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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
CÂMPUS DE MARÍLIA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS
FABIANA RODRIGUES CRUVINEL
A LEITURA COMO PRÁTICA CULTURAL E O PROCESSO DE
ESCOLARIZAÇÃO: AS VOZES DAS CRIANÇAS
MARÍLIA-SP
2010
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FABIANA RODRIGUES CRUVINEL
A LEITURA COMO PRÁTICA CULTURAL E O PROCESSO DE
ESCOLARIZAÇÃO: AS VOZES DAS CRIANÇAS
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências
da Universidade Estadual Paulista-UNESP-
Câmpus de Marília, na Área de concentração:
Ensino na Educação Brasileira - Abordagens
Pedagógicas do Ensino de Linguagens, para
obtenção do grau de doutor em Educação.
Orientador: Dr. Dagoberto Buim Arena.
Marília-SP
2010
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Ficha catalográfica elaborada pelo
Serviço Técnico de Biblioteca e Documentação – UNESP – Campus de Marília
Cruvinel, Fabiana Rodrigues.
C887l A leitura como prática cultural e o processo de
escolarização: as vozes das crianças / Fabiana Rodrigues
Cruvinel. – Marília, 2010.
206 f. ; 30 cm.
Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Filosofia
e Ciências, Universidade Estadual Paulista, 2010.
Bibliografia: f. 192-197.
Orientador: Dr. Dagoberto Buim Arena.
1. Leitura. 2. Processo de escolarização. 3. Educação
infantil. I. Autor. II. Título.
CDD 372.41
FABIANA RODRIGUES CRUVINEL
A LEITURA COMO PRÁTICA CULTURAL E O PROCESSO DE
ESCOLARIZAÇÃO: AS VOZES DAS CRIANÇAS
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Faculdade de
Filosofia e Ciências da Universidade
Estadual Paulista-UNESP-Câmpus de
Marília, na Área de concentração: Ensino na
Educação Brasileira - Abordagens
Pedagógicas do Ensino de Linguagens, para
obtenção do grau de doutor em Educação.
Marília, 10 de fevereiro de 2010.
Banca Examinadora
______________________________________________________________
Dr. Dagoberto Buim Arena – UNESP/Marília
______________________________________________________________
Dra. Lazara Nanci de Barros Amâncio – UFMT/Rondonópolis
_______________________________________________________________
Dra. Norma Sandra de Almeida Ferreira - UNICAMP
______________________________________________________________
Dra. Cyntia Graziella Guizelim Simões Girotto – UNESP/Marília
_______________________________________________________________
Dra. Stela Miller – UNESP/Marilia
Suplentes:
Dra. Ana Lucia Guedes Pinto - UNICAMP
Dra. Renata Junqueira de Souza – UNESP/P. Prudente
Dra. Raquel Lazzari Leite Barbosa – UNESP/Assis
.
Ao meu amor, meu marido Márcio
Aos meus pais, Lia e Carlos
A meu mestre, Dagoberto
AGRADECIMENTOS
Às professoras Dra. Lázara Nanci de Barros Amâncio e Dra. Cyntia Graziella Guizelim
Simões Girotto, pelas valiosas contribuições a este trabalho.
Às professoras Dra. Stela Miller e Dra. Norma Sandra de Almeida Ferreira pela
disponibilidade em ler este estudo, participando de sua construção.
À professora Yolanda Matsuda, pela leitura cuidadosa deste trabalho.
À Secretaria Municipal da Educação de Marília, pelo apoio e colaboração durante o
desenvolvimento da investigação.
À professora Rosani Puia de Souza Pereira e ao professor Joaquim Bento Feijão, pelo apoio
e palavras de incentivo durante esta caminhada.
À direção, coordenação e professores da unidade escolar campo de pesquisa, por terem
tornado possível a realização desta pesquisa.
Aos pais das crianças que participaram deste estudo, permitindo sua realização.
Às crianças sujeitos da pesquisa, pelas valiosas informações prestadas, tornando possível a
concretização da tese aqui apresentada.
À direção, coordenação geral e coordenação do curso de Pedagogia da Unidade Acadêmica
de Garanhuns- UFRPE por todo o apoio e incentivo na etapa final da tese.
À Carla, minha irmãzinha, pelo imprescindível auxílio técnico.
Aos amigos e amigas da UAG/UFRPE Edilma Pereira Gonçalves, Luciana Maia Nogueira
de Oliveira, Jorge Eduardo Cavalcante Lucena, Maria Jaqueline Paes de Carvalho, Maria
José Gomes, Kátia Araújo, Norma Vasconcellos, Sônia Virginia Martins Pereira, José
Romualdo de Souza Lima, Victor Pereira de Oliveira, Érica Valente de Medeiros e Horasa
Andrade, por todo o apoio, colaboração e atenção.
RESUMO
A pesquisa apresentada nesta tese teve como objeto de estudo as relações entre o processo
de escolarização e o processo de apropriação da leitura sob a perspectiva das crianças em
início da vida escolar. O objetivo foi o de investigar o caminho que as crianças percorrem
com a leitura desde seu último ano na educação infantil, momento em que se inicia de forma
sistematizada o ensino da leitura na escola, a meados do primeiro ano do ensino
fundamental para compreender, de forma mais aprofundada, o papel que a escola exerce na
apropriação dessa atividade pelos sujeitos aprendizes. Ao estudar a maneira como um grupo
particular de crianças se relaciona com o ler na escola, buscou-se contribuir para um
repensar de políticas e práticas educacionais mais favoráveis à promoção da leitura. A
pesquisa foi norteada pelos estudos de Vigotski (1993, 1995, 1996) e de Bakhtin (1995,
2003), além de apoiar-se em estudos e pesquisas antigas e recentes acerca do ensino do ler
na escola. O trabalho de investigação correspondeu a um estudo longitudinal, fundamentado
numa abordagem qualitativa, fazendo-se uso da estratégia metodológica do estudo de caso
etnográfico. A pesquisa de campo foi realizada em uma escola municipal de educação
infantil e ensino fundamental (séries iniciais) no município de Marília-SP. Participaram
como sujeitos da pesquisa 19 crianças com idade entre 5 e 6 anos. Como instrumento para
geração de dados, fez-se uso de sessões de observação e entrevistas semiestruturadas,
análise documental e grupo focal. Os resultados da investigação apontaram que, para as
crianças no início do processo de escolarização, a leitura é uma atividade cultural, e que, em
virtude de a instituição de ensino ignorar essa informação, o processo de formação de
leitores permanece como um problema nacional, especialmente por afastar as crianças do ler
como objeto de cultura.
Palavras-chave: Leitura. Processo de escolarização. Educação infantil. Ensino fundamental.
Prática cultural.
ABSTRACT
The research presented in this thesis had as an object of study the relationships between the
process of schooling and the process of reading appropriation from the perspective of the
children at the beginning of their school life. The objective was to investigate the way
children have taken with the reading since their last year in early childhood education,
period when the teaching of reading is begun in a systematized way at school, until the
middle of the first year of elementary school in order to understand, in a deeply way, the
role that the school has in the appropriation of this activity by the learners. Studying the
manner a particular group of children relate themselves to reading at school, it was tried to
contribute to a rethink of more favorable rethink of educational policies and practices to the
promotion of reading. The research was guided by Vigotski´s (1993, 1995, 1996) and
Bakhtin´s (1995, 2003) studies, besides using ancient and recent studies and researches
about the teaching of reading at school. The investigation work corresponded to a
longitudinal study, based on a qualitative approach using the methodological strategic of
ethnographic case study. The field research was realized in a municipal school of early
childhood and elementary education (initial grades) in the city of Marília, state of São Paulo.
The participants were 19 children, aged between 5 and 6 years old. The instruments used to
obtain data were sessions of observation and semi-structured interviews, documental
analysis and focal group. The results of the investigation showed that the reading is a
cultural activity for children at the beginning of the process of schooling, and, due to the fact
the teaching institution ignore this information, the process of formation of readers remains
like a national problem, especially for distancing children from reading as an object of
culture.
Key words: Reading. Process of schooling. Early childhood education. Elementary school.
Cultural practice.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Registro da proposta didática de leitura a partir do poema “As borboletas”-
Vinícius de Moraes. ............................................................................................................... 111
Figura 2 - Textos de natureza didática 1................................................................................ 114
Figura 3 - Texto de natureza didática: estudo da relação grafema-fonema ............................. 119
Figura 4 - Texto utilizado no trabalho metodológico com a leitura ........................................ 122
Figura 5 - Trava-língua selecionado para proposta didática de leitura.................................... 129
Figura 6 - Proposta didática a partir do poema “Tanta Tinta”- Cecília Meireles..................... 131
Figura 7 - Textos de natureza didática 2 ............................................................................... 132
Figura 8 - Registro da sequência metodológica adotada no ensino da leitura ......................... 152
Figura 9 - Registro da sequência metodológica adotada no ensino da leitura ......................... 153
Figura 10 - A metodologia no trabalho com textos/ Caderno de A-18-06/03/2008.......................... 157
Figura 11 - Situação de leitura a partir de palavras/ Caderno de A-6...................................... 158
Figura 12 - Palavras escritas por A-15 em 09/06/2008........................................................... 165
Figura 13 - Palavras escritas por A-15 em 16/06/2008........................................................... 165
Figura 14 - Registro da aula do dia 25/04/2008- Caderno de A-17 ............................................... 166
Figura 15 - A tarefa automatizada a partir das sílabas- Caderno de A-17- 10/06/2008 ........... 170
Figura 16 - Nomes de animais com cada letra do alfabeto/ Caderno de A-6- 26/03/2008. ..... 172
Figura 17 - Proposta didática a partir de história em quadrinhos/Caderno de A-15 ................ 174
Figura 18 - Proposta didática a partir de história em quadrinhos/ Caderno de A-1 ................. 175
Figura 19 - Proposta didática a partir do livro de Língua Portuguesa/ Material de A-15......... 180
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1 - Quantitativo de propostas didáticas por eixo desenvolvidas no ano de 2007 ........ 106
Gráfico 2 - Propostas didáticas para o ensino da leitura realizadas no ano de 2007 ................ 125
Gráfico 3 - Gêneros do discurso utilizados nas propostas de leitura/2007 .............................. 127
Gráfico 4 - Situações de ensino da linguagem escrita/ Fevereiro a junho de 2008.................. 154
Gráfico 5 - Gêneros do discurso utilizados na propostas de leitura/2008................................ 173
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 - Grau de escolaridade dos pais. .............................................................................. 29
Quadro 2 - Identificação dos sujeitos participantes da pesquisa em 2007 ................................32
Quadro 3 - Identificação dos sujeitos participantes da pesquisa em 2008 ................................34
Quadro 4 - Caracterização dos encontros com o grupo focal ................................................... 47
Quadro 5 - Questões dirigidas às crianças durante as sessões com o grupo focal ..................... 47
Quadro 6 - Categorias temáticas formadas para análise e discussão dos resultados da
pesquisa................................................................................................................................. 100
Quadro 7 - Conteúdos referentes ao ensino da leitura para turmas do último ano da
educação infantil ................................................................................................................... 103
Quadro 8 - Distribuição das respostas explicitadas pelas crianças em relação às propostas
de leitura na sala de aula ........................................................................................................ 124
Quadro 9 - Distribuição das respostas explicitadas pelas crianças em relação a quem estava
lhes ensinando a ler................................................................................................................ 135
Quadro 10 - Distribuição das respostas explicitadas pelas crianças em relação ao papel do
professor como mediador no ensino da leitura........................................................................ 135
Quadro 11 - Distribuição das respostas explicitadas pelas crianças em relação à forma com
que estavam aprendendo a ler................................................................................................. 136
Quadro 12 - Quadro comparativo entre o ponto de vista da escola e das crianças acerca do
aprendizado da leitura ............................................................................................................ 138
Quadro 13 - Distribuição das respostas explicitadas pelas crianças em relação à pergunta o
que é ler................................................................................................................................. 140
Quadro 14 - Conteúdos previstos para o ensino da leitura na primeira série- E.F................... 145
Quadro 15 - As concepções das crianças em relação ao aprender a ler .................................. 181
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ....................................................................................................................14
PRIMEIRA PARTE - PRESSUPOSTOS TEÓRICOS-METODOLÓGICOS DA
PESQUISA: SUBSÍDIOS PARA O ESTUDO DA RELAÇÃO ENTRE A LEITURA E
O PROCESSO DE ESCOLARIZAÇÃO ...........................................................................20
1 Abordagem metodológica e procedimentos de investigação ............................................22
1.1 O caminho até as crianças: a primeira fase na prática do estudo de caso etnográfico.......... 24
1.1.1 A unidade escolar campo de pesquisa ............................................................................ 27
1.1.2 Os sujeitos da pesquisa .................................................................................................. 31
1.1.3 A entrada no campo de pesquisa e o papel do pesquisador..............................................35
1.2 Os instrumentos utilizados para a geração de dados: a segunda fase da pesquisa................ 39
1.2.1 Observação semiestruturada ...........................................................................................40
1.2.2 Entrevistas semiestruturadas........................................................................................... 42
1.2.3 Análise documental........................................................................................................44
1.2.4 Grupo focal .................................................................................................................... 45
1.3 Análise sistemática dos dados: terceira fase do estudo de caso etnográfico ........................48
2 Ensinar a ler na escola: a leitura como prática cultural ..................................................51
2.1 A leitura e o processo de escolarização sob a perspectiva de Vigotski ..............................51
2.2 Aspectos da teoria bakhtiniana para a questão da formação do leitor na escola .................62
2.2.1 Os gêneros do discurso: instrumentos de comunicação e de ensino do ato de ler na
Escola ...... ............................................................................................................................. 69
3 O ensino da leitura e suas marcas na história ..................................................................74
3.1 A leitura e os métodos de ensino ...................................................................................... 75
3.2 A leitura no final do século XX: a crítica aos métodos ...................................................... 83
3.3 A leitura no início do século XXI: as disputas continuam ................................................. 89
3.4 Para virar a página do ensino da leitura na escola ............................................................. 94
SEGUNDA PARTE - RESULTADOS DA INVESTIGAÇÃO: A LEITURA NO INÍCIO
DO PROCESSO DE ESCOLARIZAÇÃO ..........................................................................100
4 A leitura na educação infantil: a busca do sentido ..........................................................101
4.1 A proposta pedagógica da unidade escolar e a metodologia de ensino .............................. 101
4.1.2 A concretização da proposta pedagógica na sala de aula ................................................ 106
4.2 As propostas didáticas e as manifestações das crianças ..................................................... 117
4.3 O mediador: aprendizagem da leitura ............................................................................... 134
4.4 Conceito de leitura: as relações com o ler como prática cultural .......................................140
5 A leitura no ensino fundamental: aprender a ler para ler ...............................................144
5.1 A proposta pedagógica da unidade escolar e a metodologia de ensino .............................. 145
5.1.2 A concretização da proposta pedagógica na sala de aula ................................................ 148
5.2 As propostas didáticas e as manifestações das crianças ..................................................... 163
5.3 O mediador: aprendizagem da leitura ............................................................................... 181
5.4 Conceito de leitura: as relações com o ler como prática cultural .......................................184
CONCLUSÃO ......................................................................................................................187
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................192
APÊNDICES ........................................................................................................................ 198
14
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa nasceu de uma constante inquietação em relação ao ensino da leitura e à
sua apropriação pelas crianças na instituição escolar. A princípio como professora da quarta
série do primeiro ciclo do ensino fundamental
1
, angustiava-me diante da experiência que os
alunos tinham com a leitura, algo marcado pela obrigatoriedade das tarefas escolares.
Inquietava-me o fato de a grande maioria chegar a esta etapa da escolarização sem se
constituir como leitores. Dessa experiência resultou a primeira vivência como pesquisadora
2
,
quando, atuando com professores, constatei que um dos fatores que geravam obstáculos à
formação do leitor na escola correspondia à falta de conhecimento sobre conceitos teóricos
que fundamentam o ensino da leitura, uma vez que os professores se mostram mais centrados
na busca de sugestões de atividades, de práticas e não de aprofundamento teórico.
Partindo dessa constatação, desenvolvi minha segunda experiência como
pesquisadora
3
. Realizei um trabalho de pesquisa-ação numa escola pública municipal junto a
dezesseis professores durante um ano letivo, tendo como objetivo operacionalizar uma
discussão teórica sobre leitura para constatar se esse estudo provocaria indícios de mudanças
na prática de sala de aula. Como resultado, foi possível perceber que o conhecimento teórico
que o professor possui acerca do processo de apropriação da leitura permite um repensar da
prática, provocando mudanças na forma de trabalhar a leitura dos alunos e favorecendo a
formação do leitor na escola.
A conclusão dessa última pesquisa trouxe um dado relevante acerca das relações entre
professor e aluno no que se refere à aprendizagem da leitura. Revelou que os professores têm
dificuldades em ouvir o que as criaas têm a dizer sobre o seu próprio processo de
aprendizagem. Apontou indícios de que o fato de o professor começar a ouvir os alunos sobre
o trabalho que realizam na escola, sobre o que pensam das propostas de leitura e sobre o ato
de ler contribui para uma prática mais efetiva de formação de leitores, pois aproxima
conceitos e concepções do educador e do educando. As falas das crianças acerca das situações
de leitura que vivenciam na escola surpreenderam os professores que participaram do
processo de pesquisa-ação, uma vez que revelaram como sua forma de trabalho com a leitura
1
Atualmente denominado quinto ano do ensino fundamental.
2
RODRIGUES, F. A concepção de leitura entre professores: implicações no trabalho em sala de aula. 2002. 73f.
Trabalho de Conclusão de Curso. (Graduação em Pedagogia)- Faculdade de Filosofia e Ciências, UNESP,
Marília. 2002.
3
RODRIGUES, F. Processo de apropriação da leitura: implicações para a sala de aula. 2006. 222 f.
Dissertação. (Mestrado em Educação) - Faculdade de Filosofia e Ciências, UNESP, Marília. 2006.
15
influi na atitude de seus alunos frente a essa atividade. O resultado da pesquisa permitiu
perceber que não mudanças nas atitudes dos alunos se não houver mudanças nas
concepções e práticas de seus professores. Diante da constatação desses dois dados, a
importância de ouvir as crianças e a relação entre atitudes dos alunos e prática dos
professores, surge a motivação para desenvolver um novo trabalho de pesquisa, agora sob o
olhar dos aprendizes. Tendo estudado a priori a concepção de leitura entre professores e,
posteriormente, a importância do conhecimento teórico acerca do processo de apropriação da
leitura por esses profissionais, julgo ser agora relevante pesquisar e aprofundar estudos sobre
a relação que os pequenos constroem com o ler no início da escolaridade. Acredito que essas
três pesquisas possam contribuir para um panorama da situação atual de ensino da leitura na
escola.
Investigar o caminho que as crianças percorrem com a leitura desde o princípio até
meados de sua escolarização permitirá compreender, de forma mais aprofundada, o papel que
a escola exerce na apropriação dessa atividade pelas crianças. À medida que avança a
escolarização, como os alunos se relacionam com o ler? uma linearidade na formação de
leitores? sobressaltos? Os interesses aumentam, diminuem, ou apenas se modificam? O
que elas têm a dizer sobre esse caminho, quais são suas impressões, atitudes, interesses?
Uma recente pesquisa sobre letramento no Brasil revelou que escolarização e prática
de leitura estão estreitamente relacionadas, evidenciando a relevância do estudo aqui
proposto, pois segundo essa investigação,
A escola, pelo menos nas últimas décadas e para grande parte da populão
brasileira, tem-se constituído na principal via de acesso à leitura e à escrita-
embora essa afirmação não seja válida para as gerações mais velhas [...]
Coloca-se, portanto, como fundamental, a discussão sobre as práticas de
leitura e da escrita, em seus contextos de uso, no cotidiano da escola,
tornando a relação com o mundo escrito, principalmente para as crianças que
provêm de famílias improváveis, marcada por uma naturalidade, intimidade
e prazer. (GALVÃO, 2004, p.150).
Nesse sentido, cabe investigar como os alunos no processo de escolarização lidam
com as práticas de leitura, o que possibilita ou impede que se tornem leitores, que a escola
desempenha papel central nesse processo.
Segundo Soares (2004, p. 90),
[...] As discussões que vêm sendo desenvolvidas, nas últimas décadas, tanto
no campo da educação quanto na área da mídia, sobre problemas de
letramento da população brasileira ainda pouco avançaram na análise das
16
relações entre esses problemas e o processo de escolarização, isto é, entre o
papel da escola no desenvolvimento de habilidades de uso social da leitura e
da escrita e as competências, ou as incompetências, demonstradas por
crianças, jovens e adultos em situações de participação em práticas sociais
que envolvam a língua escrita.
Concordando com a Autora
4
, a análise das relações entre o processo de escolarização e
o de domínio das práticas sociais de leitura ainda constitui-se um campo de pesquisa pouco
explorado. Daí a relevância desta pesquisa. Acredito que um estudo cuidadoso das relações
que se estabelecem entre crianças e leitura na escola permitirá compreender de forma mais
aprofundada como essa instituição interfere no processo de formação de leitores, contribuindo
para um repensar de políticas educacionais mais favoráveis para a promoção da leitura,
necessárias para procurar entender a lacuna existente entre escolarização e formação do leitor,
entre o ler escolar e o ler como prática cultural.
Diante do exposto, a pesquisa tem como objetivo investigar as relações entre o
processo de escolarização e a apropriação da leitura pelas crianças, identificando a influência
da instituição escolar na formação de leitores. Busquei construir um referencial sobre como
ocorre a apropriação da leitura no início da escolaridade sob o olhar dos sujeitos aprendizes.
Nesse sentido, a pesquisa apresentada nesta tese procura respostas para as seguintes questões:
Como as crianças no início do processo de escolarização lidam com as práticas de leitura?
Que elaborações constroem sobre o ato de ler? uma linearidade em metodologias para o
ensino dessa atividade, ou seja, coerência e processo de continuidade entre as formas de
ensino na educação infantil e no ensino fundamental? Quais relações as crianças estabelecem
entre o ler na escola e o ler como prática cultural no curso de seu último ano na educação
infantil até meados do primeiro ano do ensino fundamental? Ao encontrar respostas para estas
questões julgo ser possível um maior conhecimento acerca dos encontros e desencontros entre
os processos de escolarização e formação do leitor, de forma a colaborar para que a escola
possa encontrar caminhos para formar crianças leitoras, capazes de fazer uso do ler nas
diversas situações sociais.
Para concretização desse estudo, optei por realizar a pesquisa a partir da abordagem
qualitativa fazendo uso da estratégia metodológica de estudo de caso etnográfico numa
perspectiva longitudinal, uma vez que esta é uma forma de pesquisa que possibilita fornecer
uma visão profunda e ao mesmo tempo ampla de uma unidade social complexa, composta de
múltiplas variáveis. O estudo de caso etnográfico (ANDRÉ, 2005) foi selecionado por ser
4
O uso da maiúscula está sendo utilizado de forma intencional com o objetivo de destacar o autor.
17
uma estratégia metodológica com três características principais: capacidade de retratar
situações da vida real, sem prejuízo de sua complexidade e de sua dinâmica natural;
capacidade heurística por jogar luz sobre o fenômeno estudado; e potencial de contribuição
aos problemas da prática educacional.
Sendo o objeto de pesquisa o estudo acerca da relação entre o processo de apropriação
da leitura e o processo de escolarização, o campo selecionado foi uma instituição pública de
ensino, especificamente uma escola municipal de educação infantil e ensino fundamental. O
foco da pesquisa, o caso, correspondeu a uma turma do último ano da educação infantil em
2007, com dezenove crianças com idade entre 5 e 6 anos. Pretendi realizar um estudo de caso
tendo como sujeitos da pesquisa crianças de uma mesma turma para que fossem obtidos dados
fidedignos acerca da problemática em questão. Entretanto, no ano de 2008 apenas cinco das
dezenove crianças permaneceram frequentando a mesma escola, no mesmo horário de aula,
assim o estudo etnográfico contou no primeiro ano da investigação com 19 sujeitos e no
segundo ano com apenas cinco. A pesquisa de campo compreendeu um período de dezoito
meses, iniciando-se em fevereiro de 2007, com término em julho de 2008.
Em coerência com a estratégia metodológica selecionada, a pesquisa buscou
contemplar as três fases do estudo de caso: fase exploratória, fase de geração de dados e fase
de análise sistemática dos dados. Na fase exploratória foram realizados os contatos iniciais
com a instituição e os participantes da pesquisa, confirmando e estabelecendo os
procedimentos e instrumentos para a geração de dados. Fez-se uso de observação e entrevistas
semiestruturadas, análise documental e formação de um grupo focal no segundo ano da
investigação. A observação em período condensado e periódico foi um importante
instrumento para a compreensão do objeto de pesquisa. As entrevistas com os 19 alunos da
turma permitiram ampliar essa compreensão e, por fim, a análise de documentos como projeto
educativo da escola, cadernos dos alunos e os dados gerados pelo grupo focal permitiram a
triangulação dos dados coletados acerca do estudo proposto.
A fase de geração de dados e de análise ocorreu de forma concomitante,
principalmente para redimensionar os instrumentos selecionados para o trabalho em campo.
Entretanto, a análise sistemática iniciou-se após o encerramento da fase de geração dos dados,
pois como afirmam Walsh e Graue (2003), “embora a interpretação seja contínua, ela não se
torna numa atividade primária até o registro de dados estar construído”. Os dados foram
organizados em categorias de análise, norteadas por unidades significativas resultantes dos
diversos instrumentos. Para determinar as categorias, foram utilizados como fundamentação
teórica Bardin (1979) e Franco (2005). A análise dos dados coletados na pesquisa é orientada
18
pela técnica de organização de categorias, em decorrência da natureza da investigação, sem,
entretanto, lançar mão dos princípios teóricos da concepção de linguagem que fundamenta a
análise de conteúdo.
Ter compartilhado com as crianças suas experiências com a leitura durante parte de
sua vida escolar não foi uma tarefa fácil; implicou a superação de obstáculos e constantes
negociações, uma vez que no decorrer do trabalho de campo eu exercia a função de
coordenadora pedagógica do ensino fundamental da rede municipal de Marília. Assim, a cada
entrada em campo era preciso delimitar meu papel como pesquisadora, algo que em dezoito
meses tentei, embora em vão, pois quando não era a coordenadora da secretaria municipal da
educação, era apenas a estagiária, uma experiência interessante que descrevo com mais
precisão na primeira parte do estudo e que possibilitou atender ao objeto e objetivo da
pesquisa, resultando em descobertas e novas inquietações.
Para apresentar os resultados dessa investigação, organizei este trabalho em duas
partes. Na primeira parte trago os pressupostos teórico-metodológicos que nortearam a
pesquisa. No primeiro capítulo consta toda a trajetória metodológica da investigação: o
caminho percorrido até a seleção do caso a ser estudado, a caracterização do campo de
pesquisa e dos sujeitos, a seleção e a organização dos instrumentos para geração de dados e os
critérios de análise. O objetivo desse capítulo é apresentar e fundamentar a abordagem
metodológica e os procedimentos de investigação utilizados para a produção da pesquisa.
O segundo capítulo destina-se a apresentar o aporte teórico que direcionou o processo
de investigação, e discutir o ponto de vista adotado neste trabalho em relação ao conceito do
ato de ler. Assumindo o ler como objeto de cultura, trago a contribuição dos estudos de
Vigotski
5
e da teoria da enunciação de Bakhtin para o ensino dessa atividade na escola, com o
objetivo de evidenciar em seus trabalhos as relações entre o processo de escolarização e a
formação do leitor. Para encerrar a discussão acerca dos pressupostos teóricos da tese,
apresento no terceiro capítulo uma breve contextualização histórica do ensino da leitura, de
forma a situar marcas da história em relação ao ensino do ler no cenário atual e a partir daí,
agregar ao diálogo, estudos e pesquisas recentes sobre formação do leitor na instituição
escolar.
Expostos os subsídios metodológicos e teóricos para o estudo da relação entre a leitura
e o processo de escolarização, na segunda parte do trabalho apresento, analiso e discuto os
resultados da investigação a partir da organização de dois capítulos. O capítulo 4 refere-se à
5
O nome desse autor aparece grafado de diferentes maneiras, neste trabalho opto pela grafia Vigotski,
preservando as grafias apresentadas nos originais utilizados em citações e referências.
19
trajetória que as dezenove crianças percorrem com a leitura no curso do último ano da
educação infantil. São discutidas a proposta de ensino da escola, a metodologia utilizada em
aula, a atitude e as manifestações das crianças em relação às propostas para ensiná-las a ler e,
finalmente, quem são seus principais mediadores e suas elaborações acerca do processo de
apropriação dessa atividade. O quinto capítulo destina-se ao mesmo objetivo, porém apenas
em relação a cinco crianças, de forma a apresentar como esses leitores aprendizes
continuaram a lidar com a leitura na escola, verificando se seus interesses, atitudes,
manifestações e elaborações em relação ao ato de ler foram modificados com sua entrada no
ensino fundamental.
Ao finalizar a apresentação, a análise e a discussão dos dados resultantes da pesquisa,
teço a conclusão deste trabalho com o intuito de responder às questões norteadoras da
investigação e assim apontar alguns caminhos, bem como novas inquietações acerca do
desafio de ensinar a ler na escola neste início de século, de estabelecer relações entre processo
de escolarização e processo de formação de leitores.
20
PRIMEIRA PARTE - PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS DA
PESQUISA: SUBSÍDIOS PARA O ESTUDO DA RELAÇÃO ENTRE A LEITURA E O
PROCESSO DE ESCOLARIZAÇÃO
Investigar as relações entre o processo de escolarização e o processo de apropriação da
leitura, objeto de estudo desta pesquisa, não constitui tarefa fácil ao pesquisador, dada a
natureza e a complexidade desses dois processos. Entretanto, como apontam pesquisas
recentes como a de Soares (2004), “é necessário nos dedicarmos a compreender melhor o
papel da escola no desenvolvimento de habilidades de uso social da leitura...” (2004, p. 90),
afinal esta é, por excelência, a instituição responsável por propiciar a apropriação do saber,
historicamente acumulado pela humanidade, com o objetivo de promover a elevação cultural
dos indivíduos. Isso implica que a ela cabe a tarefa de formar leitores competentes não apenas
no interior da sala de aula, mas leitores que, ao se apropriarem da leitura como objeto cultural,
sejam capazes de utilizá-la em toda situação social. Se esta tarefa não vem sendo a realidade
de grande parte das escolas em nosso país, como apontam dados de diversos estudos
6
, então, é
necessário que pesquisas sejam desenvolvidas para compreender as consequências da
escolarização sobre a apropriação da leitura como prática cultural (SOARES, 2004).
Foi nesse cenário que esta investigação procurou atuar. Com o objetivo de contribuir
para a discussão, mas ciente da complexidade da tarefa, foi preciso delimitar o objeto de
pesquisa e, diante de estudos realizados anteriormente e de minha própria experiência como
professora
7
, optei por focar o objeto de estudo sob a perspectiva das crianças pequenas em
ínicio da vida escolar. Assim, meus sujeitos de pesquisa não foram professores, diretores,
coordenadores pedagógicos ou pais, mas as crianças, pois meu objetivo foi construir um
referencial sobre a apropriação da leitura no início da escolaridade sob o olhar dos sujeitos
aprendizes e dessa forma poder identificar a influência da instituição escolar na formação de
leitores.
Ao definir objetivo e objeto de pesquisa, foi necessário buscar um maior
aprofundamento teórico acerca das questões que perpassam a investigação. Afinal,
concordando com Walsh e Graue (2003, p. 116), “quanto mais se sabe sobre a parte do mundo
que se vai explorar, melhor. Rever a bibliografia existente é fundamental.” Assim, na tarefa
6
O INAF-Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional no Brasil indicou em 2003 que, entre os sujeitos
participantes da pesquisa, 42% que completaram o ensino médio não atingiram o nível 3 de alfabetização, ou
seja, apresentaram domínio limitado das habilidades de leitura.
7
Como explicitei na introdução do trabalho.
21
de revisão bibliográfica, tarefa realizada no decorrer de todo o processo de pesquisa, pois “a
teoria é o contexto em que os investigadores trabalham” (WALSH; GRAUE, 2003, p. 41),
elegi como referenciais teóricos os estudos de Vigotski (1993, 1995, 1996, 1998, 2003, 2006,
2007) e os de Bakhtin (1995, 2003), Goodman (1997), Geraldi (1997) e Britto (1997, 2004),
para compreensão dos processos de apropriação e desenvolvimento da linguagem; os estudos
de Foucambert (1994, 1998, 2008), Smith (1989, 1999), Charmeaux (1997), Chartier (2001,
2003), Rockwell (2001), Bajard (1999, 2002, 2006, 2007), Arena (1996, 2003, 2006, 2009) e
Lerner (2002) acerca do ensino e aprendizagem da leitura, e por fim os estudos mais recentes
sobre processos de letramento e escolarização de Amâncio (2002), Cardoso (2002), Gontijo
(2003) e Soares (2004). Esses interlocutores e as crianças, sujeitos desta pesquisa, permitirão
que esta investigação contribua um pouco mais para o avanço das discussões entre processo
de escolarização e formação do leitor, apontando caminhos para que a escola possa, de fato,
propiciar, aos sujeitos aprendizes, a apropriação da leitura como objeto cultural. Por esta
razão, no primeiro capítulo da tese busco apresentar o caminho metodológico percorrido até
chegar às crianças, principais informantes e sujeitos dessa pesquisa, e como conduzi o
processo de investigação tendo em vista o objeto e os objetivos expostos. Na sequência,
apresento o diálogo tecido com a teoria de Vigotski e com a de Bakhtin em relação às
questões do ensino da leitura na instituição escolar e, por fim, no terceiro capítulo, agrego a
esse diálogo os aspectos históricos do ler na escola e os estudos recentes na área.
22
1 Abordagem metodológica e procedimentos de investigação
Ao optar pelo estudo da apropriação da leitura pelas crianças no início de sua
escolaridade, foi preciso considerar a necessidade de realizá-lo à medida que este fenômeno
se desenvolve, ou seja, nas condições reais em que ocorre, pois, de acordo com os
pressupostos da teoria histórico-cultural, os processos psíquicos de ordem superior podem
ser estudados no seu desenvolvimento histórico. Dessa forma, esta investigação buscou
estudar a relação entre leitura e processo de escolarização em contexto, ou seja, prestando
atenção às particularidades concretas da vida das crianças na escola em relação à leitura e
registrando essas particularidades de maneira pormenorizada (WALSH; GRAUE, 2003).
A investigação foi norteada pela abordagem qualitativa ou, de acordo com Walsh e
Graue (2003), pela abordagem interpretativa
8
, uma vez que, segundo os Autores, esta deve ser
utilizada se o objetivo da investigação for “compreender o significado que as crianças
constroem nas suas ações situadas de todos os dias, isto é, ações situadas num contexto
cultural [...]” (WALSH; GRAUE, 2003, p. 59). Assim, atendendo aos princípios dessa
abordagem, a pesquisa teve o ambiente natural como fonte direta de dados, as crianças no
contexto da vida escolar, e o pesquisador como seu principal instrumento, pois segundo
Bodgan e Biklen (1994, p. 11), optar pelo desenvolvimento de uma pesquisa qualitativa é ter
clareza da necessidade do “contato direto e prolongado do pesquisador com o ambiente e a
situação que está sendo investigada”. A pesquisa objetivou ainda a obtenção de dados
descritivos, maior ênfase no processo do que no produto e a preocupação em retratar a
perspectiva dos participantes.
No entanto, uma pesquisa qualitativa ou interpretativa pode assumir várias formas.
Nesta investigação, considerando os objetivos e o objeto de estudo, optei pelo tipo de
pesquisa qualitativa etnográfica fazendo uso da estratégia metodológica do estudo de caso. A
etnografia permite ao pesquisador o mergulho na situação a ser estudada, uma vez que o
trabalho de campo requer um estudo de caráter longitudinal. Desta forma, o trabalho de
campo foi realizado durante um ano e meio, dezoito meses, acompanhando crianças no início
de sua vida escolar. Durante este tempo procurei atender aos princípios do modelo
etnográfico, que requer “uma descrição holística da interação natural de um grupo num
8
Os autores preferem utilizar esse termo ao se referirem à abordagem qualitativa para evitar conotações de não
quantitativa que esta adquiriu nos últimos anos, além de o termo tornar mais evidente que toda a investigação
compreende a interpretação dos dados e a publicação dessas interpretações.
23
período de tempo, que representa fielmente as visões e significados dos participantes.”
(GOETZ; LECOMPTE, 1988). Como afirma André (2005), a principal preocupação do
pesquisador que opta pela etnografia é com o significado que os grupos em estudo atribuem às
ações, aos eventos e à realidade que os cercam. Em síntese, esta pesquisa atendendo aos
critérios de uma pesquisa etnográfica, como acentua Maia (2007, p. 85), apresenta as
seguintes características:
-O principal instrumento na coleta de dados e na análise dos mesmos é o
pesquisador, assim, é possível estar em constante revisão de técnicas de
coleta, de metodologia e das questões que orientam a pesquisa;
-A ênfase se no processo e não no produto final; desse modo, é
importante caracterizar o fenômeno observado através de seu
desenvolvimento;
-Preocupação com os significados que as diferentes pessoas envolvidas com
o processo atribuem aos mesmos; por isso, o observador deve apreender e
tentar retratar a visão pessoal dos participantes.
-As explicações não podem ficar restritas ao retrato do que se passa no
cotidiano da escola; devem integrá-las a reconstrução da prática observada,
com a pretensão de captar suas múltiplas dimensões e contradições.
A etnografia foi sem dúvida a opção metodológica que mais se adequou ao objeto de
estudo dessa pesquisa, isto é, o de estudar a maneira como as crianças no início da vida
escolar se relacionam com a leitura. Entretanto, não era possível realizar esse estudo com
todas as crianças de uma determinada escola e foi preciso definir um grupo particular delas.
Optei por uma turma de educação infantil pertencente a uma escola que atende também com o
ensino fundamental, para assegurar a continuidade da turma no ano seguinte. Assim,
direcionei a pesquisa etnográfica ao estudo de um caso, de uma turma em particular, para
aprofundar a compreensão do fenômeno a ser estudado. A estratégia metodológica que
orientou o processo de pesquisa foi, portanto, um estudo em profundidade de um fenômeno
educacional, com ênfase na sua singularidade e levando em conta os princípios e métodos da
etnografia.” (ANDRÉ, 2005, p. 19).
Mazzotti (2006), ao comentar os usos e abusos do estudo de caso em educação, alerta
que este deve ser utilizado como estratégia metodológica quando a pesquisa constitui “uma
investigação de uma unidade específica, situada em seu contexto, selecionada segundo
critérios pré-determinados, e utilizando múltiplas fontes de dados, que se propõe a oferecer
uma visão holística do fenômeno estudado.” (MAZZOTTI, 2006, p.650). André (2005, p. 31)
também alerta os pesquisadores em relação ao uso do estudo de caso etnográfico:
24
O estudo de caso do tipo etnográfico em educação deve ser usado quando:
(1) interesse em conhecer uma instância em particular (2) pretende-se
compreender profundamente essa instância particular em sua complexidade
e totalidade; e (3) busca-se retratar o dinamismo de uma situação numa
forma muito próxima do seu acontecer natural.
Além de a pesquisa atender a esses critérios apontados pelas Autoras, o estudo de caso
foi selecionado por ser uma estratégia metodológica com três características principais:
capacidade de retratar situações da vida real, sem prejuízo de sua complexidade e de sua
dinâmica natural; capacidade heurística por jogar luz sobre o fenômeno estudado; potencial de
contribuição aos problemas da prática educacional. Sobre essa última característica, afirma
André (2005, p 36), “focalizando uma instância em particular e iluminando suas múltiplas
dimensões assim como seu movimento natural, os estudos de caso podem fornecer
informações valiosas para medidas de natureza prática e para decisões políticas”. Nesta
direção, ao estudar o modo como um grupo particular de crianças se relaciona com a leitura
na escola, de forma aprofundada e contextualizada, busquei contribuir para repensar políticas
e práticas educacionais mais favoráveis e eficazes para a aprendizagem da leitura.
Apresentadas as razões metodológicas para utilizar nesta investigação a abordagem
interpretativa de natureza etnográfica e a estratégia metodológica de estudo de caso, descrevo
na sequência o caminho percorrido em cada fase da pesquisa, que fundamentada em André
(2005), correspondeu a três: fase exploratória ou de definição dos focos de estudo, fase de
geração de dados e fase de análise sistemática dos dados, embora no decorrer do estudo de
caso de caráter etnográfico, essas três fases se entrelacem.
1.1 O caminho até as crianças: a primeira fase na prática do estudo de caso etnográfico
A primeira etapa no desenvolvimento da pesquisa que faz uso do estudo de caso
etnográfico é definir mais precisamente o objeto de estudo. Denominada por André (2005) de
fase exploratória, é o momento em que o pesquisador procura adentrar a realidade do
fenômeno a ser estudado para definir a unidade de análise, o caso, para confirmar, ou não, as
questões iniciais por meio dos contatos iniciais para entrada no campo de pesquisa, para
localização dos sujeitos participantes e o estabelecimento dos procedimentos e instrumentos
para geração de dados.
Em coerência com essas orientações, o primeiro passo para o desenvolvimento da
pesquisa foi procurar a direção das unidades escolares públicas que atendiam com as duas
25
modalidades de ensino, educação infantil e ensino fundamental, no mesmo prédio, no
município de Marília-SP, para apresentar o projeto de pesquisa e discutir a viabilidade do
desenvolvimento da investigação em uma das instituições. Essa opção se justificou em razão
de uma tendência dos alunos em permanecerem nessa instituição até a conclusão do ensino
fundamental, fato que garantiria o acompanhamento de uma turma por mais de um ano
escolar, como pretendia a pesquisa.
Em 2007, na rede pública de ensino desse município, havia apenas duas escolas
municipais com esse perfil, a escola A e a escola B. A escola A localiza-se num bairro
formado recentemente, tendo sido inaugurada apenas dois anos, e por isso, segundo a
direção, a maioria das crianças atendidas era de outros bairros e da zona rural do município.
Apenas 20% dos alunos matriculados em 2007 eram da comunidade onde se situava a
escola. Excluí a possibilidade de desenvolver a pesquisa nessa escola, uma vez que a direção
me informou que no ano seguinte muitos alunos conseguiriam vagas em escolas próximas às
suas residências e deixariam a unidade, e minha intenção de acompanhar uma turma durante
quase dois anos ficaria prejudicada. o seria possível desenvolver a pesquisa etnográfica se
no decorrer do estudo de caso a turma fosse desaparecendo com a saída das crianças para
outra instituição. Afinal, esta pesquisa na perpectiva de um estudo longitudinal visa a captar a
sucessão de estados ou mudanças que determinado processo provoca ao longo de um tempo,
ou seja, “o objeto investigado é a progressão do processo, em sua dimensão temporal.”
(SOARES, 1989, p. 111).
Portanto, por essas razões, a pesquisa foi realizada na escola B. Essa instituição também
havia sido inaugurada apenas três anos, porém localiza-se num bairro popular do
município, atendendo apenas crianças da sua comunidade. Ao apresentar o projeto de
pesquisa, a direção se mostrou interessada pelo estudo e prontamente autorizou que a
investigação fosse realizada na unidade em questão. Definida a instituição escolar campo de
pesquisa, passamos à discussão do caso a ser estudado, dos sujeitos participantes do estudo.
Diante do objetivo de investigar o caminho que as crianças percorrem com a leitura no início
de sua vida escolar para compreender, de forma mais aprofundada, o papel que a escola
exerce na apropriação dessa atividade pelos sujeitos aprendizes, decidi que os participantes da
pesquisa deveriam ser crianças do último ano da educação infantil, porque é nessa etapa do
processo de escolarização que se inicia de forma mais sistematizada o ensino da leitura na
escola. Defini, ainda, atendendo aos pressupostos da pesquisa interpretativa, que o estudo
seria realizado em contexto, e, portanto, que iria acompanhar uma turma dessa etapa da
escolaridade por mais de um ano escolar focando o olhar para os eventos e as situações do
26
ensino da leitura na escola sob a perspectiva das crianças, e que minhas indagações
norteadoras da investigação seriam: Como as crianças no início da escolarização lidam com as
práticas de leitura? Que elaborações constroem sobre o ato de ler? linearidade em
metodologias para o ensino dessa atividade? Os interesses são modificados quando iniciam o
ensino fundamental? Quais relações estabelecem entre o ler na escola e o ler como prática
cultural? Que relações estabelecem com a leitura desde seu último ano na educação infantil
até meados do primeiro ano do ensino fundamental? Enfim, o que elas têm a dizer sobre esse
caminho, suas impressões, atitudes, interesses? Como afirmam Walsh e Graue (2003, p. 116),
[...] As perguntas são o motor da investigação. Uma vez no campo, produzirá
boas perguntas na razão direta da qualidade das perguntas que tiver trazido
consigo. Ir para campo sem perguntas é o mesmo que ir dançar sem sapatos
de dança. A dança não está nos sapatos, mas pelo menos estes mantêm-nos
no chão. Se quisermos desperdiçar muito do nosso precioso tempo e de toda
a gente, é só ir para campo sem perguntas.
A partir desses pressupostos, que foram explicitados à direção da unidade do campo de
pesquisa, foi selecionada a turma participante do estudo. Havia apenas duas turmas de último
ano da educação infantil na escola, uma no período da manhã e outra no período da tarde. A
direção determinou que o poderia ser a turma da tarde, pois minha presença contínua na
sala poderia afetar o trabalho que vinha sendo feito com essa turma em relação a um aluno
recém-matriculado, com necessidade educacional especial. A turma selecionada foi, portanto,
a da manhã, com 22 alunos com idade entre cinco e seis anos. Estava, assim, constituída a
unidade de análise, o caso.
Após essa etapa, elaborei ofício à Secretaria Municipal da Educação solicitando
autorização do órgão para realização de pesquisa na escola B durante os anos de 2007 e 2008;
solicitei à direção da escola Termo de Consentimento livre e esclarecido para autorização da
pesquisa na turma selecionada; conversei com a professora da turma para apresentar o projeto
de pesquisa e também solicitar dela autorização por meio do termo de consentimento.
Finalmente, participei da primeira reunião de pais do ano de 2007 com a professora para
explicar às famílias a pesquisa que pretendia realizar com a participação das crianças e assim
poder obter autorização escrita dos pais, utilizando os termos de consentimento. Em todo esse
processo, obtive a colaboração dos diversos atores envolvidos, da secretária municipal da
educação, da diretora da escola B, da professora da turma selecionada e dos pais das vinte e
duas crianças que pertenciam à turma. Após o esclarecimento de muitas dúvidas e algumas
negociações - como o não uso de filmadora e máquina fotográfica para não haver por hipótese
27
alguma uso da imagem e preservar a identidade dos sujeitos envolvidos todos autorizaram o
desenvolvimento da pesquisa. Como instrumentos para geração de dados ficou acertado com a
unidade escolar que, a princípio, seriam utilizados apenas a observação, a entrevista e a
análise documental, sem uso de filmadoras e máquinas fotográficas. Esses três instrumentos
foram selecionados por corresponderem às cnicas indispensáveis para as pesquisas que
trabalham com estudo de caso do tipo etnográfico (RABITTI, 1999). Em relação à
observação, ficou acertado que seria realizada quinzenalmente durante todo um período de
aula da turma. Entretanto, neste tipo de pesquisa, como requer a etnografia, o pesquisador é o
principal instrumento na geração e análise dos dados, sendo possível manter “um esquema
aberto e flexível que permita rever os pontos críticos da pesquisa” selecionando outras
técnicas para a geração de dados ainda durante o desenrolar do trabalho (ANDRÉ, 2005, p.
28). Foi o que ocorreu na presente investigação. Ao expor o trabalho realizado na segunda
fase na prática do estudo de caso etnográfico, explicitarei com maior rigor e precisão os
instrumentos utilizados para geração de dados.
Antes de tecer algumas considerações sobre a entrada no campo de pesquisa e os
contatos iniciais com as crianças, apresento o contexto da investigação caracterizando a
instituição escolar e a turma, unidade de análise da pesquisa.
1.1.1 A unidade escolar campo de pesquisa
A escola B, local de realização do estudo, constitui-se numa escola municipal de
ensino fundamental e educação infantil, uma EMEFEI, inaugurada em 2004 para atender à
demanda dessas modalidades de ensino no bairro em que se situa, formado recentemente na
região periférica da cidade. Foi a primeira escola da rede municipal a atender num mesmo
prédio alunos da educação infantil e do ensino fundamental, uma vez que no município as
unidades escolares atendem a essas modalidades em estruturas diferenciadas.
Na educação infantil a escola atende aproximadamente a 100 alunos na faixa etária
entre 4 e 6 anos, e no ensino fundamental 290 alunos são atendidos nos anos iniciais,de
primeira a quarta rie, com idade entre 7 e 11 anos. A escola conta com duas salas de aula
para atender à educação infantil e doze para atender ao ensino fundamental. Funciona nos
períodos matutino e vespertino. Em média, há 25 alunos por turma, embora em algumas séries
esse número aumente ou diminua no decorrer do ano, dada a demanda da comunidade. A
partir desses dados, é possível verificar que a instituição atende a 100% da demanda do bairro
em relação à educação escolar entre 4 e 10 anos de idade, da fase I da educação infantil à
28
quarta rie do ensino fundamental. Porém, de acordo com o projeto educativo da escola,
ainda uma demanda não atendida no bairro em relação à educação de 0 a 3 anos, e dos anos
finais do ensino fundamental e do ensino médio, uma vez que os alunos dessas modalidades
precisam deslocar-se para escolas de outros bairros mais próximos.
Em relação à comunidade na qual a escola se insere, o projeto educativo da instituição
menciona que
Todas as famílias são moradoras do bairro sendo, a maioria, proprietários de
suas residências, dotadas de água encanada, luz elétrica, rede de esgoto e
pavimentação asfáltica em sua totalidade bem como coleta pública de lixo.
Trata-se de um bairro bem afastado do centro da cidade, o acesso se faz
através do transporte coletivo ou condução própria (carro, moto, bicicleta).
Próximo ao bairro se situa um bairro industrial com indústrias de grande
porte na qual a maioria dos pais trabalham. Por se tratar de um bairro novo
conta com algumas mercearias, bares, mercadinhos e um supermercado, uma
farmácia, uma padaria, uma lotérica e uma Unidade de Saúde da Família,
onde são feitos os atendimentos e consultas de rotina e os encaminhamentos
para os casos mais graves... O bairro não conta com agência de correio e
agência bancária. No aspecto religioso o que predomina é o catolicismo, é
oferecido para as crianças catequese e missa na escola aos domingos. Para
recreação o bairro conta com uma lanchonete, dois traillers e um pesqueiro.
(PROJETO EDUCATIVO, 2007).
Pela descrição, é possível perceber que o bairro é notadamente residencial, com
pequeno comércio e unidade de saúde para atendimento sico à população. Vale ressaltar
que foi formado a partir de programa habitacional de moradia popular, por isso a maioria das
famílias possui casa própria. A escola, a pedido da comunidade, cede aos domingos espaço
para catequese e missa aos moradores, uma vez que não igrejas no bairro. Ao tomar
conhecimento desse cenário, foi possível compreender por que as crianças com as quais
convivi durante algum tempo na escola ficavam extremamente felizes quando contavam à
professora e aos colegas que tinham ido “à cidade”, como dizem ao se referirem ao centro da
cidade, e tornou-se mais fácil entender por que algumas ainda não conheciam esse ambiente,
“Você foi? Eu nunca fui, queria tanto ir” (Aluno 12, conversando com colega no recreio).
Ainda segundo o projeto educativo da escola, a respeito das condições econômicas
dos pais, a maioria das famílias possui renda familiar entre um e três salários mínimos, sendo
que muitas crianças participam do programa Bolsa Família do governo federal para ajudar no
orçamento doméstico. Em relação ao grau de escolaridade dos pais, temos os seguintes dados:
29
Grau de escolaridade %
Ensino fundamental incompleto 38.8
Ensino fundamental completo 25.3
Ensino médio incompleto 7.7
Ensino médio completo 27.2
Ensino superior completo 1.0
Quadro 1 - Grau de escolaridade dos pais
Fonte: Projeto Educativo da Escola, 2007
Como demonstra a tabela, em pesquisa realizada pela escola, todos os pais apresentam
algum grau de escolaridade, sendo possível inferir que todos sejam alfabetizados. Esse dado é
importante, pois como revelou a investigação, na perspectiva das crianças a família
desempenha papel fundamental no aprendizado da leitura. Assim, verificar e apresentar a
escolaridade dos pais tornou-se imprescindível ao presente estudo. Diante dessas informações
apresentadas no projeto educativo da escola, o nível socioeconômico da comunidade em que a
escola está inserida é relativamente baixo. Entre as famílias das crianças, sujeitos da pesquisa,
não havia sequer uma que tivesse assinatura de jornais e revistas. Entretanto, os pais
preocupavam-se em adquirir livrinhos de histórias infantis para as crianças, pois todas
relataram no decorrer do estudo que tinham em casa esses materiais comprados ou doados por
familiares. Os principais títulos que as crianças mencionaram e trouxeram para eu ver foram
“Chapeuzinho Vermelho”, “Os Três Porquinhos” e “Branca de Neve”.
A escola, além das quatorze salas de aula, conta com uma sala destinada ao laboratório
de informática, com 20 computadores para uso dos alunos do ensino fundamental e uma sala
destinada à biblioteca, que funciona também como sala de vídeo. Porém, a biblioteca é pouco
frequentada pelos alunos para situações de leitura; na maioria das vezes as turmas vão até esse
local para assistir a vídeos ou para realizar aulas de reforço escolar. Cada turma possui um
acervo literário que fica guardado no armário do professor, por isso em geral os professores
preferem realizar momentos de leitura na própria sala de aula. Esses livros são lidos apenas na
escola; as crianças raramente podem levá-los para casa, daí o esforço dos familiares em
adquirir livrinhos de histórias infantis para as crianças. Vale ressaltar que o acervo literário
que a escola possui é de excelente qualidade, enquanto que o das crianças são alguns livros,
pequenos, com histórias bem reduzidas dos contos de fada, a maioria sem a riqueza da
linguagem literária.
No que se refere ao aspecto físico, a escola ainda possui sala da direção escolar, sala
dos auxiliares de direção e sala da coordenação pedagógica do ensino fundamental. A
educação infantil não possui uma coordenação pedagógica. Esse trabalho é desenvolvido por
30
uma das auxiliares de direção, que é responsável por assessorar o gestor nesta modalidade de
ensino. Para as crianças da educação infantil há um parque, um quiosque e um tanque de areia
na parte externa da escola. Para as crianças do ensino fundamental um pátio coberto
utilizado para brincarem no momento do recreio. Nesse pátio, a direção coloca à disposição
das crianças vários jogos e objetos para entretenimento, como xadrez, dama, dominó e outros.
A série do período da manhã, para incentivar a leitura nas crianças pequenas, coloca
também gibis no pátio da escola, arrecadados pela turma por iniciativa de sua professora,
prática que, segundo ela, era para as crianças desde pequenas gostarem de ler, em vez de
chegarem a essa série desinteressadas por essa atividade, como estava ocorrendo. Isso foi
interessante para mim como pesquisadora, porque me encontrei na fala dessa professora, uma
vez que a preocupação dela foi e continua sendo também minha, pois a pergunta está sempre à
procura de uma resposta: o que acontece no início do processo de escolarização que leva as
crianças a não se interessarem pela leitura?
Retomando os dados acerca da estrutura física da escola, há também uma ampla
cozinha e um pátio interno com mesas para os alunos realizarem as refeições no momento do
recreio, além de um pequeno depósito para armazenar material escolar enviado pela secretaria
municipal da educação e duas pequenas salas utilizadas pelos professores no momento de
intervalos, reuniões e reforço escolar. Quanto aos recursos humanos, a escola possuía em
2007 e 2008 um diretor escolar, dois auxiliares de direção, um coordenador pedagógico, vinte
professores, todos concursados, dezesseis dos quais atuavam em sala de aula e quatro
ministravam aulas de reforço escolar e substituíam eventuais faltas; um instrutor de
informática, duas merendeiras, um vigia noturno, seis auxiliares de serviços gerais, dois
auxiliares de escrita que atuavam na secretaria da escola e duas estagiárias remuneradas do
curso de Pedagogia. De forma geral, os recursos humanos atendiam de forma satisfatória às
necessidades da escola. Os professores queriam apenas mais estagiários, pois havia duas
vagas ainda não preenchidas, pelo fato de a escola ser de difícil acesso aos estudantes, distante
das faculdades e do centro da cidade.
Com essa estrutura, a escola funcionava de forma organizada. Os alunos do ensino
fundamental entravam às 7h. Quinze minutos antes, abria-se o portão e os alunos entravam já
se posicionando em filas nos lugares determinados desde a primeira semana de aula. Eram
recebidos sempre por um funcionário e por um dos membros da direção. Às 7h o sinal soava,
os professores vinham até suas respectivas filas, todos faziam uma pequena oração e dirigiam-
se às suas salas de aula. Todo esse processo não levava mais do que dez minutos. Às sextas-
feiras tocava-se, após a oração, o hino nacional. Às 8h era a entrada dos alunos da educação
31
infantil, recebidos por um funcionário, pela auxiliar de direção da educação infantil e pelas
professoras, que estavam no pátio quando as crianças começavam a chegar. Quando todos
ou a maioria chegava, havia a tolerância de uns dez minutos; as professoras faziam com as
crianças uma oração, cantavam várias músicas infantis e se dirigiam à sala de aula, o que
ocorria por volta das 8h30. Às 9h15 era o recreio da educação infantil; os alunos tinham
quinze minutos para lanchar, ir ao banheiro, beber água e brincar. Dois auxiliares de serviços
gerais e a auxiliar de direção acompanhavam as crianças no momento do recreio. Quando
terminava o recreio da educação infantil, iniciava-se o intervalo das primeiras e segundas
séries, e na sequência, às 10h, era o último recreio, das terceiras e quartas séries. Às 11h30 os
alunos da educação infantil dirigiam-se ao pátio coberto e ficavam aguardando com a
professora um familiar para buscá-los; até ao meio-dia todos iam embora. O ensino
fundamental saía pontualmente às 12 horas. Os professores acompanhavam as crianças até o
portão, sendo que a maioria ia embora sozinha. Às 12h30 acontecia a entrada dos alunos do
ensino fundamental do período da tarde, e às 13h a da educação infantil. Às 14h30 iniciava-
se o primeiro recreio e como no período da manhã, na sequência, ocorriam os demais. As
crianças da educação infantil começavam a ir embora às 16h30 e às 17h30 era a saída do
ensino fundamental. Às 18h chegava o vigia que permanecia na escola até o horário de
entrada do primeiro funcionário. Tanto a entrada como a saída dos alunos ocorria de forma
tranquila, sempre acompanhada por funcionários e membro da direção da escola.
Exposto o contexto maior em que a turma, unidade de análise, estava inserida, quero
agora caracterizá-la, apresentando informações acerca dos sujeitos de pesquisa, as crianças,
principais atores desse processo.
1.1.2 Os sujeitos da pesquisa
A turma selecionada segundo os critérios anteriormente explicitados foram os alunos
do Pré III, no período da manhã. Eram inicialmente 22 alunos matriculados, mas três foram
transferidos para outras escolas. Próximo ao final do ano, a turma recebeu dois novos alunos,
porém, em razão da natureza da pesquisa, o foram considerados sujeitos, assim como os
dados gerados a partir das experiências dos três alunos transferidos não foram utilizados.
Portanto, constituíram-se sujeitos da pesquisa no ano de 2007 as crianças que iniciaram e
terminaram o ano letivo com a turma, 19 alunos.
O perfil com a caracterização de cada um dos participantes da pesquisa é apresentado
no quadro a seguir:
32
Alunos Idade*
Sexo Mora com... Atuação
profissional do
pai
Atuação
profissional
da mãe
Atividades
realizadas
quando não es
na escola.
1 5 M Mãe ...... Faxineira Brinca de pega-
pega com amigos
2 5 F Pais Pedreiro Não trabalha
fora
Assiste à televisão
Brinca em casa
3 5 M Pais e uma
irmã
Serralheiro
(autônomo)
Não trabalha
fora
Brinca em casa
com seus
brinquedos
4 5 M Pais e um
irmão
Funcionário de
indústria
Não trabalha
fora
Assiste à televisão
Brinca com irmãos
5 5 M Pais Funcionário de
indústria
Não trabalha
fora
Brinca com seus
brinquedos
Assiste à televisão
6 5 F Mãe e avó ...... Secretária Assiste à televisão
Brinca de boneca
7 6 M Pais e um
irmão
Pintor Manicure Brinca com o
irmão
8 5 M Pais Segurança Não trabalha
fora
Brinca com seus
brinquedos e
assiste à televisão
9 5 M Pais, avó e
três irmãos
Pedreiro Desempregada Brinca com os
irmãos
10 5 F Pais e dois
irmãos
Pedreiro Desempregada Brinca com os
irmãos
11 5 F Pais e dois
irmãos
Serviços gerais
(Prefeitura)
Faxineira Brinca de boneca
12 5 M Pais e duas
irmãs
Pintor Faxineira Brinca com as
irmãs e
Assiste à televisão
13 5 F Pais e duas
irmãs
Pedreiro Atendente de
creche
Assiste à televisão
Brinca de boneca
14 5 M Pai, madrasta
e duas irmãs.
Funcionário de
indústria
alimentícia
(Madrasta)
Enfermeira
Televisão
Jogos de
computador
15 6 M Pais Funcionário de
indústria
Secretária Televisão
Brinca com
amigos
16 5 M Mãe, tia e
irmão.
...... Funcionária de
indústria
alimentícia
Brinca com o
irmão
17 5 F Mãe e dois
irmãos
...... Desempregada
Brinca com os
irmãos
18 6 M Pais e dois
irmãos
Pedreiro Empregada
doméstica
Brinca de pega-
pega com o irmão.
19 5 M Pais e três
irmãos
Pedreiro Faxineira Brinca com
colegas em casa
Quadro 2 - Identificação dos sujeitos participantes da pesquisa em 2007
*Idade das crianças no início da pesquisa de campo-Março de 2007
A partir das informações apresentadas no quadro, é possível verificar que a maioria
das crianças que participou da pesquisa é do sexo masculino. Na turma havia apenas seis
meninas. Segundo a professora, esse era um dos fatores que contribuía para que sua classe
33
fosse considerada agitada pela direção e por alguns funcionários da escola. Entretanto, do meu
ponto de vista, eram, na verdade, crianças ativas. Participavam sempre de todas as propostas
didáticas com muitas perguntas, questionamentos e intervenções, além de terem demonstrado
em todo ano letivo respeito pela professora e por seus colegas. Outra característica da turma é
que a maioria das crianças provinha de famílias relativamente numerosas, com mais de cinco
pessoas e que, dadas as condições sócioeconômicas, as crianças, quando não estavam na
escola, assistiam à televisão e brincavam em casa com irmãos e amigos. Apenas um aluno
mencionou o uso do computador e nenhum mencionou, por exemplo, atividades com jogos
eletrônicos como videogame. Por meio da atuação profissional dos pais, puderam-se
confirmar as características mencionadas anteriormente em relação à comunidade em que a
escola está inserida. Em 2007, essas dezenove crianças foram as principais informantes da
pesquisa e me possibilitaram conhecer melhor suas relações com a leitura no início da
escolaridade, o que seria impossível se não fosse a compreensão de sua professora ao permitir
minha entrada na sala de aula toda semana durante um ano. Essa profissional tinha muito
respeito e carinho pelas crianças, também era muito próxima dos familiares, que mantinham
contato com ela acerca do rendimento escolar dos filhos. A professora atuava na educação
infantil dez anos, era pedagoga formada por uma universidade pública, com especialização
em administração escolar e psicopedagogia. Entre ela e as crianças, sujeitos da pesquisa,
havia grande vínculo afetivo, o que permitia uma relação professor-aluno saudável em sala de
aula, com liberdade de expressão pelas crianças em todas as situações, algo bem diferente de
agitação por indisciplina dos alunos.
Ao final do ano de 2007, fui surpreendida com a notícia dada pela professora de que a
turma seria de certa forma “desmembrada”: cinco crianças tinham conseguido vaga numa
fundação-escola bem qualificada e tradicional no município, próxima ao bairro, para a qual os
pais iriam transferi-las no próximo ano. Para a direção, a turma era agitada demais, e para
separar alguns alunos, sete seriam transferidos para o período da tarde, sendo que três
ficariam numa turma e quatro em outra. Dois alunos mudaram de bairro e, portanto, teriam
que mudar de escola em 2008. Assim, apenas cinco permaneceriam na primeira série no
período da manhã no próximo ano. E foi realmente isso o que ocorreu. Em fevereiro de 2008
encontrei na turma do período da manhã apenas cinco dos dezenove sujeitos da pesquisa.
Esse fato causou-me inquietação, pois doze alunos estavam na escola, mas em turmas
separadas, e minha autorização era para a realização da pesquisa no período da manhã, em
que havia apenas cinco sujeitos. Assim, foi preciso repensar a continuidade da pesquisa.
Quando optei por realizar um estudo de caso etnográfico, tinha clareza de que a perda de
34
sujeitos poderia ocorrer, por isso no primeiro ano da pesquisa não quis centrar o foco de
estudo em um subgrupo da turma; seria muito arriscado para um estudo de caráter
longitudinal. Como afirmam Goetz e Lecompte (1988, p. 85), “a flexibilidade e a adaptação
das decisões de seleção e amostra, assim como sua integração nas distintas fases do processo
de investigação, são marcas distintivas do modelo etnográfico.” Portanto, decidi que para o
ano de 2008 continuaria a pesquisa apenas com os alunos que estavam matriculados na
mesma escola no período da manhã. Para isso, continuei com as sessões de observações
semanais, porém, o mais com o olhar para a turma, mas apenas para os cinco sujeitos da
pesquisa. E, ainda, diante da nova situação decidi agregar, aos selecionados instrumentos
para a geração de dados, a técnica de grupo focal com os cinco alunos, para melhor atender
aos objetivos da investigação. Cabe aqui uma citação de André (2005, p. 38), ao referir-se à
prática do estudo de caso etnográfico:
[...] o pesquisador precisa antes de tudo ter uma enorme tolerância a
ambigüidades, isto é, saber conviver com as dúvidas e incertezas que são
inerentes a essa abordagem de pesquisa. Ele tem que aceitar um esquema de
trabalho aberto e flexível, em que as decisões são tomadas na medida e no
momento em que se fazem necessárias. Não existem normas prontas sobre
como proceder em cada situação específica e os critérios para seguir essa ou
aquela direção são geralmente muito pouco óbvios.
Desta forma, em 2008 continuaram a ser sujeitos de pesquisa apenas os seguintes
alunos:
Alunos
Idade Sexo Mora com... Atuação
profissional
do pai
Atuação
profissional
da mãe
Atividades
realizadas quando
não está na escola.
1 6 M Mãe ...... Faxineira Brinca de pega-pega
com amigos
6 6 F Mãe e avó ...... Secretária Assiste à televisão
Brinca de boneca
15 7 M Pais Funcionário
de indústria
Secretária Televisão
Brinca com amigos
17 6 F Mãe e dois
irmãos
...... Desempregada
Brinca com os
irmãos
18 7 M Pais e dois
irmãos
Pedreiro Empregada
doméstica
Brinca de pega-
pega com o irmão.
Quadro 3 - Identificação dos sujeitos participantes da pesquisa em 2008
Em 2008, percebi que para os alunos também foi um início de muitas inquietações,
afinal era turma nova com professora nova. As relações na sala de aula foram modificadas. Os
alunos falavam muito pouco e não saíam mais de seus lugares no decorrer da aula. Com
exceção do aluno 15, os demais não participavam das propostas didáticas como antes. Havia
35
bastante silêncio na nova turma. As crianças não demonstravam vínculo afetivo com a
professora. Mantinham-se bem distantes dela e não mais recorriam a todo momento à
docente, como faziam no ano anterior. Esta, assim como a professora da turma em 2007, foi
receptiva às minhas entradas na sala de aula, permitindo e colaborando com a continuidade do
estudo em 2008. Era pedagoga, formada em uma universidade privada, tinha experiência de
seis anos de atuação no ensino fundamental.
No próximo tópico, teço algumas considerações sobre minha entrada no campo de
pesquisa e o papel que assumi no contexto do estudo durante os dezoito meses em que estive
na escola, em relação às professoras das duas turmas, às crianças, à direção e aos funcionários
da unidade campo de pesquisa.
1.1.3 A entrada no campo de pesquisa e o papel do pesquisador
Apesar de ter autorização de todos os responsáveis para a realização da pesquisa, a
entrada no contexto local da investigação, a sala de aula, não foi tarefa fácil. Tanto em 2007
como em 2008, foi preciso um período inicial para que professores e alunos aceitassem minha
presença na turma. As primeiras entradas no campo de pesquisa foram momentos para
redefinir melhor como trabalharia com a geração de dados e obter o reconhecimento das
crianças sobre o meu papel naquele contexto.
Em relação ao primeiro aspecto, percebi que minha presença durante todo o período de
aula não seria adequado tanto para o objeto de pesquisa como para o bem-estar da turma. Isto
porque as crianças da educação infantil em 2007 tinham uma rotina sistematizada. Até as 10h
realizavam situações de ensino e aprendizagem voltadas às áreas de linguagem escrita,
matemática e estudos da natureza e sociedade. Depois disso realizavam atividades com
brincadeiras livres e dirigidas no pátio, no tanque de areia e no parque. Embora este momento
do brincar fosse de extrema relevância neste período da escolarização, uma vez que consiste
em atividade principal, por meio do qual a criança se relaciona com o mundo nessa idade pré-
escolar (LEONTIEV, 1988), optei por permanecer na escola apenas até as 10h, uma vez que
as situações vivenciadas após este horário o eram foco da pesquisa. A professora também
não ficava à vontade para realizar seu trabalho porque dividia sua atenção comigo e com as
crianças, o que causava um certo mal-estar entre todos. Dessa forma, acordamos que eu
passaria a ir semanalmente e o a cada quinze dias e que ficaria apenas até as 10h. Esse
acordo foi cumprido durante todo o ano de 2007 e estendido a 2008, por atender às
necessidades tanto da instituição pesquisada quanto da investigação propriamente dita.
36
Portanto, o trabalho em campo do estudo de caso etnográfico, para a geração de dados, foi
desenvolvido com as crianças durante dezoito meses com a presença semanal do pesquisador
durante duas horas do período de aula.
No primeiro encontro que tive com as crianças em março de 2007, uma vez que o mês
de fevereiro foi destinado aos procedimentos iniciais para entrada em campo, conversei sobre
quem eu era, o que estava fazendo ali e que iria toda semana à sua sala de aula para descobrir
como elas estavam aprendendo a ler. Algumas logo começaram a se envolver, dizendo “Eu
sei ler” (Aluno 14), “Eu não sei” (Aluno 15), mas foram interrompidas pela professora, que
solicitou silêncio. Depois dessa conversa inicial me dirigi à única cadeira disponível no fundo
da sala e iniciei o trabalho de campo com o registro das primeiras observações acerca do
funcionamento da turma objeto de estudo. A seguir, apresento algumas características físicas
do contexto local da pesquisa no ano de 2007, a sala de aula.
[...] A turma está com 20 alunos, faltaram dois meninos como escrito na
lousa pela professora. As crianças estão sentadas em carteiras enfileiradas
individualmente. As carteiras são menores do que as utilizadas no ensino
fundamental e adequadas ao tamanho dos alunos. São cinco fileiras de
carteiras. A mesa da professora fica no canto direito da lousa. Na parede à
esquerda da sala de aula dois painéis, um para uso da turma da manhã e
outro para uso da turma da tarde, que também é um pré III. Nos painéis,
conteúdo diferenciado. No painel da turma da manhã um cartaz com um
poema, a data dos aniversários das crianças e um quadro com letras e sílabas,
um silabário. No painel da turma da tarde, há o nome de um projeto da turma
com alguns desenhos. Na parte superior da lousa há um alfabeto ilustrado,
com recortes, escrito em letra de forma maiúscula e minúscula. Na parede à
direita estão as janelas e abaixo estão penduradas as toalhas das crianças
usadas no momento da escovação dos dentes. No fundo da sala, à esquerda,
está o armário da professora da manhã e, à direita, o armário da professora
da turma da tarde. Todos os materiais utilizados pela turma ficam guardados
no armário: cadernos de classe, livros de literatura infantil, lápis de cor,
hidrocor, giz de cera, cola, borracha, lápis grafite, papel A4, caderno de
cartografia e outros. As crianças não possuem acesso a esse armário. Quando
necessitam dos objetos solicitam à professora que os distribui [...] (Protocolo
1 de observação - 09/03/2007).
Durante todo o ano de 2007 o cenário da sala de aula foi esse, mas algumas vezes as
carteiras eram organizadas em duplas também enfileiradas. No painel, o silabário e o cartaz
com os aniversariantes permaneceram durante todo o ano; os outros materiais foram sendo
substituídos de acordo com o trabalho realizado em sala de aula. Poemas e músicas transcritas
pelas professoras foram os materiais mais expostos nos painéis. A sala de aula, cenário do
estudo em 2008, pouco se diferenciava dessa, como é possível verificar no primeiro protocolo
de observação registrado no início do ano:
37
[...] A sala de aula da 1ª série pouco difere da sala do ano passado. As
crianças ficam sentadas em carteiras enfileiradas individualmente. Porém,
agora, são carteiras maiores. A mesa da professora localiza-se no lado
esquerdo da lousa. dois armários no fundo da sala, um da professora da
turma da manhã e outro da professora da turma da tarde. As janelas
localizam-se do lado direito. Na parede, do lado esquerdo, dois painéis,
um para cada turma expor seus trabalhos. No painel da turma da manhã há
uma lista com o nome de todos os alunos e um aviso “Mantenha sua sala
limpa”. No painel da turma da tarde também uma lista com o nome dos
alunos, além de um cartaz de aniversariantes e alguns desenhos feitos pelas
crianças. Na parte superior da lousa o alfabeto pintado na parede com
quatro tipos de letras. Todos os materiais utilizados pela turma ficam
guardados no armário da professora: livros didáticos, livros de literatura e
materiais diversos como lápis grafite, cola, borracha, papel A4 e outros. O
aluno 1 está sentado na última carteira da segunda fileira. Na mesma fileira,
mas na terceira carteira es o aluno 17. Na primeira carteira da terceira
fileira está o aluno 6. Na quarta fileira e na terceira carteira está o aluno 15 e
finalmente na quinta fileira e segunda carteira está o aluno 18. Segundo os
alunos, eles estão sentados nesses lugares desde o início do ano [...]
(Protocolo 15 de observação - 21/02/2008).
A organização das salas de aula em 2007 e 2008 no que se refere à estrutura era
semelhante, como é possível perceber ao confrontar os dois protocolos. As carteiras sempre
enfileiradas e os materiais não acessíveis aos alunos, principalmente os livros de literatura
infantil e os livros didáticos. Porém, na turma de educação infantil, as crianças trocavam de
lugares entre si e transitavam pela sala de aula sempre que necessário. Com frequência
vinham aonde eu estava sentada para conversarmos sobre o que estavam fazendo na aula.
na turma de primeira série, em 2008, as crianças não tinham autorização para trocar de
lugar e para transitar pela sala. Raras vezes os cinco alunos vinham falar comigo porque
temiam ser repreendidos pela professora. Ao contrário do que ocorria no ano anterior, eu é
que ia à carteira deles para o trabalho de geração de dados.
Neste cenário, fui construindo vínculos com os sujeitos de pesquisa que, por influência
de seus professores e da direção, passaram a me ver não como pesquisadora, mas como
estagiária da turma. Pesquisador da universidade não era algo comum e fácil de ser aceito,
como alguém que iria para a sala de aula descobrir como se aprende a ler. Estagiário
encaixava-se melhor nesse papel. Para os professores e direção, acredito que era também uma
forma de não ver a coordenadora pedagógica da secretaria municipal da educação
9
, mas
apenas a Fabiana, estagiária. Orientada pelos estudos de Walsh e Graue (2003), o
considerei de forma negativa o papel que me foi atribuído, pois segundo os autores a conduta
9
Como exposto na introdução, no período em que desenvolvi o trabalho de campo, era coordenadora pedagógica
do ensino fundamental da rede municipal de Marília-SP.
38
do investigador numa pesquisa etnográfica deve ser como a de uma pessoa humilde, que parte
para o trabalho de campo como aprendiz. De forma gradativa e sempre que tinha
oportunidade lembrava às pessoas implicadas na pesquisa quem na verdade era, uma
investigadora. Concordando com os autores, ao desenvolver uma pesquisa dessa natureza,
O desafio é decidir quem iremos ser, para termos a certeza de que essa
personagem está acessível às crianças e aos adultos com quem vamos
trabalhar, e de que podemos ser essa personagem, e depois ensinarmos às
pessoas quem somos - tudo isto analisado no contexto de sermos aprendizes.
Não devemos surpreender-nos se as pessoas tiverem dificuldade em aceitar
um investigador da universidade como aprendiz. (WALSH; GRAUE, 2003,
p.127).
Assumi o papel que me foi atribuído, estagiária, o qual me permitiu estar mais
próxima às crianças e ter acesso a todos os espaços da escola para o trabalho com a geração
de dados. Na sala de aula, no recreio, no pátio, na escovação, na aula de informática, pude
interagir com elas para descobrir como estavam se relacionando com a leitura, suas atitudes,
condutas e conceitos acerca dessa atividade. Porém, vale ressaltar que em nenhum momento
agi como estagiária, desenvolvendo tarefas dessa função. Apesar disso e do meu esforço em
deixar claro meu papel na escola como pesquisadora, as pessoas em geral - direção,
professores, pais, alunos - insistiram em referir-se a mim como a estagiária da turma durante o
desenvolvimento do trabalho de campo.
Contudo, mesmo após ter decidido junto às professoras o tempo que permaneceria em
campo no decorrer da pesquisa e ter aceito o papel que me foi atribuído, a entrada no campo
de investigação foi, como afirmam Walsh e Graue (2003), uma negociação dia-a-dia. Não foi
fácil para as professoras ter toda semana alguém observando como seus alunos estavam
aprendendo a ler e, portanto, como elas estavam ensinando, principalmente pelo fato de que
quando eu não era a estagiária, era a coordenadora da secretaria da educação. Por várias
vezes, a coordenação pedagógica e a direção interrompiam o trabalho de geração de dados na
sala de aula para tratar de assuntos relacionados à minha atividade como profissional da
secretaria. Isso causava um constrangimento para as professoras e para mim, porque
interrompiam não apenas a pesquisa como a sequência didática da aula, uma vez que
adentravam a sala e ali mesmo conversavam comigo. Assim, a cada dia que me dirigia à
escola, negociava a entrada no campo. Conversava antes com a direção e a coordenação da
unidade na qualidade de coordenadora pedagógica e, depois de esgotadas as questões relativas
à minha atividade profissional, assumia o papel de pesquisadora com a entrada na sala de
39
aula. No momento do recreio, quando não ficava com as crianças, conversava com as
professoras sobre dados gerados na pesquisa, procurando deixar claro meu papel como
pesquisadora e não como coordenadora ou estagiária. E, por fim, todas as vezes que deixava o
campo, apesar da existência de cronograma elaborado junto à direção no início de cada
semestre, negociava a próxima entrada com as professoras. Com essa conduta, foi possível
desenvolver todo o processo de pesquisa na instituição escolar e nas turmas unidades de
análise, concordando, mais uma vez, com Walsh e Graue (2003, p. 121, 124) quando afirmam
que:
O trabalho de campo, uma vez iniciado, pode ser cil. Entrar no local é que
pode ser difícil. Iniciar a investigação com crianças é que pode ser mesmo
muito difícil. Os responsáveis, todas as pessoas, em geral, que têm a seu
cargo grupos de crianças, têm atitudes compreensivelmente protetoras em
relação a elas e nem sempre se sentem à vontade quando está alguém de fora
a observar as crianças e as suas interações com elas. [...] Negociar a entrada
com os guardiões do dia a dia, os adultos que trabalham de fato, com as
crianças, esse sim, é um processo contínuo que normalmente se vai tornando
mais fácil, mas que nunca cessa – é um processo contínuo que requer
negociações diárias.
Goetz e Lecompte (1988, p. 117), a respeito do papel do etnógrafo, também ressaltam
que “não precisa acomodar-se aos diversos papéis que terá adquirido ou tenha sido
atribuído no contexto da investigação, como ainda ter a aptidão de mudar eficazmente de
papel”. Pautada pelos princípios da estratégia metodológica do estudo de caso etnográfico, no
decorrer da pesquisa fui lidando com os diferentes papéis sem perder de vista objetivo e
objeto da pesquisa.
1.2 Os instrumentos utilizados para a geração de dados: a segunda fase da pesquisa
Segundo André (2005), uma vez delimitado o objeto de estudo na fase exploratória e
as condições para a realização da pesquisa, o pesquisador pode dar início ao trabalho
sistemático de geração de dados
10
. Assim, após conseguir autorizações, conhecer o contexto
em que a turma estava inserida, estabelecer os primeiros contatos com crianças e professora,
negociar entrada e permanência no campo de pesquisa, iniciei de forma sistematizada a
segunda fase da investigação com a geração de dados.
10
Utilizo o termo geração de dados com fundamento nos estudos de Walsh e Graue (2003), que preferem esse
termo em vez do mais comumente utilizado coleta de dados. Segundo os autores, os dados não estão aí à nossa
espera, quais maçãs na árvore prontas a serem colhidas... Os dados têm de ser reunidos antes de ser recolhidos.
(WALSH; GRAUE, 2003, p.115).
40
Em pesquisas que fazem uso da abordagem interpretativa não é recomendável o uso de
apenas uma fonte. A utilização de uma só estratégia de investigação, segundo Walsh e Graue
(2003), introduz preconceito no registro de dados, sendo de suma importância o uso de fontes
e métodos diversos. No estudo de caso etnográfico, Autores como André (2005), Rabitti
(1999), Goetz e Lecompte (1988) orientam a utilização da observação, da entrevista e da
análise documental. Assim, foram esses os instrumentos utilizados nessa pesquisa e, como
mencionado anteriormente, a técnica de grupo focal também foi selecionada no segundo ano
da investigação, como meio para enriquecer o trabalho de geração de dados.
A utilização dos quatro instrumentos, observação, entrevista, análise documental e
formação do grupo focal, permitiu a triangulação dos dados gerados acerca do estudo
proposto. Na sequência, apresento o objetivo de cada uma dessas técnicas na presente
investigação e o modo como foram utilizadas no decorrer da pesquisa.
1.2.1 Observação semiestruturada
A observação é a principal técnica etnográfica para a geração de dados. Para Goetz e
Lecompte (1988, p. 126), ao fazer uso da observação o pesquisador pode obter dos sujeitos
“suas definições da realidade e os construtos que organizam seu mundo”. No estudo de caso
etnográfico, esta técnica permite ao pesquisador compreender melhor o fenômeno em estudo
na medida em que possibilita uma riqueza de descrições em relação ao caso estudado. Assim,
ao selecionar a observação como instrumento de pesquisa nessa investigação, o objetivo foi o
de acompanhar in loco as experiências diárias dos sujeitos, procurando apreender sua visão de
mundo em relação ao objeto de estudo, ou seja, perceber o significado que eles atribuem à
aprendizagem da leitura na escola e as relações que estabelecem com essa atividade como
prática cultural.
Dentre as várias formas que a observação pode assumir nas pesquisas científicas,
optei, em virtude da natureza dessa investigação, pela observação direta e semiestruturada. A
observação direta permite ao observador chegar mais perto da perspectiva dos sujeitos, já que
ele mesmo realiza o trabalho de geração de dados in loco. Entretanto, para que a observação
seja um instrumento válido e fidedigno é preciso planejá-la, pois não é possível observar tudo.
Como afirma Vianna (2007 p. 26), “o conteúdo da observação deve ser necessariamente
delimitado”. Por isso, justifica-se o uso da observação semiestruturada, já que no decorrer do
estudo não procurei observar todos os fenômenos que ocorrem na aula, mas apenas as
situações de leitura vivenciadas pelas crianças na escola e as relações dos sujeitos com essa
41
atividade. Por outro lado, não utilizei a observação estruturada por ser esta técnica mais
adequada quando o que se objetiva é testar hipóteses, o que não é a intenção desta pesquisa.
A prática do uso da observação semiestuturada como instrumento de pesquisa requer
alguns cuidados. Segundo Vianna (2007), o primeiro passo é a seleção de um cenário, ou seja,
ter claro onde e quando as pessoas envolvidas podem ser observadas. Em relação a esta
investigação, o cenário principal foi a sala de aula, porém outros espaços da escola em que era
possível perceber as relações dos sujeitos com a leitura também foram selecionados, como o
pátio no momento do recreio, a biblioteca e a sala de informática. O passo seguinte é a
definição do que vai ser documentado na observação. Segundo o Autor, é preciso identificar
quem e o que observar, quando e por quanto tempo. Assim, delimitei o conteúdo da
observação registrando apenas os eventos de leitura na escola, as relações das crianças com
essa atividade e o contexto em que esse fenômeno estava inserido. Defini que no primeiro ano
da pesquisa a observação abarcaria todas as crianças da turma unidade de análise, e no
segundo ano optei por centrar o foco apenas nas cinco crianças que permaneceram na unidade
escolar no período da manhã. O quando foi definido com a professora, após algumas sessões
iniciais de observação na fase exploratória, como explicitado. As sessões de observação
ocorreram uma vez por semana durante duas horas, no período de dezoito meses.
Vianna (2007) também ressalta a necessidade de o pesquisador registrar o fenômeno
de forma descritiva e reflexiva que ofereça uma apresentação geral do campo observado.
Nesta investigação, o registro das observações ocorreu por meio de anotações escritas em
forma narrativa e gravador de áudio. Após cada sessão de observação, os registros dos dados
brutos foram organizados em protocolos para facilitar o processo de análise. Fundamentando-
me nos estudos de Walsh e Graue (2003) e de Goetz e Lecompte (1988), procurei realizar um
registro descritivo e pormenorizado acerca do objeto de estudo, deixando espaço nos
protocolos de observação para as reflexões acerca dos dados obtidos. Em cada protocolo,
além do registro descritivo do fenômeno observado acerca do objeto de estudo, constam o dia,
a hora, o local da observação e o seu período de duração. Ressalto que os registros dos dados
foram em sua maioria realizados no campo de pesquisa e depois organizados em protocolos, o
que permitiu uma pré-análise para avaliar o processo de investigação.
Também em relação à observação semiestruturada, Vianna (2007, p. 30) destaca a
importância de o pesquisador “legitimar sua presença junto ao grupo, gerenciar possíveis
crises que possam ocorrer, saber retirar-se do campo de observação...”. Em relação ao último
aspecto, optei pelo término do trabalho de campo ao final do primeiro semestre de 2008, uma
vez que a redundância dos dados estava sendo uma constante. Assim, no decorrer do trabalho
42
de campo para a geração de dados foram realizadas 26 sessões de observação em 2007 e 15
sessões em 2008. Dessas sessões, foram gerados 14 protocolos em 2007 e 13 em 2008. Isto
porque, por muitas vezes, no dia em que comparecia à unidade escolar as crianças estavam
realizando atividade externa ou de outra natureza que fugia ao objeto da pesquisa, como
ensaios para formatura, festa junina, dia das mães, semana da criança, atividade esportiva.
Esse fato causou-me muita inquietação no decorrer do estudo, pois foram muitas as situações
em que chegava à turma para realizar a pesquisa e ela não estava disponível para o estudo. A
coordenação ou direção e funcionários me diziam com frequência “Hoje acho que não vai dar,
a turma está ensaiando”, e, portanto, como estabelecido, eu poderia voltar apenas na próxima
semana. Mesmo assim, por diversas vezes permaneci no campo assistindo a essas situações
que fugiam do objeto de estudo para compreender melhor o contexto da investigação e
procurar gerar dados por meio dos outros instrumentos como a entrevista e a análise
documental. O primeiro protocolo de observação foi gerado em 09/03/2007 e o último em
02/07/2008.
1.2.2 Entrevistas semiestruturadas
Nos estudos de caso etnográfico, como afirma André (2005, p. 51), a entrevista, assim
como a observação, se impõe como uma das vias principais”, pois o que se “objetiva é
revelar os significados atribuídos pelos participantes a uma dada situação”. Desse modo, a
entrevista foi selecionada como instrumento para geração de dados com o propósito de
investigar as concepções das crianças acerca de seu aprendizado e de suas relações com a
leitura ao final de uma etapa escolar, dados esses que a observação não permitia gerar. Afinal,
utilizamos a entrevista como procedimento de pesquisa quando as informações que buscamos
“não estão registradas ou disponíveis a não ser na memória ou pensamento das pessoas”.
(MANZINI, 1991, p. 150).
Para entrevistar os sujeitos da pesquisa, optei pelo tipo de entrevista semiestruturada,
em razão da necessidade de ter, como um elemento auxiliar, um roteiro contendo perguntas
fundamentais para a realização do estudo. Como afirmam Walsh e Graue (2003, p. 139),
entrevistar crianças pequenas não é tarefa fácil, “a entrevista típica, sentada, é difícil de
realizar com crianças. Quanto mais novas são as crianças, mais difícil ela se torna.” As
crianças nos levam em segundos a uma gama de assuntos diversificados e, o havendo um
roteiro previamente elaborado, o pesquisador pode terminar a entrevista e não ter gerado
informações necessárias ao processo de investigação. Dessa forma, a primeira tarefa na
43
construção desse instrumento foi a elaboração do roteiro para nortear a entrevista com os
sujeitos utilizando como referência os estudos de Manzini (2003). Na sequência, realizei com
duas crianças da mesma idade uma entrevista piloto para adequação do instrumento. Esse
procedimento, atendendo às orientações de Manzini (2003), foi de suma importância, pois
pude verificar a necessidade de modificar a linguagem em algumas perguntas, acrescentar
outras questões e principalmente pude vivenciar a dificuldade de entrevistar crianças
pequenas e em razão desse fato a importância de utilizar o roteiro, pois até de posse dele eu
me perdia na sequência das perguntas. Dessa forma, a entrevista piloto foi essencial para a
realização do trabalho de geração de dados com os sujeitos da pesquisa, pois permitiu uma
melhor adequação do roteiro final em relação à sequência de perguntas, à linguagem mais
próxima dos entrevistados e à reelaboração de questões para o torná-las manipulativas,
além de indicar a necessidade de um ambiente tranquilo e de muita atenção para não perder o
foco de estudo. Ressalto que as entrevistas piloto foram realizadas em outubro de 2007 com
crianças da mesma escola, sendo dois alunos da turma do Pré III da tarde, tendo sido
solicitadas e obtidas as devidas autorizações pelos responsáveis.
As entrevistas semiestruturadas com as crianças ocorreram em dois momentos: ao
final do ano letivo em 2007, com as dezenove crianças, e ao final do primeiro semestre em
2008, com as cinco crianças. Foram realizadas na sala de reunião pedagógica, um espaço
adequado, sem barulho e interrupções, no decorrer de uma semana, pois ao entrevistar
crianças é preciso considerar o momento oportuno, ou seja, o momento em que elas não
estejam engajadas em atividades mais interessantes (WALSH; GRAUE, 2003). Cada
entrevista foi gravada em aúdio e teve a duração de 10 a 15 minutos, sendo que os primeiros
minutos, fundamentando-me em Walsh e Graue (2003, p. 140, grifo do autor), foram
destinados a “negociar com elas o processo, dizendo do que se tratava e como se fazia.No
momento da transcrição optei por não transcrever em todos os registros esse momento inicial,
mas apenas nas duas primeiras transcrições em decorrência da redundância de informações.
Quero ressaltar que além da realização de entrevistas semiestruturadas em dois
períodos estratégicos da pesquisa, pois pretendia-se conhecer as concepções das crianças em
relação à leitura ao final de um período escolar, foram desenvolvidas entrevistas em conjunto
com as observações no decorrer do processo de pesquisa em campo, uma vez que em
investigações de caráter longitudinal e etnográfica com crianças, a entrevista, “é iterativa, ou
seja, muitas entrevistas curtas durante um longo período de tempo. As entrevistas o feitas
em conjugação com a observação e a recolha de dados, que também é prolongada.” (WALSH;
GRAUE, 2003, p. 148). Essas entrevistas curtas foram transcritas junto aos protocolos de
44
observação para que a organização do registro de dados seguisse uma sequência lógica e
temporal e assim não perdesse o contexto em que esses dados foram produzidos.
A transcrição das entrevistas semiestruturadas ocorreu em parte durante o trabalho em
campo para pré-análise dos dados, como prea prática do estudo de caso etnográfico, sendo
concluída apenas ao final dessa fase da pesquisa. Todo o processo de transcrição foi por mim
realizado, pois como afirma Queiroz (1983, p. 82), “o ideal numa pesquisa, é que o próprio
pesquisador que entrevistou o informante, seja também o transcritor da fita. Ouvir e
transcrever a entrevista constitui, para ele, um exercício de memória em que toda a cena é
revivida”.
1.2.3 Análise documental
Nas palavras de Ludke e André (1986, p. 14),
dois métodos sicos utilizados pelos etnógrafos: a observação direta
das atividades do grupo estudado e entrevistas com os informantes para
captar suas explicações e interpretações do que ocorre nesse grupo. Mas
esses métodos são geralmente conjugados com outros.
Assim, a análise documental foi selecionada como instrumento objetivando identificar
nos materiais escritos dados relevantes acerca do objeto de estudo, possibilitando ao mesmo
tempo a triangulação, sendo mais uma fonte de informação, concordando com André (2005,
p. 53), porque “documentos são muito úteis nos estudos de caso porque complementam
informações obtidas por outras fontes e fornecem base para a triangulação dos dados”. Nesse
sentido, selecionei como documentos a serem analisados no processo de geração de dados o
projeto educativo da escola, os cadernos dos alunos e os livros didáticos de língua portuguesa
utilizados pelas crianças.
Ao analisar o projeto educativo da unidade escolar e seus adendos em 2007 e 2008, o
objetivo foi perceber o contexto em que a instituição estava inserida e como esta concebia e
organizava o ensino da leitura na escola. Em relação aos cadernos dos alunos, tanto em 2007
como em 2008, procurei estabelecer uma triangulação acerca dos eventos de leitura na escola
e obter uma análise mais pormenorizada das denominadas atividades de leitura, identificando
a recepção das crianças em relação a essas propostas. Os livros didáticos foram incorporados
à análise documental em 2008, uma vez que era importante ferramenta no trabalho de
alfabetização desenvolvido na primeira série. Cada criança possuía dois livros utilizados para
45
o ensino da leitura e escrita, selecionados pela escola e distribuídos pelo governo federal, um
denominado “livro de alfabetização” e outro “livro de língua portuguesa”. Com frequência a
professora fazia uso desses dois materiais nas situações de ensino de leitura e as crianças
demonstravam, de acordo com observação em aula, muita satisfação diante desses materiais;
daí sua relevância como fonte de dados.
Sobre a pertinência desses três tipos de materiais para a realização de uma análise
documental, cabe aqui uma citação das Autoras Ludke e André (1986, p. 38):
São considerados documentos quaisquer materiais escritos que possam ser
usados como fonte de informação sobre o comportamento humano. Estes
incluem desde leis e regulamentos, normas, pareceres, cartas, memorandos,
diários pessoais, autobiografias, jornais, revistas, discursos, roteiros de
programas de rádio e televisão até livros, estatísticas e arquivos escolares.
Para uma análise mais sistematizada, foram feitas cópias de todo o material
selecionado, a saber: do projeto educativo da escola e de seus adendos referentes ao período
da pesquisa em campo; dos cadernos de classe dos 19 alunos em 2007 e dos cadernos de
classe dos cinco alunos em 2008; e das páginas dos dois livros utilizados pelos alunos.
Também foi adquirido por doação da editora uma cópia de cada exemplar desses livros. Todo
esse acervo foi analisado após a fase de geração de dados, utilizando a técnica de análise de
conteúdo.
1.2.4 Grupo Focal
A utilização da técnica de grupo focal como instrumento para geração de dados foi
selecionada no segundo ano da pesquisa com o objetivo de aproximar-me dos cinco sujeitos
para gerar com mais eficácia dados em relação ao caminho percorrido na apropriação da
leitura, suas concepções, atitudes e interesses em relação a essa atividade. Como mencionado
anteriormente, na turma de primeira série as crianças não interagiam entre si, com a
professora e com a pesquisadora como em 2007, o que tornou mais difícil o processo de
geração de dados por meio das observações. Assim, o grupo focal foi fundamental para
atender ao objetivo da investigação no ano de 2008.
Segundo Gatti (2005, p. 7), um grupo focal corresponde a “um conjunto de pessoas
selecionadas e reunidas por pesquisadores para discutir e comentar um tema, que é objeto de
pesquisa, a partir de sua experiência pessoal”. Segundo a Autora, a utilização dessa técnica
para geração de dados busca “captar, a partir das trocas realizadas no grupo, conceitos,
46
sentimentos, atitudes, crenças, experiências e reações, de um modo que o seria possível
com outros métodos.” (GATTI, 2005, p. 9). Dessa forma, ao formar com as crianças um
grupo focal, procurei propiciar situações de leitura para captar, por meio da interação entre
todos, dados relacionados à sua experiência pessoal com essa atividade.
Sobre a organização e desenvolvimento do trabalho com grupos focais, Gatti (2005)
ressalta alguns cuidados como: a necessidade da elaboração de um roteiro para nortear os
encontros; a seleção de um número não muito grande de participantes, preferencialmente
entre seis e doze sujeitos; a necessidade de um local favorável à interação e por fim o registro
dos dados por meio da gravação em aúdio e anotações escritas. A respeito do tempo de
duração de cada reunião grupal e do número de sessões a serem realizadas, a Autora afirma
que dependem do objetivo de cada pesquisa. Em geral, a Autora recomenda que “os encontros
durem entre uma hora e meia e o mais que três horas, sendo que, em geral, com uma ou
duas sessões se obtêm as informações necessárias a uma boa análise.” (GATTI, 2005, p.28).
Atendendo a essas orientações e à natureza da investigação, foram realizados cinco
encontros com o grupo focal, formado por mim e pelas cinco criaas sujeitos da pesquisa,
sendo que cada sessão teve a duração entre uma e uma hora e meia, tempo esse negociado
com a professora da turma para que as crianças não ficassem muito tempo fora de sua sala de
aula, uma vez que todos os encontros do grupo ocorreram no período de aula. Para cada
encontro foi anteriormente elaborado um roteiro de acordo com o objetivo da pesquisa para
nortear as discussões, sendo estas gravadas em aúdio. O local escolhido foi o mesmo utilizado
para a realização das entrevistas, com mesa e cadeiras dispostas em círculo. Durante o
encontro também foram produzidas algumas anotações escritas que posteriormente foram
conjugadas com a transcrição das gravações de aúdio. O quadro a seguir apresenta uma
caracterização do uso dessa técnica na presente investigação, contendo a temática discutida
em cada encontro, bem como a data, o tempo de duração das sessões e os sujeitos
participantes.
47
Situação de leitura Data do
encontro
Tempo de
duração
Sujeitos da pesquisa
Leitura de um panfleto comercial
Leitura de um texto poético
31/03/2008 60 minutos Aluno 1, Aluno 15,
Aluno 17, Aluno 18.
Leitura de um bilhete
Leitura de um livro literário
25/04/2008 65 minutos Aluno 1, Aluno 6
Aluno 17, Aluno 18,
Aluno 15
Leitura de um panfleto informativo 20/05/2008 60 minutos Aluno 1, Aluno 6
Aluno 17, Aluno 18,
Aluno 15
Leitura de um convite de festa junina da
escola
13/06/2008 70 minutos Aluno 1, Aluno 6
Aluno 17, Aluno 18,
Aluno 15
Leitura de gibis 02/07/2008 80 minutos Aluno 1, Aluno 6
Aluno 17, Aluno 18,
Aluno 15
Quadro 4 - Caracterização dos encontros com o grupo focal
Para não perder o foco da pesquisa ao elaborar os roteiros de cada encontro, algumas
questões eram sempre consideradas como eixos para gerar a discussão e captar dados. Essas
questões estão explicitadas no quadro abaixo.
Questões norteadoras dirigidas às crianças durante os encontros
- Que texto é esse?
- De onde eu retirei?
- O que está escrito?
- Como vocês fazem para ler o que está escrito aí?
- Marquem o que vocês já podem ler.
- Vocês já tinham lido um texto como esse?
- Vocês lêem isso na escola?
- E na rua, em casa?
- Para que serve esse texto?
- Vocês gostaram de ler esse texto? Por quê?
Quadro 5 - Questões dirigidas às crianças durante as sessões com o grupo focal
Em cada encontro, de acordo com a situação de leitura e as interações entre os
participantes, outras questões eram geradas. Dessa forma, por meio do grupo focal foi
possível entender melhor as relações das crianças com a leitura, o que permitiu, como afirma
Gatti (2005, p. 68), articulações entre os múltiplos entendimentos e significados revelados
pelos participantes”, pois concordando com a Autora,
As comparações, os confrontos, as complementações, que os participantes
produzem entre si, a partir de suas experiências, são uma fonte sólida para a
construção de compreensões sobre a complexidade de formas de pensar, de
se comportar, das motivações, das intenções e expectativas, em face de
determinados aspectos de uma situação, de um problema, de uma ocorrência,
de um serviço, etc. (GATTI, 2005, p. 69-70).
48
O grupo focal, além de ter gerado dados significativos e substanciais ao processo de
pesquisa, possibilitou ainda a triangulação e validação de dados obtidos por meio dos demais
instrumentos utilizados. O último encontro com o grupo focal encerrou o trabalho de pesquisa
em campo e, portanto, o processo de geração de dados. A etapa seguinte foi proceder ao
término das transcrições referentes às entrevistas e transcrever os cinco encontros com o
grupo focal para dar início à terceira fase da investigação com o processo de análise
sistematizada. No último tópico deste capítulo, apresento a forma como ocorreu o tratamento
dos dados gerados a partir dos quatro instrumentos selecionados.
1.3 Análise sistemática dos dados: terceira fase do estudo de caso etnográfico
Nos estudos de caso etnográficos, a análise perpassa todo o processo de investigação,
principalmente para redimensionar os instrumentos selecionados para geração de dados,
porém torna-se mais sistemática e formal quando finaliza o trabalho de campo. Nas palavras
de André (2005, p. 56),
A fase mais formal de análise tem lugar quando a coleta de dados es
praticamente concluída. O primeiro passo na tarefa de análise é organizar
todo o material coletado, separando-o em diferentes arquivos, segundo as
fontes de coleta, ou arrumando-os em ordem cronológica. O passo seguinte é
a leitura e releitura de todo o material para identificar os pontos relevantes e
iniciar o processo de construção das categorias descritivas.
Assim, concluída a segunda fase da pesquisa, os dados gravados em aúdio foram
transcritos e os protocolos de observação e as entrevistas curtas organizados em ordem
cronológica. Na sequência, organizaram-se os dados brutos decorrentes dos quatro
instrumentos em dois conjuntos, um referente ao ano de 2007 e outro ao ano de 2008, porque
para apresentar a análise e a discussão dos resultados da investigação optei por organizá-las
em dois grandes capítulos, um referente ao caminho percorrido pelas crianças em relação à
leitura na educação infantil e outro em relação a essa atividade no ensino fundamental, já que
a pesquisa possui um caráter longitudinal. Na sequência, como orienta André (2005), iniciei
um processo de muitas leituras e releituras dos dados brutos com o objetivo de iniciar o
tratamento e a sua análise.
Para proceder à análise dos dados gerados em campo foi utilizada, para todos os
instrumentos de pesquisa, a técnica de análise de conteúdo, uma vez que de acordo com
Bardin (1977, p. 36) esta técnica “toma em consideração a totalidade de um texto, passando-o
49
pelo crivo da classificação e do recenseamento, segundo a freqüência de presença ou de
ausência de itens de sentido”. Bardin (1977, p. 42), define a análise de conteúdo como:
Um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por
procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição de conteúdo das
mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de
conhecimentos relativos às condições de produção/recepção destas
mensagens.
Nesse quadro, dada a natureza dos registros obtidos durante o trabalho de campo,
constata-se que a análise de conteúdo é a técnica mais adequada para a realização da análise
sistemática dos dados. Porém, ressalto que os estudos de Bardin (1977) são utilizados neste
trabalho de pesquisa apenas como referência à definição das categorias temáticas, o sendo
utilizado como aporte teórico seu conceito acerca da análise do discurso, uma vez que, como
anunciado, a pesquisa se fundamenta na teoria da enunciação de Bakhtin e nos estudos de
Vigostski e, portanto, afasta-se da teoria da comunicação em que se fundamenta o autor.
Nessa direção, de posse dos dados brutos organizados em dois conjuntos e orientando-
me pela Análise de Conteúdo proposta por Bardin (1977), o primeiro passo foi definir as
unidades de análise. De acordo com Franco (2005), elas dividem-se em unidades de registro e
unidades de contexto. Entre as unidades de registro que podem ser selecionadas para o
tratamento de dados, optei por utilizar o Tema, por ser a mais adequada unidade para estudos
sobre representações sociais, valores, conceitos, atitudes. A partir dessa unidade de análise,
elegi o critério de categorização semântica formando categorias temáticas para a teorização
dos dados obtidos na investigação. Ressalto que, antes da definição da unidade de análise e do
critério para categorização, foram realizadas inúmeras leituras dos dados brutos para se chegar
a essa definição. Assim, as categorias não foram formadas a priori, mas emergiram e
“emergem da fala, do discurso, do conteúdo das respostas e implicam constante ida e volta do
material de análise à teoria” (FRANCO, 2005, p. 59). Em relação às unidades de contexto,
Franco (2005) afirma que elas correspondem ao “pano de fundo” da unidade de registro, uma
vez que sempre se faz necessário fazer referências ao contexto da unidade de análise a
registrar.
No longo processo de formação das categorias, ponto crucial da análise de conteúdo,
foram tomados como orientação os princípios de Bardin (1977), a saber: Princípio da
exclusão mútua, ou seja, respeitar a homogeneidade das categorias, sendo que um único
critério de classificação orienta sua organização; Princípio da pertinência, pois uma categoria
deve estar adaptada ao material de análise escolhido e à teoria que a fundamenta; Princípio da
50
objetividade e fidedignidade, uma vez que a codificação do material em categorias deve ser a
mesma mesmo quando for submetida a várias análises; Princípio da produtividade, com a
apresentação de resultados relevantes para o aprofundamento de teorias e orientação de
práticas transformadoras.
As categorias formadas para possibilitar a apresentação da análise e discussão dos
resultados da pesquisa são apresentadas na segunda parte da tese, sendo idênticas em relação
aos dois conjuntos de dados, ou seja, tanto no conjunto de dados referente à educação infantil
quanto no referente ao ensino fundamental foram utilizadas as mesmas categorias para
codificação, pois o que se pretende na pesquisa é investigar o caminho percorrido pelas
crianças em relação à apropriação da leitura no início da vida escolar. Porém, antes de
apresentá-las, quero expor o aporte teórico utilizado no decorrer do estudo para teorização dos
dados resultantes da investigação.
51
2 Ensinar a ler na escola: a leitura como prática cultural
O título do presente capítulo anuncia o ponto de vista adotado neste trabalho em
relação à leitura, uma prática cultural que, como objeto de cultura, deve ser ensinada como tal
na instituição escolar. Para argumentar acerca dessa conceituação em relação ao ato de ler,
trago a contribuição dos estudos de Vigotski e da teoria da enunciação de Bakthin para o
ensino da leitura na escola com o objetivo de evidenciar em seus trabalhos as relações entre o
processo de escolarização e a formação do leitor, foco principal dessa pesquisa. Ao mesmo
tempo em que pretendo avançar o debate em torno desses dois processos, apresento o
referencial teórico utilizado para analisar e discutir os dados resultantes dessa investigação. A
princípio, pretendo discutir, a partir de Vigotski o papel do processo de escolarização para a
formação do indivíduo, focando a questão da formação do leitor e, na sequência, introduzir os
pressupostos e a contribuição da teoria de Bakthin em relação ao desenvolvimento e
apropriação da linguagem tecendo relações com o ensino do ato de ler na escola.
2.1 A leitura e o processo de escolarização sob a perspectiva dos estudos de Vigotski.
Os estudos de Vigotski e de seus colaboradores constituíram-se como referência para
esta investigação por três razões principais: por conceber o processo de desenvolvimento
como um processo de educação e nesse sentido apontar a relevância do processo de
escolarização para a apropriação das qualidades tipicamente humanas, como o ato de ler, por
exemplo; por conceber o processo de aprendizagem como sempre colaborativo, evidenciando
a importância do papel do outro e, no caso da educação escolar, o papel do professor como
mediador da relação da criança com o mundo - da criança com a prática cultural da leitura – e,
por fim, por conceber que uma boa situação de ensino é aquela que promove atividades que
fazem sentido para as crianças, que atendam às necessidades, permitindo-lhes aprender a usar
a cultura e assim, apropriar-se das capacidades e habilidades humanas. Isto posto, ressalto que
não pretendo aqui realizar uma exposição de todos os pressupostos da teoria de Vigotski, mas
apenas apresentar sua contribuição para o ensino e aprendizagem da leitura na escola
discorrendo sobre essas três razões.
Um dos pressupostos centrais da teoria e que se o ponto de partida para esta
discussão é a tese defendida pelo Autor e seus colaboradores de que o homem não nasce
humano, mas se torna humano. Diferentemente dos animais, é um ser de natureza social. Ao
nascer, não se adapta à natureza, mas começa a aprender a ser homem iniciando um processo
52
de apropriação das propriedades e aptidões historicamente formadas da espécie humana.
Assim, a criança não nasce dotada de um conjunto de aptidões e capacidades a se
desenvolver, mas precisa de se apropriar delas no decurso de sua vida em sociedade. Nas
palavras de Leontiev (1978), a sociedade forma a natureza humana, uma vez que é por meio
da relação com o mundo que o rodeia que o homem pode reproduzir as aptidões e funções
humanas historicamente formadas. A experiência social, portanto, é a fonte do
desenvolvimento; é por meio da relação com o outro, com as pessoas adultas e com as
crianças mais velhas, que a criança se apropria da cultura humana de acordo com as situações
que vivem e com o momento histórico em que vivem. E esse processo de apropriação é, de
acordo com Vigostski (1996), um processo de educação, pois o homem só se humaniza, se
torna homem, aprendendo com os outros.
Nesse sentido a educação ocupa papel central no processo de desenvolvimento, uma
vez que o processo de apropriação da cultura humana pela criança não ocorre de forma
espontânea, mas por meio do processo de educação. Não se aprendem os conhecimentos da
vida cotidiana e os conhecimentos mais intelectualizados sozinho ou de forma automática;
aprende-se no processo de interação com o outro que se apropriou do conhecimento e das
práticas com as quais se pode compreender o mundo. O homem se torna homem quando, por
meio do processo de educação, apropria-se da cultura criada pelas gerações precedentes.
Como afirma Leontiev (1978, p. 267),
Podemos dizer que cada indivíduo aprende a ser um homem. O que a
natureza lhe quando nasce não lhe basta para viver em sociedade. É-lhe
ainda preciso adquirir o que foi alcançado no decurso do desenvolvimento
histórico da sociedade humana.
Assim, a continuidade do progresso histórico da humanidade está atrelada à educação.
É por meio do processo educativo que se transmitem às novas gerações as aquisições da
cultura humana. Educar, portanto, não é tarefa corriqueira e não intencional. É tarefa
complexa e sempre implica uma dada intenção, pois, como aponta Vigostski (1996), a função
essencial da educação é a socialização do saber historicamente produzido tendo em vista a
máxima humanização dos indivíduos. Por isso, na tarefa de educar assume-se um
compromisso político-pedagógico ante as novas gerações, um compromisso histórico-social.
Nesse cenário a educação escolar desempenha um papel fundamental, uma vez que para se
atingir a máxima humanização é necessária a apropriação de formas elevadas de cultura que
ultrapassem a vida cotidiana.
53
A escola, desse ponto de vista, é, por excelência, a instituição responsável por
propiciar a apropriação do saber historicamente produzido e organizado pela humanidade com
objetivo de promover a elevação cultural dos indivíduos. A educação escolar, ao promover
essa elevação cultural, torna possível a transformação da sociedade por meio da
transformação das consciências; assim, espera-se que a escola possibilite a apropriação do
conhecimento pelas crianças, pois é a partir dessa apropriação da cultura que o ser humano se
desenvolve e desenvolve a sociedade. Para Vigostski, o desenvolvimento é resultado da
aprendizagem:
A aprendizagem não é em si mesma, desenvolvimento, mas uma correta
organização da aprendizagem da criança conduz ao desenvolvimento mental,
ativa todo um grupo de processos de desenvolvimento, e esta ativação não
poderia produzir-se sem a aprendizagem. Por isso, a aprendizagem é um
momento intrinsecamente necessário e universal para que se desenvolvam na
criança essas características humanas não naturais, mas formadas
historicamente. (VIGOTSKII, 2006, p.115).
Com este pressuposto, o Autor legitima o papel do processo de escolarização para o
desenvolvimento de novas qualidades tipicamente humanas, uma vez que, ao invés do ensino
adaptar-se ao que a criança sabe, ele precisa ir à frente, impulsionando o desenvolvimento
dela. Mukhina (1995, p.52), ao tecer uma análise da teoria histórico-cultural em relação ao
desenvolvimento da infância, afirma que “quando o ensino avança, abre caminho para o
desenvolvimento psíquico, pode orientar o desenvolvimento dos processos psíquicos, levar à
formação de determinadas qualidades psíquicas [...]” Esse ponto é importante, pois o processo
de escolarização precisa de ser visto como etapa essencial ao desenvolvimento do indivíduo, e
não mera extensão da vida cotidiana ou, ainda, simples socialização daquilo que já se sabe. Os
sujeitos precisam ir além do seu meio, ultrapassando os conceitos formados no dia-a-dia para
alcançar a apropriação dos conceitos científicos. Daí a necessidade de superar a visão de que
basta o acesso dos indivíduos à escola e de entender essa instituição como espaço para a
formação cultural, o que implica um compromisso não apenas com o acesso, mas com o
sucesso dos sujeitos, buscando criar condições para que possam se apropriar das máximas
capacidades humanas.
Isso nos leva a reconhecer que na escola as situações didáticas precisam ser planejadas
de modo a resultar em novas aprendizagens, ou seja, aprendizagens que ao transformar as
qualidades psíquicas adquiridas anteriormente levem à formação de novas qualidades. Nessa
direção, ao ensinar a ler, a educação escolar deve considerar as apropriações das crianças em
54
relação a essas qualidades adquiridas até o momento, afastando-se do pressuposto de que a
criança nada sabe ou que ainda não está pronta, para, a partir daí, organizar um ensino que de
fato resulte em aprendizagem dessa atividade como uma prática cultural construída
historicamente pela humanidade, e não como uma técnica cujo uso se restringe à escola. Ao
processo de escolarização fica a incumbência de assegurar às crianças a apropriação desse
objeto da cultura humana tornando-as leitoras nas mais diversas situações sociais e assim
possibilitar a apropriação das formas elevadas da cultura humana.
Sob esse olhar, o desencontro entre processo de escolarização e formação do leitor
poderia ser superado se a instituição escolar concebesse a leitura como objeto de cultura
herdada histórica e socialmente das gerações precedentes e que, portanto, só pode fazer
sentido aos indivíduos quando eles aprendem seu uso social. Insistir em ensinar a ler como
um sistema de decodificação, como uma técnica mecanizada de transformar letras em sons, é
contribuir para que cresça ainda mais o número de pessoas que, apesar de ter vivenciado o
processo de escolarização, não se apropriou dessa função psíquica que é a leitura como prática
cultural e, portanto, não é capaz de objetivá-la nas relações sociais. Ao discorrer sobre a
relação entre os processos de apropriação e de objetivação como a dinâmica da formação do
gênero humano segundo os pressupostos da teoria histórico-cultural, afirma Duarte (1999, p.
53) que:
[...] os indivíduos para se inserirem nesse processo histórico do gênero
humano, precisam se objetivar, isto é, precisam produzir e reproduzir a
realidade humana, o que, porém, não podem realizar, sem a apropriação dos
resultados da história da atividade humana.
Aprendendo a leitura como uma técnica, as crianças não poderão objetivar-se em
relação a essa atividade, uma vez que na cultura humana ela não existe como tal, e, portanto, o
processo de apropriação dessa atividade como prática de cultura e fruto da história da
humanidade não poderá ocorrer. Ao impossibilitar a relação entre o processo de apropriação e
de objetivação, a escola não cumpre sua missão em relação à leitura, não forma leitores, pois
“o indivíduo se forma, apropriando-se dos resultados da história social e objetivando-se no
interior dessa história, ou seja, sua formação se realiza através da relação entre objetivação e
apropriação.” (DUARTE, 1999, p. 47). A criança se apropria da leitura quando é capaz de
objetivá-la inserindo-a em sua atividade social. Dessa forma, é relevante nos dedicarmos ao
ensino da leitura como ela é de fato objetivada na cultura humana, e isso só é possível quando
55
a escola se torna mediadora entre as crianças e o mundo da atividade humana objetivada,
quando ensina a leitura para além de seus muros.
Leontiev (1978), ao ressaltar o processo de desenvolvimento como um processo de
educação, evidencia esse aspecto colaborativo da aprendizagem que prevê sempre o papel do
outro mais experiente como mediador entre a criança e o conhecimento historicamente
produzido e organizado pela humanidade. Segundo o Autor,
As aquisições do desenvolvimento histórico das aptidões humanas não são
simplesmente dadas aos homens nos fenômenos objetivos da cultura material
e espiritual que as encarnam, mas são apenas postas. Para se apropriar
destes resultados, para fazer deles as suas aptidões, os órgãos da sua
individualidade, a criança, o ser humano, deve entrar em relação com os
fenômenos do mundo circundante através de outros homens, isto é, num
processo de comunicação com eles. Assim, a criança aprende a atividade
adequada. Pela sua função, este processo é, portanto, um processo de
educação. (LEONTIEV, 1978, p. 272).
Assim, pontuada a relevância do processo de educação para o desenvolvimento e
consequentemente a relevância do processo de escolarização para a apropriação das
qualidades tipicamente humanas, cabe nesse momento discorrer sobre a tese de que as
crianças se apropriam dessas qualidades sempre por um processo de aprendizagem
colaborativo, como indica o Autor.
Para isso é necessário ressaltar que, na trajetória do desenvolvimento infantil, Vigotski
(1995) aponta a formação de dois processos intricados, o primeiro de ordem biológica,
espontânea e natural, os chamados processos inferiores, e o segundo de ordem social,
histórica e cultural, os processos superiores. Estes últimos referem-se às estruturas complexas
que nascem no decorrer do desenvolvimento cultural do sujeito, como a linguagem oral, o
desenho, a leitura, a escrita, as operações matemáticas, o pensamento lógico entre outras.
Dessa forma, apropriar-se das máximas capacidades humanas é criar novas funções psíquicas.
Afinal, diferentes dos animais, nós o nos desenvolvemos por um processo de adaptação,
mas pelo processo de apropriação, reproduzindo as aptidões e funções humanas
historicamente formadas. (LEONTIEV, 1978). Nesse sentido, as funções psicológicas
superiores se formam na interação social, são inicialmente interpsíquicas, partilhadas entre as
pessoas, formam-se no processo de vida por meio da educação que as transforma em
intrapsíquicas. Como afirma Luria (2006, p. 27), “os adultos são agentes externos servindo de
mediadores do contato da criança com o mundo. Mas à medida que as crianças crescem, os
processos que eram inicialmente partilhados com os adultos acabam por ser executados dentro
56
das próprias crianças.” Assim, as funções superiores primeiro se manifestam na vida coletiva
da criança e apenas depois se tornam individuais. Para Vigotski, (1995, p. 361, tradução
nossa), “o individual é o social assimilado.”
11
Nas palavras do Autor,
[...] sabemos que a continuidade geral do desenvolvimento cultural da
criança é a seguinte: primeiro outras pessoas atuam com respeito a ele; se
produz depois a interação da criança com seu entorno e, finalmente, é a
própria criança quem ativa sobre os demais e tão só ao final começa a atuar
com relação a si mesmo
12
. (VYGOTSKI, 1995, p. 232, tradução nossa).
Se o individual é o social assimilado, podemos compreender facilmente a necessidade
de as crianças conviverem com as formas ideais de características superiores humanas. A
criança apropria-se das capacidades humanas de acordo com a qualidade de sua interação com
o outro mais experiente. Se essa interação for deficitária ou não existir, seu desenvolvimento
cultural estará comprometido, afinal, como afirma Vigostski (1996), o homem é um ser social
e, portanto, sem a interação social não pode desenvolver-se em nenhum dos atributos.
[...] quando por diversas razões externas ou internas se rompe a interação
entre a forma final que existe no meio e a forma rudimentar que possui a
criança, o desenvolvimento deste se torna muito limitado, e isso resulta em
um estado mais ou menos subdesenvolvido das formas de atividade e dos
traços apropriados da criança. (VYGOTSKI, 1996, p. 23, tradução nossa).
13
Assim, se o que buscamos na escola em relação à leitura, processo psíquico de ordem
superior, é a formação de leitores, não podemos privar as crianças de vivenciarem situações
de prática cultural envolvendo o ato de ler. Não podemos dedicar um ano da educação infantil
e um ano do ensino fundamental ao ensino das letras, sílabas, palavras, decodificação de
textos, para somente após nos dedicarmos à tarefa de formar leitores. Se as funções psíquicas
superiores são formadas a partir da interação social é imprescindível que desde o início do
processo de escolarização as crianças convivam em contextos em que haja prática efetiva da
leitura, nas quais os adultos lêem para elas, em que sejam ensinadas a ler, em que sintam a
necessidade de se apropriarem dessa prática cultural. Isto implica compreendermos que na
11
No original: “[...] lo individual es lo social asimilado”. (VYGOTSKI, 1995, p. 361).
12
No original: “[...] Sabemos que la continuidad general del desarrollo cultural del nies la siguinte: primero
otras personas actúan respecto a él; se produce después la interacción del niño con su entorno y, finalmente, es el
propio niño quien actúa sobre los demás y tan solo al final empieza a actuar con relación a sí mismo”.
(VYGOTSKI, 1995, p. 232).
13
No original: “[...] cuando por diversas razones externas o internas se rompe la interacción entre la forma final
que existe en el entorno y la forma rudimentaria que posee el ninõ, el desarrollo de éste se torna muy limitado, y
lo que resulta de ello es un estado s o menos subdesarrollado de las formas de actividad y rasgos apropiados
del niño”. (VYGOTSKI, 1996, p. 23).
57
escola o ensino da leitura acontece no movimento e não de forma estática. Afinal, Vigotski
(1996) ressalta que a aprendizagem se realiza sempre em forma de colaboração com sujeitos
mais experientes por meio de uma interação intencional, organizada com objetivos definidos e
alunos ativos nesse processo.
O professor no exercício de sua principal tarefa dirige o processo educativo, sendo
responsável por planejar situações de ensino que permitam a formação do aluno
impulsionando seu desenvolvimento. O ensino gera aprendizagem e a aprendizagem conduz o
desenvolvimento. Como indica Vigotski (2007), é boa a aprendizagem que passa à frente
do desenvolvimento e o conduz; por isso se faz necessário que o professor conheça o nível de
desenvolvimento real dos alunos, as aprendizagens que já foram consolidadas e os
conhecimentos que já foram apropriados, para poder planejar situações de ensino que
objetivem novas aprendizagens, novos conhecimentos. Apenas nesse processo é possível
impulsionar o desenvolvimento. Estabelecer o nível real de desenvolvimento é uma tarefa
essencial e indispensável para a solução de todas as questões práticas relacionadas com a
educação e a aprendizagem da criança...” (VYGOTSKI, 1996, p. 265-266, tradução nossa).
14
Conhecendo o nível de desenvolvimento real, o professor pode conhecer o
desenvolvimento próximo do aluno, aquilo que a criança não consegue realizar sozinha, mas
com ajuda do outro mais experiente é capaz de realizar. Assim, de acordo com Vigotski
(1996), a segunda tarefa do professor é determinar os processos não maduros, que se
encontram em vias de amadurecer, e determinar a zona de desenvolvimento próximo:
[...] Ao investigar o que pode fazer a criança por si mesmo, investigamos o
desenvolvimento do dia anterior, mas quando investigamos o que pode fazer
em colaboração determinamos seu desenvolvimento de amanhã.
(VYGOTSKI, 1996, p. 269, tradução nossa).
15
Conhecer o desenvolvimento real e o desenvolvimento próximo é condição para o
professor poder, de fato, intervir no processo de aprendizagem do aluno contribuindo para seu
desenvolvimento. Em relação à leitura, cabe ao professor investigar o que as crianças
sabem e o que são capazes de realizar com sua ajuda para planejar situações de ensino que de
fato promovam aprendizagem, porque, concordando com Vigostski (2006, p. 109), “a
14
No original: Establecer el nivel real de desarrollo es una tarea esencial e indispensable para la solución de
todas las cuestiones prácticas relacionadas con la educación y el aprendizaje del niño…” (VYGOTSKI, 1996, p.
265-266).
15
No original: “[...] al investigar lo que puede hacer el ninõ por sí mismo, investigamos el desarrollo del día
anterior, pero cuando investigamos lo que puede hacer en colaboración determinamos su desarrollo del mañana.”
(VYGOTSKI, 1996, p. 269).
58
aprendizagem escolar nunca parte do zero. Toda a aprendizagem da criança na escola tem
uma pré-história”. Dessa forma, é inaceitável e incompreensível acreditar que todo e qualquer
ensino de leitura na escola deva começar pelo funcionamento do sistema de escrita, ensinando
primeiro o som das letras. Seria mais aceitável começarmos por investigar o que as crianças
são capazes de ler e como o fazem, pois não lemos sons nas palavras, lemos o sentido que elas
adquirem no contexto em que surgem (VIGOTSKI, 1998).
Mais uma vez, ensinar a ler é colaborar para que o sujeito se aproprie de uma prática
cultural e não de um processo mecanizado de correspondência grafema-fonema. Por isso, o
processo de escolarização acaba não promovendo o aprendizado dessa atividade quando a
reduz a um ato mecânico e isolado de oralização da língua escrita.
A esse respeito, escreveu Vigotski (1995, p. 183):
[...] A diferença do ensino da linguagem oral, a qual se integra na criança por
si só, e do ensino da linguagem escrita é que se baseia em uma aprendizagem
artificial que exige enorme atenção e esforço por parte do professor e do
aluno, devido a se converter em algo independente, em algo que se basta a si
mesmo; a linguagem escrita viva passa a um plano posterior. Nosso ensino
da escrita não se baseia ainda no desenvolvimento natural das necessidades
das crianças, nem em sua própria iniciativa: ela chega de fora, das mãos do
professor e lembra a aprendizagem de um hábito técnico, como por exemplo,
tocar piano. Como semelhante proposta, o aluno desenvolve a agilidade de
seus dedos e aprende, lendo as notas, a tocar as teclas, mas não o introduz na
natureza da música. (Tradução nossa)
16
.
Ainda nos dias de hoje, a escola tem insistido em ensinar a ler como se estivesse
ensinando a tocar piano. As crianças aprendem o funcionamento do sistema linguístico, mas
muitas não aprendem a ler, não compreendem o sentido daquilo que está diante dos olhos, não
entram no mundo da linguagem escrita, no círculo dos que compartilham dispositivos,
comportamentos, atitudes e significados culturais, acabando por limitar seu desenvolvimento
cultural. Nesta direção, é preciso ir além de ensinar como funciona o nosso sistema de escrita
e introduzir as crianças desde o princípio em situações vivas de leitura, levando-as a perceber
que essa consiste numa atividade produtiva para a vida humana. Insistir em ensinar a leitura
“como um hábito sensório-motor e não como processo psíquico de uma ordem muito
16
No original: “A diferencia de la enseñanza del lenguaje oral, em la cual se integra el niño por si solo, la
enseñanza del lenguaje escrito se basa em un aprendizaje artificial que exige enorme atención y esfuerzos por
parte del maestro y del alumno, debido a lo cual se convierte en algo independiente, em algo que se basta a si
mismo; el lenguaje escrito vivo pasa a un plano posterior. Nuestra enseñanza de la escritura no se basa aún en el
desarrolo natural de las necesidades del niño, ni en su propia iniciativa: le llega desde fuera, de manos del
maestro y recuerda el aprendizaje de un hábito técnico, como, por ejemplo, tocar el piano. Con semejante
planteamiento, el alumno desarrolla la agilidad de sus dedos y aprende, leyendo las notas, a tocar las teclas pero
no lo introducen en la naturaleza de la música.” (VYGOTSKI, 1995, p. 183).
59
complexa”
17
(VYGOTSKI, 1995, p. 198) constitui-se em algo incompreensível se o que
buscamos é a formação de leitores.
Nesse quadro o Autor deixa claro que aprender a ler não é dominar uma técnica
mecanizada, mas um sistema de signos simbólicos complexos que não pode ser reduzido à
verbalização do símbolo escrito. Vigostski (1995) argumenta que a leitura não se reduz à
reprodução de imagens de todos os objetos mencionados em cada frase lida e nem sequer do
nome que corresponde à palavra fônica; em vez disso, ela consiste “no manejo do próprio
signo, na referência ao significado, no rápido deslocamento da atenção na discriminação dos
diversos pontos que passam a ocupar o centro de nossa atenção.” E ainda, complementa o
Autor, “em saber destacar o importante e passar dos elementos separados ao sentido do todo.”
18
(VYGOTSKI, 1995, p. 199). Ora, é essa a conduta do leitor ao fazer uso da leitura como
objeto de cultura; não se cada palavra como um objeto isolado e muito menos se verbaliza
uma a uma; lê-se de forma seletiva o conjunto de palavras de acordo com sua significação
que, mediada pela intenção do leitor e pelo contexto no qual ocorre, permite a construção do
sentido.
Ler não é verbalizar a palavra escrita, é saber tratá-la como signo, atribuir-lhe sentido
tendo como referência seu significado, pois, como afirma Vigotski (1998, p. 150), “uma
palavra sem significado é um som vazio; o significado, portanto, é um critério da palavra, seu
componente indispensável”, daí a necessidade de, no ensino da leitura, serem consideradas as
palavras como signos que como tais são dotadas de significações. Aqui cabe mencionar que,
para o Autor, no domínio do signo linguístico, significado e sentido são distintos, pois uma
palavra adquire o seu sentido no contexto em que surge, sendo o significado incorporado
pelo sentido. O significado permanece estável ao longo de todas as alterações de sentido,
que segundo Vigotski (1996), o significado é a própria palavra vista no seu aspecto interno.
Ao ler, operamos com palavras, significados estáveis, que de acordo com o contexto podem
adquirir diferentes sentidos. Daí ser necessário conceber seu ensino não como algo puramente
mecânico, mas como algo que demanda à criança apropriar-se de uma complexa atividade
cultural.
Para que o ensino da leitura se concretize como tal, as crianças em processo de
aprendizagem, sempre colaborativo, precisam vivenciar situações de leitura que lhes
17
No original: “[...] como un hábito sensomotor y no como proceso psíquico de un orden muy complejo.”
(VYGOTSKI, 1995, p. 198).
18
No original: “[…] consiste más bien en el manejo del propio signo, en referirlo al significado, al rápido
desplazamiento de la atención y al desglose de los diversos puntos que pasan a ocupar el centro de nuestra
atención… en saber destacar lo importante y pasar de los elementos aislados al sentido del todo. (VYGOTSKI,
1995, p. 199).
60
permitam construir sentido a partir da significação do símbolo visual, ou seja, precisam
continuar a perceber que, assim como na língua oral, não há palavra sem significado. Quando
a escola conduz o ensino da leitura considerando apenas o aspecto sonoro da linguagem
escrita, ela destitui a palavra de sua essência, levando a criança a utilizá-la como se fosse
apenas um som vazio que, esvaziada de significação, impede a construção do sentido. E,
assim, o ensino da leitura se reduz a um processo mecânico e a linguagem escrita deixa de ser
tratada como tal.
Um bom ensino de leitura é aquele que promove atividades que permitem às crianças
atribuir sentidos que provoquem nelas a necessidade de ler como uma tarefa vital que lhes é
imprescindível. (VIGOTSKI, 1995). Para a teoria histórico-cultural, o elemento que move
todo o processo de desenvolvimento do sujeito é a atividade humana; assim, no processo de
aprendizagem a criança é sempre ativa. Para se apropriar das qualidades humanas, ela própria
precisa de realizar as atividades; o outro atua apenas como mediador. Porém, uma tarefa
realizada pela criança pode ser considerada como atividade quando faz algum sentido para
ela. Leontiev (1988) nos explica que a criança está realizando uma atividade quando o motivo
que a faz realizá-la coincide com seu resultado, ou seja, quando o resultado satisfaz uma
necessidade da própria criança. Por esta razão, o desafio do processo de escolarização é
planejar situações de ensino que criem novas necessidades, que gerem novos motivos
permitindo que as tarefas realizadas em sala de aula se constituam como atividades e deixem
de ser simples execução de um fazer mecânico, ausente de sentido para os sujeitos aprendizes.
Mello (2004, p. 148), ao discorrer sobre o conceito de atividade e sua implicação
pedagógica, afirma que “a atividade que faz sentido para a criança é a chave pela qual ela
entra em contato com o mundo, aprende a usar a cultura e se apropria das aptidões,
capacidades e habilidades humanas.” Assim, retomando Vigotski (1995), a leitura não pode
chegar de fora, pelas mãos do professor como se fosse uma técnica; seu ensino precisa criar
situações em que as crianças sintam necessidade de realizá-la e assim o façam, elas próprias,
por meio de atividades cujo sentido seja para elas o ler com possibilidades de tomada de
iniciativa e de sua entrada no mundo da cultura escrita.
Nas palavras do Autor,
[...] O ensino deve ser organizado de forma que a leitura e a escrita sejam
necessárias de algum modo para a criança. Se esse saber for utilizado apenas
para escrever felicitações oficiais aos superiores as que temos examinado
são palavras ditadas evidentemente pela professora -, resulta evidente que
semelhante atividade é puramente mecânica, que não tardará em aborrecer a
criança que não atua por si mesmo e não desenvolve sua personalidade. A
61
criança tem que sentir a necessidade de ler e escrever. [...] Isso significa que
a escrita deve ter sentido para a criança, que deve ser provocada pela
necessidade natural, como uma tarefa vital que lhes é imprescindível.
Unicamente então estaremos seguros de que ela se desenvolverá na criança
não como um hábito de suas mãos e dedos, mas como um tipo realmente
novo e complexo de linguagem
19
. (VYGOTSKI, 1995, p. 201, tradução
nossa).
O ensino da leitura, ao ser organizado de forma a levar a criança a construir um
sentido para o ler, permite a aprendizagem da linguagem como um sistema de signos, como
instrumento cultural complexo utilizado na mediação com o mundo. Ler na escola, ao tornar-
se necessário à criança, deixará de ser reduzido a um objeto escolar com um fim em si mesmo
para se constituir num objeto cultural. As crianças, ao lidarem desde o início com situações
didáticas que considerem o uso social para o qual a leitura foi criada, irão apropriar-se o de
um sistema de codificação, mas de uma complexa atividade produzida histórico-cultural e
socialmente.
Ensinar a ler, nesta perspectiva, consiste em planejar situações que vão além do ensino
do sistema de escrita alfabético. Não corresponde em fazer das crianças bons decodificadores,
dotando-as de um mecanismo de transformar grafemas em fonemas. Como afirma Vigotski
(1995, p. 150), “a palavra deve possuir, antes de tudo, um sentido”, não pode ser objeto de um
mecanismo, afinal, a capacidade puramente mecânica de ler mais freia que impulsiona o
desenvolvimento cultural da criança.”
20
(VYGOTSKI, 1995, p. 204). Ao leitor aprendiz
torna-se imprescindível vivenciar atividades em torno do ato de ler como objeto de cultura,
uma vez que, como aponta a teoria histórico-cultural, por de trás de todas as funções
superiores e de suas relações se encontram as relações sociais, as relações humanas. Se as
crianças não souberem por que devem ou estão lendo, o que buscar, qual a finalidade, o
motivo e o resultado do ato de ler, cada vez mais suas chances de produzir leitura serão
pequenas, tendo em vista que essa complexa atividade cultural será para elas uma tarefa
mecanizada.
19
No original: “[...] la enseñanza debe organizarse de forma que la lectura y la escritura sean necesarias de algún
modo para el niño. Si esse saber se utiliza tan solo para escribir felicitaciones oficiales a los superiores y las
primeras que hemos examinado son palabras dictadas evidentemente por la profesora-, resulta evidente que
semejante actividad es puramente mecânica, que no tardará en aburrir al niño, ya que no actúa por si mismo, ni
se desarrolla su personalidad. El niño de sentir la necesidad de leer y escribir. [...] Eso significa que la
escritura debe tener sentido para el niño, que debe ser provocada por necesidad natural; como una tarea vital que
le es imprescindible. Unicamente entonces estaremos seguros de que se desarrollará en el niño no cómo un
hábito de sus manos y dedos sino como um tipo realmente nuevo y complejo del lenguaje.” (VYGOTSKI, 1995,
p.201).
20
No original: “[...] La capacidad puramente mecánica de leer más bien frena que impulsa el desarrollo cultural
del niño.” (VYGOTSKI, 1995, p. 204).
62
Com efeito, os professores, como mediadores entre as crianças e o conhecimento,
possuem um importante papel na organização do processo de ensino da leitura como prática
cultural, pois, para promover o aprendizado e impulsionar o desenvolvimento de seus
educandos, precisam conhecer a zona de desenvolvimento real (VIGOTSKI, 2003) para
estabelecer a zona de desenvolvimento próximo e, com base nela, criar necessidades ao
planejar atividades que façam sentido às crianças e que se tornam possíveis a partir de
situações reais de leitura que envolvam os sujeitos aprendizes num processo de colaboração e
ativos no meio. É pela complexidade dessa tarefa que, com base em Vigotski (2003), parece
não ser possível que as crianças sozinhas possam se apropriar de uma atividade cultural
complexa como a leitura. Seu aprendizado, como prática cultural, não ocorre de forma
espontânea, mas precisa ser ensinado a elas.
[...] A meta da educação não é a adaptação ao ambiente existente, que
pode ser efetuado pela própria vida, mas a criação de um ser humano que
olhe para além de seu meio... Não concordamos com o fato de deixar o
processo educativo nas mãos das forças espontâneas da vida [...] tão
insensato quanto se lançar ao oceano e entregar-se ao livre jogo das ondas
para chegar à América. (VIGOTSKI, 2003, p. 77).
Em síntese, a teoria histórico-cultural permite dar sustentação à afirmação título desse
capítulo, evidenciando a relevância do processo de escolarização para a formação do leitor na
perspectiva de um ensino ativo que requer um processo de colaboração entre professor e
crianças e entre crianças e crianças, tendo como referência o pressuposto de que só promoverá
aprendizagem se ela for organizada de forma a fazer sentido aos sujeitos aprendizes, que ao se
apropriarem daquilo que foi objetivado pelas gerações precedentes possam também eles
objetivar, participar da cultura humana, fazendo uso da leitura como prática cultural.
2.2 Aspectos da teoria bakhtiniana para a questão da formação do leitor na escola
A teoria de Bakhtin não traz escritos acerca de aplicações pedagógicas para o ensino
da leitura na escola, entretanto, assim como a teoria histórico-cultural, sua obra (1995, 2003),
por buscar a construção de uma concepção histórica e social da linguagem, pode permitir uma
transposição para a questão da formação do leitor na escola, possibilitando contribuições ao
ensino do ato de ler.
Ao adentrar seus estudos, é possível reconhecer pontos de encontro com os estudos de
Vigotski apresentados no tópico anterior em relação ao ensino do ler como uma complexa
63
atividade cultural. Para ampliar a discussão tecida até o momento, busco neste tópico
apresentar três aspectos relevantes da teoria bakthiniana para a questão da formação do leitor
na escola. O primeiro consiste na concepção dialógica de linguagem, o segundo no papel do
outro para seu desenvolvimento, pois para Bakthin a interação é o princípio fundador da
linguagem e, por fim, o fato de que nos apropriamos da língua por meio dos gêneros do
discurso, instrumentos de comunicação.
Para Bakhtin (1995), a linguagem é dialógica por natureza, não pode ser considerada
individual; ela é social, produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados, “A
língua constitui um processo de evolução ininterrupto, que se realiza através da interação
verbal social dos locutores.” (BAKHTIN, 1995, p. 127). A língua não existe como objeto
isolado e acabado; é construída pela interação entre no mínimo dois interlocutores, que como
seres sociais produzem seus discursos com base em outros discursos; é um processo que está
em evolução permanentemente e por esta razão o pode ser considerada como algo estático,
sem vida.
Nesse sentido, o dialogismo da linguagem tem em Bakhtin (1995) duas facetas.
Primeiramente indica que um permanente diálogo entre os diferentes discursos histórico-
socialmente produzidos, e, segundo, que os discursos podem ser realizados porque existem
o eu e o outro. Toda manifestação linguística está, portanto, situada no meio social em que se
encontra o indivíduo. Ao produzir discursos, o sujeito não o faz no vazio, mas a partir de
outros discursos, e o o faz para si, faz para o outro. Assim, como Vigotski (1995), Bakhtin,
concebe a linguagem como atividade cultural complexa que é apropriada pelo sujeito por
meio das relações sociais. De acordo com o Autor, “originariamente, a palavra deve ter
nascido e se desenvolvido no curso do processo de socialização dos indivíduos, para ser, em
seguida, integrada ao organismo individual [...]” (BAKHTIN, 1995, p. 64). Em ambas as
teorias, o outro é sempre importante e indispensável; sem ele o sujeito não se desenvolve, não
se apropria da linguagem, o realiza aprendizagens. Bakhtin (1995) considera a interação
como a realidade fundamental da linguagem; para ele o eu pode realizar-se no discurso,
apoiando-se em nós. O sujeito, ao constituir um discurso, leva em consideração o discurso do
outro, que estará presente no seu. Assim, todo discurso se faz a partir de outros discursos e
todos o atravessados pelo discurso do outro. A linguagem produz-se num contexto que é
social e dialógico a partir da relação entre os sujeitos.
Dada a natureza dialógica da linguagem, o ensino da leitura na escola não se realiza a
partir de uma ngua estática, pronta, sem vida, mas ocorre na atividade da própria língua em
seu uso nas relações sociais, a partir da interação escritor e leitor ao lidar com o discurso que,
64
sempre ideológico, “responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e
objeções potenciais, procura apoio etc.” (BAKHTIN, 1995, p.123). É a leitura como objeto da
cultura humana, como atividade-meio que precisa ser ensinada às crianças, algo que se
contraponha ao ensino dessa atividade como algo em si mesmo, ausente de ideologia, que
nada responde, nada refuta, nada confirma e, portanto, não se constitui como processo
dialógico, já que reduz o discurso escrito a um conjunto de letras, palavras e orações.
O leitor aprendiz de ter oportunidades de vivenciar na escola a dialogia da
linguagem ao lidar com ela como enunciação, pois para Bakhtin (2003, p. 297) “as pessoas
não trocam orações, assim como o trocam palavras, ou combinação de palavras, trocam
enunciados constituídos com a ajuda de unidades da língua - palavras, combinações de
palavras, orações”. O enunciado constitui-se na unidade da comunicação discursiva; uma
enunciação é a produção da língua pelos indivíduos; assim ao lermos, não lemos letras, que
formam sílabas, que formam palavras e essas que formam orações; lemos enunciados. O
enunciado refere-se ao ato de produção do discurso oral ou do discurso escrito; refere-se ao
discurso da cultura.
Bakhtin (2003) permite compreender que o ensino da leitura na escola não se faz a
partir de letras, palavras ou orações isoladas, mas a partir de enunciados concretos que se
dirigem a alguém ou são suscitados por algo, e que, sendo assim, possuem algum objetivo na
comunicação discursiva da cultura humana. Para o Autor,
[...] Todo enunciado concreto é um elo na cadeia da comunicação discursiva
de um determinado campo. Os próprios limites do enunciado são
determinados pela alternância dos sujeitos do discurso. Os enunciados não
são indiferentes entre si nem se bastam cada um a si mesmos; uns conhecem
os outros e se refletem mutuamente uns nos outros. Esses reflexos mútuos
lhes determinam o caráter. Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de
outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera de
comunicação discursiva. Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como
uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo... ela o
rejeita, confirma, completa, baseia-se neles, subentende-os como conhecidos
de certo modo os leva em conta. (BAKHTIN, 2003, p. 297).
Um enunciado se forma a partir de enunciados anteriores; qualquer enunciado
produzido pelo indivíduo carrega consigo a palavra do outro. Daí a natureza dialógica da
linguagem sob uma perspectiva histórica e social, pois cada enunciação é produto da relação
entre os indivíduos ao longo de seu desenvolvimento cultural. Não existe enunciado
produzido para ser indiferente; quando o falante ou o escritor cria um enunciado, espera uma
resposta do ouvinte ou do leitor, que, portanto não são passivos, são ativos e no processo de
65
produzir respostas formarão outros enunciados. Apenas na escola é que a construção de
enunciados pode ser indiferente, quando se coloca o texto nas mãos da criança, mas não se a
ensina a operar com enunciados, a atribuir sentido, a dialogar com o autor, a produzir
respostas para tornar-se coenunciadora.
Uma produção escrita, uma leitura sempre preveem interlocutores. Ao escrever, o
escritor considera seu destinatário que lhe dirige a forma de tecer o discurso escrito; ao ler, o
leitor torna-se coenunciador porque, ao atribuir sentido ao escrito, recria o enunciado a partir
de seu próprio discurso. Por meio dessa dinâmica, considerando sempre o outro, é que se
constrói a experiência discursiva individual, aprendendo-se a falar, a ouvir, a escrever, a ler
enunciados. Isso implica considerar que é na manifestação real e concreta da leitura que essa
atividade é apropriada pelo sujeito aprendiz, o qual, desde o início do processo de
escolarização, deve operar com enunciados, aprender a atribuir-lhes sentido.
O discurso só existe na forma de enunciações; fora dessa forma não se refere a
discursos, manifestações da linguagem como tal, mas a um conjunto de sinais gráficos sem
sentido, monológico, que não permite ao sujeito aprendiz construir sua própria experiência
discursiva, porque não trabalha com sua unidade. O enunciado não corresponde a uma
unidade artificial, mas a uma unidade real em que os sujeitos do discurso participam
ativamente, operando sobre eles. A linguagem não é falada ou escrita no vazio, mas numa
situação social concreta.
Nesse quadro, Bakhtin (1995), também como Vigotski (1995), concebe a palavra
como signo. Quando a escola o realiza o trabalho com a leitura a partir de enunciações,
deixa de conceber a palavra como signo e passa a considerá-la como sinal: “o signo dialético,
dinâmico, vivo, opõe-se ao sinal inerte que advém da análise da língua como sistema
abstrato” (p. 15). A língua tomada em sua concretude, como processo de comunicação vivo e
ininterrupto, constitui-se num sistema de signos ideológicos que jamais pode ser tomada
como um sistema estável e abstrato de sinais constantemente iguais e possíveis de serem
isolados. Quando o homem se comunica com o outro por meio da linguagem falada ou escrita,
não são palavras que falamos ou escrevemos, mas de acordo com Bakhtin (1995, p. 95),
“verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou
desagradáveis, etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido
ideológico.” Não são as palavras como sinais que nos permitem fazer uso da linguagem, mas
as palavras como signo. O sinal constitui-se num aspecto técnico que sozinho nada diz,
apenas quando é absorvido pelo signo é que pode comunicar-se, tornar-se linguagem.
66
A palavra para Bakhtin (1995) é o signo interior, o que faz dela palavra é sua
significação. Quando o homem não é capaz de reconhecer sua significação, perde a própria
palavra que, reduzida à sua realidade física, torna-se mero sinal. Reduzida à sua sinalidade, a
palavra ou um conjunto de palavras não pode ser constituído como enunciado, pois este se
caracteriza por ser a unidade da comunicação discursiva da língua. Nesse sentido, ao ensinar a
linguagem escrita às crianças, a escola não pode se deter a ensinar a palavra como sinal para
depois a tratá-la como signo. Reduzir o processo de alfabetização ao ensino da linguagem
como um sistema de sinais é ensinar às crianças a língua como um objeto isolado, imutável e
monológico. Ler e escrever tornam-se atividades com um fim em si mesmo, ficando reduzidas
ao aprendizado técnico de decodificar e codificar, mas não de ler e produzir discursos, não de
operar com enunciados num processo de dialogia, de interação entre interlocutores e,
portanto, não de se apropriar da linguagem como atividade cultural.
Acreditar que primeiro é preciso que as crianças aprendam a sinalidade da linguagem,
para somente depois aprender a tratá-la como signo, é incorrer contra a própria linguagem,
uma vez que sem significação, a função de signo, a palavra não é palavra, portanto não pode
haver ensino e aprendizagem de linguagem. Como Vigotski (1995), Bakhtin nos pistas de
que o ensino da leitura, desde o princípio, se faz a partir de práticas culturais, práticas
discursivas, concebendo a linguagem escrita como um sistema de signos e não como um mero
conjunto de sinais. Segundo o Autor,
Enquanto uma forma lingüística for apenas um sinal e for percebida pelo
receptor somente como tal, ela não terá para ele nenhum valor lingüístico. A
pura sinalidade não existe, mesmo nas primeiras fases da aquisição da
linguagem. Até mesmo ali, a forma é orientada pelo contexto, já constitui um
signo [...] (BAKHTIN, 1995, p. 94).
Desde o princípio do processo de escolarização, é a linguagem como signo e não como
sinal que deve ser ensinada às crianças. Assim, não sentido em iniciar o processo de
alfabetização a partir de letras, sílabas e palavras isoladas ou ainda, até mesmo a partir de
textos, se estes não se configuram para as crianças e para os professores como tal, mas apenas
como um conjunto de sinais que nada comunica para os sujeitos, e que por isso não possui
valor linguístico; está ali apenas para servir como objeto no ensino da correspondência
grafema-fonema, na linguagem como sinal. Com isso, quero salientar que tanto iniciar o
ensino da leitura por meio da identificação de letras, como a partir de textos para apenas tirar
dele uma palavra que será isolada para ensinar suas partes, o o, do ponto de vista dos
67
estudos de Bakhtin (1995), práticas coerentes com o ensino da leitura como de fato se
configura nas relações sociais.
Quando a criança aprende apenas a sinalidade da linguagem, ela aprende apenas a
identificar um sinal técnico, que não pode refratar nada; ela é capaz de oralizar o escrito, mas
não é capaz de atribuir-lhe sentido, não é capaz de ler, uma vez que quando a palavra é
percebida apenas como sinal, a identificação predomina sobre a compreensão. A criança é
capaz de identificar o conjunto das letras e sílabas que formam a palavra, mas o é capaz de
reconhecê-la como signo, ou ela percebe o texto como um conjunto de palavras, mas não é
capaz de compreendê-lo como enunciado.
Assim, cabe aqui uma afirmação de Arena (1992, p.79), que ao tecer uma análise da
contribuição de Bakhtin ao processo de alfabetização afirma que: “Argumentar que no início
do processo de alfabetização é necessário trabalhar a sinalidade, isto é, a identificação do
sinal, é remeter a criança para um processo de contra-formação do leitor e escritor”. Essa
armadilha tão antiga e cristalizada na escola de que para ser leitor é necessário primeiro
aprender os sinais, aprender a decodificar, para depois operar com signos, aprender a
compreender, ler de fato, ainda há de ser superada pela instituição escolar.
Nesta perspectiva, é possível reconhecer a necessidade de situações de ensino que
criem verdadeiras práticas de leitura, uma vez que, para a palavra ser ensinada como signo e
não como sinal, é necessário que o sujeito aprendiz a vivencie, a realize convivendo com
práticas discursivas; afinal, “os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada; eles
penetram na corrente da comunicação verbal, somente quando mergulham nessa corrente é
que sua consciência desperta e começa a operar.” (BAKHTIN, 1995, p. 108). Quando se
oportuniza que as crianças participem de situações de leitura reais, mostrando a elas como
operar com enunciados, que como tal, sempre dizem algo ou provocam respostas, se está, de
fato, contribuindo para a formação de leitores.
Com efeito, participar da cultura escrita é lidar com a leitura e escrita de enunciados,
uma vez que é na enunciação que a palavra deixa de ser sinal e se torna signo. A significação,
segundo Bakhtin (1995), se realiza no processo de interação entre interlocutores, a
comunicação discursiva fornece à palavra sua significação, “é impossível designar a
significação de uma palavra isolada sem fazer dela o elemento de um tema, isto é, sem
construir uma enunciação, um exemplo.” (BAKHTIN, 1995, p. 129).
Cabe mencionar que Bakhtin (1995, p. 129) faz uma distinção entre sentido e
significado. Segundo ele, a significação corresponde “aos elementos da enunciação que são
reiteráveis e idênticos cada vez que são repetidos”; é a palavra dicionarizada como também
68
concebe Vigotski (1998). o sentido, denominado pelo Autor como o tema da enunciação, é
dado pelo contexto, nas condições de uma enunciação concreta. Com efeito, o tema da
enunciação é determinado não apenas por sua forma linguística, mas principalmente pelos
elementos da situação. Assim, ao operar com enunciados é de suma importância não perder de
vista esses elementos, pois, de acordo com Bakhtin, seria o mesmo que perder suas palavras
mais importantes, tornando difícil a atribuição de sentido. Ao realizar o trabalho de leitura
com as crianças, é preciso atentar para o fato de que não se pode operar com o enunciado fora
de seu contexto histórico-social, isolando-o como objeto de ensino; se assim se proceder, não
será possível determinar seu tema, ou seja, atribuir-lhe sentido, afinal “o signo e a situação
social estão indissoluvelmente ligados.” (BAKHTIN, 1995, p. 16).
Quando Bakhtin (1995) ressalta a natureza dialógica da linguagem de se
compreender que o diálogo a que o autor se refere não é apenas o de uma relação face a face,
mas notoriamente o da relação entre enunciados e contextos de produção. O discurso, seja
falado ou escrito, só pode ser compreendido de acordo com seu contexto. Enunciados
desvinculados de seus contextos tornam-se um conjunto de sinais gráficos ou de sons que
impedem uma atitude responsiva do sujeito e, portanto, fazem da língua um sistema fechado
ausente de ideologia e compreensão.
Como afirma Bakhtin (1995), todo enunciado espera uma compreensão responsiva
ativa, é produzido sempre para uma resposta, por esta razão não existe fora das relações
dialógicas. Compreender enunciados escritos, por exemplo, é participar de um diálogo com o
autor gerando uma resposta ativa. “A compreensão é uma forma de diálogo; ela está para a
enunciação assim como uma réplica está para a outra no diálogo. Compreender é opor à
palavra do locutor uma contrapalavra.” (BAKHTIN, 1995, p.132). Ao oportunizar aos leitores
iniciantes situações de leitura com enunciações vinculadas a seu contexto de produção, a
escola favorece a compreensão das crianças como uma forma de diálogo. Afinal, o sentido e a
significação das palavras na enunciação não estão no papel, prontos para ser desvendados, só
podem ser construídos pelo leitor durante o ato de ler, segundo Bakhtin (1995, p. 132): “não
tem sentido dizer que a significação pertence a uma palavra enquanto tal. Na verdade, a
significação pertence a uma palavra enquanto traço de união entre os interlocutores, isto é, ela
só se realiza no processo de compreensão ativa e responsiva.”
Para Bakhtin os enunciados são, portanto, produzidos de acordo com sua função no
processo de interação. Cada enunciado é construído de acordo com as necessidades e
finalidades da atividade humana ao fazer uso da linguagem. No processo dialógico entre o eu
e o outro se elaboram tipos relativamente estáveis de enunciados para atender a uma
69
determinada esfera de atividade. Bakhtin (2003) denomina esses tipos de enunciados
relativamente estáveis de gêneros do discurso compreendendo-os como organizadores do
discurso e instrumentos do processo de comunicação.
Dada a relevância desse aspecto da teoria bakhtiniana para o objeto de estudo dessa
pesquisa, busco no próximo subtópico discutir o conceito de gêneros do discurso como
instrumentos de comunicação e a partir daí concebê-los também como instrumentos para o
ensino da leitura na escola.
2.2.1 Os gêneros do discurso: instrumentos de comunicação e de ensino do ato de ler na
escola
Os enunciados, de acordo com Bakhtin (2003), encontram-se organizados no emprego
da língua em forma de gêneros do discurso. Cada gênero compreende tipos estáveis de
enunciados de acordo com três elementos: conteúdo temático, construção composicional e
estilo. O conteúdo temático refere-se ao domínio de sentido de que se ocupa o gênero. A
construção composicional corresponde ao modo como os enunciados são estruturados. O
estilo é a seleção dos meios linguísticos necessários ao enunciado em função do destinatário e
de como se espera sua compreensão responsiva ativa.
Dessa forma, cada vez que o sujeito faz uso da língua, ele o faz por meio de
determinado gênero, que é selecionado a partir da realidade da comunicação, considerando a
necessidade temática, o interlocutor e sua própria intenção como locutor. Para Bakhtin (2003),
sem os gêneros do discurso não haveria comunicação, como afirma o Autor:
[...] Nós aprendemos a moldar o nosso discurso em formas de gênero e,
quando ouvimos o discurso alheio, já adivinhamos o seu gênero pelas
primeiras palavras, adivinhamos um determinado volume (isto é, uma
extensão aproximada do conjunto do discurso), uma determinada construção
composicional, prevemos o fim, isto é, desde o início temos a sensação do
conjunto do discurso que em seguida apenas se diferencia no processo de
fala. Se os gêneros do discurso não existissem e nós não os dominássemos,
se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo do discurso, de
construir livremente e pela primeira vez cada enunciado, a comunicação
discursiva seria quase impossível. (BAKHTIN, 2003, p.283).
O gênero é, para o Autor, a realidade da comunicação humana. É por meio dos
gêneros que o sujeito se apropria da linguagem e a objetiva. Nesse sentido, eles são
instrumentos que tornam possível a comunicação discursiva. Aprender a falar, a escrever, a
ler, é apropriar-se desses instrumentos que tornam possíveis a produção ou a compreensão de
70
enunciados; logo os gêneros do discurso constituem-se também em instrumentos para o
ensino da leitura na escola.
As crianças aprendem a ler a partir de tipos estáveis de enunciados, a partir dos
diversos neros do discurso, pois não lemos receitas como lemos poesias, não lemos uma
notícia como lemos uma história de ficção. Cada conjunto de enunciados organizados de
acordo com seu conteúdo, sua estrutura e suas marcas linguísticas demandam do leitor
diferentes condutas. Quando a escola concebe a linguagem como sinal, ensinando apenas uma
forma de ler, não permite aos alunos operarem com os diversos gêneros do discurso e assim
não contribui para a formação de leitores. Nesse sentido, ao considerar a linguagem como um
sistema de signos, os gêneros em sua diversidade se tornam os instrumentos pelos quais o
professor ensina a língua escrita.
No processo de apropriação dos gêneros do discurso, Bakhtin (2003) aponta que, ao
longo do desenvolvimento da linguagem, o indivíduo se apropria dos gêneros primários, tipos
mais simples de enunciados, e dos gêneros secundários, tipos mais complexos de enunciação.
Os gêneros primários são desenvolvidos a partir das condições da comunicação discursiva
imediata. A criança se apropria deles por meio da troca verbal espontânea no decorrer de sua
experiência social. os gêneros secundários surgem apenas nas condições de um convívio
cultural mais complexo, desenvolvido e organizado, por isso não são apropriados de forma
espontânea pelo sujeito. Os gêneros primários fornecem ao indivíduo a base para o
desenvolvimento dos gêneros secundários. Com base em Bakhtin (2003), Schneuwly (2004,
p. 30-35) afirma que “os gêneros primários são o nível real com o qual a criança é
confrontada nas múltiplas práticas de linguagem... são os instrumentos de criação dos gêneros
secundários.”
A partir dessas considerações, acredito que sendo o processo de escolarização
responsável pela apropriação do conhecimento cultural produzido e organizado pela
humanidade, cabe a ele, notadamente, realizar com base nos gêneros primários, o trabalho de
ensino dos gêneros secundários, possibilitando às crianças novas construções discursivas e a
apropriação de enunciados mais complexos, como os gêneros discursivos escritos, a retórica,
e outros. Para isso, na escola, os gêneros devem não apenas se constituir como instrumentos
da comunicação, como também em instrumentos de ensino e de aprendizagem da linguagem,
já que sem eles não há comunicação e consequentemente não há ensino da língua.
Nesta perspectiva, quando a criança inicia o processo de escolarização, suas
apropriações em relação aos gêneros primários não podem ser desconsideradas pelo professor;
são a referência para novas apropriações discursivas. Por isso, situações que permitam às
71
crianças participarem de práticas efetivas de linguagem são fundamentais no processo de
ensino; somente dessa forma é possível ao professor conhecer o nível real das crianças em
relação à linguagem.
Ao argumentar sobre a necessidade em conceber os gêneros do discurso como
instrumentos para o ensino do ato de ler na escola, saliento que esses o podem ser tomados
simplesmente como conjunto de propriedades formais a que os enunciados devem obedecer.
Assim como defende Fiorin (2008), o ensino a partir dos gêneros não pode tornar-se
normativo, porque não corresponde a esse um conjunto de propriedades isolado de uma esfera
de ação. Tratar os gêneros do discurso sob esse ponto de vista é desconsiderar sua própria
natureza, uma vez que esses não estão estagnados, acabados, normatizados na língua. Como
afirma Bakhtin (2003, p. 262),
A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque são
inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e porque em
cada campo dessa atividade é integral o repertório de gêneros do discurso,
que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve e se complexifica um
determinado campo.
Nesse sentido, os gêneros do discurso não estão numa grade prontos para serem
utilizados em qualquer tempo e espaço. De acordo com a realidade da atividade humana,
novos gêneros podem surgir e outros se modificar. Fiorin (2008), a esse respeito, cita como
exemplo o desaparecimento da epopeia e o surgimento do e-mail. Assim, ensinar a ler tendo
como instrumento os gêneros do discurso não é tratá-los como um conjunto de regras sem
conexão com a realidade da atividade humana na qual se inserem. Não é isolá-lo da situação
de comunicação, como objeto didático, mas considerá-los como meio de apreender a
realidade, já que o gênero estabelece uma conexão da linguagem com a vida social, é
instrumento de comunicação.
Cabe ressaltar que a própria denominação dada por Bakhtin (2003) aos gêneros do
discurso como tipos relativamente estáveis de enunciados deixa explícito que normatizá-los é
ir na contramão desse conceito.
As crianças se apropriarão dos gêneros do discurso ao fazerem uso desses em
contextos de conexão da linguagem com a vida social, ou seja, em situações reais que
envolvam o ato de ler. Não dominar um determinado gênero do discurso o significa que o
sujeito não conhece um conjunto de normas que o caracteriza, mas sim que não o vivenciou
em determinada esfera da atividade humana. Daí a relevância de ensinar a ler tendo como
instrumento os gêneros, já que o que falamos, ouvimos, escrevemos e lemos estão
72
organizados em gêneros do discurso. De acordo com Schneuwly (2004, p.75), “o gênero
pode, assim, ser considerado um megainstrumento que fornece um suporte para a atividade,
nas situações de comunicação, e uma referência para os aprendizes.”
Portanto, os gêneros do discurso podem corresponder à ferramenta do professor ao
ensinar a ler, uma vez que ensinar a leitura tomando como referência Bakhtin (2003) é ensinar
os alunos a dominar a diversidade dos gêneros do discurso de forma que ao reconhecerem seu
conteúdo, sua estrutura e sua forma linguística possam dar-lhe sentido, ou seja, ler. Quando
ensinamos a ler a partir de tipos de enunciados, não é a leitura como sinal, reduzida à
decodificação ou à oralização que está em jogo, mas a leitura como prática cultural, que
emerge de uma concepção dialógica da linguagem e de um conceito de língua como
construção social e ideológica, que, dotada de um sistema de signos, sempre prevê uma
atitude responsiva do outro com quem se fala, para quem se escreve, de quem se fala, de
quem se escreve, uma relação dialógica entre os discursos e entre os interlocutores, que é
possível por meio da interação social entre os indivíduos.
Ao argumentar sobre a natureza dialógica da linguagem, a interação como seu
princípio fundador e os gêneros do discurso como instrumento no processo de comunicação
humana, Bakhtin (1995, 2003), assim como os estudiosos da teoria histórico-cultural, pode
nos ajudar a diminuir a distância entre escolarização e formação do leitor, indicando que na
escola é imprescindível considerar a palavra como signo ideológico, que como tal é sempre
dialógico, demandando interação entre discursos e entre os sujeitos do discurso, a partir de um
trabalho que se faça por meio dos gêneros e não por meio de letras ou palavras ou textos
isolados. A leitura a ser ensinada na escola é a que se faz presente nas relações sociais, uma
leitura ideológica, dialógica, e interlocutora, portanto uma prática da cultura humana.
A partir do mergulho nas obras de Vigotski e Bakhtin com o olhar focado para a
questão da formação do leitor, foi possível encontrar nos dois Autores indicações de que a
leitura a ser ensinada na escola de fato não é a mediada pela relação grafema-fonema, mas a
mediada pela significação. Ambos os autores concordam que a palavra escrita é signo, e que,
portanto, sempre significa, não pode ser lida como sinal; é símbolo visual e só adquire sentido
quando inserida num contexto, como afirma Bakhtin (1995), quando corresponde ou pertence
a uma enunciação. É a leitura objetivada na cultura humana que será apropriada pelas
crianças, ou seja, uma atividade necessária e vital nos termos de Vigotski (1995) e ainda
dialógica e ideológica nos termos de Bakhtin (1995), portanto, os dois Autores discordam
claramente que o ensino da leitura no início do processo de escolarização precisa centrar-se
sobre a leitura como habilidade de decodificação ou de oralização da palavra escrita.
73
Entretanto, no século seguinte à publicação dessas duas teorias, a escola parece insistir
em não mudar sua história em relação à formação do leitor, pois se ainda um desencontro
entre processo de escolarização e apropriação da leitura como prática cultural é porque grande
parte das crianças continua aprendendo uma leitura que só serve à escola e que não possibilita
a objetivação dessa atividade em suas relações sociais.
Nesse sentido, julgo ser relevante tecer, no próximo capítulo, algumas considerações
acerca das marcas da história em relação ao ensino do ler no cenário atual e, a partir daí,
agregar ao diálogo estudos e pesquisas recentes sobre formação do leitor na instituição
escolar.
74
3 O ensino da leitura e suas marcas na história
A história do ensino da leitura parece ter dificuldade para virar a gina. Assim como
no século XIX, a escola muitas vezes ainda insiste em acreditar que a melhor forma de iniciar
a criança no conhecimento da língua escrita é ensinando-lhe a decifrar letras (CHARTIER;
HEBRARD, 1995). A crença de que para ler é necessário dedicar um tempo da vida escolar à
aprendizagem desse mecanismo, para somente depois disso ensinar a criança a compreender o
escrito, como ocorria mais de cem anos, ainda está presente na concepção de ensino de
leitura da atualidade, pois, do contrário, seria incoerente pensar que as pessoas aprendem a ler
na escola, mas não conseguem fazer uso dessa atividade quando estão fora dela, como
evidenciam os estudos de Soares (2004) e de Bajard (2006). Apesar de haver afirmações a
respeito de que o discurso sobre a decifração já soa como superado, práticas escolares
continuam a materializar e princípios teóricos continuam a fundamentar essa concepção.
Insistir em contrariar tal posição, portanto, não seria redundar, mas aprofundar os estudos para
que na sala de aula o ensino do ato de ler rompa com velhos princípios introduzindo novas
roupas.
Tornar a aquisição dos mecanismos de correspondência letra/som como princípio e
requisito para que a criança possa adentrar o mundo da escrita é estar coerente com os
pressupostos dos séculos XVIII, XIX, mas algo difícil de compreender no contexto do século
XXI, pois a partir das teorias de Vigotski (1995) e Bakhtin (1995, 2003) e de diversos estudos
e pesquisas sobre o ensino da leitura, sabe-se que é participando da cultura escrita que a
criança se apropria dela, convivendo com formas mais elaboradas de leitura e operando com
enunciados, não com letras e palavras isoladas e esvaziadas de significação.
Entretanto, a escola insiste em submeter o ensino da leitura a letras, palavras e textos
sem sentido para a criança, reduzindo a linguagem à sua sinalidade ou a uma mera técnica. Ao
fazer isso, afasta os aprendizes da apropriação da leitura como prática cultural e os aproxima
das salas de aula do culo XVIII, ensinando que ler é decodificar, pronunciar e oralizar o
escrito. Com intuito de revelar as marcas dessa história no contexto atual, busco nesse
capítulo discutir os métodos para ensinar a ler com o objetivo de apontar que, no cenário
atual, novas disputas sobre a melhor forma para aprender a ler são, de acordo com os registros
históricos, velhas disputas, as quais continuam distanciando as crianças em início do processo
de escolarização da apropriação do ato de ler como objeto de cultura.
75
3.1 A leitura e os métodos de ensino
Ao longo da história do ensino da leitura, tomando por referência a obra e os estudos
de Aguayo (1952), Fontoura (1957, 1965), Barbosa (1994), Arena (1996), e Cavallo e
Chartier (1998), é possível reconhecer que os métodos para ensinar a ler estão agrupados em
duas categorias, a dos todos sintéticos e a dos métodos analíticos. A primeira formada
pelos métodos do ABC ou da soletração, do fônico e do todo da silabação, e a segunda,
composta pelos métodos da palavração, método ideovisual, método de sentenciação e
métodos de contos. A disputa acerca de qual o mais eficaz desses métodos é antiga e deixa
suas marcas no curso da história da leitura na instituição escolar. Por essa razão, uma breve
retomada dos princípios de cada um deles torna-se relevante para se compreender o cenário
atual no que se refere às relações entre processo de escolarização e formação do leitor.
Os métodos sintéticos possuem em comum o princípio de que é preciso ensinar das
partes ao todo, iniciando pela letra, fonema ou sílaba. A aprendizagem da leitura se realiza a
partir da soma dos elementos mínimos - grafema, fonema ou sílaba - para formar palavras,
depois frase e por fim texto. Aprender a ler seria, portanto, aprender a decodificar o escrito.
Segundo Barbosa (1994), os métodos sintéticos possuem mais de 2000 anos, predominando
até meados do século XVIII como o principal meio para ensinar a ler. Dentre os três todos
com esse princípio, o da soletração ou ABC é o mais antigo e, mesmo com o aparecimento do
método fônico e do método da silabação, foi o mais utilizado nas instituições escolares.
Como afirma Aguayo (1952, p. 296), durante muitos séculos a leitura foi ensinada
exclusivamente pelo detestável método ABC”. A primeira etapa desse método previa o
aprendizado do alfabeto por meio da soletração nominal das letras, e depois se ensinava a
grafia de cada uma delas. Na sequência, o método previa o ensino das sílabas de forma
ordenada. Apenas então, ensinava-se a formação de palavras, frases e textos. Utilizada desde
a Antiguidade, a soletração atrelava a leitura à língua oral, uma vez que a própria natureza do
registro escrito na época, sem pontuação, espaçamento, ortografia normatizada, tornava a
oralização uma estratégia para o ato de ler. Svenbro (1998, p. 48), ao discorrer sobre as
condutas do leitor na antiguidade, revela essa extrema valorização do oral: “a voz do leitor é o
instrumento que possibilita à escrita realizar-se em sua plenitude”. Era ouvindo a própria voz
que o leitor chegava ao sentido do escrito, ser leitor era na verdade ser ouvinte de uma voz
leitora, e a leitura, uma oralização do escrito. Assim, o método da soletração em seus
primórdios era condizente com a concepção de leitura manifesta na sociedade.
76
No entanto, esse método, mesmo com o desaparecimento da escrita contínua e com o
aparecimento da leitura silenciosa, continuou a ser utilizado com exclusividade para ensinar a
ler ao século XVIII. A leitura como atividade para os olhos substituiu a leitura em voz alta
desde o século IX no interior dos mosteiros medievais, desde o XIII no mundo universitário,
desde a metade do século XIV entre a aristocracia laica e depois de Gutenberg foi se
estabelecendo progressivamente também para os leitores mais populares. Na escola, porém, a
leitura visual custou a entrar. O ensino da leitura como oralização do escrito permaneceu
intocável desde a antiguidade até meados de 1800. Aprender a ler soletrando o nome de cada
letra foi durante muito tempo da história a única forma de o sujeito constituir-se como leitor.
Era um aprendizado que requeria muito tempo e tornava-se difícil e cansativo para o aprendiz.
Aguayo (1952, p. 296), a respeito do todo da soletração, afirma que “era, ademais,
absolutamente desinteressante para as crianças... o método ABC ensina a leitura das palavras,
não, porém, o significado das mesmas.” Por vincular o ato de ler à mera oralização do escrito,
a fase inicial do aprendizado dessa atividade alfabetização - era apenas mecânica. Para ser
capaz de atribuir sentido ao escrito, o aprendiz ainda tinha um longo caminho a percorrer, três
a quatro anos para ler, atribuir sentido a um texto completo (BARBOSA, 1994).
O período inicial do aprendizado da leitura por meio da soletração ensinava a
decodificar o escrito, mas não formava leitores. Por essa razão, afirma Aguayo (1952, p. 296)
que “as crianças que aprendem a ler por esse método o o fazem com auxílio dele, senão
apesar dele e contra ele.” Em razão de tornar o aprendizado da leitura deficiente, o método da
soletração foi questionado, a princípio, em 1530 por um professor alemão, Valentim
Ickelsamer, que recomendava a substituição desse método de ensino pela aplicação do método
fônico para aprender a ler. No entanto, a proposta do professor alemão não ganhou adeptos na
época, e de acordo com Aguayo (1952) ficou no esquecimento até ressurgir, no início do
século XIX, como método mais eficaz que o da soletração para a formação do leitor, segundo
seus defensores.
Apenas em meados do século XVIII e no início do XIX é que o método da soletração
começa a ser questionado se seria de fato o melhor meio para ensinar a ler. Iniciam-se com
isso as disputas sobre o método mais eficaz para a formação de leitores na escola, disputas
essas que perduram até os dias atuais.
Os defensores do método fônico, com seus primórdios por volta de 1530, propõem no
início do século XIX que a escola comece o ensino da leitura não pelo nome da letra, mas por
seu som. De acordo com os estudos de Aguayo (1952), Stephani, Laffore, Adolfo Krug e
outros argumentam que o aprender a ler torna-se mais fácil ao sujeito quando ele aprende o
77
som que cada letra possui na realidade ao invés do nome que a representa. Assim, o método
fônico consiste em ensinar os sons das letras antes de conhecer as sílabas, palavras e orações,
sendo as consoantes pronunciadas sem atribuir-lhes um nome e sem articulá-las a uma vogal.
Segundo os precursores do método, quando as crianças conhecem o som das vogais e o de
uma consoante podem, sozinhas, construir algumas labas e até palavras. Barbosa (1994, p.
48) ressalta que para os defensores desse método “a arte da leitura deve consistir na pronúncia
dos sons dos signos do alfabeto, um após o outro. Primeiro, se ensinam os sons das vogais,
depois os sons das consoantes simples e depois, os sons dos encontros consonantais”. Após o
domínio dessa técnica cabe ao aprendiz acelerar o ritmo da emissão sonora para tornar-se
leitor. O sentido do texto, a compreensão, é para o método fônico resultado dessa capacidade
de decodificação dos sinais gráficos em sons. Portanto, assim como o método da soletração, o
fônico prevê uma aprendizagem da leitura de forma mecanizada, tendo a oralização como
fundamento para a apropriação da leitura.
Apesar de muito difundido, o método fônico o chega a substituir o da soletração na
instituição escolar, segundo Aguayo (1952, p. 297), porque “não é senão uma variedade do
ABC, do qual se diferencia por empregar outros nomes para distinguir as consoantes”, e
segundo Barbosa (1994) porque não na escrita alfabética uma correspondência termo a
termo entre a cadeia sonora e a cadeia gráfica, que uma letra pode ter vários sons e um
fonema pode ter vários grafemas.
Também em contraposição ao método ABC ou soletração, aparece em meados do
século XIX o método da silabação, propondo começar o ensino da leitura pelas sílabas, sem
estudo prévio das letras e de seus sons. Assim como o método fônico, a silabação fundamenta
o ensino na associação dos sinais gráficos aos sons que representam, entretanto, o sinais e
sons isolados, mas compostos em sílabas. Com o mesmo princípio da soletração e do fônico,
esse método propõe a aprendizagem das sílabas, palavras e frases mediadas pela oralização do
escrito. De acordo com Aguayo (1952, p. 298),
A silabação tem a vantagem de ensinar a ler e pronunciar como se e se
pronuncia de fato em cada idioma. Unido ao processo de vocalização, de
Ricardo Lange, este método é de fácil aplicação no ensino; não é, porém,
interessante nem atraente e sim contrário aos princípios psicológicos que
servem de base à leitura. Na realidade a silabação vem a ser algo assim como
o método de palavras, aplicado, porém, as sílabas e sem o interesse que
oferece o método analítico.
78
A silabação também não substitui o ABC como principal método para aprender a ler
na escola. Em meados do século XIX, o ensino da leitura a partir do nome das letras prevalece
sobre o som dessas e em relação à aprendizagem direta de sílabas. Vale também ressaltar que
ainda nesse século a leitura na escola está fortemente atrelada à oralização. Para essa
instituição o leitor precisava ainda ouvir sua própria voz. Nas palavras de Lyons (1998, p.
197), “a leitura em voz alta ainda sobrevivia, apesar da tendência para ler silenciosa e
individualmente.”
Além dos métodos de natureza sintética, fônico e de silabação, também nessa época
surgem os métodos analíticos que o se opor fortemente aos sintéticos, questionando o
princípio de que para aprender a ler é preciso ir das partes ao todo. Desde 1768, segundo
Barbosa (1994), as primeiras críticas aos métodos sintéticos começam a surgir no cenário do
ensino da leitura:
Em 1768, Radonvilliers se opõe ao fundamento da abordagem sintética: ...
No método sintético, toda a atenção da criança está voltada para o exercício
da combinatória; a atenção concentrada no significado do texto -
característica do ato de ler - é abandonada para uma etapa posterior... O
método sintético propõe que a criança analise as palavras decompostas em
seus elementos mínimos, esquecendo-se de que ela pode muito bem
reconhecer de imediato a palavra inteira, num lance de olhar. (BARBOSA,
1994, p. 50).
Essas duas argumentações são ignoradas pela instituição escolar, cuja concepção de
leitura ainda está distante da sugerida por Radonvilliers, uma atividade de significação e feita
para os olhos não para a boca ou ouvidos. Em 1787, Nicolas Adam, compartilhando os
mesmos pressupostos, tece considerações de grande relevância sobre o ato de ler, as quais
serão fundamentais para a proposição dos métodos analíticos. Para Barbosa (1994), esse autor
lança as bases dos novos métodos que irão se contrapor aos sintéticos. Para Adam, “ler era
mais importante que decifrar; o sentido do texto tem mais importância que o som do texto; a
aprendizagem parte de palavras com significado afetivo e efetivo para a criança.”
(BARBOSA, 1994, p. 50). Portanto, o ensino do ato de ler não deveria partir de letras,
fonemas ou sílabas, mas de palavras que tivessem sentido para os aprendizes.
Em 1822, o professor francês José Jacotot, a partir dessas idéias, cria o método
analítico ao publicar o livro “Ensino Universal da Língua Materna” (AGUAYO, 1952). De
acordo com Jacotot, as crianças deveriam primeiro aprender de memória uma oração e depois
analisá-la assinalando as palavras, silabas e letras que a formavam. Assim, os métodos
analíticos caminham do todo para a parte, começando o ensino da leitura pela frase, em
79
seguida a decomposição em palavras, e estas palavras em sílabas e letras. Se iniciado pela
frase, o método recebe o nome de método da sentenciação. No entanto, o método analítico
também pode começar pela palavra, método da palavração, em que as palavras são
decompostas em sílabas e reunidas em frases. Esses métodos são assim denominados porque
fazem análises: decompõem o todo nas partes que o formam (FONTOURA, 1965). Além do
método da sentenciação e da palavração, outro método analítico foi proposto por Margarida
Mccloskey; trata-se do método de contos, que consiste em iniciar o ensino da leitura pela
narração de um conto interessante para as crianças. Na sequência as crianças repetem a
narração, dramatizam a história, estudam as palavras e exercitam a leitura no quadro ou em
livros.
De acordo com os defensores dos métodos analíticos, esses são mais eficientes que os
sintéticos porque
1. Apresentam à criança um todo: a palavra.
2. A sílaba não tem sentido, a palavra o tem, porque representa um objeto,
uma coisa que existe, ou uma idéia.
3. A palavra se refere a algo que pertence à vida, à experiência da criança...
4. O método desperta grande prazer na criança, pois desde o primeiro dia ela
sente que está aprendendo, que já sabe ler, pelo menos as palavras da lição.
(FONTOURA, 1965, p. 53).
Apesar das fortes críticas aos métodos sintéticos, as idéias trazidas pelos todos
analíticos ganham espaço no início do século XX com a Psicologia Gestalt e a Escola
Nova. Claparède afirmava que “para uma pessoa que percebeu o mecanismo da linguagem
escrita, a letra é mais simples do que a sílaba e a sílaba mais simples do que a palavra. Mas
para a criança que pela primeira vez um texto, isso o é verdade.” (BARBOSA, 1994, p.
50), dando sustentação ao método de ensino da leitura a partir de palavras, frases ou contos.
Decroly, em 1936, propunha que a leitura fosse ensinada a partir de um método
ideovisual cujo objetivo era fazer com que os aprendizes compreendessem o sentido do texto
lido. Segundo Decroly, a ênfase no ensino da leitura deveria recair sobre a compreensão da
leitura e não mais na decodificação. A primeira etapa do aprendizado da leitura, de acordo
com o Autor, deveria ser baseada no reconhecimento global de frases significativas para a
criança. A escrita, ao invés de ser analisada antes de ser lida, deveria, pelo contrário, ser lida
para depois se proceder à análise. Como revela Arena (1996, p. 30), para Decroly, “a leitura é
uma função visual já que se pode ler um texto, compreendê-lo, executar a ordem que exprime,
sem empregar a linguagem verbal”. Decroly sugeria para o século XX aquilo de que os
80
mosteiros, a universidade, a aristocracia, a sociedade já tinham se apropriado há alguns
séculos: a leitura como atividade não atrelada à oralização, como atividade para os olhos.
Os estudos de Arena (1996) mostram que Freinet foi um dos aplicadores das idéias de
Decroly e possibilitou uma ampliação de suas conceituações sobre o ato de ler. Segundo
Freinet “o essencial é compreender ou adivinhar através dos sinais, o pensamento ou as
indicações que exprimem” (FREINET, apud ARENA, 1996, p. 37), o que demonstra uma
concepção de leitura voltada à atribuição de sentido ao escrito e não a mera oralização.
Entretanto, segundo Barbosa (1994), apesar da grande importância teórica, a proposta de
Decroly foi pouco utilizada na prática.
A Escola Nova traz no início do século XX contribuições relevantes para o ensino da
leitura, principalmente no que diz respeito a uma maior valorização da leitura silenciosa e à
necessidade das propostas didáticas terem, de alguma forma, relação com a vida dos
aprendizes. Aguayo, em sua obra “Didática da Escola Nova” (1952), apresenta também uma
concepção de leitura que se opõe à mera oralização. Para ele, “ler é perceber as formas
gráficas das palavras escritas, compreender-lhes o significado [...]” (AGUAYO, 1952, p. 295),
e complementa: “para ser inteligente, a leitura deve ser acompanhada da consciência da
significação das palavras, frases e orações.” (AGUAYO, 1952, p. 300). De acordo com essa
concepção, Aguayo (1952) tece três recomendações que devem nortear o trabalho dos
professores ao ensinar a ler:
O material usado nos primeiros passos da leitura deve ser atraente,
interessante e conhecido do aluno; na leitura o símbolo deve subordinar-
se ao pensamento, uma vez que o espírito lê mais depressa que os olhos; e 3º
é necessário abandonar o fetiche da leitura oral e dar maior importância à
leitura silenciosa. (AGUAYO, 1952, p. 300).
Essas três afirmações pressupõem um ensino da leitura como atividade que faz sentido
para a criança, que não precisa ser submetida à oralização, já que consiste numa operação
desempenhada pelos olhos e pelo cérebro e, portanto, não cabe mais à escola dispensar tanto
tempo do ensino do ato de ler a uma leitura oral que pouco se faz presente na sociedade.
Ainda segundo o Autor:
A escola tradicional consagrava um tempo excessivo à leitura oral e muito
pouco atenção à leitura silenciosa. O sistema não é recomendável, pois a
leitura em voz alta muito raras vezes é praticada fora da escola. Por outro
lado, a leitura silenciosa é mais rápida, exige grau mais alto de concentração
mental e insiste na assimilação do pensamento mais que no domínio das
formas gráficas. (AGUAYO, 1952, p. 310).
81
Aguayo (1952) deixa claro que estava na hora de a escola, assim como a sociedade,
apropriar-se da leitura como atividade visual e antecipa uma importante característica do
ato de ler, o fato de que para produzir leituras, o leitor necessita mais dos conhecimentos
prévios que possui do que da informação gráfica que está diante dos olhos. Smith (1989)
denominará isso como informação não visual e informação visual, ao postular que quanto
menos informação não visual o leitor possuir, mais difícil será a leitura, que o sentido não
está na informação visual, é produzido pelo leitor de acordo com sua teoria do mundo.
Aguayo (1952) ressalta ainda que a escola deve oferecer leituras interessantes e
atraentes às criaas, e por isso o professor não deve utilizar só o livro texto, mas rimas
infantis, jogos, dramatizações, contos, bulas, jornais, revistas, livros de leitura compostos
pelas próprias crianças e outros materiais que despertem nos aprendizes o desejo de ler. Os
professores também precisam permitir às crianças a escolha de suas próprias leituras. Por isso,
para o Autor, a biblioteca é uma necessidade do ensino da leitura. Com essas afirmações,
Aguayo conclui em sua obra que “na escola antiga a leitura era um tormento à infância. A
escola nova converteu-a em fonte de alegrias.” (AGUAYO, 1952, p. 305).
Sem dúvida a Escola Nova possibilitou um movimento de reflexão acerca das práticas
para o ensino da leitura, porém, não organizou uma proposta sistemática para o ensino dessa
atividade. Nas palavras de Aguayo (1952, p.310), “o essencial para a escola nova o é a
escolha do processo didático, mas o interesse que ele provoque nos alunos [...]” Ainda,
afirma: a nova didática não tem preferência por este ou aquele método [...] são
recomendáveis os métodos que estejam de acordo com os resultados obtidos pela psicologia
da aprendizagem.” Assim, os que se dispuseram a colocar em prática seus princípios o
fizeram a partir do método analítico da palavração, da sentenciação ou de contos. E ainda,
essas novas discussões levaram defensores dos métodos sintéticos a remodelarem suas
propostas criando uma espécie de método misto, todo analítico-sintético, tomando
emprestado alguns elementos do analítico, “sem, no entanto, abandonar a característica básica
do sintético: a operação b+a=BA” como operação de base (BARBOSA, 1994, p. 49).
Por meio das propostas para ensinar a ler de Lourenço Filho (1957) e Fontoura (1965)
no Brasil, ambos adeptos do movimento Escola Nova, é possível reconhecer que os
pressupostos de Decroly e Aguayo, de um ensino da leitura como atividade visual que não
precisava ser mediada pela oralidade, ainda não tinham conseguido um espaço no aprendizado
inicial dessa atividade que continuou a ser ensinada por meio da língua oral. Lourenço Filho,
segundo Arena (1996), concebia o aprender a ler como o domínio de um conjunto de técnicas
e por essa razão defendia que o ensino da leitura não era questão de método, mas de iniciar-se
82
no momento certo, quando a criança já tivesse adquirido capacidades fundamentais para
aprender a ler, como coordenação visual-motora, coordenação auditivo-motora, memória
visual, memória auditiva, atenção. Enfim, a criança, para iniciar o aprendizado da leitura,
precisava estar pronta, ter certo nível de maturação. A proposta de Lourenço Filho consistia
em destinar um período no início do ano escolar às atividades preparatórias para começar o
ensino da leitura e que consistia, além de outras propostas, na aplicação de testes de
maturidade criados por ele na segunda década do século XX. A partir dos resultados dos
testes, as crianças deveriam ser agrupadas de acordo com seu desempenho em classes
homogêneas. De acordo com os pressupostos de Lourenço Filho, a aprendizagem deveria
ser iniciada com as turmas de maturos; as demais ficariam realizando as atividades
preparatórias (FONTOURA, 1965).
Após a aplicação dos testes denominados testes ABC, a criança começava seu
aprendizado da leitura. A princípio deveria o futuro leitor aprender a enunciar sons diante de
sinais gráficos, sempre motivado na tarefa e preferencialmente utilizando escritos que lhe
tivessem algum significado. Após o domínio da decifração dos sinais gráficos, Lourenço
Filho ressaltava a necessidade de a criança compreender o que lê, direcionando o aprendizado
da leitura para o desenvolvimento da capacidade de interpretar o escrito (ARENA, 1996).
Dessa forma, o ensino da leitura permaneceu atrelado ao domínio da oralidade.
Fontoura (1965), em sua obra A Escola Viva: didática especial da série propunha,
como Lourenço Filho, iniciar o aprendizado da leitura pela aplicação dos testes ABC. E após
a formação das turmas, recomendava o método analítico da palavração para ensinar a ler. Seu
método consistia em obedecer ao seguinte roteiro em cada uma das trinta lições propostas:
A professora conta uma história relacionada com as figuras e palavras-
chave de cada lição. A história deve ser algo que interesse às crianças;
Apresentação do cartaz colorido, com o personagem da história ou com a
palavra-chave da lição.
Desenho no quadro negro, pela professora ou pelos alunos, da figura do
cartaz, bem como escrita logo abaixo, do respectivo nome da figura.
Cópia dessas figuras pelos alunos, cada qual em seu papel-lousa (papel
rascunho), bem como escrita do nome da figura por baixo.
5º Leitura em coro, pelos alunos, do nome dessa figura, várias vezes.
6º Leitura em coro, pelos alunos, da respectiva lição, na própria cartilha, bem
como escrita e desenho nas páginas da mesma.
7º Cada palavra da cartilha deve ser aprendida através do mesmo ritual.
8º No decorrer da lição deve a professora entremear cânticos e músicas
infantis, recitação de quadrinhas, bem como jogos e brinquedos. Isso serviria
como intervalo, para descanso da atenção, e, ao mesmo tempo, como
motivação para o resto da lição;
83
Dentre numerosos jogos didáticos que podem ser organizados, o primeiro
deles será o do reconhecimento de palavras, desde a 2ª lição. E a partir da
ou o jogo da formação de novas palavras, partindo de sílabas
conhecidas. (FONTOURA, 1965, p. 61).
E ainda recomenda o Autor:
Depois de algumas aulas a mestra começa os exercícios de dividir as
palavras em sílabas. Esse exercício consiste em três fases:
1ª fase: Dividir as palavras já conhecidas em sílabas.
2ª fase: Ler várias vezes as sílabas, até identificá-las bem.
fase: Formar novas palavras, quer juntando as sílabas conhecidas, quer
tomando uma silaba inicial conhecida e descobrindo outras palavras novas
que comecem do mesmo modo. (FONTOURA, 1965, p. 76).
O método da palavração de natureza analítica, portanto, assim como o fônico, o ABC,
o da silabação possuem como princípio comum que para aprender a ler é necessário aprender
a decodificar o escrito, é necessário transformar os sinais gráficos em sons. Assim, a disputa
que travam entre si é apenas se é melhor começar a decodificar texto, frase, palavra ou letra,
grafema, sílaba. Como é possível constatar na proposta de Fontoura (1965), a leitura na
escola, mesmo com as idéias da Escola Nova, continua a ser ensinada como atividade
dependente da língua oral, o que implica reconhecer que tanto os métodos analíticos como os
sintéticos não operam com uma concepção do ato de ler como objeto de cultura, mas como
objeto escolar.
As escolas do século XIX e meados do século XX viveram uma acirrada disputa entre
os métodos sintéticos, os métodos analíticos, ou analítico-sintéticos, resultando na
manutenção de um ensino da leitura voltado à oralização do escrito. Aprender a ler continuou
a ser visto como o domínio de uma mera técnica, na apropriação da palavra como sinal e não
como signo.
3. 2 A leitura no final do século XX: a crítica aos métodos
Por volta da década de 80 do século XX, ganham força no terreno da leitura fortes
críticas em relação aos métodos para ensinar a ler, as quais questionam a aprendizagem
mecanizada dessa atividade na escola e ainda a necessidade de que para aprender a ler é
preciso oralizar o escrito. Os estudos de Foucambert (1994, 1998) e Charmeaux (1997) na
França e os de Smith (1989, 1999) e Goodman (1997) nos Estados Unidos, por exemplo, se
opõem ao ensino da leitura como atividade mediada pela oralização e evidenciam que a
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aprendizagem do ler não é questão de método. Segundo os Autores, as crianças não precisam
aprender a ler para ler, é lendo desde o princípio que elas irão apropriar-se dessa atividade.
Como Decroly e Aguayo no início do século XX, esses Autores trouxeram novamente para a
discussão o fato de que a leitura não es atrelada à oralidade, mas consiste num trabalho
direto sobre o escrito a fim de dar-lhe um sentido.
Foucambert (1994, p.7) afirma: “ler é tratar com os olhos uma linguagem feita para os
olhos.” Nesse sentido a escola não pode, segundo ele, confundir leitura com oralização ou
com leitura em voz alta. A oralização consiste numa estratégia pouco utilizada pelos leitores,
é a atividade que permite constituir uma cadeia oral a partir do escrito. A leitura em voz alta
consiste numa tradução oral do que fora lido, e a leitura não pode ser outra atividade além
de atribuição de sentido ao escrito. Nas palavras de Foucambert (1994, p. 8), A leitura é
atribuição de um significado ao texto escrito: 20% de informações visuais, provenientes do
texto; 80% de informações que provêm do leitor; o resto é informação sonora.” Também
Charmeaux (1997, p. 42) argumenta que a leitura não pode ser tratada na escola como o ler
em voz alta, “confundir, como o fazemos tanto tempo, leitura e leitura em voz alta, é
confundir o ato de produção e o ato de transmissão do que foi produzido”. Para a Autora,
“aprender a ler é aprender a construir sentido.” (CHARMEAUX, 1997, p. 88). Tanto para
Foucambert quanto para Charmeaux, aprender a ler não consiste no domínio de um
mecanismo, mas na apropriação de uma complexa atividade que requer operar com as
palavras como signo, que o leitor sempre está em busca do sentido do escrito, não de seu
som.
Assim, para esses dois Autores o ensino da leitura na escola não é uma questão de
método, uma vez que tanto os sintéticos como os analíticos ou os mistos concebem a
compreensão como resultado e não como base da leitura; ignoram que a compreensão é a
atividade em si, é “processo de questionamento recíproco de um capital gráfico diante dos
olhos e de um capital semântico atrás dos olhos.” (FOUCAMBERT, 1998, p. 120); optam por
ensinar que para ler é preciso aprender a correspondência entre um código gráfico e um
código fonológico, criando nas crianças a falsa idéia de que a compreensão será o resultado
dessa tarefa. Charmeaux (1997, p. 20), em relação ao ensino da leitura por meio dos métodos,
argumenta que para os três métodos, a compreensão chega ao final de um processo de
pronúncia, e de forma totalmente mágica: nada no trabalho previsto diz respeito à
aprendizagem da compreensão.” A compreensão, base da leitura, não é, como afirma a
Autora, uma mágica; as crianças precisam ser ensinadas a operar com os enunciados, a
manejar o signo linguístico. Ler e compreender não são atividades dissociadas, “saber ler é
85
compreender, e uma criança que não compreende o que lê, na realidade não leu. Seria absurdo
dizer que ela lê sem compreender, ela absolutamente não lê.” (CHARMEAUX, 1997, p. 42).
Foucambert (1994) e Charmeaux (1997) compartilham, portanto, do pressuposto de
Decroly e Aguayo (1952, p. 295) em relação ao ato de ler, uma atividade que implica
“perceber as formas gráficas das palavras escritas, compreender-lhes o significado”, e dessa
forma, uma atividade que independe da oralização do escrito. Segundo os Autores, a
transformação de sinais escritos em sinais sonoros pela aplicação mecânica da relação
grafema-fonema não pode ser tomada como forma de entrada no aprendizado da leitura. Para
Charmeaux (1997, p.103), “tanto mais eficaz se nada vier a entravar o tratamento direto das
informações retidas pelos olhos. Isto nos leva a rejeitar, como completamente nocivo qualquer
recurso à oralização”; e para Foucambert (1998, p. 80), “sendo a leitura um processo
essencialmente de ordem visual, que seu aprendizado se baseie diretamente nessa
característica fundamental.” Como já indicava Nicolas Adam em 1787, a decifração não pode
tomar o lugar da leitura, o som não de prevalecer sobre o sentido do escrito ao ensinar o
ato de ler às crianças (BARBOSA, 1994).
Smith (1989) e Goodman (1997), assim como os autores franceses, procuram também
contribuir para mudar a história do ensino do ler na escola, demonstrando em seus estudos e
pesquisas que a leitura não requer a passagem pelo domínio do oral para ser produzida. Smith
(1989, p. 16) argumenta que ler “é uma questão de dar sentido a partir da linguagem escrita,
em vez de se decodificar a palavra impressa em sons” e ressalta que a primeira condição para
um aprendiz torna-se leitor é compreender que o escrito faz sentido. Na mesma direção,
Goodman (1997, p. 46) afirma as crianças que estão aprendendo a ler buscam o significado,
não sons ou palavras”, evidenciando a necessidade de ensinarmos os leitores aprendizes a
operarem informações gráficas em busca de sentido e o informações sonoras a partir de
sinais gráficos inertes.
Dessa forma, contrários ao ensino da leitura a partir dos métodos expostos no tópico
anterior, os Autores propõem que o ensino do ler na escola seja realizado a partir de escritos
que façam sentido aos aprendizes, que circulem de fato na sociedade, que possuam alguma
finalidade para a realização da leitura, algo que Aguayo (1952) parecia indicar. Diferente
dos métodos que trazem um conjunto de escritos fabricados exclusivamente para ensinar a ler,
o ensino dessa atividade, para Smith (1989), Goodman (1997), Charmeaux (1997) e
Foucambert (1994), deve ser organizado a partir de situações reais de leitura, portanto, a partir
de textos que pertençam de fato ao mundo da linguagem escrita no contexto social.
86
Isto porque, de acordo com os estudos de Smith (1989), o sentido do escrito não está
contido nos símbolos gráficos prontos para serem decodificados, ele é dado pelo leitor a partir
do seu conhecimento anterior em relação ao que está diante dos olhos. Assim, se o escrito
para a criança não fizer qualquer sentido, se elao souber o quê, por que e para que ler, o
poderá mobilizar seus conhecimentos prévios, não poderá, como afirma Smith (1989), prever,
fazer perguntas ao escrito a fim de obter respostas, compreendê-lo. “A leitura e, portanto, o
aprendizado desta depende daquilo que já se sabe, daquilo que se consegue fazer sentido.”
(SMITH, 1989, p. 125). Aguayo, ao propor que aprender a ler não era uma questão de
aprender a oralizar o escrito, ressaltava, como faz Smith (1989), a relevância de o leitor
aprendiz conhecer a finalidade, o objetivo de cada situação do ler na escola. Dizia ele “Se a
criança ignora porque deve ler esta ou aquela gina, não o pode fazer de modo inteligente.”
(AGUAYO, 1952, p. 296).
Ler, desde algum tempo na história, é, portanto, uma atividade-meio e, como
apontava Aguayo (1952), não poderia ser ensinada às crianças no início de sua escolaridade
como atividade com um fim em si mesmo. O ensino por meio dos todos, ao restringir a
leitura no início da escolaridade ao domínio da estratégia de decodificação, acaba por ensinar
aos aprendizes que é possível ler sem qualquer propósito ou intenção do leitor, reduzindo essa
atividade a um objeto escolar.
Longe da questão sobre qual seria o melhor método, os estudos de Smith revelam que
uma discussão acerca do ensino da leitura na escola deve considerar que “a única maneira de
ler é no vel do significado e a única maneira de aprender a ler é no mesmo nível”. Assim
insiste o Autor: “se o significado não é imediata e claramente dado pela estrutura aparente da
fala, então não faz sentido esperar-se que um leitor “decodifique” a linguagem escrita em fala,
a fim de ocorrer a compreensão.” (SMITH, 1989, p. 44).
Portanto, os estudos de Smith (1989), Foucambert (1994), Charmeaux (1997) e
Goodman (1997), ao enfatizarem o ato de ler como atividade não atrelada à oralidade,
demonstram que ainda no final do século XX é preciso insistir para que a escola deixe a
leitura como atividade visual ocupar definitivamente seu espaço no ensino dessa atividade. A
leitura como prática cultural de natureza dialógica e ideológica, tal como objetivada na
sociedade, tem dificuldade para entrar na escola, que, como é possível inferir a partir das
considerações dos Autores, ler continua a ser ensinado como técnica, como procedimento
mecanizado ausente de significação para os leitores aprendizes.
Estudos desenvolvidos no Brasil acerca do ensino da leitura na instituição escolar
confirmam esse dado. Smolka (1988), Barbosa (1994), Arena (1996), Zilberman (1999),
87
Kleiman (1996), e Geraldi (1997) demonstram em suas pesquisas que a leitura ensinada na
escola no final do século XX permaneceu atrelada a um processo mecânico de vocalização do
escrito.
Os documentos oficiais que subsidiam a organização do currículo escolar contagiados
pelos estudos que questionam o ensino da leitura por meio dos métodos passaram nesse final
de culo a aderir ao discurso de que ler não é decodificar, é compreender e, nesse sentido,
ressalvaram que tanto os métodos de natureza sintética como os analíticos ou mistos não
poderiam atender a esse propósito. Entretanto, no interior da escola, as pesquisas apontam que
alguns discursos foram apropriados pelos professores sem, no entanto, transformar de fato o
ensino do ato de ler.
A esse respeito, ressalto, por exemplo, a investigação de Smolka, a qual revelou que
apesar da forte adesão aos estudos de Ferreiro e Teberosky nas redes de ensino, a essência do
processo de alfabetização permaneceu inalterada, uma vez que a instituição escolar apenas
adaptou esses estudos adequando-os às práticas costumeiras. Segundo a Autora:
O conceito maturacionista de prontidão” e o conceito de “carente cultural”,
da educação compensatória, passam a ser substituídos por conceitos de uma
avaliação cognitiva (incontestável porque “psicológica”, “científica”). Ouve-
se então: “Essa criança é pré-silábica! “Quantos silábicos você tem na sua
classe?”Em suma, os rótulos se mantêm e se continua a culpar a criança pela
não-aprendizagem, pela não compreensão. (SMOLKA, 1988, 59).
Assim, como aponta Smolka (1988), ao invés de a escola conceber os estudos de
Ferreiro e Teberosky (1985) como contribuição para o entendimento dos processos de
aquisição da linguagem escrita, optou por reduzir seu ensino às relações gráfico-sonoras,
classificando crianças e turmas de crianças em termo de níveis de hipótese, prática semelhante
à proposta de Lourenço Filho nas primeiras décadas do século.
Ainda segundo a pesquisa de Smolka (1988), a escola continuou a ensinar leitura
como oralização do escrito, não trabalhando “com as crianças, no ano escolar da
alfabetização, o fluir do significado, a estruturação deliberada do discurso interior pela
escritura.” (SMOLKA, 1988, p.69).
Os estudos de Barbosa (1994) também evidenciam que, apesar das contribuições no
plano teórico, a leitura como processo de construção de sentido ainda não encontrou espaço
na instituição escolar, pois ao final do século XX permanece sendo ensinada como processo
de decodificação de uma língua morta, alheio ao mundo social da linguagem escrita. Ao
analisar práticas escolares para o ensino da leitura, conclui que “é inconcebível imaginar que
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se possa ler um cartaz, uma revista, um cardápio depois de se aprender a ler. Na verdade,
esta conceão exclui do processo de aprendizagem exatamente as situações para as quais esta
aprendizagem é fundamental.” (BARBOSA, 1994, p. 115).
Ao excluir reais situações de leitura no início da vida escolar, ensinando que ler é
transformar sinais gráficos em sons, a escola permanece com o modo de ler característico da
antiguidade: o leitor precisa ouvir a própria voz para chegar ao sentido do escrito. Daí o
período da alfabetização ser destinado a esse ouvir para somente depois dedicar-se à busca
pelo sentido. A pesquisa de Arena (1996, p. 4) aponta que:
Embora a sociedade tenha tido seu eixo de relações com o impresso
deslocado do ouvido para o olho, a escola ocidental, de modo geral,
organizou o ensino da leitura a partir dos elementos geradores determinantes
do processo de construção social da escrita. Apesar de ter sido criada para
armazenar dados que seriam pelo olho recuperados, a escrita foi ensinada
como o registro de sons que deveriam se recuperados pelos ouvidos. Embora
a organização social caminhasse na direção do olho, a escola optou por
permanecer com o ouvido.
O mesmo apontamento apresenta o estudo de Kleiman (1996), ao demonstrar a ênfase
demasiada da escola sobre a leitura em voz alta em detrimento da leitura como atividade
visual ou leitura silenciosa. Segundo a Autora, a leitura em voz alta como avaliação é a
prática mais comumente utilizada na prática escolar, o que afasta as crianças da verdadeira
leitura, aquela que se realiza sem preocupação com a pronúncia e com a entonação. Para
Kleiman “o uso excessivo da leitura em voz alta é um fator inibidor do desenvolvimento do
bom leitor.” (KLEIMAN, 1996, p. 153).
Geraldi (1997), a partir de uma análise do trabalho com a linguagem escrita na escola,
afirma que o ensino tem começado pela síntese, pelas definições, pelas generalizações, pelas
regras abstratas, tornando o processo de aprendizado da linguagem mecanizado. Para o Autor,
“Aprender a respeito da língua, tomar consciência dos mecanismos estruturais do sistema
lingüístico deve ser etapa posterior: levar o aluno à consciência da língua depois de ter ele
a posse da língua.” (GERALDI, 1997, p. 120). Entretanto, como revela o Autor, a escola, ao
contrário, acredita que o domínio do sistema linguístico é condição para a criança ler, e insiste
em destinar um ano da vida escolar ao ensino das relações grafema-fonema sem atentar para a
necessidade de inserir o leitor aprendiz no fluxo da linguagem.
As pesquisas desenvolvidas no final do século XX sugerem, portanto, que embora no
decorrer do século estudos tenham sido desenvolvidos na tentativa de promover mudanças
significativas em relação à leitura na escola, em geral, a prática de iniciar o aprendizado dessa
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atividade pelas trilhas da oralidade prevaleceu no interior das salas de aula. Nas palavras de
Zilberman, ao final do segundo milênio:
Sendo a entidade que recebe a incumbência de ensinar a ler, a escola tem
interpretado esta tarefa de um modo mecânico e estático. Dota as crianças do
instrumental necessário e automatiza seu uso, através de exercícios que
ocupam o primeiro ano escolar. Ler confunde-se com a aquisição de um
hábito e tem como conseqüência o acesso a um patamar do qual não mais se
consegue regredir [...]. (ZILBERMAN, 1999, p. 39).
Como sugere Zilberman, para as crianças que se apropriam do ato de ler, como a
simples decodificação das letras em sons, exercer a leitura como prática cultural torna-se uma
tarefa difícil, que o sentido do escrito o está contido nos sinais gráficos e muito menos
nos sons das letras, como evidenciam os estudos de Smith (1989) e Foucambert (1994).
3.3 A leitura no início do século XXI: as disputas continuam
Se ao final do século XX em relação ao ensino da leitura um cenário de crítica aos
métodos e à sua concepção do ato de ler como atividade atrelada à oralização, o início do
século XXI assiste a um retrocesso histórico com novas velhas disputas acerca de qual o
melhor método para a formação de leitores na escola. A instituição escolar nem mesmo
apropriou-se dos estudos de Smith (1989), Foucambert (1994), Goodman (1997) e
Charmeaux (1997), como revelam as pesquisas enunciadas no tópico anterior, e é
convidada no novo século a voltar a conduzir o ensino da leitura a partir de um método que,
segundo seus defensores, consiste na solução para resolver o desencontro entre o processo de
escolarização e processo de formação de leitores. Trata-se do retorno do método fônico,
proposto nos séculos XVI, XIX e agora também para a escola do século XXI.
De acordo com seu principal representante no Brasil, Capovilla (2005), a adoção do
método fônico como metodologia oficial no ensino da linguagem escrita contribuiria para
reduzir significativamente os índices de analfabetismo funcional do país, uma vez que para o
Autor, esses índices têm aumentado nos últimos anos pelo fato de os documentos oficiais que
organizam o currículo escolar não possuírem um método claro de alfabetização e
principalmente serem norteados pela proposta construtivista.
Ao tecer críticas aos Parâmetros Curriculares Nacionais publicados em 1997 pelo
Ministério da Educação, Capovilla (2005) considera que as escolas públicas no Brasil
passaram a partir dessa data a utilizar a proposta de Ferreiro e Teberosky (1985) para
90
alfabetizar as crianças e ainda as de Smith (1989) e Goodman (1997) no que se refere
especificamente à leitura. Isto porque o Autor tomou como referência apenas os documentos
oficiais, desconsiderando pesquisas desenvolvidas na área e por consequência uma análise
mais cuidadosa da realidade escolar no que se refere ao ensino da linguagem escrita. Para
concluir que o fracasso da alfabetização nos últimos vinte e cinco anos se deve à adoção da
proposta construtivista pelas redes de ensino, Capovilla (2005, p. 13), analisou apenas:
- Os resultados e a qualidade da alfabetização das crianças nas escolas
brasileiras (Censo Escolar, SAEB, PISA);
- Os PCNs - Parâmetros Curriculares Nacionais - e outras orientações do
governo federal sobre o tema;
- Programas de ensino das Secretarias de Educação;
- Programa de formação de professores;
- Políticas e critérios para a aquisição e avaliação de materiais didáticos pra
alfabetização de crianças;
- Materiais de ensino disponíveis no mercado editorial;
- Publicações acadêmicas e contribuição da comunidade científica brasileira
para o avanço dos conhecimentos e práticas nessa área. (Capovilla &
Capovilla, 1997, 1999, 2000, 2002, 2004). (Grifo nosso).
Portanto, o Autor não leva em conta pesquisas desenvolvidas no final do século XX e
início do século XXI que demonstram que a leitura no contexto escolar ainda continua a ser
ensinada nas turmas de alfabetização como uma questão de oralizar o escrito. Pelas pesquisas
de Gontijo (2003), Amâncio (2002), Savelli (2003), Rodrigues (2006) e Rojo (2002), é
possível perceber que as diretrizes propostas pelos PCNs em relação à alfabetização não
foram na prática apropriadas pelos professores, como sugerem os defensores do método
fônico.
Amâncio (2002) aponta que a alfabetização por meio de uma linguagem artificial das
cartilhas ainda no final do século XX se faz presente no contexto escolar. Gontijo (2003, p.
147), ao analisar práticas em alfabetização, apresenta a existência de resquícios do método de
silabação no início do novo século “um ordenamento que vai rigorosamente das sílabas mais
simples (consoante-vogal) para o mais complexo.” Saveli (2003, p.54), em seu estudo acerca
das práticas de leitura, afirma: “a suposição dos professores é que o ato de ler se confunde
com o de oralizar... isso denota uma concepção de leitura assentada na premissa de que a
escrita é um sistema de transcrição do oral”. Na mesma direção, Rojo (2002, p. 60) ressalta
que a escola, apesar das orientações apresentadas pelos PCNs, permanece a conduzir o
processo de alfabetização a partir de práticas artificiais de leitura e escrita”, entendendo a
“alfabetização apenas como aquisição ou apropriação de tecnologias, uma visão
91
essencialmente tecnicista”. Rodrigues (2006) revela o desencontro entre os documentos
oficiais que organizam o currículo e as práticas em relação ao ensino da leitura na instituição
escolar:
A proposta pedagógica da escola em relação à leitura, tanto em 2003 como
em 2004, apresentava uma orientação de trabalho direcionada à
compreensão, uma vez que os pressupostos teóricos estavam baseados nos
Parâmetros Curriculares Nacionais. Dessa forma, apesar de os professores no
início de 2003 possuírem em sua maioria uma concepção de leitura como
oralização, o documento da escola previa que o trabalho com esta atividade
fosse direcionado à compreensão. (RODRIGUES, 2006, p. 190).
Assim, esses estudos demonstram que entre as orientações de um documento oficial e
a prática escolar há um distanciamento significativo e, por esta razão, os argumentos de
Capovilla (2005), de que os altos índices de analfabetismo funcional são decorrentes da
proposta construtivista apresentada pelos PCNs o se sustentam. De acordo com Morttati
(2008, p. 104),
Embora o construtivismo seja base teórica predominante nos PCN, sua
oficialização não o tornou “unanimidade na prática alfabetizadora”, seja
porque não há, de um ponto de vista teórico rigoroso uma didática
construtivista de alfabetização, seja porque mesmo com a hegemonia do
pensamento construtivista no Brasil, continuaram a ser utilizadas cartilhas,
que, novas ou antigas, sempre contêm concretização de métodos (sintéticos
ou analíticos ou mistos) de alfabetização, os quais, portanto, nunca
deixaram de ser utilizados por alfabetizadores, nem mesmo no último quarto
do século.
Nesse sentido, atribuir à proposta construtivista o mau desempenho dos alunos em
relação à leitura é algo difícil de aceitar e compreender. Para chegar a uma afirmação como
essa, seria preciso realizar pesquisas que de fato comprovassem que a alfabetização numa
proposta construtivista é realidade no contexto escolar. Estudos têm demonstrado que
professores que afirmam trabalhar o ensino da linguagem escrita a partir de uma proposta
construtivista o fazem a partir de uma mistura de metodologias e concepções de alfabetização,
de ensino e de aprendizagem, sendo uma tarefa difícil para o pesquisador definir qual é de
fato a sistemática de alfabetização utilizada (GONTIJO, 2003).
Além disso, é preciso ressaltar que Smith (1989) o tem seus postulados teóricos
apropriados nem pela prática escolar, como mostram as pesquisas aqui apontadas, nem pelos
documentos oficiais, como sugere Capovilla (2005). Nos Parâmetros Curriculares Nacionais,
há apenas uma adaptação dos estudos do autor no que se refere principalmente à relevância do
92
conhecimento prévio do leitor, a importância de materiais que façam sentido ao aluno e o
discurso de que ler é compreender. Entretanto, diferente do que propõe Smith (1989), a
decodificação nos PCNs parece continuar como atividade essencial ao ato de ler, pois em um
de seus trechos acerca do ensino da leitura, consta: “Para tornar os alunos bons leitores - para
desenvolver, muito mais do que a capacidade de ler, o gosto e o compromisso com a leitura-,
a escola terá de mobilizá-los internamente, pois aprender a ler requer esforço.” (BRASIL,
1997, p. 58). O que seria desenvolver muito mais a capacidade de ler? Se tornar-se leitor é
compreender o escrito, o que seria o bom leitor? Se a leitura, como propõe Smith (1989), é
atividade que requer sempre finalidade, por que a questão do gosto? O que seria esse esforço a
que os alunos devem ser submetidos? Essas questões levam a inferir que não no
documento uma clareza acerca das concepções de leitura e de leitor. Em outro trecho, o
documento recomenda aos professores que ao final do segundo ano do ensino fundamental:
“Espera-se que o aluno, ao realizar uma leitura, o se limite à decodificação: que utilize
coordenadamente procedimentos necessários para a compreensão do texto.” (BRASIL, 1997,
p. 135). Novamente não fica clara a concepção de leitura, uma vez que nos primeiros anos da
escola parece que é possível ler apenas decodificando. O documento também esclarece a
necessidade, no aprendizado inicial da leitura, de situações didáticas que favoreçam a “análise
e a reflexão sobre o sistema alfabético de escrita e a correspondência fonográfica.” (BRASIL,
1997, p. 83). Smith (1989, p. 176), no entanto, afirma que “as crianças dominam a fonética
como um resultado de aprenderem a ler, em vez de como um pré-requisito para a leitura”.
Portanto, afirmar que nos PCNS “as idéias centrais são apoiadas nos conceitos de Goodman e
F. Smith [...] (CAPOVILLA, 2005, p. 111), e que por esta razão o fracasso em relação à
formação de leitores na escola brasileira nos últimos vinte e cinco anos se deve à forte
influência desses Autores é mais um despropósito dos defensores do método fônico.
Diante desses argumentos que, de acordo com Morttati (2008), atingem apenas os
desavisados, CAPOVILLA (2005) propõe que a escola volte a ensinar a ler a partir da
tradução de letras em sons, como se nos últimos anos essa prática tivesse de fato sido
abandonada por essa instituição. Para o defensor do método fônico no Brasil e seu grupo, a
leitura não pode ser ensinada como atribuição de sentido ao texto, porque ler, aprender a ler e
compreender são atividades que se diferenciam substancialmente. Nas palavras de Capovilla
(2005, p. 21-22):
Ler é diferente de aprender a ler. Aprender a ler ajuda o leitor a ler. Ler
ajuda o leitor a compreender. Para compreender um texto escrito, o leitor
precisa primeiro saber ler. As pessoas aprendem a ler, tornam-se capazes de
93
ler, e usam essa capacidade para aprender a partir do que lêem [...] Aprender
a ler consiste em adquirir as competências para decodificar.
Assim, ensinar a ler o é ensinar a compreender, no primeiro momento. A
compreensão é o objetivo de toda leitura, mas não é essa atividade em si. Para compreender, o
aluno deve antes aprender a ler, aprender as correspondências grafema-fonema. Ler, sob o
ponto de vista de Capovilla, é ser capaz de decodificar o escrito, por isso a ênfase da
alfabetização deve residir na decodificação. Segundo o Autor, “as crianças que lêem melhor e
compreendem melhor o que lêem são as que melhor aprenderam a decodificar, pois essa
habilidade permite que se tornem leitoras eficientes e independentes.” (CAPOVILLA, 2005,
p. 47). A decodificação, portanto, constitui-se em pré-requisito para a formação do leitor,
sendo o ensino da compreensão uma etapa posterior no ensino da leitura. Os mesmos
pressupostos que fundamentaram durante séculos o método da soletração ressurgem no século
XXI com o mesmo propósito: o de defender o método fônico como o mais eficiente para
formar leitores.
[...] portanto, é essencial escolher métodos eficazes para ensinar o aluno a
decodificar. Os métodos fônicos se mostram superiores aos demais. A
instrução em fônica deve ser sistemática, e não incidental. O ensino da
decodificação deve se dar no contexto de leituras que o aluno possa
decodificar e, portanto, requer textos adequados para esse fim. O ensino de
palavras freqüentes pode ajudar o aluno a ler textos sinteticamente mais
complexos. (CAPOVILLA, 2005, p. 63).
Capovilla sugere o uso de manuais de alfabetização, cartilhas, como instrumento para
ensinar as crianças a ler. Seu manual “Alfabetização: método fônico” recomenda 130
“atividades diárias”, as quais não apresentam, segundo Morttati (2008), diferenças
significativas em relação ao padrão histórico das cartilhas de alfabetização que se baseiam em
métodos silábicos ou ABC. O discurso utilizado pelos defensores do método fônico é
repetitivo, uma vez que os métodos de abordagem sintética como o fônico são velhos
conhecidos da escola e, “embora os autores a anunciem como uma boa-nova, não se trata de
uma proposta nem nova, nem pioneira, nem solução científica efetiva, com demonstrada
eficácia, cientificidade e atualidade.” (MORTATTI, 2008, p. 102).
O todo fônico pode ser capaz de ensinar as crianças a decodificar, mas sua
contribuição à formação do leitor é questionável, pois como afirma Bajard (2006, p. 503):
Nessa necessidade de extrair a pronúncia antes do sentido, de decodificar a
palavra antes de compreendê-la, de dominar o sistema alfabético antes de
94
atingir a compreensão, sempre a abordagem do sentido é relegada a uma fase
posterior. O todo adia o acesso à compreensão, obrigando a criança a
cumprir tarefas mecânicas para atingi-la. Não é à toa que a criança dedicada
apenas à decodificação isto é, a uma atividade que opera fora de qualquer
significado- apresenta dificuldades para elaborar o sentido, como o atesta a
massa de analfabetos funcionais.
Capovilla (2005), ao enfatizar que é necessário dedicar o tempo da alfabetização ao
ensino do funcionamento do sistema alfabético de escrita, postergando para anos posteriores o
trabalho com a compreensão, sugere que as crianças do século XXI percorram o mesmo
caminho das crianças do século XVIII e XIX: aprender uma leitura decifrada, depois uma
leitura oralizada e somente após são confrontadas com o sentido da leitura. A proposta de
Capovilla (2005) e seu grupo, portanto, é a de mergulhar novamente o ensino da leitura em
práticas obsoletas que no passado já foram tidas como ineficazes para a formação do leitor.
Por esta razão, os defensores do método fônico, ao trazerem novamente à tona a
querela dos métodos para o campo da discussão do ensino da leitura na escola, têm, como
afirma Morttati, “prestado um des-serviço histórico à alfabetização no Brasil”, uma vez que
em pleno século XXI ressuscitam velhas disputas e reafirmam a forma de ler do mundo
antigo: soletrando, decodificando, oralizando o escrito. Enquanto isso, no interior das salas de
aula, a leitura como objeto de cultura parece cada vez mais distante para quem inicia o
processo de escolarização.
3.4 Para virar a página do ensino da leitura na escola
Diante do exposto, o pressuposto deste trabalho é o de que no início do processo de
escolarização o ensino do ato de ler não se restrinja ao funcionamento do sistema alfabético
de escrita, uma vez que apenas o domínio das relações grafema-fonema não permite a
objetivação dessa atividade nas práticas sociais e nega às crianças a apropriação da natureza
dialógica da linguagem, pois forma decifradores e não enunciadores em busca de sentido.
Nessa direção, para que a escola mude sua história em relação ao ensino da leitura, torna-se
necessário que busque ensiná-la como prática cultural e não como técnica, código, transcrição
sonora do símbolo visual.
Fundamentando-me em Smith (1989, p. 16) considero que “a leitura é uma questão de
dar sentido a partir da linguagem escrita, em vez de se decodificar a palavra impressa em
sons”. É o sentido e não o som que o leitor procura cada vez que realiza um ato de leitura.
Como afirma Vigotski (1995), quando lemos não lidamos com os sons, mas com o manejo do
95
signo linguístico, com seu significado; só quando percebemos a palavra como tal é que somos
capazes de atribuir-lhe sentido, de ler. Assim, no início do processo de escolarização, o ensino
do sistema linguístico não pode ser o objetivo principal. As relações grafema-fonema, o
aspecto sonoro da linguagem são parte do processo de ensino; não podem ser confundidas
com a leitura em si. O objetivo principal deve ser a formação de leitores capazes de realizar
práticas de leitura nas relações sociais.
O processo de alfabetização, nesse sentido, deve ocorrer num movimento discursivo
em que o professor conceba a leitura como prática dialógica e significativa com a participação
das crianças em situações reais que lhes permitam interagir, compartilhar e construir sentido.
A alfabetização, longe de ser reduzida ao ensino do código, constitui-se no momento de
ensinar às crianças a leitura como atividade vital e necessária, como uma forma de dialogar,
interagir, tornar-se coenunciadora do discurso do outro. Como afirma Geraldi (1997, p.121),
“ensinar a língua é ampliar a experiência do aluno com a nossa”, assim a alfabetização se faz
a partir de uma ngua viva, em movimento, num processo de interlocução entre as crianças e
entre elas e o professor, um conjunto de vozes operando sobre discursos e o apenas uma
única voz operando sobre letras, sílabas, palavras que nada dizem. Esse momento inicial do
aprendizado da leitura na escola, ao invés de individual e solitário, de ser cooperativo e
dialógico, afinal a leitura, como uma função psíquica superior, pode ser apropriada num
processo de interação social.
É importante ressaltar que conceber a alfabetização como processo discursivo não é
ignorar o ensino do sistema alfabético de escrita, mas colocá-lo a serviço de leituras reais, ou
seja, não podemos separar o aspecto sonoro do aspecto semântico da linguagem para reduzi-la
a sua sinalidade; pelo contrário, temos que ensinar as crianças a buscar sempre o sentido do
que está diante dos olhos, fazendo com que o sinal seja incorporado pelo signo. Como propõe
Charmeaux (1997, p. 88-89),
Ensinar a leitura, portanto, é colocar em funcionamento um comportamento
ativo, vigilante, de construção inteligente de significação, motivado por um
projeto consciente e deliberado, e isto desde o próprio início da escolaridade
das crianças, e mesmo antes que elas cheguem à escola. É por este tipo de
questionamento e de raciocínio que é preciso começar, e é em cima disto que
é preciso trabalhar até o fim da escolaridade. Jamais o repetiremos
suficientemente: aprender a ler é aprender a construir sentido, e tudo que não
conduzir diretamente a este resultado não pode pretender ser uma
aprendizagem da leitura.
96
Aprender a ler é aprender a atribuir sentido, como afirma Charmeaux. Toda e qualquer
aprendizagem da leitura pode realizar-se com esse fim. Ensinar que ao ler buscamos o
sentido e não o som será algo fácil se, quando ensinarmos o sistema alfabético de escrita, não
confundirmos a leitura com decodificação, pois para as crianças a linguagem está sempre
relacionada ao sentido, como afirma Goodman (1997, p. 26), desde o início, a linguagem
está relacionada de forma indissociável, na cabeça da criança, ao sentido. Se a transformamos
em algo sem sentido, ela não fica fácil, mas sim difícil de aprender.” Quando isolamos a letra,
a sílaba e a palavra de seu enunciado, não tornamos mais fácil o aprendizado da leitura, mas o
dificultamos, pois a linguagem deixará de fazer sentido às crianças.
O caminho para que isso não ocorra, como apontado, pode ser o de realizar o
ensino da leitura tendo como instrumento os gêneros do discurso, a partir de atividades em
que a leitura atenda às necessidades dos aprendizes e permita a interação social em situações
não simuladas dessa forma de linguagem. Para isso, as crianças, desde o início, devem estar
inseridas em práticas de leitura naturais, reais e funcionais, operando com a diversidade de
enunciados, de forma a tornar possível que o interesse e o aprendizado da leitura ocorram ao
mesmo tempo. A escola, como a responsável pela formação de leitores, deveria, como afirma
Foucambert (2008), conduzir o ensino da leitura como uma aprendizagem social, deixando de
focá-la como objeto escolar e passar a concebê-la como objeto de cultura herdado das
gerações precedentes.
Apropriar-se de um objeto cultural como a leitura pode ser possível nesse
movimento, pois, de acordo com Chartier (2003, p. 152), “a apropriação, tal qual nós a
entendemos, visa a uma história social dos usos e das interpretações, remetidas às suas
determinações fundamentais e inscritas nas práticas específicas que as constroem.” É
participando e convivendo com as formas ideais que a criança pode apropriar-se delas,
tornando-se parte dessa comunidade de pessoas que leem para encontrar o sentido, para
satisfazer uma necessidade, não para encontrar o som, para cumprir uma tarefa imposta.
Gontijo (2003) afirma que o processo de alfabetização não pode levar ao
silenciamento das crianças, do seu modo de pensar e interpretar o mundo, como vem
ocorrendo para a maioria delas. Assim como o fizeram até agora, precisam continuar
dialogando com seu entorno e, para isso, é fundamental conceber os gêneros do discurso
como instrumentos nesse processo. Ao lidar com eles, a linguagem não deixa de fazer sentido
aos aprendizes. Por requerer sempre uma atividade responsiva, os gêneros dão lugar à voz da
criança, sua expressão, sua manifestação discursiva, como aponta Britto (1997, p. 163): “a
leitura surge como o espaço possível de respostas, de novas interpretações, de outros saberes
97
que, confrontados com os seus, podem permitir novas descobertas.” É a alfabetização a partir
de uma concepção dialógica da linguagem, que ao ter como instrumento os gêneros do
discurso, objetiva o domínio discursivo da linguagem escrita, algo muito além do simples
aprendizado do sistema linguístico.
Nessa perspectiva, ao invés de ler para simplesmente prestar conta ao professor, na
tentativa de agradá-lo, como revela estudo realizado por Amâncio (2002), as crianças em
processo de alfabetização poderão ler para interagir, para buscar respostas, para divertir-se,
para informar-se, enfim, a leitura sendo aprendida como atividade-meio e não como fim em si
mesmo. É o professor como mediador e interlocutor, não como alguém a quem prestar contas.
Em Smith (1989), é possível reconhecer uma concepção do professor como mediador
e interlocutor entre a leitura e as crianças,
O papel primário dos professores de leitura pode ser resumido em poucas
palavras- é o de garantir que as crianças tenham demonstrações adequadas
da leitura sendo usada para finalidades evidentemente significativas, e ajudar
os alunos a satisfazerem, por si mesmos estas finalidades. Onde as crianças
vêem pouca relevância na leitura, então os professores devem mostrar que
esta vale a pena. Onde as crianças encontram pouco interesse na leitura, os
professores devem criar situações interessantes. (SMITH, 1989, p. 246-24).
O Autor, como Vigostski (1996), evidencia a necessidade de as crianças conviverem
com as formas mais elaboradas de leitura, e, portanto, com práticas efetivas dessa atividade na
escola, práticas que sempre devem possuir alguma finalidade, fazer sentido aos aprendizes.
Cabe ao professor organizar o ensino da leitura a partir desses pressupostos, tornando-se o
principal mediador e interlocutor entre a criança e a leitura como objeto de cultura.
Smith (1989) nos alerta que quando na escola a leitura o faz sentido às crianças,
quando não está relacionada a nenhuma finalidade, ela impede a criança de relacioná-la com
seu conhecimento prévio, obrigando-a a centrar toda a sua atenção na informação visual que
está diante dos olhos. Isso a leva a uma visão em túnel, tornando difícil a realização da leitura.
Segundo o autor, a visão em túnel, “ver uma linha impressa como se estivesse olhando para
ela através de um estreito tubo de papel”, chega a impedir a leitura porque o se pode ler se
somente se enxergam umas poucas letras de cada vez (SMITH, 1989, p. 94). É como reduzir a
linguagem à sua sinalidade e levar o leitor aprendiz a ignorar o signo linguístico. A criança é
capaz de identificar as letras, a palavra, mas não de atribuir sentido ao símbolo visual, não o
compreende, não é capaz de ler.
98
Nessa direção, no trabalho com os gêneros do discurso, é crucial a seleção de
enunciados que estejam inseridos num contexto em que sua leitura seja necessária e tenha
finalidade significativa para quem está aprendendo a ler. Arena (2003, p. 5) afirma que “são a
intenção, a necessidade e a finalidade, os desencadeadores, no aprendiz, das decisões sobre
que comportamentos operar, que ferramentas utilizar para atribuir sentido ao escrito”, e
Bajard (2002, p. 288) diz: ler corresponde a uma necessidade ou a um desejo e não pode ser
divorciado do projeto do leitor.” Sem esse cenário, não possibilidade de leitura; sem o
envolvimento do leitor com o enunciado, o processo interlocutivo não tem condições de se
desenvolver.
Com efeito, como ressalta Foucambert (1994), o olhar sobre o escrito não é separável
da compreensão que o orienta, por isso a necessidade de que os enunciados não sejam
separados da situação social na qual se inserem, como argumenta Bakthin (2003). Afirmar
que os gêneros do discurso correspondem a instrumentos do processo de formação do leitor
não significa lançar o de sua função como instrumento de comunicação. Na escola eles se
constituem, além de instrumentos de comunicação, em objeto de ensino-aprendizagem. Vale
citar aqui Chartier (2004, p. 186): “Os atos de leitura e as formas de aprendizagem não podem
dissociar-se dos conteúdos textuais nem dos usos sociais a que se relacionam historicamente.”
Assim, uma sequência didática adequada no ensino da leitura é aquela que, ao operar com os
gêneros discursivos, não ignora sua própria natureza: comunicar.
Portanto, em relação à leitura no início da escolaridade, é preciso considerar que cabe
ao professor não apenas ensiná-la, mas torná-la usual na sala de aula de forma que a criança, a
partir da diversidade dos gêneros, possa experienciar a linguagem nas suas várias facetas, não
aprendendo apenas uma forma de ler, mas várias condutas, de acordo com a natureza de cada
enunciado.
O processo de escolarização necessita, pois, de introduzir as crianças no aprendizado
da leitura de forma funcional e significativa, afastando-se das simulações e das situações de
ler como algo desmotivador e ausente de finalidades. Muitas são as possibilidades e
caminhos, como aponta Lerner (2002), que é possível, nas relações vivenciadas na escola,
ler em diferentes situações para atender a diversos propósitos e necessidades. A escola,
enquanto instituição responsável pela formação cultural do indivíduo, necessita se ater à
questão do ensino da leitura como prática da cultura humana e não como mero ato
mecanizado que basta a si mesmo. Como afirma Foucambert (1998, p. 169),
99
[...] A relação com a escrita é fundamentalmente uma prática social e seu
aprendizado dificilmente pode suportar o enclausuramento em seu uso
escolar. Ler e escrever é inevitavelmente participar da produção social e da
troca de bens simbólicos. É difícil esquivar-se disso, a não ser correndo o
risco de fracassar.
Contudo, cabe agora discorrer como as crianças que iniciam esse processo percebem
as relações entre o ler na escola e o ler como prática social, como concebem esse caminho em
busca da apropriação da leitura, quem são seus mediadores, interlocutores, que condutas,
atitudes e concepções formam no decorrer do processo de alfabetização em relação ao ato de
ler. Os próximos capítulos destinam-se a apresentar um pouco desse caminho com o olhar dos
teóricos, estudiosos e pesquisadores evidenciando como a escola tem ensinado a ler em meio
às novas velhas disputas, e como as crianças do século XXI constroem suas experiências com
o ato de ler na escola.
100
SEGUNDA PARTE RESULTADOS DA INVESTIGAÇÃO: A LEITURA NO INÍCIO
DO PROCESSO DE ESCOLARIZAÇÃO
Para apresentar o caminho que as crianças percorrem com a leitura no início de sua
vida escolar, a análise e discussão dos resultados da investigação foi organizada em dois
capítulos. O capítulo 4 refere-se à trajetória dos sujeitos aprendizes na educação infantil, e o
quinto, à trajetória do primeiro semestre, no início do ensino fundamental. Em ambos os
capítulos, foram utilizadas as mesmas categorias temáticas, tendo em vista o caráter
longitudinal da pesquisa. Ao optar por esta forma de organização o objetivo foi o de obter
maior clareza acerca da influência da instituição escolar na formação de leitores a partir da
experiência das crianças com a leitura nestas duas etapas iniciais do processo de
escolarização.
Nesta perspectiva, foram formadas, a partir da análise resultante dos instrumentos
utilizados para geração de dados, quatro categorias temáticas, as quais são apresentadas com
seus respectivos objetivos no quadro a seguir:
Categorias Objetivos
Proposta pedagógica da unidade
escolar e metodologia de ensino
Identificar no currículo escolar a concepção de leitura adotada
pela escola e seus fundamentos.
Perceber como a proposta pedagógica da instituição escolar é
concretizada na sala de aula.
Propostas didáticas e as
manifestações das crianças
Verificar as impressões, interesses, atitudes e manifestações das
crianças em relação às situações planejadas pela escola para
ensiná-las a ler.
O mediador Identificar na perspectiva das crianças quem são seus mediadores
na aprendizagem da leitura.
Conceito de leitura Apresentar as elaborações que as crianças constroem sobre o ato
de ler.
Perceber que relações as crianças estabelecem entre o ler na
escola e o ler como prática cultural.
Quadro 6 – Categorias temáticas formadas para análise e discussão dos resultados da pesquisa
A partir dessa categorização dos dados, julgo ser possível, ao final do quinto capítulo,
a apresentação de conclusões sobre como ocorre a apropriação da leitura no início da
escolaridade sob o olhar dos sujeitos aprendizes, foco desse trabalho de pesquisa, e assim
possibilitar uma compreensão mais aprofundada acerca do papel que a escola exerce na
apropriação dessa atividade pelas crianças.
101
4 A leitura na educação infantil: a busca do sentido
Este capítulo objetiva apresentar, analisar e discutir os dados gerados no primeiro ano
da pesquisa, quando os sujeitos do processo de investigação estavam cursando o último ano
da educação infantil. A partir das categorias temáticas já apresentadas, busco apresentar a
maneira como as crianças lidam com as práticas de leitura nessa etapa da educação escolar. A
princípio serão expostas e discutidas a proposta pedagógica da escola em relação ao ensino da
leitura e a metodologia adotada em sala de aula para sua concretização. Na sequência, serão
analisadas as propostas didáticas planejadas para o ensino da leitura e as manifestações dos
sujeitos da pesquisa em relação a elas. Por fim, por meio do diálogo tecido com as crianças
nas sessões de observação, entrevistas e análise documental, serão analisados o conceito que
constroem sobre o ato de ler, seus principais mediadores e as relações com o ler como objeto
de cultura.
4.1 A proposta pedagógica da unidade escolar e a metodologia de ensino
O projeto educativo da unidade escolar campo de pesquisa foi elaborado pela direção,
coordenação e corpo docente no ano de 2006. Como esse documento é válido por quatro anos,
nos anos de 2007 e 2008 a escola elaborou apenas adendos ao projeto. Por essa razão, nesta
categoria de análise são apresentados e discutidos tanto os dados resultantes da análise desse
documento em 2006, como os de seus adendos em 2007 no que se refere ao ensino da leitura
na educação infantil.
No projeto educativo elaborado em 2006 e em seus adendos do ano de 2007 o
uma explicitação clara acerca da concepção de leitura adotada pela escola, apesar de os
documentos trazerem trechos transcritos dos RCNs, Referenciais Curriculares Nacionais para
a Educação Infantil (1998), indicando a leitura como processo de construção de significado,
mas, contraditoriamente, também apontando para uma direção do ensino do ler apenas como
processo de decodificação.
Ao apresentar o currículo proposto para o último ano da educação infantil, o
documento da escola traz, na íntegra, a relação de objetivos para o trabalho pedagógico em
relação ao eixo linguagem oral e escrita recomendado pelos RCNs (BRASIL, 1998). De
acordo com a proposta pedagógica, os objetivos em relação ao ensino da leitura no último ano
da educação infantil são os seguintes:
102
- Ampliar gradativamente suas possibilidades de comunicação e expressão,
interessando-se por conhecer vários gêneros orais e escritos e participando
de diversas situações de intercâmbio social, nas quais possa contar suas
vivências, ouvir as de outras pessoas, elaborar e responder perguntas;
- Reconhecer seu nome escrito, sabendo identificá-lo nas diversas situações
nas quais se faz uso dos mesmos;
- Manusear diferentes portadores de texto, vivenciando situações nas quais
se faz uso dos mesmos.
- Apreciar a leitura de textos feitos por adultos;
- Escolher livros para ler e apreciar. (PROJETO EDUCATIVO, 2007, p. 81).
Estes objetivos, transcritos dos RCNs (BRASIL, 1998), indicam que o trabalho com a
leitura na educação infantil será realizado a partir da participação das crianças em situações de
leitura que envolva uma diversidade de gêneros textuais, bem como através de escuta de
textos lidos pelo professor e contato com livros literários infantis. A perspectiva apontada nos
objetivos, assim como nos RCNs, é a de que cabe à educação infantil propiciar condições para
que as crianças possam aprender a ler por meio de participações em situações de leitura, uma
vez que, de acordo com este documento, ler corresponde a um processo de construção de
significado que transcende a simples decodificação.” (BRASIL, 1998, p. 140).
No entanto, ao analisar o conjunto de conteúdos propostos a partir desses objetivos,
percebem-se os primeiros pontos de desencontros com a proposta dos RCNs (1998, v.3). No
projeto educativo são enumerados por bimestre os conteúdos a serem trabalhados no ano. Três
dos conteúdos propostos acerca das práticas de leitura são transcrições dos RCNs (BRASIL,
1998), os demais são adaptações desse documento.
Os conteúdos propostos em relação ao ensino da leitura na unidade escolar para as
turmas do último ano da educação infantil são apresentados no quadro a seguir:
103
Bimestres Conteúdos
- Reconhecimento do próprio nome dentro do conjunto de nomes do grupo e nas
situações em que isso se fizer necessário.
- Relacionar figuras e palavras.
- Observação e identificação em situações onde aparece o nome escrito: certidão de
nascimento, agenda telefônica, crachá, correspondência, agenda escolar, etc.
- Contatos com práticas de leitura relacionando escrita/figura, mesmo sem saber ler
convencionalmente.
- Leitura de expressões, símbolos, placas, imagens, documentos e textos em geral.
- Relacionar figuras e palavras.
- Participação nas situações em que os adultos lêem textos de diferentes gêneros.
- Contatos com práticas de leitura relacionando escrita/figura, mesmo sem saber ler
convencionalmente
- Organização de momentos de leitura livre tanto para o aluno, quanto para o
professor.
- Práticas de leitura na escola e pelos familiares.
- Relacionar figuras e palavras.
- Participação nas situações em que os adultos lêem textos de diferentes gêneros.
- Contatos com práticas de leitura relacionando escrita/figura, mesmo sem saber ler
convencionalmente
- Organização de momentos de leitura livre tanto para o aluno, quanto para o
professor.
- Práticas de leitura na escola e pelos familiares.
- Leitura de obras literárias.
- Relacionar figuras e palavras.
- Participação nas situações em que os adultos lêem textos de diferentes gêneros.
- Contatos com práticas de leitura relacionando escrita/figura, mesmo sem saber ler
convencionalmente
- Organização de momentos de leitura livre tanto para o aluno, quanto para o
professor.
- Práticas de leitura na escola e pelos familiares.
- Conscientização da leitura de história como fonte de aprendizagem de novos
vocabulários.
Quadro 7 - Conteúdos referentes ao ensino da leitura para turmas do último ano da educação infantil
Eixo: Linguagem Oral e Escrita/Práticas de leitura
(Projeto Educativo- Adendos/2007, p. 82-83).
Os conteúdos em negrito são os que foram reproduzidos dos RCNs (BRASIL, 1998);
os demais foram adaptados dos outros três conteúdos que este documento recomenda em
relação ao trabalho com a leitura. Ao analisar esse agrupamento, percebe-se uma repetição de
conteúdos ao longo dos bimestres, algo desnecessário de acordo com os próprios RCNs
(BRASIL, 1998), que não preveem uma organização por bimestre dos conteúdos para a
educação infantil. Com isso, embora a proposta pedagógica da escola mencione que está
fundamentada no currículo oficial proposto pelo Ministério da Educação, ela apresenta pontos
de divergência em relação ao que propõem os RCNs (BRASIL, 1998). A leitura de obras
literárias, por exemplo, não poderia estar restrita aos meses de agosto e setembro, já que como
os próprios objetivos da escola pressupõem, o contato das crianças com os livros infantis deve
104
ocorrer durante todo o ano letivo. A mesma observação pode ser tecida para o conteúdo
“Conscientização da leitura de história como fonte de aprendizagem de novos vocabulários”,
previsto apenas no final do ano letivo. O conteúdo “Relacionar figuras e palavras”, o é
indicado pelos RCNs (BRASIL, 1998), pois pressupõe uma abordagem descontextualizada
das situações de leitura. De acordo com este documento, seria conteúdo para o trabalho com a
leitura a “participação em situações que as crianças leiam, ainda que não o façam de maneira
convencional.” (BRASIL, 1998, p. 140). Isso é algo que não se reduz, portanto à mera
relação de figuras e palavras. “Práticas de leitura na escola e pelos familiares” são orientações
didáticas recomendadas pelo documento oficial e que, como mostra o quadro, foram
transcritas pela instituição como conteúdo, evidenciando a falta de clareza acerca da
organização curricular proposta pelos RCNs (BRASIL, 1998) para a educação infantil. Com
essas observações, é possível reconhecer que não uma coerência integral entre a proposta
pedagógica da instituição e os Referenciais Curriculares Nacionais no que se refere ao ensino
da leitura.
Outro dado que revela pontos de divergência entre a proposta e os RCNs (BRASIL,
1998), consiste em uma menção que consta no tópico referente ao diagnóstico da situação
escolar. De acordo com o documento da escola, tendo em vista os índices regulares de
alfabetização na primeira série do ensino fundamental, o último ano da educação infantil
buscará “desenvolver os pré-requisitos específicos direcionados ao processo de
alfabetização.” (PROJETO EDUCATIVO, 2006, p. 3). Assim, embora nos objetivos não haja
menção sobre pré-requisitos, talvez por corresponder a uma transcrição, a escola desvela a
crença de que para se apropriar da linguagem escrita é necessário que as crianças dominem
algumas capacidades antes de iniciarem o ensino fundamental. Ao sugerir uma etapa
preparatória ao processo de alfabetização, a escola de hoje apresenta resquícios do
pensamento de Lourenço Filho, que, como ressalta Arena (1996, p. 54), são trincheiras de
ação de resistência”. Também no tópico referente ao diagnóstico escolar, o projeto educativo
apresenta tanto em 2006 como em 2007 um quadro de classificação dos alunos da educação
infantil em relação ao processo de alfabetização agrupando-os em pré-silábicos, silábicos,
silábico-alfabéticos e alfabéticos. Isto porque, de acordo com a escola, a proposta de
alfabetização está fundamentada na perspectiva construtivista sendo, portanto, obrigatória a
realização desse diagnóstico assim que as crianças iniciam o ano (PROJETO EDUCATIVO
2007, p.2-3). Entretanto, como apontou Smolka (1988), a classificação de criança em
termos de níveis de hipótese aliada ao pressuposto de pré-requisitos para aprender a ler e a
escrever está longe de uma ação fundamentada nos estudos de Ferreiro e Teberosky (1985) e
105
contradiz o currículo oficial, pois de acordo com os RCNs cabe às instituições de educação
infantil “superar a idéia de que é necessário, em determinada idade, instituir classes de
alfabetização para ensinar a ler e a escrever. Aprender a ler e a escrever fazem parte de um
longo processo ligado à participação em práticas sociais de leitura e escrita.” (BRASIL, 1998,
p. 123).
Aqui vale retomar a discussão tecida no capítulo três acerca da crítica dos defensores
do método fônico à adoção da proposta de alfabetização construtivista, uma vez que, assim
como já mencionado, embora o currículo oficial por meio dos RCNs (BRASIL, 1998) e PCNs
(BRASIL, 1997) esteja fundamentado nesta proposta, as escolas não a adotam em sua
integralidade, como afirma Smolka (1988), apenas adaptam de acordo com seus preceitos,
concepções e realidade. Ao listar os conteúdos referentes às práticas de escrita, por exemplo, a
escola o realiza transcrições ou adaptações da lista sugerida pelos RCNs (BRASIL, 1998),
como faz em relação às práticas de leitura; enumera conteúdos que indicam uma concepção
do ensino da linguagem escrita como o domínio da relação entre fonemas e grafemas, a saber:
Nomear e traçar de maneira correta as letras do alfabeto.
Letra/som
As formas e tipo de letras
Formar palavras com letras móveis
Reflexão quanto à formação de palavras, a formação da família silábica
Escrever listas de palavras que comecem e terminem com a mesma letra
(PROJETO EDUCATIVO, 2007, p. 84).
Ao apontar, portanto, esses conteúdos como parte do currículo da educação infantil, a
escola revela uma concepção de ensino semelhante aos pressupostos dos métodos de natureza
sintética, já que a ênfase do ensino da linguagem escrita está no aprendizado das estratégias
de codificar e decodificar em vez de se inserir nas situações sociais de uso da língua escrita,
como recomendam os RCNs (BRASIL, 1998).
Diante do exposto, a proposta pedagógica da escola não apresenta uma clareza acerca
da concepção de leitura, não está fundamentada na íntegra nos Referenciais Curriculares
Nacionais (1998) nem evidencia a totalidade da abordagem dos métodos sintéticos de
alfabetização, principalmente ao listar os objetivos em relação ao ensino da leitura. Há, no
documento, trechos que permitem perceber a leitura como construção de significado e trechos
que parecem concebê-la como oralização do escrito.
Nesse sentido, embora para a unidade escolar a linha pedagógica adotada seja a
proposta construtivista, o que se percebe ao analisar suas particularidades em relação ao
106
ensino da linguagem escrita é uma mistura de metodologias e concepções de alfabetização,
algo apontado por Gontijo (2003) como característica das instituições de ensino que se
autodenominam construtivistas. Parece que os pressupostos dos estudos de natureza
construtivista, principalmente em relação à alfabetização, ainda não convencem a escola, que
se divide entre novos e velhos princípios ao documentar suas intenções e caminhos no ensino
da língua. Conhecer como de fato isso é concretizado na prática e como as crianças lidam com
esses princípios torna-se necessário para verificar o papel da escola na formação do leitor.
4.1.1 A concretização da proposta pedagógica na sala de aula
Por meio das sessões de observação e da análise documental a partir dos cadernos das
crianças sujeitos da pesquisa, os conteúdos referentes às práticas de escrita relacionados no
projeto educativo prevalecem em detrimento dos enumerados acerca das práticas de leitura e
consequentemente do trabalho previsto para os demais eixos: matemática, música,
movimento, artes visuais e natureza e sociedade. O gráfico
21
a seguir traz uma tabulação
acerca da quantidade de propostas didáticas desenvolvidas no ano, com base nos cadernos das
crianças, em relação aos conteúdos previstos no projeto educativo de forma a evidenciar a
importância dada ao trabalho com a escrita em relação aos demais eixos.
143
49
16
33
8
15
14
0
20
40
60
80
100
120
140
160
Nº de propostas
Eixos do trabalho pedagico na educação infantil
Propostas didáticas por eixo desenvolvidas no ano de 2007
Práticas de escrita
Práticas de leitura
Matemática
Artes visuais
sica
Movimento
Natureza e sociedade
Gráfico 1 - Quantitativo de propostas didáticas por eixo desenvolvidas no ano de 2007
22
21
Ressalto que para esta tabulação foram utilizados os dados resultantes da análise documental dos cadernos das
crianças, “caderno de atividades” e “caderno de desenho”, uma vez que, além de conter o registro das propostas,
apresenta o roteiro de atividades programadas para cada dia de aula.
22
A maioria das propostas didáticas foi realizada no primeiro semestre do ano, uma vez que a partir do mês de
setembro os ensaios para a festa de formatura compreenderam a maior parte do tempo do trabalho pedagógico
com as crianças do último ano da educação infantil.
107
De acordo com o caderno das crianças, 143 propostas didáticas realizadas para
desenvolver os conteúdos previstos no Projeto Educativo em relação ao ensino da escrita. Em
coerência com esse documento, essas situações destinam-se ao ensino do traçado das letras e
da relação letra-som. As propostas de produção de textos individuais ou coletivas
compreendem apenas 24 dessas propostas e em sua maioria eram realizadas uma vez por
semana para avaliar e classificar os alunos de acordo os níveis de hipótese de escrita. De
acordo com as sessões de observação, essa classificação dos níveis de Ferreiro (1985) era uma
imposição da escola à prática da professora, que demonstrava claramente em sala de aula seu
descontentamento com a realização de produções escritas para esse fim. Os dados transcritos
num protocolo de observação revelam essa situação:
A professora inicia as propostas didáticas em sala de aula retomando o
trabalho com a música “A Foca” de Vinicius de Moraes. Pergunta às
crianças se estas se lembram da poesia. Em coro, elas dizem que sim e
começam a cantá-la. Na sequência, a professora explica que elas fariam uma
escrita da música, mas apenas da primeira estrofe. [...] A professora distribui
a folha para ser escrito o texto. Um aluno pergunta: É prova?” e a
professora, com expressão de descontentamento, responde: “Não, a
professora quer saber como vocês estão escrevendo, nós não fazemos
prova, quem falou para vocês que isso é prova?”, e o aluno A-14, muito
próximo a mim, sussurra para o aluno A11 “é prova sim, a coordenadora
falou”. A professora não chega a ouvir esse comentário e ao terminar a
distribuição das folhas explica novamente a proposta. Pede para as crianças
colocarem o nome e a data e ficarem em silêncio para a “cabecinha pensar”.
As crianças fazem silêncio e começam a escrever. A professora acompanha
as produções das crianças passando de carteira em carteira. Quando chega
próximo a mim, declara “Não gosto da conotação de prova que eles dão para
a avaliação diagnóstica, sempre me referi como sendo uma atividade
individual que eu gostaria de que eles fizessem com muito capricho e
atenção para verificar o que aprenderam; aos poucos quero tirar essa
imagem. Temos que fazer isso toda semana para ver o nível de escrita dos
alunos!” Depois ela continua acompanhando o trabalho das crianças. Percebi
com esta declaração que certa cobrança por parte da direção e
coordenação da escola em relação aos avanços das crianças nos veis [...]
(Protocolo 6 de observação - 27/04/2007).
Para professor e alunos, o momento da produção de texto torna-se mera obrigação
escolar a ser cumprida; as crianças na educação infantil escrevem apenas para prestar
contas à professora. Apesar de não utilizarem cartilhas, essas crianças do século XXI
continuam a não experienciar situações de escrita para interagir, para se expressar, para criar,
como indica Amâncio (2002). Nessa condição, retomando Vigotski (1995), o ensino da escrita
leva a uma aprendizagem artificial da língua, uma vez que ao configurar-se como um fim em
si mesmo, longe de caracterizar-se como objeto de cultura, torna-se objeto escolar.
108
Embora o foco desse trabalho seja a leitura, ressalto esses aspectos em relação à
escrita, porque no decorrer do estudo etnográfico constatei a exigência constante da escola em
relação aos professores da educação infantil quanto à responsabilidade de contribuir para o
aumento do índice de alfabetização da unidade escolar. Como esse índice era medido apenas
pelo desempenho dos alunos nas produções escritas individuais, o professor estabelecia como
prioridade o trabalho com os conteúdos de escrita voltados especificamente ao domínio do
código, pois, para ser considerado alfabetizado, o aluno precisava apresentar na produção de
texto uma correta correspondência entre grafemas e fonemas. Dessa forma, não havia uma
avaliação específica para a leitura; esta atividade era avaliada por meio da escrita. Intrigante
era que as próprias crianças utilizavam os níveis de escrita para se avaliarem em relação à
leitura.
No primeiro dia em que adentrei a sala de aula, após explicar o que faria ali, o aluno
A-14 disse “Eu sei ler, mas ele não sabe, ainda é pré-silábico”, referindo-se ao aluno A-18
sentado a seu lado. (Protocolo 1 de Observação 09/03/2007). Como afirmou Smolka (1988), o
discurso do aluno é mais uma evidência de que a escola reduziu os estudos de Ferreiro e
Teberosky (1985) ao ensino das relações gráfico-sonoras, classificando crianças em termo de
níveis de hipótese e gerando entre elas rótulos pejorativos que em nada contribuem para o
processo de apropriação da linguagem escrita. De acordo com a análise dos dados obtidos nas
sessões de observação, a classificação dos alunos nos níveis de escrita tinha apenas o objetivo
de verificar a evolução dos índices de alfabetização, pois o trabalho desenvolvido em sala de
aula era o mesmo para todos os alunos, fossem eles classificados como alfabéticos ou como
pré-silábicos.
Acredito que a perspectiva da unidade escolar em responsabilizar diretamente os
professores da educação infantil por índices melhores de alfabetização explique a
preponderância das propostas de escrita em detrimento das propostas dos demais eixos. E
como a leitura era avaliada também por meio da escrita, os conteúdos descritos no projeto
educativo referentes a essa atividade o tinham tanto espaço na sala de aula como aqueles
enumerados acerca da escrita. Das 49 propostas didáticas de leitura, 19 corresponderam a
situações do ler a partir de textos autênticos, 23 a partir de pequenos textos retirados de um
manual de alfabetização, 5 de livros de literatura infantil e 2 referentes a relacionar figuras a
palavras .
Constata-se, portanto, que foram poucas as situações que envolveram o ato de ler
como atividade, e ainda menor a frequência das atividades de expressão como o desenho, a
pintura, a dança e outras. Como afirma Mello (2006), esses dados indicam que cada vez mais
109
a educação das crianças pequenas tem se contaminado dos procedimentos típicos do ensino
fundamental, principalmente pela ânsia de antecipar cada vez mais o processo de
alfabetização e entendê-lo como o simples domínio das relações entre fonemas e grafemas. A
esse respeito, Mello (2006, p. 183), fundamentando-se nos estudos da teoria histórico-cultural,
alerta que
[...] A escrita não começa quando a criança pega no lápis pela primeira vez,
mas começa no primeiro gesto, quando, ainda bebê, ela tenta se expressar e
se comunicar. [...] A história da escrita é a história do desejo de expressão da
criança. Por isso, todas as atividades de expressão - que em geral ocupam
lugar de segunda categoria em nossas escolas, como a expressão oral, o
desenho, o faz-de- conta, a modelagem, a pintura precisam ser estimuladas
e cultivadas se quisermos que as nossas crianças se apropriem da escrita
como leitoras e produtoras de texto.
Como sugere a Autora, é necessário que os educadores da infância repensem as
consequências de um trabalho didático na educação infantil, cujas propostas em sala de aula
sejam preponderantemente voltadas ao domínio da relação grafema-fonema e do traçado das
letras, pois a apropriação de uma atividade cultural complexa como a linguagem escrita
pode se realizar a partir de atividades que tenham sentido para as crianças, que permitam a
elas se expressar e que por isso não pode ser tomada como objeto de ensino isolado e
transformado em um fazer mecânico.
Para as crianças sujeitos dessa pesquisa, esse foi o caminho proposto pela escola:
ensinar-lhes a linguagem escrita a partir de uma metodologia que privilegiou a leitura e a
escrita como objeto escolar e que raras vezes lhes possibilitou o convívio com formas mais
elaboradas dessas atividades. Na sequência, apresento a metodologia utilizada em relação ao
ensino da leitura, discutindo inicialmente a forma de ensino a partir de textos autênticos, de
textos de natureza didática e finalmente as situações com livros literários infantis.
Por textos autênticos denomino os escritos que circulam de fato nas relações sociais.
Toda a proposta didática em relação à leitura desses textos segue a mesma metodologia de
acordo com os protocolos de observação e a análise dos cadernos das crianças.
Inicialmente a professora informa que gênero textual será lido. Na sequência, ela
distribui o texto em letra de imprensa e se o escrito estiver acompanhado de alguma ilustração
ela pergunta às crianças a relação deste com o desenho. Depois ela pede que as crianças leiam
o texto a partir de algumas pistas como palavras ou letras que identificam. A partir dos
relatos das crianças, começa a ler com elas as palavras identificadas. Nesse momento as
crianças buscam tecer o sentido do texto. Esgotada a participação das crianças, é realizada a
110
transmissão vocal do texto pela professora que solicita às crianças acompanharem cada
palavra que está sendo lida. Concluída essa primeira etapa, inicia-se o trabalho direcionado ao
ensino do traçado das letras e da relação grafema-fonema. Primeiramente, as crianças,
individualmente, vão até a lousa escrever palavras do texto. Nesse momento a professora faz,
com a turma, o estudo da relação letra-som e orienta a grafia correta das letras. Ao mesmo
tempo, pede que as crianças circulem no texto as palavras escritas na lousa pelos colegas.
Após essa análise da grafia das palavras, copiam no caderno de atividades todas as que foram
escritas na lousa e circuladas no texto. Como essa segunda etapa é exaustiva, a sessão
metodológica de ensino da leitura é interrompida nesse ponto. No decorrer da semana a
professora estabelece uma continuidade do trabalho utilizando essas palavras para o
desenvolvimento de outras propostas direcionadas ao ensino das estratégias de codificação e
decodificação, tais como a formação de novas palavras a partir de rimas, a partir da sílaba ou
letra inicial, o estudo da palavra: letra inicial, letra final, número de letras e família silábica.
As dezenove situações de leitura a partir de textos autênticos atenderam a essa mesma
metodologia. Trechos do protocolo de observação 4 e a figura 1 a seguir retratam esses dados:
Hoje a turma está com 20 alunos. Após cantarem diversas músicas no pátio
as crianças entram na sala de aula. A professora inicia a aula dizendo que
hoje eles vão ler uma poesia chamada “As Borboletas”. As crianças
demonstram entusiasmo. Ela entrega o caderno de atividades e na sequência
começa a colar a poesia no caderno das crianças. A poesia foi digitada e
impressa pela professora em letra de imprensa. O aluno A-14 pergunta: “Prô,
nós vamos escrever isso?”, e a professora responde “Não, nós vamos ler
isso”. O aluno, com expressão de admiração, diz “Ah!”. Enquanto a
professora cola o texto no caderno, alguns alunos conversam à vontade sobre
diversos assuntos, entretanto, constato que cada aluno, ao receber o texto,
para a conversa e olha fixamente para o caderno, talvez na tentativa de ler o
que ali está escrito. Quando a professora termina de colar a poesia, ela pede
atenção de todos e explica novamente que o texto colado no caderno de cada
um é uma poesia. Solicita que todos tentem ler o texto, identificando letras e
palavras que eles já conheçam. Como alguns já fizeram essa tarefa quando
ela colou a poesia no caderno, eles imediatamente começam a dizer que
palavras conseguiram identificar. A-14 é o primeiro a se manifestar: “Prô,
aqui está escrito borboletas e aqui, aqui e aqui também”, referindo-se ao
título do texto e a três versos da poesia. A professora confirma a hipótese do
aluno: “Isso mesmo, olha, gente, o A-14 sabe ler, está vendo ele achou
um monte de borboletas, quem mais achou outra palavra ou letra?”. Nesse
momento um turbilhão de comentários das crianças, pois umas começam
a dizer que viram borboletas, outras que não gostam e têm medo e a
professora procura dar atenção a cada fala dos alunos. [...] Percebo que eles
não dizem que letras reconhecem, tentam arriscar palavras. A-11 diz à
professora: “Prô, aqui está escrito bola”, referindo-se à palavra branca, no
primeiro verso da poesia. A professora calmamente diz à aluna “Não, olha
só, aqui não está escrito bola, começa com a mesma letra B, mas é outra
palavra”; imediatamente A-14 diz a A-11, “aqui está escrito brancas, não é
111
prô?”. E a professora sequência, “Isso mesmo”. Nesse momento, A-7 diz
à professora: “Eu nunca vi borboleta branca, preta”, indicando que sem a
intervenção da professora estabeleceu a relação entre as palavras
borboletas e brancas. A professora continua “Quem já viu borboletas brancas
e de outras cores?”, novamente há um turbilhão de comentários e a partir
deles a professora tece com as crianças o sentido do texto. [...] Depois de
discutirem sobre as borboletas pretas a professora anuncia que fará a leitura
em voz alta do texto todo e pede que as crianças tentem acompanhar olhando
no caderno. Elas, entretanto, não olham para o caderno, mas para a
professora. Após a transmissão vocal do texto a professora pede que todos
circulem no texto a palavra borboletas. Toca o sinal para o recreio. As
crianças formam a fila e dirigem-se ao refeitório... Quando retornam, a
professora solicita que A1 à lousa escrever a palavra borboleta. O aluno
escreve “BOBO”, e A-14 intervém “Está faltando o R”, A1 apaga e escreve
de novo com a ajuda da professora e de A-14. A professora utiliza esse
momento para discutir com a turma as relações entre grafema-fonema. Com
a mesma metodologia chama os alunos A-4, A-5, A-13 e A-3 para escrever
na lousa as palavras Brancas, Azuis, Amarelas e Pretas. Assim como A-1
eles são ajudados por A-14, A-15 e pela professora para grafar corretamente
as palavras. Ao terminar essa sessão, a professora solicita que todos circulem
essas palavras no texto e as escrevam no caderno. A professora diz que quem
quiser pode ilustrar cada palavra escrita. Entretanto, percebo que as crianças
estão cansadas e poucas manifestam interesse pelo desenho. Após essa
proposta a professora recolhe os cadernos e os guarda no armário. O aluno
A-16 pergunta à professora “Prô, agora nós vamos no parque?”, e a
professora responde “Agora não, se der tempo vamos, ainda vou explicar
uma tarefinha”. O descontentamento é visível na expressão dos alunos [...]
(Protocolo 5 de observação-17/04/2007).
Figura 1 - Registro da proposta didática de leitura a partir da poesia As borboletas”- Vinicius de
Moraes/Caderno de atividades de A-6
112
Ao analisar a metodologia utilizada em relação ao ensino da leitura, é possível
perceber que embora seja indicado o gênero do discurso que será lido, ele é tomado pelo
professor como objeto didático, não como instrumento de comunicação e de ensino da
linguagem escrita, uma vez que é apresentado às crianças sem uma conexão com a realidade
da atividade humana na qual se insere. Embora as crianças sejam informadas acerca do tipo
de enunciado a ser lido e isso possa ser reconhecido como um avanço no ensino da leitura,
seria antes imprescindível propiciar situações de comunicação em que os aprendizes fizessem
uso dos gêneros num processo discursivo. A pergunta de A-14 sobre se teriam que copiar o
texto no caderno indica que, sob o olhar das crianças, aquele conjunto de enunciados estava
ali apenas como parte de uma tarefa escolar. Assim, embora no projeto educativo da unidade
esteja prevista a participação das crianças em situações de leitura a partir de diversos gêneros,
a metodologia adotada não proporciona aos leitores aprendizes oportunidades de reconhecê-
los como a realidade da comunicação humana. Eles surgem na sala de aula apenas como
objeto didático. E, como tal, contradizem os pressupostos de Bakhtin (2003), pois os gêneros
do discurso devem ser vistos na sua função no processo de interação. Segundo Fiorin (2008,
p. 6), “existe uma simplificação muito grande das noções bakhtinianas”, principalmente após
a publicação dos RCNs (BRASIL, 1998) e PCNs (BRASIL, 1997), pois a escola passou a
conceber o gênero como produto, enquadrando os tipos estáveis de enunciados numa
perspectiva normativa (FIORIN, 2008).
Entretanto, quando a professora instiga os alunos a tentarem ler o texto com os olhos a
partir de palavras e letras conhecidas, permitindo que hipóteses sejam realizadas e
valorizadas, acaba por oportunizar uma relação dialógica entre os leitores aprendizes e o
escrito, pois as crianças não apontam a palavra identificada como sinal, elas a veem como
signo. Acredito que seja esta a razão pela qual elas resistem e dizem palavras mesmo que
saibam identificar apenas a primeira letra, como é possível perceber na fala de A-11. Outro
aspecto a ser ressaltado é o fato de a leitura em voz alta ser realizada após as crianças terem
tentado ler por si sós e o sentido do escrito ser compartilhado entre a docente e as crianças
sem recorrer à oralização. Em relação ao ler em voz alta, quando essa ação é realizada como
primeiro procedimento, acaba por descaracterizar a situação de leitura. Nas palavras de Bajard
(2007, p. 98), “se o texto foi revelado aos ouvidos, não resta revelação para os olhos”.
Quanto à oralização, a metodologia adotada pela professora propicia às crianças não recorrer
a essa estratégia para levantar hipóteses, pois nas sessões de observação foi constatado que
elas utilizam apenas a informação visual na busca pelo sentido do escrito. Esse dado confirma
o postulado apontado por Bajard (2002), de que quando a criança não é exclusivamente
113
orientada pelo professor em direção às relações fonemas-grafemas, acaba experimentando a
variedade dos mbolos gráficos e se valendo de seu conhecimento do mundo para atingir o
sentido. Isso é algo de extrema relevância para a formação do leitor.
Considerando esses aspectos, se os gêneros do discurso não fossem apenas objeto
didático, mas emergissem na sala de aula a partir de situações de comunicação num processo
discursivo, a metodologia utilizada pela professora poderia possibilitar propostas didáticas
mais adequadas ao processo de apropriação da leitura, uma vez que as crianças, ao
conhecerem o motivo da ação de leitura e seu resultado, poderiam estar de fato em atividade.
De acordo com os pressupostos de Vigotski (1995), o ato de ler teria sentido por estar inserido
numa situação em que sua realização se constituísse como necessária e imprescindível para os
aprendizes.
Assim, a metodologia para o ensino da leitura na educação infantil, por não pressupor
situações do ato de ler em contextos de comunicação a partir de vivências em que essa prática
se manifeste como objeto de cultura, acaba por direcionar as propostas didáticas referentes ao
ler na escola para o estudo do funcionamento do sistema alfabético de escrita. Como mostram
o protocolo de observação 4 e a figura 1, a aprendizagem da leitura como valor de
comunicação lugar à aprendizagem dessa atividade como estratégia de decodificação, com
um fim em si mesmo (FOUCAMBERT, 2008).
No decorrer do ano, para ensinar às crianças o traçado das letras e a relação grafema-
fonema previsto como conteúdos no projeto educativo, foram também utilizados em sala de
aula 23 pequenos textos retirados de um manual de alfabetização. A metodologia em relação
ao trabalho com este material diferenciava-se em relação aos textos autênticos, porque o foco
residia apenas no ensino do sistema alfabético de escrita, como é possível perceber na figura
2.
114
Figura 2 - Textos de natureza didática/Caderno de atividades- A-5
A metodologia no trabalho com estes textos obedecia à seguinte sequência: a
professora entregava o material escrito às crianças e solicitava que elas o colassem no
caderno. Em seguida, dizia qual letra seria trabalhada na aula e pedia às crianças para
circularem no texto palavras que iniciassem com esta letra. Enquanto as crianças procuravam
as palavras, a professora copiava o texto na lousa. Depois, fazia a transmissão vocal do texto
enfatizando o som do grafema que estava sendo ensinado e apresentava às crianças a “família
silábica” enfatizando o traçado da letra e a correspondência fonográfica. Dando continuidade,
solicitava o registro da família silábica no caderno pedindo que as crianças dissessem palavras
que começassem com cada sílaba da família silábica e chamava alguns alunos na lousa para
grafar tais palavras. Como última ação, solicitava a cópia dessas grafias no caderno.
Esta abordagem metodológica demonstra que, embora a escola enfatize o trabalho sob
uma perspectiva construtivista, organiza a maior parte das situações de ensino da língua
escrita com base em velhos princípios, como a necessidade de ensinar a partir da sequência
letra, sílaba, palavra, mesmo que o ponto de partida seja um pequeno texto. É, pois, uma
mistura de resquícios dos métodos ABC, silábico, e da palavração, uma vez que, diferente do
que recomenda a proposta construtivista, a metodologia é a mesma para todos e pode conduzir
115
as crianças a ignorarem o que sabem sobre a língua para ensinar-lhe, precisamente, a
transcrever esta mesma língua em código gráfico, algo que Ferreiro e Teberosky (1979)
contestam em seus estudos. Uma vez mais, como discutido no terceiro capítulo, entre o
currículo oficial e sua concretização na sala de aula há um distanciamento significativo.
Com referência em Vigotski (1995) e numa perspectiva bakhtiniana da língua, a escola
do século XXI, ao priorizar o estudo do sistema alfabético de escrita, continua a ter implícita a
concepção de que a apropriação da língua escrita pode ocorrer sem a inserção das crianças no
fluxo da linguagem, e nesta direção, ainda caminha na contramão do ensino do ato de ler e de
escrever como práticas dialógicas, discursivas e ideológicas, dificultando aos aprendizes sua
objetivação nas relações sociais.
Em relação aos livros literários infantis, a metodologia utilizada correspondeu à
transmissão vocal (BAJARD, 2007) do texto pelo professor e à leitura individual quando as
crianças terminavam certas tarefas escolares. Bajard (2007) e Lima (2001) ressaltam em seus
estudos a importância do contar e ler histórias como parte da rotina das crianças na educação
infantil, entretanto, como mostra o gráfico 1, é possível inferir que para as crianças sujeitos
dessa pesquisa os momentos destinados a esta experiência foram escassos em detrimento das
situações didáticas direcionadas ao ensino da língua escrita como um sistema de codificação.
No decorrer das sessões de observação, foram identificadas apenas duas situações de leitura
de livros literários infantis, realizadas pela professora. Outras duas foram identificadas por
meio do caderno das crianças. Sobre o contar histórias o , no decorrer do estudo
etnográfico realizado em 2007, indícios da realização dessa proposta didática de acordo com o
conjunto de dados gerados a partir dos três instrumentos.
As sessões de escuta de histórias lidas (BAJARD, 2007) ocorriam no pátio ou no
quiosque da escola. Eram simples narrativas utilizando apenas o livro, uma das formas
sugeridas por Coelho (1989) para as situações com a literatura na escola. A professora
sentava-se à frente das crianças, todas sentadas no chão. Depois que todos estavam
acomodados, era anunciado o título do livro e o seu autor. Também era combinado que
ninguém poderia interromper a história antes de seu fim. A partir da visualização da capa, os
alunos eram instigados a levantar hipóteses acerca do livro. Na sequência, a leitura começava
a ser transmitida pela professora, que mostrava às crianças as ilustrações cada vez que
mudava de página. As crianças ouviam atentamente e com interesse, queriam interromper,
mas a professora com um olhar ou um gesto lembrava-os de que precisavam esperar a história
acabar. Ao final, a professora dialogava com elas sobre suas opiniões em relação ao livro. O
retorno à sala de aula ocorria quando a manifestação das crianças sobre a história se
116
esgotava. Ressalto que a literatura infantil não era pretexto para o trabalho com a
alfabetização como um sistema de codificação. De acordo com os dados obtidos no processo
de investigação, a metodologia da professora pressupunha que as histórias infantis fossem
lidas pelo seu valor como obra literária. Diferente do que ocorria com os textos, as obras
literárias não eram tomadas como objeto didático para o estudo de traçado de letras e da
relação fonema-grafema.
Nesse sentido, esta metodologia utilizada pela professora propiciava o encontro das
crianças com o universo da linguagem escrita de forma natural e viva e, portanto, se as
sessões de transmissão vocal das histórias literárias infantis fossem realizadas com mais
frequência, como algo não esporádico, mas inerente à rotina de trabalho nesta modalidade de
ensino, poderia, como aponta Lima (2005), constituir-se como oportunidades significativas a
um desenvolvimento amplo da infância, além de gerar sentido à aprendizagem do ato de ler,
pois “atraída pelo mundo da literatura graças às imagens e à voz do mediador, que confere
vida às histórias adormecidas nos livros, talvez a criança chegue a desejar o poder de saber ler
detido pelo adulto.” (BAJARD, 2007, p. 87).
Outra metodologia utilizada em sala de aula em relação à literatura infantil era o
contato direto das crianças com os livros, entretanto, isto ocorria em geral após a realização de
uma tarefa de escrita, por isso as crianças que não conseguiam concluir no tempo previsto tal
tarefa quase o vivenciavam esse momento. De acordo com as sessões de observação, os
alunos A-2, A-4, A-12, A-17 e A-18 ficavam sempre privados desse encontro com os livros
porque não conseguiam realizar as tarefas escolares no mesmo tempo que os demais. O
acervo literário ficava guardado no armário e era acessível aos alunos no momento
determinado pela professora. Os livros eram disponibilizados sobre uma mesa e cada aluno,
ao terminar uma determinada tarefa, escolhia o material a ser lido. Para esta situação eram
destinados em média trinta a quarenta minutos. Enquanto alguns tentavam ler os livros, a
professora auxiliava os demais que estavam cumprindo a tarefa de escrita. Nesse quadro, esta
metodologia traz duas implicações desfavoráveis à formação do leitor: primeiro, por não
possibilitar que todos tenham a oportunidade do encontro com o livro e, segundo, por impedir
que o professor exerça o papel de mediador na relação entre as crianças e a linguagem das
histórias infantis. Para fundamentar essa análise, trago o seguinte trecho do protocolo de
observação:
[...] Os alunos que concluíram a tarefa da ficha vão até a mesa da
professora e pegam um livro de literatura para ler. A-9, sentado a meu lado,
117
termina sua tarefa e vai buscar um livro para ler. No caminho de volta à sua
carteira, para ao lado de A-17 e diz:: “Ó o que eu peguei”. A-17 fica olhando
fixamente para a capa do livro e depois de alguns segundos diz ao colega
“Depois você me conta a história, eu nunca consigo pegar livro”, A-9
rapidamente responde: Também você nunca termina logo” e retorna ao seu
lugar. Ao tentar ler o título da história, A-9 pergunta de sua carteira à
professora “Prô, aqui está escrito “xadrez”? A professora, que está
auxiliando um aluno que ainda não concluiu a tarefa de escrita, responde
calmamente: “Agora não posso, estou ajudando o coleguinha que ainda não
terminou, tente ler sozinho e depois eu vou aí”. Percebo na expressão de A-9
um descontentamento e uma ansiedade por querer confirmar sua hipótese...
(Protocolo 12 de observação – 28/09/2007).
Constata-se que o acesso aos livros não é realidade para todos. O diálogo entre A-17 e
A-9 deixa evidente esse fato, revelando que a criança já aceitou essa condição, uma vez que
ao reconhecer que não conseguirá terminar a tarefa solicita que lhe conte o que está dentro do
livro. Por outro lado, mesmo para os que conseguem ter acesso à literatura infantil, a
metodologia utilizada torna-se desfavorável ao ensino da leitura porque uma ausência do
mediador, o professor não se encontra disponível para exercer tal papel na medida em que
acaba por priorizar o atendimento às tarefas escolares de escrita.
Ao analisar a forma pela qual o trabalho com a literatura é realizado com as crianças,
percebe-se que a professora organiza de forma mais adequada as situações de transmissão
vocal do texto do que as situações direcionadas à prática de leitura individual pelos sujeitos
aprendizes. Como afirma Bajard (2002, p. 285) em relação ao trabalho com o ler na escola, “a
experiência dos professores parece maior no domínio do coletivo do que das
individualidades.” Assim, com base nesse Autor, a metodologia utilizada no contato direto
das crianças com os livros precisaria ser revista de forma que todas pudessem participar
constantemente de vivências como essa e ao mesmo tempo pudessem contar de fato com o
professor como mediador entre seu conhecimento e a linguagem do livro. Afinal, aprender a
ler sem livros é como aprender a nadar sem água (BAJARD, 2002).
4.2 As propostas didáticas e as manifestações das crianças
Tendo exposto o caminho metodológico utilizado no ensino do ato de ler no último
ano da educação infantil, esta categoria busca apresentar como as crianças lidam com a forma
pela qual o ensino dessa atividade é realizado na sala de aula, como lidam com as propostas
didáticas planejadas para lhes ensinar a ler. Com este propósito, serão utilizados dados
gerados nas sessões de observação e na análise documental do caderno das crianças. Ressalto
118
que o objetivo aqui será o de identificar de que maneira as crianças lidam com as propostas
didáticas planejadas para lhes ensinar a ler.
Como afirmei, a metodologia adotada pela professora em sala de aula, ainda que
direcionasse as atividades para as situações de estudo do sistema alfabético de escrita,
acabava, assim, mesmo que de forma não intencional, abrindo espaço para que as crianças
transformassem o texto proposto como objeto didático em um conjunto de enunciados, pois
ao compartilhar com elas experiências do ler na sala de aula, percebi que em todos os
momentos manifestavam uma atitude responsiva (BAKHTIN, 2003) diante dos escritos
trazidos pela professora. Elas discordam, concordam, questionam. A atitude dos leitores
aprendizes revela uma intensa busca pelo sentido daquilo que lhes é proposto para ser lido.
Quando solicitadas a ler, as crianças não buscavam letras, sílabas ou palavras como sinal; elas
buscavam a palavra como signo, embora a instrução dada pela professora indicasse que
bastaria identificar a sinalidade (BAKHTIN, 1995).
Mesmo nas situações em que o escrito era apenas direcionado ao estudo da relação
grafema-fonema, as crianças resistiam a perceber a língua como sinal, e por meio de suas
atitudes demonstravam que para elas a linguagem escrita, assim como a oral, sempre
significava alguma coisa. De forma espontânea e natural ao longo do ano letivo, a atitude das
crianças era de relutância diante de uma metodologia que ignorasse a língua como sistema de
significação. A seguir apresento trechos extraídos dos protocolos de observação que permitem
fundamentar a análise.
[...] A professora explica que farão uma atividade de escrita. Entrega a cada
aluno um pequeno texto retirado de um manual de alfabetização.. Á medida
que entrega, pede que eles o colem no caderno. As crianças colam e por
alguns instantes olham fixamente para o pequeno texto. Quando todos
terminam de colar o escrito, a professora pede que circulem as palavras que
começam com a letra L. Enquanto isso, ela copia esse texto na lousa. A-15
ao meu lado diz, Fabiana aqui está escrito leão, não está?”, confirmo com
um gesto que sim, e imediatamente A-15 me pergunta: “Você viu um
leão? Eu já, foi no zoológico de Bauru”. Respondo que também já vi, e nesse
momento a professora pergunta se estão conseguindo achar as palavras. Ela
começa a transmissão vocal da leitura do texto, e logo é interrompida por A-
6, “Credo ,prô, o éle está no leão? Como assim?” A-8 com expressão de
admiração diz “Ele foi pra lua também, nooossa!”“. A professora tenta
explicar que não é no leão e na lua de verdade, é no nome deles, na palavra
escrita. Percebo que as crianças ficam confusas [...] (Protocolo 7 de
observação - 10/05/2007).
119
Figura 3 - Texto de natureza didática: estudo da relação grafema-fonema/ Caderno de A-8
Como se observa na figura 3, o texto utilizado nesta situação parece fácil aos olhos do
adulto e adequado para ser lido pelas crianças em início do processo de escolarização. Ele foi
retirado de um manual de alfabetização, porém a atitude das crianças revela que sob o seu
olhar ele parece complexo. A atitude de A-6 e A-8 e a confusão causada pelos seus
questionamentos revelam que, para os aprendizes, a letra “L” não estava sendo concebida por
eles como grafema, mas como um objeto ou um ser. Como estão em processo de apropriação
da linguagem escrita, não percebem que o objetivo do texto e da professora é mostrar o uso do
grafema L nas diversas palavras. Assim, como afirma Goodman (1997), ao fazerem uso de
textos que servem apenas para aprender a ler e a escrever, os professores podem tornar o
aprendizado da linguagem escrita difícil, na tentativa de torná-lo fácil. Afinal, as crianças
sujeitos dessa pesquisa estão demonstrando que não atendem apenas à instrução do professor;
fazem mais que isso: buscam o sentido das palavras ali grafadas. Essa foi também a atitude de
A-15, lidando diretamente com os elementos gráficos e procurando tecer, a partir de sua teoria
de mundo, o sentido do escrito. As crianças não veem o pequeno texto como objeto didático,
como instrui a escola; elas buscam sua significação e nesta atitude o transformam em
enunciação na medida em que o refutam, o admiram, o relacionam com sua experiência
social.
120
Os trechos apresentados a seguir trazem outras situações em que a atitude dos sujeitos
revela que “desde o ínicio, a linguagem está relacionada de forma indissociável, na cabeça da
criança, ao sentido.” (GOODMAN, 1997, 26).
[...] A professora escreve o título do texto “Semana Inteira” de Sérgio
Caparelli na lousa com ajuda dos alunos [...] A-5 pergunta à professora “Prô,
o que é semana inteirra?”. A-15 rapidamente se manifesta: “Prô, não é
semana inteira?” A professora felicita o aluno: “Sim, é isso mesmo, semana
inteira”. E o mesmo aluno diz: “Então está escrito errado”, certamente
referindo-se a pronúncia da letra R. A professora reafirma novamente:
“Não, aqui está escrito inteira”. A-15 demonstra insatisfação diante da
resposta, mas a professora continua a aula: “E o que é semana inteira?” A-14
diz: “É sete dias”. A professora, muito feliz, afirma: Isso, L. são os sete dias
[...] (Protocolo 4 de observação - 12/04/2007).
[...] Os alunos tentam ler com a professora: “A quinta-feira gostava de
agrião”. A-7 interrompe: “Gostava de quê, prô? De gavião?” A-11 intervém:
“Que gavião, é de agrião! Gavião é de voar! Agrião é de farinha”. A
professora sorri e diz: Agrião é uma verdura para fazer salada e os alunos em
coro produzem um: “Ah!”. (Protocolo 4 de observação -12/04/2007).
Nesses dois trechos referentes à situação de leitura a partir do poema “Semana
Inteira”, as crianças demonstram que operam com as palavras como signo. A-15, na primeira
transcrição, demonstra confusão com o som da letra R, pois sua atitude é a de enunciador em
busca do sentido do escrito e não de um mero decodificador na busca pela pronúncia correta
da palavra como sinal. Na segunda passagem, a palavra ‘Agrião’ parece ser desconhecida
pelas crianças, que rapidamente se manifestam na busca por sua significação, pois o é a
rima, a sonoridade da palavra que está em jogo para os sujeitos da pesquisa, mas seu sentido
na produção do ato discursivo.
A professora diz aos alunos que irão ouvir uma música diferente. Escreve o
nome da música na lousa: “Outono” e a pronuncia em voz alta. A-19
pergunta: “O que é isso”?”, A-14 responde: É o nome do homem que tira
foto”. A professora diz: “Não, é o nome de uma estação do ano. Vocês
sabem as estações do ano?” Alguns alunos respondem afirmativamente
dizendo: Primavera, verão, frio... A professora intervém: “Mas como chama
a estação do frio?” A-7 diz: “Frio”. A-15 diz: “Não, é inverno”. A-6 se
manifesta dizendo: “O Prô, que nem no jornal disse que ia fazer frio e fez
mesmo na minha casa”. A Professora pede silêncio aos alunos e diz: “Agora
vou escrever quem fez a música. E escreve: “Vivaldi”, em seguida A-1 diz
“Que nome estranho!”E a professora explica que o nome é diferente porque
é italiano. Ela coloca a música e A-6 pergunta: É para dormir? A-16
intervém: É a música do Harry Potter!”A professora chama atenção das
crianças e pede silêncio [...] (Protocolo 8 de observação - 18/05/2007).
121
Como é possível perceber, as crianças tecem relações a todo instante com seu
conhecimento de mundo e a linguagem. Apenas uma palavra e os discursos são produzidos na
tentativa de encontrar o sentido do que estão vivenciando. Procuram a significação das
palavras outono, inverno e Vivaldi operando com a língua escrita num processo vivo,
dinâmico, que é possível porque fazem da aula espaço de diálogo, de interlocução.
São 8h35. As crianças entram na sala. A-11 é ajudante do dia e ajuda a
professora a distribuir o caderno de atividades. A professora avisa a todos
que vão ler uma poesia. Diz que entregará o texto a cada um para que colem
no caderno e tentem ler. A-14 recebe o texto, mas antes de colar no caderno
procura ler o título da poesia. Para isso, observo que ele não faz uso da
estratégia de oralização, utiliza apenas os olhos e após uns instantes se
levanta, vai até a professora e diz baixinho “Eu sei o nome da poesia, é
engraçado né, prô?”. A professora ouve, balança a cabeça em sinal de
afirmação e pede que ele volte a seu lugar e continue a ler o texto. Ele volta,
mas antes de sentar diz a A-18 sentado à sua frente: “Você sabe o que está
escrito aqui?”, apontando para o título do texto. A-18, olhando para o texto,
diz “Não, eu ainda não sei ler”, A-14 se propõe ajudá-lo: “Aqui está escrito
A chácara do Chico Bolacha”. A-18 sorri, acha também engraçado o título
do texto e diz “Eu já fui numa chácara!”, A-14 responde: “Eu também, mas
não era do Chico Bolacha, era do amigo do meu tio, quer que eu te ajude a
ler?”. A-18 concorda e então A-14 diz apontando para a primeira estrofe do
texto: “Tente ler o que está escrito aqui.” A-18 olha fixamente para o texto.
Percebo que ele também não faz uso da oralização, sua primeira atitude é
comparar as palavras da estrofe às palavras do titulo, pois diz: “Aqui tem as
mesmas palavras que você leu para mim. Está escrito na chácara do Chico
bolacha tem piscina?”. A-14 responde: “Não, aqui está escrito assim: na
chácara do Chico Bolacha o que se procura [...]” Nesse momento, a
professora interrompe o diálogo, advertindo A-14 porque ele ainda não tinha
colado no caderno e ela ia começar a atividade sobre o texto. A-14 senta
em sua carteira e a professora começa a perguntar aos alunos que letras,
sílabas ou palavras eles conseguiram identificar na poesia [...] (Protocolo 10
de observação - 13/08/2007).
122
Figura 4 - Texto utilizado no trabalho metodológico com a leitura/Caderno de Atividades A-18
Enquanto o foco da escola é o ler como identificação de letras, sílabas, palavras, a
atitude das crianças indica que para elas o ler envolve o diálogo com o escrito, a possibilidade
de ao compreendê-lo tecer com ele uma relação de interlocução. A-14 e A-18 não buscaram a
oralização ou a simples identificação de símbolos gráficos, mas procuraram encontrar o
sentido do escrito mobilizando seus conhecimentos prévios por meio de uma atividade
essencialmente visual.
Assim, por meio desses dados e de outras situações transcritas em cada protocolo de
observação referente ao ano de 2007, a pesquisa indica que a atitude primeira das crianças na
educação infantil é a de lidar com a linguagem escrita em perspectiva dialógica; elas
procuram operar com enunciados. Seus discursos demonstram claramente que elas não trocam
letras, sílabas ou palavras, quando conversam entre si e com a professora acerca do escrito;
elas compartilham idéias, experiências, inquietações (BAKHTIN, 2003). Por essa razão, ainda
que a escola tenha como foco a palavra escrita como sinal, como é possível constatar nas
figuras 3 e 4, a atitude das crianças parece indicar que no início de sua escolaridade é a
palavra como signo em um enunciado que elas buscam reconhecer. Nas cinco situações
apresentadas, constata-se que nenhuma atitude das crianças frente aos textos está voltada a
123
questões referentes à língua como sistema abstrato; para elas a palavra escrita diz algo,
provoca uma resposta, seja um comentário, uma pergunta, um riso, um descontentamento, por
fazer parte de um enunciado.
Segundo Bakhtin (1995, p. 95), “a palavra essempre carregada de um conteúdo ou
de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente
reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida.”
Assim, a manifestação dos leitores aprendizes na educação infantil é a de perceber a palavra
como signo ideológico, pois se a concebessem apenas como sinal não poderiam ter, como
afirma Bakhtin (1995), uma atitude responsiva em relação à linguagem.
Ao perceber a palavra como signo, outra atitude das crianças que merece ser ressaltada
é de que parecem remeter o ato de ler não a uma pronúncia do escrito, mas à busca por seu
sentido. Embora não haja no discurso da professora o conceito de que ler é encontrar o sentido
do que está grafado no papel ou na lousa, o fato de as crianças não serem diretamente
instruídas a decodificar ou a oralizar permite que elas não tenham uma falsa idéia do que seja
ler. De acordo com os dados apresentados nos cinco protocolos, quando solicitadas a ler, elas
não se atentam à decodificação ou a uma pronúncia correta, mas procuram encontrar o sentido
da palavra escrita. Quando o encontram sentido para o que está diante dos olhos, ficam
confusas e descontentes, como ocorreu nas situações descritas nos protocolos de observação 4
e 7. Isto revela a necessidade de a escola conduzir o ensino da leitura a partir de situações que
permitam às crianças atribuir sentido e que não as afastem da concepção de linguagem escrita
como um sistema de significação, pois suas atitudes parecem indicar a maneira como
concebem a língua escrita no início da vida escolar.
As propostas para ensinar leitura na educação infantil compreenderam apenas 49
situações desenvolvidas durante todo o ano letivo. Diante de cada uma delas, a metodologia
utilizada em sala de aula correspondeu aos procedimentos descritos que, com exceção das
sessões com livros literários infantis, direcionavam estas situações do ler em aula a estudos do
funcionamento do sistema alfabético de escrita. Entretanto, a atitude das crianças frente à
metodologia adotada demonstra que aos cinco e seis anos elas relutavam em conceber a
leitura como objeto escolar ou como a mera identificação de letras que formam sílabas que,
por sua vez, formam palavras; Ao entrarem em contato com os textos, elas o procuravam a
letra, a sílaba ou os sons das palavras, procuravam sua significação de acordo com sua teoria
do mundo (SMITH, 1989). Com base na metodologia utilizada pela escola e na atitude das
crianças diante dessa abordagem metodológica, compreendi a razão pela qual as crianças não
legitimavam as propostas didáticas para ensinar a ler como “situações de leitura” ou
124
“atividades para aprender a ler”. Sob o olhar dos leitores aprendizes, essas propostas eram de
escritas constituindo-se como tarefas para ensiná-las a escrever, mas não a ler; apenas as
situações com a literatura infantil foram reconhecidas como propostas de leitura. O quadro 8
traz os dados que revelam esta concepção das crianças.
Perguntas Respostas dos alunos Nº de alunos
De ler, uma vez a gente leu o livro “Menina Bonita
do Laço de Fita”, e livrinhos quando a gente acaba.
1
Às vezes eu leio livrinhos. 2
De ler, não sei, de escrever é um monte. 3
A gente lê livros da professora. 4
Não sei. 1
Nada. 1
Livros de história . 6
O que você faz de "atividade" de
leitura na sala de aula?
Atividade para aprender a escrever e livro. 1
Não. Só escreve. 6
Lê, mas é para aprender a escrever 5
A gente só escreve. 4
Só livros de história? E outros
textos vocês não leem?
(Ficaram em silêncio) 4
É para ensinar a gente a escrever. 3
Não, é para escrever certo. 1
Aquelas atividade? É para colar no nosso caderno e
escrever.
1
(Ficam em silêncio). 5
Não, tem que ler para escrever. 5
Mas eu vejo vocês lendo poesias,
músicas que a professora entrega
para vocês...
A gente só escreve, todo dia. 4
Quadro 8 - Distribuição das respostas explicitadas pelas crianças em relação às propostas de leitura na sala de
aula/ Fonte: Entrevistas semiestruturadas/novembro de 2007
Como as situações a partir de textos ou de relacionar figura à palavra não eram
apresentadas com outro fim senão o de realizar tarefas de escrita e estudo da relação grafema-
fonema, as crianças não reconheciam estas propostas como ações para lhes ensinar a ler. Pelas
atitudes que tinham diante da metodologia adotada, é possível inferir que aprender a ler para
elas não era aprender a transformar grafemas em fonemas, mas a descobrir o que a palavra
escrita dizia, ou seja, sua significação. Julgo que, para as crianças, aprender a relação entre
letra-som, as famílias silábicas e a junção de sílabas para formar palavras, era aprender a
escrever. Assim, concebiam o trabalho com textos não como “atividade de leitura”, mas como
“atividade” para lhes ensinar a escrever.
125
As manifestações de negação e de silêncio de algumas crianças em relação às
propostas de leitura na aula indicam que, sob seu olhar um vazio, uma lacuna quanto ao
ensino dessa atividade na escola. As respostas “nada” e não sei” diante da primeira pergunta
apontam que nem mesmo as situações com literatura infantil são reconhecidas por todas as
crianças e isso se deve ao fato de a metodologia adotada não propiciar a todos o contato com
os livros, pois as cinco crianças que assim responderam eram as que não conseguiam terminar
as tarefas de escrita no tempo adequado, ficando impedidas dessa experiência em aula. As
demais respostas se referem a situações de leitura apenas se remetendo à literatura infantil,
talvez porque seja o único momento em que o ato de ler não esteja direcionado ao estudo do
sistema alfabético de escrita e elas possam tentar ler sem ter que cumprir uma ação de escrita,
vivenciando o ato de ler como objeto de cultura, em vez de objeto escolar.
Em razão de as crianças legitimarem as propostas didáticas de leitura como situações
para ensiná-las a escrever, não a ler, acredito ser relevante apresentar, na sequência, amostras
das 49 propostas, com o objetivo de verificar manifestações, interesses e impressões dos
leitores aprendizes no decorrer de sua realização e, assim, tornar mais claras as razões pelas
quais as crianças não as reconhecem como “atividades” para aprender a ler.
Para uma melhor visualização, o gráfico 2 traz uma representação acerca do
quantitativo de propostas desenvolvidas no ano de acordo com o recurso material selecionado.
19
23
5
2
0
5
10
15
20
25
Nº de propostas
Materiais de leitura
Propostas didáticas para o ensino da leitura
realizadas no ano de 2007
Textos autênticos
Textos didatizados
Livros literários infantis
Folhas xerocopiadas com
figuras e palavras.
Gráfico 2 - Propostas didáticas para o ensino da leitura realizadas no ano de 2007
Uma rápida visualização do gráfico já demonstra a importância dada aos textos
didatizados, retirados de manuais de alfabetização com o objetivo de ensinar as relações
fonográficas, em detrimento de textos que circulam de fato nas relações sociais, os quais estou
denominando de textos autênticos. Também fica evidente a pouca valorização da literatura
126
infantil, uma vez que no decorrer do ano os dados gerados indicam apenas cinco propostas de
leitura organizadas com este material, ressaltando que não foram consideradas aqui as
situações em que as crianças m acesso aos livros ao término de uma determinada tarefa,
uma vez que este era um procedimento metodológico quase que diário, mas esporádico e não
vivenciado por alguns alunos como anteriormente foi salientado.
Para não tornar a análise e a discussão dos dados redundante, apresento uma ou duas
situações desenvolvidas a partir de cada recurso material selecionado, uma vez que as
manifestações das crianças são parecidas ao fazerem uso do mesmo recurso.
Com o olhar focado nos interesses e impressões dos leitores aprendizes, pude verificar
que o envolvimento das crianças com as propostas era sempre intenso. Interagiam muito entre
si e com a professora. Esta, por sua vez, permitia aos sujeitos aprendizes manifestar-se
livremente valorizando cada fala, cada resposta em relação aos textos ou histórias que
estavam sendo lidas. Ainda que seu objetivo fosse perceber quais letras, sílabas ou palavras os
alunos já identificavam no texto, a professora não advertia as crianças por buscarem a palavra
como signo em um enunciado em vez de como sinal (BAKHTIN, 1995). A conduta da
professora tornava possível que as crianças tecessem com a linguagem escrita uma relação
dialógica, ainda que de forma não intencional, tanto por ela, quanto pelas crianças, que, sob o
meu ponto de vista, agiam naturalmente ao buscar o sentido em todas as situações que
envolviam o ato de ler.
As situações a partir de textos autênticos eram as que demandavam mais tempo, uma
vez que as crianças se manifestavam com mais intensidade, tinham muito para dizer, teciam
uma infinidade de relações com sua experiência social. Foi uma tarefa difícil a geração de
dados durante estas situações, mesmo com o uso do gravador, porque frequentemente falavam
muito e ao mesmo tempo. Dessa forma, o recorte que trago aqui não reflete a totalidade das
manifestações, mas permite a constatação de que no início da escolaridade o ato de ler parece
ser para as crianças um processo de compreensão da palavra escrita e não sua mera
identificação.
O gráfico 3 apresenta os gêneros dos discurso selecionados no trabalho com os
dezenove textos autênticos no decorrer do ano letivo.
127
9
4
3
2
1
0
1
2
3
4
5
6
7
8
9
de textos
Gêneros do discurso
neros do discurso utilizados nas propostas
didáticas de leitura
Poesia
Música
Parlenda
Lendas
Trava Língua
Gráfico 3 - Gêneros do discurso utilizados nas propostas de leitura/2007
Embora na proposta pedagógica da unidade escolar estejam previstas situações de
leitura a partir de diversos gêneros, o gráfico 3 evidencia que ao longo do ano foram poucas
as propostas com este objetivo, contemplando notadamente os gêneros do discurso que, de
acordo com os RCNs (BRASIL, 1998, p. 141-142), permitem às crianças estabelecer uma
relação entre o que é falado e o que está escrito, “ainda que o possam ler
convencionalmente”, além de também permitirem que os sujeitos aprendizes atentem para
os aspectos sonoros da linguagem, como ritmo e rimas. Acredito que seja esta a razão pela
qual foram estes e não outros os gêneros selecionados para o desenvolvimento das
propostas didáticas, uma vez que todas as situações de leitura acabam por ser direcionadas
ao ensino do funcionamento do sistema alfabético de escrita.
Nesse sentido, mais uma vez é possível perceber que, na perspectiva da escola, os
gêneros não surgem na sala de aula como instrumento de comunicação e, por consequência,
de ensino do ato de ler e de escrever como práticas culturais, mas como objetos didáticos
servindo ao ensino da leitura e da escrita apenas como práticas escolares. E sob a
perspectiva das crianças, cumprem apenas parte dessa função: “É para ensinar a gente a
escrever”! (A-14, A-15, A-1). Não a ler. O trava-língua selecionado para a realização de
uma das propostas, por exemplo, surge em aula para o ensino da letra R e dos aspectos
sonoros da linguagem, ainda que as manifestações das crianças o transformem em uma
enunciação, como é possível verificar na transcrição gerada no protocolo de observação:
128
São 8h35. As crianças entram na sala de aula. Algumas trocam de lugar entre
si. A professora percebe, mas não intervém. As crianças começam a tirar o
material da mochila enquanto conversam muito. [...] A professora começa a
distribuir o caderno de atividades e diz às crianças que iriam ler um trava-
língua. A-18 pergunta a A-15: “O que é isso?”. A-14 pergunta à professora:
“Prô, o que é isso?”. A-13 diz: “É uma brincadeira, não é, prô?”. A
professora diz que pode ser uma brincadeira, e explica que trava-língua é um
conjunto de palavras difíceis de serem faladas juntas, trava a língua. A-17
pergunta: “Trava como, prô?”. A professora diz: “Trava porque a gente erra
na hora de falar”. Imediatamente A-6 diz: Ah, eu sei o que é isso, é assim:
um prato de tigre para dois tigres, dois...”, A-01 interrompe: “Ah, eu
também sei isso...”. um tumulto, pois vários alunos começam a falar o
trava-língua dito por A-6, risos, reclamações e muitas falas. A professora
deixa as crianças conversarem entre si, enquanto termina de entregar os
cadernos. Quando termina, entrega um trava-língua escrito para cada um e
pede que eles tentem identificar a letra que mais aparece no texto, e ainda, as
palavras e sílabas que eles já conhecem. Percebo que todos os alunos quando
recebem o texto, não agem com indiferença, olham fixamente para ele.
Alguns ficam em silêncio e outros logo começam a conversar entre si sobre
o texto. Próximos a mim estão A-14 e A-13 sentados em dupla e A-18 e A-8
também em dupla. A-18, depois de olhar o texto, diz a A-8: “Será que está
escrito tigre aqui?”, A-8 responde: Não sei, também não sei ler e
pergunta à professora “Prô, está escrito tigre aqui?’. A professora
responde: Tigre? tem a letra T? Não tem, não é? Então não está!
Está escrito o nome de outro bicho!”. A-18 diz ao colega: “Que bicho será
que é?”. A-14, ouve, vai até a carteira da dupla e diz: “É rato, olha aqui ó,
está escrito rato”, apontando para a palavra RATO escrita no texto. Depois,
ele olha para mim e diz: Viu, Fabiana, eu já sei ler! Minha tia está me
ensinando!”“. Eu pergunto a A-14 se ele sabe qual é o trava-língua que
está escrito, e ele me diz; “Sei, o rato roeu a roupa do rei de Roma, é fácil
demais!”. A professora retoma a conversa com o grupo todo e pergunta:
“Qual a letra que mais aparece no começo das palavras do texto? A-14 diz:
“O rato roeu a roupa do rei de Roma”. A professora insiste: “Então qual a
letra que mais aparece? A-6 diz: “Prô, eu sei esse trava-língua, eu já
brinquei dele, nós vamos brincar?”. A -7 diz: Esse é mais fácil que o do
tigre, não é?”. A professora diz que nesse momento não irão brincar com os
trava-línguas, pois é momento de atividade, depois poderia ser. A-13, diz
para mim Fabiana, eu também brinquei disso com meu pai, é legal!”.
A professora diz: “Vocês acharam a letra R, que palavras que tem no texto
que começa(m) com a letra R?”. As crianças dizem as palavras rato, rei e
roupa. A professora diz que outras e pede para elas encontrarem. A-15
diz: “Roma, o que é isso prô?”. A professora explica que é o nome do lugar
onde mora o rei. A-5 diz: “É longe?”, A-6 diz: “É de mentira isso!”. A-5 diz:
“Ah”. A professora pergunta: E o que o rato fez na roupa do rei?”, para
ajudar as crianças a identificarem a palavra que estava faltando “ROEU”. A-
16 diz: “Rasgou porque ele mordeu a roupa”. A professora diz: Mas rato
não morde!”. A-12, diz: “Ai, morde sim...”. A professora explica: “Não, rato
rói a roupa, aqui diz O rato roeu, olha só!”. A-16 pergunta: “Roeu é igual
mordeu?”. A professora sorri e faz sinal afirmativo. A-6 diz: “Mas aqui está
escrito que o rato roeu a roupa do rei, não é, prô? A professora diz que sim.
A-14 pergunta: Prô, a gente não vai brincar, então é para colar e
escrever?”. A professora explica que eles depois irão recortar as palavras do
texto de acordo com as marcas e tentar montar para colar no caderno. Mas
antes disso avisa que agora vai chamar alguns alunos para escrever as
palavras que começam com a letra R na lousa. Depois do estudo da
129
composição silábica das cinco palavras, as crianças recortam, colam e
copiam o texto no caderno... Na sequência, a professora solicita às crianças
que pensem em palavras que rimam com essas cinco do trava-língua...
(Protocolo 2 de observação- 22/03/2007).
Figura 5 - Trava-língua selecionado para proposta didática de leitura./Caderno de atividades de A-1
As manifestações das crianças indicam que elas procuram lidar com o texto como
enunciação. O trava-língua é reconhecido pelos leitores aprendizes como discurso da cultura,
pois a primeira impressão que possuem é a de que, assim como nas relações sociais
vivenciadas, o texto proposto na escola estará inserido no contexto do brincar. Entretanto,
descobrem que o trava-língua é para fazer tarefas escolares, para identificar letras, sílabas e
palavras, não para brincar, o que justifica o olhar que possuem em relação às propostas de
leitura; afinal não estão lendo para realizar uma prática cultural, mas para realizar uma prática
escolar.
Ainda assim, por verem o texto como um conjunto de enunciados, elas não dizem
letras ou sílabas isoladas, dizem palavras referindo-se a elas como signo, por isso demonstram
estranhamento com as palavras “Roma” e “Roeu” e relutam em não apontar a letra que se
repete no início de cinco palavras do texto. Embora o olhar da professora seja para a
identificação das palavras a partir de letras e sílabas, o olhar das crianças é para a
compreensão do está escrito, como evidencia o diálogo entre A-8 e A-18 com a professora. A
esse respeito, retomando as contribuições de Vigotski (1995) e Bakhtin (1995), o fato de se
acreditar que primeiro é preciso que as crianças aprendam a sinalidade da linguagem, para
somente após essa etapa aprender a tratá-la como signo, é apenas não incorrer contra a própria
linguagem, mas com a própria lógica dos leitores aprendizes.
130
Para as crianças, esta não é uma atividade de leitura, porque é para ensiná-las a
escrever. Embora indiquem o interesse pelo sentido do que está escrito no papel, a professora
canaliza a proposta para o estudo das relações fonográficas, que compreendem a maior parte
do tempo das propostas de leitura. Na perspectiva da escola, ela está ensinando a ler, na das
crianças ela está ensinado a escrever. Como indica A-14, parece que a aprendizagem da
leitura para as crianças ocorre além de seus muros.
De acordo com os estudos de Leontiev (1988), propostas como esta também não
podem ser caracterizadas como atividades de leitura; são apenas tarefas escolares, pois seu
resultado atende a uma necessidade da escola, mas não à das crianças. Para elas a situação
ganharia sentido se ler o trava-língua estivesse relacionado à função do brincar; como o
estava, era apenas ler para encontrar palavras com o grafema R; o motivo da ação não
coincidia com seu resultado, não satisfazia uma necessidade da própria criança (LEONTIEV,
1988).
No trabalho com as poesias, músicas e parlendas, a mesma situação ocorreu. A escola
não encontrou meios para propor atividades de leitura que criassem nos aprendizes novas
necessidades, que valorizassem seus interesses e fizessem surgir outros a partir da vivência de
situações do ato de ler como objeto cultural. Manteve-se o foco para o ensino do sistema
alfabético de escrita, para o manejo da língua escrita como sinal, pressupondo que é possível
formar leitores apenas ensinando às crianças o sistema de codificação, ignorando as pistas
dadas pelas próprias crianças de que aprender a ler é mais que isso, como afirma Foucambert
(1998, p. 96): “ler é compreender não pela identificação de elementos simples e fazendo deles
uma soma que lhes revelaria o significado, mas sim sem dissociar os elementos do conjunto.”
A figura 6 indica outra proposta de leitura, a partir da poesia “Tanta Tinta” de Cecília
Meireles, desenvolvida como meio para o trabalho com a língua escrita como código, em vez
de um complexo artefato cultural.
131
Figura 6 - Proposta didática a partir do poema “Tanta Tinta”- Cecília Meireles/Caderno de A-19.
Após o momento inicial das crianças de levantarem hipóteses sobre o que estava
escrito no texto e manifestarem-se pela busca de construção do sentido, a professora fez uso
da poesia para ensinar o som do grafema T, inicialmente a partir das palavras grifadas no
texto e posteriormente com a formação da família silábica e a formação de novas palavras.
Também abordou o texto para treinar o traçado das letras com a cópia de alguns versos. Por
fim, solicitou que cada criança escrevesse outras três palavras iniciadas com a letra T. A-19,
como apenas copiava o que estava na lousa, não conseguiu realizar esta última proposta.
Como não houve intervenção da professora, esta tarefa ficou por fazer. A figura 6 e a atitude
de A-19 mostram que a escola continua a ensinar a língua escrita como um processo
mecanizado.
Nesse quadro, assim como os textos didatizados, os autênticos não surgem em
situações reais de leitura, não se inserem em contextos em que o ato de ler seja necessário e
tenha finalidade para as crianças, o que as leva a o reconhecê-los como instrumentos de
132
ensino da leitura, mas apenas como meio para aprender a escrever de acordo com o princípio
alfabético. Portanto, foram 19 textos autênticos e 23 extraídos do manual didático de
alfabetização, compondo um total de 42 situações de leitura a partir de textos em que o foco
principal da escola não era o ensino dessa atividade como valor de comunicação, como
expressão, como prática dialógica, interlocutora e, portanto, cultural, mas como atividade de
identificação de letras, sílabas e palavras, como se para aprender a ler fosse necessária a
dissociação dos elementos do conjunto (FOUCAMBERT, 1998).
Ao comparar a figura 6 com a figura 7, é possível perceber que o foco de ensino da
leitura é o mesmo, seja para os textos autênticos, seja para os didatizados. O que difere são as
manifestações e os interesses das crianças, menos intensos e com impressões um pouco
confusas, como revelam algumas de suas perguntas no desenvolvimento da proposta:
Figura 7 - Textos de natureza didática/Caderno de atividades- A-15
Mas, prô, o que está no quiabo? (A-7)
O que é quiabo? (A-7)
Quiabo é uma fruta não é, prô? (A-5)
Qui.. o quê, prô?... Quitanda? Eu nunca vi isso... (A-13).
Esse texto é pra aprender o Q, não é, mas eu já sei! Posso já escrever? (A-
14)
Fabiana, e o quu não têm? (A-15)
Prô faltou com quo! Não existe? (A-1)
133
Como faço o quiabo? (A-7)
E quinta-feira como a gente desenha? (A-14).
Noto na atitude das crianças uma expressão de desconforto sempre que o trabalho
com estes textos; a princípio percebo que não atentam para o fato de que o escrito é sobre uma
letra que está contida nas palavras que formam o texto. Em relação ao trabalho com a letra Q,
elas ficaram confusas com a família silábica; não aceitaram o fato de não envolver a vogal u e
de não escrever uma palavra com quo, pois sempre escreviam uma palavra para cada laba
formada. Penso como é difícil esse caminho para elas. Nesse sentido, ao retomar trechos desse
protocolo de uma das sessões de observação, volto a ter a sensação do quanto é abstrato para
as crianças o funcionamento do sistema alfabético de escrita, principalmente quando seu
aprendizado ocorre por um processo mecanizado como o de escrever a família silábica e a
partir desta tarefa uma palavra com cada sílaba. Quando isso o é possível, os aprendizes
ficam confusos porque não compreendem a razão pela qual isso ocorre. As crianças buscam
encontrar sentido em tudo o que está diante dos olhos, por isso as perguntas em relação às
palavras desconhecidas como quiabo e quitanda, a confusão entre o grafema Q e o enunciado
o que?; a ilustração de quinta-feira e a ausência da possível sílaba “quu”e da palavra com a
sílaba quo. Uma vez mais, na tentativa de facilitar a apropriação da linguagem escrita, os
sujeitos da pesquisa indicam como a escola pode torná-la um tanto complicada, quando insiste
em ensinar a partir de letras, sílabas, palavras esvaziadas de significação, reduzindo a
linguagem a sua sinalidade ou a uma mera técnica. O processo de alfabetização, como afirma
Gontijo (2003), não pode continuar a priorizar aspectos sonoros em detrimento dos aspectos
semânticos da linguagem se o objetivo for a formação de leitores. E ainda, como adverte
Arena (2009, p. 170):
A apresentação de textos simplificados e artificialmente inventados dá a
falsa idéia de que a escola estaria realizando uma aproximação entre aluno e
a língua escrita, de maneira que a apropriação se fizesse completamente. Há,
em sintonia com o que venho comentando, uma contradição nessa conduta,
porque a aproximação deveria dar-se na direção da língua viva, usada no
cotidiano, trazendo com ela o que dela não poderia ser apartado: os matizes
ideológicos, a contextualização, as suas finalidades e funções, a necessidade
de uso [...]
Por essa razão, as propostas de leitura na escola devem ser planejadas de forma que
seu ensino ocorra sem que, para isso, seja preciso que os aprendizes percam o interesse que
manifestam por esta atividade no início de sua escolarização. Com o olhar voltado para as
134
manifestações das crianças, estou cada vez mais convencida de que seja este o maior desafio
da instituição escolar na trajetória de formar leitores.
4.3 O mediador: aprendizagem da leitura
Neste ponto do trabalho, cabe perguntar: Se as propostas didáticas planejadas pela
escola para ensinar a ler não o para as crianças “atividades de leitura”, como elas estão
aprendendo a ler na instituição escolar? Como elas percebem seu próprio caminho no
processo de apropriação dessa atividade no início de sua escolaridade? Responder a estas
questões corresponde à finalidade do trabalho, neste tópico, no qual procuro evidenciar quem
são, para as crianças, seus mediadores na aprendizagem leitura.
De acordo com os estudos de Vigotski (1996) a escola é, por excelência, a instituição
responsável por propiciar a apropriação do saber que foi historicamente produzido e
organizado pela humanidade com objetivo de promover a elevação cultural dos indivíduos e,
portanto, responsável pelo ensino da leitura, por tornar possível a apropriação e a objetivação
dessa atividade pelos indivíduos. Nesse sentido, no processo de aprendizagem do ato de ler, o
professor seria o principal mediador e a escola a instituição reconhecida por tornar possível
seu aprendizado.
Entretanto, sob o olhar da maioria das crianças sujeitos da pesquisa, nem a escola
cumpre seu papel como instituição responsável por possibilitar a apropriação do ato de ler,
nem o professor constitui-se como seu mediador neste processo. Segundo os leitores
aprendizes, esta tarefa tem sido desempenhada na família, em substituição à escola, e por seus
familiares, em vez de ser o professor. Esse é um dado intrigante, uma vez que não há resposta
para a primeira pergunta, pois para as crianças elas não aprendem a ler na escola!
Em entrevista realizada ao final do ano com as crianças, procurando verificar seus
mediadores na aprendizagem da leitura, perguntei a elas: Quem este ensinando a ler?”.
Minha hipótese diante dessa questão era que a resposta seria a professora, e então, como
pesquisadora, eu os indagaria sobre como isso acontecia. Entretanto, fui surpreendida com as
respostas, pois quase a totalidade dos sujeitos não atribuía à professora a tarefa de ensinar a
ler, como é possível verificar nos quadros 10 e 11.
135
Respostas dos alunos. Nº. de
Alunos
Família
Eu aprendi a ler com o meu pai. (2)
Minha mãe está me ensinando. (7)
Minha irmã me ensina, ela lê para mim. (2)
Aprendi na minha casa com minha mãe.
Minha mãe e meu pai. (2)
Meu pai está me ensinando, no meu aniversário ele leu comigo.
Minha mãe e minha irmã. Elas leem comigo e eu repito.
16
Professor
A professora. Ela fala umas letrinhas e depois eu tenho que juntar e escrever como que
forma.
1
Nenhum mediador
Ninguém está me ensinando... não sei nada ainda.
2
Quadro 9 - Distribuição das respostas explicitadas pelas crianças em relação a quem as estava ensinando a ler
Respostas dos alunos à pergunta: Mas, e a professora, não ensina a ler? Nº. de
Alunos
A prô ensina escrever. 15
A professora não. 2
Às vezes, mas é difícil. 1
Quadro 10 - Distribuição das respostas explicitadas pelas crianças em relação ao papel do professor como
mediador no ensino da leitura
Para 16 alunos, a aprendizagem da leitura ocorre na família; três sugerem que se
apropriaram desse objeto cultural e treze afirmam estar em processo de aprendizagem tendo
como principal mediador um familiar. Uma criança aponta que está aprendendo na escola
com a professora, porém sua resposta relaciona-se mais ao processo de codificar do que de ler
e, para duas crianças, aprender a ler ainda constitui-se em algo distante. Em coerência com
suas manifestações perante as propostas de leitura, as crianças ressaltam que ao longo do ano
a professora ensinou a escrever, mas não a ler. Aprender a relação fonema-grafema, a família
silábica, a relacionar figuras a palavras, a identificar letras, a circular palavras que começam
com o mesmo grafema, foram situações insuficientes para torná-las leitoras. A forma de
vivenciar a leitura em casa foi mais eficaz na tarefa de ensiná-las a ler, o que revela que na
perspectiva das crianças a melhor forma de aprender a ler é lendo, vivenciando situações reais
de leitura. De acordo com os relatos dos sujeitos da pesquisa, os familiares liam para elas e
com elas livros literários infantis adquiridos pela própria família que exercia o papel de
mediador em diversas situações que envolviam o ato de ler.
136
Respostas das crianças em relação a como os familiares as ensinam a ler. de
Alunos
Situações a partir dos livros literários
Minha irmã lê histórias para mim e vai me ensinando a ler também.
Ela lê histórias comigo. (2)
Com os livrinhos pequenos que eu tenho em casa. (3)
Minha mãe me ensina a juntar as palavras da história e ler.
Ah, não sei... Lendo livros, ué!
Lendo... histórias. (5)
13
Situações a partir de contextos diversos
Ele me ensinou a ler com as coisas da televisão, nos desenhos.
Minha mãe me ensina a ler as placas... Eu pergunto: “Mãe, o que está escrito,
ela diz, e eu vou aprendendo.
Quando eu vou com ela no mercado ela me ajuda a ler o nome das coisas, eu
ajudo ela comprar as coisas.
3
Quadro 11 - Distribuição das respostas explicitadas pelas crianças em relação à forma com que estavam
aprendendo a ler
Esses dados revelam que as crianças sentem que estão aprendendo a ler quando,
vivenciando experiências com essa atividade, alguém faz a mediação ajudando-as a descobrir
o que está escrito nos livros, na tela da televisão, nas embalagens dos produtos do
supermercado, nas placas das ruas. Assim, para quem está aprendendo a ler, não apenas é
importante participar de situações reais de leitura como também contar com a mediação de
outro mais experiente. Acredito que seja esta a razão de as crianças não atribuírem à escola a
tarefa de ensiná-las a ler, pois nas sessões de ensino da leitura o foco não era descobrir o que
estava escrito, o que dizia o texto, mas apenas fazer uso do material para aprender o nome das
letras, seus sons, a formação de sílabas e palavras. Mesmo nas situações em que as crianças
tinham acesso aos livros literários infantis, elas não tinham o mediador, pois o professor não
estava disponível para exercer esse papel.
Com efeito, as crianças do século XXI indicam que ler e aprender a ler não são
atividades distintas, como sustentam os defensores do todo fônico; aprender a transformar
letras em sons, a decodificar, não é para elas aprender o ato de ler. Com base em suas
concepções, aprender esta atividade consiste em vivenciá-la como prática cultural, participar
ativamente de reais situações que envolvam a produção de leitura. Assim, retornar ou continuar
a ensinar a ler tendo como pressuposto que a decodificação é pré-requisito para a formação do
leitor é dificultar o aprendizado dessa atividade pelas crianças e gerar uma distância entre a
prática do ler na escola e a prática do ler como objeto de cultura, que pode tornar-se uma
armadilha ao fazer com que as crianças não procurem mais o sentido das palavras, mas apenas
seus sons.
137
Como afirma Vigotski (1995), as atitudes e as manifestações dos sujeitos da pesquisa
em relação às situações de leitura demonstram que a linguagem escrita a ser lida consiste num
sistema de signos simbólicos complexos em vez de um processo mecânico e artificial de
transformar letras em sons ou identificar sílabas e palavras que nada dizem. As crianças
buscam o sentido do que está diante dos olhos e não tecem uma distinção entre ler na escola e
ler fora dela, porque para elas as práticas de leitura são práticas culturais, referem-se ao
manejo do signo linguístico, não no tratamento da palavra como sinal. Assim, enquanto a
escola dirige o processo de alfabetização como domínio do sistema de codificação,
acreditando estar ensinando as crianças a ler, do ponto de vista dos sujeitos, a aprendizagem
desta atividade ou não está ocorrendo ou está, porém, além de seus muros, porque a
instituição escolar não apresenta o ler como elemento do jogo da criança, como acontece nas
situações de leitura vivenciadas em casa ou na rua. O trava-língua, a poesia, a parlenda, a
música, não surgem em contextos de comunicação e de expressão, e apesar da tentativa das
crianças, não tomam parte de seu jogo; constituem-se apenas em recursos didáticos com um
fim em si mesmo.
Aprender a ler dominando um mecanismo não permite às crianças objetivar esta
atividade nas relações sociais, por isso, embora algumas, do ponto de vista da escola,
tenham aprendido a ler, para elas a apropriação dessa atividade ainda não ocorreu. A
concepção dos sujeitos da pesquisa em relação a sua própria caminhada no processo de
apropriação da leitura revela que para as crianças o aprendizado se concretiza quando se
sentem capazes de fazer uso dessa atividade, não apenas na escola, mas nas diversas situações
sociais. Assim, ainda que para a instituição escolar sejam alfabetizadas, ou seja, embora
compreendam o funcionamento do sistema alfabético de escrita, as crianças sentem que ainda
não aprenderam a ler. Essa situação foi verificada no processo de análise dos dados em
relação a sete alunos e evidencia mais uma vez que, do ponto de vista das crianças, no início
da vida escolar não separação ou etapas entre ler e aprender a ler como pressupõem os
métodos clássicos de ensino dessa atividade.
Com base na análise do projeto educativo 2008, que traz uma tabela com os índices de
alfabetização obtidos pela turma ao final de novembro de 2007, e nas entrevistas realizadas
com os sujeitos da pesquisa no mesmo período, apresento no quadro a seguir uma comparação
entre o ponto de vista da escola e o das próprias crianças em relação à aprendizagem da
leitura.
138
Aluno Ponto de vista da Escola Ponto de vista da própria criança
Pergunta: “Você já sabe ler?”
A-1 Alfabetizado “Ainda não sei ler, estou
aprendendo”
A-2 Não alfabetizado Não sei nadinha de nada.
A-3 Não alfabetizado “Não, algumas coisinhas...
coisas do mercado assim.”
A-4 Não alfabetizado Não, nada, nada!
A-5 Alfabetizado Não, mais ou menos, estou
aprendendo
A-6 Alfabetizado “Não, ainda não.”
A-7 Alfabetizado “Sim, já leio”
A-8 Não alfabetizado Não!
A-9 Alfabetizado Ainda não.
A-10 Não alfabetizado Não, no ano que vem que
eu vou aprender.
A-11 Alfabetizado Não! Ainda não...
A-12 Não alfabetizado “Não, minha mãe ainda me
ajuda”
A-13 Não alfabetizado “Não, estou aprendendo”
A-14 Alfabetizado “Eu já, leio tudo”.
A-15 Alfabetizado Sim, faz tempo já!
A-16 Alfabetizado “Não, nem de letra de mão,
nem de letra de forma...”
A-17 Não alfabetizada Não sei nada.
A-18 Não alfabetizado “Não, estou aprendendo em
casa”
A-19 Alfabetizado “Não, tem coisa que eu não
sei!”
Quadro 12 - Quadro comparativo entre o ponto de vista da escola e das crianças acerca do aprendizado da
leitura
Para sete crianças, portanto, aprender a linguagem escrita como um sistema de
codificação não fora suficiente para torná-las leitoras, embora, de acordo com a escola, elas
saibam estabelecer as relações entre fonemas e grafemas de forma correta e decodificar
adequadamente. Apenas três se reconhecem como leitoras de fato, porém atribuem este
aprendizado não à escola, mas à família. E para nove crianças, as 143 situações de escrita
realizadas durante o ano aliadas às 49 de leitura, todas voltadas para o ensino do sistema
alfabético de escrita, não promoveram o aprendizado desta atividade nem mesmo como
técnica, sendo que as respostas de A-17, A-4 e A-2 são um tanto angustiantes ao
acrescentarem a palavra “nada ou nadinha de nada”. Ao estabelecer uma triangulação dos
dados verifiquei que as crianças que indicaram a ausência de um mediador no ensino desta
139
atividade eram as que sequer tinham acesso aos livros literários, uma vez que não conseguiam
concluir as tarefas escolares no tempo previsto.
O aprender a ler foi alcançado, de acordo com a escola, por dez alunos, mas de acordo
com os próprios aprendizes apenas por três. Portanto, é possível inferir que para as crianças
dominar a técnica não basta! Saber decodificar não é saber ler, a concepção dos sujeitos
aprendizes contradiz o argumento de que a decodificação é a competência central do processo
de aprendizagem da leitura. A essência de aprender a ler não consiste em traduzir letras em sons
que fazem sentido, mas no manejo da palavra como signo.
Para legitimar esta análise, trago discursos dos sete sujeitos da pesquisa considerados
alfabetizados em relação a sua própria condição como leitores ao final do ano letivo a partir do
questionamento acerca do que conseguiam ler sozinhos:
A 1: Sozinho não, minha mãe ainda tem que me ajudar.
A 5: Não, não leio nada sozinho.
A 6: Minha avó ainda me ajuda.
A 9: Silêncio.
A 11: Nada... sozinho, sozinho, não.
A16: Não, acho que não.
A 19: Não sei [...]
(Discursos produzidos em entrevista realizada em novembro de 2007).
Dessa forma, como propõe Arena (2009, p. 169), ao ensinar a ler o foco da escola não
deveria ser o sistema alfabético de escrita como objeto em si a ser apropriado pelas crianças,
mas “o sentido que pode ser conseguido por meio dele.” Isolar a aprendizagem deste sistema
acreditando ser este um pré-requisito para alguém se tornar leitor é contribuir para a
aprendizagem de uma língua morta, artificial, que não propicia ao aprendiz reconhecer-se
como leitor. Por esta razão, cabe à escola ensinar o sistema de escrita no fluxo da linguagem,
uma vez que as próprias crianças estão indicando que “a apropriação desse conhecimento se
dá em seu próprio uso, em textos vivos e em pleno funcionamento, carregados de significados
produzidos pelas relações entre todos os que vivem no contexto em que se situam [...]”
(ARENA, 2009, p. 172).
Cabe ao processo de escolarização introduzir as crianças no aprendizado da leitura
como prática cultural, afastando-se das simulações e das situações de ler como algo
desmotivador e ausente de finalidades. Assim, não são apenas os estudos teóricos que indicam
140
a necessidade do ensino da leitura estar voltado para as propostas didáticas que tenham
sentido para as crianças; elas próprias estão indicando que é este o melhor caminho. As
crianças estão nos dando pistas de que ensinar a ler, portanto, é colaborar para que o sujeito se
aproprie de uma prática cultural em vez de um processo mecanizado de correspondência
grafema-fonema. Ler consiste em atividade produtiva, que leva, como afirma Rockwell
(2001), a compartilhar dispositivos, comportamentos, atitudes e significados culturais em
torno desse ato.
4. 4 Conceito de leitura: as relações com o ler como prática cultural
Como é possível antecipar, para as crianças sujeitos desta pesquisa, a leitura
constitui-se numa prática cultural. Diante da difícil tarefa de responder à pesquisadora o que é
ler, apontam o sentido que a leitura tem para elas como uma função social, seja para cumprir
as propostas didáticas em sala de aula, seja para ler os livros de história, sozinhas, sem que
seja preciso que alguém leia para elas ou para facilitar e tornar possível a vida em sociedade.
Nenhuma criança relacionou a leitura como uma atividade em si mesma, ao contrário, para
elas a leitura constitui-se numa atividade-meio, uma atividade orientada por propósitos.
Natureza das respostas dos alunos Nº. de
Alunos
Respostas relacionadas à aprendizagem
É saber ler as atividades sozinho.
É importante para saber ler para fazer as coisas que a professora passa.
6
Respostas relacionadas ao entretenimento
É legal porque aí eu posso ler livrinhos de história.
É importante porque aí eu posso ler histórias em casa.
8
Respostas relacionadas a situações fora do contexto escolar
É ler qualquer coisa que precisa ler na rua aí a pessoa já sabe.
É saber das coisas. Porque a gente às vezes vê a placa, aí não sabe ler, aí não sabe o
caminho.
È uma coisa importante porque se a gente não aprende a ler, não pode trabalhar,
porque no trabalho tem que ler as coisas.
È importante porque quando a gente vai à cidade, aí já sabe ler, que nem TORRA
TORRA.
23
5
Quadro 13 - Distribuição das respostas explicitadas pelas crianças em relação à pergunta o que é ler
As crianças não reduzem o ler ao ato de decifrar, revelando que ao iniciar sua
trajetória na escola a leitura consiste numa atividade carregada de significação. Como no
decorrer das situações de ensino não eram orientadas a fazer uso da estratégia de oralização
23
A expressão TORRA TORRA refere-se ao nome de uma loja comercial popular no ramo de confecções,
localizada no centro do município de Marília-SP.
141
ou a exclusivamente decodificá-lo, os leitores aprendizes olhavam o escrito em busca de
sentido, procuravam a palavra como signo em uma enunciação, não se remetendo à leitura
como pronúncia adequada ao símbolo visual. Assim, começaram e terminaram o ano
relacionando o ato de ler a um objeto de cultura, o a um escolar. Destaco alguns dados
gerados no momento do recreio das crianças que permitem tecer esta comparação entre suas
concepções acerca do ato de ler:
Eu quero aprender a ler, pra saber alguns jogos do computador. O ano que
vem tem aula de computador, eu vou saber, não é? (A-1 Protocolo de
observação 2- 22/03/2007)
Eu vou aprender a ler logo, minha mãe disse que eu já consigo ler um monte
de coisa na rua.
(A-15 Protocolo de observação 2 -22/03/2007)
Fabiana, eu já leio um monte de coisa, livrinho, gibi, o painel da escola, quer
ver?
Olha aqui, aqui está escrito: “Jesus é a Paze”...Ops, a paz, Jesus é a paz”.
Nós que fizemos esse painel, você vai à igreja?
(A-14 Protocolo de observação 3 12/04/2007)
Eu ainda não sei ler... Eu quero saber para vir na catequese, ler as coisas tudo
da Bíblia.
(A-17 Protocolo de observação 4 17/04/2007).
As relações das crianças com a linguagem escrita são amplas, e, como afirma Bajard
(2006, p. 504), o alfabetizador o pode ignorar o percurso letrado anterior à escolarização.”
Ele não é mais o anfitrião da iniciação da escrita; cada criança traz sua experiência pessoal
construída na relação com o outro, por isso fazer uso de métodos ou de metodologias que
desconsiderem o conhecimento real dos sujeitos e que trace o mesmo percurso para todas, como
defendem os adeptos do método fônico e como também fez a escola da pesquisa, consiste numa
escolha não acertada, como revelaram os leitores aprendizes.
Ao apontar em seus discursos que ler é uma atividade orientada por propósitos, e que
por isso desejam aprender a ler para serem capazes de colocá-la em prática nas mais diversas
situações sociais, os sujeitos indicam a importância de o professor estabelecer a zona de
desenvolvimento real de seus alunos antes de organizar e planejar as propostas de leitura, para
que essas possam incidir de fato sobre seu desenvolvimento potencial (VYGOTSKI, 1996) e
portanto gerar aprendizagem e impulsionar o desenvolvimento de cada um. O desconhecimento,
por parte do professor, do nível de desenvolvimento real das crianças em relação à leitura pode
ter sido uns dos fatores que fizeram com que três alunos sentissem que durante todo o ano nada
142
aprenderam em relação ao ato de ler e que dezesseis não atribuíssem seu aprendizado à escola.
As propostas ignoraram a zona de desenvolvimento próximo dos alunos, uma vez que foram
iguais a todos, pressupondo o mesmo ponto de partida e o mesmo ponto de chegada para toda a
turma. Entretanto, alguns não partiram, outros estão no caminho e apenas três chegaram!
Como discutido na primeira parte da tese, partilhar com as crianças um período de sua
vida escolar me fez acreditar ainda mais que os professores, como mediadores entre as crianças
e o conhecimento, possuem um importante papel na organização do processo de ensino da
leitura como prática cultural, pois, para promover o aprendizado e impulsionar o
desenvolvimento de seus educandos, precisam conhecer a zona de desenvolvimento real para
estabelecer a zona de desenvolvimento próximo e, com base nela, criar necessidades ao planejar
atividades que façam sentido às crianças (VIGOTSKI, 2003). A negação dessa tarefa pode levar
à negação do professor como mediador no ensino do ler e em seu reconhecimento apenas como
alguém que ensina a grafar, a traçar as letras, mas não a linguagem, não a leitura, como pode ser
verificado no desenvolvimento deste estudo.
Nesse ponto, amplio o diálogo das crianças com o estudo de Britto (1997, p. 159), ao
argumentar que “se o sujeito está no centro da linguagem e a significação se constitui no
discurso, não se pode pensar o ensino da língua a partir de atividades mecânicas de repetição e
reconhecimento de estruturas”, afinal qual o propósito do ler diante de tais propostas senão o de
torná-lo artificial? Retomando Arena (2009), o ensino do sistema de escrita alfabético, longe de
ser mecanizado, de ocorrer em situações reais de leitura, em seu próprio uso, e como alerta
Britto (1997, p. 177), “não se aprende uma linguagem técnica para poder acessar um
conhecimento; ao contrário, é na convivência com o conhecimento que se adquire
eventualmente, o domínio de uma linguagem técnica.” No decorrer de seu último ano da
educação infantil, as crianças deram pistas de que é este o caminho, que aprendem a ler
vivenciando esta prática em sua experiência social, num processo de interação e interlocução
com o outro mais experiente. Insistir nas ações contrárias é ignorar as conceituações, as
atitudes, os interesses, as impressões e manifestações do próprio leitor aprendiz e tornar difícil
seu aprendizado na tentativa de facilitá-lo.
Ao final da educação infantil, o conceito que as crianças possuem em relação ao ato de
ler mostra que para elas não há uma distinção entre ler na escola e ler como prática cultural, esta
atividade está sempre atrelada a um propósito e com esta concepção elas ingressarão no ensino
fundamental, sendo que para dezesseis deles a caminhada no processo de apropriação do ler
ainda continuará. Como e quais serão suas atitudes, manifestações, impressões e interesses
nessa nova etapa da caminhada, será possível conhecer e analisar no próximo capítulo, porém
143
apenas em relação a cinco crianças, em razão dos motivos explicitados na primeira parte do
trabalho.
144
5 A leitura no ensino fundamental: aprender a ler para ler
O início do ensino fundamental
24
constitui-se num período de grandes mudanças para
as crianças. Suas atitudes já não são mais tão impulsivas, uma vez que, como acentua
Vigotski (1996), há, nesse período, a perda da espontaneidade infantil substituída por uma
orientação consciente de suas próprias vivências. Alteram-se, assim, as relações entre si, entre
elas e o professor, e as suas experiências com o meio circundante. A vida escolar adquire um
caráter normativo carregado de novas obrigações a cumprir; o estudo torna-se uma atividade
mais séria do ponto de vista da escola, dos próprios alunos e dos familiares. É um momento
de mudanças para as crianças e no caso dos sujeitos dessa pesquisa, ainda mais intenso, já que
a entrada no ensino fundamental ainda foi acompanhada pela alteração de escola, de horário e,
portanto, não apenas de professor, mas, sobretudo, de colegas de turma.
Nesse quadro, a continuidade do estudo de caso etnográfico encontrou alguns
obstáculos. Foi possível acompanhar cinco das crianças anteriormente observadas: A1, A6,
A15, A17 e A18, pois apenas esses alunos permaneceram frequentando a mesma escola e o
mesmo período em que cursaram a educação infantil.
Este capítulo objetiva mostrar como esses leitores aprendizes continuaram a lidar com
a leitura na escola, verificando se seus interesses, atitudes, manifestações e elaborações em
relação ao ato de ler foram modificados nessa nova etapa do processo de escolarização. A
priori, busco por meio da análise da proposta pedagógica referente ao ensino fundamental e
da metodologia utilizada em sala de aula identificar se linearidades em metodologias para
o ensino dessa atividade, ou seja, se uma continuidade em relação ao trabalho pedagógico
realizado na educação infantil. Na sequência, apresento a atitude das crianças diante da
metodologia adotada e suas manifestações em relação às propostas didáticas para o ensino da
leitura, com a intenção de perceber como elas lidam com a forma pela qual a escola conduz a
atividade nessa etapa do processo de escolarização. Por fim, concluo a apresentação e
discussão dos resultados da investigação pontuando, por meio das entrevistas e das sessões
com o grupo focal, indícios de mudanças ou não em relação aos mediadores no processo de
apropriação da leitura e, notadamente, às elaborações acerca do conceito do ato de ler.
24
Neste trabalho faço referência às crianças com idade entre seis e sete anos. Ressalto novamente que, no
período de realização do estudo de caso etnográfico, a escola campo de pesquisa ainda não tinha adotado o
sistema de organização do ensino fundamental em nove anos.
145
5.1 A proposta pedagógica da unidade escolar e a metodologia de ensino
De acordo com os Adendos ao Projeto Educativo da unidade escolar referentes a 2008,
o ensino da leitura no ensino fundamental objetiva “a formação de bons leitores viabilizando a
leitura no dia a dia da escola tornando-a um hábito prazeroso e saudável.” (PROJETO
EDUCATIVO, 2008, p. 41). Para a escola, o foco do trabalho com o ler deve ser o incentivo à
prática de leitura como hábito que deve levar as crianças a gostar dela e a sentir prazer por ler.
Assim, os professores conseguiriam que as crianças se interessassem por essa atividade. Os
objetivos previstos para a primeira série em relação ao ensino da leitura são:
- Desenvolver atividades de incentivo à leitura formando o hábito de ler;
- Desenvolver o interesse, o gosto e o prazer pela leitura;
- Ler e interpretar de maneira autônoma os diferentes tipos de textos
previstos pela série. (PROJETO EDUCATIVO, 2008)
Para atingir esses objetivos, a escola enumera por bimestre os seguintes conteúdos:
Bimestre Conteúdos
Leitura de diversos textos:
Literários (contos, fábulas, poemas, lendas)
Propagandísticos (anúncios, letreiros, publicitários, cartazes)
Listas (de nomes, de supermercado, etc.)
Leitura de diversos textos:
Literários (contos, fábulas, poemas, lendas)
Propagandísticos (anúncios, letreiros, publicitários, cartazes)
Listas (de nomes, de supermercado, etc.)
Utilitários instrucionais (receitas, bulas)
Histórias em quadrinhos
Jornalísticos
Leitura de diversos textos:
Literários (contos, fábulas, poemas, lendas)
Propagandísticos (anúncios, letreiros, publicitários, cartazes)
Listas (de nomes, de supermercado, etc.)
Utilitários instrucionais (receitas, bulas)
Histórias em quadrinhos
Jornalísticos
Leitura de diversos textos:
Literários (contos, fábulas, poemas, lendas)
Propagandísticos (anúncios, letreiros, publicitários, cartazes)
Listas (de nomes, de supermercado, etc.)
Utilitários instrucionais (receitas, bulas)
Histórias em quadrinhos
Jornalísticos
Cartas, bilhetes e diários.
Quadro 14 - Conteúdos previstos para o ensino da leitura na primeira série- E.F.
146
Em todo o Projeto Educativo, são apenas essas as referências em relação ao ensino da
leitura, o que permite perceber que, para a escola, o objetivo da primeira série seria ensinar a
ler, a gostar de ler e a interpretar textos escritos. Isso permite inferir que as crianças devem
aprender a ler, aprender a interpretar o que leram e aprender se interessar por esta atividade,
adquirir o bito e tomar gosto pela leitura. Embora a escola não explicite qual conceito de
leitura norteia sua proposta pedagógica, é possível constatar que, se há uma distinção entre ler
e interpretar, é porque parece ser possível ler e não compreender o escrito e ainda que a
compreensão é consequência e não base da leitura (SMITH, 1989). Assim, apesar de o
documento mencionar os Parâmetros Curriculares Nacionais como referência para elaboração
de sua proposta pedagógica e de fato apresentar como conteúdo leituras de diversos gêneros
textuais, os objetivos em relação ao ensino dessa atividade aproximam-se mais dos postulados
dos métodos de natureza sintética, uma vez que indicam que ler e compreender o processos
diferentes, e é possível ler sem compreender o escrito.
Na perspectiva deste estudo, dissociar o ler do interpretar ou compreender o escrito é
direcionar o ensino da leitura a um mero objeto escolar, afastando os aprendizes da
apropriação dessa atividade, tal como ela é objetivada na vida em sociedade. Retomando
Foucambert (2008, p. 66), ler é trabalhar sobre um simbolismo direto, é a “tomada imediata
de um significado da escrita; o leitor compreende o texto escrito tratando diretamente a
informação que retira no momento de cada fixação”, em vez de realizar um processo de
decodificação para, posteriormente, ser capaz de interpretá-lo. Nesta direção, não basta
elencar uma diversidade de gêneros textuais se serão tratados, não como um conjunto de
enunciados, mas como um conjunto de palavras esvaziadas de significação aos leitores
aprendizes, que o decodificarão na tentativa de conseguir interpretá-lo. Na proposta
pedagógica da escola referente ao ensino fundamental, o qualquer referência a práticas
de ensino do ato de ler a partir de situações com esta atividade como valor de comunicação;
de acordo com este documento, o foco é aprender a ler para ler, interpretar e gostar de ler.
A escola parte do princípio de que as crianças, no início da primeira série, não se
interessam pelo ato de ler, não desejam sua prática e necessitam ser ensinadas por meio de
incentivos do gosto e prazer de ler. Esse princípio não condiz com a realidade, pois as
crianças sujeitos dessa pesquisa, no curso do último ano da educação infantil, manifestavam
interesse por ler para atender a seus diferentes propósitos. Ao desconsiderar o que de fato
pensam, realizam e desejam as crianças, a instituição escolar indica que o é a leitura como
prática cultural o foco de ensino, pois, se assim fosse, longe de estar relacionada a áreas do
treinamento como hábito ou à das sensações como gosto e prazer, deveria estar atrelada à área
147
da satisfação de necessidades criadas pelas próprias crianças na sua relação com o mundo
social (ARENA, 2003).
Para a escola, leitor parece ser o aluno capaz de ler e interpretar o que leu, e bom leitor
seria o aluno que, além disso, possui o hábito e o gosto por esta atividade. Assim, a leitura é
reduzida a um objeto escolar, uma vez que os indícios apontam que seu ensino o ocorrerá
atrelado às intenções, finalidades e necessidades dos aprendizes, mas chegará de fora, pelas
mãos do professor, como se a motivação para ler pudesse vir naturalmente de fora da criança,
algo que só parece ser possível no meio escolar, pois como prática cultural toda leitura que se
efetiva a partir de uma expectativa do leitor é sempre uma atividade intencional.
Expectativas, intenções e necessidades em relação ao ato de ler, os sujeitos desta
investigação demonstraram já possuir antes de sua entrada no ensino fundamental, por meio
da sua relação com esta atividade como objeto de cultura. Assim, de acordo com suas
elaborações acerca do ato de ler, é possível reconhecer que
[...] antes de cuidar de estimular a leitura ou desenvolver possíveis sensações
que ela [a escola] poderia trazer, seria necessário investigar e ensinar o
aprendiz a intercambiar informações grafo-semânticas, tendo como
referência um objeto específico para satisfazer uma necessidade, uma
intenção, uma finalidade. (ARENA, 2003, p. 57).
Ao explicitar como objetivos para o ensino da leitura o ler, o interpretar, o incentivar e
desenvolver o gosto, o prazer e o hábito, a escola caminha na contramão dos conhecimentos já
apropriados sobre esta atividade, pois as crianças não concebem todas essas aprendizagens de
forma fragmentada. Para elas, ler é atividade-meio e já implica a busca pelo sentido do
escrito, a satisfação de necessidades que geram ou não prazer e que é realizada, não por hábito
ou por gosto, mas por tornar-se uma tarefa vital na sua relação com o mundo social: no
momento de ler histórias com a família, de assistir à televisão, de fazer compras no
supermercado, de aprender o jogo no computador, de localizar-se nas ruas etc. Como foi
possível verificar no primeiro ano da pesquisa, o que faz os sujeitos desta pesquisa se
tornarem leitores e bons leitores não é o fato de dominar a técnica, ou de conseguir
interpretar, ou ainda o fato de sentir prazer ou ter o gosto pela leitura, mas o fato de ser capaz
de participar das relações sociais.
A proposta pedagógica para o ensino fundamental, assim como a da educação infantil,
acentua que a primeira série centrará mais foco nas situações de produção de textos com o
objetivo de acompanhar o processo de alfabetização por meio dos níveis de hipóteses de
escrita propostos por Ferreiro e Teberosky (1985). Segundo o documento, Será dada uma
148
ênfase maior às produções de textos, considerando o nível de escrita (alfabetização).”
(PROJETO EDUCATIVO, 2008). Assim, é possível inferir que o processo de alfabetização
proposto pela escola colocará novamente a leitura em segundo plano, privilegiando de forma
contraditória situações de escrita em detrimento das situações com o ler. E ainda que, se a
alfabetização será medida apenas pelos níveis de escrita, a perspectiva da escola é o ensino da
leitura como técnica, não como prática cultural, pois o leitor, de forma equivocada, será
avaliado pela capacidade de realizar corretamente as correspondências fonográficas, e não
pela capacidade de, a partir de seus conhecimentos prévios, atribuir sentido ao escrito de
modo a satisfazer uma necessidade gerada pela sua inserção no fluxo da linguagem.
Os pontos de encontro da proposta com os PCNs (BRASIL, 1998) seriam apenas a
questão do gosto e prazer de ler e o trabalho com os gêneros textuais, pois a concepção e o
discurso da escola não é o de que ler é compreender, tal como propõem os Parâmetros
Curriculares Nacionais, mas o de que ler e compreender são momentos dissociados, que a
escola espera que na primeira série do ensino fundamental as crianças possam não apenas
aprender a ler, mas também a interpretar o que leram. E diante da concepção de alfabetização,
não como um processo discursivo, mas como o domínio do sistema alfabético de escrita, fica
mais claro o fato de que a escola faz essa dissociação porque ler está sendo entendido como
estratégia de decodificação, e interpretar como a busca pelo sentido do escrito, etapa posterior
ao processo de alfabetização, um pressuposto característico dos métodos de alfabetização de
natureza sintética (AGUAYO, 1952).
Portanto, novos e velhos princípios estão presentes também na proposta pedagógica
para o ensino fundamental, que assim como a da educação infantil revela uma justaposição
entre os documentos oficiais e seus próprios paradigmas em relação ao ato de ler, revelando,
como afirma Barbosa (1994), a dificuldade de a leitura como processo de construção de
sentido encontrar espaço no processo de alfabetização desenvolvido pela escola.
5.1.2 A concretização da proposta pedagógica na sala de aula
A partir das sessões de observação, da análise dos cadernos dos alunos e dos livros
didáticos de Alfabetização e de Língua Portuguesa adotados pela escola, pude constatar que,
durante todo o semestre, a metodologia utilizada pelo professor foi sempre a mesma em
relação ao ensino do ato de ler. As situações planejadas para este fim eram realizadas
diariamente no início de cada aula, que começava sempre da mesma forma e obedecia à
seguinte sequência metodológica: a professora copiava o cabeçalho na lousa com os dados:
149
nome da escola, data, dia da semana, nome do aluno, nome da professora, como estava o
tempo, quantas meninas e quantos meninos estavam presentes e nome do ajudante do dia.
Após o cabeçalho, era escrita a expressão Bom dia”, acompanhada de um desenho. As
crianças copiavam todas essas informações no caderno; até mesmo o desenho elas
reproduziam como estava na lousa. Na sequência, deviam treinar a escrita do nome em letra
cursiva, escrevendo-o três vezes. Depois, registravam o alfabeto e deviam “ler” as letras e
escrever uma palavra com cada uma; outras vezes escreviam palavras a partir das famílias
silábicas. A professora chamava as crianças na lousa para escreverem uma palavra com cada
letra ou sílaba e depois lia todas as palavras escritas. Quando esse ritual acabava, era sempre
realizada uma situação de leitura ou de produção escrita a partir de palavras ou textos.
Durante os 95 dias de aula, as crianças vivenciaram esta mesma rotina. De acordo com a
professora, o objetivo era o ensino do sistema alfabético de escrita:
[...] A professora termina de escrever o alfabeto, pede que leiam as letras e
que escrevam uma palavra com cada uma. A-15 interrompe a professora e
pergunta: Professora, s vamos fazer isso de novo? A professora responde
seriamente: Sim, é para vocês aprenderem o som das letras, para conseguir
ler e escrever direito! A-15 olha para o colega ao lado e diz: Mas eu sei!
A professora ouve e o repreende dizendo Eu sei que você sabe, mas tem
gente que não sabe!” A-15 fica em silêncio e volta a copiar o conteúdo da
lousa[...] (Protocolo 15 de observação – 21/02/2008).
Segundo os dados dos Adendos ao Projeto Educativo de 2008, todas as crianças dessa
turma conhecem as letras do alfabeto, entretanto, precisam, apesar disso, grafá-las e recitá-
las todos os dias. A-15, A-6, A-1, entre outros alunos da turma, já compreenderam o
funcionamento do sistema de escrita, e de acordo com a avaliação diagnóstica da escola
25
são
classificados desde o início do ano como “alfabéticos”. Entretanto, esse conhecimento é
ignorado pela metodologia da professora, que prevê todos os dias a execução de uma tarefa
mecanizada e repetitiva que teria como objetivo principal ensinar às crianças algo de que elas
se apropriaram. Assim, como ocorre na educação infantil, aqui também os níveis de escrita
servem apenas para rotular os alunos, pois contrariamente ao que propõe a proposta
construtivista, suas hipóteses de escrita não direcionam a forma de ensinar do professor; as
situações de ensino são as mesmas para todos e não levam em consideração o conhecimento
25
A avaliação diagnóstica da escola, assim como na educação infantil, está fundamentada nos níveis de escrita
propostos por Ferreiro e Teberosky (1979). Para o ensino fundamental, a Secretaria Municipal da Educação
solicita que, nos meses de fevereiro, abril, junho, setembro e dezembro, as escolas realizem uma avaliação a
partir de uma produção de texto para verificar a hipótese de escrita dos alunos com o objetivo de medir índices
de alfabetização.
150
construído acerca de como funciona o sistema linguístico (FERREIRO; TEBEROSKY,
1985).
26
Em vez de propiciar condições para que as crianças demonstrem o conhecimento
apropriado sobre o ato de ler, a escola insiste em conduzir o trabalho com a leitura como se as
crianças o tivessem uma pré-história de relações e vivências em relação a esta atividade
(VYGOTSKI, 1996). Assim, o professor ignora o desenvolvimento real do leitor aprendiz e
planeja as situações didáticas sem considerar o seu nível próximo de desenvolvimento, não
possibilitando a ocorrência de novas aprendizagens, pois
[...] Um ensino orientado até uma etapa de desenvolvimento já realizado é
ineficaz do ponto de vista do desenvolvimento geral da criança, não é capaz
de dirigir o processo de desenvolvimento, mas vai atrás dele. A teoria do
âmbito de desenvolvimento potencial origina uma fórmula que contradiz
exatamente a orientação tradicional: o único bom ensino é o que se adianta
ao desenvolvimento. (VYGOTSKI, 2006, p. 114).
A manifestação de A-15 diante da metodologia adotada pela professora, ao exclamar
“Mas, eu sei” indica que, como expõe Vigotski (2006), aquela situação de ensino não
propiciará mudanças em seu nível de desenvolvimento, tampouco irá contribuir para seu
processo de formação como leitor, pois ao invés de estar aprendendo como operar com os
diversos gêneros do discurso, participando de situações reais de leitura num processo
colaborativo, esexecutando uma tarefa mecanizada. É o ato de ler sendo ensinado como
técnica, não como um processo psíquico de ordem superior (VYGOTSKI, 1996).
Com efeito, mesmo para os alunos que não tinham compreendido o funcionamento do
sistema alfabético de escrita, esta metodologia de trabalho também não favorecia a
aprendizagem, uma vez que, como revelam os protocolos de observação e a análise dos
cadernos dos alunos, não havia tempo para que as crianças refletissem sobre como esse
sistema funciona. Também para esses alunos, como A-17 e A-18, a metodologia tornava a
situação de ensino um mero fazer mecânico. A seguir apresento um trecho transcrito das
sessões de observação e que revela este dado:
São 7h10. Apenas A-6 faltou. A professora escreve o cabeçalho na lousa.
Tudo é escrito sem qualquer diálogo com as crianças sobre o que está sendo
produzido. A-15 está conversando com A-1 enquanto copiam o que a
26
Com este dado, pude constatar algo que supunha existir quando exercia a função de coordenadora pedagógica:
como é desastroso a Secretaria Municipal da Educação exigir que as escolas utilizem a teoria de Ferreiro e
Teberosky (1979) para medir índices de alfabetização, uma vez que acaba por legitimar condutas como esta, em
que os níveis existem apenas para rotular alunos e não para contribuir de fato com a aprendizagem das crianças.
151
professora está escrevendo. A- 17 e A-18 também começam a copiar em
silêncio o cabeçalho. A professora escreve na lousa “Nós gostamos da
escola” e abaixo faz um desenho. As crianças não perguntam nada, apenas
copiam. A professora avisa que depois do desenho todos devem treinar a
escrita do nome em letra cursiva; marca três X e faz três linhas no quadro
para orientar as crianças. Depois escreve Alfabeto” e transcreve todas as
letras na lousa. Quando termina, avisa as crianças que é para escrever e ler as
letras do alfabeto e depois escrever uma palavra com cada letra. Ela escreve
novamente as letras no quadro, mas agora em forma de lista para que as
crianças escrevam, na frente, a palavra solicitada. As crianças ainda não
perguntam nada. A-17 e A-18 não conversam com ninguém. A-1 e A-15
continuam conversando enquanto copiam, falam sobre um adesivo que A-1
tinha dado a A-15, que o havia perdido. Há muito silêncio na aula, as poucas
crianças que conversam falam de assuntos alheios à tarefa que estão
cumprindo. Após alguns minutos, a professora começa a chamar alguns
alunos para ir à lousa escrever as palavras com cada letra do alfabeto. Um
aluno vai até a lousa e escreve a palavra abacaxi com a ajuda da professora.
Quando retorna à sua carteira A-15, sem olhar na lousa lhe pergunta:
“O que você escreveu?” e ele responde : “A mesma coisa que ontem,
abacaxi” e A-15 diz: “Eu sempre escrevo avião, a de avião”. As falas do
aluno e de A-15 me fazem ficar curiosa e então fui até a carteira de A-15 e
solicitei que me mostrasse rapidamente seu caderno. Constatei que ele estava
copiando as mesmas palavras que havia escrito no dia anterior e no dia
anterior. Por isso, não fazia perguntas à professora e também conseguia
conversar e cumprir a tarefa ao mesmo tempo, afinal não estava sequer
refletindo sobre o sistema de escrita, mas apenas executando um fazer
mecânico e repetitivo. A professora foi chamando um a um para ir até a
lousa, porém quando chegou a vez de A-17 e A-18, ela pulou, pois eles
ainda estavam copiando o cabeçalho. A-15 e A-1 escreveram
respectivamente as palavras sapato e urso, as mesmas palavras que haviam
escrito no caderno em dias anteriores. Quando a última palavra foi escrita, a
professora solicitou que os alunos lessem em voz alta todas elas, porém
poucos alunos participaram dessa situação; a maioria ainda estava copiando
o conteúdo da lousa e outros como A-15 e A-1 estavam alheios à situação,
mexendo e brincando com o material escolar. A professora não demonstra
incômodo com a pouca participação e após a situação de leitura das palavras
escreve no quadro a palavra “Leitura” e avisa às crianças que entregará um
texto para que leiam baixinho. Nesse momento A-15 olha para mim, mas
não diz nada, porque estou sentada um pouco distante e, diferente do ano
passado, as crianças sabem que não podem sair do lugar sem autorização.
[...] São 9h10 e A-17 e A-18 ainda estão copiando as palavras com as
letras do alfabeto... No recreio pergunto a A-18 se está aprendendo a ler
na escola neste ano e ele me diz: Não, nunca termino tudo, eu canso,
estou muito fraco, a gente escreve muito na série”[...] (Protocolo 16 de
observação - 06/03/2008).
Como é possível perceber, A-15 e A-1 encontraram uma saída para o cumprimento da
rotina diária de escrever palavras com as letras do alfabeto; copiam as mesmas do dia anterior
e assim executam a tarefa conversando sobre assuntos alheios ao que estão fazendo em aula,
uma evidência de que a escola brasileira do século XXI pode conduzir o ensino da linguagem
escrita como hábito de os e dedos, como ocorria no início do século passado, de acordo
152
com os estudos de Vigotski (1995). A fala de A-18 revela como é cansativa para as crianças a
rotina metodológica adotada pela professora, pois em duas horas de aula A-17 e A-18 tinham
realizado apenas cópia, exercitado a grafia das letras, mas o a linguagem escrita. A análise
do caderno de A-17 e A-18 revela que no decorrer do semestre eles desistiram de tentar copiar
tudo, passaram a pular dados do cabeçalho, a não copiar as palavras com as letras do alfabeto
e a ganharem várias observações da professora com as expressões: “incompleto” ou “não
terminou”, indicando que, assim como no século XIX, a forma de aprender a ler é cansativa e
desinteressante para os aprendizes (AGUAYO, 1952).
Figura 8 - Registro da sequência metodológica adotada no ensino da leitura/Caderno de A-17
153
Figura 9 - Registro da sequência metodológica adotada no ensino da leitura/Caderno de A-17
Após o trabalho diário com o alfabeto e com a formação de palavras a partir de letras
ou famílias silábicas, a segunda etapa da sequência metodológica previa uma situação de
leitura de textos, ou de produção de textos, ou de leitura e escrita de palavras. Até o momento
do recreio, que ocorria às 9h30, as crianças executavam estas tarefas. Às segundas-feiras as
crianças tinham aula no laboratório de informática e por algumas vezes as situações de leitura
eram desenvolvidas nesse local. O trabalho com as outras disciplinas curriculares era
frequentemente realizado no segundo horário da aula. O gráfico a seguir apresenta a
distribuição do quantitativo das situações desenvolvidas para o ensino da linguagem escrita
após o trabalho com o alfabeto e com as sílabas.
154
51
21
17
6
0
10
20
30
40
50
60
Nº de situações
Situações de ensino
Situões de ensino da linguagem escrita desenvolvidas no
período de fevereiro a junho de 2008.
Leitura de textos
Produção de textos
Leitura e escrita de palavras
Jogos- Softwares Educativos
Gráfico 4 - Situações de ensino da linguagem escrita/ Fevereiro a junho de 2008
27
Como é possível verificar no gráfico, foram muito frequentes as situações de leitura a
partir de textos, um número que surpreende, pois, em 95 dias de aula, as crianças vivenciarem
51 situações de leitura, é realmente um dado expressivo, principalmente considerando o
tempo, que junto a tudo isso as crianças tinham de cumprir o ritual do cabeçalho e do
alfabeto. Assim, a leitura e a produção de textos, práticas recomendadas pela proposta
construtivista, são notoriamente contempladas pela metodologia adotada, porém surgem em
meio à leitura e escrita de palavras isoladas e à soletração e silabação, característicos dos
métodos de natureza sintética. É uma miscelânea de concepções, métodos e condutas em
relação ao processo de alfabetização (GONTIJO, 2003).
A seguir, apresento a continuidade da sequência didática organizada para o ensino da
leitura a partir de textos, de palavras isoladas, de jogos no computador e em relação aos livros
literários infantis, embora, como será discutido, não façam parte do gráfico, por não terem
espaço nas situações de ensino da língua.
A metodologia em relação às propostas de leitura a partir dos cinquenta e um textos
foi a mesma no decorrer de todo o semestre. Quando a última palavra era escrita com a letra Z
na lousa ou com a última sílaba de uma determinada família silábica, a professora escrevia
imediatamente no quadro: “LEITURA”, e mesmo que a maioria da turma estivesse ainda
copiando o conteúdo da situação didática anterior, era iniciada a sessão de ensino do ato de ler
com textos. Como recurso, a professora fazia uso de três suportes: texto em papel
mimeografado, copiado na lousa ou pertencente a um dos livros didáticos. A metodologia
27
Estes dados foram gerados a partir da análise dos cadernos dos sujeitos da pesquisa.
155
utilizada era a mesma, independente da forma com que o texto era colocado nas mãos das
crianças.
Quando o texto era mimeografado, a professora o distribuía e sem nenhum comentário
solicitava que quem tivesse acabado a tarefa anterior o colasse no caderno e o lesse. Quando
era copiado na lousa, ela o transcrevia e solicitava às crianças que também o copiassem no
caderno e depois lessem. Com os livros didáticos, indicava qual a página em que o livro
deveria ser aberto e, sem qualquer referência ao texto, pedia às crianças que realizassem a
leitura. Em relação aos livros didáticos, ressalto que estes não ficavam com as crianças, mas
guardados no armário da professora. Esse dado me intrigou, pois diferentemente do que
recomenda o Programa Nacional do Livro Didático
28
, as crianças não tinham acesso nem
mesmo a esse material. Assim como os literários, também distribuídos pelo sistema de ensino
público, ficavam inacessíveis a seu público-alvo.
Após um pequeno tempo para que as crianças realizassem a leitura, a professora
chamava um aluno para fazer a leitura em voz alta ou ela mesma o fazia, e imediatamente
iniciava uma série de tarefas escritas sobre o texto. Embora todos os textos selecionados para
as propostas de ensino fossem autênticos, as crianças não eram sequer informadas sobre o
gênero textual, não havia conversas sobre o texto, nem antes, nem durante, nem após a
realização da situação de leitura. A leitura em voz alta era sempre realizada pelos mesmos
alunos, os “bons decodificadores”; os demais nunca eram chamados e o havia qualquer
exigência em relação a isto. Nesse quadro, para a maioria das crianças da turma, as situações
de leitura com textos nem mesmo eram vivenciadas como processo de decodificação ou de
oralização. E para todas, em sintonia com a proposta pedagógica, o ler como prática cultural,
como processo de atribuição de sentido ao escrito não era ensinado, não havia espaço na sala
de aula. De acordo com os protocolos de observação, os cinco alunos sujeitos desta pesquisa
estavam sempre alheios ao momento de leitura com os textos. A-1, A-6 e A-15, embora
considerados alfabéticos, não eram “bons decodificadores”, por isso não eram chamados, e A-
17 e A-18 sempre estavam copiando a tarefa anterior. Destaco o trecho de um protocolo, para
justificar a análise:
[...] A professora entrega o texto e pede para as crianças colarem no caderno.
A-15 e A-1 colam o texto e ficam olhando-o fixamente; percebo que estão
tentando ler. Entretanto, a professora chama um aluno para fazer a leitura em
voz alta, e nesse momento A-1 e A-15 deixam de olhar para o texto; A-1
28
O PNLD - Programa Nacional do Livro Didático - recomenda que os livros sejam entregues às crianças no
início do ano e fiquem sob a responsabilidade da criança e da família. No caso da 1ª série, os livros são
consumíveis e não precisam nem devem ser devolvidos no final do ano.
156
volta a mexer em seu material e A-15 pergunta à professora: “Posso ler
também na frente?”. A professora responde: “Não, deixe ele; porque
melhor”. A-15 olha para mim, percebo que ele ficou envergonhado, porque
na educação infantil era um aluno de destaque e neste ano tem dificuldades
em participar da aula. Ele não olha mais para o caderno e começa a
conversar baixinho com um colega ao lado. Com exceção da professora,
percebo que ninguém está acompanhando a leitura em voz alta, realizada por
um dos alunos considerados alfabetizados pela escola. Após esse momento a
professora começa a escrever na lousa as “atividades sobre o texto”. o
qualquer diálogo sobre o conteúdo do escrito ou referência ao gênero textual
que consiste numa receita. A professora escreve a primeira atividade: “Este
texto está dividido em quantas partes? Quais são essas partes”? Espera
alguns minutos e faz a pergunta à turma. Ninguém responde. Ela pergunta
novamente. Ninguém diz nada, então ela vai até a lousa aponta para o texto e
diz: “Olha, são três: título, ingrediente e modo de fazer”. Ela escreve a
resposta na lousa e depois escreve uma segunda pergunta: “Que tipo de texto
é esse? E o mesmo procedimento ocorre. A-15 e A-1 estão em silêncio
copiando junto com a professora; quando acabam de copiar um diz para o
outro: “Acabei, e você?”. Percebo que eles competem para ver quem copia
primeiro. São 9h10 e A-17 e A-18 ainda estão copiando as palavras com as
letras do alfabeto [...] (Protocolo 16 de observação- 06/03/2008).
A concepção de ler que se manifesta na metodologia da professora é a oralização da
escrita, a pronúncia adequada dos sinais gráficos transformados em sons, e embora não exija
de cada aluno a realização desta tarefa, acaba por valorizá-la em detrimento da leitura como
atividade feita para os olhos e de busca e atribuição de sentido. Isso é constatado por meio da
conduta de A-1 e A-15, que, ao perceberem que não é a leitura feita pelos olhos o foco da
professora, abandonam o texto e se dirigem às ações desvinculadas da proposta didática. A
análise deste trecho permite clarificar o objetivo da proposta pedagógica da escola para a
primeira série em relação ao ler e interpretar: ler é o saber pronunciar, oralizar o escrito.
Interpretar corresponde ao saber responder a questões referentes à estrutura ou partes dos
textos. Entretanto, a metodologia utilizada pela professora não favorece nem mesmo essa
aprendizagem mecanizada. Uma vez que as crianças não têm tempo e condições para buscar
suas próprias respostas, elas aguardam a resposta da própria professora. Tudo é muito rápido,
as crianças precisam executar muitas tarefas em pouco tempo, tanto que começam a competir
para ver quem consegue acompanhar o ritmo da aula, como revela a conduta de A1 e A15.
Dessa forma, o ensino da leitura, a partir dos 51 textos, foi realizado, sem se levar em conta
que “não se trata de garantir que a criança receba uma quantidade de informação sem que ela
tenha tempo para apropriar-se dela, atribuir-lhe um sentido e expressar o sentido que atribui à
apropriação.” (MELLO, 2006, p. 185). Assim, diferente do que acontecia na educação
infantil, a metodologia adotada no ensino fundamental não deixa espaço para as elaborações e
indagações das crianças diante das situações didáticas.
157
Os textos, sejam receitas, poesias, narrativas, não se constituem como um conjunto de
enunciados, mas num conjunto de palavras que nada dizem e servem apenas para alguém
oralizá-las. Ao observar as perguntas sobre o texto utilizado na aula de 06/03, constata-se
ainda que a concepção de gênero textual da professora é de que ele seria apenas uma forma
de classificar e normatizar os escritos, em vez de ser em instrumento de comunicação
(BAKHTIN, 2003). E, como é possível verificar no caderno de A-17, que consegue copiar
apenas a primeira pergunta referente ao texto trabalhado em 06/03, as crianças não tinham
tempo para tentar dialogar com os textos para transformá-los em enunciação; tinham muito
que escrever, ou melhor, copiar. Elas não buscavam mais o sentido do que estava diante dos
olhos; o ensino ocorria a partir de uma língua estática, pronta, sem vida.
Figura 10 - A metodologia no trabalho com textos/ Caderno de A-18-06/03/2008
O uso de textos no processo de alfabetização pode ser tão abstrato como o aprender a
ler a partir de letras, fonemas, sílabas ou palavras, uma vez que não é o fato de colocar o texto
nas os das crianças que torna o ensino mais contextualizado ou significativo. Como foi
discutido no segundo capítulo, é necessário que o texto seja reconhecido pelos leitores
aprendizes como uma enunciação, a partir de situações didáticas que lhes permitam dialogar
com o escrito, produzindo respostas e um processo constante de interlocução (BAKHTIN,
1995).
158
Como argumenta Geraldi (1997, p. 98), um texto “é o produto de uma atividade
discursiva onde alguém diz algo a alguém.” Se na sala de aula não interlocutores, então,
deixa de ser texto, é apenas um conjunto de sinais gráficos pronto para ser copiado,
decodificado ou simplesmente ignorado, como ocorre nas situações didáticas planejadas para
ensinar os sujeitos desta pesquisa a ler. Assim, penso que não basta propagar que os textos são
fundamentais no trabalho com o ensino da linguagem escrita. É preciso antes discutir com os
professores o conceito do que seja texto, pois como ocorre neste estudo, embora a escola liste
uma série de gêneros textuais como conteúdos e nos cadernos das crianças constem 51 textos,
na verdade não configuraram na aula como atividade discursiva, e, portanto, não se
constituíram de fato como textos.
Nas situações em relação à leitura de palavras isoladas, a metodologia da professora
consistia em solicitar a identificação de letras ou sílabas. Porém, assim como nas propostas
com os textos, quando a professora propunha esta tarefa, a maioria das crianças ainda estava
copiando as palavras com as letras do alfabeto, por isso apenas copiavam a resposta já exposta
na lousa. Os alunos A-17 e A-18 apenas copiavam. A-6, A-1 e A-15, embora a resposta
estivesse na lousa, realizavam a proposta sem precisar copiar, porque julgavam as propostas
muito fáceis, afinal, como é possível perceber na figura a seguir, eles não precisavam ler as
palavras, que deviam apenas identificar a primeira letra, uma situação apenas de
discriminação visual, mas não de leitura:
Figura 11 - Situação de leitura a partir de palavras/ Caderno de A-6
[...] Na saída para o recreio, A-6 me diz; Fabiana, você viu como é cil a
primeira série, atividade mais fácil que a do pré!”. Eu pergunto a ela:
“De qual atividade você está falando, a do alfabeto? E ela me diz: Não,
essa que a gente estava fazendo agora, de pintar as palavras com E”.
Novamente digo a A-6: “É mesmo, é fácil para você, não é? E o que você
está achando da primeira série? E A-6 responde: “Super chato!”[...]
(Protocolo 15 de observação - 21/02/2008).
159
Diante desta transcrição do diálogo com A-6, percebe-se que a falta de linearidade em
relação às metodologias para o ensino da leitura, ou seja, a ausência de uma continuidade no
processo de ensiná-la incomoda até mesmo as crianças, que novamente começam a primeira
série aprendendo a ler por meio da identificação de letras, de formação de sílabas, de
correspondência fonográfica, palavras isoladas e “textos” ausentes de significação. Perante
esta realidade, que julgava bem menos desastrosa quando iniciei a pesquisa, realmente caberá
à escola, pós-alfabetização, incentivar o gosto por ler, pois como A-6 está indicando, a
perspectiva do aprender a ler para ler essendo algo “chato” na escola! o sentido nas
propostas, não ensino de condutas e comportamentos do leitor, não ensino do ler como
objeto de cultura. E como afirma Amâncio (2002, p. 154), A-6 está legitimando com seu
discurso que “a crise da leitura, o desgosto pela leitura, têm suas raízes na fase inicial da
escolarização, nas condições em que se produz o ensino da leitura e da escrita.”
Como foi exposto na primeira parte deste estudo, a escola desta pesquisa possui
biblioteca com um acervo literário de qualidade e laboratório de informática para
desenvolvimento de aulas semanais com as turmas do ensino fundamental. Entretanto, no ano
de 2008, a escola distribuiu parte do acervo literário da biblioteca entre as turmas para que as
crianças realizassem também em aula momentos de leitura com os livros. Diante desta
conduta da escola, a biblioteca passou a ser um local pouco frequentado. A turma dos sujeitos
da pesquisa, durante todo o semestre, foi a esse local apenas uma vez, mas para assistir a
filmes, mas não para ler. Como na educação infantil, a biblioteca é para as crianças um espaço
de não-uso, e os livros que estão servem apenas para atestar a existência desse ambiente na
escola. o laboratório de informática parece ter mais importância que a biblioteca, uma vez
que as crianças devem obrigatoriamente frequentar esse local uma vez por semana.
Contraditoriamente, os dados referentes à pesquisa no ensino fundamental revelam
que na escola os computadores estão mais acessíveis às crianças do que os livros. Enquanto
estes estão guardados no armário da professora ou nas prateleiras da biblioteca, os
computadores estão disponíveis para uso das crianças durante toda semana. Enquanto não
espaço para os livros na organização metodológica adotada pela professora, para o
computador há, e às segundas-feiras, todas as crianças operam com essa ferramenta. os
livros literários são disponibilizados para as crianças apenas entre o término de uma tarefa
escolar e outra, como no ano anterior. Porém, o muitos os alunos que não conseguem
concluir a atividade e, portanto, não têm acesso a esse material. Embora os livros sejam da
escola e adquiridos pelo sistema público, as crianças não podem levá-los para casa, o que os
torna ainda mais inacessíveis aos leitores aprendizes. Em todo o processo de geração de
160
dados, não indícios de propostas didáticas a partir dos livros literários infantis; não
encontrei, nos dados gerados, marcas da literatura infantil nas situações de ensino do ato de
ler.
No segundo encontro do grupo focal, quando disponibilizei alguns livros literários
infantis aos leitores aprendizes, pude verificar que apesar do interesse das crianças por este
material, a escola no período de alfabetização priva os alunos do contato com os livros,
prioriza as situações de ensino do “aprender a ler“ em detrimento das vivências com o ato de
“ler”. Transcrevo um trecho desse encontro para fundamentar esta análise:
[...] A-15: Fabiana, esses livros são seus?
P: Sim, são meus, você gostou de algum?
A-15: Aqui na escola também tem livros assim, mas a gente não pode pegar.
A-6: Pode sim, quem acaba as atividades pode!
A-17: Eu nunca acabo!
A-18: Nem eu!
A-1: Eu acabo, mas nem pego é só um pouquinho!
A-15: Eu também não, porque se a gente fica atrasado, ela briga.
P: Mas, vocês não levam para ler em casa?
Coro: Não!
P: Por que não levam?
A-15: Por que aqui não tem livros para levar.
A-6: Tem sim, é que a gente não pode! Se não a gente perde, a professora
falou.
A-1: Mas eu tenho livros na minha casa.
A-15: Eu também, mas eu duvido que é igual a esses.
A-6: Ah, é, deve ser daqueles baratinhos, eu também tenho.
P: Vocês querem levar esses livros para casa?
A-18: Mas você vai deixar?
A-6: Claro que vai, o livro é dela não é da escola!
P: Vocês querem levar os livros para casa, mas o que vocês vão fazer com
eles lá?
A-15: Eu vou ler para minha mãe.
A-1: Eu também.
A-18: Eu vou pedir para o meu irmão ler comigo.
A-17: Eu vou mostrar pra minha mãe...
(2° encontro do grupo focal- Abril/2008)
O discurso das crianças evidencia que a metodologia adotada na sala de aula não
favorece o encontro das crianças com os livros. Nem mesmo A-1 e A-15, que conseguem
terminar as tarefas no tempo previsto pela professora, têm acesso a esse material, porque
sabem que o momento com os livros é apenas um passatempo, o tem valor aos olhos do
professor que prioriza as situações de ensino do ato de ler como técnica. A escola ignora o
interesse das crianças e as mantém distante do material que deveria ser imprescindível ao
processo de alfabetização, condição para a formação do leitor. E a família acaba ocupando
161
esse papel adquirindo livros e exercendo a mediação entre o conhecimento das crianças e a
linguagem escrita das histórias infantis, ainda que sejam materiais de pouca qualidade e
menos atrativos, como indicam os discursos de A-15 e A-6.
Diante desses dados, é notório reconhecer que,
Apesar das múltiplas iniciativas de promoção do livro e da leitura que se
fizeram desde que começaram os programas de promoção da leitura e se
divulgaram as novas propostas de ensino e de alfabetização, tem-se que
admitir que as mudanças são poucas, se houve alguma. (BRITTO, 2004, p.
49).
Ainda que a escola possua muitos e bons livros e afirme trabalhar a alfabetização a
partir da proposta construtivista, a metodologia adotada em aula para o ensino da leitura
pouco difere das utilizadas nos séculos XIX ou XX, uma vez que mantém a concepção de que
aprender a ler, ler e ser leitor são processos dissociados e que por isso o encontro das crianças
com os livros deve ser incentivado após o processo de alfabetização, para que elas gostem de
ler e assim se tornem bons leitores. Nesse sentido, o discurso de Aguayo em defesa dos livros
e da biblioteca no período de alfabetização pode ser o atual para as escolas de hoje como o
foi para as do século passado: “A biblioteca para crianças é uma necessidade do ensino da
leitura.” (AGUAYO, 1952, p. 313). A biblioteca, diferente do laboratório de informática, não
conquistou seu espaço no processo de alfabetização das crianças sujeitos desta pesquisa.
As aulas no laboratório de informática geravam grande interesse das crianças, uma vez
que todas participavam com muito entusiasmo das propostas didáticas. Eram planejadas pela
professora com o auxílio do monitor de informática. As primeiras aulas foram direcionadas ao
ensino do funcionamento da máquina. As demais ocorreram a partir do uso do paint e de
softwares educativos com jogos para crianças em processo de alfabetização. Os jogos eram
referentes a situações de leitura, de escrita e de matemática. Em todas estas situações, as
crianças utilizavam apenas o mouse; não faziam uso do teclado. Sentavam em duplas e eram
auxiliadas no decorrer de toda a aula pela professora e pelo monitor. A metodologia da
professora era a mesma da utilizada em sala; o monitor deixava os computadores prontos
com os softwares selecionados, e a professora explicava o que eles tinham que fazer, porém,
as crianças, quando se sentavam diante da tela, começavam por meio do mouse a interagir
com a máquina. Os jogos eram programados para mudarem de tela quando a dupla acertasse,
e isso causava certo desconforto entre a turma e a professora, pois cada dupla tinha seu
próprio desempenho, mas a professora queria que todos caminhassem juntos. Assim, quando
162
a dupla conseguia mudar a tela, a orientação da professora era para esperar até que todos
tivessem mudado. Entretanto, as crianças não conseguiam obedecer a esta regra e
continuavam a clicar com o mouse, o que gerava uma série de advertências orais à turma. Até
o final do horário da aula professora e crianças interagiam mais a respeito da não obediência à
metodologia da proposta didática do que em relação a seu conteúdo.
Para as crianças que não conseguiam acertar o jogo, a professora apontava a resposta.
Assim como na sala de aula, não havia reflexão, diálogo, interlocução, entre os leitores
aprendizes, o escrito na tela e os professores. As crianças acertavam muitas vezes por um
processo de tentativas e erros; iam clicando em todos os lugares possíveis até a tela mudar. Os
jogos virtuais favoreciam a metodologia adotada, uma vez que se referiam a exercícios de
ligar a figura ao nome, a palavra à letra inicial, a completar letras que faltavam nas palavras,
“arrastando” com o mouse, enfim exercícios clássicos de manuais didáticos transpostos para a
tela do computador. As crianças não precisavam ler, apenas identificar, reconhecer,
discriminar visualmente ou simplesmente, de forma mecanizada, arriscar todas as alternativas
possíveis, como se constata no seguinte trecho do protocolo de observação:
[...] As crianças estão no laboratório de informática. A proposta na tela do
computador é para relacionar o nome de algumas frutas a seu desenho. A-1
está sentado com A-15, A-6 faltou e A-17 e A-18 estão sentados com alunos
considerados alfabetizados pela escola. Vou até o computador onde estão A-
15 e A-1 e pergunto: Como vocês estão fazendo para acertar esse jogo?” e
A-1 me diz: A gente vai clicando aqui, quando está certo, o computador
fala pra gente parabéns, você acertou e se tive errado ele diz que pena, você
errou, tente de novo”. Novamente pergunto aos alunos apontando na tela do
computador: “Mas, vocês sabem de qual palavra é esta figura?” E A-15 me
diz: “Claro, é esta (apontando na tela), mas a gente prefere ir clicando”...
(Protocolo 17 de observação - 10/03/2008).
A escola torna o computador mais um recurso pedagógico a serviço do ensino da
linguagem escrita como cnica. As crianças sequer o orientadas a fazer uso do teclado,
utilizam apenas o mouse, exercitam apenas suas habilidades manuais e o ler na tela, assim
como o ler no papel é tomado pela escola como objeto escolar distante da forma pela qual de
fato é objetivado nas relações sociais. Dessa forma, como defende Arena (2008, p. 117-118),
O computador, em si, não é o elemento que modificará a dinâmica do
sistema de ensino. Dependendo de seu uso, não será instrumento para leitura
e pesquisa, que amplia os horizontes de quem a ele tem acesso e se apropria
de suas funções, mas apenas um recurso pedagógico a serviço de um
processo de ensino que ignora os processos de evolução do homem, dos
instrumentos que usa e da sociedade.
163
As crianças sujeitos desta pesquisa não estão aprendendo a operar com o computador
como instrumento, apenas como uma lousa e um caderno mais atrativo por não precisar de
cópia, por possibilitar transgredir a orientação metodológica da professora e notadamente pela
experiência cultural de estar em contato com uma ferramenta tão prestigiada na sociedade do
século XXI. Afinal, nas palavras de A-6: “Fabiana, você viu como a gente já sabe mexer no
computador? Agora nós somos chiques!” (Protocolo 20 de observação- 07/04/2008).
Portanto, diante da metodologia adotada para o ensino da leitura no ensino
fundamental, o ato de ler é ensinado sem que as crianças operem sobre textos, sobre livros,
sobre hipertexto, embora a escola do século XXI tenha biblioteca, laboratório de informática e
afirme trabalhar sob uma nova perspectiva de alfabetização, o que aponta o quanto as práticas
escolares de ensino dessa atividade estão fundamentadas em velhos princípios com novas
roupas.
5.2 As propostas didáticas e as manifestações das crianças
A partir da metodologia adotada para o ensino do ler no ensino fundamental, as
manifestações das crianças em relação às propostas do ler em aula passaram a ser outras em
relação a seu percurso na educação infantil. A partir da análise dos dados e sob o olhar da
teoria de Vigotski (1996), acredito que o registro de tantas tarefas no caderno, aliado à perda
da espontaneidade, uma característica dessa idade, contribuíram para que as crianças
dialogassem e interagissem menos entre si, com a professora e principalmente com a
linguagem escrita. Elas não faziam tantas perguntas, questionamentos, comentários acerca do
que estavam vivenciando na escola; o silêncio passou a predominar em relação às propostas
de ensino, até mesmo nas direcionadas a promover aprendizagem da leitura.
Diante da situação de aprender a ler a partir do registro e recitação do alfabeto, e da
escrita e leitura de palavras com cada letra ou sílaba, as atitudes de A-1 e A-15 eram as de
copiar palavras escritas anteriormente, atentando para a palavra como sinal; não buscavam
mais o sentido do que estavam realizando, executavam a tarefa de modo mecanizado. o
liam ou recitavam letras e palavras. Enquanto alguns cumpriam essa orientação junto com a
professora, eles se mantinham alheios em subcontextos que criavam no curso da aula:
brincando com o material escolar, trocando adesivos, folheando o caderno etc. A-6 sequer
realizava estas tarefas por si só; esperava que cada palavra fosse escrita na lousa para copiar, e
no momento de oralizar letras, palavras e textos, não participava, porque sempre estava
registrando a tarefa anterior em seu caderno. Os alunos A-17 e A-18 quase não falavam
164
durante a aula; somente copiavam o tempo todo, mas, ainda assim, não conseguiam cumprir
todas as exigências escolares. Durante todas as sessões de observação, os registros nos
protocolos revelam que a professora não interagia com esses dois sujeitos da pesquisa; eles
não recebiam ajuda de nenhum mediador e quando alguma criança tentava ajudá-los era
advertida pela docente. Assim, os cinco sujeitos da pesquisa apresentavam condutas diferentes
nas situações de ensino da leitura: A-1 e A-15 encontravam saídas para cumprir a tarefa de
forma a não torná-la exaustiva, A-6 propositalmente esperava a resposta da tarefa na lousa e
A-17 e A-18, por não conseguirem acompanhar o ritmo da professora, copiavam. Em
comum, essas condutas das crianças são marcadas por uma atitude de indiferença diante das
propostas planejadas para ensiná-las a ler.
[...] Novamente as crianças são orientadas a registrar, depois do cabeçalho e
do desenho, seu nome e as letras do alfabeto. A professora diz às crianças:
“Agora vamos ler as letras do alfabeto.” Algumas crianças começam a
recitar as letras, a maioria não participa desse momento, porque estão
copiando o cabeçalho. Há crianças que copiam da lousa e recitam ao mesmo
tempo. A professora não fica incomodada pela pouca participação da turma e
prossegue a aula. Após a recitação, ela solicita, como de rotina, a escrita de
uma palavra com cada letra do alfabeto. A conduta dos sujeitos da pesquisa
no cumprimento desta tarefa é a mesma registrada nos protocolos anteriores,
A-1 e A-15 copiam as palavras do próprio caderno. A-6 espera que cada
aluno à lousa escrever para ela copiar, e A-17 e A-18 estão ainda
registrando o cabeçalho. A-1 e A-15 concluem a tarefa rapidamente. A-15
começa a folhear seu próprio caderno e a desenhar na última folha. A-1
brinca de “aviãozinho” com a régua.. Vou até a carteira de cada um e
pergunto: “Já acabou?” e A-1 me diz: “Já, isso é fácil demais, já estou
acostumado a fazer!”, e A-15 também diz: “Já acabei e primeiro que A-1, a
gente faz rápido, porque a gente copia as palavras do outro dia”. Eu
pergunto: “E pode copiar?”, e A-15 responde: “A professora não liga”.
Observo que A-6 está conversando com uma colega sentada a seu lado, vou
até ela e pergunto: “Já acabou? E ela me diz: “Não, estou batendo um
papinho, daqui a pouco copio tudo”. No retorno a meu local de observação
passo pelas carteiras de A-17 e A-18 e percebo que estão copiando o alfabeto
[...] (Protocolo 23 de observação -16/6/2008).
165
Figura 12 - Palavras escritas por A15 em 09/06/2008
Figura 13 - Palavras escritas por A-15 em 16/06/2008
29
29
Apenas a palavra “dedo”, difere da lista escrita em 09/06, uma vez que A-15, ao escrever “dado” na lousa, foi
orientado a apagar e escrever “dedo”, pois “dado” era sempre a palavra grafada pela maioria das crianças.
166
A cópia, a recitação, bem como a escrita de palavras com cada letra do alfabeto, eram
para os sujeitos da pesquisa apenas uma tarefa escolar a cumprir. Eles exercitavam apenas o
copiar, e a ausência do mediador diante destas situações fazia com que as crianças fossem
indiferentes às situações propostas. Afinal, a professora não verificava se A-6 estava
escrevendo ou apenas copiando da lousa, não advertia A-15 e A-1 por sempre grafarem as
mesmas palavras e sequer colaborava para que A-17 e A-18 participassem da aula, pois
percebia que eles ainda estavam no cabeçalho e não se manifestava; agia como se eles o
pertencessem à turma. Trago, neste ponto, outro trecho de um protocolo que evidencia a
ausência de interação e colaboração em relação a esses dois alunos:
[...] Hoje é dia de A-17 ser o ajudante do dia. A professora pergunta à turma:
“Quem é o ajudante hoje para me ajudar a entregar os cadernos? E uma
aluna responde: É o A-17. A professora diz: “Ah não, ele não, se ele for, vai
ficar ainda mais atrasado, vem você me ajudar”, referindo-se à aluna.
Percebo a tristeza na expressão de A-17, as crianças também percebem e A-
15 diz: “Professora, deixa ele ser, depois eu ajudo ele”, mas a professora
resiste: “Não, ninguém pode ajudar A-17, você vai copiar para ele, ele e A-
18 sempre ficam atrasados!” E, olhando para mim a professora diz:
“Fabiana, eles eram assim também no ano passado?”Eu respondo que não, e
a aula prossegue com o cabeçalho e o ritual do alfabeto. (Protocolo 21 de
observação -25/04/2008).
Nesse dia, A-17 registrou apenas o cabeçalho, e ainda assim, quase de forma ilegível.
Não houve, como nas demais sessões de observação, qualquer intervenção da professora,
como é possível verificar na análise do próprio caderno do aluno.
Figura 14 - Registro da aula do dia 25/04/2008- Caderno de A-17
167
As crianças eram impedidas de interagir e de colaborar com a aprendizagem umas das
outras; não podiam contar no cumprimento de suas tarefas escolares com a ajuda de um
parceiro mais experiente, algo de fundamental importância de acordo com os estudos de
Vigotski (1995). Assim, o processo de alfabetização ocorria de forma individual e solitária
para cada criança. A-17 e A-18 conversavam menos a cada sessão de observação; A-6, A-1 e
A-15 interagiam um pouco entre si, porém com as propostas de ensino e com a professora
eram cada vez mais indiferentes. Mesmo nas situações com textos, as crianças não buscavam
mais dialogar com a linguagem e transformar as palavras grafadas em enunciados, apenas
colavam o papel no caderno e esperavam para copiar as atividades” de interpretação” do
texto. Assim, no contexto do século XXI:
O processo de alfabetização como interação e interlocução (convivência e
diálogo) é totalmente desconsiderado. A alfabetização, na escola, contrasta
violentamente com as condições de leitura e escrita, movimentação e
saturação de estímulos sonoros e visuais fora da escola. A leitura e a escrita
produzidas pela/na escola pouco tem a ver com as experiências de vida e de
linguagem das crianças. (SMOLKA, 1988, p. 49).
As propostas de ler na escola ocorriam sem qualquer processo de interlocução e
diálogo. O texto distribuído em folha, ora em livro, ora copiado, era pronunciado por um
aluno ou pela professora e depois as crianças deveriam responder questões de interpretação. A
atitude dos cinco sujeitos era a mesma frente ao texto; nenhum dos cinco alunos lia e por
consequência também não respondiam as questões, uma vez que a professora anunciava todas
as respostas e as registrava na lousa. O trabalho a partir de textos reduzia-se novamente a uma
cópia e favorecia o desencontro das crianças com a palavra escrita como signo em enunciados
(BAKHTIN, 1995). As crianças não tinham tempo e condições para ler em aula:
[...] São 9h, a professora chama a última criança para escrever uma palavra
com Z. Percebo que ela copia o que está escrito no alfabeto ilustrado acima
da lousa: ZEBRA. A professora também percebe, mas não diz nada.
Enquanto a aluna escreve, a professora anuncia: “Agora vamos fazer uma
leitura de texto”. Ela escreve a palavra LEITURA na lousa e em seguida
distribui o texto em papel A-4 mimeografado. Um aluno lê o título da
história e diz: “A lebre e a tartaruga!”. A-15 ouve e diz: “Eu conheço essa
história!”, outro aluno diz: Eu também, e como é então?”. A-15 começa a
dizer, mas é interrompido pela professora que pede para que leiam o texto.
A-15 recebe o texto, imediatamente cola no caderno, mas não o lê. A-1 tem a
mesma atitude. A-6 começa a pintar o desenho que está no texto e também
não lê. A-17 e A-18 ainda copiam conteúdo da lousa e sequer pegam ou
olham para o papel entregue pela professora. Após a entrega do texto, a
professora diz à turma: “Agora eu vou lendo para vocês aprenderem a
168
história”. A professora faz a transmissão vocal do texto. As crianças ouvem.
Quando acaba, diz que o texto ensina alguma coisa, pois a tartaruga, mesmo
sendo devagar, ganhou a corrida. Sem explicar melhor ou ouvir as crianças,
a professora chama uma aluna para pronunciar o texto na frente da turma.
Enquanto isso, a maioria das crianças continua o que estava fazendo, não
prestando mais atenção na “leitura” da colega. A-6 pinta seu desenho. A-1
brinca com o lápis. A-15 arruma o estojo. A-17 e A-18 copiam da lousa. A
professora chama mais dois alunos para pronunciarem o texto. Quando eles
terminam, a professora elogia-os “Vocês estão lendo muito bem, parabéns!”.
E solicita à turma que pintem o desenho do texto. São 9h30 e o sinal para o
recreio bate... Na volta do recreio, a professora não espera as crianças
concluírem a pintura dos desenhos e escreve na lousa: “Trabalhando sobre o
texto”. Ela escreve duas perguntas e em voz alta para as crianças: “Qual o
título da história?”. Uma criança diz: “Que fácil! A lebre e a tartaruga!” A
professora diz Muito bem!”e escreve a resposta na lousa. Após, a outra
atividade: “Quem venceu a corrida?”, a mesma criança diz: “Ué, como a
senhora disse, foi a tartaruga”. A professora escreve também a resposta na
lousa. A turma toda apenas irá copiar perguntas e respostas. A-1, A-6 e A-15
continuam colorindo seus desenhos e não demonstram qualquer reação às
perguntas da professora. A-17 e A-18 continuam a copiar tarefas anteriores e
também permanecem alheios ao discurso da docente. (Protocolo 19 de
observação- 26/03/2008).
[...] E o que vocês fazem de atividades de leitura na sala?
Eu, nada, eu escrevo. A professora chama pra ler. Eu não, porque eu não sei
ler. (Trecho de Entrevista com A-18 - 02/07/2008).
Para a professora, saber ler é produzir uma boa pronúncia do texto; a leitura como
atividade visual e de construção de sentido não tem espaço na aula. As crianças sujeitos da
pesquisa percebem, ignoram o texto e não participam das situações planejadas; apenas
registram as perguntas e respostas sobre o texto, e, portanto, como diz A-18, o leem,
escrevem, ou melhor, copiam. Na situação descrita no protocolo de observação 18, o gênero
do discurso fábula não surge em contexto de comunicação discursiva; é reduzido a um objeto
didático com a finalidade de ser pronunciado e servir como pretexto a uma série de tarefas de
interpretação que sequer chegam a ocorrer, pois as crianças nada interpretam, apenas copiam.
Em lugar de atores, são espectadores da leitura do outro (FOUCAMBERT, 1998).
E, como espectadoras, a atitude das crianças revela a ausência de situações de leitura
em aula e principalmente a lacuna deixada pelo processo de escolarização inicial em relação à
formação de leitores, uma vez que elas copiam e até brincam, pintam, desenham em seus
subcontextos, mas não leem. Com base no protocolo de observação e no discurso de A-18,
constata-se que o paradigma da educação escolar do aprender a ler para ler contribui mais
para afastar as crianças da leitura do que para torná-las leitoras. A atitude dos sujeitos da
169
pesquisa no ensino fundamental indica, como afirma Rockwell (2001, p. 24), que as
maneiras de ler na aula nem sempre propiciam a inclusão da criança leitora no mundo da
escrita” e, portanto, “[...] conseguem acostumá-los a não ler, a não buscar o sentido do que
lêem.” Afinal, as crianças podem cumprir as propostas didáticas sem que para isso seja
necessário ler.
Nas situações com as letras, sílabas e palavras, as primeiras manifestações das crianças
indicam que elas tentaram resistir na execução de uma tarefa repetitiva, cansativa e fácil, mas
ao perceberem que teriam que executá-la todos os dias, desistiram de tentar encontrar sentido
para a proposta e passaram a cumpri-la de forma desinteressada, operando com a língua
escrita como objeto escolar ausente de significação. Nos primeiros meses de aula, elas ainda
manifestavam-se em relação a estas situações:
A-15: Professora, nós vamos fazer isso de novo? (21/02/2008)
A-1: Professora, eu sei essas letras com as vogais, posso pular esta
atividade? (20/03/2008)
A- 15: Eu também já sei o ma me mi mo mu, mas tem que fazer, não é
professora? (20/03/2008)
A-6: Credo, professora, isso aqui é muito babinha! Coisa de pré! (referindo-
se à situação de pintar palavras com E- 21/02/2008).
A-18: Professora, nós já aprendemos o alfabeto o ano passado. (21/02/2008).
Nas sessões de observação referentes aos meses de abril, maio e junho, as crianças
cumpriam estas propostas de trabalho com as letras, sílabas e palavras de forma automatizada,
sem qualquer referência a palavra escrita como signo. A-1 e A-15, como mencionado,
copiando palavras de seu próprio caderno, A-6 copiando da lousa e A-17 e A-18 ora
copiando, ora desistindo de copiar, uma vez que copiar e não copiar não fazia qualquer
diferença, apenas ganhavam de vez em quando uma anotação da professora no caderno. Para
tornar ainda mais claro como esse momento se tornou uma tarefa mecânica e desinteressada
para as crianças, trago um fragmento do caderno de A-18, referente à proposta de escrever e
ler as famílias silábicas:
170
Figura 15 - A tarefa automatizada a partir das sílabas- Caderno de A-17- 10/06/2008
Como a tarefa é mecanizada, A-17 escreve também a família silábica da vogal U, uma
vez que a escrita das letras ua, ue, ui e uo, não têm qualquer significado para ela, como também
não têm as sílabas formadas com as letras p, q, s, t, v e x. A professora não percebe a
construção elaborada pela criança que, além de afastá-la da palavra como signo, está indicando
a possibilidade de o aprendiz apropriar-se de uma concepção inadequada acerca do
funcionamento do sistema de escrita. Outra situação semelhante ocorreu com A-1 e A-15, na
aula do dia 20/03/2008, quando a professora solicitou que escrevessem e lessem palavras com o
dígrafo lh:
[...] A professora solicita que agora as crianças escrevam e leiam quatro
palavras com as letras P, C o dígrafo LH. A-1 procura em seu caderno
palavras com a letra P e escreve: PATO, PATA, PETECA, PARA. Quando
termina, chama A-15 e diz: acabei as palavras com P!”, A-15
responde: “Eu acabei primeiro, estou no C”. A-1 fica bravo porque A-
15 está mais adiantado e começa a procurar palavras com C. Ele grafa:
CASA, CAVALO, CANETA, COELHO e CALHA. Quando termina de
copiar as palavras com C, ele pergunta a A-15: É para começar com a letra
LH? E A-15 responde: Não sei, não estou achando palavras com lh no
começo, acho que não! Eu informo a A-1 que quase não há palavras que
comecem com LH, ele, porém ignora minha informação e procura palavras
que comecem com lh em seu caderno. Como não encontra, chama A-15 e
pergunta que palavra o colega escrevera, A-15 diz a palavra MOLHADO, e
A-1 diz: Mas, não começa com lh!” e A-15 responde: “Mas não achei no
começo! A-1 volta a procurar palavras em seu caderno, mas quando a
professora começa a copiar a resposta na lousa, ele copia do quadro. o
qualquer explicação sobre o dígrafo lh [...] (Protocolo 18 de observação-
20/03/2008).
Mais uma vez, as crianças entram em conflito em relação ao funcionamento de nosso
sistema de escrita. Como a tarefa é repetitiva e mecânica, as crianças, como todos os dias,
acreditam que as palavras a serem escritas e lidas devam começar com os grafemas P, C e LH.
Mesmo diante da minha informação, A-1 resiste e continua a procurar palavras que iniciem com
171
LH, o que indica como o professor é, para as crianças, referência em relação ao objeto de
conhecimento, uma vez que para A-1, se a professora pediu palavras com LH, é porque elas
devem existir tal como as outras. A-15 também indica não ter certeza se está cumprindo a tarefa
corretamente, entretanto, eles não perguntam nada à professora. Executam sua tarefa sem o
papel do mediador principal, o professor, que coloca as respostas na lousa sem tomar
conhecimento da dúvida das crianças e, portanto, não lhes explica a razão pela qual quase não
na nossa língua palavras iniciadas com esse sinal gráfico. É o processo de alfabetização
ocorrendo de forma solitária e silenciosa (SMOLKA, 1988).
Nas poucas situações em que as crianças se manifestaram, a atitude da professora é de
não ouvir ou não valorizar o discurso dos aprendizes, como é possível perceber na transcrição a
seguir:
[...] Hoje as crianças devem escrever e ler o nome de um animal com cada
letra do alfabeto. A professora começa a chamar os alunos para escrever as
palavras na lousa. Quando chega à letra D, o aluno chamado não sabe o que
escrever. A professora pergunta à turma: Quem sabe o nome de um animal
com D? A-1 e mais duas crianças dizem: DINOSSAURO. A professora
adverte: “Dinossauro, não! Não existe! Vamos escrever Dromedário”. A-
15 pergunta: O que é isso?”. A professora não responde e orienta a escrita
da palavra desconhecida na lousa. A-1 chama A-15 e diz: No fantástico
passa dinossauros, você viu?”, A-15 diz que sim. A professora pede
silêncio e eles voltam a copiar a palavra DROMEDÁRIO registrada na lousa
[...] (Protocolo 19 de observação- 26/03/2008).
Nesse dia, a mesma situação ocorreu com as letras I e Q, pois as crianças não
conheciam os animais sugeridos pela professora: Iguana e Quati, e continuaram
desconhecendo-os, uma vez que não houve diálogo acerca de que animais eram esses. Nas
letras N e X, a professora, após tentar encontrar nomes de animais, não conseguiu e pediu para
as crianças pularem esses grafemas, revelando a ausência de sentido da situação de ensino para
todos e, portanto, sua ineficácia para a apropriação da linguagem escrita como sistema de
significação; afinal, dinossauro tinha mais sentido para as crianças do que dromedário.
172
Figura 16 - Nomes de animais com cada letra do alfabeto/ Caderno de A-6- 26/03/2008
As letras, as sílabas e as palavras grafadas pelas crianças no caderno não eram sequer
lidas ou decodificadas pelos sujeitos da pesquisa. Eles sempre transgrediam essa orientação
executando outras ões
30
, enquanto alguns alunos realizavam, junto com a professora, a
decodificação dos escritos na lousa. Na figura 15, nota-se que A-6 não grafou ou copiou
corretamente as palavras borboleta, dromedário e macaco. Entretanto, como o escrito não se
configura como enunciação, não possui valor de comunicação, aluno e professora não
percebem a ausência de grafemas nas palavras e a troca do O pelo Q na grafia da palavra
MACACO. A língua escrita é reduzida a sua sinalidade.
Mesmo nas propostas didáticas a partir de textos, os sujeitos da pesquisa não
vivenciavam experiências com o ato de ler. Os textos, assim como as letras, as sílabas, as
palavras isoladas, não se constituíam como enunciação. Embora sejam escritos sociais que
circulem de fato na sociedade, não surgiam em aula como produto de uma atividade
discursiva pela qual alguém diz algo a alguém (GERALDI, 1997). Eram tomados como objeto
didático, cuja finalidade era ensinar a ler e ensinar a interpretar o que foi lido, compreendendo
o ler como oralização do escrito e o interpretar como saber encontrar respostas às perguntas
da professora. Como já foi apontado, foram realizadas 51 propostas com textos no decorrer do
primeiro semestre da série, sendo seis a partir de escritos dos livros didáticos e quarenta e
cinco selecionados pela professora e que ora eram copiados no caderno, ora mimeografados
30
Como já mencionado, A-6, A-17 e A-18 estavam sempre copiando conteúdo da lousa e A-1 e A-15 ou
brincavam, desenhavam, conversavam, mas não liam o que tinham grafado.
173
em papel A-4. O gfico 5 apresenta os gêneros do discurso selecionados para o
desenvolvimento das situações de ensino na aula.
9
1 1
4
2
4
2
10
0
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
Nº de propostas
Gêneros do discurso
neros do discurso utilizados nas propostas de leitura
Expositivo (didático)
Trava-Língua
História em Quadrinhos
Receita
Parlenda
Música
Fábulas
Contos
Gráfico 5 - Gêneros do discurso utilizados nas propostas de leitura/2008
Ao comparar os dados do gráfico com os conteúdos referentes ao ensino da leitura
expostos na proposta pedagógica da escola, constata-se que não foram contemplados os textos
denominados propagandísticos, as listas e os jornalísticos, talvez por serem esses gêneros do
discurso menos presentes nos livros didáticos e um pouco mais difíceis de serem didatizados.
Como será possível perceber, a partir de todos os textos selecionados, tarefas de interpretação
eram propostas às crianças, semelhantes às dos manuais. Eram questões que se referiam à
leitura como identificação, pressupondo que o significado estivesse contido nos sinais
impressos da escrita, alheio à expectativa, intenção e conhecimento prévio do leitor (SMITH,
1989).
No trabalho com a história em quadrinhos, por exemplo, embora as crianças tenham
manifestado interesse pelo texto entregue pela professora, elas o tiveram tempo para ler e
cumpriram o momento de interpretação sem ter produzido leitura, apenas copiaram as respostas
colocadas na lousa. Como é possível verificar no caderno de A-1 e A-15, as respostas para as
perguntas acerca do conteúdo do texto são as mesmas, indicando a ausência do ler como
atividade das próprias crianças.
174
Figura 17 - Proposta didática a partir de Historia em Quadrinhos/ Caderno de A-15
175
Figura 18 - Proposta didática a partir de História em Quadrinhos/ Caderno de A-1
Esta situação acontece em todas as propostas de interpretação dos textos. São
perguntas e respostas da professora, não dos leitores aprendizes, uma vez que estes não
chegam a levantar suas próprias questões, não realizam o ato de ler como atribuição de
sentido a partir de seu conhecimento prévio e, portanto, não encontram suas respostas. Assim,
como ocorre com as letras, sílabas e palavras, o contexto da proposta torna o texto indiferente
176
para as crianças, até porque as perguntas formuladas pela professora podem ser respondidas
sem que seja necessário ler. Como adverte Smith (1989, p. 194), este dado revela que a
escola espera que as crianças aprendam a ler com materiais e exercícios especificamente
planejados para desencorajar ou evitar a utilização da informação não-verbal”, dificultando e
não colaborando para o processo de formação do leitor, como é possível constatar nas
manifestações, interesses e impressões dos sujeitos da pesquisa no desenvolvimento das
propostas:
[...] A professora escreve a palavra “leitura” na lousa e diz que entregará o
texto para que todos leiam e colem no caderno. A-17 e A-18 ainda estão
copiando conteúdo da lousa. Eles recebem o texto, mas o deixam de lado e
voltam a copiar. O texto de hoje é uma tira da turma da nica. A-1 recebe
o texto e diz: “Olha, é o Cascão!”, A-15 também recebe e diz a A-1 “Eu
assisti um monte de DVD da turma da Mônica!”. A professora pede silêncio
e diz para lerem e colarem logo o texto no caderno para começar as
atividades. A-1 e A-15 param de conversar e também deixam de ler o texto.
Os dois começam a pintar os quadrinhos. A-6 recebe o texto e começa a
colorir as gravuras. Não dialogo sobre o escrito. Enquanto uns copiam da
lousa, outros pintam a ilustração do texto. Quando a professora termina a
entrega dos textos, pede que um aluno leia em voz alta a tira. O aluno lê, mas
ninguém olha para ele. As crianças são indiferentes e continuam executando
o que estão fazendo. Na sequência, a professora escreve no quadro:
“ATIVIDADES” e começa a colocar questões acerca do texto para as
crianças responderem. A primeira questão refere-se a quem são os
personagens. A professora escreve e diz em voz alta o que escreveu. Um
aluno diz: “Essa é fácil, Mônica e Cascão”; a professora diz: “Muito bem”, e
mesmo que a maioria da classe esteja ainda colorindo o texto, ela anota a
resposta na lousa e coloca a segunda questão. Noto que A-1, A-15 e A-6,
quando começam a copiar as atividades do texto, copiam a pergunta e
também a resposta... Quando A-15 está respondendo à terceira pergunta, ele
diz à professora: “Professora, está faltando palavras na lousa, porque no
segundo quadrinho tem mais palavra que aí”. A professora ignora a
observação de A-15 e diz que do jeito que está na lousa, está certo. A-15,
entretanto, não copia a resposta da lousa, copia as palavras escritas no
segundo quadrinho omitindo apenas a palavra “esse”... A aula continua de
forma silenciosa, e os sujeitos da pesquisa apenas copiam o conteúdo do
quadro. (Protocolo 22 de observação- 19/05/2008).
Nota-se pela manifestação de A-1 e A-15 que as crianças chegam a se interessar pela
situação de leitura do texto proposto pela professora, começam a dialogar com o escrito,
porém são interrompidas e desencorajadas a continuar tecendo uma interlocução com a
linguagem. Abandonam o ler, preferindo colorir o desenho a produzir leitura no silêncio. A-6,
como ouviu a advertência dada a A-1 e A-15, sequer olha para o texto como enunciado,
logo o ignora como tal, e o trata como objeto para ser colorido e colado no caderno. A-17 e A-
177
18 não têm nesse dia o texto colado no caderno e nem mesmo o registro dessa proposta. Após
a escrita de palavras com o alfabeto, em seus cadernos uma situação de matemática, sendo
possível inferir que não houve tempo para que esses alunos participassem desta situação
didática. As manifestações das crianças e da professora em relação às “atividades” sobre o
texto revelam que o que estava em jogo não era o ler como processo de atribuição de sentido,
como prática indissociável do projeto do leitor, pois se assim fosse, perguntas e respostas
seriam das próprias crianças, que, ao invés de terem seus discursos ignorados, participariam
da proposta de ensino dialogando com a linguagem, tendo o professor como seu interlocutor,
mediador entre o texto e a aprendizagem. Afinal, como argumenta Geraldi (1997, p. 179), as
perguntas nas situações de leitura,
[...] não são perguntas didáticas, mas perguntas efetivas que fazem do
diálogo da sala de aula uma troca e a construção do texto oral co-enunciado.
As respostas dos alunos não são candidatas a respostas que o professor
cotejaria com uma resposta previamente formulada. A participação do
professor neste diálogo já não é de aferição, mas de interlocução.
Seria esta a perspectiva do ensino da leitura a partir dos textos, como instrumentos da
linguagem e de seu ensino, presente na escola em situações de comunicação efetiva. Sua
entrada na aula, longe de configurar-se como pretexto a velhas práticas cristalizadas - como a
de propor perguntas direcionadas à mera ação de extrair informações do escrito - estaria
atrelada à ão de responder e provocar necessidades dos próprios leitores aprendizes. Ao
contrariar este pressuposto, os textos, como as crianças estão indicando, tornam-se assim
como as letras, as sílabas, as palavras isoladas, objeto de um fazer mecânico, indiferente e,
portanto, passível de ser por elas ignorado, não lido.
Em relação aos livros didáticos, as situações de leitura eram semelhantes, porém as
crianças transgrediam as regras metodológicas da professora e liam páginas não autorizadas,
de acordo com seus interesses. Como os livros eram consumíveis, as crianças não precisavam
copiar texto e perguntas da lousa; as tarefas eram registradas no próprio material, o que
gerava um tempo maior para que pudessem lidar com a situação de leitura. Assim, enquanto a
professora fazia a transmissão vocal do texto selecionado para a aula, as crianças sujeitos da
pesquisa olhavam, folheavam e liam outras páginas. As crianças eram indiferentes à proposta
didática selecionada pela professora, mas não aos livros didáticos. Esses geravam interesse
sempre que eram utilizados em aula, como é possível verificar nos discursos dos leitores
aprendizes:
178
[...] P: E com a leitura? O que tem de diferente do ano passado?
A-17: Tem livros, e livros grandes!
P: Livros de histórias?
A-17: Não, livro de atividade, muito legal.
A- 18: É, a gente tem um monte de livros grandes, tem um monte de coisa
pra ler.
A-15: Só que a gente não pode levar pra casa, fica aqui.
P: E, vocês queriam levar para casa?
A-18: Eu queria, é legal ver eles.
A-15: Eu queria, aqui não dá tempo de ler tudo, a gente tem livro de
matemática, de história, de ciências, dois de português.
P: Vocês leem tudo isso na 1ª série?
A-15: Não, um pouco, a professora não muito o livro pra gente. E a
gente mais escreve do que lê.
A-1: É mesmo, a gente escreve muito, Fabiana.
(1º encontro do grupo focal- Março/2008).
A-6: Eu gosto mais de ler os livros de português e matemática, as atividades
não, eu não leio, espero a resposta da lousa. (3º encontro do grupo focal-
Maio/2008)
A:1: Eu leio só os livros de português e matemática.
P: Só?
A:1: Só.
P: E os textos?
A-1: Aqueles de papel? Não. É só pra fazer atividades.
(Entrevista com A-1 – 02/07/2008).
O discurso das crianças é convergente com os dados gerados nas sessões de
observação, pois os livros parecem ser o único material lido e não ignorado pelos sujeitos da
pesquisa. E, mesmo que sejam de interesse das crianças, são pouco utilizados na aula. Apenas
seis das cinquenta e cinco situações de leitura programadas nos manuais foram desenvolvidas
a partir do livro de alfabetização e do livro de língua portuguesa
31
. Para as crianças, os textos
entregues pela professora ou copiados no caderno não são propostas de leitura. Os discursos
de A1 e A-6 indicam que na primeira série do ensino fundamental os aprendizes estão de
fato acostumando-se a não ler na escola, e talvez pela ausência de práticas de leitura e de
livros literários, os didáticos são para as crianças objeto de valor, único suporte de encontro
com a leitura na escola, pois podem copiar menos e percorrer com os olhos todas as páginas
do material e não apenas a solicitada pela professora:
31
Os livros didáticos adotados pela Unidade Escolar são:
GARCIA, E. S. J. U. Minhas descobertas: alfabetização. São Paulo: Nova Geração, 2001.
Projeto Pitang: Português. São Paulo: Moderna, 2005. (Obra coletiva).
179
São 8h10. As crianças retornam da escovação. A professora começa a
entregar o livro de ngua portuguesa. As crianças ficam animadas ao
perceberem que a próxima atividade será com o livro didático. Um aluno
pergunta: “Professora, vamos fazer atividade no livro?”. A professora diz
que sim e alguns alunos dizem: “Oba!”. A-1 recebe o livro, abre numa
determinada página, chama o colega da frente e começa a oralizar o escrito
para ele. A-15 recebe o material, abre numa gina onde um castelo
desenhado e começa a ler o texto com os olhos. A-17 e A-18, ao receberem o
livro, deixam de copiar o conteúdo da lousa e começam a folhear o material.
A-6 abre o livro, para na página 38 e fixa os olhos no texto “Rumpelstiltskin,
que está ilustrado com figuras de princesa, rei e rainha. A-1 chama A15 e
diz: “Olha aqui, A-15!”“. A-15 diz: “O quê? Eu já estou lendo uma história.”
A-1 responde: “Olha que engraçado: Se o papai papasse papa...”. A
professora interrompe e pede que todos abram o livro na página 13. Apenas
A-17 atende à orientação da professora e diz a ela: “Eu achei a página! E
agora?”. A professora não diz nada ao aluno. Ele vira a página e observa a
página 14. A-17 está com o livro aberto na gina 70 com os olhos fixos
nela. A-15 continua lendo a mesma página. A-1 oraliza o trava-língua. E A-6
também continua lendo o conto. A professora a atividade da página 13 e
pergunta às crianças como é a resposta. Ninguém responde. A professora
pergunta novamente e não respostas das crianças. Ela altera a voz, e os
sujeitos da pesquisa se assustam. Interrompem o que estavam fazendo e
olham para a professora. Ela solicita que todos abram o livro na página 13.
Agora, assustados, eles abrem. Um aluno diz: “A gente não sabe fazer,
porque não sabemos o texto”. A professora pede que todos voltem à página 8
para fazer a leitura do poema “A Casa” de Vinicius de Moraes”. Um aluno
da turma diz: “Eu sei essa música e começa a cantá-la”. A turma toda
acompanha. A professora adverte todos dizendo que não era para eles
cantarem, era para ler o texto. As crianças tentam ler, mas não conseguem,
acabam cantando novamente. A-1, A-15, A-6, A-17 e A-18 cantam a
música. A professora desiste de solicitar a leitura e acaba deixando a turma
cantar. Quando as crianças terminam de cantar, a professora diz “Agora
vamos ler. Eu falo e vocês repetem para aprender”. A professora oraliza cada
verso e as crianças repetem sem olhar para o livro. Quando esta situação
termina, ela pede que as crianças abram na página 13. Ela novamente lê a
pergunta da atividade e solicita a resposta das crianças. silêncio de novo.
A professora pede que A-15 volte ao texto e diga a resposta. Ele volta à
página 8 e conta quantas vezes aparece a palavra casa e diz à professora:
Quatro vezes. A professora anota a resposta na lousa e lê em voz alta a
segunda atividade. Os demais alunos copiam a resposta da lousa no livro.
Enquanto a professora lê e responde à segunda pergunta, os sujeitos da
pesquisa deixam de acompanhar a proposta. A-15 começa a responder a
todas as perguntas da página 13 e segue para a página 14. A-6 volta ao texto
que estava lendo. A-1 folheia o livro, assim como A-17 e A-18. Quando a
professora chega perto deles, rapidamente voltam à página 13. A aula
prossegue dessa forma, as crianças copiam as repostas colocadas na lousa e
tentam ler outras páginas ao mesmo tempo. A-15 é o único sujeito da
pesquisa que tentou elaborar suas próprias respostas, porém o teve
sucesso. Na atividade 4, as crianças deveriam escrever três coisas que toda
casa deveria ter. A-15 respondeu: televisão, geladeira e fogão. Quando a
professora chegou a essa pergunta, embora estivesse lendo outra página,
lembrou o que tinha escrito e disse em voz alta. A professora o repreendeu,
dizendo para apagar e fazer de novo. Um aluno respondeu cozinha. A
professora disse que cozinha estava certo e solicitou que todos escrevessem
cozinha, porta e banheiro. A-15 voltou à página 13, apagou o que tinha
180
escrito e copiou a resposta da lousa. Quando terminou de copiar, disse
baixinho a um colega: “Como não podia ser televisão, eu tenho três
televisão, uma na sala, uma no quarto.” O colega pergunta: “E a outra?”. A
professora chama atenção e pede silêncio. A-15 volta ao livro, avança para a
página 107 e começa a ler um texto. Ele ignorou a “correção” da atividade 5,
6 e 7 e deixou suas próprias respostas grafadas. A atividade 6 foi realizada
por ele de forma incorreta, porém nem A-15 e nem a professora perceberam
o erro [...] (Protocolo 26 de Observação - 25/06/2008).
Figura 19 - Proposta didática a partir do livro de Língua Portuguesa/ Material de A-15
A partir deste trecho do protocolo de observação, fica claro que as crianças leem ou
tentam ler o o texto selecionado pela professora, mas outros escritos contidos no livro. Não
leem para responder às perguntas, porque sabem que essas são respondidas pela professora.
Leem outras páginas de acordo com seus próprios interesses; assim, conseguem transgredir
regras: quando a professora se aproxima, fingem que estão acompanhando a proposta, quando
na verdade não estão. A situação planejada pela professora não faz qualquer sentido para as
crianças, como é possível verificar na manifestação de A-15 no decorrer da proposta, e por
isso é ignorada pelas crianças, sendo executada não como objeto de conhecimento, apenas
181
como exigência escolar. Uma vez mais, a conduta da professora em relação ao ato de ler
indica a preocupação com o saber pronunciar, pois acredita que as crianças estão lendo o texto
por repetir o que ela recita, algo que, como se pode perceber na manifestação de A-1, pode
levar as crianças a uma concepção do ler como oralização do escrito. Como na antiguidade, as
crianças podem aprender que para ler é necessário ouvir a própria voz e que ser leitor é saber
produzir uma correta pronúncia do escrito (SVENBRO, 1998).
Nesse sentido, a metodologia e as propostas didáticas para o ensino do ler no início do
ensino fundamental provocaram novas elaborações acerca do aprender a ler e do ler para os
sujeitos da pesquisa, como será possível constatar a partir dos dados apresentados nas
próximas categorias.
5.3 O mediador: aprendizagem da leitura
Os dados gerados nos encontros com o grupo focal e nas entrevistas apontam que para
as crianças a professora continua não exercendo o papel de principal mediador no ensino da
leitura. Desde o mês de março até o final do semestre, A-1, A-15 e A-6 afirmaram já saber ler,
e A-17 e A-18 diziam estar quase aprendendo; entretanto, seus discursos mudam em relação
ao que consiste o saber ler. Começam a relacionar o aprender a ler como pronúncia correta
dos símbolos gráficos, aproximando suas concepções acerca dessa atividade à da professora:
ler como sendo a oralização do escrito. O quadro a seguir apresenta os discursos em relação a
este dado produzidos nos cinco encontros com o grupo:
Sujeitos da
pesquisa
Discursos dos sujeitos da pesquisa
A-15 Eu já sei ler, aprendi no ano passado.
Aprendi em casa com a minha mãe.
A professora não me chama para ler, só que eu já sei, eu não gaguejo mais como A-1.
Eu não estou aprendendo a ler, já sei.
Fabiana, deixa eu ler, eu já sei! Leio melhor que eles, quer ver?
A-1 Eu também já sei. Aprendi nas férias. Na minha casa.
Eu não consigo ler com o pensamento, eu leio falando só.
Eu queria que a professora me chamasse, porque eu já sei ler.
Deixa eu ler hoje?
Olha, Fabiana, ele nem está lendo, não está falando!
A-6 Eu sei ler, que eu tropeço um pouquinho, mas eu sei, minha avó e minha mãe me
ensinam.
Deixa eu ler, você vai ver como estou melhor.
Não, não lemos nada. A gente escreveu. A professora não chama nós.
A-18
Minha mãe agora está me ensinando juntando as sílabas, a professora mandou.
Eu já sei algumas palavras, estou quase lendo, quer ver?
182
Não consigo aprender a ler aqui na escola, porque fico atrasada todo dia.
A-17
Meu irmão está me ensinando, ele disse que eu estou quase aprendendo.
Aqui na escola eu não leio, eu não sei.
Eu quero aprender, porque quando a professora me chamar, eu já vou saber ler.
Quadro 15 - As concepções das crianças em relação ao aprender a ler
Apesar de as crianças não atribuírem à professora a tarefa de ensiná-las a ler, nota-se
que a forma de trabalho desta atividade na aula faz com que as crianças passem a conceber a
aprendizagem do ler como prática atrelada à vocalização do escrito. Palavras e expressões
como “gaguejo”, leio falando”, tropeço” estão indicando que a leitura como processo de
atribuição de sentido está se distanciando dos leitores aprendizes. A-17 queria antes aprender
a ler para ler histórias e a bíblia, sozinho, agora indica que a finalidade desta atividade é poder
ler sempre que a professora chamar, ou seja, poder realizar uma correta pronúncia do texto.
A-18 estava aprendendo a ler por meio dos livros infantis, agora sua mãe lhe ensina a partir
do juntar sílabas. A-15, A-6 e A-1, ao pedirem para ler, indicam que ler não é mais uma
atividade feita para os olhos, mas para a boca e os ouvidos. Se na educação infantil
procuravam o sentido do escrito, nos encontros com o grupo focal, a primeira atitude das
crianças, com exceção de A-17, era pedir que eu as deixasse ler, ou seja, oralizar o escrito em
voz alta. Acredito que por nunca serem chamadas pela professora para realizar esta tarefa,
queriam no grupo ter a oportunidade de mostrar que também sabiam ler. Transcrevo a
seguir trechos do primeiro e do último encontro do grupo focal com o objetivo de apresentar a
maneira como as crianças lidavam com o ler nessa etapa da escolarização:
[...] Entrego o texto para as crianças e pergunto: Que texto é esse?
A-15: É de mercado.
A-1: É mesmo, é de mercado, deixa eu ler?
P: Mas vocês já não estão lendo?
A-1: Não, a gente olhando, deixa eu ler, agora eu sei, treino em casa
com minha mãe.
P: Tudo bem, pode ler.
A-15: Não, Fabiana, deixa eu, eu leio melhor que ele. Aprendi a ler faz
tempo.
P: Como assim?
A-15: Ele gagueja, eu não, aprendi primeiro.
A-17: Eu não quero ler, eu não sei ainda.
A-18: Eu quero, depois deixa eu, minha mãe disse que eu estou quase boa...
(1º encontro do grupo focal - Março de 2008)
[...] P: Vocês já tinham lido um texto como esse?
A-6: Aqui na escola?
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P: Sim, na escola ou em casa...
A-6: Aqui na escola só na hora do recreio, na sala a gente não lê.
A-15: A série colocou uns gibis pra gente, que o V. rasgou e agora
nossa turma não pode ler mais.
A-6: É mesmo, agora a gente não lê nada.
A-1: Posso ler meu gibi?
P: Mas você já leu, até me contou a história.
A-1: Não, ler como a professora faz na classe.
P: E como ela ensina a ler na classe mesmo?
A-1: Ela manda alguém ir lá na frente ler, você não lembra?
P: E vocês aprendem a ler assim?
A-17: Eu não.
A-18: Nem eu.
A-15: Eu, A-1 e A-6 já sabemos.
A-6: É, a gente já sabe, só precisa treinar mais em casa.
P: Treinar mais o quê?
A-6: Treinar a ler em casa pra professora também chamar nós.
P: Mas, por que em casa?
A-15: Aqui não dá tempo, tem muita atividade...
(5° encontro com o grupo focal - Julho de2008).
A partir desses dois pequenos trechos, é possível inferir que o sentido do aprender a ler
para as crianças é modificado a partir de sua entrada no ensino fundamental, se antes não
havia uma separação entre ler e aprender a ler, agora parece que há, pois para que possam ler
na sala de aula é preciso antes treinar mais a oralização do escrito, assim deixam de
reconhecer a leitura como uma atividade cuja base corresponde à compreensão e passam a
reconhecê-la como ato de vocalização do escrito, algo evidente na atitude de A-1 em relação
ao trabalho com o gibi. Entretanto, o papel do professor, até mesmo no ensino dessa atividade
como técnica de transformação das letras em sons, não é o de principal mediador, pois os
discursos das crianças apontam que sua aprendizagem, seu treino, acontece em casa, com os
familiares. Porém, agora a escola dita como aprender a ler, juntando as sílabas e treinando a
correta pronúncia do escrito. Afinal para as crianças, o modo de ler da professora é que é o
legitimo. Ler com os olhos ou ser capaz de contar a história lida não são mais condutas do
leitor; é preciso pronunciar, ouvir a própria voz, como indicam as crianças com a insistente
pergunta: “Deixa eu ler?”.
Ao final da pesquisa, percebo sob o olhar dos leitores aprendizes uma ausência de
mediadores no ensino da leitura na instituição escolar, pois até mesmo o ler como processo de
oralização não é, do ponto de vista das crianças, concretizado na escola. Aprenderam a ler ou
estão aprendendo com os familiares. Na escola faltam tempo, materiais para ler e processo de
interação com um parceiro mais experiente, algo que de forma contraditória as crianças
demonstram encontrar em casa.
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Os discursos das crianças em relação ao aprender a ler no ensino fundamental apontam
que a escola, ao legitimar como bons leitores os bons decodificadores, faz com que os
interesses sejam modificados. Os sujeitos da pesquisa não pretendem mais aprimorar-se em
relação ao ato de ler para objetivá-lo como prática cultural, mas para fazer uso desta atividade
como objeto escolar, para agradar a professora e ser reconhecido no contexto escolar como
bom leitor: aquele que produz adequada oralização, boa pronúncia e boa entonação do escrito.
A perspectiva do aprender a ler para ler provoca o afastamento das crianças da essência do ato
de ler: a busca do sentido.
5. 4 Conceito de leitura: as relações com o ler como prática cultural
Se, ao término do ano de 2007, as crianças apresentavam uma concepção do ler como
prática cultural, ao final do primeiro semestre de 2008 suas elaborações foram modificadas. A
leitura na escola passou a ser vista como prática pertencente ao mundo oral. Assim, se antes
as crianças não diferenciavam o ler na escola do ler para além de seus muros, nessa etapa da
escolaridade essa distinção passou a existir. De acordo com seus discursos, ler na escola
passou a ser visto como saber oralizar o escrito por meio de uma pronúncia correta, e ler em
casa ou na rua como atividade relacionada ao sentido do escrito. Destaco alguns discursos dos
sujeitos da pesquisa produzidos nos encontros com o grupo focal acerca deste dado:
A-6: As coisas que a gente lê aqui na escola são diferentes.
P: Por quê? Ler na escola não é igual ler fora da escola?
A-15: É diferente. Aqui a gente lê coisa de folha de papel e tem que saber ler
direito, lá fora a gente lê coisa do mercado, da cidade.
A-1: É mesmo. É diferente.
P: Mas, como assim, ler direito?
A-15: Assim, lê certo, sem tropeçar.
P: Ler em voz alta?
A-1: É.
A-6: Eu sei ler mais na minha casa do que na escola.
P: Como assim?
A-6: Assim, eu leio livrinhos, revistas e aqui eu não leio porque a professora
não me chama.
P: Mas, você lê os livrinhos e as revistas em voz alta?
A-6: Não, eu não preciso, ler na minha casa é diferente da escola...Sabe o
que minha avó disse? que é melhor eu entender as palavras do que ler sem
tropeçar e não entender nada.
A-15: Mas, na escola tem que ler direito sim, não é, Fabiana?
P: Mas, A-15, e você como lê na sua casa?
A-15: Eu leio só com o pensamento.
A-1: Eu não consigo ler com o pensamento, eu leio falando só.
P: Como assim, com o pensamento?
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A-15: Assim, olho na placa e pronto, leio, já sei o que está escrito.
A-17: Fabiana, eu também já leio fora da escola algumas coisas.
A-18: Eu também, mas aqui eu não sei ler nada.
(2° encontro com o grupo focal – Abril/2008)
A-6: Aqui na escola é uma coisa, lá é outra!
P: Como assim?
A-6: Aqui lê os textos, lá na rua é coisas pra gente ler, pra gente saber.
(3° encontro com o grupo focal - Maio/2008).
A-1: Você lê muito rápido!
A-15: Eu?
A-1: É.
A-1: Você não fala?
A-15: Não, eu estou lendo que nem em casa, com o pensamento é mais
rápido!
A-1: É.
A-15: Tenta pra você ver.
A-1: Não, mas na escola a gente lê quando fala só.
(4º encontro com o grupo focal - Junho/2008).
A escola, ao valorizar as estratégias de oralização e decodificação no ensino da leitura,
acaba por causar um conflito entre as crianças sobre o que seja de fato ler. Fora da escola o
mundo da leitura é gráfico, assim podem ler com o “pensamento”, com os olhos, prioriza-se o
“entender”, como revelam os discursos de A 6 e A 15. Na escola não precisam ler para
realizar as propostas, apenas quem é capaz de realizar uma boa decodificação e oralização
do escrito, portanto associam esta atividade à mera transformação de letras em sons. As
crianças do século XXI aprendem a ler de forma semelhante ao homem da antiguidade, porém
precisam lidar com as formas de ler no contexto de uma sociedade marcada pela informação
gráfica. Assim, como afirma Arena (2004, p.7571):
Encontrar um novo modo de ensinar e de aprender, de acordo com as
alterações culturais e comportamentais do homem do século XXI é o
desafio dos sistemas escolares. Para esse enfrentamento, muitos estudiosos
têm assessorado ministérios e secretarias, mas ainda não com a radicalidade
necessária para transformar o homem oral em homem gráfico.
A proposta construtivista reduzida apenas à classificação das crianças em níveis e à
presença de textos na sala de aula o provocou ainda esta transformação anunciada pelo
Autor. A formação do leitor no início da escolaridade continua a ser atrelada à mera
capacidade de decodificar, oralizar o escrito, não possibilitando às crianças a apropriação
186
dessa atividade como de fato é objetivada na sociedade. As elaborações dos sujeitos da
pesquisa acerca do conceito de ler no primeiro ano do ensino fundamental apontam que o
ensino desta atividade como prática cultural, como um processo psíquico de ordem superior, é
ainda um desafio para escola neste início de século.
Ao finalizar este trabalho de pesquisa, acredito que a trajetória escolar dessas crianças
em relação à apropriação da leitura possa contribuir para um repensar de políticas e práticas
educacionais mais eficazes e favoráveis à promoção da leitura. Afinal, os leitores aprendizes
indicaram que o fato de a escola continuar a ensinar a ler a partir da decodificação e
oralização de letras, sílabas ou mesmo textos ausentes de significação pouco ou nada
contribui para seu aprendizado, apenas provoca uma confusão acerca do que seja de fato ler,
pois na escola ler é oralizar o escrito, mas fora dela ler é exercer uma atividade com os olhos e
com o cérebro, ou melhor, com o pensamento, nas palavras de A-15.
Portanto, ao comparar os discursos, atitudes e manifestações das crianças no curso da
educação infantil e ao final do estudo etnográfico, é possível concluir que o processo de
escolarização, em vez de tornar possível e viabilizar o processo de formação de leitores, acaba
por dificultá-lo à medida que afasta os aprendizes da forma como de fato se na vida social.
A leitura como objeto escolar passa a tomar o lugar do ler como objeto de cultura. Nesse
ponto, apresento a conclusão deste trabalho.
187
CONCLUSÃO
Ao iniciar este trabalho de pesquisa, tinha por objetivo investigar as relações entre o
processo de escolarização e o processo de apropriação da leitura sob o olhar das crianças com
a intenção de aprofundar conhecimento acerca do papel da instituição escolar em relação à
formação do leitor. Assim, optei pelo desenvolvimento de um estudo longitudinal, de forma a
acompanhar durante aproximadamente dezoito meses a trajetória escolar de um grupo
particular de crianças em relação a suas experiências com a leitura. Para isto, encontrei na
estratégia metodológica de estudo de caso etnográfico fundamentação e orientação
necessárias à seleção e à organização dos procedimentos de investigação.
Adentrei o campo de pesquisa mergulhando no fenômeno a ser estudado. Compartilhei
com os leitores aprendizes olhares, gestos, expressões, discursos em diversas situações que
envolviam os eventos do ler na escola. Pude realizar muitas descobertas, vivenciar algumas
surpresas e ainda gerar novas inquietações. Nesse quadro, elegi como referenciais teóricos,
para dialogar acerca dessas descobertas, surpresas e inquietações, os estudos da teoria
histórico-cultural e da teoria bakhtiniana, os quais embasaram todo o processo de pesquisa,
iluminando o trabalho de geração e análise de dados. Somei a essas teorias dados históricos
acerca do ensino do ler na escola e pesquisas mais recentes, com o objetivo de evidenciar o
quanto a leitura na escola ainda está fundamentada por velhos princípios que distanciam a
apropriação do ato de ler como prática cultural, dialógica e interlocutora apesar da ampla
divulgação dos estudos de Vigotski (1995, 1996) e Bakhtin (1995, 2003), no cenário da
educação atual.
A partir desse referencial teórico e do desenvolvimento do estudo de caso etnográfico,
busquei o objetivo pretendido para este trabalho de pesquisa, encontrando respostas para as
questões norteadoras da investigação, com o intuito de apontar alguns caminhos para a
superação do desencontro entre os processos de escolarização e de formação de leitores ou
ainda contribuir para a realização de novos estudos nesta direção.
Considerando o percurso dos sujeitos da pesquisa, foi possível verificar que, no último
ano da educação infantil, as crianças lidam com as situações de leitura como prática cultural.
Assim, como na escola o ler não surge como objeto de cultura, mas apenas como objeto
escolar com um fim em si mesmo, elas afirmam que não leem ou não aprendem a ler nesta
instituição. Apenas as raras situações com a literatura infantil são reconhecidas como práticas
de leitura. Entretanto, ao cursarem o ensino fundamental, as relações com o ler em aula são
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modificadas; elas passam a não mais buscar o sentido da palavra escrita, mas a desejar
realizar sua pronúncia corretamente. Os leitores aprendizes passam a estabelecer uma
dissociação do ato de ler que não demonstravam no curso da educação infantil; reconhecem
que há uma forma de ler na escola e outra de ler em casa ou na rua. Este dado aponta a origem
do desencontro entre a leitura como prática social e o processo de escolarização, uma vez que
a escola, na perspectiva do aprender a ler para ler que embasa o período de alfabetização,
acaba por gerar entre as crianças uma confusão acerca do que seja de fato realizar esta
atividade. Afinal, há uma extrema valorização das estratégias de decodificação e de oralização
em detrimento da leitura, como processo de atribuição de sentido ao escrito.
Com efeito, ao entrarem no ensino fundamental, os sujeitos dessa pesquisa, foram
abandonando a atitude de buscar o sentido nas situações com a linguagem escrita,
manifestando indiferença em relação aos textos, às propostas de ler em aula, o que indica
como o ensino do ler no início da escolaridade pode, de fato, levar ao desinteresse por essa
atividade como objeto de cultura, além de pouco contribuir para sua apropriação, uma vez que
as crianças continuaram a afirmar que estavam aprendendo ler em casa, não na sala de aula.
A esse respeito, surge uma nova inquietação, pois, na opinião das crianças, a escola
não as ensinava a ler; elas precisavam buscar este aprendizado em casa, solicitando a ajuda
dos familiares. A-17, por exemplo, durante o último ano da educação infantil, afirmou que
não sabia ler porque ninguém estava lhe ensinando; já no primeiro semestre do ensino
fundamental mencionou que seu irmão a estava ajudando a aprender a ler. De acordo com a
avaliação da escola, ao final da pesquisa, A-17 estava no mesmo nível de aprendizagem da
leitura que apresentava no início do estudo, o que me fez legitimar ainda mais o discurso das
crianças em relação à lacuna do ensino do ler pela escola.
As crianças passaram dezoito meses de sua escolaridade aprendendo a ler a partir do
mesmo pressuposto metodológico: identificação de letras, famílias silábicas, palavras isoladas
e textos reduzidos a objetos didáticos. Ficou explícito que não linearidades em
metodologias para o ensino dessa atividade, ou seja, não uma continuidade em relação ao
trabalho pedagógico já realizado no curso da educação infantil. As crianças começam o
ensino fundamental recitando e registrando novamente o alfabeto, as vogais, as famílias
silábicas. Tanto na educação infantil quanto no ensino fundamental, o ponto de partida e o de
chegada são o domínio da relação letra-som, desconsiderando o nível de desenvolvimento real
dos leitores aprendizes. O ensino continua a ser orientado pelos mesmos pressupostos dos
métodos clássicos, estabelecendo o ensino do sistema alfabético de escrita como pré-requisito
189
para aprender a ler, ainda que de acordo com a proposta pedagógica da escola a alfabetização
esteja fundamentada pelos estudos da proposta construtivista.
A atitude das crianças de acordo com a metodologia adotada, tanto em 2007 como em
2008, revelou que esse pressuposto metodológico não contribui para o ensino da leitura da
maneira como essa atividade se manifesta na sociedade atual. O fato de aprender a relação
letra-som e de aprender a identificação de sílabas ou de palavra não possibilitou às crianças
ler de fato nas relações sociais. Foram as situações com o ler em casa que propiciaram,
segundo os sujeitos da pesquisa, a apropriação dessa atividade. Dessa forma, os leitores
aprendizes revelaram que a escola, ao continuar fundamentando o ensino da leitura a partir do
funcionamento do sistema alfabético de escrita, centrando foco na língua como sistema de
codificação, caminha na direção contrária à formação dos leitores; em vez de aproximá-los
faz com que se acostumem a não ler. Na educação infantil, as crianças tentavam ser atores nas
situações com o ler na aula, mas no ensino fundamental deixaram essa tentativa de lado e
passaram à condição de meros espectadores da leitura do outro.
Esse quadro construído a partir do olhar dos sujeitos do processo permite constatar que
está mais do que na hora de o ensino da leitura virar sua página na história e caminhar na
perspectiva da sociedade e dos aprendizes do século XXI, pois como indicou a avó de A-6 e
A-15, ler com o pensamento e procurando encontrar o sentido da palavra escrita parece mais
eficaz do que ler pronunciando o som do símbolo gráfico.
Portanto, em conclusão, as crianças, e não apenas os teóricos e pesquisadores que
participaram desse estudo, me levam a pontuar alguns caminhos no processo de escolarização,
para favorecer o processo de formação de leitores, superando o desencontro entre um e outro:
Repensar a concepção do ler que orienta a organização metodológica do ensino dessa
atividade na escola. Qual a razão de se criar na escola um conceito de ler como
processo de decodificação ou de oralização, se nas relações sociais a leitura não se
objetiva como tal? As próprias crianças indicaram que aprender apenas a decodificar
não é aprender a ler.
Organizar as metodologias para o ensino dessa atividade a partir do nível de
desenvolvimento real dos alunos, de forma que as propostas favoreçam a
aprendizagem, por serem planejadas de acordo com o desenvolvimento próximo dos
sujeitos aprendizes. Passar dezoito meses repetindo o alfabeto, famílias silábicas e
tarefas de identificação de letras, palavras ou sílabas torna-se uma situação cansativa,
190
repetitiva e mecânica que, de acordo com as crianças, em nada contribui para o
aprendizado da leitura. A falta de linearidades em relação às metodologias para o
ensino dessa atividade pode acarretar prejuízos à formação do leitor, pois desconsidera
os saberes apropriados pelos sujeitos, gerando desinteresse e afastando as crianças
das situações de ler em aula, como ocorreu com os sujeitos dessa investigação.
Considerar o ensino do sistema alfabético de escrita como parte do processo de ensino
da linguagem escrita, não como ponto de chegada nem como ponto de partida. Vale
retomar as muitas situações de inquietação vivenciadas com as crianças no decorrer do
estudo etnográfico como, por exemplo, o trabalho com a família silábica da letra q na
educação infantil, e quase um ano depois a mesma confusão com o grafo lh, no
ensino fundamental. A escola, na tentativa de facilitar quando ensina o sistema
linguístico de forma alheia ao seu uso, à sua manifestação na língua como artefato
vivo, dinâmico e de significação, acaba por dificultar a compreensão da lógica de seu
funcionamento.
Ensinar a ler inserindo a criança no fluxo da linguagem. De acordo com os sujeitos da
pesquisa, é assim que ocorre o aprendizado dessa atividade, pois, ao atribuírem o
ensino do ler à família, indicaram que aprenderam a ler lendo histórias infantis, placas
nas ruas, informações na TV, embalagens de supermercados, enfim, participando junto
com um parceiro mais experiente de vivências com a leitura como valor de
comunicação, como de fato essa atividade é objetivada nas relações sociais.
Considerar que ensinar a ler a partir de textos não torna o aprendizado mais
significativo se este não for visto como objeto de interlocução, inserido numa
atividade em que as crianças possam dialogar, interagir, manifestar-se em relação ao
escrito como coenunciadores, de modo que possam gerar uma atitude responsiva
diante dele produzindo seus próprios discursos. As crianças, desse modo, têm a
oportunidade de formular suas próprias perguntas e respostas, constituindo-se como
atores do processo.
Considerar, portanto, que o basta, no processo de formação de leitores, levar para a
sala de aula uma diversidade de gêneros textuais e estudá-los do ponto de vista
191
normativo. Fazer uso dos gêneros como instrumentos para ensinar a ler é abordá-los a
partir de situações de comunicação efetiva que implica interação, diálogo, interlocução
entre crianças, professor e texto. Assim, ensinar a ler a partir dos gêneros não é isolá-
los da situação de comunicação, como objeto didático, mas considerá-los como meio
de apreender a realidade, já que o gênero estabelece uma conexão da linguagem com a
vida social.
Organizar as propostas didáticas do ler em aula de forma que as crianças tenham
tempo e condições para realizá-las. Em vez de executar tarefas mecanizadas, poderiam
vivenciar atividade de leitura, ou seja, situações em que o ler tenha sentido, finalidade,
e surja como prática necessária também no contexto escolar, como atividade-meio
para a concretização de propósitos dos próprios aprendizes.
Que o professor no desenvolvimento das propostas de ensino do ler esteja disponível
para exercer o papel de mediador e interlocutor das crianças com o mundo da
linguagem escrita; que ensine com os leitores aprendizes e o para os leitores
aprendizes, que dialogue com todos e não com alguns, que ouça e fale com as crianças
considerando seus conhecimentos prévios, suas perguntas, suas próprias elaborações
no momento de realização das atividades com o ler em aula.
Ensinar a ler sem que as crianças percam o interesse por essa atividade pode ser
possível se a escola conduzir o ensino na perspectiva anunciada pelas crianças, como
uma prática cultural que não se reduz a um processo simplificado de domínio das
relações grafema-fonema.
Contudo, também sob o olhar das crianças, é hora de substituir o paradigma do
aprender a ler para ler, que se mostrou ineficaz de acordo com a trajetória das crianças no
início de sua vida escolar, pelo aprender a ler lendo em busca de sentido. O ler como objeto
cultural de conquistar seu espaço no contexto escolar. Penso, diante deste trabalho de
pesquisa, ser esse o desafio na tarefa de formar leitores.
192
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APÊNDICES
199
APÊNDICE A - Transcrição do Protocolo de Observação/2007
Protocolo 2 de Observação
Data: 22/03/2007
Horário: 8h às 10h00.
Horário/Local: 8h às 8h35 – Pátio
8h35 às 9h15 e das 9h30 às 10h- Sala de aula
9h15 às 9h30- Recreio
Nº de sujeitos da pesquisa: 19
8h. A professora já está no pátio à espera das crianças. Os alunos começam a chegar e sentam na
fila à espera dos colegas. Nesse tempo a professora conversa com as crianças e com familiares. Às
8h15 as crianças levantam-se e motivadas pela professora começam a cantar uma sequência de
músicas infantis. Noto que todas participam. São 8h35. As crianças entram na sala de aula.
Algumas trocam de lugar entre si. A professora percebe, mas não intervém. As crianças começam a
tirar o material da mochila enquanto conversam muito. A-7 aproxima-se do local onde estou e
pergunta se eu farei atividade como eles. Respondo que minha atividade será de olhar como eles
estão aprendendo a ler. Ele retorna a seu lugar. A professora começa a distribuir o caderno de
atividades e diz às crianças que hoje vão ler um trava-língua. A-18 pergunta a A-15: O que é
isso?”. A-14 pergunta à professora: “Prô, o que é isso?”. A-13 diz: “É uma brincadeira, não é prô?”.
A professora diz que pode ser uma brincadeira, e explica que trava-língua é um conjunto de
palavras difíceis de serem faladas juntas, trava a língua. A-17 pergunta: “Trava como, prô?”. A
professora diz: “Trava porque a gente erra na hora de falar”. Imediatamente A-6 diz: “Ah, eu sei o
que é isso, é assim: um prato de tigre para dois tigres, dois...”, A-01 interrompe: “Ah, eu também
sei isso...”. um tumulto, pois vários alunos começam a falar o trava-língua dito por A-6,
risos, reclamações e muitas falas. A professora deixa as crianças conversarem entre si, enquanto
termina de entregar os cadernos. Quando termina, entrega um trava-língua escrito para cada um e
pede que eles tentem identificar a letra que mais aparece no texto, e ainda, as palavras e sílabas que
eles já conhecem. Percebo que todos os alunos quando recebem o texto, não agem com indiferença,
olham fixamente para ele. Alguns ficam em silêncio e outros logo começam a conversar entre si
sobre o texto. Próximos a mim estão A-14 e A-13 sentados em dupla e A-18 e A-8 também em
dupla. A-18, depois de olhar o texto diz a A-8: “Será que está escrito tigre aqui?”, A-8 responde:
“Não sei, também não sei ler e pergunta à professora “Prô, está escrito tigre aqui?’. A professora
responde: “Tigre? tem a letra T? Não tem, não é? Então não está! Está escrito o nome de outro
bicho!”. A-18 diz ao colega: “Que bicho será que é?”“. A-14 ouve, vai até a carteira da dupla e diz:
“É rato, olha aqui ó, está escrito rato”, apontando para a palavra RATO escrita no texto. Depois, ele
olha para mim e diz: “Viu Fabiana, eu sei ler! Minha tia está me ensinando!”. Eu pergunto a A-
14 se ele já sabe qual é o trava-língua que está escrito, e ele me diz; “Sei, o rato roeu a roupa do rei
de Roma, é fácil demais!”. A professora retoma a conversa com o grupo todo e pergunta: “Qual a
letra que mais aparece no começo das palavras do texto? A-14 diz: “O rato roeu a roupa do rei de
Roma”. A professora insiste: “Então qual a letra que mais aparece? A-6 diz: “Prô, eu sei esse trava-
língua, eu já brinquei dele, nós vamos brincar?”. A -7 diz: “Esse é mais fácil que o do tigre, não
é?”. A professora diz que nesse momento não irão brincar com os trava-línguas, pois é momento de
atividade, depois poderia ser. A-13, diz para mim “Fabiana, eu também brinquei disso com meu
pai, é legal!”. A professora diz: “Vocês acharam a letra R, que palavras que tem no texto que
começa(m) com a letra R?”. As crianças dizem as palavras rato, rei e roupa. A professora diz que há
outras e pede para elas encontrarem. A-15 diz: “Roma, o que é isso, prô?”. A professora explica que
é o nome do lugar onde mora o rei. A-5 diz: “É longe?”, A-6 diz: É de mentira isso!”. A-5 diz:
“Ah”. A professora pergunta: “E o que o rato fez na roupa do rei?”, para ajudar as crianças a
identificarem a palavra que estava faltando “ROEU”. A- 16 diz: “Rasgou porque ele mordeu a
roupa”. A professora diz: “Mas rato não morde!”. A-12, diz: Ai, morde sim...”. A professora
explica: “Não, rato rói a roupa, aqui diz O rato roeu, olha só!”. A-16 pergunta: “Roeu é igual
mordeu?”. A professora sorri e faz sinal afirmativo. A-6 diz: “Mas aqui está escrito que o rato roeu
a roupa do rei, não é, prô? A professora diz que sim. A-14 pergunta: “Prô, a gente não vai brincar,
200
então é para colar e escrever?”“. A professora explica que eles depois irão recortar as palavras do
texto de acordo com as marcas e tentar montar para colar no caderno. Mas antes disso avisa que
agora vai chamar alguns alunos para escrever as palavras que começam com a letra R na lousa.
Depois do estudo da composição silábica das cinco palavras, as crianças recortam, colam e copiam
o texto no caderno. Nesse tempo, bate o sinal para o recreio.
Recreio
No recreio, sento ao lado dos alunos A-1, A-15, A-14 e A-8. Eles lancham e perguntam por que eu
também não lancho com eles. Digo que não estou com fome e eles tecem comigo o seguinte
diálogo:
A-14: Você gostou da atividade de hoje?
P: Sim, trava-língua é bem legal não é?
A-14: Eu já sei ler.
P: Eu percebi.
A-1: Eu não sei ainda, mas eu quero aprender a ler.
P: E por que você quer aprender a ler?
A-1: Eu quero aprender a ler, pra saber alguns jogos de computador. O ano que vem tem aula de
computador, aí eu já vou saber, não é?
A-15: Eu vou aprender a ler logo, minha mãe disse que eu já consigo ler um monte de coisa.
A-8: Eu não consigo ainda.
A-14: Vem ver o painel que a gente fez!
Vou até o painel exposto no pátio construído por eles e a professora e elogio o trabalho realizado.
São produções de artes visuais com amostras de todos os alunos. Depois de me mostrar o desenho,
A-14 vai brincar com alguns colegas. Continuo no pátio observando os alunos, até o término do
recreio.
Sala de aula
Ao retornar do recreio, a professora aguarda todos concluírem a tarefa anterior. Na sequência, a
professora solicita às crianças que pensem em palavras que rimam com essas cinco do trava-língua.
A professora pergunta: “Que palavras podemos rimar com RATO?”. A-14 diz: Gato. A-15 diz Pato.
A-7 diz: Sapo. A professora chama A-1 e pede que ele escreva a palavra gato na lousa. Ele escreve
com ajuda dos colegas e da professora. Após, a professora pergunta outra palavra que rima com
ROEU. As crianças não conseguem dizer uma palavra com esta rima, então a professora sugere a
palavra ROMEU e chama A-14 para escrevê-la na lousa. O aluno escreve sem ajuda. Para a palavra
ROUPA, as crianças dizem um monte de palavras como touca, louca, pouca. A professora escolhe a
palavra touca e pede que A-17 a escreva no quadro. Ele escreve com ajuda da professora e dos
colegas. Finalmente, a professora pede que as crianças digam uma palavra que rima com ROMA.
Imediatamente A-15 diz “toma”. A professora pergunta: “Como?”. E o aluno responde: “Toma,
prô, que nem toma esse remédio!”. A professora diz: “Ah, certo, então venha escrever essa
palavra!”. Ele vai até a lousa e escreve sem ajuda. Após, a escrita da palavra TOMA na lousa, a
professora solicita que as crianças copiem as palavras que estão no quadro. A-6 diz à professora:
“Eu copiei!”. A professora responde: “Que bom, mas tem que prestar atenção, não é copiar!”.
Ela se levanta e vem até a minha mesa mostrar seu caderno. Elogio seu capricho no registro das
tarefas e lhe pergunto: “Você está aprendendo a ler?” e ela me diz: “Só um pouquinho”. Nesse
momento, a professora chama a aluna para ajudá-la a entregar o caderno de desenho aos colegas.
São 10h10 e encerro a sessão de observação.
201
APÊNDICE B - Transcrição do Protocolo de Observação/2008
Protocolo 2 de Observação
Data: 25/06/2009
Horário: 8h às 10h
Local: Sala de aula
Nº de sujeitos da pesquisa: 5
Chego à sala de aula às 8h e as crianças não estão. Sou informada de que estão com os agentes de
saúde tendo orientações para escovação. Aguardo a turma. São 8h10. As crianças retornam da
escovação. A professora começa a entregar o livro de língua portuguesa. As crianças ficam
animadas ao perceberem que a próxima atividade será com o livro didático. Um aluno pergunta:
“Professora, vamos fazer atividade no livro?”. A professora diz que sim e alguns alunos dizem:
“Oba!”. A-1 recebe o livro, abre numa determinada página, chama o colega da frente e começa a
oralizar o escrito para ele. A-15 recebe o material, abre numa página onde há um castelo desenhado
e começa a ler o texto com os olhos. A-17 e A-18, ao receberem o livro, deixam de copiar o
conteúdo da lousa e começam a folhear o material. A-6 abre o livro, para na página 38 e fixa os
olhos no texto “Rumpelstiltskin, que está ilustrado com figuras de princesa, rei e rainha. A-1 chama
A15 e diz: “Olha aqui, A-15!”“. A-15 diz: “O quê? “Eu já estou lendo uma história.” A-1 responde:
“Olha que engraçado Se o papai papasse papa...”. A professora interrompe e pede que todos abram
o livro na página 13. Apenas A-17 atende a orientação da professora e diz a ela: “Eu achei a
página! E agora?”. A professora não diz nada ao aluno. Ele vira a página e observa a página 14. A-
18 está com o livro aberto na página 70 com os olhos fixos nela. A-15 continua lendo a mesma
página. A-1 oraliza o trava-língua. E A-6 também continua lendo o conto. A professora lê a
atividade da página 13 e pergunta às crianças como é a resposta. Ninguém responde. A professora
pergunta novamente e não respostas das crianças. Ela altera a voz, e os sujeitos da pesquisa se
assustam. Interrompem o que estavam fazendo e olham para a professora. Ela solicita que todos
abram o livro na página 13. Agora, assustados, eles abrem. Um aluno diz: “A gente não sabe fazer,
porque não sabemos o texto”. A professora pede que todos voltem à página 8 para fazer a leitura do
poema “A Casa” de Vinicius de Moraes”. Um aluno da turma diz: “Eu sei essa música e começa a
cantá-la”. A turma toda acompanha. A professora adverte todos, dizendo que não era para eles
cantarem, era para lerem o texto. As crianças tentam ler, mas não conseguem, acabam cantando
novamente. A-1, A-15, A-6, A-17 e A-18 cantam a música. A professora desiste de solicitar a
leitura e acaba deixando a turma cantar. Quando as crianças terminam de cantar, a professora diz
“Agora vamos ler. Eu falo e vocês repetem para aprender”. A professora oraliza cada verso e as
crianças repetem sem olhar para o livro. Quando esta situação termina, ela pede que as crianças
abram na página 13. Ela novamente lê a pergunta da atividade e solicita a resposta das crianças. Há
silêncio de novo. A professora pede que A-15 volte ao texto e diga a resposta. Ele volta à página 8 e
conta quantas vezes aparece a palavra casa e diz à professora: Quatro vezes. A professora anota a
resposta na lousa e lê em voz alta a segunda atividade. Os demais alunos copiam a resposta da lousa
no livro. Enquanto a professora lê e responde a segunda pergunta, os sujeitos da pesquisa deixam de
acompanhar a proposta. A-15 começa a responder a todas as perguntas da página 13 e segue para a
página 14. A-6 volta ao texto que estava lendo. A-1 folheia o livro, assim como A-17 e A-18.
Quando a professora chega perto deles, rapidamente voltam à página 13. A aula prossegue dessa
forma, as crianças copiam as repostas colocadas na lousa e tentam ler outras páginas ao mesmo
tempo. A-15 é o único sujeito da pesquisa que tentou elaborar suas próprias respostas, porém não
teve sucesso. Na atividade 4, as crianças deveriam escrever três coisas que toda casa deveria ter. A-
15 respondeu: televisão, geladeira e fogão. Quando a professora chegou a essa pergunta, embora
estivesse lendo outra página, lembrou o que tinha escrito e disse em voz alta. A professora o
repreendeu dizendo para apagar e fazer de novo. Um aluno respondeu cozinha. A professora disse
que cozinha estava certo e solicitou que todos escrevessem cozinha, porta e banheiro. A-15 voltou
202
à página 13, apagou o que tinha escrito e copiou a resposta da lousa. Quando terminou de copiar,
disse baixinho a um colega: “Como não podia ser televisão, eu tenho três televisão, uma na sala,
uma no quarto.” O colega pergunta: “E a outra?”. A professora chama atenção e pede silêncio. A-15
volta ao livro, avança para a página 107 e começa a ler um texto. Ele ignorou a “correção” da
atividade 5, 6 e 7 e deixou suas próprias respostas grafadas. A atividade 6 foi realizada por ele de
forma incorreta, porém nem A-15 e nem a professora perceberam o erro. A professora pede que
todos virem a página para responderem à atividade 8. A professora pergunta às crianças palavras
que rimam com engraçada, chão e pipi. Apenas alguns alunos estão acompanhando a atividade e
dizem: Espada, avião e sair. A professora entende que o aluno disse AÇAÍ e escreve essa palavra
como resposta na lousa. Uma criança diz: “Mas, professora ele disse sair, não açaí, o que é isso?”.
A professora fica um pouco desconcertada, mas deixa a palavra AÇAÍ como resposta.. A-6, A-17,
A-18, A-1 copiam as respostas do quadro enquanto folheiam o livro e conversam, tudo ao mesmo
tempo. A-15 conversa com um colega sobre como gosta de leite condensado. Na atividade 10, as
crianças precisam responder no livro qual o seu endereço. A professora diz: “Essa daqui cada um
tem de responder sozinho, não vou por na lousa, é o endereço de cada um”. A-15 interrompe a
conversa com o colega e pergunta à professora: “O que é endereço?”. A professora responde: É o
nome da rua e o nº da casa”. A-15 diz: “O meu é Figueirinha II!”. A-1 diz: “O meu é Figueirinha I”.
A professora adverte as crianças dizendo: “Isso é bairro, é para colocar o nome da rua e o da
casa”. As crianças não entendem, a professora diz para elas pularem esta tarefa e deixar sem fazer.
A professora passa para a próxima atividade do livro e as crianças continuam não compreendendo a
tarefa anterior. Nesse momento, murmúrios na sala, os alunos conversam sobre onde moram. A
professora chama atenção de todos e pede silêncio. sequência ao trabalho com o livro didático
respondendo na lousa a tarefa da atividade 11. Novamente apenas duas crianças participam; as
demais apenas copiam da lousa. A-1 termina de copiar e começa a mostrar para um colega como
fazer ginástica. A-6 conversa com uma colega ao lado. A-15 olha as páginas do livro. A-17 e A-18
copiam as respostas. Às 9h20 a professora começa a recolher os livros para guardá-los no armário.
As crianças que entregam os livros ficam aguardando o momento do recreio. A professora não
verifica se todos cumpriram as tarefas, apenas recolhe o material. Percebo que tudo é mecanizado,
sem objetivo claro de aprendizagem. O sinal bate, e as crianças vão para o recreio. Nesse dia,
compartilhei o momento do recreio com a professora para combinar como poderia fazer cópias dos
cadernos e livros das crianças sujeitos da pesquisa. Encerrei a sessão de observação às 10h.
203
APÊNDICE C – Transcrição de encontro com o grupo focal
3º Encontro com o grupo focal - Maio de 2008
Participantes: A-1, A-6, A-15, A-17 e A-18
Situação de leitura: Leitura de um panfleto informativo
Tempo de duração: 60 minutos
P: Bem, antes de nós começarmos, gostaria de saber o que vocês leram essa semana.
A-15: O livro de português.
P: Só?
A-6: Só.
P: E não leram textos? Não fizeram atividade com textos?
A-15: A gente fez.
A-6: Eu gosto mais de ler os livros de português e matemática, as atividades não, eu não leio,
espero a resposta da lousa.
A-15: Nem eu leio, só que eu faço as atividades.
P: Sem ler?
A-15: É, é tudo fácil.
A-1: Ah, a gente também leu um livro lá.
A-15: Ah, que mentira!
A-1: É sim, até que tinha a música da minhoca.
A-6: Ai, era só para cantar, não era de ler.
P: Como assim?
A-6: A gente cantava sem precisar ler no livro.
P: No livro grande de português?
A-1: É.
P: Então, agora vou entregar outro texto para vocês lerem.
A-15: Deixa eu ler, Fabiana?
A-6: Eu também?
P: Todos podem ler, quero que vocês olhem para o texto. Que texto será esse?
A-15: Esse texto é da Prefeitura.
P: Como?
A-15: Você tirou da Prefeitura?
204
P: Como você sabe que é da Prefeitura?
A-15: Aqui está escrito Prefeitura Municipal de Marília.
P: E vocês, o que acham?
A-1: É um texto com os deveres, não é?
A-17: É de uma menina que vai cair!
A-6: Eu acho que fala da criação.
P: Como?
A-6: Da criação de crianças.
A-15: E fala também sobre cozinha.
A-6: Eu acho que é de infância.
P: O quê, A-6?
A-1: É de um bebê. Olha aqui quase queimou o bumbum do nenê.
A-6: Que nem um dia queimei minha mão.
A-1: Olha, aqui está escrito “A cozinha é perigoso”.
A-15: Claro que não, está escrito: “Não deixe os cabos de panelas ao alcance das crianças”.
P: Como vocês estão fazendo para ler o que está escrito aí?
A-15: Ai, Fabiana, eles estão só vendo os desenhos!
A-1: E daí?
A-6: A gente está vendo primeiro para depois ler.
P: A-17 e A-18 como vocês estão lendo?
A-17: Eu só estou vendo as figuras.
A-18: Eu também, não sei ler ainda direito.
A-1: Eu sei, deixa eu ler, Fabiana?
A-1 começa a decodificar: Brin-que-do mui-to pe-pe-que-no com pon-tas e face- fa-ce-de
que-que quebrar po-de machu-car os olhos, ou-vi-ouvidos e na-riz.”
A-15: Ei, não é para você ler!
P: Deixe.
P: A-1, o que está dizendo então no texto?
A-1: É que a gente pode cair e machucar os olhos, os ouvidos e o nariz.
A-15: Tá vendo, Fabiana, nem tá dizendo isso, ele não sabe ler direito.
P: E o que é ler direito?
A-15: Ai, ele lê enroscado.
A-6: É melhor lê enroscado do que não entender.
A-15: Só que ele nem entendeu também. Deixa eu ler agora, Fabiana?
205
A-6: Eu vou ler.
A-6 também oraliza o texto: “Re-me-di-o, pro-du-tos de lim-pe-za, in-se-ta e ver-ver-vermes
dos parara-tos de-ve-deve ser gua-ra-da-dos armá tran-ca-dos, lon-ge de ali-mentos fora-fora-
doal-can-ce-das crianças.”
A-15: Ela está ruim demais.
P: O que está falando aí, A-6?
A 6: Acho que táfalando pra ter cruidado com os remédios e com os produtos da casa com as
crianças.
A-15: Ela viu pelo desenho.
A-6: Claro, o desenho ajuda, não é, Fabiana!?
A-17: Eu também estou lendo pelo desenho: olha, aqui diz que o é para deixar a criança
mexer com animais, senão pode morder ela.
A-18: Olha, eu também já leio um pouquinho.
A-18 também oraliza o texto decodificando pausadamente as palavras: “Na-o, não, de-i-deixe
a cri-cri-na-criança jer-jer pe-pre-to ani-ma-is...”
A-6: Nossa, ele lê pior que eu.
P: E ler é falar as palavras é?
A-6: Aqui é.
P: Como assim? Ler na escola é diferente de ler em outro lugar?
A-6: Aqui na escola é uma coisa, lá é outra!
P: Como assim?
A-6: Aqui lê os textos, lá na rua é coisas pra gente ler, pra gente saber.
P: E vocês também acham isso?
As crianças fazem gestos de concordância.
P: Vocês já tinham lido um texto como esse?
A-6: Não.
A-17: Não.
P: E vocês, A-1, A-15 e A-18?
Coro: Não.
P: E esse texto é igual aos que vocês lêem na sala de aula?
A-6: Não, a gente não lê, só quem lê bem é que lê.
A-15: Não, o de lá, é escrito pela professora.
A-1: É com outra letra. A letra de forma.
206
Nesse momento, somos interrompidos por um funcionário da sala, que solicita o uso do
ambiente em que estávamos.
Encerro o encontro dizendo às crianças:
P: Que pena, vamos ter que terminar nosso encontro de hoje.
A-6: A gente pode levar o texto?
P: Claro!
A-18: Um dia eu achei um texto na cidade igual a esse.
A-17: Fabiana, vou levar pra minha mãe, um dia meu pai deu amendoim para minha irmã e
ela quase engasgou.
P: Você vai levar para ela por quê?
A-17: Pra ela aprender a cuidar da minha irmã.
A-15: Eu também vou dar pra minha mãe ler.
P: Isso, leiam junto com elas. Vamos para a sala?
A-1: Ai, eles vão querer nosso texto.
P: Por quê?
A-1: Porque sempre que a gente volta, eles querem ler nossas coisas daqui.
P: e Vocês deixam?
A-15: Não pode, a professora briga.
P: Ah, sim. Então vamos. Depois vocês me contem se a família gostou do texto.
A-6: Tá.
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