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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”
CAMPUS DE MARÍLIA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS
JULIANA DE SOUZA
A MAGIA DAS VANGUARDAS EM WALTER BENJAMIN:
Arte, Política ou Revolução
MARÍLIA-SP
2009
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1
JULIANA DE SOUZA
A MAGIA DAS VANGUARDAS EM WALTER BENJAMIN:
Arte, Política ou Revolução
Dissertação de Mestrado apresentada à
Universidade Estadual Paulista, Campus
Marília, da Faculdade de Filosofia e Ciências
como requisito para a obtenção do título de
Mestre em Filosofia.
Área de Concentração: História da Filosofia,
Ética e Filosofia Política.
Orientador: Prof. Dr. Robespierre de Oliveira.
MARÍLIA
2009
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2
JULIANA DE SOUZA
A MAGIA DAS VANGUARDAS EM WALTER BENJAMIN:
Arte, Política ou Revolução
Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade Estadual Paulista, Campus Marília,
da Faculdade de Filosofia e Ciências.
Aprovada em: ____/____/____
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________
Prof. Orientador: Robespierre de Oliveira
____________________________________________
Examinador(a): Arlenice de Almeida
____________________________________________
Examinador(a): Renato Bueno Franco
3
À une passante
La rue assourdissante autour de moi hurlait.
Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,
Une femme passa, d'une main fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l'ourlet;
Agile et noble, avec sa jambe de statue.
Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,
Dans son oeil, ciel livide où germe l'ouragan,
La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.
Un éclair... puis la nuit! — Fugitive beauté
Dont le regard m'a fait soudainement renaître,
Ne te verrai-je plus que dans l'éternité?
Ailleurs, bien loin d'ici! trop tard! jamais peut-être!
Car j'ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
Ô toi que j'eusse aimée, ô toi qui le savais!
Charles Baudelaire
4
Tears, Man Ray
Paris, 1930 – 1932.
5
A
O AMOR LOUCO, SINCERO E VERDADEIRO...
6
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente àqueles que duvidaram, pois ao duvidarem desta pesquisa, estavam
dando uma força a ela ainda maior.
Aos amigos que souberam me apoiar nos momentos de frustração e ansiedade.
Em especial ao amigo sempre presente, mesmo on line, Theo, pelo incentivo e motivação,
próprios dos corações generosos em extinção.
Agradeço a paciência e o apoio emocional e financeiro de minha família.
Agradeço a meu orientador que sempre confiou em mim desde a graduação.
À Profa. Dra. Arlenice pelos preciosos conselhos virtuais. E ao querido Prof. Dr. Renato
Franco pelos sempre sorridentes conselhos e dicas.
Agradeço à Universidade do Sagrado Coração por acreditar em mim como profissional do
ensino, mesmo sem a conclusão desta.
7
SOUZA, Juliana. A magia das vanguardas em Walter Benjamin: arte, política ou
revolução. Marília: UNESP, 2009. 115f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual
Paulista. Faculdade de Filosofia e Ciências, UNESP/Marília.
RESUMO
Esta pesquisa apresenta um estudo sobre a teoria de arte em Walter Benjamin e a sua
proximidade com os movimentos históricos de vanguarda – sobretudo o dadaísmo e o
surrealismo – relacionando-os com a arte, a política e/ou a revolução. A partir do estudo de
dois ensaios benjaminianos: “Surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia
(1929) e “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (1936), analisaremos os
fundamentos pelos quais o autor considerava apenas estes movimentos como vanguarda
artística. Esses textos expressam momentos diferentes do autor quanto ao seu entendimento
do caráter emancipatório da arte e do uso da técnica. Nesse sentido, trata-se de mostrar em
que medida o pensamento de Benjamin, fundamentado na “crise da tradição”, pode ser
abordado a partir do movimento surrealista, da escrita automática e da mágica surrealista.
Assim, o objetivo desta pesquisa é apontar algumas nuances do conceito de vanguarda, que
elucidem aquilo que Benjamin chamou de Iluminação Profana e o seu uso para a revolução.
Palavras-Chave: Walter Benjamin; Vanguarda; Surrealismo; Política.
8
SOUZA, Juliana. La magie de l'avant-garde chez Walter Benjamin: Art, Politique et
Révolution. Marília: UNESP, 2009. 115f. Dissertation (Maîtrise) – Université d'Etat São
Paulo. Faculté de Philosophie et des Sciences, UNESP/Marília.
RÉSUMÉ
Cette recherche présente une étude sur la théorie de l'art chez Walter Benjamin, et sa
proximité avec les mouvements historiques d'avant garde – surtout le dadaísme et le
surréalisme – en relation avec l'art, la politique et la révolution. A partir de l'étude, surtout, de
deux essais de Benjamin, “Le surréalisme”. Le dernier instantané de l'intelligence
européenne" (1929) et “L'oeuvre d'art à l'ère de sa reproductibilité technique" (1936) nous
analiserons les fondements par lesquels l'auteur considérait seulement ces mouvements
comme d'avant garde artristique. Ces textes expriment des moments différents de l'auteur
quant à ses sentiments du caractère emancipatoire de l'art et de l'usage de la technique. En ce
sens, il s'agit de montrer dans quelle mesure la pensée de Benjamin, fondée sur la "crise de la
tradition" peut être abordée à partir du mouvement surréaliste, de l'écriture automatique de la
magie surréaliste. Sous cet aspect, l'objectif de cette recherche est de montrer quelques
nuances du concept d'avant garde, qui élucide ce que Benjamin a appelé d' Illumination
Profane et son usage pour la révolution.
Mots Clés: Walter Benjamin; Avant garde; Surréalisme; Politique
9
LISTA DE IMAGENS
FOTO 1 - Caixa-Valise ......................................................................................................... 50
FOTO 2 - Exposição internacional do surrealismo ............................................................... 51
FOTO 3 - Primeiros documentos do surrealismo .................................................................. 52
FOTO 4 - O Surrealismo em 1947 ........................................................................................ 53
FOTO 5 - Jovens cerejeiras protegidas contra lebres ............................................................ 54
FOTO 6 - Exposição internacional do surrealismo ............................................................... 55
IMAGEM 7 - Procissão fúnebre, dedicada a Oscar Panizza, George Grosz, 1917 ............ 56
IMAGEM 8 – Presente, Man Ray ......................................................................................... 56
IMAGEM 9 - Colagem de Max Ernst, ilustra o livro Une Semaine de Bonté ...................... 57
IMAGEM 10 - É esta a salvação que Eles trazem, Jhon Heartfield ..................................... 57
IMAGEM 11 - Estrelas, Kurt Schwitters, 1920. Colagem ................................................... 58
IMAGEM 12 - Kleine Dada Soirée [programme], Theo van Doesburg e Kurt Schwitters .. 58
IMAGEM 13 - Cabeça mecânica, Raoul Hausmann, 1919-1920. Madeira, couro e alumínio59
IMAGEM 14 - Tempo do Observatório - Os Amantes, Man Ray, 1932 – 1934. ................. 59
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 11
PARTE I
CAPÍTULO
I
ANTECEDENTES: O MOVIMENTO DADAÍSTA (OU O ESPÍRITO DADA) .............. 17
CAPÍTULO II
O MOVIMENTO SURREALISTA: ARTE, POLÍTICA OU REVOLUÇÃO .................. 25
2.1 O movimento Surrealista na “literatura”, ou melhor, na linguagem surrealista:
O Camponês de Paris e Nadja .............................................................................................. 39
PARTE II
CAPÍTULO III
TÉCNICA, MAGIA OU POLÍTICA: O PAPEL DAS VANGUARDAS HISTÓRICAS
E OS POTENCIAIS REVOLUCIONÁRIOS DA OBRA DE ARTE EM WALTER
BENJAMIN ........................................................................................................................... 61
3.1 A Técnica e a Magia ...................................................................................................... 64
3.2 A Montagem ................................................................................................................... 91
3.3 O Efeito de Choque ....................................................................................................... 94
3.4 A Política ........................................................................................................................ 96
CONCLUSÃO ................................................................................................................. 107
REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 109
11
INTRODUÇÃO
Descendo de uma estirpe que se distingue pelo vigor da imaginação e pelo ardor
das paixões. Os homens chamaram-me louco; mas está ainda por estabelecer se a
loucura é ou não a mais suprema inteligência, se muito do que é glorioso, se tudo
o que é profundo não provém de uma enfermidade do pensamento – de modos de
espíritos exaltados em detrimento do intelecto geral. Os que sonham de dia são
conhecedores de muitas coisas que escapam aos que apenas sonham de noite.
Nas suas visões esfumadas, obtêm relances da eternidade e estremecem, ao
acordar, quando descobrem que estiveram à beira do grande segredo. Em
fragmentos, adquirem algo da sabedoria do que é o bem, e mais ainda do simples
conhecimento do que é o mal. Penetram, mesmo que sem leme nem bússola, no
vasto oceano da ‘luz inefável’ e uma vez mais, como os aventureiros do
geógrafo núbio, ‘agressi sunt mare nebrarum, quid in eo esset exploratur.
Eleonora, Edgar Allan Poe
A escolha de um tema como as vanguardas parece algo obsoleto nos dias atuais. Há
ainda quem pense que simplesmente as vanguardas artísticas fracassaram e não devíamos
mais falar sobre isso, como algo que “só deu errado”. Mas não pensamos desta forma. Na
presente pesquisa procuramos, através de “recortes”, desmistificar e entender um pouco o que
foram as vanguardas, sobretudo o dadaísmo e o surrealismo, à luz das reflexões de Walter
Benjamin. Mas ainda pode ficar a questão: Por que Benjamin para falar de vanguardas? A
justificativa pela escolha de um autor tão complexo é o seu caráter fragmentário e
vanguardista avant le lettre.
Benjamin compreendia o cerne da vanguarda, ele era vanguarda. Era um
incompreendido pelo academicismo de seu tempo. Ainda hoje, o livro Origem do drama
barroco alemão é um livro considerado difícil e obscuro. Alguns dizem que é uma “obra-
prima”, inovador; outros, pura ousadia. Rua de mão única, dedicado à amada Asja Lascis e ao
surrealismo é o livro que, pela forma, mais se aproxima da escrita surrealista. Mas será no seu
ensaio de 1929, “O surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia”, que ele
teoriza, de fato, sobre o movimento surrealista. No entanto, o conceito de obra de arte aparece
“como instrumento, como arma”. Segundo Rochlitz
1
, “o ensaio sobre o surrealismo [...] é
designado como um ‘impenetrável biombo que protege o trabalho sobre as Passagens’”.
1
ROCHLITZ, Rainer. O desencantamento da arte: a filosofia de Walter Benjamin. Trad.: Maria Elena Ortiz
Assumpção. Bauru: EDUSC, 2003, p. 176.
12
Rochlitz ainda afirma que “entre Rua de mão única e o texto sobre o surrealismo,
Benjamin começou a escrever sobre as galerias parisienses, trabalho que ele perseguirá até
sua morte e que rompe com a noção de obra de arte”
2
.
Logo no início deste ensaio, uma palavra nos chama a atenção: “último”. A palavra
“último” pode remeter a algumas interpretações. Pode ser que “último” não seja no sentido de
novidade como alguns podem pensar. Em 1929, o movimento já datava dez anos de
existência. O próprio Benjamin, no primeiro parágrafo do ensaio “O Surrealismo”, data o
início do movimento no ano de 1919. Outra hipótese pode ser que este último instantâneo da
inteligência européia é “último” no sentido de fim, justificando, em parte, a escolha do
movimento surrealista pelo autor. Sobre o título original em alemão: “Der Sürrealismus. Die
letzte Momentaufnahme der europäischen Intelligenz”, analisando a palavra
"Momentaufnahme", Aufnahme quer dizer gravar, gravar em filme. Deste modo o termo
remete à fotografia. Em inglês, a palavra para “instantâneo” é snapshot, o que indica algo a
ver com fotografia, é exatamente aquele momento capturado pela foto.
Gershon Scholem, em seu livro A história de uma amizade, traz elementos importantes
para entendermos como o Surrealismo e Benjamin se encontraram. Em 1927, Benjamin
estava em dificuldades financeiras, por isso Scholem foi ao seu encontro em Paris. E relata:
Na noite de 23 de Agosto de 1927, acompanhei-o às grandes manifestações que se
realizaram durante muitas horas, nos bulevares do norte e do nordeste, contra a
execução de Sacco e Vanzetti, que estava sendo efetuada nessa noite em Boston. As
coisas estavam bastante violentas. Pela primeira vez, ao que eu saiba, Benjamin
usava uma gravata vermelha.
3
Scholem ainda relata o encontro de Benjamin com o movimento surrealista, como um
“interesse ardente”, “que incorporava muito daquilo que, nos últimos anos, irrompia nele
próprio”. O surrealismo, segundo Scholem, atraia Benjamin muito mais do que o
Expressionismo literário
4
: “O surrealismo era para ele como a primeira ponte para uma
avaliação mais positiva da psicanálise, mas não alimentava quaisquer ilusões quanto às
fraquezas nos métodos de ambas as escolas”. Benjamin “lia os jornais em que Aragon e
Breton proclamavam coisas que coincidiam de alguma forma com as suas mais profundas
2
ROCHLITZ, op. cit., p. 169. Nota 1.
3
SCHOLEM, G. Walter Benjamin: A história de uma amizade. Trad.: Geraldo Gerson de Souza, Natan Nobert
Zins e J. Guinsburg. SP: Perspectiva, 2008, p. 142.
4
Rochlitz afirma que para Benjamin os vinte anos de literatura expressionista não passaram de um período de
decadência e para ele não era significativo consagrar como arte contemporânea.
Cf. Rochlitz, O
desencantamento da arte, p. 157.
13
experiências”
5
. Outra coisa relevante é que “Benjamin não era um extático, mas os êxtases de
utopias revolucionárias e da imersão surrealista no subconsciente eram para ele, por assim
dizer, chaves para a abertura do seu próprio mundo, para o qual estava buscando formas de
expressão totalmente diferentes”
6
.
No entanto, apesar de Benjamin se identificar com o surrealismo, comentar o
dadaísmo, ou se “apaixonar” por outros pensadores – como Proust ou Kafka, Goethe ou
Baudelaire –, ele sempre foi um filósofo autêntico e autônomo (na medida financeira
possível). Mesmo com o encontro de Brecht, em 1929, e as discussões, no mesmo ano com
Horkheimer e Adorno sobre o projeto das Passagens, as quais levaram Benjamin a modificar
a concepção da relação entre literatura e revolução, ele não deixou de seguir as suas próprias
convicções e objeções. Deve ser por isso que ele conseguiu conviver e articular conceitos com
esses três intelectuais distintos: Scholem, Brecht e Adorno
7
.
É importante ressaltar também outros ensaios benjaminianos que se inter-relacionam
com o tema aqui proposto, como: “O narrador” e “Paris do segundo Império”.
E fundamentalmente o já consagrado ensaio sobre a “Obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica”, que aqui será preciso para a temática da técnica e de alguns
pontos sobre o seu entendimento acerca do dadaísmo. Podemos ainda afirmar que o ensaio
“Obra de arte” é considerado o ponto de fuga do projeto das Passagens, contudo com um
enfoque mais geral.
A questão política e uma “nova” concepção de obra de arte, na obra de Benjamin
perpassa o conjunto dos escritos como: “O surrealismo”, “O narrador”, “Paris do segundo
Império”, “Obra de arte” até chegar nas Passagens
8
e ousar um retorno ao Drama Barroco,
livro no qual estava em potência as ideias do político e da “nova” concepção de obra de arte.
Na presente pesquisa, nos limitaremos até o ensaio “Obra de arte”. É importante ressaltar que
o livro das Passagens “deve ser compreendido como uma tentativa para elaborar uma teoria
5
SCHOLEM, op. cit., p. 137. Nota 3.
6
Idem, p. 138.
7
Quanto a este assunto, confira a carta n. 50, de Benjamin a Scholem, de 6 de maio de 1934. In.: Benjamin;
Scholem, Correspondência, p. 157 a 162.
8
Os fenômenos que Benjamin analisa nas Passagens: a arquitetura, os bibelôs antigos, as fotografias
amarelecidas, as publicidades. Possuem a “eloqüência passiva dos documentos e sintomas não aquela, ‘viril’,
das obras de arte portadoras de um ‘teor’ filosófico”. Cf: Rochlitz, O desencantamento da arte, p. 169. As
perspectivas de Rua de mão única se misturam ao projeto das passagens, no qual “os temas profanos de Rua de
mão única deviam ‘desfilar, intensificados a ponto de evocar o Inferno’”. Cf. Rochlitz, O desencantamento da
arte, p. 172.
14
da modernidade que associa o olhar surrealista – niilista – sobre o passado recente a uma
moral e política inspirada pelo judaísmo”
9
.
Entre 1924 e 1925, um pouco antes de acabar o livro sobre o drama barroco, Benjamin
muda de orientação – antes com um apelo teológico – sob a influência das vanguardas
políticas e literárias. Segundo Rochlitz, a arte é “depositária de uma verdade inacessível ao
conhecimento discursivo”, desta forma, ele adapta “seu pensamento à arte em processo, visto
que essa arte responde às exigências que a crítica somente encontrara [...] na obra de Goethe
ou na literatura barroca”
10
.
Desse modo, esta pesquisa apresenta-se assim organizada:
O Capítulo I analisa o movimento dadaísta, ou melhor, o espírito dadaísta, e como tal
movimento histórico de vanguarda teve relevância para o surgimento do surrealismo. Com o
caminho aberto para a discussão, no Capítulo II, acontece, seja em torno dos fundamentos do
surrealismo, seja em torno da sua linguagem, exemplificada pela análise dos livros, Camponês
de Paris, de Aragon; e Nadja, de Breton. Esses capítulos configuram a primeira parte de
nossa pesquisa. A sua relevância consiste em que tanto Benjamin ou até mesmo Adorno não
pensam a teoria separada do fazer artístico. Sugerimos valorizar os conceitos, no intuito de
um debate conceitual, tanto no dadaísmo e como no surrealismo. O interessante nesta
mudança da arte, de uma arte tradicional para a arte de vanguarda é justamente o fato das
vanguardas procurarem atuar sobre o público, o que faz com que a obra esteja no receptor. A
definição de Rochlitz é que “para Benjamin a arte tradicional encerra a verdade e seu ser ou
em sua substância; a arte de vanguarda reporta-se à verdade por meio de sua ação sobre o
receptor ou por sua função
11
.
Na divisão da primeira para a segunda parte, optamos por inserir algumas fotografias
feitas no Museu de Arte Moderna de São Paulo em 2008, na exposição intitulada "Marcel
Duchamp: uma obra que não é uma obra 'de arte'". A exposição está focada na produção do
artista de 1913 até sua morte, em 1968. E na inserção de outras imagens relevantes para a
ilustração de nossa pesquisa.
O Capítulo III, por sua vez, concentra o coração de nossa pesquisa, a orientação
conceitual principal. É aqui que analisaremos o papel das vanguardas históricas e os
potenciais revolucionários da obra de arte em Benjamin. Para tanto, utilizaremos, além dos
9
ROCHLITZ, op. cit., p. 173. Nota 1.
10
Idem, p. 157.
11
Idem, Idem.
15
ensaios benjaminianos (já citados acima) o livro de Peter Bürger, A teoria da vanguarda, por
ser exemplar na discussão e algumas pontuações do já citado Rainer Rochlitz, em O
desencantamento da arte. É neste capítulo que discutiremos os temas da técnica, da magia e
da política em Benjamin, para então articularmos um posicionamento próprio, a respeito da
arte de vanguarda e as suas contribuições ou problemas para a arte hoje, e se é possível uma
especulação da arte emancipatória no século XXI. Assim, metodologicamente, situamos
Benjamin nesta encruzilhada entre aquilo que ele vislumbrou e o que temos como arte hoje.
Ou ainda, como crítico de seu tempo, manifestando uma abertura para a nova técnica, para a
nova cultura nascente, sempre com o olhar cuidadoso do “observador alemão”.
Benjamin, num tom profético e quase pessimista, finaliza o ensaio sobre o Surrealismo
afirmando:
No momento, os surrealistas são os únicos que conseguiram compreender as
palavras de ordem que o Manifesto nos transmite hoje. Cada um deles troca a mera
gesticulação pelo quadrante de um despertador, que soa durante sessenta segundos,
cada minuto
12
.
Ou seja, os surrealistas não propõem fazer literatura ou muito menos entretenimento
literário. O propósito deles é como o do despertador, despertar os homens desse sonho
alienante.
12
BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad.: Sérgio
Paulo Rouanet; prefácio: Jeanne Marie Gagnebin. 7. ed. SP: Brasiliense, 1996. (Obras escolhidas; v. I).
16
PARTE I
17
CAPÍTULO I
ANTECEDENTES:
O MOVIMENTO DADAÍSTA (OU O ESPÍRITO DADAÍSTA)
O círculo dadaísta e o primeiro agrupamento surrealista não poupavam por certo
provas de admiração mútua; não vejo por sinal nada nisso que seja particularmente
repreensível, pois é assim que nascem os focos ardentes, que se instala um jogo de
espelhos de que surgem figuras novas.
O tempo do surreal, O tempo do Surreal
Os burgueses consideram o dadaísta um monstro dissoluto, um monstro dissoluto,
um canalha revolucionário, um bárbaro asiático, conspirando contra suas
campainhas, suas contas bancárias, seu código de honra. O dadaísta engendrou
armadilhas para tirar o sono dos burgueses... O dadaísta transmitiu ao burguês
sentimentos de confusão e de um estrondo formidável, se bem que distante, que fez
as campainhas dele zumbirem, seus cofres franzirem a testa e seu código de honra se
reduzir a pontinhos.
A garrafa umbilical, Hans Harp
O dadaísmo, movimento artístico e literário com um pendor niilista, surgiu por volta
de 1916, em Zurique, acabando por se espalhar por vários países europeus e também pelos
Estados Unidos, com Marcel Duchamp e Francis Picabia. Embora se aponte 1916 como o ano
em que Tristan Tzara, Hans Arp e os alemães Hugo Ball e Richard Huelsenbeck seguiram
novas orientações artísticas, e 1924 como o final desse caminho, a verdade é que há uma
discrepância destas datas, quer no início, quer no final deste movimento, ou como preferem os
seus fundadores, desta “forma de espírito”.
O movimento Dada – já que o ismo aponta para um movimento organizado que não é
o pretendido – surge durante e como reação à I Guerra Mundial. A guerra constitui um grande
acontecimento, um entusiasmo motivado pela vontade à la Rimbaud de “mudar a vida” e, por
conseguinte, a única atitude aceitável. Os seus alicerces são os da repugnância por uma
civilização que atraiçoou os homens em nome dos símbolos vazios e decadentes, ou seja, é
uma “revolta contra a moral, a literatura, as evidências e o curso cotidiano das coisas”
13
.
13
RAYMOND, M. De Baudelaire ao Surrealismo. Trad.: Fúlvia M. L. Monteiro e Guacira Marcondes
Machado. SP: EDUSP, 1997, p. 233.
18
Este desespero faz com que o grande objetivo dos dadaístas seja fazer tábua rasa
de toda a cultura já existente, especialmente da burguesa, substituindo-a pela loucura
consciente, ignorando o sistema racional que empurrou o homem para a guerra.
Ou seja, Dada não pretende criticar as tendências artísticas que o precedem, mas a própria
instituição artística e o seu rumo dentro da sociedade burguesa. Segundo Peter Bürger:
O dadaísmo, o mais radical dentre os movimentos da vanguarda européia, não
exerce mais uma crítica às tendências artísticas precedentes, mas à instituição arte e
aos rumos tomados pelo seu desenvolvimento na sociedade burguesa.
14
Dada reivindica liberdade total e individual, é anti-regras e ideais, não reconhecendo a
validade, nem do subjetivismo, nem da própria linguagem. Até em sua “nomenclatura” pode
ser um exemplo de polêmica e controvérsia, no qual, Dada, que Tzara diz ter encontrado ao
acaso num dicionário, não significa nada
15
. Mas ao não significar nada, significa tudo.
Tais tipos de posições paradoxais e contraditórias são características desta vanguarda
que reclama não ter história, tradição ou método. A sua única lei é uma espécie de anarquia
sentimental e intelectual que pretende atingir os dogmas da razão. Cada um dos seus gestos é
um ato de polêmica, de ironia mordaz, de inconformismo. Segundo Raymond: “Dadá
apresenta-se pois como um ceticismo obstinado, sistemático, que conduz rapidamente a uma
negação total”
16
. Contudo, esse ato de negar e negar sempre, pode parecer sem sentido,
paradoxal ou até mesmo insano, mas naquele momento, naquele contexto, essas negações
foram – filosoficamente – lógicas e legítimas. Essas opiniões coincidiam, além disso, com os
jogos dos humoristas da escola de Jarry, como Jacques Vaché que André Breton conheceu em
Nantes, em 1916, e cuja sombra parece ter presidido secretamente aos destinos de Dada.
Vaché definia o humor: um sentido de inutilidade teatral e sem alegria de tudo, quando se
sabe. Na maioria dos casos, o pensamento do infinito apenas, sempre presente, e a certeza de
que a convenção ou o arbítrio regulam todas as nossas iniciativas tem por efeito mergulhar o
homem e sua vida, ante seus próprios olhos, no absurdo. Para Benjamin, o “espetáculo” Dada
atingia o espectador de forma totalmente nova:
14
BÜRGER, P. Teoria da Vanguarda. Trad.: José Pedro Antunes. SP: Cosac Naify, 2008 , p. 57.
15
Segundo Dawn Ades, “ao que parece, o nome foi encontrado por Ball e Huelsenbeck por acidente, enquanto
folheavam um dicionário de alemão-francês”, e que não significava nada em especial ou significativo, apenas
o primeiro som emitido pela criança, o começar do zero. Esse relato, conforme demonstra Dawn Ades, é
constestado por Tzara, que afirma ter sido ele o criador da palavra, assim como de seu significado, que é
atribuído ao francês (cavalinho de pau), e ao romeno (para sim). In: Stangos, Conceitos da arte moderna, p.
97.
16
RAYMOND, op. cit., p. 234. Nota 13.
19
Essa obra tinha que satisfazer uma exigência básica: suscitar a indignação pública.
De espetáculo atraente para o olhar e sedutor para o ouvido, a obra convertia-se num
tiro. Atingia, pela agressão, o espectador. E com isso esteve a ponto de recuperar
para o presente a qualidade tátil, a mais indispensável para a arte nas grandes épocas
de reconstrução histórica.
17
Desta forma, é necessário ofender e subverter a sociedade. Essa subversão tem dois
meios: o primeiro, os próprios textos, que embora sejam concebidos como forma de
intervenção direta, eram publicados nas revistas do movimento como Der Dada, Die Pleite,
Der Gegner, Der blutige Ernst e Littérature
18
, entre muitas outras. O segundo, o famoso
Cabaret Voltaire
19
, em Zurique, cujas sessões eram consideradas escandalosas pela sociedade
da época, verificando-se frequentes insultos, agressões e intervenções policiais.
Segundo Benjamin, no ensaio sobre a “Obra de arte na era de sua reprodutibilidade
técnica”, observa que os dadaístas estavam:
menos interessados em assegurar a utilização mercantil de suas obras de arte que em
torná-las impróprias para qualquer utilização contemplativa. Tentavam atingir esse
objetivo, entre outros métodos, pela desvalorização sistemática do seu material. Seus
poemas são “saladas de palavras”, contêm interpelações obscenas e todos os detritos
verbais concebíveis. O mesmo se dava com seus quadros, nos quais colocavam
botões e bilhetes de trânsito. Com esses meios, aniquilavam impiedosamente a aura
de suas criações, que eles estigmatizavam como reprodução, com os instrumentos de
produção.
20
Portanto não é fácil definir Dada. Os próprios dadaístas contribuem dificultando. As
afirmações contraditórias não permitem um consenso, já que, enquanto consideram que
definir Dada era anti-Dada, tentam constantemente fazê-lo. No primeiro manifesto, Tzara
afirma que ser contra este manifesto significa ser dadaísta (!), o que confirma a arbitrariedade
e a inexistência de cânones e regras neste movimento. Como afirmou Breton, “dada é um
estado de espírito”, e tal estado de espírito, já endêmico na Europa antes da guerra, e tornou-
se uma resposta a ela e uma “mola propulsora” a artistas e poetas descontentes. A guerra,
17
BENJAMIN,, op. cit., p. 191. Nota 12.
18
Revista fundada por Breton, Aragon e Soupault, que tinha por objetivo reavivar o espírito nouveau dos
modernos, na figura de Lautréamont e Apollinaire. É nesta revista que aparece pela primeira vez o espírito
surrealista, figurado na escrita automática. Assim, a revista se aproxima de Tzara e o seu grupo toma de
empréstimo algo Dada, mas em 1921 se afasta.
19
Fundado em fevereiro de 1916, pelo poeta e filósofo alemão, refugiado de guerra, Hugo Ball. “O Cabaré
Voltaire era um misto de night club e de sociedade artística […], onde poetas e artistas jovens eram
convidados a trazer suas idéias e colaborações, declamar seus poemas, pendurar seus quadros, cantar, dançar e fazer
música. […] No final de fevereiro […] era evidente que precisavam de um nome para cobrir o que se convertera em
um novo movimento. O Cabaré durou seis meses”. In: Stangos, Conceitos da arte moderna, p. 97.
20
BENJAMIN, op. cit., p. 191. Nota 12.
20
portanto, era a agonia e o materialismo das sociedades. “O dadaísta luta contra os estertores e
delírios mortais de seu tempo… Sabe que este mundo de sistemas foi despedaçado, e que a
era que exigia pagamentos à vista acabou organizando uma liquidação de filosofias sem
deus”
21
. Dentro desta sociedade, o próprio artista e a própria arte eram dependentes, pois eram
produzidos pela burguesia, “e deles esperava-se, portanto, que fossem os seus trabalhadores
assalariados, servindo a arte meramente para preservá-la e defendê-la”. Ou seja, a arte estava
a serviço do capitalismo burguês, o propósito da arte para o burguês é fazer dinheiro e
agradar, entreter. “A arte tornou-se uma transação comercial, literal e metaforicamente, os
artistas eram mercenários em espírito; os poetas, banqueteiros da linguagem
22
.
Os Dada procuram dissuadir os críticos, mais do que definir algo. Jean Arp
ridiculariza a metodologia crítica escrevendo que não era, nem nunca seria crível qualquer
história deste movimento já que, para ele, não eram importantes as datas, mas sim, o espírito
que já existia antes do próprio nome. Além disso, Tzara afirma ser contra sistemas. O sistema
mais aceitável é, por princípio, não ter nenhum. Eles, também, são conscientemente
subversivos. Ridicularizam o gosto convencional e tentam deliberadamente desmantelar as
artes para descobrir em que momento a criatividade e a vitalidade começam a divergir: o que
é destrutivo e construtivo, frívolo e sério, artístico e antiartístico. Essa revolta dos Dada
envolve um tipo complexo de ironia, como demostra Dawn Ades, “porque eles próprios eram
dependentes da sociedade condenada, e a destruição desta e de sua arte significaria, pois, a
destruição deles próprios como artistas”
23
. Assim, o Dada se autodestruiria.
“ARTE” – palavra-papagaiosubstituída por DADA,
PLESIOSSAURO, ou lencinho de bolso
MÚSICOS DESTRUÍ VOSSOS INSTRUMENTOS
CEGOS ocupai o palco
A arte é um ENGANO estimulado pela
TIMIDEZ do urinol, a histeria nascida
em O Estúdio
24
21
BALL, apud STANGOS, N. Conceitos da arte moderna. Trad.: Álvaro Cabral; revisão técnica: Reinaldo
Roels. RJ: Jorge Zahar Editora, 2000, p. 98. Nota 21.
22
ADES apud STANGOS, op. cit., p. 98. Nota 21.
23
Idem, p. 99.
24
TZARA, Proclamation without pretension, Seven Dada Manifestos, Paris, 1924. Apud Stangos, op. cit., p. 99.
21
Embora se tenha espalhado por quase toda a Europa, o movimento Dada tem os
núcleos mais importantes em Zurique, Berlim, Colônia e Hanover – e é claro, Paris
25
. Todos
eles defendem a abolição dos critérios estéticos, a destruição da cultura burguesa e da
subjetividade expressionista reconhecendo, como caminhos a seguir, a dessacralização da
arte e a necessidade do artista ser uma criatura do seu tempo. No entanto, há uma evolução
diferenciada nestes núcleos.
O núcleo de Zurique – o mais importante durante a guerra – foi muito experimentalista
e provocativo, embora um pouco restrito ao círculo do Cabaret Voltaire. Deste núcleo surgem
duas das mais importantes inovações dadaístas: o poema simultâneo e o poema fonético. O
poema simultâneo consiste na recitação simultânea do mesmo poema em várias línguas; o
poema fonético, desenvolvido por Ball, é composto unicamente por sons, com predominância
de sons vocálicos. Nesta última composição a semântica é completamente posta à parte. Já
que o mundo não faz sentido para os dadaístas, a linguagem também não terá de fazer. Estes
tipos de composições, juntamente com o poema visual, também assente em princípios
simultâneos, e a colagem (já utilizada pelos cubistas), primeiro utilizada nas artes plásticas,
são as grandes inovações formais deste movimento.
O grupo de Berlim, mais ativo depois da guerra, está profundamente ligado às
condições socio-políticas da época. Ao contrário do núcleo de Zurique, realiza intervenções
politizantes, próximas da extrema esquerda, do anarquismo e da proletkult (cultura do
proletariado). Apesar de tudo, os próprios Dada têm consciência da sua anarquia para aderir a
um partido político e que a responsabilidade pública era inconciliável com o espírito dadaísta.
Os núcleos de Colônia e Hanover são menos significativos.
Os Dada destacam-se da sociedade em que estão inseridos pela revolta, pelos valores
expressos nas suas obras, pelas convicções que defendem e pelas contradições que
apresentam, muitas vezes exemplo da vitalidade e humor dos criadores. Apesar dos gestos dos
Dada e do esforço em destruir o sistema de arte vigente, eles continuaram produzindo arte, ou,
em “virtude de um processo de osmose, se converteu subsequentemente em arte”
26.
Para Arp o
25
No ano de 1919, em Paris, os “fundadores” do dada entraram “em contato com alguns jovens escritores a
quem o espírito de suspeita universal já havia aproximado e que acabavam de publicar (em março) o primeiro
número da revista intitulada, por antífrase, Littérature”. O objetivo real de Tzara era angariar recursos para a
publicidade de suas negações. É desta forma que o grupo Dada se encontra com aquele que se configuraria
como grupo surrealista. In. Marcel Raymond, De Baudelaire ao Surrealismo, p. 233.
26
STANGOS, op. cit., p. 100. Nota 21.
22
Dada visou destruir as razoáveis ilusões do homem e recuperar a ordem natural e
absurda. Dada quis substituir o contra-senso lógico dos homens de hoje pelo
ilogicamente desprovido de sentido. É por isso que golpeamos com toda a força no
grande tambor de Dada e proclamamos as virtudes da não-razão. Dada deu à Vênus
de Milo um enema e permitiu a Laocoonte e seus filhos que se libertassem, após
milhares de anos de lutas com a boa salsicha Python. As filosofias tem menos valor
para Dada do que uma velha escova de dentes abandonada, e Dada abandona-se aos
grandes líderes mundiais. Dada denunciou os ardis infernais do vocabulário oficial
da sabedoria. Dada é a favor do não-sentido, o que não significa contra-senso. Dada
é desprovido de sentido como a natureza. Dada é pela natureza e contra a arte. Dada
é direto como a natureza. Dada é pelo sentido infinito e pelos meios definidos.
27
O movimento tornou-se muito popular em Paris, onde Tzara viveu depois da guerra.
Na capital francesa, ao contrário de Berlim e Nova Iorque, desenvolve-se bastante o campo
literário. Esta ligação foi muito importante para a gênese do Surrealismo que acabou por
absorver o movimento logo no início da década de vinte. As fronteiras entre os movimentos
Dada e Surrealista são tênues, embora se oponham. O surrealismo mergulha as suas raízes no
simbolismo, é nitidamente politizado, enquanto Dada é, na generalidade, apolítico (com
exceção do grupo de Berlim). Mas veremos que não é só na fronteira do político e do
apolítico que os dois movimentos se esbarram. No tocante à sua forma também
semelhanças. O ataque Dada à linguagem surge quando Arp rasga um desenho em pedaços, e
os fragmentos, ao cair, formam um novo padrão. É desta forma que o acaso, o espontâneo
entra nas composições de Arp, e isso é comum ao automatismo dos surrealistas
28
. Segundo
Down Ades, Tzara foi ainda mais longe:
Recomendando como receita para um poema dadaísta recortar frases de um jornal,
as quais serão depois metidas num saco, agitadas e retiradas ao acaso. “O poema
será parecido com você”, disse ele, referindo-se à idéia de que o acaso pode ser tão
pessoal quanto a ação consciente e deliberada.
29
O grupo Dada-Berlim adotou uma envergadura política forte na Alemanha, sobretudo,
no período de transição para a República de Weimar. A Alemanha passava por um período
27
ARP, Hans. I become more and more removed from aesthetics, p. 48. In: STANGOS, op. cit., p. 101. Nota
21. “Arp era um poeta, tanto quanto um artista plástico, e aderiu ao ataque contra a linguagem que o Dadá
desencadeou e que o surrealismo continuaria a sua maneira”.
28
Segundo ADES, “o automatismo, tão estreitamente ligado ao acaso, era parte fundamental do surrealismo; e,
no primeiro Manifesto Surrealista, Breton discute seriamente o ‘poema jornal’ como atividade surrealista”.
Entretanto, o surrealismo é organizado a partir de regras e princípios, no dada “elas eram apenas uma grande
explosão de atividade que tinha por objetivo provocar o público, a destruição das noções tradicionais de bom
gosto, e a libertação das amarras da racionalidade e do materialismo”. In: STANGOS, op. cit., p. 102. Nota
21.
29
ADES apud STANGOS, op. cit., p. 101 e 102. Nota 21.
23
duro, o final dos anos 1920 não estava fácil. A perda da 1ª Grande Guerra prejudicou não só a
política financeira do país, como a moral dos alemães estava em baixa. A fome, a pobreza, a
atmosfera cinza propiciavam o clima ideal para o suicídio. Os vários partidos políticos
culminaram na ruína daquela república que já nascera fadada ao fracasso. Logo, o resultado
não poderia ser outro: o nazi-fascismo. O movimento dadaísta berlinense surge como um
ácido para corroer mais rápido essa base frágil. Todos os meios de comunicação de massa
eram utilizados como arma, arma contra si, contra o próprio sistema vigente. A negação da
negação. Corroer de dentro para fora. Utilizar as mesmas armas. Assim, o caráter pacifista do
movimento Dada de Zurique tomou uma forma mais áspera e agressiva, pelo próprio clima da
Alemanha após guerra.
O livro de Norval Baitello Junior, Dada-Berlim Des/montagem, sintetiza a essência do
movimento, que pela negação podia afirmar e negar novamente. Pela desmontagem, pela
desconstrução pode-se construir uma nova montagem. Contudo, uma das coisas mais
significativas desse movimento são as suas ações. Uma arma política incisiva foi a
fotomontagem desenvolvida pelo grupo de Berlim.
A invenção da fotomontagem, uma adaptação da colagem por eles criada e
desenvolvida, feita de recortes de jornais e fotografias, adotou um caminho muito
diferente de outras colagens Dada, como as de Max Ernst, que tendiam a uma
desorganização poética da realidade. A fotomontagem, usando o material visual do
mundo à sua volta, do ambiente familiar, tornou-se uma arma política incisiva e
mordaz nas mãos dos dadaístas
30
Os Dada não se preocupavam com a durabilidade de suas obras, mas sim com a
significância de suas ações – o que posteriormente influenciou os surrealistas –, ou seja, a
ação como obra artística. O problema é que o público que visitava uma exposição Dada ficava
tão chocado, pois não conseguia entender nada. Muitas vezes chamavam as autoridades para
fechar exposições. Francis Picabia escreveu:
Vocês estão sempre em busca de uma emoção que já foi sentida antes, assim como
gostam de receber de volta da tinturaria um velho par de calças, que parecem novas
desde que não sejam olhadas de muito perto. Os artistas são como tintureiros, não se
deixam ludibriar por eles. As verdadeiras obras de arte modernas não são feitas por
artistas, mas, muito simplesmente, por homens.
31
30
STANGOS, op. cit., p. 106. Nota 21.
31
Francis Picabia, Jesus-Christ rastaquouère. Paris, 1920, p. 44. In: STANGOS, op. cit., p. 105. Nota 21.
24
Nesse clima de efeitos de choques sequenciais que o público não compreendeu, o
objetivo final do dadaísmo, e a nova tentativa de recondução da arte para a práxis vital seriam
operados pelo movimento histórico de vanguarda surrealista.
25
CAPÍTULO II
O MOVIMENTO SURREALISTA:
Arte, Política ou Revolução?
Entre os anos de 1865 e 1875, alguns grandes anarquistas, trabalhando
independentemente um dos outros, fabricaram suas máquinas infernais. O
surpreendente é que, sem qualquer coordenação entre si, ajustaram seus relógios
precisamente na mesma hora, e quarenta anos depois, os escritos de Dostoievski,
Rimbaud e Lautréamont explodiram, na mesma época, na Europa Ocidental.
Walter Benjamin, “O Surrealismo”.
O surrealismo propõe um novo olhar sobre o homem, sobre as suas relações com o
mundo, sobre o seu modo de dizer e de pensar. A ruptura que o movimento surrealista
vislumbrou no horizonte era como a sociedade vigente que visava apenas o lucro e a divisão
do trabalho. Desde o início do movimento, Breton (apud BENJAMIN, 1996, p. 22) “declarou
sua vontade de romper com uma prática que entrega ao público os precipitados literários de
uma certa forma de existência”
32
, contudo, sem revelar essa forma. Benjamin acredita que
esta forma, que podemos chamar de forma surrealista, é a mais concisa e, ao mesmo tempo a
mais dialética. Porque dominou a literatura e a explodiu de dentro, de forma imanente, na
medida em que um grupo homogêneo de homens conseguiu levar a ‘vida literária’ até os
limites extremos do possível. E isso é louvável, mas não é tudo.
As obras surrealistas estão envoltas de uma pretensa cortina de opacidade. Podemos
fazer uma analogia dos caminhos percorridos para a formação destas obras, tais como o
Romance Negro representado pelo Marquês de Sade, o Romantismo Alemão e a poesia de
Rimbaud e Lautréamont. Essas são influências persistentes, cuja importância é de destaque
para a compreensão do, assim chamado, estado de espírito em que foi abordada a
“aprendizagem dadaísta”. Essa aprendizagem é preliminar à tomada de consciência da
originalidade e da constituição (oficial) do movimento em 1924.
32
BENJAMIN, op. cit., p. 22. Nota 12
26
A constituição do movimento dá início a uma aventura intelectual viva, na qual a
escrita automática
33
– restituição de uma escrita autenticamente humana – e o pensamento
(surrealista) geram um aprofundamento da experiência pela busca do inconsciente e do acaso
objetivo [hasard objectif].
Qual mitologia moderna propõe o surrealismo? Nadja, de André Breton, pode ser um
bom exemplo dessa mitologia moderna, na qual se supõe fundamentar no amor uma nova
ética. Mas a que ética, a que humor esse movimento recorre para minar as bases de um mundo
contrário às verdadeiras aspirações do homem? O movimento surrealista visa à ação direta na
política, apontando para a possibilidade de lutar por uma sociedade livre. Desta forma,
Aragon e Breton definiram os seus critérios de leitura e decifração de um texto surrealista. E
Breton nos deu a chave para abrir a porta desse mundo mágico, no qual a magia, o absurdo e o
fantasmagórico imperam. Fica, então, a intrigante questão de como se pratica o surrealismo.
Qual é a sua exigência? Em suma, a exigência surrealista é a mesma desde a sua origem até os
dias atuais. Ela é aberta a todas as idéias inspiradas pelo seu projeto fundamental: a libertação
total do homem.
Segundo Benjamin, o movimento surrealista nas suas fases iniciais, passou por uma
modificação, a qual se pode caracterizar como dialética. Tal modificação dialética é a
transformação de uma atitude extremamente contemplativa para uma atitude de oposição
revolucionária, política. A frase de Aragon é exemplar: “Pensar na atividade humana me faz
rir”. Segundo Benjamin, tal afirmação “mostra claramente o caminho percorrido pelo
surrealismo, de suas origens até sua politização atual”
34
. Já Pierre Naville, em La révolution et
lês intellectuels, caracteriza o desenvolvimento do movimento surrealista como “dialético”.
Mas em que medida? Mas o que ou quem desencadeou essa mudança de uma postura
contemplativa para uma oposição revolucionária? Segundo Benjamin, foi a “hostilidade da
burguesia contra toda a manifestação de liberdade espiritual” que desempenhou “um papel
decisivo” na mudança, pois “foi essa hostilidade que empurrou para a esquerda o
surrealismo.” Assim como a hostilidade contra toda “manifestação de liberdade espiritual”,
“certos acontecimentos políticos como a Guerra do Marrocos
35
apressaram essa evolução”
36
.
33
A escrita automática é uma escrita sem sujeito, influenciada pelas teorias de Freud e da psicanálise sobre
automatismo e associações livres do pensamento e da linguagem. Breton e Soupault entregaram-se a uma
espécie de catarse ao construir uma escrita automática feita a dois, sem nenhum plano. Ou seja, uma escritura
feita a dois, sem nenhum sujeito. Esse é o ponto de partida do surrealismo em si.
34
O Surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia, p. 28.
35
A guerra era entre Marrocos e França, os surrealistas optaram ficar do lado de Marrocos.
36
Idem.
27
Com a publicação do manifesto Os intelectuais contra a Guerra do Marrocos na
revista Humanité, consolidava-se essa mudança de posicionamento, a qual se caracterizava
pela transformação da atitude contemplativa em oposição revolucionária. Para Benjamin,
“nascia uma plataforma distinta, por exemplo, da que fora proposta por ocasião do famoso
escândalo em torno do banquete oferecido a Saint-Pol-Roux”
37
. Nesse banquete, que
acontecera logo após a Guerra do Marrocos, os surrealistas lá presentes, protestaram “contra a
presença de personalidades nacionalistas que em sua opinião comprometiam a homenagem a
um dos poetas por eles admirado e gritaram: “Viva a Alemanha!”. Contudo, esse grito de
protesto virou apenas um gesto e “esse gesto não foi além do mero escândalo”
38
. Uma das
justificativas apresentadas por Benjamin no tocante a este protesto ter se tornado “mero
escândalo” é, como se é sabido, afirma ele, que “a burguesia é tão impermeável quanto é
sensível a todo tipo de ação”. Ou seja, ela engloba apenas o que é inofensivo à sua estrutura
político-econômica, como o “mero escândalo”, massificando toda a tentativa de manifestação
e emancipação
39
.
Assim, sob a influência dessas tempestades políticas que caiam sobre os surrealistas, é
notável a convergência de opiniões entre Apollinaire e Aragon”. No livro Poeté Assassine, de
Apollinaire, os capítulos “Perseguição” e “Assassinato”, segundo uma análise de Benjamin,
“contém a descrição célebre de um pogrom de poetas”
40
, no qual “as editoras são atacadas, os
livros de poemas lançados ao fogo, os poetas massacrados”. Benjamin vai além da situação
local, afirmando que “as mesmas cenas se dão no mundo inteiro”, ou seja, não é um problema
localizado somente na Europa, mas se estende a todos os países do mundo que estavam
passando por essas “tempestades políticas”, como entre a França e o Marrocos. E poetas
engajados, que lutavam por uma realidade social diferente estavam à frente para tais
mudanças. Aragon dirá que a “‘imaginação’, que pressente essas atrocidades, convoca seus
adeptos para uma última cruzada”
41
.
37
BENJAMIN, Walter, O Surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia. p. 29. In: BENJAMIN,
W. Magia e técnica, Arte e Política.
38
Idem.
39
Sobre a escandalização, podemos ver o que Benjamin pensa a respeito, também, nos dadaístas. “O
“comportamento social provocado pelo dadaísmo foi o escândalo. Na realidade, as manifestações dadaístas
asseguravam uma distração intensa, transformando a obra de arte no centro de um escândalo. Essa obra de
arte tinha que satisfazer uma exigência básica: suscitar a indignação pública”. In: Benjamin, “Obra de arte na
era de sua reprodutibilidade técnica”, p. 191.
40
O Surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia. p. 29 In: BENJAMIN. Magia e técnica, Arte e
Política.
41
Idem.
28
Reiterando o caráter mágico das vanguardas, pode-se dizer que a arte de vanguarda
possui maior proximidade com as fontes mágico-esotéricas. Sendo assim, o surrealismo reata
com o pensamento mágico através de uma atitude mágica. Afirma a possibilidade de um
conhecimento imediato, que reúna diretamente sujeito cognoscente ao objeto conhecido. Tal
conhecimento imediato permanece a maior parte das vezes implícito, faltando-lhe um
tratamento racional eficaz na capacidade oferecida ao homem de transformar o mundo em
função da vontade: “A própria essência da magia é apenas a crença noturna na eficácia do
desejo e do sentimento”
42
.
O surrealismo está animado pelo desejo de encontrar o segredo desse pensamento
mágico, obliterado pelo racionalismo e deformado pelo cristianismo. Encontrar esses poderes
perdidos é a intenção já expressa no Premier Manifeste du surréalisme, no capítulo intitulado
Secrets de l´art magique surréaliste”. A partir deste capítulo, fica claro que as intenções dos
surrealistas visam a religação a uma mentalidade mágica, a qual precede a separação dos
poderes do homem. E os poderes que os surrealistas visam reunificar – arte e vida –
constituíam-se unificados antes da instauração de uma distinção entre poesia, filosofia e
ciência. Assim, “é preciso admitir que um denominador comum, que não pode deixar de ser a
magia, une o feiticeiro, o poeta e o louco. Ela é a carne e o sangue da poesia. Melhor, na
época em que a magia resumia toda a ciência humana, a poesia ainda não se distinguia dela.
43
Portanto, segundo a citação acima, o racionalismo deve ser reavaliado em função
daquilo que subjugou. Tal racionalismo asfixiou a arte primitiva nas suas realizações plásticas
e literárias. Isso prova que a magia permite ao homem manter-se em estreito contato com a
totalidade do Universo. No entanto, praticar uma arte desaparecida sociologicamente no
Ocidente é algo estéril, ou seja, incapaz de enriquecer o conhecimento. Não é possível viver
em um mundo, no qual o seu modo de viver desapareceu. O grande dilema é que fomos
cindidos e não nos encontramos mais, a reconciliação é cada vez mais remota.
No mundo moderno-contemporâneo, a magia se desvela quando estamos sob o
exercício da poesia, da atividade livre de coações aonde o livre jogo impera. A poesia tem
como fonte o pensamento mágico, em que este faz com que o espírito ultrapasse os limites
impostos pela razão. Tal pensamento mágico faz com que exploremos as capacidades
42
DUROZOI, G; LECHERBONNER, B. O Surrealismo. Trad.: Eugenia Maria Madeira Aguiar e Silva.
Coimbra: Livraria Almedina, 1972, p. 7.
43
PERRET, B. Le Déshonneur des poètes; précédé de La parole est à Péret. Introdução: Jean Schuster. Paris:
Jean Jacques Pauvert, 1965. p. 51.
29
poéticas, em todos os sentidos, não somente no poema, também nas artes plásticas e na vida
cotidiana, porque contribui para a elucidação do homem e das suas relações com o mundo.
Segundo Benjamin, a magia transita nos jogos de transformação fonética e gráfica,
“que já há quinze anos apaixonam toda a literatura de vanguarda, do futurismo ao dadaísmo e
ao surrealismo.” No entanto, esses jogos de transformação fonética e gráfica “nada mais são
que experiências mágicas com palavras, e não exercícios artísticos”
44
. Pode-se concluir que a
literatura de vanguarda está pendendo mais para o lado linguístico do que artístico.
Apollinaire nos mostra como a palavra, “a fórmula mágica e o conceito se
interpenetram.” Benjamin, no ensaio “O Surrealismo”, cita um trecho de L’esprit nouveau et
les poétes (1918), último manifesto de Apollinaire:
A rapidez e a simplicidade com as quais os espíritos se habituaram a designar com
uma só palavra seres tão complexos como uma multidão, uma nação, um universo,
não tinham na poesia sua contrapartida moderna. Os poetas contemporâneos
preenchem essa lacuna, e seus poemas sintéticos criam novas entidades, que tem um
valor plástico tão composto quanto os termos coletivos.
45
Apollinaire e Breton avançam mais energicamente, na mesma direção, “e pretendem
completar a anexação do surrealismo ao mundo circundante”, quando afirmam que “as
conquistas da ciência se baseiam mais num pensamento surrealista que num pensamento
lógico”. Eles também querem “transformar a mistificação, cuja culminância Breton vê na
poesia [...], no fundamento, também, do fundamento cientifico e técnico; uma integração
desse tipo parece demasiadamente tempestuosa”. Assim, Benjamin critica quando diz que
“seria instrutivo comparar a maneira precipitada com que esse movimento é associado ao
milagre incompreendido da máquina, como faz, por exemplo, Apollinaire: “as velhas fábulas
em grande parte se realizaram, e cabe agora aos poetas inventar novas, que poderiam por sua
vez ser realizadas pelos inventores”. Benjamin compara “essas fantasias sufocantes com as
utopias bem ventiladas de um Sheerbart”.
46
Já o poeta obscuro do Século XIX, Lautréamont, o qual muito inspirou os pilares do
movimento surrealista, dirá que a poesia tem que ser feita por todos, algo parecido com a arte
primitiva, a qual o homem primitivo comungava estreitamente entre si. Segundo Benjamin
44
BENJAMIN. O Surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia. p. 28.
45
Idem.
46
Idem.
30
Péret, “não se trata aqui de fazer a apologia da poesia à custa do pensamento racionalista, mas
de protestar contra o desprezo da poesia por parte dos detentores da lógica e da razão”
47
.
O movimento surrealista visa um “projeto de futuro”, no qual as gerações futuras terão
de encontrar a síntese da razão e da poesia. Esta, portanto, seria a reconciliação dialética da
razão, já que a magia a que os surrealistas tentam recorrer implica um futuro ilimitado.
Partindo da premissa segundo a qual o homem primitivo não se conhece, apenas procura-se.
O homem atual perdeu-se. E o de amanhã deverá reencontrar-se primeiramente, reconhecer-
se, tomar contraditoriamente consciência de si mesmo.
O que podemos designar por esotérico, grosso modo, são as doutrinas cuja explicação
é reservada apenas aos iniciados, e que caracterizam as “ciências ocultas”, como por exemplo,
a alquimia. A alquimia é caracterizada por sua literatura simbólica, por visões alegóricas
(demiúrgicas) e pelas técnicas tanto míticas quanto empíricas. Pode-se dizer que os
surrealistas exploram todas as direções da tradição esotérica e as aproximam do mundo, na
medida em que tendem para um saber absoluto, que permite decifrar as misteriosas relações
do homem e do universo.
Os participantes do movimento surrealista prezam um conhecimento que vai além do
raciocínio discursivo, caracterizado como um conhecimento intuitivo. Tal conhecimento é
uma espécie de iluminação, uma vidência do outro mundo – um desejo de ultrapassar este
mundo atual – no qual trará a salvação do surrealista. O poeta surrealista está atento, à escuta
dos segredos do mundo, na medida em que quer definir os laços que prendem o homem ao
universo. Ele possui e multiplica as suas “técnicas” herdadas através dos séculos pelas
ciências ocultas. Com isso, esse poeta estará apto para “ver além” (no sentido rimbaudiano de
vidência
48
) – no sentido de sua obra. Aí pode-se avaliar até que ponto de “ir além”, de
profundidade, esse autor alcançou. Logo, é necessário que entendamos que o poeta surrealista
é um iniciado, ele é aquele que mergulha para os outros no mundo sem voz.
Já no tocante de uma possibilidade de uma aproximação subjetiva e intuitiva desse
conhecimento surrealista, podemos citar Novalis: “Nós compreendemos o mundo quando nos
compreendemos a nós próprios, porque ele e nós somos metades integrantes”
49
. O
surrealismo, portanto, se apóia na idéia filosófica de Novalis, para determinar uma tentativa
de concepção harmoniosa entre sujeito e objeto; na decifragem subjetiva do mundo exterior.
47
PERET. In: DUROZOI, G.; LECHERBONNIER, B., op. cit., p. 13. Nota 42.
48
No caso de Rimbaud, ser vidente, ver além — tarefa do vidente — não é antecipar ou antever o futuro,
predeterminá-lo, mas é, sobretudo, percebê-lo através de uma outra perspectiva, desregrada, que inclua o
desconhecido e o indeterminado.
49
NOVALIS. In: DUROZOI; LECHERBONNIER, op. cit., p. 16. Nota 42.
31
A verdade é que os surrealistas querem recuperar os valores e os poderes perdidos, ou
seja, querem trazer novamente a arte para a esfera da vida. Para isso, segundo eles, é preciso
mergulhar nos abismos do EU. Esses poderes originários que a mitologia antiga relegava para
um passado edênico, os quais devem ser recuperados, estão latentes para os surrealistas sob o
peso das repressões morais, sociais e intelectuais. Os pretensos séculos científicos traíram a
verdadeira ciência (alquimia). O que pode ter ocorrido foi a dessacralização do esotérico
através do freudismo. Dessa forma, o projeto da poesia surrealista coincide com o da Alta
Magia. Segundo André Breton, o surrealismo desde a sua origem teve como propósito a
libertação total do homem e a religação da arte à vida.
O surrealismo, na sua origem, quis ser libertação integral da poesia e, através dela,
da vida [...] O principal obstáculo com o qual teve de se defrontar é a lógica
racionalista [...] Era impossível que [...] não nos sentíssemos impressionados pelas
analogias de textura que existam entre o que nós aí considerávamos e aquilo sobre o
que se edifica a filosofia oculta. Pela minha parte, isso devia, muito rapidamente,
levar-me a convencer que os poetas de quem, quase com exclusão dos outros, nós
sofremos hoje o ascendente são aqueles que mais influenciados foram pelo
pensamento esotérico, tais como, em França: Hugo, Nerval, Baudelaire, Rimbaud,
Lautréamont, Jarry, Apollinaire. Tudo se passa como se a alta poesia e o que se
chama a “alta ciência” marcassem uma direção paralela e se prestassem um apoio
mútuo
50
.
Contudo, do mesmo modo em que há pontos em comum com a alta magia, também há
rejeição dos seus postulados metafísicos ou religiosos. Nada melhor do que a fórmula
rimbaudiana da “alquimia do verbo”, já que Breton nunca escondeu que as pesquisas
surrealistas apresentam notável analogia com as pesquisas alquímicas. É preciso que
libertemos definitivamente o espírito que há séculos está domesticado e resignado.
Enfim, a tradição esotérica influencia o surrealismo, ao passo que trata de uma
identidade de concepção do mundo e dos princípios do conhecimento, e pode-se ainda dizer
que os grandes poetas do Século XIX compreenderam esse esoterismo.
As fontes literárias reivindicativas eram, sobretudo, o Romance Negro e a Literatura
Fantástica dos séculos XVIII e XIX; o século XVIII, com Rousseau e com o Romance Negro
de Walpole, Ann Radcliffe; no século XIX, temos Arnim, Nerval e Poe que eram
50
BRETON, André. Perspective cavalière. Paris: Gallimard, 1970. p. 128.
32
considerados “videntes autênticos”, mais o Romance Negro de Maturin e Marquês de Sade
51
.
O interesse por tal tipo de romance e pelo conto fantástico, segundo os surrealistas, reside em
que ele ultrapasse a ficção para atingir o estágio da alta ficção, na qual realmente evoluem
seres que haurem a sua existência no imaginário, que exprimem o desejo de libertação total
fora das condições morais, psíquicas e mesmo físicas em que a ordem atual, racional,
confirma o homem, em que ele faz emergir do subconsciente potências obscuras.
O sagrado e o profano se convergem na visão de mundo surrealista. Os conceitos
repressivos, Deus-espiritualidade-consciência opõem-se aos conceitos Diabo-sensualidade-
inconsciência. Contudo, fica evidente que se trata de um embate entre símbolos, de ordem
mítica, ou seja, não há nenhuma crença, por parte dos surrealistas, em Satã ou Diabo.
Segundo Breton, no Premier Manifeste, no tocante ao poder criador da imaginação, diz que o
que há de admirável no fantástico, é que já não há fantástico: apenas o real existe. Remetendo,
portanto, à instauração hoje do princípio de realidade sob o princípio de prazer.
No entanto, entre o sagrado e o profano, a arte de vanguarda não tem mais como
destinatário Deus, mas sim, o público profano. E tal público é suscetível de contribuir para a
transformação da realidade. A busca pela salvação, antes fundada na tradução da linguagem
poética em linguagem mais pura, agora se fundamenta através da ação revolucionária e pela
reconciliação entre técnica e natureza. O valor do culto cede lugar para o valor de experiência,
o qual procura despertar ou motivar.
O romance negro – é historicamente o anúncio da rebelião contra as estruturas
esclerosadas, constitui o mito coletivo de uma regeneração ética e política – os surrealistas
procuraram fundamentar uma nova realidade social regida pelo princípio de prazer sob esse
princípio de realidade. O maior representante do romance negro, aquele que oferece maior
contestação, foi o Marquês de Sade. Mesmo passando vinte e sete anos de sua vida na prisão,
este poeta apresenta uma vontade de ruptura absoluta. Breton, no panteão surrealista, o coloca
51
Walpole inaugurou um novo gênero literário de ficção, o chamado romance gótico, com a publicação do livro
The Castle of Otranto, 1764. Ann Radcliffe é considerada a precursora do estilo literário conhecido como
"horror gótico". Arnim publicou várias tragédias, narrativas, romances, poemas e artigos de jornais. É
considerados um dos mais importantes escritores românticos alemães. Nerval, escritor de origem francesa,
apresenta em sua obra, literatura e vida confundindo e ligando-se intimamente, cabendo à literatura o papel de
transcender o real. O essencial da sua obra foi publicado nos últimos anos de vida do autor: Voyage en Orient
(1851), Les Illuminés (1852), Les Filles du feu (1851) e Aurélia (1855). Poe, escritor, poeta, romancista norte-
americano, é considerado um dos precursores da literatura de ficção científica e fantástica. Maturin,
conhecido mais pela sua excentricidade, publica o romance Fatal Revenge; or, The Family of Montorio, no
qual segue a linha do terror gótico, em voga na Inglaterra desde a publicação de The Castle of Otranto. Sade,
o mais famoso dentre todos os citados, fez-se símbolo do romance negro, tendo a maioria dos seus livros
escritos quando estava num hospício. Seus livros remetiam a tramas sacrílegas e sadismos (conceito derivado
de seu nome). In: DUROZOI, G.; LECHERBONNIER, B. op. cit., p. 18. Nota 42.
33
ao lado de nomes como Freud e Fourier
52
, chamados, então, de emancipadores do desejo, no
sentido da exaltação arrebatadora da força do desejo oposta a todas as repressões.
No entanto, parece-nos um pouco absurda esta idéia segundo a qual Sade, com a sua
aparente apologia do desvio e dos crimes sexuais, seja um referencial para aqueles que têm o
amor como fundamento último.
Admitir uma tal contradição seria esquecer: primeiramente, que os “monstros”
sadistas nunca foram apresentados como exemplares, mas que realizam, segundo o
meio imaginário, uma aceleração do processo de decomposição da sociedade; além
de que, colocando no ponto mais elevado o amor “cortês”, os surrealistas nunca
esqueceram a que fundo tenebroso deve opor-se este amor: trata-se de conhecer as
duas formas mais opostas do amor e é desde logo necessário “levantar os tabus que
impedem que se trate livremente do mundo sexual e de todo o mundo sexual,
compreendidas as perversões”, empresa na qual Sade, evidentemente participa
plenamente: “A manter-se nas altíssimas esferas [... o] amor levado à incandescência
rapidamente tenderia a desencarnar-se. A admirável, a deslumbrante luz da chama
não deve esconder-nos de quê é ela feita” (Breton). Deste ponto de vista, é Sade
quem desvenda aquilo que nunca se tinha ousado dizer do homem, e compreende-se
que este alargamento do dizível, do pensável e do imaginável coincida com o
objectivo surrealista
53
Na medida em que o amor era exaltado como o bem supremo, o amor único se
impunha como ideal, seria possível amar duas vezes? Para os surrealistas não. O contrário não
abria as portas à libertinagem, com as complacências que tais exercícios arrastam para si e
para os outros? Portanto, as mulheres amadas tornavam-se objeto de veneração – basta ver a
representação de Gala para Dalí. As aventuras, sempre suspeitas, só podiam ser levadas em
consideração caso apenas se envolvessem por circunstâncias singulares, às vezes inteiramente
inventadas por aqueles que queriam desculpá-las. Entretanto, a prostituição feminina não era
condenada, e os bordéis tinham defensores confessos: Aragon, Éluard e mesmo Breton.
Essas regras estreitas e um pouco contraditórias foram frequentemente quebradas pela força
da vida, mas no final das contas, a maior parte dos surrealistas devia, grosso modo,
permanecer-lhes fiel.
Xavière Gauthier, no livro Surréalisme et sexualité, notará que René Crevel
54
será o
único no grupo a se opor “enérgica e sistematicamente a todos os mitos alienadores da
mulher: ele recusa a sexualidade monogâmica, recusa a sublimação ilimitada da mulher,
recusa em fazer desta última um instrumento de reprodução, recusa ‘virginizá-la’, puerilizá-la,
52
In: DUROZOI, G.; LECHERBONNIER, B. Op. cit., p. 20. Nota 42.
53
Idem, p. 21.
54
Em 1921, torna-se amigo de André Breton e adere ao Movimento Surrealista, do qual viria a ser expulso em
1925, altura em que escreveu novelas como Mon corps et moi. No entanto, persuadido pelo exílio de Trotsky,
em 1929 voltou para o grupo surrealista, tendo como principal objetivo a aproximação entre o Surrealismo e o
Comunismo. Em 1926 foi-lhe diagnosticada uma tuberculose e em 1935 descobriu que se tratava de
tuberculose renal, situação que o levou a cometer suicídio por asfixia com gás quando tinha apenas 35 anos.
34
beatificá-la”
55
. Porém, Breton freqüentemente se servirá de critérios morais para atacar os
dissidentes, como o fez com Robert Desnos
56
, no segundo manifesto surrealista
57
. E Jacques
Baron, para ironizar, em “Um Cadáver”, dirá: “Era o íntegro Breton, o indomável
revolucionário, o severo moralista”
58
.
É Thirion quem lembra, em Revolutionnaires Sans Révolution
59
que, nos meios
surrealistas, por volta de 1927, “o uso da droga, a homossexualidade eram objetos de
reprovação e as duas ou três exceções toleradas (Malkine e Crevel, por exemplo), se
explicavam pela honestidade profunda e pelas qualidades humanas dos interessados”. Sexo,
por sinal, era uma das obsessões mais fortes do grupo, tanto nas obras por eles produzidas,
quanto em discussões. A libertinagem era mal vista, a malícia, proscrita. A regra de ouro era o
amor, de preferência fatal, entre dois indivíduos do sexo oposto. Portanto, os surrealistas
seguem pelos caminhos do “humor”, da revolta contra os que oprimem o ser humano, e pelo
caminho da exaltação do amor e do sonho que levam à revolução. Para Benjamin,
a vida só parecia ser digna de ser vivida quando se dissolvia a fronteira entre o sono
e a vigília, permitindo a passagem em massa de figuras ondulantes, e a linguagem só
parecia autêntica quando o som e a imagem, a imagem e o som, se interpenetravam,
com exatidão automática, de forma tão feliz que não sobrava a mínima fresta para
inserir a pequena moeda a que chamamos ‘sentido’
60
.
A conclusão a qual Benjamin chega é que a imagem e a linguagem passam na frente,
pois “a linguagem tem precedência”, “não apenas precedência em relação ao sentido.
Também em relação ao Eu”. Ou seja, para Benjamin, a leitura e o pensamento também são
formas de iluminação e embriaguez. Contudo, “o processo pelo qual a embriaguez abala o Eu
é ao mesmo tempo a experiência viva e fecunda que permitiu a esses homens fugir ao fascínio
da embriaguez”
61
. Não é este o lugar do Eu, nem da embriaguez. Para descrever o movimento
surrealista, em sua totalidade e sua especificidade, o lugar de partida é o campo da
experiência. Tais “experiências não se limitam de modo algum ao sonho, ao haxixe e ao
ópio”. Segundo Benjamin, os surrealistas e as suas produções “não lidam com literatura, e sim
55
GAUTHIER, Xavière. Surréalisme et sexualité. Prefácio de J.-B. Pontalis. Paris: Gallimard, 1971, p. 235.
56
Robert Desnos é conhecido pela militância política, participou ativamente de grupos de resistência, tendo um
fim trágico em 1945, durante a Segunda Guerra. Em sua obra, há partes dedicadas a jogos com palavras,
como o “Rrose Selavy”.
57
BRETON, André - "Second Manifeste Surréaliste", in "Manifestes du Surréalisme". Paris, Gallimard, 1972,
pág. 127.
58
BARON, Jacques. L’An I du Surréalismesuivi de L’An dernier. Paris: Denoël: 1969, p. 155.
59
THIRION, André. Révolutionnaires Sans Révolution. Paris: Laffont, 1972, p. 98 e 99.
60
O Surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia. p. 22. In: BENJAMIN. Magia e técnica, Arte e
Política.
61
Idem. p. 23.
35
com outra coisa – manifestação, palavra, documento, bluff, falsificação, se quiser, tudo menos
literatura –, sabe também que são experiências que estão aqui em jogo, não teorias, e muito
menos fantasmas”
62
. No entanto, o erro recorrente de muitos é supor que só podemos
conhecer das “experiências surrealistas” os êxtases religiosos ou os êxtases produzidos pela
droga. Como, por exemplo, Lênin que aproximou a esfera da religião das drogas mais do que
agradaria aos surrealistas, que nunca fizeram essa aproximação.
Quanto à religião, Benjamin dirá que Rimbaud, Lautréamont e Apollinaire
engendraram uma revolta amarga e apaixonada, em especial pelo anticatolicismo, “para
‘desinfetar’ a política, descartando todo ‘diletantismo moralizador’”. E é sob esse aspecto que
Benjamin percebe toda política reformista dos democratas burgueses ou socialistas. Ele tem
reservas em relação ao Surrealismo, pois o “movimento quase ‘consegue ligar a revolta à
revolução’”. Segundo Rochlitz, “Benjamin expressa aí um ponto de vista característico dos
debates da extrema esquerda alemã impregnada das idéias de Lênin”
63
. Sobre o assunto,
Benjamin dirá, por exemplo, no caso de Rimbaud e Lautréamont:
É difícil resistir à sedução de ver o satanismo de um Rimbaud e de um Lautréamont
como uma contrapartida da arte pela arte, num inventário do esnobismo. Mas, se nos
decidirmos a ignorar a fachada dessa tese, encontraremos no interior algo de
aproveitável. Descobriremos que o culto do mal é um aparelho de desinfecção e
isolamento da política, contra todo o diletantismo moralizante, por mais romântico
que seja esse aparelho.
64
Este, segundo Benjamin, é um método, digamos, surrealista contra a vinculação entre
a moral idealista e a prática política. Ele prossegue dizendo que “para sermos mais rigorosos,
podemos selecionar da obra completa de Dostoievski exatamente o texto que de fato somente
foi publicado em 1915: ‘A confissão de Stavrogin’, dos Demônios”. Para Benjamin, esse
capítulo possui estreitas analogias com o Terceiro Canto dos Chants de Maldoror, de
Lautréamont, pois “contém uma justificação do Mal que exprime certos motivos do
surrealismo com mais força do que jamais conseguiram os seus propugnadores atuais”.
Benjamin afirma que “Stavrogin é um surrealista avant la lettre”, porque “ele compreendeu
como é falsa a opinião do pequeno burguês de que, embora o Bem seja inspirado por Deus,
em todas as virtudes que ele pratica, o Mal provém inteiramente de nossa espontaneidade, e
62
In: BENJAMIN, W. O Surrealismo. O último instantâneo da inteligência européia In: BENJAMIN, W.
Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. SP: Brasiliense, 1996, p.
30 e 31.p. 23.
63
ROCHLITZ, op. cit., p. 179. Nota 1.
64
Idem nota 62, p. 30.
36
nisso somos autônomos e responsáveis por nosso próprio ser”
65
. Continua afirmando que
ninguém como Stavrogin “viu a influência da inspiração no ato mais pérfido, e justamente
nele Dostoievski reconheceu a infâmia como algo de pré-formada, sem dúvida na história do
mundo, mas também em nós mesmos, como algo que nos é inculcado, imposto como uma
tarefa, exatamente como o burguês idealista supõe ser o caso com relação à virtude”.
Benjamin definirá o Bem e o Mal em Dostoievsky da seguinte maneira: “o Deus de
Dostoievsky não criou apenas o céu e a terra e o homem e o animal, mas também a vingança,
a mesquinharia, a crueldade. E também aqui o Diabo não interferiu com o trabalho”
66
.
Muitos sabem, e Benjamin procura ainda explicitar em seu ensaio sobre o surrealismo,
que “Rimbaud é católico, mas o é, segundo suas próprias confissões, em sua parte mais
miserável, naquela parte de si mesmo que ele não se cansa de denunciar, expondo-se a seu
ódio e ao de todos, ao seu desprezo e ao de todos: a parte que o força a confessar que não
compreende a revolta”
67
. Mais uma vez Benjamin faz uma análise e assim, acaba caindo em
uma sutil e ácida crítica literária. Ele prossegue dizendo que, contudo, a confissão de
Rimbaud, é a de “um ex-militante da Comuna, insatisfeito consigo mesmo, que quando voltou
às costas à literatura, já há muito tempo, em seus primeiros poemas, havia voltado as costas à
religião”
68
. Rimbaud escreve na Saison en enfer: “Ódio, eu te confiei o meu tesouro”.
Segundo Benjamin, “essa frase poderia servir de fundamento a uma poética do surrealismo”.
E tal poética seria melhor, na opinião dele, “do que a teoria da surprise, do ‘Poeta
surpreendido’, de Apollinaire”
69
, pois permitiria mergulhar suas raízes nas profundidades em
que se move o pensamento de Poe
70
.
E quanto às drogas, Benjamin afirmará que a “superação autêntica e criadora da
iluminação religiosa não se dá através do narcótico”
71
, mas sim através da Iluminação
Profana. Tal Iluminação é “de inspiração materialista e antropológica, a qual pode servir de
65
BENJAMIN, op. cit., p. 30 e 31. Nota 62.
66
Idem, p. 31.
67
Idem, p. 31 e 32.
68
Idem, p. 32.
69
Idem, idem..
70
No texto “Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo”, Benjamin na parte sobre o flâneur, falará
sobre Poe. Dirá que Poe “foi um dos maiores técnicos da literatura moderna [..], fez experiências com a
narrativa científica, com a moderna cosmogonia, com a descrição de fenômenos patológicos. Tais gêneros
valiam para ele como produções exatas de um método para o qual reivindicava validez universal. Nisso
Baudelaire se põe por inteiro ao seu lado e, tendo Poe em mente, escreve: ‘Não está longe o tempo em que
se entenderá que uma literatura que se recusa a progredir de mãos dadas com a ciência e com a filosofia é
uma literatura assassina e suicida’. O romance policial [...] faz parte de uma literatura que atende ao
postulado baudelairiano. A análise desse gênero literário já é a análise da própria peça de Baudelaire.” Cf.
Benjamin, Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo, p. 40.
71
Idem, nota 65, p. 23.
37
propedêutica o haxixe, o ópio e outras drogas”
72
. Mas isso com grandes riscos, e a
propedêutica da religião é a mais rigorosa, afirma o autor em questão. Contudo, nem sempre o
surrealismo esteve à altura dessa Iluminação Profana, e à sua própria altura. Mas por quê?
Benjamin critica o “andar” do movimento e o seu desenvolvimento, que posteriormente
culminaria na integração do movimento surrealista à instituição arte, se tornando apenas um
movimento histórico, mas isso falaremos na Parte II desta pesquisa.
No Introduction au discours sur le peu de réalité, Breton mostra como o realismo
filosófico da Idade Média serviu de fundamento à experiência poética. Filosoficamente,
porém, esse realismo da Idade Média, que se configurava a partir da “crença na existência
objetiva dos conceitos, fora das coisas ou dentro delas – sempre transitou com muita rapidez
do reino lógico dos conceitos para o reino mágico das palavras.”
73
. Quanto ao plano filosófico
dos surrealistas aproximar-se-á do pensamento alemão, sobretudo da filosofia de Hegel, que
para eles estava acima até de Novalis. A Alemanha seria o maravilhoso país, todo de
pensamento e de luz, que viu nascer em um século, aproximadamente, Kant, Hegel,
Feuerbach e Marx. A importância de Hegel era tamanha que Breton proferia sempre que
“onde a dialética hegeliana não funciona, não há pensamento nem esperança de verdade”.
Apesar disso, não podemos nos deixar enganar e pensar que os surrealistas eram hegelianos
fiéis. Na verdade, eles se afastaram do Idealismo e de tantas outras idéias próprias de Hegel.
O que vale salientar é que o surrealismo adotará plenamente a dialética como método de
superação das contradições aparentes, generalizando-a mesmo para tirar dela conclusões
imprevistas. Aqui, portanto, para nós importa considerar a presença fundamental da dialética
hegeliana no surrealismo, pois é a partir destas considerações que as análises marxistas
poderão ser reconhecidas como válidas.
Aos antecessores do surrealismo tanto do plano filosófico quanto poético podemos
elencar essencialmente: Jean-Paul Arnim, Novalis e Hölderlin. Citamos alguns autores que
também serão alvo das críticas surrealistas: Nerval (supernaturalismo), Aloysius Bertarant,
Petros Borel, Hugo (sobrenaturalismo), Baudelaire, Rimbaud, Lautréamont. Em uma
passagem (omitida no livro O Surrealismo) Breton descreve:
A ambição de serem videntes, de se fazerem VIDENTES, não esperou, para animar
os poetas, ser formulada por Rimbaud, mas Arnim que, desde 1817, proclamava a
identidade dos dois termos – “Nennen wir die heiligen Dichter auch Seher” –, é
talvez o primeiro a tê-la realizada integralmente. Tanto para um, como para o outro
destes poetas, descobrir na representação o mecanismo das operações da imaginação
e fazer depender aquela unicamente desta não tem, evidentemente, sentido a não ser
72
In: BENJAMIN, op. cit., p. 23. Nota 62.
73
Idem, p. 28.
38
com a condição de que o próprio EU seja submetido ao mesmo regime que o objeto,
de que uma reserva formal venha abalar o “Eu sou”. Toda a história da poesia desde
Arnim é a das liberdades tomadas com esta idéia do “Eu sou”, que nele começa a
perder-se.
74
Herdeiros evidentes dos românticos, os surrealistas revelam claras ligações com o
século XIX. Mas a moral negativa não poderia se contentar consigo própria. O surrealismo
inventou dispositivos para reencontrar essa liberdade perdida ou esmagada, entendido de
forma radical, como, “desde Bakunin, não havia mais na Europa”. Tal conceito radical de
liberdade, ele afirma, podemos encontrar nos surrealistas. O conceito radical de liberdade dos
surrealistas, portanto, tem por base “liquidar o fossilizado ideal de liberdade dos moralistas e
dos humanistas”, porque “sabem que ‘a liberdade só pode ser adquirida neste mundo com mil
sacrifícios, quer ser desfrutada enquanto dure, em toda a sua plenitude e sem qualquer cálculo
pragmático’”. É a prova, a seu ver, de que “‘a causa da libertação da humanidade, em sua
forma revolucionária mais simples (que é, no entanto, e por isso mesmo, a libertação mais
total), é a única pela qual vale a pena lutar’”. Desta forma, o que é relevante para Benjamin é
o fato de conseguirem “fundir essa experiência da liberdade com a outra experiência
revolucionária, que somos obrigados a reconhecer, porque ela foi também nossa”
75
. E
prossegue, “em suma: associar a revolta à revolução?” Pode ser uma saída apontada pelo
nosso autor. E ele indaga: “como representar uma existência que se desdobra inteiramente no
Boulevard Bonne-Novele, nos espaços de Le Corbusier e de Oud?”
76
Outros “instrumentos” surrealistas para a busca da liberdade podem ser considerados:
a negação que protege das contaminações possíveis e o automatismo; a narração dos sonhos;
o frottage, entre outros, serão instrumentos propiciatórios que cristalizarão, por meio da
linguagem ou da arte, essas manifestações de liberdade perdida. Por um lado, reencontrar a
liberdade não significa uma terapia individual. Por outro, o surrealismo não se quer como uma
estética. Não sendo nem uma terapia, nem uma estética, o surrealismo não adapta essa
liberdade interior ao mundo, mas bem ao contrário, inflama as contradições. O surrealismo
quer, desde seu início, em luta contra o mundo opressor, reconduzir a arte para a vida, e a
partir daí proclama-se revolucionário. Desde 1924 ele se exprimirá num periódico que se
chama justamente “A Revolução Surrealista”. Os princípios revolucionários são estabelecidos
74
BRETON, In: BENJAMIN, op. cit., p 24. Nota 62.
75
BRETON apud BENJAMIN, op. cit., p. 32. Nota 62.
76
Idem, p. 32.
39
muito cedo, na “Declaração do dia 27 de janeiro de 1925”, um manifesto do qual o
surrealismo, durante toda sua história, jamais se afastou. Eis o texto
77
:
1. Não temos nada a ver com a literatura. Mas somos muito capazes, se necessário,
de nos servir dela como todo mundo.
2. O surrealismo não é um meio de expressão mais ou menos fácil, nem mesmo uma
metafísica da poesia. É um meio de libertação total do espírito e de tudo o que se
parece com ele.
3. Nós estamos firmemente decididos a fazer uma Revolução.
4. Juntamos a palavra surrealismo à palavra Revolução apenas para mostrar o caráter
desinteressado, desligado e mesmo completamente desesperado dessa revolução.
5. Não pretendemos mudar em nada os erros dos homens, mas pensamos com
firmeza demonstrar-lhes a fragilidade de seus pensamentos, e sobre que fundações
movediças, sobre que porões eles fixaram suas trêmulas casas.
6. Lançamos à sociedade este solene aviso. Que ela preste atenção aos seus
equívocos, a cada um dos maus-passos de seu espírito, nós não a perdoaremos (...).
7. Somos especialistas na Revolta. Não existe um meio de ação que, em caso de
necessidade, não sejamos capazes de empregar (...).
O surrealismo não é uma forma poética.
É um grito do espírito que se volta a si mesmo e está decidido a moer
desesperadamente suas travas.
E, se necessário, por meios materiais”.
2.1 O movimento Surrealista na “literatura”, ou melhor, na linguagem surrealista:
O Camponês de Paris e Nadja
De nada nos serve a tentativa patética ou fanática de apontar no enigmático o seu
lado enigmático. Só devassamos o mistério na medida em que o encontramos no
cotidiano, graças a uma ótica que vê o cotidiano como impenetrável e o
impenetrável como cotidiano.
Walter Benjamin, O Surrealismo.
77
In: NADEAU, M. História do Surrealismo. Trad.: Geraldo Gerson de Souza. SP: Editora, p. 72.
40
Antes de falarmos da linguagem surrealista em si, cabe tecermos algumas linhas
acerca do papel do crítico, apresentado por Benjamin no ensaio sobre o surrealismo. Para
Benjamin, o crítico tem o poder de instalar nas “correntes espirituais” uma “usina geradora”,
quando essas correntes espirituais atingem um determinado ponto, um “declive
suficientemente íngreme”, para gerar energia, Benjamin identifica esse declive, no caso do
surrealismo, como sendo a diferença de nível entre a França e a Alemanha. O surrealismo
brotou na França, como “um estreito riacho, alimentado pelo úmido tédio da Europa de após-
guerra e pelos últimos regatos da decadência francesa”
78
. A crítica feita por Benjamin aos
chamados “eruditos” da elite francesa, era no sentindo de que eles eram incapazes de
determinar “as origens autênticas do movimento” surrealista. E ainda seguia no tom de que
esses eruditos eram como “uma junta de técnicos”, os quais apenas se limitavam a falar que a
respeitável opinião pública estava sendo mais uma vez mistificada por uma ‘clique de
literatos’. O que ocorreu foi que após esses técnicos/eruditos muito observarem uma fonte,
chegaram à conclusão de que o córrego não poderá jamais impulsionar turbinas. Ou seja,
segundo os técnicos/eruditos, esses literatos do movimento surrealista jamais chegariam à
revolução ou mudariam algo efetivamente.
Contudo, o “observador alemão” não está situado na fonte dos técnicos/eruditos. Ele
está no vale, portanto é capaz de avaliar as energias do movimento de maneira efetiva. É
capaz de avaliar porque está familiarizado com a crise da inteligência, ou melhor, do conceito
humanista de liberdade
79
. E por quê? Uma possível argumentação seria que o observador
possui “uma vontade frenética de ultrapassar o estágio das eternas discussões e chegar a todo
o preço a uma decisão”. O “observador alemão” já experimentou sua vulnerabilidade à fronda
anarquista e à disciplina revolucionária, assim, “não haveria nenhuma desculpa se
considerasse esse movimento como ‘artístico’ ou ‘poético’”. Mas é possível que tenha sido
assim no começo com o “observador alemão”
80
.
Benjamin em seu ensaio sobre o Surrealismo cita O Camponês de Paris (1926), de
Aragon e Nadja (1928), de Breton, como sendo livros exemplares sobre o movimento
78
BENJAMIN, op. cit., p. 21. Nota 62.
79
Neste trecho, Benjamin se refere ao Romantismo, ou melhor, a uma “política poética” que não é mais uma
resposta adequada à realidade do início do Século XX.
80
Idem, nota 79.
41
surrealista. Ao olhar de Benjamin, eles anunciam o conceito de “iluminação profana”
81
com
vigor e mostram desvios perturbadores.
A passagem de Nadja sobre “Sacco e Vanzetti” – da Sra. Sacco (vidente) e a passagem
de Éluard (alusão a Paul Éluard) – diz-se que “não deve esperar de Nadja nada de bom”. Tal
afirmativa remete aos caminhos aventurosos do surrealismo que bate às suas portas para
interrogar o futuro, como na passagem do quarto do fundo do espiritismo. Segundo Rochlitz,
Benjamin ao se aproximar do surrealismo, e sobretudo, de Breton, criticará a “paixão dos
videntes e do espiritismo, mas ele dirá que a embriaguez – que segundo ele só pode ser
‘teológica’ – é uma ‘propedêutica’ da inspiração materialista e antropológica”. Assim, “num nível
coletivo a relação do homem com a técnica advém da mesma lógica [...], a fim de conjurar a
magia arcaica pela magia esclarecida da técnica”. Ou seja, a Benjamin importa que o proletariado
reate com a experiência da embriaguez que ligava os homens da Antiguidade ao Cosmos”
82
.
Benjamin acha mais emancipatório o fato dos surrealistas – esses filhos adotivos da
revolução – romperem radicalmente com tudo o que se passa nesses conventículos de damas
caridosas, de majores reformados, de especuladores emigrados. Nadja é apropriado para
ilustrar traços fundamentais do conceito de iluminação profana. Breton o descreve como um
livro de portas batentes (Benjamin fala do exemplo de Moscou com os monges e faz “ponte”
com os leitores de Nadja): “Viver numa casa de vidro é uma virtude revolucionária por
excelência”
83
, pois esse exibicionismo moral, que pode ser uma embriaguez, “nos é
extremamente necessário”
84
.A virtude ou discrição, “no que diz respeito à própria existência,
antes uma virtude aristocrática, transforma-se cada vez mais num atributo de pequenos
burgueses arrivistas”
85
. Desta forma, Nadja acaba sendo a “síntese autêntica e criadora do
romance de arte e do roman a clef
86
.
Enfim, qual a finalidade, qual o thelos, da proposta surrealista? Benjamin indaga que
“em todos os seus livros e iniciativas, a proposta surrealista tende ao mesmo fim: mobilizar
para a revolução as energias da embriaguez”. Segundo Benjamin, as energias da embriaguez
culminam na tarefa mais autêntica dos surrealistas. Contudo, “sabemos que um elemento de
81
Segundo Gagnebin no posfácio de O caponês de Paris “essa ‘iluminação profana’ […] pode levar tanto aos
arcanos do inefável quanto à lucidez austera da militância revolucionária. Por baixo, por detrás do dito real, ou
melhor, a ele inseparavelmente entrelaçado, se perfila, pois, um outro surreal desconhecido, infinito, mas ao
alcance da mão para quem souber olhar”. Jeanne-Marie Gagnebin,, In: O camponês de Paris, p. 253.
82
ROCHLITZ, O desencantamento da arte, p. 174 e 175.
83
BENJAMIN, op. cit., p. 24. Nota 62.
84
Idem.
85
Idem.
86
O Roman a clef, em linhas gerais, é um romance com chave. Ele é constituído de personagens reais, mas, por
exemplo, com nomes trocados. E quem tem uma idéia da história tem a chave para desvendar quem são os
personagens na realidade. In: BENJAMIN, op. cit., p. 24. Nota 62.
42
embriaguez está vivo em cada ato revolucionário, mas isso não basta”, uma vez que “esse
elemento é de caráter anárquico”
87
e “privilegiá-lo exclusivamente seria sacrificar a
preparação metódica e disciplinada da revolução a uma práxis que oscila entre o exercício e a
véspera da festa”
88
.
O mérito de Nadja – com os seus personagens Nadja e o próprio Breton – é que o livro
“consegue converter, senão em ação, pelo menos em experiência revolucionária”. Por
exemplo, “tudo o que sentimos em tristes viagens de trem” – que na época de Benjamin já
começavam a envelhecer – “nas tardes desoladas nos bairros proletários das grandes cidades,
no primeiro olhar através das janelas molhadas de chuva de uma nova residência”
89
.
Tanto Nadja como o Camponês de Paris fazem explodir as poderosas forças
“atmosféricas” ocultas nessas coisas: nas energias revolucionárias que transparecem no
“antiquado”, naquilo que poderia transformar-se em “niilismo revolucionário”
90
:
“imaginemos como seria organizada uma vida que deixasse determinar, num momento
decisivo, pela última e mais popular das canções de rua”
91
.
No posfácio de Jeanne-Marie Gagnebin a O Camponês de Paris
92
, ela nos apresenta a
tese de Josef Fürnkäs, na qual, segundo ele, pode-se fazer uma leitura deste livro apoiado em
René Descartes – Meditações e Discurso do Método –, em particular o “Prefácio a uma
mitologia moderna”, no qual cabe uma paródia da meditação cartesiana. Em ambos, Aragon e
Descartes, encontramos uma homenagem à cidade de Paris, com as suas devidas proporções.
Aragon, “para solapar a bela prosa clássica e austera de Descartes, [...] precisa soltar as rédeas
da língua francesa até o limite do incompreensível”
93
. Assim o texto de Aragon é um labirinto
cheio de passagens e portais, como a própria Paris:
87
BENJAMIN, op. cit., p. 32. Nota 62.
88
Idem.
89
Idem, p. 25.
90
Sobre “niilismo revolucionário”, Rochlitz afirma tratar-se de “certas experiências particulares feitas no
espaço urbano e que lhe permitiram transportar para a atualidade certas idéias que, até então, ele associava à
alegoria barroca”. In: ROCHLITZ, op. cit., p. 180 e 181. Nota 1.
91
BENJAMIN, op. cit., p. 25. Nota 62.
92
Outra informação relevante sobre O camponês de Paris é que o livro deu em Benjamin “o impulso decisivo
para o seu projeto de estudo sobre as Passagens de Paris”. Benjamin, segundo Scholem, “tinha em mente
cinquenta páginas impressas, nas quais queria projetar – ainda totalmente para além do materialismo dialético
– uma fisionomia histórico-filosófica de Paris, num plano que refletiria também suas expectativas
metafísicas”. In: SCHOLEM, op. cit., p. 138. Nota 3.
93
GAGNEBIN, J. História e narração em Walter Benjamin. 2. ed. SP: Perspectiva, 2004. (Coleção Estudos:
142). , p. 241.
43
Ainda hoje pode-se entrar em Paris por várias portas cujos nomes remetem à cidade
de origem: Porte d´Orléans, Porte de la Vilette, Porte de Versailles etc. O primeiro
olhar sobre a capital fica como que entremesclado à perspectiva da cidade de
origem, antes que ambos se juntem na única imagem, insular e luminosa do coração
de Paris
94
.
E será desta forma, por essas diversas portas, que devemos entrar neste “livro-cidade
emblemático do Surrealismo”, porque “nenhum rosto é tão surrealista quanto o rosto
verdadeiro de uma cidade”
95
. Benjamin, aqui, ao falar da cidade de Paris, nos apresenta a
nova forma de mito, da “mitologia encantada das grandes cidades”
96
, ao mito como utopia. É
a esse mito como utopia que se vinculam os temas dos únicos que conhecem o maravilhoso:
temas como “da criança e do apaixonado, do sonhador e do animal, do viajante, do
colecionador e do escritor”. Segundo Rochlitz, tais seres “têm uma experiência da realidade
situada aquém da objetivação consciente e que escapam ao princípio de realidade e de
utilidade”
97
. A ambigüidade das grandes cidades – de ser ao mesmo tempo fonte de angústia e
de promessa de felicidade – é vivida “por aqueles que não têm a percepção embotada dos
adultos, que conservam a sensibilidade à flor da pele da criança cujo olhar revela a verdadeira
natureza do real”
98
.
A cidade de Paris deve ser desvendada. “O eu do Camponês de Paris deambula nas
Passagens pouco iluminadas e se desfaz nas semelhanças entre as certezas do erro e as
erranças da certeza.
99
A atitude surrealista é justamente a de aproveitar tais erros, tais
errâncias e a partir disto fugir das amarras da razão, da racionalidade imposta, da identidade,
do cotidiano
100
. Contudo, essa tomada de posição em aproveitar os erros, não pode ser
encarada como um “irracionalismo barato”, com relação aos moldes do racionalismo
iluminista, pois a pretensão teórico e prático-literária dos surrealistas é elevada. Para De
Chirico e Max Ernest, “não se pode comparar-se aos fortes traços das fortalezas internas de
uma cidade, que precisam primeiro ser conquistadas e ocupadas, antes que possamos
controlar seu destino, no destino das suas massas, o nosso próprio destino.”
101
E Nadja é uma
94
GAGNEBIN, In: ARAGON, L. O camponês de Paris. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 242.
95
BENJAMIN, op. cit., p. 26. Nota 62.
96
ROCHLITZ, op. cit., p. 173. Nota 1.
97
Idem.
98
Idem.
99
GAGNEBIN, In: ARAGON, op. cit., p. 242. Nota 95.
100
Segundo Gagnebin, esta é uma atitude que os surrealistas retomam de Baudelaire e de Rimbaud – “retomada
pelo Surrealismo com um frenesi que a experiência da chacina da Primeira Guerra, a esperança concreta da
revolução e, quase simultaneamente, a descoberta do inconsciente e das potencialidades infinitas da psiquê
humana”. Cf. Jeanne-Marie Gagnebin,, In: ARAGON, op. cit., p. 243. Nota 95.
101
BENJAMIN, op. cit., p. 26. Nota 62.
44
representante dessas massas supracitadas e daquilo que as inspira em sua atitude
revolucionária.
No Manifeste du Surréalisme, Breton já deixava claro que o interesse era no
“funcionamento real do pensamento”. Ao se interessar pelo funcionamento real do
pensamento
102
, Breton dá margem a uma discussão típica da reflexão filosófica
transcendental. Poderia pender para Kant, mas os surrealistas preferiram retomar a tentativa
da tradição mística. Segundo Gagnebin, esta tentativa –que não pretende ser uma solução –
quer “empurrar, por assim dizer, a linguagem até seus próprios limites, bater em seus muros
para provocar uma rachadura, cavar seus fundamentos para fazê-la – em parte – desmoronar.
[...] Pois, aqui, a razão não consegue mais oferecer socorro algum”.
103
Não será à toa que Nadja, nesse limiar entre razão e loucura, acabará num asilo. Ao
invés do termo iluminista “libertação do medo”, os surrealistas preferem o termo “evasão da
prisão de uma racionalidade”. E no contexto desta racionalidade aprisionante, a linguagem
também é alvo de denúncias por parte dos surrealistas, como sendo empobrecedora, restritiva,
superficial, castradora. Gagnebin afirma que esses chavõeso devem ser lidos de maneira
pueril. Ela alerta para uma exigência profundamente metafísica que “subjaz a esse gesto
provocativo: configurar os limites das palavras de dentro da linguagem, desenhar, com o lápis
do raciocínio, as fronteiras da razão, expressar o funcionamento do pensamento através do
pensamento”.
104
Assim como na tradição mística, as metáforas estão presentes e são constantes em toda
linguagem surrealista: “fechaduras que se trancam mal sobre o infinito”
105
. Benjamin, ao
analisar Breton, afirma que este “capta de forma singular, pela fotografia, lugares” como um
quarto dos fundos no primeiro andar do Théatre Moderne, com seus casais, banhados numa
luz azul, que chamavam “‘A anatomia’. Era o último refúgio do amor.” Para Benjamin,
Breton “transforma as ruas, portas, praças da cidade em ilustrações de um romance popular”.
Ele “arranca a essa arquitetura secular as suas evidências banais para aplicá-las com toda a
sua força primitiva, aos episódios descritos, aos quais correspondem citações textuais sob as
imagens, com números de páginas, como nos velhos romances destinados às camareiras”
106
.
Desta forma, ao somar esse caleidoscópio de elementos, pode se chegar à conclusão de que o
rosto surrealista e revolucionário de Paris está por toda parte, está estampado em todos os
102
A intenção dos surrealistas é de dizer com palavras como funciona o pensamento. In: GAGNEBIN, op. cit.,
p. 243. Nota 94.
103
GAGNEBIN, op. cit., p. 243 e 244. Nota 94.
104
GAGNEBIN, op. cit., p. 244. Nota 94.
105
ARAGON, op. cit., p. 44. Nota 95.
106
BENJAMIN, op. cit.,. p. 27. Nota 62.
45
lugares. Benjamin define: o que se passa com as pessoas – em Paris – se move como uma
porta giratória. No centro desse mundo de coisas, de passagens, há o mundo dos objetos. E o
mais onírico dos seus objetos é a própria cidade de Paris. E será, segundo Benjamin, somente
a revolta que desvendará inteiramente o seu rosto surrealista, nas suas ruas desertas, em que a
decisão é ditada por apitos e tiros.
A Paris dos surrealistas é um “pequeno mundo”. Como no grande, no cosmos, as
coisas têm o mesmo aspecto. Segundo Gagnebin em O Camponês de Paris,
passeamos por Paris, sim, mas passeamos por “Passagens”, entre o fora e o dentro,
entre a luz do dia e a luz artificial, entre a noite e o dia, entre a vida do comércio e a
morte das galerias fadadas a uma destruição próxima: passeamos pelo parque, mas o
parque é natureza artificial, jardim construído, miniatura de Alpes suíços
atravessados por um trem de subúrbio pobre.
107
Em Paris “existem encruzilhadas, nas quais sinais fantasmagóricos cintilam através do
tráfico, também ali se inscrevem na ordem do dia inconcebíveis analogias e acontecimentos
entrecruzados”
108
. É a fantasmagoria da vida parisiense. No texto “Charles Baudelaire: um
lírico no auge do capitalismo”, Benjamin falará que fantasmagórico é todo produto cultural
que hesita, ainda, um pouco antes de se tornar mercadoria pura e simples. Cada inovação
técnica que rivaliza com uma arte antiga assume durante um tempo a forma da
fantasmagoria
109
.
A cidade é uma paisagem esburacada do desejo, na qual, há “ruínas a serem
descobertas e interpretadas como na arqueologia, rastros a serem decifrados e (per)seguidos
como num romance de detetive ou de cowboy
110
. Para o flâneur, a rua se transforma em
moradia:
entre as fachadas dos prédios, sente-se em casa tanto quanto o burguês entre quatro
paredes. Para ele, os letreiros esmaltados e brilhantes das firmas são um adorno de
parede tão bom ou melhor que a pintura a óleo no salão do burguês; muros são a
escrivaninha onde apóia o bloco de apontamentos; bancas de jornais são suas
bibliotecas, e os terraços dos cafés, as sacadas de onde, após o trabalho, observa o
ambiente.
111
107
GAGNEBIN, op. cit. p. 245. Nota 94.
108
Idem, p. 248.
109
Por exemplo, os métodos de construção modernos dão origem à fantasmagoria das galerias na Paris do
século XIX. Ou, os modernos computadores de hoje dão origem à fantasmagoria de um computador dos
anos 1970.
110
GAGNEBIN, op. cit. p. 248. Nota 94.
111
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Trad.: José Martins Barbosa
e Hemerson Alves Baptista. 3. ed. SP: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas; v. III) p. 34.
46
A cidade é imagem em O camponês de Paris. Ela se transforma em algo a ser
decifrado. No capítulo “O sentimento da natureza no parque Buttes-Chaumont”, vemos que
está repleto de placas, de propagandas, de outdoors. E o flâneur “ocioso, caminha como uma
personalidade, protestando assim contra a divisão do trabalho que transforma as pessoas em
especialistas” e “protesta igualmente contra a sua industriosidade”
112
.
Benjamin, em Rua de mão única
113
observa profeticamente que a escrita
é inexoravelmente arrastada para as ruas pelos reclames e submetida às brutais
heteronomias do caos econômico. Essa é a rigorosa escola de sua nova forma. Se há
séculos ela havia gradualmente começado a deitar-se, da inscrição ereta tornou-se
manuscrito repousando oblíquo sobre escrivaninhas, para afinal acamar-se na
impressão, ela começa agora com a mesma lentidão, a erguer-se novamente do chão.
Já o jornal é lido mais a prumo que na horizontal, filmes e reclames forçam a escrita
a submeter-se de todo à ditatorial verticalidade
114
.
A escrita, a metáfora, a imagem verbal é a via de acesso para alcançar o
“desconhecido escondido e transparente”, ou seja, a “iluminação profana”. Conclusão, em
Benjamin, “o homem que lê, que pensa, que espera, que se dedica à flânerie, pertence, do
mesmo modo que o fumador de ópio, o sonhador e o ébrio, à galeria dos iluminados. E são
iluminados mais profanos”
115
. Em O camponês de Paris essas cenas triviais e comuns se
metarmofoseiam sob uma luminosidade outra, como no trecho:
Os homens vivem com os olhos fechados em meio aos precipícios mágicos. Eles
manejam inocentemente símbolos negros, seus lábios ignorantes repetem sem saber
encantamentos terríveis, fórmulas semelhantes a revólveres. Há razões para
estremecer ao ver uma família burguesa que toma seu café com leite pela manhã,
sem observar o inconhecível que transparece nos quadrados vermelhos e brancos da
toalha de mesa.
116
Essa imagem verbal do pensamento figurativo surrealista, segundo Gagnebin, está em
oposição ao pensamento “abstrato” ou “lógico”, que chama para si o rigor e a verdade.
Aragon dirá em uma passagem, “o homem enfermo da lógica: eu desconfiava das alucinações
deificadas”
117
. Ao se expressarem desta forma
112
BENJAMIN, op. cit., p. 50. Nota 112.
113
Segundo Gagnebin, o livro é uma homenagem ao surrealismo, à revolução e à Asja Lascis.
114
BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. Trad.: Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins
Barbosa. SP: Brasiliense, 1987. (Obras escolhidas; v. II)p. 28.
115
BENJAMIN, op. cit., p. 33. Nota 62.
116
ARAGON, op. cit., p. 201. Nota 95.
117
Idem, p. 140.
47
os surrealistas colocam […] o dedo na ferida originária da metafísica ocidental,
nesse rasgo entre mythos e logos, antigamente solidários na unidade da primazia da
palavra e, pouco a pouco, separados, distinguidos e até opostos na constituição do
discurso racional (histórico, filosófico, científico, lógico) contra o discurso poético-
sagrado (mítico, ficcional).
118
Ainda sobre o capítulo do livro de Aragon, “O sentimento da natureza no parque
Buttes-Chaumont”, notamos que há intenção de cópia e descrições topográficas, contudo, isso
não significa que o autor queira fazer de seu livro um guia para turistas. Na verdade, ele joga
com o leitor, alternando a descrição realista e a embriaguez. Nas palavras “auto-irônicas” do
próprio Aragon: “Azar, então que isso tenha um ar inacabado, azar se o caminhante que
percorre o Buttes-Chaumont com meu livro nas mãos percebe que mal falei desse jardim e
que negligenciei o essencial dele”
119
. Na verdade este parque faz parte da mesma “rede
labiríntica” que as passagens e o Théatre Moderne.
Somente em Paris, afirmava Benjamin, “podemos encontrar o catálogo daquelas
fortalezas, que começavam na Place Maubert, onde mais que em qualquer lugar a pátina
conservou seu poder simbólico, e iam até o Théatre Moderne, que para meu desconsolo não
conheci mais”
120
. A melancolia das coisas e os lugares que não existem mais. Benjamin não
conhece mais. Contudo, na “descrição do bar no primeiro andar, feita por Breton – ‘tão
sombrio, com seus impenetráveis caramanchões em forma de túneis, um salão no fundo de
um lago’”, ele se recorda do local, “mal compreendido”
121
, no antigo Café Princesa.
Esses passeios propostos em Camponês de Paris, nos cantos misteriosos, nas
passagens à noite, as ambíguas vendedoras de lenços, as cartomantes, todo esse conjunto
levam à embriaguez e a desafiarmos “nossos sonhos e nossas fantasias, nossos abismos,
nossos diversos infernos, nossa infância inquieta e nossa errância adulta, nossa morte”
122
.
Segundo Gagnebin, o livro “elabora uma encenação do divino, uma ascese da revelação”. Ela
continua, “os lugares enquanto espaços reais importam pouco; só se transformam em espaços
epifânicos graças à força dessa atenção distraída”. E prossegue afirmando, podemos
relacionar com a atenção flutuante de Freud, “cujas raízes mergulham tanto na attentio da
tradição mística como na hipersensibilidade dos ‘doentes mentais’”. Contudo, para Benjamin
a força do surrealismo “não provém de uma fruição equívoca de fenômenos ocultos”, a sua
força reside em sua “capacidade ímpar de vislumbrar o maravilhoso no coração do
118
GAGNEBIN, op. cit., p. 254. Nota 94.
119
ARAGON, op. cit., p. 209. Nota 95.
120
BENJAMIN, op. cit., p. 26. Nota 62.
121
Idem, p. 26.
122
GAGNEBIN, op. cit., p. 258. Nota 94.
48
cotidiano”
123
. Estes elementos constituem a “mitologia moderna”, cuja ligação se dá na
dimensão heurística, descobridora de imagens. Segundo Aragon, cada golpe de imagens nos
obriga a revisar todo o Universo, “dimensão mais preciosa ainda na medida que advém da
própria dinâmica da linguagem, e não de fora, da consciência ou da intenção de um sujeito
soberano, pretensamente anterior as suas palavras”
124
.
Notamos que essa dimensão imagética – sensível do pensamento – foi submetida a
regras de um conhecimento abstrato e dedutivo, que consideramos mais verdadeiro por conta
de nossas fontes gregas, “tão claras e tão incertas, seja um ideal de estabilidade, de duração,
de equilíbrio”, de atemporalidade ou até mesmo, eternidade. A partir deste contexto, a
“mitologia” moderna de Aragon remete ao efêmero, o qual não se dissocia da imagem. Para
Gagnebin, “a dimensão da imagem e a dimensão do efêmero são inseparáveis”. É a esfera do
pensar “que é a imaginação no sentido concreto de produção de imagens” que o poeta assume
e incorpora a “vertente instável, fugidia, evanescente – enfim, ligada à história, ao tempo e à
morte – do pensamento”
125
.
Pode-se dizer que é esse espaço que a lírica surrealista descreve, no qual o poeta é
ativo. Gagnebin aponta a descrição da “Passagem da Ópera” como sendo uma descrição “ao
vivo e uma homenagem póstuma”, porque é feita poucos meses antes de sua destruição. E
prossegue,
como em Baudelaire é, pois, a consciência da morte que desperta o olhar
mitologizante – porque o presente já é visto como ruína de um tempo passado – e o
desejo da escritura – sabe-se que as primeiras inscrições são as funerárias, rastros
gravados em monumentos que lembram a presença do ausente.[…] a própria
ambigüidade da palavra “passagem” alude, igualmente, à transgressão do último
limiar, à morte. […] morte coletiva configurada pelo passado (mesmo radical da
palavra “passagem”), recente ou afastado, que nos escapa.
126
Segundo Benjamin, é necessário que se entenda essa lírica surrealista, “para afastar o
inevitável mal entendido da ‘arte pela arte’. O autor ainda ressalta que essa fórmula, essa
lírica surrealista, que “raramente foi tomada em sentido literal, quase sempre foi um simples
pavilhão de conveniência, sob o qual circula uma mercadoria que não podemos declarar,
123
GAGNEBIN, op. cit., p. 252. Nota 94.
124
Idem, p. 254.
125
Idem, p. 255.
126
Idem, p. 256.
49
porque não tem nome”
127
, a qual os críticos, em geral, ainda não sabiam definir e nem rotular.
O momento surrealista remete pensar em um “sistema artístico” que, como nenhum outro,
consegue iluminar a crise artística vigente da época. Por essa razão, a história da literatura
esotérica deve ser escrita e entendida, não como uma obra coletiva, em que cada
“especialista” contribui, expondo “o que merece ser sabido”. Mas sim, como
a obra bem fundamentada de um indivíduo, que movido por uma necessidade
interna, descreve menos a história evolutiva da história esotérica que o movimento
pelo qual ela não cessa de renascer, sempre nova, como em sua origem – significaria
escrever uma dessas confissões cientificas que encontramos em cada século. Em sua
última página, figuraria a radiografia do surrealismo.
128
Após caminharmos pelo dadaísmo e chegarmos no surrealismo, faremos um percurso
para entendermos como tais movimentos pretendiam reunificar arte e vida ou práxis vital e
quais os motivos pelos quais esses movimentos históricos de vanguarda fracassaram.
Retomaremos e aprofundaremos os pontos já citados até aqui, para então, articular com o
pensamento de Benjamin, e assim, entender qual o fascínio que tais vanguardas exerceram
sobre ele, as consequências e heranças.
A seguir, algumas fotografias da exposição: “Marcel Duchamp: uma obra que não é
uma obra ‘de arte’”. Estas fotos se relacionam com a temática de nossa pesquisa, no que
concerne as aproximações e rupturas entre o dadaísmo e o surrealismo, bem como a influência
de Duchamp nas exposições surrealistas.
127
BENJAMIN, op. cit.,. p. 27. Nota 62.
128
Idem.
50
Foto 1
Boîte-En-Valise, 1935-41.
[Caixa-Valise]
A partir de 1935, Duchamp começa a fazer cópias em papel e réplicas em miniatura do
que considerava suas principais obras de arte, incluindo O grande vidro, Fountain [Fonte] e
Nu descendant un esscalier [Nu descendo uma escada]. Na era da reprodutibilidade técnica,
usou paradoxalmente métodos artesanais, inclusive técnicas minuciosas de pintura à mão e
moldagem para reproduzir, em alguns casos, objetos ready-made produzidos originalmente
em massa. O projeto durou muitos anos, pois seu objetivo era fazer trezentas reproduções de
exemplares do que denominava seu “museu portátil”, inclusive vinte valises de luxo para
amigos e mecenas. Como que para confundir o limite entre original e cópia, cada modelo de
luxo incluía uma obra de arte original
129
.
129
Os dados do texto foram extraídos da exposição de Duchamp no MAM.
51
Foto 2
Exposition Internationale du Surréalisme
[Exposição internacional do surrealismo]
17 de Janeiro a 24 de Fevereiro de 1938
Galerie Beaux-Arts
Rua do Faubourg Saint-Honoré, 140, Paris
Na primeira Exposition internacionale du surréalisme, Breton e Paul Eluard, pediram
a Duchamp que projetasse o espaço da exposição. O resultado, como pode ser notado pela
fotografia, não foi o de quadros pendurados na parede. Duchamp reproduziu no interior da
galeria um ambiente parecido com o de uma gruta. Ele pendurou 1.200 sacos de carvão por
todo o teto, instalou portas giratórias de lojas de departamento no centro da sala de exposição
e apagou as luzes do lugar. Na abertura da exposição, os visitantes caminharam no escuro e
apenas puderam ver as obras de arte sob a luz de lanternas cedidas na entrada da galeria.
52
Foto 3
First Papers of Surrealism
[Primeiros documentos do surrealismo]
14 de Outubro - 7 de Novembro de 1942
Whitelaw Reid Mansion, Avenida Madison, 451, Nova York
Breton pediu novamente a Duchamp que projetasse o espaço de uma exposição
surrealista. Intitulada First Papers of Surrealism, referência irônica aos documentos de
imigração que os artistas apresentavam ao entrar nos Estados Unidos, a exposição tinha por
objetivo beneficiar as Sociedades de Amparo à França. Duchamp concebeu um projeto
simples. E instalou quadros em biombos brancos soltos e suspensos por um emaranhado de
barbantes por todo o espaço. Os barbantes se emaranhavam em frente às obras, bloqueando o
acesso a elas. Na abertura, Duchamp pediu que crianças jogassem bola no meio da exposição.
53
Foto 4
Le Surréalisme en 1947
[O Surrealismo em 1947]
7 de Julho - 30 de Setembro de 1947
Galerie Maeght, Rua de Teheran, 13, Paris
Esta exposição marca a volta dos surrealistas à Europa após a guerra. Breton recorreu
a Duchamp, mesmo este estando em Nova York. Duchamp concebeu um espaço da exposição
executado com o auxílio do arquiteto Frederick Kiesler, que incluiu uma coleção de
“alterações” desenhada pelos artistas participantes – uma mesa de bilhar, uma chuva que caía
continuamente no meio de uma das salas e um tecido verde que cobria as paredes. Sua própria
contribuição incluiu uma das intervenções e Le Rayon vert [O raio verde], um buraco pelo
qual se podia ver uma ilusão óptica, embora a maioria dos visitantes não tenha notado o
buraco na parede. Duchamp desenhou uma capa incomum para a edição de luxo do catálogo
com a ajuda do surrealista Enrico Donati, sob o título de Prière de toucher [Por favor, toque].
54
Foto 5
Young Cherry Trees Secured Against Hares, 1946
[ Jovens cerejeiras protegidas contra lebres]
Texto de André Breton, capa e sobrecapa de Duchamp.
55
Foto 6
Exposition Internationale du Surréalisme
[Exposição internacional do surrealismo]
15 de Dezembro de 1959 - 15 de Fevereiro de 1960
Galerie Daniel Cordier
Rua Mirimesnil, 8, Paris
O tema da exposição “Eros”, tinha como idéia original de Duchamp transpor o
vibrante movimento de Rotorelirfs [Rotorrelevos] à escala arquitetônica. No final ele
concebeu uma parede revestida de veludo verde que “respirava” e que serviu de passagem
principal para o espaço escuro da exposição, significando uma espécie de interior corpóreo-
vaginal. O ar na exposição foi perfumado, no chão (como se pode notar na foto) havia areia e
os alto-falantes emitiam o som da gravação do artista Radovan Ivsic, de mulheres respirando
56
profundamente. Para as cópias de luxo do catálogo Boîte alerte! [Caixa Alerta!], Duchamp
preparou dois aventais, o “masculino” e o “feminino”.
Foto 7
Procissão fúnebre, dedicada a Oscar Panizza, George Grosz, 1917.
Foto 8
Presente, Man Ray
Ready-made, 1921.
57
Foto 9
Colagem de Max Ernst, ilustra o livro Une Semaine de Bonté, publicado, em Paris, em 1934, cujos
temas das catástrofes, violência e poder se misturam com alegorias mitológicas, contos de fadas, lendas e
sonhos.
Foto 10
É esta a salvação que eles trazem, Jhon Heartfield
Fotomontagem de 29 de Junho de 1938.
58
Foto 11
Estrelas, Kurt Schwitters, 1920. Colagem.
Foto 12
Kleine Dada Soirée [programme], Theo van Doesburg e Kurt Schwitters
Litografia de Dezembro de 1922.
59
Foto 13
Cabeça mecânica, Raoul Hausmann, 1919-1920. Madeira, couro e alumínio.
Foto 14
Tempo do Observatório - Os Amantes, Man Ray, 1932 – 1934.
60
PARTE II
61
CAPÍTULO III
TÉCNICA, MAGIA OU POLÍTICA: O PAPEL DAS VANGUARDAS
HISTÓRICAS E OS POTENCIAIS REVOLUCIONÁRIOS DA OBRA DE
ARTE EM WALTER BENJAMIN
Na estrutura do mundo, o sonho mina a individualidade como um dente oco.
“O Surrealismo”, Walter Benjamin.
Desde as últimas décadas do Século XIX, a arte assistia a profundas modificações e
rupturas. Os modelos que vinham sendo valorizados desde a época do Renascimento Italiano
pelas academias começavam a ser realmente questionados. Os artistas, acompanhando as
mudanças sociais, econômicas, políticas e filosóficas do mundo, passavam a desejar novas
expressões artísticas. O desenvolvimento das vanguardas européias do Século XX estava
intimamente relacionado aos artistas da geração anterior, que abriram caminho para as
gerações seguintes.
Nas vanguardas artísticas, as certezas seculares vacilam e todos os dogmas são
colocados em questão, tanto nas artes e nas ciências, quanto nas sociedades e nas religiões.
Desta forma, os movimentos de vanguarda surgem como uma ruptura em relação à realidade
social, que se considerava imutável, necessária, natural, na qual tudo devia ser mensurável e
medido, situado e definido, suscetível de um conhecimento e de um controle objetivos. Contra
essa realidade que via a natureza como uma máquina que o próprio homem fazia funcionar, e
que transformava esse homem, ao mesmo tempo, em um apêndice de carne, numa maquinaria
de aço, que o manipula de fora e o aliena cada vez mais, mecanizando o trabalho e a vida, as
vanguardas artísticas se configuravam como a inversão que não mais considera a arte como a
interpretação de um mundo dado e constituído, mas como uma projeção de um mundo
possível. Não mais como um naturalismo preocupado em copiar a cotidianidade da vida, mas
sim transformá-la. Um “novo” olhar é proposto para se atingir a verdadeira essência da
realidade.
62
No Século XX ocorreram profundas transformações em todas as esferas da
experiência humana, às quais os artistas não podiam manter-se alheios, o que em parte
justifica a profusão de movimentos e ideais artísticos que nele surgiram. Entretanto, fica a
questão: todas as transformações na arte foram realmente típicas desse conturbado período da
história ou apenas teve-se mais acesso a cada mínima manifestação artística devido ao
desenvolvimento dos meios de comunicação? Apesar do artista e sua criação serem
considerados únicos e, de certa forma, autônomos, não se pode alienar sua produção do
momento histórico e das mudanças de mentalidade que assistimos nesse século.
A pertinência da temática das vanguardas em Benjamin está baseada no fato dela
permear, praticamente, todos os seus escritos. O contexto que ele analisa é o das sociedades
ocidentais industrializadas, as quais cultuam o consumo, principalmente o consumo das
novidades que o novo século trazia – a velocidade, o crescimento, a produção, o capital.
Em meio a uma análise histórico-social imanente, nota-se que a arte vem sofrendo
mutações em sua forma e transpondo o seu lugar na sociedade, pois o artista não é mais,
somente, aquele que pinta um quadro encomendado, mas é aquele que denuncia e se mobiliza
frente aos problemas desta realidade social. A arte de vanguarda para Benjamin é a arte
politizada, como a poesia surrealista. É relevante compreendermos como a obra de arte
modificou-se, por si, o seu caráter meramente ornamental, ou ainda, ritualístico.
A instituição arte desenvolveu-se no interior da sociedade burguesa, na qual o
aparelho produtor e distribuidor configuram essa instituição, e ambos detêm as idéias sobre
arte predominantes num certo período, ou seja, esse aparato determina a recepção das obras.
A vanguarda irá, justamente, se voltar contra ambos: o aparelho distribuidor ao qual está
submetida e “contra o status da arte na sociedade burguesa, descrito como o conceito de
autonomia”
130
. Segundo Benjamin, no ensaio sobre o “Surrealismo”, “há sempre um instante
em tais movimentos em que a tensão original da sociedade secreta precisa explodir numa luta
material e profana pelo poder e pela hegemonia, ou fragmentar-se e transformar-se, enquanto
manifestação pública”. E o “surrealismo está atualmente passando por essa transformação”
131
,
no tocante à manifestação pública. Antes, no início, quando o movimento irrompeu sobre
criadores na forma de uma vaga inspiradora de sonhos (referência à Vague des rêves de
Aragon), ele parecia algo integral, definitivo, absoluto: “tudo o que ele tocava se integrava
nele”
132
. Para Benjamin, o potencial do surrealismo sempre foi grande e inspirador.
130
RGER, op. cit., p. 58. Nota 14.
131
BENJAMIN, op. cit., p. 22. Nota 62.
132
Idem.
63
Benjamin fundamenta a sua teoria da arte a partir do conceito de aura
133
, ou melhor, de
perda de aura, “para descrever as incisivas transformações experimentas pela arte no primeiro
quartel do século XX”
134
– a partir das transformações no âmbito das técnicas de reprodução.
Em Rua de Mão Única aparece o conceito de “declínio da aura”, esta seria uma nova atitude
de Benjamin em relação à arte. Esta nova atitude diz respeito à destruição da distância que
ocorre por causa das técnicas de reprodução. Temos, agora, uma proximidade imediata das
coisas, bem como a reprodução da imagem pelo cinema e pela publicidade. Como exemplo
podemos citar O camponês de Paris, segundo um trecho do Desencantamento da arte de
Rochlitz, o qual afirma que “a escrita literária é, agora, obrigada a empregar os meios mais
eficazes do momento: os da publicidade. Mas, é o efeito involuntário da publicidade, aquele
do desvio e da subversão, que é estrategicamente buscado”
135
.
A intenção de Peter Bürger, no livro Teoria da Vanguarda, é verificar se a tese de
Benjamin explica diretamente, a partir das transformações no âmbito das forças produtivas, as
condições de possibilidade da autocrítica. Tal conceito de autocrítica deduzido do
desenvolvimento histórico da esfera da arte, ou seja, instituição e conteúdos das obras. O
ponto de partida de Benjamin é um determinado tipo de relação entre obra e receptor. Essa
relação Benjamin chama de aurática. O conceito de aura tem sua origem no ritual de culto e se
traduz por inacessibilidade. É a “aparição única de uma coisa distante, por mais perto que
esteja” a obra de arte. Contudo, o seu modo de recepção, o modo de recepção aurático,
continua sendo característico também da arte que deixou de ser sacra, aquela a qual se
desenvolveu a partir do Renascimento. Mas a Benjamin não importava essa classificação,
própria da História da Arte. O que é decisivo é a perda da aura, e não o corte classificatório
entre a arte sacra da Idade Média e a arte profana do Renascimento. O conceito de arte
aurática vem do período da arte sacra, ritualística, e do período da arte autônoma, ou seja, da
sociedade burguesa e do esteticismo. Rochlitz, neste trecho sintetiza aquilo que trataremos de
forma mais aprofundada a seguir.
Nenhuma obra de arte pode, atualmente, possuir a magia e a autoridade de uma
obra-prima da Idade Média e do Renascimento, mas uma colagem irreverente que a
desvia de seu sentido pode ter o valor de revelação incomparável para nossa época.
Benjamin está nesse caminho quando situa a evolução histórica entre o valor de
133
A definição de aura se encontra primeiramente no ensaio “Pequena história da fotografia”, e é um dos
conceitos centrais da estética benjaminiana. Segundo Rochlitz, a aura procura comunicar-se com Deus e não
com um receptor qualquer “visado por uma estratégia literária”. In: ROCHLITZ, p. 160. Nota 1.
134
BÜRGER, op. cit., p. 66. Nota 14.
135
ROCHLITZ, op. cit., p. 162. Nota 1.
64
culto e o valor de exposição; mas ele privilegia ainda a trajetória do médium
artístico, ou seja, técnico – aqui, o do filme –, sem relacioná-lo com a dinâmica
própria da vida social. Assim, ele formula [...] o primado da mídia sobre a iniciativa
política: o rádio, a televisão e o filme, favorecendo a farsa do carisma dos ditadores,
parecem condenar a “democracia burguesa”.
136
3.1 A Técnica e a Magia
Para Benjamin, a essência da obra de arte sempre foi reprodutível, sempre ouve algo
que pudesse ser imitado por outros homens, como no caso da imitação praticada por
discípulos, no entanto “a reprodução técnica da obra de arte representa um processo novo, que
se vem desenvolvendo na história intermitentemente, através de saltos separados por longos
intervalos, mas com intensidade crescente”
137
. Portanto, o corte, a cisão se dá através da
transformação das técnicas de reprodução. Ao longo do processo de transformação técnica, as
“artes gráficas adquiriram os meios de ilustrar a vida cotidiana”. A fotografia, um marco na
reprodução técnica, liberou a mão “das responsabilidades artísticas mais importantes, que
agora cabiam unicamente ao olho”
138
. Desta forma, segundo Benjamin, como o olho apreende
mais rápido, “o processo de reprodução das imagens experimentou tal aceleração que
começou a situar-se no mesmo nível que a palavra oral”
139
.
Com a reprodutibilidade técnica, ou “mesmo na reprodução mais perfeita”, o elemento
que confere a sua autenticidade está ausente. Para Benjamin, este elemento se configura no
conceito de aura: “o aqui e agora da obra de arte, sua existência única, no lugar em que ela se
encontra”
140
, ou seja, o conteúdo de sua autenticidade: “a esfera da autenticidade, como um
todo, escapa à reprodutibilidade técnica, e naturalmente não apenas à técnica”
141
. Segundo
Bürger, a recepção aurática supõe categorias como autenticidade e unicidade. No entanto,
com as técnicas de reprodução, essas categorias se tornam supérfluas diante de uma arte,
como por exemplo, o cinema, o qual tem como projeto e fundamento a reprodução. Desta
forma, os modos de percepção se transformam graças às transformações das técnicas de
reprodução e seria deste modo transformado o caráter geral da arte
142
. Para Benjamin, “o que
se atrofia na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte é sua aura”, e tal conceito
136
ROCHLITZ, op. cit., p. 20. Nota 1.
137
BENJAMIN, “Obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, p. 166. In: Magia e técnica, Arte e
Política.
138
Idem, p. 167.
139
Idem.
140
Idem.
141
Idem.
142
BURGER, op. cit., p. 67. Nota 14.
65
expande os domínios da arte, e assim, pode-se dizer “que a reprodução destaca do domínio da
tradição o objeto reproduzido”
143
. Ao utilizar o objeto reproduzido há uma espécie de
atualização, a qual resulta num abalo da tradição.
Dentro deste movimento, que compreende as transformações das técnicas de
reprodução, muda-se a recepção destas obras. Ao invés da recepção contemplativa
característica do indivíduo burguês, deve surgir uma recepção das massas
144
. A recepção das
massas é ao mesmo tempo distraída e racionalmente verificadora. Ela não se baseia mais no
ritual, agora ela se funda na política.
Sobre essa questão, Bürger sugere primeiro uma construção benjaminiana do
desenvolvimento da arte e depois um esquema materialista de explicação. A construção
benjaminiana da história ignora a emancipação da arte frente ao sagrado operada pela
burguesia. Essa emancipação operada pela burguesia resultou na “arte pela arte” e no
esteticismo. A “arte pela arte” é a ressacralização, a rerritualização, contudo não tem nada a
ver com a primitiva função sacra da arte. O conceito “arte pela arte” produz o ritual a partir de
si mesmo, assumindo o lugar da religião. Dessa forma, pressupõe-se sua total emancipação do
sagrado. Esse processo é efetivado durante o esteticismo.
A explicação materialista benjaminiana da transformação dos modos de recepção pela
transformação das técnicas de reprodução, segundo Bürger, passava pelas vanguardas: “O
artistas de vanguarda, especialmente os dadaístas, teriam tentado, como ele diz [Benjamin],
antes mesmo da invenção do cinema, produzir efeitos cinematográficos com os meios da
pintura”
145
. Os dadaístas aniquilavam a aura com os instrumentos de produção, no entanto,
eles eram apenas os precursores de uma demanda no “novo meio técnico”.
É importante ressaltar que a perda da aura é uma intenção dos produtores de arte, num
tempo em que a transformação do “caráter geral da arte” não é mais o resultado de inovações
tecnológicas, mediada pelo comportamento consciente de uma geração de artistas. A
transformação do modo de recepção pela transformação das técnicas de reprodução adquire
143
BENJAMIN, op. cit., p. 168. Nota 137.
144
Segundo Benjamin, no ensaio da “obra de arte”, “fazer as coisas ‘ficarem mais próximas’ é uma
preocupação tão apaixonada das massas modernas como sua tendência a superar o caráter único de todos os
fatos através de sua reprodutibilidade. Cada dia fica mais irresistível a necessidade de possuir o objeto, de
tão perto quanto possível, na imagem, ou antes, na sua cópia, na sua reprodução”. In: BENJAMIN, Walter
.“Obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, p. 170.
145
BURGER, p. 68. Nota 14. No ensaio “obra de arte” Benjamin fala que somente agora podemos identificar a
impulsão profunda do dadaísmo, “o dadaísmo tentou produzir através da pintura (ou da literatura) os efeitos
que o público procura hoje no cinema”. In: BENJAMIN, “Obra de arte na era de sua reprodutibilidade
técnica”, p.191.
66
um outro lugar; não pode mais pretender explicar um processo histórico. Mas as técnicas de
reprodução podem constituir-se em hipótese para a possível generalização de um modo de
recepção que foi planejado pelos dadaístas.
Benjamin tentou fundamentar a sua teoria – digamos, materialisticamente – devido a
seu convívio com a arte de vanguarda e com a descoberta da perda da aura da obra de arte.
Contudo, Bürger acredita que esta teoria pode ser problemática, pois para ele, a ruptura
decisiva no desenvolvimento da arte – o significado histórico – tornar-se-ia mero resultado de
uma transformação tecnológica, já que em Benjamin, tanto a emancipação como a expectativa
emancipatória estão, diretamente, ligadas à técnica
146
. Conclui-se que a emancipação é um
processo que pode ser promovido pelo desenvolvimento das forças produtivas. As forças
produtivas preparam um campo de novas possibilidades para a concretização de necessidades
humanas que estão ligadas à consciência humana.
Com o teorema de Marx, o desenvolvimento das forças produtivas explode as relações
de produção; Bürger afirma que Benjamin tenta transportá-lo, do todo social para o
subsistema. É neste ponto teórico que os esquerdistas falam de uma teoria revolucionária de
arte em Benjamin. O conceito de forças produtivas de Marx está relacionado com o nível de
desenvolvimento tecnológico de uma determinada sociedade, como por exemplo, com os
meios de produção em máquinas e com as aptidões dos trabalhadores. A grande
problematização de Bürger gira em torno de como, a partir do conceito de Marx, é possível
deduzir um conceito de forças produtivas artísticas. Já que “na produção artística haveria de
ser difícil a subsunção, sob um único conceito, das capacidades e habilidades dos produtores
do estágio de desenvolvimento das técnicas materiais de produção e reprodução”
147
. Essa
afirmação é reiterada porque a produção artística tem sido um tipo de produção simples de
mercadoria. Os meios materiais de sua produção são pequenos para que chegue à qualidade da
peça em produção. No entanto, na teoria benjaminiana, o cinema se aplica bem, se pensarmos
que com ele acontece um efeito retroativo das técnicas de divulgação sobre a produção, e há
uma sujeição dos conteúdos das obras aos interesses de lucro. E quando há interesses de lucro,
há também atitude de consumo. Assim, as potências críticas das obras desaparecem. No
ensaio sobre a “obra de arte” parece ficar claro que o filme provoca uma crise da arte em
geral.
146
Em alguns ensaios e, sobretudo, no ensaio da “obra de arte”, Benjamin apresenta um entusiasmo pela
técnica característico dos anos 20. O mesmo entusiasmo apresentado por alguns liberais e pela vanguarda
revolucionaria russa.
147
BURGER, op. cit., p. 70. Nota 14.
67
Benjamin acredita que os novos meios técnicos, como o cinema, têm qualidade
emancipatória. Brecht, numa argumentação mais cuidadosa, afirma que estas possibilidades
emancipatórias estão embutidas. Contudo, depende da forma de utilização. A transposição do
conceito de forças produtivas na sociedade, no todo, para a esfera da arte é tão problemática
quanto a transposição do conceito das relações de produção. Contudo, a tese de Benjamin é
univocamente relacionada com Marx, no tocante à totalidade das relações sociais que regulam
o trabalho e a distribuição de seus produtos.
Já com a instituição arte, um conceito que descreve as relações dentro das quais a arte
é produzida, distribuída e recebida é introduzido. Dentro da sociedade burguesa, essa
instituição se caracteriza pelo fato de permanecerem (relativamente) intocados por pretensões
sociais de uso em relação aos produtos (da instituição arte). O mérito de Benjamin consiste
em ter apreendido com o conceito de aura, o tipo de relação entre obra e receptor que, na
sociedade burguesa, se produz a partir do interior da instituição arte. E essa lógica
obra/receptor funciona segundo o princípio da autonomia.
O princípio da autonomia sugere dois conhecimentos essenciais. O primeiro, pelo qual
as obras de arte simplesmente não produzem efeito por si mesmas, e tal efeito é determinado
pela instituição dentro da qual as obras funcionam. E o segundo, consiste em que o
conhecimento dos modos de recepção devem ser histórica e sociologicamente fundamentados,
como por exemplo, o aurático no indivíduo burguês. Desta forma, Benjamin descobre a
determinidade formal da obra de arte, no mesmo sentido que Marx atribui ao conceito e este é
o seu caráter materialista. Contudo, o teorema das técnicas de reprodução que destroem a arte
aurática é um modelo pseudomaterialista de explicação.
A questão da periodização do desenvolvimento da arte confunde a incisão da arte
sacro-medieval e arte profano-moderna, pois o esquema de arte aurática e não aurática pode
fazer com que não levemos em conta a conclusão metodológica de que as periodizações do
desenvolvimento da arte devem ser buscadas no âmbito da instituição arte e não no âmbito
das transformações dos conteúdos das obras individuais.
Isso significa que a periodização da história da arte não pode seguir as periodizações
da história das formações sociais e de suas fases de desenvolvimento, porque a tarefa da
ciência da cultura deve dar mais relevo às grandes rupturas no desenvolvimento de seu objeto.
E só através das grandes rupturas que a ciência da cultura pode prestar autêntica contribuição
à investigação da história da sociedade burguesa. Bürger sintetiza a sua crítica afirmando que
“as condições históricas de possibilidade da autocrítica do subsistema social arte não se
68
deixam vir à luz com o auxílio do teorema benjaminiano”
148
. O que deve ser feito é superar a
relação de tensão, constitutiva para a arte na sociedade burguesa, entre instituição arte e os
conteúdos das obras individuais. Haja vista que arte e sociedade não podem ser excludentes,
deve-se considerar, portanto, que tanto o (relativo) descolamento da arte das pretensões de uso
(determinado pelo desenvolvimento da sociedade como um todo), quanto o desenvolvimento
dos conteúdos são fenômenos sociais.
No entanto, Bürger critica claramente a tese de Benjamin, “segundo a qual a
reprodutibilidade técnica das obras de arte força um outro modo de recepção (não
aurático)”
149
. O desenvolvimento das técnicas de reprodução não deve ser interpretado como
variável independente, porque ele próprio é dependente do todo social. E, também, não deve
atribuir unicamente ao desenvolvimento dos procedimentos técnicos de reprodução a ruptura
decisiva no desenvolvimento da arte na sociedade burguesa. Por exemplo, o significado do
desenvolvimento técnico no desenvolvimento da pintura, com o advento da fotografia, a partir
do qual a fotografia produz efeito de atrofia da função mimética na pintura
150
, ou seja, a
pintura não precisa mais se preocupar em “imitar” perfeitamente a realidade, porque a
fotografia já captura o instante de maneira precisa.
Benjamin entende o surgimento da “arte pela arte” como uma reação ao advento da
fotografia. Contudo, a teoria da “arte pela arte” não é simplesmente a reação frente a um novo
meio de reprodução, mas sim, uma resposta ao fato de que, tendencialmente, na sociedade
burguesa desenvolvida, as obras de arte perdem a sua função social. Ou seja, há uma perda de
conteúdo político nas obras individuais
151
. A diferenciação do subsistema arte tem início com
a “arte pela arte” e se completa com o esteticismo. Tal diferenciação está em conexão com a
tendência à progressiva divisão do trabalho, característica da sociedade burguesa, a qual os
produtos individuais do sistema têm a tendência de deixar assumir qualquer função social,
ocorrendo uma cristalização do subsistema arte como sistema particular. Esta é, portanto, a
lógica da sociedade burguesa.
148
BURGER, op. cit., p. 73. Nota 14.
149
Idem, p. 74.
150
Desde o surgimento da fotografia, era inegável o sentimento de crise que surgiu com essa nova técnica.
Benjamin, no ensaio sobre a obra de arte, nos diz que a “controvérsia travada no século XX entre a pintura e
a fotografia quanto ao valor artístico de suas respectivas produções”, parece que, na realidade, “essa
polêmica foi a expressão de uma transformação histórica, que como tal não se tornou consciente para
nenhum dos antagonistas. Ao se emancipar dos seus fundamentos no culto, na era da reprodutibilidade
técnica, a arte perdeu qualquer aparência de autonomia. Porém a época não se deu conta da
refuncionalização da arte decorrente dessa circunstância”. In: BENJAMIN, “Obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica”, p. 176.
151
Os movimentos históricos de vanguarda, como uma reação à essa “arte pela arte”, visavam o coletivo, e não
somente obras individuais.
69
No contexto da progressiva divisão do trabalho, o artista se especializa, e este tem
como ponto alto o esteticismo. Isto quer dizer que a arte segue um princípio de
desenvolvimento especificamente estético. A autocrítica do subsistema social até é alcançada
com os movimentos de vanguarda, em conexão com a progressiva divisão do trabalho, no
entanto, a tendência do todo social é a cristalização de subsistemas, gerando especialização
das funções e lei de desenvolvimento. E a esfera da arte também está subordinada. Logo,
podemos nos perguntar como é refletida nos sujeitos essa cristalização dos subsistemas. A
resposta pode estar na atrofia da experiência – pela divisão do trabalho.
A experiência, segundo Bürger, é um feixe elaborado de percepção e reflexão, que
podem ser revertidas para a práxis vital. A atrofia da experiência não significa que o sujeito,
tornado especialista de uma esfera parcial, nada mais perceba ou reflita. O conceito aponta
para as experiências que o especialista vivencia no seu subsistema, que não são mais
reversíveis à práxis vital. A experiência estética, como experiência específica, seria, portanto,
a forma na qual a atrofia da experiência se manifesta na esfera da arte. E pode-se dizer ainda
que este é o lado positivo desse processo de cristalização do subsistema social arte, cujo lado
negativo é a perda da função social do artista.
No esteticismo, a ligação com a sociedade fica anulada, e esta ruptura marca o
fundamento deste tipo de produção artística. Até mesmo Adorno, no ensaio “O artista como
representante”
152
, faz uma tentativa de redenção do esteticismo. Já a intenção dos
vanguardistas residia na tentativa de direcionar a experiência estética – que se opõe à praxis
vital – tal como o esteticismo a desenvolveu, para a vida cotidiana. Aquilo que a ordem da
sociedade burguesa mais contesta, ordem esta orientada pela “racionalidade-voltada-para-os-
fins”, deve ser transformada em princípio de organização da existência.
Adorno, em Teoria Estética, descreve a contraditoriedade da categoria da autonomia,
pois segundo Bürger, a arte na sociedade burguesa é uma “deformação ideológica, na medida
em que não permite reconhecer sua condicionalidade social”
153
. Ele ainda afirma que o
conceito de “arte pela arte” tem a autonomia apenas como mera fantasia do produtor de arte.
Caso se defina “autonomia da arte” como uma espécie de independência da arte em relação à
sociedade, muitas interpretações podem ser geradas. Como, por exemplo, se entendermos o
“descolamento” da arte em relação à sociedade como essência dessa definição, estaremos
demarcando o conceito de “arte pela arte”. Contudo, não fica claro o deslocamento da arte
152
ADORNO, “O artista como representante”. In: ADORNO, T. Notas de Literatura I. Trad.: Jorge de
Almeida. SP: Duas Cidades, 2003.
153
BÜRGER, op. cit., p. 81. Nota 14.
70
como produto de um desenvolvimento histórico-social. Há quem diga, também, que a
independência da arte em relação à sociedade existiu apenas na imaginação dos próprios
artistas, e isso se configuraria na negação da própria autonomia.
A categoria de autonomia consiste em descrever a separação da arte da atividade
humana, ou seja, do contexto da práxis vital. Tal categoria forma conceitos que não permitem
mais reconhecer o processo como socialmente condicionado. Assim, a autonomia da arte é
uma categoria da sociedade burguesa, a qual se torna reconhecível e dissimula um
desenvolvimento histórico real. A explicação materialista da gênese da categoria de
autonomia se relaciona com o modo de produção da arte – no seu caso, ainda, artesanal –, no
qual o artista passa longe do sistema da divisão do trabalho. É justamente por causa deste
pressuposto real, o da permanência numa etapa artesanal de produção, que devemos entender
a arte como algo diferente, especial, ou até mesmo mágico.
Pode-se argumentar que o conceito de autonomia, no tocante ao seu lado subjetivo do
processo de autonomização da arte, tem como objetivo a tentativa de explicação que as
representações dos próprios artistas se associam às suas atividades, não ao processo de se
tornarem autônomas como um todo. Um outro momento seria a libertação de uma capacidade
de percepção, que até então era vinculada às finalidades de culto.
Na verdade, o que ocorreu foi a transição do cliente – da encomenda – para o
colecionador de arte (mercado emergente da arte). Ao longo do desenvolvimento histórico-
social da arte tem-se o surgimento simultâneo do colecionador e do artista independente. E
esse artista independente produz para um mercado anônimo, que se configurará na figura
histórica do colecionador. Do século XV para o XVI, a posição social do artista se transforma
e ele passa a assumir e executar grandes encomendas para o mercado da arte. Havia uma
espécie de corporação dos artistas, organizada para os produtores controlarem a produção
excessiva, contra a queda nos preços decorrentes da produção. Antigamente, a arte estava
restrita ao mercado de encomendas. Com o desenvolvimento do mercado de arte, obras
individuais passam a ser comercializadas.
Segundo Bürger, apoiado em Bredekamp, “o conceito e a repesentação de uma arte
‘livre’ (autônoma), acham-se desde sempre ligados à perspectivas de classe: que a corte e a
grande burguesia protegem a arte como testemunha (de) dominação”
154
. Ainda apoiado em
Bredekamp, Bürger aponta que o conceito de autonomia está relacionado à uma “realidade-
aparente” [Schein-Realität], no qual o atrativo estético é mobilizado como meio de
154
BÜRGER, op. cit., p. 87. Nota 14.
71
dominação. Desta forma, a autonomia da arte poderia ser entendida como algo negativo em
relação à arte comprometida.
Por exemplo, a arte ascético-religiosa aparece como forma precoce de partidarismo:
denúncia de uma aura de dominação com recheio de arte. Assim a arte engajada não seria arte
genuína. A gênese e a validade fazem parte da contraditoriedade do processo pelo qual a arte
se torna autônoma; e o estético acaba se configurando como objeto especial de fruição;
determinado tipo de prazer.
A ciência crítica não deve negar um pedaço da realidade social, como no caso da
autonomia da arte, e retrair-se em nome de algumas dicotomias. Como, por exemplo, a aura
de dominação versus receptibilidade de massas; e estímulo estético versus político-didática. A
ciência crítica deve propor a si mesma a dialética da arte que Benjamin condensou na
formulação: “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento
da barbárie”
155
. A argumentação de Benjamin, do ponto de vista de Bürger, “não pretende
condenar a cultura – uma ideia que é inteiramente estranha ao seu conceito de crítica como
redenção –, expressando antes a visão de que a cultura, até o presente, foi paga com o
sofrimento daqueles que dela se acham excluídos”. Desta forma, a “beleza das obras não
justifica o sofrimento que as produziu”
156
. O paradoxo se encontra em que não se deve negar à
obra de prestar testemunho desse sofrimento. É importante, diz Bürger, apontar o que é que
foi oprimido (aura de dominação), mas tampouco deve reduzi-las a isso. Horkheimer e
Adorno, na Dialética do Esclarecimento, reiteram que o processo civilizatório não pode ser
separado da opressão. O problema da autonomia reside em “se e de que forma” estão
conectados o descolamento da arte da práxis vital e o ocultamento das condições históricas
desse processo, por exemplo, no culto ao gênio.
O descolamento do estético da práxis vital está relacionado ao desenvolvimento das
idéias estéticas e à ligação da arte à ciência. Contextualizando, no Renascimento temos a
primeira fase da emancipação frente ao ritual, ou seja, é a libertação da arte de sua vinculação
imediata ao sagrado, este é um dos processos pelo qual a arte se torna autônoma. A arte
barroca está relacionada de uma maneira frouxa ao religioso, ela extrai seu efeito não do tema,
mas da riqueza de formas e de cores. É importante ressaltar que a arte atada ao ritual não pode
ser objeto de contrato, ela faz parte do ritual, da esfera ritualística. Assim, somente uma arte
tornada autônoma pode ser objeto de contrato. Portanto, a estética da mercadoria pressupõe
uma arte autônoma.
155
BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história”, p. 225. In: Magia e técnica, Arte e Política.
156
BÜRGER, op. cit., p. 90. Nota 14.
72
No século XVIII, com o desdobramento da sociedade burguesa a partir da conquista
política e do fortalecimento econômico, surge a estética sistemática, como uma disciplina
filosófica
157
. Essa estética sistemática surge como um novo conceito de arte autônoma e vem
junto com o moderno conceito de arte, o qual engloba a poesia, música, teatro, pintura e
arquitetura. A atividade artística é destituída de compromisso e de interesse, assim, ela é
distinta de todas as outras atividades. Desta forma, a criação artística é arrancada da totalidade
das atividades sociais e, consequentemente, de forma abstrata se confronta com o todo social.
Kant, na Crítica do juízo de gosto (1790), na qual o objeto de investigação filosófica é
o juízo estético de gosto – desinteressado –, já refletia sobre o lado subjetivo da arte em
relação à práxis vital. O interesse de Kant é a relação entre o juízo estético de gosto e a
faculdade de desejar. O estético, para ele, é concebido como uma esfera à parte do princípio
de maximização do lucro que predomina em todas as esferas da vida, é livre e desinteressado.
Está entre a sensibilidade e a razão. No sistema filosófico de Kant, a faculdade de julgar
ocupa uma posição central, porque ela tem a função mediadora entre o conhecimento teórico
(natureza) e o conhecimento prático (liberdade).
Já em Schiller, nas Cartas para a educação estética do homem, encontramos uma
determinação da função social do estético. Tal determinação é um paradoxo com Kant e o seu
juízo de gosto desinteressado. Pode-se dizer que para Schiller, “a arte, justamente em razão de
sua autonomia, de sua não-vinculação a propósitos imediatos, estaria apta a cumprir uma
tarefa que por nenhuma outra via pode ser cumprida: o fomento da humanidade”
158
. Segundo
o filósofo do romantismo, não se pode confiar nem na boa natureza do homem nem na
capacidade de cultivo do seu intelecto, e isto é resultado de um processo histórico, que remete
aos gregos, pois “o desenvolvimento da cultura […] destruiu a unidade dos sentidos e do
espírito ainda existente entre os gregos”
159
.
A divisão do trabalho condiciona a sociedade de classes e isso já foi demonstrado
historicamente. É só pararmos para analisar o conceito de alienação. O homem alienado está
alheio à realidade e acaba por não se reconhecer mais. O homem é condicionado e coagido no
meio em que está inserido. Para Schiller, essa divisão do trabalho não pode ser abolida por
meio da revolução política, porque a revolução só pode ser naturalmente feita pelos homens
que, coagidos pela divisão do trabalho, não puderam educar-se para a humanidade. A arte tem
o papel de re-unir as “metades” dos homens que foram arrancadas umas das outras. Ou seja,
157
O termo estética filosófica pode ser entendido como o resultado de um processo que é conceitualizado.
158
BÜRGER, op. cit., p. 96 e 67. Nota 14.
159
Idem, p. 98.
73
na sociedade da divisão do trabalho, a arte deve possibilitar a formação da totalidade das
capacidades humanas que o indivíduo, em sua esfera de atividades, vê-se impedido de
desenvolver. O pensamento de Schiller afirma que a arte, por negar toda e qualquer
intervenção direta na realidade, está apta a restaurar a totalidade do homem. E assim, a
própria edificação de uma sociedade racional estaria dependente de uma humanidade a ser
previamente realizada pela via da arte. Portanto, a função social da arte se configura no
desligamento de todos os contextos da práxis vital.
Bürger resume que a “autonomia da arte é uma categoria da sociedade burguesa. Ela
permite descrever a ocorrência histórica do desligamento da arte do contexto da práxis
vital”
160
. A validade do discurso da obra de arte está fundamentada no fato dos membros das
classes artísticas estarem, pelo menos temporariamente, livres da pressão da luta cotidiana
pela sobrevivência. “Esse desligamento da arte do contexto da práxis vital representa um
processo histórico, vale dizer, socialmente condicionado”. E é nisto que reside a não-verdade
da categoria de arte, o seu momento de deformação, a sua ideologia (no sentido do jovem
Marx). Podemos dizer que a categoria da autonomia não permite compreender o seu objeto
como algo que se tornou histórico. Na sociedade burguesa, a relativa dissociação da obra de
arte em face da práxis vital se transforma, assim, na (falsa) representação da total
independência da obra de arte em relação à sociedade. É por isso que o conceito de autonomia
da obra de arte é uma categoria ideológica, que congrega um momento de verdade –
descolamento da práxis vital – e um momento de não verdade.
Aqui nos importa entender como se deu a negação deste conceito de autonomia pela
vanguarda artística. Analisando rapidamente a arte sacra, a arte cortesã e a arte burguesa
chegaremos aos vanguardistas e aos seus objetivos.
Na arte sacra da Idade Média, a arte era objeto de culto, e o modo de recepção era
coletivamente institucionalizado. Já na arte cortesã, de Luís XIV, a arte era objeto de
representação, era a práxis vital do homem de fé, contudo, desvinculada do tema sacro. Este é
o primeiro passo para a emancipação da arte, na qual o artista possui uma singularidade de seu
fazer; a recepção é coletiva, há uma sociabilidade. Enfim, na arte burguesa, há uma
objetivação com a arte da autocompreensão da própria classe, dissociada da práxis vital com a
produção e recepção individualmente consumada. “A submersão solitária na obra é o modo
adequado de apropriação das criações [Gebilde] que estão afastadas da práxis vital do
burguês, por mais que ainda alimentem a pretensão de interpretá-la”
161
. Tal pretensão de
160
BÜRGER, op. cit., p. 100 e 67. Nota 14.
161
Idem, p. 103.
74
interpretar as obras de arte é revogada com o esteticismo, no qual a arte burguesa atinge o
estágio da autocrítica, e o conteúdo desta arte burguesa se configura, justamente, no
descolamento da práxis vital.
A finalidade de aplicação das obras de arte, entre sacra, cortesã e burguesa,
caracterizam-se com um corte decisivo em relação à arte sacra e à arte cortesã. Desta forma, a
arte burguesa se configura como representação da autocompreensão burguesa. Na produção
das obras de arte há uma mudança brusca da arte sacra, que era artesanal e coletiva, para a
arte cortesã e burguesa, que era individual. Já a recepção das obras de arte, na sacra e cortesã
ainda era coletiva, sendo uma sacra e a outra sociável. No entanto, com a arte burguesa, nota-
se um corte e a recepção se torna estritamente individual. Podemos exemplificar essa
recepção estritamente individual com a forma correspondente do romance
162
. Assim, “a
exibição da autocompreensão burguesa se dá num domínio da arte burguesa que se situa fora
da práxis vital”
163
.
O burguês consegue experimentar-se na arte como “ser humano” e, consequentemente,
desenvolve a totalidade de suas capacidades, sob a condição de permanecer fora da práxis
vital. Assim, a separação da práxis vital se transforma em característica decisiva da autonomia
da sociedade burguesa, e esta não envolve qualquer afirmação sobre o conteúdo da obra.
No século XVIII, a instituição arte é formada. Segundo Bürger, os conteúdos das obras
têm como ponto final o esteticismo, no qual a arte se transforma em conteúdo de si mesma.
Portanto, os movimentos históricos de vanguarda definem-se como um ataque ao status da
arte exatamente na sociedade burguesa, dentro dos moldes da instituição arte e do esteticismo.
A vanguarda nega não somente um estilo, “mas a instituição arte como instituição descolada
da práxis vital das pessoas”
164
.
Os vanguardistas têm como exigência de que a arte devesse, novamente, tornar-se
parte da esfera prática. Contudo, o conteúdo não tem a obrigação de ser socialmente
significativo. Porque as obras de vanguarda articulam em um outro plano, o qual difere dos
conteúdos das obras individuais. Para Bürger, a obra de arte “se direciona para o modo de
função da arte dentro da sociedade, que determina o efeito das obras da mesma forma como o
162
Para Benjamin, o romance (livro) origina-se com a imprensa e no “indivíduo isolado, que não pode mais
falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos nem sabe dá-
los”. Ele ainda diz que “o romance, cujos primórdios remontam à Antiguidade, precisou de centenas de anos
para encontrar na burguesia ascendente, os elementos favoráveis a seu florescimento”.BENJAMIN, “O
Narrador”. p. 201 e 202. In: Magia e técnica, Arte e Política.
163
BÜRGER, op. cit., p. 104. Nota 14.
164
Idem, p. 105.
75
faz o conteúdo particular”
165
. O esteticismo transformou este momento constitutivo da
instituição arte em conteúdo essencial das obras, assim, a soma da instituição arte mais
conteúdo resulta no distanciamento em relação à práxis vital: este é o questionamento
vanguardista da arte. Os vanguardistas “planejam” uma superação da arte no sentido
hegeliano
166
. Para corroborar essa afirmação, citamos uma passagem exemplar dos Cursos de
Estética:
Em seus inícios, a arte ainda retém algo de misterioso, um pressentir misterioso e
uma nostalgia, porque suas configurações ainda não deram inteiramente relevo, para
a intuição imagética, ao seu Conteúdo [Gehalt] pleno. Mas se o conteúdo
[Inhalt]completo se apresentou em configurações artísticas, o espírito que continua
olhando para frente volta-se desta objetividade para seu interior e a afasta de si. Tal
época é a nossa. Podemos bem ter a esperança de que a arte vá sempre progredir
mais e se consumar, mas sua Forma deixou de ser a mais alta necessidade do
espírito. Por mais que queiramos achar excelentes as imagens gregas de deuses e ver
Deus Pai, Cristo e Maria expostos digna e perfeitamente — isso de nada adianta,
pois certamente não iremos mais inclinar nossos joelhos.
167
A arte em si não deve ser destruída, mas sim, transposta para a práxis vital. Ao
assumir essa postura os vanguardistas trazem para si um momento essencial do esteticismo.
Mas o que é essa práxis vital que o esteticismo nega? Nada mais é do que a vida cotidiana do
burguês, ordenada segundo a racionalidade-voltada-para-os-fins. Contudo não é objetivo dos
vanguardistas integrarem a arte a essa práxis vital, porque eles rejeitam um mundo ordenado
pela racionalidade-voltada-para-os-fins formulado pelos esteticistas. O que eles almejam é
uma nova práxis vital. Essa nova práxis vital tem que ser organizada a partir dos conteúdos
das obras individuais abstraídas da práxis vital da sociedade estabelecida.
Segundo Herbert Marcuse, no ensaio Sobre o caráter afirmativo da cultura, a intenção
vanguardista está no duplo caráter da arte na sociedade burguesa, a qual é dissociada da práxis
vital por causa do “princípio de concorrência”. Os valores como humanidade, alegria, verdade
e solidariedade são tirados da vida real e mantidos na esfera da arte. A arte na sociedade
burguesa, portanto, tem um papel contraditório, pois “projeta a imagem de uma ordem
melhor, na medida em que protesta contra a perversa ordem existente”. E ao projetar a
imagem de uma ordem melhor, segundo Bürger, “alivia a sociedade estabelecida da pressão
165
BÜRGER, op. cit., p. 105. Nota 14.
166
O conceito benjaminiano de “crise da aura” remonta a Hegel, ao seu conceito de “fim da arte”. Para
Benjamin, Hegel entreviu o problema da obra de arte em seu tempo, pois para ele não estamos mais no
tempo de se render ao culto divino das obras de arte. As obras de arte não explicam mais, não dão conta da
realidade, não expressam mais o Absoluto. Agora a emoção que as obras de arte nos transmitem são mais
contidas. Assim, na estética hegeliana a arte foi substituída pela ciência filosófica. In: ROCHLITZ, op. cit.,
p. 205. Nota 1.
167
HEGEL, G. W. F. Cursos de estética I. São Paulo: Edusp, 1999, p. 117 e 118.
76
das forças voltadas para a transformação”
168
. Ao fazer esse movimento, a arte se torna
“afirmativa”, no sentido marcuseano. Logo, a arte possui um duplo caráter no sentido da
“distância frente ao processo social de produção e reprodução”, que “contenha tanto um
momento de liberdade quanto um momento de descompromisso”. Assim, a “tentativa dos
vanguardistas, de trazer a arte de volta ao processo da vida seja, ela mesma, um
empreendimento extremamente contraditório”. Porque a liberdade da arte “frente à práxis
vital é, ao mesmo tempo, a condição da possibilidade do conhecimento crítico da realidade”.
No entanto, uma arte separada da práxis vital, “mas que é inteiramente absorvida por esta,
perde – juntamente com a distância – a capacidade de criticá-la”
169
.
Com os movimentos de vanguarda ainda havia a tentativa de superação entre arte e
práxis vital. No entanto, após o advento da Indústria Cultural
170
desenvolveu-se uma falsa
superação da distância entre a arte e a vida. Assim fica patente a contraditoriedade dos
movimentos de vanguarda.
A superação da instituição arte pode ser encontrada nas três esferas da arte autônoma:
finalidade de aplicação, produção e recepção. Podemos exemplificar com o dadaísmo, que se
configura como manifestação vanguardista, ao invés de obra vanguardista, porque não possui
caráter de obra: “A categoria de obra de arte é totalmente transformada pelos
vanguardistas”
171
. Finalidade de aplicação da manifestação vanguardista (1): na arte
esteticista, a arte e a vida se dissociam e caracterizam se em seu conteúdo essencial, e dessa
forma, a arte se torna um fim em si mesma. A característica principal da arte no esteticismo é
a sua falta de conseqüência social. Já na arte de vanguarda há o princípio de superação da arte
na vida, portanto, o conceito de finalidade deixa de ter validade. Produção (2): a vanguarda
contrapõe ao individualismo artístico burguês “não apenas o coletivo, como sujeito da
criação, mas a negação radical da categoria da produção individual”
172
. Um exemplo disto é
Marcel Duchamp, quando assina produtos feitos em série e manda para exposições de arte.
Significa desprezo frente a todas as pretensões de criatividade individual. Assim, com o urinol
168
BÜRGER, op. cit., p. 107. Nota 14.
169
Idem, p. 107.
170
KONDER, Leandro. Walter Benjamin: marxismo da melancolia. Rio de Janeiro: Campus, 1988. Nesse
livro ele afirma que “juntos, Adorno e Horkheimer já esboçavam o movimento que os haveria de levar, em
sua reflexão sobre o capitalismo tardio, a uma drástica recusa da ‘indústria cultural’. Benjamin não
manifestava disposição para acompanhá-los. Embora permanecesse atento para as insídias da ‘indústria
cultural’ e estivesse sempre disposto a denunciar suas fintas ideológicas, preferia submetê-la a uma análise
crítica mais matizada do que aquela que Adorno e Horkheimer propunham. Benjamin queria captar as
ambiguidades, as contradições da ‘indústria cultural’: por isso, estava pronto para reconhecer e saudar os
avanços técnicos, as inovações, os impulsos criativos que podiam ocorrer mesmo no interior de uma
situação hostil ao novo”, p. 72.
171
BÜRGER, op. cit., p. 108. Nota 14.
172
Idem, p. 109.
77
de 1917, ele faz crítica à criatividade individual. A partir desta atitude artística ele desmascara
o mercado de arte como uma instituição questionável e coloca o problema: Qual é o princípio
da arte na sociedade burguesa? Vale ressaltar que os ready-made de Duchamp não são obras
de arte, e sim manifestações. Portanto, Duchamp, ao assinar o urinol, não está produzindo
obra de arte, ele está provocando, criticando. O sentido da provocação vem da oposição entre
objetos produzidos em série, por um lado, e assinatura e exposição de arte, por outro. No
entanto, esse tipo de provocação/crítica não pode ser repetida sempre, porque a provocação
depende daquilo contra o quê o indivíduo da criação artística se revolta. A crítica de Bürger
para a arte, depois das vanguardas, consiste no fato de que “um artista que assina e expõe um
cano de estufa, de forma alguma está denunciando o mercado da arte”. Ele acaba se
incorporando. E com isso consolida o oposto daquilo que se esperava. Hoje, apenas se
confirma a idéia de criatividade individual. Mas como se consolida o individualismo na arte?
Bürger responde que “o motivo para isso, há que buscá-lo no fracasso da intenção
vanguardista de uma superação da arte”
173
. A arte depois das vanguardas ou neovanguardas,
não passa de arte aplicada, inautêntica e com uma pretensão de protesto irregastável.
Recepção (3): a arte de vanguarda nega a produção e a recepção; o que vale é a reação do
público – respostas a uma provocação anterior –, na manifestação dadaísta vai da gritaria à
agressão física, e essa reação é de natureza coletiva. O “produtor e receptor permanecem
claramente divorciados, por mais que a plateia possa se tornar ativa”
174
. E essa é justamente a
lógica da intenção vanguardista, a superação da oposição produtor/receptor, e com isso chegar
à superação da arte como esfera descolada da práxis vital.
Os movimentos históricos de vanguarda, como o dadaísmo e o surrealismo possuíam
“instruções” e essas instruções causaram polêmica, pois muitos acreditavam que isto ia contra
a criatividade individual do artista. Podemos encontrar tais “receitas” no poema dada em
Tristan Tzara, “Pour faire un Poéme dadaiste”, e nos textos automáticos dos surrealistas, e
em André Breton nos próprios Manifestos. Segundo Bürger, a receita “deve ser tomada
inteiramente ao pé da letra, como referência a uma possível atividade do receptor”, porque a
produção própria “não deve ser entendida como artística, devendo antes ser apreendida como
parte de uma práxis vital libertadora”
175
. E este é o significado da exigência de Breton: é
preciso praticar a poesia. E ao praticar a poesia – no sentido proposto pelos surrealistas –
produtor e receptor convergem, e os conceitos perdem sentido. “Não há mais produtores e
173
Burger, op. cit., p. 110. Nota 14.
174
Idem, p. 112.
175
Idem, idem.
78
receptores, mas ainda e tão somente aquele que se serve da poesia como instrumento da
realização da vida”
176
. A posição de Benjamin quanto a estas produções vanguardistas pende
para “o truque que rege esse mundo de coisas – é mais honesto falar em truque que em
método – consiste em trocar o olhar histórico sobre o passado por um olhar político”
177
. No
entanto, o surrealismo parcialmente sucumbiu ao problema do solipsismo, ou seja, à regressão
aos problemas do sujeito individual. A saída de Breton é na exaltação da espontaneidade da
relação amorosa, do amor, e também na rígida disciplina do grupo. Contudo, Benjamin, no
ensaio “Surrealismo”, ao falar da iluminação profana do amor, cita em Breton o amor cortês,
e ao criticar esta forma de amor em Breton, Benjamin se apoia em Erich Auerbach: “um autor
contemporâneo dá-nos informações mais precisas sobre o amor provençal, que se assemelha
surpreendentemente à concepção surrealista”. Ele “escreve que todos os poetas do estilo novo
têm amantes místicas. Todos experimentam aventuras de amor muito semelhantes, a todos o
amor concede ou recusa dádivas que mais se assemelham a uma iluminação que a um prazer
sensual, e todos pertencem a uma espécie de sociedade secreta, que determina sua vida
interna, e talvez também a externa”
178
. Essas são características associadas à dialética da
embriaguez.
Sobre a dialética da embriaguez, Benjamin faz questionamentos do tipo: Se “não seria
cada êxtase em um mundo sobriedade pudica no mundo complementar?” Ou, “que outro fim
visa o amor cortês?” É ele, e não o amor comum, que liga Breton à jovem telepata (Nadja).
Desta forma, o objetivo do amor cortês não é senão demonstrar que a castidade pode ser
também um estado de transe, pois como afirma Benjamin, “o amor cortês desemboca num
mundo que não confina apenas com as criptas do Sagrado Coração ou com os altares de
Maria, mas também com a alvorada antes de uma batalha ou depois de uma vitória”
179
. O
amor cortês apresenta-se, portanto, como um amor esotérico, no qual “a dama é de todos os
seres o mais inessencial”. No caso de Nadja, Breton está mais próximo das coisas que cercam
Nadja, que da própria Nadja. E do que ele está perto afinal? Quais são as coisas nas quais ele
está perto? Breton está mais próximo dos objetos, dos objetos surrealistas. Esta é, para
Benjamin, uma surpreendente descoberta. Benjamin designa os objetos surrealistas não como
obras de arte, mas como documento. O mais revelador é que o surrealismo apresenta uma lista
canônica desses objetos. Então por onde começar?
176
BURGER, op. cit., p. 112. Nota 14.
177
BENJAMIN, op. cit., p. 26. Nota 62.
178
Idem, p. 24.
179
Idem, idem.
79
Os surrealistas com os seus “objetos” foram os primeiros a ter pressentido as energias
revolucionárias que transparecem no antiquado, ou seja, nas primeiras construções de ferro,
nas primeiras fábricas, nas primeiras fotografias, nos objetos que começam a desaparecer, nos
pianos de cauda, nas roupas de mais de cinco anos, nos locais mundanos, quando a moda
começa a abandoná-los
180
. Mas por que o surrealismo pode ser considerado revolucionário?
Porque “esses autores compreenderam melhor que ninguém a relação entre esses objetos e a
revolução”. Benjamin diz mais, “antes desses videntes e intérpretes de sinais, ninguém havia
percebido de que modo a miséria, não somente a social como a arquitetônica, a miséria dos
interiores, as coisas escravizadas e escravizantes, transformavam-se em niilismo
revolucionário”
181
. Segundo Rochlitz, com isso Benjamin percebe que o próprio presente se
configura como “paisagem primitiva petrificada”
182
. Ou seja, deve-se “converter em
percepção subjetiva o que a época tem de ‘pré-histórica’ e de irrespirável”. O feito do
surrealismo consiste, enfim, em “politizar o olhar histórico sobre o passado”, e isto podemos
remeter às Passagens e até às teses “Sobre o conceito de história”. Nesses textos, o ato de se
libertar das forças da embriaguez para a revolução provoca um despertar, e tal despertar joga
para o passado, “assim como ele pesa sobre o presente, um olhar político para fazê-lo aparecer
como paisagem primitiva petrificada”
183
.
Como a imagem pode preencher uma função revolucionária? Apoiados na
argumentação de Rochlitz, podemos dizer que “apresentando o envelhecimento acelerado das
formas modernas como uma produção incessante do arcaico que chama o verdadeiro sentido
da contemporaneidade”. Desta forma, será “por intermédio das ruínas da modernização” que
o movimento surrealista faz aparecer a “urgência de um retorno revolucionário”
184
.
Os movimentos de vanguarda negam determinações que são essenciais para a arte
autônoma, ou seja, negam a arte descolada da práxis vital, a produção individual, assim como
a recepção individual. Eles querem superar a arte autônoma para transpor a arte para a práxis
vital. O problema é que essa intenção fracassou, e ela nunca ocorrerá na sociedade burguesa.
A transposição da arte para a práxis vital só ocorrerá na forma de “falsa superação da arte
autônoma”. A falsa superação da arte autônoma na prática é o comportamento de consumo,
não como entendiam os vanguardistas. A literatura de entretenimento pode ser entendida
como instrumento de sujeição, assim como a estética da mercadoria, porque trata a forma
180
O que está ficando antiquado é, também, objeto do projeto das Passagens.
181
BENJAMIN, op. cit., p. 24. Nota 62.
182
ROCHLITZ, op. cit., p. 181. Nota 1.
183
Idem, p. 181.
184
Idem, p. 182.
80
como estímulo de venda, a arte se torna prática e subjugadora. Assim, do ponto de vista da
teoria da vanguarda, “a literatura de entretenimento e a estética da mercadoria se tornam
compreensíveis como formas da falsa superação da instituição arte”
185
.
A partir da experiência da falsa superação da autonomia, será necessário perguntar-se,
afinal, se uma superação do status de autonomia pode ser mesmo desejável, e se a distância
que separa a arte da práxis vital, antes de mais nada, não garante a margem de liberdade
dentro da qual alternativas para o existente passem a ser pensáveis. Com isso, é problemático
aplicarmos o conceito de obra de arte aos produtos de vanguarda, porque “alguém poderia
objetar que a crise do conceito de obra desencadeada pelos movimentos de vanguarda estava
sendo ocultada”
186
. Vale ressaltar que a dissolução da unidade tradicional da obra é uma
característica da modernidade. Cabe a nós a pergunta: A estética, hoje, deve renunciar ao
conceito de obra? Há quem afirme que a única saída seria um retorno à estética de Kant, pois,
a estética kantiana se configura como sendo a única estética atual, porque não parte de
nenhuma definição de obra de arte, mas do juízo estético. Desta forma, a categoria de obra
deixa de ser central, o que é valorizado é a reflexão sobre o Belo natural, o qual não é
produzido pelo homem, e nem possui caráter de obra. Portanto, o que entrou em crise? A
categoria de obra ou uma determinada acepção histórica dessa categoria?
Adorno, no livro Filosofia da nova música, diz-nos que as únicas obras que contam
hoje, são aquelas que não são mais obras. As obras têm, portanto, duplo significado. (1) Um
sentido geral, no qual a arte moderna possui caráter de obra. (2) E um sentido de obra de arte
orgânica (“obra redonda”), destruído pela vanguarda. Em sentido geral, a obra de arte possui
uma unidade do geral e do particular, e esta unidade é realizada da maneira mais diversa, nas
várias épocas do desenvolvimento da arte. Podemos representar a arte orgânica (simbólica),
como a unidade do geral e do particular sem mediações. E obra não-orgânica (alegórica),
como as obras de arte de vanguarda, com uma unidade mediada, a qual é afastada, ou não
produzida, senão pelo receptor.
Adorno, no livro Teoria Estética, fala-nos que a arte necessita de acordo para ser
dissonante: “Ainda onde a arte [...], em sua constituição, chega ao extremo em termos de
desacordo e de elementos dissonantes, seus momentos são, ao mesmo tempo, de unidade; sem
esta, eles nem sequer seriam dissonantes”
187
. Segundo Bürger, a obra de vanguarda não nega a
unidade como tal – por mais que os dadaístas tenham tido essa pretensão. Contudo, negam o
185
BURGER, op. cit., p. 113 e 114. Nota 14. Para este assunto confira também, Wolfgang Haug, Crítica da
estética da mercadoria.
186
BURGER, op. cit., p. 117. Nota 14.
187
ADORNO. In: BÜRGER, op. cit., p. 118. Nota 14.
81
tipo de unidade que relaciona a parte e o todo, característica da obra de arte orgânica. Os
movimentos históricos de vanguarda caracterizam-se como formas de atividade que não
poderiam mais ser compreendidas à luz da categoria de obra. Bürger exemplifica com as
manifestações dadaístas, que objetivavam a provocação do público. Nestas manifestações,
eles se preocupavam com a liquidação da arte como atividade dissociada da práxis vital.
“Mesmo em suas mais extremas manifestações, é de forma negativa que os movimentos de
vanguarda se relacionam com a categoria de obra”
188
. Um bom exemplo disso são os ready-
mades de Duchamp. Eles produzem sentido apenas em relação à categoria de obra de arte e
quando ele assina um objeto produzido em série. Desta forma, o ato de provocação assume
lugar da obra. Com isso, a categoria de obra pode se tornar obsoleta? Talvez. Duchamp
quando se volta contra a instituição social arte como tal, está colocando a própria obra contra
a instituição arte, e assim, contra ela (a obra) mesma. Contudo a história nos mostra que a
instituição arte resistiu aos ataques vanguardistas e continuou a produzir obras de arte.
No entanto, a estética atual não pode negar as transformações produzidas na esfera da
arte pelos movimentos históricos de vanguarda, nem que estamos numa fase pós-
vanguardista. Com o pós-vanguardismo a categoria de obra foi restaurada e os procedimentos
vanguardistas foram utilizados para fins artísticos. E isto, sem dúvida, é resultado de um
processo histórico. Desta forma, os objetivos dos movimentos de vanguarda – superação da
instituição arte e união da arte e vida – falharam. Então, o que aconteceu? A arte não foi
transposta para a práxis vital e a instituição arte continua a existir como instituição dissociada
da práxis vital. O que os vanguardistas conseguiram? Conseguiram que a instituição arte
passasse a ser reconhecida como uma instituição “e que a (relativa) ausência de consequência
da arte na sociedade burguesa passasse a ser reconhecida como seu princípio”
189
. Na arte
posterior aos movimentos de vanguarda, a categoria da obra é ampliada e restaurada, no
entanto, não podem simplesmente negar o status de autonomia e supor um efeito imediato.
Mesmo o objet trouvé que pode ser definido como o achado ocasional, hoje lhe é
conferido título de obra, e desta forma, perde o seu caráter anti-artístico, configurando-se em
obra autônoma e o seu lugar é o museu. Para Benjamin, esses objetos tinham íntima relação
com a atividade do flâneur: “o valor real ou sentimental dos objetos assim guardados é
sublinhado. São subtraídos à visão profana do não-proprietário [flâneur] e, sobretudo, os seus
contornos são apagados de modo significativo”
190
. Mas isto já não ocorre mais, o problema é
188
BURGER, op. cit., p. 119. Nota 14.
189
Idem, p. 120.
190
BENJAMIN, op. cit., p. 44. Nota 112.
82
o fato da vanguarda já ser histórica. As tentativas, como por exemplo, os happenings
(neovanguardistas) já não possuem valor de protesto, por causa da perda do efeito de choque,
e não retornam à práxis vital. Pelo fato de estarem inseridos em um contexto modificado, não
conseguem chegar nem ao efeito limitado das vanguardas históricas. Tal efeito limitado está
relacionado com o tempo, no qual as vanguardas adquiriram status de obra de arte, e isto quer
dizer que não é renovada a práxis vital, o momento, se é que houve momento, se perdeu.
Contudo na pop art podemos notar uma ligação com a vida das cidades norte-americanas, por
exemplo.
A neovanguarda – autônoma no verdadeiro sentido da palavra, pois nega a recondução
da arte à práxis vital – institucionaliza a vanguarda como arte, “independentemente da
consciência que o artista possui do seu fazer e da possibilidade dessa consciência ser
vanguardista”
191
. Temos como modelo desta consciência a exigência de Breton em se praticar
a poesia. O efeito social da neovanguarda é associado ao status de seus produtos. Assim,
esforços de uma superação da arte se tornam manifestações artísticas que assumem caráter de
obra.
Fica patente a problemática, portanto, de falarmos numa restauração da categoria de
obra de arte depois do fracasso dos movimentos históricos de vanguarda, porque “poderia dar
a impressão de que, para o desenvolvimento da arte na sociedade burguesa, os movimentos de
vanguarda não tenham tido um significado incisivo”
192
. Contudo, segundo Bürger, ocorre o
seu contrário, no sentido de que “as intenções políticas dos movimentos de vanguarda
(reorganização da práxis vital através da arte) ficaram por cumprir. Na esfera da arte, quase
não se pode superestimar seu efeito. Nela, a vanguarda produz de fato um efeito
revolucionário”
193
. Tal efeito revolucionário tem como fundamento destruir o conceito
tradicional de obra de arte orgânica e colocar em seu lugar um outro conceito. E esse outro
conceito pode ser sugerido como o “novo”.
Adorno, na Teoria Estética, parte do pressuposto que a arte do passado somente é
compreensível à luz da arte moderna. Isto está contido no capítulo sobre o Modernismo, o
qual é fundamental para se entender a obra de arte de vanguarda. Para o teórico crítico,
modernidade [Moderne] vem desde Baudelaire. O conceito é bastante abrangente,
compreende desde os antecedentes dos movimentos de vanguarda, os próprios movimentos e
a neovanguarda. O ponto de partida de Adorno é o conjunto da arte moderna como sendo a
191
BURGER, op. cit., p. 123. Nota 14.
192
Idem, p. 123.
193
Idem, p. 123 e 124.
83
única arte legítima de nosso tempo. No entanto, o que é central na sua teoria de arte moderna
é a categoria do “novo”, categoria esta historicamente inevitável. O modernismo nega a
tradição como tal, somente antes de ratificar o princípio burguês na arte, e tem o seu caráter
abstrato acoplado ao caráter de mercadoria da arte.
Para Adorno, “novo” é uma categoria da arte moderna, deduzida a partir da renovação
dos temas, motivos e procedimentos artísticos. Tal categoria está fundamentada na hostilidade
à tradição, característica da sociedade capitalista burguesa. Desta forma, “novidade” é uma
categoria estética que surge antes mesmo do modernismo. Por exemplo: com o trovador
cortesão (Minnesänger) temos o “novo lied”; com a tragicomédia francesa, onouveauté”, a
“novidade” é calculada e fixada como efeito. Em ambos existe algo diverso da pretensão de
novidade da arte moderna. E com os formalistas russos, temos uma renovação dos
procedimentos literários. Esses três exemplos apresentados apontam o que é diferente no
conceito de “novo”. O conceito de Adorno representa o modernismo e a sua radical ruptura de
uma tradição, que é toda negada. Este é um ponto difícil e bastante criticado. Segundo Bürger,
“Adorno tende a transformar, pois, a ruptura com a tradição assinalada pelos movimentos
históricos de vanguarda, ruptura historicamente única, em princípio de desenvolvimento da
arte moderna”
194
. Novidade pode ser entendida como a marca sob a qual sempre os mesmos
bens de consumo são oferecidos ao comprador. Bürger sinaliza para o argumento de Adorno
ter problemas quando afirma “que a arte se ‘apropria’ da marca dos bens de consumo”. E
assim, “a categoria do novo na arte é uma duplicação necessária daquilo que domina a
sociedade de consumo”
195
. E, portanto, só subsiste se também forem vendidos os bens que
produz, “faz-se indispensável seduzir constantemente o comprador com o atrativo da
novidade do produto”
196
. Assim, a arte também está submetida a esta coerção. Para Adorno, a
arte “pretende reconhecer a resistência contra a sociedade na própria lei que a domina”
197
.
Desta forma, a categoria do novo é uma categoria aparente, o “novo” é somente
“embalagem”. Nesta passagem, Bürger problematiza a argumentação de Adorno: “Se a arte se
ajustar ao mais superficial da sociedade de consumo, fica difícil compreender como consegue,
exatamente através desse recurso, oferecer resistência a essa mesma sociedade”
198
.
Em Adorno, o modernismo é a arte pela “mimese do petrificado e do alienado”, e ele
poderia ter sido alcançado por Andy Warhol. Sobre isso, Bürger reflete: “a reprodução de cem
194
BURGER, op. cit., p. 127. Nota 14.
195
Idem, p. 127.
196
Idem, p. 127 e 128.
197
Idem, p. 128.
198
Idem, idem.
84
latas Campbell só inclui resistência contra a sociedade de consumo para quem nelas queira
ver tal resistência”
199
. A “mimese do petrificado” significa uma mostra daquilo que é o caso; e
está contido na esperança de que a reprodução possa tornar reconhecível algo que, do
contrário, permaneceria não reconhecido.
Os limites de aplicabilidade da categoria do “novo”, no tocante à compreensão dos
movimentos históricos de vanguarda, residem em que as vanguardas provocam ruptura com a
tradição, e com isso superação da própria instituição arte; tal ruptura chega à uma
transformação do sistema de representação. É inegável, portanto, que há “algo de novo”, e
este novo é geral, e inespecífico para descrever com precisão a radicalidade da ruptura com a
tradição, ou seja, não há distinção entre inovação da moda e inovação historicamente
necessária. “Com os movimentos de vanguarda, a sucessão histórica dos procedimentos e
estilos foi transformada numa contemporaneidade do radicalmente diverso”
200
, a isto implica
que, hoje, nenhum movimento artístico pode se achar historicamente mais avançado que
outros movimentos. Adorno pôde ver os movimentos de vanguarda não como históricos, mas
vivos no presente. Somente alguns neovanguardistas apoiados em Adorno procuram uma
aspiração política em suas produções artísticas.
A categoria do “acaso”, ou melhor, do “acaso literário” pode ser notada na literatura
desde o romance cortesão da Idade Média, segundo Bürger, apoiado em Köhler. Ele se
relaciona com o material e sua resistência, produtora de acasos. Por exemplo, os poemas
dadaístas ou os happenings são consequências de um estado da sociedade, e o que se
manifesta através do “acaso” está livre da ideologia e da falsa consciência. O devotamento ao
material e sua resistência são características da arte de vanguarda e da neovanguarda.
O acaso objetivo [hasard objectif] dos surrealistas pode demonstrar quais esperanças
os movimentos de vanguarda associavam ao acaso, ou melhor, qual a “ideologização
pretendida com essa categoria”
201
. Logo no início de Nadja (1928) notamos uma série de
acontecimentos estranhos. Tais acontecimentos configurariam aquilo o que os surrealistas
entendiam por “acaso objetivo”. No entanto, esses “acontecimentos estranhos” seguem um
padrão básico: “dois incidentes por apresentarem um ou mais sinais coincidentes, são
colocados em relação um com o outro”
202
. Podemos exemplificar com a passagem do
Mercado das pulgas [Marche aux Puces]. Breton, em companhia dos seus amigos, folheia um
199
BURGER, op. cit., p. 128. Nota 14.
200
Idem, p. 130 e 132.
201
Idem, p. 133.
202
Idem, idem.
85
livro de Rimbaud
203
. Eles encontram uma vendedora que escreve poesia (assim como eles) e
leu o Camponês de Paris, de Aragon. O “acaso objetivo”, segundo Bürger, “baseia-se na
seleção de elementos semânticos congruentes [...], em acontecimentos independentes um do
outro”
204
. Tais elementos semânticos congruentes apontam para um sentido impossível de ser
compreendido. Ou seja, “o acaso comparece ‘por si mesmo’”
205
, mas também, é necessário
uma disposição prévia que permita observar ao acaso. Para Valéry, o acaso é passível de ser
produzido, mas os surrealistas não o produzem, eles dedicam uma atenção redobrada (registro
de “acasos”) em tudo o que se encontra fora da expectativa provável. Os surrealistas partem
da “experiência de que uma sociedade ordenada segundo a racionalidade-voltada-para-os-fins
limita cada vez mais as possibilidades de desdobramento do indivíduo”
206
. Afinal, o que os
surrealistas querem? Eles querem descobrir momentos de encantamento, do imprevisível, do
mágico, na vida cotidiana. Tem a atenção dirigida aos “fenômenos que não têm lugar num
mundo ordenado segundo essa racionalidade-voltada-para-os-fins”
207
.
A descoberta do maravilhoso no cotidiano implica no enriquecimento da experiência
do “homem-urbano”, o qual “renuncia a toda e qualquer planificação em favor de uma
receptibilidade integral às impressões”
208
. Mas o que os surrealistas realmente objetivam é
conseguir provocar o extraordinário. E como eles vão conseguir provocar o extraordinário?
Através da fixação em determinados lugares [lieux sacrés], e o esforço por uma mythologie
moderne indicam que ao dominar o acaso, consegue-se tornar repetível o extraordinário.
Aqui, o ideológico é a tendência a reconhecer no acaso, algo como um sentido objetivamente
dado. E a atribuição de sentido é sempre obra de indivíduos e grupos. Para os surrealistas tem
a ver com a constelação ocasional de coisas ou de vivências, que são registradas como “acaso
objetivo”. No entanto, o sentido pode escapar à fixação, mas ele tem que ser encontrado na
realidade. Para isso, o indivíduo burguês tem que renunciar voluntariamente ao seu modo de
vida, voltado para a sociedade da “racionalidade-voltada-para-os-fins”, para ser um indivíduo
que protesta, e é descompromissado com esses fins. É importante que o sentido do acaso
203
O livro, Saison en enfer de Rimbaud, na opinião de Benjamin, é o livro original do movimento. O autor
acredita que ele representa o movimento no período em que é escrito o “O Surrealismo”. Contudo, para os
próprios surrealistas, esse texto não apresenta nenhum segredo. Ele já foi revelado. Benjamin cita Rimbaud
para exprimir, afinal, o que estava “em jogo” naquele período. Para Benjamin “não há comentário mais
cortante e mais definitivo que o escrito por Rimbaud à margem do seu próprio exemplar da Saison, depois
do verso Sur la soie dês mers et des fleurs arctiques’: elas não existem (‘elles n’existent pas’). In:
BENJAMIN, op. cit., p. 22. Nota 62.
204
BURGER, op. cit., p. 133. Nota 14.
205
Idem, idem.
206
Idem, p. 134.
207
Idem, idem,
208
Idem, idem.
86
permaneça incompreensível, pois se fosse determinado, tornaria a se dissolver em relações
ligadas à “racionalidade-voltada-para-os-fins”. Dessa forma, perdendo o seu valor de protesto.
No entanto, a regressão a uma “postura passiva de expectativa” se volta contra a sociedade
estabelecida. O problema reside em que os surrealistas não aceitam que “um determinado
estado de dominação da natureza torna indispensável a organização social”
209
, e assim,
correm o risco de seu protesto além de ser contra a sociedade burguesa, também seja contra a
socialização enquanto tal. E isso pode ser apontado como um erro surrealista.
O que está sendo criticado pelos surrealistas? A “racionalidade-voltada-para-os-fins”,
e não o lucro enquanto princípio que domina a sociedade capitalista burguesa. E aí o que pode
figurar como símbolo de liberdade é justamente o acaso, capaz de submeter o homem àquilo
que lhe é heterônomo.
A teoria da vanguarda surrealista tem o “acaso” como categoria ideológica, ou seja, “a
produção de sentido, que é uma produção do sujeito humano, aparece como produto da
natureza, que só precisa ser decifrado”
210
. A recondução à natureza do sentido produzido em
processos comunicativos não depende de uma lei, ela se encontra associada a uma postura
abstrata de protesto – estamos falando da fase inicial do movimento surrealista. A categoria
do acaso possui um significado decisivo para a autocompreensão do movimento surrealista,
porque é uma categoria ideológica que permite a compreensão da intenção do movimento, e
também a possibilidade de criticá-lo. Há dois “tipos” de acaso: o acaso produzido e o acaso
percebido.
O “acaso produzido” subdivide-se em: produção indireta e produção direta. No acaso
produzido por produção indireta temos como exemplo a pintura dos anos 50, como: tachismo,
action painting... Estes exemplos podem ser tomados como desdobramento da
espontaneidade. Da espontaneidade do sujeito liberto de todas as coerções e regras de criação,
contudo, lançado de volta a uma subjetividade vazia. O resultado ao final é negativo, causal e
arbitrário. E quando a liberdade de criação é arbitrária, ela acaba sendo, quando muito, apenas
expressão individual. Já o acaso produzido por produção direta provém de cálculos exatos, o
que pode ser estranho à primeira vista: como um acaso pode prover de cálculos? Esses
cálculos se relacionam apenas com o “meio”, sendo os resultados de natureza imprevisível.
Em Adorno podemos ter como exemplo a música dodecafônica.
A idéia de Adorno sobre a “produção direta” está expressa na passagem de Teoria da
Vanguarda: “A renúncia à imaginação subjetiva embutida no princípio da construção, em
209
BURGER, op. cit., p. 135. Nota 14.
210
Idem, p. 136.
87
favor de um abandonar-se ao acaso da construção, é explicada histórico-filosoficamente por
Adorno como reação à perda de poder do indivíduo burguês”, assemelha-se à “categoria do
novo”. Em ambas – acaso produzido direto e categoria do novo – “a acomodação à alienação
é entendida como única forma possível de resistência contra ela própria”
211
. Assim como foi
dito acima, Adorno está falando, evidentemente, da música dodecafônica, na qual a
precedência da construção tem como lei a entrega do artista sem antes poder determinar as
consequências. Isso foi notado primeiramente na música e posteriormente na literatura, em
específico, na poesia concreta, na qual os conteúdos semânticos se retraíram de modo
considerável.
Cabe a pergunta: qual é a tarefa central de uma teoria da vanguarda? Para muitos
teóricos é o desenvolvimento de um conceito de obra de arte não-orgânica. O seu ponto de
partida pode ser o do conceito benjaminiano de alegoria
212
, o qual apresenta uma categoria
apropriada para a compreensão de aspectos ligados tanto à produção como ao efeito estético
da obra de vanguarda.
O conceito de alegoria em Benjamin está vigorosamente ligado à literatura barroca,
apresentado no livro Origem do drama barroco alemão. Contudo, pode-se dizer, também, que
o conceito de alegoria só vai realmente encontrar seu objetivo adequado na obra de
vanguarda. E por que isso acontece? Porque a “experiência de Benjamin no trato com as obras
de vanguarda é que possibilita tanto o desenvolvimento da categoria como sua aplicação à
literatura barroca, e não o inverso”. Assim, o “desdobramento do objeto no presente
determina a interpretação das etapas preliminares no passado”
213
. Para Bürger, não há
problema algum em se ler o conceito benjaminiano de alegoria como uma teoria da obra de
arte vanguardista (não-orgânica). Na teoria de obra de arte vanguardista não se deduzem
momentos de aplicação, mas sim, coloca-se a questão de como pode ser explicado o
surgimento de um determinado tipo de obra de arte – no caso, a alegórica – em períodos tão
diferentes na sua estrutura social. No entanto, não se trata de dizer que formas artísticas iguais
têm o mesmo fundamento social. Porque as formas artísticas não se acham ligadas a seu
contexto de origem, podendo em outros contextos sociais, assumir outras funções. O que deve
ser levado em conta é o sentido da transformação da função social da forma artística.
211
BURGER, op. cit., p. 139. Nota 14.
212
Segundo Rochlitz, a alegoria, tal qual Benjamin apresenta no livro sobre o drama barroco, “é a ‘essência que
eu tratava de salvar’. É portanto, o conceito estético que mais lhe importava. Era a partir dele que ele
empreende uma revisão da estética clássica, especialmente do idealismo alemão. Ele começa por destacar a
polaridade oculta entre símbolo e alegoria. [...] A forma alegórica verifica-se como resposta poética à
degradação que a linguagem sofre na concepção instrumental que dela tem a modernidade”. In:
ROCHLITZ, op. cit., p. 136. Nota 1.
213
BURGER, op. cit., p. 140. Nota 14.
88
O alegorista, no conceito de alegoria, arranca um elemento à totalidade do contexto
da vida e o isola, privando-o de sua função. A alegoria, portanto, representa o fragmento, em
oposição ao símbolo orgânico. Para Benjamin, a imagem é fragmento; falsa aparência da
totalidade que se extingue. O alegorista junta os fragmentos da realidade que foram
arrancados e através deste processo, cria sentido. Este é um sentido atribuído, e não do
contexto original dos fragmentos. Benjamin interpreta a atividade do alegorista como
expressão da melancolia
214
, em contínua alternância de envolvimento. O objeto, privado de
vida, torna-se alegórico por esse olhar melancólico. Na teoria da obra de arte vanguardista de
Benjamin, a esfera da recepção também é considerada: “a alegoria que é fragmento, apresenta
a história como decadência”
215
. O conceito de alegoria é uma categoria complexa,
“determinada a ocupar uma posição especialmente elevada na hierarquia das categorias que
servem à descrição da obra”
216
, e tal conceito une mais dois conceitos relativos à estética da
produção: a manipulação do material – o arrancar os elementos a um conceito; e a
constituição da obra – aglutinação de fragmentos e atribuição de sentido. Estes dois
conceitos relacionam-se à interpretação do processo de produção e recepção, ou seja, a
melancolia do produtor e a apreensão pessimista da história por parte do receptor. Na análise,
permite separar aspectos ligados à produção e ao efeito estético. Contudo, ao mesmo tempo,
permite pensá-los como unidade, assim, o conceito benjaminiano de alegoria está apto a
desempenhar uma teoria da obra de arte vanguardista. E a utilidade analítica do conceito de
alegoria se encontra no âmbito da estética da produção.
Do ponto de vista da estética da produção, se confrontarmos “obra de arte orgânica” e
“obra de arte não-orgânica” (vanguardista), a partir deste confronto teremos o ponto de
referência que é a montagem. A “obra de arte orgânica” (clássico)
217
, segundo Bürger,
“manipula seu material como algo vivo, cuja significação, advinda de situações concretas de
vida”
218
o artista respeita. Já para a obra de arte não-orgânica, “o material é apenas material”.
Somente se arrancado de seu contexto funcional ele irá ter um significado, ou seja, o
significado lhe é “emprestado”.
214
Podemos dizer que em Benjamin, o conceito de melancolia deriva-se a partir das pesquisas weberianas sobre
o espírito protestante e a ética do capitalismo.
215
BURGER, op. cit., p. 142. Nota 14.
216
Idem, idem.
217
Estou adotando a nomenclatura usada por Bürger, na qual, obra orgânica é denominada de “clássico”, sem,
no entanto, refere-se à obra de arte clássica. In: BÜRGER, op. cit., p. 143. Nota 14.
218
BURGER, op. cit., p. 143. Nota 14.
89
Para o “clássico”, o material, portanto, representa a totalidade. Ele reconhece e
respeita o portador de um significado, ao passo que o “vanguardista”, no material, vê um
signo vazio, habilitado a emprestar significado. Assim, para o vanguardista, o material é
arrancado da sua totalidade da vida, isolado, fragmentado.
A constituição da obra no “clássico” tem como intenção oferecer uma imagem viva da
totalidade, ao passo que a obra de vanguarda junta os fragmentos com a intenção de atribuição
de sentido. Isso pode ser entendido como indicação de que não há sentido, por isso há
necessidade de atribuição. A obra não é mais criada como um todo organizado, mas montada
a partir de fragmentos.
Até aqui discutimos o conceito de alegoria, e dele os determinados procedimentos.
Agora devemos distinguir aqueles que tentam uma “interpretação dos procedimentos”. De
antemão podemos dizer que não podem reivindicar o mesmo lugar dos conceitos que foi
explicado como próprios procedimentos. Em Benjamin, a interpretação dos procedimentos
culmina na figura alegórica da melancolia. Para ele, a atitude do produtor é em comum com o
vanguardista e o alegorista barroco.
A melancolia, definida por Benjamin, é uma “fixação no singular, que tem de
permanecer insatisfatória, porque não lhe corresponde nenhum dos conceitos gerais de
conformação da realidade”
219
. E essa fixação no singular é destituída de “esperança porque
está vinculada à consciência de que a realidade escapa ao indivíduo como realidade a ser
conformada”
220
.
Para Bürger, é natural que se veja no conceito de melancolia de Benjamin a “descrição
de uma postura intelectual do vanguardista, que não consegue mais, como antes dele o
esteticista, transfigurar a própria carência de função social”
221
. A sugestão de Bürger que
sustentaria essa explicação do que Benjamin designa por melancolia, encontra-se no conceito
surrealista do ennui
222
, condição decisiva para a transformação da realidade cotidiana,
transformação à qual se dedicam os surrealistas. A conduta do Eu surrealista é determinada
pela recusa em submeter-se às coerções da ordem social. Um bom exemplo é o Camponês de
Paris, de Aragon.
Cabe uma segunda interpretação que Benjamin oferece à alegoria. Ela é relativa à
estética da recepção, representa a história como história natural. Sendo assim, uma “história
fatal da decadência”, e parece também levar à arte de vanguarda. Tomemos o Eu surrealista
219
BÜRGER, op. cit., p. 144. Nota 14.
220
Idem, p. 144 e 145.
221
Idem, p. 145.
222
Ennui: vácuo; falta de posição social e de possibilidades de prática de ação.
90
como protótipo da atitude de vanguarda, o qual a sociedade é reduzida à natureza. Bürger
afirma que o “Eu surrealista procura restaurar a originalidade da experiência, estabelecendo
como natural o mundo produzido pelo homem”. O problema é que “com isso [...] a realidade
social fica protegida contra a idéia de uma provável mudança”
223
. Assim, a “história feita pelo
homem” é congelada em imagem natural, não se transformando em “história-da-natureza”
[Natur-geschichte]. “A metrópole é vivenciada como natureza enigmática, na qual o
surrealista se move como o primitivo na verdadeira natureza: em busca de um sentido que
deve poder ser encontrado naquilo que é dado”
224
. Os surrealistas acreditam extrair sentido do
fenômeno, a partir desta natureza enigmática.
A mudança de função operada pela alegoria, desde o barroco, operada em favor de um
outro mundo, contrapõe-se a uma afirmação do mundo operada pela vanguarda. Mas esta
afirmação do mundo, analisando os procedimentos artísticos, mostra-se frágil, com uma
“expressão do medo diante de uma técnica que se tornou onipotente e de uma organização
social que reduz ao extremo as possibilidades de ação do indivíduo”
225
.
Retomando, a obra de arte orgânica traduz-se como obra da natureza. Em Kant,
contemplação do belo natural. Em Lukács, relaciona-se com a tarefa do realista em
contraposição com a do vanguardista. Porque Lukács pretende a superação da abstração; da
produção da aparência da natureza. Assim, a obra de arte orgânica “procura tornar
irreconhecível seu caráter de objeto produzido”
226
. E a obra de arte de vanguarda é,
assumidamente, um produto artificial, um artefato; que tem como princípio básico a
montagem. A “obra montada” é composta a partir de fragmentos da realidade. Ela rompe com
a aparência de totalidade. Segundo Bürger, “a intenção vanguardista de destruição da
instituição arte [...] é realizada na própria obra de arte”. Segue, “do intencionado
revolucionamento da vida através da recondução da arte à práxis vital, resulta um
revolucionamento da arte”
227
. A obra de arte orgânica nos transmite uma impressão unitária,
em que momentos individuais apontam para o todo. Ao passo que na obra de arte de
vanguarda, os momentos individuais mais livres podem ser interpretados de forma unitária ou
em grupos; o “todo da obra” se configura na soma da totalidade de sentido possível.
O conceito de alegoria pode ser entendido como uma categoria do conceito de
montagem. A montagem “supõe fragmentação da realidade” e se insere na fase de
223
BÜRGER, op. cit., p. 145. Nota 14.
224
Idem, idem.
225
Idem, p. 146.
226
Idem, p. 147.
227
Idem, idem.
91
constituição da obra. Podemos argumentar três “tipos” de montagem: nas artes plásticas, na
literatura e no cinema.
3.2 A Montagem
No cinema, a montagem se caracteriza como a justaposição de imagens fotográficas.
Através da velocidade tem-se a impressão de movimentos. Portanto, é um procedimento
técnico fundamental; “técnica inerente ao próprio meio”. Como exemplo, podemos citar o
filme Encouraçado Potemkim, a famosa cena do leão, na qual temos sequências naturais em
oposição a uma produção artificial do movimento, por meio do corte (montagem de imagens).
Inicialmente, na pintura, a montagem obteve status de princípio artístico. O precursor
é o cubismo, que com maior consciência destrói o sistema de representação que existia desde
o Renascimento. Podemos citar como exemplo os papiers collés de Picasso e Braque,
anteriores à Primeira Guerra. Destes papiers collés, podemos destacar duas técnicas. O
“ilusionismo” dos fragmentos de realidade colados, como um pedaço de cesto de vime ou
papel de parede. E a “abstração” da técnica cubista com que são tratados os objetos exibidos.
No entanto, ambos não se configuram propriamente na técnica da montagem. É apenas o “ato
de colar”, que pode ser, por exemplo, um pedaço de jornal. É um momento de provocação.
Não podemos supervalorizar esse momento de provocação, porque “os fragmentos de
realidade continuam inteiramente submetidos a uma composição imagética que se esforça por
criar um equilíbrio dos elementos individuais
228
. Podemos definir essa intenção como
reprimida. Ela ainda está preocupada com volume, cores... No entanto já se configura a
destruição da obra orgânica, mas não é “um questionamento da arte em si mesma, como nos
movimentos históricos de vanguarda”. Assim, o ato de colagem tem somente a intenção de
“produzir um objeto estético que escapa às regras tradicionais de julgamento”
229
. Ou seja, no
cubismo estamos falando de um certo estado de transição, como nas fotomontagens de John
Heartfield
230
, que podem ser chamadas de imagens para leitura [Lesebilder].
Heartfield faz uso da “técnica do emblema”, que consiste em associar “uma imagem a
dois diferentes fragmentos de textos, um (sempre enigmático) sobrescrito (inscriptio) e uma
legenda (subscriptio) mais extensa”
231
. A sua formulação de montagem tem cunho político e
228
BÜRGER, op. cit., p. 149. Nota 14.
229
Idem, p. 151.
230
“John Heartfield, cuja técnica transformou as capas de livros em instrumentos políticos”. In: BENJAMIN, “O
autor como produtor”, p. 128. In: Magia e técnica, Arte e Política.
231
BÜRGER, op. cit., p. 151. Nota 14.
92
um momento antiestético. As fotomontagens se aproximam do cinema, porque a montagem é
de difícil reconhecimento, e desta forma, se diferencia do ato de colar dos cubistas. No
entanto, se formos falar em Teoria da Vanguarda, devemos partir dos cubistas, pois foram eles
que inseriram fragmentos da realidade, que não foram produzidos pelo próprio artista. É
destruída a unidade do quadro, marcado pela subjetividade do artista. Segundo Bürger, “é
rompido um sistema de representação que se apoiava na reprodução da realidade, isto é, no
princípio de que o sujeito artístico deve operar a transposição da realidade”
232
. Cubistas e,
mais tarde, Duchamp, recusam-se a conformarem o espaço pictórico como um continuum.
Jogam com a oposição entre arte e realidade. A partir da colagem pode ocorrer uma
integração da realidade na obra de arte e com isso a questão: o princípio da colagem não
contrapõe muito mais uma resistência do que uma integração? E esta resistência possibilita
um novo tipo de arte engajada? A estas questões surge o procedimento da montagem: “livre
montagem de atrações conscientemente selecionadas, autônomas [...], com uma intenção
exata, no entanto, no sentido de um determinado efeito temático final”
233
. No ensaio, “O autor
como produtor”, sobre a montagem no dadaísmo, Benjamin sugere:
Pense-se no dadaísmo. A força revolucionária do dadaísmo estava em sua
capacidade de submeter a arte à prova da autenticidade. Os autores compunham
naturezas-mortas com o auxílio de bilhetes, carretéis, pontas de cigarro, aos quais se
associavam elementos pictóricos. O conjunto era posto numa moldura. O objeto era
então mostrado ao público: vejam, a moldura faz explodir o tempo; o menor
fragmento autêntico da vida diária diz mais que a pintura. Do mesmo modo, a
impressão digital ensangüentada de um assassino, na página de um livro, diz mais
que o texto. A fotomontagem preservou muito desses conteúdos revolucionários.
234
Em Adorno, o significado da montagem para a arte moderna possui também um
caráter revolucionário. Em uma passagem da Teoria Estética, ele deixa claro:
O brilho [Shein] da arte – esteja esta, graças à estruturação da empiria heterogênea,
reconciliada com aquele – deve ruir, na medida em que a obra admite em si mesma a
entrada de escombros literais, escombros da empiria destituídos de brilho, e nos
quais ela reconhece a ruptura e a refuncionaliza em efeito estético.
235
232
BÜRGER, op. cit., p. 153 - 154. Nota 14.
233
“Die Montage der Atraktionen [...]”, Ästhetik und Kommunikation, n. 13, dez. 1973, p. 77. In: BÜRGER, op.
cit., p. 220. Nota 14.
234
BENJAMIN, “O autor como produtor”, p. 128. In: BENJAMIN, Magia e técnica, Arte e Política.
235
ADORNO, Ästhetische Theorie. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970, p. 232 apud BÜRGER, op. cit., p.
154. Nota 14.
93
Diferentemente da obra de arte orgânica, o traço característico da obra de arte não
orgânica é “não produzir mais a aparência de reconciliação”
236
. Assim, a inserção de
fragmentos da realidade opera a transformação radical da obra de arte. Um quadro, por
exemplo, adquire outro status, “como signos, as partes não se referem mais à realidade, elas
são realidade”
237
. No entanto, Bürger acha problemática a atribuição de significado político
no procedimento artístico da montagem, como o faz Adorno. Bürger procede afirmando que é
problemático, porque os futuristas italianos e os vanguardistas russos depois da Revolução de
Outubro utilizaram esse procedimento. Mas na verdade, o maior problema reside na
atribuição de um significado fixo. Bürger parece preferir a abordagem de Bloch, baseada em
contextos diversos, o significado também pode ser diverso. Ele fala em “montagem de forma
direta” (capitalismo tardio) e em “montagem de forma indireta” (sociedade socialista). No
entanto os procedimentos não têm um significado definitivo. Assim, dentre as definições de
Adorno, temos que filtrar as que não têm um significado fixo.
Já falamos da técnica da montagem no cinema e na pintura, agora passamos a tratar
dos textos marcados pela técnica da montagem. Podemos mencionar os textos automático dos
surrealistas, sobretudo O camponês de Paris e Nadja. Nos textos automáticos, há destruição
do encantamento de sentido. Contudo é uma interpretação que não se prende “à apreensão [...]
lógicas, mas que se atenha aos procedimentos de constituição do texto”
238
. Assim, pode
resultar num significado relativamente consistente. Um bom exemplo disso é a enumeração de
acontecimentos individuais com que Breton inicia Nadja. Tais acontecimentos individuais
não têm conexão narrativa, todos seguem o mesmo padrão estrutural, ou seja, de natureza
paradigmática (a série de acontecimentos), por princípio inacabado.
A obra de arte orgânica é de padrão estrutural sintagmático, isto é, “as partes
individuais e o todo formam uma unidade dialética”
239
. Exemplo: as partes só podem ser
compreendidas a partir do todo, e o todo a partir das partes. Isso é rejeitado pela obra de arte
não orgânica, nesta as “partes” se “emancipam”. No caso do texto automático as imagens são
enumeradas. Caso falte alguma, o todo não se transforma substancialmente. Esta lógica vale
para Nadja. Então, o que é decisivo? É decisivo “o princípio de construção subjacente a uma
série de acontecimentos, e não cada acontecimento em sua particularidade”
240
. E isso acarreta
consequências para a recepção.
236
BÜRGER, op. cit., p. 154-155. Nota 14.
237
Idem, p. 155.
238
Idem, p. 156.
239
Idem, p. 157.
240
Idem, p. 158.
94
O receptor da obra vanguardista tem a experiência de que a apropriação de
objetivações intelectuais, formada com o contato com a obra de arte orgânica, é inadequada
para as obras de arte não-orgânicas. A obra vanguardista não cria impressão total – condição
para uma interpretação de seu sentido – nem clareza à impressão. Segundo Bürger, “o
receptor experimenta essa denegação de sentido como choque”
241
e este é intencional. O
choque alerta o “receptor para o fato de a sua própria práxis vital ser questionável e para a
necessidade de transformá-la”
242
. E, portanto, é um procedimento ambicioso e ao mesmo
tempo estimulante, pois visa uma mudança de atitude e se configura num meio de mudança da
práxis vital do receptor. No entanto, o efeito de choque não é específico. Assim, a atitude do
receptor não pode ser dada como decidida. Por exemplo, a reação do público às manifestações
Dada, as quais fogem da especificidade e dificilmente poderia ocorrer mudança de atitude na
práxis vital do receptor.
Será que a provocação não reforça ainda mais posturas existentes? Brecht e a sua
teoria do distanciamento apresentam uma tentativa de ultrapassar o inespecífico no efeito de
choque e recuperá-lo didaticamente. Pode ser uma saída. No entanto, o maior problema é a
impossibilidade de tornar duradouro esse tipo de efeito, pois “nada perde seu efeito com maior
rapidez do que o choque, por ser ele, de acordo com sua natureza, uma experiência única
243
.
Sobre o problema do efeito de choque na modernidade, podemos recorrer às
observações feitas por Benjamin
244
.
3.3 O Efeito de Choque
O efeito de choque tem que vir com surpresa, e isso quer dizer, que na repetição ele se
perde. No cinema o efeito de choque opera da seguinte maneira, segundo Benjamin, diferente
do quadro (imagem estática), o cinema trabalha com imagens em movimento,
o espectador percebe uma imagem, ela não é mais a mesma. Ela não pode ser fixada,
nem como um quadro nem como algo real. A associação de idéias do espectador é
interrompida imediatamente, com a mudança de imagem. Nisso se baseia o efeito de
choque provocado pelo cinema, que, como qualquer outro choque, precisa ser
interceptado por uma atenção aguda.
245
241
BÜRGER, op. cit., p. 158. Nota 14.
242
Idem, p. 158.
243
Idem, p. 159.
244
Para maior aprofundamento confira: “Sobre alguns temas em Baudelaire”, e “Obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica”.
245
BENJAMIN, “Obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, p. 192.
95
O “choque esperado” advém do público já preparado pelos jornais, assim o efeito de
choque é institucionalizado. Isso resultou de enérgicas reações do público à mera aparição dos
dadaístas e o mínimo de efeito sobre a práxis vital do receptor, que acabava “consumindo” ao
invés de modificar algo. Logo, o que permanece? Permanece somente o “caráter enigmático
das obras, a resistência que elas opõem à tentativa de lhes extrair sentido”
246
. Se o receptor
não aceita atribuições de sentido apoiadas numa das partes individuais da obra, ele terá de
entender o caráter enigmático da obra de vanguarda, inserida em um outro nível de
interpretação. Este outro nível está em oposição ao princípio do círculo hermenêutico, que
quer entender, quer fazer conexão entre o todo e as partes. O receptor que quer captar o
enigma da obra vanguardista não deverá buscar o sentido. Ele voltará a sua atenção para os
princípios de construção que determinam a constituição da obra, para encontrar uma chave
para o caráter enigmático do produto. Assim, a obra de vanguarda opera na recepção uma
ruptura que é parecida com o seu caráter fragmentário, não-orgânico, e simboliza a renúncia à
interpretação de sentido. O tipo de recepção provocado pelas obras de arte de vanguarda opera
uma transformação que foi decisiva para o desenvolvimento da arte. Com isso a atenção do
receptor não se volta mais para o sentido lido das partes – como é necessidade na obra de arte
orgânica –, agora a atenção do receptor se volta para o seu “princípio de construção”, no qual
a parte se transforma em recheio de um padrão estrutural.
Desta forma, a obra de arte de vanguarda requer novo método de apreensão, baseado
numa restauração dos procedimentos de apreensão científica do fenômeno arte. Contrapondo
métodos formais e hermenêuticos, para que ambos possam ser superados (no sentido
hegeliano de superação). A contraposição de métodos formais desemboca em uma síntese, a
qual possibilita a suposição de que a “emancipação das partes individuais, mesmo na obra
vanguardista, jamais progride no sentido de um total descolamento do todo da obra”. Segundo
Bürger, “mesmo onde a negação da síntese se torna um princípio criativo, é preciso que uma
unidade, por mais precária que ela seja, possa ainda ser pensada”
247
.
No tocante à recepção, pode se dizer que ela ainda pode ser compreendida
hermeneuticamente, ou seja, como totalidade de sentido. Mesmo na obra de vanguarda, “a
unidade absorveu a contradição”. Na obra de vanguarda, o todo da obra estabeleceu uma
relação contraditória entre partes heterogêneas.
Após os movimentos históricos de vanguarda, “a hermenêutica não pode ser
substituída por procedimentos formalistas, nem seguir sendo aplicada como processo intuitivo
246
BÜRGER, op. cit., p. 159. Nota 14.
247
Idem, p. 162.
96
de apreensão”. O que nos resta é modificar a hermenêutica. A proposta de Bürger é uma
“hermenêutica crítica”, mais apropriada para os métodos formais de análise de obras
literárias. Esta “hermenêutica crítica” substituiria a hermenêutica tradicional, ao passo que
esta se tornou “reconhecível como esquema [Raster] interpretativo”, comprometido “com
uma estética clássica”. A crítica deve operar “em lugar do teorema da necessária concordância
entre o todo e as partes, colocará a investigação das contradições entre as camadas individuais
da obra e, só a partir daí, vai inferir o sentido do todo”
248
.
3.4 A Política
A inteligência que fala em nome do fascismo deve desaparecer. A
inteligência que o enfrenta, confiante em suas próprias forças
miraculosas, de desaparecer. Porque a luta revolucionária não se
trava entre o capitalismo e a inteligência, mas entre capitalismo e
proletariado.
Walter Benjmin, “O autor como produtor”.
Falta apenas tratarmos do engajamento na Teoria da Vanguarda. Para falar em
engajamento, é preciso demonstrar como a vanguarda alterou o lugar do engajamento político
na arte e que o conceito de engajamento anterior se tornou obsoleto. Quando falamos em
Teoria de Vanguarda, não podemos dissociar a discussão do problema. A intenção dos
movimentos históricos de vanguarda consiste na destruição da instituição arte, a qual é
dissociada da práxis vital. Isso significa “ter-se tornado reconhecível o peso da instituição arte
para o efetivo impacto social da obra individual”
249
. Porque as obras de vanguarda, que são
criações não-orgânicas, têm suas partes operando em maior autonomia perante o todo. As
partes são “destituídas de seu valor como elementos constitutivos de uma totalidade de
significado e, ao mesmo tempo, valorizadas como signos relativamente autônomos”
250
.
Ao final do ensaio “O Surrealismo”, Benjamin faz a seguinte citação (mas omite a
fonte): “‘mobilizar para a revolução as energias da embriaguez’ – em outras palavras: uma
política poética? ‘Noùs en avons soupé. Tudo menos isso!’”. Para Benjamin, “o autor dessa
exclamação se interessará em saber até que ponto uma digressão sobre a poesia poderá
esclarecer as coisas”. Ele afirma isso baseado no fato de que o programa dos partidos
burgueses, nada mais é do que uma “péssima poesia de primavera, saturada de metáforas”.
248
BÜRGER, op. cit., p. 162. Nota 14.
249
Idem, p. 165 e 166.
250
Idem, p. 166.
97
Assim, para ele “o socialista vê ‘o futuro mais belo dos nossos filhos e netos’ no fato de que
todos agem ‘como se fossem anjos’, todos possuem tanto ‘como se fossem ricos’ e todos
vivem ‘como se fossem livres’”. Benjamin analisa, portanto, a “poesia de primavera” dos
partidos burgueses. Segue afirmando que “não há nenhum vestígio real, bem entendido, de
anjos, de riqueza e de liberdade. Apenas imagens. E o tesouro de imagens desses poetas da
social-democracia, seu gradus ad Parnassum? O otimismo”
251
. Para Benjamin, esse otimismo
desmedido não levará a nenhuma mudança política. O oposto desses poetas da social-
democracia pode ser verificado no texto de Naville. Nas palavras de Benjamin, “respiramos
outra atmosfera”, quando se coloca na
ordem do dia a ‘Organização do pessimismo’. Em nome dos seus amigos escritores,
Naville lança um ultimátum, diante do qual esse otimismo inconsciente de diletantes
não pode deixar de revelar suas verdadeiras cores: onde estão os pressupostos da
revolução? Na transformação das opiniões ou na transformação das relações
externas? É essa a questão capital, que determina a relação entre a moral e a política
e que não admite qualquer camuflagem
252
.
E para Benjamin, “os surrealistas se aproximam cada vez mais de uma resposta
comunista a essa pergunta”. A resposta, portanto, é a de um pessimismo integral, sem
exceção, de
desconfiança acerca do destino da literatura, desconfiança acerca do destino da
liberdade, desconfiança acerca do destino da humanidade européia, e principalmente
desconfiança, desconfiança e desconfiança com relação a qualquer forma de
entendimento mútuo: entre as classes, entre os povos, entre os indivíduos. E
confiança ilimitada apenas na I. G. Farben e no aperfeiçoamento pacífico da Força
Aérea. E então?
253
Benjamin constrói essa argumentação para justificar “a distinção estabelecida no
Traité du Style, de Aragon, entre metáfora e imagem”
254
. Assim, o autor volta à crítica
literária, dizendo que o livro de Aragon é “uma intuição estilística feliz, que precisa ser
ampliada. Ampliação, porque é na política que a metáfora e a imagem se diferenciam da
forma mais rigorosa e mais irreconciliável”
255
.
251
BENJAMIN, op. cit., p. 33. Nota 62.
252
Idem, p. 33.
253
Idem, p. 34.
254
O Tratado de Estilo de Aragon é o último livro surrealista escrito, antes do ensaio de Benjamin sobre o
surrealismo. In: BENJAMIN, op. cit., p. 33. Nota 62.
255
BENJAMIN, op. cit., p. 33. Nota 62.
98
Benjamin estava ao mesmo tempo tão perto e tão longe do futuro das vanguardas. Ele
conseguiu cumprir a sua tarefa de “observador alemão” e identificou os movimentos de
vanguarda, apreciou os elementos e identidades, no entanto, já pressentia, estando ele “no
vale”, que se “a dupla tarefa da inteligência revolucionária é derrubar a hegemonia intelectual
da burguesia e estabelecer um contato com as massas proletárias, ela fracassou quase
inteiramente na segunda tarefa, pois esta não pôde mais ser realizada contemplativamente”.
Ainda afirma que “isso não impediu os intelectuais de conceber continuamente essa tarefa
como se a opção contemplativa fosse possível, e de reclamar o advento de poetas, pensadores
e artistas proletários”
256
.
Para fundamentar o que Benjamin diz acerca da “falha” das vanguardas e, sobretudo,
do papel dos intelectuais e artistas, ele se apoiará em Trotski, no livro Literatura e
Revolução
257
. Segundo Rochlitz, no ensaio do surrealismo, “o abandono da arte é, talvez, um
dever do artista contemporâneo”. É justamente neste ensaio que Benjamin apresenta “um dos
textos mais radicais [...] em favor de uma subordinação da arte à política”
258
. Citamos o trecho
do “Surrealismo”:
dizia que eles [os intelectuais] só podem surgir depois de vitoriosa a revolução. Na
verdade, trata-se muito menos de fazer do artista de origem burguesa um mestre em
‘arte proletária’ que de fazê-lo funcionar, mesmo ao preço de sua eficácia artística,
em lugares importantes desse espaço de imagens. Não seria a interrupção de ‘sua
carreira artística’ uma parte essencial dessa função?
[Pois, desta forma,] as pilhérias
que ele conta se tornariam melhores. E ele as contaria melhor
259
.
Benjamin prossegue falando das pilhérias, do mal entendido e da ação que produz
imagens. Cabe a nós fazermos esse exercício de encontrar as imagens que procuramos, as
quais não se encontram em uma “sala confortável”.
Também na pilhéria, no insulto, no mal-entendido, em toda parte em que uma ação
produz a imagem a partir de si mesma e é essa imagem, extrai para si essa imagem e
a devora, em que a própria proximidade deixa de ser vista, aí se abre esse espaço de
imagens que procuramos, o mundo em sua atualidade completa e multidimensional,
no qual não há lugar para qualquer ‘sala confortável’, o espaço, em que uma palavra,
no qual o materialismo político e a criatura física partilham entre si o homem
interior, a psique, o indivíduo, ou o que quer que seja que desejamos entregar-lhes,
segundo uma justiça dialética, de modo que nenhum dos seus membros deixe de ser
despedaçado
260
.
256
BENJAMIN, op. cit., p. 33. Nota 62.
257
Em A História de uma amizade, Schollem comenta a importância desse livro para Benjamin. Benjamin leu
Trotski e se apóia nele para fundamentar a questão política em seu ensaio (“O Surrealismo”)
258
ROCHLITZ, op. cit., p. 177 e 178. Nota 1.
259
BENJAMIN, op. cit., p. 33. Nota 62.
260
Idem, p. 34 e 35.
99
Benjamin dirá que “em conseqüência dessa destruição dialética, esse espaço
continuará sendo espaço de imagens, e algo de mais concreto ainda: espaço do corpo”.
Segundo a análise benjaminiana, “não podemos fugir a essa evidência, a confissão se impõe:
o materialismo metafísico de Vogt e Bukharin não pode ser traduzido, sem descontinuidade,
no registro do materialismo antropológico, representado pela experiência dos surrealistas e
antes por um Hegel; Georg Buchner, Nietzsche e Rimbaud”
261
. Benjamin afirma que também
o coletivo é corpóreo, sendo assim, a phusis – para ele organizada na técnica – só pode ser
engendrada em toda a sua eficácia política e objetiva naquele espaço de imagens que a
iluminação profana nos tornou familiar. Para Rochlitz é “uma iluminação profana que incita à
ação lúcida”
262
. Benjamin conclui: “quando o corpo e o espaço de imagens se
interpenetrarem, dentro dela, tão profundamente que todas as tensões revolucionárias se
transformem em inervações do corpo coletivo, e todas as inervações do corpo coletivo se
transformem em tensões revolucionárias”. Será neste ponto que a realidade terá conseguido
superar-se, segundo o que consta no Manifesto Comunista. Será somente quando isto
acontecer que iremos nos emancipar e entender, de fato, as palavras de ordem do manifesto,
tanto o comunista, quanto o surrealista.
Retomando, tanto em Adorno como em Lukács podemos perceber a oposição entre
obra de arte orgânica e arte de vanguarda. Lukács se apóia na obra de arte orgânica – para ele
realista – como norma estética; ao passo que a obra de arte de vanguarda simboliza o
decadente. Já em Adorno, a obra de vanguarda (não-orgânica) é elevada a uma norma
(histórica) e, por conseguinte, condena os esforços por uma arte realista da atualidade, por
acreditar ser um retrocesso estético. No entanto, ambas as teorias da arte fazem constatações
decisivas no plano teórico.
Hegel historicizou a estética e apresentou a dialética forma-conteúdo concretizando-se
de várias maneiras, ou como arte simbólica (oriental), ou como arte clássica (grega), ou como
arte romântica (cristã). Para ele, o ponto alto está na arte clássica, na qual temos uma
interpenetração entre forma e matéria, assim resultando no ápice de desenvolvimento do
Espírito Universal [Welt geist]. A essência da arte clássica estava, seguindo as idéias de
Hegel, no espiritual que se expressa através de sua aparência exterior. E hoje, com a
reprodutibilidade técnica, vemos que isso não é mais possível, justamente porque o espiritual
não existe, somente temos reproduções. Já na época de Hegel, ele afirmava que mesmo na
arte romântica não é mais atingido este estado. Na arte romântica temos a “elevação do
261
BENJAMIN, op. cit., nota 62, p. 35. (Nota justificando esses autores estarem no texto).
262
ROCHLITZ, op. cit., p. 178. Nota 1.
100
espírito a si mesma”
263
. A interpretação do espiritual e do material concernentes à arte clássica
é desintegrada. O espiritual “se reconduz do que é exterior para sua própria interioridade e
estabelece a realidade exterior como sendo”, para Hegel, “uma existência inadequada”
264
.
Assim pode-se dizer que o filósofo antecipa o “ponto final do romântico”, e este dá lugar à
Filosofia.
Lukács adota momentos da concepção de Hegel, mas ao invés de manter a
contraposição hegeliana da arte clássica e da arte romântica, ele retoma entre arte realista e a
arte de vanguarda. Vale ressaltar que em Lukács a arte realista é desenvolvida de forma
materialista, como história da sociedade burguesa. O ano de 1848 marca o fim do movimento
burguês de emancipação: “o intelectual burguês também perde a capacidade de reproduzir a
sociedade burguesa, como sociedade que se transforma, na totalidade da obra realista”. Com a
imersão no naturalismo há uma perda de perspectiva de conjunto, e isso resulta na dissolução
do realismo burguês, que tem como ápice a vanguarda. Esse movimento é o de uma
“decadência historicamente necessária”
265
.
Para Adorno, a “obra de vanguarda é a única expressão autêntica possível do atual
estado do mundo”. O teórico crítico parte de Hegel, mas sem os seus juízos de valor, e tenta
pensar radicalmente a historização das formas de arte empreendidas por Hegel, mas “tenta
não dar a nenhum tipo historicamente surgido na dialética forma-conteúdo a precedência
sobre os outros”. Assim, a obra de arte vanguardista é apresentada como historicamente
necessária, no tocante “da alienação na sociedade do capitalismo tardio”
266
. Com isso, Adorno
rompe com a teoria normativa. No entanto, com a historização radical, o normativo ganha
ainda mais entrada na teoria, e assim como em Lukács, acaba impregnando-a.
Tanto para Lukács, como para Adorno, a “vanguarda é expressão da alienação na
sociedade do capitalismo tardio”. Mas para Lukács isso significa a “cegueira dos intelectuais
burgueses frente às verdadeiras forças históricas de oposição que trabalham por uma
transformação socialista dessa sociedade”
267
. Lukács tem uma perspectiva política que está
baseada na possibilidade de uma arte realista no presente, e isto não existe em Adorno. Para
Adorno, a “arte vanguardista fica sendo a única arte autêntica na sociedade do capitalismo
263
BÜRGER, op. cit., p. 167. Nota 14.
264
Idem, idem.
265
Idem, p. 168.
266
Idem, p. 169.
267
Idem, p. 170.
101
tardio”
268
. O retorno das obras orgânicas (realistas) é aos olhos de Adorno uma regressão que
pode ser suspeita de ideologia.
Vale citar uma importante nota do livro de Bürger, Teoria da vanguarda. Nesta nota,
ele afirma que pode surpreender “o fato de Adorno aceitar sem contestação o conceito do
progresso técnico no âmbito da arte”, porque ele, junto com Max Horkheimer, na Dialética do
Esclarecimento, problematizaram de “forma radical o progresso técnico” – que inegavelmente
abre a possibilidade de uma existência digna para todos, mas não o faz. No entanto, há uma
diferença de posicionamento “em relação à técnica industrial, por um lado, e à técnica
artística por outro”, e isto se explica “pelo fato de Adorno separá-las uma da outra”
269
.
Retomando, o grande problema da obra de arte orgânica reside no fato de que pela
forma, ela “promoveria a ilusão de um mundo são”
270
. Por mais que os conteúdos tentassem o
oposto, as contradições não seriam desnudadas. Portanto, estamos caminhando em direção à
um debate histórico, e nenhum dos autores mencionados (Adorno e Lukács) tematiza o que
realmente importa: “o ataque desfechado pelos movimentos históricos de vanguarda contra a
instituição arte”
271
.
O ataque contra a instituição arte é o acontecimento decisivo no desenvolvimento da
arte na sociedade burguesa, e isso, sem dúvida, “porque só ele tornou reconhecível a
instituição arte em seu papel determinante para o efeito da obra individual”. Os movimentos
históricos de vanguarda desvendaram o enigma do “efeito ou da carência de efeito na arte”; a
solução veio através do reconhecimento da instituição arte. Assim, nenhuma forma, orgânica
ou não-orgânica, pode “reivindicar para si a pretensão de validade”
272
, pois tal pretensão foi
liquidada pelos movimentos de vanguarda. Mesmo quando Lukács e Adorno tentam ainda
reivindicar essas formas, eles permanecem comprometidos com um período pré-vanguardista
da arte.
Adorno “salientou o significado da vanguarda para a teoria estética do presente”, mas
errou ao insistir em um novo tipo de obra de arte, e não na recondução da arte à práxis vital.
Adorno ainda insiste na autonomia da arte e que ela tem função na realidade. No entanto, a
vanguarda configura-se no “único tipo contemporâneo de arte”
273
baseada na destituição da
autonomia para a recondução da arte à vida. Mas o problema é que esta recondução não foi
efetuada, culminando no fracasso, e tal fracasso não ficou isento de conseqüências: “é verdade
268
BÜRGER, op. cit., p. 170. Nota 14.
269
Idem, p. 224.
270
Idem, p. 170.
271
Idem, idem.
272
Idem, p. 171.
273
Idem, idem.
102
que os movimentos históricos de vanguarda não conseguiram destruir a instituição arte, mas
com certeza destruíram a possibilidade do surgimento de uma determinada tendência artística
com pretensão de validade geral”
274
. Ou seja, destruíram a possibilidade de atribuição de
validade a normas estéticas. No lugar da observação normativa entra a análise da função
social. Nos dizeres de Bürger:
Em lugar da observação normativa, entra a análise de função, que faria do efeito
(função) social de uma obra, a partir da confluência dos estímulos nela projetados e
de um público sociologicamente determinável dentro de um marco institucional
(instituição arte), o objeto de investigação.
275
Outro fato de suma importância que deve ser ressaltado, além do fato de Adorno e
Lukács terem “passado batido” da instituição arte, é que ambos – “por razões relevantes para
a teoria”– rejeitaram a obra de Bertolt Brecht, “o mais significativo escritor materialista
contemporâneo”
276
. Ao que parece, Walter Benjamin foi o único dentre os três a acreditar no
potencial emancipatório da obra brechtiniana. O grande feito de Brecht foi ter se esforçado,
com consciência, para dar forma à relação entre obra e sociedade.
A saída apresentada por Bürger poderia ser a promoção de Brecht, a critério de
apresentação crítica. No entanto, se queremos “compreender o significado de Brecht no
contexto de sua época, não devemos transformar a sua teoria em marco de investigação”.
Outra saída seria “colocar os movimentos históricos de vanguarda como cesura no
desenvolvimento da arte na sociedade burguesa”. E, assim, “também a obra e a teoria de
Brecht deveriam ser determinadas em relação a essa cesura histórica”
277
.
Cabe a pergunta: portanto, como se situa Brecht em relação aos movimentos históricos
de vanguarda? Esta é uma questão complexa, pois a intenção de destruir a instituição arte não
foi compartilhada por Brecht, o que ele queria era transformar radicalmente o teatro da
burguesia culta. Ele encontra no esporte o modelo para o novo teatro, que tem por categoria
central o próprio entretenimento
278
. Esta também é uma categoria central para Benjamin no
ensaio da “Obra de arte”.
274
BÜRGER, op. cit., p. 172. Nota 14.
275
Idem, idem.
276
Idem, p. 173.
277
Idem, p. 174.
278
Sobre este modelo de teatro que se encontra no esporte Cf. Brecht, “Mehr guten Sport!. In: Schriften zum
Theater, v. I.p. 64-69.
103
Neste novo teatro de Brecht
279
, a arte é definida como um fim em si mesma, e
mantém-se a categoria central da estética clássica. No entanto, ao querer transformar a
instituição teatro e não destruí-la, Brecht se distancia dos representantes dos movimentos de
vanguarda. Então, o que aproxima Brecht dos vanguardistas? Segundo Bürger, o que o
aproxima é a “concepção da obra, na qual os momentos individuais ganham autonomia (esta é
a condição para que o distanciamento possa afinal surtir efeito), e, por outro lado, a atenção
dedicada à instituição arte”. Para Benjamin, “Brecht foi o primeiro a confrontar o intelectual
com a exigência fundamental: não abastecer o aparelho de produção, sem modificar, na
medida do possível, num sentido socialista”
280
. As vanguardas têm por objetivo atacar e
destruir a instituição arte, já Brecht trabalha com o conceito de refuncionalização
[Umfunktionierung], que está vinculado ao concretamente possível. O que Brecht “se propõe
são inovações técnicas, e não uma renovação espiritual, como proclamam os fascistas”
281
.
A tese de Bürger diz respeito não só à obra de Brecht, mas ao lugar do engajamento
político na arte de modo geral. O que fundamenta o engajamento político é o fato de que
graças aos movimentos históricos de vanguarda houve uma transformação, fundamental,
acerca do lugar do engajamento político na arte. No entanto, o engajamento político-moral já
existia na arte antes dos movimentos de vanguarda; mas ele estava em uma tensa relação com
a obra na qual ele se articulava. A obra de arte orgânica possuía, portanto, conteúdos
políticos-morais subordinados à organicidade do todo. Logo, tais conteúdos políticos-morais
“se tornam partes justamente do todo da obra para cuja constituição contribuem”, ou seja, há o
perigo de que o engajamento fique exterior à própria obra. Já no caso da obra de arte
engajada, ela só pode “ser bem sucedida quando o próprio engajamento é o princípio
unificador que a perpassa (inclusive em sua forma)”
282
.
É importante ressaltar, quando nos casos de organização da obra de arte a partir do
engajamento dá resultados, há um perigo que ameaça a tendência política: a neutralização do
conteúdo político da obra individual pela instituição arte. Ou seja, a obra que dá forma ao
engajamento é tida como mero produto artístico. E somente, os movimentos de vanguarda
“tornaram claro o significado da instituição arte para o efeito da obra individual”, pois o efeito
279
Para Benjamin, o teatro épico é o verdadeiro teatro – “é o verdadeiro teatro de nosso tempo” – “pois está à
altura do nível de desenvolvimento hoje alcançado pelo cinema e pelo rádio”. In: BENJAMIN, “O autor
como produtor”, p. 132 e 133. In: Magia e técnica, Arte e Política.
280
Idem, p. 127.
281
Idem, idem.
282
BÜRGER, op. cit., p. 176. Nota 14.
104
social não pode ser medido nela própria: “o efeito é [...] codeterminado pela instituição dentro
da qual a obra ‘funciona’”
283
.
Entre os anos 1920 e 1930, Benjamin e Brecht desenvolvem reflexões acerca da
mudança de função do aparelho da produção. Os ensaios “O autor como produtor”
284
e a
“Obra de arte” seriam impensados se não fosse pelos movimentos de vanguarda. Para “o autor
como produtor, o progresso técnico é um fundamento do seu progresso político”
285
. No
entanto, talvez não dê para transpormos para o presente as soluções esboçadas por Benjamin
ou Brecht.
Para a obra de vanguarda, o problema do engajamento é tão importante quanto o
ataque dirigido contra a instituição arte. A questão sobre a importância dos conteúdos
políticos na obra de vanguarda se coloca de forma diferente, assim como a parte individual
não se acha necessariamente subordinada a um princípio organizador; mesmo os conteúdos
individuais sendo esteticamente legítimos. Os efeitos dos conteúdos individuais não são
necessariamente mediados pelo todo da obra, ou seja, os conteúdos individuais são
inteiramente parciais. O objetivo da obra vanguardista é trazer à tona para a representação
[Darstellung], princípios divergentes, que tenham caráter de denúncia social justaposto com
uma atmosfera espiritual de decadência, sem que um momento seja o dominante. Na obra de
vanguarda o signo individual aponta para a realidade e o receptor pode atacar “seja como
declaração importante concernente à práxis vital, seja como instrução política”. Estas são
consequências para a colocação do engajamento na obra, pois como já foi dito acima, a obra
“não é mais concebida como totalidade orgânica”
286
, assim, o motivo político individual não
está mais subordinado ao todo da obra, ele atua como motivo isolado.
É a partir destas premissas que o tipo de arte de vanguarda se configura como um novo
tipo de arte engajada, na qual a dicotomia arte “pura” e arte “política” são superadas – esta
seria uma maneira. Para Adorno, o próprio princípio estrutural não-orgânico já seria
emancipatório, porque leva ao colapso “uma ideologia cada vez mais próxima de se fechar
num sistema”. Enfim, nesta concepção, a vanguarda e o engajamento se encontram no
princípio estrutural, o problema é que sendo assim, somente se define a arte engajada pelo
283
BÜRGER, op. cit., p. 177. Nota 14.
284
Na opinião de Konder: “o ensaio ‘O autor como produtor’ – uma conferência feita em abril de
1934 – apontava Brecht como exemplo de uma atitude revolucionária na ligação da vida com a arte, e via
nele um contraponto sério para as baboseiras pretensamente de esquerda que se encontravam nos versos de
Kästner [...]. A produção artística deveria contribuir para desenvolver as forças produtivas e transformar as
relações de produção; deveria se inserir no interior das relações de produção, na própria dinâmica da
modificação da sociedade”. In: KONDER, op. cit., p. 74 e 75. Nota 170.
285
BENJAMIN, “O autor como produtor”, p. 129. In: Magia e técnica, Arte e Política.
286
BÜRGER, op. cit., p. 178. Nota 14.
105
ponto de vista da forma e não do seu conteúdo. Para Bürger “falta pouco para que, na obra
vanguardista, as mensagens políticas se transformem em tabu”
287
.
A outra maneira de superação da dicotomia entre arte “pura” e arte “política” pode ser
argumentada da seguinte maneira: ao invés de “promover o próprio princípio estrutural
vanguardista não-orgânico à qualidade de mensagem política”, o princípio estrutural
vanguardista mesmo numa única obra, “possibilita a justaposição de motivos políticos e não-
políticos”. Ou seja, na base da obra de arte não-orgânica se torna possível um novo tipo de
arte engajada.
Infelizmente, a crítica da época não entendia a questão da base da obra de arte não-
orgânica, o que resultou em uma análise equivocada dos seus conteúdos políticos, pois a
crítica continuava a tratar a questão dos conteúdos políticos como se estivessem inseridos na
obra de arte orgânica. E isso acarretou o problema da crítica não ter tomado conhecimento da
transformação operada pelos movimentos de vanguarda. Na obra de vanguarda, os “motivos
individuais são inteiramente autônomos, o motivo político pode ter também um efeito direto,
sendo confrontado pelo espectador com sua própria realidade existencial”
288
. Brecht fez uso
desta possibilidade. Ele escreve a respeito no seu Diário de trabalho [Arbeitsjournal]:
[...] na composição teatral aristotélica e no modo de representar correspondente [...],
como a apresentação da fábula constitui um todo absoluto, é fomentada no
espectador a ilusão sobre o modo como os acontecimentos do palco se desenrolam
na vida real e nela se concretizam. os detalhes não podem ser individualmente
confrontados com as partes que lhes correspondem na vida real. Nada deve ser
“arrancado ao contexto” para ser eventualmente transportado para o contexto da
realidade. Isso é superado pelo modo de representar distanciador. a seqüência da
fábula é, aqui, descontínua; o todo unitário consiste de partes autônomas que,
imediata e respectivamente, podem – devem, na verdade – ser confrontadas com os
eventos parciais que lhes são correspondentes na realidade.
289
Desta forma, Brecht se caracteriza por ser vanguardista, na medida em que o tipo de
obra vanguardista, por libertar as partes do domínio do todo, possibilita um novo tipo de arte
política. Benjamin, no texto “O autor como produtor”, explica o teatro épico de Brecht: “O
teatro épico, disse ele, não se propõe desenvolver ações. Mas representar condições. Ele
atinge essas condições [...] na medida em que interrompe a ação”. E será justamente o ato de
interromper a ação que Brecht caracteriza por “épico”. Benjamin prossegue afirmando que a
“interrupção não se destina a provocar uma excitação, e sim exercer uma função
287
BÜRGER, op. cit., p. 178. Nota 14.
288
Idem, p. 179.
289
Brecht, Arbeitsjournal, p. 140 (registro de 3/08/1940) apud BÜRGER, op. cit., p. 179. Nota 14.
106
organizadora. Ela imobiliza os acontecimentos e com isso obriga o espectador a tomar uma
posição quanto à ação, e o ator, a tomar uma posição quanto ao seu papel”
290
. Ou seja,
Seu objetivo não é alimentar o público com sentimentos, ainda que sejam de revolta,
quanto aliená-lo sistematicamente, pelo pensamento, das situações em que vive.
Observe-se de passagem que não há melhor ponto de partida para o pensamento que
o riso. As vibrações físicas produzidas pelo riso oferecem melhores ocasiões para o
pensamento que as vibrações da alma. O teatro épico só é luxuriante nas ocasiões
que oferece para o riso.
291
Podemos compreender, a partir das colocações de Brecht, que mesmo as obras de
vanguarda falhando em sua intenção de revolucionar a práxis vital, ainda assim a obra de arte
passou a desenvolver uma nova relação com a realidade. Porque agora a realidade penetra na
obra, e também, a obra não se encontra mais fechada para a realidade. O problema reside no
limite do efeito político das obras de vanguarda, e este limite é dado pela própria instituição
arte, que dentro da sociedade burguesa continua sendo uma esfera descolada da práxis vital.
Com a arte depois das vanguardas, as possibilidades de criação se tornaram infinitas, e
com isso, não só a criação autêntica é dificultada, como a sua análise científica. Podendo,
assim, aplicar a ideia de Adorno “de que a sociedade do capitalismo tardio teria se tornado
irracional a ponto de talvez não ser mais compreensível teoricamente”
292
. Nos dias de hoje,
temos que classificar, quase como num processo de concurso ou sorteio, se uma produção é
artística ou não. O que é arte? E se nos questionamos se é arte ou não, imaginem o
questionamento se é uma arte que sinaliza para uma emancipação política, ou simplesmente
para a cristalização da instituição arte.
290
BENJAMIN, “O autor como produtor”, p. 133.
291
Idem, p. 134.
292
BÜRGER, op. cit., p. 184. Nota 14.
107
CONCLUSÃO
O que podemos concluir desta pesquisa é que ela procurou responder aos
questionamentos sobre os objetivos de reunificação da arte à práxis vital empreendidos pelas
vanguardas artísticas do início do século XX à luz do pensamento benjaminiano, bem como se
há uma teoria de arte na obra de Benjamin. Sobretudo na Parte II, nos apoiamos em Peter
Bürger para buscarmos o norte de nossa pesquisa, e assim recorremos a pensadores como
Kant, Schiller, Hegel, Lukács, Adorno e Brecht, para fundamentar a teoria do próprio
Benjamin.
Queremos, também, deixar claro que a presente pesquisa não tem pretensão de esgotar
o assunto, e muito menos dar por encerrada a discussão sobre a obra de arte. O que
pretendemos é “plantar” a discussão e tentar reavivá-la para os nossos dias. Ou seja, à luz do
que já foi discutido, pensar em estratégias para novamente tentar estetizar a vida.
Em momento algum, pretendíamos passar alguma visão pessimista, muito pelo
contrário. Nesta pesquisa, tínhamos a pretensão de demonstrar alguns aspectos do dadaísmo e
do surrealismo, já trabalhando alguns conceitos benjaminianos, e na Parte II discutir o lado do
impacto das vanguardas e seus objetivos em reunificar arte e vida, para assim avaliarmos
todos os âmbitos e os “porquês” das falhas.
A partir disso, esperamos ter alcançado o que propusemos no início, desde o resumo
desta pesquisa, que pretendia demonstrar um estudo sobre a teoria de arte em Benjamin e a
sua proximidade com os movimentos históricos de vanguarda – sobretudo o dadaísmo e o
surrealismo – e os fundamentos pelos quais o autor considerava apenas estes movimentos
como vanguarda artística.
Chegamos à conclusão de que o teatro de Brecht foi aquilo que mais se aproximou de
uma estetização da arte e da vida, e o próprio Benjamin ressaltou isso no ensaio de 1934, “O
autor como produtor”. Acreditamos ter conseguido relacionar a arte, a política e a revolução, a
partir do estudo dos dois ensaios fundamentais: “Surrealismo. O último instantâneo da
inteligência européia” e “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. Analisamos,
dentro da temática arte, política e revolução, o que Benjamin tinha por entendimento do
caráter emancipatório da arte e do uso da técnica. Nesse sentido, demonstramos em que
medida o pensamento de Benjamin, fundamentado na “crise da tradição”, pode ser abordado a
partir do movimento surrealista, da escrita automática e da mágica surrealista.
108
Sob esse aspecto, alcançamos o objetivo desta pesquisa que era apontar o conceito de
vanguarda, dentro de suas limitações e caracterizações próprias. Identificamos o papel da
instituição arte e como os vanguardistas conseguiram que tal instituição fosse reconhecida.
Porque até então não se tinha o conhecimento de que na esfera da arte houvesse uma
instituição configurada desta maneira. Vimos também algumas nuances da chamada arte pós-
vanguardista e de como ela está interligada a uma outra configuração e objetivação de arte.
A nós cabe a tentativa de elucidação daquilo que Benjamin chamou de Iluminação
Profana e o seu uso para a revolução.
Esperamos ter conseguido compreender um pouco destes conceitos, e mais importante
ainda, que esta discussão não se encerre por aqui. Temos que sair do mundo das ideias e tentar
realmente modificar a nossa realidade social, o nosso mundo.
109
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