, Barth salienta que a igreja (isto é, a religião) busca
afirmar sua força, exibir suas qualificões. Tal postura é exatamente contrária ao
seu conceito de fé. Em Barth a fé tem o sentido de vacuidade, esvaziamento.
Diferente da arrogância e presunção do ser humano religioso que busca demonstrar o
que possui, o ser humano guiado pela fé sente-se vazio de toda piedade,
intelectualidade ou possessão. A fé é o reconhecimento da fraqueza e carência
humana que assume sua dependência da revelação e justificação divina. Essa
compreensão é totalmente compatível com a noção de justificação pela fé, onde a
graça divina atua justamente na fraqueza humana.
Em realidade, na visão barthiana a postura de arrogância e presunção suscita a
ira de Deus, pois na perspectiva divina essa atitude é entendida como desejo de se
elevar e se colocar no lugar do próprio Deus. Por isso, a religião, em sua arrogância e
falta de fé, atrai o julgamento divino. É aqui que aparece a noção dialética de Barth,
expressa no Sim e Não em Carta aos Romanos, e na Sublimação (que inclui
negação/abolição e elevação) da Church Dogmatics. Assim, o julgamento é
interpretado no contexto da justificação pela fé: o despojamento da igreja/religião via
rejeição divina traz vida a partir da morte. A falácia da presunção religiosa é
desmascarada e anulada. A negação da religião tem como base a demonstração de
sua ausência de fé. Mas a crise da religião é também a sua sublimação. A religião é
elevada através da justificação e santificação divina. É assim que a religião (Barth
fala aqui do cristianismo), que nunca é verdadeira em si mesma, se torna verdadeira.
Esvaziada por Deus, a religião se torna símbolo e testemunha da esperança, como
reflexo da glória de Deus ela é um sinal, uma proclamação de algo que não está em si
mesma.
146
Logo, para Barth, o valor da religião não está nela, mas naquilo que ela
aponta ou simboliza. Nesse sentido, enquanto a religião não tiver a pretensão de ser
mais do que mera indicação ou testemunha da revelação, ela terá condições de
receber a justificação divina. Esse é o reconhecimento do limite humano, que
também é o lugar onde começa a possibilidade de Deus, a possibilidade impossível
de o ser humano ser religioso como se não fosse.
4.2. Uma tentativa de síntese da crítica da religião em Dietrich Bonhoeffer
À semelhança das considerões tecidas nos parágrafos introdutórios da
tentativa de síntese da crítica da religião em Barth, o critério de continuidade do
pensamento teológico de Bonhoeffer é o que permite, em certo sentido, o
agrupamento de abordagens da religião que oriundam de distintas fases da evolução
de seu pensamento, sem desconsiderar as importantes diferenças que existem entre
tais fases.
663
Novamente, esse critério não assume simplesmente o caráter de
premissa teórica, mas pode ser observado, por exemplo, em argumentões que
aparecem tanto nos seus primeiros escritos quanto nos últimos, cuja proximidade e
semelhança são notáveis, a despeito de eventuais mudanças de ênfase. Apenas para
citar alguns, especificamente na abordagem da religião destacam-se a oposição ao
conceito de a priori religioso, que é mencionada desde os seus escritos de estudante
até as cartas da prisão, assim como a enfática distinção entre igreja e comunidade
religiosa que constantemente aparece em seus escritos. Contudo, isso não significa
que em Bonhoeffer existe o mesmo nível de coesão no tratamento da religião que há
em Barth. A fragmentariedade do pensamento bonhoefferiano, sobretudo na
abordagem do tema da religião, se apresenta, por exemplo, na ambigüidade da
consideração desse tema. Como pondera R. Wüstenberg, não há como estabelecer de
forma rígida e sistemática as diferenças da crítica da religião nas diferentes fases de
seu pensamento.
664
De qualquer modo, numa perspectiva geral, é possível perceber
663
Os principais intérpretes da teologia de Dietrich Bonhoeffer assumem a continuidade de seu
pensamento: cf. E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer, op. cit.; J. Godsey, The theology of Dietrich
Bonhoeffer, op. cit.; C. Green, Bonhoeffer, op. cit.; R. Wüstenberg, A theology of Life, op. cit.; Andre
Dumas, Une Theologie de la realite: Dietrich Bonhoeffer. Geneve: Labor et Fides, c1968.
664
Como Wüstenberg conclui, mesmo durante o esgio da teologia dialética, nós encontramos
elementos de um entendimento da religo que cronologicamente pertencem a um período anterior a
1927, e que portanto es sob a influência da teologia liberal. Declarações positivas, declarações de
crítica, e declarações sobre arreligiosidade não apenas seguem apenas uma linha evolutiva de
147
uma tendência tríplice em suas considerões da religião: antes de 1927 (seu tempo
de estudante) as referências à religião são positivas, de 1927 a 1944 há o predonio
da crítica da religião, e em 1944 aparecem as discussões sobre a arreligiosidade.
665
4.2.1 A concepção bonhoefferiana de religião
Em Bonhoeffer não há propriamente um conceito de religião. De acordo com
E. Bethge e R. Wüstenberg, ele não procurou formular uma teoria sobre a religião ou
sistematizar seu entendimento dela, preferindo enxergá-la a partir de vários
ângulos.
666
Portanto, ao invés de falar no conceito de religião bonhoefferiano, é mais
adequado trabalhar com a sua concepção ou entendimento da religião.
Como destaca Bethge, em seus escritos iniciais Bonhoeffer utiliza a
eclesiologia como ponto de partida para sua teologia, que ao longo dos escritos
posteriores vai sendo anexada à cristologia.
667
Portanto, a igreja é um elemento
indispensável para a compreensão de sua concepção da religião, assim como a sua
teologia como um todo, mesmo que progressivamente ela seja interpretada
cristologicamente. De fato, o foco na eclesiologia permite que Bonhoeffer enfatize
vigorosamente o tema do relacionamento social, tanto no contexto interpessoal
quanto na relação entre o ser humano e Deus. Nesse sentido, C. Green destaca que a
analogia relationis é a forma na qual a analogia fidei aparece na teologia de
Bonhoeffer. Para ele, a imagem de Deus no ser humano é concebida no contexto da
relação social, não como atributo individual.
668
Essa chave de leitura da teologia
bonhoefferiana torna-se bastante evidente na sua abordagem da religião. No período
de estudante, em que ele basicamente retrata a religião de forma positiva, a igreja é
apontada como forma empírica da religião. Contudo, nesse período ele ainda fala da
religião em identificação com a fé e a moralidade.
A partir de 1927 ele parece tratar a religião a partir de outro enfoque. Em
Sanctorum Communio há uma distinção da igreja e da religião, onde a segunda é
negativamente caracterizada pelo individualismo. Em Barcelona (1928), ele fala da
desenvolvimento, mas também ocorrem sistematicamente justapostas. (R. Wüstenberg, A theology of
Life, op. cit., p. 27).
665
Cf. Ibid., p. 26. Wüstenberg indica, respectivamente, prováveis influências marcantes em cada uma
dessas três etapas: a teologia liberal, Karl Barth e Wilhelm Dilthey.
666
Cf. Ibid., p. 27; E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 871.
667
Cf. Eberhard Bethge, The Challenge of Dietrich Bonhoeffers Life and Theology. In: Ronald
Gregor Smith (Org.), World Come of Age. Philadelphia: Fortress Press, 1967, p. 37.
668
Cf. C. Green, Bonhoeffer, op. cit., p. 190, 193.
148
religião como busca individual da felicidade interior, enquanto qualidade
intrinsecamente humana que presume criar um caminho direto para Deus. Mas essa
abordagem negativa da religião não é constante. Nessa época ele também associa a
religião à noção de fé em Deus e dependência dele. Já em Act and Being (1930) o
autor ressalta a comunidade eclesiástica como forma adequada de compreensão da
revelação, em contraste com as outras formas de entendimento dessa doutrina, que
acabam por manter um foco individualista.
O entendimento da religião como individualismo também caracteriza a
experiência de Bonhoeffer em Nova York (1930-1931), ao perceber a realidade da
igreja norte-americana. Nesse contexto, ele também associa a religião à ética e ao
pensamento metafísico. Aliada à noção de individualismo, na aula sobre A Essência
da Igreja (1932), o teólogo alemão fala da religião em termos de lugar privilegiado,
em contraposição à idéia de que a igreja deve se colocar no centro do mundo. Em
Criação e Queda (1932-1933), a religião também é descrita como oposição humana
à Palavra de Deus, que procura obter o seu próprio conhecimento individual de Deus.
Novamente, a ambigüidade na abordagem da religião reaparece em Cristologia
(1933), onde a adequada pergunta pelo quem é Cristo, é qualificada
favoravelmente como religiosa.
Associado ao conceito de individualismo, na aula A igreja visível no Novo
Testamento (1935-1936), Bonhoeffer aborda a religião como algo parcial, que se
contrasta com a noção de que a igreja compreende a totalidade da vida. A idéia de
parcialidade também se associa, em Discipulado (1937), à ênfase da religião como
restrita ao campo das idéias, à abstração doutrinária. Já em Ética (1939-1943), o
autor parece reunir essas percepções da religião e indica que a sociedade religiosa,
principalmente em seu individualismo e parcialidade, trabalha apenas em causa
própria, defendendo unicamente sua esfera, não o mundo em sua totalidade, o que
estimulava a vida piedosa num foco individual. Nessa mesma obra, ao tratar
negativamente da ameaça da tecnologia à religião no texto Herança e Decadência”,
ele identifica a religião com o endeusamento do ser humano moderno, uma ênfase no
fato de o ser humano se colocar no lugar de Deus por meio da religião.
Mas, no final de sua vida (abril de 1944) surge, de acordo com Bethge, uma
espécie de nova teologia bonhoefferiana com respeito à abordagem da religião.
669
669
Cf. E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 855.
149
Nessa nova fase aparece pela primeira vez o tema da arreligiosidade. Ademais, nela é
exposta uma maior quantidade de características que são associadas à religião.
Muitas apresentam direta relação com características indicadas anteriormente, ao
passo que outras são desenvolvidas nesse novo período. Além disso, praticamente
não mais existem referências positivas à religião. Duas perspectivas fundamentam
sua concepção da religião nesse período, a saber, as perspectivas histórica e
antropológica.
Na primeira perspectiva, a religião é designada como característica básica de
um período histórico que estaria acabando. Considerando que as fases teológicas de
Bonhoeffer não são estabelecidas de maneira rígida e sistemática, já em 1939 ele
falava positivamente da possibilidade de as pessoas viverem sem religião. Assim, a
religião não constitui algo intrinsecamente antropológico, mas apenas o tro de um
determinado período do mundo ocidental. Por isso, o autor refere-se à religião como
uma roupagem histórica do cristianismo. Várias são as características dessa
roupagem: piedade, individualidade, consciência moral, pensamento metafísico,
interioridade, privilégio e parcialidade.
A partir da perspectiva antropológica, Bonhoeffer compreende que a religião
se fundamenta na fraqueza e infelicidade das pessoas, especialmente nas situões
limite” (culpa, morte). Por isso, a abordagem religiosa procura falar de um Deus
poderoso que, de forma compensatória à fraqueza humana, resolve as questões que o
ser humano não pode resolver. Contudo, esse tipo de Deus (chamado de ex machina)
fica restrito às questões limite, pois nas situões em que o próprio ser humano pode
resolver os problemas - e essa capacidade humana vai aumentando cada vez mais no
mundo que atingiu a maioridade” -, não há a necessidade de Deus. Assim, na
religião, Deus fica cada vez mais restrito aos limites da vida humana.
Tais características indicam a disfuncionalidade de um cristianismo que está
atrelado à religião. Essa disfuncionalidade pode ser mais bem compreendida a partir
da crítica bonhoefferiana da religião e suas implicações básicas.
4.2.2 Características e implicações da crítica bonhoefferiana da religião
O primeiro indício de crítica da religião em Bonhoeffer aparece, de maneira
indireta, na oposição ao conceito de a priori religioso já no período de estudante.
Nesse sentido, o teólogo alemão abre espo para a idéia de que o conhecimento
150
humano de Deus se dá a partir da revelação do divino. No período posterior a 1926, a
crítica bonhoefferiana da religião coloca de um lado a revelação, a fé e a igreja, e de
outro a religião. Já nesse período a religião é acusada, sobretudo, de individualismo,
oposição à Palavra de Deus, parcialidade e abstração.
Mas em abril de 1944 tais idéias foram aprofundadas e ampliadas, naquilo
que constituiu o estágio final, porém inacabado
670
, da crítica bonhoefferiana da
religião: a idéia de arreligiosidade. Dois eixos principais fundamentam essa idéia o
conceito de que o mundo ocidental atingiu a maioridade e a necessidade de
interpretação não-religiosa dos conceitos cristãos, em face da inadequada abordagem
religiosa. O primeiro se alinha à perspectiva histórica da concepção bonhoefferiana
da religião, ao passo que o segundo eixo se alinha à perspectiva antropológica.
Entretanto, conforme ressalta Bethge, nenhum desses eixos constitui a questão
central de Bonhoeffer, nem mesmo a idéia de arreligiosidade. De fato, essas são
noções auxiliares de sua preocupação cristológica principal:
671
quem é de fato
Cristo para nós hoje? Em virtude da conexão direta que Bonhoeffer estabelece entre
cristologia e eclesiologia (Cristo existindo como igreja-comunidade”), essa pergunta
também é formulada eclesiologicamente: o que é o cristianismo para nós hoje?
O primeiro eixo, influenciado principalmente pela análise histórica de
Wilhelm Dilthey, reconhece a maioridade do mundo ocidental. Esse conceito é
comum ao pensamento filosófico moderno, especialmente em Kant, e aponta para a
autonomia do ser humano que atingiu sua maturidade, e não mais depende da tutela
da religião. De forma notável, essa concepção representa uma inovação no
pensamento bonhoefferiano. Aliás, em seu texto Herança e Decadência” ele
descreve negativamente o processo que leva o ser humano à autonomia, e então ao
niilismo. Nesse contexto, a autonomia humana está em oposição ao cristianismo, e é
denominada de endeusamento do ser humano. Por outro lado, na discussão de
arreligiosidade das cartas da prisão, Bonhoeffer não trata do mundo adulto num tom
670
Bethge ressalta que a discussão bonhoefferiana da arreligiosidade não é um fruto maduro, mas uma
tentativa ainda vaga. Considerando que essa discussão durou apenas cerca de um ano, ele explica que
nos livros anteriores havia um intervalo de três a quatro anos entre as primeiras idéias e o texto final, o
que permitia a maturação dos conceitos. No entanto, isso não diminui a validade das idéias sobre a
arreligiosidade apresentadas nas cartas da prisão, pois também no caso das obras anteriores as visões
iniciais eram sempre muito claras. Posteriormente as teses básicas eram substanciadas e exemplos
eram providos. Assim, a discussão da arreligiosidade nas cartas da prisão contém as idéias essenciais
do pensamento de Bonhoeffer. O seu ponto de partida já estava definido. (Cf. Ibid., p. 862-863)
671
Cf. Ibid., p. 854, 865-866.
151
negativo. Ali, a autonomia humana não se contrapõe ao Cristianismo. Antes, o erro
do cristianismo religioso é justamente não reconhe-la.
Contudo, como Bethge e C. Green destacam, duas ressalvas devem ser feitas
acerca dessa noção bonhoefferiana. A primeira delas é de que sua afirmação da
maioridade do mundo não implica necessariamente uma perspectiva de evolução
moral da humanidade ou de uma visão otimista da história que enfatiza o progresso
do mundo.
672
É preciso lembrar que ele enfrenta a dura realidade de um mundo em
guerra, e que nesse contexto ele enxerga a importância da interferência da igreja nas
situões de sua época. Em segundo lugar, Bonhoeffer não faz simplesmente uma
análise histórica do mundo ocidental, nem procura discuti-la na perspectiva da
filosofia moderna.
673
Sua abordagem é basicamente teológica, e é por isso que o
conceito de mundo adulto o leva à proposta de interpretação não-religiosa dos
conceitos cristãos.
No período anterior a 1944, a crítica bonhoefferiana da religião enfatizava
principalmente o caráter individualista da religião - a partir do conceito de analogia
relationis e oposição entre religião e fé compreendida principalmente a partir do
conceito de revelação divina e expresso em termos de oposição à Palavra de Deus e
presunção humana. Entretanto, especialmente em 1944, como Wüstenberg salienta,
esse tipo de oposição entre religião e fé recebe uma nova interpretação, a partir de
seu conceito de totalidade da vida, que já aparece em vários de seus escritos
anteriores.
674
Essa ênfase se torna evidente numa frase de Bonhoeffer: o ato
religioso sempre é algo parcial, a fé é algo inteiro, um ato da vida. Jesus não
conclama para uma nova religião, mas para a vida.”
675
Com efeito, o autor interpreta
a fé em termos do conceito de totalidade da vida. Assim, nessa nova perspectiva,
dizer que a religião se opõe à fé, não significa necessariamente que ela se opõe à
Palavra de Deus (presunção humana), mas que ela se opõe à vida em sua totalidade.
É nessa perspectiva que se insere a tentativa de interpretação não-religiosa
dos conceitos cristãos, pois a religião se opõe à autonomia humana do mundo adulto,
e isso também significa se opor à vida humana em sua totalidade. Como Bethge
enfatiza, o conceito religioso do Deus ex machina, que atua na fraqueza humana,
672
Cf. Ibid., p. 866; C. Green, Bonhoeffer, op. cit., p. 252.
673
Cf. E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 867.
674
Cf. R. Wüstemberg, A Theology of Life, op. cit., p. 100, 145.
675
D. Bonhoeffer, Resisncia e Submissão, op. cit., p. 491.
152
retrata a religião como uma farmácia espiritual”
676
. Duas são as conseências
desse conceito. Em primeiro lugar, a religião fica restrita às questões-limite, levando
o ser humano a buscar Deus apenas nesses momentos. Isso faz da religião algo
episódico, um mecanismo para emergências, e não algo constante que esteja centro
da vida. Em segundo lugar, esse conceito de Deus poderoso e ser humano fraco faz
com que a religião funcione como uma forma de escapismo da vida real e da
responsabilidade madura do ser humano para com o mundo.
677
Por isso C. Green entende que, nesse contexto, Bonhoeffer critica a religião e
busca uma reinterpretação não-religiosa do Cristianismo e seus conceitos. Através
dela, o Cristianismo deve das questões periféricas para centro, do episódico para o
constante, da parcialidade para a totalidade, da separação entre igreja e mundo para a
totalidade da igreja e do mundo em Cristo (sem confundi-los), do individualismo e
do ambiente privilegiado para o existir para os outros, da interioridade e do
subjetivismo para a responsabilidade na vida pública, do alienante pensamento
metafísico que projeta um reino de Deus a-histórico para a vida responsável nesse
mundo.
678
Mas para interpretar o Cristianismo dessa nova maneira, o teólogo alemão
entende que é preciso inverter a concepção religiosa de Deus e do ser humano.
Através da perspectiva da theologia crucis, o autor deseja conceber a idéia de uma
humanidade forte (o mundo que se tornou adulto) e um Deus fraco (o sofredor da
cruz). Segundo esse ponto de vista, a idéia de um Cristo sofredor, fraco, anula a visão
de um Deus poderoso e ao mesmo tempo afirma a força e a autonomia humana. Em
outros termos, o Cristo fraco estimula as pessoas a usarem sua força de maneira
responsável no mundo adulto. Nesse caso, C. Green ressalta que em certo sentido
essa noção bonhoefferiana parece responder aos grandes críticos modernos que
argumentam que o cristianismo (e a religião em geral) desumaniza e aliena as
pessoas, roubando-lhes sua força e responsabilidade.
679
Wüstenberg salienta que, com o foco na vida, a crítica bonhoefferiana aponta
que a religião e sua linguagem são incapazes de expressar a relevância do Evangelho
de Jesus para a vida presente.
680
Por isso, a interpretação não-religiosa dos conceitos
676
Cf. E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 875.
677
Cf. C. Green, Bonhoeffer, op. cit., p. 260, 263.
678
Cf. Ibid., p. 271.
679
Cf. Ibid., p. 272.
680
Cf. R. Wüstemberg, A Theology of Life, op. cit., p. 123.
153
cristãos busca retirar a tradicional abstração religiosa e trazê-los para a vida concreta.
Por sua vez, a implicação básica desse novo conceito de Deus fraco é que a igreja
também deve se tornar fraca. Como o Cristo da cruz se dedicou totalmente à vida
humana, a fé é interpretada como participação nos sofrimentos de Cristo expressa na
auto-entrega em favor dos outros (existir para os outros). Aliás, se a igreja é
Cristo existindo como comunidade; ela deve participar em seus sofrimentos, ela
deve enfraquecer. Nesse sentido, Bonhoeffer conclui que a igreja deve estar
destituída de qualquer posse ou poder - apenas existir para os outros.
4.3. Aproximações e Distanciamentos da crítica da religião: Barth e Bonhoeffer
A comparação da crítica da religião em Barth e Bonhoeffer, neste trabalho,
adotará como percurso básico a discussão das aproximões e distanciamentos de
Bonhoeffer em relação a Barth. Alguns argumentos justificam essa abordagem: (1) a
crítica barthiana da religião se encontra praticamente sistematizada, enquanto que a
crítica bonhoefferiana é fragmentária e inacabada; (2) de maneira geral, o período
específico dessa discussão barthiana (1922-1938)
681
antecede cronologicamente à
bonhoefferiana (1927-1944)
682
e (3) os textos desses autores, bem como os seus
intérpretes, geralmente apontam para uma certa influência da crítica da religião de
Barth em Bonhoeffer, não o contrário.
Entretanto, a adoção desse percurso não deseja fazer do teólogo alemão um
refém da abordagem barthiana. Antes, a comparação deles evidenciará a
independência e originalidade da compreensão da religião em Bonhoeffer”
683
. Além
disso, considerando que a crítica bonhoefferiana pode ser panoramicamente dividida
em duas fases principais - antes de 1944 e 1944 -, esse modelo propiciará uma
comparação que faça justiça às diferenças dessas fases.
4.3.1. A crítica bonhoefferiana em relação à crítica barthiana: antes de 1944
Segundo Bethge, entre 1924 e 1925 Bonhoeffer teve o primeiro contato com
os escritos de Karl Barth, mais especificamente com o livro The Word of God and
681
O ano inicial se refere à Carta aos Romanos (2ª ed.), e o final à Church Dogmatics I/2.
682
O ano inicial se refere à redação de Sacntorum Communio, e o final às cartas da prisão.
683
R. Wüstemberg, A Theology of Life, op. cit., p. 97; Cf. John Godsey, Barth and Bonhoeffer: the
Basic Difference. Quarterly Review, n. 7, 1987, p. 21.
154
the Word of Man, publicado em alemão em 1924. De fato, o teólogo alemão não
apenas leu o material, mas também indicou a sua leitura e enviou cópias dele.
684
Mas
como Wüstenberg explica, embora ele tenha citado Barth várias vezes nos escritos de
estudante, sobretudo entre 1925-1926, tais referências ao pensamento barthiano não
se relacionam à discussão da religião, mas às noções de revelação, escatologia e
pneumatologia.
685
Aliás, como enfatizado anteriormente, antes de 1927 praticamente
não há crítica da religião em Bonhoeffer.
Todavia, já nesse período é possível perceber aproximões em relação à
crítica da religião em Barth, especialmente na sua oposição ao conceito a priori
religioso. Isso se alinha à visão barthiana da revelação que nega qualquer ponto de
contato no ser humano e, portanto, qualquer tentativa de teologia natural. Ademais,
há a identificação da religião com a moralidade e a compreensão de que a religião
toma forma através da igreja. Contudo, nesse período existem mais distanciamentos
em relação à Barth que aproximações, visto que há em Bonhoeffer uma visão
positiva da religião. Ele considera, por exemplo, a fé uma possessão religiosa e
coloca a revelação no mesmo nível da religião.
Entretanto, a partir de 1927, quando a crítica da religião aparece de maneira
direta nos escritos bonhoefferianos, as aproximações de Barth se tornam notáveis,
sobretudo na distinção entre religião e fé, religião e revelação. Em termos de
enfoque, há uma diferenciação entre eles devido às diferenças no ponto de partida de
suas respectivas teologias. A partir da revelação, Barth fala da religião
principalmente no contexto da atitude do ser humano em relação a Deus. Por outro
lado, a partir da eclesiologia e a ênfase na analogia relationis, Bonhoeffer, além de
falar da religião como oposição humana à Palavra de Deus também discute a religião
na perspectiva do relacionamento interpessoal. É nesse sentido que ele distingue a
igreja da comunidade religiosa, ao criticar a religião como satisfação de necessidades
individuais. Há aqui um distanciamento em relação a Barth, pois este fala da igreja
como forma empírica da religião e não considera a questão do individualismo em sua
crítica.
684
Cf. E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 73. Para uma descrição detalhada dos primeiros
contatos de Bonhoeffer com a teologia de Barth veja Ibid., p. 73-77. Já o primeiro texto
bonhoefferiano lido por Barth foi um artigo sobre Karl Heim, que Bonhoeffer enviou à Barth em 1932
(Cf. Ibid., p. 180). Para uma descrição detalhada sobre o relacionamento entre Barth e Bonhoeffer
(encontros, cartas e comentários teológicos mútuos) veja Ibid., p. 175-186; Andreas Pangritz, Karl
Barth in the theology of Dietrich Bonhoeffer. Grand Rapids, MI / Cambridge U.K.: William B.
Eerdmans, 2000, p. 15-70.
685
Cf. Wüstemberg, A Theology of Life, op. cit., p. 34.
155
As aproximões mais evidentes de Barth aparecem no período que o teólogo
alemão passou em Barcelona. Nesse contexto, Bonhoeffer caracteriza a religião
como a tentativa humana mais nobre para atingir o eterno; fala de Deus como
completamente superior e diferente do mundo; enfatiza que o conhecimento humano
de Deus é limitado e antropomórfico. Por isso, por meio da religião o ser humano
procura um caminho direto para Deus, e acaba criando um ídolo a sua própria
imagem. Ele também afirma a religião como característica intrinsecamente
antropológica que, em seu orgulho e arrogância, pretende se elevar ao nível divino.
Nesse contexto, o teólogo alemão considera o cristianismo como mais uma tentativa
humana de criar um caminho até Deus, assim como todas as outras religiões. Essa
discussão se alinha profundamente ao pensamento barthiano. Contudo, é preciso se
lembrar da ambigüidade da abordagem bonhoefferiana, pois mesmo nessa época ele
menciona a religião positivamente, associando-a com a fé e a dependência de Deus.
Nesse caso, há um distanciamento notável de Barth. Semelhantemente, a
denominação positiva da pergunta religiosa” pelo quem na cristologia também
representa um distanciamento da noção barthiana.
Assim como Barth, Bonhoeffer expressa a crítica da religião como crítica
eclesiológica. Se para Barth a igreja é culpada pela postura de ensoberbecimento, ao
invés de vacuidade perante Deus, Bonhoeffer direciona a crítica na perspectiva do
relacionamento humano: a igreja se situa em lugares privilegiados, não no centro da
vida. Desse modo, ambos retratam a religião como pretensão de garantia de salvação,
mas Bonhoeffer interpreta essa atitude do ponto de vista do individualismo. Logo,
enquanto Barth critica a piedade religiosa que deseja assegurar a salvação por meio
da moralidade, Bonhoeffer mantém essa perspectiva, mas também adiciona a noção
de que a vida piedosa mantém um foco individualista.
A partir da importância da idéia de individualismo na crítica da religião
bonhoefferiana surgem outras noções que atestam a independência de seu
pensamento em relação a Barth. Uma delas é a ênfase na parcialidade, uma vez que a
religião limita-se à sua própria esfera, ao invés de abarcar a totalidade da vida. Outra,
é a identificação do conhecimento religioso com a abstração, que se opõe à atitude
prática. Além disso, em 1939 ele já fala positivamente na possibilidade das pessoas
viverem sem religião. Essa afirmação representa uma notável evolução em seu
pensamento, que será profundamente desenvolvida em 1944, e se opõe ao seu
156
discurso em Barcelona, que seguia a argumentão barthiana ao considerar a religião
uma característica intrinsecamente antropológica.
No entanto, isso não significa que o maior distanciamento que Bonhoeffer
virá a ter em relação à Barth em 1944 já esteja completamente presente no final da
década de 30 ou no início da década de 40. Em Herança e Decadência”, por
exemplo, Bonhoeffer interpreta o desenvolvimento do mundo moderno como uma
ameaça ao Cristianismo, retratando a busca da autonomia humana como religião que
busca o endeusamento do ser humano. Diante disso, é possível concluir que essa
argumentação se aproxima da interpretação que Barth faz da modernidade,
especialmente em sua ênfase de que o antropocentrismo moderno constitui a
oposição do ser humano ao senhorio de Cristo no mundo.
4.3.2. A crítica bonhoefferiana em relação à crítica barthiana: 1944
Considerando a maior densidade que o pensamento bonhofferiano adquire em
1944 com respeito ao tema da religião, bem como as inquietantes lacunas que essa
teologia última e inacabada deixou, faz-se necessário discutir as aproximões e
distanciamentos de Bonhoeffer e Barth em duas partes: a comparação de suas idéias
gerais e a comparação das referências mútuas que esses teólogos fazem em relação
ao tema da religião.
4.3.2.1 Comparação das idéias gerais
No ano de 1944, a crítica bonhoefferiana da religião se distancia ainda mais
da abordagem de Barth. A principal característica desse distanciamento é o fato de
que a crítica da religião de Bonhoeffer desembocou na idéia de arreligiosidade. Em
Barth, a crítica da religião representa apenas um lo de sua argumentação dialética.
Essa crítica é o Não (de Carta aos Romanos) e a Abolição (de Church
Dogmatics), o juízo divino contra a religião. Contudo, esse juízo traz em
contrapartida o Sim divino e a Elevação da religião. Em outros termos, a crítica
barthiana é apenas um trecho inicial do percurso que tem como ponto final a
justificação da religião (a verdadeira religião). Em Bonhoeffer a situação é bem
diferente. Ele não trabalha com o pensamento dialético, mas desenvolve sua crítica
numa perspectiva progressiva e linear. Assim, como Wüstenberg enfatiza, ao invés
de sua crítica negativa da religião levar a algum tipo de transformação positiva da
157
religião, sua noção de arreligiosidade representa, de fato, uma radicalização da crítica
da religião.
686
Provavelmente, foi nesse sentido que Bonhoeffer criticou Barth por
não ter concluído a crítica da religião, isto é, não ter levado às suas conseências
últimas.
Uma das principais diferenças de Bonhoeffer em relação à Barth, que
permitiu esse distanciamento foi a compreensão bonhoefferiana de mundo adulto.
Ainda assim é possível encontrar nela leves similaridades com Barth. Em primeiro
lugar, o conceito de mundo adulto em Bonhoeffer não é o ponto central de sua
teologia em 1944. Como já comentado anteriormente, esse conceito exerce função
auxiliar para a questão do senhorio de Cristo no mundo. Para isso ele recorre à
compreensão de mundo adulto. Barth também associa sua crítica da religião à
questão cristológica. Ele também está preocupado com o senhorio de Cristo, e fala da
religião como presunção humana que se opõe a ele. Por outro lado, Bonhoeffer
critica a religião devido ao fato desta procura confinar o senhorio de Cristo ao
restrito espo eclesial (parcialidade), o que impede a busca pelo seu senhorio no
mundo (totalidade). Como Barth considera a religião um tro intrinsecamente
antropológico, a única possibilidade para senhorio de Cristo, frente a oposição
humana, seria o arrependimento e a justificação do ser humano religioso. De outro
modo, Bonhoeffer, que considera a religião como um modo de vida e pensamento de
certas pessoas, percebe a anulação da religião como o único caminho para o senhorio
de Cristo no mundo. Há aqui uma diferença na compreensão da relação entre a
religião e o ser humano. Em Barth a religião é um fenômeno antropológico que não
está ligado à história mas à hamartologia. Assim como, segundo a compreensão
protestante, o ser humano não pode ficar sem pecado, ele também não pode ficar sem
religião. Já Bonhoeffer entende a religião como um fenômeno construído
historicamente, uma característica ou roupagem que permeou especialmente o
cristianismo, mas que pode e deve ser abandonado.
687
A análise teológica da circuncisão é um exemplo bastante claro sobre essa
diferença. Ambos discutem sobre o sentido da circuncisão em Paulo no contexto da
crítica da religião, e concordam que a circuncisão não representa um requisito ou
garantia de salvação. Eles também fazem um paralelo entre a circuncisão e a religião,
686
Cf. Wüstemberg, A Theology of Life, op. cit., p. 60, 93; A. Pangritz, Karl Barth in the theology of
Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 93.
687
Cf. Ibid., p. 64.
158
indicando portanto que a religião também não é requisito nem garantia de salvação.
Ambos enfatizam que, assim como a circuncisão, a religião é um fenômeno
provisório. Entretanto, eles seguem caminhos diferentes na conclusão dessa análise.
Barth fala sobre a circuncisão e a religião como sinais vazios (sem mérito humano) e
provisórios que indicam a justificação divina. Assim como a circuncisão foi uma
prática provisória, a religião deve existir apenas no contexto histórico humano. No
mundo redimido por Cristo, que não se confunde com a realidade histórica, a
humanidade estará livre da religião. Por sua vez, Bonhoeffer fala da provisoriedade
da circuncisão e da religião numa perspectiva histórica, não numa visão de redenção
a-histórica. Nesse sentido, assim como a circuncisão, a religião não é mais
necessária. É nesse ponto que se insere sua interpretação do mundo adulto.
O teólogo alemão reconhece o processo de autonomia humana no contexto do
desenvolvimento do mundo moderno. Para ele, é a religião que insiste em não
admitir essa realidade, restringindo o senhorio de Cristo à parcialidade do
circunscrito espo eclesiástico, da interioridade e individualidade humana, do
mundo abstrato e metafísico, da fraqueza e infelicidade humana (morte, culpa, etc.).
Assim, a oposição da religião à autonomia humana acaba se opondo também ao
senhorio de Cristo no mundo. Por sua vez, o raciocínio barthiano é distinto. Barth
discorda da noção de mundo adulto. Para ele, o mundo moderno pensa” que chegou
à maturidade, mas dia após dia [se] prova exatamente o contrário”.
688
A pretensa
autonomia evidencia o endeusamento humano que se opõe ao senhorio de Cristo, e
isso é identificado como religião. Nesse sentido, a religião e a idéia de autonomia
humana se contrapõem ao senhorio de Cristo. É por isso que Barth fala da anulação
da religião somente em termos de justificação, que representa o despojamento
humano de qualquer sentimento presunçoso de autonomia ou independência, e o
reconhecimento de sua fragilidade e total dependência de Deus.
Diretamente ligadas às compreensões distintas acerca do mundo, estão as
diferentes concepções de Deus em relação ao ser humano. Na perspectiva do teólogo
suíço é necessário reconhecer a fraqueza humana e sua conseqüente necessidade do
Deus poderoso. Para Bonhoeffer, essa é uma concepção religiosa e equivocada de
Deus e do ser humano. Na sua visão é preciso reconhecer a força e autonomia da
688
K. Barth, A humanidade de Deus, op. cit., p. 401.
159
humanidade, e a fraqueza e o sofrimento de Deus, pois só um Deus fraco e sofredor
pode ajudar a humanidade a se despertar para sua própria autonomia e força.
As noções de provisoridade da religião (histórica ou a-histórica), autonomia
ou não do mundo, e fraqueza ou força de Deus também encontram paralelo com as
referências mútuas de Barth e Bonhoeffer em relação ao tema da religião.
4.3.2.2 Comparação das refencias mútuas
A mais importante referência mútua entre Barth e Bonhoeffer, no que diz
respeito ao tema da religião, é a crítica que Bonhoeffer dirige a Barth sob o rótulo de
positivismo da revelação, que suscitou a reação de Barth em anos posteriores.
Como Wüstenberg ressalta, esse rótulo aparece em três cartas da prisão no ano de
1944, com as seguintes datas: 30 de abril, 5 de maio e 8 de junho. Todas elas se
inserem no contexto da crítica bonhoefferiana da religião. Ademais, elas
compartilham a mesma estrutura de argumentação: Bonhoeffer (1) discute sobre a
crítica da religião, (2) elogia Barth por ter sido o único a iniciar essa crítica, e (3) o
critica por seu positivismo da revelação”.
689
Segundo Benkt-Erik Benktson
690
, ao mencionar que Barth foi o único a
iniciar a crítica da religião, é provável que Bonhoeffer, ao falar do início da crítica,
esteja se referindo ao texto Biblical Questions, Insights, and Vistas de 1920. Além
de este texto estar em The Word of God and the Word of Man
691
(primeiro material
barthiano que ele teve contato), ele apresenta similaridades com a crítica
bonhoefferiana da religião nas cartas da prisão. Dentre elas, Barth menciona
positivamente as pessoas não-religiosas em comparação com as religiosas: Tem
havido freentemente homens não-religiosos que sentiram toda a importância e
seriedade da questão sobre Deus, de forma muito mais intensa, e expressaram-na de
maneira muito mais incisiva que a maioria dos piedosos mais profundos e
zelosos.”
692
Semelhantemente, ele ataca o ambiente religioso: A polêmica da Bíblia
[...] não é direcionada contra o mundo sem Deus [ateu, ímpio] mas contra o mundo
689
Cf. R. Wüstenberg, A theology of Life, op. cit., p. 60.
690
Essa é uma interessante interpretação de Benkt-Erik Benktson ressaltada por E. Bethge, Dietrich
Bonhoeffer, op. cit.. p. 77; A. Pangritz, Karl Barth in the theology of Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p.
91-92; R. Wüstenberg, A theology of Life, op. cit., p. 31-32.
691
Cf. Karl Barth, The word of God and the word of man. New York: Harper and Row, 1957, p. 51-
96.
692
Ibid., p. 56.
160
religioso”.
693
Separa Jesus da religião Jesus simplesmente não tem nada que ver
com religião”
694
e fala do seu senhorio na vida e no mundo em contraposição à
religião: Deus não é uma forma da história religiosa, mas o Senhor de nossa vida, o
eterno Senhor do mundo”.
695
No que diz respeito à crítica do positivismo da revelação, na carta de abril
Bonhoeffer menciona que Barth não aprofundou nem concluiu a crítica da religião,
mas deteve-se no positivismo da revelação. Por isso, não houve nenhum avanço
decisivo para as pessoas arreligiosas.
696
Em maio é dito que, em sua crítica, Barth:
substitui a religião pelo positivismo da revelação; estabeleceu um mesmo nível de
importância para todas as doutrinas cristãs (ênfase no nascimento virginal e trindade)
afirmando uma lei da fé, um pegar ou largar, ao invés de proteger algumas delas
por meio da disciplina arcana; e colocou a igreja no lugar da religião, abandonando o
mundo à sua própria sorte.
697
Por sua vez, na carta de junho o teólogo alemão ressalta
que em Carta aos Romanos (2ª ed.) Barth adequadamente afirmou Jesus contra a
religião, pneuma contra sarx (espírito contra a carne), na Dogmática capacitou a
igreja para a implementação dessa distinção. Contudo, Bonhoeffer conclui que seu
positivismo da revelação consiste na ausência de qualquer orientação concreta para
a interpretação não-religiosa dos conceitos teológicos.
698
E. Busch indica que Barth só veio tomar conhecimento da crítica do
positivismo da revelação com a primeira publicação das cartas da prisão em 1951.
Devido ao enigma que, em certo sentido, elas representavam, surgiram interpretões
variadas e contraditórias. Mas a partir dali, o rótulo de positivismo da revelação
passou a ser usado contra Barth de inúmeras formas. Por isso, além de não
compreender o sentido nem o motivo dessa crítica de Bonhoeffer, Barth questionou
se a publicação dessas cartas foi algo realmente positivo.
699
Na carta escrita em 1952 para o superintendente Herrenbnick,
700
Barth
ressalta a surpresa que teve com as cartas de Bonhoeffer: o que exatamente ele quis
dizer com o positivismo da revelação que ele encontrou em mim? [...] como
693
Ibid., p. 70.
694
Ibid., p. 88.
695
Ibid., p. 74.
696
Cf. D. Bonhoeffer, Resistência e Submissão, op. cit., p. 370-371.
697
Cf. Ibid., p. 380.
698
Cf. Ibid., p. 438.
699
Cf. E. Busch, Karl Barth, op. cit., p. 381.
700
Karl Barth, From a Letter to Superintendent Herrenbnick. In: Ronald Gregor Smith (Org.), World
Come of Age, op. cit., p. 89-92.
161
funciona o programa de linguagem não-religiosa”?
701
Para Barth, o teólogo alemão
não deixou qualquer indício de como colocar os conceitos bíblicos em outras
palavras. Uma de suas hipóteses é de que essa tenha sido uma advertência contra a
repetição de frases e idéias bíblicas tradicionais que são sem sentido para o mundo.
Barth também ficou inquieto com a questão de quando ele teria se expressado em
termos de pegar ou largar com respeito à doutrina do nascimento virginal. Segundo
a interpretão do teólogo suíço, embora não tenha ficado claro o que Bonhoeffer
queria dizer com a participação nos sofrimentos de Deus, essa noção parece ser uma
variação de sua ênfase no conceito de imitatio, que não foi apenas pensado, escrito,
mas também vivido pelo teólogo alemão. De qualquer modo, Barth considera que
Bonhoeffer não deixou algo tangível e concreto com respeito a essas questões, e
conjectura que mesmo para o teólogo alemão elas não eram claras.
702
Em certo
sentido, Barth pensa que tais conceitos eram prematuros, dadas as características de
Bonhoeffer: ele era impulsivo, um pensador visionário que de repente era tomado
por uma idéia à qual ela dava uma vívida forma”
703
.
Além disso, numa carta escrita para Eberhard Bethge em 1967,
704
Barth
agradece a gentileza do envio de uma cópia da biografia de Bonhoeffer, e acrescenta
que ele estudou atentivamente todas as páginas. O teólogo suíço confessa que
somente por meio dessa leitura descobriu que ele fora tão importante para o
pensamento e a vida de Bonhoeffer. No entanto, Barth expressa que mesmo a obra de
Bethge não havia clarificado alguns pontos em Bonhoeffer que ele ainda considerava
obscuros, a saber, a disciplina arcana, o mundo adulto, a interpretão não-religiosa e
a crítica do positivismo da revelação. Nesse contexto, o teólogo suíço conjectura se
Bonhoeffer apenas não lançou frases atraentes, das quais nem ele mesmo sabia o que
significavam. Na perspectiva barthiana, as cartas da prisão representam uma agitada
peregrinação intelectual que apontou dirões totalmente diferentes. Ele conclui que
o teólogo alemão seria completamente mal compreendido se fosse interpretado
apenas à luz dessas passagens.
705
Embora Barth afirme repetidamente sua incompreensão da crítica do
positivismo da revelação, R. Prenter indica que uma visão geral do seu entendimento
701
Ibid., p. 90.
702
Cf. Ibid., p. 91.
703
Ibid., p. 90.
704
Cf. Karl Barth, To Rector Eberhard Bethge, Rensdorf near Neuwied. In: Jürgen Fangmeier, Hinrich
Stoevesandt (Orgs.). Karl Barth: Letters 1961-1968. Edinburgh: T&T Clark, 1981, p. 250-252.
705
Cf. Ibid.
162
da revelação pode indicar algumas noções que provocaram a oposição
bonhoefferiana, sobretudo no contexto de sua crítica da religião. De maneira geral, a
concepção barthiana da doutrina da revelação possui três características básicas:
atualismo, analogismo e universalismo.
706
O atualismo compreende que, em sua
distinção total do mundo pecaminoso, a Palavra revelada de Deus não pode entrar no
mundo nem estar nele. Assim, ao chegar ao mundo ela é transformada em algo do
mundo, em religião. O ser humano pecaminoso imediatamente encarcera a revelação,
por meio da religião, como se ela fosse uma realidade temporal. Em realidade, ela
não existe na extensão do tempo, mas apenas toca o mundo humano pecaminoso e se
quebra na existência humana. Isso significa que Deus está no mundo humano
apenas em cada ato específico de sua auto-revelação. [...] não há espo para a
existência do revelado ou do revelador no mundo.”
707
Por isso, a revelação não
ocorre na extensão do tempo, mas em um instante, em um ato que permanece único,
e como o seu contato com o mundo acaba distorcendo sua realidade é necessário que
esse ato se repita periodicamente. Há, portanto, uma ambígua correlação entre
religião (aspecto humano) e revelação (aspecto divino): positivamente, ela tem sua
origem na revelação divina, mas negativamente ela a distorce, procurando fazer do
divino uma possessão humana.
Cada impressão da revelação que Barth chama de religo constitui a
materialização e a humanização do divino [...] Esse é o aspecto negativo
da relação entre revelação e religião. A revelação é sempre submersa na
religião, por isso a revelação de Deus [...] precisa ser dada novamente
[...]. Cada impressão da revelação, sendo uma realidade humana temporal
e espiritual, não é mais que um traço de uma revelação anterior. [... Por
sua vez,] o aspecto positivo da relação entre revelação e religo [...
aparece] na medida em que a religo [...] sempre aponte para a revelação,
então a despeito de toda a sua oposição à revelação ela também presta
algum tipo de serviço a ela.
708
Por sua vez, o analogismo trabalha com a noção de correspondência derivada
da ênfase barthiana na analogia fidei. No analogismo Barth destaca o positivo de
Deus no negativo humano, isto é, a capacidade de a vida humana ser uma parábola,
uma referência, uma testemunha de algo maior a despeito de sua negatividade.
Porque não pode haver, no tempo, um encontro real entre Deus e o ser humano -
visto que a revelação de Deus vem apenas como um ato de sua auto-revelação -
706
Cf. Regin Prenter, Dietrich Bonhoeffer and Karl Barth's Positivism of Revelation. In: Ronald
Gregor Smith (Org.), World Come of Age, op. cit., p. 105.
707
Ibid., p. 106.
708
Ibid., p. 110.
163
existem apenas analogias, imagens, sinais, daquele ato. Assim, “a revelação de Deus
se torna temporal ou um fato apenas em analogia.”
709
Finalmente, o universalismo representa a conseência lógica dos dois
conceitos anteriores: se a realidade da revelação é negada na extensão do tempo e
ligada ao ato momentâneo da auto-revelação de Deus [...] cada decisão humana é
também análoga à eterna decisão de Deus”.
710
Essa perspectiva leva Barth à idéia de
predestinação ou salvação universal.
711
Aliás, como enfatizado no segundo capítulo
dessa dissertação, ao falar de igreja” e mundo o teólogo suíço não se refere a
grandezas históricas, ou seja, diferentes grupos de pessoas, mas sim a uma realidade
dialética (rejeição e eleição) de toda a humanidade.
De fato, Prenter entende que essas três características resumem o método
dialético de Barth que se apresenta, enquanto estrutura de pensamento, tanto em
Carta aos Romanos quanto em Church Dogmatics.
712
Nesse sentido, já em Act and
Being, onde aparecem os primeiros sinais da crítica à Barth”
713
, Bonhoeffer se opõe
precisamente ao atualismo barthiano. Ao mencionar que Deus não é livre do
homem, mas para o homem”
714
e que Deus está aqui [...] não como não-objetividade
eterna [...] mas que pode ser captado na sua Palavra dentro da Igreja”
715
, o teólogo
alemão deseja afirmar que, no mundo, Deus não é apenas ato (como defende Barth),
mas possui existência no tempo, a saber, Cristo existindo em forma de igreja-
comunidade. Para Prenter, por trás do atualismo de Barth, Bonhoeffer suspeita que
exista um transcendentalismo que coloca Deus apenas na esfera da cognição, e não
da existência humana. Por isso, enquanto Barth se concentra na questão do ato e da
cognição
716
da fé - a fé em busca de compreensão de Anselmo -, Bonhoeffer deseja
enfatizar a existência, e não apenas o ato, a ação, e não apenas a cognição.
717
Parece
que o teólogo alemão quer dizer que a cognição da fé precisa levar à ação, e não ficar
709
Ibid., p. 115.
710
Ibid., p. 116.
711
Veja a ênfase que Barth coloca na reconciliação universal em A humanidade de Deus, texto que
funciona como revisão de sua teologia. Cf. K. Barth, A humanidade de Deus, op. cit., p. 403.
712
Cf. R. Prenter, Dietrich Bonhoeffer and Karl Barth's Positivism of Revelation, op. cit., p. 119.
713
Ernst Feil, The Theology of Dietrich Bonhoeffer. Minneapolis: Fortress Press, 2007, p. 170.
714
D. Bonhoeffer, Act and Being, op. cit., p. 90.
715
Ibid., p. 90-91.
716
A ênfase na relação entre fé e cognição leva Barth a interpretar o batismo cognitivamente e a se
opor ao batismo infantil. Cf. Karl Barth, The Teaching of the church regarding baptism. London:
SCM Press, 1965.
717
Cf. R. Prenter, Dietrich Bonhoeffer and Karl Barth's Positivism of Revelation, op. cit., p. 124, 128.
164
meramente no pensamento especulativo. Por isso, ele salienta que Deus não é Deus
em si (ênfase na cognição), mas Deus para o ser humano (ênfase na ação).
Nessa perspectiva, Prenter indica que provavelmente Bonhoeffer rotula como
positivismo da revelação a simples apresentação ao mundo dos conceitos bíblicos e
cristãos para uma mera aceitação cognitiva, sem mostrar claramente como eles se
relacionam com a existência, com a vida no mundo.
718
Portanto, nesse contexto, o
teólogo alemão aponta em suas cartas que a crítica barthiana da religião não trouxe
ganho algum para as pessoas arreligiosas, ao invés disso criou uma lei da fé”, um
pegar ou largar”
719
, abandonando o mundo à sua própria sorte. Com efeito,
Bonhoeffer reconhece que nem todos os conceitos da fé podem ser diretamente
relacionados com vida concreta, e então, nesse caso, a disciplina arcana exerce papel
fundamental para preservar esses mistérios da fé da profanação”.
720
Nesse sentido,
Bonhoeffer critica o positivismo da revelação de Barth, que coloca todas as doutrinas
em um mesmo nível de importância, apresentando-as para a aceitação cognitiva, ao
invés de estabelecer níveis de importância através da disciplina arcana, para proteger
os mistérios.
Como tentativa de entender esse princípio, A. Pangritz ressalta que em suas
aulas sobre a teologia recente, no inverno de 1932/33, Bonhoeffer fez uma distinção
entre doutrina, proclamação, e confissão na igreja. Enquanto a doutrina e a
proclamação são apresentadas ao público, a confissão é um evento que ocorre apenas
na congregação, pois a confissão apresentada ao mundo é uma tentativa perigosa.
721
Com efeito, parece haver um paralelo entre a protão do mistério pela disciplina
arcana e a confissão que se restringe à igreja. Além disso, é interessante notar como
ele entende o estudo da Cristologia em termos de mistério a ser mantido: “a doutrina
de Cristo começa no silêncio [...] o silêncio ante o inefável [...] Falar de Cristo
significa calar, calar acerca de Cristo significa falar [...] falar dele no silencioso
âmbito da igreja. Nosso cultivo da cristologia que exercemos aqui no humilde
silêncio da comunidade sacramental e adoradora”.
722
Logo, há uma distinção
718
Cf. Ibid., p. 94, 101, 105.
719
A. Pangritz explica que na carta de 5 de maio de 1944 a expressão literal em aleo é “coma,
pássaro, ou morra! (Friss, Vogel, oder stirb!). Desse modo, Bonhoeffer estaria acusando Barth de
deixar os pássaros no mundo de fora da igreja morrerem se eles se recusarem a “comer. Cf. A.
Pangritz, Karl Barth in the theology of Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 139.
720
Cf. D. Bonhoeffer, Resistência e Submissão, op. cit., p. 380.
721
Cf. A. Pangritz, Karl Barth in the theology of Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 100.
722
D. Bonhoeffer, Quien es y quien fue Jesucristo?, op. cit., p. 13.
165
metodológica entre a inadequada pergunta pelo “como (a pergunta objetiva da
imanência) e a correta pergunta pelo quem (a pergunta pela transcendência).
723
Portanto, para Pangritz, Bonhoeffer considera que Barth quer entender e
apresentar algumas doutrinas por meio da pergunta pelo como, não pelo quem,
isto é, Barth não mantém o mistério, sobretudo nas doutrinas do nascimento virginal
e da trindade.
724
Semelhantemente, Barth também reconhece a importância de se
manter o mistério, mas não como Bonhoeffer. Para ele, a proclamação das doutrinas
faz parte da atitude da fé. Apenas em casos de dúvida o silêncio deve ser praticado:
afirmar a doutrina do nascimento virginal é parte da fé cris real. Isto
requererá [... que] alguns que pessoalmente não entendem essa ordenança
[...] tratem seus caminhos privados como caminhos privados e não façam
disso um objeto de sua proclamação [...] eles devem ao menos respeitar o
dogma guardando silêncio a respeito dele.
725
Por meio dessa distinção entre Barth e Bonhoeffer, Pangritz pensa que o
teólogo alemão quer advertir o suíço acerca do perigo de falar demais na dogmática,
não respeitando o mistério.
726
Nesse caso, provavelmente, ele não deseja priorizar o
elemento puramente cognitivo na interpretão doutrinária: ou elas são diretamente
relacionadas à vida (interpretão não-religiosa) ou o mistério delas é mantido
(disciplina arcana). Com efeito, a disciplina arcana é um elemento indispensável na
crítica bonhoefferiana da religião em 1944. Em um primeiro olhar, ela parece ser um
elemento contraditório, pois se a proposta da interpretão não-religiosa deseja evitar
a divisão de esferas, a disciplina arcana faz exatamente isso. Ela restringe certas
práticas e conhecimentos doutrinários ao ambiente eclesial. Mas para Bethge, a
disciplina arcana representa o contraponto necessário à interpretão não-religiosa.
Embora exista a ênfase na totalidade, o teólogo alemão não quer fazer da igreja e do
mundo a mesma coisa. Assim, a interpretão não-religiosa e a disciplina arcana são
meios de correção mútua: a disciplina arcana sem a interpretação não-religiosa
produziria um monasticismo litúrgico ou um gueto religioso, enquanto a
interpretação não-religiosa sem a disciplina arcana não passaria de um jogo
intelectual.
727
723
Cf. Ibid., p. 14-19.
724
Cf. A. Pangritz, Karl Barth in the theology of Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 106.
725
K. Barth, Church Dogmatics, I/2. op. cit., p. 181.
726
Cf. A. Pangritz, Karl Barth in the theology of Dietrich Bonhoeffer, op. cit., p. 114.
727
Cf. E. Bethge, Dietrich Bonhoeffer, op. cit.. p. 881, 844.
166
Contudo, Barth discorda da divisão bonhoefferiana que mantém certos
conteúdos para a igreja (os mistérios da disciplina arcana) e apresenta outros para o
mundo arreligioso (segundo a interpretação não-religiosa). Na visão do teólogo suíço
isso representa uma equivocada divisão entre linguagem para os de dentro (a
igreja) e linguagem para os de fora” (o mundo arreligioso): o mais convicto dos
cristãos precisa e irá sempre de novo reconhecer a si próprio como alguém de fora.
[...] Habitantes do mundo de hoje são ambos, somos todos nós.”
728
Essa perspectiva
se alinha ao pensamento barthiano de que a igreja não se refere a um certo grupo de
pessoas, mas ao pólo dialético da eleição divina da humanidade, tendo em vista a sua
ênfase no universalismo. Nesse caso, a crítica bonhoefferiana de que Barth focaliza a
igreja e se esquece do mundo parece não fazer sentido. O próprio teólogo suíço
questiona: o perigo de uma negação abstrata do mundo no qual alguns parecem ver-
me cair hoje, certamente menos do que nunca é preocupação minha”.
729
Ele também
indaga como é possível explicar, a partir dessa crítica, o seu engajamento na Igreja
Confessante e na Declaração de Barmen.
730
No entanto, Barth admite que sua ênfase na infinita diferença qualitativa entre
Deus e o ser humano foi dita de maneira desumana: não soubemos tratar com
cuidado e integridade a nova percepção da divindade de Deus [...] o totalmente
outro nos fascinava”
731
. Ele reconhece que essa era uma imagem abstrata que
agredia o ser humano, e tinha mais semelhança com os deuses dos filósofos do que
com o Deus da Bíblia.
732
Em sua afirmação de que a compreensão da divindade de
Deus deve incluir sua humanidade, Barth responde indiretamente a crítica
bonhoefferiana:
a divindade de Deus [...] não é uma prisão, na qual ele pudesse existir
apenas em si e para si. [...] sua liberdade de ser em si e para si mas
também conosco e por nós, de se impor mas também de se entregar, de
ser bem elevado mas também bem baixo, de ser não só todo-poderoso
mas também misericórdia onipotente, não só senhor mas também servo,
não só juiz mas também, ele próprio, o julgado, o eterno rei do ser
humano mas também seu iro no tempo. Tudo isso sem nada perder de
sua divindade!
733
728
K. Barth, A humanidade de Deus, op. cit., p. 401.
729
K. Barth, How my Mind has Changed, op. cit., p. 411.
730
Cf. Ibid., p. 413-414.
731
K. Barth, A humanidade de Deus, op. cit., p. 393.
732
Cf. Ibid.
733
Cf. Ibid., p. 396.
167
Nesse contexto, o único sentido da crítica bonhoefferiana de que Barth se
esquece do mundo, se insere no quadro da compreensão do penúltimo e último.
Levando em conta a compreensão dialética da igreja e o universalismo é difícil
afirmar que Barth desconsidera o mundo. Entretanto, na perspectiva do conceito de
penúltimo e último é possível afirmar que Barth enfatiza favoravelmente o mundo
enquanto mundo reconciliado e salvo por Cristo, isto é, a na noção de último. Esta
não é, como Bonhoeffer deseja, uma ênfase nas condições atuais do mundo, segundo
a idéia do penúltimo (como preparação para o último). Ademais, Barth entende a
redenção em si como realidade a-histórica, enquanto Bonhoeffer quer entendê-la
historicamente. De fato, o teólogo alemão aponta a disciplina arcana e o conceito de
penúltimo e último como elementos importantes para sua interpretação não-
religiosa,
734
e ambos parecem se conectar à sua crítica de Barth.
Todavia, assim como em certo sentido Bonhoeffer tende a exagerar na crítica
de que Barth abandona o mundo à sua própria sorte”, o teólogo suíço também
subestima a proposta bonhoefferiana de interpretação não-religiosa. Na sua tentativa
de entender tal proposta, Barth parece reduzi-la a uma mera linguagem verbal que
procura colocar os conceitos bíblicos em outras palavras, uma espécie de tradução
da fé para o mundo.
735
Contudo, como Prenter salienta, Bonhoeffer não quer
trabalhar apenas com a apresentação do conteúdo da fé, mas com o seu próprio
conteúdo. Os conceitos cristãos não necessitam ser traduzidos, pois em certo sentido
a mensagem já se encontra neles. O teólogo alemão não deseja reduzir o conteúdo
tradicional da fé.
736
Diferente de Bultmann, ele deseja manter os conteúdos
integrais”.
737
Aliás, ele procura usar a própria Bíblia como paradigma para a
interpretação não-religiosa desses conteúdos, especialmente o Antigo Testamento e
S. João 1:14,
738
para prover uma ênfase concreta e histórica, segundo a perspectiva
da encarnação. Há, portanto, uma vigorosa preocupação com a vida concreta que
realça a transcendência de Deus no centro da vida, a prática da justiça, a participação
nos sofrimentos de Deus na vida, a fé como um ato da totalidade da vida, a definição
da igreja como existir para os outros, e a importância do exemplo da igreja.
739
De
734
Cf. D. Bonhoeffer, Resistência e Submissão, op. cit., p. 372.
735
Cf. K. Barth, From a Letter to Superintendent Herrenbnick, op. cit., p. 90-91; K. Barth, A
humanidade de Deus, op. cit., p. 401-402.
736
Cf. R. Prenter, Dietrich Bonhoeffer and Karl Barth's Positivism of Revelation, op. cit., p. 102.
737
Cf. D. Bonhoeffer, Resistência e Submissão, op. cit., p. 439.
738
Cf. Ibid., p. 381, 455-456.
739
Cf. Ibid., p. 374, 398, 489, 491, 512.
168
forma geral, o teólogo alemão indica que a interpretação não-religiosa dos conceitos
cristãos visa um engajamento na vida concreta, à luz da encarnação, que
evidentemente pode ser visualizado na sua própria biografia.
Desse modo, nota-se que enquanto Barth critica a religião na perspectiva da
revelação, Bonhoeffer faz sua crítica na perspectiva da vida. Enquanto Barth
contrapõe a religião à fé, entendendo esta última como postura principalmente
cognitiva diante de Deus, Bonhoeffer também contrapõe a religião à fé, mas
compreendendo a fé essencialmente como engajamento na totalidade da vida
concreta.
4.4. Resumo do capítulo
A tentativa de síntese da crítica da religião em Karl Barth indicou que o ponto
de partida metodológico dela é a doutrina da revelação e, adicionalmente, a
compreensão protestante da justificação pela fé. Nesse contexto, a religião é
identificada com a igreja, compreendida como um tro essencialmente
antropológico no mundo pecaminoso, e constitui a presunçosa tentativa humana de
se justificar por meio de suas próprias obras. Essa presunção humana atrai o juízo
divino que compreende a crítica barthiana da religião, e visa abolir a religião. Mas,
dialeticamente é na negação que se encontra a sua afirmação, isto é, a elevação da
religião. Assim, abolida, ela pode funcionar positivamente como um símbolo vazio e
provisório da ação divina que, em outros termos, representa o reconhecimento da
limitação humana e da poderosa ação da divindade de Deus.
Por sua vez, a tentativa de síntese da crítica da religião bonhoefferiana
indicou como ponto de partida metodológico a eclesiologia, que foi gradativamente
absorvida pela cristologia, e a ênfase na analogia relationis. Nesse sentido, a religião
é negativamente vista como característica de um período histórico, uma roupagem
do cristianismo que se apresenta em termos de individualismo, interioridade, mera
consciência moral, abstração, privilégio e parcialidade. Ela também se fundamenta
na fraqueza das pessoas e procura falar do poder de Deus para superar as situões
limite, deixando-o restrito às limitões humanas, longe do centro da vida. Através
da percepção de um mundo adulto e arreligioso, Bonhoeffer pensa no senhorio de
Cristo no mundo. Para isso ele procura desenvolver a interpretão não-religiosa dos
conceitos cristãos como tentativa de se separar a igreja e a fé da religião, visando um
169
cristianismo comprometido com a vida concreta, que participe nos sofrimentos de
Cristo e objetive unicamente existir para os outros.
A abordagem das aproximações e distanciamentos da crítica da religião entre
Barth e Bonhoeffer destacou como aproximões da crítica bonhoefferiana em
relação à crítica barthiana, antes de 1944, a oposição de Bonhoeffer ao conceito a
priori religioso e a visão barthiana de revelação; a identificação da religião com a
moralidade; a distinção entre religião e fé, religião e revelação; a visão da religião
como arrogância humana que pretende se elevar ao nível divino; a crítica da religião
como crítica eclesiológica; a idéia de religião como pretensão de garantia de
salvação; e a interpretação da modernidade antropontrica como oposição ao
senhorio de Cristo no mundo. Já os distanciamentos compreendem a distinção de
Bonhoeffer entre religião e igreja, e sua ênfase na religião como individualismo,
lugar de privilégios, parcialidade e abstração.
Em 1944, a crítica da religião bonhoefferiana se distancia ainda mais da
abordagem de Barth, principalmente porque em seu método dialético a crítica
barthiana é apenas um trecho inicial do percurso que tem como ponto final a
justificação da religião. Já Bonhoeffer chega à radicalização da crítica da religião, a
idéia de arreligiosidade. Embora ambos estejam interessados no senhorio de Cristo
no mundo, Barth propõe para isso a justificação do ser humano religioso, enquanto
Bonhoeffer defende a anulação da religião. Barth vê a noção moderna de mundo
adulto como oposição ao senhorio de Cristo, ao passo que Bonhoeffer enxerga o
reconhecimento do mundo adulto como atitude necessária para o senhorio de Cristo
no mundo. Barth deseja enfatizar a fraqueza humana e necessidade do Deus
poderoso, enquanto Bonhoeffer ressalta a fraqueza e o sofrimento de Deus como
impulso para o despertar da autonomia e força humana. De maneira geral, Barth
critica a religião na perspectiva da revelação, Bonhoeffer faz sua crítica na
perspectiva da vida. Ambos contrapõem a religião à fé, mas Barth concebe a fé
principalmente de forma cognitiva, ao passo que Bonhoeffer a enxerga como
engajamento na vida concreta.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho constituiu uma tentativa de comparação da crítica teológica da
religião no pensamento de Karl Barth (1886-1968) e Dietrich Bonhoeffer (1906-
1945). No sentido de alcançar esse propósito geral, algumas etapas específicas
tiveram que ser cumpridas.
Para situar a concepção da religião e sua crítica moderna, o primeiro capítulo
traçou a noção de religião no ambiente ocidental, enfatizando que na modernidade
houve uma redução da compreensão da religião aos seus aspectos mais objetivos, o
que permitiu sua abstração conceitual e também sua crítica. Desse modo, a crítica
moderna da religião cobriu um longo processo que envolveu, sobretudo, os campos
da filosofia, sociologia, psicologia, antropologia e, finalmente, da teologia. No
contexto da crítica teológica da religião, este capítulo também apresentou o percurso
bibliográfico e metodológico de Barth e Bonhoeffer, bem como os comentários da
crítica barthiana e bonhoefferiana da religião, tecidos por alguns de seus intérpretes.
Com o intuito de contextualizar o tema da religião e sua crítica na teologia de
Barth, o segundo capítulo discutiu a religião em Carta aos Romanos e no § 17 de
Church Dogmatics. Nesses textos, de modo geral, Barth critica o protestantismo
moderno por utilizar a religião como paradigma de interpretação da revelação. Para
ele, a religião é um tro antropológico que indica a limitação humana e a sua
ausência de fé, representando a arrogante tentativa de divinização do ser humano
que busca justificar-se pelos próprios esforços. A crítica da religião se opõe a essa
presunção individual e também eclesiástica. Mas, à luz do conceito de justificação
pela fé, Barth fala da verdadeira religião, a sublimação da religião pela revelação:
sua negação (ausência de fé) e elevação (justificação). Justificada, ela pode ser um
símbolo vazio e provisório da graça divina.
Ao procurar contextualizar o tema da religião e sua crítica na teologia de
Bonhoeffer, o capítulo três indicou que no seu período de estudante a religião foi
discutida favoravelmente embora este já criticasse a noção de a priori religioso ,
mas a partir de 1927 ela foi geralmente considerada de forma negativa. Ele a
contrapõe à revelação, à fé e à igreja, criticando-a pelo seu individualismo, oposição
171
à Palavra Deus, parcialidade, abstração, e por se situar em lugares privilegiados. No
final de sua vida, em 1944, Bonhoeffer considera a religião como um período
histórico que está chegando ao fim, relacionando-a negativamente com a piedade
individual, interioridade, mera consciência moral e o pensamento metafísico.
Ademais, a religião fala de Deus apenas nos limites do conhecimento e nas fraquezas
e dificuldades do ser humano. Nesse contexto, ele propõe o cristianismo arreligioso,
caracterizando-o parcialmente, uma vez que sua teologia ficou inacabada devido a
sua morte prematura.
A partir da tentativa de síntese da crítica da religião em Barth e Bonhoeffer, o
quarto capítulo buscou delinear aproximões e distanciamentos entre eles.
Panoramicamente, as aproximões compreendem a identificação da religião com a
moralidade, a pretensa garantia de salvação, e a crítica da religião como crítica
eclesiológica e oposição à fé. Já os distanciamentos aparecem na distinção de
Bonhoeffer entre religião e igreja, e sua ênfase na religião como individualismo,
lugar de privilégios, parcialidade e abstração. Embora ambos pensem no Senhorio de
Cristo no mundo, a proposta de Barth, em sua crítica dialética, objetiva a justificação
da religião, enquanto a proposta de Bonhoeffer, em sua crítica linear, intenta a
anulação da religião. De maneira geral, Barth critica a religião na perspectiva da
revelação, Bonhoeffer faz sua crítica na perspectiva da vida.
Com base nas idéias desenvolvidas nesses capítulos é possível esboçar, de
maneira abrangente, alguns paralelos entre a crítica da religião barthiana e
bonhoefferiana.
De certo modo, ambas foram influenciadas pelo contexto das guerras
mundiais: a primeira guerra para Barth, e a segunda para Bonhoeffer. Para Barth, a
primeira guerra representou o fracasso da teologia moderna e seu foco
antropontrico ou religionístico”.
740
O questionamento da visão otimista do mundo
moderno expressa pela fé no progresso humano - compartilhada pela teologia
moderna em sua ênfase na moralidade partiu da decepção de Barth ao ver muitos
de seus professores participarem do manifesto que dava suporte à política beligerante
alemã. Desiludido com a moralidade humana”, Barth deseja fazer uma teologia que
tenha Deus como ponto de partida, não o homem. No contexto da guerra, pode-se
dizer que Barth critica a religião (o emblema da teologia liberal) porque ela fez
740
Cf. K. Barth, A humanidade de Deus, op. cit., p. 390-391.
172
algo que não deveria ter feito: o apoio à guerra. Logo, o foco da crítica barthiana é a
constatão da maldade humana. Por sua vez, Bonhoeffer se opõe ao individualismo
e pietismo da religiosidade. Mas, no contexto do impacto da segunda guerra, o
teólogo alemão radicaliza sua crítica da religião ao chegar à idéia de arreligiosidade,
principalmente porque a religião deixou de fazer algo que deveria ter feito: oposição
ao nazismo e interesse por suas vítimas. Desse modo, o foco de Bonhoeffer na sua
crítica é levar as pessoas a tomarem uma atitude, daí sua ênfase na autonomia e força
humana. Assim como Barth, ele ressalta a submissão humana à vontade de Deus,
mas essa submissão deve levar à resistência - atitude responsável contra iniciativas
ou poderes que desafiam o Senhorio de Cristo no mundo.
Associado ao contexto da guerra, outro paralelo emerge: o papel central da
cristologia (conforme o entendimento de Calcedônia) na crítica da religião. Em
Barth, a encarnação de Cristo serve como paradigma para a compreensão da relação
entre a revelação divina e a religião humana. Já em Bonhoeffer ela é o paradigma da
relação entre Deus e o mundo. Mas como reação à teologia antropontrica moderna,
Barth tende a enfatizar a divindade de Cristo, ao passo que Bonhoeffer, na sua
proposta de resistência, deseja enfatizar a humanidade de Jesus Cristo (sua
humilhação), o homem para outros. Por isso, a preocupação bonhoefferiana com o
penúltimo, com o mundo adulto, faz com que ele trabalhe mais com a idéia
cristológica da encarnação, seguindo a theologia crucis: temos o exaltado
unicamente como crucificado, ao impecável como carregado com todas as culpas, ao
ressuscitado só como humilhado.”
741
Sua theologia crucis indica a representação
viria da igreja, enquanto presença de Cristo no mundo, que assume a
responsabilidade pelos outros. Por outro lado, a ênfase de Barth na justificação
divina faz com que ele se concentre no mundo reconciliado com Deus, o que para
Bonhoeffer representaria a idéia de último. Tal realidade, para Barth, só pode ser
vislumbrada como analogia ou parábola, um símbolo da realidade vindoura. Desse
modo, a idéia cristológica que se destaca é a ressurreição, a theologia gloriae: nós
não temos apenas uma theologia crucis, mas uma theologia resurrectionis e,
portanto, uma theologia gloriae, ou seja, uma teologia da glória do novo homem
atualizado e introduzido em Jesus Cristo”.
742
As respectivas ênfases cristológicas na
theologia crucis e theologia gloriae revelam a perspectiva com a qual estes teólogos
741
D. Bonhoeffer, Quien es y quien fue Jesucristo?, op. cit., p. 86.
742
Cf. Karl Barth, Church Dogmatics. IV/2. Edinburgh: T&T Clark, 1958, p. 355.
173
discutem a religião. Enquanto Barth vê a religião a partir de cima, Bonhoeffer a
enxerga a partir de baixo. O próprio Bonhoeffer afirma a importância de ter
aprendido a olhar os grandes eventos da história do mundo a partir de baixo, da
perspectiva dos excluídos, [...] dos maltratados, dos destituídos de poder, dos
oprimidos e dos escarnecidos, em suma, dos sofredores.”
743
No contexto amplo da crítica moderna da religião, as críticas teológicas de
Barth e Bonhoeffer parecem fazer uso de algumas noções da crítica moderna em
geral. Mas isso não significa que eles se enquadram completamente ao pensamento
moderno, pois, em certo sentido, eles também questionam a sua lógica. Barth utiliza
a crítica moderna ao falar da religião como projeção dos ideais e das necessidades
humanas, interpretando-a teologicamente como idolatria. No entanto, ele se opõe ao
otimismo do ideal moderno de progresso, ressaltando a corrupção humana. Ademais,
Barth combate o paradigma iluminista moderno que coloca a racionalidade como
base do conhecimento, afirmando que o sujeito humano não é o ponto de partida do
conhecimento sobre Deus. Por sua vez, Bonhoeffer parece utilizar a crítica moderna
ao enfatizar a noção de autonomia humana no mundo adulto. Embora sua ênfase não
signifique necessariamente um otimismo em relação ao progresso moral, é possível
notar um forte otimismo em relação ao desenvolvimento técnico e científico, através
do qual o ser humano aprendeu a dar conta de si mesmo e tem plenas condições de
resolver as questões-limite da vida (morte, sofrimento, culpa). Contudo, Bonhoeffer
supera a lógica moderna na sua crítica ao pensamento metafísico e a abstração, ao
individualismo e interioridade, e à parcialidade, em detrimento da totalidade da vida.
Evidentemente, as abordagens barthiana e bonhoefferiana incluem aspectos
que representam interessantes contribuições. A crítica de Barth aponta para a
importância do reconhecimento da crise e corrupção da humanidade, ressaltando os
limites do conhecimento e da atividade humana. Nesse sentido, destaca-se sua
perspectiva da fé enquanto humildade e esvaziamento de qualquer presunção ou
arrogância. De outro modo, a crítica de Bonhoeffer salienta a importância do
engajamento na totalidade da vida concreta, procurando eliminar todo o tro de
abstração, individualismo, subjetivismo e parcialidade. Nesse contexto, sua visão da
fé é notável: ação concreta em prol da vida, responsabilidade pelos outros.
743
D. Bonhoeffer, Resisncia e Submissão, op. cit., p. 43.
174
Entretanto, a comparação entre os dois teólogos parece revelar algumas
limitões em suas respectivas abordagens. À luz da crítica bonhoefferiana, a
abordagem de Barth pode ser considerada um tanto abstrata, pois apresenta uma
postura relativamente passiva das pessoas, ao invés de motivar algum tipo de ação.
Associado a isso, suas considerões parecem se alinhar a uma perspectiva
individualista, que não contempla o relacionamento com os outros. Ademais, a
afirmação da realidade atual do reino de Deus apenas como analogia ou parábola
nega a presença e atuação da graça divina no mundo, e acaba retratando um reino
metafísico. Isso indica uma certa ausência de orientação concreta no que diz respeito
à atitude das pessoas em relação ao mundo enquanto realidade presente.
Por outro lado, à luz da crítica barthiana, a abordagem de Bonhoeffer parece
incorrer em certas simplificões. As definições de transcendência divina, fé,
relacionamento com Deus, e igreja se resumem no existir para os outros. Embora
seja necessário reconhecer a importância do existir para os outros, resumir todos os
conceitos bíblicos a essa noção representa um certo reducionismo do Cristianismo à
ética. Embora Bonhoeffer afirme a disciplina arcana como corretivo para o
reducionismo, sua busca em tornar os conceitos cristãos concretos tende a eliminar
os mistérios da fé. Além disso, o fato de Bonhoeffer defender a perspectiva de
baixo não deveria levá-lo à percepção da seriedade das questões-limite (morte,
sofrimento), ao invés de entendê-las como quase que resolvidas pelo mundo adulto?
Nesse sentido, por que o vigoroso mundo adulto precisaria de um Deus fraco e
sofredor? Evidentemente, a idéia bonhoefferiana de levar o discurso sobre Deus dos
limites para o centro da vida é bastante interessante, mas parece que, para isso, ele
acaba desprezando as questões-limite da existência humana.
Considerando que o presente estudo representou apenas uma tentativa de
comparação das abordagens barhtiana e bonhoefferiana por meio de um trabalho
basicamente descritivo, tais considerões acerca de suas possibilidades e limitões
constituem apenas intuições preliminares e incipientes, que necessitariam ser
ampliadas por estudos posteriores que contemplem uma análise detida da estrutura e
das implicações dessas abordagens.
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